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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


Ronda Noturna / Nora Roberts
Ronda Noturna / Nora Roberts

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Ronda Noturna

 

A beleza de uma mulher pode excitar os homens até a loucura...

Sua voz provocante acende-lhe a chama do desejo. Mas seus olhos têm também uma expressão de desconcertante inocência — uma combinação de anjo e demônio que leva os homens ao delírio. E o investigador de polícia Boyd Fletcher sente-se cada vez mais atraído pela estonteante locutora de rádio Cilla O’Roarke. Distância e profissionalismo, ordena a si mesmo.

"Estou aqui para protegê-la de um louco assassino, não para me envolver sentimentalmente."

As mãos de Boyd deslizam pelos quadris de Cilla, amoldando-os aos seus. Ele quer ouvi-la gemer que também o ama e deseja. Contudo, o psicopata quer conspurcar a beleza de Cilla. Boyd não pode se distrair com este inebriante momento de paixão, se não quiser perder sua amada para sempre! 

 

A voz era sexy, rouca, com um ligeiro sotaque sulista. Perfeita para o rádio. Qualquer cidadão de Denver sintonizado naquela freqüência teria a impressão de que ela falava só para ele.

— Olá notívagos de todo o Colorado. São vinte e três horas e cinqüenta e nove minutos e vocês ouvem a KHIP, rádio Yankee. Preparem seus gravadores para uma seqüência de cinco sucessos sem interrupção. Aqui fala Cilla O'Roarke, e a seleção é toda dedicada a você.

Seu tom intimista e aveludado tornara-se marca registrada do horário.

Cilla apertou o botão do mixador e começou a rodar o primeiro sucesso prometido. Num segundo a música preencheu o silêncio da cabine. Ela poderia ter tirado os fones do ouvido e aproveitado os vinte e três minutos e vinte e dois segundos para descansar, porém, preferia ficar ali ouvindo a canção. Seu amor pela música era apenas um dos fatores de seu sucesso no rádio.

A voz era um atributo natural, um presente de Deus. Com este dom tão especial conseguira seu primeiro emprego numa estação no interior da Geórgia, apesar de não ter nenhuma experiência anterior nem diploma universitário. O dono da rádio, no entanto, ficara impressionado com seu tom cristalino e sua disposição de trabalhar por um salário irrisório. Contratada para o período integral, trabalhava como locutora e servia, ainda, como recepcionista e datilógrafa. Uma espécie de quebra-galho da emissora.

Dez anos mais tarde, várias outras qualificações haviam se somado à voz, formando um vasto currículo. Mas, o tom inconfundível e o carisma continuavam a distingui-la.

Com o progresso na carreira, nunca lhe sobrara tempo para obter o diploma em comunicações, que tanto queria. Porém, com empenho e talento aprendera outras funções e era capaz de substituir colegas repórteres, engenheiros de som, entrevistadores, diretores de programação. A memória privilegiada e o gosto pelo assunto lhe conferiam uma capacidade invejável de memorizar títulos de músicas, nomes de cantores, datas de gravações. Havia dez anos seu mundo girava em torno do rádio.

O lado descontraído e envolvente que Cilla revelava através do rádio quase nada tinha a ver com sua verdadeira personalidade. No dia-a-dia, era uma mulher dinâmica, organizada, ambiciosa, que nunca dormia mais do que seis horas por noite. Já Cilla O'Roarke, locutora da KHIP, rádio Yankee, era uma garota sexy e misteriosa, amiga das celebridades do mundo do disco, dona de um posto invejado por muitos. Em sua vida particular, não passava de uma mulher comum, trabalhando uma média de dez horas por dia. Fazia de tudo para que a irmã menor cursasse as melhores escolas e havia dois anos não namorava.

Candidatos não faltavam; era uma questão de opção.

Pondo os fones de ouvido sobre a mesa de mixagem, reviu a programação escalada para o bloco seguinte de quinze minutos. Enquanto os dez primeiros sucessos da parada tocavam, a cabine ficou silenciosa. Ali havia apenas as luzes, os painéis de controle e Cilla. Era assim que gostava de trabalhar.

Ao assumir o posto na KHIP de Denver seis meses atrás, lutara para ficar com o horário das vinte e duas às duas da madrugada, que normalmente era dedicado aos apresentadores principiantes. Famosa e já contando com dez anos de experiência, poderia ter escolhido qualquer outro horário de maior audiência. Cilla, porém, preferia trabalhar à noite e nos últimos cinco anos já se tornara conhecida dos ouvintes do horário.

Gostava de ficar sozinha na cabine, enviando sua voz e os melhores sucessos para os solitários e insones.

De olho no relógio, recolocou os fones e pigarreou. Entre o final da quarta música e a introdução da quinta, deu o prefixo da estação e a freqüência. Depois de uma pequena pausa para as notícias, já previamente gravadas e enviadas por uma agência internacional, começaria sua parte preferida do programa: os pedidos telefônicos dos ouvintes.

Cilla gostava de ver os aparelhos se iluminarem a cada toque, gostava de escutar os ouvintes. Eram cinqüenta minutos que passava fora da cabine, convivendo mais de perto com os que a ouviam. Uma prova de que, do outro lado do rádio, havia milhares de pessoas de verdade, comuns, sintonizadas no programa.

Recostada na cadeira giratória, acendeu um cigarro e aproveitou aqueles últimos momentos de silêncio.

Sua calma era apenas aparente. Tampouco fazia o gênero mulher fatal, como poderiam pensar os ouvintes. Era uma pessoa cheia de energia e dinamismo. Não usava maquiagem nem esmalte, alegando falta de tempo. Enquanto fumava e relaxava, mantinha os olhos cor de mel quase fechados. Os cílios longos e curvados eram herança do pai, um sonhador. Os traços fortes e angulosos contrastavam com a pele alva. Os cabelos escuros, longos e ondulados, eram normalmente presos ou puxados para trás por causa dos fones de ouvido.

Sempre atenta ao relógio que marcava os minutos transcorridos, apagou o cigarro, bebeu um gole de água e abriu o microfone. No alto da porta, o sinal verde "NO AR" acendeu.

— A seleção que acabaram de ouvir foi para todos os apaixonados que me ouvem, acompanhados ou não. E se você está só, não desanime: saia e vá à procura da sua alma gêmea. Esta é Cilla O'Roarke falando pelo rádio Yankee do Colorado. Volto num instante com o seu pedido.

Ao acionar o comando da fita com os comerciais, Cilla olhou para o lado:

— Olá, Nick. Como vai?

Nick Peters, o estudante universitário que atuava na estação como estagiário, ajeitou os óculos de armação escura sobre o nariz.

— Tirei dez na prova de literatura.

— Puxa, que bom! — Cilla aceitou a xícara de café que ele lhe ofereceu. — Continua nevando?

— Não, parou há quase uma hora.

Ela assentiu e relaxou. Preocupava-se com a irmã mais nova, Deborah, que às vezes tinha aulas à noite.

— As estradas devem estar péssimas, não?

— Nem tanto. Quer comer algo com o café? Cilla sorriu, preocupada demais para notar o olhar de verdadeira adoração que o rapaz lhe dirigia.

— Não, obrigada. Coma umas rosquinhas amanhecidas antes de ir embora.

No instante seguinte, abriu o microfone e voltou a falar. Nick a observava ler os textos com as promoções dos patrocinadores e as chamadas da estação. Sabia que era estupidez, mas estava apaixonado por Cilla O’Roarke. Considerava-a garota mais linda do mundo. Perto dela, as colegas da faculdade não passavam de umas bobocas desengonçadas. Cilla era forte, sexy, bem-sucedida. E mal notava sua existência. Quando o fazia, era sempre com cortesia e um sorriso amigável.

Havia três meses vinha ensaiando um modo e a melhor hora de convidá-la para um jantar romântico. Mal podia esperar para tê-la só para si, a seu lado, a noite toda. Só os dois.

Cilla, porém, nem imaginava o que lhe passava pela idéia. E se soubesse, ficaria muito mais surpresa do que lisonjeada. Nick só tinha vinte e um anos; sete a menos do que ela. Cronologicamente. Porque em termos de maturidade, Nick mais parecia um adolescente. Contudo, ela o admirava por sua eficiência, empenho e dedicação ao trabalho.

Não havia uma noite sequer que ele deixasse de lhe trazer um café antes de ir embora. Era infalível. Nick a servia,se despedia e a deixava só, respeitando seu gosto pela solidão.

Nick olhou para o relógio:

— Bem... Até amanhã.

— Hum? Ah, sim. Boa noite, Nick. — Quando o rapaz cruzou a porta, Cilla já tinha a atenção voltada para um dos telefones que começava a piscar. — KHIP, estamos no ar.

— Cilla?

— Isso mesmo. Quem fala?

— É Kate.

— Do onde você está telefonando, Kate?

— De casa, aqui em Lakewood. Meu marido é motorista de táxi e trabalha de madrugada. Ouvimos seu programa todas as noites. Eu gostaria de ouvir Peaceful Easy Feeling. Ofereço para o meu marido, Ray.

— Perfeito, Kate. Um abraço para vocês. Obrigada e boa noite. — Outro botão foi apertado: — KHIP estamos no ar.

A rotina era sempre tranqüila. A cada telefonema, Cilla anotava o nome da música e a quem seria dedicada.

O pequeno estúdio com meia parede de vidro era repleto de prateleiras com discos, cassetes e CDs, todos etiquetados para facilitar o acesso. Depois de uma série de telefonemas, entrava no ar um bloco de comerciais, durante os quais Cilla pegava os pedidos e os organizava na seqüência.

Alguns ouvintes telefonavam quase todas as noites e, com esses, Cilla batia um papo breve. Outros, eram solitários que ligavam apenas para ouvir uma voz do outro lado da linha. No meio desses, aparecia de vez em quando algum lunático maluco ou inoportuno. Ao ouvi-los, Cilla, desligava imediatamente. Em tantos anos de programa com telefonemas e ao vivo, nunca houve uma noite monótona.

Adorava aquele contato mais próximo com o ouvinte, a conversa informal, as brincadeiras simpáticas. Ali, protegida pelas quatro paredes da cabine de controle, Cilla se permitia uma intimidade maior com estranhos, coisa da qual jamais seria capaz pessoalmente. Quem a ouvisse, no entanto, nunca poderia suspeitar que fosse uma moça tímida e insegura.

— KHIP, estamos no ar.

— Cilla.

— Sim? Fale mais alto, por favor. Qual o seu nome?

— Não importa.

— Tudo bem, amigo. — De repente, as palmas de suas mãos começaram a suar, obrigando-a a secá-las na perna da calça. Algo lhe dizia que teria problemas com aquele ouvinte. Portanto, manteve um dedo no botão que cortava a ligação. — Qual música gostaria de ouvir?

— Você vai ter de pagar pelo que fez, sua idiota. Vai ter de pagar. Quando eu tiver terminado, você vai me agradecer por tê-la matado. Você nunca vai esquecer.

Cilla ficou paralisada de medo e, maldizendo aquele momento de fraqueza, cortou a ligação quando o tal sujeito começou a falar uma série de palavrões. Respirando fundo, recuperou o controle e manteve a voz inalterada:

— Puxa, tem muita gente mal-humorada por aí. Se é você, sargento Mark, prometo que pagarei aquela multa por ter estacionado em local proibido, está bem? Esta aqui vai para Joyce e Henry.

Cilla soltou o sucesso mais recente de Bruce Springsteen e, recostando-se na cadeira, tirou os fones de ouvido. Suas mãos tremiam.

"Boba".

De pé, começou a retirar das prateleiras os discos com as músicas da seleção seguinte. Com tantos anos de experiência, já não devia mais se perturbar com esse tipo de trote. Todas as noites apareciam, no mínimo, uma chamada dessas, Cilla aprendera a se livrar dos engraçadinhos que lhe faziam propostas, dos exibicionistas que falavam obscenidades, e dos bêbados com a mesma facilidade com que mexia nos controles.

Fazia parte da rotina, disse a si mesma. Principalmente em se tratando de uma apresentadora de programa noturno, quando aparece toda sorte de esquisitice.

Porém, surpreendeu-se olhando por sobre o ombro através do vidro escuro da cabine, tentando enxergar o corredor. E não viu nada além das luzes fracas e das suas sombras projetadas no assoalho. Apesar do suéter pesado, começou a suar frio. Estava absolutamente sozinha.

"E a porta da estação está bem trancada", relembrou enquanto empilhava as músicas já na seqüência certa. O alarme permanecia ligado a noite toda e, caso disparasse, duas viaturas da polícia chegariam em questão de minutos. O lugar era mais seguro que um cofre de banco.

Ainda assim, Cilla olhou para um dos telefones que começou a piscar e teve medo.

 

A neve havia cessado, mas seu cheiro característico pairava na atmosfera fria. Cilla gostava de manter uma janela meio aberta e o rádio a todo volume enquanto dirigia. O vento e a música a acalmavam.

Não foi surpresa encontrar Deborah de pé à sua espera. Ao estacionar na passagem lateral da casa que comprara havia seis meses, viu as luzes todas acesas, o que a deixou aborrecida e aliviada.

Aborrecida porque Deborah devia estar preocupada. Por outro lado, era um alívio ver a casa iluminada já que a rua do pacato subúrbio estava praticamente às escuras. Girando a chave no contato, desligou o motor e, em seguida, o rádio. Aquele breve instante de silêncio total deixou-a apavorada.

Revoltada com a própria insegurança, fechou o carro e subiu depressa a escada. Deborah veio recebê-la na porta da varanda.

— Ei, já esqueceu que tem aula amanhã às nove horas? — Cilla indagou ao pendurar o casaco no cabide junto à entrada. A sala cheirava a chocolate quente e lustra-móveis. Deborah sempre inventava uma faxina quando ficava nervosa. — O que está fazendo acordada até esta hora?

— Cilla, eu ouvi aquele homem.

— Ora, meu bem. — Voltando-se, Cilla abraçou a irmã tão querida. Deborah era uma adolescente ajuizada, estudiosa, mas Cilla reconhecia que ainda a tratava como criança. — Quantos telefonemas iguais àquele já recebi! Você sabe, isso acontece.

— Ele parecia bastante ameaçador, Cilla. — Apesar de mais baixa, Deborah abraçava a irmã procurando acalmar-se. As duas eram um pouco parecidas, a boca, principalmente. Tinham os mesmos lábios carnudos e sensuais. Os traços de Deborah, porém, eram mais suaves, e os olhos, muito azuis, refletiam sua preocupação. — Você deveria chamar a polícia.

— Polícia? — Como a idéia não houvesse lhe ocorrido, Cilla deu uma gargalhada. — Só por causa de um telefonema obsceno? Sou uma mulher moderna, liberada, capaz de me cuidar. Afinal, estamos quase no ano 2000.

Deborah enfiou as mãos nos bolsos do robe.

— Não estou brincando!

— Está bem, está bem. Deborah, eu e você sabemos que a polícia não poderia fazer nada. Foi apenas um maluco que resolveu ligar para uma estação de rádio de madrugada.

A irmã suspirou e deu-lhe as costas.

— A voz dele era horrível, fiquei muito assustada.

— Eu também. Deborah riu com sarcasmo:

— Você nunca se assusta.

"Isso é o que você pensa."

— Mas, desta vez, confesso que sim. Fiquei tão nervosa que me atrapalhei com os botões e deixei que a ligação entrasse no ar. — Lapso que certamente lhe custaria uma advertência no dia seguinte. — Mas o tal sujeito não voltou a ligar. O que prova que era apenas um trote. Agora, vá dormir — pediu, alisando-lhe os cabelos crespos. — Não vai conseguir se tornar a melhor advogada do Colorado se passar as noites em claro.

— Só irei se você for também.

Mesmo sabendo que não conseguiria dormir aquela noite, Cilla concordou pelo bem da irmã:

— Combinado.

 

O quarto estava muito escuro, iluminado apenas pelas luzes de umas velas espalhadas pelos móveis. Ele gostava daquela atmosfera mística, do brilho trêmulo das chamas. Apesar de pequeno, o quarto tinha as paredes cheias de quadros e troféus que ganhara no passado. Na estante, havia flâmulas desbotadas pelo tempo, fitas amassadas, fotos, cartas. Sobre os joelhos, tinha uma faca de caça cuja lâmina refletia as luzes das velas. Ao lado, sobre a colcha de crochê, um revólver calibre trinta e oito automático bem limpo.

Ele olhava para a foto emoldurada em suas mãos e chorava, falava, blasfemava. Aquela fora a única pessoa a quem amara e, agora, só lhe restava uma foto de recordação.

John. Tão puro, tão ingênuo. Iludido por uma garota. Usado, Traído.

Mas, não ia ficar assim. Ela ia pagar pelo que fizera. Pagaria até o fim. Antes, porém, ainda ia sofrer muito.

 

O telefonema, um único, se repetia todas as noites. No final da semana, Cilla tinha os nervos à flor da pele e já não conseguia encarar o fato com bom humor, dentro ou fora do rádio. Felizmente, já era capaz de reconhecer a voz, fria, áspera, carregada de ódio, e cortava a ligação assim que a ouvia.

Apavorada, Cilla escondia o rosto entre as mãos, consciente de que no dia seguinte ele voltaria a insistir. Os chamados dos ouvintes, que antes lhe causavam tanta alegria, agora a amedrontavam. O piscar dos aparelhos a deixava apreensiva e sobressaltada.

Então, começava a se perguntar o que teria feito para ser alvo de tais ameaças.

Depois de pôr no ar o cassete com as notícias gravadas e os comerciais, às duas da madrugada, correu os dedos pelos cabelos. Seu sono que sempre fora breve e leve, praticamente desaparecera na última semana. A insônia começava a afetar-lhe os nervos, o humor e a capacidade de concentração.

O que teria feito?

A pergunta a atormentava. O que podia ter feito para suscitar tanto ódio em alguém? Reconhecia que, às vezes, era um pouco rude ou impaciente com as pessoas, insensível até. Mas nunca magoara alguém de propósito. Pelo que o tal sujeito queria fazê-la pagar? Que crime, real ou imaginário, teria cometido para despertar tal sede de vingança em alguém?

Pelo canto dos olhos, Cilla notou um movimento. Uma sombra maior dentre as outras do corredor. Em verdadeiro pânico, levantou-se depressa batendo o quadril num console. A voz do maníaco, que ligara havia apenas dez minutos, ecoava em sua memória. Lentamente o trinco da porta do estúdio foi girando.

Não havia como escapar.

— Cilla?

Com o coração disparado e a boca seca ela soltou o corpo na cadeira maldizendo o próprio descontrole.

— Mark.

— Me desculpe se a assustei.

— Você quase me matou, isso sim. — Com esforço, pousou uma das mãos sobre o peito e sorriu para o diretor da emissora. Mark era um homem de meia-idade considerado lindo pela maioria absoluta das garotas. Tinha os cabelos pretos muito bem penteados com o auxílio de um gel brilhante, um eterno bronzeado e se vestia na última moda. — O que está fazendo aqui a esta hora?

— Precisamos ter uma conversinha sobre esses telefonemas.

— Já tivemos uma reunião há menos de três dias e eu falei que...

— Sim, falou. Não só para mim, mas para todos aqui na rádio.

— Não vou tirar férias — Cilla afirmou virando-se na cadeira para fitá-lo. — Não tenho para onde ir.

— Todo mundo tem um lugar para ir. — Ela ia protestar, porém Mark a impediu. — Não quero mais discutir este assunto. Sei que vou soar arrogante, mas sou seu chefe.

Cilla puxou a barra da camiseta.

— O que vai fazer? Despedir-me?

Mark não percebeu que ela prendera a respiração. Embora a conhecesse havia alguns meses, não sabia que atrás da aparência de mulher confiante e liberada escondia-se uma garota ingênua. Sob pressão, fatalmente recuaria. Mark, no entanto, apreciava seu trabalho. O programa era líder de audiência e trouxera vida à estação.

— Despedi-la não seria bom para nenhum de nós. — Cilla soltou a respiração. — Ouça, estamos todos preocupados com você.

Suas palavras a tocaram e a surpreenderam.

— O tal maníaco só fala.

"Por enquanto".

Virando a cadeira em direção à mesa de controles, preparou-se para tocar a próxima música.

— Não vou ficar parado de braços cruzados vendo um de meus funcionários ser molestado. Já chamei a polícia.

Cilla pulou da cadeira.

— Droga! Mark, já lhe disse que...

— Sim, disse. Não vamos mais discutir, está bem? Você faz parte de meu quadro de funcionários e a considero minha amiga.

Ela tornou a sentar-se, batendo as botas no chão.

— Claro. Espera um momento. — Esforçando-se para se concentrar no que dizia, Cilla anunciou o prefixo da estação e o sucesso seguinte, depois, desligou o microfone. — Você tem três minutos e quinze segundos para me convencer.

— É simples: o que este maníaco está fazendo é contra a lei. Já deveríamos ter tomado uma providência, a coisa está indo longe demais.

— Se o ignorarmos, ele desistirá.

— Sua tática não está funcionando. — Mark apoiou uma das mãos no ombro de Cilla e massageou-lhe os músculos rijos do pescoço. — Portanto, vamos experimentar a minha. Vou lhe dar duas alternativas: ou fala com os policiais ou tira umas férias relâmpago.

Derrotada, Cilla ergueu os olhos e ensaiou um sorriso:

— Você também manda na sua esposa desse jeito?

— Claro. — Mark sorriu e beijou-lhe e testa. — Ela adora homens decididos.

— Com licença.

Cilla, assustada, pulou da cadeira e olhou para a porta. O casal ali parado a olhava de modo impassível, com uma frieza profissional.

A moça parecia ter saído das páginas de uma revista de moda. Tinha os cabelos avermelhados caídos pelos ombros e um par de brincos de safira que combinava com o tom de seus olhos. A pele lisa, era como porcelana. Seu tipo era mignon porém sólido, sem nada de frágil, e ela usava um tailleur de estampa suave.

O homem a seu lado parecia ter acabado de sair de uma fazenda. Os cabelos loiros e sem corte cheios de reflexos claros provocados pelo sol, se debruçavam, despenteados, sobre o colarinho da camisa jeans. A calça, de um brim azul mais escuro, era justa nos quadris e nas coxas. Displicente, ele se recostou no batente da porta enquanto sua companheira permanecia ereta, em estado de alerta. Usava um par de botas bem riscadas e um paletó esporte sobre a camisa. Sua fisionomia era séria, contraída.

Cilla surpreendeu-se estudando-o mais tempo do que deveria. O moço tinha o rosto magro e uma covinha no queixo. A pele bronzeada lhe conferia uma aparência saudável de quem vivia ao ar livre; a boca era larga e fina. Os olhos, de um verde cristalino, a fitavam intensamente.

— Sr. Harrison — disse a moça, e Cilla notou um brilho divertido em seu olhar quando se aproximou. — Acho que já lhe demos tempo suficiente.

Cilla lançou um olhar severo para o patrão:

— Você me falou que tinha telefonado para a polícia, mas eu não sabia que eles estavam esperando aí fora.

— Agora, já ficou sabendo. — Ele mantinha a mão em seu ombro. Só que agora, com o intuito de contê-la.

— Esta é a srta. O'Roarke.

— Sou a investigadora Althea Grayson e este é meu parceiro, investigador Boyd Fletcher.

— Mais uma vez, obrigado por terem esperado — agradeceu Mark, fazendo-lhes sinal para que entrassem.

O investigador aprumou-se preguiçosamente.

— Eu e o investigador Fletcher estamos acostumados com este tipo de situação. Agora, gostaríamos de ter maiores detalhes sobre o que vem acontecendo.

— Como já expliquei, a srta. O'Roarke vem sendo perturbada por uns telefonemas anônimos aqui na rádio.

— Algum desocupado — acrescentou Cilla, irritada. — Mark não deveria tê-los incomodado por causa desta bobagem.

— Cilla. — Cansado e ansioso por voltar para casa, Mark fez uma careta. — Vamos cooperar, sim? — E voltou-se para os policiais: — Os telefonemas começaram no programa de terça-feira passada. A princípio não demos muita atenção, mas as chamadas vêm se repetindo. A mais recente foi esta noite, à meia-noite e trinta e cinco.

— Você conseguiu gravar?

Althea Grayson tirou do bolso o bloco de anotações. — Depois do terceiro telefonema, comecei a gravá-los — disse Mark, e Cilla arregalou os olhos, admirada. Ele, no entanto, deu de ombros. — Sabem como é, achei melhor nos precavermos. As fitas estão no meu escritório.

Boyd meneou a cabeça.

— Pode ir, Althea. Enquanto isso, vou anotar o depoimento da srta. O’Roarke.

— Por favor, coopere, sim? — Mark pediu a Cilla antes de sair acompanhado por Althea.

Aproveitando a pausa, Cilla apanhou um maço de cigarros todo amassado, tirou um e o acendeu com gestos nervosos. Fletcher encheu os pulmões com a fumaça. Parara de fumar havia seis meses, treze dias e doze horas.

— Fumar faz mal para a saúde — ele comentou.

— Eu sei. — Cilla soltou outra baforada e o estudou. — Quer meu depoimento?

— Sim.

Curioso, ele esticou a mão para mexer num botão da mesa de controle. Automaticamente Cilla deu-lhe um tapinha nos dedos:

— Tire as mãos daí.

Fletcher achou graça.

Ela pegou a primeira fita da pilha e introduziu-a no toca-fitas. Abrindo o microfone, fez um breve comentário sobre a música que terminava, deu o prefixo da estação e anunciou a seleção seguinte.

— Vamos logo, porque não gosto de companhia enquanto trabalho.

— Você é bem diferente do que eu imaginava.

— O que disse?

"Diferente mesmo", ele pensou. "Para melhor."

— Já ouvi seu programa algumas vezes — comentou à vontade. Na verdade, já a ouvira muitas vezes. Já perdera diversas horas de sono ouvindo aquela voz sensual e envolvente, que incitava fantasias deliciosas. — Eu a imaginava alta. — E mediu-a com o olhar desde os cabelos ondulados, passando pelas curvas até o bico das botas. — Acho que nisso, acertei. Mas pensava que você fosse loira, os cabelos compridos até a cintura, os olhos azuis, personalidade... vibrante.

Fletcher riu diante da expressão de aborrecimento que viu nos olhos de Cilla. E que lindos olhos castanhos. De fato, a realidade superava em muito a fantasia.

— Sinto tê-lo desapontado.

— Eu não falei que fiquei desapontado.

Cilla deu uma longa tragada no cigarro e soltou lentamente a fumaça na direção de Fletcher. Tinha bastante prática em se livrar de homens inoportunos e desencorajar os mais audaciosos.

— Afinal, você quer ou não quer maiores detalhes sobre o que vem acontecendo?

— E para isso que estou aqui. — Fletcher pegou um bloco com um lápis no bolso do paletó. — Pode falar.

Com frases curtas e voz controlada ela explicou cada telefonema em detalhe, citando as datas e as mensagens. Enquanto falava, trocava os cassetes no toca-fitas, soltava uma seqüência de comerciais e selecionava novas músicas.

Fletcher anotava tudo, admirado com sua memória. Certamente poderia conferir tudo nas gravações, mas acreditava que teria muito pouco a acrescentar. Pessoas assim facilitavam seu trabalho.

— Há quanto tempo a senhorita está em Denver?

— Aproximadamente seis meses.

— Já fez algum inimigo?

— Não. Só me lembro de ter batido a porta na cara de um vendedor insistente que queria me vender uma enciclopédia.

Fletcher observou-a por entre os cílios. Ela tentava encarar o assunto com naturalidade, mas nem bem apagara o cigarro e já começava a roer as unhas das mãos.

— Terminou algum relacionamento amoroso?

— Não.

— Tem namorado?

Mais uma vez ela se irritou:

— Você é investigador. Descubra sozinho.

— Eu descobriria se fosse uma questão pessoal. — Fletcher voltou a fitá-la de modo tão penetrante e sensual que as mãos de Cilla começaram a suar. — No momento, só estou cumprindo meu dever. Rejeição e ciúme são responsáveis por muitos casos como este. De acordo com o que acaba de me contar, os comentários desse tal sujeito sempre se referem à sua vida sexual.

Cilla admirava e cultuava a sinceridade, mas se recusava a revelar-lhe que não tinha aquilo que ele chamava de vida sexual há muito tempo.

— Não estou envolvida com ninguém no momento.

— Ótimo — ele afirmou e, sem erguer os olhos do papel, acrescentou: — Esta foi uma observação pessoal.

— Olhe aqui, investigador, eu...

— Calma, calma, srta. O’Roarke, foi só um comentário e não um convite. Estou aqui a serviço e preciso de uma lista com os nomes dos homens com quem manteve um contato pessoal nos últimos tempos. De seis meses para cá, digamos. Não precisa incluir o vendedor de enciclopédias.

— Não mantive contato pessoal com nenhum homem, nem pretendo manter.

— Nunca ninguém lhe disse que o desejo não precisa ser recíproco? — "Como o que sinto por você, por exemplo."

De repente, Cilla sentiu-se abater por um cansaço súbito e inexplicável. Então, correu as mãos pelos cabelos e reuniu a pouca paciência que lhe restava.

— Ouça: não é preciso ser muito esperto para saber que esse homem se apaixonou pela minha voz. Ele nem me conhece; provavelmente nunca me viu. Não passo de uma imagem que ele criou. Isso é muito freqüente na vida das pessoas que trabalham no rádio. Não fiz nada para provocá-lo.

— Eu não disse nada — Fletcher falou num tom calmo e tranqüilo que a levou às lágrimas.

Furiosa, ela lhe deu as costas. Só podia ser cansaço, dizia a si mesma.

"Que garota valente", pensou Fletcher. O modo como curvava as mãos à cintura procurando conter as emoções era muito mais sexy e tentador do que qualquer suspiro desolado.

Sua vontade era aproximar-se e dizer-lhe algo que a confortasse, acariciar-lhe os cabelos. Mas Cilla lhe daria uma mordida na mão se tentasse se aproximar.

— Quero que pense calmamente no que fez nos últimos meses e veja se encontra algo, um acontecimento banal, que seja, que pudesse provocar tal reação no autor dos telefonemas. — Ele readquiria o tom frio e impessoal do começo. — Não podemos convocar todos os homens de Denver para averiguações. Não é assim que trabalhamos.

— Sei muito bem como é que a polícia trabalha.

Fletcher franziu os olhos diante daquelas palavras amargas.

— Acha que conseguiria reconhecer a voz dele se a ouvisse de novo?

— Claro.

— Há algo de familiar na voz ou no modo como ele fala?

— Nada. Ele fala baixo e de um modo... sibilante.

— Você se incomodaria se eu voltasse amanhã à noite durante o programa?

— Muito.

— Bem, então vou ter de falar com seu chefe. Revoltada, ela pegou o maço de cigarros, mas Fletcher segurou-lhe a mão. Cilla fitou os dedos longos que se entrelaçavam aos seus e sentiu o coração disparar.

— Deixe-me cumprir minha missão, Cilla. Será mais fácil para todos se você permitir que eu e Althea tomemos conta de tudo.

—  Ninguém toma conta de mim.

— Então, ouça o que digo. —

Antes que ela pudesse detê-lo Fletcher esticou o braço e prendeu-lhe uma mecha de cabelo atrás da orelha. — Vá para casa e descanse bastante.

— Pode deixar, sei me cuidar muito bem.

Apesar das reclamações, Cilla não conseguiu dissuadi-lo da idéia de esperá-la terminar o programa e acompanhá-la até o carro, fechando as janelas e trancando as portas.

Instantes depois da partida de Cilla, Althea se juntava a Fletcher no estacionamento.

— E então? — perguntou, pousando uma das mãos no ombro do parceiro num gesto cheio de companheirismo. — Qual o veredicto?

— Ela é valente, fechada e teimosa — Fletcher falava pensativo, as mãos enfiadas nos bolsos. — Acho que é um caso de amor.

 

Boyd Fletcher a elogiava mentalmente enquanto observava Cilla trabalhar. A facilidade com que mexia nos botões e nos controles da mesa denotava a experiência profissional. Ora tocava uma seleção de músicas, ora introduzia uma fita com comerciais gravados. A intervalos predeterminados, ligava o microfone para dar o prefixo da estação. Sua cronometragem era perfeita.

As unhas roídas até a carne era um indício indisfarçável da ansiedade e da agitação que ela sempre tentava ocultar. Para não falar na hostilidade com que o tratava, deixando claro que desaprovava sua presença ali. Já estavam juntos na cabine havia duas horas, e Cilla mal lhe dirigira a palavra.

Fletcher, no entanto, limitava-se a observá-la e saborear um café amargo. Como policial, já estava acostumado a ser hostilizado por certas pessoas.

Gostava da profissão e coisas tais como tratamento hostil, cara feia e guerra de nervos não o abalavam. Ou seja, era muito mais fácil lidar com emoções negativas do que ser alvo de uma bala calibre trinta e oito. Falava por experiência própria pois já se deparara com as duas situações.

Embora não pudesse ser considerado um filósofo, gostava de analisar tudo e todos ao seu redor, procurando entendê-los melhor. Seu hábito era fruto de uma crença inabalável no certo e no errado; no justo e no injusto. Ou, ainda, no bem e no mal. Por outro lado, tinha consciência de que tudo no universo é relativo.

A vida de policial o fizera entender que o crime na verdade compensava. E muito bem. Sua satisfação era saber que a recompensa, no entanto, durava pouco. Não importava que fossem necessários seis dias ou seis meses para prender um criminoso, pois o resultado final era sempre o mesmo: os bons venciam os maus.

Esticando as longas pernas para frente, continuou folheando o livro em suas mãos, enquanto a voz morna de Cilla enchia a cabine. Seu tom macio trazia-lhe à mente imagens calmas de um riacho correndo, uma cadeira de balanço na varanda, um passeio ao luar numa noite quente de verão. Em compensação, a energia e a agitação que emanava contrastavam de modo gritante com toda essa paz. Mas Fletcher, um otimista, contentava-se em cultivar o lado bom das coisas.

Sua simples presença ali a deixava nervosa. Ainda que calado, sentado num canto, ele a incomodava. Cilla soltou a fita com os comerciais, verificou a sequência programada para aquela noite e deliberadamente o ignorou. Ou, pelo menos, era o que vinha tentando fazer desde que chegara.

Não gostava que ninguém ficasse ali na cabine durante o programa. Embora ele se mantivesse quieto, atento à leitura, o menor movimento de Fletcher a distraía. Assim que o viu abrir o livro, pensou tratar-se de uma destas aventuras policiais, porém surpreendeu-se ao vê-lo ler um romance famoso de um autor conceituado. Mas, nem assim sua presença era bem-vinda. Não dava para fingir que os telefonemas ameaçadores haviam cessado, que tudo não passara de um trote, que sua vida voltaria ao normal. Bastava vê-lo ali ao lado para manter o pesadelo bem vivo em sua mente.

No espaço mínimo da cabine, Cilla era obrigada a esticar o braço por sobre sua cabeça toda vez que queria pegar uma fita na prateleira do fundo. Um gesto antes tão rotineiro e automático era agora motivo de sobressalto e agitação.

Cilla se ressentia de sua presença ali, de sua intromissão e do fato de ele ser um policial.

Entretanto, sabia que não devia misturar opiniões pessoais com obrigações profissionais. Ambos estavam ali a serviço.

— Vocês acabaram de ouvir mais um grande sucesso do conjunto The Rascais. Bom dia, Denver. São exatamente zero hora e dois minutos do dia vinte e oito de março. A temperatura lá fora está bem baixa, mas, aqui dentro, o calor humano está sempre presente. Você está ligado na KHIP, a rádio que toca mais músicas por hora. Logo após o noticiário, começaremos a atender os pedidos telefônicos. Fique ligado.

Fletcher esperou até que ela transmitisse as notícias e fizesse uma chamada ao vivo para então marcar a página do livro e levantar-se. Ao sentar-se numa cadeira giratória ao lado de Cilla, sentiu a tensão crescer na cabine.

— Não quero que interrompa a ligação, caso ele telefone.

Ela se retesou e tentou manter a voz natural.

— Meus ouvintes não se interessam por esse tipo de show, Fletcher.

— Mas você pode mantê-lo na linha só através dos alto-falantes internos, sem pô-lo no ar, certo?

— Sim, mas eu não quero...

— Corte para um comercial ou ponha uma música —ele sugeriu sem querer interferir no trabalho dela — porém mantenha-o na linha. Talvez tenhamos sorte e consigamos localizá-lo.

Cilla tinha as mãos fechadas sobre o colo quando olhou para os dois aparelhos telefônicos, que já começavam a piscar. Sabia que Fletcher tinha razão e o odiava por isso.

—  Não acha que é muita chateação só por causa de fã  um lunático inútil?

— Não se preocupe — ele garantiu sorrindo. — Estou acostumado a lidar com todo tipo de gente. Uns dão mais trabalho, outros, menos.

Cilla olhou para o relógio, pigarreou e abriu o microfone:

— Bom dia, Denver. Aqui é Cilla O’Roarke falando através da KHIP, a estação mais quente o ano todo. E aqui está sua chance de aquecer ainda mais nossa programação. Nossos telefones estão no gancho aguardando sua ligação e seu pedido musical. Nosso número é cinco cinco cinco, cinco quatro, quatro sete.

Os dedos dela tremeram ligeiramente ao apertar o botão da primeira ligação.

— Alô? Quem fala?

— Oi, Cilla, aqui é Bob, de Englewood.

Ela fechou os olhos e suspirou. Bob era um dos ouvintes habituais. — Olá, Bob, como vai?

— Tudo Ótimo. Minha esposa e eu estamos completando hoje quinze anos de casados.

— Aposto como muita gente deve ter lhe dito que não passariam do primeiro ano, certo? Que música você gostaria de dedicar à sua esposa?

— Cherish. Vou dedicá-la a Nancy com muito amor.

— Excelente escolha. Parabéns para vocês. Sempre com o lápis na mão, Cilla atendeu o segundo telefonema, depois o terceiro. A cada novo chamado, Fletcher a via prender a respiração. Simpática, sempre tinha uma palavra amiga ou uma brincadeira simpática para com todos os ouvintes, mas só Fletcher ali na cabine a via pálida e trêmula. Na primeira interrupção, ela aproveitou para pegar um cigarro e lutou para acender um fósforo. Sem uma palavra, ele tirou-lhe a caixinha da mão e riscou o palito, acendendo-lhe o cigarro.

— Está se saindo bem.

Cilla deu uma tragada demorada e soltou a fumaça depressa. Fletcher aguardou pela resposta em silêncio,

— Você é obrigado a ficar aí me olhando o tempo todo?

— Não — ele assegurou com um sorriso lento e sensual que provocou uma reação imediata em Cilla. — Faço isso porque quero.

— Não sei como não se cansa dessa profissão.

— Gosto muito do meu serviço. — Fletcher apoiou o tornozelo direito no joelho esquerdo.— Muito mesmo.

Cilla percebeu que era mais fácil conversar com ele do que ficar olhando, apreensiva, para os aparelhos piscando. Fletcher tinha uns olhos... calmos. Escuros e calmos. Olhos de quem já vira muita coisa e aprendera a conviver com o que via. Havia no fundo do seu olhar uma força serena, do tipo que atraía as mulheres. Algumas mulheres. Ele devia ser do tipo protetor, que jamais inicia uma briga, que sempre tem uma palavra de conforto.

Irritada com o próprio comportamento, ela desviou a atenção e voltou a remexer nas anotações. Não precisava que ninguém a protegesse ou a confortasse. Tampouco brigasse por sua causa, havia muito tempo aprendera a tomar conta de si mesma.

— A vida de um policial não deve ser nem um pouco agradável — comentou.

Ele se remexeu na cadeira, e seus joelhos se roçaram.

— A maior parte do tempo não é. Instintivamente ela recuou a cadeira uns centímetros para trás.

— Não consigo entender por que alguém permaneça dez anos num trabalho tão difícil e desagradável.

— Já me acostumei.

Ela deu de ombros e abriu o microfone:

— Esta canção, Bill dedicou a Maxime. São zero hora e vinte minutos e nossa linha continua aberta. O número é 555-5447.

— Depois de um breve suspiro, Cilla apertou um botão; — Alô, quem fala?

As coisas transcorriam tão bem que ela começou a relaxar, Os telefonemas se sucediam na rotina de todas as noites, e Cilla foi readquirindo a descontração costumeira, voltando até mesmo a se deliciar com as canções.

As luzes piscantes dos aparelhos telefônicos já não lhe pareciam ameaçadoras e, por volta da zero hora e quarenta e cinco minutos, Cilla teve certeza de que não teria mais problemas.

Só uma noite. Se ele deixasse de ligar uma só noite, jamais voltaria a ligar. Com os olhos fixos no relógio, ela contava os minutos. Faltavam apenas oito para que seu horário terminasse, e Jackson assumisse os microfones. Cilla só pensava em chegar em casa, tomar um banho quente e dormir.

— Alô? Quem fala?

— Cilla.

A voz sibilante e abafada deixou-a gelada. Automaticamente, ela levou o dedo ao botão que interrompia a ligação, porém Fletcher segurou-lhe o pulso e balançou a cabeça. Por um instante, ela pensou que o pânico fosse dominá-la. Fletcher continuava a segurar-lhe o pulso, fitando-a com seus olhos serenos.

Reagindo, Cilla colocou uma fita de comerciais no ar e passou o som da ligação para os alto-falantes internos.

— Sim. — O orgulho a fez sustentar o olhar que Fletcher lhe dirigia. — Aqui é Cilla quem fala. O que você quer?

— Justiça. Só justiça.

— Como assim?

— Quero que pense bem. Quero que pense e se torture antes que eu a alcance.

— Por quê? — A mão dela se curvou sob a de Fletcher que, num gesto tranqüilizador, entrelaçou os dedos aos de Cilla. — Quem é você?

— Quem sou eu? — O riso sarcástico e metálico vindo do outro lado da linha deixou-a arrepiada. — Sou sua sombra, sua consciência. Seu assassino. Você tem de morrer, mas só quando entender. Aí, sim, acertaremos as contas. Só que ainda vai demorar e não vai ser nada fácil. Você vai ter de pagar pelo que fez.

— Mas, o que foi que eu fiz? Diga, pelo amor de Deus!

Ele disse uma série de palavrões e desligou, deixando- a chocada. Com uma das mãos ainda pousada sobre a de Cilla, Fletcher discou um número.

— Conseguiu localizá-lo? — perguntou, ansioso e suspirou.   — Sim.  Entendo.  Obrigado.  — E  desligou, voltando-se para Cilla: — A ligação foi muito rápida; a central não teve chance de localizar a origem do chamado. Mas, não desanime.

Cilla, atordoada, mal conseguia ouvi-lo, mas assentiu. Num gesto mecânico, virou-se para o microfone, esperando que o comercial terminasse.

— Amigos, por hoje, vamos ficando por aqui. É uma hora e cinqüenta e sete minutos e ainda tenho tempo de tocar uma ultima canção. Escolhi um grande sucesso de Tina Turner para animar este princípio de manhã. Continuem na KHIP onde Jackson, o locutor da madrugada, lhes fará companhia. Esta foi Cilla Roarke. Boa noite e bons sonhos.

Cansada, Cilla empurrou o microfone e forçou-se a se levantar, apoiando-se na mesa de controles. "Pronto, já acabou", disse a si mesma. Agora, era só descer, pegar o carro e voltar para casa, como fazia todas as noites. Então, por que naquela madrugada aquilo lhe parecia tão difícil?

Jackson entrou na cabine e deteve-se, hesitante, junto à porta. Havia duas semanas ele vinha usando um boné de beisebol para ocultar um recente transplante de cabelo.

— Olá, Cilla. Foi uma noite difícil, não? Ela lhe dirigiu um sorriso pálido:

— Confesso que tive melhores. — E, respirando fundo, aprumou-se. — Já deixei os ouvintes bem animados para você, Jackson.

— Obrigado. Vá com calma, garota.

— Não se preocupe. Eu estou bem.

O zumbido em seu ouvido aumentou quando Cilla virou-se para pegar o casaco pendurado perto da porta. Os corredores estavam às escuras recebendo apenas uma fraca claridade vinda do hall, onde as luzes de segurança permaneciam acesas. Cilla piscou os olhos várias vezes, desorientada e quase não notou quando Fletcher segurou-a pelo cotovelo.

O ar frio da noite a fez sentir-se melhor. Já no pátio do estacionamento, respirou fundo diversas vezes, recuperando as forças.

—  Meu carro está para lá — disse quando Fletcher começou a puxá-la na direção oposta.

—  Você não está em condições de dirigir.

—  Estou ótima, já falei.

—  Perfeito. Então, o que acha de irmos dançar?

—  Ouça...

—  Ouça você! — Fletcher não tinha notado até então, mas estava nervoso, furioso mesmo. Cilla tremia e, apesar do vento frio, tinha as maçãs do rosto absolutamente brancas. Presenciar um dos tais telefonemas fora bem diferente que ouvir as gravações. A seu lado, na cabine, pôde vê-la perder a cor e arregalar os olhos ao receber o chamado. E o pior: não pôde fazer nada para ajudá-la. — Você mal consegue parar de pé, Cilla, e não vou permitir que volte para casa dirigindo. — Já próximo de seu carro, Fletcher abriu a porta de passageiro. — Entre. Vou levá-la até sua casa.

Ela afastou uma mecha de cabelo que lhe caía nos olhos.

—  Está cumprindo seu dever de me proteger, certo?

—  Isso mesmo. Agora entre, antes que eu a prenda por me impedir de exercer meu dever.

Como seus joelhos continuassem fracos e trêmulos, Cilla resolveu aceitar a carona. Tudo o que queria era um pouco de paz, num quarto escuro, sob as cobertas. Só assim poderia gritar bem alto e extravasar aquela angústia que trazia no peito. Porém, assim que viu Fletcher sentar-se ao volante, virou-se no banco.

—  Há poucas coisas que me desagradam mais do que um policial.

—  O quê, por exemplo? — ele quis saber ao dar a partida.

—  Homens que mandam em mulheres só por se julgarem superiores. Para mim, não se trata apenas de um dado cultural, mas, sim, de pura estupidez. Na minha conta, você está com dois pontos negativos, investigador Fletcher.

Fletcher curvou-se para o lado obrigando-a a recostar-se de novo no assento. Por um instante, viu-a arregalar os olhos, admirada, supondo que ele fosse beijá-la.

De fato, quase não resistira ao impulso de provar aqueles lábios úmidos que certamente combinavam com a voz sensual. Porém, limitou-se a puxar-lhe o cinto de segurança para poder fechá-lo.

Cilla soltou a respiração quando o viu retomar o volante. Fora uma noite tensa e perturbadora, recordou-se. Caso contrário, jamais teria reagido daquela forma diante da intimidação de um homem qualquer.

Suas mãos voltaram a tremer. O motivo não a preocupava, apenas a fraqueza em si.

-  Não gosto do modo como faz as coisas, Fletcher,

—  Não precisa gostar. — Cruzando a saída do estacionamento, Fletcher reconheceu que Cilla começava a perturbá-lo, o que era um erro. — Faça o que digo e nos daremos bem.

—  Não costumo obedecer ordens de ninguém — revidou. — E não preciso que um tira de segunda linha com complexo de John Wayne me diga o que fazer. Foi Mark quem o convocou e não eu. Não preciso nem quero os seus serviços.

Ele brecou diante de um semáforo vermelho.

—  Você é um bocado inflexível.

-  Se pensa que vou me desesperar só porque um lunático me diz uma porção de besteiras e me faz ameaças, está muito enganado.

—  Não acho que você vai se desesperar, Cilla. Nem espere que eu a console caso isso aconteça — mentiu.

-  Ótimo. Perfeito. Posso lidar com esse maluco sozinha. Agora, se você gosta de ouvir esse tipo de coisas... — Pasma consigo mesma, Cilla calou-se sem completar a frase. Escondendo o rosto entre as mãos, respirou fundo três vezes e baixou os braços. — Me desculpe.

—  Desculpá-la, por quê?

—  Por estar descontando em você. Será que pode estacionar um minuto?

Sem vacilar, Fletcher aproximou-se da calçada e parou o carro.

—  Preciso me acalmar antes de chegar em casa. — Num esforço deliberado para se descontrair, fechou os olhos e pendeu a cabeça para trás. — Não quero deixar minha irmã preocupada.

Era difícil conservar a raiva e o ressentimento vendo a fera se transformar em cordeiro. Mas se sua intuição não falhava, algo lhe dizia que Cilla reagiria com violência a qualquer demonstração de pena.

—  Quer um café?

— Não, obrigada. — Seus lábios se curvaram num sorriso breve. — Já tomei muito café por hoje. — Cilla soltou a respiração bem devagar. A agitação tinha passado, e ela voltava a recuperar o senso de realidade. — Sinto muito, Fletcher. Você só está tentando cumprir seu dever.

—  Exatamente.

Cilla abriu os olhos e o estudou por instantes. Então, abriu a bolsa à procura de um cigarro e confessou:

—  Estou apavorada

Suas mãos voltaram a tremer, dificultando-lhe o simples gesto de acender cigarro. Era inútil tentar ocultar o que sentia.

—  Com razão.

—  Tenho muito medo. — Ela soltou a primeira baforada enquanto observava um carro descer a avenida em alta velocidade. — Ele quer mesmo me matar. Só percebi isso hoje. — Um arrepio a estremeceu. — Seu carro tem aquecimento?

Ele ligou a ventilação na potência máxima.

—  É melhor que fique apavorada.

—  Por quê?

—  Só assim concordará em cooperar conosco.

Cilla sorriu. Desta vez, um sorriso aberto e franco que quase o fez perder o fôlego.

—  Não vou, não. Esta é apenas uma trégua. Assim que eu me recuperar, voltarei a agir como antes.

—  Então, vou tentar não me acostumar com toda esta... doçura. — Mas, não ia ser fácil esquecer aquela expressão viva que seu olhar adquiria quando Cilla sorria, o tom morno de sua voz mansa, capaz de fazer um homem sonhar. — Está melhor?

—  Bem melhor. Obrigada — agradeceu batendo a cinza do cigarro na janela. — Pelo que estou vendo, você sabe onde eu moro.

—  Claro. Já esqueceu que sou investigador?

—  É uma profissão muito ingrata. — Cilla afastou os cabelos da testa e reconheceu que era melhor conversar. Enquanto falava, não tinha tempo para pensar em bobagens. — Por que não arranja emprego numa fazenda para recolher gado ou montar cavalos? Acho que combinaria melhor com sua personalidade.

Ele refletiu sobre o que acabava de ouvir.

—  Não sei se isso é um elogio. Cilla riu.

—  Você é bastante perspicaz.

—  Sou mesmo, Priscilla.

-  Ninguém me chama de Priscilla mais do que uma vez.

—  Por quê?

Ela  lhe lançou um sorriso.

— Por que não respondo. Odeio este nome.

— Entendo. Quer me explicar uma coisa: por que você não gosta de policiais?

— Não, não quero — afirmou, virando-se para olhar pela janela lateral. — Gosto da noite — comentou mais para si mesma. — As pessoas fazem e dizem coisas que seria impossível dizer ou fazer às três horas da tarde. Já não conseguiria mais me adaptar a um trabalho diurno, com dezenas de pessoas ao redor.

—  Já percebi que você prefere a solidão.

—  Não é bem assim. Gosto de algumas pessoas, mas não de todas. — Porém, Cilla não queria que a conversa girasse em torno de si. Preferia falar sobre ele e assim satisfazer sua curiosidade. — Há quanto tempo você trabalha no turno da noite, Fletcher?

—  Aproximadamente nove meses — ele afirmou, fitando-a. — Nesse tempo já conheci muitas pessoas... interessantes.

Cilla deu uma gargalhada.

—  É verdade. Você nasceu em Denver?

—  Nasci e fui criado aqui.

— Gosto desta cidade — Cilla reconheceu, admirando-se com a própria revelação.

Sua vinda à cidade não havia sido planejada. Viera apenas por se tratar de uma capital com excelentes escolas para Deborah e uma boa oportunidade de trabalho para si. Ainda assim, em seis meses, já fincara raízes profundas ali no Colorado.

— Isso significa que pretende ficar bastante tempo por aqui? — Fletcher virou à esquerda, numa rua tranqüila. — Andei pesquisando sua vida e vi que não costuma passar mais do que dois anos num mesmo lugar.

—  Gosto de mudanças — ela disse num tom seco pondo fim à conversa. A idéia de ter sua vida vasculhada por estranhos como se fosse uma criminosa a desagradava profundamente. Quando Fletcher estacionou em frente à casa, ela já soltava o cinto de segurança. — Obrigada pela carona, Fletcher.

Entretanto, antes que Cilla conseguisse abrir a porta, ele saiu, contornou o carro e foi ajudá-la.

—  Vou precisar das suas chaves. Cilla já as tinha em mãos.

—  Por quê?

—  Para poder vir trazer seu carro pela manhã. Ela balançou as chaves na mão e franziu a testa sob a luz da varanda. Fletcher imaginava como seria bom poder acompanhá-la até a porta de casa depois de um encontro. Seria difícil manter as mãos dentro do bolso e na certa só sossegaria depois de beijá-la ali na varanda.

Na varanda coisa nenhuma! Ele a acompanharia até a sala, até o quarto, e a noite não terminaria com um simples beijinho de despedida.

Porém, esta noite, não haviam tido um encontro e não era preciso ser muito esperto para saber que Cilla não permitiria nenhum tipo de aproximação.

—  As chaves, por favor — repetiu.

Cilla meditou bem sobre a questão e reconheceu que a sugestão dele era realmente a ideal. Então, tirou uma chave da argola que continha várias outras.

—  Obrigada.

—  Espere — Fletcher pediu pousando uma das mãos espalmadas na porta antes que ela a destrancasse. — Não vai me convidar para entrar e tomar um café?

Cilla só balançou a cabeça, sem se virar.

—  Não.

Seu perfume combinava com o cheiro da noite, Fletcher concluiu. Intenso, misterioso, deliciosamente intrigante.

—  Ora, não está sendo nem um pouco gentil.

Ela recuperou o bom humor e respondeu com naturalidade:

—  Eu sei. Até qualquer hora, Fletcher.

Ele escorregou a mão espalmada e envolveu a de Cilla, pousada sobre o trinco.

—  Você não come?

O bom humor desapareceu, o que não foi motivo de surpresa para Fletcher. Contudo, ficou admiradíssimo ao ver sua expressão de confusão e... timidez! Cilla, entretanto, se recompôs tão depressa quanto perdera o autocontrole, deixando-o com a impressão de que tudo não passara de excesso de imaginação.

—  Uma ou duas vezes por semana.

—  Amanhã.

A mão dele continuava sobre a dela e Fletcher teve certeza de que o coração de Cilla batia acelerado.

—  Pode ser.

—  Venha jantar comigo.

Cilla surpreendeu-se ao ver-se absolutamente sem jeito. Há anos não reagia daquela forma à proximidade de um homem. E foram anos de muita calma, muita paz. Para recusar um convite qualquer bastava que dissesse um simples não, o que nunca lhe fora motivo de constrangimento. No entanto, surpreendia-se ansiosa por perguntar-lhe a que horas viria buscá-la!

Antes que o perguntasse, porém, caiu em si. ,

—  É um convite muito gentil, investigador, mas terei de recusá-lo.

—  Por quê?

—  Não costumo sair com policiais.

E, antes que voltasse atrás, entrou e fechou a porta.

 

Boyd Fletcher revirou os papéis sobre sua mesa de trabalho e franziu a testa. O caso O’Roarke não ficara apenas sob sua responsabilidade, porém não conseguia deixar de pensar no assunto. Ou melhor, em Cilla O’Roarke, corrigiu-se, ansioso por um cigarro.

O policial veterano da mesa ao lado fumava como uma chaminé enquanto falava com um batedor de carteiras. Fletcher respirou fundo torcendo para que um dia chegasse a detestar aquele cheiro.

Junto com a fumaça, respirou também o perfume barato de duas garotas sentadas num banco próximo.

Todos esses detalhes normalmente lhe passavam despercebidos. Naquela noite, no entanto, o impediam de se concentrar. Desde os aromas ao seu redor, o barulho das máquinas de escrever, dos telefones até os passos rápidos no corredor sempre movimentado.

Para completar, havia três dias que a figura misteriosa de Priscilla Alice O’Roarke não lhe saía do pensamento. Era inútil tentar distrair-se. Talvez fosse pelo fato de passar várias horas em sua companhia durante o programa. Ou por tê-la visto baixar suas defesas. Ou, ainda, por ter constatado que ela não era indiferente à sua proximidade.

Talvez fosse, pensou. Ou, talvez, não.

Experiente, não era do tipo que se deprimisse por ter levado um não de uma garota. Afinal, tinha consciência de que não era possível agradar a todas. O fato de já ter agradado a um número razoável de mulheres em seus trinta e três anos de vida já o satisfazia.

Porém, o problema todo estava em não ser correspondido pela única mulher que, no momento, lhe interessava.

Voltando a mente para o trabalho, reconheceu que tinha uma missão a cumprir: descobrir o autor dos telefonemas anônimos que a importunavam. Ele e Althea já haviam iniciado as investigações começando pelos já fichados na polícia pelo mesmo motivo, averiguando fatos e pessoas da vida de Cilla desde que chegara em Denver, interrogando discretamente seus colegas de trabalho.

Até aquele momento, nada.

Era hora de aprofundar a investigação, constatou. Fletcher pegou o currículo de Cilla que deixara ali sobre a mesa e o examinou. "Interessante", concluiu depois de correr os olhos pelos dados principais. Tão interessante quanto a pessoa a quem pertencia.

Segundo o relato, ela iniciara sua carreira numa rádio desconhecida na Geórgia, o que explicava o ligeiro sotaque sulista, e seguira para uma estação bem maior em Atlanta. Dali, fora para Richmond, St. Louis, Chicago, e então, Denver.

"Ela gosta de mudar", pensou. Ou estaria fugindo de algo? Aquela era uma questão a ser pesquisada com mais calma.

Uma coisa ficava bem clara a quem quer, que lesse seu currículo: Cilla partira de sua cidade natal em busca do sucesso apenas com um diploma de segundo grau e muita vontade de vencer. Não deve ter sido fácil para uma menina de dezoito anos, na época, entrar para uma profissão predominanternente masculina.

—  A leitura está interessante?

Althea sentou-se num canto da mesa do colega. Ninguém na delegacia ousaria elogiar-lhe as belas pernas, contudo, não deixavam de admirá-las.

—  É o currículo de Cilla O’Roarke. E então, já chegou a alguma conclusão?

—  A garota é muito corajosa e competente — Althea admitiu, sorrindo. Várias vezes o ridicularizara por seu fascínio pela voz da locutora. — Gosta de fazer tudo a seu modo. É inteligente e muito profissional.

Fletcher tirou da gaveta uma latinha de balas de goma e despejou várias na palma da mão.

—  Isso tudo eu concluí por mim mesmo.

—  Não é só — disse Althea servindo-se de duas balas. — Ela está apavorada e tem um incrível complexo de inferioridade.

—  Complexo de inferioridade? — Fletcher fez uma careta e se recostou na cadeira. — Não, não. Althea pegou mais uma bala.

—  Ela faz o possível para manter uma fachada de valentia mas, vez por outra, revela a verdadeira natureza. Intuição feminina, Fletcher. Você tem muita sorte de trabalhar comigo.

Conhecendo-a bem, Fletcher sabia que Althea era bem capaz de terminar com as balas e tratou de guardar a latinha.

—  Impossível. — E apontou para os papéis sobre a mesa. — Temos de encontrar esse sujeito de alguma forma.

—  Cilla não gosta de falar sobre o passado.

—  Nós a obrigaremos.

Althea pensou bem e mudou de posição, recruzando as pernas com graça.

—  Quer fazer uma aposta? Nada a fará abrir-se.

—  Não é assim.

—  Hoje é sua vez de lhe fazer companhia.

—  Então, quero que comece a investigar as pessoas que   ela   conheceu  em   Chicago   —   pediu   Fletcher entregando-lhe uma pasta. — Há o dono da emissora, o senhorio. — Sua intenção era ir muito além do que estava escrito naquelas fichas, mas tinha de começar pelos fatos concretos. — Use seu jeitinho e faça com que os caras se abram.

—  Isso é fácil.

De repente todas as atenções se voltaram para a porta, quando um guarda entrou trazendo consigo um marginal algemado que não parava de falar palavrões.

—  Puxa, esse lugar é fascinante.

Fletcher abanou a cabeça e bebeu o último gole de café.

—  Vou começar pelo caminho inverso, verificando a primeira rádio onde ela trabalhou. Se não acharmos alguma pista logo, o capitão vai nos enforcar.

—  Então, vamos tratar de encontrá-la. Nisso, o telefone tocou e Fletcher o atendeu.

—  Investigador Fletcher.

—  Fletcher.

Ele teria sorrido de satisfação se a voz sensual não tivesse vindo impregnada de medo.

—  Cilla? O que houve?

—  Recebi outro telefonema. — E riu, nervosa. — Grande novidade, não? Só que desta vez, ele ligou para minha casa! Você não imagina como estou assustada!

—  Tranque as portas e fique calma. Já vou para aí.

—  Obrigada. Veja se consegue chegar logo, sim?

—  Não levo mais do que dez minutos — prometeu, desligando o telefone. — Althea, vamos embora.

 

Cilla já havia recuperado a calma quando Althea e Fletcher chegaram a sua casa e não via motivo para tê-los chamado. Ou melhor, para ter chamado Fletcher.

"Foi apenas um telefonema", dizia a si mesma caminhando entre a janela e a porta. Aquela situação já durava uma semana, tempo bastante para ter se acostumado. Se conseguisse manter o controle dando ao anônimo a impressão de não se abalar com o que ouvia,o sujeito acabaria desistindo daquela brincadeira de mau gosto.

Seu pai lhe ensinara que aquela era a melhor forma de lidar com marginais. Sua mãe, por outro lado, achava mais fácil acertar-lhes um soco fulminante no queixo. Embora Cilla reconhecesse o valor das duas, achava que naquele caso a atitude passiva era a mais recomendável.

Durante o último telefonema, no entanto, admitia ter se descontrolado e acabara gritando com o tal sujeito, implorando que a deixasse em paz. Por sorte Deborah não estava em casa para ouvi-la.

Soltando os braços ao longo do corpo, sentou-se na poltrona com as costas bem retas. A mente tumultuada a impedia de refletir. Logo depois do chamado, correra para trancar as portas, desligara o rádio e fechara as cortinas. Sob a luz fraca do abajur, olhava assustada pelos quatro cantos da sala: as paredes que ela e a irmã haviam pintado, os móveis que haviam escolhido. O ambiente e os objetos que já lhe eram familiares a acalmavam.

Em pouco mais de seis meses morando ali, ambas já começavam ajuntar algumas quinquilharias; coisas que nunca haviam feito nos outros lugares onde moraram anteriormente. Mas, ali, a casa não era alugada, tampouco os móveis eram emprestados. Tudo ali lhes pertencia.

Talvez fosse por esse motivo que ambas tivessem começado a enfeitar cada canto com um peça diferente: o vaso chinês sobre a mesa de jantar, o bibelô de louça na estante. Pequenas coisinhas que transformavam urna casa num lar.

Era a primeira vez que constituíam um lar desde a morte dos pais, e Cilla não permitiria que uma voz anônima do outro lado do telefone estragasse aquela felicidade.

—  Mas,   o   que  fazer?   Como estivesse sozinha, permitiu-se um momento de desalento e ocultou o rosto entre as mãos. Tinha de lutar. Porém, como lutar com alguém que não conhecia nem podia ver? Seria melhor tratá-lo com indiferença? No entanto, por quanto tempo conseguiria manter a farsa já que ele a perseguia até a casa?

E o que aconteceria quando ele parasse com as ameaças e partisse para a ação?

A batida brusca à porta assustou-a, fazendo-a pousar uma das mãos no peito.

"Vou fazê-la sofrer. Vou fazê-la pagar."

— Cilla, sou eu, Fletcher. Abra a porta. Correndo os dedos pelos cabelos, Cilla se recompôs e foi recebê-lo.

— Oi. Puxa, vocês vieram depressa. — E voltou-se para Althea: — Como vai? — Então, convidou-os a entrar e recostou-se contra a porta depois de trancá-la. — Foi bobagem tê-los chamado aqui.

—  Faz parte do nosso trabalho — explicou Althea Grayson, reparando no quanto era frágil a amardura de coragem atrás da qual Cilla se escondia. — Podemos sentar?

— Claro. Me desculpe. — Cilla apontou-lhes o sofá e reconheceu não estar conseguindo passar-lhes a imagem de mulher forte que tanto prezava. — Aceitam um café?

—  Não se incomode conosco — disse Fletcher acomodando-se no sofá bege com almofadas azuis. — Conte-nos o que aconteceu, sim?

—  Anotei tudo. — Os gestos nervosos ao caminhar até a mesa do telefone para pegar o bloco denunciavam sua agitação. — É um hábito que adquiri trabalhando no rádio. Sempre que o telefone toca, já pego um lápis — justificou.

Na verdade, porém, não queria repetir a conversa de própria voz.

—  Deixe-me ver.

Fletcher pegou o bloco e leu o texto. Seus músculos se enrijeceram num misto de revolta e ódio, mas ele soube manter a calma aparente. Depois de terminar a leitura, passou-o para a colega.

Cilla não conseguia sentar-se. De pé no centro da sala, puxava sem parar a barra da camiseta.

—  Ele é bastante claro quando fala o que pensa a meu respeito e o que pretende me fazer.

—  Foi a primeira vez que ele ligou para cá?

—  Foi. Não sei como conseguiu o número já que meu nome não consta da lista telefônica.

Althea pôs o bloco de lado e pegou o dela, na bolsa.

—  Quem sabe o número do telefone da sua casa?

—  Basicamente o pessoal da rádio — respondeu Cilla, já mais calma. Responder perguntas diretas era algo simples que não lhe causava apreensão. — Deb deve tê-lo dado na escola, também. Meu advogado, Carl Donnely. Uns dois amigos de minha irmã: Joshn Holden e Darren McKinley. Algumas amigas minha. Acho que é só. Agora, o que me preocupa é... — De repente, a porta abriu e Cilla girou nos calcanhares. — Deb! — constatou entre aliviada e aborrecida. — Pensei que tivesse duas aulas esta noite.

—  E tive. — Deb voltou seus lindos olhos azuis para Fletcher e Althea. — Vocês são da polícia?

—  Deborah, você sabe que não deve matar aulas. Hoje era dia de prova.

— Pare de me tratar como criança! — Deb exclamou entregando-lhe o jornal que carregava. — Espera que eu acredite nessa sua conversa de que não há nada de errado? Diabo! Você mentiu para mim quando disse que estava tudo sob controle.

Cilla viu o título estampado num canto da primeira página do jornal e jogou-o sobre uma poltrona: "Radialista da Noite Sofre Ameaças Anônimas".

—  Não era mentira. Está tudo sob controle. Só que coisas deste tipo ajudam a vender jornais, e eles exageram na notícia.

—  Não é verdade.

—  Já chamei a polícia — Cilla revidou no mesmo tom. — O que mais você quer?

Fletcher percebeu que as duas irmãs se pareciam. O formato dos olhos e da boca era igual. Porém, se Cilla era do tipo sexy e atraente capaz de virar a cabeça de qualquer homem, sua irmã tinha uma beleza mais clássica e menos chamativa.

O cabelo de Deborah era curto e cacheado enquanto o da irmã caía pelos ombros numa cascata de ondas castanhas. A mais nova usava um suéter vermelho e calça comprida preta enfiada por dentro das botas de cano reto. Já Cilla usava um agasalho de ginástica já bastante surrado, com meias grossas cor de laranja.

Os gostos pareciam ser bem diferentes, mas os temperamentos eram idênticos.

E quando as irmãs O'Roarke discutiam, o faziam para valer.

Althea, sentada ao lado de Fletcher, chegou-se mais perto e murmurou-lhe baixinho:

— Acho que as duas costumam brigar com freqüência.

Fletcher riu. Em outras circunstâncias, adoraria presenciar a discussão até o fim.

—  Em quem você aposta?

—  Em Cilla — disse Althea cruzando as pernas. — Mas a irmã também promete.

Cansada do bate-boca, Deborah voltou-se  para Fletcher:

—  Já que Cilla continua mentindo, me diga você o que está acontecendo.

—  Ah...

—  Deixe para lá. — Deb apontou para Althea. —Você.

—  Somos os detetives encarregados de investigar o caso de sua irmã, srta. O’Roarke.

—  Então, há um caso.

Ignorando o olhar furioso de Cilla, a investigadora assentiu.

—  Sim. A direção da rádio nos deu permissão para fazermos uma ligação entre a polícia e a linha telefônica usada no programa para que possamos localizar o autor dos telefonemas anônimos. Eu e o investigador Fletcher já interrogamos diversas pessoas com passagens anteriores pela polícia pelo mesmo motivo. Agora, como sua irmã recebeu um telefonema aqui na sua casa, faremos uma ligação com esta linha também.

—  Aqui? Esse sujeito ligou para cá? Oh, Cilla, não! — E, passada a raiva, abraçou a irmã. — Sinto muito.

— Não há nada com que se preocupar — disse Cilla ao se desvencilhar do abraço. — É verdade. A polícia se encarregará de tudo.

— Isso mesmo — garantiu Althea já de pé. — Eu e meu colega temos muitos anos de experiência e resolveremos tudo o mais breve possível. Posso usar o telefone?

—  Claro. Há uma extensão na cozinha — informou Deborah antes que Cilla respondesse. Precisava conversar a sós com a investigadora. — Vou acompanhá-la. Aceitam um café?

—  Não, obrigado — agradeceu Fletcher observando-a sair da sala.

A expressão de seus olhos disse mais do que mil palavras.

—  Nem pense nisso! — disse Cilla.

—  O quê? — Fletcher se fez de desentendido, admirando a atitude protetora de Cilla com relação à irmã mais nova. — Bem, Deborah é uma moça muito bonita.

—  Você é velho demais para ela.

—  Puxa, não precisava me ofender.

Cilla pegou um cigarro e forçou-se a sentar no braço da poltrona.

—  Além do que, você e Althea formam um belo par.

—  Thea? — Mais uma vez ele não conteve o riso. Por vezes, chegava a esquecer que sua parceira de dupla era mulher. — É; dizem que sou um sujeito de sorte.

Cilla cerrou os dentes. Detestava sentir-se intimidada por outra mulher. Na verdade, achava Althea bonita e elegante e chegava a invejá-la por isso.

Fletcher levantou do sofá e tirou-lhe o cigarro apagado da mão.

—  Está com ciúme?

—  Ora, que bobagem!

—  Como se sente? — ele quis saber erguendo-lhe o queixo com a ponta do dedo.

—  Bem. — Cilla queria afastar-se, mas tinha certeza de que ele não lhe daria passagem e, caso se levantasse, talvez não resistisse ao impulso de apoiar a cabeça no ombro dele, deixando o orgulho de lado. Do que, na certa, se arrependeria. — Não quero ver Deb envolvida nesta história. Ela fica sozinha em casa à noite, enquanto eu estou trabalhando.

—  Posso providenciar para que uma radiopatrulha fique estacionada na sua porta.

Cilla assentiu, grata.

—  Detesto pensar que algum dia possa ter feito algo que a colocasse em perigo. Ela não merece sofrer.

Incapaz de resistir, ele tocou-lhe as maçãs do rosto sentindo a pele aveludada sob os dedos.

—  Nem você.

Há muito tempo alguém não a tocava, ou melhor, Cilla não permitia que alguém a tocasse daquela maneira e, com algum esforço, conseguiu dar de ombros.

—  Ainda não pensei nessa questão. — De olhos fechados, desejou poder aconchegar o rosto contra aquela mão forte e protetora. — Preciso me arrumar para ir trabalhar.

—  Por que não pede que alguém a substitua hoje?

—  E deixá-lo pensar que conseguiu me amedrontar? Não, não.

—  Até os super heróis descansam de vez em quando.

Cilla balançou a cabeça e levantou-se. Como já esperava, Fletcher não lhe deu passagem, e todas as suas saídas estavam bloqueadas. Apesar da tensão, o orgulho a fez sustentar-lhe o olhar. Diabo! Fitando-a com tal intensidade, Fletcher notaria sua agitação.

—  Você está me incomodando, Fletcher.

Mais um minuto, só um, e ele a teria puxado para si. Só assim conseguiria constatar até que ponto suas fantasias condiziam com a realidade.

—  Ainda não viu nada, Cilla O’Roarke. Ela franziu os olhos:

—  Já chega de ameaças por hoje.

—  Não é ameaça — Fletcher afirmou enganchando os dedos no bolso da calça. — É uma promessa.

Deborah achou que já tinha ouvido demais e pigarreou antes de entrar na sala.

—  Eu lhe trouxe um café — disse entregando uma xícara fumegante para Fletcher. — Althea me disse que você prefere puro e com açúcar.

— Obrigado,

— Vou ficar esperando o pessoal da polícia vir fazer a ligação — anunciou desafiando a irmã a contradizê-la. Então, beijou-lhe as maçãs do rosto e avisou: — Ainda não perdi nenhuma aula este semestre. — Ao ver a expressão de Fletcher, explicou: — Ela quer satisfação de tudo o que faço.

—  Não sei do que está falando — retrucou Cilla, afastando-se para pegar a bolsa. — Você está atrasada com as leituras das aulas de política, precisa estudar mais história americana e não perderia nada se desse uma olhada na apostila de psicologia. — Enquanto falava, tirava o casaco do armário junto à porta. — Por falar em serviço, bem que poderia lavar o chão da cozinha com uma escova de dentes e cortar mais um pouco de lenha.

Deborah caiu na gargalhada.

—  Vá embora!

Cilla riu e pegou na maçaneta, sem ter visto que Fletcher já a segurava. Assustada, olhou-o com ar de espanto:

—  O que está fazendo?

—  Vou pegar uma carona com você — ele explicou e deu uma piscada para Deborah antes de se despedir.

Cilla entrou no prédio da estação furiosa:

—  Isso é ridículo!

—  O quê? — Fletcher perguntou, fingindo-se de inocente.

—  Não entendo por que preciso trabalhar acompanhada de um policial todas as noites. — Enquanto andava, ela tirava o casaco de uma maneira tal que o fez lembrar um toureiro agitando a capa. Sempre brava, esticou um braço para abrir a porta de uma saleta e quase tropeçou em Fletcher quando ela se abriu de súbito. — Puxa, Billy ! Você quase me mata de susto!

—  Me desculpe. — O faxineiro tinha os cabelos já grisalhos, braços magros e um sorriso franco. — Vim buscar o spray para limpar o vidro.

—  Tudo bem. Ando meio assustada mesmo.

—  Ouvi comentário sobre o que tem acontecido — ele explicou pegando um pano e um balde. — Sinto muito, Cilla. Se precisar de mim, é só chamar. Fico aqui na estação até a meia-noite.

—  Obrigada. E então, vai ouvir meu programa hoje?

—  Claro que vou.

O faxineiro sorriu e afastou-se com seus apetrechos. Fletcher reparou no modo como ele puxava ligeiramente a perna direita.

Cilla entrou na saleta, pegou um frasco de líquido especial para limpeza de agulhas de toca-discos e deixou uma moeda sobre uma pilha de trapos.

—  Para quem é esse dinheiro?

—  Para Billy — ela disse num tom seco. — Ele é ex-combatente do Vietnã.

Fletcher não respondeu. "Mais um furo na armadura", pensou.

Antes de começar o programa, Cilla entrou numa saleta à direita do corredor para verificar a programação selecionada para aquela noite, trocando as músicas a seu gosto. O diretor do programa havia desistido de reclamar e lhe dava liberdade para mexer na programação. Mais um motivo pelo qual ela gostava de trabalhar à noite.

—  Não gosto deste conjunto — murmurou.

— O que disse? — perguntou Fletcher, mais interessado na rosquinha açucarada que comia.

—  Estava me referindo ao Studs — Cilla repetiu batendo o lápis na mesa. — Aposto como não vão passar do primeiro disco.

—  Então, por que os radialistas o escolhem?

— Para lhes dar uma chance. — Concentrada no trabalho, ela deu uma mordida na rosquinha que ele lhe ofereceu. — Daqui a seis meses, ninguém mais vai se lembrar deles.

—  Isso acontece muito no mundo do rock.

—  Não é bem assim. Veja o que houve com os Beatles, Buddy Holly, Chuck Berry, Bruce Springsteen, Elvis Presley. Isso sim é rock.

Fletcher recostou-se contra a parede e estudou Cilla por uns instantes.

—  Você não ouve outro tipo de música?

Ela riu e passou a ponta da língua pelo lábio superior para retirar o açúcar.

—  E existe outro tipo de música?

—  Está bem, já entendi.

Cilla tirou um elástico do bolso e prendeu os cabelos num rabo de cavalo.

—  Que tipo de música você prefere?

—  Gosto dos Beatles, Buddy Holly, Chuck...

—  Bem, então, nem tudo está perdido.

—  Mozart, Lena Horne, Ella Fitzgerald, B. B. King...

—  Ora, seu gosto é bem eclético.

—  Sou um sujeito liberal.

Cilla aprumou-se por um momento:

—  Fletcher, você me surpreende. Julguei que fosse do tipo insensível, desses que gostam de partir corações e afogar as mágoas na bebida. — E sorriu-lhe. — Bem, está na hora do programa.

Bob Williams, o locutor do horário das seis às dez, terminava seu programa. Alegre e brincalhão, tinha a voz de rapaz, embora já tivesse quase quarenta anos. Ao vê-la selecionar uns discos, Bob deu-lhe uma piscadinha.

—  Hummm, a garota de voz de veludo acaba de chegar aos estúdios — disse ao microfone, e soltou uma fita com o som vibrante das batidas de um coração. — Atenção pessoal, fique ligado porque a estrela da meia-noite começa a surgir no horizonte. O último número de hoje, será um grande sucesso do passado.

E começou a tocar Honky Tonk Woman, sucesso dos anos 60. Bob levantou-se da cadeira, afastou o microfone e friccionou os músculos das pernas.

—  Olá, garota, como vai?

—  Bem, obrigada — ela afirmou pondo o primeiro disco no prato do toca-discos, com a agulha a postos.

—  Li os jornais de hoje.

—  Ora, você sabe como esses caras exageram.

—  Cilla, formamos uma verdadeira família aqui na KHIP. Se precisar de ajuda, não hesite em me pedir.

—  Obrigada, Bob.

—  Você é o policial, não é? — perguntou a Fletcher.

—  Sim, sou.

—  Trate de pegar logo esse lunático ou todos nós acabaremos malucos. — Bob deu um tapinha amigo no ombro da colega. — Conte comigo para o que precisar.

—  Pode deixar. Obrigada.

Faltando apenas trinta segundos para entrar no ar, Cilla não podia nem queria pensar no pior. Sentada na cadeira giratória, ajustou o microfone, testou a voz e mexeu no botão que abria o som.

—  Boa noite, Denver. Esta é Cilla O'Roarke falando através da KHIP, a rádio mais ouvida em todo o Estado. Seguiremos juntos até as duas da madrugada e vamos começar distribuindo um prêmio de cento e dez dólares para quem acertar o nome da música, do cantor e o ano da gravação que tocarei daqui a pouco. Nosso número é 555-5447. Fique ligado.

Já aos primeiros acordes da canção, Cilla sorriu satisfeita. Recuperara totalmente o autodomínio.

—  O cantor é Elton John, a música se chama Honky Cate foi gravada em... 1972! — disse Fletcher ali ao lado.

Cilla virou-se para fitá-lo e o surpreendeu com ares de satisfação, as mãos enfiadas nos bolsos da calça, o sorriso juvenil nos lábios. Nunca o vira tão bonito.

—  Ora, ora, mais uma surpresa, Fletcher. No final do programa, lembre-me de lhe dar uma camiseta com o logotipo da rádio.

—  Eu preferia ganhar um jantar.

—  E eu, um Porsche. De qualquer forma... Ei! — Cilla exclamou ao vê-lo segurar-lhe uma das mãos.

—  Você andou roendo as unhas — ele constatou passando um dedo pela beirada irregular das unhas curtas. É um péssimo hábito.

— Tenho vários outros.

— Entendo. Não tive tempo de trazer um livro, portanto vou ficar observando seu trabalho, está bem?

— Por que não... — Cilla praguejou e apertou o botão de um dos telefones. A conversa a atrapalhava. — KHIP. E então, amigo, sabe o nome da música de hoje?

Só o sexto ouvinte a telefonar acertou todos os dados em cheio. Tentando ignorar a presença de Fletcher, Cilla introduziu no toca fitas um cassete com os comerciais e anotou o nome e endereço do vencedor.

Mas ficava difícil concentrar-se no trabalho tendo-o ali tão perto. Perto o suficiente para poder aspirar-lhe o aroma silvestre da colônia masculina. Era um perfume másculo, que lhe trazia à mente a imagem de uma montanha coberta de pinheiros, um chalé de madeira, um quarto à meia luz...

"Que devaneio mais imbecil", criticou-se em pensamento. Nada daquilo lhe interessava. O mais importante naquele momento era localizar o autor dos telefonemas e retomar sua rotina normal. O lado sentimental e amoroso desempenhava uma parte mínima em sua felicidade. Toda sua energia voltava-se para a busca do sucesso profissional. Este sim, lhe trazia uma profunda satisfação pessoal.

Cilla mudou de posição e esticou-se para tirar um disco da prateleira cheia de compartimentos verticais. Com o movimento, sua pernas roçaram as dele, e ela pôde sentir-lhe os músculos rijos da coxa. Ocultando a agitação, Cilla ergueu o olhar e o encarou num desafio. E sentiu o coração disparar ao vê-lo fixar a atenção em seus lábios úmidos.

Imediatamente um calor súbito subiu-lhe ao rosto. A música ecoava em seus ouvidos através dos fones que insistia em usar para não ter de conversar com Fletcher. A letra da canção falava em noites quentes de verão e na paixão de dois enamorados.

Cilla afastou-se uns centímetros e, ao retomar o microfone, sua voz soou ainda mais rouca.

Já prestes a se descontrolar, Fletcher achou por bem levantar-se. Seu intuito fora  aborrecê-la fazendo-a distrair-se para que não tivesse tempo de pensar nos telefonemas ameaçadores, que certamente se repetiriam naquela noite. Queria fazê-la pensar em outras coisas. Ou melhor, nele. Quanto mais melhor. Porém, não sabia que ao alcançar seu objetivo, teria caído no mesmo laço. Ela cheirava a noite. As flores da noite. Uma verdadeira dama da noite: secreta, insinuante. Sua voz provocante o excitava, acendia-lhe a chama do desejo. Desejo de pecar. Contudo, seus olhos tinham uma expressão de inocência verdadeiramente desconcertante. Aquela combinação de anjo e demônio, inocente e pecadora levava a maioria dos homens ao delírio.

''Distância", disse a si mesmo ao sair do estúdio sem fazer barulho. Distância e profissionalismo. Nenhum dos dois lucraria com um possível envolvimento amoroso. Seu dever era protegê-la das ameaças que vinha sofrendo e nada mais.

Sozinha, Cilla fez um esforço consciente para se descontrair, esticando cada um dos músculos dos braços e das pernas. Mais calma, procurou se convencer de que aquela tensão era fruto da pressão dos últimos dias e nada tinha a ver com a presença de Fletcher.

Afastando os cabelos do rosto, tocou dois sucessos sem intervalo, o que lhe dava mais uns momentos de descanso. Aos poucos, Fletcher ia se revelando uma pessoa muito diferente do que ela imaginara. Ele lia autores sérios e sabia de cor o ano das gravações de Elton Jonh. Falava manso e raciocinava com rapidez; usava botas riscadas e um paletó de trezentos dólares.

Mas o que lhe importava aquilo tudo, perguntou-se ao pegar os discos e fitas que tocaria nos próximos vinte minutos de programa. Não estava interessada em homem nenhum. Primeiro: jamais se envolveria com um policial. Segundo: qualquer um percebia que Fletcher e Althea tinham um relacionamento mais profundo do que o estritamente profissional.

De olhos fechados, mergulhou no ritmo da canção lembrando-se de que era considerada uma garota de sorte. Trabalhava no que gostava e alcançara sucesso em sua profissão.

A vida, no entanto, lhe ensinara uma lição: nada durava para sempre. Os bons e maus momentos passavam, e o importante era aproveitar as fases boas ao máximo. — Esta foi Joan Jett, nos fazendo companhia. Nossos relógios marcam onze e meia. Teremos um intervalo para as notícias oferecidas pela Wildwood Records e voltaremos em seguida com dois sucessos de Steve Winwood e Phil Collins. Esta é a KHIP, — a rádio número um no coração do Colorado.                     

Quando Fletcher voltou, encontrou-a de pé, estirando-se para pegar uma fita na prateleira enquanto dançava ao ritmo de uma canção. Detendo-se do lado de fora, ele a observou ondular os quadris e sorrir para si mesma num momento de descontração.

Distraída, ela não o ouviu entrar e assustou-se quando ele pousou uma das mãos em seu ombro.

—  Eu lhe trouxe um chá. Você toma muito café. Experimente. Este é de jasmim.

Cilla sentiu o coração disparar numa reação que nada linha a ver com o esforço da dança.

—  Não bebo água de flor.

—  Ora, vamos, prove. Vai ajudá-la a se acalmar.

Ambos olharam para o relógio, que já marcava meia-noite. Aquela tinha sido a parte do programa que Cilla mais gostava. No entanto agora, cada telefonema com pedidos dos ouvintes a deixava com os nervos à flor da pele.

—  Talvez ele não ligue hoje, já que me telefonou em casa.

—  Pode ser.

—  Você não acredita nessa possibilidade, não é?

—  Acho que devemos nos preparar para enfrentar o que aparecer — ele disse, sentando-se a seu lado na cabine minúscula. — Quero que se acalme e o mantenha na linha o máximo de tempo possível. Faça perguntas; mesmo que ele não as responda.

Cilla bebeu o resto do chá a contragosto e foi franca:

—  Há uma coisa que gostaria de saber: por quanto tempo você ainda vai me pajear?

—  Não se preocupe com isso. Você é famosa, tem recebido ameaças de morte, e a imprensa já divulgou o caso. Vou ter de fazer-lhe companhia por algum tempo, até que consigamos prender esse sujeito.

O chamado veio, como todas as noites. Ao reconhecer a voz, ela tirou a ligação do ar, tocou uma música para os ouvintes e, numa atitude inconsciente, agarrou a mão de Fletcher.

—  Você é persistente, não?

— Quero vê-la morta. A hora já está quase chegando.

—  Por acaso eu o conheço? Afinal nunca tive inimigos ocultos.

Cilla fechou os olhos ao ouvi-lo dizer uma série de palavrões e apertou a mão de Fletcher com mais força. Ainda assim, seguiu o combinado e foi esticando a conversa.

—  Puxa, você está mesmo um bocado bravo, não? Ouça, se não gosta do meu programa, é só mudar de estação ou desligar o rádio.

—  Você o seduziu — disse o homem com voz de choro e ódio. — Você o seduziu, o enganou, o iludiu. Depois o matou.

—  Eu... — Suas palavras a chocaram mais do que as ofensas de baixo calão. — Quem? Não sei do que está falando. Por favor, diga...

Mas o homem desligou.

Enquanto Cilla se recostava na cadeira, absolutamente sem ação, Fletcher entrou em contato com a polícia:

—  E então? Conseguiram? Droga! — E levantou-se.

— Precisariam de mais dez segundos para localizá-lo. Ele deve saber que o telefone está grampeado. — Fletcher assustou-se ao ouvir Nick Peters abrir a porta: — O que foi?

—  Eu... eu... — o rapazinho gaguejava. —Mark disse que eu podia vir assistir ao programa. Pensei que Cilla quisesse um café.

—  Ela avisa se precisar — respondeu Fletcher. — Acha que pode ajudá-la a terminar o programa?

—  Não preciso de ajuda — Cilla alegou com voz calma. — Obrigada, Nick — E abriu o microfone: — Essa canção Laurie dedicou ao marido, Chuck com todo amor.

— O telefone continuou piscando e Cilla atendeu outro telefonema: — Boa noite, qual o sucesso que quer pedir?

De fato, Cilla terminou o programa sem problemas e não se opôs quando Fletcher ofereceu-se para levá-la até sua casa. Ao ver a radiopatrulha estacionada junto à calçada, ela suspirou aliviada, ciente de que Deborah estava bem protegida.

—  Vou descer com você.

—  Olhe, não é preciso — retrucou. — Acho que já entendi o que está acontecendo.

Já na sala, ela tirou o casaco, guardou-o no armário c acendeu um cigarro. Fletcher permaneceu de pé.

—  Ah, é? Então, me diga.

—  É evidente que esse homem cometeu um engano. Ele deve estar me confundindo com outra pessoa. Só preciso convencê-lo disso.

—  E como pretende convencê-lo?

—  Da próxima vez que ele ligar, vou obrigá-lo a me ouvir. Fletcher, pelo amor de Deus, nunca matei ninguém! Só pode ser um engano!

—  E quando você lhe disser o que pensa, ele vai parar para raciocinar, concordar, e lhe pedirá desculpas por tê-la incomodado. Cilla, esse sujeito está fora de si, não raciocina como uma pessoa normal.

—  Então, o que espera que eu faça? — ela revidou, revoltada, apagando o cigarro no cinzeiro. — Tenho de fazê-lo entender que está cometendo um erro. Nunca matei nem seduzi ninguém.

—  Ora, não me venha com essa conversa.

O comentário foi a gota d'água que faltava para fazê-la perder o controle de vez.

—  Por acaso me julga uma mulher falsa e dissimulada? Ou pensa que sou como a aranha viúva-negra, que mata o macho depois da cópula? Não sou nada disso. Tenho uma voz bonita e só. O resto não passa de fantasia.

—  Ambos sabemos que não é apenas sua voz que excita os homens, Cilla. Ele também sabe.

—  Pois saiba que está enganado. Meu ex-marido pode lhe confirmar o que digo.

Ele franziu os olhos:

—  Você nunca tinha me dito que já foi casada.

E nem pretendera, Cilla reconheceu. A fúria a fez falar mais do que devia.

—  Isso foi há muito, muito tempo. Não faz diferença alguma.

—  Quero que me dê o nome dele e o endereço.

—  Não sei onde mora. O casamento durou apenas alguns meses. Eu tinha só vinte anos, mas parecia uma garotinha de treze.

—  O nome, Cilla.

—  Paul Lomax. Não o vejo há oito anos, desde que nos divorciamos. — Ela caminhou até a janela e virou-se de frente para Fletcher. — O problema é que esse sujeito está totalmente enganado. Ele diz que seduzi e matei um homem, e ambas as afirmações são falsas.

—  Mas ele acha que não.

—  Pois acha errado. Não consegui fazer um homem feliz por mais de alguns meses, como seria capaz de seduzir alguém?

—  Ora, você está falando bobagens.

—  Fletcher, acha que é fácil para mim admitir que sou um fracasso na cama? — perguntou mordendo o lábio inferior. — O último rapaz com quem saí me disse que tenho água gelada nas veias em lugar de sangue. Mas nem por isso eu o matei. — E, minutos depois, admitiu com um sorriso: — Porém, cheguei a pensar no caso.

Fletcher riu mas logo reassumiu o tom sério:

—  Acho que já é hora de você encarar este caso e a si mesma com mais seriedade.

—  Eu me levo a sério.

— Profissionalmente, sim. Sabe desempenhar seu trabalho com perfeição. Já pessoalmente... Você foi a primeira mulher que conheci capaz de admitir que não consegue seduzir um homem.

—  Conheço meus limites.

—  Acho que isso é sinal de covardia.

Ela ergueu o queixo:

—  Ora, vá para o inferno!

Mas Fletcher não se deixou abater. Precisava fazê-la ver que estava enganada.

—  Acho que você tem medo de se aproximar dos homens, medo de se descobrir. Talvez descubra algo que não consiga controlar.

—  Ouça: agradeço seus conselhos, mas dispenso-os, sim? Seu dever é me proteger desse lunático que está me ameaçando.

Cilla ia sair da sala, porém Fletcher a impediu, segurando-a pelo braço.

—  O que acha de fazermos uma experiência?

—  Experiência?

—  Comigo, Cilla. Você estaria segura, já que não pode nem ver um policial. Seria um teste em que não correria risco algum — explicou segurando-lhe o outro braço. Os músculos dela tremiam, e os olhos faiscavam de raiva.

Ótimo. Por motivos que não saberia descrever, ele também estava furioso. — Aposto dez contra um que não sentirei nada — acrescentou, puxando-a para mais perto. — Por que não tenta provar que estou errado? O desafio estava lançado.

 

Eles estavam bem próximos. Cilla ergueu uma das mãos num gesto inconsciente de autodefesa e surpreendeu-se espalmando os dedos sobre o peito de Fletcher. O coração dele batia num ritmo inalterado enquanto o seu, disparava.

—  Não vou provar nada a ninguém.

Fletcher assentiu reparando na fúria estampada nos olhos de Cilla. Era preferível o ódio ao medo que ainda há pouco vira.

—  Então, prove a si mesma — insistiu provocando-a. - Afinal, qual é o problema? Por acaso eu a amedronto?

Ambos sabiam que ele havia tocado no ponto certo. Para Fletcher, o importante era fazê-la pensar e reagir, ainda que movida pela revolta.

Cilla jogou os cabelos para trás e deliberadamente escorregou-lhe as mãos pelo peito até alcançar-lhe os ombros. Queria vê-lo reagir àquela atitude, mas Fletcher limitou-se a erguer uma sobrancelha e observá-la com um sorriso malicioso.

Se ele queria jogar, ela estava disposta a entrar na brincadeira e, pondo o bom senso de lado, beijou-lhe os lábios.

Fletcher os manteve impassíveis, frios, rijos. De olhos abertos, Cilla o viu permanecer calmo, paciente, parecendo estar se divertindo com a situação. Revoltada, cerrou os punhos e esmurrou-lhe os ombros que, há pouco, acariciava.

—  Satisfeito?

 —  Não, não. — Seu olhar permanecia calmo, como fruto de um treinamento de anos de serviço da polícia, mas se Cilla tivesse pousado um dedo em seu pescoço, perceberia que suas pulsações estavam aceleradíssimas. — Você não está se empenhando, Cilla. — Fletcher deslizou-lhe as mãos pelos quadris puxou-a de leve para si, deliciando-se com seus movimentos. — Isso é o melhor que consegue fazer?

Humilhada e furiosa, Cilla praguejou e tornou a beijá-lo. Só que, agora, para valer.

Os lábios dele continuavam rijos, porém quentes e úmidos. Receptivos, até. Por um instante, Cilla teve vontade de se retrair, contudo o desejo, tão adormecido em seu íntimo, começou a despertar, provocando-lhe sensações que há tempos não experimentava. Vencida por aquela força que a impelia a prosseguir, apoiou-se em Fletcher e entregou-se àquela deliciosa onda de calor que lhe aquecia o corpo.

Todas as preocupações, todos os temores se dissiparam. Cilla sentia o corpo rijo e musculoso de Fletcher amparando o seu, e o calor de sua mãos subindo-lhe pelas costas até mergulharem entre seus cabelos. Os lábios dele, antes passivos e indiferentes, agora exigiam e proporcionavam-lhe prazer.

Desde que a ouvira pela primeira vez através do rádio, Cilla povoava suas fantasias. Ao conhecê-la, Fletcher se surpreendera ao descobri-la tão diferente do que imaginara e não cessara de desejá-la. Ao contrário, toda vez que a via imaginava que gosto teriam seus lábios carnudos, que reações seus beijos lhe provocariam.

Mas, de novo, a realidade superara qualquer expectativa.

Cilla era mais ardente, mais excitante do que poderia imaginar. Seu beijo o deixou sem fôlego. Excitado, Fletcher tentava aprofundá-lo, mas a sentia temerosa e assustada.

Cilla estremeceu e gemeu baixinho protestando, confusa, e tentou se afastar. Ele, porém, a impediu. Tendo as mãos entrelaçadas nos cabelos dela, puxou-os de leve obrigando-a a pender a cabeça para trás. Então, o verde de seus olhos se misturou ao castanho dos dela.

Fletcher manteve a calma e estudou-lhe o rosto com atenção. Queria ver estampada em sua fisionomia as mesmas sensações que sentira; o desejo, a paixão. Satisfeito, sorriu de maneira sensual e viu os olhos dela brilharem.

—  Ainda não terminei — avisou e, comprimindo-a contra si, tornou a beijá-la com paixão.

Cilla queria reagir, pensar, mas não conseguia. As emoções lhe turvavam o raciocínio, roubando-lhe a razão. E, antes que o pânico a dominasse, abandonou o bom senso entregou-se sem restrições.

Fletcher sabia que jamais se cansaria de prová-la. Seus lábios úmidos e quentes eram irresistíveis. Para não falar no corpo, vibrante e tentador. Seus gemidos eram carregados de promessas.

Incapaz de resistir, Fletcher insinuou uma das mãos sob suéter de Cilla, tocando-lhe a pela acetinada. E se deleitou com aquela carícia até que o desejo começasse a torturá-lo.

“Calma, ainda é cedo demais", dizia-lhe o bom senso, designado, ergueu o rosto e esperou-a abrir os olhos.

Cilla, ao abri-los, viu-o estudá-la atentamente e, constrangida, levou uma das mãos às têmporas.

—  Eu... preciso sentar.

—  Então, somos dois.

Puxando-a pela mão, Fletcher acomodou-a a seu lado no sofá. Cilla focalizou o olhar na janela escura procurando acalmar a respiração. Talvez com o tempo e uma certa distância conseguisse se convencer de que o que acabara de acontecer não passara de mero... acaso.

—  Foi uma estupidez.

—  Me desculpe, mas não concordo. Na minha opinião, foi muito bom.

Cilla respirou fundo mais uma vez.

—  Você me provocou, me fez ficar brava.

—  O que não é nada difícil, convenhamos.

—  Ouça, Fletcher...

—  Não preciso ouvir mais nada, Cilla — ele afirmou acariciando-lhe os cabelos com ternura. — Não tente me convencer de que não foi bom.

Na esperança de que as pernas parassem de tremer, Cilla levantou-se e começou a andar pela sala.

—  Acho que exageramos; passamos do limite.

—  Somos nós mesmos quem impomos nossos limites — ele ponderou recostando-se no sofá.

Fletcher se deliciava ao observá-la caminhar pela sala, reparando nos movimentos graciosos das pernas longas. Sorridente e confiante, estendeu um braço sobre o encosto do sofá e esticou as pernas para a frente.

—  Meus limites são bem definidos — disse Cilla olhando-o por sobre um ombro. — É bom que saiba.

—  Tudo bem. Procuraremos nos manter dentro deles, por enquanto. — Fletcher não se importava de exercitar a paciência. — Você tem uma idéia distorcida da realidade, achando que os homens só se sentem atraídos pela sua voz, pela imagem falsa que eles criam através do rádio. Acho que acabei de lhe provar que está enganada.

—  O que acabou de acontecer não provou nada. — Aquele sorriso lânguido que ele lhe dirigia a enervava. — E mais: Não sei o que isso tem a ver com os telefonemas que venho recebendo.

—  Você é uma garota inteligente, Cilla. Use a cabeça. Ele quer que você pague pelo que fez a um outro homem. Alguém que você conheceu e com quem esteve envolvida.

—  Eu já lhe disse que não há ninguém — ela confirmou acendendo um cigarro.

—  Hoje.

—  Hoje, ontem, o ano passado. Há tempos que não me envolvo com alguém.

Tendo-a visto reagir com tanta paixão aos seus beijos, Fletcher custava a acreditar no que ouvia.

—  Então, isso significa que o caso que teve com essa pessoa não foi muito importante para você. Aí é que está o problema.

—  Ora, Fletcher, seja razoável. Nem sequer tenho namorado. Me falta tempo e disposição para namorar.

—  Falaremos sobre sua disposição mais tarde.

Cilla virou o rosto em direção à janela:

—  Por favor, não me aborreça, sim?

—  Mas estamos falando da sua vida. — Seu tom insinuante despertou em Cilla a vontade de responder-lhe à altura, porém, refletindo melhor, calou-se. — Se nunca saiu com nenhum rapaz desde que se mudou para Denver, começaremos a investigar o passado. Antes, no entanto, quero que pense com bastante cuidado. Houve alguém que tenha lhe feito uma proposta, um convite? Alguém que telefone muitas vezes para a estação? Alguém que tenha se insinuado ou feito algum tipo de brincadeira?

—  Só você.

—  Lembre-me de me incluir na lista de suspeitos — ele brincou sem, no entanto, ocultar a frustração. — Quem mais?

—  Ninguém. — Atormentada e ansiosa por um pouco de paz, ela pressionou as mãos sobre os olhos. — Recebo muitos telefonemas na rádio. Alguns me convidam para sair, outros me mandam presentes. Flores, bombons, coisas do tipo.

—  Nenhuma brincadeira de mau gosto?

—  Nada. Não me lembro de nenhum que tenha flertado comigo enquanto estávamos no ar. E os rapazes que eu recuso não costumam insistir, pois sou bastante positiva.

Fletcher balançou a cabeça. Não era possível que uma mulher tão inteligente pudesse ser tão ingênua com relação a certas coisas.

—  Tudo bem, vamos mudar de perspectiva. A maioria de seus colegas na rádio são homens.

—  Sim, mas somos todos profissionais — ela lembrou recomeçando a roer as unhas. — Mark é feliz no casamento; Bob é mais feliz ainda com o divórcio. Jim é apenas um amigo, nada mais.

— Esqueceu-se de Nick.

— Nick Peters? O que tem ele?

— Ele praticamente a venera.

— O quê? — Surpresa, ela virou-se para encará-lo. — Que ridículo! Ele é um garoto!

Fletcher calou-se por uns segundo e suspirou:

— Você nunca percebeu, não é?

— Não há nada para perceber. Ouça, esta conversa não vai nos levar a lugar algum e eu estou... — Virando-se de frente para a janela, Cilla, de repente, emudeceu. — Fletcher?

—  O que foi? Aconteceu alguma coisa?

—  Tem um homem do outro lado da rua olhando para cá.

—  Saia da janela.

—  O quê?

Fletcher levantou-se do sofá e tirou-a dali.

—  Mantenha-se longe das janelas e conserve as portas trancadas. Não abra para ninguém até eu voltar.

Ela o acompanhou até a porta e arregalou os olhos ao vê-lo sacar uma arma. Foi um gesto natural e instintivo, mas suficiente para trazê-lo de volta à realidade. Em dez anos de serviço na polícia, quantas vezes já não devia ter repetido o mesmo movimento?

Era inútil dizer-lhe que tomasse cuidado.

—  Vou dar uma olhada lá fora. Tranque a porta assim que eu sair. — Fletcher já nem parecia ser o mesmo romântico que há pouco a beijara. Incorporara novamente a imagem do policial frio e insensível no cumprimento do dever. Os olhos haviam perdido o brilho de antes. — Se eu não voltar dentro de dez minutos, ligue para a polícia e peça reforço, entendeu?

— Sim.

— Assim que ele saiu, ela tornou a fechar a porta e trancou-a.

Com o paletó dasabotoado, Fletcher sentiu no peito o vento frio da madrugada. A arma, aquecida pelo contato com o corpo, estava perfeitamente encaixada à curva da mão. Olhando para a esquerda e a direita, não viu nada na rua exceto os fachos de luz espalhados pelas luzes dos postes. Àquela hora, num bairro estritamente residencial, a maioria das casas já estavam às escuras, e as famílias dormiam. O vento assobiava por entre as árvores sem folhas.

Se não tivesse visto com os próprios olhos um vulto através da janela, não teria acreditado nas palavras de Cilla. Quem quer que fosse certamente já tinha ido embora, alarmado pelo fato de ter sido visto.

E, de fato, Fletcher ouviu o barulho de um motor de carro a distância, porém não se preocupou em ir verificar. Seria inútil tentar alcançá-lo. Por precaução, chegou até a esquina, deu uma olhada e certificou-se de que não havia ninguém.

Cilla já estava prestes a telefonar para a polícia quando ele voltou.

—  Cilla, sou eu, abra.

Ela correu até a porta e perguntou, ansiosa:

—  E então? conseguiu vê-lo?

—  Não.

—  Mas eu juro que vi alguém.

—  Eu sei — ele tranquilizou-a ao trancar a porta. — Fique calma; não há ninguém lá fora.

—  Calma? — Só ela sabia o que sofrera naqueles dez minutos que Fletcher passara na rua. O medo chegara à beira do pânico. — Ele sabe onde moro, onde trabalho. Como espera que eu consiga me acalmar? Se você não o tivesse assustado, ele poderia ter...

Era melhor nem pensar no que poderia ter acontecido. Fletcher, calado, viu-a aos poucos recuperar a calma.

—  Por que não tira uma licença, passa uns dias em casa? — Sugeriu. — Podemos providenciar para que a radiopatrulha policie o quarteirão vinte e quatro horas por dia.

Cilla afundou-se entre as almofadas do sofá.

—  Que diferença faz se estiver aqui ou na rádio? Nenhuma. E, em casa, eu só ficaria mais preocupada ainda, imaginando mil coisas. Pelo menos o trabalho me ocupa e me distrai. Ele não esperava mesmo que ela concordasse.

—  Falaremos nisso mais tarde. No momento, é melhor você ir para a cama. Durmo aqui mesmo no sofá da sala.

Cilla gostaria de ter coragem o bastante para dizer-lhe que não era preciso, que não se incomodasse, porém não conseguiu.

—  Vou buscar um cobertor.

 

O dia quase amanhecia quando ele voltou para casa depois de ter percorrido diversos subúrbios. A princípio, sentira muito medo, mas o vencera dirigindo sempre com calma para não ser detido por nenhum guarda. Se alguém o pegasse, estragaria todo o seu plano.

Cansado, suava sob a capa grossa e o boné que usava. Os pés, no entanto, descalços dentro do tênis, estavam gelados. O desconforto, porém, não o incomodava.

Sem acender nenhuma luz, entrou no banheiro cambaleando. Ainda assim, conseguiu contornar a pilha de latas vazias de cerveja depositadas junto à porta do quarto. Tinha excelente visão, mesmo no escuro, algo de que sempre se orgulhara.

Depois de abrir a torneira de água fria, entrou sob o chuveiro e deixou que o jato lhe aliviasse os músculos tensos. Já mais calmo, deu-se ao luxo de aspirar a fragrância do sabonete que usava, seu favorito. Então, pegou uma escova de cabo longo e esfregou todo o corpo vigorosamente.

Lá fora, a escuridão da noite cedia aos primeiros raios avermelhados do amanhecer.

Ainda sob a água, acariciou a intrincada tatuagem que tinha no peito retratando duas facas de lâminas longas cruzadas em formato de "X". Ainda lembrava-se de como John ficara impressionado ao vê-la pela primeira vez.

A imagem voltou-lhe à mente com incrível nitidez. Seus olhos escuros arregalados de espanto, o modo rápido como falava, atrapalhando-se com as palavras. Por vezes, sentavam-se na quarta à noite, no escuro, trocando idéias, fazendo planos. Tencionavam viajar juntos.

Mas, de repente, o mundo exterior interferiu em seus planos. Aquela mulher se intrometera pondo fim em tudo.

Com o corpo molhado, fechou o chuveiro e pegou a toalha, pendurada exatamente onde a deixara. Ninguém entrava ali no seu quarto, no seu mundo. Depois de se enxugar, foi até o quarto e pegou um pijama já desbotado que o fazia recordar os tempos de infância. Uma infância que terminara de modo tão brusco.

O sol já estava mais alto no horizonte quando ele preparou dois sanduíches enormes e os comeu de pé, junto à pia da cozinha, cuidando para que as migalhas não caissem no chão.

Alimentado e limpo, sentiu-se novamente confiante. Era mais inteligente que a polícia e conseguia enganá-los muito bem, o que o deixava satisfeitíssimo. Estava deixando-a em pânico, atormentada, sem sossego. Quando a hora chegasse, cumpriria cada uma de suas promessas.

Pena que ainda não fosse o bastante para sentir-se vingado.

De volta ao quarto, fechou as persianas e pegou o telefone.

 

Deborah saiu do quarto usando uma lingerie branca e um robe azul-escuro. As unhas, bem vermelhas, haviam sido pintadas na noite anterior, enquanto assistia à televisão.

Preocupada com a prova que teria logo mais às nove horas, começou a pronunciar em voz alta as perguntas que desconfiava que cairiam no exame. As perguntas não lhe causavam problemas, ao contrário das respostas, com as quais ainda se atrapalhava. Quem sabe uma xícara de café a ajudasse.

Bocejando, tropeçou num par de botas, apoiou-se no sofá e quase gritou de susto ao tocar um braço peludo.

Fletcher sentou-se numa fração de segundos, a mão já pousada no cabo do revólver. Bem próximos, ele olhou para Deborah, a pele alva, os olhos azuis, cabelos cacheados, e suspirou de alívio.

—  Bom dia.

—  Investigador Fletcher?

Ele esfregou os olhos.

—  Sim. Acho que sim.

—  Me desculpe, não sabia que estava aqui. — Deborah pigarreou e lembrou-se de fechar melhor o robe. Então, olhou em direção aos quartos e abaixou a voz, sabendo que a irmã tinha sono leve. — Por que está aqui?

Fletcher flexionou um dos ombros, dolorido pela noite mal dormida no sofá.

—  Eu já lhe disse que vou tomar conta de Cilla.

—  Sim, disse. — A garota franziu os olhos. — Você leva seu trabalho a sério, não?

—  Claro que levo.

—  Ótimo. — Deborah lançou-lhe um sorriso juvenil e franco. — Eu já ia fazer café. Tenho prova logo mais às nove. Aceita uma xícara?

— Aceito, sim. Obrigado.

— Imagino que também queira tomar um banho quente. Não deve ter dormido muito bem encolhido nesse sofá.

— Não posso negar que é um pouco desconfortável para alguém da minha altura — ele reconheceu, massageando o pescoço dolorido.

— Pode ficar à vontade. Vou trazer o café.

Antes que saísse da sala, o telefone tocou e, mesmo sabendo que Cilla o atenderia antes do segundo toque, Deborah deu um passo na direção da mesinha onde ficava o aparelho. Fletcher, porém, balançou a cabeça e, tirando o fone do aparelho com cuidado, tampou o bocal e ouviu a conversa.

Puxando as lapelas do robe com as mãos, Deborah observou-lhe o rosto impassível e reparou no brilho de raiva estampado em seus olhos. Não foi preciso mais nada para saber quem estava do outro lado da linha.

Fletcher desligou o telefone para, logo em seguida, discar o número.

—  E então? Conseguiram? — A resposta negativa de certa forma não o surpreendeu. — Entendo. — Desligando, olhou para Deborah que, muito pálida, sentara-se no sofá. — Vou até o quarto falar com Cilla. Acho que vou deixar o café para uma outra ocasião, está bem?

—  Cilla deve estar nervosa, quero falar com ela. Fletcher afastou as cobertas e levantou-se do sofá usando apenas a calça jeans.

—  Eu preferia que você me deixasse cuidar disso sozinho.

Deborah quis retrucar, mas viu uma advertência bem clara no olhar que Fletcher lhe dirigiu.

—  Está bem, mas, tenha cuidado, sim? Ela não é tão forte quanto aparenta.

—  Eu sei.

Entrando pelo corredor, Fletcher passou pela porta aberta de um quarto que, pela decoração rosa e branca, julgou ser o de Deborah. A cama estava impecavelmente arrumada. Parado diante da segunda porta fechada, bateu e foi entrando sem esperar por consentimento.

Cilla estava sentada no centro da cama com os joelhos encolhidos contra o peito. Os lençóis e as cobertas revirados eram os testemunhos da noite maldormida.

Ali, não havia nenhum toque feminino ou juvenil na decoração. Cilla ergueu o rosto lentamente e Fletcher não viu sinais de lágrimas em seus olhos. Em vez de amedrontada, Cilla parecia abatidíssima, o que era ainda mais preocupante.

—  Era ele.

—  Eu sei. Ouvi pela extensão.

—  Então, já deve saber que era ele que estava lá fora a noite passada. — Ela voltou-se para a janela, através da qual pôde ver o sol começando a brilhar por entre as nuvens. — Ele disse que me viu. Ou melhor, que nos viu.

E fez insinuações horríveis.

—  Cilla...

—  Ele estava nos espionando! — Cilla exclamou com vigor. — Nada do que faça ou diga irá detê-lo. Se ele conseguir me pegar, cumprirá todas as promessas horrendas que vem fazendo.

—  Ele não vai pegá-la.

—  Por quanto tempo conseguirei fugir? — Ela curvava os dedos ao redor do lençol enquanto lançava um olhar de desafio a Fletcher. — Quanto tempo você vai continuar me seguindo? Esse sujeito não tem pressa e aposto como não vai desistir de esperar. Enquanto isso, continuará a me amedrontar com seus telefonemas e ameaças. — Movida mais pelo medo do que pela revolta, Cilla pegou o telefone na mesinha de cabeceira e o atirou contra a parede do quarto. O aparelho caiu ruidosamente no chão. — Você não conseguirá detê-lo. Ouviu o que ele disse!

—  Isso é o que ele quer. — Fletcher segurou-a pelos braços e sacudiu-a. — Cilla, esse sujeito quer vê-la desesperada, com os nervos em frangalhos. Ele quer ter certeza de que consegue controlá-la. Você está entrando nesse jogo.

—  Não sei mais o que fazer — ela revelou, desolada. — Juro que não sei.

—  Você tem de acreditar em mim, Cilla. — Ela ergueu o rosto e o fitou. — Quero que confie em mim e acredite quando lhe digo que nada de mau lhe acontecerá.

—  Você não pode me proteger vinte e quatro horas por dia.

Ele curvou os lábios, afrouxando as mãos que a apertavam, friccionou-as com carinho em seus braços.

—  Claro que posso.

—  Eu quero que...

Cilla fechou os olhos antes de completar a frase. Detestava ter de pedir-lhe algo.

—  O quê? Diga.

—  Preciso ter algo em que confiar. Um apoio. Por favor.

Sem uma palavra, ele a puxou para sim e a envolveu num abraço caloroso, fazendo-a pousar a cabeça em seu peito. Ela cerrou os punhos e começou a tremer, lutando contra as lágrimas.

—  Não tente conter as lágrimas. Chorar faz bem.

—  Eu... não posso. — Cilla continuava de olhos fechados apreciando a solidez do corpo dele a lhe transmitir mais confiança. — Tenho medo de começar a chorar e não conseguir mais parar.

—  Está bem. Então, tente pensar apenas em mim. — Fletcher a fez erguer o rosto e pousou os lábios macios sobre os dela. — Só em mim. Aqui, agora, a seu lado — insistiu acariciando-lhe as costas tensas.

Cilla não sabia que um beijo pudesse conter tanto carinho, tanta compaixão. Os lábios de Fletcher acalmavam-lhe o medo, abrandavam-lhe os temores, a reanimavam. Aos poucos, cada músculo de seu corpo foi relaxando. Ele agora lhe beijava todo o rosto com doçura, sem exigência. Apenas compreensão.

Foi tão simples seguir seu conselho...

Hesitante, Cilla ergueu uma das mãos e tocou-lhe a face, deslizando os dedos pelo contorno da barba por fazer. Em questão de instantes, suas têmporas pararam de latejar. Ela murmurou o nome dele baixinho e aninhou-se entre seus braços.

Fletcher, por outro lado, sabia que devia se precaver. Aquela rendição absoluta era por demais tentadora... Naquele momento, porém, estava ali para confortá-la. Era preciso ignorar o próprio desejo, atiçado por aquele beijo tão terno, pelo calor do corpo de Cilla junto ao seu. Ignorar o perfume floral que sua pele macia exalava.

Sabia que se a deitasse ali entre os lençóis e a prendesse sob si, Cilla não ofereceria resistência. Talvez até apreciasse tendo um motivo para esquecer-se dos problemas. Fletcher, no entanto, queria ser muito mais do que uma simples distração temporária para ela.

Lutando com as próprias emoções, beijou-lhe a testa e recostou o rosto em seus cabelos.

—  Está se sentindo melhor?

Cilla respirou fundo e assentiu, não se atrevendo a falar. Na verdade, gostaria de permanecer ali para sempre, nos braços de Fletcher, ouvindo-lhe as batidas aceleradas do coração. Mas ele, na certa, a julgaria uma boba.

—  Eu... desconhecia esse seu lado tão humano, Fletcher.

Ele achou graça do comentário:

—  Só o revelo em ocasiões especiais.

—  Entendo. Bem, você cumpriu muito bem seu dever.

Fletcher preferia achar que ela falava sério e não apenas com o intuito de provocá-lo. Ainda assim, ergueu-lhe o queixo com a ponta de um dedo e afirmou:

—  O beijo que lhe dei não tem nada a ver com meu trabalho. Beijei-a porque quis, porque tive vontade, entendeu?

Seu intuito tinha sido o de agradecer-lhe pelo carinho e não o de aborrecê-lo. Contudo, vendo seu tom de advertência, Cilla franziu a testa.

—  Entendi.

—  Ainda bem.

Revoltado, Fletcher enfiou as mãos nos bolsos da calça.

Só naquele momento foi que Cilla notou que ele usava apenas a calça jeans, sem cinto. O friozinho que sentiu no estômago, e que lhe roubou a fala, não tinha nada a ver com o medo.

Desejava-o muito. Não apenas para trocarem uns beijos apaixonados ou uns abraços carinhosos. Queria-o ali, em sua cama, como seu amante. Jamais um homem lhe despertara aquela vontade. Reparando em seu peito bronzeado, nos quadris estreitos, no movimento dos músculos do braço quando a mão se movia, não podia deixar de imaginar qual a sensação de ser possuída por Fletcher. Um homem forte, corajoso mas capaz de gestos de intensa ternura.

— Mas, afinal, o que está acontecendo com você, garota? — Cilla murmurou inadvertidamente.

— O que disse? — perguntou Fletcher, tirando-a daquele devaneio. — Está falando sozinha?

—  Bem, eu... — Com a boca seca e um nó na garganta, Cilla piscou várias vezes imaginando o que ele diria se soubesse em que estava pensando. — Acho que vou tomar um café,

"Ou, quem sabe, um banho gelado surtisse melhor efeito", corrigiu-se em pensamento.

—  Sua irmã já preparou.

Bastante sério, Fletcher estudou-a enquanto franzia a sobrancelha. Por um momento, lembrou-se de Deborah quando, há pouco, tropeçando no sofá, quase caíra em seu colo. A garota usava apenas um robe entreaberto por baixo do qual ele pôde ver a lingerie. Deborah tinha umas pernas lindas, um corpo escultural, entretanto não o atraía.

Já Cilla lhe parecia irresistível naquele pijama largo cuja camiseta cor de laranja trazia um emblema de um time de beisebol.

—  Por que não toma um café da manhã reforçado? — perguntou, de súbito, interrompendo o curso dos pensamentos.

—  Não costumo comer nada pela manhã.

—  Abra uma exceção. Não vai demorar mais do que dez minutos.

—  Ouça, Fletcher, não gosto que...

—  E veja se penteia os cabelos — ele acrescentou já saindo do quarto.

Na cozinha, encontrou Deborah, já vestida, tomando uma xícara de café e, ao vê-lo, a garota pulou da cadeira. Evidente que o aguardava com ansiedade.

—  Sua irmã está bem. Vou lhe preparar uma café reforçado.

Deborah espantou-se, porém não retrucou.

—  Ouça, por que não senta e fica à vontade? Deixe a cozinha por minha conta.

—    Pensei que tivesse aula logo cedo.

—    Posso perfeitamente faltar.

Fletcher pegou uma xícara e aproximou-se da cafeteira para se servir.

—  Acho que ela vai ficar brava conosco se você não for à escola.

Deborah riu da observação precisa e abriu a gaveta à procura de uma colher para o açúcar:

—  Você já a conhece bem, não é?

—  Nem tanto. — Fletcher bebeu metade da xícara num só gole e apreciou o calor da bebida descendo pela garganta. Era preciso pensar em Cilla apenas em termos profissionais, caso contrário poria em risco o sucesso da missão. — Você tem algum tempo para conversarmos?

—  Cinco minutos.

—  Conte-me sobre o ex-marido de sua irmã.

—  Paul? — Deborah indagou sem surpresa. — Por quê? — E balançou a cabeça antes que ele respondesse. — Não está suspeitando que Paul esteja envolvido nessa história, está?

—  Suspeito de tudo e de todos. O divórcio foi amigável?

—  E por acaso algum divórcio o é?

Apesar da pouca idade, Deborah era bastante observadora.

—  Estou interessado no de sua irmã.

—  Bem, eu diria que sim, na medida do possível. — Não lhe agradava o fato de estar revelando dados sobre a vida particular de Cilla, porém tinha consciência de que o fazia pensando em seu bem. — Eu tinha apenas doze anos na ocasião, e Cilla nunca conversou abertamente comigo a esse respeito, mas sempre tive a impressão de que foi Paul quem pediu o divórcio.

—  Por quê?

Constrangida, Deborah aprumou os ombros:

—  Ele tinha se apaixonado por outra mulher — revelou torcendo para que a irmã não a julgasse uma traidora. — Fui morar com eles logo depois que meus pais morreram, mas os dois já viviam brigando. Cilla tinha poucos meses de casada, porém... Bem, acho que a lua-de-mel terminou cedo demais. Cilla já começava a ficar famosa com seu programa em Atlanta, e Paul, que era do tipo conservador, reprovava o fato de minha irmã trabalhar no rádio. Ele queria concorrer a um cargo de deputado e achava que a imagem de Cilla ia prejudicá-lo.

—  Para mim, seria justamente o contrário. Deborah riu e serviu-lhe mais um café.

— Lembro-me de como era difícil para ela prosseguir com a carreira e manter o casamento. Foi uma época penosa para todos nós, e o fato de Cilla ter de arcar com a responsabilidade de me criar só complicou as coisas. Depois de dois meses da minha chegada, ele saiu de casa e pediu o divórcio. Cilla concordou sem contestar.

Fletcher imaginou o contexto: Cilla, com vinte anos de idade, tendo acabado de perder os pais, arcava com a criação da irmã menor e via seu casamento desmoronar.

—  Pelo que vejo, o divórcio só fez bem a ela.

— Para ser franca, nunca gostei muito de Paul. Ele era um sujeito fraco, sem personalidade. Um chato.

—  Por que ela casou com ele?

— Por que não pergunta a mim mesma? — Cilla indagou aproximando-se da porta da cozinha.

 

Cilla seguira o conselho de Fletcher e prendera os cabelos num rabo-de-cavalo, deixando o rosto à mostra. Seus olhos faiscavam, e as mãos, cerradas, ela enfiara nos bolsos da calça do agasalho de ginástica que vestira sobre o pijama.

—  Cilla — disse Deborah num tom suave, dando um passo em direção à irmã. — Estávamos falando sobre...

—  Pode deixar; eu ouvi a conversa. — Então, voltou-se para Deborah com uma expressão serena: — Não se preocupe, querida, não foi culpa sua.

—  Não é uma questão de culpa. Nós nos preocupamos com você.

—  Nada vai me acontecer. Agora, é melhor você se apressar ou vai acabar perdendo a aula. Eu e o investigador Fletcher precisamos ter uma conversinha.

Deborah ergueu os braços e soltou-os ao longo do corpo em sinal de derrota. Então, lançou um olhar solidário para Fletcher e beijou a irmã.

—  Tudo bem. Não adianta querer discutir com você esta hora da manhã.

—  Espero que vá bem na prova.

—  É o que desejo. Josh e eu combinamos de ir ao cinema hoje à noite, mas prometo chegar cedo em casa.

—  Divirtam-se. — Cilla aguardou, imóvel, até ouvir a porta fechar. Então, voltou-se para Fletcher, dando vazão ao ódio que lhe ardia no peito: — Que coragem!

Ele, inabalável, tirou mais uma xícara do armário:

—  Quer um café?

—  Não gostei de vê-lo submetendo minha irmã a um interrogatório. Fletcher encheu a xícara e deixou-a sobre a mesa.

—  Vamos esclarecer uma coisa. — Cilla aproximou-se dele mantendo as mãos nos bolsos. Se as tirasse, temia descontrolar-se a ponto de esbofeteá-lo. — Quando quiser saber alguma coisa a meu respeito, venha perguntar a mim, entendeu? Não quero ver Deborah envolvida nesse caso, como já disse.

—  Ela é muito mais direta e objetiva do que você. Por acaso, tem uns ovos aí na geladeira? — perguntou, já abrindo a porta do refrigerador.

Cilla conteve o ímpeto de bater-lhe a porta nos dedos.

— Confesso que por uns instantes você conseguiu me enganar e cheguei a pensar que Tosse um bom sujeito.

Fletcher encontrou meia dúzia de ovos, um pedaço de queijo e algumas fatias de bacon.

—  Por que não se senta e toma o café, Cilla? Irritada, ela o xingou e viu nos olhos dele um brilho perigoso que a intimidou. Fletcher, contudo, manteve a calma, e pegando uma panela sob a pia, começou a fritar o bacon.

—  Se quiser me impressionar, vai ter de aprimorar seu vocabulário — disse depois de uns instantes. — Depois de dez anos trabalhando para a polícia, já não me choco com tanta facilidade.

—  Você não tinha o direito — ela alegou em voz baixa mas carregada de indignação. — Não devia ter perguntado nada a Deborah. Ela era apenas uma criança, ainda abalada pela morte dos pais. Foi uma fase difícil você não tinha o direito de fazê-la recordar todo aquele sofrimento.

—  Deborah se saiu muito bem. — Ele quebrou um ovo numa tigela e apertou a casca na mão. — Parece que o problema é só com você.

—  Ora, me deixe em paz.

Fletcher segurou-lhe o braço com tal rapidez que Cilla não teve tempo de sair da cozinha. Seu tom era perigosamente manso:

—  De jeito nenhum.

—  O que aconteceu no passado não tem relação alguma com o que está acontecendo agora; e é só isso o que me preocupa. O resto, não lhe diz respeito.

— Eu é que sei o que me diz respeito. — Respirando fundo, Fletcher fez um esforço sobre-humano para se conter. Ninguém nunca o provocara daquela forma, levando-o à beira do descontrole. — Se quiser enterrar o assunto, conte logo tudo o que houve e não voltarei a aborrecê-la. Ex-maridos são sempre suspeitos em casos de ameaças.

— Foi há oito anos! — Cilla exclamou ao pegar a xícara que ele deixara na mesa.

Só que, com a pressa, parte do café derramou no pires.

— Ou você fala ou terei de apelar para outras fontes. De uma forma ou de outra, obterei as informações de que preciso.

— Então, quer mesmo que eu lhe conte tudo? Está certo. A esta altura, já não me importo com mais nada. Eu tinha vinte anos e era tão ingênua quanto uma garota de quinze. Ele era bonito, charmoso e inteligente: tudo que uma garota ingênua procura num rapaz.

Cilla bebeu um gole de café e pegou um pano para enxugar o pires e a mesa.

— Namoramos apenas dois meses. Paul era muito romântico, persuasivo, e resolvi me casar porque queria algo estável em minha vida. E, sobretudo, porque pensei que ele me amasse.

Ela surpreendeu-se mais calma, menos agitada e pegou uns pratos no armário.

—  As coisas entre nós começaram a dar errado desde o início do casamento. Paul ficou decepcionado comigo fisicamente e não se conformava em saber que eu considerava meu trabalho tão importante quando o dele. Seu intuito era me fazer mudar de profissão para que meu trabalho não interferisse em seus planos.

—  Que planos eram esses? — perguntou Fletcher pondo o bacon sobre uma toalha de papel para escorrer a gordura.

— Ele pretendia ingressar na política. Na verdade, nos conhecemos numa festa beneficente organizada pela emissora onde eu trabalhava. Paul foi lá à caça de votos, e eu comandava a festa. O problema todo estava exatamente aí: não nos conhecíamos como pessoas; apenas como personagens.

— E o que aconteceu depois?

— Nós nos casamos depressa demais e começamos a nos desentender com a mesma rapidez. Eu já estava até pensando em seguir o conselho dele e mudar para o ramo de marketing, na tentativa de salvar o casamento. Foi quando meus pais morreram e eu trouxe Deborah para morar conosco.

Lembrando-se de toda a dor, de todo o sofrimento que haviam passado na época, Cilla calou-se por uns instantes .

— Deve ter sido difícil para vocês, não?

— Fiquei muito abalada e precisava trabalhar para me distrair e não ter tempo de pensar nos problemas. A tensão foi aos poucos destruindo nosso casamento, que já vinha bastante abalado, e Paul acabou me trocando por outra. É só.

"E agora, o que dizer?", Fletcher se perguntava. "Fez muito bem em ter se livrado desse panaca? Todos nós cometemos erros?" Refletindo bem, achou melhor omitir qualquer comentário.

— Alguma vez ele a ameaçou?

— Não.

— Nem a espancou?

— Não, não. Acho que você está fazendo uma imagem errada de Paul. Ele era um bom sujeito, só que cometemos o erro de nos casarmos cedo demais. Nenhum dos dois estava preparado para enfrentar a vida de casados.

Pensativo, Fletcher serviu-lhe uma porção de ovos mexidos.

—  Às vezes as pessoas guardam um certo ressentimento, mesmo sem perceber. Então, um dia, acabam explodindo.

—  Paul não ficou magoado comigo — Cilla afirmou ao partir em dois uma fatia de bacon torrado. — Ele não gostava de mim a esse ponto. — Ela sorriu mas seus olhos continuaram tristonhos. — Paul pensava que eu fosse exatamente como a voz que ouvia pelo rádio: sedutora, sofisticada, sexy. Era este o tipo de mulher que queria na cama. Em público, queria aparecer acompanhado por uma esposa glamourosa, elegante, devotada. Eu não era nada disso. Por outro lado, ele também se revelara bem diferente do rapaz atencioso e compreensivo que imaginei, e a decepção foi mútua. Nos divorciamos de modo amigável, sem brigas, e cada um seguiu seu caminho.

—  Sinto que você está me escondendo alguma coisa. Se foi tudo tão simples, por que se recusa a falar no assunto até hoje?

Cilla ergueu os olhos e o fitou seríssima:

—  Você nunca foi casado, não é?

—  Não.

—  Então, não adianta explicar. Se quiser chamá-lo para depor, esteja à vontade, mas será perda de tempo. Posso lhe garantir que ele nunca mais deve ter pensado em mim desde que saí de Atlanta.

Fletcher duvidava que algum homem fosse capaz de esquecê-la, porém achou melhor encerrar o assunto.

—  Você está demorando para comer; os ovos vão esfriar.

—  Eu lhe disse que não costumo comer nada pela manhã.

—  Há sempre uma primeira vez — ele afirmou e, tirando uma garfada, levou-a aos lábios de Cilla. — Experimente.

—  Puxa, como você é teimoso! — ela exclamou depois de engolir. — Não está na hora de ir se apresentar ou coisa parecida?

—  Já telefonei para a central a noite passada, depois que você foi dormir.

Ela brincava com a comida tirando uma garfada de vez em quando só para que ele não a aborrecesse. Comovia-a saber que ele passara a noite no sofá mesmo já não estando em serviço.

—  Fletcher, quero lhe agradecer por ter ficado aqui esta noite e sei que faz parte do seu serviço me fazer este tipo de perguntas, mas quero que deixe minha irmã longe desse caso.

—  Prometo poupá-la o mais que puder.

—  As férias estão se aproximando e quero ver se consigo convencê-la a ir passar uns dias na praia.

—  Boa sorte — respondeu Fletcher, observando-a por sobre a borda da xícara. — Não lhe faria mal algum fazer-lhe companhia por uns dias. Você precisa descansar.

—  Não; não quero fugir. — Enfastiada, empurrou o prato ainda cheio para o lado e apoiou os cotovelos na mesa. — Cheguei a pensar nisso depois do telefonema de ontem pela manhã, mas percebi que seria inútil. Só voltarei a ter sossego depois que descobrirmos quem é esse sujeito e o que quer de mim.

— Isso faz parte do meu trabalho.

— Eu sei. Foi por esse motivo que decidi cooperar.

— Ah, decidiu?

— Hum hum. De hoje em diante, minha vida será um livro aberto. Responderei a qualquer pergunta que me fizer.

—  E fará tudo o que eu lhe disser?

—  Não. Isto é, só farei o que julgar razoável. — E, surpreendendo a ambos, tocou-lhe uma das mãos. — Você me parece cansado; não dormiu bem à noite?

—  Não foi exatamente uma noite tranqüila. — Antes que Cilla encolhesse a mão, Fletcher entrelaçou-lhe os dedos com os seus. — Você é ainda mais bonita pela manhã. Mais uma vez ela sentiu aquele friozinho no estômago.

—  Não foi o que insinuou ainda há pouco, no meu quarto.

—  Mudei de idéia — afirmou com um sorriso charmoso. — Antes de ir embora, gostaria de conversar a respeito da noite passada e o que houve entre nós.

—  Não acho que seja uma boa idéia.

—  De fato, não é. — Fletcher continuou segurando-lhe a mão. — Sou o policial designado para protegê-la, para desvendar o seu caso. Não há como negar essa verdade. Porém, tampouco posso negar que te desejo. Muito.

Cilla permaneceu calada e imóvel, sentindo o coração bater disparado. Então, ergueu o olhar, apenas o olhar, lentamente, até encará-lo e achou excitante o brilho cálido que viu nos olhos verdes de Fletcher.

—  Acho que me precipitei — ele reconheceu diante do silêncio dela. — Mas creio que para certas coisas não há um momento ideal. Estou tentando desempenhar meu trabalho da forma mais objetiva possível, porém confesso que não está sendo fácil. Se quiser que a central designe outra pessoa para me substituir, é só dizer.

— Não — ela respondeu depressa demais. — Isto é — emendou —, acho que não me sentiria à vontade sendo seguida por um outro policial. Já estou acostumada com a sua companhia. — Ao se surpreender roendo a unha de um polegar, ela baixou depressa a mão. — Quanto ao resto... Não somos mais crianças; saberemos como lidar com esta situação.

Fletcher já sabia que Cilla não admitiria o fato de a atração ser mútua, mas não desistia de esperar pela confissão.

Vendo-o levantar da cadeira, Cilla pulou de susto e provocou em Fletcher um riso divertido:

—  Calma, Cilla. Só vou lavar a louça.

—  Deixe que eu mesma lavo — ela disse, odiando-se por aquela reação desastrada. — Aqui em casa, temos um regulamento: um cozinha, o outro lava a louça.

—  Ótimo. Você vai fazer uma externa para a rádio hoje ao meio-dia, não é?

—  Sim. Como você sabe?

—  Verifiquei seu esquema de trabalho para hoje. Vamos sair com algumas horas de folga para que eu possa passar em casa e tomar um banho.

—  Fletcher, vou estar no shopping center cercada por dezenas de fãs. Não acho que seja...

—  Mas eu acho.

Quando Cilla voltou para a sala, encontrou-o recostado no sofá lendo o jornal. Ele a fitou por sobre a beirada da página de esportes e refreou o comentário que estava prestes a fazer a respeito de sua ligeireza ao se vestir.

Cilla estava linda naquela saia curta de couro vermelho vivo, justa nos quadris. Acostumado a vê-la sempre de calça comprida, não fazia idéia do quanto suas pernas eram longas e bem torneadas. A jaqueta, do mesmo tom e material, tinha abotoamento duplo sobre o peito e parava exatamente à altura da cintura. Fletcher imaginava o que Cilla estaria usando por baixo.

Os cabelos permaneciam soltos e volumosos porém cuidadosamente ajeitados sobre os ombros. Já de pé, Fletcher notou, ainda, que Cilla havia passado um pouco de blush no rosto e um lápis escuro no contorno dos olhos.

—  Que coisa mais boba — ela murmurava enquanto lutava para colocar um brinco. — Não sei quem foi que disse que os homens acham isso atraente. Diabo! Não consigo lidar com este fecho. Por acaso você tem jeito?

Ela havia se aproximado do sofá e seu perfume o inebriava.

—  Para quê?

—  Para   colocar   brincos   —   Cilla   esclareceu, entregando-os. — Não costumo usá-los com freqüência e sou muito desajeitada. Quer me ajudar?

Fletcher procurava manter a respiração inalterada, mas era quase impossível.

—  Quer que eu ponha os brincos para você?

Impaciente, ela revirou os olhos:

— Puxa, você custa para entender as coisas, não? — Ela entregou-lhe os brincos de pingentes dourados e puxou o cabelo para trás da orelha. — É só colocar e prendê-lo com a tarraxa.

Fletcher resmungou algo incompreensível e começou a colocá-los. Havia um peso em seu peito que o impedia de respirar fundo. Jamais conseguiria esquecer aquele perfume.

Desajeitado, custou um pouco mas conseguiu prendê-los.

—  É uma coisa tão simples.

—  É sim.

Cilla mal conseguia falar. No momento em que sentira o breve roçar dos dedos de Fletcher em seu pescoço, percebera que havia cometido um erro ao pedir-lhe ajuda. O hálito quente a tocar-lhe a nuca era pura provocação.

Então Fletcher começou a deslizar-lhe a ponta de um dedo pelo maxilar inferior, para baixo e para cima, tocando-lhe um ponto sensível junto à orelha. Cilla, excitada, reprimiu um murmúrio e ergueu uma das mãos, bastante trêmula.

—  Ouça, acho melhor pararmos por aqui.

—  Tudo bem. — Fletcher soltou a respiração e deu um passo para trás. Sentia-se um tolo, um adolescente desastrado e inexperiente. Contudo, ficou satisfeito ao ver que Cilla não era imune aos seus carinhos. Sorrindo, balançou um dos brincos com a ponta dos dedos e acrescentou: — Quando precisar de ajuda, é só me chamar.

Cilla preferiu não responder e foi tirar os casacos do armário. Deixou o paletó de Fletcher sobre o sofá e o observou recolocar o coldre sob a camisa. Aquela imagem trouxe-lhe à mente lembranças desagradáveis e ela preferiu sair da sala indo esperá-lo no jardim. Fletcher não comentou nada ao entrar no carro.

—  Você se incomoda se eu puser o rádio na KHIP? — Cilla indagou acomodando-se no banco de passageiro.

—  Não, não. É a estação número três na memória.

Satisfeita, ela sintonizou a rádio. A equipe humorística do show da manhã realçava suas brincadeiras e piadas com efeitos sonoros divertidíssimas. O locutor fez propaganda de uma peça teatral, prometeu dar mais três pares de ingressos durante a programação e convidou os ouvintes a irem conhecer Cilla O'Roarke pessoalmente no shopping center.

—  Ela estará distribuindo mais ingressos de teatro, camisetas e discos — Fred anunciou.

—  Ora, Fred — interveio o segundo locutor —, você sabe que os rapazes não estão interessados em ganhar camisetas. Eles vão lá só para conhecer Cilla — acrescentou ao som de assobios e gritinhos.

—  Que engraçadinhos — Fletcher ironizou enquanto Cilla ria.

—  Faz parte do programa deles — ela explicou. — As pessoas gostam de programas alegres e cheios de bobagens a esta hora da manhã, quando estão saindo da cama ou rumando para o trabalho. A última pesquisa apontou-os como campeões do horário.

—  Você deve se divertir quando vê um rapaz suspirar por sua causa.

— Ora, faz parte da fama! — Cilla comentou, bem-humorada demais para sentir-se ofendida. Olhando ao redor, reparou no luxuoso carro esporte cheirando a novo. Um carro e tanto para um policial. — Vamos, Fletcher, não fique aborrecido.

Reconhecendo estar se portando como um tolo, ele resolveu calar-se. Suas investigações já haviam provado que ambos os apresentadores do tal programa eram bem casados. Frantic Fred e a esposa esperavam o primeiro filhinho. Os dois trabalhavam na KHIP havia quase três anos e só a conheceram ali na rádio.

Mais relaxada, Cilla olhou pela janela. O dia prometia ser bonito e quente, já num prenúncio da primavera. Seria sua primeira primavera ali no Colorado.

A estação, no entanto, a sua preferida, trazia-lhe lembranças dos tempos em que morara na Geórgia, onde o perfume das magnólias pairava no ar. Os pés haviam sido plantados por seu pai.

—  Cilla? Você está bem?

—  Ah, claro. — De volta à realidade, reparou na alameda arborizada que conduzia a um sobrado de três andares com detalhes em pedra e madeira. As janelas altas reluziam ao sol. — Onde estamos?

—  Na minha casa. Preciso trocar de roupa, esqueceu?

—  Sua casa?

—  Isso mesmo. Afinal, todo mundo tem um lugar para morar.

Era bem verdade, ela reconheceu ao abrir a porta para descer. Mas nunca conhecera um policial que morasse numa mansão como aquela. O bairro tradicional era composto em sua maioria de famílias ricas, de estirpe privilegiada.

Surpresa e bem impressionada, Cilla o acompanhou até a porta de entrada, em vidro rayban.

O hall de entrada era amplo, o assoalho e o teto de madeira avermelhada envernizada. As paredes eram de coradas por quadros de pintores famosos, e uma escada curva conduzia ao segundo andar.

—  Pensei que você fosse um policial honesto.

—  E sou.

Fletcher tirou-lhe o casaco dos ombros e pendurou no espaldar de uma cadeira. Cilla, no fundo, não tinha dúvidas quanto à honestidade dele, porém, era preciso muito dinheiro para se ter uma casa daquele tamanho.

— Herdei muito dinheiro de minha avó — ele explicou como se lhe adivinhasse os pensamentos.

Pegando-a pelo braço, Fletcher a conduziu através de uma porta em arco rumo a um outro ambiente. A sala de estar era belíssima, decorada com muito bom gosto. O detalhe que mais chamava atenção ali era a lareira de pedras ricamente adornada por uma moldura entalhada. Cada uma das paredes externas tinha uma janela imensa com vista para o gramado.

Havia diversas peças antigas espalhadas pelos móveis, misturadas a esculturas moderníssimas numa combinação inédita e refinada. Através de outra porta em arco, Cilla pôde ver a sala de jantar.

—  Puxa, sua avó devia ter muito dinheiro.

—  Ela era uma pessoa muito especial. Presidiu as Indústrias Fletcher até os setenta anos de idade.

—  O que produzem as Indústrias Fletcher?

—  Um pouco de tudo. O negócio pertence à nossa família e atua desde a mineração até o ramo imobiliário.

—  Mineração? Você quer dizer ouro?

—  Entre outras coisas.

Cilla cruzou os dedos para evitar roer as unhas.

— Então, por que não está sentado num escritório contando seus dólares se multiplicarem?

— Porque gosto de ser policial — afirmou, imperturbável. — Algo errado?

—  Não. Acho melhor você ir trocar de roupa. Preciso chegar ao shopping antes do horário marcado.

—  Prometo não demorar.

Ela esperou que ele subisse e então afundou-se num dos sofás da sala. Indústrias Fletcher... Tirando um cigarro da bolsa, acendeu-o e observou melhor o ambiente. Elegante, sofisticado e... rico.

Embora não gostasse de admitir, reconhecia que alimentava uma pequena, bem pequena, esperança de que pudessem ter um relacionamento mais pessoal, mas agora, vendo que ele pertencia a uma classe tão alta, suas esperanças caíam por terra. Fletcher devia pertencer a uma família milionária. Ela,por sua vez, não passava de uma moça simples, nascida e criada numa cidadezinha no interior da Geórgia. Evidente que tinha conquistado uma certa fama em seu ramo de atividade, mas suas origens eram bem humildes.

Agitada, levantou-se e foi jogar o cigarro na lareira.

Esperava que Fletcher voltasse logo para que pudessem ir embora dali. Mal via a hora de começar a trabalhar e se distrair para não ter tempo de pensar na confusão em que sua vida se transformara. Era melhor abafar seus sentimentos com relação a Fletcher e voltar a encará-lo como profissional.

Assim que o caso das ameaças estivesse esclarecido, cada um seguiria seu caminho e jamais voltariam a se encontrar. A relativa intimidade de que desfrutavam no momento nascera de uma mera circunstância e acabaria tão logo deixassem de se ver. Cilla estava de pé junto à janela quando Fletcher voltou para a sala. A luz do sol produzia reflexos lindos em seus cabelos, e Fletcher reconheceu que ali era o lugar dela.

Era incrível como a presença dela preenchia o ambiente, dava mais vida à casa. Queria-a ali para sempre; dona da casa, dona dos seus sonhos.

Ela certamente discutiria e se recusaria a desempenhar aquele papel, caso Fletcher lhe desse uma chance. Sorrindo, ele se aproximou dela e decidiu que o melhor era não dar-lhe oportunidade de escolher.

—  Cilla.

Assustada, ela virou-se para trás.

—  Oh. Não o vi entrar. Eu estava...

As palavras morreram-lhe na garganta no exato instante em que Fletcher segurou-a pelos braços e puxou-a para si, beijando-lhe os lábios.

Cilla só conseguia comparar o que sentia aos ventos fortíssimos que antecedem as tempestades de verão, as ondas imensas de uma ressaca quando chegam à praia. Havia um turbilhão de emoções e sensações em seu íntimo.

Sua vontade era empurrá-lo, mas suas mãos o puxavam para mais perto. Estava tudo errado; era uma loucura. Uma deliciosa loucura...

Ao pressionar o corpo contra o dele e corresponder às exigências de seus lábios, entendeu que ainda há pouco mentira para si: queria-o muito, apesar das diferenças, apesar de tudo.

Por mais amedrontador que fosse, sabia que precisava de seu apoio, de seu carinho. Era como se até então sua vida tivesse sido uma longa espera até que, um dia, seus caminhos se cruzassem.

As mãos de Fletcher deslizavam pelo couro da saia à medida que ele amoldava os quadris de Cilla aos seus. Dois corpos que se completavam perfeitamente, feitos um para o outro. Fletcher queria ouvi-la gemer, murmurar seu nome, confessar que também o desejava.

E, de fato, ouviu-a gemer quando a obrigou a pender a cabeça para trás para que pudesse deslizar-lhe os lábios tímidos por seu pescoço. Excitadíssimo, desabotoou os botões da jaqueta vermelha e descobriu-a nua.

Cilla arqueou as costas e prendeu o fôlego quando Fletcher tocou-lhe um seio. Seus joelhos fraquejaram, obrigando-a a se apoiar nos ombros dele e não conseguiu abafar um gritinho de prazer ao senti-lo acariciar-lhe um mamilo.

Num gesto irrefletido, Cilla tomou a iniciativa de aprofundar o beijo, numa ousadia que deixou-os ainda mais excitados. Ansiosa por tocá-lo com a mesma intensidade com que era tocada, puxava-lhe o paletó com força, num apelo mudo para que o tirasse.

Mas, de repente, suas mãos esbarraram no couro do coldre e tocaram o metal frio da arma.

Foi como uma ducha de água gelada. Cilla encolheu os dedos e deu um passo para trás. Apoiando as mãos sobre uma mesinha, ela pendeu o pescoço para frente e balançou a cabeça.

— Estamos cometendo um terrível engano — disse pausadamente. — Não quero mais me envolver com ninguém.

— Tarde demais.

— Não é, não. — Com mãos trêmulas, ela tornou a abotoar a jaqueta e pediu: — Vamos embora.

Fletcher, contudo, permaneceu exatamente onde estava.

— Antes de irmos, quero ouvi-la dizer que não sente nada por mim. Olhos nos olhos.

Cilla forçou-se a encará-lo.

— Seria inútil negar que você me atrai. Ambos já sabemos disso.

— Quero trazê-la para cá esta noite. Podemos passar a noite juntos.

Mas Cilla balançou a cabeça com mais força. Não queria sequer imaginar como seria passar umas horas ali na casa dele, na cama dele.

— Não posso.

— Por quê? — quis saber Fletcher, aproximando-se sem tocá-la. — Você já me falou que não tem namorado. E, se tivesse, não faria diferença nenhuma para mim.

— Não é por causa de ninguém. É por minha causa.

— Então, por que não me conta do que tem medo?

— Tenho medo de atender ao telefone. — E era verdade, embora não fosse aquele o motivo da recusa. — Tenho medo de dormir, medo de acordar.

Fletcher esticou um braço e tocou-lhe o rosto com suavidade.

— Entendo o que sente e farei o que for possível para ajudá-la. Porém, ambos sabemos que não é esse o motivo que a impede de vir dormir aqui comigo esta noite.

— Há outros motivos.

— Quais? Dê-me pelo menos um.

— Você é policial — disse Cilla indo pegar a bolsa.

— E dai?

— Minha mãe também era — ela revelou saindo da sala.

—  Ei! Espere!

—  Afaste-se, Fletcher; estou falando sério. — Ainda bastante agitada, ela vestiu o casaco. — Minha vida já está complicada o bastante; não preciso arranjar mais problemas. Vou pedir à central que providencie um policial para substituí-lo. Agora, se não puder me levar ao shopping center, vou chamar um táxi.

Ele percebeu que se a forçasse mais um pouco, Cilla acabaria entrando em colapso.

—  Eu a levo até Já e prometo me afastar. Por enquanto.

 

Cilla descobriu que Fletcher era um homem de palavra. Durante o resto do dia, e todo o dia seguinte, ambos só conversaram sobre assuntos profissionais.

Não que ele tivesse se retraído ou se mostrado distante. Ao contrário: acompanhou-a o tempo todo em que esteve no shopping transmitindo o programa, e afastava os fãs mais afoitos que se aproximavam demais para pedir um autógrafo ou uma camiseta.

Fletcher parecia até ter se divertido bastante. Circulou várias vezes pelas lojas durante os intervalos, conversou com o engenheiro de som que os acompanhava e cuidou para que Cilla tivesse sempre um copo de refrigerante a seu lado.

Com os outros, ele era o mesmo. Mas, com ela, Fletcher havia mudado. Só se aproximava para uma conversa fria e impessoal e não a tocou nem de leve. Em resumo: tratava-a como Cilla pensara que preferia ser tratada. Um relacionamento puramente profissional.

Enquanto ele agia com naturalidade, oferecendo-se até para pagar-lhe um hambúrguer depois do programa, antes que voltassem para a rádio, Cilla não conseguia ocultar o desaponto.

Foi Althea quem a acompanhou na cabine nas duas noites seguintes e monitorou os telefonemas. Cilla não entendia por que, mas a ausência de Fletcher e seu súbito silêncio a entristeciam.

Refletindo sobre o que acontecia, concluiu que poderia tratar-se de uma nova tática de Fletcher. Ignorando-a talvez quisesse obrigá-la a tomar a iniciativa de se reaproximar. Pois enganava-se. Cilla pôs no ar o mais novo sucesso de Bob Seger e fechou o microfone.

Queria que o relacionamento entre eles se mantivesse em termos estritamente profissionais e era isso o que Fletcher estava fazendo. Porém, não precisava se empenhar tanto.

Com certeza, o que houvera entre eles, ou o que quase houvera, não significara muito para ele. Tanto melhor. Ficava mais fácil esquecê-lo sabendo que Fletcher não lhe dava tanta importância. A última coisa que precisava na vida era um policial milionário e sedutor.

Pena que não conseguisse passar cinco minutos que fosse sem pensar em Fletcher...

Enquanto Cilla lidava com a mesa de controle, Althea se distraía fazendo palavras cruzadas. Nunca se importara em ficar horas parada num mesmo lugar desde que tivesse algo com que exercitar a mente. Já Cilla O'Roarke, constatou, era bem diferente. A garota era uma pilha de nervos e não sabia relaxar. Preenchendo os quadrinhos com sua caligrafia precisa, Althea reconheceu que Fletcher era o homem ideal para uma mulher assim. A seu lado, Cilla aprenderia a viver melhor.

Naquele momento, via-se que ela estava ansiosa para iniciar uma conversa. Mas, não uma conversa qualquer. Althea notara seu desapontamento ao deparar com ela em lugar de Fletcher na porta da emissora.

"Ela deve estar curiosa, querendo saber onde está Fletcher", pensou Althea mordendo a ponta da caneta.

Como mera espectadora, a situação lhe parecia divertida. Fletcher também andava muito calado nos últimos dias. Pelo que soube, ele havia feito um levantamento mais detalhado do passado de Cilla e descobrira fatos que o perturbaram. Fatos de cunho pessoal, com certeza; de outra forma, teria lhe revelado a descoberta.

Porém, mesmo sendo colegas há tanto tempo, ambos respeitavam a privacidade do parceiro, evitando a todo custo qualquer pergunta mais íntima. Quando estivesse disposto, Fletcher a procuraria naturalmente para discutirem o caso.

De repente, Cilla empurrou a cadeira para trás:

—  Vou buscar um café. Quer também?

—  Nick não lhe traz uma xícara todas as noites?

—  Esta é sua noite de folga.

—  Quer que eu vá buscar o café?

—  Não. — Sua agitação era indisfarçável. — Tenho quase sete minutos até que a fita termine e preciso esticar as pernas.

—  Tudo bem.

Cilla foi até o corredor e notou que Billy, o faxineiro, já havia passado por lá. O assoalho brilhava como espelho, e as xícaras de louça, já lavadas, estavam todas empilhadas. O cheirinho silvestre de desinfetante pairava no ar.

Enchendo duas xícaras, virou-se com uma em cada mão e viu o vulto de um homem parado junto à porta. Assustada, gritou de medo e deixou as duas xícaras caírem no chão.

—  Srta. O’Roarke?

Billy aproximou-se, hesitante.

—  Oh, meu Deus! — Cilla apertou uma das mãos sobre o peito. — Pensei que você já tivesse ido embora!

—  Eu... — Ao ver Althea vir correndo pelo corredor com uma arma em punho, o faxineiro ergueu as mãos, apavorado. — Eu não fiz nada. Juro que não!

—  A culpa foi minha — disse Cilla tocando-lhe o braço de leve. — Eu não sabia que havia alguém por aqui a esta hora, e quando me virei... — Desolada, cobriu o rosto com as mãos. — Sinto muito; ando um pouco assustada.

—  O sr. Harrison trouxe uns amigos para almoçarem hoje no escritório — Billy explicou, fitando-a com olhos muito arregalados. — Havia muitos pratos e demorei mais para terminar a faxina.

— Me desculpe, Billy. Também devo tê-lo assustado bastante. — E olhou ao redor. — Sujei todo o assoalho que já estava limpo,

—  Não tem importância — ele garantiu, já mais calmo, vendo Althea guardar o revólver. — Eu limpo outra vez. A senhorita vai tocar muitos sucessos dos anos 50 no programa de hoje? São os meus favoritos.

—  Claro. Vou dedicar um deles especialmente para você.

Billy abriu um sorriso radiante:

—  Vai falar meu nome no ar?

—  Claro que sim. Agora, preciso voltar à cabine. Cilla voltou depressa para a cabine e ficou feliz por ver que Althea permanecia lá fora. Gostava de um pouco de solidão.

O susto servira para lhe mostrar em que estado de nervos estava nos últimos dias. O melhor era se dedicar ainda com mais afinco ao trabalho e esquecer os problemas. Quando Althea entrou na cabine trazendo outro café, encontrou Cilla convidando os ouvintes a permanecerem ligados em mais uma frequência de sucessos:

— Agora, vou tocar uma série de dez sucessos sem interrupção e o primeiro será dedicado ao meu grande amigo Billy, que não perde um só programa. Vamos juntos voltar ao ano de 1958 e ouvir o inigualável Jerry Lee Le wis com Great Balis of Fire.

Desligando o microfone, ensaiou o sorriso amarelo e voltou-se para Althea:

—  Me perdoe, sim?

—  Eu provavelmente teria reagido da mesma forma se estivesse no seu lugar. — Althea estendeu-lhe uma das xícaras. — Estas últimas semanas não têm sido fáceis para você, não é?

—  Terríveis, eu diria.

—  Não se preocupe. Vamos conseguir pegá-lo.

—  Espero que sim. — Cilla pegou um disco e procurou a faixa que pretendia tocar. — Por que escolheu a carreira de policial?

—  Eu queria me destacar em alguma coisa e consegui me sair bem nesta profissão.

—  Você é casada?

—  Não. — Althea não sabia onde Cilla pretendia chegar. — A maioria dos homens não se aproxima de mulheres que sabem manejar uma arma. — Então, resolveu se abrir: — Você deve estar imaginando que existe algo entre mim e Fletcher, não?

— Confesso que sim. — Cilla ergueu uma das mãos pedindo silêncio, anunciou a canção seguinte e tornou a fechar o microfone. — Vocês dois combinam muito bem.

Pensativa, Althea tomou uns goles de café e sentou-se.

— Para ser franca, numa imaginei que você tivesse essa mentalidade retrógrada e machista. Eu e Fletcher formamos uma dupla de trabalho, mas não dormimos juntos.

— Não foi isso que eu pensei! — Cilla exclamou, ultrajada, pondo-se de pé. Porém, diante do sorriso ameno de Althea, voltou atrás. — Pensei, sim. — E sorriu também: — Você já deve estar acostumada com este tipo de suspeita, não é?

— Tanto quanto você — respondeu Althea, apontando para a mesa de controle. — Ambas ocupamos cargos tidos pela maioria como tipicamente masculinos.

O pouco que tinham em comum ajudou Cilla a se descontrair na presença da policial.

— Havia um colega de rádio em Richmond que pensava que eu estava ansiosa para... dar umas voltinhas com ele.

Althea riu.

— E como você conseguiu se livrar dele?

— Durante meu programa, anunciei que ele estava disponível, solteiríssimo e ansioso para conhecer outras garotas. As interessadas deviam ligar para a estação durante o programa dele. — Cilla sorriu ao recordar o episódio. — Nunca mais ele me aborreceu. — Ligando o microfone, anunciou a atração seguinte: os pedidos telefônicos.

Após uma breve previsão do tempo, deu a hora certa e anunciou o sucesso seguinte. Então, tirou os fones de ouvido.

— Acho que Fletcher não desistiria tão facilmente.

—  Não mesmo. Ele é um bocado teimoso. Aliás, prefere ser chamado de paciente mas, para mim, aquilo é teimosia. Quando quer uma coisa, luta até o fim.

— Já percebi.

— Ele é uma excelente pessoa, Cilla. Se não estiver interessada, é melhor que seja bem clara. Fletcher pode ser teimoso mas jamais seria inconveniente.

— Há uma grande diferença em não estar interessada e não querer estar.

— Entendo o que quer dizer. Ouça, espero não estar sendo indiscreta mas gostaria de lhe fazer uma pergunta.

— Claro.

— Por que você diz que não quer se interessar?

Cilla escolheu um outro disco e o acrescentou à pilha dos selecionados.

— Porque ele é um policial.

— Então, se Fletcher fosse um vendedor você se interessaria?

— Sim. Não. — Suspirando, resolveu ser bem sincera para com Althea: — Seria mais fácil. Além disso, já fracassei no único relacionamento sério que tive na vida.

— Foi a única culpada pelo divórcio?

— Oitenta por cento da culpa foi minha, sem dúvida — revelou entre uma música e outra. — Prefiro me preocupar com meu trabalho e o futuro de minha irmã.

— Você não é do tipo que se satisfaça com uma vidinha monótona e cômoda.

— Pode ser que não — afirmou olhando para o telefone. — Mas, no momento, é o que mais quero.

Althea a admirava. Cilla era uma mulher de fibra e levava adiante seu trabalho mesmo sob um insuportável estado de tensão. Ainda assim, enfrentava o próprio medo, melhor do que os sentimentos que começava a alimentar com relação a Fletcher.

Sim. Não havia dúvidas de que ela estava apaixonada, porém, via-se que não sabia como agir diante de tal situação, que provavelmente lhe era inédita.

Calada, Altnea viu-a vacilar antes de atender ao primeiro telefonema. Contudo, engolia o medo e atendia aos ouvintes com a simpatia de sempre. Com todos tinha uma conversa breve, amigável e atendia a seus pedidos com satisfação.

Fletcher entrara em sua vida para protegê-la e não para ameaçá-la; contudo, ela o temia. Suspirando, Althea indagava-se por que a chegada de um homem era capaz de transtornar a vida da mais autoconfiante das mulheres...

Se um dia se apaixonasse por alguém, o que vinha conseguindo evitar até aquele momento, acharia uma maneira de racionalizar seus sentimentos e mantê-los sob controle.

De repente, ouviu uma ligeira diferença no tom de voz de Cilla e não foi preciso olhá-la para saber quem estava do outro lado da linha. De pé, respirou fundo e murmurou:

—  Mantenha-o na linha o mais que puder. Faça-o falar.

Cilla afastava o fone do ouvido, pois descobrira que desta forma se sentia menos intimidada pelas ameaças terríveis que o sujeito lhe fazia. Por outro lado, mantinha os olhos fixos no relógio que marcava o tempo transcorrido, e ficou satisfeita ao ver que já o mantinha na linha há mais de um minuto.

Com muito esforço, conseguia fazer-lhe perguntas, mesmo que não obtivesse as respostas. E cuidava para manter sempre a voz inalterada para não lhe dar o gosto de saber que a amedrontava.

Esta noite, esforçava-se para não ouvi-lo e prestava toda atenção no relógio.

—  Eu não o magoei — disse. — Nunca lhe fiz nenhum mal.

—  Para mim, não. Para ele — o sujeito respondeu com voz sibiliante. — Ele está morto por sua causa.

—  Mas, de quem você está falando? Se me disser o nome...

—  Você terá de lembrar sozinha. Quero ouvi-la dizer o nome dele antes que eu a liquide.

Cilla fechou os olhos e contou até trinta enquanto ele descrevia o modo como pretendia matá-la.

—  Você devia amá-lo muito. Ele deve ter sido muito importante.

—  Ele era tudo para mim. Tudo que eu tinha. Ele era jovem, tinha a vida toda pela frente. Mas você o magoou, o traiu, agora vai me pagar na mesma moeda. Sua vida pela dele.

Assim que ele cortou a ligação, Cilla ligou o microfone e anunciou o próximo sucesso com voz inalterada. Então, ignorando as luzes piscantes dos telefones, acendeu um cigarro e deu uma tragada.

— Eles conseguiram localizá-lo. — Althea desligou o telefone e pousou uma das mãos no ombro de Cilla. — Eles finalmente conseguiram. Você se saiu muito bem esta noite, Cilla.

— É. — Agora, era só vencer os últimos setenta minutos de programa. — Acha que a polícia vai pegá-lo?

— Saberemos daqui a pouco. É a primeira chance que temos, portanto vamos torcer para que tudo dê certo.

Cilla já não suportava mais aquele tormento e não via a hora de tudo terminar. Althea guiava com cuidado pelas ruas desertas da cidade, e a música suave do rádio as entretinha. A polícia havia conseguido descobrir de onde tinha sido dado o telefonema. Mas, o que isso significaria em termos práticos? Que descobririam o nome do tal sujeito? Que o prenderiam em flagrante?

Se tivesse uma oportunidade, faria questão de conhecê-lo pessoalmente. Olharia-o bem dentro dos olhos e tentaria encontrar algum elo de ligação entre ele e seu passado. Só assim descobriria o motivo de tanto ódio.

Ao virarem a esquina, Cilla viu o carro de Fletcher estacionado em frente à sua casa. Ele estava de pé na calçada, o casaco desabotoado. A noite, apesar de estrelada, estava fria e de longe Cilla pôde ver a nuvem de vapor que o hálito dele formava.

Ansiosa desceu logo do carro, e Fletcher aguardou que ela se aproximasse pela passagem da casa.

— Vamos entrar — disse-lhe, bastante sério.

— Quero  saber  de tudo  —  Cilla exigiu.  Porém, fitando-o, reconheceu a decepção estampada em seus olhos verdes. — Não conseguiram pegá-lo...

— Não.

Fletcher olhou para Althea, que entendeu a mensagem e manteve o autocontrole.

— O que houve?

— Ele ligou de um telefone público a alguns quilômetros da estação de rádio, porém não deixou nenhuma impressão digital.

Cilla mordeu o lábio inferior:

— Quer dizer que voltamos ao ponto de partida?

— Não é bem assim. — Fletcher segurou-lhe as mãos procurando transmitir-lhe mais confiança. — Ele cometeu o primeiro erro e não tardará a cometer outros.

Apreensiva, Cilla olhou por sobre o ombro através da janela. O tal sujeito podia estar lá fora naquele instante, oculto nas sombras, observando-a.

— Cilla, sente-se. Procure descansar um pouco.

— Eu estou bem. — Só queria ficar sozinha no escuro de meu quarto, nada mais. — Agora, se me dão licença, eu preferia ficar só. Althea, obrigada pela carona.

Ambos se entreolharam e se despediram, atendendo ao apelo dela.

— Entendo o que Cilla deve estar sentindo — disse Althea, já no jardim.

Fletcher queria gritar, esmurrar a parede para dar vazão àquela frustração terrível, porém limitou-se a olhar para a porta fechada.

—  Ela não quer me deixar ajudá-la.

— Não, não quer. — Althea viu a luz do quarto de Cilla acender. — Quer que eu peça uma radiopatrulha à central?

— Não; eu vou ficar por aqui.

— Seu horário de serviço já terminou, Fletcher.

— inda assim, prefiro ficar.

— Quer companhia?

— Não, obrigado. Você também precisa descansar. Althea hesitou e sugeriu:

— Vamos nos revezar. Você fica com o primeiro turno, enquanto eu durmo.

De pé junto à janela do quarto, Cilla observou a camada fina de neve que recobria o gramado. Na Geórgia, as azaléias já deviam estar florescendo. Era a primeira vez em anos que sentia saudade de casa... Tristonha, perguntava-se se havia cometido um erro ao ter deixado todas aquelas lembranças para trás.

Soltando as cortinas, afastou-se da janela mais preocupada com outros assuntos. Vira o caro de Fletcher estacionado em frente à casa.

Pensando nele, arrumou-se com mais vagar e cuidado do que o normal. Continuava achando um erro envolver-se com ele, porém, agora, já era tarde para voltar atrás.

Ao vestir o suéter de cashemere lilás, alisou-o sobre os quadris admirando-se no espelho. A malha, de mangas amplas e corte moderno, tinha sido um presente de Deborah e combinava muito bem com o fuseau preto colante. Para completar, escolheu um par de brincos prateados em formato de estrela.

Fletcher a esperava sentado no sofá da sala com o jornal do dia numa das mãos e uma xícara de café na outra. A camisa estava toda amassada pela noite dormida dentro do carro.

Cilla sorriu para si mesma. Nunca conhecera alguém com tal capacidade de adaptação. Quem o visse ali no sofá pensaria que Fletcher passara todas as manhãs de sua vida naquela sala, na sala da casa dela, com o jornal nas mãos.

— Bom dia — ele a cumprimentou com tranqüilidade. Um tanto constrangida, Cilla aproximou-se dele sem saber se deveria desculpar-se.

—  Deborah me deixou entrar.

Ela assentiu e arrependeu-se de não ter vestido uma calça com bolsos, pois não sabia o que fazer com as mãos.

— Você passou a noite toda aí fora?

— Faz parte do meu serviço.

— Foi obrigado a dormir no carro?

— Estou acostumado.

— Desculpe-me — pediu Cilla sentando-se na beirada da mesinha de centro, em frente ao sofá. — Eu deveria ter imaginado que você não iria embora. Poderia tê-lo deixado entrar. Acho que...

—  Você estava aborrecida, Cilla. — Fletcher lhe estendeu a xícara de café. — E com toda razão.

— E verdade. — Cilla provou a bebida e estranhou o excesso de açúcar. — Eu estava certa de que vocês conseguiriam pegá-lo ontem à noite e mal via a hora de encarar esse sujeito, de saber quem ele é. Mas quando chegamos aqui e você, nos deu a má notícia... Preferi me isolar para não falar no assunto.

— Tudo bem, eu entendo. Cilla deu um sorriso tenso:

— Por que tem de ser tão gentil comigo? Fletcher estendeu uma das mãos e tocou-lhe o rosto.

— Você se sentiria melhor se eu gritasse, ficasse bravo?

— Talvez. — Cilla não resistiu e segurou-lhe a mão com ternura. — Acho mais fácil brigar do que ser razoável.

— Já percebi. Alguma vez já teve vontade de tirar um dia inteiro só para descansar e se distrair?

— Não.

— O que acha de fazermos isso hoje?

— Eu tinha pensado em fazer a contabilidade da casa e chamar um encanador. A pia da cozinha está pingando. — Então, pousou as mãos inquietas sobre os joelhos. — Preciso lavar a roupa de cama e fui convidada para ser a dj de uma festa hoje à noite. Eles estão completando quinze anos de formados e vão se reunir numa discoteca da cidade. Bill e Jim vão me substituir na rádio.

— Eles já tinham me contado.

— Essas festas são muito divertidas. Talvez... — Fletcher havia posto a xícara vazia de lado e agora segurava-lhe as duas mãos entre as suas. — Você não gostaria de me acompanhar?

— Está me convidando para ir a uma festa com você? Assim como se fôssemos namorados?

— Eu estarei trabalhando e... — Cilla começou e calou-se. — Sim, estou.

— Está bem. A que horas passo para buscá-la?

— Às sete. Preciso chegar cedo para pôr tudo em ordem.

— Então, passo às seis. Assim, poderemos jantar antes.

— Bem, é que... — Vacilou, porém aceitou. — Está combinado. Fletcher, preciso lhe dizer uma coisa. Minha opinião não mudou e continuo não querendo me envolver.

— Tudo bem.

— Acho que devemos ter em mente que somos pessoas muito diferentes. Um relacionamento mais profundo entre nós não poderia dar certo.

— Mas, afinal: trata-se de um romance ou de uma transação comercial?

Fletcher riu e Cilla franziu a testa.

— Acho que não é exatamente um romance. Nem um namoro.

— Por quê?

Curvando-se para frente, ele deslizou-lhe um dedo pelo lábio inferior, enquanto lhe acariciava as maçãs do rosto.. Sempre carinhoso, segurou-lhe uma das mãos e beijou-lhe a palma úmida.

— Porque um namoro tem outras implicações e...

— Era só isso que você queria me falar?

—  ão. Quer parar um pouco?

—  ai ser difícil.

Cilla teve de rir diante do tom dele.

— Então, faça o possível, está bem? Não consigo raciocinar.

— Fico lisonjeado — ele brincou, porém se conteve.

—  Estou falando sério.

—  Eu também.

—  Ontem à noite, quando fui para o quarto, fiquei com muito medo. A voz dele não me saía da lembrança e não consegui esquecer todas aquelas ameaças terríveis que ele sempre repete. Então, comecei a pensar em você. — Fazendo uma pausa, respirou fundo e encheu-se de coragem para continuar: — E quando pensei em você, consegui esquecer tudo o mais. O medo passou.

Fletcher apertou-lhe as mãos com mais força e viu os lábios de Cilla tremerem ligeiramente. Seus olhos, no entanto, o encaravam de modo direto e corajoso. Ele percebeu que ela esperava para ver qual seria sua reação, para saber o que ele diria. Porém, jamais poderia saber que naquele exato instante Fletcher abandonava qualquer temor e entregava-se de corpo e alma àquela paixão.

Contudo, se lhe revelasse o que sentia, Cilla não acreditaria. O melhor seria convencê-la com gestos e atitudes.

Levantou-se com vagar, trouxe-a consigo e aninhou-lhe a cabeça em seu peito, abraçando-a. Cilla estremeceu em seus braços desfrutando daquele gesto amigo, que a comoveu.

Era o que mais queria naquele momento: um abraço amigo, reconfortante. Nada de palavras ou promessas. Apenas o momento, a emoção.

—  Fletcher?

—  Sim? — ele perguntou, virando o rosto só o suficiente para beijar-lhe os cabelos.

—  Para ser franca, não me importo que seja sempre tão gentil comigo. — E foi mais adiante: — Senti sua falta estes dias.

—  Ouça. — Agora, era a vez de ele respirar fundo. Seu coração parecia querer saltar-lhe pela boca. — Preciso dar uns telefonemas e depois vou dar uma olhada na pia da cozinha, está bem?

—  Está Ótimo.

Duas horas depois, Cilla estava perdida num mar de papéis e contas que cobriam a mesa. Suas contas não conferiam com o extrato do banco e era preciso encontrar o erro.

Paciente, reviu todas as contas pela enésima vez até, finalmente, encontrar a diferença. Depois de conferir os números, guardou o extrato bancário e começou a fazer os cheques para os pagamentos do mês.

Primeiro foi o da prestação da casa. Era a primeira vez que deixava de pagar aluguel para morar no que era seu. Ter uma casa era ao mesmo tempo motivo de satisfação e segurança para ela e Deborah.

Tendo nascido numa família de classe média, cuja renda provinha do salário de sua mãe, uma policial, e de seu pai, um advogado a serviço do governo, aprendera a controlar os próprios gastos, equilibrando o orçamento. Sempre estudara em escolas particulares, porém nunca tivera um carro novo.

Finalmente, depois de tantos anos de carreira, as coisas começavam a melhorar, e sua primeira providência fora comprar uma casa.

— Cilla?

— O quê? Oh! — Virando-se, ela o viu parado na porta do escritório com os cabelos completamente molhados. As mangas da camisa haviam sido enroladas até os cotovelos, mas a calça estava toda respingada. Cilla não conteve um riso. — Minha nossa!

—  Já consertei a pia.

—  Ah, já?

—  Já.

Cilla mordeu o lábio inferior e conteve o riso ao ver que Fletcher mantinha a testa franzida. Não queria ferir seu ego masculino.

—  Bem... Já que me prestou esse favor, o mínimo que posso fazer é oferecer-lhe um almoço. O que acha de um sanduíche de pasta de amendoim e geléia?

—  Sinto muito, mas é só o que sei fazer. Sua única opção é atum enlatado. — Deixando as contas de lado, ela levantou-se da mesa. — Meu Deus, você está todo molhado.

Fletcher mostrou-lhe as mãos encardidas, pensou bem e não resistiu: esfregou-as no rosto dela.

—  Ei!

Cilla esquivou-se e riu a valer, surpreendendo-o. Seduzindo-o. Fletcher já tinha ouvido aquele riso descontraído pelo rádio, mas era a primeira vez que ela lhe dirigia um riso assim grave, rouco, excitante...

—  Venha. Vamos pôr a camisa na máquina de lavar enquanto almoçamos.

—  Daqui a pouco.

Ele continuou a segurar-lhe o queixo exercendo leve pressão para puxá-la para perto. Quando seus lábios pousaram nos dela, Cilla não protestou nem se retraiu. Suspirando, ela os entreabriu para recebê-lo, e suas línguas se tocaram de modo íntimo.

—  Acho que você tem razão — murmurou.

—  No quê?

Ela ergueu um dos braços e tocou-lhe os cabelos claros das têmporas. Há tempos não era capaz de um gesto tão... atrevido.

—  É tarde demais para voltar atrás.

—  Cilla... — Fletcher segurou-lhe os ombros e seus olhos adquiriram um brilho intenso, quase primitivo. — Cilla, vamos para a cama.

Cilla fechou os olhos e balançou a cabeça. Porém, por um segundo, Fletcher viu-os refletir o mesmo brilho que havia nos seus.

—  Dê-me um pouco mais de tempo, sim? Não se trata de um joguinho. É que me sinto insegura e preciso pensar. — Então, ela abriu os olhos e confessou: — Você é o tipo de homem pelo qual eu jurava que jamais me apaixonaria.

—  Por  que  não  se  abre  comigo?   —  ele  pediu entrelaçando-lhe os dedos nos seus.

—  Agora não — ela respondeu, beijando-lhe uma das mãos. — Ainda não estou pronta para me abrir. No momento, só quero aproveitar estes instantes de paz, de normalidade. Não vou atender ao telefone nem à porta. Vou pôr sua camisa para lavar e preparar um sanduíche, está bem?

—  Perfeito. — Fletcher beijou-lhe a testa. — É o convite mais gentil que já recebi nos últimos tempos.

 

O ambiente era agitadíssimo: o ritmo contagiante das canções, os instrumentos, o solo de guitarra. Luzes coloridas e piscantes giravam produzindo diversos efeitos, corpos se movimentavam ao sabor da música. Cilla animava a festa com sua voz aveludada e, vez por outra, desligava o microfone apreciando o movimento da pista de dança. A discoteca estava cheinha de rapazes e moças, ex-colegas de escola. Cilla não os conhecia mas era como se fossem velhos amigos.

Fletcher bebericava um clube-soda num canto do salão e educadamente recusou o convite de uma loira sexy para que fosse dançar. Aliás, observar as pessoas era um de seus passatempos preferidos, do qual jamais se cansava.

A festa estava animadíssima, e ele adoraria dançar um pouco, porém, preferia manter-se de olho em Cilla.

Seu posto ficava bem em frente à pista de dança, diante de uma imensa mesa de controles. Os discos e fitas estavam todos empilhados nas laterais, para um fácil acesso. Cilla usava um traje bastante adequado para a ocasião: calça comprida de lantejoulas pretas e um blazer de lantejoulas prateadas. Nas orelhas, o brinco de estrelas. O efeito colorido das luzes sobre a roupa ficava fantástico. Os cabelos permaneciam soltos com bastante volume.

Sua seleção havia atraído diversos casais para a pista, onde agora se divertiam. Outros, perambulavam entre as mesas batendo papo e revendo os amigos.

A música era alta, contagiante e rápida, bem ao gosto de Cilla. A julgar pelas fisionomias, a turma dos formandos de 1975 estavam se divertindo a valer. Cilla, também. De sua mesa, ela conversava animadamente com um grupo de rapazes. Fletcher notou que alguns deles haviam se excedido na bebida, mas Cilla se defendia muito bem das investidas.

Uma ponta de ciúme ardeu-lhe no peito ao ver um grandalhão com ar de jogador de futebol abraçá-la pela cintura e murmurar-lhe algo ao ouvido. Cilla continuou sorrindo, balançou a cabeça e respondeu-lhe algo baixinho. Foi o suficiente para que o rapaz se afastasse, sem perder o espírito esportivo.

— E atenção, pessoal. Ainda tem muito mais — disse ao microfone. Agora, vamos voltar para o ano de 1975, na noite da formatura.

Cilla soltou a gravação de One of These Nights, do grupo The Eagles, e percorreu o salão com os olhos à procura de Fletcher.

Ao vê-lo, abriu um sorriso largo de satisfação. Um sorriso tão especial que, mesmo estando bastante longe da mesa, Fletcher viu seus olhos brilharem. Excitado, ele se perguntava se conseguiria fazê-la sorrir-lhe daquela forma quando estivessem sozinhos. E riu quando a viu levar uma das mãos à garganta indicando estar com sede. Cilla achou-o lindo enquanto o observava virar-se na direção do bar. Engraçado... Sempre considerara um paletó cinza conservador demais para o seu gosto. Mas, em Fletcher, isso não acontecia. Aliás, já havia percebido os olhares de cobiça que diversas moças da festa haviam lhe dirigido.

"Desistam, garotas", pensou, feliz. "Esta noite, ele é meu."

Admirada com o rumo dos próprios pensamentos, balançou a cabeça e pegou um disco da pilha pré-selecionada com os pedidos da turma. A julgar pelos sucessos pedidos, concluiu, os rapazes e moças eram do tipo nostálgico.

Ao pôr o disco para tocar, reconheceu que gostava de ser solicitada para tais eventos. Era muito bom conviver com outras pessoas, vê-las dançar, se descontrair.

A comissão organizadora havia caprichado nos detalhes da festa. As toalhas de mesa brancas e vermelhas combinavam com as fitas e os balões de gás presos no teto. Uma esfera giratória coberta de espelho iluminava a pista de danças e, quando queria, Cilla acionava o comando de luzes estrosboscópicas que davam ao ambiente um ar nostálgico dos anos 70.

Em cada mesa, havia um singelo arranjo de flores do campo.

— Esta aqui vai para Rick e Sue que começaram a namorar nos tempos de escola e já completaram doze anos de casados. Eles escolheram Rockin' AU Over Ther World.

— Excelente escolha — murmurou Fletcher ao se aproximar para lhe dar um copo de refrigerante bem gelado.

Cilla virou-se e agradeceu.

— Está gostando da festa?

— Muito. Meus colegas de formatura também estão pensando em dar uma festa assim ano que vem. Você está disponível?

— Preciso consultar minha agenda. Puxa, olhe só! — Um casal mais animado dava um verdadeiro show de dança na pista, arrancando aplausos dos demais. — Eles são ótimos.

— Você...dança?

— Não assim como eles — ela admitiu. — Mas, bem que gostaria. O casal é excelente.

Antes que ela pegasse outro disco da pilha, Fletcher segurou-lhe a mão: 

—  Posso pedir uma música?

—  Claro. Qual?

Fletcher começou a mexer na pilha pré-selecionada, tirando os discos da ordem. Cilla, no entanto, não se importou. Depois de escolher um, Fletcher o entregou a ela.

— De muito bom gosto. — Cilla ligou o microfone:

— Estou gostando de ver a animação da turma de 75. Estão se divertindo? — A resposta positiva veio em uníssono. — Ficaremos juntos até a meia-noite, recordando o melhor dos velhos tempos. Agora, vou atender a um pedido especial de um fã de Bruce Springsteen. A canção chama-se Hungry Heart.

Diversos casais deixaram as mesas rumo à pista indo dançar ao som da canção romântica solicitada por Fletcher. Cilla virou-se para falar-lhe e surpreendeu-o bem juntinho a ela, a seu lado.

— Quer dançar? — ele convidou.

O convite, no entanto, era mera formalidade pois, sem esperar pela resposta, ele a enlaçou pela cintura, colou-a a si e começou a mover os quadris de modo persuasivo e sensual.

— Eu...estou trabalhando.

— É só uma canção. — Curvando-se, ele mordiscou-lhe o queixo. — Dançar é a melhor coisa do mundo, depois de fazer amor.

Cilla tinha uma recusa pronta na ponta da língua. Mas, numa questão de segundos, seu corpo começou a acompanhar os movimentos ondulantes dos quadris de Fletcher e Cilla acabou se rendendo. De rostos praticamente colados, Fletcher sorriu ao vê-la lançar-lhe os braços ao redor do pescoço. Com um olhar brilhante e cheio de promessas, ele deslizou-lhe as mãos pelos quadris e foi subindo-as lentamente até alcançar-lhe a lateral dos seios.

Cilla sentiu o corpo todo se arrepiar.

—  V-você...dança muito bem.

— Obrigado. — Ele aproximou os lábios dos dela a ponto de quase beijá-la e, então, desviou-os para mordiscar-lhe o pescoço. — Você tem cheiro de pecado, Cilla, e está me deixando maluco.

Cilla queria que ele a beijasse, esperava ansiosa pelo beijo e gemeu baixinho quando ele lhe puxou os cabelos obrigando-a a pender a cabeça. Em suspense, ela fechou os olhos, aguardando. Fletcher, porém, limitou-se a roçar-lhe os lábios úmidos pela pele macia do rosto.

Ofegante, Cilla apoiou-se nele, absolutamente entregue ao prazer e ao ritmo da música. Ali na pista, dezenas de outros casais faziam o mesmo.

— Se continuarmos dançando assim, não sei se vou conseguir terminar meu trabalho.

Fletcher sentia o coração de Cilla bater acelerado junto a seu peito. Não era o bastante para satisfazê-lo, mas era prova concreta de que havia uma chance.

—  Então, acho que vamos ter de terminar a dança mais tarde.

Assim que ele a soltou, Cilla escolheu um disco qualquer e começou a tocá-lo. A rapaziada aplaudiu, vibrante, aos primeiros acordes da canção alegre e bem ritmada. Encalorada, ela levantou um pouco os cabelos, que lhe aqueciam o pescoço e a nuca.

— Quer outro copo? — Fletcher ofereceu-lhe, vendo-a beber os últimos goles de refrigerante.

— Não, obrigada. — Ela pegou a folha com os pedidos sobre a mesa e deu uma olhada nos títulos. — Esta turma é ótima. Adoro este tipo de reunião.

— Já percebi.

— Admiro o espírito de união que eles compartilham procurando se reunir depois de quinze anos de formados. Pessoas que viveram as mesmas experiências e conservam a amizade. — Então, tornou a pôr o papel sobre a mesa. — O ano de 1975 era o auge da época da disco music, um gênero que não produziu muitos talentos. Por outro lado, naquela fase, os Doobie Brothers ainda estavam juntos. Os Eagles também.

— Você sempre se localiza no tempo tomando a música como referência?

Cilla riu da observação.

— É um vício da profissão. De qualquer forma, é um excelente barômetro. — Jogando os cabelos para trás, virou-se para fitá-lo. — O primeiro disco que toquei como profissional do rádio foi um dos Rolling Stones chamado Emotional Rctscue, em 1980. Ano em que Ronald Reagan foi eleito pela primeira vez e que John Lennon foi assassinado.

—  Puxa, sua memória é ótima.

—  Tomar a música como referência ajuda muito. — E lançou um desafio que provava seu ponto de vista: — Aposto como você ainda se lembra da música que estava tocando no rádio quando você beijou uma garota pela primeira vez no banco traseiro do seu carro.

—  Dueling Banjos.

—  Está brincando!

—  É verdade.

Cilla abriu um dos muitos papeizinhos dobrados no canto da mesa com pedidos vindos do público. De repente, o sorriso desapareceu-lhe dos lábios, e seu coração quase parou. Chocada, fechou os olhos bem apertados pensando ter enxergado mal, porém, ao reabri-los, viu a mesma frase escrita em letras de forma: "Quero ouvir seus gritos antes de matá-la".

Suas mãos começaram a tremer de modo incontrolável.

—  Cilla?

Balançando a cabeça, ela entregou o papel a Fletcher.

O tal sujeito estava ali, naquele salão, Cilla ponderou à beira do pânico. De algum lugar daquele salão, ele a observava e esperava.

E se aproximara o suficiente para deixar aquele bilhe-tinho aparentemente inocente sobre a mesa de som. O suficiente para sorrir-lhe, para encará-la. Talvez tenha até conversado com ela.

—  Cilla.

Ela pulou de susto quando Fletcher pôs uma das mãos em seu ombro e teria perdido o equilíbrio se ele não a apoiasse.

—  Oh, não! Eu achava que pelo menos esta noite ele me deixaria em paz. Mas não adianta. Ele não desiste de me perseguir.

—  Faça uma pausa.

—  Não posso. — Perplexa, ela esfregava as mãos uma na outra e olhava para o salão. — Tenho de...

— Preciso dar um telefonema — ele lhe disse —, mas quero que você fique num lugar bem visível.

O autor daquelas ameaças estava ali, sob o mesmo teto que ela, pensava Cilla, horrorizada. Estaria armado? Teria trazido consigo a tal faca de lâmina longa que sempre descrevia pelo telefone? Talvez estivesse esperando por um momento ideal, quando a música estivesse bem alta, o público bem barulhento, para atacá-la...

— Venha comigo.

— Espere um pouco. — Nervosíssima, ela abriu o microfone e disse: — Vamos fazer uma breve pausa, mas fiquem atentos. Estarei de volta em dez minutos e quero ver a pista lotada. — Então, desligou o microfone e voltou-se para Fletcher: — Por favor, fique por perto, sim?

Abraçando-a pela cintura, Fletcher acompanhou-a através do público. Cada vez que alguém se encostava nela ou chegava mais perto, Cilla estremecia. E quando um homem veio ao seu encontro e segurou-lhe ambas as mãos, ela quase gritou.

— Cilla O’Roarke. — O rapaz tinha uma fisionomia amigável e o rosto molhado de suor, de tanto dançar. Ele sorria, encantado, enquanto Cilla o fitava com olhos arregalados, e Fletcher se mantinha alerta. — Meu nome é Tom Cillins; sou o chefe da comissão organizadora da festa, lembra-se?

— Ah... — ela exclamou com um sorriso forçado. — Claro.

— Só gostaria de lhe dizer que é um prazer para nós tê-la aqui no comando da nossa festa. Você tem muitos fãs aqui. — Ele soltou-lhe uma das mãos para gesticular enquanto falava: — Mas acho que sou o maior. Não há uma noite sequer em que eu não ouça pelo menos uma parte do seu programa. Perdi minha esposa no ano passado.

—  Eu...sinto muito.

— Não, ela não morreu. Simplesmente, saiu de casa levando toda a mobília. Cheguei em casa uma noite e encontrei tudo vazio. Nunca mais a vi, — Ele ria a valer enquanto Cilla pensava em algo que pudesse dizer. — Seu programa me ajudou a vencer muitas madrugadas solitárias. Eu só queria lhe agradecer e dizer que a festa está ótima. — E entregou-lhe seu cartão de visita: — Sou dono de uma loja de eletrodomésticos. Se precisar de algo, me telefone.

— Obrigada. — A situação era engraçada, mas Cilla só conseguiria rir mais tarde. Bem mais tarde. — Prazer em vê-lo, Tom.

—  O prazer foi meu.

Tom afastou-se, feliz da vida, e Fletcher conduziu-a a um canto do salão, junto ao telefone público.

—  Não se afaste daqui. Está se sentindo melhor? Ela assentiu e até conseguiu sorrir para um grupo de garotas que passava por ali rumo ao toalete.

— Sim, estou. Vou me sentar ali — disse, apontando para uma fileira de cadeiras dispostas perto de um vaso de plantas.

Deixando-o para trás, ela foi sentar-se no local que indicara, soltando o corpo numa das cadeiras.

Estava vivendo um terrível pesadelo. Não; era pior que isso, pois dormia, acordava e a realidade era a mesma.

Trêmula, acendeu um cigarro.

Fora tolice achar que ele a deixaria em paz pelo menos naquela noite; o sujeito era esperto demais. Por outro lado, jamais pudera imaginar que ele a seguiria ali na festa. As chances de que pertencesse à turma de 1975 eram mínimas, porém, ainda assim, conseguira se infiltrar.

Com as costas apoiadas no encosto da cadeira, observava o fluxo de pessoas que entravam e saíam da discoteca. Podia ser qualquer um daqueles, pensava, tentando ver se conseguia reconhecer alguém.

Podia ser um comerciante, um frentista do posto de gasolina que ela frequentava, um funcionário do banco onde tinha conta... Ou um desconhecido.

Ainda assim, ele a conhecia pessoalmente, sabia seu nome, seu endereço. Roubara-lhe a paz de espírito e só sossegaria quando lhe tirasse a vida.

Ela viu Fletcher desligar o telefone e ir ao seu encontro.

—  E então?

—  Thea está vindo apanhar o bilhete. Vamos mandá-lo para o laboratório da polícia. — Ele massageou-lhe os músculos rijos do ombro. — Mas, não alimente muitas esperanças: não creio que haja impressões digitais.

—  Nem eu — ela afirmou aprovando sua sinceridade. — Será que ele ainda está aqui?

— Não sei. — Ele olhava ao redor. — O hotel é muito grande mas a segurança não se responsabiliza pelos salões alugados. Fechar as portas e interrogar os presentes também não ajudaria muito. Se quiser ir embora mais cedo, posso dizer-lhes que você não está se sentindo bem.

— Não, de jeito nenhum — ela assegurou apagando o cigarro. — Faço questão de ir até o fim. Assim, se ele ainda estiver por perto, vai ver que não me acovardo com suas ameaças.

— Está bem. Qualquer coisa, lembre-se: estarei sempre por perto.

Cilla segurou-lhe uma das mãos e levantou-se:

— Fletcher, ele mudou sua forma de aproximação e escreveu o bilhete. O que isso significa?

—  Muita coisa. Esse foi o melhor modo que encontrou de entrar em contato com você aqui na festa.Por outro lado, ele pode estar se tornando mais displicente.

— Ou impaciente. Por favor, diga a verdade. Fletcher segurou-lhe o rosto com ambas as mãos:

— Cilla, para alcançá-la, ele terá de passar primeiro por mim, e eu lhe garanto que não será fácil.

— Os policiais gostam de se julgar invencíveis.

— É o que nos dá coragem para prosseguir — ele murmurou beijando-lhe a testa.

Fletcher não duvidava que ela fosse mesmo capaz de chegar ao final da festa, porém sua coragem era mesmo impressionante. Em nenhum momento Cilla permitiu que sua voz tremesse ou errara ao lidar com os controles. Enquanto a música tocava, ela discretamente olhava para as pessoas presentes, reparando em cada um dos rostos.

Suas mãos estavam em constante movimento. Ora lidando com os botões, ora pegando algum disco, ou ainda marcando o ritmo da música sobre a mesa. Fletcher reconheceu que Cilla jamais mudaria seu jeito agitado e inquieto de ser. Era aquela energia toda que a impulsionava, que a levava a prosseguir em sua luta. Como companheira, devia ser exigente e autoritária.

Exatamente o oposto do que ele procurava numa esposa. Porém, era por Cilla que seu coração batia mais forte e estava determinado a conquistá-la, tendo-a só para si.

Protegê-la com a própria vida era sua missão. Amá-la por toda a vida era seu maior desejo. Se seus planos dessem certo, ela logo entenderia esta diferença.

Sempre atento, também observava os presentes à procura de algum suspeito, porém, tudo lhe parecia absolutamente normal: a música alegre continuava a tocar, e as pessoas se aglomeravam na pista.

Fletcher viu Althea entrar. Não só ele, constatou, como a maioria dos homens ali presentes. E riu quando uma moça deu uma cotovelada no namorado, que acompanhava o andar de Althea com um olhar significativo.

— Você sempre atrai os olhares masculinos quando entra num local qualquer Althea — brincou.

Ela riu e deu de ombros. Estava muito elegante num vestido reto, preto e sem alças.

— Tenho de lhe agradecer por ter me livrado de um camarada chatíssimo. Marcamos um encontro, e ele trouxe uma escova de dentes no bolso. Parecia um maníaco só sabia falar em sexo!

— Animal.

— Uns mais, outros menos, mas, no fundo, são todos iguais — Althea filosofou, bem-humorada. Então, mais séria, olhou para Cilla: — Como ela está se saindo?

— Cilla é fantástica.

Althea ergueu uma sobrancelha:

— Fletcher, minha intuição feminina me diz que você está apaixonado por essa garota.

— Não dá mais para disfarçar. Eu a amo. Estou até pensando em casamento. Quer ser minha madrinha?

— Será um prazer. — Ainda assim, Althea tocou-lhe o braço de leve: — Ouça, Fletcher, não quero ser chata, mas estamos numa missão. A garota está correndo risco de vida.

Fletcher entendia a preocupação de sua parceira, porém, ficou aborrecido com o alerta.

— Pode deixar. — E mudou de assunto. — Aqui está o bilhete. Althea o leu e colocou na bolsa:

— Vamos ver o que os rapazes do laboratório podem fazer.

— Terminei de averiguar a ficha do ex-marido e me parece que é um sujeito honesto — Fletcher revelou, desapontado. — O senador Lomax está casado há seis anos, tem três filhos e não sai de Atlanta há três meses.

— Consegui entrar em contato com o dono da emissora onde ela trabalhou em Chicago. Ele a elogiou bastante. Andei averiguando e descobri que esteve a semana passada toda em Rochester visitando a filha. Ele me enviou a lista dos locutores e funcionários que trabalhavam na rádio na época de Cilla e até agora nada.

— Segunda-feira, quando eu chegar ao departamento, daremos outra olhada.

— Pode deixar que eu mesma vejo isso durante o fim de semana. Fique de olho na garota.

Thea, não sei como lhe agradecer.

— Nem pense nisso — disse Althea ao se despedir. Ao cruzar a discoteca rumo à saída, dois rapazes se aproximaram, convidando-a para dançar. Althea, no entanto, recusou o convite.

A experiência mostrara a Cilla que as melhores festas eram as que terminavam bem agitadas, portanto reservara os três melhores sucessos para o fim.

E de fato. Ao terminar a última canção, estavam quase todos na pista, exaustos, suados, sorridentes.

— Quero agradecer à turma de 1975 pelo convite. Vocês são demais! Espero revê-los daqui a cinco anos na comemoração do vigésimo aniversário de formatura. Até lá.

—  Bom trabalho — cumprimentou Fletcher.

—  Ainda não terminei.

Cilla precisava desmontar todas as ligações e, com a ajuda de Fletcher, levar todo o equipamento para o carro dele. E ainda precisaria deixar tudo na rádio para só depois voltar para casa.

— Ele tem razão. Foi uma noite excelente. Cilla ergueu o rosto, surpresa.

— Mark! O que está fazendo aqui?

— Vim lhe dar uma mãozinha. — Mark pegou um dos discos e verificou o nome da música. — Meu Deus! Não me diga que você tocou isso!

— Era um grande sucesso em 1975. Agora, seja franco e me diga por que veio.

— Vim buscar meu equipamento.

— Desde quando isso é serviço do dono da estação?

— Sou o chefe e posso fazer tudo o que tiver vontade —  ele lembrou, bem-humorado. Cilla riu.

— E de agora em diante... — avisou-a, consultando o relógio — você estará de licença por motivos de saúde.

Cilla entendeu tudo e lançou-lhe um olhar acusatório:

— Mas eu não estou doente.

— Estou dizendo que sim e pronto. E, se você aparecer na emissora antes de segunda-feira à noite, estará despedida.

— Mark!

— É pegar ou largar. — Então, num tom mais suave, pousou uma das mãos no ombro dela: — Cilla faço isso para o seu bem. Já vi outros locutores ficarem estressados por muito menos. Estamos preocupados com você, e achei melhor afastá-la por uns dias para que possa descansar.

— Estou conseguindo enfrentar a situação muito bem.

— Então vai poder apreciar melhor o descanso. Agora, dê o fora.

— Mas, quem vai...

Fletcher puxou-a pelo braço:

— Você o ouviu.

— Detesto receber ordens — Cilla murmurou enquanto caminhavam para a porta.

— Não seja exagerada. Acha que a KHIP vai se arruinar só porque você vai tirar um fim de semana de folga.

Sem virar a cabeça, ela lhe lançou um olhar severo:

— Não é esse o problema.

— Não mesmo. O problema é que você precisa e vai descansar.

— E o que acha que devo fazer nestes dias de folga?

— Não sei; pensaremos em algo.

Atravessaram o estacionamento, e alguns casais remanescentes lhes acenaram. Cilla sorriu-lhes e entrou no carro de Fletcher.

— Pensaremos?

— Sim. Por coincidência, eu também tirei o fim de semana de folga.

— Ela franziu a testa e o observou colocar-lhe o cinto de segurança.

— Isto está me parecendo uma conspiração.

— Você ainda não viu nada!

Fletcher escolheu uma fita de música clássica e a colocou no toca-fitas antes de dar partida no carro.

Suspirando, Cilla acendeu um cigarro. Não queria que as pessoas se preocupassem por sua causa; não gostava de admitir que estava cansada.

— Essas músicas sempre me dão sono.

— Então, durma. Vai lhe fazer bem.

Sonolenta, Cilla fechou os olhos por uns instantes pensando no sucesso da festa, no quanto se divertira até que... Era melhor abrir os olhos.

Observou que Fletcher não seguia o rumo de sua casa. Consultando o relógio do carro, constatou já haverem passado vinte minutos desde que saíram da festa.

— Onde estamos?

— Na rodovia número 70, seguindo rumo oeste.

— Rodovia? Mas, para onde vamos?

— Para as montanhas.

— Montanhas? — Ainda sonolenta, Cilla afastou os cabelos que lhe caíam na testa. — Que montanhas?

— Montanhas Rochosas   —   ele   explicou,   bem-humorado, citando o nome da famosa cordilheira. — Acho que já ouviu falar nelas.

— Não banque o espertinho, Fletcher. Você falou que ia me levar para casa.

— E vou. Isto é, de certa forma. Vou levá-la para a minha casa.

— Já estive na sua casa e sei que não fica nesta região.

— Não estou falando dessa, mas de outra casa. E um lugarzinho bem simples, confortável, com uma linda vista. Vamos passar o fim de semana lá.

— Pois saiba que não vamos a lugar nenhum. Vou passar estes dias em casa. Ouça, Fletcher, você como policial deve saber que levar alguém a algum lugar contra sua vontade é crime.

— Pode me processar quando voltarmos.

— Olhe, acho que já fomos longe demais. Sei que faz tudo pensando no meu bem, mas não vou deixar Deborah sozinha naquela casa à mercê desse maníaco.

—  Bem pensado. — Ele pegou uma saída à direita e Cilla, por um instante, respirou mais aliviada. — É por isso que ela foi passar estes dias na casa de Althea. Ela me pediu que lhe desejasse um ótimo descanso. Ah... — Cilla protestava, porém Fletcher prosseguia, indiferente — também arrumou sua mala.

— Quando foi que vocês planejaram tudo? Fletcher percebeu que a voz dela estava muito calma.

Calma demais.

— Tirei umas horinhas de folga durante o dia. Mas, como já disse, o lugar é gostoso. Você vai gostar.

— Espero que tenha um penhasco bem alto de onde eu possa jogá-lo!

Fletcher diminuiu a marcha para seguir pela estrada tortuosa.

— Tem sim.

— Eu sabia que você era teimoso e autoritário, mas passou do limite. Quem lhe deu o direito de programar minha vida e a de minha irmã para me trazer para as montanhas?

— Achei que era o melhor para você.

— Pois saiba que não gosto de montanhas, detesto a vida no campo e não vou para chalé nenhum!

— Sinto muito, mas já estamos quase lá. Cilla mordeu o lábio inferior.

— Se arranjou esta escapada com o intuito de me levar para a cama, desista. Prefiro morrer congelada aqui dentro do carro.

— O chalé tem vários quartos. Você será muito bem-vinda se quiser compartilhar o meu, mas pode escolher qualquer outro.

Furiosa, Cilla cruzou os braços e calou-se, sem argumentos.

 

Para Cilla a situação parecia totalmente absurda. Ser raptada rumo às montanhas por um mocinho estava mais apropriado às histórias românticas de antigamente. Entretanto, às portas do século XXI, aquilo lhe parecia ridículo.

Como vingança, pretendia manter-se calada e distante, deixando evidente que desaprovava aquela conspiração, da qual até sua própria irmã participara. Fletcher não receberia sequer um sorriso seu até levá-la de volta a Denver.

No entanto, todas as suas resoluções caíram por terra quando, após uma curva estreita, teve a primeira visão da casa, sob o luar.

Fletcher chamava aquilo de chalé? Por sorte a música da fita encobriu sua exclamação de espanto. Sua idéia de chalé nas montanhas nada mais era do que uma cabana de madeira em meio à mata sem nenhum tipo de conforto.

A casa era, de fato, feita de madeira. Mas não como as que se vêem em filmes de Hollywood. Era uma construção sólida, com vigas de madeira tratada que brilhavam sob o luar. A casa era dividida em diversos planos, com telhado inclinado e janelas enormes. Nas extremidades, dois deques de madeira proporcionavam uma visão panorâmica da região. O terreno era todo cercado por uma fileira de pinheiros semi-recobertos de neve.

Apesar da boa surpresa, Cilla continuou calada e desceu do carro com a fisionomia fechada. Para completar sua revolta, viu seu melhor par de sapatos se afundar na camada grossa de neve que cobria o gramado.

— Que Ótimo — murmurou.

Deixando Fletcher para trás, caminhou com dificuldade até chegar à varanda de entrada.

Tanto fazia que o lugar fosse bonito ou feio, pensou. Não queria ficar ali de modo algum. Mas, já que não teria como sair dali, armou sua estratégia: manteria a boca fechada, escolheria o quarto mais distante do de Fletcher e entraria debaixo das cobertas o quanto antes.

De fato, Cilla manteve a primeira parte da promessa quanto Fletcher juntou-se a ela na varanda. Os únicos ruídos por ali eram o estalar das vigas de madeira sob o peso de Fletcher e o barulho de um animal qualquer na floresta. Pondo as malas no chão, ele abriu a porta e convidou-a a entrar.

A casa estava escura e gelada, o que deixou Cilla bastante satisfeita. Quanto pior, mais motivos teria para reclamar. Contudo, Fletcher logo acendeu a luz e Cilla não conteve outra exclamação.

A sala principal, no centro da casa, era magnífica. Ampla, confortável, aconchegante. Tinha o teto suspenso por vigas de madeira avermelhada e lareira com revestimento em granito. Ao seu redor, um jogo de estofados bastante convidativos. A chaminé se erguia até o teto. Um balcão de madeira contornava toda a largura da sala, cujo pé direito era altíssimo. As paredes eram brancas e abrigavam várias estantes repletas de livros e enfeites.

A construção não se parecia em nada com a casa onde Fletcher morava, em Denver. Ali, em vez de arcos e curvas, as linhas eram extremamente simples e retas. Uma escada com degraus de madeira envernizada levava ao segundo pavimento e, ao lado da lareira, havia uma caixa de madeira repleta de lenha. O único toque extravagante ficava por conta de dois dragões de latão que serviam como suporte para a lareira.

—  A casa logo estará aquecida — disse Fletcher divertindo-se com seu silêncio.

Deixando-a exatamente onde estava, tirou o casaco, pendurou-o num cabide junto à porta e foi pôr um pouco de lenha para acender a lareira.

—  A cozinha fica naquela direção — disse, apontando, enquanto punha fogo num monte de jornais amassados que introduzira entre as toras. — Se tiver fome, é só abrir a despensa.

Cilla estava mesmo faminta, mas se recusava a admiti-lo. Trêmula de frio, viu-o acender a lareira em poucos minutos e reconheceu sua habilidade. "Ele deve ter sido escoteiro quando criança", pensou.

Como ela não respondesse, Fletcher ergueu-se e limpou as mãos. Por mais teimosa que fosse, não o venceria.

—  Se preferir ir direto para a cama, há quatro dormitórios no segundo pavimento. Para não falar no alpendre com telhado de vidro, onde se dorme observando as estrelas. Mas ainda está fazendo muito frio aqui dentro para experimentá-lo.

Percebendo o tom de sarcasmo na voz dele, Cilla empinou o queixo, pegou a mala e subiu a escada.

Porém, deparou com mais um problema: qual seria o quarto dele? Eram todos tão bonitos, tão bem decorados... Cilla acabou optando pelo menor. Detestava reconhecer, mas o quarto era lindo com seu teto reclinado, porta de vidro deslizante para a varanda e um armário embutido enorme. Pondo a mala sobre a cama estreita, resolveu abri-la para ver o que sua irmã cúmplice da trama tinha lhe mandado.

O grosso suéter feito à mão foi bem recebido, bem como a calça de veludo, as meias de lã e as botas de cano alto. Havia até uma bolsinha de maquiagem, que Cilla duvidava tivesse vontade de usar. Em vez de pijama com o emblema do time, Deborah lhe enviara um conjunto de camisola e robe em jérsei preto, super sexy. Entre as dobras do tecido, Cilla encontrou um bilhetinho: "Feliz aniversário com algumas semanas de antecedência. Divirta-se. Até segunda-feira. Deborah".

Cilla assobiu para si mesma. Sua irmã. Sua própria irmã caçula! Inconformada, ergueu o conjunto transparente para admirá-lo melhor. O que Deborah tinha em mente quando o colocara na mala?, perguntava-se. Era melhor não responder, concluiu e decidiu que dormiria com o suéter. No entanto, não conteve o desejo de correr os dedos pelo jérsei negro.

O toque era... delicioso. Raramente se dava ao luxo de comprar um traje tão pouco prático. A maior parte de seu guarda-roupa era dedicada a roupas confortáveis e simples, para serem usadas no dia a dia.

Deborah não devia ter escolhido um presente tão extravagante. Por outro lado, o conjunto era tão feminino... Talvez não houvesse mal nenhum em experimentá-lo. Afinal, acabara de ganhá-lo e não havia ninguém ali para vê-la.

O calor do aquecimento central começava a entrar no quarto pelas aberturas de ventilação junto do teto. Satisfeita, Cilla tirou o casaco e os sapatos. Seu plano era tomar um banho de imersão na banheira ali da suíte e ir dormir.

Toda sua determinação, no entanto, caiu por terra ao entrar na banheira. O pacotinho com espuma de banho que Deborah incluíra na bagagem tinha um aroma irresistível, repousante, e Cilla quase adormeceu na banheira.

No teto do banheiro, havia uma clarabóia de vidro que permitia ver o céu e as estrelas. Cilla respirou fundo e afundou-se ainda mais na água quente. Tudo ali era tão... romântico, repousante. Deliciosamente envolvente.

Fora tolice ter acendido as duas velas que vira junto à janela em vez de acender as luzes, mas a iluminação difusa lhe parecera mais apropriada, e Cilla não resistira à tentação.

Meia hora depois, ao sair da banheira, dizia a si mesma que estava apenas tentando tirar o melhor proveito de uma situação adversa. Após enxugar-se, soltou os cabelos e experimentou a camisola que Deborah lhe mandara.

O decote às costas era bem profundo, deixando-as praticamente nuas até a altura da cintura. A frente era toda enfeitada de renda preta semi transparente, e o recorte abaixo do busto tornava-os ainda mais redondos.

O robe tinha as mesmas aplicações da camisola e fechava-se com um laço de fita preta acetinada. Sorrindo para a própria imagem refletida no espelho, imaginou as mãos grandes de Fletcher tentando abrir o laço delicado para tocar-lhe a pele. Os dedos largos deslizando pelo contorno da renda e... ''Oh, meu Deus!"

Maldizendo o curso de seus pensamentos, abriu a porta do banheiro e voltou para o quarto.

Era ridículo entregar-se àquele tipo de fantasias, dizia a si mesma. Nunca fora uma pessoa sonhadora e gostava de planejar tudo o que fazia, sem perder o senso de realidade. Desde que começara a trabalhar, seus planos e sonhos só tinham relação com a carreira.

Por mais atraída que estivesse por um homem, jamais alimentara fantasias eróticas a seu respeito. Ainda mais sabendo que jamais se tranformariam em realidade.

O melhor era ir para a cama, parar de pensar em bobagens e torcer para que o desejo que a consumia desaparecesse por si só. E, antes que pusesse a mala no chão, viu o copo sobre o criado mudo.

Era um copo fino de cristal, com pé lapidado, e ao provar dele Cilla fechou os olhos deliciando-se com o vinho branco ligeiramente gelado. Com certeza, devia ser francês. Virando-se, viu-se refletida no imenso espelho disposto no canto do quarto.

Seus olhos estavam brilhantes, a pele, rosada do banho. Uma imagem frágil e delicada. O que Fletcher estava tentando fazer-lhe? Por que sua tática de sedução dava resultados?

E, antes que mudasse de idéia, vestiu o robe do conjunto e foi procurá-lo.

Fletcher lia a mesma página do livro pela oitava vez. Seu pensamento estava em Cilla. Contava os minutos se passarem, se maldizia por desejá-la tanto. Tinha sido preciso apelar para todo seu autocontrole quando deixara o copo no quarto e saíra, resistindo ao ímpeto de entrar no banheiro e surpreendê-la na banheira.

Não era uma paixão unilateral, pensou, aborrecido. Sabia que a atraía. Tampouco tratava-se de um mero fascínio passageiro; estava apaixonado por Cilla. Pena que ela não conseguisse enxergar esta verdade em seus olhos.

Pousando o livro no colo, prestou atenção na letra da canção interpretada por Billie Holiday e lançou um olhar perdido em direção às chamas da lareira. O fogo logo aquecera o quarto e fora por este motivo que construíra uma lareira menor ali, além da outra na sala principal. Para não falar no toque romântico que o levara a tomar aquela decisão. Ficara furioso consigo mesmo ao surpreender-se sonhando com Cilla ao acendê-la momentos antes.

Em seu sonho, ela viera ao seu encontro usando um traje fluido e sedutor. Sorridente, lhe estendera a mão com um olhar malicioso. Ele, então, a erguera nos braços, a pusera na cama e...

"Vá sonhando", disse-lhe o bom senso. As chances do sonho tornar-se realidade eram mínimas. Cilla jamais iria ao seu encontro num traje insinuante e...

Diabos! Nunca conhecera uma mulher tão teimosa. Se ela não fosse tão orgulhosa e não se preocupasse tanto em ocultar os próprios sentimentos, não passaria tanto tempo fumando e roendo as unhas.

Tristonho, ergueu um brinde silencioso e quase deixou o copo cair quando a viu parada junto à porta.

— Quero conversar com você.

Cilla perdera parte da coragem no caminho, mas conseguiu entrar no quarto sem tropeçar nos próprios pés. E não se deixaria intimidar pelo fato de encontrá-lo usando apenas um agasalho de ginástica.

Fletcher precisava de um drinque. Depois de beber um gole de vinho, pigarreou e assentiu com a cabeça. Estaria sonhando? Mas em seu sonho ela sorria.

— O que foi?

Cilla viera com o intuito de dizer-lhe tudo o que pensava e ir embora. Porém, para tanto, também precisava de um gole de vinho.

— Acredito que suas intenções ao me trazer para cá tenham sido as melhores, já que tenho vivido dias difíceis. — Começou,depois de beber do próprio copo. — Mas agiu de modo incrivelmente arrogante. — Ela mesma julgou-se uma tola por estar fazendo aquele discurso e esperou por uma resposta, que não veio. — E então? Não tem nada a dizer?

— Sobre o quê?

Frustrada, ela deu um passo à frente e pousou o copo com força sobre a mesa.

— Depois de ter me trazido aqui contra a minha vontade, o mínimo que pode fazer é ouvir minhas reclamações.

Fletcher mal conseguia respirar, quanto mais ouvir. E tomou mais um pouco de vinho só por não saber o que fazer com as mãos.

—  E você não fosse tão teimosa e usasse mais as pernas, digo, a inteligência — corrigiu-se, tarde demais —, veria que o descanso lhe fará bem.

A raiva fez os olhos de Cilla faiscarem, tornando-a ainda mais adorável. Através do tecido fino do conjunto que ela usava, Fletcher podia ver as chamas tremulando ao fundo.

— E então, você se viu no direito de tomar esta decisão por mim.

—  Isso mesmo. — Temendo estilhaçar o copo tal a força com que o segurava, Fletcher deixou-o obre a mesinha lateral. — Se eu tivesse lhe pedido para vir, você teria inventado mil desculpas para recusar o convite! Mas, agora, estou lhe dando chance de escolher o que quer fazer, Cilla. Diga o que quer.

— Do que você está falando? — ela perguntou, insegura, deslizando um dedo pelo laço que amarrava o robe. Fletcher correu os dedos pelos cabelos, levantou-se e foi até a janela. Seu controle estava por um fio.

— Cilla, por que não volta para a cama e pára de me provocar?

— Provocá-lo? Fletcher, eu não o entendo.

Fletcher não conseguiu mais se conter e, aproximando-se, agarrou-a pelos braços. Excitado, mediu-a dos pés à cabeça com um olhar capaz de fazer arder a pele dela. Suas curvas moldadas pelo tecido fino da camisola o deixavam quase maluco.

— Você vestiu essa roupa hoje só para me torturar, não foi?

— Eu... — Cilla olhou para o conjunto que usava e se retraiu. — Foi Deborah quem o colocou na mala.

— Pois está me deixando louco, Cilla.

— Só vim até aqui porque pensei que poderíamos esclarecer tudo conversando como dois adultos.

— Se é isso o que quer, tudo bem. Lá em cima há um armário repleto de cobertores. É só se enrolar num deles.

Mas Cilla não precisava se aquecer. O olhar que ele lhe lançava e o modo como lhe acariciava os braços, subindo e descendo as mãos bem devagar queimavam-lhe a pele.

— Talvez eu quisesse mesmo fazê-lo sofrer um pouco.

— Pois, funcionou. — O robe deslizara pelo ombro direito e Fletcher agora lhe tocava aquela curva tão sensível. — Cilla, não vou lhe facilitar as coisas simplesmente levando-a para a cama porque, se fizermos amor, quero que a escolha seja sua.

E não fora exatamente por aquele motivo que ela fora ao encontro dele? Torcendo para que Fletcher tomasse as rédeas da situação?

— Não é fácil para mim.

— Deveria ser — ele murmurou segurando-lhe as mãos. — Se você estiver preparada. Ela ergueu o rosto e percebeu que ele aguardava por sua resposta.

— Acho que estou preparada desde o dia em que o conheci. Um tremor o sacudiu, mas Fletcher continuou se contendo:

— É só dizer sim.

Dizer não bastava, ela concluiu.

— Solte a minha mão.

Fletcher olhou-a bem dentro dos olhos e soltou-lhe as mãos. Porém, antes que pudesse recuar, ela lançou-lhe os braços ao redor do pescoço.

— Eu te quero, Fletcher. Fique comigo esta noite. E o beijou.

Não foi preciso dizer mais nada.

Por um momento, surpreso, Fletcher quase perdeu o fôlego. O sabor de seu beijo, seu perfume, a textura do jérsei. O suspiro profundo que ela deu ao beijá-lo... Queria possuí-la, conhecê-la, descobri-la... Suas mãos tocaram-lhe os ombros afastando as alças da camisola e a outra parte do robe, mas Cilla o puxava para a cama.

Ela o beijava, acariciava, seduzia. Fletcher estava excitadíssimo, mas procurava conter-se tentando prolongar o prazer. Cilla, por outro lado, tinha pressa e, entre carícias e beijos, tirou-lhe a calça do agasalho.

Ela não queria que ele se arrependesse de tê-la desejado; seria muita humilhação.

A pele dele estava quente e úmida sob seus dedos. Cilla gostaria de poder tocá-la mais demoradamente, mas acreditava que os homens preferiam um amor rápido e tempestuoso.

Deliciava-se ao ouvi-lo murmurar seu nome e puxar-lhe de leve os cabelos cada vez que o tocava num ponto mais sensível. Quando Fletcher deitou-se por cima dela, Cilla deu seu consentimento e ele a possuiu. Ele, porém, pretendia demorar-se, aproveitando ao máximo aqueles momentos. Contudo, ao recebê-lo, Cilla começou a mover os quadris e Fletcher não resistiu por muito tempo àquela provocação.

Ela sorria quando ele afundou o rosto entre seus cabelos, a respiração ainda ofegante. Satisfeita, Cilla sabia que o agradara e que ele não se arrependeria.

Nem ela. Fora muito melhor do que esperava. Fletcher era carinhoso, gentil e sabia tornar aqueles momentos ainda mais especiais.

Fletcher se maldizia mentalmente pela falta de controle e não entendia o porquê de Cilla ter apressado a relação daquela maneira, mal lhe dando chance de tocá-la como pretendia. E mais: embora fosse ela mesma quem houvesse imprimido aquele ritmo, Fletcher sabia que Cilla não ficara plenamente satisfeita.

Procurando manter-se calmo, rolou para o lado e fitou o teto, curioso.

— Por que fez isso? — perguntou-lhe. Cilla ia tocar-lhe os cabelos, mas se deteve.

— Não entendo o que quer dizer. Pensei que quisesse fazer amor.

— E queria — ele confessou, sentando-se na cama. — Mas pensei que você também quisesse.

— É que os homens gostam de... — Cilla fechou os olhos e sentiu o contentamento se esvair. — Eu lhe disse que não era boa nisso.

Ouvindo-o praguejar ruidosamente, ela saltou da cama e tornou a vestir o robe.

— Aonde você vai?

— Para a minha cama. — Como o choro lhe embargasse a voz, Cilla a manteve bem baixa. — Foi apenas mais um erro que cometemos. — Ao vestir a segunda manga do robe, ouviu a porta bater com força e virou-se. Fletcher girou a chave na fechadura e jogou-a num canto do quarto.

— Não quero ficar aqui com você. Abra a porta.

— É uma pena, mas você já fez sua escolha. Cilla cobriu-se com o robe e cruzou os braços. Estava indignada e magoada. Não era a primeira briga que teria por causa de seus fracassos na cama.

— Ouça, fiz o melhor que pude. Se não foi o bastante, tudo bem. Mas, deixe-me ir.

— Não foi o bastante? — Ele avançava dois passos, ela recuava três até que se viu comprimida entre Fletcher e o pé da cama. — Eu devia matar o responsável por essa sua insegurança. Há duas pessoas envolvidas quando se faz amor, Cilla, e ambas têm de se satisfazer. Não estou à procura de uma expert no assunto.

O rosto dela, que há pouco estava transfigurado pelo ódio e ressentimento, ficou branco como mármore e seus olhos se encheram de lágrimas. Fletcher cobriu os próprios olhos com as mãos e praguejou. Seu intuito não era magoá-la, mas apenas mostrar-lhe que queria uma parceira.

— Você não sentiu nada, não é?

— Senti, sim — ela alegou, enxugando as lágrimas que lhe corriam pelas faces.

— Então, foi um milagre, Cilla. Você mal me deixou tocá-la. Ouça, não a estou culpando de nada. — Fletcher deu mais um passo à frente mas, vendo-a arregalar os olhos cheios de medo, deteve-se. — Quando eu percebi, já era tarde demais para voltar atrás. Quero que você também tenha prazer.

— Vamos esquecer o que houve, sim? — Ela já recuperara a calma. Tinha os olhos secos e a voz firme. No peito, um desejo enorme de morrer. — Quer, por favor, destrancar a porta?

Ele soltou a respiração e deu de ombros. Vendo-o dirigir-se para a porta, ela o seguiu mas Fletcher apenas apagou a luz.

— O que está fazendo?

— Já tentamos à sua maneira. — Sob a luz azulada do luar, Fletcher acendeu um castiçal que tinha na mesa de cabeceira e virou o disco no toca-discos. — Agora, vamos tentar à minha. Cilla começou a tremer de medo e embaraço.

— Eu falei que queria ir para a cama.

— Ótimo — disse Fletcher erguendo-a nos braços. — Eu também.

Embora ela se mantivesse tensa, Fletcher colocou-a delicadamente na cama e, sempre fitando-a, espalhou-lhe os cabelos sobre o lençol, acariciando-os demoradamente.

— Eu a imaginava exatamente aqui, com os cabelos em meu travesseiro, à luz de velas. — Curvando-se, beijou-lhe os lábios num breve roçar. — O luar tocando sua pele. Ninguém por perto, nenhuma preocupação. Só você.

Comovida, ela virou o rosto para o lado. Não se deixaria seduzir por palavras bonitas e fazer papel de idiota novamente. Fletcher sorriu e comprimiu os lábios contra seu pescoço delicado.

— Gosto de desafios e vou fazer amor com você, Cilla. — Afastando as mangas do robe, traçou o trajeto do jérsei com os lábios úmidos. — Vou levá-la a um lugar que você jamais pensou existir. — Fletcher segurou-lhe uma das mãos e sentiu-lhe o pulso acelerado. — Não precisa ter medo.

— Não tenho medo de nada.

— Você tem medo de relaxar, se soltar, deixar que alguém se aproxime e descubra o que há aí dentro de você.

Ela tentou afastar-se, mas ele a abraçou.

— Que bobagem. Já fizemos sexo.

— Fizemos, sim — Fletcher concordou beijando-lhe os cantos da boca. — Só que agora vamos fazer amor.

Cilla ia virar a cabeça novamente, porém Fletcher segurou-lhe o rosto entre as mãos. E quando ele a beijou, Cilla sentiu o coração disparar em seu peito como se quisesse saltar-lhe pela boca. Era um beijo tão suave, tentador. À medida que os dedos dele escorregavam por suas faces, ela suspirou. Fletcher aproveitou para aprofundar o beijo, provocando-a com a ponta da língua.

— E-Eu não quero... — ela tentou dizer ao senti-lo morder-lhe o lábio inferior.

— Diga-me o que você quer.

— Não sei.

Cilla ergueu os braços para afastá-lo, mas suas mãos pousaram delicadas nos ombros dele, como se agissem por vontade própria.

— Então, vamos experimentar um pouco de tudo e, quando terminarmos, você pode dizer do que gostou mais.

Fletcher murmurou palavras doces, carinhosas, quase hipnóticas que a deixaram num delicioso estado de torpor. Seu beijo exigente a estremecia e, ainda assim, ele se limitava a acariciar-lhe o rosto com suavidade.

Sua língua deslizou-lhe pelo pescoço até tocar o colo alvo, logo acima da renda da camisola. Sua pele tinha gosto de mel, Fletcher constatou, provando o vale entre os seios. O coração de Cilla batia forte e quando ela levantou uma das mãos, Fletcher prendeu-a contra o colchão, imobilizando-a.

Com toda calma, ele afastou a renda preta com os dentes e viu Cilla arquear as costas num convite irresistível. Seus dedos se entrelaçavam aos dele com força. Murmurando algo incompreensível, Fletcher baixou a outra alça da camisola.

Sua respiração estava rápida e ofegante, mas ele fazia o possível para conter o desejo. Excitadíssimo, deslizou os lábios ardentes pela curva dos seios até alcançar-lhe um mamilo rijo. Cilla gemeu e murmurou o nome dele, ao que Fletcher respondeu sugando-os alternadamente.

Ondas de calor se espalhavam pelo corpo de Cilla à medida que o prazer crescia em seu íntimo. Respirando de modo rápido, remexeu-se sob o peso do corpo dele e cravou-lhe as unhas nas costas, arqueando-as. Cilla ouviu seu próprio grito de alívio quando teve a sensação de que algo explodia dentro de si num misto de dor e prazer.

 Aos poucos, todos os músculos de seu corpo foram relaxando e Fletcher beijou-lhe a boca com volúpia.

—  Cilla, você é maravilhosa.

—  Não — ela protestou, levando uma das mãos à testa. — Não quero pensar em nada.

—  Então, não pense. Sinta.

Fletcher separou-lhe as pernas com vagar e descobriu-a pronta para recebê-lo. Fitando-a com intensidade, lendo cada mensagem estampada em seus olhos, começou a soltar o laço do robe com calma. Toda calma de que era capaz. O jérsei fino foi escorregando pela pele de Cilla, que estremeceu ao senti-lo beijar-lhe o ventre.

Tomada pelo desejo, ela deixou que o pensamento e as sensações continuassem a levá-la por aquele mundo desconhecido. Sentia o lençol quente e amarrotado sob suas costas e se deliciava com o caminho que as mãos de Fletcher percorriam ao livrá-la de vez da camisola. A pele dele, úmida e quente, estava colada à sua.

Cilla agora lhe pertencia. Toda. De corpo e alma. Desta vez, de fato, a possuía. Admirava-lhe o corpo alvo sob o luar, a luz das velas dançando em seu rosto. Ela murmurava seu nome baixinho quando Fletcher a tocava com mais ousadia, e o ondular de seus quadris era um estímulo para que prosseguisse.

Ele deslizou-lhe as mãos pelas pernas afastando o robe e a camisola de vez. O perfume dela, suave e feminino, jamais lhe sairia da lembrança.

Percorrendo o caminho inverso, Fletcher subiu as mãos pelas coxas de Cilla chegando bem perto do centro de todo seu prazer, e só então, a possuiu.

Primeiro foi o gemido rouco, depois, os murmúrios incompreensíveis, deixando-o louco de paixão. Pela segunda vez, Cilla alcançou o clímax, conduzida pelas carícias e os beijos experientes de Fletcher. Exausta, ela lançou-lhe as pernas ao redor da cintura e acompanhou lhe o ritmo cada vez mais rápido até que ele, também, chegasse ao êxtase.

Exaurido, Fletcher reuniu suas poucas forças e rolou para o lado trazendo Cilla consigo, de tal modo que suas posições se inverteram. A sensação de tê-la deitada sobre si, pressionando-o com seu corpo era indescritível.

Sentindo-a estremecer, ele aqueceu-a num abraço.

— Está com frio?

Ela balançou a cabeça, afirmativamente.

— Bem, daqui a meia hora talvez eu já tenha torças para ir buscar um cobertor.

— T-Tudo bem.

Percebendo o tom inseguro e baixo da voz dela, ele tocou-lhe o rosto e sentiu as lágrimas que lhe molhavam os olhos.

— Você está chorando? Por que?

— N-Não foi nada.

— Diga, Cilla; o que houve?

— E-Eu nunca pensei que pudesse ser tão maravilhoso.

— Isso é um elogio? — ele perguntou, bem-humorado, acariciando-lhe os cabelos.

— Nunca ninguém me... Eu nunca havia... — E desistiu de tentar explicar: — Foi lindo.

— Cilla, foi e sempre será assim.

 

Cilla cruzou os braços sobre o peito e olhou pela janela. Fletcher tinha toda a razão: a vista dali era linda.

De onde estava, podia ver os picos nevados das montanhas da região. A chaminé de uma casinha a distância soltava uma fumaça branca que o vento carregava. Os pinheiros, verdejantes apesar do frio, resistiam às rajadas mais fortes vergando ligeiramente.

As sombras longas do final de tarde davam um toque tristonho à paisagem, e o azul do céu límpido se refletia na neve. Momentos antes, havia visto um veado afundar o focinho no gelo à procura de alguma plantinha que pudesse comer. Agora, no entanto, estava absolutamente só.

Jamais desfrutara de uma paz tão grande; nem mesmo nos tempos de infância, onde vivia cercada de bonecas e contos de fada. Tampouco pensara que aquela estada ali nas montanhas trouxesse uma mudança tão profunda em sua vida. Considerava-se uma outra mulher.

Fletcher mantivera sua promessa de fazê-la conhecer lugares que não imaginara existir. Em apenas uma noite, ele a fez compreender que no amor é possível dar e receber, aceitar e ofertar. Mais que isso: aprendera o que é intimidade.

Ao despertar ao lado dele naquela manhã, não se sentira constrangida ou sem jeito. Sentira uma calma deliciosa. Ficava difícil acreditar que havia um outro mundo para além dos muros da casa; um mundo cruel e perigoso.

Mas era inútil tentar iludir-se. Teria de voltar a encarar toda aquela crueldade dentro de pouco tempo. Não podia se esconder ali para sempre. Por outro lado, queria se dar ao luxo de aproveitar ao máximo aqueles momentos de tranqüilidade.

Suspirando, ergueu o rosto em direção ao sol poente e concluiu que o melhor era ser bem honesta consigo e com Fletcher. Não iria permitir que o relacionamento entre eles ultrapassasse o ponto que já havia atingido. Não podia. Era preferível sofrer um pouco agora do que vê-lo traí-la mais tarde, quando a dor seria maior.

Fletcher era um homem bom, digno, honesto e...policial.

Arrepiando-se, abraçou-se com mais força.

Havia uma cicatriz em seu ombro. Na frente e nas costas, lembrou-se. Um ferimento provocado por bala, sem dúvida, mas nunca lhe perguntara como e onde o acidente ocorrera.

Porém, nada ocultava o fato de que suas próprias cicatrizes eram tão profundas quanto as dele.

Não podia se iludir achando que aquele relacionamento teria algum futuro. Na verdade, as coisas já haviam ido longe demais. No entanto, não havia como voltar atrás: eram amantes. Embora tivesse consciência de que cometiam um erro, sabia também que jamais se esqueceria dos momentos lindos que haviam passado juntos.

A atitude mais lógica e racional seria discutir as limitações que os cercavam, e Cilla tinha certeza de que Fletcher apreciaria uma abordagem prática do assunto. Nada de promessas ou compromissos. De resto, cabia a si própria a tarefa de liquidar aquela paixão que sentia por Fletcher.

Ele a encontrou debruçada sobre a grade, como se quisesse sair voando por sobre as árvores e as montanhas; sinal de que as preocupações haviam voltado. Frustrado, lembrou-se de quanto ela estivera calma aquela manhã ao despertar preguiçosamente para, em seguida, fazerem amor.

Naquele momento, ao senti-lo tocar-lhe os cabelos, ela estremeceu de susto antes de recostar a cabeça em sua mão.

— Gostei da sua casa, Fletcher.

— Que bom.

Ele pretendia trazê-la ali ainda inúmeras vezes. Ela mexeu os dedos sobre a grade, depois, enfiou-os nos bolsos.

— Você a comprou pronta ou mandou construí-la?

— Mandei  construí-la.   Cheguei até a ajudar na pintura.

—  É uma pena só poder vir aqui nos fins de semana.

—Sempre consigo tirar uma licença e fugir para cá durante o ano para passar uns dias. Meus pais vêm aqui com bastante frequência, também.

— Eles moram em Denver?

— Não, em Colorado Springs —  explicou massageando-lhe a nuca. — Mas costumam viajar muito por toda parte.

— Imagino que seu pai tenha ficado desapontado por você não ter querido cuidar dos negócios da família.

— Minha irmã ficou no meu lugar. — Fletcher beijou-lhe os lábios quando os viu se curvarem num sorriso. — Confesso que ela se saiu muito bem na direção das empresas. Melhor do que eu, sem dúvida.

— Mas eles não ficam chateados pelo fato de você ser um policial?

— Não, não. Têm coisas mais importantes com que se preocuparem. Está ficando frio. Vamos entrar.

Ela o acompanhou através da porta de vidro e desceu a escadinha que levava à cozinha.

— Que cheirinho bom...

— Estou preparando um ensopado especial. — Ele caminhou até o fogão, instalado bem no centro da cozinha, e levantou a tampa de um caldeirão. — Fica pronto dentro de uma hora.

— Por que não me pediu ajuda?

— Tudo bem — Fletcher afirmou escolhendo um vinho na pequena adega. — Da próxima vez, você cozinha.

Ela achou graça:

— Então, você gostou do meu sanduíche de pasta de amendoim?

— É igual ao que minha mãe fazia. Não vai tirar o casaco? — Fletcher perguntou-lhe ao abrir a garrafa de vinho.

— Ah, claro. — Cilla tirou-o e o pendurou num cabide ao lado da entrada dos fundos. — Quer que eu faça alguma coisa?

— Sim; relaxe.

—  as eu estou calma.

— Estava. — Fletcher pegou dois copos no armário. — Não sei o que a deixou ansiosa de novo, mas vamos falar a respeito. Por que não vai se sentar junto à lareira? Levo o vinho num instante.

Se em tão pouco tempo ele já a conhecia tão bem, como seria dali a anos, Cilla imaginava, acomodando-se num almofadão perto da lareira.

Quando Fletcher chegou trazendo os copos, ela abriu um sorriso muito mais descontraído, que o deixou feliz.

— Nunca imaginei que uma lareira pudesse tornar uma casa tão aconchegante.

Ele se sentou ao lado dela e entregou-lhe um dos copos:

— Olhe para mim. Está preocupada com a volta ao trabalho, não é?

— Não. — Então, Cilla suspirou. — Um pouco. Confio em você e Althea; sei que estão fazendo o possível, mas estou apavorada.

— Acredita mesmo em mim?

— Já falei que sim — ela garantiu sem fitá-lo.

— Ele ergueu-lhe o queixo até que seus olhares se encontrassem.

— Não apenas como profissional.

— Não.

— Então, é aí que está o problema. No fato de eu ser um policial.

— Não tem nada a ver com isso. Não gosto de policiais, porém não espero que você compreenda meus motivos.

— Andei fazendo umas investigações, Cilla. Não apenas por motivos profissionais. Pesquisei seu passado porque quero protegê-la, quero compreendê-la melhor. Você me contou que sua mãe trabalhava na polícia e não foi difícil descobrir o que aconteceu.

Cilla segurou o copo com as duas mãos e olhou para as chamas da lareira. Apesar de já haverem se passado muitos anos, as lembranças ainda lhe causavam dor.

— Então, apertou uns botões no seu computador e descobriu que minha mãe morreu cumprindo seu dever. Assim, como se fosse uma descrição fria e banal.

— Faz parte do nosso ofício.

Fletcher viu uma sombra de medo em seus olhos quando ela o fitou por um segundo apenas.

— É. Fazia parte do serviço dela morrer com uma bala naquele dia. Coitado de meu pai que não tinha nada a ver com o caso. Morreu sem saber por quê.

— Cilla, não é tão simples quanto quer crer. Nada no mundo acontece dessa forma.

— Simples? — ela indagou afastando os cabelos que lhe caíam na testa. — A palavra é irônico, isso sim. A policial e o advogado, marido e esposa, que muitas vezes lidavam com o mesmo caso. Só que nunca os vi concordarem com um mesmo ponto de vista. Em nada. Pouco antes do incidente, eu os ouvi falando numa separação temporária. — E, franzindo a testa, pegou o copo: — Acho que meu vinho acabou.

Fletcher, calado, completou-o.

— Você deve ter lido o relatório oficial. A polícia prendeu o tal sujeitinho e o interrogou. Ele já tinha uma longa ficha de crimes e, escolado, exigiu a presença de um advogado durante o interrogatório. Queria fazer um acordo com a polícia, tentou de tudo, mas sabia que era inútil. Tinha matado duas pessoas e ia cumprir uma longa pena na cadeia.

Cilla fez uma pausa e bebeu mais um pouco de vinho.

— Muitas pessoas perderam o emprego por causa daquele incidente, e meus pais perderam a vida.

— Não vou tentar negar que muitas vezes um policial morre desnecessariamente, por engano ou descuido.

Ela ergueu o rosto e o fitou bastante séria.

— Ótimo. Nem me venha com aquela conversa de que devemos nos orgulhar do policial que morre em serviço. Eu preferia que minha mãe estivesse viva.

Fletcher não conseguia esquecer uma foto que vira no arquivo da polícia onde Cilla, abaladíssima, segurava a mão da irmã, no cemitério, no dia do enterro dos pais.

— Você deve sentir muita falta dela, não?

— Sim. Mas acho que de certa forma eu a perdi no dia em que ela entrou para a polícia.

— Os colegas a admiravam muito. Naquela época, não era fácil para uma mulher se destacar em meio a tantos colegas. Porém, quem mais sofre é sempre a família.

— Ora, o que você entende disso? À medida que fui crescendo e compreendendo os riscos que ela corria, nunca mais tive sossego. Vivia esperando o dia em que um colega dela viria me contar que a encontraram morta.

— Cilla, esse seu modo de pensar é errado. Não se pode viver esperando pelo pior.

— Vivi uma vida esperando para ter uma mãe de verdade. O serviço vinha antes de tudo: de mim, de meu pai, de Deb. Ela nunca estava por perto quando eu precisava. — Cilla encolheu as mãos antes que ele as segurasse. — Para mamãe, o juramento que fez ao entrar para a polícia era mais importante do que nós.

—  Talvez ela estivesse preocupada demais em seguir uma carreira.

— Não ouse me comparar a ela!

— Eu não ia fazer isso — ele alegou, admirado, segurando-lhe a mão, apesar da resistência. — Mas parece que você mesma se compara.

— Eu tinha de me preocupar com a casa, a família, a comida. Mamãe alegava que um policial não tem horário para chegar ou sair de casa.

— Eu não conheci sua mãe e prefiro não criticá-la, mas não acha que já é hora de se desligar um pouco e viver a sua vida?

— Foi o que fiz. Vivi minha vida como quis, fiz o que achei melhor.

— E está apavorada porque se apaixonou por um policial. Bem, teremos de aprender a lidar com isso.

— Fletcher, não tenho o direito de interferir na sua vida. Não estou lhe pedindo que mude nada por minha causa. Não pretendia me envolver tanto com você, mas não me arrependo. Em outras palavras: se agirmos e pensarmos de modo racional, acho que conseguiremos des-complicar a situação.

— Não — ele negou bebendo todo o vinho do copo.

— Não o quê?

— Me recuso a ser racional e acho que a situação já está bastante complicada. — Fletcher encarou-a e confessou pela primeira vez: — Estou apaixonado por você.

Cilla arregalou os olhos, assustada, e desviou o olhar.

— Vejo que isso a assusta — comentou, já de pé, indo ajeitar a lenha na lareira.

— O amor é algo muito complexo, Fletcher. Nos conhecemos há apenas algumas semanas, sob circunstâncias bastante difíceis. Acho que...

— Estou cansado de saber o que você acha e pensa. Quero saber o que você sente.

— Não sei — mentiu. Consciente de que se arrependeria em seguida. As lembranças do passado a amedrontavam, impedindo-a de acreditar num futuro melhor. — Fletcher, tudo aconteceu muito rápido. Rápido demais, até. Perdi o controle da situação e isso me deixa assustada. Eu não queria me envolver e me envolvi. Não queria gostar de você e acabei gostando.

— Puxa, finalmente conseguiram fazê-la confessar.

— Não durmo com um homem só porque ele me atrai.

— Ora, está melhorando. — Fletcher sorriu e beijou-lhe os dedos. — Eu a atraio e você gosta de mim. Então, case comigo.

Cilla tentou puxar a mão.

— Não gosto dessas brincadeiras.

— Não é brincadeira — ele disse. E acrescentou bastante sério: — É um pedido de casamento.

Ela ouviu um pedaço de lenha estalar na lareira, projetando luz e sombra no rosto dele. As mãos de Fletcher, quentes e firmes, seguravam as suas, envolvendo-as por completo.

— Fletcher...

— Eu te amo, Cilla. — Calmamente, sempre fitando-a, ele a puxou para si. — É verdade — reforçou, beijando-lhe a boca com suavidade. — Estou lhe pedindo que venha viver comigo durante os próximos cinquenta ou sessenta anos para que eu possa lhe mostrar o quanto te amo. É pedir demais?

— Não. Sim. — Lutando para conservar o raciocínio claro, ela pousou uma das mãos em seu peito: — Fletcher, não pretendo me casar com ninguém.

— Claro que pretende — ele alegou, beijando-a e acariciando-a de modo persuasivo. — Só precisa se convencer de que será comigo. — E aprofundou o beijo até que ela deixasse de oferecer resistência e o abraçasse. — Estou disposta a lhe dar um tempo para que se acostume com a idéia. Um dia, ou dois. Uma semana, quem sabe.

Cilla balançou a cabeça:

— Já cometi um erro e não pretendo repeti-lo.

Ele segurou-lhe o queixo com tamanha revolta que Cilla abriu os olhos. Ele estava transfigurado de ódio.

— Não ouse me comparar ao seu ex-marido.

Ela ia protestar, mas Fletcher apertou-lhe o queixo com mais força e ela calou-se.

— Não compare o que sinto por você com o que outras pessoas sentem.

— Não estou fazendo comparação. — O coração de Cilla batia disparado contra o peito de Fletcher. — Fui eu que cometi esse erro e não vou repeti-lo de forma alguma.

— Diabo, Cilla, entenda: é preciso duas pessoas para que um casamento dê certo ou errado. — Furioso, ele segurou-lhe as duas mãos, e obrigou-a a deitar-se no chão, prendendo-a com o peso do corpo. — Mas, já que insiste em pensar o contrário, tudo bem. Só quero que você se faça uma pergunta: alguém já a fez sentir-se assim?

Os lábios de Fletcher beijaram os de Cilla com volúpia e violência, fazendo-a contorcer-se e arquear as costas. De prazer? Em protesto? Nem Cilla saberia dizer. Era como uma tormenta que despertava em seu íntimo. Uma tormenta de paixão e desejo. E, antes que pudesse fugir, Cilla viu-se presa em meio à tempestade.

"Não", dizia-lhe a voz do coração. Ninguém nunca a fizera sentir-se assim, Fletcher fora o único a despertar seu lado mais feminino, mais mulher. Porém, ainda que o desejo lhe latejasse nas veias, o bom senso lhe dizia que só a atração não era suficiente para uni-los.

Frustrado e furioso, ele tornou a beijá-la repetidas vezes. Ainda que só por uma noite, Fletcher lhe mostraria que em seus braços ela conheceria a verdadeira felicidade.

O gemido baixo e sensual que Cilla deu foi a resposta que ele esperava. Como as chamas da lareira ali na sala, o desejo os consumia. O carinho e a ternura que haviam compartilhado até aquele momento cedeu lugar a um sentimento muito mais forte, selvagem, quase animal.

Para Cilla, era uma experiência nova e totalmente avassaladora. De fato, naquele instante, não havia lugar para palavras ternas e meigas. A paixão que sentiam exigia uma satisfação imediata.

Depressa. Cilla soltou as mãos que ele prendia para puxar-lhe a camisa. — Toque-me. Ambos gemeram em uníssono no momento em que seus corpos se tocaram, livres das roupas. Mais. Num arroubo ousado, Cilla rolou por sobre Fletcher e beijou-lhe o peito com ardor.

Fletcher prendeu a respiração e segurou-lhe o rosto entre as mãos. Tinha urgência em possuí-la. Penetrá-la. Tê-la só para si.

Ágil, ela se movia sobre ele. O rosto alvo brilhava contra a luz da lareira. O corpo frágil e perfeito estremecia de prazer.

Então, por uns instantes, ela aprumou as costas, levou as mãos aos cabelos e sorriu de satisfação quando a primeira onda de tremor percorreu-lhe o corpo. Alucinada, clamava por Fletcher, que a penetrou, completando seu prazer.

Só ele possuía a chave de seu coração, só ele conhecia seus mistérios e a fazia vibrar. Eram feitos um para o outro.

Mas Cilla não queria amá-lo. Esticando os braços, ela lhe segurou as mãos com força e abriu os olhos. Fletcher a fitava de modo intenso com um brilho faiscante no olhar. Embora ela não falasse, ele lhe adivinhava os pensamentos, os receios. Então, suspirando de desespero e deslumbramento, ela voltou a curvar-se e o beijou.

Fletcher estava determinado a explorar-lhe os anseios e afastar-lhe os medos. Mantendo-se exatamente onde estava, enlaçou-a pela cintura e imprimiu um ritmo ainda mais violento à relação. Cilla arregalou os olhos, admirada, feliz. Ela cravou-lhe as unhas no peito e abafou um grito ao atingir o êxtase segundos antes de Fletcher.

 

Vestida num robe duas vezes maior do que ela e os pés calçados em grossas meias de lã, Cilla provou o ensopado. Fletcher sentou-se à sua frente, do outro lado da mesa, e também usava um robe e meias de lã. Para ela, aquele jantar era tão íntimo quanto um ato de amor.

Temendo que ele voltasse a tocar no assunto do casamento, Cilla partiu um pedaço de pão.

— E então? Gostou do ensopado?

— Ah! — Ela deu mais uma colherada no prato. — Está uma delícia. Estou admirada — confessou nervosa, bebendo um gole de vinho. — Pensei que um homem na sua posição preferisse ter uma cozinheira.

— Na minha posição?

— Isto é, se eu pudesse pagar uma empregada, não voltaria mais a entrar na cozinha.

Fletcher se divertia com o fato de Cilla julgá-lo um homem rico.

— Depois que nos casarmos, você pode contratar uma se quiser.

Ela pousou a colher com calma:

— Não vou me casar com você.

— Quer apostar?

— Não é um jogo.

— Claro que é. E dos mais divertidos.

Cilla suspirou, revoltada, e começou a brincar com a colher.

— Está se portando como um típico machista. Para vocês, tudo é brincadeira, tudo é motivo para uma aposta. — O riso dele só serviu para deixá-la ainda mais indignada. — Por que todo homem se julga irresistível aos olhos das mulheres? Vocês sentem uma estranha necessidade de nos proteger, de nos paparicar. É como se não pudéssemos ser felizes sem um homem ao nosso lado.

Ele pensou bem no que ouvira e respondeu com calma:

— Eu só disse que te amo e quero que case comigo.

— É a mesma coisa.

— De jeito nenhum.

Imperturbável, Fletcher continuou comendo.

— Bem, a verdade é que não quero casar com você, mas estou certa de que isso não faz diferença nenhuma. Nunca faz.

Ele lhe lançou um olhar breve de advertência.

— Já lhe disse para não me comparar a ele.

— Eu não estava falando só dele. Aliás, há anos que nem sequer penso em Paul. — Afastando o prato, Cilla levantou-se para buscar um cigarro. — Falava dos homens em geral. E se tiver vontade de compará-lo a quem quer que seja eu o farei.

Fletcher tornou a completar os copos com vinho.

— Quantos homens já a pediram em casamento?

— Dúzias. — Era um exagero, mas Cilla não se importava. — Mas consegui resistir aos demais.

— Então, quer dizer que não estava apaixonada.

— Nem estou apaixonada por você.

Sua voz soou falsa, forçada, e ela teve certeza de que ele percebeu a mentira.

Fletcher sabia da verdade e aquilo lhe doía no peito. Porém, soube manter-se calmo e continuou comendo.

— Você é louca por mim, Cilla, mas a teimosia não a deixa enxergar a realidade.

— Teimosia? Veja só quem fala! — Ela apagou o cigarro no cinzeiro. — Poupe seus argumentos, sim? Não vou me casar com você porque não quero me casar com ninguém. Muito menos com um policial rico.

— Você vai se casar comigo porque ambos sabemos que não pode ser feliz sem mim.

— Detesto essa sua arrogância! — disse Cilla bebendo o resto do vinho num só gole. — Só que já adquiri certa prática em me livrar de homens inconvenientes como você. Aliás, só conheci um pior do que você, Fletcher. Era um rapaz que conheci em Chicago. Só que ele me tratava como uma princesa me mandava cartões com poesias e buquês de flores. — E revirou os olhos. — Quanta idiotice! — exclamou, girando nos calcanhares. — Ele também achava que eu estava apaixonada e era teimosa demais para admiti-lo. Não parava de me perseguir em casa, na rádio, em toda parte. Chegou até a me enviar um anel de noivado.

— Ele lhe deu um anel?

Cilla deteve-se e o encarou franzindo os olhos.

—  Não me venha você também com essas bobagens, sim?

Mas Fletcher se manteve frio:

—Era um anel de brilhantes?

— Não sei, não mostrei para ninguém. Simplesmente o devolvi.

— Como era o nome dele?

Cilla abanou uma das mãos dando pouca atenção à pergunta:

— Isto não vem ao caso. O problema é que...

— Cilla, perguntei qual era o nome desse rapaz.

Ele levantou-se ao repetir a pergunta. Intrigada com aquela súbita mudança de comportamento, ela deu um passo para trás. Ele voltara a falar e a agir como um policial.

— Era John... McGill. Não, John McGillis, acho. Ouça, só toquei nesse assunto porque...

— Você não tinha nenhum colega em Chicago com esse nome.

— Não, — Aborrecida, ela voltou a sentar-se. — Fletcher, não tente desviar o assunto.

— Pedi-lhe que me contasse o nome de todos os rapazes com quem se envolveu.

— Mas eu não me envolvi com ele! John era apenas um rapazinho, desses que se apaixonam por uma porção de artistas. Cometi o erro de ser gentil, e ele misturou as coisas. Com o tempo consegui convencê-lo de que havia sido tudo um engano e pronto.

— Durante quanto tempo ele a seguiu?

— Uns três ou quatro meses.

— Três ou quatro meses. — Fletcher segurou-a pelo cotovelo e obrigou-a a levantar-se da mesa. — Ele a importunou durante todo esse tempo e você nunca me contou a respeito?

— Nunca me lembrei de contar. Fletcher conteve-se para não sacudi-la.

— Quero que me conte tudo o que lembra a respeito dele. Tudo o que esse rapaz disse, tudo o que fez.

—  Não posso me lembrar.

—  Sente-se e faça um esforço — Fletcher sugeriu, soltando-a.

Cilla compreendeu sua preocupação e obedeceu.

— Ele trabalhava como estoquista à noite num supermercado e sempre ouvia meu programa. Telefonava numa hora de folga e, depois de batermos um papo, eu tocava seu pedido. Um dia, fui fazer uma externa, não me lembro onde, e ele apareceu. Achei-o jovem e bonito, um rosto quase infantil. Eu lhe dei um autógrafo e depois disso ele começou a me enviar poemas na estação. Poemas melados, românticos, sem nada de sugestivo.

— Continue.

— Quando percebi que ele estava indo longe demais, tratei de recuar, John me convidou para jantar, mas eu declinei do convite. — Encabulada, ela suspirou: — Por dois dias, encontrei-o no estacionamento da estação à minha espera. Ele nunca se insinuou, nunca me tocou e eu não o temia. Não sei como John descobriu meu endereço e começou a aparecer no meu apartamento, deixando flores e bilhetes na porta. Eu tinha pena dele e acho que John confundiu meus sentimentos.

—  Ele nunca tentou entrar?

—  Não, nunca. Mas, com o tempo, ele foi ficando pior. Disse que me amava, que sempre me amaria e que havíamos sido feitos um para o outro. Então, começava a chorar no telefone toda vez que me telefonava, dizendo que ia se matar se não nos casássemos. Quando recebi a caixa com o anel, devolvi-o com uma carta bem cruel. Achei que era melhor esclarecer tudo de uma vez por todas. Isso foi poucas semanas antes de nos mudarmos para Denver, onde eu já tinha fechado contrato com a KHIP.

—  Desde então, nunca mais o viu?

—  Não. E não é John quem tem me telefonado, pois, se fosse, eu teria reconhecido a voz. Além do que, John nunca me fez ameaça alguma. Estava obcecado, mas não era uma pessoa violenta.

— Vou averiguar alguns detalhes dessa história — disse Fletcher, já de pé. — É melhor você ir dormir. Vamos voltar mais cedo.

Naquela noite, nem Fletcher nem Cilla conseguiam dormir. Mas não foram os únicos a passar horas em claro.

 

Ele acendeu as velas brancas novas que havia comprado aquela tarde e deitou-se na cama com a fotografia sobre o peito, junto das duas facas tatuadas no torso.

Com o passar das horas, o ódio e a revolta iam crescendo em seu íntimo. Não era a voz de Cilla que ouvia no rádio.

Ela havia fugido. Com aquele outro homem. Sabia que Cilla ia se entregar ao sujeito e não tinha esse direito. Ela pertencia a John. A John e a ele.

Ela era linda. Tinha olhos meigos, mas não o enganava. No fundo, era cruel e má. Merecia morrer.

Poderia matá-la da forma como aprendera: rápida e limpa. Contudo, isso não o deixaria satisfeito. Queria fazê-la sofrer. Queria ouvi-la implorar-lhe.

Quando estivesse morta, voltaria a se unir a John, lá no céu. Só assim seu irmão ficaria feliz. Ele e John.

 

O sistema de aquecimento da central estava com defeito e trabalhava sem parar. Fletcher, já sem paletó, revirava os fichários da polícia enquanto o serviço de manutenção lidava com o aparelho. Cansado e com calor, tirara também a camisa, ficando apenas com uma camiseta já bastante surrada, na qual se lia a inscrição "Departamento de Polícia — Denver". Momentos antes abrira uma das janelas do centro de conferências para que se formasse uma corrente de ar mais fresco.

Dois dos casos que lhe haviam sido designados já estavam quase encerrados e um outro, de extorsão, caminhava a passos lentos. Precisava preparar-se para se apresentar no fórum no final da semana. Ainda precisava arquivar uns relatórios, fazer uns telefonemas mas, naquele instante, sua atenção estava voltada para a pasta em que constava o nome "O'Roarke, Priscilla A".

Ignorando o suor que lhe escorria pela testa, releu a ficha de Jim Jackson, o locutor que cumpria o horário depois do de Cilla, na KHIP. A ficha o deixara intrigado.

Ela nunca mencionara que os dois já haviam trabalhado juntos antes, em Richmond. Tampouco o fato de Jackson ter sido despedido por beber no serviço. Várias vezes, ele se atrapalhara ao soltar as fitas e deixara a rádio praticamente fora do ar.

Jackson perdera a esposa, a casa e o posto privilegiado de diretor de programação e locutor do horário matinal na segunda maior estação de Richmond.

Após sua demissão, Cilla o substituíra como diretora de programação e, em menos de seis meses, a emissora tornou-se a número um em audiência. Jackson, por outro lado, fora preso por bebedeira e desordem.

Quando Althea entrou na sala de convenções trazendo duas latas geladas de refrigerante, Fletcher soltou a pasta sobre a mesa. Sem dizer uma palavra, ela sentou-se na ponta da mesa, entregou-lhe uma das latas e olhou para a pasta.

— A ficha dele é limpa, exceto pela prisão por bebedeira e desordem.

— Sabemos que há muitas vinganças nestes tipos de caso — Fletcher ponderou. — Jackson pode estar querendo revanche pelo fato de ela tê-lo substituído com louvor. — Ele tomou um gole do refrigerante. — Ele chegou à KHIP há apenas três meses, e o diretor da rádio de Rich-mond falou que Jackson ficou revoltado quando foi demitido. Chegou a fazer-lhe umas ameaças e culpou Cilla de tê-lo derrubado. Além disso, ainda há o problema da bebida.

— Quer chamá-lo para ser interrogado?

— Sim, quero.

— Tudo bem. Nesse caso, acho melhor fazermos duas intimações — sugeriu Althea pegando a ficha de Nick Peters. — Este rapaz me parece inofensivo mas, as aparências enganam. Ele não tem namorada, é jovem, bonito. — Ela tirou o blazer de linho azul-turquesa e o pendurou no encosto da cadeira. — Por coincidência, Deborah e ele frequentam algumas aulas juntos e, durante o fim de semana, ela me contou que Nick não se cansa de fazer-lhe perguntas sobre Cilla, querendo saber mais a seu respeito. Que tipo de flores ela gosta, qual sua cor preferida, coisas assim.

Fletcher viu a tirar do bolso uma latinha de balas e escolher uma amarela.

— Segundo Deborah, Nick ficou desapontado quando soube que Cilla é divorciada. O fato deve tê-la preocupado, pois ela o comentou comigo várias vezes. Aliás, Deborah é uma garota sensacional. Inteligente, simpática e adora a irmã. — Althea pegou um lápis, rolou-o sobre a mesa e o largou. — Ela acha que você é muito bom para Cilla, mas fico me perguntando se ela é boa para você...

Fletcher fitou-a, bastante sério.

— Sei me cuidar muito bem, parceira.

— Você está se envolvendo demais, Fletcher — ela comentou num tom mais baixo, embora a porta estivesse fechada. — Se o capitão soubesse que você está envolvido com umas das vítimas, iria adverti-lo. E com razão.

Fletcher afastou a cadeira da mesa e reparou na fisionomia de Althea. Um rosto tão familiar quanto o seu próprio.

— Isso não me impede de cumprir meu trabalho — disse, ocultando o ressentimento. — Se eu duvidasse de minha responsabilidade, seria o primeiro a pedir um afastamento do caso.

— Será mesmo? Ele franziu o cenho.

— Claro que sim. Minha maior preocupação é para com a segurança da vítima em questão. Se você quiser ir contar ao capitão, eu não me importo; está no seu direito. Mas vou cuidar de Cilla de qualquer maneira.

— Bem, é você quem vai acabar se dando mal — ela murmurou.

— O problema é meu.

Cansada de tentar fazê-lo entender a gravidade da questão, Althea não conteve mais a calma:

— Diabo, Fletcher, eu me importo com você! No começo era diferente, você estava apenas impressionado pela voz de Cilla. Mas, agora, já começou a falar até em casamento e sei que não está brincando. Cuidado, Fletcher, você vai arrumar problemas.

— Você e eu estamos encarregados de cuidar desse problema, Althea. Quanto ao resto, deixe por minha conta. Obrigado pelo conselho.

— Tudo bem. — Revoltada, ela abriu uma outra pasta: — Não achei nada de suspeito com relação a Bob Williams e seu único contato com Cilla é através da rádio. Ele é bem casado, frequenta a igreja e nas últimas duas semanas vem acompanhando a esposa nas aulas de parto sem dor.

— Também não há nada de errado com os locutores da manhã — completou Fletcher bebendo mais refrigerante.

— A KHIP é uma grande família.

— Ainda estou averiguando Harrison. Ele me parece um bom sujeito mas foi o responsável pela contratação de Cilla. Harrison a perseguiu muito tempo, ofereceu-lhe aumento e diversas outras vantagens no contrato até conseguir trazê-la para a KHIP.

Althea escolheu cuidadosamente uma bala vermelha.

— E o tal de McGillis?

— Estou aguardando um telefonema de Chicago. — Fletcher pegou ainda outra pasta. — Há o faxineiro, Billy Lomus. Ex-combatente no Vietnã. Me parece um sujeito solitário, nunca permanece num mesmo lugar mais do que um ano. Viveu algum tempo em Chicago antes de vir para cá. Não tem família nem amigos íntimos. Mora em Denver há quatro meses. É órfão desde os cinco anos e viveu em diversas instituições para menores carentes.

— Que vida dura, não?

— É. — Fletcher viu-a pender a cabeça e respeitou-lhe o silêncio. Ninguém jamais diria que Althea também tinha tido uma infância parecida com a de Billy. — Acho que não vamos conseguir nada dentro da rádio.

— Tem razão. Na minha opinião, deveríamos apertar o cerco em torno desse tal McGillis. — Ela ergueu o rosto sereno e manteve a voz controlada. Só quem a conhecesse muito bem saberia que ainda estava zangada. — Prefere começar por Jackson ou Peters?

— Jackson.

— Ótimo. Vou começar com calma e apenas pedir-lhe que venha até a central.

— Obrigado, Althea... — ele chamou antes que ela se levantasse — tente entender. Não posso anular meus sentimentos, tampouco deixar de cumprir meu dever.

Ela suspirou:

— Então, tome muito cuidado, parceiro.

Era o que pretendia fazer. E cuidaria de Cilla, também.

Desde que lhe revelara seu amor, ela vinha tentando esquivar-se, temendo a si própria. Quanto mais o amava e se envolvia, mas se retraía com medo de perder o controle da situação.

Estranho... Nunca pensara que precisasse ouvi-la declarar seu amor, no entanto, em sonhos, ouvia-a dizer-lhe que o amava e mal podia esperar para escutá-la de própria voz.

Um sorriso, um toque, um gemido. Com Cilla isso não era o suficiente. Queria ouvir aquelas três palavras mágicas que selariam uma promessa, um compromisso. Uma frase simples capaz de transformar a vida das pessoas, emprestando-lhes maior colorido.

Mas não seria fácil para ela dizer que o amava. Primeiro, teria de vencer seus medos, sua insegurança, as barreiras de autodefesa atrás das quais se escondia. Mas, ultrapassados os obstáculos, a declaração viria do fundo da alma, com toda sinceridade. Fletcher aguardava ansiosamente por essa confissão.

No momento, contudo, tinha de se empenhar ao máximo para conseguir resolver o caso o mais breve possível. Só então poderia começar a pensar no futuro.

—  Fletcher? — Era Althea que surgia na porta. — Já entrei era contato com Jackson. Ele está a caminho.

—  Ótimo. Talvez consigamos alcançar Peters antes que ele entre no serviço. Quero que... — O telefone tocou, interrompendo-o. — Fletcher falando. — Ele fez sinal para que Althea entrasse. — Sim. Eu gostaria que vocês averiguassem. — E, tapando o bocal, disse para a parceira: — É da polícia de Chicago. Exato — prosseguiu, falando com o colega do outro lado da linha. —

John McGillis. — Fletcher pegou um lápis e começou a fazer umas anotações. De repente, deteve-se. — Quando? — E praguejou. — Deixou algum parente? Escreveu um bilhete ou coisa parecida? Por favor, me transmita pelo fax, está bem? Certo. — No bloco, escreveu em letras de forma bem claras: SUICÍDIO. Calada, Althea sentou-se na ponta da mesa.

— Tudo o que puder obter. Tem certeza de que ele não deixou um irmão? Não. Obrigado, Sargento. — Fletcher desligou e bateu com o lápis no bloco: — Desgraçado!

Tem certeza de que é o mesmo McGillis?

— Absoluta. Cilla me passou todas as informações que tinha a respeito dele e o descreveu fisicamente. É o mesmo sujeito. Ele se matou há aproximadamente cinco meses. Cortou os pulsos com uma faca de caça.

— Parece que as peças do quebra-cabeça começam a se encaixar, Fletcher. — Althea curvou-se para ler as anotações. — Você falou que McGillis estava obcecado por Gilla e a pediu em casamento, garantindo que se mataria se ela recusasse. O sujeito que telefona a culpa pela morte do irmão.

— McGillis era filho único e foi criado pela mãe.

— Irmão pode ser um termo carinhoso. Talvez esteja se referindo a um amigo íntimo.

— Pode ser... — Fletcher sabia que o comentário era pertinente e se preocupava com a reação de Cilla. — A polícia de Chicago vai cooperar conosco enviando a ficha do rapaz, mas acho que vale a pena dar uma chegada até lá. Podemos obter maiores detalhes com a mãe do rapaz.

— Hum hum. Você vai contar para Cilla?

— Sim, acho que sim. Antes, porém, vamos ver se conseguimos algum dado novo com Jackson e Peters.

Do outro lado da cidade, Cilla saiu do banho e foi correndo atender ao telefone. Torcia para que fosse Fletcher, dizendo-lhe que encontrara John McGillis feliz da vida em Chicago com seu emprego no supermercado.

Ansiosa, apanhou o fone afastando os cabelos molhados que lhe caíam no rosto.    .

_ Alô?

—  Você dormiu com ele? Deixou que a tocasse com aquelas mãos imundas?

Cilla sentiu os braços molhados começarem a tremer.

— O que você quer?

— Fez para ele as mesmas promessas que fez para meu irmão? Por acaso ele sabe que você não passa de uma assassina?

— Não!Não sei por que você não me...

— Ele também vai morrer.

O sangue gelou-lhe nas veias, e o medo estreitou-lhe a garganta.

— Não! Fletcher não tem nada a ver com isso. E... É entre mim e você, como sempre faz questão de dizer.

— Mas ele agora já se envolveu. Fez sua opção, da mesma forma que você, quando matou meu irmão. Depois de acabar com ele, cuidarei de você. Ainda se lembra de tudo o que vou lhe fazer? Lembra?

— Não precisa machucar Fletcher. Por favor, não! Farei o que você quiser, mas não o machuque.

— Vai, sim — ele garantiu dando uma gargalhada horripilante. — Vai fazer tudo o que eu mandar.

Ele desligou, porém Cilla continuou implorando-lhe que poupasse a vida de Fletcher. Por fim, aos prantos, bateu o telefone e foi correndo para o quarto vestir-se.

Precisava ir ao encontro de Fletcher, vê-lo cara a cara para ter certeza de que estava bem e avisá-lo do perigo que corria. Não suportaria perder o homem que amava.

Com os cabelos ainda molhados e despenteados, atravessou depressa o corredor, abriu a porta e quase tropeçou em Nick Peters.

— Oh, meu Deus — exclamou fechando uma das mãos sobre o peito. — Nick!

— M-Me   perdoe.   Não pretendia assustá-la — desculpou-se o rapaz, ajeitando os óculos sobre o nariz.

— Preciso sair — ela disse, apressada, procurando as chaves na bolsa. — Acabei de receber outro telefonema e preciso avisar Fletcher.

— Ei, espere! — pediu Nick ao pegar as chaves que ela derrubara. — Você não está em condições de dirigir.

— Preciso avisar Fletcher! Esse sujeito vai matá-lo!

— Você está realmente apaixonada por ele, não é? — indagou Nick, sem disfarçar seu desgosto. — Não se preocupe. Fletcher trabalha na polícia e sabe se cuidar.

— Você não entende!

— Entendo, sim. Você foi passar o fim de semana com ele!

O tom de acusação do rapaz assustou-a, e Cilla o fitou, dando um passo para trás. Então, olhou para a radiopatrulha estacionada em frente à casa e pensou em... Não. Era bobagem ter medo de Nick.

—  Nick, me desculpe, mas eu não tenho tempo para conversar. Mais tarde nós nos vemos na rádio, está bem?

— Pedi demissão esta manhã.

— Mas, por quê? Você vai indo tão bem, tem um futuro brilhante na KHIP.

— Você nem sabe — ele retrucou com amargura. — E nem se importa comigo.

— Me importo, sim.

Quando Cilla tocou-lhe o braço, ele se afastou depressa.

— Você me deixa fazer papel de bobo.

— Oh, meu Deus, de novo? Por favor, Nick, não fale assim.

— Eu não podia sequer me aproximar. Então, de repente, ele chega e acaba tudo. Fui chamado para depor na polícia — contou com lábios trêmulos. — Pensam que sou em quem está querendo matá-la.

—  Deve ter sido engano...

—  Como pôde acreditar que eu quisesse machucá-la? — ele gritou, indignado. E devolveu-lhe as chaves. — Só vim aqui para lhe dizer que pedi demissão, assim não tem mais que se preocupar comigo.

— Nick, por favor, espere!

Mas ele já se afastava em direção ao carro, sem olhar para trás.

Seus joelhos tremiam tanto que Cilla viu-se obrigada a sentar-se na sala por alguns segundos antes de pegar o carro. Como pudera ser tão desatenta? Nick estava com o ego ferido e, agora, perdera sua amizade para sempre. Quanto tempo ainda teria de esperar para que sua vida voltasse ao normal?

Cilla detestava delegacias. Sempre detestara. Ansiosa, mexia no crachá de plástico que recebera na entrada enquanto cruzava um corredor limpíssimo, cheirando a desinfetante e café.

Os telefones não paravam de tocar. Havia diversas vozes ao redor; ora mais alta, ora mais baixa. Cilla entrou por uma porta à direita, de onde vinha o barulho maior, e olhou para a sala.

Era bem diferente da sala bagunçada e confusa onde sua mãe trabalhava. Ali, havia mais espaço, mais mesas e diversos terminais de computador. Os dedos ágeis das secretárias voavam nos teclados de plástico.

Num banco próximo, uma mulher carregava um bebê no colo. A criança chorava muito, e um policial tentava distraí-la balançando as algemas no ar. Do outro lado da sala, uma jovem, ainda adolescente, fazia um relato comovido a uma policial à paisana.

Aquelas imagens lhe trouxeram à mente lembranças desagradáveis da infância quando havia dias em que sua mãe, sem poder contar com a ajuda de uma babá, a levava consigo para a delegacia. Cilla passava horas sentada num canto vendo o movimento constante. Eram horas solitárias quando se sentia absolutamente abandonada.

Então, viu Fletcher saindo por uma outra porta, a camiseta molhada de suor. Jackson vinha logo atrás, com a fisionomia nervosa, seguido por Althea.

Jackson a viu primeiro e chegou a dar um passo incerto em sua direção. Porém, dando de ombros, deteve-se. Cilla, no entanto, foi ao seu encontro e segurou-lhe as mãos.

— Você está bem?

— Estou. — Jackson deu de ombros novamente e apertou-lhe as mãos. — Me chamaram para um interrogatório, é só.

— Ouça, se quiser conversar, espere por mim e podemos bater um papo.

— Não é preciso, O’Roarke. Há certos erros que a gente comete no passado e que nos acompanham para sempre.

— Oh, Jim.

— Não é nada de grave, fique tranqüila. Nos vemos esta noite — ele garantiu sorrindo.

— Claro.

— Agradecemos sua colaboração — Althea interveio.

— Farei o que for possível para ajudar Cilla — ele garantiu. — Somos muito amigos.

Jim despediu-se e partiu.

— Não era preciso tê-lo chamado. Jim é um excelente amigo, mas, bem... Preciso falar com vocês.

— Venha — disse Fletcher encaminhando-a para a sala de conferências. — Aqui é um pouco mais quieto.

— Quer beber algo gelado? — Althea ofereceu. — Eles já devem ter consertado o aquecimento, mas ainda está fazendo muito calor aqui dentro.

— Não, obrigada. Não vou demorar. — Os três se sentaram ao redor da mesa, e Cilla escolheu bem as palavras: — Posso saber por que Jackson estava aqui?

— Vocês foram colegas de trabalho em Richmond. Ele bebia demais e acabou sendo despedido. Na época, o fato o deixou bastante contrariado.

—  Não é verdade.

— Por que não nos contou a esse respeito, Cilla?

— Para ser franca, isso nem me ocorreu. Já foi há bastante tempo e Jim mudou muito nestes últimos anos. Ele deve ter lhes contado que freqüentou uma associação para alcoólatras por mais de três anos e conseguiu se recuperar.

— Foi você quem conseguiu este emprego para ele na KHIP — Fletcher afirmou.

— Não sou responsável por sua contratação, mas falei muito bem a respeito dele para a diretoria. Jackson é um bom sujeito, incapaz de fazer mal a uma mosca.

— Mas quando está bêbado, ameaça mulheres, faz quebradeiras em bares e dirige feito um louco.

— Isso foi coisa do passado. Ele hoje é outra pessoa.

— Na verdade, não foi para falar sobre Jackson que vim aqui hoje. Recebi outro telefonema, há alguns minutos, quando estava em casa.

— Já sabemos. O pessoal da escuta nos passou a informação — explicou Althea.

— Então, já devem estar a par do que ele falou. Oh, Fletcher, ele quer matá-lo. Sabe que fomos viajar juntos e quer liquidá-lo.

— O telefonema foi dado de outro telefone público a dois quarteirões de sua casa.

— Fletcher, será que você não me ouviu? — ela indagou, nervosíssima, dando um murro na mesa. Althea lançou-lhe um olhar gélido de reprovação. — Ele vai tentar matá-lo, também!

Consciente de que ela estava mais carente dos seus serviços do que de seus carinhos, Fletcher conteve o ímpeto de tocar-lhe o braço e acalmá-la.

— Já que a estou protegendo, ele teria de me matar para alcançá-la. Não mudou nada.

— Mudou tudo! Ele não se importa se você trabalha na polícia ou não. Só se importa com o fato de estarmos juntos! Quero que você peça afastamento do caso, Fletcher. Não quero que volte a se aproximar de mim até que esteja tudo resolvido. Fletcher amassou um copo plástico e o jogou no lixo:

— Não seja ridícula.

— Não estou sendo ridícula, apenas prática. — Cilla voltou-se para Althea com um olhar de súplica: — Por favor, fale com ele. Quem sabe Fletcher a ouça.

— Sinto muito, mas acho que Fletcher está com a razão. Nossa missão é protegê-la e desvendar seu caso.

Cilla ficou desesperada:

— Se é assim, falarei com o capitão pessoalmente.

—  Ele já soube do telefonema.

Mas Cilla não se deteve e levantou da cadeira:

— Mas não sabe que estamos dormindo juntos.

— Cilla, sente-se. — Ela resistiu e Fletcher repetiu: — Eu disse sente-se. — Temerosa de um escândalo, ela obedeceu. — Pode ir falar com o capitão e exigir o meu afastamento. Faça o que quiser, mas se ele me tirar do caso, pedirei demissão.

Ela ficou pasma.

— Não acredito.

— Experimente e verá.

— Ele permanecia calmo, extremamente calmo, e determinado. No fundo, Cilla sabia que não se tratava de uma ameaça vazia com o intuito de intimidá-la. Era uma promessa.

— Fletcher, entenda: como acha que eu me sentina se lhe acontecesse algo?

— Mal. Mas, sendo assim, você deve saber que tenho meus motivos para querer ficar a seu lado a qualquer custo.

— Não quero que lhe aconteça o mesmo que houve com minha mãe — ela alegou, já quase desesperada.

— Sua mãe não estava tão preparada quanto estou. Ele não vai me pegar desprevenido. Cilla, eu a amo e logo você vai ter de aceitar essa verdade, vai ter de conviver com ela. Até lá, limite-se a confiar em mim. É tudo o que lhe peço.

Vencida, ela soltou as mãos sobre o colo.

— Bem, não tenho mais nada a dizer.

— Tem, sim. — Ele puxou uma pasta da mesa ao lado. Cilla estava muito abalada e talvez não fosse a melhor hora para falarem no assunto, porém, não podiam perder mais tempo: — Conte-nos mais a respeito de John McGillis.

Sua cabeça latejava terrivelmente, e Cilla esfregou as mãos sobre as têmporas.

— Já disse tudo o que sabia. Qual o problema?

— Ele morreu.

Cilla baixou os braços vagarosamente.

—  Morreu? Tem certeza? Ele era tão jovem.

— Temos certeza de que se trata da mesma pessoa. John McGillis se suicidou há cinco meses — acrescentou, temendo pela reação dela.

Por uns instantes ela limitou-se a arregalar os olhos. Pouco depois, seu rosto foi ficando cada vez mais pálido até perder a cor.

— Oh, meu Deus, não! Não pode ser! Ele ameaçou se matar, mas eu não achei que...

— John era um rapaz instável emocionalmente, Cilla, e já tinha passado por diversos tratamentos psiquiátricos. Tinha problemas com a mãe, com os colegas de escola, de serviço. Segundo a polícia de Chicago, foi a terceira tentativa de suicídio.

— John era tão tímido e queria tanto que eu... — Cilla deixou a frase incompleta e fechou os olhos. — Ele se matou depois que deixei Chicago para vir para cá, exatamente como ameaçara.

— John tinha distúrbios muito sérios. Um ano antes de conhecer você, ele se envolveu com outra garota e quando ela terminou o namoro, tomou um vidro inteiro de barbitúricos.

— Fui muito cruel com ele. Na época, achei que era a melhor forma de tratá-lo.

— Fez bem. Agora, quero que nos conte tudo o que lembra a respeito dele.

Cilla respirou fundo e cruzou as mãos sobre a mesa. Então, começou seu relato com muita calma:

— Ele estava sempre sozinho. Como já disse, John me telefonava na rádio e só vim a conhecê-lo mais tarde. Depois disso, só falava que me amava e queria casar comigo. Costumava me mandar bilhetes e flores quase todos os dias, mas isso é muito comum quando um fã se apaixona pelo artista. Porém, com o tempo, fui percebendo que ele... Bem, que ele não era muito normal.

Fletcher anotava tudo num bloquinho.

— Os bilhetes foram se tornando mais pessoais, apaixonados. A única vez em que ele se alterou foi quando, um dia, me mostrou a tatuagem que tinha no peito: duas facas em forma de "X". Achei-a ridícula e disse-lhe que não combinava com um rapaz tão sensível. Eu estava cansada, tinha trabalhado muitas horas e não estava com disposição para conversar. Ele, porém, ficou aborrecido com a minha crítica. Chegou a ficar bastante bravo. Disse que se era bom para o irmão, era bom para ele, também.

— Irmão? — repetiu Fletcher.

— É, foi o que disse.

— Mas John não tinha irmãos.

— Tinha, sim. Ele o mencionou umas duas vezes, em conversas.

— Chegou a dizer como se chamava?

— Não — respondeu Cilla, procurando puxar pela memória. — Não — repetiu mais segura. — Só contou que o irmão morava na Califórnia e que não o via há dois meses. Queria que eu o conhecesse, ou coisa parecida.

— John não tinha irmão — insistiu Althea ao abrir a posta para ler a primeira página. — Era filho único.

— Então, foi invenção dele — disse Cilla.

— Não — Fletcher concluiu, voltando-se para as duas. — O sujeito que estamos procurando é real e bastante perigoso. Não se trata de imaginação.

 

Eram tantas coisas em que pensar que a cabeça de Cilla latejava. O telefonema, a visita de Nick, as lembranças do passado, o suicídio de John McGillis.

Pela primeira vez na vida, ela teve vontade de trancar-se no quarto e dormir vinte e quatro horas seguidas para fugir dos problemas e esquecer os medos.

Ou, talvez, fosse exatamente o contrário. Mal via a hora de retomar o controle de sua própria vida, E, tão logo o retomasse, jamais voltaria a perdê-lo, prometia a si mesma.

Enquanto entrava em casa acompanhada por Fletcher não lhe ocorria nada que pudesse lhe dizer. Não estava disposta a discutir, ainda mais sabendo que seus argumentos seriam inúteis. Ele não se afastaria do caso e não acreditaria se ela lhe dissesse que aquele relacionamento não tinha futuro.

Indo direto à cozinha, abriu um dos armários e pegou três aspirinas. Fletcher viu-a encher um copo de água para engoli-las; seus movimentos eram automáticos e trêmulos. Enquanto lavava o copo, Cilla olhou pela janela dos fundos, observando o canteiro que logo estaria florido.

Seu desejo era que em pouco tempo os primeiros botões amarelos começassem a surgir para alegrar a casa. Era ali que gostava de passar suas horas vagas, revolvendo a terra e replantando as mudas.

— Você já comeu? — Fletcher indagou.

— Não me lembro. — Cilla cruzou os braços e olhou para os galhos das árvores. Os primeiros brotos verdes já começavam a despontar. Dentro de algumas semanas as folhas começariam a se desenvolver, proporcionando uma sombra agradável.

— Mas não estou com fome. Se quiser, deve ter algo na geladeira.

— Por que não dorme um pouco? — ele sugeriu massageando-lhe os ombros tensos.

— Eu não conseguiria dormir ainda. — Suspirando, Cilla pousa a mão direita sobre a dele. — Dentro de poucas semanas terei de cortar a grama do jardim e acho que vai ser divertido. Nunca tive um gramado para aparar.

— Posso vir observá-la?

Ela achou graça, como ele já esperava.

— Gosto daqui. Não apenas da casa, embora fique muito feliz em dizer que a possuo. Gosto deste lugar. É a primeira vez que me sinto em casa desde que deixei a Geórgia. Há tempos eu não tinha esta sensação.

— Às vezes temos a sorte de encontrar o que queremos sem ter de procurar.

Ele falava sobre o amor, ela percebeu, mas quis desviar o assunto.

— Em dias de sol, o céu fica lindo, muito azul, e os prédios parecem que foram pintados, de tão nítidos. Mesmo se estando no centro da cidade, é possível enxergar-se as montanhas.

— Você agora também faz parte da paisagem.

— Nunca acreditei que as coisas pudessem durar, mas já começava a mudar meu ponto de vista antes disso tudo acontecer. Agora, creio que não posso me sentir à vontade em parte alguma enquanto não deixar de sentir medo. — Ela ergueu os braços e segurou-lhe o rosto entre as duas mãos, estudando-o como se o visse pela primeira vez. — Fletcher... gosto de você como jamais gostei de outra pessoa na vida, exceto Deborah e, no entanto, isso não é suficiente.

— Claro que é — ele lhe assegurou tocando-lhe os lábios de leve. — Não é preciso mais nada.

— Não, você não me entende. Não precisa concordar com o que digo, mas aceite meu modo de pensar.

— Ouça: depois que tudo estiver terminado, teremos uma longa conversa sobre o que devemos ou não aceitar, está bem?

— Quando tudo isso estiver terminado, você poderá estar morto — ela argumentou e apertou-lhe as mãos com força.

— Você quer mesmo casar comigo?

— Claro que quero.

— Se eu aceitasse seu pedido, você largaria o caso e ficaria nas montanhas até que tudo terminasse?

Ele tentou conter a revolta e respondeu com seriedade:

— Não sei se sabe, mas é crime chantagear um policial.

— Estou falando sério.

— Sim, eu sei.

— Eu caso com você e prometo fazê-lo feliz, porém lhe peço este favor.

Fletcher deu um passo para trás.

— Sinto muito, mas eu não posso concordar.

— Droga! Seja razoável!

Ele enfiou as mãos nos bolsos com força e desabafou:

— Você acha que estamos tratando de uma barganha? Um acordo comercial? Diabo estamos falando em casamento! Trata-se de um compromisso sentimental, espiritual. Se eu abrir mão do que quero agora, logo irão surgir outras cobranças do tipo "largue seu emprego seu concordo em termos um bebê".

Surpresa e envergonhada, Cilla arregalou os olhos e ergueu as mãos:

— Me desculpe, me desculpe. Não foi isso o que eu quis dizer. É que não consigo esquecer a ameaça que ele me fez hoje por telefone e não quero imaginar o que seria de mim se algo lhe acontecesse. — E fechou os olhos: — Seria melhor morrer.

— Mas eu estou aqui — afirmou Fletcher voltando a abraçá-la —, e não pretendo me afastar de você. Nada de mau acontecerá a nenhum de nós.

Cilla puxou-o contra si e apoiou o rosto em seu peito.

— Me perdoe, sim? Não fique bravo comigo, mas eu estou com muito medo.

— Acalme-se. Tudo vai acabar bem.

— Vamos subir — ela pediu, emocionada. — Venha para a cama comigo.

De mãos dadas eles cruzaram o corredor. Entrando no quarto, Cilla fechou a porta e trancou-a num gesto quase simbólico que materializava seu desejo de fugir do resto do mundo.

O sol se infiltrava por entre a persiana, mas Cilla não se preocupou em fechá-la. Ali, não haveria segredos entre eles. Fitando-o de modo direto e intenso, Cilla começou a desabotoar a blusa.

Há até poucos dias, não seria capaz de tal gesto, reconheceu, temendo estar agindo da forma errada, expondo-se demais, oferecendo-se. Mas Fletcher a fizera compreender que a entrega tinha um significado maravilhoso para dois amantes.

Ambos se despiram sem, no entanto, se tocarem. Cilla queria observá-lo antes, memorizando os contornos daquele corpo que lhe proporcionava tanto prazer, tantas descobertas.

O sol produzia reflexos dourados nos cabelos loiros de Fletcher, e os olhos, muito verdes, brilhavam de modo especial ao percorrerem as curvas de Cilla que ainda se admirava com a beleza de seus músculos bem desenvolvidos, a pele bronzeada, o peito largo.

Será que ele fazia idéia do quanto era excitante? Ele cogitava. Cilla estava adorável ali de pé, no centro do quarto, as roupas caídas a seus pés, os cabelos soltos.

Ela estendeu os braços e foi ao seu encontro com um sorriso sedutor nos lábios, mas, ainda assim, Fletcher manteve-se imóvel, aguardando. Então, Cilla murmurou seu nome baixinho e, aproximando-se, o beijou.

No seu quarto, na sua cama, na sua casa, pensava Cilla. Ali estava o homem que ela amava, pronto para possuí-la mais uma vez. A força de seus braços, a ternura de suas mãos, as batidas aceleradas do coração... Comovida, Cilla sentiu os olhos rasos d'água e aprofundou o beijo.

Fletcher percebeu a mudança e abraçou-a com mais força, excitadíssimo. Naquela tarde, o amor se revestiria de uma atmosfera mais calma, mais romântica, sem a paixão urgente das outras vezes. Mas, nem por isso, menos excitante. Sentindo-a absolutamente entregue em seus braços, Fletcher deitou-a no centro da cama.

Ele a beijava com tanto carinho, tocava-a com verdadeira veneração, como se tivesse uma peça de cristal nas mãos. Agora que Cilla já sabia onde terminava aquela jornada, ansiava por começá-la.

Nada de pensamentos funestos ou medos infundados. Como flores prestes a desabrochar, Cilla queria celebrar o simples fato de estar viva e ser capaz de amar sem restrições.

Fletcher excitou-a aos poucos, lentamente, até vê-la arder de desejo. Cilla, já mais solta, retribuía os carinhos com liberdade, sem constrangimento e lhe murmurava promessas de amor que jurava cumprir.

Corpos unidos, mentes e corações na mesma sintonia, ambos se embrenharam pela estrada colorida que os conduzia ao paraíso.

 

A cabine lhe parecia um mundo estranho e desconhecido. Cilla olhou para a mesa de controle como se nunca a tivesse visto. O estúdio, que já fora seu lugar preferido, naquela noite tinha uma atmosfera hostil que a deixava tensa e ansiosa pelo término do programa.

Naquela tarde, em sua casa, Fletcher mencionara uma viagem que faria a Chicago na manhã seguinte. Cilla pretendia encorajá-lo a ir, pois ficaria mais tranqüila sabendo que, pelo menos por algumas horas, Fletcher estaria a salvo.

A notícia do suicídio de John McGíllis a deixara chocada, porém, não se culpava pelo fato. Fletcher lhe provara que o rapaz sofria mesmo de sérias perturbações mentais. Por outro lado, achava um desperdício a morte de um rapaz tão jovem, que ainda teria muito que viver.

A polícia se encarregaria de protegê-la, pensou ao tocar o sucesso seguinte. A polícia e ela mesma. O problema era saber quem protegeria Fletcher, já que ele se recusava a se afastar do caso.

—  Você está com sono? — ele perguntou, sentado a seu lado.

—  Não, apenas tensa.

Já era quase meia-noite, hora dos pedidos telefônicos. Como sempre, eles estavam sozinhos no prédio, cujas portas permaneciam trancadas.

— Calma, falta pouco tempo para terminar. Ouça, por que não vem para a minha casa esta noite? Vou lhe mostrar minha coleção de discos dos Muddy Waters.

— De quem? — ela indagou, fazendo-se de boba, só para provocá-lo.

— Ora, vamos. Você sabe de quem estou falando. Toda vez que Fletcher lhe sorria, seus medos se acalmavam, e o mundo lhe parecia um lugar melhor.

— Está bem, quero conhecer esse tal conjunto. Mas com uma condição.

— Qual?

— Você vai ter de responder a três perguntas.

— Diga.

— Espere um pouco. — Ela soltou outro disco, fez uma breve introdução e folheou uns papéis. — Pronto. Você tem três minutos e dez segundos. Primeira: qual foi o primeiro conjunto inglês a fazer uma turnê pelos Estados Unidos?

— Ah, você não me pega! Foram os Dave Clark Five. Depois, vieram os Beatles.

— Ora, nada mau para um amador. Segunda: quem foi o último a tocar no festival de Woodstock?

— Jimi Hendrix. Assim está muito fácil.

— Então, aqui vai a terceira: em que ano foi lançado That'11 Be The Day, do conjunto Buddy Holly and the Crickets?

— Puxa, essa é antiga mesmo.

— Você está procurando ganhar tempo. Responda logo.

— Foi em 1956.

— Você disse 56?

— Exato.

—  Que pena, errou por um. Foi em 1957. Você vai ter de vir à minha casa para ouvirmos uma retrospectiva dos Rolling Stones — Cilla alegou, bocejando.

— Se você conseguir ficar acordada até lá... — Fletcher ficava contente ao vê-la mais descontraída. — Quer um café?

— Puxa, se quero.

— Vou buscá-lo e volto já.                   

O prédio estava vazio, pensou Fletcher. Desde que Nick Peters pedira demissão não havia mais ninguém para preparar o último café da noite. Consultando o relógio do corredor, reconheceu que ele também mal via a hora de terminar o programa. Queria estar de volta à cabine antes que os telefones começassem a piscar.

Entre um intervalo e outro do programa, ofereceu-lhe uma rosquinha bem doce, certo de que ela precisaria de uma dose extra de energia para terminar o programa.

Antes de ir até a copa, Fletcher foi até a entrada do prédio verificar as portas. As trancas estavam em ordem, e o alarme, ligado. Seu carro era o único no estacionamento. Satisfeito, verificou com o mesmo cuidado as portas do fundo para só então ir à copa.

Tinha certeza de que, agora, seria uma questão de dias até que conseguissem prender o responsável pelas ameaças. Seria ótimo poder ver Cilla livre daquelas olheiras profundas, senti-la mais descontraída e alegre, como costumava ser.

Restaria apenas aquela energia saudável que fazia parte de sua personalidade: a vivacidade que as pessoas tanto lhe admiravam.

Enquanto acrescentava mais uma colher de pó de café à cafeteira elétrica, Fletcher ouvia a voz de Cilla pelos alto-falantes, anunciando outra canção.

Uma voz mágica. Jamais pensara que Cilla fosse tão diferente da imagem que criara ao ouvi-la pelo rádio; jamais imaginara que chegasse a amá-la com tanta intensidade.

A música era I Love Rock and Roll, com Joan Jett, e Fletcher reconheceu que, decididamente, aquele devia ser o tema musical de Cilla O’Roarke. Embora o som estivesse baixo, o ritmo frenético era contagiante.

Uma semana de férias nas montanhas lhe faria bem, concluiu Fletcher. Nada de problemas ou medos. Por uns dias, ficariam reclusos num pequeno ninho de amor.

Apreciando o aroma do café que começava a pingar, esperou poder ir a Chicago o quanto antes para voltar com um máximo de informações sobre o tal McGillis.

Sobressaltado com um ruído qualquer vindo do corredor, Fletcher girou nos calcanhares. Um sussurro. O estalo de uma madeira. Automaticamente seus dedos puxaram o revólver do coldre. De arma em punho, colou-se à parede lateral e foi até a porta verificar o que se passava ali fora.

"Acho que estou imaginando coisas", disse a si mesmo ao ver apenas o corredor vazio, iluminado pelas luzes de segurança. O instinto, porém, o aconselhava a manter a arma em punho e, no exato instante em que deu o segundo passo para fora da copa, as luzes se apagaram.

Praguejando ruidosamente, ergueu a arma por uma questão de segurança e moveu-se com rapidez. Nos alto-falantes, a música romântica dos anos 60 continuou tocando. Ao fundo, Fletcher pôde ver o reflexo das luzes da cabine e, mantendo as costas rentes à parede do corredor, rumou para lá o mais rápido possível.

Porém, ao fazer a última curva do corredor antes da cabine, ouviu um ruído vindo de trás. Virando-se, em alerta, viu a porta da sala de despejo abrir-se, mas não teve chance de ver a faca.

 

Cilla consultou o relógio da cabine e perguntou-se por que Fletcher estava demorando tanto para voltar:

— Este foi mais um sucesso de Joan Jett and the Blackhearts para vocês. São exatamente onze horas e cinquenta minutos em Denver e a temperatura está na marca dos treze graus. Não se esqueça de que nosso colega Wild Bob estará fazendo uma externa especial diretamente do Brown Palace Hotel no dia dezessete deste mês. Trata-se de um jantar em benefício dos menores abandonados de Denver e os convites continuam à venda. O evento começará a partir das sete horas da noite e não tem horário certo para terminar. Wild Bob promete que a noite será inesquecível. — Cilla preparou o próximo disco a ser tocado e anunciou: — Aqui fala Cilla O’Roarke direto da KHIP, rádio Yankee. Após esta música, teremos um intervalo com as notícias e voltamos em seguida com os pedidos telefônicos.

Desligando os microfones, girou os ombros procurando relaxá-los e tirou os fones de ouvido. Enquanto cantarolava o sucesso, consultou o relógio que marcava os minutos transcorridos. Satisfeita com o seguimento da programação, levantou-se a fim de se preparar para o bloco seguinte.

Foi então que viu o corredor às escuras, através do vidro da porta. A princípio, ficou pasma, olhando para a escuridão, mas, aos poucos, foi ficando pálida, trêmula, apavorada. Se as luzes de segurança estavam apagadas, o alarme também devia ter sido desativado.

Ele estava ali. Gotas de suor começaram a brotar de sua testa e Cilla agarrou-se ao espaldar da cadeira. Aquela noite não haveria nenhum telefonema anônimo, nenhuma ameaça porque ele estava ali, dentro do prédio, a poucos metros da cabine.

De repente veio-lhe uma vontade imensa de gritar e sair correndo, mas o pânico a paralisou.

Ele tinha ido à procura de Fletcher, também!

Impelida pelo desespero, Cilla saiu correndo.

— Fletcher! — gritou, tropeçando na escuridão. Contudo, calou-se ao ver um vulto caminhar em sua direção. Embora fosse apenas uma sombra disforme movendo-se no escuro, Cilla teve certeza de que era o assassino. Agarrando-se à parede, deu um passo para trás. — Onde está Fletcher? O que você fez com ele?

E deu outro passo. As luzes da cabine iluminavam fracamente o lugar onde estava. Cilla ia começar a implorar-lhe quando suspirou aliviada.

— Ah, é você? Não sabia que estava aqui; pensei que todos tivessem ido embora.

— Todos foram embora — ele respondeu e, aproximando-se, ficou sob o facho de luz que vinha da cabine, com um sorriso mórbido nos lábios. — Estamos sós.

Cilla quase desmaiou de pavor ao vê-lo segurar uma faca de caça já manchada de sangue.

— Fletcher...

— Ele não pode mais ajudá-la. Ninguém pode. Esperei muito tempo para ter uma chance de ficar sozinho com você. Sua hora chegou.

— Por quê? — Cilla movia-se e falava de modo automático, sem refletir sobre seus atos. Seus olhos continuavam fixos na lâmina manchada de sangue. O sangue de Fletcher. — Por que, Billy?

— Você matou meu irmão.

— Não, não matei. — Cilla deu um passo para trás e entrou na cabine. Um arrepio gélido lhe percorria a espinha e um nó lhe dificultava a respiração. — Não matei John. Eu mal o conhecia.

—  Ele te amava.

Ele avançou mais uns metros com a faca em punho, o olhar fixo em Cilla. Tinha os pés descalços, usava uma calça colante preta de malha e uma meia de seda puxada sobre a cabeça. Embora houvesse esfregado um pouco de carvão nos braços e torso nus, Cilla pôde ver a tatuagem com as duas facas. Igual à que John McGillis lhe mostrara.

—  Você ia se casar com ele. John me contou.

—  Foi um engano.

Cilla deu um grito ao vê-lo agitar a faca em sua direção. A cadeira giratória caiu ruidosamente ao chão no momento em que ela se apoiou na mesa de controles.

—  Não minta para mim, sua miserável! Ele me contou tudo, o quanto você o amava, as promessas que lhe fazia. — Ele baixara o tom de voz reduzindo-a ao mero sussurro que adotava ao telefone. O coração de Cilla batia disparado. — Você o seduziu e enganou. Ele era jovem, ingênuo e não entendia de mulheres do seu tipo. Mas eu entendo. — Billy enxugou os olhos com a mão que segurava a faca e tirou uma arma do bolso. — Ele era bom demais para você. — Atordoado, deu um tiro para o alto e Cilla viu a bala alojar-se no teto. Horrorizada, ela cobriu a boca com as mãos. — Ele me contou que você mentiu, o traiu se exibindo por aí.

 — Eu nunca quis magoá-lo. — E Cilla dizia a si mesma para não perder a calma. Fletcher não devia estar morto. Ferido, talvez; morto, não. Era preciso arranjar um modo de conseguir socorro. Raciocinando com clareza, esticou o braço para trás bem devagar, manteve o olhar pousado em Billy e ligou o microfone. — Eu juro, Billy, nunca quis magoar seu irmão.

—  Mentirosa! — ele gritou levantando a faca para encostá-la no pescoço dela. Cilla ergueu as costas para trás esforçando-se para conter o tremor. — Você não se importa com ele... nunca se importou. Você apenas o usou.

—  Eu gostava dele — disse e prendeu a respiração ao sentir a lâmina gelada em sua pele. Um fiozinho de sangue começou a escorrer-lhe pelo pescoço manchando a gola da blusa. — Ele...era um bom rapaz e... g-gostava de você.

— Eu o amava. — A faca tremeu-lhe na mão, mas ele tornou a ajeitá-la. — Ele foi a única pessoa que me amou, o único a quem amei.

— Eu sei.

Cilla umedeceu os lábios. Alguém certamente devia estar ouvindo e logo chegaria para socorrê-la. Ela nem ousava olhar ao redor para fitar os telefones, que piscavam sem parar.

— Ele tinha cinco anos quando me mandaram para aquela casa. Eu teria odiado aquele lugar se não fosse pelo carinho que ele me dedicava. Ele gostava de mim, precisava de mim. Fiquei até os dezoito anos morando lá e o considerava meu irmão.

— Sim.

— Entrei no Exército porque ele pediu — disse Billy dando outro tiro para o alto. — Ele adorava me ver de uniforme. Então, fomos mandados para o Vietnã e foi o meu fim. Arruinei minha perna, arruinei minha vida. Todos me odiavam, menos John.

— Entendo.

— Fiquei muito aborrecido e me mudei para a Califórnia. — O tiro seguinte estilhaçou o vidro da porta. — John um dia me telefonou feliz dizendo que ia se casar. Você queria casar no Natal, então ele resolveu esperar porque queria que eu estivesse presente.

Cilla balançou a cabeça:

— Eu nunca falei que ia casar com ele e mesmo que você me mate, não vai conseguir tê-lo de volta. — Billy apontou-lhe o revólver. — Você tem razão: ele era muito jovem e confundiu nossa amizade. Sinto muito, mas não fui responsável pela morte dele.

— Você o matou — ele insistiu, deslizando uma das faces da lâmina em seu rosto. — E vai ter de pagar.

—  Não posso detê-lo, mas, por favor, não faça nada para Fletcher.

— Tarde demais, já o matei. — Sorrindo, Billy levantou a faca sob a luz. — Foi rápido, mais fácil do que pensei. Eu queria vê-lo morto o mais depressa possível, mas você vai ter de sofrer. Quero vê-la implorar da mesma forma como John implorou.

— Sinto muito, mas eu não o amava.

Furioso, Billy acertou-lhe um golpe na têmpora com o cabo da faca. A dor horrível a fez cair no chão junto à mesa de controles, cobrindo o rosto com as mãos.

De repente, Fletcher surgiu na porta atraindo-lhes a atenção. Foi apenas por um segundo, mas Cilla suspirou ao vê-lo ainda vivo. Nada mais lhe importava.

O suspiro, no entanto, transformou-se num grito de terror ao ver Billy erguer a arma. Tomada por uma energia descomunal, Cilla avançou sobre ele segurando-lhe o braço.

Os discos começaram a cair das prateleiras ao redor transformando a pequena cabine numa verdadeira arena. Cilla lutava e lhe implorava para que não fizesse mal nenhum a Fletcher.

Fletcher ajoelhou-se, fraco, e a arma quase escorregou-lhe dos dedos sujos de sangue. Sua vista estava turva, semi-escurecida, porém, ainda assim, pôde vê-los lutando no pequeno espaço livre da cabine. Veio-lhe um ímpeto de gritar para Cilla que se afastasse, mas a voz não lhe saía. Então, quando viu Billy levantar a faca para acertar-lhe um golpe mortal, acionou o gatilho e caiu, desmaiado.

Cilla não ouviu o tiro nem o barulho do vidro estilhaçado; viu apenas o corpo de Billy arquear-se para trás enquanto a faca lhe caía das mãos. Horrorizada, soltou-lhe o braço e viu-o cair sobre a mesa de controles.

Virando o rosto, viu Fletcher no chão ainda com o revólver nas mãos. Logo atrás, Althea apontava para Billy, caído no chão, inerte. Cilla deu um grito e correu para junto de Fletcher.

— Por favor, não morra — suplicou-lhe, segurando-lhe o rosto entre as mãos.

— Por favor, afaste-se — pediu Althea. — Ele está sangrando muito. Já chamei uma ambulância.

Cilla rasgou parte da barra da blusa que usava e atou-lhe o machucado profundo, tentando estancar o sangue.

— Não vou deixá-lo morrer.

— Então, seremos duas — acrescentou Althea.

 

Nervosíssima, Cilla andava de um lado para outro da sala de espera do hospital. O silêncio ali era tal que se podia ouvir o barulho dos passos das enfermeiras com seus solados de borracha e o deslizar das portas do elevador. Em sua lembrança, porém, ainda soavam as sirenes dos carros de polícia que lotaram o estacionamento da rádio, as vozes dos policiais e seu próprio choro.

Os enfermeiros haviam chegado em questão de minutos e a afastaram dali, levando-a para fora.

Fora Mark quem a abraçara e amparara naquele momento de angústia, e Jackson a obrigara a tomar um café bem forte. Nick, muito pálido, murmurava palavras de conforto.

Além dos conhecidos, havia também dezenas de ouvintes que escutavam a transmissão através do rádio. Eles lotavam a entrada do prédio quando a polícia chegara e montara barreiras para facilitar sua locomoção.

Em seguida, fora a vez de Deborah chegar correndo, abrindo caminho entre a multidão para finalmente abraçar a irmã. Fora ela quem descobrira que Cilla também havia sido ferida.

Naquele momento, ainda meio dopada e confusa, Cilla olhava para o curativo em sua mão. Nem sentira a faca machucá-la nos poucos segundos em que lutara com Billy. O corte aberto no pescoço com a ponta da faca era mais dolorido. Os ferimentos, no entanto, eram todos superficiais.

Fechando os olhos, podia lembrar-se da figura pálida e inerte de Fletcher estirado na maca quando os enfermeiros o retiraram do prédio. Por um momento chegou a temer que estivesse morto...

Mas Althea lhe assegurara que Fletcher estava vivo, apesar de ter perdido muito sangue.

Os médicos o transportaram para o centro cirúrgico tão logo dera entrada no hospital e a Cilla só restava a espera angustiante por alguma notícia.

Althea, que preferia sentar e se refazer, a observava andar para lá e para cá. Ela também guardava lembranças terríveis daquele pesadelo: o susto de ouvir a voz desesperada de Cilla em meio à música, a corrida desenfreada da delegacia até a rádio, seu parceiro caído ao chão com a arma na mão. Fletcher acertara Billy segundos antes de sua chegada.

Deborah, inquieta, levantou-se e foi ao encontro da irmã, que parara junto à janela.

—  Por que não deita um pouco? — sugeriu.

—  Não, não posso.

—  Não precisa dormir; apenas descanse alguns minutos ali no sofá. Mas Cilla balançou a cabeça numa negativa:

—  Oh, Deborah, são tantas lembranças... O modo como Fletcher gostava de me provocar só para me ver brava. Sua presença tranqüila a meu lado na cabine. Seu jeito autoritário. Eu pedi tanto para que ele se afastasse do caso, e agora...

— Cilla, não pode se culpar pelo que aconteceu.

— Não sei a quem culpar — confessou olhando para o relógio da parede. Quantos minutos ainda teria de esperar? — No momento, não consigo nem raciocinar direito. Ele salvou minha vida, Deb. Só espero que não tenha de pagar com a vida dele.

Deborah não sabia o que dizer para consolá-la.

— Já que não quer deitar, aceite pelo menos um café?

— Sim, obrigada.

Deborah foi até a cafeteira disposta a um canto da sala e, vendo Althea se aproximar, serviu mais uma xícara.

— Como está sua irmã?

— Por um fio. Não sei como ainda consegue ficar de pé. — Deborah entregou-lhe a xícara e estudou a fisionomia da policial. — Ela está se culpando pelo que houve. Você também a julga culpada?

Althea voltou-se para a janela e observou a figura abatida de Cilla, usando o paletó de Mark Harrison. Então, percebeu que gostaria de culpá-la por ter envolvido Fletcher naquela confusão, por tê-lo feito se arriscar demais, porém não pôde... Nem como policial nem como mulher.

— Não — confessou muito calma. — Eu não a culpo. Ela é apenas mais uma vítima das circunstâncias.

— Talvez você pudesse dizer a ela o que pensa. Acho que Cilla precisa de uma palavra amiga.

Não foi fácil para Althea aproximar-se de Cilla. Não haviam trocado uma palavra sequer desde que chegaram ao hospital e, de certa forma, consideravam-se rivais. Amavam o mesmo homem. De modos diferentes, era óbvio, porém amavam.

Detendo-se junto a Cilla, Althea olhou pela janela e viu as luzes da cidade.

— Quer café?

— Obrigada. — Cilla aceitou a xícara, mas não bebeu. — Está demorando tanto...

— Já deve estar quase no fim. Cilla prendeu a respiração:

— Você viu o ferimento, acha que ele vai resistir?

"Não sei", pensou Althea, porém, não foi o que disse:

— Espero que sim.

— Você um dia me disse que ele era um bom sujeito e hoje reconheço que tinha razão. Durante algum tempo me recusei a enxergar a verdade, mas você está certa. — Virando-se, fitou Althea bem dentro dos olhos. — Não sei se você vai acreditar, mas eu teria feito qualquer coisa para evitar que ele tivesse se machucado.

— Eu sei e você fez o que pôde. — Antes que Cilla se afastasse, Althea tocou-lhe o braço de leve: — Pense bem. O fato de você ter ligado o microfone salvou-lhes a vida. Fletcher sangrava muito e cada minuto era vital. Ouvindo-a através do rádio, conseguimos chegar depressa. Nós e a ambulância. Se Fletcher conseguir sobreviver, será, em parte, pela sua presença de espírito.

— Mas há um outro lado em que pensar! Billy só o feriu por minha causa.

— Não adianta tentar racionalizar uma situação irracional e absurda. — Althea adotou um tom mais sério, sem compaixão, e prosseguiu: — Já que quer jogar a culpa em alguém por que não pensa em John McGillis. Foi a fantasia dele que deu início a isso tudo. Ou, então, culpe a própria sociedade por permitir que inúmeros garotos como Billy Lomus vivam de entidade em entidade, sem nunca saberem o que é ter uma família. Pode, ainda, culpar Mark por não ter checado melhor as referências de Billy; ou a mim e Fletcher por não termos levantado a pista bem antes. Todos temos uma parcela de culpa, Cilla, e teremos de conviver com ela.

— Acho que, no momento, não importa saber de quem é a culpa. É a vida de Fletcher que está em jogo.

— Investigador Grayson?

Althea voltou-se em direção à porta e viu o médico responsável parado junto à entrada, ainda em seu avental verde-claro, molhado de suor.

— Sim, sou eu.

O médico ergueu as sobrancelhas, impressionado. Althea, de fato, mais parecia uma manequim do que uma policial, tal sua elegância.

— Sou o Dr. Winthrop, cirurgião-chefe. Boyd Fletcher é seu colega, não?

— Sim. — Althea segurou as mãos de Cilla, a seu lado. — Como ele está, doutor?

— Só posso dizer que Boyd Fletcher é um homem de sorte. Se a faca tivesse penetrado mais alguns centímetros, ele não teria chance de sobreviver. No momento, seu estado é grave, mas as perspectivas são boas.

— Oh, ele está vivo! — exclamou Cilla.

— Sim. A senhorita é parente ou...

— Não, não.

— A srta. O'Roarke é a primeira pessoa que Fletcher vai querer ver quando voltar a si. A família dele foi avisada, porém estão na Europa e vão demorar alguns dias para voltar.

— Entendo. Ele está sendo transportado para a unidade de terapia intensiva, onde se recuperará. Srta. O’Roarke, meu filho é seu fã — confessou o cirurgião. — Se eu fosse seu médico, a obrigaria a deitar-se e tomar um tranqüilizante.

— Obrigada, mas eu estou bem.

O médico, no entanto, encarou-a bastante compenetrado:

— Fiquei sabendo de tudo o que houve. A senhorita sofreu um choque terrível. Há alguém que possa levá-la de volta para casa?

— Eu não vou sair sem vê-lo.

— A senhorita poderá vê-lo por cinco minutos quando ele já estiver na UTI, mas posso lhe garantir que o investigador Fletcher só vai recuperar a consciência dentro de, no mínimo, oito horas.

— Obrigada.

Se o médico achava que ela se contentaria com cinco minutos, estava muito enganado.

— Alguém virá avisá-la quando puder entrar. Até logo. O cirurgião afastou-se já tirando o avental, e Althea voltou-se para Cilla:

— Preciso avisar o capitão — disse quase chorando. — Eu gostaria muito de poder vê-lo por alguns minutos, também.

— Claro, Althea.

Ambas se abraçaram, comovidas, e Althea afastou-se indo falar com o capitão. Cilla voltou-se para a janela.

— Ele vai ficar bom — Deborah murmurou-lhe.

— Eu sei — afirmou Cilla, fechando os olhos por uns momentos. — Só quero vê-lo com os meus próprios olhos. Só isso.

—  Você já lhe disse que o ama?

Ela balançou a cabeça.

— Pois acho que não devia perder esta oportunidade.

— Eu temia não ter mais chances de lhe falar, mas agora... Não sei...

— Só mesmo uma tola deixaria escapar um homem tão especial.

— Tola ou covarde. — Cilla engoliu as lágrimas. — Você não imagina o quanto sofri temendo que Fletcher morresse. Se eu não desistir agora, quantas noites de sono perderei? Cada chamado que ele receber será um tormento para mim.

— Cilla...

— Ou um dia receberei o capitão na porta de casa notando que Fletcher morreu numa missão, da mesma forma como mamãe.

— Cilla, você não pode viver uma vida esperando pelo pior. Tente ser mais positiva.

— Não sei se eu suportaria outro golpe destes... Aliás, no momento não sei de mais nada.

— Srta. O' Roarke? — Deborah e Cilla voltaram-se para a porta. — O Dr. Winthrop mandou vir buscá-la.

— Obrigada.

Cilla seguiu a enfermeira através do corredor. Tinha a garganta seca e as mãos úmidas. Ansiosa, procurou ignorar os aparelhos que viu ao redor logo que cruzaram as portas de vidro da UTI.

Fletcher estava muito pálido, ligado a diversos aparelhos e monitores. Várias luzinhas piscavam no painel atrás da cama metálica. "Bom sinal", pensou Cilla.

Chegando mais perto, Cilla acariciou-lhe os cabelos e o rosto.

— Pronto, Fletcher, está tudo acabado — murmurou.

— Agora, o mais importante é que você descanse bastante e se recupere logo. — Chorosa, enxugou as lágrimas que lhe escorriam pela face e cobriu a boca com uma das mãos. — Prometo ficar sempre por perto, ouviu? — disse entre um soluço e outro. — Estarei aqui quando você acordar.

E, de fato, Cilla cumpriu a promessa. Apesar da insistência de Deborah, ela se recusou a voltar para casa e passou a noite em claro, sentada no sofá da sala de espera. A cada hora, as enfermeiras lhe permitiam passar cinco minutos ao lado de Fletcher. Consultando o relógio, deixou a sala de espera e foi sentar-se num banco junto às portas de vidro da UTI. Já estava quase na hora de virem chamá-la.

Enquanto aguardava para ser chamada, viu um casal de senhores acompanhados por uma moça entrarem no corredor. Ambos estavam muito abalados e a senhora segurava com força as mãos do marido. Cilla olhou-os bem e não teve dúvidas: eram os mesmos traços de Fletcher.

Todos tinham a fisionomia cansada e tristonha.

— Por favor — disse a moça aproximando-se do posto das enfermeiras. — Somos parentes de Boyd Fletcher. Mandaram nos chamar dizendo que poderíamos vê-lo.

A enfermeira conferiu umas fichas.

— Está bem, eu os levo. Dois de cada vez, por favor.

— Vão vocês — disse a irmã de Fletcher. — Eu espero aqui.

Cilla teve vontade de aproximar-se, mas a moça sentou-se na outra extremidade do banco e fechou os olhos. Dez minutos mais tarde, os pais dele saíam da UTI.

— Natalie — disse a sra. Fletcher. — Ele está acordado, apesar de sonolento, e nos reconheceu. — O marido também estava feliz. — Quis saber o que estávamos fazendo lá quando deveríamos estar em Paris. O doutor foi examiná-lo, mas daqui a pouco, você poderá vê-lo.

Natalie abraçou a mãe pela cintura.

— Que bom, mamãe.

Mas o sr. Fletcher já não sorria mais.

— Quero saber exatamente o que aconteceu. Preciso conversar com o capitão e pedir explicações.

— Não fique assim, meu bem. Logo teremos oportunidade de falar com o capitão. No momento, o mais importante é que ele está vivo. Aliás, por diversas vezes Fletcher perguntou por uma moça chamada Cilla. Acho que não a conheço; nunca ouvi este nome.

Apesar de seus joelhos tremerem muito, Cilla conseguiu levantar-se do banco:

— Cilla sou eu — disse, atraindo a atenção da família. — Sinto muito pelo que houve. Ele foi ferido enquanto tentava me proteger.

— Com licença. — A enfermeira surgiu na porta de vidro. — O investigador Fletcher faz questão de vê-la, srta. O'Roarke. Ele já está ficando agitado.

— Eu vou com você. Natalie e Cilla atravessaram a porta.

Fletcher mantinha os olhos fechados, mas não dormia. Seu intuito era recuperar as forças que perdera discutindo com o médico. Porém, mesmo sem abri-los, sentiu a presença de Cilla antes mesmo que ela o tocasse.

— Oi, Fletcher, como vai? — ela perguntou baixinho.

— Você não se machucou — Fletcher afirmou, feliz. A última imagem que tinha na lembrança era a de Billy com a faca erguida, pronta para acertá-la.

— Sim, estou bem — Cilla firmou, escondendo a mão machucada atrás das costas.

Natalie notou e estranhou o gesto.

Fletcher abrira os olhos e a fitava intensamente.

— Sua aparência não é das melhores — ela brincou.

— Imagino.

— Você salvou minha vida. Estou em dívida com você, Fletcher.

— Exatamente. — Ele queria tocá-la, mas seus braços pesavam toneladas. — Quando pretende me pagar?

— Falaremos nisso mais tarde. Sua irmã está aqui. Ele virou um pouco mais a cabeça e sorriu para a irmã.

— Obrigado por ter vindo, Natalie.

— Fico feliz que esteja bem. Fletcher voltou-se para Cilla:

— Você passou a noite toda em claro, agora vá para casa. Isto é uma ordem. Eu te amo.

—  Está bem. Preciso preparar o programa desta noite. Até mais tarde, Fletcher.

Cilla despediu-se e saiu da UTI.

— Ora, ora. Não me diga que está apaixonado! — comentou Natalie, radiante.

— Mais do que isso. Não saberia mais viver sem Cilla. Assim que eu conseguir ficar acordado por mais de quinze minutos, pretendo me casar com ela. Pode dar a notícia para mamãe e papai. Cilla é uma pessoa maravilhosa.

— Eles vão adorar a notícia.

Na semana seguinte, Cilla passou a maior parte de seus dias entre ir e vir do hospital. As visitas eram tantas que ela e Fletcher não tinham chance de conversar em particular. A distância, até certo ponto, era saudável, na opinião de Cilla, pois ambos precisavam de um tempo para pensar em tudo o que acontecera. Ele já havia sido removido para um apartamento e se recuperava com incrível rapidez.

Certa tarde, Thea foi a seu encontro na rádio e contou-lhe maiores detalhes sobre o passado de Billy Lomus. Tendo tido uma infância conturbada, Billy fora enviado a uma entidade para menores abandonados, onde conhecera John McGillis. Ambos se apegaram um ao outro e John cometera sua primeira tentativa de assassinato quando o amigo fora chamado para ir lutar no Vietnã. Quando Billy retornara da guerra, ferido e revoltado, John fugira para ir a seu encontro e, embora as autoridades os tivessem separado, ambos sempre arranjavam um meio de se encontrar. A morte de John fizera com que Billy perdesse completamente a razão. Na verdade, John tinha sérios distúrbios emocionais, e Billy sofrera profundos abalos psicológicos na guerra.

— Bem, quero que saiba que aprovo o casamento de vocês — confessou Althea segurando-lhe as mãos com firmeza. — Fletcher é meu melhor amigo e eu sei que será feliz a seu lado.

— Obrigada.

— Agora, preciso ir embora. Quero passar no hospital para vê-lo, antes de ir para a delegacia.

— Por favor, dê-lhe um recado, sim? Peça-lhe que ouça meu programa esta noite, está bem? Vou ver se consigo encontrar a gravação de Dueling Banjos.

— Darei o recado. Até logo, Cilla.

Não tinha sido nada fácil para Cilla reassumir seu programa na KHIP. As primeiras noites foram especialmente penosas já que as lembranças da tragédia lhe voltavam à mente toda vez que entrava na cabine.

Contudo, com o decorrer dos dias, as lembranças foram esmorecendo e a rotina se restabeleceu. Nick havia voltado a trabalhar na estação e continuava fazendo questão de lhe trazer o último café todas as noites.

— Boa noite, Denver. Aqui fala Cilla O'Roarke direto da KHIP, rádio Yankee do Colorado. Nosso programa começa agora e vai até as duas horas da madrugada. Fique conosco. São dez e quarenta e cinco desta quinta-feira e vamos começar com um sucesso do famoso conjunto Guns 'n' Roses. — Cilla fechou o microfone e voltou-se para Nick, ali a seu lado: — Nick, por que não me... Sra. Fletcher!

Cilla pulou da cadeira, surpresa com a visita.

— Espero não estar incomodando. Althea me deu seu endereço e resolvi vir visitá-la.

— Claro. Por favor, entre. Nick, por que não nos traz um café?

— É para já!

A sra. Fletcher admirou a cabine, pequena e repleta de equipamentos, e sentou-se num banquinho ali ao lado da porta.

— O que a traz aqui?

— Senti sua falta no hospital estes últimos dias e resolvi vir lhe dar um alô. O médico nos disse que Boyd sairá do hospital em pouquíssimo tempo, portanto resolvemos voltar para Paris. Meu marido está fechando alguns contratos de negócios, enquanto eu e Natalie aproveitamos para passear.

Cilla pediu-lhe que esperasse um momento, abriu o microfone e anunciou a música seguinte. Depois, retomou a conversa:

— Vocês devem estar satisfeitos com a recuperação dele, não é? Foi um susto terrível para todos nós.

— Felizmente não houve prejuízos maiores para ninguém, minha filha. Boyd me contou que vocês vão se casar.

— Eu... Com licença, sim. — Mais uma vez ela ligou o microfone: — Chegou a hora do sucesso misterioso da noite. Se você souber o nome da música, do cantor e o ano da gravação, ligue para nós e concorra a dois ingressos para o show de Madonna, mês que vem aqui em Denver. Fique ligado.

— Seu trabalho é fascinante, não? — declarou a sra. Fletcher.

O telefone começou a piscar e Cilla teve de atendê-lo:

— KHIP... Não, não, sua resposta está errada. Fica para a próxima.

Cilla atendia aos telefones com a gentileza de sempre e, no quarto chamado, ouviu uma voz familiar.

— Olá, Cilla O’Roarke!

— Fletcher! Estou trabalhando.

— Eu sei. Já tem um vencedor?

— Não, mas...

— Aqui está. A música se chama Eletric Avenue e foi gravada por Eddy Grant em 1983.

— Puxa, você está realmente afiado, não?

— Você prometeu, mas eu ainda não ouvi Dueling Banjos! — ele reclamou.

— Continue ouvindo e terá uma surpresa.

—  Está bem. Ei! Exijo o meu prêmio, ouviu? Até mais tarde.

Fletcher desligou, e Cilla abriu o microfone:

— Pessoal, já temos o vencedor desta noite. Trata-se do investigador Boyd Fletcher, que acaba de ganhar dois ingressos para o show de Madonna. Agora teremos uma seqüência de grandes sucessos dos anos 60, uma série de comerciais e voltarei em seguida com seu pedido telefônico. Fique ligado. A sra. Fletcher sorria, encantada.

— Bem, não quero mais tomar seu tempo, querida. Eu só gostaria de dizer que ficarei muito contente em tê-la como minha nora. Boyd é um rapaz maravilhoso e merece uma garota assim como você. Faço votos que sejam muito felizes.

— Sra. Fletcher, não sei se haverá casamento.

— Boyd me disse que você teme pelo fato de ele ser policial. Entendo o que sente, querida. Eu, como mãe, também me preocupo. Porém, ele está feliz com a profissão que escolheu, e temos de respeitá-lo. Eu o amo muito e o aceito exatamente como ele é, sem cobranças. Pense nisso. Adeus, querida.

— Adeus, e obrigada pela visita, sra. Fletcher.

— O prazer foi meu.

Cilla terminou de beber o café que Nick lhe trouxera, acendeu um cigarro e abriu o microfone:

— Aqui é Cilla O'Roarke pela KHIP, rádio Yankee do Colorado. São exatamente cinco minutos desta madrugada de sexta-feira. Nossas linhas telefônicas estão abertas para receber o seu pedido musical. Hoje no entanto, tenho um recado especial para um amigo que me escuta. Fletcher, esta aqui vai para você. Não se trata de Dueling Banjos, mas de Only You, com o conjunto The Platters. E ouça: se o seu pedido ainda estiver valendo, negócio fechado. Aceito ser a sra. Boyd Fletcher. Incondicionalmente. Eu te amo. Aqui é Cilla O'Roarke pela KHIP, rádio Yankee do Colorado.

 

                                                                                            Nora Roberts

 

 

                      

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