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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


Almas Em Chamas / Nora Roberts
Almas Em Chamas / Nora Roberts

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Almas Em Chamas

 

Era a primeira vez que Adélia Devlin Viajava de avião, mas nada a distraía de seus pensamentos.Nem as estranhas formações de nuvens, que se alargavam e estreitavam diante de seus olhos tristes, chamavam-lhe a atenção.

Sua mente estava povoada de dúvidas e incertezas, que se mesclavam com a saudade angustiante de uma pequena fazenda na Irlanda. Agora que se aproximava mais e mais dos Estados Unidos e de pessoas estranhas, sentia-se apavorada, pois sabia que a vida jamais a havia preparado para lidar corretamente com pessoas e lugares novos.

Seus pais tinham morrido num acidente de automóvel, deixando-a órfã aos dez anos de idade.Nos meses seguintes, ela se voltou para dentro de si mesma e, aos poucos, foi construindo um muro ao redor de sua dor.Na escola, não tinha amigos e só falava quando solicitada.Em casa, ajudava sua tia Lettie nos afazeres domésticos e nos trabalhos da pequena Fazenda Devlin.Seca e autoritária, Lettie Devlin limitava-se a dar-lhe ordens e nunca estendia a mão para fazer-lhe um carinho.Adélia acabou de crescer num ambiente árido e fértil de solidão.

A fazenda era o único ponto em comum entre ela e a tia, pois ali tinham vivido e trabalhado juntas durante quase treze anos.Um dia, Lettie sofreu um derrame cerebral e ficou paralítica; Adélia viu-se então forçada a redobrar seus esforços para cuidar sozinha da propriedade e ainda zelar pelo bem estar da enferma.

Sua maior dificuldade nessa luta cotidiana era a falta de tempo e de dinheiro.Quando, seis meses depois, a tia faleceu, Adélia verificou que não tinha condições de manter a fazenda.Embora tivesse trabalhado muito, não conseguiria pagar os impostos e agora tinha de vender a propriedade para saldar sua dívida com o governo.

Sem ter onde morar,escreveu para o único parente que lhe restava, Padrick Devlin.Irmão mais velho de seu pai, Padrick tinha emigrado para os Estados Unidos havia uns vinte anos.Em resposta ao seu pedido de socorro, enviou-lhe uma longa e carinhosa carta, pedindo-lhe que fosse viver com ele: “Venha para a América.Seu lar agora será minha casa”.

Sabendo que não tinha outra saída, ela reuniu seus poucos pertences, desfez-se de tudo o que não podia levar e disse adeus à velha fazenda, o único lar que conhecera em toda sua vida...

Um movimento brusco do avião a fez deixar um pouco de lado as lembranças. Recostou-se na poltrona, mexendo com os dedos na pequena cruz de ouro que sempre trazia no pescoço.Não lhe restava mais nada na Irlanda e tudo o que tinha na América era um tio a quem vira aos tr~es anos de idade e com o qual só dialogava por meio de cartas.Mas ela conquistaria um espaço para si. Afinal,havia passado a vida inteira lutando.

Estava decidida a trabalhar, como sempre fizera,para não ser um peso para o tio, que já fazia muito em dar-lhe um quarto, em sua casa.

“Com certeza vou arranjar um emprego”, pensou.”Talvez consiga colocação na fazenda de criação de cavalos onde o titio vive.”

Adélia tinha uma capacidade inata para lidar com animais.E, com a prática, adquirira alguns conhecimentos de veterinária.Era tão habilidosa que muitas vezes a chamavam para ajudar no parto difícil de uma vaca ou para dar pontos no ferimento de um potro.

Certamente haveria um lugar para ela na Fazenda Campos Reais, onde o tio trabalhava como treinador de cavalos.Não encontraria campos para arar, nem vacas para ordenhar, mas, se fosse preciso, trabalharia como copeira para garantir o pão de cada dia.

O avião aterrissou no aeroporto de Dulles e Adélia logo se viu em meio a uma incrível mistura de gente de todo tipo físico , que falava as mais variadas línguas.Dividida entre o fascínio e o medo, olhava para todos os lados, tentando avistar alguém à sua procura, mas todo mundo passava co pressa, sem lhe dar atenção.De repente, um voz grave chamou-a:

-Adélia!

Um homem forte e musculoso, de cabelos grisalhos e encaracolados, corria em sua direção.Antes de receber seu abraço, ela ainda teve tempo de notar os olhos azuis e brilhantes como os de seu pai.Percebeu, então, que havia muitos anos ninguém a abraçava com tanto carinho.

-Adélia! Eu reconheceria você em qualquer lugar.Esses olhos claros, esse sorriso...É como ver de novo o rosto de sua mãe.Você é a imagem perfeita de Kate.

 Adélia tinha os cabelos castanhos, que caíam em ondas brilhantes sobre os ombros.Os olhos eram verdes e grandes, com cílios grossos e longos.O nariz arrebitado e a boca firme transmitiam a idéia de altivez e independência.

-E é muito bonita –concluiu o homem, com um suspiro de pura alegria.

-Tio Padrick?

-E quem mais poderia ser?- Ele riu, dirigindo-lhe um olhar tão cheio de amor que todas as suas dúvidas e temores se dissiparam.

Ela abraçou-o novamente, chamando-o pelo nome carinhoso que lhe dava quando tinha três anos de idade.

-Tio Paddy!

O velho afagou-lhe os cabelos macios e beijou-a em ambas as faces.Depois, pegou-lhe a mão e acompanhou-a ao departamento de bagagens.Por fim, conduziu-a para o pátio de estacionamento e a fez entrar no carro.

Logo que entraram na estrada, Adélia começou a bombardear o tio com uma série de perguntas.Queria saber qual era a distância do aeroporto até a fazenda, quantos cavalos havia lá, e quando poderia vê-los.Longe de se aborrecer com tamanho interrogatório, Padrick respondia a tudo com satisfação, feliz por ouvir a voz da sobrinha, suave e doce como a brisa típica da primavera.

-Onde vou trabalhar?

-Você não precisa trabalhar.

-Preciso sim.Sabe, posso muito bem cuidar de cavalos.Tenho jeito para lidar com animais.

O tio franziu as sobrancelhas cinzentas e lançou-lhe um olhar severo.

-Você não veio da Irlanda para isso.Além do mais, não sei o que Travis pensaria se eu contratasse minha própria sobrinha para trabalhar na fazenda.

-Oh, mas eu poderia fazer tanta coisa... Escovar os cavalos, limpar os estábulos, carregar o feno... Por favor,tio Paddy.

-Vamos ver – disse ele, encerrando o assunto.

Só então Adélia se deu conta de que estavam viajando fazia algum tempo e que o carro saíra da rodovia principal para enveredar por uma estradinha marcada de pinheiros.Olhou em volta, maravilhada, e durante alguns minutos ficou em silêncio, usufruindo da calma beleza da paisagem.

Pouco depois, Padrick virou à direita, numa alameda particular, e parou diante de um pórtico com duas grandes colunas de pedra.

-Bem-vinda à Fazenda Campos Reais, querida.Seu novo lar – ele anunciou, e seguiu por entre vastos campos verdes, pontilhados de arbustos cujos botões prometiam flores para breve.À distância, cavalos pastavam preguiçosamente.

-A mais bela criação de cavalos de todo o Estado de Maryland -disse Paddy.- E, na minha opinião, a mais bela de toda a América.

A alameda terminava num enorme casarão antigo, com três andares, que se erguia sobre um outeiro verdejante.Balcões guarnecidos de ferro trabalhado adornavam a fachada dos pavimentos superiores.Portas brancas abriam-se para o jardim, quebrando a rigidez da pedra com que fora construída a imponente mansão.

-Bonita casa, não é?

-Linda! Nunca vi nada parecido!

-Bem, a minha casa não é tão bonita.Mas é confortável, e espero que você se sinta feliz nela.

-Tenho certeza de que serei muito feliz vivendo com o senhor.

Impulsivamente, inclinou-se e beijou o tio na face.Ele segurou-lhe a mão.

-Ah, querida, como estou contente! Com você, chegou a primavera.

O carro continuou por um atalho e parou em frente a uma grande pista oval, destinada a corrida de cavalos.Do outro lado, uma grande construção branca abrigava os estábulos.O cenário era dominado por cercados, e o ar estava impregnado de cheiro de feno e de cavalos.

Adélia não cabia em si de espanto.Acostumada com as pequenas propriedades de Irlanda, como a sua e as dos vizinhos, mal podia acreditar que toda aquela terra, a perder de vista, constituía uma única fazenda e pertencia a um só dono.

À distância, onde as colinas ondulavam suavemente, éguas pastavam, enquanto os potrinhos brincavam, em plena alegria da primavera e da juventude.

“Travis Grant sabe cuidar muito bem do que possui”, pensou, lembrando-se do nome do proprietário de Campos Reais, sempre mencionado nas cartas de Paddy.

-Eis a nossa casa – anunciou o tio, apontando para uma construção quase duas vezes maior do que sua casa na Irlanda.Uma réplica da sede da fazenda, a casa tinha as mesmas pedras e as mesmas janelas guarnecidas de sacadas.

-Vamos entrar, querida.

Ele desceu do carro e abriu-lhe a porta.Tomou-a então pelo braço e caminharam para o seu novo lar.

A sala era aconchegante, com paredes verde-claras e móveis simples, porém convidativos.As venezianas, abertas de par em par, deixavam ver as colinas, mais ao longe.

-Oh, é lindo!

-Calma, você não viu nada ainda.Venha.

A cada novo aposento que o tio lhe mostrava, ela soltava uma sincera exclamação de alegria.A cozinha encantou-a, com seu fogão enorme e seus utensílios reluzentes, pendurados da maneira mais funcional.No banheiro, os azulejos cor de marfim e os aparelhos de louça bege fizeram-na sonhar com demorados banhos de espuma.Até o hall de distribuição dos quartos chamou-lhe a atenção, por causa de um pequeno baú antigo, que lhe dava um ar romântico e misterioso.

-E este é o seu quarto – anunciou por fim tio Paddy.

Não era um aposento muito grande, mas, aos olhos de Adélia, parecia imenso.Todo decorado em azul e branco, tinha as paredes revestias por um papel de suave estampa floral.Cortinas de voal balançavam suavemente nas duas janelas abertas à brisa da primavera.Um armário de madeira clara, uma cama coberta com uma colcha bordada, algumas cadeiras e uma penteadeira com espelho compunham o modesto mobiliário.

Agradecida e feliz, Adélia virou-se para o tio e envolveu-o num abraço afetuoso.

 

Após descansar um pouco, ela trocou seu conjunto de viagem por uma calça de brim e uma camiseta de algodão, seus trajes habituais, e prendeu o cabelo com uma fita.Para proteger o rosto do Sol, colocou um chapéu azul-claro, e saiu para passear com o tio e conhecer os cavalos.

Quando se aproximaram dos estábulos, viram alguns homens em volta de um puro-sangue de pêlo castanho e ouviram parte da conversa antes que os outros notassem sua presença.

-O que está havendo aqui?-perguntou Paddy.

-Ainda bem que você já voltou –respondeu um homem alto e forte.-Majestade acaba de ter um daqueles ataques e deu um coice em Tom.

Paddy dirigiu a atenção para um rapaz miúdo, que sentado no chão resmungava e massageava o tornozelo.

-Foi grave? Alguma fratura?

-Não.Mas acho que vou ter de ficar uns dias sem montar.Esse cavalo talvez seja o mais veloz de Campos Reais, mas com certeza é mais bravo que um gato acossado.-Enquanto falava, o moço olhava para o puro-sangue, numa mistura de ressentimento e admiração.

-Pois ele não me parece nada bravo - Comentou Adélia.

Pela primeira vez todos os olhares dirigiram-se para ela, curiosos.Paddy sorriu e fez as apresentações:

-Esta é Adélia, minha sobrinha.Querida, este é Hank Manners, ajudante de treinador.Tom Buckley trabalha no adestramento dos animais.George Jonhnson e Stan Bell cuidam da estrabaria.

Adélia cumprimentou um por um e voltou-se para o cavalo.

-É um belo animal!

-Cuidado! – Avisou Hank, quando ela ergueu a mão para alisar o focinho do puro-sangue.-Não é bom tocar nele agora.Em primeiro lugar, porque está de péssimo humor.Segundo, porque não é muito dado com estranhos.

-Ora, logo, logo não seremos mais estranhos.-Sorrindo, ela passou a mão pelo focinho de Majestade.

-Paddy!-Hank ia falar alguma coisa, mas o tio de Adélia ergueu a mão e fez com que se calasse.

-Você é muito bonito, sabia? Nunca vi outro igual.-Enquanto falava suavemente com o cavalo, ela acariciava-lhe o pêlo liso e reluzente. –Você foi feito para correr...Forte, pernas compridas, peito largo...Aposto que ninguém conversa com você, não é?

Suas mãos alisavam-no à vontade, e Majestade permanecia quieto, permitindo até que ela lhe roçasse o pescoço com a face.

-Por essa eu não esperava!-exclamou Hank.-Ninguém jamais conseguiu fazer isso.Nem você Paddy!

Adélia afastou o rosto do pescoço do cavalo e olhou séria para o ajudante de treinador.

-Os animais também têm sentimentos,sr.Manners.E gostam de ser mimados um pouquinho.

-Muito bem, você realmente parece saber lidar com ele.-O empregado demonstrava ao mesmo tempo espanto e admiração.Mas logo se lembrou de que ainda tinha obrigações a cumprir e voltou-se para Paddy:- Majestade está precisando fazer mais exercício.Vou chamar Steve.

Nesse momento, Adélia agarrou o braço do tio, os olhos brilhando de excitação, e pediu:

-Deixe-me monta-lo.

-Não acho que você conseguiria controlar esse cavalo.-interveio Hank

-Está para nascer um cavalo que eu não consiga controlar –respondeu ela, de cabeça erguida.

-Você não vai deixar Adélia montar Majestade, não é?-O ajudante virou-se para Paddy, aflito.

O velho olhou bem para a sobrinha, depois para o animal, coçando o queixo com a mão esquerda, e declarou:

-Eu diria que ela é do tamanho certo.Não deve pesar mais que cinqüenta quilos.-E, dirigindo-se a ela, concluiu:-Você é uma Devlin, não é? Se diz ser capaz de montar esse bicho, então deve ser mesmo, ora!

Adélia ficou radiante com a reação do tio.

-Claro que sou uma Devlin!

-Meu Deus! O que não vai dizer o patrão quando souber!-resmungou Hank ,diante da sólida aliança familiar.

-Deixe Travis por minha conta – respondeu Paddy com toda a calma.

O empregado deu de ombros e resmungou qualquer coisa, mas aceitou resignado a insensatez de Paddy, que já dava instruções à sobrinha:

-Dê só uma volta na pista.Não corra mais do que puder agüentar.Pelo jeito de Majestade, estou vendo que ele está disposto a fazer muito exercício.

Adélia ajustou o boné e, de um salto, montou na sela.O cavalo batia os cascos no chão, em sinal de impaciência.Quando Hank abriu o portão do cercado, ela conduziu o animal até a pista, inclinou-se para frente e sussurrou-lhe alguma coisa no ouvido.Então o puro-sangue colocou-se em posição de largada a ordem de partir.

-Está pronta, querida?-Paddy tirou o cronômetro do bolso.

-Sim.- respondeu ela, endireitando o corpo e respirando fundo.

-Já!- gritou o tio.

Adélia apertou os flancos de Majestade, incitando-o ao galope.Era só o que o cavalo esperava para sair a toda velocidade.Praticamente agarrada ao pescoço do puro-sangue, ela falava-lhe com voz carinhosa e alegre.O vento batia em seu rosto e esvoaçava-lhe os cabelos.Uma inebriante sensação de liberdade invadiu-a, afugentando todas as angústias e preocupações.Durante os poucos minutos que durou a corrida, ela sentiu cavalgando numa estrada forrada de nuvens, que levava de volta à sua infância feliz.

Quando retornavam ao ponto de partida, ela começou a frear o animal, envolvendo com os braços seu pescoço brilhante de suor e falando-lhe bem junto à orelha.

-Não consigo acreditar! – Hank estava simplesmente estupefato.

Orgulhoso como um pavão, Paddy mostrou-lhe o cronômetro e replicou:

-O que você esperava? Ela é uma Devlin.E fez p percurso num tempo mínimo.

-Ora, tio, Majestade é o cavalo mais maravilhoso do mundo.Eu me senti como se estivesse montando o próprio Pégasus.

Hank estendeu-lhe a mão para ajuda-la a saltar e inclinou a cabeça em sinal de admiração.Tinha apreciado não só a habilidade da amazona, mas também sua beleza, realçada pelo olhar luminoso e pelo brilho dos cabelos, que agora lhe caíam soltos, em encantadora desordem.

-Muito bem, senhorita!

-Obrigada, sr.Manners.

-Por favor, chame-me de Hank

-Obrigada, Hank.

Paddy colocou as mãos nos ombros da sobrinha e fiou-a com carinho;

-Bem, minha querida...A Fazenda Campos Reais acaba de contrata-la para adestrar os cavalos.

Logo após a corrida, Paddy levou-a para casa e foi preparar o jantar, não permitindo que ela o ajudasse.Enquanto comiam na pequena copa, fez-lhe uma série de perguntas sobre sua vida na Irlanda e ela respondeu de bom grado a todas, sempre citando detalhes que tornavam a narrativa mais interessante.Às vezes gesticulava demais ou enrubescia um pouco, porque sabia que omitia certos aspectos negativos da verdade e valorizava demais os pequenos incidentes que lhe haviam proporcionado alguma alegria.Sentia-se tão feliz agora que queria fazer de seu passado sombrio uma história luminosa.

Terminando o jantar, conversaram ainda por um bom tempo e então Paddy recomendou-lhe que fosse descansar.Ela obedeceu, não só porque estava exausta, mas também porque não via a hora de mergulhar naquela banheira que a fascinara desde a chegada.

Quando finalmente deitou-se entre os lençóis aconchegantes, permaneceu insone.Nesse curto espaço de tempo havia lhe acontecido tanta coisa que sua mente estava tomada por imagens e sensações novas e ela não conseguia adormecer.E seu corpo, habituado ao trabalho extenuante, não conseguia relaxar.

Reconhecendo que era inútil forçar a natureza, Adélia saltou da cama e trocou a camisola por uma calça de brim e uma camiseta.Prendeu o cabelo sob um boné e saiu de casa em silêncio.

A lua brilhava intensamente.Soprava uma brisa leve e o único ruído que se ouvia era o pio insistente de uma ave noturna.O luar orientou seus passos na direção dos estábulos.O silêncio, o cheiro conhecido dos animais, tudo lembrava-lhe sua pequena fazenda na Irlanda.De repente, ela sentiu uma paz e uma satisfação que antes nem imaginava que existiam.

Parou à porta dos estábulos e hesitou.Nesse exato momento, alguém a agarrou firmemente pelos braços e a ergueu do chão como se ela fosse uma boneca de pano.

-Aonde você pensa que vai? E o que está fazendo aqui?

Emudecida, Adélia olhou para o dono da voz, mas viu apenas uma sombra vaga delineando-lhe o rosto.Tentou falar alguma coisa, porém o susto não lhe permitia.Em seguida, viu-se arrastada para dentro do estábulo.

-Agora vamos ver quem é você, rapazinho!

Quando o homem acendeu a luz, o boné de Adélia caiu e seus cabelos soltaram-se pelos ombros.

-Mas... você é uma garota!

Seu susto transformou-se em raiva e ela num instante recuperou a fala:

-Que esperto! Até notou que sou uma mulher.E quem é você, que fica por aí agarrando pessoas inocentes? Por que não vai esmagar os ossos de alguém do seu tamanho? Você deveria receber umas boas chicotadas para aprender a não assustar assim as pessoas! Quase me quebrou o braço...

-Você é pequena, mas brava, hein?

O homem ainda não estava refeito da surpresa, e perguntava-se como podia ter confundido aquela garota de formas tão femininas com um rapaz.

-Pelo sotaque de irlandesa, aposto que você é a tal sobrinha de Paddy.

-Sou Adélia Devlin, sim.- confirmou, empinando o queixo de tal forma que o homem se contorceu de tanto rir.Foi o quanto bastou para enfurecê-la ainda mais.- E quem é você, afinal?

-Travis –respondeu ele, ainda rindo.- Travis Grant.

 

Quando Adélia se acalmou, olhou atentamente para Travis e surpreendeu-se com o porte altivo e elegante, seu belo rosto bronzeado, emoldurado por uma vasta cabeleira negra, em desalinho,e dominado por brilhantes olhos azuis.Um sorriso persistente exibia dentes muito brancos e amenizava-lhe as feições marcadamente másculas.

“Então esse é o homem que vai ser o meu patrão e que eu devia impressionar bem.E comecei dessa forma, tratando-o mal...”, pensou, desejando que o chão se abrisse e a tragasse.

Um silêncio desagradável pesou entre ambos, porém Travis tratou de rompê-lo:

-Lamento a gente ter se conhecido numa situação tão confusa.

-Não esperava encontrá-lo ainda hoje, sr.Grant.Tio Paddy disse que o senhor só voltaria amanhã.

Travis sorriu novamente.

-E eu não esperava vê-la invadindo meus estábulos.

-Desculpe, mas eu não estava com sono e resolvi sair um pouco para dar uma olhada em Majestade.

-Esse cavalo é bravo.É melhor não chegar muito perto dele.

-Como não vou chegar perto, se sou a treinadora de Majestade?

-O quê? Então acha que vou deixar qualquer um montar o meu melhor puro-sangue? Você está louca!

Adélia começava a ficar com raiva de novo, porém esforçou-se para não perder a calma.

-Já o montei hoje à tarde e dei uma volta inteira na pista, e em tempo mínimo.

-Não acredito! Paddy não teria deixado!

-Tanto deixou que até cronometrou a corrida.Tom levou um coice e não podia montar.Então eu pedi para exercitar Majestade.

Travis olhava-a de alto a baixo, com um misto de espanto e irritação.Temendo que ele a censurasse, Adélia retomou a palavra e falou bem depressa, não lhe dando chance de interrompe-la:

-Majestade é um cavalo maravilhoso.Não é bravo coisa nenhuma.Se Tom o entendesse melhor, não teria levado um coice.Esse puro-sangue precisa de alguém que converse com ele.Alguém que lhe demonstre amor.

-E você... conversa com cavalos?

Adélia fingiu que não notara o sorriso irônico de Travis.

-Converso, sim.Conheço bem os bichos e gosto deles.Lá na Irlanda eu ajudava um veterinário.Jamais faria algo que pusesse em risco a vida de Majestade.Por isso, tio Paddy confiou em mim.Não se zangue com ele, por favor.

Travis permaneceu em silêncio, olhando-a com atenção.Ela começou a sentir um pouco de medo, misturado com uma sensação nova e estranha, que não conseguia definir.Teve vontade de virar as costas e ir embora, mas não podia se dar ao luxo de ser temperamental.

Assim, resolveu deixar um ouço o orgulho de lado, respirou fundo e umedeceu os lábios.

-Por favor, preciso de uma oportunidade... Duas semanas são suficientes para mostrar o que posso fazer.Se depois disso o senhor não me quiser mais aqui, é só falar.Acatarei sua decisão.E, para tio Paddy, direi apenas que não estou gostando do serviço e que pretendo procurar outra coisa.

-Por que você faria isso?

-Para não magoar meu tio.Ele gosta demais do senhor e da fazenda, sei muito bem disso, mas resolveu me apoiar e se responsabilizar pela minha contratação.Se eu dissesse que o senhor me demitiu, ele se sentiria infeliz e eu não quero isso.Por favor, deixe-me ficar pelo menos quinze dias.

Adélia procurava não demonstrar sua humilhação diante do olhar silencioso de Travis, que parecia ler seus pensamentos.

-Está bem.Vamos fazer uma experiência de duas semanas.E este acordo fica só entre nós.

-Obrigada, sr.Grant.Muito obrigada.-Ela sorriu e estendeu-lhe a mão.

Em vez de simplesmente retribuir-lhe o cumprimento, Travis começou a olhar com atenção a palma daquela mão pequenina e delicada, e descobriu que estava marcada por calos, devido a anos de trabalho duro.

-Algo errado? –perguntou Adélia, numa voz quase inaudível.

Ele ergueu a cabeça e fitou-a no fundo dos olhos.

-Isso é um crime.Mãos delicadas como as suas jamais deveriam ter as marcas do trabalho pesado.

Surpreendida por suas palavras, ela retirou a mão e escondeu-a às costas.

-Mas têm, porque foi isso o que fiz a maior parte da minha vida.E é o que pretendo continuar fazendo aqui, pelo menos durante o tempo que combinamos.E agora, se me dá licença, vou me recolher.

Sem esperar resposta, passou por Travis e correu em disparada até a casa de Paddy.

 

Ao nascer do Sol, ela já estava acordada.Vestiu-se rapidamente, ansiosa para começar seu primeiro dia de trabalho na Fazenda Campos Reais.

“Tenho certeza de que Travis vai me aprovar.Casa nova, vida nova.Tudo vai dar certo.” Com esse pensamento positivo, dirigiu-se à cozinha e pôs-se a preparar o desjejum.

Quando Paddy acordou, o cheiro de café chegava até seu quarto.Ele se arrumou e seguiu a pista do aroma para encontrar Adélia em pé junto ao fogão.

-Há muitos anos que essa cozinha não ficava tão bonita logo de manhã! – exclamou, encostado à porta.

-Bom dia, tio!

-Bom dia, querida!

O velho adiantou-se para beija-la e ajudou-a a levar a comida para a mesa.Depois, ambos sentaram-se e, enquanto faziam sua refeição, Adélia contou que tinha conhecido o patrão na noite anterior.

-Eu estava pensando em apresenta-la a Travis hoje de manhã.O que você achou dele?

-Bom sujeito.Mas estive pouco tempo com ele.Contei que você me contratou.

-E o que ele disse?

-Nada.Parece esperto o bastante para confiar no que você faz.

Os dois terminaram o desjejum e, alguns minutos depois, saíram em direção aos estábulos.Paddy parou à entrada, para conversar com Hank. Adélia correu para afagar Majestade e dirigir-lhe palavras carinhosas.Estava tão entretida com o animal que não percebeu que dois olhos azuis a observavam atentamente.

-Bom dia Paddy- disse Travis, aproximando-se do velho.- Soube que temos mais alguém trabalhando na fazenda.

-Bom dia.Adélia me contou que o conheceu ontem à noite.

Travis não tirava os olhos de Adélia.

-Contou?

Hank aproximou-se e cochichou-lhe no ouvido:

-Você precisa ver essa moça montar.Não vai acreditar.

Ele caminhou na direção de Adélia, que continuava conversando com o puro-sangue, alheia à sua presença.

-Olá.Majestade responde alguma coisa quando fala com ele?

-Fala, sim, à maneira dele.Mas é preciso entender sua linguagem – respondeu, preparando-se para montar.

Travis olhou seus braços, e notando duas marcas roxas, segurou-lhe o pulso.

-Meu Deus! Fui eu que fiz isso?

-Foi.

Os dedos dele acariciaram levemente as manchas e sua voz soou com doçura;

-Vou tomar mais cuidado com você de hoje em diante.

-Não é a primeira vez que me machucam, nem será a última.De qualquer modo, não darei mais motivos para o senhor me agarrar desse jeito.

Adélia montou Majestade e o conduziu até a pista.A um sinal de Paddy, o cavalo saiu galopando numa cadência ritmada.Travis observava atentamente, sem fazer comentários.

Quando ela chegou à metade do percurso o tio não agüentou e voltou-se para o patrão:

-E então? O que têm a dizer?

-Confesso que, ontem à noite, quando ela me contou que você a havia contratado, achei que estava perdendo o juízo.Mas agora vejo que me enganei.

 

Mais tarde, contra a vontade do tio, Adélia estava escovando os cavalos no estábulo.Entregara-se tão inteiramente à tarefa que nem notou a aproximação de dois meninos.Tinham cerca de oito anos, e eram absolutamente iguais.Quando olhou para trás e notou a presença deles, ela chegou a assustar-se com a incrível semelhança entre os dois.Mas eles logo explicaram, falando juntos:

-Somos gêmeos!

-Muito prazer.Eu sou Adélia, sobrinha de Paddy.E vocês como se chamam?

-Mark e Mike.

-Vou adivinhar quem é Mark e quem é Mike.Querem ver como não vou errar?

Adélia sorriu e colocou a mão na cabeça de um dos meninos.

-Você é Mark.

-Como é que você sabe?

Ela abriu os braços e encolheu os ombros, declarando com um ar misterioso:

-Eu sou mágica!

Os meninos arregalaram os olhos, sem poder acreditar no que viam.Nesse momento, uma mulher aproximou-se do estábulo.

-Mark! Mike!

Eles voltaram-se para trás e responderam ao mesmo tempo:

-Estamos aqui, mamãe!

-Só podiam estar, não é mesmo?

Adélia examinou a recém chegada com um olhar cheio de admiração.Alta e elegante, vestia um conjunto de calça e blazer azul-escuro e blusa de seda branca.Os cabelos pretos e ondulados emolduravam-lhe o rosto bonito e suave, onde imperavam dois olhos azuis iguais ao de Travis.

-Eles estavam incomodando?- perguntou a mulher.

-Não, senhora.Estávamos justamente nos apresentando.

-Você deve ser Adélia, sobrinha de Paddy, não é? Eu sou Trish Collins, irmã de Travis.

Ao tocar a mão suave e macia que a outra lhe estendia, Adélia lembrou-se envergonhada de sua pele áspera.

Nesse momento, o patrão entrou no estábulo, acompanhado de Paddy e outro homem que ela não conhecia.

-Paddy! – gritaram os gêmeos, e saíram correndo para abraça-lo.

-Olá meninos! Quantas peraltices já fizeram hoje, hein?

-Oh, nenhuma.Só viemos conversar com a moça.E ela adivinhou nossos nomes.- respondeu Mark.

-Ela é mágica – completou Mike.

O tio deu-lhe uma piscadela sem que as crianças percebessem e confirmou:

-Ela sempre foi mágica.

-Adélia Devlin, este é o dr.Robert Lomam, nosso veterinário – disse Travis.

-Prazer em conhece-lo, doutor. –Adélia ficou um pouco distante,sem estender a mão.

-Robert veio ver Salomé, que vai dar cria Poe estes dias.

-Quer nos acompanhar, querida?-perguntou o tio.

-Claro!

Enquanto caminhavam pelo estábulo, Travis falou sobre a égua:

-Para um puro-sangue, Salomé está um pouco atrasada com essa cria.Quando a compramos, seis meses atrás, ela já estava prenha.Aliás, cruzou com um cavalo da mesma linhagem que Majestade.

Adélia ouvia atenta, pensando na beleza e na velocidade do animal que montara na véspera.

-Então deve ter muita esperança nessa cria, não é?

-Para falar a verdade, estou mais preocupado com a égua.Ela não está nada bem.

Travis parou diante de uma baia mais larga, onde se encontrava um belo animal castanho-escuro, com uma mancha branca na testa.Adélia passou a mão na cabeça da égua e disse-lhe, carinhosamente:

-Não se preocupe.Vai dar tudo certo.-Sempre murmurando palavras afetuosas, correu as mãos pelos flancos de Salomé e deteve-se em seu ventre intumescido.Depois de apalpá-lo durante alguns minutos, voltou-se para o veterinário:-A cria está virada.

Travis que sorria ironicamente, ficou sério de repente e olhou para Robert.

-Você tem razão.Seu diagnóstico é perfeito – respondeu o doutor.-Por isso é que estamos torcendo para essa cria assumir a posição correta em tempo.

-Mas o senhor não acredita que isso aconteça, não é?

Robert fitou-a com uma expressão de surpresa, como se perguntasse a si mesmo onde ela teria aprendido tanto sobre animais.

-Para falar a verdade, não acredito, não.Vai ser um parto muito difícil.

-Posso ajudar, se o senhor quiser.Na Irlanda, trabalhei com um veterinário em alguns partos complicados de vacas e éguas.E uma vez tive de auxiliar, sozinha um potrinho a nascer; ele estava nas mesmas condições da cria de Salomé.

Orgulhoso, Paddy aproximou-se e pôs a mão em seu ombro.Os outros dois observavam-na, meio incrédulos.

-Sozinha?-perguntou Travis.-Até para um homem é um trabalho difícil!

-Sei disso, mas tenho muito jeito para essas coisas e sei o que fazer nas horas certas.Não se iluda com o meu tamanho.

E, dando a conversa por encerrada, virou-se e caminhou na direção da porta.Ao vê-la, os gêmeos correram a perguntar-lhe, ansiosos:

-Você ajudou um potrinho a nascer?

-Claro! E graças a Deus tudo deu certo.

-E você viu bezerrinhos nascendo?

-Muitos bezerrinhos.E porquinhos e cachorrinhos...Eram todos lindos...-respondeu, com uma expressão calorosa; era evidente que se orgulhava de sua habilidade.

-Puxa!-Os meninos não cabiam em si de admiração.

Ela afagou-lhe as cabeças e distanciou-se, sob o olhar sempre atento de Travis.

 

Os dias passavam tranqüilos para Adélia que, pouco a pouco, se acostumava à sua nova vida.Só quando falava com Travis sentia-se presa de uma sensação estranha, totalmente desconhecida, que lhe dava um certo mal-estar e a impedia de responder a seus comentários irônicos.

Às vezes, ficava olhando-o à distância com inegável admiração.Gostava de ver aquela figura máscula e forte, os ombros largos, a cabeça altiva, os braços poderosos, que irradiavam incrível vitalidade.Entretanto, quando ele a olhava ou se aproximava, imediatamente baixava as pálpebras e procurava concentrar-se em qualquer coisa que estivesse fazendo.Seria capaz de morrer de vergonha se fosse surpreendida num desses momentos de muda contemplação.Travis já era convencido demais de sua autoridade e de sua força; se soubesse que causava sobre ela um efeito tão fulminante, passaria a trata-la ainda com mais ironia.E Adélia não estava disposta a suportar tal situação.Afinal, cumpria à risca todas as suas obrigações, sem deixar a menor margem a críticas.

Seus cuidados com Salomé, por exemplo, eram dignos dos maiores elogios.Nem o dr.Loman se ocupava tanto daquele animal quanto ela.Pelo menos três vezes por dia Adélia ia até a baia da linda égua e dirigia-lhe palavras carinhosas e estimulantes, como se, agindo assim, pudesse ajuda-la a pôr no mundo sua criatura.

-Vai ser um potrinho muito bonito, viu? Sabe o que eu queria?Ter você e o seu filhote só para mim.É, isso mesmo.Eu queria roubar vocês dois.O que acha que Travis ia pensar se eu fizesse isso?

-Ele não pensaria nada.Simplesmente mandaria você para a cadeia!

Assustada, Adélia virou-se e deparou com o próprio Travis, que a olhava intensamente, encostado na parede do estábulo.Seu coração disparou, mas ela procurou não demonstrar o estado emocional em que se encontrava.

-Você tem o péssimo hábito de aparecer de repente, amedrontando as pessoas.Não podia pelo menos se fazer anunciar?

-Não preciso fazer isso.Eu sou dono deste lugar.

Algo dentro de si dizia-lhe que precisava controlar-se, mas ela não conseguiu.

-Não precisa me lembrar disso a todo instante.O senhor é dono do lugar, mas não das pessoas.E se eu lhe digo que essas suas aparições repentinas me assustam, acho que não lhe custaria nada levar isso em consideração e agir com menos grosseria.Afinal, sou excelente funcionária.

Travis caminhou em sua direção, com uma expressão ameaçadora no olhar.

-Já estou farto da sua petulância.

-Então por que não pára de conversar comigo?

-Essa é a melhor idéia que você teve.Vou parar já.

Ele a apanhou pela cintura, ergueu-a um palmo acima do chão e fitou-a bem no fundo dos olhos.Então pousou os lábios sobre os dela e pressionou-os.Tomada de surpresa, Adélia não teve de esboçar o menor gesto de resistência.E nem sabia se, na verdade, queria resistir.Emoções desconhecidas, altamente perturbadoras, dominavam-na por inteiro, sorvendo-a num torvelinho, que girava e crescia à medida que aquelas mãos fortes como aço a apertavam cada vez mais e aquela língua ardente passeava sobre sua boca, à procura de um desvão.Sem saber o que fazia, ela entreabriu os lábios e entregou-se ao seu primeiro beijo de amor.

Instintivamente, seu corpo jovem estreitou-se contra o dele, fruindo o vigor de cada músculo retesado, o bater mais rápido do coração, o calor da pele ávida.Ondas de fogo percorriam-na dos pés à cabeça, o sangue fervia-lhe os nervos vibravam.

De repente, porém, da mesma forma inesperada como começara, Travis soltou-a, pousando-a no chão como uma pluma.Ela abriu os olhos, meio tonta, como se tivesse bruscamente aterrissado das nuvens, e fitou-o, incapaz de proferir um som.

-Bem, mocinha, é a primeira vez que a vejo perder a fala.

As palavras de Travis tiveram o efeito de um jato de água fria.Ela balançou a cabeça afastando o torpor, e apertou as mãos com firmeza para não esbofeteá-lo.

-Seu idiota!-disse, enfim, numa explosão de raiva, que prosseguiu com uma série de impropérios no dialeto de sua região natal.

Travis não entendia uma só palavra, mas sabia que estava sendo insultado.Entretanto, ao invés de zangar-se, pôs-se a rir com gosto e, quando ela esgotou seu repertório, declarou:

-Você é maravilhosa quando fica com raiva.Quanto mais brava, mais bonita.Vou provoca-la outras vezes.

-Ouça bem o que lhe digo.Se encostar em mim de novo, não vou reagir só com palavras – disse e, erguendo a cabeça o mais que pode, saiu apressada.

Não disse nada a Paddy a respeito do incidente,mas, enquanto preparava o jantar,moia-se de raiva.Estava furiosa com Travis e consigo mesma, porque não podia negar que tinha sentido prazer e excitação com aquele beijo.

“O que é isso que sinto por ele?”, perguntava-se, sem achar resposta.

 

No dia seguinte, sua raiva já tinha passado.Adélia não costumava ficar muito tempo de mau humor, pois explodia logo e depois se acalmava.Restava-lhe, porém algo novo e perturbador: a idéia de que um homem atraente tinha feito brotar nela estranhos desejos de mulher adulta que jamais sentira no mundo limitado de sua pequena propriedade na Irlanda.

Consciente disso, fez o possível para evitar o olhar de Travis, que parecia segui-la o tempo todo.Trabalhou normalmente e, cumpridas as tarefas do dia, foi visitar Salomé.A égua não estava em pé como sempre, mas deitada de lado e ofegante.

-Vai nascer!-Adélia abaixou-se e, acariciando a barriga do animal, falou-lhe baixinho: -Fique calma.Vou buscar socorro e volto já!

Saiu correndo dos estábulos e, ao avistar Tom à distância, gritou-lhe:

-Salomé vai dar cria! Chame o veterinário! Chame Travis! –E correu de volta para a baia.

Quando Travis e Paddy chegaram, ela passava levemente a mão no pelo liso e suado da égua, tentando tranqüiliza-la com palavras suaves.Travis abaixou-se a seu lado e começou também a acariciar Salomé.

-O potro ainda está virado – informou Adélia num sussurro, como se temesse que o animal ouvisse.-Precisamos dar um jeito.Onde está o dr.Loman?

-Foi atender um chamado urgente e vai levar mais de meia hora para voltar.

Pela primeira vez naquele dia, Adélia olhou para ele, apreensiva.

-Não vai dar tempo.Se não virarmos o potrinho agora, tanto ele quanto Salomé não terão a menor chance de sobreviver.Deixe-me fazer isso.Não vai ser a primeira vez.

Os dois fitaram-se longamente.Ela esperava a permissão necessária para ajudar a égua, e ele contraía os lábios e enrugava a testa, tentando tomar a decisão mais acertada.

-Concordo quanto a virar o potro, mas sou que vou tratar disso.-declarou por fim.-Paddy, chame os homens para segurar Salomé deitada.

-Não! –exclamou Adélia.- Você não vai chamar um monte de gente aqui para assustar a égua! Pode deixar que eu sei acalma-la.

Antes que Travis tivesse tempo de retrucar, Paddy intrometeu-se na conversa:

-Adélia sabe o que faz.É melhor não chamar mais ninguém.

Travis hesitou por um momento, porém acabou concordando e começou a preparar-se para o trabalho.

-Tenha muito cuidado.Os cascos do potrinho são muito afiados e podem machucar sua mão – preveniu Adélia.

Abraçando a cabeça de Salomé, pôs-se a acariciar-lhe o focinho e a testa enquanto cantava baixinho uma antiga canção de ninar de sua terra natal.

Salomé estremeceu quando Travis iniciou seu trabalho, mas não esboçou um movimento para levantar-se.Suada, parecia sofrer muito, mas também dava a impressão de que a voz suave de Adélia a aquietava.

Depois de alguns minutos que transcorreram lentos como séculos, Travis anunciou, aliviado:

-Consegui!

Em seguida, levantou-se, e encostou a um canto, a atenção voltada para Adélia, que, imperturbável, continuava a alisar o pêlo molhado da égua, sempre cantando baixinho.

-Está nascendo! –gritou Paddy.

Só então ela parou de cantar e virou-se para admirar o potrinho que vinha ao mundo.Suas mãos, entretanto, ainda passeavam carinhosamente sobre o focinho do animal.

-É um lindo filhote, querida!

Voltando-se para Travis, dirigiu-lhe um de seus sorrisos mais maravilhosos e seus olhos encontraram-se com os dele,Foi como se o tempo houvesse parado.Sentiu-se incapaz de falar e até de respirar, como se ela e Travis estivessem dentro de uma redoma de vidro, isolados do resto do mundo.

“Será possível alguém se apaixonar de repente?” perguntou-se, alarmada.Seu pensamento, contudo, foi interrompido pela chegada de Robert Loman.

Mal entrou, o veterinário dirigiu-se a Travis e começou a fazer um verdadeiro interrogatório a respeito do parto.Adélia ergueu-se, um pouco tonta por causa da tensão que sofrera em função de Salomé e das emoções fortes que experimentara em relação a Travis.Segurou-se então numa viga e passou a mão pelo rosto, tentando refazer-se.

-O que houve? –perguntou o tio, segurando-a pelo braço.

-Não foi nada.Uma leve tontura.Acho que fiquei agachada muito tempo e me levantei meio de repente.

-Leve-a para casa – recomendou Travis.

Seus olhos brilhavam, mas ela estava pálida e sentia-se indefesa e enfraquecida.Mesmo assim, procurou mostrar-se forte.

-Eu vou sozinha, tio.Não precisa se preocupar.-Adélia sorriu para o velho e, evitando olhar para Travis, saiu do estábulo.

Enquanto caminhava lentamente para casa, respirava a plenos pulmões o ar puro e fresco daquela tarde de primavera.

Após o jantar, ficou quieta e pensativa durante muito tempo.Não estava acostumada a conflitos e incertezas, pois uma de suas características era justamente saber o que e como fazer.Em toda a sua vida, tudo tinha sido sempre muito definido.Nunca houvera espaço para indecisões.E agora se deparava com uma situação inquietante, que a deixava incapaz de agir com decisão.Precisava ver claro dentro de si, identificar o que sentia e expulsar de seu coração toda ilusão.

“O parto de Salomé foi difícil e eu estava muito tensa.Depois, quando vi o potrinho, fiquei meio tonta de alegria.Por isso tive aquela reação estranha quando Travis me olhou.É claro que não estou apaixonada por ele! Mal o conheço! Além disso, não gosto muito do jeito dele.É grande demais, forte demais, arrogante demais.Não é o tipo de homem que sonhei ter um dia, se é que tive tempo de sonhar com essas coisas.”

-Adélia.-Paddy chamou-a – Venha sentar aqui comigo no sofá.

Ela levantou-se, dando-se conta de que ficara todo o tempo na cozinha, esquecida do tio, e dirigiu-se para a sala.Como uma criança carente de afeto, aninhou-se no sofá e recostou a cabeça no ombro dele.Um suspiro fundo saiu-lhe do peito.

-Você está trabalhando demais.

-Que nada! Não cheguei a trabalhar um dia inteiro desde que estou aqui.Na Irlanda, a essa hora ainda estaria atarefada.

-Sua vida era difícil lá, não era? –Paddy abraçou-a com carinhosamente,como se quisesse compensa-la, num momento, por toda uma vida de luta e privações.

-Não era difícil até que papai e mamãe morreram.Pensei que o mundo fosse acabar – sussurrou ela.

Percebendo sua necessidade de falar sobre o passado, o velho acariciou-lhe os cabelos e murmurou:

-Desabafe, criança.Não fique com essas coisas atravessadas na garganta.

-Parecia que eu tinha morrido também.Sentia muita raiva, muito medo, e fiquei insensível por uns tempos.Depois comecei a me lembrar de como se amavam.Eles se queriam tanto que até uma criança de três anos conseguia notar.

Alguém bateu na porta, mas os dois estavam tão envolvidos na conversa que não ouviram.Então Travis entrou e abriu a boca para falar, mas, vendo que não notavam sua presença, deixou-se ficar junto ao batente.

-Só o que restou foi a fazenda e, mesmo assim, depois de tantos anos de luta, tive de vende-la para pagar os impostos.-continuou Adélia –Coitada de tia Lettie! Trabalhava o dia inteiro e ainda tinha de cuidar de mim... Vivia dizendo que eu corria demais com o cavalo.”E se você quebrar o pescoço, quem é que vai me ajudar no serviço?”, perguntava.Mas sei que não era só por causa disso que ela não queria que eu morresse.Lá, à sua maneira, titia gostava de mim.

Ela aninhou-se mais junto ao velho e fechou os olhos, pensativa.Depois, suspirou e retomou o fio de suas recordações:

-Era trabalho demais só para nós duas, mas não tínhamos dinheiro para contratar um empregado.Quando me lembro daquele tempo, vejo que todos os dias eram iguais: trabalho e mais trabalho.Nenhuma distração, nenhum descanso.Então tia Lettie teve o derrame.Pobrezinha! Foi horrível para ela ficar na cama, sem poder ajudar em nada.

-Mas por que você não me escreveu, contando como viviam? Eu podia ter mandado algum dinheiro, ou até voltar para a Irlanda, talvez...

Ela ergueu a cabeça e sorriu-lhe:

-Sei que você ajudaria, mas não seria justo pedir-lhe isso.Você já estava com sua vida arrumada, por que iria deixar tudo para cuidar de nós?

-Eu o faria de bom grado, querida.

-Sim, mas...Enfim, já passou.Não vamos mais falar nisso.

Ambos silenciaram durante alguns minutos, contentes por estar finalmente juntos, ligados pelo elo indestrutível do parentesco e do amor.

Depois, como se emergisse do passado, Adélia fez-lhe uma pergunta que há muito tempo a intrigava:

-Como é que um homem bonito e simpático como você nunca se casou? Nunca amou ninguém?

Ele hesitou por um instante, mas respondeu com toda a honestidade de um coração incapaz de mentir:

-Amei, sim, mas ela escolheu seu pai...

Adélia ergueu o rosto e beijou-o na face, emocionada.

Sentindo-se um intruso, Travis deixou para mais tarde o que tinha a dizer e saiu, silencioso e despercebido como havia entrado.

 

Cada gota de orvalho que refletia os raios do Sol trazia-lhe à mente lembranças de outras primaveras vividas em seu torrão natal.Adélia sempre bendissera a chegada da primavera, pois, como todo camponês, via nessa estação a renovação da vida, a promessa de dádivas.Via também o trabalho árduo do arado e da semeadura, da fecundação nos campos, mas também surgiam novos calos em suas mãos e o suor pingava-lhe do rosto em grossas bagas.

O relinchar de um cavalo trouxe-a de volta ao presente e ela olhou em torno.Todo o espaço que sua vista conseguia abarcar pertencia a Travis Grant, e ainda havia mais terras de sua propriedade, para além das colinas que ondulavam suavemente como o mar tranqüilo.Belos animais de pura raça pastavam e corriam sobre os imensos campos verdes.

“Quantas fazendas como a nossa, na Irlanda, poderiam caber dentro desta?”, perguntou-se, sem querer.E de repente cresceu-lhe no peito uma saudade enorme de seu pequeno pedaço de chão.Lágrimas copiosas encheram-lhe os olhos e rolaram-lhe pelas faces, em silêncio.

“Nunca mais voltarei para minha terra”, pensou, e procurou concentrar-se na beleza de Campos Reais para superar a melancolia.”É aqui que vou morar, é aqui que vou construir minha vida.Todas as pontes que me ligavam ao passado estão destruídas.”

-Bom dia – disse Paddy, aproximando-se sem se fazer notar.

Ela voltou-se e encostou a cabeça no peito do tio.Não precisou dizer nada para que o velho percebesse a razão de sua tristeza.

-Pensando na Irlanda?

Ela balançou a cabeça afirmativamente e enxugou as lágrimas com as costas das mãos.Depois afastou-se e olhou-o com carinho, forçando um sorriso.

-Já passou.

Paddy beijou-lhe a testa e, após um breve silêncio, resolveu mudar de assunto para distraí-la.

-Preciso ir à cidade.É uma pena, porque hoje eu queria plantar umas sementes em frente da casa.Umas flores.Mas surgiu essa tarefa inesperada...Agora não sei quando vou ter tempo.

-Deixe que eu planto.

-Mas hoje é seu dia de folga.Não se incomode.Eu arrumo um tempinho qualquer dia desses.

-Ora, basta dizer como você quer o canteiro.Isso para mim é uma distração, não um trabalho...

Paddy resmungou um tímido protesto, mas acabou cedendo.Pouco depois, munida de uma sacola cheia de envelopes de sementes e uma pequena pá de jardinagem, Adélia passeava ao redor da casa, planejando mentalmente os canteiros.Petúnias à beira do campinho, margaridas e cravos vermelhos junto à parede e, em volta do gramado, algumas flores grandes.

“No outono vou plantar narcisos e tulipas por toda parte”, pensou, enquanto começava a revolver o solo.

À distância, ouvia os sons de homens e animais na rotina do dia-a-dia :gritos, risos, batidas de cascos no chão.O cheiro gostoso da terra aquecida pelo Sol da manhã penetrava-lhe as narinas.Sua tristeza rapidamente se dissipava e ela se pôs a cantar uma doce canção de sua infância.

Nesse momento, a sombra de alguém chamou-lhe a atenção.Ela colocou a pázinha de lado e olhou para cima: Travis observava-a intensamente.

-Ah,fiz você parar de cantar.Desculpe.

-Você me surpreendeu –respondeu ela, e voltou ao trabalho.

-Parecia muito triste essa música que você estava cantando.-Travis abaixou-se e seus ombros se tocaram.

-Na Irlanda, a gente tem muitas canções tristes como essa –explicou, afastando-se um pouquinho.

Disposto a apreciar seu trabalho, ele se sentou na grama.Sem querer, Adélia olhou-o e sorriu, pensando que se desaparecesse a pequena distância que os separava, talvez de repente suas bocas se tocassem.O pensamento perturbou-a de tal forma que ela passou a revolver a terra como se daquela tarefa dependesse a sua sobrevivência.

-Do que fala essa canção?

-De amor, é claro.

-Por isso é tão triste? Você acha que o amor é sempre triste?

-Não sei.Acho que... – Sua confusão aumentava e ela não sabia o que dizer.Tinha vontade de cavar um buraco enorme e enfiar-se dentro.Mas acabou respondendo irritada:-Estávamos falando de música, não de amor.

-É... de música.

Houve um demorado silêncio entre os dois.Adélia rezava para que ele se afastasse logo, mas Travis não parecia nem pensar em sair dali.Por fim, sua voz grave soou novamente:

-Eu queria agradecer por tudo o que você fez ontem no parto de Salomé.

-Não fiz quase nada.-O assunto trouxe-lhe à mente a cena emocionante em que ela se imaginara unida a Travis numa redoma de vidro.Temerosa de suas próprias emoções, tratou de mudar de assunto:-Você gosta de flores?

-Gosto muito.Que flores você está plantando?

-Petúnias, cravos,margaridas... Quando chegar o verão, os canteiros vão estar maravilhosos.Este solo é muito bom – comentou, segurando na mão um punhado de terra.

-Você deve saber disso melhor do que eu.-Ele segurou sua mão, para ver melhor o punhado de terra.-Só entendo de cavalos de raça.Você é que entende de solo.

-Não muito.-Adélia tentou delicadamente soltar sua mão, mas ele fez que não notou.

-Para mim, Adélia, isso tudo é como se fosse uma dádiva da natureza.

-A terra só exige um pouco de trabalho.Pegue estas sementes...-Finalmente ele soltou sua mão para apanhar as sementes.-Ponha algumas no chão e depois cubra com terra.Mas não jogue muitas ao mesmo tempo.-Ela dava as instruções e ele obedecia.-Isso.Agora, é só esperar que a natureza faça o resto.

-Então, não preciso fazer mais nada?

-Não é bem assim.De vez em quando precisa regar, arrancar o mato em volta, adubar.Mas logo as sementes germinam e vêm as flores.Veja, ali adiante vou plantar ervilhas-de-cheiro.Quando o vento soprar à noite, vou sentir o perfume dentro de casa.-Ela falava cada vez mais baixo, quase num sussurro.

-Você está com saudade da Irlanda?

Ela ergueu depressa a cabeça, sem esconder sua surpresa.

-Eu...-Não conseguiu prosseguir.Estava aborrecida porque ele parecera ler seus pensamentos.

-Não fique assim –pediu ele com voz suave, acariciando-lhe o rosto com as mãos.-Não é fácil deixar tudo para trás, como você deixou.

-Mas a escolha foi minha- respondeu com firmeza, afastando a face e retomando a semeadura. –E afinal, só tive momentos felizes desde que desembarquei do avião.Eu gosto daqui... das pessoas, do trabalho, dos cavalos, da terra.Qualquer um seria feliz neste lugar.

-É bom ouvir você dizer isso.Quero que você seja feliz aqui e... –Afagou seu rosto novamente. –E que este seja o seu lar definitivo.

 

Pouco depois do meio-dia, Adélia estava olhando os cavalos no estábulo quando chegou Trish Collins, sorrindo com toda a sua simpatia.

-Olá! Como vai?

-Tudo bem.Onde estão os garotos?

-Na escola.Voltam amanhã.Estão morrendo de vontade de conhecer o potrinho de Salomé.

-Ele é lindo.

-É, sim.Acabei de vê-lo.Travis me contou que você foi maravilhosa com Salomé.

“Então Travis me elogiou...”, pensou, e seus olhos brilharam de satisfação.Mas resolveu responder com modéstia:

-Que nada! Na verdade a pobrezinha da égua fez tudo sozinha.E a senhora precisava ver que parto bonito!

-Não me chame de senhora, que eu me sinto muito velha – disse Trish, rindo para ela.-Afinal, eu e Travis ainda não fizemos trinta e um anos.Nosso aniversário é em outubro.

-Ah, vocês são gêmeos.Bem que eu notei que os olhos de Travis são iguais aos seus.

-A gente se parece muito.É por isso que vivo dizendo que ele é bonito.-Trish sorriu e, após uma pausa, perguntou:-Você está ocupada? Estou interrompendo seu trabalho?

-Não, senhora...-começou, mas logo se corrigiu:-Não, Trish.Eu ia para casa fazer um pouco de chá.Quer me acompanhar?

-Mas é claro!

Quando iam sair do estábulo, Adélia notou que havia uma caixa branca sobre uma canto da mesa.

-Que será isto? –perguntou.

-Devem ser flores –respondeu Trish, mostrando o nome de uma floricultura impresso na caixa.

-Mas por que uma caixa de flores aqui?

-Realmente, é um lugar estranho, mas, veja, nesta etiqueta está escrito “Para Adélia”.

-Para mim? Ora, essa, quem me mandaria flores? –Ela apanhou a caixa e abriu-a, o rosto mais rubro que as rosas com que deparou.-Oh, que lindas! Mas quem me mandaria flores?

-Deve haver um cartão.

Adélia procurou com cuidado e achou realmente um cartãozinho, que leu e releu várias vezes, e por fim entregou a Trish.

-“Adélia, obrigado por sua ajuda no nascimento do potrinho.Travis.” Ah, esse meu irmão é ótimo, não é?

-Em toda a minha vida, jamais alguém me mandou flores...-Ela quase chorava de emoção.

-Ora, querida...-Trish colocou a mão em seu ombro.

-Seu irmão foi muito amável.E essas rosas...são iguais às que minha mãe plantava no jardim de nossa casa.São flores muito especiais para mim.

Abraçadas como duas velhas amigas, saíram do estábulo e depararam com Travis, que se aproximava na companhia de Paddy.

-Quero agradecer as flores.São lindas! –disse Adélia, enrubescendo.

-Que bom você ter gostado.Na verdade, isso é pouco pelo que fez ontem.

-E aqui está mais uma coisinha para você.-disse Paddy, e tirou do bolso um cheque, que entregou à sobrinha. –Seu primeiro pagamento semanal.

-Oh, eu nunca recebi salário de ninguém!

Adélia olhava tão confusa para o cheque que Travis resolveu fazer um gracejo:

-Qual é o problema? Ou você não sabe calcular exatamente quanto é isso no dinheiro da Irlanda?

-Eu... bem, é isso mesmo.Acho que não sei fazer direito essas contas – respondeu, embaraçada.

Travis riu, fez as contas de cabeça e deu-lhe o resultado.Adélia ficou espantada com a quantia.

-E o que vou fazer com tanto dinheiro?

-É a primeira vez que alguém reclama por ganhar demais. –comentou ele, rindo.

-Tome, tio, é seu. –Ela estendeu-lhe o cheque.

-Imagine! Esse dinheiro é mais do que seu, querida.Você fez o suficiente para merecê-lo.

-Mas o que vou fazer com tanto dinheiro? –repetiu ela.

-Ore, compre umas roupas... Compre essas coisinhas de mulher, sei lá! Compre um presente para você mesma. –sugeriu o velho.

-Mas, tio...

-Por que não compra um vestido? –sugeriu Travis. –Estou curioso para saber se você tem pernas.Está sempre de calça comprida...

A provocação atraiu um olhar furioso de Adélia, que respondeu prontamente:

-Tenho pernas, sim.Mas não precisa se preocupar com isso.Não vou usar vestido para montar e treinar seus cavalos.

Parecia que Travis se tornava ainda mais irônico, quando ela ficava brava.

-Bom, se você prefere ser confundida com um rapaz...

-Só uma vez cometeram esse engano.E foi um sujeito grosseiro, bruto e de cabeça oca.- retorquiu ela.

Percebendo que a discussão iria longe se ninguém interferisse, Trish propôs:

-Vamos fazer compras.Hoje não é seu dia de folga? –E sem esperar resposta tomou Adélia pela mão e levou-a para o carro.

Rodaram pela alameda particular da fazenda, ganharam a estrada secundária e, ao fim de alguns minutos estavam na cidade.Antes que Adélia se desse conta do que acontecia, havia aberto uma conta no banco e estava com um talão de cheques na mão.

-Agora, vamos às compras.-convidou Trish.

-Mas o que vou comprar?

-Qual foi a última vez em que comprou alguma coisa para você? Alguma coisa de que gostasse muito, não por necessidade? –A moça falava depressa, sorrindo e olhando de lado para ela, enquanto dirigia o carro na direção de uma grande loja de departamentos.

-Eu...acho que nunca...-balbuciou Adélia, atônita com a sucessão dos fatos.

-Entenda o que eu quero dizer.Não estou sugerindo que as pessoas saiam por aí gastando o que têm e o que não têm.Não é isso.Mas acho que precisa se dedicar um pouco mais a você mesma, relaxar, comprar alguma coisa gostosa para se presentear...Por que não?

Quase sem querer, como se não percebesse bem o que estava fazendo,Adélia repetiu:

-Por que, não?

Minutos depois, estavam na loja.Trish examinou uma série de vestidos, calças, saias e blusas e pendurou algumas peças no braço.Adélia acompanhava-a, surpresa e satisfeita com a situação.

No momento seguinte, encontrou-se no vestiário, experimentando um vestido de jérsei estampada em vários tons de verde.O tecido sedoso acariciava-lhe a pele e moldava-lhe suavemente as curvas do corpo bem proporcionado; a cor realçava-lhe os olhos e contrastava com seus cabelos.

Incrédula ante a imagem que o espelho refletia, ela levou a mão à cruz de ouro que trazia pendurada ao pescoço, como para assegurar-se de sua própria identidade.

-Adélia! –Trish chamou-a por trás da cortina do provador.-Como está o vestido? Ficou bom?

-O que você acha? –Abriu a cortina e sorriu.

-Oh, está lindo! Eu tinha certeza de que ficaria ótimo em você.

-É, mas, não sei...

-O que é que há?

-Parece...chique demais para mim.Aonde é que eu vou com isso? Afinal, trabalho com cavalos...

-Ora, seja qual for o seu serviço, você acima de tudo é mulher...e das mais bonitas.Basta olhar no espelho! Não vai faltar oportunidade de vestir uma roupa melhor.Agora vamos.

Pela primeira vez em muito tempo, Adélia deixou-se levar, permitindo que alguém tomasse decisões por ela.E, apesar de não saber por quê, estava gostando muito da situação.

Depois de experimentar uma porção de roupas, selecionou algumas e, por sugestão de Trish, foi ao balcão de cosméticos escolher uma colônia.

-Suave e delicado, e ao mesmo tempo um pouquinho picante.Acho ideal para você.Tome, é um presente.

-Oh, Trish...

-Agora vamos ver um batom.Algo bem delicado, nada de tonalidades fortes!

Adélia estava corada de prazer.Não sabia que era tão bom ter alguém que se preocupasse com sua aparência e a mimasse.

-Precisa de mais alguma coisa?

Ela hesitou, mas em seguida falou claramente:

-Sim, um creme para as mãos.Seu irmão disse que minhas mãos são muito grosseiras.

-Travis não tem jeito, mesmo.Imagine se isso é coisa que se diga para uma garota bonita e delicada como você!

-Olá,Trish!-Uma loira alta, muito bem vestida e perfumada, aproximou-se e abraçou Trish. –Mas que bom encontrar você, querida!-exclamou, com uma voz aguda e afetada.-Há quanto tempo!

-Olá.-Trish sorriu um pouco seca e fez as apresentações:-Laura, esta é Adélia Devlin. Adélia, Laura Bowers

-Muito prazer, sra.Bowers. –cumprimentou Adélia, mas Laura apenas sorriu e virou-se novamente para Trish.

-Querida, como vai aquele seu irmão maravilhoso?

-Vai bem.-respondeu a outra, endereçando um sorriso malicioso para Adélia.

-Não diga que ele não chorou quando Margot foi embora para a Europa! Eu estava esperando uma ocasião para conforta-lo...Não sobrou nem uma lagrimazinha para eu enxugar?

-Oh, sobrou, sim.Ele está simplesmente definhando.Não come, não dorme, não sorri...

-Ora, não faça ironia.Recebeu notícias de Margot?

-Não.

-Então, se não há notícias, deve ser porque está tudo bem entre eles.- concluiu Laura, antes de dirigir-se a Adélia:-Travis é um homem maravilhoso! Você o conheceu, Adelaide?

-Adélia –corrigiu Trish.-Sim, ela o conhece bem.

-Tão charmoso! Agora que Margot está longe, ao menos por uns tempos, vou telefonar para ele. –Laura agitava muito a cabeça enquanto falava.-Bem, queridas, sinto muito, mas preciso ir, Trish, não se esqueça de dizer a seu irmão que me encontrou.Prazer em conhecê-la Amanda.

Antes que Adélia abrisse a boca, Laura já se afastava, deixando atrás de si um rastro de perfume.

-O que você achou dela? –perguntou Trish, brincando com Adélia. –Até que é uma boa moça, mas tem a cabeça meio oca.

-Tem o cabelo muito bonito.Nunca vi ninguém com esse loiro prateado.

-Você é ingênua mesmo.Venha, vamos comprar o creme para mãos.Depois, tomaremos chá.

Enquanto Trish escolhia o creme, Adélia pensava no que Laura Bowers havia dito.”Quem será essa Margot? Uma namorada de Travis?” Por um momento, quase perguntou diretamente a Trish, mas conteve-se.”Talvez ele esteja apaixonado por ela.” Esse pensamento causou-lhe uma dor tão funda no coração que quase começou a chorar.”Mas, se fosse assim, não a teria deixado partir.A não ser que tenha sido rejeitado.Orgulhoso como é, nunca iria atrás de uma mulher que o recusasse.” Não conseguia imaginar que mulher alguma tivesse coragem de deixar um homem como Travis.

-Experimente este, querida.

A voz de Trish arrancou-a de suas reflexões e ela procurou concentrar-se no creme.O produto cheirava gostoso e, ao passá-lo nas mãos, imediatamente sentiu a pele mais lisa e macia.

-Parece ótimo.

Trish ainda fez questão de comprar loções e cremes para o rosto, xampus, cremes rinses e todo um arsenal de cosméticos.Por fim, satisfeita, saiu da loja e levou-a a um elegante salão de chá, onde tagarelou sem parar.

Ao cair da tarde, voltaram para fazenda, tão cansadas que nem tinham mais vontade de conversar.Paddy recebeu Adélia à porta e ajudou-a a carregar os pacotes.Quando ela entrou na sala, deparou com Travis sentado na poltrona.

-Parece que sua sobrinha acaba de se transformar numa consumista.Eu sabia que não devia confiar muito em minha irmã.-Ele sorria ironicamente.

-Sua irmã é maravilhosa.Além de ser uma pessoa boníssima, é muito mais educada que alguém que eu conheço.

-Parece que Trish arranjou uma aliada. –comentou o velho.

-Realmente...Uma aliada poderosa.-Travis endereçou-lhe um olhar enigmático.

 

O sábado amanheceu ensolarado, com a brisa levando a toda parte o doce perfume das flores da primavera.Adélia cantava enquanto escovava Fortuna, um belo potro de três anos que parecia ouvi-la com atenção.

-Adélia! Adélia! –Mark e Mike entraram correndo0 no estábulo.

-Meus queridos! Que bom vocês terem vindo!

-A mamãe deixou a gente ver o filhote da Salomé.Onde é que ele está?

-Esperem um pouquinho que eu já mostro.Preciso terminar de escovar Fortuna.-ela respondeu, procurando alguma coisa no bolso da calça. –Onde será que eu pus a tesourinha? Será que a pegaram de novo?

-Eu não mexi em nada.-queixou-se Mark.

-Eu também não.Os adultos estão sempre pondo a culpa de tudo nas crianças.-completou Mike.

-Oh, meninos, eu não disse que foram vocês.Estou falando dos elfos.

-Elfos? O que é isso? –perguntaram os dois ao mesmo tempo.

-Como? Vocês não sabem?

-Não.Conte para nós.

-Está bem.Venham cá.-Ela sentou-se num banco e acomodou os meninos cada um de um lado.-Elfos são personagens de contos de fadas, muito comuns lá na Irlanda.São figuras estranhas.O pai deles é um espírito maligno, e a mãe, uma fada que virou bruxa.Sempre fazem o que não devem.Por mais velho que seja um elfo, nunca tem mais de um metro de altura.Diz-se na minha terra que gostam de montar em carneiros e cabritos.De manhãzinha, quando alguns desses animais aparecem cansados, o dono já sabe que os capetinhas andaram atormentando-os durante a noite.

-E por que eles fazem isso?

-Porque são muito preguiçosos, e quando querem ir para algum lugar, ao invés de andar, usam carneiros e cabritos como se fossem cavalos.

Os meninos ouviam muito atentos, os olhos arregalados e fixos em Adélia.

-Também gostam de mexer com tudo dentro de casa –continuou ela. –Fazem o leite ferver e derramar no fogão, derrubam vasos de plantas, escondem objetos, roubam comida.Às vezes até empurram cadeiras e mesa de um lado para outro só para se divertirem com o espanto das pessoas.

-Nossa! Eles são terríveis.

-Oh, se são! É por isso que consegue apanhar um elfo ganha uma fortuna.

-Mas não deve ser fácil.

-Não é mesmo.Só é possível pegar um quando ele senta, e ele só senta quando está com o sapato furado.Sabem, como o elfo sempre está sempre correndo e andando para lá e para cá, em suas travessuras, gasta muito os sapatos.Então, ao sentir a sola do pé no chão, senta-se atrás de um arbusto ou no meio do capim alto, e tira os sapatos para remendar.Nesse momento a gente chega por trás, no maior silêncio, e...zás! Agarra-o com toda força.

Os gêmeos estremeceram com o gesto repentino que Adélia fez no ar para ilustrar a narrativa.

-Ao mesmo tempo, a pessoa grita:-Quero seu ouro! –prosseguiu, engrossando a voz.-E o elfo responde:”Não tenho ouro!”

-E ele não tem mesmo?

-Oh, se tem! Mas só conta onde está se a gente obrigar.

-E como é que se faz?

-Cada um tem seu jeito.Algumas pessoas o agarram pelo pescoço, como se fossem estrangula-lo.Outras fazem ameaças.Mas, seja qual for o método, não se pode desviar o olhar de cima do elfo, senão ele desaparece no mesmo instante.É capaz de fazer milhões de truques para escapar.Mas, se a gente fica firme e vigilante, consegue tirar-lhe todo o ouro.

-Você já viu um elfo? –perguntaram os garotos, excitadíssimos com a história.

-Já vi uns dois ou três, mas, sempre que chegava perto, desapareciam.-Ela se levantou, e carinhosamente encerrou a conversa:-Por isso é que nunca fiquei com o ouro deles e preciso trabalhar para viver.E é justamente o que vou fazer agora, senão me mandam embora.

-Mas é claro que isso não vai acontecer, não é meninos?-disse Travis, rindo e aproximando-se dos três.

Adélia estremeceu e, com o coração disparado, teve de fazer esforço para respirar fundo antes de falar:

-Mas que costume horrível você tem de aparecer de repente para assustar as pessoas!

-Acho que confundi você com um elfo.

Ela virou as costas para não responder à provocação e então viu sobre a mesa a tesourinha que procurava; pegou-a, meio desapontada, e Travis afastou-se com os gêmeos para mostrar-lhes o potrinho de Salomé.Adélia observou-o com o canto do olho, admirando seu porte atlético e imponente.

“Por que esse homem me perturba tanto?”, perguntou-se. “Por que meu coração bate mais depressa sempre que vejo esses olhos tão azuis?” Deu um longo suspiro e seus pensamentos pela primeira vez ousaram ir mais longe:”Acho que...estou apaixonada por Travis Grant”. Estarrecida com a conclusão a que chegara, balançou a cabeça, como se assim quisesse jogar tal idéia para bem longe.”Que absurdo! Nunca um homem rico e bonito, proprietário de uma fazenda como Campos Reais, iria baixar os olhos para uma simples empregada, que cuida de cavalos...” E retomou o trabalho, com ímpeto.”Além do mais, ele é arrogante e insensível.Não posso estar apaixonada”, decidiu.

Nesse momento, os meninos chamaram-na; ela se virou, mas a primeira pessoa que viu foi Travis, que vinha à frente dos gêmeos, falando alegremente sobre o potrinho.Quando seus olhos depararam com os dele, sentiu que não conseguia fitá-lo com naturalidade.

-Vão brincar lá fora.Preciso conversar com Adélia.

Obedientes, os garotos afastaram-se e ela reuniu todas as suas forças para perguntar:

-Eu...fiz algo errado? –As palavras saíram meio gaguejadas, confirmando sua confusão interior.

-Claro que não!- O olhar de Travis percorreu seu rosto, lentamente, fixando-se nos olhos verdes, nos lábios trêmulos.-Você achou que eu ia demiti-la? –disse ele, por fim, numa voz estranhamente suave.

-Bem, você disse que seria uma experiência de duas semanas.Faltam poucos dias para acabar esse prazo...

-Pois você está contratada.Já decidi que vai ficar aqui.

-Obrigada.-Ela suspirou, aliviada.-Você não imagina como é bom ouvir isso!

Travis passou a mão na crina de Fortuna e depois voltou a olhar para ela firmemente.

-A sua maneira de lidar com cavalos é algo...estranho e maravilhoso.Não tenho do que me queixar.O único problema é que você trabalha demais.Não quero mais ouvir falar que esteve fazendo alguma coisa às dez da noite.

Sob pretexto de colocar a tesourinha de volta em cima da mesa, ela voltou-lhe as costas.

-Bem...é que eu...

-Não vamos discutir sobre isso.-interrompeu-a, pousando a mão em seu ombro.-Sabe, parece que você só sabe fazer duas coisas na vida: trabalhar e discutir.Será que não há outra válvula de escape para toda essa sua energia?

-Não é que eu goste de discutir, mas às vezes...

Ela não tinha coragem de voltar-se e encará-lo.Travis, porém, a fez virar-se, segurou-a pela cintura e colocou-a sentada no banco.

-Às vezes...?-repetiu Travis, sentando-se ao seu lado.Sem largar-lhe a cintura, tirou-lhe o boné e pôs-se a admirar seus cabelos castanhos, que caíam soltos sobre os ombros.

-Preciso trabalhar...

Ele fingiu que não ouviu e começou a acariciar-lhe os cabelos.

-Sempre gostei de cabelos castanhos.Sempre gostei muito...-disse, puxando-a para bem perto.

Adélia procurava por todas as formas um meio de defender-se do forte desejo que sentia de entregar-se àquela carícia.Por fim, conseguiu afastar o corpo e dirigiu a Travis um olhar firme.

-Não vê que está tomando meu tempo?

O riso com que ele respondeu foi sua salvação, pois todo o seu impulso para abandonar-se desapareceu, deixando no lugar apenas raiva.Ela fez menção de levantar-se, mas Travis segurou-a com força e murmurou:

-Você se esquece de que quando fica brava eu perco o controle e então não resisto mesmo.

Mal acabou de falar,beijou-a na boca; enquanto uma de suas mãos alisava-lhe os cabelos, a outra deslizava sob sua camiseta para afagar-lhe a pele macia das costas.

Como por encanto, a raiva esvaeceu-se e um desejo avassalador apoderou-se dela.Não lhe ocorreu mais defender-se nem lutar contra as sensações deliciosas que se espalhavam por todo o seu corpo.Inebriada por aquele contato febril, entreabriu os lábios para deixa-lo arrancar de si todo o mel, toda energia, toda força.Mais do que na primeira vez em que fora beijada.

Adélia sentiu-se verdadeiramente mulher.Uma dor difusa, uma espécie de angústia inexplicável nascia do âmago de seu ser.Ela gemeu, lamentando vagamente que aquele instante mágico não pudesse perdurar para sempre.

Como que confirmando seu receio, Travis afastou os lábios.Adélia abriu os olhos, certa de que não conseguiria esconder mais seus sentimentos: estava irremediavelmente apaixonada.

-Eu acho...-começou Travis devagar, numa voz muito suave –que isso é melhor que ficar o tempo todo discutindo.

Ele abaixou os olhos para contemplar seus lábios ainda úmidos, suas faces coradas, sua expressão de puro encantamento.Então, sorriu e comentou:

-Parece que essa é a única forma de fazer você ficar quieta um pouco.

Acariciou-lhe os cabelos, passou os dedos levemente por seu rosto e levantou-se.Sentada no banco, incapaz de emitir um som, ela ficou vendo-o afastar-se.Num gesto instintivo, levou a mão aos lábios como que para sentir ainda o calor deixado pela boca de Travis e suspirou profundamente.

Depois de muito tempo, ergueu-se devagar e procurou retomar seus afazeres.Emoções opostas agitavam-lhe a mente.Estava feliz por ter sido contratada para trabalhar na Fazenda Campos Reais.Assim poderia permanecer junto a terra e aos animais, que tanto amava, e viver com o tio que a tratava com tanto carinho.Mas isso significava também que estaria em contato com Travis; ouviria suas palavras às vezes irônicas, às vezes doces e sentiria sua presença forte e poderosa, que a atraia irresistivelmente.Não podia, entretanto, alimentar esse amor em seu coração, pois, para ele, não passava de uma empregada ingênua e bonita que não lhe despertava senão desejo.Precisava lutar para dominar seus sentimentos e manter-se à distancia.Nunca mais aquele beijo tão ardente poderia repetir-se.Travis pertencia o outro mundo, no qual ela jamais conseguiria entrar.

Dividida entre felicidade e angustia, Adélia passou o resto do dia trabalhando como um autômato e esforçando-se para que o tio Paddy não percebesse nada.À noite, depois que o velho se recolheu, tentou sentar-se na sala e ler um livro, mais sua mente não conseguia concentrar-se nas palavras impressas.Então resolveu tomar um banho morno e deitar-se, porém o sono recusou-se a vir.Impaciente, levantou-se, vestiu uma calça de brim e uma camiseta e saiu para respirar um pouco do ar puro e fresco da noite.

Contemplou por uns instantes o céu estrelado e caminhou até o estábulo, pensando em olhar os cavalos.Ao entrar, acendeu uma luz bem fraca e deu alguns passos em direção à baia de Majestade.Nesse momento ouviu uma tosse de homem.Olhou em volta e notou que o som vinha de um cercado vazio, onde só avistou um monte de feno.Aproximando-se, viu alguém deitado no feno e assustou-se.

-Meu Deus! O que aconteceu? –Inclinou-se sobre o homem e percebeu que ele estava completamente bêbado; indignada, ergueu-se rapidamente e exclamou:-George Johnson! Que papel!

-Ah, é você? A queridinha do titio...é? –ele balbuciou com voz enrolada, e começou a levantar-se com dificuldade. –Veio me visitar? Quer beber um pouco comigo, bonequinha?

George falava e ria ao mesmo tempo, enquanto se aproximava dela, a passos trôpegos.Assustada, Adélia pensou em gritar, mas logo controlou o medo e achou que não seria necessário incomodar os outros.Afinal, ele estava muito bêbado e não teria força para agredi-la.Resolveu então passar-lhe um sermão para leva-lo a retirar-se dali.

-Não vim beber nem visitar você.Aliás, não tenho a menor paciência com bêbados.É melhor você ir saindo.Vá esfriar a cabeça em outro lugar.

-Dando ordens, bonequinha? Não sou digno da sua companhia?-George ria e olhava-a de alto a baixo, com uma expressão bestial, que se tornava mais repugnante ainda quando ele passava a língua pelos lábios.

-Não se aproxime, seu porco imundo!

-Por que não quer beber comigo? Quer fazer alguma coisa mais interessante, então?

Antes que ela pudesse esboçar um movimento de defesa, o homem agarrou-a pelos ombros e beijou-a na boca.Adélia prontamente reagiu e tentou empurra-lo, mas embora estivesse embriagado, George era muito forte e a excitação parecia torna-lo invencível.Desesperada, ela aplicou-lhe um violento pontapé no tornozelo e ele parou de beija-la, mas não a largou.

-Porco imundo! Nojento! Asqueroso!Tire essas mãos sujas de cima de mim! Solte-me, seu verme!

Ela gritava e se debatia, mas não adiantava.Sua reação deixava-o ainda mais sequioso e firme.

-Calma, gracinha! Fique boazinha, senão vai se machucar.-disse o bêbado, rindo, e empurrando-a para o monte de feno.

Embora lutasse furiosamente, ela caiu e percebeu, com horror, que George se lançava sobre seu corpo, como um animal.Mesmo sabendo que não tinha forças para afasta-lo, continuou a defender-se, distribuindo murros, pontapés e dentadas.

Quando, apesar de sua resistência, ele a beijou de novo na boca, ela cravou-lhe as unhas nos braços com toda a energia de seu desespero.Ferido, ele ergueu um pouco a cabeça para xinga-la, e ela aproveitou para soltar um grito de terror, que rasgou o silencio da noite.

George esbofeteou-a com força e tapou-lhe a boca com a palma da mão, enquanto com a outra mão rasgava-lhe a blusa e agarrava-lhe os seios com brutalidade.Adélia aos poucos perdia as forças e compreendia que estava totalmente indefesa, à mercê do selvagem que a violentava.Mal podia respirar, subjugada por aquele corpo enorme.

“Meu Deus, fazei com que alguém me ajude nessa hora”, rezou mentalmente, tomada pela dor.

Como que em resposta à sua prece, o peso do homem desapareceu de repente.Uma voz encolerizada e sons de pancadas fortes chegaram-lhe aos ouvidos.Ela abriu os olhos e ergueu-se, tremula.Então viu, sob a luz fraca do estábulo, a silhueta alta e forte de Travis, que estava literalmente esmagando George.Movido pelo ódio, lançava-o ao chão, para apanha-lo e esmurra-lo novamente.O outro não resistia mais, pois já estava inconsciente.O sangue corria-lhe pelas faces, manchando-lhe a camisa imunda.

-Você vai mata-lo!-gritou Adélia ao dar-se conta do que estava acontecendo e correu a agarrar o braço musculoso de Travis.-Pelo amor de Deus, pare com isso!

Ele a afastou e olhou-a longamente, o belo rosto transtornado pela raiva e pela dor, os profundos olhos azuis injetados de sangue.Seu peito poderoso subia e descia, ao ritmo apressado de sua respiração ofegante.

Adélia estremeceu e, com os olhos fitos naquele rosto endurecido, pediu a Deus que a fúria de Travis jamais se dirigisse contra ela.

-Você está bem? –perguntou ele, quase sem mover os lábios.

-Sim...-respondeu, e começou a soluçar.Abaixando os olhos, viu que as mãos dele estavam sangrando.-Oh, as suas mãos...

-Não se preocupe com isso.

Travis segurou-a pelos ombros, e examinou-a.Viu a blusa rasgada, as marcas dos dedos do bêbado em sua pele macia, o cabelo desalinhado, a expressão assustada.Um ódio mortal brilhou em seus olhos.

-O que ele fez?

-Só me assustou.Graças a Deus você chegou a tempo.

Ele aninhou-a em seus braços e acariciou-lhe os cabelos, como se tentasse, ao mesmo tempo, acalmar-se e tranqüiliza-la.

-Ele está vivo? –perguntou Adélia, com voz quase inaudível.

Travis respirou fundo e largou-a para ir até o canto do estábulo onde George jazia estendido, com a boca meio aberta, o rosto ferido.

-Está vivo, sim.É uma pena.Esse desgraçado merecia morrer.Vou entrega-lo à policia amanhã.

-Não! Não faça isso!

-Mas você não entende que esse monstro cometeu um crime? Ele tentou violentar você.

-Sei muito bem quais eram as intenções dele, mas não podemos chamar a policia.Não quero que Tio Paddy saiba, pois iria se preocupar comigo.Não vim aqui para causar problemas.Por favor, não deixe esse...incidente se espalhar.

Travis abriu a boca para argumentar, mas, diante do olhar assustado e suplicante de Adélia, resolveu punir George de outra forma.

-Está bem.Vou mandar dois homens expulsa-lo da propriedade.Agora vamos para casa.

Passando carinhosamente o braço sobre seu ombro, conduziu-a para porta do estábulo.Nesse momento, Adélia começou a sentir os efeitos do esforço que havia feito para livrar-se de seu atacante.Suas pernas estavam bambas, incapazes de mantê-la em pé, e sua vista pouco a pouco escurecia.

-Acho que vou desmaiar... –Sua voz era um murmúrio fraco e soava estranha para si mesma.Mal acabou de falar, mergulhou numa treva total e perdeu a consciência.

 

Algo macio e refrescante pousava-lhe na testa e dedos muitos suaves acariciavam-lhe o rosto, enquanto uma voz doce sussurrava seu nome.Ela suspirou e ergueu as pálpebras, devagar, como se lhe pesassem muito.

Seu olhar sonolento percorreu o quarto, tentando reconhece-lo.Uma luz fraca, proveniente de um abajur antigo, iluminava o ambiente.Lambris de madeira clara revestiam as paredes, onde alguns quadros estavam dependurados.Uma cadeira de balanço postava-se a um canto.E, sentado numa poltrona, ao lado da cama, Travis observou-a, preocupado.

-Aqui é sua casa, não é? –perguntou ela, com voz fraca.

Travis sorriu-lhe e acenou afirmativamente com a cabeça.Depois tirou-lhe a compressa da testa e, sempre afagando-lhe o rosto, comentou, em tom de carinhosa brincadeira:

-Nunca vi ninguém anunciar calmamente que vai desmaiar...

-Eu nunca tinha desmaiado.E pode ter certeza de que não achei nada bom.

-Eu imagino.Fiquei assustado, porque estava branca como cera e tinha o corpo completamente mole.

-Desculpe.-Ela sorriu e sentou-se na cama.-Foi uma coisa tão boba e... –Instintivamente levou a mão ao pescoço e, ao dar falta de sua cruz de ouro, interrompeu a frase para exclamar:-A minha cruz! Devo tê-la perdido no estábulo.Tenho de ir lá procura-la.

E já ia tentando levantar-se, mas Travis delicadamente a segurou pelo ombro.

-Você não tem condições de ir lá agora.Deite-se e fique quietinha.

-Mas eu preciso encontrar a cruz.Não posso perde-la de jeito nenhum.

-Você não pode se levantar, senão vai sentir muita tontura e cair de novo.Por favor, acalme-se.

-Não, eu tenho de...

-Não vou deixa-la sair dessa cama só por causa de uma cruz de ouro.- cortou ele com firmeza.

-Mas não é uma cruzinha qualquer.Foi de minha mãe... e é tudo o que me resta dela.

Ao ouvir sua explicação emocionada, Travis abraçou-a ternamente, aconchegando-a junto ao peito e passando a mão em seus cabelos.

-Eu vou procura-la.Vou hoje mesmo.

Aninhada nos braços dele, ela sentiu-se tão protegida que desapareceram inteiramente o medo e a vontade de chorar a perda da cruz.

-Você promete?

-Prometo.

Ela suspirou, aliviada e contente por estar naquele refúgio seguro, onde gostaria de permanecer para sempre.Mas logo se lembrou de que não tinha o direto de ficar ali e que precisava voltar para sua casa.

-Agora já estou bem,Travis –disse, procurando afastar-se um pouco.-Desculpe o trabalho que lhe dei.

-Você não deu trabalho nenhum.-ele respondeu, passando os dedos em suas faces; depois falou:-Sabe, faz tempo que eu queria pedir-lhe uma coisa.Estou gostando muito de ser chamado de Travis.Não diga mais “sr.Grant”, como antes.

O pedido, acompanhado de um sorriso terno e de um olhar muito carinhoso, desencadeou uma onda de calor em todo seu corpo e acelerou-lhe as batidas do coração.Ao mesmo tempo, contudo, um sinal de alerta acendeu-se era perigosa demais.Precisava sair dali o mais rápido possível, para não ceder ao impulso imperioso de jogar-se nos braços de Travis.

-Acho que é hora de ir para casa.-disse, fazendo menção de levantar-se.

-Ora, espere mais um pouco.Você precisa se refazer melhor do susto.Quer tomar alguma coisa? –perguntou ele, afastando-se para apanhar uma garrafa de uísque.-Vai lhe fazer bem um gole de alguma bebida mais forte.

-Oh, não sei se deveria –respondeu Adélia, um pouco mais tranqüila por vê-lo longe.

-Deveria, sim, nem que seja para não cair de novo em meus braços, desmaiada. –comentou Travis, estendendo-lhe um copo com dois dedos de uísque.

Ela pegou o copo, olhou a bebida e, nunca tendo provado uma gota de álcool, tomou tudo de uma só vez.Travis arregalou os olhos, espantado, mas em seguida caiu na gargalhada.

-Qual é a graça? –perguntou ela, sem entender a situação.

-Você entornou uma boa dose de uísque como se fosse chá!

-Acho que isso é do sangue.-Ela sorriu.-Você nunca viu tio Paddy beber?

-Realmente, ele gosta de um trago...

-Mas nunca perde o controle.Ele não é como aquele porco nojento que me atacou no estábulo.

Travis virou-se para pôr o copo na mesa, de modo que ela não notou a mudança de sua expressão ao ouvir falar novamente de George Johnson.

-Travis...-disse, mais baixo, fazendo-o relaxar os músculos do rosto.-Quero agradecer-lhe por tudo o que você fez, e não sei como.

Ele se voltou, deu uns passos na direção da cama.Seus olhos brilharam, iluminados por uma chama interior, e um sorriso extasiante desenhou-se em seus lábios.

-Pode deixar que um dia eu lhe cobro.

 

O Sol já ia alto no céu quando Adélia terminou de lavar a louça do café, na manhã seguinte.Dava graças a Deus que o tio não tivesse percebido nada na noite anterior.Quando chegara em casa, encontrara-o dormindo e, durante a refeição matinal, trocaram sorrisos e gentilezas como sempre, conversando sobre coisas banais do dia-a-dia.

Estava entretida com seus pensamentos quando ouviu rumor de passos às suas costas.

-Você ainda está aí? Está me esperando para irmos juntos para o estábulo?-perguntou, pensando tratar-se de Paddy; ao virar-se, porém, deparou-se com Travis, postado à porta da cozinha.-Oh, é você? Bom dia.

-Como está? –Ele caminhou em sua direção, olhando-a intensamente.

-Eu... estou bem.

“Por que será que sempre fico sem jeito quando ele aparece de repente?”, perguntou-se pela centésima vez.Procurando controlar-se, sorriu-lhe amistosamente.Ele acaricou-lhe o rosto e repetiu a pergunta:

-Bem, mesmo?

-Sim.Graças a Deus, tudo não passou de um grande susto.

Travis observou-a com atenção, como para certificar-se de que ela falava a verdade, e comunicou:

-Paddy está trabalhando.Disse a ele que precisava conversar com você.

-E...sobre o que...-começou ela, meio preocupada.

-Antes de mais nada quero entregar-lhe isto. –interrompeu-a, levando as mãos ao bolso para tirar a corrente com a cruz de ouro.

-Oh, você a encontrou! Muito obrigada! Não imagina como isso é importante para mim.

-Não precisa agradecer –disse ele, passando os dedos por seus cabelos.-O fecho quebrou, mas vou mandar conserta-lo.

-Não precisa.Eu posso...

-Já disse que vou mandar consertar.-cortou ele, entregando-lhe a cruz e guardando a correntinha no bolso.Depois, respirou fundo e carinhosamente segurou-lhe a cabeça com ambas as mãos.-Sou responsável pelo que aconteceu ontem à noite.

-Ora, que bobagem.Como você pode...

-Não discuta.Tudo o que acontece com você...quero dizer, tudo o que acontece com qualquer pessoa nesta fazenda é de minha responsabilidade.Vim aqui só para devolver a cruz e dizer que vou mandar consertar a corrente.

Travis sorriu e deslizou o dedo pelos lábios de Adélia.

-Às vezes você é incrivelmente dócil, às vezes é tão brava.Pó quê?

-Deve ser pelo mesmo motivo que faz você tão irônico de vez em quando.

-Tem razão.Acho que eu sinto algo estranho quando você está por perto.-Ele beijou-lhe a face, virou-se e saiu para o trabalho.

 

A semana seguinte foi a mais longa que Adélia havia enfrentado em todo a sua vida.Travis e Paddy, os dois homens mais importantes de seu pequeno mundo, estavam ausentes.

O tio havia seguido para Flórida com Majestade, pois o cavalo devia apresentar-se na corrida do Grande Prêmio Flamingo.Sem ele, os dias custavam a passar, as noites pareciam não ter fim e a casa tinha o aspecto de um mausoléu, silenciosa e vazia.Só então Adélia percebeu como amava aquele velho carinhoso e doce, que a recebera com tanto afeto.

Quanto a Travis, partira para Nova York a fim de resolver alguns problemas administrativos de Campos Reais.E sua ausência pesava-lhe na alma como chumbo.Não via a hora de ele voltar e ao mesmo tempo morria de medo de não conseguir controlar o desejo, cada dia mais forte, de lançar-se nos braços dele e deixar-se ficar aninhada, sobre aquele coração que batia tão forte e descompassado quanto o seu sempre que estavam juntos.

“Será que ele também sente o mesmo que eu?”, perguntava-se sem parar.E ora respondia-se afirmativamente, pondo-se a sonhar com um futuro de infinita felicidade, ora decidia-se pela negativa e não podia impedir que lágrimas amargas lhe rolassem pelas faces.

No final da semana, ao longo de mais uma noite solitária na casa vazia, Adélia acendeu a lareira, embora não fizesse muito frio, e aconchegou-se numa poltrona.Estava feliz porque Paddy voltaria no dia seguinte, mas não era a imagem do tio que lhe vinha à mente, e sim a de Travis.

Embalada pela esperança de que ele voltasse logo e a saudasse com um longo carinho, adormeceu.Então sonhou que Travis a tomava nos braços e a beijava ardentemente.Depois, viu-o afastar-se um pouco para murmurar palavras de amor, enquanto lhe acariciava os cabelos, o rosto, as costas.E ela não sabia se dava mais atenção aos lábios dele, às doces juras que lhe fazia, ou ao calor de suas mãos percorrendo-lhe o corpo.

Adélia dormia feliz, o rosto iluminado pelo sonho bom que lhe povoava a mente e pelas chamas suaves que se desprendiam da lenha na lareira.

-Adélia!

Uma voz conhecida soou muito longe e ela se acomodou na poltrona, recusando-se a despertar.

-Acorde!

Dedos carinhosos afastaram-lhe os cabelos da face e ela abriu os olhos, relutando, para deparar com Travis à sua frente.Levou alguns segundos para compreender que aquela presença tão querida não era um sonho.Então endireitou-se na poltrona, fechou o decote da camisola azul-clara que vestia e olhou para ele.

-Eu sentei aqui para descansar um pouco e acabei pegando no sono.-desculpou-se.

-Não sei como você conseguiu dormir nessa posição, com a cabeça caída para o lado.-Travis sentou-se no braço da poltrona.

Como sempre, aquela proximidade deixou-a feliz e angustiada, e ela procurou afastar-se um pouco mais para o lado.”Preciso separar muito bem sonho da realidade”, pensou, lutando para dominar o desejo ardente que começava a percorrer-lhe o corpo.

-Você estava com uma expressão tão feliz...Estava sonhando com alguma coisa boa?

-Não sei...Ah, sim... sonhei que tio Paddy tinha voltado.-gaguejou, enrubescendo e baixando a cabeça.

-Ele deve chegar amanhã.Eu também gostaria de ter ido para Flórida, mas tinha muita coisa para resolver em Nova York –comentou, tomando-lhe o rosto com a mão e obrigando-a a encara-lo.-Você sente muito a falta dele, não é?

-Sinto.E de Majestade também –respondeu, enquanto mentalmente completava:”E de você...”

Travis pareceu captar seu pensamento, pois endereçou-lhe um sorriso luminoso, cheio de ternura.Adélia correspondeu-lhe, mas logo se lembrou de que estavam sozinhos e que precisava controlar seus impulsos.Resolveu então falar do Grande Prêmio, dando à sua voz um tom casual:

-Achei uma pena Majestade não ter ganho a corrida.

Adélia alisava o tecido da camisola, enquanto Travis continuava mexendo em seus cabelos.

-É, foi uma pena...-repetiu ele, meio enlevado pelo momento.Em seguida, como que voltando a si, comentou:-Mas teve um bom desempenho.Para vencer, faltou-lhe ter paciência e usar uma boa tática.

Era evidente que suas palavras não se referiam apenas a uma corrida de cavalos, porém Adélia não conseguia atinar com seu sentido oculto.Antes que pudesse refletir sobre isso, ele enfiou a mão no bolso e tirou a corrente de ouro.

-Quase me esquecia de lhe entregar isto.

-Você mandou consertar!

-Não disse que mandaria?

-Sim...É que...obrigada.-balbuciou, estendendo a mão para pegar a corrente.

Ao invés de entrega-la, no entanto, ele abriu o fecho e colocou-a em seu pescoço.Os dedos dele em sua pele eram quentes e suaves, e Adélia baixou os olhos para não encara-lo tão de perto.

-Melhor agora? –perguntou ele, tirando as mãos de seu pescoço.

-Muito melhor.

-Bem, agora vou sair.Feche a porta e vá dormir.Você parece cansada.

Ele atravessou a sala, mas parou junto à porta e olhou para trás.Adélia fitava-o sem conseguir dizer nada.Os cabelos caíam-lhe sobre os ombros, refletindo o fogo da lareira.

-Você parece uma criança.Precisa receber um beijo toda noite, antes de dormir –disse com voz suave e voltou-se novamente em sua direção.

Antes que ela pensasse em evitar, Travis afagou-lhe a nuca, o braço, as mãos e aproximou-se de seu rosto.Ardente de desejo, Adélia entreabriu os lábios, à espera, mas ele beijou-lhe suavemente as faces e afastou-se.Ela enrubesceu e ficou olhando-o até vê-lo sair, fechando a porta atrás de si...

“Por que será que ele riu quando falou que, para vencer, é preciso ter paciência e usar uma boa tática?”, perguntou a si mesma.

 

Com o retorno de Paddy, todos na Fazenda Campos Reais passaram a dedicar-se ao treinamento de Majestade, preparando-o para o Grande Prêmio Estadual; a corrida constituía numa preliminar para o Derby de Kentucky, uma competição de nível nacional.

Era formidável o desempenho do cavalo, e sua atuação na Flórida permitia acalentar esperanças de vitória na apresentação seguinte.O jóquei era o pequeno Steve Parker, que nesse momento corria com ele pela pista.

Encostada à cerca, Adélia observava os dois, embevecida.A seu lado, Paddy e Travis também assistiam ao exercício, parecendo muito satisfeitos.Ao terminar o circuito, o velho apertou o botão do cronômetro e estendeu-o a Travis, com um ar de aprovação:

-Se ele correr assim em Kentucky, vai chegar pelo menos cinco corpos à frente do segundo colocado.

-E ele corre pelo amor à corrida –comentou Adélia, olhando Majestade, que já vinha em sua direção com Steve.

-Vamos torcer para ele ter esse mesmo amor em Kentucky –comentou Travis, afastando-se um pouco para cumprimentar o jóquei.

-Como é que você se sente, querida, quase às vésperas do Grande Prêmio Estadual? –perguntou Paddy.

-Não posso negar que estou bastante ansiosa.Não vou tirar os olhos da televisão durante todos os páreos, especialmente o principal.

-Televisão? –espantou-se o velho.-Quem falou em televisão? Você vai conosco ao hipódromo!

-Vou com vocês? –repetiu ela, meio confusa.

-Mas é claro!

Travis já voltava em sua direção, e ela não conseguia desviar a atenção daqueles olhos que tanto a atraiam.

-E por que eu também vou a Kentucky? –perguntou, ainda surpresa.

-Porque eu quero.

-Como assim? O que você está pensando? –A animação cedeu lugar à raiva; era irritante o tom imperioso da voz de Travis.-Se vai precisar de alguém para cuidar de Majestade, por que não leva Stan ou Tom, que trabalham aqui há mais tempo?

Steve não pode deixar de ouvir a conversa e aproximou-se, sorridente:

-Porque você é muito mais bonita que eles dois juntos.Na hora da corrida, prefiro saber que é você quem está ali, bem ao lado da cerca, e não Stan ou Tom.A sua presença vai...me dar mais inspiração.

-Você está louco.-Ela sorriu para o jóquei, mas ficou séria novamente ao dirigir-se a Travis: -Acho que é melhor você levar um dos rapazes.

Ao invés de retrucar, ele pegou-a pela mão, pediu desculpas a Steve e praticamente a arrastou, andando bem depressa para um local onde não seriam ouvidos.Quando pararam, Adélia estava ainda mais furiosa.

-Aonde você pensa que vai? Que negócio é esse de me puxar desse jeito?

-Não gosto de discutir em público.Eu dou as ordens aqui na fazenda, não você.-disse ele, no mesmo tom imperioso de quem está acostumado a mandar e a ser obedecido.-E não admito que ninguém me contrarie, muito menos na presença de outras pessoas.Enfie isso na cabeça, Adélia.-Ao pronunciar seu nome, mudou um pouco o tom da voz e falava mais calmo quando retomou o dialogo interrompido momentos antes: -E agora, bem... estávamos falando de sua ida para Kentucky conosco, não é?

-Sim, eu estava dizendo...

-Eu estava dizendo –interrompeu-a, com firmeza –que você vai.Ponto final.

Os olhos de Adélia rebrilharam de raiva, mas sua boca manteve-se fechada.

“Detesto quando ele fala comigo desse jeito”, pensou.

-Você cuida melhor de Majestade que qualquer outro empregado da fazenda.É por isso que vai a Kentucky.Sua presença é conveniente para mim, e estou habituado a ter as coisa que me convém, entendeu?

Adélia baixou os olhos, pensando numa boa resposta, porém, antes que começasse a falar, Travis deu mais uma ordem:

-Não diga nada.Venha cá. –E puxou-a novamente pela mão, andando depressa na direção do estábulo, onde ninguém pudesse vê-los.

Ela estava confusa e seus desejos reacenderam-se ao pensar que ficaria sozinha com ele.Não tinha forças para resistir à mão que a puxava, nem tentaria recusar os carinhos que certamente receberia.

Com efeito, tão logo entraram no estábulo, Travis abraçou-a com força e fitou-a bem nos olhos.

-Você sabe que não resisto quando fica brava.Aliás, já não estou resistindo nem quando você não está brava.

Afrouxou o abraço para apenas segura-la pela cintura com suas mãos enormes.Seus polegares começaram a acariciar-lhe os seios, enquanto seu olhar continuava fixo no dela, irradiando uma ternura que ela jamais recebera de alguém.Em seguida, voltou a estreita-la nas braços e curvou a cabeça para beija-la com avidez.

Sem hesitar, Adélia enlaçou-o pelo pescoço e ficou na ponta dos pés, como se receasse deixar um milímetro de distancia entre eles.Seu corpo vibrava contra o dele e seu coração inchava de amor ao perceber que batia no mesmo ritmo alucinado do coração de Travis.

Inesperadamente, porém, uma parte de seu cérebro despertou daquele torpor apaixonado e a fez afastar-se um pouco, para pedir baixinho:

-Solte-me, por favor...

Apenas sua voz dizia isso, pois ela mesma continuava agarrada a Travis, que a beijou de novo com mais vontade ainda, e a apertou com força junto ao peito e às pernas.Por fim, largou-a para comentar, rindo:

-Steve tem razão, você é mais bonita que Stan e Tom juntos.

Beijou-a mais uma vez, rapidamente, e afastou-se afetando um ar bem arrogante só para provoca-la.Adélia ficou parada, olhando-o e refletindo na mistura de indignação e desejo que sentia naquele momento.

 

Era a segunda vez que Adélia viajava de avião.Mas o aparelho em que se encontrava agora era bem diferente do grande Boeing que a tinha trazido da Irlanda para os Estados Unidos e a distancia que devia percorrer era incomparavelmente menor.Estava no jatinho particular de Travis e seguia de Maryland para Kentucky, onde se realizaria o Grande Prêmio Estadual que antecipava o Derby.Mas a diferença dessa segunda viagem não estava apenas no avião e na distancia.Adélia agora se sentia bem mais segura e, ao contrario da primeira vez, contemplava a paisagem, fascinada com a região montanhosa.

Estava tão absorta com a beleza dos campos, das pequenas cidades, das sedes de fazendas com suas estradinhas, que nem notou quando Travis se sentou a seu lado.

-Está gostando da paisagem?

A voz dele, tão perto de seu ouvido, assustou-a; ela desgrudou a testa da janelinha e voltou-se, irritada.

-É incrível, mas você continua me surpreendendo sempre que aparece.

-Acho que vou começar a bater os pés antes de me aproximar –respondeu ele, rindo.-Sabe, para mim, é você quem surge na minha vida sem aviso prévio.Quando vejo, já está presente, sem eu ter notado.Acho que você é uma fada irlandesa, talvez um daqueles famosos elfos da história que contou para meus sobrinhos.

-Ora, não é possível alguém ser as duas coisas ao mesmo tempo.Não fica bem para uma fada ser confundida com um elfo...-respondeu, brincando também.

-Depende da fada, não é?

-Não.Na maior parte do tempo, as fadas são boazinhas, porque esperam ser readmitidas no paraíso de onde foram expulsas.

-Expulsas? –surpreendeu-se Travis.

-Você não conhece a história? Quando o diabo se rebelou contra Deus, as fadas não tomaram partido; resolveram que só optariam por um lado ou por outro depois de terminar a luta.Bastante espertas...Mas, como esse foi seu único pecado, Deus mandou-as para a Terra, em vez de envia-las ao inferno como fez com os rebeldes.

-Ora, vejam, eu não sabia –comentou Travis. –Mas elas têm o poder de transformar as pessoas em cães, sapos e outros animais, não têm? E normalmente só são boazinhas quando tratadas com todo respeito, não é?

-É isso mesmo.Como é que você sabe?

-Paddy me contou quando eu era pequeno.

Travis debruçou-se sobre ela, sorrindo, e Adélia encolheu-se toda no encosto da poltrona.

-Calma, não vou fazer nada.Só quero apertar seu cinto de segurança, porque vamos descer.

-Já chegamos?

-Faz algum tempo que estamos sobrevoando Kentucky.Dentro de dois ou três minutos pousaremos.

Realmente, no prazo previsto o jatinho aterrissou e correu suave pela pista do aeroporto.Majestade foi transferido para um caminhão fechado e os passageiros embarcaram num carro que os conduziu rumo ao Jóquei Clube de Louisville.

No caminho, Adélia mostrou-se preocupada com o cavalo:

-Será que ele não está estranhando a viagem, o caminhão, tudo isso?

-Que nada! Majestade está acostumado com essas coisas.

Ao chegarem ao Jóquei, Adélia ficou mais tranqüila quando viu que já tinham preparado tudo para o animal.Vários homens e mulheres aglomeravam-se nas proximidades dos estábulos, para assistir à chegada dos cavalos que participariam da corrida.

Todos pareciam conhecer e respeitar Travis e acolheram Adélia com a mesma deferência.Ela sentiu-se orgulhosa, menos por isso do que pelos olhares de admiração que as mulheres endereçavam a ele e pelo ar de inveja com que a examinavam.

Um treinador passou a seu lado, levando um puro-sangue que a fez lembrar-se da razão pela qual estava ali.

Um pouco chateada consigo mesma por ter ficado tanto tempo observando as pessoas, Adélia tratou de cumprir suas obrigações.Conduziu Majestade para baia que já estava reservada e, A sós com o animal, começou a conversar com ele enquanto o escovava.

O tempo passou depressa, e quando ela estava quase acabando o serviço ouviu alguém bater os pés à entrada da baia.Olhou para trás e viu Travis.

-Agora você me ouviu, não é? –perguntou ele, rindo como um menino brincalhão.

-Também...batendo os pés desse jeito! Parecia um touro no estábulo! Você é engraçado –disse, olhando-o de frente.

-Como assim?

-Ora, às vezes você age e fala como um senhor de escravos, lançando faíscas pelos olhos.Nessas horas, eu o vejo como um sujeito durão e impiedoso.Mas há ocasiões em que... –Ela interrompeu-se e, virando-se logo para Majestade, continuou seu trabalho.

-Agora tem de falar.Você me deixou intrigado.-Ele a segurou pelos ombros e a fez voltar-se delicadamente.

As sensações que procurava evitar assaltaram-na de repente.”Por que não penso duas vezes antes de falar qualquer coisa para esse homem?”, perguntou-se.Mas Travis fingiu não perceber seu embaraço e continuou fitando-o nos olhos, à espera de suas explicações.Não havia outro jeito senão concluir o que havia começado:

-Às vezes, quando você ri e brinca com os rapazes, ou leva um sobrinho nos ombros, ou conversa com meu tio ou simplesmente lida com os cavalos, eu vejo seu lado alegre, carinhoso...fico pensando que talvez você não seja tão duro quanto parece.Era isso o que eu ia dizer. –Ela virou-se rapidamente para Majestade, recriminando-se mais uma vez por ter começado a falar.

-Interessante –comentou ele, tirando-lhe das mãos a escova e pondo-se a limpar o cavalo, ao qual se dirigiu: -Ela mima você demais, não é? Se eu deixasse, seria capaz de ficar escovando você até amanhã.

Travis largou a escova e alisou o animal.Adélia não conseguia tirar os olhos daquela mão grande e forte no pêlo de Majestade.

-Não é mimo.É só um pouco de amor.Todos precisamos de amor e carinho de vez em quando.

-Você tem razão.Todos nós precisamos de amor e carinho –repetiu ele, olhando-a demoradamente antes de sair.

Adélia concluiu seu serviço e partiu também.Naquela noite, num quarto estranho de hotel, não conseguiu dormir.Sentia que o amor, absolutamente imprevisível e incontrolável, a dominava por inteiro e jurava a si mesma que lutaria contra ele com todas as forças.E sua luta começava por impedir que dois belos olhos azuis entrassem em seus sonhos.

 

Na manhã seguinte, Adélia resolveu conhecer bem o hipódromo onde Majestade correria.Apanhou o animal na baia e conduziu-o até a pista, parando para admirar a vastidão do local.

No centro da grande pista oval havia um lindo gramado cheio de canteiros floridos.”Quantas pessoas caberiam naquelas arquibancadas enormes?”, perguntou-se, lançando o olhar em redor.

-Algum problema? –Suas observações foram interrompidas pela voz de Travis. –Desculpe, esqueci de bater os pés.

-Eu já devia ter-me acostumado com suas entradas inesperadas –respondeu, continuando a caminhada com Majestade.-Que lugar maravilhoso, você não acha?

-É um dos melhores hipódromos que conheço.A arquitetura é basicamente a mesma desde que foi construída, há mais de cem anos.E é o mais famoso do país, por causa do Derby de Kentucky.

Enquanto andavam lado a lado, ele discorria sobre o famoso prêmio, que conhecia muito bem.

-Todos os anos, no primeiro sábado de maio, correm nesta pista alguns dos melhores cavalos do mundo.Todo mundo pára e se concentra na corrida, que dura só uns minutos.Quando os cavalos fazem a última curva e entram na reta final, todos se levantam nessas arquibancadas.-Falava com entusiasmo, como se o que descrevia estivesse ocorrendo naquele exato momento. –Não é apenas uma corrida de cavalos.É uma disputa entre criadores, e nos Estados Unidos qual é o criador que não deseja ver seu cavalo vencedor? O animal que vencer aqui será sempre o favorito, em qualquer corrida, até o ano seguinte.

Travis calou-se por um instante e permaneceu com os olhos perdidos no hipódromo, como se contemplasse alguma coisa invisível; depois deu um tapa carinhoso em Majestade.

-Conto com você! –falou com o animal.

-Às vezes parece que Majestade sabe que é bom corredor –disse ela. –É tão seguro de si! Se falasse, aposto que diria que vai ganhar o Grande Prêmio Estadual para poder participar do Derby.

-Diria mesmo? E você, como se sente? Concorda com ele?

-Ora, eu ainda não estou sequer preparada para o Grande Prêmio.Quem tem pressa é ele...Mas gosto deste lugar.E é bom saber que não mudou muito nos últimos anos.

-Há outros hipódromos mais bonitos.Na Flórida, por exemplo, há centenas de flamingos no lago que enfeita o canteiro central.

-Oh, deve ser maravilhoso!

-Um dia você ainda vai conhecer.-prometeu ele, alisando-lhe os cabelos.

A semana transcorria depressa, e a todos os instantes havia o que fazer.Adélia dedicava-se a Majestade, conversava com ele e providenciava-lhe comida e tudo o mais que precisasse, na hora certa.Passava parte de seu tempo livre com Steve Parker, caçoando dele por causa das garotas que o cortejava, ou observando-o enquanto treinava com o cavalo na pista, para acostumar-se.Em outros momentos, ficava com Paddy, conversando sobre os estilos dos vários puros-sangues que iam concorrer; comparava-os entre si e com Majestade.

-Travis inscreveu esse animal no momento em que ele nasceu.E fez o mesmo com os potrinhos de Salomé. –disse-lhe o tio um dia.

-Ele entende bastante de cavalos, não é?

-Muito.Assim que nasce um cavalo, já sabe se dará um bom corredor ou não.Ele está sempre de olho no futuro e dificilmente erra.

Era bom ouvir o tio elogiar o homem por quem estava apaixonada.

-Ele não tolera esse negócio de dar drogas para os animais correrem mais –continuou Paddy.-E lembre-se de que isso não é tão raro, mesmo aqui em Kentucky.Se um dos cavalos de Travis tem algum problema, uma dor, por exemplo, não corre, e pronto.Nada de ingerir analgésico só para vencer a corrida.Dinheiro não é problema para ele, é claro, mas, ainda que fosse, tenho certeza de que agiria da mesma forma.

Os dois percorreram os estábulos em silencio, observando os animais.Ao saírem, Paddy abraçou a sobrinha afetuosamente e continuou a conversa:

-Travis é muito prático e bastante habilidoso nos investimentos.Sabe comprar um potrinho e transforma-lo em campeão.E umas duas ou três vezes, depois de fazer um bom negócio, chegou a dar algum dinheiro para mim também.

Apertando-a mais com seu abraço, o velho conduziu-a para o Sol, para observarem outros cavalos que treinavam na pista.Mas ela não disse uma palavra nem conseguia ver nada: apenas ficou pensando nas novas facetas de Travis que acabara de conhecer.

 

No dia do Grande Prêmio Estadual, o céu estava encoberto.As nuvens cinzentas pareciam aumentar a tensão de Adélia, que, apreensiva, procurava manter-se ocupada com alguma coisa, ao lado de Majestade.

Já era grande o movimento nos estábulos, mas ela notou quando Travis entrou e veio sorrindo em sua direção.

-Se pudesse, acho que você mesma montaria Majestade, não é?

-Ah, tenha certeza disso...Mas Steve não ia gostar...

-Eu não gostaria se fosse ele –Travis comentou e mudou de assunto.-Venha para a arquibancada comigo.Paddy vai ficar com Majestade agora.

-Mas não posso deixar...

Antes que pudesse concluir sua argumentação, Travis pegou-a pela mão e conduziu-a para a saída.

-Espere um pouco! –pediu ela e correu até o cavalo, para abraçar-lhe o focinho e dizer-lhe algo baixinho na orelha.

-O que você falou para ele? –perguntou Travis, curioso, quando Adélia voltou.

Ela apenas sorriu misteriosamente e não disse nada.

Quando se aproximaram das arquibancadas, entregou a Travis um papel e duas notas de um dólar.

-Você faz essas apostas para mim?

-Em quem você quer apostar? –ele perguntou, com o papel e os dólares na mão.

-Em Majestade, é claro...Na cabeça –respondeu ela, usando um termo que acabara de aprender ouvindo a conversa dos homens nos estábulos.

-Ah, sim...Mas, veja –disse ele, seriamente, olhando para o quadro de apostas no centro da pista. –Majestade está a cinco por um.Já o número três está a dez por um, o seis, a dois por um e parece fácil demais...

-Eu não entendo nada disso –interrompeu-o, ansiosa.-Para mim são apenas números.Só quero apostar em Majestade!

Travis colocou a mão carinhosamente em seu ombro e disse, bem devagar:

-Não se deve apostar sem conhecer as chances de cada cavalo e a preferência dos outros apostadores.

E antes que Adélia pudesse argumentar, dirigiu novamente a atenção para o quadro de apostas e continuou sua avaliação.

-O número dois está a três por um...escolha razoável para ponta ou placê.E o número um está a oito por cinco...

-Você está me pondo maluca com todos esses números! Não percebe que eu só quero...

-... e o número cinco está a quinze por um –cortou ele, olhando para as notas de um dólar.-Você faria uma pequena fortuna se apostasse no cinco.

-Mas não é pelo dinheiro.É só para dar sorte.

-Ah, sim! –exclamou ele, assumindo um ar propositalmente solene.-Não se brinca com a sorte!

Rindo muito, ambos dirigiram-se ao guichê de apostas mais próximo.Minutos depois, estavam nas arquibancadas, observando a multidão que enchia o hipódromo naquela tarde.

Travis tinha dito que o local comportava cento e vinte e cinco mil espectadores.Adélia calculou que não havia faltado ninguém.Várias pessoas cumprimentaram Travis e algumas olharam para ela com ar de curiosidade.

Logo os cavalos entraram na pista.Adélia imediatamente concentrou sua atenção em Majestade e Steve, muito vistoso com uma camisa de seda dourada e vermelha e um calção escarlate.Ao anunciarem o nome de Majestade nos alto-falantes, ela fechou os olhos, agitada e nervosa.

-Relaxe, ele está bem –disse Travis, rindo.-E, além do mais, isto é apenas uma corrida de cavalos.

-Acho que nunca vou ficar tranqüila antes de uma corrida.

Adélia calou-se, pensando no que tinha acabado de dizer.Por um momento, com o braço de Travis pousado em seu ombro, pareceu-lhe que já estavam juntos havia muito tempo e que havia assistido a várias corridas de cavalos na vida.Essa sensação é que a levara a dizer que nunca ficaria tranqüila, como se tivessem um passado, e o futuro os esperasse, juntos.

A realidade era diferente do sonho, mas ela se esforçou para não ver e procurou manter aquela sensação de continuidade que lhe enchia o coração de alegria.Entretida por pensamentos tão agradáveis, não notou que Paddy se colocava a seu lado.

-Vai ser uma boa corrida –disse o velho, chamando-lhe a atenção.

-Já vai começar?-perguntou ela.

Os dois homens apontaram o ponto da pista em que todos os cavalos começavam a entrar nos compartimentos individuais para a largada.

Adélia agarrou-se à cruz de ouro e sentiu que Travis a abraçava mais forte quando soou a campainha que autorizava a partida.Dez cavalos fortes e velozes lançaram-se à frente de uma só vez.

Para ela, parecia uma grande massa de cascos e corpos reluzentes voando juntos, num estrépito avassalador.Mas seus olhos não perdiam de vista Majestade, como se ele estivesse correndo sozinho.Sem pensar, segurou a mão de Travis em seu ombro e apertou-a firmemente no momento em que seu cavalo favorito pareceu reunir forças para destacar-se do grupo que corria à frente.

Majestade seguiu avançando, até assumir claramente a dianteira.De repente, suas pernas pareceram providas de asas e ele lançou mais à frente ainda, deixando uma diferença de mais de um corpo para o segundo.

Travis apertou-a contra o peito, enquanto o tio gritava para incentivar o cavalo na reta final.A diferença entre Majestade e os outros animais aumentava.A multidão gritava e acenava, mas nesse momento Adélia chorava de alegria, abraçada pelo homem que amava.

Quando Majestade cruzou o disco final em primeiro lugar, com quase quatro corpos de diferença em relação ao segundo colocado, Adélia estava de olhos fechados, vivendo consigo mesma um dos momentos mais felizes de sua vida.

 

Aproximava-se o dia do Derby de Kentucky, e na cidade de Louisville não se falava em outra coisa.Adélia e Travis viam-se pouco e praticamente só conversavam sobre Majestade.Apenas de vez em quando ele lhe acariciava os cabelos, meio distraído em suas teorias e previsões sobre a corrida.

Ela começava a pensar que as brigas que haviam tido ofereciam algumas vantagens, e procurava aliviar suas tensões e frustrações pelo distanciamento de Travis, dedicando-se ao cavalo.

Certa manhã, dois dias antes do Derby, cuidava de Majestade quando de repente resolveu tomar um pouco de Sol fora do estábulo.

-Não fique muito convencido –disse ao animal.-Você vai ter de correr muito para vencer depois de amanhã.Descanse um pouco, agora, que eu vou lá fora e volto já.

Ao sair, em pleno Sol de maio, viu-se cercada de repórteres interessadíssimos em entrevista-la.

-É você quem cuida de Majestade, da Fazenda Campos Reais? –perguntou um deles.

Adélia sentiu-se embaraçada, no meio de tantos homens curiosos, e por um momento teve saudade do isolamento da fazenda.Preparava-se para responder, mas logo outra voz se destacou do grupo.

-Não é comum a gente ver uma...uma pessoa como você cuidar de cavalos.

-Pensei que cabelos castanhos fossem comuns nos Estados Unidos...-respondeu ironicamente Adélia, olhando para o repórter que havia feito o comentário.

O grupo caiu na gargalhada, e o ambiente descontraiu-se um pouco.As perguntas, entretanto, não cessavam de chover.Ela respondia a tudo, mas quando começaram a falar todos ao mesmo tempo, resolveu encerrar a entrevista:

-É melhor vocês procurarem o sr.Grant ou o treinador de Majestade.

Passou decidida entre os repórteres, mas de repente sentiu que alguém a segurava pelo braço.Voltou-se e deparou com o rapaz que tinha estranhado uma mulher cuidar de cavalos.

-Srta.Devlin, desculpe se fomos um pouco grosseiros –disse ele, com um sorriso encantador.

-Ora, tudo bem.

-Meu nome é Jack Gordon e... gostaria de convida-la para jantar comido hoje.

Ela ficou surpresa e ao mesmo tempo lisonjeada com o convite, deliciando-se com o prazer puramente feminino de ter chamado a atenção de um homem tão atraente.Julgando, porém, que não devia sair com um estranho, abriu a boca para recusar, mas, antes que pudesse emitir um som, ouviu uma voz firme atrás de si:

-Com licença.Minha funcionária deveria estar cuidando do cavalo.

Virou-se e viu os olhos azuis de Travis cravados no repórter.Ficou furiosa, mas não teve oportunidade de se expressar com palavras, pois ele lhe perguntou, secamente:

-Você está sem trabalho para fazer?

Ela fuzilou-o com o olhar e, engolindo a custo sua raiva, saiu com passo firme na direção do estábulo.

Quinze minutos depois, Travis livrou-se dos repórteres e foi procura-la.De longe, ela viu aquele homem alto caminhando a seu encontro, com as mãos nos bolsos e olhando-a seriamente.Mais que depressa, apanhou a escova e fingiu que estava muito compenetrada em lustrar o pêlo de Majestade.

-Que negócio é esse de ficar marcando encontro com estranhos? Você não tem mais o que fazer? –esbravejou ele, assim que entrou na baia.Seu tom de voz arrogante deixou-a indignada.

-Não se intrometa na minha vida particular.Você não tem esse direito.

-Enquanto você trabalhar para mim, cuidando dos meus cavalos, em minha fazenda, eu tenho a ver com sua vida, sim.

-Está bem, sr.Grant.De agora em diante, vou pedir sua permissão toda vez que quiser respirar –retrucou ela com ironia; mas, em seguida, explodiu: -Não nasci ontem.Sei muito bem cuidar da minha vida.

-Não me parece que fez isso naquela noite em que George atacou você no estábulo.

A lembrança da cena violenta voltou-lhe à mente, fazendo-a estrmecer.Com lágrimas nos olhos, ela virou-se e começou a afastar-se, porém ele a segurou pelos ombros.

-Desculpe.Foi um absurdo eu dizer isso.

-E foi mesmo –respondeu, chorando, enquanto tirava as mãos dele de seus ombros. –Mas você não me surpreende, falando essas coisas.Você gosta de me colocar no meu lugar, não é? –A raiva voltou a domina-la secando-lhe as lágrimas como por encanto.Ela tirou o boné e fez uma mesura teatral: -Com sua permissão, Excelência, vou sair.

-Acho que já ouvi demais, sua bruxinha –disse ele, olhando-a intensamente e caminhando em sua direção.-Você merecia levar uns tapas, mas tenho uma idéia melhor.

Travis agarrou-a rapidamente num abraço apertado.Antes que ela sequer pensasse em resistir já sentia na boca o gosto daqueles lábios ardentes.Havia alguns dias que não se beijavam, e ele parecia querer compensar todo o tempo perdido.

Enquanto Travis lhe sugava a boca com paixão, seu coração batia mais forte e sua pele se arrepiava ao contato másculo daquelas mãos grandes e poderosas, que lhe percorriam os braços, subiam-lhe pelas costas, mergulhavam em seus cabelos.

Tonta de desejo, ela abraçava-o com força, encostando o corpo ao dele, para sentir os músculos retesados de suas coxas vigorosas.Ao mesmo tempo, porém, intuía que ele desejava que ela fosse mais submissa.Tentou afrouxar o abraço, mas o ardor de sua paixão e a própria natureza de seu temperamento não lhe permitiam assumir um papel passivo.

Durante alguns minutos ficaram ali, de pé, fechados num universo particular, feito de amor e desejo.Nada ouviam a não ser sua própria respiração ofegante.Finalmente Travis soltou-a e olhou-a apaixonadamente.Ela ainda tinha os lábios entreabertos, expressando ao mesmo tempo saciedade e avidez.

-Sabe, você é bonita demais, pequena demais e... interessante demais para falar comigo daquele jeito –disse ele devagar, separando bem as palavras e acariciando-lhe os rosto levemente, com as pontas dos dedos.

Ela ficou muda ao vê-lo afastar-se em passo lento.Mesmo que tivesse algo a dizer, não conseguiria.Sentia-se ainda entorpecida de desejo e sabia que demoraria algum tempo para recobrar a consciência de si mesma.

O dia do Derby de Kentucky amanheceu com um céu impecavelmente azul, sem uma nuvem, e o Sol brilhando em toda a plenitude da primavera.Uma brisa fresca soprava dos campos, espalhando perfume de flores e aroma de terra orvalhada.

Mas nem toda a beleza da manhã seria capaz de acalmar Adélia; seus nervos estavam à flor da pele naqueles momentos que antecediam a corrida mais importante dos Estados Unidos.

Na parte da manhã e no começo da tarde, várias vezes ela chegou a invejar a serenidade de Travis.Desde seu último encontro, ainda não tinha conseguido agir naturalmente com ele.Agora, sentada a seu lado para assistir aos páreos que precediam a corrida principal, sentia-se torturada pelo silêncio entre os dois.Se demorasse muito para começar o páreo de Majestade, ela não agüentaria a tensão e começaria a agredir alguém; e sabia que o alvo seria Travis.

-Tome um pouco –disse ele, oferecendo-lhe um copo. –É uísque com hortelã.

Adélia olhou para a bebida e para ele, sem saber se deveria aceitar.Percebendo sua hesitação, Travis colocou o copo em sua mão e repetiu, sorrindo:

-Vamos, tome um gole.Serve para duas coisas.Primeiro, obedece à tradição de beber uísque com hortelã antes de um páreo importante como esse, e a gente ainda leva os copos de lembrança.Segundo...você está precisando de alguma coisa para acalmar os nervos.

-Estou mesmo.-respondeu ela, provando a bebida. –Eu juraria que hoje há mais gente ainda que na última corrida.De onde vêm todas essas pessoas?

-De toda parte.A Corrida das Rosas é a mais importante da temporada.

-Corrida das Rosas?

-É como o Derby é chamado popularmente.

-E por que esse nome?

Porque o cavalo vencedor é coberto por muitas rosas vermelhas, e o jóquei recebe também uma braçada delas.

-Majestade vai gostar de receber rosas vermelhas, você não acha?

-Tenho certeza de que ele está louco para ganhar essas flores.

Nesse momento, todos os cavalos entraram na pista e dirigiram-se aos compartimentos individuais para esperar a largada.Era imenso o contraste na indumentária de todos os jóqueis, mas Steve destacava-se mais uma vez por sua roupa de seda, dourada e vermelha.Os olhos de Adélia estavam fixos nele e em Majestade, como se os dois formassem um único ser.

-É muita emoção para mim –disse a Paddy, quando o velho se aproximou.-Você também acha que Majestade vai ganhar?

Paddy não respondeu.Apenas sorriu e continuou com a atenção concentrada no cavalo que treinava.

Um silêncio carregado de tensão pairava no hipódromo.Todos os espectadores olhavam fixamente para os animais, como se cada um quisesse transmitir ao seu favorito a força e a destreza necessárias para vencer aquele grande prêmio.

De repente, foi dado o sinal da largada e todos os competidores saíram como um raio.Adélia não tirava os olhos de Majestade, que, junto com outros cavalos, já fazia a primeira curva pequena.Sem notar, ela segurou a mão de Travis e permaneceu assim o tempo todo.Sentia-se também cavalgando com Majestade, falando e gritando com ele enquanto o vento lhe soprava no rosto.

Na saída da segunda curva, Steve conduziu o cavalo para o interior da pista e começou a deixar para trás os outros animais.Mais alguns segundos, e Majestade confirmava sua superioridade na reta final, separado por mais de quatro corpos do segundo colocado.

Adélia atirou-se nos braços de Travis, com uma alegria que só conseguia expressar fisicamente, sem palavras.A seu lado, Paddy ria como um menino.

-Venha, Paddy –disse Travis, abraçando-o também.-Vamos descer para receber os prêmios, antes que junte muita gente.

-Eu espero vocês aqui –disse Adélia. –Não gosto quando esses repórteres ficam todos olhando e fazendo perguntas...Vou ficar lá fora, para receber Majestade quando ele sair da pista.

-Tudo bem –concordou Travis. –Mas hoje à noite vamos comemorar.O que você acha, Paddy?

-O que eu acho é que vou acabar viciado em champanhe! –respondeu, e os dois homens riram gostosamente.

 

Naquela noite, Adélia demorou-se mais no banho e colocou o vestido de jérsei verde que havia comprado com Trish.Hesitou um pouco se devia prender os cabelos, mas acabou deixando-os soltos sobre os ombros, num lindo contraste com os tons claros da roupa.

-Veja só, Adélia Devlin... –Sorriu para a imagem bonita que o espelho imenso lhe mostrava.-Ninguém reconheceria você desse jeito lá na Irlanda.

Uma batida na porta interrompeu sua autocontemplação e ela correu a abrir, julgando que fosse tio Paddy.Mas quem surgiu diante de seus olhos maravilhados foi Travis.

Ele estava incrivelmente atraente, com um conjunto de calça e blazer de veludo azul-marinho e uma camisa de seda branca que ressaltava sua pele bronzeada.Um suave perfume de pinho desprendia-se dele.

Era a primeira vez que ambos se viam bem arrumados e estavam encantados um com o outro.Travis examinou-a por inteiro, desde os cabelos e os olhos vedes até as curvas suaves, levemente acentuadas pelo jérsei macio.Por fim, ergueu novamente os olhos até sua face e comentou, num fio de voz:

-Você está linda.

Ela sorriu, enquanto procurava recuperar-se de seu deslumbramento e pensava em algo para dizer.

-Obrigada.Eu achei que fosse o meu tio. –Numa demonstração inconsciente de seu desejo, umedeceu os lábios com a ponta da língua.

-Paddy está lá embaixo com Steve, esperando por nós.

Ele a olhava com tal intensidade, que Adélia se sentia despida.Essa sensação dava-lhe, ao mesmo tempo, prazer e medo.

-É melhor a gente descer, então –disse, dando um passo à frente, mas ele não se moveu.

Adélia ergueu os olhos da camisa de seda branca para o rosto dele, abriu a boca para falar, mas não encontrou palavras.Era impossível raciocinar diante daquele olhar apaixonado.

Depois de um instante que pareceu uma eternidade, Travis entregou-lhe uma rosa vermelha.

-Majestade mandou trazer.Disse que você gosta muito de rosas vermelhas.

-Eu não sabia que você também conversava com cavalos.

-Estou aprendendo –respondeu ele, passando um dedo em seu ombro nu.-Tenho uma boa professora.

Ela baixou os olhos para a rosa em sua mão, e lembrou-se de que apenas duas vezes na vida tinha recebido flores, e em ambas as ocasiões de Travis.Sorriu, sabendo que jamais veria novamente uma rosa vermelha sem pensar nele.Era um presente mais valioso que a jóia mais cara.

-Obrigada –disse, finalmente, e cedeu ao impulso de beija-lo no rosto.

Ambos ficaram silenciosos, contemplando-se mutuamente, numa expectativa cheia de desejo.Por fim, Travis picou duas ou três vezes, como se esforçasse para despertar de um sonho, respirou fundo e sorriu carinhosamente.

-Traga a rosa com você.

Ao fazer a sugestão, afastou-se para deixa-la passar; em seguida fechou a porta, guardou a chave no bolso do blazer e conduziu Adélia até o elevador.

O jantar foi uma experiência nova para ela.A decoração do restaurante, os pratos finos, o gosto do champanhe, tudo contribuía para dar um leve toque de irrealidade à comemoração da vitória.

A tensão dos momentos que tinha vivido um pouco antes desfazia-se rapidamente com a naturalidade e as brincadeiras de Travis.Aquelas horas passaram-se em meio a uma alegria contagiante entre todos os presentes.

Na semana seguinte Adélia estava de volta ao trabalho na Fazenda, em Maryland, vestindo sua velha calça de brim desbotada e sua camiseta branca.As longas horas com os exercícios e o treinamento dos cavalos preenchiam seus dias na rotina de sempre, restando-lhe pouco tempo para lembrar-se das experiências novas que havia vivenciado em Kentucky.

Às vezes, os repórteres ainda a procuravam, assediando-a com perguntas e mais perguntas, no estábulo e na pista de treinamento.Ela tratava de responder o mais breve possível e despachava-os com certa impaciência.Queria ter alguns momentos livres para pensar em Travis, mas só conseguia reviver o que havia acontecido quando se recolhia ao seu quarto solitário.Então, estava cansada demais para lutar contra o sono que logo a dominava.

As semanas transcorriam rapidamente e nunca mais Adélia se viu sozinha com Travis.Por um lado, sentia-se aliviada por não ter de lutar contra seus desejos.Por outro, contudo, estava ansiosa para encontrar-se nos braços dele.

Um dia, de manhã, estava na baia de Majestade, escovando-o lentamente, quando Paddy entrou e pôs a mão em seu ombro.

-Não vá mimar demais este cavalo.

-Mimo nunca é demais.-Ela voltou-se e, olhando bem para o tio, notou algo diferente em sua expressão.

-Parece cansado.Você está bem?

-Claro que sim! Mas acho que vou dormir uma semana inteira, depois da corrida de Belmont.

-Você precisa descansar.Tem trabalhado demais.E está um pouco pálido.Tem certeza de que...

-Ora, querida, não vê que estou bem? –interrompeu-a o velho.-Cuide desse cavalo –disse, dando um tapinha em Majestade -, e deixe que eu cuido de mim.

Adélia ia fazer mais um comentário, porém resolveu mudar de assunto:

-Essa corrida em Belmont é importante?

-Todas as corridas são importantes, e essa é uma das principais.Mas acredito que Majestade vai fazer bonito de novo.É um circuito longo, de milha e meia, a especialidade dele.Fortuna é diferente: corre bem em distancias curtas.Travis sabe o que faz.Cria cavalos para os dois tipos de corrida.-Paddy fitou a sobrinha bem de frente e completou: -Acho que você vai gostar muito de Belmont.

-Eu também vou?

-Claro! Travis ainda não lhe falou?

-Não.Não temos nos encontrado muito desde que voltamos de Kentucky.

-Ele anda muito ocupado.

 

O hipódromo de Belmont Park, em Nova York, estava cheio de repórteres.Adélia conseguia escapar a maior parte do tempo e, quando a encontravam, dava sempre um jeito de fugir às perguntas ou de responde-las laconicamente.

Ainda não havia lido as pequenas notas publicadas na imprensa, insinuando que havia uma relação entre ela e o proprietário da Fazenda Campos Reais.Mesmo vestindo sempre calça de brim e camiseta de algodão, não conseguia ocultar sua beleza, e o fato de esquivar-se dos repórteres só acrescentava mais mistério às especulações.

Às vezes ela sentia-se meio irritada com tudo aquilo e arrependia-se de ter ido para Nova York.Mas quando via Travis aproximando-se dos estábulos, mãos nos bolsos e cabelos revoltos ao vento, achava que enlouqueceria se tivesse ficado sozinha na fazenda.

Mas não eram exatamente os repórteres importunos que a preocupavam, quando, pela terceira vez, se preparou para assistir uma corrida com Travis.Incomodava-a o fato de que o público presente ao hipódromo de Belmont, era, de certa forma, mais sofisticada que o dos lugares onde tinha estado antes.

Em Nova York, as pessoas eram mais finas, as mulheres mais elegantes, e Adélia sentia-se um pouco desajeitada naquele ambiente.

“Não sou como essa gente”, pensou, e, sem querer, pousou os olhos em Travis, que, sentado ao seu lado, simplesmente acompanhava a movimentação com uma expressão distraída.

“A maioria dessas mulheres fica olhando para ele de um jeito tão... tão...insinuantes...Deve ser uma delas que ele convida para jantar, ou para fazer qualquer outro programa...” Os pensamentos começaram a avolumar-se em sua mente, e de repente Adélia viu-se ameaçada por uma profunda depressão.

Encostou levemente o ombro no braço forte de Travis e respirou fundo, fechando os olhos.Lutava para não se deixar vencer pela tristeza e, aos poucos, passou a sentir-se melhor, sobretudo porque a corrida ia começar.Ao perceber o silêncio no hipódromo, aprumou o corpo e olhou para a pista.Majestade estava visivelmente impaciente ao colocar-se na posição de partida; batia os cascos no chão e movia-se para frente e para trás, mas Steve finalmente o acalmou.

-Tenho de trazer você mais vezes para as corridas –disse Travis, abraçando-a pelo ombro.-Daqui a alguns meses você estará acostumada e não ficará tão tensa.

-Acho que nunca vou me acostumar.É muita emoção ao mesmo tempo.

-Mas vou traze-la de qualquer maneira –respondeu ele calmamente, acariciando-lhe os cabelos.-Você me faz sentir de novo a emoção das corridas.Parece que eu já estava habituado demais, meio frio...

Ela se virou para Travis, saboreando suas palavras suaves, mas, antes que pudesse dizer alguma coisa, soou o sinal para a largada.

A multidão pôs-se a gritar, e os cavalos dispararam em turbilhão pela pista de Belmont.Depois da primeira curva, desfez-se o bloco compacto de animais, e alguns puros-sangues passaram a destacar-se.

Majestade parecia um cometa, abrindo caminho em zigue-zague, até aproximar-se do competidor que ia à sua frente.Depois, como que impulsionado por motores possantes, suas longas pernas começaram a mostrar todo o vigor dos músculos, e lê tomou a dianteira no inicio da reta final.Steve soube conduzi-lo bem junto à cerca, até cruzarem o disco de chegada, mais uma vez em primeiro lugar.

Adélia torcia febrilmente e,quando se deu conta, não tinha os pés no chão.Travis a abraçava pela cintura e girava-a em círculos, enquanto ela agarrava firmemente ao seu pescoço.Paddy aproximou-se e abraçou-os ao mesmo tempo, os três celebrando sua alegria.

De repente, sem que Adélia conseguisse se lembrar de como aconteceu, seus lábios encontraram os de Travis.Não saberia dizer quem tinha iniciado o beijo, mas sempre se lembraria de ter correspondido.O publico gritava como louco, os últimos cavalos chegavam à reta final, os flashes das maquinas fotográficas espoucavam.Mas nem ela nem Travis viam ou escutavam coisa alguma, esquecidos do ambiente, em sua redoma de amor.

Quando ele a colocou de volta no chão, sua cabeça ainda girava e seu corpo tremia de desejo.Ela fitou-o apaixonadamente, sem perceber os olhares curiosos das pessoas mais próximas.Sentia apenas a força dos braços de Travis, que a estreitavam e a faziam sentir-se mulher.

-É melhor a gente descer –propôs Paddy, depois de pigarrear para chamar-lhes a atenção.

Ela sacudiu a cabeça, sorridente, como alguém que acorda de repente de um sonho lindo.

-Claro! Vamos cumprimentar o vencedor! –respondeu Travis.

-Vou esperar vocês lá fora –disse Adélia, sem muita convicção.

-Não, senhora.Você vem comigo.Vai ajudar Majestade a receber as flores.Hoje são cravos brancos... e um é para você.

Os três abriram caminho entre a multidão desordenada, que começava a deixar as arquibancadas, e dirigiam-se ao local onde se faria a entrega dos prêmios.

Alheia aos repórteres, aos olhares, Adélia ainda se sentia tomada pelas emoções fortes que lhe provocaram o abraço e o beijo de Travis.Mais do que nunca estava dominada pelo desejo intenso de entregar-se completamente a ele.Era como uma sede insaciável.Em meio a todas aquelas pessoas, ela não tirava os olhos de Travis, e o calor de sua paixão deixava-a arrepiada da cabeça aos pés.

“Ainda vou ser possuída interia por esse homem...”, pensava.Sua moral tinha raízes firmes, numa mistura de formação religiosa com princípios de conduta pessoal.Mas ela sabia que era inútil lutar contra o amor.O que sentia por Travis não era simples atração carnal, mas um afeto poderoso, que de certo modo sacralizava seu desejo.

 

De volta ao hotel, Adélia acompanhou Paddy até o quarto dele, pois pretendia conversar um pouco para acalmar-se a afastar seus pensamentos sensuais.Travis seguiu-os e parou à porta quando entraram.

-Reservei uma mesa para nós no Dick´s.Steve vai comemorar por conta própria, com uma garota que não o larga desde o Derby.Paddy sentou-se pesadamente na cama e declarou:

-Vocês vão sozinhos.Eu já estou velho... e muito cansado.Hoje não sirvo para mais nada.Vou até pedir para trazerem meu jantar no quarto.

Preocupada, Adélia aproximou-se e pôs a mão no ombro do tio.

-Você não está se sentindo bem, não é? Vou ficar com você.

-De jeito nenhum.Estou cansado, mas não doente! Se eu deixar, daqui a pouco vai querer que eu tome remédio.Só quero que vocês se divirtam e me deixem aqui descansando.Amanhã vou estar mais animado.

Travis olhou bem para o velhote e, após certificar-se de que todo o seu problema realmente era fadiga, virou-se para Adélia:

-Você tem quarenta e cinco minutos para se aprontar.Não gosto de me atrasar.

-Faça isso, faça aquilo! –exclamou ela, furiosa.-Você nunca fala “por favor”, “você gostaria...”Ora, não estamos no estábulo da fazenda! Pare de me dar ordens!

-E ponha aquele vestido verde.Gostei muito –Travis acrescentou, simplesmente fingindo não tê-la ouvido.E, antes de dar-lhe tempo para dizer mais alguma coisa, retirou-se e fechou a porta atrás de si.

-Isso já é demais! Não vou a lugar nenhum com esse bruto! –explodiu ela.

-Vai, sim, querida.Eu preciso descansar e você tem de se distrair.Trate de ir para seu quarto e começar a se arrumar.

Adélia resmungou um pouco, mas resolveu fazer o que o tio dizia.Procurando persuadir a si mesma de que só ia porque Paddy lhe pedira, tomou uma ducha demorada, vestiu-se bem devagar e passou uma leve camada de maquilagem no rosto.Estava penteando os cabelos quando ouviu uma batida na porta.Num gesto instintivo, consultou o relógio e verificou que ainda faltavam dez minutos para a hora marcada.Soltando faíscas com a falta de educação de Travis, abriu a porta com força e olhou-o firme.

-Mas como você está bonita! –disse ele, obviamente despreocupado com seu ar de braveza.-Vamos andando?

“Ah, como eu gostaria de ter alguma coisa para atirar nele...”, pensou e, engolindo a raiva, deixou-se conduzir para o elevador.

Durante todo o percurso até o restaurante não abriu a boca, mas Travis manteve-se imperturbável com seu ostensivo silêncio.Procurou conversar e falou-lhe sobre vários pontos turísticos pelos quais passavam.A fala macia dele acalmou-a aos poucos e, quando chegaram ao Dick´s, sua raiva já era coisa do passado.

O restaurante era o local mais maravilhoso que ela poderia imaginar, decorado com discreto luxo e repleto de pessoas elegantes.O maître recebeu-os com um sorriso polido e levou-os até uma mesa, suavemente iluminada por velas e localizada numa parte mais reservada do salão, com vista para luzes da cidade lá embaixo.

Adélia ficou em dúvida quando o garçom perguntou sobre o coquetel de sua preferência, mas Travis pediu champanhe para os dois.

-É uma pena que Majestade não possa comemorar também –comentou ela, sorrindo. –Ele fez tudo sozinho e nós é que vamos beber champanhe.

-Duvido que ele gostasse de tomar isso, mesmo que lhe levássemos uma garrafa.Majestade tem sangue de rei, mas gosto de camponês.Portanto, vamos comemorar sozinhos. –Parou de falar e acariciou levemente sua mão sobre a mesa.-Sabe, a luz da vela parece ouro nos seus olhos.

Surpresa com o comentário repentino, ela apenas o fitou, sem saber o que dizer.Por sorte, nesse momento o garçom chegou com o champanhe e encheu duas taças de cristal.

-Um brinde a Majestade!

-A Majestade, vencedor de Belmont –completou ela, em tom meio solene, e ergueu a taça para tocar na dele.

-À vitória!

Enquanto saboreavam a bebida, conversavam um pouco sobre a corrida e, por fim, ele perguntou-lhe o que gostaria de comer.

-Não sei.Escolha você.

Ele sorriu e consultou o cardápio, escolhendo coquetel de camarão para a entrada, filé e vinho francês.Depois que o garçom anotou o pedido e se afastou, Travis pegou-lhes as mãos e observou-a com olhos suaves.

-Agora você está cuidando mais das mãos –comentou, passando os dedos sobre as palmas lisas.

-Estou... –Ela sentia-se um pouco embaraçada, mas acrescentou:-Já não parecem mãos de quem só faz trabalho braçal, como você disse naquele dia.

Ele ergueu os olhos e por um momento não disse nada.Depois sorriu, meio entristecido e carinhoso.

-Eu ofendi você dizendo aquilo.Desculpe.

O tom suave de sua voz começou a faze-la sentir uma fraqueza que já conhecia bem.

-Ora, Travis...

-Suas mãos são maravilhosas.Tenho olhado muito para elas, ultimamente.São pequenas, graciosas e ao mesmo tempo muito hábeis...É raro encontrar essas três qualidades nas mãos de uma só pessoa.

Travis fitava-a com tal intensidade que, para ela, aqueles olhos azuis brilhavam mais do que as velas sobre a mesa.

-Você sofreu muito na Irlanda, não foi? –perguntou de repente.

-Bem...A gente levava a vida.

-Levava a vida? –repetiu ele, tentando compreender o sentido daquelas palavras enigmáticas.

-Quero dizer, fazíamos o que precisava ser feito e não reclamávamos.Mesmo porque não adiantava nada. –Ela sorriu, com uma ponta de tristeza, e seu olhar perdeu-se no passado.-Tia Lettie era uma mulher forte e decidida, que não deixava-se abater facilmente.Mas era muito dura também.Não se parecia em nada com papai nem com tio Paddy, embora fosse irmã deles.

Seu rosto mostrava uma expressão distante e introspectiva, ainda desconhecida para Travis, que ouvia com toda atenção.

-Tinha de cuidar de mim e da fazenda...Era muito trabalho para ela.Talvez por isso fosse tão dura –prosseguiu Adélia.-Sabe, eu sentia falta de um beijo de boa-noite, de uma palavra de afeto... –Surpreendida consigo mesma por estar lhe contando essas coisas, ela procurou encerrar o assunto:-Mas eu não tinha muito tempo para me lamentar, não.Passava o dia inteiro cuidando das plantas e dos animais, e quando caía na cama estava exausta.

O garçom chegou com os pratos, e a conversa passou a girar em torno de generalidades, estabelecendo-se um dialogo suave e gostoso como o vinho que bebiam.

Assim que terminaram de comer, Travis convidou-a para dançar e, antes de ouvir uma recusa, pegou-a pela mão e conduziu-a até a pista.

Ao encontrar-se novamente estreitada por aqueles braços fortes, Adélia enrijeceu-se, com medo de suas próprias reações.Aos poucos, porém, sentindo a ternura com que Travis a aconchegava contra o peito, relaxou e deixou-se levar pelo ritmo suave da canção, que um pequeno conjunto executava.

“Todos deveriam ter o direito de conhecer, em vida, o que é o paraíso, ao menos por um momento”, pensou ela, com um suspiro.

O seu momento prolongou-se por horas, como se uma fada estivesse zelando por sua felicidade.Era bem tarde quando saíram do restaurante e o sono já começava a pesar sobre as pálpebras de Adélia.Procurando aproveitar ao máximo aqueles últimos minutos de encantamento, aconchegou-se bem junto ao corpo de Travis, no táxi que os levou para o hotel.

-Está cansada? –perguntou ele, quase num sussurro, os lábios tocando levemente sua testa.

-Não –murmurou, pensando em como era bom recostar-se naquele peito largo.

Travis sorriu e, com voz quente, começou a cantarolar baixinho uma antiga canção de amor, enquanto lhe acariciava os cabelos.Adélia fechou os olhos e entregou-se a seus sonhos apaixonados de mulher.

-Chegamos –anunciou ele, de repente, passando a mão em seu rosto.

-Chegamos aonde? –Abriu os olhos e viu o rosto dele tão perto de seus lábios que a realidade começou a mesclar-se com a fantasia.

-Chegamos ao hotel –murmurou ele, afastando-lhe da face uma mecha de cabelos.

-Oh! –exclamou ela, finalmente despertando de seu devaneio.

Saíram do carro, atravessaram o saguão no mais completo silêncio, e entraram no elevador.Quando chegaram ao andar onde ficavam seus apartamentos, caminharam até a porta de Adélia e Travis tirou a chave do bolso.Ela ergueu a cabeça para dizer boa-noite, mas seu sorriso se desfez no momento em que deparou com a expressão de ternura estampada nos olhos azuis.Instintivamente, encostou-se na porta ainda fechada e esperou.Travis aproximou-se e colocou a mão em sua nuca, acariciando-a com movimentos suaves.

Olharam-se demoradamente e ele baixou a cabeça na direção de seus lábios.Foi um beijo macio e carinhoso, diferente dos beijos loucos que haviam trocado até então.Adélia apoiou as mãos no peito dele, como que para não cair, mas logo o envolveu num abraço quente e apaixonado.

Os lábios de Travis percorreram-lhe a face e tocaram-lhe os olhos e a testa.O calor que lhe abrasava o corpo foi cedendo lugar a uma tontura leve, como se tivesse ingerido uma poção mais forte que o champanhe...A verdadeira poção do amor.

Suas mãos mergulhavam nos cabelos dele, e um arrepio profundo percorreu-lhe a espinha.Colada ao corpo de Travis da cabeça aos pés, sentia-se agora preparada para entregar-se inteira ao homem que amava.

Ele desceu as mãos por suas costas e apertou-a mais junto ao peito e às pernas.Em resposta, Adélia deslizou os dedos sob o blazer e deteve-se na cintura dele, sentindo mais perto o calor de sua pele ardente.Um gemido de prazer soltou-se de seus lábios, cada vez mais ávidos.

O beijo que começara tão suave transformara-se numa labareda que unia suas bocas, seus corpos, seus corações num incêndio único e total.Parecia que nada seria capaz de separa-los naquele momento, mas, de repente, Travis afastou-se.Louca de desejo, ela manteve a cabeça e os lábios entreabertos, esperando que ele recomeçasse a beija-la com toda fúria.Travis, entretanto, abriu a porta e a fez entrar no quarto.

-Boa noite –murmurou, e deu-lhe as costas.

Por alguns instantes, Adélia ficou parada no lugar onde ele a deixara, incapaz de mover-se.O desejo que ainda lhe abrasava o corpo, a magoa pela rejeição súbita de que tinha sido vitima atormentavam-na.”Eu... eu me ofereci...e ele não quis”, lamentou-se.

Mesmo com sua inexperiência, sabia que tinha demonstrado a força de sua paixão e a totalidade de sua entrega, e não conseguia entender por que Travis se recusara a ir até o fim.”Mas não podia ser diferente”, concluiu, após um momento de reflexão.”Afinal, apenas cuido de seus cavalos e sirvo para distrai-lo quando se sente sozinho.Ele só estava sendo gentil, querendo me proporcionar uma noite agradável, que deveria terminar com um beijo.Eu é que imaginei demais...”

Desanimada, trancou a porta e decidiu que era melhor tentar dormir.Antes, porém, de trocar de roupa, olhou para o vestido, um pouco amarrotado, e pensou: “Acho que preciso me dar por satisfeita com o que estou tendo e parar de perseguir o que nunca será meu.Não sou Cinderela... e faz tempo que passou da meia-noite”.

 

Na manhã seguinte estava chovendo quando chegaram ao aeroporto.Na pista, alguns repórteres tentaram falar com Adélia, mas ela evitou-os e deixou que Travis e Paddy os atendessem.Rapidamente, entrou no avião e, da janela, observou Travis livrando-se dos jornalistas para embarcar também.

Durante o vôo, permaneceu quase o tempo todo lendo uma revista, sem saber se devia conversar.Naquela manhã, Travis tinha agido naturalmente com ela, conversando de forma amistosa, sem demonstrar nada especial.

Antes que pudesse decidir-se, ele se levantou e foi conversar com Steve, sentado mais à frente.Adélia recostou-se na poltrona e fechou os olhos, pensando desesperadamente naquela relação. “O que devo fazer? Como posso controlar minhas sensações quando estou sozinha com ele? Mas devo esconder o que sinto? Afinal, não vou engana-lo... ele sabe que o amo intensamente”.

Suas mãos nervosas passeavam sobre as folhas da revista, amassando-as sem perceber.”E se ele começar a sentir pena de mim? Oh, isso eu não conseguiria suportar... Acho que tudo o que me resta é arrumar um jeito de nunca ficar sozinha com Travis”, concluiu, com um suspiro triste.

E, para não pensar mais no assunto, abriu os olhos e foi sentar-se ao lado de Paddy.Mais uma vez notou, preocupada, que ele parecia doente.

-Você não está bem.Por que não me conta o que tem? –disse carinhosamente, passando a mão no rosto do velho.

-Não tenho nada, querida.Só estou muito cansado –respondeu ele, mas sua voz tremula o traiu.

-Você está frio –comentou, com expressão um pouco assustada.-Vamos chamar um médico assim que chegarmos à fazenda.Quer um cobertor? Um chá quente?

-Não se preocupe comigo.Eu não...-Ele parou de falar e fez uma careta de dor.

-Que é que você tem? O que está doendo?

-Foi só uma pontada...-murmurou, com dificuldade, e abriu a boca tentando respirar melhor, mas seu corpo amoleceu e tombou para o lado.

-Tio Paddy! Tio Paddy! Meu Deus! O que está acontecendo?

Adélia amparou-o com os braços e gritou desesperadamente para Travis, que correu em sua direção.Ele deitou o velho no corredor do avião, abaixou-se e pôs a mão em seu peito.Sem desviar os olhos do rosto pálido de Paddy, ordenou a Steve:

-Diga ao piloto que chame uma ambulância pelo rádio.E que esteja no aeroporto quando chegarmos.

Em seguida começou a massagear de forma ritmada o peito do velho e, quando o jóquei voltou, apressado, murmurou-lhe:

-Ataque cardíaco!

Adélia ouviu e colocou a mão de Paddy em seu peito, como se acreditasse que assim lhe transferiria parte de sua energia.

-Pelo amor de Deus, Travis... você acha que ele... vai morrer? –perguntou, chorando copiosamente.

-Pare com isso! Controle-se! Se você ficar histérica, não vai ajudar nada!

Envergonhada, ela se calou, mas não conseguiu parar de chorar.Sempre segurando a mão do tio sobre seu peito, afagou-lhe os cabelos e sussurrou-lhe palavras de carinho.Mas sabia que ele não a escutava, e rezava interiormente para que voltasse logo a si.

Os minutos arrastavam-se enquanto Travis controlava continuamente o pulso de Paddy, ainda inconsciente.Ouviam-se apenas os murmúrios de Adélia, quando o avião alterou a velocidade e começou a descer.Ela não soltou a mão do tio enquanto não abriram a porta e entraram dois enfermeiros, que logo puseram o doente numa maca e o levaram.

Adélia queria seguir junto com o velho, na ambulância, mas Travis segurou-a pelo braço e disse que iriam atrás de carro.Ela não o contrariou; sua mente estava inteiramente tomada pelo medo e incapaz de raciocinar.

Ao chegar ao hospital, permaneceram mais de uma hora na pequena sala de espera, até receberem alguma noticia de Paddy.Durante todo o tempo, Travis ficou andando de um lado para o outro, sem dizer uma palavra.Adélia permaneceu sentada, com os olhos fechados, torcendo as mãos e rezando mentalmente.Sua vontade era gritar, protestar a plenos pulmões contra sua impotência.Mas sabia que precisava controlar-se para não agravar ainda mais uma situação já em si angustiante.

Quando, finalmente, apareceu um médico, Travis correu em sua direção como se fosse ataca-lo, tão ansioso estava por obter alguma informação.

-Os senhores são parentes de Padrick Devlin?

-Sim –respondeu Travis. –Como ele está?

-Foi um problema de coronária... Não chegou a ser um ataque dos mais graves.Ele está consciente, neste momento, mas sua situação pode agravar-se por causa da preocupação com uma mulher chamada Adélia.

-Sou eu –disse Adélia, erguendo lentamente a cabeça.-Ele vai morrer, doutor?

O médico olhou demoradamente para seu rosto pálido, onde a dor e sofrimento se estampavam com toda a intensidade.Antes de falar, aproximou-se e pôs a mão em seu ombro.

-Vou ser muito franco com você, minha filha.Não sabemos ainda.Estamos fazendo o possível e o impossível para controlar a situação, mas nesses casos o paciente não pode ficar angustiado, senão seu estado piora.O sr.Devlin está muito preocupado com você, e sito pode ser ruim para ele.Vá vê-lo, mas não faça nada que possa perturba-lo.Procure acalma-lo. –O médico virou-se para Travis e perguntou:-O senhor é Travis Grant? Ele quer vê-lo também.Venham comigo.

Travis tomou Adélia pela mão e, juntos, seguiram o médico até o Centro de Terapia Intensiva.

-Fiquem apenas cinco minutos –preveniu o médico, ao abrir a porta para eles.

Vários fios e tubos ligavam o corpo de Paddy a três máquinas que zuniam baixinho ao lado da cama.Ele estava pálido e abatido, e parecia incrivelmente velho.

-Adélia, querida... –murmurou num fio de voz, quando ela aproximou-se para pegar-lhe a mão.

-Tio Paddy... –Ela beijou a mão e levou-a ao rosto. –Você vai melhorar.Eles vão cuidar bem de você...

-Chame um padre, minha filha.

-Ainda não é hora, graças a Deus.Fique calmo e procure descansar.Não se preocupe com nada.

Adélia sentiu que ia começar a tremer e reuniu todas as suas forças para controlar-se.

-É com você que estou preocupado.Você não pode ficar sozinha no mundo outra vez. –Paddy parou de falar para tomar fôlego e continuou: -Travis... está aqui também?

-Aqui ao meu lado, tio.

Travis deu um passo à frente e postou-se junto à cama, sem dizer uma palavra.

-Cuide dela por mim.Se me acontecer alguma coisa, não quero que ela fique sozinha de novo.Ela é muito jovem, e tem sofrido tanto... –Paddy parecia reunir todas as suas forças naquele momento.-Prometa que vai cuidar dela... Confio em você...

-Eu prometo, não se preocupe.Vou casar com ela. –Travis respondeu com voz firme, colocando a mão sobre as do velho e de Adélia.

Ao ouvir essas palavras, Paddy descontraiu visivelmente os músculos do rosto, e chegou mesmo a esboçar um sorriso.

-Quero ver vocês casados, então.Por que não chamam um padre e se casam aqui ao meu lado?

-Boa idéia.Agora procure acalmar-se e descansar.Vamos nos casar aqui mesmo, hoje à tarde.Só preciso que um juiz nos libere dos problemas, mas acho que não vai se difícil conseguir isso.

-Está bem.Vou descansar até vocês voltarem.

Adélia forçou um sorriso para o tio e beijou-o na testa, antes de retirar-se com o médico e Travis.Assim que fecharam a porta, ela olhou firmemente para Travis, mas ele não a deixou falar.

-Aqui, não! –disse, segurando-lhe o braço.Depois, virou-se para o médico e perguntou: -O senhor teria uma sala onde pudéssemos conversar em particular?

O médico levou-os até uma saleta discreta, fechou a porta e deixou-os sozinhos.

 

-Por que você fez isso? Como pode dizer para meu tio que vai se casar comigo? Por que mentiu assim, descaradamente?

-Não menti –respondeu ele, com toda a calma.-Eu quero mesmo me casar com você.

-O que é que você está pensando? Não devia ter dito aquelas coisas –continuou ela, como se não o tivesse ouvido.-Isto que você fez foi uma grande maldade.Tio Paddy está mal, sofrendo muito, e não merece que você abuse da confiança dele.Você não tinha o direito de prometer que vamos nos casar.

-Controle-se e escute –ordenou Travis, segurando-a pelos ombros. –Eu disse o que ele precisava ouvir.E, se é para salva-lo, você vai se casar comigo.

-Não.Não quero participar desta farsa.A idéia da mentira foi sua... Agora você que se arranje.Mas não faça nada que agrave ainda mais o estado de meu tio, por favor.

-Ele não significa nada para você? Será que é tão egoísta e tem o coração tão duro que não pode fazer um pequeno sacrifício por ele?

Adélia sentou-se numa cadeira com o olhar perdido.Era grande a confusão em sua mente.Queria uma pausa para refletir, mas Travis continuou falando:

-Hoje à tarde nos casaremos ao lado de Paddy, como eu lhe prometi.E você vai deixar claro que está muito feliz, porque era justamente o que queria.Depois, quando ele estiver fora de perigo, você pode pedir o divórcio.

“Tio Paddy quase morrendo... Travis dizendo que quer se casar comigo e já avisando que podemos nos divorciar em seguida... Oh, preciso de alguém para me dizer o que devo fazer...”, pensava, transtornada com a situação.

Tudo o que mais desejava era pertencer a Travis, mas nunca lhe passara pela cabeça que o casamento fosse o caminho normal para chegar a isso.Jamais sonharia que um dia ele pudesse propor-lhe que se casassem.E agora só o fazia para salvar Paddy, não para dar-lhe amor.Tanto era assim, que se apressara em falar sobre divorcio, pronunciando a palavra com toda a naturalidade.Como podia pensar em divorcio antes mesmo de pôr a aliança em seu dedo? Adélia respirou fundo e procurou refletir friamente sobre a situação, porém estava angustiada demais.

“Eu daria tudo para ser sua, mas não desse modo... Deve haver uma saída... Eu tenho de encontrar uma solução”.

Com voz a voz mais firme que conseguiu ter nesse momento, declarou secamente:

-Sou católica e não posso me divorciar.

-Então poderá pedir a anulação do casamento.

As palavras de Travis tiraram-lhe o resto das forças que ela ainda procurava conservar.

-Anulação? –repetiu apalermada.

-Sim, anulação.É um processo relativamente simples, quando a união não se consuma.É só uma questão de burocracia.

Travis falava com voz calma, como se tratasse de negócios, mas logo indicava que estava começando a se impacientar.

-Pelo amor de Deus.Será que você não pode fingir para o bem de Paddy? Não vai lhe custar nada! E, para ele, é uma questão de vida ou morte.Seja realista!

Segurou-a pelos ombros, tentando controlar a raiva, e fitou-a bem nos olhos, que expressavam medo e preocupação, confusão e insegurança.Sem ter o que responder, ela baixou as pálpebras e deixou as lágrimas correrem livremente por seu rosto pálido.Travis abraçou-a, conduzindo-a até um sofá.

-Desculpe.Gritar com você não vai adiantar nada, não é mesmo? Sente-se aqui comigo.Já faz algumas horas que você está se controlando...Pode chorar, acho que vai lhe fazer bem...Depois a gente conversa.

-Não quero chorar.Não adianta nada chorar.Solte-me –ela pediu, mas ele a abraçava firmemente. –Tenho muito medo...

-Mas eu estou com você.

Ela o olhou, desesperada, e pôs-se a soluçar convulsivamente, empapando de lágrimas a camisa de Travis, que a amparava em seu sofrimento.

-É a primeira vez que choro desde que meus pais morreram... –disse de repente, numa voz entrecortada.

Ele se manteve em silêncio, abraçando-a e acariciando seus cabelos.Aos poucos, Adélia acalmou-se e, por fim, após um longo suspiro, olhou-o demoradamente e murmurou:

-Faço o que você achar melhor.

 

Enquanto Travis providenciava os papéis necessários, que conseguiu reunir num espaço de tempo incrivelmente breve, ela permaneceu no hospital.Andando de um lado para o outro, no mesmo corredor, recusou-se a descansar ou a comer e dirigia olhares ansiosos a todos os médicos que saíram do Centro de Terapia Intensiva.

Quando tudo estava pronto para a cerimônia, assinou o documento que lhe apresentaram, cumprimentou o padre que os casaria e aceitou o ramalhete que uma enfermeira lhe ofereceu.

-A noiva sempre tem flores nas mãos –disse-lhe a moça.

Adélia esforçou-se para sorrir, mas sabia que não era propriamente uma noiva.A lei obriga-a a acrescentar o sobrenome Grant ao seu nome, mas não havia amor naquela união... ao menos da parte de Travis.Tudo era uma farsa para dar algum alento ao pobre tio.

Ao lado do leito de Paddy, entre aparelhos hospitalares e o forte cheiro de remédios, tornaram-se marido e mulher.Ela repetiu mecanicamente as palavras do padre e olhou sem muito interesse para a aliança que Travis pôs em seu dedo.

Em dez minutos estava tudo terminado, e ela ergueu o rosto para receber o beijo leve de Travis, procurando mostrar-se alegre.Depois, inclinou-se e beijou o tio.A felicidade que viu nos olhos de Paddy deu-lhe a certeza plena de que agira certo: seu casamento o livraria das garras da morte.

-Querida, você será muito feliz –murmurou o velho. –Travis é um homem bom.

Ela forçou um sorriso e acariciou-lhe a face.

-Agora descanse um pouco.Logo você vai voltar para casa.

-Vou descansar, sim... –respondeu Paddy, voltando-se para Travis.-Cuide bem dela, rapaz... minha sobrinha é puro-sangue...

 

Os dois voltaram para fazenda sem dizer nenhuma palavra.Quando Travis parou o carro defronte à casa principal, Adélia abriu a boca para falar alguma coisa, mas ele não deixou.

-Já telefonei para a governanta e dei a noticia do casamento.Mandei preparar o seu quarto e trazer suas coisas para cá.

-Mas eu não vou...

-Por enquanto, você é minha mulher e vai viver em minha casa –ele interrompeu-a, com um tom de indiscutível autoridade.-Teremos quartos separados, mas vamos manter as aparências.Ninguém deve saber do que combinamos, senão as coisas podem se complicar para Paddy.

-Está bem.Você tem razão.

-Vou agir da melhor maneira possível com você.Tudo o que peço é que represente seu papel.Por exemplo, agora não deve mais trabalhar.

-Como? Vou ficar sem cuidar dos cavalos?

-Não é isso.Pode cuidar deles de vez em quando, mas aja como minha mulher, e não como uma empregada.Não quero vê-la limpando os estábulos nem escovando os animais todos os dias.Não se esqueça de que agora você é a sra.Grant.

-Vou fazer o possível –murmurou ela, fazendo força para não chorar.-Reconheço que você tinha razão quando resolveu casar.Tio Paddy ficou muito feliz, e quero lhe agradecer pela idéia que teve.

Ele moveu a cabeça, quase imperceptivelmente, e desceu para ajuda-la a sair do carro.Depois conduziu-a para casa, onde foram recebidos por uma senhora simpática, de cabelos grisalhos, que veio em sua direção enxugando as mãos no avental branco.

-Ana, esta é Adélia, minha mulher.

-Mas que surpresa agradável! –comentou a mulher, voltando-se para Adélia. –Já estava mesmo na hora de uma moça bonita como você levar meu Travis para o altar.

Adélia murmurou alguma coisa ininteligível, torcendo para agir adequadamente na situação.

-Pobre Paddy, nós gostamos tanto dele –prosseguiu Ana, quase chorando; mas logo se recobrou: -Oh, Travis, sua esposa parece tão cansada, coitadinha! Leve-a para o quarto...Já está tudo pronto.

Adélia deu um passo em direção à escada, mas, exausta pelas emoções do dia, sentiu as pernas fraquejarem e apoiou-se numa cadeira.Sem dizer nada, Travis tomou-a nos braços e carregou-a para cima, sob o olhar aprovador da governanta, que interpretou seu gesto como uma obediência à velha tradição.

Chegando ao quarto, ele a deitou numa cama enorme e sentou-se a seu lado em silêncio.

-Desculpe... –murmurou Adélia.

-Não há o que desculpar.Quando é que você vai entender que fraqueza não é defeito? –perguntou em voz baixa.

Ela fitou-o longamente, com vontade de puxa-lo para junto de seu corpo, carente de carinho e proteção.Só Travis podia dar-lhe o calor e a segurança de que tanto precisava naquele momento difícil.Mas, antes que pudesse fazer qualquer coisa, ele se levantou e caminhou até um armário.

-É melhor você descansar um pouco –disse ,abrindo o armário.-Não sei onde Ana guardou suas camisolas.Meu Deus, como você tem pouca roupa!

Começou a abrir as gavetas e portas, fazendo comentários que ela não ouvia direito, pois estava entretida em observa-lo.Nem se sentia embaraçada por vê-lo remexer tão à vontade em suas coisas.

-Amanhã, faça o favor de fazer compras e renovar este guarda-roupa –disse ele, finalmente, estendendo-lhe uma camisola de algodão branco.

-Pare de me dar ordens.-Sentou-se na cama e olhou-o friamente.

-=Enquanto estivermos casados, você terá de se vestir como mulher de Travis Grant.Mas cuidaremos disso amanhã.Agora durma.

Sem esperar resposta, ele se virou e saiu do quarto.Cansada demais para apreciar melhor a beleza do aposento, Adélia tirou a saia e a blusa com que tinha se casado, vestiu a camisola e deitou-se.

 

Quando acordou, na manhã seguinte, começou a se lembrar do que tinha acontecido.Sentiu no dedo a aliança e, mais uma vez, teve vontade de chorar.Tentou controlar-se, distraindo-se com o quarto, e a primeira coisa que percebeu foi que era pelo menos duas vezes maior que seu dormitório na casa de Paddy.Um papel verde-claro, com suave estampa geométrica, revestia as paredes, numa das quais abriam-se três enormes janelas.Um armário embutido ocupava o outro lado.Poltronas forradas de veludo verde-musgo distribuíam-se harmoniosamente, e uma mesa redonda, sobre a qual estava um vaso de flores, completava o mobiliário.

Adélia sentou-se na cama e segurou os joelhos junto ao peito, enquanto olhava pela janela.”Como eu seria feliz aqui, se tio Paddy estivesse bem e se Travis me amasse”, pensou.

Disposta a levar a farsa até o fim, novamente engoliu as lágrimas que ameaçavam encher-lhe os olhos e entrou no banheiro.Depois de um banho, vestiu-se e desceu, esperando encontrar logo a cozinha daquela casa estranha que agora era seu lar.Uma das portas que davam para o hall estava aberta e ela parou no umbral; tratava-se de um escritório, onde Travis examinava uns papéis.Ao vê-la, ele largou o que fazia e aproximou-se.

-Bom dia.Está se sentindo melhor?

-Sim... –Adélia respondeu, intimidada diante do homem que agora era seu marido.-Acho que nunca dormi tanto em toda minha vida.

-Você estava exausta.Agora já está mais corada –comentou ele, examinando-lhe o rosto com atenção.

-sinto-me muito bem –disse ela, refreando a vontade de manda-lo parar com aquele exame desconfiado.-Estava pensando em telefonar para o hospital e pedir noticias de tio Paddy.

-Já telefonei.A situação continua igual, mas ele dormiu bem a noite inteira.Parece um bom sinal...

Adélia sentiu um tremor pelo corpo todo e fechou os olhos.Travis abraçou-a suavemente.

-Oh, eu pensei que ele ia morrer.Tive tanto medo de perde-lo.

-Ele vai ficar bom.Agora é só uma questão de esperar e não se preocupar muito.Mas quando voltar para cá, Paddy vai ter de trabalhar menos; precisamos convence-lo disso.

-Sim, e você vai me ajudar a cuidar dele, não é?

-Claro que vou –respondeu ele, acariciando-lhe os cabelos, e mudou de assunto:-Acho que você está com fome.Não quis acorda-la para jantar, ontem à noite.

-Parece que faz uma semana que não como.Onde é a cozinha? Vou preparar alguma coisa.

-Ana já preparou. –Ele a tomou pelo braço e conduziu-a à sala de jantar.

A imensidão do aposento, o luxo do mobiliário, a elegância da mesa arrumada para dois provocaram-lhe uma estranha reação de recuo, como se estivesse ali por engano.Travis notou sua perturbação e resolveu fazer uma brincadeira para descontraí-la:

-Não se preocupe.Como o que Ana faz desde que nasci, e nunca passei mal.

-Oh, não é isso...É que não estou acostumada... a ter alguém para preparar as refeições.

Ele riu e puxou a cadeira para ajuda-la a sentar-se.

-Mas não precisa fazer essa cara.Ana vai achar que já estou batendo em você!

-Bem, eu não queria que você pensasse...-ela começou a responder, mas interrompeu-se. –Quero agradecer pelo quarto maravilhoso que você mandou preparar para mim.

-Fico contente por você ter gostado!

Diante da naturalidade da resposta, Adélia não soube o que dizer e sentiu-se aliviada quando Ana entrou com o café.

-Bom dia sra.Grant.Espero que esteja melhor –disse a governanta, sorrindo.

-Obrigada.Estou melhor, sim –respondeu, surpreendendo-se por ser chamada de sra.Grant.

-Aposto que está com fome! Travis disse que a senhora não comeu praticamente nada ontem.É preciso alimentar-se bem –comentou Ana, dispondo bules e pratos sobre a mesa.

-É preciso alimentar-se bem –repetiu Travis, rindo. –É isso o que eu ouço desde pequeno.E nunca adiantou protestar.Quando Ana diz isso, você tem de comer e pronto.

-Não ligue para essas bobagens que ele fala, sra,Grant.-Meio encabulada, a empregada achou melhor mudar de assunto: -Bem, agora que Paddy está no hospital, acho que vocês vão ficar muito ocupados lá na cidade.Mas assim que estiver tudo resolvido, a senhora me diz como quer as coisas, está bem? Por enquanto, se achar que está bem assim, eu cuido apenas das refeições.

-Eu... acho que está bem assim.

-Vamos ter muito tempo para conversar sobre a casa quando Paddy melhorar, não é, sra.Grant? E agora comam, enquanto ainda está tudo quente. –concluiu a velha criada, saindo da sala.

Durante a refeição, Adélia mal conseguia ouvir o que Travis lhe dizia, tão absorta estava em examinar o ambiente.Suntuosas cortinas de voal pendiam das janelas, roçando o espesso carpete marrom.A mobília era de carvalho maciço e as paredes, revestidas com lambris de madeira clara, estavam adornadas por quadros autênticos, de pintores famosos.Uma estante que ia do chão ao teto abrigava finos objetos de cristal e peças de prata.A sensação de ser intrusa apossou-se dela novamente, e Travis percebeu, mas, desta vez, sabia que seria inútil tentar distraí-la.

-O que há?

-Não sei... Eu me sinto estranha nesta casa.Este não é meu ambiente.Não sei como devo me comportar, não sei o que esperam de mim.Não quero mete-lo em nenhuma situação embaraçosa, mas acho que vou acabar dizendo algo que não devo...

-Adélia...-Pela expressão no rosto de seu marido ela notou que já devia ter falado o que não devia. –Você não vai me meter em nenhuma situação embaraçosa, simplesmente porque jamais eu deixarei de me sentir à vontade com você.Acalme-se e faça as coisas exatamente como acha que deve fazer...É isso o que esperam de você.

Ficaram uns minutos sem dizer nada, enquanto Adélia mexia com os dedos na alça da xícara de café.

-Você já viu sua fotografia no jornal? –perguntou ele, sorridente.

-Minha fotografia?

-Bem, na realidade são duas.Numa você está com Steve, sentada na cerca da pista do hipódromo de Belmont; na outra, batida logo após a vitória de Majestade, você aparece comigo.

Adélia enrubesceu, imaginando que a segunda foto devia ter captado o abraço que se deram depois da corrida.

-Não sei o que esses repórteres querem, quando me entrevistam e tiram fotografias... –comentou, tentando disfarçar sua perturbação.

-Eu também não.Mas parece que estavam muito interessados em saber da vida amorosa de minha bonita funcionaria.

-Oh, todo mundo sabe que eu e Steve somos apenas amigos, e que eu e você...-Parou no meio da frase, sentindo que lhe faltavam palavras.

-E que eu você somos casados –completou ele. –Acho mesmo que os jornalistas não vão se surpreender quando souberem que nos casamos.Posso não lhes dar essa informação por enquanto, mas logo saberão. –Travis sorriu e levantou-se; despois deu a volta na mesa e tocou-lhe o braço. –Bem, agora assuma uma expressão mais descontraída e vamos sair.Paddy nos espera no hospital.

 

Toda a angustia de Adélia se desfez quando viu que o tio havia recuperado a cor e apresentava um aspecto quase normal.A voz ainda estava um pouco fraca, mas saía praticamente sem esforço.

-Já estou bem, não preciso mais desse monte de fios e aparelhos –disse o velho, rindo, enquanto Adélia lhe beijava a mão.

A visita foi breve e, tão logo saíram do quarto, os dois dirigiram-se para a saleta onde tinham conversado no dia anterior.

-Hoje não podemos ficar muito tempo com ele.O médico falou que Paddy precisa descansar muito ainda, e vê-la de vez em quando...

-Mas eu não vou cansá-lo.Só quero ficar mais um pouquinho com ele.

Travis sorriu, acariciando-lhe o rosto.

-Tenho de voltar para a fazenda agora, mas Trish logo vem busca-la para irem as compras.Acho que ela sabe melhor do que eu o que você precisa.Enquanto a espera, você pode ficar com Paddy.

-Você é muito bom fazendo essas coisas todas por mim... –Adélia tocou-lhe o braço timidamente.-Não sei como lhe agradecer.

-Ora, deixe disso... –Travis tirou umas notas da carteira e colocou-as na mão dela.-Já providenciei um depósito em sua conta no banco, mas acho que vai precisar de dinheiro também, além de cheques.

-Mas eu não posso...

-Não discuta, por favor.E não se esqueça de comprar umas bolsas... acho que já está na hora.Vejo você à noite.

Travis afastou-se pelo corredor do hospital e ela ficou olhando-o, novamente atormentada por pensamentos confusos.

 

-Qualquer um pode perceber que o senhor está fingindo...Gosta é de ser o centro –brincou Trish, entrando no quarto de Paddy.

O velho riu com prazer e estendeu a mão para cumprimenta-la, mas a recém-chegada preferiu brinda-lo com um beijo na testa.

Reunidas à volta do leito, Adélia e a cunhada ainda conversavam um pouco com o enfermo e logo se retiraram, pois o médico recomendara que não se demorassem.

Assim que se encontraram no corredor, Trish abraçou-a calorosamente, cumprimentando-a pelo casamento.

-Estou tão feliz por vocês por vocês dois! Finalmente vou ter a irmã que sempre quis.Jerry manda um abraço, também –completou, referindo-se ao marido. –Mark e Mike ficaram loucos de alegria quando souberam que você é agora tia deles.

Adélia sentia ímpetos de contar a verdade para aquela que parecia ser sua amiga, mas lembrou-se da promessa que tinha feito a Travis.Com muito custo conseguiu controlar-se e sorriu para a cunhada, sem saber o que dizer.

Trish tomou-a pelo braço e dirigiu-se para o elevador.Estava tão etusiasmada com as próximas compras que nem percebera a agitação de Adélia.

-Travis mandou comprar um guarda-roupa completo.E eu, é claro, respondi que estava muito contente por seguir as ordens dele, e que ia gastar o máximo que pudesse!

Sorridentes, as duas entraram no elevador e um minuto depois estavam no pátio de estacionamento.Cada qual tomou lugar no pequeno carro esporte e Trish saiu a toda velocidade.Contudo, ao invés de tomar o caminho do grande magazine onde haviam feito compras da outra vez, rumou para um quarteirão de butiques famosas, freqüentadas por gente da alta sociedade local.

-Pronto.É agora que vamos começar a dilapidar a fortuna do meu querido irmão –anunciou, com ar maroto, parando em frente a uma loja luxuosa.

As horas que se seguiram passaram como um turbilhão.Adélia viu-se conduzida de uma butique a outra, e em todas tinha de experimentar dúzias de roupas, sapatos, cintos, enfeites.E sempre saía carregando mais um pacote.

Ambas não tinham mais braços para segurar tantos embrulhos.Eram vestidos para noite, roupas esportivas para ocasiões menos formais, peças íntimas da melhor qualidade, sapatos e bolsas italianas, echarpes de seda francesas, capas de chuva importadas da Dinamarca.Nenhuma das duas saberia dizer tudo o que haviam comprado, sem falar nos cosméticos e nas bijuterias.

-Acho que Travis não estava pensando nisto quando disse para você fazer compras comigo –disse Adélia, diante de uma pilha de caixas com meias e lingerie, na décima loja em que haviam entrado.-Eu nunca vou conseguir usar tanta roupa...

Preocupada com a escolha de uma belíssima camisola de seda verde, Trish parecia nem ouvi-la.

-Já é demais...-insistiu Adélia.

-Não é demais, não.O que você vai usar em todas as viagens, festas e cerimônias em que for com ele? Bem que Travis me avisou para comprar tudo que fosse necessário, sem ligar para o que você dissesse.Prove esta camisola.Verde é a sua cor.

-Não podemos comprar mais nada.Não vai sobrar lugar para nós duas no carro...

-A gente manda entregar –respondeu Trish, enquanto desviava a atenção para uma blusa de linho branco e Adélia se dirigia mais uma vez para o provador.

 

No fim da tarde, Adélia estava parada no meio do quarto olhando para a imensa pilha de pacotes sobre a cama.Sem animo para começar a guardar as coisas no armário, resolveu descer e ficou em dúvida se deveria ficar na casa ou sair para procurar Travis no estábulo.

-Sra.Grant, como vai Paddy? –perguntou Ana, saindo de um dos quartos.

-Parece ótimo.Estive com ele de manhã e passei no hospital há pouco para saber noticias.

-A senhora está com um ar tão cansado...

-Fui fazer compras com Trish.Acho que se tivesse limpado o estábulo não teria me cansado tanto.

-Vou preparar um chá.Sente-se ali na sala, que já venho.

-Ana! –Adélia chamou-a antes que ela se afastasse. –Será que eu posso...ir até a cozinha e tomar chá com você? Não estou habituada a ser servida.

A governanta sorriu maternalmente e colocou a mão em seu ombro.

-Venha comigo.Vamos tomar esse chá e conversar um pouquinho.

Durante quase uma hora as duas ficaram sentadas à mesa, bebericando, ingerindo petiscos e tagarelando como crianças no recreio.Depois, sem parar de falar, decidiram cuidar do jantar.Foi então que Travis surgiu à porta da cozinha e, sem ser notado, ficou observando-as por alguns segundos.

-Ora, vejam só, um milagre! –exclamou por fim, e as duas se voltaram, surpreendidas.-Nunca pensei que um dia alguém ia entrar nessa cozinha com você, Ana! –disse, rindo, e voltou-se para Adélia. –Ela nunca deixou ninguém mexer nesse fogão.Você usou algum feitiço irlandês?

-Só o feitiço da meiguice dela mesma, seu abelhudo! –respondeu a governanta.-E agora, Adélia, tire esse homem daqui.Ele só atrapalha na cozinha.

-Vamos até o terraço, querida.Está tão bonito lá fora!

Travis tomou-a pela mão e conduziu-a até um terraço elevado, onde a brisa levava o doce perfume das flores.Ainda havia alguma luz do Sol, que projetava sombras suaves nas paredes de pedra do casarão.Sentaram-se um defronte ao outro, em confortáveis cadeiras de vime, e por alguns instantes ficaram em silêncio, usufruindo a paz e a beleza daquele entardecer de junho.

-Então, compraram tudo?

-Tudo? Nunca em minha vida inteira vi tanta roupa –respondeu ela, notando que Travis procurava conter o riso. –Quero ver você rir quando tiver de construir outro quarto só para guardar o que Trish comprou! O que vou fazer com todas aquelas coisas?

-Você pode tentar usar –sugeriu Travis, ironicamente. –Em geral é isso o que as pessoas fazem com as roupas.

-Tudo bem. –Adélia controlava-se para não reagir à ironia. –Entendo perfeitamente que não posso usar minhas roupas velhas enquanto estivermos... casados.Mas depois, quando vier o... –seus lábios recusavam-se a pronunciar a palavra divórcio –quando as coisas estiverem como antes, eu...

-Aconteça o que acontecer, as roupas são suas.Eu é que não vou usar vestidos.

Ele tentou brincar, mas nenhum dos dois riu.Adélia ficou quieta, vendo-o andar de um lado para o outro, como se estivesse com muita raiva.Finalmente levantou-se também e tocou-lhe o braço.

-Desculpe.Não quis ser ingrata, mas é que tudo está acontecendo tão depressa... O que não quero é tirar vantagem alguma vantagem dessa situação, você entende?

-Mas é claro que ninguém está tirando vantagem de nada! Não vê que praticamente obriguei você a comprar essas roupas? Você é tão franca e inocente! –completou, com uma expressão que revelava uma mistura de impaciência e admiração.

Ela nem refletiu sobre a ambigüidade de suas palavras, tão satisfeita estava por ver que a raiva dele já havia passado.

-Tenho um presente para você –anunciou ele, tirando uma caixinha do bolso. –Essa aliança que você está usando serviu numa emergência, mas é grande demais para o deu dedo.

Na caixinha havia uma aliança de brilhantes e uma delicada pulseira cravejada de brilhantes e esmeraldas.Travis tirou a aliança de ouro do dedo de Adélia e colocou-lhe as duas jóias novas.

-Eu diria que assim você fica melhor –comentou.

-E... serviu direitinho...

-Tenho observado muito suas mãos para saber o tamanho exato –disse ele com voz suave, sentando-se novamente.

-Você me dá tudo, e eu...-Ela ficou parada à sua frente, lutando contra o desejo de abraça-lo e dizer-lhe o quanto o amava. –Não há nada que eu possa lhe dar? Não há nada que queira de mim?

Travis permaneceu em silencio e olhou-a calmamente, antes de responder:

-Por enquanto o melhor que você pode fazer por mim é aceitar o que eu lhe dou.

-Está bem, se é o que lhe agrada neste momento –concordou ela, com um suspirou.

Travis passou a mão em seu rosto e depois alisou a pulseira nova em seu braço.

-Isso me agrada muito.Agora vamos entrar, que o jantar já deve estar pronto.

 

As duas semanas seguintes passaram rapidamente para Adélia, que dividia o tempo entre algum cuidado com os cavalos e as visitas freqüentes a Paddy no hospital.Ele já não estava no Centro de Terapia Intensiva, mas num quarto normal, e queixando-se por ter de repousar tanto e tomar tantas injeções.

A simpatia do pessoal da fazenda e a rotina agradável de cavalgar e cuidar dos animais traziam de volta uma sensação de normalidade à vida de Adélia.Às vezes, ela até se esquecia de que agora era a sra.Grant.

Travis agia com naturalidade, mas quase só a via na hora das refeições.Então conversava com ela sobre Paddy ou os cavalos.Durante o resto do tempo, deixava-a livre para fazer o que quisesse, sem impor exigências, uma atitude tolerante, generosa e... distante.Nunca a criticou e só a tocava quando era estritamente necessário.Adélia preferia mil vezes vê-lo gritar com ela, ficar com raiva, fazer, enfim, alguma coisa que rompesse o gelo e deitasse por terra as barreiras, mas nada alterava sua serenidade.A relação entre os dois tornara-se, após o casamento, muito mais fria do que antes, quando eram patrão e empregada.

Uma tarde, Adélia voltava para casa, pensando se Travis já tinha retornado de uma pequena viagem de negócios, quando viu um cachorro enorme cavando num canteiro de margaridas.

-Se eu fosse você, não estragava essas flores –falou com tanta firmeza, que o cão ficou meio assustado.-Mas não precisa fugir, que eu não vou machuca-lo.

O animal hesitou entre correr e deitar-se, e ela continuou falando, sem se aproximar.

-Não é por nada, não, mas você precisa ver como o jardineiro fica bravo quando alguém mexe nesses canteiros.

Adélia se abaixou e aproximou-se um pouco do cão, que, mais confiante, sentou nas patas traseiras e ficou olhando para ela com as orelhas em pé.

-Está perdido, ou só dando um passeio? Parece com fome.Espere aqui.Vou buscar alguma coisa para você comer.

Correu até a cozinha e apanhou na geladeira um bom pedaço de carne.Voltou, apressada, e colocou o manjar perto do bichinho, afastando-se alguns passos para deixa-lo à vontade.

A principio, o cachorro olhou receoso para a carne e para ela, mas acabou cedendo à fome e devorou o inesperado banquete.Em seguida, abanou a cauda, em sinal de agradecimento.

-Agora está satisfeito, não é?

Antes que pudesse entender o que estava acontecendo, viu-se atirada ao chão pelo cachorro, que, para melhor demonstrar sua alegria, pulara com as quatro patas sobre ela.Passado o susto, Adélia disparou a rir, como há muito tempo não fazia, e procurou levantar-se.

-Saia de cima de mim, seu bruto! E veja como você está sujo! Ah, e sujou toda minha roupa também.

Com efeito, ambos estavam completamente enlameados, pois o jardineiro acabara de regar as plantas e o chão ainda estava molhado.

-Bem, agora são dois que precisam de um banho! Espere aqui.Vou ver o que posso fazer.

Dirigiu-se para casa mas, antes de entrar, parou para tirar o barro dos sapatos.Nesse momento, Travis passou pela sala e, ao vê-la em tal estado, correu para ela, preocupado, e segurou-a pelos ombros.

-O que aconteceu? Você caiu? Está machucada?

-Oh, não...E não ponha a mão em mim, senão vai se sujar também.

Ela tentou afastar-se um passo, mas ele a reteve.

-Não me importo! Quero saber o que houve. –Sua voz dura, as mãos fortes em seus ombros, a pequena intimidade após tantos dias de frieza e distância fizeram-na olhar apaixonadamente para ele.

-Não houve nada –respondeu com a voz suave.

-Você quer me fazer o favor de contar o que aconteceu? –perguntou ele novamente, já demonstrando impaciência e um pouco de raiva.

-Não aconteceu nada, já disse.Temos companhia –respondeu ela, apontando para o cão.

-O que é isso?

-Um cão, não está vendo? Estava morrendo de fome.Então dei um pedaço de carne para ele...

-Deu comida para esse bicho?

-Você negaria um pedaço de carne para um cachorro tão bonito?

-O problema não é esse.Ele poderia ter mordido você.Não devemos nos aproximar sem mais nem menos de um cachorro estranho.

-Eu sei o que faço –replicou ela, descontente com a censura. –Tomei cuidado, vi que ele estava com fome e dei comida.Foi só isso.Veja como está satisfeito e agradecido, abanando a cauda.

-Parece que você acaba de fazer mais uma conquista. –Travis pareceu acalmar-se e olhou-a com brandura.-Mas como é que se sujou desse jeito?

-Bem, é que depois de comer ele quis demonstrar sua alegria me fazendo um carinho.Então pulou em cima de mim e me derrubou.O chão estava molhado e o cachorro está um pouco sujo... como você pode notar.

-Derrubou você?

-Sim, mas não foi para machucar.É muito brincalhão, não fique bravo com ele.

-Estou coma impressão de que você quer ficar com esse cachorro, não é?

-Bem, não sei... ele é tão bonito! Até já tenho um nome para ele.

-Como pretende chamá-lo?

-Finnegan.

-Finnegan? Onde foi arranjar esse nome?

-Ele me lembra o padre Finnegan, lá na Irlanda.Um velho gordo e meio desajeitado, mas muito digno.

-Ah, sim... –comentou Travis, abaixando-se para observar melhor o cachorro.Quando se virou novamente para Adélia, ela resolveu convence-lo de uma vez a deixa-la ficar com o cão.

-Eu posso cuidar dele.Não vai haver problemas.Prometo que não vou deixa-lo entrar em casa, nem atrapalhar o serviço de Ana.

-Não precisa me olhar desse jeito.Queira Deus que você saiba o que está fazendo.Fique com ele, se quiser.

-Oh, obrigada.Eu...

-Mas há duas condições –Travis interrompeu-a –Primeira: você precisa ensinar Finnegan a não derrubá-la, porque ele é muito grande e pode machuca-la.Segunda: ele tem de tomar banho.

-E eu também, não é? –Ela sorriu, olhando para sua roupa.

Travis pôs a mão em seus ombros e fitou-a com uma expressão apaixonada.

-Eu gostaria de carrega-la sempre no bolso, para não ter de me preocupar com você.

-Ora, não sou tão pequena assim... –Adélia gaguejou, aturdida com aquele olhar.

-Mas seu tamanho me intimida, às vezes.Acho que seria mais fácil se você não agisse sempre como quem tem dezesseis anos.-Ele baixou levemente a cabeça, como se fosse beija-la, mas aprumou-se e largou-a –Bem, acho melhor eu mudar de roupa para ajudar no banho desse... Finnegan.

 

Um dia, quando seu casamento já aproximava-se da terceira semana e ela estava com o tio no hospital, Paddy pareceu disposto a conversar sobre Travis.

-Ele é um ótimo sujeito, querida.

-Sem dúvida! E gosta muito de você também.Notei desde a primeira vez em que os vi juntos.

-Estamos juntos há muito tempo.Ele ainda era um menino quando fui trabalhar na fazenda... e já era órfão de mãe.

Adélia procurava a todo custo imaginar Travis menino, mas não conseguiu.Parecia-lhe que aquele homem enorme e tão seguro de si nunca havia sido de outra forma.

-Stuart Grant, o pai de Travis, era um homem muito duro –continuou Paddy.-Mais duro com o menino do que com os cavalos.Deixou Trish por conta de Ana, pois não se interessava pela pobre garota, mas queria moldar o filho à sua imagem.Vivia dando ordens para Travis...Jamais tinha um gesto de afeto.Eu é que acabei cuidando dele.Contava-lhe histórias...Brincava com ele.O pessoal da fazenda chamava-o de Sombra do Paddy, porque estava sempre comigo quando não via o pai por perto,Já na infância ele trabalhava muito e conhecia bem os cavalos.

Triste e ao mesmo tempo fascinada com a historia de seu marido, ela ouvia atentamente, segurando a mão do tio.

-Era um ótimo garoto, mas Stuart só via defeitos nele.Nunca o elogiava, por nada nesse mundo.Quando Travis cresceu, um dia eu me perguntei:”Por que será que ele não bate logo nesse velho?” Deus me perdoe, por ter tido esse pensamento, mas era o que Stuart merecia.

Adélia não conseguia identificar muito bem as emoções que o relato do tio lhe provocavam, mas sabia que depois dessa conversa jamais deixaria de amar Travis intensamente.

-Pobre rapaz...Nunca teve um gesto agressivo com o pai.Apenas o olhava com raiva, quando não agüentava mais.Fazia um tempão que não se falavam quando Travis foi para universidade.Poucos meses depois o velho morreu...já faz dez anos agora.Travis veio para o enterro e ficou olhando o tumulo sem chorar nem falar nada.Então eu disse:”Sinto pela morte de seu pai, rapaz”.Ele se virou, me olhou bem de frente e respondeu: ”Ele nunca foi meu pai.Meu pai sempre foi você, desde que eu tinha dez anos.Se você não vivesse aqui na fazenda, há muito eu já teria ido embora sem olhar para trás...” –Paddy soltou um suspiro e concluiu:-É essa a historia de seu marido.

Emocionada, Adélia não conseguiu dizer uma palavra.Encostou a cabeça na beira da cama e deixou que o tio a afagasse.

-E agora vocês estão juntos...Eu não podia querer nada melhor –disse o velho, após um longo silêncio.

-Você promete que ficará sempre com ele? –perguntou Adélia, erguendo o rosto.

Paddy encarou-a, um pouco surpreso com a angustia que havia por trás daquela pergunta.

-Claro, querida! Para onde eu iria?

O silêncio novamente se instalou ente eles, carregado de emoções.Julgando que as lembranças podiam fazer mal ao tio, ela resolveu mudar de assunto:

-Os médicos disseram que você terá alta amanhã.

-Já me contaram.Estava na hora.Não agüento mais ficar sem fazer nada, como se estivesse doente!

-Ora, quem ouve você se queixar pensa que o estão tratando mal aqui!

-Não é isso.Gosto de todos do hospital, mas isto é lugar para doentes, e eu nunca me senti tão bem em toda minha vida.

-Estou vendo que está bem, mas precisa fazer o que os médicos mandam: descansar mais e trabalhar menos.Vai voltar para a fazenda e ficar com Travis e comigo alguns dias, antes de ir para sua casa.

-Não, não vou fazer isso.Vocês tem de sair em lua-de-mel, sem se preocupar comigo.Já tomei demais o tempo do casal...

Ao ouvi-lo falar em lua-de-mel, Adélia procurou controlar-se para não demonstrar nenhuma contrariedade e continuou falando calmamente:

-Você vai voltar conosco e pronto.Eu nem tive de consultar Travis a respeito disso.A sugestão foi dele mesmo.

Paddy recostou-se melhor no travesseiro, respirou fundo e sorriu:

-Está bem, querida.Vocês venceram.

 

Na noite seguinte, depois que Paddy estava confortavelmente instalado num quarto da casa principal da fazenda, Travis anunciou seus planos de uma festa:

-Eu pretendia faze-la logo após a vitória de Majestade, mas tive de adiar por causa de Paddy. –Ele se interrompeu para tomar um gole de licor e olhar para Adélia, que estava muito bonita num vestido azul-claro. –A imprensa soube do nosso casamento.E seria estranho se não comemorássemos.Meus amigos precisam conhecer você.

-Sim... –concordou ela, desviando o olhar. –Nessa festa eles finalmente poderão me ver de perto.

-Não precisa se preocupar.Acho que tem tudo para se sair bem.Basta não tropeçar e cair, por exemplo, que dará tudo certo.

Ela se voltou para Travis, furiosa, pronta para dizer-lhe que não era exatamente uma débil mental, como ele pensava, mas conseguiu controlar-se.

-Muito obrigada, sr.Grant. –Sorriu com ironia. –Obrigada pelo incentivo...

-Não há de quê. –retrucou ele no mesmo tom e levantou-se para pegar um papel na gaveta da mesinha.-Veja.É a lista de convidados.

-Meu Deus! Deve haver aqui pelo menos cem pessoas! –avaliou ela, relanceando o papel.

-Mas você não precisa se preocupar com nada.Ana vai cuidar de tudo.Só o que se espera de você é que converse um pouco com os convidados.

-Será que não percebe que não sou uma bobinha qualquer? Posso muito bem ajudar Ana, pois a festa também é minha...-Adélia surpreendeu-se com as próprias palavras, mas resolveu faze-lo ouvir o que merecia.-E quem não precisa se preocupar com nada é você; não vou fazer feio na frente de seus amigos finos.

 

Nos dias que se seguiram, Adélia concentrou-se exclusivamente nos preparativos para a recepção.Ajudada pela governanta, trabalhou febrilmente, encomendando serviços, estudando planos de decoração, programando os manjares.

Ao chegar a grande noite, entretanto, estava nervosa e apreensiva.Sozinha no quarto, examinava o guarda-roupa sem saber o que usar.Depois de experimentar três ou quatro vestidos, optou por um longo de seda verde, que comprara por insistência de Trish.Era um modelo clássico, que acentuava delicadamente suas formas suaves.O decote deixava entrever, de forma sensual mais sutil, uma pequena parte de seus seios.

Resolvido o problema da roupa, faltava-lhe decidir o que fazer com o cabelo.Tentou arranja-los num penteado mais sofisticado, porém, não obtendo o menor sucesso, desistiu e deixou-os soltos sobre os ombros.Tratou então de aplicar uma ligeira camada de base no rosto, pincelou um pouco de blush, realçou os cílios com rímel e passou um pouco de batom nos lábios.

Quando desceu a escada e caminhou em direção a Travis, ele interrompeu o que estava dizendo a Paddy e levantou-se para recebe-la.Como não falasse nada, ela pensou que talvez devesse ter escolhido outro vestido, dentre os muitos que agora tinha no armário de seu quarto.

-Mas como você está bonita! –exclamou Paddy, sem esconder seu orgulho, e, dirigindo-se a Travis, completou:-Você é um homem de sorte.

-Você é um mentiroso.-Adélia sorriu e beijou-o no rosto. –Mas gostei dessa mentira.Estou precisando que me digam que estou bonita...

-Não precisa ficar nervosa.Todo mundo vai ficar encantado com você.Você... está simplesmente maravilhosa. –Travis sorriu para ela e passou a mão em seu cabelo, antes de virar-se para apanhar o copo.

“Por que você não me ama?”, pensou. “Daria tudo o que tenho se me amasse apenas a metade do que amo você”.

Quando ele se voltou, seus olhares se cruzaram.Ele parecia querer dizer alguma coisa.

-Adélia... –começou, mas a campainha tocou, anunciando a chegada dos primeiros convidados.

Foi bem mais fácil do que ela havia imaginado.Depois do primeiro grupo de pessoas que conheceu, sua tensão diminuiu e ela encarou com naturalidade os olhares que pareciam analisa-la.

Em pouco tempo a casa estava cheia de gente, que não parava de rir e conversar.Adélia notava que Travis era muito respeitado e querido pelos amigos e pelas pessoas com quem mantinha relações de negócios, e sentiu que todos a aprovavam como a sra.Grant.

Num certo momento, quando passeava de mãos dadas com Travis, uma mulher com um penteado um tanto exótico segurou-o pelo braço.

-Sua esposa é maravilhosa –disse, sorrindo com ar de quem era velha amiga.-E tem um sotaque maravilhoso...Acho que deve ser uma delicia ouvi-la... nem que seja lendo a lista telefônica...

-Cuidado, Carla! –advertiu ele, abraçando Adélia com firmeza.-Para ela, nós é que temos sotaque...Além disso, ela é muito terna e delicada, mas sabe reagir bem a provocações.

-Travis, meu amor! –exclamou outra mulher, que imediatamente o abraçou.-Acabei de chegar, querido, e soube de sua festa.Espero que não se incomode por eu ter vindo.

-Claro que não! É sempre um prazer...-respondeu ele um tanto secamente e fez as apresentações: -Margot Winters... Minha esposa, Adélia.

Margot virou-se e Adélia teve um leve sobressalto.Não se lembrava de ter visto uma mulher tão bonita em sua vida.Era alta e esguia, e usava um vestido branco que ressaltava ainda mais o dourado de seus cabelos.

-Sua esposa é linda –disse Margot. –Mas parece uma adolescente que acaba se sair do colégio –completou, num tom de voz levemente provocador.

-É curioso, sra.Winters...mas as pessoas da sua idade costumam me achar muito nova –comentou Adélia, procurando não mudar o tom de voz.

-Ora, veja! –Margot arqueou as sobrancelhas, surpresa, enquanto Carla ria. –Você é irlandesa, não é?

-Sim. –Adélia já não conseguia controlar a raiva.-E a senhora, o que é?

-Adélia! –Trish aproximou-se do grupo.-Você pode vir comigo um minutinho? Preciso da sua ajuda.

-Pois não.Com licença.

Trish abraçou-a pelo ombro e levou-a para o terraço.Então teve um ataque de riso.

-Oh, como eu gostaria de ter visto você arrasar de uma vez com ela.Mas achei que ainda não era hora...-Trish até chorou de tanto rir e parou um instante para enxugar as lágrimas.-Viu a cara de Carla quando você chamou a outra de velha? Pensei que ia explodir! Nunca entendi como é que Travis foi se envolver com aquela mulher.Ela é chatíssima e extremamente presunçosa!

-Travis e... Margot Winters? –perguntou Adélia, lembrando-se do rápido dialogo que ouvira entre a cunhada e uma conhecida na primeira vez em que foram fazer compras.

-Pensei que você soubesse.Mas não acho que ele levasse a sério o namoro.E tem mais: garanto que ela daria tudo o que tem para receber um só olhar igual ao que meu irmão dirige a você o tempo todo.

-E por que o namoro acabou?

-Há uns meses atrás eles brigaram.Parece que Margot não queria que ele ficasse tanto com os cavalos.Deu uma espécie de ultimato e foi embora para a Europa.Mas o plano não funcionou.Em vez de ficar chorando a falta de Margot, Travis simplesmente se apaixonou por você.

-Sim, e agora está casado comigo –comentou Adélia, em tom melancólico, sem coragem de enfrentar os olhos de Trish.

 

Poucos dias depois, Paddy voltou a viver em sua própria casa, e Adélia sentiu muito a sua falta, embora fosse visitá-lo todas as tardes.Finnegan também se afeiçoara ao velho e passou a dividir seu tempo entre as duas casas.

Travis não fez nenhum comentário sobre Margot Winters, nem sobre o que Adélia tinha dito a ela, e a relação dos dois voltou a esfriar novamente.Quando compareciam a alguma recepção ou a qualquer lugar onde houvesse outras pessoas, ele a tratava com a atenção que se esperava de um recém-casado.Mas, assim que chegavam em casa, permanecia distante, demonstrando-lhe apenas o afeto que teria naturalmente por uma prima ou uma velha amiga.

A depressão e a frustração que essa atitude lhe causava mantinham-se ocultas, pois Adélia reagia conforme Travis desejava, retribuindo-lhe a frieza.Procurava manter-se sempre calma, pois sabia que ele também se controlava ao máximo para não dar margem a qualquer discussão.

Em algumas ocasiões, tinha a impressão de que eram apenas dois fantoches presos a fios invisíveis, desempenhando papéis absolutamente estranhos.Desesperada, perguntava-se até quando suportariam aquela situação, e não encontrava resposta.

Numa tarde quente de verão, ao atender a campainha da porta principal, deparou com a figura elegante de Margot Winters.Sua calça de brim e camiseta branca contrastavam violentamente com o fino vestido de seda rosa da visitante.

Ao abrir a porta, Margot entrou sem esperar convite, deixando o ambiente todo perfumado.

-Boa tarde, sra.Winters –cumprimentou Adélia decidida a recebe-la como uma anfitriã bem-educada.-Entre e sente-se, por favor.Travis deve estar no estábulo, mas posso mandar chamá-lo.

-Não é necessário –respondeu a outra, sentando-se muito à vontade numa poltrona, como se estivesse em sua própria casa.-Vim para conversar com você mesma.Ana! –chamou, virando-se para a velha criada, que apareceu à porta.-Eu aceito um chá, por favor.

Ana olhou para sua patroa, que apenas consentiu com a cabeça, e saiu.

-Vou direto ao assunto. –Margot estendeu as mãos nos braços da poltrona e encarou Adélia.-Você deve saber que eu e Travis estávamos praticamente de casamento marcado quando tivemos uma... briguinha, há alguns meses.

-Não diga! –exclamou Adélia com ironia, demonstrando pouco interesse pelo assunto.

-Sim, é verdade.Todo mundo sabia.Mas resolvi ir para a Europa, para dar-lhe uma lição.Achei que, enquanto eu estivesse fora, ele teria tempo para pensar melhor e sentir minha falta.Assim quando eu voltasse, nós nos casaríamos.-Margot fez uma pausa para avaliar o efeito de suas palavras e prosseguiu: -Quando vi nos jornais a fotografia dele beijando uma garotinha, pensei: “Ora, não é nada.A imprensa vive aumentando os fatos”.Mas quando ouvi dizer que ele realmente ia se casar com uma funcionária da fazenda, achei que devia voltar e esclarecer as coisas.

-E será que essa garotinha... essa funcionária poderia perguntar o que pretende fazer, sra.Winters?

-Claro, é bem simples.Assim que terminar esse caso, eu e Travis podemos realizar nossos planos.

-A senhora chama meu casamento de caso?

-Basta você se olhar, menina.É evidente que Travis só se casou para me fazer voltar.Ou você achava que ia ficar com ele muito tempo? Você não tem... o estilo, a sofisticação necessária para viver no ambiente dele.

Adélia teve ímpetos de erguer-se da cadeira e pôr aquela mulher para fora, mas resolveu esperar um pouco e ver até onde ela seria capaz de chegar.Margot, porém, parecia não ter mais nada a dizer.

-Sra.Winters, vou explicar-lhe uma coisa: Travis casou-se comigo por amor, não porque queria alguém de volta.Verdade é que eu não tenho a sua elegância, nem sou tão fina, mas tenho uma coisa que a senhora não tem: uma aliança no dedo.

Nesse momento, Ana entrou com a bandeja,Adélia levantou-se e dirigiu-se à criada.

-A sra.Winters já está de saída.Não precisa trazer o chá.

-Pode brincar de dona de casa por enquanto –comentou Margot, enquanto se retirava. –Você vai voltar para o estábulo mais cedo do que está pensando.

Ana pôs a bandeja numa mesinha e foi fechar a porta.Ao voltar, piscou sorridente para Adélia.

-Essa mulherzinha não tem jeito! Além de desrespeitar todo mundo,ainda é extremamente presunçosa.

-Não vamos dar muita importância a ela.E que essa visita fique só entre nós duas, está bem?

-Se prefere assim...

-Prefiro...

 

Durante vários dias Adélia esteve com os nervos à flor da pele.Sua relação com Travis estava ainda mais fria, e eles quase não trocavam palavras.

Uma noite, após o jantar, Travis lia o jornal numa poltrona da sala, quando ela entrou e anunciou:

-Vou dar uma volta com Finnegan. 

-Faça como quiser –respondeu ele, sem levantar os olhos do jornal.

-Faça como quiser! –respondeu ela, explodindo toda sua raiva com a situação.-Não agüento mais ouvir você falar isso.Não vou fazer como quiser! Não quero mais fazer como quiser, será que você não percebe?

-Mas é ridículo você dizer isso.

-Ridículo coisa nenhuma! Você é que não quer entender!

-O que houve?

-Nada, não há nada errado.

-Então pare de se comportar como uma megera.Estou cansado desse seu jeito.

-Uma megera? –Adélia estava absolutamente furiosa com o comentário de Travis.

-Exatamente –respondeu ele, tentando ainda aparentar calma.

-Bem, se você está cansado do meu jeito, pode deixar que eu desapareço do seu caminho.

Sem esperar por resposta, Adélia saiu com o cachorro para tomar ar fresco da noite e andou até que suas pernas, exaustas, se recusaram a dar mais um passo.Então voltou para casa, cabisbaixa, subiu a escada pé ante pé, e conseguiu pegar no sono.

Quando acordou, de manhã, sentia-se angustiada.Sabia que não tinha sido justa com ele e que, ainda por cima, fizera um papel de boba.Ao invés de gritar, devia ter enfrentado a situação e procurado esclarecer as coisas.

“Agora é tarde para consertar o erro de ontem”, pensou, enquanto vestia sua roupa de trabalho.”Mas posso tentar me comportar melhor daqui para a frente”.

Quando desceu a escada, já estava decidida a pedir desculpas e a agir como a esposa mais dedicada do mundo, mas Ana avisou-a de que Travis já tinha saído.

Adélia suspirou e resolveu lançar-se ao trabalho com afinco, para não pensar mais em sua situação.Perto do meio-dia, quando já estava menos deprimida e fisicamente exausta, ouviu alguém chamá-la:

-Adélia.Preciso falar com você.

-Travis! –Ela voltou-se e segurou-a pelo braço.-Desculpe o meu jeito ontem à noite.Eu não tinha motivos para agir daquela forma.Desculpe, por favor.Mas por que você está rindo?

-Você se desculpa do mesmo jeito como fica com raiva.É fascinante.Agora esqueça –respondeu ele, abraçando-a –Todo mundo tem momentos de mau humor.Veja ali adiante.

Adélia olhou na direção apontada e avistou uma égua muito bonita, de brilhantes pêlos castanhos, perto da cerca da pista.

-Oh, é a égua mais linda que já vi!

-Você sempre diz isso.

-Com quem ela vai cruzar?

-Isso é problema seu.A égua é sua.

-Minha?

-Queria dá-la de presente, no seu aniversário, no mês que vem –respondeu ele, passando a mão em seu rosto.-Mas achei que você estava precisando de um agrado e então resolvi dar um pouco antes.

-E depois de tudo o que eu fiz, você ainda... quis me dar um presente? Eu não mereço...

-Confesso que ontem à noite pensei mais em dar-lhe umas palmadas.Depois pensei melhor e...

-Oh, querido! –disse ela, comovida, enquanto se abraçavam.-Nunca me deram um presente tão maravilhoso.-E procurou os lábios dele, apaixonadamente, mas ele se virou e ofereceu-lhe a face.

-Agora é melhor você ir se acostumando com ela.-Travis largou-a e apontou para o animal.-À noite conversamos melhor.

Ela ficou observando-o afastar-se e mordeu os lábios para não chamá-lo de volta.Sentia-se rejeitada.”Ele não gosta de mim... e não sei como fazê-lo me ver como sua mulher”, pensou.

 

O estrondo de um trovão despertou-a de repente, no meio da noite.Chovia e ventava muito, e de quando em quando um raio iluminava seu quarto com uma breve luz azulada.

Adélia saltou da cama e abriu as portas que davam para a sacada, deixando a água entrar.O vento soprava seus cabelos e moldava a fina camisola de seda contra as curvas de seu corpo.

-Adélia!

Ela virou-se e viu o perfil de Travis à porta.

-Pensei que você estivesse com medo.Estamos sem energia elétrica.

-Não estou com medo.Estou adorando essa chuva –respondeu em voz alta, para se fazer ouvir.

-E eu, bobo, achei que você estaria apavorada... –Ele riu e deu um passo atrás, para retirar-se.

-Venha ver!

Travis olhou para sua silhueta recortada contra a luz dos relâmpagos, seus cabelos voando sobre os ombros nus e aproximou-se.Então abriu a boca para dizer alguma coisa, mas Adélia falou antes:

-Veja que maravilha.É a própria liberdade.O vento sopra e não quer saber o que pensam dele.A chuva cai porque tem de cair e não se importa com nada.Oh, adoro tempestades como esta!

Um raio iluminou o quarto inteiro, e Adélia viu os lábios cheios de desejo do homem que amava.De repente, seu coração começou a bater mais forte, ecoando a turbulência da tempestade, e sua boca procurou a dele, apaixonadamente.Seus braços envolveram-no pela cintura e, pressentindo um delírio que jamais tinha experimentado, ela se entregava sem reservas.

Travis beijou-a com loucura, sequioso, fascinado.Seus lábios ávidos pareciam querer sugar-lhe a alma, para logo depois pousar em seu pescoço, descer por seu colo.Então depararam com a seda da camisola, cujas alças ele desatou, fazendo a delicada peça escorregar-lhe pelo corpo e cair ao chão.Movidas pelo desejo, as mãos de Adélia procuraram o cinto do robe dele, desamarrando-o.Já não havia tecido algum entre seus corpos ardentes...

Ele ergue-a e levou-a para cama.A violência da tempestade não se comparava à loucura apaixonada com que fizeram amor.Os lábios dele moviam-se vorazes, sobre os seus, enquanto seu corpo tremia ao contato daquelas mãos fortes que o exploravam.Adélia entregou-se inteira aos seus desejos, saboreando os momentos supremos de felicidade de uma mulher.

Depois, dormiu nos braços quentes de seu amado.Dormiu o sono profundo e tranqüilo de quem finalmente encontrou o que queria na vida...

 

A luz quente do Sol batia em seu rosto quando ela acordou.Olhou calmamente para o rosto de Travis, a seu lado, e só então notou que os cílios dele eram incrivelmente longos e grossos para uma face tão masculina.Passou a mão em sua testa e murmurou baixinho seu nome.Ele abriu os olhos e sorriu, abraçando-a firmemente pela cintura.

-Você é sempre bonita assim, quando acorda?

-Não sei.É a primeira vez que acordo com um homem dividindo meu travesseiro –respondeu, olhando-o como quem analisa seriamente alguma coisa.-Você também está bonito... se bem que precisa fazer a barba.

Ele afastou seus cabelos e beijou-a avidamente na boca; com uma das mãos, acariciava-lhe os seios rijos, enquanto com a outra, provocava-lhe arrepios na espinha.Quando parou de beija-la, ela recostou a cabeça sobre seu peito e suspirou.Depois, levada pela força do hábito, ergueu-se um pouco e olhou o relógio.

-São mais de dez horas! –exclamou, assustada.

-Não diga...-comentou ele, sem parar de afagar-lhe as costas.

-Não pode ser! Nunca dormi até tão tarde.

-Mas hoje dormiu.E agora não adianta querer que o tempo volte atrás.

-Bem, vou fingir que não vi as horas –resolveu ela, sorrindo, enquanto se aninhava novamente nos braços dele.

-Também gostaria de fazer o mesmo –resmungou Travis -, mas tenho um encontro e acho que vou chegar atrasado.

Beijou-a mais uma vez, longamente, e levantou-se, contrariado.Vestiu o robe e encaminhou-se para a porta; antes de sair, voltou-se e disse, rindo:

-Se quiser me esperar na cama...Acho que volto antes das três.

-Por que não fica e chega mais atrasado para o encontro? –Adélia sorriu e sentou-se na cama, sem se preocupar com sua nudez.

-Não fique me tentando.Volto assim que puder.

Quando ele fechou a porta, Adélia deitou-se de costas, preguiçosamente.”Agora, sim, sou a mulher dele”, pensou, fechando os olhos, para lembrar-se melhor de todos os detalhes da noite anterior.

“Ele nunca disse que me ama.Mas vou faze-lo me amar, e ele nunca vai pensar em divórcio.Seremos muito felizes...”

 

Depois do banho, Adélia ia descer a escada quando ouviu vozes na sala.Parou para escutar e identificou os interlocutores como Travis e Margot Winters.A voz da mulher indicava impaciência.

-Você sabe muito bem que eu não queria abandona-lo de uma vez.Só fui para a Europa para ver se você me chamava de volta.

-Queria que eu largasse tudo e fosse correndo atrás de você?

-Oh, querido, sei que foi bobagem de minha. –Margot falava agora num tom suave e sedutor.-Não quis magoa-lo.Desculpe.Sei que você só se casou com aquela mocinha só para me deixar com ciúme.

-Quem disse que foi por isso que me casei com ela? –retrucou Travis, tão calmamente, que Adélia começou a preocupar-se.

-Claro que foi, meu bem! E funcionou direitinho.Você não está vendo como eu voltei depressa? Agora, basta um divórcio, e pronto! Em pouco tempo, tudo volta ao normal.

Adélia sentiu uma dor funda na peito ao ouvir aquelas palavras.

-Vai ser difícil.Minha mulher é católica e jamais me concederia o divórcio.

-Ora, querido.Dê um jeito.

-Mas o que eu poderia alegar?

-Pelo amor de Deus, sei lá! Dê algum dinheiro para ela, por exemplo.

Adélia não conseguiu suportar mais.Correu silenciosamente para o quarto, fechou a porta e jogou-se na cama aos prantos.

“Oh, como você é boba!” Disse para si mesma.”Esse homem não a ama, nem vai amar nunca.Está na hora de terminar com essa farsa.Tio Paddy terá forças para reagir... mas eu não agüento mais nada”.

Resoluta, enxugou as lágrimas e levantou-se.Abriu o armário, apanhou apenas a roupa que havia trazido da Irlanda e jogou-a em sua velha mala.Depois, sentou-se à escrivaninha e escreveu um bilhete para o tio:

“Por favor, entenda-me, tio Paddy.Tudo isto não passa de uma farsa e eu não suporto mais fingir.Não posso ficar com Travis, depois de tudo o que aconteceu”.

Escreveu um bilhete mais ou menos semelhante para Travis, deixou os dois envelopes sobre a cama e saiu pela porta dos fundos, sem ser notada.Minutos depois apanhou um táxi e dirigiu-se para o aeroporto.

Encontrou no saguão o mesmo vaivém de pessoas que tinha visto em sua chegada da Irlanda.E experimentou idêntica sensação de insegurança, em meio a tanta gente estranha.Respirou fundo, como para encher-se de coragem, e encaminhou-se para um balcão de informações.Nesse momento sentiu que alguém a segurava firme pelo braço, obrigando-a a virar-se para trás.Ela deparou-se com Travis e explodiu:

-Largue-me! Não quero conversa com você.

-Aonde você pensa que vai?

-Para a Irlanda.Adeus. –Ela tentou desvencilhar-se, mas não conseguiu.

-Você é boba mesmo.Pensou que eu ia deixa-la embarcar assim, sem mais nem menos? –Ele a segurava mais forte ainda.

-Eu deixei um bilhete explicando tudo.Acho que basta.

-Eu vi o bilhete.E ainda bem que vi logo, senão teria de cruzar o Atlântico para encontrar você de novo.

-Não quero que me siga para lugar nenhum! –insistiu ela, procurando soltar o braço. –Você vai me machucar.Tire as mãos de mim!

-Você merecia umas palmadas.-Ele apanhou sua mala e conduziu-a para fora do aeroporto, sem ligar para seus protestos.

-Não quero ir com você.Vou voltar para a Irlanda!

-Vem comigo, sim.E se não vier andando, vou carrega-la à força!

-Seu bruto! Não precisa me carregar...Pego outro avião, sr.Grant...

Travis resmungou alguma coisa e continuou a caminhar em direção ao carro, sempre segurando-a pelo braço.Abriu a porta e praticamente a empurrou para dentro.

-Você tem de me explicar uma porção de coisas.Mas não agora.Não quero bater em ninguém em público. –disse lê, num tom que não admitia réplica, e deu partida no motor.

Enquanto o carro quase voava pela estrada, Adélia pemaneceu em silêncio, olhando pela janela sem ver nada.Ao fim de alguns minutos, Travis estacionou em frente à casa e saiu, batendo a porta com tanta força que Lea pensou que fosse quebrá-la.Puxou-a pela mão e praticamente a arrastou para dentro.

-Ana, não quero que nos perturbem!-disse para a criada, que, boquiaberta, observava-a atravessar a sala e subir a escada.

Ele levou Adélia para o quarto, quase a jogou numa poltrona e fechou a porta com estrondo.

-Agora, fale!

-Você que tem de falar1Estou cansada de ser empurrada de um lado para o outro! Não seja bruto comigo, senão quem vai ficar com marcas nos braços é você!

-Quero que você use essa língua para me dar algumas explicações, não para fazer ameaças bobas.

-Não tenho explicação nenhuma para dar para pessoas como você.Tudo o que eu tinha para dizer está naquele bilhete.Não quero nada de você.Mas não esqueça que tenho meu orgulho a defender.E isto você não toma de mim!

-Você e seu orgulho!-Ele a tomou pelos ombros e fitou-a intensamente.-Que história é essa de divórcio e anulação de casamento?

-Acho que deixei bem claro no bilhete.-Ela soltou-se e deu um passo atrás.-Como não pode haver anulação, pois, afinal, a união já se consumou, você que trate de providenciar o divórcio.Eu vou embora! E tem mais: não quero seu dinheiro e ainda vou pagar tudo o que comprou para mim.

-E acha que vou aceitar?Onde você estava com a cabeça, quando escreveu aquele bilhete? Fala em casamento, divórcio, anulação...tudo junto!

-Não grite comigo! Combinamos que este casamento era só para salvar meu tio, e que depois seria anulado.Agora, como não dá mais para anular, você que cuide do divórcio!

-Como pode falar em divórcio, em anulação, depois de ontem à noite? Pensei que aquela nossa...relação significasse alguma coisa para você!

Ela enrubesceu, mas a cólera foi maior que o pudor.

-Ora, como ousa dizer isso? Seu hipócrita! Mal se levantou da cama, onde estava comigo, e foi logo conversar sobre o nosso divórcio com aquela tal Margot! Traidor! Mentiroso!

-Adélia...-Ele interrompeu a serie de impropérios, segurando-a pela mão.-Foi por isso que você resolveu partir?

-Sim! E tire as mãos de mim, por favor.

Ao invés de atende-la, ele a pegou nos braços e a colocou suavemente sobre a cama.

-É só sexo o que você quer, não é? –gritou ela.-Pois saiba que prefiro morrer a me deitar com um hipócrita como você.

-Fique quietinha, sua boba! –Travis tapou-lhe a boca com a mão.-Você acha que eu ia deixa-la ir embora, depois de tudo o que fiz para tê-la comigo? –perguntou, sorrindo e beijou-a no rosto e nos cabelos.-Agora cale-se um pouquinho e ouça, por favor.

Adélia começou a ficar confusa.Em seus pensamentos, passava velozmente a imagem de Travis amando-a horas antes e em seguida conversando com Margot.

-Ela veio aqui sem ser convidada.Quem falou em divórcio foi ela, não eu.Em primeiro lugar...

Adélia abriu a boca para interrompe-lo, mas ele a silenciou com um beijo e prosseguiu:

-Em primeiro lugar, jamais pensei em me casar com Margot.Os tais planos de que ela falou eram dela só dela.Tivemos um namoro sem compromisso, mais nada.Ela pensou que eu a esposaria e deixaria a fazenda de lado.Tinha idéias malucas de viajar pelo mundo e viver como milionária.Mas eu nunca concordei com nada disso.

Novamente Adélia fez menção de retrucar e ele a calou com outro beijo ardente.

-Um dia, Margot passou dos limites e eu simplesmente a abandonei.Então, foi embora para a Europa, dizendo que eu tinha de escolher entre ela e os cavalos.Os cavalos venceram.Não se dando por derrotada, ela voltou e enfiou na cabeça que eu tinha casado com você só para deixa-la enciumada.E quando veio aqui hoje de manhã, falando em divórcio e outras bobagens, eu a deixei tagarelar à vontade, só para ver até onde ela ia chegar.

Travis segurou suavemente o rosto de Adélia e fitou-a bem nos olhos.

-Se você tivesse escutado a conversa inteira, teria ouvido eu dizer que nunca tive a intenção de me casar com ela.E que não tenho a menor intenção de me divorciar de minha mulher amada, nem hoje, nem nos próximos mil anos.

-Você disse isso mesmo para ela? –perguntou Adélia , meio incrédula, porém mais calma.

-Exatamente isso.

-Eu...bem, você poderia ter dito isso também para sua mulher há muito tempo.Assim teria evitado muitos problemas.

-Tem razão.Estou dizendo agora: amo você e não quero perde-la por nada neste mundo.

Ela encarou-o, emocionada, e beijou-o nos lábios, sem coragem de dizer mais nada.Travis retribuiu com paixão e voltou a falar:

-Você acha que a levei para Kentucky e depois para Nova York só por causa de Majestade? Não, senhora.Fiz isso porque não agüentava ficar longe de você.

-E porque não me disse...?

-Minha idéia era avançar devagar, mas então aconteceu o ataque cardíaco de Paddy, que apressou as coisas.Eu realmente achava que ela ia melhorar com a noticia de nosso casamento.Mas nunca levaria a serio aquela historia de divorcio.Só a propus porque você não parecia nada interessada em casar-se comigo.

-E eu não me mostrei interessada porque você queria casar apenas para salvar a vida de tio Paddy.

-É... parece que nos enganamos...

-Você nunca percebeu o quanto eu o amo?

-E parece que já perdemos muito tempo falando –sussurrou ele, debruçando-se sobre ela e acariciando-lhe o corpo ardente.

-Você parecia tão distante...tantas semanas sem me tocar.Ontem à noite, aqui nesta, nem falou que me amava...

-Porque eu a queria muito, e se dissesse que a amava, você poderia pensar que era só uma forma de seduzi-la...

-Agora não vou pensar isso, meu amor.Pode dizer...Diga que me ama...

Travis satisfez seu pedido, murmurando, entre beijos e caricias, ardentes declarações de amor e só parou quando notou que Adélia queria dizer alguma coisa.

-Travis –sussurrou-lhe ao ouvido -, será que não está começando uma tempestade lá fora?

 

                                                                                            Nora Roberts

 

 

                      

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