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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


Chamas Noturnas / Nora Roberts
Chamas Noturnas / Nora Roberts

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Chamas Noturnas

 

Fogo. Purificava. Destruía. Com seu calor, podia salvar vidas. Ou perder. Era uma das grandes descobertas do homem, e um de seus principais medos.

Uma de suas fascinações.

As mães advertiam a seus filhos para não brincarem com fósforos, para não tocarem o resplendor vermelho da cozinha. Pois independentemente da beleza da chama, ou quão sedutor fosse seu calor, o fogo queimaria a pele.

Na lareira, era romântico, acolhedor, alegre e dançante, projetando uma fumaça aromática e uma suave luz dourada. Os anciãos sonhavam junto a ele. Os amantes se cortejavam a seu lado.

No acampamento, lançava suas chispas a um céu estrelado, tentando aos meninos a assar seus mashimallos enquanto tremiam ouvindo histórias de fantasmas. Existiam pedaços escuros e perdidos da cidade onde os sem tetos uniam suas mãos geladas sobre fogo aceso em tambores, as faces cansadas à luz entre sombras, as mentes embotadas demais para terem sonhos.

Na cidade de Urbana, havia fogo demais.

Um cigarro caído descuidadamente ardia num colchão. Um cabo defeituoso que tinha passado a um olhar desatento ou simplesmente deixado lá por um inspetor corrupto. Um aquecedor de querosene próximo das cortinas. O resplendor do relâmpago. Uma vela esquecida.

Tudo isso podia provocar a destruição da propriedade, a perda de vidas. A ignorância, um acidente, um ato de Deus.

Mas havia outras formas, muito mais retorcidas.

Uma vez dentro do edifício, respirou fundo várias vezes. Na realidade, era muito simples. E muito estimulante. Nesse momento o poder estava em suas mãos. Sabia exatamente o que tinha que fazer, e no ato estremeceu. Sozinho. Na escuridão.

Não estaria escuro por muito tempo. O pensamento fez que surgisse um sorriso em seus lábios enquanto subia ao segunda andar. Não demoraria a ter luz.

Bastariam duas latas de gasolina. Com a primeira salpicou o velho chão de madeira, empapando-o, deixando um rastro enquanto avançava de parede a parede, de cômodo a cômodo. De vez em quando se detinha para jogar em algum material, para disseminar o líquido sobre objetos inflamáveis, adicionando combustível que avivaria e estenderia as chamas.

O cheiro do catalisador era doce, um perfume exótico que potencializava seus sentidos. Não tinha medo nem pressa enquanto subia pela escada curva de metal ao andar seguinte. Ia em silêncio, certamente, já que não era estúpido. Mas sabia que o vigilante noturno se encontrava concentrado sobre suas revistas em outra parte do edifício.

Enquanto trabalhava, ergueu a vista para os aspersores situados como aranhas no teto. Já os tinha visto. Não teria nenhum pingo d’água procedente das tubulações enquanto as chamas se elevavam, nenhuma advertência dos alarmes de fumaça.

Esse fogo arderia, arderia e arderia até que o cristal da janela estourasse pelos punhos furiosos do calor. A pintura descascaria. O metal se derreteria, as vigas cairiam, calcinadas.

Desejou... durante um momento desejou poder ficar no centro de tudo e presenciar o acordar do fogo dormido. Queria estar ali, admirá-lo e absorvê-lo à medida que se agitava e espreguiçava, para depois estender seu corpo quente e brilhante. Queria ouvir seu rugido triunfal enquanto com fome devorava tudo ao seu redor.

Mas quando isso acontecesse estaria muito longe. Longe demais para ver, ouvir, cheirar. Teria que imaginar. Com um suspiro, acendeu o primeiro fósforo, elevou a chama à altura dos olhos e admirou a chispa pequena, hipnotizado por ela. Ao jogar o fogo diminuto a um charco escuro de gasolina, sorria, tão orgulhoso como um pai. Observou um momento, só um momento, enquanto o animal ganhava vida, serpenteando pelo caminho que lhe tinha traçado.

Saiu em silêncio, apressado, e entrou na noite fria. Pouco depois seus pés tinham cobrado o ritmo de seu coração acelerado.

 

Irritada, exausta, Natalie entrou em sua cobertura. O jantar com seus executivos de marketing tinha durado até depois da meia-noite. « Poderia ter vindo para casa então », recordou-se enquanto descalçava os sapatos. Mas não. O trabalho ficava no caminho do restaurante. Não tinha sido capaz de resistir a tentação de deter-se para dar uma última olhada nos novos desenhos, para realizar uma última análise do cartaz que anunciava a grande inauguração.

Sua intenção tinha sido tomar umas poucas notas, redigir o rascunho de um ou dois memorandos.

« Então, o que faço entrando no quarto as duas da manhã? », perguntou-se. A resposta era fácil. Era uma mulher compulsiva e obsessiva. « Uma idiota ». Sobretudo porque tinha um café da manhã de trabalho as oito da manhã com vários de seus chefes de vendas da Costa Leste.

« Não há problema », assegurou-se. « Nenhum problema ». Quem precisava dormir? Certamente, não Natalie Fletcher, a dínamo de trinta e dois anos que nesse momento levava a Indústrias Fletcher para uma nova fonte de benefícios.

E os teria. Tinha centrado toda sua perícia, experiência e criatividade em levantar Lady's Choice desde os alicerces. Antes do benefício, surgiria a excitação da concepção, do nascimento, do crescimento, os primeiros prazeres de uma empresa nova que procurava seu próprio caminho.

« Minha empresa », pensou com cansada satisfação. Seu bebê. Cuidaria dela, lhe ensinaria e a alimentaria... e sim, quando fosse necessário, se deitaria as duas da manhã.

Uma olhada ao espelho da cômoda indicou que inclusive uma dínamo precisava descansar. As faces tinham perdido tanto seu tom natural como seu blush e o rosto parecia demasiado frágil e pálido. O singelo laço, que levantava seu cabelo e que ao princípio da noite tinha dado a impressão de sofisticação e elegância, nesse momento só parecia realçar as sombras que circundavam seus escuros olhos verdes.

Como era uma mulher que se orgulhava de sua energia e resistência, afastou-se do reflexo e moveu os ombros para eliminar a rigidez. « Em qualquer caso, os tubarões não dormem », recordou-se. Nem sequer os tubarões dos negócios. Mas esse tubarão experimentava a poderosa tentação de cair sobre a cama completamente vestida.

Decidiu que não podia acontecer e tirou o casaco. A organização e o controle eram tão importantes nos negócios como uma boa cabeça para os números. O costume arraigado a impulsionou a dirigiu-se ao armário. Estava pendurando o casaco de veludo num cabide acolchoado quando soou o telefone.

« Deixe a secretária-eletrônica atender », ordenou-se, mas ao segundo toque levantou o fone.

-Oi?

-Senhorita Fletcher?

-Sim? -o fone se chocou contra as esmeraldas que levava ao ouvido. Ergueu a mão para tirar os brincos quando o pânico que captou na voz a deteve.

- Sou Jim Banks, Senhorita Fletcher. O vigilante noturno do armazém do lado sul. Temos problemas aqui.

-Problemas? Entrou alguém?

-É um incêndio. Santo Deus, Senhorita Fletcher, todo o lugar está em chamas.

-Incêndio? -aproximou a outra mão ao fone, como se pudesse lhe escapar-. No armazém? Tinha alguém dentro?

-Não, Senhorita, só estava eu - a voz tremeu e se quebrou - Eu estava lá abaixo, no quarto do café, quando ouvi uma explosão. Deve ter sido uma bomba ou algo assim, não sei. Chamei os bombeiros.

-Está ferido? -nesse momento pôde ouvir outros sons, sirenes, gritos.

-Não, consegui sair. Mãe de Deus, Senhorita Fletcher, é terrível, é terrível.

-Estou indo para aí.

Natalie demorou quinze minutos para realizar o trajeto da sua elegante região até o obscuro distrito sul, com seus armazéns e fábricas. Mas viu e ouviu o fogo antes de parar atrás de todos os veículos.

Homens com as caras manchadas de óleo manejavam mangueiras e empunhavam machados. A fumaça e as chamas saíam das janelas destroçadas e pelos buracos do teto destruído. O calor era enorme. Inclusive a essa distância esbofeteava seu rosto enquanto o gélido vento de fevereiro batia em as suas costas.

Soube que tudo que tinha no interior do armazém estava perdido.

-Senhorita Fletcher?

Lutando contra o horror e a fascinação, voltou-se e contemplou um homem rechonchudo de média idade com uma uniforme cinza. -Sou Jim Banks.

-Oh, sim -automaticamente estendeu o mão para estreitar a dele - Estava gelada e tão trêmula quanto a voz.

-Está se sentindo bem? Se feriu?

-Estou bem, Senhorita. É horrível.

 Durante um momento de silêncio observaram o fogo e àqueles que o combatiam.

-E os alarmes?

-Não ouvi nada. Não até a explosão. Comecei a subir e vi o incêndio. Estava por todas as partes - passou uma mão pela boca. Nunca em sua vida tinha visto algo parecido, não queria voltar a vê-lo-. Por todas as partes. Saí e chamei o departamento de bombeiros do meu carro.

- Fez o que era certo. Sabe quem está ao comando aqui?

-Não, Senhorita Fletcher. Esses homens trabalham depressa e não dedicam muito tempo a conversa.

-Muito bem. Por que não vai para a casa agora, Jim? Eu cuidarei de tudo. Se precisarem falar com você, darei o número de seu telefone para que possam contactá-lo

-Não se pode fazer grande coisa -baixou a vista para o chão e moveu a cabeça-. Sinto muito, Senhorita Fletcher.

-E também. Agradeço por ter me chamado.

-Pensei que era o que tinha que ser feito -olhou uma última vez para o edifício, pareceu estremecer e se dirigiu ao seu veículo.

Natalie permaneceu onde estava, e esperou.

 

Tinha se formando uma multidão quando Ry chegou ao local do acontecimento. Sabia que um incêndio atraía uma multidão, como uma boa briga ou um show de malabarismo. As pessoas inclusive formavam grupos... e muitas delas estavam torcendo pelo fogo.

Desceu do carro, um homem magro, de ombros largos, com cansados olhos da cor da fumaça que impelia através do céu invernal. Seu rosto fino mostrava uma expressão impassível. As luzes que cintilavam ao seu redor ocultavam e depois ressaltavam suas feições e a covinha no queixo que as mulheres tanto adoravam e que para ele era apenas um inconveniente.

Depositou as botas no solo encharcado e as calçou com uma graça e uma economia de movimentos adquiridos pelos anos de prática. Ainda que as chamas lambessem o edifício e cintilassem, seus olhos experientes indicaram que os homens tinham contido e quase extinguido o fogo.

Em pouco tempo chegaria seu momento.

Com um gesto automático vestiu a jaqueta negra protetora, que cobriu a camisa de flanela e as calças até embaixo dos quadris. Passou uma mão pelo rebelde cabelo de cor castanho escuro, que à luz do sol mostraria reflexos dourados. Encaixou o capacete velho e manchado de fumaça na cabeça, acendeu um cigarro e depois vestiu as luvas. E enquanto realizava esses atos habituais, estudou a cena. Um homem em sua posição precisava manter uma mente aberta ante o fogo. Daria uma olhada geral, analisaria o tempo, comprovaria a direção na qual soprava o vento, falaria com os bombeiros. Teria que levar a cabo todo tipo de provas rotineiras e científicas.

Mas primeiro confiaria em seus olhos e em seu olfato. O mais provável era que o armazém estivesse perdido, mas seu salvamento não dependia dele. Sua tarefa consistia em encontrar os motivos e os métodos.

Exalou fumaça e estudou à multidão.

Sabia que o vigilante noturno tinha dado o alarme. Teria que falar com ele. Observou os rostos um a um. A excitação era normal. Viu-a nos olhos do jovem que, deslumbrado, olhava a destruição. E também a comoção na mulher boquiaberta que estava ao seu lado. Horror, admiração, e alívio porque o fogo não os tinha tocado e nem aos seus.

Depois seus olhos pousaram na loira.

Se encontrava separada dos demais, com o olhar fixo à frente enquanto o ligeiro vento desfazia seu cabelo que trazia preso. Notou que usava sapatos caros, tão fora de lugar nessa parte da cidade como seu casaco de veludo e seu rosto refinado.

« Um rosto extraordinário », pensou, levando o cigarro aos lábios. Um oval pálido como saído de um camafeu. Os olhos... Não pôde discernir sua cor, mas eram escuros. Observou que neles não se via nenhuma excitação, nenhum horror nem comoção. Um leve toque de ira, talvez. Ou se tratava de uma mulher de poucas emoções ou de uma que sabia controlá-las.

« Uma rosa de inverno », decidiu. « E o que faz tão longe de seu meio às quatro da manhã? ».

-Ei, inspetor -sujo e molhado, o tenente Holden se aproximou para pedir um cigarro.

-Parece que pudestes com outro -comentou, tirando o pacote.

-Este não foi moleza -com as mãos unidas para proteger a chama do vento, acendeu-o - Descontrolado quando chegamos. O vigilante noturno nos chamou a menos de vinte minutos. O segundo e terceiro andar foram os que mais sofreram. O mais provável é que encontremos o ponto de origem no segundo.

-Sim? -sabia que Holden não aventurava uma conjectura.

Encontramos umas mechas nos degraus do lado leste. Provavelmente iniciou o fogo com elas, mas não foi todo o material que incendiou. Lingerie feminina.

-Mmm?

-Lingerie feminina -repetiu com um sorriso-. Era o que armazenavam aqui. Um montão de calcinhas e sutiãs. Há muita roupa de baixo e combustível que não pegou- deu uma palmada no ombro-. Você vai se divertir. Ei, novato! - gritou para um dos novos-. Vai sustentar essa mangueira ou brincar com ela? Tenho que os vigiar o tempo todo, Ry.

-Como se eu não soubesse...

Pelo canto do olho viu a sua flor de inverno avançar para um bombeiro. Holden e ele se separaram.

-Há algo que possa me dizer? - perguntou Natalie a um bombeiro esgotado-. Como começou?

-Senhora, eu só os apago - sentou nos degraus de um dos carros de bombeiro, seu interesse na ruína fumegante que se transformara o armazém, já perdido - Quer respostas? -indicou com o dedo na direção de Ry - Peça ao inspetor.

-Os civis não podem ficar no palco de um incêndio -expôs Ry a suas costas. Quando ela voltou-se para olhá-lo, comprovou que seus olhos eram de um profundo verde jade.

-É meu palco - ela manifestou com frieza, como o vento que agitava seu cabelo - Meu armazém -continuou-. Meu problema.

-Sim? -Ry voltou a estudá-la. Tinha frio. Por experiência sabia que não tinha um lugar mais gélido do que o palco de um incêndio no inverno. Mas exibia as costas eretas e o delicado queixo erguido-. E quem é você?

-Natalie Fletcher. Sou proprietária do edifício e de tudo o que há no interior. E gostaria de obter algumas respostas - arqueou uma sobrancelha bem delineada-. E quem é você?

-Piasecki. Investigador de incêndios provocados.

-Provocados? -mostrou espanto antes de recuperar o controle-. Acredita que foi provocado?

-Meu trabalho é averiguá-lo -baixou o olhar e esteve a ponto de fazer uma careta-. Vai estragar esses sapatos, Senhorita Fletcher.

- Os sapatos são a última de minhas... -calou quando ele a tomou pelo braço e começou a afastá-la dali-. O que pensa que está fazendo?

-Está no caminho. Esse é seu carro? -com a cabeça indicou um pequeno e gracioso conversível.

-Sim, mas...

-Entre.

-Não estou pensando em fazê-lo - tentou se desprender de sua mão e descobriu que precisaria de uma barra de metal-. Quer me soltar?

Cheirava muito melhor que a fumaça e os entulhos encharcados. Ry expirou seu aroma e depois testou sua diplomacia. Algo que, com orgulho, reconhecia que jamais tinha sido seu forte.

-Olhe, está com frio. Que sentido tem ficar exposta ao vento?

- O sentido é que se trata de meu edifício -ficou rígida, pelo contato e pelo frio-. Ou o que restar dele.

-Bem - como não atrapalharia em nada sua investigação, faria como ela queria. Mas a situou entre o carro e seu corpo, para protegê-la do pior do frio-. É um pouco tarde para fazer um inventário, não lhe parece?

-É - Enfiou as mãos nos bolsos numa vã tentativa de esquentá-las-. Vim logo que o vigilante noturno me chamou.

-E a que hora foi isso?

-Não o sei. Ao redor das duas.

-Ao redor das duas -repetiu e voltou a percorrê-la com o olhar. Notou que sob o casaco de veludo tinha um elegante traje de noite. O tecido parecia suave, caro, e era da mesma cor que seus olhos.

- Uma roupa atraente para um incêndio.

-Tive um jantar de negócios e não me troquei antes de vir -« idiota », pensou, e voltou a observar com gesto sombrio o que restava de sua propriedade-. Onde quer chegar?

-O jantar durou até as duas?

-Não, terminou por volta da meia-noite.

-E como é que ainda continua vestida para a ocasião?

-O que?

 -Como é que ainda está vestida para a ocasião? -tirou outro cigarro e o acendeu-. Algum encontro tardio?

-Não, fui no local onde trabalho completar uma burocracia. Mal tinha chegado em casa quando Jim Banks, o vigilante da noite, telefonou para mim.

-Então esteve sozinha da meia-noite até as duas?

-Sim, eu... -o olhou com os olhos semi cerrados-. Acredita que sou responsável por isso? É isso o que está insinuando...? Como demônios era seu nome?

-Piasecki -respondeu com um sorriso-. Ryan Piasecki. E ainda não acredito em nada, Senhorita Fletcher. Só separo os detalhes -os olhos dela já não eram inexpressivos , controlados, ao contrário, tinham atingido o ponto de ignição.

-Então lhe proporcionarei mais alguns. O edifício e seu conteúdo estão plenamente assegurados. A apólice é com United Security.

-Em que classe de negócio participa?

-Indústrias Fletcher, inspetor Piasecki. Talvez tenha ouvido falar delas.

Sim ouvira. Imobiliárias, mineração, transporte. A corporação tinha muitas propriedades, incluindo vários edifícios em Urbana. Mas tinha motivos para que as grandes empresas, bem como as pequenas, recorressem aos incêndios provocados.

-Você dirige as Indústrias Fletcher?

-Supervisiono vários de seus interesses. Incluindo este -« em especial este », pensou. Era seu projeto-. Na primavera vamos abrir variadas boutiques especializadas por todo o país, além de um serviço de venda por catálogo. Uma grande parte de meu inventário se achava nesse armazém.

-Que tipo de inventário?

-Lingerie, inspetor. Sutiãs, calcinhas, camisolas. Seda, cetim, corpetes. Pode ser que esteja familiarizado com o conceito.

-O suficiente para apreciá-lo -viu que ela tremia e que lutava para evitar que seu dentes batessem. Imaginou, que naquela altura, seus pés já seriam blocos de gelo dentro daqueles sapatos finos e elegantes-. Olhe, está congelando. Entre nesse carro. Volte para casa. Estaremos em contato.

-Quero saber o que aconteceu com meu edifício. O que restou de meus produtos.

-Seu edifício se queimou,Senhorita Fletcher. E é improvável que reste algo de seu inventário que possa subir a pressão arterial de um homem - abriu a porta do carro-. Tenho um trabalho que fazer. E lhe aconselho que chame seu agente de seguros.

-Você é bom em acalmar as vítimas, não é verdade, Piasecki?

-Não, não posso dizer que seja assim -tirou um bloco de notas e um lápis pequeno do bolso da camisa. -Dê-me seu endereço e o número do telefone. De sua casa e de seu trabalho.

Natalie respirou fundo antes de proporcionar-lhe a informação que queria.

-Sabe? -adicionou-. Sempre tive admiração pelos servidores públicos. Meu irmão é policial em Denver.

-Verdade?

-Sim - entrou no carro-. Com uma breve conversa você conseguiu mudar minha opinião -fechou a porta com força, lamentando não o fazer com suficiente rapidez para esmagar-lhe os dedos. Com uma última olhada ao edifício em ruínas, partiu.

Ry observou o desaparecer das luzes traseiras de seu veículo e adicionou outra nota a seu livro. Pernas estupendas. Não acreditava que pudesse chegar a esquecê-la. Mas um bom inspetor tinha que se atentar a tudo.

 

Natalie obrigou-se a dormir duas horas, depois levantou e tomou um banho frio. Enfiada no roupão, chamou sua secretária e fez que cancelasse ou mudasse os dias das reuniões da manhã. Com a primeira xícara de café, chamou seus pais no Colorado. Estava na segunda xícara quando terminou de dar-lhes os detalhes que conhecia, mitigando sua preocupação e escutando seus conselhos.

Com a número três, entrou em contato com seu agente de seguros e ficou de se encontrar com ele no lugar do acontecido. Depois de engolir uma aspirina com o que restava da xícara de café , vestiu-se para o que prometia ser um dia muito longo.

Já atravessava a porta quando soou o telefone.

Você tem uma secretária - recordou a si mesma ao dar meia volta para ir responder

- Oi?

-Nat sou eu, Deborah. Acabo de ficar sabendo.

-Oh - esfregou a nuca e sentou no braço da poltrona. -Ouvir Deborah O'Roarke Guthrie proporcionava duplo prazer para ela, era sua amiga e familiar-. Suponho que já tenha aparecido nos noticiários.

-Sinto muito Natalie, de verdade. Foi muito ruim?

-Não estou certa. Ontem à noite dava a impressão de que não podia ser pior. Mas agora vou lá com meu agente de seguros. Quem sabe? Talvez possamos salvar algo.

-Quer que eu a acompanhe? Posso reorganizar minha manhã.

Natalie sorriu. Deborah era assim. Como se não fosse suficiente seu marido, seu bebê e seu trabalho como auxiliar do promotor do distrito.

-Não, mas obrigada por se oferecer. Porei você a par de tudo quando souber algo.

-Venha jantar aqui esta noite. Poderá relaxar e desfrutar de um pouco de simpatia.

-Ficaria encantada.

-Se há algo mais que eu possa fazer, diga-me.

-Na realidade, poderia ligar para Denver. Evite que sua irmã e meu irmão venham ao resgate.

-O farei.

- Ah, uma coisa mais - levantou e repassou o conteúdo de sua valise enquanto falava-. O que sabe de um tal inspetor Piasecki? Ryan Piasecki?

-Piasecki? -houve uma pausa enquanto Deborah repassava seus ficheiros mentais-. Está no grupo de investigação de incêndios. É o melhor da cidade. Suspeita que foi provocado?

- Não sei. Só sei que estava presente. Que foi grosseiro e que não quis me dizer nada.

-Se requer tempo para determinar a causa de um incêndio, Natalie. Se quiser, posso pôr um pouco de pressão.

Esteve tentada em colocar um aperto em Piasecki.

-Não, obrigada. Ao menos não ainda. Nos veremos depois.

-Às sete -insistiu Deborah.

-Ali estarei. Obrigado -desligou e recolheu o casaco. Com sorte, chegaria trinta minutos antes que o agente ao lugar do acontecido.

A sorte a acompanhou... ao menos nisso. Quando se deteve por trás da cerca que o departamento de bombeiros tinha colocado, descobriu que ia precisar de muita mais sorte para ganhar aquela batalha.

 

Parecia incrivelmente pior do que a noite anterior.

Era um edifício pequeno de três andares. As paredes externas tinham resistido, e nesse momento estavam enegrecidas, cheias de fuligem e ainda gotejavam água. O solo se achava coberto de madeira calcinada e empapada, vidros quebrados e metal retorcido. O ar recendia a fumaça.

Consternada, passou por baixo da fita amarela de isolamento para dar uma olhada mais de perto.

-Que demônios pensa que está fazendo?

Sobressaltou-se, depois protegeu os olhos do sol para ver com mais clareza. « Devia imaginar », pensou ao ver Ry avançar em sua direção entre os entulhos.

-Não viu o cartaz? -inquiriu ele.

-Claro que vi. Esta é a minha propriedade, inspetor. O agente de seguro estará aqui comigo. Acredito que estou em meu direito de vistoriar os danos.

-Não tem outro tipo de sapatos? -a olhou aborrecido.

-Como?

- Fique aqui -resmungou, foi para seu carro regressando com um par de botas imensas de bombeiro-. Coloque-as.

-Mas...

-Coloque esses ridículos sapatos dentro das botas - apertou seu braço com firmeza-. Caso contrário, poderá se machucar.

-Bem -obedeceu, sentindo-se tola.

A parte superior das botas chegava quase ao seu joelho. O traje azul marinho e o casaco de lã que fazia conjunto eram de marca, e as três correntes de ouro ao redor do pescoço adicionavam brilho a sua imagem.

- Bonito aspecto -comentou ele-. E agora deixemos clara uma coisa. Preciso preservar o lugar do acontecimento, e isso significa que não pode tocar em nada - soltou-a, ainda que sua autoridade para mantê-la distante fosse questionável, a verdade era que já tinha encontrado a maior parte do que procurava.

-Não tenho intenção de...

-É o que todos dizem.

-Me explique uma coisa, inspetor -irritou-se - Trabalha sozinho porque prefere ou porque ninguém suporta ficar em sua presença mais do que cinco minutos?

-As duas coisas -então sorriu. A mudança de expressão foi assombrosa, encantadora... e suspeita-. O que faz vistoriando o local de um incêndio com um traje de quinhentos dólares?

Eu... - receosa pelo sorriso, fechou o casaco-. Tive reuniões a tarde toda. Não tive tempo para me trocar.

-Executivos... -ao voltar-se manteve a mão no braço dela-. Cuidado onde pisa... o lugar ainda não é seguro, mas pode dar uma olhada no que restou. Ainda tenho algum trabalho por completar.

Conduziu-a pela entrada. O teto era um buraco vazio entre os andares. O que tinha caído ou tinha sido derrubado jazia entre colunas sujas de cinza molhada e madeira quebrada. Natalie sentiu um arrepio ao ver a massa retorcida de manequins quebrados.

-Não sofreram -lhe assegurou Ry ganhando uma olhada irritada.

-Estou segura de que para você se trata de algo divertido, mas...

-O fogo jamais é engraçado. Cuidado...

Viu o lugar onde ele tinha estado trabalhando, próximo da base de uma parede interna destruída. Tinha uma pequena cerca de arame numa estrutura de madeira, uma pá que parecia um brinquedo infantil, alguns potes de vidro, uma barra metálica e uma trena. Enquanto observava, Ry arrancou uma seção marcada do rodapé.

-O que está fazendo?

-Meu trabalho.

-Estamos do mesmo lado? -perguntou ela com os dentes apertados.

-É possível -levantou o olhar. Com uma navalha, começou a raspar um resíduo do chão. Cheirou-o, grunhiu e, quando ficou satisfeito, introduziu-o num frasco- Sabe o que é oxidação, Senhorita Fletcher?

- Mais ou menos -franziu o cenho.

-A união química de uma substância com o oxigênio. Pode ser algo lento, como a pintura ao secar-se, ou rápido. Calor e luz. Um incêndio é rápido. E algumas coisas ajudam para que se mova com mais velocidade -continuava raspando, voltou a erguer a navalha e fitá-la e estendeu-a. -Cheire -duvidosa ela se adiantou e cheirou-. O que percebe?

-Fumaça, umidade... não sei.

-Gasolina -comentou, guardando o resíduo num pote-. Olhe, um líquido procura seu nível, se introduz entre gretas no chão, em cantos ocultos, flui por baixo dos rodapés. Se encontrar obstáculos para que se oxigene, ele não arde. Percebe esta região aqui?

Natalie umedeceu os lábios, estudou o local onde ele tinha despregado a cobertura do chão. Tinha uma mancha negra, como uma sombra gravada na madeira.

-Sim?

-O padrão da mancha queimada. É como um mapa. Se continuo remexendo camada após camada, poderei saber o que aconteceu, antes e durante o fogo.

- Está me dizendo que alguém verteu gasolina e acendeu um fósforo?

Ry não respondeu e se adiantou para recolher um pedaço de tecido queimado.

-Seda -esfregou com as pontas dos dedos-. É uma pena -depositou o tecido no que parecia ser uma lata de farinha-. As vezes alimentam mais o fogo. Nem sempre queimam -recolheu uma peça quase ilesa de um sutiã de encaixe frontal.

Divertido, olhou a Natalie e acrescentou:

-É engraçado o que resiste, não é?

Ela voltou a sentir frio, mas não pelo vento. Surgia do interior e era fúria.

-Se foi algo deliberado, quero saber.

Interessado na mudança nos olhos de Natalie, ficou de joelhos. Tinha a jaqueta de bombeiro aberta, revelando um jeans, gastos nos joelhos, e uma camisa de flanela. Não tinha abandonado o palco do incêndio desde sua chegada.

-Receberá meu relatório -ficou de pé- Descreva-me como era este lugar vinte e quatro horas atrás.

Ela fechou os olhos um momento, mas isso não a ajudou. Ainda podia cheirar a destruição.

-Tinha três andares, uns seiscentos metros quadrados. Balcões de ferro e escadas interiores. As costureiras trabalhavam no terceiro andar. Toda nossa mercadoria se faz a mão.

-Um toque de classe.

-Sim, essa é a idéia. Temos outra fábrica neste distrito, onde se realiza quase toda a costura. As doze máquinas de cima eram para dar os últimos retoques. À esquerda tinha uma pequena sala para o refeitório, os serviços... No segundo andar, o chão era de linóleo em vez de madeira. Ali guardávamos os produtos. Também tinha um pequeno escritório, ainda que quase todo meu trabalho fosse feito na cidade. Esta zona era para vistoriar, embalar e fretar, íamos começar a distribuir nossos pedidos de primavera em três semanas.

Voltou-se, sem saber muito bem onde ia, e tropeçou em alguns entulhos. A rapidez de Ry evitou uma queda desagradável.

-Paciência -murmurou.

Aturdida, apoiou-se nele por alguns instantes. Percebeu força, e não simpatia. Nessas circunstâncias, preferia-o desse modo.

-Só nesta fábrica empregávamos setenta pessoas. Gente que ficou sem trabalho até que eu possa averiguar o que passou -girou o corpo e Ry a segurou pelos braços para que mantivesse o equilíbrio-. Foi algo deliberado.

Ele pensou que nesse momento ela tinha perdido o controle. Era tão volátil como um fósforo aceso.

-Não terminei a investigação.

-Foi deliberado -repetiu-. E você suspeita que eu possa ter sido a provocadora. Que estive aqui no meio da noite com uma lata de gasolina.

Seus rostos estavam próximos. « É engraçado », pensou Ry, « até agora não notei sua altura com esses sapatos capazes de romper-lhe os tornozelos ».

-Não posso imaginá-la fazendo algo assim.

-Então contratei alguém? - provocou Natalie-. Contratei alguém para incendiar o edifício, ainda que em seu interior tivesse um homem? Mas, que é um vigilante de segurança comparado com um bonito cheque de seguro?

-Diga-me você -contra-atacou, depois de um momento de silêncio.

Furiosa, afastou-se dele.

-Não, inspetor, será você quem vai ter que me dizer. E, goste ou não, vou estar colada em você como uma sombra durante cada passo da investigação. Cada passo -reafirmou -Até que consiga minhas repostas.

Saiu do edifício, com andar digno apesar das botas. Mal tinha seu temperamento sob controle quando viu que um carro se detinha junto ao seu. Ao reconhecê-lo, suspirou e se dirigiu até a fita de proteção voltando a cruzá-la.

-Donald -estendeu os braços-. Oh, Donald, que desastre...

Tomando-lhe as mãos, o outro contemplou o edifício. Durante um instante ficou quieto, movendo a cabeça.

-Como pôde acontecer? A instalação elétrica? Nós a analisamos há dois meses.

-Eu sei, sinto muito. Todo seu trabalho -pensou que eram dois anos da vida de Donald, e talvez da sua. Desvanecidos como fumaça.

-Tudo? -sua voz soou trêmula e seu corpo também tremeu-. Tudo se perdeu?

-Temo que sim. Temos mais material, Donald. Isto não vai frear-nos.

-É mais forte do que eu, Nat -depois de um último apertão, soltou-a-. Era minha maior aposta. Você é a presidente, mas eu sentia como se fosse o capitão. E meu barco acaba de afundar.

Natalie compreendia o que sentia. Para Donald Hawthorne não estavam falando só de negócios, bem como para ela. Aquela nova empresa era como um sonho, um sopro de ar fresco, uma oportunidade para os dois de provar algo completamente diferente.

« Não só provar », recordou-se. « Triunfar ».

-Vamos ter que nos matar de trabalhar durante as próximas três semanas.

Ele se voltou com um leve sorriso nos lábios.

-Você, realmente acredita que depois disto vamos poder respeitar nossos compromissos?

-Sim -a determinação endureceu seus lábios-. É um atraso, isso é tudo. Mudaremos algumas coisas. Certamente, vamos ter que postergar a auditoria.

-Agora nem sequer posso pensar nisso -calou e piscou-. Santo céu, Nat, as pastas, os registros.

-Não acredito que vamos poder recuperar alguns dos documentos que estava no armazém -observou o edifício-. Complicará as coisas, adicionará horas de trabalho, mas conseguiremos.

-Como poderemos levar a cabo a auditoria quando...?

- Vamos adiá-la até estarmos em pleno funcionamento. Falaremos disso no escritório. Enquanto eu falo com o agente do seguro, siga seu curso, depois irei para meu trabalho -sua mente já repassava os detalhes, os passos e as fases-. Estabeleceremos turnos duplos, nos encarregaremos do material novo, traremos algumas coisas de Chicago e Atlanta. Faremos que funcione, Donald. Lady's Choice vai inaugurar em março, faça chuva ou faça sol.

-Se alguém é capaz de conseguir isso, é você. -o sorriso se tornou amplo.

-Nós -observou Natalie-. Agora preciso que volte ao escritório e que comece a dar os telefonemas - sabia que o ponto forte de Donald era as relações públicas. Talvez fosse um pouco impulsivo, mas nesse momento precisava a seu lado de pessoas orientadas para a ação.

-Coloque Melvin e Deirdre para trabalhar. Suborne ou ameace aos distribuidores, suplique aos sindicatos, tranqüilize aos clientes. É o que melhor sabe fazer.

-Agora mesmo. Conte comigo

-Sei que posso fazê-lo. Irei cedo ao escritório para pegar o chicote.

 

« Noivo? », perguntou-se Ry ao ver como se abraçavam. O executivo alto e elegante com a cara bonita e os sapatos reluzentes, parecia ser seu tipo. Na dúvida, anotou a placa do Lincoln estacionado ao lado do carro de Natalie e regressou ao trabalho.

 

-Vai chegar em qualquer momento -a ajudante do promotor do distrito, Deborah O'Roarke Guthrie, colocou as mãos em punho nos quadris-. Gage, quero toda a história antes de que Natalie chegue.

Gage adicionou outra haste de lenha ao fogo antes de se virar para sua mulher. Ao regressar do trabalho, esta tinha vestido uma confortável calça de lã e uma malha de cashemir de um tom azul escuro. Usava o cabelo cor de ébano solto, quase até os ombros.

-É tão linda, Deborah. Não lhe digo com bastante freqüência.

Ela arqueou uma sobrancelha. Era um sedutor, encantador e inteligente. Mas ela também era.

-Nada de evasivas, Gage. Até agora conseguiu evitar contar tudo que sabe, mas...

-Esteve o dia todo no tribunal -cortou-lhe- Ou em reuniões.

-Isso não é desculpa. Agora estou aqui.

-Certamente - aproximou-se, passou as mãos por entre seus braços e lhe rodeou a cintura. Sorria quando seus lábios roçaram nos dela-. Oi.

Mais de dois anos de casados não tinham diluído a reação que o marido provocava nela. Entreabriu os lábios, mas se conteve a tempo e retrocedeu.

-Não, não conseguirá. Considere-se sob juramento na cadeira das testemunhas, Guthrie. Me solte. Sei que esteve lá.

-Estive lá -a irritação dançou em seus olhos antes de voltar para servir um copo de água mineral para Deborah. “Sim, estive lá”, pensou. « Tarde demais ».

Tinha sua própria maneira de combater o lado escuro de Urbana. O dom, ou a maldição, que tinha recebido depois de sobreviver ao que deveria ter sido um disparo fatal, proporcionava-lhe uma vantagem. Tinha sido um policial por muito tempo para poder fechar os olhos à injustiça. Nesse momento, com a carta caprichosa que lhe tinha dado o destino, lutava contra o crime a sua maneira, com seu talento especial.

Deborah o observou baixar o olhar para a sua mão e flexioná-la. Era um velho costume, que indicava que ele meditava sobre sua condição.

E quando isso sucedia, transformava-se em Némesis, uma sombra que percorria as ruas de Urbana, uma sombra que tinha entrado em sua vida e em seu coração, tão real e querida como o homem que tinha diante ela.

-Estive lá -repetiu, servindo-se de um copo de vinho-. Mas cheguei tarde demais para fazer algo. Nem cinco minutos antes que os bombeiros.

-Não pode ser sempre o primeiro, Gage -murmurou Deborah-. Nem sequer Némesis é onipotente.

-Não -lhe passou o copo-. A questão é que não vi quem iniciou o fogo. Nem sei se foi provocado.

-Mas acredita que sim.

-Tenho uma mente desconfiada -sorriu outra vez.

-E eu -brindou com a taça-. Quem me dera tivesse algo que pudesse fazer por Natalie. Pôs muito empenho em seguir adiante com a nova empresa.

-Já está fazendo algo -afirmou Gage-. Está aqui. E ela lutará.

-Pode contar com isso -balançou a cabeça-. Suponho que ontem à noite ninguém o viu perto do armazém, não?

-Você supõe?

-Imagino que nunca conseguirei acostumar-me -suspirou. Quando soou a campainha, deixou o copo- Eu vou -correu à porta e recebeu Natalie com os braços abertos-. Fico feliz que tenha podido vir.

-Não perderia um prato do Frank por nada do mundo -decidida a mostrar alegria, deu um beijo, depois voltaram ao salão abraçadas. Ofereceu a seu anfitrião um sorriso brilhante-. Oi, bonitão -também deu um beijo em Gage, aceitou o copo que ele entregou e se sentou junto ao fogo. Suspirou. Era uma bela casa e um belo casal, que compartilhava um amor profundo.

-Como está? - perguntou Deborah.

-Bem, encanta-me um desafio, e este é grande. A questão é que Lady's Choice inaugurará dentro de três semanas.

-Tive a impressão de que tinha perdido muita mercadoria -comentou Gage. Oculto pela sombra de seu dom, a noite anterior a tinha visto chegar ao local do incêndio-. Como também o armazém.

-Há outros edifícios -de fato, já tinha decidido comprar outro armazém. Mesmo depois que recebesse o seguro, os benefícios calculados para aquele ano se reduziriam. Mas já estava se encarregando de compensá-los-. Vamos trabalhar horas extra para minimizar as perdas. E posso trazer mais material de outros lugares, entre eles de nossa loja principal de Urbana. Pretendo que seja um sucesso -bebeu o vinho e repassou mentalmente os detalhes-. Tenho Donald colado ao telefone. Com sua habilidade como relações públicas, é o melhor qualificado para suplicar e pedir tempo. Melvin já empreendeu o vôo a quatro cidades para saquear nossas outras fábricas e lojas. É o melhor para calcular quem pode disponibilizar a mercadoria. E Deirdre trabalha nos números. Eu falei com os chefes sindicais e com alguns trabalhadores. Pretendo voltar a uma plena produção em quarenta e oito horas.

-Se alguém pode fazê-lo... -Gage brindou por ela. Ele mesmo era um homem de negócios... entre outras coisas. E sabia exatamente o trabalho, o risco e o suor que Natalie enfrentaria dali para frente-. Já sabe alguma coisa a mais sobre o incêndio?

-Não especificamente -com o cenho franzido, observou as chamas da lareira. Pareciam tão inofensivas e atraentes-. Falei com o investigador algumas vezes. Insinua, interroga e, por todos os santos, irrita. Mas não se compromete.

-Ryan Piasecki -comentou Deborah, e foi sua vez de sorrir-. Hoje dediquei alguns minutos para pesquisá-lo. Pensei que poderia lhe interessar.

-Bendita seja -adiantou-se-. Qual é a história?

-Está a quinze anos no departamento de bombeiros. Durante dez, ele mesmo combateu o fogo até ascender a tenente. Tem um par de manchas em seu histórico.

-Sério? -Natalie sorriu.

-Ao que parece golpeou um vereador no palco de um incêndio. Rompeu-lhe a mandíbula.

-Tendências violentas -murmurou-. Imaginei.

-Era o que chamam de fogo de classe C -prosseguiu Deborah-. Foi numa indústria química. Piasecki se encontrava com a companhia dezoito, a primeira a responder ao alarme. Não tinham nenhum respaldo... pelos cortes econômicos -adicionou quando Natalie franziu o cenho-. Sua equipe perdeu três homens naquele incêndio, e mais dois ficaram com queimaduras críticas. O vereador apareceu com a imprensa e começou a pontificar sobre o grande funcionamento do nosso sistema...

-Suponho que eu mesma teria lhe dado um murro -teve que reconhecer Natalie.

-Sofreu outra ação disciplinadora quando irrompeu no escritório do prefeito com uma bolsa cheia de entulhos de um instituto, que verteu sobre sua escrivaninha. Era de um edifício de baixa renda situado no distrito oeste, que acabava de passar pela inspeção municipal, ainda que a instalação elétrica estivesse defeituosa e a caldeira avariada, ele foi classificado como seguro. Carecia de alarmes de incêndio e de saídas de emergência. Morreram vinte pessoas.

-Queria que me confirmasse que meu instinto não está equivocado -murmurou-. Que tinha um bom motivo para detestá-lo.

-Sinto -Deborah tinha desenvolvido um ponto fraco pelos homens que lutavam contra o crime e a corrupção de forma tão pouco tradicional. Olhou para Gage com ternura.

-Bom -suspirou Natalie-. O que tem mais sobre ele?

-Passou para o departamento de investigação faz cinco anos. Tem fama de ser abrasivo, agressivo e irritante.

-Isso é melhor.

-E de ter o olfato de um cão de caça, os olhos de um falcão e a tenacidade de um bull terrier. Não pára de perguntar até ter respostas. Jamais tive que chamá-lo para testemunhar, mas já lhe fiz algumas perguntas. Não se deixa apanhar. É inteligente. Anota tudo. Tudo. E o recorda. Tem trinta e seis anos, está divorciado. É um jogador de equipe que prefere trabalhar sozinho.

- Suponho que saber que estou em mãos competentes deveria fazer que me sentisse melhor -moveu os ombros-. Mas não é assim. Agradeço pelo perfil.

-De nada -calou-se ao ouvir o pranto através do transmissor infantil que tinha ao lado-. Parece que a chefona acordou. Não, irei eu -disse ao ver que Gage se levantava-. Só quer companhia.

-Vou poder vê-la? -perguntou Natalie.

-Claro, venha.

-Direi a Frank que atrase o jantar até que tenha terminado -com o cenho franzido, Gage observou Natalie subir com sua mulher.

-Sabe? - comentou Natalie ao se dirigir para o quarto da pequena-, está fabulosa. Não sei como consegue. Tem uma carreira exigente, um marido dinâmico e todas as obrigações sociais que vem com isso, e a adorável Adrianna.

-Poderia dizer que tudo se resume em dirigir bem seu tempo e em estabelecer prioridades -com um sorriso, abriu a porta-. Mas na realidade se reduz à paixão. Pelo trabalho, por Gage, por nossa Addy. Se a paixão comanda sua vida não há nada que não possa conseguir.

O quarto infantil era uma sinfonia de cor. Os murais do teto narravam histórias de princesas e cavalos mágicos. Os tons primários iluminavam as paredes e se fundiam em arco-íris. Com as mãos apoiadas no balaústre do berço e as pernas trêmulas, Addy exibia uma careta de desgosto.

-Oh, querida -Deborah a pegou no colo -. Aqui está você, sozinha e molhada.

-Mamãe -a careta se transformou num sorriso radiante.

Natalie observou a amiga colocar a menina no fraldário.

-Cada vez que a vejo está mais bonita -com suavidade acariciou o cabelo escuro do bebê. Feliz com a atenção que recebia, Addy moveu os pés e começou a balbuciar.

-Estamos pensando em ter outro.

-Outro? -Natalie piscou-. Tão cedo?

-Bem, ainda nos encontramos na fase da indecisão. Ainda que na realidade nos gostaríamos de ter três filhos -deu um beijo na curva delicada do pescoço de Addy, rindo, deliciada, quando a pequena agarrou seu cabelo-. Encanta-me ser mãe.

-Percebo. Me permite? -uma vez mudado a fralda, Natalie pegou ela no colo.

Descobriu que sentia inveja por esse pequeno milagre que encaixava tão bem em seus braços.

 

Dois dias mais tarde, Natalie se achava diante de sua escrivaninha, com uma dor de cabeça que martelava por trás de seus olhos. Não importava. Impulsionava-a seguir adiante.

-Se o mecânico não pode consertar as máquinas, compre algumas novas. Quero cada costureira trabalhando. Não, amanhã pela tarde não é o bastante- passou o telefone ao outro ouvido-. Hoje. Estarei presente à 1h da tarde para comprovar o novo inventário. Sei que está uma loucura. Que continue assim -desligou e olhou para seus três colaboradores-. Donald?

Ele passou uma mão pelo cabelo.

-O primeiro anúncio sairá no sábado na Times. Página inteira, em três cores. O anúncio, com as variações necessárias, aparecerá simultaneamente em outras cidades.

-As mudanças que queria?

-Realizadas. Os catálogos saíram hoje. Estão magníficos.

-Sim -satisfeita, baixou o olhar para o brilhante catálogo que tinha sobre a mesa-. Melvin?

Tal como era seu costume, Melvin Glasky tirou os pequenos óculos e limpou os cristais enquanto falava. Tinha cinqüenta e poucos anos, adepto a observação de passarinhos e ao golfe. Era de compleição delgada e de bochechas rosadas, e exibia um peruca que ingenuamente acreditava ser seu pequeno segredo.

-Atlanta parece ser a melhor opção -seus óculos brilharam como diamantes quando voltou a equilibrá-los sobre o nariz-. A diretora de Chicago defendeu seu estoque com unhas afiadas. Não queria ceder nem um sutiã.

-E?

-Joguei a culpa em você.

-Com certeza -se recostou na cadeira e sorriu divertida.

-Disse que queria o dobro da quantidade que me pediu. O qual me deu amplo espaço para negociar. Comentou que podia pegar os catálogos. Mostrei-me de acordo - os olhos brilharam -. Então lhes expus que para você os catálogos eram sagrados. Que não trocaria nenhuma calcinha, porque queria que todos os pedidos estivessem prontos em 10 dias. E que você era inflexível.

Ela voltou a sorrir. Nos dezoito meses que levavam trabalhando juntos nesse projeto, tinha chegado a adorar a Melvin.

-E sou.

-Assim eu lhe disse que me arriscaria em aceitar a metade do que você tinha me ordenado.

-  Seria um político esplêndido, Melvin.

-E acredita que sou? Em todo caso, tem aproximadamente cinqüenta por cento do inventário de volta na loja principal.

-Lhe devo uma. Deirdre?

-Passei os aumentos de contra-cheque e os gastos de material projetados -Deirdre Marks jogou o cabelo por trás dos ombros. Tinha uma mente tão rápida e controlada como um computador de última geração-. Também os gastos para a nova localização e o equipamento. Com os bônus por incentivos que autorizou, estaremos no vermelho. Fiz gráficos...

- Já os vi- refletindo sobre as opções que tinha disponíveis, Natalie esfregou a nuca - O dinheiro do seguro, quando o recebermos, valerá para alguma coisa. Estou disposta a arriscar e incrementar, para que isto funcione.

- De um ponto de vista meramente financeiro- continuou Deirdre - Qualquer benefício parece distante. Ao menos em um futuro imediato. Apenas as vendas dos primeiros anos teriam que superar...- encolheu os ombros diante da expressão obstinada de Natalie - Tem os números.

- Sim, e agradeço o trabalho adicional. Por sorte, pedi a Maureen que tirasse cópias das prioridades - estreitou os olhos e uniu as mãos- Estou bem consciente de a maioria das novas empresas fecham no primeiro ano. Mas não seremos uma delas. Não busco benefícios a curto prazo e sim um sucesso a longo prazo. Pretendo que Lady's Choice esteja no topo das indústrias da moda em dez anos. Desse modo não penso em dar um passo para trás ao me deparar com o primeiro obstáculo real - ao som do telefone interno apertou uma tecla- Sim Maureen?

- O inspetor Piasecki está aqui e gostaria de vê-la senhorita Fletcher. Não tem hora marcada.

De forma automática estudou a agenda sobre a mesa. Podia lhe dedicar 15 minutos e ainda chegar a tempo ao novo armazém.

- Temos que acabar com isso de uma vez - olhou seus colaboradores - Faça-o entrar, Maureen.

Ry preferia reunir-se com os amigos e inimigos em um território desses. Todavia não havia decidido em que categoria se encaixava Natalie Fletcher. Sem dúvida havia decidido passar em seu escritório para observar pessoalmente essa parte de seu negócio.

Não podia dizer que se sentia decepcionado. Pensou que era um ambiente elegante para uma proprietária elegante. Tapetes felpudos, muito vidros, cores suaves, cadeiras confortáveis na recepção. Quadro originais nas paredes e plantas naturais.

E sua bonita secretária trabalhava com um equipamento de última geração.

O escritório também não foi uma surpresa. O rápido estudo que realizou mostrou um carpete felpudo de cor azul, paredes pintadas de rosa e decoradas com arte moderna que particularmente nunca o havia interessado. Exibia móveis antigos.

Imaginou que a mesa devia ser européia. Estava cheio de entalhes e curvas. Viu Natalie sentada atrás dessa, com um de suas roupas elegantes e uma ampla janela de vidro fumê a suas costas.

Outras três pessoas se achavam de pé ao seu redor, como soldados prontos para se colocarem em guarda a uma ordem que ela proferisse. Reconheceu o homem jovem como o mesmo que ela tinha abraçado no lugar do incêndio. Terno sob medida, sapatos negros reluzentes, nó da gravata perfeito, cara bonita, cabelo bem penteado e mãos suaves.

O segundo homem era maior e parecia a ponto de esboçar um sorriso. Usava uma gravata borboleta e um peruca medíocre.

A mulher parecia um contraste perfeito de sua chefe. Jaqueta ampla, meio amassada, sapatos de saltos baixos, cabelo em desalinho que não sabia se queria ser vermelho ou castanho. Julgou que se achava próxima aos quarenta, e não muito interessada em lutar contra a idade.

-Inspetor -Natalie esperou dez segundos antes de se levantar e estender a mão.

-Senhorita Fletcher -de forma mecânica apertou os dedos longos e delgados.

-O inspetor Piasecki está investigando o incêndio do armazém - com seu uniforme habitual de jeans e camisa de flanela, notou. Será que a cidade não lhe dava um traje oficial?-. Inspetor, apresento a você três de meus melhores executivos... Donald Hawthorne, Melvin Glasky e Deirdre Marks.

Ry assentiu encarando-os e depois centrou sua atenção em Natalie.

-Eu pensava que uma mulher inteligente como você teria sensatez suficiente para não instalar seu escritório no andar quarenta e dois.

-Perdão??

-Faz com que o resgate seja infernal... não só para você, mas para todo o departamento de bombeiros. É impossível trazer uma escada até aqui. Essa janela é decorativa, não serve para ventilação ou saída de emergência. Teria que descer quarenta e dois andares, por uma escada que, sem dúvida, estaria cheia de fumaça.

Natalie voltou a se sentar, sem convidá-lo a fazer o mesmo.

-Este edifício está equipado com todos os aparelhos de segurança necessários. Aspersores, detectores de fumaça, extintores.

-Como o seu armazém, Senhorita Fletcher -sorriu.

Ela sentiu que a dor de cabeça retornava duplamente mais forte.

-Inspetor, veio até aqui para me pôr em dia a respeito de sua investigação ou para criticar meu lugar de trabalho?

-Posso fazer ambas as coisas.

-Poderiam nos desculpar? -Natalie olhou para os três sócios. Quando a porta se fechou atrás deles, indicou um cadeira. -Vamos amenizar o ambiente. Não vou com a sua cara e nem você com a minha. Mas temos um objetivo comum. Com freqüência trabalho com pessoas que me são indiferentes num plano pessoal. Isso não me impede de realizar meu trabalho - inclinou a cabeça para olhá-lo com o que considerou uma expressão fria-. E você?

-Não.

-Bem. E agora o que tem para me dizer?

-Acabo de completar meu relatório. Já não há suspeita mais em relação ao incêndio. Foi provocado.

Apesar de ser uma notícia esperada, sentiu um nó no estômago.

-Não há nenhuma dúvida? -moveu a cabeça antes de que ele pudesse falar-Não, não há. Fui informada que você é muito minucioso.

-É? Deveria tomar uma aspirina antes que abra um buraco em sua cabeça.

Irritada, baixou a mão que massageava a nuca.

-Qual é o passo seguinte? -Tenho uma causa, o método e o ponto de origem. Quero o motivo.

-Não há pessoas que iniciam incêndios pelo simples prazer que isso as proporciona? Porque se sentem impulsionadas a fazê-lo?

-Claro – ia pegar um cigarro, mas notou que não tinha nenhum cinzeiro à vista-. Pode ser que seja um aficionado. Ou talvez um piromaníaco contratado. Tinha um seguro suculento, Senhorita Fletcher.

- Com certeza. E tinha uma boa razão para isso. Só em maquinários e mercadoria perdi mais de um milhão e meio de dólares.

-A indenizarão com muito mais.

-Se conhecesse algo sobre as propriedades, inspetor, seria consciente de que o edifício era valioso. Se está procurando uma fraude aqui, está perdendo seu tempo.

-Tenho tempo - levantou-. Vou precisar de uma declaração, Senhorita Fletcher. Oficial. Amanhã em meu escritório, às duas.

-Posso dar uma aqui e agora -também se levantou.

-Em meu escritório, Senhorita Fletcher -tirou um cartão do bolso e depositou sobre a mesa-. Olhe por este lado, se está limpa. Quanto antes acabarmos com isso melhor e terá seu seguro muito mais rápido.

-Muito bem -recolheu o cartão e o guardou no bolso do traje-. Quanto antes, melhor. É tudo no momento, inspetor?

-Sim -baixou o olhar para o catálogo que tinha sobre a mesa. Uma modelo com a pele de porcelana estava acomodada sobre um sofá de veludo, exibindo uma camisola vermelha sem costas e ligas tentadoras sobre o corpo -. Bonito -olhou para Natalie-. Uma forma elegante de vender sexo.

-Romance, inspetor. Algumas pessoas ainda apreciam.

-E você?

-Não creio que isso seja importante.

-Me pergunto se você acredita no que vende ou é apenas uma forma de ganhar dinheiro - do mesmo jeito que se perguntava se ela usaria seus próprios conjuntos embaixo daquela traje severo.

-Então satisfarei sua curiosidade, inspetor. Sempre acredito no que vendo. Além disso tenho a satisfação de ganhar o dinheiro, algo que faço muito bem -ergueu o catálogo e o ofereceu - Por que não o leva? Todas nossas mercadorias trazem uma garantia absoluta. O número do atendimento ao cliente, gratuito, estará operando na segunda-feira - se esperava que ele o recusasse, ficou decepcionada.

-Obrigado -Ry enrolou o catálogo e o meteu no bolso.

-E agora, se me perdoar, tenho uma reunião.

Deu a volta na mesa, algo que ele tinha esperado. Sem importar o que pensasse dela, gostava de suas pernas.

-Precisa que eu a deixe em algum lugar?

-Não -surpresa, voltou-se para o armário pequeno que tinha num canto do escritório. -Tenho carro - ficou mais surpresa quando ele se aproximou para ajudá-la com o casaco. As mãos masculinas demoraram alguns segundos em seus ombros.

-Está estressada, Senhorita Fletcher.

-Estou ocupada, inspetor - ao virar-se irritou-se por ter que retroceder um passo para não chocar-se contra ele.

-E nervosa -adicionou com um sorriso satisfeito. Perguntou-se se ela também seria consciente de sua presença como ele era da dela.-. Um homem perspicaz poderia considerar isso apenas um bom argumento. E por casualidade, eu o sou. Então, sabe no que acredito?

-Ficaria encantada de saber -ao que parece o sarcasmo não o afetava, já que continuava a ostentar o sorriso.

-Acredito que você seja assim. Tensa e nervosa. Exibe muito controle e sabe como manter o fogo na linha. Mas de vez em quando não consegue reprimi-lo. E quando isso acontece pode-se observar um resultado muito interessante.

Natalie pôde sentir que estava num desses momentos.

-Sabe no que acredito, inspetor?

-Estou certo de que me encantaria saber, Senhorita Fletcher -a covinha, que deveria ter estado fora de lugar em seu rosto forte, acentuou-se.

-Acredito que é um homem arrogante, de mente estreita e intragável, que tem estima demais por si mesmo.

-Eu diria que ambos estamos com a razão.

-E que bloqueia meu caminho.

-Também tem razão sobre isso -mas não se moveu-. Maldição, tem um rosto deslumbrante.

-Perdão? -ela piscou.

-Uma observação. É uma mulher muito elegante -seus dedos almejavam tocá-la, desse modo enfiou as mãos nos bolsos para contê-los. A tinha desconcertado. Era óbvio pelo jeito que o olhava, entre horrorizada e intrigada. Não viu motivo para não aproveitar-se disso-. Para um homem, é difícil não se deixar levar pela fantasia depois de tê-la visto. E eu já pude vê-la de perto duas vezes.

-Não acredito... -só o orgulho a impediu de não retroceder. Ou avançar-. Não acredito que isso seja apropriado.

-Se alguma vez chegarmos a nos conhecer melhor, descobrirá que isso não ocupa um posto elevado em minha lista de prioridades. Diga-me uma coisa, Hawthorne e você mantêm uma relação pessoal?

-Donald? -os olhos dele, escuros, intensos e próximos a deslumbraram por um momento. -Certamente que não -irritada, se conteve -. Não é assunto seu.- A resposta dela o satisfez, tanto no profissional como no pessoal.

-Tudo sobre você é assunto meu.

-Desse modo essa lamentável conversa que estamos tendo é uma desculpa para que me incrimine? -levantou o queixo com os olhos brilhantes.

-Para mim não pareceu tão lamentável. De um ponto de vista profissional, funcionou.

-Poderia ter mentido.

-Antes de mentir tem que pensar. E você não pensou - gostava da idéia de poder surpreendê-la, por isso decidiu pressionar um pouco mais-. Por casualidade e num plano estritamente profissional, gosto da sua aparência. Mas não se preocupe, isso não interferirá em meu trabalho.

-Não gosto de você, inspetor Piasecki.

-Já disse isso -estendeu a mão e fechou seu casaco-. Abotoe. Faz frio lá fora. Em meu escritório -acrescentou ao dirigir-se para a porta-. Amanhã às duas da tarde.

Andou pelo corredor, pensando nela. « Natalie Fletcher, um cérebro de primeira numa fachada de primeira ». Talvez tivesse incendiado seu próprio edifício para obter um benefício rápido. Não seria a primeira nem a última em fazê-lo.

Mas seu instinto lhe dizia que não.

Não lhe dava a impressão de ser uma mulher que procurasse atalhos.

Entrou no elevador, cujo espelho lhe devolveu sua própria imagem.

Tudo nela era de primeira. E em seu passado não encaixava uma fraude. As Indústrias Fletcher gerava benefícios suficientes ao ano para comprar alguns países do Terceiro Mundo. Esse novo ramo da empresa era o projeto pessoal dela, e ainda que fechasse no primeiro ano, não sacudiria os alicerces da corporação.

Com certeza, tinha que analisar a participação emocional. O mesmo instinto lhe disse que estava pessoalmente muito envolvida com sua nova empresa. Isso bastava para tentar tirar um ganho rápido a fim de salvar um investimento arriscado.

Mas seguia sem combinar com sua imagem.

Talvez outra pessoa da empresa. Ou um competidor com a esperança de sabotar seu negócio antes que fizesse sucesso. Ou um piromaníaco clássico.

Fosse o que fosse, averiguaria.

E enquanto isso, teria a satisfação de sacudir as barras da jaula de Natalie Fletcher.

« Uma dama elegante », pensou. Imaginou que superaria qualquer modelo com sua própria lingerie.

O bip que levava no cinto soou quando o elevador desceu. « Outro incêndio », concluiu, dirigindo-se ao telefone mais próximo. Sempre havia outro incêndio.

 

Ry a fez esperar quinze minutos. Era uma estratégia regular, que ela mesma tinha empregado com freqüência para desequilibrar um oponente. Estava decidida a não cair na armadilha.

Nem sequer tinha espaço suficiente na maldita sala que ele chamava de escritório.

Trabalhava num dos quartéis de bombeiros mais antigos da cidade, com dois andares em cima da garagem onde estavam os carros, numa pequena caixa envidraçada que oferecia uma vista pouco inspiradora de um estacionamento em mau estado e edifícios meio descompostos.

No sala adjacente, Natalie podia ver uma mulher digitando de forma incessante em uma máquina de escrever numa mesa lotada de pastas e formulários. Todas as paredes eram de um amarelo sujo que, décadas atrás, poderia ter sido branco. Estavam cobertas com fotos de incêndios, algumas sombrias o bastante para que desviasse o rosto, boletins, folhetos e algumas divertidas frases de gosto duvidoso.

Era evidente que Ry não tinha problemas com o humor típico de sua profissão.

As prateleiras de metal estavam repleta de livros, pastas, panfletos e alguns troféus, cada um coroado com a estatueta de um jogador de basquete. Com uma careta também notou a poeira. A mesa dele, pouco maior que uma caixa de papelão e cheia de marcas, tinha uma perna mais curta apoiada num exemplar de bolso do livro Ratos e Homens.

Nem sequer mostrava respeito por Steinbeck.

Levantou-se para analisar a mesa, onde não se observava nenhuma foto. Nenhuma recordação pessoal. Só clipes, lápis quebrados, um gravador e um caos ridículo de papéis desorganizados. Empurrou alguns e retrocedeu horrorizada ao descobrir a cabeça decapitada de uma boneca.

Se não tivesse sido tão horrível, poderia ter rido. O único olho azul que lhe restava a olhava fixamente.

-Recordações -disse Ry da porta. Estava há alguns minutos observando-a. -De um incêndio de classe A do começo dos anos sessenta. A menina sobreviveu -baixou o olhar até a cabeça da mesa-. Em melhor forma do que sua boneca.

-É horrível -não pôde evitar experimentar um arrepio.

-Sim, foi. O pai da criança iniciou o fogo na sala com uma lata de querosene. A mulher queria o divórcio. Quando ele terminou, já não importava.

Natalie imaginou se era necessário demonstrar tanta frieza com o desfecho do acontecido.

-Tem um trabalho triste, inspetor.

-Por isso me fascina -olhou em direção da porta quando esta se abriu-. Sente-se. Já vou conversar com você -fechou a porta do escritório antes de voltar-se para o bombeiro uniformizado que tinha aparecido a suas costas.

Através do vidro, Natalie captou o murmúrio de vozes. Não precisou ouvir Ry levantar a sua, como fez quase de imediato, para saber que o jovem bombeiro recebia uma reprimenda daquelas.

-Quem o mandou abrir a parede, calouro?

-Senhor, pensei...

-Os novatos não pensam. Não é inteligente o bastante para pensar. Se fosse, saberia que o ar conduz o fogo. Saberia o que podia acontecer se deixasse o ar passar e tivesse uma maldita poça de combustível sob suas botas.

-Sim senhor. Eu sei. Não o vi. A fumaça...

-Será melhor que aprenda a ver através da fumaça. Será melhor que aprenda a ver através de tudo. E quando o fogo estiver subindo pela maldita parede, não assuma a tarefa de dar-lhe uma maldita saída enquanto está de pé sobre um catalisador. Tem sorte de estar com vida, novato, e também a equipe de homens que teve a má sorte de trabalhar com você.

-Sim, senhor.Eu sei, senhor.

-Não sabe de nada. É a primeira coisa que deve se lembrar da próxima vez que for comer fumaça. E agora suma daqui.

Natalie cruzou as pernas quando Ry entrou na sala.

-Você é um diplomata nato. Esse garoto não deve ter mais de vinte anos.

-Seria agradável que atingisse a velhice, não? -com um movimento da mão, baixou a persiana, isolando-os.

-Sua técnica faz que eu lamente não ter vindo acompanhada de um advogado.

-Relaxe - aproximou-se da mesa e abriu algumas pastas-. Não tenho autoridade para prender, só para pesquisar.

-Bom, já dormirei mais tranqüila - deu uma olhada prolongada ao relógio-. Quanto tempo acredita que vamos demorar? Já perdi vinte minutos.

-Estive detido - sentou e abriu a bolsa com que tinha entrado-. Comeu?

-Não -semicerrou os olhos ao vê-lo tirar um envoltório que cheirava deliciosamente -. Quer dizer que me deixou esperando enquanto ia comprar um sanduíche?

-Me pegaram de passagem - ofereceu a metade do sanduíche de carne assada e pão de centeio-. Também tenho dois cafés.

-Aceito o café. Fique com o sanduíche.

-Como queira - passou uma pequena xícara coberta para ela-. Importa se gravo a entrevista?

-Prefiro.

Enquanto comia com uma mão, abriu uma gaveta e tirou um gravador.

-Deve possuir um armário cheio dessas roupas -o que usava nesse momento era da cor das framboesas, e tinha uma carreira de botões dourados na lateral esquerda da saia- Veste-se de outro jeito em algum momento?

-Desculpe?

-Mantenho uma conversa superficial, Senhorita Fletcher.

-Não vim para isso. E não me chame de Senhorita Fletcher desse modo, é irritante.

-Não há problema, Natalie. Chame-me Ry -ligou a gravadora e começou recitando a hora, a data e o lugar da entrevista. Apesar disso, tirou um bloco e um lápis-. Esta entrevista está sendo conduzida pelo inspetor Ryan Piasecki com Natalie Fletcher, pelo incêndio acontecido num armazém das Indústrias Fletcher no 21 da South Harbor Avenue, em doze de fevereiro deste ano -bebeu um gole de café-. Senhorita Fletcher, você é a proprietária do edifício antes mencionado e de seu conteúdo.

-O edifício e seu conteúdo são... eram propriedade de Indústrias Fletcher, das quais eu sou representante executiva.

-E desde quanto era propriedade de sua companhia?

-Oito anos. Antes era empregado para armazenar bens de Fretes Fletcher.

-E agora?

-Fretes Fletcher se mudou para outra localização -relaxou um pouco. Ia ser algo rotineiro. Negócios-. O armazém foi reformado há uns dois anos para albergar uma nova empresa. Utilizávamos o edifício para a fabricação e armazenamento de mercadorias para Lady's Choice. Fazemos lingerie feminina.

-Qual o horário de funcionamento?

-No geral das oito as seis, de segunda-feira a sexta-feira. Nos últimos seis meses, ampliamos para incluir os sábados, das oito ao meio-dia.

Ele continuou comendo, fazendo perguntas correntes sobre a prática do negócio, a segurança e algum problema de vandalismo. As respostas dela foram rápidas, frias e concisas.

-Trabalha com vários provedores?

-Sim. Mas só com empresas americanas. Essa é uma política firme que temos.

-Incrementa os gastos.

-A curto prazo. Com o tempo acredito que a empresa gerará benefícios para justificá-lo.

-Dedicou muito tempo pessoal a este projeto. Teve muitos gastos e investiu seu próprio dinheiro.

-Está certo.

-O que acontecerá se o negócio não atingir o nível de suas expectativas?

-O fará.

-E se não? - recostou na cadeira, desfrutando do que lhe restava de seu café.

-Então terei perdido meu tempo e meu dinheiro.

-Quando foi a última vez que esteve no armazém, antes do incêndio?

A mudança súbita de tema a tinha surpreendido, ainda que não a fizesse vacilar.

-Três dias antes do incêndio fui para uma inspeção rotineira.

-Notou que faltava algo? -apontou a data.

-Não.

-Equipamento danificado?

-Não.

-Alguma falha na segurança?

-Não. Caso contrário, teria reparado de imediato -talvez a considerava idiota?- O trabalho ia segundo o previsto, e os produtos que vistoriei estavam em perfeitas condições.

-Não revisou tudo? -a olhou nos olhos.

-Realizei uma inspeção superficial, inspetor -sabia que a intenção de seu olhar era incomodá-la. Negou-se a permitir-. Não é uma atividade produtiva perder tempo examinando cada camisola ou liga.

-O edifício foi vistoriado em novembro. Cumpria todas as regulamentações de incêndios?

-Sim.

-Pode explicar como então, a noite do incêndio, os aspersores e o sistemas de detecção da fumaça estavam inoperantes?

-Inoperantes? -o coração bateu mais depressa-. Não sei muito bem a que se refere.

-Tinham sido manipulados, Senhorita Fletcher. Bem como seu sistema de segurança.

-Não, não posso explicar -não afastou os olhos dele-. E você?

Ry tirou um cigarro do bolso e acendeu um fósforo de madeira com a unha do dedo polegar.

-Tem algum inimigo?

-Inimigo? -repetiu, desconcertada.

-Alguém a quem gostaria de vê-la fracassar, no âmbito pessoal ou profissional?

-Eu... Não, pessoalmente não me ocorre ninguém -a idéia a deixou aturdida. Passou uma mão pelo cabelo-. Talvez, tenho competidores...

-Alguém que tenha insinuado problemas?

-Não.

-Empregados descontentes? Despediu alguém ultimamente?

-Não. Não posso falar de todos os níveis da organização. Tenho diretores que dispõem de autonomia em seus próprios departamentos, mas não chegou nada até a minha pessoa.

Ele seguiu fumando enquanto fazia perguntas e tomava notas. Ao terminar a entrevista, mencionou a hora de conclusão e desligou a gravadora.

-Esta manhã falei com seu agente de seguros -a informou-. E com seu guarda de segurança. Tenho preparada uma entrevista com o capataz do armazém -quando ela não respondeu, apagou o cigarro-. Quer um pouco de água?

-Não -soltou o ar-. Obrigada. Acredita que sou responsável?

-O que sei aparece no relatório, não o que acredito.

- Pois quero saber -ficou de pé-. Estou pedindo para você dizer o que pensa.

O primeira coisa que passou pela mente dele foi que esse lugar não era para ela. Não esse pequeno escritório que cheirava ao que estivessem cozinhando os homens lá embaixo. O lugar dela era na sala de reunião e no quarto. Tinha certeza de que era igualmente hábil em ambos os lugares.

-Não sei, Natalie, talvez seja sua carinha bonita que afeta meu juízo. Mas não, não a considero responsável. Se sente melhor?

-Não muito. Suponho que a única escolha que me sobra é depender de você para que encontre quem fez e averigue o porquê -suspirou-. Apesar de me aborrecer demais, tenho a impressão que é o homem adequado para o trabalho.

-Um elogio, e tão cedo em nossa relação.

-Com um pouco de sorte, será o primeiro e o último - inclinou para recolher a valise. Mas Ry se moveu com agilidade e silêncio. Antes que pudesse levantá-la, a mão dele se fechou sobre a sua na correia da valise.

-Respire um pouco.

Ela flexionou a mão uma vez e sentiu a palma dura e com calos de Ry, depois ficou quieta.

-Perdão?

-Está ansiosa, Natalie. Precisa relaxar.

O que seria pouco provável se ele continuasse mantendo aquele contato.

-O que preciso é voltar para meu trabalho. Bom, se isso é tudo, inspetor...

-Pensei que tínhamos estabelecido uma acordo para que nos chamássemos pelos nossos primeiros nomes. Venha, quero lhe mostrar algo.

-Não disponho de tempo -começou a dizer enquanto ele a escoltava para fora da sala-. Tenho um compromisso agora mesmo.

-Sempre tem um. Nunca chega atrasada?

-Não.

-É a fantasia de todo homem. Uma mulher bonita, inteligente e pontual -a levava escadas abaixo-. Qual é a sua altura sem esses saltos?

-Bastante alta -arqueou uma sobrancelha.

Ry se deteve um degrau abaixo dela e se voltou. Seus olhos e bocas ficaram frente a frente, alinhados.

-Sim, podemos dizer que é alta o bastante - e a puxava como teria feito com uma mula teimosa.

 

Da cozinha vinham aromas. Essa noite tinha chile no cardápio. Alguns homens analisavam o equipamento de um dos veículos. Outro enrolava uma mangueira no frio solo de cimento.

Ry foi recebido com saudações e sorrisos, Natalie com lábios franzidos e resmungos.

-Não podem evitar -a informou-. Não é todos os dias que passam por aqui mulheres como você. A ajudarei.

-O que?

-A ajudarei -repetiu ao abrir a porta de um veículo-. Não é que os rapazes não iriam apreciar o modo com que oscilaria essa saia se subisse por sua própria conta. Mas... -antes de que pudesse protestar, tomou-a pela cintura e a levantou-. Chegue para o lado -ordenou-. A não ser que prefira sentar no meu colo.

-O que faço num carro de bombeiros? -perguntou ao deslizar para o outro assento.

-Todo mundo quer subir em um, ao menos uma vez -cômodo, estendeu o braço por cima do apoio de seu assento-. E bem, o que acha?

Estudou os comandos e botões, a grande alavanca de marcha, a foto da Miss Janeiro colada no pára-brisa.

-É interessante.

-Isso é tudo?

Natalie mordeu o lábio inferior. Perguntou-se que controle ativava a sirene, e as luzes.

-De acordo, é divertido - adiantou o corpo para ver melhor pelo pára-brisa-. Estamos realmente aqui, não é? Isto é…?

Segurou sua mão antes que pudesse puxar a corda que tinha em cima da cabeça.

-A buzina -concluiu ele-. Os homens estão acostumados ao seu som, mas, acredite em mim, com a acústica deste lugar e as portas fechadas, se fizer isso soar irá se lamentar.

-Que pena - jogou o cabelo para trás ao girar o rosto para ele-. Está me mostrando seu brinquedo para que eu relaxe ou para se exibir?

-Ambas as coisas.

-Talvez não seja o imbecil que parece ser.

-Se continuar sendo agradável comigo, vou me apaixonar.

Riu e deu-se conta que quase se sentia relaxada.

- Creio que isso já ficou claro. O que o impulsionou a ocupar um carro de bombeiros durante dez anos?

-Vejo que me pesquisou.

-Está certo -o olhou-. E?

-Podemos dizer que estamos empatados. Sou um devorador de fumaça de terceira geração. Levo no sangue.

-Mmm... -Podia entender aquilo-. Mas deixou.

-Não, mudei de posto. É diferente.

Imaginou que sim, ainda que não fosse uma resposta.

-Por que guarda essa recordação em sua escrivaninha? -observou com atenção seus olhos-. Refiro-me à cabeça da boneca.

-É de meu último incêndio. Do último que combati -ainda recordava... o calor, a fumaça, os gritos-. Salvei à menina. A porta do dormitório estava fechada. Minha suposição é que ele levou a mulher a filha para lá... já sabe, se não podem viver comigo, não viverão sem mim. Tinha uma pistola. Não estava carregada, mas ela não podia saber.

-É terrível - perguntou-se se ela teria reagido a pistola, acreditava que sim, melhor uma bala rápida e mortal do que a fumaça e o fogo-. Sua própria família.

-Alguns sujeitos não encaram muito bem o divórcio - encolheu os ombros. O seu tinha sido quase indolor- As obrigou a ficar sentadas ali enquanto o fogo se descontrolava e a fumaça penetrava por baixo da porta. Era uma casa de madeira, velha. Incendiou-se como um fósforo. A mulher tinha tentado proteger à menina, a tinha protegido com o corpo em um canto da casa. Não podia tirá-las ao mesmo tempo, desse modo escolhi a menina -os olhos dele se escureceram, centrados em algo que só ele podia ver-. De qualquer modo, a mulher estava perdida. Eu sabia disso, apesar de sempre ter uma probabilidade. Descia com a menina pela escada quando o solo cedeu.

-Salvou a menina -murmurou com gentileza.

-Foi a mãe quem a salvou -jamais poderia esquecer essa devoção altruísta e sem esperança-. O filho de uma cadela que queimou a casa saltou pela janela do primeiro andar. Certo, tinha queimaduras, tinha inalado fumaça e quebrou uma perna. Mas sobreviveu.

Natalie compreendeu que ele se importava. Até então não o tinha percebido, ou não tinha querido perceber. Isso o mudava, modificava a percepção que tinha de Ry.

-E então decidiu perseguir os homens que iniciam os incêndios.

-Mais ou menos -quando soou o alarme, ergueu a cabeça como um lobo que percebe a sua presa. O pátio ganhou vida com o som de pés correndo e ordens gritadas. Ry elevou a voz acima do alarido-. Não os atrapalhemos -abriu a porta, tomou-a nos braços e desceu.

-Fábrica química -comentou alguém enquanto se misturava a equipe de proteção.

Deu a impressão que em alguns segundos os veículos saiam pelas portas com as sirenes a todo o volume.

-É muito rápido -comentou Natalie, com o pulso acelerado-. Movem-se com grande agilidade.

-Sim.

- É excitante -levou uma mão ao coração-. Não sabia. Sente falta? -o fitou e sentiu que a mão se afrouxava sobre a sua.

Ele ainda a tinha colada a seu corpo, e seus olhos estavam escuros e fixados nela.

-De vez em quando.

-Bom, é... eu deveria ir.

-Sim. Deveria ir. -mas se moveu até conseguir envolvê-la com os braços. Talvez estivesse reagindo ao som das sirenes, talvez fosse o aroma exótico e irresistível que emanava dela, mas seu sangue fervia.

E queria provar, apena suma vez, se seu sabor era tão bom quanto sua aparência.

-É uma loucura -conseguiu balbuciar Natalie. Sabia o que ele pretendia. O que ela mesma queria que fizesse-. Devo estar doente.

-Por qual você decide? -sorriu um momento antes que seus lábios cobrissem sua boca.

Não o afastou. Durante um segundo, não respondeu. Nesse instante, achou que tinha ficado paralisada, surda, muda e cega. Depois, todos seus sentidos voltaram como uma maré extravasando na praia.

A boca de Ry era dura, bem como suas mãos e seu corpo. Sentia-se aterrorizada e gloriosamente feminina colada a ele. Uma necessidade que nunca tinha estado consciente floresceu em seu interior. Deixou a valise cair no chão para enlaçá-lo com os braços.

Ele já não pensava em « uma vez ». Um homem morreria de fome depois de prová-la uma vez. Suplicaria mais. Ela era suave, forte e pecaminosamente doce, com um sabor que tentava e atormentava.

O calor irradiou de ambos enquanto o vento açoitava suas costas através das portas abertas. O som dos ruídos da rua, das buzinas e dos freios, envolvia-os, misturando-se com o gemido rouco e aturdido de Natalie.

Ry se afastou um momento para observá-la, viu-se no verde brumoso de seus olhos e voltou a reclamar sua boca.

« Não, isto não vai acontecer uma vez ».

 Ela não podia respirar. Não queria. Os lábios dele formavam palavras sobre os seus que não poderia ouvir nem entender. Pela primeira vez desde que ganhara uso de razão, só era capaz de sentir. E as sensações a invadiam com tanta velocidade, vívidas e poderosas, que a deixavam sem rumo.

Ry voltou a afastar-se, enevoado pelo que o tinha atravessado em um espaço de tempo tão curto. Estava sem fôlego, fraco, e isso o enfurecia tanto como o desconcertava. Ela permaneceu quieta, olhando-o com uma mistura de comoção e fome nos olhos.

-Sinto muito -murmurou ele, dando um passo para trás e enganchando os dedos polegares nos bolsos.

-Sente o que? -repetiu. Respirou fundo e perguntou-se se a cabeça em algum momento pararia de ficar dando voltas- Você sente muito?

- Isso mesmo - não soube se a amaldiçoava ou fazia isso a si mesmo. Maldita fosse, tinha os joelhos bambos-. Fiquei fora de mim.

-Fora de você.

Afastou o cabelo do rosto, furiosa ao descobrir que tinha a pele acalorada. Ele tinha destruído todas as suas defesas, todo o seu controle, e se atrevia a desculpar-se? Levantou o queixo e ergueu os ombros.

- Você certamente tem jeito com as palavras. Ora, inspetor, costuma beijar todos os seus suspeitos?

-Foi algo mútuo -semicerrou os olhos-, e não, você foi a primeira.

-Que sorte a minha -assombrada, indignada, estava à beira das lágrimas. Recolheu a valise-. Acredito que isto é o fim de nossa reunião.

-Um momento -resmungou quando ela continuou andando em direção a saída-. Disse um momento -a seguiu e com uma mão no braço a fez virar-se de frente para ele.

- Estou tentando não ceder a tentação de esbofeteá-lo, -soltou com os dentes apertados-, mas você está dificultando as coisas.

-Já me desculpei.

-Poupe-se.

« Seja razoável », advertiu-se. « Isso ou a beije mais uma vez ».

-Bem, Senhorita Fletcher. Você não demonstrou muita relutância - chegou à calçada antes que ele a atingisse-. Não a desejo -afirmou Ry.

Insultada e provocada além do seu controle ela encostou o dedo em seu tórax o pulo e o fitou.

-Não? Então, se importaria de me explicar o que foi aquilo que aconteceu ali atrás?

-Mal a toquei, e você disparou como um foguete. Não é minha culpa que estivesse tão necessitada.

-Necessitada? -seus olhos estavam a ponto de saltar das órbitas-. Necessitada? Arrogante, insuportável e egoísta idiota!

-Foi uma má escolha das palavras -respondeu Ry, incitando-a para colocar mais lenha ao fogo-. Eu deveria ter dito reprimida.

-Vou acabar com você.

-E - continuou sem dar atenção as suas palavras-, deveria ter acrescentado que não gosto do fato de desejá-la.

Durante um momento, Natalie se concentrou só em respirar. De nenhuma maneira pensava em fazer uma cena ali no meio da rua.

-Pois então Piasecki, esta pode ser a primeira e a última vez que concordamos com algo. Pois eu também não gosto,

-Não gosta que eu a deseje ou não gosta de me desejar?

-Ambas as coisas.

Ele assentiu e se observaram como boxeadores ao final de um assalto.

-Então resolveremos isso esta noite.

-Não.

-Natalie - prometeu a si mesmo que seria paciente, ainda que isso o matasse-, quanto quer complicar a situação?

-Não quero complicar, Ry. Quero fazer que seja impossível.

-Por quê?

Atravessou-o com um olhar desdenhoso.

-Pelo que parece que é óbvio, inclusive para você.

-Não sei o quê tem essa atitude irada em você, mas me faz sentir... Quer que seja algo tradicional, que a convide para jantar, tudo isso?

Ela fechou os olhos e rezou para manter a paciência.

-Parece que não consigo me fazer compreender -voltou a abri-los-. Não, não quero que me convide para jantar, nem nada disso. O que passou ali dentro foi...

-Selvagem. Incrível.

-Uma aberração.

-Não seria muito difícil demonstrar que esta enganada. Mas se retomássemos de onde paramos, aqui fora, provavelmente nos prenderiam antes de terminar -nesse momento Ry se comprazia do desafio. E pretendia ganhar-. Mas entendo. A assustei e agora está com medo de ficar sozinha comigo. Está com medo de perder o controle novamente.

-É pouco provável.

Ry encolheu os ombros e Natalie o estudou.

-Às oito. Em Chez Robert, na Terça. O verei lá.

-Bom.

-Bom -deu as costas - Ah, Piasecki -disse por cima do ombro-. Eles não vêem como bons modos comer com as mãos.

-Tentarei me lembrar.

 

Natalie estava segura de que tinha perdido a razão. Às sete e quarto entrou em seu apartamento. Fatos, números, projeções, gráficos, tudo rodava em sua cabeça. E o telefone soava.

Para variar, pegou o telefone sem fio e foi a caminho do dormitório.

-Sim? O que é?

-Foi assim que mamãe lhe ensinou a atender o telefone?

-Boyd -parte da tensão do dia se evaporou ao ouvir a voz do irmão-. Sinto muito. Acabo de chegar da última de várias reuniões pesadas.

-Não procure simpatia em mim. Foi você quem escolheu continuar com a tradição familiar.

-É verdade - tirou os sapatos-. Como vai a luta contra o crime e a corrupção de Denver, capitão Fletcher?

-Agüentamos. Cilla e os meninos enviam beijos e abraços.

- O mesmo de minha parte. Não vão falar comigo?

-Estou na delegacia. Me preocupei com o que aconteceu em Urbana.

-Como se inteirou tão cedo que o incêndio foi provocado? -remexeu no armário, com o telefone sustentado na curva de seu ombro-. Eu mesma acabo de sabê-lo.

-Temos nossos próprios meios. De fato, há alguns minutos estive falando com o encarregado da investigação.

-Piasecki? -atirou o vestido negro sobre a cama-. Falou com ele?

-Fazem dez minutos. Parece que está em boas mãos, Nat.

-Não se puder evitar - murmurou

- O que?

-Ao que parece conhece seu trabalho -respondeu com calma-. Ainda que seus métodos careçam de certo estilo.

-Os incêndios provocados são coisas feias. E perigosas. Preocupo-me por você minha irmãzinha.

-Esqueça. Você é ex-policial, lembra -se? - tirou a jaqueta, prometendo-se que a penduraria antes de sair-. Eu sou a presidente da torre de marfim.

-Nunca percebi que permanecesse ali. Quero que me deixe a par da investigação.

-Farei isso -com dificuldade tirou a saia e, sentindo-se culpada, deixou-a no solo-. Diga a mamãe e a papai, se falar com eles antes de mim, que tudo está sob controle. Não o aborrecerei com os detalhes financeiros...

-Lhe agradeço.

Sorriu. Boyd carecia de paciência para a contabilidade ou gráficos.

-Mas estou a ponto de adicionar outra pluma atraente ao boné de Indústrias Fletcher.

-Com roupa de baixo?

-Lingerie, querido -um pouco cambaleante, abotoou um sutiã negro sem alças-. A roupa de baixo pode se comprar num supermercado.

-Sim. Bom, vamos dizer que , num ponto de vista pessoal, Cilla e eu gostamos muito das amostras que nos mandou. Em particular gostei daquela coisa vermelha com os corações.

-Imaginei -entrou no vestido e o subiu até os quadris-. Estando tão próximo o dia dos Namorados, deveria pensar em lhe comprar o conjunto de peignoir.

-Coloque na minha conta. Quero que tenha cuidado, Nat.

-É minha intenção. Com um pouco de sorte, verei vocês no próximo mês. Irei procurar locais em Denver.

-Seu quarto sempre está preparado. E nós também estamos. Amo você.

-Eu também. Adeus.

Deixou o telefone na cama e pôde terminar de colocar o vestido. Ao virar-se para o espelho, teve que reconhecer que não era precisamente adequado para acalmar os ânimos pela forma com que caía por seus ombros e descia pela curva de seus seios.

« Reprimida? » Agitou o cabelo. « Isto vai lhe ensinar uma lição ».

O telefone voltou a soar e soltou uma praga. Escutou a primeira chamada e pegou a escova. Mas ao terceiro telefonema, rendeu-se e atendeu.

-Alô? -só uma respiração, rápida, e um riso fraco-. Oi? Há alguém aí?

-Meia-noite.

-Que? -distraída, foi até a cômoda para escolher as jóias adequadas-. Sinto muito, não entendi.

-Meia-noite. A hora das bruxas. Espere e verá.

Quando a comunicação se cortou, deixou o telefone com um movimento de cabeça. Tarados.

-Use a secretária eletrônica, Natalie -se ordenou-. Para isso está ali.

Uma olhada no relógio a fez voltar a praguejar. Esqueceu o telefonema enquanto escovava o cabelo a toda velocidade. Negava-se a chegar tarde.

 

Natalie chegou a Chez Robert às oito em ponto. O restaurante francês, com suas paredes com motivos florais e espaços iluminados pela luz das velas, era um de seus favoritos desde que se mudara para Urbana. Nada mais que entrar e relaxava. Acabava de deixar o casaco no armário quando recebeu a saudação do maitre. Beijou-lhe a mão e ofereceu um sorriso radiante.

-Ah, mademoiselle Fletcher... é um prazer, como sempre. Não sabia que esta noite iria jantar conosco.

-Estou com um acompanhante, André. O senhor Piasecki.

-Pi... -com o cenho franzido, estudou o livro de reservas enquanto mentalmente repassava o nome-. Ah, sim, mesa para dois às oito. Pizekee.

 -Muito perto - murmurou Natalie.

-Seu acompanhante ainda não chegou, mademoiselle. Permita que a acompanhe a sua mesa -com uns arranjos rápidos e eficientes, André mudou a reserva de Ryan para adaptá-la aos gostos de sua cliente favorita, tirando-a do centro para um lugar mais calmo.

-Obrigada, André - sentou-se com um suspiro. Sob a mesa tirou os sapatos.

-É um prazer, como sempre. Deseja beber algo enquanto espera?

-Uma taça de champanhe, obrigada. O de costume.

-Certamente. De imediato. Mademoiselle, se me perdoa a presunção, hoje a lagosta Robert está... -beijou os dedos.

-Confiarei no seu gosto.

Enquanto aguardava, tirou sua agenda e começou a fazer anotações para os compromissos do dia seguinte. Estava quase no fim do champanhe quando Ry se aproximou da mesa.

-Ainda bem que não sou um incêndio - disse, sem se incomodar em erguer os olhos.

-Jamais chego tarde a um - sentou e dedicaram um momento a se avaliarem.

<< Pois então ele tem uma roupa », pensou Natalie. « E não lhe cai mal ». Jaqueta escura, camisa branca engomada, gravata de uma cinza sutil. Ainda que não tivesse conseguido domesticar o cabelo, mostrava um aspecto muito mais clássico do que tinha esperado dele.

- Uso para os funerais -comentou Ry, captando no mesmo instante o que ela pensava.

-Bom -ergueu uma sobrancelha-, isso marca o tom da noite, não?

-Você escolheu o local - recordou. Olhou ao redor. « Classe sem ostentação », pensou. « Um pouco carregado...». Justo o que tinha esperado-. Como é a comida?

-Excelente.

-Mademoiselle Fletcher -Robert em pessoa, pequeno, rechonchudo e com smoking, aproximou-se da mesa para beijar a mão de Natalie-. Bienvenue... -começou.

Ry se recostou na cadeira, tirou um cigarro e os observou bater um papo em francês. Ela falava como uma nativa, algo que não o surpreendeu.

-Du Champagne pour mademoiselle - ordenou Robert ao garçom-. Et pour vous, monsieur?

-Cerveja. Americana, se tiver.

-Certamente -regressou à cozinha para falar com o chef.

-Bem, suponho que, com isso deixou claro o que pretendia -comentou ele.

-Perdão?

-Que viéssemos num elegante restaurante francês, onde o proprietário lhe beija os dedos e pergunta por sua família.

-Não sei do que... -franziu o cenho ao recolher o copo-. Como sabe que perguntou por minha família?

-Minha avó é franco-canadense. Provavelmente falo o idioma tão bem como você, ainda que com um acento menos elegante -expeliu a fumaça e sorriu-. Não a considerava uma esnobe, Natalie.

-Claro que não sou -ofendida, deixou a taça e ficou rígida. Mas quando ele continuou sorrindo, sentiu-se um pouco culpada-. Talvez quisesse incomodá-lo um pouco -suspirou e se rendeu-. Muito. Irritou-me.

-Fiz algo mais do que isso -inclinou a cabeça e a estudou.

Parecia algo pelo que um homem poderia suplicar. Pele branca dentro de um vestido negro, algumas poucas jóias, cabelo dourado emoldurando o rosto. Olhos verdes, grandes e mal humorados. « Sim », decidiu, um homem suplicaria.

-Algum problema? -inquiriu ela, nervosa ante seu escrutínio.

-Não, nada. Escolheu esse vestido para me incomodar?

-Sim.

-Está funcionando -pegou o menu-. Como é a carne aqui?

« Relaxa », ordenou-se Natalie. « É evidente que está tentando deixá-la louca ».

-Não há melhor na cidade. Ainda que geralmente eu prefira o pescado -estudou o menu com uma careta.

A noite não ia como ela tinha planejado. Não só a tinha descoberto, como também tinha investido na situação para que ficasse como uma tola. « Volte a atacar e tire o melhor de uma má situação ». Depois de pedir, respirou fundo e adicionou:

-Suponho que, já que nos encontramos aqui, poderíamos estabelecer uma trégua.

-Estávamos brigando?

-Vamos tentar ter um jantar agradável -voltou a erguer a taça de champanhe e bebeu. Apesar de tudo, era uma mulher experiente em negociações e diplomacia-. Comecemos com o óbvio. Seu nome é irlandês e seu sobrenome polaco.

-Mãe irlandesa, pai polaco.

-E uma avó franco-canadense.

-Por parte de minha mãe. Minha outra avó é escocesa.

-O que o converte...

-Num rapaz autenticamente americano. Tem mãos elegantes -tomou uma e a surpreendeu acariciando-lhe os dedos-. Encaixam com seu nome. Alta estirpe e classe.

-Bom -depois de liberá-la, pigarreou, prestando excessiva atenção a um pãozinho dentro de uma cesta sobre a mesa -. Comentou que era bombeiro de terceira geração.

-A deixo nervosa quando a toco?

-Sim. Vamos tentar manter isso bem simples.

-Por que?

Como não tinha resposta para isso, suspirou aliviada quando trouxeram os primeiros pratos.

-Estou certa que sempre quis ser bombeiro.

« De acordo », decidiu ele, pelo momento podiam ir à velocidade que ela queria.

-Claro. Praticamente cresci no quartel dezenove, onde trabalhava meu pai.

-Imagino que teve pressão familiar.

-Não. E você?

-Eu?

-A tradição Fletcher. Negócios importantes, torres corporativas -ergueu uma sobrancelha-. Pressão familiar?

-Muita -sorriu-. Cruel, inflexível, decidida. E tudo de minha parte. Sempre pensamos que seria meu irmão Boyd quem tomaria as rédeas do negócio. Tanto ele como eu tínhamos idéias diferentes a respeito. Ele se decidiu por um distintivo e um arma e eu importunei meus pais até que me aceitaram como sua herdeira.

-Tinham objeções?

-Na realidade, não. Não demoraram muito em perceber que eu falava sério. Que era capaz. Adoro os negócios, a burocracia, as reuniões. E esta nova empresa é toda minha.

-Seu catálogo fez sucesso na corporação.

-Mesmo? -perguntou divertida.

 -Muitos homens têm mulheres e noivas. Apenas a ajudei a ter mais pedidos.

-É muito generoso -o estudou acima da borda da taça-. O que me diz de você? Vai fazer algum pedido?

-Não tenho mulher, nem noiva. Até o momento.

-Mas teve esposa.

- Durante pouco tempo.

-Desculpe-me. Estou me intrometendo em sua vida.

-Não tem problema - encolheu os ombros e terminou a cerveja-. É algo que ficou para trás. Terminou faz quase dez anos. Suponho que poderia dizer que o uniforme a cativou, mas depois decidiu que não gostava das horas que passava enfiado nele.

-Filhos?

-Não - lamentava e se perguntava se o lamentaria sempre-. Só estivemos juntos alguns anos. Depois se foi com um encanador -estendeu a mão e passou as costas de sua mão pela lateral de seu pescoço, pela curva de seu ombro-. Começo a pensar que gosto dos seus ombros tanto quanto de suas pernas -cravou os olhos no seus-. talvez seja todo o pacote.

-É um elogio fascinante -não cedeu ao impulso de se afastar, mas sim passou do champanhe para a água. De repente tinha a boca ressecada-. Mas, não acredita que as circunstâncias atuais requerem um verdadeiro distanciamento?

-Não. Se acreditasse que você tivesse algo a ver com o incêndio, é possível. Mas, tal como está a situação, posso realizar meu trabalho à perfeição e ainda me perguntar como seria fazer amor com você.

O pulso de Natalie se acelerou. Empregou o tempo enquanto serviam os pratos principais para apaziguá-lo.

-Preferiria que se concentrasse no primeiro. De fato, se pudesse me colocar a par...

-Parece um desperdício falar disso aqui -mas encolheu de ombros-. O básico é que se trata de um incêndio provocado. O motivo poderia ser a vingança, o dinheiro, o vandalismo ou uma destruição caprichosa.

-Um piromaníaco - preferia isso, já que era algo menos pessoal. - Como é que ele age?

-Primeiro, não cair em preconceitos. Muitas vezes as pessoas, e os meios, põem-se a gritar «piromaníaco>> sempre que se produzem uns incêndios. Ainda que pareçam relacionados, nem sempre é assim.

-Com freqüência sim.

-E com freqüência é algo simples. Alguém queima uma dúzia de carros porque está aborrecido por ter comprado uma banheira.

-De maneira que não se pode tirar conclusões precipitadas.

-Exato.

-E se for o caso de ser algum louco?

-Os psiquiatras não deixam de procurar as causas.

-Trabalha com eles?

-Costumam entrar em cena quando se captura o indivíduo. Mas isso depois de vários incêndios, e vários meses de investigação. -Talvez culpem sua mãe porque os protegeu demais. Ou a seu pai, porque não lhes deu atenção suficiente. Já sabe como é.

-Não tem em muito alta estima à psiquiatria.

-Não disse isso. Mas não gosto de colocar a responsabilidade de um ato nas costas de outra pessoa.

-Agora fala como meu irmão.

-Sem dúvida é um bom policial.

-Como investigador, não gostaria de conhecer a psicologia do piromaníaco?

-Quer mesmo que entremos nesse assunto?

-É interessante. Em especial agora.

-Certo. Uma lição breve. Pode dividir aos incendiários em quatro grupos. Os mentalmente doentes, os psicóticos, os neuróticos e os sociopatas. Quase sempre isso se sobrepõe, mas os enquadram muito bem. O neurótico, o psiconeurótico, é o piromaníaco.

-Não são todos?

-Não. O verdadeiro piromaníaco é muito mais raro do que a gente acredita. Trata-se de uma compulsão incontrolável. Tem que acender o fogo. Quando domina a necessidade, atua, sem importar o lugar nem o momento. Não passa por sua cabeça ocultar seu rasto ou escapar, razão pela qual quase sempre são capturados com facilidade.

-Pensava que « piromaníaco » era um termo mais geral -passou o cabelo por trás da orelha, mas Ry se adiantou ao gesto e deixou que seus dedos ficassem ali por alguns segundos.

-Gosto de ver seu rosto quando falo com você -manteve sua mão sobre a dela enquanto a colocava sobre a mesa-. Gosto de tocá-la enquanto conversamos.

O silêncio pairou no ar durante dez segundos.

-Não está conversando -assinalou ela.

-As vezes gosto de olhar. Venha aqui.

Natalie reconheceu a luz nos olhos dele, reconheceu sua própria reação. Propositadamente, puxou sua mão.

-Não. É um homem perigoso, inspetor.

-Obrigado. Por que não vem para casa comigo, Natalie?

-E também bastante direto -suspirou.

-Uma mulher como você pode receber poesia e sedução quando quiser -ele não as usava e não acreditava nelas -. Talvez deseje provar algo mais básico.

-Não tenho dúvida que seria assim. -concordou. -Acredito que um café cairia bem agora.

-Não me respondeu -chamou o garçom.

-Não. E não -esperou até que recolhessem a mesa e pediram o café-. Apesar de existir uma verdadeira atração básica, me parece que seria pouco inteligente seguir adiante. Ambos estamos comprometidos com nossas carreiras, somos opostos em personalidade e estilo de vida. Ainda que nossa relação fosse breve e abrasiva, creio que é evidente que não temos nada em comum. Somos, como se poderia dizer nos negócios, um mal investimento.

Ele a estudou um minuto sem dizer nada.

-Tem sentido.

Os músculos de seu estômago relaxaram. E chegou a sorrir levantando a xícara de café.

-Bem, então estamos de acordo...

-Não afirmei tal coisa - a cortou-. Disse que tinha sentido -acendeu um cigarro sem deixar de olhá-la através da chama-. Tenho estado pensando em você, Natalie. E tenho que ser sincero em dizer que não gosto muito do modo que me faz sentir. Me distrai e me irrita.

-Fico contente que tenhamos esclarecido o assunto -replicou com frieza.

-Deus sabe que minhas entranhas retorcem quando a ouço falar dessa maneira. De duquesa para plebeu -moveu a cabeça e tragou o cigarro-. Devo possuir uma faceta perversa. E de todo jeito, não gosto. E não estou muito certo que você também goste -semicerrou os olhos-. Mas jamais desejei tanto alguém em minha maldita vida. É um problema.

-Teu problema -conseguiu balbuciar.

-Nosso. Tenho fama de ser tenaz.

Ela depositou a xícara com cuidado sobre a mesa antes que esta escorregasse entre seus dedos trêmulos.

-Pensei que um simples não bastaria, Ry.

-Eu também -e encolheu os ombros-. Entenda. Não fui capaz de tirá-la de minha mente desde que a vi chegando no local daquele incêndio. Cometi um erro ao beijá-la esta tarde. Imaginei que, quando o fizesse, se acabaria. Caso encerrado - moveu-se com tanta agilidade que ela mal pôde piscar antes que ele lhe tomasse os lábios com dureza. Aturdida, apoiou uma mão em seu ombro, mas foi incapaz de afastá-lo ao ver-se dominada por uma excitação sem tamanho-. Estava errado -se afastou-. O caso não está encerrado, e esse é nosso problema.

-Sim -soltou o ar com um gesto trêmulo. Nada do que já havia sentido podia superar a reação instantânea e primitiva que ele provocava em seu corpo. Ele tocava e ela o desejava. Assim, era simples e aterrorizador. Mas seu senso comum era sua única defesa-. Não vai funcionar. É ridículo pensar que pode acontecer. Não estou preparada para ter uma aventura só por uma luxúria animal básica.

-Viu? Temos algo em comum -apesar do beijo o ter colocado em chamas ele sorriu brejeiro - A luxúria.

Rindo, Natalie afastou o cabelo do rosto.

-Bem, preciso me afastar de você algum tempo para analisar as opções.

-Não é um acordo de negócios, Senhorita Fletcher. - Olhou-a outra vez e desejou dispor de distância para poder pensar com clareza.

-Jamais tomo uma decisão sem pensar nos resultados.

-Benefícios e perdas?

-Pode se chamar assim -reconheceu com cautela-. Poderia qualificá-lo de risco e recompensa. As relações íntimas nunca foram meu ponto forte. Por escolha própria. Se vou ter uma com você, sem importar quão breve seja, também será por minha própria escolha.

-Parece justo. Quer que eu redija um contrato?

-Não seja mordaz, Ry -então, já que descobriu que aliviava parte de sua tensão irritá-lo, sorriu-. Mas garanto que darei toda a minha atenção a esse assunto -apoiou o queixo na mão-. É muito atraente, de um modo rude e irritante.

-Muito obrigado -deu uma tragada no cigarro.

-Não, é sério - a alegrou saber que podia aborrecê-lo-. Essa covinha no queixo, seu rosto bem delineado e jovem, os olhos escuros e sensuais -sorriu-. E todo esse cabelo tão pouco dócil. O corpo rígido, a atitude rude.

-O que pretende, Natalie? -impaciente, apagou o cigarro.

-Fazer você provar um pouco de seu próprio remédio. Sim, forma um pacote atraente. Não foi essa a palavra que empregou? É perigoso e dinâmico. Como Némesis.

-Tenha paciência - rebateu com uma careta.

-Sério -riu divertida, um tom cálido-. Há muitas semelhanças entre o misterioso justiceiro de Urbana e você. Os dois dão a impressão de ter seus próprios objetivos. Um luta contra o crime, aparecendo e desvanecendo-se como fumaça. Uma conexão interessante entre os dois. Inclusive poderia perguntar-me se não serias ele... salvo que Némesis é uma figura romântica. E aí, inspetor, vocês estão mais distante do que o pólo norte e sul -jogou o cabelo para atrás e riu-. Acredito que o deixei sem palavras. Quem imaginaria que seria tão fácil ganhar um ponto?

Mas o jogo não tinha terminado. Tomou seu queixo entre os dedos e a imobilizou.

-Acredito que posso sobreviver sendo tratado como um objeto sexual, mas terá que prometer me respeitar na manhã seguinte.

-Não.

-É uma mulher dura, Senhorita Fletcher. Certo, esqueça o respeito. E o temor?

-Pensarei. Desde que chegue a ser aplicável. O que acha de pedirmos a conta? É tarde.

Quando a trouxeram com um leve ar de desculpa, como costumava ser freqüente nesse tipo de estabelecimentos, Natalie quis recolhê-la de forma automática. Ele afastou sua mão.

-Ry, não pretendia que pagasse a conta -aturdida, viu-o pegar o cartão de crédito. Sabia muito bem quanto custava uma refeição no Chez Robert, e tinha uma boa idéia do salário que recebia um servidor público-. Estou falando sério. Foi minha idéia de vir aqui.

-Cale-se, Natalie -calculou a gorjeta e assinou o extrato.

-Agora me sinto culpada. Maldição, nós dois sabemos que escolhi este restaurante para esfregar na sua cara. Ao menos me deixe pagar a minha metade.

-Não -guardou a carteira, levantou e lhe ofereceu a mão-. Não se preocupe -comentou com secura-. Ainda poderei pagar o aluguel este mês. Provavelmente.

-É obstinado.

-Onde está a ficha para o armário?

« Ego masculino », pensou aborrecida enquanto a entregava. Despediu-se de André e Robert antes que ele a ajudasse a pôr-se o casaco.

-Precisa que eu a leve? -perguntou Ry.

-Não, trouxe meu carro.

-Bem. Eu não trouxe o meu. Poderá me levar para casa. Ao chegar a rua o olhou com suspeita por cima do ombro.

-Como se trata de uma manobra, já vou lhe dizer que não penso em cair nela.

-Certo. Tomarei um táxi -estudou a rua-. Se é que encontrarei um. É uma noite fria -adicionou-. Parece que vai nevar.

-O carro está no estacionamento -suspirou-. Onde o levo?

-À Vinte e duas, entre a Sétima e a Oitava.

-Fantástico -não podia estar mais longe de seu caminho-. Primeiro tenho de parar na loja.

-Que loja? -rodeou-lhe a cintura com um braço, tanto por prazer como para protegê-la do frio.

-A minha. Colocaram um novo carpete hoje, e não pude vê-lo antes do jantar. Como fica de passagem, bem posso fazê-lo agora.

-Não sabia que as executivas vistoriavam os carpetes a meia-noite.

-Esta o faz -sorriu com doçura-. Mas se para você representa um aborrecimento, o deixarei na parada do ônibus.

-Obrigado de qualquer jeito -esperou enquanto abria o carro-. Já tem alguma mercadoria?

-Aproximadamente vinte por cento do que queremos para a inauguração.

- Deixe-me dar uma olhada.

-Esperava que dissesse isso- subiu no carro.

Não ficou surpreso pela direção impecável. Pelo que podia observar, Natalie Fletcher fazia tudo com perfeição. O fato de que a pudesse surpreender, que a uma palavra adequada, um olhar determinado no momento adequado pudessem ruborizá-la, só a fazia humana. E absolutamente atraente.

-Sempre viveu em Urbana? -perguntou ela, baixando o volume da rádio.

-Sim. Gosto daqui.

-Eu também- o movimento agradava, o ruído e a multidão da cidade-. Faz anos que temos estabelecimentos aqui, certamente, mas nunca tinha morado em Urbana.

-Onde vivia?

-Principalmente em Colorado Springs. Ali temos nossa base, o lar e a empresa. Gosto do Leste -as ruas estavam escuras e o vento soprava entre os desfiladeiros formados pelos edifícios-. Gosto das cidades do Leste, o modo em que as pessoas vivem uma em cima da outra e vão a todos lados com pressa.

-Nenhum comentário sobre o excesso de população e os níveis de delinqüência?

-Indústrias Fletcher se fundaram em cima do negócio imobiliário. Quanto mais gente tiver, mais casas serão necessárias. E quanto à delinqüência... - encolheu os ombros-. Temos um departamento de polícia esforçado. E Némesis.

-Vejo que tem interesse nele.

-E quem não tem? Além disso, como irmã de um capitão de polícia, devo adicionar que não aprovo que cidadãos civis levem a cabo um trabalho policial.

-Por que não? Parece que o faz bem. Eu não me importaria de tê-lo do meu lado -franziu o cenho ao deter-se diante de um semáforo. As ruas se achavam quase vazias-. Faz muitos trajetos como esse sozinha?

-Quando é necessário.

-Por que não tem um motorista?

-Porque gosto de dirigir -o olhou quando a luz ficou verde-. Não vai me dar um sermão típico do que pode acontecer com uma mulher que dirige sozinha, alto da noite, na cidade?

-Nem tudo são museus e restaurantes franceses.

-Ry, sou adulta. Tenho estado sozinha em Paris, Bangkok, Londres e Bonn, entre outras cidades. Acredito que posso me cuidar em urbana.

-Os policiais, e seu amigo Némesis, não podem estar em todas partes -assinalou.

-Qualquer mulher que tenha um irmão mais velho sabe como pôr um homem de joelhos -manifestou-. E tomei aulas de defesa pessoal.

-Sem dúvida isso fará que todos os delinqüentes da cidade comecem a tremer de medo.

Sem dar atenção ao sarcasmo, deteve-se junto a calçada e desligou o motor.

-Chegamos -o orgulho a invadiu quanto ficou na frente do local. Seu local-. O que acha?

Era fabuloso e feminino, como sua proprietária. Tudo era mármore e vidro, em sua ampla vitrine tinha pintado em letras douradas Lady's Choice. A porta primeiramente era de cristal com rosas talhadas que brilhavam a luz das lâmpadas.

« Bonito », pensou. « Pouco prático. Caro ».

-Atraente.

-Será nossa loja principal, queria que fosse impressionante, com classe e... -passou um dedo pelas rosas talhadas -... sutilmente erótico.

Abriu os trancas. « Ao menos eram robustas », notou Ry com certa aprovação. « Sólidas ». No interior, Natalie se deteve para introduzir o código no sistema de segurança informatizado. Acendeu as luzes e voltou para fechar a porta primeiro.

-Perfeito -assentiu satisfeita ao ver o carpete de cor malva. As paredes eram claras, recém pintadas. Num canto tinha um sofá e uma mesinha de chá para convidar clientes ‘a relaxar e a decidir quais conjuntos levariam. Tinha aqueles manequins que podia imaginar cheios de sedas e ligas em tons leves, cores atrevidas, vibrantes, pastéis e branca.

-A maior parte da mercadoria ainda não está acabada. Minha diretora e seu pessoal se ocuparão disso esta semana. E da decoração da vitrine. Temos um incrível conjunto de peignoir de brocado. Será o tema central.

Ry se dirigiu para o manequim sem rosto e tocou uma camisola de cor jade à altura do joelho. « A mesma cor que os olhos de Natalie », pensou.

-Quanto cobra por algo assim?

-Mmm... -examinou a peça. Seda, com pérolas no corpete-. Provavelmente cento cinqüenta.

-Cento cinqüenta? Dólares? -moveu a cabeça desagradado. -Um bom puxão basta para transformá-lo em um trapo.

-Nossa mercadoria é da mais alta qualidade -rebateu -. Certamente, agüentará perfeitamente em uso normal.

-Doçura, uma coisa assim não está desenhada para algo normal -arqueou uma sobrancelha. -Parece teu feitio.

-Continue sonhando, Piasecki -colocou o casaco sobre o sofá. -O objetivo da boa lingerie é o estilo, a textura. O brilho da seda, o volume do encaixe. A nossa está desenhada para conseguir que uma mulher se sinta atraente e satisfeita consigo mesma... mimada.

-Eu pensava que a idéia era fazer que um homem suplicasse.

-Não seria nada mau. Dê uma olhada, se quiser. Aproveitarei para ir lá em cima verificar um par de faturas. Não demorarei mais do que cinco minutos.

-Te acompanharei. Tem um escritório lá em cima? -perguntou ao dirigir-se para uma escada branca de caracol.

-O da diretora. Ali teremos mais material e os provadores. Assim estabeleceremos uma zona separada para noivas. Roupa íntima especializada em vestidos nupciais, lingerie de lua de mel. Quando estivermos plenamente operativos... -calou-se quando ele a pegou pelo braço.

-Silêncio.

-Que...?

-Silêncio -repetiu. Ainda não o ouvia, mas podia cheirá-lo. Um leve aroma penetrante no ar. -Tem extintores?

-Claro. No armazém, e lá em cima - soltou sua mão-. Que é isto? Vai tentar multar-me por não cumprir o código de segurança?

-Vá embora -deixando-a boquiaberta, correu para a parte de trás do local. Teve que reconhecer que estava tudo organizado. Localizou um extintor, com tudo em ordem, diante do armazém lotado.

- O que está fazendo com isso? -exigiu ao vê-lo regressar.

-Te disse para sair. Há fogo.

-Um... -Ry já ia pela metade das escadas quando conseguiu correr para alcançá-lo-. É impossível. Como você sabe? Não há nada...

-Gasolina. Fumaça.

Ia dizer-lhe que imaginava coisas. Mas nesse momento pôde cheirá-lo.

- Ry...

Ele amaldiçoou e separou com o pé um rastro de papéis e fósforos. Ainda não estavam colados, mas viu para onde conduziam. A reluzente porta branca estava fechada e a fumaça saía por baixo.

Tateou a porta e sentiu o calor que empurrava do outro lado. Girou a cabeça e seus olhos irradiaram frieza.

-Saia. -repetiu.

Um grito se estrangulou na garganta de Natalie ao vê-lo abrir a porta com um pontapé. O fogo saltou para fora. Ry foi a seu encontro.

 

Era como um sonho. Um pesadelo. Ali de pé, paralisada, enquanto as chamas lambiam o marco da porta e Ry entrava para lutar com elas. No instante em que desapareceu na fumaça e no fogo, o coração pareceu deter-se. Depois o pânico que o tinha parado fez que se acelerasse . A cabeça lhe palpitou com o eco de cem pulsações ao lançar-se atrás dele.

Pôde vê-lo apagar o fogo que deslizava pelo solo e dançava alegre na base das paredes. A fumaça girava ao seu redor, irritava-lhe os olhos, queimava-lhe os pulmões. Como um guerreiro, Ry o desafiou e o enfrentou. Horrorizada, viu como o fogo lhe replicava e subia por seu braço.

Nesse instante, Natalie gritou e saltou para apagar o fogo que saía pelas costas de Ry. Este girou, furioso por encontrá-la ali.

-Você estava se queimando -mal pôde murmurar -. Pelo amor de Deus, Ry! Deixe isso para lá.

- Fique longe.

Com um movimento em arco, atacou as chamas que tinham começado a subir pela escrivaninha central. Soube que os papéis que estavam sobre sua superfície alimentariam o fogo. Voltou-se para centrar-se nos rodapés que começavam a arder.

-Tome - colocou o extintor nas mãos dela. O fogo principal estava apagado e os menores que ainda existiam eram poucos. Quase tinha conseguido. Pelo terror que viu em seus olhos, compreendeu que ela não tinha se dado conta de que a besta estava a ponto de ser derrotada-. Use-o -ordenou, e de uma arrancada chegou às cortinas incendiadas e as arrancou. Sabia que depois sentiria dor, mas nesse momento enfrentou o fogo cara a cara.

Quando as cortinas enegrecidas não eram mais do que trapos inofensivos, voltou a arrebatar o extintor das mãos intumescidas de Natalie e terminou com o que ficara.

-Não teve muito do que alimentar-se -mas sua jaqueta ainda soltava fumaça. Tirou-a e a jogou ao solo-. Não teria chegado tão longe em tão curto espaço de tempo por não ter tantas coisas inflamáveis aqui -deixou o extintor quase vazio-. Acabou-se - não obstante, realizou uma última comprovação e com os pés remexeu entre as cortinas estragadas, a procura de uma chispa traiçoeira. -Acabou -repetiu, empurrando-a para a porta -Vamos descer.

 Natalie travou-se ao ponto de cair de joelhos. Um violento ataque de tosse quase a paralisa. Sentiu uma tontura e a cabeça lhe deu voltas. Mareada, apoiou uma mão na parede e lutou por respirar.

-Maldita seja, Natalie -com um movimento a pegou em seus braços. Transportou-a através da fumaça e pela elegante escada-. Disse-lhe para que fosse embora. Será que nunca escuta?

Tentou falar mas só pôde tossir debilmente. Era como se boiasse. Inclusive quando ele a depositou sobre as almofadas frescas do sofá, a cabeça não deixou de dar-lhe voltas.

Ry a amaldiçoava, mas sua voz parecia longínqua, inofensiva. Pensou que o que precisava era respirar fundo uma vez para aliviar a queimação da garganta.

Viu o modo como os seus olhos lhe focalizavam. Sacudiu-a com força e a obrigou a colocar a cabeça entre os joelhos.

-Não se atreva a desmaiar - com a mão em sua nuca para manter firme sua cabeça-. Fique assim, respire devagar. Pode me ouvir?

Ela assentiu com um gesto débil. Deixou-a, e quando o ar frio e limpo bateu nas bochechas, tremeu. Depois de abrir a porta, Ry regressou e começou a esfregar-lhe as costas.

Tinha-lhe dado um bom susto. De maneira que fez o que lhe surgiu naturalmente para combater o medo... gritar-lhe.

-Foi uma estupidez o que fizeste! Teve muita sorte de poder sair daqui com o estômago revolto e só um pouco de fumaça nos pulmões. Disse-lhe para que fosse embora.

-Você tinha entrado -esboçou uma careta quando as palavras atormentaram sua garganta irritada.

-Eu estou treinado. Você não -a obrigou a erguer-se para vistoriá-la. Tinha no rosto uma palidez mortal embaixo das manchas de fuligem, mas voltava a mostrar os olhos livres do terror-. Sente náuseas? -perguntou com um tom cortante.

-Não -apoiou as palmas das mãos sobre os olhos lacrimejantes-. Agora não.

-Enjôo?

-Não.

Tinha a voz áspera, tensa; Ry imaginou que sentiria a garganta como se lhe tivessem introduzido um ferro em brasa.

-Há água por aqui? Te trarei um pouco.

-Estou bem -baixou as mãos e apoiou a cabeça no respaldo. Ao passar o enjôo, começava a ver-se dominada pelo medo-. Aconteceu tão depressa... Está seguro de que apagou o fogo?

-É meu trabalho estar seguro -com o cenho franzido, tomou-lhe o queixo e a estudou-. Vou levá-la ao hospital.

-Não preciso ir a um maldito hospital -de mau humor, empurrou-o. Depois ficou boquiaberta ao ver as mãos dele-. Ry, tuas mãos! - segurou-o pelos pulsos - Você se queimou!

Ele baixou a vista e viu algumas bolhas.

-Nada sério.

-Vi sua jaqueta arder -a reação lhe provocou arrepios.

-Era uma jaqueta velha. Pára -ordenou quando as lágrimas inundaram os olhos dela-. Não chore, -se havia algo que odiasse mais do que o fogo, eram as lágrimas de uma mulher. Amaldiçoou e lhe achatou a boca com os lábios, esperando deter dessa maneira o pranto.

Natalie o rodeou com os braços, surpreendendo-o com sua força e urgência. Mas sua boca tremia sob a dele, o que fez que Ry suavizasse o beijo.

-Melhor? -murmurou enquanto lhe acariciava o cabelo.

-Estou bem -repetiu, obrigando-se a acreditar. -No armazém deve de ter uma caixa de primeiros socorros. Tem que colocar algo nas mãos.

-Não é nada... -começou, mas ela o empurrou e se pôs de pé.

-Tenho que fazer algo. Maldito seja, tenho que fazer algo. – disse marchando de um lado para o outro.

 Desconcertado, Ry se ergueu e foi fechar a porta. Precisava subir para ventilar o escritório, mas a queria longe antes de empreender uma investigação preliminar. Afrouxou a gravata e abriu o colarinho da camisa.

-Aqui há um ungüento -mais serena, Natalie regressou com a caixa de primeiros socorros.

-Perfeito -como sabia que o atender a ajudaria, voltou a sentar-se e deixou que brincasse de ser enfermeira. Teve que reconhecer que o bálsamo fresco e seus dedos gentis não lhe faziam dano algum.

-Teve sorte que não foi pior. Foi uma loucura entrar naquela sala.

-De nada -arqueou uma sobrancelha.

Então ela o olhou. Ry tinha o rosto enegrecido pela fumaça e os olhos vermelhos.

-Estou agradecida -murmurou. -Muito. Mas eram apenas coisas, Ry. Só coisas -desviou a vista, ocupando-se em guardar o tubo de ungüento. -Suponho que lhe devo um terno novo.

-Odeio terno -ficou incomodado quando ouviu o soluço de Natalie-. Não volte a chorar. - Se realmente quer me agradecer não chore.

-De acordo - esfregou o rosto com as mãos-. Estava tão assustada.

- Acabou -pegou sua mão com um movimento firme. -Ficará bem durante uns minutos? Quero ir abrir a janela. A fumaça precisa de uma via de escape.

-Te acompanharei...

-Não. Fique aqui -se levantou e apoiou uma mão firme sobre seu ombro-. Por favor, fique aqui.

Deu meia volta e a deixou. Natalie empregou o tempo para serenar-se. E para pensar. Quando ele voltou, estava sentada com as mãos juntas no colo.

-Foi igual ao do armazém, não é verdade? -o olhou-. O modo em que foi preparado. Não podemos fingir que se trata de uma coincidência.

-Sim -confirmou-. Foi igual. E não, não podemos. Falaremos disso mais tarde. Te levarei para casa.

-Estou...

Engoliu as palavras quando ele a pôs de pé bruscamente.

-Se me disser mais uma vez que está bem, vou te bater. Está enferma, assustada e inalaste fumaça. Vamos fazer o seguinte. Te levarei pra casa. Daremos parte do acontecido pelo telefone que tem em seu carro caro. Vai se enfiar na cama e amanhã iremos ver um médico. Uma vez que te dê um bom diagnóstico, continuaremos de onde paramos.

-Pára de gritar.

-Não teria que gritar se escutasse -recolheu o casaco dela -Vista-o.

-É minha propriedade. Tenho direito de estar aqui.

-Bom, pois eu penso o contrário -a obrigou a introduzir um braço no casaco-. Se você não gosta, chame os seus advogados e me processe.

-Não há motivo para que adote essa atitude.

Ele quase soltou um palavrão, mas se conteve. Como medida de precaução, respirou fundo.

-Natalie, estou cansado -falou baixinho, quase razoável-. Tenho que realizar um trabalho aqui, e não poderei fazê-lo se você estiver no meu caminho. Assim peço que coopere. Por favor.

Soube que Ry tinha razão. Girou e recolheu a bolsa.

-Fique com meu o carro. Farei que o recolham amanhã.

-Te agradeço.

Lhe entregou as chaves do carro e do local.

-Amanhã passarei por aqui, Ry.

-Presumi que faria isso -levantou uma mão para passar os dedos pelo maxilar dela-. Eh... tente não se preocupar. Sou o melhor.

-Isso já me disseram -quase conseguiu sorrir.

 

Eram quase oito horas da manhã quando o táxi a deixou diante da Lady's Choice. Notou, sem surpresa que seu carro se achava diante da entrada, com um cartaz do departamento de bombeiros visível através do pára-brisa.

Ao invés de se aborrecer por causa da insígnia, utilizou o jogo de chaves que tinha recolhido essa manhã do escritório e entrou.

Não sentiu cheiro de fumaça, o qual a aliviou. Durante a noite tinha dedicado bastante tempo a preocupar-se e a calcular as possíveis perdas se o material que já tinha na loja tivesse sido danificado.

O térreo parecia tão impecável e elegante como na noite anterior. Se Ry lhe desse sinal verde, entraria em contato com sua diretoria e retomaria o negócio.

Tirou o casaco e as luvas e começou a subir as escadas.

 

Para Ry tinha sido uma noite longa e produtiva. Depois de deixar Natalie, tinha passado pelo quartel de bombeiros para trocar-se e recolher suas ferramentas. Tinha trabalhado sozinho a noite toda... tal como preferia. Estava fechando um frasco com provas quando ela entrou.

-Bom dia, Pernas -agachado entre os restos, nem se deu ao trabalho de erguer a vista.

Com um suspiro, ela estudou a sala. O tapete era uma mancha negra. Da parede tinham caído bordas calcinadas de madeira, que nesse momento jaziam disseminadas pelo solo. A elegante escrivaninha estilo rainha Ana aparecia enegrecida e marcada, e as cortinas de encaixe irlandês formavam uma pilha de trapos.

Apesar da janela aberta e do ligeiro vento que fazia entrar um pouco de neve, o ar ainda cheirava fumaça.

-Por que sempre parece pior no dia seguinte?

-Não está tão mau. Precisa apenas de um pouco de pintura e uns retoques.

-Para você é fácil dizer isso.

-Sim -concordou, etiquetando o pote com a prova-. Suponho que sim -nesse momento levantou a vista. Nesse dia Natalie tinha prendido os cabelos. O estilo que ele gostava, já que revelava sua nuca e deixava descoberto seu rosto. O traje que usava era de um púrpura real, de estilo militar. Dava a impressão de que estava preparada para brigar-. Como você dormiu?

-De fato, assombrosamente bem -salvo por um horrível pesadelo que não queria mencionar-lhe-. E você?

Como ainda não tinha se deitado, encolheu os ombros.

-Já chamou o seu agente do seguro?

-O farei assim que abram -automaticamente sua voz soou fria-. Pensa em entrevistar-me em caráter oficial outra vez, inspetor?

-Não creio que seja necessário, e você? -a olhou irritado. Começou a guardar as ferramentas na caixa-. Amanhã terá o relatório pronto.

-Sinto muito -baixou as pálpebras um momento-. Não estou irritada com você, Ry. Só estou chateada.

-É justo.

-Pode...? -calou-se e se voltou ao ouvir som de passos-. Gage -se obrigou a sorrir e alongou as mãos quando ele entrou.

-Me inteirei -com uma rápida olhada assimilou os danos-. Pensei em vir para saber se tinha algo que pudesse fazer.

-Obrigado -lhe deu um beijo ligeiro na bochecha antes de voltar-se para Ry. Continuava agachado... e lhe pareceu intrigado, como um animal a ponto de saltar-. Gage Guthrie, o inspetor Ryan Piasecki.

-Ouvi dizer que realiza um bom trabalho.

Passado um momento, Ry se aprumou e aceitou a mão que Gage lhe ofereceu.

-Ouvi o mesmo de você -eficazmente, avaliou a homem enquanto se dirigia a Natalie. -São amigos?

-Assim é. E um pouco mais -fascinada, observou como se os olhos de Ry brilharam-. Se é capaz de seguir a relação, Gage está casado com a irmã da mulher de meu irmão.

-Família grande -o fogo se apagou; os ombros de Ry relaxaram.

-Pode-se dizer dessa maneira -Gage analisou a situação com rapidez e precisão e decidiu levar a cabo uma breve inspeção do inspetor-. Procura o mesmo culpado?

-Não estamos prontos para dar essa informação.

-Leva muito à sério seu posto de oficial -comentou Natalie com secura-. Extra-oficialmente - continuou sem prestar atenção à careta de Ry-, parece ser o mesmo. Quando chegamos ontem à noite...

-Estava aqui? -interrompeu Gage, tomando Natalie pelo braço.- Você?

-Tinha algumas coisas que queria confirmar. Por sorte -suspirou e olhou o cômodo-. Poderia ter sido bem pior. É que casualmente quem me acompanhava era um bombeiro veterano.

-Não tem nada o que fazer sozinha pela cidade, de noite -Gage relaxou levemente.

-Sim -Ry sacou um cigarro-. Tentei convencê-la.

-Você não anda sozinho pela cidade, Gage? De noite? -ela simplesmente arqueou uma sobrancelha.

-É muito diferente -« Se ela soubesse », pensou-. E não me venha com um sermão sobre igualdade -continuou antes que ela pudesse falar-. Estou a favor. No lar, no trabalho. Mas nas ruas se reduz a um simples sentido comum. Uma mulher é sempre um alvo mais fácil

-Mmm... -Natalie sorriu com gesto agradável-. E Deborah aceita esse raciocínio?

-Não -sorriu-. É tão teimosa como você -frustrado por estar em outra parte da cidade quando Nat mais precisava, meteu as mãos nos bolsos-. Se não posso fazer mais nada, permita-me que lhe ofereça as instalações ou o pessoal da Guthrie International.

-Aceitarei se for necessário -o olhou esperançosa-. Acredita que poderia utilizar sua influência para evitar que sua mulher chame Cilla e meu irmão para contar-lhes o que passou?

-Nem em sonhos -lhe acariciou a face. -Talvez deveria mencionar que a semana passada Deborah falou com Althea que a pôs a par do que aconteceu no armazém.

Cedendo à fadiga, Natalie esfregou as têmporas. Althea Grayson, a antiga colega de seu irmão no corpo de polícia, encontrava-se num estado avançado de gravidez.

-Estou rodeada de policiais -murmurou-. Não há motivo para preocupar Althea em seu estado. Colt e ela teriam que se concentrar somente em si mesmos.

-É um problema quando há tantas pessoas que te querem bem. Mantenha-se afastada dos edifícios vazios -adicionou, dando-lhe um beijo-. Encantado de conhecê-lo, inspetor.

-Sim. Nos veremos.

- De minha parte mande lembranças a Deborah e a Addy -disse Natalie ao acompanhar Gage à porta-. E deixe de preocupar-se comigo.

-Farei o primeiro, mas não o segundo.

-Quem é Addy? -inquiriu Ry ao ouvir que a porta de baixo se fechava por trás de Gage.

-Mmm? Oh, sua filha -distraída, rodeou um buraco negro do carpete para vistoriar seus arquivos antigos. Foi um pequeno consolo comprovar que se achavam ilesos. -Precisa esclarecer isto, Ry. Tem muita gente perdendo o sono.

-Tem muitas peças pequenas -se dirigiu à janela aberta e apagou o cigarro-. Não posso fazer com que isto vá mais depressa só para satisfazê-los. Simplesmente siga o conselho do seu amigo. Permaneça afastada das ruas a noite e fora dos edifícios vazios.

-Não quero conselhos. Quero respostas. Ontem à noite alguém entrou aqui e tentou eliminar-me com um incêndio. Como e por que?

-De acordo, Senhorita Fletcher, posso dar-te o como -apoiou o quadril na escrivaninha parcialmente queimada. -Na noite do dia vinte e seis de fevereiro o inspetor Piasecki descobriu um incêndio em companhia de Natalie Fletcher, a proprietária do edifício.

-Ry... -ele levantou uma mão para detê-la.

-Depois de entrar no local, Piasecki e Fletcher subiram ao primeiro andar quando o inspetor detectou o cheiro de combustível, e fumaça. Piasecki nesse momento ordenou a Fletcher que abandonasse o lugar. Uma ordem, poderia adicionar, que ela não cumpriu estupidamente. Ao encontrar um extintor no armazém, Piasecki se dirigiu para o fogo, que ardia no escritório do primeiro andar. Observou mechas de papel, roupas e fósforos. O fogo se extinguiu sem grandes danos.

-Sou bem consciente dessa seqüência de acontecimentos.

-Queria um relatório, e foi isso mesmo que recebeu. O exame dos restos conduziu o pesquisador a crer que o incêndio se iniciou aproximadamente a meio metro do outro lado da porta, com o emprego de gasolina como catalisador. Nem o inspetor nem a polícia puderam detectar a entrada forçada no edifício. Foi um incêndio provocado.

-Está irritado comigo -respirou fundo.

-Sim. Estou. Está me pressionando, Natalie, e a você mesma também. Quer isto bem atado porque preocupa o seu pessoal e porque você se preocupa em vender umas lingeries a tempo. Mas deixa passar por alto um pequeno detalhe e muito importante.

-Não -voltou a pôr-se pálida e rígida. -Está tentando me assustar. Não é difícil somar os elementos e descobrir o fato de que alguém está fazendo isso comigo deliberadamente. Dois de meus edifícios em duas semanas. Não sou tonta, Ry.

-É tonta se não está assustada. Tem um inimigo. Quem?

-Não sei. Caso contrário, não acredita que já teria lhe revelado? Acaba de me dizer que não foi uma entrada forçada. Isso significa que alguém que conheço, que trabalha para mim, poderia ter entrado para preparar o fogo.

-É um tocha.

-Perdão?

-Um profissional -explicou ele-. Não muito bom, mas um profissional. Alguém contratou um tocha para preparar os incêndios. Poderia ser esse mesmo alguém, quem o deixou entrar, ou descobriu um modo de desligar os seus sistemas de segurança. Mas aqui ele não conseguiu finalizar o trabalho, de maneira que é provável que volte a atacar.

-Isso me consola -conteve um tremor. -Me consola muito.

-Não quero que se console. Quero que estejas alerta. Quantas pessoas trabalham para você?

-Em Lady's Choice? -passou a mão no cabelo.- Creio que umas seiscentas em Urbana.

-Dispões de uma lista do pessoal?

-Posso consegui-la.

-Eu quero. Olha, vou passar os dados pelo computador, para confirmar quantos profissionais temos pela zona que empreguem esta técnica. É um começo.

-Me manterá informada? Estarei em meu escritório quase todo o dia. Minha secretária saberá como entrar em contato comigo se eu precisar sair.

-Por que não tira uma folga? -se ergueu, foi até ela e lhe tomou o rosto entre as mãos-. Vá as compras, ao cinema.

-Está brincando?

-Escute, Natalie -baixou as mãos e as meteu nos bolsos-, há uma pessoa a mais que se preocupa com você. OK?

-Creio que sim -murmurou. -Estarei localizável, Ry. Mas tenho muito trabalho -sorriu numa tentativa por aliviar a atmosfera-. Começando por mandar uma equipe de limpeza e decoradores.

-Não até que eu o autorize.

-Por que será que eu sabia que você ia dizer isso? -resignada, olhou em direção aos arquivos que estavam na parede da esquerda-. Será que eu poderia levar algumas pastas? Faz somente alguns dias que tirei-as do escritório principal para poder trabalhar aqui. - encolheu os ombros-. Ao menos era isso o que esperava. Mais atrasos -murmurou.

-Sim, adiante. Cuidado onde pisa.

Observou-a enquanto movia a cabeça. Não sabia como podia caminhar com tanta fluidez com esses saltos que mais pareciam arranha-céus. Mas devia reconhecer que lhe deixavam as pernas fascinantes.

-Como está as suas mãos? -perguntou Natalie enquanto repassava umas pastas.

-Que?

-As mãos -girou a cabeça, e viu onde seu olhar estava focado e sorriu. - Deus, Piasecki, está obcecado.

-Aposto que podem subir até seus ombros -levantou a vista para encontrar os seus olhos.

-As mãos não estão muito ruins, obrigado. -Quando tem hora com o médico?

-Não preciso ver um médico -se concentrou nos arquivos-. Não gosto.

-Medrosa.

-É possível. Tenho a garganta um pouco irritada, isso é tudo. Posso enfrentar isso sem que um médico me examine. E se pensa em soltar um sermão, eu te replicarei com outro sobre a inalação deliberada de fumaça.

-Não disse nada -com uma careta, guardou o cigarro que acabava de pegar-. Terminou? Quero levar essas provas ao laboratório.

-Sim. Que as pastas não tenham se queimado me poupa um bom tempo e de problemas. Preciso que Deirdre realize uma auditoria depois que tenhamos resolvido o primeiro incidente. Espero que a situação seja o bastante sólida para podermos abrir outra sucursal em Denver.

-Denver? -não pôde disfarçar a vibração de seu coração. -.. Pensa em voltar ao Colorado?

-Mmm... -satisfeita, introduziu as pastas na valise-. Depende. Ainda não penso tão longe no futuro. Primeiro devemos fazer que as lojas que já temos decolem. O qual não vai acontecer da noite para o dia - passou a alça da valise pelo ombro-. Com isto bastará.

-Quero vê-la - custou-lhe dizê-lo; ainda mais reconhecê-lo ante si mesmo-. Preciso vê-la, Natalie. Longe de tudo isto.

Com dedos de repente nervosos, ela se pôs a brincar com a alça.

-Neste momento nós dois estamos pressionados, Ry. O mais inteligente seria que nós nos concentrássemos no que precisamos fazer e manter um pouco de distância pessoal.

-Seria mais inteligente.

-Bem -deu um passo para a porta antes de que ele lhe bloqueasse o passo.

-Quero vê-la -repetiu. -E quero tocá-la. E quero muito levá-la para a cama.

O calor se remexeu no interior dela, ameaçando acender-se. Não parecia importar que as palavras dele fossem ásperas, diretas e carentes de delicadeza. A poesia e as pétalas de rosa a teriam deixado menos vulnerável.

-Se é o que quer. Preciso estar segura do que eu quero, do que posso manejar. Sempre fui uma pessoa lógica. E você é bom em remexer essa parte de mim.

-Esta noite.

-Tenho de trabalhar até tarde -sentiu que se debilitava, que crescia o anseio-. Espera-me um jantar de trabalho.

-Esperarei.

-Não sei quando terminarei. Provavelmente não antes da meia-noite.

-A meia-noite, então -a encostou contra a parede.

Natalie começou a perguntar-se por que resistia. Começou a fechar os olhos.

-A meia-noite -repetiu, à espera de que a boca de Ry cobrisse a sua. Querendo prová-la, voar sob ela. Sobressaltada, abriu os olhos-. Oh, Deus. Meia-noite.

Suas bochechas tinham voltado a empalidecer. Ry ergueu as mãos para sustentá-la.

- O que está acontecendo?

-Meia-noite -repetiu, levando uma mão à testa-. Tinha esquecido. Em nenhum momento me passou pela cabeça relacioná-lo. Ontem à noite chegamos aqui depois da doze.

-E? -assentiu sem deixar de observá-la.

-Enquanto eu me vestia para o jantar, recebi um telefonema. Não aguento deixar ele tocando até que a secretária atenda então atendi. – pausa- Ele disse a meia-noite.

-Quem? -com os olhos semicerrados, apoiou as duas mãos na parede.

-Não sei. Não reconheci a voz. Disse... deixa eu pensar -se soltou para sair e caminhar pelo corredor-. Meia-noite. Disse meia-noite. A hora das bruxas. Cuidado, ou espera... algo assim -acenou em direção para o carpete queimado-. Devia estar se referindo a isto.

-Por que diabos não me contou antes?

-Porque acabo de me lembrar - irritada com ele, virou-se. -Pensei que era o telefonema de algum engraçadinho, assim não prestei atenção e esqueci. Depois, quando aconteceu isto, tinha mais coisas na cabeça do que o telefonema de um desocupado. Como ia saber que se tratava de uma advertência, ou uma ameaça?

Ry sacou o bloco de notas do bolso para escrever as palavras dela.

-A que horas recebeu o telefonema?

-Ao redor das sete e meia. Procurava os brincos e estava com pressa porque eu tinha demorado e ia chegar tarde.

-Ouviu algum ruído de fundo na linha?

Insegura, esforçou-se por recordar. Não tinha prestado atenção, só tinha estado pensando em Ry.

-Não notei nenhum. Tinha a voz aguda. Era um homem, disso estou segura, mas se tratava de uma voz um pouco afeminada. Sorriu por entre dentes -recordou.

-Soava mecânica ou real? -perguntou enquanto anotava.

-Oh, refere-se a uma fita. Não, não parecia uma fita.

-Seu número consta na lista?

-Não -então compreendeu o significado da pergunta-. Não -repetiu devagar.

-Quero uma lista de todo mundo que o tenha. Todos.

Natalie se ergueu e se forçou a manter a calma.

-Posso proporcionar uma lista de todo mundo que eu sei que tem. Não de quem possa ter obtido por outros meios -desanuviou a garganta dolorida-. Ry, no geral os profissionais chamam a suas vítimas antes de um incêndio?

 Guardou o bloco e a olhou nos olhos.

-Até os profissionais podem ser loucos. Levarei você ao seu escritório.

-Não é necessário.

Se recordou que tinha trabalhado a noite toda e que podia ser paciente. Depois mandou tudo ao inferno.

-Escute-me, e faça com atenção -fechou os dedos em torno da lapela da jaqueta dela-. Vou levá-la ao seu escritório. Entendeu?

-Não vejo que...

-Entendido? -lhe deu um puxão.

Ela conteve uma maldição. Sabia que seria uma estupidez discutir.

-Perfeito. Depois vou precisar do meu carro, de maneira que depois de me deixar terá que se virar para ir aonde precisa.

-Continue escutando -continuou Ry-. Até que eu volte para o seu lado, não irá a parte alguma sozinha.

-Isso é ridículo. Devo dirigir uma empresa.

-A nenhum lugar sozinha -repetiu-. Caso contrário, vou chamar alguns de meus amigos do departamento de polícia de Urbana e farei que se convertam em sua sombra -quando abriu a boca para protestar, adiantou-se a ela-. E tenha certeza que posso manter sua pequena loja fechada a todo mundo menos à polícia e aos bombeiros.

-Isso está soando como uma ameaça .

-É uma mulher muito teimosa. Faça que um de seus empregados seja seu motorista hoje, Natalie, ou colocarei uma restrição do departamento de bombeiros na porta desta loja durante um par de semanas.

Ao ver a determinação no rosto dele, compreendeu que podia fazê-lo. E que o faria. Por experiência própria, sabia que era mais inteligente e prático ceder num pequeno ponto de uma negociação com o fim de salvar todo o projeto.

-De acordo. Arranjarei um motorista para todas as reuniões em que eu tenha que sair. Mas quero deixar claro que esse homem está queimando minhas propriedades, Ry, não ameaçando minha pessoa.

-Lhe telefonou. Isso é suficiente.

 

Odiava o fato de que a tivesse assustado. Um controle férreo fez que se ocupasse dos detalhes do escritório com ânimo e eficácia. Ao meio dia tinha preparado uma equipe de limpeza, à espera de suas ordens para apresentar-se no local quando Ry lhe desse o sinal verde. Também havia se ocupado de um telefonema frenético da sucursal de Atlanta e de uma irada de Chicago, e tinha conseguido minimizar o problema com sua família em Colorado.

Impaciente, chamou sua secretária.

-Maureen, eu precisava desses relatórios a trinta minutos atrás.

-Sim, Senhorita Fletcher. Mas sistema da Contabilidade está bloqueado.

-Diga... -conteve as palavras mordazes e se obrigou a acalmar-se-. Diga à eles que se trata de uma prioridade. Obrigada, Maureen.

Se recostou na cadeira e fechou os olhos. Se queria completar todas as reuniões que tinha nesse dia, devia acalmar-se. Devagar, abriu as mãos e ordenou a seus músculos que relaxassem.

Quase tinha conseguido quando chamaram à porta. Se ergueu na cadeira no momento em que Melvin colocava a cabeça.

-É seguro entrar?

-Mais ou menos. Entre.

-Trago presentes -entrou com uma bandeja.

-Se isso é café, talvez encontre as forças necessárias para me levantar e encher seu rosto de beijos.

Ele se ruborizou e riu entre os dentes.

-Não é só café, como também há salada de frango. Até você tem que comer, Natalie.

-Diga-me isso - levou uma mão ao estômago ao levantar-se para se reunir com ele no sofá. -Estou vazia. Você é um doce, Melvin.

-E egoísta. Tem estado queimando as linhas internas, de maneira que pedi a minha secretária que preparasse isto. Se você descansa... -brincou com a gravata borboleta vermelha-... nós descansamos -ela sentiu o delicioso aroma do café. -Arrume um tempo enquanto come para contar-me o quanto está ruim as coisas em nossa loja principal.

-Não tanto como poderiam ter estado - tirou os sapatos e recolheu as pernas-. Pelo que pude ver, principalmente foram danos estéticos no escritória da diretora. Não chegou até o material.

-Graças a Deus. Não sei se meu encanto teria funcionado uma segunda vez para convencer as nossas sucursais para que abrissem mão de parte de seu inventário.

-É desnecessário -disse entre bocados-. Desta vez tivemos sorte, Melvin, mas...

-Mas?

-Aqui há um assunto que me preocupa. Alguém não quer que Lady's Choice siga em frente.

Com o cenho franzido, ele pegou um rolinho do prato de Natalie e o partiu pela metade.

-Nosso principal,competidor é a Unforgettable Woman. E nós o seu.

-Pensei nisso. Mas não encaixa. Essa companhia tem uns cinqüenta anos no mercado. É respeitável. Sólida -suspirou, odiando o que tinha que dizer-. Mas o que me preocupa é a espionagem corporativa, Melvin. Dentro de Lady's Choice.

-Um dos nossos? -tinha perdido o apetite para o rolinho.

-Não se trata de uma possibilidade que eu goste ... nem que possa ser deixado de lado -pensativa, bebeu um gole de café-. Poderia convocar uma reunião de chefes de departamento, obter opiniões sobre nossa gente -e pensou que não era necessário fazê-lo-. Mas isso não soluciona o dos nossos próprios chefes de departamento.

-Muitos dos seus executivos trabalham a anos na Fletcher, Natalie.

-Sou consciente disso -inquieta, levantou-se, bebendo enquanto caminhava-. Não me ocorre nenhum motivo pelo qual alguém da organização queira atrasar a inauguração. Mas devo procurá-lo.

-Isso coloca todos nós na mira.

-Sinto, Melvin -se voltou-. Mas é isso.

-Não precisa se desculpar. São os negócios -o descartou com um gesto da mão, ainda que seu sorriso era um pouco tenso ao levantar-se-. Qual é o seguinte passo?

-À 1 hora fiquei de me encontrar com o agente do seguro na loja -olhou a hora e se amaldiçoou- Será melhor eu ir agora.

-Deixa que eu vou -antecipando-se a ela, levantou uma mão-. Leva mais do que pode aguentar. Delega, Natalie, recorda? Me reunirei com seu agente e te darei um relatório completo quando voltar.

-De acordo. Me poupará uma hora frenética -com o cenho franzido, pôs-se os sapatos- Se o inspetor encarregado da investigação estiver lá, peça-lhe para entrar em contato comigo para informar-me dos progressos.

-O farei. A última hora da tarde tem que levar um carregamento à loja. Quer atrasá-lo?

-Não -já tinha meditado-. O negócio continuará como sempre. Destinei um guarda de segurança para o local. Não será fácil para ninguém voltar a entrar.

-Conseguiremos na data prevista -assegurou Melvin.

-Não duvido.

 

Ry preferia um raciocínio humano, bom e sólido, à análise de um computador, mas tinha aprendido a utilizar todas as ferramentas disponíveis. O Sistema de Reconhecimento de Incêndios Provocados era um dos melhores. Nos últimos anos tinha ficado bem ágil com o teclado. Nesse momento, uma vez que sua secretária já tinha saído e que os homens dormiam lá em baixo, trabalhava sozinho.

O SRIP, usado com inteligência, era um instrumento eficaz para identificar e classificar tendências. Quando se suspeitava que alguns incêndios estavam relacionados, ficava possível utilizá-lo para predizer onde e quando futuros incêndios poderiam acontecer dentro desta série.

O computador lhe trouxe o que ele já tinha deduzido. A oficina de produção de Natalie era um objetivo importante. Já tinha atribuído à zona uma equipe de patrulha e vigilância.

Mas o preocupava muito mais a própria Natalie. O telefonema que tinha recebido convertia o assunto em algo pessoal. E tinha contribuído com uma pista muito específica.

Enquanto tomava a xícara de café com uma mão, apertou umas teclas e enlaçou com o Sistema Nacional de Dados de Incêndios. Introduziu os dados... informação de incidentes, localizações geográficas e dados sobre os incêndios. O processo não só o ajudaria, como serviria para ajudar a futuros investigadores.

Depois se pôs a trabalhar nos suspeitos. De novo introduziu os dados sobre os fogos e o método. A isso pôde adicionar a chamada telefônica e a impressão de Natalie sobre a voz e as palavras ditas pelo individuo.

Recostou-se na cadeira e observou como o computador reforçava suas próprias conclusões.

Clarence Robert Jacoby, apelido Jacoby, apelido Clarence Roberts, Ultima direção conhecida, vinte e três da Rua Sur, Urbana. Homem branco. Data de nascimento: vinte e cinco de junho de mil novecentos cinqüenta e dois.

Em sua ficha constava meia dúzia de detenções por fogos provocados, todos em meios urbanos. Tinha sido condenado a cinco anos de prisão. Ainda tinha pendente outra condenação de dois anos atrás, já que tinha fugido depois de sair sob fiança.

E a linha de atuação estava ali.

Jacoby era um profissional em tempo parcial que gostava de queimar coisas. Pelo geral preferia usar gasolina como catalisador e mechas de objetos inflamáveis que encontrava no lugar eleito, junto com fósforos de sua própria coleção. Com freqüência chamava a suas vítimas. A avaliação psiquiátrica o classificava como um neurótico com tendências sociópatas.

-Gosta do fogo, não é verdade, pequeno canalha? -murmurou, enquanto martelava os dedos contra o teclado-. Nem sequer se importa quando se queima. Não é isso o que me contou? É como um beijo.

Ry ativou um interruptor para imprimir os dados. Com cansaço, passou as mãos pelos olhos. Aquela noite tinha dormido umas duas horas no sofá do escritório exterior. A fadiga começava a dominá-lo.

Mas já tinha a sua presa. Estava seguro. E também uma pista.

Mais por hábito que por desejo, acendeu um cigarro antes de discar o número de telefone.

-Piasecki. Vou passar pela fábrica Fletcher a caminho de casa. Se puder me localizar... -calou-se, olhando a hora. Meia-noite em ponto. Talvez deveria considerá-lo um sinal-. Se puder me localizar neste número até nova ordem -de cor recitou o número da casa de Natalie e desligou.

Desconectou o computador, recolheu os dados impressos e a jaqueta e depois apagou as luzes.

 

Natalie colocou uma de suas camisolas favoritas da coleção de Lady's Choice e duvidou entre meter-se na cama ou tomar um banho de água quente. Primeiro decidiu acalmar seus nervos com um copo de vinho. Aquela tarde tinha tentado localizar Ry três vezes, para receber sempre a mesma informação de que não estava disponível.

« Se supõe que eu tenho que estar localizável », pensou furiosa. « Mas ele pode ir e vir a seu bel prazer ». Nem uma palavra dele o dia inteiro. A primeira hora da manhã iria receber uma surpresa quando a visse entrar em seu escritório para exigir-lhe um relatório de progressos.

Como se já não tivesse coisas suficientes com o que preocupar-se. Não pensava em deixar que nada interferisse em seu caminho. Nem incêndios nem, com certeza, um inspetor de bombeiros. Se tinha alguém em seu pessoal, em qualquer escalão, responsável pelos incêndios, ia averiguar quem era. E se ocuparia da situação.

Em um ano teria levado Lady's Choice ao topo. Em cinco, duplicaria o número de lojas.

As Indústrias Fletcher teria um novo sucesso que ela teria visto nascer desde suas primeiras fases. Poderia estar orgulhosa e satisfeita.

Então, não sabia por que, de repente, sentia-se só.

« Por culpa dele », decidiu, bebendo vinho, « por provocar inquietude em minha vida. Por me fazer questionar as prioridades num momento em que preciso estar centrada ».

A atração física, inclusive com essa classe de intensidade, não bastava, não deveria bastar, para distraí-la de seus objetivos. Com anterioridade já havia sentido, e depois sabia como praticar o jogo com segurança. Depois de tudo, tinha trinta e dois anos, e não podia se considerar uma novata no terreno das relações. Hábil e cautelosa, sempre tinha saído ilesa. Nenhum homem a tinha interessado suficientemente para deixar-lhe o coração com cicatrizes.

Perguntou-se por que de repente isso parecia tão triste.

Irritada com o pensamento, enterrou-o.

Perdia o tempo pensando em Ryan Piasecki. Deus sabia que nem sequer era seu tipo. Era rude, grosseiro e inegavelmente abrasivo. Preferia um homem mais suave. E seguro.

E isso lhe pareceu superficial.

Deixou o copo ao meio em um lado e jogou o cabelo para atrás. O que precisava era dormir, não se analisar. O telefone soou justo quando ia apagar a luz.

-Oh, te odeio -murmurou, pegando o fone-. Oi.

-Senhorita Fletcher, sou Mark, de recepção.

-Sim, Mark, do que se trata?

-Aqui há um tal inspetor Piasecki que quer vê-la.

-Oh, verdade? -olhou a hora, jogando com a idéia de proibir que o deixassem subir-. Mark, quer perguntar-lhe se trata de um assunto oficial?

-Sim, Senhorita. É por um assunto oficial, inspetor?

Ouviu com clareza a voz de Ry pelo fone, perguntando a Mark se gostaria de ter em vinte minutos no edifício uma equipe que iria procurar violações do código de segurança contra incêndios.

Quando Mark se pôs a gaguejar, Natalie se apiedou dele.

-Mande-o subir, Mark.

-Sim, Senhorita Fletcher. Obrigada.

Desligou, depois dirigiu-se à porta e no último instante deu a volta. Sob nenhuma hipótese ia conferir seu aspecto no espelho.

Mas não foi capaz de conter-se.

Quando Ry chamou à porta, tinha conseguido escovar o cabelo e passado um pouco de perfume.

-Não acredita que é injusto ameaçar as pessoas com o fim de sairem do seu caminho? -exigiu quando abriu.

-Não quando funciona - demorou um tempo apenas olhando-a. A camisola que lhe chegava até o chão era singela e de cor creme. A seda se cruzava sobre seus seios, cingia-se em torno da cintura e depois caía colada a seus quadris-. Não vê que é uma pena usar algo assim quando se está sozinha?

-Não, não creio.

-Vamos conversar no corredor?

-Suponho que não -fechou a porta por trás dele-. Não me incomodarei em lhe dizer que já é bem tarde.

Ry não disse nada, só entrou no sala. Cores suaves, rompidas por vibrantes pinturas abstratas que ao que parecia ela gostava. Notou que tinha muitos enfeites, mas todos ordenados. Tinha flores frescas, uma lareira de gás e um amplo janelão através do qual brilhavam as luzes da cidade.

-Bonito lugar.

-Eu gosto daqui.

-Você gosta das alturas -se aproximou da janela para comprovar que se achavam a uns vinte andares acima de qualquer resgate com escada-. Talvez eu faça uma vistoria neste edifício para ver se cumpre com as regulamentações -a olhou-. Teria uma cerveja?

-Não -então suspirou. As boas maneiras sempre estavam acima da irritação-. Eu estava bebendo uma taça de vinho. Quer uma?

Encolheu os ombros. Não era um apreciador de vinho, mas seu corpo já não era capaz de receber mais café.

Tomando-o como uma afirmação, Natalie foi à cozinha para servir outra taça.

-Tem algo para acompanhar? -inquiriu ele desde a porta-. Como comida?

Ia informá-lo do erro de tomar seu apartamento por uma cafeteria aberta vinte e quatro horas, mas então captou a expressão de sue rosto à luz forte da cozinha.

-Cozinho pouco, mas tenho queijo Brie, alguns pãezinhos e um pouco de fruta.

Quase divertido, ele passou as mãos pelo rosto.

-Brie -riu brevemente ao baixar as mãos-. Perfeito. Fantástico.

-Sente-se -e lhe passou o vinho-. Vou servi-lo

-Obrigado.

Alguns minutos mais tarde, encontrou-o no sofá, com as pernas estendidas e os olhos meio fechados.

-Por que não foi para casa se deitar?

-Tinha algumas coisas que fazer -alongou uma mão para a bandeja que ela tinha depositado na mesinha. Com a outra procurou Natalie. Satisfeito de tê-la ao seu lado, encheu um pãozinho com queijo-. Não está tão mau -comentou com a boca cheia-. Não pude jantar.

-Acredito que poderia ter pedido que trouxessem algo.

-Está bem. Pensei que queria que te pusesse a par da investigação.

-Claro, mas acreditei que ia me chamar horas atrás -ele murmurou algo incompreensível enquanto mastigava um novo pãozinho.

-Que?

-Tribunal -repetiu, engolindo-. Tive que estar no tribunal quase a tarde inteira.

-Compreendo.

-Mas recebi sua mensagem -sorriu, mais animado depois de ter levado algo ao estômago. Sentiu a minha falta?

-O relatório -lhe recordou com tom seco-. É o mínimo do que pode fazer depois de esvaziar-me a despensa.

Levou-se umas lustrosas uvas verdes à boca.

-Ordenei a vigilância de sua fábrica de Winesap.

-Acredita mesmo que é um objetivo? -apertou a mão em torno do pé da taça.

-Encaixa com o padrão. Por um acaso notou a presença de algum homem em alguma das suas propriedades? Homem branco, aproximadamente um metro e setenta de altura, de uns sessenta e cinco quilos. Cabelo loiro ralo. Quarenta e tantos anos, mas com uma cara redonda que lhe dá aspecto juvenil -calou-se para engolir umas galletitas com um gole de vinho-. Pálido, olhos rasgados, dentes proeminentes.

-Não, não se me ocorre ninguém assim. Por que?

-É um tocha. Um tipo desagradável, com um certo toque de loucura -descobria que o vinho também não estava tão mau, tanto que bebeu mais um pouco-. Se estivesse completamente louco, ficaria mais fácil. Gosta de danificar coisas e não se importa que lhe paguem por isso.

-Acredita que é ele -murmurou Natalie-. E o conhece pessoalmente, não é verdade?

-Clarence e eu nos conhecemos. A última vez que o vi foi a uns dez anos. Tinha demorado em demasia num de seus trabalhos. Estava em chamas quando cheguei. Estávamos ambos nos intoxicando com a fumaça quando consegui tirá-lo dali.

-Por que acredita que se trata dele? -lutou por manter a calma.

-É seu tipo de trabalho -adicionou, depois de oferecer-lhe um resumo de seu trabalho de investigação-. Ademais, o telefonema. Isso ele também gosta. E a voz que descreveste... é o estilo exato de Clarence.

-Poderia ter contado esta manhã.

-Poderia - deu uma encolhida de ombros-. Não vi motivo para isso.

-O motivo é que estamos falando de meu edifício, de minha propriedade -soltou com os dentes apertados.

Estudou-a por um momento. Supôs que não era uma má idéia utilizar a ira para ocultar o medo. Não podia culpá-la por isso.

-Diga-me uma coisa, Senhorita Fletcher, em sua posição como presidente, redige relatórios antes, durante ou depois de ter comprovado os dados?

-De acordo -suspirou-. Conte-me o resto.

-Se move de cidade em cidade -deixou a taça-. Aposto que voltou a Urbana. E o encontrarei. -Há algum cinzeiro por aqui?

Em silêncio, Natalie se aproximou e lhe ofereceu um pequeno prato de cerâmica de outra mesa. Compreendeu que estava sendo injusta. Era evidente que Ry se achava esgotado por todas as horas extras que tinha dedicado... por ela.

-Passou toda a noite concentrado no caso.

-É o trabalho -acendeu um fósforo.

-É? -perguntou baixinho.

-Sim -seus olhos se encontraram-. E por você.

Assim me coloca numa situação difícil, Ry -não pôde evitar que o pulso se acelerasse.

-Essa é a idéia -com um gesto indolente passou um dedo pela lapela de sua camisola, quase sem roçar-lhe a pele. Chegou-lhe seu aroma sutil e tentador-. Quer que eu te pergunte como foi o seu dia?

-Não -com riso cansado, moveu a cabeça-. Não.

-Suponho que não queira falar do tempo, de política ou de esportes, verdade?

Calou-se um instante. Não queria que sua voz soasse rouca .

-Nada em especial.

Ele grunhiu e inclinou-se para apagar o cigarro.

-Deveria ir embora para deixar que dormisse um pouco.

Com as emoções confusas, ela também se levantou.

-Provavelmente seja o melhor. O mais sensato -não era o que queria, muito pelo contrário. E começava a compreender que também não era o que precisava. Só o mais sensato.

-Mas não vou fazê-lo -a paralisou com o olhar-. A não ser que você me diga.

O coração acelerou no peito. Pôde sentir um tremor que subia desde as plantas de seus pés.

 

-Dizer o que?

Ry sorriu e se aproximou, para deter-se justamente quando seus corpos se roçaram. A primeira resposta, sem importar se ela quisesse que fosse ou ficasse, podia ser lida com facilidade em seus olhos.

-Onde é o dormitório, Natalie?

-Ali -um pouco aturdida, olhou acima do ombro dele e assinalou com gesto lânguido-. Por ali.

Com uma graciosidade rápida e surpreendente Ry, tomou-a em braços.

-Creio que até ali posso chegar.

-É um erro -já lhe enchia o rosto e o pescoço de beijos-. Sei que é um erro.

-Todo mundo comete um de vez em quando.

-Eu sou inteligente -sussurrou, desabotoando-lhe a camisa-. E sou sensata. Tenho de sê-lo, porque... -soltou um gemido quando os dedos dele lhe tocaram a pele-. Deus, seu corpo me fascina.

-É? -já estava a ponto de se descontrolar quando ela lhe puxou a camisa para fora do jeans. Considere-o todo seu. Deveria ter imaginado.

-Mmm... -estava ocupada mordendo-lhe o ombro-. Que?

-Que teria uma cama de primeira -caiu com ela sobre a colcha.

-Depressa -insistiu, meio louca por ele-. Te desejei desde a primeira vez que me tocou.

-Deixe que eu recupere o tempo perdido -com igual frenesi, achatou-lhe a boca com a sua.

Sem alento, Natalie lhe abriu o botão da calça jeans.

-Isto é uma loucura -lutou para encontrá-lo, bebendo sedenta de sua boca enquanto rolavam na cama.

Ele não foi capaz de recuperar o ar nem o controle.

-Está a ponto de acontecer. -Murmurou

Levantou a camisola e embaixo encontrou a calcinha de seda que fazia jogo. Quando fechou a boca sobre um seio coberto, percorreu-o um gemido.

Seda, calor e pele fragrante. Tudo o que era ela o encheu, atentou, atormentou-o. Era toda mulher. Beleza, graça e paixão. Tentação, tormento e triunfo. Tudo isso, toda ela o atormentava.

Reviravam-se sobre a colcha, procurando mais.

Havia fogo, seu resplendor era brilhante e perigoso. Abrasou-o, queimou-o, marcou-o, enquanto as mãos e a boca de Natalie corriam por seu corpo, inflamando centenas de chamas. Não se opôs. Por uma vez queria ser consumido. Soltou um grunhido, rasgou-lhe a seda que a cobria e furiosamente delicio-se com seu corpo.

As mãos dele eram ásperas e duras. E maravilhosas. Ela jamais tinha se sentido tão viva ou desesperada. Almejava-o, sabia que o tinha feito desde o princípio.

Mas nesse momento o tinha, podia sentir a pressão desse corpo sólido e musculoso contra o seu, podia provar a violenta urgência da necessidade de Ry cada vez que suas bocas se encontravam. Em cada respiração entrecortada dele podia ouvir a reação que lhe provocava seu contato, seu sabor.

 

Se era algo elementar, que assim fosse. Sentia-se jubilosa, promíscua e absolutamente livre. Fincou-lhe os dentes no ombro enquanto ele a conduzia de maneira cruel a seu primeiro orgasmo. Natalie gritou seu nome, arqueando-se, tensa como um arco.

Ele a penetrou com dureza, fundo.

O prazer a deixou cega e surda, alheia a seus próprios soluços enquanto se uniam num ritmo frenético. Colou o corpo ao de Ry, incansável, impulsionada por uma necessidade que parecia insaciável.

Então corpo e necessidade estouraram.

A luz estava acesa. Era engraçado que nem sequer tivesse notado, quando que no geral estava acostumado a captar cada detalhe minúsculo. O resplendor da luz era suave. Ryan jazia quieto, com a cabeça sobre um seio de Natalie, à espera de que seu organismo se serenasse. Sob seu ouvido, o coração dela continuava acelerado. Tinha a pele úmida, o corpo relaxado. De momento em momento um um tremor a sacudia.

Não sorriu com um gesto triunfal, como poderia ter feito, somente a contemplou maravilhado.

Havia querido conquistá-la. Não podia e nem pretendia negá-lo. Desde o primeiro momento em que a viu, tinha almejado a sensação de que o corpo de Natalie se tensionasse e tremesse sob o seu.

Mas não tinha contado com o tornado de necessidade que tinha percorrido a ambos, que fez que se procurassem como animais.

Sabia que tinha sido rude. Não era precisamente um homem delicado, de modo que isso não o preocupou. Mas nunca tinha perdido o controle de maneira tão completa com nenhuma mulher. Nem tinha desejado a uma com tanta intensidade momentos depois de tê-la possuído.

-Com isso deveria ter conseguido -murmurou.

-Mmm? -se sentia frouxa como a água. Palpitante e doce.

-Deveria ter te expulsado de meu sistema. Ou ao menos ter começado.

-Oh -encontrou energia para abrir os olhos. A luz, apesar de ser tênue, obrigou-a a semicerrá-los. Devagar, sua mente começou a clarear-se; com rapidez, sua pele começou a esquentar. Recordou o modo em que lhe tinha arrancado a roupa, que o tinha jogado na cama sem um só pensamento coerente, apenas o de possuí-lo. Suspirou e respirou fundo-. Tem toda razão -decidiu-. Deveria. O que se passa conosco?

Rindo, Ry levantou a cabeça e olhou o rosto acalorado dela, seu cabelo revolto.

-Maldita seja se o sei. Você está bem?

Natalie sorriu. Ao inferno com a lógica.

-Maldita seja se o sei. O que acaba de acontecer se afasta um pouco de minha experiência.

-Bom -baixou a cabeça e passou a língua por um seio. -Te desejo outra vez, Natalie.

-Bom -experimentou um único tremor.

 

Quando soou o despertador, Natalie gemeu, e virou-se para desligá-lo e esbarrou em Ry. Este grunhiu, deu-lhe um tapa no despertador e com a outra mão a colocou em cima dele.

-A que se deve esse ruído? -perguntou enquanto passava uma mão por suas costas e seu quadril.

-É para acordar-me.

Ry abriu um olho. « Sim », pensou, « teria que ter imaginado ». Estava tão bem pela manhã como em qualquer momento do dia.

-Por que?

-Funciona assim -ainda aturdida, tirou o cabelo do rosto. -O despertador toca, levanto, tomo um bom banho, bebo várias xícaras de café e vou trabalhar.

-Tenho certa experiência com o processo. Alguém te disse que hoje é sábado?

-Sei que dia é hoje. Mas tenho que trabalhar.

-Não acredito nisso -lhe apoiou a cabeça no ombro e olhou para o relógio para ver as horas. Eram 7 horas. Tinham dormido umas três horas, quando muito-. Volte a dormir.

-Não posso.

-De acordo, de acordo -suspirou resignado-. Mas deveria ter me advertido de que era insaciável -começou a mordiscar-lhe o ombro.

- Não era essa a minha intenção -riu, tratando de retrair-se-. Tenho de acabar com a burocracia e realizar alguns telefonemas -Ry subia a mão para acariciar-lhe o seio. Em um instante o fogo ganhou vida em seu estômago-. Pára.

-Mmm. Acordou-me, então terá que me pagar.

Natalie não pôde evitar e começou a esticar-se sob suas mãos.

-Somos afortunados de não ter nos matado ontem à noite. Está seguro de que quer se arriscar novamente?

-Homens como eu, enfrentam diariamente o perigo - cobriu-lhe a boca sorridente com a sua.

 

Contava com mais de três horas de atraso quando saiu do chuveiro. Decidiu que teria que trabalhar até tarde; depois de envolver o cabelo com uma toalha, começou a passar creme nas pernas. Uma boa executiva entendia o mérito do horário flexível.

Com um bocejo, limpou o vapor do espelho e se olhou. Deveria estar exausta. Deveria parecer esgotada depois da noite selvagem que tinham compartilhado Ry e ela.

Mas não estava e nem parecia. Mostrava um aspecto... « suave », pensou. « Satisfeito ».

Nada, absolutamente nada do que tinha experimentado até esse momento, chegava perto do que tinha sentido, ao que tinha feito e descoberto, durante a noite com ele.

De maneira que sorria como uma tonta enquanto penteava o cabelo molhado, por que não? Tinha até vontade de cantar enquanto colocava o roupão, isso era compreensível.

E se tinha que arrumar a agenda para esse dia porque tinha dedicado quase toda a noite e a manhã a lutar na cama com um homem que lhe fazia ferver o sangue, mais poder para ela.

Regressou ao dormitório e sorriu ao ver os lençóis emaranhados. Com os lábios franzidos, recolheu os restos de sua roupa íntima. Chegou à conclusão de que a mercadoria de Lady's Choice não suportava as provas exaustivas a que eram submetidas por Ry Piasecki.

Não era fabuloso?

Rindo, atirou os fragmentos a um lado e o olfato a conduziu até a cozinha.

-Cheirinho de café -começou, e se deteve no umbral.

Ele estava quebrando uns ovos sobre uma cumbuca com suas mãos grandes e duras. Tinha o cabelo úmido, já que tinha tomado banho primeiro. Estava descalço, com os jeans pelos quadris e a camisa arregaçada.

Incrivelmente, desejou possuí-lo novamente.

-Praticamente não tem nada para comer.

-Como muito fora -com a ordem de controlar-se, dirigiu-se para a cafeteira. -O que está preparando?

-Omelete francesa. Tinha quatro ovos, um pouco de queijo chedar e um pouco de brócolis.

-Ia fervê-lo -inclinou a cabeça enquanto provava o café. -Não pensei que soubesse cozinhar.

-Todo bombeiro que se preze cozinha. No quartel nos dividimos em turnos - localizou uma batedeira e se voltou para olhá-la-. Oi, Pernas. Estás fantástica.

-Obrigado -sorriu acima da borda da xícara. Como continuasse olhando-a dessa maneira, deu-se conta de que ia atirá-lo ao solo. O mais inteligente era ocupar-se de assuntos práticos. -Se supõe que tenho de ajudar?

-Pode me ajudar com as torradas?

-Mal -deixou a xícara sobre a mesa e abriu um armário. Trabalharam em silêncio por uns momentos-. Eu... -não sabia como perguntar de maneira delicada. -Presumo que quando era bombeiro tenha enfrentado muitas situações perigosas.

-Sim. E?

-As cicatrizes em seu ombro, e nas costas -as tinham descoberto durante as explorações noturnas de seu corpo realmente formoso-. Cumprindo com o dever?

-Sim. Então? -levantou a vista. A verdade era que não pensava nelas. Mas à crua luz do dia, lhe ocorreu que para uma mulher como ela talvez fossem desagradáveis-. Te incomodam?

-Não. Perguntava-me como teria se queimado.

Deixou a tigela a um lado e levou uma frigideira ao fogo. «Pode ser que a incomode>>, pensou, «pode ser que não». O melhor era colocar tudo em pratos limpos.

-Nosso, amigo Clarence. Enquanto eu o tirava de um incêndio que ele tinha provocado, o teto veio abaixo -ainda podia recordar a chuva de chamas, o rugido do animal, o assustador pesadelo da dor. -Caiu em cima de nós. Ele gritava e ria. Consegui tira-lo de lá. Depois disso, não recordo muita coisa, até que acordei no setor de queimados.

-Sinto muito.

-Poderia ter sido muito pior. O uniforme me protegeu bastante. Tive sorte -jogou os ovos batidos na frigideira. - Meu pai morreu dessa maneira. O fogo subiu pelas paredes. Quando ventilaram o teto, tudo cedeu -amaldiçoou em silêncio. De onde tinha saído isso? Não tinha sido sua intenção mencioná-lo. A morte de seu pai não era uma típica conversa matinal. Deveria passar manteiga nessa torrada antes que esfrie.

Ela não disse nada, não foi capaz de pensar em nada; só se dirigiu a ele, rodeou-lhe a cintura com os braços e apoiou a cabeça em seu ombro.

-Não sabia que tinha perdido seu pai -tinha tantas coisas que desconhecia.

-Faz doze anos. Num instituto. Um garoto que não estava contente com a nota recebida pelo exame de química incendiou o laboratório. Meu pai conhecia os riscos -murmurou, incomodado pela sensação que acordava nele a simpatia muda de Natalie- Todos nós conhecemos.

-Não queria abrir velhas feridas, Ry -não o soltou.

-Está bem. Ele era um bombeiro extraordinário.

Natalie permaneceu onde estava por alguns momentos, desconcertada pelo que sentia. A necessidade de consolá-lo, de compartilhar, o terrível impulso de fazer parte do que ele era. Com cautela, separou-se. Recordou que não tinha sentido procurar mais do que tinha entre os dois.

-E esse Clarence... como o encontrará?

-Com um pouco de sorte poderei rastreá-lo através de contatos -com um movimento rápido e competente, virou a omelete-. Ou o atrapalharemos quando estiver estudando seu próximo alvo.

-Minha fábrica.

-Provavelmente -mais relaxado pela breve distância que tinha entre eles, observou-a acima do ombro-. Alegre-se, Natalie. Tem os melhores homens da cidade trabalhando para proteger suas roupas íntimas.

-Sabe muito bem que não é... -calou-se quando soou a campainha. -Esqueça.

-Um momento. O porteiro não chama quando alguém se apresenta para te ver?

-Não quando se trata de um vizinho.

-Use o olho mágico. -ordenou enquanto pegava os pratos.

-Sim, papai -divertida pela atitude dele, foi à porta. Uma olhada no olho mágico e obrigou-se a conter um grito e a tirar os ferrolhos-. Boyd, pelo amor do céu! -lhe rodeou o pescoço. -Cilla!

-E toda a tropa -advertiu Cilla, rindo enquanto se abraçavam. -O guarda não me deixou te chamar para alertá-la da invasão.

-Me alegro muito em vê-los. -se agachou para abraçar seus sobrinhos-. Mas, o que fazem aqui?

-Já conhece o capitão -respondeu Cilla. -Bryant, não toque em nada, sob pena de morte -lançou um olhar de advertência a seu filho maior. Com oito anos, não se podia confiar nele-. Quando Deborah nos chamou para contar sobre o segundo incêndio, nos convidou e aqui estamos. Allison, não é uma pista de basquete. Por que não deixa isso?

-Não vou atirá-la contra nada -possessiva, Allison levou a bola ao peito.

-Está bem - assegurou Natalie a Cilla, passando uma mão distraída pelo cabelo dourado de sua sobrinha-. Boyd, não posso acreditar que arrastou a todos por quase todo o país por algo assim.

-Os garotos não têm aula na segunda-feira -se agachou para recolher a jaqueta que seu filho menor tinha atirado ao solo-. Assim decidimos ter um fim de semana festivo, isso é tudo.

-Nos ficaremos com Deborah e Gage -adicionou Cilla. -Então não fique em pânico.

-Não, é que...

-E trouxemos comida -Boyd exibiu a bolsa cheia de hambúrgueres e batatas fritas-. Que te parece se comermos juntos?

-Bem, eu... - olhou em direção à cozinha. Não sabia como ia explicar a presença de Ry.

Keenan, com a curiosidade de um menino ativo de cinco anos, já o tinha descoberto. Desde a porta da cozinha, sorriu para Ry.

-Oi.

-Oi, para você também -curioso por ver como Natalie levaria a situação, saiu.

-Quer ver o que posso fazer? -lhe perguntou Keenan antes que alguém pudesse falar.

-Claro.

Sempre disposto a exibir uma nova habilidade, Keenan trepou pela perna de Ry até enroscar-se a suas costas.

-Nada mal -acomodou o pequeno para que pudesse agarrar-se melhor.

-Esse é Keenan -explicou Cilla-. Nosso jovem macaquinho.

-Sinto muito. Ah... -Natalie passou uma mão pelo cabelo úmido. Não tinha que olhar para Boyd para saber que seus olhos refletiriam um olhar especulador de irmão mais velho. -Boyd e Cilla Fletcher, Ry Piasecki -clareou a garganta-. E estes são Allison e Bryant -suspirou-. Já conhece Keenan.

-Piasecki -repetiu Boyd-. Do departamento de fogos provocados? -justamente o homem que eu queria ver. Ainda que não esperasse encontrá-lo descalço na cozinha de minha irmã.

-Exato -os irmãos tinham um gênio parecido. E uma inata suspeita para os desconhecidos-. Você é o policial de Denver.

-É capitão de polícia -falou Bryan. -Usa uma arma no trabalho. Posso beber algo, tia Nat?

-Claro. Eu... -mas Bryant já tinha se lançado para a cozinha-. Bom, isto é... -« incômodo », pensou-. Será melhor que eu traga alguns pratos antes que esfrie a comida.

-Boa idéia. A única coisa que tem são ovos -Ry observou a bolsa que Boyd sustentava, reconhecendo seu conteúdo-. talvez possamos estabelecer um trato por algumas das suas batatas fritas.

-Você é o investigador que está pesquisando os incêndios, não? -perguntou Boyd.

-Ei, capitão -Cilla olhou com olhos cintilantes a seu marido. -Nada de interrogatórios com o estômago vazio. Pode fritá-lo quando tivermos terminado. Passamos horas num avião -explicou quando Bryant regressou e tratou de tirar a bola de Allison-. Estamos um pouco nervosos.

-Sem problema -um instante antes que Boyd, Ry pegou a bola que tinha voado das mãos da pequena-. Gosta de lançar? -perguntou a Allison.

-Mmm -presenteou-o com um sorriso conquistador-. Eu entrei na equipe. Bryant não.

-O basquete é estúpido -de mau humor, Bryant se sentou numa cadeira-. Prefiro jogar com o Nintendo.

Ry acomodou Keenan nas costas enquanto com as mãos dava voltas na bola.

-Acontece que dentro de algumas horas tenho uma partida. Talvez queira vir.

-Verdade? -os olhos de Allison se iluminaram ao olhar para Cilla. -Mamãe?

-Parece divertido -intrigada, Cilla se dirigiu à cozinha-. Irei dar uma mão a Natalie -« e, de passagem, arrancar-lhe os detalhes », pensou.

 

O último lugar onde Natalie esperava passar o sábado à tarde era numa quadra de basquete, olhando policiais e bombeiros jogarem. O primeiro quarto passou meditando, com o cotovelo sobre o joelho e o queixo no punho.

Depois de tudo, Ry não tinha mencionado a partida para ela, nem a tinha convidado de maneira direta. Estava ali devido a sua sobrinha.

Disse-se que não lhe importava. Ele não tinha nenhuma obrigação de incluí-la em seu entretenimento pessoal.

«Porco>>

A seu lado, Allison se achava como no céu, animando o time da camiseta vermelha com o entusiasmo de uma admiradora apaixonada.

-Não é uma maneira tão má de se passar uma tarde -comentou Cilla acima do apito do árbitro-. Refiro-me a olhar um grupo de rapazes meio nus suando -a pirraça dançou em seus olhos-. A propósito, o seu é muito atraente.

-Te disse que não é meu. Só...

-Sim, já me disse -com um sorriso, Cilla passou um braço pelos ombros de Natalie-. Anime-se, Nat. Se tivesse ido com Boyd e os meninos para deixar tudo na casa de Deborah, teu irmão agora estaria te interrogando.

-Tem razão -suspirou. -Para mim não mencionou que tinha esta partida -murmurou.

-Oh? -Cilla conteve um sorriso e passou a língua pelos dentes-. Sem dúvida teria outra coisa na mente. Eh! -pôs-se pé, junto com todos os espectadores, quando um da equipe azul fincou os cotovelos nas costelas de Ry. -Falta! -Cilla gritou, por entre suas as mãos em concha.

-Ele pode agüentar -murmurou Natalie, tratando de manter a indiferença quando Ry se colocou à linha dos tiros livres-. Tem um estômago de ferro -lutou entre o orgulho e o ressentimento quando ele arremessou.

-Ry é o melhor -afirmou Allison, em adoração profunda por seu herói-. Viram os movimentos que tem em ataque? E seu salto vertical é tremendo. Já realizou três bloqueios.

« Então, talvez esteja bem », concedeu Natalie. Talvez quisesse que ganhasse. Mas isso não significava que ia levantar-se para torcer por ele.

No terceiro quarto, pôs-se de pé como todos os presentes quando Ry meteu uma cesta de três pontos que lhe deu uma vantagem de dois pontos aos Smoke eaters sobre os Bloodhounds.

-Viram isso? Limpa, não tocou no aro.

-Tem fundamentos estupendos -admitiu Cilla-. E mãos rápidas.

-Sim -Natalie sentiu que um riso tonto se estendia por sua face. <<Eu que o diga!>>

Com o coração acelerado, sentou-se no banco. Inclinou-se para frente, com o olhar colado na bola. O som de pés correndo enquanto os homens iam de um lado a outro da quadra. Os polícias arremessaram e os Comedores de Fumaça bloquearam. Dois homens caíram ao chão enquanto os demais se observavam com caras de poucos amigos e o árbitro fazia soar o apito.

Um contra ataque. Cotovelos que voavam, um emaranhado de corpos sob a cesta quando a bola cortou o ar e quicou. Todos foram atrás dela.

-Vou apagar teu fogo, Piasecki -brincou um policial.

Natalie viu que Ry tirava o cabelo suado dos olhos e sorria.

-Não com esse equipamento.

Natalie assobiou para o policial enquanto comia amendoins que Cilla lhe oferecia. Continuou comendo como alternativa sensata a devorar as unhas. Quando solicitaram um tempo técnico, olhou o relógio. Faltavam menos de seis minutos para o final da partida, e os Bloodhounds ganhavam de 108 a 105.

Na lateral o técnico dos Comedores de Fumaça estava passando instruções a seu time. A maioria dos jogadores estavam com o torso dobrado e as mãos apoiadas nos joelhos, enquanto recuperavam o ânimo para a batalha final. Ao regressar à pista, Ry se voltou e fixou o olhar em Natalie. Sorriu-lhe. Um gesto rápido e arrogante.

-Nossa! -murmurou Cilla-. Isso sim é que é sério. Algo poderoso.

-Você é que está me dizendo -soltou o ar contido. Quando isso não a serenou, empregou o excesso de energia para animar à equipe.

Foi um combate até o final, no que o marcador se alternou a favor de uns e de outros. Com o passo dos segundos, os espectadores permaneciam em pé, erigindo uma muralha de som.

Com poucos segundos de partida e com os Comedores de Fumaça um ponto atrás, Natalie mordia os dedos. Então viu Ry mover-se.

-Oh, sim... -murmurou a princípio, quase como uma prece. Depois se pôs a gritar ao ver que atravessava a linha defensiva da outra equipe, controlando a bola como se a tivesse colada à mão por um fio invisível.

O bloquearam e ele girou sobre si mesmo. Tinha uma possibilidade e estava desviando-se. O coração de Natalie parou quando o viu driblar para depois saltar com um giro no ar e lançar a bola, que encontrou o aro da cesta.

A multidão enlouqueceu. Natalie se voltou para abraçar Allison e depois Cilla. O que sobrara dos amendoins voou pelos ares como chuva. O relógio se deteve e os espectadores invadiram o campo.

Viu Ry num relance, um momento antes de ser engolido por uma maré de corpos. Estava no banco com uma mão sobre o coração.

-Estou esgotada -sorriu e secou as palmas das mãos úmidas no jeans. Tenho que me sentar.

-Que partida! -Allison não parava de dar saltos-. Não foi estupendo? Viu, mamãe? Marcou trinta e três pontos! Não foi fantástico?

-Com certeza.

-Podemos dizer-lhe? Podemos descer para dizer-lhe?

Cilla estudou à multidão e depois olhou os olhos brilhantes de sua filha.

-Claro. Vamos, Natalie?

- Ficarei aqui. Se conseguirem chegar até ele, diga-lhe que estarei esperando-o.

-De acordo. Vai levá-lo esta noite ao jantar na casa de Deb?

-Vou convidá-lo -com cautela, martelou os dedos sobre os joelhos.

-Leve-o -ordenou Cilla, depois se inclinou para beijar a face de sua cunhada. Nos vemos depois.

Pouco a pouco o ginásio se esvaziou enquanto os jogadores iam banhar-se. Satisfeita, Natalie permaneceu sentada. Havia sido seu primeiro dia livre em seis meses, e chegou à conclusão de que não tinha sido uma maneira tão má de passá-lo.

E como Ry não a tinha convidado para assistir o jogo, não tinha nenhuma obrigação. Nenhum dos dois tinha. De maneira sensata, nenhum dos dois estavam procurando compromisso, restrições e romance. De ambas as partes tudo se reduzia a uma urgência primária, muito intensa e com muitas chances de que se desvanecesse.

Era uma sorte que os dois se entendessem. Certamente, existia um pouco de afeto entre eles. E respeito. Mas não se tratava de uma relação no verdadeiro sentido da palavra. Ninguém queria isso. Só era uma aventura... para se desfrutar enquanto durasse, sem danos para nenhum dos dois quando terminasse.

Então ele voltou à quadra. O cabelo estava escuro e úmido depois do banho. Fixou os olhos nela.

« Santo céu », foi o único que lhe ocorreu pensar quando o coração saltou dentro de seu peito.

-Boa partida -conseguiu dizer, obrigando-se a pôr-se de pé e ir ao seu encontro.

-Teve seus momentos -inclinou a cabeça-. Sabe, é a primeira vez que te vejo vestida com algo que não seja um de seus elegantes trajes.

Para ocultar a súbita onda de nervosismo que a dominou, inclinou-se e recolheu uma das bolas da partida.

-Jeans e uma malha não costumam ser meu uniforme de trabalho.

-Pois lhe caem muito bem, Pernas.

-Obrigado -deu voltas com a bola nas mãos, estudando-o. -Allison se divertiu como nunca. Você foi muito amável ao convidá-la.

-É uma garota encantadora. Todos eles são. Ela tem a sua boca. E as suas feições. Vai ser uma “destruidora de corações”.

-Agora mesmo, ela está mais interessada em anotar pontos na quadra do que com garotos -mais relaxada, voltou a levantar a vista e lhe sorriu-. Você mesmo marcou alguns, inspetor.

-Trinta e três -disse-. Mas, quem estava contando?

-Allison -<< e eu também. >> Sem soltar a bola, entrou na quadra. Eu entendi que esta foi a sua batalha anual com os Bloodhounds.

-Sim, celebramos uma partida por ano. A arrecadação se destina a obras beneficentes. Mas essencialmente viemos bater uns nos outros.

Com a cabeça baixa, fez quicar a bola. -Nunca mencionou-o em nenhum momento. Quero dizer até que Allison apareceu.

-Não. A observava, intrigado. Se não se enganava, tinha um quê de irritação em sua voz. -Suponho que não.

Por que não? -girou a cabeça.

« Decididamente está irritada », concluiu Ry, e coçou o queixo.

-Não pensei que fosse seu tipo de entretenimento.

-Oh, para valer?

-Ei, não se trata nem de ópera nem de ballet - encolheu os ombros e enganchou os dedos polegares nos bolsos dianteiros-. Nem de um elegante restaurante francês.

-Voltando a chamar-me de esnobe? -soltou o ar e respirou.

« Vá com cuidado, Piasecki », advertiu-se. Em alguma parte tinha uma engrenagem.

-Não exatamente. Digamos que eu não podia imaginar alguém como você entusiasmada com uma partida de basquete.

-Alguém como eu -repetiu. Doida da vida, girou, plantou os pés e lançou a bola para a cesta. Atravessou a rede e quicou no campo. Quando olhou outra vez para Ry, teve a satisfação de vê-lo boquiaberto. -Alguém como eu - ela disse novamente e foi recolher a bola-. E isso o que significa, Piasecki?

 

Tirou as mãos dos bolsos justamente a tempo de pegar a bola que ela tinha lhe lançado antes que o golpeasse no peito. Lançou-a de novo, com força, e arqueou uma sobrancelha quando Natalie a recebeu.

-Faça de novo -exigiu ele.

-De acordo - deliberadamente, situou-se atrás da linha dos três pontos, preparou o disparo e o soltou. O som da bola ao atravessar o aro lhe provocou um sorriso.

-Bom, bom, bom... - Nesse momento, Ry pegou a bola. Com rapidez passou por seu oponente. Estou impressionado, Pernas. Muito impressionado. O que você acha de um contra um?

-Perfeito -aceitou, agachando-se para marcá-lo enquanto mirava a bola.

-Você sabe, eu não posso.

Rápida como uma serpente, ela meteu a mão e lhe roubou a bola. Executou um ataque perfeito apoiando-se na cesta.

-Ponto a meu favor -afirmou e lhe entregou a bola.

-Você é muito boa.

-Oh, sou mais do que boa - jogou o cabelo para trás e se plantou para bloqueá-lo-. Na universidade fiz parte da seleção estadual, amigo. No último ano fui a capitã. De onde acredita que Allison pegou o gosto?

-De acordo, tia Nat, vamos jogar.

Ele realizou um giro. Ela estava grudada nele. Bons movimentos, ele notou. Sabia que devia conter-se. Depois de tudo, não ia derrubar uma mulher na quadra, sem importar-se que estivesse em jogo seu ego masculino.

Natalie não mostrou a mesma sensibilidade e o bloqueou com a força suficiente para deixá-lo sem ar.

Com o cenho franzido, Ry esfregou o ponto abaixo do coração onde ela tinha fincado seu ombro. Seus olhos agora estavam brilhando como esmeralda.

-Isso foi falta.

 Ela roubou-lhe a bola e fez um ponto com um impressionante gancho acima do ombro.

-Não vejo nenhum arbitro.

Ela tinha vantagem e os dois sabiam. Ademais, devia reconhecer que Natalie era melhor do que a metade dos policiais que tinha enfrentado essa tarde.

E o que era pior, ela também o sabia.

Ele a marcou, mas não estava sendo fácil. Descobriu que ela era vil, já que tinha a seu favor a velocidade e excelentes fundamentos, somado a uma grande dose de garra para compensar a diferença de altura.

Alternavam-se no marcador. Ela tinha arregaçado as mangas da camisa. Saltou com ele e bloqueou o arremesso de Ry com a ponta dos dedos. E como não mostrava arrependimento algum em utilizar os talentos de que dispunha, golpeou-o com o corpo, para depois deslizar em pleno contato com o seu.

O sangue de Ry ferveu , tal como tinha sido a intenção de Natalie. Ofegando, tomou a bola e a olhou fixamente. Exibia um sorriso presunçoso, tinha o rosto acalorado e os cabelos revoltos. Deu-se conta de que poderia comê-la viva.

Avançou com rapidez, surpreendendo-a. Ela soltou um grito quando ele a tomou pela cintura e a colocou sobre seu ombro. Natalie estava rindo quando ele encestou a bola com a mão livre.

-Isso sim é que foi falta.

-Não vejo nenhum árbitro - moveu-a e deixou que a gravidade a baixasse até que ficaram cara a cara, com as pernas dela enganchadas em torno de sua cintura. Levantou uma mão, agarrou-lhe os cabelos e guiou sua boca ao encontro da dele.

Natalie perdeu o pouco do controle que lhe restara. Abrindo-se a ele, mergulhou no beijo e exigiu mais.

Com um apetite súbito e voraz, Ry abandonou sua boca e começou a devorar seu pescoço. Suave, salgado, com a persistente fragrância tentadora que ela usava. Sentiu que se derretia.

-Lá nos fundos há um armazém com fechadura.

Ela já havia começado a tirar-lhe a camisa. Respirava de forma entrecortada.

-Então, por que continuamos aqui?

-Boa pergunta.

Levando-a enganchada à cintura enquanto com os dentes lhe fazia coisas incríveis na orelha, atravessou as portas de vaivém e avançou por um corredor estreito. Desesperado por tê-la, abriu o armazém. Depois de trancar a porta, ficaram trancados numa sala minúscula cheia de equipamentos esportivos e que cheirava a suor.

Sentou-se num banco de exercícios com Natalie em seu colo.

-Me sinto como um adolescente -murmurou, abrindo o botão do jeans dela. Sob o tecido, tinha a pele quente, úmida e trêmula.

-Eu também - disse com o coração acelerado-. Oh Deus, como o desejo! Depressa.

 Com mãos frenéticas arrancavam a roupa. Não tinham tempo nem necessidade para a delicadeza. Só para o ardor. Crescia tão rapidamente no interior de Natalie, que lhe dava a impressão de que podia explodir- As mãos de Ry procuravam sua garganta, seus peitos, seus quadris, excitando-a, atormentando-a. Nada e nem ninguém importavam, somente ele e esse fogo selvagem e incendiário que provocavam quando estavam juntos.

 

Ela queria que fosse mais quente, mais alto, mais rápido.

Com um som baixo e felino que fez vibrar o sangue de Ry, Natalie abriu-se para ele. O coração dele pareceu deter-se no instante em que o aprisionou, quando arqueou as costas para atrás, com os olhos fechados. Ela enchia sua visão, sua mente, deixando-o desamparado. Então Natalie voltou a abrir os olhos e o olhou.

Começou a mover-se, depressa e com agilidade. Achava-se no ponto de ebulição. Ry deixou que o poder tomasse aos dois.

-Nunca antes tinha feito algo assim -frouxa e sem forças, Natalie voltou a vestir-se-. E quero dizer nunca.

-Não era precisamente o modo que eu tinha planejado -desconcertado, Ry alisou os cabelos.

-Somos piores do que um par de crianças -e esticou a blusa com um suspiro-. Foi fabuloso.

-Sim -sorriu, e de imediato ficou sério-. Você é que é.

-Seria melhor não brincarmos com a sorte e irmos embora -também sorriu-. Além disso, tenho de ir para casa trocar de roupa -encontrou um de seus brincos no chão. -Esta noite tenho um jantar na casa dos Guthrie.

-Te levarei em casa -ficou fascinado pelo simples ato feminino de colocar o brinco.

-Te agradeço -desajeitada, virou-se para abrir a porta. -Você também foi convidado para jantar. Sei que Boyd quer a oportunidade de falar com você. Sobre os incêndios.

-A comida é boa? -fechou a mão sobre a dela antes de que pudesse abrir.

-Fabulosa -confirmou com um sorriso.

 

Ry descobriu que ela não tinha mentido sobre a comida. Costelas de cordeiro, aspargos frescos e batatas doce, tudo acompanhado com um vinho branco francês.

Sabia que para Gage Guthrie sobrava dinheiro. Mas nada o tinha preparado para a mansão de estilo gótico, com suas torres e sacadas. Vista de fora, era como se fosse um castelo.

A não ser pelas pessoas que a habitavam, poderia irradiar uma atmosfera de museu.

Em um instante identificou-se com Deborah. Tinha escutado que ela era uma promotora dura e tenaz. Tinha um aspecto mais suave e vulnerável do que sua irmã, ainda que sua fama no tribunal era formidável.

Era óbvio que seu marido a adorava, e o mesmo acontecia com Boyd e Cilla. Ry calculou que já deviam estar juntos há mais ou menos uma década, mas a chama seguia viva.

E seus filhos eram estupendos. Ele sempre tinha sentido carinho pelas crianças. Reconheceu e ficou comovido com o esmagamento pré-adolescente que Allison lhe dedicava, e a gratificou repassando com ela os momentos mais importantes da partida.

E o jantar foi relativamente pacífico.

-Você anda em carro de bombeiros? -quis saber Keenan.

-Antes costumava fazê-lo -informou Ry.

- E por que não anda mais?

-Eu já te falei -interveio Bryant, exibindo uma expressão de desdém que só um irmão reconhece e compreende-. Agora ele persegue os maus, como papai. O que acontece é que estes maus se dedicam a provocar incêndios. Não é?

-É sim.

-Eu preferiria andar num carro de bombeiros -com uma jogada astuta para evitar os aspargos de seu prato, Keenan levantou-se da cadeira e foi sentar-se no colo de Ry.

-Keenan -disse Cilla. -Deixe Ry comer.

-Está tudo bem -acomodou o pequeno sobre um joelho. -Já andou em um carro de bombeiro?

-Não -sorriu com expressão cativadora. -Posso ir?

-Se seus pais deixarem, amanhã poderá vir à guarnição dar uma olhada.

-Bem -Bryant de imediato se incorporou ao convite. -Podemos, papai?

-Não vejo por que não.

-A tia Nat sabe onde é -adicionou Ry enquanto Keenan saltava de alegria em seu joelho. -Se forem antes das dez, mostrarei tudo.

-Parece fantástico -disse Cilla. -E se quiserem chegar a tempo, me parece que já é hora de se lavarem e irem para cama -o protesto poderia ter sido mais veemente só não foi por ter sido um dia estafante para os meninos. Cilla moveu a cabeça e olhou para Boyd. -Capitão?

-Muito bem -se levantou e carregou Bryant sobre o ombro, provocando-lhe gargalhadas-. Em marcha.

-Te darei uma mão -Natalie pegou Keenan do colo de Ry-. Dê boa noite, amigo.

-Boa noite, amigo -repetiu, esfregando o nariz contra o pescoço dela - Você cheira tão bem como Thea, tia Nat.

-Obrigada, querida.

-Vai contar uma história?

-Chantagista -riu enquanto o levava.

-Bonita família -comentou Ry.

-Gostamos -Deborah lhe sorriu. -Você lhes ofereceu algo que esperarão ansiosamente.

-Não é nada. Os rapazes do quartel adoram se exibir para os meninos. Um jantar estupendo.

-Frank é um entre um milhão -admitiu Deb. -Um antigo batedor de carteiras - fechou a mão sobre a de Gage-. Que agora emprega esses dedos ágeis para criar milagres gastronômicos. Por que não tomamos o café no salão pequeno? Irei ajudar o Frank.

-Casa enorme -disse Ry quando Gage e ele abandonaram o refeitório e se dirigiram ao salão-. Não se perde nunca?

-Tenho um bom sentido da orientação. No salão ardia o fogo na lareira; as luzes estavam baixas e eram acolhedoras. Uma vez mais Ry recebeu a impressão de lar. -Foste policial, é verdade?

-Sim -se esticou numa cadeira. -Meu colega e eu trabalhávamos numa operação policial que deu errado. Muito mau -ainda lhe doía, mas as feridas já haviam cicatrizado. -Meu parceiro acabou morrendo e faltou pouco para acontecer o mesmo comigo. Quando recuperei os sentidos, não quis mais voltar a usar um distintivo.

-No duro -Ry sabia que era muito mais. Se não se recordava mal da história, Gage tinha permanecido meses em coma antes de regressar à vida-. De maneira que acabou se dedicando aos negócios da família.

-Pode-se dizer que foi assim. Temos algo em comum. Você também está no negócio familiar.

-Pode-se qualificar desse modo -o olhou aos olhos.

-Te pesquisei. Natalie é importante para Deborah, e para mim. Posso adiantar-te que Boyd vai perguntar se é importante para ti - levantou a vista quando Boyd entrou. -Foi rápido.

-Vi minha oportunidade e não a desperdicei - sentou e cruzou as pernas à altura dos tornozelos. -E bem, Piasecki, o que há entre minha irmã e você?

Ry chegou à conclusão de que já tinha sido bastante cortês e pegou um cigarro. Acendeu-o e jogou o fósforo num cinzeiro de cristal.

-Eu diria que qualquer um que consegue ascender a capitão de polícia já teria que ter deduzido.

Gage tossiu para conter o riso e Boyd semicerrou os olhos.

-Natalie não é uma pessoa descartável -disse com cautela.

-Sei o que é -rebateu Ry. -E também o que não é. Se quer interrogar alguém a respeito do que há entre nós, capitão, será melhor que comece por ela.

-Me parece justo -assentiu depois de meditá-lo-. Faça-me um resumo da investigação dos incêndios.

Decidiu que podia fazê-lo. Relatou a seqüência, os fatos, os passos que tinha dado e as conclusões à que tinha chegado, respondendo às perguntas secas de Boyd com igual brevidade.

-Aposto em Clarence -concluiu-. Conheço o sistema que emprega e como funciona sua mente perturbada. E o pegarei -disse, expelindo uma baforada de fumaça-. É uma promessa.

-Enquanto isso, Natalie precisa ser protegida -Boyd apertou os lábios-. Eu me ocuparei disso.

-Já fiz -Ry apagou o cigarro.

-Falava de segurança pessoal. Nada a ver com polícia.

-E eu também. Não vou deixar que nada lhe aconteça -continuou enquanto Boyd o estudava-. É outra promessa.

-Acredita que ela escutará e obedecerá? -bufou Boyd.

-Sim. Não vai ter outra alternativa.

-Pode ser que apesar de tudo nos daremos bem, inspetor.

-Muito bem, um descanso -ordenou Deborah ao entrar com um carrinho carregado com uma enorme cafeteira de prata e xícaras de porcelana Meissen-. Sei que falavam de trabalho.

Gage se levantou para tirar-lhe o carrinho e dar-lhe um beijo.

-Está irritada porque perdeu o assunto.

-Exato.

-Jacoby -disse Boyd-. Clarence Robert. Faz lembrar alguma coisa?

Ela franziu o cenho enquanto servia café.

-Jacoby. Também conhecido como Jack Jacoby? - entregou uma xícara a Boyd e outra a Ry-. Faz alguns anos de que lhe puseram uma fiança por uma acusação de incêndio provocado.

-Gosto da sua mulher - disse Ry a Gage-. Não há nada como uma mente aguda num envoltório de primeira.

-Obrigado -Gage se serviu de uma xícara-. Com freqüência penso o mesmo.

-Jacoby -repetiu Deborah-. Acredita que seja ele?

-Sim.

-Teremos seu histórico -olhou para seu marido. Os computadores da sala oculta de Gage podiam descobrir qualquer coisa que tivesse sobre Jacoby-. Não estou segura de quem levou o caso, mas o averiguarei na segunda-feira e me encarregarei de que receba toda a informação de que disponhamos.

-Te agradeceria.

-Como conseguiu ocupar-se da fiança? -quis saber Boyd

-Não saberei até que veja o histórico -indicou Deborah.

-Eu posso falar-te dele -Ry bebeu o café, atencioso ao possível regresso de Natalie. Não estava segura de que gostavam que se falasse da situação em sua ausência-. Seu interesse se centra em edifícios vazios, armazéns, e apartamentos embargados. As vezes os proprietários o contratam para cobrar o seguro, as vezes o faz por prazer. Só o julgamos duas vezes, e recebeu uma condenação. Em nenhuma das duas ocasiões teve baixas humanas. Clarence não queima à gente, só coisas.

-E agora anda solto -comentou Boyd desagradado.

-Por momento -conveio Ry-. Estamos prontos para pegá-lo -recolheu outra vez a xícara quando ouviu a Natalie e A Cilla rir no corredor.

-Você é mole, Nat.

-É meu dever, e meu privilégio.

Entraram juntas. Cilla de imediato se dirigiu para Boyd e se sentou no seu colo.

-O fizeram passar pelo aro.

-Não é verdade -Natalie se serviu café e rio-. Não exatamente -lhe sorriu a Ry antes de sentar-se a seu lado-. E bem -começou-, terminaram de falar de minha vida pessoal e profissional?

-Uma mente aguda -comentou ele-. Num envoltório de primeira.

 

Mais tarde, enquanto se afastavam da mansão Guthrie, Natalie estudou o perfil de Ry.

-Deveria desculpar-me por Boyd?

-Não sacou as mangueiras -se encolheu de ombros-. Está bem. Tenho duas irmãs, e sei o que é.

-Oh -franziu o cenho e olhou pela janela-. Não sabia que tivesses irmãos.

-Sou polaco e irlandês, achou mesmo que seria filho único? -lhe sorriu-. Duas irmãs maiores, uma vive em Columbus e a outra em Baltimore. E um irmão mais jovem do que eu, que reside em Phoenix.

-São quatro -murmurou.

-Até que conta os sobrinhos. A última vez eram oito, mas meu irmão espera outro.

-Você é o único que ficou em Urbana.

-Sim, todos queriam ir-se. Eu não -girou pela rua onde vivia ela e diminui a marcha-. Vou ficar esta noite, Natalie?

Ela voltou a olhá-lo. Perguntou-se como podia ser tão desconhecido e precisá-lo tanto ao mesmo tempo.

-Quero que fiques-repôs-. Desejo-o.

 

-Posso baixar pelo tubo, senhor Pisessy? Por favor, posso?

Ry sorriu pelo modo em que Keenan massacrou seu nome e girou o boné de beisebol do pequeno para que a viseira ficasse para atrás.

-Me chame de Ry. E claro que pode . Agüenta -rindo, tomou a Keenan pela cintura antes de que o pequeno pudesse saltar ao tubo-. Não está com medo, está?

-Não -Keenan girou a cabeça e sorriu.

-Façamos desta maneira -com o menino firmemente sujeito contra seu quadril, Ry alongou a mão para o tubo-. Pronto?

-Vamos!

Com movimento fluído, Ry se lançou ao esvaziamento. Keenan não deixou dê rir durante todo o descenso.

-Outra vez! -gritou- Outra vez!

-Seu irmão quer provar -Ry alçou a vista e viu a cara ansiosa entre a abertura-. Vamos, Bryant, adiante.

-Está claro que tem jeito de pai -murmurou Cilla enquanto observava seu filho descer pelo tubo.

-Cala-se, Cilla -Natalie meteu as mãos nos bolsos da jaqueta. Ela também se morria por provar.

-Só foi uma observação. Essa é minha garota, Allison -adicionou, animando à pequena quando se posou com ligeireza no solo-. Faz que os garotos se sintam importantes.

-O sei. É muito doce de sua parte -sorriu quando Ry cedeu ante o desejo de Keenan de repetir-. Não sabia que pudesse ser doce.

-Ah, tem qualidades ocultas -Cilla olhou para onde Boyd mantinha uma conversa com dois bombeiros uniformizados-. Com freqüência são as mais atraentes num homem. Em particular quando está louco por ti.

-Não o está -se surpreendeu ao sentir que se ruborizava-. Só... desfrutamos o um do outro.

-Sim, claro -com o reflexo que dava a prática, Cilla se agachou para atrapar a seu filho menor quando se lançou para ela.

-Olha, mamãe. É um capacete de bombeiro de verdade -o capacete que lhe tinha dado Ry escorregou por sua cara-. E Ry diz que agora podemos ir sentar num carro -depois de retorcer-se para baixar dos braços de sua mãe, gritou-lhe a seus irmãos-: Vamos!

Acompanhados por dois bombeiros, os meninos foram vistoriar um dos veículos. Boyd fez um sinal a Cilla para que esperasse e desapareceu escadas aporta com Ry.

-Bom -encolheu os ombros-. Esqueceram das mulheres. Vão a falar de coisas oficiais.

-Gostaria que Boyd não se preocupasse tanto. Não há nada que ele possa fazer.

-Os irmãos maiores estão programados para preocupar-se -passou um braço pelo ombro de Natalie-. Mas, se isso te ajuda, sente-se bastante menos preocupado desde que conheceu Ry.

-Suponho que é algo -relaxada outra vez, foi com Cilla para a parte traseira do veículo-. Como se encontra Althea? A última vez que falei com ela, afirmava que estava tão grande como duas casas e aborrecida por desempenhar trabalho de escritório na delegacia.

-É a futura mamãe mais sexy que conheci. Desde que Boyd e Colt se uniram em seu contra, desfruta de uma permissão de maternidade. Faz umas semanas fui vê-la e a surpreendi bordando.

-Bordando? -Natalie rio com vontades-. Althea?

-É engraçado o que conseguem o casal e a família.

-Sim -o sorriso de Natalie se defumou-. Suponho que é verdade.

Acima, Boyd franzia o cenho enquanto repassava os relatórios de Ry.

-Por que no escritório? -perguntou-. Por que não iniciou o fogo no térreo? Dessa maneira teria podido causar mais perdas em menos tempo.

-A vitrine o poderia ter delatado. Imagino que o armazém teria sido mais lógico se sua intenção tivesse sido queimar todo o lugar. É um espaço fechado, cheio de material e de caixas -deixou a um lado a xícara de café-. Creio que seguia instruções. Clarence gosta de trabalhar para outros.

-As de quem?

-Aí radica todo -empurrou o cadeirão e apoiou os pés na escrivaninha-. Tenho dois fogos provocados que sem dúvida estão relacionados. O objetivo em ambos foi uma única empresa e os dois, parece-me, foram iniciados pela mesma pessoa.

-De maneira que está ao serviço de alguém -Boyd soltou os relatórios-. Um competidor?

-Estamos comprovando.

 -Mas é pouco provável que um competidor pudesse dar-lhe a Clarence acesso aos dois lugares. Não encontraste rasto algum de que tivesse forçado a entrada.

-Assim é -acendeu um cigarro-. O que nos leva à organização de Natalie.

-Não posso dizer que conheço a sua gente -se incorporou para caminhar pelo escritório-, e menos ainda neste novo projeto. Eu não me ocupo dos negócios Fletcher a não ser que não tenha outra saída -nesse momento o lamentou, porque de ter estado mais familiarizado com os procedimentos e o pessoal, teria podido ser-lhe a mais ajuda a sua irmã-. Mas posso obter muita informação de meus pais, em particular sobre os altos executivos.

-Não nos viria mau. O fato de que só se produzissem danos superficiais no último incêndio me conduz à conclusão de que terá outro. Se Clarence segue seu padrão de conduta, a atacará nos próximos dez dias -fez a um lado os papéis-. Estaremos esperando.

Boyd avaliou ao homem. No duro, inteligente, mas, tal como sabia por experiência pessoal, o trabalho podia complicar-se quando o responsável da investigação se relacionava pessoalmente com o alvo.

-E enquanto o espera, manterá Natalie à margem.

-Essa é a idéia.

-E enquanto faz isso, vai ser capaz de separar à mulher com a que está se relacionado do caso que tenta solucionar.

Ry arqueou uma sobrancelha. Isso ia representar um desafio, e a dificuldade que lhe proporia não tinha deixado de rondar por sua cabeça. O problema era que não estava disposto a deixar nem à mulher nem ao caso.

-Sei o que há de fazer, capitão.

Boyd assentiu e apoiou as mãos na mesa.

-Vou confiar ela a você, Piasecki, em todos os sentidos. Se acabar ferida, em qualquer sentido, virei procurar-te.

-Me parece justo.

-Eh, um carro de bombeiros vermelho e reluzente, um tubo... como podia falhar?

-Obrigado -rindo, rodeou-lhe o pescoço e lhe deu um beijo suave.

-Por?

-Por ser tão amável com minha família.

-Não me custou nenhum esforço. Gosto dos meninos.

-Se nota. E... -o voltou a beijar-... isto é por tranqüilizar Boyd.

-Eu não iria tão longe. Ainda tem a idéia de dar-me um murro se me equivoco com sua irmã menor.

-Bom, então... -o olhou-. Será melhor que tenha cuidado, porque meu irmão maior é durão.

-Não faz falta que o descreva -a fez girar para as portas da estação-. Sobe comigo. Preciso recolher algumas coisas.

-De acordo -quando subiam os degraus começou a soar o alarme -Oh -o som de pés em corrida revelou-se embaixo deles-. Lamento pelos garotos -então se deteve-. É terrível pensar que um incêndio possa ser uma diversão.

-É uma reação natural. Sinos, mangueiras, homens com uniformes atraentes. É um espetáculo.

 

Se dirigiram ao escritório dele e Natalie esperou enquanto recolhia uns papéis.

-Alguma vez já teve que resgatar gatos das árvores?

-Sim. E numa ocasião tive que resgatar uma iguana de alguém de uma enchente.

-Brincas.

-Eh, nunca caçoamos sobre os resgates -ergueu a vista e sorriu, sem poder tirar-lhe a vista de em cima.

-De que se trata? -se moveu com timidez sob seu escrutínio-. Keenan me deixou alguma mancha no rosto?

-Não. Está fantástica, Pernas. Quer ir a algum lugar?

-A algum lugar? -a idéia a desconcertou. Aparte do desafio do primeiro jantar, em realidade não tinham ido juntos a nenhum lado.

-Ao cinema. Ou... -supôs que poderia surpreende-lo-... a um museu ou algo assim.

-Eu... Sim, seria agradável -pensou que não deveria de ser tão incômodo planejar um simples encontro com alguém com quem se dormia.

-Que?

-O que achar melhor.

-De acordo -guardou os papéis numa valise velha-. Terá algum jornal abaixo. Daremos uma olhada.

-Perfeito -ao pôr-se em marcha, Natalie olhou primeiro em direção à escada e depois ao tubo. Respirou fundo e se rendeu-. Ry?

-Sim.

-Posso descer pelo tubo?

-Quer descer pelo tubo? –parou o que fazia e a observou.

-Tenho de fazê-lo -sorriu e encolheu de ombros-. Está me deixando louca.

-Sério? -com um sorriso, apoiou uma mão em seu ombro e a fez voltar-se-. De acordo, tia Nat. Eu baixarei primeiro, para que não fique nervosa.

-Não acredito -manifestou-. Quero que saiba que fiz alpinismo dúzias de vezes.

-Agarre-se bem -continuou com uma demonstração-. Salta e ao descer xar rodeia o tubo com as pernas.

O mostrou com um movimento veloz e fluido. Com o cenho franzido, ela adiantou o torso e o contemplou acima.

-Você não rodeou o tubo com as pernas.

-Não preciso -repôs-. Sou um profissional. Venha, e não se preocupe... eu a esperarei.

-Não preciso -ofendida, jogou o cabelo para atrás. Agarrou com firmeza o tubo de latão e com agilidade se lançou ao espaço.

Tudo decorreu em poucos segundos. Seu coração mal tinha disposto de tempo para assentar-se quando posou os pés no solo. Rindo, ergueu a vista com saudade.

-Viu? Não precisava... -o alarde terminou com um grito quando ele a levantou no colo-. Que?

-Tem uma habilidade nata -sorria ao baixar a boca para beijá-la. «E uma surpresa constante para mim», pensou.

-Poderia repeti-lo -ladeou a cabeça ao rodear-lhe o pescoço com os braços.

-Se o fazes com uma liga vermelho, um par desses sapatos de salto alto que tanto gostas e me deixas tirar uma foto, os garotos agradecerão.

-Creio que prefiro fazer um donativo de dinheiro a corporação.

-Não é o mesmo.

-Inspetor? -o recepcionista assomou a cabeça por uma porta. Sorriu devagar ao ver à mulher em braços de Ry-. Suspeita de fogo no doze de East Newberry. Querem que vá.

-Diga que já estou indo -deixou a Natalie de pé-. Sinto.

-Está bem. Sei como são estas coisas -se repreendeu, dizendo-se que sua decepção era desproporcionada- Tenho de pôr-me ao dia com uns documentos. Tomarei um táxi.

-A levarei a casa -indicou Ry-. Fica de passagem -a conduziu para o banco onde Natalie tinha deixado o casaco-. Vai estar em seu apartamento?

-Sim. Tenho de repassar uns relatórios.

-A chamarei.

-De acordo -aceitou acima do ombro, enquanto ele a ajudava a pôr-se o casaco.

OBRIGOU-A a girar do todo e se deu o gosto de dar-lhe um último e prolongado beijo.

-Te direi o que farei, passarei a ver-te quando terminar.

-Melhor -se esforçou por recuperar o alento-. Bem melhor.

 

No meio da semana, Natalie tinha descoberto que, pela primeira vez desde que tinha memória, ia com atraso em sua agenda. Levava dias sem dedicar uma noite ao trabalho.

Era impossível, já que Ry e ela passavam juntos todos os momentos livres. Cada noite se reuniam em seu apartamento e pediam o jantar, que a maioria das vezes tinham que reaquecer depois de ter-se dado um banquete mútuo.

Deixava de pensar no trabalho quanto Ry entrava e até que saía para o escritório à manhã seguinte.

Não pensava em nada exceto nele.

«Estou enfeitiçada», reconheceu ao olhar pela janela de seu escritório. «Fascinada pelo homem e pelo que sucede cada vez que estamos um nos braços do outro».

Sabia que era uma loucura. Mas pelo momento resultava tão maravilhosa, que não parecia importar.

E podia justificá-lo, já que ainda não tinha perdido nenhuma reunião nem citação de trabalho. Depois de receber o visto bom de Ry, tinha autorizado à equipe de limpeza a voltar a decorar a loja principal. O inventário estava quase todo em seu lugar e a vitrine acabada.

Só faltavam uns dias para que tivesse lugar a grande inauguração nacional, e não se tinham produzido mais incidentes. Assim era como gostava de recordar os incêndios. Como incidentes.

Desde depois, teria que estar fazendo planos para ir visitar todas as sucursais nos seguintes dez dias. Mas a idéia de viajar lhe resultava deprimida. Solitária.

Poderia delegar o percurso em Melvin ou em Donald. Nem sequer estaria fora de lugar. Mas não era seu estilo delegar algo que ela mesma podia fazer.

Pensou que se as coisas se tranqüilizavam, Ry poderia pedir uns dias livres para acompanhá-la. Seria maravilhoso ter sua companhia numa rápida viagem de negócios. Poderia postergá-lo até a inauguração, em vez de ir antes, e então...

Deu-lhe as costas à janela e contestou o inter-comunicador. -Sim, Maureen.

-A Senhorita Marks quer vê-la, Senhorita Fletcher.

-Obrigada. Diga que entre -com um esforço, desterrou os pensamentos pessoais a um rincão de sua mente e lhe deu as boas vindas a sua executiva contabilista.

-Deirdre, sente-se.

-Lamento estar tão atrasada -com um sopro afastou o cabelo da cara antes de depositar uma pilha de pastas sobre a mesa de Natalie-. Cada vez que nos damos a volta, o sistema se bloqueia.

-Chamaste ao engenheiro de manutenção? -franziu o cenho e recolheu a primeira pasta

 

-Praticamente tenho vivido atrás dele - se sentou e cruzou um sapato sem saltos sobre o joelho-. Arruma, avançamos e volta a bloquear. Acredito que realizar cálculos se converteu num desafio.

-Ainda temos tempo antes de fechar o trimestre. Esta tarde chamarei aos tecnicos. Se sua equipe é instável, terão que o substituir. De imediato.

-Boa sorte -comentou Deirdre com secura-. A boa notícia é que pude realizar um gráfico com as primeiras vendas do catálogo. Acredito que gostarás dos resultados.

-Mmm... -se pôs a folhear as pastas-. Por sorte, os incêndios não destruíram os registros.Tal como está o sistema, suaria tinta chinesa sem as cópias que tínhamos.

-Bom, relaxe. Eu tenho cópias das cópias, bem como os discos de segurança, tudo bem guardado. Esperava levar a cabo uma auditoria em meados de março -viu a careta de Deirdre antes de que pudesse ocultá-la-. Mas -adicionou, reclinando-se-, como sigamos com estes problemas informáticos, teremos que a postergar até o fechamento do ano fiscal.

-Bom, voltemos ao que nos ocupa neste momento. O projeto segue dentro dos parâmetros calculados. Justo, mas segue. Com o pagamento do seguro, conseguiremos compensá-lo.

Natalie assentiu e se obrigou a concentrar nos orçamentos e as percentagens.

 

Umas horas mais tarde, num descomposto motel da cidade, Clarence Jacoby acendia fósforos na cama. Tinha as mãos regurgitas, suaves como as de uma menina. Cada vez que acendia uma e observava arder sua chama, esperava até que o calor beijava as pontas de seus dedos antes de apagá-la.

O cinzeiro estava a transbordar de fósforos enegrecidos. Era capaz de entreter-se dessa maneira durante horas.

Quase todas as noites pensava em incendiar o hotel. Seria emocionante iniciar o fogo em sua própria habitação, observar como crescia e se estendia. Mas não estaria só, e isso o freava.

As pessoas importavam pouco, igual suas vidas. Singelamente, preferia estar só com seus fogos.

Tinha aprendido a não se ficar muito depois de começá-los. As cicatrizes que tinha no pescoço e o peito eram lembranças diárias da ferocidade que podia adquirir o dragão, inclusive com alguém que o amava.

De maneira que se contentava com conceber o fogo e abrigar-se um tempo lamentavelmente breve com seu calor antes de sair.

Seis meses antes, em Detroit, tinha incendiado um armazém abandonado que o proprietário já não precisava ou queria. Era a classe de favores, rentáveis em todos os sentidos, com os que Clarence desfrutava. Tinha-se ficado a contemplá-lo arder, desde o exterior do edifício e sumido nas sombras. Mas tinham estado a ponto de capturá-lo. Esses polícias e inspetores de bombeiros estudavam à multidão em procura de uma cara como a sua.

Uma cara adoradora, feliz.

Com um sorriso, acendeu outro fósforo. Mas tinha conseguido escapulir. E tinha aprendido outra lição. Não era inteligente ficar olhando. Não lhe fazia falta. Tinha tantos fogos, tantas confraternizações ferozes e formosas que viviam em sua mente e em seu coração, que não fazia falta ficar.

Só tinha que fechar os olhos para vê-las. Senti-las. Cheirá-las.

Saboreava seus pensamentos quando soou o telefone. Seu rosto redondo e infantil mostrou alvoroço ao ouvir o som. Só uma pessoa tinha o número dessa habitação. E essa pessoa só teria um motivo para chamar.

Soube que era hora de voltar a liberar ao dragão.

 

Ante sua mesa, Ry analisava os relatórios do laboratório. Eram quase as sete e já estava escuro no exterior. Tinha uma xícara de café ao lado.

Precisava parar esse dia. Reconhecia o lento processo de bloqueio de sua mente e seu corpo. De um modo ou outro, nas últimas semanas tinha adquirido um hábito do que começava a depender.

Começava a acostumar a fechar o dia para dirigir-se ao apartamento de Natalie. Inclusive já dispunha de uma chave, entregada e recebida sem muita cerimônia. Como se nenhum deles quisesse reconhecer o que representava essa singela peça de metal.

Então comiam, batiam um papo ou talvez viam um filme antigo na televisão, algo que por acidente tinham descoberto que os encantava.

Pensou que a maior parte do que tinham descoberto um sobre o outro tinha sido por acidente. Ou por observação.

Sabia que a ela encantava tomar banhos de espuma pela noite, com o água muito quente e uma copa de vinho branco bem frio na borda da banheira. Tirava os sapatos nada mais entrar e guardava cada coisa em seu lugar.

Dormia com lençóis de seda e tirava os cobertores. O despertador soava às sete em ponto cada manhã, e se não era rápido para demorá-la, segundos mais tarde já se tinha levantado da cama.

Tinha debilidade pelos sorvetes de morango e pela música dos anos quarenta.

Era leal, inteligente e forte.

E estava apaixonado por ela.

Recostando-se no cadeirão, fechou os olhos. Concluiu que isso era um problema. Seu problema. Tinham atingido um acordo tácito, e ele o sabia. Nada de laços.

Ele não os queria. Deus sabia que não podia permitir-se com Natalie.

Eram opostos em todos os sentidos. As necessidades físicas que os tinham unido, sem importar o intensas que fossem, não podiam suplantar todo o resto. Não a longo prazo.

Faria o mais inteligente, o correto, e se encarregaria de sua segurança até que passasse a ameaça dos incêndios. E ali se acabaria todo. Assim tinha que ser.

E para que ambos se poupassem uma cena desagradável, começaria a retirar-se pouco a pouco. A partir desse momento.

Se levantou e recolheu a jaqueta. Essa noite não iria a sua casa. Olhou com expressão culpada o telefone, pensando em chamá-la para dar-lhe alguma desculpa.

Soltou um juramento e apagou a luz. Recordou-se que não era seu maldito marido.

Nunca seria.

Dominado por uma insistente sensação de inquietude, como uma ardência entre os omoplatas, conduziu até a fábrica de Natalie. Desde que abandonou a estação, não tinha parado de ir de um lado a outro de carro.

Eram as dez da noite passadas; não tinha lua nem soprava o vento.

Curvado diante do volante, tratou de não pensar nela.

Com certeza a única coisa que fez foi pensar nela.

O mais provável era que Natalie estivesse se perguntando por onde andaria. Daria por fato que tinha recebido um telefonema. O esperaria. A culpa voltou a remexer dentro dele. Era a emoção que menos gostava. Não era correto ser desconsiderado, preocupá-la porque tinha se assustado.

E talvez não a amasse. Talvez só fora um capricho. Um homem podia ficar-se caidinho por uma mulher sem querer cortar o pescoço quando ela ia. «Verdade?».

Desagradado, estendeu a mão para o telefone do carro. O menos do que podia fazer era chamá-la para dizer-lhe que estava ocupado. Assegurou-se do que isso não era fichar. Só ser educado.

Desde quando o preocupavam os bom modos?

Com uma maldição, pôs-se a marcar o número.

Mas a coceira regressou com mais intensidade. Hesitou, escrutinando a escuridão, pendurou. Tinha ouvido algo? Uma olhada ao relógio lhe indicou que a patrulha que tinha atribuído realizaria sua ronda em dez minutos.

Decidiu que até então não faria nenhum dano realizar uma inspeção a pé.

Abriu a porta e desceu do veículo. Só ouvia o leve som do tráfico a duas maçãs de distância. Com cautela, sacou a lanterna do carro, mas não a acendeu. Tinha os olhos bastante acostumados à escuridão como para saber onde pisava.

O instinto o impulsionou a dirigir-se em silêncio à parte de trás.

Daria um círculo e comprovaria cada porta e janela do térreo.

Voltou a ouvi-lo, algo parecido ao som de um pé sobre o cascalho. Mudou de mão a lanterna, sustentando-a como um arma ao acercar-se. Tenso, pronto, avançou entre as sombras. Soube que se tratava do guarda de segurança, ia dar-lhe o susto de sua vida. Caso contrário...

Um riso. Leve e feliz. O lento gemido de uma porta de metal ao mover-se sobre suas dobradiças.

Acendeu a lanterna e alumiou a Clarence Jacoby.

-Como está, Clarence? -sorriu enquanto o outro piscava devido ao resplendor-. Tenho o esperado.

-Quem é? -a voz de Clarence se elevou de tom-. Quem é?

-Eh, sinto-me magoado -baixou o faz luminoso da cara de Clarence e se aproximou-. Não reconhece um velho amigo?

Com os olhos semicerrados, Jacoby separou ao homem das sombras. Ao instante sua expressão desconcertada exibiu um amplo sorriso.

-Piasecki. Eh, Ry Piasecki. Como está? Agora és inspetor, verdade? Isso ouvi.

-Correto. Tenho estado te procurando, Clarence.

-Sim? -com timidez, baixou a cabeça-. E isso?

-Apaguei o pequeno incêndio que provocaste a noite passada. Deves estar perdendo o toque, Clarence.

-Eh... -sem deixar de sorrir, o outro estendeu os braços-. Não sei nada disso. Recorda quando nos queimamos, Piasecki? Foi uma noite infernal, verdade? Aquele dragão sim que era grande. Esteve a ponto de devorar-nos.

-Lembro-me.

-E também te deu um bom susto -Clarence se umedeceu os lábios-. Ouvi às enfermeiras do pavilhão falar de pesadelos.

-Tive alguns.

-E já não combate o fogo, eh? Já não queres matar ao dragão, verdade?

-Prefiro achatar a animais pequenos como você -baixou a lanterna e a fez brilhar nas latas de gasolina que tinha junto aos pés do outro-. Que me diz, Clarence?

-Não fiz nada -girou para lançar-se para a escuridão.

No momento em que Ry saltava para diante, o outro retrocedeu bruscamente, como impulsionado por um fio. Aturdido, Ry observou os braços revestidos de negro que pareceram sair da parede do edifício e fechar-se em torno do pescoço de Clarence.

Então foi uma sombra que saía do nada. Depois um homem que saía de uma sombra.

-Creio que o inspetor não tinha terminado de falar contigo, Clarence -ao olhar a Ry, Némesis manteve um braço em torno do pescoço do homenzinho-. Verdade, inspetor?

-Certo -Ry soltou o alento contido-. Obrigada.

-Foi um prazer.

-É um fantasma. Um fantasma me pegou -os olhos de Clarence se puseram em alvo e se desmaiou.

-Imagino que poderia tê-lo manejado só -Némesis entregou o corpo flácido a Ry, e esperou até que este o ajeitou sobre um ombro.

-De todos modos, o agradeço.

-Gosto do seu estilo, inspetor -um sorriso e dentes muito brancos.

-O mesmo digo. Quer explicar-me esse truque de sair da parede? -começou, mas antes de terminar a frase soube que falava com o ar-. Não está mal -murmurou, movendo a cabeça enquanto colocava Clarence no carro-. Nada mau.

 

O telefone acordou Natalie, que tinha dormido no sofá. Aturdida, respondeu, ao mesmo tempo em que tratava de ver a hora no relógio.

-Sim, oi?

-Sou eu, Ry.

-Oh - esfregou o olhos -. Já passa da uma. Estava...

-Lamento acordar-la.

-Não, não é isso. O que aconteceu...

-O temos.

-Que? -a irritação de que ainda não lhe tivesse permitido acabar uma frase agudizou sua voz.

- Clarence. Capturei-o esta noite. Pensei que quererias sabê-lo.

-Sim, com certeza -sua mente foi um redemoinho-. É maravilhoso. Mas, quando...?

-Estou ocupado aqui, Natalie. A chamarei quando puder.

-De acordo, mas... -afastou o fone e o olhou furiosa-. Felicidades, inspetor -murmurou, pendurando.

Com as mãos nos quadris, respirou fundo várias vezes para acalmar-se e arejar a cabeça.

Tinha estado muito preocupada. Ainda que teve que reconhecer que era por sua própria culpa. Ry não tinha nenhuma obrigação de ir vê-la depois do trabalho, nem de chamar. Ainda que levasse dias fazendo-o, e ainda que ela tivesse esperado horas junto ao telefone até que a simples fadiga lhe poupou essa humilhação.

«Esquece isso», ordenou-se. «O que importa é que Clarence Jacoby está sob custódia. Já não terá mais incêndios... nem mais incidentes».

Ao ir ao dormitório dominada pelo mau humor, prometeu-se que pela manhã localizaria a Ry e lhe esclareceria toda a história.

Enquanto tirava a bata, disse-se que o único que tinha que fazer era voltar a acostumar-se a dormir só outra vez.

Mas ao apoiar a cabeça no travesseiro, soube que ia ser uma noite muito longa.

 

Como tinha pouco sentido regressar a sua casa depois de terminar na delegacia, Ry se jogou no sofá de seu escritório e conseguiu dormir três horas antes de que as sirenes o acordassem.

Seguindo um velho costume, apoiou os pés no solo antes de recordar que já não tinha que responder ao som de uma sino. Anos de treinamento lhe teriam permitido dar a volta e voltar a dormir. Mas, com olhos avermelhados, dirigiu-se para a cafeteira, encheu-a de água, pôs-lhe o filtro e a conectou. Seu único objetivo nesse momento era levar-se uma xícara enorme com café até os chuveiros, e permanecer ali uma hora.

Acendeu um cigarro e observou como ia enchendo a cafeteira gota a gota.

Uma batida na porta fez que franzisse o cenho. Voltou-se e dirigiu seu mau humor contra Natalie.

-Sua secretária não está.

-É cedo demais - passou uma mão pela cara. Por que diabos sempre tinha que parecer tão perfeita?-. Vê, Natalie. Ainda não acordei.

-Não irei -lutando por não se sentir doida, deixou a valise e apoiou as mãos nos quadris. Era evidente que ele tinha dormido pouco. Seria paciente-. Ry, tenho de saber que aconteceu ontem à noite, para poder planificar os passos que há que dar.

-Já te contei.

-Não foste muito generoso com os detalhes.

Com gesto impaciente, tomou uma xícara e verteu todo o café que já se tinha preparado, que só a encheu até a metade.

-Capturamos a tua tocha. Está sob custódia. Não vai acender nenhum fogo numa temporada.

Natalie se recordou que devia ser paciente e se sentou.

-Clarence Jacoby?

-Sim -a olhou. Que eleição tinha? Estava ali, assombrosa, formosa e perfeita-. Por que não vai trabalhar e deixa que eu me organize aqui? Te redigirei um relatório.

-Aconteceu algo? -insistiu ela, de repente nervosa.

-Estou cansado. Não consigo tomar uma xícara decente de café e preciso um chuveiro. E quero que deixe de respirar no meu pescoço.

Natalie primeiro registrou surpresa, depois deu passo à dor.

-Sinto Muito -murmurou com voz fria enquanto se incorporava-. Preocupava-me o que tinha sucedido ontem à noite. E queria certificar-me de que se encontrava bem. Como vejo que assim é... -recolheu a valise-. E como ainda não dispuseste de tempo para escrever teu relatório, te deixarei em paz.

Ele soltou um praga e se alisou o cabelo.

-Natalie, sente-se. Por favor -adicionou ao ver que permanecia indignada junto à porta-. Sinto. Estou um pouco estressado esta manhã, e cometeu o erro de ser a primeira pessoa em se encontrar na linha de fogo.

-Estava preocupada -disse baixinho, mas não se moveu.

-Estou bem -se voltou para encher do todo a xícara-. Quer um pouco?

-Não. Teria que ter esperado que me chamasse. Compreendo-o -se deu conta de que era como se de repente tivesse que caminhar na ponta dos pés. Uma noite separados não deveria de fazer que se sentissem tão incômodos.

-Nesse caso, teria me preocupado com você -conseguiu sorrir. Deu-se conta de que era um golpe muito sob desafogar-se com ela pelo medo que lhe inspirava a direção que tinham tomado-. Sente-se. Te farei um resumo do sucedido.

-De acordo.

Enquanto ela se sentava, Ry rodeou a escrivaninha e ocupou o cadeirão.

-Tive um pressentimento, ou como queiras chamá-lo. Decidi passar por tua fábrica, para jogar uma olhada e comprovar em pessoa a segurança. Alguém mais teve a mesma idéia.

-Clarence.

-Sim, estava ali e planejava uma festa. Tinha desconectado o alarme. Dispunha de um jogo completo de chaves da entrada de atrás.

-Chaves -se adiantou com expressão intensa.

-Assim é. Cópias novas. Agora estão em poder da polícia. Não teria deixado nenhum rasto. Também tinha uns quantos litros de gasolina de alto octanagem e umas dúzias de caixas de fósforos. Assim que estabelecemos uma pequena conversa e não gostou do rumo que tomava, porque tentou escapar -fez uma pausa, movendo a cabeça-. Jamais vi algo parecido -murmurou-. Nem sequer estou seguro de tê-lo visto.

-Que? -perguntou impaciente-. O perseguiste?

-Não foi necessário. Seu amigo se encarregou disso.

-Meu amigo? -desconcertada, voltou a jogar-se para atrás-. Que amigo?

-Némesis.

-O viu? -abriu os olhos assombrada-. Estava ali?

-Sim e não. Ou não e sim. Não sei muito bem qual das duas opções. Saiu da parede. Saiu da maldita parede, como fumaça. Não estava ali, e depois estava. Para deixar de estar.

-Ry, creio que precisa dormir mais -arcou uma sobrancelha.

-Não há dúvida a respeito -se esfregou a nuca rígida-. Mas sucedeu assim. Saiu da parede. Primeiro os braços. Eu me achava a uns metros, vi como saíam seus braços e sujeitavam a Clarence. Depois apareceu todo. Clarence desmaiou -sorriu ao recordá-lo-. E Némesis me entregou e desapareceu.

-Némesis... desapareceu?

-Como por arte de magia. De volta à parede, no ar -estalou os dedos para demonstrá-lo-. Não sei. Provavelmente permaneci ali cinco minutos com a boca aberta antes de levar Clarence ao furgão.

-Me estás dizendo que desapareceu adiante de seus olhos?

-Exatamente.

-Ry -disse com renovada paciência-, isso não é possível.

-Eu estava apresente -lhe recordou-. Você não. Quando Clarence recuperou o sentido, pôs-se a divagar sobre fantasmas. Estava tão assustado que tratou de saltar do veículo em marcha -bebeu café-. Tive que voltar a fazê-lo dormir...

-O... golpeaste.

Era outra recordação que lhe produzia prazer. Um breve murro nessa mandíbula com forma de lua.

-Estava melhor sem sentido. Ademais, agora já o temos sob custódia. Não quer falar, mas dentro de um par de horas vou interrogá-lo para ver se lucro que mude sua atitude.

Natalie permaneceu em silêncio um momento, tentando assimilá-lo. O assunto de Némesis era fascinante e não tão difícil de explicar. Reinava a escuridão. Ry era um observador treinado, mas inclusive ele podia cometer um erro na escuridão. A gente não se desvanecia.

Em vez de discutir sobre isso, centrou-se em Clarence Jacoby.

-Então, não disse por que o contrataram nem quem o fez?

-Neste momento afirma que tinha saído a dar um passeio.

-Com vários litros de gasolina?

-Oh, acusa-me de tê-la contribuído.

-Ninguém vai acreditar nisso -ofendida, pôs-se de pé.

-Não, Pernas, ninguém vai acreditar -divertiu e comoveu a defesa instantânea dela - Vamos pegá-lo com as mãos na massa, e a polícia não demorará em relacioná-lo com os outros incêndios. Quanto Clarence compreenda que espera uma longa temporada à sombra, cantará. Ninguém gosta de cair só.

Natalie assentiu. Não acreditava que entre os ladrões tivesse honra.

-Quando tiver o nome de alguém, precisarei sabê-lo de imediato. Enquanto, vejo-me limitada nas medidas que posso tomar.

Ry tamborilou os dedos sobre a mesa. Não gostava da possibilidade de que alguém na organização de Natalie, alguém próximo dela, fora o responsável dos incêndios.

-Se Clarence assinala a alguém dos teus, a polícia tomará medidas. E vai ser muito mais dura do que uma simples demissão.

-Sou consciente disso. Também sou consciente de que ainda que tenhas capturado ao homem que acendeu o fósforo e que minha propriedade se encontra a salvo, o caso não terminou -no entanto, a tensão que demonstrava em seus ombros começava a relaxar-se-. Agradeço que cuides do que é meu, inspetor.

-A isso se dedicam seus impostos -a estudou acima do borde da xícara-. Ontem à noite senti falta -disse antes de poder conter-se.

-Bom -sorriu devagar-. Porque eu também senti falta sua. Poderíamos compensá-lo esta noite. Celebrar que meus impostos dêem um resultado positivo.

-Sim - estava afundando, e já não tinha forças para lutar-. Por que não o fazemos?

-Deixarei que te dê esse chuveiro -recolheu a valise-. Me comunicará se a conseguir mais alguma coisa quando falar com Clarence?

-Claro. Estarei em contato.

-Arrumarei tudo para ir para casa cedo -disse ao ir para a porta.

-Bom plano -murmurou quando fechou a suas costas. «É a terceira vez», pensou. Já tinha se afogado dias atrás e nem sequer se tinha dado conta.

Natalie chegou ao escritório com andar vivo e convocou uma reunião executiva. ÀS dez se achava sentada na sala de juntas, com os chefes de departamento a ambos lados da mesa.

-Tenho prazer de anunciar que a inauguração nacional de Lady's Choice segue em marcha, segundo o programado, para o sábado próximo -tal como tinha esperado, soaram uns aplausos corteses e murmúrios de felicitação-. Gostaria aproveitar esta oportunidade -continuou-, para dar-vos as graças por vosso trabalho duro e vossa dedicação. Lançar uma nova empresa deste tamanho requer labor de equipe, longas horas e constante inovação. Dou-vos as graças a todos por ter contribuído o melhor de vocês. Em especial agradeço a ajuda que me prestastes nas últimas semanas, quando a companhia se enfrentou a dificuldades inesperadas.

Esperou até que cessaram os murmúrios sobre os incêndios.

-Sou consciente de que esticamos nosso orçamento, mas também de que não teríamos conseguido inaugurar na data prevista se não ter sido pelo esforço extra que contribuístes todos vocês e vossa gente. Portanto, Lady's Choice se comprazerá em apresentar-vos gratificações a vocês e a todos os empregados o primeiro dia do mês próximo.

O anúncio foi recebido com uma grande mostra de entusiasmo. Só Deirdre fez uma careta. Natalie obsequiou um sorriso que mostrava mais prazer que desculpa.

-Ainda nos fica muito trabalho por diante -prosseguiu-. Estou convicta de que Deirdre vos contará que o anúncio da gratificação lhe provocou uma enorme dor de cabeça -aguardou que os risos remetessem-. Tenho fé nela e em Lady's Choice. Ademais... -fez uma pausa sem perder o sorriso, estudando cada um dos rostos-. Desejo tranqüilizar-vos a todos. Ontem à noite foi capturado o culpado dos incêndios. Neste momento se encontra sob custódia policial

Teve aplausos e uma manada de perguntas. Natalie se sentou com as mãos juntas sobre a mesa, atenciosa a qualquer signo que lhe indicasse se alguma das pessoas sentadas ali começava a suar.

-Não disponho de todos os detalhes -ergueu a mão pedindo silêncio-. Só que o inspetor Piasecki surpreendeu ao homem em nossa fábrica. Espero um relatório completo nas seguintes quarenta e oito horas. Enquanto, podemos agradecer a diligência dos departamentos de bombeiros e de polícia, e continuar com nosso trabalho.

-Teve um incêndio na fábrica? -quis saber Donald - Produziram danos?

-Não. Sei que o suspeito foi capturado antes de entrar no edifício.

-Estão seguros de que se trata da mesma pessoa que provocou os incêndios no armazém e na loja? -com o cenho franzido, Melvin atirou de sua passarinha.

-Como irmã de um capitão de polícia -sorriu Natalie-, estou segura de que as autoridades não realizarão semelhante declaração até que disponham de provas concretas. Mas isso parece.

-Quem é? -inquiriu Donald-. Por que o fez?

-Uma vez mais, tenho de dizer que não conheço todos os detalhes. É um delinqüente conhecido. Creio que um profissional. Estou segura de que seus motivos não demorarão em descobrir-se.

 

Ry não estava tão seguro. Ao meio dia, já levava uma hora com Jacoby sem conseguir nenhum progresso. A sala de interrogatórios era tipicamente apagada. Paredes de cor beige, linóleo igual, o espelho largo que todo mundo sabia que era para observação exterior. Sentava-se numa cadeira dura e estava apoiado na única mesa enquanto fumava com gesto preguiçoso e Clarence sorria e movia os dedos.

-Sabe que vão te prender, Clarence -continuou Ry-. Quando saias desta, serás velho e já não poderás acender um fósforo com teus próprios dedos.

O outro sorriu e se encolheu de ombros.

-Não feri a ninguém. Jamais firo a ninguém -alçou os olhos com expressão amistosa-. Sabe?, existem muitos que gostam de queimar a outras pessoas. Sabe que é verdade, Ry?

-Sim, Clarence, sei.

-Eu não, Ry. Nunca queimei ninguém -os olhos se lhe acenderam com expressão feliz-. Só você. Mas isso foi um acidente. Teve cicatrizes?

-Sim.

-Eu também -soltou um risinho, pelo prazer de que compartilham algo-. Quer vê-las?

-Talvez depois. Recordação de quando nos queimamos, Clarence.

-Claro. Claro que se lembra Foi como o beijo de um dragão, verdade?

«Como estar nas entranhas do inferno», pensou Ry.

-Aquela vez o proprietário te pagou para acordar ao dragão, lembra?

-Lembro. Ali não vivia ninguém. Só era um edifício velho. Gostava dos edifícios velhos e vazios. O fogo sobe pelas paredes e se esconde no teto. Fala-te. Ouviste-o falar, verdade?

-Sim, ouvi-o. Quem te pagou nesta ocasião, Clarence?

O outro juntou as gemas dos dedos para formar uma ponte.

-Jamais disse que alguém me pagou. Você mesmo poderia ter levado a gasolina, Ry. -Estás furioso comigo por ter-te queimado -de repente exibiu um sorriso -. Tiveste pesadelos no pavilhão dos queimados. Pesadelos sobre o dragão. E agora já deixaste de matá-lo.

A palpitação que sentia por trás dos olhos impulsionou a Ry a sacar outro cigarro. Clarence estava fascinado com os pesadelos; uma e outra vez durante o interrogatório tinha tentado arrancar detalhes. Ainda que o tivesse desejado, Ry não teria podido proporcionar-lhe muitos. Todo era uma imagem imprecisa de fogo e fumaça, coberta pela bruma do tempo decorrido.

-Tive pesadelos durante uma temporada. Foi algo que superei. Também superei minha irritação contigo, Clarence. Agora os dois fazemos nosso trabalho, não é verdadeiro? -captou o reflexo nos olhos de Clarence quando acendeu uma chama. Num impulso, plantou a chama entre os dois-. É poderosa, verdade? -murmurou-. É uma simples chama. Mas você e eu sabemos o que pode fazer-lhe... à madeira, ao papel. À carne. É poderosa. E quando a alimentas, torna-se mais e mais forte -acercou o fósforo ao extremo do cigarro. Sem deixar de observar a Clarence, umedeceu-se o dedo índice e a apagou-. Se a tocas com água, se lhe cortas o ar, puf! -arrojou o fósforo ao cinzeiro cheio-. NOS dois gostamos de controlá-la, eh?

-Sim -Clarence se passou a língua pelos lábios, com a esperança de que Ry acendesse outro fósforo.

-A você pagam por provocar fogos. A mim por apagá-los. Quem te pagou, Clarence?

-De todos modos vão prender-me .

-Sim. Então, que tens a perder?

-Nada -o olhou outra vez com expressão matreira -. Não disse que provocasse os incêndios. Mas se supuséssemos, só supuséssemos, que o fiz, não poderia revelar quem me pediu.

-Por que não?

-Porque se supuséssemos que o fiz, jamais vi a quem me contratou.

-Falou com ele?

Clarence se pôs a brincar outra vez com os dedos, com a cara tão alegre que Ry teve que se conter para não estrangular o pescoço gordo.

-Talvez falei com alguém. Talvez não. Mas se talvez o fiz, a voz ao telefone estava distorcida, como uma máquina.

-Homem ou mulher?

-Como uma máquina -repetiu, indicando a gravadora de Ry-. Talvez poderia ter sido qualquer. Talvez me enviou dinheiro a um apartado de correios, antes e depois.

-Como te localizaram?

 

- Não o perguntei -se encolheu de ombros-. A gente me encontra quando quer -o sorriso lhe alumiou a cara-. Alguém sempre me quer.

-Por que aquele armazém?

-Eu não disse nada sobre um armazém.

-Por que aquele armazém? -repetiu Ry-. Talvez.

Comprazido de que Ry se prestasse ao jogo, Clarence se adiantou na cadeira.

-Talvez pelo seguro. Talvez porque alguém não gostava do seu proprietário. Talvez por diversão. Há muitas causas para um incêndio.

-E a loja -pressionou-. A loja era da mesma proprietária.

-Tinha coisas bonitas na loja. Coisas bonitas de garotas -esquecendo a cautela, sorriu recordando-o-. Ademais, cheirava bem. Mais ainda depois que joguei a gasolina.

-Quem o mandou jogar a gasolina, Clarence?

-Não disse que o fizesse.

-Acabas de dizê-lo.

-Não -exibiu uma careta infantil-. Disse talvez.

A fita demonstraria o contrário, mas Ry persistiu.

-Gostou das coisas de garotas que tinha na loja.

-Que loja? -lhe brilharam os olhos.

Contendo um juramento, Ry se reclinou na cadeira.

-Talvez deveria chamar a meu amigo para deixar que falasse contigo.

-Que amigo?

-O de ontem à noite. Recordas o que passou ontem à noite.

-Era um fantasma -se pôs pálido-. Não estava realmente ali.

-Claro que sim. Você o viu. Sentiu-o.

-Um fantasma -começou a morder-se as unhas-. Não gostei.

-Então será melhor do que fales comigo, ou vou ter que o chamar.

Assustado, Clarence olhou ao redor.

-Não está aqui.

-Talvez sim -Ry começava a divertir-se -. Talvez não. Quem te pagou, Clarence?

-Não o sei -os lábios tremeram-. Só era uma voz. Isso é todo. Toma o dinheiro e queima. Gosto do dinheiro, Gosto de queimar. Comecei pela bonita escrivaninha da loja de coisas de garotas, tal como me disse a voz. Teria sido melhor no armazém, mas a voz disse a escrivaninha -incômodo, olhou ao redor outra vez-. Está aqui?

-Que me diz do dinheiro? Onde estão os sacos onde estava o dinheiro.

-Os queimei -voltou a sorrir-. Gosto de queimar coisas.

 

Natalie esteve a ponto de queimar a cozinha.

Não era incompetente, mas rara vez encontrava a oportunidade de utilizar as habilidades culinárias que possuía... apesar do escassas.

Com vários juramentos, tirou o frango dourado do forno e o deixou a um lado, seguindo as meticulosas diretrizes de Frank. Quando teve o molho fervendo a fogo lento, sentia-se melhor. Decidiu que cozinhar não era tão complicado, sempre que se mantivesse a concentração e se fosse passo a passo. «Lê a receita como se fosse um contrato», aconselhou-se, introduzindo com cuidado o frango no molho. «Não passes por alto nenhuma cláusula, estuda a letra pequena. E...». Cantarolando, tampou a panela e observou o caos da cozinha.

«E deixa todo limpo, já que jamais há do que dar a impressão de do que um trato te fez suar».

Demorou mais tempo em arrumar a cozinha que em preparar o jantar. Depois de uma rápida olhada à hora, foi acender as velas para criar a atmosfera.

Com um suspiro, sentou-se no sofá e estudou o salão. Luzes tênues, música suave, o aroma de flores e de boa comida, o resplendor dourado da lareira. Prazerosa, passou-se uma mão pela saia longa de seda. Decidiu que todo era perfeito.

Mas, onde estava Ry?

Ry se movia inquieto no corredor diante da porta do apartamento de Natalie.

«Lhe estás dando demasiada importância, Piasecki», advertiu-se. «Só será duas pessoas desfrutando de mútua companhia. Sem ataduras, sem promessas». Com Clarence encerrado, já podiam começar a afastar-se. De forma natural, sem tensões.

Então, que diabos fazia diante da porta, nervoso como um adolescente em seu primeiro encontro? Por que sustentava um ramo de estúpidos narcisos na mão?

Decidiu que jamais teria do que ter-se levado. Mas, uma vez dominado pelo impulso, deveria ter eleito rosas ou orquídeas. Algo com classe. Pensou em deixá-las adiante da porta de um vizinho. A idéia fez que se sentisse mais tonto. Murmurando uma praga, sacou a chave e a introduziu na fechadura.

Experimentou uma sensação ridícula ao entrar num apartamento que não era seu. Ela se levantou do sofá e lhe sorriu.

-Oi.

-Oi.

Ry tinha as flores às costas, sem dar-se conta de que era um gesto defensivo. Natalie estava incrível com aquele vestido de tiras finas da cor dos pêssegos maduros. Quando se moveu, teve que engolir saliva. A saia se abria desde o tornozelo até os três botões dourados na coxa esquerda.

-Teve um dia longo -comentou ela, dando-lhe um beijo ligeiro nos lábios.

-Sim, suponho -sentia a língua dormente-. E você?

-Não foi tão mau. A notícia animou a todo mundo. Pus vinho no refrigerador -ladeou a cabeça e lhe sorriu-. A não ser que prefiras tomar uma cerveja.

-O que seja -murmurou quando ela se dirigiu para a mesa, junto à janela, que tinha preparado para duas-. Há um ambiente agradável. Você está fantástica.

-Bom, pensei que se íamos celebrar... -serviu duas copas-. Tinha planejado isto para depois da grande inauguração do sábado, mas me parece que agora é apropriado -com as copas sobre a mesa, estendeu uma mão-. Tenho muito que te agradecer.

-Não. Fiz aquilo pelo que me paga... -calou ao ver que ela tinha desviado o olhar, suavizando a expressão. Com certa incomodidade, descobriu que tinha o olhar fincado nas flores com as que tinha acenado para descartar seu agradecimento.

-Me trouxe flores.

-Tinha um sujeito na esquina que as vendia e...

-Narcisos -suspirou-. Encantam-me.

-Sim? -com gesto torpe as ofereceu-. Bom, aqui as tens.

Natalie enterrou o rosto nos botões e, por algum motivo que não foi capaz de decifrar, quis chorar.

-São tão bonitas -alçou a cara com olhos brilhantes-. Tão perfeitas. Obrigada.

-Não é... -mas o beijo dela lhe cortou as palavras.

Como se tivessem ativado um interruptor em seu interior, experimentou um desejo instantâneo. Bastava um simples contato para almejá-la. Ela moldou o corpo contra o seu e o rodeou com os braços. Ry conteve a necessidade desesperada de atirá-la ao solo e liberar a paixão que se agitava nele.

-Estás tenso -murmurou Natalie, passando uma mão por seus ombros-. Sucedeu algo com Clarence durante o interrogatório que não me tenhas contado?

-Não -Clarence Jacoby e sua cara de lua eram o último que tinha na cabeça-. Só estou cansado, suponho -«e precisado de certo controle»-. Algo cheira bem -comentou ao retirar-se-. Aparte de ti.

-A receita de Frank.

-Frank? -deu outro passo atrás e recolheu a copa de vinho-. O cozinheiro de Guthrie nos preparou o jantar?

-Não, é sua receita -se acomodou o cabelo por trás da orelha- Eu a fiz.

-Sim, claro -bufou-. Onde comprou? No restaurante italiano?

- Eu fiz, Piasecki -repetiu entre ofendida e divertida, antes de beber vinho-. Sei como acender o fogão.

-Sabe como levantar o telefone e fazer um pedido -mais relaxado, tomou-lhe a mão e a levou à cozinha. Foi diretamente à panela e levantou a tampa. Certamente parecia caseira. Com o cenho franzido, cheirou o molho espesso que borbulhava tampando as peças douradas de frango-. Você fez isto? Sozinha?

Exasperada, Natalie se soltou e bebeu outro gole.

-Não sei por que se surpreende. Só é questão de seguir diretrizes.

-Você preparou-repetiu, movendo a cabeça-. Por que?

-Bom, porque... não sei -voltou a tampar a panela-. Tive vontades

-Não a imagino na cozinha.

-Não foi tanto trabalho -rio-. E também não uma visão bonita. Assim que, sem importar o sabor que tenha, exigem louvores. Tenho de pôr as flores na água.

Esperou enquanto ela sacava um vaso e arrumava os narcisos na pia da cozinha.

Pensou que essa noite parecia mais delicada. Feminina e acolhedora. Manejava a cada talho como se lhe tivesse levado rubis. Incapaz de resistir-se, acariciou-lhe o cabelo com suavidade. Ela levantou os olhos surpresa, insegura ante a exibição de evidente ternura.

-Sucede algo?

-Não -amaldiçoando-se, baixou a mão -. Gosto de tocá-la.

-Eu sei -os olhos lhe brilharam e dançaram. Voltou-se em seus braços-. O frango precisa ferver a fogo lento um momento -lhe mordiscou o lábio-. Uma hora, mais ou menos. Por que não nos...?

-Sentamos -concluiu ele, para evitar estourar. Sob nenhum conceito ia tombá-la e a tomá-la no solo da cozinha.

-De acordo -estranhada por seu retraimento, assentiu e voltou a recolher a copa de vinho-. Desfrutemos da lareira.

No salão, se colocou a seu lado e apoiou a cabeça em seu ombro. Era evidente que tinha algo na mente. Podia esperar até que quisesse compartilhá-lo. Era agradável estar ali sentados, observando o fogo enquanto o jantar se fazia e pelos alto-falantes saía uma antiga melodia de Escola Porter.

Era como se estivessem dessa maneira todas as noites, cômodos o um com o outro, sabendo que tinha tempo. Depois de um dia longo e corrido, que podia ter melhor do que estar ao lado de alguém a quem amava...?

Seus pensamentos a obrigaram a erguer-se. Amor. Amava-o.

-Que passa?

-Nada -engoliu saliva e lutou por manter a voz serena-. Só uma coisa que... esqueci. Posso fazê-lo depois.

-Nada de falar de trabalho, de acordo?

-Sim -bebeu um sorvo de vinho-. Perfeito.

Não era capaz de dormir bem quando não o tinha a seu lado. Tinha experimentado o impulso irresistível de preparar-lhe um jantar. O coração lhe dava um tombo cada vez que lhe sorria. Inclusive tinha pensado em programar uma viagem de negócios com ele.

Que ia fazer?

Fechou os olhos e lhe ordenou a seu corpo que se relaxasse. As emoções que pudesse sentir eram seu problema. Era uma mulher adulta que tinha iniciado uma relação com as regras muito claras para ambas partes. Não podia mudar as condições no meio do caminho.

O que precisava era reflexionar com cuidado. «Em outro momento», adicionou, concentrando-se em respirar profundamente. Depois devia formular um plano. Depois de todo, era uma excelente planejadora.

-Será melhor do que vá provar o jantar.

-Não passou uma hora - Gostava como a tinha encostada contra ele e queria que não se movesse. Decidiu que era uma tolice preocupar-se pela direção que tomavam. Nesse momento se achavam no lugar exato.

-Ia a... preparar uma salada -manifestou insegura.

-Depois.

Apoiou os dedos sob seu queixo e lhe voltou a cara. «É estranho», pensou, «é como se lhe tivesse traspassado meus nervos». Devagar, baixou a cabeça e lhe roçou os lábios.

Ela tremeu.

Intrigado, introduziu o lábio inferior dela em sua boca, banhando-o com a língua enquanto observava como as emoções invadiam os olhos de Natalie.

-Por que sempre temos pressa? -murmurou Ry.

-Não sei -devia afastar-se, despejar a cabeça, antes de cometer um erro imprudente-. Precisamos mais vinho.

-Creio que não -lentamente lhe apartou o cabelo da face para poder emoldurar-se entre as mãos. PARALISOU-A com a mirada-. Sabe o que penso, Natalie?

-Não - umedeceu os lábios, lutando por encontrar o equilíbrio.

-Creio que saltamos um passo.

-Não sei a que se refere.

Beijou-lhe a testa, apartou-se e viu como os olhos dela se nublavam.

-A sedução -sussurrou.

 

Sedução? Ela não precisava ser seduzida. Desejava-o, sempre o desejava. Antes de dar-se conta de que o amava, tinha comparado o que lhe provocava com uma espécie de reação química. Mas nesse momento, é que ele não via...?

Deixou de pensar quando seus lábios lhe percorreram a têmpora.

-Ry -apoiou uma mão no peito dele. Mas os dedos fortes lhe acariciavam o pescoço e os lábios se acercavam mais e mais aos seus. Só pôde repetir-: Ry.

-Gostamos de nos apressar, verdade, Natalie?

-Creio... -mas não era capaz de pensar. Não depois de que a boca dele se acoplasse à sua. Nunca antes a tinha beijado dessa maneira, tão devagar, tão profundamente, com uma espécie de posse preguiçosa que lhe chegava até a medula.

O corpo ficou frouxo, tão fluído como a cera que se derretia nas velas que os rodeavam. O coração de Ry batia com força e não muito firme, e o gemido rouco que emitiu sua garganta o acelerou. No entanto, não cessou na exploração lenta e funda de sua boca, como se isso pudesse satisfazê-lo durante horas.

Ela jogou a cabeça para atrás. Com a mão entre seu cabelo, ele modificou um pouco o ângulo do beijo, para brincar com seus lábios, com sua língua. Natalie não pôde evitar suspirar e tremer quando lhe roçou o peito com os dedos.

Soube que nesse momento chegariam a velocidade e o poder que entendia. Voltaria o controle na absoluta falta de controle enquanto se precipitavam para tomar-se. Mas os dedos dele não deixaram de acariciar-lhe o pescoço até que se posaram com devastadora ternura em sua face.

Num ato defensivo, colou-o com força a ela.

-Desta vez, não -Ry se apartou o suficiente para estudar seu rosto. A confusão, a necessidade e a excitação formavam uma combinação formosa. Sem importar o muito que lhe fervesse o sangue, pretendia confundi-la mais, pretendia ocupar-se de todas e cada uma de suas necessidades, e excitá-la até que seu corpo se ficasse lasso.

-Te desejo -atirou com frenesi dos botões da camisa dele-. Agora, Ry. Desejo-o agora.

TOMBOU-A no solo adiante do fogo. A luz das chamas iluminou sua pele, dançou em seu cabelo. Era dourada. Como um tesouro exótico ao que um homem pudesse dedicar a vida inteira a procurar. E essa noite era só sua.

Estendeu-lhe os braços aos lados e entrelaçou os dedos com os dela.

-Terá que esperar -lhe disse-. Até que tenha terminado de seduzir-te.

-Não preciso ser seduzida -se arcou para ele, oferecendo-lhe a boca, o corpo, oferecendo-se ela.

-Comprove-me.

A beijou com suavidade, saboreando sua boca quando ela abriu os lábios. Natalie o apertou com firmeza. Perguntou-se quantas vezes a tinha amado. Fazia pouco tempo que se conheciam, mas não era capaz de contar as vezes que tinha deixado que seu corpo assumisse o controle, que enlouquecesse com ela.

Nessa ocasião, pensava fazer-lhe amor com a mente.

-Me encantam seus ombros -murmurou, abandonando momentaneamente a boca dela para explorá-los-. Suaves, fortes, delicados.

Com os dentes agarrou a tira fina do vestido e a baixou até que não ficou mais do que pele nua. Seu sabor e seu aroma eram cálidos. Absorvendo-os, passou a língua pelo ombro, pela linha elegante do pescoço, baixando até que também a outra atira cedeu.

-E este ponto aqui -passou os lábios justo acima da seda que se curvava por em cima do peito. Umedeceu a pele com a língua até que o corpo dela se moveu desassossegado sob o seu-. Deveria relaxar e desfrutar, Natalie. Vou demorar um momento.

-Não posso -o contato gentil de seus lábios e o peso sólido de seu corpo a atormentavam-. Beija-me outra vez.

-Será um prazer.

Nessa ocasião experimentou um reflexo de calor, brilhante e quente, antes de que ele voltasse a apagar os fogos. Gemeu e se colou a Ry, almejando a libertação, a tortura. Ele realizou a eleição por ela, beijando-a com uma intensidade concentrada até que não lhe ficou mais remédio do que soltar o ar de forma entrecortada.

Fumaça. Praticamente podia cheirá-lo. Elevava-se em nuvens de fumaça, desvalida, incapaz de algo mais do que não fora boiar e suspirar. Mordiscou com delicadeza a mandíbula, e os beijos lentos e ligeiros desceram por seu pescoço, por seus ombros.

Centímetro a centímetro, Ry a provou, sem deixar de baixar a seda. Sentiu que o cabelo dele lhe roçava o peito, para que depois a boca viajasse por sua curva, jogando com a pele sensível da parte inferior. A língua passou pelo mamilo, provocando-lhe um anseio no mesmo centro de seu corpo. Depois capturou a cume entre os dentes, provocando que ela gemesse seu nome e que o corpo começasse a palpitar-lhe a um ritmo primitivo.

Queria absorvê-la e oferecer-lhe todo o prazer que pudesse. Natalie tinha os olhos fechados e os lábios entreabertos. Precisava prová-los outra vez; ao fazê-lo, deixou-se afundar em sua textura.

O tempo passou.

Na ternura tinha poder. Ry nunca antes a tinha sentido, nem em si mesmo nem em ninguém. Mas para ela tinha uma fonte inesgotável de ternura, de beijos suaves e sensuais, de intermináveis suspiros.

Lhe soltou as mãos para tirar-se a camisa, para experimentar a excitação de suas peles unidas. Com um murmúrio de aprovação, deslizou a mão pela abertura da saia dela, acariciando e afastou a roupa de baixo que usava.

Liberou um botão, logo outro, depois um terceiro. Beijando-lhe o quadril exposto, conteve o súbito e intenso impulso de tomá-la.

«Mais», prometeu-se a si mesmo. Tinha mais. Por seu próprio prazer, apartou a um lado a seda. E encontrou mais.

Embaixo luzia mais seda e encaixes, da mesma cor que o vestido. Sem tiras, continha-lhe os peitos e realçava suas pernas. Suspirou, jogou-se para atrás e jogou a luva.

-Natalie.

Fraca... ela se sentia tão gloriosamente fraca que mal podia abrir os olhos. Quando o conseguiu, só viu ele. Estendeu o braço, pesado, quase sem ossos. Ry lhe tomou a mão e a beijou.

-Queria dizer que me faz feliz vê-la com a lingerie que vendes -ela sorriu. Com um gesto veloz, desprendeu-lhe uma liga. Natalie só pôde emitir um gemido leve-. E o quanto é linda -a segunda liga-. Luzes próprios produtos -sem tirar-lhe a vista de em cima, baixou-lhe as médias até as panturrilhas.

A visão dela se nublou. Podia senti-lo. Deus... podia sentir cada contato de seus dedos e de sua boca. A entrega tinha chegado até ela como uma sombra e a tinha deixado completamente vulnerável. Lhe daria o que quisesse, desde que jamais deixasse de tocá-la.

Da lareira surgia um calor suave e constante. Não era nada comparado com a lenta chama que ardia em seu interior. Como desde um túnel, ainda podia escutar a música. O aroma de flores e de cera de velas, o sabor de Ry e o vinho que ainda perdurava em sua própria língua... todo se fundiu para embriagá-la de forma assombrosa.

Então ele introduziu um dedo por embaixo de sua calcinha para deslizá-lo com lentidão para o núcleo do calor.

Natalie estourou. O corpo tremeu. Seus lábios pronunciaram o nome dele ao mesmo tempo em que o prazer entristecedor invadia seu sistema. Rodeou-o enquanto o poder do orgasmo aumentava em força, para dissolver-se deixando-a cheia de ecos e vazia.

Quis dizer-lhe que estava vazia, que tinha que estar vazia. Mas ele lhe desprendia a seda e com seus dedos hábeis a deixava nua, engolindo as palavras que os lábios dela tivessem podido pronunciar com sua boca de uma paciência implacável.

-Quero encher-la, Natalie -suas mãos já não se achavam tão firmes, mas a tombou com suavidade sobre o tapete para poder tirar a roupa-. Quero te preencher completamente, com tudo o que tenho.

Enquanto o sangue martelava nos ouvidos de Ry, iniciou a lenta viagem ascendente por suas pernas, avivando outra vez o fogo, esperando, observando com atendimento o momento antes de que voltasse a estourar.

Sentiu que o corpo dela se tencionava, viu o poder do que ia suceder assomar-se em seu rosto. No momento em que Natalie gritou, introduziu-se em seu interior.

Quase lhe resultou doloroso frear-se. E muito doce. Ao ver abertos os pesados olhos dela, nublados pelo prazer, conteve-se para não se precipitar para a conclusão.

Dominada por um redemoinho de sensações, asfixiando-se praticamente em suas diferentes capas, Natalie procurou as mãos dele. Quando seus dedos se uniram, seu coração esteve pronto para estourar. Observou-o enquanto cada investida os sacudia e os acercava mais ao abismo.

Então caiu pelo precipício, livre, e Ry a beijou e seus lábios formaram seu nome enquanto saltava com ela.

 

À manhã seguinte, enquanto subia no elevador até seu escritório, por duas vezes Natalie teve que fechar os lábios com força para não se pôr a cantar. Tinha vontade de cantar, de dançar. Estava apaixonada.

«E o que tem de mau?», perguntou-se quando os ocupantes baixaram no trigésimo andar. Todo mundo tinha direito a estar apaixonado, a sentir como se seus pés jamais voltassem a tocar o solo, a saber que o ar jamais tinha tido uma fragrância mais doce, que o sol nunca tinha brilhado tanto.

Era maravilhoso estar apaixonada. Tanto, que se perguntou por que jamais o tinha tentado.

«Porque nunca tinha aparecido Ry», respondeu-se com um sorriso.

Que tonta tinha sido ao sentir pânico no momento de compreender o que sentia por ele. Que covarde e ridículo era ter medo a amar.

Se fazia que uma mulher fora vulnerável e cômica, se a aturdia e a desconcertava, que tinha de mau isso? O amor devia embriagar e fortalecer e encher a cabeça de passarinhos. O que passava era que nunca o tinha compreendido.

Cantarolando, saiu do elevador e praticamente boiou até seu escritório.

-Bom dia, Senhorita Fletcher -Maureen olhou com dissimulo a hora. Não lhe correspondia a ela dizer-lhe a sua chefa que chegava tarde. Nem sequer três minutos tinham precedente com Natalie Fletcher.

-Bom dia, Maureen -saudou com voz cantante, arrojando-lhe uns narcisos.

-Oh, Obrigada. São preciosos.

-Todo mundo deveria ter narcisos esta manhã. Absolutamente todo mundo - jogou o cabelo para trás para tirar-se as gotas de água-. Um dia estupendo, verdade?

Chovia e fazia frio, mas Maureen sorriu.

-Uma clássica manhã primaveral. Tem umas conferências telefônicas às dez. Com Atlanta e Chicago.

-Eu sei.

-E a Senhorita Marks esperava que pudesse abrir-lhe um espaço esta manhã.

-Perfeito.

-Oh, e deve estar na loja às onze e quarto, justo ao terminar sua reunião das dez e meia com o senhor Hawthorne.

-Não há problema.

-Almoça com...

-Ali estarei -disse ao entrar em seu escritório.

Pela primeira vez nos últimos tempos, passou por adiante da cafeteira. Não precisava cafeína para que seu sangue acordasse. Já lhe borbulhava. Pendurou o casaco, deixou a valise e se dirigiu à caixa forte, oculta por trás de um quadro abstrato.

Extraiu uns disquetes e foi à mesa para redigir um memorando breve para Deirdre.

Uma hora mais tarde, achava-se imersa no trabalho, redigindo notas apressadas enquanto manejava informação e petições de suas sucursais na conferência telefônica a três bandas.

-Te enviarei a autorização por fax em meia hora -lhe prometeu a Atlanta-. Donald, comprova se podes sacar tempo para acompanhar-me à loja... às onze e quarto. Podemos manter a reunião durante o trajeto.

-Tenho uma reunião às onze e meia com Marketing -a informou-. Deixa-me ver se posso deixá-la para depois do almoço.

-Te agradeceria. Gostaria de dispor de provas de todos os anúncios e artigos de imprensa de Chicago. Podes transmitir-me por fax, mas gostaria que supervisionasses os originais. Esta tarde me porei em contato com Los Angeles e Dallas, e teremos um relatório completo para todas as sucursais a última hora de amanhã -se recostou no cadeirão e suspirou-. Cavaleiros, sincronizem seus relógios e alertem às tropas. ÀS dez da manhã do sábado. De costa a costa.

Depois de concluir a conferência, apertou a tecla do intercomunicador.

-Maureen, comunica-lhe a Deirdre que tenho uns vinte minutos livres. Ah, e chame Melvin.

-Está fora, Senhorita Fletcher.

-Certo -irritada por esse deslize, olhou a hora e calculou o tempo-. Verei se posso reunir-me com ele na fábrica esta tarde. Deixa-lhe uma mensagem em sua caixa postal de voz dizendo-lhe que passarei a isso das três.

-Sim, Senhorita.

-Depois de chamar a Deirdre, põe-me com o chefe de distribuição do novo armazém.

-Em seguida.

Quando Deirdre chamou à porta e entrou, Natalie digitava no computador.

-Sim, compreendo-o -com o fone enganchado ao ouvido, indicou-lhe a Deirdre que se sentasse-. Segue esse transporte. Quero-o em Atlanta antes das nove de amanhã -assentiu e digitou-. Comunica-me quanto o tenhas localizado. Obrigado -pendurou e se apartou uma mecha da cara-. Sempre há algo antes da hora assinalada.

-Uma má notícia? -Deirdre franziu o cenho.

-Não, só um leve atraso num carregamento. Inclusive se não chega, Atlanta tem suficiente mercadoria para a inauguração. Mas não quero que se lhes esgote. Café?

-Não, já me abri um buraco no estômago, obrigada. Ou abriste você -olhou com firmeza a sua chefa-. As gratificações.

-As gratificações -conveio Natalie-. Tenho as percentagens com os que quero que trabalhes. Os quocientes de salários e essas coisas -esboçou um leve sorriso-. Supus que te porias a calcular o melhor dia para matar-me se me encarregava dos preliminares.

-Está enganada..

-Deirdre, sabe por que te valorizo tanto? -riu.

-Não.

-Tua mente é como uma calculadora. As gratificações são merecidas, e também as considero como um bom investimento. Um incentivo para manter o ritmo nas semanas vindouras. Pelo geral, passada a venda inicial num negócio novo se produz uma queda, tanto em rendimentos como em trabalho. Creio que isto evitará que o descenso seja em picado.

-Todo isso está muito bom na teoria -começou Deirdre.

-Façamos que seja uma realidade. E como se trata de um procedimento basicamente regular, quero que se o delegues a teu assistente. Dessa maneira poderás concentrar-te em levar a cabo a auditoria -sem deixar de sorrir, entregou-lhe os disquetes e o memorando- Grande parte do que tenhas que analisar será paralelo à declaração da renda. Toma-te o tempo que consideres necessário e a toda a gente que te faça falta do departamento de Contabilidade.

Com uma careta, Deirdre aceitou o disquete.

-Sabe por que a valorizo tanto, Natalie?

-Não.

-Porque não há maneira de balançá-la, e porque dás ordens impossíveis com um tom razoável.

-É um dom -lembrou ela-. Talvez precise desta pasta.

-Muito obrigado -se levantou e a recolheu.

-De nada -levantou a vista com um sorriso quando Donald assomou a cabeça pela porta.

-Estou livre até as doze e meia -indicou ele.

-Estupendo. Nos iremos agora. Aproveite esse tempo - disse a Deirdre ao dirigir-se ao armário para sacar o casaco-. Sempre que tenha os primeiros números sobre os benefícios e perdas deste trimestre, e os totais de cada departamento, no final da semana próxima.

Deirdre pôs os olhos em alvo e olhou a Donald.

-Razoavelmente impossível -acomodou os disquetes em cima da pasta-. Você és o seguinte -o advertiu.

-Não deixe que isso o assuste, Donald -saiu do escritório.

-Que energia -lhe murmurou Donald a Deirdre.

-Está voando -a economista observou a pasta-. Esperemos poder manter seu ritmo.

-Perfeito, verdade? -satisfeita depois da visita à loja, Natalie esticou as pernas na parte de atrás do carro enquanto seu motorista se movia pelo tráfico do meio dia-. Jamais suspeitarias do que tinha tido um incêndio.

-Um trabalho magnífico -coincidiu Donald-. E a vitrine é espetacular. As vendedoras vão ter um dia frenético o sábado.

-Conto com isso -apoiou a mão no braço dele-. Grande parte se deve a ti, Donald. Jamais teríamos podido despegar sem tua entrega, e menos depois do incidente do armazém.

-Controle de danos -se encolheu de ombros-. Em seis meses mal recordaremos que precisamos controle de danos. E os benefícios farão sorrir inclusive a Deirdre.

-Isso seria uma proeza.

-Deixe-me na seguinte esquina -lhe disse ao motorista-. O restaurante está a uns metros.

-Te agradeço que sacasses tempo para acompanhar-me.

-Não há problema. Contemplar a loja principal restaurada me alegrou o dia. Não foi agradável ver como tinha ficado o despacho. Aquela magnífica escrivaninha antigo estragado. A propósito, a novo é assombrosa.

-Fiz que a enviassem de Colorado -comentou distraída enquanto algo dava voltadas em sua cabeça-. Tinha-o guardado.

-Pois é perfeita-bateu de leve em sua mão quando o carro encostou no meio fio.

Ela se despediu com um gesto da mão e se recostou, insatisfeita, quando o carro voltou a sair ao tráfico. Então calculou a distância que ficava para o restaurante onde tinha o almoço de negócios e decidiu que dispunha de tempo para um telefonema rápido.

-Piasecki -contestou Ry à terça.

-Oi -o prazer de ouvir sua voz desterrou todo o demais-. Sua secretária saiu?

-Foi Almoçar.

-E você está almoçando em seu escritório.

Ele baixou a vista ao sanduíche que ainda não tinha tocado.

-Sim. Mais ou menos -ao mover-se, a cadeira reclinou-. Onde está?

-Pela Doze e Hyatt, em direção oeste, para Menagerie.

-Ah -«Menagerie. Classe e distinção. Nada de sanduíches de atum em pão de centeio». IMAGINOU-A pedindo água mineral de marca e uma salada com cada folha verde de um nome diferente-. Ouve, Pernas, quanto a esta noite...

-Pensava em isso. Talvez poderíamos ficar no Goose Neck -moveu os ombros-. Tenho a impressão de que vou querer relaxar.

Ry se esfregou o queijo.

-Eu, ah... Venha a minha casa. O que acha?

-Sua casa?-era algo novo. Já tinha deixado de perguntar-se por que jamais a tinha levado.

-Sim. Entre as sete, sete e meia.

-De acordo. Quer que compre algo para jantar?

-Não, eu me ocuparei disso. Vemo-nos -pendurou e se jogou para atrás. Ia ter que se ocupar de muitas coisas.

 

Passou por um restaurante chinês. Eram quase as sete quando subiu com os recipientes brancos os dois trechos de escadas que o separavam de seu apartamento. Olhou ao redor.

Não era uma pocilga. Salvo, claro está, que se comparasse com o edifício elegante onde vivia Natalie. Não tinha as paredes pintadas, ainda que si eram finas. Ao subir os degraus, captou os sons apagados de um televisor e de gritos infantis. Os degraus estavam desgastados no centro devido ao passo de inumeráveis pés.

Ao chegar ao segundo andar, ouviu que uma porta se fechava com estrépito a suas costas.

-De acordo, de acordo. Eu mesmo irei comprar a cerveja.

Com os lábios franzidos, abriu seu apartamento. «Sim», pensou. Era um tugúrio de primeira. No corredor reinava o cheiro de alho. Supôs que cortesia de sua vizinha. A mulher sempre estava cozinhando massa.

Entrou, acendeu a luz e estudou a habitação. Estava limpa. Talvez algo polvorenta. Raramente permanecia tempo suficiente para bagunçá-la. Fazia três semanas que não passava uma noite ali. O sofá cama precisava um cobertura novo. Não era algo que tivesse notado antes nem que o tivesse molestado. Mas nesse momento o tecido descolorida o irritou.

Avançou meia dúzia de passos e entrou no oco que servia como cozinha. Sacou uma cerveja da geladeira e a abriu. Enquanto bebia um trago decidiu que também as paredes precisavam pintura. E ao solo nu não lhe iria mal um tapete.

«Mas me serviu bastante bem, não?», perguntou-se com tom sombrio. Não precisava apartamentos elegantes. Com um par de quartos cerca de seu trabalho era mais do que suficiente. Levava quase uma década vivendo ali, satisfeito. Isso bastava para qualquer.

Mas não bastava, não podia bastar, para Natalie.

Sabia que esse não era seu lugar. E lhe tinha pedido que fora para demonstrar-se aos dois.

A noite anterior tinha sido uma revelação para ele. Ela era capaz de fazê-lo sentir dessa maneira, de conseguir que esquecesse que tinha algo ou alguém no planeta salvo eles dois.

Não era justo para nenhum continuar dessa maneira. Quanto mais se prolongasse, mais precisaria dela. E quanto mais a precisasse, mais lhe custaria deixar que se fosse.

O divórcio não o tinha ferido. «Só um par de cicatrizes», pensou nesse momento. «Bastante arrependimentos. Mas não uma dor verdadeira. Não a dor profunda e aterrador que começo a experimentar ante a idéia de viver sem Natalie».

Poderia retê-la. Existia uma grande possibilidade de poder retê-la. O físico entre eles era de uma intensidade assombrosa. Ainda que se esfriasse, seria mais forte que nada do que tinha vivido até então.

E era bem consciente do efeito que sortia nela.

Poderia retê-la só com o sexo. Talvez resultasse suficiente para ela. Mas ao acordar aquela manhã tinha descoberto que não era suficiente para ele.

Não, não bastava, não quando tinha começado a imaginar cercas brancas, meninos no pátio... o tipo de coisas que acompanhavam ao casal, à permanência, à vida.

Se recordou que esse não era o trato que tinham estabelecido. E não tinha direito a mudar as regras, a esperar que ela quisesse assentar-se com ele. Já tinha demonstrado que o casamento não era para ele, e isso por que tinha se casado com alguém de sua própria comunidade, com seu mesmo estilo de vida. Era impossível que encaixasse com Natalie, e o fato de que o desejasse, mesmo o precisasse, o deixava aterrorizado.

Pior do que isso, muito pior, era a idéia de que o recusasse se lhe pedisse que tentassem.

Queria tudo. Ou nada. Então, tinha sentido que a jogasse de sua vida antes de aprofundar mais a relação? E o faria ali, justo ali, onde as diferenças que tinha entre ambos seriam como uma bofetada para ela.

Ao ouvir o telefonema à porta, foi abrir com a cerveja na mão.

Era tal como tinha pensado. Natalie de pé no corredor, esbelta, dourada, uma criatura exótica completamente fora de lugar. Sorriu-lhe e se adiantou para beijá-lo.

-Oi.

-Oi. Entra. Teve algum problema para encontrar onde moro?

-Não -afastou o cabelo do rosto e olhou ao redor-. Tomei um táxi.

-Bem pensado. De ter deixado seu carro caro na rua, ao voltar não acharia nada dele. Uma cerveja?

-Não -curiosa, aproximou-se da janela.

-Há pouco que ver -disse, sabendo que olhava a fachada de outro edifício.

-Pouco -conveio-. Segue chovendo -adicionou enquanto tirava o casaco. Sorriu ao ver outro de seus troféus de basquete-. Ao Jogador Mais Valioso -murmurou, lendo a inscrição da placa-. Impressionante. Eu diria que posso superá-lo nove de cada dez vezes.

-Não está fria - voltou para a cozinha-. Não tenho vinho.

-Está bem. Mmm... comida chinesa -abriu um dos recipientes que ele tinha deixado na pia e cheirou-. Estou morrendo de fome. Ao meio dia só comi uma salada. Não parei de ir de um lado a outro da cidade, ocupando-me dos detalhes para o sábado. Onde estão os pratos? -relaxada, abriu um armário-. A semana próxima vou ter que ir ver todas as sucursais. Estava pensando... -calou ao dar-se a volta e ver que a olhava-.

- Que?

-Nada -murmurou, tirando-lhe os pratos da mão. Enquanto servia o jantar, pensou que não tinha imaginado que ela entraria se poria a bater um papo. Supunha que daria conta que não encaixava em seu mundo. Supunha que teria algo a fazer e iria embora-. Maldita seja, não vê onde está? -espetou ao aproximar-se e fazer que retrocedesse um passo.

-Mmm... -piscou-, na cozinha?

-Olha ao seu redor -irritado, tomou-a nos e a arrastou à outro cômodo-. Olha a seu arredor. Isto é tudo. É bem como vivo. É bem como sou.

-Muito bem -lhe afastou a mão, porque a pressão de seus dedos tinha lhe provocada dor. Com o fim de comprazê-lo, jogou outra olhada. Era um quarto espartano, masculino em sua singeleza. Pequeno, mas não obstinado. Uma mesa exibia fotos de uma família que esperava poder observar melhor-. Não lhe cairia mal um pouco de cor -decidiu passado um momento.

-Não te peço conselhos de decoração -soltou Ry.

Algo baixou a ira de sua voz, algo definitivo, obrigou-a a gaguejar. Muito devagar, encarou-o.

-O que é que me pede?

Amaldiçoando, regressou à cozinha em procura da cerveja. Se ia olhá-lo com essa expressão confusa nos olhos, estava perdido. Teria que ser cruel. Sentou-se no no sofá e bebeu um trago.

-Sejamos realistas, Natalie. O nosso relacionamento se iniciou porque nos desejávamos loucamente.

Ela sentiu que empalidecia. Mas não afastou a vista e falou com voz firme.

-Sim, assim é.

-Todo sucedeu depressa. O sexo, a investigação. As coisas se misturaram.

-Sim?

-É uma mulher bonita -tinha a boca seca e a cerveja não o ajudava-. Desejava-a. Tinha um problema. Era meu trabalho solucionar.

-O qual fizeste -repôs ela com cautela.

-Em sua maior parte. A polícia rastreará a quem quer que esteja pagando a Clarence. Até então, deves ter cuidado. Mas a situação já está praticamente controlada. Nesse sentido.

-E no plano pessoal?

-Creio que já é hora de dar uma passo para trás -franziu o cenho e observou a garrafa-, de olhar as coisas com mais clareza.

As pernas de Natalie tremeram. Tencionou os joelhos.

-Está deixando, Ry?

-Digo que temos que analisar como são as coisas fora da cama. Como é você -levantou os olhos-. Como não sou eu. Sobra-nos fogo, Natalie. O problema disso é que se deixa cegar pela fumaça. É hora de despejar o ar, isso é todo.

-Compreendo -não ia suplicar-lhe. Também não ia chorar adiante dele. Não quando a olhava com tanta frialdade e sua voz indiferente lhe rasgava o coração. Perguntou-se se a noite anterior tinha decidido ser tão gentil, tão carinhoso e doce, porque já tinha decidido romper a relação-. Bom, suponho que o despejamos -apesar de sua determinação, se nublou a vista e a luz se refletiu nas lágrimas que estava a ponto de derramar.

Quanto os olhos dela se umedeceram, Ry se levantou de um salto.

-Não.

-Não chorarei. Acredite-me -mas lhe caiu uma lágrima ao voltar-se para a porta-. Agradeço que não fazer isto num lugar público -apoiou a mão no fechadura. Tinha os dedos dormentes. Nem sequer os sentia.

-Natalie.

-Estou bem -para demonstrar-se, girou e o observou-. Não sou uma menina, e esta não é a primeira relação que tenho que não funciona. No entanto, é a primeira vez de algo, e tens direito a conhecê-lo, idiota - secou outra lágrima-. Nunca antes tinha me apaixonado, mas me apaixonei por você. Te odeio por isso.

Abriu a porta e se marchou sem o casaco.

 

Durante dez minutos, Ry foi de um lado a outro da habitação, tratando de convencer-se de que tinha feito o correto para os dois. Sem dúvida ela se sentiria um pouco magoada. Tinha o orgulho manchado, já que não se tinha mostrado muito diplomático.

Os seguintes dez minutos se esforçou em se convencer de que Natalie não tinha falado sério. De que só tinha querido vingar-se.

Não estava apaixonada por ele. Não podia estar. Porque se estava, então era o idiota maior do mundo.

«Oh, Deus». Era o idiota maior do mundo.

Recolheu o casaco dela, esqueceu o seu e baixou à carreira para sair à chuva.

Tinha deixado o carro na estação e se amaldiçoou por isso. Rezou para encontrar um táxi, foi à esquina e depois à seguinte.

Sua impaciência lhe custou mais tempo que se tivesse ficado a esperar um. Quando conseguiu parar um táxi livre, tinha caminhado doze maçãs e estava empapado.

O veículo se abriu passo entre a chuva e o tráfico, freando e avançando, freando e avançando, até que lhe deixou algumas notas com o motorista e desceu.

Teria chegado antes a pé.

Tinha decorrido quase uma hora quando se deteve em frente à porta de Natalie. Não se aborreceu em chamar. Empregou a chave que ela não lhe tinha pedido que lhe devolvesse.

Nessa ocasião não teve nenhum boas vindas, nenhuma sensação acolhedora de chegar a casa. Quanto entrou soube que não estava. Negando-o, chamou-a e começou a procurar pelo apartamento.

«Esperarei», disse-se. «Regressará tarde e me encontrará aqui. De algum modo arrumarei as coisas». Decidiu que se fosse preciso, suplicaria.

O mais provável era do que tivesse ido para seu escritório. Talvez poderia ir procurá lá. Poderia chamá-la, mandar-lhe um telegrama. Poderia fazer algo.

Santo céu, Natalie estava apaixonada dele, e ele só tinha sabido empregar ambas mãos para jogá-la.

No dormitório, sentou-se no borde da cama e levantou o fone do telefone. Foi então quando viu a nota sobre a mesinha de noite.

Atlanta... National Airlines... 8:25

«National Airlines», pensou. «O aeroporto». Demorou três minutos em sair do apartamento e exigir que o porteiro que lhe procurasse um táxi.

Perdeu o avião dela por menos de cinco minutos.

-Não, inspetor Piasecki, não sei quando a Senhorita Fletcher pensa voltar em -Maureen sorriu com cautela. O homem parecia desajeitado, como se tivesse passado uma noite movimentada. As coisas já estavam bastante agitadas com a viagem súbita da sua chefe, sem necessidade de ter que se enfrentar a um louco às nove da manhã.

-Onde está? -exigiu Ry. A noite anterior tinha estado a ponto de tomar o seguinte vôo a Atlanta, mas de repente lhe tinha ocorrido que não tinha nem idéia de onde encontrá-la.

-Sinto, inspetor. Não estou autorizada a dar-lhe essa informação. Com muito gosto transmitirei à Senhorita Fletcher a mensagem que queira dar-lhe quando telefonar.

-Quero saber onde está -insistiu com os dentes apertados.

Maureen pensou seriamente em chamar a segurança.

-É política da empresa...

Com uma só palavra ele definiu a política da empresa e sacou sua placa.

-Vê isto? Estou a cargo da investigação por incêndio provocado. Tenho informação que a Senhorita Fletcher tem de receber de imediato. E agora, se não me indica onde posso localizá-la, terei que ir ver a meus superiores -deixou que assimilasse suas palavras e manteve viva a esperança.

Indecisa, Maureen mordeu o lábio. Era verdade que a Senhorita Fletcher lhe tinha dado ordens específicas para que não divulgasse seu itinerário. Também era verdade que, durante o rápido telefonema que lhe tinha feito o dia anterior, não tinha mencionado de maneira específica ao inspetor Piasecki. E se tinha algo que ver com os incêndios...

-Se aloja no Ritz-Carlton de Atlanta.

Antes de que terminasse a frase, Ry tinha abandonado a recepção. Chegou à conclusão de que se um homem ia suplicar, o melhor era fazê-lo em particular.

Quinze minutos mais tarde, irrompia em seu escritório, sobressaltando a sua secretária.

-Ritz-Carlton, Atlanta. Chama.

-Sim, senhor.

Não deixou de ir de um lado a outro de seu escritório até que ela lhe fez um sinal com a mão.

-Natalie Fletcher -ladrou no fone-. Passe-me com ela.

-Sim, senhor. Um momento, por favor.

Passou um instante interminável até que o conectaram e escutou o som da linha. Suspirou aliviado ao ouvir a voz dela do outro lado.

-Natalie... que diabos faz em Atlanta? Preciso... -soltou um juramento quando a linha se cortou-. Maldita seja, põe-me outra vez com Atlanta.

Com os olhos muito abertos, sua secretária voltou a marcar.

«Calma, Ry», ordenou-se. Sabia como manter a tranqüilidade ante um incêndio, a morte e a desgraça. Sem dúvida podia permanecer sereno nesse momento. Mas quando o telefone seguiu soando e a imaginou adiante da janela da habitação, sem contestar, esteve a ponto de arrancá-lo da parede.

-Chama ao aeroporto -lhe ladrou a sua secretária, que o olhou com os olhos quase desorbitados-. Faz-me uma reserva no próximo vôo para Atlanta.

Ao chegar a seu destino, descobriu que Natalie tinha partido.

Não pôde acreditar. Mais de dez horas depois de sua partida precipitada, Ry se achava de volta em Urbana. Sozinho. Nem sequer tinha conseguido vê-la. Tinha passado horas em aviões, mais tempo perseguindo-a por Atlanta, desde o hotel até a sucursal de Lady's Choice, de volta ao hotel e de ali ao aeroporto. Em cada ocasião o desencontro tinha sido por minutos.

«É como se soubesse que estava por trás de ela», pensou enquanto subia as escadas que conduziam a seu apartamento. Deitou-se no sofá e passou as mãos pela cara.

Não lhe ficava outra escolha a não ser esperar.

 

-Me alegro tanto de vê-la -Althea Grayson Nightshade sorriu ao passar-se a palma de uma mão pela montanha de seu ventre.

-O mesmo digo -Natalie rio-. Como se sente?

-Oh, como um cruzamento entre o boneco de Michelin e Moby Dick.

-Nenhum deles tem estado jamais tão bem -o qual era verdade. A gravidez tinha potenciado a considerável beleza de Althea. Seus olhos eram dourados, sua pele luminosa, o cabelo uma cascata de fogo, sobre, os ombros.

-Estou gorda, mas sã -fez uma careta-. Colt foi um demônio em insistir em que comesse bem, dormisse bem, exercitasse-me e descansasse. Inclusive redigiu um programa diário. Pôs-se frenético quando se inteirou de que íamos ser pais.

-A habitação do bebê é preciosa -Natalie vistoriou a estadia verde e branca, passando os dedos pelo berço antigo, pelas cortinas alegres.

-Me sentirei contente quando a ocupe. Será em qualquer momento -suspirou-. Sento-me muito bem, para valer, mas te juro que foi a gravidez mais longa da história. -Quero ver a meu bebê, maldita seja -rio-. Quem me escutasse. Jamais pensei do que quereria filhos, muito menos do que estaria ansiosa por mudar o primeiro cueiro.

Intrigada, Natalie olhou acima do ombro. Althea se achava sentada numa poltrona, com um cobertor mau tecido nas mãos.

-Não? Nunca quis ser mãe?

-Não com o trabalho e meu passado -se encolheu de ombros-. Supus que não tinha jeito de mãe. Então aparece Nightshade e depois isto -deu uma batidinha no ventre-. Talvez gestar não é meu meio natural, mas me encantou cada minuto. Agora já estou ansiosa por cuidá-lo. Me imaginas sentada aqui, amamentando um bebê? -rio.

-Sim -se dirigiu a seu lado, pôs-se em joelhos e tomou as mãos de Althea-. Invejo-a, Thea. Muito. Tem alguém que te ama e um bebê como resultado disso. Não há nada mais importante -com as defesas debilitadas, os olhos se lhe encheram de lágrimas.

-Queria, o que houve?

-O que poderia haver ? -desagradada consigo mesma, incorporou-se.

-Um homem.

-Um idiota -conteve o pranto e se meteu as mãos nos bolsos.

-E esse idiota pode ser um inspetor de bombeiros? -Althea sorriu um pouco quando Natalie a observou com o cenho franzido-. As notícias viajam, inclusive até Denver. O fato é que sua família e Colt e eu nos temos estado mordendo a língua para conter-nos de perguntar-te que fazia aqui.

-Vou explicar. Procuro um local para abrir outra sucursal. Ademais, estava de viagem.

-Em vez de em Urbana para a inauguração.

Lamentava isso, e era outra coisa da que culpar a Ry.

-Assisti à inauguração de Dallas. Cada uma das sucursais é de igual importância para mim.

-Sim, e aposto que foi um sucesso.

-As contas para as vendas da primeira semana parecem promissoras.

-Então, por que não volta para a casa para desfrutar disso? -Althea inclinou a cabeça-. Pelo idiota?

-Tenho direito a um pouco de tempo livre antes de... Bom, sim -reconheceu-. O idiota me deixou.

-Oh, vamos. Cilla disse que estava louco por você.

-Éramos bons na cama -expôs sem rodeios, depois apertou os lábios-. Cometi o erro de apaixonar-me. Pela primeira vez na vida, e me rompeu o coração.

-Sinto muito -preocupada, Althea se levantou.

-Superarei -apertou as mãos que lhe ofereceu sua amiga-. O que passa é que jamais tinha sentido isto por ninguém. Não sabia que podia. Consegui passar pela vida sem que ninguém me ferisse. E de repente, zás. É como se te cortassem em pedaços muito pequenos -murmurou-. Ainda não fui capaz de voltar a pô-los em seu lugar.

-Bom, isso quer dizer que ele não valia a pena -afirmou Althea com lealdade.

-Oxalá fosse verdade. Seria mais fácil. No entanto, é um homem maravilhoso, doce, entregado -moveu os ombros-. Não queria magoar-me. Chamou várias vezes desde que me ausentei.

-Talvez queira se desculpar e acertar as coisas.

-Acredita que lhe daria a oportunidade? -levantou o queixo-. Não aceitei nenhuma de seus telefonemas. Não penso aceitar nada dele. Pode enviar-me flores por todo o país, que vou continuar pensando o mesmo.

-Lhe envia flores -um sorriso começou a aparecer no canto dos lábios de Althea.

-Narcisos. Cada vez que olho para trás, recibo um ramo de estúpidos narcisos. Será que ele acredita que vou cair outra vez nessa armadilha?

-Talvez deveria voltar e deixar que ele suplique.

-fez uma careta ao sentir uma apunhalada de dor. Olhou o relógio e comprovou que era a terça na última meia hora.

-Estou pensando. Mas até que não me encontre preparada, não vou... -calou-. Que sucede? Está se sentindo bem?

-Sim -soltou o ar devagar. Essa apunhalada durava mais-. Sabe?, Acho que estou entrando em trabalho de parto.

-Que? -se pôs pálida-. Agora? Senta-te. Sente-se, pelo amor de Deus. Chamarei a Colt.

-Pode que te faça caso -com cuidado, acomodou-se na poltrona-. E creio que será melhor do que o chame.

 

Deirdre se alegrou de ter tomado a decisão de levar o trabalho a casa. O maldito resfriado que tinha pilhado em alguma parte se aferrava a ela como uma sanguessuga. Ocupada, ao menos se esqueceria da dor de cabeça e da garganta irritada.

Tomou de má vontade a xícara de sopa de frango instantânea que tinha esquentado no microondas e em seu lugar se decidiu pela infusão. Não tinha nada como um trago de whisky para realçar uma xícara de chá.

Tinha sorte, muita sorte, teria deixado o gripado atrás e disporia dos números preliminares antes de que Natalie regressasse de Denver.

Bebeu outro gole do chá carregado e seguiu digitando. Deteve-se, franziu o cenho e se ajustou os óculos.

«Não pode estar bem», pensou, e apertou umas teclas. Sob nenhum conceito podia estar bem. Se lhe ressecou a boca e um fio de suor baixou por suas costas, alheio em absoluto à febre contra a que lutava.

Recostou-se na cadeira e respirou fundo várias vezes. «Simplesmente é um erro», assegurou-se. Encontraria a discrepância e a solucionaria. Isso era todo.

Mas não demorou muito em compreender que não se tratava de um erro. Nem de um acidente.

Tratava-se de um quarto de milhão de dólares. E tinha desaparecido.

Levantou o fone e marcou a toda velocidade.

-Maureen. Sou Deirdre Marks.

-Senhorita Marks, sua voz soa fatal.

-O sei. Escute, preciso falar com Natalie de imediato.

-E quem não?

-É urgente, Maureen. Está com seu irmão, verdade? Dê-me o número.

-Não posso, Senhorita Marks.

-Lhe digo que é urgente.

-Entendo, mas não está ali. Seu avião aterrissou de Denver faz uma hora. Voltou para casa.

 

Um filho. Althea e Colt tinham um filho, diminuto e formoso. Althea tinha estado doze duras horas de parto para trazê-lo ao mundo, e o pequeno tinha chegado gritando.

Recordou-o enquanto o avião viajava ao oeste. Tinha sido maravilhoso que lhe permitissem estar na sala de parto, para dar-lhe ânimos a Colt quando sentisse que se subia pelas paredes, para observá-los trabalhar juntos com o fim de dar as boas vindas a essa nova vida.

Não tinha chorado até que todo terminou, até que deixou a Colt e a Althea embevecidos com seu filho. Boyd tinha saído do hospital com ela. Deve ter percebido o estado de ânimo no que se encontrava, porque não a interrogou.

Nesse momento regressava a casa porque tinha trabalho. E porque era uma covardia saltar de cidade em cidade pelo simples fato de sentir-se doida.

Tinha sido uma boa viagem. Profissionalmente vitoriosa. Pessoalmente tranqüilizador. Tinha que meditar na possibilidade de voltar a instalar-se em Colorado. Tinha encontrado um local excelente. E uma nova sucursal em Denver se beneficiaria de seu toque pessoal.

Se o traslado desfrutava do benefício adicionado da fugida, a quem mais podia importar-lhe?

Com certeza, ia ter que esperar até que descobrissem quem lhe tinha pago a Clarence Jacoby. Se realmente era um de seus empregados em Urbana, tinha que o desmascarar. Uma vez acabado esse assunto, Donald poderia ocupar-se do escritório.

Seria algo simples. Donald possuía o talento. Desde um ponto de vista empresarial, a mudança só implicaria que se transladasse a seu escritório e a sua escrivaninha.

«Escrivaninha», pensou com o cenho franzido. Tinha algo raro na escrivaninha. De imediato compreendeu que não com o seu. Senão com o que resultou danado na loja principal.

Ele o tinha sabido. O coração começou a bater-lhe com precipitação. Como tinha sabido Donald que a escrivaninha do despacho da diretora era uma antigüidade? Como tinha sabido que tinha resultado destruído?

Com cautela, começou a repassar os detalhes, recordando seus movimentos desde o momento do segundo incêndio até o dia em que Donald e ela tinham visitado a boutique. Ele não tinha subido ao escritório desde que o tinham decorado. Ao menos não que ela soubesse. Então, como podia saber que tinham tido que mudar as escrivaninhas?

Porque tinha estado ali. «Isso é tudo», tentou convencer-se. Em algum momento tinha passado e tinha esquecido mencionar-se. Tinha sentido, mais do que crer que tinha participado nos fogos.

No entanto, tinha passado pelo armazém à manhã seguinte ao incêndio. «Cedo», recordou. Se o tinha comunicado ela? Não estava segura. Talvez se inteirou pelas notícias. Tinham dado relatórios detalhados tão tarde? Também não estava segura disso, e a preocupava.

Perguntou-se por que faria algo tão drástico como para danar um negócio do que formava uma parte importante. Que possível motivo poderia ter para querer ver destruídos a equipe e a mercadoria?

«Equipe e mercadoria... e os registros», pensou com um sobressalto de alarme. No armazém tinha registros, e também na boutique... no ponto em que se originou o fogo.

Decidida a manter a acalma, pensou nos disquetes que lhe tinha entregado a Deirdre, nas cópias que ainda tinha a salvo em seu escritório. Os comprovaria nada mais aterrissar, para estar calma.

Por suposto, sabia que se equivocava ao suspeitar de Donald. Tinha que se equivocar.

 

«Chega tarde. Algo terrível para uma mulher com a obsessão de ser pontual», pensou Ry enquanto caminhava ante a porta de desembarque do aeroporto. Tinha que chegar tarde justo quando ele quase ficava louco.

Pouco importava que o avião chegasse com atraso e desse a casualidade de que ela se achasse a bordo. Tomava o ato como uma afronta pessoal.

Se Maureen não tivesse se apiedado dele, não se teria inteirado de que regressava essa noite. O preocupava um pouco saber que a secretária de Natalie se apiedasse dele, que devia de ter visto a expressão de um cachorro abandonado em sua cara.

Até seus homens na estação já tinham começado a falar a suas costas. Qualquer com olhos na cara teria podido ver que os últimos dez dias tinham sido um tormento.

Maldita seja, tinha cometido um erro. Um pequeno erro, e ela tinha encarregado de fazê-lo pagar. Com juros.

Iam ter que esquecer.

Apertou com força os narcisos, continuou andando e sentindo-se como um tonto. Quando anunciaram o vôo de Natalie, o coração lhe deu um tombo.

Viu-a e as mãos começaram a suar-lhe.

Ela o viu, girou bruscamente à esquerda e prosseguiu sua marcha.

-Natalie -a atingiu com dois passos-. Bem vinda ao lar.

-Vá para o inferno.

-Estou há dez dias nele. Não gostei. São para você.

Ela baixou a vista para os narcisos e o olhou com expressão de desdenho.

-Não vai querer que eu diga o que deve fazer com essas flores estúpidas, não é?

-Poderia ter falado comigo quando eu a chamei.

-Não tinha vontade de falar com você - entrou no banheiro feminino.

Ry apertou os dentes e esperou.

Natalie se disse que não se sentia comprazida de vê-lo ao sair. Em silêncio, acelerou o passo para a zona de recolhida de malas.

-Como foi a viagem? -só conseguiu que ela lhe dedicasse uma careta feroz-. Ouve, estou tentando desculpar-me.

-Isso é o que tenta? -moveu a cabeça e baixou pela escada mecânica-. Poupa-se.

-A aborreci. Sinto. Levo dias tentando lhe dizer, mas não aceita meus telefonemas.

-Isso deveria indicar algo, Piasecki, inclusive para alguém de sua limitada inteligência.

-Vim esperá-la -explicou, contendo uma réplica mordaz-, para que possamos falar.

-Solicitei um carro.

-O cancelamos. Isto é... -teve que escolher as palavras com sumo cuidado ao receber um olhar gelado-. Eu o cancelei ao averiguar que vinhas -não tinha sentido fazer que fritasse a Maureen com ele-. A levarei.

-Tomarei um táxi.

-Não seja tão obstinada. Se me obriga, a colocarei lá a força -murmurou ao chegar junto às malas-. Posso tê-la sobre os ombros em dois segundos. E conseguir que se sinta muito envergonhada em público. Sem importar o que decidir, a levarei a casa.

Ela o meditou. Sabia que podia envergonhá-la. Não tinha sentido dar-lhe essa satisfação. Também não pensava expressar-lhe suas suspeitas, não até dispor de algo sólido e verse obrigada a tratar com ele numa plano estritamente profissional.

-Não vou para casa. Tenho de ir ao escritório.

-O escritório está fechado. São quase as nove da noite.

-Vou ao escritório -repetiu, afastando-se dele.

-Perfeito, falaremos lá.

-Essa -assinalou uma mala cinza-. E aquela -um portatrajes a jogo-. E essa -outra mala.

-Não tiveste tempo de guardar tanta bagagem antes de que chegasse a seu apartamento aquela noite.

-Fui comprando coisas pelo caminho.

-Suficiente para um passe completo de modelos -murmurou Ry.

-Perdão? -o tom que empregou fez que a temperatura no terminal baixasse dez graus.

-Nada. A inauguração foi toda uma sensação -continuou ele enquanto saíam do edifício.

-Cumpri com as expectativas criadas.

-Saíram artigos em Newsday e em Business Week -se encolheu de ombros quando ela o olhou-. Inteirei-me.

-E em Women's Wear Daily -adicionou ela-. Mas, quem o conta?

-Eu. É estupendo, Natalie, para valer. Alegro-me por você. E estou orgulhoso -deixou a bagagem junta ao carro e lhe afrouxaram todas as extremidades-. Deus, senti sua falta.

Ela deu um passo para trás, evitando-o quando estendeu os braços. Prometeu-se que não ia deixar que voltasse a feri-la. Não ia permiti-lo.

-De acordo -devagar, aturdido pela dor que lhe tinha causado essa rejeição instantânea, levantou as mãos com as palmas para fora-. Eu mereço. Lhe darei a oportunidade de me apunhalar sempre que quiser.

-Não me interessa brigar com você -manifestou com voz cansada-. Tive uma viagem longa e me sinto esgotada.

-Deixa que eu a leve para casa, Natalie.

-Vou ao escritório -esperou que ele abrisse o carro. Uma vez dentro, recostou a cabeça e fechou os olhos. Suspirou quando Ry depositou as flores amarelas em seu regaço.

-Não conseguiram nada mais de Clarence -disse, com a esperança de quebrar o muro que ela tinha erigido entre os dois.

-Sei -ainda não podia pensar em suas suspeitas-. Mantive-me em contato.

-Se moves com rapidez.

-Tive que abarcar muito território.

-Sim -sacou dinheiro para pagar o estacionamento-. Dei-me conta, depois de perseguir-la por Atlanta.

-Perdão? -nesse momento abriu os olhos.

-Não pude conseguir um maldito táxi -murmurou-. Deve ter saído carregando nada de seu apartamento.

-Sim.

 Imaginei. Corri uma maratona até tua casa, e ao subir descobri que tinha ido. Descubro a nota e chego ao aeroporto justo a tempo de ver decolar teu avião.

-Se supõe que isso é culpa minha, Piasecki? -perguntou, amaciando-se um pouco.

-Não, não é, maldita seja. É minha. Mas se tivesses podido ficar quieta em Atlanta durante cinco minutos, teríamos solucionado isto.

-O solucionamos.

-Nem em sonhos - girou a cabeça e a olhou com expressão séria-. Odeio quando batem na minha cara.

-Para mim foi um prazer -respondeu super feliz.

-Poderia tê-la estrangulado por isso quando cheguei. Se tivesse podido encontrar-te. «Não, a Senhorita Fletcher está na boutique». Vou para ali e é «Sinto, a Senhorita Fletcher regressou ao hotel». Volto ao hotel e deixaste a habitação. Chego ao aeroporto e já está voando. Dediquei horas tentando alcançá-la.

Ela encolheu de ombros. Não queria sentir-se feliz, mas não pôde evitar um pequeno prazer ao captar a frustração de sua voz.

-Não espere uma desculpa -não obstante, recolheu as flores para evitar que se caíssem quando ele freou.

-Eu tenho uma para oferecer.

-Não faz falta. Tive tempo de pensar em isso, e cheguei à conclusão de que estavas no verdadeiro. Não gosto do estilo que empregaste, mas a questão é que era verdade. Desfrutamos de um pouco de química. Isso é todo.

-Tivemos muito mais. Temos muito mais. Natalie...

-Eu desço aqui -esquecendo a bagagem, saiu do carro. Quando Ry estacionou num lugar proibido, ela esperava a que o guarda de segurança lhe abrisse.

-Maldita seja, Natalie, quer parar?

-Tenho trabalho. Boa noite, Ben.

-Senhorita Fletcher. Trabalhando demais?

-Sim -passou por adiante do guarda, com Ry pisando-lhe os calcanhares-. Não preciso que suba comigo, Ry.

-Disse que me amava.

-Superei -sem prestar atenção no olhar curioso do guarda, apertou o botão do elevador.

Ele sentiu uma onda de pânico que o paralisou. Mal conseguiu entrar no elevador antes de que fechassem as portas.

-Não é verdade.

-Sei o que é verdade e o que não o é -apertou o botão de seu andar-. Para você tudo é uma questão de orgulho. Montas uma cena porque não voltei quando chamou -jogou o cabelo para atrás. Os olhos brilhavam, mas não com lágrimas, senão com fúria-. Porque não preciso de você.

-Não teve nada que ver com o orgulho. Estava... -não pôde reconhecer que se tinha assustado até a medula-. Estava equivocado -disse. Isso já era bastante duro, mas ao menos não humilhante-. Era você... ali em minha casa. Pedi que viesses porque era tão óbvio.

-O que era óbvio?

-Que não podia ser real. Eu não via como podia ser real. Quem é você, como é. E como sou eu.

-Não sei se te sigo, inspetor -semicerrou os olhos-. Me deixou porque não encaixava em seu apartamento?

Não tinha que soar tão estúpido. Levantou a voz para defender-se.

-Em tudo. Comigo. Eu não posso dar-lhe... as coisas. A primeira vez que recordei que deveria te presentear com flores de vez em quando, olhaste-me como se tivesse golpeado na mandíbula. Jamais a levo em lugar nenhum. Não penso nisso. Tem amigos que vivem em mansões. Olha, maldita seja, agora mesmo usa diamantes nas orelhas -levantou as mãos, como se isso o explicasse todo-. Diamantes, pelo amor de Deus.

As bochechas de Natalie estavam acaloradas quando avançou para ele.

-Tudo é pelo dinheiro? É isso? Me rompeste o coração pelo dinheiro?

-Não, é por... coisas -como explicar o que já não tinha sentido?- Natalie, me deixe tocá-la.

-Vá para o inferno -o apartou, saindo do elevador quanto as portas se abriram-. Me deixou de lado porque pensaste que queria que me comprasses diamantes, uma mansão ou flores? -furiosa, atirou os narcisos ao solo-. Eu posso comprar-me meus próprios diamantes, ou qualquer coisa que queira. Queria apenas você.

-Não se vá. Não - praguejando, foi atrás dela. Em alguma parte do corredor soou um telefone-. Natalie -a tomou dos ombros e a obrigou a girar-. Não pensei isso, exatamente.

-E tiveste o descaramento de me chamar esnobe -lhe fincou a valise com força no estômago.

Perdida a paciência, imobilizou-a contra a parede.

-Me equivoquei. Foi uma estupidez. Fui um estúpido. Que mais quer que lhe diga? Não pensava. Deixei-me levar pelos sentimentos.

-Me feriu.

-Eu sei -apoiou a testa na sua. Podia cheiraria, senti-la, e a idéia de perdê-la lhe afrouxou os joelhos-. Sinto. Não sabia que podia ferir-te. Pensei que só se tratava de mim. Pensei que me deixaria.

-De maneira que me deixaste você primeiro.

-Algo parecido -se retirou um pouco.

-Covarde -se soltou-. Vai embora, Ry. Deixa-me em paz. Tenho de pensar em isso.

-Continua apaixonada de mim. Não me irei a nenhuma parte até que me o digas.

-Então terá que esperar, porque não estou preparada para dizer-te nada -os telefones soavam. Esfregou-se com cansaço a têmpora e se perguntou quem podia ser a essa hora-. Estou destroçada, não te dás conta? Compreendi que te amava e tive que romper nossa relação quase ao mesmo tempo. Não penso servir-te minhas emoções numa bandeja.

-Então lhe oferecerei as minhas - murmurou -. Amo você, Natalie.

-Maldito sejas. .¡Maldito sejas! -um nó lhe bloqueou a garganta-. Isso não é justo.

-Não me importa se o é -se aproximou e estendeu a mão para tocar-lhe o cabelo. Ficou-se quieto ao ver o reflexo de luz ao final do corredor. Dançou através do cristal num padrão que reconheceu demasiado bem-. Desça pelas escadas, agora. Chama aos bombeiros.

-Que? De que estás falando?

-Vai -repetiu, lançando-se corredor abaixo. Já podia cheirar a fumaça. Amaldiçoou-se por ter estado tão concentrado em suas próprias necessidades, o que fez que passasse por alto. Viu a fumaça que saiu por embaixo da porta para ser sugado outra vez.

-Oh, Deus. Ry.

Ela hesitou. Ele dispôs de tempo para ver como as chamas se retorciam por trás do cristal, para realizar uma avaliação. Depois se voltou, saltou e derrubou a Natalie ao solo no momento em que o cristal estourava. Uns fragmentos letais caíram sobre os dois.

 

Natalie sentiu dor, aguda e penetrante, quando a cabeça golpeou contra o solo, e apunhaladas de calor do cristal e as chamas. Durante um momento aterrorizador, pensou que Ry se achava inconsciente ou morto. Seu corpo estava completamente estendido sobre ela, um escudo que a protegia do pior da explosão.

Antes inclusive de que pudesse aspirar ar para gritar seu nome, ele se levantou e a auxiliou.

-Se queimou?

Natalie moveu a cabeça, consciente unicamente da palpitação e da fumaça que começava a escurecer os olhos, a garganta. Mal podia distinguir a cara de Ry através dele, mas viu o sangue.

-Seu rosto e sue braço..estão sangrando.

Mas não a escutava. Apertava-lhe com força a mão e a afastava das chamas. Enquanto corriam pelo corredor, outra janela estourou. E o fogo saiu com um rugido.

Os rodeou, dourado e cobiçoso, incrivelmente quente. Ela gritou uma vez ao ver que avançava pelo solo em direção a eles, cuspindo como cem serpentes famintas.

DOMINOU-A o pânico e uns dedos gelados lhe atingiram o estômago e lhe espremeram a garganta, em desconcertante contraste com o calor que palpitava a seu arredor. Achavam-se apanhados, com línguas de fogo que serpenteavam a cada lado. Aterrorizada, lutou contra Ry quando a empurrou ao solo.

-Permanece agachada -sem importar o sombrios que fossem seus pensamentos, manteve a voz serena. Com uma mão a tomou pelo cabelo para obrigá-la a olhá-lo. Precisava que não perdesse o controle.

-Não posso respirar -a fumaça a afogava, obrigando-a a procurar ar e a tossir o pouco que conseguia.

-Aqui abaixo há mais ar. Não temos muito tempo -era muito consciente da rapidez com a que os atingiria o fogo, do bem que bloqueava sua saída para as escadas. Não tinha nada com que combatê-lo. Se o fogo não os matava, o faria a fumaça, muito antes de que pudessem resgatá-los - Tira o casaco.

-Que?

Os movimentos dela já eram lentos. Conteve o medo e ele lhe tirou o casaco.

-Vamos atravessar o fogo.

-Não podemos -nem sequer foi capaz de gritar quando se produziu a seguinte explosão de cristal, só pôde dobrar-se, chacoalhada pela tosse. Tinha a mente abobalhada pela fumaça. Unicamente queria cair e aspirar o precioso ar que ainda boiava sobre o solo-. Nos queimaremos. Não quero morrer dessa maneira.

-Não vai morrer -lhe passou o casaco pela cabeça e a obrigou a pôr-se de pé. Quando ela combaleou, acomodou-a sobre seu ombro. Viu que o rodeava um mar de chamas. Nuns segundos sua maré os atingiria e se afogariam.

Calculou a distância e correu para a onda.

Durante um instante, encontraram-se no inferno. Fogo, calor, o rugido de sua ira, o lamento rápido e faminto de suas línguas. No tempo que demora o coração em bater duas vezes, uma eternidade, chamá-las os envolveram. Sentiu que o pêlo de suas mãos se queimava, soube pelo calor intenso nas costas e os braços que a jaqueta ia prender-se. Conhecia exatamente o que o fogo lhe fazia à pele. Não permitiria que chegasse até Natalie.

Então o cruzaram e entraram na muralha de fumaça. Cegados, com os pulmões a ponto de colapsar-se, tateou em procura da porta de emergência.

Instintivamente posou a mão em procura de algum sinal de calor, agradeceu a Deus que não tivesse nenhuma e abriu. A fumaça subia pelo oco da escada, elevando-se como numa lareira, o que significava que abaixo também tinha fogo, mas não tinham eleição. Movendo-se a toda velocidade, tirou-lhe o casaco queimado de cima de Natalie e a apoiou contra a parede enquanto se tirava sua própria caçadora.

O couro ardia devagar.

Aturdida por ele húfno e à beira da comoção, ela se deslizou ao solo como um saco de ossos.

-Não vais render-se -gritou enquanto voltava a carregá-la sobre o ombro-. Agüenta, maldita seja. Agüenta.

Baixou os degraus. Um, dois, logo três. Nesse momento Natalie era um peso morto. Ry chorava por causa da fumaça e as lágrimas se uniam ao rio de suor que baixava por sua cara. Teve um ataque de tosse e sentiu que as costelas se iam partir-lhe . O único que sabia era que tinha que a levar a um lugar seguro.

Contou cada patamar, mantendo a mente concentrada em isso. A fumaça começou a atenuar-se e albergou esperanças.

Ouviu os gritos, as sirenes. Em seu campo cinza de visão viu que dois bombeiros corriam para ele.

-Deus todo-poderoso, inspetor.

-Ela precisa oxigênio -sem soltá-la, descartou a ajuda que lhe ofereciam e a levou ao exterior, ao ar limpo.

As luzes se mexiam. Todos os sons, cheiros e imagens do palco de um incêndio. Como um homem ébrio, dirigiu-se para o carro de bombeiros mais próximo.

-Oxigênio -ordenou-. Já -enquanto a tombava o sacudiu outro ataque de tosse.

A cara de Natalie estava tão negra como óleo e tinha os olhos fechados. Não pôde ver se respirava, não pôde ouvi-la. Alguém gritava, mas não tinha nem idéia de que fora ele. Umas mãos lhe apartaram as suas, débeis e trêmulas, e colocaram uma máscara de oxigênio sobre o rosto de Natalie.

-Precisa de atendimento, inspetor.

-Não se aproximem de mim -se inclinou para procurar-lhe o pulso. O sangue baixou por seu braço até cair sobre a garganta dela-. Natalie. Por favor.

-Passa bem? -com lágrimas nos olhos, Deirdre se ajoelhou junto a ele-. Vai ficar bem?

-Respira -foi o único que pôde dizer Ry-. Respira -repetiu, acariciando-lhe o cabelo.

 

Por um ato de misericórdia, a seguinte hora foi algo impreciso. Recordava subir na ambulância com ela. Alguém lhe pôs oxigênio e lhe puncionou o braço. Quanto chegaram ao Pronto Socorro Ry descarregou sua ira com ataques de tosse.

Então o mundo se pôs do revés. Encontrou-se tombado de costas sobre a maca. Quando tentou levantar, o impediram.

-Fique quieto -uma mulher pequena com o cabelo cinza o olhava com o cenho franzido-. Gosto que os pontos que dou sejam perfeitos. Perdeu uma boa quantidade de sangue, inspetor Piasecki.

-Natalie...

-A Senhorita Fletcher está sendo atendida. Agora deixe que faça meu trabalho, sim? -se deteve e o observou-. Se segue empurrando-me, vou sedá-lo. Tudo era mais fácil quando estava sem sentido.

-Quanto tempo? -conseguiu perguntar.

-Não o suficiente -deu o nó no ponto de sutura e cortou-. Tiramos um bocado de cristal do ombro. Não recebeu muito dano aí, mas o braço está mau. Quinze pontos -lhe sorriu-. Um de meus melhores trabalhos.

-Quero ver Natalie -a voz soou áspera, mas era impossível não captar a ameaça-. Agora.

-Bom, pois não pode. Vai ficar-se onde o pus até que tenha terminado. Depois, se é um muito bom garoto, pedirei a alguém que vá ver como está a Senhorita Fletcher.

Ry empregou o braço bom para segurar a bata da doutora.

-Agora.

Ela só suspirou. Era consciente de que, na condição na que se achava, podia tombá-lo com um leve empurrão. Mas a agitação não o ajudaria em nada.

-Não se mova -ordenou. Dirigiu-se à cortina, apartou-a e chamou a uma enfermeira. Depois de umas breves instruções, voltou-se para Ry-. Agora lhe trarão informação. Sou a doutora Milano e esta noite vou salvar-lhe a vida.

-Ela respirava -afirmou, como desafiando a Milano a contradizê-lo.

-Sim -retrocedeu para tomar-lhe a mão-. Inalou muita fumaça, inspetor. Vou tratá-lo e você vai cooperar. Depois de que o tenhamos limpado, me ocuparei de que veja à Senhorita Fletcher. -A enfermeira regressou e Milano se afastou para manter uma consulta em murmúrios com ela.

-Inalação de fumaça -anunciou-. E se encontra em estado de choque. Umas queimaduras e lacerações leves. Suponho que a manteremos em nosso magnífico hospital um ou dois dias -suavizou a expressão ao ver que Ry fechava os olhos aliviado-. Vamos, grandalhão, continuemos com o trabalho.

Podia sentir-se fraco como um bebê, mas não ia deixar que o metessem num quarto de hospital. Acima dos protestos desagradados de Milano, saiu à zona de espera. Nada mais vê-lo, Deirdre se levantou de um salto.

-Natalie?

-Estão com ela. Disseram-me que vai ficar bem.

-Graças a Deus -com um soluço afogado, Deirdre se cobriu o rosto.

-E agora, Senhorita Marks, por que não me conta que diabos fazia esta noite no escritório? Deirdre respirou fundo e se sentou.

-Me encantaria. Chamei ao irmão de Natalie -adicionou-. Suponho que já vem de caminho. Disse-lhe que tinha resultado ferida, mas tentei minimizá-lo.

Ry assentiu. Ainda que odiava a debilidade, viu-se obrigado a sentar-se. A náusea voltava a ameaçá-lo.

-Fez bem.

-Também lhe resumi o que averigüei hoje -voltou a respirar fundo-. Por um resfriado, os últimos dois dias não fui ao escritório. Mas me levei trabalho a casa, incluindo umas pastas e disquetes de computador que Natalie me tinha dado antes de ir de viagem. Fazia contas quando encontrei umas discrepâncias bastante importantes. Das que podem qualificar-se de malversação.

«Dinheiro», pensou Ry. Quase sempre se reduzia a dinheiro.

-Quem?

-Não posso dizê-lo com segurança...

-Quem? -interrompeu com um tom de voz que a fez tremer.

-Tentava explicar que não sei com segurança. Só posso reduzir as possibilidades, tendo em conta como e onde se desviou o dinheiro. E não penso em dar um nome para que possa acusar a alguém injustamente -e estava segura de que era isso o que ele tinha em mente.

Apesar do fato de que parecia um sobrevivente de uma viagem ao inferno, em seus olhos tinha morte.

-Poderia equivocar-me. Preciso falar com Natalie -comentou, quase para si mesma-. Quanto estive segura do que tinha averiguado, tentei pôr-me em contato com ela em Colorado, mas já se tinha viajado. Sabia que passaria pelo escritório antes de ir a sua casa. Funciona assim. De maneira que decidi reunir-me com ela ali. Dizer-lhe o que averigüei - abriu a valise que tinha aos pés- Quando estacionei no exterior do escritório, levantei a vista. Vi... -fechou os olhos e soube que ia revivê-lo uma e outra vez-. Vi umas luzes loucas em algumas das janelas. Ao princípio não soube que eram, depois o compreendi. Chamei aos bombeiros desde o telefone do carro. Corri dentro a dizer ao guarda de segurança. E os dois ouvimos uma explosão -se pôs a chorar em silêncio-. Sabia que ela estava acima. Sabia. Mas não sabia que fazer.

-Soube, e fez -incômodo, deu-lhe uma palmada no ombro.

-Inspetor? -Milano apareceu com seu habitual cenho franzido-. Consegui um passe para que vá ver a sua amiga, ainda que sei que nem se molestará em agradecer-me.

-Está bem? -pôs-se de pé ao instante.

-Se estabilizou e se encontra sedada. Mas pode observá-la, já que ao que parece é a meta de sua vida.

-Vai esperar? -perguntou, olhando a Deirdre.

 

-Sim. Se me comunicas como ela está.

-Voltarei -seguiu à doutora.

A habitação de Natalie era privada e se achava tenuamente iluminada. Jazia muito quieta, muito pálida. Mas ao tomar-lhe a mão a notou cálida.

-Pensa passar a noite aqui? -inquiriu Milano na porta.

-Vai opor-se? -replicou Ry sem girar a cabeça.

-Quem, eu? Estou para servir. Não é viável que se acorde, mas isso não o deterá. Nem tratar de dormir nessa cadeira horrivelmente incômoda.

-Sou bombeiro, doutora. Posso dormir em qualquer parte.

-Bom, bombeiro, sinta-se em casa. Irei dizer a sua amiga da sala de espera que tudo vai bem.

-Sim -em nenhum momento apartou a vista da cara de Natalie-. Perfeito.

-De nada -comentou Milano com acento azedo, depois fechou a porta a suas costas.

Mal cochilou algo. De vez em quando entrava uma enfermeira e lhe pedia que saísse. Foi numa dessas interrupções breves quando viu a Boyd avançar pelo corredor.

-Piasecki.

-Capitão. Agora dorme -assinalou a porta-. Aí.

Sem dizer outra palavra, Boyd passou a seu lado e entrou.

Ry se dirigiu à sala de espera, serviu-se um café mau e se plantou ante a janela. Não podia pensar. Parecia melhor dessa maneira, deixar simplesmente que a noite passasse. Se se concentrava, reveria o terror na cara dela, o fogo a seu arredor. E recordaria como se tinha sentido ao carregar com ela pelas escadas, sem saber se estava viva ou morta.

O calor na mão o obrigou a baixar a vista. Viu que tinha achatado o copo de papel e derramado café sobre suas mãos vendadas.

-Quer outro? -perguntou Boyd a suas costas.

-Não -atirou o copo e se limpou nos vaqueiros-. Quer sair lá fora a esmagar-me um pouco?

Com um riso breve, Boyd se serviu café.

-Se olhou no espelho?

-Por que?

-Pareces saído do inferno -bebeu com cautela. Era inclusive pior do que o café da delegacia-. Não ficaria bem se começasse a esmagar alguém em teu estado.

-Cicatrizo com rapidez -quando Boyd guardou silêncio, Ry meteu as mãos nos bolsos-. Disse que não ia deixar que ninguém lhe fizesse dano. Tenho estado a ponto de matá-la.

-Sim?

-Perdi o horizonte. Sabia que Clarence não estava só. Sabia que tinha alguém detrás. Mas fiquei tão... absorto nela. Jamais pensei que fosse contratar outra tocha ou do que tentasse algo em pessoa. Os telefones, maldita seja. Ouvi soar os telefones.

-E isso que significa? -perguntou Boyd intrigado.

-Um método retardador -contestou, dando-se a volta-. É clássico. Fósforos empapados em gasolina. COLA-LAS ao telefone e chamas a esse número. O telefone soa e o timbre faz saltar a chispa no fósforo.

-Inteligente. Mas não sempre se pode pensar em tudo.

-É meu trabalho pensar em tudo.

-E ter uma bola de cristal.

-Se supunha que devia cuidar dela -a voz soou rouca pela fumaça inalada e pela emoção que não podia permitir o luxo de desatar.

-Sim -reconheceu Boyd, bebendo outro gole-. Fiz muitos telefonemas no vôo desde Denver. Uma das vantagens de Indústrias Fletcher é ter um avião privado a tua disposição. Falei com o chefe de bombeiros, com o médico que tratou a Natalie e com Deirdre Marks. A tirou de lá descendo cada maldito degrau do edifício. Quantos pontos lhe deram no braço?

-Isso não tem nada que ver.

-Certamente que sim. O chefe de bombeiros me deu uma idéia do que tivestes que descer por quarenta e dois andares, e no estado que se achava quando a tirou. Seu médico me disse que se tivesse permanecido ali outros dez minutos, é pouco provável que agora estivesse com vida. Então, quero esmagá-lo? Não. Devo a vida de minha irmã a você.

Ry recordou o aspecto de Natalie quando a depositou no solo junto ao caminhão de bombeiros. E o aspecto que tinha nesse momento, pálida e imóvel, numa cama de hospital.

-Não me deve nada.

-Natalie é tão importante para mim como o é para você -Boyd deixou o café a um lado-. O que fez para aborrecê-la?

-Estamos tratando de solucioná-lo -respondeu com uma careta.

-Pois boa sorte -estendeu a mão.

-Obrigado -a estreitou.

-Suponho que estará por aqui. Tenho de ir cumprir com meu trabalho.

Ry apertou a mão com mais força e entrecerrou os olhos.

-Deirdre te contou quem é o responsável.

-Correto. Ao vir também falei com o capitão da polícia de Urbana. Já se ocuparam disso - viu a expressão nos olhos de Ry e a entendeu -. Esta parte corresponde a minha equipe, Ry. Você e o teu cercioraos de que o penduram por incêndio provocado.

-Quem? -perguntou com os dentes apertados.

-Donald Hawthorne. Faz dois dias reduzi a quatro possíveis suspeitos -esboçou um leve sorriso-. Comprovei historiais, e registros bancários e telefônicos. As vezes é bom ser policial.

-E não me passaste a informação.

-Ia fazê-lo, quando reduzisse mais. Já o fiz, e estou dando -Boyd sabia o que era amar e a necessidade de proteger, e viver com o terror de ver à mulher que amavas lutar por sua vida-. Escuta -disse- se o matar, sem importar o que estamos sentindo agora, teria que prende-lo. Teria que meter meu cunhado no cárcere.

-Não sou seu cunhado -meteu as mãos nos bolsos.

-Ainda não. Fique com ela, dorme um pouco.

-Será melhor do que ponha Hawthorne num lugar onde não possa localizá-lo.

-O farei -conveio enquanto se afastava.

Ao amanhecer, Natalie se moveu. Ry observava sua cara à luz que penetrava através da persiana, quando suas pestanas abriram.

Se inclinou para falar com rapidez e suavidade, com o fim de que seus primeiros pensamentos não fossem de medo.

-Natalie, está bem. Conseguimos sair. Só inalou um pouco de fumaça. Agora tudo vai ficar bem. Tem estado dormindo. Não quero que fale. A garganta vai doer por um tempo.

-Você está falando -sussurrou com os olhos fechados.

-Sim -e era como se tivesse engolido uma espada em chamas-. Por isso não recomendo.

-Não morremos -fez uma careta e engoliu saliva.

-Parece que não - com suavidade levantou a cabeça dela e fez com que bebesse um pouco d’água-. Tome com calma.

Um tremor vibrou dentro dela, mas tinha que o saber.

-Sofremos queimaduras graves?

-Não nos queimamos.

Suspirou aliviada.

-Não sinto nada, exceto... -levantou a mão para tocar-se o hematoma da testa.

-Lamento -o beijou e sentiu que começava a tremer; apartou-se-. Aconteceu quando a derrubei.

Nesse momento abriu os olhos. TINHA-OS pesados. Sentia todo o corpo pesado.

-Hospital? -inquiriu, e conteve o alento ao vê-lo.

Mostrava arranhões na cara, um curativo na têmpora e um maior que começava embaixo do ombro e quase lhe chegava ao cotovelo. Suas mãos, suas formosas mãos, estavam envolvidas em gaze.

-Oh, Deus. Ry, está ferido.

-São cortes e golpes -lhe sorriu-. Chamusquei um pouco o cabelo.

-Precisas ver um médico.

-Já o vi. E não creio que gostei. Agora cala-se e descanse.

-Que passou?

-Vai ter que mudar seu escritório -ao ver que ia voltar a falar, levantou a mão-. Te contarei o que sei se ficar em silêncio. Caso contrário, a deixarei as escuras. Trato feito? -satisfeito, sentou-se na beira da cama-. Deirdre tentou chamar-te a Colorado -começou.

Quando terminou, a Natalie lhe palpitava a cabeça. Uma fúria impotente evaporou o resto do sedativo, até deixá-la bem desperta e dolorida. Antecipando-se a ela, Ry lhe tampou a boca com a mão.

-Não há nada que possas fazer até que se recupere. E também não então poderás fazer muito. Depende dos departamentos... de bombeiros e de polícia. E já se ocupam disso. Agora vou chamar à enfermeira para que te dê uma olhada.

-Não... -o protesto se transformou num espasmo de tosse. Ao recuperar o controle, uma enfermeira indicava a Ry que saísse.

Não voltou a vê-lo em mais de vinte e quatro horas.

-Não lhe faria mau mais um dia, Nat -Boyd cruzou as pernas à altura dos tornozelos enquanto via a Natalie pôr suas coisas na mala pequena que lhe tinha levado.

-Odeio hospitais.

-Deixou isso claro. Preciso que me dê sua palavra de que vai tirar uma semana livre, em casa, ou chamo à tropa. E não me refiro só a Cilla, senão a mamãe e a papai.

-Não preciso deles aqui.

-Isso depende de você.

-Três dias -negociou com uma careta.

-Uma semana inteira. Menos e o trato se rompe. Posso ser um negociador tão duro como você – sorriu -. Levamos no sangue.

-Vale, vale, uma semana. Que diferença vai marcar? -recolheu o copo de água e bebeu. Parecia que ultimamente nunca tinha suficiente água-. Todo está destroçado. A metade de meu edifício se encontra em ruínas, e o responsável é um de meus executivos de mais confiança. Nem sequer tenho um escritório para ir.

-Já se ocuparás disso. A próxima semana. Hawthorne tem muito pelo que responder. O fato de que não soubesse que Ry e você se achavam dentro do edifício não vai salvá-lo.

-Tudo por cobiça -demasiado irritada para guardar as coisas, pôs-se a caminhar pela habitação. Ainda sentia o corpo fraco, mas o excesso de energia que borbulhava em seu interior lhe impedia ficar quieta-. Sacando um pouco de aqui, um pouco de lá, para perdê-lo nos mercados especuladores. Depois teve que sacar mais e mais, até que se sentiu tão desesperado como para arriscar a incendiar edifícios inteiros para destruir registros e atrasar a auditoria -deu média volta-. Que frustrado de ser sentir-se quando lhe disse que tinha cópias de tudo o que se tinha perdido no incêndio do armazém.

-E não sabia onde as tinhas guardado. O fogo destrói tudo -assinalou Boyd-. Assim que se ocupou de um dos edifícios e rezou. Se não dava na mosca, estava convencido de que a confusão posterior manteria todos tão ocupados que não conseguirias pôr em marcha a auditoria até que tivesse conseguido repor os fundos desviados.

-Isso acreditava.

-Não o conhece como eu. Sempre fazia as coisas a tempo. O escritório foi sua última jogada, e a mais desesperada, já que teve que se ocupar do fogo ele mesmo. Quando fomos procurá-lo e se inteirou de que Ry e você estavam dentro e que enfrentava um processo por tentativa de assassinato, nos o contou tudo.

-Confiei nele - murmurou Natalie-. Não suporto saber que pude equivocar-me tanto com alguém a quem acreditava conhecer -levantou a vista quando a porta se abriu.

-Me alegro de ver-te, Ry -saudou Boyd, pondo-se de pé. Sabia que o melhor era sair com discrição.

 

Ry lhe fez um gesto com a cabeça e depois se concentrou em Natalie.

-Por que não está na cama?

-Me deram alta.

-Não está pronta para deixar o hospital.

-Perdão -Boyd se dirigiu para a porta-. Sinto uma imperiosa necessidade de tomar uma má xícara de café.

Nem Ry nem sua irmã se preocuparam em dizer adeus.

-É que agora tens um diploma em medicina, inspetor?

-Sei em que condição se achavas quando entrou aqui.

-Pois se tivesse se molestado em verificar , teria descoberto que me recuperei.

-Tinha muitos cabos soltos que atar -a informou-. E você precisava descansar.

-Teria preferido tê-lo aqui.

-Agora tem -alongou o ramo de flores.

Ela suspirou. Teria que deixar que se amolecesse com tanta facilidade? Por que não ia fazê-lo pagar um pouco mais por abandoná-la por uma causa tão ridícula?

-Pode dar esses narcisos a alguém que os precise.

-Vou falar com o médico -disse, deixando-os sobre a cama.

-Sob nenhum conceito falará com meu médico. Não preciso sua permissão para deixar o hospital. Você não solicitaste o meu. E também não precisava descansar. Precisava vê-lo. Estava preocupada.

-Sim? -animado, levantou uma mão para acariciar-lhe a face.

-Te queria aqui, Ry. Vieram ver-me dúzias de pessoas, mas é evidente que você não considerou necessário...

-Tinha trabalho -cortou-. Queria recolher provas contra esse filho de cachorra o mais cedo possível. É o único que posso fazer. Se conseguisse pôr-lhe as mãos em cima, o mataria.

Ela foi replicar, mas calou ao ver seu olhar gelado.

-Pare - nervosa, deu-lhe as costas a sua expressão assassina e se pôs a guardar uma bata-. Não quero ouvir-lo falar dessa maneira.

-Não sabia se estava viva -a obrigou a dar-se a volta e lhe fincou os dedos nos ombros-. Não sabia. Não se movia. Não sabia se respirava - de repente a colou a ele e enterrou a cara em seu cabelo-. Deus, Natalie, nunca tinha me sentido tão assustado.

-Certo -o rodeou com os braços para tranqüilizá-lo-. Não pense nisso.

-Não me permiti, até que ontem acordaste. Desde então não pude pensar em outra coisa -lutou por serenar-se e se apartou-. Sinto.

 

-Sentes ter-me salvado a vida? Ter arriscado a tua para evitar que eu acabasse ferida? Protegeste-me da explosão. Levasse-me entre o fogo -moveu a cabeça com rapidez antes de que ele pudesse falar-. Não me diga que cumpria com teu trabalho. Importa-me um nada se queres ser um herói ou não. É meu.

-Te amo, Natalie.

O coração dela se inflamou. Com cuidado se voltou para recolher os narcisos. Era uma tolice desperdiçar emoções na ira. Estavam vivos.

-Mencionava isso antes de que nos interrompessem.

-Devia mencionar-te outra coisa. Por que a tentei tira-la da minha vida.

-Expuseste as causas -girou a cara e passou um dedo por uma flor amarela.

-Expus as desculpas. Não a causa. Poderias olhar-me enquanto suplico?

-Não é necessário, Ry –tratou de sorrir.

-Sim é. Ainda não disse se vai me dar uma segunda oportunidade -lhe afastou o cabelo do rosto-. Sei que com o tempo poderia esgotá-la, porque está louca por mim. Mas mereces saber que passava por minha cabeça.

-Não creio que a arrogância seja muito apropriada -manifestou pondo-se rígida-, assim que...

-Estava assustado -murmurou, e observou como a irritação abandonava a expressão dela-. De você, de mim. De nós -ante o silêncio de Natalie, soltou o ar contido-. Não pensei que pudesse dizê-lo. Reconheço-o. Não até que me dei conta do que era estar realmente assustado. Esta apaixonado e parecer tão estúpido nos faz temer.

-Então os dois fomos estúpidos, porque eu também me sentia assustada -sorriu um pouco-. Com certeza, você foste mais estúpido.

-Em toda minha vida jamais experimentei o que sinto por ti -murmurou.

-Eu sei-a voz tremeu-. Sei. Também sinto o mesmo.

-E cada vez se faz maior e mais aterrorizador. Vais dar-me outra oportunidade?

-Provavelmente lhe devo, já que salvou minha vida, suplicou e se desculpou -o olhou e o sorriso se lhe alargou-. Suponho que poderia brindar-nos aos dois outra oportunidade.

-Quer casar comigo?

-Perdão? -as flores caíram no solo.

-Já que se sente generosa, não me pareceu uma má idéia tentar minha sorte -se inclinou e recolheu os narcisos-. Mas podemos esperar.

Ela limpou a garganta dolorida e aceitou outra vez as flores.

-Se importaria repetir a pergunta?

Ry a olhou aos olhos e demorou um momento em encontrar outra vez a voz. Compreendia que era um risco, um dos maiores aos que nunca se tinha enfrentado. E tinha que deixar seu destino em mãos dela.

-Quer casar comigo?

-Poderia fazê-lo -os dois relaxaram-. Sim, poderia fazê-lo -rindo, lançou-se a seus braços.

-Te tenho -aturdido, ele voltou a colar a cara a seu cabelo-. A partir de agora, tenho-te, Pernas -e a beijou.

-Quero filhos -disse quanto sua boca ficou livre.

-Para valer? -com um sorriso, apartou-lhe o cabelo para poder ver a expressão da cara. O que leu nela o alucinou-. Eu também.

-Isso facilita as coisas.

Levantou-a nos braços.

-Que te parece se nos sairmos daqui e pomos mãos à obra?

Natalie conseguiu recolher a mala antes de se dirigisse para a porta.

-Serão nove meses a partir de hoje -lhe deu um beijo na bochecha enquanto abandonavam o quarto-. E sempre sou pontual.

Neste caso, conseguiu adiantar-se oito dias.

 

                                                                                            Nora Roberts

 

 

                      

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