Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
A Luz das Trevas
Não sou desses africanos que se envergonham de sua terra porque em cinqüenta anos progrediu menos que a Europa em quinhentos. Mas se em algo temos deixado de avançar tão depressa que devíamos, deve-se a ditadores como Chaka; e por isso, só devemos reprovar isso a nós mesmos. Se a culpa for nossa, também será nossa a responsabilidade de remediá-lo.
Além disso, eu tinha razões mais capitalistas que a maioria para desejar destruir ao Grande Chefe, ao Onipotente, a Ao Que Tudo Vê. Era de minha própria tribo, estava aparentado comigo por intermédio de uma das esposas de meu pai, e havia começado a perseguir a nossa família desde o momento em que subiu ao poder.
Embora não participássemos ativamente em política, dois de meus irmãos desapareceram, e outro morreu em um inexplicável acidente de automóvel. Minha própria liberdade,disso não restava dúvida , devia-se em grande parte ao fato de eu ser um dos poucos cientistas do país que gozavam de fama internacional.
Como muitos de meus compatriotas intelectuais, demorei para ficar contra Chaka porque pensei que como ocorreu aos alemães em 1930, que também se deixaram levar pelo caminho equivocado- há vezes em que a ditadura é o único meio de evitar o caos político. Possivelmente o primeiro sinal de nosso catastrófico engano foi quando Chaka aboliu a constituição e adotou o nome do imperador zulú do século XIX, de quem estava genuinamente convencido que era sua reencarnação.
A partir desse momento, sua megalomania foi rapidamente em aumentando.
Como todos os tiranos, não confiava em ninguém e se considerava rodeado de conspirações.
Esta convicção tinha sua lógica. O mundo conhece pelo menos seis atentados contra sua vida, devido a publicidade que lhes foi dada; mas além disso há outros que se mantiveram em segredo. O fracasso de todos eles fez que aumentasse a confiança da Chaka em seu próprio destino, e confirmou a fé fanática de seus seguidores em sua imortalidade. Ao tornar-se mais desesperada a oposição, as contramedidas do Grande Chefe se fizeram mais cruéis... e mais bárbaras. O regime da Chaka não foi o primeiro, nem sequer na África, que torturou a seus inimigos; mas foi o primeiro em transmiti-lo por televisão.
Mesmo assim, a pesar do horror e da indignação que isto provocou no mundo, e a vergonha que eu senti, não teria feito nada se o destino não me houvesse colocado a arma na mão. Não sou homem de ação, e aborreço a violência, mas assim que me dei conta do poder que possuía, minha consciência não me deu trégua. Logo que os técnicos da Nasa instalaram seus aparelhos e entregaram o Sistema Infravermelho de Comunicações Hughes Mark X comecei a fazer planos.
Parece estranho que meu país, um dos mais atrasados do mundo, tenha um papel capital na conquista do espaço. Deve-se a um puro acidente geográfico, que não foi que gosto de russos e americanos. Mas não há nada que eles possam fazer a respeito; Umbala se acha situada no Equador, diretamente debaixo das órbitas de todos os planetas. E possui um elemento natural único e inestimável: o vulcão apagado conhecido com o nome de cratera Zambue.
Quando se extinguiu o Zambue, faz mais de um milhão de anos, a lava se retirou pouco a pouco, solidificando-se em uma série de terraços e formando uma terrina de uma milha de diâmetro e mil pés de profundidade. Quase não foi necessário mexer o terreno, bem como foi utilizado poucos metros de cabo para convertê-lo no maior radiotelescópio da Terra. E devido a este gigantesco refletor estar fixo, examina qualquer porção concreta do firmamento tão somente durante uns minutos cada vinte e quatro horas, à medida que a Terra gira sobre seu eixo. Este era o preço que os cientistas estavam dispostos a pagar pela possibilidade de receber os sinais que as sondas e as naves emitiam dos insondáveis limites do sistema solar Chaka era um problema que não tinham previsto. Fazendo valer seu poder quando a obra estava quase terminada, e tiveram que advir-se com ele como puderam. Felizmente, sentia um respeito supersticioso pela ciência, e necessitava todos os rublos e dólares que pudesse lhes tirar. A Contribuição Equatoriana ao Programa Espacial ficou a salvo de sua megalomania; e desde logo, ajudou a reforçá-la
A Parabólica tinha sido instalada no dia em que fiz minha primeira visita à torre que se eleva em seu centro. Era um mastro vertical de mais de mil e quinhentos pés de altura, o qual suportava as antenas que confluíam no centro da imensa parabólica.
Um pequeno elevador com capacidade para três homens subia lentamente até o mais alto.
A princípio, não havia nada digno de ver, além do opaco brilho da molheira de lâminas de alumínio, curvada para cima a uma meia milha em todo meu redor. Mas logo me elevei por cima do bordo da cratera e pude ver a terra até uma distância muito mais longínqua do que eu tinha esperado.
A proeminência azulenca e nevada que emergia da bruma do poente era o monte Tampala, o segundo pico mais elevado da África, separado de mim por uma infinidade de milhas de selva. Através dessa selva, nas grandes curvas intrincadas, serpenteavam as lamacentas águas do rio Nya... a única rota que milhões de meus compatriotas tinham conhecido. Alguns espaços abertos, uma linha de ferrovia e o resplendor branco e longínquo da cidade eram os únicos sinais de vida humana.
Uma vez mais senti essa opressiva sensação de desesperança que sempre me assalta quando contemplo Umbala do ar e compreendo a insignificância do homem frente à selva eternamente adormecida. .Depois de um clique, a caixa do elevador se deteve no céu, a um quarto de milha do chão. Ao sair me encontrei em uma reduzida habitação provida de cabos coaxiais e de instrumentos.
Ainda ficava um trecho por percorrer, pois uma estreita escada subia, através do telhado, a uma plataforma que tinha pouco mais de um metro quadrado. Não era um lugar muito apropriado para quem fosse propenso à vertigem; não havia sequer um corrimão que servisse de amparo.
O cabo central do pára-raios dava certa segurança, desse modo fiquei agarrado firmemente a ele todo o tempo que permaneci nessa armadilha metálica de forma triangular, tão próxima às nuvens.
A magnificência do panorama e a euforia de sentir um ligeiro, embora onipresente perigo, fizeram-me esquecer o passar do tempo. Sentia-me como um deus, completamente afastado dos assuntos terrenos, superior a todos outros homens. E então compreendi, com uma certeza matemática, que aqui havia um desafio que Chaka jamais poderia ignorar.
O coronel Mtanga, seu chefe de Segurança, iria opor-se; mas seus protestos seriam ignorados. Conhecendo a Chaka, a gente podia predizer com absoluta segurança que no dia da inauguração oficial estaria aqui, sozinho, durante um bom momento, dominando seu império com o olhar. Sua escolta pessoal permaneceria no recinto de baixo, uma vez revistado tudo para ver se por acaso tinham colocado alguma bomba. Não poderiam fazer nada para salvá-lo quando eu disparasse a três milhas de distância e através da cadeia de montanhas que se estende entre o radiotelescópio e meu observatório.
Alegrava-me de que houvesse montanhas no meio; embora complicassem o problema, protegeriam-me de toda suspeita. O coronel Mtanga era um homem muito inteligente, mas provavelmente não poderia conceber que existisse uma arma capaz de disparar em ângulo. E ele procuraria um fuzil, embora não encontraria nenhuma bala.
Retornei ao laboratório e comecei meus cálculos. Não tinha transcorrido muito tempo, quando descobri meu primeiro engano. Posto que tinha visto como a luz concentrada do raio laser fazia um buraco em um pedaço de sólido aço em um milésimo de segundo, supus que meu Mark X podia matar um homem. Mas a coisa não é tão singela. Em determinados aspectos, o homem é um material mais duro que o aço. Em sua maior parte é água, a qual tem dez vezes a capacidade de calor de qualquer metal. O feixe de luz que perfura uma prancha de blindagem ou leva uma mensagem até Plutão –algumas das razões para as quais tinha sido projetado o Mark X- produziria no homem uma queimadura dolorosa, mas completamente superficial. O que pior poderia fazer a Chaka, de uma distância de três milhas, era um buraco na multicolorida manta tribal que tão pomposamente vestia para provar que ainda se considerava um filho do povo.
Durante um tempo quase abandonei o projeto. Mas não desistiria; instintivamente> sabia que a resposta estava ali, e que só era questão de saber vê-la. Possivelmente podia utilizar meus invisíveis raios de calor para cortar um dos cabos que sustentavam a torre, com o fim de que caísse quando Chaka estivesse no alto.
Os cálculos indicavam que isto era factível se o Mark X atuasse ininterruptamente durante quinze segundos. Um cabo, diferentemente do homem, não se moveria, assim não era necessário arriscar tudo a um só impulso de energia. Podia tomar o tempo que quisesse.
Mas danificar o telescópio teria sido uma traição à ciência, e quase me senti aliviado ao comprovar que este projeto era irrealizável. O mastro tinha incorporados tantos elementos de segurança que teria sido necessário cortar ao menos três cabos para derrubá-lo. Terei que desprezar este plano; teria necessitado horas e horas de ajustes, bem como preparar e apontar o aparelho para cada disparo de precisão.
Tinha que pensar outra coisa; e como os homens demoram muito tempo em ver o que é evidente, até uma semana antes da inauguração oficial do telescópio não soube como fazer isso com a Chaka. O Que Tudo Vê, o Onipotente, o Pai do Povo.
Exautivamente, meus estudantes tinham coordenado e calibrado o aparelho, e estávamos preparados para as primeiras comprovações de toda sua potência. Ao girar em seu elevador do interior da cúpula do observatório, o Mark X parecia exatamente um grande telescópio de duplo canhão reflito... e, efetivamente, era-o. Num de eles, um espelho de trinta e seis polegadas centrava o impulso do laser e o enfocava no espaço; o outro atuava como receptor de sinais e podia utilizar-se também como um visor telescópico super potente para apontar o aparelho.
Comprovamos sua mira no branco celeste mais próximo: a Lua. Já avançada a noite, centrei os cabos em cruz no meio do pálido crescente e disparei um impulso. Dois segundos e meio depois se produziu um eco tênue. A arma foi disparada.
Havia ainda um detalhe por arrumar, e eu tinha que fazê-lo secretamente. O radiotelescópio se achava ao norte do observatório, ao outro lado da cordilheira que nos impedia de ver diretamente. Uma milha ao sul havia uma montanha isolada. Eu a conhecia bastante bem, porque fazia anos tinha ajudado a instalar ali uma estação de raios cósmicos. Agora seria utilizada para um fim que jamais haveria imaginado nos tempos em que meu país era livre.
Justo debaixo do topo se elevavam as ruínas de um velho forte, abandonado desde fazia séculos. Precisei fazer poucas explorações para encontrar o lugar que necessitava: uma pequena cova, de menos de um metro de altura, entre duas grandes rochas que tinham cansado das antigas muralhas. A julgar pelas teias de aranha, fazia gerações que não tinha entrado ali um ser humano.
Quando me escondi na abertura pude ver todas as instalações do Programa Espacial, que se estendiam por várias milhas. Ao Leste se encontravam as antenas da antiga Estação de Seguimento do Projeto Apolo, que havia trazido para os primeiros homens da Lua. Mais à frente estava o campo de aterrissagem, por cima do qual se abatia um avião de transporte com seus propulsores verticais em funcionamento. Mas tudo o que a mim interessava era que estivessem limpas as linhas de visão desde este lugar à cúpula do Mark X, e ao extremo do mastro do radiotelescópio, três milhas ao norte.
Demorei alguns dias para instalar o espelho prateado, ópticamente perfeito, em seu secreto habitáculo. Os tediosos ajustes micrométricos para dar a exata orientação demoraram tanto que temi que não estivesse preparado a tempo. Mas em fim saiu correto o ângulo, com um engano menor que um segundo de arco. Quando apontei o telescópio do Mark X ao ponto secreto da montanha, pude ver a cordilheira que tinha detrás de mim. O campo visual era pequeno, embora suficiente; a área do branco tinha uma jarda, e eu podia apontar sobre qualquer polegada dessa zona.
A luz podia percorrer, em qualquer dos sentidos, a trajetória que eu havia preparado. Tudo que via pelo visor do telescópio estava automaticamente na linha de fogo do transmissor.
Parecia-me estranho, três dias mais depois, estar sentado tranqüilamente no observatório, com os acumuladores elétricos zumbindo ao meu redor, e ver Chaka entrar no campo visual do telescópio. Experimentei um fugaz brilho de triunfo, como o astrônomo que calculou a órbita de um novo planeta e logo descobre-o no ponto previsto entre as estrelas. O cruel rosto estava de perfil quando o vi o princípio, como se estivesse somente a uns trinta pés, graças ao aumento máximo que eu utilizava. Aguardei pacientemente, com serena confiança, porque tinha que chegar o momento que eu sabia: aquele no que Chaka pareceria estar olhando para mim. Quando isto aconteceu, colhi com a mão esquerda a imagem de um antigo deus, que não deve ter nome, e acionei com a outra o computador que disparava o laser, lançando meu raio silencioso e invisível por cima das montanhas.
Se, era muitíssimo melhor assim. Chaka merecia a morte; mas esta o converteria em um mártir e teria fortalecido o domínio de seu regime. O que eu lhe tinha reservado era pior que a morte, desataria entre seus defensores um terror supersticioso.
Chaka até viveria; mas O que Tudo Vê não voltaria a ver nunca mais. No espaço de uns microsegundos o tinha reduzido a uma condição inferior a do mendigo mais humilde da rua.
Nem sequer lhe tinha feito mal. Porque não se sente dor quando o delicado filme da retina se funde pelo calor de um milhar de sóis.
Arthur C. Clark
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