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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O BEIJO / Danielle Stel
O BEIJO / Danielle Stel

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O Beijo

 

          

 

Isabelle Forrester contemplava o jardim da janela do seu quarto, na casa da Rue de Crenelle, no Sétimo Bairro de Paris, onde, na companhia de Gordon, vivera os últimos vinte anos. Os dois filhos também aí haviam nascido. Erigido no século XVII, o edifício possuía imponentes portas em bronze que davam para o pátio interior. A casa em si fora construída em forma de U à volta do pátio. Os teto eram altos, as madeiras e as cornijas de uma grande beleza, e os soalhos em parqué, da cor de conhaque. Tudo resplandecia e se encontrava tratado com esmero e cuidado. Isabelle dirigia a casa com mestria, rigor e mão firme mas dócil. O jardim era cultivado com apurado desvelo. As rosas brancas que plantara anos antes eram consideradas as mais bonitas de Paris. A casa estava recheada de antiguidades que ela e Gordon haviam comprado, ao longo dos anos, em Paris e nas várias viagens realizadas. Muitas delas tinham pertencido aos pais.

Tudo na casa reluzia: a madeira encerada, as pratas areadas, os castiçais de cristal nas paredes que reflectiam o sol de Junho que entrava por entre as cortinas. Isabelle desviou o olhar do roseiral e soltou um suspiro. Estava destroçada por ter de deixar Paris nessa tarde. As oportunidades para ir onde quer que fosse eram raras. E agora que o ensejo surgia via-se consumida por um profundo sentimento de culpa, por causa de Teddy.

A filha, Sophie, partira para Portugal com uns amigos, no dia anterior. Tinha dezoito anos e ia entrar na universidade no Outono. Era o filho, Theodore, que a prendia à casa há catorze anos. Nascera de seis meses, com graves problemas de saúde: os pulmões ainda não se encontravam perfeitamente desenvolvidos, fato que provocou o enfraquecimento do coração. Nunca fora à escola, sendo acompanhado por um tutor. Vivera acamado a maior parte da vida, deslocando-se pela casa numa cadeira de rodas sempre que se sentia demasiado fraco para o fazer pelos próprios meios. Se o tempo estava bom, Isabelle levava-o até ao jardim. Tinha um sentido de humor extraordinário. Quando a mãe entrava no quarto, recebia-a sempre com uma frase espirituosa. Não havia palavras para descrever a forte ligação que existia entre ambos, forjada nos inúmeros momentos de pavor partilhados lado a lado. Por vezes, dava a sensação de que eram uma só pessoa. Isabelle incutia-lhe ânimo, conversava com ele durante horas, lia-lhe livros, aconchegava-o nos braços quando ele nem sequer tinha forças para falar, e fazia-o sempre que podia. Teddy lembrava-lhe um passarito indefeso de asas partidas.

Isabelle e Gordon já haviam falado com os médicos acerca da possibilidade de o levar aos Estados Unidos para fazer o transplante do coração e dos pulmões, mas eles achavam que Teddy se encontrava demasiado debilitado para resistir quer à operação quer à viagem. Perante estas hipóteses, nunca iriam pôr a vida dele em perigo. Assim, o mundo de Theodore estava confinado à mãe, à irmã e aos limites da casa. O pai sempre sentira um grande constrangimento face à doença do filho. Teddy tivera enfermeiras durante toda a vida, mas era a mãe que cuidava dele a maior parte do tempo. Há muito que esta abandonara os amigos e deixara de ter vida própria. Nos últimos anos, as únicas escapadelas até ao mundo propriamente dito aconteciam à noite, com Gordon, e, mesmo assim, muito raramente. A sua missão na vida era manter Teddy vivo e feliz. A mais prejudicada no meio de tudo isto era Sophie, a quem não dedicavam o mesmo tempo e a mesma atenção que o irmão recebia, mas parecia compreender a situação, e Isabelle era sempre afectuosa com ela. Teddy era a prioridade. A sua vida dependia disso. Nos últimos quatro meses, desde o princípio da Primavera, o estado de saúde de Theodore melhorara, o que permitia que a mãe realizasse aquela viagem a Londres, por sugestão de Bill Robinson.

Isabelle e Bill haviam-se conhecido quatro anos antes, numa recepção dada pelo embaixador americano em França, que andara com Gordon em Princeton. Bill seguira a carreira política e era considerado um dos homens mais poderosos e talvez o mais rico em Washington. Gordon contara-lhe que William Robinson é que pusera o último presidente na Sala Oval. Herdara uma incomensurável fortuna e desde muito novo se sentira atraído pela política e pelo poder. No entanto, preferia trabalhar nos bastidores. Quando se conheceram, Isabelle ficou impressionada com a serenidade e a modéstia por ele patenteadas. Era uma pessoa com um ar incrivelmente jovem e um perspicaz sentido de humor. Isabelle ficara sentada a seu lado no jantar e adorara a sua companhia. Na semana seguinte, ficou surpreendida e agradada quando ele lhe escreveu e enviou um livro de arte raro de que haviam estado a falar e do qual ela andava à procura há imenso tempo. Bill dera-se ao trabalho de tentar encontrá-lo e de lho mandar. Arte e livros raros eram a sua paixão.

Haviam tido uma longa conversa sobre uma série de quadros descobertos na altura, numa cave algures na Holanda, e que tinham sido levados pelos nazis durante a guerra. A conversa conduziu-os até às falsificações, aos roubos e, por fim, à restauração de obras de arte, que era o que Isabelle fazia quando conhecera Gordon. Fora estagiária no Louvre e, na altura em que cessou a atividade, quando Sophie nasceu, era perita no assunto.

Bill ficara fascinado com as histórias de Isabelle, da mesma forma que ela se mostrara com as dele. Nos meses seguintes, uma estranha mas reconfortante amizade foi-se criando entre eles, através de telefonemas e cartas que trocavam. Entretanto, Isabelle mandara-lhe alguns livros de arte considerados raridades. Quando Bill voltou a Paris, telefonou-lhe e convidou-a para almoçar. Ela ainda hesitou, mas não resistiu. Era uma daquelas raras alturas em que deixava Theodore à hora do almoço. A amizade começara quatro anos antes, quando Teddy tinha apenas dez. A relação fora-se solidificando ao longo do tempo. De quando em quando, Bill telefonava-lhe fora de horas, quando ficava a trabalhar até tarde. Isabelle dissera-lhe que se levantava todos os dias às cinco da manhã para tratar de Teddy. Bill já lhe perguntara se Gordon punha alguma objeção ao fato de lhe telefonar. No entanto, ela nunca referira esse fato ao marido. A amizade de Bill tornara-se o seu tesouro secreto, que guardava só para si.

Por que razão haveria de pôr? perguntara Isabelle, algo surpresa com a pergunta. Não queria desencorajá-lo a telefonar. Adorava conversar com ele. Tinham muitos interesses em comum. Bill tornara-se, de alguma forma, o seu único contato efetivo com o mundo exterior. Os próprios amigos haviam deixado de lhe telefonar. Como passava os dias e as noites a cuidar de Teddy, ia tendo cada vez menos tempo para eles. Mas, fosse como fosse, receava que Gordon pusesse objeções aos telefonemas de Bill. Falara-lhe dos primeiros livros de arte que este lhe enviara. Gordon ficara um pouco perplexo, mas não emitira qualquer comentário, nem mostrara um interesse particular pelo fato. Isabelle não fizera nenhuma referência aos telefonemas. Apesar de inocentes, teriam sido mais difíceis de explicar. As coisas que diziam um ao outro nunca eram pessoais, nem inconvenientes, nem versavam assuntos das respectivas vidas particulares E raramente faziam qualquer tipo de referência aos cônjuges. Bill era simplesmente uma voz amiga que chegava, de repente, ao dealbar da aurora. Além disso, como o telefone costumava ficar desligado no quarto durante a noite, Gordon nunca os ouvia a conversar. No fundo, receava que o marido levantasse objeções aos telefonemas, e era por isso que nunca fizera qualquer comentário acerca deles. Não estava disposta a perder a dádiva que constituíam os telefonemas e a amizade de Bill.

Ao princípio, os telefonemas eram esporádicos, depois, a pouco e pouco, foram-se tornando mais frequentes. Voltaram a almoçar um ano depois de se terem conhecido. Noutra ocasião, quando Gordon estava fora, Bill levou-a a jantar a um restaurante perto do local onde habitava, e ficou espantada quando, ao chegar a casa, reparou que já passava da meia-noite. Sentia-se como uma flor murcha a absorver o sol e a chuva. As coisas de que falavam saciavam-lhe a alma. Os telefonemas e as raras visitas davam-lhe mais força de viver. À exceção dos filhos, Isabelle não tinha mais ninguém com quem falar Gordon era diretor do maior banco americano de investimento em Paris há vários anos. Tinha cinquenta e oito, e mais dezessete do que Isabelle. Com o correr do tempo, estavam cada vez mais afastados um do outro. Isabelle tinha consciência dessa realidade e achava que isso se devia a Teddy. Gordon não conseguia suportar a aura de constante doença que pairava sobre a criança, como a lâmina de uma guilhotina que podia cair a qualquer momento. Nunca se permitira uma ligação mais íntima com o filho. A aversão à doença deste era desmedida, quase uma fobia. O próprio Teddy sentia isso, ao ponto de, quando era mais novo, pensar que o pai o detestava. No entanto, à medida que crescia, ia encarando as coisas de modo diferente. Aos dez anos, percebeu que o pai vivia aterrorizado com a sua doença, praticamente em pânico, e a única forma de fugir a essa realidade era ignorar o filho por completo, fingindo que não existia. Teddy nunca mostrara qualquer tipo de ressentimento contra o pai. Costumava abordar abertamente o assunto com a mãe, com ar triste, como se falasse de um país que gostaria de visitar, sabendo que isso nunca viria a acontecer. Filho e pai eram como estranhos. Gordon evitava Teddy e concentrava as energias no trabalho, afastando-se o mais possível da vida de casa, e particularmente da esposa. O único elemento da família de quem parecia estar um pouco mais próximo era Sophie. Tinham feitios muito parecidos. Partilhavam os mesmos pontos de vista em muitas matérias, além de uma certa frieza com que encaravam tudo aquilo que os rodeava. No caso de Gordon, esta característica especial nascera dos anos de afastamento em relação à faceta emocional da vida, que considerava uma manipulação de fraqueza e pela qual não sentia qualquer tipo de atração. No caso de Sophie, herdara-a do pai. Já em pequena, era muito menos carinhosa do que o irmão, e preferia não pedir ajuda a ninguém, especialmente à mãe, optando por fazer tudo sozinha. A frieza nela era mais uma questão de independência, de orgulho. Isabelle chegara a questionar-se se isso não seria uma reação instintiva ao fato de o irmão ocupar a maior parte do tempo da mãe. A fim de evitar a sensação de estar a receber menos do que aquilo a que teria direito, convencera-se de que não precisava de nada nem de ninguém, fechando-se no seu pequeno mundo. Praticamente não partilhava qualquer confidência com a mãe e evitava, sempre que possível, falar dos seus sentimentos. Confiava mais nos amigos do que na mãe. Isabelle alimentara sempre a esperança de encontrarem um ponto de entendimento e de se tornarem amigas. Porém, até ao momento, a relação com a única filha não fora fácil.

Por outro lado, a frieza de Gordon relativamente à mulher era muito mais extrema. O aparente distanciamento de Sophie perante a mãe podia ser interpretado como uma forma de mostrar que conseguia andar pelo seu próprio pé, ao contrário do irmão, que necessitava de ajuda constante, e também para provar que não precisava do tempo e da energia que a mãe não tinha para lhe dar. A doença de Teddy não permitia. No caso de Gordon, essa frieza parecia estar enraizada em algo muito mais profundo. Por vezes, dava a sensação de que culpabilizava Isabelle por ter dado à luz um filho deficiente Gordon tinha uma visão desapaixonada da vida, e geralmente observava-a à distância, como se quisesse assistir ao jogo mas não quisesse entrar nele, ao contrário de Teddy e Isabelle, que viviam apaixonadamente todas as suas experiências, e expressavam-no. A chama que ambos partilhavam era o que mantinha Teddy vivo ao longo de uma vida de sofrimento. A devoção que Isabelle nutria pelo filho há muito que a afastara de Gordon. Do ponto de vista emocional, este deixara de fazer parte da sua vida pouco depois do nascimento de Teddy. Anos antes de conhecer Bill, Gordon mudara-se para outro quarto. Na altura, desculpara-se com o fato de ela se deitar tardíssimo e se levantar muito cedo. Mas Isabelle sentira que havia algo mais nesse ato. Não querendo piorar as coisas entre eles nem enfrentá-lo, nunca se atrevera a pôr o fato em questão. Mas há muito que sentia que a afeição por ela estava a diminuir, acabando por desaparecer Isabelle nem sequer se lembrava da última vez que se haviam tocado, beijado ou feito amor. Tratava-se de uma circunstância da vida, que aceitava. Aprendera a viver sem o amor do marido. Desconfiava que ele a culpava pela doença do filho, embora os médicos asseverassem que as enfermidades e nascimento prematuro deste não lhe podiam ser imputados. Nunca discutira o assunto com Gordon, nem se defendera das acusações que, sabia, ele lhe fazia em silêncio. Para Gordon, Isabelle lembrava-lhe a doença do filho. Da mesma forma que o rejeitara à nascença, horrorizado com a série de deficiências de que era vítima, acabara por a rejeitar também a ela, erguendo um muro entre ambos, para apagar as detestáveis imagens de doença. Nunca conseguira tolerar aquilo que, desde criança, classificava como uma fraqueza da espécie humana. Isabelle desistira de tentar escalar esse muro, apesar de, ao princípio, o ter feito. As diligências para uma aproximação que encetara após o nascimento de Teddy haviam-se revelado infrutíferas. Gordon resistira a todos os esforços de Isabelle, que acabou por aceitar o enorme abismo que se cavara entre ambos como algo natural.

Gordon sempre fora, por natureza, uma pessoa fria e pragmática, tanto no trabalho como em todos os outros aspectos da vida. Mesmo assim, ao princípio, ainda se mostrara carinhoso com Isabelle, que encarara a frieza do marido como um desafio. Cada sorriso ganho, cada gesto um pouco mais caloroso era como que uma vitória para si, pois Gordon não mostrava qualquer tipo de afabilidade com qualquer outra pessoa. Aos olhos de Isabelle, parecia ser um homem de extrema competência e grande poder, com perfeito controlo de todos os aspectos do seu mundo. Quando se conheceram, havia muitos aspectos em Isabelle que o atraíam e que lhe garantiam que ela seria a esposa perfeita: a linhagem aristocrática, o nome e os influentes contatos que possuía, e que haviam sido de extrema importância para a consolidação do banco. A fortuna da família de Isabelle evaporara-se anos antes, mas a sua importância nos círculos sociais e políticos mantivera-se. Ao casar com ela, Gordon elevara substancialmente o seu estatuto social, que era um fator de primordial importância para ele. Isabelle fora a peça perfeita para melhorar não só a sua posição social como a sua carreira profissional. Mas não fora só a linhagem que o atraíra; o ar inocente que ela exibia também conseguira amolecer ligeiramente o seu coração.

Poucos homens teriam sido capazes de resistir ao ar doce de Isabelle. Era uma jovem simpática, sem a mínima ponta de malícia. O estilo altivo e a maneira atenciosa e requintada com que Gordon a cortejara haviam-na cativado, ao ponto de o considerar uma espécie de herói. A inteligência, o poder e a fama do banqueiro também a tinham fascinado. Gordon, por sua vez, aproveitou da melhor forma a vantagem de ter mais dezessete anos do que ela para a seduzir com palavras doces mas sensatas. Até a família de Isabelle ficou entusiasmada quando a pediu em casamento. Para eles, não havia a menor dúvida de que Gordon seria um marido perfeito que cuidaria dela com extremo zelo. Apesar de ser uma pessoa intransigente na vida profissional, mostrava-se extremamente dócil com ela, o que veio a revelar-se ser sol de pouca dura.

Quando conheceu Bill Robinson, Isabelle era uma mulher só, mergulhada numa vida de inusitado isolamento, em constante vigília junto ao filho enfermo e com um marido que raramente lhe falava. A voz de Bill era, por vezes, o único contato que tinha com um adulto durante todo o dia, para além do médico e a enfermeira de Teddy. Bill parecia ser a única pessoa no mundo que estava genuinamente preocupada com ela. Era raro Gordon perguntar-lhe como se sentia. Na melhor das hipóteses, se pressionado, dizia-lhe que ia jantar fora ou que partia de viagem na manhã seguinte. Deixara de partilhar a sua vida com ela. E as breves conversas que tinham só reforçavam a idéia de que Isabelle fora votada ao desprezo. Por outro lado, as horas que esta passava a falar com Bill eram como janelas abertas para um mundo mais tolerante e mais rico, lufadas de ar fresco que vinham dar alguma alegria às suas noites sombrias. Ao longo dos anos, fora Bill que se tornara o seu melhor amigo. Gordon não passava de um estranho.

Numa das suas conversas pela madrugada, no segundo ano de relacionamento entre ambos, Isabelle tentara explicar isso mesmo a Bill. O estado de saúde de Teddy piorara nas semanas anteriores, o que a deixara extremamente abatida e vulnerável. Além disso, encontrava-se deprimida com a frieza que Gordon demonstrara na noite anterior, ao dizer-lhe que ela estava a perder tempo a tratar do filho, que toda a gente via que este não tardaria a morrer, e que o melhor que havia a fazer era aceitar essa realidade. A morte do miúdo seria um alívio para todos E foi com a voz embargada e os olhos marejados de lágrimas que, nessa manhã, Isabelle repetiu essas palavras a Bill, que ficou horrorizado com a frieza e a crueldade de Gordon.

Acho que o Gordon está ressentido comigo por passar a maior parte do tempo a tratar do Teddy. Devia dar-lhe mais atenção.

Há muito que Gordon a convencera de que falhara enquanto esposa. Bill não conseguia aceitar que Isabelle reconhecesse que Gordon tinha razão.

Nessas circunstâncias, acho razoável que o Teddy deva ser a tua primeira prioridade.

Há meses que Bill andava a sondar médicos, na esperança de descobrir a cura milagrosa para Teddy. Mas estes haviam-no desencorajado. De acordo com Isabelle, o filho sofria de uma doença degenerativa que estava a atacar-lhe o coração, os pulmões funcionavam com deficiência e todo o organismo estava a deteriorar-se lentamente. Era consenso geral que seria um milagre se a criança conseguisse ultrapassar a barreira dos vinte anos. Bill ficava de coração destroçado só de saber o que Isabelle sofria e o que um dia teria de enfrentar.

Nos anos seguintes, a amizade entre ambos foi-se solidificando. Continuavam a falar frequentemente ao telefone, e Isabelle escrevia-lhe longas cartas filosóficas, especialmente nas noites que passava acordada, à cabeceira de Teddy. Este tornara-se o centro da sua vida, e não só a afastara de Gordon mas também de Sophie, que já censurara a mãe em mais de uma ocasião, acusando-a de só querer saber do irmão. Assim, Bill era a única pessoa com quem Isabelle podia desabafar, nas longas conversas a meio da noite.

Os momentos que partilhavam ultrapassavam as suas realidades diárias, e até Bill se sentia muito mais aliviado das pressões da arena política quando falava com Isabelle. Esta, por sua vez, sentia-se transportar até um tempo e um espaço em que Teddy não se encontrava doente, Gordon não a rejeitara e Sophie nunca estava zangada consigo. Era como ser levada até àquele tipo de vida por que tanto ansiara. Bill apresentava-lhe uma nova visão do mundo. Falava-lhe da sua própria vida, das pessoas que conhecia, dos amigos e, uma vez por outra, da esposa e das duas filhas, que andavam já na faculdade. Casara aos vinte e dois anos e, trinta anos depois, o casamento era só aparência. Cindy, a esposa, detestava o mundo da política, as pessoas que Bill conhecia, as coisas que ele tinha que fazer, os eventos a que eram obrigados a ir e o fato de ele passar a maior parte do tempo em viagens. Tinha um total desprezo pelos políticos. Assim como por Bill, por ter devotado uma vida inteira à política.

Agora que as filhas estavam na faculdade, os amigos no Connecticut, as festas e o ténis eram os únicos interesses de Cindy. E se Bill fazia ou não parte daquela vida, pouco lhe importava. Há anos que deixara de sentir o que quer que fosse por ele. Levava a sua própria existência, tratando-o sempre com algum azedume. Passara trinta anos ao lado dele, a andar de um lado para o outro e a colocar os afazeres políticos à frente de tudo aquilo que tinha importância para si. Bill nunca se encontrava em casa na altura das férias e dos aniversários. Estava sempre num sítio qualquer, a preparar um candidato para um escrutínio partidário ou para eleições. Nos últimos quatro anos, fora visita assídua da Casa Branca. Mas esse fato já não a impressionava, e tinha um prazer imenso em dizer-lhe que a vida política sempre a entediara. Já não sentia o que quer que fosse pelo marido. Fizera um lifting facial no ano anterior. Bill sabia que ela tivera uma série de romances discretos durante anos. Fora a sua vingança por uma indiscrição esporádica que ele tivera com a esposa de um congressista, dez anos antes. Cindy nunca lhe perdoara tal ato.

Ao contrário de Isabelle e Gordon, Bill e Cindy ainda partilhavam o quarto, mas apenas por uma questão de comodismo. Há anos que não faziam amor. Cindy dava a sensação de ter orgulho no fato de já não sentir qualquer atração sexual pelo marido. Mantinha praticamente a mesma beleza de quando casara com Bill, trinta anos antes: uma silhueta elegante, a pele bronzeada e os cabelos, com o correr dos anos, haviam ficado mais loiros. Os muros que ela erguera entre eles encontravam-se de tal modo elevados que a Bill nem sequer lhe passava pela cabeça escalá-los. Preferia centrar as energias no trabalho, e falava com Isabelle quando precisava de um ombro amigo para desabafar. Era a Isabelle que admitia que estava cansado ou desanimado. Esta nunca se escusava a escutá-lo. E sempre com uma docilidade que nunca encontrara na esposa. Cindy atraíra-o com o seu espírito vivo, a sua beleza e energia, o seu sentido de humor e o ar travesso. Quando jovens, era divertido estar na sua companhia, mas agora questionava-se se ela sentiria a sua falta se, por acaso, desaparecesse da face da Terra. E até as próprias filhas, quando vinham a casa, o tratavam com indiferença. Já ninguém parecia importar-se com o fato de ele estar ou não em casa. Quando chegava de uma viagem, era tratado como uma visita inesperada, um estranho, um apátrida, um desenraizado. Nunca dissera a Isabelle que a amava, nem esta a ele, apesar da grande devoção e admiração que nutriam um pelo outro.

Ao longo dos anos, os sentimentos que Bill e Isabelle expressavam mutuamente sempre foram entendidos como simples amizade. Nunca nenhum deles admitira um ao outro, ou a si próprios, que havia mais do que simples admiração e prazer nas longas horas de conversa. Mas há anos que Bill reparava que, quando as cartas de Isabelle não chegavam, ficava preocupado. E quando ela não podia atender o telefone, porque se encontrava a tratar de Teddy ou porque fora a algum lado com Gordon, sentia imensas saudades. Como nunca imaginara. Ela já fazia parte da sua vida. Era alguém em quem podia confiar. Com Isabelle acontecia a mesma coisa. Bill era a única pessoa, além do filho de catorze anos, com quem falava. Com Gordon nunca conseguira ter conversas como tinha com Bill.

Gordon era uma pessoa mais ao estilo inglês. Apesar de os pais serem americanos, fora criado em Inglaterra. Andou em Eton, depois foi para os Estados Unidos, para a Universidade de Princeton. Mas, mal se formou, voltou para Inglaterra, donde se mudou para Paris, para ir trabalhar no banco. Independentemente das origens, tinha um feitio muito mais britânico do que americano.

Conhecera Isabelle na casa de Verão do avô desta, no condado de Hampshire. Ela tinha vinte anos, ele quase quarenta. Apesar de ao longo da sua vida se ter cruzado com uma série de mulheres interessantes, nunca achara nenhuma delas merecedora de se tornar sua esposa. A mãe de Isabelle era inglesa e o pai, francês. Isabelle vivera em Paris durante toda a sua vida, mas costumava ir a Inglaterra no Verão, a fim de visitar os avós maternos. Falava impecavelmente inglês. Era uma rapariga de uma beleza deslumbrante, charmosa, inteligente e de grande discrição. A afabilidade, a vivacidade e a silhueta digna de um elfo cativaram Gordon desde o momento em que se conheceram. Pela primeira vez na vida, este convenceu-se que estava apaixonado. Além disso, as potenciais oportunidades sociais que essa aliança lhe proporcionariam eram irresistivelmente apelativas. Gordon vinha de uma família respeitável, mas não tão ilustre como a de Isabelle. A mãe desta pertencia a uma importante família de banqueiros, parente afastada da rainha e o pai era um distinto estadista francês. Isabelle constituía, em suma, um bom partido. Era de fina linhagem, e o seu ar tímido, dócil e despretensioso ligavam na perfeição com o modo de ser de Gordon. A mãe de Isabelle morrera antes de os dois se conhecerem. O pai ficou impressionado com Gordon e não teve qualquer pejo em aprovar o noivado. Achava que Gordon seria o marido perfeito para Isabelle. Casaram ao fim de um ano. Mas Gordon frisou, desde o princípio, que ele é que tomaria todas as decisões E foi isso mesmo que Isabelle sempre esperou dele. Gordon é que determinava com que pessoas é que se dariam e onde viveriam. Até a casa da Rue de Crenelle fora da sua escolha. Comprou-a antes sequer de Isabelle a ver. Nessa altura, já se encontrava à testa do banco e numa posição social invejável, sobretudo devido ao casamento com Isabelle, à qual proporcionava uma vida de absoluto recato. Só ao fim de algum tempo é que esta começou a dar-se conta das restrições que o marido lhe impunha.

Gordon é que dizia com quem Isabelle podia ou não relacionar-se. Além disso, exigia que ela recebesse condignamente os convidados do banco. Como era uma pessoa hábil, extremamente organizada e sempre disposta a seguir as diretivas do marido, Isabelle não sentiu qualquer dificuldade em adaptar-se a essas funções. Só mais tarde, depois de Gordon eliminar uma série de pessoas de quem ela gostava do seu círculo social, é que começou a achar que o marido, por vezes, era injusto. Gordon afirmara, em termos vagos, que essas pessoas não mereciam a sua amizade. Isabelle era uma jovem extremamente aberta, desejosa de conhecer novas pessoas e aproveitar as oportunidades que a vida lhe pudesse proporcionar. Fora estudante de belas-artes, e, quando casou, resolveu trabalhar como estagiária de restauração no Louvre, apesar dos protestos de Gordon. Era o único sítio onde era independente. Adorou o trabalho e as pessoas que conheceu Gordon achava a ocupação própria de boémios e insistiu para que ela a deixasse quando engravidou de Sophie. Depois de esta nascer, apesar dos prazeres da maternidade, Isabelle sentiu imensas saudades do museu e dos desafios e compensações que este lhe proporcionava. Mas Gordon não voltaria a ouvir falar do seu regresso ao trabalho depois do nascimento da filha, e Isabelle não tardou a voltar a engravidar; dessa vez, porém, perdeu o bebê. A recuperação foi longa e passou a ter dificuldades em engravidar. Quando conseguiu ficar grávida de Teddy, passou uma fase complicada, que resultou no nascimento prematuro do filho, com todas as preocupações que daí advieram.

Foi a partir desse momento que começou o seu afastamento de Gordon, que andava atarefadíssimo no banco. Agora, com um filho com graves problemas de saúde em casa, Isabelle pouco tempo podia dispensar aos deveres domésticos e sociais, fato que irritava Gordon. Na verdade, nesses primeiros anos da vida de Teddy, Isabelle praticamente não conseguia arranjar tempo para ele e para Sophie. Por vezes, tinha a sensação de estarem ambos contra si, o que considerava uma tremenda injustiça. Toda a sua vida girava em torno do filho. Nunca saía de ao pé dele, apesar das enfermeiras que haviam contratado para cuidar de Teddy. Infelizmente, nessa altura, os seus pais já haviam falecido. Não tinha ninguém do seu lado. Gordon não queria ouvir falar dos problemas de Teddy nem das derrotas e vitórias clínicas do filho. Detestava falar no assunto e, como que para a castigar, deixou de ter qualquer tipo de relação mais íntima com ela no âmbito do casamento. Tudo levava a crer que já não a amava. No entanto, Isabelle não tinha qualquer prova concreta disso. Gordon nunca ameaçou deixá-la, pelo menos fisicamente. Mas ela vivia sempre com a sensação de que o marido a pusera à margem.

Depois de Teddy, não tiveram mais filhos. Gordon não queria, e Isabelle não tinha tempo. Dava tudo o que possuía ao filho. Gordon, por seu turno, continuava a transmitir-lhe, explícita ou implicitamente, que ela se esquecera dele. Como se fosse ela a culpada da doença de Teddy. Não havia nada no filho de que Gordon se orgulhasse: os dotes artísticos, a sensibilidade, a perspicácia e o sentido de humor. Além disso, as semelhanças de Teddy com Isabelle pareciam irritar Gordon ainda mais. Por ela sentia apenas desprezo e uma profunda e silenciosa raiva que nunca expressava por palavras.

Só anos mais tarde Isabelle soube, depois de uma prima de Gordon lhe contar, que este tivera um irmão mais novo que sofria de uma doença incapacitante e que morrera com nove anos. Gordon nunca referira esse fato a ninguém. O assunto era tabu. E embora a mãe lhe tivesse explicado a situação quando era mais novo, a última parte da infância foi passada a ver a mãe a cuidar do irmão, até à morte deste. A prima não sabia muito bem de que doença é que ele sofria, ou o que acontecera exatamente, só sabia que a mãe de Gordon adoecera pouco depois da morte do filho, acabando também por morrer, após longo e penoso sofrimento. E a sensação com que Gordon ficou foi a de ter sido traído por ambos, por nunca haver recebido a atenção, o carinho e o tempo a que achava ter direito e por terem acabado por morrer, abandonando-o.

A prima disse ainda que a mãe dele estava convencida de que o pai de Gordon morrera de desgosto, embora vários anos mais tarde, incapaz de recuperar da dupla perda. Na verdade, Gordon ficou com a sensação de que perdera toda a família por causa de uma criança doente. Mais tarde, Isabelle deixara de dedicar-lhe a sua atenção por causa da doença de Teddy. As palavras da prima de Gordon fizeram com que ficasse a perceber melhor o comportamento do marido, o qual, quando questionado sobre o assunto, negou tudo, considerando aquilo que a prima dissera um tremendo disparate. Afirmava que nunca fora muito ligado ao irmão nem nunca tivera qualquer sentimento de perda. A morte da mãe era já então uma lembrança muito remota e o pai fora sempre um homem muito difícil. Porém, quando lhe falou do assunto, apesar dos protestos, Isabelle vislumbrou um ar de pânico nos seus olhos. Era o olhar de uma criança magoada, não apenas o de um homem aborrecido. Interrogou-se então se não teria sido por isso que ele casara tão tarde e se mantinha tão distante de toda a gente. Porém, fosse qual fosse a explicação, a relação entre os dois não melhorou. As portas do céu não voltaram a abrir-se entre eles e Gordon fez questão de que elas se mantivessem assim.

Isabelle tentou explicar a atitude do marido a Bill, mas este não conseguia entendê-la, considerando uma desumanidade da parte de Gordon o fato de se ter desligado emocionalmente da esposa. Era uma das mulheres mais interessantes que alguma vez conhecera, cuja doçura e amabilidade só realçavam ainda mais a sua beleza. Porém, independentemente daquilo que pudesse pensar dela, Bill nunca dera o menor sinal de querer envolver-se em termos emocionais com Isabelle e nem sequer admitia que tal idéia lhe passasse pela cabeça. Esta frisara-lhe, desde o primeiro instante, que isso nunca iria acontecer. Se iam ser amigos, tinham de respeitar os respectivos casamentos. Por mais indelicado ou distante que Gordon pudesse ser relativamente a ela, Isabelle continuava a ser-lhe fiel. Ainda era seu marido e, para consternação de Bill, mantinha o respeito por ele e pelo casamento. A idéia do divórcio ou da infidelidade era impensável. De Bill só queria a amizade. Por muito só que, por vezes, pudesse sentir-se, aceitava esse fato como parte integrante do casamento. Bill confortava-a, aconselhava-a em muitas coisas e partilhavam as mesmas opiniões relativamente a muitos assuntos. E, enquanto falavam, Isabelle conseguia esquecer todos os problemas e preocupações. Aos seus olhos, a amizade de Bill era uma dádiva divina que muito prezava. Mas não passava disso mesmo.

A idéia da viagem a Londres surgira por acaso, durante uma das habituais conversas de madrugada. Isabelle falara de uma exposição que iria ter lugar na Tate Gallery e que estava ansiosa por ver, mas sabia que isso nunca aconteceria, pois não se previa que a exposição passasse por Paris. Bill sugeriu então que fossem passar um ou dois dias a Londres, para a ver e para estarem algum tempo sozinhos, sem preocupações com o marido ou com os filhos. Para Isabelle, era uma idéia extremamente ousada, algo que nunca fizera. Ao princípio, ainda se mostrou relutante. Deixar Teddy nunca lhe passara pela cabeça.

Porque não? perguntou Bill, esticando as pernas e pousando os pés em cima da secretária. Era meia-noite, e estava no escritório desde as oito da manhã. Ficara até um pouco mais tarde para poder telefonar-lhe. Iria fazer-te bem. Além disso, o Teddy tem andado melhor nos últimos dois meses. Se houver algum problema, em duas horas pões-te em casa.

Bill tinha razão, mas, em vinte anos de casamento, nunca fora a lado nenhum sem Gordon. Era uma relação matrimonial bastante conservadora. Bill, pelo contrário, mantinha uma relação muito mais liberal com Cindy. Ultimamente, era muito mais comum viajarem sozinhos do que os dois. Bill já não fazia o mínimo esforço para passar férias com ela, à exceção de uma ou outra semana em Hampton. Cindy parecia muito mais feliz sem ele. A última vez que ele sugerira fazerem uma viagem juntos, arranjara inúmeras desculpas para não ir, e depois partira para a Europa com uma das filhas. O espírito do casamento há muito que desaparecera, embora nenhum dos dois estivesse disposto a reconhecer esse fato. Cindy fazia o que queria. Bill tinha a vida política que adorava, além dos telefonemas para Isabelle.

Por fim, depois de várias conversas, convenceu-a a ir até Londres. Isabelle não cabia em si de contente. Estava ansiosa por ver a exposição e fazer compras em Londres. Tencionava ficar no Claridge’s e talvez até visitar um amigo de Paris que se mudara para lá

Só dias mais tarde é que Bill descobriu que precisava de se encontrar com o embaixador americano em Londres. Este fora um dos principais financiadores da última campanha presidencial. Precisava do seu apoio para outro candidato. Queria sondá-lo quanto antes para estabelecer uma plataforma de acordo relativamente ao montante do donativo. Com esse apoio, o candidato de Bill teria muito mais hipóteses de êxito. Além disso, era uma agradável coincidência o fato de Isabelle se encontrar em Londres nesse altura.

Fizeste de propósito, perguntou ela, num inglês com um ligeiro sotaque francês, que Bill achava encantador. Aos quarenta e um anos, continuava a ser uma mulher bonita e não aparentava a idade que tinha. Os cabelos eram castanho-arruivados, a pele branca e macia e os enormes olhos esverdeados. Dois anos antes, a pedido de Bill, mandara-lhe uma fotografia sua com os filhos, para a qual ele costumava olhar durante os telefonemas.

Claro que não. Mas a pergunta de Isabelle não era despropositada. Bill sabia muito bem das intenções dela de viajar até Londres, quando combinara o encontro com o embaixador. Se, por um lado, achava que era a altura ideal, por outro, sabia que não era só por isso.

Adorava encontrar-se com Isabelle. Passava meses a sonhar com as poucas vezes por ano que se encontrava com ela em Paris. Quando sentia saudades de a ver, arranjava uma desculpa para ir ter com ela ou, quando era obrigado a viajar para a Europa, apanhava um voo que fizesse escala em Paris. Encontravam-se três ou quatro vezes por ano, e quando isso acontecia iam almoçar. Nunca falara desses encontros a Gordon, apesar de continuar a achar que nada existia de mal ou clandestino. Tanto Isabelle como Bill tinham extremo cuidado nos nomes que davam às coisas. Era como se trouxessem faixas a dizer “amigos” quando se encontravam. Contudo, há muito tempo que Bill sentia muito mais por ela do que aquilo que alguma vez conseguira dizer-lhe.

Era com ansiedade que esperava a chegada a Londres. O encontro na embaixada só o ocuparia durante algumas horas. Queria passar o máximo de tempo possível com ela. Também estava desejoso de ver a exposição. Isabelle sentia-se excitada com a perspectiva de partilhar esse momento com Bill. Afinal de contas, a exposição era a razão da sua ida a Londres. Encontrar-se com ele era um bónus inesperado. Haviam-se tornado grandes amigos, mas nada mais do que isso. E o fato de ninguém saber da amizade entre ambos era apenas uma questão de simplificação das coisas. Não tinham nada a esconder. Isabelle exibia uma capa de respeitabilidade que parecia ser de extrema importância para ela. Era uma fronteira que há muito estabelecera entre ambos e que Bill respeitava. Nunca faria nada que a aborrecesse ou a assustasse. Não queria pôr em risco uma relação que se tornara infinitamente preciosa para ele.

No quarto, na casa da Rue de Crenelle, Isabelle olhou para o relógio e soltou um suspiro. Estava na hora de se ir embora, mas, no último instante, ainda sentiu vontade de ficar.

Deixara imensas instruções às enfermeiras que iriam tratar de Teddy durante a sua ausência. Ao pensar no filho, foi sorrateiramente em bicos de pés até à porta do quarto ao lado do seu. Por instantes, ainda se interrogou se seria boa idéia ir até Londres. Mas Teddy dormia profundamente. A enfermeira que se encontrava junto dele levantou os olhos e sorriu, ao mesmo tempo que lhe fazia um ligeiro aceno, como que para a tranquilizar. Tratava-se de uma das suas enfermeiras preferidas. Era oriunda da Bretanha e tinha um rosto bronzeado e sorridente. Isabelle fez-lhe um aceno de despedida e fechou a porta do quarto. Estava na hora.

Pegou na mala de viagem e na mala de mão, ajeitou o vestido preto e olhou mais uma vez para o relógio. Sabia que naquele preciso momento, Bill se encontrava ainda no avião que partira de Nova Iorque, onde estivera a trabalhar nos últimos dias. Passava a maior parte do tempo a viajar entre Nova Iorque e Washington.

Pôs a mala de viagem no porta-bagagens do carro e a mala de mão no assento a seu lado. Partiu então para o Aeroporto Charles de Gaulle, com um olhar radioso estampado no rosto, enquanto Bill Robinson olhava pela janela do seu Gulfstream, que usava constantemente. Ao pensar nela, sorriu. Coordenara o voo de modo a chegar a Londres ao mesmo tempo que Isabelle.

 

Bill Robinson passou pela alfândega do Aeroporto de Heathrow com ar decidido, como se estivesse com pressa. E até estava. Levou apenas alguns minutos a levantar a mala. Então, com esta numa mão e a pasta na outra, dirigiu-se para o motorista do Claridge’s, que empunhava discretamente uma placa com o seu nome. Ficava no Claridge’s sempre que ia a Londres e convencera Isabelle a instalar-se lá também. Era um hotel com tradição e geralmente considerado o melhor da cidade. Há trinta anos que ficava aí alojado.

Enquanto punha a mala e a pasta no porta-bagagens da limusine, o motorista olhou de relance para o americano alto e de cabelos grisalhos, e reparou de imediato na aura de poder e sucesso que exibia e que não passava despercebida. Bill tinha olhos azul-claros, que condiziam maravilhosamente com o seu ar simpático e com os cabelos grisalhos, outrora loiros. Os traços eram marcadamente masculinos. O queixo, proeminente e anguloso. Envergava calças cinzentas, blazer, camisa azul e uma gravata Hermes azul-escura; os sapatos pretos haviam sido meticulosamente engraxados antes de partir de Nova Iorque. Vestia com subtil elegância, sem qualquer laivo de ostentação. Ao abrir o jornal, sentado no banco traseiro da limusine, qualquer mulher teria reparado na beleza das suas mãos. No pulso, exibia um relógio Patek Philippe, que Cindy lhe oferecera anos antes. Tudo nele era susceptível de atrair as atenções. No entanto, Bill Robinson preferia ser um homem de bastidores. Apesar das óbvias ligações à política e das oportunidades que lhe eram concedidas, nunca tivera necessidade de ser um homem de primeira linha. Preferia as coisas assim. Era a excitação do poder que o alimentava. Adorava os cantos e recantos da cena política sempre em constante mutação e não nutria o mínimo desejo de ser conhecido publicamente. Preferia passar despercebido. Não precisava nem desejava atrair as atenções.

Era um aspecto da sua personalidade que partilhava com Isabelle. No caso dela, manifestava-se através da sua timidez.

No dele, era uma das formas de exercer discretamente o seu poder. Impunha mais respeito e atenção pelo seu silêncio do que por qualquer outra coisa que fizesse ou dissesse. Também Isabelle dava mais nas vistas pelo seu silêncio. Ficava pouco à vontade quando a atenção estava concentrada em si e só em conversas a dois, como as que costumava ter com Bill, é que se libertava dela própria. Adorava a forma como Isabelle se abria consigo. Conhecia todas as suas emoções, todas as reacções, todas as idéias, e ela não hesitaVa minimamente em partilhar os segredos com ele, coisa que nunca fizera com Gordon.

Bill dirigiu-se para a entrada do Claridge’s e Thomas, o porteiro, reconheceu-o de imediato, mostrando-se satisfeito por revê-lo. Pouco depois, já Bill cavaqueava amenamente acerca do tempo e das recentes eleições locais com o subgerente, que o conduziu até ao quarto, uma suite ampla e soalheira no terceiro andar, decorada com cretone às flores, sedas azul-claras e antiguidades. Mal o subgerente saiu, pegou no auscultador do telefone, enquanto passeava o olhar pela suite. Ao ouvir a voz familiar, sorriu

Que tal foi a viagem?

Boa respondeu Isabelle, esboçando um franco sorriso. Haviam sincronizado as chegadas. Instalara-se no hotel vinte minutos antes. E a tua?

Ótima. Bill sorriu, com um ar arrapazado, pelo qual as mulheres sempre se sentiam atraídas. Parecia que nunca mais acabava. Estava ansiosa por chegar aqui. Já tinham passado quase seis meses desde a última vez que se haviam encontrado em Paris. Planeara voltar mais cedo, mas complicações políticas inesperadas não o haviam permitido. Sentia um grande desejo de vê-la. Estás cansada? Queres descansar um pouco?

Depois de uma hora de viagem. E riu-se. Estou bem. E tu?

Esfomeado. Queres ir comer qualquer coisa? Eram três horas da tarde

Adoraria. Depois podemos ir dar um passeio a pé. Não me mexi durante todo o dia. Nem sequer me levantei no avião. Isabelle também estava ansiosa por vê-lo e isso percebia-se na voz. Os encontros provocavam-lhes sempre uma ânsia terrível e quando estavam juntos falavam horas a fio, tal como faziam ao telefone. Nunca havia qualquer tipo de acanhamento entre eles.

Como é que ficou o Teddy? perguntou Bill, apreensivo. Sabia que era uma constante preocupação para Isabelle.

A dormir. Mas passou bem a noite. A Sophie telefonou de Portugal ontem à noite. Estava a divertir-se à grande com os amigos. E as tuas miúdas?

Acho que estão bem. Dentro de semanas, vêm a Londres com a mãe. Praticamente não falam comigo. Só sei onde estão pelas compras que aparecem no meu American Express. A Cindy vai levá-las para o Sul de França, antes de irem ao Maine visitar os avós. Depois iria encontrar-se com elas em Hampton, no final do Verão, como de costume. Mas, antes disso, tinha uma série de coisas para fazer. Ficaria a trabalhar em Washington durante todo o Verão. Cindy já nem sequer lhe perguntava se ia ter com elas onde quer que fosse. Sabia que era uma causa perdida e mostrar-se-ia espantada se ele tivesse essa intenção. Qual é o número do teu quarto? E olhou para o relógio. Tinham tempo para um almoço rápido. À noite, iria levá-la ao Bar Harry’s.

Trezentos e catorze.

Estamos no mesmo piso. O meu é o trezentos e vinte e nove. Passo por aí quando estiver pronto. Dez minutos?

Ótimo. Isabelle esboçou um tímido sorriso e fez uma ligeira pausa. Será um prazer voltar a ver-te, Bill. As palavras saíram num cerrado sotaque francês e Bill sentiu-se como que rejuvenescido. Isabelle significava tanto para ele que não encontrava palavras para definir os seus sentimentos. Era o protótipo da mulher por que sempre ansiara: gentil, carinhosa, paciente, compreensiva, interessada por tudo o que ele fazia, divertida, simpática. Fora uma inesperada dádiva caída do céu, tal como ele o era para ela. A única pessoa a quem Isabelle podia agarrar-se na vida, depois de tudo o resto à sua volta se ter desvanecido ao longo dos anos. Já não havia nada com que pudesse contar. A saúde de Teddy era uma preocupação constante e sabia que podia perdê-lo a qualquer momento. Gordon era simplesmente o homem com quem partilhava a casa e de quem recebera o nome, mas sentia que ele já não fazia parte da sua vida. À exceção de ocasionais aparições públicas, Gordon não a solicitava para nada. Além disso, como era próprio da idade, Sophie já abandonara o ninho. Nos últimos tempos, mais do que nunca, sentia-se só. À exceção de quando estava com Bill, pessoalmente ou ao telefone. Ele era a sua trave mestra, a sua alegria, o seu conforto, o seu melhor amigo. Também será um prazer ver-te de novo. Passo a buscar-te dentro de dez minutos. Depois podemos falar do que pensamos fazer. Sabia que iriam a Tate Gallery no dia seguinte e que havia algumas galerias particulares que Isabelle queria visitar. Planeava convidá-la para jantar em ambas as noites. Também gostaria de a levar ao teatro, porque sabia que era uma das coisas que ela mais apreciava, mas não estava disposto a perder horas do precioso tempo que podia passar a falar com ela. Era terça-feira e tinham até quinta à noite. Isabelle dissera que talvez pudesse ficar até sexta de manhã, o que dependeria do estado de saúde de Teddy. Além disso, achava-se no dever de passar o fim-de-semana em Paris. Era uma corrida contra o tempo, uma dádiva extraordinária poderem passar aqueles dias juntos. A primeira vez que tal acontecia. Da parte de Bill não havia segundas intenções. A única coisa que queria era estar com Isabelle. Os sentimentos que nutriam um pelo outro eram os mais puros e inocentes.

Bill lavou a cara e as mãos, barbeou-se rapidamente, sem nunca deixar de pensar em Isabelle e, dez minutos depois, já andava pelo corredor à procura do quarto dela. A localização, era um pouco confusa, mas acabou por o encontrar. Bateu à porta. A espera pareceu interminável. Isabelle abriu então a porta e, durante alguns instantes, não desviou os olhos dos dele, ao mesmo tempo que sorria timidamente.

Como estás, Bill? perguntou, a pele macia ligeiramente corada, os longos cabelos escuros e brilhantes sobre os ombros, os olhos fixos nos dele. Tens um ótimo aspecto. Aproximaram-se um do outro e beijaram-se na cara. Nunca haviam dado outro tipo de beijo. Bill ainda mantinha um ligeiro bronzeado de um fim-de-semana que passara em Greenwich, semanas antes, em claro contraste com a pele branca de Isabelle, cujos Verões de praia no Sul de França haviam acabado anos antes. Gordon ainda lá ia esporadicamente visitar amigos, ou com Sophie, enquanto Isabelle permanecia em casa com o filho.

Também tu. Sempre que a via, ficava impressionado com a sua beleza. Por vezes, esquecia-se disso, durante as longas conversas telefônicas, em que ouvia, extasiado, as palavras e as idéias de Isabelle. Mas, mais do que a beleza, era a alma dela que o cativava. Chegou-se mais a ele e enfiou-lhe a mão debaixo do braço com a graciosidade de uma corça. Bill reparou então no elegante vestido preto, na mala Hermes e nos sapatos de salto alto. Nas mãos trazia apenas a aliança de casamento, nas orelhas, um par de pequenos brincos com um diamante. Quem olhasse para ela não acreditaria que estava diante de uma pessoa com graves preocupações. Tinha um sorriso extremamente afável. Os olhos de Bill brilhavam de felicidade. Meu Deus, estás estupenda! Há quatro anos que mantinha o mesmo aspecto. Talvez um pouco mais magra, mas, com a sua beleza clássica, dava a impressão de que o tempo não passava por ela. Enquanto desciam as escadas, de braço dado, a cavaquear sobre a viagem, as galerias que faziam tenções de visitar, a exposição na Tate Gallery e as filhas de Bill, este parecia um miúdo pequeno. Adorava contar histórias engraçadas sobre as raparigas. Ao passarem pelo porteiro, ainda Isabelle ria, divertida.

Receei que o estado de saúde do Teddy não te permitisse vir. Bill dizia-lhe tudo o que pensava, tal como Isabelle fazia com ele. Teddy poderia realmente ter impossibilitado a vinda dela a Londres. Ou Gordon, se houvesse decidido que ela não deveria vir. Mas este não parecera nada preocupado com o fato de a esposa ir passar uns dias a Londres. Teddy, por seu turno, ficara encantado por a mãe poder ir. Não sabia nada de Bill, mas adorava ver a mãe sorrir e não queria ser um empecilho em relação à viagem.

Também receei não poder vir. Mas o Teddy está muito melhor. Há cinco anos que não o via assim tão bem. Com a adolescência, o estado de saúde dele fora-se agravando.

O coração e os pulmões não estavam a conseguir acompanhar o crescimento geral do corpo. Ele queria que eu viesse.

Bill tinha a sensação de o conhecer há anos. Embora não soubesse como, esperava que isso acontecesse um dia.

Saíram para a Brook Street, e Isabelle, ainda de braço dado com Bill, inspirou profundamente. Estava um dia magnífico e um calor que não era normal em Junho.

Onde queres ir? indagou Bill, fazendo uma lista mental das várias hipóteses, se bem que o que lhe interessava era apenas estar com ela. Tinha a sensação de se encontrar de férias. Nunca conseguia arranjar tempo para uma tarde descontraída, um almoço informal ou um passeio a pé com uma mulher a seu lado. Toda a sua vida girava em torno do trabalho e tudo o que fazia tinha a ver com a política. Nunca desfrutava de tempo livre, exceto quando estava com Isabelle. A seu lado, o tempo parecia parar. Quem o conhecesse bem não o reconheceria, descontraído, de sorriso nos lábios, ao lado de uma bonita mulher de longos cabelos escuros. Que tal irmos comer uma piza a um sítio qualquer?

Isabelle, com um radioso sorriso nos lábios, fez um gesto afirmativo com a cabeça. A felicidade que sentia era tanta que mal conseguia concentrar-se no que dizia.

De que estás a sorrir? perguntou Bill, em tom de gracejo, enquanto desciam calmamente a rua. Ambos sentiam que, pelo menos por agora, tinham muito tempo para si.

De felicidade Só isso. Nunca fiz nada assim. Sinto-me liberta de todas as preocupações. Isabelle sabia que Teddy estava em boas mãos e tudo o resto corria sobre rodas.

É assim que desejo que te sintas. Só quero que te descontraias e esqueças tudo.

Poucos minutos depois, apanharam um táxi e foram até um pequeno restaurante que Bill conhecia em Shepherd Market, perto da embaixada. Iam lá várias vezes nos intervalos das reuniões. O restaurante tinha um jardim e o dono ficou encantado ao vê-los. Estavam ambos elegantemente vestidos e havia algo de carismático neles. O dono conduziu-os então até a uma mesa num sítio recatado ao fundo da sala, trouxe a lista de vinhos a Bill, entregou a ementa a ambos e desapareceu.

É um sítio maravilhoso observou Isabelle, por entre um sorriso, enquanto se recostava na cadeira e fitava Bill. A última vez que o vira fora em Paris, no Inverno anterior, pouco antes do Natal. Oferecera-lhe uma bonita echarpe Hermes e a primeira edição de um livro de que haviam falado, encadernado a cabedal e extremamente raro. Isabelle tinha um carinho especial por ele, tal como por todas as outras coisas que Bill lhe dera ao longo dos últimos quatro anos.

Sinto-me uma menina mimada.

Ótimo! exclamou Bill, dando-lhe uma palmadinha na mão. Concordaram em comer uma piza, mandaram vir também saladas e uma garrafa de Carton-Charlemagne.

Agora vais embebedar-me a meio da tarde... Bill sabia, pelos almoços anteriores, que Isabelle pouco bebia, mas era o vinho de que ela mais gostava e além disso de uma colheita excelente.

Julgo que não corres esse risco, a menos que tenhas adquirido maus hábitos nos últimos seis meses. Estou eu mais sujeito a embebedar-me do que tu confessou Bill, embora Isabelle nunca o tivesse visto beber em demasia. Era uma pessoa sem vícios aparentes, à parte o de trabalhar de mais.

Que vamos fazer esta tarde?

O que quiseres. Estou feliz por estar aqui. Sentia-se um passarinho fora da gaiola. Bill sugeriu então que dessem umas voltas por algumas galerias e lojas de antiguidades, proposta que ela adorou. Não pararam de conversar durante toda a refeição. Eram quatro e meia quando saíram do restaurante. Apanharam outro táxi. Bill tinha uma limusine à sua disposição no hotel, mas ambos preferiam a liberdade de poderem andar por Londres sozinhos. Depois de visitarem as galerias e as lojas, regressaram ao hotel a pé. Já passava das seis.

Jantamos às nove? perguntou Bill, esboçando um sorriso. Podemos tomar uma bebida aqui no hotel e depois vamos ao Bar Harry’s. Há muito que era o restaurante favorito de ambos. Tinha um ar respeitável e não havia o problema de poderem ser vistos. Não existia nada para esconder e, se Gordon viesse a saber, Isabelle não tinha qualquer escrúpulo em dizer-lhe que se encontrara com Bill Robinson.

Não iria contar-lhe de livre e espontânea vontade, mas não alimentava qualquer sentimento de culpa, nem havia qualquer motivo para se desculpar. Apanho-te no teu quarto às oito.

Quando entraram no elevador, Bill colocou o braço sobre os ombros de Isabelle. Quem os visse não diria que estavam em quartos independentes e que não eram casados. A familiaridade entre ambos era tal, que mais parecia estarem a viver um romance. Enquanto se dirigiam ao terceirro andar e se encaminhavam até ao quarto dela, pareciam absortos relativamente a tudo o que os rodeava.

Passei uma tarde maravilhosa E pôs-se em bicos de pés para o beijar na face. É uma pessoa muito boa para mim, Mister Robinson. Obrigada, Bill proferiu Isabelle num tom solene, enquanto ele sorria.

Não sei como posso ser uma pessoa tão boa para ti. És uma mulher horrível e insuportável. De vez em quando, tenho de ser um pouco caridoso. Isabelle riu-se e Bill fez-lhe uma festa no braço, ao mesmo tempo que a porta do quarto se abria. Descansa um pouco antes de sairmos logo à noite. Far-te-á bem. Bill estava bem a par da vida stressante que ela tinha a tratar do filho. Como tal, queria que descansasse, que gozasse umas férias autênticas. Também sabia, por aquilo que ela lhe contava, que Gordon praticamente não lhe dava a mínima atenção. Por isso, durante o pouco tempo que estavam juntos, fazia tenções de lhe mostrar que havia alguém que se mostrava preocupado com ela. Isabelle prometeu-lhe então que iria dormir um pouco. Já no quarto, deitada em cima da cama, pensou mais uma vez em Bill, no modo como, anos antes, quase por acaso, ele entrara na sua vida e na sorte que tivera em conhecê-lo

Por vezes, interrogava-se sobre a razão por que ele continuava com a mulher. Era fácil deduzir que não havia comunicação entre eles, e Bill merecia muito mais. Mas também sabia que ele não gostava de falar no assunto. O estado do seu casamento com Cynthia era algo que aceitava como um dado adquirido e um equilíbrio que preferia não ver perturbado. Isabelle desconfiava que ele achava que um possível divórcio constituiria um tremendo incómodo. Não queria o menor indício de escândalo perto de si, nem atrair as atenções. Parte da sua força residia na discrição. Um divórcio teria provocado demasiado alarido, especialmente se fosse litigioso. Além disso, Cindy gostava das coisas tal como estavam. Apreciava as vantagens práticas de ser Mrs. William Robinson, especialmente em Washington. Embora dissesse que detestava a política, ter um marido que exercia considerável influência sobre o presidente era algo que tinha impato no meio que frequentava. Isabelle sentia imensa pena dele. Bill merecia muito mais do que aquilo que tinha com Cindy. O mesmo acontecia com ela. A vida que levava com Gordon não era certamente o casamento por que ansiara vinte anos antes, mas era algo que aceitava como uma contingência da vida. Naquele momento, deitada na enorme cama do Claridge’s, já não era nisso que pensava, mas na noite de conversa e boa disposição que iria ter com Bill. Nesse exato instante, Gordon parecia fazer parte dum mundo distante, quase inexistente. Bill fazia-a rir e sentir-se segura e bem consigo própria. Estar com ele em Londres era um sonho que se tornara realidade.

Dormitou até às sete horas, depois levantou-se e tomou um banho. Escolheu um vestido de noite de renda preta, uma echarpe de seda, sapatos de salto alto de cetim preto, um colar de pérolas e um par de brincos de diamantes. O vestido era sóbrio, mas muito feminino e, tal como ela, de subtil beleza. Apanhou o cabelo numa trança e aplicou um pouco de maquilhagem no rosto. Às oito horas em ponto, quando veio buscá-la, Bill teve uma reação de espanto. Nessa altura, já ela telefonara para casa e falara com a enfermeira de Teddy, que a tranquilizou dizendo-lhe que o filho se encontrava bem. Gordon saíra e Teddy já adormecera. Apesar de não ter falado com o filho, ficou feliz por saber que estivera bem durante todo o dia. Essa notícia veio dar-lhe outro ânimo para a noite que ia passar com Bill.

Uau! exclamou Bill, dando um passo atrás para a admirar melhor. Com a echarpe sobre os ombros e o vestido de renda justo ao corpo, Isabelle exibia uma beleza e uma sensualidade deslumbrantes. Estás encantadora. Quem desenhou o vestido? perguntou, com ar de conhecedor, o que provocou uma gargalhada em Isabelle, que não o tinha como um entendido em alta costura.

O Saint Laurent. Estás a surpreender-me. Desde quando te interessas por moda? Bill nunca fizera qualquer comentário desse gênero Mas as coisas ali eram diferentes. Podiam dar-se a esse luxo, tendo dois dias de convívio à sua frente.

Desde que te vejo vestida à moda. Ao almoço tinhas um conjunto Chanel, não tinhas? perguntou, orgulhoso consigo próprio, provocando nova gargalhada

Estou impressionada. Tenho de ter cuidado com aquilo que visto daqui para a frente e saber se está de acordo com os teus padrões.

Não tens nada que te preocupar. Estás deslumbrante comentou, num tom afável. Desceram no elevador, quase encostados um ao outro, a conversar baixinho. Isabelle contou-lhe que falara com a enfermeira que ficara a tratar de Teddy e que esta lhe dissera que este estava ótimo, o que a deixara muito mais descansada. Bill só queria que ela se descontraísse e divertisse, e até agora estava tudo a correr às mil maravilhas. Bill passava grande parte do seu tempo a pensar no que iria fazer com Isabelle durante os dois dias. Queria que esta fosse uma viagem que ambos recordassem pela vida fora, porque não sabia quando é que os seus caminhos voltariam a cruzar-se. Quase tinha medo de pensar nessa eventualidade. Sabia que era muito provável que aquela oportunidade extraordinária não voltasse a repetir-se.

Quando entrou no bar do Claridge’s, atrás dela, várias cabeças se viraram na direcção dos dois. Sentaram-se numa mesa de canto. Bill pediu um uísque com soda para si e um copo de vinho para Isabelle, que, como de costume, mal lhe tocou. Falaram de arte, política, teatro, da casa de Verão da família dele em Vermont e dos locais onde ambos adoravam ir em pequenos. Isabelle falou das visitas aos avós no Hampshire e das ocasiões raras, mas impressionantes, em que se encontrara com a rainha. Bill sentia-se deslumbrado com as histórias dela, que, por sua vez, escutava com igual fascínio as de Bill. Havia, como sempre, uma impressionante similaridade entre eles, no que tocava a reacções, filosofia de vida, gostos, pessoas, lugares e à importância dos laços familiares. Foi Isabelle que comentou, mais tarde, que era estranho como pessoas a quem a família dizia tanto tivessem deixado chegar os casamentos ao ponto em que se encontravam, tendo escolhido parceiros que pouco tinham a ver com eles.

A Cindy era muito mais meiga quando andávamos na faculdade, depois transformou-se numa pessoa cínica. Não sei se a culpa será minha observou Bill, pensativo. Somos pessoas muito diferentes e há muitos anos que não lhe satisfaço as necessidades. Acho que a desiludi. Queria que eu praticasse o chamado jogo social com ela no Connecticut e em Nova Iorque. Nunca mostrou grande interesse pela cena política Ao contrário de mim, que sempre me fascinou e à qual me dediquei de alma e coração. Agora que me movimento mais nos bastidores, acho que se fartou e perdeu qualquer interesse por tudo o que me diz respeito. Vivemos em mundos completamente diferentes.

No entanto, Isabelle achava que havia algo mais do que isso. Há anos que Bill lhe confidenciara que suspeitava que a mulher lhe fora infiel. Confessara-lhe também a sua única aventura amorosa. Mas sentia, por aquilo que ele lhe contava e não contava, que Cynthia não só estava afastada dele como também o punia, quando se encontravam, por aquilo que considerava serem as falhas dele para com ela. Isabelle nunca ouviu histórias de intimidade, de afabilidade, ou de qualquer outro tipo de apoio emocional entre eles. E não conseguia deixar de se interrogar se não seria doloroso para Bill admitir que a esposa já não o amava. Se é que alguma vez o amara. O mesmo tipo de questões se colocava relativamente a Gordon. No entanto, não queria pressionar Bill no que dizia respeito à mulher. Fosse o que fosse que ele visse nela, não queria forçá-lo a encarar algo que pudesse ser extremamente doloroso ou embaraçoso de admitir ou abordar

Penso que o Gordon é muito mais frio do que a Cynthia opinou Bill, convicto do que estava a dizer. Isabelle não discordou, embora achasse que, em parte, a culpa também era sua.

Acho que tenho sido uma grande desilusão para ele proferiu, com ar sereno, já dentro da limusine que os havia de conduzir ao Bar Harry’s. Acho que ele esperava que eu tivesse mais vida social e que saísse mais. Não tenho qualquer problema em receber os convidados dele, mas sou péssima no que toca a abrir-me com as pessoas ou a impressioná-las. Isso já é algo que me custa. Nos primeiros tempos de casamento, sentia-me uma marioneta de que Gordon puxava todos os cordelinhos. Ele é que me instruía sobre o que eu havia de dizer às pessoas, o que fazer, como me comportar, o que pensar. Depois, com a doença do Teddy, deixei de ter tempo e paciência para entrar nesse jogo. Já quando a Sophie era pequena, estava muito mais interessada nela do que naqueles idiotas todos que ele queria que eu impressionasse. Eu só desejava ter uma vida familiar e um lar. É provável que tenha falhado nesse aspecto. O Gordon é muito mais ambicioso do que eu.

Bill achava que devia haver algo mais do que isso. A frieza e a crueldade de que Gordon dava mostras pareciam ser premeditadas, para fazer sentir a Isabelle que a distância entre eles era inteiramente culpa dela. Como se insinuasse que, se ela tivesse tido outro comportamento, ele ainda estaria activamente envolvido na sua vida. Bill desconfiava que os motivos para o afastamento de Gordon não tinham nada a ver com Isabelle ou com Teddy, mas com coisas que a ela ainda nem sequer lhe haviam passado pela cabeça. No entanto, não queria magoá-la insinuando tal coisa. Apesar da rudeza de Gordon, Isabelle continuava a ser-lhe fiel e a arranjar desculpas para as coisas que ele fazia e lhe dizia Por aquilo que Bill conseguia aperceber-se, a generosidade de espírito que ela manifestava para com Gordon era imerecida, mas característica dela.

Não vejo como podes ter desiludido quem quer que seja. Não conheço ninguém que se entregue com tanto empenho àquilo que faz e estou certo de que deste o teu melhor por ele. Além disso, o fato de o Teddy ter nascido com problemas de saúde não foi culpa tua.

O Gordon acha que fiz qualquer coisa durante a gravidez que originou que o Teddy tivesse nascido antes do tempo. O médico diz que isso teria acontecido de qualquer das formas, mas o Gordon nunca ficou convencido Bill não gostara dele nas duas vezes em que se encontraram. Achara-o muito emproado e arrogante, e o modo sarcástico como falava com Isabelle fez-lhe impressão. Tratava-a como uma criança, mandava-a embora com palavras ríspidas e um aceno de mão, diante dos convidados. Porém, apesar de ignorar a esposa durante quase todo o tempo, mostrou-se afável com Bill. Era simpático quando queria, com as pessoas que achava poderem ser importantes ou úteis para si. Era quase como se precisasse de castigar Isabelle por aquilo que ela era. Tratava-a com absoluto desdém. Mas Bill desconfiava que, bem no fundo de tudo, Gordon estava impressionado com a família de Isabelle e sentia-se algo complexado, talvez por causa dos laços à família real. Por isso, tinha necessidade de estar constantemente a rebaixá-la, para se afirmar. De qualquer modo, quanto mais não fosse para não a magoar, Bill fingia um moderado respeito quando ela falava do marido. Não a queria colocar na posição de defensora dele. A lealdade de Isabelle era por de mais evidente. Afinal de contas, era seu marido. Mas já não fingia ser feliz com Gordon. Limitava-se a aceitar o casamento como uma inevitabilidade da vida e recusava queixar-se do estado a que as coisas haviam chegado. Estava grata por ter Bill para conversar e para a ouvir, e adorava o fato de ele estar constantemente a fazê-la rir.

Nessa noite, havia muita gente no Bar Harry’s. Mal conseguiam passar a porta. Junto ao bar, viam-se mulheres de vestido de noite ao lado de homens de fato escuro, camisa branca e gravata sóbria. Tinham todos um aspecto sofisticado, extremamente elegante, e Isabelle com o seu vestido de renda preta encaixava na perfeição nesse cenário. Bill, por seu turno, não destoava, no seu fato azul-escuro, que comprara antes da viagem.

O chefe de mesa reconheceu-o de imediato e, depois de cumprimentar Isabelle com um sorriso, conduziu-os até à mesa preferida de Bill, a um canto da sala. Daí podiam ver uma série de caras conhecidas: várias atrizes, uma estrela de cinema de nomeada, algumas figuras de monta no campo da literatura, uma mesa de homens de negócios do Bahrein, duas princesas sauditas e uma mesa de americanos elegantemente vestidos, um dos quais fizera fortuna na indústria petrolífera. Muitas dessas pessoas de renome dirigiram-se à mesa para cumprimentar Bill, que apresentava Isabelle simplesmente como Mrs. Forrester, não dando mais nenhum pormenor acerca de quem se tratava. A meio do jantar, Isabelle reparou num banqueiro francês que conhecera anos antes, e que, naturalmente, conhecia Gordon, mas que não a reconheceu.

Gostava de saber o que estas pessoas pensam que somos comentou Isabelle, pouco preocupada com o fato, mas divertida. Estava de consciência limpa, apesar de não ser normal estar em Londres a jantar com um homem no bar Harry’s.

Provavelmente pensam que és uma estrela de cinema francesa e eu um campónio que arranjaste E riu-se, enquanto o empregado de mesa servia Cristal com a sobremesa. O jantar estivera excelente e haviam bebido dois vinhos magníficos. Mas nenhum dos dois estava ébrio. Sentiam-se saciados, felizes e descontraídos.

Pouco provável retorquiu Isabelle, divertida. Toda a gente te conhece, apesar de achares que não. A mim é que ninguém conhece.

Posso fazer um anúncio, se quiseres. Ou vamos mesa a mesa quando sairmos e apresento-te a toda a gente como a minha melhor amiga. Achas que isso lhes satisfará a curiosidade? A única coisa que as pessoas que os rodeavam viam era um casal extremamente elegante e divertido.

Talvez. Achas que a Cynthia ficaria aborrecida se soubesse que jantaste fora com outra mulher. Esta despertava sempre a curiosidade de Isabelle.

Queres que te responda com toda a franqueza? perguntou Bill, de sorriso nos lábios. Não tinha segredos para ela. Prometera, há muitos anos, que nunca lhe esconderia a verdade, por mais incómoda que esta pudesse ser. O mesmo acontecia com Isabelle relativamente a ele. Acho que se estaria nas tintas. Já passou essa fase. Desde que não a ridicularize em público, pensa que isso são contas do meu rosário. Ela também não gostaria que eu a questionasse sobre a sua vida. E tem muito mais a esconder do que eu. Há anos que ouvia rumores acerca dela, e só das primeiras duas vezes é que a interrogara. Depois resolvera não querer saber.

Isso, de certo modo, entristece-me. Os casais não deviam ser assim.

O casamento pode encobrir uma série de situações. O teu e o meu não são o gênero de casamento com que as pessoas sonham. Nós temos aquilo a que as pessoas, por variadas razões, ao fim de muito tempo, acabam por se acomodar

Acho que tens razão disse Isabelle, pensativa, enquanto o empregado de mesa lhe servia um cálice de Chateau d’Yquem. Mas será bom para ti, acomodares-te? O vinho que bebera soltara-a um pouco mais.

Não tenho alternativa. Se não me acomodar, só me resta o divórcio E, por várias razões, nenhum de nós quer isso. A Cynthia quer a aura de respeitabilidade e o tipo de vida que lhe proporciono E eu não estou interessado nas ondas de choque que se gerariam se nos divorciássemos. Por si só, mantemo-nos assim. Além disso, as miúdas podiam não o aceitar bem. Não há nada nem ninguém a quem eu queira mais. Bill há muito que se conformara com a sua situação Mas, às vezes, Isabelle perguntava-se porquê Aos cinquenta e dois anos, Bill ainda era um homem suficientemente jovem para começar uma nova vida. Merecia ser feliz. Dava tanto e recebia tão pouco. Bill pensava o mesmo dela.

Nunca irás encontrar ninguém enquanto estiveres preso a ela afirmou, enquanto bebia um gole de Yquem.

Estás a sugerir que me divorcie? Bill pareceu surpreendido. Isabelle nunca lhe dissera tal coisa e não conseguia deixar de se interrogar por que razão é que ela lhe estava a dizer aquilo agora.

Não sei. Às vezes, pergunto-me se não estamos a desperdiçar as nossas vidas. Eu não tenho alternativa, por causa do Teddy e, de qualquer forma, nunca me divorciaria. Não existe um único caso de divórcio na minha família. Na minha idade, é muito difícil começar tudo de novo. Para um homem é diferente. Bill continuava surpreendido com as palavras dela. Nunca imaginara que Isabelle já tivesse encarado a hipótese de deixar Gordon.

Não acho. Além disso, és onze anos mais nova do que eu. Se alguém deve pensar numa vida nova, esse alguém és tu. Há vários anos que tu e o Gordon não estão casados, na verdadeira acepção da palavra. Mereces algo muito melhor. Era a primeira vez que observava com toda a franqueza aquele assunto, mas fora Isabelle quem puxara a conversa.

Não podia fazer isso e sabes bem porquê. Todos os nossos amigos e familiares ficariam horrorizados. Além disso, não posso perturbar a vida do Teddy. É demasiado frágil para sobreviver a uma mudança dessas E o Gordon nunca toleraria tal coisa. Matar-me-ia antes de me dar o divórcio. Não tenho a menor dúvida. A separação era algo que se encontrava fora das suas cogitações. As palavras eram ditas num tom convicto, mas, nessa noite, pela primeira vez, Isabelle sentia-se uma condenada em liberdade condicional. Nunca se permitira pensar em como era deprimente a casa de Paris, como a sua vida era limitada e no completo desprezo a que Gordon a votara. De súbito, sentada no Bar Harry’s com Bill, tomou perfeita consciência do que nunca tivera. No entanto, continuava a bater na tecla de que isso se devia ao fato de a sua vida girar em torno de um filho doente. Não se sentia ainda preparada para entender que a vida solitária que levava se devia em grande parte ao fato de, anos antes, ter sido abandonada, do ponto de vista emocional, pelo homem com quem casara.

Nunca te tinha ouvido falar assim observou Bill, enquanto pousava a mão sobre a dela. Isabelle nunca admitiria a profunda tristeza em que vivia, arranjando sempre desculpas para esse fato. Também nunca aceitaria o fato de Gordon ser o potencial destruidor da sua vida. Bill chegou a questionar-se se Gordon alguma vez a ameaçara. Mas, fosse como fosse, ela estava perfeitamente ciente da crueldade desse homem, não só relativamente a ela, mas também em relação ao filho. Que te leva a dizer isto agora? Ele ameaçou-te? Isabelle nunca referira que Gordon a mataria se ela abandonasse o lar, e Bill perguntava-se agora se ela abordara alguma vez o assunto com o marido. Fitou-a por instantes. Por trás do sorriso que esboçava, vislumbrava-se uma certa tristeza. Não conseguia imaginar outra vida no seu futuro senão a que tinha. A esperança numa vida melhor desvanecera-se há anos.

Acho que me embebedaste afirmou Isabelle, em tom de desculpa, mas sentia-se uma prisioneira que fugira da cadeia e que não estava disposta a manter por mais tempo o voto de silêncio a que se comprometera. De súbito, do outro lado do canal da Mancha, sentia-se ligeiramente menos fiel a Gordon do que em casa. E Bill conhecia-a muitíssimo bem.

Quem me dera retorquiu Bill, rindo-se, enquanto levava o cálice à boca. Adoraria ver o que farias se estivesses bêbeda. Vamos experimentar?

És terrível. Eu preocupada com o fato de poderes ser objeto de um escândalo e tu a incitares-me a comportar-me de forma escandalosa. Se continuas a dar-me champanhe e Yquem, vais ter de me levar às costas.

Ponho-te às costas e digo que te encontrei debaixo da mesa. Acho que ninguém se importaria.

E que farias depois? perguntou, rindo-se da imagem que Bill sugerira. Estava bem-disposta e só queria que a noite não tivesse fim. Na sua cabeça sentia o tempo a esfumar-se. Depois dessa noite, só lhes restava mais uma e dois dias. Aliás, duas se ficasse até sexta-feira. Depois, ambos voltariam para as suas vidas reais. Sentia-se a Cinderela no baile e não queria que os cocheiros se transformassem em ratos brancos.

Se tivesse de carregar contigo às costas, acho que te daria um café e punha-te minimamente sóbria para te levar a dançar ao Annabel’s.

Isabelle soltou uma gargalhada.

É capaz de ser divertido. Já lá não vou há anos, desde antes de casar. Passei lá a festa dos meus dezoito anos e o meu pai também me lá levou depois de eu e o Gordon ficarmos noivos. Nunca mais lá voltei. O Gordon detesta dançar.

Então, está combinado. Vamos lá esta noite. Logo que esvazies o cálice gracejou Bill, sabendo que Isabelle provavelmente só beberia mais um ou dois goles. O copo estava praticamente cheio. Só bebera um copo de cada um dos vinhos, um cálice de champanhe e não mais de um gole de Yquem. Mas era mais do que aquilo que geralmente bebia. Estavam ambos alegres, mas não embriagados. Quando muito encontravam-se inebriados pelo prazer de estarem um com o outro.

Não consigo beber mais disse Isabelle, em tom de queixume, com os enormes olhos fixos nos de Bill, que teve de reprimir uma vontade louca de a abraçar. Porém, não iria cometer essa idiotice, nem tinha o mínimo desejo de lhe estragar a reputação, nem de a embaraçar.

Se não consegues acabar o Yquem, então não podemos ir ao Annabel’s retorquiu Bill, com ar determinado, enquanto o empregado pousava em cima da mesa um prato de doces que deixou Isabelle deleitada. Tivera um jantar excepcional e não esperava ir a mais lado nenhum, a não ser voltar para o hotel. Tenho uma idéia. Se comeres dois doces de chocolate, levo-te ao Annabel’s. Sentia um tremendo desejo de a levar a dançar

Estás a falar a sério, perguntou Isabelle, divertida, metendo um doce na boca e olhando-o com um ar de desafio. Um.

E aqui tens outro disse Bill, oferecendo-lhe outro doce

És uma pessoa horrorosa. Não só queres ver-me bêbeda como também gorda

Isso levaria mais tempo do que pôr-te bêbeda. Bill esboçou um sorriso de orelha a orelha e comeu um doce. Está combinado. Vamos ao Annabel’s E fez sinal ao empregado para trazer a conta. Já nem sei se ainda consigo dançar. Além disso, és novo e eu já sou demasiado velha. Os homens lá são todos da idade do meu pai e dançam com miúdas da idade da Sophie.

Teremos de dar o nosso melhor. Não sou grande dançarino, mas é capaz de ser engraçado. Exibia um ar descontraído e feliz. Várias cabeças se voltaram quando saíram.

Poucos minutos depois, quando chegaram ao Annabel’s, toda a gente parecia conhecer Bill. Estivera aí com o embaixador seis meses antes e costumava lá jantar, de vez em quando, com amigos, sempre que ia a Londres. Enquanto o empregado os conduzia à mesa, Isabelle sorria, sentindo-se jovem e idiota por estar ali, mas extremamente lisonjeada por Bill a ter levado a dançar.

Nessa noite, havia uma multidão de gente no Annabel’s. Grande parte era constituída por casais como os que Isabelle descrevera a Bill: homens mais velhos acompanhados de mulheres muito mais jovens; mas também havia outros da idade deles. Uns jantavam nas mesas dispostas ao longo das paredes, outros conversavam e bebiam no bar. Sentaram-se numa mesa perto da pista de dança. Isabelle ficou então um pouco assustada com algo que detectou no olhar de Bill e que nunca vira antes. Mas achou que talvez se devesse ao vinho que haviam bebido e à intimidade que se estabelecera. No entanto, havia algo de terno e afável no modo como ele a olhava. Pouco depois, sem dizer palavra, conduziu-a até à pista de dança. Ao som de uma música que sempre apreciara, Isabelle estava espantada por constatar que Bill era um bailarino admirável. Dançaram uma série de músicas seguidas e só ao fim de bastante tempo é que voltaram para a mesa. Bill mandou vir então mais champanhe.

Isabelle bebeu apenas um gole. Os seus olhos encontraram os dele, mas desviou-os quase de imediato. Tinha receio do que começava a sentir.

Estás bem? perguntou Bill, preocupado com a eventualidade de ter feito qualquer coisa que a tivesse aborrecido. Mas não, o que Isabelle sentia era algo de muito profundo, que não conseguia exprimir por palavras.

Estou bem. Só não queria que esta noite maravilhosa acabasse.

Não vamos deixar que isso aconteça. Ambos sabiam que talvez só voltassem a ter uma noite assim daí a alguns anos. Isabelle não podia fazer das viagens a Londres um hábito. E se o estado de saúde de Teddy voltasse a piorar, passaria mais alguns anos sem poder sair. Além disso, em Paris, não gozaria da mesma liberdade de o ver que tinha ali. Gordon nunca entenderia e ela também não teria hipótese de o fazer perceber. Não vamos pensar nisso agora. Deixemos para mais tarde. Gozemos este momento, enquanto podemos.

Isabelle fez um gesto de concordância com a cabeça e sorriu, mas, ao fazê-lo, os olhos inundaram-se de lágrimas.

Tinha a sensação de que mal se haviam cumprimentado e já pouco faltava para se despedirem, e as únicas coisas que teriam seriam as suas vozes ao telefone. Bill detestava vê-la voltar para o seu mundo solitário. Era jovem, enérgica e bonita, e merecia ter alguém a seu lado que apreciasse tudo aquilo que tinha para oferecer.

Vamos dançar? perguntou Bill, por fim, e Isabelle assentiu com a cabeça. Desta vez, a caminho da pista de dança, Bill pegou-lhe na mão. E ela sentiu-se infinitamente mais próxima dele. Bill não disse nada, limitando-se a fechar os olhos e a envolvê-la nos braços. Esse momento foi como que um diamante a cintilar no aveludado da noite. Quando saíram do Annabel’s, não trocaram qualquer palavra. Só a meio da viagem até ao hotel é que voltaram a falar.

Diverti-me imenso murmurou Isabelle, cativada não só pela elegância de Bill, mas também pela simpatia que ele lhe dedicava.

Também eu retorquiu Bill, com o braço sobre os ombros dela, aninhada a seu lado. Não havia artifícios entre eles, nem nada de embaraçoso ou estranho. Aquilo que Isabelle sentia quando estava com ele, além de felicidade, era uma imensa paz interior. Ao chegarem ao hotel, ficaram alguns instantes sem se mexer e o motorista aguardou, respeitosamente, fora do carro, sem abrir a porta.

Vamos? perguntou Bill, com ar pesaroso, afastando-se lentamente dela. Ao ver o movimento dentro do carro, o motorista abriu a porta.

Bill seguiu Isabelle até ao átrio, passando pela porta giratória. Eram duas da manhã. Dois empregados de limpeza lavavam o chão de mármore. Já no elevador, Isabelle, com ar ensonado, não conseguiu conter um bocejo. O elevador parou então no terceiro piso.

A que horas queres sair de manhã? indagou Bill, com um irreprimível desejo de passar a noite com ela. Sabia que isso estava fora de questão e, por outro lado, não queria pôr em risco a amizade de ambos, propondo-lhe tal coisa ou fazendo algo de que pudesse vir a arrepender-se.

Que tal às dez? Acho que os museus não abrem antes disso. Isabelle sentia-se como que entorpecida. A noite deixara-a extremamente impressionada em vários aspectos.

O pequeno-almoço às nove? Venho buscar-te quando descer ofereceu-se Bill, quase encostado a ela.

Seria ótimo! E desfez-se novamente num amplo sorriso. Tive uma noite maravilhosa... Obrigada... murmurou, enquanto Bill lhe abria a porta do quarto, beijando-a depois no alto da cabeça.

Tive uma noite estragada gracejou Bill, quando Isabelle entrou no quarto. Esta virou-se e riu-se.

Folgo muito em saber.

Bill fez novo gesto de despedida com a mão e desapareceu ao fundo do corredor. Ao fechar lentamente a porta e enquanto se descalçava, Isabelle só conseguia pensar na felicidade que era ter um amigo como Bill.


 

Na manhã seguinte, Bill bateu à porta do quarto de Isabelle, que o esperava envergando um vestido de linho azul-marinho de requintado corte. Uma mala Kelly, sapatos de crocodilo também azul-marinho, uma echarpe verde ao pescoço e um par de brincos de esmeraldas e safiras completavam a toalete. Estava, como sempre, extremamente chique com um ar jovem e fresco.

Estás deslumbrante! comentou Bill, enquanto desciam as escadas lado a lado. Que tal dormiste?

Que nem uma pedra. E tu?

Acho que bebi de mais. Não sei se adormeci ou se desmaiei, mas estou ótimo. Não parecia ter-se embebedado na noite anterior e Isabelle também achava que não. Estava apenas a provocá-la. Bill telefonara a reservar uma mesa e mandara vir um pequeno-almoço gigantesco para ambos.

Não consigo comer isto tudo disse Isabelle, em tom de lamento, olhando para o que ele encomendara: ovos, waffles, salsichas, bacon, croissãs, papa de aveia, fruta, sumo de laranja e café. É mais do que suficiente para matar a fome a um exército esfomeado. Não sabia o que querias para o pequeno-almoço, por isso mandei vir tudo. Que costumas comer? perguntou, ansioso. Gostava de saber todos os pormenores acerca dela. Geralmente, café e torradas, mas isto é muito mais divertido respondeu Isabelle, pondo waffles, ovos, bacon e morangos no prato. E, para sua surpresa, comeu uma enorme quantidade daquilo que Bill mandara vir. Quando abandonaram o hotel, estavam ambos bem-dispostos e brincavam um com o outro acerca da quantidade de comida que haviam ingerido. Ainda bem que te vejo poucas vezes por ano. Caso contrário, ficaria quadrada comentou, ao entrar para a limusine. Bill fitava-a com um olhar estranho. Estivera a pensar em como seria bom tomar o pequeno-almoço com ela todos os dias. Era uma ótima companhia. Nas várias conversas telefônicas que tinham por semana, era raro ouvi-la de mau humor. Cindy costumava dizer que detestava falar com humanos antes do meio-dia. Até à Tate Gallery, Isabelle não parou de conversar e de dar informações.

Falava dos quadros que iriam ver, da sua história, da sua proveniência, da técnica e dos pormenores que eram marcantes neles. Fizera o trabalho de casa e estava excitada com a ida à exposição. Bill mostrava-se deliciado com o fato de poder partilhar o entusiasmo com ela. Mal chegaram, Isabelle ficou totalmente absorvida pelos quadros, observando em pormenor os mínimos detalhes de cada um e chamando-lhe a atenção para tudo o que achava importante. Era uma experiência completamente nova ir a um museu com Isabelle. Quando saíram, ao meio-dia, Bill tinha a sensação de ter tirado um curso intensivo de arte.

És uma perita nesta área. Porque não aproveitas esse talento? Não o podes desperdiçar assim.

Não tenho tempo retorquiu, com ar triste. Não posso abandonar o Teddy.

Porque não fazes o trabalho de restauração em casa? Assim podias estar perto dele. Podias montar um estúdio numa das divisões. A tua casa deve ser suficientemente grande para isso.

Acho que o Gordon poria entraves a essa idéia. Nunca morreu de amores pelo meu trabalho. Quando eu trabalhava no Louvre, achava essa vida demasiado boémia. Pelas dores de cabeça que iria ter, julgo que nem vale a pena pensar no assunto, não só por causa do Gordon, mas também por causa do meu filho.

Seria ótimo para ti retorquiu Bill, pragmático. Admirava os seus conhecimentos no campo das artes e o modo afável como os partilhava consigo, nunca sentindo que ela estivesse a exibir-se ou a fazê-lo passar por ignorante. Havia sempre uma grande humildade em tudo o que ela lhe dizia.

Também pintas?

Já pintei. Não sou grande pintora, mas adorava. Se tivesses um estúdio, também podias pintar. Acho que seria uma Ótima saída para ti.

Isabelle sorriu, mas sabia que Gordon ficaria irritadíssimo com a idéia. Já o trabalho no museu sempre o aborrecera e não descansara enquanto ela não o deixou, depois de Sophie nascer. Achava que era algo que não se coadunava com a sua posição social, nem com a imagem que queria fazer passar dela: a de mãe dos seus filhos e esposa dedicada única e exclusivamente à gestão do lar. Tudo aquilo que Isabelle fora antes de casarem, tudo o que fizera e amara, não tinha qualquer importância para Gordon, que era agora seu dono e senhor, controlando-a a seu bel-prazer e tratando-a como um objeto.

Se eu voltasse para a pintura e a restauração, acho que o Gordon tomaria isso como uma afronta. Quando os miúdos nasceram, disse-me logo que isso era algo da minha juventude, não um passatempo adequado a uma mulher casada.

E qual é o passatempo adequado a uma mulher casada? perguntou Bill, num tom de voz que denotava alguma revolta. Detestava Gordon e tudo aquilo que representava. Era uma pessoa pretensiosa, superficial e possessiva, que não tinha o mínimo respeito por Isabelle. Nem o menor respeito por aquilo que ela gostava de fazer. Isabelle era apenas uma “coisa” que ele adquirira para dar mais brilho à sua carreira profissional e à sua posição social. Logo que atingira esse objetivo, Isabelle deixara de ter qualquer interesse para si.

Para ele, só sirvo para tratar da casa e cuidar dos filhos. E tenho de me manter sossegadinha no meu canto até ele exigir a minha presença, o que raramente acontece. É capaz de um dia tolerar que eu trabalhe numa obra de caridade, desde que seja numa comissão que obtenha o seu aval, talvez com outras pessoas que lhe possam ser úteis. O Gordon nunca faz nada que não lhe traga proveitos. Caso contrário, acha uma perda de tempo.

Que triste forma de viver! comentou Bill, num tom seco.

Ele é, provavelmente, o banqueiro mais importante da Europa. De França, de certeza que é. A sua reputação tambem já está firmada nos Estados Unidos. Toda a gente de Wall Street e em todos os principais países europeus sabem quem ele é.

E depois? Ao fim do dia, o que é que ganhas com isso? Quem és tu quando tudo acabar e a única coisa que restar for a carreira? Que tipo de ser humano és tu? Nos últimos anos, tenho feito a mim próprio essa pergunta muitas vezes. Também cheguei a pensar que a única coisa que interessava eram os negócios. Mas que importância é que isso poderá ter se não existir vida familiar, se a esposa se estiver nas tintas para o fato de o marido se encontrar vivo ou morto, se os filhos não se lembrarem da última vez em que a família jantou toda junta? Eu quero que as pessoas se lembrem de mim por outros motivos. Era uma das coisas que Isabelle adorava em Bill: os valores e as prioridades de extrema clareza. Mas nem sempre fora isso o que acontecera, o que o levara a pagar um preço elevado pelas lições que aprendera. O seu casamento era tão vazio como o dela e, embora adorasse as filhas, não tinha qualquer intimidade com elas. Quando eram mais novas e a presença do pai junto delas era importante, Bill passava a maior parte do tempo à procura de políticos e a fabricar presidentes. Nos últimos anos, fizera um esforço para passar mais tempo com elas, com resultados razoáveis. Ambas as filhas gostavam da sua companhia e tinham orgulho nele, embora continuasse a passar grande parte do tempo em viagem. Agora, ao viajar para Londres, fizera questão em telefonar às filhas. Mas o crescente afastamento de Cindy não ajudava a melhorar as coisas. Raramente se encontravam todos juntos e, quando via as filhas, em geral, era uma de cada vez. Em muitos aspectos, Isabelle tinha mais sorte do que ele. Para ela, aquilo que verdadeiramente interessava era Teddy e Sophie, e passava muito tempo com eles. Mas Gordon não poderia dizer o mesmo. Os filhos eram estranhos, até Sophie, que era a preferida.

O Gordon não chegou a esse ponto e acho que nunca chegará. Essas coisas não significam nada para ele. Basta-lhe ser importante no mundo financeiro. Tudo o resto é irrelevante.

Acabará por se transformar num homem triste declarou Bill, num tom que denotava algum arrependimento, enquanto se encaminhavam para o carro. Eu também me apercebi disso, mas já um pouco tarde. Partilho mais da minha vida contigo do que alguma vez partilhei com a Cindy ou com as miúdas. Receio ter perdido esse barco há muito tempo. Nunca as acompanhei devidamente.

Estou certa de que elas entenderão porquê. Já são quase adultas e ainda têm uma vida inteira pela frente para partilhar contigo

Espero que encarem o problema nessa perspectiva. Já têm as suas próprias vidas e a mãe tenta convencê-las de que sou um safado egoísta E talvez tenha razão. Tu fizeste com que o melhor de mim viesse ao de cima. Ela nunca conseguiu. Não é uma pessoa afável. Não sei se ela alguma vez realmente quis que eu fosse quem sou agora. Julgo que este tipo de intimidade que temos seria assustador para ela, se bem que a maior parte das vezes o façamos por telefone. Ela não queria desabafar comigo, nem que eu desabafasse com ela. Só queria que a acompanhasse a festas. Mas eu não sou esse gênero de homem. Gosto de passar um bom bocado, mas nunca tomei consciência do que perdi por não ter ninguém com quem me abrir. A Cindy e eu passamos muito bem sem falar um com o outro, mesmo que estejamos na mesma sala. É uma situação que nunca irá alterar-se.

Mas podia, se quisesses. Se lhe desses outra oportunidade e te abrisses com ela, talvez aprendesse a ter maior intimidade contigo

Com a Cindy, não retorquiu Bill, com ar amargurado. Além disso, não quero. Entre nós, não existe mais qualquer ligação e acho que é melhor assim. Não há desilusão, nem mágoa. Desde que eu apareça, de vez em quando, num dos espectáculos de caridade que ela organiza, que continue a pagar as contas e não me esqueça de ir às festas de final de curso das miúdas, não há problema. Vivemos em mundos diferentes. Acho que ambos nos sentimos mais seguros assim.

Ao ponto a que deixámos chegar as nossas vidas, suspirou Isabelle, enquanto se recostavam no banco traseiro da limusine. Bill deu então ao motorista o endereço do restaurante onde iam almoçar. Isabelle já ouvira falar, mas não sabia onde ficava. Fora, durante anos, o restaurante preferido da princesa Diana. Tu permitiste-te afastar da Cindy e das tuas filhas. Eu permiti que o Gordon me ameaçasse sem dizer palavra. Por que razão deixamos que nos façam isso? Porque aceitamos que tomem decisões sem nos consultar? As coisas pareciam estar cada vez mais claras na sua cabeça.

Porque essas pessoas sempre foram assim e ambos sabíamos que as coisas iriam acabar desta forma. A Cindy era uma pessoa adorável quando andava na faculdade. Inteligente, bonita e divertida, mas pouco afável. É capaz de ser a mulher mais egoísta, manipuladora e calculista ao cimo da Terra. O Gordon é cruel, frio e possessivo. Nada do que fizéssemos teria alguma vez alterado esse fato. O problema é que o aceitámos de livre vontade, por mais que nos custe admitir.

Os meus pais eram assim. Adorava-os, mas eram muito distantes e reservados.

Também os meus. Detestavam crianças e haviam resolvido não ter filhos. Só que, inesperadamente, já eles tinham quarenta e tal anos, apareci eu. E sempre me deram a entender estarem a fazer-me um enorme favor em terem-me como filho. Foi um alívio quando entrei para a faculdade. Morreram os dois num desastre de avião, quando eu tinha vinte e cinco anos. Nem uma lágrima verti. Quando me telefonaram da companhia de aviação a dar a notícia, a sensação que tive foi a de terem morrido dois estranhos. Fiquei sem saber o que dizer. Não sei sequer quem eles eram. Apenas duas pessoas muito inteligentes que me deixaram viver com eles durante dezoito anos e que ficaram aliviados quando finalmente saí de casa. Não sei sequer qual seria a reação deles se algum dia os tivesse abraçado, beijado ou dito que os amava. Não me lembro de a minha mãe me abraçar ou beijar quando era pequeno. Falava-me sempre da porta do quarto e o meu pai nunca me dirigia a palavra. A Cindy é assim. Fala comigo a três metros de distância, ou mais, se puder.

É maravilhoso que sejas a pessoa equilibrada que és.

Sentia alguma dificuldade em imaginar a infância de Bill no entanto, a sua não fora muito diferente. Houvera abraços e beijos, mas muito pouco amor. A minha mãe era inglesa. Acho que queria amar-me, mas não sabia como. Uma pessoa muito formal e fria. Perdera a mãe ainda em bebê e o pai sempre fora muito seco com ela. Meteu-a num colégio interno quando tinha nove anos e deixou-a lá até casar com o meu pai. Conheceu-o quando foi apresentada na corte, e julgo que foi o meu avô que lhe arranjou o casamento para que ela saísse de casa. Quando isso aconteceu, voltou a casar, com uma mulher com quem andava envolvido ainda antes da morte da minha avó. O lado britânico da família estava cheio de esqueletos no armário e segredos de que ninguém podia falar. A única coisa que tínhamos de fazer era vestirmo-nos bem, sermos delicados e fingirmos que tudo corria como devia ser. Nunca fiz a mínima idéia do que a minha mãe pensava sobre o que quer que fosse, e o meu pai andava envolvido na política. Acho que ele nem sequer sabia que existíamos. A minha mãe morreu quando eu era adolescente e o meu pai nunca tinha tempo para conversar ou estar comigo, embora ache que não era mau homem. O casamento dele foi um pouco como o meu com o Gordon e é capaz de ser por isso que não me choca por aí além o fato de ter um marido que não me dá qualquer importância. Nunca pensei muito nisso, mas é o único modelo que conheço.

Acho que é também o que se passou comigo. Penso que, se a Cindy tivesse sido um pouco mais afável do que os meus pais, eu não teria sabido lidar com a situação. Tinha vinte e dois anos quando casámos e pareceu-me que uma parte de mim esteve congelada durante anos. Só quando começara a falar com Isabelle, quatro anos antes, é que muitas coisas principiaram a ficar claras no seu espírito e que muitas das suas opiniões se alteraram. O contraste entre Isabelle e Cindy distanciara-o ainda mais desta.

Gostava de saber o que aconteceria se nos tivéssemos conhecido quando casámos, com tudo o que sabemos agora

Nunca casaria com a Cindy se a conhecesse hoje declarou Bill, sem hesitar. Não consigo conversar com ela. Nunca consegui. Odeia falar dos seus sentimentos e não sente necessidade de conversar, pois é algo que detesta. A única coisa em que está interessada é num casamento aparentemente perfeito, sem ter em conta as mentiras que estão por trás. Custa-me apresentá-la assim, como uma pessoa superficial, pois acho até que possui qualidades maravilhosas, mas o que é fato é que estou casado com uma estranha há trinta anos.

E estás disposto a continuar assim durante mais trinta anos?

Tudo leva a crer que sim replicou Bill, se bem que ultimamente se tivesse questionado a esse respeito. Mas o divórcio teria sido um sério revés para ele. Na sua vida, a discrição e um faro apurado eram essenciais. Nenhum presidente ou candidato a presidente quereria estar ligado a ele, se as relações com Cindy se deteriorassem e o fato chegasse ao conhecimento do público; e ela nunca iria abrir mão da posição social que ocupava. A última coisa que ela queria era o divórcio. Também estás disposta a fazer a mesma coisa? Continuares num casamento sem amor até ao resto da vida. Conhecia a resposta. Já haviam discutido o assunto.

Não tenho alternativa.

Todos nós temos alternativas, se formos suficientemente corajosos para as assumirmos. Mas tu e eu temos muito a perder. A minha carreira sofreria um duro golpe se a Cindy e eu nos divorciássemos. E tu tens um filho gravemente doente. Entendo perfeitamente por que razão estamos a agir assim Mas às vezes tenho a sensação de que somos um par de parvalhões. Se tivéssemos alguma coragem e acreditássemos nos nossos ideais, dávamos o salto. Mas não acredito que nenhum de nós o dê.

Desconfio que tens razão anuiu Isabelle, com voz triste.

Só espero que não venhamos a arrepender-nos um dia. A vida é curta. Os meus pais morreram com sessenta e tal anos, sem gozarem a vida. Só fizeram o que achavam ser a sua obrigação. Quero mais do que isso. Mas ainda não sei como o vou conseguir.

Eu evito pensar no assunto. Fiz a minha escolha há vinte anos.

É de uma grande nobreza de carácter da tua parte, disse Bill, pegando-lhe na mão, quando se sentaram no carro, mas não receberás nenhum prémio por isso. Ninguém nos vai dar uma medalha pela nossa coragem.

Que queres dizer?

Não sei bem. Por vezes, estou farto da vida que levo. Nem sequer já sei se ainda acredito na porcaria de vida que tenho. Para te ser franco, quando nos vemos e falamos, pergunto-me que raio vamos nós fazer conosco? Parecia assustada e temia que Bill lhe dissesse que nunca mais voltariam a ver-se. Ao olhar para ele, os olhos de Isabelle estavam muito abertos.

Não, com as outras pessoas. Tu e eu somos os únicos que fazemos sentido. Nunca consegui falar com outra pessoa da forma que nós falamos. Não é assim que deve ser?

Isabelle fez um gesto afirmativo com a cabeça, pensando em tudo aquilo que ele lhe dissera.

Agora é, mas aos vinte e um anos, quando casei, não via as coisas assim. A única coisa que sabia nessa altura era fazer o que me ordenavam. O Gordon era exatamente como o meu pai. Ele é que me dizia a que horas tinha de me levantar e deitar, o que devia dizer, o que fazer, o que pensar. Nessa altura, era confortável. Mas nunca me apercebi de que existia uma alternativa e que havia outras formas de viver.

E agora? Continuo a não ter alternativas. Sabes bem que não] Que alternativa tenho?

A que escolheres. A questão é essa. Pagaremos um preço elevado pela mudança nas nossas vidas. E o preço que pagamos não é elevado se elas continuam tal e qual estão? Já pensaste nisso.

Tento não o fazer. Tenho a vida que tenho por causaH do Teddy e da Sophie.

Tens a certeza de que é esse o motivo por que preferes continuar como estás? Bill nunca a pressionara daquela maneira, o que a espantava, levando-a a perguntar-se o que mudara. Dava a impressão de que Bill já não estava contente nem com a sua vida nem com a dela. Tens a certeza de que queres continuar assim porque receias seguir outro caminho? Tenho um medo tremendo de deitar as cartas ao ar, abandonar o jogo. Sou humano e não sou perfeito, e tenho necessidades afetivas.

Estás a dizer-me que vais deixá-la? Sentia-se perplexa. Ao longo de vários anos de conversas, sempre lhe dissera que nunca romperia o casamento. Tal como ela.

Estou a dizer, ou pelo menos penso que estou a fazê-lo, que gostaria de ter coragem para a deixar. - Bill resolveu então dar o grande passo. Mesmo que Isabelle ficasse furiosa e saísse disparada do carro, tinha de lho dizer, porque era o que sentia. E significava demasiado para o poder ignorar. - Para teu bem, gostaria que tivesses a coragem suficiente para deixares o teu marido. Quando te telefono fico de coração destroçado a ouvir-te falar como uma prisioneira que está a ser morta à fome, privada dos seus direitos, desprezada e desrespeitada há vários anos. Só tenho vontade de vos raptar, a ti e ao Teddy, fazer qualquer coisa para vos tirar daquela casa. O Gordon não te merece, da mesma forma que a Cindy não me merece. E o que é fato é que nunca nos mereceram. Quem me dera que a vida fosse mais simples do que é. Mas não. É uma complicação tremenda. Quem me dera que pudéssemos começar tudo de novo.

Quem nos dera. Mas não podemos. E sabes isso tão bem como eu. - Isabelle adorava a idéia de Bill pôr um ponto final no casamento. Mas sabia que seria um ato desastroso para a sua carreira. - Se a Cindy armar um escândalo, toda a tua vida política irá por água abaixo. Passaste trinta anos a construí-la. Estás mesmo disposto a trocá-la pela liberdade? Tens a certeza? Pelos teus ideais? E depois o que farás? E eu? O Gordon disse-me, há muitos anos, que se eu algum dia o deixasse, só descansaria quando me visse a passar fome pelas ruas. Não herdei nada. Foi tudo para o meu irmão. E quando ele morreu num acidente, a herança foi para os filhos. Estou completamente dependente do Gordon. Não posso dar-me ao luxo de o deixar. Não poderia proporcionar a devida assistência médica ao Teddy. Custa uma fortuna e, por pouco que ele queira saber de mim e do filho, paga tudo sem pestanejar. Que sugeres? Que sujeite o Teddy à miséria, por capricho, ou que, pura e simplesmente, o abandone? Não, sabes bem que é impossível. Além disso, o Teddy não sobreviveria a uma mudança tão radical. É de uma grande dignidade pensar em deixar o Gordon porque parece não me amar, mas o amor é um luxo a que eu e o Teddy não temos acesso. - Custava dizer aquilo, mas era a pura das verdades. Isabelle sujeitava-se a submeter-se a Gordon para poder proporcionar a melhor vida possível ao filho. A Bill custava-lhe ver Isabelle aceitar de bom grado esse tipo de vida, embora ele tivesse feito exatamente a mesma coisa. Ambos haviam aceite sem protestos aquilo que tinham E a que preço.

Acho que a única coisa que devemos fazer é tirar o melhor proveito daquilo que temos afirmou Bill, ao saírem em frente ao restaurante que haviam escolhido para almoçar. Era italiano e muito conhecido. Talvez não tenhamos alternativa, embora deteste acreditar nisso. No caso de Isabelle, não via saída possível, embora lhe custasse a acreditar que os tribunais franceses permitissem que Gordon deixasse a mulher e o filho doente passarem fome. Mas talvez ela tivesse razão

Se o deixasse, seria o ato mais egoísta que poderia cometer. O Gordon não me daria um centimo a mais daquilo a que se visse obrigado, e o Teddy não teria o mesmo conforto de agora. Só estaria a pensar em mim. Não poderia fazer uma coisa dessas ao meu filho. Tal como as coisas estão, o equilíbrio já é suficientemente precário para ele

Tens razão. Não te censuro Mas, quando estou contigo, tenho sempre a sensação de que poderíamos estar numa situação muito melhor. Vejo como a vida poderia ser e nunca foi para ambos.

Talvez as coisas entre nós sejam assim, porque apenas nos limitamos a falar ao telefone e nos encontramos umas quantas horas de tantos em tantos meses. Provavelmente se nos tivéssemos casado, as coisas não se passariam desta maneira.

Acreditas mesmo misso? perguntou Bill, olhando-a fixamente

Isabelle hesitou durante um longo instante, depois, abanou silenciosamente a cabeça. Não, não acredito. Mas nunca saberemos. Nem sequer podemos permitir-nos abordar o assunto retorquiu tentando afastar aquele tipo de pensamento. Será que sonhar com isso é outro luxo a que não nos podemos dar?

Acho que sim. Se pedirmos ou tentarmos alcançar mais do que temos agora, acabaremos por nos magoar um ao outro. Penso que devemos sentir-nos gratos com aquilo que temos e não pedir mais. És o amigo mais querido que tenho no mundo e adoro-te por isso. Não vamos estragar as coisas querendo mais. Isabelle sentia a mesma atração que ele desde a noite anterior. Era maravilhoso estarem juntos, passearem, conversarem, rirem, dançarem, partilharem waffles e croissãs. E depois? Que iriam fazer quando chegassem a casa? Não permitiria que Bill fizesse uma asneira qualquer, mesmo que fosse esse o seu desejo. Isabelle sabia que o resto era algo que não poderiam ter. Mas ele mantinha o mesmo ar obstinado.

Quero mais! Isabelle riu-se.

Mas não podes ter. Estás a parecer uma criança mimada.

Sinto-me vivo pela primeira vez, desde há muito tempo. O mesmo acontecia com ela, que tinha a sensação de lhe terem tirado dez anos de cima desde o dia anterior.

Acho que as salsichas do pequeno-almoço te subiram à cabeça. Decidira que a única maneira de lidar com a situação era não o levar a sério, apesar de ter ficado surpreendida com tudo o que Bill dissera. Talvez possamos encontrar-nos aqui uma vez por ano, durante uns dias. É capaz de ser suficiente. Foi a única coisa que lhe veio à cabeça para contrapor à idéia de uma vida com Bill.

Sabes tão bem como eu que não é suficiente.

Que sugeres? Que fujamos para o Brasil? Põe um pouco de tino nessa cabeça. Pensa no que estás a dizer. Não sejas louco. E não esperes que eu também enlouqueça. Não posso. Bill conhecia-a bastante bem para saber que nunca poria em risco o bem-estar do filho. Mas não sabia se algum dia deixaria Gordon. Era uma pessoa demasiado bem formada Para fazer uma coisa tão escandalosa como essa. E embora Gordon fosse uma pessoa de baixa formação moral, Isabelle era-lhe incrivelmente fiel.

Não podes gostar do domínio que ele exerce sobre ti e dos maus tratos que te inflige.

E não gosto. Mas não se trata propriamente de maus tratos. Ele, pura e simplesmente, saiu da minha vida.

Abandonou-te do ponto de vista emocional. Há vários anos Que te resta se não o fato de ele pagar as contas do Teddy

É o suficiente. É a única coisa de que preciso.

Parece-me uma insensatez. Tens quarenta e um anos. Precisas de algo mais do que isso.

Nem sequer já penso na minha vida ripostou, num tom firme, tentando resistir a tudo o que sentia por ele.

Mas devias pensar.

Acho que precisas de uma bebida e de uma sesta E de um calmante. Isabelle nunca o vira ou ouvira assim. Estava sensibilizada, mas não podia fazer nada. Sabia bem que não. Dentro de um, dois dias, tinha de voltar para França. A única coisa que podia fazer era gozar o tempo que lhes restava e não desperdiçá-lo querendo mais Mas, de repente, Bill recusava-se a ver isso e parecia querer pôr em risco tudo, desejando mais do que aquilo que tinha. Tens de ser sensato.

Porquê? perguntou Bill, enquanto saía do carro.

Sabes bem porquê. Porque, gostes ou não, não existe alternativa. Só estás a torturar-te. Tens o direito de te libertares, se quiseres, e talvez seja isso que deves fazer. Mas a minha situação é mais complicada. A vida do Teddy depende daquilo que o pai lhe der. E não podia dar-se ao luxo da incerteza de contar com outra pessoa. Gordon era o pai do miúdo e, pelo menos, era essa a sua obrigação.

Ele seria um monstro se retirasse o apoio ao filho. Isabelle ficou alguns instantes sem fazer qualquer comentário, depois olhou-o fixamente e falou num tom claro e firme, de modo a que ele pudesse perceber que estava a falar a sério.

Não vou fazer o teste. Não posso.

Compreendo limitou-se Bill a dizer, entrando atrás dela no restaurante. Desculpa ter puxado o assunto. Não quis aborrecer-te. Só que as coisas, tal como estão, não fazem qualquer sentido. Vivemos com pessoas que nos tornam infelizes e, quando estamos só os dois, a sensação é completamente diferente. De súbito, teve vontade de arriscar tudo. Talvez isso aconteça porque não estamos efectivamente juntos. Se estivéssemos, é possível que nos sentíssemos tão infelizes como com eles.

Tudo aquilo que nunca fora abordado entre eles era agora posto a descoberto, o que era, de certa forma, um alívio. Haviam-se escondido atrás da amizade e, de repente, Bill queria mais. Mas Isabelle frisava que essa era uma questão que não se punha, independentemente daquilo que sentia por ele. Havia muito mais em jogo do que isso. E não iria trocar a vida e a saúde de Teddy pelo sonho de um romance. Era demasiado sensata para correr tal risco. Por muito que gostasse e admirasse Bill, o filho vinha em primeiro lugar. E ele respeitava-a por essa razão, sempre a respeitara e continuaria a respeitar.

Aceito aquilo que estás a dizer prosseguiu Bill, enquanto se sentavam a uma mesa, debaixo de um chapéu, protegendo-se do sol de Junho. Nunca poria em risco a saúde do Teddy. Mas quero que saibas que gosto muito de ti. Nunca vos poria em risco. Aliás, gostaria de te ajudar a cuidar dele, se pudesse. Mas não estou disposto a fingir que não quero mais. Quero que saibas isso.

Eu sei. Tens sido tão bom para mim, ao longo de todo este tempo. Durante os últimos quatro anos, além dos filhos, Bill era a única pessoa com que contatava.

Não tão bom como gostaria. Estou farto da hipocrisia das nossas vidas. Tu finges que és esposa do Gordon e eu finjo que sou um marido extremoso, quando vou aos jantares de cerimónia com a Cindy. Mas já não sei se conseguirei continuar a fingir, nem sequer se tenho vontade para isso. Acho que já não vale a pena.

Podes ter de pagar um preço muito mais elevado se desistires do jogo. Isabelle questionara-se sobre tudo e Bill apanhara-lhe o ponto fraco e incitara-a a revoltar-se. Mas Isabelle teimava em ser razoável.

Talvez um destes dias mande tudo passear. Nunca se sabe.

Precisas de pensar maduramente no assunto.

um gesto de concordância com a cabeça e pegou-lhe na mão.

És uma mulher extraordinária disse, com os olhos a transbordar de emoção, e muito mais sensata do que eu.

Talvez seja uma vantagem. Isabelle levou a mão de Bill aos lábios e beijou-a. És o meu amigo mais querido.

Bill ficou mudo por instantes. Havia tanta coisa que lhe queria dizer, mas sabia, por tudo aquilo que ela dissera nessa manhã, que não era a altura certa para o fazer.

Que queres almoçar? perguntou, tentando atenuar as emoções que quase o haviam tomado por completo. Nem sequer conseguia imaginar o que sentiria quando ela regressasse a Paris. Mas não valia a pena pensar nisso agora.

Decidiram mandar vir massa e saladas, e cingiram-se a temas de conversa neutros, como livros e arte. Isabelle achava que Bill devia escrever um livro sobre a cena política. Mas o que o tornaria interessante senam os segredos que ele não podia divulger.

Talvez quando me reformar sugeriu, enquanto apreciavam a sobremesa.

Nessa altura, já ambos estavam muito mais calmos. Bill não sabia por que razão as coisas haviam ficado fora de controlo nessa manhã. Sentia-se feliz quando estava com Isabelle e custava-lhe a aceitar que não pudesse haver algo mais. Sabia que, enquanto Teddy fosse vivo, ela nunca poderia pensar em deixar Gordon, e esperava, para bem dela, que o filho ainda vivesse muitos e longos anos.

Nessa tarde, foram ao Museu Britânico, donde só saíram por volta das quatro horas. Deram então um passeio pela New Bond Street, em passo lento e de braço dado, detendo-se deleitadamente a ver os quadros e os artigos de joalharia expostos nas montras. Eram quase seis horas quando voltaram para o Claridge’s e resolveram tomar chá. Havia sanduíches de pepino, outras com tomate e agrião, salada de ovo e biscoitos. Esse chá bem servido fez com que Isabelle se lembrasse dos chás que tomava com o avô quando era pequena. Sempre adorara aquele tipo de refeição. Bill decidiu provocá-la, dizendo-lhe que preferia estar a comer eclairs e petits-fours no Angelina’s, em Paris, ou a comer gelado no Berthillon. Isabelle retorquiu calmamente que eram sítios onde também adorava ir.

Quando voltas a Paris? indagou Isabelle, enquanto comiam as sanduíches e Bill lhe servia outra chávena de chá.

Que tal na próxima semana? Vou sentir imenso a tua falta depois deste nosso encontro.

Também eu confessou Isabelle, experimentando a mesma atração que Bill. Quando estavam juntos ou a falar ao telefone, não parecia haver qualquer problema. Mas era como que um fruto proibido. O simples fato de estar com ele já era uma dádiva divina.

Onde queres jantar? indagou Bill, enquanto Isabelle revirava os olhos e se ria.

Como podes estar a pensar em jantar depois de tudo isto? Acho que não vou conseguir comer durante uma semana. Era a última noite que passavam juntos. Isabelle tencionava partir no dia seguinte, ao fim da tarde. Ainda não pensara na hipótese de ficar mais uma noite, embora estivesse tentada a fazê-lo. Não queria pressioná-la. Sabia que se sentia no dever de voltar para junto do filho E talvez, se ele não a pressionasse demasiado desta vez, estivesse disposta a ficar mais uma noite em Londres. Estavam a ser uns dias maravilhosos para ambos.

Que tal o Mark’s Club? perguntou Bill, ignorando os protestos dela relativamente ao fato de comer de novo. Podemos lá ir mais tarde, se quiseres.

Seria divertido. Há anos que lá não vou. Para te ser sincera, nunca lá estive E riu-se.

Vou fazer a reserva para as nove horas.

Bill levantou-se da mesa e dirigiu-se à recepção, onde se deteve alguns instantes a falar com o recepcionista. Isabelle não tirou os olhos dele por um segundo. Era um homem com um charme irresistível.

Porque estavas a olhar tão fixamente para mim? Perguntou ele, divertido e algo embaraçado. Isabelle era tão bonita que às vezes, ao olhar para ela, sentia um aperto no coração. queria dar-lhe muito mais do que aquilo que lhe proporcionava, passar tempo na sua companhia, apresentá-la aos amigos, levá-la a Washington para a mostrar. Mas sabia qe nenhum dos dois podia fazer isso. Ela não se atreveria a ir mais longe.

Estava a admirar-te. É um homem muito bem-parecido, Mister Robinson. Há muito, muito tempo, sentira o mesmo por Gordon. Mas agora já não. Conhecia demasiado bem a frieza gélida do seu coração.

Ou estás louca ou cega ripostou Bill, e riu-se, denotando algum desconforto. Levantaram-se e dirigiram-se aos respectivos quartos. Eram sete e meia Bill disse então que ia pedir uma massagem no quarto, enquanto ela se vestia e telefonava para casa. Venho buscar-te um quarto de hora antes das nove. Dá-te tempo?

Está ótimo. Só queria telefonar a saber como estava Teddy, tomar um banho, dar um jeito ao cabelo e vestir-se.

Até já disse Bill, enquanto lhe punha o braço por cima dos ombros e a beijava na face. Nesse instante, esteve tentado a perguntar-lhe se queria ficar mais uma noite, caso o filho estivesse bem. Mas preferiu esperar que ela telefonasse para casa e falasse com as enfermeiras e com Teddy

Ficou satisfeita por saber que o filho tivera um ótimo dia e estava a rir quando falou com ele. A enfermeira estivera a ler-lhe um livro de anedotas que Isabelle lhe comprara antes de partir para Londres. Teddy leu-lhe então algumas que a fizeram rir. Quando entrou para o banho ainda sorria. Prometera-lhe que estaria em casa na noite seguinte. Partiria num voo às seis da tarde e estaria em casa por volta das nove. Ainda pensara ficar outra noite, mas não lhe parecia justo

Quando surgiu diante de Bill, envergava um vestido simples de seda branca, com uma estola de caxemira branca, um colar de pérolas e sapatos de seda branca Chanel com pontas pretas. Trazia uma pequena carteira branca com nada mais dentro para além do batom e da chave do quarto. Não precisava de mais nada E, desta vez, resolvera não apanhar os cabelos. Bill ficou ainda mais impressionado do que na noite anterior quando a viu. Parecia encantado.

Isabelle, tão extraordinariamente graciosa, meiga e feminina, representava tudo o que ele sempre quisera numa mulher e só lamentava não a ter conhecido anos antes.

Que tal estava o Teddy? indagou Bill, enquanto desciam as escadas, sem paciência para esperar pelo elevador.

Em excelente forma. Leu-me meia dúzia de anedotas e a enfermeira disse que nunca o vira tão bem. Não sei se é da medicação, se do tempo, se da boa sorte. Mas seja pelo que for, espero que se mantenha. Disse-lhe que estaria em casa amanhã à noite.

Oh! exclamou Bill, com a tristeza estampada no olhar. Esperava que pudesses passar outra noite. Tenho de me encontrar com o embaixador amanhã e não creio que esteja despachado antes do meio-dia. Ficamos com pouco tempo livre até ao teu vôo.

Eu sei disse Isabelle, enfiando a mão no braço dele. Pensei nisso, mas não tive coragem de lhe dizer que queria ficar mais uma noite. Talvez lhe telefone amanhã.

Seria maravilhoso. Porque não lhe perguntas se se importa? Não queria roubá-la ao filho, só queria que ficasse mais uma noite. E ela também tinha vontade de ficar. Sentia-se dividida entre Bill e o filho, uma sensação que lhe era muito pouco familiar.

Telefono de manhã e vejo como é que ele se sente. Mas não posso prometer nada. Se ele passar mal esta noite, terei mesmo de ir amanhã.

Compreendo. Mostrava-se satisfeito por Isabelle considerar a hipótese de ficar mais uma noite. Se tiveres de ir, se calhar também vou contigo. Não seria má idéia visitar a embaixada de Paris. Mesmo não podendo estar com Isabelle tanto tempo, queria manter-se perto dela. Mas seria muito diferente. Poderiam almoçar ou jantar, mas ela não teria a mesma liberdade que ali. Se Gordon soubesse que andavam a encontrar-se, poderia ser embaraçoso. Mas Bill compreendia tudo isso. Já se encontrara com Isabelle em Paris anteriormente. Obrigado por estares disposta a telefonar. seja como for, tenho de voltar para Nova Iorque no sábado.

Vai ser uma sensação estranha quando te fores embora observou Isabelle, num tom triste. Só haviam estado Juntos durante um dia, mas era uma sensação tão reconfortante que nenhum dos dois conseguia imaginar-se sem o outro.

Estava a pensar na mesma coisa afirmou Bill, enquanto se dirigiam ao Mark’s Club. Tu podias transformar-te num hábito difícil de quebrar.

Isabelle assentiu com a cabeça, enquanto Bill lhe pegava gentilmente na mão. Estavam a ultrapassar barreiras que ambos sempre haviam respeitado e a entrar em territórios até aí desconhecidos. E sabiam que, se se aventurassem demasiado, poderia ser perigoso.

Tomaram umas bebidas. Depois foram conduzidos até uma mesa na sala de jantar. Isabelle preferia o Harry’s, mas o ambiente ali também era acolhedor e romântico. Falaram durante horas e ela teve vontade de parar a marcha do tempo. Os momentos iam-se esvaindo com demasiada rapidez. Não queria que a noite acabasse. Bill também não.

E se fôssemos ao Annabel’s outra vez? perguntou Bill, quando saíram. Então, os olhos de ambos encontraram-se durante um longo instante. Isabelle não sabia muito bem se iriam aventurar-se para águas mais profundas, caso fossem dançar. Mas nenhum dos dois conseguia resistir. Muito provavelmente iria ser a sua última noite e a última oportunidade que teriam durante muito tempo. Talvez nos próximos anos. Ambos sabiam que tinham de aproveitar o melhor que pudessem.

Adoraria. De repente, quando se sentaram no carro e deram as mãos, não conseguiram arranjar palavras que definissem aquilo que lhes ia na alma. Mantiveram-se em silêncio até entrarem no Annabel’s e se sentarem no bar.

Bill mandou vir champanhe e fizeram um brinde. Depois de Isabelle beber o primeiro gole, Bill pousou o cálice, estendeu-lhe a mão e convidou-a para dançar. Radiante de felicidade, sob o tecto de pequeníssimas estrelas a cintilar, seguiu-o até à pista de dança. Era o local mais romântico em que alguma vez estivera e, desta vez, enquanto dançavam, dava a sensação de que os corpos se haviam fundido num só. Moviam-se lentamente ao som da música, sem trocar qualquer palavra, agarrados um ao outro. Isabelle fechou os olhos.

Só ao fim de muito tempo é que abandonaram a pista. Nenhum dos dois queria pensar na partida no dia seguinte, mas não havia forma de evitar essa realidade. Sabiam que esse momento acabaria por chegar.

Voltaram a dançar antes de saírem. Ao abandonar a pista de dança, Isabelle tinha os olhos inundados de lágrimas. Quando saíram do Annabel’s, Bill pôs-lhe o braço por cima. Estava uma bonita noite quente e estrelada. Bill sorria-lhe quando, de súbito, uma explosão pareceu eclodir nos seus rostos. Ao princípio, Isabelle ficou sem saber do que se tratava cega por um clarão de luz. Só quando recuperou a visão é que reparou que um fotógrafo fizera disparar a máquina, mas não imaginava porquê

O que aconteceu. Ficara assustada e recuara para os braços de Bill, que ainda tinha um braço por cima dela e a apertou mais contra si.

São os paparazzi. Tiram primeiro a fotografia e só depois é que identificam as suas vítimas. Apanham muitas estrelas de cinema e políticos assim E se por acaso for alguém que não interesse, não aproveitam a fotografia.

Que seria o meu caso. E tu. Poderiam arranjar-te problemas.

Não creio. Os tablóides estão-se nas tintas para mim. Acho que foi uma fotografia desperdiçada.

Nem sequer me apercebi do que aconteceu. A única coisa que vi foi um clarão de luz. Haviam usado um strobe e colocado a câmara a poucos centímetros do rosto de Isabelle.

É triste viver-se assim comentou Bill, a pensar na fotografia que lhe haviam tirado e ansioso por saber se conseguiriam identificá-lo. Mas não lhe disse nada. Agora pouco poderiam fazer. A única pessoa que poderia importar-se seria Cindy. Isabelle era certamente desconhecida. Não havia motivo para Gordon Forrester ver a fotografia. Ao entrarem no carro, Bill mudou de assunto.

Isabelle sentou-se junto a Bill, que, como de costume, lhe pegou na mão. A idéia de partirem no dia seguinte não lhes saía da cabeça. Estavam ambos com ar sério quando Bill Pediu ao motorista para os levar a dar um pequeno passeio, antes de voltarem para o hotel. Não tinham pressa e, além disso estava uma noite maravilhosa. FOI Isabelle quem falou primeiro, numa voz sumida.

Nem quero acreditar que já me vou embora amanhã. Teddy era a única coisa que a obrigava a regressar a Paris.

Pode ser que não vás. Vê como ele se sente quando telefonares. A Bill só lhe restava rezar para que Teddy passasse bem a noite. Não conseguia imaginar-se a vê-la partir.

Isabelle fez um gesto de assentimento, sorriu e encostou a cabeça ao ombro dele.

Passei uma noite maravilhosa.

Também eu. Voltou-se e olhou-a fixamente. As palavras seguintes deixaram-na perplexa: Que vamos fazer agora? perguntou Bill, numa voz que ela conhecia bastante bem. Era a voz que a fazia estremecer quando atendia o telefone.

Relativamente a quê?

Bill fitou-a com o ar mais sério que ela alguma vez lhe vira e não sabia se queria que ele respondesse ou não.

A nós. Estou apaixonado por ti. Prometi a mim mesmo que não iria pronunciar estas palavras. Sei que não é justo, mas quero ao menos que saibas e que leves estas palavras contigo quando voltares para Paris. Amo-te, Isabelle. Há muito tempo que te amo. Nunca se sentira tão vulnerável na vida.

Eu sei murmurou Isabelle, levantando os olhos para ele. Também te amo desde a primeira vez que nos conhecemos. Mas não há nada que possamos fazer. Ambos sabiam que não. Isabelle nunca quisera dizer-lhe isso. Sabia que tornaria tudo muito mais complicado, mas agora nenhum dos dois conseguia controlar os sentimentos. Enquanto Bill lhe passava carinhosamente a mão pelo rosto, o motorista conduzia o carro em direcção a um cruzamento. Por instantes, Bill ainda pensou em pedir-lhe que parasse. Apetecia-lhe estar só com Isabelle. Era um momento que queria que nenhum dos dois esquecesse.

Não podemos fazer nada agora Mas talvez um dia. Nunca se sabe. Aconteça o que acontecer, quis que soubesses... Vou amar-te até ao resto da minha vida. Era uma certeza que já tinha há muito tempo. Isabelle era tudo o que sempre desejara, mas sabia que nunca a poderia ter.

Amo-te murmurou Isabelle, enquanto Bill a apertava mais contra si. muito...

Ao ouvir estas palavras, Bill encostou os lábios aos dela e só teve pena de não o ter feito há mais tempo. Era o momento por que ambos ansiavam há muito e que os aproximou ainda mais. Beijou-a com ardor, enquanto a envolvia nos braços. A única coisa que Isabelle sabia é que nunca fora tão feliz na vida e só queria que aquele momento nunca acabasse. Nos seus braços, sentia-se, pela primeira vez na vida, em segurança. Bill ainda a beijava quando entraram no cruzamento. O motorista observava-os pelo retrovisor, tão hipnotizado por aquilo que via que não reparou no autocarro vermelho de dois andares que se aproximava a grande velocidade. Bill continuava a beijá-la quando o autocarro arrancou toda a parte da frente do carro e o motorista desapareceu literalmente. Não tiveram tempo para qualquer tipo de reação. Ainda se beijavam quando o autocarro parecia devorar toda a limusine. No espaço de segundos, esta ficou transformada numa amálgama de ferros retorcidos, e havia vidros espalhados por todo o lado. O autocarro arrastou a viatura pela rua abaixo, deixando-a totalmente desfeita, de lado, com as rodas a girar. Isabelle ainda se encontrava tranquilamente nos braços de Bill, por cima dele. O tejadilho do carro cedera. Estavam ambos inconscientes. O rosto dela já não era branco, mas vermelho de sangue. Bill tinha dois cortes profundos no rosto. Isabelle dava a sensação de estar a dormir tranquilamente. O rosto mantinha-se intato, mas todo o resto do corpo parecia ter sido esmagado.

Ouvia-se o som das sirenes das ambulâncias ao longe e a buzina do autocarro, que não parava de soar. O motorista voara pelo pára-brisas e jazia morto no asfalto. Dois homens apareceram a correr com uma lanterna e apontaram-na para dentro do carro todo retorcido. O rosto ensanguentado de Bill e o vestido completamente manchado de sangue foi tudo que conseguiram ver. Os olhos de Bill estavam abertos, dando a sensação de estar morto, e, a julgar pela quantidade de sangue espalhado por todo o lado, era pouco provável que Isabelle tivesse sobrevivido. Os dois homens ficaram boquiabertos com o espectáculo com que deparavam. Oh, meu Deus... exclamou um deles. Achas que estão vivos? perguntou o outro.

Nem pensar.

Enquanto espreitavam para o interior do carro, viram um fio de sangue sair da boca de Isabelle.

Como irão tirá-los dali? - O homem que empunhava a lanterna não conseguia imaginar a maneira de os desencarcerar. O tejadilho estava a exercer pressão sobre as costas dela.

Isso agora já não deve interessar. Mas levarão toda a noite a tirá-los dali de dentro.

Foram então ver os passageiros que jaziam no chão do autocarro. Os poucos que tinham tido mais sorte encontravam-se espalhados fora do autocarro, com camisas manchadas de sangue e golpes na cabeça. Alguns coxeavam, outros estavam atordoados. Ouviu-se então alguém dizer que havia meia dúzia de mortos no interior. Fora um dos piores acidentes com que a polícia deparara, tratando-se de um autocarro daquele tamanho. Enquanto os polícias falavam com as testemunhas que haviam assistido ao embate, ouvia-se o som de sirenes a aproximar-se e, em poucos minutos, surgiram ambulâncias, carros de bombeiros e paramédicos por todo o lado. Estes dirigiram-se de imediato para a limusine e os dois homens que haviam espreitado para dentro da viatura disseram-lhes que os dois únicos passageiros pareciam estar mortos.

Os paramédicos foram verificar e, à primeira vista, ficaram com a impressão de que os homens tinham razão, mas um dos paramédicos conseguiu enfiar a mão lá dentro e palpar o pulso de Bill e o de Isabelle, constatando que ainda estavam vivos.

Esperem gritou para um bombeiro que se encontrava nas imediações. Tenho duas vidas aqui presas por um fio. Tragam os carros para aqui! Temos de os tirar. Tinha a sensação de que era demasiado tarde e que já não conseguiria retirá-los com vida, mas, pelo menos, iriam tentar. O condutor da limusine já fora encontrado e morrera de um grave traumatismo craniano. Quanto a Bill e a Isabelle ainda não se podia dizer se sobreviveriam. Ele estava a perder muito sangue devido a ferimentos vários. Tinha o pulso tão fraco que o paramédico mal o sentia. Os sinais vitais de ambos estavam a ficar cada vez mais ténues. As manobras de desencarceramento iniciaram-se quase de imediato. Num ápice, uma série de bombeiros subiu para as viaturas e começou a ligar cabos e a dar instruções para os colegas que estavam ao volante dos carros que iriam puxar a limusine. O barulho era ensurdecedor, mas nem Isabelle nem Bill ouviram o mínimo som.

Os bombeiros levaram quase duas horas para tirar a limusine de debaixo do autocarro. Tiveram de usar cuidados extraordinários para não maltratar ainda mais os dois, que já estavam a receber transfusões de sangue. Isabelle tinha um garrote no braço esquerdo. Os paramédicos que os tratavam estavam cheios de sangue e ninguém acreditava que eles pudessem ainda estar vivos. Ninguém diria que o vestido de Isabelle era branco. Encontrava-se encharcado em sangue. Ainda não faziam idéia de quem eles eram. Quando os meteram na ambulância, já todas as vítimas do autocarro haviam sido levadas do local do acidente. Nessa altura, um dos paramédicos tinha a carteira de Bill na mão e já o haviam identificado, mas ainda não sabiam quem Isabelle era.

Ela usa aliança de casamento disse um, quando a ambulância partiu para o Hospital St Thomas, deve ser a esposa. Enviou então uma mensagem via rádio para os polícias no local do acidente para darem uma vista de olhos a uma mala de senhora que se encontrava no carro. Nenhum dos dois recuperou a consciência durante todo o processo de desencarceramento. Encontravam-se ambos em coma profundo quando entraram na Unidade de Traumatologia, ficando de imediato sob observação de duas equipes de médicos, que determinaram a necessidade de serem operados o mais rapidamente possível. Ele, a um grave hematoma na coluna vertebral e a uma fractura do pescoço, ela, a um traumatismo craniano, a várias lesões internas e a um corte de artéria no braço esquerdo, ao qual havia sido aplicado o garrote. Esta operação tinha de ser realizada com a máxima urgência, caso contrário, Isabelle corria o risco de perder o braço. Meu Deus, que coisa horrível sussurrou uma das enfermeiras, enquanto Bill e Isabelle entravam de maca nas respectivas salas de operações. Há muito tempo que não havia vítimas de acidente neste estado. Não consigo perceber como ainda estão vivos, comentou a outra. Esta estava encarregada de Isabelle, que era dos dois a que tinha menos hipóteses de sobreviver. Estavam preocupados com o traumatismo craniano, mas as lesões mais graves situavam-se no fígado, pulmões e coração.

Num ápice, estavam os dois deitados nas mesas de operação, com os anestesistas a administrarem-lhes as respectivas anestesias, sob os fortes focos de luz, enquanto os membros das equipes de operadores ouviam o diagnóstico dos especialistas de traumatologia. Era difícil decidir qual dos dois estava pior. Encontravam-se ambos em estado extremamente crítico. Quando as operações se iniciaram, os sinais vitais de ambos começaram a diminuir praticamente ao mesmo ritmo.

Quando teve início a operação às vértebras que Bill fracturara, este imaginou estar a sentar-se na cama e, quase de imediato, viu-se a andar por um caminho fortemente iluminado. Tinha a consciência de todos os sons à sua volta e, ao longe, vislumbrava uma luz intensa. Ficou surpreso quando, ao olhar em redor, avistou Isabelle, sentada numa pedra à sua frente, no caminho.

Estás bem?

Isabelle lançou-lhe um olhar estranho, como se estivesse ensonada. Pôs-se então de pé e esperou que ele a acompanhasse.

Estou ótima respondeu, sem olhar para Bill. Parecia hipnotizada pela luz muito brilhante, tal como acontecera com ele ao princípio. O que é aquilo?

Não sei respondeu Bill, algo confuso. Lembrava-se de ter andado à procura de Isabelle e de não conseguir encontrá-la. Onde estiveste?

Estive aqui, à tua procura. Partiste há muito tempo. Isabelle tinha uma voz muito sumida e um ar pálido, mas exibia uma estranha calma.

Estive sempre aqui. Não fui a lado nenhum explicou Bill, mas dava a sensação de que Isabelle não lhe dava °uvidos, parecendo ansiosa por continuar a caminhada em direcção à luz.

Vens? perguntou Isabelle, virando-se para Bill. Mas este não conseguia acompanhá-la e pediu-lhe que abrandasse O andamento.

Porque estás a correr dessa maneira?

Isabelle limitou-se a abanar a cabeça e continuou a andar em direcção à luz brilhante.

Quero que venhas comigo retorquiu, estendendo a mão para trás

Bill agarrou-lha; conseguia aperceber-se da presença de Isabelle a seu lado, mas não sentia a mão dela. Via que lhe agarrava a sua, mas não era capaz de ter qualquer espécie de sensação. A única coisa que sabia era que estava desesperadamente cansado. Apetecia-lhe deitar-se e dormir num sítio qualquer, mas não queria perdê-la de novo. Sabia que, apesar daquilo que ela dissera, a perdera por instantes. Isabelle virou-se então para ele e, olhando-o nos olhos, disse, numa voz sumida.

Amo-te!

Bill queria pedir-lhe para abrandar o passo.

Também te amo! Não podemos descansar um pouco? Estou cansado.

Podemos descansar quando lá chegarmos. Estão à nossa espera insistiu Isabelle, convicta do que estava a dizer e sentindo algo dentro de si que a obrigava a prosseguir. Bill continuava a tentar que ela abrandasse o passo.

Onde é que vamos?

Ali acima. Isabelle apontou para a luz e Bill seguiu-a durante mais algum tempo. A caminhada parecia nunca mais ter fim. Quando estavam quase a alcançar a luz, Bill ouviu vozes atrás deles a chamar por Isabelle. Quando se virou, viu uma criança. Não tinha a certeza, mas parecia um rapaz. Este acenava-lhes e chamava pela “mamã”. Isabelle voltou-se e deteve-se durante algum tempo a olhar para o miúdo. Ao longe, atrás deste, avistava-se a silhueta de uma rapariga.

Quem é? perguntou Bill, mas, ainda antes de ouvir a resposta da boca de Isabelle, já sabia de quem se tratava.

É o Teddy. E a Sophie. Mas já não posso voltar para eles. É demasiado tarde.

De repente, ao rapaz e à rapariga que estavam a acenar, juntaram-se duas jovens. Quando Bill se virou para trás, reconheceu de imediato as filhas, Olivia e Jane, a chamar por si, tal como Teddy chamara por Isabelle.

Espera... Era a muito custo que Bill conseguia acompanhá-la. Isabelle caminhava já muito à sua frente. Não sabia muito bem se devia segui-la, se voltar para trás para perto de Olivia e Jane. Temos de voltar para o pé dos miúdos!

Isabelle limitou-se a abanar a cabeça.

Não vou voltar para trás, Bill. Vens comigo? Parecia determinada, mas ele estava a ficar cada vez mais cansado. Assemelhava-se a um caminho sem fim.

Não consigo acompanhar o teu passo. Por que razão não voltas para trás? Eles precisam de nós...

Não, não precisam. Não posso voltar para trás. Para mim, é demasiado tarde. Diz ao Teddy e à Sophie que os adoro proferiu Isabelle, preparando-se para prosseguir sozinha.

Tens de vir comigo! exclamou Bill, de repente, agarrando-a pelo braço. Escuta... O tom de voz era ríspido, mas Isabelle não o ouvia, estava quase a chegar à luz. Tens de me ouvir... O Teddy e a Sophie precisam de ti... Tenho de regressar para junto das minhas filhas. Volta comigo, Isabelle... Podemos vir aqui noutra altura...

Isabelle hesitou, mas só durante uma fracção de segundo, enquanto Bill lhe tocava na mão.

Quem te diz que voltaremos a ter outra oportunidade?

Teremos, um dia... mas agora não é a altura.

Para mim, é. Não quero voltar... Isabelle olhava-o com ar suplicante, e Bill sentia-a fugir-lhe. Por favor, Bill... vem comigo. Não quero ir sozinha.

Fica comigo, Isabelle. Amo-te. Não me abandones. Bill chorava ao dizer estas palavras, baixando a cabeça para que ela não o visse chorar, mas esta fixava nele o seu olhar penetrante. Bill levantou então os olhos e estendeu a mão.

Pega na minha mão... Não vou permitir que partas. Juro! Tens de voltar comigo.

Isabelle ficou, de súbito, com um ar muito cansado e olhou para trás, para Teddy e para as raparigas. Hesitou durante um longo instante. Então, em passo lento, começou a andar na direcção de Teddy. Custava-lhe muito mais andar para trás do que para a frente. Pouco depois, Bill tinha-a nos braços e beijava-a com ardor. Nenhum dos dois sabia onde haviam estado. A única coisa que sabiam era que tinham de voltar para junto dos filhos. Sentia agora a mão de Isabelle apertada contra a sua. Tens a certeza de que é isto que queres fazer? perguntou Isabelle. Não ouviam as vozes dos filhos, mas sabiam que eles estavam à sua espera. Escurecia e a luz ia perdendo o brilho. Absoluta respondeu Bill, e apertou-lhe ainda mais a mão. Está a fazer-se tarde.. e a ficar tão escuro. Como é que vamos encontrar o caminho de regresso? Isabelle tinha a sensação de terem andado perdidos e não queria que o mesmo voltasse a acontecer. Basta não me largares a mão. Bill sentia menos dificuldade em respirar. O ar que o rodeava não parecia tão rarefeito. Conheço o caminho. Pôs-lhe então o braço por cima e continuaram a andar. Agora era Isabelle quem estava cansada e ele que se sentia cada vez com mais forças. Preciso de parar um pouco pediu Isabelle. Ambos conseguiam ver a pedra onde ela estivera sentada à espera de Bill, mas este não iria permitir que ela parasse desta vez. Tinham de chegar a casa. Não temos tempo. Vais ficar boa. Poderás descansar quando chegarmos. E, sem dizer palavra, Isabelle seguiu-o. Estava escuro, mas tinha a sensação de que Bill sabia para onde ia. A única coisa que lhe apetecia era deitar-se e dormir na berma da estrada. Todavia, Bill não lhe largava a mão e não a deixava abrandar o passo. Não sabia como nem quando haviam ido ter ali. Pouco depois, tinha a sensação de estarem em casa. Isabelle não reconhecia a sala onde se encontravam. Sentia-se segura ao lado de Bill. Havia crianças por todo o lado, e conseguia ver Teddy e Sophie a rir, na companhia de alguns amigos, e as filhas de Bill a falar com este. Depois de abraçar os filhos, deitou-se, finalmente. Sabia que se encontrava a salvo e a única coisa que queria fazer era dormir ao lado de Bill. E adormeceu, com a certeza de que ele ficaria sempre ali ao lado dela.

Meu Deus, nunca pensei que conseguíssemos! comentou a enfermeira que assistia ao cirurgião para o anestesista, quando saíram da sala de operações. Fora uma batalha de quatro horas para manter a pressão arterial de Isabelle suficientemente alta para evitar que morresse durante a operação. Ao fim da primeira meia hora, toda a gente na sala tinha quase a certeza de que ela morreria. Perdera muito sangue. Ninguém sabia agora se sobrevivera devido à medicação que lhe fora administrada, se às transfusões de sangue, se à operação ou se por pura sorte. Mas, fosse por que fosse, todos concordavam que era um milagre Isabelle estar viva.

Nunca assisti a uma cirurgia como esta. Ela tem uma sorte dos diabos em estar viva afirmou um dos cirurgiões. Ainda não está livre de perigo, mas acho que vai conseguir. Casos como este renovam a minha fé em Deus. Sorriu e saiu da sala de operações, o rosto banhado em suor. Fora uma longa noite e uma luta extenuante contra o tempo.

Duas enfermeiras saíram da sala de operações ao lado, onde Bill fora operado e também estavam com ar esgotado.

Que tal correu a operação? indagou o cirurgião.

Quase o perdemos quatro ou cinco vezes. Conseguiu recuperar, mas tem muitas lesões na parte superior da coluna vertebral. Tivemos de o reanimar vezes sem conta. Estivemos quase a desistir.

Foi o que quase aconteceu conosco. É espantoso como conseguiram sobreviver.

Que tal está ela?

Ainda em estado crítico. E cheguei a pensar que teríamos de lhe amputar o braço. Também tivemos problemas terríveis com o fígado e o coração. Nunca vi um paciente com tantas lesões que conseguisse sair da operação com vida.

Eram oito da manhã. As duas equipes de operação foram até ao bar beber café e comer scones, enquanto Isabelle e Bill eram transportados para os respectivos quartos, ainda sob o efeito da anestesia. Nessa altura, já tinham achado a mala de mão de Isabelle. A chave do seu quarto no Claridge’s encontrava-se lá. A polícia telefonara para o hotel e fora informada de que a vítima do acidente se chamava Isabelle Forrester, era francesa e morava em Paris. O subgerente prometera ir de imediato ao quarto dela ver se encontrava o passaporte para saber qual o contato a estabelecer em caso de urgência. Mas até ao momento ninguém telefonara.

No que tocava a Bill, tinham todas as informações de que precisavam. O número de telefone de casa encontrava-se na carteira e a esposa era o familiar mais próximo. A recepcionista do hospital ia telefonar a Cynthia para lhe dizer que o marido tivera um acidente e sobrevivera.

Bill e Isabelle estavam em estado muito crítico. O traumatismo craniano de Isabelle também era preocupante, se bem que não tanto como as lesões internas. O maior receio em relação a Bill era a lesão na coluna, que poderia comprometer a sua capacidade de andar. Escapara por um triz à paralisia total. A grande questão residia em como iriam reagir as pernas. Ainda tinham um longo caminho a percorrer até a sobrevivência estar assegurada. Fora um dos piores acidentes a que a polícia assistira nos últimos anos e do qual resultaram onze mortes. Os motoristas de ambos os veículos e nove passageiros do autocarro. Durante a maior parte da noite, enquanto realizavam as cirurgias de Isabelle e Bill, as equipes cirúrgicas estiveram prestes a confirmar mais duas mortes. Só por milagre é que eles ainda se encontravam vivos.

A recepcionista arquivou alguns impressos antes de se sentar e soltar um suspiro. O subgerente do Claridge’s fora ao quarto de Isabelle e encontrara o passaporte, que referia o marido como o parente mais próximo. Tinha o número de telefone de Paris e o número de Bill do Connecticut. Detestava fazer telefonemas daqueles. Bebeu um gole de café para ganhar coragem e depois ligou para Paris. O telefone tocou várias vezes até que, por fim, um homem respondeu, para alívio da recepcionista.

Monsieur Forrester, s’il vous plait disse, num francês com forte sotaque britânico.

O próprio. A recepcionista reconheceu-lhe o sotaque americano e perguntou-lhe, de imediato, em inglês, se Isabelle era sua esposa.

É sim respondeu Gordon, num tom algo preocupado.

A recepcionista informou-o então de que estava a telefonar do Hospital St. Thomas e que Isabelle tivera um acidente de viação na noite anterior, explicando-lhe que a limusine fora abalroada por um autocarro.

A sua esposa encontra-se em estado crítico. Acabou de sair da sala de operações, Mister Forrester. Sofreu lesões internas profundas e um leve traumatismo craniano. Só poderemos saber mais alguma coisa do seu estado clínico daqui a algumas horas. Mas já é encorajador o fato de ter sobrevivido à operação. Sinto muito proferiu, sem saber mais o que dizer. Fez-se então uma longa pausa, enquanto Gordon ponderava o que acabara de ouvir.

Também eu. Parecia chocado. Vou ainda hoje para aí sussurrou Gordon, perguntando-se se não seria melhor falar com o médico primeiro. Mas a recepcionista dera-lhe pormenores suficientes, tornando desnecessária a conversa com o médico. Ela está consciente?

Não, não está. Não recuperou a consciência desde o acidente e agora encontra-se sob a acção de sedativos. Perdeu muito sangue.

Gordon ficou pensativo, sem saber o que dizer. Achava inacreditável que estivessem a falar de Isabelle. Por pouco que partilhassem, por mais afastados que vivessem, continuava a ser sua esposa. Ainda pensou em contar o sucedido a Teddy e também a Sophie, que se encontrava em Portugal, mas acabou por não o fazer. Só iria assustá-los. Não havia razão para telefonar a Sophie sem saber mais pormenores do estado de Isabelle. Achou ser melhor não dizer nada a ninguém, até ele próprio tomar conhecimento da situação, a não ser que ela morresse entretanto. A recepcionista frisara-lhe que essa era uma hipótese. Quando desligou, sentou-se à secretária durante um longo instante, de olhos fixos no espaço. Há muito tempo que não sentia nada pela esposa, mas era a mãe dos seus filhos e estavam casados há vinte anos. Esperava que ela não tivesse sentido nada quando a viatura foi atingida. Por instantes, sentiu-se grato por ela não ter morrido. Porém, ficou perplexo ao verificar como aquele fato o atingira tão pouco. As únicas emoções de que tinha consciência eram as de compaixão e pena.

Telefonou para as companhias de aviação e perguntou o horário dos voos para Londres. Tomou então uma decisão. Ninguém sabia do acidente. Isabelle estava inconsciente e ele precisava de tempo para assimilar o que acontecera. Tinha compromissos importantes no escritório nessa tarde. Não queria partir de imediato. Nada podia fazer em Londres e, além disso, detestava hospitais. Após alguns instantes de hesitação, fez uma reserva para o voo das cinco. Chegaria a Heathrow às cinco e meia, hora local, e podia estar no hospital às sete. Se Isabelle morresse entretanto, seria porque a mão de Deus assim quisera, disse para consigo. Se ainda estivesse viva, seria um sinal de esperança. No entanto, para ela, nenhuma diferença lhe fazia ele estar ou não ao pé dela. O tempo seria melhor empregue noutro sítio, pensou. Pelo menos, era disso que queria convencer-se.

Saiu para o escritório pouco depois e não disse nada à secretária, exceto que iria sair às três horas. Não queria fazer muito alarde da situação. Não havia razão, a não ser que Isabelle morresse.

Em Londres, no hospital, depois de falar com Gordon, a recepcionista que se encontrava na Unidade de Cuidados Intensivos ganhou coragem para a chamada seguinte. O telefonema para Gordon deixara-a algo desalentada. Este fizera tão poucas perguntas e parecera terrivelmente calmo. Era pouco comum alguém receber um telefonema daqueles como ele o fizera.

A recepcionista do hospital tinha o número dos Robinson à sua frente. Entretanto, duas enfermeiras passavam pelo balcão, quando atenderam do outro lado da linha. Falavam de Isabelle e tinham a papeleta dela na mão. Por aquilo que Gordon dissera ao telefone, a recepcionista não fazia a menor idéia de quando é que ele chegaria.

Olivia, a filha de Bill de vinte e um anos, atendeu o telefone. Eram seis da manhã e ainda estavam todos a dormir, mas ela ouvira o telefone. Uma voz com sotaque inglês perguntou se Mrs Robinson se encontrava em casa. Está a dormir respondeu, voltando-se na cama. Pode telefonar daqui a mais um pouco? perguntou, entre um bocejo, prestes a desligar.

Receio não poder esperar nem telefonar mais tarde. Pode pedir-lhe para vir ao telefone?

Há algum problema? Olivia começou a despertar e sentou-se na cama. Não fazia a mínima idéia de qual o motivo do telefonema, mas a voz denotava algum nervosismo.

Tenho de falar pessoalmente com Mistress Robinson.

Foi com ar preocupado que deu um pulo para fora da cama e correu pelo corredor fora até ao quarto da mãe. Ao ouvir os passos no corredor e a porta abrir-se, Cynthia acordou.

Sentes-te bem? sussurrou no quarto às escuras. Estava a dormir profundamente, mas, ao fim de todos aqueles anos, possuía um sexto sentido em relação às filhas. Estás doente?

Uma mulher inglesa ligou e diz que quer falar consigo.

Mãe e filha trocaram olhares e Cynthia teve um pressentimento. Sabia instintivamente que era algo relacionado com Bill. Nunca se confrontara com uma situação semelhante, mas, de repente, perguntou-se se haveria outra mulher na sua vida.

Eu atendo disse Cynthia, sentando-se na cama. Agora volta para a cama. Mas Olivia não se mexeu. Também tivera o mesmo pressentimento. Fala Mistress Robinson. Ficou muda durante um longo instante, mas Olivia viu-a fechar os olhos. É grave? Quando? Está consciente? Ao ouvir isto, a filha esbugalhou os olhos.

É o papá? A voz estava tomada de pânico, enquanto a mãe abria os olhos e lhe fazia sinal para se calar. Queria ouvir tudo o que a recepcionista do hospital dizia. Mas assentiu com a cabeça em resposta à pergunta da filha, enquanto a jovem se sentava na cama. Ele está bem?

A mãe não respondeu, continuando a ouvir a voz do outro lado da linha.

Qual é o nome do médico dele? Escrevinhou rapidamente um nome no bloco que se encontrava na mesa-de-cabeceira, fez mais algumas perguntas e pediu que lhe ligassem se as coisas piorassem. Estarei aí logo que possa. Quero que me telefonem se alguma coisa acontecer e que me informem logo que ele recupere a consciência. Ligo daqui a meia hora e digo-vos quando estarei aí. Parecia calma mas o olhar denotava tudo menos isso. Quando desligou exibia um ar perplexo e Olivia lançou-se nos seus braços.

O que aconteceu? Havia lágrimas na voz da filha, e Cynthia sentia um nó na garganta. A notícia era terrível e só tinha esperança de que o estado de Bill não fosse tão mau como parecia. O pescoço fracturado, lesões na coluna, possível paralisia, lesões internas e ossos fracturados. Se isso acontecesse, era duvidoso que voltasse a andar. A idéia de Bill numa cadeira de rodas era impensável. Antes a morte. Ele próprio decerto detestaria ficar nesse estado o resto da vida E ela não se via a si própria a fazer o papel de ama-seca. E se ficasse paraplégico? Ou acamado sem poder mexer-se. Os piores cenários não paravam de lhe aflorar ao pensamento.

O papá teve um acidente. Está em Londres. Esqueci-me de que ele disse que ficaria lá uns dias. Falei com ele há pouco tempo em Nova Iorque. Estava num carro que foi abalroado por um autocarro e parece estar muito mal. Partiu o pescoço e a coluna foi seriamente afectada. Saiu há pouco da sala de operações.

Vai morrer? Os olhos de Olivia esbugalharam-se. Cynthia hesitou por instantes, enquanto o olhar da filha ficava marejado de lágrimas.

É possível, mas o papá é forte. Acho que vai recuperar, mas ainda não sabem como o estado dele vai evoluir. Parto para Londres hoje.

Vou consigo. Olivia era uma bonita rapariga loura, alta, elegante e com uma cara engraçada. Andava na Universidade de Georgetown, no terceiro ano de Política Internacional. Era uma ótima estudante e os pais tinham justificado orgulho nela E, apesar do pouco tempo que passava com o pai, era louca por ele. Idolatrava-o quando era criança. Nos últimos anos, vivia fascinada com tudo o que ele fazia.

Acho melhor vocês cá ficarem afirmou Cynthia, atirando com os cobertores para trás e saltando da cama. Tinha de telefonar para a companhia de aviação e fazer as malas. Esperava apanhar um voo por volta do meio-dia, e levar Olivia só complicaria as coisas. Não desejava perturbar as filhas. Por aquilo que a recepcionista dissera, o estado de saúde de Bill era muito grave.

Vou consigo, mamã insistiu Olivia, levantando a voz à mãe, o que era raro. Se for preciso, compro o bilhete e vou sozinha.

O que se passa? perguntou Jane, ensonada, entrando no quarto. Era pequena, loira e tinha um aspecto atraente. Cynthia era assim quando tinha a mesma idade. Acabara o primeiro ano na Universidade de Nova Iorque e ia fazer dezenove anos. Ouvira as vozes da mãe e da irmã e, pela cara desta, via-se que estava zangada com a mãe. O que estão a discutir a esta hora? Cynthia e a filha mais velha costumavam ter discussões por tudo e por nada. Jane era a apaziguadora. Bocejou e meteu-se na cama da mãe.

O papá teve um acidente comunicou Olivia à irmã mais nova, que ficou com cara de espanto. Entretanto, a mãe telefonava para as companhias de aviação.

Ele está bem? Jane não conseguia imaginar que o pai não se encontrasse de perfeita saúde. Olivia era muito mais emotiva do que ela e podia estar a exagerar. Não tinha a certeza.

O estado de saúde dele é muito grave disse Olivia, não conseguindo suster um soluço. Sentou-se então na cama, abraçou Jane e desatou a chorar. Fracturou o pescoço e apresenta uma série de lesões na coluna. A mamã diz que não sabem se poderá voltar a andar. Acabou de ser operado. O carro dele foi abalroado por um autocarro.

Oh, merda! exclamou Jane, abraçando-se ainda mais à irmã, que sempre confortara, não sendo habitual acontecer o contrário. Jane fora sempre a mais calma das duas. Tinha capacidade para cuidar de si onde quer que fosse ou de qualquer outra pessoa que precisasse de ajuda. Herdara a frieza da mãe, mas desta vez estava em pânico.

A mamã vai para Londres e eu também vou declarou Olivia, por entre lágrimas.

Também vou acrescentou Jane, dando um pulo da cama para contar à mãe quais os seus planos. Colocou-se então diante da mãe, enquanto esta tratava da marcação do vôo.

Vamos as duas consigo disse, num tom peremptório, Simdy fez-lhe sinal para se afastar. Mal conseguia ouvir o que lhe diziam ao telefone. Pôs a mão no bocal e disse então a Jane:

É melhor vocês ficarem. Telefono-vos se achar que devem ir.

Ou vamos consigo ou vamos sozinhas decretou Jane. Cindy sabia, por experiência, que não valia a pena contrariá-la. Ao contrário de Olivia, que era relativamente fácil de dissuadir, Jane tinha a flexibilidade de uma rocha quando encasquetava uma idéia na cabeça. A que horas partimos.

Há um voo às onze e quarenta respondeu Cindy, pegando no telefone e fazendo mais duas reservas. Depois de desligar, informou as filhas de que tinham de sair de casa às nove. Havia duas horas para se vestirem e fazerem as malas. Nem sequer dava tempo para que o avião de Bill as viesse buscar a Nova Iorque.

Vou fazer o pequeno-almoço prontificou-se Jane, enquanto Olivia chorava, sentada na cama. Vai fazer as malas, ordenou à irmã mais velha. Depois olhou para a mãe, que abria o roupeiro e tirava uma mala de uma prateleira. Achas que o papá vai conseguir aguentar-se, mamã perguntou, esforçando-se por se manter calma. A mãe voltou-se e olhou-a com um ar perturbado.

Não sei, querida. Acho que ainda é muito cedo para dizer. Mas está a aguentar-se. Sobreviveu à operação. Não lhe contou que a funcionária da Unidade de Cuidados Intensivos lhe dissera que ele estivera por duas vezes às portas da morte e que haviam levado duas horas a desencarcerá-lo do carro. É saudável e forte, e está em grande forma.

Como ocorreu o acidente? perguntou Jane.

Não sei. A única coisa que sei foi que a limusine dele foi abalroada por um autocarro. Deve ter sido um acidente terrível onze mortos. Dêmos graças a Deus por o teu pai não estar entre eles.

Jane foi então fazer as malas.

Enquanto atirava calças, T-shirts e camisolas para dentro de uma mala, Cynthia só pensava nas implicações que o acidente acarretava para Bill. Estava absolutamente convencida de que ele preferiria morrer a ver-se seriamente diminuído fisicamente. Quanto a ela, não sabia ainda o que lhe desejava. Dependia da gravidade das lesões. Mas não queria falar no assunto às filhas. Nem sequer sabia muito bem o que sentia por ele. Estava casada com ele há mais de metade da sua própria vida e já não o amava, nem sequer se podia dizer que fossem amigos. Era o pai das suas filhas e fora seu marido durante trinta anos. Tivera outros homens na sua vida, e há muito que aquele casamento perdera todo o sentido. Chegara a pensar divorciar-se uma ou duas vezes, quando andara envolvida com outros homens. Mas nunca lhe ocorrera ao longo de todos esses anos que Bill pudesse morrer. Encarar essa hipótese agora alterava tudo.

De repente, deu consigo a pensar em como Bill era na adolescência, na paixão que tivera por ele, na felicidade que haviam sido os primeiros tempos de casamento. Era como estar a ver passar trinta anos de história diante dos olhos. No chuveiro, ao pensar na eventualidade de Bill nunca mais poder andar, não conseguiu evitar o choro.

Partiram para o aeroporto pouco depois das nove. Cynthia, ao volante, as filhas, no banco traseiro. Não articulou qualquer palavra durante toda a viagem. Jane e Olivia olhavam pelo vidro, perdidas em pensamentos. Iam ambas de calças de ganga e ténis Nike. Traziam pouca bagagem consigo. Cynthia deduziu que, provavelmente, faziam tenções de passar a maior parte do tempo no hospital e pouco lhes importava o aspecto. Mal haviam tido tempo de se pentearem. E quando Jane fez o pequeno-almoço, ninguém comeu o que quer que fosse. A única coisa em que pensavam era em Bill no hospital, a lutar contra a morte. No momento em que descolaram, Gordon Forrester encontrava-se também num avião que partira do Aeroporto Charles de Gaulle e cuja chegada a Heathrow estava prevista para daí a menos de uma hora.

No hospital, mantinha-se tudo na mesma. Isabelle e Bill haviam sido colocados em quartos separados, na Unidade de Cuidados Intensivos. Encontravam-se ligados a vários monitores, tinham as suas próprias equipes e o seu estado inspirava tais cuidados que haviam sido isolados dos outros doentes. Isabelle estava com febre alta desde as três horas da tarde. O coração batia a uma cadência irregular, o fígado fora seriamente afectado, os rins ameaçavam deixar de funcionar e, devido ao traumatismo e à operação, o cérebro estava ligeiramente inchado. No entanto, o electroencefalograma indicara que o cérebro continuava a funcionar. Os médicos estavam esperançosos de que Isabelle não ficasse com quaisquer sequelas a nível cerebral, caso sobrevivesse. Ainda não haviam conseguido determinar qual das muitas lesões é que lhe estava a provocar a febre alta. Continuava em coma profundo, não só devido ao traumatismo craniano que sofrera, mas também por causa da anestesia e das drogas que lhe haviam ministrado. Do ponto de vista clínico, era difícil acreditar que conseguisse sobreviver.

Quanto a Bill, pouco melhor se encontrava que Isabelle. Tinha o pescoço e as costas imobilizados por aparelhos em ferro e aço que mais pareciam instrumentos de tortura. O corpo fora colocado em cima de uma prancha que permitia que o movessem, para qualquer eventualidade. Também continuava em coma.

A família dele chega dos Estados Unidos por volta da meia-noite disse uma das enfermeiras, às seis da tarde, aquando da mudança de turno A mulher telefonou do avião.

A outra enfermeira assentiu com a cabeça e ajustou um dos monitores. Pelo menos, os sinais vitais estavam bons, melhores do que os de Isabelle, que não saía da fronteira entre a vida e a morte. A sua sobrevivência parecia mais incerta do que a dele. Uma das enfermeiras perguntou se também vinha alguém ver Isabelle.

Não sei. Julgo que telefonaram para Paris esta manhã e falaram com o marido, mas não disse quando é que vinhám. A Katerinne achou-o muito frio. Devia estar em estado de choque.

Pobre homem. Este é um daqueles telefonemas que se têm nos pesadelos comentou uma das enfermeiras de Bill. Será que ela tem filhos. Não conheciam a história médica ou pormenores pessoais de cada um dos dois, apenas as nacionalidades, os nomes dos parentes mais próximos e o que acontecera no acidente. Nem sequer sabiam qual era a relação entre os dois, se eram sócios, parentes ou apenas amigos. E nem valia a pena porem-se a adivinhar. Nesse preciso instante, não passavam de dois pacientes internados na Unidade de Cuidados Intensivos a debater-se contra a morte. Falavam na eventualidade de Isabelle ser novamente operada, para aliviar a pressão do cérebro. O cirurgião devia tomar a decisão a qualquer momento. Quando apareceu já passava das seis e resolveu não a operar de momento. Achava que ela não sobreviveria a nova cirurgia.

Eram sete e pouco e já o médico saíra, quando Gordon chegou. Entrou na Unidade de Cuidados Intensivos, dirigiu-se à recepção e disse ao funcionário quem era. Este levantou os olhos e pediu a uma enfermeira que o conduzisse até ao quarto de Isabelle. Sem dizer palavra, Gordon seguiu-a, de semblante carregado. Tivera o dia todo para se preparar para aquele momento. Ao entrar no quarto, esperava encontrá-la bastante ferida. Mas nada do que imaginara o preparara para aquilo que os seus olhos viram. Estava irreconhecível, parecia um naco de carne. Havia ligaduras, fios, tubos e monitores por todo o lado, a cabeça estava coberta de gaze e até o braço que tinha o problema na artéria se encontrava envolto em ligaduras. A única coisa familiar nela era o rosto pálido como a morte a espreitar por entre a gaze. Era a única parte do corpo que parecia não ter sido atingida.

Havia três pessoas junto de Isabelle quando Gordon entrou. Uma mudava o saco de soro, outra passava os olhos pelos monitores e uma terceira verificava as pupilas, como faziam constantemente. Ao deparar com aquele cenário, apesar de já não sentir nada pela esposa, Gordon foi acometido pelo horror. Era como se já não fosse o corpo dela que se encontrava ali. Aquilo que restava de Isabelle não significava nada para si. Não passava de um corpo cheio de fracturas. Manteve-se em silêncio, sem se aproximar.

Mister Forrester? perguntou uma das enfermeiras, baixinho.

Gordon fez um gesto afirmativo com a cabeça e ficou sem saber o que dizer. Embaraçava-o o fato de ter de a ver com a presença de várias pessoas de olhos postos nele. Não sabia o que esperavam de si. Talvez que se atirasse de joelhos aos pés da cama, que a beijasse nos dedos ou que lhe tocasse nos lábios. Mas não conseguia aproximar-se mais. Olhar para Isabelle era como olhar para o anjo da morte, e isso assustava-o.

Como está ela, perguntou, numa voz rouca

Está com febre. O médico acabou de sair. Estão a ponderar a hipótese de nova cirurgia, para aliviar a pressão no cérebro, mas o cirurgião acha que neste momento ela não está em condições de aguentar a operação. Quer esperar mais um pouco. Volta cá às dez horas.

E se não a operarem. O cérebro poderá ficar afectado. Não conseguia imaginar nada pior do que ela sobreviver e ficar praticamente sem nenhuma função cerebral ou com uma deficiência grave, e queria dizer isso mesmo ao cirurgião. Se Isabelle não podia voltar a ser como era, achava que os esforços dos médicos para a salvar não faziam sentido. Fora uma mulher bonita, inteligente e talentosa, e, apesar das suas diferenças, uma boa esposa e uma boa mãe para os filhos. Salvarem-na para permanecer numa cama num estado vegetativo era uma coisa horrenda para ele, que estava preparado para envidar todos os esforços para que isso não acontecesse. Não queria que os filhos se lembrassem da mãe assim Nem ele queria viver com ela nesse estado.

Nesta altura, é impossível fazer qualquer prognóstico, Mister Forrester. No entanto, os resultados do electroencefalograma foram encorajadores. Ainda é muito cedo para se saber o que quer que seja. Era impossível dizer se Isabelle ficaria horas ou meses no estado em que se encontrava. Há algum médico com quem possa falar, perguntou Gordon a uma das enfermeiras, sem qualquer sinal visível de emoção. A enfermeira pensou que ele se assemelhava mais a alguém conhecido ou a um parente afastado que viera ao hospital por uma questão de dever. Gordon guardava as emoções para si próprio.

Vou dizer ao cirurgião de serviço que o senhor está aqui disse a enfermeira, ao passar por Gordon Este provocara-lhe uma sensação de algum desconforto. Ver Isabelle naquele estado deixava-a de coração destroçado. Uma mulher tão bonita e tão jovem. Mas o homem que voara de Paris para ver a esposa parecia não sentir nada. Nunca conhecera ninguém tão frio.

Gordon saiu do quarto e foi pelo corredor fora, à espera que alguém viesse falar consigo. Só ao fim de dez minutos é que apareceu um jovem cirurgião. Confirmou-lhe o que já mais ou menos sabia: Isabelle encontrava-se entre a vida e a morte. Disse ainda que estavam a ponderar a hipótese de operá-la de novo, mas tentavam evitar nova operação. Só lhes restava esperar para ver como o organismo reagiria ao traumatismo. Pela sua estimativa, ia ser uma longa espera até terem boas notícias. Mas considerava que o fato de ela ter resistido até esse instante, já era um sinal de esperança. Porém, ainda muito ténue.

Lamento, Mister Forrester. Dada a natureza do acidente, é um milagre eles terem sobrevivido.

Gordon fez um gesto de concordância com a cabeça. Concentrou então a atenção em algo que o jovem médico dissera, em conflito direto com o que ouvira ao princípio do dia.

Pensei que o motorista tivesse morrido.

E morreu, tal como o motorista do autocarro e nove passageiros.

Pareceu-me ouvi-lo dizer que “eles” tinham sobrevivido.

E disse. Havia outro passageiro com ela. Também sobreviveu, embora não esteja tão mal como a sua esposa. Os ferimentos são diferentes, mas igualmente graves. Também se encontra em estado crítico.

Gordon ficou com um ar sombrio ao ouvir o que o médico lhe dizia. Não conseguia imaginar o que Isabelle fazia numa limusine com outro homem, especialmente àquela hora da noite. Sabia que ela viera a Londres ver uma exposição na Tate Gallery e visitar outros museus e galerias, e não vira qualquer problema nisso, mas agora tudo lhe parecia muito estranho.

Quem é ele? indagou, mantendo o mesmo semblante.

“Sabemos o nome e pouco mais. Chama-se William Robinson e é americano. Julgo que a família já vem a caminho. Devem chegar hoje à noite.

Gordon fez um aceno de cabeça, como se se tratasse de velhos amigos, e pensou alguns instantes no nome; de súbito a sua memória avivou-se e pôs-se a imaginar se seria a mesma pessoa. Havia um William Robinson que conhecera vários anos antes, uma figura importante do mundo da política. E sabia que Robinson e o embaixador americano em Paris eram velhos amigos. Mas não conseguia imaginar o que estaria a fazer com Isabelle. Nem sequer tinha a certeza se já se conheciam. Não se lembrava se ela estivera com ele quando foram apresentados na embaixada. Ela saía tão raramente. Era um completo mistério o fato de Isabelle se encontrar com William Robinson.

Ele ficará bom? indagou, com um ar preocupado, o que dissimulava as questões em aberto nos seus pensamentos.

Não sabemos. Fracturou o pescoço e tem um grave traumatismo na parte superior da coluna. Há também algumas lesões internas, mas nenhuma tão grave como as da sua esposa.

Poderá ficar paralisado?

Ainda é muito cedo para se saber. Continua inconsciente. Nunca recuperou a consciência depois da operação. Pode ser simplesmente uma reação ao trauma do acidente, ou algo mais complicado resultante da fractura do pescoço. Também permanece em estado crítico.

Gordon lembrou-se então de que poderiam morrer os dois sem chegarem a explicar o que haviam estado a fazer nessa noite. Teria sido coincidência?, perguntou-se. Isabelle poderia ter ido visitar velhos amigos dos tempos de juventude que ele não conhecia e talvez Robinson lhe tivesse dado boleia. Mas o que andaria ela a fazer àquela hora? Donde vinham? Para onde iam? Onde tinham estado? Por que razão estavam juntos. Conhecer-se-iam um ao outro? Ou teriam acabado de se conhecer? Havia um sem-número de hipóteses e perguntas a fervilhar na sua cabeça. E não havia forma de descobrir as respostas para qualquer uma delas, a não ser que Robinson e Isabelle sobrevivessem. Tinha a certeza de que conhecia bem a mulher. Sabia que esta não era o gênero de pessoa que tivesse um caso com outro homem ou sequer encontros secretos. Mas o que era fato era que estivera com um, numa limusine, às duas da manhã e, fosse por que razão fosse, não havia maneira de descobrir isso agora.

Quer passar a noite aqui no hospital com a sua esposa?  perguntou o jovem médico, mas Gordon abanou de imediato a cabeça. Tinha pavor a hospitais e a pessoas doentes. Faziam-lhe lembrar a mãe.

Uma vez que não está consciente, não vejo motivo para a minha presença aqui. Fico no Claridge’s. Telefone-me se houver alguma alteração no seu estado de saúde. Agradeço o tempo e os esforços que têm envidado para salvar a minha mulher proferiu, algo embaraçado. Era óbvio que não se sentia bem no hospital e não tinha o mínimo desejo de voltar para o quarto de Isabelle. Vou passar pelo quarto antes de me ir embora. Agradeceu novamente ao médico e dirigiu-se ao quarto. Quando chegou à porta, havia cinco elementos da equipe médica à volta de Isabelle, que continuava a não dar sinais de si. Não fez menção de entrar no quarto. Deteve-se breves instantes à porta, depois virou-se e foi-se embora, sem dizer qualquer palavra. Mal saiu a porta do hospital, soltou um profundo suspiro de alívio.

Detestava hospitais e pessoas doentes. Era por isso que nunca aceitara bem Teddy. No táxi que o levaria ao hotel, soltou novo suspiro de alívio. Apesar de sentir pena de Isabelle, não fora capaz de entrar no quarto e de lhe fazer uma festa na mão. Ainda bem que estava inconsciente. Preferia vê-la morta a viva com lesões cerebrais. Era um destino que não desejava para Isabelle. Porém, por mais pena que tivesse, não conseguia sentir o que quer que fosse por ela. Nem desespero, nem medo de a perder. Para si, Isabelle não passava de uma estranha, prostrada na cama do hospital, com fracturas por todo o corpo e sem se mexer. Parecia uma boneca sem vida. Custava-lhe aceitar que a mulher que acabara de ver era a jovem com quem casara vinte anos antes. Quando o táxi parou diante do Claridge’s, a única coisa que Gordon queria saber era o que Isabelle estava a fazer na limusine com W. Robinson. Mas não havia ninguém que pudesse responder a essa pergunta a não ser ela. Só Isabelle sabia a resposta Para o mistério, além de Bill, naturalmente. Mas também este não conseguia responder de momento.

O porteiro tirou o saco de viagem da mão de Gordon. Trouxera pouca roupa: algumas camisas e peças de roupa interior.

Não fazia tenções de ficar muito tempo. Viera apenas avaliar a situação e planeava voltar para Paris dentro de um ou dois dias. E só regressaria a Londres em caso de força maior. Tanto poderia morrer a qualquer momento como continuar assim por tempo indefinido. O jovem cirurgião dissera-lhe nessa noite que Isabelle poderia ficar em coma durante semanas ou até meses. De qualquer modo, também não poderia permanecer em Londres durante muito mais tempo. Tinha de tratar dos negócios, de Teddy, que estava agora a seu cargo, e da gestão do banco. Quando muito, viria a Londres de tantos em tantos dias E se esse estado de coisas se prolongasse, não via outra solução se não telefonar para Sophie e pedir-lhe que regressasse a casa. Poderia tomar conta do irmão. Não queria de modo nenhum chegar a esse ponto, mas, depois do que vira, começava a achar que era o que tinha a fazer. Além disso, precisava de a preparar para a eventualidade de Isabelle morrer. Parou na recepção e pediu a chave do quarto dela. O subgerente apareceu de imediato.

Deve ter sido um acidente horroroso. Todos nós lamentamos o sucedido. Uma coisa terrível.. Uma pessoa maravilhosa.. Só soubemos quando a polícia telefonou. Continuou durante vários minutos, enquanto Gordon se limitava a dizer que sim com a cabeça e a concordar com tudo o que ele dizia. Como está ela?

Não muito bem. Resolveu então auscultar o que o subgerente poderia saber. Mister Robinson também se encontra em estado grave. Perscrutou-lhe o olhar à procura de algo que pudesse estar a esconder, mas não vislumbrou nada de estranho. Apenas simpatia e um infindável esfregar de mãos.

Era de esperar. E foi tudo o que o jovem disse. Seria embaraçoso perguntar-lhe apenas se sabia por que razão se encontravam juntos numa limusine. Como tal, Gordon tentou arranjar forma de puxar o assunto. Mas não era tarefa fácil.

Foi azar estarem os dois na mesma viatura disse, evasivo. Ele é um velho amigo meu. Devem ter-se encontrado aqui.

Sim, suponho que sim afirmou o subgerente, fazendo um gesto de concordância com a cabeça. Julgo que os vi a tomar chá juntos ontem à tarde.

Sabe onde é que poderão ter ido ontem à noite? indagou Gordon, como se estivesse a investigar o acidente, mas o jovem abanou a cabeça.

Posso perguntar ao porteiro se fez alguma reserva para eles nalgum sítio. Dirigiu-se então ao porteiro. Este informou que Mr. Robinson fazia sempre as suas próprias reservas quando estava na cidade e raramente pedia o que quer que fosse, à exceção do aluguer de uma viatura, como acontecera desta vez. Mas tinha a impressão de que o outro porteiro lhe fizera uma reserva no Mark’s Club. Ele está de folga hoje. Posso perguntar-lhe quando voltar. Ou posso telefonar para o restaurante, se desejar. Infelizmente, o motorista morreu, como deve saber. Um dos nossos melhores homens. Irlandês, casado e com quatro filhos. Uma tragédia horrível.

Gordon agradeceu-lhe, pegou na chave, encaminhou-se para o elevador e subiu. O fato de Bill e Isabelle terem tomado chá juntos na tarde anterior não lhe saía da cabeça. Tinha curiosidade em saber se eles se haviam encontrado por acaso, em qualquer museu, ou se Bill andaria a fazer a corte a Isabelle. Esta era suficientemente inocente e ingénua para se deixar enganar. Se tomar chá com um homem no hotel era um ato relativamente inofensivo, já o fato de estar às duas da manhã, numa limusine, com esse homem, não o era. Continuava a não conseguir imaginar o que Bill Robinson estaria a fazer com Isabelle. Havia algo naquela história toda que não lhe soava bem. No entanto, se fosse outra pessoa que não ela, seria óbvio, mas no caso de Isabelle, não acreditava que houvesse qualquer ponta de maldade naquilo que ela fizera. Quando entrou no quarto, continuava intrigado.

De repente, teve o pressentimento de que Isabelle morrera. Na casa de banho, em cima da mesa ao lado do lavatório, encontravam-se os produtos de maquilhagem espalhados. Num cabide atrás da porta, a camisa de noite. Dentro de um armário, as roupas cuidadosamente penduradas. Em cima de uma escrivaninha, uma série de brochuras de museus e galerias de arte. Reparou então que ao lado destes se encontrava uma carteira de fósforos do Bar Harry’s e Isabelle não fumava.

Que raio teria ido ela fazer a um sítio como o Harry’s, ou o Mark’s Club? E ainda havia uma carteira de fósforos do Annabel’s. Ao ver isto, sentiu um frémito de raiva percorrer-lhe o corpo. Talvez a noite passada na companhia de Bill não tivesse sido assim tão inocente como pensava. Gostava de saber se ela fora a esses sítios com Bill. Observou então à sua volta à procura de mais provas, mas não havia qualquer sinal de roupa de homem, nem cartas, nem notas, nem flores com cartões. Talvez ele lhe tivesse mesmo feito a corte e ela não lhe tivesse resistido. Porém, fosse o que fosse que tivesse acontecido entre eles nessa noite, ou antes, tinham pago um preço bastante elevado por isso. No entanto, não conseguiu deixar de perguntar-se qual era o laço que existia entre os dois, se é que havia algum. Meteu as carteiras de fósforos no bolso, sentou-se, olhou à volta e mandou vir uma bebida forte.

Quando Cynthia Robinson e as filhas saíram do avião eram onze e meia. Ambas as raparigas haviam dormido durante a viagem Mas Cynthia passara a maior parte do voo perdida em pensamentos, de olhos colados na janela. Todo o impato do que acontecera a Bill começava a atingi-la. Estava ansiosa por vê-lo. Esperava que já não se encontrasse em coma quando chegassem ao hospital e que os fortes traumatismos no pescoço e na coluna não tivessem efeitos a longo prazo.

Levaram meia hora na alfândega. O Claridge’s tinha um carro a aguardá-las. Foram diretas para o hospital, onde chegaram à uma da manhã. Ainda havia grande movimento na Unidade de Cuidados Intensivos àquela hora. Pouco antes de Cynthia e as filhas chegarem, tinham entrado quatro novos pacientes. Para ela, não havia qualquer problema em dar-se a conhecer às enfermeiras ou em descobrir um médico com quem falar sobre Bill. Era perita em coisas desse gênero Ao ponto de conseguir interceptar um médico que se dirigia ao quarto de Bill.

O mesmo jovem cirurgião que falara com Gordon sentou-se com Cynthia no corredor e pô-la ao corrente de tudo o que se passava, enquanto Jane e Olivia escutavam Bill continuava em coma e não havia qualquer sinal de recuperação. A zona espinal começara a inchar, o que estava a exercer pressão sobre os nervos afectados. Além disso, as fracturas na zona do pescoço eram de extrema gravidade. Quando acabou de descrever o estado clínico de Bill, a sensação com que Cynthia ficou foi a de que as perspectivas de recuperação eram muito sombrias. Mesmo assim, nunca esperou vê-lo naquele estado. Encontrava-se preso pelo pescoço a um aparelho de aspecto hediondo, com uma espécie de braçadeira que lhe imobilizava todo o corpo, o qual se encontrava coberto de costuras, cortes, pequenas lacerações e hematomas. As enfermeiras não tiravam os olhos dos monitores, cujos sinais não paravam de se fazer ouvir. Bill estava com um ar tão cadavérico que as filhas desataram a chorar mal olharam para ele. Cindy não conseguiu descolar os olhos do marido. De repente, todas as emoções a que resistira desde que lhe haviam dado a notícia vieram ao de cima. Os olhos inundaram-se de lágrimas e Bill deixou de ser um amontoado de sintomas e fracturas para passar a ser o rapaz por quem se apaixonara na faculdade. Apelou então a todas as suas forças para conseguir dar algum apoio às filhas.

Jane e Olivia estavam a um canto da sala, abraçadas uma à outra, a chorar em silêncio, enquanto uma das enfermeiras ajustava o respirador e Cindy se aproximava devagarinho da cama. Tocou na mão do marido, mas estava num pranto tal que não conseguiu dobrar-se e beijá-lo. Havia um horrível cheiro a éter no quarto. Bill tinha o peito nu e havia monitores ligados a ele por todo o lado.

Olá, querido murmurou, colocando-se junto dele. Sou eu, a Cindy. Tinha vontade de ser novamente jovem. Ao olhar para Bill, passaram-lhe mil imagens pela cabeça; o dia em que se conheceram, o dia do casamento, o dia em que lhe dissera que estava grávida. Tantas recordações, tantos momentos, e agora ali estava ele, as vidas alteradas para sempre. Nem sequer conseguia imaginar como é que as suas existências poderiam voltar à normalidade. Mas uma coisa sabia. Não queria que Bill morresse, mesmo se ficasse debilitado. Imdependentemente das sequelas daquele terrível acidente não queria perdê-lo. E, pela primeira vez em vários anos, sentiu que ainda o amava.

Amo-te. - repetiu várias vezes - Quero que abras os olhos agora! As miúdas estão aqui. Querem falar contigo, querido

Ele não consegue ouvi-la, Mistress Robinson disse uma das enfermeiras

Isso é uma coisa que a senhora não sabe retorquiu Cynthia, com firmeza. Era uma mulher que não admitia discussões E nesse momento particular, não queria escutar o que a enfermeira lhe dizia. Além disso, há anos que sabia de histórias de pessoas em coma que ouviam o que as outras ao pé delas diziam

Continuou a falar com Bill. Durante duas horas ficou com as filhas junto do marido. Apareceu então um médico que o observou e sugeriu que elas fossem descansar e que voltassem de manhã. Não registrou qualquer alteração no estado de Bill.

Acha que devia ficar aqui com ele? perguntou Cindy. Viera do Connecticut para estar com o marido, não para esperar sentada no Claridge’s. Além disso, ainda não sabia muito bem se haveria ou não de confiar nas enfermeiras. Queria ver como tratavam Bill. No entanto, para já, sentia-se impressionada com os cuidados que estavam a prestar-lhe.

Acho que devia ir para o hotel. Telefonamos-lhe logo que haja uma alteração no seu estado declarou o médico, num tom firme, vendo que ela era uma mulher com quem se tinha de ser direto e de quem não se podia esconder fatos queria saber tudo e não abandonaria o marido por nada deste mundo. Prometo que lhe telefonamos. Só ao fim de meia hora é que a convenceu a ir-se embora. O motorista aguardava-as à porta do hospital. Eram quase quatro da manhã Quando saíram. Cynthia e as filhas estavam esgotadas.

Reservara um quarto no Claridge’s para Olivia e Jane. Fazia tenções de ficar no quarto de Bill. Ao abrir a porta do quarto, teve a mesma sensação estranha que Gordon tivera ao entrar no quarto de Isabelle. Sentia-se uma intrusa. Lá estava a pasta, papéis espalhados por uma série de mesas e um monte de brochuras de galerias de arte e museus, o que lhe pareceu estranho. Quando é que ele tinha tempo para visitar museus. Também havia meia dúzia de recibos do cartão American Express. Reparou que um era do Bar Harry’s e outro do Annabel’s. Mas também sabia que ele costumava lá ir com amigos e conhecidos dos negócios, sempre que vinha a Londres. Não achou isso nada de anormal. Voltou a chorar quando vestiu o pijama de Bill. Estava aterrorizada perante a eventualidade de o perder e quando telefonou às filhas para ver como estavam, encontravam-se ambas lavadas em lágrimas. Fora um dia carregado de emoções para todas e ao deparar com o pai naquele estado assustara-as ainda mais do que à mãe. Depois de terem visto o seu corpo tão maltratado, praticamente morto, era difícil alimentar qualquer esperança.

Cynthia não conseguiu tirar da cabeça o som das filhas a chorar. Vestiu o roupão de banho de Bill e foi até ao quarto delas. Só queria abraçá-las e sossegá-las. Acabou por passar meia hora com elas. Eram quase cinco da manhã quando finalmente as deixou e voltou para o quarto. Atirou-se para cima da cama e desatou a chorar com a cabeça enfiada na almofada, que ainda tinha o cheiro dele. Eram seis da manhã quando adormeceu.

Quando acordou ao fim da manhã, telefonou para o hospital e informaram-na de que o estado de Bill não se alterara durante a noite. Os sinais vitais encontravam-se um pouco mais estáveis, mas continuava em coma profundo. Eram onze da manhã e Cindy sentia o corpo todo maçado, como se lhe tivessem batido com canos de chumbo durante toda a noite. Foi ver como estavam as filhas, entrando de mansinho no quarto. Encontravam-se ainda a dormir. Voltou para o seu quarto, lavou-se e vestiu-se, e pouco antes do meio-dia já estava pronta para voltar para o hospital. Detestava ter de acordar as filhas. Como tal, deixou-lhes um bilhete a dizer que depois lhes telefonava do hospital a dizer como estava o pai. Dirigiu-se então para o carro que a aguardava e deu a direcção ao motorista, com o qual falou sobre o acidente durante a viagem. O motorista que morrera era um dos melhores amigos dele.

Quando chegou ao hospital, encontrou as coisas na mesma. Depois de falar com Bill durante alguns instantes, instalou-se na sala de estar. Esperava ver um dos médicos. Enquanto aguardava, viu passar um homem que lhe despertou a atenção. Era alto, envergava um fato de fino corte e exibia um ar aristocrático. Parou na recepção e perguntou qualquer coisa às enfermeiras, que abanaram a cabeça com um ar de desalento. Encaminhou-se então na direcção dos quartos da Unidade de Cuidados Intensivos.

Ficou curiosa por saber o que o trouxera ali. Pouco depois, viu-o sair de um quarto em frente ao de Bill e falar com um dos médicos. Depois foi-se embora. Ficou com a impressão de que ele estava na mesma angústia que ela, à espera de notícias animadoras de alguém gravemente doente. Não sabia porquê, mas achava que havia algo de estranho nele. Parecia preocupado, mas ao mesmo tempo irritado, como se o contrariasse o fato de estar ali. Comentou isso mesmo com uma das enfermeiras quando voltou para o quarto onde Bill se encontrava.

O que Cynthia não sabia era que o estado de Isabelle piorara, e haviam acabado de dizer a Gordon que as hipóteses de sobrevivência tinham diminuído consideravelmente. As inúmeras lesões estavam a debilitá-la cada vez mais, não a deixando sair do coma profundo em que se encontrava. Haviam decidido não voltar a operá-la. Estavam certos de que não conseguiria resistir. Gordon voltou para o hotel, para telefonar para o banco, ficando a aguardar notícias de Isabelle. Disse à secretária que ia passar o fim-de-semana em Londres, sem dizer qual o motivo. Depois, telefonou à enfermeira de Teddy para saber como é que ele estava, não fazendo qualquer referência ao estado da mulher. De repente, via-se com a sobrecarga da responsabilidade do filho. Nunca tivera de se preocupar com tal coisa e não estava nada satisfeito com o fato de essa responsabilidade lhe ter caído sobre os ombros.

Comunicou ao filho que fora passar o fim-de-semana a Londres com a mãe.

A mamã disse que vinha para casa ontem observou Teddy, algo desapontado. Por que razão ela vai ficar aí mais tempo?

Porque tem coisas para fazer, só por isso retorquiu Gordon, com voz áspera, o que não surpreendia Teddy. O pai nunca mostrara qualquer interesse por ele.

A mamã não me telefonou. Pode dizer-lhe que me ligue pediu Teddy, num tom de voz queixoso, o que irritou Gordon.

Ela acabará por te telefonar. Temos coisas a fazer insistiu, mentindo, mas não tinha alternativa. Teddy estava demasiado debilitado para ouvir a verdade, especialmente àquela distância. Se acabasse por ter de lhe contar, tencionava fazê-lo pessoalmente, na presença do médico assistente. Também não telefonara a Sophie. Queria ver como é que as coisas evoluíam. Não havia razão para os assustar. Se Isabelle ia morrer sem recuperar a consciência, achava que a filha não devia vê-la. Tomara essa decisão de manhã.

Diga à mamã que a adoro! exclamou Teddy, enquanto o pai lhe pedia insistentemente para desligar, desejando pôr fim à conversa. Não gostava de mentir ao filho, nem queria contar-lhe o que acontecera.

Pouco depois, Gordon voltou ao hospital. Quando chegou, instalou-se no quarto, no canto mais afastado da cama, com ar angustiado, e ficou a observar uma série de coisas que estavam a fazer à mulher. Ao contrário do que Cynthia Robinson fizera com o marido, Gordon nunca se aproximou de Isabelle, nem lhe falou ou tocou. Detestava situações daquele gênero.

Quer ficar a sós com a sua esposa? perguntou uma das enfermeiras, com enorme pena dele por vê-lo tão desalentado.

Mas Gordon não hesitou quando respondeu.

Não, obrigado. De qualquer forma, ela não consegue ouvir-me. Vou lá para fora. Se houver alguma alteração, chame-me, por favor. Saiu, apressado, para a sala de espera, onde já se encontravam Olivia e Jane. Pouco depois, apareceu Cynthia. Não fazia a mínima idéia de quem eram e isso também pouco lhe importava. E ficou surpreendido quando Cynthia lhe sorriu.

Lamento o que aconteceu com a sua esposa disse Cynthia. Ouvira as enfermeiras falarem de Isabelle e só sabia que se encontrava numa situação ainda mais crítica do que Bill.

Obrigado proferiu Gordon. Não tinha o menor desejo de fazer amizades na sala de espera da Unidade de Cuidados Intensivos. Mas também não queria ficar sentado no horror do quarto de Isabelle. Não tinha outro sítio à exceção do Claridge’s, para onde estava a ponderar ir quando Cynthia lhe dirigiu a palavra. Então, para sua surpresa, esta estendeu a mão e apresentou-se.

Chamo-me Cynthia Robinson disse, enquanto uma das filhas dormitava e a outra lia uma revista. Nenhuma delas parecia dar atenção a Cynthia ou a Gordon Mas os olhos deste esbugalharam-se de espanto ao ouvir o nome dela, fato que Cynthia reparou. Estou aqui com o meu marido. Teve um acidente há dois dias. Chegámos ontem à noite.

Gordon perguntou-se então se ela saberia toda a verdade e a gravidade de que a situação se revestia. A ser esse o caso, não se mostrava muito afectada com o fato. A única coisa que parecia interessar-lhe era o estado clínico do marido. Ele estava muito mais preocupado com as razões que tinham levado Bill e Isabelle até Londres E resolveu ser franco com ela.

Presumo que está a par do fato de que a minha mulher se encontrava no carro com o seu marido quando o autocarro os atingiu

Ao ouvir isto, Cynthia deu a impressão de ter sido ela a atingida pelo autocarro. Gordon compreendeu de imediato que ninguém ainda a informara desse fato. Cynthia ficou sem palavras.

Que quer dizer com isso? perguntou, ainda mais pálida do que estava.

Exatamente aquilo que acabei de dizer. Estavam juntos na limusine. Não faço a menor idéia porquê, nem como se conheceram. Estive com o seu marido há vários anos, em Paris, mas não me lembro se a minha mulher se encontrava comigo. Ao que parece, tomaram chá juntos na quarta-feira e ela estava na limusine com o seu marido. Encontra-se agora em estado crítico, em coma profundo, e talvez nunca venhamos a saber a razão por que estavam juntos. Presumo que o seu marido também não esteja em condições de dar qualquer tipo de explicação.

Cynthia sentou-se então numa cadeira, diante de Gordon, com a sensação de ter levado uma estalada.

Não me disseram nada. Pensei que ele estivesse sozinho com o motorista. Mostrava-se perplexa.

Tudo indica que não. A minha mulher veio de Paris para visitar algumas exposições e museus. É uma apaixonada pela arte. E não faço idéia do que mais fez aqui em Londres.

Cynthia lembrou-se das brochuras de galerias e museus que encontrara no quarto de Bill. O seu marido falou-lhe alguma vez de Isabelle Forrester? Sentia-se algo embaraçado, mas havia perguntas para as quais queria encontrar as respostas. E aquela mulher era, pelo menos de momento, a única forma de as obter. Cynthia fez que não com a cabeça. Sabia ainda menos do que ele.

Nunca ouvi tal nome. Nem sequer sabia que ele se encontrava em Londres. A última vez que falei com ele estava em Nova Iorque. Contatamos muito pouco um com o outro.

Estão divorciados? perguntou Gordon, intrigado. Cynthia sentiu-se irritada com a pergunta.

Não, mas viaja muito e é muito independente. Não queria dizer-lhe que o casamento deles se deteriorara ao longo dos anos.

A minha mulher, não. Temos um filho deficiente de que ela cuida há catorze anos e raramente sai de casa. Esta viagem é a primeira que faz desde há vários anos e considerei-a perfeitamente inocente. Talvez tenha conhecido o seu marido no Claridge’s. Acho que não devemos tirar conclusões precipitadas. Mas parece-me estranho estarem os dois num carro às duas da manhã.

Sim, é estranho concordou Cynthia, com ar pensativo. Tinha fortes razões para pensar que se tratava de mais uma aventura de Bill. Tivera várias nos últimos anos. Além disso, há bastante tempo que não existia qualquer envolvimento físico de um com o outro. Mas a mulher que Gordon Forrester descrevera não parecia ser uma provável candidata a um fim-de-semana romântico noutra cidade. Não conseguia sequer imaginar como se haviam conhecido. Nem gostava da idéia de eles estarem juntos. Enquanto falava com Gordon, apercebeu-se de que as filhas haviam seguido a conversa com interesse. É pena não podermos perguntar-lhes.

As brochuras das galerias de arte e dos museus não lhe saiam da cabeça. Lembrou-se então dos recibos do Annabel’s e do Harry’s. Talvez aquela mulher fosse menos inocente do que o marido pensava, apesar do filho deficiente e do fato de ser casada.

Se eles morrerem, nunca saberemos a resposta.

Se eles não tivessem tido o acidente, provavelmente nunca iríamos saber. Talvez tenhamos de aceitar esse fato.

Não sabia muito bem se queria conhecer a resposta. Havia perguntas que nunca quereria que ele lhe fizesse e outras que ela nunca lhe teria feito. Existiam recantos obscuros das suas vidas que não desejava esclarecer. Gordon não era da mesma opinião.

Não creio que outra pessoa que não eles nos venha a contar um dia.

Se forem espertos, e o que é fato é que, de alguma forma, andavam envolvidos um com o outro, esperemos que mais ninguém saiba declarou Cynthia, pragmática.

Esperemos que não. O motorista talvez nos tivesse podido dizer alguma coisa.

Talvez o que tenhamos a fazer seja pôr tudo para trás das costas e esquecermos as respostas. Estão ambos a lutar contra a morte e, se sobreviverem, talvez seja melhor deixarmos as coisas tal como estão. O que aconteceu antes não são contas do nosso rosário.

É muita generosidade da sua parte ripostou Gordon, pouco satisfeito com a sugestão de Cynthia. Se Isabelle andava a enganá-lo, queria saber. Estava muito menos convencido da sua inocência do que já estivera.

O meu marido é um homem muito discreto. O que quer que tenha acontecido nunca virá à luz do dia. Nunca se comportaria de forma pouco digna nem provocaria um escândalo.

Não estou a ver a minha mulher envolvida com outro homem comentou Gordon, mais em defesa do orgulho do que da reputação, e Cynthia sentiu isso mesmo. Não creio que ela tivesse um caso com o seu marido. Deve haver uma explicação plausível.

Espero bem que sim. Fixou Gordon nos olhos.

Decidira esclarecer a sua posição perante os fatos. Quero que saiba que não tenciono perguntar o que quer que seja ao meu marido.

Mas eu tenciono perguntar à minha mulher, caso saia do coma. Acho que eles nos devem uma explicação.

Porquê? Que diferença faria? contrapôs Cynthia, para grande pasmo das filhas. O que é que isso iria mudar? E se morrerem não precisamos de saber nada.

Mas eu preciso. Se ela, de alguma forma, foi desonesta comigo, acho que mereço saber, tal como a senhora. Caso contrário, seria melhor concedermos-lhes a absolvição.

Não tenho nada a ver com a absolvição do meu marido. Já é um homem adulto. É evidente que não gostaria de saber que ele andava envolvido com a sua mulher, mas há coisas na vida de que é melhor não tomarmos conhecimento.

Não partilho o seu ponto de vista, Mistress Robinson. Não conseguiu deixar de se perguntar que tipo de casamento é que eles tinham. Aliás, pouco diferente do seu, mas nunca teria admitido a ninguém que o seu casamento com Isabelle era um fingimento já há vários anos. E não seria nada de extraordinário se ela tivesse um caso com outro homem. Era jovem, bonita e humana. Gordon sabia melhor do que ninguém a vida de solidão que Isabelle levava, graças a ele. Era por isso que estava curioso em saber o que ela andara a fazer, se o traíra com um estranho por pura ingenuidade. Mas, fossem quais fossem as circunstâncias, não considerava digno de uma mulher decente andar na rua a uma hora tão tardia. Nem sequer conseguia imaginar onde teriam estado ou o que andariam a fazer. Se fosse mais cedo, poder-se-ia pensar que haviam visitado uma exposição ou um museu, mas não às duas da manhã.

Cynthia foi então até ao quarto de Bill, enquanto as filhas ficavam de olhos colados em Gordon. Poucos minutos depois, este foi até à recepção e informou que iria voltar para o Claridge’s e que lhe poderiam telefonar se houvesse qualquer alteração no estado de saúde de Isabelle. Já não suportava ficar mais tempo na sala de espera; além disso, não gostava de Synthia Robinson, nem das suas atitudes liberais em relação ao marido. Provavelmente este enganava-a com regularidade e ela também devia traí-lo. Porém, junto à cama onde Bill jazia, de olhos postos nele, e sabendo o que Gordon Forrester lhe contara, Cynthia estava de coração destroçado. Gordon podia dizer que os encontros dos dois eram perfeitamente inocentes, mas ela não acreditava. Com as lágrimas a correrem-lhe pelas faces, questionava-se se, ao cabo de todo aquele tempo, o perdera finalmente. Tinha consciência de que, durante anos, o tratara com indiferença, por vezes até com alguma agressividade, que se mostrara fria e distante, e que sempre fora extremamente crítica perante a vida que ele levava. Há muitos anos que optara por não fazer parte dela. E agora que estava na iminência de o perder para sempre, a única coisa que queria era dizer-lhe que ainda o amava. Não sabia se voltaria a ter oportunidade de o fazer, mas só queria dizer-lhe, uma última vez, o quanto o amava. Só na noite anterior é que se apercebera disso e fazia questão de que ele soubesse. No entanto, não conseguia deixar de se interrogar sobre o que significaria Isabelle Forrester para Bill e se ele estaria realmente apaixonado por ela. Sabia que, se o tivesse realmente perdido, por causa da sua própria estupidez, merecia-o. Não tinha a menor dúvida a esse respeito. De repente, compreendeu, perante a eventualidade de o perder, como fora estúpida durante tantos anos.

 

Gordon passou a noite de sexta-feira no Claridge’s a ler um livro que comprara no caminho de regresso ao hotel. Não tinha mais nada para fazer. Podia ter telefonado a amigos que moravam em Londres, mas não se sentia preparado para contar às pessoas o que sucedera. Primeiro, queria ver o que acontecia a Isabelle. Já haviam passado quarenta e oito horas depois do acidente e ela continuava entre a vida e a morte. Não registrara quaisquer melhoras. Ainda se lembrou de ir até ao hospital, mas não suportava a idéia de a ver naquele estado. Não teria admitido esse fato a ninguém, mas a visão dela assustava-o. Detestava hospitais, pessoas doentes, médicos, enfermeiras, os sons, os cheiros.

Quando Gordon telefonou, Cynthia continuava sentada junto a Bill. As filhas haviam voltado para o Claridge’s à hora do jantar, mas a mãe resolvera ficar. Ia, de quando em quando, até à sala das enfermeiras beber uma chávena de chá. Tinha muito em que pensar. Enquanto assistia à luta de Bill contra a morte, perguntava-se se teria oportunidade de lhe dizer as coisas que queria. Tinha muitas explicações e desculpas a dar. Sabia que, embora ele nunca lho houvesse dito, devia ter tido conhecimento de todos os seus casos amorosos. Alguns, evidentes, outros, mais discretos.

Ao fim de algum tempo, logo que desistira do casamento, deixou de se preocupar com o fato de Gordon saber ou não. E continuava sem saber por que motivo o abandonara com tanta determinação. Talvez por ciúmes da vida absorvente que ele levava e das pessoas que conhecia. Nunca gostara de estar dependente dele e interrogava-se agora se não o abandonara para lhe provar que não precisava dele. Sempre a irritara o fato de, como esposa de um político, ter de comportar-se como um apêndice do marido. Bill viajava tanto e estava sempre tão ocupado que, por vezes, se sentia rejeitada. Detestava a imagem de ser uma mãe suburbana com duas filhas. Ansiava por uma vida mais mundana e mais excitante. Apercebia-se agora de que o tentara fazer da pior forma. Mas o seu grande receio era ter chegado a essa conclusão demasiado tarde.

À meia-noite ainda pensava no assunto, sentada numa cadeira, a um canto do quarto. Por uma fracção de segundo ainda pensou ouvi-lo mexer-se.

Bill? Levantou-se e olhou-o mais de perto. As enfermeiras haviam acabado de sair do quarto. Teve a impressão de o ver mexer as pálpebras, como se estivesse a sonhar. Cynthia estava de pé, junto dele, quando as enfermeiras voltaram. Olharam de imediato para os monitores, mas não havia qualquer problema.

Está tudo bem, Mistress Robinson? perguntou uma das enfermeiras, enquanto mudava o saco de soro e alisava os cobertores sobre as pernas do doente.

Acho que sim... não tenho a certeza... Por instantes, pensei... pode parecer ridículo... mas pensei que alguma coisa se mexeu.

Olharam mais de perto, mas não havia qualquer sinal de recuperação. O estado de Bill mantinha-se estacionário. Já haviam passado quase quarenta e oito horas desde o acidente e Cynthia encontrava-se ali há vinte e quatro. Parecia-lhe uma eternidade.

A enfermeira de serviço ajustava o monitor do coração e dessa vez apercebeu-se de um movimento muito ténue numa das mãos de Bill. Observou-o cuidadosamente, depois examinou-lhe os olhos. Fez incidir um pequeno feixe de luz neles, e dessa vez não houve qualquer dúvida: Bill articulou um pequeno som abafado, que mais parecia um gemido de dor. Era o primeiro som que emitia e os olhos de Cynthia inundaram-se de lágrimas.

Oh, meu Deus murmurou, ao mesmo tempo que Bill fazia novamente o mesmo ruído. Era um som quase animalesco e as pálpebras dele tremeram quando Cynthia lhe tocou nos dedos. A enfermeira chamou o médico de serviço de imediato, que chegou à porta do quarto num ápice

O que se passa? perguntou à enfermeira, enquanto entrava, em passos largos. Já estava de serviço há horas e exibia um ar tão cansado como o de Cynthia. Alguma alteração.

Gemeu duas vezes respondeu a enfermeira.

E pareceu-me que mexeu a mão há um minuto acrescentou Cynthia, enquanto o médico fazia incidir de novo o feixe de luz nos olhos de Bill. E, dessa vez, este reagiu à luz, gemendo de novo. O médico levantou os olhos para a enfermeira. Havia uma pergunta no seu olhar e ela assentiu com a cabeça. Não queriam dizer nada prematuramente à esposa, mas tudo levava a crer que Bill começava a sair do estado de inconsciência. Era o primeiro sinal animador que tinham em dois dias.

Bill, consegues ouvir-me? Sou eu, estou aqui... Amo-te, querido. Consegues abrir os olhos? Quero falar contigo. Tenho estado à espera que acordes. Bill soltou novo gemido, desta vez mais audível, provavelmente de dor.

Mister Robinson, vou tocar-lhe na mão. Se me está a ouvir, quero que me aperte o dedo com a máxima força que puder proferiu o médico ao ouvido de Bill, pondo-lhe um dedo na mão e esperando qualquer reação da parte dele. Não se verificou de imediato, mas, lentamente, os dedos de Bill enrolaram-se à volta do dedo que o médico pressionava contra a sua palma da mão. Não houve mais nenhum sinal visível, mas Bill ouvira claramente a voz do médico e compreendera o que este lhe dissera.

Oh, meu Deus, ele ouviu disse Cynthia, com as lágrimas a correrem-lhe pelo rosto. Consegues ouvir-me, querido? Estou aqui... Abre os olhos, por favor... Mas não se vislumbrou qualquer reação no rosto. Então, muito lentamente, franziu o sobrolho e abriu ligeiramente a boca, passando a língua pelos lábios ressequidos. Cynthia tinha a sensação de estar a assistir a um milagre.

- Ótimo, Mister Robinson observou o médico ao ouvido de Bill. Quero que volte a apertar-me o dedo.

Bill soltou um gemido de protesto, como se o estivessem a irritar, mas acabou por apertar o dedo, desta vez com a outra mão. As duas enfermeiras e o médico trocaram olhares vitoriosos. Estava a voltar à vida. Era impossível determinar os seus níveis de audição ou de compreensão, mas começava a responder aos estímulos. Cynthia não cabia em si de satisfação e só tinha vontade de os afastar e de se atirar ao pescoço de Bill. Mas não se mexeu do sítio onde se encontrava. Receava magoá-lo.

Acha que consegue abrir os olhos, Mister Robinson? Agradecia-lhe imenso que tentasse. O médico continuou a incentivá-lo. Bill esteve então sem dar qualquer sinal de vida durante um longo instante e Cynthia receou que ele tivesse entrado em coma de novo. Dava a sensação que adormecera. O médico tocou-lhe nas pálpebras, como que para o recordar do pedido que lhe fizera. Bill deixou escapar um pequeno suspiro. Então, abriu ambos os olhos e olhou para o médico.

Olá saudou o jovem médico, com um sorriso nos lábios. Prazer em vê-lo.

Bill deixou escapar um pequeno “hummm...” e depois fechou os olhos; ainda conseguira estar um ou dois segundos de olhos postos no médico. Era o melhor que conseguira de momento.

Importa-se de tentar outra vez? Nessa altura ouviu-se um gemido agudo que significava claramente “não”, mas, ao fim de um minuto, acabou por abrir os olhos. Temos estado ansiosos por vê-lo insistiu o médico, com um sorriso.

Bill varreu a sala com o olhar. Deparou então com Cynthia ao fundo da cama e pareceu confuso.

Olá, querido, estou aqui. Amo-te. Vai correr tudo bem.

Bill fechou os olhos, dando a impressão de que não queria ver ninguém. Pouco depois, adormeceu de novo. Quando Cynthia acompanhou o médico até ao corredor, exibiam todos radiosos sorrisos nos lábios.

Oh, meu Deus, o que significa aquilo? perguntou Cynthia, a tremer da cabeça aos pés. Nunca nada na vida a abalara tanto, e o médico ficou feliz por ela.

Significa que saiu do coma, embora ainda não esteja totalmente livre de perigo. Mas é um enorme sinal de esperança.

Consegue falar?

Estou certo que sim. O traumatismo craniano não foi assim tão forte para lhe ter afectado a fala. O pescoço e a coluna vertebral eram os maiores problemas. O cérebro precisa de se adaptar àquilo que lhe aconteceu. Estou certo de que ele falará quando acordar. O organismo sofreu um choque tremendo. Não estou preocupado com a fala. Estava mais apreensivo com tudo o resto. O problema a longo prazo ia ser a coluna e as pernas. Mas o fato de Bill mexer as mãos era um bom sinal. Encontrava-se obviamente muito debilitado, mas conseguiria mexer as mãos e os braços, especialmente logo que o pescoço sarasse. Agora deve dormir várias horas. Amanhã veremos se realiza outros movimentos. Pode voltar para o hotel e dormir um pouco, Mistress Robinson. Amanhã será outro dia muito longo.

Cynthia sentia-se muito agitada e não tinha vontade de se ir embora.

Acha que não voltará a acordar? Se isso acontecer quero estar aqui.

Julgo que é muito mais provável que ele esteja cansado do esforço que acabou de fazer. Para ele, deve ter sido como escalar o Evereste. Acabou de instalar a primeira base e tem ainda muito que subir nas próximas semanas. Possivelmente nos próximos anos, mas não queria dizer isso a Cynthia. Aquilo era apenas o princípio e tinham um longo caminho a percorrer, mas toda a equipe médica estava animada com aquilo a que haviam acabado de assistir.

Está bem. Talvez volte para o hotel. Há horas que não via as filhas. Prometera telefonar-lhes logo que chegasse ao quarto. Estava ansiosa por lhes contar o que acontecera. Quando o fez, Olivia soltou um grito de alegria e Jane simulou uma pequena dança.

Meu Deus, mamã, é a melhor notícia que podia dar-nos! O papá disse alguma coisa?

Não, só abriu os olhos umas duas vezes e gemeu. Apertou o dedo ao médico também por duas vezes e olhou para mim. Mas depois adormeceu. O médico acha que talvez fale amanhã.

No dia seguinte, quando Cynthia chegou ao hospital, Bill estava de olhos abertos e olhava à sua volta, como se não soubesse onde se encontrava. Parecia meio adormecido, dando a sensação de ter acordado há pouco tempo, o que de fato acontecera.

Olá, dorminhoco! cumprimentou Cynthia, com voz meiga, ao chegar junto dele. Há uma eternidade que estamos à espera que acordes.

Bill piscou os olhos, como que querendo dizer “sim”, mas o ar era triste, dando a impressão de ter ficado desapontado por vê-la e esperasse encontrar outra pessoa. Cynthia teve a sensação de que ele teria assentido com a cabeça, se pudesse mexer o pescoço

Sentes-te melhor?

Bill piscou novamente os olhos. Cynthia fez-lhe então uma carícia no rosto.

Amo-te, Bill. Lamento imenso o que aconteceu, mas vais ficar bom.

Bill não desviou os olhos dos dela. Então, humedeceu os lábios, tal como fizera na noite anterior, e fechou os olhos. Cynthia teve vontade de lhe dar qualquer coisa a beber, mas não se atreveu. As enfermeiras haviam-nos deixado sozinhos durante alguns minutos. Os monitores alertá-las-iam se houvesse uma situação de emergência.

Queres que te traga alguma coisa? sussurrou Cynthia, quando Bill abriu os olhos e olhou para ela. Parecia preocupado com algo e ela aproximou-se mais para o caso de ele querer dizer-lhe alguma coisa. Abriu a boca, mas não conseguiu articular qualquer som.

Que queres, querido? Consegues falar? Dirigia-se a ele como se o fizesse com uma criança. Havia um ar de frustração no rosto dele, perante a dificuldade que estava a sentir em fazer-se entender Ficou em silêncio durante um longo instante e tentou de novo, como se tivesse estado a reunir forças. As meninas estão cá. Vieram comigo.

Bill piscou os olhos, depois fez uma careta, como se estivesse a tentar abrir o maxilar. Cynthia ainda pensou que fosse o colar ortopédico que lhe estivesse a magoar o pescoço. Não devia ser confortável, mas não parecia estar com qualquer dor aguda.

Onde. murmurou Bill finalmente, enquanto Cynthia se esforçava por ouvir as palavras seguintes, que pareciam nunca mais sair... está Isss...aaa..bell? Fora um esforço titânico. Cynthia duvidava que ele a tivesse reconhecido.

Toda a sua atenção parecia estar centrada na mulher que se encontrava com ele no carro. Também desconfiava que ele queria saber se Isabelle estava viva. Sentiu aquelas palavras, articuladas com tanto custo, como um soco no estômago. Perguntar por Isabelle tinham sido as suas primeiras palavras para Cynthia, o que vinha corroborar as suas suspeitas.

Está viva respondeu Cynthia. Vou perguntar à enfermeira como é que ela está.

Bill piscou os olhos por duas vezes, como que em agradecimento; em seguida, tornou a fechá-los. Pouco depois, Cynthia saiu do quarto e as filhas precipitaram-se para ela de imediato. Mas não lhes contou o que o pai acabara de dizer.

Como é que ele está? Disse alguma coisa?

Acho que está melhor. Já tenta falar. Informei-o de que vocês estavam cá. Cynthia ficara chocada com aquilo que Bill lhe perguntara. As suas primeiras palavras haviam sido para Isabelle e não conseguiu deixar de pensar no quanto esta significava para ele. E não fora certamente por uma mera questão de cavalheirismo que perguntara pela sua acompanhante na noite fatídica.

O que disse ele? Olivia e Jane estavam num estado de perfeita euforia.

Piscou os olhos por duas vezes respondeu Cynthia, tentando dissimular a sua dor.

Consegue falar? perguntou Jane, que era a perfeita imagem da mãe. Olivia era mais parecida com o pai.

Pronunciou duas ou três palavras, mas ainda é um grande esforço para ele. Julgo que está a descansar agora. Cynthia exibia um ar estranhamente abatido, quando disse às meninas que voltava em breve, encaminhando-se de imediato para a recepção. Como está Mistress Forrester? perguntou. Quanto mais não fosse, podia dizer a Bill o que este queria saber. Estava no seu pleno direito de se preocupar com Isabelle, mesmo que fossem simples amigos. Haviam feito a viagem de ida e volta até ao inferno juntos. O mínimo que podia fazer por ele era dar-lhe a informação sobre Isabelle, já que fizera um esforço enorme para perguntar por ela.

Não está muito bem. O seu estado continua estacionário. Voltou a ter febre ontem à noite. O marido está junto dela.

Já recuperou a consciência?

Não, mas não é de estranhar devido às lesões e à operação.

Cynthia agradeceu-lhe a informação e voltou para o quarto. Bill ressonava ligeiramente. Então, como se a pressentisse a seu lado, estremeceu e abriu os olhos. Voltara a sonhar com Isabelle. Há dois dias que isso acontecia.

Perguntei pela Isabelle. Continua na mesma. Ainda não saiu do coma, mas espero que isso venha a acontecer.

Bill piscou novamente os olhos, em jeito de concordância. Ao fim de algum tempo, começou a tentar articular novo conjunto de palavras.

Obrri...gaadooo, Cinnn... pensei... que... fosses... ela... proferiu, fechando os olhos e voltando a sonhar com Isabelle. Não tinha qualquer desejo de ver a esposa ou de falar com ela.

Queres ver as miúdas? perguntou Cindy, interrompendo-lhe novamente o sonho. Desta vez, Bill piscou os olhos por três vezes. Vou buscá-las. Estão ao fundo do corredor.

Pouco depois, Olivia e Jane encontravam-se no quarto, a tagarelar com Bill, que chegou a esboçar um sorriso. Quando tentou falar com as filhas, já conseguiu fazê-lo com menos esforço. A capacidade de falar começava a voltar, se bem que muito lentamente, mas era evidente que o espírito estava um pouco mais lúcido.

Amo... vos... filhas...

Também te amamos muito, papá afirmou Olivia, enquanto Jane beijava a mão ao pai, que continuava a soro, entubado e ligado a uma série de monitores. A felicidade de terem o pai vivo era indescritível.

Grrrandes... moççças disse Bill para Cynthia, quando as filhas saíram.

Tu é que foste um grande homem comentou Cynthia, perante o olhar surpreso de Bill. Pregaste-nos um valente susto. Lembras-te do que aconteceu?

Não. Não se lembrava de nada, a não ser da noite que passara com Isabelle antes do acidente.

A tua limusine foi abalroada por um autocarro. Levaram umas horas para vos desencarcerar.

Tive... medo... que... ela... tivesse... morrido... articulou Bill, a muito custo, e Cynthia não conseguiu deixar de pensar o quanto era estranho ele estar a falar de Isabelle à própria mulher, mas não parecia importar-se. Os olhos de Bill estavam inundados de lágrimas quando olhou para ela.

Creio que esteve mesmo às portas da morte. Não lhe disse que Isabelle ainda corria risco de vida. O marido está com ela. Estas palavras eram como que um aviso para ele voltar à vida real. Isabelle tinha marido. Ele, duas filhas e uma mulher. Bill sabia que, por muito que amasse Isabelle, tinha uma grande responsabilidade para com elas. Porém, há dias que sonhava com Isabelle.

As enfermeiras voltaram então para o quarto. Tinham coisas para fazer a Bill e Cynthia aproveitou para ir ter com as filhas. Precisava de digerir o que acabara de acontecer com ele. Já não havia a mínima dúvida na sua cabeça. Isabelle Forrester era importante para ele. Não era nenhuma estranha, como o marido esperara, ou até uma amiga fortuita. A sua primeira pergunta fora em relação a Isabelle. E o olhar estava carregado de angústia e preocupação por ela. Até confundira Cynthia com Isabelle.

Sentada na sala, à espera que as enfermeiras acabassem o que tinham a fazer com Bill, pegou num exemplar do Herald Tribune. Reparou então num artigo sobre o acidente do autocarro. E qual não foi o seu espanto ao deparar com uma fotografia de Bill acompanhado de uma mulher, ao lado de uma fotografia dos destroços do autocarro. O artigo referia que o acidente provocara onze vítimas mortais entre os passageiros do autocarro e o conhecido político William Robinson encontrava-se na limusine atingida. A legenda da fotografia dizia que fora tirada pouco antes do acidente. Acrescentava ainda que o político e a mulher não identificada haviam estado no Annabel’s, que a viatura fora atingida uns Quarteirões mais à frente e que o motorista morrera. Mas não fazia qualquer alusão ao nome de Isabelle, nem referia se ela fora ou não ferida no acidente. Mas Cynthia sabia que só podia ser ela. Tratava-se de uma mulher atraente e jovem, de longos cabelos escuros, e estava com ar espantado a olhar para a objetiva do fotógrafo. Bill sorria e tinha o braço por cima dela. Ficou sem pinga de sangue. Estavam ambos com ar feliz e descontraído, e Bill dava a sensação de estar a conter o riso. Perguntou-se então se Gordon Forrester também vira a fotografia.

Olivia e Jane olharam uma para a outra quando viram a mãe a ler o artigo. Não disseram nada, mas também já o tinham visto. Porém, agora não podiam ficar zangadas com o pai, tivesse ele feito o que quer que fosse. O que acontecera fora de tal modo grave que lhe perdoavam praticamente tudo. Cynthia afinava pelo mesmo diapasão. O que a preocupava não era o que lhe fizera, mas a hipótese de gostar de Isabelle. O brilho no olhar, quando lhe perguntara por ela, fora demonstrativo de que não se tratava de uma mera aventura. Custava-lhe a acreditar que fossem apenas bons amigos. Cynthia e Gordon teriam ficado ainda mais espantados se soubessem que eles eram confidentes há mais de quatro anos.

Uma das enfermeiras veio então buscá-las e conduziu-as até ao quarto de Bill. Pouco antes de fechar a porta, Cynthia viu Gordon Forrester sair do quarto de Isabelle. Não se atrevia a fazê-lo, mas teve vontade de perguntar se vira o artigo no Herald Tribune. Mas Gordon parecia ter outros planos em mente.

Isabelle continuava a não dar sinais de melhoras e, embora o médico dissesse que ela podia continuar em coma durante muito tempo, Gordon estava cada vez mais preocupado com a eventualidade de ficar com lesões cerebrais se sobrevivesse. Além disso, haviam-lhe dito que o ritmo cardíaco era irregular e estava a aparecer líquido nos pulmões. Havia um crescente risco de pneumonia e sabia que, se isso acontecesse, ela morreria. O seu estado parecia piorar. Estivera uma hora no quarto a falar com os médicos sobre uma possível nova operação e ia para o hotel quando Cyntia o viu.

Só ao fim da tarde, depois de ela e das filhas saírem, é que Bill perguntou por Isabelle. Recuperara a fala ao longo do dia. Olivia e Jane não pararam de fazer perguntas ao pai, que era forçado a responder. Desta vez, Bill perguntou a uma enfermeira como estava Isabelle. A resposta foi cuidadosa.

Está na mesma. Continua em coma e as lesões são mais internas do que as suas. Bill fracturara mais ossos, mas todos os órgãos internos de Isabelle haviam sido atingidos. Era impossível dizer qual estava pior. No entanto, ele sobrevivera, enquanto a vida dela continuava periclitante. A única coisa que sabia era que não queria que Isabelle morresse e que daria a vida por ela.

Posso vê-la?

Não creio que seja possível respondeu a enfermeira. Sabia muito bem que o cirurgião não autorizaria. Tinha de se manter o mais imóvel possível. Não havia qualquer hipótese de o tirar da cama com as lesões que tinha na coluna e no pescoço. Além disso, Isabelle não daria pela sua visita.

Nessa noite, Bill fez a mesma pergunta ao médico.

Só um minuto. Só quero vê-la, para saber como está.

Não muito bem respondeu o médico. Tem traumatismos por todo o corpo. Expliquei isso ao marido hoje. Quer transferi-la para Paris. Disse-lhe que é impossível. No estado delicado em que se encontra, seria matá-la. Sentiu as palavras do médico como uma faca a trespassar-lhe o peito. Não queria que a levassem para lado nenhum, pelo menos até ele a ver. E certamente não o iriam fazer, dado que a poriam em maior risco. Forrester era louco em pensar transferi-la para Paris tão cedo. Acho que não é boa idéia vê-la, Bill. Tratavam-se pelo primeiro nome e o médico estava encantado com a simpatia demonstrada por ele. Gostava de Bill. O mesmo não acontecia relativamente a Gordon Forrester, que era um homem parco em palavras e arrogante, e fora ofensivo com toda a gente. Começara o dia a pedir para transferirem Isabelle para Paris. Ninguém lhe deu ouvidos. E só quando o diretor da Unidade de Cuidados Intensivos lhe disse que ele devia estar louco para pedir tal coisa e que Isabelle não resistiria à viagem é que Gordon desistiu da idéia. Mas toda a equipe ficou convencida de que ele voltaria à carga. Era demasiado teimoso para desistir.

Não me pode levar na cama até ao quarto dela, quando ninguém lá estiver? suplicou Bill, de novo na posse de todas as suas capacidades vocais. Quero vê-la com os meus olhos.

O médico ficou pensativo durante um longo instante. Não sabia da relação entre os dois e não queria questioná-lo a esse respeito, mas era evidente que ver Isabelle tinha um grande significado para Bill. Além disso, não faria mal a nenhum dos dois. Só não queria que Gordon Forrester ficasse zangado se viesse a saber.

Acha que me podem lá levar esta noite? Por pouco tempo que seja

Porque não esperamos mais um pouco e vemos como é que você e ela estão amanhã. Nenhum dos dois se vai embora.

Bill sentia-se enlouquecer só de saber que Isabelle estava ali tão perto e que não podia vê-la. Se pudesse, já lá teria ido, mas estava inteiramente dependente de terceiros. Tinha o corpo completamente imobilizado. Não conseguia sequer levantar a cabeça, e os braços estavam extremamente fracos. Não possuía qualquer sensibilidade da cintura para baixo E, de momento, ninguém sabia se recuperaria da paralisia. Estava indefeso como um bebê num berço, mas tinha uma maneira calma, porém vigorosa, de convencer o médico de que era boa idéia.

Estou a ver que não consigo tirar-lhe essa idéia da cabeça observou o médico, finalmente, com um sorriso nos lábios. Já passava da meia-noite e não havia visitas nos corredores. Foi então à procura da enfermeira de Bill. Quando esta entrou no quarto, vinha seguida por dois homens. Bill ficou ansioso por instantes, preocupado com aquilo que iriam fazer-lhe. Sem dizerem palavra, os homens tomaram posição à cabeceira e aos pés da cama e fizeram-na deslizar lentamente na direcção da porta.

Aonde é que vamos, indagou Bill, preocupado. A enfermeira sorriu, e ele percebeu, de imediato, o que se passava. O médico aguardava-os no corridor.

Se contar uma palavra disto a alguém, volto a pô-lo em coma sussurrou. Bill riu-se É uma grave irregularidade. Mas sabia que lhe faria bem, e era pouco provável que fizesse mal a Isabelle. Esta nunca se aperceberia de que Bill estava ao pé de si.

Após algumas manobras, os dois homens conseguiram que as duas camas ficassem lado a lado. Bill revirou os olhos o mais que pôde e a única coisa que conseguiu ver pelo canto do olho foi a cabeça de Isabelle envolta em ligaduras. Se mexesse o braço esquerdo, conseguiria tocar-lhe nos dedos. As duas enfermeiras que zelavam por ela observavam o que se estava a passar. O médico dera-lhes instruções para fecharem os olhos. Era óbvio para todos o motivo por que Bill se encontrava ali. Durante alguns minutos, segurou os dedos de Isabelle na sua mão, depois falou-lhe, completamente alheio às restantes pessoas presentes no quarto.

Olá, Isabelle... sou eu... o Bill... Tens de acordar! Já estás a dormir há demasiado tempo... Tens de voltar... Depois, num sussurro: Amo-te... Vai tudo correr bem.

Deixaram-no ficar mais alguns minutos, depois levaram-no para o quarto. Quando chegou, estava exausto e pálido. Então, ao pensar nela, recordou-se, de repente, de um sonho que tivera, mas não se lembrava quando. Estavam os dois a caminhar em direcção a uma luz muito brilhante e, pouco antes de a atingirem, obrigou-a a regressar, o que a deixara extremamente incomodada. Os filhos de ambos também lá estavam e ele queria voltar. Mas Isabelle desejava continuar. Agora queria repetir-lhe as palavras que lhe dissera então. Ela tinha de voltar, de acordar. Estava ansioso por vê-la de novo. Só de pensar que Gordon tentara levá-la para França sentia um pavor enorme dentro de si. Era evidente que Isabelle não estava em condições de ser transferida. Mas o médico assegurara-lhe de que nunca permitiriam tal coisa. Sentiu-se mais aliviado e mais confortado por saber que Isabelle estava perto de si.

Nessa noite, adormeceu a pensar nela. Deitada na sua cama no Claridge’s, Cynthia também pensava em Isabelle. E no quarto que a mulher ocupara dois dias antes, deitado em cima da cama, Gordon reflectia sobre Bill. Todos tinham muita coisa em que meditar, e as únicas pessoas que sabiam as respostas para as perguntas eram Bill e Isabelle.

No dia seguinte, quando Cynthia chegou, a enfermeira dava de comer a Bill. Era domingo, já haviam passado quatro dias depois do acidente e Bill ainda continuava abalado. Mas era uma satisfação enorme estar acordado e vivo.

Que tal vai isso, querido? perguntou Cynthia, em tom prazenteiro. Trazia uma T-shirt, calções e um par de sandálias que uma das filhas lhe emprestara. Olivia e Jane haviam ido dar um passeio por Londres. As horas que permaneciam no hospital eram demasiadas para elas. Planeavam passar pelo hospital ao fim da tarde. Como é que te sentes, indagou, aproximando-se da cama.

Estou pronto para jogar umas partidinhas de ténis. A voz ainda estava um pouco rouca, mas já se fazia entender com clareza.

Haviam-no barbeado pela primeira vez e já se sentia com um ar mais humano, mas ainda havia um longo caminho a percorrer. Dissera ao médico que a visão estava um pouco turva, o que não era de estranhar. O impato na cabeça fora forte e os efeitos do coma ainda se iriam fazer sentir durante mais algum tempo. Um especialista viera examinar-lhe as pernas e a coluna, e o médico assistente dissera-lhe que estavam a pensar em operá-lo, dependendo da opinião do especialista. Era evidente para toda a gente que a sua recuperação ia ser demorada. E ainda não se sabia se voltaria a andar. Tinha consciência disso, mas era um assunto que ele e Cynthia queriam evitar, embora ambos soubessem que, dadas as lesões ao nível da coluna vertebral, havia uma possibilidade real de ficar confinado a uma cadeira de rodas para o resto da vida.

Cynthia não tinha pressa de abordar esse assunto com Bill. Este já tinha problemas que chegassem. Nos últimos quatro dias, ela não parava de pensar em como seria viver com o marido nessas condições. Não fazia a mínima idéia se Bill voltaria a trabalhar ou de como seria a existência dele se se visse obrigado a retirar-se da vida política. Nem sequer conseguia imaginar esse cenário Tal como ele Mas ambos sabiam que as consequências poderiam ter sido bem piores. Houvera a possibilidade de ter ficado completamente paralisado. E mostraram-se aliviados quando souberam que tinha grandes hipóteses de manter as funções ao nível do tórax e dos braços, se bem que a questão da bacia e dos membros inferiores ainda estivesse em aberto, o que estava a aterrorizá-lo.

Como estão as nossas filhas? perguntou Bill, algo ansioso e tenso, enquanto Cynthia puxava uma cadeira e se sentava.

Estão boas. Foram dar uma volta. Passam por cá depois. Ambas as raparigas estavam extraordinariamente aliviadas por o pai ter sobrevivido. E a mãe incentivara-as a irem dar uma volta para desanuviar.

Deviam voltar para casa esta semana, Cyn. Nada podem fazer aqui.

Estávamos para vir à Europa dentro de semanas. Não creio que queiram deixar-te agora. Sorriu e, por instantes, Bill desviou o olhar. Talvez as leve a passar uns dias a Paris, se te sentires melhor daqui a algumas semanas. Não tardas a voltar para casa. Mas não estava tão certa como queria fazer crer. O médico avisara-a de que Bill ficaria hospitalizado durante meses. Ela ainda lhe perguntara se havia hipótese de ele fazer a viagem num avião de transporte de doentes, mas todos os médicos haviam sido de opinião de que ainda era muito cedo para fazer qualquer tipo de movimento.

Não sei quando poderei voltar para casa, Cyn. E elas não podem passar todo o Verão aqui sentadas, à minha espera.

Eu não tenho coisa melhor para fazer afirmou Cynthia, em tom jovial.

Bill sorriu.

As coisas devem ter mudado muito nas últimas semanas. Andas sempre de um lado para o outro. Não vais a um torneio de ténis, passear, ou dar uma festa? Vais ficar maluca, aqui sentada, a olhar para mim.

Não vou deixar-te sozinho, Bill. Vou acabar por mandar as miúdas para casa, a não ser que queiram ir a algum lado sozinhas. “Para o bem e para o mal”, lembras-te? Eu lembro. Não vou deixar-te aqui sozinho repetiu.

Já sou um rapaz crescido retorquiu Bill, com ar sério. Havia algo sinistro no seu olhar. Cynthia ficou preocupada. Estava a tentar dar um tom ligeiro à conversa, mas não conseguia evitar que ele dissesse o que muito bem lhe apetecia. Ia falar contigo acerca disso, dessa questão do “para o bem e para o mal”. Nos últimos anos, temos tido muitas coisas “más”. A culpa é minha. Passei tanto tempo em viagens e embrenhado na política, que não vos dei a devida atenção, a ti e às miúdas. Há muito tempo que tinha um sentimento de culpa relativamente a essa questão, mas já haviam estabelecido um padrão de distanciamento entre eles, que era praticamente impossível dar um rumo diverso às coisas.

Habituámo-nos. Ninguém te culpa por isso. Tenho uma vida. Tenho coisas para fazer. Não estou a queixar-me do casamento, Bill. Cynthia exibia um ar sério. A enfermeira deixara-os a sós quando começaram a falar.

Vocês deviam ter protestado, Cyn, há muito tempo E também eu deveria ter-me queixado. O nosso casamento já não existe Há muitos anos. Não fazemos as mesmas coisas, não temos os mesmos amigos Nem sequer sei o que fazes a maior parte do tempo. Ultimamente, até me tenho esquecido de te dizer onde estou. Para ser honesto, nem sei se te importas com isso. Estou surpreendido por teres vindo até Londres. Sempre pensei que ficarias contente no dia em que eu desaparecesse.

Não estava a armar-se em vítima. Era tudo verdade E não lhe referiu que sabia dos muitos casos que ela tivera nos últimos tempos, embora houvessem falado de uma história que se passara com ele vários anos antes. Cynthia ficara furiosa, pois sentira-se humilhada. Mas Bill sempre fora um cavalheiro e nunca referira que os breves romances que ela mantivera com os instrutores de ténis, os jogadores profissionais de golfe e os maridos das amigas o haviam humilhado durante anos. A fidelidade já não era um aspecto do casamento que ela pudesse oferecer-lhe. Ao princípio, fora a sua forma de vingança por se sentir rejeitada, quando Bill começara a ficar obcecado pela política. Às vezes, achava que isso era uma forma de atrair as atenções, mas fora a opção errada. Bill acabou por se desprender e obrigou-se a não ligar importância. Não lhe dizia nada quando devia dizer, porque era mais fácil fechar os olhos àquilo que estava a acontecer. O que outrora sentira por ela, trinta anos antes, morrera há muito. A amizade fora a única coisa que restara, e Bill estava grato por Cynthia se encontrar ali consigo, se bem que já não houvesse qualquer tipo de paixão. Apercebera-se disso nas horas que passara com Isabelle.

Estás a ofender-me ripostou Cynthia, com ar magoado. Como podes pensar que não viria cá depois de teres o acidente? Deves considerar-me uma mulher sem coração.

Não, querida, sei que tens coração. E esboçou um sorriso triste. Só que já não é meu há muito tempo. Quem me dera que tivesse sido. Às vezes, desejava que ainda fosse, mas já não é, e é essa realidade que temos de encarar. Tencionava falar-te no assunto quando chegasse a casa.

Cynthia fitou-o, em magoado silêncio, durante um longo instante, os olhos marejados de lágrimas. Não acreditava que Bill estivesse a dizer-lhe aquilo. Por ironia do destino, quando percebera que ainda o amava, este dizia-lhe que já nada existia, que estava tudo acabado. Ainda nem sequer sabia o que ele iria dizer-lhe a seguir. Mas o preâmbulo não parecera muito encorajador.

Isto tem a ver com a Isabelle? perguntou Cynthia, tentando manter-se calma. Estás apaixonado por ela, não é? Não era altura de se refugiar atrás de palavras. Estava curiosa por saber se Bill pensava casar com Isabelle. Não era costume nele ter casos. Tanto quanto sabia, só lhe conhecera um: o romance com a esposa de um congressista, caso esse que chegara a ser muito sério. E pusera-lhe termo porque sabia que, se continuasse, teria de deixar Cynthia e as filhas.

Não tem nada a ver com a Isabelle retorquiu Bill, falando-lhe com toda a sinceridade. Tinha de ser assim, para bem de todos. Tem a ver comigo. Não sei por que razão continuámos casados este tempo todo. Por hábito, desconfio. Ou por preguiça, ou por uma qualquer ilusão de que as coisas melhorassem, ou por comodismo, ou talvez porque as miudas eram pequenas. Mas é assim que queres viver? Casada com um tipo que nunca vês? Nunca conversamos, não temos nada em comum, a não ser as miúdas. Tu tens a tua própria vida, eu tenho a minha. Mereces muito mais do que isso e eu também.

Cynthia sabia que era verdade, mas eram palavras que não queria ouvir.

Poderíamos tentar de novo, se quiséssemos. Apercebi-me, quando isto te aconteceu, de que ainda te amo. Eu é que tenho sido estúpida ao longo destes anos todos. Ao princípio, irritava-me que te divertisses tanto com o que fazias e que não me incluísses nessa grande fatia da tua vida. Por isso, resolvi também divertir-me. Fi-lo da pior maneira e acabei sempre na merda, comigo própria e contigo. Mas isso podia mudar. Vejo agora o quanto nos resta, o quanto nos amamos. As lágrimas soltaram-se de repente e correram-lhe pelas faces. Inclinou-se para a frente e tocou-lhe na mão. Fiquei aterrorizada quando pensei que ia perder-te. Amo-te, Bill. Não nos abandones agora. Temos ainda muito tempo à nossa frente.

Se pudesse, Bill teria abanado a cabeça, mas o olhar dizia a mesma coisa.

É demasiado tarde, Cyn. Nada nos resta, a não ser as filhas e o fato de sermos bons amigos. É por isso que estás aqui. Faria o mesmo por ti. Não vais perder-me, Cyn. Não podes É por isso que quero que as coisas não tomem outro rumo, que não continuem tal como estavam. Caso contrário, acabaremos por nos detestar, e não quero que isso aconteça, por nós e pelas nossas filhas. Se as coisas terminarem aqui, seremos sempre amigos.

Sou tua esposa. Cynthia lutava pela sua vida, mas não estava a conseguir vencer. Não quero ser apenas tua amiga.

É melhor do que a alternativa. Um destes dias, vais envolver-te com o tipo errado, talvez um dos meus amigos, ou alguém de quem gosto, e vou estar-me nas tintas para ti e para ele. E a existência entre nós, depois disso, não será das melhores. Bill estava admirado por Cynthia nunca ter provocado nenhum escândalo. Pelo menos, fora cuidadosa.

Não voltarei a fazer nada disso. Cynthia chorava copiosamente. Era humilhante ouvir o marido dizer que sempre soubera de todas as suas leviandades. Ela que sempre se convencera de que ele não sabia de nada e que, provavelmente, também fazia a mesma coisa. Mas Bill era um homem demasiado sério para isso e extremamente leal. Por essa razão, muito provavelmente, se apaixonara por Isabelle. Por ser um homem nobre de sentimentos. Quando sentia amor por alguèm, era amor sincero. Nunca mais terei nenhum caso. Juro. Agora não ando com ninguém. Acabara a última ligação amorosa há apenas quatro meses, depois de três meses de romance com um homem que conhecera no Country Club. Tinha mulher e três filhos, e bebia muito. Era bom na cama, mas Cynthia receara que ele desse com a língua nos dentes quando estava bêbedo. Não queria passar por embaraços.

Voltarás a fazê-lo. Ambos sabemos que sim. E talvez tenhas razão. Estamos a milhões de quilómetros de distância um do outro, mesmo quando nos encontramos juntos. Não queremos nem merecemos nada disto. De repente, veio-lhe à mente Isabelle. Não pensava noutra coisa durante todo o dia. Passava as noites a sonhar que vagueava, sem destino, à procura dela.

Vais casar com ela? Cynthia acabou a pergunta com um soluço.

Bill sentia que era a altura de lhe dizer tudo aquilo que ia dentro de si, por muito que lhe custasse. Apesar do acidente, queria pôr já um ponto final na relação com Cynthia. As coisas só iriam piorar e não era justo estar dependente dela. Cynthia acabaria por odiá-lo. Não era o tipo de mulher que conseguisse passar anos, já para não dizer o resto da vida, a cuidar do marido. Acabar confinado numa cadeira de rodas até ao fim da vida era a última coisa que lhe queria infligir, sabia que só lhe restava uma alternativa, que era sair de casa e cuidar de si.

Não, não vou casar-me com a Isabelle. Ela não vai abandonar o marido, caso sobreviva. Ele é um sacana, um tipo sem escrúpulos. Mas ela tem um filho doente. Já te disse que não tem nada a ver com ela. Tem a ver conosco. Ainda me agradecerás este dia, quando descobrires o tipo certo para que eu nunca fui. No princípio de casados, passámos bons momentos, mas nunca queríamos as mesmas coisas E não acredito naquela história de que “os opostos se atraem”, na nossa idade, não Nesta altura da vida, precisamos de pessoas que queiram as mesmas coisas que nós. Sempre desejaste ter uma vida diferente da minha. Sempre pensei quando éramos jovens, que isso não importava, mas estava enganado. Precisas de um tipo divertido que goste de ir a festas e que tenha muito tempo para te dedicar. Não precisas de um maníaco que vive obcecado com o trabalho, que passa o tempo em viagens e que está mais preocupado em saber quem vai ser o próximo presidente do que com as próprias filhas. Bill sabia que iria martirizar-se até ao fim da vida por não ter dado o devido acompanhamento às filhas, por mais próximo que estivesse delas agora.

És um grande pai, Bill Sempre foste maravilhoso para as miúdas. Elas não poderiam adorar-te mais. As filhas veneravam-no, embora estivessem habituadas a passar a maior parte do tempo sem ele. Tinham um profundo respeito e orgulho por tudo o que ele fazia.

Não as acompanhei devidamente, reconheço. Nunca conseguirei compensá-las. Mas vou tentar. Irei abrandar um pouco a minha vida política. Mas já era demasiado tarde. Estavam ambas na faculdade e tinham as suas próprias vidas. Bill já perdera o barco, e essas oportunidades, uma vez perdidas, nunca mais voltavam.

Que mais queres dizer-me? perguntou Cynthia, começando a ficar apavorada.

Acho que devemos divorciar-nos. É a única maneira de conseguirmos preservar aquilo que ainda nos resta Cyn, quero ser teu amigo.

Vai-te foder. E sorriu por entre as lágrimas - Nunca pensei que nos abandonasses Cynthia não conseguia acreditar que aquilo estivesse a acontecer-lhe, especialmente naquele momento. Três dias antes, a única coisa que lhe interessava era que Bill vivesse. Todavia, na manhã em que lhe telefonaram a dar a notícia do acidente, chegara a pensar que seria melhor ele morrer, caso viesse a ficar com um elevado grau de deficiência. Nunca quisera que Bill a abandonasse, mas agora era o que ele estava disposto a fazer não conseguiu deixar de perguntar-se se ele não estaria debaixo de uma depressão e a reagir ao acidente de uma forma histérica. Tens a certeza de que é isso que queres? Sofreste um choque terrível. É natural que...

Bill interrompeu-a antes que acabasse a frase. Aparentava um ar calmo.

Devíamos ter feito isto há anos, Cyn. Só que nunca tive coragem.

Bem, lamento que a tenhas nesta altura. Agora que estou apaixonada por ti outra vez é que queres abandonar-me. Digo-te uma coisa, Bill Robinson: o teu sentido de oportunidade é um nojo. E desatou a chorar. Depois, olhou-o com ar destroçado. Por que razão não me fizeste parar, se sabias o que eu andava a fazer ao longo de todos estes anos? Porque não me disseste qualquer coisa? Era uma sensação horrorosa constatar que Bill tinha conhecimento dos seus casos amorosos. Mas ambos sabiam que não era a ele que competia fazê-la parar, mas a ela.

Não sabia o que dizer. Não queria encarar o problema sozinho. Primeiro, tentei convencer-me de que nada de anormal estava a acontecer. Depois, habituei-me. Não sei, Cyn... Talvez não quisesse ser honesto comigo mesmo. Mas agora não tenho alternativa. Já não possuo energia suficiente para contar histórias de fadas a mim mesmo. E talvez nunca mais volte a ter alguém na minha vida. Pelo menos, nenhum de nós estará a viver uma mentira. É melhor. Não achas?

Não, não acho. Prefiro viver uma mentira a perder-te, não temos de viver uma mentira. Desta vez podíamos tentar tudo como deve ser, se me deres outra oportunidade. Ao dizer isto, Cynthia parecia a mesma rapariga que casara com Bill. Este ficou de coração destroçado e quase desejou tê-la confrontado anos antes, mas não estava preparado nessa altura.

É demasiado tarde. Para os dois. Só tu é que ainda não sabes isso.

Que vou dizer às pessoas? As palavras de Bill atingiram-na como um soco. Toda a idéia do divórcio era tão humilhante para Cyntia que só lhe apetecia fugir e esconder-se.

Diz-lhes que finalmente abriste os olhos e me deste um pontapé no rabo. Provavelmente era o que devias ter feito quando endoideci e comecei a trabalhar cento e quarenta horas por semana. Ambos fizemos coisas estúpidas. A culpa não é tua. Como sempre, Bill mostrava-se equilibrado, simpático e justo, o que a magoava ainda mais. Cynthia sabia que nunca mais voltaria a encontrar um homem como ele. Homens como Bill eram muito raros

O que vou dizer às miúdas?

Isso é outra história. Vai ser difícil. Acho que devíamos pensar no assunto. Já têm idade suficiente para compreender, mas, provavelmente, isso não irá acontecer. Ninguém gosta de mudanças.

Nem eu insistiu Cynthia, com a voz embargada. Não pensara nisso, mas iria ser muito mais difícil para Bill. Este tinha um longo e tortuoso caminho à sua frente e resolvera fazer-se a ele sozinho. Não possuía quaisquer ilusões relativamente à sua recuperação. Sabia que havia a forte possibilidade de nunca mais voltar a andar, e a reabilitação ia ser um processo angustiante, especialmente sozinho. Mas também sabia que Cynthia nunca suportaria tal situação, daria em doida. Ela não era como Isabelle. Nunca conseguiria fazer aquilo que esta fazia pelo filho. Mas Bill estava disposto a carregar sozinho o fardo que tinha pela frente.

Cynthia levantou-se e foi até à janela. Estava de olhar perdido no espaço e ar descoroçoado, quando entrou o embaixador americano. Este ouvira falar do acidente e lera a notícia no Tribune. Estava destroçado. Quando Cynthia se voltou, com os olhos vermelhos e inchados de tanto chorar, o embaixador reparou que ela também se mostrava desesperada com o sucedido. Não lhe passou pela cabeça que pudesse encontrar-se no meio de um drama conjugal. Precipitou-se então para a cama e tomou a mão de Bill na sua, com um ar de profunda consternação estampada no rosto.

Meu Deus, Robinson, o que é que te aconteceu? Estive para me encontrar contigo a semana passada. Nem queria acreditar na notícia quando lha deram. Entretanto, reparou no olhar estranho que Cynthia e Bill trocaram.

Pus-me a competir com um autocarro que vinha a grande velocidade. Ele ganhou. Foi uma estupidez afirmou Bill, com um sorriso, mas estava com ar cansado. A troca de palavras com Cynthia deitara-o abaixo. Cyn, porque não vais dar uma volta com as miúdas? Irá fazer-te bem saíres deste ambiente.

Cynthia fez um gesto afirmativo com a cabeça, incapaz de falar. Não queria chorar diante do embaixador e sabia que o faria se ficasse. Também não lhe apetecia estar com as filhas. Pensou então que talvez fosse melhor voltar para o hotel e chorar à vontade.

Volto logo à noite disse, dando-lhe um beijo na face. Os olhos ficaram novamente inundados de lágrimas. Amo-te sussurrou, e saiu apressadamente do quarto.

Pobre Cynthia, sofreu um choque terrível! observou o embaixador, condoído. Conhecia Bill e Cynthia há vários anos. Era de Nova Iorque e já uma vez pensara em concorrer à presidência, mas Bill desencorajara-o. Nunca teria ganho, mas estava a fazer um ótimo trabalho na embaixada. Já lá se encontrava há três anos e Bill sabia que o presidente ia pedir-lhe que ficasse durante outro mandato.

Estás bom?

Agora estou melhor. Apesar da manhã que acabara de passar. Não esperava ter aquela conversa com Cynthia naquela altura, mas sabia que fizera o que a consciência lhe ditara. Planeara proceder desse modo quando chegasse a casa. E sabia que não podia deixar que o acidente o fizesse mudar de idéias. Além disso, não queria criar quaisquer ilusões a Cynthia, por mais doloroso que isso pudesse ser.

Precisas de alguma coisa? indagou o embaixador, sentando-se. A mulher pedira-lhe que não se demorasse muito tempo.

Nada por aí além. Pescoço novo, coluna nova e um bom par de pernas, esse tipo de coisas. Tentava gracejar com a situação, mas o olhar era triste.

Que dizem os médicos?

Pouca coisa. Ainda é muito cedo para se saber a evolução. Acho que se o Roosevelt conseguiu percorrer o país numa cadeira de rodas, eu também consigo. Ambos sabiam que sim. Toda a sua vida mudara num piscar de olhos, não só a vida política, mas também muito provavelmente a sua vida pessoal. Nessa altura, ainda era impossível avaliar todas as implicações do acidente. À parte o fato de não andar ainda não sabia se voltaria alguma vez mais a fazer amor com uma mulher. Também já estava ciente dessa eventualidade quando dissera a Cynthia que queria o divórcio. Esta nunca conseguiria adaptar-se a tal situação. Mas havia motivos ainda mais convincentes para se divorciarem. As suas enfermidades constituíam apenas o corolário de uma situação insustentável.

Fazes idéia de quanto tempo é que vais cá ficar.

Provavelmente muito tempo respondeu Bill, num tom deprimido. Sentia-se muito cansado. A manhã não fora fácil e o fato de acabar com o casamento entristecia-o profundamente. Não só perdera a esposa como também estava em risco de perder Isabelle, a amiga mais chegada. O futuro era sombrio. Nada tinha a esperar deste, a não ser um ano muito árduo, a tentar pôr-se bom de novo Mas, pelo menos, estava vivo.

Bem, podes contar conosco afirmou o embaixador Stevens, em tom jovial. A Grace também virá visitar-te, mas noutro dia. Não te queria cansar. Se precisares de alguma coisa, é só telefonares para a embaixada. Basta pedires a Cynthia que ligue à Grace. Presumo que ela vai ficar contigo. A pobre mulher tinha um ar desesperado quando saíra. Mas encarar a eventualidade de Bill ficar inválido para sempre, pensou Jim Stevens, podia não ser fácil para ela. Vou dizer à Grace para lhe telefonar dentro de dias. Bill não lhe comunicou que ia pedir a Cynthia para voltar para o Connecticut com as filhas. Limitou-se a sorrir e a deixá-lo falar. Eram velhos amigos, mas não queria partilhar a idéia do divórcio com ele. Ainda era um assunto muito recente. Alem disso, queria que as filhas fossem as primeiras a saber, por uma questão de respeito.

O embaixador olhou então para o relógio e depois para Bill, e achou que já se encontrava ali há tempo mais do que suficiente. Grace tinha razão. Bill estava com ar extremamente abatido. Cinco minutos depois, saiu De repente. Para Bill, o velho embaixador, que dias antes mais parecia seu pai, aparentava agora uma jovialidade e uma vitalidade invejáveis, e tudo porque conseguira sair pelo seu próprio pé.

As horas pareceram custar mais a passar depois disso. Bill dormiu um bocado. O especialista apareceu ao fim da tarde. Não voltou a saber mais nada de Cynthia, mas desconfiava que estava no Claridge’s, a lamber as feridas. Continuava convencido de que, por mais dolorosa que aquela situação estivesse a ser, ela acabaria por dar a volta por cima.

O especialista não tinha nada muito animador para dizer, pôs Bill ao corrente de todas as hipóteses possíveis, do pior ao melhor. Por aquilo que vira nas radiografias e nos relatórios da operação, achava pouco provável que pudesse voltar a andar. Era possível que acabasse por recuperar alguma sensibilidade nas pernas, mas a coluna sofrera lesões de tal modo graves que muito provavelmente nunca mais recuperaria o controlo total sobre as pernas. Mesmo que tivesse alguma sensibilidade nelas, não conseguiria pôr-se de pé. Teria mais mobilidade se usasse uma cadeira de rodas. Era essa a boa notícia. A má era que, se os nervos continuassem o seu processo de degeneração, juntamente com a lesão no pescoço, poderia não recuperar qualquer sensibilidade na parte inferior do corpo. Acabariam por aparecer artroses, que piorariam a deterioração dos ossos e que, juntamente com aquilo que já tinha, iriam provocar-lhe uma vida inteira de sofrimento. Todavia, achava que, com os seus cinquenta e dois anos, tinha hipótese de recuperar alguma mobilidade das pernas, mesmo que nunca mais voltasse a andar sozinho. Considerava que o pescoço de Bill levaria quatro a seis meses a cicatrizar e o trabalho de reabilitação nas pernas um ano ou mais. Havia ainda uma ou duas operações suplementares que poderiam realizar, mas achava que os benefícios seriam mínimos e os riscos elevadíssimos. Se tentassem melhorar aquilo que lhe restava, podia acabar paralisado do pescoço para baixo. Bill concordou com tudo o que ouviu. O quadro que o médico lhe apresentara era real, mas não era bonito, e teria de fazer apelo a todas as suas forças para ultrapassar aquela barreira que se atravessara no seu caminho. Teria de aplicar-se ao máximo durante o ano seguinte para conseguir algum grau de mobilidade nas pernas Seria igualmente obrigado a fortalecer a parte superior do tronco para compensar, já para referir o trabalho que tinha de efectuar no pescoço.

Com o tempo e muito esforço, poderia levar uma vida aceitável, se estivesse disposto a fazer o respectivo acompanhamento psicológico que o ajudaria a superar as limitações físicas. Tratava-se de uma situação terrível, mas não era o fim do mundo.

Então, como se conseguisse ler os pensamentos de Bill, O médico respondeu à pergunta que ele ainda tinha medo de fazer. Era evidente que nunca mais voltaria a andar pelo seu pé e que se veria confinado a uma cadeira de rodas até ao fim da vida. Mas não tinha ainda qualquer idéia de como é que ficaria em termos de vida sexual. Bill manteve-se em silêncio, embora o pânico o avassalasse. O médico explicou-lhe, sem rodeios, que havia uma forte hipótese de recuperar a sensibilidade sexual e de levar uma vida relativamente normal nesse plano, se bem que ainda fosse muito cedo para garantir tal coisa. O médico tentava animar Bill o melhor que podia. Teria de experimentar, mas os progressos ainda não eram muito grandes. Era horrível nunca mais voltar a andar, mas o médico não queria que ele perdesse completamente a esperança relativamente ao resto.

Se a sua esposa for paciente disse o médico, sorrindo-lhe, as coisas podem correr muito bem.

Não lhe explicou que, dentro de pouco tempo, já não teria esposa e não se imaginava a experimentar com mulheres com quem saísse. No entanto, queria saber, pelo menos, se a função sexual se manteria activa. Teria de esperar para ver, o que era angustiante. O que planeava fazer, logo que estivesse recuperado, era aquilo que sempre fizera, atirar-se ao trabalho de alma e coração. O trabalho era a única coisa que lhe restava.

Depois de o médico sair, ficou mergulhado em pensamentos. Estava extremamente deprimido. Acontecera muita coisa em poucas horas. Era difícil adaptar-se à idéia de nunca mais voltar a andar.. Nunca mais voltar a andar. Estas palavras não paravam de lhe matraquear a cabeça. Mas sabia que podia ter sido pior. Podia ter ficado totalmente paralisado, ou morto, ou o traumatismo cerebral podia tê-lo deixado com deficiências mentais permanentes. Porém, apesar de dever estar grato por não lhe ter acontecido nada de pior, a possível perda da masculinidade parecia ter mais peso do que tudo o resto. A angústia em relação a essa probabilidade estava a deixá-lo num estado de profunda depressão. Ao pensar nisso, o seu espírito vagueou novamente até Isabelle. E ali ficou, de olhos fechados, a pensar nos momentos que haviam partilhado no início da semana. Custava a acreditar que tudo se passara apenas quatro dias antes. Dançara com ela no Annabel’s, sentira-a junto a si e agora não voltaria a dançar, e ela debatia-se contra a morte. Custava-lhe acreditar que, possivelmente, não voltaria a falar com ela, nem a ouvir a sua voz, nem a ver o seu rosto maravilhoso. Os olhos inundaram-se de lágrimas. Quando a enfermeira entrou no quarto, Bill ainda pensava em Isabelle e as lágrimas corriam-lhe pelas faces. Ela conhecia há muito tempo o especialista que estivera com Bill e sabia que as notícias que ele lhe dera não haviam sido boas. Pensou que Bill se mostrava destroçado por causa disso e tentou animá-lo. Não conseguia imaginar o que poderia significar para um homem bem-parecido e cheio de vitalidade como Bill saber que nunca mais voltaria a andar na vida. Desde o primeiro dia que as enfermeiras previam que este seria o desfecho mais provável. As lesões eram extremamente graves.

Quer alguma coisa para as dores, Mister Robinson?

Não, sinto-me bem. Como está Mistress Forrester? Há alguma alteração no seu estado? Era a pergunta sacramental que fazia sempre que via uma das enfermeiras e nenhuma destas sabia se ele o fazia por se sentir, de alguma forma, responsável pelo acidente, pois Isabelle saíra com ele, ou por estar apaixonado. Era difícil dizer. A única enfermeira que sabia era a que se encontrava no quarto quando ele visitara Isabelle na noite anterior e que prometera ao médico não dizer nada sobre aquilo que ouvira.

Encontra-se praticamente na mesma. O marido esteve cá um bocado e acabou de sair. Acho que vai voltar para Paris. Não há nada que ele possa cá fazer. A não ser estar com ela, falar-lhe e pedir para voltar. Bill detestava Gordon. Achava-o uma pessoa cruel e sem escrúpulos. Lembrou-se então de que, se Gordon já saíra do hospital, podia fazer noVa visita a Isabelle e referiu isso mesmo à enfermeira. Esta sabia que ele fora visitá-la na noite anterior e que o médico assistente de ambos autorizara, mas não sabia o que ele pensaria do fato de Bill fazer nova visita. Porém, quando reparou no olhar deste, constatou de imediato que ele tivera um dia extremamente difícil e que se encontrava afectado pelo estado clínico de Isabelle, e ficou cheia de pena dele.

Vou ver o que posso fazer prometeu a enfermeira e desapareceu. Cinco minutos depois, voltou acompanhada de dois enfermeiros, que destravaram a cama e o conduziram lentamente em direcção à porta. A enfermeira teve de retirar os fios que o ligavam a alguns monitores, mas a situação clínica de Bill já era suficientemente estável para poder manter-se alguns minutos sem eles.

A enfermeira que se encontrava no quarto de Isabelle abriu a porta, e os enfermeiros empurraram a cama para dentro do quarto e colocaram-na ao lado da dela. As persianas estavam fechadas. As enfermeiras foram então até um canto para os deixarem a sós. Bill voltou-se o melhor que pôde e tocou-lhe nos dedos da mão, tal como fizera no dia anterior.

Sou eu, Isabelle. Tens de acordar, querida. Tens de voltar. O Teddy precisa de ti. Eu também Preciso de falar contigo. Sinto imensas saudades tuas. As lágrimas corriam-lhe descontroladamente pelas faces. Pouco depois, ficou em silêncio, com a mão dela na sua. As enfermeiras estavam prestes a sugerir que voltasse para o quarto, enquanto ele exibia um ar estranhamente calmo. Dava a sensação de estar prestes a adormecer. De repente, a porta abriu-se e surgiu Gordon Forrester. As enfermeiras ficaram sobressaltadas. Gordon dirigiu-se, então, em tom ríspido, à enfermeira que cuidava de Isabelle.

Por favor, leve imediatamente Mister Robinson para o seu quarto.

Bill não proferiu qualquer palavra quando passou por Gordon. Não existia qualquer dúvida relativamente ao que estava a acontecer, ou ao motivo por que o haviam levado até junto de Isabelle. Bill sentia-se aterrorizado. Tinha a certeza de que Gordon insistiria para que o proibissem de visitar Isabelle. Mas uma vez que Gordon iria voltar para Paris em breve, Bill envidaria todos os esforços para que o levassem de novo até junto dela. Estava embrenhado nestes pensamentos quando Gordon Forrester entrou de rompante no seu quarto.

Se volto a encontrá-lo no quarto dela, Robinson, ou souber que lá esteve, ponho-o daqui para fora. Entendido.

Gordon mal conseguia controlar a raiva que fervilhava dentro de si. Bill estava a invadir o seu território, e isso ele não iria tolerar. Isabelle pertencia-lhe e ia fazer todos os possíveis para que Bill nunca mais se aproximasse dela, fosse qual fosse a natureza da sua relação. Isabelle pertencia-lhe.

Não me impressiona, Mister Forrester retorquiu Bill calmamente, fixando-o nos olhos O embaixador Stevens também teria uma palavra a dizer relativamente à minha transferência daqui do hospital. Mas não preciso que ele trave as minhas batalhas. A Isabelle e eu somos amigos há muito tempo. Nunca fiz nada que mereça a sua desaprovação, posso garantir-lhe. A não ser um beijo no carro na noite fatídica, mas Gordon não precisava de saber, era só entre ele e Isabelle. Estou preocupado com a Isabelle. Você é um homem de sorte. Ela é uma mulher maravilhosa e desejo ardentemente que sobreviva. O Teddy precisa dela, ainda mais do que você. Se o simples fato de falar com ela, ou de estar aqui a seu lado, a puder ajudar, então é isso que farei.

Afaste-se dela. Já basta o que fez. Quase a matou, e que estavam a fazer juntos àquela hora da noite? Não tem idéia. Deixaram-se fotografar pelos paparazzi, que fizeram de vocês e de mim parvos. Pensava que ia escapar sem castigo, não era? Agora a melhor coisa que tem a fazer é manter-se afastado do quarto dela e das nossas vidas. Não precisamos de um escândalo consigo envolvido.

Não terá nenhum escândalo comigo envolvido ripostou Bill, num tom convincente.

Não estou assim tão certo disso E proíbo-o de entrar no quarto dela. Fiz-me entender?

Por que motivo a detesta tanto? indagou Bill, quando Gordon já ia a sair. Este parou e virou-se para trás. Está louco? Não a detesto É a minha esposa. Por que razão acha que estou aqui?

Não tinha alternativa. Julga que se não estivesse aqui conseguia continuar a fingir que se preocupa com ela? Seria muito difícil. Ambos sabemos por que razão se encontra aqui. Pelas aparências e porque não tem qualquer alternativa. É responsável pela Isabelle, mas está-se nas tintas para ela, Forrester, e duvido que alguma vez se tenha preocupado com o seu bem-estar.

Você é um sacana disparou Gordon, antes de sair. Mas não conseguiu deixar de perguntar a si próprio se fora Isabelle a dizer a Bill que o marido a detestava. Gordon tinha a impressão de que Bill sabia de mais.

Bill pensava ainda na troca de palavras que tivera com Gordon, quando Cynthia e as filhas vieram visitá-lo nessa tarde. As raparigas haviam ido às compras, enquanto Cynthia fora dar um longo passeio para reflectir em tudo o que o marido lhe dissera. Mas nenhum dos dois revelou o teor da conversa que haviam tido, nem quais os seus planos relativamente ao divórcio, diante das filhas. Era demasiado cedo para isso. Ficaram até à hora do jantar. Olivia é que deu de comer ao pai com uma colher. Bill ainda tentou comer sozinho, mas espalhou a comida por todo o lado, especialmente a sopa.

O que disse o médico? indagou Cynthia, antes de saírem.

Que irás desenvencilhar-te bem sussurrou Bill. Cynthia ficou de imediato de lágrimas nos olhos. Estava a brincar. Disse que podia recuperar alguma sensibilidade nas pernas, com muito trabalho. É um desafio interessante. Quem sabe. Talvez consigam o milagre de me porem a andar. Continuava a acreditar nessa hipótese, embora, segundo o médico, fosse muito pouco provável. Inicio a fisioterapia dentro de três semanas. Só querem começar quando as fracturas estiverem melhor cicatrizadas.

Podes fazer a fisioterapia em casa sugeriu Cynthia. Continuava destroçada com a decisão do marido, mas ainda acreditava que, com o tempo, ele voltasse atrás.

Talvez. Veremos retorquiu Bill, evasivo. Não queria dizer muita coisa diante das filhas. E tu? Quando é que vais para casa? Já pensaste nisso? indagou, algo desanimado. Fora uma tarde difícil.

As miúdas querem cá ficar o resto da semana. Pensei em levá-las a passar uns dias a Paris, se estiveres bem; depois posso voltar. Continuava com a esperança de que Bill mudasse de idéias, mas a voz deste foi firme. Não havia qualquer arrependimento da sua parte. Sabia que estava a fazer aquilo que a sua consciência mandava.

Não é preciso. Estou bem. Devias voltar com as miúdas. Sei que tencionas ir ver os teus pais ao Maine. Cynthia já resolvera não voltar à Europa. Depois do Maine, iria diretamente para a casa de Hampton. Volto para os Estados Unidos dentro de pouco tempo. Havia muita coisa que Bill tinha de fazer. Se voltasse para os Estados Unidos, devia procurar uma clínica de reabilitação onde pudesse ficar durante uns tempos. Depois, precisava de arranjar um apartamento e sair de casa. Mas ainda era muito cedo para pensar nisso. E, primeiro, teriam de contar às filhas o que haviam resolvido. Queria fazê-lo na companhia de Cynthia, de modo a que as filhas percebessem que os pais continuavam a ser amigos. Isso tinha muita importância para si, e para elas também, seguramente.

Cynthia e as filhas voltaram para o hotel, para jantar. Bill ficou toda a noite em silêncio. Tinha uma vontade louca de ir de novo ver Isabelle, mas não queria abusar da sorte e Gordon ainda poderia estar na cidade. De qualquer forma, sentia-se cansado. Fora um dia em cheio. Haviam-lhe dito que, muito provavelmente, nunca mais voltaria a andar, “talvez” conseguisse manter a função sexual, embora não tivessem a certeza, vira Isabelle, tivera um embate com Gordon e dissera a Cynthia que queria o divórcio.

Gordon Forrester partiu para Paris na madrugada de segunda-feira. Telefonou para o hospital antes de partir e informaram-no de que o estado de Isabelle não sofrera qualquer evolução. Levava consigo todos os pertences dela que haviam ficado no quarto do hotel. Não fazia sentido deixar-lhe nada no hospital. No estado em que se encontrava, não precisava de nada. Ao atravessar o canal da Mancha, sentia que sabia tanto como quando chegara. Os médicos ainda não tinham a certeza se ela sobreviveria ou não. Os órgãos internos pareciam estar a recuperar muito lentamente. O coração e os pulmões eram os alvos de maior preocupação. As lesões no fígado levariam muito tempo a sarar E o traumatismo craniano, se bem que menos grave que o resto das lesões, continuava a mantê-la em coma profundo. Mas, se iria acordar, morrer ou continuar eternamente em coma, era uma história ainda por contar Havia muitas questões em aberto O fato de estar viva cinco dias depois do acidente já era um sinal de esperança Mas o seu estado continuava a ser extremamente crítico.

Quando aterrou no Aeroporto Charles de Gaulle, em Roissy, Gordon sabia que não podia continuar a encobrir as coisas dos filhos. Estivera à espera que houvesse sinais de recuperação da parte de Isabelle, mas isso nunca acontecera E achava perigoso continuar nesse impasse. Sophie já tinha idade suficiente para saber a verdade, que estava na iminência de perder a mãe E Teddy, por mais doente que fosse, só tinha de encarar o fato. Estava certo de que Sophie lhe daria algum conforto. Iria esperar que ela regressasse de Portugal para contar a Teddy. Não era o tipo de situação em que se considerassse perito E especialmente naquele caso, em que praticamente não tinha qualquer relação com o filho.

Ao pôr as malas num táxi, em Roíssy, pensou novamente em Bill Robinson e no encontro desagradável que haviam tido. Continuava enfurecido pela audácia e a arrogância da pergunta de Bill relativa ao motivo por que detestava Isabel. Não conseguiu deixar de perguntar-se se essa era a opinião dela. Não detestava a esposa. Perdera-a nos anos caóticos e abismais que se haviam seguido ao nascimento de Teddy. Aos seus olhos, Isabelle já não era sua esposa, era a enfermeira de Teddy, nada mais do que isso.

Não se admiraria se Isabelle justificasse o caso com Bill com o fato de o marido a detestar. Se tinham estado juntos no Annabel’s, como os jornais e a fotografia comprovavam, a ligação não era tão inocente como Bill queria fazer crer. Gordon ainda tinha uma grande quantidade de perguntas sem respostas mas, a não ser que Isabelle recuperasse, sabia que nunca as iria obter. Bill Robinson não iria dizer-lhe rigorosamente nada. Toda essa questão aborrecia-o, mas era um fato indesmentível que há anos não pensava em Isabelle do ponto de vista romântico ou sexual.

Deixara instruções expressas no hospital para que Bill não voltasse a ser autorizado a voltar ao quarto de Isabelle. A enfermeira tomara nota do pedido, mas ele ficara com a estranha sensação de que iriam fazer letra morta deste. Mostravam uma simpatia descomunal por Bill e nenhuma por ele. Já para não falar no enorme respeito e admiração por quem ele era. Bill Robinson era um homem muito importante.

Quando deixou o aeroporto, foi direto ao escritório, donde fez uma série de telefonemas. Explicou a situação à secretária e esta não lhe referiu que vira a fotografia de Isabelle e Bill no International Herald Tribune. Nessa tarde, a pedido de Gordon, deu-lhe o número de Sophie em Portugal. Isabelle deixara-o com a secretária quando partira para Londres.

Sophie estava alojada numa casa alugada em Sintra. Não se encontrava em casa, de modo que Gordon não teve outro remédio senão deixar-lhe recado para telefonar, o que aconteceu às seis horas, quando se preparava para abandonar o escritório. Pegou no auscultador e soltou um suspiro, tentando ganhar coragem para aquilo que tinha a dizer.

Que tal estava Londres. Tu e a mamã divertiram-se.

Como é que sabes que fui a Londres? Não dissera rigorosamente a ninguém, à exceção de Teddy e da enfermeira.

Telefonei para casa no fim-de-semana e falei com o Teddy. Ele não lhe disse.

Ainda não o vi. Fui direto do aeroporto para o escritório disse Gordon, num tom frio. Tentava escolher as palavras certas.

Então, telefono para casa. Tenho de perguntar uma coisa à mamã.

Ela não pode falar contigo declarou Gordon, num tom enigmático. Vivia um pesadelo do qual não conseguia acordar. E para agravar ainda mais a situação, tinha de puxar os filhos para dentro desse mesmo pesadelo.

Porquê. Saiu?

Não, a tua mãe está em Londres.

Engraçado. Ela ficou lá? Não era costume a mãe deixar Teddy sozinho durante seis dias. Sophie sabia que a mãe partira para Londres na terça-feira. Quando é que volta? Mostrava-se confusa.

Ainda não sabemos. Soltou um último suspiro e foi direto à questão. A tua mãe teve um acidente. Instalou-se então um silêncio sinistro do outro lado da linha. O coração de Sophie batia mais do que nunca. Havia algo aterrador no tom de voz de Gordon. Um acidente muito grave. Acho que devias voltar para casa.

O que aconteceu? Ela está bem? Mal conseguia articular as palavras.

Encontrava-se num carro que foi abalroado por um autocarro. Está em coma. Não sabem o que vai acontecer. Tem lesões internas muito graves. Pode não sobreviver. Desculpa estar a dizer-te isto pelo telefone. Mas quero que regresses a Paris o mais depressa possível. Apesar dos sentimentos pela filha e alegadamente por Isabelle, Gordon dava a impressão de estar a marcar uma reunião de negócios. Fazia os possíveis para não sentir a dor da filha. Era uma fraqueza que não podia permitir-se

Oh, meu Deus. oh, meu Deus... Sophie encontrava-se no limiar do histerismo, que não era costume nela. Normalmente, era uma pessoa fria e calma, muito ao jeito do pai. Mas aquilo que este lhe dissera suplantava os seus piores pesadelos. Mentalizara-se, toda a vida, para perder o irmão, mas nunca a mãe, por quem tinha um amor incomensurável Oh, meu Deus, papá, acha que ela vai morrer.

Gordon ouvia Sophie a chorar e, por instantes, ficou sem saber o que dizer.

É possível respondeu, com algum desconforto, de olhar perdido no espaço. E veio-lhe à memória o dia em que a mãe morrera. Tentou então ver-se livre dessas recordações. O fato de ainda estar viva já é um sinal animador, mas o seu estado é extremamente crítico e não tem havido melhoras.

Sophie desatou a chorar convulsivamente. Gordon ficou sem saber o que dizer. Não queria mentir-lhe, nem dar-lhe falsas esperanças. A verdade era que Isabelle podia morrer a qualquer momento. Sophie tinha de encarar essa realidade, tal como Teddy.

Sophie lembrou-se então de algo que lhe provocou um calafrio na espinha.

O Teddy já sabe? Ele nunca lhe mentira. Sophie não conseguia imaginar o irmão a esconder aquele tipo de segredo dela.

Não, não sabe. Espero que lhe digas quando voltares. Acho que devias já começar a tratar da viagem de regresso. Tens aí alguém que possa ajudar-te?

Não sei respondeu, algo desorientada. Quero ir a Londres ver a mamã. Parecia uma criança de cinco anos. De repente, sentia-se uma órfã.

Quero que venhas primeiro para casa ordenou o pai, num tom firme. Queria-a consigo quando desse a notícia a Teddy. Não queria carregar esse fardo sozinho.

Está bem retorquiu Sophie, ainda a chorar convulsivamente.

Telefona-me quando souberes a hora de chegada. Mando alguém buscar-te. Nem mesmo naquelas circunstâncias pôs a hipótese de ser ele próprio a ir buscá-la. O carácter reservado era tão natural nele que nem mesmo pela filha quebrava essas barreiras. Mas Sophie já estava habituada a esse comportamento da parte do pai. Aliás, todos estavam, embora ela fosse a mais chegada a ele.

Vou tentar chegar aí esta noite. Estava a duas horas de viagem. Ainda poderia apanhar um avião ao fim do dia, se se Despachasse. Caso contrário, teria de esperar até à manhã seguinte.

Depois de desligar, Gordon pediu ao motorista que o conduzisse a casa. Era a primeira vez que via Teddy em quatro dias. Este parecia bem-disposto e perguntou pela mãe logo que viu o pai à porta do quarto

Onde está a mamã. Lá em baixo. Os olhos até brilharam quando pronunciou a palavra “mamã”.

Não, não está respondeu Gordon, evitando dar mais pormenores. A Sophie deve chegar logo à noite.

A sério. Teddy pareceu surpreendido, mas a manobra de diversão não surtira efeito. A mamã disse que a Sophie estaria duas semanas em Portugal. Por que volta tão cedo. Esta não lhe referira esse fato quando lhe telefonara no sábado e, instintivamente, teve um pressentimento. Então, como um cão que volta para o seu osso, fez a mesma pergunta. Onde está a mamã.

Gordon nem sequer se deu ao trabalho de lhe responder que ainda se encontrava em Londres. Teddy pressentia que havia algo que não estava bem. Era uma criança inteligente e sensível, que não se deixava enganar facilmente. A Gordon só lhe restava esperar que Sophie chegasse a casa o mais depressa possível para o ajudar a dar-lhe a notícia. Decidiu resolver o problema metendo-se na biblioteca E ficou espantado quando, uma hora depois, levantou os olhos e viu Teddy entrar devagarinho na sala. Insistira em descer as escadas sozinho. A enfermeira não conseguira detê-lo. Estava com um ar agitado e muito pálido.

Passa-se qualquer coisa disse Teddy, sem fôlego, encostando-se a uma cadeira, ao mesmo tempo que fixava o pai nos olhos. Gordon sempre o tratara com desdém durante toda a vida, mas desta vez não ia ficar calado. Exibia o mesmo ar determinado da mãe. O pai nunca o vira assim E, pela primeira vez, reparou que Teddy já não parecia um miúdo pequeno. Quero saber onde está a minha mãe. E sentou-se. Estava disposto a esperar toda a noite por uma resposta. Só de rastos o levariam dali. Gordon tentou mostrar um ar irritado para dissimular o pavor que sentia dentro de si. A debilidade do filho sempre lhe causara algum desconforto, mas Teddy estava muito melhor. Seis meses antes não teria conseguido descer as escadas. Gordon soltou um suspiro, não vendo forma de evitar a resposta.

A tua mãe está em Londres respondeu, com a esperança de que não houvesse perguntas subsequentes. Mas o olhar do filho indiciava que a resposta não o satisfizera.

Porquê?

Foi a uma exposição de arte retorquiu Gordon, desviando o olhar, e tentando que o filho desistisse de fazer perguntas.

Eu sei. Foi há seis dias. Porque não voltou consigo? Gordon levantou os olhos e teve a sensação de estar a ver o filho pela primeira vez. Passara a vida inteira sem lhe ligar nenhuma importância. E agora não conseguia evitar o seu olhar fixo.

Era um rapaz bonito, mas tudo lhe correra mal na vida. As enfermidades de que padecia sempre tinham aterrorizado Gordon, que, agora, ao ver a angústia estampada no olhar do filho, não conseguia disfarçar uma certa perturbação. Não podia adiar por mais tempo o momento de lhe contar a verdade, mas não queria com isso ser responsável por um retrocesso no seu estado de saúde. A vida de Teddy sempre se mantivera presa por um fio e não queria ser ele a cortar esse fio vital com a notícia do desastre que atirara a mãe para a cama de um hospital.

Teve um acidente informou Gordon, em voz baixa, sem olhar para o filho. Não conseguiria suportar aquilo que sabia que veria nos olhos do rapaz. Teddy conteve a respiração.

Está bem. A voz saiu-lhe num sussurro. Já pressentia que algo se passava, mas estava aterrorizado com aquilo que o pai iria dizer-lhe.

Vai ficar boa, espero. Não sabemos ainda. Está muito mal. Sinto muito disse, algo constrangido. Mas Teddy não chorou. Manteve-se sentado, a respirar cuidadosamente, de olhos postos no pai, à espera que este desse mais pormenores.

Não a pode deixar morrer murmurou Teddy, como se Gordon tivesse algum poder para alterar o rumo das coisas.

Não depende de mim. Sabes bem que não quero que lhe aconteça nada. Mas o olhar de Teddy falava por si. Sabia muito bem como a mãe era infeliz, embora ela nunca tivesse feito qualquer comentário a esse respeito. Era a segunda vez em dois dias que alguém acusava Gordon de não gostar de Isabelle e isso irritava-o.

É por isso que a Sophie vai voltar para casa? Gordon fez um gesto afirmativo com a cabeça. Estava sentado em frente ao filho, do outro lado da sala. Nunca lhe passou pela cabeça levantar-se e ir abraçá-lo. Teria sido algo que não era natural nele. Ao contrário de Isabelle, que estaria abraçada a Teddy, caso tivesse sido Gordon a ter o acidente. Até ele sabia isso.

Quero ir a Londres com a Sophie ou consigo disse Teddy, com ar determinado. Quando é que lá volta? Tinha a certeza de que iria. Não conseguia suportar a idéia de a mãe lá estar sozinha.

Não sei. Achei melhor vir para junto de ti. Teddy tentava perceber o que o pai acabara de dizer.

Gordon estava espantado com o fato de o filho não estar a chorar. Teddy era mais corajoso do que julgava.

Quero falar com ela. Pode telefonar-lhe agora? Gordon fez um gesto negativo com a cabeça.

Não, não podemos. Está inconsciente desde o acidente. Encontra-se em coma, por causa de uma pancada na cabeça.

Oh, não! exclamou Teddy, imaginando a mãe gravemente ferida. Desatou, finalmente, a chorar. Quero ir já vê-la. Mostrava-se extremamente agitado.

Ela não dará pela tua presença. E não te faria bem nenhum. Além disso, não estás em condições de fazer a viagem.

Era uma realidade com que tinha de viver, por pior que fosse o estado de saúde da mãe. Uma viagem até Londres encontrava-se fora de questão.

Eu tenho forças suficientes para aguentar a viagem ripostou Teddy, em tom intempestivo, limpando as lágrimas.

A mamã precisa de nós no hospital. Ela está sempre ao pé de mim. Não podemos deixá-la sozinha, papá. Não devemos fazer isso. De repente, parecia de novo uma criança, a chorar, sem saber o que fazer.

Esperemos até a Sophie chegar. Gordon exibia um ar cansado. Porque não vais descansar para o teu quarto.

Isto não te faz nada bem disse-lhe, como se Teddy fosse uma pessoa adulta, mas este não se importou. A única coisa que queria era ir para junto da mãe. Nada o iria deter. Ainda falava no assunto quando entrou no pequeno elevador que havia sido montado propositadamente para ele, ao lado das escadas, há vários anos. Chegou ao quarto e deitou-se. O olhar chispava de raiva. Falava sem parar. Depois de jantar, a enfermeira tirou-lhe a temperatura. Estava com febre. Ficara demasiado agitado, o que era perigoso. Precisamente o tipo de reação que Gordon esperava que Teddy tivesse quando ouvisse a notícia.

Este ainda se encontrava acordado quando Sophie chegou, ao fim da noite. Conseguira apanhar um voo das oito, e à meia-noite já se encontrava em Paris.

Quando ouviu o carro, Gordon levantou-se e foi esperá-la à porta de casa. Sophie lançou-se nos braços do pai mal o viu e desatou a chorar.

Oh, papá... por favor, não a deixe morrer... Gordon nunca vira a filha tão transtornada. Logo que ficou mais calma, foi ver o irmão. Teddy aguardava-a na cama. E abraçaram-se como se não se vissem há vários anos. A coisa mais terrível e impensável acontecera-lhes. Nem queriam acreditar. Era algo que estava para além do tolerável, do racional. Choraram durante muito tempo nos braços um do outro. Finalmente, o pai entrou no quarto, o rosto marcado pelo cansaço. As emoções do dia haviam sido demasiado fortes para todos.

Vou contigo a Londres ver a mamã afirmou Teddy para Sophie, enquanto o pai os observava, de semblante carregado. A reação dos filhos fora ainda pior do que aquilo que receava.

Acho que ele não devia ir. Ficará pior do que está. Gordon falava de Teddy como se este não o ouvisse.

A mamã não aprovaria acrescentou Sophie, afagando os cabelos do irmão, que estava a arder em febre. Ficaria aborrecida se piorasses, e não será bom para ela quando acordar. Sophie sublinhou a palavra “quando”, não pondo Sequer a hipótese de haver um “se”. Teddy ouvia-a, de olhos esbugalhados.

Quero vê-la de qualquer maneira, mesmo que esteja em coma Saberá que estou ao pé dela. Era a mesma teoria de Bill, mas Gordon não concordava. Achava que a visita de Teddy não fazia qualquer sentido.

Ela não tem consciência de quem está junto de si. Gordon estava seguro disso, não acreditava que as pessoas em coma ouvissem o que quer que fosse, ou sentissem o que se passava à sua volta. Especialmente depois de a ver, estava convencido de que era um disparate e não iria permitir que o filho fosse vê-la. Seria uma loucura e um enorme risco para quem o lá levasse. Teddy encontrava-se demasiado debilitado para sair de casa, quanto mais para fazer uma viagem daquela envergadura.

Então, Sophie, para que é que lá vais, já que a mamã não tem consciência de que lá estás, indagou Teddy, num tom algo mordaz.

A Sophie não está doente ripostou Gordon. E acho que deve ir. Eu fico cá contigo.

Não vai, papá? Sophie pareceu algo chocada, mas não fez qualquer comentário quando o pai abanou a cabeça.

Vou quando regressares. Podes ir amanhã e passas lá o dia, ou a noite, como preferires.

Pensei lá ficar mais algum tempo, talvez uns dias.

Veremos como ela está, mas não fiques lá muito tempo disse Gordon, e saiu do quarto. Não fazia tenções de permanecer sozinho com o filho durante um longo período de tempo. Queria que fosse Sophie a cuidar dele, o que não poderia acontecer se ela ficasse em Londres com a mãe.

Nessa noite, Sophie dormiu na cama de Teddy, abraçada a ele. No dia seguinte, levantou-se cedo, ainda ele dormia. Tomou um duche e vestiu-se. Estava pronta para partir para o aeroporto quando Teddy acordou.

Já vais, perguntou Teddy, ensonado. Também quero ir. Mas estava tão exausto e tão fraco que mal conseguia mexer-se. A noite anterior fora demasiado cansativa para ele.

Volto o mais depressa que puder sussurrou Sophie, e saiu. Ia despedir-se do pai, mas este já partira para o banco. Conseguira o bilhete na noite anterior e tinha reserva no Claridge’s. Sabia o nome do hospital onde a mãe se encontrava internada: Hospital St. Thomas. E ainda tinha dinheiro que lhe havia sobrado da viagem a Portugal. O motorista do pai aguardava-a à porta. Meia hora depois, encontrava-se em Roissy. Não havia trânsito nas ruas, e aparentava um ar muito mais calmo do que na véspera.

O voo aterrou ao meio-dia, hora local, e um carro do Claridge’s conduziu-a de imediato ao hospital. Sophie sentia-se uma pessoa adulta no seu vestido azul-marinho e com o par de sapatos que a mãe lhe comprara. Os cabelos estavam puxados para trás. Porém, para quem a visse, mesmo com os seus dezoito anos, parecia uma criança, os seus enormes olhos assustados e carregados de angústia.

As enfermeiras sorriram quando Sophie se dirigiu à recepção. Depois de se identificar, uma das enfermeiras conduziu-a, de imediato, ao quarto da mãe. A porta em frente deste encontrava-se aberta e viu um homem a olhar para ela. Estava deitado de lado, de olhos postos na porta, incapaz de se mexer.

Pé ante pé, Sophie entrou no quarto e ficou de imediato chocada com o que viu. A mãe tinha um ar cadavérico e a cabeça envolta em ligaduras. Um ventilador ajudava-a a respirar e havia monitores e tubos ligados a todas as partes do corpo. Ao aproximar-se da cama, os olhos inundaram-se de lágrimas. E ficou como que petrificada, de olhos pregados na mãe, a acariciar-lhe a mão. A enfermeira puxou então uma cadeira para junto da cama e Sophie sentou-se. Instintivamente, começou a falar com a mãe, com a esperança de que esta ouvisse. Disse-lhe quanto a amava e rogou-lhe para que vivesse. Isabelle não exibia qualquer sinal de vida. As únicas coisas que mexiam eram o ventilador e as pequenas linhas dos monitores. Não havia qualquer outro som ou movimento no quarto. A mãe estava com um aspecto ainda mais aterrador do que aquilo que esperara. Só a muito custo conseguiria sobreviver.

Sophie manteve-se sentada ao lado da mãe até por volta das quatro horas, altura em que saiu do quarto. O mesmo homem que a vira entrar olhava de novo para ela. As enfermeiras haviam-no informado de que se tratava da filha de Isabelle, mas ele, mal a vira, percebera logo de quem se tratava. Parecia Isabelle em mais jovem.

Sophie? chamou Bill.

Sophie ficou espantada por ele saber o seu nome. Aproximou-se então da ombreira da porta.

Sim respondeu, com alguma hesitação. Ainda estava abalada por aquilo que acabara de ver. Bill teve vontade de a abraçar. Seria o mínimo que poderia fazer por Isabelle.

Chamo-me Bill Robinson. A sua mãe e eu somos amigos. Eu estava no carro com ela disse, como que pedindo desculpa por ela se encontrar ali. Lamento o que aconteceu.

Sophie assentiu com a cabeça, sem tirar os olhos dele. Não se lembrava de a mãe alguma vez ter referido o seu nome, mas parecia um homem simpático e também ficara muito maltratado, mas, ao contrário da mãe, estava acordado e vivo.

O que lhe aconteceu no acidente? indagou Sophie, cautelosa, receosa de entrar no quarto. Ainda não percebera quem ele era ou por que razão estava com a mãe.

Fracturei o pescoço e tive traumatismo craniano. Mas a sua mãe está pior do que eu proferiu Bill, com ar triste. Daria o que fosse preciso para trocar com a sua mãe. daria até a vida, se pudesse.

Sophie ficou impressionada por aquilo que ele dissera E estava curiosa por saber como é que ele e a mãe se haviam tornado amigos. Por causa de Teddy, a mãe nunca ia a lado nenhum.

Como é que o Teddy está a encarar a situação? Já sabe?

O meu pai contou-lhe ontem à noite respondeu Sophie. Era estranho ele conhecer toda a sua família e esta não o conhecer. Ficou um bocado abalado Ontem à noite, tinha febre, mas queria vir na mesma. Amanhã, tenho de voltar para tratar dele. Preferia ficar, mas ele precisa de mim.

Bill tinha vontade de estender o braço e tocar-lhe. Era tão parecida com a mãe.

Há alguma coisa que possa fazer por si? perguntou Bill, sentindo-se tão desamparado como ela. Ninguém podia fazer o que quer que fosse. Ninguém podia alterar o rumo das coisas. E se Isabelle saía ou não de coma, só Deus sabia.

Não, estou bem. Mas o semblante era triste.

Onde está alojada?

No Claridge’s.

A minha mulher e as minhas filhas também lá estão. Se tiver algum problema, telefone-lhes. Mal acabou de dizer isto, Cynthia e as filhas apareceram à porta do quarto e viram Sophie a falar com Bill. Este fez então as apresentações. Sophie fez menção de sair. Não queria fazer o papel de intrusa. Ficou com a impressão de que Jane teria a mesma idade que ela, e não se enganava. Despediu-se delicadamente de todos e saiu. Voltaria ao fim da noite.

É a filha dela? indagou Cynthia.

É. Também tem um filho, mas está muito doente. Cynthia não fez qualquer comentário e começou a deambular pelo quarto, sem saber bem o que fazer. As filhas falavam com o pai.

Haviam resolvido partir no dia seguinte. Iam permanecer uma semana em Paris. Na viagem de regresso aos Estados Unidos passariam por Londres. Bill achou boa idéia e pediu-lhes que se divertissem. Concordara com Cynthia em falar-lhes do divórcio nessa altura. Quando chegassem a casa, teriam tempo de se habituar à idéia. Bill não queria estragar-lhes a viagem a Paris. Nessa noite, Cynthia ia levar as filhas a jantar fora. Iam aproveitar-se do fato de Bill ser cliente habitual do Bar Harry’s. Ao ouvir isto, Bill pensou de imediato em Isabelle e lembrou-se dos momentos inesquecíveis passados na sua companhia.

À noite, quando Sophie voltou para ver a mãe, Bill estava deitado de costas, a pensar em Isabelle. Desta vez, entrou no quarto para se informar do seu estado de saúde.

Como é que se sente, Mister Robinson?

Praticamente na mesma. E a Sophie? Como está?

Ela encolheu os ombros e os olhos inundaram-se de lágrimas. Cortava-lhe o coração ver a mãe naquele estado, e não havia qualquer sinal de ela estar em vias de recuperar a consciência. Isabelle encontrava-se suspensa num lugar remoto de onde ninguém sabia se regressaria algum dia. As enfermeiras haviam-lhe dito que ela podia viver assim durante anos, sem sair do estado de coma, até morrer. Além de ser uma perspectiva hedionda e representar a perda de uma mulher extraordinária, era uma injustiça desesperante. Desde o acidente que Bill desejava morrer e que Isabelle fosse poupada.

Como é que conheceu a minha mãe? indagou Sophie, colocando-se ao lado da cama. Desde essa tarde que a questão não lhe saía da cabeça. O pai não lhe dissera que a mãe se encontrava no carro com outra pessoa. Ficara espantada quando Bill lhe referira esse fato.

Conhecemo-nos há muito tempo, na Embaixada dos Estados Unidos, em Paris. Bill sentiu, de repente, necessidade de falar de Isabelle, e ficou grato a Sophie por puxar o assunto. Almoçamos umas duas vezes por ano e conversamos, às vezes, ao telefone. E ela conta-me tudo acerca do Teddy e de si.

Sophie teve vontade de lhe perguntar se estava apaixonado pela mãe, ou esta por ele, mas, como eram ambos casados, achou que seria um pouco grosseiro da sua parte. Mas achava estranho a mãe nunca lhe ter falado nele.

Também conhece o meu pai? Bill sorriu e convidou-a a sentar-se.

Sim, também o conheço. Julgo que está furioso comigo desde o acidente. Crê que isto nunca teria acontecido se não tivéssemos ido jantar fora. No lugar dele também pensaria assim.

A culpa não é sua. A enfermeira disse que o motorista morreu. É tudo tão terrível. Não compreendo como uma coisa assim pode acontecer E os olhos ficaram novamente marejados de lágrimas. A minha mãe é uma pessoa tão boa que não merecia uma coisa assim.

Sim, é uma pessoa muito boa. Também havia lágrimas nos olhos de Bill. Estendeu a mão e apertou a de Sophie. De certa forma, era como tocar em Isabelle; em contrapartida, para Sophie, aquele homem, amigo da mãe, era como que um meio para chegar até ela. Havia um estranho elo que os unia a Isabelle.

Nem sempre fui boa para ela confessou Sophie.

Zangava-me muitas vezes. Passava demasiado tempo com o Teddy, quando eu era mais nova. Achava que ela não tinha tempo para mim. Tratava-se de uma forma de confessar as suas angústias e as coisas de que agora se arrependia. Bill ouvia-a com ar compreensivo.

Ela adora-a, Sophie. Não disse outra coisa de si a não ser que é uma rapariga extraordinária.

Mostrava-se feliz nessa noite? A voz era triste. Estava a divertir-se?

Era uma pergunta estranha e a única coisa em que Bill conseguia pensar era no primeiro e último beijo que haviam trocado.

Sim, estava. Visitámos uma magnífica exposição nessa tarde e ela ficou maravilhada com o que viu. Depois, fomos jantar. Vim a Londres para me avistar com o embaixador americano. Encontrámo-nos, por acaso, no Claridge’s, e combinámos jantar juntos. Não via motivo para lhe dizer que se haviam encontrado em Londres propositadamente e que estava apaixonado por Isabelle. Esta não quereria que a filha soubesse, nem ele próprio queria. Há muito tempo que não nos víamos.

A minha mãe nunca se diverte. Está sempre em casa, a tratar do Teddy.

Eu sei. A vontade dela é essa. Adora-vos.

Sophie ficou uns instantes em silêncio. Por fim, levantou-se. Ainda não sabia muito bem quem Bill era, mas sentia que encontrara um novo amigo. Antes de sair, esboçou um sorriso. Ao olhar para ela, Bill só via Isabelle e a mulher que Sophie seria um dia.

Venho vê-lo amanhã. Estarei cá de manhã antes de partir.

Teria imenso gosto. Obrigado por falar comigo, Sophie. Fora um momento de conforto no meio da terrível solidão em que se encontrava mergulhado. A vida, tal como a conhecera, estava prestes a tomar um rumo totalmente diferente. Nunca mais voltaria a andar, a saltar, a dançar ou a Passear pela rua. A sua movimentação, tal como a sua vida, seria complicada daí para a frente. Acabara com o casamento e perdera a mulher que amava. De momento, não tinha nada a que se apegar, andava à deriva no meio do oceano, sem qualquer sinal de terra à vista. Os poucos minutos que passara com a filha de Isabelle proporcionaram-lhe um imenso conforto. Mesmo que nunca mais voltasse a vê-la, o que era uma forte possibilidade, estava satisfeito por a ter conhecido.

Na manhã seguinte, a caminho do aeroporto, Cynthia e as filhas vieram despedir-se de Bill. Sophie chegou pouco depois de elas terem saído. Sentou-se ao lado da mãe durante mais de uma hora e depois foi despedir-se de Bill. Encontrou-o deprimido, presumindo que pelo fato de a família ter ido embora e o ter deixado sozinho. Não fazia idéia de que era por causa de sua mãe. Ainda não tinha a certeza de que Bill estava apaixonado por ela, embora suspeitasse.

Adeus, Mister Robinson disse Sophie, delicadamente, preparando-se para sair. Faço votos para que melhore o mais depressa possível.

Bill não lhe perguntou se voltaria, pois não se sabia ainda se Isabelle conseguiria sobreviver.

Tome bem conta de si... pela sua mãe, Sophie. Sei que ela ficaria preocupadíssima. E cuide do Teddy proferiu, com lágrimas nos olhos. Ficarei a pensar em si.

Rezarei uma oração pelo senhor quando for à igreja. Sophie sentia-se triste por o deixar. Era como se deixasse um pouco da mãe.

Também rezo uma pela Sophie. Bill estendeu o braço, pegou-lhe na mão e beijou-a. Então, com um tímido sorriso, Sophie saiu. E Bill ali ficou, de olhos fechados, a pensar em Isabelle.

Pouco depois, conduziram-no até ao quarto da sua amada, cujo estado não sofrera qualquer alteração. Bill falou-lhe então da visita que Sophie lhe fizera.

É uma rapariga maravilhosa. Já sei porque tens tanto orgulho nela disse, como se Isabelle conseguisse ouvi-lo. E ali ficou, ansiando por que ela lhe estendesse a mão e acordasse finalmente daquele sono de morte. Sentia-se cansado quando o levaram para o seu quarto. As frequentes visitas a Isabelle acabaram por provocar comentários entre a equipe de enfermagem. Encaravam-nas como um gesto nobre da parte de Bill. Ninguém perguntava por que motivo é que ele as fazia ou o que acontecera entre eles. Além disso, havia uma série de enfermeiras que acreditava que só Bill conseguiria trazê-la de volta à vida.

Sophie pensou bastante em Bill na viagem de regresso a Paris e percebia por que razão a mãe gostava daquele homem. Parecera-lhe uma pessoa íntegra. Tinha imensa pena dele. Uma das enfermeiras dissera-lhe que ele nunca mais voltaria a andar. Bill parecia encarar esse fato de forma filosófica. Estava destroçado por Isabelle ter sofrido o acidente ao sair com ele.

Quando o avião aterrou, os pensamentos de Sophie centraram-se de novo na mãe e no irmão. Sentia-se dividida relativamente ao lugar onde achava que devia estar. Resolvera passar uns dias em casa e depois queria voltar a Londres.

Apanhou um táxi no aeroporto. Quando chegou a casa, esta estava mergulhada num estranho silêncio. Não se ouvia o mínimo ruído. Quando subiu, reparou que os aposentos do pai se encontravam às escuras. Ao entrar no quarto de Teddy, ficou chocada com o estado de saúde do irmão. Ardia em febre. O médico acabara de sair, como explicou a enfermeira, e dissera que, se a febre não baixasse nessa noite, teria de ser internado.

O que aconteceu? Sophie sentou-se numa cadeira, com ar esgotado. Tinha a sensação de ter envelhecido de um dia para o outro. Teddy nem sequer sabia que ela se encontrava ali. Estava sob o efeito de sedativos, num sono profundo.

Julgo que está preocupado com a sua mãe sussurrou a enfermeira. Há dias que não dorme como deve ser. E praticamente não come nem bebe. O médico ainda adiantara a hipótese de o pôr a soro, mas Teddy fez tal gritaria que o médico achara por bem deixar isso para outra altura, se ele prometesse comer e beber. Sophie achava-o mais magro.

Onde está o meu pai, perguntou Sophie, passando as mãos pelos cabelos, cada vez mais parecida com Isabelle.

Saiu respondeu a enfermeira, sem mais qualquer outro comentário. Não o via desde o dia anterior, mas não disse nada a Sophie. Como estava a sua mãe?

Na mesma. Ninguém sabe o que acontecerá. Disseram que ela podia estar em coma durante muito tempo até conseguir recuperar. Mantinha a esperança, mas também lhe haviam dito que a mãe podia morrer a qualquer momento. Só lhes restava rezar e esperar. Volto lá dentro de dias.

A enfermeira mediu novamente a pulsação a Teddy. Estava elevada. Franziu o sobrolho e registrou o valor. Parecia não haver dúvidas de que iriam ser obrigados a hospitalizá-lo. Sophie concordou. Era o mais seguro.

Nessa noite, esperou pelo pai, para discutirem o estado de saúde de Teddy. Ficou espantada por à meia-noite ele ainda não ter chegado. Perguntou então à enfermeira se o pai sabia que Teddy se encontrava naquele estado.

Falei com ele esta manhã no escritório. Não deve tardar.

Porém, às três da manhã, Sophie ainda estava acordada e ele ainda não chegara. Horas antes, já telefonara para o hospital, mas ainda não havia qualquer evolução no estado da mãe. Por instantes, esteve quase a pedir para falar com Bill, apenas para o cumprimentar, mas acabou por não o fazer, por constrangimento.

Na manhã seguinte, acordou ainda vestida e sentada numa cadeira do quarto de Teddy, como vira tantas vezes a mãe fazer. Não era sua intenção dormir ali. Estivera à espera do pai e acabara por adormecer. Pensou então que, provavelmente, o pai tivera o cuidado de não a acordar, ou não sabia que estava à sua espera.

Quando saiu do quarto para ir à procura do pai, Teddy já se encontrava acordado e com melhor aspecto. A febre baixara, mas ainda não estava totalmente bem. Foi, então, pelo corredor fora, para falar com o pai, e ficou espantada ao ver as Portas do quarto abertas e ninguém lá dentro.

Foi ter com a criada, com um ar de espanto estampado no rosto.

O meu pai dormiu em casa, Josephine.

A mulher fez um gesto negativo com a cabeça e desapareceu pelas escadas abaixo. Não era uma resposta adequada para dar a uma rapariga daquela idade. Mas Sophie conseguiu saber que o pai não passara a noite em casa. As persianas e os cortinados estavam corridos, as luzes apagadas e o quarto com aspecto de não ter tido a presença de ninguém durante a noite. A cama estava feita e tudo no seu lugar. Por instantes, ficou em pânico. E se alguma coisa tivesse acontecido ao pai? Ficariam órfãos. Não conseguia imaginar onde é que ele poderia ter estado. Uma hora mais tarde, telefonou para o escritório e a voz do pai mostrava-se perfeitamente calma quando atendeu. Nem queria acreditar que o pai não passara a noite em casa com Teddy naquele estado. Achava uma irresponsabilidade da parte dele.

O Teddy está doente afirmou Sophie, em tom de acusação, como se a culpa fosse do pai. Gordon não pareceu mostrar grande preocupação com o fato.

Eu sei. Estive em contato com a Marthe ontem à tarde. O médico foi vê-lo e já falei com ele hoje. Não estava para receber lições de moral de uma miúda de dezoito anos.

Não passou a noite em casa! acrescentou Sophie, em tom sombrio. Quase desatou a rir do tom de voz da filha, mas esta não estava a achar graça nenhuma à situação.

Sei disso. Estive em casa de amigos fora da cidade. Como já era tarde, achei mais prudente ficar lá do que vir a conduzir até casa.

Sophie desconfiava que o pai estivera a beber e, dado o que acontecera à mãe, tinha de concordar com o fato de ele não querer conduzir nesse estado.

Acabei de telefonar para Londres e não há qualquer evolução.

Oh! O estado de espírito de Sophie esmoreceu com a notícia. Mas continuava aborrecida com o fato de o pai não ter passado a noite em casa. Se Teddy tivesse piorado ainda mais, a presença dele poderia ter sido necessária. Além disso, ninguém sabia onde se encontrava. Mas não havia o menor sinal de arrependimento da parte dele, e Sophie deu consigo a perguntar se o pai passava a noite fora regularmente. Nunca dera por isso. E não conseguia deixar de pensar se havia coisas relacionadas com os pais que ignorava, especialmente desde que conhecera Bill. Achava estranho nunca ter ouvido falar da amizade da mãe com ele. Além disso, nunca se aventurara a ir aos aposentos do pai à noite ou de manhã, talvez houvesse outras alturas em que também passava as noites fora. Saía frequentemente à noite, e a mãe raramente o acompanhava. Teve, de repente, a sensação de que toda a sua vida estava num autêntico turbilhão, não só por causa do que acontecera à mãe, mas por causa de tudo o que trouxera à tona. Sempre vira o pai como um deus, e agora interrogava-se sobre se o pai não teria segredos. Talvez houvesse mais motivos do que apenas Teddy para a mãe não sair de casa e dormirem em quartos separados.

Está em casa logo à noite? indagou Sophie, nervosa, sentindo-se mais esposa do que filha e bastante insegura. Estavam a passar-se coisas extremamente assustadoras.

Claro. Vou jantar fora. Mas estarei em casa antes de ires para a cama.

Se o Teddy precisar de ir para o hospital, é necessário que o papá esteja em casa.

O médico parece menos preocupado. O Teddy sofreu um choque e agora precisa de tempo para recuperar.

Todos nós precisamos retorquiu Sophie, num tom triste. Quando é que volta a Londres?

Dentro de poucos dias. Não há nada que possamos lá fazer. Telefonam-nos se houver novidades.

Porém, se a mãe morresse, pensou Sophie, ninguém estaria ao pé dela. E se alguma outra coisa acontecesse, ir de Paris a Londres levaria ainda algumas horas. Tinha vontade de lá estar, mas Teddy também precisava da presença dela. E agora que constatara que, de vez em quando, o pai passava a noite fora, sentia que não podia deixá-lo sozinho. Era difícil decidir qual era a melhor coisa a fazer. O pai parecia muito menos preocupado do que ela.

Gordon foi então para uma reunião, e Sophie passou o dia com o irmão a ler e a contar-lhe histórias, e a falar-lhe da mãe. Fazia o melhor que podia, mas não conseguia substituir a mãe. Depois do jantar, quando o pai chegou a casa, Sophie Parecia uma sombra do que era. Ele, porém, estava bem disposto. sentou-se na biblioteca a fumar um charuto. SoPhie ouvira-o entrar e foi ter com ele. Ficou surpreendida com o fato de o pai não ter sequer ido ao piso de cima. Fora sempre tão afável e tão interessado por tudo o que lhe dizia respeito que achava estranho o distanciamento com que a tratava ultimamente, sobretudo com a mãe no estado em que se encontrava. De repente, ao olhar para o pai, perguntou a si própria se o anterior interesse dele por ela não seria só aparente, talvez uma forma de aborrecer a mulher, para a fazer sentir menos importante em relação à filha. Sophie fora sempre tratada como “a sua pequerrucha” Mas mostrara-se constantemente frio e distante com a mãe, tal como fazia agora com ela.

Que tal foi o seu dia, papá. indagou Sophie, cautelosa. O dela fora horrível, dividida entre a preocupação com a mãe e a necessidade de dar carinho a um irmão doente.

Muito longo. Como foi o teu.

Estive todo o dia com o Teddy. Sophie esperava que o pai fizesse mais perguntas sobre o assunto, mas, quando referiu o nome do irmão, ficou instantaneamente aborrecido E encheu um cálice de vinho do Porto.

Que mais fizeste? perguntou Gordon, concentrado no charuto.

Sophie achava estranho estar ali sentada a conversar com o pai como se nada tivesse acontecido. A mãe em coma num hospital de Londres, o irmão com uma recaída desde que recebera a notícia E o pai parecia pouco preocupado com esses fatos. Ao olhar para ele, lembrou-se do ar destroçado de Bill Robinson quando lhe falou da mãe. Não viu nada disso no olhar do pai. Este parecia sempre distante e frio de todas as vezes que se referia à mulher.

Mais nada, papá. Fiquei com o Teddy. Está muito abalado.

Gordon fez um gesto de concordância com a cabeça e não retorquiu. Dava a sensação de praticamente se ter esquecido de quem ela era. Entretanto, o telefone tocou. Gordon atendeu e disse que ligaria em seguida. O coração de Sophie quase parou quando soou a campainha do telefone. Sempre que este tocava, ficava aterrorizada com a hipótese de o telefonema ser de Londres a informar o pior.

Devias ir para a cama disse Gordon, enquanto bebia o porto. Tiveste um longo dia. Era óbvio que não queria falar, e Sophie ficou magoada. Nunca se sentira tão só na vida.

Quando é que volta a Londres?

Quando achar que devo ir ripostou Gordon, franzindo o sobrolho. Sophie estava a irritá-lo. Transformara-se na mãe de um dia para o outro.

Também quero ir retorquiu Sophie, percebendo que o pai não estava contente com ela, mas pouco lhe importando esse fato.

O teu irmão precisa de ti aqui.

Quero ver a mamã outra vez insistiu Sophie, e Gordon começou a ficar irritado com essa obstinação da parte da filha.

Ela nem sequer dará conta de que estás ao pé dela. Preciso de ti aqui. Não posso passar o dia preocupado com esse miúdo e as enfermeiras. Durante todo o dia, telefonam-me para o escritório, e não tenho tempo para isso. Tens de cuidar dele. Não se tratava de um pedido, mas de uma ordem.

“Esse miúdo” é seu filho, papá. Ele não precisa só de mim ou da mamã, precisa também de si. O papá nunca fala com ele. Não conseguia conter-se por mais tempo.

Ele não tem nada para dizer observou Gordon, com aspereza, enchendo novo cálice de vinho do Porto. E não és tu quem me diz o que tenho que fazer.

Era a mesma conversa que Isabelle tivera com ele muitas vezes ao longo dos anos, e das quais desistira há muito tempo. Por razões que só ele conhecia, estava determinado a não ter qualquer relacionamento com o filho. Na sua ingenuidade, Sophie não conseguia alterar essa situação. Se Teddy tivesse nascido saudável e forte, a história teria sido diferente. Mas, tal como era, para Gordon, o rapaz não existia e não tinha qualquer interesse. Irritava-o, embora agora sentisse pena dele- Teddy não passava de um incómodo, de um fardo. Fazia Parte das tarefas de Isabelle, não das dele. E, na ausência desta das de Sophie.

A caminho do quarto, Sophie não conseguia esconder a tristeza que sentia pelo fato de o pai falar do irmão daquela forma. Ela e Teddy já haviam abordado o assunto várias vezes, e o irmão sempre dissera que o pai não morria de amores por ele. Mas agora via que era verdade. Teddy afirmava que ele era mau, egoísta e frio, e que o detestava. E agora constatava que Teddy conhecia uma faceta do pai que ela nunca quisera ver. Ter um filho como Teddy não trazia qualquer proveito a Gordon. Preferia ignorá-lo, esquecê-lo, tal como fizera com a mulher.

Sophie vestiu a camisa de noite e voltou para o quarto de Teddy. A enfermeira informou-a de que ele estava outra vez com febre. Meteu-se então na cama e aninhou-se ao lado do irmão. Tinha a sensação de que eram duas crianças que haviam acabado de perder a mãe. Nunca se sentira tão triste e tão solitária na vida. E a sua única esperança, enquanto as lágrimas caíam na almofada, era que a mãe acordasse do coma o mais depressa possível. Não conseguia imaginar o que seria a sua vida se ela morresse.


 

As coisas no hospital continuavam a avançar. Os fisioterapeutas avaliaram o estado de Bill e estabeleceram um plano de reabilitação. Viravam-no frequentemente na cama para activar a circulação sanguínea e prevenir uma pneumonia, mas, para ele, os dias eram entediantes E, uma ou duas vezes por dia, levavam-no até ao quarto de Isabelle. As enfermeiras não haviam dado a mínima importância às instruções de Gordon e várias delas consideravam que as visitas de Bill faziam bem a Isabelle, além de melhorar sobremaneira o seu próprio estado de espírito. Sentia-se sempre melhor quando a visitava. Tinha umas saudades loucas das conversas fora de horas. Passava imenso tempo a pensar nela, ansioso pelos poucos minutos em que o levavam até junto de Isabelle,

Bill já ia sentindo certas melhoras. O pescoço e a coluna ainda lhe provocavam algumas dores, mas já conseguia mexer-se mais do que antes, e já sentia um formigueiro nas pernas muito ligeiro. Porém, o prognóstico mantinha-se. Tentava manter o moral elevado, pensando naquilo que iria fazer quando chegasse aos Estados Unidos, mas a volta que a sua vida dera não era fácil de digerir,

Bill tornara-se o doente favorito da equipe de enfermeiras. Estas continuavam a tentar adivinhar qual era a relação que existia entre ele e Isabelle, mas a explicação para aquilo que viam não era fácil. Muitas diziam que tinham um caso, uma ouvira-o dizer à mulher que queria o divórcio, mas, fosse qual fosse o tipo de relação entre os dois, sabiam que gostavam dele e achavam-no muito simpatico,

Eu levo-o. afirmou uma das enfermeiras, em conversa com um grupo de colegas no bar. É um homem muito giro. Mas Bill nunca tentara seduzir nenhuma das enfermeiras, nem fora atrevido ou grosseiro com qualquer uma delas. Toda a gente que lidava com ele admirava-o profundamente. Também repararam que o embaixador americano viera visitá-lo várias vezes,

Que faz ele? perguntou outra enfermeira, algo confusa, sem se lembrar do que ouvira, embora soubessem que era um homem importante.

Qualquer coisa a ver com a política informou uma das enfermeiras de Isabelle. Parece louco por ela. É pena.

Nisso estavam todas de acordo.

Gordon e Sophie ainda não haviam voltado a visitar Isabelle, quando Cynthia e as filhas regressaram da viagem a Paris. Estas entraram bem-dispostas e saíram com ar circunspecto, depois de Cynthia e Bill lhes comunicarem que iam divorciar-se.

Porquê? Olivia sentou-se e rebentou num pranto.

Vocês amam-se... não amam? Mamã?... Papá??... Olivia e Jane sempre tinham pensado que os pais se amavam, mas Bill tentou explicar que há vários anos que viviam afastados um do outro e que achava melhor para ambos seguirem caminhos diferentes. Não quis falar-lhes dos casos amorosos da mãe ou da infelicidade em que viviam. Preferia manter esses segredos bem guardados. E tinha de admitir que, de algum modo, as coisas estavam melhores entre eles desde que dissera a Cynthia que estava tudo acabado. Sentia que havia mais sinceridade na relação com ela. Mas esta deixou claro, antes de partir, que, se ele mudasse de idéias, preferia continuar casada. Bill manteve-se inflexível. Já não queria estar casado com ela. Todos os seus sonhos encontravam-se agora centrados em Isabelle.

É melhor assim insistiu, mas Cynthia ficou preocupada com a reação das filhas. Bill não queria explicar que não conseguiria vê-la casada com um inválido. Mas, acima de tudo, já não estava apaixonado por ela. O que sentia por Isabelle revelara-lhe muitas coisas acerca de si próprio e daquilo que não tinha. Não queria continuar a viver uma mentira. Sabia que nunca teria uma vida em comum com ela, independentemente do fato de ela recuperar ou não, mas o amor que sentira e continuava a sentir era suficiente para Saber que estava na hora de acabar com um casamento sem afeto.

Depois de Cynthia e as filhas saírem, ficou em silêncio pensativo. Prometera telefonar às filhas com frequência. A caminho do hotel, estas perguntaram à mãe se achava que o pai ficara um bocado perturbado da cabeça e se ainda havia hipóteses de ele mudar de idéias. Cynthia esboçou um sorriso triste e fez um gesto negativo com a cabeça.

Ele não está perturbado da cabeça. Eu é que andei de cabeça perdida durante muitos anos. Não fui uma boa esposa para ele confessou. Encarei-o sempre como algo adquirido e fiquei ressentida com o seu sucesso e a sua independência, o que foi uma estupidez da minha parte.

Olivia e Jane estavam abaladas com a perspectiva de os pais irem viver em casas separadas.

Como é que o papá vai conseguir cuidar de si sozinho? indagou Jane, preocupada. As lesões eram graves e haviam-lhes dito que existia a possibilidade de ele nunca mais voltar a andar.

Não sei respondeu Cynthia, soltando um suspiro. Ele é muito orgulhoso e tem uma grande força interior. Conseguirá superar todas as adversidades Mas, respondendo à tua pergunta, Jane, não, não acredito que ele mude de idéias. Nunca muda. Se mete uma idéia na cabeça, geralmente leva-a avante, por mais contrariedades que encontre. Nem sequer admitirá o erro, se o cometer. Esse viverá sempre com ele. Mas por mais que deteste o que está a fazer, não acho que esteja a cometer um erro. De certa forma, Bill fizera aquilo que a sua consciência mandava e preservara a amizade, acabando com o casamento, apesar do arrependimento de Cynthia. Esta admirava-o por isso. Só tinha pena das filhas. Era um choque tremendo para estas. Estava assustada consigo própria. Sabia que nunca encontraria outro homem como ele.

Acha que o papá tinha um caso com a Isabelle Forrester perguntou Olivia, sem rodeios; Cynthia ficou pensativa durante alguns instantes. Já ponderara essa hipótese muitas vezes.

Não sei. Ele diz que não, e nunca me mentiu, que eu saiba. Julgo que está apaixonado por ela, mas não acredito que tenham feito algo que não devessem. Ela está casada com Gordon Forrester, e o teu pai acha que nunca o abandonará. Talvez não passe de uma simples paixoneta, ou talvez sejam só simples amigos.

Mas pensa que o papá quererá casar com a Isabelle Forrester, se ela sobreviver? insistiu Jane, preocupada.

Não acho que essa questão se ponha agora respondeu Cynthia. A pobre criatura estava às portas da morte.

Não, não acredito, nem mesmo que ela viva. O teu pai diz que nunca deixará o marido porque toda a sua vida gira em torno de uma criança deficiente.

Que acha que o papá vai fazer agora, depois de chegar a casa... quero dizer, aos Estados Unidos...? perguntou Olivia, com ar triste.

Não sei. Arranjar um apartamento. Voltar ao trabalho. A reabilitação demorará muito tempo. Não creio que ele regresse antes de dois meses. Querem fazer-lhe a fisioterapia aqui.

Olivia e Jane não voltaram a abrir a boca até chegarem ao hotel. Ainda não acreditavam naquilo que haviam acabado de ouvir. Nem Cynthia conseguia imaginar a sua vida após a decisão tomada por Bill.

No entanto, Cynthia saía do casamento com um profundo respeito por Bill e sabia que nunca mais encontraria outro homem como ele. Tinha pena de não ter visto isso há mais tempo. Sabia que a maior fatia de responsabilidade pelo divórcio era dela, independentemente das culpas que Bill assumia para si próprio.

Cynthia e as filhas partiram para os Estados Unidos no dia seguinte, tão cedo que nem sequer tiveram tempo de passar pelo hospital. Telefonaram do aeroporto a despedir-se. Olivia e Jane choravam copiosamente quando desligaram. Não comentou esse fato com ninguém, mas, depois de as filhas desligarem, Bill ficou mergulhado numa profunda tristeza. Sentia-se só. Começava a perceber o longo e difícil caminho que tinha pela frente. Teria de enfrentar pelo menos um ano ou mais de trabalho de reabilitação. Mas não existia alternativa. De quando em quando, fazia telefonemas de negócios e recebia outros de pessoas que haviam tomado conhecimento do acidente. Porém, a maior parte do tempo, tinha a sensação de viver num ninho, rodeado de enfermeiras e médicos. E Isabelle continuava em coma. Não eram tempos fáceis.

Duas semanas depois do acidente, Bill já evidenciava algumas melhoras. Gordon Forrester não voltara a visitar a mulher. Bill já estabelecera a rotina de a ir visitar de manhã e à noite. Ficava ao lado dela e falava-lhe, na esperança de que ela o ouvisse no seu sono profundo, e depois voltava para o quarto.

As enfermeiras haviam-no informado de que Forrester não podia vir porque o filho se encontrava muito doente. Esperava que não fosse nada de grave.

Na terceira semana após o acidente, Bill perdera quase todas as esperanças de que Isabelle saísse do estado de coma e perguntava-se se Gordon iria deixá-la ali, esquecida e desprezada. Não havia qualquer forma de a transferir para Paris, enquanto estivesse ligada ao ventilador. Era muito perigoso. Começava a ficar preocupado com o que lhe aconteceria depois de ele regressar aos Estados Unidos. Os médicos achavam que ele estaria em condições de partir mais ou menos dentro de um mês. Não suportava ter de a deixar, sem ninguém que a visitasse, que falasse com ela, que a confortasse, que se preocupasse com o seu estado. Não conseguia compreender como era capaz de a abandonar naquela altura, mas esta era a triste realidade. Pensava nisso, certa noite, deitado numa cama ao seu lado, ao mesmo tempo que falava com ela e lhe segurava na mão. As enfermeiras já não achavam a situação anormal. Sorriam e conversavam com ele, quando a visitava, como se já esperassem encontrá-lo no quarto dela várias vezes ao dia.

Nessa cálida noite de Julho, Bill dizia a Isabelle que era muito bonita e que tinha imensas saudades de conversar com ela. As janelas estavam abertas e ouvia-se o barulho que vinha da rua. E deu consigo a pensar na noite em que haviam ido ao Harry’s e depois ao Annabel’s. Só tinha vontade de rodar os ponteiros do relógio para trás e reviver essa noite. Lembras-te dos bons momentos que passámos? murmurou, afagando-lhe os dedos e depois beijando-os. adoro dançar contigo, Isabelle. Se acordares, podemos voltar a dançar um dia. Mas isso não passava de uma recordação, de um sonho distante.

De repente, teve a impressão de sentir uma leve pressão na palma da mão. Primeiro, pensou tratar-se de um reflexo e continuou a falar. Então, sentiu de novo a mesma ligeira pressão. Algo aturdido, parou de falar por instantes e olhou para a enfermeira que entrava naquele momento. Não quis dizer-lhe nada, mas a conversa com Isabelle prosseguiu num tom ligeiramente mais determinado. Depois, fez uma pausa e procurou posicionar-se de modo a poder olhar para ela.

Tive a sensação de que me apertaste a mão. Quero que ma apertes outra vez. Aguardou um longo instante, que mais lhe parecia uma eternidade, perante o olhar atento da enfermeira, mas nada aconteceu, e esta desviou o olhar. Repete, Isabelle! Aperta a minha mão, só um bocadinho... Quero que tentes outra vez. Então, como se estivesse a contatar com ele de outro mundo, apertou de novo, quase imperceptivelmente. O rosto de Bill abriu-se num largo sorriso e as lágrimas inundaram-lhe os olhos. Que maravilha! Estava esfuziante de alegria. Agora quero que abras os olhos. Só um pouquinho... Eu estou a olhar para ti, Isabelle. Quero que olhes para mim. Não se vislumbrava qualquer sinal de vida no rosto dela, mas voltou a mexer os dedos. Bill ainda pensou tratar-se de novo de um simples reflexo. Já estava a ficar desanimado, quando Isabelle franziu o nariz, mas os olhos continuavam fechados. O coração de Bill começou a bater aceleradamente. Estava a voltar a si. O que foi isso? Fizeste uma cara engraçada. Que tal um sorrisinho? As lágrimas corriam-lhe pelas faces. Todos os seus esforços, toda a sua força e todo o seu amor estavam concentrados nela. A enfermeira que se encontrava no quarto ficou como que petrificada. Mas vira com clareza a fugaz careta que Isabelle fizera. Não se tratara de nenhum reflexo. Consegues sorrir-me, meu amor? Abre apenas um olho. Tenho sentido tantas saudades tuas... Suplicava-lhe para voltar para junto dele. Apetecia-lhe mergulhar no abismo onde ela se encontrava e tirá-la de lá. Continuou a falar com ela durante mais meia hora, sem qualquer resultado. Estava exausto, mas recusava-se a desistir. Isabelle.. vá lá, faz aquela cara engraçada que fizeste há pouco. Vá lá... Franze o nariz. Desta vez, em vez disso, ergueu a mão vários centímetros acima da cama e depois deixou-a cair, como se o esforço tivesse sido demasiado. Ótimo! Ótimo! Mas sentes-te fatigada... Descansa um pouco, querida. Depois, repetes. Falava sem parar, tentando que ela pestanejasse, mexesse uma parte do rosto, que abrisse os olhos, ou que lhe apertasse novamente a mão. Durante um longo instante, nada se mexeu. Então, vislumbrou uma muito ligeira agitação nos seus olhos.

Oh, meu Deus... sussurrou para a enfermeira, que foi a correr chamar um dos médicos para ver o que estava a acontecer. Depois de três semanas às portas da morte, Isabelle começava a recuperar a consciência. E fora Bill que com todo o carinho e afeto a trouxera de novo à vida.

Isabelle chamou Bill, num tom mais firme. Tens de abrir os olhos, meu amor. Sei que é difícil. Estás a dormir há muito tempo. Mas chegou a hora de acordares. Quero ver-te a olhar para mim. Quero ver-te e sei que também queres ver-me. Abre os olhos. Só um pouco. Mal acabou de dizer isto, Isabelle abriu os olhos. Nem sequer esperava que fosse isso que ela fizesse. Depois de todo aquele tempo, já ficava satisfeito com qualquer sinal que ela fizesse. Mas, dessa vez, os olhos, há muito fechados, abriram-se. Isso isso... podes abri-los mais. mais um pequeno esforço, querida.. Abre esses olhos maravilhosos. O médico já se encontrava no quarto nesse instante, mas manteve-se à distância, sem interferir. Bill estava a alcançar grandes progressos e achava que não conseguiria fazer melhor. Isabelle, estou à espera que olhes para mim. Há muito que anseio por este momento. Ouviu-se então um longo e gracioso suspiro, e Isabelle abriu os olhos, voltando a fechá-los de imediato, como se o esforço tivesse sido excessivo. Vá lá, querida, mantém-nos abertos o tempo suficiente para olhares para mim. Por favor, meu amor... Vê-la recuperar a consciência era como observá-la chegar à Terra vinda de um planeta distante. Então, por fim, Isabelle abriu de novo os olhos, virou a cabeça e fitou-o, ao mesmo tempo que soltava um pequeno gemido. Bill ficou com a impressão de que o movimento que ela realizara com a cabeça lhe causara dor. Isabelle esboçou então um sorriso, com os olhos novamente fechados. Dava a sensação de que queria articular uma palavra.

Durante muito tempo, tentou, sem êxito. Então, reabriu os olhos e disse o nome dele, numa voz que mais parecia um vagido.

Bill.

Este beijou-lhe a mão e teve de conter um soluço para conseguir falar. Queria compensá-la por aquilo que fizera.

Isabelle, amo-te tanto... Foste uma menina linda. Fizeste um esforço tremendo para voltares a ti.

Sim murmurou Isabelle, fechando novamente os olhos para os abrir de imediato. Amo-te... Bill proferiu ela, como que saboreando a palavra.

Julgo que foi aí que ficámos acrescentou Bill, sorrindo por entre as lágrimas. Desde a noite em que se haviam beijado e sido atingidos pelo autocarro, passara uma eternidade. Estiveste ausente durante tanto tempo! Tive tantas saudades tuas!

Fala comigo... pediu Isabelle, baixinho, com um sorriso, enquanto Bill, a enfermeira e o médico se riam. Há três semanas que ele não fazia outra coisa que não fosse falar com ela. Era como se soubesse que conseguiria trazê-la de volta. Nunca desistira, embora, para o fim, já começasse a desanimar; mas nunca perdera a coragem. Gosto de te ouvir... falar disse, com voz cansada. O esforço fora muito grande.

Também gosto de te ouvir falar. Há muito que esperava escutar a tua voz. Onde estiveste, meu amor? perguntou Bill, quase num sussurro, com a mão dela ainda na sua.

Fora respondeu Isabelle, com novo sorriso nos lábios. Olhou então para Bill, com um ror de perguntas no olhar. Sabia que ele tinha as respostas. Há quanto tempo.

Três semanas.

Tanto tempo. As palavras pareciam sair a custo, mas estava a recuperar muito bem.

Sim, foi muito tempo. Havia tanta coisa para lhe dizer, tanto para partilhar, mas ainda era muito cedo para isso. Acabara de chegar de um lugar distante.

Isabelle lembrou-se então de algo e olhou-o com ar preocupado.

O Teddy e a Sophie já…

Estão ótimos. Esperava não estar a mentir-lhe, uma vez que não havia notícias recentes e sabia que Teddy não estivera bem. Mas tinha a certeza de que o pequeno melhoraria assim que soubesse que a mãe estava a recuperar. A Sophie esteve cá. Veio visitar-te. É uma rapariga maravilhosa e parecida contigo. Isabelle sorriu e fechou os olhos. Quando os abriu, havia outra pergunta neles. Bill sabia qual era. Ele esteve cá.

Isabelle estremeceu.

Dói-me... a cabeça.

Aposto que sim. Era de esperar.

As outras coisas, também O médico interessou-se de imediato por aquilo que Isabelle dizia e fez-lhe algumas perguntas. Estava extremamente satisfeito e sugeriu que ambos descansassem, pois havia sido uma noite de muita excitação. Isabelle pareceu preocupada com o que o médico acabara de dizer. Entretanto, os enfermeiros já haviam entrado no quarto para levar Bill. Não. não o levem!.. Apertou a mão de Bill com mais força. Este olhou para o médico com ar interrogador.

Posso ficar aqui?

Instalou-se um longo silêncio, enquanto o médico ponderava a hipótese. Não havia qualquer razão para ele ali não poder ficar. Eram adultos e amigos, e as enfermeiras podiam vigiar a recuperação de ambos no mesmo quarto. Era o prémio adequado por aquilo que Bill fizera nessa noite.

Acho boa idéia. Bill já não estava ligado a monitores. A única coisa de que precisava era do saco de soro ao lado da cama e dos medicamentos para as dores, para o caso de precisar, o que raramente acontecia.

Quero que durmas aqui insistiu Isabelle, agarrando-lhe a mão com força. Estava consciente, recuperara a vida e voltara para Bill. Era a noite mais feliz deste. O médico examinou-a então, e ficou satisfeito. Fez-lhe mais umas Quantas perguntas e ela disse-lhe como sentia a cabeça. Acrescentou ainda que também sentia o corpo muito pequeno e que tudo dentro dela estava extremamente apertado. O médico explicou-lhe que essa sensação se devia às lesões internas e que se manteria durante mais algum tempo. Teria oportunidade de a examinar em pormenor mais tarde. O que ambos precisavam agora era de descansar.

A enfermeira deixou apenas uma pequena luz ligada e uma outra veio ajudar a colocar Bill de lado. Este ficou satisfeito porque via melhor Isabelle assim. Não lhe apetecia dormir. Só queria ficar toda a noite a olhar para ela e a tocar-lhe na mão. Isabelle, que ainda tinha a mão dele na sua, esboçou um sorriso. Exibia um ar acriançado. Era a imagem da filha.

És tão bonita murmurou Bill, e amo-te tanto.

Valera a pena a longa espera de três semanas.

Tive muitas saudades tuas.

Como é que sabes? retorquiu Bill, enquanto a enfermeira sorria, num canto do quarto.

Pareciam duas crianças aos cochichos, no quarto escuro. As enfermeiras trocaram um sorriso e detiveram-se demoradamente à porta, a olhar para o par amoroso. Nenhuma delas esperava que Isabelle sobrevivesse.

Nessa tarde, o médico telefonou a Gordon para informá-lo de que a esposa já não se encontrava em coma. Sentia que era esse o seu dever. Mas Gordon não estava em casa e o médico pediu à mulher que atendeu, a enfermeira de Teddy, para dizer a Mister Forrester que telefonara. Não quis dizer do que se tratava. Bill e Isabelle ter-lhe-iam ficado gratos se tivessem sabido desse fato.

Dava a sensação de que sempre haviam dormido juntos. Isabelle tentou virar-se de barriga para cima uma vez, mas as dores na cabeça eram muitas e teve de manter-se voltada para Bill, que não despregava os olhos dela.

O que te aconteceu? perguntou Isabelle, reparando no enorme colar cervical que Bill tinha a imobilizar-lhe o pescoço.

Sofri lesões no pescoço e na coluna. Vou ficar bem.

E certamente que iria. Já tinha aquilo por que esperara durante três semanas.

Tens a certeza.

Absoluta. Nunca me senti tão bem como agora.

Eu também Olhou-o então com ar pensativo. Não me lembro de nada... Como é que viemos aqui parar

É uma longa história, meu amor. Podemos falar dela amanhã. Fomos abalroados por um autocarro. Não lhe iria dizer que onze pessoas haviam perecido no acidente e que ela estivera prestes a engrossar esse número. Só me lembro de estar a beijar-te e depois de me encontrar aqui.

Também é o que eu recordo disse Isabelle, bocejando. Bill sentiu uma vontade louca de a beijar, mas não podia mexer-se. A única coisa que conseguia fazer era tocar-lhe no rosto ou na mão. Um destes dias, gostaria de te beijar de novo.

Bill não respondeu. Fez-se um longo silêncio, enquanto ele reflectia na possibilidade de, aos seus próprios olhos, já não ser homem. E pegou-lhe na mão. Era a única coisa que podia oferecer agora.

Espero que os miúdos estejam bem prosseguiu Isabelle, pensando nos filhos e desconhecendo os terrores de Bill relativamente às suas capacidades sexuais.

Eles virão para cá mal saibam que já não estás em coma asseverou-lhe.

De repente, Isabelle ficou com um ar triste e apertou-lhe a mão com mais força.

E ele virá também, não é?

Bill não quis dizer-lhe que Gordon não a visitava há duas semanas. Achava que não era a ele que competia conformá-la. Detestava Gordon por tudo o que não fizera por ela e pelas coisas horríveis que lhe fazia.

Não pensemos nisso agora. Porque não fechas os olhos e tentas dormir? Tinha vontade de lhe afagar os cabelos.

Pensei que me quisesses acordada gracejou Isabelle. Avançava a olhos vistos para a recuperação, depois de três semanas em coma e de um acidente ao qual quase não sobrevivera. Mantinha a mesma força interior de outrora. Fora esta, juntamente com o amor de Bill, que a trouxera de novo à vida.

Dorme. Estás a falar muito, vais ficar esgotada. Não conseguia deixar de sorrir. Parecia ainda mais bonita do que antes.

Quero passar a noite toda a conversar. Depois lembrou-se de mais uma coisa. Quero dançar contigo outra vez.

Um dia.

E quero voltar ao Harry’s. Isabelle fazia a lista de desejos. Bill limitava-se a sorrir.

Agora? gracejou, mais feliz do que nunca. Sentia um prazer imenso em estar ali deitado a conversar com ela.

Está bem. Amanhã. E depois vamos ao Annabel’s. Temos de recuperar o tempo perdido. Há semanas que não danço.

É melhor estares quietinha, se não, os médicos põem-te a dormir outra vez.

Só quero ficar aqui deitada contigo. E riu baixinho. Agora já podemos dizer que dormimos juntos.

Para quem esteve três semanas em coma, estás a portar-te muito mal. Não devias pensar nessas coisas gracejou Bill, em tom de reprimenda, com uma vontade incontrolável de a abraçar; porém, no coração, estava a fazê-lo No coração, Isabelle seria sempre sua. Desde essa noite que o era Acontecesse o que acontecesse, nada alteraria esse fato. Ela atravessara as trevas para voltar para ele e agora nunca mais iria perdê-la.

Caminhávamos em direcção a uma luz muito brilhante.. íamos para um sítio qualquer, por um caminho estreito. e os miúdos começaram a chamar-nos, e demos meia volta.

Bill teve a sensação de ter sido atingido por um raio ao ouvir aquelas palavras. Quando acordara do estado de coma, lembrava-se de ter tido exatamente a mesma visão, tal qual Isabelle a descrevia.

Como era a luz?

Muito brilhante... e eu estava muito cansada, e sentei-me numa pedra. Não queria voltar, mas tu continuavas a insistir para voltarmos, que podíamos lá ir noutra altura. Eu não queria, mas deixei que me puxasses. E fora o que acontecera nessa noite. A primeira vez, Bill retirara-a das mãos da morte, a segunda, das trevas onde se encontrava mergulhada num sono profundo. Aquilo que Isabelle descrevera da pedra e da luz brilhante fora exatamente o que ele vira.

Isabelle, também lá estive. Bill mostrava-se estupefato e ela não sabia porquê. Tive o mesmo sonho que tiveste. Tal qual o descreveste.

Eu sei, eu estava lá afirmou Isabelle, como se se tratasse de algo normal. Vi-te, dei-te a mão e voltámos.

Porquê? Bill fazia um esforço de memória, tentando entender o que lhes acontecera. Não era uma coisa normal. Havia pessoas que falavam dessas experiências, mas muitas delas não partilhavam a mesma luz brilhante no mesmo sonho, a mesma pedra, o mesmo caminho, a mesma lembrança. Bill acreditava que, algures, numa outra vida, as suas almas se haviam encontrado e tornado uma só.

Voltei porque me pediste. Mas depois tornei a perder-me. Acho que adormeci à beira do caminho.

Claro. E se voltares a fazer isso outra vez, zango-me a sério contigo. Nunca mais te percas de mim!

Não, nunca mais prometeu Isabelle, beijando-lhe os dedos. Obrigada por teres esperado por mim e me teres trazido de volta. Estava a ficar emocionada. Bocejou várias vezes e, antes que ele conseguisse dizer o que quer que fosse, deixou-se adormecer num sono tranquilo. Ao olhar para ela, Bill recordou perfeitamente aquilo que Isabelle descrevera, a caminhada em direcção à luz brilhante, com ela à sua frente. Fizera um esforço titânico para a trazer de volta. Não sabia muito bem o que isso significava, mas estava convencido de que algo de extraordinário lhes acontecera. Sabia que, apesar de tudo o que se passara, era um homem cheio de sorte.


 

No dia seguinte, às oito da manhã, o médico telefonou a Gordon Forrester com o intuito de lhe dar a notícia, mas a mesma voz informou-o de que ele não se encontrava em casa. Às dez, conseguiu, finalmente, apanhá-lo no escritório. Este ficou algo perplexo e disse que estava muito contente com a notícia. Perguntou então se podia falar com a mulher, mas esta ainda não tinha telefone. O médico informou-o de que ia mandar instalar um para Isabelle, e Gordon poderia telefonar-lhe para o quarto nessa tarde.

De certeza que os filhos querem falar com a mãe sugeriu o médico, algo atrapalhado.

Gordon já tomara como dado adquirido o fato de a mulher nunca mais sair do estado de coma e mostrava-se espantado com a notícia.

Como é que isso aconteceu? indagou. O médico fez uma ligeira pausa. Não queria falar do papel de Bill Robinson nesse processo, e tanto este como Isabelle também não desejariam certamente que o fizesse. E não se enganava.

Sozinha respondeu o médico. Era a única coisa que Gordon precisava de saber.

Boa recuperação comentou Gordon, como se estivesse a falar de um torneio de golfe ou de uma partida de ténis. Em claro contraste com as lágrimas de alegria de Bill na noite anterior, como se falasse de um amigo distante. Parecia inacreditável que Isabelle fosse sua esposa. Talvez isso explicasse a relação dela com Bill. Depois de os ver na noite anterior, havia perguntas a que o médico não queria responder E interrogou-se sobre quando é que Gordon voltaria a Londres. Para bem dos dois doentes, esperava que ele não voltasse tão depressa ao hospital. Via-se que estavam loucamente apaixonados. Era impossível resistir a um amor assim, que fora até ao limiar da morte e voltara. Isso era algo de muito precioso que poucas pessoas partilhavam. Informe-a que telefonarei logo à tarde, quando chegar a casa. Foi tudo o que disse, e o médico asseverou-lhe que o faria.

A enfermeira deu o recado a Isabelle quando lhe instalaram o telefone. Estava ansiosa por falar com os filhos, mas não com Gordon.

Que vamos fazer agora? perguntou a Bill, nessa tarde, enquanto almoçava pela primeira vez, desde que saíra do estado de coma. Haviam-lhe trazido uma tigela de sopa muito ligeira e gelatina.

Que queres dizer? Uma partida de croquet ou de golfe, ou um passeio no parque? gracejou Bill, mas desta vez Isabelle não sorriu.

O Gordon vai querer levar-me para Paris, logo que melhore. Queria ver os filhos, como é óbvio, mas não queria deixar Bill.

Não creio que isso aconteça a curto prazo declarou Bill, tentando manter a calma. Não acredito que possas saltar da cama e sair pela porta a correr. Ainda tinha de realizar muitos tratamentos e a cabeça precisava de extremos cuidados. Nessa manhã, o médico dissera-lhe que esperava tê-la no hospital durante, pelo menos, quatro semanas. Era mais ou menos o tempo que tinham estipulado para Bill.

E depois? perguntou Isabelle, enquanto a enfermeira lhe dava a sopa. Ainda não tinha força suficiente nas mãos para se alimentar sozinha. Encontrava-se extremamente debilitada, o que não era surpresa para ninguém.

Havemos de arranjar uma solução. Bill ainda não lhe dissera que, muito provavelmente, não voltaria a andar. Tinha de pensar no assunto. Achava que, de momento, ela não precisava de saber. A menos que as coisas tivessem mudado radicalmente durante o período que estivera em coma, sabia que Isabelle voltaria para casa, para cuidar do filho. É claro que poderia telefonar-lhe e vê-la de vez em quando, mas não queria que sentisse pena dele, caso ficasse confinado a uma cadeira de rodas. A única coisa que desejava dela era o seu amor. Mas se nunca mais voltasse a andar, era possível que nunca mais a visse depois de saírem do hospital, e teriam de continuar a relação por telefone. Ainda não sabia muito bem o que iria fazer. De momento, Isabelle pensava que o estado de Bill era temporário e este sentia-se inclinado a deixar as coisas tal como estavam. Não queria que ela pensasse que estava a pressioná-la. Sabia muito bem que chegaria o dia em que Isabelle teria de ir para casa, para junto da família. Agora a única coisa que queria era gozar os dias que lhes restavam.

Nessa tarde, quando Gordon telefonou, Isabelle encontrava-se no quarto, na companhia de Bill. O marido comunicou-lhe então que estava muito mais aliviado por saber que ela já melhorara, como se Isabelle se encontrasse a recuperar de uma luxação no tornozelo ou de uma queda. Na verdade, Bill tinha a sensação de que Isabelle regressara da morte. No instante em que ela acordou, Gordon já não alimentava qualquer esperança de que ela vivesse ou saísse do coma. Começava a ver-se no papel de viúvo e teve de voltar a pôr os ponteiros do relógio para trás, a fim de retomar o casamento com ela. O tom de voz de Gordon era muito estranho e Isabelle concluiu, corretamente, que o marido devia estar furioso com Bill e com ela própria. Falou depois com os filhos. Sophie chorou ao ouvir a voz da mãe e a única coisa que Teddy conseguiu fazer foi soluçar. Achou-o muito debilitado e perguntou a Gordon, quando os filhos lhe passaram o auscultador, como se encontrava realmente Teddy. Não conseguiu conter a emoção de os ouvir. Estava extremamente preocupada com eles.

Ele vai ficar muito melhor agora afirmou Gordon, em tom de indiferença. Sophie queria visitar a mãe, mas o pai disse-lhe que ela não tardaria a voltar para casa. Quando é que te dão alta? indagou, com algum pragmatismo. Achava que não havia razão para ir vê-la, uma vez que viria para casa em breve.

Dentro de quatro semanas, dependendo do fígado, do coração e da cabeça. Não se tratava de problemas pequenos, mas não pareceu impressionado. Agora que a mulher já saíra do estado de coma, pouco lhe importava o resto.

Quatro semanas parece-me muito tempo, não achas. Estou certo de que te darão alta mais cedo, se eu pedir. Gordon desconfiava que Isabelle não queria sair do hospital tão cedo, porque Bill ainda lá se encontrava. Não iria tolerar tal coisa. Vou eu próprio falar com o médico. Podes ter todos os cuidados médicos de que precisas aqui em Paris.

Isabelle ficou em pânico quando desligou o telefone e avisou, de imediato, o médico de que Gordon iria telefonar-lhe a pressioná-lo para a mandar para França.

É isso que quer, Isabelle? Podemos transferi-la para um hospital de Paris mais ou menos dentro de uma semana. Ainda não está em condições de ir para casa

Quero ficar aqui. E ambos sabiam porquê.

Eu trato do assunto asseverou-lhe o médico. Estava disposto a fazer isso por ela e por Bill. Gostava de ambos. Haviam estado às portas do inferno e conseguido regressar. Os filhos podiam esperar. Porém, mais tarde, admitiu a Bill que se sentia preocupada com Teddy, que não lhe parecera estar bem, e que era a única coisa que a faria voltar para casa mais cedo do que o planeado. Estava a ficar louca só de pensar na falta que estaria a fazer-lhe, apesar de saber que se encontrava em boas mãos.

Isto deve ter sido um choque tremendo para ele. Só Deus sabe o que Gordon lhe disse sobre o estado em que te encontravas. Mas agora que ouviu a tua voz e sabe que estarás em casa dentro de poucas semanas, estou certo de que melhorará de dia para dia.

Isabelle sentiu-se mais animada com as palavras de Bill.

Espero bem que sim. Graças a Deus, a Sophie está lá. queria vir ver-me, mas aconselhei-a a não o fazer. O Teddy precisa mais dela lá do que eu preciso aqui. Além disso, ali tinha Bill. Queria gozar os dias que lhes restavam até se separarem. E a Cindy? Achas que ela virá cá ver-te?

Não limitou-se a proferir, sem explicar porquê. E as filhas andariam ocupadas durante todo o Verão. Disse-lhes que as veria quando regressar. Bill também pedira ao médico que não informasse Isabelle sobre a extensão das lesões na sua coluna e sobre o fato de que, muito provavelmente, nunca mais voltaria a andar. Esta era uma coisa, para além do divórcio, que não queria que ela soubesse. Precisava de tempo para ver como é que o seu estado iria evoluir. Isabelle sabia que o período de convalescença de Bill seria prolongado, de seis meses a um ano, por isso não ficaria espantada com o fato de ele não andar.

Se ela estivesse disposta a deixar Gordon, então ele teria de equacionar as coisas de outra maneira. E teria de lhe contar a verdade quanto às pernas. Mas uma vez que estava determinada a voltar para Gordon, não queria arranjar-lhe motivos de preocupação. Já tinha problemas que chegassem com o filho deficiente. E agora que já vira o marido dela, Bill sabia o que a esperava em Paris. Gordon parecia não ter consideração, nem amor, nem simpatia, nem respeito por ela. Todo o seu mundo girava em torno dele próprio, e Isabelle não passava de um simples peão, da assistente do filho deficiente. Estava preocupado com a vida difícil que a esperava, talvez até ainda mais difícil do que antes. Gordon desconfiava dela e, se calhar, iria castigá-la pelos pecados que supostamente teria cometido nas suas costas. Isabelle teria de ter cuidado com ele, ou veria a sua vida transformada num inferno. Nem sequer quando a mulher estivera em coma, às portas da morte, se preocupara em ficar com ela mais do que dois dias.

Ao fim da tarde, quando falou com ele, o médico referiu novamente que Isabelle só podia ser transferida daí a, pelo menos, quatro semanas. Não se mostrou satisfeito. Achava que os médicos não estavam a ser razoáveis, considerando-os demasiado zelosos. O médico acabou por assustá-lo com a hipótese de poderem ocorrer complicações horríveis, ou até de poder entrar de novo em coma.

Ainda me tiram a carteira profissional gracejou o médico, quando falou do telefonema a Bill e a Isabelle. Era de opinião de que eles tinham direito a um pouco de felicidade e a uma compensação pela agonia por que ambos haviam passado. Por outro lado, os tormentos de Bill não estavam acabados. O médico sabia muito bem que a sua reabilitação iria ser longa e difícil. Teria lugar num hospital de Nova Iorque, onde iriam ajudá-lo a readquirir o máximo de sensibilidade nas pernas. Tanto um como outro não faziam idéia do que estava reservado para Bill.

Para já, tinham quatro semanas para estarem juntos, a rir, a conversar e a gozar o seu amor. O hospital era um refúgio seguro para ambos, depois da situação traumática por que haviam passado e antes de regressarem às suas vidas. Não tardaria a terem o choque com a realidade.

Nessa noite, voltaram a dormir no quarto de Isabelle.

No dia seguinte em diante, passaram a dormir no de Bill. Estavam livres de monitores. Passavam longas horas à tarde a falar das suas vidas, das suas esperanças, dos seus sonhos. O tempo que partilhavam era uma rara dádiva, ganha a muito custo.

Jogavam às cartas, liam livros e Bill até lhe ensinou jogos de dados. Ficavam horas esquecidas a conversar, tomavam as refeições no mesmo quarto. O fígado de Isabelle estava melhor e a cicatrizar lentamente. O ritmo cardíaco continuava irregular, se bem que ligeiramente melhor. Às vezes, tinha dores de cabeça fortíssimas. Cansava-se com muita facilidade e dormia bastante. Bill continuava com o colar cervical no pescoço. As lesões na coluna estavam a cicatrizar e, por vezes, tinha dores nas costas. Nessas alturas, Isabelle massajava-lhe os ombros e os braços. Já reparara na pouca mobilidade que ele tinha nas pernas, mas este continuava a garantir-lhe que da próxima vez que se encontrassem já andaria. Não achava estranho Bill ainda não conseguir andar. Passara-se apenas um mês desde o acidente, o que não era muito tempo. Falavam muito pouco das dores que sentiam. A maior parte do tempo, trocavam confidências, falavam sem parar e gracejavam um com o outro.

Numa tarde soalheira de Junho, Isabelle, que saíra do coma precisamente duas semanas antes, estava deitada na cama de Bill. Contavam histórias da sua infância. Tinha o cuidado de não lhe tocar em algo que ainda lhe doesse, especialmente na coluna. Enquanto falava dos tempos com os avós no Hampshire, passava-lhe os dedos pelo braço. Depois, fazia-os deslizar pelos ombros e pelas costas, onde sabia que não havia qualquer problema. Bill olhava-a com ar enternecido. E, de súbito, esboçou um sorriso de miúdo traquinas.

Porque estás a olhar-me dessa maneira? perguntou Isabelle, julgando que Bill troçava dela. Estava a falar a sério do meu avô. Era um homem muito bom.

Tenho a certeza que sim. Deixei de ouvir o que estás a dizer há cinco minutos. O desejo está a dar comigo em doido.

O que tinhas em mente? Uma partida de dados? Melhor do que isso respondeu Bill, beijando-a nos lábios. Conseguira arranjar maneira de o fazer, incllinando-se ligeiramente para a frente. Beijavam-se muitas vezes, especialmente à noite. Isabelle, não sei o que é que isto vai dar, mas apetece-me fazer amor contigo. O grau de excitação aumentara na última meia hora. Sentia um bem-estar tão grande que estava disposto a tentar. Ainda se encontravam ambos muito fragilizados, mas já há muito que Bill experimentava uma incontrolável vontade de fazer amor com Isabelle. Já antes do acidente sentia esse desejo.

Está bem, meu amor. Isabelle estava disposta a fazer amor com ele, mesmo que não fosse além de se enlaçarem nos braços um do outro. Percebia perfeitamente o que Bill tinha em mente. Que dizes a trancarmos a porta? Havia fechos nas portas que ninguém utilizava, mas esta parecia uma excelente oportunidade para começar.

Achas que vão expulsar-nos do hospital? perguntou Bill, esboçando um amplo sorriso, enquanto Isabelle se levantava para ir fechar a porta. Mal conseguia mexer-se, mas sentira um irresistível desejo por Isabelle na última meia hora, de tal modo que agora não conseguia pensar noutra coisa. Há muito que andava ansioso por saber se a função sexual fora afectada. O nervosismo era muito, mas nenhum dos dois conseguia resistir ao impulso. A relação era terna, apaixonada e assentava na confiança mútua.

Não creio que fosse isto que tinham em mente, quando nos deixaram dormir no mesmo quarto disse Isabelle, com um sorriso malicioso nos lábios.

Eles é que o permitiram retorquiu Bill, algo nervoso. Esta é a melhor parte. Pelo menos, esperava que fosse. E se não fosse? Estremecia só de pensar.

Isabelle interrompeu-o, com ar sério, e beijou-o carinhosamente nos lábios.

A melhor parte é aquilo que já temos.. amor um pelo outro, estarmos juntos... Adoro tudo em ti, Bill. Qualquer coisa que venha agora é uma dádiva suplementar, mas não é a melhor parte. Tu é que és.

Bill não fazia a mínima idéia se conseguia fazer amor. mas o desejo era incontrolável. O médico dissera-lhe que era possível e esperava que ele tivesse razão. Caso contrário, seria uma enorme desilusão para ambos e um falhanço da sua parte.

Mas não lhe queria dar conta dos seus receios. Tinha medo que Isabelle ficasse preocupada ou sentisse pena dele. Esta ultima hipótese era a que mais receava.

Isabelle despiu então a bata de Bill, pondo a descoberto toda a beleza do seu corpo. Bill ardia de desejo. Não havia vergonha ou pudor entre eles, era como se tivessem estado sempre juntos. Enquanto Isabelle o acariciava, Bill não conseguia disfarçar o nervosismo. Sentia emocionalmente tudo o que ela lhe fazia, mas não sabia como é que o resto iria reagir. Isabelle despiu então a sua bata, ao mesmo tempo que ele lhe acariciava os seios. Os corpos que haviam sofrido tanto esqueceram, de repente, todas as suas dores. Começou por beijá-lo na boca, depois no peito, sempre com extrema sensualidade. Ao mesmo tempo que o tentava excitar, tinha o cuidado de não o magoar, não exercendo peso sobre ele, apenas o suficiente, nos sítios certos. Bill sentia o requintado prazer por que há muito ansiava, mas o efeito desejado não tinha lugar, para grande consternação sua.

Mesmo sentindo prazer, tinha consciência de que o seu corpo se encontrava, de alguma forma, adormecido. Apesar da enorme paixão por Isabelle, não estava na plena posse das suas faculdades físicas. Havia algo dentro de si que não permitia a reação aos estímulos. Não sabia se era o cérebro, se a coluna vertebral. E não obstante o desejo intenso de fazer amor com Isabelle, sentia o medo de falhar a apossar-se progressivamente de si. Com ela de cócoras, por cima dele, Bill começava a dar-se conta de que o corpo não iria conseguir dar resposta aos estímulos que recebia. Sentia-se não só um idiota como um doido varrido por ter tentado.

Isabelle percebeu o que se estava a passar com Bill, mas o amor por ele era tanto que a única coisa que queria era que se sentisse feliz e amado. Já estava preparada para a eventualidade de as coisas não funcionarem, pelo menos a primeira Vez. Bill sofrera traumatismos graves. Teria de esperar pacientemente pelo retorno das suas capacidades sexuais. Isabelle só quisera dar-lhe esperança e vida. Mas em vez de esperanÇa, a única coisa que vislumbrava no olhar de Bill era desespero, por os esforços para consumar a sua paixão terem falhado.

Tudo bem, meu amor tudo bem. Tens de ter paciência murmurou Isabelle, enquanto Bill a abraçava, para depois a afastar delicadamente e se virar de lado, destroçado por não ter conseguido fazer amor com a mulher que amava. Achava que nada do que ela pudesse dizer poderia alterar esse fato E prometeu a si próprio que nunca mais voltaria a tentar. Apesar da ternura e o amor que Isabelle tinha por ele, sentia-se humilhado e mais dependente do que nunca. Era o pior dia da sua vida. Já não se sentia um homem E nada o convenceria a tentar outra vez. E muito menos com Isabelle.

Veste-te sussurrou Bill.

Isabelle hesitou, querendo fazer qualquer coisa por ele. Bill encontrava-se num estado de profunda depressão, e qualquer esforço ou carícia para o confortar só o perturbaria ainda mais. Meteu-se então debaixo dos lençóis, muito juntinha a ele.

Tudo bem, Bill murmurou Isabelle, num tom terno. Essas coisas acontecem. Ambos sabiam os sentimentos que ele nutria por ela, mas quisera mais do que isso.

Isto é só o princípio. Beijou-o na face e tentou pegar-lhe na mão. Bill repeliu-a. Tentava conter as lágrimas a muito custo. Só lhe apetecia fugir, mas, no estado em que se encontrava, não tinha qualquer hipótese de o fazer.

Não, isto não é o princípio retorquiu, irritado. Estava furioso consigo próprio, não com Isabelle. É o fim.

O fim da sua vida enquanto homem.

Não é o fim de nada ripostou, como se estivesse a falar com uma criança. O médico disse-te que a recuperação da função sexual pode levar algum tempo. Mas Bill estava aterrorizado com a hipótese de a incapacidade sexual ser permanente. Outra mulher não teria conseguido imaginar o que esse fracasso, do ponto de vista sexual, representava para ele. A única coisa que este via à sua frente era um aterrorizante futuro sem sexo. Como qualquer outro homem, já passara por essa situação algumas vezes na vida, quando andava muito cansado, ou aborrecido, ou preocupado com a política, ou quando bebera demasiado. Mas agora era a primeira vez que fazia amor com Isabelle, e a primeira vez, depois do acidente, que tentava provar que ainda era homem, independentemente de voltar ou não a andar. Isabelle foi compreensiva e tentou acalmá-lo. Acreditava que Bill acabaria por recuperar a função sexual E mesmo que não recuperasse, estava preparada para aceitar qualquer tipo de limitações que ele tivesse e continuaria a amá-lo. Para Isabelle, nada alteraria, mas, para Bill, todo o seu mundo ruíria Caso não recuperasse a sua masculinidade, estava disposto a sair da vida de Isabelle. Nessa noite, perdera muita coisa o auto-respeito, a auto-estima, o sentido da sua própria masculinidade e toda a esperança em qualquer tipo de futuro com Isabelle, se as suas capacidades estivessem perdidas para sempre. Para ela, era uma insensatez da parte dele chegar a esse ponto por causa de uma tentativa falhada de fazer amor com ela. Bill sentia-se aterrorizado com o fato de aquilo poder significar o fim da estrada para ambos, embora a sua incapacidade de realizar o ato sexual não significasse nada para ela. Continuava a amá-lo cada vez mais e a sentir uma infinita ternura por ele


 

O estado de espírito de Bill sofreu um duro golpe depois da tentativa falhada de fazer amor E embora continuassem a dormir no mesmo quarto, mantinha-se inflexível quanto à idéia de não voltar a fazer nova tentativa. Isabelle tentava animá-lo, mas não queria pressioná-lo. Dizia-lhe que, com tempo e paciência, acabaria por recuperar as suas capacidades sexuais. Mas Bill recusava-se a aceitar que houvesse a mínima esperança de recuperação. A porta para a vida como homem encontrava-se fechada. Continuavam a manter uma relação íntima e a confortarem-se mutuamente, mas Bill não estava disposto a voltar a tentar fazer amor com Isabelle. À medida que os laços emocionais entre os dois iam ficando mais fortes, o tempo parecia escoar-se a um ritmo cada vez mais veloz. Os fisioterapeutas iriam iniciar o trabalho de reabilitação com Bill, e Isabelle submetera-se a um sem-número de exames, de todo o gênero, de electroencefalogramas a ecografias ao coração. A pouco e pouco, o processo de recuperação de ambos ia avançando, e tanto Bill como Isabelle estavam cada vez mais cientes de que os dias juntos não tardariam a chegar ao fim. O acidente fora um preço demasiado elevado a pagar por alguns meses a viverem ao lado um do outro. Porém, à medida que o tempo avançava, começavam a sentir-se como se fossem casados.

Passavam o dia sentados no quarto, no dele ou no dela. Bill acompanhava-a aos exames, liam o jornal, tomavam o pequeno-almoço juntos e, à noite, dormiam em duas camas de hospital colocadas lado a lado. A única coisa que faltava na sua vida conjugal era o sexo, que continuava a ser um assunto doloroso para Bill. Apesar da ausência do lado físico da relação, Isabelle nunca fora tão feliz na vida.

Isto parece mais uma estância balnear do que um hospital gracejou uma das enfermeiras, quando os dois entraram no quarto, depois de terem estado ao sol. Isabelle tivera dores de cabeça nesse dia e haviam-lhe feito um electroencefalograma depois de almoço, mas o médico disse que não havia qualquer problema. O seu estado clínico continuava a evoluir satisfatoriamente. O regresso a Paris estava já a poucas semanas de distância. Sentia um pavor tremendo de deixar Bill e não sabia quando voltaria a vê-lo.

Falava com os filhos todos os dias e achava que Sophie andava debaixo de um enorme stresse, o que a preocupava. Toda a responsabilidade por Teddy repousava nos seus ombros, e, embora Isabelle falasse com ele com frequência, Teddy não se encontrava nas melhores condições. Sentia-se culpada por estar há tanto tempo longe deles, mas, de momento, não tinha alternativa que não fosse ir para um hospital de Paris. Mas sabia que se, por um lado, seria uma tremenda alegria rever os filhos, por outro, seria uma dor excruciante deixar Bill.

Às vezes, falavam do assunto, e Isabelle dizia que talvez pudessem continuar a encontrar-se num lugar qualquer, como acontecera em Junho. Não sabia como é que iria conseguir sair de casa, mas arranjaria maneira de o fazer. Aquilo que agora partilhava com Bill era algo de que não abriria mão facilmente, mesmo que só se encontrassem duas ou três vezes por ano. Bill quase não falou quando ela se referia a estarem um com o outro de vez em quando. Não queria pensar nesse assunto agora. Embora já sentisse algumas melhoras, a recuperação estava a ser mais lenta do que a de Isabelle e o estado de espírito não era o melhor. Não queria comprometer-se a encontrar-se com ela antes de saber como é que a sua reabilitação iria correr. Continuava a não querer ser um fardo. Mas também não queria deixar de ver Isabelle. Depois daquilo que haviam partilhado no hospital e do tempo aí passado, não era difícil imaginar que os telefonemas não seriam suficientes para qualquer um deles.

Não sei se estás a ser realista relativamente à hipótese de nos encontrarmos em Paris disse Bill, um dia. O Gordon não sabe o que aconteceu aqui em Londres, mas sabe que estávamos juntos naquela noite. Disse-me para sair do teu quarto, com maus modos, quando eu estava aqui ao Pé de ti. Não creio que fique impávido e sereno, quando tu saires para passear. Acho que vai andar sempre desconfiado. E lembrou-se de que até podia mandar pôr os telephones sob escuta. Ficara furioso quando descobrira que Isabelle fizera amizade com um homem sem que ele soubesse.

Não disse nada a Isabelle, mas Bill tomara a decisão, semanas antes, de que, se ficasse confinado a uma cadeira de rodas até ao fim da vida, se recusava a ser um fardo para ela, ou para quem quer que fosse. Fora um dos fatores, se bem que não o mais importante, para se divorciar de Cynthia. Além disso, se não conseguisse ser um homem com Isabelle, em todos os sentidos, iria pôr fim à relação.

Se voltasse a andar, encontrar-se-ia com Isabelle algures em França, quando ela conseguisse sair de casa. Mas a questão sexual permanecia um ponto de interrogação. Se o centro de reabilitação nos Estados Unidos não tivesse mais êxito em pô-lo a andar do que os médicos em Inglaterra, não voltaria a ver Isabelle. A questão sexual nem sequer se poria. Não estava disposto a sobrecarregá-la com as suas limitações, como aconteceria se ficasse confinado a uma cadeira de rodas para sempre. Vivia os seus últimos dias no hospital atormentado por ambas as questões a da eventual paralisia das pernas e a possível perda da virilidade. E não estava disposto a que qualquer um desses problemas fizesse sofrer Isabelle, que não fazia a mínima idéia do estado de desespero em que ele vivia. Tinha o cuidado de não dar qualquer sinal de pessimismo, se bem que ela, por vezes, o sentisse.

Admitiu ao médico que tentara fazer amor com Isabelle e que fora um tremendo fracasso. O médico tentou então animá-lo o melhor que pôde.

Não estou surpreendido. Depois dos extensos traumatismos que sofreu, era de esperar que isso acontecesse da primeira vez. Tem de dar tempo ao tempo. É normal a dificuldade de ereção e de atingir o orgasmo no primeiro ano. Ainda é muito cedo para tanto entusiasmo e tanto otimismo.

Porém, apesar das palavras encorajadoras do médico, Bill não acreditava nele. Continuava apegado à idéia de que a situação era irreversível e que nunca mais iria recuperar a função sexual. Estava determinado a não voltar a tentar ter relações sexuais com Isabelle no futuro próximo, apesar de ela estar mais do que disposta a ser criativa com ele. Abandonara toda e qualquer idéia de uma relação física com Isabelle de momento e talvez para sempre. E não fazia idéia de quando é que voltariam a ter a oportunidade de tentar, se é que viria a acontecer.

No entanto, apesar da situação torturante em que se deixara cair, continuava a partilhar o quarto com Isabelle, que meditava no que fazer com a sua vida. Sabia que nunca acabaria com o casamento, por causa de Teddy e de Sophie, mas também não estava disposta a abdicar de Bill. Ser sua amante era algo que nunca lhe passara pela cabeça, mas agora era isso que queria e a única coisa que poderia ter Com ele partilhava aquilo que julgara não existir. Tinha, muitas vezes, a sensação de serem dois corpos numa só alma E nada conseguiria fazê-la desistir disso.

Falava com Gordon de quando em quando. Este mandava a secretária telefonar para o hospital todos os dias para saber do estado de saúde da mulher. Isabelle, geralmente, telefonava-lhe para o escritório, por uma questão de respeito e única e exclusivamente para saber de Teddy, se bem que Sophie a mantivesse informada a esse respeito. Ela própria telefonava a Teddy todos os dias. Quando falava com Gordon, este respondia-lhe, deixando-a sempre com a sensação de que interrompera qualquer coisa ou que telefonara numa má altura. Além disso, era parco em palavras. Dava a impressão de que já não confiava nela, se bem que nunca o tivesse referido expressamente. Isabelle achava que Gordon iria puni-la e sabia que, logo que chegasse a Paris, haveria uma conversa muito séria entre ambos. O fato de ter estado com Bill no Annabel’s e no Harry’s Bar, além de estarem juntos a uma hora imprópria aquando do acidente, falava por si. Não és a mulher com quem casei. Na verdade, já não sei quem és, dissera ele num dos telefonemas. Por vezes, Isabelle sentia-se culpada e sabia que não era correto prosseguir a sua relação com Bill. Porém, esta era como uma droga, toda a sua vida Dependia dela e não queria desistir.

Isabelle falava com Bill sobre o assunto, certa noite, enquanto lhe massajava as pernas paralisadas, que já haviam recuperado uma muito ligeira sensibilidade. Ia contar-lhe a conversa que tivera com Gordon nesse dia. Este fora extremamente seco e ela soltara um suspiro de alívio quando desligou o telefone.

Não creio que volte a confiar em mim. E tem razão. Nem quero imaginar qual vai ser a recepção quando chegar a casa. E tu? A Cynthia ficou muito irritada. Reparara que Bill nunca falava na mulher, só nas filhas. Mas a relação entre Bill e Cynthia fora sempre muito diferente da sua com Gordon. Levavam vidas muito mais independentes e praticamente nem se podia falar em relação. Bill ainda não lhe falara do divórcio. Era o único segredo que não lhe revelara. Não queria que Isabelle soubesse que, em breve, seria um homem livre. Não pretendia pressioná-la. Sabia que não estava disposta a acabar com o casamento, por isso achava melhor que pensasse que ele também continuava casado.

Acho que a Cindy não ia muito contente quando se foi embora. Fui franco quanto aos meus sentimentos em relação a ti E não tinha de o ser. Mas ela conhece-me bem e apercebeu-se da minha preocupação por ti.

Isso não a aborreceu? indagou Isabelle, algo surpreendida.

Estou certo que sim, mas não fez grandes protestos. Também teve uns quantos casos no seu passado. Além disso, não se pode prender um homem por estar apaixonado. E há muito tempo que ela faz a sua própria vida. Não é pessoa para se preocupar com futilidades.

Acho que o Gordon nunca me traiu com outra mulher. É extremamente conservador para fazer uma coisa dessas.

No entanto, Bill não estava tão certo disso, mas não queria dizer-lho. Era estranho que um homem que era tão frio e tão cruel como Gordon não fosse à procura de conforto noutras paragens. Desde o primeiro dia em que se conheceram que o achava o tipo de homem que não era fiel ou leal com quem quer que fosse. Uma amante escondida algures explicava o seu comportamento rude com a mulher.

Que te leva a pensar isso? perguntou Bill, cautelosamente. Não queria lançar mais achas para a fogueira. Só desejava que Isabelle tivesse uma vida tranquila, não a queria incitar a uma guerra contra um homem tão cruel e de tão baixo carácter.

O afeto não é importante para ele, nem o sexo. Há anos que não dormimos no mesmo quarto. Bill percebeu o que Isabelle queria dizer e sorriu. Era uma mulher tímida, pelo menos verbalmente, e de extrema franqueza com ele. Mas de alguma ingenuidade no que dizia respeito ao marido.

Na semana seguinte, Bill e Isabelle começaram a andar um pouco mais tensos. Ela tinha uma grande quantidade de exames marcados, e, se os médicos ficassem satisfeitos com os resultados, iria para casa. Encontravam-se internados há dois meses. Gordon andava cada vez mais irritado com os médicos, acusando-os de excesso de zelo para não darem alta a Isabelle. E o centro de reabilitação onde Bill iria passar os meses seguintes aguardava-o a todo o momento. O estranho idílio estava prestes a acabar. Não era fácil para qualquer um deles encarar esse fato de ânimo leve.

Prometes telefonar-me todos os dias? perguntou Isabelle, certa noite, com ar triste, deitada ao lado de Bill. Ia fazer o último electroencefalograma no dia seguinte. O fígado aparentava melhoras, o coração parecera normal na última ecografia e os pulmões encontravam-se limpos.

Telefonar-te-ei dez vezes por dia prometeu Bill, puxando-a para si. Também podes telefonar-me.

Claro. Levantar-me-ei bem cedo para poder ligar-te antes de ires para a cama. Mas Isabelle sabia que, se o fizesse com muita frequência, Gordon ou a secretária descobririam o número nas facturas. Não tinha a mesma liberdade que Bill para telefonar. Também estava ciente da ambiguidade que era continuarem a relação por telefone, mas não conseguia suportar a idéia de não falar com ele. Viviam juntos há dois meses.

Estava aterrada com a idéia de irem cada um para seu lado. Não sabia quando voltariam a encontrar-se. Os médicos haviam dito a Bill que iria estar no centro de reabilitação de seis meses a um ano. Era como se ambos estivessem prestes a serem condenados a prisão perpétua.

Tens de te pôr bom depressa disse Isabelle, ao mesmo tempo que o beijava no peito. Quero que venhas a Paris logo que possas. Não teria qualquer hipótese de ir a Nova Iorque. Sophie suportara o fardo de cuidar de Teddy durante tempo suficiente e estava prestes a recomeçar as aulas. Sabia que tão cedo não teria qualquer oportunidade de sair de Paris. Sentia-se desesperada por rever o filho. Tinha a impressão de que ele estava cada vez mais fraco

Bill não fez qualquer comentário relativamente a vir a Paris, mas ela não reparou. Prometera a si próprio ir-se afastando dela a pouco e pouco, caso ficasse paralítico ou, pior, perdesse a sua virilidade. Tratava-se de um acordo consigo mesmo. Nunca falara dos seus prognósticos sombrios com Isabelle. Primeiro, queria saber o que diriam os médicos quando regressasse aos Estados Unidos. Ainda não acreditava na idéia de ficar preso a uma cadeira de rodas Mas, se ficasse, não iria permitir que ela suportasse dois deficientes na sua vida. Já lhe bastava um.

Não conseguia tolerar a idéia de Isabelle estar consigo por pena, ou que cuidasse de si tal como fazia com o filho. Passara catorze anos cuidando de um filho com uma doença fatal. Porém, mesmo que nunca mais a visse, não conseguia encarar a hipótese de não falar com ela ao telefone. Já nem sequer se imaginava a acordar de manhã sem a ter a seu lado. Sentia uma angústia tremenda só de pensar que ela estaria tão longe e que não poderia vê-la, nem cuidar dela, nem sorrir-lhe quando entrasse no quarto. Os dias que passara na sua companhia eram os mais felizes da sua vida. O seu único desejo era que a vida tivesse tomado outro rumo, que Teddy fosse mais saudável e que Gordon exercesse menos ascendente sobre ela. Possuía uma miríade de desejos e receava que nenhum deles se concretizasse.

Os últimos dias no hospital pareciam passar à velocidade do som. Todos os exames de Isabelle se revelaram bons e esta já recuperara alguma força. Estava pronta para sair e encontrava-se já tudo tratado relativamente à alta. Em princípio, Gordon devia vir buscá-la, porém, à última hora, pediu que uma enfermeira a acompanhasse na viagem até Paris. Desculpou-se com o fato de estar muito atarefado com os negócios. Mas Isabelle preferiu assim. Não queria que ninguém nem nada a afastasse de Bill na sua última noite no hospital. As enfermeiras deixaram-nos a sós. Só queriam estar calmamente ao pé um do outro. Isabelle partia de manhã, Bill na semana seguinte. Ainda tinha de fazer mais alguns exams.

Não acredito que vou deixar-te amanhã proferiu Isabelle, com ar triste, ao lado de Bill, abraçados um ao outro. Tinha vontade de fazer amor com ele, mas não queria deixá-lo desiludido, caso não fosse capaz de realizar o ato, especialmente na última noite que passavam juntos. Não conseguia imaginar que ia voltar para junto de Gordon. Porém, tinha o consolo de praticamente não haver qualquer relação entre os dois. Mal se lembrava de como era viver com ele. Sentia-se muito mais casada com Bill.

Quero que tomes conta de ti, meu amor disse Bill, apertando-a contra si. Haviam substituído o enorme colar cervical por um mais pequeno e já conseguia mover a cabeça um pouco mais. Já lhe permitia voltá-la e olhar para Isabelle com maior facilidade. Nenhum dos dois precisava de palavras para exprimir o que sentiam. Agora tinham de aprender a viver sem se verem todos os dias, sem se tocarem. Isabelle não conseguia imaginar essa situação, mas sabia que seria bem real quando transpusesse a porta de casa, na Rue de Crenelle. Sentia o coração destroçado só de pensar que ia deixar Bill.

Não posso continuar assim murmurou Isabelle, enquanto as lágrimas lhe corriam pelas faces. Não posso continuar sem ti.

Claro que podes. Não me afastarei um milímetro do telefone.

Ambos sabiam que as coisas agora seriam diferentes. Isabelle sentia algo de estranho no seu íntimo, face ao regresso a casa. Gordon fora tão frio consigo ao telefone que estava certa de que ele iria castigá-la pelas transgressões cometidas, como era o caso de estar com Bill na altura do acidente. Como se o sucedido nessa noite não tivesse sido punição suficiente

Ficaram um longo instante em silêncio, a olhar para a lua cheia. A manhã não tardou. Permaneceram mais alguns minutos abraçados um ao outro. Entretanto, uma enfermeira veio lembrar Isabelle que tinha que se levantar. Tomou um duche e vestiu-se. Levaram-lhes o pequeno-almoço, mas nenhum dos dois conseguiu comer fosse o que fosse. Ficaram de olhos pregados um no outro. Conteve um soluço e tomou Bill nos braços, enquanto este a confortava.

Vai correr tudo bem. Telefono-te esta noite. Não chores, meu amor.

Isabelle parecia uma criança de coração destroçado. Deixar Bill era pior do que abandonar o lar. Era a única fonte de conforto e amor que possuía.

Gordon mandara-lhe algumas roupas: um fato Chanel preto, que agora lhe ficava largo, e um par de sapatos de pele preta, que também eram grandes de mais. Perdera muito peso e o corpo parecia ter mudado. Apesar de muito magra, Bill achava-a mais bela do que nunca. Apanhara os longos cabelos escuros num bonito rabo-de-cavalo. Não usara maquilhagem, apenas batom. Ao vê-la assim, lembrou-se do dia em que chegaram a Londres, do primeiro dia em que foram almoçar fora e da ida ao Bar Harry’s nessa noite. Tanta coisa acontecera, tantas pontes atravessadas. Era incrível pensar que haviam estado ambos às portas da morte e que tinham voltado à vida. E agora os sonhos estavam prestes a acabar. Eram obrigados a voltar ao mundo real, a um mundo em que não podiam viver juntos.

Cuida bem de ti disse Isabelle, abraçando-o. Volta para mim o mais depressa possível murmurou. Bill sorriu, com o olhar embaciado. E não te esqueças que te amo muito.

Força, Isabelle... Também te amo muito.

Isabelle encaminhou-se, com ar resoluto, para a porta, parou, lançou um último olhar a Bill e, de lágrimas nos olhos, saiu.

Agradeceu às enfermeiras e despediu-se de ambos os médicos, enquanto a enfermeira que fora contratada para a viagem se mantinha junto dela para evitar qualquer queda. Encaminhou-se então para o elevador, embora a sua única vontade fosse voltar a correr até ao quarto de Bill, pôr o relógio a andar para trás, nem que fosse até ao período do estado de coma, se necessário. O que interessava era que pudesse ficar com ele. Entrou então no elevador, de cabeça baixa e lágrimas nos olhos. E todos lhe acenaram em sinal de despedida, ao mesmo tempo que as portas se fechavam.

Ninguém entrou no quarto de Bill depois de Isabelle ter partido. Ninguém o viu chorar ou a olhar, angustiado, para o tecto. Se alguém tivesse encostado o ouvido à porta, tê-lo-ia ouvido a soluçar. Era o choro de um homem que sabia que nunca mais voltaria a ver a mulher que amava. E quando, finalmente, horas mais tarde, as enfermeiras foram ver como ele estava, encontraram-no a dormir, com ar de quem estivera a chorar.


 

O avião que a secretária de Gordon reservara poisou na pista do Aeroporto Charles de Gaulle pouco passava das duas da tarde. Isabelle não trazia bagagem consigo, apenas uma pequena mala de mão, com os seus artigos de maquilhagem, alguns livros e fotografias dos filhos e de Bill. Com uma leve vista de olhos ao passaporte, o funcionário da alfândega fez-lhe sinal para passar. Não havia ninguém à sua espera. Gordon não viera nem dissera a Sophie em que voo é que a mãe chegava.

Quando entrou no carro que Gordon enviara, estava espantada com o cansaço que sentia. Mal conseguia pôr um pé à frente do outro. Sabia que isso tinha a ver não só com a emoção, mas também com o fato de ser a primeira vez depois do acidente que tomava contato com o mundo real. A enfermeira conduzira-a numa cadeira de rodas até ao carro. Não conseguia pensar senão em Bill. Tentara telefonar-lhe antes de entrar no carro, mas as enfermeiras do hospital informaram-na de que ele se encontrava a dormir. Não queria acordá-lo. De qualquer forma, não tinha nada para lhe dizer, a não ser que o amava e que detestava estar longe dele. Já sentia a sua falta e ainda não chegara a casa. No entanto, sabia que, logo que chegasse, ficaria feliz de voltar a ver os filhos.

A enfermeira falou muito pouco na viagem até casa. Havia sido contratada no hospital, mas trabalhava por conta própria. Voltaria a Londres no voo das seis. Era uma simples dama de companhia, como Bill dissera. Achara uma boa idéia, uma vez que Gordon não fora buscá-la. Se ficasse mal disposta, se caísse, se se mostrasse assustada ou confusa, era bom ter alguém por perto. Estivera enferma durante muito tempo e sofrera um enorme choque. A mulher fizera-lhe algumas perguntas pertinentes sobre o acidente, apesar de ter lido o relatório médico, e, ao fim de algum tempo, calou-se. Durante a viagem, leu um livro.

Isabelle sentiu-se estranhamente deprimida quando entrou na cidade. Não experimentou qualquer emoção ao ver Paris de novo. A Torre Eiffel não lhe dizia nada. Tinha vontade de estar do outro lado do canal da Mancha, no hospital, ao lado de Bill. Ao atravessar para a margem esquerda do Sena, fez um esforço para pensar em Teddy e Sophie. De repente, sentiu um frémito de entusiasmo quando o carro virou para a Rue de Crenelle. Os filhos eram o seu único pensamento. Ansiava tê-los de novo nos braços. Mas também sentia tristeza e saudade ao lembrar-se de Bill.

As enormes portas de bronze que davam para o pátio interior encontravam-se abertas de par em par. Quando o carro entrou no pátio, Isabelle levantou os olhos para a casa que se erguia à sua frente. Não viu ninguém, se bem que os quartos dos filhos dessem para o jardim, tal como o dela. Não esperava que Gordon se encontrasse em casa àquela hora. Havia-lhe dito que estaria em casa às seis horas, como de costume, pois tinha um dia muito ocupado no banco. Respondera-lhe que compreendia. Ele demonstrava mais poder não se encontrando ali do que se ajudasse a levá-la até ao quarto. Era a sua forma de mostrar que ela não o controlava, nem nunca controlaria. Quando saiu do carro, não havia ninguém a dar-lhe as boas-vindas.

A enfermeira acompanhou-a na subida do pequeno lanço de escadas, que ia dar à porta principal da casa.

Tocou à campainha e, por instantes, ninguém veio à porta. Então, apareceu Josephine, a governanta. Olhou para Isabelle e desatou a chorar, ao mesmo tempo que a abraçava.

Oh, madame... Sempre pensara que a patroa não escaparia à morte. O ar de felicidade que exibia era autêntico. Trabalhava para Isabelle desde que esta casara.

É tão bom voltar a ver-te!

Isabelle entrou e olhou à volta. O vestíbulo parecia-lhe diferente. Maior, mais sombrio e triste. A mente pregava partidas estranhas. A casa já não lhe oferecia qualquer conforto- Tinha a estranha sensação de estar na casa errada. Perguntou a si própria se o traumatismo craniano que sofrera é que a fazia sentir assim, ou se aquilo que via era autêntico. EstiVera ausente durante muito tempo. Haviam-se passado mais de dois meses desde que partira para Londres, em junho.

Tanta coisa acontecera. E agora que regressava, sentia-se invadida pela estranha sensação de que aquela casa já não era a sua. A única coisa que a ligava a ela eram os filhos.

Isabelle agradeceu à enfermeira por tê-la acompanhado até casa, deixou-a com Josephine e subiu lentamente as escadas para ir ver os filhos. Fez uma ligeira pausa ao cimo, para recuperar o fôlego. Ouviam-se vozes ao longe. Por instantes, tudo à sua volta se desvaneceu, à exceção da voz do filho. Ouvia a voz de Teddy a falar com alguém. E, pé ante pé, encaminhou-se até ao quarto dele e abriu a porta.

Teddy não a viu de imediato. Estava deitado na cama a conversar com a sua enfermeira preferida, Marthe. Isabelle apercebeu-se logo, só pela voz, de que estava cansado e algo queixoso. Sem se fazer anunciar, entrou, com um largo sorriso nos lábios.

Teddy olhou para a mãe, perplexo, e, soltando um grito de alegria, saltou da cama e correu para ela. E abraçou-a com tanta força que a ia fazendo cair.

Mamã! Voltaste! Abraçava-a, puxava-a e beijava-a com tal ímpeto que Isabelle ainda pensou que iam cair os dois no chão. A enfermeira pediu-lhe que tivesse cuidado com a mãe. Ao sentir o filho nos braços e o odor dos seus cabelos, não conseguiu conter as lágrimas.

Oh, meu Deus, tive tantas saudades tuas... nem acredito.. Teddy, adoro-te.

Parecia um cachorrinho à volta da mãe, aos puxões, aos beijos, às festas. Quando conseguiu afastar-se um pouco dele e se sentou na cama, Isabelle reparou que o filho estava extremamente pálido. Além de mais magro e mais fraco. Mal se sentou ao lado da mãe, começou a tossir sem parar e era a custo que conseguia respirar.

Isabelle olhou para a enfermeira, que fitava mãe e filho de lágrimas nos olhos. Pela quantidade de comprimidos e xaropes na mesa-de-cabeceira, era evidente que o estado de saúde de Teddy não era o melhor. Os últimos dois meses haviam sido extremamente desgastantes.

Que estás a fazer na cama a esta hora? perguntou Isabelle, os olhos preocupados. Teddy sorriu, a felicidade estampada no rosto, gatinhou para cima da cama e deitou-se de barriga para cima, de olhos pregados na mãe.

O médico não me deixa levantar respondeu Tedy, como se essa questão não fosse relevante. Agora que a mãe voltara, pouco lhe importava a doença. Disse-lhe que era uma estupidez. Ontem quis ir para o jardim, mas a Sophie decidiu que eu não podia. Ela é ainda mais tonta do que tu. Está sempre preocupada comigo. E não me deixa fazer nada.

Acho muito bem. Parece que tratou muito bem de ti.

A mamã sente-se bem? indagou Teddy, preocupado. A tosse parara, mas as mãos tremiam-lhe. Isabelle suspeitava que isso se devia à medicação, mas, mesmo assim, não gostou desse sintoma. Alguns dos medicamentos para as dificuldades respiratórias já lhe haviam provocado tremores. O problema é que eram muito fortes para o coração. Mas Sophie não sabia e Isabelle tinha a absoluta certeza de que a filha fizera um bom trabalho. O papá disse que a mamã esteve em coma e depois acordou e agora está bem.

Não foi bem assim. As coisas não foram tão rápidas. Mas agora estou bem, e isso é verdade.

Como foi estar em coma? Foi bonito? perguntou, com um olhar estranho e melancólico. Lembra-se?

Não. Só me lembro de um sonho que tive e tu também entravas nele. Havia uma luz muito brilhante e eu ia-me embora, e tu obrigaste-me a voltar, tal como veio a acontecer. Era o mesmo sonho que Bill tivera e de que haviam falado muitas vezes. Mas não podia referir Bill ao filho. Gostava que ele conhecesse Teddy. Haviam falado tanto dele que achava injusto que não se conhecessem, embora esperasse que isso pudesse acontecer um dia.

Doeu muito? Teddy continuava muito preocupado com a mãe. Assemelhava-se ao Principezinho do livro de Saint-Exupéry, quando se sentou na cama, de pernas cruzadas, com os sedosos cabelos encaracolados à volta do rosto. Parecia muito mais novo do que aquilo que era. Aos catorze anos, nunca fora à escola, raramente saía de casa e não tinha amigos. Só Sophie e os pais. E era com Isabelle que sempre Pudera contar.

Apenas ao princípio. Depois disso, só tive de descansar muito, fazer exames, tomar medicamentos e pôr-me boa para voltar para junto de ti.

Tive muitas saudades. As palavras de Teddy não conseguiam descrever, nem de perto nem de longe, as emoções por que passara e o terror em que andara perante a perspectiva de a mãe nunca mais voltar para casa.

Também tive muitas saudades. Isabelle olhou à volta e deitou-se ao comprido na cama. Sentia-se confortável naquele quarto, muito mais do que se sentira no vestíbulo, ou no seu próprio quarto. Era ali que costumava passar o tempo quando se encontrava em casa. Onde está a Sophie

Saiu. As aulas começam na próxima semana. Foi bom a mamã ter voltado para casa. O papá passa o tempo todo fora, e a Sophie está furiosa com isso.

Então vamos ler muito e fazer muitos quebra-cabeças. Se o papá anda assim tão ocupado, então temos mais tempo para nós, não é? Isabelle parecia pouco preocupada com a questão, mas não conseguiu deixar de perguntar-se por onde Gordon andava. Também sabia que essa era a preocupação de Teddy, mas, provavelmente, Gordon não passaria assim tanto tempo fora de casa como Teddy dizia.

Isabelle e Teddy falavam e riam animadamente quando Sophie entrou no quarto, com um monte de revistas para o irmão. Soltou um grito de espanto quando viu a mãe deitada ao lado dele.

Mamã! Correu para a mãe e quase se atirou para cima dela. De repente, ficou apreensiva com a eventualidade de a poder magoar. Achava a mãe com um ar muito debilitado, não muito diferente do irmão. Está tão magra, mamã!

A comida do hospital era horrível! Sorriu. Não lhe disse que, em várias ocasiões, Bill mandara vir de fora excelentes refeições. Não passara fome. Além disso, ultimamente o apetite era pouco. As roupas ficavam-lhe largas.

Sente-se bem? O ar era de consternação. Fora ela a encarregada de olhar pela família, enquanto a mãe estivera no hospital.

Agora que estou outra vez convosco, sinto-me maravilhosamente bem.

Só ao fim de uma hora é que Isabelle foi para o seu quarto descansar um pouco. Sentia-se exausta. Marthe, a enfermeira, de Teddy, disse que iria fazer-lhe uma visita mais tarde.

Deitou-se em cima da cama e descalçou os sapatos. Vagueou então o olhar à sua volta. O quarto encontrava-se todo decorado com sedas às flores muito delicadas e de cores claras. Havia rosas brancas e azuis cor de alfazema sobre um fundo marfim. Os móveis eram todos Luís XV. Sentia-se bem ali, outra vez completa, agora que já vira os filhos, mas, ao mesmo tempo, havia uma peça que faltava. As saudades de Bill como que a sufocavam, provocando-lhe uma sensação de quase pânico. Tinha saudades de ouvir a sua voz, de o ver sorrir, de lhe tocar na mão. Sentia-se estranhamente só na casa em que vivia com os filhos e o marido, que, há muito, não passava de um estranho.

Só queria descansar uns minutos, mas acabou por adormecer, só acordando quando Sophie lhe deu um ligeiro toque no ombro.

Sente-se bem, mamã?

Sophie amadurecera muito nesse Verão. Dava a impressão de ter saltado diretamente da infância para a idade adulta. Parecia mais a mãe que a filha. Deu meia volta na cama e sorriu-lhe. Parecia haver uma maior proximidade entre mãe e filha.

Estou bem, querida. Ainda dormitei um pouco. Estou muito cansada.

Não se canse com o Teddy. Está tão contente que não vai largá-la um minuto, como um cachorrinho. Tem andado com febre nos últimos dias informou Sophie, preocupada.

Está muito magro comentou Isabelle, dando uma palmadinha na cama para a filha se sentar ao seu lado.

A mamã também está observou Sophie, olhando para a mãe mais de perto. Tinha um ar diferente daquele que exibia antes. Como se algo tremendamente importante lhe tivesse acontecido. E era a pura realidade. Estivera às portas da morte e renascera. Além de se ter apaixonado loucamente por um homem maravilhoso.

Fizeste um trabalho extraordinário com o Teddy afirmou Isabelle, em tom de elogio. Sabia melhor do que ninguém que cuidar de uma criança deficiente como o filho não era fácil. Este era carinhoso e mostrava-se sempre grato pelas coisas que as pessoas faziam por si, mas tinha de estar constantemente sob cuidados extremos. Era uma vida de eterna vigilância e nenhum descanso para aqueles que cuidavam dele. Desculpa a minha demora.

O que importa é que está viva. E estou imensamente feliz por isso disse Sophie, com um sorriso cansado.

Agora quero que descanses. Amanhã fico a fazer companhia ao Teddy. Quero que te divirtas antes de começarem as aulas.

E, desta vez, quando Sophie sorriu, já parecia de novo uma rapariga. Não queria queixar-se à mãe das dificuldades por que passara e da solidão que sentira. Não tivera ninguém com quem falar ou partilhar as suas preocupações, à exceção dos amigos quando telefonavam. Estes vinham visitá-la de vez em quando, mas, ao fim de algumas semanas, estavam fartos. Durante a maior parte do Verão, tinham deixado de aparecer. Dois longos meses de solidão e de muito trabalho para Sophie. E o pai não lhe dera a mínima ajuda. Era como se não quisesse saber nada do filho. Tinha uma mulher doente, um filho deficiente e a sua própria vida. Enquanto Isabelle estivera internada, raramente falara com Sophie, que se sentira mais uma empregada sobrecarregada com trabalho do que filha dele.

Isabelle levantou-se, lavou a cara e penteou-se. Pensou em telefonar a Bill, mas não sabia se tinha tempo antes de Gordon chegar a casa. O que veio a acontecer às sete horas. Encontrava-se no quarto de Teddy a ler-lhe um livro quando viu passar um vulto alto e com ar sombrio. Devia ter reconhecido a voz de Isabelle, mas passou pelo quarto sem espreitar, nem a cumprimentar.

Isabelle acabou a página e pousou o livro. Teddy jantara num tabuleiro, uma hora antes, e depois da emoção de rever a mãe sentia-se cansado. Sophie saíra com amigos, pela primeira vez em dois meses. Depois de beijar o filho e de lhe prometer que voltaria, foi ter com o marido. Gordon encontrava-se no quarto de vestir, ao telefone. Ao encarar a mulher, ficou com ar surpreso, como se se tivesse esquecido de que ela voltava para casa. Isabelle sabia que isso não era possível, mas fazia parte do seu modo de ser não fazer grande alarde com as chegadas e as partidas. Raramente se despedia quando ia de viagem, e nunca o fazia quando saía para o escritório todas as manhãs; ao regressar, geralmente refugiava-se nos seus aposentos, para descansar um pouco antes de ver Isabelle e os filhos. E nessa noite não agiu de forma diferente. Presumira que ela se encontrava com o filho e, além disso, sabia que a veria mais cedo ou mais tarde. Não tinha qualquer pressa em estar com ela.

Que tal foi a viagem? indagou Gordon, sorrindo, ao longe. Não fez menção de se dirigir a Isabelle, que, prudentemente, ficara à porta.

Ótima. Parecia que os últimos dois meses nunca haviam existido. Isabelle experimentou, de repente, a sensação de ter estado ausente durante apenas dois dias. Gordon não prestou qualquer atenção ao fato de a mulher ter estado dois meses fora e às portas da morte. A enfermeira foi muito útil. Teria sido complicado viajar sem ela. Os miúdos parecem-me bem. Descontando o fato de Teddy ter perdido peso e estar quase a arder em febre e Sophie ter envelhecido cinco anos em dois meses. Tirando isso, estava tudo “ótimo”. Isabelle sabia que Gordon não quereria ouvir falar desse assunto. Todas as questões referentes aos filhos e à casa não faziam parte das suas preocupações.

Como é que te sentes? perguntou Gordon, com ar preocupado, o que a surpreendeu. Isabelle esperava que ele agisse como se ela nunca tivesse estado internada. Gordon tinha tal aversão a doenças e enfermos, que achava um sinal de fraqueza o fato de as pessoas adoecerem. Qualquer tipo de perturbação física trazia-lhe a mãe à lembrança, o que lhe provocava uma profunda angústia. No seu espírito, toda a sua infância fora manchada pela doença da mãe.

Sinto-me bem. Só um pouco cansada. Ainda vai levar algum tempo até voltar a ser a mulher que era.

Isabelle tinha de ir a um especialista, na semana seguinte, por causa do coração e do fígado. O médico que a assistira em Londres avisara-a de que se tivesse dores de cabeça, por mais ligeiras que fossem, teria de ser imediatamente vista por um médico. A recuperação total, de acordo com o mesmo médico, levaria aproximadamente um ano, se não mesmo mais.

Estás com muito bom aspecto observou Gordon com ar satisfeito, alimentando o desejo de que fosse mesmo assim. Por uma série de razões, desejava que os últimos dois meses nunca tivessem acontecido. Ainda não se levantara para a abraçar ou beijar E não tinha intenção de o fazer. Era muito diferente de Bill. Isabelle questionou-se, mais uma vez, se Gordon estaria zangado com ela. Este sabia da sua amizade com Bill, que lhe dissera que Gordon dera instruções para o porem fora do quarto dela. No entanto, o marido não fez qualquer pergunta, nem qualquer referência a Bill. Isabelle tinha consciência de que Bill Robinson era agora um assunto tabu entre eles. Já jantaste? perguntou, num tom frio.

Isabelle fez um aceno negativo com a cabeça. Lembrou-se então de que não podia fazer movimentos bruscos.

Ainda não. Estava à tua espera. O Teddy já comeu e a Sophie saiu com os amigos.

Gordon franziu o sobrolho.

Pensei que te apetecesse ir para a cama quando chegasses. Para primeiro dia de alta, foi muito longo para ti. Tenho um jantar de negócios com um cliente de Banguecoque.

Está bem disse Isabelle, com um sorriso nos lábios. Continuava à porta do quarto. Gordon nunca a convidara a entrar e essa era uma formalidade que respeitava. Sempre frisara que todos precisavam de um convite seu para entrar nesses aposentos, inclusive Isabelle. Peço à Josephine que me traga o jantar num tabuleiro. De qualquer forma, não estou com fome. Só lhe apetecia uma sopa ou talvez uma torrada com ovos.

Acho uma excelente idéia. Jantamos amanhã.

No passado, Isabelle não teria ficado surpreendida pelo fato de Gordon se ter mantido impávido e sereno depois da sua longa ausência. Mas, agora que conhecia Bill tão intimamente e o modo como a tratava, causava-lhe alguma perplexidade que Gordon se mostrasse tão distante e frio. Os dois homens não podiam ser mais diferentes. Não houve qualquer manifestação de interesse por se inteirar do seu estado de saúde, ou de regozijo, nem uma simples flor. Nem sequer se dignou ir abraçá-la. Isabelle sabia que não voltaria a vê-lo nessa noite. E ficou espantada quando ele passou pelo seu quarto pouco antes de sair. Envergava um fato azul-escuro, uma camisa branca, uma gravata Hermes azul e cheirava a água-de-colónia. Dava a impressão de que ia para uma festa, mas não lhe perguntou.

Já comeste? A pergunta era um sinal de solicitude pouco habitual nele. Ficou sensibilizada com a atenção. Eram aquelas migalhas de afeto que a haviam satisfeito no passado.

Comi ovos e sopa.

Vai descansar um pouco. Não passes a noite com o Teddy. Ele tem a enfermeira para isso.

Isabelle teria adorado ficar com o filho, mas sabia que ainda não estava em condições para tal.

Já está a dormir. Fora vê-lo antes de ir para a cama.

Devias fazer o mesmo opinou Gordon, mais uma vez, sem se aproximar da cama. Raramente tocava na mulher e nunca a abraçava, há anos que não a beijava e mantinha uma considerável distância dela quando se encontrava na mesma sala. A única ocasião em que lhe demonstrava mais afeto era quando se encontravam em público. Anos antes, fora induzida em erro por esse comportamento, pensando que Gordon estava a mostrar-se mais cordial com ela. Porém, ficara novamente frio mal fechavam a porta do quarto. Mostrar afeto por alguém era a coisa mais difícil do mundo para ele, contrastando com Isabelle, que era afável com toda a gente. Até amanhã. Gordon teve uma leve hesitação. Por instantes, Isabelle ainda pensou que ele entrasse no quarto e se aproximasse dela. Porém, sem dizer mais nada, deu meia volta e foi-se embora. Não era o casamento que alguma vez sonhara, mas de nada valia pensar nisso agora. Era o único que tinha. Depois dos meses que passara com Bill, era sua obrigação voltar a adaptar-se à situação. Não seria uma tarefa fácil.

Poucos minutos depois de ele sair, levantou o auscultador e ligou para o hospital. Quando a telefonista atendeu, pediu-lhe para falar com Bill. Encontrou-o deprimido, mas, mal a ouviu, o seu estado de espírito melhorou consideravelmente.

Estava a pensar em ti. O tom de voz de Bill contrastava claramente com o tom com que Gordon a cumprimentara. Como estão as crianças?

Maravilhosas. Sorriu ao ouvir a voz de Bill. Parecia um marido em viagem, a querer saber como fora o dia da mulher. Ficaram radiantes por me verem. A pobre Sophie parece esgotada.

Como está o Teddy?

Muito magro E com febre outra vez Mas, hoje à noite, parece-me um pouco melhor. Amanhã vou passar o dia com ele.

Não abuses. Ainda não estás em condições de fazer tudo o que fazias.

Eu sei, querido. Como foi o teu dia?

Fora horrível, mas Bill não lhe disse nada. Passara o dia todo sozinho, mas sabia que tinha de se habituar à idéia. Agora só lhe restavam os telefonemas. Tal como nos velhos tempos. Mas, ao fim de dois meses de vida em comum, os telefonemas sabiam-lhe a pouco.

Foi bom mentiu. Tive imensas saudades tuas. Estão a fazer os possíveis para me darem alta na próxima semana. Sinto-me como se fosse para um campo de instrução militar. Ia para o centro de reabilitação com o programa mais rigoroso, pois achava que assim conseguiria obter melhores resultados. O seu futuro, aliás, o futuro de ambos, estava dependente da sua recuperação plena E apesar daquilo que lhe haviam dito em Londres sobre as pernas, sentia-se esperançoso. Ainda se mostrava confiante de que nos Estados Unidos lhe pudessem dizer algo diferente.

Falaram um pouco sobre a sua chegada a casa e dos filhos. Bill recebera um telefonema de Jane nessa tarde, o que o deixara um pouco mais animado E só no final da conversa é que perguntou a Isabelle por Gordon.

Como é que ele te recebeu?

À maneira do Gordon. Chegou tarde a casa e hoje à noite saiu. Não há problema. Isabelle deixara o seu coração com Bill, em Londres, à exceção da parte que pertencia aos filhos. Nada restava para o marido. Era demasiado tarde e muita coisa acontecera ao longo dos anos. Mesmo que nunca mais voltasse a ver Bill, sabia que era demasiado tarde para si e para Gordon. A única coisa que lhes restava era um casamento que vivia de aparências, ao qual faltava a substância.

Parece-te que esteja zangado contigo? Bill ficara preocupado com essa eventualidade. Achara-o tão irritado naqueles primeiros dias em Londres.

Não, não me parece. Mas ele nunca demonstra. Se estiver, só saberei quando menos esperar. É assim que funciona. Primeiro, guarda as coisas para si, a paga vem sempre mais tarde.

Só não quero que se vingue em ti por estares comigo na altura do acidente. Sei que ficou irritado com isso.

Falaste com a Cynthia? Isabelle reparara, em Londres, que a mulher nunca lhe telefonava. Bill tivera várias conversas com o seu advogado no hospital e tratara dos papéis do processo do divórcio sem contar a Isabelle.

A Jane disse que a mãe estava em South Hampton. Vejo-a quando estiver em Nova Iorque, no hospital.

Espero bem que sim. Isabelle sentia-se chocada com a falta de atenção da parte de Cyntia

Bill prometeu então telefonar-lhe no dia seguinte. Isabelle estaria em casa durante todo o dia. Agora, com apenas uma hora de diferença entre Paris e Londres, era fácil trocarem telefonemas. Quando ele estivesse em Nova Iorque, seria muito mais difícil, mas Isabelle sabia que acabariam por arranjar maneira de tornear as dificuldades, como haviam feito ao longo dos anos. Antes de desligar, Bill disse, mais uma vez, que a amava. Nessa noite, deitada na sua cama, na casa que era, em princípio, o seu lar, Isabelle sentia que se encontrava num lugar estranho. Era como se o seu lar fosse em Londres, ao lado de Bill. Nessa noite, Isabelle não ouviu Gordon entrar. Dormia profundamente. No dia seguinte, no patamar, quando ia ver Teddy, deu de caras com Gordon. Dormira até mais tarde do que era costume. Eram quase noVe horas quando se levantou. Ia de camisa de noite, cara lavada e cabelos penteados, quando o viu, em passo apressado e de pasta na mão, em direcção às escadas. Este não lhe falou, limitando-se a acenar com a mão, enquanto descia as escadas a correr. Falava ao telemóvel. Pouco depois, ouviu o carro arrancar. Isabelle e Teddy passaram um ótimo dia. Ela leu-lhe muitas histórias, deitada ao lado dele, o que lhe trouxe à memória os momentos passados com Bill no hospital. Depois de almoço, Teddy dormiu uma longa sesta. Entretanto, apareceu o médico, que o achou muito melhor. Porém, quando Isabelle o conduzia à porta, o médico virou-se para ela com uma expressão estranha no semblante.

Sabe que o estado dele está a deteriorar-se, não sabe? Era isso que Isabelle receava, mas pensava que se tratava de uma situação temporária. Agora que estava em casa, iria envidar todos os seus esforços para trazer o filho de volta ao estado em que o deixara dois meses antes, quando partira para Londres. E tinha a certeza de que conseguiria. Sophie tomara bem conta do irmão, mas não conhecia todos os truques de que Isabelle se servia para o pôr em melhores condições.

Está pálido e perdeu peso, mas pareceu-me melhor esta manhã disse, esperançosa.

E está mais contente. Mas encontra-se cada vez mais fraco. A função cardíaca está a piorar e os pulmões funcionaram mal durante todo o verão.

O que quer dizer-me, doutor? indagou Isabelle, preocupada.

Que o corpo não está a acompanhar o crescimento. À medida que ele vai ficando maior, o coração e os pulmões vão ficando sujeitos a um maior esforço.

E um transplante?

Nunca iria sobreviver à operação.

Isabelle sabia que, sem a operação, os dias de Teddy estavam contados. Era muita coisa para enfrentar, ainda mal chegara a casa, e ela própria ainda se encontrava muito debilitada. O médico aconselhou-a a não fazer esforços.

Gostava de vê-lo ganhar algum peso, e você, Isabelle também tem de engordar. O médico estava preocupado com ela. O seu organismo sofrera um choque tremendo e as sequelas ainda eram visíveis.

Tratarei disso. Iremos entrar os dois num regime de engorda. Sorriu, pensando naquilo que o médico acabara de lhe dizer. Fora um Verão terrível para Teddy, aliás, para ambos, mas, agora que regressara a casa, estava determinada a dar uma volta às coisas, e tinha a certeza de que conseguiria.

Volto a vê-lo dentro de um dia ou dois, mas, se tiver quaisquer problemas, telefone-me.

No entanto, os problemas que Isabelle enfrentava não estavam relacionados com Teddy. Tinham a ver com Gordon. Nessa noite, este chegou a casa com ar taciturno e não deu qualquer explicação para isso. Pegou num tabuleiro e foi jantar para o quarto, deixando Isabelle sozinha à mesa. Evitava falar com ela e nunca entrava no seu quarto. Ao fim da noite, Isabelle ouviu-o sair. Não fazia a mínima idéia onde é que o marido ia quando saía àquelas horas da noite. E só voltou a vê-lo na manhã seguinte. Deu de caras com ele quando desceu para tomar o pequeno-almoço, sentado na sala de jantar, a ler o jornal e a beber uma chávena de café. Só ao fim de muito tempo é que se apercebeu da presença da mulher. Pousou então o jornal e acabou o café. Isabelle tinha a impressão de que Gordon estava irritado com ela e não fazia a mínima idéia do motivo dessa irritação.

Tiveste notícias do teu amigo de Londres? perguntou Gordon, num tom seco. Isabelle ficou perplexa com a pergunta. Não queria mentir-lhe, mas não estava disposta a dizer-lhe que telefonara a Bill duas vezes no dia anterior.

Sim, falei com ele. Ficou surpreendida por Gordon se referir a Bill. Não dissera uma palavra sobre ele no dia em que chegara, mas agora mostrava-se furioso com ela.

Não achas que é uma falta de dignidade da parte dele telefonar cá para casa, Isabelle? Devia ter vergonha na cara. Quase te matou.

O autocarro é que quase nos matou aos dois. Ele não teve culpa.

Se não tivesses saído com ele, nada disso teria acontecido. Não creio que gostasses que os teus filhos soubessem que estavas com outro homem, quando ocorreu o acidente. Havia uma ameaça implícita nas palavras de Gordon.

Claro que não. Mas as coisas não foram como queres fazer crer. Éramos simples amigos ripostou Isabelle, num tom calmo, embora o coração batesse com mais força.

Estás a dizer-me que a vossa amizade acabou?

Não diria isso. Passámos por muita coisa juntos. Lançou um olhar cauteloso ao marido. Sabia que este era uma pessoa vingativa e não queria iniciar uma guerra com ele. Gordon é que detinha o poder e não admitia que ela o pusesse em causa. Não tens nada a recear dele. Já estou em casa.

A questão não é essa. Estou a aconselhar-te a pores um ponto final nisso tudo. Corres um grande risco se me irritares. E não te aconselho que o faças.

Não tenho qualquer desejo de te irritar. Desculpa ter-te criado uma situação embaraçosa. Ao dizer isto, baixou os olhos.

Interessante escolha de palavras. O olhar fulminante de Gordon era um sério aviso para ela. Estares envolvida num acidente que quase te ceifou a vida, enquanto me enganavas com outro homem, é, sem dúvida, uma “situação embaraçosa”.

Não estava a enganar-te. Tinha ido jantar.

E dançar. Eram duas da manhã. Isabelle teve vontade de lhe perguntar onde é que ele passara a noite anterior, ou onde é que fora quando saiu de casa ao fim da noite. Nunca se atreveria a tal coisa. Gordon é que estabelecera as regras do casamento e agora era livre de fazer o que quisesse. Sempre esperara que a mulher se mantivesse sob as suas ordens. Estava estabelecido entre os dois ela não fazer perguntas, nem questionar a autoridade ou a independência do marido. A punição por isso teria sido extrema, se alguma vez ela se tivesse atrevido. Essa questão encontrava-se bem definida entre ambos. Nunca houvera qualquer pretensão de igualdade no casamento. Gordon nunca proporcionara nem prometera tal coisa. A única circunstância que agora a espantava era o fato de ter aceite sempre, sem pestanejar, essa regra autoritária. O casamento fora sempre mais uma ditadura do que propriamente um casamento. És uma mulher casada e conto que te comportes como tal. Espero que tenhas aprendido a lição

Isabelle perguntou-se então o que Gordon lhe faria se soubesse que partilhara o quarto de hospital com Bill. Estava a ser muito claro. Não iria tolerar outro tipo de comportamento da parte da mulher que não fosse exemplar. Qualquer passo em falso seria punido com silêncio, ameaças, rejeição, insultos, se necessário, ou talvez até com a expulsão de casa, ou retirando-lhe os filhos. E se ele se divorciasse dela, Isabelle não poderia tratar de Teddy, que era o único fato que lhe importava.

Tens sorte por estar disposto a perdoar-te. Mas se descubro que andas a portar-te mal, ou que ele te vem cá visitar, as coisas vão ficar muito más entre nós. E sugiro que lhe digas para não te telefonar mais.

Isabelle sabia que nunca faria tal coisa. Os telefonemas de Bill eram a única tábua de salvação que agora tinha. Não ia haver, certamente, qualquer cordialidade ou apoio da parte de Gordon. Este levantou-se então da mesa, pegou na pasta e saiu da sala. Já transmitira a sua mensagem. Pouco depois, partiu para o escritório.

Isabelle sentou-se então na sala de jantar durante alguns instantes a organizar as idéias. Sentia-se combalida. Agora era uma presa em liberdade condicional, e se quebrasse de novo as regras, e Gordon descobrisse, só Deus sabia o que ele iria fazer-lhe. Era capaz de pedir o divórcio e ficar com a custódia de Teddy. Esse seria o seu pior pesadelo. Estava convencida de que o marido era bem capaz disso. Tinha vontade de telefonar a Bill, mas não se atrevia. Teria de esperar que ele telefonasse. O que veio a acontecer ao meio-dia, depois de Bill fazer a fisioterapia. Parecia cansado, mas com um estado de espírito satisfatório e feliz por falar com ela.

Olá, querida, como estás perguntou Bill, num tom prazenteiro, apercebendo-se, quase de imediato, de que algo acontecera. O que se passa? Pareces preocupada.

Não, estou bem mentiu, admitindo, de seguida, quando pressionada a dizer a verdade, que o seu estado de espírito não era o melhor. Falou-lhe então da conversa com Gordon nessa manhã.

Só está a tentar assustar-te. Quer reinar através do medo. Bill detestava tudo nele. Lembrou-se então de que Gordon nunca mais voltara a visitá-la no hospital, para a punir e assustar, e fazê-la sentir-se insegura. O que Gordon não sabia era que isso se transformara numa dádiva para Isabelle; aliás, para ambos. Ele não pode fazer-te nada. Nem pode tirar-te o Teddy. Tentava, em vão, animá-la. À medida que a conversa prosseguia, Bill sentia que Isabelle estava assustada.

Os tribunais aqui costumam conceder o poder paternal ao pai. Ele é capaz de convencer o juiz de que sou uma má mãe.

Bill sentia o coração destroçado ao ouvi-la assim tão preocupada. Isabelle estivera toda a manhã a reflectir no assunto.

Como pode ele convencer o juiz de que és má mãe Dizendo-lhe que passaste catorze anos a tratar dele? Querida, não sejas tonta. Só quer aterrorizar-te e, pelos vistos, está a conseguir. Era um receio infundado, mas Gordon sempre a assustara com aquele ar todo-poderoso, de quem é dono da verdade.

Ele impressiona qualquer pessoa.

A mim não me impressiona declarou Bill, num tom algo irritado. Adoraria tê-lo confrontado com o fato de sempre ter maltratado a esposa. Gordon Forrester era um tirano. Tenta ignorá-lo, despreza-o.

É o que estou a fazer

Vais jantar com ele?

Não sei. Nunca avisa se vem ou não jantar.

Bill sentia-se estupefato com tudo aquilo por que Isabelle passava, mas não podia fazer nada. Gostava que ela se divorciasse, mas sabia que isso nunca aconteceria. Havia muita coisa em jogo e Isabelle sentia medo daquilo que o marido pudesse fazer-lhe. E era isso mesmo que este queria. Bill tentou explicar-lhe a situação, mas Isabelle continuava a bater na mesma tecla que estava inteiramente à mercê de Gordon. Não tinha o seu próprio dinheiro e o filho era deficiente, precisando de constantes cuidados médicos, extremamente dispendiosos. Ouvi-la falar assim irritava-o solenemente. Adoraria casar com ela e cuidar de Teddy Mas agora era tarde de mais, pelo menos de momento. Não podia pedir-lhe para casar consigo se ia ficar deficiente. Estava de pés e mãos atados. E homens como Gordon arranjavam sempre a arma certa para empunhar contra as suas vítimas. Neste caso, era medo.

Afasta-te do caminho dele. Eu é que passo a telefonar-te. Bill achava que era melhor o seu número não aparecer nas facturas do telefone. Liga-me só se for estritamente necessário. Eu é que te telefono

Isabelle sentiu-se invadida por uma profunda solidão ao tomar consciência da situação em que se encontrava mergulhada. Gordon estava disposto a obrigá-la a pagar, até ao último cêntimo, aquilo que ela lhe fizera em Londres.

Conversaram durante mais alguns instantes. Depois, Bill teve de voltar para a fisioterapia. Prometeu ligar mais tarde, antes de Gordon chegar a casa.

Porém, desta vez Gordon surpreendeu Isabelle. Em vez de chegar tarde a casa, chegou às quatro da tarde, com ar de quem esperava apanhar a mulher em flagrante delito. Mas Bill já telefonara. Isabelle encontrava-se estendida em cima da cama de Teddy, a jogar às cartas com ele. Este tinha uma paixão pelo gmrummy. Também gostava de fazer paciências, mas preferia jogar com a mãe.

Gordon esboçou um ligeiro aceno com a mão ao passar pela porta do quarto, mas não parou para falar com o filho ou com a mulher. Era exatamente o mesmo comportamento que Sophie presenciara durante todo o Verão. Dera-lhe uma nova perspectiva do pai, que não gostara. Detestava a forma como costumava falar com ela, ignorando Teddy por completo, como se este fosse invisível ou nunca tivesse existido. Aos olhos de Gordon, o filho era uma criança defeituosa e rejeitava-o por isso. Não merecia a sua atenção, e Teddy tinha consciência disso. Há anos que não sentia qualquer respeito ou afeto pelo pai. Sophie só agora começava a compreender isso E comentou o fato com a mãe, ao final da tarde, antes de sair com os amigos.

Por que razão deixa o papá tratá-la dessa maneira? perguntou Sophie, em tom de acusação. Queria que a mãe reagisse, mas esta não estava disposta a isso, o que a irritava no mais profundo do seu ser. Embora se tivesse oposto, durante anos, à mãe, era agora, potencialmente, a sua aliada mais forte.

O papá não faz isso por mal, querida. O seu modo de Ser é assim. Isabelle mostra-se sempre lesta a defender o marido das queixas dos filhos, por mais razão que estes tivessem. Ele não é uma pessoa expansiva.

Sophie mantinha o mesmo ar irritado. Ficara a saber muita coisa dele nesse Verão, mais do que queria. Todas as suas ilusões relativamente ao pai haviam ido por água abaixo. A sua simpatia ia inteiramente para a mãe. Isabelle tornara-se a sua heroína.

O papá mostra constantemente indiferença e desprezo por tudo o que se passa à sua volta. Trata a mamã de forma horrível e não quer saber do Teddy ripostou, furiosa.

Não é bem assim, Sophie. Isabelle ficou algo nervosa ao ouvir as palavras da filha, embora soubesse que havia uma grande dose de verdade nelas.

Ele só quer saber dele. Também não me liga qualquer importância.

O papá tem muito orgulho em ti.

Sophie não contradisse a mãe a esse respeito, mas não acreditava naquilo que lhe dizia.

Mesmo que isso seja verdade, não tem o direito de a tratar como trata, e muito menos ao Teddy. Gordon agia ligeiramente melhor com Sophie, mas, ultimamente, já se mostrava mais frio com ela. Nunca lhe agradecera tudo aquilo que fizera e do que abdicara pelo irmão, durante a ausência da mãe. Sophie começara a ver o pai como um homem frio, duro e sem sentimentos. Precisamente aquilo que ele era. A nível profissional, esta postura trouxera-lhe dividendos, mas em casa, com a mulher e os filhos, isso não acontecia.

Não te preocupes com isso. O teu pai é um bom homem. Mas tanto uma como outra sabiam que era mentira. Gordon não tinha nada de bom ou de simpático. O teu pai e eu já estamos habituados um ao outro. Conhecemos as nossas divergências e os sentimentos de cada um. As coisas não são tão más como parecem.

No entanto, Sophie sabia que eram piores. Compreendia agora a razão de os pais terem quartos separados. Além disso, o pai passava a maior parte do tempo fora. Raramente dormira uma noite em casa quando Isabelle estivera no hospital mas não iria dizer nada disso à mãe, para não a magoar. Não acreditava que o pai tivesse uma amante. Não parecia ser esse tipo de homem. Mas não fazia a mínima idéia de onde é que ele ia. Nunca lhe deixara nenhum contato.

Está tudo bem repetiu Isabelle, mas não conseguia convencer a filha.

Ele foi sempre assim? Agora que assistira ao comportamento do pai nos últimos dois meses, Sophie não conseguia lembrar-se de ele tratar a mãe de outra forma. Nem de uma ocasião em que houvesse calor e afeto entre eles. Nem de o pai dar um beijo ou um abraço à mãe. E tinham quartos separados desde o nascimento de Teddy. A mãe afirmara que isso acontecia para poder cuidar do filho e não perturbar o descanso do pai, mas agora percebia que os motivos estavam muito para além disso. E só não compreendia como não ficara chocada com esse fato há mais tempo. Sempre tomara o partido do pai e agora sentia-se também culpada da situação em que a mãe vivia. Enquanto esta permanecera no hospital, ficara a saber muita coisa e crescera como pessoa. E o fato de ter estado na iminência de a perder fizera com que sentisse agora um carinho especial pela mãe, como nunca sentira. Ele era diferente quando casaram? indagou, triste pela mãe. Sentia uma ternura imensa por ela.

Era uma pessoa muito protectora quando casámos. Muito forte, muito determinado, embora eu pensasse que isso era amor. Eu era muito jovem. E ele ficou muito feliz quando nasceste. Mas Isabelle não disse à filha que o pai queria um rapaz. Depois, teve um aborto espontâneo. Então, quatro anos depois do nascimento de Sophie, dera à luz Teddy. E as relações com Gordon tornaram-se azedas. Repreendera-a pelo nascimento prematuro do filho, insistindo na idéia de que ela devia ter feito qualquer coisa para provocar aborto e que a culpa era toda dela.

Gordon rejeitara o filho doente desde o primeiro momento em que o vira. Ao fim de alguns meses, começara a adoptar o mesmo tipo de comportamento relativamente a isabelle, que precisava do seu amor e do seu apoio, pois eram tempos difíceis. Haviam estado prestes a perder Teddy, por diversas vezes, nos dois primeiros anos de vida deste. Essa Perspectiva aterrorizava-a. Teddy era uma criança de extrema debilidade e em constante luta com a morte, mas Gordon não fazia outra coisa senão culpabilizar Isabelle pelo estado do filho, além de a acusar constantemente de ser incapaz e incompetente. Minara-lhe completamente a sua auto-estima assim como qualquer confiança que tivesse em si própria, enquanto mãe, mulher e esposa. Ao fim dos dois primeiros anos de vida de Teddy, Gordon conseguira pô-la de lado. Isabelle nunca compreendera porquê, mas começava a acreditar que talvez a culpa fosse dela. Por vezes, ainda tinha essa sensação. Sempre achara que, se tivesse tratado das coisas da melhor forma, Gordon amá-la-ia ainda e tudo teria sido bem diferente. Passava a vida a censurá-la, tal como acontecera, nessa manhã, com a história do acidente e do seu comportamento em Londres, e até estava disposta a assumir a sua culpa. Só que, desta vez, menos do que era costume. Sabia que não fora um comportamento correto encontrar-se com Bill em Londres, clandestinamente. Mas, nessa altura, não fizera nada de mal. Fora sua intenção que se tratasse de um encontro inocente e dissera a Bill que honrava o seu casamento. Só no hospital, depois do acidente, é que tudo se alterara. E agora amava Bill e era com satisfação que arcava com a culpa, só para o ter na sua vida. Não via qualquer forma de o deixar naquele momento.

Não sei por que razão casou com o papá comentou Sophie, preparando-se para ir ter com os amigos. O que descobrira, nesse Verão, acerca do pai, entre outras coisas, era que ele tinha má índole, ao ponto de, por vezes, ser cruel. E detestava isso nele.

Casei com ele porque o amava disse Isabelle, esboçando um sorriso triste. Tinha vinte e um anos e sonhava com uma vida maravilhosa. Era um homem bem-parecido, inteligente e lançado na vida. O meu pai achava-o abençoado pelo Sol. Disse-me que seria o marido ideal para mim, e acreditei. O teu avô ficou muito bem impressionado com teu pai. Era um homem muito talentoso. Aos trinta e oito anos, Gordon era já diretor do banco, e ficara muito impressionado com as ligações de Isabelle à alta sociedade e à realeza. No início, esta conseguira dar um toque de classe à sua vida. Tinha amigos que lhe podiam ser úteis. Mas, logo que os conheceu pessoalmente, Gordon pôs Isabelle à margem e deixou, pura e simplesmente, de mostrar qualquer sinal de afeto ou amor por ela. Passou de um marido atencioso para um ser extremamente cruel, metido consigo mesmo, tratando a mulher como se ela não existisse, a não ser para o servir.

Cinco anos mais tarde, já não se mostrava interessado em desperdiçar o seu charme com ela. E muito menos agora. Nessa altura, o seu pai morrera e o casamento transformara-se num pesadelo, mas Isabelle nunca admitira tal fato a quem quer que fosse. Sentia vergonha, e Gordon convencera-a de que a culpa era dela. Desde aí, Isabelle canalizara todo o seu amor para Sophie e Teddy.

Sophie saiu pouco depois. Gordon e Isabelle jantaram na sala de jantar. Após o tom da conversa dessa manhã, foram poucas as palavras que trocaram. Isabelle não queria irritá-lo mais e a consciência aconselhava-a a não fazer tal coisa. O único assunto que costumavam abordar era sobre as crianças, o que o aborrecia profundamente. Isabelle não abriu a boca durante todo o jantar e, depois do café, foi para o quarto de Teddy. Gordon, como de costume, barricou-se no seu quarto. Ao sair da sala de jantar, disse apenas que tinha trabalho para fazer. Mais tarde, já na cama, Isabelle pensava em tudo aquilo que Sophie lhe dissera. Era uma rapariga inteligente, saudável e perspicaz. O comportamento e as atitudes do pai assustavam-na, mas o comportamento e as atitudes da mãe irritavam-na ainda mais. Queria que esta fizesse frente ao marido, mas, em vez disso, defendia-o, independentemente daquilo que lhe fazia.

Nessa noite, Isabelle não ouviu Gordon sair. Mas descobriu que a cama dele não estava desfeita quando foi chamá-lo para atender um importante telefonema de Nova Iorque, de manhã. Não conseguia imaginar onde é que o marido fora e não podia perguntar a ninguém. Ficou espantada com o que viu. Então, de repente, perguntou-se se ele faria aquilo com frequência. Nunca se apercebera das saídas nocturnas do marido. Mas agora tinha os olhos mais abertos. Não falou desse ato a ninguém e disse à pessoa que estava ao telefone para falar para o escritório. Teve vontade de lhe telefonar e de lhe perguntar onde estivera, mas não estava disposta a rebaixar-se a tanto. Em vez disso, foi tratar das suas coisas, como Bill sugerira. Cuidou de Teddy e esperou que Gordon chegasse a casa à noite. Quando isso aconteceu, não lhe fez qualquer pergunta, nem disse nada. O confronto não era o seu estilo, e já não ligava importância às suas rejeições. Tinha Bill e o amor que partilhavam. Depois de jantar, foi para a cama. Entretanto, já a noite ia avançada, Gordon saiu, fechando cuidadosamente a porta atrás de si.


 

Bill deixou o hospital cinco dias depois de Isabelle ter regressado a Paris. Os dias ali sem ela haviam-no deixado num profundo estado de depressão. Sentia-se só, mas sabia que tinha de se habituar a essa realidade. Além disso, ainda tinha de escalar o monte Evereste da sua vida. Os fisioterapeutas descreveram-lhe o que teria de fazer no ano seguinte. No entanto, avisaram-no para não colocar a fasquia demasiado alta. Achavam que a probabilidade de voltar a andar era muito remota. E embora admirassem a sua determinação, não o queriam ver destroçado, caso tivesse de resignar-se a ficar permanentemente numa cadeira de rodas. Mas era o mais provável. No entanto, achavam extraordinário que Bill tivesse alguma sensibilidade nas pernas, atendendo às lesões na coluna. Mas havia uma grande diferença, como explicaram, entre ter alguma sensibilidade nas pernas e ser capaz de andar.

Quando saiu do hospital, todas as enfermeiras vieram abraçá-lo e não conseguiram conter as lágrimas. Era grande a sua dedicação por ele e mostravam-se impressionadas com o profundo afeto que o ligava a Isabelle. Achavam que o fato de terem sobrevivido ao acidente era uma das maiores dádivas da vida. Todos, na Unidade de Cuidados Intensivos, haviam ficado espantados com o fato de ambos terem conseguido sobreviver.

Bill prometeu enviar-lhes postais quando chegasse a Nova Iorque e mandou vir presentes do Harrods para cada uma delas. Comprou-lhes pulseiras em ouro, e ao médico ofereceu um relógio Patek Philippe. Uma enfermeira e um enfermeiro acompanharam-no até ao aeroporto e instalaram-no no avião. No Aeroporto Kennedy, em Nova Iorque, estavam representantes do centro de reabilitação à sua espera.

Telefonou às filhas a anunciar que iria regressar a Nova Iorque. As duas prometeram visitá-lo no dia seguinte, no Centro de reabilitação. Não telefonou a Cynthia propositadamente. Tentava manter uma certa distância entre eles. Achava melhor assim, por causa do processo de divórcio. Prontificara-se a conceder-lhe uma considerável pensão em dinheiro dera-lhe a propriedade, vários carros e uma impressionante carteira de investimentos. Apresentara os papéis para o divórcio no mês anterior. Cynthia ficara espantada com a celeridade com que Bill desencadeara o processo e com a sua generosidade. Continuava a acreditar que ele fazia isso porque ainda imaginava poder casar com Isabelle, mas negara terminantemente tal possibilidade. Se Cynthia não tivesse presenciado o amor que Bill dedicava a Isabelle, teria acreditado.

Bill conseguiu manter-se sentado durante as primeiras horas da viagem, mas depois o pescoço e a coluna começaram a doer-lhe, apesar de os ter imobilizados. Viajou no seu avião particular. O médico aconselhara-o a não ingerir alimentos ou bebidas durante o voo. Também sugerira que fosse acompanhado de uma enfermeira, mas Bill opusera-se à idéia, e arrependeu-se mal descolou. Mas queria provar a si próprio que era independente. Quando aterrou em Nova Iorque, estava absolutamente esgotado e cheio de dores.

No aeroporto, encontravam-se dois enfermeiros e um motorista à sua espera. Na alfândega, não o mandaram parar. À porta, encontrava-se uma ambulância. Os enfermeiros levaram-no primeiro à casa de banho. Ainda pensou em telefonar a Isabelle, mas resolveu esperar até chegar ao centro de reabilitação. As dores eram muitas e estava ansioso por se deitar na ambulância.

O vôo parecia que nunca mais acabava. Passara boa parte da viagem deitado. Reclinara o assento, transformando-o numa cama. No entanto, este manteve uma ligeira inclinação, que lhe provocou dores excruciantes. Lembrou-se então de que ainda tinha um longo caminho a percorrer até à recuperação plena, e não sabia se conseguiria chegar até lá.

Haviam-lhe trazido um termo com café, bebidas frescas e uma sanduíche. Sentiu-se muito melhor quando a ambulância arrancou. Estava um bonito dia de Outono e o ar continuava quente.

Levou meia hora a chegar ao centro de recuperação, nos arredores de Nova Iorque. Este parecia mais um country do que um local de reabilitação, mas estava de tal modo cansado que, quando chegaram, nem forças teve para olhar à sua volta. A única coisa que queria era uma cama. Havia homens e mulheres em cadeiras de rodas e canadianas por todo o lado. Duas equipes de doentes em cadeiras de rodas jogavam basquetebol. O ambiente parecia ser de grande cordialidade e muito movimentado. Dava a sensação de que as pessoas transbordavam de energia, o que o deixou algo deprimido. Aquele ia ser o seu lar durante o próximo ano, ou, na melhor das hipóteses, durante os próximos nove meses. Sentia-se um miúdo que fora mandado para um colégio interno e que estava morto de saudades de Isabelle e do St Thomas, e de todos os rostos amigos que lá conhecera. Nem sequer se lembrou da sua casa no Connecticut. Isso agora fazia parte de um passado distante. E quando o conduziram numa cadeira de rodas até ao seu quarto, não conseguiu conter as lágrimas. Nunca se sentira tão vulnerável e tão só.

Tudo bem, Mister Robinson.

Bill limitou-se a fazer um aceno de assentimento.

O quarto parecia o de um hotel confortável. Apesar do preço, que era exorbitante, não era luxuoso. Tinha mobiliário moderno, uma alcatifa imaculada, e a cama era semelhante àquela onde dormira ao lado de Isabelle. Na parede havia um póster do Sul de França. Tratava-se de uma reprodução de uma aguarela que parecia representar Saint-Tropez. Tinha casa de banho privativa e a iluminação era boa. Havia ainda um faxe, uma ligação para computador e um telefone particular. Disseram-lhe que não podia ter um microondas no quarto. Agiam assim para que os doentes não se isolassem, fazendo as refeições sozinhos no quarto. Queriam que comesse na cafetaria juntamente com todos os outros doentes, se juntasse às equipes desportivas, usasse as salas de convívio e fizesse amigos. Tudo isso se integrava no método de reabilitação que haviam estabelecido para ele. E o processo de socializaÇão nas novas circunstâncias fazia parte da reabilitação. IndePendentemente de quem ele era, fora, ou viesse a ser outra vez queriam que fosse parte activa da comunidade enquanto ali estivesse

Bill lembrou-se então de que tinha que telefonar à secretária. A sua atividade política ficara reduzida praticamente a zero desde há dois meses e meio. Não poderia fazer aquilo que precisava a partir da cama; como tal, a secretária cancelara tudo o que ele agendara. Não havia qualquer forma de apresentar as pessoas umas às outras, planear campanhas ou dar apoio aos seus protegidos sobre a forma como conduzir uma campanha de sucesso. Enquanto passeava o olhar, tentava conformar-se com a idéia de pôr a atividade política de lado, durante pelo menos um ano.

No quarto, havia ainda um pequeno frigorífico com as mesmas coisas existentes no minibar de um quarto de um bom hotel: refrigerantes, refeições rápidas, tabletes de chocolate e, para sua surpresa, duas garrafas pequenas de vinho. Depois de os enfermeiros saírem, abriu uma Coca-Cola, bebeu um gole e olhou para o relógio. Sentia uma vontade incontrolável de telefonar a Isabelle, mas receava que Gordon se encontrasse em casa. Desligaria se Gordon surgisse do outro lado da linha.

Atenderam ao segundo toque, e Bill ouviu então a voz de Isabelle. Eram onze horas da noite, hora de Londres, mas ela não dava mostras de estar ensonada. A voz doce trespassou-lhe o coração que nem uma faca.

É uma boa altura? perguntou Bill, de imediato. Isabelle riu-se.

Para quê, meu amor? É uma ótima altura. Quem me dera que estivesses aqui. O Gordon foi passar a noite a Munique. Que tal correu a viagem?

Tive muitas dores. Sinto-me como se estivesse na prisão. Passou novamente o olhar pelo quarto. E embora soubesse que era um bom quarto e que tudo o que havia nele era da melhor qualidade, sentia-se deprimido. Detesto estar aqui. Parecia um miúdo cheio de saudades da família a telefonar do colégio interno.

Vá lá, tens de ter paciência. Vai fazer-te bem. Irás habituar-te e, quando menos esperares, já estarás bom. Talvez sejam só uns meses. Isabelle tentava animá-lo, mas Bill parecia estar muito abatido. queria fazer qualquer coisa por ele, mas, àquela distância, era muito difícil. Ambos tinham de travar as suas batalhas sozinhos. E, em muitos aspectos, a de Bill era muito mais dura do que a dela.

E se eu cá ficar uns dois anos?

Isso não vai acontecer. Aposto que sairás mais cedo do que esperas. Que tipos de pessoas é que estão aí?

Ambos haviam receado que o centro de reabilitação estivesse cheio de idosos a recuperar de ataques cardíacos. Bill tinha muito pouco a ver com eles. Porém, por aquilo que vira, muitos eram jovens e encontravam-se ali como resultado de acidentes de esqui, mergulhos em piscinas, acidentes de viação. As pessoas que estavam motivadas para ali estar eram, na sua esmagadora maioria, jovens com longas e potencialmente produtivas vidas à sua frente.

Parece ser boa gente. Bill soltou um suspiro e olhou para a piscina olímpica, que se via da janela do quarto, e avistou uma série de pessoas a nadar e as respectivas cadeiras de rodas à volta da piscina. Só não quero cá estar. Quero voltar para Washington ou para Paris, para junto de ti. Sinto que a vida está a passar ao meu lado. Porém, nenhum desses dois locais eram possibilidades para ele nesse momento. E o que Bill mais receava era que nunca mais fossem. Teria de conseguir sentar-se durante longos períodos, manter-se de pé durante horas, viajar sozinho, cuidar de si, ter resistência, mobilidade e clareza de espírito, se quisesse retomar a sua carreira política. E também receava que agora houvesse alguma resistência psicológica relativamente a ele. Era possível que as pessoas sentissem que, pelo fato de se encontrar confinado a uma cadeira de rodas e, de alguma forma, inválido, não estava em condições de dirigir uma campanha de sucesso. Tornava-se difícil prever os preconceitos que iam na cabeça das pessoas. Era de primordial importância para si, por muitas razões, voltar pelo seu pé.

Isabelle não estava preocupada com a eventualidade de Bill nunca mais andar, se bem que desejasse ardentemente que isso não viesse a acontecer. O seu amor por ele nunca Seria afectado por esse fato. Estava farta de lhe asseverar isso. Mas havia uma obsessão a que Bill não conseguia fugir- recusava-se a ficar dependente de quem quer que fosse. Nem de Cynthia, nem das filhas, nem dos seus colaboradores ou amigos, nem de Isabelle. Se não conseguisse protegê-la, cuidar dela, estar a seu lado como um homem e fazer amor com ela, então não tinha qualquer intenção de partilhar a vida com a mulher que amava. Isabelle sentia que Bill colocara a fasquia demasiado alta. A única coisa que podia fazer por ele era rezar.

Como está o Teddy? E tu. Como estás.

Estou ótima. A Sophie recomeçou as aulas ontem. O Teddy ainda está muito cansado e estou preocupada com o seu coração. Às vezes, parece que está a piorar, depois, tem um dia estupendo e sente-se melhor. Não sei explicar. Mas o seu estado de espírito está ótimo. Melhorara desde que Isabelle voltara para casa, mas o seu instinto de mãe dizia-lhe que o médico tinha razão e que há muito tempo que Teddy não se encontrava tão fraco.

A Olivia e a Jane recomeçaram as aulas a semana passada, mas disseram que viriam ver-me este fim-de-semana.

A Cynthia também irá. Isabelle tinha alguns ciúmes dela, embora não gostasse de o admitir. Sabia que Bill ficaria lisonjeado com esse fato. Cynthia oferecera-se para visitá-lo com as filhas, mas Bill achara melhor ela não o fazer. Não explicou isso a Isabelle, porque ainda não lhe falara do divórcio. Continuava a acreditar que ela não se sentiria tão pressionada se pensasse que ele e Cynthia continuavam casados. Assim, não pensaria que ele estava à espera dela ou de outra pessoa qualquer. Se se visse livre de Gordon, Bill estaria à sua espera. Mas este achava que isso só complicaria as coisas. Assim, continuava a iludi-la com o fato de continuar casado com Cynthia e de que tudo entre eles corria bem.

A Cynthia foi passar uns dias fora.

Isabelle sempre achara que Cynthia era de uma grande insensibilidade ao fazer questão de levar a sua própria vida, sem atender à situação de Bill, mas não fez qualquer comentário sobre o assunto.

O Gordon foi passar a noite a Munique. Está numa conferência. Vem passar o fim-de-semana a casa. Acho que tem planos em mente.

Gordon, porém, já não a incluía nos seus planos e ela também não tinha qualquer desejo que tal acontecesse. Desde os acontecimentos ocorridos em Londres que se sentia completamente separada dele e já não a preocupava o fato de Gordon não a convidar para nada. Este presumia que ela preferia ficar em casa com o filho, e não se enganava. Além disso, continuava a sentir-se extremamente cansada. Nessa noite, foi cedo para a cama. Passara todo o dia com Teddy, fora almoçar com Sophie, mas esse esforço deixara-a muito abatida. De acordo com o médico, ainda decorreriam muitos meses até se sentir de novo como antes do acidente.

Que vais fazer esta noite? indagou Isabelle, num tom suave. Percebia, pela voz, que Bill se sentia cansado e triste, o que a deixou preocupada.

Vou para a cama. Não há serviço de quartos, mas não tenho fome. Sentia demasiadas dores para comer e não queria tomar analgésicos. Fizera o desmame deles semanas antes, com medo de ficar viciado. Tal não sucedera, felizmente, mas não queria recomeçar a tomá-los.

Talvez devesses dar uma volta aí pelo centro. Isabelle não gostava da idéia de ele ficar sozinho no quarto. Receava que entrasse num estado de depressão profunda.

Amanhã. Eles aqui não dão muitas alternativas. Começo a terapia às sete da manhã e só volto para o quarto às cinco. Tratava-se de um regime rigoroso, mas Bill escolhera aquele centro por essa razão. Achava que quanto mais se aplicasse, mais rápidos seriam os resultados, se bem que o seu único desejo naquele momento fosse sair dali. Telefono-te, de manhã, quando me levantar. Seria meio-dia para Isabelle e Bill sabia que era uma boa hora. Se telefonasse quando voltasse para o quarto, ao fim do dia, seriam onze da noite para ela e, se Gordon atendesse, Isabelle ver-se-ia metida em problemas.

Posso telefonar-te de vez em quando.

No entanto, Bill achava que seria melhor que fosse ele a ligar.

Telefono-te amanhã, querida disse, demasiado cansado para articular mais uma palavra que fosse. Sentia dores horríveis na coluna, o pescoço rígido, o estado de espírito de rastos e tinha a sensação de estar noutro planeta, longe de Isabelle e da vida que outrora conhecera. Regressara finalmente aos Estados Unidos, mas não se sentia melhor por isso. Encontrava-se numa ilha deserta e estava condenado a lá ficar durante um ano. Não era uma idéia muito agradável.

Amo-te, querido sussurrou Isabelle Depois de desligarem, deitou-se na cama, com o pensamento em Bill e o desejo ardente de o abraçar, apertar contra si e confortar.

Na manhã seguinte, Bill levantou-se às seis horas. Adormecera vestido e só acordou quando o despertador acabou de tocar. Ainda sofria os efeitos da diferença horária, sentia-se cansado e mal conseguia mexer-se. Chamou um enfermeiro para o ajudar a sentar na cadeira de rodas e o levar até ao chuveiro. Meia hora depois, sentia-se melhor. Telefonou, então, a Isabelle, antes de sair do quarto.

Como te sentes, querido perguntou Isabelle, preocupada. Bill parecia mais animado do que na noite anterior.

Muito melhor do que ontem. Estava arrasado.

Eu sei. Isabelle sorria. Teddy acordara bem disposto e estava um dia maravilhoso de Setembro. Era meio-dia em Paris.

Desculpa as lamúrias de ontem à noite. Sentia-me um miúdo num colégio interno.

Isabelle achou graça. Também pensara o mesmo.

Eu sei. Só tenho vontade de voar até aí e trazer-te para casa.

É o que as mães fazem. Os pais limitam-se a dizer ao miúdo para se aguentar É a diferença básica entre os dois sexos. As miúdas ficavam sempre mortas de saudades quando iam acampar. A Cindy queria ir logo buscá-las e eu achava que elas deviam ficar lá até ao fim.

- Quem costumava ganhar. Isabelle parecia divertida. Era uma faceta de Cynthia de que Bill nunca lhe falara. Teria feito o mesmo. Só deixara Sophie ficar fora de casa ao entrar para a universidade E preferira que ela ficasse na Sorbonne em vez de ir para Grenoble.

Ela, claro. Eu estava sempre fora e não podia impor as minhas regras. Quando voltava a casa, já elas lá se encontravam.

Melhor para ela.

Bem, tenho de ir ver que torturas é que eles me reservaram. Mas Bill não estava preparado para o intenso regime que o esperava.

Depois do que começara a fazer em Londres, aquilo assemelhava-se à recruta dos fuzileiros. Fez calistenia o melhor que pôde, sentado na cadeira. Puseram-no a levantar pesos para fortalecer o tórax e a trabalhar em aparelhos. Havia uma terapia especial para o pescoço, uma longa sessão de treino na piscina e exercícios especiais para as pernas. Tinha meia hora para almoço e pouco tempo lhe restava para ir à cafetaria para falar com alguém. Às cinco horas, quando chegou ao quarto, estava tão cansado que mal conseguia mexer-se. Nem sequer teve forças para passar da cadeira para a cama e teve de chamar um ajudante, que sorriu quando o ouviu gemer.

Teve um bom treino, Mister Robinson? Era um jovem afro-americano que treinara com os Jets e que se lesionara cinco anos antes. Estudava fisioterapia. Bill ficou animado ao verificar que não havia qualquer sinal das lesões anteriores e aparentava estar em boa forma física. Tinha apenas vinte e seis anos.

Está a gozar? Eles estão é a ver se me matam.

Daqui a duas semanas já não sentirá dores. E vai começar a gostar. O ajudante ofereceu-se então para lhe dar uma massagem. Quando este saiu, Bill resolveu não jantar e ficar na cama. Estava a dormitar quando ouviu bater à porta. Ao abrir os olhos, um jovem numa cadeira de rodas encontrava-se já no quarto.

Olá, chamo-me Joe Andrews. Estou no quarto ao lado. Posso convidá-lo para uma partida de basquetebol às oito horas?

Bill olhou para ele e riu-se. Andrews estava sentado numa cadeira de rodas e parecia só ter uma perna. Era um moÇo simpático. Devia ter uns vinte e poucos anos de idade. Estivera envolvido num acidente de viação onde pereceram quatro pessoas, seis meses antes.

Uma partida de basquetebol? Está a gozar? Só se for comigo a servir de bola. Não creio que volte a ser capaz de se sentar direito na cadeira.

Ao princípio, custa. Depois, as coisas vão ficando mais fáceis. Este centro é ótimo. Há seis meses, encontrava-me totalmente imobilizado e só conseguia mexer os olhos. Nessa altura, já ficava contente se fosse capaz de coçar o nariz.

Você tem a idade do seu lado. Mas Bill também se encontrava em excelente forma física até ser atingido pelo autocarro. Eu já estou velho

Aqui a idade não conta. O capitão da equipe tem oitenta e dois anos. Teve uma trombose. Jogou nos Yankees há sessenta anos.

Eu já desci de divisão. Devia ter-me alistado nos Fuzileiros.

Seria mais fácil, mas não tão divertido. Há mulheres muito bonitas aqui.

Bill gostava do rapaz. Tinha olhos risonhos, um sorriso simpático e cabelos ruivos.

Você não deve ter mãos a medir. Não era esse o caso, mas, pelo menos, já se interessava pelas mulheres. A noiva morrera no desastre de viação, mas não referiu esse fato a Bill.

Costumo ir a Nova Iorque aos fins-de-semana. Se quiser, um dia pode vir comigo. São vinte minutos de comboio.

É uma idéia. Neste momento, não consigo mexer um único músculo.

Porque não vem ver? Apresento-o a alguns dos tipos. Joe estava determinado a cativar Bill para as atividades do centro. Era importante para o moral dos pacientes envolvê-los em atividades para além da terapia. Fora o que salvara a vida de Joe. Quando entrou no centro de reabilitação, ainda pusera a hipótese de se suicidar.

E as miúdas? gracejou Bill.

É casado? Joe continuava a puxar por Bill. Era excelente no trato com as pessoas. Bill achava-o um miúdo simpático, só o entristecia o fato de estar numa cadeira de rodas.

Não. Estou a divorciar-me.

É pena. Há duas moças na equipe. Uma tem dezoito anos.

Acho melhor não me meter outra vez na gaiola. Que idade tem a outra?

Sessenta e três respondeu Joe, com um sorriso malicioso.

Fico com essa. Está mais próxima da minha idade.

Que idade tem?

Cinquenta e dois. Hoje, da forma que me sinto, noventa.

Já jantou?

Achei melhor não jantar. Também não o fizera na noite anterior.

Não é muito boa idéia. Passo por aqui a buscá-lo às seis e meia. Depois, falamos do jogo. Não perguntou se Bill queria ir ou não e, antes que este pudesse colocar alguma objeção, saiu.

Bill apareceu às seis e um quarto e sentia-se melhor do que uma hora antes. Tomara um duche, barbeara-se e penteara-se. Vestira um T-shirt e calças de ganga. Ele e Joe pareciam dois miúdos a caminho do salão de jantar. Joe parecia conhecer toda a gente. Apresentou Bill a todas as pessoas que pôde. Soube então que Joe tinha vinte e dois anos, era de Minneapolis e queria entrar para o curso de Direito no ano seguinte. Tinha duas irmãs e um irmão gémeo que também se viram envolvidos no acidente. O irmão gémeo e a noiva tiveram morte imediata, assim como os dois ocupantes do outro carro. O irmão ia ao volante quando o outro chocou de frente, numa noite de nevoeiro. Muitas das pessoas internadas no hospital tinham histórias dolorosas para contar: uma mulher que fora atingida por uma bala na coluna durante um assalto a uma loja de conveniência, quando parara, a meio do dia, para comprar Coca-Cola para os filhos; pessoas vítimas de acidentes e com traumas de todo o gênero. Muitas delas encontravam-se não só em tratamento de fisioterapia como também em tratamento psiquiátrico, como era o caso de Joe e da mulher que fora atingida na coluna. Quando tivessem alta, a idéia era que conseguissem levar uma vida perfeitamente normal.

O centro tinha duzentos doentes internos e mais de trezentos externos, que vinham diariamente aos tratamentos. Mas os que viviam ali formavam um núcleo que se comportava como se de uma família se tratasse. O barulho na cafetaria fazia lembrar a Bill a confusão própria de um cocktail. Toda a gente a rir, a falar, a fazer planos, a gabar-se das suas vitórias do dia, ou a queixar-se da dificuldade dos exercícios. Há muito tempo que não via tantas caras sorridentes. Nunca esperara encontrar ali aquele panorama.

Vai haver um torneio de ténis na próxima semana. Joe inscreveu Bill, ao mesmo tempo que falava com meia dúzia de outros pacientes, quatro deles raparigas. Havia muitos jovens em cadeiras de rodas. Bill calculava que metade das pessoas que vira andava na casa dos vinte e eram homens. A outra metade abrangia um largo leque de idades e menos de metade eram mulheres ou raparigas. Três quartos da população do centro pertenciam ao sexo masculino. Eram estes que apresentavam mais problemas, que tinham mais azar, conduziam a maior velocidade, corriam mais riscos e praticavam os desportos mais perigosos. Mas também havia uma série de homens e mulheres da idade dele. à mesa, encontrava-se uma rapariga de extraordinária beleza, mas cuja fala mal se percebia. Era modelo e caíra de um lanço de escadas de mármore e sofrera um forte traumatismo craniano. Estivera em coma oito meses. Chamava-se Helena e a sua melhor amiga no centro era uma jovem bailarina que sofrera um acidente de viação, e estava determinada a voltar a dançar. Todas aquelas pessoas enfrentavam desafios impressionantes e faziam esforços sobre-humanos para os ultrapassar. Estava espantado com a força de vontade que elas demonstravam.

Quando o jantar acabou, sentia-se muito melhor. Joe e Helena haviam-no convencido a ir até ao ginásio, mas não lhe apetecia jogar. Só queria assistir.

Eles jogam muito bem comentou Helena com um sorriso nos lábios, mal se percebendo o que dizia. Também se encontrava numa cadeira de rodas, mas só porque tinha vertigens, provocadas pelo traumatismo craniano, e, por vezes, caía quando menos esperava. Sentia-se mais em segurança na cadeira. Bill ficou impressionado com a sua beleza. Achava-a parecida com Isabelle. Joe contara-lhe que Helena trabalhara em Nova Iorque, Paris e Milão, e fora capa da Vogue e da Harper’s Bazaar. Ainda de acordo com Joe, estava a recuperar muito bem. Da próxima vez, tem de jogar disse ela, em tom de incentive.

E por que razão você não joga, gracejou Bill. Era mais alta do que muitos dos homens, tinha umas pernas que pareciam nunca mais acabar. Trazia calções e sandálias, e os pés impecavelmente tratados e com as unhas pintadas de vermelho. A maioria dos homens não tirava os olhos dela, mas o namorado era o fotógrafo com quem trabalhava na altura do acidente e que tinha por ela uma devoção enorme. Iam casar quando ela saísse do centro. E usava um anel de noivado que Cynthia teria descrito como do tamanho de um ovo.

Bill e Helena assistiram ao jogo lado a lado. Muitos dos doentes davam gritos de incentivo às equipes. Havia grande alegria e animação, independentemente da equipe que marcava. O fato de estarem a jogar já era uma vitória. Bill sentia-se impressionado com o espectacular ginásio.

É casado? indagou Helena. Toda a gente sabia que era comprometida e louca pelo noivo. A pergunta fora feita por mera curiosidade. Bill era um homem bem-parecido. Noutras circunstâncias, ter-se-ia sentido atraída por ele, mas naquele momento era feliz com o noivo que tinha.

Divorciado. Quase. Dentro de meses.

Sinto muito. Será muito popular aqui. E esboçou um largo sorriso. Mas Bill nunca vira tantos homens bem-parecidos juntos, e muitos deles com metade da sua idade. Não se mostrava preocupado com esse fato. Não se considerava um homem livre. Estava apaixonado por Isabelle. Tem namorada?

Bill esteve tentado a dizer que não, mas resolveu ser franco.

Tenho.

Vai casar com ela? Helena mostrava-se implacável.

Não respondeu Bill, atirando com todas as cautelas para trás das costas. Não precisava de estar com segredos. Ela é casada e vai continuar assim.

Que quer dizer com isso? Helena olhou fixamente Para Bill, alheando-se por completo do jogo. A algazarra no ginásio era ensurdecedora, mas estava mais interessada naquilo que Bill acabara de dizer.

Quero dizer que ela não precisa de acrescentar os meus problemas aos dela. Tem um filho deficiente. Não precisa de um marido numa cadeira de rodas.

Porque não? Que diferença é que isso faz? Tem de ultrapassar isso. É essa a opinião dela?

Acho que não Mas é assim que me sinto. Não quero ser um fardo para ela.

É muito simpático da sua parte E aqueles ali? E apontou para os jogadores, a chocarem uns com os outros, a deslizarem a toda a velocidade, de sorrisos abertos e caras lavadas em suor. Divertiam-se à grande. Eles parecem-lhe um fardo para si?

Não estou casado com eles. Mas talvez se tornassem, se fosse esse o caso. Olhe, Helena, não consigo dançar, pôr-me de pé, passear pela rua, nem sequer sei se voltarei a trabalhar. Não posso obrigar ninguém a viver comigo nestes moldes. E nem sequer lhe referiu que da última vez que tentara fazer amor não conseguira.

O que fazia na vida? Era patinador? indagou Helena, franzindo o sobrolho. Era uma rapariga inteligente. Bill gostava do estilo.

Estou na política.

É algo que não se possa fazer sentado? Isso é novidade para mim.

Sabe do que estou a falar.

Eu também me sentia assim. Depois, achei que era uma estupidez. Agora falo de uma maneira engraçada. Às vezes, esqueço-me das coisas. Perco o fio à meada às conversas. Situação bastante embaraçosa. E também não sei se poderei voltar a trabalhar. Mas iria amaldiçoar-me para todo o sempre se desistisse da vida. Tenho qualidades. Posso fazer outras coisas. Ainda estou a meio caminho afirmou, com alguma modéstia. Já eram amigos. As amizades ali faziam-se rapidamente. Encontravam-se todos no mesmo barco e partilhavam o mesmo tipo de problemas. Ainda me considero inteligente, embora possa parecer por vezes estúpida. E se não gostarem de mim assim, que se lixem. O meu noivo está-se nas tintas para isso, mas, caso não estivesse, mandava-o dar uma volta. Talvez você devesse dar a essa mulher uma oportunidade para se decidir.

A questão é um pouco mais complicada.

Há alguma coisa que não seja complicada? Ripostou Helena, pouco impressionada com o que Bill dissera, olhando, por instantes, para o jogo. Depois, virando-se novamente para ele, acrescentou: Não tome uma decisão precipitada. Quase apostaria a minha vida em como ela merece o seu amor e se está nas tintas para o fato de você andar ou não. Bill sabia que o que ela dizia era verdade. Mas para Isabelle havia ainda o problema de Teddy. Bill decidira que só tornaria a vê-la se conseguisse voltar a andar. Era uma condição que impusera a si próprio, mas que ela desconhecia.

Sabe, Helena, gostava de fazer essa aposta consigo. Ouvira tudo o que ela dissera e ficara profundamente impressionado, não só pela coragem da jovem, mas também pela sua candura.

Que aposta?

A sua vida respondeu Bill, soltando uma gargalhada.

Calma aí, hein? Você está apaixonado e eu estou noiva, e a minha vida pertence ao meu rapaz.

É pena. E continuaram sentados, lado a lado, como velhos amigos, até ao fim do jogo.

A equipe de Joe foi a vencedora. Quando este chegou ao pé dos dois, estava feliz e todo suado. Dirigiram-se então até à cafetaria, onde a maioria dos jogadores e respectivos apoiantes já se encontravam. Fora uma tarde divertida. Quando Helena os deixou, para voltar para o quarto, Joe perguntou a Bill, com um sorriso de orelha a orelha:

Ela vai acabar com o noivado? Já todos tentámos.

Estou a tratar do assunto, mas ainda demorará algum tempo. Ambos sabiam que não passava de um gracejo. Helena estava loucamente apaixonada pelo noivo e Joe disse até que ele era uma ótima pessoa. Planeavam casar na Primavera. Helena estava determinada a caminhar pelo seu próprio pé até ao altar. Pela indomável força que demonstrava, Bill acreditava que conseguiria alcançar esse objetivo. Era uma rapariga extraordinária.

Tem uma irmã que a vem visitar comentou Joe, enquanto se dirigiam para os quartos. Parece uma rã. Bill soltou uma gargalhada. Devem ser filhas de mães diferentes, ou uma coisa desse gênero. A Helena apresentou-ma e fiquei espantado. Mas é muito simpática.

Às vezes essas coisas acontecem.

Joga conosco da próxima vez? perguntou Joe, já no corredor dos quartos.

Acho que prefiro ficar a assistir. Gostara da conversa com Helena e pensava naquilo que ela lhe dissera, mas ainda não concordava com as idéias dela. Não ia ser um fardo ou um inválido na vida de ninguém e muito menos na de Isabelle, mesmo que só se encontrassem duas vezes por ano. Era uma dor de cabeça de que ela não precisava. Já tinha dores de cabeça suficientes na vida.

Quer ir a Nova Iorque amanhã? Vão mais uns tipos. Vamos jantar e depois ao cinema.

Adoraria, mas as minhas filhas vêm visitar-me. Olivia vinha de Georgetown, Jane, de Nova Iorque.

Que idade têm? indagou Joe, curioso. Estava interessado em conhecer raparigas, embora não tivesse saído com nenhuma desde a morte da noiva.

Dezenove e vinte e um. Gostava que as conhecesse.

Só saímos às seis horas retorquiu Joe, entrando no quarto de Bill. Tenho um festival de natação amanhã, mas estarei aqui. Bill fora capitão da equipe de natação da faculdade.

Espero por si prometeu Bill, e despediram-se. Estava aborrecido por não ter tido tempo de telefonar a Isabelle nessa noite e agora era muito tarde para o fazer. Eram cinco da manhã em Paris. Resolveu então esperar uma hora e telefonar-lhe quando ela acordasse.

Deitou-se na cama e pôs-se a ler tentando não adormecer. Então, à meia-noite, telefonou. Isabelle atendeu de imediato, parecendo aliviada por ouvir a sua voz.

Estás bem? Estava preocupada contigo.

Estou ótimo. Fui assistir a um jogo de basquetebol. Aqui dão cabo de mim Mas é um sítio extraordinário. Falou-lhe então das pessoas que conhecera, das histórias que ouvira e da terapia que fizera durante todo o dia.

Meu Deus, acho que não conseguiria fazer nada disso.

Também não sei se vou aguentar. Só temos um dia livre. As miúdas vêm visitar-me amanhã. Vai fazer-me bem vê-las. Há dois meses que não as via e sentia imensas saudades.

E estava espantado por também sentir saudades de Cynthia. Mas não referiu esse fato a Isabelle. Ao fim de trinta anos, a presença dela tornara-se um hábito na sua vida que era difícil de quebrar, mesmo tratando-se de um hábito que já não fazia parte da sua existência. E tu, como estás, querida?

Estou ótima. Acabei de me levantar. O Teddy ainda está a dormir.

Tagarelaram durante mais uns instantes, depois tiveram de desligar, quando Isabelle ouviu o filho mexer-se na cama. Deu-lhe os medicamentos da manhã e ele voltou a adormecer. Foi então até ao seu quarto, vestiu-se e deteve-se demoradamente à janela, a olhar para o jardim, sempre com Bill no pensamento. Causava-lhe uma profunda tristeza saber que não o veria tão cedo, mas era por uma boa causa. Provavelmente não se veriam senão daí a um ano.

Nessa noite, pouco antes de adormecer, Bill sorriu ao lembrar-se das palavras de Helena, que até faziam sentido, mas continuava a achar que ela não tinha razão. Ele não poderia pertencer à vida de Isabelle, ou de quem quer que fosse, se não readquirisse a capacidade de andar. Era uma questão de princípio, embora contrariada por tudo o que via naquele local. Mas Helena era bonita e jovem, e mulher... não entendia como se sentia... Ele via as coisas de modo diferente... Era homem.


 

No dia seguinte, quando Olivia e Jane vieram visitar o pai ficaram entusiasmadas com o seu bom aspecto. Bill mostrou-lhes então o centro de recuperação e os terrenos circundantes, e apresentou-as às pessoas que conhecia. Quando encontraram um canto sossegado, sentaram-se, saboreando o ar quente de Setembro. Estava uma tarde soalheira. As raparigas irradiavam felicidade. Tinham muita coisa para contar. Falaram da mãe, das saudades que haviam sentido e do desejo de ambas para que ele voltasse para casa. Ainda estavam muito aborrecidas com a questão do divórcio, se bem que as atenções já estivessem centradas nas aulas.

Ao fim da tarde, antes de se irem embora, foram comer um hambúrguer à cafetaria. Quando lá chegaram, deram de caras com Joe. Bill apresentou os três jovens e a empatia entre eles foi imediata. Olivia conhecia alguém que fora colega de Joe em Minneapolis. O mundo estudantil era pequeno. Joe perguntou a Jane o que achava da Universidade de Nova Iorque, pois pensava inscrever-se aí no curso de Direito. Esta respondeu que adorava, e a conversa continuou a um ritmo animado. Joe pediu também um hambúrguer e conversaram de todos os assuntos que lhes interessavam. E o fato de se encontrar numa cadeira de rodas era irrelevante para todos eles. Ninguém parecia importar-se com a circunstância. Quando saíram da cafetaria, Bill reparou que Olivia caminhava a seu lado e Jane ao lado de Joe. Este parecia sentir-se atraído por ela e convidou-a para ir ao cinema com ele e alguns amigos, nessa noite, em Nova Iorque. Mas Jane disse que tinha outros planos, mas que ficava com pena de não poder ir. Combinaram então que Joe lhe telefonaria para marcarem uma saída para outro dia. Parecia terem muito em comum. Joe era uma pessoa sensível, delicada e inteligente. Quando se foi embora, Bill comentou que gostava muito dele.

É simpático. Foram as únicas palavras de Jane, e Olivia riu-se.

Não digas que ele é “simpático”, diz antes que é “fogo”! Era um rapaz bem-parecido. Bill estava divertido com a forma como os jovens daquelas idades se relacionavam. Faziam-lhe lembrar cachorros na brincadeira uns com os outros.

Nessa noite, Olivia e Jane iam ficar com a mãe. Mal saíram, Bill voltou para o quarto. Quando aí chegou, Joe já o aguardava, com ar preocupado.

Gostava de lhe pedir uma coisa disse, não conseguindo dominar o nervosismo.

Esteja à vontade. O que deseja, Joe? Bill presumia tratar-se de outro jogo de basquetebol.

Queria saber se... Estava a pensar... Devia ser coisa séria. Joe ficou, de repente, com a língua presa e corado até à raiz dos cabelos.

Não deve ser coisa boa gracejou Bill. Parece que quer pedir-me o carro emprestado. Não tenho e, aliás, nenhum dos dois pode conduzir.

Joe Andrews riu-se.

Gostava de saber se não se importava... Inspirou fundo e continuou: ...se não se importava que eu telefonasse à Jane um dia destes? Não o farei se não me der autorização para tal. Além disso, ela pode não querer voltar a ver-me... isto é... você sabe... muito bem... como essas coisas são.

Acho uma ótima idéia. Jane tivera um namorado que todos detestavam, durante dois anos. Para alívio de Bill, haviam acabado no ano anterior. Tanto quanto sei, não está comprometida, embora não esteja muito a par desses pormenores. Tem de lhe perguntar.

Ela disse que podia telefonar-lhe e deu-me o número da casa da mãe e da faculdade. Mas não quis telefonar-lhe sem pedir primeiro a sua autorização.

Bill ficou sensibilizado com o ato de Joe.

Diria que é um sinal de esperança. Então, é melhor do que a irmã da Helena?

Está a brincar? Nem sequer têm comparação. A Jane é Bestial! Isto é... a irmã da Helena é uma moça simpática, mas...

Já sei Parece uma rã.

Não diga à Helena que eu disse isso. É uma rapariga doce e muito inteligente. Estava em pânico perante a perspectiva de Bill contar a Helena o que ele dissera da irmã.

Prometo que não digo nada. Sinto-me lisonjeado por gostar da Jane. E orgulhoso das duas.

Joe também gostara de Olivia, mas achara-a mais velha e mais reservada. Sentia-se mais à vontade com Jane.

Talvez lhe telefone logo à noite.

É consigo disse Bill, num tom paternal. Daqui em diante, não quero ter nada a ver com isso. A Jane é maior e vacinada. Ficou sensibilizado com o fato de aquele rapaz, por quem tinha uma amizade especial, sentir algumas afinidades com Jane. Seria bom para ambos. Ela precisava de alguém inteligente, decente e simpático na sua vida, e ele merecia alguma felicidade depois do que lhe acontecera. A Bill nem sequer lhe passou pela cabeça a hipótese de a ligação entre os dois não resultar, pelo fato de Joe se encontrar confinado a uma cadeira de rodas. No que tocava à sua relação com Isabelle, já não pensava assim.

Olivia e Jane ficaram encantadas com a visita ao pai. No dia seguinte, antes de saírem para as aulas, telefonaram-lhe. Jane não fez qualquer referência a Joe; como tal, Bill ficou sem saber se este lhe telefonara ou não, mas não queria intrometer-se. Antes de desligarem, Cynthia pegou no auscultador e perguntou se podia visitá-lo nessa semana. Hesitou, mas acabou por concordar. Não via qualquer mal nisso. Afinal de contas, dissera-lhe que se ia divorciar para poderem ficar amigos. Não via Cynthia há dois meses.

Dois dias depois, na terça-feira, Cynthia veio jantar com Bill. Quando entraram na cafetaria, lado a lado, ficou espantada. As pessoas sorriam e riam sem se importarem se conseguiam andar pelo seu pé, se estavam confinadas a cadeiras de rodas ou se andavam apoiadas a canadianas. Todos pareciam conhecer-se e conversavam animadamente uns com os outros. Não se lembrava de ver um sítio com tanta animação.

Helena aproximou-se para cumprimentar Bill, que a apresentou a Cynthia, explicando-lhe tratar-se da sua mulher.

Quem era aquela? É muito bonita.

É modelo.

Andas com ela? perguntou Cynthia, sentindo-se invadir por um súbito ataque de ciúmes.

Bill riu-se.

Está noiva.

O noivo é um tipo cheio de sorte! Cynthia sentiu algum alívio.

Foi o que eu lhe disse. Bill soltou uma gargalhada. Voltaram então para o quarto e ficaram a conversar durante algum tempo. Estava bem-disposta, mas ficou algo triste quando falaram da questão do divórcio.

Tens a certeza de que é isso mesmo que queres? Acho uma estupidez divorciarmo-nos, na nossa idade, ao fim de todos estes anos.

Já não havia nada entre nós, Cyn. Sabes bem disse Bill, em tom afável, mas firme.

Eu acho que havia. E continua a haver. Estamos a falar há horas. Ainda te amo, Bill. Porque não tentamos outra vez?

Já nada me resta para dar. Também gosto muito de ti, mas falta-me a chama. Sempre te amarei, mas se tornássemos a tentar, julgo que voltaríamos ao mesmo. Se regressar ao trabalho, passarei a maior parte do tempo a viajar e ficarás aborrecida, entrarás outra vez na mesma vida. Não quis explicitar, mas ambos sabiam ao que se referia. Voltaria a ter casos amorosos com este e com aquele. E se não puder trabalhar de novo, andarei a arrastar-me pela casa, enquanto fazes a tua vida, e nessa altura serei eu a ficar irritado. Prefiro desenvencilhar-me sozinho. E tu tens de fazer o mesmo, até encontrares o tipo certo.

Tu eras o tipo certo retorquiu Cynthia, com ar triste. Não podia dizer-lhe que não tinha razão. Mas não se sentia bem com a sua consciência ao deixá-lo sozinho.

Talvez fosse, talvez não. Se tivesse sido, as coisas não teriam ido dar ao que deram.

Fui estúpida. Agora sinto-me mais adulta.

Sentimo-nos ambos. Por isso, vamos tratar disto como adultos.

Cynthia permaneceu em silêncio durante alguns instantes, depois, soltou um suspiro. Sentira que Bill tomara uma decisão inabalável

E a Isabelle?

A Isabelle? Não queria falar dela com Cynthia. Não há nada a dizer.

Porque não. Ficou espantada. Custava-lhe a acreditar que Bill estivesse disposto a deixar Isabelle, depois de ter constatado a paixão que tinha por ela. Perguntou-se então se não estaria deprimido.

Ela é casada. Eu estou aqui. Não se passa nada.

Não costumas desistir facilmente das coisas. Por que razão desististe dela? Ela não pode ser feliz com o icebergue que vi em Londres. Tem um ar de má pessoa.

E é. Mas a Isabelle tem um filho deficiente. Não se atreve a deixar o Forrester, pois acha que pode ser muito traumático para o rapaz. Acredita, Cyn, é uma situação complicada. Além disso, é uma questão discutível. Não vou arranjar-lhe mais problemas. Ela merece melhor. E tu também.

Cynthia fitou-o demoradamente.

Foi por isso que quiseste o divórcio. Estava horrorizada com a idéia.

Em parte. Mas também temos outros motivos. Fi-lo por mim. E vou manter-me afastado dela A menos que consigam realizar um milagre aqui E apontou para as pernas.

Sabes o que te disseram em Londres. Isso não vai acontecer. Não vais sair daqui a andar. Não te iludas. Não esperes milagres.

E não espero. A mínima coisa que aqui conseguir será uma vitória. Só quero dizer que, enquanto estiver assim, não entrarei na vida dela.

Ela sabe isso? Era um motivo terrível para se deixar alguém que se amava, pior ainda do que os motivos por que quisera divorciar-se. Cynthia achava que, de certa forma, Bill tinha razão para querer divorciar-se, mas nunca se atreveria a dizer tal coisa. Caso ainda estivesse disposto a aceitá-la de volta, não pensaria duas vezes. Mas há muitos anos que ele a tratava com indiferença. O tempo deles já passara. Ela sabe por que razão vais pôr termo ao romance que tens com ela? Sentia pena de ambos.

Bill fez um sinal negativo com a cabeça.

Nem sequer sabe que vou fazê-lo. Mas é possível manter algo vivo a esta distância, sem nos vermos durante muito tempo. No entanto, talvez acabemos por ficar cada um para seu lado. Vou permanecer aqui muito tempo. Ela tem a sua vida. Vai conseguir aguentar-se.

Não estou muito certa disso. Parece-me que ela tem muito pouca coisa na vida. E mais importante ainda: será que tu vais aguentar? Se ela for metade do ser humano que desconfio que é, visto gostares tanto dela, vai estar-se nas tintas para o estado em que te encontras. És melhor do que muitos tipos que andam. Era exatamente o que Helena lhe dissera. O amor não é isso.

Talvez não. Mas é assim que eu sou. Nunca lhe farei uma coisa dessas. Ela não vai deixar o Forrester. Não pode.

Cynthia considerava a situação dramática. Depois de esta sair, Bill ficou em silêncio durante um longo instante. Por que razão toda a gente insistia tanto em que o fato de estar confinado a uma cadeira de rodas até ao fim dos seus dias não tinha grande importância? Para ele, tinha. E sabia que, a longo prazo, também teria para Isabelle. Recusava-se a seguir esse caminho, com ela ou com outra pessoa qualquer, independentemente daquilo que Cynthia dissera. Esta não fazia a menor idéia da situação. Sabia muito bem que ela não iria tolerar isso. Acabaria por detestá-lo por aquilo que ele não era e já não podia ser. Nunca faria tal coisa a Isabelle, nem que isso significasse mentir-lhe. Estava determinado a não voltar a vê-la em Paris se não conseguisse sair do avião pelo seu próprio pé. E como Cynthia lhe lembrara, não havia praticamente nenhuma esperança de voltar a andar.

As semanas no centro passavam a uma velocidade incrível. Andava tão ocupado, tão cansado, a trabalhar com tal afinco nas suas terapias, que mal tinha tempo para respirar.

Gostava da maioria dos terapeutas com quem trabalhava. Eram inteligentes, enérgicos e jovens, e mostravam-se extraordinariamente interessados nos seus pacientes. Ficara impressionado com eles desde a primeira hora. Havia apenas uma terapeuta com quem não se sentia à vontade: Linda Harcourt, que se ocupava da recuperação a nível sexual. Dissera-lhe, logo na primeira vez que se encontraram, que não tinha qualquer interesse em abordar aquele tipo de terapia com ela.

Por que razão? perguntou ela, fitando-o com ar calmo, sentada à secretária. Era uma mulher muito bonita inteligente e mais ou menos da sua idade. Está a pensar desistir do sexo? indagou, de sorriso nos lábios. Ou está tudo bem? Bill ainda pensou em mentir-lhe, mas, ao constatar a franqueza com que ela lhe falava, deteve-se. Não fazia tenção de lhe falar da inexistente vida sexual, mas o olhar determinado com que ela o fitava levava-o a ponderar essa hipótese. Linda Harcourt era uma mulher que impunha atenção e respeito, mas, ao mesmo tempo, exibia um ar dócil. Vejo na sua ficha que é casado. Acha que a sua esposa gostaria de falar comigo? Tinha praticamente a certeza de que a função sexual fora afectada pelas lesões e se ele não queria discutir o assunto com ela, talvez a mulher quisesse. Ao princípio, era costume os homens sentirem algum retraimento em falar sobre os seus problemas sexuais. Por vezes, a conversa com as mulheres facilitava a abordagem dos problemas. Mas Bill acenou logo negativamente com a cabeça.

Estou a tratar do divórcio disse, fechando-lhe essa porta na cara.

Interessante. O acidente teve a ver com essa decisão. Bill desviou o olhar, ficou alguns instantes em silêncio, depois voltou a fazer um gesto negativo com a cabeça

Não propriamente. Já devíamos ter tomado essa decisão há anos. O acidente só acelerou a abordagem do assunto

A especialista em sexologia foi então um pouco mais direta.

Já fez ou tentou fazer sexo depois do acidente? indagou, algo cautelosa. Bill ficou surpreendido consigo próprio ao proferir a resposta, tal a naturalidade com que o fez.

Já.

Como foi? O tom era amável, mas firme. Tratava-se de uma pessoa prática, objetiva, e o seu rosto não denotava o menor sinal de compaixão.

Como foi para mim? Bill riu-se. A sexóloga sorriu. Era o que os homens costumavam dizer, quando as coisas não tinham corrido bem E também sabia o que ele diria a seguir. Não aconteceu nada.

Nem ereção, nem ejaculação, nada? perguntou, com a maior das naturalidades, como se lhe estivesse a perguntar se queria natas ou açúcar no café.

Nem uma coisa nem outra.

Teve alguma sensação de excitação sexual? Bill assentiu com a cabeça.

Muito forte. Mas não cheguei a ter ereção. Conseguia sentir tudo... bem, quase tudo.

Muitas vezes, isso demora o seu tempo. Por aquilo que está a dizer-me, é ainda possível que as coisas melhorem até ao ponto de vir a ter uma vida sexual relativamente normal. Grande parte do êxito reside na forma de encarar o problema e na criatividade.

Bill sentiu-se deprimido ao ouvir aquelas palavras. Não queria ser “criativo” nem redefinir o seu conceito de “êxito”. Aliás, nem sequer tinha vontade de voltar a tentar. E com quem é que tentaria a experiência? Com Isabelle? Ela estava em Paris e ele não estava disposto a fazê-la passar por novo fracasso. Além disso, não tinha o mínimo desejo de voltar a dormir com Cindy. Seria ainda mais humilhante. Já não se sentia apaixonado por ela.

Tem alguma parceira?

Não.

Não faz mal. Pode fazer a experiência em si próprio. Grande parte do êxito, como lhe disse, reside na forma como encarar o problema, assim como na forma de lidar com ele, não só a nível das sensações físicas, mas também ao nível da forma de desempenho.

Não quero fazer nada disso retorquiu Bill, dando a entender à sexóloga que não queria voltar a vê-la. Não acho que seja relevante nesta altura.

E algum dia será? Olhou-o fixamente.

Doutora, não vou fazer figura de parvo, sabendo que as coisas não vão funcionar.

E se funcionarem? Está a abdicar de uma parte importante da sua vida.

Às vezes, as coisas não resultam da forma que queremos. A minha vida é dedicada ao trabalho.

Também a minha. A sexóloga sorriu e entregou-lhe um livro com orientações médicas sobre o assunto. Bill ainda hesitou em aceitá-lo, mas acabou por fazê-lo. É para você se entreter a ler. Na próxima semana, vou fazer-lhe um teste. Bill pareceu ficar em pânico. Ela riu-se. Tenha calma. Não é nada do que está a pensar. É capaz de achar o livro interessante

A sexóloga deu então o encontro por terminado. Para primeiro dia, já havia conseguido consideráveis avanços. Sabia qual era a visão de Bill sobre a questão e qual fora o resultado da sua primeira experiência sexual depois do acidente. Estava muito mais optimista do que ele. Quando este chegou ao quarto, atirou o livro para cima da cama e, com um semblante que denotava alguma irritação, sentou-se a olhar pela janela E aí ficou durante longos minutos. Não queria fazer nenhuma terapia sexual, nem aprender a ser criativo. Queria ser homem, mas, caso isso não pudesse vir a acontecer, fazia tenções de desistir de tudo aquilo que amava, inclusive de Isabelle E, naturalmente, não ia começar a sair com mulheres para comprovar se conseguia atingir e manter a ereção. Estava determinado a preservar a sua dignidade, quanto mais não fosse.

Não falou do encontro com Linda Harcourt a Isabelle. Foi o único aspecto do seu processo de reabilitação que não partilhou com ela. Só dias depois é que, finalmente, Bill pegou no livro, ficando espantado com a informação que ele disponibilizava De acordo com aquilo que leu, a sua primeira experiência não fora atípica e poderia ainda sentir melhorias consideráveis à medida que as lesões fossem cicatrizando. Mas mantinha ainda algum cepticismo quando acabou de o ler. Continuava a acreditar que poderia vir a pertencer àquela vasta categoria de homens que tinham sensibilidade, mas controlo deficiente e erecções que desapareciam com facilidade. E não estava minimamente disposto a verificar a evolução do problema, quer com parceira, quer sozinho. Na semana seguinte, quando se encontrou com Linda Harcourt, insistiu novamente que era mais fácil para si fechar a porta daquela parte da sua vida. Acrescentou ainda que não queria voltar a encontrar-se com ela. Depois de lhe dar mais dois livros, a sexóloga propôs que se vissem mais uma vez, pois queria conhecer a reação dele aos livros que lhe sugerira. Era uma mulher extremamente inteligente e com uma abertura extraordinária. Bill gostava dela, só não queria abordar com ela a sua potencial vida sexual. Achava-se um eunuco e queria manter-se assim. Humilhação, fracasso e desilusão eram palavras que não queria que fizessem parte do seu mundo. Preferia manter-se celibatário e só.

Alguns dos seus amigos da política haviam descoberto que ele se encontrava ali. Dois deles eram de Washington e, os restantes, de Nova Iorque. Pareciam ignorar o seu estado físico e passaram o tempo todo da visita a pedir-lhe conselhos. Por altura do Natal, Bill sentia alguma dificuldade em concentrar-se nas variadas formas de terapia. Os velhos correligionários estavam determinados a puxá-lo novamente para a política. Adorava saber o que toda a gente fazia e quais eram as suas esperanças, estratégias e planos. O que eles queriam dele, como sempre acontecera, era que os ajudasse a garantir os resultados.

Bill combinara passar o Natal na mansão de Greenwich, com Cynthia e as filhas. Arranjaria uma limusine para o levar na véspera e prometera às filhas dormir lá. Teve uma sensação estranha, mas Cynthia dissera que podia ficar num dos dois quartos de hóspedes. As filhas haviam-lhe dito que a mãe tinha um homem novo na sua vida. Bill ficou feliz por ela.

O carro veio buscá-lo às quatro horas. Uma hora depois, encontrava-se em Greenwich, no caminho que ia dar à velha casa. Tratava-se de um edifício imponente, que sempre adorara, mas que lhe fazia sentir uma nostalgia dos tempos aí passados. Mas, logo que viu as filhas, sentiu-se muito melhor.

Olivia e Jane decoravam a árvore de Natal, quando Bill, sentado na cadeira de rodas, entrou na sala de estar. A aparelhagem estereofónica transmitia canções de Natal. Cynthia sentiu uma paz interior como há muito não sentia. Quando se virou para cumprimentar as filhas, Bill ficou de olhos esbugalhados ao encarar com Joe Andrews, sentado na sua cadeira de rodas.

Como chegou até cá? indagou Bill, espantado. Vira-o, à tarde, no salão de jantar. Joe, com ar acanhado, riu-se. Bill desfez-se num sorriso de orelha a orelha. Joe ficou aliviado por Bill não se mostrar aborrecido. Jane veio então sentar-se a seu lado e pegou-lhe na mão.

A Jane foi buscar-me depois de sair das aulas explicou Joe. Queríamos fazer-lhe uma surpresa.

Bill ficou intrigado. Joe não lhe dissera uma única palavra sobre Jane, desde que se conheceram. Não fazia a mínima idéia de que andavam a encontrar-se e que as coisas pareciam ter avançado bastante bem nos últimos três meses.

Ora, sinto-me espantado. Sorriu para os dois. Mas estava satisfeito. Achava Joe um rapaz estupendo.

Nessa noite, jantaram todos juntos e depois foram à missa. Na manhã seguinte, Bill e Joe entraram na sala de estar no exato momento em que Olivia e Jane desciam as escadas. Cynthia já fizera o pequeno-almoço. O seu novo namorado acompanhou-os ao almoço. Parecia ser um homem muito afável e inteligente. Era viúvo, tinha quatro filhos crescidos e parecia gostar bastante de Cynthia, o que agradava a Bill. Este estava surpreendido consigo próprio, ao constatar que não se sentia ciumento, nem possessivo, o que vinha confirmar, mais uma vez, que o divórcio fora a melhor opção.

Bill e Joe voltaram para o centro de recuperação ao fim do dia de Natal, satisfeitos com os momentos agradáveis que haviam partilhado. Porém, para Bill, para a satisfação ser completa, só faltara Isabelle. Telefonara-lhe várias vezes, tendo-lhe ela respondido que estava tudo bem, mas a voz denotava tristeza e nervosismo. Gordon dificultara-lhe a vida nos últimos dois meses. Continuava a puni-la pelo caso amoroso que acreditava que ela tivera, como se o acidente não houvesse sido castigo suficiente. Além disso, Teddy parecia estar a perder peso. Sophie viera passar as férias a casa. No dia a seguir ao Natal, ia esquiar com uns amigos em Courchevelle.

Não está aborrecido comigo por andar com a Jane? perguntou Joe, cautelosamente.

Bill sorriu e disse que não com a cabeça.

Ela merece um bom tipo como você é, e Joe merece algo melhor do que uma moça parecida com uma rã.

E riram-se ambos ao lembrarem-se da irmã de Helena. A modelo fora a Nova Iorque passar o Natal com o noivo. Antes de partirem, todos tinham trocado presentes entre si.

Bill estava convencido de que a relação entre Jane e Joe não iria durar muito. Eram demasiado jovens para pensar em compromissos mais sérios. Olivia confessara que também tinha um novo namorado. Era assessor de um senador que Bill conhecia. Na viagem de regresso ao hospital, não conseguiu deixar de pensar que toda a gente tinha alguém nas suas vidas, menos ele. Continuava apaixonado por Isabelle. Mas com esta em Paris, com Gordon e os filhos, tinha a sensação de que ela se encontrava a anos-luz de distância. E, pela primeira vez, em muito tempo, sentia-se só e triste. Joe saíra com amigos. Jane vinha visitá-lo no dia seguinte. Meteu-se então na cama e tentou ler um livro, mas não conseguiu concentrar-se nele. E sentiu um alívio quando Jane lhe telefonou, já a noite ia adiantada.

Estás zangado comigo, papá? O tom de voz era o mesmo de quando batera com o carro do pai, no primeiro ano do secundário.

Bill soltou uma gargalhada.

Claro que não. Por que motivo é que haveria de estar zangado contigo?

Não sabia o que irias pensar de mim e do Joe.

Que achas dele? Bill começava a ficar com pena de não ter tido aquela conversa mais cedo, em casa, para poder ver-lhe a cara enquanto falavam. O tom de Jane era sério.

Amo-o muito. Nunca conheci ninguém como ele.

Também gosto dele. E tem passado por situações muito complicadas. A paralisia das pernas, o trauma do acidente, a perda da noiva e do irmão gémeo. Uma vida destroçada para sempre.

Eu sei. Ele falou-me disso. A noiva morreu-lhe nos braços. Diz que nunca irá perdoar-se a si próprio.

Daquilo que sei, o acidente não foi culpa dele. O que ele tem é o complexo de culpa do sobrevivente, porque está vivo e as outras pessoas morreram. Ultrapassará isso com o tempo.

Quero estar ao lado dele, papá.

Instalou-se então um longo silêncio, enquanto Bill assimilava todo o peso daquilo que Jane acabara de dizer.

O que queres dizer-me, Janie? De repente, perguntou-se se a filha estaria a tentar dizer que iam casar-se. Tratava-se de uma perspectiva que não via com bons olhos. Eram ambos muito novos e Joe ainda tinha um longo e sinuoso caminho à sua frente. Não havia qualquer esperança de voltar a andar pelo seu pé. Sentia que era demasiada responsabilidade para ela. Como romance, não haveria problema, mas achava que algo mais sério que isso seria um erro para ambos.

Que a minha relação com o Joe é séria.

Começo a perceber essa mensagem. Ele também pensa o mesmo.

Julgo que sim. Ainda não falámos sobre o assunto, mas ele é um tipo estupendo.

Acho que não deves assumir um compromisso sério nesta altura. Ainda estás na faculdade e bem falamos disso um dia. Mudou então de assunto. Falaram do maravilhoso Natal que haviam passado juntos, como nos velhos tempos. Não houvera qualquer tensão entre ele e Cynthia e até gostara do novo namorado dela. Jane dissera-lhe então que iria dar-lhe um beijinho no dia seguinte, quando fosse ver Joe.

A conversa deixou-o algo pensativo. Nessa noite, quando falou com Isabelle, pô-la a par do que se passava.

Nem sequer quero que ela pense em casar-se com o rapaz. Custa-me dizer isto, porque é um miúdo bestial.

Então por que razão é que não podem casar-se um dia. Muita gente o faz com a idade que eles têm. São jovens, mas a Jane parece-me já madura para a idade E o pobre rapaz já sofreu tanto.

Seria um desastre para ela, Isabelle. Precisa de alguém que consiga acompanhá-lo para todo o lado. Adora esquiar, correr e andar de bicicleta. Um dia, quererá ter filhos. O Joe ficará confinado à cadeira de rodas até ao fim da sua vida. Ela merece mais do que isso E ele também, mas não tinha escolha. Jane tinha.

Que coisa horrível estás para aí a dizer ripostou Isabelle, num tom algo irritado. Que diferença é que isso faz, se ela esquia com os amigos, ou dança com outra pessoa qualquer. Estás a querer dizer-me que te opões a que se casem, mesmo que se amem, só porque ele não pode andar de bicicleta? É uma posição extremamente conservadora da tua parte. É um tremendo disparate.

Sei do que estou a falar teimou Bill, franzindo o sobrolho.

Não sabes, não! retorquiu Isabelle, num tom firme. Era a primeira discussão que tinham. Espero que a mãe da Jane seja mais inteligente do que tu. Nunca ouvi tamanha estupidez! Nem digas tal coisa à Jane. Ela nunca te perdoaria e teria toda a razão.

Mudaram então para outros assuntos e ficaram mais calmos. Bill contou o que passara no Natal com Cynthia e as filhas, mas não fez qualquer referência ao novo namorado dela, uma vez que Isabelle ainda não sabia que Cynthia já não fazia parte da sua vida. Isabelle comunicou-lhe que Gordon ia para Saint-Moritz, no dia seguinte, esquiar com amigos. Ela ia ficar em Paris, com Teddy, e assistiriam à entrada do novo ano sozinhos. Sophie já partira para fora.

Bill não parava de se espantar com a pouca atenção que Gordon dispensava a Isabelle. Porém, sentiu-se aliviado com o fato de ele não ter ficado em casa a torturá-la. A sua ausência era uma bênção dos céus. Nessa noite, falaram durante horas esquecidas. Bill tinha vontade de desabafar e sentia-se vulnerável e um pouco triste. Há quatro meses que não via Isabelle e as saudades eram imensas. Nem sequer podiam falar em encontrar-se de novo. Ainda tinha longos meses de reabilitação pela frente.

Depois de desligar, ficou muito tempo a matutar naquilo que Isabelle dissera sobre Jane e Joe. Continuava a não concordar. Esta não sabia do que falava, nem fazia idéia dos enormes desafios que iriam ter pela frente. Bill queria algo muito mais simples para Jane, por muito que gostasse de Joe. Era a primeira vez que discordava veementemente de Isabelle. Esta era demasiado ingénua e idealista para perceber as implicações do que dissera. Bill estava determinado a abordar seriamente o assunto com Jane, se necessário. Pelo menos, até ao momento, não pareciam estar dispostos a tomar decisões precipitadas. Esperava que o bom senso imperasse.

Adormeceu então. Sonhou com a árvore de Natal e, pela primeira vez desde há muito tempo, com a luz branca.

Caminhava na sua direcção, de mão dada com Isabelle, e quando se virou para ela a fim de a beijar, ficou perturbado ao ver Jane e Joe a virem na sua direcção. Ele, de cadeira de rodas ela, em passo lento ao lado dele, com ar magoado. Quando parou, voltou-se para o pai e perguntou-lhe por que razão ele não a avisara das dificuldades que ela iria enfrentar.


 

Quando Gordon partiu para Saint-Moritz e Sophie para Courchevelle, a casa ficou mergulhada num silêncio sepulcral. Isabelle passou toda a tarde no quarto de Teddy a ler-lhe livros. O dia estava nublado e muito frio. Tivera de lhe vestir uma camisola de lã sobre o pijama e pôr-lhe uma colcha por cima.

Teddy tivera um bom Natal. Recebera uma tonelada de livros e jogos novos. Isabelle comprara-lhe um enorme urso de peluche para lhe fazer companhia. Mas a única coisa que ela gostava de lhe ter oferecido era saúde. O filho representava uma constante fonte de preocupações.

Bill telefonava-lhe com maior frequência desde que soubera que Gordon fora passar alguns dias fora. Chegava a telefonar-lhe duas vezes por dia. Tinha saudades dos tempos no hospital, em que podia falar-lhe quando queria. Isabelle não sentia o mínimo desejo de sair ou de visitar os amigos. Depois de o marido partir, ao abrir o correio, ficou espantada ao ver um convite dirigido a ambos. Era de um casal seu conhecido do mundo da moda. A mulher estava à frente de uma casa de alta-costura, o marido já tinha uma idade avançada, possuía um título honorífico e fora diretor de um banco importante. Não se lembrava de alguma vez se ter encontrado com eles, mas presumiu que Gordon talvez os tivesse conhecido nalguma das suas atividades sociais, em que ela não participava, ou talvez no banco. O convite era para o casamento da filha em Janeiro. Ainda pensou em mandar uma prenda à noiva, depois pôs de lado a idéia. Já não ia a festas daquele gênero há muito tempo e Gordon nunca a convidava para o acompanhar quando ia a alguma.

Passou os dias seguintes com Teddy e a conversar com Bill. Este ia festejar a passagem do ano no centro de reabilitação, onde estavam a preparar uma grande festa. Bill prometeu telefonar quando fosse meia-noite em Paris, a fim de poderem entrar no Ano Novo juntos; e Isabelle telefonar-lhe-ia à meia-noite, para Nova Iorque. Esta aguardava a chamada de Bill quando o telefone tocou e uma mulher do outro lado da linha pareceu espantada ao ouvir a sua voz.

Oh, que estupidez a minha! Lamento imenso, enganei-me no número. Estava a telefonar para dizer que perdi o avião. Com isto, parecendo ainda mais confusa e um pouco alcoolizada, desligou. Quem era ou para onde ia era um mistério para Isabelle, que, convencida realmente de que a mulher marcara o número errado, desligou.

Bill telefonou logo a seguir, tal como prometera, e brindaram ao Ano Novo em Paris. Teddy dormia profundamente. Às seis da manhã, hora de Paris, Isabelle telefonou para Nova Iorque, onde era meia-noite. Depois de falar com Bill, foi até à cozinha fazer uma chávena de chá e ler o jornal. Dera o dia de Ano Novo de folga à enfermeira de Teddy. Estava felicíssima por poder cuidar do filho sozinha.

No dia seguinte, Teddy dormiu até tarde. Isabelle aproveitou para dar uma nova vista de olhos ao jornal e ficou espantada ao ver o nome de Gordon na coluna da vida social, onde se noticiava a sua presença em Saint-Moritz na companhia de amigos. Aga Khan, o príncipe Carlos e uma série de notáveis encontravam-se entre eles. Reparou então noutro nome. A condessa de Ligne também iria juntar-se ao grupo. Era a mulher que os convidara, no dia anterior, para o casamento da filha. Presumiu então que ela e Gordon deveriam ser amigos. E lembrou-se do telefonema, na noite anterior, de uma mulher que dizia que perdera o avião. Por instantes, sentiu um arrepio no corpo. Por que motivo a mulher teria telefonado para casa de Gordon? E por que raio seria a condessa de Ligne e não outra pessoa qualquer? O seu primeiro nome era Louise. Não conseguia imaginar que ela tivesse um caso com Gordon. Provavelmente era amiga de outros dos presentes. Mas a coincidência não lhe saiu da cabeça durante todo o dia. Às seis horas, resolveu cometer uma loucura. Não tinha nada para fazer e queria ouvir a voz da condessa de Ligne. Telefonou para o Serviço Informativo e obteve o número facilmente. Após alguma hesitação, marcou os algarismos. Do outro lado da linha atenderam de imediato.

Alo? Sim?

Madame de Ligne? indagou, eliminando o título.

Sim

Estou a telefonar-lhe para confirmar o seu voo para Saint-Moritz proferiu Isabelle, não fazendo a mínima idéia do que dizer a seguir.

Já lhe disse há uma hora que só poderei ir amanhã. O meu marido encontra-se muito doente retorquiu Louise de Ligne, algo irritada, mas Isabelle já ouvira aquilo que queria. Tratava-se da mesma voz da noite anterior.

Oh, peço imensa desculpa. Deve ter sido a minha colega. As minhas desculpas, Madame de Ligne.

Preciso de confirmar de novo? perguntou a condessa, num tom algo imperial. Tinha o mesmo tom de arrogância na voz que Gordon. Pareciam gêmeos.

Não é necessário. Boa viagem! disse, num tom cordial, e desligou. Não sabia porquê, mas estava a tremer, tentando coordenar as idéias. E não conseguia deixar de se perguntar por que motivo a condessa telefonara a Gordon na noite anterior. Não queria tirar conclusões precipitadas, mas o seu sexto sentido dizia-lhe que o marido tinha um caso com a condessa. Esta devia ter querido ligar para Saint-Moritz para lhe dizer que perdera o avião, mas, como estivera a beber, telefonara para a casa de Paris.

Quem era? perguntou Teddy, entrando no quarto da mãe, o que raramente acontecia. Mas ficou espantado quando viu o ar preocupado dela. Há algum problema?

Não, eu... só estava a tentar ligar para o papá, mas ele saiu.

Provavelmente foi esquiar, ou a uma festa. Quando Bill telefonou, Isabelle deu-lhe conta das suas suspeitas.

Parece-me um pouco forçado comentou Bill, com alguma cautela. Mas as mulheres têm uma intuição extraordinária para essas coisas. Confio mais no teu instinto do que na minha cabeça. Sempre soube quando a Cynthia andava com alguém. Olhava-me sempre de modo diferente e era mais simpática e mais jovial.

Nem sequer sei por que motivo é que lhe telefonei. Ela podia ter-se enganado no número, mas mostrou-se demasiado delicada. Se tivesse sido mesmo engano, teria desligado de imediato. E por que razão nos convidaria para o casamento da filha?

Se a tua teoria estiver correta, talvez o Gordon lhe tivesse dito que não mas ela quer que ele vá. Portou-se com grande compostura. Podia tê-lo convidado só a ele.

Eu devia aceitar. Só para os assustar.

Tens coragem para isso? perguntou Bill, curioso com a reação de Isabelle. Sabia que esta não dormia com Gordon há anos. Além disso, tratava-a tão mal desde o acidente que seria um alívio se ele tivesse um caso com alguém. Não era uma forma agradável de abordar o problema, mas Isabelle estava farta de ser tratada como uma criminosa na sua própria casa.

Não sei se me sinto magoada, aborrecida, aliviada ou humilhada. Talvez sejam apenas amigos e eu esteja a magicar coisas.

Seria interessante saber.

Como vou descobrir? Mesmo que eu tenha razão, ele não vai admitir. Não faço idéia do que ele faz, onde vai ou com quem se encontra.

Contrata um detetive.

Acho que seria uma atitude despropositada. Ficaria furioso se descobrisse e atormentar-me-ia ainda mais para encobrir a culpa.

Bem, mantém-te atenta. Talvez apareça alguma coisa na imprensa depois de ela chegar a Saint-Moritz.

É demasiado esperto para se expor.

Depois de desligarem, Isabelle teve outra idéia. Havia uma mulher do mundo da alta-costura que conhecia há vários anos. Haviam estudado juntas e eram boas amigas, mas não a via desde o nascimento prematuro de Teddy. Chamava-se Nathalie Vivier.

Telefonou de novo para o Serviço Informativo a fim de saber o número de Nathalie. Esta nunca se casara e era um nome firmado no mundo da alta-costura. Tinha basicamente a mesma importância que Louise numa casa rival. Sentia que estava a desvendar um grande mistério e era com grande determinação que procurava descobrir o que podia sobre Louise de Ligne. Nas últimas duas horas, tornara-se uma obsessão.

Aguardou por uma hora respeitável para lhe telefonar. Era sábado e foi ela própria que atendeu. Ficou muda de espanto quando reconheceu Isabelle.

Meu Deus, há anos que não falo contigo... Como está o teu filho?

Isabelle explicou-lhe que Teddy era uma criança extremamente doente há catorze anos, desde que nascera.

Desconfiei que uma coisa dessas tivesse acontecido. Toda a gente diz que te tornaste uma reclusa. Ainda pintas?

Não tenho tempo.

Puseram então a conversa em dia. A mãe de Nathalie morrera, o pai voltara a casar, ela vivera com um senador durante dez anos, depois este voltara para a esposa, que estava moribunda. Nunca se casara, nem tivera filhos, e continuava a adorar o trabalho que fazia. Dava a sensação de que não existira nenhum hiato de tempo desde a última vez que se haviam encontrado. Partilhavam uma grande amizade até Isabelle se casar com Gordon. Nathalie detestava-o. Achava-o pomposo e arrogante, e estava convencida de que casara com ela por causa das ligações sociais de Isabelle. Nunca confiara nele, mas não lhe recordou esse fato.

Tenho uma pergunta terrível a fazer-te. Só quero saber uma coisa e não sei de que outra forma conseguirei saber.

Ouviu-se um longo silêncio do outro lado da linha. Nathalie perguntou-se se devia responder-lhe com toda a franqueza, não ficando inteiramente surpreendida com o telefonema de Isabelle, só estranhando que esta apenas o tivesse feito ao fim de tanto tempo.

Que queres que te diga?

Quero fazer-te uma pergunta sobre uma pessoa e gostaria que me dissesses a verdade. Que sabes sobre a Louise de Ligne?

Nathalie soltou um suspiro e resolveu responder-lhe com toda a franqueza.

É uma mulher muito talentosa, muito difícil, muito inteligente, bem-parecida, embora um pouco mais velha do que nós e, por vezes, muito grosseira. Extremamente fria. E muito ambiciosa. Dizem que é ela que financia a casa onde trabalha. Julgo que o marido lhe comprou uma boa quota. É um velho de alguns cem anos, completamente gagá e muito doente. Ela herdará o dinheiro quando ele morrer. Ele já era casado e, por aquilo que dizem, os filhos dele têm-lhe um ódio de morte. Mas ela é suficientemente inteligente para mexer os cordelinhos de modo a que eles recebam o menos possível da herança. Já se gaba disso. Casou pelo dinheiro, quando ele já tinha uns oitenta anos e teve um filho dele para garantir o futuro. O velho deve ter uns noventa e tal. Pouco mais pode durar. É uma das maiores fortunas de França. A informação era interessante, mas não era inteiramente aquilo que Isabelle queria ouvir.

Que mais sabes?

Isabelle, não procures coisas que podem magoar-te. A vida já é suficientemente dolorosa. Porque estás a perguntar-me isso?

Porque quero ter a certeza. Sabes alguma coisa, não sabes?

Nathalie fez uma longa pausa e soltou novo suspiro

Não é propriamente um segredo. Meia Paris sabe. Isabelle sentiu o coração bater mais depressa

Ela anda metida com o Gordon?

Nathalie riu-se. Isabelle continuava a ser extremamente ingénua, ao fim de todos aqueles anos. Sempre adorara essa característica da amiga, mas já era hora de crescer.

É amante dele há uns dez, doze anos. Vão a todo o lado juntos. Surpreende-me que nunca te tenham contado... Há anos que vão a eventos sociais. Toda a gente sabe

Já não conheço ninguém declarou Isabelle, perplexa. Estás a falar a sério?

Estou. Ele passa a vida a oferecer-lhe jóias e até lhe deu um carro. Acho que têm um apartamento na Rive Gaúche. Rue du Bac, julgo. No Verão, vão para o Hotel du Cap. O ano passado encontrei-os em Samt-Tropez. Ele vai deixar-te? Se for, tens de lhe exigir uma boa pensão. Por aquilo que ouvi, gasta uma fortuna com ela.

Não consigo acreditar, Nathalie. Como é possível? Tens a certeza?

Absoluta. Se não acreditas, telefona a dez pessoas com quem te davas e todas te dirão a mesma coisa. Há anos que funcionam como casal.

Ele não vai deixar-me. Mas nunca pensei que as coisas tivessem chegado a este ponto. Só ontem é que comecei a suspeitar que algo se passava. Sempre imaginara que se tratava de um caso fortuito, nunca de uma vida inteira de doze anos com outra pessoa, enquanto ela, em casa, cuidava do filho.

Ele ainda não tem motivos para te deixar. Ela não pode abandonar o marido enquanto ele for vivo. Quando isso acontecer, tenho quase a certeza de que o Gordon não quererá perdê-la. É poderosa e rica. Talvez nessa altura esteja farta dele. Nunca se sabe. É uma autêntica cabra. Se souber que representas uma ameaça, é capaz de te fazer a vida negra. Não olha a meios. Era uma costureirinha de segunda quando conheceu o velho. Este fê-la condessa e meteu-a na alta-costura. Se bem que seja uma boa profissional, tenho de reconhecer. Mas não é flor que se cheire. Acaba contigo num abrir e fechar de olhos, tenha ela de fazer o que fizer. Se quiser o Gordon, põe-no a rastejar a seus pés, se necessário for. Aliás, era o que já fizera.

Não represento qualquer ameaça para ela observou Isabelle, algo assustada. Sentia-se uma perfeita idiota.

Ela pode não ver as coisas dessa maneira. Sinto muito, Isabelle. Nathalie detestara ser a pessoa que lhe dera a má notícia. Sempre gostara daquela amiga.

Isabelle não conseguia imaginar Gordon junto com outra mulher. E não deixava de se interrogar se a culpa não teria sido sua, por passar a maior parte do seu tempo a cuidar do filho. Nathalie dissera-lhe que o romance já durava há dez, doze anos. Gordon pusera-a fora do quarto, do coração e da sua vida precisamente na mesma altura. Tudo fazia sentido.

É melhor continuares a tua vida sem ele. É um indivíduo extremamente egoísta. Sempre pensei que ele detestava as mulheres.

Isabelle falou-lhe então do acidente, mas não de Bill, e prometeram voltar a contatar muito em breve. Ficou satisfeita por ter ouvido a verdade, por mais dolorosa que tivesse sido. Após desligar, permaneceu em silêncio durante algum tempo e depois telefonou a Bill. Acordou-o de um sono profundo, mas estava ansiosa por comunicar-lhe o que soubera.

Contou-lhe tudo de seguida. Quando acabou, Bill já estava sentado na cama, de olhos bem abertos e com ar perplexo. Tudo aquilo era tipicamente francês. Ter amantes durante uma década ou mais era pouco vulgar nos Estados Unidos. A maioria das pessoas divorciava-se. Mas a condessa aguardava que o marido morresse para receber a herança.

É uma história dos diabos! Tens a certeza de que a Nathalie te contou mesmo a verdade? No entanto, apenas confirmava aquilo de que sempre suspeitara: Gordon era um estupor e um sacana.

A Nathalie sempre soube de tudo. Por que motivo nunca me contaram? Era humilhante constatar que toda a gente em Paris sabia, menos ela. Sentia-se uma idiota

Talvez pensassem que sabias e não quisessem atirar mais achas para a fogueira. Muitas pessoas fazem isso, especialmente na Europa, se bem que também o façam aqui. Também nunca ninguém lhe falara dos casos amorosos de Cynthia.

O que achas que deva fazer? Isabelle não tinha a menor idéia de como actuar após a informação que possuía.

Que queres fazer?

Não sei. Adoraria atirar-lhe com isso à cara no preciso momento em que entrasse em casa, ou telefonar-lhe para Saint-Moritz, mas reconheço que não é uma atitude muito inteligente. Sabia que Gordon lançar-se-ia sobre ela como um animal selvagem.

Acho que deves esperar e, da próxima vez que ele for desagradável contigo, atiras-lhe com isso à cara. Queres deixá-lo? Queria, mas achava que não devia fazê-lo. A mudança seria muito violenta para Teddy e não tinha a certeza de que Gordon lhe desse uma pensão suficiente para cuidar do filho. De qualquer forma, a amante não podia casar-se, por isso não estava ansioso por se divorciar de Isabelle ou ser generoso com ela. Gordon não quereria que rebentasse um escândalo, dada a sua proeminência e reputação no banco. Era mais prudente aguardar, como Bill dizia. Teria muito tempo para reflectir no assunto e tomar as decisões que achasse melhor. Bem, agora já tens munições. Talvez devas guardá-las para o momento certo e depois dás-lhe um tiro entre os olhos.

Se toda a gente já sabe, não seria um grande escândalo se nos divorciássemos, pois não?

Acho que sim. Uma coisa é ter uma amante, mesmo que seja do conhecimento público, outra coisa completamente diferente é ter uma mulher furiosa a armar um escândalo, a falar com a imprensa, a fazer acusações públicas, a pedir-lhe uma quantia exorbitante, a virar a opinião pública contra ele. Pareces a Virgem Maria com um filho deficiente nos braços. Se um dos meus candidatos estivesse metido numa embrulhada dessas, aconselhá-lo-ia a manter a maior discrição possível, a continuar casado contigo, a exibir um ar respeitável, a começar a dar de comer a órfãos ou a adoptar freiras cegas. O Gordon quererá que toda essa trapalhada se resolva o mais discretamente possível, e isso depende de ti, meu amor. A bola está nas tuas mãos. A última coisa que ele quererá é um escândalo público ou um divórcio. Especialmente se ela ainda não estiver livre. Ele desejará sair de casa o mais discretamente possível, quando ela ficar viúva, e não antes disso. E conhecendo a personalidade dele como conheço, não creio que vá pedir-te desculpas e ser simpático contigo. Acabará sempre por te culpar de tudo. Quanto mais tiver de se esconder, mais cruel se tornará. Se o enfrentares, ir-te-á ameaçar de tudo e mais alguma coisa. Tem cuidado, querida. Se o encurralares, corta-te o pescoço. Conheço o gênero. Não recuará, nem sairá pacificamente da tua vida. Matar-te-á primeiro. O casamento tem servido os seus propósitos e não vai querer que armes confusão. E talvez ela queira ver-te casada com ele para lhe dar um certo ar de respeitabilidade, pois nunca irá deixar o velho antes de ele morrer. Acho que se estão a passar coisas que nem consegues imaginar. Tem cuidado. Não o pressiones demasiado.

Era um conselho sensato. Reconhecia que Bill tinha razão, só não sabia o que fazer com a informação que possuía. Pensou então nas muitas noites que Gordon não dormira em casa e em que provavelmente estava com a condessa no apartamento que Nathalie referira. Vieram então à memória as viagens com os amigos, as férias que fazia “sozinho”, as festas a que ia, os lugares que frequentava. Nathalie tinha razão, tudo isso durava há uma dúzia de anos.

Quero que penses maduramente no assunto. Não faças nada por enquanto aconselhou Bill, pensativo. Não queria que Isabelle saísse magoada de toda aquela situação.

Não farei.

Lembra-te de que, se o encurralares, ele ripostará Não tenho a menor dúvida.

Isabelle concordava a cem por cento. Gordon podia ser de extrema crueldade se se visse atacado. Descobrira essa característica dele há alguns anos.

Nos dias seguintes, continuaram a falar sobre o assunto, mas não chegaram a novas conclusões. Quando regressou, Gordon exibia um ar feliz e um bronzeado invejável, e mostrou-se surpreendentemente simpático com Isabelle. Até lhe perguntou pelo estado de Teddy, mas a mulher não disse uma única palavra sobre a condessa de Ligne.

Isabelle entregou-lhe então o correio. Abrira apenas um envelope, pois era dirigido a ambos e anunciou-lhe, com o ar mais natural do mundo, que o conde e a condessa de Ligne os haviam convidado para um casamento. Disse-lhe ainda que aceitara o convite em nome dos dois. Gordon não esboçou qualquer reação.

O médico do Teddy diz que devo sair um pouco mais e acho que tem razão. Deduzi que os conhecesses e, como veio no nome dos dois, achei que talvez não te importasses que eu também fosse disse numa voz suave e de olhos arregalados.

De modo nenhum ripostou Gordon, com ar despreocupado E, por instantes, Isabelle perguntou-se se Nathalie não estaria enganada. Gordon virou-se então para ela com uma expressão estranha no rosto. Se bem que seja um casal aborrecido e muito velho. É capaz de ser incómodo para ti. Se vais começar a sair outra vez, acho que devias escolher algo um pouco mais divertido acrescentou, num tom mais solícito que amedrontado.

Que idade poderão ter com uma filha que vai casar, indagou Isabelle, com ar inocente.

Gordon encolheu os ombros.

Não creio que seja muito nova. Deve ser uma matrona e com poucos atributos de beleza. Acho que vai ser uma grande chatice.

Gordon estava determinado a convencê-la a não ir. E, pela primeira vez, desde há muitos anos, Isabelle sentia um prazer enorme em trocar impressões com o marido.

Tens razão, não deve ser muito divertido. Achas que lhes escreva a dizer que, afinal, não vamos? Não será uma indelicadeza da nossa parte?

Eu trato do assunto. A propósito, onde está o convite?

Em cima da minha secretária.

Levo-o quando sair. Vou pedir à minha assistente que trate do assunto.

Obrigada, Gordon. Manda-lhes um bom presente a acompanhar as desculpas.

Também vou pedir à Elizabeth que trate disso. Já tens preocupações suficientes.

Isabelle agradeceu-lhe. Quando saiu, Gordon já levava o convite na mão. Quando soube do sucedido, Bill riu-se.

És um monstro, não há dúvida. Mas lembra-te do que te disse. Tem cuidado, ele não é parvo nenhum. Pode estar à espera de ver o que fazes. É possível que desconfie que alguém te disse qualquer coisa, uma vez que, de acordo com as palavras da tua amiga, toda a gente de Paris sabe.

Não farei nada de nada. Nos dias seguintes, a única coisa que fez foi verificar se o marido se encontrava no quarto a altas horas da noite e de madrugada. Tal como calculara, não passava as noites em casa e não esperava que Isabelle viesse a saber, pois estava expressamente proibida de entrar nos seus aposentos. Encontrava-se, presumivelmente, no apartamento na Rue du Bac, na companhia de Louise.

Isabelle e Gordon passaram o mês seguinte a brincar ao gato e ao rato, e as coisas não se alteraram, como acontecia há vários anos. Ele tinha a amante, um apartamento, uma relação e, de alguma forma, era mais casado com ela do que com Isabelle. Tal como esta se sentia mais casada com Bill.

Este encontrava-se no centro de reabilitação há cinco meses. Há muitos anos que não se sentia em tão boa forma física. O pescoço praticamente já não lhe provocava qualquer problema, os ombros estavam mais fortes e os quadris mais magros. De fato de banho, quando nadava, parecia um jovem. Tinha mais sensibilidade nas pernas, o que lhe permitia mo ver-se mais facilmente na cadeira de rodas. Porém, não conseguia andar, nem pôr-se de pé. As pernas não tinham força, incapazes de suportar qualquer peso sobre elas. As perspectivas de voltar a ter Isabelle nos seus braços eram cada vez menores. Continuava a encontrar-se com a Dr.a Hartcourt, a sexóloga, apesar da renitência inicial. Insistia que o sexo já acabara para si. O fato de não ter conseguido consumar o ato sexual com Isabelle fora extremamente traumático e estava convencido de que as coisas não iriam alterar-se. Mas gostava de falar com Linda Hartcourt, que continuava a dar-lhe a ler uma série de livros interessantes. No entanto, não conseguiam convencê-lo.

Para complicar ainda mais as coisas, Jane e Joe vieram ter consigo, em Março, para lhe comunicar que estavam noivos. Embora gostasse muito de Joe, ficou preocupado com o assunto e teve muitas conversas telefônicas com Cynthia. Esta mostrava-se muito mais compreensiva e discutiram o assunto durante várias semanas. Bill acabou por ter uma longa conversa com Jane, quando esta veio visitá-lo.

Papá, sabemos o que estamos a fazer. Não somos crianças. Há sete meses que nos conhecemos. Sei aquilo com que vou contar. Devido à natureza das lesões, Joe usava fraldas, tomava medicamentos e só tinha mobilidade num dos braços. As suas limitações eram maiores do que as de Bill. Fora aceite na faculdade de Direito. Era uma pessoa inteligente E os médicos achavam, mas não tinham a certeza, que ainda poderia vir a ter filhos. Linda explicara a Bill que homens com incapacidade de desempenho sexual podiam engravidar as mulheres através de inseminação artificial. Não se sabia ainda se Joe, que também era paciente de Linda, estava nessa situação. Mas, ao contrário de Bill, era jovem, e isso jogava a seu favor. Na sua idade, este já não estava disposto a fazer “experiências” ou papel de idiota. Estava preparado para se abster do sexo até ao fim da vida. Aceitava isso como uma inevitabilidade, ao contrário de Joe.

Não sabes no que te vais meter. Ele estará completamente dependente de ti, tanto no plano físico como emocional.

Não é verdade. O Joe preocupa-se comigo, como nenhum outro homem alguma vez se preocupou, além do papá. Vai ser advogado, investiu o dinheiro da indemnização do acidente, tem um milhão de dólares em acções e outros ótimos investimentos. O corretor da mamã deu uma vista de olhos à carteira de acções e disse que o Joe fez os investimentos certos. E se ele não puder fazer montanhismo ou dançar a valsa, não me importo.

Talvez um dia te importes.

O papá e a mamã não foram bem-sucedidos no casamento e o papá andava quando se casaram. Que tem isto agora de tão diferente? Por que razão estamos nós em pior situação do que vocês estavam nessa altura?

Porque ele é deficiente insistiu Bill. Vai ser um tremendo fardo para ti. A tua mãe e eu não tivemos sorte no casamento quando eu conseguia andar, mas hoje, tal como estou, não poria sequer essa hipótese.

É uma patetice. Não acredito que o papá pense dessa maneira.

Bill estava mais do que arrependido por tê-la apresentado a Joe. Pensara que não tivesse qualquer mal e enganara-se. Nas duas semanas seguintes, discutiu o assunto com Isabelle, Cynthia e as duas filhas. Finalmente, teve uma conversa com Joe. Esperava sinceridade e seriedade da parte dele e era óbvio que se mostrava aborrecido ainda antes de a conversa ter começado. Mas não estava preparado para o que Joe tinha a dizer.

Sei o que sente, Bill proferiu, calmamente. Jane já lhe contara tudo. Estava furiosa com o pai e disposta a fugir com Joe, se necessário fosse. Mas este respeitava demasiado Bill e Jane para fazer tal coisa. Não posso dizer-lhe que está enganado. Não posso dizer-lhe que será um caminho fácil, ambos sabemos que não. Eu sei. Compreendo isso melhor do que a Jane. Somos jovens. O casamento não é fácil. Os meus pais estão divorciados, você e a Cynthia também. Não há nada garantido na vida. Mas acho que existe um laço especial entre mim e a Jane, e julgo, com toda a sinceridade, que as coisas irão dar certo. Vou fazer tudo o que puder para a proteger, amar e cuidar dela. Havia lágrimas nos seus olhos. Bill virou a cara, não queria deixar-se influenciar. Mas também o respeito muito para fazer algo que lhe desagrade. Aceito a sua opinião, embora a considere errada. Julgo que tanto você como eu temos o direito de usufruir de uma boa vida e de um bom casamento como o resto das pessoas. Apesar de não andar e de não conseguir mexer um braço, tenho direito ao amor. Espero que pense o mesmo. Porém, se não quiser que case com a sua filha, dir-lhe-ei a ela que pensei melhor no assunto e que mudei de idéias. Se é isso que quer, prefiro que ela me odeie a mim. Você é o pai, precisa de si, talvez ainda mais do que de mim. Além disso, não quero fazer parte da sua família se não for essa a sua vontade. É consigo.

As palavras de Joe deixaram-no algo perturbado queria que tudo fosse diferente, mas achava que seria uma vida muito dura para ambos. O seu único intento era proteger a filha. Queria que ela tivesse um homem que a pudesse levar, pelo seu próprio pé, a ver o pôr do sol.

E se descobrir que não pode ter filhos? Este era um dos principais problemas com que Bill se debatia E acreditava que Jane também se debateria com ele no futuro.

Adoptamos uma criança. Já falámos do assunto. Não há nada garantido na vida. Muitos dos casais que não têm os nossos problemas vêm a descobrir que não podem ter filhos. Faremos o que nos parecer ser melhor para ambos.

Bill sabia que não poderia exigir mais de outro homem. Joe era honesto, afável, louco por Jane, inteligente, educado, atencioso, culto, financeiramente estável, mas estava confinado a uma cadeira de rodas para o resto da vida. Era a decisão mais difícil que alguma vez era obrigado a tomar. Depois de ouvir o jovem durante longo tempo, estendeu-lhe os braços e, de lágrimas nos olhos, os dois homens abraçaram-se.

Tudo bem, seu reles patife! balbuciou Bill, mal contendo a comoção. Avance! Mas se a fizer infeliz, mato-o.

Juro. Farei tudo o que puder por ela até ao fim da vida.

Limparam as lágrimas e sorriram um para o outro. Bill tirou então uma garrafa de vinho do frigorífico.

Quando é que estão a pensar casar? indagou Bill, enquanto enchia dois copos de vinho. Tinha a sensação de ter acabado de escalar os Alpes, tal como Joe.

Talvez em Junho ou Julho. Vou entrar na Faculdade de Direito da Universidade de Nova Iorque e podemos arranjar alojamento para um casal. No Outono, Jane teria vinte anos. Joe, vinte e três. Eram jovens, é certo, mas outros antes deles já haviam feito o mesmo e tinham tido sorte. Bill esperava que eles pertencessem a esse grupo.

Quando é que tem alta?

Dentro de um ou dois meses. Já cá estou há um ano. Pensei ir passar uns tempos a Minneapolis.

Bill teve vontade de dar pulos de alegria. Estavam ambos um pouco ébrios. Quando chegou ao seu quarto, Joe telefonou, de imediato, a Jane. Sentia-se extremamente aliviado. Tivera medo daquilo que Bill pudesse dizer, mas as coisas haviam corrido maravilhosamente. Mal ouviu a novidade, Jane não conseguiu conter as lágrimas de alegria. A bênção do pai era de extrema importância para si. Tanto ela como Joe não queriam casar sem o consentimento de Bill.

Cinco minutos depois de Joe sair do quarto, Jane telefonou ao pai, extremamente emocionada, a agradecer-lhe. Depois de desligar, foi a vez de Cynthia telefonar a Bill.

Fizeste bem. Fiquei um bocado preocupada contigo, mas fizeste o que devias. Parecia mais calma e mais madura. Todos haviam crescido no último ano, não só as filhas.

O que te faz ter tanta certeza? perguntou Bill, ainda algo preocupado.

Sinto. Tu estás apenas assustado. Ele vai ser bom para ela. Era a única coisa que poderiam pedir. O resto estava nas mãos do destino.

Espero bem que sim. Caso contrário, vai-me ter à perna.

Tenho orgulho em ti.

Não tenhas. Ele é um puto porreiro, e eu não podia dizer que não.

Sinto-me imensamente feliz.

Isabelle disse a mesma coisa quando telefonou a saber como é que a conversa com Joe correra.

Nunca te perdoaria se tivesses dito que não. Estivera preocupada toda a noite. Levantara-se às quatro da manhã para lhe telefonar, desejando que tudo tivesse corrido bem. Não havia nada mais irresistível do que o amor. E uma coisa era certa Joe e Jane amavam-se loucamente. Bill só esperava que a vida os tratasse bem. Joe, pelo menos, já pagara a sua conta.

A Primavera chegara a Paris. Nos últimos dois meses, a vida de Isabelle continuara na mesma rotina de sempre. Nunca confrontara Gordon com a sua descoberta. Esperava a altura adequada para o fazer. Porém, desde que descobrira o envolvimento do marido com Louise, o modo de encarar as coisas alterara-se por completo. Já não nutria o complexo de culpa por causa do que sentia por Bill e, a maior parte do tempo, mantinha-se longe de Gordon. Não esperava nada dele. Era simplesmente o homem que, por acaso, vivia na mesma casa que ela. Só temia que ele suspeitasse do seu comportamento estranho.

Bill continuava a telefonar-lhe todos os dias, mas sabia que tinha de tomar algumas decisões muito em breve. Há sete meses que se encontrava no centro de reabilitação e, embora se sentisse em ótima forma física e o estado de saúde tivesse sofrido algumas melhoras, nada de significativo ocorrera. Planeara ficar um ano no centro, mas os terapeutas diziam-lhe que não tardaria a ter alta. Era provável que saísse em Maio. Haviam-lhe dito, finalmente, que não podiam fazer mais nada. Estava confinado à cadeira de rodas até ao fim dos seus dias. Não havia nenhum milagre, nem nenhuma operação que pudessem oferecer-lhe. Tinha de fazer as pazes com a vida tal como ela era agora. Era o golpe mais cruel que sofrera. O pior teria sido se Isabelle não tivesse sobrevivido ao acidente. O fato de não conseguir andar significava que nunca mais a veria. Preferia morrer a ser um fardo para ela. Aliás, tivera a sensação de ter morrido quando lhe comunicaram que não poderiam fazer mais nada. Ainda não dissera nada a Isabelle, mas sabia que tinha de o fazer em breve.

Os amigos continuavam a telefonar-lhe de Washington, e um importante candidato a senador insistia para que Bill dirigisse a campanha, em Junho. Tinha em vista as presidenciais, que seriam dentro de quatro anos e sabia que Bill era a pessoa certa para o levar até à Casa Branca.

Falou do assunto com Isabelle, que achava que devia aceitar, pois far-lhe-ia bem voltar ao trabalho. Por vezes, sentia-se algo desalentado por não ter conseguido mais progressos no centro, mas, se isso não acontecera, não fora por culpa dos terapeutas, inexcedíveis na forma como o haviam tratado. Deixar o centro era como abandonar o útero materno.

As lesões de Isabelle já haviam cicatrizado. As análises estavam normais e raramente tinha dores de cabeça. Fizera uma recuperação extraordinária e não ficara com marcas do acidente, à exceção de uma cicatriz ao longo do braço esquerdo, no sítio onde a artéria afectada fora suturada. Nada mais restara a não ser a forte relação que nascera no hospital com Bill. Continuava a sentir imensas saudades e pedira-lhe para vir vê-la quando saísse do centro. Mas sempre que lhe pedia tal coisa, Bill dava respostas vagas. Sabia que ainda era muito cedo para ele fazer planos de viagem, mas esperava que o fizesse o mais brevemente possível. Há sete meses que não o via, o que lhe parecia uma eternidade.

À medida que o tempo passava, Bill atormentava-se constantemente com o fato de não ver Isabelle. Sentia uma enorme vontade de o fazer, mas não achava correto. A partir do momento em que aceitara verdadeiramente o fato de nunca mais voltar a andar, tudo se alterara para ele. Os telefonemas deixaram de ter a inocência que sempre haviam tido. Sentia que estava a enganá-la, dada a decisão que tomara. Nada mais tinha para lhe oferecer que não fosse conforto e, eventualmente, alguns fugazes momentos de conversa, uma meia dúzia de vezes por ano. Não podia proporcionar-lhe um futuro digno, nem protegê-la de Gordon, nem ajudá-la a tratar do filho deficiente. Só podia dar-lhe palavras. A única coisa que não queria era que Isabelle sentisse dó em relação a ele. E sabia que, se optasse por deixá-la, ela tinha de acreditar que ele não o fazia por causa dos problemas físicos. Caso contrário, nunca permitiria que ele a deixasse. Mas sempre que pensava em afastá-la da sua vida ou em nunca mais lhe telefonar, sofria um aperto no coração. Não queria que Isabelle se sentisse abandonada, mas, a longo prazo, seria melhor para ela Se pudesse dar-lhe o futuro que queria, esperaria eternamente por ela, mas agora que sabia que iria ficar para sempre na cadeira de rodas, o melhor que tinha a fazer era afastar-se. Além disso, não podia fazer amor com ela. Apesar de Joe e Jane serem suficientemente loucos para tentar construir uma vida em comum, nunca faria tal coisa com Isabelle. Bill vivia em luta constante com a sua consciência.

A outra graça divina na vida de Isabelle, para além de Bill, era o fato de Teddy ter registrado melhoras consideráveis nos últimos dois meses. Chegara a jantar com a mãe na sala de jantar várias vezes Em Abril, Isabelle levou-o a passear de carro no Bois de Boulogne pela primeira vez desde há vários anos. Comeram um gelado no Jardin d’Acclimatation. Estava extasiada quando contou a Bill. Não fazia nada igual desde que Teddy era pequeno E deu graças a Deus pela bênção que o filho era na sua vida, quando ele fez quinze anos, no dia um de Maio.

Na tarde do dia seguinte, Bill telefonou e começou a preparar o terreno para aquilo que se convencera que tinha de fazer. Contou então a primeira mentira. Reflectira maduramente no assunto. Por mais horrível que pudesse parecer, sabia que estava a fazer aquilo para bem dela. Amava-a o suficiente para se sacrificar por Isabelle. Há vários meses que Gordon não a incomodava. Quase nunca se encontrava em casa. Sabia que não haveria uma ocasião melhor para fazer o que acreditava ser o mais correto. Com o coração a bater desenfreadamente, Bill ligou-lhe a dizer que tinha novidades fantásticas e tentou dar um tom convincente às palavras. Isabelle conhecia-o tão bem que receava que ela suspeitasse de que estava a mentir-lhe. Porém, por milagre, Isabelle acreditou quando lhe disse que já conseguira dar uns passos e que as pernas já respondiam aos estímulos cerebrais. Ficou atónita e não conseguiu conter as lágrimas. A felicidade que evidenciou foi tanta que Bill sentiu-se ainda pior Mas, apenas, podia fazer o que a consciência lhe ditava. Isabelle já tinha Teddy para cuidar, não precisava de outro fardo. Bill sentia que não possuía nada para lhe oferecer, independentemente do rumo que Gordon viesse a dar ao casamento deles. Recusava-se a destruir-lhe ainda mais a vida e a transformá-la na sua ama-seca. Não podia deixar que ela sentisse pena dele. O que acabara de contar a Isabelle era o primeiro passo para a deixar. Como abrir a porta da gaiola a um pássaro de grande beleza.

Conversaram demoradamente. Isabelle perguntou-lhe o que sentira quando dera os primeiros passos e se fora aterrorizador ou maravilhoso, e Bill deu-lhe todos os pormenores sobre o assunto. Nos dias seguintes, acrescentou mais detalhes à história, para a tornar mais convincente. Agora, de cada vez que lhe telefonava, sentia-se mal consigo mesmo. Detestava mentir-lhe. Via-se como um homem reduzido a metade, ou menos, que já não tinha nada para oferecer a uma mulher. Mesmo que parte dele funcionasse, havia outra que não, nem nunca mais funcionaria. O prognóstico dos terapeutas destruíra-lhe o que restava da sua vida e o que partilhava com Isabelle.

Quando não estava a falar com ela, encontrava-se a tratar da sua vida futura em Washington. Começava, finalmente, a fazer planos para quando deixasse o centro de reabilitação. Prometera conduzir a campanha do candidato a senador, em finais de junho.

Antes disso, tinha de arranjar um apartamento e queria passar algum tempo com o candidato e saber tudo o que pudesse sobre ele. E antes de voltar ao trabalho, havia o casamento de Joe e Jane, em Junho. A filha ia ter meia dúzia de damas de honor e planeavam realizar a cerimónia na casa de Greenwich. Haveria trezentos convidados, para os quais seria armada uma grande tenda no relvado principal. Andavam todos numa enorme azáfama. Cynthia dedicava-se que nem uma louca a tratar dos preparativos com os fornecedores e as floristas e ainda arranjava tempo para ir com as filhas às provas dos vestidos.

Joe e Jane estavam fora de si. Tinham conseguido alojamento para casal na Universidade de Nova Iorque. Jane fora a Minneapolis conhecer os sogros. Iriam passar a lua-de-mel em Itália. Ao ver a alegria esfuziante em que Joe andava, Bill sentia-se cada vez pior consigo mesmo, com aquilo que estava prestes a fazer a Isabelle. Mas já tomara a decisão E não havia a menor hipótese de recuo. A única coisa que faltava era dizer a Isabelle.

Sente-se bem? perguntou-lhe Joe, uma tarde, ao voltarem para os quartos. Tem andado tão calado ultimamente. Estava preocupado com o futuro sogro. Achava o seu comportamento estranho. Sabia que Bill sofrera uma enorme decepção quando lhe disseram que nada mais poderiam fazer relativamente à sua recuperação e preocupava-o o efeito que isso poderia ter tido sobre ele. Todos haviam passado pelo mesmo, ao ter de encarar a verdade.

Estou a preparar-me para voltar ao mundo real. Tenho imenso trabalho depois do casamento explicou Bill, mas Joe reparara que o seu futuro sogro perdera praticamente todo o interesse pelo tratamento no mês anterior E deixara de ir às sessões terapêuticas com Linda Harcourt. Não tinha nada para dizer e perdera toda a esperança de poder usufruir de uma vida em comum com Isabelle. Concordara em ficar mais um mês no centro de reabilitação, mas a motivação era pouca ou nenhuma. A cabeça já não se encontrava ali. Andava quase sempre de ar ausente, dando a sensação de estar mergulhado em profunda depressão.

No final de Maio, ao sair do salão de jantar, deu de caras com Helena, que estava lavada em lágrimas. Esta quase o deitou abaixo da cadeira, prosseguindo de imediato o seu caminho, a toda a velocidade.

Alto aí, bater e fugir é crime gritou Bill. Helena parou e, sem voltar a cabeça, levou as mãos à cara e desatou a soluçar. Bill moveu a cadeira para o lado da dela e tocou-lhe no ombro. Precisa de ajuda?

Helena abanou a cabeça e não respondeu. Ao fim de um longo instante, tirou a mão do rosto e fitou-o com ar destroçado. Reparou então que ela já não exibia o enorme anel de diamantes que usava há nove meses, quando se conheceram. Era fácil adivinhar o que acontecera. Não quer conversar um pouco?

A jovem assentiu com a cabeça. Foram então até ao quarto de Bill. Depois de se assoar a um lenço de papel que ele lhe dera, Helena agradeceu-lhe com um sorriso triste.

Desculpe. Estou destroçada. Mesmo a chorar, continuava bonita como sempre. Era de uma beleza espectacular, apesar de estar confinada a uma cadeira de rodas.

Devo adivinhar, ou quer dizer-me?

É o Sérgio. Telefonou-me... as coisas têm estado esquisitas ultimamente. Está a trabalhar em Milão e passa a maior parte do tempo fora. Adiámos o casamento há meses atrás, porque achávamos que precisávamos de mais tempo... Merda, Bill, há seis anos que namoramos... mas só ficámos noivos depois do acidente. Julgo que ele só o fez porque se sentiu culpado da queda que dei, quando estava a trabalhar para ele. E agora comunicou-me que já não pode ser, que seria muito difícil para ele, pois eu preciso de muita atenção. Diz que tem necessidade de uma pessoa que seja mais independente. Bateu com as palmas das mãos nos braços da cadeira e desatou novamente a chorar. Bill pôs-lhe um braço à volta dos ombros. A fala melhorara consideravelmente nos últimos nove meses, mas o resto não, nem havia perspectivas de que alguma vez isso viesse a acontecer. Era exatamente o que receava que se passasse entre Joe e Jane, e fora também por essa razão que tomara a decisão de deixar Isabelle, antes que ela viesse a detestá-lo por aquilo que já não era ou que já não podia fazer.

Provavelmente ficou com medo. Sérgio era um dos jovens fotógrafos com mais sucesso no mundo da moda e tinha apenas vinte e nove anos. E também podia ter a modelo que quisesse, e não uma que se encontrava numa cadeira de rodas. Teria sido ótimo que tivesse conseguido manter a promessa de casamento com ela, mas já que achava que seria demasiada carga para si, fora melhor ter desistido agora. Helena, se ele vê que é uma situação que não pode suportar, então fez aquilo que tinha a fazer. Não quer que ele a abandone depois de casar. Se não é o tipo certo, é melhor saber agora. Era essa a sua teoria relativamente a Isabelle, embora soubesse que ela nunca o teria abandonado, se bem que achasse que era isso que ela deveria fazer. Nas últimas semanas, pensara muito sobre o assunto e convencera-se de que era essa a atitude mais correta. O que Sérgio fizera vinha confirmar tudo aquilo que pensava sobre o assunto. Helena, acredite, um dia ainda vai ficar satisfeita por isto lhe ter acontecido.

Helena irrompeu num choro convulsivo. Nada daquilo fazia qualquer sentido para ela. Amava-o e achava que ele também a amava. Já arranjara o vestido de noiva, o fotógrafo, e tratara do copo-d’água. Mas o casamento era mais do que isso, especialmente nas circunstâncias em que eles se encontravam.

Por que razão ficaria mais satisfeita por isto ter acontecido. O que Bill dizia não fazia qualquer sentido para Helena.

Porque não quer ser um fardo para o Sérgio. Ele odiá-la-ia mais cedo ou mais tarde.

Não sou nenhum fardo. Não mudei com o acidente. Continuo a ser a mesma pessoa. Joe e Jane teriam aplaudido o que ela dizia, mas Bill não. Tinha exatamente a opinião contrária.

Nenhum de nós é a mesma pessoa. Não podemos ser. Temos limitações. Há coisas que nunca mais voltaremos a fazer.

Como o quê? Dançar, Esquiar, Patinar? Quem é que se importa com isso.

Pelos vistos, o Sérgio. Pelo menos, foi honesto. Tem de admirá-lo por isso.

Não o admiro. É uma merda de homem. Não fiz nada de mal para ele me deixar assim.

Pois não. Você só teve um azar dos diabos. Aliás, todos nós tivemos. É por isso que aqui estamos.

Está a dizer-me que ninguém voltará a amar-nos porque estamos assim. Acho que isso é uma parvoíce. Olhe para o Joe e para a Jane.

Você já tem idade suficiente para ser mais esperta do que eles. Helena tinha vinte e oito anos e queria desfrutar de uma vida normal, com marido e filhos. Continuo a achar que estão a cometer um erro e, um dia, pagarão por ele. Talvez um dia a Jane faça o que o Sérgio fez E depois Nessa altura, é provável que tenham já filhos e ficarão todos com a vida estragada.

É isso que pensa. Que ninguém nos quer? É um disparate. E sabe bem que é. Pelo menos, espero que saiba. Temos direito às mesmas coisas que todas as outras pessoas.

Talvez não. Eu, pelo menos, não. Só posso falar por mim E não tenho o direito de obrigar as outras pessoas a pensar o mesmo. Não seria justo. Ambos sabiam que falava de Isabelle, e Helena ficou ainda mais irritada.

Tem falado com o psiquiatra ultimamente indagou Helena, de repente, mais preocupada com Bill do que consigo própria. Penso que devia falar com ele. A sua atitude é horrorosa. Acho que o Sérgio é um idiota e talvez você tenha razão, talvez tenha sido melhor acabarmos agora do que ele abandonar-me mais tarde, mas não acho que devesse ter a ver com isto E apontou para a cadeira de rodas. Acho que devia ter a ver com o fato de me amar ou não e com o tipo de mulher que pensa que vou ser. Talvez pense que não sou suficientemente boa para ele.

É a minha posição sobre o assunto disse Bill, num tom presunçoso.

Helena lançou-lhe um olhar fulminante.

Não é, não, Bill Você está confuso. Acha que perdemos o direito a sermos amados no dia em que ficámos presos a uma cadeira de rodas. Não acredito nisso, nem nunca acreditarei. Há muitas pessoas que se estão nas tintas para o fato de conseguirmos pôr-nos de pé ou ficar sentados. Também não gosto de estar nesta situação. Gostaria muito mais de andar a correr de um lado para o outro e de usar saltos altos. Mas não posso. Para quê chatear-me. Quer dizer que você não amaria uma mulher que estivesse retida numa cadeira de rodas? É assim tão mesquinho. Não creio.

Talvez não retorquiu Bill, esquivando-se à pergunta, mas reconhecendo que havia alguma verdade nas palavras da jovem. Porque se fosse Isabelle que estivesse presa a uma cadeira de rodas, amá-la-ia na mesma, talvez mais. Só quero dizer que não temos o direito de sermos um fardo para as pessoas que amamos. Não podemos sujeitá-las a tal. Se as amamos de verdade, a nossa obrigação é deixá-las. Falava de si próprio.

Helena parecia confuse.

Por que razão não nos põem a todos em cima de um icebergue, num sítio qualquer? Talvez isso resolvesse o problema. Assim, não representaríamos um problema para ninguém nem teriam de nos tratar com compaixão. Sabe uma coisa? Tenho uma admiração tremenda pela Jane e pelo Joe e por aquilo que vão fazer. Amam-se e isso vale tudo. O resto, se anda de cadeira de rodas ou de canadianas, não tem importância. Para mim, não. Não me interessa se o tipo com quem vou casar é surdo, mudo ou cego, desde que seja boa pessoa e que nos amemos. Para mim, é suficiente. Esta cadeira de rodas não significaria nada para mim se outra pessoa estivesse sentada nela que não eu.

Ótimo. Então, case comigo gracejou Bill. Helena endireitou-se na cadeira e sorriu.

Você seria um chatarrão terrível! E riu-se. Continuo a achar que devia ir falar com o psiquiatra antes de se ir embora, ou ainda vai cometer uma estupidez. Também era uma das doentes de Linda Harcourt e dera-se bem com ela.

Como o quê? Gostava de Helena. Era uma moça muito inteligente e haviam-se tornado bons amigos.

Como deixar a pessoa que ama, porque acha que é um fardo para essa pessoa. Porque não a deixa decidir sozinha, em vez de decidir por ela? Não tem o direito de controlar o que ela pensa ou de tomar decisões por ela.

Quando se ama uma pessoa, devemos protegê-la dela própria.

Você não tem esse direito. Helena trabalhara sempre com afinco e tivera de enfrentar uma série de situações. Bill passara o tempo todo a levantar pesos e evitava sempre ir ao psiquiatra. As pessoas têm o direito de tomar as suas próprias opções. Não lho podemos retirar, do mesmo modo que elas não o podem retirar a nós. É uma questão de respeito.

Talvez tenha razão retorquiu Bill, pensativo. Não tenho as respostas. Só as perguntas. Além disso, sou muito mais velho do que você. Com a sua idade, talvez fosse muito mais corajoso. Talvez tenha razão, talvez o Sérgio seja uma merda de homem. Mas, se for, é melhor ficar a saber agora.

Concordo, mas não deixa de ser doloroso.

Mas a vida também o é. Há muitas coisas nela que nos magoam. Algumas pessoas nunca deixam de nos desapontar. E o melhor que temos a fazer é cortarmos logo o mal pela raiz. E o mais cedo possível. Pensava em Cynthia, e o fim da relação não tivera nada a ver com a cadeira de rodas.

Acho que o Sérgio é uma dessas pessoas.

Talvez da próxima vez tenha um anel de menor qualidade e um tipo melhor.

Helena fez um sinal de concordância com a cabeça. Conversaram mais um pouco. A jovem voltou depois para o seu quarto, não sem antes aconselhar Bill a consultar o psiquiatra antes de abandonar o centro. Quando Isabelle telefonou ao fim da noite, Bill parecia algo perturbado. Algumas das coisas que Helena dissera haviam-no deixado confuso. Dera tanta ênfase ao fato de as suas limitações físicas não fazerem qualquer diferença às pessoas que os amavam, que quase se perguntava se a jovem não teria razão.

Estás com voz cansada. Andaste muito hoje? Isabelle acreditara que Bill já conseguia andar de novo. Este olhou para a cadeira de rodas, embaraçado. Era a mentira que o impossibilitava de voltar a vê-la. Era como se tivesse envenenado a comida, ficando impedido de se aproximar dela. Mas fora o seu plano. E não fazia tenções de recuar, independentemente daquilo que Helena lhe dissesse. A única questão em aberto era a de quando é que iria comunicar a sua decisão a Isabelle.

Sim. Tenho muitas coisas para tratar antes de sair.

Fizeram um grande trabalho observou Isabelle, num tom mais doce do que nunca. Bill ficou de coração destroçado. Por mais disparatada que a sua atitude pudesse ser, a única coisa que queria era libertá-la de um fardo que, estava certo, arruinaria a sua vida. E sabia que Helena lhe teria dito que Isabelle tinha o direito de fazer a sua própria escolha e que ele estava a retirar-lhe essa possibilidade. Mas também sabia que ela tinha demasiado bom coração para o deixar. Durante dias, Isabelle notara-lhe algo de estranho na voz, mas não conseguia dizer o que era. Achava-o diferente, distante, infeliz. A única explicação plausível seria o nervosismo de deixar o ambiente protegido do centro para iniciar uma nova vida. Que tal estão a correr os preparativos para o casamento? perguntou, esperando distraí-lo daquilo que o aborrecia.

A Cynthia está a dar em maluca. Eu tento manter-me à parte. Só tenho de pagar as facturas. É a parte mais fácil. A parte mais difícil era aquilo que planeava fazer-lhe. Mas essa, ela ainda não conhecia. Como está o Teddy perguntou, mudando rapidamente de assunto. Isabelle reparou que há vários dias que ele fazia isso, saltando de um assunto para o outro, como se sentisse desconforto em discutir qualquer coisa em profundidade. Não era normal nele. Mas ela conhecia-o melhor do que ele pensava, melhor ainda do que ele queria.

Está ótimo respondeu Isabelle, o que o tranquilizou Bill nunca poderia acabar com ela se Teddy não se encontrasse em boas condições. Nunca esteve tão bem acrescentou, selando o seu destino.

Ótimo. Bill comunicou-lhe então que ia a Washington procurar um apartamento na próxima semana.

Podias vir a Paris depois do casamento, se não estiveres muito cansado. Só uns dias, antes de começares a trabalhar. Isabelle sabia que estava a pedir-lhe muito, mas receava que não tivesse tempo depois do casamento.

Terei de ver. Devo entrar em campanha nessa semana. Outra mentira. A campanha não começava antes dos finais de Junho. Teria tempo de dar um salto a Paris, mas não podia dizer-lhe que não conseguia andar.

É um caso a ver

Quando desligaram, Isabelle ficou preocupada. Tinha a sensação de que Bill a evitava e não sabia porquê. Começara a agir assim de um dia para o outro. O que ela também não sabia é que tudo tivera início no dia em que os terapeutas haviam confirmado que ele nunca mais voltaria a andar. Esse fora o ponto de viragem para Bill. Prometera sempre a si próprio que, quando isso acontecesse, deixaria de lhe telefonar e nunca mais voltaria a vê-la. Mas ainda não tinha coragem suficiente para cumprir a promessa. Isabelle receava ter dito algo que o tivesse ofendido. Porém, não dava mostras de estar zangado com ela, apenas distante. Haviam-se passado nove meses desde a última vez que o vira e não fazia a menor idéia de quando é que Bill iria visitá-la. E não havia qualquer forma de ir ter com ele a Nova Iorque ou a Washington. Não podia deixar Teddy tanto tempo sozinho, nem aventurar-se para tão longe.

Quando o dia do casamento chegou, Isabelle estava em pânico. Bill não lhe telefonava há algum tempo. Quando lhe perguntou o motivo, desculpou-se com o fato de andar muito ocupado. Arranjara um apartamento em Washington e encontrara-se com o jovem senador para falarem da campanha. Pareceu excitado quando abordou o assunto. Nos dois dias que se seguiram ao casamento, não fez qualquer telefonema a Isabelle. E esta, por uma qualquer razão recôndita ou instintiva, não se atreveu a ligar-lhe. Bill começava a afastar-se progressivamente dela.

Fora uma cerimónia encantadora e toda a gente ficara de lágrimas nos olhos quando Joe e Jane fizeram o juramento de fidelidade. Com ele na cadeira de rodas e ela de pé, ao lado dele, a segurar-lhe a mão, o quadro não podia ser mais comovente. E ninguém chorou mais do que Bill, confinado à sua cadeira de rodas, ao lado de Cynthia, na ponta da primeira fila de convidados.

Sentes-te bem? perguntou Cynthia. Achava-o extremamente calado. Estás com um ar tenso.

Estou a pensar no trabalho. Vou deixar o centro e partir para Washington dentro de poucos dias. Sabes como sou. Do ponto de vista físico, estava com um ar estupendo, mas Cynthia desconfiava que havia algo a perturbá-lo.

Pareces aborrecido. Cynthia acabou por concluir que talvez se devesse à emoção de ver a filha casar-se.

Olivia veio sentar-se ao pé do pai durante algum tempo. E quando Jane devia dançar com ele, fê-lo com o avô, enquanto Bill e Joe ficaram a ver, de sorriso nos lábios. O fato não pareceu aborrecer Joe, mas magoou Bill. E bastante. Foi uma cerimónia maravilhosa, um banquete magnífico, e toda a gente se divertiu. Nessa noite, na viagem de regresso ao centro de reabilitação, não conseguia deixar de pensar em Isabelle.

Durante dois dias não saiu do quarto e nem sequer foi à fisioterapia. Então, ganhou coragem e ligou a Isabelle, que estava preocupada com ele e já lhe telefonara várias vezes nos últimos dois dias. Bill não atendera. Sabia que era ela. Preferia ficar deitado na cama, a pensar nela, a desejar que a noite o poupasse àquele sofrimento.

Onde é que tens andado? indagou Isabelle, com algum pânico na voz. Pensei que também tivesses ido em lua-de-mel gracejou.

Bill sabia que a preocupação que a acometia não era nada em comparação com a dor que iria sentir. Depois de cinco anos de conversas quase diárias, era inconcebível já não a ter na sua vida. Mas estava certo de que esta seria a última prova do seu amor por ela.

Que tal foi o casamento? Bill soltou um suspiro.

Foi bonito. Toda a gente chorou na cerimónia e depois divertiu-se à grande.

Conta-me como foi. Teddy ainda estava a dormir. Ultimamente dormia até tarde, o que lhe permitia ter muito tempo livre.

Bill contou-lhe então todas as peripécias do casamento. Depois, soltou novo suspiro. Tinha a sensação de ir mergulhar da prancha mais alta da piscina.

Tenho uma coisa para te dizer.

Isabelle sentiu o coração parar. Sabia, ainda antes de ele articular qualquer palavra, que o que iria ouvir não seria agradável

Não estou a gostar desse tom de voz. Conteve a respiração, preparando-se para o choque.

Eu e a Cynthia renovámos os nossos votos.

Do outro lado da linha instalou-se um longo silêncio. Isabelle tentava perceber o que acabara de ouvir.

O que quer isso dizer? Tentava manter a calma, mas só lhe apetecia gritar. Como sempre, mostrou-se delicada e esperou que Bill se explicasse.

Renovámos o compromisso matrimonial. Era mais uma mentira que Bill lhe contava. A primeira ocorrera ao dizer-lhe que já conseguia andar. As coisas alteraram-se desde que estou no centro de reabilitação. Pensámos que fosse importante para as miúdas. Uma estava casada, a outra tinha vinte e dois anos. Que importância poderia ter para duas mulheres adultas o fato de os pais terem renovado o compromisso matrimonial? Mas não questionou o óbvio. O que contava era o fato de o terem feito.

Quando é que tomaste a decisão? Sentia todo o corpo a tremer, mas esforçava-se por se manter calma.

Nas últimas semanas proferiu Bill, num tom algo arrogante, tentando não pensar naquilo que estava a fazer.

Eu sabia que havia qualquer coisa de estranho. Já o conhecia bastante bem, o que não era surpresa ao fim de cinco anos. Era por isso que não fazias planos de vir a Paris?

Acho que não devíamos continuar a falar.

As palavras atingiram-na com uma violência desmesurada. Isabelle permaneceu alguns instantes sem conseguir articular qualquer palavra e ainda pensou que ia desmaiar. Ficou sem respiração e, pela primeira vez desde o acidente, sentia o coração bater freneticamente. Era como se tivesse sido atingida por uma enorme bola de demolição. Mas sabia que tinha de dizer qualquer coisa. Não esperava aquilo, mas não podia criticá-lo. Ela também se recusara a deixar Gordon, por causa de Teddy. Tinha muito pouca coisa para oferecer a Bill, à exceção dos telefonemas. Apesar da mágoa que sentia, achava que Bill tomara a melhor atitude. Amava-o o suficiente para lhe desejar a melhor sorte do mundo.

Não sei o que dizer. Sinto-me feliz por ti. Bill recuperara não só o movimento das pernas como também o casamento. Ao ouvi-la chorar, só teve vontade de morrer. Mas achava que era a melhor coisa para ela. Só o seu grande amor por Isabelle o levava a tomar aquela decisão horrível. Era o último sacrifício que fazia por ela.

Quero que cuides de ti. Não deixes o Gordon pôr-te as mãos em cima. Poupa as munições. Se ele te torturar, joga o teu trunfo. Nunca mais irá incomodar-te. Enquanto o marido da Louise for vivo, quererá continuar casado contigo. Pensara muito no assunto e era a única coisa que o preocupava agora. Não queria que Gordon a atormentasse, mas nunca mais saberia se isso iria acontecer. Não a poderia proteger do marido, a não ser com amor, o que era manifestamente pouco.

Folgo em saber que te preocupas com isso retorquiu Isabelle, parecendo algo chocada e confusa. Não compreendo... Não me contaste em que é que as coisas entre ti e a Cynthia melhoraram... Como e quando é que isso aconteceu?

Não sei. Talvez quando o Joe e a Jane resolveram casar-se. Decidimos então renovar os votos de casamento. A verdade era que o processo de divórcio ficara concluído em Março, depois de Jane e Joe lhes dizerem que iam casar-se. Cynthia parecia ter um caso a sério com o homem com quem andava há nove meses, e Bill estava feliz por ela.

Quero que sejas feliz, Bill, signifique isso o que significar para ti. E quero que saibas, se é que vale a pena dizer, que te amo do fundo do coração.

Eu sei. As lágrimas rolavam-lhe pelas faces, mas não podia deixar que ela as pressentisse no seu tom de voz. Também te amo, Isabelle. Bill teve vontade de lhe dizer que sempre a amaria, mas não podia fazê-lo. Cuida de ti. Se precisares de alguma coisa, liga-me. Estarei sempre ao teu dispor.

Não creio que a Cynthia gostasse disso.

Trinta anos é muito tempo. É difícil fugir disso. Mas fugira. Por razões semelhantes. Mas era Isabelle a dona do seu coração e sempre haveria de ser. Mas só ele sabia.

Vou sentir umas saudades loucas disse Isabelle, começando a soluçar. Mas quero que sejas feliz... feliz... É bom para ti próprio. Mereces tudo.

Bill considerava que o que merecia era arder no inferno, mas continuava a acreditar que era justo o que estava a fazer e isso compensava a enorme mágoa que sentia. Ela, um dia, dar-lhe-ia razão.

Adeus disse Bill, desligando.

Quando pousou o auscultador, Isabelle irrompeu num choro lancinante. Dava a sensação de que morrera alguém. E, até certo ponto, não fugia muito à verdade.

O que se passa, mamã? Teddy entrou a correr no quarto, com olhar assustado. Nunca a ouvira chorar daquela maneira. Estava sem fôlego quando chegou junto da mãe.

Por instantes, Isabelle não conseguiu articular qualquer palavra, mas sabia que tinha de se recompor diante do filho.

Um velho amigo meu morreu. Não sabia que mais havia de lhe dizer. Até certo ponto, fora isso que acontecera. Bill acabara de morrer. Não conseguia imaginar viver sem ele, nem como seria a vida sem os seus telefonemas. Era como uma sentença de morte numa vida que já possuía tão pouco. A única coisa que tinha era os filhos. Então, levantou-se, vestiu o casaco e deu um abraço a Teddy. Estou ótima. Apenas triste. Vou dar um passeio. Levou-o até ao quarto dele e deitou-o na cama. Saiu e passeou durante horas. Estava quase na altura do almoço quando voltou. Tinha um ar cadavérico. E até a enfermeira de Teddy se assustou ao vê-la.

Sente-se bem, Mistress Forrester? Há vários anos que se conheciam e nunca vira Isabelle com um ar tão abatido.

Isabelle assentiu com a cabeça, tentando esboçar um sorriso. Os olhos eram dois poços cheios de mágoa.

Estou ótima afirmou mecanicamente. Não havia mais nada que pudesse dizer. Nessa tarde, quando lia histórias a Teddy, havia rios de lágrimas a correrem-lhe pelas faces. Teddy tentava confortá-la, dando-lhe palmadinhas na mão. Não sabia o que lhe dizer. Nessa noite, quando o abraçou, depois de o meter na cama, Isabelle não conseguiu conter um soluço.

Sinto muito, mamã disse Teddy, num tom carinhoso, abraçando-a com força.

Também eu, querido. E esboçou um sorriso triste.

Isabelle estava destroçada, mais do que alguma vez se sentira em toda a sua vida. Bill levara-lhe a esperança, o riso, o amor e o conforto dos dias tristes. Não tinha ninguém para quem se virar agora e sabia que nunca mais teria. Morreria prisioneira de Gordon. Mas isso pouco lhe importava. Viveria para servir Teddy e Sophie, até morrer.

Entretanto, no seu quarto, às escuras, Bill mantinha-se imóvel em cima da cama. Não se mexera desde que desligara o telefone. Não pregara olho durante toda a noite. Chorara sem parar. A única consolação que tinha era saber e acreditar que fora a melhor opção que tomara.


 

Para Isabelle, depois de Bill terminar a relação, os dias eram intermináveis. Não havia nenhuma parte do dia que lhe desse algum alívio. Cuidava de Teddy como sempre fizera e agora era ela que estava com ar doente. Não comia, não dormia, pouco falava, embora fizesse um esforço quando estava com o filho. Tinha a sensação de ter caído num abismo de trevas. Sentia saudades de ouvir a voz de Bill, mas nem sequer sabia onde é que ele se encontrava. Só sabia que fora para Washington, e gostava de saber se Cynthia também o acompanhara. Mas para onde quer que ele fosse, já não lhe pertencia, nem nunca pertencera. Fora uma dádiva temporária na sua vida e estava grata por isso. Mas a mágoa de o perder era tão forte que não sabia se sobreviveria. Perder Bill custou-lhe mais do que sobreviver ao acidente. O impato desta vez atingira-lhe a alma.

Até Gordon reparou no seu ar extremamente abatido, mas relacionava-o com o desastre. Quando Sophie a viu, ficou abismada. Parecia estar a definhar.

Estás doente? perguntou Gordon, um dia, ao pequeno-almoço. Dormira naquela noite em casa. Ainda não lhe passara pela cabeça que Isabelle sabia que ele ficava fora com frequência. Ela perdera tanto peso que as roupas lhe estavam mais largas do que alguma vez haviam estado depois do acidente.

Não tenho andado bem. São as enxaquecas disse Isabelle, para explicar o seu ar cadavérico. Também tinha consciência do seu estado, mas não conseguia comer nem dormer.

Deve ser uma sequela das lesões que tiveste afirmou Gordon, com ar ligeiramente preocupado. É melhor chamares o médico. Era o primeiro sinal de interesse que mostrava há vários meses. Vou viajar na próxima semana e acho que ele devia ver-te antes de eu partir.

Isabelle perguntou-se se ele iria com Louise. Estava convencida de que Gordon passara todo o tempo com ela, no verão anterior, durante o período do seu internamento. A sua ausência devia ter sido uma bênção dos céus para ele. E o fato de não ter voltado ao hospital a visitá-la não tinha nada a ver com ela, nem com Bill, nem com a raiva relativamente ao seu relacionamento com este, mas com o seu envolvimento com Louise. Mas já não ligava importância a isso. Esse era um fato da vida deles que já durava há vários anos.

Onde vais? perguntou Isabelle, tentando mostrar-se interessada. Mas não estava. Aliás, perdera o interesse em tudo. A única coisa em que se empenhava era a cuidar de Teddy. E estava satisfeita por Sophie vir passar alguns dias a casa.

Visitar clientes no Sul de França. Isabelle estava certa que o “cliente” era Louise, mas, como é óbvio, não lhe perguntou. Quero que chames o médico hoje lembrou-a Gordon, quando saiu, mas Isabelle não chamou. Sabia o que se passava consigo. Tinha o coração destroçado, mas não em consequência do acidente, que fora há exatamente um ano. Custava-lhe a acreditar que Bill estivesse fora da sua vida. Chegou a desejar ter morrido no desastre. Teria sido muito mais fácil do que aquilo que estava a sofrer naquele momento. E duvidava que a mágoa desaparecesse alguma vez. Cada dia que passava era pior do que o anterior. Bill levara tudo o que a vida tinha de bom e não lhe deixara nada a não ser as recordações e o desgosto que a consumia. E o pior de tudo é que nem sequer estava zangada com ele. Continuava a amá-lo e sabia que sempre o amaria. Era como um animal que perdera o seu companheiro e que procurava um lugar calmo para morrer.

Mamã, o que se passa? perguntou Sophie, preocupada, quando se encontraram, à porta do quarto de Teddy, nessa tarde.

Nada, querida. Estou cansada. Isabelle tinha muito mau aspecto e não havia ninguém que não notasse. Sophie e Marthe, a enfermeira de Teddy, haviam falado sobre o assunto essa tarde. Teddy disse que a mãe ficara assim desde que recebera um telefonema a comunicar-lhe que um amigo morrera. Mas Sophie e Marthe achavam que as causas eram mais profundas e receavam não só pela sua saúde, como também pela sua vida.

Nessa noite, quando Gordon indagou pelo seu estado de saúde, Isabelle disse-lhe que o médico a achara ótima. Nem sequer se dera ao trabalho de lhe ligar, mas sabia que Gordon nunca iria confirmar isso.

Gordon desconfiava que devia haver um enorme desgosto de amor por trás. Uma campainha de alarme na sua cabeça levou-o a pensar em Bill, mas rejeitou a idéia de imediato. Isabelle não se atreveria a começar tudo de novo, depois dos avisos que lhe fizera. Mas não sabia da força do seu amor por Bill.

No dia seguinte, Gordon partiu para o Sul de França, com ar despreocupado. Deixou o número de telefone do Hotel du Cap. Tencionava lá ficar três semanas. Isabelle não fez qualquer pergunta sobre o fato. Era um alívio tê-lo longe de si. Já não teria de arranjar desculpas para o seu ar doentio. Era muito mais fácil estar só.

Quando regressou, três semanas depois, Gordon ficou chocado ao vê-la ainda pior. Ele tinha um ar saudável e bronzeado e Isabelle dava a sensação de sofrer de uma doença em estado terminal. Sophie não conseguiu conter as lágrimas quando falou do assunto ao pai. Mas este disse-lhe que o médico vira a mãe semanas antes e não lhe encontrara nada. Gordon não queria saber mais do que isso, nem encarar a possibilidade de poder ter outra pessoa inválida em casa.

Em Agosto, Gordon partiu numa longa viagem de negócios a Itália e Espanha. Sophie fora passar algumas semanas à Bretanha. Isabelle ficou contente por ficar sozinha com Teddy. Lia-lhe livros e fazia um enorme esforço para não o preocupar, mas não conseguia imaginar-se de novo a mulher de outrora. Fora mais fácil todo o processo de recuperação depois do acidente do que perder Bill. Acordava todas as manhãs a pensar nele e a desejar a morte.

E foi quando Gordon e Sophie se encontravam fora que Teddy contraiu uma forte gripe de Verão. Começou por aquilo que, ao princípio, parecia uma dor de cabeça, depois apanhou-lhe o peito. A febre subiu e o médico pô-lo a antibióticos para evitar que o seu estado de saúde piorasse. Mas a febre não parava de subir e nada do que Isabelle e a enfermeira lhe davam conseguia fazê-la baixar. Ao terceiro dia, mal conseguia respirar. Até o médico ficou preocupado com o fato de não estar a responder à medicação. Dois dias depois, contraíra uma pneumonia. Estava a ir de mal a pior. Três dias depois, o médico internou-o no hospital e Isabelle ficou lá com ele. Ainda pensou telefonar a Gordon, mas preferiu não o incomodar. Nunca se preocupara com os problemas de Teddy. Essas preocupações sempre haviam recaído sobre ela.

Vou morrer? perguntou Teddy, de olhos esbugalhados, enquanto Isabelle lhe fazia festas na cabeça e punha compressas de água fria na testa e nos pulsos. As enfermeiras estavam-lhe gratas pela ajuda.

Claro que não. Mas tens de te pôr bom. Esse bichinho é estúpido e já estás doente há tempo suficiente. Mas Teddy tinha quarenta graus de febre nessa noite. No dia seguinte, Isabelle teve mesmo de telefonar a Gordon.

Não sei o que é. Deve ser um vírus qualquer. Mas o Teddy está muito doente. A voz denotava mais cansaço que nunca.

Está sempre doente retorquiu Gordon, algo aborrecido. Encontrava-se na Toscana e a Isabelle custava-lhe imaginar que tipo de negócios é que ele tinha ali. Eram, indubitavelmente, outras férias com Louise, mas já não queria saber. Nada posso fazer.

Só pensei que quererias saber acrescentou Isabelle, arrependida de lhe ter telefonado. Fizera-o mais por uma questão de cortesia.

Telefona-me se ele piorar.

“E depois o que farias?”, teve ela vontade de perguntar. “E se ele morrer, devo telefonar-te? Não será mais incómodo para ti?”, mas não disse nada.

Aguardou mais dois dias e depois telefonou a Sophie. Teddy delirava com febre e Isabelle, em pânico, tentava falar com o filho. Estavam a ministrar-lhe antibióticos por via intravenosa, mas os pulmões enfraqueciam de dia para dia e o médico estava preocupado com o coração. Isabelle receava que este fosse o momento que mais temia. Ao contrário do pai, Sophie, que se encontrava na Bretanha, veio imediatamente para Paris nessa noite. As duas mulheres sentaram-se ao pé dele e ali ficaram longas horas, sem dormir, cada uma com uma mão de Teddy nas suas, enquanto este dormitava. Por vezes, delirava, mas muito pouco do que dizia fazia sentido.

Finalmente, na manhã seguinte, quando acordou, Teddy exibia um ar mais tranquilo. No entanto, continuava a arder em febre e a dizer que tinha frio, apesar de estar um calor abrasador.

O médico andava de um lado para o outro e as enfermeiras não o largavam um segundo. Ao fim da noite, o médico disse a Isabelle que as coisas estavam a complicar-se.

O que quer dizer?

Estou preocupado com o coração. Não aguenta tanta pressão. É um rapaz extremamente debilitado.

Isso já Isabelle sabia e sentia alguma frustração por, aparentemente, não estarem a conseguir quaisquer resultados positivos. Para seu grande horror, Teddy passou outra semana a debater-se entre a vida e a morte. Tanto ela como a filha estavam esgotadas e quase com tão mau aspecto como Teddy. Sentia-se escandalizada com o fato de Gordon não ter voltado a ligar para se inteirar do estado do filho, desde o último telefonema que lhe fizera duas semanas antes. Ele devia supor que o filho melhorara. E quando a terceira semana começou, Teddy entrou num estado de perda de consciência. Teve várias apoplexias e a pneumonia piorara. Isabelle não sabia como é que o filho conseguira resistir tanto tempo. Nada podia fazer a não ser sentar-se no corredor a chorar, voltando depois para o quarto para se sentar ao lado dele. Nessa noite, telefonou a Gordon.

Tal como desconfiara, o marido presumira que Teddy melhorara e ficou perplexo quando soube que o filho estava extremamente doente.

Não sabia se querias vir para casa.

Achas que deva ir? Gordon parecia pouco entusiasmado com a idéia, se bem que se notasse alguma preocupação na voz. A situação era muito mais grave do que imaginara.

É contigo. Está muito doente. Teddy não recuperara a consciência desde a noite anterior e o médico receava que não viesse a conseguir. Pediu então para ela lhe telefonar no dia seguinte.

Isabelle e Sophie passaram toda a noite junto de Teddy. Às cinco da manhã, este abriu os olhos e sorriu-lhes. Ambas choraram de alívio, pensando tratar-se de um bom sinal. Mas a enfermeira disse que a febre subira durante a noite. Estava com quarenta e dois graus. Desta vez, quando veio observá-lo, o médico abanou a cabeça. O coração do rapaz começava a falhar. Era o momento que Isabelle receara durante toda a vida de Teddy. Com ar destroçado, mas estranhamente calma, esperava que o destino ditasse a sua sentença.

Teddy, agarrado à mão da mãe, falava com uma voz nítida. Olhou para Sophie e esboçou um sorriso angélico. Isabelle beijou-o na face e não conseguiu conter as lágrimas.

Adoro-te, pequerrucho. Teddy fora sempre extremamente carinhoso e paciente com a mãe. Tivera uma vida inteira de dor e nunca se queixara. E agora também não o fazia. Limitava-se a dar a mão à mãe e a vaguear entre os momentos de sono e vigília. Isabelle sentia um desejo incontrolável de o tirar da beira do abismo onde a sua alma pairava. Não conseguia suportar a idéia de o perder. Mas não havia nada que pudesse fazer para parar a doença terrível que o ia consumindo.

Teddy olhou para a mãe e sorriu.

Estou feliz, mamã. Depois, virando-se para a irmã: Adoro-te, Sophie. Então, soltando um muito ligeiro suspiro, deixou o mundo dos vivos. A libertação da alma do corpo que o atormentara toda a vida foi tranquila e suave. Isabelle tomou-o nos braços e chorou convulsivamente. Sophie agarrou-se à mãe a soluçar. As duas mulheres abraçaram-no e beijaram-no pela última vez. O dia estava quente e cheio de sol. Isabelle sentiu-se perdida quando chegou à rua. Não conseguia acreditar que o filho os abandonara. Era inimaginável, impensável, intolerável. Nunca mais se esqueceria da sua última expressão, tão doce. E ali ficou, a soluçar, agarrada à filha.

Apanharam um táxi para casa. Ao ver o quarto do filho, Isabelle voltou a chorar convulsivamente. Teddy, tal como o Principezinho de Saint-Exupéry, partira para o seu mundo, um mundo que nunca deveria ter deixado.

Isabelle preparou uma chávena de chá para Sophie, depois, com uma calma impressionante, telefonou a Gordon. Ficou perplexo quando ouviu a notícia, limitando-se a dizer que voltaria para casa nessa noite. Não chorou nem lamentou o sucedido. Não disse praticamente mais nada e desligou. Isabelle ainda pensou em ligar a Bill, mas achou que não valia a pena, pois ele já não estaria a aguardar qualquer telefonema seu. Além disso, não conhecia Teddy. Sentia que já não tinha o direito de entrar em contato com ele nem de se intrometer na sua vida.

Nessa tarde, foram à casa funerária. Escolheram um caixão branco simples e Isabelle encomendou lírios e rosas brancas. Sabia que mais ninguém iria ao funeral a não ser os pais, a irmã e as enfermeiras. Teddy nunca fora à escola, não tinha amigos e Isabelle levara uma vida de reclusão durante anos. Aquelas eram as únicas pessoas que o conheciam e amavam. Não conseguia imaginar o que iria fazer sem o filho. Este fora não só a sua vida e o seu coração, mas também a sua ocupação durante anos. Gordon chegou de Roma ao fim da noite, com um ar sombrio e de desânimo.

No dia seguinte, Gordon foi à casa funerária com Isabelle e Sophie. Isabelle pedira para que o caixão estivesse fechado. Não conseguia suportar ver o filho assim, embora este mantivesse a mesma beleza que exibira em vida. Gordon dera a conhecer que não queria ver o filho, o que Isabelle compreendia. Nunca fora capaz de tolerar a doença de Teddy e, embora fosse seu pai, mal o conhecia. Evitara conhecê-lo durante toda a vida e agora era tarde de mais.

Nessa noite, jantaram os três na sala de jantar. Enquanto Sophie e Gordon conversavam, Isabelle não proferiu qualquer palavra. Ninguém falou de Teddy. Era um tema demasiado doloroso. Depois de jantar, Isabelle foi até ao quarto de Teddy e deitou-se em cima da cama, aí ficando a pensar na vida de sofrimento que o filho tivera. Teddy era como uma borboleta que agora lhes fugia.

A cerimónia fúnebre realizou-se na capela da igreja que frequentavam, no dia seguinte O elogio fúnebre foi feito por um padre que não conhecia Teddy e que nem sequer sabia pronunciar o seu nome. Mas foi o percurso até ao cemitério que quase destroçou Isabelle. Não conseguia suportar a idéia de o deixar ali, e só lhe apetecia atirar-se para cima da urna. Antes de abandonar o cemitério, tocou uma centena de vezes no caixão e arrancou uma rosa branca para pôr entre as páginas de um livro. Tinha a sensação de estar a afogar-se, ou a sair de novo estado de coma. Mal conseguia respirar ou mexer-se. Todos os instantes eram insuportavelmente dolorosos. Ao fim dessa tarde, quando entrou no quarto da mulher, Gordon franziu o sobrolho ao olhar para ela, deitada na cama, com ar cadavérico.

Não sei o que se passa contigo disse, com um ar mais aborrecido do que preocupado. Começava a detestar a presença de Isabelle. Esta andava sempre com ar adoentado. Acho que tu é que devias ter sido enterrada em vez do Teddy. O que se passa contigo?

Acabei de perder o meu filho. Isabelle nem queria acreditar no que acabara de ouvir.

Também eu. Mas estás assim há dois meses.

Estou? Sinto muito. E virou-lhe a cara. Não queria vê-lo, só desejava que ele saísse do quarto.

É penoso para a Sophie ver-te assim.

Penoso é eu ter acabado de perder o meu filho.

Há anos que se esperava este desfecho, embora eu saiba que seja um choque, especialmente depois daquilo por que o teu organismo passou o ano passado. Gordon começava a acreditar que ela nunca se restabelecera completamente. Isabelle estava chocada com a frieza e a completa falta de sentimentos que o marido demonstrava. Ninguém teria acreditado que Gordon acabara de perder o filho. Parecia mais uma visita do que um membro da família, nunca o pai da criança. Olhou para Isabelle, com ar de curiosidade, e fez-lhe uma pergunta estranha: O que vais fazer agora?

Relativamente a quê? Ao quarto dele? À vida dela? Às roupas dele? Isabelle não conseguia sequer pensar no assunto.

Cuidar do Teddy foi a única coisa que fizeste nos últimos quinze anos. Não podes enterrar-te com ele.

Porque não? Mas Isabelle não chegou a articular as palavras. Com alguma sorte, pensou, iria morrer. Depois de perder Teddy e Bill, tinha muito pouco que a agarrasse à vida, à exceção de Sophie. Mas Gordon deixou-a perplexa com o que disse a seguir

Acho que devias ir com a Sophie para Grenoble, quando ela voltar para as aulas, dentro de duas semanas. Penso que seria uma excelente idéia. Precisas de sair desta casa. Far-te-á bem ficares com ela. O que Isabelle percebeu de imediato foi que Gordon estava a pô-la fora de casa para ficar mais à vontade com Louise. Era um plano bem urdido e facilmente explicado com a morte de Teddy.

Estás a falar a sério? Isabelle quase soltou uma gargalhada ao olhar para a expressão que o marido exibia. Extremamente solícito, mas, ao mesmo tempo, ansioso para que ela o deixasse. Devia estar aterrorizado com a hipótese de Isabelle tentar reclamar o seu lugar de esposa, agora que já não tinha Teddy para cuidar. Que raio esperas que eu lá faça? Estou certa de que a Sophie ficaria horrorizada, e com razão, por me ter lá a servir de estorvo. Era a última coisa que queria fazer.

Bem, não podes andar a vaguear aqui pela casa, sem nada para fazer declarou Gordon, com ar aborrecido.

É isso que pensas que faço? Estava farta da vida de fingimento que levavam há vários anos e não se sentia disposta a ser despachada de casa sob o pretexto de que devia estar com Sophie. Sabia muito bem quais eram os intentos do marido.

Não faço a mínima idéia do que fazes disse Gordon, num tom desagradável, a não ser cuidar daquela criança.

“Aquela criança” era teu filho e agora está morto. Tem um pouco de respeito Por ele E por mim. Era a primeira vez que se atrevia a falar-lhe naquele tom. Gordon não gostou da observação.

Isabelle, não me digas como é que hei-de agir. Se bem te lembras, tolerei um péssimo comportamento da tua parte o ano passado, aquando do acidente E não vou pactuar com mais idiotices

A sério? perguntou Isabelle, com os olhos perigosamente cintilantes. Gordon ultrapassara os limites do tolerável e, de imediato, disparou: E que péssimo comportamento foi esse?

Sabes muito bem ao que me refiro. Suportei o teu caso com o Bill Robinson. Tiveste sorte por não nos termos divorciado na altura. As armas começavam a ser desembainhadas. Mas, desta vez, depois da perda que sofrera, Isabelle já não mostrava qualquer medo dele. Com a morte de Teddy, Gordon perdera o controlo sobre ela. Talvez para sempre.

E tens muita sorte em eu ter aguentado a forma como me trataste nos últimos vinte anos, já para não falar no desprezo a que votaste o teu filho nos últimos quinze. Era um combate mortal. Não imaginara ter aquela conversa com Gordon tão cedo, mas estava pronta para a luta. Lembrou-se então de que Bill lhe dissera para usar as munições só quando o marido a atacasse. O que, finalmente, acontecera. No dia do funeral de Teddy. Era uma crueldade e um desrespeito, mas não era surpresa para ela.

Gordon fitou-a durante alguns instantes, como se quisesse esbofeteá-la, mas não se atreveu a tanto.

Não estou para tolerar isto. Se não te portas como deve ser, ainda te ponho no olho da rua, só com a roupa que tens vestida.

Já não me metes medo, Gordon. Não tinha nada a perder. Já não precisava de cuidar de Teddy, nem receava que ele a expulsasse de casa. Seria uma bênção se ele o fizesse. Já não me metes medo.

E para onde é que vais se te puser no olho da rua? indagou Gordon, colérico, cuspindo as palavras.

Isabelle, com ar sereno, fitou-o por instantes.

Talvez tu e a condessa de Ligne tenham a gentileza de me deixar ficar no vosso apartamento na Rue du Bac. Presumo que, se me “puseres no olho da rua”, ela vai ficar aqui em casa proferiu, num tom calmo, e Gordon não conseguiu conter um urro. Parecia um rugido de um leão ferido. Estava irado, e todo o seu corpo tremia.

Não sabes do que estás a falar! berrou, perplexo com aquilo que Isabelle acabara de dizer. Fora um golpe que não esperava e, por instantes, ficou algo combalido.

Talvez não, mas, aparentemente, meia Paris sabe, há dez anos. Ela telefonou para cá, por engano, na véspera de Ano Novo. Julgo que estava bêbeda, mas isso veio abrir-me os olhos para aquilo que devia ter visto anos atrás. Por isso, não me fales do Bill Robinson. É uma questão que não se põe.

Ele ainda faz parte da tua vida. Gordon estava espantado com o fato de Isabelle saber do seu caso com Louise e nunca lhe ter dito uma palavra sobre o assunto.

Não, não faz. Mas a condessa já deve ser uma parte integrante da tua vida. Presumo que esteve contigo em Itália. Gordon não admitiu esse fato, mas a suposição de Isabelle estava correta. Disseram-me que só poderá casar contigo quando o marido morrer. Deve ser difícil para ti. E que estás a pensar fazer-me nessa altura? Que outro plano tens, além de me despachares para Grenoble?

Estás louca! A morte do teu filho deu-te volta à cabeça. Não estou para ouvir mais disparates. Gordon preparava-se para sair, não queria escutar mais qualquer palavra.

Não retorquiu Isabelle, calmamente. Estou de coração destroçado, não estou louca. Devo ter estado, para não ver aquilo que andavas a fazer ao longo destes anos todos. Nem sequer dormias em casa, e eu fui parva suficiente para não me aperceber, porque andavas sempre a aterrorizar-me. Bem, esses tempos acabaram.

Sai da minha casa berrou Gordon, a plenos pulmões, o corpo a tremer de raiva.

Eu saio, mas só quando estiver pronta. Entretanto, sugiro que vás para o pé dela.

Gordon saiu porta fora. Pouco depois, Isabelle ouviu a porta da rua fechar com estrondo. Fora uma cena incrível. De repente, percebeu que acabava de deixar o marido e nem sequer estava preocupada com o assunto. Era como se a perda de Teddy a tivesse libertado finalmente. Depois de deixar de ter Teddy e Bill, já nada lhe restava a não ser Sophie. Gordon acabava de a libertar do tormento e das mentiras que haviam partilhado durante tantos anos.

O que lhe disse ele, mamã indagou Sophie. Isabelle não a vira entrar no quarto. Fizera-o depois de o pai.

Sair. Tinha um ar assustado. Nunca ouvira os pais a discutir daquela maneira.

Não é importante respondeu Isabelle, sentando-se na cama. Sentia-se a tremer, mas aliviada.

É importante. Mamã, ele é horrível consigo. É meu pai e eu adoro-o, mas não quero que ele continue a ser tão mau consigo. Especialmente naquele dia, depois do funeral de Teddy, fora escandaloso.

Ao olhar para a filha, Isabelle tomou consciência, de repente, de tudo o que acontecera.

Acabou de me dizer para me pôr na rua. Estava estranhamente calma e composta ao articular as palavras. E Sophie precisava de saber o que se passara.

A mamã tem mesmo de se ir embora? perguntou Sophie, de olhos esbugalhados, enquanto Isabelle reflectia no assunto. Sophie estava aterrorizada, mas ela, não. Aparentava uma estranha tranquilidade.

Acho que sim. A casa é dele.

Para onde vai agora? Havia lágrimas nos olhos de Sophie.

Acho que vou arranjar um apartamento. Já devia ter feito isto há muito tempo, mas não podia cuidar do Teddy sem a ajuda do teu pai.

Sophie fez um gesto de concordância com a cabeça. Isabelle percebia que tudo acabava à sua volta. Perdera Teddy, Bill, a casa e o casamento. Tudo aquilo que conhecera, amara, com que contara ou em que acreditara chegara ao fim. Só lhe restava começar tudo de novo. Olhou então para a filha. Esta aproximou-se e pôs-lhe os braços à volta do pescoço, e as duas mulheres abraçaram-se sem dizer uma palavra.

Fora Teddy que a libertara, finalmente, de Gordon e que a levava pela mão noutro rumo. Bill não fora capaz disso e deixara-a primeiro. Além disso, ela nunca teria tido coragem para tomar essa decisão sozinha. Mas Teddy, ao libertar-se do corpo terreno que o torturara toda a vida, libertara também a mãe da vida que tanto a atormentara. Essa era a última prenda que lhe oferecia por aquilo que ela fizera por ele durante quinze anos. Isabelle era, finalmente, uma mulher livre.


 

Gordon não voltou à casa da Rue de Crenelle durante vários dias. Isabelle sabia que poderia descobrir onde ele se encontrava, mas não tentou. Não existia motivo para isso. Nada mais restava para lhe dizer e, além disso, tinha a certeza de que estava com a condessa de Ligne.

Deambulou pela casa durante algum tempo, tentando assimilar tudo o que acontecera. Sentou-se no quarto de Teddy durante horas a chorar. De repente, sorriu e lembrou-se das coisas que fizera ou dissera. Parecia perdida noutro mundo. Então, sozinha, uma noite, começou a encaixotar as coisas do filho. Teddy possuía tão poucas coisas como se a sua vivência neste mundo tivesse sido uma simples passagem. Tinha livros, quebra-cabeças, brinquedos de infância, um sem-número de pijamas e alguns artigos religiosos que as enfermeiras lhe haviam dado ao longo dos anos. Cheirou as roupas e a almofada de Teddy antes de as arrumar. As fotografias da mãe e da irmã eram as únicas coisas que haviam tido um significado especial para ele. Tinha também uma de Isabelle e Gordon no dia do casamento. Era a única fotografia que possuía do pai.

Só de manhã é que acabou a tarefa. Voltou então para o seu quarto para dormir.

Finalmente, ao fim dessa tarde, Gordon deu sinal de vida. queria saber quais eram os seus planos.

Ainda não resolvi. Estive a encaixotar as coisas do Teddy.

Que tarefa mais mórbida. Porque não pediste às enfermeiras que fizessem isso? Isabelle quisera realizar essa tarefa por uma questão de respeito pelo filho que tanto amara. Mas Gordon não compreendia isso. Não gostava de ninguém a não ser de si próprio. Isabelle não conseguia imaginar como era a sua relação com Louise. Mas de uma coisa tinha a certeza, baseava-se na importância social e título desta. As mesmas coisas que o haviam atraído nela. Mas nunca conseguira tolerar a pessoa, nem a realidade. Tiveste um comportamento abominável a outra noite acusou, tentando intimidá-la com o tom de voz. Isabelle, porém, ouvira-o tantas vezes que já não a impressionava. E o que mais horrorizava Gordon fora o fato de Isabelle se ter atrevido a aflorar o seu caso com Louise. Achava extraordinário que ela o tivesse descoberto ao fim daqueles anos todos. E quando perguntou a Louise se telefonara para sua casa, na véspera de Ano Novo, quando perdera o voo para Saint-Moritz, ela admitiu que provavelmente telefonara. Fora um erro inocente Mas pusera a descoberto dez anos de mentiras cuidadosamente elaboradas.

Há muito tempo que esta é uma situação abominável. Sempre achei que havia algo em ti que me escapava e era por isso que eras tão frio comigo. Pensava que a culpa era minha, porque estava sempre tão ocupada a cuidar do Teddy. Finalmente, compreendo que não tinha nada a ver comigo, ou com ele. Tu só não querias estar aqui em casa

Tinha tudo a ver contigo. Se tivesses dedicado mais tempo aos deveres de uma esposa decente, isso nunca teria acontecido. Gordon não admitia nada de novo. Acusava-a de tudo O que era típico nele.

Tenho sido uma esposa decente. Sempre estive aqui ao teu dispor. Ao princípio, ainda te amei. Tu é que ergueste as barreiras entre nós, saíste do nosso quarto e me rejeitaste. Mas nada disso teve a ver comigo, e sabes bem que não.

Eu não teria feito nada dessas coisas, se tivesses aprendido a desempenhar convenientemente o teu papel de minha mulher.

Gordon era o professor e Isabelle a aluna que reprovara no curso. O amor, a compostura e o coração desta nunca haviam tido qualquer importância para ele. Nunca se interessara por Isabelle enquanto pessoa. Como tivesse dado autênticos saltos mortais para trás durante anos, enquanto Gordon gritava cada vez “mais alto”, e as coisas nunca estavam como queria. Logo que vira que Isabelle já não lhe trazia qualquer benefício a nível social e profissional, pusera-a de parte. Isabelle sabia que faria a mesma coisa a Louise. Logo que toda a gente soubesse que desposara uma condessa, e que esta era muito rica e famosa, também a poria de lado. Isabelle não conseguia imaginar Gordon a mostrar carinho por quem quer que fosse, nem por ela, nem pelos filhos, nem sequer pela amante. Era um narcisista puro.

Acho que o acidente te afetou o cérebro afirmou Gordon, num tom glacial. De repente, Isabelle imaginou o quadro que Gordon iria pintar dela: que nunca recuperara totalmente do coma, que sempre tivera um comportamento um pouco estranho e que acabara por ficar gravemente afectada com a morte do filho. Era a desculpa perfeita para se desfazer dela. Tinha a sensação de estar a espreitar para uma caverna escura e, de repente, ver o monstro que lá vivia. Outrora, ficaria aterrorizada, mas agora isso já não acontecia. Já não tinha nada a ver com o monstro. Espero que te mudes o mais depressa possível. Só queria que ela desaparecesse da sua vida. Convinha-lhe. Isabelle já não servia para nada e tornara-se um problema. Desmascarara-o e ele não podia tolerar tal coisa.

Mudo-me quando arranjar um apartamento comunicou Isabelle, com algum cansaço na voz. Estivera a pé toda a noite a pôr as coisas de Teddy em caixas. Sabes bem que, ao pores-me na rua logo a seguir à morte do Teddy, as pessoas dirão coisas pouco abonatórias a teu respeito.

Digo-lhes que endoideceste com a morte dele e que fugiste por razões pouco claras, com a agravante de teres ficado com sequelas do traumatismo craniano. Uma idéia brilhante, sem dúvida. Não conseguiu deixar de imaginar se Louise não o teria ajudado a delinear tal idéia.

Estás a partir do princípio de que as pessoas acreditarão em ti, mas não estou tão certa disso. Algumas, talvez, mas quem me conhece sabe que não sou la folie de Chaillot para me esconder no sótão. Sou uma mulher a quem mentiste, a quem traíste e a quem maltrataste. Um dia, as pessoas verão quem realmente tu és. Tal como os teus filhos viram. Não serás capaz de enganar as pessoas eternamente. Nem sequer a mim conseguiste enganar. Porém, a traição de Gordon continuava a ser um terrível choque. Fora abandonada por Bill, ao fim de cinco anos, e agora por Gordon, que já a abandonara efectivamente vários anos antes. Teddy também a deixara, mas não tivera alternativa. Todos esses abandonos a marcavam profundamente. Sabia que nunca recuperaria totalmente da traição das pessoas que chegara a amar com tanta paixão. Perdera a fé que outrora tivera de que a vida era justa e que as coisas acabavam sempre em bem. Não havia fins felizes no seu mundo E já não esperava sequer vir a tê-los. Só queria ter paz.

Muda-te quando quiseres. Diz-me só o dia. Telefonei ao meu advogado hoje. Ele vai fazer o rascunho do acordo de divórcio. Mexera-se rapidamente. Isabelle perguntou a si própria se o conde de Ligne estaria às portas da morte. Gordon parecia ter, de repente, pressa de resolver as coisas. O ideal para ele teria sido Isabelle desaparecer para Grenoble. Poderia dizer que a esposa se encontrava num sanatório, que enlouquecera, ou que sofria de depressão. Praticamente não teria de dar qualquer desculpa, desde que ninguém a visse. Mas Isabelle não estava disposta a facilitar E fazia tenções de arranjar um advogado. Gordon deixou-lhe então novo aviso. E não te esqueças, quando fizeres as malas, que só podes levar as coisas que são tuas, as que trouxeste para o casamento. O resto pertence-me.

A minha intenção é essa ripostou Isabelle, num tom frio. A rapidez com que ele chegara à questão das partilhas! Ela só queria as suas roupas, as coisas de Teddy, alguns quadros e antiguidades dos seus pais, e as poucas jóias que Gordon lhe oferecera. O resto das coisas não lhe interessava E as jóias só as levava para as dar a Sophie. Informo-te quando arranjar um sítio para viver.

Nas semanas seguintes, Isabelle procurou afanosamente um apartamento. Em finais de Setembro, descobriu um adequado às suas necessidades, na Rue de Varenne, não muito longe da casa que partilhara com Gordon na Rue de Grenelle. O apartamento tinha dois quartos, uma enorme e soalheira sala de estar, uma cozinha já um pouco antiquada, uma despensa e um terraço com vista para o Museu Rodin. Era, efectivamente, o terceiro piso de um velho hotel particular. Havia um espaço de garagem para um carro, no sítio onde outrora eram os estábulos. O edifício já não possuía a elegância de outros tempos, embora, tal como muitos dos edifícios do século xviii da Rive Gaúche, os vários senhorios tivessem gasto fortunas em obras de manutenção. Havia um pequeníssimo elevador, que mais parecia uma gaiola. Os teto eram altos e os soalhos bonitos, se bem que em mau estado. O senhorio pertencia a uma família aristocrática conhecida de Isabelle. A vizinhança e o sítio eram bons e acreditava que ali se sentiria em segurança. Também sabia que tinha suficiente mobiliário dos seus pais para decorar o apartamento condignamente. Logo que assinou o contrato de arrendamento, telefonou ao advogado de Gordon e informou-o que ia mudar-se dentro de duas semanas. De seguida, ligou à filha.

Sophie ficou contente por a mãe ter arranjado um apartamento, mas iria ser estranho vê-la a viver noutro sítio Quando viesse visitar o pai, ficaria na Rue de Crenelle, mas com a mãe e Teddy ausentes, sentia-se deprimida só de pensar no assunto.

Isabelle já tinha em seu poder a proposta de acordo de divórcio de Gordon. Este oferecia-lhe uma pequena pensão, que não reflectia, de modo nenhum, a vida que haviam partilhado durante vinte e um anos. O advogado de Gordon sugeriu-lhe que arranjasse um emprego O que ela tencionava fazer, em vez de pedir apoio financeiro a Gordon. Recusou tudo o que lhe foi oferecido no acordo, o que era efectivamente uma enorme bofetada dada com luva branca. Não queria nada dele. Tudo aquilo confirmava o que pensara quando receara abandoná-lo por causa de Teddy. Ele deixá-los-ia morrer à fome, se ela tivesse saído de casa Dele só queria o suficiente para fazer face a um imprevisto ou a uma situação de doença.

O advogado de Isabelle ficou furioso com aquilo que Gordon lhe oferecia e queria que ela lutasse por uma melhor partilha de bens, tentando até ficar com a casa da Rue de Crenelle. Mas Isabelle sabia que seria uma falsa vitória. Só queria o mínimo para fazer face às suas necessidades e nada mais do que isso.

Mudou-se para o apartamento da Rue de Varenne, em meados de Outubro, e ficou espantada com a sua beleza depois de lhe dar uns pequenos retoques. A parte mais dolorosa ao abandonar a velha casa relacionava-se com o fato de deixar os quartos onde ela e Teddy haviam passado uma vida inteira. Mas sabia que levava as recordações consigo. Com um último olhar triste por cima do ombro, saiu, enquanto Josephine, a governanta, chorava. Prometeu convidá-la a visitar o seu novo lar.

E até Sophie ficou espantada com o apartamento na primeira vez que foi passar uns dias com a mãe. Era um fim-de-semana prolongado devido ao feriado de Todos os Santos e tinha quatro dias sem escola.

Está maravilhoso, mamã! Sorriu quando viu o seu quarto, todo decorado com seda cor de alfazema com lilases e violetas. As paredes eram cor de marfim, com uma risca fina também em cor de alfazema. Isabelle decorara o seu em tons de amarelo. Na sala de estar, instalara móveis antigos que haviam sido de sua mãe: peças muito requintadas, na sua maioria estilo Luís XV e XVI. Apesar de estar ali a viver há apenas duas semanas, já se sentia em casa. De certo modo, muito mais do que na casa da Rue de Crenelle. O apartamento era dela.

Estava admirada com a facilidade com que se adaptara à nova vida. Não sentia quaisquer saudades de Gordon. A única pessoa de quem sentia imensa falta era de Teddy. O novo apartamento proporcionara-lhe alguma distracção, mas não havia forma de atenuar a tristeza por ele ter morrido. De certa maneira, era mais fácil habitar numa casa nova, sem ter de deambular pelos corredores por onde passara diariamente, nem ter de se sentar no quarto onde dedicara ao filho horas intermináveis. Mas não fora só a saudade de Teddy que a acompanhara até à nova casa; a saudade de Bill também. Não conseguia conceber que nunca mais voltaria a vê-lo, e que, depois de cinco anos a conversar com ela, a aconselhá-la, a confortá-la, a ser o seu mentor e melhor amigo e, finalmente, amante, a tivesse abandonado. Era a última coisa que esperava dele, a sua única crueldade. Sabia que dificilmente o esqueceria E não se imaginava a amar ou a confiar noutra pessoa. Não fora Gordon quem a magoara mais, pois já não esperava nada dele, há vários anos, mas sim Bill, porque o amara verdadeiramente e depositara nele uma confiança cega. Mas sabia que essa seria uma cruz que teria de carregar até ao final da vida, custasse o que custasse.

Duas semanas depois de se ter mudado, viu uma fotografia de Bill no Herald Tribune. O artigo falava das próximas eleições nos Estados Unidos e do papel de Bill numa importante corrida para o Senado. Deteve-se demoradamente a olhar para a fotografia. Achou-o com bom aspecto. Não conseguia dizer ao certo, mas dava a sensação de que Bill se encontrava de pé, no meio de um grupo de homens, com o candidato que ele apoiava a seu lado. O artigo até fazia uma breve referência ao fato de ele ter sido vítima de um acidente de viação quase fatal em Londres, no ano anterior, tendo alcançado uma recuperação extraordinária e regressando mais forte do que nunca. Embora não mencionasse se Bill andava ou conseguia correr parecia comprovar o que ele dissera quando lhe mentira sobre o fato de ter recuperado a capacidade de andar. Tudo levava a crer que se encontrava de perfeita saúde. Depois de dois dias a olhar para a fotografia e a torturar-se, deitou o jornal para o lixo.

Sophie acabara de partir para a faculdade, depois do fim-de-semana de Todos os Santos, quando Isabelle viu Bill na CNN. Encontrava-se numa audiência no Senado, em Washington, sentado numa mesa comprida, dirigindo-se a uma comissão. O que diziam era de cariz técnico e extremamente aborrecido, mas Isabelle ficou hipnotizada mal lhe viu o rosto. Não conseguiu tirar os olhos dele. Bill fazia um discurso arrebatado. De repente, virou-se para a câmara, como se estivesse a falar com ela.

Sacana! murmurou Isabelle. Ainda se sentia magoada com o que Bill lhe fizera. Lembrava-se de todas as palavras que ele dissera quando lhe comunicara que estava tudo acabado entre eles. Sentia que não merecera aquilo da parte dele, depois de o ter amado tanto e dos momentos felizes que haviam passado juntos. Continuava nessa angústia tremenda a recordar esse momento, quando, acabado o discurso, se viu um plano alargado da sala e alguém a empurrar a cadeira de rodas onde Bill estava sentado. Ficou boquiaberta. Dissera-lhe que já conseguia andar, mas era óbvio, por aquilo que via, que ainda estava confinado à cadeira de rodas. Por que razão lhe teria dito que já conseguia andar, se não era esse o caso? Qual teria sido o objetivo? Então, ao vê-lo desaparecer do ecrã com um aceno às várias pessoas na assistência, lembrou-se do que ele dissera desde o princípio. Ainda em Londres, tinha dado a entender que, se não voltasse a andar, não ficaria com ela, que não queria ser nenhum fardo. Nunca expressara tal decisão por palavras, mas Isabelle compreendera o que ele queria dizer e achara que se sentia apenas deprimido. Não o levara a sério, parecendo-lhe que estava a dramatizar a situação. De repente, perguntou-se se Bill não teria levado à letra essa sua decisão. Nunca pensara nisso, porque ele a informara com toda a clareza que voltara a andar. E não conseguia deixar de questionar-se se ele também teria mentido relativamente a tudo o resto.

Isabelle sentou-se então na cama a reflectir no que haveria de fazer e na forma de descobrir o que acontecera. Tinha vontade de pegar no telefone e perguntar-lhe. Todavia, se Bill tivesse querido que Isabelle soubesse a verdade, ter-lha-ia contado cinco meses antes, em vez de lhe mentir. Estava completamente confusa. Deu um pulo da cama e pôs-se a andar de um lado para o outro no quarto. Desligou o televisor, para poder pensar melhor e olhou para o relógio. Era meio-dia em Washington e seis da tarde em Paris. Então, teve uma idéia. Correu para a cozinha e pegou no telefone.

Ligou para Washington, para o Serviço Informativo e pediu o número do escritório de Bill, que lhe deram de imediato. Não sabia muito bem o que haveria de fazer a seguir, mas, quando atenderam, pediu para falar com o assessor de Mr. Robinson e uma voz masculina surgiu do outro lado da linha. Explicou então que Mr. Robinson lhe pedira para telefonar se precisasse de ajuda para uma comissão que se ocupava da alfabetização de crianças no Sul do país. Sabia que a luta contra o analfabetismo era de primordial importância para Bill e fazia questão de que os seus candidatos a adoptassem como bandeira.

Gostávamos que Mister Robinson e a esposa pudessem assistir ao nosso encontro em Dezembro. E fazemos questão de que Mistress Robinson seja nossa presidente honorária.

Fez-se então uma breve pausa, enquanto o assessor recuperava o fôlego e Isabelle se recompunha, rezando para que as suas previsões estivessem certas.

Estou certo de que Mister Robinson adoraria. Vou verificar a agenda quando me der a data. Mas receio que Mistress Robinson não possa presidir ao encontro. Talvez pudesse, mas... bem, estão divorciados disse, algo embaraçado. Ela vai casar-se de novo no próximo mês. Creio que ela gostaria imenso. É questão de lhe telefonar. Posso dar-lhe o número, se quiser. Caso contrário, julgo que Mister Robinson estaria interessado em presidir ao vosso encontro, se me enviar algum material sobre o assunto e me disser qual é a data.

Envio-lhe o material ainda hoje. Isabelle tinha a mão a tremer. Fechou os olhos. Bill mentira-lhe sobre ambas as coisas. Não estava casado com Cyntia e não conseguia andar. Provavelmente deixara-a porque a amava. Ou talvez já não a amasse. Porém, de duas coisas tinha a certeza: já não estava casado com Cynthia e ainda andava de cadeira de rodas. Muito obrigada.

E qual é a data?

Doze de Dezembro.

Marco aqui na agenda. Depois informo-a.

Obrigada.

E qual é o seu nome? Desculpe.. não ouvi...

Sally Jones.

Obrigado, Miss Jones. Obrigado pelo telefonema.

Isabelle sentou-se na cama, a ponderar o que fazer a seguir. Estava cada vez mais certa dos motivos que haviam levado Bill a deixá-la. Tinha a sensação de que tudo mudara num abrir e fechar de olhos. Porém, agora, em vez de ter vontade de morrer, como acontecera nos últimos cinco meses, sentia-se renascer.

À meia-noite, depois de reflectir maduramente no assunto durante horas, já sabia o que fazer. Pegou no telefone, ligou para a companhia de aviação e fez uma reserva para a tarde seguinte. As eleições eram só daí a quatro dias e a altura provavelmente não era a mais adequada, mas não podia esperar mais tempo. Marcou lugar no voo das duas horas do dia seguinte. Telefonou então a Sophie a comunicar-lhe que ia passar uns dias a Washington.

Porquê? Sophie pareceu surpreendida, mas estava satisfeita. Há meses que a mãe andava tão sem vida, triste e desesperada, especialmente depois da morte de Teddy, que era um alívio saber que ela ia viajar.

Vou visitar um velho amigo.

Alguém que eu conheça. A mãe estava eufórica. Havia um misto de excitação, felicidade e algum receio na voz.

O Bill Robinson. Estava comigo na altura do acidente informou Isabelle, enquanto Sophie sorria do outro lado da linha.

Eu conheço-o, mamie. Foi muito simpático comigo quando fui visitá-la ao hospital. Tem duas filhas e uma esposa muito simpáticas.

Tens razão. Exceto no que tocava à esposa.

Ele também gostava muito de si disse Sophie, com alguma inocência, e Isabelle sorriu.

Também gosto dele. Depois telefono-te a dizer onde estou e quando regresso, está bem. Cuida de ti, querida. Não me demoro por lá.

Não é preciso vir a correr. Só vou a casa no Natal. Divirta-se.

Obrigada agradeceu Isabelle, e desligou.

Nessa noite, não conseguiu dormir; partiu para o aeroporto às onze da manhã. Tinha de lá estar apenas ao meio-dia. Durante o voo, mal era capaz de conter a alegria que sentia. E nem sequer sabia qual seria a reação de Bill ou o que lhe iria dizer quando o visse. Talvez ficasse furioso por ela o ter descoberto. Se tivesse tido vontade de estar com ela, tê-lo-ia feito. Ele fora claro na decisão que tomara. Mas estava enganado. Completamente. Não precisava de se ter sacrificado por ela. O seu amor não seria posto em causa pelo fato de nunca mais voltar a andar. A única coisa que ela podia fazer agora era encontrá-lo e dizer-lhe isso mesmo. Mas sabia que não seria tarefa fácil. Era um homem muito teimoso. Ainda se lembrava bastante bem das muitas objeções que fizera ao casamento de Joe e Jane.

Quando o avião aterrou no Aeroporto Dulles, fechou os olhos e fez uma oração em silêncio para que Bill lhe desse ouvidos. Não fazia a menor idéia se ele iria escutar o que tinha para lhe dizer. Mas iria fazer tudo o que estivesse ao seu alcance para que isso acontecesse.

Tinha a morada do escritório no bolso. Então, a tiritar de frio, entrou num táxi e deu ao motorista a morada do Hotel Four Seasons, em Georgetown, onde fizera uma reserva na noite anterior. Agora só tinha de descobrir onde Bill se encontrava.


 

Eram quase quatro horas quando Isabelle acabou de desfazer as malas no quarto do hotel. Sabia que tinha de telefonar para o escritório de Bill o mais depressa possível, se queria saber onde ele iria estar essa noite. Ou talvez devesse aparecer pessoalmente no escritório. De súbito, assaltou-a o receio de ser uma loucura o fato de ter feito aquela viagem. Havia um milhar de hipóteses na sua cabeça e não fazia a menor idéia de qual resultaria melhor. Enquanto olhava para o telefone, começava a achar que cometera um erro tremendo. Talvez já não estivesse apaixonado por ela. Finalmente, ao fim de meia hora de total perplexidade, pegou no auscultador.

Foi uma recepcionista que atendeu. Tentou então dissimular que estava sob uma grande tensão nervosa.

Olá, é por causa da segurança para logo à noite. A que horas é que Mister Robinson chega? Esforçou-se por falar com sotaque americano, de modo a que a mulher não percebesse que era francesa.

Oh, meu Deus, não sei disse a recepcionista, com uma voz ainda mais enervada do que a de Isabelle. Eles vão a seis locais diferentes. A qual se refere?

É a segurança para o jantar.

Oh, claro... bolas... Pensei que ele cancelara esse... não, está bem... tudo bem... Ele deve chegar aí às nove horas... Lamenta o atraso, mas não consegue estar aí mais cedo. Esse será o quarto local a que vai. E não se pode demorar... Sabe que ele agora anda de cadeira de rodas, não sabe?

Claro, tenho aqui as minhas notas respondeu Isabelle, mostrando-se bem informada.

Só precisam de tirar uma cadeira da mesa, de modo a que ele tenha espaço para meter a cadeira de rodas. Não gosta de exibicionismos. E não quer ser fotografado na cadeira. É uma pessoa muito discreta. Mister Robinson e o senador Johnson querem entrar por uma porta lateral e sairão da mesma forma.

Tudo bem. Isabelle continuava sem saber onde era o jantar e não podia perguntar.

O senador Johnson tem a sua própria segurança e encontram-se consigo na porta lateral do Centro Kennedy, como da última vez..

“Obrigada, meu Deus”, murmurou Isabelle para consigo. O Centro Kennedy.

Ele vem em traje de cerimónia... É para o localizarmos logo.. Isabelle precisava de saber o que vestir.

Não, ele pede imensa desculpa... mas não vai.. Julgo que não haverá problema.

De modo nenhum.

Falaram ainda sobre uns quantos pormenores, durante uns dez minutos, mas Isabelle já pouca importância dava ao que a recepcionista dizia. A única coisa que precisava de saber era que teria de estar no Centro Kennedy às nove horas da noite. Bill sairia às dez para o compromisso seguinte. Poderia confrontá-lo à entrada, ou à saída... ou poderia fazer uma cena ao jantar, esconder-se debaixo da mesa, apontar-lhe uma arma... As hipóteses eram mais do que muitas, mas algumas tinham poucas perspectivas de terem bons resultados. Não fazia a menor idéia de como agir, mas sabia que tinha de tentar qualquer coisa.

Por fim, resolvera encontrar-se com Bill à porta, depois do jantar, quando ele fosse a sair Isto é, às dez da noite. Daí a seis horas. As seis horas mais longas da sua vida. Telefonou ao porteiro e pediu-lhe para alugar uma limusine para essa noite. Depois, sentou-se a pensar no que iria dizer-lhe, se é que ele lhe daria hipótese de falar. Bill poderia dizer-lhe, muito simplesmente, que não tinha nada para falar com ela. Fora ele que dissera que nunca mais a queria voltar a ver, mas mentira-lhe, dizendo que recuperara o andar e que havia renovado os votos matrimoniais com Cynthia. Durante cinco meses, não fora capaz de compreender como conseguira romper com ela daquele modo. Mas agora entendia perfeitamente. Tudo girava em torno do fato de não querer ser um fardo para ela. Fora por isso que não quisera visitá-la em Paris, porque não queria que soubesse que ele não conseguia andar. Agora teria de o convencer a mudar de idéias. E sabia que só tinha alguns minutos para o fazer, antes de ele entrar no carro e partir. Não fazia idéia do que lhe dizer. “Amo-te!”, poderia ser um começo, mas nem isso o detivera quando acabara tudo entre eles. Por que motivo haveria agora de o fazer?

Havia tanta coisa de que Bill não tinha conhecimento: que Teddy morrera, que deixara Gordon e que se mudara para um novo apartamento. E que a deixara de coração destroçado E, sobretudo, não sabia que ela não se importava que ele ficasse numa cadeira de rodas o resto da vida. A única coisa que Isabelle queria era estar com ele e amá-lo eternamente.

De repente, questionou-se se não seria um erro vê-lo nessa noite. Talvez devesse ir ter com ele ao escritório, ou telefonar-lhe. Sabia que devia andar num frenesim com a eleição que iria ter lugar daí a três dias. Poderia adiar o encontro para depois, mas era possível que ele saísse da cidade ou desaparecesse. Não queria esperar mais tempo. Já haviam esperado de mais.

Nessa noite, não teria tempo para jantar. Tentou dormir uma sesta, mas não conseguiu pegar no sono. Tomou então um banho e vestiu-se. Às nove e meia, encontrava-se já na limusine, dirigindo-se a toda a velocidade para o Centro Kennedy. Quando chegou à entrada, ficou em pânico. E se Bill já tivesse saído? Estava paralisada de preocupação quando abandonou o carro. Colocou-se então na zona lateral da entrada, donde o poderia ver sair. Estava um frio de rachar, mas não se importou. De súbito, como que um mau presságio, começaram a cair enormes flocos de neve, que fortes rajadas de vento sopravam em todas as direcções. Às dez e um quarto, não havia qualquer sinal de Bill, e começava a imaginar que, possivelmente, saíra por outra porta. Talvez tivesse havido mudança de planos. Isabelle envergava um casacão preto, um chapéu de pele de zibelina, botas de camurça pretas e luvas. No entanto, continuava com frio e coberta de neve.

Às dez e meia, já perdera a esperança. Sabia que teria de descobrir outra forma e tentar de novo. No dia seguinte, iria experimentar outro estratagema. Disse para consigo que ficaria até às onze horas, se bem que estivesse convencida de que Bill e o senador já haviam partido para o compromisso seguinte.

Entretanto, às dez para as onze, houve alguma agitação perto da porta. Primeiro, saíram dois polícias à paisana, depois, um segurança com um auricular no ouvido, finalmente, um homem bem-parecido, de cabeça baixa contra o vento, abandonou em passada larga o edifício e dirigiu-se para uma limusine que aparecera como que por encanto. Isabelle não dera por ela. O homem parecera-lhe o senador, mas não tinha a certeza, pois ia de cabeça baixa. Ficou mais uns instantes na expectativa, mas não viu mais ninguém sair. Perguntou-se então se Bill não viera ou se resolvera ficar. Então, avistou um homem numa cadeira de rodas, rodeado por uma pequena multidão, que ouvia atentamente o que ele dizia. Era ele próprio que conduzia a cadeira. Trazia um cachecol felpudo ao pescoço e um casaco escuro, e Isabelle reconheceu imediatamente que se tratava de Bill. Sentiu o coração bater mais acelerado quando o viu dirigir-se para a rampa onde ela se encontrava. Bill ainda não dera pela sua presença. Os acompanhantes deixaram-no e correram para dentro do edifício para fugir à neve. O senador e os seguranças já se encontravam na limusine.

Então, como se tivesse tomado o seu destino nas mãos, dirigiu-se para a rampa e começou a subi-la. A meio, deu de caras com Bill, de cabeça baixa, para se proteger do vento, de modo que o casaco e as pernas foram as únicas coisas que ele viu de Isabelle.

Desculpe, podia desviar-se murmurou Bill, com ar absorto, mas ela não se mexeu.

Mentiste-me disse Isabelle, com a voz com que Bill sonhara durante cinco meses e que decidira nunca mais ouvir.

Ao levantar os olhos para ela, Bill ficou mudo de espanto. Mas tentou recompor-se de imediato.

Olá, Isabelle. Que coincidência encontrar-te aqui proferiu, supondo que Gordon viera em negócios e que ela o acompanhara. Não deu qualquer explicação relativamente ao fato de estar na cadeira de rodas, apesar daquilo que dissera meses antes.

Não é bem uma coincidência. Já era demasiado tarde para mais mentiras. Vim propositadamente de Paris para te ver

Bill não sabia o que dizer. O vento fustigava-lhes os rostos, ao mesmo tempo que a neve se agarrava ao chapéu de Isabelle. Parecia saída de um postal de Natal, ou uma princesa russa. Bill estava deslumbrado com a beleza dela, mas exibia uma expressão impassível. Esforçava-se por manter um ar desapaixonado e despreocupado para dissimular tudo aquilo que sentia. Tornara-se mestre nesse campo.

Tenho de ir. A Cynthia está à minha espera no carro.

Foi a única desculpa que conseguiu arranjar para uma fuga rápida. Sabia que precisava de sair de ao pé dela o mais rapidamente possível, antes que se sentisse tentado a pôr de lado a decisão que tomara meses antes.

Não, ela não está no carro. Estás divorciado. Também me mentiste a esse respeito.

Menti-te acerca de uma série de coisas, mas sobre o fato de que, para mim, a relação entre nós acabou, não. Isso é verdade. Tudo nele resistia a Isabelle, mas o olhar denunciava-o

Por que motivo é que, para ti, a relação acabou? Continuava a busca implacável pela verdade. Se Bill conseguisse dizer-lhe que já não a amava, desapareceria para sempre da sua vida. Mas tivera de o ver uma última vez. E se Bill ia mandá-la embora de novo, pelo menos queria que a olhasse bem nos olhos.

As coisas são mesmo assim. Como está o Teddy? indagou Bill, para quebrar a tensão e mudar de assunto, mas não estava preparado para o que veio a seguir.

Morreu há três meses. Apanhou uma gripe muito forte. Tenho pena que nunca o tenhas conhecido respondeu Isabelle, com voz triste, esforçando-se por manter a compostura. Não queria que a sua dor fosse mais um peso para ele carregar, mas achava que devia dizer-lhe.

Os meus pêsames. Bill ficou algo combalido ao imaginar o choque que Isabelle sentira e pelo sentimento de culpa de não ter estado ao seu lado na altura. Estás bem?

Tinha vontade de lhe estender os braços e de a abraçar, mas não se atrevia. Sentia-se embaraçado por ter sido apanhado nas suas mentiras e por Isabelle o ver na cadeira de rodas. Convencera-se de que os seus caminhos nunca mais voltariam a cruzar-se e que ela nunca mais saberia nada dele.

Ainda não, mas acabarei por me conformar. Sinto imensas saudades dele. E de ti também sussurrou Isabelle, num tom triste. E tu, como estás. Queria perguntar-lhe se também sentia saudades dela, se se arrependera do que fizera, mas Bill estava ansioso por se ir embora. Sabia que tinha o senador à espera. Mas esta era a sua única oportunidade.

Estou ótimo. Melhor do que nunca. Voltei ao trabalho. A eleição é daqui a três dias. Deu uma olhadela ao relógio. Estavam uma hora atrasados para o compromisso seguinte. Olhou então para Isabelle com o ar de quem pede desculpa, mas sem mostrar quaisquer sinais de querer o que quer que fosse dela. Tenho de ir.

Ainda te amo, Bill insistiu Isabelle, sentindo-se desesperadamente vulnerável, mas fora por isso que viera. Fazia questão que ele soubesse. Estou-me nas tintas para o fato de não conseguires andar de patins ou dançar. Também não sou grande dançarina. Nunca fui.

Bill esboçou um sorriso nostálgico, estendeu o braço e tocou-lhe na mão.

Estás a falar a sério? Vieste propositadamente ver-me?

Era a mesma voz doce que ela recordava com saudade. Isabelle anuiu com a cabeça, não conseguindo evitar algumas lágrimas furtivas.

Vi-te ontem na CNN e percebi por que razão me mentiste. Queria que soubesses que não me importo.

Eu sei que não te importas Mas importo-me eu. É isso que conta. Nunca te deixaria fazer tal coisa. Amo-te demasiado para te destruir a vida, sobrecarregando-te com isto.

E olhou para a cadeira. Nem mesmo que o Gordon te deixasse um dia. Especialmente nessa altura. Ele está a tratar-te decentemente? Já o procurara com o olhar e verificara que não viera com Isabelle, deduzindo que esta arranjara maneira de lhe escapar.

Isabelle esboçou um suave sorriso.

Usei as munições, como me disseste, quando o Teddy morreu. Pôs-me fora de casa. Eu e a Sophie temos um apartamento na Rue de Varenne

As vidas de ambos haviam dado muitas voltas. Porém, nada disso fazia com que ele alterasse a decisão que tomara. Aliás, o fato de a ver veio reforçar ainda mais essa decisão. Isabelle era uma mulher livre e merecia muito mais do que aquilo que ele podia oferecer-lhe.

Folgo em saber que estás bem E recusou-se a dizer mais qualquer coisa.

Sei que estás com pressa. Estou no Hotel Four Seasons Se quiseres falar, liga-me.

Bill limitou-se a abanar a cabeça. Tinha os cabelos cobertos de flocos de neve.

Não vou telefonar-te, Isabelle Fizemos o que tínhamos a fazer há cinco meses. Tomei a decisão que achei mais acertada.

Não concordo contigo. Foi um erro tremendo Para os dois. Temos o direito de nos amar. E mesmo que continues fora da minha vida, não deixarei de te amar. Nunca.

Acabarás por esquecer.

Isabelle negou com um aceno de cabeça e desviou-se para o lado. Bill fitou-a então demoradamente.

Cuida de ti. Teve vontade de voltar a dizer-lhe o quanto lamentava a morte de Teddy, mas não o fez. E, sem proferir mais nada, desceu o resto da rampa, sem olhar para trás e entrou na limusine. Pediu desculpa ao senador pela demora, dizendo que encontrara uma velha amiga. Não pronunciou mais qualquer palavra durante toda a viagem até à paragem seguinte, sem conseguir dissimular a profunda tristeza que o consumia.

Já passava da meia-noite quando Bill chegou a casa. Não telefonou a Isabelle. Já era muito tarde e, além disso, resolvera nunca mais lhe telefonar. Acreditava que a maneira como agira era sinal do grande amor que tinha por ela. Se não a amasse tanto, talvez não se importasse de ser um fardo para ela, mas amava-a demasiado para lhe fazer tal coisa, e sabia que sempre a amaria. Estava de coração despedaçado pela morte de Teddy. Sabia o que este significara para ela e imaginava o choque que sofrera com a sua morte. Pelo menos, ficara aliviado por saber que Gordon já não fazia parte da sua vida. Acreditava que ela arranjaria outra pessoa em breve. Nunca a vira tão bonita nem tão triste como nesse dia, a neve, à porta do Centro Kennedy. Nessa noite, na cama, não conseguiu pensar noutra coisa.

Quando Isabelle se sentou no seu quarto de hotel, a pensar em Bill, a neve ainda não parara de cair. Sabia agora que ele nunca mais lhe telefonaria. A expressão que lhe vira no rosto indiciava a sua firme disposição de não voltar a envolver-se com ela. Só o olhar denotava ainda alguma relutância. Agora só lhe restava aceitar a decisão que ele tomara. Mesmo que lhe tivesse mentido, fora esta a decisão que acabara por tomar. Na sua vida não havia fins felizes. Havia apenas lições e perdas, e destas já tivera a sua dose.

Ficou acordada durante quase toda a noite E quando, por fim, adormeceu, sonhou com Bill. Quando o telefone tocou, às quatro da manhã, dormia profundamente. Era Bill. Mesmo ensonada, reconheceria a sua voz em qualquer lugar.

Desculpa telefonar-te tão tarde. Estavas a dormir? Parecia sentir-se tão atormentado como ela.

Tinha acabado de adormecer. Onde estás.

Aqui em baixo No átrio do hotel. Sou louco varrido como tu, mas não sabia quando é que partias e tenho de estar em Nova Iorque amanhã. Pensei que, já que vieste propositadamente de Paris, talvez devêssemos conversar. A hora tardia não parecia aborrecer qualquer um dos dois.

Estou felicíssima por teres vindo. Porque não sobes? Penteou-se, lavou os dentes e passou pelo rosto um pouco de água, enquanto esperava que Bill subisse. Cinco minutos depois, ouviu-se uma batida na porta. Sentado na cadeira de rodas, olhou para Isabelle e entrou lentamente, enquanto esta segurava a porta, fechando-a seguidamente, sem fazer o mínimo ruído. Isabelle teve vontade de estender os braços e tocar-lhe, mas não se atreveu.

Desculpa cá vir a estas horas. Não conseguia dormir. Foi um choque encontrar-te esta noite. Uma loucura da tua parte. Mas não se sentia infeliz. Ficara sensibilizado com o ato dela, mas também um pouco aborrecido. Havia uma série de sentimentos adormecidos que levara meses a dissimular e que agora haviam sido despertos, ao vê-la à porta do Centro Kennedy, sob a neve. Lamento imenso o que aconteceu ao Teddy. O que se passou?

Isabelle sentou-se no sofá, de frente para Bill, e contou-lhe, em breves palavras, os últimos dias do filho. A voz ficou embargada e os olhos marejaram-se de lágrimas e não conseguiu evitar que uma lágrima mais teimosa rolasse pela face. Instintivamente, Bill estendeu a mão e tocou na dela.

Sinto muito.

Isabelle esboçou um sorriso.

Também eu. Algumas pessoas dizem que foi um ato de misericórdia, e talvez até tenha sido, mas também teve momentos de felicidade. Sinto imensas saudades dele. Nunca dei conta do quanto a minha vida girava à sua volta. Não sei o que vou fazer agora que ele partiu, e a Sophie está na faculdade.

Demora algum tempo, mas acabarás por te habituar. Foi uma enorme volta que a tua vida levou. Tudo mudara na sua existência: a casa, o divórcio, a morte do filho, a perda de Bill. No ano anterior não fizera outra coisa senão enfrentar alterações dolorosas na sua vida. Tal como ele. Não sei que dizer-te. Nunca pensei voltarmos a ver-nos. Achava que não devíamos. Eu não tinha o direito de te arruinar a vida. Mereces mais do que aquilo que posso oferecer-te. Precisas de uma pessoa maravilhosa, completa... não como eu.

Tu és uma pessoa completa murmurou Isabelle, os olhos pregados nele. Ainda não sabia o que Bill ia dizer-lhe, nem se iria gostar do que iria ouvir. Tudo levava a crer tratar-se de mais uma despedida, ou de mais um desfilar de uma série de razões que o levavam a não poder ficar com ela. Mas, pelo menos, desta vez, não eram mentiras, só o que ele entendia por verdade, por mais distorcida que fosse.

Ambos sabemos que não é esse o caso. Não queria recordar-lhe a tentativa fracassada de fazer amor no hospital de Londres. Ao contrário do genro, via as suas deficiências como um obstáculo intransponível, que o impedia de chegar ao casamento. Estava convencido de que não tinha nada justo ou razoável a oferecer-lhe. Lembrava-se vagamente de tudo o que Helena lhe dissera, mas esta era jovem e idealista. Talvez o amor se destinasse só aos jovens. Fosse como fosse, viera ao hotel para lhe explicar as coisas e despedir-se com alguma decência. Devia-lhe isso, dissera a si próprio antes de vir ao Four Seasons. Sabia que a forma como a deixara fora de extrema crueldade E ela não merecia isso, sobretudo depois de perder Teddy. Só quis despedir-me e dizer o quanto lamento toda esta situação. Nunca devia ter-te convencido a ir a Londres. Sinto-me culpado de tudo o que se passou.

Tu deste-me o verdadeiro amor que se pode ter de um homem. Não tens nada de que te desculpar.

Perdoa não poder ser mais do que aquilo que sou... Havia lágrimas nos seus olhos. Desculpa tudo isto proferiu, num tom triste.

Isabelle inclinou-se para ele e beijou-o, enquanto Bill a puxava delicadamente para si e a sentava ao seu colo. Beijaram-se então com tal paixão que, por instantes, Bill se esqueceu da virilidade perdida e sentiu-se invadir por um desejo incontrolável. A força do que sentiam um pelo outro era irresistível. De repente, Bill deixou de ter medo. Beijaram-se demoradamente com ardor. Quando afastaram os lábios, estavam ambos arquejantes. Então, e sem trocarem qualquer palavra, Isabelle ajudou-o a sentar-se no sofá e despiu-o delicadamente, ao mesmo tempo que ele lhe passava as mãos pelos ombros, fazendo com que o robe de cetim caísse no chão.

Bill ainda sentia uma muito ligeira hesitação, mas, dessa vez, não conseguia parar. Desejava-a loucamente. Não se lembrava de fazer amor com alguém como Isabelle, nem de desejar uma mulher com tanto ardor. Nunca sentira tal paixão na vida, nem antes do acidente, nem na juventude. Não havia ninguém no mundo como ela. Fazia-o sentir-se homem de novo. Estavam ambos tomados pelo desejo.

Depois do momento de êxtase, Bill envolveu Isabelle nos braços e sorriu. Os seus piores receios haviam-se desvanecido. Tudo o que acontecera fora melhor do que qualquer deles imaginara. Mesmo não conseguindo andar, sentia-se um homem completo.

Que bom! exclamou Isabelle, apertando-o contra si. Bill sorria. Sentia-se de novo um adolescente nos braços da sua amada. Foi maravilhoso!

Tu é que foste maravilhosa!

Uma hora depois, conduziu-o à casa de banho, donde saiu, completamente vestido, quarenta minutos depois, mas com um olhar que a deixou preocupada.

Foi uma loucura ter vindo até cá afirmou Bill, num tom sombrio, já dominado pelo sentimento de culpa e os seus próprios medos. Não devia ter feito o que fiz. Não queria enganá-la nem dar-lhe falsas esperanças. Continuava a bater na mesma tecla de que Isabelle merecia uma vida melhor do que aquela que ele poderia dar-lhe, e fazer amor só viera complicar ainda mais as coisas. Passara meia hora no duche a torturar-se, a censurar-se, mas também sentia um imenso alívio por ter conseguido consumar o ato de amor. As pernas estavam perdidas, mas a sua virilidade regressara em força.

Não vejo por que razão não devíamos ter feito amor. Somos adultos e livres. Tu és divorciado e eu estou quase. Não temos filhos pequenos que possam entravar a nossa relação. Não devemos arranjar problemas onde eles não existem. A vida já é suficientemente complicada para não a complicarmos ainda mais. Além disso, a vida é bela e curta. Podíamos ter morrido os dois em Londres, ou pior, um dos dois. Mas não morremos. Talvez não devêssemos desperdiçar esta graça divina.

Não sou nenhuma graça divina disse Bill, com um ar determinado. A vida com um homem confinado a uma cadeira de rodas não é nenhuma graça divina, podes ter a certeza.

A vida entre duas pessoas que se amam é. Haviam ido até ao inferno e voltado. Isabelle sentia que tinha direito a um bocadinho de céu. Amava Bill, tal como era, sem hesitações ou reservas, e estava disposta a ficar ao seu lado o resto da vida.

Não posso deixar-te fazer essa asneira. Nunca permitirei tal coisa, independentemente do que acabou de acontecer aqui. Não devíamos ter deixado que as coisas tivessem chegado a tal ponto. Fui um estúpido e um irresponsável.

Foste humano. Não consegues, por uma vez na vida, deixar de te martirizar. Por que razão tens de dificultar as coisas, quando, na realidade, não são assim tão difíceis, nem precisam de ser. Amamo-nos. Não chega?

Às vezes, só o amor não chega. Não sabemos o que vamos encontrar.

Eu sei. Eram quase seis da manhã, e Isabelle sabia que Bill não tardaria a ir-se embora. Passei quinze anos a tratar do Teddy. Sei o que é dar amor e carinho a uma pessoa doente E tu não estás doente. És um homem forte, saudável, completo. Só não consegues andar. Mas isso, a mim, não faz qualquer diferença. Não me importaria sequer se nunca mais conseguisses fazer amor na vida. Esse é um bónus maravilhoso, mas também não me seria difícil viver sem isso. O que sentimos um pelo outro significa muito mais para mim.

Nunca deixaria que fizesses tal coisa Nem vou deixar que as coisas avancem mais. Não estou disposto a isso. Vim cá para me despedir e é isso que temos de fazer.

É uma estupidez. Estamos a desperdiçar uma oportunidade. Não vou permitir que leves a tua avante.

Não voltarei a ver-te E ambos sabiam que era capaz disso.

E depois Estás a condenar-nos a ficar sozinhos o resto da vida. Já pensaste no que tivemos e perdemos, e no que poderíamos ter tido, se não fosses tão teimoso. Com que fim. Onde está a vitória? Dão-nos alguma recompensa no céu por nos privarmos do nosso amor. Tudo bem, é provável que as coisas nem sempre sejam fáceis. Não serão “perfeitas”. Mas nada na vida o é. Por aquilo que vejo, as coisas entre nós poderão ser maravilhosas, basta querermos. Porque não podemos ter aquilo que merecemos e queremos. Já te puniste o suficiente. Será necessário infligir mais tristeza em ti e em mim? Já perdi coisas que bastem na minha vida, tal como tu. Por amor de Deus, sê sensato. As lágrimas inundaram-lhe os olhos e correram pelas faces. Olhou fixamente para Bill, mas este manteve-se impassível.

Desculpa sussurrou Bill, beijando-a na cabeça Dirigiu-se para a porta e, virando-se, fitou-a.

Porque fizeste isto? perguntou Isabelle, não contendo o choro. Qual foi o objetivo? Torturarmo-nos? Para nos lembrarmos que nos amamos e depois voltarmos a deitar tudo a perder, para termos uma vida angustiante? Porquê, se somos tão felizes quando estamos juntos e se nos amamos tanto? Porque não permites que sejamos felizes? É assim tão difícil para ti?

Talvez não te ame o suficiente, ou talvez sejas tu que não me ames tanto quanto pensas.

Não compliques as coisas. A questão não é essa. Amo-te muito. Isso é que interessa. E seja qual for o amor que me tiveres, basta-me.

Eu não sou suficiente para ti, a questão é essa retorquiu Bill, com ar torturado, com vontade de voltar a tê-la de novo nos braços, mas não se permitindo fazê-lo.

Deixa-me ser eu a decidir pela minha cabeça. Deixa-me escolher quem amo e quem não amo. Não tens o direito de decidir por mim.

Ai isso é que tenho ripostou Bill, olhando-a uma última vez e saindo do quarto. A porta fechou-se quase de imediato. Isabelle sentou-se no sofá, a chorar, sem se mexer.


 

Isabelle ficou quatro dias em Washington. O senador ganhou a eleição. Viu Bill no noticiário, sentado na cadeira de rodas, discreto, em segundo plano. Não recebeu mais nenhum telefonema dele. Começava a acreditar que ele não voltaria com a palavra atrás. Só lhe restava respeitar a sua decisão, por mais que discordasse dela. Custava-lhe a acreditar que ele fosse tão teimoso e que estivesse disposto a sacrificar tudo o que tinham, mas não podia forçá-lo a voltar para si. Devia aceitar a escolha que ele fizera. Estava no seu direito, assim como ela tinha o direito de acreditar que poderiam ter tido uma vida maravilhosa. Teria sido um orgulho tê-lo junto de si, de cadeira de rodas ou não. Não lhe faria a mínima diferença, mas a ele, sim. Estava no seu pleno direito de viver como escolhera.

Terça-feira à noite, depois da eleição, Isabelle telefonou a Sophie a dizer que ia regressar a França. A sua voz soava triste, mas Sophie não lhe perguntou porquê. Ultimamente, tinha mais do que razões para isso. Esta, tal como a mãe, ainda não se conformara com a morte do irmão.

Viu o seu amigo? perguntou Sophie, tentando animá-la.

Vi. Está ótimo. Já anda?

Não

Sempre achei que só a muito custo voltaria a andar. Estava muito maltratado quando o vi no hospital. Tal como a mama.

Parece-me ótimo em todos os aspectos. Amanhã à noite já estarei em casa, querida. Fazia sempre questão de lhe dizer onde se encontrava. Era uma reminiscência dos anos que passara a cuidar de Teddy. A verdade é que Sophie não precisava de saber onde a mãe estava a cada minuto, mas dava segurança a ambas. Vemo-nos daqui a poucas semanas.

Telefono-lhe este fim-de-semana, mamã. Divertiu-se? Esperava que sim, mas achava-a muito desanimada.

Não propriamente, mas ainda bem que vim. Fora obrigada a aceitar o que nunca conseguira ao longo de todo aquele tempo. Além disso, visitara alguns museus e galerias. A partir do início do ano, fazia tenções de voltar ao trabalho de restauro de obras de arte no Louvre. Isso trazia-lhe à memória os dias passados em Londres na companhia de Bill, mais de um ano antes Tudo lhe recordava Bill. Os quadros, os museus, o Harry’s, a dança, a música, as gargalhadas, o ar. Talvez um dia isso acabasse. Esperava que sim Já que ele não iria fazer parte da sua vida, teria de o esquecer o mais depressa possível. Talvez até deixasse de o amar um dia. Seria uma bênção divina quando isso acontecesse.

Quarta-feira de manhã, emalou as poucas coisas que trouxera e chamou o criado para vir buscar a mala. O voo era à uma hora. Abandonou o hotel às dez. Mal acabara de fechar a porta do quarto, o telefone tocou. Levou um minuto a abrir de novo a porta. Quando pegou no auscultador, já haviam desligado. Ao chegar à recepção, o recepcionista disse-lhe que telefonara para saber a que horas é que ela ia abandonar o quarto, pois tinha uma pessoa à espera.

A viagem até ao aeroporto foi calma e longa. Nevara na noite anterior e Washington estava linda sob um imenso manto de neve. Depois de fazer o check-in, foi comprar algumas revistas e um livro, para ter alguma coisa para ler no avião. Sentia-se triste e, de certa forma, livre. Deixara-o finalmente. Nunca pensara sentir-se tão tranquila. Enquanto pagava as revistas e o livro, fez um esforço para não pensar em Bill. Acabava de receber o troco, quando ouviu uma voz atrás de si

Sabes que és louca, não sabes? Sempre tive esse pressentimento. Isabelle fechou os olhos. Aquilo não podia estar a acontecer. Não era possível. Mas era E quando se voltou, deu de caras com Bill. Não só és louca, como também estás a cometer um erro monstruoso.

Vens atrás de mim, ou vais partir em viagem? O coração de Isabelle batia desenfreadamente. Não sabia se era coincidência ou um milagre e não se atreveu a perguntar-lhe de qual destas situações se tratava.

Telefonei para o hotel, mas já tinhas saído.

Engraçado, não me disseram nada retorquiu Isabelle, tentando mostrar um ar despreocupado. As mãos tremiam-lhe ao pegar nas revistas e no livro que acabara de comprar. O recepcionista disse-me que fora ele quem telefonara para o quarto.

Devo ter ligado logo a seguir. Presumiu que ele fizera a chamada para se despedir, mas por que razão se encontrava ali. Tenho consciência de que fiz aquilo que achei correto proferiu Bill, desviando a cadeira para o lado. As pessoas redemoinhavam à volta deles, mas não pareciam dar pela sua presença. Ficaram de olhos colados um no outro. Isabelle estava pálida, como se não dormisse há vários dias. Mereces melhor do que isto.

Sei que é isso que pensas retorquiu Isabelle, sentindo de novo um aperto no coração. Quantas vezes ir-lhe-ia ele dizer a mesma coisa? Mas não há nada melhor do que isto pelo menos para mim. Perdi o Teddy. Perdi-te a ti. Já não tenho mais nada para perder, a não ser a Sophie. Acho que não devias fugir do amor. É um bem demasiado raro e precioso Mas, aparentemente, é o que fazes. Sabia que não havia nada que pudesse convencê-lo a mudar de idéias. Ele é que iria dizer o que queria fazer.

Quero algo melhor para ti. Quero que tenhas uma vida a sério com um tipo que possa andar a correr atrás de ti pelo quarto e que possa dançar na passagem do ano.

Quero muito mais do que isso. Quero alguém que ame e que me ame, alguém por quem tenha respeito, de quem possa cuidar e com quem possa rir o resto da vida. Consigo amar tanto sentada como de pé. Talvez tu não.

O que te dá tanta certeza?

Amar-me-ias na mesma, se eu estivesse aí sentada no teu lugar? Os olhos inundaram-se de lágrimas e a voz ficou embargada.

Claro.

Então, não me faças a mim aquilo que não gostavas que te fizesse a ti.

Sem dizer uma palavra, Bill puxou-a para o seu colo e, envolvendo-a nos braços, beijou-a na boca com ardor.

Porque fizeste isto? Foi um “olá” ou um “adeus”.

Escolhe. Sabes o que penso. Amo-te. Tens todo o direito de mudar de idéias. Fora o que Helena lhe dissera há muito tempo. E tinha razão, reconheceu finalmente. Tentara proteger Isabelle, mas não aguentava mais. Ela tinha o direito de escolher o seu próprio destino e, desta vez, talvez até o dele.

Olá! sussurrou Isabelle, esboçando um radioso sorriso enquanto o beijava e se abraçavam.

 

                                                                                            Danielle Stel

 

 

                      

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