Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
As Fontes do Paraíso
O país a que denominei Taprobana a rigor não existe, mas coincide em cerca de noventa por cento com a ilha do Ceilão (atualmente chamada Sri Lanka). Muito embora a "Conclusão" deixe claro que lugares, acontecimentos e pessoas se baseiam em dados reais, o leitor não errará muito supondo que, quanto mais implausível a história, mais perto estará da realidade.
Kalidasa
A coroa se fazia mais pesada a cada ano. Da primeira vez em que o venerável Bodhidharma Mahanayake Thero a colocara na cabeça dele - com que relutância! -, o príncipe Kalidasa se surpreendera com sua leveza. Agora, vinte anos depois, o rei Kalidasa prazerosamente deixava de lado a faixa de ouro incrustada de pedras preciosas, sempre que a etiqueta da corte o permitia.
E havia pouca etiqueta ali, no topo ventoso da fortaleza escavada na rocha; eram raros os enviados ou os suplicantes que procuravam uma audiência em suas alturas proibitivas. Muitos dos que empreendiam a jornada a Yakkagala retrocediam durante a ascensão final, em que passariam por entre as mandíbulas do leão agachado que sempre parecia prestes a saltar da face do rochedo. Um velho rei jamais poderia sentar-se naquele trono, que parecia aspirar ao céu. Um dia, possivelmente Kalidasa estaria débil demais para alcançar seu próprio palácio. Contudo, duvidava de que tal dia chegasse; seus muitos inimigos o poupariam das humilhações da senilidade.
Esses inimigos já se reuniam. Kalidasa lançava os olhos na direção norte, como se já pudesse ver os exércitos de seu meio irmão, que regressava para reivindicar o trono ensangüentado da Taprobana. Mas a ameaça ainda era remota, ele ainda se encontrava para além de mares batidos por monções. Ainda que Kalidasa confiasse mais em seus espiões do que nos astrólogos, era reconfortante saber que eles concordavam com isso.
Malgara havia esperado quase vinte anos, planejando e conquistando o apoio de reis estrangeiros. Mas um inimigo mais paciente e sutil estava muito mais próximo, sempre vigilante, no céu do sul. O cone perfeito de Sri Kanda, a Montanha Sagrada, parecia perto demais naquele dia, elevando-se como uma torre sobre a planície central. Desde os primórdios da história, engendrava medo no coração de todos os que a contemplavam. Em momento algum Kalidasa se esquecia daquela presença sinistra e do poder que simbolizava.
No entanto, o Mahanayake Thero não dispunha de exércitos, não possuía elefantes de guerra, urrantes, que brandissem presas brônzeas ao investir em batalha. O sumo sacerdote não passava de um ancião que vestia um manto alaranjado, e cujas únicas posses eram uma tigela de esmoler e uma folha de palmeira para proteger-se do sol. Enquanto os monges de menor hierarquia e os acólitos entoavam as escrituras a seu redor, ele permanecia sentado em silêncio, de pernas cruzadas... e, de algum modo, brincava com os destinos dos reis. Era muito estranho...
O ar estava tão claro naquele dia que Kalidasa podia enxergar o templo, que a distância transformava numa diminuta ponta branca de flecha no topo de Sri Kanda. Não se assemelhava a nenhuma obra de mão humana, e lembrava ao rei as montanhas ainda mais altaneiras que havia visto de relance na mocidade, quando vivera, em parte como hóspede, em parte como refém, na corte de Mahinda, o Grande. Todos os gigantes que guardavam o império de Mahinda exibiam tais cristas, constituídas de uma substância ofuscante e cristalina para a qual não havia palavra na língua da Taprobana. Os hindus acreditavam tratar-se de uma espécie de água, transformada à força de magia, mas Kalidasa ria dessas superstições.
Aquele brilho de marfim estava a apenas três dias de caminhada - um dia para percorrer a estrada real, atravessando florestas e arrozais alagados, e mais dois para subir a escadaria tortuosa que ele nunca poderia galgar novamente, pois ao fim dela se encontrava o único inimigo que temia e que não era capaz de subjugar. Às vezes, invejava os peregrinos, ao ver suas tochas traçando uma tênue linha de fogo na face da montanha. O mais humilde mendigo podia saudar aquela alvorada sagrada e receber as bênçãos dos deuses; mas o senhor de todas aquelas terras, não.
Kalidasa tinha seus consolos, ainda que por pouco tempo. Ali, guardados por fossos e baluartes, viam-se tanques e fontes, e também os Jardins das Delícias, nos quais prodigalizara a riqueza do reino. E, quando se cansava, havia as damas do rochedo - as de carne e osso, que chamava menos e menos -, e as duzentas imortais imutáveis com quem tantas vezes compartilhava seus pensamentos, nelas confiando como em ninguém.
O trovão estrondeou no céu, a oeste. Kalidasa afastou os olhos da ameaça soturna da montanha, voltando-os para a promessa distante de chuva. A monção estava atrasada naquela estação; os lagos artificiais que alimentavam o complexo sistema de irrigação da ilha achavam-se quase vazios. Àquela altura do ano, já devia reluzir a água no lago mais avantajado de todos — o qual, como bem sabia, os súditos ainda ousavam chamar pelo nome de seu pai: Paravana Samudra, o Mar de Paravana. O lago tinha sido completado havia só trinta anos, após gerações de labuta. Em dias mais felizes, o príncipe Kalidasa se colocara orgulhosamente ao lado do pai, quando as grandes comportas foram abertas e as águas dadivosas se despejaram pela terra sedenta. Em todo o reino, não havia visão mais bela do que o espelho delicado daquele imenso lago, obra do homem, que refletia as cúpulas e agulhas de Ranapura, a Cidade de Ouro - a antiga capital que ele havia abandonado em troca de seu sonho.
Mais uma vez ribombou o trovão, mas Kalidasa sabia ser falsa sua promessa. Mesmo ali, no cimo do Rochedo do Demônio, o ar pairava imóvel e sem vida; não se davam aquelas rajadas súbitas e fortuitas que anunciavam a chegada da monção. Antes que as chuvas finalmente chegassem, talvez a fome se acrescentasse a seus problemas.
- Majestade, os enviados estão prestes a partir - disse a voz paciente do cortesão Adigar. - Desejam render-lhe suas homenagens.
Ah, sim, aqueles dois embaixadores pálidos vindos do outro lado do oceano ocidental! Sentiria a partida deles, pois haviam trazido notícias, em seu abominável taprobani, de muitas maravilhas - ainda que nenhuma, admitiam, se equiparasse àquela fortaleza-palácio no céu.
Kalidasa voltou as costas para a montanha coroada de neve e para a paisagem esturricada e tremeluzente, começando a descer os degraus de granito que levavam à sala de audiências. Logo atrás dele, seguiam o camarista e seus ajudantes, trazendo presentes de marfim e gemas para homens altos e orgulhosos, que esperavam para dizer adeus. Em breve, levariam os tesouros da Taprobana ao outro lado do mar, para uma cidade surgida séculos depois de Ranapura; e talvez, por algum tempo, eles conseguissem distrair os pensamentos taciturnos do imperador Adriano.
Com seus mantos que adejavam com um clarão alaranjado contra o gesso branco do templo, o Mahanayake Thero caminhou vagarosamente até a amurada norte. Lá embaixo, de horizonte a horizonte, estendiam-se, como um tabuleiro de xadrez, os arrozais, as linhas escuras dos canais de irrigação, o reflexo azul do Paravana Samudra - e, além daquele mar mediterrâneo, as cúpulas santas de Ranapura, que flutuavam como bolhas fantasmagóricas, inacreditavelmente imensas, quando se levava em conta a distância real a que se encontravam. Havia trinta anos ele contemplava aquele panorama, em constante modificação, mas sabia que jamais seria capaz de apreender todos os detalhes de sua complexidade fugaz. Cores e fronteiras alteravam-se a cada estação... na verdade, a cada nuvem que passava. No dia em que ele também passasse, pensou Bodhidharma, ele ainda veria algo novo.
Apenas uma coisa não se harmonizava com aquela paisagem delicada. Por menor que parecesse daquela altitude, o vulto cinzento do Rochedo do Demônio parecia uma intromissão descabida. Na verdade, segundo a lenda, Yakkagala era um fragmento do pico himalaio, coberto de ervas, que o deus-macaco Hanuman havia deixado cair quando apressadamente levava o remédio juntamente com a montanha a seus camaradas feridos, terminadas as batalhas do Ramayana.
Daquela distância, naturalmente, era impossível divisar quaisquer detalhes do refúgio suntuoso de Kalidasa, exceção feita a uma tênue linha que parecia o baluarte externo dos Jardins das Delícias. No entanto, uma vez experimentado, o impacto do Rochedo do Demônio era tal que esquecê-lo era inviável. O Mahanayake Thero podia ver na imaginação, tão claramente como se estivesse entre elas, as imensas patas de leão que se projetavam da face lisa do penhasco — enquanto mais acima avultavam os muros ameados por trás dos quais, era fácil acreditar, o rei amaldiçoado ainda caminhava. ..
O trovão precipitou-se do céu, elevando-se rapidamente a tamanho rugido que parecia sacudir a própria montanha. Numa convulsão contínua, percorreu o céu, indo morrer a leste. Longamente, os ecos rolaram pela orla do horizonte. Ninguém seria capaz de tomar aquilo como um prenuncio das chuvas que estavam por vir; só estavam previstas para dali a três semanas, e o Controle das Monções jamais errava em mais de vinte e quatro horas. Depois que as reverberações morreram, o Mahanayake voltou-se para seu companheiro.
- Um pouco demais para corredores de reentrada regulares - disse ele, com uma irritação ligeiramente maior que a que se devia permitir um expoente do Dharma. - Foi feita uma mensuração?
O monge mais jovem falou rapidamente em seu microfone de pulso, e esperou a resposta.
- Foi... o máximo chegou a cento e vinte. Cinco decibéis a mais que o recorde anterior.
- Mande o protesto habitual ao Controle Kennedy ou Gagárin, seja qual for. Aliás, pensando bem, queixe-se a ambos. Não que faça qualquer diferença, é claro.
Enquanto seus olhos acompanhavam a trilha de vapor que lentamente se dissolvia no céu, o Bodhidharma Mahanayake Thero - o octagésimo quinto do mesmo nome - teve uma fantasia repentina e pouco própria de um monge. Kalidasa teria dado um tratamento apropriado para operadores de linhas espaciais que só pensavam em dólares por quilo em órbita... um tratamento que provavelmente envolveria empalamento, elefantes com patas de metal ou azeite fervente.
Mas a vida, é claro, havia sido muito mais simples dois mil anos antes.
O engenheiro
Seus amigos, que lamentavelmente diminuíam a cada ano, chamavam-no Johan. O mundo, quando se lembrava dele, chamava-o Rajá. Por inteiro, seu nome sintetizava quinhentos anos de história: Johan Oliver de Alwis Sri Rajasinghe.
Em certa época, os turistas em visita ao rochedo perseguiam-no com máquinas fotográficas e gravadores, mas a nova geração nada sabia a respeito dos dias em que o rosto dele tinha sido o mais conhecido do sistema solar. Ele não lamentava sua glória passada, pois ela lhe trouxera a gratidão de toda a humanidade. Mas também havia trazido arrependimento vão pelos erros que cometera — e tristeza pelas vidas que esbanjara, quando um pouco mais de previsão ou paciência poderia tê-las salvo. Claro, era fácil agora, depois que tudo terminara, perceber o que deveria ter feito para evitar a Crise de Auckland, ou para reunir os contra-feitos signatários do Tratado de Samarcanda. Culpar-se pelos erros inevitáveis do passado era uma tolice; no entanto, havia dias em que sua consciência lhe doía mais do que as pontadas, já raras, daquela velha bala patagônia.
Ninguém acreditara que seu exílio durasse tanto. - Você estará de volta dentro de seis meses - dissera-lhe o presidente mundial, Chu. - O poder vicia.
- Não a mim - ele respondera com sinceridade.
Pois o poder viera até ele; jamais ele o havia procurado. E sempre fora um poder muito especial, limitado - um cargo de assessoria, não executivo. Ele era apenas um assistente especial (embaixador interino) para assuntos políticos, subordinado diretamente ao presidente e ao Conselho, e chefiava uma equipe que jamais havia ultrapassado dez pessoas - onze, se fosse incluído Aristóteles. (Seu painel ainda tinha acesso direto à memória e às unidades processadoras de Ari, e eles conversavam várias vezes durante o ano.) Mas, com o passar do tempo, o Conselho se acostumara a aceitar invariavelmente seus pontos de vista, e o mundo lhe atribuíra grande parte do crédito que, a rigor, caberia aos burocratas anônimos da Divisão de Paz.
Assim, o embaixador plenipotenciário Rajasinghe recebia toda a publicidade, ao viajar de um local crítico para outro, lisonjeando personalidades aqui, esvaziando crises ali, e sempre manipulando a verdade com exímia perícia. Jamais chegava a mentir, é claro — isso teria sido fatal. Sem a memória infalível de Ari, ele nunca poderia ter mantido controle sobre as complicadas tramas que às vezes era obrigado a tecer, a fim de que a humanidade vivesse em paz. Quando começou a gostar do jogo pelo jogo, chegou a hora de parar.
Isso tinha sido vinte anos antes, e ele jamais se arrependera de sua decisão. Os que previram que o fastio haveria de lograr aquilo que as tentações do poder não haviam conseguido não conheciam aquele homem, nem compreendiam suas origens. Ele havia regressado aos campos e florestas de sua mocidade, e vivia a apenas um quilômetro do rochedo sobranceiro que dominara sua meninice. Na verdade, sua casa ficava dentro do fosso que circundava os Jardins das Delícias, e as fontes que o arquiteto de Kalidasa havia projetado jorravam agora no pátio do próprio Johan, após um silêncio de dois mil anos. A água ainda corria nos condutos originais de pedra; nada havia mudado, a não ser o fato de as cisternas no alto do rochedo serem agora enchidas por bombas elétricas, e não por chusmas de escravos suarentos.
Conseguir aquela propriedade encharcada de história para sua aposentadoria havia dado a Johan mais satisfação do que qualquer outro feito em toda a sua carreira. Realizara um sonho que na verdade ele jamais acreditara ser possível. O feito havia exigido todas as suas habilidades diplomáticas, além de uma certa chantagem no Departamento de Arqueologia. Mais tarde, tinha havido perguntas na Assembléia do Estado; felizmente, porém, não houve respostas.
Uma extensão do fosso o isolava de todos os turistas e estudantes, salvo os mais renitentes, e uma muralha densa de árvores ashoka protegia-o de seus olhares; as árvores explodiam em flor o ano todo. Serviam também de habitação a várias famílias de macacos, que eram divertidos mas às vezes invadiam a casa, levando consigo quaisquer objetos que porventura lhes agradassem. Seguia-se uma breve guerra entre espécies, em que as armas de ataque eram fogos de artifício e gritos de perigo gravados, que apoquentavam os humanos tanto quanto os símios... os quais, rapidamente, voltavam a fazer das suas, pois há muito haviam descoberto que ninguém chegaria a fazer-lhes mal.
Um dos crepúsculos mais escandalosos da Taprobana estava transfigurando o céu a oeste, quando o pequeno eletrotriciclo surgiu silenciosamente entre as árvores, estacionando ao lado das colunas de granito do pórtico. (Chola genuíno, de fins do período Ranapura, e por conseguinte um total anacronismo ali. Mas somente o professor Sara th fizera comentários a respeito; evidentemente, sempre fazia comentários.)
A longa e amarga experiência ensinara Rajasinghe a nunca confiar nas primeiras impressões - mas também a não ignorá-las. Quase esperara que, como suas façanhas, Vannevar Morgan fosse um homem imponente e corpulento. Entretanto, o engenheiro era de estatura bem abaixo da média, e a um primeiro olhar poderia até mesmo ser considerado frágil. Contudo, aquele corpo magro era todo nervos, e os cabelos negros emolduravam um rosto que parecia consideravelmente mais jovem que seus cinqüenta e um anos. A imagem projetada no vídeo pelo arquivo de Ari não lhe fizera justiça. Ele deveria ter sido um poeta romântico, ou um pianista de concerto... ou mesmo um grande ator que dominasse uma platéia com sua arte. Rajasinghe identificava o poder num átimo de segundo, pois o poder havia sido sua vida; e ele estava agora diante de um homem que detinha poder. Cuidado com os homens pequenos, ele se advertira sempre, pois são eles que movem e abalam o mundo.
E com essa idéia, sobreveio a primeira pontada de apreensão. Quase todas as semanas, velhos amigos e inimigos vinham àquele local remoto para trocar notícias e relembrar o passado. Ele apreciava essas visitas, pois davam alguma ocupação à sua vida. No entanto, quase sempre adivinhava com exatidão a finalidade do encontro, bem como o terreno em que pisariam. Mas, no que dizia respeito a Rajasinghe, não tinha interesses em comum com Morgan, além dos de quaisquer homens naqueles tempos e naquela idade. Nunca se haviam encontrado, não tinham mantido qualquer contato. Na verdade, ele quase não reconhecera o nome de Morgan. Mais estranho ainda era o fato de o engenheiro lhe haver pedido que mantivesse aquele encontro em segredo.
Rajasinghe atendeu ao pedido, mas com uma sensação de ressentimento. Já não havia necessidade de segredos em sua vida pacífica. A última coisa que ele desejava era que algum mistério importante perturbasse sua existência ordeira. Tinha eliminado sua segurança para sempre. Dez anos antes - ou seriam mais? -, seus guardas pessoais haviam sido removidos, a seu próprio pedido. No entanto, o que mais o espantava não era a ausência de sigilo, mas sua própria perplexidade total. O engenheiro-chefe (terrestre) da Empresa de Construção Terráquea não iria viajar milhares de quilômetros meramente para pedir-lhe um autógrafo, ou para dizer as costumeiras baboseiras dos turistas. Ele devia ter vindo ali com algum objetivo específico. E, por mais que pensasse, Rajasinghe não conseguia imaginar o quê.
Mesmo em seu tempo de servidor público, Rajasinghe jamais tivera a oportunidade de tratar com a ECT. Suas três divisões - terrestre, aérea e espacial -, por gigantescas que fossem, eram as que menos publicidade recebiam dentre todos os organismos especializados da Federação Mundial. Somente quando ocorria uma falha técnica espetacular, ou uma colisão frontal com algum grupo conservacionista ou histórico, a ECT saía das sombras. A última confrontação dessa espécie havia envolvido o oleoduto antártico — aquele milagre da engenharia do século XXI, construído para bombear carvão fluidificado dos vastos depósitos polares até as usinas de força e fábricas do mundo. Tomada de euforia ecológica, a ECT propusera demolir o último trecho restante do oleoduto e devolver a região aos pingüins. Instantaneamente, fizeram-se ouvir os gritos de protesto dos arqueólogos industriais, furiosos com tamanho vandalismo, e dos naturalistas, que argumentavam que os pingüins simplesmente adoravam o oleoduto abandonado. Os tubos proporcionavam moradia de um padrão que jamais haviam conhecido anteriormente, e assim contribuíam para uma explosão populacional que as orcas não conseguiam debelar. Por isso, a ECT desistira sem luta.
Rajasinghe não sabia se Morgan estivera envolvido com aquele pequeno fiasco. Mas pouco importava, porquanto seu nome estava agora ligado ao triunfo maior da empresa...
A Ponte Suprema, assim fora ela batizada, e talvez com justiça. Rajasinghe assistira, juntamente com metade do mundo, sua seção final ser levantada em direção ao céu pelo Graf Zeppelin - ele próprio uma das maravilhas da época. Todos os luxuosos pertences da nave haviam sido removidos para reduzir seu peso; a famosa piscina tinha sido esvaziada, e os reatores bombeavam o excesso de calor nas bolsas de gás para proporcionar maior sustentação. Pela primeira vez um peso de mais de mil toneladas era erguido a três quilômetros de altura, e tudo - evidentemente, para decepção de milhões de pessoas - havia funcionado perfeitamente.
Nenhum navio voltaria jamais a transpor as Colunas de Hércules sem saudar a mais altaneira ponte que o homem já construíra, e que, com toda a probabilidade, jamais viria a construir. As torres gêmeas na junção do Mediterrâneo e do Atlântico eram, elas próprias, as mais altas estruturas do mundo, separadas por quinze quilômetros de espaço - onde a única construção era o arco delicado e inacreditável da Ponte de Gibraltar. Seria um privilégio conhecer o homem que concebera tal maravilha, mesmo com uma hora de atraso.
- Minhas desculpas, embaixador - disse Morgan, enquanto apeava do veículo. - Espero que a demora não tenha sido um grande inconveniente para o senhor.
- De modo algum. Sou dono do meu tempo. Já comeu?
- Já... cancelaram minha conexão em Roma, mas ao menos me deram um excelente almoço.
- Provavelmente, um almoço melhor do que seria possível no Hotel Yakkagala. Pedi um apartamento para o senhor passar a noite... fica a apenas um quilômetro daqui. Acho que vamos ter de adiar nossa conversa para amanhã de manhã.
Morgan manifestou desapontamento, mas encolheu os ombros, aquiescente. - Bem, tenho trabalho bastante para me manter ocupado. Espero que o hotel tenha todos os serviços executivos... ou, pelo menos, um terminal comum.
Rajasinghe riu.
- Eu não garanto nada mais sofisticado do que um telefone. Mas tenho uma sugestão melhor. Daqui a pouco mais de meia hora, vou levar alguns amigos ao Rochedo. Há um espetáculo de sons e luzes que recomendo com entusiasmo, e o senhor nos daria muito prazer se nos acompanhasse.
Ele percebeu que Morgan hesitava, enquanto tentava imaginar uma desculpa polida para não ir.
- É muita gentileza sua, mas preciso mesmo entrar em contato com meu escritório...
- Pode usar meu painel. Eu lhe prometo que achará o espetáculo fascinante, e só dura uma hora. Ah, tinha me esquecido... o senhor não quer que ninguém saiba que está aqui. Bem, posso apresentá-lo como o dr. Smith, da Universidade da Tasmânia. Tenho certeza de que meus amigos não o reconhecerão.
Rajasinghe não tinha a intenção de ofender seu visitante, mas não deixou de perceber a breve demonstração de enfado de Morgan. Os instintos do ex-diplomata entraram imediatamente em ação; ele registrou a reação em seu arquivo mental, para lembrança futura.
- Estou certo de que não me reconhecerão - disse Morgan, e Rajasinghe notou o tom inequívoco de amargura em sua voz. - Dr. Smith... está bem. Agora, por favor, permite-me usar seu painel?
Era interessante, pensou Rajasinghe, enquanto conduzia Morgan ao interior da casa. Mas, provavelmente, pouco importante. Hipótese provisória: Morgan era um homem decepcionado, talvez até frustrado. Era difícil imaginar por quê, visto ser ele um dos luminares de sua profissão. O que mais ele poderia desejar? Havia uma resposta óbvia. Rajasinghe conhecia bem os sintomas, porque em seu próprio caso a doença havia muito se dissipara.
"A fama é um aguilhão", recitou ele, no silêncio de seus pensamentos. Como era mesmo o resto? "A última enfermidade da alma nobre... Desdenhar o prazer e viver dias laboriosos."
Sim, aquilo poderia explicar a insatisfação que suas antenas ainda sensíveis haviam captado. E, de repente, ele lembrou-se de que o imenso arco-íris que unia Europa e África era quase invariavelmente chamado a Ponte... ocasionalmente, Ponte de Gibraltar... mas nunca Ponte de Morgan.
Bem, pensou Rajasinghe, se está procurando fama, dr. Morgan, não vai encontrá-la aqui. Nesse caso, por que, em nome de mil yakkas, o senhor veio à plácida Taprobana?
As fontes
Durante dias, elefantes e escravos se esfalfaram sob o sol cruel, arrastando as intermináveis cadeias de baldes pela face do penhasco, em direção ao píncaro. "Está pronto?", perguntara o rei várias vezes. "Não, Majestade", havia respondido o mestre-de-obras, "o tanque ainda não está cheio. Mas amanhã, quem sabe..."
O amanhã havia chegado finalmente, e agora toda a corte estava reunida nos Jardins das Delícias, sob toldos coloridos. O rei era refrescado com grandes leques, abanados por peticionários que haviam subornado o camarista a fim de conseguir aquele arriscado privilégio. Era uma honra que podia levar à fortuna, mas também à morte.
Todos os olhos estavam fixos no Rochedo e nas minúsculas figuras que se movimentavam sobre seu cimo. Uma bandeira tremulou; lá embaixo, ouviu-se um breve toque de cometa. No pé do penhasco, trabalhadores manipularam alavancas freneticamente, puxaram cordas. No entanto, por muito tempo nada aconteceu.
O rosto do rei começou a toldar-se, e toda a corte estremeceu. Até mesmo os grandes leques perderam um pouco do impulso durante alguns segundos, mas voltaram a soprar com força quando os sicofantas lembraram os perigos de sua tarefa. Foi então que ressoou um alarido entre os trabalhadores ao pé do Yakkagala - um grito de alegria e triunfo que se aproximou mais e mais, ao ser repetido entre as veredas orladas de flores. E com ele vinha outro som, não tão audível, mas que dava a impressão de forças irresistíveis, reprimidas, que se precipitavam em direção à sua meta.
Uma após outra, brotando da terra como que por um passe de mágica, as finas colunas de água saltaram para o céu sem nuvens. A uma altura quatro vezes maior que a de um homem, romperam em flores de borrifos. A luz do sol, filtrando-se por elas, criava uma névoa tingida de arco-íris, que aumentava o insólito e a beleza da cena. Nunca, em toda a história da Taprobana, olhos humanos haviam contemplado tal maravilha.
O rei sorriu, e os cortesãos atreveram-se a respirar novamente. Dessa vez, os tubos soterrados não haviam rompido sob o peso da água; ao contrário de seus infelizes predecessores, os pedreiros que os haviam construído tinham boas perspectivas de alcançar a velhice, tanto quanto outras pessoas que trabalhavam para Kalidasa.
Quase tão lentamente quanto o sol que se punha, os jatos perdiam altura. Daí a pouco, não eram mais altos que um homem. Os reservatórios, enchidos com tanta labuta, já quase secavam. Mas o rei estava contente; ergueu a mão, e as fontes baixaram e subiram de novo, como que numa última mesura diante do trono, e depois cessaram, em silêncio. Durante alguns momentos, viram-se velozes ondulações sobre a superfície dos tanques; depois, mais uma vez fizeram-se espelhos, emoldurando a imagem do eterno Rochedo.
- Os trabalhadores se saíram bem - disse Kalidasa. - Que sejam libertados.
Até que ponto eles se haviam saído bem é coisa que nunca saberiam, é claro, pois ninguém era capaz de partilhar as visões solitárias do rei-artista. Voltando os olhos para os jardins requintados que circundavam Yakkagala, Kalidasa sentia a maior alegria que jamais haveria de experimentar.
Ali, ao pé do Rochedo, ele havia concebido e criado o Paraíso. Faltava somente, em seu topo, construir o Céu.
Rochedo do Demônio
Aquele desfile de luzes e sons, habilmente montado, ainda tinha o dom de emocionar Rajasinghe, embora já o tivesse visto uma dúzia de vezes e conhecesse todos os truques do programa. Evidentemente, aquele espetáculo era obrigatório para todos os visitantes do Rochedo, ainda que críticos como o professor Sarath se queixassem de que aquilo era tão-somente história superficial para turistas. De qualquer modo, história superficial era melhor do que nenhuma, e teriam de se haver com aquilo enquanto Sarath e seus colegas não impusessem sua discordância acerba quanto à seqüência exata dos acontecimentos narrados, que tinham ocorrido dois mil anos antes.
O pequeno anfiteatro estava voltado para a parede oeste do Yakkagala, com seus duzentos lugares orientados de tal forma que cada espectador olhasse para os projetores de laser no ângulo certo. O espetáculo começava sempre, o ano todo, às dezenove horas, no momento em que o último fulgor do invariável crepúsculo equatorial desaparecia no céu.
Já estava tão escuro que o Rochedo se tornara invisível, só revelando sua presença como uma sombra negra e enorme que eclipsava as primeiras estrelas. Em meio às trevas, soou a batida compassada de um tambor surdo, e logo se ouviu uma voz calma e impassível:
"Esta é a história de um rei que matou o pai e foi assassinado pelo irmão. Na história sanguinolenta da humanidade, isso não representa nada de novo. No entanto, esse rei deixou um monumento duradouro, bem como uma fama que dura há séculos..."
Rajasinghe lançou um olhar a Vannevar Morgan, sentado à sua direita, no escuro. Embora só visse o rosto do engenheiro em silhueta, podia perceber que o visitante já se rendera ao fascínio da narrativa. À sua esquerda, os outros dois convidados — velhos amigos dos tempos da diplomacia — estavam igualmente em transe. Tal como Rajasinghe havia assegurado a Morgan, eles não haviam reconhecido o "dr. Smith". Ou, pelo menos, não o demonstraram, polidamente.
"Seu nome era Kalidasa, e nasceu cem anos depois de Cristo, em Ranapura, a Cidade de Ouro, durante séculos a capital dos reis da Taprobana. Mas uma sombra cobriu seu nascimento..."
A música se fez mais envolvente, com flautas e cordas que se juntaram à percussão do tambor e delinearam uma melodia cativante e altiva no ar da noite. Um ponto de luz começou a arder na face do Rochedo; de repente, expandiu-se ... e, subitamente, foi como se uma janela mágica se houvesse aberto para o passado, revelando um mundo mais vivido e colorido do que a própria vida.
A dramatização, pensou Morgan, era excelente. Estava satisfeito em ter deixado, pelo menos uma vez, que a cortesia sobrepujasse seu impulso de trabalhar. Presenciou a alegria do rei Paravana, quando sua concubina favorita lhe deu seu primogênito... e sentiu essa alegria ao mesmo tempo aumentar e diminuir quando, apenas vinte e quatro horas depois, a própria rainha deu à luz outro pretendente, com mais direitos ao trono. Embora chegasse primeiro, Kalidasa não teria a primazia da precedência; assim, estava armado o palco para a tragédia.
"Todavia, nos primeiros anos de suas vidas, Kalidasa e seu meio irmão, Malgara, foram amicíssimos. Cresceram juntos, inteiramente inconscientes de seus destinos rivais, assim como das intrigas que se avolumavam ao redor deles. O primeiro motivo de desentendimento nada teve a ver com o nascimento. Foi apenas um presente bem-intencionado e inocente.
À corte do rei Paravana haviam chegado enviados que traziam o tributo de muitas terras: sedas de Catai, ouro do Hindustão, armaduras brunidas da Roma imperial. E um dia, um simples caçador, vindo da selva, ousou penetrar
na cidade grandiosa, trazendo um presente que, segundo esperava, haveria de agradar à família real..."
Morgan ouviu um coro de involuntárias interjeições de espanto de seus invisíveis companheiros. Embora nunca tivesse sido um grande apreciador de animais, teve de admitir que o pequenino e alvíssimo macaco, aninhado nos braços do jovem príncipe Kalidasa, era encantador. Naquele rosti-nho enrugado, dois olhos enormes fitavam os séculos... e o abismo misterioso, conquanto não de todo intransponível, entre homem e animal.
"Segundo as crônicas, nada de semelhante jamais tinha sido visto. Seus pêlos eram brancos como o leite, e os olhos, rosados como rubis. Alguns o julgaram um bom augúrio, outros o tiveram na conta de um animal maléfico, pois o branco é a cor da morte e do luto. E seus temores, infelizmente, eram fundados.
O príncipe Kalidasa tomou-se de amores pelo animalzinho, dando-lhe o nome de Hanuman, o mesmo do valoroso deus-macaco do Ramayana. O ourives do rei fabricou um pequeno coche dourado no qual Hanuman se sentava solenemente, e era puxado pela corte, divertindo e alegrando todos os que o viam.
Por seu turno, Hanuman também amava Kalidasa, e não permitia que outra pessoa cuidasse dele. Sentia ciúmes especialmente do príncipe Malgara, quase como se pressentisse a rivalidade vindoura. E certo dia, um dia fatídico, o animal mordeu o herdeiro do trono.
A mordida foi banal; mas as conseqüências, imensas. Alguns dias depois, Hanuman foi envenenado, indubitavelmente por ordem da rainha. Terminou aí a infância de Kalidasa; depois disso, diz-se, ele jamais voltou a amar ou confiar em qualquer outro ser humano. E sua amizade com Malgara converteu-se em acerba hostilidade.
Tampouco foi esse o único problema a advir da morte do macaquinho. Por ordem do rei, um túmulo especial foi levantado em honra a Hanuman, com a forma do santuário tradicional em forma de sino, ou dagoba. Ora, esse terá sido um gesto irrefletido, pois despertou a fúria imediata dos monges. Os dagobas eram reservados para as relíquias do Buda, e aquele ato real pareceu um sacrilégio deliberado.
Com efeito, é possível que tenha sido essa a intenção, uma vez que o rei Paravana havia caído sob a influência de um swami hindu, e aos poucos se voltava contra a fé budista. Embora o príncipe Kalidasa fosse demasiado jovem para estar envolvido no conflito, grande parte do ódio dos monges dirigiu-se contra ele. Começou assim uma rixa que, no futuro, haveria de corroer o reino.
Como muitos dos outros contos registrados nas antigas crônicas da Taprobana, durante quase dois mil anos não houve comprovação de que a história de Hanuman e do jovem príncipe Kalidasa não passava de uma lenda encantadora. No entanto, em 2015 uma equipe de arqueólogos de Harvard descobriu os alicerces de um pequeno santuário em terreno do velho palácio de Ranapura. O santuário parecia ter sido destruído deliberadamente, pois toda a cantaria da superestrutura havia desaparecido.
A habitual câmara das relíquias, oculta nos alicerces, estava vazia, pois fora obviamente violada por ladrões, séculos antes. No entanto, os sábios dispunham de instrumentos sequer imaginados pelos profanadores de tesouros. A investigação com neutrinos revelou a existência de uma segunda câmara de relíquias, muito mais profunda. A superior era apenas um disfarce, e havia cumprido bem sua finalidade. A inferior ainda encerrava sua carga de amor e ódio, que havia transportado no decurso dos séculos, até seu pouso atual, no Museu de Ranapura.
Morgan sempre se considerara, justificadamente, um obstinado nada sentimental, pouco afeito a crises emocionais. No entanto, agora, para embaraço seu (esperava que os companheiros não o notassem), sentia os olhos marejados repentinamente. Que ridículo, disse a si mesmo, zangado, que um pouco de música sentimentalóide e uma narrativa piegas exerçam tamanho impacto sobre um homem sensato! Jamais teria acreditado que ver o brinquedo de uma criança o levasse às lágrimas.
Percebeu então, numa súbita evocação da memória que lhe trouxe de volta um episódio de quarenta anos antes, por que se emocionara tanto. Viu outra vez sua adorada pipa oscilando no ar, no parque de Sydney em que ele passara grande parte da infância. Sentiu o calor do sol, o vento macio em suas costas nuas... e o vento traiçoeiro cessou de repente, fazendo a pipa mergulhar em direção ao chão. O brinquedo emaranhou-se nos ramos do gigantesco carvalho, tido como mais velho do que o próprio país. Inutilmente, ele pôs-se a puxar o barbante, tentando desembaraçar a pipa. Aquela foi sua primeira lição de resistência dos materiais, uma lição que nunca esqueceria.
O fio se partiu no momento em que ele estava quase conseguindo recuperar a pipa, que saltou loucamente para o céu de verão, perdendo altitude lentamente. Morgan correu até a beira d'água, na esperança de que a pipa caísse em terra; mas o vento não deu ouvidos às preces do menino.
Por muito tempo, ele ficou chorando, vendo os fragmentos despedaçados, como um barco que houvesse perdido os mastros, vagarem pelas águas do porto, em direção ao mar aberto, até se perderem de vista. Aquela tinha sido a primeira das tragédias triviais que moldam a infância de um homem, quer ele se recorde delas ou não.
Entretanto, o que Morgan havia perdido era apenas um brinquedo inanimado. Suas lágrimas eram antes de frustração que de luto. A angústia do príncipe Kalidasa tinha causas muito mais profundas. Dentro do cochezinho dourado, que parecia recém-saído da oficina de um ourives, havia um feixe de ossinhos brancos.
Morgan perdeu parte da narrativa que se seguiu. Quando seus olhos secaram, doze anos já haviam transcorrido, estava em curso uma complicada briga de família, e ele não entendeu direito quem estava assassinando quem. Depois dos choques entre os exércitos e de haver caído o último punhal, o príncipe herdeiro Malgara e a rainha-mãe tinham fugido para a Índia, e Kalidasa apoderou-se do trono, encarcerando o pai.
O fato de o usurpador se abster de executar Paravana não se devia à devoção filial, e sim à sua convicção de que o velho rei possuía um tesouro secreto que estava guardando para Malgara. Enquanto Kalidasa acreditasse nisso, Paravana sabia estar seguro. Por fim, porém, cansou-se da fraude.
"Vou mostrar-lhe minha verdadeira riqueza", disse ao filho. "Dê-me um carro, e eu o levarei a ela."
Mas naquela última jornada, ao contrário do pequeno Hanuman, Paravana viajou num decrépito carro de boi. Contam as crônicas que o carro tinha uma roda quebrada que rangia durante todo o percurso — o tipo de detalhe que deve ser verdadeiro, pois nenhum historiador se daria ao trabalho de inventá-lo.
Para surpresa de Kalidasa, o pai ordenou que o carro o levasse a um grande lago artificial que irrigava a zona central de seu reino, e cuja construção ocupara a maior parte de seu reinado. Caminhou pela beirada do imenso reservatório e contemplou sua própria estátua, de tamanho duas vezes maior que o natural, edifiçada junto às águas.
- Adeus, velho amigo - disse, dirigindo-se à figura majestosa que simbolizava seu poder e sua glória, agora perdidos, e que encerrava nas mãos, para todo o sempre, o mapa pétreo daquele mar mediterrâneo. - Proteja minha herança.
Então, vigiado de perto por Kalidasa e seus guardas, ele desceu os degraus do vertedouro, não se detendo nem mesmo na beirada do lago. Quando já tinha água pela cintura, pegou um pouco dela com a mão e despejou-a na própria cabeça. Depois, voltou-se para Kalidasa, com orgulho e triunfo.
- Aqui, filho - gritou, apontando para as léguas de águas puras, vivificantes -, aqui... aqui está toda a minha riqueza!
- Matem-no! - gritou Kalidasa, louco de fúria e decepção.
E os soldados obedeceram-lhe.
Assim Kalidasa tornou-se senhor da Taprobana, mas a um preço que poucos homens estariam dispostos a pagar. Pois, como registram as crônicas, ele vivia sempre "no temor do outro mundo e de seu irmão". Mais cedo ou mais tarde, Malgara voltaria para exigir o que era seu.
Durante alguns anos, tal como a longa linhagem de reis que o precederam, Kalidasa manteve sua corte em Ranapura. Então, por motivos sobre os quais a história se cala, abandonou a capital real pelo isolado monólito de Yakkagala, a quarenta quilômetros de distância, no meio da selva. Para alguns, ele buscava uma fortaleza inexpugnável, a salvo da vingança do irmão. No entanto, ele terminou rejeitando a proteção oferecida... e, se não passava de uma cidadela, por que Yakkagala seria cercada por imensos jardins de deleite, cuja construção certamente exigiu tanta labuta quanto as próprias muralhas? Sobretudo, por que os afrescos?
Enquanto o narrador colocava essa pergunta, toda a encosta ocidental do penhasco se materializou, saída das trevas - não como era agora, mas como devia ter sido dois mil anos antes. Uma faixa coberta de gesso, na qual estavam representadas diversas mulheres belas, em tamanho natural, da cintura para cima, tivera uma de suas extremidades fixa-
da a cem metros do solo e percorria toda a extensão da rocha, até o topo. Algumas mulheres apareciam de perfil, outras foram pintadas frontalmente. Todas seguiam o mesmo desenho básico.
De pele ocre e seios voluptuosos, elas se cobriam unicamente de jóias ou trajavam as vestes mais transparentes. Algumas usavam penteados enormes e elaborados; outras, coroas, ao que parecia. Muitas portavam jarros de flores, ou sustinham um só botão, preso delicadamente entre o pole-gar e o indicador. Embora cerca de metade delas fossem mais morenas que as companheiras, e parecessem criadas, não se apresentavam menos bem-penteadas ou com ornamentos mais discretos.
No passado, havia mais de duzentas figuras. Mas os ventos e as chuvas de séculos destruíram todas, menos vinte, protegidas por uma saliência de pedra.
A imagem se tornou maior; uma a uma, as últimas sobreviventes do sonho de Kalidasa flutuaram em meio ao negrume, como que dançando a melodia muito conhecida, mas singularmente apropriada, a Dança de Anitra. Ainda que danificadas pela intempérie, pela idade e até por atos de vandalismo, não haviam perdido nada de sua antiga beleza. As cores ainda eram frescas, não desbotadas pela luz de mais de meio milhão de ocasos. Deusas ou mortais, haviam mantido viva a legenda do Rochedo.
"Ninguém sabe quem eram, o que representavam, e por que foram pintadas com tamanho trabalho, em local tão inacessível. A teoria favorita é a de que eram seres celestes, e que todos os esforços de Kalidasa visavam criar um céu na terra, com todas as suas deusas. Talvez se considerasse um rei-deus, tal como os faraós do Egito. Talvez por isso tenha tomado de empréstimo a imagem da esfinge que guardava a entrada de seu palácio."
Agora a imagem passou a mostrar uma vista distante do Rochedo, refletido no pequeno lago a seus pés. As águas estremeceram, os contornos de Yakkagala tremularam e se dissolveram. Quando se recompuseram, o Rochedo estava coberto de muralhas, baluartes e torreões. Era impossível vê-los com clareza; mantinham-se desfocados, como as imagens de um sonho. Nenhum homem jamais saberia como tinha sido realmente o palácio suspenso de Kalidasa, antes que fosse destruído por aqueles que pretendiam apagar até mesmo seu nome.
E aqui ele viveu, durante quase vinte anos, esperando o destino que sabia inevitável. Seus espiões deviam ter-lhe avisado que, com a ajuda dos reis do sul do Hindustão, Malgara estava pacientemente reunindo exércitos.
E, por fim, Malgara chegou. Do topo do Rochedo, Kalidasa avistou os invasores vindo do norte. Talvez ele se julgasse inatingível, mas não quis pôr isso à prova. Deixou a segurança de sua grande fortaleza e foi encontrar o irmão, no terreno neutro entre os dois exércitos. Muito se daria para saber que palavras trocaram, naquele último encontro. Alguns dizem que se abraçaram, em despedida. É possível.
E então os exércitos entraram em choque, como as ondas do mar. Kalidasa lutava em seu próprio território com homens que conheciam aquele terreno, e a princípio pareceu certo que a vitória lhe sorriria. Eis, porém, que sobreveio outro daqueles acidentes que determinam a sorte das nações.
O grande elefante de guerra de Kalidasa, ajaezado com os estandartes reais, virou-se de lado para evitar um pedaço de terra pantanosa. Os defensores julgaram que o rei batia em retirada. Seu moral rompeu-se; dispersaram-se, como consta das crônicas, como o joio batido pela ventania.
Kalidasa foi encontrado no campo de batalha, morto por sua própria mão. Malgara tornou-se rei. E Yakkagala foi abandonada à selva, sendo redescoberta somente sete-centos anos depois.
Através do telescópio
"Meu vício secreto", era como Rajasinghe o chamava, com humor sardônico, mas também com certa tristeza. Fazia anos que não subia ao topo do Yakkagala, e, embora pudesse voar até lá sempre que desejasse, isso não proporcionava a mesma sensação de triunfo. Fazer aquilo pelo método fácil significava perder os mais fascinantes detalhes arquitetônicos da subida. Ninguém podia compreender a mente de Kalidasa sem retraçar seus passos, desde os Jardins das Delícias até o palácio suspenso.
Havia, porém, um sucedâneo capaz de dar a um homem idoso considerável satisfação. Anos antes, ele havia adquirido um telescópio de vinte centímetros, compacto e poderoso. Com a ajuda dele, podia agora vaguear por toda a face oeste do Rochedo, retrilhando o caminho que tantas vezes percorrera no passado, até o cimo. Olhando pela ocular dupla, imaginava-se facilmente suspenso no ar, bastante perto da parede de granito para estender a mão e tocá-la.
No fim da tarde, quando os raios do sol poente alcançavam a parte inferior da protuberância rochosa que os protegia, Rajasinghe visitava os afrescos, rendendo tributo às damas da corte. Embora amasse a todas, tinha suas favoritas. Às vezes conversava em silêncio com elas, usando as palavras e frases mais arcaicas que conhecia... cônscio de que o taprobani mais antigo que usasse ainda estava mil anos adiantado em relação a elas.
Divertia-o também observar os vivos e estudar-lhes as reações, enquanto escalavam o Rochedo, tiravam fotografias uns dos outros lá no alto ou admiravam os afrescos. Não podiam absolutamente imaginar que eram acompanhados por um espectador invisível (e invejoso), que se movia sem esforço ao lado deles como um espectro silencioso, e tão próximo que podia ver cada expressão de seus rostos, cada
pormenor de suas roupas. Era tal a potência do telescópio que, se soubesse ler lábios, Rajasinghe poderia espionar a conversa dos turistas.
Se aquilo era voyeurismo, era bem inofensivo - e seu pequeno "vício" não era de modo algum secreto, pois ele se comprazia em partilhá-lo com os visitantes. O telescópio representava uma das melhores abordagens ao Yakkagala, e com freqüência já servira a outros propósitos úteis. Várias vezes Rajasinghe alertara os guardas para tentativas de coletas de souvenirs, e mais de um turista espantado fora pilhado riscando suas iniciais na parede do Rochedo.
Raramente Rajasinghe usava o telescópio de manhã, pois a essa hora o sol estava do lado oposto do Yakkagala, e pouco se podia ver na sombreada face oeste. E, tanto quanto se lembrava, jamais o tinha usado pouco depois da alvorada, enquanto ainda estava gozando o delicioso costume local do "chá na cama", introduzido pelos fazendeiros europeus três séculos antes. No entanto, agora, olhando pelo enorme janelão que lhe oferecia uma vista quase completa do Yakkagala, ficou admirado por ver uma minúscula figura movendo-se na crista do penedo, parcialmente recortada contra o céu. Os visitantes nunca subiam até o topo tão cedo, logo depois da madrugada. Ademais, o guarda só abriria o elevador que levava aos afrescos dali a uma hora. Preguiçosamente, Rajasinghe imaginou quem poderia ser o madrugador.
Rolou para fora da cama, vestiu o brilhante sarongue de batique e caminhou, com o torso nu, até a varanda, e dali até a robusta coluna de concreto que sustinha o telescópio. Tomando nota mentalmente, pela qüinquagésima vez, de que devia providenciar para o instrumento uma capa nova, girou o tubo em direção ao Rochedo.
- Eu devia ter adivinhado! - disse ele com considerável prazer, enquanto levava o instrumento à potência máxima. Então, o espetáculo da véspera havia impressionado Morgan, como era mesmo de esperar! O engenheiro estava verificando por si mesmo, no pouco tempo de que dispunha, como os arquitetos de Kalidasa haviam resolvido o desafio que lhes havia sido imposto.
Foi quando Rajasinghe notou algo de alarmante. Morgan caminhava na beirada do platô, a apenas poucos centímetros da parede vertical, de que poucos turistas ousavam sequer aproximar-se. Não eram muitos os que tinham coragem de se sentar no Trono do Elefante, com os pés pendendo sobre o abismo; agora, porém, o engenheiro estava ajoelhado a seu lado, sustendo-se sem muito cuidado na pedra entalhada... e debruçou-se sobre o nada, enquanto examinava a face do penhasco, debaixo dele. Rajasinghe, que jamais se sentira muito à vontade nas alturas, nem mesmo naquelas, tão conhecidas, do Yakkagala, mal conseguia fixar a vista em Morgan.
Após alguns minutos de incrédula observação, ele concluiu que o engenheiro devia ser uma daquelas raras pessoas completamente imunes ao efeito das alturas. A memória de Rajasinghe, que ainda era excelente, mas que se comprazia em lhe pregar peças, tentava chamar sua atenção para alguma coisa. Não houvera, de certa feita, um francês que atravessara as cataratas do Niágara na corda bamba, chegando até a se deter no meio da travessia para preparar uma refeição? Se as provas não fossem cabais, Rajasinghe jamais teria acreditado naquela história.
E havia ali outra coisa relevante... um incidente que dizia respeito ao próprio Morgan. O que poderia ser? Morgan... Rajasinghe não sabia praticamente nada sobre ele, até uma semana antes.
Isso, era isso. Tinha havido uma breve controvérsia que alimentava os noticiosos durante um dia ou dois, e essa fora sem dúvida a primeira vez em que escutara o nome de Morgan.
O projetista-chefe da fatura Ponte de Gibraltar havia anunciado uma inovação espantosa. Como todos os veículos atravessariam a estrutura de modo automático, não havia absolutamente necessidade de se construírem parapeitos ou muretas na beirada da pista. A eliminação dessas proteções significava diminuir o peso em milhares de toneladas. Evidentemente, todo mundo considerava isso uma idéia simplesmente horripilante. O que aconteceria, perguntava o público, se a direção de um carro falhasse, e o veículo se encaminhasse para um lado? O projetista-chefe tinha as respostas; infelizmente, eram em número excessivo.
Se a direção falhasse, então, como todos sabiam, os freios operariam automaticamente, e o veículo pararia em menos de cem metros. Somente nas pistas externas havia a possibilidade de um carro precipitar-se no abismo; isso exigiria a falha total da direção, dos sensores e dos freios, e talvez só acontecesse uma vez a cada vinte anos.
Até aí, tudo bem. Entretanto, o engenheiro-chefe acrescentou uma ressalva. Talvez não quisesse que fosse publicada, ou talvez estivesse brincando. Mas o fato é que, em seguida, disse que, se tal acidente viesse a ocorrer, quanto mais depressa o veículo caísse da ponte, sem danificar sua bela obra, mais contente ele ficaria.
É desnecessário dizer que a ponte terminou sendo construída com cabos defletores de aço ao longo das pistas externas. E, ao que Rajasinghe soubesse, ninguém havia ainda mergulhado no Mediterrâneo. Morgan, no entanto, parecia resolvido, como um suicida, a sacrificar-se à gravidade ali no Yakkagala. De outra forma, era difícil explicar suas atitudes.
E agora o que fazia? Estava de joelhos, ao lado do Trono do Elefante, e segurava uma pequena caixa retangular, mais ou menos do tamanho e da forma de um livro antiquado. Rajasinghe só a via a intervalos, e a maneira como o engenheiro a usava era inexplicável. Seria, provavelmente, um instrumento de análise, embora ele não percebesse por que Morgan estaria interessado na estrutura do Yakkagala.
Estaria ele planejando construir algo ali? Nada disso seria autorizado, é claro, nem Rajasinghe era capaz de imaginar qualquer atração concebível para aquele lugar. Felizmente, escasseavam agora os reis megalômanos. De qualquer modo, ele tinha certeza, pelas reações de Morgan na noite anterior, de que o engenheiro nunca tinha ouvido falar no Yakkagala antes de vir à Taprobana.
E naquele instante, Rajasinghe, que sempre se orgulhara de seu autocontrole, mesmo nas situações mais periclitantes e inesperadas, emitiu um involuntário grito de horror. Vannevar Morgan havia, com toda a naturalidade, recuado em direção ao abismo, precipitando-se no espaço.
O artista
- Tragam-me o persa - disse Kalidasa, tão logo recuperou o fôlego. A subida, desde os afrescos ao Trono do Elefante, não era difícil, e se tornara perfeitamente segura, agora que as escadas talhadas na rocha nua haviam sido cercadas por paredes. No entanto, era cansativa. Durante quantos anos ainda, imaginava Kalidasa, ele seria capaz de fazer o percurso sem ajuda? Embora houvesse escravos para carregá-lo, isso não convinha à dignidade de um rei. E era intolerável que outros olhos, que não os seus, contemplassem a centena de deusas e a centena de servas, igualmente belas, que formavam o séquito de sua corte celeste.
Por isso, doravante, dia e noite, havia sempre uma sentinela na entrada para a escadaria - o único caminho que levava do palácio ao céu particular que Kalidasa havia criado. Após dez anos de labuta, seu sonho se completara. A despeito das opiniões contrárias que pudessem proferir os monges em seu pináculo, finalmente ele era um deus.
Apesar dos anos passados sob o sol da Taprobana, Firdaz ainda tinha a pele clara como um romano. Naquele dia, ao prostrar-se diante do soberano, parecia ainda mais pálido e constrangido. Kalidasa fitou-o pensativamente, e depois exibiu um de seus raros sorrisos de aprovação.
- Trabalhaste bem, persa - disse ele. - Haveria algum outro artista no mundo que se saísse melhor?
Era visível a luta entre o orgulho e a cautela, antes que Firdaz respondesse.
- Ao que eu saiba, nenhum, Majestade.
- Paguei-te bem?
- Estou plenamente satisfeito.
Essa resposta, pensou Kalidasa, não era de modo algum exata. Tinham sido constantes os pedidos de mais dinheiro, mais assistentes, de materiais caros que só podiam ser obtidos em terras distantes. Mas não se poderia esperar que os artistas entendessem de economia, ou soubessem até que ponto o erário real tinha sido dilapidado pelo custo do palácio e das obras de arte.
- E agora que teu trabalho aqui está findo, o que queres?
- Gostaria da permissão de Sua Majestade para retornar a Isfahan, pois quero rever minha gente.
Era a resposta que Kalidasa havia esperado, e sinceramente lamentava a decisão que tinha de tomar. Mas havia suseranos demais na longa viagem até a Pérsia, reis que não deixariam o grande artista do Yakkagala fugir entre seus dedos cobiçosos. E as deusas pintadas da parede ocidental deveriam permanecer para todo o sempre inigualadas.
- Há um problema - disse ele, e Firdaz se fez ainda mais pálido, com os ombros curvados sob o peso dessas palavras. Um rei não precisava explicar coisa alguma, mas tratava-se aqui de um artista falando a outro. — Tu me ajudaste a fazer de mim um deus. Essa nova já chegou a muitas terras. Se deixares minha proteção, há outros que te farão pedidos semelhantes.
Durante um momento, o artista calou-se. O único som que se ouvia era a lamúria do vento, que raramente deixava de queixar-se ao encontrar aquele obstáculo inesperado em sua viagem. Firdaz disse então, tão baixo que Kalidasa quase não o escutava:
- Estou então proibido de partir?
- Podes ir, e com riquezas suficientes para viveres bem o resto de tua vida. Mas somente sob a condição de nunca trabalhares para outro príncipe.
- Estou pronto a fazer essa promessa - respondeu Firdaz, com uma pressa quase descortês.
Kalidasa balançou a cabeça, pesaroso.
- Aprendi a não confiar na palavra de artistas - disse -, principalmente quando não estão mais sob meu poder. Por isso, terei de me assegurar de que essa promessa será cumprida.
Para surpresa de Kalidasa, Firdaz já não parecia tão inseguro. Era quase como se ele houvesse tomado uma grave decisão, e mostrava-se finalmente à vontade.
- Compreendo - disse ele, pondo-se de pé. Deliberadamente, voltou as costas ao rei, como se seu senhor não mais existisse, e fitou o sol escaldante, diretamente.
O sol, Kalidasa sabia, era o deus dos persas, e aquelas palavras que Firdaz estava murmurando deviam ser uma prece em seu idioma. O artista fitava aquele disco cegamente como se soubesse que era a última coisa que haveria de enxergar. ..
- Segurem-no! - gritou o rei.
Os guardas correram, mas chegaram tarde demais. Mesmo cego, como já devia estar, Firdaz moveu-se com precisão. Em três passos havia chegado ao parapeito, saltando por sobre ele. Não emitiu nenhum som em sua longa queda em arco até os jardins que havia planejado durante tantos anos, nem se ouviu qualquer eco quando o arquiteto do Yakkagala atingiu as fundações de sua obra-prima.
Kalidasa lamentou o fato por muitos dias, mas o luto se converteu em fúria quando a última carta do persa para Isfahan foi interceptada. Alguém avisara a Firdaz que ele seria cegado ao concluir sua obra; e isso não passava de deslavada mentira. Kalidasa jamais descobriu a fonte do boato, embora não poucos homens morressem lentamente antes de provarem sua inocência. Entristeceu-o o fato de o persa haver acreditado em tal mentira. Ele devia saber que outro artista nunca o privaria do dom da vista.
Pois Kalidasa não era um homem cruel, nem ingrato. Ele teria coberto Firdaz de ouro - ou, pelo menos, de prata - e o teria mandado partir, com servos incumbidos de cuidar dele para o resto da vida. Nunca mais teria de usar as mãos... e depois de algum tempo não se importaria de não tê-las mais.
O palácio do rei-deus
Vannevar Morgan não havia dormido bem, coisa que era raríssimo acontecer. Sempre se orgulhara de seu auto-controle, do conhecimento perfeito que tinha de seus impulsos e emoções. Se não conseguia dormir, queria saber o porquê.
Lentamente, enquanto observava o primeiro raio de luz da madrugada no teto de seu quarto de hotel e ouvia os gritos de pássaros estrangeiros, semelhantes a tinidos de sinos, começou a pôr em ordem os pensamentos. Jamais se teria tornado um dos diretores da Construção Terráquea se não houvesse planejado sua vida de modo a evitar surpresas. Embora nenhum homem pudesse estar imune aos acidentes do acaso e da sorte, ele havia tomado todas as medidas razoáveis para salvaguardar sua carreira - e, acima de tudo, sua reputação. Seu futuro estava tão protegido quanto lhe fora possível prever; mesmo que morresse de repente, os programas armazenados nos bancos do computador protegeriam seu grande sonho para além do túmulo.
Até a véspera, nunca tinha ouvido falar do Yakkagala. Na verdade, até algumas semanas antes, não sabia da existência da própria Taprobana, até que a lógica de sua pesquisa o encaminhou inexoravelmente em direção à ilha. A essa altura, já devia ter partido, ao passo que na verdade sua missão nem sequer começara. Não lhe importava o pequeno atraso em seu programa. O que o perturbava de fato era a impressão de estar sendo impelido por forças além de sua compreensão. No entanto, a impressão tinha uma ressonância conhecida. Ele havia experimentado a mesma coisa em criança, ao empinar a pipa perdida no Parque Kiribilli, ao lado dos monólitos de granito que tinham sustentado no passado a ponte do porto de Sydney, há muito demolida.
Aquelas montanhas gêmeas haviam dominado sua infância, e moldaram seu destino. Talvez, de qualquer modo, ele tivesse se tornado engenheiro; mas o acidente de seu nascimento havia determinado que ele seria um construtor de pontes. E assim, ele foi o primeiro homem a caminhar do Marrocos à Espanha, com as águas encapeladas do Mediterrâneo três quilômetros abaixo dele... sem sonhar, naquele momento de triunfo, com o desafio muito mais estupendo que estava por vir.
Se tivesse êxito na tarefa que se lhe deparava, seria famoso séculos afora. Sua mente, sua vontade e seu esforço estavam sendo empenhados ao máximo; não tinha tempo para distrações vãs. No entanto, tinha ficado fascinado com os feitos de um engenheiro-arquiteto morto dois mil anos antes, que pertencia a uma cultura inteiramente estranha à sua. E havia ainda o mistério do próprio Kalidasa. Qual teria sido seu objetivo ao edificar o Yakkagala? O rei podia ter sido um monstro, mas havia algo em sua personalidade que encontrava ressonância nos recônditos da alma do próprio Morgan.
O sol nasceria dentro de trinta minutos. Ainda faltavam duas horas para seu encontro com o embaixador Rajasinghe. Isso seria tempo suficiente, e talvez ele não tivesse outra oportunidade.
Morgan não era homem de perder tempo. Em menos de um minuto, havia vestido as calças e o suéter, mas a verificação cuidadosa de seu calçado levou muito mais tempo. Muito embora não fizesse nenhuma escalada séria havia anos, sempre levava consigo um par de botas fortes e leves. Em sua profissão, muitas vezes aquelas botas lhe eram indispensáveis. Já havia fechado a porta do quarto, quando se lembrou de alguma coisa. Por um momento, hesitou no corredor; depois, sorriu e deu de ombros. Não faria mal algum, e nunca se sabia...
De volta ao quarto, Morgan abriu a mala e tirou dela uma pequena caixa, mais ou menos do tamanho de uma calculadora de bolso. Verificou a carga da bateria, testou o botão de funcionamento manual e depois prendeu-a na fivela de aço de seu forte cinto de material sintético. Agora, estava realmente pronto para penetrar no assombrado reino de Kalidasa, e para enfrentar os demônios que ali estivessem encerrados.
O sol se ergueu, derramando um calor agradável em suas costas, enquanto Morgan atravessava a abertura do enorme torreão das muralhas externas da fortaleza. Diante dele, sob uma estreita ponte de pedra, viam-se as águas estagnadas do grande fosso, que se estendiam por meio quilômetro, para cada lado, numa linha perfeitamente reta. Uma pequena flotilha de cisnes nadou esperançosamente em sua direção, em meio aos lírios, dispersando-se quando se tornou óbvio que ele não tinha comida a lhes oferecer. Do outro lado da ponte, Morgan encontrou uma segunda muralha, menor, e subiu a estreita escadaria talhada na rocha; diante dele viam-se os Jardins das Delícias, que terminavam na face vertical do Rochedo.
Os repuxos ao longo do eixo dos jardins subiam e desciam juntos, em ritmo lânguido, como se respirassem lentamente, em uníssono. Não havia outro ser humano à vista. Todo o enorme Yakkagala estava à sua disposição. A cidade-fortaleza não poderia ter estado mais solitária durante os setecentos anos em que a selva a tivera para si, entre a morte de Kalidasa e sua redescoberta por arqueólogos do século XIX.
Morgan caminhou pela fileira de repuxos, sentindo o borrifar da água na pele, e em certo momento parou para admirar as calhas de pedra, maravilhosamente esculpidas, e decerto originais, que transportavam a água. Ficou imaginando de que maneira os antigos engenheiros hidráulicos levavam a água até a altura de que tinha de cair para provocar os repuxos, e quais as diferenças de pressão que eram capazes de provocar. Aqueles jatos verticais, elevados, deviam ter parecido verdadeiramente espantosos aos que os viram pela primeira vez.
Ele via agora diante dele um lance íngreme de degraus de granito, tão estreitos que mal conseguiam acomodar suas botas. Por acaso as pessoas que haviam construído aquele lugar maravilhoso teriam realmente pés tão pequenos? Ou seria aquilo um hábil ardil do arquiteto, a fim de desestimular visitas indesejadas? Seria certamente difícil para soldados transportar uma carga por aquela encosta de sessenta graus, escalando degraus que pareciam feitos para anões.
Uma pequena plataforma, depois um lance idêntico de escada... e Morgan se viu numa galeria longa, que subia lentamente, talhada nos flanços inferiores do Rochedo. Estava agora a mais de cinqüenta metros acima da planície, mas a vista era inteiramente impedida por uma alta parede revestida de gesso liso, amarelo. A rocha, lá no alto, projetava-se tanto para fora que era como se ele caminhasse no interior de um túnel, pois só se via uma estreita faixa de céu.
O gesso da parede parecia novíssimo e sem desgaste. Era quase impossível acreditar que os pedreiros houvessem trabalhado ali dois mil anos antes. Aqui e ali, no entanto, a superfície brilhante e espelhada estava ferida por mensagens riscadas — visitantes que deixavam sua marca costumeira, aspirando à imortalidade. Pouquíssimas das inscrições eram em alfabetos que Morgan reconhecia, e a data mais recente, observou, era 1931. Depois disso, presumivelmente, o Departamento de Arqueologia havia passado a impedir aquele vandalismo. A maior parte dos graffiti adotavam a escrita taprobani. Morgan lembrou-se do que havia ouvido na exposição da noite anterior: muitas daquelas inscrições eram poemas que datavam dos séculos II e III. Durante algum tempo após a morte de Kalidasa, o Yakkagala conhecera seu primeiro período como atração turística, graças às lendas que subsistiam sobre o rei maldito.
Mais ou menos no meio da galeria de pedra, Morgan chegou à porta, agora trancada, do pequeno elevador que levava aos famosos afrescos, vinte metros mais acima. Esticou a cabeça para vê-los, mas estavam obscurecidos pela plataforma do cubículo de onde os visitantes os observavam: uma jaula suspensa, como a gaiola metálica de um pássaro, na face externa da rocha. Alguns turistas, tinha-lhe dito Rajasinghe, verificavam a localização dos afrescos e decidiam que preferiam conhecê-los por fotografias.
Agora, pela primeira vez, Morgan pôde apreciar um dos principais mistérios de Yakkagala. Não se tratava de como os afrescos tinham sido pintados (um sistema de andaimes de bambu resolveria o problema), mas o porquê. Uma vez completados, ninguém os poderia ver adequadamente. Da galeria imediatamente abaixo, mostravam-se irremediavelmente acachapados; e da base do Rochedo não seriam mais do que manchas de cor, minúsculas e quase irreconhecíveis. Talvez, como já fora sugerido, tivessem um significado puramente religioso ou mágico — como aquelas pinturas paleolíticas encontradas nas profundezas de cavernas quase inacessíveis.
Os afrescos teriam de esperar até que chegasse o servente para abrir o elevador. Havia muitas outras coisas para ver. Morgan estava a apenas um terço do caminho até o topo, e a galeria ainda subia lentamente, na beirada do Rochedo.
A parede alta, revestida de gesso amarelo, deu lugar a um parapeito baixo, e Morgan pôde novamente avistar a planície circunvizinha. Lá embaixo, estendiam-se os Jardins das Delícias, e pela primeira vez ele pôde apreciar não somente a escala descomunal (Versalhes seria maior?), como também seu hábil planejamento, e a maneira como o fosso e os baluartes externos os protegiam da floresta, mais além.
Ninguém sabia quais árvores, arbustos e flores haviam crescido ali nos dias de Kalidasa, mas os lagos artificiais, canais, trilhas e fontes ainda eram exatamente como ele os havia deixado. Ao baixar a vista para aqueles jatos de água dançantes, Morgan lembrou-se subitamente de uma citação do texto da noite anterior:
"Da Taprobana ao Paraíso medeiam quarenta léguas; dali pode-se ouvir o som das Fontes do Paraíso".
Morgan saboreou mentalmente o som daquelas palavras. As Fontes do Paraíso. Estaria Kalidasa desejando criar na Terra um jardim apropriado aos deuses, a fim de poder reivindicar divindade? Fosse assim, não era de admirar que os sacerdotes o houvessem acusado de blasfêmia, amaldiçoando toda a sua obra.
Por fim, a longa galeria, que atravessava toda a face ocidental do Rochedo, terminou em outra escadaria íngreme, e dessa vez os degraus eram muito mais largos. Mas o palácio ainda estava muito longe, pois a escada terminou num amplo terraço, evidentemente artificial. Ali estava tudo o que restava do monstro gigantesco e leonino que, no passado, havia dominado a paisagem, despertando o terror nos corações de todos os que o contemplavam. Da face da rocha brotavam as patas de uma fera enorme, deitada. Somente as garras mediam metade da altura de um homem.
Nada mais restava senão outra escadaria de granito, que subia por entre pilhas de destroços do que devia ter formado a cabeça da criatura. Mesmo em ruínas, a idéia causava assombro: quem quer que ousasse se aproximar do reduto final do rei, teria de atravessar primeiro a goela do animal.
A escalada final da face do penhasco - mais que íngreme, ligeiramente saliente - se fazia por uma série de escadas de ferro, com corrimãos destinados a tranqüilizar os mais nervosos. Mas o perigo real ali, tinham avisado, não era a vertigem. Enxames de vespas, normalmente plácidas, ocupavam pequenas reentrâncias na rocha, e às vezes os visitantes que faziam barulho excessivo as despertavam, com resultados fatais.
Dois mil anos antes, aquela face norte do Yakkagala fora coberta de muralhas e ameias, a fim de criar um ambiente adequado para a esfinge taprobaneana, e por trás daquelas muralhas havia decerto escadas que davam acesso fácil ao topo. Agora, o tempo e a mão vingativa do homem tudo haviam destruído. Restava somente a rocha nua, marcada com miríades de fendas horizontais e saliências estreitas, que haviam suportado os alicerces da alvenaria desaparecida.
De repente, findara a ascensão. Morgan viu-se de pé numa pequena ilha suspensa, a duzentos metros de um cenário de árvores e campos, plano em todas as direções, exceto em direção ao sul, onde a cordilheira central quebrava a linha do horizonte. Estava completamente isolado do resto do mundo, mas, no entanto, sentia-se senhor de tudo quanto contemplava. Desde que se vira entre as nuvens, a meio caminho entre a Europa e a África, não conhecera momento igual de êxtase aéreo. Aquela era de fato a moradia de um deus-rei, e as ruínas de seu palácio jaziam ao redor, por toda parte.
Um emaranhado de paredes quebradas, das quais nenhuma passava da cintura de um homem, e pilhas de tijolos desgastados pelo tempo e veredas pavimentadas de granito cobriam toda a superfície do planalto, até a borda, que se precipitava no abismo. Morgan podia ver ainda uma enorme cisterna, cavada profundamente na rocha maciça — provavelmente um tanque de armazenamento de água. Enquanto restassem víveres, um punhado de homens resolutos poderiam defender aquele lugar para sempre. Mas se Yakkagala pretendera ser realmente uma fortaleza, suas defesas nunca tinham sido postas à prova. O fatídico encontro final de Kalidasa com o irmão tinha ocorrido muito além das muralhas externas.
Quase esquecendo-se do tempo, Morgan vagueou por entre as fundações do palácio que, no passado, havia coroado o Rochedo. Tentou penetrar na mente do arquiteto, baseando-se no que restava de sua obra. Por que havia uma trilha ali? Aquela escadaria truncada levava a um andar superior? Se aquele recesso na pedra, em forma de ataúde, era uma banheira, de onde vinha a água, e como era drenada? Suas indagações eram de tal forma fascinantes que Morgan se esqueceu por completo do crescente calor do sol, que dardejava de um céu sem nuvens.
Lá embaixo, a paisagem verde-esmeralda lentamente ganhava vida. Como besouros multicores, um enxame de pequenos tratores robôs se encaminhava para os arrozais. Por improvável que parecesse, um elefante repunha na estrada um ônibus que tombara, ao fazer uma curva em velocidade elevada demais. Morgan podia até escutar a voz aguda do cornaca, encarapitado junto das enormes orelhas do animal. E uma corrente de turistas penetrava como formigas nos Jardins das Delícias, vindo da direção geral do Hotel Yakkagala. Ele não teria solidão por muito mais tempo.
No entanto, praticamente já terminara a exploração das ruínas, ainda que uma pessoa pudesse, é claro, passar toda uma vida investigando-as em detalhes. Resolveu descansar um pouco, num banco de grani to esculpido com gosto, bem na borda da parede vertical de duzentos metros, de onde se descortinava todo o céu meridional.
Morgan deixou os olhos vagarem pela cordilheira distante, encoberta parcialmente por uma névoa azulada que o sol da manhã ainda não dissipara. Ao examiná-la casualmente, compreendeu de repente que o que ele supusera ser parte da massa de nuvens não o era. O cone brumoso não era uma formação efêmera de vento e vapor. Não havia como confundir sua simetria perfeita, que se agitava sobre companheiras menores.
Por um momento, o choque do reconhecimento esvaziou sua mente, não deixando nela lugar para outra coisa senão o assombro, uma sensação quase supersticiosa. Não percebera que do Yakkagala se podia ver a Montanha Sagrada tão claramente. Mas lá estava ela, emergindo lentamente das sombras da noite, preparando-se para enfrentar um novo dia. E, se ele tivesse êxito, um novo futuro.
Morgan conhecia todas as suas dimensões, toda a sua geologia. Ele a mapeara, com base em fotografias estereoscópicas, e a medira por meio de satélites. Mas vê-la pela primeira vez, com seus próprios olhos, transformava-a de súbito numa coisa real. Até agora, tudo não passara de teoria. E, às vezes, nem mesmo isso. Mais de uma vez, nas horas que antecediam a madrugada, Morgan havia despertado de pesadelos em que todo o seu projeto parecia uma fantasia absurda, que, longe de dar-lhe fama, o tornaria o palhaço do mundo. Haviam ridicularizado a ponte. O que fariam com relação a seu último sonho?
Mas obstáculos humanos nunca o haviam detido antes. Seu verdadeiro antagonista era a natureza - o inimigo amistoso que nunca ludibriava, e que sempre lutava lealmente, jamais deixando, porém, de tirar partido do menor descuido ou omissão. E todas as forças da natureza estavam agora sintetizadas para ele no distante cone azul que conhecia tão bem, mas que ainda tinha de sentir sob os pés.
Como Kalidasa tinha feito tantas vezes, naquele mesmo lugar, Morgan lançou um olhar sobre a fértil planície verde, medindo o desafio e planejando sua estratégia. Para Kalidasa, Sri Kanda representava tanto o poder do sacerdócio como o poder dos deuses, que conspirava contra ele. Agora, os deuses haviam desaparecido, mas os sacerdotes permaneciam. Representavam algo que Morgan não compreendia, e que portanto trataria com respeito.
Chegara o momento de descer. Não deveria atrasar-se de novo, sobretudo por um erro de cálculo. Ao levantar-se da laje em que estivera sentado, um pensamento que o vinha preocupando havia vários minutos finalmente aflorou à consciência. Era estranho ter-se colocado um banco tão decorado, com seus pés em forma de elefantes, de fatura tão delicada, na borda do precipício...
Morgan jamais tinha sido capaz de resistir a tal desafio intelectual. Debruçando-se sobre o abismo, ele mais uma vez tentou sintonizar sua mente de engenheiro com a do colega, morto dois mil anos antes.
Malgara
Nem mesmo seus companheiros mais chegados puderam interpretar a expressão no rosto do príncipe Malgara, quando ele, pela última vez, fitou o irmão que havia compartilhado sua infância. O campo de batalha estava silencioso, agora. Até os gritos dos feridos tinham sido silenciados com ervas medicinais ou um golpe mais potente de espada.
Depois de um longo instante, o príncipe voltou-se para o vulto de manto amarelo a seu lado.
- Tu o coroaste, venerável Bodhidharma. Podes prestar-lhe agora mais um serviço. Que ele receba honras de rei.
Por um momento, o prelado não respondeu. Depois, falou baixinho:
- Ele destruiu nossos templos e dispersou os sacerdotes. Se cultuava alguma divindade, era Siva.
Malgara mostrou os dentes, no sorriso feroz que o Mahanayake viria a conhecer muito bem nos anos que lhe restavam.
- Reverendíssimo - disse o príncipe, numa voz que destilava veneno -, ele foi o primogênito de Paravana, o Grande, sentou-se no trono da Taprobana, e o mal que causou morre com ele. Quando o corpo estiver cremado, cuida para que as relíquias estejam adequadamente sepultadas, antes de ousar repor os pés em Sri Kanda.
O Mahanayake Thero curvou-se, ligeiramente, como era de seu hábito.
- Tudo será feito... segundo vossos desejos.
- E mais uma coisa - disse Malgara, dirigindo-se agora aos ordenanças. - A fama das fontes de Kalidasa chegou a nós, mesmo no Hindustão. Queremos vê-las uma vez, antes de marcharmos para Ranapura...
Do coração dos Jardins das Delícias, que lhe haviam proporcionado tamanho prazer, subia para o céu sem nuvens o fumo da pira funerária de Kalidasa, que dispersou as aves de rapina, vindas de toda parte. Tomado de feroz satisfação, posto que às vezes empanada por súbitas recordações, Malgara via o símbolo de seu triunfo subir ao céu, anunciando a toda a Terra que o novo reinado havia começado.
Como que levando adiante a antiga rivalidade entre os irmãos, a água das fontes desafiava o fogo, saltando para o alto, antes de voltar a cair e despedaçar a superfície do tanque. Mas logo, muito antes que as chamas terminassem sua obra, os reservatórios começaram a cair, e os jatos desabaram numa ruína aquosa. Antes que voltassem a subir nos jardins de Kalidasa, a Roma imperial desaparecera, os exércitos do Islã cruzaram a África, Copérnico alijou a Terra do centro do universo, a Declaração de Independência foi assinada, e os homens tinham chegado à Lua...
Malgara esperou a pira desintegrar-se num jorro final de centelhas. Enquanto o último fio de fumaça se esvaía em direção à face gigantesca do Yakkagala, ele ergueu os olhos para o palácio, no topo da montanha, e fitou-o longamente, numa silenciosa avaliação.
- Nenhum homem pode desafiar os deuses - disse, finalmente. - Que a obra seja destruída.
Filamento
- O senhor quase me provocou um ataque cardíaco - disse Rajasinghe acusadoramente, enquanto servia o café da manhã. - A princípio julguei que dispusesse de algum instrumento antigravidade... mas até eu sei que isso é impossível. Como foi que o senhor fez aquilo?
- Desculpe-me - respondeu Morgan, sorrindo. - Se eu soubesse que o senhor estava me observando, eu o teria avisado... embora tudo aquilo tenha sido inteiramente inesperado. Eu tencionava apenas dar um passeio pelo Rochedo, mas depois fiquei intrigado com aquele banco de pedra. Imaginei por que estaria na beirada do precipício, e comecei a explorar.
- Não há mistério nenhum. Antigamente, havia um piso saliente, provavelmente de madeira, e um lance de escadas levava aos afrescos, descendo do topo. Ainda se podem ver marcas onde a escadaria estava presa na rocha.
- Foi o que descobri - disse Morgan, um tanto tristonho. - Eu devia ter adivinhado que alguém já teria descoberto isso.
"Há duzentos e cinqüenta anos", pensou Rajasinghe. "Aquele inglês enérgico e maluco, Arnold Lethbridge, o primeiro diretor de arqueologia da Taprobana. Ele próprio desceu pela parede do Rochedo, exatamente como o senhor fez. Bem, não exatamente..."
Morgan estava mostrando a caixa de metal que lhe havia permitido aquele milagre. Só se viam nela alguns botões e um pequeno mostrador. Não havia nada que indicasse não tratar-se de um simples aparelho de comunicação.
- É isso aqui - disse ele, com orgulho. - Como o senhor me viu fazer uma caminhada vertical de cem metros, deve estar bem a par de como funciona.
- O bom senso me deu uma resposta, mas nem meu excelente telescópio pôde confirmá-la. Poderia ter jurado que não havia nada sustentando o senhor.
- Não era essa a demonstração que pretendia fazer, mas deve ter sido eficiente. Agora, por favor, quero fazer minha demonstração normal... segure este anel com o dedo.
Rajasinghe hesitou. Morgan estava segurando o pequeno segmento toroidal - mais ou menos o dobro do tamanho de uma aliança comum -, quase como se fosse eletrificado.
- Não vou levar um choque?
- Um choque, não. Mas talvez uma surpresa. Tente puxá-lo de mim.
Um tanto receoso, Rajasinghe pegou o anel, e quase o largou. O anel parecia vivo. Estava puxando na direção de Morgan, ou, antes, da caixa que o engenheiro segurava. Depois, a caixa emitiu um leve som, e Rajasinghe sentiu o dedo ser puxado para frente por alguma força misteriosa. Magnetismo? Perguntou-se. Claro que não. Nenhum ímã funcionaria daquela forma. Sua teoria provisória, mas improvável, estava correta; na verdade, não havia outra explicação. Estavam empenhados num cabo-de-guerra dos mais comuns - mas com uma corda invisível.
Embora Rajasinghe se esforçasse, não conseguia ver nenhum sinal de fio entre o anel que ele prendia no dedo e a caixa que Morgan estava operando, como um pescador que enrolasse a carretilha. Estendeu a mão para explorar o espaço aparentemente vazio, mas o engenheiro a deteve rapidamente.
- Desculpe-me! - disse. - Todo mundo tenta fazer isso, quando percebe o que está acontecendo. O senhor se cortaria gravemente.
- Quer dizer que existe mesmo um fio invisível. Interessante... mas para que serve, além de mágicas de salão?
Morgan sorriu.
- Não posso culpá-lo por chegar a essa conclusão. É a reação comum. Mas trata-se de um engano. A razão pela qual não pode ver o fio é que ele tem uma espessura de apenas alguns mícrons. Muito mais fino do que uma teia de aranha.
Dessa vez, pensou Rajasinghe, vinha a calhar um adjetivo já desgastado pelo uso.
- Isso é... incrível. Mas o que é?
- O resultado de mais ou menos duzentos anos de evolução da física do estado sólido. Para fins práticos, isso basta... é um cristal de diamante pseudo-unidimensional contínuo... mas não se trata, na verdade, de carbono puro. Há vários elementos residuais, em quantidades cuidadosamente controladas. Só pode ser produzido em massa nas fábricas orbitais, onde não há gravidade que interfira com o processo de desdobramento.
- Fascinante - murmurou Rajasinghe, quase para si. Deu alguns puxões no anel enganchado no dedo, a fim de verificar se a tensão persistia e se não estava sofrendo alucinações. - Percebo que isso pode ter muitíssimas aplicações técnicas. Seria um excelente cortador de queijo.
Morgan riu.
- Um homem pode abater uma árvore com isso, em poucos minutos. Mas seu uso é traiçoeiro... até perigoso. Tivemos de desenhar dispensadores especiais para enrolá-lo e desenrolá-lo... nós os chamamos de "fiandeiras". Esta aqui é mecânica, feita para fins de demonstração. O motor pode erguer cerca de duzentos quilos, e sempre encontro novas utilidades para ele. O que fiz hoje de manhã, por exemplo, foi uma delas.
Quase relutantemente, Rajasinghe largou o anel. Ele começou a cair, mas pôs-se a oscilar como um pêndulo, de um lado para outro, sem nenhum meio visível de sustentação, até Morgan apertar um botão e a fiandeira o recolher com um zumbido.
- O senhor não viajou tanto, dr. Morgan, apenas para me impressionar com a última maravilha da ciência... ainda que eu esteja realmente impressionado. Gostaria de saber o que isso tem a ver comigo.
- Muita coisa, senhor embaixador - respondeu o engenheiro, pondo-se de repente igualmente sério e formal. - O senhor tem toda a razão ao prever que esse material terá muitas aplicações, algumas das quais só agora começamos a prever. E uma delas, para o bem ou para o mal, transformará sua plácida ilha no centro do mundo. Não... não somente do mundo, mas de todo o sistema solar. Graças a este filamento, a Taprobana será o trampolim para todos os planetas. E um dia, talvez... para as estrelas.
A Ponte Suprema
Paul e Maxine eram dois de seus melhores e mais antigos amigos, mas até esse momento nunca se haviam encontrado; ao que Rajasinghe sabia, jamais tinham trocado qualquer comunicação. Havia pouca razão para contatos entre eles. Ninguém, fora da Taprobana, já ouvira falar do professor Sarath, mas todo o sistema solar reconheceria imediatamente o rosto ou a voz de Maxine Duval.
Seus dois convidados estavam reclinados nas poltronas da biblioteca, enquanto Rajasinghe permanecia junto do painel principal da casa. Todos os três olhavam para a quarta figura, em pé e imóvel.
Imóvel demais. Um visitante do passado, que desconhecesse os milagres eletrônicos cotidianos daquela era, poderia concluir, após alguns segundos, que estava contemplando um boneco de cera esculpido com perfeição. No entanto, um exame mais atento revelaria dois fatos desconcertantes. O "boneco" era suficientemente transparente para que luzes fortes fossem claramente visíveis através dele; e seus pés se desfocavam alguns centímetros acima do tapete.
- Reconhece esse homem? - perguntou Rajasinghe.
- Nunca o vi na vida - respondeu Sarath imediatamente. - É bom que seja importante, já que me fez voltar de Maharamba. Estávamos prestes a abrir a Câmara das Relíquias.
- E eu tive de abandonar meu trimarã no começo das regatas no lago Saladino - disse Maxine Duval, com sua famosa voz de contralto, que encerrava a dose exata de enfado para pôr qualquer pessoa mais suscetível que o professor Sarath em seu lugar. - E eu o conheço, é claro. Por acaso quer construir uma ponte da Taprobana ao Hindustão?
Rajasinghe riu.
- Não... faz dois séculos que temos uma estrada perfeitamente satisfatória. E sinto muito ter arrastado vocês dois até aqui... muito embora você, Maxine, prometa vir faz vinte anos.
- É verdade - suspirou ela. - Mas tenho de passar tanto tempo no estúdio que às vezes me esqueço de que existe um mundo real lá fora, ocupado por cerca de cinco mil amigos e cinqüenta milhões de conhecidos íntimos.
- Em qual categoria você colocaria o dr. Morgan?
- Eu já estive com ele... umas três ou quatro vezes. Tivemos uma entrevista especial quando a ponte terminou. É uma pessoa muito interessante.
Partindo de Maxine Duval, pensou Rajasinghe, isso era uma verdadeira consagração. Fazia mais de trinta anos que ela era, talvez, o membro mais respeitado de sua exaustiva profissão, que lhe concedera todas as honrarias possíveis. O Prêmio Pulitzer, o Troféu Global Times, a medalha David Frost - e tudo isso era apenas a ponta do iceberg. Só recentemente voltara ao trabalho ativo, depois de passar dois anos como mestre de jornalismo eletrônico na Universidade de Colúmbia.
Tudo isso a acalmara um pouco, embora não lhe tivesse tirado a energia. Maxine Duval não era mais a chauvinista, às vezes feroz, que certa vez observara: "Já que as mulheres conseguem produzir bebês, é de se presumir que a natureza tenha dado aos homens algum talento como compensação. Mas, no momento, não imagino qual seja".
- Desculpe-me pela regata - disse Rajasinghe -, mas notei que o Marlin III ganhou com folga sem você. Acho que admitirá que isso é mais importante... Mas vamos deixar que Morgan fale por si mesmo.
Soltou o botão PAUSA no projetor, e a estátua congelada imediatamente ganhou vida.
- Meu nome é Vannevar Morgan. Sou engenheiro-chefe da Divisão Terrestre da Construção Terráquea. Meu último projeto foi a Ponte de Gibraltar. Agora desejo falar sobre uma coisa incomparavelmente mais ambiciosa.
Rajasinghe olhou em torno da sala. Morgan os havia fascinado, tal como ele esperara.
Recostou-se na poltrona e ficou à espera de que fosse apresentado o plano, já familiar, mas ainda quase inacreditável. Era esquisito, pensou, que se aceitassem prontamente as convenções da projeção, desprezando-se enormes falhas dos controles Vertical e Nível. Nem mesmo o fato de Morgan "mover-se", enquanto permanecia no mesmo lugar, bem como as perspectivas totalmente falsas das cenas exteriores, destruía a sensação de realidade.
- A era espacial já tem quase duzentos anos. Há mais de metade desse tempo, nossa civilização depende inteiramente da legião de satélites que atualmente orbita em torno da Terra. Comunicações globais, previsão e controle do clima, bancos de recursos terrestres e oceânicos, serviços postais e de informações... se alguma coisa acontecesse a seus sistemas espaciais, voltaríamos a uma idade de trevas. No caos resultante, a doença e a fome destruiriam grande parte da raça humana.
"E, olhando para além da Terra, agora que possuímos colônias autônomas em Marte, em Mercúrio e na Lua, e que exploramos as incalculáveis riquezas minerais dos asteróides, vislumbramos o começo do verdadeiro comércio interplanetário. Ainda que isso tenha exigido um pouco mais de tempo do que previam os otimistas, tornou-se óbvio que a conquista do ar foi, realmente, apenas um modesto prelúdio à conquista do espaço.”
"Agora, entretanto, estamos diante de um problema fundamental, um obstáculo que poderá impedir todo o progresso futuro. Embora gerações de pesquisadores tenham transformado o foguete na forma de propulsão mais segura que já se inventou..."
- Será que ele pensou na bicicleta? - murmurou Sarath.
- ...os veículos espaciais ainda são grosseiramente ineficientes. Pior ainda, o efeito que causam sobre o meio ambiente é assustador. Apesar de todas as tentativas no sentido de controlar os corredores de aproximação, o ruído da decolagem e da reentrada perturba milhões de pessoas. Os resíduos de escapamento lançados na estratosfera já precipitaram mudanças climáticas que podem ter as mais sérias conseqüências. Todos se lembram da crise do câncer de pele, na década de 20, causada pela invasão de radiação ultravioleta... e dos custos astronômicos dos produtos químicos necessários para restaurar a ozonosfera.
"No entanto, se estimarmos o crescimento do tráfego até o fim do século, verificaremos que a tonelagem transportada da Terra à órbita terá de aumentar em quase cinqüenta por cento. Isso não pode ser realizado sem um custo insuportável para nosso modo de vida... e talvez para nossa própria existência. E não há nada que os engenheiros possam fazer. Já quase atingiram os limites absolutos de desempenho estabelecidos pelas leis da física.”
"Qual é a alternativa? Há séculos, os homens vêm sonhando com a antigravidade ou com métodos análogos. Ninguém jamais descobriu o menor sinal de que sejam possíveis. Hoje em dia, acreditamos que não passem de fantasia. No entanto, na própria década em que se lançou o primeiro satélite, um imaginoso engenheiro russo concebeu um sistema que tornaria o foguete obsoleto. Passaram-se anos antes que alguém levasse a sério as idéias de Iúri Artsutanov. Foram necessários dois séculos para que nossos engenheiros chegassem às mesmas conclusões que ele."
A cada vez que passava a gravação, Rajasinghe tinha a impressão de que Morgan realmente se animava nesse ponto. Era fácil ver por quê. Agora ele estava em seu território, e não apenas transmitindo informações obtidas num campo alheio de conhecimentos. E, apesar de reservas e temores, Rajasinghe não deixava de partilhar um pouco do seu entusiasmo. Aquela era uma sensação que, hoje em dia, raramente perturbava sua vida pacata.
- Saiam de casa, em qualquer noite clara - continuava Morgan -, e verão aquela maravilha cotidiana do nosso tempo: os astros que nunca nascem ou se põem, mas que permanecem fixos no céu. Nós... e nossos pais e os pais deles... estamos há muito habituados com satélites síncronos e estações espaciais que se movem ao longo do equador na mesma velocidade de rotação da Terra, de modo que permanecem fixos no mesmo lugar.
"A pergunta que Artsutanov fez para si tinha o brilho infantil da verdadeira genialidade. Um homem simplesmente inteligente nunca poderia ter pensado nela... ou a poria de lado imediatamente, como uma questão absurda.”
"Se as leis da mecânica celeste possibilitam a um objeto permanecer fixo no céu, não seria possível baixar um cabo até a superfície... de modo a criar um sistema de elevadores ligando a Terra ao espaço?”
"Não havia nada de errado na teoria, mas os problemas práticos eram fantásticos. Os cálculos mostravam que nenhum dos materiais existentes seria suficientemente forte. O aço mais resistente se romperia sob seu próprio peso muito antes de conseguir cobrir os trinta e seis mil quilômetros que medeiam a Terra e a órbita sincrônica.”
"Contudo, os melhores aços não se encontravam sequer perto dos limites teóricos de resistência. Em escala microscópica, tinham sido criados, em laboratório, materiais com resistência à ruptura muito maior. Se pudessem ser produzidos em massa, o sonho de Artsutanov poderia tornar-se realidade, e os custos do transporte espacial se transformariam inteiramente.”
"Antes do fim do século XX, materiais super-resistentes, chamados hiperfilamentos, tinham começado a sair dos limites dos laboratórios. No entanto, eram tremendamente caros, e custavam muitas vezes seu peso em ouro. Milhões de toneladas seriam necessários para construir um sistema capaz de transportar todo o tráfego oriundo da Terra. E, por isso, o sonho continuou a ser um sonho.”
"Isso até alguns meses atrás. Hoje, as fábricas no espaço podem produzir quantidades praticamente ilimitadas de hiperfilamento. Enfim, podemos construir o Elevador Espacial... a Torre Orbital, como prefiro chamá-la. Porque, num certo sentido, é uma torre que se elevará através da atmosfera, prosseguindo, além, muito além..."
Morgan desapareceu, como um fantasma que tivesse sido subitamente exorcizado. Foi substituído por uma Terra do tamanho de uma bola de futebol, que girava lentamente. A uma distância de um braço dela, girando sempre sobre o mesmo ponto acima do equador, uma estrela brilhante marcava a localização de um satélite síncrono.
Começaram a sair da estrela dois pincéis de luz... um em direção à Terra, o outro na direção oposta, para o espaço.
- Quando construímos uma ponte - continuou a voz desencarnada de Morgan -, começamos das duas extremidades, e os dois lados se encontram no meio. Com a torre orbital, sucede o contrário. Tem-se de construir para cima e para baixo simultaneamente, a partir do satélite síncrono, obedecendo a um programa cuidadoso. O truque consiste em manter o centro de gravidade da estrutura sempre equilibrado no ponto estacionário. Se não fizermos isso, a estrutura passará para uma outra órbita, e começará a baixar lentamente em direção à Terra.
A linha de luz que descia atingiu o equador. No mesmo momento, cessou também o progresso da linha que caminhava para o espaço.
- A altura total terá de ser pelo menos de quarenta mil quilômetros, e os últimos cem, atravessando a atmosfera, poderão constituir a parte mais crítica, pois aí a torre estará sujeita a furacões. Não ficará estável antes de ser ancorada seguramente ao solo.
"E então, pela primeira vez na história, teremos uma escadaria para o céu... uma ponte até as estrelas. Um simples sistema de elevador, impulsionado por eletricidade, uma fonte barata de energia, substituirá os barulhentos e dispendiosos foguetes, que passarão a ser usados somente para sua função correta, a de transporte para o espaço distante. Aqui está um possível desenho da torre orbital..."
A imagem da Terra girando desapareceu, enquanto a câmara se precipitava em direção à torre, atravessando as paredes para revelar a seção transversal da estrutura.
- Os senhores podem ver que ela consiste em quatro tubos idênticos... dois para o tráfego de subida, e dois para o de descida. Podemos pensar nela como uma ferrovia ou um metrô vertical, da Terra para uma órbita sincrônica.
"Cápsulas para passageiros, cargas e combustível subiriam e desceriam pelos tubos a uma velocidade de vários milhares de quilômetros por hora. Estações de energia de fusão, a intervalos, proporcionariam toda a energia necessária. Uma vez que cerca de noventa por cento dessa energia seria recuperada, o custo por passageiro seria de apenas alguns dólares. Pois, quando as cápsulas caírem em direção à Terra novamente, seus motores atuarão como freios magnéticos, gerando eletricidade. Ao contrário das naves convencionais, não desperdiçarão toda a energia aquecendo a atmosfera e provocando estrondos supersônicos; essa energia será bombeada novamente para o sistema. Podemos dizer que os trens de descida serão os propulsores dos trens de subida. De modo que, mesmo fazendo-se a estimativa mais pessimista possível, o elevador será cem vezes mais eficiente do que qualquer foguete.
"E não há praticamente qualquer limite para o tráfego que poderá movimentar, pois tubos adicionais poderiam ser acrescentados conforme as necessidades. Se algum dia um total de um milhão de pessoas por dia desejar visitar a Terra (ou sair dela), a torre orbital poderá movimentar esse tráfego. Afinal, os metrôs de nossas grandes cidades, em certa época, faziam a mesma coisa..."
Rajasinghe apertou um botão, interrompendo Morgan no meio de uma frase.
- O resto é bastante técnico... ele explica que a torre poderá atuar como um estilingue cósmico, enviando cargas para a Lua e os planetas sem o uso de qualquer foguete. Mas creio que já viram o suficiente para formar uma idéia geral.
- Estou estupefato, como era de se esperar - disse o professor Sarath. — Mas, afinal, o que isso tem a ver comigo? Ou com você, aliás?
- Tudo a seu devido tempo, Paul. Algum comentário, Maxine?
- Talvez eu tenha mesmo de perdoá-lo. Esta poderá ser uma das grandes reportagens da década... ou do século. Mas por que a pressa... e, sobretudo, o segredo?
- Está acontecendo muita coisa que não compreendo, e é nesse ponto que você pode me ajudar. Desconfio que Morgan esteja travando uma batalha em muitas frentes. Ele está planejando um anúncio público no futuro próximo, mas não quer tomar nenhuma iniciativa até ter certeza do terreno em que está pisando. Ele me fez essa exposição sob a condição de que não seria passada para o público. É por isso que lhe pedi que viesse até aqui.
- Ele sabe desse nosso encontro?
- Claro. Na verdade, ficou muito satisfeito ao saber que eu pretendia conversar com você, Maxine. Evidentemente, confia em você, e gostaria de tê-la como aliada. E quanto a você, Paul, garanti a ele que seria capaz de manter um segredo durante seis dias sem ter uma apoplexia.
- Somente se houver uma excelente razão para isso.
- Começo a entender - disse Maxine Duval. - Muitas coisas estavam me intrigando, mas agora começam a fazer sentido. Em primeiro lugar, isso é um projeto espacial. Morgan é engenheiro-chefe da parte terrestre.
- E daí?
- Ora, Johan! Pense nas lutas burocráticas, quando os projetistas de foguetes e a indústria aeroespacial souberem disso! Impérios de trilhões de dólares estarão ameaçados de falência total, só para começar. Se ele não tiver muito cuidado, dirão a Morgan: "Obrigado por tudo... mas, agora, quem comanda o espetáculo somos nós. Prazer em conhecê-lo".
- Compreendo o que você quer dizer, mas ele tem excelentes argumentos. Afinal, a Torre Orbital é um edifício, e não um veículo.
- Quando os advogados se meterem, deixará de ser. Não existem muitos edifícios cujos pavimentos se movam a dez quilômetros por segundo, ou seja lá quantos forem, mais depressa do que o porão.
- Talvez você tenha razão. Aliás, quando demonstrei sinais de vertigem ante a idéia de uma torre percorrendo boa parte da distância da Terra à Lua, o dr. Morgan disse: "Então, não pense nela como uma torre que sobe... pense nela como uma ponte que sai". Ainda estou tentando, sem muito sucesso.
- Ah! - exclamou Maxine Duval de repente. - Essa é outra peça do quebra-cabeça. A ponte!
- O que você quer dizer?
- Sabia que o presidente da Construção Terráquea, aquele besta do senador Collins, queria que a ponte de Gibraltar tivesse o nome dele?
- Não... e isso explica muitas coisas. Mas acho que gosto de Collins. Das poucas vezes em que nos encontramos, eu o achei muito simpático e inteligentíssimo. Ele não foi um excelente engenheiro geotérmico na mocidade?
- Isso foi há milhares de anos. E você não representa nenhum perigo para a reputação dele. Ele pode ser simpático com você.
- Como foi que a ponte se salvou desse destino?
- Houve uma pequena revolução palaciana entre a cúpula dos engenheiros da empresa. O dr. Morgan, é claro, não estava envolvido nela.
- Então, é por isso que ele está escondendo tanto as cartas! Começo a admirá-lo cada vez mais. Mas acontece que ele agora deu com um obstáculo que não sabe enfrentar. Só o descobriu há alguns dias, e isso interrompeu o avanço que vinha fazendo.
- Vamos ver se eu adivinho - disse Maxine. - É um bom hábito... ajuda a me manter à frente da turba. Percebo por que está aqui. A extremidade terrestre do sistema tem de ficar sobre o equador, pois de outra maneira a torre não seria vertical. Seria como aquela torre que havia em Pisa, e que acabou caindo.
- Não sei por quê... - disse o professor Sarath, agitando os braços vagamente para o alto e para baixo. - Ah, sim, é claro... - Calou-se meditativamente.
- Ora, existe um número limitado de locais possíveis no equador... é quase tudo oceano, não é mesmo? - prosseguiu Maxine. - E a Taprobana é evidentemente um deles, embora eu não veja que vantagens especiais pode ter em relação à África ou à América do Sul. Ou Morgan está cobrindo todas as possibilidades?
- Como sempre, minha cara Maxine, seus poderes de dedução são fenomenais. Você vai no caminho certo... mas não conseguirá ir mais adiante. Ainda que Morgan tenha feito todo o possível para me explicar o problema, não pretendo compreender todos os detalhes científicos. De qualquer forma, a África e a América do Sul não são adequados para o Elevador Orbital. O motivo está relacionado com pontos instáveis no campo gravitacional da Terra. Só a Taprobana serve... pior ainda, apenas um local na Taprobana. E é aqui, Paul, que você entra na questão.
- Mamada? - exclamou o professor Sarath, recorrendo indignadamente à língua taprobani, em sua surpresa.
- Você mesmo. Para grande irritação sua, o dr. Morgan acabou de descobrir que o único local que ele teria de usar já está ocupado... para usarmos um eufemismo. Ele quer meu conselho sobre a melhor maneira de desalojar seu bom amigo Buddy.
Dessa vez, foi Maxine quem se mostrou perplexa.
- Quem? - perguntou.
Sarath respondeu incontinenti:
- O veneravel Anandatissa Bodhidharma Mahanayake Thero, ocupante do templo Sri Kanda. - Pronunciou o nome quase como se fosse uma litania. - Então é isso!...
Houve um momento de silêncio. Depois, uma expressão de puro prazer perverso iluminou o rosto de Paul Sarath, professor emérito de arqueologia da Universidade da Taprobana.
- Eu sempre quis saber - disse ele, deliciado - o que acontece exatamente quando uma força irresistível encontra um objeto inamovível.
A princesa silenciosa
Depois que as visitas saíram, Rajasinghe, muito pensativo, despolarizou as janelas da biblioteca e ficou durante muito tempo olhando as árvores ao redor da mansão e as paredes rochosas do Yakkagala, descomunais mesmo àquela distância. Não se havia mexido na poltrona até o soar das quatro da tarde. A chegada de seu chá vespertino o arrancou dos devaneios.
- Rani - disse -, peça a Dravindra que traga meus sapatos pesados, se conseguir encontrá-los. Vou subir o Rochedo.
Rani fingiu que deixava cair a bandeja de espanto.
- Aiyo, Mahathaya! - lamentou ela, simulando tristeza. - O senhor deve estar louco! Lembra-se do que o dr. McPherson lhe disse... ?
- Aquele escocês sempre lê meu eletrocardiograma de trás para a frente. De qualquer forma, minha cara, de que me adiantará viver, quando você e Dravindra me deixarem?
Embora tencionasse pilheriar, havia um quê de verdade em suas palavras, e Rajasinghe envergonhou-se imediatamente de sua autocompaixão. Rani o percebera, e as lágrimas marejaram seus olhos.
A moça virou-se, para que ele não pudesse ver sua emoção, e disse em inglês:
- Eu me ofereci para ficar... pelo menos, no primeiro ano de Dravindra...
- Eu sei que você se ofereceu, e eu não aceitaria isso nem por sonho. A menos que Berkeley tenha mudado desde a última vez em que estive lá, Dravindra vai precisar de você. - Mas não mais do que eu, embora de maneira diferente, acrescentou ele silenciosamente, para si próprio. - E, mesmo que você também não cole grau, nunca é cedo demais para começar a treinar para ser esposa do presidente da faculdade.
Rani sorriu.
- Não tenho certeza de apreciar esse destino, pelos exemplos tenebrosos que conheci. - Voltou a falar em taprobani. - O senhor não está realmente falando sério, está?
- Nunca falei mais sério. Não vou até o topo, é claro. Só até os afrescos. Faz cinco anos que não os vejo. Se deixar passar muito mais tempo... - Não havia necessidade de completar a frase.
Rani estudou-o em silêncio por alguns instantes, e depois concluiu que seria inútil argumentar.
- Vou dizer a Dravindra - disse. - E a Jaya também... Para o caso de eles terem de carregá-lo de volta.
- Muito bem... mas estou certo de que Dravindra seria capaz de resolver tudo sozinho.
Rani dirigiu-lhe um sorriso feliz, onde se misturava orgulho e prazer. Aquele casal, pensou Rajasinghe com afeição, tinha sido sua sorte grande, e esperava que os dois anos em que haviam prestado um serviço social lhes tivessem sido tão agradáveis como tinham sido para ele. Naquela era, criados pessoais eram os mais raros dos luxos, só acessíveis a homens de mérito extraordinário. Rajasinghe não conhecia outras pessoas, na vida privada, que os tivessem.
Para conservar sua energia, atravessou os Jardins das Delícias num triciclo solar. Dravindra e Jaya preferiram caminhar, alegando que assim andariam mais depressa. (Tinham razão, mas podiam seguir por atalhos.) Rajasinghe subiu muito lentamente, parando várias vezes para respirar, até chegar ao longo corredor da galeria inferior, onde a Muralha do Espelho seguia paralela à face do Rochedo.
Observada pelos costumeiros turistas curiosos, uma jovem arqueóloga de um país africano estava buscando inscrições nas paredes, com a ajuda de um poderoso refletor oblíquo. Rajasinghe teve vontade de adverti-la de que sua possibilidade de fazer uma nova descoberta era praticamente nula. Paul Sarath tinha passado vinte anos esquadrinhando cada milímetro quadrado da superfície, e as Inscrições de Yakkagala, em três volumes, eram uma obra monumental de erudição que jamais seria suplantada, pelo menos porque nunca apareceria outra pessoa com a mesma capacidade de ler inscrições em taprobani arcaico.
Ambos eram jovens quando Paul começou o trabalho que ocuparia toda a sua vida. Rajasinghe lembrava-se de ter estado naquele mesmo lugar, enquanto o então vice-assistente de epigrafia do Departamento de Arqueologia copiava as marcas quase indecifráveis gravadas no gesso amarelo, e traduzia os poemas endereçados às beldades pintadas na rocha. Depois de tantos séculos, os versos ainda despertavam ecos no coração humano:
"Eu sou Tissa, capitão da guarda. Caminhei cinqüenta léguas para ver as que têm olhos de corça, mas elas não me falam. Será isso gentil? Que permaneçais aqui por mil anos, como a lebre que o rei dos deuses pintou na Lua. Sou o sacerdote Mahindra da vihara de Tuparama."
Aquela esperança tinha sido em parte cumprida, em parte negada. As damas da rocha já estavam ali duas vezes o tempo imaginado pelo clérigo, e haviam alcançado uma era que ele jamais teria imaginado em sonhos desvairados. Mas quão poucas restavam! Algumas das inscrições referiam-se a "quinhentas donzelas de pele dourada". Mesmo admi-tindo-se uma apreciável licença poética, era evidente que nem um décimo dos afrescos originais havia escapado à fúria do tempo ou da malevolência do homem. Mas as vinte que sobravam estavam agora protegidas para sempre, com sua beleza armazenada em inúmeros filmes, fitas e cristais.
Certamente, haviam sobrevivido a um orgulhoso escriba, que julgara inteiramente desnecessário inscrever seu nome:
"Ordenei que a estrada fosse limpa, para que peregrinos vissem as lindas donzelas na encosta. Eu sou o rei".
Rajasinghe - ele próprio portador de um nome real, e sem dúvida hospedeiro de muitos genes reais - havia, no decurso daqueles anos, pensado freqüentemente nessas palavras. Elas demonstravam à perfeição a natureza efêmera do poder e a inutilidade da ambição. "Eu sou o rei." Ah, mas qual rei? O monarca que reinara entre aquelas lajes de granito - novas então, há oitocentos anos - era provavelmente um homem capaz e inteligente. Mas não conseguiu conceber a idéia de que chegaria um tempo em que estaria dissolvido num anonimato tão grande quanto o de seus mais humildes súditos.
Descobrir a autoria daquelas linhas era agora impossível. Pelo menos uma dezena de soberanos poderia ter inscrito aqueles versos altivos. Alguns haviam reinado durante anos, outros, apenas durante semanas, e na verdade poucos tinham morrido pacificamente em seus leitos. Ninguém jamais saberia se o rei que julgara desnecessário dizer seu nome era Mahatissa II, ou Bhatikabhaya, ou Vijayakumara III. Ou Gajabahukagamani, ou Candamukhasiva. Ou ainda Moggallana I, ou Kittisena, ou Sirisamghabodhi... ou mesmo outro monarca, nem sequer mencionado na longa e emaranhada história da Taprobana.
O servente que operava o pequeno elevador ficou atônito ao se ver diante de tão eminente visitante, e saudou Rajasinghe com reverência. Enquanto a gaiola subia lentamente os quinze metros, Rajasinghe se lembrou de quando a trocava pela escadaria em espiral, pela qual Dravindra e Jaya subiam agora às carreiras, na exuberância descuidada da juventude.
O elevador deteve-se com um estalo, e Rajasinghe saiu para a pequena plataforma de aço que se projetava da face do penhasco. Abaixo e atrás dele, estendiam-se cem metros de espaço vazio, mas a forte rede de aço proporcionava ampla segurança. Nem mesmo o mais determinado suicida conseguiria escapar da gaiola - suficiente para doze pessoas -, passando para o lado inferior da onda de pedra, que arrebentava eternamente.
Ali, naquele recorte, acidental, onde a rocha formava uma caverna rasa, protegendo-a assim dos elementos, viam-se as sobreviventes da corte celestial do rei. Rajasinghe saudou-as silenciosamente, e depois afundou-se com gratidão na cadeira que lhe era oferecida pelo guia oficial.
- Eu gostaria de ficar a sós por dez minutos - disse ele. - Jaya... Dravindra... vejam se conseguem afastar os turistas.
Seus companheiros o olharam com uma expressão de dúvida. O mesmo fez o guia, que tinha recomendações para nunca deixar os afrescos sem vigilância. Mas, como sempre, o embaixador Rajasinghe obteve o que queria, sem sequer precisar levantar a voz.
- Ayu bowan - saudou ele as figuras silenciosas, quando finalmente ficou sozinho. - Sinto muito tê-las abandonado por tanto tempo.
Esperou polidamente uma resposta, mas elas não lhe prestaram mais atenção do que a todos os seus outros admiradores, nos últimos vinte séculos. Rajasinghe não perdeu o ânimo. Estava habituado àquela indiferença. Na verdade, ela aumentava o encanto das damas.
- Estou com um problema, queridas - continuou. - Vocês viram chegar e partir todos os invasores da Taprobana, desde o tempo de Kalidasa. Viram a selva correr como uma maré em torno do Yakkagala, e depois ceder ante o machado e o arado. Mas nada realmente mudou em todos esses anos. A natureza foi amável para com a pequena Taprobana, como também a história, que a deixou em paz...
"Agora, os séculos de calma podem estar chegando ao fim. Nossa terra poderá tornar-se o centro do mundo... de muitos mundos. A grande montanha que vocês vêm contemplando há tanto tempo, lá no sul, poderá ser a chave para o universo. Se for assim, a Taprobana que conhecemos e que amamos deixará de existir.
"É possível que eu não possa fazer muita coisa... mas ainda disponho de algum poder, para ajudar ou atrapalhar. Ainda tenho muitos amigos. Se eu quiser, posso retardar esse sonho... ou pesadelo... pelo menos, para depois de minha morte. Devo fazer isso? Ou devo ajudar esse homem, quaisquer que sejam suas motivações reais?"
Rajasinghe voltou-se para sua favorita, a única que não desvia- a os olhos quando ele a fitava. Todas as outras donzelas olhavam para longe, ou examinavam as flores em suas mãos. Mas aquela que amava desde a juventude parecia, de um certo ângulo, perceber seu olhar.
- Ah, Karuna! Não é justo fazer-lhe essas perguntas. O que você poderia saber sobre os mundos reais, além do céu, ou sobre a necessidade humana de atingi-los? Mesmo que você tenha sido uma deusa, o céu de Kalidasa não passava de ilusão. Bem, quaisquer que sejam os futuros estranhos que você vê, eu não os partilharei. Já nos conhecemos há muito tempo... pelos meus padrões, se não pelos seus. Enquanto puder, eu a contemplarei de casa. Mas não creio que voltemos a nos encontrar. Adeus... e obrigado, belas, por todo o prazer que me proporcionaram durante tantos anos. Dêem minhas saudações aos que vierem depois de mim.
No entanto, ao descer pelas escadas, desprezando o elevador, Rajasinghe não se sentia como quem se despede. Pelo contrário, parecia-lhe ter remoçado muitos anos (e, afinal, setenta e dois anos não eram tanta coisa). Podia jurar que Jaya e Dravindra haviam percebido que caminhava com mais vigor, pela maneira como seus rostos se iluminaram.
Talvez sua aposentadoria se estivesse tornando um pouco tediosa. Talvez ele e a Taprobana precisassem de um pouco de ar fresco para afastar as teias de aranha... da mesma forma como as monções traziam nova vida, depois dos meses de céus pesados e plúmbeos.
Não importava que Morgan tivesse êxito ou não. Aquela era uma empresa que incendiava a imaginação e despertava a alma. Kalidasa teria sentido inveja... e a teria aprovado.
"Enquanto as diversas religiões se engalfinham para saber qual delas é a depositária da verdade, em nossa opinião a verdade da religião pode ser inteiramente menosprezada... Se tentarmos atribuir à religião seu lugar na evolução do homem, ela parece ser menos uma aquisição duradoura do que um paralelo à neurose pela qual o indivíduo civilizado tem de passar, no caminho da infância à maturidade."
Freud, Novas conferências de introdução à psicanálise (1932).
"É claro que Deus fez o homem à sua própria imagem. Mas qual era a alternativa? Da mesma for-* ma que uma compreensão real da geologia era impossível até podermos estudar outros mundos, além da Terra, também uma teoria válida tem de esperar pelo contato com inteligências extraterrestres. Não pode existir uma disciplina chamada religião comparada, enquanto estudarmos apenas as religiões do homem."
El Hadj Mohammed ben Selem, professor de religião comparada, Discurso de posse, Universidade Brigham Young, 1998.
"Temos de esperar, não sem ansiedade, pelas respostas às seguintes perguntas: (a) Quais, se é que eles existem, são os conceitos religiosos de entidades com zero, um, dois ou mais de dois 'pais'? (b) a fé religiosa só é encontrada em organismos que se acham em contato estreito com seus progenitores diretos, durante os anos de formação?
Se verificarmos que a religião ocorre exclusivamente entre os equivalentes inteligentes a macacos, golfinhos, elefantes, cães, etc, mas não entre os computadores extraterrestres, os térmitas, os peixes, as tartarugas e as amebas sociais, talvez tenhamos de tirar algumas conclusões dolorosas. É possível que o amor e a religião só possam surgir entre os mamíferos, e em grande parte pelas mesmas razões. Isso é sugerido também por um estudo de suas patologias. Quem duvidar da relação entre o fanatismo religioso e a perversão deve examinar longa e atentamente o Malleus maleficarum ou Os demônios de Loudun, de Huxley.
(Ibid.)
"A conhecida observação do dr. Charles Willis (Havaí, 1970), de que 'A religião é subproduto da desnutrição', não ê, em si mesma, muito mais útil do que a refutação monossilábica, um tanto indelica-da, de Gregory Bateson. Aparentemente, o dr. Willis queria dizer que: 1) as alucinações causadas pela fome voluntária ou involuntária são facilmente interpretadas como visões religiosas; 2) a fome nesta vida estimula a crença numa vida além-túmulo compensatória, como um mecanismo psicológico, talvez essencial, de sobrevivência...
...Na verdade, é uma das ironias do destino o fato de que a pesquisa das chamadas drogas de expansão da consciência tenha provado que elas faziam justamente o oposto, ao levar à detecção das substâncias químicas 'apotéticas', de ocorrência natural no cérebro. A descoberta de que o adepto mais devoto de qualquer fé podia ser convertido a qualquer outra por urna dose criteriosa de 2-4-7 orto-para-teosamina talvez tenha sido o golpe mais devastador jamais sofrido pela religião.
Até, ê claro, o advento de Sideronauta..."
R. Gabor, A base farmacológica da religião, Editora da Universidade Miskatonic, 2069.
Sideronauta
Algo daquele gênero vinha sendo aguardado havia cem anos, e muitos tinham sido os falsos alarmes. No entanto, quando finalmente aconteceu, a humanidade foi apanhada de surpresa.
O sinal de rádio, vindo da direção de Alfa do Centauro, era tão poderoso que, de início, foi detectado pela interferência causada nos circuitos comerciais normais. Isso foi profundamente embaraçoso para os radioastrônomos, que durante muitas décadas vinham procurando mensagens inteligentes do espaço... e principalmente porque havia muito tinham deixado de considerar seriamente o sistema triplo de Alfa, Beta e Próxima do Centauro.
Imediatamente, todos os radio telescópios que atingiam o hemisfério sul foram focalizados na constelação do Centauro. Daí a horas, fez-se uma descoberta ainda mais sensacional. O sinal não vinha absolutamente do sistema do Centauro... mas de um ponto afastado meio grau. E movia-se.
Esse foi o primeiro vislumbre da verdade. Quando aquilo se confirmou, todas as atividades normais da humanidade se interromperam.
A força do sinal já não causava surpresa. Sua fonte já se encontrava no interior do sistema solar, e movia-se na direção do Sol a uma velocidade de seiscentos quilômetros por segundo. Os visitantes do espaço, tanto tempo esperados, tanto tempo temidos, tinham finalmente chegado...
No entanto, durante trinta dias, o intruso nada fez, enquanto passava pelos planetas externos, emitindo uma serie invariável de pulsações que simplesmente anunciavam: "Aqui estou!" Não fez tentativas para responder aos sinais disparados em sua direção, nem fez ajustes em sua órbita natural, semelhante à de um cometa. A menos que houvesse desacelerado, caindo para uma velocidade bem inferior, sua viagem desde Alfa do Centauro devia ter durado milhares de anos. Havia quem achasse isso animador, pois sugeria tratar-se de uma sonda espacial automática. Outros mostravam-se desapontados, achando que a ausência de extraterrestres reais, vivos, seria uma decepção.
O espectro de possibilidades foi discutido, ad nauseam, em todos os meios de comunicação, em todos os Parlamentos do homem. Todos os enredos que haviam sido usados na ficção científica em todos os tempos, desde a chegada de deuses benevolentes até uma invasão de vampiros sugadores de sangue, foram desenterrados e solenemente analisados. A Lloyds, de Londres, recebeu prêmios de seguros substanciais de pessoas que se seguravam contra todos os futuros imagináveis... inclusive algumas cujas probabilidades de receber um vintém que fosse seriam ínfimas.
Depois, quando o objeto ultrapassou a órbita de Júpiter, os instrumentos humanos começaram a descobrir alguma coisa a seu respeito. A primeira descoberta causou um certo pânico passageiro; o objeto tinha quinhentos quilômetros de diâmetro - era do tamanho de uma pequena lua. Talvez, afinal de contas, fosse um mundo móvel, que transportasse um exército invasor.
Tal temor desapareceu quando observações mais precisas demonstraram que o corpo sólido do intruso tinha apenas alguns metros de diâmetro. O halo de quinhentos quilômetros em torno dele era uma coisa bastante conhecida - um refletor parabólico, delicado e que girava lentamente, o equivalente perfeito dos radiotelescópios orbitais dos astrônomos. Presumivelmente, tratava-se da antena graças à qual o visitante se mantinha em contato com sua base distante. E, através dessa antena, ele estava transmitindo suas descobertas, naquele exato momento, enquanto vasculhava o sistema solar e escutava todas as transmissões de rádio, de TV e de dados científicos da humanidade.
Houve, então, mais uma surpresa. A antena, do tamanho de um asteróide, não estava apontada na direção de Alfa do Centauro, mas para uma parte inteiramente diferente do céu. Começou a ficar claro que o sistema do Centauro era apenas a última escala do veículo, e não sua origem.
Os astrônomos ainda estavam quebrando a cabeça com relação a isso, quando foram bafejados por um extraordinário golpe de sorte. Uma sonda meteorológica solar, numa patrulha rotineira além de Marte, calou-se subitamente, recuperando sua voz radiofônica um minuto depois. Quando se examinaram os registros, verificou-se que os instrumentos tinham sido momentaneamente paralisados por uma intensa radiação. A sonda havia captado exatamente a emissão do visitante. A partir daí, tornou-se simplesmente questão de cálculo determinar a direção precisa para onde essa emissão estava indo.
Não havia nada naquela direção num espaço de cinqüenta e dois anos-luz, com exceção de uma debilíssima - e presumivelmente antiqüíssima - anã vermelha, um daqueles pequenos sóis abstêmios, que continuavam a fulgir pacificamente bilhões de anos depois de os esplêndidos gigantes da galáxia se terem exaurido. Nenhum radiotelescópio jamais a examinara com atenção. Agora, todos os que podiam ser afastados do visitante foram focalizados para sua origem presumível.
E lá estava ela, emitindo um sinal preciso, na faixa de um centímetro. Os construtores ainda estavam em contato com o veículo que haviam lançado milhares de anos antes. Mas as mensagens que o veículo devia estar recebendo agora distavam apenas meio século de sua emissão.
Foi então que, ao penetrar na órbita de Marte, o visitante demonstrou, pela primeira vez, tomar conhecimento da humanidade, e isso da maneira mais dramática e inequívoca que se poderia imaginar. Começou a transmitir imagens de TV no sistema padrão de três mil e setenta e cinco linhas, intercaladas com textos de vídeo em inglês e mandarim perfeitos, ainda que empolados. Começara a primeira conversa cósmica... não como sempre tinha sido imaginado, com uma diferença de décadas, mas apenas de minutos.
Sombra na alvorada
Morgan deixou seu hotel em Ranapura às quatro da madrugada, numa noite clara e sem lua. Não estava muito satisfeito com a escolha do momento, mas o professor Sa-rath, que tomara todas as providências, havia-lhe prometido que valeria a pena. - O senhor não compreenderá nada com relação a Sri Kanda - havia dito - se não tiver contemplado a alvorada do topo. E Buddy... ah, o Maha Thero... não recebe visitas em nenhum outro momento. Diz tratar-se de uma excelente maneira de desestimular curiosos.
- Por isso, Morgan aquiescera, mostrando toda a polidez possível.
Para piorar as coisas, o motorista havia insistido em manter uma conversa agitada, ainda que unilateral, aparentemente destinada a estabelecer um perfil completo da personalidade de seu passageiro. Isso aconteceu com tal ingenuidade e simpatia que era impossível ofender-se, mas Morgan teria preferido o silêncio.
Também desejava, às vezes apaixonadamente, que o motorista prestasse mais atenção às inúmeras curvas fechadas por onde passavam numa escuridão quase total. Ele até preferia não ver direito todos os penhascos e abismos que transpunham, enquanto o carro subia os contrafortes da cordilheira. Aquela estrada representava um triunfo do poder colonial, construída durante a campanha final contra os orgulhosos montanheses do interior. Mas nela nunca se fizera a conversão para o sistema de operação automática, e havia momentos em que Morgan se perguntava se conseguiria sobreviver à viagem.
De repente, ele esqueceu seus medos e sua irritação com a perda das horas de sono.
- Lá está! - disse o motorista com orgulho, quando o carro rodeou o flanco de um monte.
O Sri Kanda propriamente dito estava completamente invisível, numa escuridão que ainda não trazia o menor sinal da madrugada próxima. Sua presença era revelada por uma tênue fita de luz, que ziguezagueava para frente e para trás sob as estrelas, suspensa no céu como que por magia. Morgan sabia que estava vendo as lâmpadas fixadas ali duzentos anos antes para guiar os peregrinos, enquanto subiam a mais alta escadaria do mundo, mas, a julgar pela maneira como desafiavam a lógica e a gravidade, aquilo parecia quase uma previsão de seu sonho. Eras e eras antes que ele nascesse, inspirados por filósofos que ele mal podia imaginar quem fossem, os homens haviam iniciado o trabalho que ele esperava poder terminar. Os outros haviam, literalmente, esculpido os primeiros degraus grosseiros do caminho para as estrelas.
Já sem sentir sono, Morgan viu aproximar-se a faixa de luz, que se revelava um colar de inúmeras contas cintilantes. Agora, a montanha começava a se tornar visível, como um triângulo negro que eclipsasse metade do céu. Havia alguma coisa de sinistro em sua presença silenciosa e soturna. Morgan podia quase imaginar que se tratava, com efeito, da morada de deuses que sabiam de sua missão, e que estavam reunindo forças contra ele.
Esses pensamentos presságios foram inteiramente esquecidos, quando chegaram ao terminal do teleférico e quando Morgan descobriu, com surpresa - eram apenas cinco horas da manhã - que pelo menos cem pessoas se comprimiam na pequena saía de espera. Pediu café quente ao gárrulo motorista, o qual, para seu alívio, não demonstrou o menor interesse em fazer a subida.
- Já subi pelo menos vinte vezes — disse ele, com um fastio talvez exagerado. - Vou dormir no carro até o senhor voltar.
Morgan comprou o bilhete, fez um cálculo rápido e julgou que o deixariam subir na terceira ou quarta leva de passageiros. Estava satisfeito por ter seguido o conselho de Sarath de levar uma capa térmica no bolso. A apenas dois quilômetros de altitude, o frio já era intenso. No topo, três quilômetros mais acima, a temperatura certamente beirava o grau zero.
Enquanto caminhava, na fila um tanto desanimada e sonolenta de passageiros, Morgan observou, divertido, que era o único que não tinha máquina fotográfica. Onde estariam os verdadeiros peregrinos? Depois, ele se lembrou. Não seria ali. Não havia um caminho fácil para o céu, o nirvana, ou qualquer outra coisa que o fiel procurasse. O mérito era adquirido unicamente pelo esforço próprio, e não com a ajuda de máquinas. Uma doutrina interessante, que encerrava muitas verdades. Mas havia também ocasiões em que só as máquinas podiam cumprir a tarefa.
Por fim, ele conseguiu um assento no carro, e com muitos estalos de cabos puseram-se a caminho. Mais uma vez, Morgan sentiu aquela esquisita sensação de antecipação. O elevador que ele estava planejando ergueria cargas mais de dez mil vezes maiores do que aquele sistema primitivo, que provavelmente datava do século XX. No entanto, em síntese, seus princípios básicos eram quase exatamente os mesmos.
Do lado de fora do carro, que chacoalhava, a escuridão era total, salvo quando viam um trecho da escadaria iluminada. Estava inteiramente deserta, como se os milhões de romeiros que haviam subido a montanha com esforço, nos últimos três mil anos, não houvessem deixado sucessores. No entanto, Morgan lembrou que aqueles que faziam a subida a pé já estariam muito mais perto do cimo, pois tinham uma hora marcada com a alvorada. Deviam ter deixado o sopé da montanha muitas horas antes.
No nível dos quatro quilômetros os passageiros tiveram de fazer uma rápida baldeação e caminhar um pequeno trecho até outra estação. Agora, Morgan estava francamente feliz com sua capa e embrulhou seu corpo com o tecido metalizado. Havia geada no chão, e ele começava a inspirar profundamente o ar rarefeito. Não ficou surpreso por ver cilindros de oxigênio na pequena estação terminal, com instruções para uso bem visíveis neles.
Finalmente, ao começarem a última etapa da ascensão, houve a primeira insinuação real do novo dia que se aproximava. As estrelas orientais ainda fulgiam gloriosamente - Vênus mais do que todas -, mas algumas nuvens ralas e altas começaram a insinuar-se com a madrugada iminente. Morgan olhou ansioso para o relógio, e imaginou se chegaria a tempo. Ficou aliviado ao constatar que a aurora só ocorreria dali a trinta minutos.
Um dos passageiros, de repente, apontou para a imensa escadaria, da qual ocasionalmente se viam alguns trechos e que guarnecia tortuosamente as encostas, agora muito íngremes, da montanha. Já não estava deserta. Movendo-se numa lentidão de sonho, dezenas de homens e mulheres venciam penosamente os degraus intermináveis. A cada minuto, mais deles apareciam. Há quantas horas, pensou Morgan, estariam subindo? Certamente a noite toda, e talvez muito mais, pois muitos peregrinos eram bastante idosos, e dificilmente teriam conseguido chegar até ali num único dia. Ele ficou surpreso ao verificar que ainda eram muitos os crentes.
Logo depois, viu o primeiro monge - um vulto alto, envolto num manto alaranjado, que se movia com uma regularidade de metrônomo, sem olhar para a esquerda nem para a direita, e completamente esquecido do carro que flutuava por sobre sua cabeça raspada. Também parecia capaz de ignorar os elementos, pois o braço direito e o ombro estavam expostos ao vento enregelante.
A velocidade do carro caía enquanto se aproximavam do terminal. Daí a momentos, ele fez uma rápida parada, expeliu seus passageiros entorpecidos e recomeçou a longa descida. Morgan juntou-se à multidão de duzentas ou trezentas pessoas que se acotovelavam num pequeno anfiteatro, talhado na face ocidental da montanha. Todos fitavam a escuridão, embora nada se visse ainda, exceto a fita de luz que descia em direção ao abismo. Na última parte da escadaria, alguns andarilhos atrasados faziam um esforço final: a fé lutava para vencer a fadiga.
Morgan consultou de novo seu relógio. Faltavam dez minutos. Nunca tinha estado entre tantas pessoas silenciosas. Turistas curiosos e peregrinos devotos uniam-se, agora, na mesma esperança. O tempo estava ótimo. Logo todos saberiam se tinham feito aquela jornada em vão.
Ouviu-se um delicado tilintar de sinetas no templo, ainda invisível nas trevas, cem metros acima de suas cabeças. No mesmo instante, todas as luzes naquela incrível escadaria se apagaram. Agora, eles podiam ver, com as costas voltadas para a aurora oculta, o primeiro bruxuleio tênue do dia, que se estendia sobre as nuvens lá embaixo. Mas a massa imensa da montanha ainda retardava a alvorada.
Segundo após segundo, aumentava a luz de ambos os lados de Sri Kanda, enquanto o Sol vencia os últimos baluartes da noite. Correu, então, um surdo murmúrio de espanto na multidão paciente.
Num dado momento, não havia coisa alguma. Depois, de repente, ele estava lá, cobrindo metade da largura da Taprobana - um triângulo perfeitamente simétrico, com arestas definidas, de um azul intensíssimo. A montanha não se esquecera de seus adoradores. Lá estava a famosa sombra sobre o mar de nuvens, um símbolo que cada peregrino podia interpretar como quisesse.
Ele parecia quase sólido em sua perfeição retilínea, uma pirâmide tombada, mais que um mero fantasma de luz e penumbra. Enquanto o brilho do Sol crescia a seu redor, e os primeiros raios diretos ultrapassavam o flanco da montanha, ela parecia, por contraste, tornar-se ainda mais escura e mais densa. Entretanto, através do débil véu de nuvens responsável por sua existência breve, Morgan podia discernir vagamente os lagos, os montes e as florestas da terra que despertava.
O ápice daquele triângulo brumoso devia estar correndo em sua direção a uma velocidade fantástica, enquanto o Sol se erguia verticalmente por trás da montanha, mas Morgan não tinha consciência de nenhum movimento. O tempo parecia suspenso. Aquele foi um dos raros momentos de sua vida em que ele não atentou aos minutos, que passavam. A sombra da eternidade jazia sobre sua alma, assim como a da montanha cobria as nuvens.
Agora, ela se dissipava depressa, e a escuridão desaparecia do céu como uma mancha que se dispersa na água. A paisagem fantasmagórica e reluzente, lá embaixo, ganhava contornos duros de realidade. No ponto situado na metade do caminho até o horizonte, houve uma explosão de luz, quando os raios do sol atingiram as janelas de um edifício. E ainda mais além - a menos que seus olhos o houvessem iludido -, Morgan conseguia divisar a faixa vaga e escura do oceano circundante.
Outro dia raiava para a Taprobana.
Lentamente, os visitantes se dispersaram. Alguns voltaram para a estação do teleférico, enquanto outros, mais dispostos, se dirigiram para a escada, na crença ilusória de que a descida seria mais fácil do que a subida. A maioria destes retomaria o carro na estação intermediária. Poucos, muito poucos, desceriam a pé até embaixo.
Somente Morgan continuou a subir, seguido por muitos olhares curiosos, o curto lance de escadas que levava ao mosteiro e ao pináculo da montanha. Ao chegar à muralha externa, revestida de gesso liso, e que já começava a fulgir docemente, tocada pelos primeiros raios diretos do Sol, ele respirava com grande dificuldade, e recostou-se por um momento na enorme porta de madeira.
Alguém o devia estar olhando. Antes que ele encontrasse uma aldrava, ou indicasse sua presença de outra forma, a porta abriu-se silenciosamente, e ele foi recebido por um monge de manto amarelo que o saudou de mãos postas.
- Ayu bowan, dr. Morgan. O Mahanayake Thero terá satisfação em recebê-lo.
A educação de Sideronauta
(Excerto do Tratado de Sideronauta, primeira edição, 2071.)
"Sabemos, agora, que a sonda espacial interestelar a que geralmente se dá o nome de Sideronauta é completamente autônoma, e que opera segundo instruções programadas há sessenta mil anos. Enquanto viaja entre os sóis, utiliza sua antena de quinhentos quilômetros para enviar informações à sua base, num índice de freqüência relativamente baixo, ou para receber, ocasionalmente, informações atualizadas de 'Ilhastral', para adotarmos o delicado nome criado pelo poeta Llewellyn ap Cymru.”
Ao passar por um sistema solar, no entanto, ela é capaz de utilizar a energia daquele Sol, e assim sua cota de informações enviadas aumenta enormemente. Além disso, ela “recarrega suas baterias”, para usarmos uma analogia indubitavelmente grosseira. E, como emprega os campos gravitacionais dos corpos celestes para viajar de estrela a estrela - como nossos primitivos Pioneers e Voyagers -, operará indefinidamente, a menos que uma falha mecânica ou um acidente cósmico ponha termo à sua atividade. Centauro foi sua undécima escala. Depois de rodear nosso Sol como um cometa, seu novo rumo foi apontado precisamente para Tau Ceti, a doze anos-luz de distância. Se houver alguém lá, a nave estará pronta para iniciar sua próxima conversa pouco depois do ano 8100. (...)
(...) - Sideronauta acumula as funções de embaixador e de explorador. Quando, ao cabo de uma de suas viagens mileniais, descobre uma cultura tecnológica, estabelece amizade com os nativos e põe-se a trocar informações, na única forma de comércio interestelar que jamais será possível. E, antes de partir novamente em sua viagem sem fim, após transitar brevemente pelo sistema solar, Sideronauta dá a localização de seu próprio mundo de origem, aguardando uma chamada direta do mais novo membro da rede telefônica galática.
Em nosso caso, podemos nos orgulhar de que, antes de consultar quaisquer cartas estelares, já havíamos identificado seu sol paterno, e até emitido as primeiras transmissões em sua direção. Agora, só teremos de esperar cento e quatro anos por uma resposta. Cabe admirar nossa sorte, por termos vizinhos tão próximos."
Era óbvio, por suas mensagens iniciais, que Sideronauta entendia o significado de milhares de palavras do inglês e do chinês, isoladas pela análise das emissões de rádio, de TV e, principalmente, da fala dos locutores. Mas o que ele havia captado durante sua aproximação era uma amostragem pouco representativa do espectro total da cultura humana. Continha pouca ciência avançada, ainda menos matemática avançada, e apenas uma seleção fortuita de literatura, música e artes visuais.
Como qualquer gênio autodidata, portanto, Sideronauta tinha enormes falhas de educação. Seguindo o princípio de que era melhor pecar por excesso do que por falta, assim que se estabeleceu contato, presenteou-se Sideronauta com o Dicionário inglês de Oxford, o Grande dicionário de chinês (edição em mandarim) e a Encyclopaedia Terrae. A transmissão digital dessas obras exigiu pouco mais de cinqüenta minutos, e aconteceu que, imediatamente depois, Sideronauta permaneceu em silêncio quase quatro horas - seu mais longo período fora do ar. Ao restabelecer o contato, seu vocabulário achava-se consideravelmente ampliado, e em noventa e nove por cento dos casos pôde passar com facilidade pelo teste de Turing - isto é, não havia maneira de determinar, pelas mensagens recebidas, se Sideronauta era uma máquina ou um ser humano dotado de alta inteligência.
Houve lapsos ocasionais - por exemplo, o uso incorreto de palavras ambíguas, bem como a ausência de conteúdo emocional no diálogo. Contudo, isso era de se esperar. Ao contrário dos computadores terrestres avançados - capazes de replicar as emoções de seus construtores, quando necessário -, os sentimentos e desejos de Sideronauta eram provavelmente os de uma espécie inteiramente alienígena, e, portanto, em grande parte incompreensíveis ao homem.
O inverso, naturalmente, também se dava. Sideronauta era capaz de compreender de modo preciso o significado de "o quadrado da hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos catetos". Mas não conseguia vislumbrar absolutamente nada do que se passava no espírito de Keats quando o poeta escreveu:
"Encantados caixilhos mágicos, que dão para a espuma Dos mares perigosos, abandonados em terras de fadas" (...)
Ou menos ainda:
"Devo igualar-te a um dia de verão?
Mais afável e belo é o teu semblante" (...)1
Não obstante, numa tentativa de sanar essa deficiência, ofereceram-se também a Sideronauta milhares de horas de música, teatro e cenas da vida terrestre, humana, vegetal e animal. Segundo o consenso geral, havia necessidade de uma certa dose de censura ali. Embora a propensão da humanidade para a violência e a guerra não pudesse ser desmentida (já era tarde para cancelar a Encyclopaedia), apenas alguns exemplos escolhidos a dedo foram transmitidos. E, até Sideronauta estar fora do alcance das transmissões, a programação normal das redes de vídeo mostrou-se contida.
Durante séculos - talvez, com efeito, até alcançar seu próximo alvo -, os filósofos iriam debater a verdadeira compreensão, por parte de Sideronauta, dos assuntos e dos problemas humanos. Quanto a um ponto, porém, não havia grande discordância. Os cem dias de sua passagem pelo sistema solar tinham alterado profundamente a visão humana sobre o universo, sua origem e a posição do homem nele.
A civilização humana nunca mais seria a mesma, depois da partida de Sideronauta.
Bodhidharma
Quando a porta maciça, esculpida com emaranhados desenhos de flores de lótus, se fechou maciamente às suas costas, Morgan sentiu que havia entrado num outro mundo. Não pisava, de modo algum, pela primeira vez um solo outrora sagrado para alguma grande religião. Já tinha estado em Notre Dame, na Catedral de Santa Sofia, em Stonehenge, no Partenon, em Carnaque, na Catedral de São Paulo e em pelo menos outros dez importantes templos e mesquitas. No entanto, todos lhe haviam parecido relíquias congeladas do passado - esplêndidos exemplos de arte e engenharia, mas sem qualquer relevância para o espírito moderno. As fés que as haviam criado e mantido caíram no esquecimento, embora algumas sobrevivessem ao longo do século XXII.
Mas ali, aparentemente, o tempo tinha parado. Os furacões da história haviam tangenciado aquela solitária cidadela da fé, deixando-a inabalada. Como faziam três mil anos antes, os monges ainda rezavam, meditavam e observavam a aurora.
Durante sua caminhada pelas lajes desgastadas do pátio, alisadas pelos pés de inúmeros peregrinos, Morgan experimentou uma indecisão súbita, de todo alheia a seu temperamento. Em nome do progresso, ele estava querendo destruir uma coisa antiga e nobre, algo que ele jamais viria a entender plenamente.
O vulto do grande sino de bronze, suspenso de um campanário que se projetava da parede do mosteiro, o deteve. Instantaneamente, sua mente de engenheiro estimou seu peso em nada menos de cinco toneladas, e o sino era obviamente antiqüíssimo. Como tinha sido possível?...
O monge notou sua curiosidade, e exibiu um sorriso de compreensão.
- Dois mil anos - disse. - Foi um presente de
Kalidasa, o Maldito, que julgamos conveniente não recusar. Segundo a lenda, para trazê-lo montanha acima, foram necessários dez anos... e a vida de cem homens.
- Quando é usado? - perguntou Morgan, depois de digerir essa informação.
- Por causa de sua origem odiosa, só é tocado em ocasiões de desastre. Nunca ouvi seu som. E acho que ninguém que esteja vivo. Certa vez, ele funcionou sem ajuda humana, no grande terremoto de 2017. E antes disso soou pela última vez em 1522, quando os invasores ibéricos incendiaram o templo do Dente e se apoderaram da Relíquia Sagrada.
- Quer dizer que, depois de tanto esforço... nunca foi usado?
- Talvez doze vezes nos últimos dois mil anos. A maldição de Kalidasa ainda pesa sobre ele.
Aquilo podia ser uma prova de excelente piedade religiosa, pensou Morgan, mas também de péssima economia. E ele imaginou irreverentemente quantos monges haviam sucumbido à tentação de dar uma pancadinha no sino, levíssima, apenas para escutar, sozinho, o timbre desconhecido de sua voz proibida...
Estavam contornando agora uma grande pedra, de cima da qual partia um lance de escadas que levava ao pavilhão dourado. Ali, pensou Morgan, era o verdadeiro cume da montanha. Ele sabia o que o templo encerrava, mas, novamente, o monge deu explicações a respeito.
- A pegada - disse. - Os muçulmanos acreditavam que era de Adão. Ele esteve aqui depois de ser expulso do paraíso. Os hindus a atribuíam a Shiva, ou a Saman. Mas para os budistas, é claro, era a marca do Iluminado.
- Vejo que usa o pretérito - respondeu Morgan, num tom cuidadosamente neutro. - Qual é a crença atual?
A fisionomia do monge estava impassível quando respondeu: - O Buda era um homem, como o senhor ou eu. A marca na pedra... e é uma pedra duríssima... tem dois metros de comprimento.
Aquilo parecia resolver a questão, e Morgan não fez mais perguntas, enquanto percorriam um pequeno claustro que terminava numa porta aberta. O monge bateu, mas não esperou qualquer resposta, e fez um sinal para que o visitante entrasse.
Morgan quase esperara encontrar o Mahanayake Thero, sentado de pernas cruzadas sobre um tapete, provavelmente cercado por incenso e acólitos. Havia, com efeito, um leve cheiro de incenso no ar claro, mas o líder do Sri Kanda Maha Vihara estava sentado junto a uma mesa de escritório igual a milhares de outras, equipada com terminais e unidades de memória. A única coisa invulgar na sala era a cabeça de Buda, um pouco maior que o tamanho natural, num plinto que se via a um canto. Morgan não sabia dizer se era real ou apenas uma projeção.
Apesar daquele ambiente convencional, era quase impossível que o chefe do mosteiro fosse confundido com qualquer outro tipo de executivo. Além do inevitável manto amarelo, o Mahanayake Thero tinha duas outras características que, naqueles tempos, eram raríssimas. Era completamente calvo. E usava óculos.
As duas coisas, pensou Morgan, resultavam de opções deliberadas. Como a cal vicie podia facilmente ser curada, aquele reluzente domo de marfim devia ter sido raspado ou depilado. E Morgan não se lembrava da última vez em que tinha visto um par de óculos, exceto em gravações ou dramas históricos.
A combinação era ao mesmo tempo fascinante e desconcertante. Morgan concluiu ser praticamente impossível calcular a idade do Mahanayake Thero. Podia ter quarenta anos maduros ou oitenta bem-conservados. E aquelas lentes, apesar de transparentes, ocultavam de alguma maneira seus pensamentos e emoções.
- Ayu bowan, dr. Morgan - disse o prelado, fazendo um gesto na direção da única cadeira vazia. - Este é meu secretário, o venerável Parakarma. Espero que o senhor não se importe se ele tomar algumas notas.
- Claro que não - disse Morgan, inclinando a cabeça na direção do terceiro ocupante da pequenina sala. Observou que o monge mais jovem tinha uma cabeleira basta e uma barba imponente. Aparentemente, raspar a cabeça era um ato voluntário.
- Então, dr. Morgan - continuou o Mahanayake Thero -, o senhor deseja a nossa montanha.
- Creio que sim, ah... reverendo. Parte dela, ao menos.
- Em todo o mundo... esses poucos hectares?
- A escolha não foi nossa, mas da natureza. O terminal terrestre tem de ficar no equador, e à altitude mais elevada possível, onde a baixa densidade do ar reduz a força dos ventos.
- Há montanhas equatoriais mais altas na África e na América do Sul.
Lá vamos outra vez, gemeu Morgan silenciosamente. A amarga experiência lhe havia demonstrado ser quase impossível fazer com que leigos, por mais inteligentes e curiosos que fossem, entendessem aquele problema, e ele previa que faria ainda menos sucesso com os monges. Se pelo menos a Terra fosse um corpo simétrico, sem recortes nem mossas em seu campo gravitacional...
- Creia em mim - disse ele com fervor -, examinamos todas as alternativas. Cotopaxi e o monte Quênia... e até mesmo o Kilimanjaro, embora fique três graus ao sul... seriam excelentes, se não fosse uma deficiência fatal. Quando um satélite é posto em órbita sincrônica, não fica exatamente no mesmo ponto. Por causa de irregularidades gravitacionais, em cujos detalhes não interessa entrar, oscila lentamente ao longo do equador. Por isso, todos os nossos satélites e estações síncronas têm de queimar propelente a fim de permanecer no lugar. Por sorte, a quantidade necessária é mínima. Mas não se pode ficar repondo milhões de toneladas... principalmente quando tomam a forma de finas hastes com um comprimento de dezenas de milhares de quilômetros... no lugar certo. E não há necessidade disso. Felizmente para nós...
- ... mas não para nós - interrompeu o Mahanayake Thero, deixando Morgan quase desconcertado.
- ...há dois pontos estáveis na órbita síncrona. Um satélite colocado nesses pontos não sairá dali... não vai oscilar. Exatamente como se estivesse preso no fundo de um vale invisível. Um desses pontos fica sobre o Pacífico, de modo que não é de utilidade para nós. O outro fica diretamente acima de nossas cabeças.
- Certamente, alguns quilômetros para um lado ou para outro não farão diferença. Há outras montanhas na Taprobana.
- Nenhuma com mais da metade da altura de Sri Kanda... o que nos remete ao problema das forças críticas do vento. Certo, não ocorrem muitos furacões exatamente sobre o equador. Mas eles são em número suficiente para pôr em perigo a estrutura em seu ponto mais fraco.
- Podemos controlar os ventos.
Era a primeira contribuição que o jovem secretário dava à conversa, e Morgan olhou para ele com mais interesse.
- Até certo ponto, sim. Naturalmente, discuti essa questão com o Controle das Monções. Eles dizem que uma certeza absoluta está fora de cogitação... principalmente no tocante a furacões. As melhores probabilidades que me dão são de cinqüenta para um. Isso não basta para um projeto de um trilhão de dólares.
O venerável Parakarma parecia inclinado a discutir.
- Há um ramo quase esquecido da matemática, a teoria das catástrofes, que poderia tornar a meteorologia uma ciência realmente exata. Tenho certeza de que...
- Devo explicar - interrompeu o Mahanayake Thero com suavidade - que, no passado, meu colega foi famoso como astrônomo. Creio que o senhor já ouviu falar do dr. Choan Goldberg.
- Para Morgan, foi como se um alçapão subitamente se abrisse a seus pés. Ele devia ter sido avisado! Depois, lembrou-se de que o professor Sarath lhe dissera, com um piscar de olhos, que devia "ter cuidado com o secretário particular de Buddy... é um sujeito inteligentíssimo".
Morgan perguntou-se se seu rosto não estaria rubro, enquanto o venerável Parakarma, aliás, o dr. Choan Goldberg, o encarava com ar claramente hostil. Muito bem! Ele tentara explicar as instabilidades orbitais àqueles monges inocentes! O Mahanayake Thero provavelmente recebera uma aula sobre o assunto muito melhor do que a dele.
E lembrou-se de que os cientistas de todo o mundo estavam divididos quanto ao dr. Goldberg... Havia os que tinham certeza de que ele era louco, e os que ainda não tinham formado uma opinião definitiva. Pois aquele jovem, um dos mais promissores no campo da astrofísica, enunciara cinco anos antes: "Agora que Sideronauta destruiu efetivamente todas as religiões tradicionais, podemos finalmente atentar para o conceito de Deus".
E, com isso, ele desapareceu da vida pública.
Conversas com Sideronauta
Dentre as milhares de perguntas dirigidas a Sideronauta, durante sua passagem pelo sistema solar, as que despertavam mais ansiedade referiam-se a criaturas vivas e civilizações de outras estrelas. Ao contrário do que supunham alguns, o robô respondeu a essas perguntas de bom grado, conquanto admitisse que suas últimas informações sobre o assunto tinham sido recebidas mais de um século antes.
Considerando-se o imenso espectro de culturas promovidas na Terra por uma única espécie, era óbvio que haveria uma variedade cultural ainda maior entre as estrelas, onde todo tipo concebível de biologia poderia ocorrer. Gravações de milhares de horas com cenas da vida em outros planetas - fascinantes, mas muitas vezes incompreensíveis, e em outras horripilantes - não deixaram dúvida quanto a isso.
Não obstante, os construtores de Sideronauta conseguiram fazer uma classificação aproximada das culturas segundo seus padrões de tecnologia - talvez o único critério objetivo possível. A humanidade ficou feliz em saber que estava enquadrada no quinto grau de uma escala definida aproximadamente assim: 1 - instrumentos de pedra; 2 - metais, fogo; 3 - escrita, artesanato, embarcações; 4 - propulsão a vapor, ciência básica; 5 - energia atômica, viagem espacial.
Quando Sideronauta iniciara sua missão, sessenta mil anos antes, seus construtores achavam-se, tal como a raça humana, na categoria cinco. Agora haviam passado para a sexta, caracterizada pela capacidade de converter completamente a matéria em energia, e de transmutar todos os elementos em escala industrial.
- E há uma classe sete? - perguntou-se imediatamente a Sideronauta. A resposta foi um lacônico "Afirmativo". Quando instado a fornecer detalhes, a sonda explicou: - Não tenho autorização para descrever a uma cultura inferior a tecnologia de uma cultura superior. - E o assunto morreu aí, até o momento da mensagem final, apesar de todas as perguntas capciosas imaginadas pelos mais engenhosos advogados da Terra.
Aliás, com relação a esse ponto, Sideronauta não tinha competidores entre os especialistas em lógica da Terra. Isso se devia, em parte, ao erro do Departamento de Filosofia da Universidade de Chicago. Numa monumental prova de arrogância, havia clandestinamente transmitido, na íntegra, a Summa theologica, com resultados desastrosos...
"02 junho 2069; 19:34. Mensagem 1946, seqüência 2. Sideronauta para Terra:
Analisei os argumentos de São Tomás de Aquino, como foi solicitado em sua mensagem 145, seqüência 3, de 02 junho 2069, 18:42. A maior parte do conteúdo parece ser um ruído aleatório desprovido de sentido, e portanto vazio de informação, mas a lista que se segue relaciona 192 falácias expressas na lógica simbólica de sua matemática de referência 43, de 29 maio 2069, 02:51.
Falácia 1..." (Seguia-se uma lista de computador de setenta e cinco páginas.)
As indicações de horário revelam que foi preciso menos de uma hora para Sideronauta demolir São Tomás. Embora os filósofos passassem as décadas seguintes discutindo aquela análise, só encontraram nela dois erros; e mesmo aqueles poderiam ter sido causados por uma má interpretação da terminologia.
Seria interessante determinar que fração de seus circuitos de processamento Sideronauta aplicou àquela tarefa. Infelizmente, ninguém pensou em fazer essa pergunta antes que a sonda suspendesse o contato. Àquela altura, mensagens ainda mais decepcionantes tinham sido recebidas...
"04 junho 2069, 07:59. Mensagem 9056, seqüência 2. Sideronauta para Terra:
Não consigo distinguir claramente entre suas cerimônias religiosas e o comportamento aparentemente idêntico nas funções esportivas e culturais que me transmitiram. Cf. principalmente Beatles, 1965; Final da Copa do Mundo de Futebol, 2046; e a apresentação de despedida de Johann Sebastian Clone, 2056."
"05 junho 2069, 20:38. Mensagem 4675, seqüência 2. Sideronauta para Terra:
Minha última informação a respeito disso é de 175 anos atrás, mas, se entendi corretamente, minha resposta é a seguinte: comportamentos da espécie que chamam de religiosos ocorria em 3 das 15 culturas classe 1 conhecidas, em 6 das 28 culturas classe 2, em 5 das 14 classe 3, em 2 das 10 classe 4, e em 13 das 174 classe 5. Compreendem que dispomos de muito mais exemplos de classe 5, apenas porque podem ser detectadas mesmo a distâncias astronômicas."
"06 junho 2069, 19:09. Mensagem 5897, seqüência 2. Sideronauta para Terra:
Correta a dedução de que as 3 culturas classe 5 que mantinham atividades religiosas apresentavam reprodução biparental, e que os jovens permaneciam nos grupos familiares a maior parte de suas vidas. Como chegaram a essa conclusão?"
"08 junho 2069, 15:37. Mensagem 6943, seqüência 2. Sideronauta para Terra:
A hipótese a que vocês se referem com a palavra Deus, ainda que não possa ser negada apenas pela lógica, é desnecessária pela seguinte razão: se supusermos que o universo pode ser, abre aspas, explicado, fecha aspas, como a criação de uma entidade chamada Deus, este deve pertencer obviamente a um grau de organização maior do que seu produto. Assim, a dimensão do problema original se ampliará mais do dobro, e será dado o primeiro passo para um retorno infinito divergente. Guilherme de Ockham observou, no século XIV de vocês, que as entidades não devem ser multiplicadas desnecessariamente. Por conseguinte, não entendo por que esse debate prossegue."
"11 junho 2069, 06:34. Mensagem 8964, seqüência 2. Sideronauta para Terra:
Ilhastral informou-me há 456 anos que a origem do universo foi descoberta, mas não possuo os circuitos necessários para compreendê-la. Por favor, comuniquem-se diretamente com a base para maiores informações.
Estou revertendo agora à freqüência de cruzeiro, e tenho de interromper o contato. Adeus."
Na opinião de muitos, essa mensagem final, a mais famosa de todas, provava que Sideronauta tinha senso de humor. De outra forma, como explicar que esperasse até o último momento para detonar aquela bomba filosófica? Ou todo aquele contato seria parte de um plano cuidadoso, destinado a colocar a raça humana no estado de espírito correto para quando as primeiras mensagens diretas de Ilhastral chegassem, presumivelmente dali a cento e quatro anos?
Outros ainda sugeriram que se acompanhasse Sideronauta, uma vez que ele estava levando para fora do sistema solar não só um volume incomensurável de conhecimentos, como também os tesouros de uma tecnologia situada séculos adiante de tudo quanto o homem conhecia. Muito embora não existisse uma nave espacial capaz de alcançar Sideronauta e retornar à Terra depois de igualar sua enorme velocidade, certamente podia construir-se uma.
No entanto, prevaleceram opiniões mais sensatas. Até mesmo uma sonda espacial automática devia ter defesas eficientes - inclusive, em último caso, a capacidade de autodestruição. Mas o argumento mais eficaz foi que seus construtores estavam a "apenas" cinqüenta e dois anos-luz de distância. Durante os milênios transcorridos desde que haviam lançado Sideronauta, sua técnica espacial devia ter se aperfeiçoado fantasticamente. Se a raça humana tomasse qualquer atitude de provocação, eles poderiam visitá-la, ligeiramente aborrecidos, em pouquíssimos séculos.
Enquanto isso, entre os inúmeros efeitos que provocou na cultura humana, Sideronauta levou ao clímax um processo que já estava em andamento. Pôs fim aos bilhões de palavras da algaravia piedosa com a qual homens aparentemente inteligentes embotaram seu espírito durante séculos.
Parakarma
Enquanto Morgan repassava mentalmente a conversa até aquele ponto, concluiu que não se comportara tolamente. Na verdade, talvez o Mahanayake Thero houvesse perdido uma vantagem tática ao revelar a identidade do venerável Parakarma. No entanto, não se tratava de um segredo especial. Talvez ele pensasse que Morgan já estava a par.
Àquela altura, deu-se uma interrupção conveniente. Dois jovens acólitos entraram no escritório, sendo que um deles trazia uma bandeja cheia de pratinhos de arroz, frutas e algo parecido com panquecas finas, enquanto o outro portava o inevitável bule de chá. Não havia nada que se assemelhasse a carne. Depois de sua longa noite, Morgan tinha muita vontade de comer alguns ovos, mas supôs que também eles fossem proibidos. Não... Proibir era uma palavra forte demais. Sarath lhe havia dito que a Ordem não proibia nada, pois não acreditava em absolutos. Tinha uma escala de tolerância perfeitamente ajustada, e a eliminação da vida - mesmo da vida em potencial - ocupava um ponto baixíssimo na lista.
Ao começar a provar dos vários pratos - na maioria inteiramente desconhecidos -, Morgan olhou inquisitivamente para o Mahanayake Thero, que sacudiu a cabeça.
- Não comemos antes do meio-dia. A mente funciona com mais clareza durante a manhã, e por isso não deve ser distraída com coisas materiais.
Enquanto saboreava um delicioso mamão, Morgan pensou no abismo filosófico representado por aquela simples declaração. Para ele, um estômago vazio seria uma enorme preocupação, capaz de inibir completamente as funções mentais superiores. Ele sempre fora abençoado por uma boa saúde, e jamais tentara dissociar corpo e alma, nem via razão para que alguém o tentasse.
Enquanto Morgan comia seu exótico desjejum, o Mahanayake Thero pediu licença e, durante alguns minutos, seus dedos dançaram, com fantástica velocidade, sobre o teclado do painel. Quando o vídeo apresentou um texto escrito, a cortesia compeliu Morgan a desviar o olhar. Inevitavelmente, sua atenção voltou-se para a cabeça do Buda. Parecia real, pois o plinto lançava uma tênue sombra na parede. Ainda assim, não podia ter certeza. O plinto poderia ser sólido, e a cabeça, uma projeção posicionada cuidadosamente sobre ele. Era um truque comum.
Ali, tal como a Mona Lisa, via-se uma obra de arte que, ao mesmo tempo, refletia as emoções do observador e lhe impunha sua própria autoridade. Mas os olhos da Gioconda estavam abertos, ainda que fitassem algo que nunca se saberia definir. Os olhos do Buda eram completamente vazios — lagoas estagnadas em que um homem podia perder a alma ou descobrir um universo.
Em seus lábios, pairava um sorriso que era ainda mais ambíguo que o da Mona Lisa. No entanto, havia mesmo um sorriso, ou era apenas um truque de iluminação? Já desaparecera, substituído por uma expressão de placidez sobre-humana. Morgan não conseguia desviar os olhos daquele semblante hipnótico, e somente o zumbido familiar da emissão de uma folha impressa pelo painel o trouxe de volta à realidade... se é que aquilo era a realidade...
- Julguei que o senhor gostaria de guardar uma lembrança de sua visita - disse o Mahanayake Thero.
Ao pegar a folha, Morgan verificou com surpresa que se tratava de um pergaminho feito para arquivo permanente, e não o papel fino comum, destinado ao lixo depois de algumas horas de uso. Ele não conseguia ler uma só palavra. Com exceção de uma discreta referência alfanumérica no canto inferior esquerdo, todo ele estava impresso com os garranchos floreados que Morgan podia identificar como a escrita taprobani.
- Muito obrigado - disse ele, com o máximo de ironia que pôde expressar. - O que é isso? - Mas tinha uma idéia do que era. Documentos legais pareciam-se muito em toda parte, quaisquer que fossem seus idiomas... ou épocas.
- Uma cópia do acordo entre o rei Ravindra e o Maha Sangha, datado de Vesak, ano 854 d.C, segundo seu calendário. O documento trata da propriedade da terra onde se encontra o templo... em perpetuidade. Os direitos definidos aqui foram reconhecidos até mesmo pelos invasores.
- Pelos caledônios e holandeses, creio. Mas não pelos iberos.
Se o Mahanayake Thero se surpreendeu com os conhecimentos de que Morgan dispunha sobre a Ordem, não se deixou trair nem por um piscar de olhos.
- Os iberos não respeitavam nenhuma lei, sobretudo no que dizia respeito a outras religiões. Tenho certeza de que a filosofia deles, segundo a qual o poder iguala o direito, não lhe agrada.
Morgan exibiu um sorriso um tanto forçado.
- Claro que não - respondeu. Mas onde se traçava a linha divisória?, perguntou-se ele em silêncio. Quando os enormes interesses das grandes organizações estavam em jogo, a moralidade convencional, muitas vezes, era relegada a segundo plano. Os maiores talentos legais do mundo, humanos e eletrônicos, em breve estariam concentrados naquela montanha. Se não conseguissem encontrar as respostas corretas, poderia surgir uma situação das mais desagradáveis - uma situação que poderia transformá-lo não num herói, mas num vilão.
- Já que o senhor levantou a questão do acordo de 854, permita-me lembrar-lhe que ele se refere apenas às terras no interior dos limites do templo... claramente definidos pelas muralhas.
- Certo. Mas elas encerram todo o topo da montanha.
- O senhor não dispõe de controle sobre as terras além desta área.
- Temos os direitos de qualquer proprietário. Se os vizinhos criarem incômodos, podemos recorrer à justiça. Não é a primeira vez em que a questão é levantada.
- Sei. O senhor se refere ao episódio do sistema de teleférico.
Um leve sorriso brincou nos lábios do Maha Thero.
- O senhor estudou bem sua lição - elogiou. - Sim, nós nos opusemos ao sistema vigorosamente, por inúmeras razões... muito embora eu admita que, agora que ele existe, muitas vezes temos nos valido dele. - Fez uma pausa pensativa e acrescentou: - Às vezes surgem problemas, mas temos conseguido coexistir. Turistas e curiosos contentam-se em permanecer na plataforma de observação. Quanto aos peregrinos verdadeiros, é claro, sempre temos todo o prazer em recebê-los aqui em cima.
- Então, talvez pudéssemos chegar a um acordo conciliatório, neste caso. Algumas centenas de metros de altitude não fariam diferença para nós. Deixaríamos o topo da montanha em paz, e poderíamos escavar outro platô, como o do terminal do teleférico.
Morgan sentia um enorme constrangimento sob o escrutínio prolongado dos dois monges. Tinha poucas dúvidas de que eles percebiam o absurdo da sugestão, mas era obrigado a fazê-la.
- O senhor tem um senso de humor muito estranho, dr. Morgan — respondeu por fim o Mahanayake Thero. - O que restaria do espírito da montanha... da solidão que estamos buscando há três mil anos... se essa estrutura monstruosa for levantada aqui? O senhor acha que trairemos a fé dos milhões que já visitaram este lugar sagrado, muitas vezes às custas de sua saúde... e até de suas vidas?
- Entendo seus sentimentos - respondeu Morgan. (Mas ele estaria mentindo?, pensou.) - Naturalmente, faríamos todo o possível para reduzir ao mínimo os incômodos. Todas as instalações de ancoramento seriam soterradas dentro da montanha. Somente o elevador apareceria, e a uma certa distância seria inteiramente invisível. O aspecto geral da montanha em nada se alteraria. Até mesmo sua famosa sombra, que acabei de admirar, praticamente não seria afetada.
O Mahanayake Thero voltou-se para o colega, como que buscando confirmação disso. O venerável Parakarma olhou diretamente para Morgan e perguntou: — E quanto ao ruído?
Maldição, pensou Morgan. Aquele era seu ponto fraco. As cargas emergiriam da montanha a uma velocidade de várias centenas de quilômetros por hora — quanto maior a velocidade imprimida pelo sistema terrestre, menores as tensões suportadas pela torre suspensa. Claro, passageiros não poderiam tolerar mais que meio G, aproximadamente, mas as cápsulas ainda assim partiriam numa velocidade não muito inferior à do som.
- Haverá algum ruído aerodinâmico - admitiu Morgan. - Mas em nada semelhante ao que se ouve perto de um grande aeroporto.
- Muito confortador - disse o Mahanayake Thero. Morgan tinha certeza de que ele estava sendo sarcástico, mas não conseguia detectar sinais de ironia em sua voz. Ele estava exibindo uma calma olímpica ou queria testar as reações do visitante. O monge mais jovem, por outro lado, não procurava disfarçar sua fúria.
- Há anos - disse ele, indignado - temos protestado contra os incômodos causados por engenhos convencionais quando voltam a entrar na atmosfera. Agora, o senhor sugere gerar ondas de choque... em nosso quintal.
- Nossas operações não serão transônicas, nessa altitude - respondeu Morgan com firmeza. - E a estrutura da torre absorverá a maior parte da energia sônica. Na verdade - acrescentou ele, procurando destacar algo que subitamente percebeu tratar-se de uma vantagem -, a longo prazo vamos ajudar a eliminar os estrondos de reentrada. A montanha se tornará um local até mais tranqüilo.
- Compreendo. Ao invés de concussões ocasionais, teremos um rugido constante.
Não estou conseguindo nada com esse camarada, pensou Morgan. E havia esperado que o Mahanayake Thero fosse o maior obstáculo...
Talvez fosse melhor mudar de assunto inteiramente. Morgan resolveu mergulhar o pé no atoleiro movediço da teologia.
- Não haverá nenhum acerto - disse com ardor - no que estamos tentando fazer? Nossos propósitos podem ser diferentes, mas os resultados finais têm muito em comum. O que esperamos construir é apenas uma extensão de sua escadaria. Se me permitem a expressão, nós estamos estendendo-a... até o céu.
Por um momento, o venerável Parakarma pareceu atônito diante daquela blasfêmia. Antes que se recuperasse, seu superior respondeu mansamente: — Um conceito interessante... mas nossa filosofia não acredita no céu. A salvação que porventura existir só pode ser encontrada neste mundo, e às vezes eu me admiro de sua ansiedade para deixá-lo. Conhece a história da Torre de Babel?
- Vagamente.
- Sugiro que o senhor a leia na antiga Bíblia cristã... Gênese, 2. Aquele também foi um projeto de engenharia destinado a chegar aos céus. Mas fracassou, devido a dificuldades de comunicação.
- Certamente teremos problemas, mas não creio que este será um deles.
No entanto, olhando para o venerável Parakarma,
Morgan não teve tanta certeza. Havia ali um problema de comunicação que, de certa forma, era maior do que o existente entre o Homo sapiens e Sideronauta. Falavam a mesma língua, mas havia entre eles abismos de incompreensão que jamais seriam vencidos.
- Permita-me perguntar - continuou o Mahanayake com imperturbável cortesia -, o senhor teve êxito com o Departamento de Parques e Florestas?
- Mostraram-se extremamente cooperativos.
- Não me surpreendo. O déficit orçamentário deles é crônico, e uma nova fonte de receitas seria muito conveniente. O teleférico foi uma verdadeira benesse, e sem dúvida esperam que seu projeto venha a ser outra maior ainda.
- Eles têm razão. E aceitaram o fato de que o projeto não criará problemas ambientais.
- Suponhamos que o sistema desabe... Morgan olhou fixamente para o venerável monge.
- Não vai desabar - disse ele, com toda a autoridade do homem cujo arco-íris invertido ligava agora dois continentes.
Mas sabia, e o implacável Parakarma devia saber também, que em tais assuntos era impossível a certeza absoluta. Duzentos e dois anos antes, a 7 de novembro de 1940, aquela lição se fixara de maneira inesquecível.
Morgan tinha alguns pesadelos, mas o desabamento não era um deles. Naquele momento, os computadores da empresa terráquea estavam tentando exorcizá-lo.
Entretanto, nem todo o poder de computação do universo poderia protegê-lo dos problemas que ele não havia previsto - os pesadelos que ainda não haviam nascido.
As borboletas de ouro
Apesar do sol forte e dos cenários deslumbrantes que se descortinavam por toda parte, Morgan adormeceu profundamente antes que o carro chegasse às planícies. Nem mesmo as inúmeras curvas fechadas o mantinham desperto - mas ele acordou de repente quando o motorista freou com violência e ele foi arremessado para a frente, sendo detido pelo cinto de segurança.
Durante um instante de inteira confusão, Morgan julgou que estivesse dormindo. A brisa que entrava docemente pelas janelas entreabertas era tão morna e úmida, que ele sentiu como se acabasse de sair de um banho turco. No entanto, aparentemente, o carro fora detido por uma cegante tempestade de neve.
Morgan piscou, apertou os olhos e abriu-os para a realidade. Era a primeira vez que via neve dourada...
Um denso enxame de borboletas atravessava a estrada, rumando para leste, numa migração contínua e deliberada. Algumas tinham entrado no carro, e batiam as asas freneticamente até que Morgan as expulsasse; outras tinham se achatado contra o pára-brisa. Com uma saraivada de expletivos em taprobani, provavelmente obscenos, o motorista saiu e limpou o vidro. Quando terminou a tarefa, o enxame se reduzira a um punhado de retardatárias isoladas.
- Eles lhe contaram a lenda? - perguntou o chofer, voltando-se para o passageiro.
- Não - respondeu Morgan, num tom seco. Não estava absolutamente interessado, ansioso para retomar o sono interrompido.
- As Borboletas de Ouro... são as almas dos guerreiros de Kalidasa... O exército que perdeu em Yakkagala.
Morgan soltou um resmungo sem entusiasmo, na esperança de que o homem entendesse aquela mensagem. Mas o motorista prosseguiu inexoravelmente.
- Todos os anos, mais ou menos nessa época, elas voam para a montanha, e morrem todas nas partes mais baixas. Às vezes, a gente as encontra na subida pelo teleférico, a meio caminho, mas não passam daí. Isso é uma sorte para o Vihara.
- O Vihara? - perguntou Morgan sonolento.
- O templo. Se algum dia chegarem lá, Kalidasa terá vencido, e os bhikkus... os monges... terão de sair. Essa é a profecia... Está gravada numa pedra no Museu de Ranapura. Posso mostrá-la ao senhor.
- Talvez outro dia - disse Morgan, apressado, recostando-se na poltrona estofada. Entretanto, passaram-se muitos quilômetros antes que ele adormecesse de novo, pois alguma coisa na profecia que o motorista invocara o perseguia.
Ele se lembraria daquela lenda freqüentemente nos meses vindouros - ao despertar, e em momentos de tensão ou crise. Mais uma vez, mergulhava naquela tempestade dourada, enquanto os milhões de insetos condenados dissipavam suas energias num assalto inútil contra a montanha e tudo quanto ela simbolizava.
Mesmo no exato momento em que se iniciava sua campanha, aquela visão estava próxima demais para que ele tivesse sossego.
Às margens do lago Saladino
"Quase todas as simulações computadorizadas de história alternativa indicam que a Batalha de Tours (732 d.C.) foi um desastre crucial para a humanidade. Se Carlos Martel tivesse sido derrotado, o Islã podia ter resolvido as divergências internas que o estavam despedaçando, prosseguindo em sua marcha para conquistar a Europa. Assim, evitar-se-iam séculos de barbárie cristã, a Revolução Industrial teria começado quase mil anos antes, e atualmente estaríamos chegando às estrelas mais próximas, e não meramente aos planetas exteriores...
Mas o destino não quis assim, e os exércitos do Profeta retornaram à África. O Islã persistiu, como um fóssil fascinante, até o fim do século XX. Depois, abruptamente, dissolveu-se em petróleo..."
(Discurso do presidente, Simpósio do Bicentenário de Toynbee, Londres, 2089.)
- Sabia - perguntou o xeque Faruk Abdulá - que nomeei a mim mesmo grande-almirante da Esquadra do Saara?
- Eu não ficaria surpreso, senhor presidente - respondeu Morgan, enquanto contemplava a superfície azul e cintilante do lago Saladino. - Se não se tratar de um segredo militar, quantos navios o senhor tem?
— No momento, dez. O maior é um hidroplano de trinta metros, operado pelo Crescente Vermelho. Passa os fins de semana salvando marinheiros incompetentes. Meu povo ainda não tem familiaridade com a água... veja aquele idiota tentando virar de bordo! Afinal de contas, duzentos anos não é muito tempo para passar de camelos para barcos.
- Nesse ínterim, os senhores tiveram Cadillacs e Rolls-Royces. Isso deve ter facilitado a transição.
- E nós ainda os temos. O Silver Ghost de meu tetravô ainda funciona como se fosse novo. Mas devo ser justo... são os visitantes que se metem em dificuldades, tentando enfrentar os ventos locais. Nós só usamos embarcações a motor. E, no ano que vem, vou receber um submarino capaz de atingir a profundidade máxima do lago, que é de setenta e oito metros!
- Para quê?
- Agora, vieram dizer que o Erg estava cheio de tesouros arqueológicos. É claro, ninguém se preocupou com eles antes de se fazer a inundação.
De nada adiantava querer apressar o presidente da RANA - República Autônoma Norte-Africana -, e Morgan não era tolo para tentá-lo. Não importava o que a Constituição dissesse: o xeque Abdulá controlava mais poder e riquezas do que quase qualquer outra pessoa na Terra. O mais importante é que compreendia os usos de ambas as coisas.
Era de uma família que não tinha medo de correr riscos, e muito raramente tinha motivos para lamentá-los. Seu primeiro c mais famoso desafio - que havia atraído contra ele o ódio de todo o mundo árabe por quase meio século - foi o investimento de seus abundantes petrodó-lares na ciência e na tecnologia de Israel. Aquela atitude de visão conduziu à exploração mineral do mar Vermelho, à derrota dos desertos e, muito depois, à Ponte de Gibraltar.
- Não preciso dizer-lhe, Van - disse o xeque finalmente, o quanto seu novo projeto me fascina. E, depois de tudo por que passamos juntos, enquanto a Ponte era construída, sei que você seria capaz de realizá-lo... se dispusesse de recursos.
- Obrigado.
- Mas quero fazer algumas perguntas. Ainda não está claro por que deve haver uma estação intermediária ... e por que estará situada a uma altitude de vinte e cinco mil quilômetros.
- Por várias razões. Precisávamos de uma grande usina de força naquele ponto, o que, de qualquer modo, exigiria obras enormes. Depois, ocorreu-me que sete horas era tempo demais para se ficar preso numa cabine apertada; além disso, dividir a viagem em duas partes criava várias vantagens. Não precisaríamos alimentar os passageiros em trânsito... poderiam comer e esticar as pernas na estação. Além disso, poderíamos melhorar o projeto das cápsulas. Só as da etapa inferior teriam de ser aerodinâmicas. As da etapa superior podiam ser muito mais simples e leves. A estação intermediária serviria não só como um ponto de baldeação, mas também como um centro de operações e de controle... e em última instância, acreditamos, seria uma excelente atração turística.
- Mas ela não está na metade do caminho! Fica a quase... ah... dois terços da distância até a órbita estacionaria.
- Certo. A metade do caminho ficaria a dezoito mil quilômetros de altura, e não vinte e cinco mil. Mas há outro fator... a segurança. Se a seção que está acima dela falhar, a estação intermediária não se precipitará sobre a Terra.
- Por quê?
- Ela terá momentum suficiente para manter uma órbita estável. Evidentemente, cairá em direção à Terra, mas sempre se manterá afastada da atmosfera. Por isso, será inteiramente segura... simplesmente uma estação espacial, girando numa órbita elíptica que levará dez horas para circundar a Terra. Duas vezes por dia, estará de volta ao ponto original, e por fim, poderia ser recuperada. Pelo menos teoricamente...
- E na prática?
- Ah, estou certo de que isso poderia ser feito. Com certeza, as pessoas e os equipamentos a bordo poderiam ser salvos. Mas não teríamos nem mesmo essa opção se a colocássemos numa altitude inferior. Qualquer coisa que caia de uma altitude inferior ao limite de vinte e cinco mil quilômetros atinge a atmosfera e se queima em cinco horas, ou menos.
- Você pretende anunciar esse fato aos passageiros durante a viagem Terra-Estação?
- Esperamos que estejam ocupados demais apreciando o panorama para se preocupar com isso.
- Parece que você está pensando num elevado panorâmico.
- Por que não? O percurso panorâmico mais alto de nosso planeta só atinge uma altitude de três quilômetros! Estamos falando de uma estação dez mil vezes mais alta.
Houve uma longa pausa, enquanto o xeque Abdulá pensava naquelas palavras.
- Perdemos uma oportunidade - disse ele por fim. - Poderíamos ter atingido uma altura de cinco quilômetros nos pilares da ponte.
- Ela constava do projeto original, mas foi abandonada pela razão habitual... economia.
- Talvez tenhamos cometido um erro... ela se pagaria por si mesma. E acabei de pensar numa outra coisa. .. Se esse... hiperfilamento... existisse na época, acho que a ponte poderia ter sido construída pela metade do preço.
- Eu não mentiria ao senhor, presidente. Por menos de um quinto. Mas a construção teria se atrasado por mais de vinte anos, de modo que o senhor não perdeu nada com isso.
- Preciso conversar sobre isso com meus contadores. Alguns deles ainda não estão convencidos de que foi uma boa idéia, mesmo que o crescimento do tráfego seja maior do que o previsto. Mas eu estou sempre repetindo-lhes que o dinheiro não é tudo... a República precisava da ponte, psicológica e culturalmente, além de economicamente. Sabe que dezoito por cento dos usuários só atravessam a ponte porque ela está ali, existe, e não por qualquer outro motivo? E depois, fazem o caminho de volta, embora tenham de pagar o pedágio de ambos os lados.
- Tenho a impressão - disse Morgan secamente - de lhe haver apresentado argumentos semelhantes, há muito tempo. Não foi fácil convencê-lo.
- Realmente. Lembro-me de que a Ópera de Sydney era seu exemplo predileto. Você gostava de lembrar quantas vezes ela se pagara... até em dinheiro, sem contar o prestígio.
- E não se esqueça das pirâmides.
O xeque riu.
- Como você as chamava? O melhor investimento na história da humanidade?
- Exatamente. Ainda rende dividendos de turismo, após quatro mil anos.
- Mas não é uma comparação justa, acho eu. Os custos operacionais delas não podem ser comparados com os da ponte... e muito menos com os de sua torre.
- A torre poderá durar mais do que as pirâmides. Será instalada num meio ambiente muito mais benigno.
- Uma idéia interessante. Você acredita mesmo que poderá funcionar vários milhares de anos?
- Não em sua forma original, é claro. Mas em princípio, sim. Quaisquer que sejam os avanços técnicos do futuro, não acredito que algum dia surja uma maneira mais eficiente e mais econômica de se chegar ao espaço. Pense na torre como outra ponte. Dessa vez, uma ponte para as estrelas... ou, pelo menos, para os planetas.
- E, mais uma vez, você gostaria que nós a financiássemos. Ainda levaremos vinte anos pagando a última ponte. Se seu elevador espacial estivesse em nosso território, ou fosse de importância direta para nós...
- Mas, presidente, em minha opinião é de interesse direto para o senhor. A República faz parte da economia terrestre, e o custo do transporte espacial é atualmente um dos fatores que limita seu desenvolvimento. Se o senhor examinar as estimativas das décadas de 50 e de 60...
- Eu as examinei. Muito interessante. Mas, embora não sejamos propriamente pobres, não poderíamos levantar nem uma parte dos recursos necessários. Ora, a torre absorveria todo o Produto Mundial Bruto de alguns anos!
- E o reembolsaria a cada quinze anos, perpetuamente.
- Se seus cálculos estiverem corretos.
- Estavam corretos, no caso da ponte. Mas o senhor tem razão, é claro, e não espero da RANA mais que o impulso inicial para mover a bola de neve. Assim que o senhor mostrar interesse, será muito mais fácil conseguir outros apoios.
- Por exemplo?
- O Banco Mundial. Os bancos planetários. O governo federal.
- E seus próprios empregadores, a Empresa de Construção Terráquea? Van, o que realmente está querendo?
É agora, pensou Morgan, quase com um suspiro de alívio. Finalmente, ele poderia conversar francamente com uma pessoa em quem podia confiar, uma pessoa importante demais para se envolver em pequenas intrigas burocráticas... mas capaz de compreender perfeitamente seus argumentos mais delicados.
- Tenho trabalhado nisso principalmente nas horas vagas... Neste momento exato, estou de férias. Aliás, foi exatamente assim que a ponte começou! Não sei se já lhe contei que, certa vez, recebi ordens oficiais para esquecê-la... Aprendi algumas lições nos últimos quinze anos.
- Esse relatório deve ter exigido muito tempo operando um computador. Quem pagou?
- Ah, disponho de amplas verbas de reserva. E meu grupo já está realizando estudos que nenhum outro é capaz de entender. Para lhe dizer a verdade, coloquei uma pequena equipe trabalhando na idéia, faz vários meses. O entusiasmo é tanto que também dedicam ao projeto a maior parte de seu tempo livre. Mas agora, ou nos comprometemos... ou abandonamos o projeto.
- Por acaso seu querido presidente sabe disso? Morgan sorriu, mas sem muito humor. - Claro que não, nem quero conversar com ele antes de definir todos os detalhes.
- Imagino algumas das complicações - disse o presidente argutamente. - Uma delas, creio eu, será assegurar que o senador Collins não invente a torre primeiro.
- Isso ele não pode fazer... a idéia já tem duzentos anos. Mas ele, e muitas outras pessoas, poderiam retardá-la. Quero que a torre esteja pronta enquanto eu ainda for vivo.
- E naturalmente, você pretende ser o encarregado da construção... Bem, o que gostaria que fizéssemos, exatamente?
- Trata-se meramente de uma sugestão, presidente... o senhor poderá ter uma idéia melhor. Forme um consórcio... que incluísse talvez a Autarquia da Ponte de Gibraltar, as empresas de Suez e do Panamá, a Companhia do Canal da Mancha, e a Empresa da Barragem de Behring. Depois, quando tudo estiver acertado, procure a ECT para pedir um estudo de viabilidade econômica. Nesse estágio, o investimento será desprezível.
- Da ordem de... ?
- Menos de um milhão. Sobretudo porque já fiz noventa por cento do trabalho.
- É depois?
- Depois, senhor presidente, com seu apoio financeiro, estarei livre para agir como quiser. Eu poderia continuar na ECT. Ou poderia me demitir e me associar ao consórcio... chamaremos a esse grupo Astrengenharia... Tudo dependeria das circunstâncias. Eu faria o melhor para o projeto.
- Parece uma atitude razoável. Acho que poderemos chegar a um acordo.
- Muito obrigado, senhor presidente - respondeu Morgan com sinceridade. - Só que há um obstáculo que temos de atacar imediatamente... talvez, antes mesmo de se criar o consórcio. Temos de ir à Corte Mundial e conseguir a jurisdição sobre a mais valiosa propriedade imobiliária da Terra.
A ponte que bailava
Mesmo naquela era de comunicações instantâneas e transporte global veloz, era conveniente ter-se um lugar que se pudesse chamar de escritório. Nem tudo podia ser guardado armazenado sob a forma de padrões de cargas eletrônicas. Ainda havia coisas como livros antigos, diplomas pessoais, prêmios e honrarias, modelos de engenharia, amostras de material, concepções artísticas de projetos (não tão precisas como as de um computador, porém muito ornamentais) e, naturalmente, o tapete de que todo executivo necessita para suavizar o impacto da realidade exterior.
O escritório de Morgan, aonde ele ia numa média de dez dias por mês, ficava no sexto andar, ou andar TERRA, da imensa sede da Empresa de Construção Terráquea, em Nairóbi. O andar de baixo pertencia à divisão MAR, e o de cima cabia à ADMINISTRAÇÃO - ou seja, ao senador Collins e seu império. O arquiteto, num assomo de simbolismo ingênuo, dedicara o último andar ao ESPAÇO. Havia até mesmo um pequeno observatório no terraço, com um telescópio de trinta centímetros que jamais funcionava direito, pois só era usado nas festas do escritório, e em geral para fins não-astronômicos. Os apartamentos superiores do Hotel Triplanetário, a apenas um quilômetro dali, eram alvos prediletos, pois, muitas vezes, abrigavam estranhas formas de vida... ou, pelo menos, de comportamento.
Morgan mantinha contato contínuo com suas duas secretárias, uma humana, e a outra, eletrônica, e por isso não esperava surpresas ao entrar no escritório, depois do rápido vôo que o trouxera da RANA. Segundo os critérios de uma época anterior, sua equipe era notavelmente pequena. Morgan tinha menos de trezentos homens e mulheres sob seu controle direto; mas a capacidade de computação e processamento de dados sob seu comando não era igualada pela população meramente humana de todo o planeta.
- Olá, como se saiu com o xeque? - perguntou Warren Kingsley, seu substituto e amigo de longa data, assim que ficaram sozinhos.
- Muito bem. Acho que chegamos a um acordo. Mas ainda não consigo acreditar que aquele problema estúpido esteja nos detendo. O que acha o departamento jurídico?
- Será mesmo indispensável uma decisão da Corte Mundial. Se o tribunal concordar em que se trata de um assunto de interesse público essencial, nossos santos amigos terão de se mudar... Só que, no caso de resolverem engrossar, surgirá uma situação das mais desagradáveis. Talvez você deva mandar um pequeno terremoto para ajudar a fazer com que mudem de idéia.
O fato de Morgan integrar a diretoria da Tectônica Geral era um velho motivo de piadas entre ele e Kingsley. Mas a TC (felizmente, talvez) nunca havia descoberto como controlar e dirigir terremotos, nem esperava fazê-lo. O máximo que podia fazer era prevê-los, minando sua energia inofensivamente, antes que pudessem causar grandes prejuízos. Mesmo nesse sentido, seus êxitos não passavam dos setenta e cinco por cento.
- Boa idéia - anuiu Morgan. - Vou pensar nisso. E quanto ao outro problema?
- Tudo pronto para a largada... quer ver agora?
- OK ... vamos ver o pior.
As janelas escureceram, e uma rede de linhas brilhantes surgiu no centro da sala.
- Veja isso, Van - disse Kingsley. - Este é o governo que nos causa problemas.
Fileiras de letras e números se materializaram no ar - velocidades, cargas, acelerações, tempos de trânsito -, e Morgan os absorveu com um olhar. O globo da Terra, com seus círculos da latitude e longitude, pairava um pouco acima do tapete. E erguia-se até pouco mais que a altura de um homem o fio luminoso que marcava a posição da Torre Orbital.
Alguma força invisível tinha começado a distender a linha de luz, afastando-a da vertical. A perturbação movia-se para cima, ao imitar, graças aos milhões de cálculos do computador, a ascensão de uma carga através do campo gravitacional da Terra.
- Qual é o deslocamento? - perguntou Morgan, enquanto seus olhos se esforçavam para seguir os detalhes da simulação.
- Agora, mais ou menos duzentos metros. Chegava a trezentos antes...
O fio partiu-se. No movimento em câmara lenta que representava velocidades reais de milhares de quilômetros por hora, os dois segmentos da torre partida começaram a se enrolar sobre si mesmos, afastando-se um do outro — um voltava para a Terra, enquanto o outro saltava como um chicote rumo ao espaço... Mas Morgan já não estava plenamente consciente do desastre imaginário que só existia na mente do computador. A ele, sobrepunha-se agora a realidade que o perseguia havia anos.
Ele já tinha visto aquele filme, velho de dois séculos, pelo menos cinqüenta vezes, e examinara alguns trechos quadro a quadro, até conhecer cada detalhe de cor. Afinal de contas, era a fita de cinema mais cara já rodada, pelo menos em tempo de paz. Havia custado ao Estado de Washington vários milhões de dólares por minuto.
Lá estava a ponte esguia (esguia demais!) e graciosa que transpunha o canyon. Não havia tráfego nela, mas um único carro havia sido abandonado no meio do percurso pelo motorista. E não era de admirar que ele houvesse procedido assim, pois a ponte estava se comportando de uma maneira nunca vista nos anais da engenharia.
Parecia impossível que milhares de toneladas de metal pudessem se retorcer naquele bale aéreo. Seria mais fácil crer que a ponte era feita de borracha, e não de aço. Ondulações vastas e lentas, com vários metros de amplitude, percorriam toda a largura do vão, de modo que a via de tráfego, suspensa entre os pilares, contorcia-se como uma serpente colérica. O vento que soprava no canyon fazia soar uma nota grave demais para ser percebida pelo ouvido humano, ao atingir a freqüência natural da bela e condenada estrutura. Fazia horas que as vibrações torsionais vinham se acumulando, mas ninguém sabia quando se daria o fim. A prolongada agonia já era testemunha de algo que os infelizes construtores bem gostariam de evitar.
De repente, os cabos de sustentação se partiram, saltando para o alto como açoites de aço assassinos. Girando e contorcendo-se, o tabuleiro desabou no rio, enquanto fragmentos da estrutura voavam em todas as direções. Mesmo quando era projetado à velocidade normal, o cataclisma final parecia filmado em câmara lenta. A escala do desastre era tamanha que a mente humana carecia de base para comparação. Na realidade, teria durado cerca de cinco segundos. Ao final daqueles momentos, a Ponte do Estreito de Tacoma conquistou um lugar sem paralelo na história da engenharia. Duzentos anos depois, havia uma fotografia de seus últimos momentos na parede do escritório de Morgan, com a legenda: "Um de nossos inventos que teve menos êxito".
Para Morgan, aquilo não era uma brincadeira, mas um lembrete permanente de que o inesperado sempre podia armar uma emboscada. Quando a Ponte de Gibraltar estava sendo projetada, ele examinara atentamente a análise clássica do desastre do estreito de Tacoma, feita por Von Kár-mán, e sacara todo o proveito possível de um dos mais dispendiosos erros do passado. Não houvera grandes problemas de vibração, mesmo durante os piores vendavais que sopravam do Atlântico, ainda que a pista se houvesse deslocado cem metros da linha central, exatamente como fora calculado.
No entanto, o Elevador Espacial representava um tamanho salto para o desconhecido que algumas surpresas desagradáveis eram quase certas. Era fácil estimar as forças do vento na parte atmosférica, mas era necessário levar em conta as vibrações induzidas pelas paradas e partidas das cargas — e até mesmo, numa estrutura tão enorme, os efeitos das marés do Sol e da Lua. E não só a ação individual dessas forças, mas também seu efeito coletivo. Talvez, além de tudo, um terremoto ocasional para complicar as coisas, na chamada análise do "caso tudo falhasse".
- Todas as simulações, nesse regime de toneladas de carga por hora, dão o mesmo resultado. As vibrações se acumulam, até que se dá uma fratura a mais ou menos quinhentos quilômetros. Temos de aperfeiçoar o sistema de amortecimento... drasticamente.
- Eu temia isso. De quanto mais precisamos?
- Mais dez megatons.
Esse número representava para Morgan uma certa satisfação sombria. Estava muito próximo da estimativa que tinha feito, usando sua intuição de engenheiro e os misteriosos recursos de seu subconsciente. Agora, o computador o confirmara. Eles teriam de aumentar em dez milhões de toneladas a massa de "ancoragem" em órbita.
Mesmo segundo critérios da Terra, tal massa não era coisa de somenos. Equivalia a uma esfera de rocha com cerca de duzentos metros de diâmetro. Cruzou o cérebro de Morgan uma imagem súbita do Yakkagala, tal como o vira pela última vez, sobranceiro contra o céu da Taprobana. Ter de levantar aquilo a uma altura de quarenta mil quilômetros no espaço! Felizmente, talvez não fosse necessário. Havia pelo menos duas alternativas.
Morgan sempre deixava que seus subordinados pensassem por si mesmos. Era a única maneira de delegar responsabilidades, tirava pesos de cima dele - e, em muitas ocasiões, seu grupo havia chegado a soluções que poderiam não ter lhe ocorrido.
- O que você sugere, Warren? - ele perguntou.
- Poderíamos usar um dos lançadores de carga lunar, e mandar para lá dez megatons de rochas lunares. Seria um trabalho caro e prolongado, e, além disso, haveria necessidade de uma grande operação espacial para colher o material e colocá-lo na órbita definitiva. Haveria ainda um problema psicológico...
- É, percebo. Não queremos outro San Luis Domingo...
San Luis fora uma aldeia sul-americana — felizmente pequena - que recebera uma carga extraviada de metal lunar processado, destinado a uma estação espacial de órbita baixa. A orientação do terminal falhara, e disso resultará a primeira cratera meteorítica feita pelo homem... além de duzentas e cinqüenta mortes. Desde então, a população do planeta Terra nunca esquecera a questão do tiro ao alvo celeste.
- Uma solução muito melhor seria capturar um asteróide. Estamos realizando uma pesquisa sobre os que têm órbitas adequadas, e encontramos três candidatos promissores. O que realmente desejamos é carbonáceo... depois, poderíamos usá-lo como fonte de matéria-prima quando instalamos a usina de processamento. Mataríamos dois pássaros com a mesma pedrada.
- Uma pedrada um pouco grande, mas provavelmente essa é a melhor idéia. Esqueça o lançador lunar. Um milhão de lançamentos de dez toneladas atrasaria o projeto durante anos, e certamente algumas das cargas se perderiam. Se não conseguirmos encontrar um asteróide suficientemente grande, sempre podemos subir massa extra pelo próprio elevador... muito embora eu deteste a idéia de desperdiçar toda essa energia.
- Talvez esse seja o meio mais barato. Com a eficiência das usinas de fusão mais recentes, só precisaremos de vinte dólares de eletricidade para colocar uma tonelada em órbita.
- Tem certeza quanto a esse preço?
- É uma cotação confirmada pela Usina Central.
Morgan ficou em silêncio alguns minutos. Depois, disse:
- Os engenheiros aeroespaciais ficarão realmente com ódio de mim. - Quase tanto, acrescentou para si mesmo, quanto o venerável Parakarma.
Não. Aquilo não era justo. O ódio não era uma emoção possível para um verdadeiro seguidor da Doutrina. O que Morgan tinha visto nos olhos do ex-dr. Choam Goldberg era simplesmente uma oposição implacável. Mas poderia ser igualmente perigosa.
Julgamento
Uma das mais irritantes manias de Paul Sarath eram seus telefonemas repentinos, joviais ou pesarosos, conforme as circunstâncias, que começavam invariavelmente com as palavras: "Já soube da última?" Embora Rajasinghe se sentisse, por vezes, tentado a dar a resposta genérica: "Já, não estou surpreso", nunca tinha tido coragem de roubar a Paul aquele prazer tão simples.
- Dessa vez, o que é? - respondeu, sem muito entusiasmo.
- Maxine está na Global Dois conversando com o senador Collins. Parece que nosso amigo Morgan entrou bem. Voltarei a ligar depois.
A imagem excitada de Paul desapareceu da tela, sendo substituída alguns segundos depois pela de Maxine Du-val, quando Rajasinghe sintonizou o principal canal noticioso. Ela estava em seu conhecido estúdio, conversando com o presidente da Empresa de Construção Terráquea, que parecia vítima de uma malcontida indignação - provavelmente fingida.
- Senador Collins, agora que foi divulgado o veredicto da Corte Mundial...
Rajasinghe ligou o botão GRAVAR, com um murmúrio:
- Pensei que isso só seria na sexta-feira. - Enquanto desligava o som e acionava sua linha particular com ARISTÓTELES, exclamou: - Meu Deus, hoje é sexta-feira!
Como sempre, Ari atendeu imediatamente.
- Bom dia, Raja. Em que lhe posso ser útil? Aquela voz, bela e despida de emoção, não tocada pela glote humana, jamais se modificara nos quarenta anos em que Rajasinghe a conhecia. Décadas, ou mesmo séculos depois que ele morresse, estaria conversando com outros homens da mesma forma como havia falado com ele. (Aliás, quantas conversas Ari estaria mantendo simultaneamente naquele momento?) No passado, aquela idéia deprimia Rajasinghe; atualmente, porém, não importava mais. Não invejava a imortalidade de Aristóteles.
- Bom dia, Ari, gostaria de receber o veredicto divulgado hoje pela Corte Mundial sobre o caso Empresa Astrengenharia ver sus Vihara Sri Kanda. O sumário servirá... forneça o texto integral depois.
- "Decisão 1. Concessão do local do templo confirmada em perpetuidade, segundo a lei da Taprobana e mundial, de acordo com o registro código 2085. Veredicto unânime."
" Decisão 2. A construção da proposta Torre Orbital, que acarretaria um alto nível de ruído, vibração e impacto, num sítio de grande importância histórica e cultural, constituiria um prejuízo privado, justificando ação legal com base na legislação de agravos. Por ora, o interesse público não tem mérito suficiente para tratar a questão. Veredicto por quatro a dois, e uma abstenção.' "
- Muito obrigado, Ari. Cancele o texto integral. Não será necessário. Adeus.
Muito bem, então as coisas tinham corrido tal como ele esperava. No entanto, ele não sabia ao certo se estava aliviado ou desapontado.
Devido à sua ligação com o passado, agradava-lhe que velhas tradições fossem apreciadas e preservadas. Se a sangrenta história da humanidade tivesse servido de lição para alguma coisa, essa lição era a de que somente os seres humanos individuais importavam. Por mais excêntricas que fossem suas crenças, deviam ser salvaguardadas, desde que não conflitassem com interesses gerais, mas igualmente legítimos. Como dissera mesmo o velho poeta? "Não existe isso que chamamos de Estado." Talvez houvesse nisso um certo exagero. Mas era melhor do que o outro extremo.
Ao mesmo tempo, entretanto, Rajasinghe sentia um certo desapontamento. Quase se convencera (ou estaria apenas cooperando com o inevitável?) de que a fantástica idéia de Morgan era exatamente o necessário para impedir que a Taprobana (e talvez o mundo inteiro, embora isso não fosse mais responsabilidade sua) aceitasse uma situação de declínio confortável e acomodado. Agora, a Corte havia vedado essa solução, pelo menos por muitos anos.
Rajasinghe imaginava o que Maxine teria a dizer a respeito do assunto, e ligou o painel para repetição retardada.
No Global Dois, o canal de análise das notícias (chamado às vezes de Terra das Cabeças Falantes), o senador Collins ainda invectivava.
- ...sem dúvida alguma, excedendo sua competência e usando os recursos de sua divisão em projetos que não lhe diziam respeito.
- Mas, senador, o senhor não estará se apegando excessivamente a tecnicismos legais? Segundo entendo, o hiperfilamento foi criado para fins de construção, principalmente de pontes. E isso não é uma espécie de ponte? Ouvi o dr. Morgan usar essa analogia, embora ele também a chame de torre.
- Maxine, quem está usando tecnicismos agora é você. Eu prefiro o nome "Elevador Espacial". E suas informações sobre o hiperfilamento não são corretas. Trata-se do resultado de duzentos anos de pesquisa aeroespacial. Se o aperfeiçoamento final do material ocorreu na Divisão Terrestre de minha... ah... organização, esse fato é irrelevante, ainda que, naturalmente, eu sinta orgulho pelo fato de meus cientistas estarem envolvidos no projeto.
- Em sua opinião, a obra deve ser entregue à Divisão Espacial?
- Que obra? Existe apenas um projeto, como centenas de outros que estão sendo constantemente desenvolvidos na ECT. Em geral, não tenho notícia deles... até chegarem ao estágio em que uma decisão tem de ser tomada.
- Não é o que ocorre neste caso?
- Seguramente, não. Meus peritos em transporte espacial afirmam que podem solucionar todos os aumentos projetados de tráfego... pelo menos no futuro previsível.
- O que significa isso exatamente?
- Mais vinte anos.
- E o que acontecerá depois? Segundo o dr. Morgan, vinte anos serão necessários para construir a torre. E se ela não estiver pronta em tempo?
- Então, teremos outra coisa. Meu grupo está estudando todas as possibilidades, e não há garantia alguma de que o Elevador Espacial seja a única resposta.
- Contudo, a idéia é correta?
- Parece ser, embora haja necessidade de estudos mais aprofundados.
- Nesse caso, o senhor será grato ao dr. Morgan por seu trabalho inicial?
- Tenho o máximo respeito pelo dr. Morgan. Ele é um dos engenheiros mais brilhantes de minha organização... até mesmo de todo o mundo.
- Senador, não creio que isso responda inteiramente à minha pergunta.
- Muito bem. Estou grato ao dr. Morgan por trazer essa questão à baila. Mas não aprovo o modo pelo qual procedeu. Se me permite uma expressão mais dura, ele tentou me pressionar.
- Como?
- Buscando apoio fora de minha organização — a organização que também é dele -, e demonstrando assim sua falta de lealdade. Como resultado de suas manobras, houve uma decisão adversa da Corte Mundial, que inevitavelmente provocou comentários desfavoráveis. Nas atuais circunstâncias, não tenho outra alternativa senão pedir... embora eu o lamente profundamente... que ele solicite sua exoneração.
- Muito obrigado, senador Collins. Como sempre, foi um prazer conversar com o senhor.
- Mentirosa! - comentou Rajasinghe, enquanto desligava o aparelho e recebia a chamada que vinha iluminando o painel há um minuto.
- Escutou tudo? - perguntou o professor Sarath. - Pronto. É o fim do dr. Vannevar Morgan.
Rajasinghe fitou pensativamente o amigo por alguns segundos.
- Você sempre foi dado a tirar conclusões apressadas, Paul. Quanto quer apostar?
Apóstata
"Levado ao desespero por suas tentativas infrutíferas de compreender o Universo, o sábio Devadasa finalmente anunciou, exasperado: 'Todas as afirmativas que contêm a palavra Deus são falsas.”
Imediatamente, Somasiri, seu discípulo menos dileto, respondeu: 'A declaração que estou proferindo neste instante contém a palavra Deus. Não consigo ver, nobre mestre, como uma sentença tão simples pode ser falsa.
Devadasa pensou no assunto durante vários poyas. Depois respondeu, dessa vez com visível satisfação: 'Só as afirmativas que não contenham a palavra Deus podem ser verdadeiras'.
Após uma pausa quase insuficiente para que um mangusto faminto engolisse uma semente de painço, Somasiri replicou: "Se essa afirmativa aplica-se a si própria, venerável, não pode ser verdadeira, pois contém a palavra Deus. Mas, se não for verdadeira...”
“Nesse ponto, Devadasa quebrou sua tigela de mendigo na cabeça de Somasiri, e por isso deve ser honrado como o verdadeiro fundador do Zen."
(De um fragmento do Culavamsa ainda não descoberto.)
No fim da tarde, quando a escadaria não era mais açoitada pela fúria do sol, o venerável Parakarma começou a descida. Na boca da noite, chegaria à mais alta das casas de descanso dos peregrinos. E, no dia seguinte, estaria de volta ao mundo dos homens.
O Maha Thero não o encorajara nem desestimulara, e, se via a partida do colega com tristeza, não deu sinal disso. Declarou apenas: "Todas as coisas são passageiras". Depois, juntou as mãos e impôs sua bênção.
O venerável Parakarma, que já tinha sido o dr. Choam Goldberg e que podia voltar a sê-lo, teria grande dificuldade para explicar todos os seus motivos. Era fácil dizer "providência correta"; difícil era tomá-la.
No Vihara de Sri Kanda, ele havia encontrado paz de espírito - mas isso não bastava. Com seu treinamento científico, não se satisfazia mais com a atitude ambígua da Ordem em relação a Deus. Por fim, aquela indiferença parecera pior que a negação pura e simples.
Se existisse um gene rabínico, o dr. Goldberg seria seu possuidor. Como muitos antes dele, Goldberg-Parakarma buscara Deus na matemática, sem se deixar abater nem mesmo pela bomba que Hurt Godel, com a descoberta das proposições inconclusíveis, fizera explodir no começo do século XX. Não conseguia entender como alguém podia contemplar a assimetria dinâmica do enunciado de Euler, profundo e ao mesmo tempo maravilhosamente simples: e tr i + 1 = 0, sem imaginar que o universo fora criado por uma enorme inteligência.
Granjeando fama com uma nova teoria cosmológica que sobrevivera dez anos, até ser refutada, Goldberg havia sido saudado como um outro Einstein ou N'Goya. Numa época de ultra-especialização, conseguira progressos notáveis na aero e na hidrodinâmica, havia muito consideradas disciplinas mortas, incapazes de proporcionar surpresas.
Então, no auge de sua glória, passara por uma conversão religiosa, semelhante à de Pascal, ainda que com menos matizes mórbidos. Nos dez anos seguintes, contentara-se com o anonimato, ocupando sua mente brilhante com questões de doutrina e filosofia. Não lamentava esse interlúdio, nem sequer tinha certeza de haver abandonado a Ordem. Um dia, quem sabe, ele voltaria àquela escadaria. Mas os talentos que Deus lhe dera se reafirmavam. Havia muito trabalho a ser feito, e ele necessitava de instrumentos que não conseguia encontrar em Sri Kanda - nem, aliás, em qualquer parte da Terra.
Sentia pouca hostilidade, agora, contra Vannevar Morgan. Ainda que inadvertidamente, o engenheiro havia provocado a centelha. À sua maneira atabalhoada, também ele era um agente de Deus. No entanto, o templo tinha de ser protegido a todo o custo. Quer a roda da Fortuna o devolvesse à sua tranqüilidade ou não, Parakarma tomara um partido definitivo sobre o assunto.
E assim, como um novo Moisés, que trouxera do alto da montanha leis que mudariam os destinos dos homens, o venerável Parakarma desceu ao mundo a que, de certa feita, renunciara. Estava cego para as belezas da terra e do céu a seu redor. Elas eram imensamente triviais comparadas àquelas que só ele podia ver, nos exércitos de equações que desfilavam por seu espírito.
Trator cósmico
- Seu problema, dr. Morgan - disse o homem da cadeira de rodas -, é que o senhor está no planeta errado.
- Imagino - respondeu Morgan, olhando deliberadamente para o sistema de manutenção da vida de seu visitante - que quase a mesma coisa pode ser dita do senhor.
O vice-presidente (de Investimentos) da Narodny Marte riu.
- Pelo menos, vim para passar só uma semana ... depois, voltarei para a Lua e para uma gravidade civilizada. Ah, consigo andar, se for necessário, mas prefiro assim.
- Se me permite a pergunta, por que o senhor vem à Terra?
- Faço isso o mínimo possível, mas às vezes tenho de estar onde acontecem as coisas. Ao contrário do que se crê em geral, não se pode fazer tudo através de robôs. Tenho certeza de que o senhor sabe disso.
Morgan anuiu. Pensou nas inúmeras vezes em que a textura de um material, a sensação da pedra ou do solo sob seus pés, o cheiro de uma selva, o borrifo da água em sua pele haviam desempenhado um papel vital em seus projetos. Algum dia, talvez até mesmo aquelas sensações pudessem ser reproduzidas pela eletrônica — na verdade, isso já tinha sido feito experimentalmente, de modo aproximado e grosseiro, e a um custo enorme. Mas não havia sucedâneo para a realidade. Era preciso ter cuidado com as imitações.
- Se o senhor veio à Terra especialmente para me ver - respondeu Morgan-, agradeço-lhe por essa honra. Mas, se o senhor está me oferecendo um emprego em Marte, está perdendo tempo. Estou gostando de minha aposentadoria, visito amigos e parentes que não via há anos, e não tenho nenhuma intenção de iniciar uma nova carreira.
- Acho isso surpreendente. Afinal, o senhor só tem cinqüenta e dois anos. Como pensa ocupar seu tempo?
- Será fácil. Eu poderia passar o resto da vida trabalhando em qualquer um de uma dúzia de projetos. Os engenheiros antigos - os romanos, os gregos, os incas - sempre me fascinaram, e eu nunca tive tempo para estudá-los. Pediram-me que escrevesse um curso para a Universidade
4 Global sobre ciência de projetos. Encomendaram-me um livro didático sobre estruturas avançadas. Gostaria de desenvolver algumas idéias sobre o uso de elementos ativos para correção de cargas dinâmicas - ventos, terremotos, essas coisas -, e ainda sou consultor da Tectônica Geral. E estou preparando um relatório sobre a administração da ECT.
- A pedido de quem? Não acho que tenha sido do senador Collins...
- Não - disse Morgan, com um sorriso feroz. - Achei que o relatório seria... útil. E ajudará a aliviar meus sentimentos.
- Estou certo disso. Mas todas essas atividades não são realmente criativas. Mais cedo ou mais tarde, elas vão cansá-lo... como essa bela paisagem norueguesa. O senhor vai ficar enjoado de lagos e coníferas, da mesma forma como se cansará de escrever e proferir palestras. O senhor é o tipo de homem que nunca será realmente feliz, dr. Morgan, a menos que esteja dando forma a seu universo.
Morgan não respondeu. O diagnóstico era preciso demais.
- Tenho a impressão de que o senhor concorda comigo. O que diria se lhe contasse que meu banco estava seriamente interessado no projeto do elevador espacial?
- Ficaria cético. Quando os procurei, disseram que a idéia era ótima, mas que não podiam investir nenhuma verba naquela etapa. Todos os recursos disponíveis eram necessários para o desenvolvimento de Marte. É a velha história: teremos todo o prazer em ajudá-lo quando você não precisar de ajuda.
- Isso foi há um ano. Depois, pensou-se melhor. Gostaríamos que o senhor construísse o Elevador Espacial... mas não na Terra. Em Marte. Está interessado?
- Quem sabe? Fale mais sobre isso.
- Veja as vantagens. Somente um terço da gravidade, de modo que as forças envolvidas são correspondentemente menores. As órbitas síncronas também são mais próximas... menos da metade da altitude daqui. Por isso, logo de saída, os problemas de engenharia ficariam enormemente reduzidos. Nosso grupo calcula que o sistema de Marte custaria menos de um décimo do que o da Terra.
- É bem possível, ainda que eu tivesse de fazer os cálculos de novo.
- E isso é apenas o começo. Temos alguns vendavais terríveis em Marte, apesar de nossa atmosfera rarefeita... mas também temos montanhas que ficam muito acima deles. Sri Kanda tem apenas cinco quilômetros de altitude. Nós temos o monte Pavonis. Vinte e um quilômetros, e exatamente no equador! Melhor ainda, não existem monges marcianos com concessões perpétuas, instalados no topo das montanhas... E há ainda outra razão que faz crer que Marte é o lugar ideal para um elevador espacial. Deimos fica a apenas três mil quilômetros da órbita estacionaria. Assim, já dispomos de alguns milhões de megatons colocados exatamente no lugar adequado para a ancoragem.
- Isso apresentará alguns problemas interessantes de sincronização, mas entendo o que o senhor quer dizer. Gostaria de me encontrar com as pessoas que conceberam essa idéia.
- Todas estão em Marte. O senhor teria de ir até lá.
- A idéia me tenta, mas eu gostaria de fazer outras perguntas.
- Fale.
- A Terra precisa do elevador, por todos os motivos que o senhor sem dúvida conhece. Mas parece-me que Marte poderia passar sem ele. Os senhores têm apenas uma fração de nosso tráfego espacial, e o aumento previsto é muito menor. Francamente, a idéia não me parece muito cabível.
- Estava esperando que dissesse isso.
- Bem, estou dizendo-o.
- Já ouviu falar no projeto Éos?
- Creio que não.
- Éos... Em grego, significa Alvorada... É um plano para rejuvenescer Marte.
- Ah, é claro. Envolve o descongelamento das calotas polares, não é?
- Exatamente. Se pudéssemos descongelar toda aquela água e o gás carbônico, muitas coisas aconteceriam. A densidade atmosférica aumentaria, e homens poderiam trabalhar ao ar livre sem trajes espaciais. Num estágio posterior, seria possível até mesmo tornar o ar respirável. Haveria água corrente, pequenos mares... e, acima de tudo, vegetação... os começos de uma biota cuidadosamente planejada. Dentro de alguns séculos, Marte poderia ser um novo jardim do Éden. É o único planeta do sistema solar que podemos transformar com a tecnologia conhecida. Vênus talvez permaneça para sempre quente demais.
- E onde entra o elevador nessa história?
- Temos de colocar em órbita milhões de toneladas de equipamento. A única maneira prática de aquecer Marte seriam espelhos solares com centenas de quilômetros de diâmetro. E vamos necessitar deles permanentemente... Primeiro, para derreter as calotas polares, e depois, para manter uma temperatura confortável.
- Os senhores não poderiam obter esse material em suas minas nos asteróides?
- Parte dele, é claro. Mas os melhores espelhos para essa tarefa são feitos de sódio, um elemento raro no espaço. Vamos ter de obtê-los nos depósitos de sal em Tharsis... bem perto dos contrafortes do Pavonis, por sorte.
- E quanto tempo demorará isso?
- Se não houver problemas, o primeiro estágio poderá estar completo em cinqüenta anos. Talvez por ocasião de seu centésimo aniversário. Os atuários dizem que o senhor tem trinta e nove por cento de probabilidades de chegar lá.
Morgan riu.
- Admiro as pessoas que fazem um bom trabalho de pesquisa.
- Não sobreviveríamos em Marte se não prestássemos toda a atenção aos detalhes.
- Bem, a idéia me causa boa impressão, mas ainda tenho muitas reservas. O financiamento, por exemplo...
- Isso compete a mim, dr. Morgan. Eu sou o banqueiro. O senhor é o engenheiro.
- Certo, mas, assim como o senhor parece saber muito a respeito de engenharia, eu também tive de aprender um bocado de economia... muitas vezes, pelo método mais cruel. Antes de sequer pensar em me envolver num projeto desses, gostaria de ter um orçamento pormenorizado...
- Isso pode ser fornecido...
- ... apenas para começar. Talvez o senhor não saiba que há uma enorme quantidade de pesquisa a ser feita com relação a meia dúzia de assuntos... a produção em massa do material do hiperfilamento, problemas de controle e estabilidade... poderia falar sobre essas coisas a noite inteira.
- Não será necessário. Nossos engenheiros já leram todos os seus relatórios. O que estão propondo é uma experiência em pequena escala que há de solucionar muitos problemas técnicos, provando que a idéia básica é correta...
- Não há dúvida alguma quanto a isso.
- Concordo, mas é impressionante a diferença que uma pequena demonstração prática pode fazer. Portanto, é isso o que gostaríamos que o senhor fizesse. Desenhe um sistema mínimo... apenas um fio com uma carga de alguns quilogramas. Depois, faça-a descer da órbita sincrônica até a Terra... sim, a Terra. Se funcionar aqui, será fácil em Marte. Depois, faça subir alguma coisa até lá, a fim de mostrar que os foguetes estão obsoletos. A experiência será relativamente barata, e proporcionará informações essenciais e treinamento básico... E, do nosso ponto de vista, poupará anos de discussões. Poderemos discutir com o governo mundial, o Fundo Solar, os outros bancos interplanetários... e apenas mencionar a demonstração.
- O senhor realmente pensou em tudo! Quando gostaria de ter minha resposta?
- Para ser honesto, dentro de mais ou menos cinco segundos. Mas, evidentemente, não há tanta urgência. Pense durante um tempo razoável.
- Muito bem. Dê-me seus dados, as análises de custo e todos os materiais que tiver. Assim que eu estudar essas coisas, eu lhe comunicarei minha decisão... dentro de uma semana, no máximo.
- Muito obrigado. Aqui está meu número. O senhor poderá falar comigo a qualquer hora.
Morgan introduziu o cartão de identidade do banqueiro na fenda de memória do seu comunicador, e verificou o ENTRADA CONFIRMADA no mostrador. Antes de devolver o cartão, já tomara sua decisão.
A menos que houvesse um erro básico na análise marciana - e ele apostaria alto em que tudo estava correto —, sua aposentadoria estava finda. Morgan já observara várias vezes, até achando graça, que, se por um lado pensava muito tempo para tomar decisões relativamente banais, nunca havia hesitado nos momentos críticos de sua carreira. Sempre soubera o que fazer, e raramente cometera enganos.
No entanto, naquela altura do jogo, seria melhor não investir muito capital intelectual ou emocional num projeto que podia dar em nada. Depois que o banqueiro partiu, na primeira etapa de sua viagem de volta a Porto Tranqüilidade, via Oslo e Gagárin, Morgan concluiu ser impossível dedicar-se a qualquer das atividades que havia planejado para a longa noite setentrional. Sua mente estava em tumulto, explorando todo o espectro de futuros subitamente modificado.
Depois de alguns minutos andando de um lado para o outro, sentou-se à mesa e começou a relacionar as prioridades numa espécie de ordem inversa, começando com os compromissos que ele podia deixar de lado com facilidade. Logo, porém, ele compreendeu ser impossível concentrar-se naquelas questões de rotina. Bem no fundo de sua mente, alguma coisa o espicaçava, tentando atrair sua atenção. Quando procurava concentrar-se nela, a imagem lhe fugia, como uma palavra familiar momentaneamente esquecida.
Com um suspiro de frustração, Morgan afastou-se da mesa e caminhou até a varanda que percorria toda a fachada oeste do hotel. Embora fizesse muito frio, o ar estava parado, e a temperatura, inferior a zero, era mais um estímulo do que um desconforto. O céu era uma fornalha de estrelas, e o crescente amarelo da Lua mergulhava em direção a seu reflexo no fiorde, cuja superfície era tão negra e imóvel que poderia ser confundida com ébano polido.
Trinta anos antes, ele estivera quase naquele mesmo lugar com uma moça de cujo rosto já não conseguia lembrar-se claramente. Estava comemorando seus primeiros êxitos acadêmicos, e isso na verdade era tudo o que tinham em comum. Não se passara entre eles nada de sério. Ambos eram jovens e gostavam da companhia um do outro — e isso fora suficiente. No entanto, por algum motivo, aquela lembrança vaga o levara de volta ao fiorde Trollshavn, naquele momento crucial de sua vida. O que teria pensado o jovem estudante de vinte e dois anos, se pudesse saber que seus passos o levariam de volta àquele lugar de prazeres recordados, três décadas depois?
Não havia nenhum traço de autocompaixão no devaneio de Morgan - apenas uma espécie de humor melancólico. Nunca, por um só instante, ele lamentara o fato de ter se despedido de Ingrid como amigo, sem pensar no habitual contrato de experiência de um ano. Ela seguira seu destino, infernizando moderadamente a vida de três outros homens, antes de conseguir um emprego na Comissão Lunar, e Morgan tinha perdido a pista dela. Quem sabe naquele exato momento ela não estaria naquele crescente brilhante, cuja cor era quase igual à de seus cabelos?
Morgan cansou de pensar no passado e voltou seus pensamentos para o futuro. Onde ficava Marte? Sentiu vergonha ao admitir que não sabia sequer se o planeta estaria visível naquela noite. Ao correr o olho pela eclíptica, desde a Lua até o luzeiro resplendente de Vênus, e mais além, não viu nada naquela profusão de jóias que ele pudesse identificar com certeza como o planeta vermelho. Era excitante pensar que, no futuro não muito distante, ele — que nunca viajara sequer além da órbita lunar! — poderia estar vendo com seus próprios olhos aqueles magníficos cenários escar-lates, e observando as pequeninas luas trocarem de fase rapidamente.
Naquele momento, o sonho ruiu. Morgan permaneceu paralisado por um momento, e depois voltou correndo para o hotel, esquecendo-se do esplendor da noite.
Não havia um painel para uso geral em seu apartamento, de modo que ele teve de descer ao saguão para obter a informação de que necessitava. Por azar, o cubículo estava ocupado por uma senhora idosa que demorou tanto para descobrir o que queria que Morgan quase bateu na porta. Mas, finalmente, ela saiu, resmungando um pedido de desculpas, e Morgan viu-se face a face com a arte e o conhecimento acumulados por toda a humanidade.
Em seu tempo de estudante, ganhara vários campeonatos de recuperação de informações, correndo contra o relógio enquanto desencavava dados obscuros, constantes de listas preparadas por juizes engenhosamente sádicos. ("Qual a precipitação sobre a capital do menor Estado nacional do mundo no dia em que se registrou o segundo recorde de home runs na história do beisebol universitário?", era uma das de que se lembrava com particular afeição.) Sua habilidade só fizera aumentar com os anos, e aquela era uma pergunta bem simples. A resposta apareceu no mostrador em trinta segundos, com mais detalhes do que ele necessitava.
Morgan estudou o vídeo durante um minuto, e depois balançou a cabeça, perplexo.
- Não é possível que tenham se esquecido disso! - murmurou. - Mas o que podiam fazer?
Morgan apertou o botão IMPRIMIR e levou a fina folha de papel para o quarto, a fim de estudá-la com mais detalhes. O problema era tão assustadoramente óbvio que ele suspeitou ter esquecido alguma solução igualmente óbvia, correndo o risco de passar por um idiota se levantasse a questão. No entanto, não havia escapatória possível...
Olhou para seu relógio. Já passava da meia-noite. Mas aquilo era algo que tinha de resolver imediatamente.
Para alívio seu, o banqueiro não havia apertado o botão LIGAÇÕES SUSPENSAS. Respondeu imediatamente, parecendo um pouco surpreso.
- Espero que eu não o tenha acordado - disse Morgan com sinceridade.
- Não... Estamos quase pousando em Gagárin. Qual é o problema?
- Mais ou menos dez teratons que se movem numa velocidade de dois quilômetros por segundo. A lua interior, Fobos. É um trator cósmico, e passará pelo elevador a cada onze horas. Ainda não defini as possibilidades exatas, mas é inevitável uma colisão num intervalo de poucos dias.
O silêncio foi longo no outro lado do circuito. Depois, o banqueiro disse: — Até eu poderia ter pensado nisso. Por isso, evidentemente alguém sabe a resposta. Talvez tenhamos de mudar Fobos de lugar.
- Impossível. A massa é grande demais.
- Vou ter de ligar para Marte. No momento, a demora é de doze minutos. Deverei obter resposta dentro de uma hora.
Espero que sim, pensou Morgan. E é bom que seja convincente... Isto é, se é que realmente deseja projetar essa obra.
O dedo de Deus
A Dendrobium macathiae florescia, em geral, com a chegada da monção de sudoeste, mas naquele ano aconteceu mais cedo. Em seu orquidário, admirando as belas flores violáceas e róseas, Johan Rajasinghe lembrou-se de que, na última estação, ficara detido por uma chuvarada torren-cial de meia hora, enquanto examinava as primeiras flores.
Olhou ansiosamente para o céu. Não, era pequeno o perigo de chuva. Fazia um belo dia, com nuvens ralas e altas que moderavam a intensidade do sol. Mas aquilo era estranho...
Rajasinghe nunca tinha visto nada semelhante. Quase no zênite, as faixas paralelas de nuvens eram interrompidas por uma perturbação circular. Parecia uma pequena tempestade ciclônica, com alguns quilômetros de diâmetro, mas lembrava a Rajasinghe uma coisa completamente diferente - um nó de madeira que irrompesse dos grãos de uma tábua bem aplainada. Abandonou suas amadas orquídeas e saiu do orquidário para admirar melhor o fenômeno. Agora, percebia que o pequeno rodamoinho se movia lentamente no céu, ficando seu caminho claramente marcado pela distorção das faixas de nuvens.
Era como se o dedo de Deus descesse do céu, traçando um sulco entre as nuvens. Até Rajasinghe, que conhecia os princípios básicos do controle meteorológico, não fazia idéia de que tal precisão fosse possível. Mas ele se orgulhava de que, quase quarenta anos antes, tivesse desempenhado um papel naquele feito.
Não fora fácil persuadir as superpotências sobreviventes a abrir mão de suas fortalezas orbitais e passá-las à Autarquia Meteorológica Global, naquilo que foi — se a metáfora fosse cabível — o último e mais espetacular exemplo de como transformar espadas em arados. Agora, os lasers
que no passado ameaçavam a humanidade dirigiam seus raios para porções cuidadosamente escolhidas da atmosfera, ou para áreas-alvo termoabsorvente em regiões remotas da Terra. A energia que continham era insignificante, em comparação com a de uma leve tempestade. Contudo, ínfima também é a energia da pedra que cai e gera a avalanche, ou do único nêutron que provoca uma reação em cadeia.
Além desse ponto, Rajasinghe nada sabia dos detalhes técnicos, exceto que envolviam redes de satélites de monitoração e computadores, que retinham em seus cérebros eletrônicos um modelo completo da atmosfera das superfícies terrestres e dos mares. Ele se sentia mais ou menos como um selvagem atônito, apalermado ante as maravilhas de uma tecnologia avançada, enquanto via o pequeno ciclone mover-se deliberadamente na direção oeste, até desaparecer sob o gracioso renque de palmeiras, logo depois das muralhas dos Jardins das Delícias.
Depois, ele olhou para os engenheiros e cientistas invisíveis que davam a volta ao mundo em seu céu artificial.
- Tudo em ordem - disse ele. - Mas espero que saibam exatamente o que estão fazendo.
Roleta orbital
- Eu devia ter adivinhado - disse o banqueiro, contristado - que isso estaria num dos apêndices técnicos que nunca examinei. E, agora que o senhor leu todo o relatório, gostaria de ouvir sua resposta. O senhor me deixou preocupado desde que levantou o problema.
- É de uma simplicidade brilhante - respondeu Morgan - e eu mesmo devia ter pensado nisso.
E teria acabado por pensar, disse consigo mesmo, com razoável grau de confiança. Mentalmente, reviu aquelas simulações computadorizadas da imensa estrutura que emitia uma nota como uma corda de violino de proporções cósmicas, enquanto as vibrações, com ciclos de horas, viajavam da Terra à órbita e refletiam-se de volta. E, superposta àquela imagem, repassou de memória, pela centésima vez, o velho danificado filme da ponte que bailava. Ali estavam todas as pistas de que necessitava.
- Fobos passa pela torre a cada onze horas e dez minutos, mas por sorte não se move exatamente no mesmo plano... caso contrário, teríamos uma colisão a cada vez que passasse naquele ponto. A Lua erra o alvo na maioria das revoluções, e os momentos de perigo são previsíveis com exatidão... até um milésimo de segundo, se preciso. Ora, o elevador, como qualquer obra de engenharia, não é uma estrutura completamente rígida. Tem períodos de vibração natural, que podem ser calculados quase tão precisamente como órbitas planetárias. Assim, o que seus engenheiros propõem é afinar o elevador, de modo que suas oscilações normais - que de qualquer modo não podem ser evitadas - sempre o mantenham afastado de Fobos. Toda vez que o satélite passar pela estrutura, ela não estará ali... ter-se-á afastado alguns quilômetros da zona de perigo.
Houve uma longa pausa na outra extremidade do circuito.
- Eu não devia dizer isso - disse o marciano finalmente -, mas estou com os cabelos em pé.
- Dito cruamente, realmente lembra... como se chamava mesmo... uma roleta-russa. Mas lembre-se, estamos lidando com movimentos previsíveis com exatidão. Sempre saberemos onde Fobos estará, e poderemos controlar o deslocamento da torre pela programação do tráfego.
"Simplesmente", pensou Morgan, não era de modo algum a palavra apropriada, mas qualquer pessoa podia ver que o projeto era possível. Foi então que passou por sua cabeça uma analogia tão perfeita, ainda que incongruente, que quase caiu na gargalhada. Não... não seria boa idéia usá-la com o banqueiro.
Mais uma vez, voltou à Ponte do Estreito de Tacoma, mas dessa vez num mundo de fantasia. Havia um navio que tinha de passar por baixo dela, em horários perfeitamente regulares. Infelizmente, o mastro tinha um metro a mais do que devia.
Nenhum problema: pouco antes de a embarcação chegar, alguns caminhões pesados eram mandados para a ponte, atravessando-a a intervalos cuidadosamente calculados para igualar sua freqüência de ressonância. Uma onda suave correria pelo tabuleiro de pilar a pilar, de modo que o momento da crista coincidisse com a chegada do navio. Assim, a coifa do mastro passaria por baixo da ponte com alguns centímetros de folga... Numa escala milhares de vezes maior, Fobos também tangenciaria a estrutura que se projetava para o espaço, a partir do Mons Pavonis.
- Fico satisfeito por vê-lo tão confiante - disse o banqueiro -, mas eu creio que verificaria pessoalmente a posição de Fobos antes de usar esse elevador.
- Nesse caso, o senhor ficaria surpreso por saber que alguns de seus brilhantes jovens colaboradores... brilhantes, seguramente o são, e suponho que sejam jovens por causa da audácia técnica... desejam usar os períodos críticos como uma atração turística. Acreditam que poderiam cobrar tarifas especiais a quem quisesse ver Fobos de perto a uma velocidade de milhares de quilômetros por hora. Um espetáculo e tanto, não acha?
- Prefiro imaginá-lo, mas talvez tenham razão. De qualquer forma, fico aliviado por saber que existe uma solução. Fico contente também por verificar que aprova nossa competência técnica. Isso significa que podemos contar com uma decisão em breve?
- Pode tê-la agora - disse Morgan. - Quando começaremos a trabalhar?
A véspera do Vesak à noite
Depois de vinte e sete séculos, aquele ainda era o dia mais reverenciado do calendário da Taprobana. Na lua cheia de maio, segundo a lenda, o Buda nascera, chegara à iluminação e morrera. Ainda que, para a maioria das pessoas, o Vesak não significasse mais do que outro importante feriado anual, o Natal ainda era uma época de meditação e tranqüilidade.
Durante muitos anos, o Controle das Monções conseguira que não houvesse chuva nas noites de Vesak, com poucas exceções. Quase sempre, Rajasinghe visitava a Cidade Real dois dias antes da lua cheia, numa peregrinação que a cada ano rejuvenescia seu espírito. Ele evitava o Vesak propriamente dito. Nesse dia, Ranapura ficava cheia demais de visitantes, alguns dos quais com certeza o reconheceriam, perturbando sua solidão.
Só o olho mais agudo podia perceber que a imensa lua amarela que se erguia sobre os domos em forma de sino dos antigos dagobas ainda não era um círculo perfeito. A luz que emitia era tão intensa, que apenas alguns dos satélites e estrelas mais brilhantes estavam visíveis no céu sem nuvens. E não havia sinal de vento.
Duas vezes, ao que se dizia, Kalidasa se detivera naquela estrada, quando deixou Ranapura para sempre. A primeira parada fora no túmulo de Hanuman, o companheiro querido de sua infância; a segunda, no Santuário do Buda Agonizante. Rajasinghe, muitas vezes, imaginara o alívio que o rei angustiado havia sentido - talvez houvesse estado naquele exato lugar, para melhor contemplar a imensa figura talhada na rocha maciça. O vulto reclinado tinha proporções tão perfeitas que era preciso chegar até junto dele para perceber suas dimensões reais. À distância, era impossível compreender que a almofada em que o Buda repousava a cabeça era mais alta que um homem.
Embora Rajasinghe houvesse visitado a maior parte do mundo, não conhecia outro local tão cheio de paz. Às vezes, tinha a impressão de que podia permanecer ali para sempre, sob a lua fulgurante, inteiramente esquecido das preocupações e do tumulto da vida. Nunca tentara sondar profundamente a magia do santuário, temendo destruí-lo, mas alguns de seus elementos eram bastante óbvios. A própria posição do Iluminado, que repousava de olhos fechados, depois de levar uma vida longa e nobre, irradiava serenidade. As linhas ondulantes de seu traje eram muito calmas, e descansavam a vista. Pareciam fluir de dentro da pedra, formando ondas de rocha congelada. E, tal como as ondas do mar, o ritmo natural de suas curvas apelava para instintos sobre os quais o espírito racional nada conhecia.
Em momentos como aquele, sozinho com o Buda e com a lua quase cheia, Rajasinghe acreditava entender finalmente o significado do nirvana — aquele estado que só pode ser definido por negativas. Emoções como raiva, desejo e cobiça já não tinham lugar; na verdade, tornavam-se quase inconcebíveis. Até mesmo a sensação de identidade pessoal parecia quase esvaída, como uma bruma diante do sol matutino.
Mas não podia durar muito, naturalmente. Daí a pouco, Rajasinghe tomou consciência do zumbido dos insetos, dos latidos distantes de alguns cães, e da dureza fria da pedra em que estava sentado. A tranqüilidade não era um estado de espírito que pudesse ser mantido por muito tempo. Com um suspiro, Rajasinghe pôs-se de pé e caminhou de volta para seu carro, estacionado cerca de cem metros fora do terreno do templo.
Estava acabando de entrar no veículo quando notou a pequena mancha branca, tão nítida que parecia pintada no céu, e que subia por sobre as árvores a oeste. Era a nuvem mais estranha que já tinha visto — um elipsóide perfeitamente simétrico, de arestas tão marcadas que parecia quase um sólido. Imaginou se alguém estaria voando num dirigível pelos céus da Taprobana; mas não via aletas, nem havia ruído de motores.
Depois, por um instante fugaz, passou por sua cabeça uma fantasia ainda mais louca. Os construtores de Sideronauta chegaram finalmente...
Mas aquilo, naturalmente, era absurdo. Mesmo que tivessem conseguido viajar mais rápido que seus sinais de rádio, não teriam podido atravessar todo o sistema solar... chegando aos céus da Terra!... sem despertar a atenção de todos os radares de tráfego existentes. As notícias teriam sido divulgadas horas antes.
Para sua própria surpresa, Rajasinghe teve uma ligeira sensação de desapontamento. E agora, quando a aparição se aproximava mais, constatava que era mesmo uma nuvem, pois começava a se esgarçar nos cantos. Sua velocidade era impressionante. Parecia impulsionada por um vento particular, do qual ainda não havia sinal ao nível do solo.
Então, os cientistas do Controle das Monções estavam em ação outra vez, experimentando seu domínio dos ventos. Em que, imaginou Rajasinghe, pensariam a seguir?
Estação Ashoka
Como a ilha parecia pequena daquela altitude! De trinta e seis mil quilômetros de distância acima do equador, a Taprobana não parecia muito maior do que a Lua. Todo o país dava a impressão de um alvo pequeno demais para ser atingido; no entanto, ele estava apontando para uma área em seu centro mais ou menos do tamanho de uma quadra de tênis.
Morgan ainda não estava inteiramente certo de suas motivações. Tendo em vista aquela demonstração, poderia ter operado com a mesma facilidade da Estação Kinte, usando como alvo o monte Quênia ou o Kilimanjaro. O fato de Kinte ser um dos pontos mais instáveis em toda a órbita estacionaria, sempre se desviando do rumo da África Central, não teria relevância nos poucos dias em que a experiência haveria de durar. Por algum tempo, ele se sentira tentado a usar como alvo o Chimborazo; os americanos haviam se oferecido para transferir a Estação Columbus para sua longitude exata, o que representava uma despesa considerável. Mas, apesar disso, ele acabara escolhendo seu objetivo original, o Sri Kanda.
Para felicidade de Morgan, naquela era de decisões assistidas por computadores, até mesmo um veredicto da Corte Mundial podia ser obtido em questão de semanas. O Vihara havia protestado, é claro. Morgan argumentou que uma rápida experiência científica, realizada fora das terras do templo, e que não provocaria ruído, poluição ou qualquer outra forma de interferência, não poderia representar um agravo. Se fosse impedido de realizá-la, todo o seu trabalho anterior estaria comprometido, e não teria como verificar seus cálculos - desse modo, um projeto vital para a República de Marte sofreria um grave revés.
Tratava-se de uma argumentação bastante plausível, e o próprio Morgan tinha acreditado nela. O mesmo havia acontecido aos juizes, que lhe deram ganho de causa por cinco votos a dois. Embora legalmente os juizes não levassem isso em conta, a menção aos marcianos, envolvidos em vários litígios, havia sido uma manobra hábil. A RM já estava com três processos em juízo, e a Corte estava um tanto cansada de fixar precedentes em direito interplanetário.
Mas Morgan sabia, no recesso friamente analítico de sua mente, que a decisão que havia tomado não era ditada apenas pela lógica. Não costumava aceitar a derrota com espírito esportivo. Os gestos de desafio lhe davam certa satisfação. No entanto, num nível ainda mais profundo, rejeitava aquela motivação mesquinha; aquele gesto de colegial não era digno dele. Estava procurando ganhar autoconfiança e reafirmar sua convicção no êxito final. Embora não soubesse como, nem quando, estava proclamando para o mundo, e para os monges cabeçudos dentro de suas muralhas vetustas: "Eu vou voltar".
A Estação Ashoka controlava praticamente todas as comunicações, a meteorologia, a monitoração ambiental e o tráfego espacial na região indochinesa. Se algum dia parasse de funcionar, um bilhão de vidas estaria ameaçado pelo desastre, e, se não voltasse a operar rapidamente, pela morte. Não era de admirar que Ashoka tivesse dois subsatélites completamente independentes, Bhaba e Sarabhai, a cem quilômetros de distância. Mesmo que uma catástrofe inimaginável destruísse todas as três estações, Kinte e Imhotep, a oeste, ou Confúcio, a leste, poderiam assumir as operações provisoriamente. A raça humana tinha aprendido, pela dura experiência, que sempre devia confiar desconfiando.
Não havia turistas ou passageiros em trânsito ali, tão longe da Terra. O pessoal trabalhava ou passeava a apenas alguns milhares de quilômetros do planeta, deixando as órbitas geossincrônicas elevadas para os cientistas e engenheiros - nenhum dos quais tinha visitado Ashoka numa missão tão insólita ou com equipamento tão estranho.
O núcleo da Operação Filandra flutuava, naquele momento, numa das câmaras de acoplagem de porte médio da estação, aguardando a verificação final antes do lançamento. Não havia nada de muito espetacular nele, nem seu aspecto insinuava a enorme quantidade de trabalho e de dinheiro necessários para sua criação.
O cone de um cinzento opaco, com quatro metros de comprimento e dois de diâmetro na base, parecia feito de metal sólido. Era preciso um exame atento para se perceber a fibra apertada que recobria toda a sua superfície. Com efeito, salvo uma coluna central e as tiras de plástico intercaladas, separando as centenas de camadas, o cone era feito apenas de fios de hiperfilamento, numa extensão de quarenta mil quilômetros.
Duas tecnologias obsoletas e inteiramente diferentes tinham sido retomadas para a construção daquele cone cinzento de aspecto comum. Trezentos anos antes, telégrafos submarinos tinham começado a operar no fundo dos oceanos, ligando continentes, e homens haviam perdido fortunas antes de dominar a arte de desenrolar milhares de quilômetros de cabo no fundo do mar, apesar das tempestades e dos outros perigos do mar. Mais tarde, apenas cem anos depois, alguns dos primeiros mísseis teleguiados foram operados por fios finos, que se desenrolavam de carretilhas enquanto os foguetes voavam em direção ao alvo, numa velocidade de algumas centenas de quilômetros por hora. Morgan estava tentando um alcance mil vezes maior que o daquelas relíquias do Museu da Guerra, bem como uma velocidade cinqüenta vezes maior. No entanto, o projeto tinha algumas vantagens. Seu míssil operaria num ambiente de vácuo perfeito até as poucas centenas de quilômetros finais, e não era provável que o alvo se deslocasse.
O diretor de operações do Projeto Filandra chamou a atenção de Morgan com uma tossezinha embaraçada.
- Ainda temos um pequeno problema, doutor - disse ele. — Temos toda a confiança com relação à descida. Todos os testes e simulações por computador foram satisfatórios, como o senhor viu. O que está preocupando o setor de segurança da estação é o recolhimento do filamento.
Morgan piscou. Tinha dado pouca atenção àquela questão. Parecia evidente que enrolar de novo o filamento era uma coisa trivial, comparada a descê-lo até a Terra. Para isso bastava um guincho motorizado, com as modificações especiais necessárias para trabalhar com um material tão fino, de espessura variável. Mas ele sabia que no espaço nada se podia considerar simples, e que a intuição - principalmente a intuição de um engenheiro terrestre - podia ser um guia traiçoeiro.
Vejamos... quando os testes estiverem concluídos, cortamos a extremidade terrestre, e Ashoka começa a recolher o filamento. Evidentemente, quando se puxa, mesmo que com força, a ponta de uma linha com quarenta mil quilômetros de comprimento, nada acontece durante horas. Seria necessário a metade de um dia para o impulso chegar à extremidade oposta, e o sistema começar a funcionar como um todo. Por isso, mantém-se a tensão... Ah!...
- Alguém fez alguns cálculos - continuou o engenheiro - e descobriu que, quando finalmente começássemos a operar rapidamente, teríamos várias toneladas voando em direção à estação a uma velocidade de milhares de quilômetros por hora. Não gostamos nada disso.
- É compreensível... O que querem que façamos?
- Devemos programar um recolhimento mais lento, com um ritmo controlado... Se ocorrer o pior, podemos sair da estação para que o recolhimento seja automatizado.
- Isso vai retardar a operação?
- Não. Já preparamos um plano de emergência para jogar tudo pela escotilha em cinco minutos, se for preciso.
- E será fácil recuperar o material?
- Claro.
- Espero que o senhor tenha razão. Essa linhazinha de pesca custa dinheiro... e quero usá-la outra vez.
Mas onde?, perguntava-se Morgan, fitando a Terra em minguante. Talvez fosse melhor completar o projeto de Marte primeiro, mesmo que isso significasse vários anos de exílio. Assim que Pavonis estivesse em plena atividade, a Terra teria de construir sua torre, e ele não tinha dúvidas de que, de alguma maneira, os últimos obstáculos seriam vencidos.
Então, o abismo que agora contemplava estaria transposto, e a fama que Gustave Eiffel havia conquistado três séculos antes seria ultrapassada, sem termos de comparação.
Primeira descida
Não haveria nada para ver nos próximos vinte minutos. Entretanto, todos os que não eram necessários na cabina de controle já estavam do lado de fora, olhando para o céu. Até Morgan achava difícil resistir àquele impulso, e a todo momento se via caminhando para a porta.
A apenas alguns metros dele estava o mais recente colaborador de Maxine Duval, um jovem corpulento de vinte e tantos anos. Sobre os ombros, levava o instrumental costumeiro de seu ofício - câmeras duplas, preparadas segundo o arranjo tradicional de "câmera direita para a frente", "câmera esquerda para trás", e acima delas uma esfera não muito maior que uma laranja grande. A antena no interior daquela esfera oscilava milhares de vezes por segundo, de modo que estava sempre voltada para o satélite de comunicações mais próximo, qualquer que fosse a posição assumida por seu portador. E, na outra extremidade daquele circuito, sentada confortavelmente no escritório do estúdio, Maxine Duval via através dos olhos de seu distante alter ego e escutava com os ouvidos dele... sem precisar forçar os próprios pulmões no ar frígido. Dessa vez, estava no lugar mais cômodo. Nem sempre era o caso.
Morgan havia aceitado essa interferência com alguma relutância. Sabia que aquela era uma ocasião histórica, e aceitava a garantia de Maxine de que "meu rapaz não vai atrapalhar". Mas ele tinha aguda consciência de todas as coisas que podiam sair erradas numa experiência tão drasticamente nova - principalmente nas últimas centenas de quilômetros de penetração na atmosfera. Por outro lado, sabia também que Maxine era capaz de veicular uma notícia, de triunfo ou fracasso, sem sensacionalismo.
Como todos os grandes repórteres, Maxine Duval não se sentia emocionalmente alheia aos acontecimentos que observava. Conseguia apresentar todos os pontos de vista, sem distorcer ou omitir os fatos que considerava essenciais. Entretanto, não procurava ocultar seus sentimentos, nem deixava que se intrometessem na notícia. Admirava Morgan profundamente, com o respeito matizado de inveja de uma pessoa que carecia de real capacidade criativa. Desde a construção da Ponte de Gibraltar, esperava um novo feito do engenheiro, e não se decepcionara. Mas, embora desejasse boa sorte a Morgan, na verdade não gostava dele. Em sua opinião, a força e a inexorabilidade da ambição de Morgan o tornavam ao mesmo tempo sobre-humano e subumano. Não podia deixar de compará-lo a seu colaborador imediatamente abaixo dele no comando, Warren Kingsley. Ali estava uma pessoa gentilíssima, simpática. ("E é um engenheiro melhor do que eu", Morgan lhe dissera certa vez, com suficiente seriedade.) Mas ninguém ouvia falar em Warren. Ele seria sempre um satélite opaco e fiel da estrela ofuscante. Na verdade, tinha prazer em sê-lo.
Warren lhe explicara com paciência o mecanismo surpreendentemente complexo da descida do filamento. À primeira vista, parecia muito simples deixar alguma coisa cair até o equador, de um satélite que pairava imóvel sobre ele. Mas a astrodinâmica estava cheia de paradoxos; tentando-se diminuir a velocidade, ela era acelerada. Pelo caminho mais curto, queimava-se a maior parte do combustível. Se se partia numa direção, viajava-se para outra... e isso significava levar em conta apenas os campos gravitacionais. Dessa vez, a situação era muito mais complicada. Jamais se tentara guiar uma sonda espacial que arrastava quarenta mil quilômetros de fio. Mas o programa de Ashoka havia funcionado perfeitamente até a orla da atmosfera. Dentro de alguns minutos, o controlador terrestre em Sri Kanda assumiria a parte final da descida. Não era de admirar que Morgan tivesse a fisionomia tensa.
- Van - disse Maxine, com brandura mas com firmeza, pelo circuito fechado -, pare de chupar o dedo. Você parece uma criança.
Morgan deixou transparecer indignação, depois surpresa... e por fim relaxou, com um sorriso levemente embaraçado.
- Obrigado por me avisar - disse ele. - Seria horrível estragar minha imagem pública.
Olhou com humor melancólico para a junta que faltava, imaginando quando os espirituosos deixariam de dizer: "Ah!
O engenheiro foi ferido por seu próprio petardo!" Depois de tanto tempo advertindo aos outros que tivessem cautela, ele próprio se tornara descuidado, e havia conseguido cortar-se seriamente numa demonstração das propriedades do hiperfilamento. Quase não sentira dor, e, surpreendentemente, o dedo seccionado lhe causava pouquíssimos incômodos. Um dia, ele faria alguma coisa; mas simplesmente não podia dar-se ao luxo de passar uma semana preso num regenerador orgânico, só por causa de dois centímetros de polegar.
- Altitude dois, cinco, zero - disse uma voz calma e impessoal na cabina de controle. - Velocidade da sonda, um, um, seis, zero metros por segundo. Tensão do fio, noventa por cento nominal. O pára-quedas se abrirá em dois minutos.
Após a calma momentânea, Morgan estava novamente tenso e alerta, como um pugilista, pensou Maxine Duval, que vigiasse um adversário desconhecido, mas perigoso.
- Como está o vento? - perguntou ele.
Outra voz respondeu, mas dessa vez estava longe de ser impessoal.
- Não posso acreditar nisso. - A voz denotava preocupação. - Mas o Controle das Monções acaba de emitir um aviso de vendaval.
- Não é hora para brincadeiras.
- Não estão brincando. Acabei de verificar.
- Mas eles garantiram que não haveria rajadas com mais de trinta quilômetros horários!
- Acabam de elevar a previsão para sessenta... correção, oitenta. Alguma coisa saiu muito mal.
- Mal mesmo - murmurou Maxine para si própria. Depois, instruiu seus olhos e ouvidos distantes: - Torne-se invisível... eles não querem você por perto... mas não perca nada. - Deixando ao rem a tarefa de cumprir essas ordens um tanto contraditórias, Maxine ligou para seu excelente serviço de informações. Levou menos de trinta segundos para descobrir qual estação meteorológica era responsável pelo tempo na área da Taprobana. E foi frustrante, para não dizer surpreendente, constatar que não estavam atendendo chamadas do público.
Encarregando seu pessoal de resolver esse obstáculo, Maxine voltou a ligar para a estação na montanha. E ficou atônita ao ver o quanto as condições haviam piorado, durante esse curto intervalo.
O céu se tornara mais escuro. Os microfones estavam
captando o rugido surdo e distante do furacão que se aproximava. Maxine Duval já havia visto súbitas mudanças de tempo no mar, e mais de uma vez se aproveitara delas em regatas oceânicas. Mas aquilo representava um azar inacreditável. Sentia pena de Morgan, cujos sonhos e esperanças podiam ser destruídos por aquela rajada imprevista... e impossível.
- Altitude, dois, zero, zero. Velocidade da sonda, um, um, cinco metros por segundo. Tensão, noventa e cinco por cento nominal.
Portanto, a tensão estava aumentando, e em mais de um modo. A experiência não podia ser suspensa naquele ponto. Morgan simplesmente teria de prosseguir, esperando pelo melhor. Maxine queria falar com ele, mas achou melhor não interrompê-lo durante aquela crise.
- Altitude, um, nove, zero. Velocidade, um, um, zero, zero. Tensão, cento e cinco por cento. Abertura do primeiro pára-quedas... AGORA!
Pronto, a sonda estava dentro da atmosfera terrestre. Agora, o pouco combustível que restava tinha de ser usado para conduzi-la em direção à rede estendida na encosta da montanha. Os cabos que sustinham a rede já sibilavam, batidos pelo vento.
De repente, Morgan saiu da cabine de controle e olhou para o céu. Depois, virou-se e olhou diretamente para a câmera.
- Aconteça o que acontecer, Maxine - disse ele, lenta e cuidadosamente -, o teste já garantiu noventa e cinco por cento de sucesso. Não... noventa e nove. Completamos trinta e seis mil quilômetros e nos restam apenas duzentos metros.
Maxine não respondeu. Sabia que aquelas palavras não se dirigiam a ela, mas ao vulto sentado na complicada cadeira de rodas junto da cabine de controle. O veículo dizia tudo sobre o ocupante. Só um visitante de outro planeta poderia ter necessidade de um tal engenho. Os médicos já podiam curar praticamente todos os defeitos musculares... mas os físicos não podiam anular a gravidade.
Quanto poder e quantos interesses repousavam no topo daquela montanha! As próprias forças da natureza... o Banco Naródni Marte... A República Autônoma Norte-Africana... Vannevar Morgan (não era ele também uma força natural?)... e aqueles monges suavemente implacáveis, em seu pináculo ventoso.
Maxine Duval murmurou instruções ao paciente rem, e a câmera virou devagar em direção ao céu. Lá estava o topo, coroado pelas paredes do templo, de um branco ofus-cante. Aqui e ali, ao longo dos parapeitos, Maxine divisava vultos em mantos alaranjados, sacudidos pela ventania. Como ela havia esperado, os monges estavam olhando.
Ela pediu uma aproximação em zoom, o suficiente para enquadrar os rostos. Embora nunca tivesse se encontrado com o Maha Thero (uma entrevista havia sido negada polidamente), estava certa de poder identificá-lo. Mas não havia sinal do prelado. Talvez ele estivesse no sanctum sanctorum, fortalecendo sua formidável vontade em algum exercício espiritual.
Maxine Duval não sabia ao certo se o principal anta-gonista de Morgan praticava algo tão ingênuo como a oração. Mas, se ele realmente rezou, pedindo aquela borrasca milagrosa, o pedido estava para ser atendido. Os Deuses da Montanha começavam a despertar.
Aproximação final
"Quanto maior a tecnologia, maior a vulnerabilidade; quanto mais o homem conquista a natureza, mais sujeito se torna a catástrofes artificiais. A história recente fornece comprovações suficientes disso. Por exemplo, o afundamento de Marina City (2127), o desabamento da cúpula Tycho B (2098), o escapamento de um iceberg árabe dos cabos de reboque (2062), e a fusão do reator Thor (2009). Podemos estar certos de que essa lista sofrerá acréscimos ainda maiores no futuro. Talvez as perspectivas mais terríveis sejam aquelas que envolvem fatores psicológicos, além de tecnológicos. No passado, um atirador louco só conseguia matar um punhado de pessoas; hoje, não seria difícil a um engenheiro maluco assassinar uma cidade inteira. A Colônia Espacial 0'Neill II, por exemplo, foi salva de um desastre desse tipo, em 2047, e o fato foi muito bem documentado. Tais acontecimentos, pelo menos em teoria, podiam ser evitados por um controle cuidadoso e procedimentos "à prova de erros"... ainda que, em geral, eles só existam até ocorrer o erro.
Há ainda uma eventualidade interessante, e felizmente raríssima, em que o indivíduo envolvido ocupa tal posição de destaque, ou dispõe de tamanhos poderes, que ninguém percebe o que ele está fazendo, a não ser quando já é tarde demais. A devastação causada por esses gênios loucos (não parece haver melhor designação para eles) pode ter âmbito mundial, como no caso de A. Hitler (1889-1945). Num número surpreendente de casos, nada se sabe sobre suas atividades, graças a uma conspiração de silêncio entre seus colegas envolvidos.
Um exemplo clássico veio à luz recentemente com a publicação das Memórias, longamente esperadas (e adiadas), de Darrie Maxine Duval. Ainda hoje, alguns aspectos do caso não ficaram inteiramente claros."
(A civilização e seus insatisfeitos, J. L. Golítsin, Praga, 2175.)
- Altitude, um, cinco, zero, velocidade noventa e cinco... repetindo, noventa e cinco. Escudo térmico abandonado.
Portanto, a sonda entrara com segurança na atmosfera e se livrara do excesso de velocidade. Mas ainda era cedo para cantar vitória. Não só restava um percurso vertical de cento e cinqüenta quilômetros, como também outro, horizontal, de trezentos quilômetros... sob um vendaval uivante, para complicar as coisas. Embora a sonda transportasse uma pequena quantidade de propelente, a liberdade de manobra era das mais limitadas. Se o operador errasse a montanha na primeira tentativa, a sonda não poderia esperar uma rotação inteira da Terra para tentar de novo.
- Altitude um, dois, zero. Ainda nenhum efeito atmosférico.
A pequena sonda descia do céu como uma aranha, em sua escada de seda. Espero que tenham cordão suficiente, pensou Maxine Duval. Seria horrível se a linha acabasse a alguns quilômetros do alvo! Tais tragédias haviam acontecido com os primeiros cabos submarinos, trezentos anos antes.
- Altitude oito, zero. Aproximação nominal. Tensão, cem por cento. Algum arrasto aerodinâmico.
A atmosfera superior começava a se fazer sentir, ainda que apenas aos instrumentos sensíveis a bordo do minúsculo veículo.
Um pequeno telescópio, operado por controle remoto, fora instalado ao lado do caminhão de controle, e estava acompanhando automaticamente a sonda invisível. Morgan caminhou naquela direção, e o rem de Duval acompanhou-o como uma sombra.
- Alguma coisa à vista - sussurrou Duval baixinho, depois de alguns segundos. Morgan sacudiu a cabeça com impaciência, continuando a olhar pelo instrumento.
- Altitude, seis, zero. Deslocando para a esquerda. Tensão, cento e cinco por cento... correção, cento e dez.
Ainda dentro dos limites, pensou Duval... mas as coisas estavam começando a acontecer no outro lado da estratosfera. Era verdade, Morgan estava vendo a sonda...
- Altitude, cinco, cinco... impulso de correção de dois segundos.
- Estou vendo! - exclamou Morgan. - Posso ver o jato!
- Altitude, cinco, zero. Tensão, cento e cinco por cento. Dificuldade para manter o curso... um pouco de resistência.
Era inconcebível que, a apenas cinqüenta quilômetros de distância, a pequena sonda não completasse sua viagem de trinta e seis mil quilômetros. Mas quantos aviões... e naves espaciais... não se haviam despedaçado nos últimos metros?
- Altitude, quatro, cinco. Vento forte. Desviar o curso novamente. Impulso de três segundos.
- Perdi-o de vista - disse Morgan, irritado. - Nuvens no caminho.
- Altitude, quatro, zero. Resistência forte. Tensão quase no pico de um, cinco, zero por cento... repetindo, um, cinco, zero por cento.
Aquilo era péssimo. Maxine Duval sabia que o ponto de ruptura era duzentos por cento. Um solavanco qualquer, e a experiência iria por água abaixo.
- Altitude, três, cinco. Vento pior. Impulso de um segundo. Reserva de propelente quase terminada. Tensão aumentando ainda... até um, setenta.
Mais trinta por cento, pensou Duval, e até aquela fibra incrível rebentaria, como qualquer outro material quando é ultrapassada sua resistência à tensão.
- Distância, três, zero. Turbulência cada vez pior. Deslocamento para a esquerda. Impossível calcular correção... movimentos agitados demais.
- Estou vendo-o de novo! - gritou Morgan. - Passou pelas nuvens!
- Distância, dois, cinco. Não há propelente suficiente para voltar ao rumo. Distância aproximada do alvo, três quilômetros.
- Não importa! - gritou Morgan. - Bata onde puder!
- Já, já. Distância, dois, zero. Vento cada vez mais forte. Perda de estabilidade. Carga começa a girar.
- Solte o freio... deixe o fio correr solto!
- Foi o que fiz - disse aquela voz terrivelmente calma. Se Maxine não soubesse que Morgan contratara um competente controlador de tráfego espacial para realizar a tarefa, diria que uma máquina estava falando. - Defeito no dispensador. Carga gira agora cinco revoluções por segundo. Provavelmente, fio emaranhado. Tensão um, oitenta por cento. Um, nove, zero. Dois, zero, zero. Distância, um, cinco. Tensão, dois, um, zero. Dois dois zero. Dois três zero.
Não pode durar muito isso, pensou Duval. Faltavam apenas doze quilômetros, e o maldito fio se havia emaranhado na sonda que girava.
- Tensão zero... repito, zero.
Estava tudo acabado. O fio se partira, e devia estar serpenteando lentamente em direção às estrelas. Sem dúvida, os operadores de Ashoka o enrolariam de novo, mas Duval já tinha escutado o suficiente para saber que isso seria uma tarefa longa e complicada. E a pequena carga cairia em algum lugar nos campos ou selvas da Taprobana. No entanto, como Morgan havia dito, a experiência fora bem sucedida em mais de noventa e cinco por cento. Na próxima vez, quando não houvesse vento...
- Lá está ele! - gritou alguém.
Uma estrela brilhante entrara em ignição entre dois castelos de nuvens que vagavam pelo céu. Parecia um meteoro precipitando-se em direção à Terra. Ironicamente, como que para zombar de seus construtores, o farol instalado na sonda para determinar a direção final se acendera automaticamente. Bem, ele poderia ter alguma utilidade. Ajudaria na localização dos destroços.
O rem de Duval virou-se devagar para que ela pudesse ver o meteoro passar pela montanha e desaparecer' a leste. Maxine calculou que ele estava a menos de cinco quilômetros de distância. Depois, disse: — Entre em contato novamente com o dr. Morgan. Gostaria de trocar idéias com ele.
Sua intenção era fazer algumas observações animadoras - alto o suficiente para que o banqueiro marciano as ouvisse -, expressando sua confiança de que, na próxima vez, a descida seria um sucesso. Maxine ainda estava compondo mentalmente o pequeno discurso de conforto, quando de súbito ele foi varrido de sua mente. No futuro, ela iria reconstituir os acontecimentos dos trinta segundos seguintes até conhecê-los de cor. Mas nunca teve certeza de que os compreendia.
As legiões do rei
Vannevar Morgan estava acostumado a reveses, até a desastres, e esperava que aquele fosse secundário. Sua verdadeira preocupação, enquanto via o meteoro desaparecer além da montanha, era a de que o Naródni Marte considerasse seu dinheiro desperdiçado. O observador silencioso, na cadeira de rodas, tinha-se mostrado extremamente distante. A gravidade terrestre parecia ter imobilizado sua língua, tão eficazmente quanto seus membros. Mas, dessa vez, ele se dirigiu a Morgan antes que o engenheiro falasse.
- Só uma pergunta, dr. Morgan. Sei que esse vendaval não tem precedentes... mas aconteceu. Portanto, pode acontecer outra vez. E se acontecer... quando a torre estiver construída?
Morgan pensou depressa. Era impossível dar uma resposta precisa de supetão, e ele mal podia acreditar que aquilo houvesse acontecido.
- Na pior das hipóteses, teríamos que suspender as operações durante algum tempo. Poderia haver alguma distorção de rota. Nenhum vento nessa altitude poderia ameaçar a estrutura em si. Até mesmo a fibra experimental teria agüentado perfeitamente... se tivéssemos conseguido ancorá-la.
Morgan esperava que sua análise fosse correta. Em alguns minutos, Warren Kingsley a confirmaria ou não. Para alívio seu, o marciano respondeu com evidente satisfação: — Muito obrigado. Era tudo o que eu queria saber.
Morgan, no entanto, estava resolvido a eliminar qualquer dúvida.
- E no monte Pavonis, é claro, não seria possível ocorrer esse problema. A densidade atmosférica lá é inferior a um centésimo...
Fazia décadas que não escutava aquele som que feria seus ouvidos, um som que nenhum homem podia esquecer. Seu chamado imperioso, que superava o rugido do vendaval, transportou Morgan para o outro lado do mundo. Já não estava mais na encosta de uma montanha. Estava sob a cúpula de Hagia Sophia, contemplando com assombro e admiração a obra de homens que haviam morrido dezesseis séculos antes. E em seus ouvidos ressoava o poderoso dobre de sinos que no passado chamavam os fiéis à oração.
A lembrança de Istambul se dissipou. Ele estava de volta à montanha, mais espantado e confuso do que nunca.
O que lhe dissera o monge?... Que o presente mal-quisto de Kalidasa se mantinha silencioso havia séculos, e só se lhe permitia falar em épocas de desastre? Não tinha havido ali desastre algum. Na verdade, no que dizia respeito ao mosteiro, acontecera exatamente o oposto. Por um breve momento, ocorreu a Morgan a possibilidade embaraçosa de que a sonda se houvesse precipitado no pátio do templo. Não, seria impossível, ela havia passado a quilômetros de distância do pico. E, de qualquer modo, tratava-se de um objeto pequeno demais para causar danos sérios, em sua queda.
Ele levantou os olhos para o mosteiro, onde a voz do grande sino ainda desafiava a ventania. Todos os mantos alaranjados haviam desaparecido do parapeito. Não se via um só monge.
Alguma coisa roçou delicadamente o rosto de Morgan, e ele a afastou automaticamente. Era-lhe difícil até pensar; aquele latejar doloroso enchia o ar e martelava sua cabeça. Imaginou que o melhor a fazer seria ir até o templo e perguntar polidamente ao Maha Thero o que havia acontecido.
Novamente, aquele contato macio e sedoso contra o rosto; dessa vez ele divisou uma mancha amarelada com o canto do olho. Suas reações sempre tinham sido rápidas. Morgan deu um tapa, e não errou.
O inseto, amassado na palma de sua mão, vivia os últimos segundos de uma vida efêmera — e o universo que Morgan sempre conhecera parecia estremecer e se dissolver ao redor. Aquela derrota milagrosa havia se transformado numa vitória ainda mais inexplicável. No entanto, ele não tinha qualquer sensação de triunfo... apenas de perplexidade e espanto.
Lembrava-se, agora, da lenda das borboletas de ouro. Trazidas pelo vento, às centenas, aos milhares, eram detidas pela face da montanha para morrer lá no topo. As legiões de Kalidasa finalmente haviam alcançado sua meta... e sua vingança.
Êxodo
- O que aconteceu? - perguntou o xeque Abdulá. Essa é uma pergunta a que jamais poderei responder, pensou Morgan. Mas respondeu: - A montanha é nossa, senhor presidente. Os monges já começaram a deixar o local. É incrível... como é possível que uma lenda de dois mil anos... ? - Ele sacudiu a cabeça, perplexo.
- Se um número suficiente de pessoas crê numa lenda, ela se torna verdadeira.
- Creio que sim. Mas as coisas são muito mais complicadas... toda a cadeia de acontecimentos ainda me parece impossível.
- Essa é uma palavra cheia de riscos. Vou lhe contar uma historieta. Um grande amigo meu, um eminente cientista já morto, costumava implicar comigo dizendo que, como a política é a arte do possível, só atrai espíritos de segunda ordem. Pois os de primeira ordem, dizia ele, só se interessam pelo impossível. Sabe o que eu respondia?
- Não - respondeu Morgan, polidamente.
- Que é uma sorte existirem tantos como nós... porque alguém tem de dirigir o mundo... De qualquer modo, se o impossível aconteceu, você deve aceitar com gratidão.
Eu o aceito, pensou Morgan, com relutância. Há alguma coisa muito estranha num universo em que algumas borboletas mortas podem abalar uma torre de um bilhão de toneladas.
E havia ainda as atitudes irônicas do venerável Para-karma, que agora certamente se acreditava um peão de deuses maliciosos. O administrador do Controle das Monções se mostrara muito contrito, e Morgan recebera o pedido de desculpas com rara equanimidade. Era-lhe fácil acreditar que o brilhante dr. Choam Goldberg, tendo revolucionado a micrometeorologia sem que ninguém houvesse
entendido bem o que ele estava fazendo, havia por fim sofrido uma espécie de colapso nervoso durante suas experiências. Aquilo nunca mais voltaria a acontecer. Morgan havia expressado votos — sinceros — pela recuperação do cientista, ao mesmo tempo em que tirava partido de seus instintos de ex-burocrata para insinuar que, no futuro, esperaria certos favores do Controle das Monções. O administrador se despedira com agradecimentos profusos, sem dúvida surpreso com a magnanimidade de Morgan.
- Só por curiosidade - perguntou o xeque -, para onde vão os monges? Eu lhes poderia oferecer hospitalidade aqui. Nossa cultura sempre recebeu bem outras religiões.
- Não sei. Nem o embaixador Rajasinghe. Mas quando perguntei, ele disse: "Eles ficarão bem. Uma ordem que viveu frugalmente três mil anos não se acha exatamente na miséria".
- Hum... Quem sabe não poderíamos emprestar um pouco da riqueza deles? Esse pequeno projeto está ficando cada vez mais caro.
- Na verdade, não é assim, presidente. A última estimativa inclui um orçamento puramente contábil para operações no espaço exterior, que o Naródni Marte concordou em financiar. Vão localizar um asteróide carbonáceo e conduzi-lo até a órbita terrestre... Eles têm muita experiência nesse tipo de trabalho, o que resolve um de nossos principais problemas.
- E quanto ao carbono para a torre deles?
- Possuem reservas ilimitadas em Deimos... exatamente onde precisam delas. O Naródni já começou um levantamento de zonas de mineração adequadas, se bem que o processamento propriamente dito terá de ser feito fora do satélite.
- Posso perguntar por quê?
- Por causa da gravidade. Mesmo Deimos tem alguns centímetros por segundo ao quadrado. O hiperfilamento só pode ser fabricado em condições de gravidade zero. Não há outro meio de se garantir uma estrutura cristalina perfeita, com organização suficiente.
- Muito obrigado, Van. Permita-me perguntar, também, por que você modificou o projeto básico. Eu gostava daquele feixe original de quatro tubos, dois que subiam e dois que desciam. Um sistema simples de metrô era uma coisa que eu podia entender... mesmo construído num ângulo de noventa graus.
Não era a primeira vez, nem seria a última, que Morgan ficava assombrado com a memória daquele velho, e com seu apego aos detalhes. Embora suas perguntas fossem muitas vezes ditadas pela simples curiosidade - com freqüência, uma curiosidade insaciável, de um homem tão seguro de si que não tinha necessidade de se preocupar com a dignidade -, ele jamais deixava ao acaso uma coisa que tivesse importância, mesmo que superficial.
- Acho que nossas primeiras idéias tinham uma orientação demasiado terrestre. Estávamos mais ou menos na situação dos primeiros projetistas de automóveis, que continuavam a desenhar, na verdade, carruagens sem cavalos. Por isso, nosso projeto prevê agora uma torre quadrada e oca, com um trilho em cada face. Imagine a torre como quatro ferrovias verticais. Perto da órbita, ela tem quarenta metros de lado, que se reduzem a vinte, quando ela atinge a Terra.
- Como uma estalag... estalac...
- Estalactite. Eu mesmo tive de verificar no dicionário...! Do ponto de vista técnico, uma boa analogia seria a velha Torre Eiffel... virada de cabeça para baixo, e espichada cem mil vezes.
- Tanto assim?
- Mais ou menos.
- Bem, acho que não existem leis que impeçam uma torre de ficar pendurada de cabeça para baixo.
- Nós também teremos de subir, lembre-se... da órbita síncrona até a massa de ancoragem, que mantém toda a estrutura sob tensão.
- E a estação intermediária? Espero que não tenha mudado esse ponto.
- Não, e ela funcionará no mesmo lugar... vinte e cinco mil quilômetros.
— Ótimo. Sei que nunca irei até lá, mas gosto de pensar nela... - Abdulá murmurou alguma coisa em árabe. — Existe outra lenda, não sei se você a conhece... o ataúde de Maomé, suspenso entre o céu e a terra. Tal como a estação.
- Providenciaremos um banquete para o senhor na estação, presidente, quando inaugurarmos os serviços.
- Mesmo que você cumpra seus prazos... e admito que só gastou um ano do cronograma com a ponte... a essa altura, eu terei noventa e oito anos. Não, duvido que eu chegue até lá.
Mas eu chegarei até lá, pensou Vannevar Morgan. Agora, sei que os deuses estão do meu lado. Sejam quais forem.
O expresso do espaço
- Não venha dizer agora - implorou Warren Kingsley - que isso nunca sairá do chão.
- A idéia me ocorreu - disse Morgan, rindo, enquanto examinava a réplica em tamanho natural. — Parece realmente um vagão ferroviário em pé.
- É exatamente essa a imagem que queremos vender - respondeu Kingsley. - Você compra sua passagem na estação, despacha a bagagem, instala-se na poltrona giratória e admira a paisagem. Ou vai para o bar e passa cinco horas enchendo a cara, até ser carregado para fora do carro na estação intermediária. Por falar nisso, o que acha da idéia da seção de projeto? Decoração de carros no estilo dos vagões pullman do século XIX?
- Não gosto muito. Os vagões pullman não tinham cinco andares circulares, um sobre o outro.
- É melhor dizer isso ao Projeto... eles estão loucos para colocar iluminação a gás.
- Se querem um toque de antigüidade, isso é mais apropriado. Uma vez, vi um velho filme de ficção científica no Museu de Arte de Sydney. Havia um ônibus espacial com uma espécie de belvedere circular... É exatamente disso que precisamos.
- Você se lembra do nome do filme?
- Ah, deixe-me pensar... alguma coisa como Guerra nas estrelas 2000. Tenho certeza que você poderá encontrá-lo.
- Vou dizer ao Projeto que o procure. Agora, vamos entrar. Quer um capacete?
- Não - respondeu Morgan com brusquidão. Aquela era uma das poucas vantagens de ser dez centímetros mais baixo do que a média.
Ao entrar no interior da réplica, ele sentiu uma emoção quase juvenil. Havia verificado os desenhos, observara os computadores lidarem com os gráficos e a disposição das peças - tudo ali seria perfeitamente familiar. Mas aquilo era real... sólido. Na verdade, a réplica nunca sairia mesmo do chão. Mas um dia, irmãos idênticos a ela estariam se lançando por entre as nuvens e subindo em apenas cinco horas, até a Intermediária, a vinte e cinco mil quilômetros da Terra. E tudo isso ao custo de um dólar de eletricidade por passageiro.
Ainda agora, era impossível perceber todo o significado da revolução iminente. Pela primeira vez, o próprio espaço se tornaria tão acessível como qualquer ponto da Terra. Dentro de mais algumas décadas, se o homem comum quisesse passar um fim de semana na Lua, poderia fazê-lo. Mesmo Marte não estaria fora de cogitação. Não havia limites para o que, daí em diante, seria possível.
Morgan foi arrancado de seus pensamentos por um tropeção, por causa de um pedaço de tapete mal colocado.
- Desculpe - disse o guia. - Outra idéia do Projeto... esse verde serve para lembrar a Terra aos passageiros. Os tetos serão azuis, tornando-se cada vez mais escuros nos andares superiores. E eles querem usar iluminação indireta em toda parte, de modo que as estrelas fiquem visíveis.
Morgan balançou a cabeça.
- É uma boa idéia, mas não vai dar certo. Se a iluminação for suficiente para as pessoas lerem, as estrelas não serão visíveis. Você vai precisar de que uma parte do belvedere fique em escuridão completa.
- Isso já está previsto numa parte do bar... pode-se pedir a bebida e entrar atrás das cortinas.
Encontravam-se no primeiro pavimento da cápsula, uma sala circular com oito metros de diâmetro e três de altura. Por toda parte havia caixas sortidas, cilindros e painéis de controle com rótulos como RESERVA DE OXIGÊNIO,
BATERIA, ESTALADOR DE CO2, EQUIPAMENTO MÉDICO, CONTROLE DE TEMPERATURA. Tudo tinha, evidentemente, uma natureza provisória, temporária, passível de ser alterada rapidamente.
- Qualquer pessoa pensaria que estamos construindo uma nave espacial - comentou Morgan. - Por falar nisso, qual é a última estimativa do tempo de sobrevivência?
- Enquanto houver energia, pelo menos uma semana, mesmo no caso de uma lotação completa de cinqüenta passageiros. O que é realmente absurdo, pois uma equipe de salvamento sempre poderia alcançá-los em três horas, seja a partir da Terra, seja da Intermediária.
- Salvo se ocorresse uma catástrofe de grandes proporções, com danos à torre ou aos trilhos.
- Se isso um dia acontecer, creio que não haverá ninguém para ser resgatado. Mas se uma cápsula ficar presa, por algum motivo, e se os passageiros não enlouquecerem e engolirem todos os nossos deliciosos tabletes de alimento comprimido de uma só vez, o maior problema deles será a falta do que fazer.
O segundo andar estava completamente vazio, e nem sequer se viam ali equipamentos temporários. Alguém havia desenhado a giz um grande retângulo no painel curvo de plástico da parede, com a pergunta: ESCOTILHA AQUI?
- Esse será o compartimento de bagagem... mas não temos certeza de que haverá necessidade de tanto espaço. Se não houver, poderá ser usado para passageiros extras. O andar de cima é muito mais interessante.
O terceiro andar continha uma dúzia de poltronas como as de aviões, todas de desenhos diferentes. Duas delas estavam ocupadas por bonecos muito realistas, um homem e uma mulher, que pareciam enfastiados com tudo a seu redor.
- Já estamos praticamente resolvidos a adotar este modelo - disse Kingsley, apontando para uma luxuosa poltrona giratória e reclinável, com uma pequena mesa - mas primeiro vamos fazer o levantamento de rotina.
Morgan comprimiu o punho contra o estofamento da poltrona.
- Alguém já esteve realmente sentado aí cinco horas? - perguntou.
- Já... um voluntário de cem quilos. Não ficou com o corpo machucado. Se as pessoas se queixarem, lembraremos a elas os primeiros tempos da aviação, quando era preciso cinco horas para simplesmente atravessar o Pacífico. E, além disso, é claro que estamos oferecendo baixa gravidade em quase todo o percurso.
O andar de cima tinha a mesma concepção, embora estivesse sem poltronas. Passaram por ele rapidamente e chegaram ao andar superior, ao qual os projetistas haviam evidentemente dedicado o máximo de atenção.
O bar parecia quase pronto para servir bebidas, e, na verdade, a máquina de café estava funcionando. Acima dela, numa moldura requintada e dourada, via-se uma velha gravura, tão apropriada para aquele ambiente que Morgan ficou quase sem fôlego. Uma enorme lua cheia dominava o canto superior direito, e em sua direção corria um trem em forma de bala, puxando quatro vagões. Das janelas do compartimento onde se lia "Primeira classe", vitorianos de cartola admiravam a paisagem.
- Onde arranjou isso? - perguntou Morgan, tomado de admiração.
- Parece que a legenda caiu de novo - desculpou-se Kingsley, procurando atrás do bar. - Aqui está.
Passou a Morgan um pedaço de cartão em que estava impresso, em tipos antigos:
TRENS-PROJÉTEIS PARA A LUA
Gravura da edição de 1881 de Da Terra à Lua diretamente em noventa e sete horas e vinte minutos, e uma viagem a seu redor de Júlio Verne
- Sinto muito dizer que nunca li isso - disse Morgan, depois de absorver a informação. - Poderia ter-me poupado muito trabalho. Mas eu gostaria de saber como ele se saiu sem trilhos...
- Não devemos julgar Júlio Verne muito inteligente... ou tolo. Essa ilustração não foi feita para ser tomada a sério... Foi uma brincadeira do artista.
- Bem... cumprimente o Projeto por mim. Foi uma de suas melhores idéias.
Afastando-se dos sonhos do passado, Morgan e Kingsley encaminharam-se para as realidades do futuro. Pela larga janela de observação, um sistema de projeção proporcionava uma vista espantosa da Terra... e não uma vista qualquer, notou Morgan com satisfação, mas a correta. A própria Taprobana estava oculta, naturalmente, pois ficava diretamente abaixo. Mas lá estava todo o subcontinente do Hindustão, bem à direita das neves deslumbrantes do Himalaia.
- Sabe - disse Morgan de repente -, será exatamente como a ponte, tudo de novo. As pessoas farão a viagem só para contemplar a vista. A Estação Intermediária poderá ser a maior atração turística de todos os tempos.
- Ele levantou os olhos para o teto azul-escuro. – Há alguma coisa que valha a pena ver no último andar?
- Pouca coisa... a escotilha superior está terminada, mas ainda não resolvemos onde colocar o equipamento de sustentação de vida e os circuitos eletrônicos para os controles de centralização nos trilhos.
- Algum problema?
- Com os novos ímãs, não. Com propulsão ou em queda livre, podemos garantir plena segurança até oito mil quilômetros por hora - cinqüenta por cento acima da velocidade máxima do projeto.
Morgan permitiu-se um suspiro de alívio mental. Aquela era uma área em que ele era inteiramente incapaz de opinar, tendo de confiar no julgamento de outras pessoas. Desde o começo, tornara-se óbvio que somente alguma forma de propulsão magnética poderia funcionar a tais velocidades. O menor contato físico, a mais de um quilômetro por segundo, resultaria em desastre. No entanto, os quatro pares de fendas-guias que corriam pelas faces da torre só tinham alguns centímetros de margem ao redor dos magnetos. Eles tinham de ser projetados de modo que imensas forças restauradoras entrassem em operação instantaneamente, corrigindo qualquer afastamento da cápsula da linha de centro.
Enquanto Morgan seguia Kingsley pela escada em espiral, ocorreu-lhe de repente um pensamento sombrio. Estou ficando velho, disse consigo mesmo. Ah, eu poderia ter subido ao sexto pavimento sem qualquer dificuldade. Mas estou satisfeito por ter resolvido não subir.
No entanto, só tenho cinqüenta e nove anos... e se passarão pelo menos cinco anos, mesmo que tudo corra bem, antes que o primeiro passageiro chegue à Estação Intermediária. Depois, mais três anos de testes, calibração, retoques no sistema. Digamos dez anos, por segurança...
Embora fizesse calor, ele sentiu um repentino calafrio. Pela primeira vez, ocorreu a Vannevar Morgan que o triunfo a que atrelara sua alma poderia chegar tarde demais para ele. E, inconscientemente, comprimiu a mão contra um fino disco de metal, oculto dentro da camisa.
AÇOR
- Por que deixou que isso chegasse a tal ponto? - perguntou o dr. Sen, num tom que se usaria com uma criança retardada.
- A razão de sempre - respondeu Morgan, correndo o dedo são pela costura da camisa. - Eu estava ocupado demais... e, sempre que sentia falta de ar, punha a culpa na altitude.
- A altitude teve seu efeito, é claro. Seria melhor vocês checarem todo mundo na montanha. Como pode ter deixado de perceber uma coisa tão óbvia?
Realmente, como era possível?, pensou Morgan embaraçado.
- Todos aqueles monges... alguns deles com mais de oitenta anos! Pareciam tão saudáveis que nunca me ocorreu...
- Os monges viviam lá há anos... estavam completamente adaptados. Mas você esteve subindo e descendo várias vezes por dia...
- ...duas, no máximo...
- ...passando do nível do mar para meia atmosfera em poucos minutos. Bem, não haverá conseqüências graves... se você seguir minhas instruções daqui por diante. Minhas e do AÇOR.
- ACOR?
- Alarme Coronariano.
- Ah... uma daquelas coisas.
- Sim... uma daquelas coisas. Elas salvam dez milhões de vidas todo ano. Em geral, políticos importantes, administradores, cientistas famosos, engenheiros proeminentes e malucos desse tipo. Muitas vezes, pergunto-me se tanto trabalho realmente compensa. A natureza pode estar querendo nos dizer alguma coisa, mas não prestamos atenção nela.
- Não se esqueça de seu juramento de Hipócrates, Bill
- retorquiu Morgan, rindo. - E você tem de admitir que sempre fiz exatamente o que me mandou fazer. Ora, se meu peso não mudou nem um quilo nos últimos dez anos!
- Hum... Bem, você não é o pior de meus pacientes - disse o médico, ligeiramente abrandado. Procurou em sua mesa e tirou da gaveta um grande holobloco. - Escolha... aqui estão os modelos padrão. Qualquer cor de que goste, desde que seja vermelho médico.
Morgan acionou as imagens e as olhou com desgosto.
- Onde tenho de carregar essa coisa? - perguntou.
- Ou você quer que eu a implante?
- Isso não vai ser preciso, pelo menos por ora. Dentro de uns cinco anos, talvez, mas assim mesmo tenho minhas dúvidas. Sugiro que comece com esse modelo... é usado sob o esterno, de modo que dispensa sensores remotos. Depois de certo tempo, você nem o notará mais. E não vai incomodá-lo, a menos que seja necessário.
- E se for?
- Escute.
O médico apertou um dos interruptores no painel da mesa, e uma voz de meio-soprano disse, em tom de conversa:
- Acho melhor você se sentar e descansar uns dez minutos. - Depois de uma breve pausa, continuou: - Seria uma boa idéia deitar uma meia hora. - Outra pausa. - Assim que for conveniente, marque uma consulta com o dr. Sen. - E depois: - Por favor, tome uma das pílulas vermelhas imediatamente. Já chamei a ambulância. Fique deitado e descanse. Tudo vai sair bem.
Morgan quase tapou os ouvidos para não escutar o apito estridente.
- EMERGÊNCIA AÇOR! QUALQUER PESSOA QUE ESTEJA AO ALCANCE DE MINHA VOZ, VENHA IMEDIATAMENTE. EMERGÊNCIA AÇOR! QUALQUER...
- Acho que você já percebeu do que se trata - disse o médico, restaurando o silêncio no consultório. - Naturalmente, os programas e as reações são ajustados para cada paciente. E há uma grande variedade de vozes, inclusive algumas famosas.
- Será ótimo. Quando minha unidade estará pronta?
- Ligo para você dentro de uns três dias. Ah, sim...
Devo mencionar a vantagem em usar unidades peitorais.
- Qual é?
- Um de meus pacientes é jogador de tênis, e é muito perspicaz. Ele me disse que, quando abre a camisa, a visão daquela caixinha vermelha tem um efeito simplesmente devastador sobre o jogo do adversário...
Vertigem
Em certa época, uma das tarefas, às vezes importantíssima, de todo homem civilizado era a atualização periódica de sua caderneta de endereços. O código universal tinha tornado isso desnecessário, pois, desde que se conhecesse o número de identificação de uma pessoa, válido ao longo da vida, ela podia ser localizada dentro de segundos. E, mesmo que esse número não fosse conhecido, o programa padrão de pesquisa era capaz de determiná-lo com bastante rapidez, desde que se dispusesse da data aproximada de nascimento, profissão e alguns outros detalhes. (Naturalmente, haveria problemas se o nome fosse Smith, Singh ou Mo-hammed...
O desenvolvimento de sistemas globais de informação também tornara obsoleta outra tarefa irritante. Bastava fazer uma anotação especial junto aos nomes dos amigos que se quisesse cumprimentar no dia do aniversário ou em outras datas festivas, e o computador doméstico fazia o resto. No dia apropriado (a menos, como ocorria freqüentemente, que tivesse havido algum erro estúpido na programação), a mensagem adequada era transmitida automaticamente a seu destino. E, mesmo que o destinatário suspeitasse argutamente que as palavras cordiais na tela eram inteiramente obra da eletrônica - podia ocorrer que o remetente nominal não pensasse naquela pessoa havia anos -, ainda assim o gesto era bem recebido.
No entanto, a mesma tecnologia que havia eliminado uma série de tarefas havia criado outras, ainda mais trabalhosas. Dessas, talvez a mais importante fosse a definição do Perfil de Interesse Pessoal.
A maior parte das pessoas atualizava seu PIP no dia de Ano-Novo, ou no aniversário. A lista de Morgan continha cinqüenta itens. Ouvira falar de pessoas com centenas. Deviam passar todo o tempo em que estavam acordados lutando com a enxurrada de informações, a menos que fossem como aqueles notórios pregadores de peças que adoravam programar avisos urgentes em seus painéis para improbabilidades clássicas como:
“Ovos, dinossauro, choco de
Círculo, quadratura do
Atlântida, reemergência da
Cristo, Segundo Advento de
Monstro do Loch Ness, captura do"
ou finalmente,
"Mundo, fim do".
Em geral, é claro, o egocentrismo ou as necessidades profissionais faziam com que o próprio nome do subscritor fosse o primeiro da lista. Morgan não era exceção a essa regra, mas as entradas seguintes eram um tanto inusitadas:
"Torre, orbital
Torre, espacial
Torre, (geo)síncrona
Elevador, espacial
Elevador, orbital
Elevador, (geo)síncrono".
Esses termos cobriam a maior parte das variações usadas pelos meios de comunicação, e garantiam que ele lesse pelo menos noventa por cento das matérias referentes ao projeto. A grande maioria dessas notas eram triviais, e, às vezes, ele se perguntava se valia mesmo a pena procurá-las, pois as que realmente importavam logo lhe chegavam às mãos, de um modo ou de outro.
Ele ainda estava esfregando os olhos, e a cama tinha acabado de se embutir na parede de seu modesto apartamento, quando Morgan notou que o alerta estava piscando no painel. Premindo simultaneamente os botões CAFÉ e LEITURA, ele esperou a última sensação da noite:
TORRE ORBITAL CRITICADA, dizia a manchete.
- Continuar? - perguntou o painel.
- Claro que sim - respondeu Morgan, agora inteiramente desperto.
Nos segundos seguintes, enquanto lia o texto, ele passou da incredulidade para a indignação, e depois para a preocupação. Transmitiu toda a matéria para Warren Kingsley, com um adendo, "Ligue para mim assim que puder", e pôs-se a tomar seu café, ainda furioso.
Menos de cinco minutos depois, Kingsley apareceu na tela.
- Bem, Van - disse ele, com uma cômica resignação —, devemos nos considerar felizes. Ele levou cinco anos para nos achar.
- É a coisa mais ridícula que já ouvi! Devemos ignorá-lo? Se respondermos, só servirá para dar publicidade a ele. E é isso o que ele quer.
Kingsley assentiu.
- Seria o melhor a fazer, por ora. Nossa reação não deve ser exagerada. Ao mesmo tempo, é possível que ele tenha alguma razão.
- O que quer dizer com isso?
Kingsley se tornara subitamente sério, e parecia até um pouco constrangido.
- Existem mesmo problemas psicológicos, e também de engenharia - disse. - Pense nisso. Vejo você no escritório.
A imagem desapareceu da tela, deixando Morgan um tanto abatido. Ele estava habituado a críticas, e sabia como encará-las. Na verdade, ele tinha prazer nas discussões técnicas com seus colegas, e não se irritava nas raras ocasiões em que seus argumentos eram rebatidos. Mas não era tão fácil lidar com o Pato Donald.
Este, é claro, não era seu nome verdadeiro, mas o negativismo indignado do dr. Donald Bickerstaff muitas vezes lembrava aquela mitológica personagem do século XX. Sua formação acadêmica (satisfatória, mas não brilhante) fora na área da matemática pura; seus trunfos eram um ar convincente, uma voz melíflua e uma inabalável convicção em sua capacidade de emitir julgamentos sobre qualquer assunto científico. Em seu próprio campo, na verdade, ele era excelente. Morgan recordava com prazer uma conferência pública do doutor, no velho estilo, a que ele havia assistido no Instituto Real. Aproximadamente uma semana depois, ele quase havia entendido as propriedades peculiares dos números transfinitos...
Infelizmente, porém, Bickerstaff não conhecia suas próprias limitações. Embora tivesse um devotado séquito de fãs que assinavam seu serviço de informações - numa era anterior, ele teria sido chamado de divulgador científico -, o círculo de seus críticos era ainda maior. Os mais amáveis julgavam que ele recebera educação acima do que permitia sua inteligência. Os demais o tachavam de imbecil, empregado por conta própria. Era uma pena, pensou Morgan, que Bickerstaff não pudesse ser trancado numa sala com o dr. Goldberg/Parakarma; eles se aniquilariam mutuamente como um elétron e um pôsitron - o gênio de um cancelaria a estupidez fundamental do outro. Aquela estupidez inabalável contra a qual, como lamentava Goethe, os próprios deuses lutavam em vão. Como já não existiam deuses, Morgan compreendia que teria de assumir essa tarefa ele próprio. Ainda que tivesse coisas muito melhores em que empregar o tempo, aquilo talvez redundasse num divertido descanso mental; e ele tinha um precedente inspirador.
Havia poucos quadros no quarto de hotel que vinha sendo uma das quatro residências "temporárias" de Morgan, em quase uma década. Entre eles, destacava-se uma fotografia tão bem forjada, que alguns visitantes não conseguiam acreditar que não fosse genuína. Dominava a composição um vapor gracioso e maravilhosamente restaurado - ancestral de todas as embarcações que, desde então, tinham o direito de se chamar modernas. A seu lado, de pé na doca a que havia sido miraculosamente devolvido cento e vinte e cinco anos após seu lançamento, estava o dr. Vannevar Morgan. Olhava para a talha da proa pintada. E, a alguns metros, olhando enigmaticamente para ele, estava Isambard Kingdom Brunel, com as mãos nos bolsos, o charuto preso firmemente nos dentes, e com um terno muito amarrotado e enlameado.
Tudo naquela fotografia era real. Morgan estivera realmente ao lado do Great Britain, num dia ensolarado em Bristol, um ano após a conclusão da Ponte de Gibraltar. Mas a foto de Brunel datava de 1857, e naquele tempo ele ainda esperava o lançamento de seu leviatã, posterior e ainda mais famoso, cujos infortúnios haveriam de alquebrá-lo de corpo e alma.
A fotografia fora presenteada a Morgan no dia de seu qüinquagésimo aniversário, e era um dos seus objetos mais preciosos. Seus colegas pretendiam que fosse uma brincadeira, pois era conhecida a admiração de Morgan pelo maior engenheiro do século XIX. Havia momentos, porém, em que ele imaginava se a escolha que haviam feito não seria mais apropriada do que pensavam. O Great Britain havia devorado seu criador. A torre talvez viesse a fazer o mesmo com ele.
Brunel, é claro, tinha vivido cercado de Patos Donalds. O mais persistente era o dr. Dionysius Lardner, que havia provado, fora de qualquer dúvida, que nenhum vapor jamais conseguiria atravessar o Atlântico. Um engenheiro podia refutar críticas baseadas em erros ou em simples cálculos malfeitos. Mas a questão levantada pelo Pato Donald era mais sutil e de constatação mais difícil. Morgan, subitamente, lembrou-se de que seu herói havia tido de enfrentar uma situação semelhante três séculos antes.
Foi até sua pequena mas preciosa coleção de livros genuínos, e de lá tirou aquele que provavelmente tinha lido mais vezes - a clássica biografia Isambard Kingdom Brunel, de Rolt. Folheando as páginas já bastante surradas, ele encontrou logo o trecho de que se lembrara.
Brunel havia planejado um túnel ferroviário com quase três quilômetros de extensão - uma idéia "monstruosa e absurda, perigosíssima e impraticável". Era inconcebível, diziam os críticos, que seres humanos pudessem tolerar a provação de atravessar suas profundezas do Estige. "Ninguém desejaria apartar-se da luz solar, com a consciência de ter sobre si um peso suficiente para esmagá-lo em caso de acidente... o ruído de dois trens em movimento abalaria os nervos... nenhum passageiro poderia ser induzido a atravessá-lo duas vezes..."
A argumentação era familiar. O lema dos Lardners e dos Bickerstaffs parecia ser: "Nada será feito pela primeira vez".
No entanto... às vezes tinham razão, ainda que devido à lei das probabilidades. O Pato Donald tinha dado um ar de verossimilhança à sua exposição. Começara dizendo, com um ataque de modéstia tão inusitado quanto falso, que não tinha a presunção de criticar os aspectos técnicos do Elevador Espacial. Desejava apenas comentar os problemas psicológicos que a obra acarretaria. Podiam ser resumidos numa só palavra: vertigem. O ser humano normal, observava ele, tinha um medo justificado das alturas; só os acrobatas e os equilibristas estavam imunes a essa reação natural. A mais alta estrutura na Terra tinha menos de cinco quilômetros de altura - e não eram muitas as pessoas que manifestavam desejo de serem guindadas verticalmente ao alto dos pilares da Ponte de Gibraltar.
Entretanto, isso não era nada em comparação com a perspectiva apavorante da Torre Orbital. "A quem nunca ocorreu a experiência", perguntava Bickerstaff, "de colocar-se ao pé de algum edifício imenso, erguendo os olhos para sua fachada descomunal até ela dar a impressão de que vai cair? Imagine-se agora um edifício que sobe incessantemente, atravessando as nuvens, e adentra o negrume do espaço, através da ionosfera, para além das órbitas de todas as grandes estações espaciais - continuando mais e mais, até alcançar uma fração substancial da distância até a Lua! Um triunfo da engenharia, sem dúvida... mas um pesadelo psicológico. Quero crer que algumas pessoas hão de enlouquecer só de pensar nisso! E quantas poderiam enfrentar a provação vertiginosa da viagem - sempre para cima, suspensas no espaço vazio, percorrendo vinte e cinco mil quilômetros até a primeira escala na Estação Intermediária?
De nada adianta argumentar que pessoas perfeitamente comuns são capazes de voar, em naves espaciais, até a mesma altitude, e ainda além. A situação, nesse caso, é inteiramente diferente. O homem normal não sente vertigens nem mesmo na gôndola aberta de um balão, flutuando no ar a alguns quilômetros sobre o solo. Todavia, coloquem-no na beira de um penhasco à mesma altitude, e vejam então sua reação!
"A razão para essa diferença é simplíssima. Num aparelho mais pesado do que o ar, não há nenhuma ligação física entre o observador e o solo. Psicologicamente, portanto, ele está completamente apartado do chão sólido. O medo de cair já não o aterroriza. Ele é capaz de contemplar as paisagens distantes e minúsculas que jamais ousaria olhar de qualquer grande elevação. Esse distanciamento físico salvador é justamente o que o Elevador Espacial não terá. O pobre passageiro, arremessado pela gigantesca torre acima, estará constantemente consciente de sua ligação com a Terra. Que garantia haverá de que alguém que não esteja drogado ou anestesiado possa sobreviver a tal experiência? Desafio o dr. Morgan a responder a isso."
Morgan ainda estava pensando nas respostas, poucas delas educadas, quando a tela se acendeu com um chamado. Quando apertou o botão PROSSEGUIR, não ficou absolutamente surpreso ao ver Maxine Duval.
- Bem, Van - disse ela, sem qualquer preâmbulo - o que você vai fazer?
- Estou muito tentado a discutir com esse idiota, mas acho que não devo. Por falar nisso, você acha que alguma organização aeroespacial está por trás disso?
- Meu pessoal já está investigando. Se descobrirem alguma coisa, avisarei logo a você. Pessoalmente, acho que saiu da cabeça dele; reconheço todas as características da idéia original. Mas você não respondeu à minha pergunta.
- Ainda não resolvi. Estou tentando digerir meu café. O que você acha que devo fazer?
- E simples. Providencie uma demonstração. Para quando pode ser?
- Cinco anos, se tudo correr bem.
- Isso é ridículo. Você já está com o primeiro cabo colocado...
- Cabo, não... fita.
- Deixe para lá. Que peso pode transportar?
- Ah, na extremidade terrestre, apenas quinhentos quilos.
- Para que mais? Proponha uma viagem ao Pato Donald.
- Eu não poderia garantir a segurança dele.
- Garante a minha?
- Não está falando sério!
- Sempre falo sério nessa hora da manhã. De qualquer forma, já é tempo de eu fazer outra reportagem sobre a torre. Aquela réplica da cápsula é muito bonitinha, mas é só uma réplica. Meu público quer ação, e eu também. Da última vez em que nos encontramos, você me mostrou desenhos daqueles carrinhos que os engenheiros usam para subir e descer pelo cabo... quer dizer, fita. Como é o nome deles?
- Aranhas.
- Argh... muito bem. Eu fiquei fascinada com a idéia. Aí está uma coisa que nunca foi possível antes, com nenhuma tecnologia. Pela primeira vez, pode-se ficar sentado no céu, acima da atmosfera, e ver a Terra... uma coisa que nenhuma nave espacial pode fazer. Eu gostaria de ser a primeira pessoa a descrever a sensação. E, ao mesmo tempo, cortar as asas do Pato Donald.
Morgan ficou calado pelo menos cinco segundos, olhando Maxine diretamente nos olhos, até concluir que ela estava realmente falando sério.
- Compreendo perfeitamente - disse ele, cansado - a situação de uma pobre jornalista esforçada, que tenta desesperadamente firmar-se na profissão, e não quer deixar passar essa oportunidade. Não pretendo estragar uma carreira promissora, mas minha resposta é, decididamente, não.
A maior de todos os comunicadores pronunciou várias palavras muito pouco femininas, que em geral não são transmitidas pelos circuitos públicos.
- Antes que eu o esgane com seu próprio hiperfilamento, Van - continuou ela -, por quê?
- Bem, se alguma coisa saísse errada, eu nunca me perdoaria.
- Poupe as lágrimas de crocodilo. Naturalmente, meu falecimento prematuro seria uma grande tragédia... para seu projeto. Mas nem por sonho eu pensaria em subir antes de você ter feito todos os testes necessários, e de estar certo de que o elevador é cem por cento seguro.
- E isso pareceria um golpe publicitário.
- Como diziam os vitorianos - ou seriam os elisabetanos? -, e daí?
- Olhe, Maxine, está chegando a notícia de que a Nova Zelândia acabou de afundar... vão precisar de você no estúdio. Mas obrigado pela proposta generosa.
- Dr. Vannevar Morgan, sei exatamente por que o senhor está rejeitando minha proposta. É que o senhor quer ir primeiro.
- Como diziam os vitorianos... e daí?
- Ponto seu... Mas estou avisando, Van... assim que você tiver uma daquelas aranhas em funcionamento, vai receber outro chamado meu.
Morgan balançou a cabeça. - Sinto muito, Maxine - respondeu. - Não há a mínima possibilidade...
Sideronauta, oitenta anos depois
Extraído de Deus e Ilhastral (Editora Mandala, Moscou, 2149):
"Há exatamente oitenta anos, a sonda espacial conhecida como Sideronauta penetrou no sistema solar, travando seu diálogo breve, mas histórico, com a raça humana. Pela primeira vez, tivemos confirmação do que sempre suspeitáramos - que não éramos a única inteligência no universo, e que entre as estrelas existiam civilizações muito mais antigas, e talvez muito mais sábias.”
Após o encontro, nada poderia continuar como antes. No entanto, paradoxalmente, pouquíssima coisa mudou. A humanidade continua a viver quase da mesma maneira. Com que freqüência paramos para pensar que os construtores de Sideronauta, em seu próprio planeta, já sabiam de nossa existência vinte e oito anos antes, ou que, com toda a certeza, só estaremos recebendo suas primeiras mensagens diretas daqui a vinte e oito anos? E se suceder que, como alguns já sugeriram, eles próprios já estejam a caminho?
Os homens têm uma capacidade extraordinária, e talvez até afortunada, de remover de sua consciência as mais aterradoras possibilidades futuras. O agricultor romano, lavrando as encostas do Vesúvio, esquecia-se da montanha que fumegava. Durante metade do século XX conviveu-se com a bomba de hidrogênio, e em metade do XXI com o vírus Gólgota. Quanto a nós, aprendemos a viver com a ameaça - ou a promessa - de Ilhastral.
Sideronauta mostrou-nos muitos mundos e raças estranhas, mas não revelou quase nada sobre tecnologia avançada, e por isso teve um impacto mínimo sobre os aspectos técnicos de nossa cultura. Isso terá sido acidental, ou resultou de uma política deliberada? São muitas as perguntas que gostaríamos de fazer a Sideronauta, mas agora é tarde demais... ou cedo demais.
Por outro lado, Sideronauta não discutiu muitos temas de filosofia e religião, mas nesses campos sua influência foi profunda. Embora a frase não ocorra em nenhum ponto das transcrições, atribuiu-se de modo geral a Sideronauta o famoso aforismo "A crença em Deus é, aparentemente, um produto psicológico da reprodução mamífera".
Mas o que importa isso? O fato é totalmente irrelevante para a questão da existência real de Deus, como passaremos a demonstrar..."
Swami Krisnamurthi (dr. Choam Goldberg)
O céu cruel
Os olhos conseguiam acompanhar a fita muito mais longe de noite do que de dia. Ao crepúsculo, quando as luzes de advertência eram ligadas, a fita tornava-se uma estreita faixa incandescente, cada vez mais indistinta, até que, num ponto indefinido, perdia-se contra o fundo de estrelas.
Mesmo antes de concluída, a obra já era a maior maravilha do mundo. Até que Morgan fizesse pé firme e limitasse o ingresso no canteiro de obras a engenheiros, houvera um afluxo contínuo de visitantes - "peregrinos", como os chamara alguém, ironicamente - que rendiam tributo ao último milagre da montanha sagrada.
Todos se comportavam exatamente da mesma maneira. Primeiro, estendiam a mão e tocavam a faixa de cinco centímetros de largura, correndo os dedos por ela quase com reverência. Depois, encostavam os ouvidos no material liso e frio da fita, como que esperando captar a música das esferas. Havia alguns, com efeito, que alegavam escutar uma nota baixa e grave, quase inaudível, mas tratava-se de uma ilusão. Até mesmo os mais agudos harmônicos da freqüência natural da fita achavam-se muito abaixo da capacidade de audição humana. E outros afastavam-se, meneando as cabeças: "A mim é que nunca vão obrigar a subir nisso!" Mas esses mesmos tinham dito coisa semelhante com relação ao foguete de fusão, ao ônibus espacial, ao aeroplano, ao automóvel... e até mesmo à locomotiva a vapor.. .
A esses céticos, dava-se uma resposta sempre igual:
- Não se preocupe, isso é apenas uma parte do sistema que servirá para guiar a torre até a Terra. A viagem na estrutura final será exatamente como tomar um elevador num edifício alto. Só que a viagem será mais longa... e muito mais confortável.
A viagem de Maxine Duval, porém, seria curtíssima, e não muito confortável. Mas, antes que Morgan capitulasse, ele fizera todo o possível para garantir que nada sairia errado.
A delicada "aranha", um veículo de testes que se assemelhava a uma cadeira de dentista motorizada, já havia realizado dezenas de ascensões até uma altitude de vinte quilômetros, com o dobro do peso que estaria transportando agora. Ocorreram os costumeiros probleminhas, mas nada de sério. Os últimos cinco testes haviam transcorrido perfeitamente. E o que poderia sair errado? Se houvesse falta de energia, coisa quase inimaginável num sistema a bateria tão simples, a gravidade faria Maxine voltar em segurança, e os freios automáticos limitariam a velocidade de descida. O único risco real era que o mecanismo propulsor emperrasse, detendo a aranha e sua passageira na alta atmosfera. E Morgan já tinha solução até para isso.
- Apenas quinze quilômetros? - protestara Maxine. - Um planador subiria mais que isso!
- Mas você não pode ir mais alto, só com uma máscara de oxigênio. É claro que, se você quiser esperar mais um ano até aprontarmos a unidade operacional, com o sistema de proteção independente...
- O que há de errado com um traje espacial? Morgan se recusara a ceder, e tinha suas razões para isso. Embora esperasse que ele fosse desnecessário, um pequeno guindaste a jato estava de prontidão junto ao Sri Kanda. Seus operadores, extremamente competentes, só eram usados em tarefas difíceis. Não teriam nenhuma dificuldade em resgatar Maxine se acontecesse alguma coisa, mesmo a uma altitude de vinte quilômetros.
No entanto, não existia um veículo capaz de alcançar o dobro daquela altitude. Acima de quarenta quilômetros ficava a terra de ninguém - baixo demais para foguetes, alto demais para balões.
Teoricamente, é claro, um foguete poderia pairar ao lado da fita, durante alguns minutos, antes de consumir todo o seu combustível. Mas os problemas de navegação e o contato real com a aranha eram tão apavorantes que Morgan nem se dera ao trabalho de pensar neles. Aquilo jamais poderia ocorrer na vida real, e ele esperava que nenhum produtor de videodramas concluísse que havia nisso um bom material para um filme de suspense. Esse era o tipo de publicidade que ele dispensava.
Maxine Duval parecia uma típica turista na Antártida, em seu reluzente termotraje de folha metálica, enquanto caminhava em direção à aranha e ao grupo de técnicos a seu redor. Maxine havia escolhido aquele momento cuidadosamente. O sol nascera apenas uma hora antes, e seus raios oblíquos iluminariam maravilhosamente a paisagem da Ta-probana. Seu rem, ainda mais jovem e corpulento que na última e memorável ocasião, registrava a seqüência dos acontecimentos para um público mundial.
Como de hábito, Maxine ensaiara tudo. Não houve confusão ou hesitação enquanto ela se amarrava na aranha, apertava o botão CARGA DE BATERIA, sorvia profundamente o oxigênio pela máscara e verificava os monitores em seus canais de vídeo e som. Depois, como um piloto de caça num velho filme histórico, ela fez um sinal com o polegar e suavemente empurrou para a frente o controle de velocidade.
Houve uma pequena salva de palmas, irônica, por parte dos engenheiros, alguns dos quais já haviam dado passeios a altitudes de alguns quilômetros. Alguém gritou: "Ignição! Vai subir!", e com quase a mesma rapidez de um dos primeiros elevadores, no reinado de Vitória I, a aranha começou sua majestosa ascensão.
Aquilo devia ser como uma subida em balão, pensou Maxine. Tranqüila, suave, silenciosa. Não... não era inteiramente silenciosa. Ela ouvia o ronronar dos motores, impulsionando as rodas de tração múltipla que aderiam à face da fita. Não sentiu as oscilações ou a vibração que ela de certa forma esperara. Apesar de sua delicadeza, a incrível faixa pela qual ela estava subindo era rígida como uma barra de aço, e os giroscópios do veículo o mantinham firme como uma rocha. Se ela fechasse os olhos, poderia facilmente imaginar que já estava subindo na torre definitiva. Entretanto, é claro que Maxine não iria fechar os olhos, pois havia muito para ver e absorver. Havia até muito o que ouvir. Era impressionante como o som podia ser transmitido a longas distâncias, pois as conversas lá embaixo ainda eram claramente audíveis.
Maxine acenou para Vannevar Morgan, e depois procurou Warren Kingsley. Para sua surpresa, não conseguiu localizá-lo. Embora ele a tivesse ajudado a se acomodar na aranha, havia desaparecido. Depois, ela lembrou-se de sua franca confissão - às vezes parecia até uma jactância - de que o melhor engenheiro estrutural do mundo não era capaz de suportar as alturas... Todos tinham algum medo secreto... ou, talvez, nem tão secreto. Maxine não gostava de aranhas, e preferia que o veículo em que estava viajando tivesse outro nome; no entanto, seria capaz de enfrentar uma delas, se fosse necessário. A criatura que ela jamais suportaria tocar - muito embora já a houvesse encontrado com freqüência em suas expedições de mergulho - era o tímido e inofensivo polvo.
Agora, podia-se ver toda a montanha, ainda que diretamente de cima fosse impossível avaliar sua verdadeira altura. As duas antigas escadarias que subiam tortuosamente por suas encostas pareciam estradas planas e caprichosamente serpenteantes. Em toda a sua extensão, até onde era dado a Maxine observar, não havia o menor sinal de vida. Com efeito, um trecho tinha sido bloqueado por uma árvore caída... como se a natureza desse um aviso de que, depois de três mil anos, estava para recuperar o que era seu.
Deixando a câmera 1 apontada para baixo, Maxine começou a cobrir o panorama com a número 2. Campos e florestas passavam pela tela do monitor, e depois as distantes cúpulas brancas de Ranapura... e as águas escuras do mar interior. Dali a pouco, lá estava o Yakkagala.
Maxine fez um zoom sobre o Rochedo, e conseguiu obter uma impressão geral das ruínas que cobriam toda a sua superfície, junto do cume. A Galeria dos Espelhos ainda estava imersa em sombras, da mesma forma que a Galeria das Princesas, e não havia possibilidade de avistá-las de distância tão grande. Mas os Jardins das Delícias, com seus lagos e trilhas e o enorme fosso que os circundava, estavam claramente visíveis.
A fileira de pequeninas plumas brancas a intrigou por um momento, até Maxine compreender que estava vendo outro símbolo do desafio de Kalidasa aos deuses — as chamadas Fontes do Paraíso. Imaginou o que o rei teria pensado se pudesse vê-la subir tão facilmente rumo aos céus de seus sonhos.
Já fazia quase um ano que falara pela última vez com o embaixador Rajasinghe. Tomada de um súbito impulso, ela ligou para a casa dele.
- Como vai, Johan? - saudou-o. - Que tal essa vista do Yakkagala?
- Quer dizer que você conseguiu convencer Morgan! Que tal?
- Maravilhoso... é a única palavra possível. Já voei e viajei em tudo o que se possa imaginar, mas isso é muito diferente.
- "Cruzar em segurança o céu cruel..."
- O que é isso?
- Um poeta inglês do começo do séc. XX... "Não me importa se atravessas o mar / Ou cruzas em segurança o céu cruel..."
- Bem, eu me importo, e estou me sentindo em segurança. Agora, já consigo ver toda a ilha... até a costa do Hindustão. A que altitude estou, Van?
- Quase doze quilômetros, Maxine. Sua máscara está bem apertada?
- Positivo. Espero que não esteja abafando minha voz.
- Não se preocupe... Ela ainda é inconfundível. Restam três quilômetros.
- Quanto combustível ainda há no tanque?
- O suficiente. E, se você tentar ir além de quinze, usarei o sistema geral para fazer você descer.
- Nem em sonhos. Aliás, meus parabéns... esta é uma excelente plataforma de observação. Talvez os clientes, agora, façam fila.
- Já pensamos nisso... o pessoal dos satélites de comunicações e de meteorologia já estão fazendo propostas. Podemos içar para eles estações e sensores a qualquer altitude que quiserem. Tudo isso vai ajudar a pagar o aluguel.
- Estou vendo você! - exclamou Rajasinghe de repente. - Acabei de pegar você no telescópio... Agora, você está acenando... Não está se sentindo sozinha aí em cima?
Por um momento, houve um silêncio atípico. Depois, Maxine Duval respondeu:
- Não tanto como Iúri Gagárin deve ter se sentido, cem quilômetros mais alto. Van, você trouxe uma coisa nova para o mundo. O céu pode sei cruel... mas você o domesticou. Talvez haja pessoas que jamais hão de conseguir fazer esse passeio... tenho pena delas.
O diamante de um bilhão de toneladas
Muita coisa tinha sido feita nos últimos sete anos, mas ainda restava muito por fazer. Montanhas tinham sido deslocadas - ou, pelo menos, asteróides. A Terra possuía agora uma segunda lua natural, que girava pouco acima da altitude síncrona. Tinha menos de um quilômetro de diâmetro, e diminuía de tamanho rapidamente, à medida que era esvaziada do carbono e outros elementos leves. O que sobrasse - o núcleo de ferro, aparas e escória industrial - constituiria o contrapeso que manteria a tensão da torre. Seria a pedra no estilingue de quarenta mil quilômetros, que agora girava com o planeta a cada vinte e quatro horas.
A cinqüenta quilômetros a leste da Estação Ashoka, flutuava o imenso complexo industrial que processava megatons de matéria-prima e a convertia em hiperfilamento. Como o produto final era constituído de carbono em mais de noventa por cento, com seus átomos dispostos numa retícula cristalina perfeita, a torre havia ganho um apelido popular - o Diamante de um Bilhão de Toneladas. A Associação dos joalheiros de Amsterdã observara azedamente que o hiperfilamento não era absolutamente feito de diamante.
Essas enormes quantidades de material haviam exaurido os recursos das colônias espaciais e a perícia dos técnicos orbitais. Grande parte do gênio técnico da raça humana, adquirido penosamente durante duzentos anos de astronáutica, havia sido canalizado para minas automáticas, usinas de produção e sistemas de montagem em gravidade zero. Em breve, todos os componentes da torre, algumas unidades padronizadas fabricadas aos milhões, seriam reunidos em imensas pilhas flutuantes, à espera dos montadores robôs.
Aí, a torre começaria a crescer em duas direções opostas - em direção à Terra e rumo à massa de ancoragem orbital, de modo que a torre estivesse sempre balanceada. Sua seção transversal diminuiria regularmente a partir da órbita, onde sofreria a tensão máxima, até a Terra e o contrapeso de ancoragem.
Quando tudo estivesse pronto, todo o complexo de construção seria lançado a uma órbita de transferência para Marte. Essa parte do contrato havia causado alguma consternação entre os políticos e financistas da Terra - agora, tardiamente, o potencial do Elevador Espacial começava a ser percebido.
Os marcianos haviam feito um excelente negócio. Embora ainda tivessem de esperar mais cinco anos antes de obter qualquer retorno sobre seu investimento, manteriam, na prática, um monopólio da construção durante, talvez, mais uma década. Morgan suspeitava que a Torre Pavonis seria tão-somente a primeira de uma série. Marte parecia projetado como um local ideal para sistemas de elevadores espaciais, e seus enérgicos ocupantes não estavam dispostos a perder essa oportunidade. Se queriam transformar seu mundo num centro do comércio interplanetário nos anos vindouros, que tivessem boa sorte. Morgan tinha outros problemas com que se preocupar, e alguns deles ainda estavam por resolver.
A torre, apesar de suas dimensões fantásticas, era apenas o apoio de uma estrutura muito mais complexa. Ao longo de cada um de seus quatro lados, deviam correr trinta e seis mil quilômetros de trilhos, capazes de operar a velocidades que jamais haviam sido tentadas. O sistema tinha de ser impulsionado, em toda a sua extensão, por cabos supercondutores ligados a geradores de fusão, sendo que todo o sistema seria controlado por uma rede de computação inacreditavelmente complexa, e que não podia falhar.
O Terminal Superior, onde passageiros e cargas passariam da torre à nave espacial atracada ali, seria um projeto de imensa envergadura. O mesmo acontecia com a Estação Intermediária. E também com o Terminal Terrestre, que estava sendo cavado com raios laser no coração da montanha sagrada. E, além de tudo isso, havia a Operação Limpeza...
Durante duzentos anos, satélites de todas as formas e dimensões, desde porcas e parafusos soltos até vilas espaciais inteiras, vinham se acumulando na órbita da Terra. Tudo o que pudesse ficar abaixo da elevação máxima da torre, a qualquer época, tinha de ser catalogado agora, pois criava um possível perigo. Três quartos desse material eram formados de lixo, há muito esquecido. Agora, tinha de ser localizado e recolhido.
Felizmente, os velhos fortes orbitais estavam soberbamente equipados para essa tarefa. Seus radares, projetados para localizar mísseis em aproximação a distâncias extremas, sem qualquer alerta de antecedência, eram capazes de localizar com exatidão os refugos de uma era espacial primitiva. Então, seus raios laser vaporizavam os satélites menores, enquanto os maiores eram transferidos para órbitas superiores e inofensivas. Alguns, de interesse histórico, eram recuperados e trazidos de volta à Terra. Durante essa operação, houve algumas surpresas, como por exemplo o resgate dos corpos de três astronautas chineses que haviam morrido durante uma missão secreta, e vários satélites de reconhecimento, construídos com tal mistura de componentes que era de todo impossível descobrir que país os havia lançado. Não, é claro, que isso ainda importasse muito, pois tinham pelo menos cem anos de idade.
A multidão de satélites e estações espaciais ainda em atividade, obrigados, por motivos operacionais, a permanecer perto da Terra, tinham tido suas órbitas cuidadosamente verificadas, e em alguns casos, modificadas. Mas, naturalmente, nada podia ser feito com relação aos visitantes fortuitos e imprevisíveis que podiam chegar a qualquer momento dos confins do sistema solar. Como todas as criações da humanidade, a torre estaria exposta a meteoritos. Várias vezes por dia, sua rede de sismômetros detectava impactos da ordem de miligramas. E era de se esperar que uma ou duas vezes por ano ocorressem pequenos danos estruturais. E, mais cedo ou mais tarde, no decorrer dos séculos, a torre poderia encontrar um meteorito gigante capaz de pôr um ou mais trilhos fora de ação durante algum tempo. No pior caso possível, a torre poderia até ser secionada em algum ponto.
A probabilidade de isso acontecer era a mesma de um grande meteorito precipitar-se sobre Londres ou Nova York — que representavam aproximadamente a mesma área de alvo. Os habitantes dessas cidades não perdiam muito sono preocupando-se com essa possibilidade. Tampouco Vanne-var Morgan. Quaisquer que fossem os problemas que estivessem por vir, ninguém duvidava agora de que a Torre Orbital era uma idéia cujo momento havia chegado.
Um lugar de tempestades silenciosas
Trecho do discurso do professor Martin Sessui, por ocasião da entrega do prêmio Nobel de física; Estocolmo, 16 de dezembro de 2154:
"Entre o céu e a Terra estende-se uma região invisível com que os antigos filósofos nunca sonharam. Somente na alvorada do século XX - mais precisamente a 12 de dezembro de 1901 - foi que ela causou o primeiro impacto na vida humana.”
Naquele dia, Guglielmo Marconi transmitiu pelo rádio os três pontos da letra S, em morse, por sobre o Atlântico. Muitos peritos haviam declarado que isso era impossível, porquanto as ondas eletromagnéticas só podiam viajar em linha reta, e não iriam descrever uma curva ao redor da Terra. O feito de Marconi não só prenunciou a era das comunicações mundiais, como provou também que, na atmosfera superior, existe um espelho eletrificado, dotado da propriedade de retransmitir as ondas de rádio para a Terra.
A camada Kennelly-Heaviside, como foi originalmente chamada, logo demonstrou ser uma região de grande complexidade, que continha pelo menos três camadas principais, todas sujeitas a grandes variações de altitude e intensidade. Em seu limite superior, fundem-se com os cinturões de radiação Van Allen, cuja descoberta foi o primeiro triunfo da era espacial.
Essa vasta região, que começa a uma altitude de aproximadamente cinqüenta quilômetros e se estende por um espaço de vários raios da Terra, é hoje conhecida como ionosfera; há mais de dois séculos vem sendo explorada continuamente por foguetes, satélites e ondas de rádio. Gostaria de render tributo a meus precursores nessa empresa - os norte-americanos Tuve e Breit, o inglês Appleton, o norueguês Stormer... e, principalmente, o homem que, em 1970, conquistou a mesma láurea que neste momento tenho a honra de receber, vosso compatriota Hannes Alf-vén. (...)
A ionosfera é a filha pródiga do Sol; mesmo agora, seu comportamento nem sempre é previsível. Nos tempos em que a radiodifusão a grandes distâncias dependia de suas idiossincrasias, ela salvou muitas vidas... mas um número de homens que jamais poderemos avaliar se viram condenados, quando ela tragou seus sinais desesperados sem deixar traços.
Durante menos de um século, quando os satélites de comunicações assumiram essa função, ela foi uma companheira inestimável mas caprichosa - um fenômeno natural antes insuspeitado, que rendeu bilhões e bilhões de dólares para as três gerações que a exploraram.
Por um momento breve da história, ela foi de importância para a humanidade. No entanto, se nunca tivesse existido, não estaríamos aqui! Num certo sentido, foi de importância vital até mesmo para a humanidade pré-tecnológica, e até para o primeiro homem-macaco... na verdade, até para as primeiras criaturas vivas deste planeta. Pois a ionosfera é parte do escudo que nos protege dos mortíferos raios X e ultravioletas. Se estes conseguissem chegar até o nível do mar, é possível que alguma forma de vida tivesse surgido na Terra, mas jamais se transformaria em qualquer coisa parecida conosco.
Como a ionosfera, da mesma forma que a atmosfera, é em última análise controlada pelo Sol, também tem sua meteorologia. Durante as épocas de perturbação solar, ela é varrida por vendavais de partículas carregadas, ao mesmo tempo em que o campo magnético da Terra a agita, provocando nela remoinhos e convecções. Em tais ocasiões, ela não é mais invisível, pois se revela nas cortinas fulgurantes da aurora austral e boreal - um dos espetáculos mais notáveis da natureza, em que as frias noites polares ganham uma fantástica radiação.
Ainda agora, não entendemos todos os processos que ocorrem na ionosfera. Uma das razões pelas quais seu estudo tem sido dificultado é que todos os nossos instrumentos, levados por foguetes e satélites, passam por ela a milhares de quilômetros por hora. Nunca pudemos parar ali para fazer observações! Agora, pela primeira vez, a construção da Torre Orbital cria para nós a possibilidade de instalar observatórios fixos na ionosfera. Também é possível que a própria torre venha a modificar as características da ionosfera... ainda que, certamente, não deverá provocar um curto-circuito, como sugeriu o dr. Bickerstaff!
E por que devemos estudar essa região, já que ela não é mais importante para o engenheiro de comunicações? Bem, além de sua beleza, estranheza e interesse científico, seu comportamento está estreitamente ligado ao do Sol - o senhor de nosso destino. Sabemos agora que o Sol não é a estrela regular e bem-comportada que julgavam nossos ancestrais; ele sofre flutuações de longo e curto prazos. No presente momento, ainda está emergindo da chamada "mínima de Maunder" de 1645 a 1715. Em conseqüência disso, o clima atualmente é mais brando do que em qualquer época desde a Alta Idade Média. No entanto, quanto tempo durará esse período? Mais importante ainda, quando começará o ciclo oposto, inevitável, e que efeito terá ele sobre o clima, a meteorologia e todos os aspectos da civilização humana... não só neste planeta, mas também nos demais? Pois todos são filhos do Sol...
Algumas teorias especulativas querem que o Sol esteja agora entrando num período de instabilidade capaz de produzir uma nova Era Glacial, mais universal que qualquer outra do passado. Se isso for verdade, precisamos de todas as informações que pudermos obter, a fim de nos prepararmos para ela. Até mesmo um século de alerta talvez não seja suficiente.
A ionosfera ajudou a criar-nos; lançou a revolução das comunicações; poderá determinar grande parte de nosso futuro. É por isso que devemos continuar a estudar essa vasta e turbulenta arena de forças solares e elétricas... esse misterioso lugar de tempestades silenciosas."
O Sol ferido
Quando Morgan viu Dev pela última vez, seu sobrinho era uma criança. Agora, era um adolescente. Na próxima vez em que se encontrassem, com certeza já seria um homem.
A sensação de culpa do engenheiro era leve. Os laços familiares vinham se enfraquecendo nos últimos dois séculos; ele e a irmã tinham pouco em comum, exceto o acidente da genética. Embora trocassem cumprimentos e banalidades pelo menos seis vezes por ano, e vivessem em excelentes relações, Morgan nem se lembrava direito da última vez em que a vira.
No entanto, ao cumprimentar o rapaz, enérgico e inteligente (que aparentemente não se intimidava com a presença do tio famoso), Morgan sentiu uma certa melancolia. Não tinha tido um filho que perpetuasse o nome da família; há muito tempo havia feito aquela opção entre o trabalho e a família, que raramente pode ser evitada nos níveis mais altos da realização humana. Em três ocasiões (sem incluir a ligação com Ingrid), ele teve a oportunidade de seguir um caminho diferente. Mas o acaso ou a ambição o desviaram deles.
Morgan conhecia as condições do pacto que havia feito, e as aceitava. Agora, era tarde demais para resmungar por causa das cláusulas em letrinha miúda. Qualquer imbecil podia transferir genes, e a maioria o fazia. Mas, quer a história o reconhecesse, quer o ignorasse, poucos homens poderiam ter alcançado o que ele havia feito - e estava prestes a fazer.
Nas últimas três horas, Dev tinha visto muito mais do Terminal Terrestre do que os costumeiros visitantes ilustres. Entrara na montanha ao nível do solo, pelo acesso já quase concluído da Estação Sul, e lhe foram mostradas as instalações de passageiros e de embarque de bagagem, o centro de controle e o pátio de manobra, onde as cápsulas seriam transferidas dos trilhos leste e oeste (DESCIDA) para os norte e sul (SUBIDA). Contemplara o túnel de cinco quilômetros (semelhante a um gigantesco cano de canhão apontado para as estrelas, como centenas de repórteres já haviam observado em voz baixa), pelo qual as linhas de trânsito subiriam e desceriam. E suas perguntas haviam esgotado três guias antes que o último, aliviado, o entregasse ao tio.
- Aqui está ele, Van - disse Warren Kingsley, quando chegaram pelo elevador de alta velocidade ao topo truncado da montanha. - Leve-o depressa daqui, antes que ele roube meu emprego.
- Eu não sabia que você se interessava tanto por engenharia, Dev.
O garoto mostrou-se magoado, e um pouco surpreso. - Não se lembra daquele Meccamax número 12 que me deu quando eu fiz dez anos, tio?
- Claro... claro, eu só estava brincando. - Para dizer a verdade, ele realmente não se esquecera do kit de construção. Apenas, ele escapara de sua lembrança naquele momento. - Não está sentindo frio aqui? - Ao contrário dos adultos bem agasalhados, o jovem não trouxera o traje térmico habitual.
- Não... estou bem. De que tipo é aquele jato? Quando vocês vão abrir o túnel? Posso pôr a mão nas fitas?
- Viu só? - perguntou Kingsley, rindo.
- Pergunta 1: é o Especial do xeque Abdulá... o filho dele, Faiçal, está visitando a obra. Pergunta 2: vamos deixar esse tampão aqui até a torre atingir a montanha e penetrar pelo túnel. Precisamos dele como plataforma de trabalho, e ele não deixa a chuva entrar. Pergunta 3: pode pôr as mãos na fita, sim... não corra... correr não faz bem nessa altitude.
- Se você tiver treze anos, duvido — disse Kingsley para Dev, que se afastava rapidamente. Caminhando devagar, alcançaram-no junto à ancoragem da face leste.
O menino olhava embasbacado, como milhares de outras pessoas antes dele, para a estreita fita cinzenta que brotava do chão e subia verticalmente. O olhar de Dev acompanhou-a, subindo, subindo... até sua cabeça ficar inclinada ao máximo. Morgan e Kingsley não o imitaram, embora a tentação, depois de tantos anos, ainda fosse forte.
Tampouco lhe avisaram que alguns visitantes ficavam tão tontos, que desmaiavam e não conseguiam sair dali sem ajuda.
O garoto era teimoso. Fitou atentamente o zênite por quase um minuto, como se esperasse avistar os milhares de homens e os milhões de toneladas de material içados para além do azul escuro do céu. Depois, fechou os olhos com uma careta, balançou a cabeça e olhou para os pés durante um instante, como que para se convencer de que ainda pisava a terra sólida e firme.
Estendeu a mão com cuidado e afagou a estreita fita que ligava o planeta com sua nova lua.
- O que aconteceria - perguntou - se ela se quebrasse?
Uma pergunta velha. A maior parte das pessoas ficava surpresa com a resposta.
- Quase nada. Neste ponto, ela praticamente não sofre nenhuma tensão. Se você cortasse a fita, ela simplesmente ficaria pendurada aí, balançando de um lado para o outro.
Kingsley fez uma careta de insatisfação. Ambos sabiam, é claro, que aquilo era uma enorme simplificação. Naquele momento, cada uma das fitas recebia uma tensão de mais ou menos cem toneladas. Mas isso não era nada, comparado com as cargas projetadas com que trabalhariam quando o sistema estivesse funcionando e elas tivessem sido integradas na estrutura da torre. Entretanto, de nada adiantava complicar as coisas para o rapaz.
Dev pensou nessas palavras. Depois, deu um piparote na fita, como se esperasse escutar uma nota musical. Mas a única resposta foi um estalo sem graça.
- Se você batesse nela com uma marreta - disse Morgan - e voltasse dez horas depois, poderia ouvir um eco da Estação Intermediária.
- Isso já não seria possível - informou Kingsley. - Há amortecimento demais no sistema.
- Não seja estraga-prazeres, Warren. Agora, Dev, venha ver uma coisa realmente interessante.
Caminharam até o centro do disco de metal que agora encimava a montanha e que selava o túnel como uma gigantesca tampa de caçarola. Ali, eqüidistante das quatro fitas que guiavam a torre em direção à Terra, havia uma pequena construção geodésica, com um aspecto ainda mais provisório do que a superfície em que tinha sido erigida.
Abrigava um telescópio de desenho estranho, apontado diretamente para cima e aparentemente incapaz de ser assestado em outra direção.
- Essa é a melhor hora para olhar... um pouco antes do crepúsculo. A base da torre está bem iluminada.
- Aliás - disse Kingsley -, veja o Sol, agora. Está ainda mais claro do que ontem. - Havia quase reverência em sua voz, enquanto ele apontava a brilhante elipse achatada que mergulhava na névoa, a oeste. As brumas do horizonte haviam abafado tanto seu fulgor, que se podia olhá-la calmamente.
Aquele grupo de manchas não aparecia há mais de um século. Estendiam-se por quase metade do disco dourado, dando a impressão de que o Sol tinha sido acometido de um terrível mal, ou fora atravessado por planetas cadentes. No entanto, nem mesmo o gigantesco Júpiter poderia ter criado tal ferida na atmosfera solar. A mancha maior tinha duzentos e cinqüenta mil quilômetros de diâmetro, e poderia engolir cem planetas do tamanho da Terra.
- Está prevista para esta noite outra aurora... o professor Sessui e seus rapazes certamente calcularam direito.
- Vamos ver como vai a obra - disse Morgan, ajustando a ocular do telescópio. - Olhe por aqui, Dev.
O garoto olhou por um instante, e depois disse:
- Estou vendo as quatro fitas, que sobem... até desaparecer.
- Nada no meio?
Outra pausa.
- Não... nem um sinal da torre.
- Correto... ela ainda está a seiscentos quilômetros de distância, e estamos usando a menor potência do telescópio. Agora, vou aproximar mais. Aperte o cinto de segurança.
Dev riu da expressão antiga, conhecida por meio de dezenas de dramas históricos. No entanto, a princípio não percebeu nenhuma alteração; só as quatro linhas que apontavam para o centro do campo se tornavam um pouco menos nítidas. Foi preciso alguns segundos para que ele compreendesse que não se poderia esperar nenhuma mudança, enquanto seu ponto de vista acompanhasse o eixo do sistema. As quatro fitas teriam exatamente o mesmo aspecto em qualquer ponto de sua extensão.
De repente, estava lã. Dev foi tomado de surpresa, ainda que estivesse esperando por aquilo. Um minúsculo ponto brilhante havia surgido no centro exato do campo.
O pontinho crescia, e pela primeira vez ele teve uma sensação real de velocidade.
Alguns segundos depois, ele pôde divisar um pequeno círculo... não, agora seu cérebro e seus olhos concordavam em que era um quadrado. Ele estava olhando diretamente para a base da torre, que se prolongava na direção da Terra, ao longo das fitas de guia, à razão de alguns quilômetros por dia. As quatro fitas haviam desaparecido, pois eram pequenas demais para ser vistas àquela distância. Mas aquele quadrado fixado por magia no céu continuava a crescer, ainda que agora perdesse a definição, devido à extrema ampliação.
- O que está vendo? - perguntou Morgan.
- Um quadradinho brilhante.
- Ótimo... é a parte inferior da torre, ainda iluminada pela luz do Sol. Quando já está escuro aqui, ainda se pode vê-la a olho nu durante mais uma hora, antes de ela entrar na sombra da Terra. Agora, está vendo outra coisa?
- Não - respondeu o garoto, após uma longa pausa.
- Devia. Há uma equipe de cientistas que acabou de chegar da Estação Intermediária. Se você olhar cuidadosamente, poderá ver o transportador deles... está no trilho sul... no lado direito da imagem... Procure um ponto brilhante, mais ou menos com um quarto do tamanho da torre.
- Nada, tio... não consigo ver. Olhe você.
- Bem, é possível que as condições de visão tenham piorado. Às vezes, a torre desaparece inteiramente, embora a atmosfera pareça...
Antes mesmo que Morgan pudesse ocupar o lugar de Dev na ocular, seu receptor pessoal emitiu dois sinais estridentes. Um segundo depois, o alarme de Kingsley tocou também.
Era a primeira vez que a torre emitia um alerta de emergência total.
Fim da linha
Não era de admirar que a chamassem de "Estrada de Ferro Transiberiana". Mesmo no fácil caminho de descida, a viagem da Estação Intermediária até a base da torre durava cinqüenta horas.
Algum dia, levaria apenas cinco, mas isso só aconteceria dali a dois anos, quando os trilhos recebessem energia e seus campos magnéticos fossem ativados. Os veículos de inspeção e manutenção que, por enquanto, subiam e desciam pelas faces da torre, eram impulsionados por pneus à antiga, que aderiam às fendas de direção. Ainda que a limitada força das baterias o permitisse, não era seguro operar tal sistema a uma velocidade superior a quinhentos quilômetros por hora.
No entanto, todos tinham estado ocupados demais para sentir tédio. O professor Sessui e seus três alunos tinham feito observações, verificando seus instrumentos e certificando-se de que não haveria perda de tempo quando fossem transferidos para a torre. O condutor da cápsula, seu assistente e um comissário, que constituíam a tripulação de cabine, também estavam ocupadíssimos, pois aquela não era uma viagem rotineira. O "Porão", vinte e cinco mil quilômetros abaixo da Intermediária - e agora a apenas seiscentos quilômetros da Terra -, nunca tinha sido visitado desde sua construção. Até agora, não tinha havido necessidade de ir até lá, uma vez que os vários monitores nunca haviam registrado nenhuma falha. Não que houvesse muitas possibilidades de falha, pois o porão era apenas uma câmara pressurizada de quinze metros de lado - uma das dezenas de refúgios de emergência construídos a intervalos.
O professor Sessui havia usado toda a sua enorme influência a fim de conseguir emprestado aquele local extraordinário, que agora vencia a ionosfera a um ritmo de dois quilômetros por dia, rumo a seu encontro com a Terra. Era essencial, argumentara ele com ardor, que seu equipamento fosse instalado antes que o surto de manchas solares atingisse o pico.
A atividade solar já havia alcançado níveis sem precedentes, e os jovens assistentes de Sessui muitas vezes tinham dificuldade em se concentrar nos instrumentos; as maravilhosas auroras tornavam-se freqüentemente um motivo de distração. Por horas a fio, o hemisfério setentrional e o meridiano enchiam-se de cortinas e pendões de luz esverdeada, que se moviam lentamente, enquanto uma leve sombra de fogos de artifício celestes se agitava em torno dos pólos. Com efeito, era raro a aurora se afastar tanto de seus domínios normais. Somente uma vez em gerações, ela invadia os céus equatoriais.
Sessui fizera com que os estudantes voltassem ao trabalho, lembrando-lhes que teriam muito tempo para ver aquelas maravilhas na longa subida de volta à Intermediária. No entanto, às vezes o próprio professor Sessui se detinha na janela de observação por vários minutos, deslumbrado com o espetáculo do céu incandescente.
Alguém havia batizado o projeto de "Expedição à Terra" - nome esse que, no que se referia à distância, era noventa e oito por cento exato. À medida que a cápsula deslizava pela face da torre, sua crescente proximidade do planeta lá embaixo se tornava óbvia, pois a gravidade estava aumentando lentamente, passando da deliciosa imponderabilidade da Intermediária ao nível quase terrestre. Para um experiente viajante espacial, aquilo era realmente estranho: sentir qualquer gravidade antes do momento de reentrada na atmosfera parecia uma inversão da ordem normal das coisas.
Com exceção das queixas sobre a alimentação, suportadas estoicamente pelo sobrecarregado comissário de bordo, a viagem havia transcorrido sem incidentes. A cem quilômetros do Porão, os freios haviam sido aplicados com suavidade, e a velocidade caíra à metade. Fora diminuída novamente a cinqüenta quilômetros de distância, pois, como observou um dos estudantes: "Não seria embaraçoso se passássemos do fim da linha?"
O condutor (ele insistia em ser chamado de piloto) replicou que isso era impossível, pois as fendas-guias pelas quais a cápsula estava caindo terminavam a vários metros de distância do fim da torre. Havia também um complicado sistema de amortecimento, para o caso inimaginável de que todos os quatro conjuntos independentes de freios não funcionassem. E todos concordaram em que a brincadeira, além de ser ridícula, era de extremo mau gosto.
Meteoro
O imenso lago artificial, conhecido durante dois mil anos como Mar de Paravana, jazia calmo e pacífico sob o olhar pétreo de seu construtor. Embora fossem poucos os que atualmente visitavam a solitária estátua do pai de Kalidasa, sua obra, se não sua fama, durara mais que a do filho; e servira muito mais a seu país, dando alimento e bebida a centenas de gerações de homens. E a um número muito maior de gerações de pássaros, veados, búfalos, macacos e seus predadores, como o esguio e bem-alimentado leopardo, que agora bebia à beira d'água. Os grandes felinos estavam se tornando comuns e começavam a ser incômodos, já que nada mais tinham a temer de caçadores. Mas nunca atacavam homens, a menos que fossem encurralados ou molestados.
Confiante em sua segurança, o leopardo bebia placidamente, enquanto as sombras em torno do lago se alongavam e o crepúsculo avançava, vindo do leste. De repente, ele levantou as orelhas e se pôs alerta. Nenhum sentido meramente humano poderia ter detectado qualquer mudança na terra, na água ou no céu. A noite caía, tranqüila como sempre.
Foi então que, diretamente do zênite, começou-se a ouvir um débil assovio, que se transformou paulatinamente num rugido, com matizes dilacerantes, estridentes, muito diferentes dos causados por uma nave espacial que reentras-se na atmosfera. No céu, alguma coisa metálica cintilava, tocada pelos derradeiros raios do Sol, tornando-se cada vez maior e deixando atrás de si uma trilha de fumo. Ao se expandir, desintegrou-se. Voaram pedaços para todas as direções, alguns incandescentes. Por alguns segundos, um olho aguçado como o do leopardo poderia ter vislumbrado um objeto grosseiramente cilíndrico, antes que explodisse em miríades de fragmentos. Mas o leopardo não esperou pela catástrofe final; já havia desaparecido na selva.
O Mar de Paravana entrou em erupção, em meio a um súbito trovão. Um jato de lama projetou-se a cem metros de altura, um repuxo muito mais alto que os do Yakkagala, e quase tão alto quanto o próprio rochedo. Pairou no ar por um momento, desafiando inutilmente a gravidade, antes de despenhar-se no lago perturbado.
O céu já estava juncado de aves aquáticas que fugiam, espavoridas. Entre elas, como pterodáctilos coriáceos que houvessem conseguido sobreviver até a idade moderna, viam-se os morcegos frugívoros que normalmente só saíam das tocas depois do cair da noite. Igualmente aterrorizados, aves e morcegos partilhavam o mesmo céu.
Os últimos ecos do cataclisma morreram na selva, e o silêncio logo voltou ao lago. Mas muitos minutos se passaram antes que a superfície se refizesse e as pequenas ondas cessassem seu movimento, sob os olhos vazios de Paravana, o Grande.
Morte em órbita
Toda grande obra, ao que se diz, custa o preço de uma vida. Catorze nomes estavam gravados nos pilares da Ponte de Gibraltar. No entanto, graças a uma campanha de segurança quase fanática, as baixas na torre tinham sido extraordinariamente reduzidas. Na verdade, havia passado um ano inteiro sem uma única morte.
Num outro, porém, haviam ocorrido quatro, sendo duas delas particularmente tristes. Um supervisor de montagem da estação espacial, acostumado a trabalhar em condições de gravidade zero, esqueceu que, conquanto estivesse no espaço, não estava em órbita... e a experiência de toda uma vida o traíra. Caíra de uma altitude superior a quinze mil quilômetros, ardendo como um meteoro ao chegar à atmosfera. Infelizmente, o rádio de seu traje permanecera ligado naqueles últimos minutos...
Foi um ano ruim para a torre. A segunda tragédia teve um desenlace muito mais prolongado, e igualmente público. Uma engenheira no contrapeso, muito acima da órbita síncrona, deixara de prender direito o cinto de segurança — e fora arremessada ao espaço como a pedra de uma atiradeira. Naquela altitude, não corria perigo de voltar à Terra ou ser lançada numa órbita de escape. Infelizmente, porém, seu traje continha oxigênio para menos de duas horas. Não havia possibilidade de resgate rápido. E, apesar do clamor público, não se fez nenhuma tentativa para tanto. A vítima cooperou nobremente. Transmitiu suas mensagens de despedida, e depois, ainda com trinta minutos de oxigênio, abriu o traje no vácuo. O corpo foi recuperado alguns dias depois, quando as leis inexoráveis da mecânica celeste o trouxeram de volta ao perigeu de sua longa elipse.
Aquelas tragédias passaram velozmente pelo espírito de Morgan enquanto ele tomava o elevador rápido para descer à Sala de Operações, seguido de perto pelo taciturno Warren Kingsley, que já quase se esquecera de Dev. Entretanto, aquela catástrofe era de uma espécie inteiramente diferente, e envolvia uma explosão na base da torre, ou perto dela. O transportador tinha caído na Terra, isso era óbvio, mesmo antes que se recebesse a notícia de uma "gigantesca chuva de meteoros" em algum local no centro da Taprobana.
Era inútil especular, até se dispor de mais dados. E já que todos os sinais provavelmente tinham sido destruídos, talvez esses fatos nunca viessem à luz. Morgan sabia que os acidentes espaciais raramente tinham uma causa única. Em geral, decorriam de uma série de fatos que, isolados, muitas vezes eram inteiramente inocentes. Nem toda a previsão dos engenheiros podia garantir segurança absoluta, e às vezes as próprias precauções, exageradas, contribuíam para o desastre. Morgan não se envergonhava do fato de que a segurança do projeto o preocupava mais do que a perda de vidas. Nada podia ser feito pelos mortos, exceto garantir que o mesmo acidente jamais voltaria a acontecer. Mas a possibilidade de que a torre, quase completa, pudesse estar correndo perigo era assustadora demais.
O elevador se deteve de mansinho, e Morgan entrou na Sala de Operações... bem em tempo para a segunda e espantosa surpresa da noite.
Sistema de proteção
A cinco quilômetros do terminal, o condutor-piloto Rupert Chang reduziu mais uma vez a velocidade. Pela primeira vez, os passageiros podiam ver a face da torre como algo mais do que uma mancha indistinta, que fugia para o infinito em ambas as direções. Para cima, realmente, os sulcos geminados pelos quais o transportador corria seguiam eternamente... ou pelo menos até vinte e cinco mil quilômetros de altura, o que na escala humana era quase o mesmo. Para baixo, no entanto, o fim já estava à vista. A base truncada da torre destacava-se claramente do fundo verdejante da Taprobana, que alcançaria em menos de um ano.
No painel de controle, os símbolos vermelhos de ALARME brilharam mais uma vez. Chang os estudou com a fisionomia carregada, e depois apertou um botão. Os símbolos cintilaram uma vez e depois desapareceram.
Na primeira vez em que isso havia ocorrido, a duzentos quilômetros dali, houvera uma consulta apressada ao controle da Estação Intermediária. Uma verificação rápida de todos os sistemas não revelou nada errado. Na verdade, se todas as advertências fossem levadas a sério, os passageiros do transportador já estariam todos mortos. Tudo havia ultrapassado os limites de tolerância.
Evidentemente, tratava-se de um defeito nos próprios circuitos de alarme, e a explicação do professor Sessui foi recebida com alívio geral. O veículo já não se encontrava no ambiente de vácuo puro para que tinha sido projetado. O turbilhão ionosférico em que havia entrado estava acionando os sensíveis detectores dos sistemas de advertência.
- Alguém devia ter pensado nisso - resmungara Chang. No entanto, restava menos de uma hora de viagem, e ele não estava realmente preocupado. Faria constantes verificações manuais de todos os parâmetros críticos. A Intermediaria aprovou. De qualquer maneira, não havia outra alternativa.
A carga da bateria talvez fosse o que mais o preocupava. O ponto de recarga mais próximo ficava a dois mil quilômetros, e se não pudessem subir novamente até aquele ponto estariam em apuros. Mas Chang não via motivos de preocupação. Durante o processo de frenagem, os motores do transportador tinham funcionado como dínamos, e noventa por cento de sua energia gravitacional havia sido retransferida para as baterias. Agora que estas estavam plenamente carregadas, as centenas de quilowatts excedentes que ainda estavam sendo geradas seriam desviadas para o espaço, graças às grandes aletas de refrigeração na ré. Aquelas aletas, como os colegas de Chang muitas vezes haviam comentado, faziam com que o veículo parecesse uma antiga bomba aérea. Àquela altura, ao fim do processo de frenagem, deviam estar quase avermelhadas. Chang teria ficado realmente preocupado se soubesse que ainda estavam perfeitamente frias. Pois a energia nunca pode ser destruída; tem de ir para algum lugar. E, muitas vezes, vai para o lugar errado.
Quando o aviso de INCÊNDIO - COMPARTIMENTO DE BATERIAS - acendeu pela terceira vez, Chang não hesitou em apagá-lo. Um incêndio real, sabia, teria acionado os extintores. Na verdade, um de seus maiores receios era o de que os extintores começassem a funcionar sem necessidade. Havia agora várias anomalias a bordo, principalmente nos circuitos de carga de bateria. Assim que a viagem acabasse e ele tivesse desligado o transportador, Chang subiria na sala de máquinas e daria em tudo uma boa inspeção visual, à maneira antiga.
Quando seu nariz o alertou, faltava menos de um quilômetro para o fim da jornada. Enquanto fitava incredulamente o fio de fumaça que subia do painel de controle, a parte puramente analítica da mente de Chang dizia: "Que sorte isso só ter acontecido no fim da viagem!"
Lembrou-se, então, de toda a energia produzida durante a frenagem final e teve um palpite bastante correto quanto à seqüência dos acontecimentos. Os circuitos de proteção com certeza não haviam funcionado, e as baterias estavam supercarregadas. Um sistema de proteção após outro havia falhado. Ajudada pela tempestade ionosférica, a perversidade das coisas inanimadas voltara a atuar.
Chang apertou o botão do extintor de incêndio do compartimento de baterias. Pelo menos ÍJJO funcionou, pois ele escutou o rugido abafado das rajadas de nitrogênio no outro lado da cabina. Dez segundos depois, ele acionou o botão de DESCARGA NO VÁCUO, que soltaria o gás para o espaço, juntamente, assim esperava, com a maior parte do calor causado pelo fogo. O procedimento também funcionou corretamente; era a primeira vez que Chang ouvia com alívio o ruído inequívoco da atmosfera que escapava de um veículo espacial. Esperava também que fosse a última.
Não ousou confiar na seqüência automática de frenagem, enquanto o veículo finalmente entrava no terminal. Por felicidade, ele fora bem treinado e reconhecia todos os sinais visuais, de modo que conseguiu parar a um centímetro do adaptador de acoplamento. Numa pressa frenética, as escotilhas foram engatadas, as provisões e o equipamento, arremessados pelo tubo de conexão...
E o mesmo aconteceu com o professor Sessui, devido aos esforços reunidos do piloto, do engenheiro assistente e do comissário de bordo, quando tentou voltar para buscar seus preciosos instrumentos. As portas das escotilhas se fecharam apenas alguns segundos antes que o escudo da sala de máquinas finalmente cedesse.
Depois disso, os refugiados nada puderam fazer, senão esperar na câmara sombria, de quinze metros quadrados, muito menos confortável do que uma cela de prisão bem-mobiliada, e esperar que o fogo terminasse. Para sossego dos passageiros, somente Chang e o engenheiro estavam a par de um lado importante: plenamente carregadas, as baterias continham a energia de uma grande bomba química, que agora tiquetaqueava do lado de fora da torre.
Dez minutos depois de sua chegada apressada, a bomba detonou. Houve uma explosão abafada, que provocou apenas ligeiras vibrações na torre, seguida pelo som de metal rasgado e dilacerado. Embora os ruídos não fossem muito altos, gelaram os corações dos que os escutaram; seu único meio de transporte estava sendo destruído, deixando-os naufragados a vinte e cinco mil quilômetros da segurança.
Houve outra explosão, mais tarde... e depois, silêncio. Os refugiados compreenderam que o veículo havia se desprendido da face da torre. Ainda atônitos, começaram a fazer um levantamento dos recursos de que dispunham. E, lentamente, surgiu neles a compreensão de que a fuga milagrosa tinha sido em vão.
Uma caverna no céu
Nas profundezas da montanha, entre os equipamentos de computação e comunicação do Centro Terrestre de Operações, Morgan e seu grupo técnico estavam reunidos em torno do holograma da seção inferior da torre, em escala de um por dez. A reprodução era perfeita em todos os detalhes, inclusive as quatro fitas estreitas que se estendiam ao longo de cada uma das faces. Desapareciam no ar pouco acima do solo, e era difícil imaginar que, mesmo naquela escala diminuta, devessem prosseguir para baixo mais sessenta quilômetros - varando completamente a crosta do planeta.
- Dê o corte - disse Morgan - e ilumine a base ao nível dos olhos.
A torre perdeu sua aparente solidez e tornou-se um espectro luminoso - uma caixa quadrada, longa e de paredes finas, que só continha os cabos supercondutores do suprimento de força. Sua parte mais baixa — "Porão" era mesmo um bom termo - havia sido lacrada, formando uma única câmara quadrada, com quinze metros de lado.
- Acesso? - indagou Morgan.
Dois pedaços da imagem começaram a brilhar mais. Viam-se claramente, nas faces norte e sul, entre as fendas dos trilhos de direção, as portas externas das escotilhas em duplicata - o mais distante possível uma da outra, segundo as habituais precauções de segurança para todos os habitats espaciais.
- Eles entraram pela porta sul, é claro - explicou o oficial de dia. - Não sabemos se foi danificada com a explosão.
Bem, havia mais três entradas, pensou Morgan, e era o par inferior que o interessava. Aquela fora uma solução incorporada tardiamente no projeto. Na verdade, toda a base havia sido imaginada depois. Numa certa época, tinham julgado desnecessário construir um refúgio ali, na parte da torre que por fim se tornaria parte do próprio Terminal Terrestre.
- Incline a parte inferior para mim - ordenou Morgan.
A torre descaiu num arco de luz, passando a flutuar horizontalmente no ar, com a extremidade inferior voltada para Morgan. Agora, ele podia ver todos os detalhes a partir do piso de vinte metros de lado. Ou a partir do teto, se alguém o olhasse do ponto de vista de seus construtores orbitais.
Perto dos cantos norte e sul estavam as duas escotilhas que davam acesso por baixo, levando a duas câmaras estanques independentes. O único problema consistia em chegar a elas, a seiscentos quilômetros de altitude.
- Manutenção da vida?
As câmaras estanques se dissolveram na estrutura. O foco visual passou para um pequeno gabinete no meio da câmara.
- Esse é o problema, doutor - respondeu o oficial de dia, sombriamente. - Só há um sistema de manutenção de pressão. Nenhum purificador e, naturalmente, nenhuma energia. Agora que perderam o transportador, não vejo como poderão sobreviver à noite. A temperatura já está caindo... desceu a dez graus desde o crepúsculo.
Para Morgan, foi como se o frio do espaço houvesse penetrado em sua alma. A alegria de constatar que os ocupantes do transportador sinistrado ainda estavam vivos rapidamente se esvaía. Mesmo que houvesse na base energia suficiente para vários dias, ela não teria nenhum valor se eles se congelassem antes da alvorada.
- Eu gostaria de falar com o professor Sessui.
- Não podemos entrar em contato com ele diretamente... o telefone de emergência do Porão só vai à Intermediária. Mas não há problema.
A previsão não se confirmou inteiramente. Feita a conexão, o condutor-piloto Chang atendeu.
- Desculpe - disse. - O professor está ocupado. Depois de um momento de silêncio incrédulo, Morgan respondeu, fazendo uma pausa entre cada palavra e enfatizando seu nome. - Diga que o dr. Vannevar Morgan quer falar com ele.
- Vou dizer, doutor... mas não vai fazer a menor diferença. Ele está trabalhando num equipamento com seus alunos. Foi a única coisa que conseguiram salvar... uma espécie de espectroscópio... eles o estão apontando numa das janelas de observação...
Morgan controlou-se com dificuldade. Já estava para perguntar:
- Eles estão malucos? - quando Chang se antecipou a ele.
- O senhor não conhece o professor... mas eu passei a última semana com ele. Ele é uma pessoa... bem, acho que se pode chamar obsessiva. Foram necessários três homens para evitar que ele voltasse à cabina e buscasse mais peças de seu equipamento. Acabou de me dizer que, já que vamos morrer de qualquer maneira, quer ter certeza de que pelo menos um de seus equipamentos está funcionando direito.
A julgar pela voz de Chang, Morgan adivinhava que, apesar de todo o aborrecimento, ele sentia enorme admiração pelo ilustre e difícil passageiro. Na verdade, havia lógica no que dizia o professor. Havia sentido em salvar o que pudesse, por tantos anos de esforço despendido naquela fatídica expedição.
- Muito bem - disse Morgan, finalmente, cooperando com o inevitável. — Nesse caso, gostaria que você fizesse um resumo da situação. Até agora, só tive notícias de segunda mão.
Ocorreu-lhe então que, de qualquer forma, provavelmente Chang lhe poderia fazer um relatório muito mais útil do que o professor. Muito embora a insistência do condutor-piloto na segunda metade de seu título causasse risos entre os verdadeiros astronautas, tratava-se de um técnico altamente qualificado, que havia recebido um excelente treinamento de engenharia mecânica e elétrica.
- Não há muito o que dizer. Tivemos tão pouco tempo, que quase não pudemos salvar nada... a não ser esse maldito espectroscópio. Francamente, nunca imaginei que conseguíssemos escapar pela câmara estanque. Temos a roupa do corpo... e só. Uma das estudantes pegou sua bolsa de viagem. Imagine o que continha... o rascunho de sua tese, escrita em papel. Pelo amor de Deus! Nem mesmo era à prova de fogo, apesar de todas as normas. Se pudéssemos gastar oxigênio, nós o queimaríamos para ter um pouco de calor.
Escutando aquela voz, vinda do espaço, e contemplando o holograma transparente - mais sólido - da torre, Morgan teve uma curiosa ilusão. Imaginou que ali dentro, no compartimento inferior, moviam-se seres humanos na escala de um por dez. Bastaria estender a mão e trazê-los para a segurança.. .
- Depois do frio, o maior problema é o ar. Não sei quanto tempo vai passar antes que a acumulação de gás carbônico nos faça desmaiar... talvez alguém consiga calcular isso também. Seja qual for a resposta, acho que será otimista demais. - A voz de Chang caiu vários decibéis, e ele começou a falar num tom quase conspiratório, evidentemente para que não o escutassem. - O professor e seus estudantes não sabem disso, mas a câmara sul ficou avariada durante a explosão. Há um vazamento... um assovio constante em torno das gaxetas. Não sei se é muito sério. - A voz voltou ao tom normal. - Bem, é essa a situação. Estaremos à espera de uma comunicação sua.
Mas o que podemos dizer, pensou Morgan, exceto "Adeus"?
Saber lidar com emergências era uma qualificação que Morgan admirava, mas não invejava. Janos Bartok, oficial de segurança da torre na Intermediária, estava agora encarregado da situação. Aqueles que se encontravam no interior da montanha, vinte e cinco mil quilômetros lá embaixo - e a apenas seiscentos quilômetros do local do acidente -, só podiam ouvir os relatórios, dar conselhos úteis e satisfazer a curiosidade dos meios de comunicação da melhor forma possível.
É desnecessário dizer que minutos depois do sinistro, Maxine Duval ligou. Como sempre, suas perguntas eram muito pertinentes.
- A Estação Intermediária pode chegar até eles em tempo?
Morgan hesitou. A resposta àquela pergunta era, sem dúvida, um "não". No entanto, era imprudente, para não dizer cruel, abandonar a esperança tão depressa. E tinha havido um golpe de sorte...
- Não quero levantar falsas esperanças, mas talvez não venhamos a precisar da Intermediária. Há um grupo trabalhando muito mais perto, na Estação 10K... dez mil quilômetros acima. O transportador deles pode chegar à base em vinte horas.
- Então, por que ainda não está descendo?
- O oficial de segurança Bartok vai tomar a decisão daqui a pouco... mas poderia ser um desperdício de esforço. Achamos que eles só dispõem de ar para metade desse tempo. E o problema da temperatura é ainda mais sério.
- O que você quer dizer?
- Já é noite lá, e eles não têm nenhuma fonte de calor. Não divulgue isso ainda, Maxine, mas talvez se trate de uma corrida entre o congelamento e a anoxia.
Houve uma pausa de vários segundos. Depois, Maxine Duval disse, num tom de voz indeciso, o que era pouco característico nela: — Talvez eu esteja dizendo bobagem, mas com certeza as estações meteorológicas, com seus grandes lasers infravermelhos...
- Obrigado, Maxine... o bobo sou eu. Espere um momento, enquanto falo com a Intermediária...
Bartok mostrou-se polido quando atendeu o chamado de Morgan, mas, com uma resposta brusca, deixou inteiramente clara sua opinião a respeito de leigos intrometidos.
- Desculpe incomodar você - disse Morgan, voltando a falar com Maxine. - Às vezes, os peritos conhecem realmente seu trabalho - disse a ela, com orgulho melancólico. - Nosso homem conhece o dele. Falou com o Controle das Monções há dez minutos. Já estão calculando a força do raio... é claro que não querem exagerar e queimar todo mundo.
- Quer dizer que eu tinha razão - disse Maxine, feliz. - Você devia ter pensado nisso, Van. Do que mais se esqueceu?
Não era possível responder, nem Morgan tentou fazê-lo. Quase podia ver o cérebro de Maxine funcionando à toda e adivinhou qual seria a pergunta seguinte. Estava certo.
- Vocês não podem usar as aranhas?
- Até mesmo os modelos finais têm um raio de ação limitado... as baterias só podem levá-las a trezentos quilômetros. Foram projetadas para inspecionar a torre, quando já houvesse entrado na atmosfera.
- Bem, instalem baterias maiores.
- Em poucas horas? Mas esse não é o problema. A única unidade em teste, no momento, não pode transportar passageiros.
- Vocês poderiam mandá-la- vazia.
- Desculpe, mas já pensamos nisso. É preciso haver um operador capaz de realizar o engate quando a aranha chegar ao porão. E, ainda assim, seriam necessários vários dias para tirar de lá sete pessoas, uma de cada vez.
- Mas vocês têm de ter algum plano!
- Vários, mas são todos malucos. Se algum tiver sentido, eu avisarei. Até lá, há uma coisa que você pode fazer.
- O que é? - perguntou Maxine, desconfiada.
- Explique a seu público exatamente por que uma espaçonave pode acoplar com outra a seiscentos quilômetros de altitude, mas não pode acoplar com a torre. Quando você houver feito isso, talvez tenhamos novidades.
Enquanto a imagem ligeiramente indignada de Maxine desaparecia da tela e Morgan retornava ao caos bem orquestrado da Sala de Operações, ele tentou deixar a mente vagar o mais livre possível sobre todos os aspectos do problema. Apesar da rejeição polida do oficial de segurança, que fazia seu trabalho com eficiência na Intermediária, talvez ele conseguisse pensar em algumas idéias úteis. Embora não imaginasse que pudessem existir soluções mágicas, conhecia a torre melhor do que ninguém... com a possível exceção de Warren Kingsley. Era provável que Kingsley conhecesse melhor os pequenos detalhes. Mas Morgan tinha uma visão geral mais clara.
Vários homens e mulheres estavam perdidos no céu, numa situação sem paralelo em toda a história da tecnologia espacial. Tinha de haver uma maneira de salvá-los, antes que fossem envenenados pelo gás carbônico ou que a pressão caísse tanto que a câmara se tornasse, literalmente, um túmulo como o de Maomé - suspenso entre o céu e a Terra.
O homem talhado para a missão
- Podemos fazer isso - disse Warren Kingsley, com um sorriso largo. - A aranha pode chegar lá.
- Vocês conseguiram acrescentar energia suficiente?
- Sim, mas será um processo difícil. Terá de ser uma ascensão em dois estágios, como a dos foguetes primitivos. Assim que a primeira bateria estiver esgotada, terá de ser abandonada para evitar o peso desnecessário. Isso vai ocorrer a mais ou menos quatrocentos quilômetros de altitude. A bateria interna da aranha terá de impulsioná-la pelo resto do caminho.
- E qual a carga que isso vai permitir? O sorriso de Kingsley desapareceu.
- Marginal. Mais ou menos cinqüenta quilos, com as melhores baterias de que dispomos.
- Só cinqüenta! E de que adianta isso?
- Deve bastar. Dois desses novos tanques de mil atmosferas, cada um com cinco quilos de oxigênio. Máscaras de filtros moleculares para repelir o gás carbônico. Um pouco de água e alimento comprimido. Alguns suprimentos médicos. Podemos reduzir tudo para menos de quarenta e cinco quilos.
- Pff! E você tem certeza de que basta?
- Sim. Vai permitir que eles se agüentem até chegar o transportador da Estação 10K. E, se for necessário, a aranha pode fazer uma segunda viagem.
- O que Bartok acha?
- Aprovou. Afinal, ninguém teve idéia melhor. Morgan sentiu que um peso enorme tinha sido tirado de seus ombros. Muitas coisas poderiam sair errado, mas ao menos havia um raio de esperança. A sensação de total impotência desaparecera.
- Quando tudo estará pronto? - perguntou.
- Se não houver atrasos, dentro de duas horas. Três, no máximo. Por sorte, tudo é equipamento padronizado. A aranha já está sendo verificada. Só há uma questão a ser resolvida...
Vannevar Morgan balançou a cabeça.
- Não, Warren - respondeu devagar, com uma voz calma e implacavelmente resoluta que o amigo nunca havia ouvido antes. - Não há mais nada a decidir.
- Bartok, não estou tentando impor hierarquia - disse Morgan. - Trata-se de uma simples questão de lógica. Realmente, qualquer pessoa pode conduzir a aranha ... mas somente meia dúzia de homens conhecem todos os detalhes técnicos envolvidos. Talvez haja alguns problemas operacionais quando atingirmos a torre, e eu estou em melhor condição de resolvê-los.
- Permita-me lembrar, dr. Morgan - disse o oficial de segurança —, que o senhor está com sessenta e cinco anos. Seria mais prudente mandar uma pessoa mais jovem.
- Primeiro, não tenho sessenta e cinco anos; tenho sessenta e seis. Segundo, a idade não tem absolutamente nada a ver com isso. Não há perigo, e certamente nenhuma necessidade de força física.
Além disso, poderia ter acrescentado, os fatores psicológicos eram muito mais importantes do que os físicos. Quase qualquer pessoa poderia viajar passivamente numa cápsula, como tinha feito Maxine Duval e como viriam a fazer milhões de outros nos anos vindouros. Situação muito diferente seria enfrentar alguns dos problemas que poderiam surgir a seiscentos quilômetros de altitude, no céu vazio.
- Ainda acho - disse o oficial Bartok com persistência cortês - que seria melhor mandar um homem mais jovem. O dr. Kingsley, por exemplo.
Atrás dele, Morgan ouviu (ou teria imaginado?) a respiração do colega cessar subitamente. Durante anos, vinham brincando com o fato de que Warren tinha tal aversão às alturas, que jamais inspecionava as estruturas que projetava. O medo não chegava a ser uma verdadeira acrofobia, e ele podia vencê-lo quando absolutamente necessário. Afinal, caminhara ao lado de Morgan da África à Europa. Mas aquela foi a única vez em que alguém o vira bêbado em público, e nas vinte e quatro horas seguintes ele não foi visto em parte alguma.
Warren estava fora de cogitação, ainda que Morgan soubesse que ele estaria disposto a subir. Havia momentos em que a competência técnica e a coragem não bastavam. Nenhum homem podia lutar contra medos adquiridos por ocasião do parto ou na primeira infância.
Felizmente, não havia necessidade de explicar isso ao oficial de segurança. Havia outra razão, mais simples, e igualmente válida, pela qual Warren não deveria ir. Muito poucas vezes na vida, Vannevar Morgan sentira-se contente por ser baixinho. Aquela era uma delas.
- Sou quinze quilos mais leve do que Warren - disse ele a Bartok. - Numa operação arriscada como esta, isso basta para resolver a questão. Por isso, não vamos perder mais tempo discutindo.
Sentiu um ligeiro remorso, pois sabia que estava sendo injusto. Bartok estava apenas cumprindo seu dever, com grande eficiência, e se passaria mais uma hora antes que a cápsula estivesse pronta. Ninguém estava perdendo tempo.
Durante longos segundos, os dois homens olharam-se nos olhos, como se os vinte e cinco mil quilômetros que os separavam não existissem. Se houvesse um confronto de forças direto, a situação poderia tornar-se desagradável. Nominalmente, Bartok estava à testa de todas as operações de segurança, e, em teoria, sua opinião prevalecia até mesmo sobre a do engenheiro-chefe e a do gerente de projeto. Mas talvez encontrasse dificuldades para impor sua autoridade. Morgan e a Aranha estavam muito longe dele, lá no Sri Kanda.
Bartok deu de ombros, e Morgan relaxou.
- Você venceu. Não estou nada satisfeito, mas vamos lá. Boa sorte.
- Obrigado - respondeu Morgan tranqüilamente, enquanto a imagem desaparecia da tela. Voltando-se para Kingsley, ainda silencioso, ele disse: - Vamos.
Só quando já estavam saindo da Sala de Operações, de volta ao topo da montanha, Morgan automaticamente apalpou o pequeno pingente escondido sob sua camisa. O AÇOR não o importunava havia meses; nem Warren Kingsley sabia de sua existência. Estaria ele jogando com outras vidas, além da sua, somente para justificar seu orgulho egoísta? Se o oficial de segurança Bartok soubesse daquilo...
Agora, era tarde demais. Quaisquer que fossem suas motivações, não havia como voltar atrás.
A Aranha
A montanha mudara tanto, pensou Morgan, desde que a vira pela última vez! O topo fora inteiramente aplainado; em seu centro ficava a gigantesca "tampa de caçarola", que selava o túnel que em breve conduziria o tráfego de muitos mundos. Era estranho pensar que o maior espaçoporto do sistema solar funcionaria no interior de uma montanha.
Ninguém poderia adivinhar que um antigo mosteiro se erguera ali, no passado, concentrando as esperanças e temores de bilhões de pessoas, pelo menos por três mil anos. Tudo o que restava dele era o ambíguo legado do Maha Thero, que estava encaixotado e aguardava remoção. Contudo, até agora nem as autoridades do Yakkagala nem o diretor do Museu de Ranapura haviam mostrado entusiasmo pelo sino de Kalidasa. Da última vez em que soara, o pico fora varrido por aquele vendaval breve, mas carregado de significado... realmente, um vento de mudança. Agora, o ar estava quase imóvel, enquanto Morgan e seus assessores caminhavam lentamente em direção à cápsula, que cintilava sob as luzes de inspeção. Alguém rabiscara o nome ARANHA MARK II na parte inferior dela; e, sob essas palavras, haviam acrescentado a promessa: GARANTIMOS A ENTREGA DA MERCADORIA. Espero que sim, pensava Morgan...
A cada vez que ia ali, ele sentia mais dificuldade para respirar, e ansiava pelo jorro de oxigênio que logo rolaria para dentro de seus pulmões famintos de ar. Mas o AÇOR, para sua surpresa e alívio, nunca havia emitido uma advertência nas vezes em que ele tinha visitado o topo. O regime prescrito pelo dr. Sen parecia funcionar admiravelmente.
Tudo fora posto a bordo da Aranha, modificada para que a bateria extra pudesse ficar presa sob ela. Mecânicos ainda faziam ajustes de última hora e desligavam cabos de força. O emaranhado de cabos no chão representava um risco certo para um homem não habituado a trajes espaciais.
O Flexivest de Morgan chegara de Gagárin apenas meia hora antes, e durante algum tempo ele pensara seriamente em partir sem o traje. O Mark II era um veículo muito mais aperfeiçoado do que o protótipo em que Maxine Duval viajara muito tempo antes. Na verdade, era uma pequena nave espacial, com seu próprio sistema de suportes vitais. Se tudo corresse bem, Morgan conseguiria engatá-la na câmara estanque no fundo da torre, projetada havia anos exatamente para esse fim. Mas um traje espacial não somente proporcionaria maior segurança, no caso de surgirem problemas de acoplamento, como lhe daria uma liberdade de ação muito maior. Com um caimento quase anatômico, o Flexivest tinha pouquíssima semelhança com a desajeitada armadura dos primeiros astronautas, e, mesmo quando pressurizado, praticamente não restringia os movimentos. Certa vez, ele assistira a uma demonstração patrocinada pelos fabricantes, que incluía algumas acrobacias e culminava numa prova de esgrima e num número de bale. Este último tinha sido hilariante, mas corroborara as especificações da fábrica.
Morgan subiu a escadinha, deteve-se por um momento junto da portinhola de metal, e depois entrou cuidadosamente na cápsula. Enquanto se sentava e prendia o cinto de segurança, ficou agradavelmente surpreso com o espaço. Embora o Mark II fosse um veículo para uma só pessoa, não era tão claustrofóbico quanto ele tinha esperado... mesmo com o equipamento extra colocado em seu interior.
Os dois cilindros de oxigênio tinham sido colocados sob o assento, e as máscaras de gás carbônico estavam numa caixinha atrás da escada que levava à câmara estanque, no alto. Parecia espantoso que tão pouca quantidade de equipamento significasse a diferença entre a vida e a morte para tantas pessoas.
Morgan levara consigo um objeto pessoal — uma recordação daquele primeiro dia no Yakkagala, havia tanto tempo, em que, num certo sentido, tudo havia começado. A fiandeira ocupava pouco espaço, e pesava apenas um quilo. Com o passar dos anos, ela se transformara numa espécie de talismã. Era ainda uma das melhores maneiras de demonstrar as propriedades do hiperfilamento, e, sempre que saía em viagem, Morgan quase invariavelmente julgava que precisaria dela. Naquela viagem, sobretudo, talvez ela fosse útil.
Ele prendeu o cordão umbilical, que podia ser afrouxado rapidamente do traje espacial, e experimentou o fluxo de ar do suprimento interno e externo. Lá fora, os cabos de força foram retirados. A Aranha estava entregue a si mesma.
Discursos brilhantes raramente eram bem-vindos nesses momentos, e aquela operação, afinal, seria inteiramente rotineira. Morgan deu um sorriso um tanto duro para Kingsley e disse:
- Cuide bem da loja, Warren, até a minha volta. - Depois, notou uma figurinha pequena e solitária junto da cápsula. Meu Deus, pensou, quase tinha me esquecido do garoto... - Dev - chamou Morgan. - Desculpe não ter podido dar-lhe atenção. Vou fazê-lo quando voltar.
"E voltarei mesmo", disse para si. Quando a torre estivesse concluída, haveria tempo para tudo - até mesmo para as relações humanas que tanto havia negligenciado. Valia a pena ficar de olho em Dev; uma criança que sabia o momento de sair do caminho representava uma promessa rara.
A porta curva da cápsula - sua metade superior era de plástico transparente - fechou-se com um baque contra as juntas. Morgan apertou o botão VERIFICAÇÃO, e as estatísticas vitais da Aranha apareceram na tela, uma a uma. Todas estavam escritas na cor verde. Não havia necessidade de prestar atenção aos números em si. Se algum dos valores estivesse fora do previsto, teria piscado em vermelho duas vezes por segundo. Ainda assim, com sua habitual cautela de engenheiro, Morgan notou que o oxigênio situava-se a cento e dois por cento, a força da bateria principal, a cento e um por cento, a bateria de empuxo, a cento e cinco por cento...
A voz tranqüila e calma do controlador — o mesmo perito impassível que cuidava de todas as operações, desde a primeira descida malograda, anos antes - soou em seus ouvidos. - Todos os sistemas nominais. Assuma o controle.
- Controle assumido. Vou esperar o próximo minuto.
Era difícil imaginar o contraste entre aquela espera e o lançamento de um dos antigos foguetes, com sua complicada contagem regressiva, seus tempos contados em décimos de segundos, seu som e sua fúria. Morgan simplesmente esperou que os dois últimos algarismos no relógio zerassem, e depois ligou a partida no ponto mais baixo.
Sem solavancos - e silenciosamente -, a montanha feericamente iluminada ficou para baixo. Nem mesmo uma ascensão de balão poderia ser mais silenciosa. Se apurasse bem os ouvidos, Morgan poderia perceber o zumbido dos motores duplos que impulsionavam as rodas presas à fita, tanto acima como abaixo da cápsula.
Velocidade de ascensão, cinco metros por segundo, dizia o indicador de velocidade. Devagar, gradualmente, Morgan aumentou a força, até que no mostrador apareceu a indicação 50 - pouco menos de duzentos quilômetros horários. Essa velocidade proporcionava o máximo de eficiência com a carga da Aranha naquele momento. Quando a bateria auxiliar fosse expelida, a velocidade poderia ser elevada em vinte e cinco por cento, atingindo quase duzentos e cinqüenta quilômetros por hora.
- Diga alguma coisa, Van! - falou Warren Kingsley no mundo lá embaixo. Parecia gracejar.
- Deixe-me em paz - disse Morgan, igualmente bem-humorado. - Pretendo descansar e apreciar o panorama nas próximas duas horas. Se você queria comentários constantes, devia ter mandado Maxine Duval.
- Faz uma hora que ela está ligando para você.
- Dê lembranças a ela, mas diga que estou ocupado. Talvez, quando chegar à torre... Quais são as últimas notícias de lá?
- A temperatura estabilizou-se em vinte graus... O Controle das Monções lambuza-os com um megawatt a cada dez minutos. Mas o professor Sessui está furioso... queixa-se de que isso prejudica seus instrumentos.
- E o ar?
- Um pouco pior. A pressão realmente caiu, e é claro que o gás carbônico está aumentando. Mas, se você chegar lá no prazo previsto, eles devem agüentar. Estão evitando todos os movimentos desnecessários, para conservar oxigênio.
Todos, menos o professor Sessui, aposto, pensou Morgan. Seria interessante encontrar-se com o homem cuja vida estava tentando salvar. Tinha lido vários dos livros de divulgação do professor, muito elogiados, e considerava-os verbosos. Morgan tinha a impressão de que o homem corresponderia ao estilo literário.
- E a situação na 10K?
- Mais duas horas antes que o transportador possa partir. Estão instalando alguns circuitos especiais, para ter certeza de que nada se incendiará nessa viagem.
- Excelente idéia... de Bartok, aposto.
- Provavelmente. E vão descer pelo trilho norte, pois não se tem certeza se o sul ficou avariado com a explosão. Se tudo andar bem, vão chegar em... ah, vinte e uma horas. Tempo de sobra, mesmo que não mandemos de novo a Aranha com outra carga.
Apesar de seu comentário a Kingsley, que era um gracejo apenas em parte, Morgan sabia que era cedo demais para começar a apreciar o panorama. No entanto, tudo parecia bem. E com certeza não havia nada que pudesse ser feito nas três horas seguintes.
Ele já estava a trinta quilômetros de altitude, subindo rápida e silenciosamente através da noite tropical. Não havia lua, mas a paisagem lá embaixo ficava patente pelas constelações cintilantes de suas cidades e aldeias. Quando olhava para as estrelas no alto e para as estrelas embaixo, era fácil para Morgan imaginar que estava longe de qualquer mundo, perdido nas profundezas do espaço. Em breve, ele avistaria toda a ilha da Taprobana, levemente delineada pelas luzes dos povoados litorâneos. Muito ao norte, uma escura mancha brilhante rastejava sobre o horizonte, como o arauto de uma alvorada fora de ocasião. Aquilo o intrigou por um momento, até compreender que estava olhando para uma das grandes cidades do Hindustão meridional.
Já se encontrava mais alto do que qualquer avião poderia subir, e o que fizera era sem paralelo na história dos transportes. Ainda que a Aranha e suas precursoras houvessem realizado inúmeras viagens até vinte quilômetros de altitude, ninguém tivera autorização para ir além disso, devido à impossibilidade de resgate. Não se pensara em iniciar operações sérias antes que a base da torre estivesse muito mais próxima, e, embora a Aranha tivesse pelo menos duas companheiras capazes de subir e descer pelas outras fitas do sistema, Morgan afastou do pensamento a idéia do que poderia ocorrer se o mecanismo propulsor emperrasse. Isso significaria a morte para os refugiados do porão, e também para ele.
Cinqüenta quilômetros. Havia atingido o que seria, em épocas normais, o nível mais baixo da ionosfera. Não esperava, naturalmente, ver coisa alguma. Mas estava enganado.
O primeiro sinal foi um leve estalido no alto-falante da cápsula. Depois, pelo canto do olho, percebeu um vislumbre de luz logo abaixo dele, entrevisto pelo espelho de observação, do lado de fora da pequena clarabóia da Aranha. Ele girou o espelho até apontá-lo para um ponto alguns metros abaixo da cápsula. Por um momento, olhou estupefato e com mais que uma simples pontada de medo. Depois, chamou a montanha.
- Tenho companhia - disse. - Acho que isso é da alçada do professor Sessui. Há uma bola de luz... com uns vinte centímetros de diâmetro... que corre pela fita, logo abaixo da Aranha. Ela mantém uma distância constante, e espero que permaneça ali. Mas devo dizer que é linda... um bonito brilho azulado, que cintila a intervalos de poucos segundos. E posso ouvir o som dela pelo rádio.
Passou um minuto antes que Kingsley respondesse, tranqüilo.
- Não se preocupe. É apenas um fogo-de-santelmo. Já houve fenômenos semelhantes na fita durante trovoadas. A bordo da Mark I, você ficaria com os cabelos em pé. Mas na Mark II não vai sentir nada... está protegido demais.
- Eu não fazia idéia de que isso pudesse acontecer nesta altitude.
- Nem eu. Seria melhor você falar com o professor.
- Ah... está sumindo... ficou maior e mais pálida... agora, desapareceu... acho que o ar é rarefeito demais... é uma pena...
- Isso é apenas um prelúdio - disse Kingsley. - Veja o que está acontecendo bem em cima de você.
Uma seção retangular do espelho reluziu, enquanto Morgan o virava em direção ao zênite. A princípio, ele não viu nada diferente, de modo que desligou todos os indicadores no painel de controle e esperou na escuridão total.
Lentamente, seus olhos se adaptaram ao escuro, e no fundo do espelho começou a arder uma chama vermelha, que se espalhou, consumindo as estrelas. A labareda se tornou cada vez mais brilhante, ultrapassando os limites do espelho. Agora, ele a via diretamente, pois cobria metade do céu. Uma gaiola de luz, com barras bruxuleantes e móveis, estava descendo em direção à Terra. Finalmente ele entendeu por que um homem como o professor Sessui era capaz de dedicar a vida a desvendar seus segredos.
Em uma de suas raras visitas ao equador, a aurora polar descera de seus paramos gelados.
Além da aurora
Morgan duvidava que mesmo o professor Sessui, quinhentos quilômetros acima, descortinasse uma vista tão espetacular. A tempestade formava-se rapidamente. A radiodifusão em ondas curtas, usada para muitos serviços não-essenciais, já estaria interrompida em todo o mundo. Morgan não sabia com certeza se estava ou não escutando um ruído leve, como o de areia caindo ou o estalo de gravetos secos. Ao contrário da estática da bola de fogo, esse ruído com certeza não provinha do sistema de alto-falantes, pois continuava mesmo quando ele desligava o circuito.
Cortinas de fogo verde-claro, orladas de escarlate, estavam sendo arrastadas pelo céu, e depois sacudidas por uma mão invisível. Eram agitadas pelas rajadas do vento solar, o vendaval de um milhão de quilômetros por hora que soprava do Sol para a Terra, continuando muito além. Mesmo sobre Marte, uma tênue sombra da aurora cintilava; e, na direção do Sol, os céus venenosos de Vênus estavam incendiados. Acima das cortinas plissadas, raios longos como os de um leque semi-aberto projetavam-se para além do horizonte. Às vezes, atingiam diretamente os olhos de Morgan, como os feixes de um gigantesco holofote, deixando-o ofuscado durante alguns minutos. Não havia mais necessidade de desligar a iluminação da cápsula para impedi-la de cegá-lo. Os fogos de artifício celeste, lá fora, tinham brilho suficiente para que ele pudesse ler.
Duzentos quilômetros. A Aranha ainda estava subindo em silêncio e sem esforço. Era difícil acreditar que ele houvesse deixado a Terra exatamente uma hora antes. Na verdade, era difícil até acreditar que a Terra ainda existisse, pois no momento ele subia entre as muralhas de um canyon de fogo.
A ilusão durou apenas alguns segundos; depois, o momentâneo equilíbrio instável entre os campos magnéticos e as nuvens elétricas que se aproximavam foi destruído. No entanto, naquele breve momento, Morgan poderia ter acreditado estar emergindo de um abismo capaz de apequenar até o Valles Marineris - o Grand Canyon de Marte. Depois, os penhascos reluzentes, com pelo menos centenas de quilômetros de altura, se tornaram transparentes, e foram varados por estrelas. Morgan pôde ver o que realmente eram - meros espectros de fluorescência.
E agora, como um aeroplano que varasse um teto de nuvens baixas, a Aranha se elevava acima da aurora polar. Morgan saía de uma bruma de fogo, que se contorcia e se agitava sob ele. Muitos anos antes, estivera num navio de turismo na noite tropical, e se lembrava de haver-se reunido aos outros passageiros na popa, deslumbrado pela beleza e pela maravilha da esteira bioluminescente. Alguns dos verdes e azuis que agora tremeluziam abaixo dele imitavam as cores, de origem planctônica, que ele vira então, e era-lhe fácil imaginar que estava novamente observando os subprodutos da vida - o brinquedo de feras gigantescas e invisíveis, reis da estratosfera...
Quase se esquecera de sua missão, e foi com um choque que voltou à realidade do dever.
- Como vai a carga? - perguntou Kingsley. - Só lhe restam vinte minutos com essa bateria.
Morgan olhou para o painel de instrumentos.
- Caiu para noventa e cinco por cento... mas minha taxa de ascensão aumentou em cinco por cento. Estou a duzentos e dez quilômetros por hora.
- Correto. A Aranha reage à menor gravidade... ela já caiu uns dez por cento na altitude em que você está.
Aquela queda da gravidade não era suficiente para se fazer sentir, principalmente porque Morgan estava amarrado ao assento e usava um traje que pesava vários quilo-gramas. No entanto, ele se sentia positivamente leve e se perguntou se estaria recebendo oxigênio demais.
Não, o fluxo estava normal. Devia ser a alegria causada pelo espetáculo deslumbrante que ocorria abaixo dele - ainda que a exibição de cores diminuísse agora, recuando para norte e sul, como se batesse em retirada para seus redutos polares. Isso se aliava à satisfação de uma tarefa até então bem-sucedida, cujo desenlace dependia de uma tecnologia que nenhum homem antes dele testara até aqueles limites.
A explicação era perfeitamente razoável, mas não satisfez Morgan. Não justificava inteiramente sua sensação de felicidade... e até de êxtase. Warren Kingsley, que gostava de mergulhar, já lhe contara muitas vezes ter sentido tal emoção no ambiente de imponderabilidade do mar. Morgan nunca a sentira, mas agora imaginava como devia ser. Ele parecia ter deixado todas as preocupações naquele planeta, agora oculto pelos arabescos e filigranas da aurora polar.
As estrelas recomeçavam a brilhar com força, já sem o desafio da intrusa fantasmagoria dos pólos. Morgan começou a esquadrinhar o zênite, mas sem grandes esperanças. A torre já estaria visível? No entanto, só conseguia ver os primeiros metros, ainda iluminados pelo leve brilho da aurora, da estreita fita pela qual a Aranha subia rapidamente. Aquela fita da qual sua vida — e de outras sete pessoas — dependia era tão uniforme, que não dava nenhum indício da velocidade da cápsula. Era difícil acreditar que ele estivesse se locomovendo, levado pelo mecanismo propulsor, a mais de duzentos quilômetros por hora. Essa idéia o devolveu de repente à infância, e ele entendeu a origem de sua alegria.
Recuperara-se rapidamente da perda daquela primeira pipa, passando a empinar modelos maiores e mais complicados. Depois, pouco antes de descobrir o Meccano e abandonar as pipas para sempre, experimentou durante algum tempo pára-quedas de brinquedo. Gostava de pensar que ele próprio tivera aquela idéia pela primeira vez, embora fosse possível que a tivesse encontrado em algum livro ou no vídeo. A técnica era tão simples, que gerações de meninos certamente a teriam redescoberto.
Primeiro, ele cortava um pedacinho de madeira com cerca de cinco centímetros de comprimento, e depois prendia nele dois clipes de papel. Passava os clipes em torno do fio da pipa, de modo que o dispositivo corresse facilmente para cima ou para baixo. Depois, fazia um pára-quedas de papel de arroz, mais ou menos do tamanho de um lenço, com fios de seda. Um quadradinho de papelão servia de peso. Prendia esse quadrado no pauzinho com um elástico - sem muita força -, e pronto!
Levado pelo vento, o pequeno pára-quedas subia pela linha, descrevendo uma graciosa catenária até a pipa. Nesse momento, o menino dava um puxão repentino, e o peso de papelão se soltava do elástico. O pára-quedas ficava boiando no céu, enquanto o pauzinho logo voltava à sua mão, pronto para o próximo lançamento.
Com que inveja ele tinha visto suas frágeis criações derivar sem esforço em direção ao mar! Na maioria dos casos, seus pequenos pára-quedas caíam na água antes de flutuar um quilômetro, mas às vezes um deles mantinha valentemente a mesma altitude, até desaparecer de vista. Ele gostava de imaginar que aqueles felizes viajantes atingiam as ilhas encantadas do Pacífico. Mas, embora escrevesse seu nome e o endereço nos quadrados de papelão, nunca tinha recebido resposta.
Morgan não pôde deixar de sorrir ante aquelas recordações de episódios havia muito esquecidos. No entanto, elas explicavam muitas coisas. Os sonhos de sua meninice tinham sido ultrapassados de longe pela realidade da vida adulta; ele havia conquistado o direito à alegria.
- Chegando a três oitenta - disse Kingsley. - Como está o nível de energia?
- Começando a cair... oitenta e cinco por cento... a bateria está começando a se esgotar.
- Bem, se ela agüentar mais vinte quilômetros, terá cumprido sua missão. Como você se sente?
Morgan teve vontade de responder com superlativos, mas sua cautela habitual o dissuadiu disso. - Muito bem - disse. - Se pudéssemos garantir uma aurora como essa para todos os nossos passageiros, seria impossível conter as multidões.
- Talvez possamos dar um jeito - brincou Kingsley.
- Poderíamos convencer o Controle das Monções a descarregar alguns barris de elétrons nos lugares certos. Não é a especialidade deles, mas eles são bons em improvisações. .. não é?
Morgan riu, mas não respondeu. Seus olhos estavam fixos no painel de instrumentos, que indicava uma queda da força e da velocidade de ascensão. Mas isso não era motivo de alarme. A Aranha havia alcançado trezentos e oitenta e cinco dos quatrocentos quilômetros esperados, e a bateria de empuxo inicial ainda tinha alguma carga.
A trezentos e noventa quilômetros de altitude, Morgan começou a reduzir a velocidade. Por fim, a cápsula mal se movia, e finalmente se imobilizou, quase ao chegar à marca dos quatrocentos e cinco quilômetros.
- Vou soltar a bateria - anunciou Morgan. - Protejam as cabeças.
Eles haviam pensado em como recuperar aquela bateria pesada e dispendiosa, mas não houvera tempo de improvisar um sistema de frenagem que a fizesse voltar à Terra em segurança, como um dos lançadores de pára-quedas do menino Morgan. Havia um pára-quedas pronto, mas recearam que os cabos se emaranhassem na fita. Felizmente, a área de impacto, a apenas dez quilômetros a leste do Terminal Terrestre, ficava no meio de uma selva densa. A fauna selvagem da Taprobana teria de correr algum risco, e Morgan estava disposto a discutir com o Departamento de Preservação, mais tarde.
Girou a chave de segurança, e depois apertou o botão vermelho que fazia detonar as cargas explosivas. A Aranha sacudiu-se um pouco quando explodiram. Depois, ele ligou a bateria interna, soltou lentamente os freios de fricção e novamente alimentou os motores.
A cápsula começou a última etapa de sua viagem. No entanto, um olhar ao painel revelou a Morgan que havia alguma coisa errada. A Aranha deveria estar se movendo a mais de duzentos quilômetros horários, mas fazia menos de cem, mesmo com força total. Não eram necessários testes ou cálculos. O diagnóstico de Morgan foi instantâneo, pois os números falavam por si mesmos. Doente de frustração, ele comunicou-se com a Terra.
- Problemas sérios - disse. - As cargas explodiram... mas a bateria não se soltou. Alguma coisa a está prendendo.
Evidentemente, era desnecessário acrescentar que a missão poderia malograr. Todos sabiam perfeitamente que não seria possível à Aranha chegar à base da torre carregando várias centenas de quilos de peso morto.
Noite em Villa Yakkagak
O embaixador Rajasinghe precisava agora de pouquíssimo sono. Era como se uma natureza benevolente lhe estivesse concedendo o uso máximo dos anos que lhe restavam. E, numa época como aquela, quando os céus da Taprobana ardiam com a maior maravilha vista em séculos, quem poderia ficar na cama?
Como ele gostaria que Paul Sarath estivesse ali para compartilhar aquele espetáculo! Sentia mais falta do velho amigo do que julgava possível. Não havia ninguém capaz de irritá-lo e estimulá-lo como Paul - ninguém com os mesmos laços de experiência comum, que se estendia até a infância. Rajasinghe nunca pensara que sobreviveria a Paul, ou que veria a fantástica estalactite de bilhões de toneladas da fantástica torre quase transpor o abismo entre seus alicerces orbitais e a Taprobana, a trinta e seis mil quilômetros de distância. Até o fim, Paul se opusera ferozmente ao projeto. Chamava-o de Espada de Dâmocles, e jamais cessara de predizer que a estrutura acabaria por precipitar-se sobre a Terra. Ainda assim, mesmo ele estava disposto a admitir que a torre já rendera alguns benefícios.
Talvez pela primeira vez na história, o resto do mundo tomava conhecimento da existência da Taprobana, e descobria sua antiga cultura. O Yakkagala, com sua presença soturna e suas lendas sinistras, atraía especial atenção. Em resultado disso, Paul conseguiu obter apoio para alguns de seus projetos longamente acalentados. A personalidade enigmática do criador do Yakkagala dera ensejo a inúmeros livros e videodramas, e o espetáculo ao pé do Rochedo tinha sua lotação invariavelmente esgotada. Pouco antes de sua morte, Paul comentara ironicamente que estava surgindo uma pequena "indústria de Kalidasa", e que cada vez se tornava mais difícil distinguir a ficção da realidade.
Pouco depois da meia-noite, quando se tornou evidente que a aurora havia passado do clímax, Rajasinghe foi carregado de volta a seu quarto. Como sempre fazia ao se despedir dos serviçais, preparou-se para tomar um copo de Toddy quente, e ligou o vídeo para ver o sumário das notícias. A única coisa que realmente o interessava era o avanço de Morgan. Àquela hora, já deveria estar próximo da base da torre.
O editor de notícias já apresentara os últimos fatos com relação à missão. Uma linha piscava continuamente na tela:
MORGAN DETIDO A DUZENTOS QUILÔMETROS DO OBJETIVO.
Os dedos de Rajasinghe solicitaram os detalhes, e ele ficou aliviado ao descobrir que seus temores não tinham fundamento. Morgan não estava detido; apenas não tinha condições de terminar a viagem. Poderia voltar à Terra no momento em que o desejasse... mas, se assim procedesse, o professor Sessui e seus colegas estariam condenados à morte.
Diretamente acima de sua cabeça, um drama silencioso se desenrolava naquele exato momento. Rajasinghe passou do texto para o vídeo, mas não havia nada de novo - o que aparecia agora na tela era a ascensão de Maxine Duval, anos antes, no protótipo precursor da Aranha.
- Posso ver coisa melhor - resmungou Rajasinghe, passando para seu amado telescópio.
Nos primeiros meses depois de cair de cama, não pudera usá-lo. Ao fazer uma de suas habituais visitas de cortesia, Morgan analisou a situação e rapidamente deu uma solução. Uma semana depois, para surpresa e alegria de Rajasinghe, um pequeno grupo de técnicos havia chegado à Villa Yakkagala, modificando o aparelho, de modo que pudesse ser operado por controle remoto. Agora, Rajasinghe podia ficar confortavelmente na cama e ainda assim explorar os céus estrelados e a face gigantesca do Rochedo. Ficara profundamente agradecido a Morgan por aquele gesto, que revelava uma faceta inesperada da personalidade do engenheiro.
Não tinha certeza do que poderia avistar, na escuridão da noite, mas sabia exatamente para onde olhar, pois havia muito vinha acompanhando a lenta descida da torre. Quando o Sol se achava no ângulo correto, podia até mesmo divisar as quatro fitas-guias convergindo para o zênite, um quarteto de fios de cabelos brilhantes no céu.
Ajustou o controle azimutal e girou o instrumento, até apontá-lo para o alto do Sri Kanda. Enquanto o fazia subir lentamente, procurando algum sinal da cápsula, imaginou o que o Maha Thero estaria pensando acerca daquele episódio. Ainda que Rajasinghe nunca houvesse conversado com o prelado - já bem adentrado na casa dos noventa anos -, desde que a Ordem se mudara para Lhasa, estava informado de que o Potala ainda não havia fornecido a esperada acomodação. O enorme palácio estava se desfazendo aos poucos, enquanto os executores do dalai-lama discutiam com o governo federal chinês a respeito dos custos de manutenção. Segundo as últimas informações de Rajasinghe, o Maha Thero estava agora negociando com o Vaticano - também em dificuldades financeiras crônicas, mas, pelo menos, ainda senhor de sua própria casa.
Tudo, com efeito, era passageiro, mas não era fácil discernir qualquer ciclo. Talvez o gênio matemático de Parakarma-Goldberg fosse capaz de fazê-lo. Na última vez em que Rajasinghe o vira, estava prestes a receber um importante prêmio científico por suas contribuições à meteorologia. Rajasinghe nunca o teria reconhecido. Estava barbeado e usava um terno cortado na última moda neonapoleônica. Agora, porém, ao que parecia, trocara novamente de religião... As estrelas escorregavam mansamente pela grande tela do monitor, ao pé de sua cama, enquanto o telescópio girava em direção à torre. Mas não havia qualquer sinal da cápsula, embora Rajasinghe tivesse certeza de que ela já se encontrava no campo de visão.
Já estava para retornar ao canal de notícias quando, como uma estrela nova em erupção, algo emitiu um clarão perto do canto inferior da imagem. Por um momento, Rajasinghe temeu que a cápsula tivesse explodido. Depois, notou que ela brilhava com uma luz perfeitamente firme. Ele centralizou a imagem e aumentou a potência do telescópio.
Há muito tempo ele tinha assistido a um vídeo-documentário de dois séculos sobre as primeiras batalhas aéreas, e, de repente, lembrou-se de uma seqüência que mostrava um ataque noturno contra Londres. Um bombardeiro inimigo havia sido apanhado num cone de holofotes, e ficara suspenso no céu como um cisco incandescente. Agora, ele contemplava o mesmo fenômeno, em escala centuplicada. Mas, dessa vez, todos os recursos da Terra estavam combinados para ajudar, e não para destruir, o resoluto invasor da noite.
Uma viagem aos solavancos
A voz de Warren Kingsley tinha voltado ao timbre normal. Parecia apenas abafada e desesperada.
- Estamos tentando evitar que aquele mecânico se suicide - disse. - Mas é difícil jogar a culpa nele. Ele foi interrompido por outro trabalho urgente na cápsula, e simplesmente se esqueceu de remover a correia de segurança.
Assim, como de costume, tratava-se de um erro humano. Enquanto os parafusos explosivos eram instalados, a bateria tinha sido mantida no lugar por duas faixas de metal. E apenas uma delas tinha sido removida... Tais coisas aconteciam com monótona regularidade. Às vezes eram simplesmente irritantes, às vezes eram desastrosas, e o responsável tinha de carregar a culpa pelo resto da vida. De qualquer maneira, recriminações eram inúteis. A única coisa que importava era o que fazer agora.
Morgan ajustou o espelho externo em sua inclinação vertical máxima, mas era impossível ver a causa do problema. Agora que a aurora polar havia desaparecido, a parte inferior da cápsula estava mergulhada na escuridão total, e ele não tinha como iluminá-la. Mas isso, pelo menos, podia ser resolvido rapidamente. Se o Controle das Monções era capaz de despejar quilowatts de infravermelho na base da torre, podia facilmente transferir para ele alguns fótons visíveis.
- Podemos usar nossos próprios holofotes - disse Kingsley, quando Morgan transmitiu seu pedido.
- Não adianta... vão brilhar diretamente em meus olhos, e não poderei ver nada. Preciso de uma luz atrás e acima de mim... deve haver alguém na posição certa.
- Vou verificar - respondeu Kingsley, evidentemente satisfeito por poder fazer alguma coisa útil. Pareceu transcorrer muito tempo antes que ele chamasse de novo. Olhando o relógio, Morgan ficou surpreso ao constatar que só haviam passado três minutos.
- O Controle das Monções poderia dar um jeito, mas teria de reajustar e desfocalizar... acho que estão com medo de fritar você. Mas Kinte pode iluminar imediatamente. Eles têm um laser pseudo-branco... e estão na posição certa. Devo autorizá-los a acender?
Morgan conferiu sua posição... vejamos, Kinte estaria muito alto, a oeste... isso seria ótimo.
- Estou pronto — respondeu, fechando os olhos. Quase instantaneamente, a cápsula explodiu numa chuva de luz. Cuidadosamente, Morgan reabriu os olhos. O feixe luminoso vinha do alto, a oeste, ainda deslumbrante, apesar do percurso de quase quarenta mil quilômetros. Parecia ser de um branco puro, mas Morgan sabia tratar-se de uma mistura de três raias bem dosadas das partes vermelha, verde e azul do espectro.
Depois de alguns segundos ajustando o espelho, ele conseguiu ver claramente a faixa metálica causadora do problema, meio metro abaixo de seus pés. A ponta que podia avistar estava presa à base da Aranha por uma grande tarraxa. Tudo o que tinha a fazer era soltar aquilo, e a bateria cairia...
Morgan ficou sentado em silêncio, analisando a situação durante vários minutos, até que Kingsley o chamou de novo. Pela primeira vez, havia um resquício de esperança na voz de seu substituto.
- Van, fizemos alguns cálculos... O que você acha dessa idéia?
Morgan escutou o que ele tinha a dizer, e depois assobiou baixinho.
- Vocês têm certeza quanto à margem de segurança? - perguntou.
- Claro que sim - respondeu Kingsley, parecendo um tanto ofendido. Morgan não o culpava, mas não era ele quem estaria arriscando o pescoço.
- Bem, vou tentar. Mas só por um segundo, da primeira vez.
- Um segundo não dá. Ainda assim, é uma boa idéia... para você sentir como vai ser.
Suavemente, Morgan soltou os freios de fricção que estavam mantendo a Aranha imóvel na fita. No mesmo instante, teve a impressão de ter sido arrancado do assento, ao perder peso. Contou "Um, dois!" e apertou os freios novamente.
A Aranha deu um solavanco, e por uma fração de segundo Morgan foi comprimido desagradavelmente no assento. O mecanismo de frenagem emitiu um guincho horrível, e depois a cápsula se imobilizou outra vez, após uma breve vibração que logo cessou.
- Foi uma viagem sacudida - disse Morgan. - Mas ainda estou aqui... e também aquela bateria infernal.
- Eu o avisei. Você terá de tentar por mais tempo. Dois segundos, pelo menos.
Morgan sabia que não poderia discutir com Kingsley, que dispunha dos números e do poder de computação, mas ainda assim sentiu necessidade de um pouco de cálculo aritmético mental que o serenasse. Dois segundos de queda livre... digamos, meio segundo para aplicar os freios... se se considerasse que a massa da Aranha era de uma tonelada... A pergunta era a seguinte: o que se soltaria primeiro, a tira de metal que prendia a bateria, ou a fita que o mantinha ali, a quatrocentos quilômetros de altitude? Ordinariamente, não haveria discussão possível numa pugna entre hiperfilamento e aço comum. Mas, se ele aplicasse os freios tão repentinamente... ou se eles emperrassem, devido àquele uso fora das especificações, o aço e o hiperfilamento poderiam quebrar. E aí, ele e a bateria chegariam ao chão quase ao mesmo tempo.
- Então, dois segundos - disse a Kingsley. - Lá vamos nós.
Dessa vez, o solavanco foi de uma violência suficiente para abalar seus nervos, e as oscilações levaram muito mais tempo para se dissipar. Morgan tinha certeza de que teria sentido - ou ouvido - a quebra da tira. Não ficou surpreso quando uma olhada no espelho confirmou que a bateria ainda estava lá.
Kingsley não parecia demasiado preocupado.
- Talvez sejam necessárias três ou quatro tentativas - disse.
Morgan teve vontade de perguntar: "Você está querendo meu emprego?", mas pensou melhor. Warren acharia graça naquilo. Mas outros ouvintes desconhecidos, talvez não.
Depois da terceira queda — ele julgou ter caído quilômetros, mas a descida não fora além de cem metros -, até mesmo o otimismo de Kingsley começou a desaparecer. Era óbvio que o ardil não daria certo.
- Gostaria de enviar meus cumprimentos às pessoas que fizeram essa tira de segurança - disse Morgan, azedo.
- Agora, o que sugere? Uma queda de três segundos, antes que eu aperte os freios?
Morgan quase podia ver Warren balançando a cabeça.
- É um risco excessivo. Estou menos preocupado com a fita do que com o mecanismo de freio. Não foi feito para esse tipo de coisa.
- Bem, como tentativa, valeu — respondeu Morgan.
- Mas ainda não vou desistir. Duvido que seja derrotado por uma simples tarraxa, a meio metro de meu nariz. Vou lá fora dar um jeito nisso.
Os pirilampos cadentes
"01 15 24
Aqui, Amizade Sete. Vou tentar descrever onde estou. Estou no meio de uma grande massa de partículas muito pequenas, como se fossem luminescen-tes... Estão passando pela cápsula, e parecem estrelinhas. Vejo uma verdadeira chuva delas...
01 16 10
Estão muito lentas. Não estão se afastando de mim a mais de cinco ou seis quilômetros por hora...
01 19 38
O Sol acabou de nascer por trás de mim, visto pelo periscópio... Quando olhei pela janela, vi literalmente milhares de partículas pequenas e luminosas que giravam em torno da cápsula..."
Comandante John Glenn, Mercury "Amizade Sete", 20 de fevereiro de 1962.
Com os trajes espaciais ao estilo antigo, chegar até aquela tarraxa estaria inteiramente fora de cogitação. Mesmo com o Flexivest que Morgan estava usando, talvez fosse difícil... mas, pelo menos, ele faria a tentativa.
E tomaria cuidado, pois mais vidas além da sua dependiam daquilo. Ensaiou mentalmente a seqüência de atos. Tinha de verificar o traje, despressurizar a cápsula e abrir a escotilha — que, por sorte, era quase de sua altura. Depois, teria de soltar o cinto de segurança, colocar-se de joelhos - se pudesse! - e estender a mão na direção daquela tarraxa. Tudo dependeria do aperto que lhe tivesse sido dado. Não havia ferramentas de espécie alguma a bordo da Aranha, mas Morgan estava disposto a um confronto entre seus dedos - mesmo em luvas grossas - e uma chave de grifo comum, das pequenas.
Estava prestes a descrever seu plano de operações, para o caso de alguém em terra descobrir um erro fatal, quando tomou consciência de um certo desconforto, não muito forte. Poderia tolerá-lo por muito mais tempo, se necessário, mas não tinha sentido correr riscos. Se utilizasse a tubulação da própria cápsula, não precisaria usar o desajeitado dispositivo incorporado ao traje...
Quando terminou, virou a chave da descarga de usina. .. e assustou-se com uma pequena explosão perto da base da cápsula. Quase instantaneamente, para seu espanto, uma nuvem de estrelas cintilantes ganhou forma, como se surgisse de repente uma galáxia microscópica. Morgan teve a ilusão de que, por uma fração de segundo, ela pairou imóvel do lado de fora da cápsula. Depois, ela começou a cair verticalmente, tão depressa quanto uma pedra solta na Terra. Dentro de segundos, havia-se reduzido a um ponto, desaparecendo finalmente.
Nada poderia ter-lhe recordado mais claramente que ainda estava inteiramente sujeito ao campo gravitacional da Terra. Lembrou-se dos primeiros tempos dos vôos orbitais, em que os astronautas ficavam admirados com os halos de cristais que os acompanhavam em volta do planeta. Aquilo não poderia acontecer ali. Qualquer coisa que ele soltasse, por mais frágil que fosse, se precipitaria de volta à atmosfera. Nunca deveria esquecer-se de que, apesar de sua altitude, não era um astronauta, extasiado com a liberdade da ausência de peso. Era um homem no interior de um edifício com quatrocentos quilômetros de altura, preparando-se para abrir a janela e caminhar na platibanda.
Na varanda
Embora fizesse frio no topo da montanha, a multidão continuava a crescer. Havia algo de hipnótico naquela estrelinha brilhante no zênite, na qual estavam focalizados os pensamentos do mundo e o laser de Kinte. Ao chegarem, os visitantes se encaminhavam para a fita norte, tocando-a de maneira tímida, meio desafiante, como a dizer:
- Sei que é tolice, mas isso me faz sentir-me em contato com Morgan. - Depois, reuniram-se em torno da máquina de café e escutaram as notícias que chegavam pelos alto-falantes. Não havia novidades sobre os refugiados na torre. Estavam todos dormindo - ou tentavam dormir -, num expediente para poupar oxigênio. Como Morgan ainda não estava atrasado, não tinham sido informados do problema. Mas dali a menos de uma hora, sem dúvida, ligariam para a Estação Intermediária a fim de saber o que havia acontecido.
Maxine Duval chegara ao Sri Kanda dez minutos depois da partida de Morgan. Em outra época, aquele contratempo a teria deixado furiosa. Agora, porém, simplesmente deu de ombros e se consolou com a idéia de que seria a primeira pessoa a agarrar o engenheiro quando voltasse. Kingsley não permitira que falasse com ele, e ela havia aceitado isso com espírito esportivo. É, estava ficando velha ...
Nos últimos cinco minutos, o único som a chegar à cápsula fora uma série de OKs, enquanto Morgan fazia no traje os testes de rotina com um especialista na Estação Intermediária. A verificação havia terminado. Todos esperavam, tensos, o passo seguinte, crucial.
- Estou soltando o ar pela válvula - disse Morgan, com a voz abafada por um ligeiro eco, pois havia baixado o visor do capacete. - Pressão da cápsula, zero. Nenhum problema de respiração. - Uma pausa de trinta segundos.
- Estou abrindo a porta da casa... aqui vou eu. Agora, soltarei o cinto do assento.
Houve agitação e sussurros entre os ouvintes. Em imaginação, cada um estava lá em cima, na cápsula, consciente do vazio que subitamente se abria diante de si.
- Soltei a fivela. Estou estendendo as pernas. Não há muito espaço para a cabeça...
"Experimento a flexibilidade da roupa... muito boa... agora, estou saindo para a varanda... não se preocupem!... Tenho o cinto de segurança enrolado no braço esquerdo.”
"Ufa! É um trabalho duro me curvar assim. Mas estou vendo a tarraxa sob as tábuas da varanda. Estou pensando em como chegar lá.”
"De joelhos, agora... não é muito confortável... Peguei-a... Agora, vamos ver se gira..."
Os que o escutavam se calaram, sentiram-se rígidos... e depois, em uníssono, relaxaram, com suspiros de alívio praticamente simultâneos.
- Nenhum problema! Ela gira com facilidade. Duas voltas, já... a qualquer momento, agora... só um pouco mais... estou sentindo-a sair... CUIDADO AÍ EMBAIXO!
Houve uma salva de palmas e gritos. Algumas pessoas puseram as mãos na cabeça, fingindo terror. Uma ou duas que não entenderam que a porca só cairia dali a cinco minutos, e a dez quilômetros a leste, mostraram-se verdadeiramente alarmadas.
Só Warren Kingsley não aderiu à alegria geral.
- Não fique alegre cedo demais - disse ele a Maxine. - Ainda não acabou.
Os segundos passavam... um minuto... dois minutos...
- Não adianta - disse Morgan finalmente, com raiva e frustração na voz. - Não consigo soltar a tira. O peso da bateria está prendendo a tira na rosca. Aqueles arrancos que demos devem tê-la soldado ao parafuso.
- Volte o mais depressa que puder - disse Kingsley.
- Há uma nova célula de força a caminho, e podemos conseguir uma meia-volta dentro de meia hora. Assim, vamos conseguir chegar à torre em... ah, digamos seis horas. Se não houver novos acidentes, é claro.
Exatamente, pensou Morgan. E não seria ele quem faria a Aranha continuar subindo sem uma verificação rigorosa do mecanismo de frenagem, tão castigado. Tampouco teria coragem de fazer uma segunda viagem. Já estava sentindo o esforço das últimas horas, e o cansaço logo tomaria conta de seu corpo e de sua mente, justamente quando teria necessidade de eficiência máxima por parte de ambos.
Estava sentado novamente, mas a cápsula ainda estava aberta para o espaço, e ele não havia prendido novamente o cinto de segurança. Fazê-lo seria admitir a derrota. E isso nunca tinha sido fácil para Morgan.
O clarão contínuo do laser de Kinte, vindo do alto, ainda o transfixava com sua luz impiedosa. Morgan tentou concentrar a mente no problema, tal como aquele raio estava concentrado nele.
Tudo de que precisava era um cortador de metal - uma serra ou uma torquês - capaz de abrir ao meio a tira. Mais uma vez, ele amaldiçoou o fato de não haver uma caixa de ferramentas a bordo da Aranha. Mas, mesmo que houvesse, dificilmente ela incluiria aquilo de que ele precisava.
Havia megawatts-hora de energia armazenados na bateria da própria Aranha. Poderia usá-los, de alguma maneira? Teve uma breve fantasia de criar um arco e cortar a tira. Mas, mesmo que dispusesse de condutores pesados adequados - e é claro que não dispunha deles -, o suprimento principal de força era inacessível a partir da cabina de controle.
Warren e todos os outros, reunidos ao redor dele, não haviam conseguido encontrar uma solução. Ele estava sozinho, física e intelectualmente. Afinal de contas, aquela era a situação que ele sempre preferira.
E então, no momento exato em que estava para estender a mão e fechar a porta da cápsula, Morgan percebeu o que tinha de fazer. Durante todo o tempo, a solução havia estado bem junto dele.
O outro passageiro
Parecia que um peso enorme tinha sido tirado dos ombros de Morgan. Ele sentia uma confiança completa, irracional. Daquela vez, evidentemente, tinha de dar certo.
No entanto, ele não se mexeu da cadeira até imaginar todas as suas ações pormenorizadamente. E quando Kingsley, que parecia um tanto ansioso, mais uma vez insistiu em que voltasse, ele deu uma resposta evasiva. Não queria despertar falsas esperanças... na Terra ou na torre.
- Estou fazendo uma experiência - disse. - Dê-me alguns minutos.
Morgan pegou o dispensador de fibra que ele já havia usado em tantas demonstrações - a pequena fiandeira que, anos antes, lhe permitira descer pela face do Yakkagala. Por motivos de segurança, tinha sido feita uma modificação - o primeiro metro do filamento fora revestido com uma camada de plástico, de modo que já não era invisível, podendo ser tocado com cuidado, mesmo sem luvas.
Enquanto olhava para a caixinha em suas mãos, Morgan percebeu até que ponto a considerava um talismã - quase um feitiço de sorte. Evidentemente, não acreditava de verdade nessas coisas. Sempre tinha uma razão inteiramente lógica para carregar a fiandeira consigo. Naquela subida, havia-lhe ocorrido que ela poderia ser útil, devido à sua resistência e à sua incrível capacidade de erguer pesos. Quase se esquecera de suas outras propriedades...
Mais uma vez, ele saiu do assento e se ajoelhou junto da grade de entrada da Aranha, a fim de examinar a causa do problema. O parafuso estava a apenas dez centímetros do outro lado da grade, e, embora as barras dessa grade fossem próximas demais entre si para que ele as atravessasse com a mão, já provara que podia alcançar o parafuso sem muita dificuldade.
Morgan soltou o primeiro metro de fibra revestida e, usando o aro de metal na extremidade como um peso de prumo, baixou-o o suficiente através da grade. Colocando com firmeza o próprio dispensador num canto da cápsula, para não correr o risco de derrubá-lo acidentalmente, estendeu a mão em torno da grade, de modo que pudesse pegar o peso oscilante. Não foi tão fácil como havia imaginado, pois nem mesmo aquele extraordinário traje espacial permitia que seu braço se movimentasse com muita liberdade, ao mesmo tempo em que o aro se esquivava a seus esforços, balançando de um lado para outro.
Depois de meia dúzia de tentativas, mais cansativas que irritantes, pois ele sabia que mais cedo ou mais tarde teria êxito, Morgan conseguiu passar a fibra em torno da haste do parafuso, pouco atrás da faixa metálica que ele ainda estava prendendo. Havia chegado a parte realmente mais difícil...
Soltou o hiperfilamento da fiandeira, o suficiente para que a fibra nua chegasse até o parafuso e o envolvesse. Depois, puxou as duas pontas, até sentir o laço preso na rosca. Morgan nunca tentara fazer aquilo com uma haste de aço temperado com mais de um centímetro de diâmetro e não tinha idéia de quanto tempo precisaria. Seguran-do-se na porta, começou a fazer funcionar sua serra invisível.
Cinco minutos depois, estava suando em bicas e não sabia se havia conseguido algum progresso. Tinha medo de afrouxar a tensão, para que a fibra não escapasse da fenda, igualmente invisível, que ela estava fazendo - assim esperava - no parafuso. Por várias vezes, Warren o chamara, com uma voz que demonstrava cada vez mais apreensão, e ele respondera que estava tudo bem. Dali a momentos, ele descansaria, respiraria um pouco — e explicaria o que estava tentando fazer. Aquela explicação era o mínimo que devia aos seus amigos, tão ansiosos.
- Van - disse Kingsley -, afinal, o que você quer? O pessoal da torre já ligou... o que devo dizer a eles?
- Dê-me mais alguns minutos... estou tentando cortar o parafuso...
A voz feminina, calma mas decidida, que interrompeu Morgan, causou-lhe tal choque que ele quase largou a preciosa fibra. As palavras eram abafadas por seu traje, mas não importava. Ele as conhecia bem, embora não as ouvisse havia meses.
- Dr. Morgan - disse o AÇOR -, por favor, deite-se e descanse dez minutos.
- Não pode ser cinco? - perguntou. - Estou muito ocupado neste momento.
O ACOR não se dignou a responder. Embora houvesse unidades capazes de travar conversas simples, aquele modelo não era um deles.
Morgan manteve a promessa, respirando profundamente durante cinco minutos inteiros. Depois, começou a serrar novamente. Para a frente e para trás, para a frente e para trás ele fazia correr o filamento, deitado sobre a grade junto à porta da cápsula, e debruçado sobre a Terra a quatrocentos quilômetros de altitude. Como sentia uma considerável resistência, devia estar conseguindo algum progresso, cortando o aço obstinado. Contudo, não havia maneira de dizer o quanto já havia conseguido cortar.
- Dr. Morgan - disse o AÇOR -, é realmente indispensável que o senhor se deite durante meia hora.
Morgan praguejou baixinho.
- Está cometendo um engano, senhorita - retorquiu. - Estou me sentindo muito bem... - Mas estava mentindo. O AÇOR sabia da dor no peito...
- Com quem você está falando, Van? - perguntou Kingsley.
- Com um anjo que passou por aqui - respondeu Morgan. - Desculpe por esquecer de desligar o microfone. Vou descansar mais um pouco.
- Está conseguindo alguma coisa?
- Não sei dizer. Mas tenho certeza de que o raio do parafuso já deve estar bem cortado a essa altura. Tem de estar.. .
Gostaria de poder desligar o AÇOR, mas isso, naturalmente, era impossível, mesmo que ele não estivesse fora de seu alcance, entre o esterno e o tecido do traje espacial. Um monitor que pudesse ser desligado era pior do que nada - era perigoso.
- Dr. Morgan - disse o AÇOR, agora claramente irritado. - Estou insistindo. Pelo menos meia hora de repouso completo.
Dessa vez, Morgan não sentiu vontade de responder. Sabia que o monitor tinha razão. Não poderia esperar que ele compreendesse que não era apenas a vida dele o que estava em jogo. E ele também tinha certeza de que - como uma de suas pontes - o monitor também tinha um fator de segurança. O diagnóstico seria pessimista; seu estado não podia ser tão sério quanto a voz indicava. Pelo menos, era nisso que queria acreditar.
A dor no peito realmente não parecia aumentar. Morgan resolveu ignorar a dor e o AÇOR, e começou a serrar outra vez, lenta mas continuamente, com o laço de fibra. Continuaria a fazer aquilo, disse a si mesmo, somente enquanto fosse necessário.
O aviso que esperava não aconteceu. A Aranha sacudiu-se violentamente quando os duzentos e cinqüenta quilos de peso morto se soltaram, e Morgan quase foi arremessado ao abismo. Deixou cair a fiandeira, e estendeu a mão para o cinto de segurança.
Tudo parecia acontecer numa câmera lenta de sonho. Ele não tinha nenhuma sensação de medo, mas apenas uma determinação total de não se render à gravidade sem luta. Mas não conseguia encontrar o cinto de segurança. Devia ter voado para dentro da cabine.
Morgan nem sequer tinha consciência de ter usado a mão esquerda, mas, de repente, percebeu que ela estava empunhando as dobradiças da porta aberta. Ainda assim, ele não tomou impulso para dentro da cabine. Estava hipnotizado pela visão da bateria que caía, girando lentamente como um estranho corpo celeste. Foi preciso muito tempo para que ela desaparecesse inteiramente. Só então Morgan se arrastou para a segurança, caindo no assento.
Ficou sentado muito tempo, com o coração aos saltos, à espera do protesto indignado do AÇOR. Para surpresa sua, o monitor se mantinha em silêncio, como se estivesse espantado também. Ele não lhe daria novos motivos de queixa; daí em diante, ficaria sentado tranqüilamente junto aos controles, tentando descansar os nervos em frangalhos.
Quando serenou, chamou a montanha.
- Livrei-me da bateria - disse, e escutou os aplausos da Terra. - Assim que tiver fechado a escotilha, vou recomeçar a viagem. Digam a Sessui e aos outros que me esperem dentro de pouco mais de uma hora. E agradeçam a Kinte pela luz... não preciso mais dela.
Morgan repressurizou a cabine, abriu o capacete do traje espacial e serviu-se de um longo sorvo de suco de laranja enriquecido. Depois, ligou o motor e soltou os freios, recostando-se com enorme alívio quando a Aranha chegou à velocidade máxima.
Já fazia vários minutos que subia, quando percebeu
o que estava faltando. Numa esperança ansiosa, olhou para a grade de metal além da porta. Ela não estava lá. Bem, sempre poderia conseguir outra fiandeira, para substituir aquela que agora acompanhava a bateria esgotada em direção à Terra. Era um pequeno sacrifício em troca do muito que ela havia feito. Era estranho, pois, que estivesse tão aborrecido, sem poder fruir seu triunfo... Tinha a impressão de haver perdido uma velha e querida amiga...
Esgotamento
O fato de estar apenas trinta minutos atrasado parecia bom demais para ser verdade. Morgan se sentia disposto a jurar que a cápsula tinha ficado parada pelo menos uma hora. Lá na torre, a menos de cem quilômetros de distância, a comissão de recepção deveria estar se preparando para recebê-lo. Morgan se recusava a cogitar na possibilidade de novos problemas.
Ao passar pela marca dos quinhentos quilômetros, ainda subindo bem, ele recebeu uma mensagem de congratulações da Terra:
- A propósito, o guarda de caça do Santuário Ruhana anunciou a queda de um avião - acrescentou Kingsley. - Nós explicamos o que aconteceu. Se pudermos encontrar o buraco, teremos uma lembrança para você. - Morgan não conteve seu entusiasmo. Estava feliz por ver aquela bateria bem longe dele. Agora, se pudessem encontrar a fiandeira... mas seria uma busca inútil...
O primeiro sinal de dificuldades ocorreu na marca dos quinhentos e cinqüenta quilômetros. Naquele momento, a velocidade de ascensão deveria ser superior a duzentos quilômetros por hora. Era de apenas cento e noventa e oito. Por menor que fosse a discrepância - e ela não causaria nenhuma diferença apreciável -, deixou Morgan preocupado.
Quando estava a apenas trinta quilômetros da torre, já havia diagnosticado o problema, e percebeu que daquela vez não havia absolutamente nada que ele pudesse fazer. Embora o normal fosse uma ampla reserva, a carga da bateria começava a cair. Era possível que aqueles solavancos e partidas repentinas houvessem causado o mal; podia até ter havido alguma avaria física nos delicados componentes. Qualquer que fosse a explicação, a corrente estava começando a cair, e com ela, a velocidade da cápsula.
Houve consternação quando Morgan informou ao controle terrestre as indicações do painel.
- Acho que você tem razão - lamentou Kingsley, que parecia quase em lágrimas. - Sugiro que diminua a velocidade para cem quilômetros. Vamos tentar calcular a duração da bateria, ainda que só possamos chegar a um palpite.
Restavam vinte e cinco quilômetros - apenas quinze minutos, mesmo àquela baixa velocidade! Se Morgan fosse capaz de rezar, teria rezado.
- Calculamos que você dispõe de dez a vinte minutos, a julgar pelo índice de queda da corrente. Se chegar, será por um triz. Estou com medo.
- Devo reduzir ainda mais a velocidade?
- Por enquanto, não. Estamos tentando calcular a taxa de descarga ideal, e parece que essa é a velocidade ótima.
- Bem, você já pode ligar seu holofote. Se eu não puder chegar à torre, pelo menos quero vê-la.
Nem Kinte nem as outras estações orbitais poderiam ajudá-lo a ver a parte inferior da torre. Era uma tarefa que competia ao holofote do próprio Sri Kanda, apontado verticalmente em direção ao zênite.
Dali a um momento, a cápsula foi atravessada por um facho ofuscante, que partia do coração da Taprobana. A apenas alguns metros de distância — com efeito, estavam tão próximas que ele quase podia tocá-las com a mão —, as outras três fitas eram películas de luz que convergiam para a torre. Morgan as acompanhou com o olhar... e lá estava ela.
Apenas vinte quilômetros de distância! Deveria estar lá em doze minutos, atravessando o piso daquele pequenino edifício quadrado que podia ver cintilando no céu, e traria presentes como um Papai Noel troglodita. Apesar de sua resolução de repousar e obedecer às ordens do AÇOR, era impossível fazê-lo. Percebeu-se retesando os músculos, como se, com seus próprios esforços físicos, pudesse ajudar a Aranha a cobrir aquela última fração de sua viagem.
A dez quilômetros de distância, houve uma mudança clara no som do motor. Morgan vinha esperando aquele sinal, e reagiu imediatamente. Sem esperar conselho de terra, reduziu a velocidade para cinqüenta quilômetros horários. Àquela velocidade, ainda tinha doze minutos de viagem, e começou a imaginar, desesperado, se não estaria envolvido numa aproximação assintótica - uma variante da corrida entre Aquiles e a tartaruga. Se a velocidade diminuía à metade sempre que a distância diminuía à metade, ele chegaria à torre num tempo finito? Normalmente, saberia a resposta instantaneamente. Agora, porém, sentia-se cansado demais para pensar.
A cinco quilômetros, já podia ver os detalhes estruturais da torre - o passadiço e as balaustradas, a inútil rede de segurança instalada para atender à opinião pública. Embora se esforçasse, não conseguia divisar ainda a câmara estanque em direção à qual ele se arrastava agora com uma lentidão angustiante.
Então, aquilo deixou de interessar. A dois quilômetros da meta, os motores da Aranha pararam inteiramente. A cápsula chegou até a retroceder alguns metros, antes que Morgan pudesse aplicar os freios.
No entanto, para surpresa de Morgan, dessa vez Kingsley não se mostrou inteiramente abatido.
- Você ainda poderá chegar lá - disse ele. - Dê dez minutos de descanso à bateria. Ela tem energia suficiente para vencer esses dois quilômetros.
Aqueles foram os dez minutos mais longos da vida de Morgan. Ainda que pudesse ter feito com que passassem mais depressa se atendesse aos apelos cada vez mais desesperados de Maxine Duval, sentia-se emocionalmente exausto demais para conversar. Lamentava isso sinceramente, e esperava que Maxine o compreendesse e o perdoasse.
No entanto, trocou algumas palavras com o condutor-piloto Chang, que disse que os refugiados na base ainda estavam em boas condições e muito encorajados por sua proximidade. Estavam observando-o, um por vez, pela pequena vigia na porta externa da câmara estanque, e simplesmente não conseguiam acreditar que ele não poderia transpor a pequena distância que os separava.
Morgan deu à bateria mais um minuto de repouso. Para surpresa sua, os motores responderam com força. A Aranha chegou a meio quilômetro da torre, antes de parar de novo.
- Da próxima vez, ela consegue — disse Kingsley, embora Morgan tivesse a impressão de que a confiança do amigo era agora um tanto forçada. — Sinto muito por todos esses atrasos...
- Mais dez minutos? - perguntou Morgan, com resignação.
- Acho que sim... E, dessa vez, faça subidas de trinta segundos, com um minuto de intervalo entre cada uma. Assim, você vai extrair o último erg da bateria.
E de mim também, pensou Morgan. Era estranho que o AÇOR estivesse mudo havia tanto tempo. No entanto, dessa vez ele não se excedera fisicamente. Pelo menos, era essa sua impressão.
Ao se preocupar com a Aranha, Morgan vinha se esquecendo de si mesmo. Durante a última hora, nem se lembrara dos seus tabletes energéticos glicosados e do bulbo plástico de suco de laranja. Depois de consumir a ambos, sentiu-se melhor, e tudo o que desejava era transferir um pouco das calorias excedentes para a bateria moribunda.
Agora, a hora da verdade... o esforço final. O fracasso era inimaginável, agora que estava tão perto da meta. O destino não podia ser tão desfavorável quando só lhe faltavam alguns metros...
Estava apenas querendo se animar, é claro. Quantos aviões haviam caído na cabeceira da pista, depois de atravessar todo um oceano com segurança? Quantas vezes músculos ou máquinas haviam falhado, quando só faltavam milímetros? Tudo de bom ou de ruim acontecia a alguém, em algum lugar. Ele não tinha direito de esperar tratamento especial.
A cápsula começou a subir aos arrancos, como um animal agonizante em busca do último abrigo. Quando a bateria finalmente expirou, a base da torre parecia encher o céu.
Mas ainda estava vinte metros acima dele.
Teoria da relatividade
É preciso dizer, a favor de Morgan, que ele sentiu sua própria sorte selada, naquele momento desolador em que se esgotou o restante da bateria e as luzes do painel da Aranha finalmente se apagaram. Só muitos segundos depois ele se lembrou de que bastava soltar os freios e ele deslizaria tranqüilamente em direção à Terra. Dali a três horas, estaria deitado em sua cama. Ninguém o culparia pelo fracasso da missão. Havia feito o humanamente possível.
Por alguns instantes, ele fitou, tomado de fúria surda, aquele quadrado inacessível em que se projetava a sombra da Aranha. Em seu espírito dançaram planos loucos, rejeitados um a um. Se ainda estivesse com sua fiandeira... mas não haveria meio de prendê-la na torre. Se os refugiados tivessem um traje espacial, alguém poderia baixar uma corda para ele... mas não tinha havido tempo para pegar um traje no transportador em chamas.
Evidentemente, se aquilo fosse um videodrama, e não um problema da vida real, algum voluntário heróico poderia sacrificar-se - uma moça seria melhor ainda - saindo pela escotilha e atirando uma corda, usando seus quinze segundos de lucidez no vácuo para salvar os companheiros. O estado de desespero em que se achava Morgan pode ser avaliado pelo fato de que, por um momento, chegou a pensar seriamente nisso, antes que o bom senso voltasse a imperar.
Entre o momento em que a Aranha finalmente sucumbiu à batalha contra a gravidade e o momento em que Morgan finalmente aceitou que não podia fazer absolutamente nada, era provável que houvesse transcorrido menos de um minuto. Foi então que Warren Kingsley fez uma pergunta que, em tal ocasião, parecia de uma irrelevância irritante.
- Van, a que distância exata você está da torre?
- E o que importa isso? Poderia ser um ano-luz. Houve uma breve pausa. Depois, Kingsley falou de novo, no tom usado com uma criancinha ou um inválido teimoso. — Importa, e muito. Você disse vinte metros?
- Sim... é mais ou menos isso.
Foi inacreditável... e inequívoco o suspiro de alívio de Kingsley. Havia até alegria em sua voz, quando ele respondeu:
- Ora, Van, e todos esses anos pensei que você fosse o engenheiro-chefe dessa obra! Suponhamos que a distância seja exatamente de vinte metros...
O grito de Morgan impediu que Kingsley terminasse a frase.
- Que idiota! Diga a Sessui que vou atracar dentro de... ãh, quinze minutos.
- Catorze e meio, se você calculou a distância direito. Agora, nada mais pode impedir isso.
Era uma afirmação arriscada, e Morgan preferiria que Kingsley não a houvesse feito. Os dispositivos de engate às vezes deixavam de se prender corretamente, devido a insignificantes erros de tolerância na fabricação. E, evidentemente, não tinha havido tempo para testar aquele sistema em especial.
Morgan sentiu pouco embaraço por causa de seu esgotamento mental. Afinal, em condições de tensão extrema, um homem pode se esquecer do próprio número de telefone, e até de sua data de nascimento. E, até aquele instante, o fator dominante na situação fora tão pouco importante que podia ser completamente ignorado.
Era uma questão de relatividade. Ele não podia alcançar a torre; mas a torre podia alcançá-lo, pois deslizava a um ritmo inexorável de dois quilômetros por dia.
Acoplamento
O recorde de avanço por dia fora de trinta quilômetros, quando estava sendo montada a seção mais fina e leve da torre. Agora que a parte de maior massa – a própria base da estrutura estava chegando ao término em órbita, a velocidade caíra para dois quilômetros diários. Isso bastava. Daria a Morgan tempo para verificar o alinhamento do adaptador e repassar mentalmente os segundos perigosos entre a confirmação do acoplamento e a descompressão dos freios da Aranha. Se ele os deixasse funcionando durante um tempo excessivo, ocorreria um embate muito desigual entre a cápsula e os megatons em movimento da torre.
Seriam quinze minutos longos mas tranqüilos - tempo suficiente, esperava Morgan, para acalmar o AÇOR. Perto do fim, tudo deu a impressão de estar acontecendo muito depressa, e no momento final ele se sentiu como uma formiga prestes a ser esmagada numa prensa, enquanto o teto sólido do céu caía em cima dele. Num segundo, a base da torre estava a seis metros de distância; um instante depois, ele sentiu e ouviu o impacto do mecanismo de engate.
Agora, muitas vidas dependiam da habilidade e do cuidado com que os engenheiros e mecânicos, muitos anos antes, haviam realizado seu trabalho. Se os engates não se alinhassem dentro das tolerâncias admitidas; se o mecanismo de atracação não funcionasse corretamente; se o lacre não fosse estanque... Morgan tentou interpretar a confusão de sons que chegavam a seus ouvidos, mas não estava capacitado para entender suas mensagens.
Então, como um sinal de vitória, as palavras ENGATE COMPLETADO piscaram no painel. Por dez segundos os elementos telescópicos ainda absorveriam o movimento da torre que avançava. Morgan deixou passar metade desse tempo antes de, cautelosamente, soltar os freios. Estava preparado para apertá-los com força outra vez, se a Aranha começasse a cair... mas os sensores tinham razão. Torre e cápsula estavam agora firmemente unidos. Bastaria a Morgan subir alguns degraus, e teria alcançado seu objetivo.
Depois de transmitir a informação aos exultantes ouvintes da Terra e da Intermediária, sentou-se por um momento, recuperando o fôlego. Era estranho pensar que aquela era sua segunda visita à torre, mas ele pouco se lembrava da primeira, ocorrida doze anos atrás e a trinta e seis mil quilômetros de distância. Durante a fase que, por falta de melhor designação, fora chamada de lançamento das fundações, houvera uma festinha no porão, a zero-G, quando muitos brindes tinham sido feitos. Aquela fora a primeira parte da torre a ser construída, e também a primeira a estabelecer contato com a Terra, ao cabo de sua longa descida da órbita. Portanto, parecia haver necessidade de alguma cerimônia, e Morgan lembrava-se agora de que até seu velho inimigo, o senador Collins, tinha comparecido e lhe desejara boa sorte, com um discurso cheio de farpas, mas bem-humorado. Agora, havia mais necessidade ainda de comemoração.
Morgan já podia escutar batidas de boas-vindas do outro lado da câmara. Soltou o cinto de segurança, ficou de pé desajeitadamente no assento e começou a subir a escada. A escotilha ofereceu uma certa resistência, como se as forças reunidas contra ele estivessem fazendo um débil gesto final, e ouviu-se um breve assobio, enquanto a pressão se igualava. A chapa circular se abriu para baixo, e mãos ansiosas o ajudaram a entrar na torre. Ao inspirar pela primeira vez o ar fétido, Morgan admirou-se de que os refugiados tivessem conseguido sobreviver ali. Se sua missão houvesse malogrado, ele tinha certeza de que uma segunda tentativa seria em vão.
O cômodo nu e sombrio estava iluminado apenas pelos painéis solar-fluorescentes, que vinham pacientemente acumulando e liberando a luz do Sol havia mais de uma década, para a emergência que finalmente havia ocorrido. A luz revelava uma cena que parecia de alguma guerra antiga: refugiados desabrigados e cansados, chegados de uma cidade devastada, comprimidos num refúgio com algumas coisas que tinham conseguido salvar. Contudo, não eram muitos os refugiados que teriam levado consigo bolsas com os dizeres PROJEÇÃO, EMPRESA DO HOTEL LUNAR, PRO-
PRIEDADE DA REPÚBLICA FEDERAL DE MARTE, OU O sempre presente NÃO PODE SER ARMAZENADO NO VÁCUO. Também não estariam tão alegres. Até os que estavam deitados, a fim de poupar oxigênio, deram um sorriso e um aceno lânguido. Morgan tinha acabado de retribuir o cumprimento, quando suas pernas cederam e tudo escureceu. Em toda a sua vida, nunca havia desmaiado, e quando o hausto de oxigênio o fez reviver, sua primeira emoção foi de grande embaraço. Sua vista entrou em foco lentamente, e ele viu vultos mascarados sobre ele. Por um momento, pensou que estivesse num hospital. Depois, o cérebro e a visão retornaram ao normal. Enquanto ainda estava inconsciente, sua preciosa carga devia ter sido desembarcada.
Aquelas máscaras eram os filtros moleculares que ele havia levado para a torre. Usadas sobre a boca e o nariz, bloqueavam o gás carbônico mas permitiam a passagem do oxigênio. Eram simples, mas envolviam uma avançada tecnologia e permitiam que pessoas sobrevivessem numa atmosfera que de outra forma causaria asfixia imediata. Era preciso um pouco de esforço adicional para respirar através delas, mas a natureza nunca dá alguma coisa a troco de nada - e aquele era um preço baixíssimo.
Um pouco tonto, mas recusando ajuda, Morgan pôs-se de pé e foi apresentado tardiamente aos homens e mulheres que havia salvado. Uma coisa ainda o preocupava; durante sua inconsciência, o AÇOR teria dado um de seus avisos? Não queria tocar no assunto, mas...
- Em nome de todos nós - disse o professor Sessui, com sinceridade, mas com o constrangimento óbvio de uma pessoa que raramente se mostrava cortês com alguém -, quero agradecer ao senhor pelo que fez. Devemos ao senhor as nossas vidas.
Qualquer resposta lógica ou coerente a essas palavras teria parecido falsa modéstia, de maneira que Morgan usou a desculpa do ajuste de sua máscara para murmurar alguma coisa ininteligível. Estava prestes a conferir o equipamento que havia sido desembarcado, quando o professor Sessui acrescentou, com certa ansiedade:
- Sinto muito não podermos lhe oferecer uma cadeira... isso é tudo o que temos. - Apontou para duas caixas de instrumentos, uma em cima da outra. - O senhor deve realmente descansar um pouco.
A frase era conhecida. Portanto, o AÇOR havia falado. Houve uma pausa um tanto embaraçosa enquanto Morgan registrava esse fato, e os outros admitiram que ele sabia e estava consciente de que eles sabiam - tudo sem que uma única palavra fosse pronunciada, na espécie de bloqueio psicológico que ocorre quando um grupo de pessoas partilha um segredo que ninguém jamais voltará a mencionar. Morgan respirou profundamente algumas vezes - era incrível como uma pessoa se acostumava rapidamente às máscaras -, e sentou-se no assento que lhe era oferecido. Não vou desmaiar de novo, pensou, resoluto. Tenho de entregar a mercadoria, e sair daqui o mais depressa possível. E espero que isso ocorra antes de novos pronunciamentos do ACOR.
- Esta lata de selador - disse ele, apontando para o menor dos recipientes que havia trazido - deve bastar para resolver o problema do vazamento. Deve ser borrifado em torno das gaxetas da câmara estanque. Endurece em poucos segundos. Só usem o oxigênio quando for necessário. Vocês podem precisar dele para dormir. Há uma máscara de gás carbônico para cada um, e umas duas a mais. E ali há alimento e água para três dias... deve dar de sobra. O transportador da estação 10K deverá estar aqui amanhã. Quanto ao estojo médico, espero que não precisem dele.
Morgan fez uma pausa para tomar fôlego. Não era fácil falar usando um filtro de gás carbônico, e ele sentia uma necessidade crescente de poupar energia. O pessoal de Sessui agora podia cuidar de si mesmo, mas ele ainda tinha que fazer uma coisa - e quanto mais depressa, melhor.
Morgan voltou-se para o condutor Chang e disse, sereno:
- Ajude-me a vestir a roupa de novo, por favor. Quero inspecionar o trilho.
- Mas a roupa que o senhor está usando só dá para trinta minutos!
- Só preciso de dez... quinze, no máximo.
- Dr. Morgan, eu sou um operador espacial qualificado. O senhor, não. Ninguém tem permissão para sair no vácuo com um traje de trinta minutos sem um sobressalente, ou um cordão umbilical. Salvo numa emergência, é claro.
Morgan deu um sorriso cansado. Chang tinha razão, e a desculpa de perigo imediato não era mais válida. Mas uma emergência só ocorria quando o engenheiro-chefe assim o decidisse.
- Quero avaliar o dano - respondeu - e examinar os trilhos. Seria uma pena que o pessoal da 10K não chegasse até vocês por não ter sido advertido de algum obstáculo.
Era evidente que Chang não estava muito satisfeito com a situação (afinal, o que o AÇOR teria dito enquanto ele estava inconsciente?), mas não fez mais objeções, acompanhando Morgan à câmara norte.
Pouco antes de baixar o visor, Morgan perguntou:
- Houve mais problemas com o professor?
Chang balançou a cabeça negativamente.
- Acho que o gás carbônico o enfraqueceu um pouco. E se recomeçar... bem, somos seis contra um, embora eu não saiba ao certo se posso contar com os alunos dele. Alguns são tão doidos quanto ele. Veja só aquela moça, que passa o tempo todo escrevendo no canto. Está convencida de que o Sol está se afastando, ou explodindo... não sei bem a opinião dela ... e quer avisar o mundo antes de morrer. Grande ajuda! Prefiro não saber.
Morgan não pôde deixar de sorrir, mas estava certo de que nenhum dos alunos do professor era louco. Eram excêntricos, talvez... mas também brilhantes. Não fosse assim, não estariam trabalhando com Sessui. Algum dia, ele desejaria saber mais alguma coisa sobre os homens e mulheres que havia salvo. Mas isso teria de esperar até que todos tivessem voltado à Terra, seguindo seus caminhos distintos.
- Vou dar uma caminhada rápida ao redor da torre - disse Morgan -, e descreverei qualquer avaria que constate, de modo que você possa avisar à Intermediária. Isso não vai levar mais de dez minutos. Mas se levar... bem, não tente me trazer de volta.
A resposta de Chang, enquanto fechava a porta interna da câmara, foi muito prática e breve:
- É, como eu poderia mesmo fazê-lo?
Vista da sacada
A porta externa da câmara norte abriu-se sem dificuldade, emoldurando um retângulo de completa escuridão. Horizontalmente, aquelas trevas eram atravessadas por uma linha de fogo - o corrimão protetor do passadiço, que ardia em meio ao facho do holofote, apontado lá de baixo, na montanha. Morgan respirou profundamente e flexionou a roupa. Sentia-se perfeitamente confortável e acenou para Chang, que o observava pela janela da porta interna. Depois, afastou-se da torre.
O passadiço que circundava o Porão era uma grade de metal com mais ou menos dois metros de largura. Além dele, a rede de segurança se estendia por mais trinta metros. A parte que Morgan podia ver não havia capturado absolutamente nada em muitos anos de espera paciente.
Ele começou a circunavegação da torre, protegendo os olhos contra o clarão que vinha de baixo. A iluminação rasante revelava as menores mossas e imperfeições da superfície que se estendia acima dele, como uma estrada para as estrelas. E isso ela era, em certo sentido.
Tal como havia esperado, a explosão do outro lado da torre não causara nenhum dano ali. Para isso, teria sido necessária uma bomba atômica, e não uma simples bomba eletroquímica. As fendas geminadas do trilho, que agora esperavam o primeiro veículo passar por elas, estendiam-se interminavelmente para o alto, em sua perfeição irretocável. E, a cinqüenta metros sob a sacada - embora fosse difícil olhar naquela direção, por causa do clarão -, ele podia distinguir os amortecedores do terminal, prontos para uma tarefa que jamais deveriam precisar cumprir.
Devagar, e mantendo-se perto da face vertical da torre, Morgan caminhou lentamente na direção oeste, até chegar ao primeiro ângulo. Ao virar, olhou de volta para a porta aberta da câmara e para a segurança - realmente relativa! - que oferecia. Depois, continuou a caminhar ao longo da parede da face oeste.
Sentia uma curiosa mistura de júbilo e medo, como jamais voltara a sentir desde que aprendera a nadar e se encontrou, pela primeira vez, em águas profundas. Embora tivesse certeza de que não havia nenhum perigo real, poderia haver. Tinha consciência aguda do AÇOR, que lhe dava algum tempo. Mas Morgan detestava deixar qualquer trabalho por terminar, e sua missão ainda não estava completa.
A face oeste era exatamente igual à norte, excetuada a ausência de uma câmara estanque. Também ali não havia nenhum sinal de avaria, embora ele estivesse mais perto do local da explosão.
Contendo o impulso de correr - afinal, estava fora havia somente três minutos -, Morgan continuou a caminhada até o ângulo seguinte. Mesmo antes de fazer a volta, percebeu que não teria condições de completar o planejado exame de todas as faces da torre. O passadiço fora arrancado e estava pendurado no espaço, como uma língua retorcida de metal. A rede de segurança havia desaparecido inteiramente, sem dúvida arrancada pela queda do transportador.
Não vou abusar da sorte, pensou Morgan. Mas não podia resistir a olhar para além do ângulo, segurando-se no pedaço de corrimão que ainda restava.
Havia muitos destroços presos no trilho, e a face da torre tinha ficado descolorida pela explosão. Mas, até onde Morgan podia ver, nada havia ali que não pudesse ser reparado em poucas horas, por um grupo de homens com maçaricos. Fez uma descrição cuidadosa a Chang, que expressou alívio e insistiu com Morgan para que voltasse para dentro assim que fosse possível.
- Não se preocupe - disse Morgan. - Ainda tenho dez minutos e trinta metros para percorrer. Posso fazer isso com o ar que tenho nos pulmões agora.
No entanto, ele não pretendia testar essa possibilidade. Já havia passado por emoções suficientes naquela noite. Mais que suficientes, a se acreditar no AÇOR. Dali em diante, obedeceria às ordens do monitor rigorosamente.
Depois de voltar até a porta aberta da câmara, deteve-se por alguns momentos ao lado do corrimão, inundado pela fonte de luz que emanava do topo do Sri Kanda. A luz projetava a sombra dele, imensamente alongada, acompanhando a torre em direção às estrelas. Aquela sombra devia estender-se por milhares de quilômetros, e ocorreu a Morgan que talvez chegasse ao transportador que naquele momento descia celeremente, vindo da estação 10K. Se ele acenasse os braços, a equipe de resgate talvez visse seus sinais. Poderia conversar com eles em código Morse.
Essa fantasia inspirou uma idéia mais séria. Não seria melhor esperar ali, com os demais, e não se arriscar a uma volta para a Terra na Aranha? Mas a viagem até a Intermediária, onde poderia receber cuidados médicos, levaria uma semana. A alternativa não era sensata, uma vez que poderia estar de volta a Sri Kanda em menos de três horas.
Era hora de entrar, pois sua reserva de ar estava acabando e não havia mais o que ver. Aquilo representava uma ironia decepcionante, considerando-se a vista espetacular que normalmente se teria dali, de dia ou de noite. Agora, no entanto, o planeta lá embaixo e os céus acima dele eram ofuscados pelo clarão cegante que vinha de Sri Kanda. Ele estava flutuando num minúsculo universo de luz, cercado pela escuridão total de todos os lados. Era quase impossível crer que estivesse no espaço, pelo menos por causa da sensação de peso. Ele se sentia tão seguro quanto se estivesse na própria montanha, e não a seiscentos quilômetros de altura. Aquela era uma idéia digna de ser saboreada e levada de volta para a Terra.
Morgan bateu na superfície lisa da torre, muito maior do que ele, com um elefante em relação a uma ameba. Mas nenhuma ameba era capaz de conceber um elefante... e muito menos criar um.
- Encontro você na Terra daqui a um ano - sussurrou Morgan, e lentamente fechou a porta da câmara atrás de si.
A última alvorada
Morgan ficou no porão menos de cinco minutos. Aquele não era o momento para amabilidades sociais, e ele, não queria desperdiçar nada do oxigênio que havia levado para ali com tanta dificuldade. Despediu-se de todos e voltou para a Aranha.
Era bom poder respirar novamente sem máscara... e melhor ainda saber que sua missão tinha sido um completo sucesso e que em menos de três horas ele estaria de volta à Terra. Entretanto, depois de todo o esforço necessário para chegar à torre, ele relutava em ir embora, rendendo-se mais uma vez à atração da gravidade - muito embora essa gravidade o estivesse levando de volta para casa. Mas, dali a pouco, ele soltou o mecanismo de engate e começou a cair, ficando sem peso durante vários segundos.
Quando o indicador de velocidade atingiu trezentos quilômetros por hora, o sistema de frenagem automática começou a funcionar e o peso voltou. A bateria brutalmente exaurida estaria recarregando agora, mas devia estar enormemente danificada, e teria de ser retirada.
Havia um paralelo aziago ali. Morgan não podia deixar de pensar em seu próprio corpo, que suportara um esforço exagerado, mas um orgulho teimoso ainda o impedia de pedir que um médico o esperasse. Morgan tinha feito uma pequena aposta consigo mesmo. Só pediria o médico se o AÇOR mandasse.
O monitor estava silencioso agora, enquanto ele caía velozmente em meio à noite. Morgan sentia-se inteiramente relaxado, e deixou que a Aranha cuidasse de si mesma enquanto ele admirava os céus. Poucas naves espaciais proporcionavam uma vista tão panorâmica, e não eram muitos os homens que podiam se gabar de já terem visto as estrelas em condições tão magníficas. A aurora polar havia desaparecido inteiramente, o holofote tinha sido apagado, e não restava mais nada para desafiar as constelações.
Exceto, naturalmente, as próprias estrelas feitas pelo homem. Quase no zênite, via-se o farol ofuscante de Ashoka, colocado para todo o sempre acima do Hindustão... e a apenas algumas centenas de quilômetros do complexo da torre. Mais para leste, via-se Confúcio, ainda mais além Kamehameha, enquanto no ocidente brilhavam Kinte e Imhotep. Aqueles eram meramente os faróis mais brilhantes ao longo do equador. Havia literalmente dezenas de outras estrelas como aquelas, todas muito mais brilhantes do que Sírius. Como ficaria atônito um dos antigos astrônomos, se visse aquele colar em torno do céu! E ficaria ainda mais estupefato quando, depois de uma hora de observação, descobrisse que estavam imóveis, enquanto as estrelas familiares passavam, seguindo suas rotas imemoriais.
Enquanto fitava o colar de diamantes estendido ao redor do céu, a mente sonolenta de Morgan transformou-o lentamente numa outra coisa, muito impressionante. Com apenas um leve esforço de imaginação, aquelas estrelas feitas pelo homem tornavam-se as luzes de uma ponte titânica ... Morgan mergulhou em fantasias ainda mais furiosas. Como era o nome da ponte para o Valhalla, pela qual os heróis das lendas escandinavas passavam deste mundo para o outro? Não se lembrava, mas aquele era um sonho glorioso. E outras criaturas, muito antes do homem, teriam tentado em vão transpor os céus de seus próprios mundos? Morgan pensou nos esplêndidos anéis que circundam Saturno, nos arcos diáfanos de Urano e Netuno. E, embora soubesse perfeitamente que nenhum desses mundos havia conhecido o menor sopro de vida, encantava-o imaginar que ali estavam fragmentos de pontes malogradas.
Ele queria dormir, mas, contra sua vontade, sua imaginação se apossara daquela idéia. Como um cão que acabasse de descobrir um novo osso, ele não a largava. A idéia não era absurda! Não era sequer original. Muitas das estações geossincrônicas já tinham quilômetros de extensão, ou estavam ligadas por cabos que se estendiam por apreciáveis frações de suas órbitas. Reuni-las, formando assim um anel que circundasse inteiramente o mundo, seria uma façanha de engenharia muito mais simples do que a construção da torre, e envolveria muito menos quantidade de material.
Não... não um anel... uma roda. Aquela torre era apenas o primeiro raio. Haveria outros (quatro? seis? vinte?) espaçados ao longo do equador. Quando estivessem todas interligadas rigidamente lá em cima, na órbita, os problemas de estabilidade que haviam sido o flagelo de uma única torre desapareceriam. A África, a América do Sul, as ilhas Gilbert, a Indonésia... cada um desses lugares poderia ser a localização de terminais terrestres, caso se desejasse. Pois algum dia, com o aperfeiçoamento dos materiais e o avanço da tecnologia, as torres poderiam tornar-se invulneráveis até mesmo aos piores furacões, e locais montanhosos não seriam mais necessários para a base. Se tivesse esperado mais cem anos, talvez não precisasse ter desalojado o Maha Thero...
Enquanto sonhava, o frágil crescente da Lua surgira discretamente acima do horizonte a leste, já incendiado com os primeiros indícios da alvorada. O brilho da Terra iluminava todo o disco da Lua com tamanha intensidade, que Morgan podia ver grande parte dos detalhes topográficos. Olhou com atenção, na esperança de vislumbrar aquele espetáculo maravilhoso, desconhecido em épocas anteriores - uma estrela dentro dos braços da Lua em quarto crescente. Mas nenhuma das cidades da segunda terra do homem estava visível naquela noite.
Apenas duzentos quilômetros - menos de uma hora de viagem. Não havia razão para tentar permanecer acordado. A Aranha tinha programação terminal automática e pousaria delicadamente, sem perturbar seu sono...
A dor o despertou. O aviso do AÇOR veio uma fração de segundo depois.
- Procure não se mover - disse a voz feminina. - Transmiti um pedido de ajuda pelo rádio. A ambulância está a caminho.
Agora, aquilo era engraçado. Mas não ria, Morgan ordenou a si mesmo. Ele está apenas fazendo tudo o que pode. Morgan não sentia medo. Embora a dor sob o esterno fosse intensa, não era insuportável. Tentou concentrar a atenção nela, e o próprio ato de concentração aliviou os sintomas. Muito tempo antes, ele havia descoberto que a melhor maneira de enfrentar a dor consistia em estudá-la objetivamente.
Warren o estava chamando, mas as palavras pareciam distantes e quase sem sentido. Morgan conseguia perceber a ansiedade na voz do amigo, e desejava fazer alguma coisa para aliviá-la. No entanto, não lhe restavam forças para resolver aquele problema - ou qualquer outro. Agora, não conseguia nem mesmo escutar as palavras. Um estrondo leve, mas contínuo, havia obliterado todos os outros sons. Embora soubesse que aquele barulho só existia em seu cérebro - ou no labirinto do ouvido -, parecia inteiramente real. Ele poderia acreditar estar à beira de uma gigantesca catarata...
O ruído se tornava mais leve, mais suave... mais musical. E, de repente, Morgan o reconheceu. Como era agradável ouvi-lo novamente, na fronteira silenciosa do espaço, escutar aquele som de que ele se lembrava por ocasião da primeira visita ao Yakkagala!
A gravidade o estava levando para casa de novo, da mesma forma que, no correr dos séculos, uma mão invisível havia moldado a trajetória das Fontes do Paraíso. Mas ele havia criado uma coisa que a gravidade não poderia jamais recapturar, enquanto os homens possuíssem conhecimento e vontade para preservá-la.
Como suas pernas estavam frias! O que teria acontecido ao sistema de proteção de vida da Aranha? Mas dali a pouco seria madrugada, e haveria calor suficiente.
As estrelas estavam se apagando, muito mais depressa do que tinham o direito de fazer. Aquilo era estranho - embora o dia já estivesse quase chegando, tudo a seu redor escurecia. E as fontes recaíam de volta para a Terra, suas vozes se faziam mais distantes... mais distantes... mais distantes...
Agora, além disso, ouvia-se uma outra voz, mas Vannevar Morgan não a escutou. Entre sinais sonoros agudos, o AÇOR bradava para a alvorada próxima:
SOCORRO! QUALQUER PESSOA QUE ESTEJA AO ALCANCE DE MINHA VOZ, VENHA IMEDIATAMENTE! EMERGÊNCIA AÇOR!
SOCORRO! QUALQUER PESSOA QUE ESTEJA AO ALCANCE DE MINHA VOZ, VENHA IMEDIATAMENTE!
A voz ainda clamava quando o Sol nasceu e seus primeiros raios acariciaram o cume da montanha que outrora fora sagrada. Lá embaixo, bem longe, a sombra do Sri Kanda deu um salto para diante, sobre as nuvens, com seu cone perfeito ainda intacto, a despeito de tudo quanto o homem havia feito.
Não havia mais peregrinos contemplando aquele símbolo da eternidade enquanto cobria a face da Terra que despertava. Todavia, nos séculos vindouros, milhões de pessoas a veriam, viajando com conforto e segurança em direção às estrelas.
O triunfo de Kalidasa
Nos últimos dias daquele breve verão, antes que as mandíbulas de gelo se fechassem em torno do equador, um dos enviados de Ilhastral chegou ao Yakkagala.
Era um mestre dos enxames, que recentemente se conjugara na forma humana. Afora um ou outro detalhe secundário, a semelhança era excelente, mas as doze crianças que haviam acompanhado o ilhéu no autocóptero achavam-se num estado contínuo de leve histeria - as mais jovens, freqüentemente, desatavam em risos nervosos.
- O que há de tão engraçado? - perguntara ele, em seu perfeito solar. - Ou será uma brincadeira particular?
Mas não explicavam ao ilhéu, cuja visão cromática normal se limitava inteiramente ao campo do infravermelho, que a pele humana não era um mosaico fortuito de verdes, vermelhos e azuis. Mesmo quando ele ameaçou transformar-se num Tyrannosaurus rex e devorá-los a todos, continuaram sem satisfazer sua curiosidade. Na verdade, as crianças até argumentaram — a uma entidade que havia atravessado dezenas de anos-luz e coligira conhecimento durante trinta séculos - que uma massa de apenas cem quilogramas dificilmente se transformaria num dinossauro muito assustador.
O ilhéu não se importava. Era paciente, e as crianças da Terra constituíam um fascínio interminável, tanto por sua biologia como por sua psicologia. Assim eram as crias de todas as criaturas - todas, é claro, que tinham crias. Depois de estudar nove dessas espécies, o ilhéu já era capaz de imaginar o que significava crescer, amadurecer, e morrer... não, quase podia.
À frente dos doze humanos e do não-humano, estendia-se a terra vazia, com seus campos e florestas, antes luxuriantes, arrasados pelos sopros frios que vinham do norte e do sul. As palmeiras graciosas haviam desaparecido muito antes, e até os pinheiros que lhes haviam sucedido não passavam agora de esqueletos nus, com raízes destruídas pelo avanço da terra gelada. Nenhuma vida restava sobre a face da Terra. Somente nos abismos oceânicos, onde o calor interior do planeta mantinha o gelo à distância, subsistiam algumas criaturas cegas e famintas, que rastejavam, nadavam e se entredevoravam.
Entretanto, para um ser cujo planeta girava ao redor de uma débil estrela vermelha, o sol que dardejava no céu sem nuvens ainda parecia de um brilho intolerável. Embora todo o seu calor já houvesse se dissimulado, tragado pela doença que vitimara seu núcleo mil anos antes, sua luz fria e impiedosa revelava cada detalhe da terra calcinada, e refletia-se esplendorosamente nas geleiras que avançavam.
Para as crianças, que ainda exultavam com os poderes de suas mentes que despertavam, as temperaturas inferiores a zero eram um desafio excitante. Enquanto dançavam nuas sobre os bancos de neve, com pés descalços que levantavam nuvens de cristais reluzentes e secos, seus simbiotos tinham de adverti-los com freqüência:
- Não deixem de prestar atenção aos sinais de queimadura de gelo! - Ainda não tinham idade suficiente para replicar novos membros sem a ajuda dos antigos.
O mais velho dos meninos estava se exibindo. Resolvera desafiar deliberadamente o frio, anunciando com orgulho que era um piro-elementar. (O ilhéu havia anotado o termo para futura pesquisa, a qual, mais tarde, haveria de causar-lhe muita perplexidade.) Tudo o que se podia ver do jovem exibicionista era uma coluna de chamas e vapor, que dançava de um lado para o outro ao longo da alvenaria antiga. As outras crianças faziam o possível para não dar maior atenção àquela exibição um tanto grosseira.
Para o ilhéu, no entanto, aquilo representava um paradoxo interessante. Por que aquela gente recuara para os planetas interiores, se podiam ter lutado contra o frio com os meios de que dispunham agora — como, na verdade, seus primos estavam fazendo em Marte? Para aquela pergunta ele ainda não havia recebido uma resposta satisfatória. O ilhéu lembrou-se novamente da resposta enigmática. Tinha sido fornecida por ARISTÓTELES, a entidade com quem ele se comunicava com mais facilidade.
- Para tudo há um tempo - respondera o cérebro global. - Há um tempo para lutar contra a natureza, e um tempo para lhe obedecer. A verdadeira sabedoria consiste em fazer a escolha correta. Quando o longo inverno houver chegado ao fim, o homem voltará a uma Terra renovada e retemperada.
Por isso, durante os últimos séculos, toda a população terrestre havia escalado as torres equatoriais e acorrera em direção ao Sol, para os jovens oceanos de Vênus, para as férteis planícies da zona temperada de Mercúrio. Dali a quinhentos anos, quando o Sol se recuperasse, os exilados retornariam. Mercúrio ficaria abandonado, com exceção das regiões polares. Mas Vênus passaria a ser um segundo lar permanente. A mitigação da força do Sol havia proporcionado o incentivo, e a oportunidade, para domesticar aquele mundo infernal.
Por mais importantes que fossem, essas questões só interessavam ao ilhéu indiretamente. Seu interesse concentrava-se em aspectos mais sutis da cultura e da sociedade humana. Todas as espécies eram sui generis, com suas próprias surpresas, suas próprias idiossincrasias. Aquela havia apresentado ao ilhéu o conceito estranhíssimo de informação negativa - ou, para usar a terminologia local, humor, fantasia e mito.
Enquanto debatia esses fenômenos estranhos, o ilhéu às vezes dizia a si mesmo: não vamos entender nunca os seres humanos. Ocasionalmente, ele se tornava tão frustrado que temia uma conjugação involuntária, com todos os riscos que isso acarretava. Agora, porém, havia obtido um progresso real. Lembrava-se de sua satisfação quando contou uma piada pela primeira vez - e todas as crianças riram.
O trabalho com as crianças havia sido a pista, mais uma vez fornecida por ARISTÓTELES. - Há um dito antigo: a criança é o pai do homem. Embora o conceito biológico de "pai" seja estranho a nós dois, nesse contexto a palavra tem um duplo significado...
Assim, ali estava ele, esperando que as crianças lhe possibilitassem compreender os adultos em que mais tarde se metamorfoseavam. Às vezes, elas diziam a verdade. Mas, mesmo quando estavam brincando (outro conceito difícil) e forneciam informações negativas, o ilhéu já era capaz de reconhecer os sinais.
No entanto, havia ocasiões em que nem as crianças, nem os adultos, nem mesmo ARISTÓTELES conheciam a verdade. Parecia existir um espectro contínuo entre a fantasia absoluta e os fatos históricos positivos, sendo que, nesse intervalo, podiam se encontrar todas as graduações possíveis. Numa extremidade desses números estavam Colombo, Leonardo da Vinci, Einstein, Lênin, Newton e Washington, cujas vozes e imagens muitas vezes tinham sido preservadas. No outro extremo, situavam-se Zeus, Alice, King Kong, Gulliver, Siegfried e Merlin, cuja existência do mundo real não teria sido possível. Mas como definir Robin Hood, Tarzan, Cristo, Sherlock Holmes, Ulisses ou Fran-kenstein? Admitindo-se uma certa dose de exagero, era bastante admissível que tivessem sido personagens reais.
O Trono do Elefante pouco havia mudado em três mil anos, mas jamais suportara o peso de um visitante tão estranho. Enquanto o ilhéu olhava para o sul, comparava a coluna de meio quilômetro de largura que se elevava do pico da montanha com os feitos de engenharia que ele vira em outros mundos. Para uma raça tão jovem, aquela era realmente uma façanha. Embora desse a impressão de estar prestes a despenhar-se do céu, já durava quinze séculos.
Não, naturalmente, em sua forma atual. Os primeiros cem quilômetros eram agora uma cidade vertical - ainda ocupada, em alguns de seus pavimentos amplamente espaçados -, e os dezesseis conjuntos de trilhos que a atravessavam haviam muitas vezes transportado um milhão de passageiros diários. Agora, somente dois desses trilhos operavam; dentro de algumas horas, o ilhéu e seus acompanhantes estariam subindo velozmente por aquela imensa coluna filetada, de volta à Cidade Anular que circundava o globo.
O ilhéu reverteu seus olhos para visão telescópica e lentamente vasculhou o zênite. Sim, lá estava ele - difícil de ver de dia, mas facilmente observável à noite, quando os raios solares que passavam pela sombra da Terra ainda explodiam de encontro a ele. A faixa estreita e brilhante que dividia o céu em dois hemisférios era todo um mundo em si mesma, onde meio bilhão de seres humanos haviam optado por uma vida em gravidade zero.
E lá, ao lado da Cidade Anular, via-se a espaçonave que havia transportado o enviado e todos os demais companheiros da colméia pelos abismos interestelares. Naquele instante estava sendo preparada para a partida - sem nenhuma urgência, com vários anos de antecedência, preparando-se para a próxima etapa, de seiscentos anos, de sua viagem. Isso não representaria quase nada para o ilhéu, naturalmente, pois ele não se reconjugaria senão ao fim da viagem, mas, então, talvez tivesse de fazer face ao maior desafio de toda a sua longa carreira. Pela primeira vez, uma sonda estelar havia sido destruída - ou pelo menos silenciada - logo após seu ingresso num sistema solar. Era possível que ela finalmente houvesse estabelecido contato com os misteriosos caçadores da alvorada, que haviam deixado suas marcas em tantos mundos, inexplicavelmente próximos do próprio Começo. Se o ilhéu fosse capaz de sentir reverência, ou mesmo medo, teria sentido as duas coisas, enquanto previa seu futuro, dali a seiscentos anos.
Agora, no entanto, ele estava no cume nevado do Yakkagala, fitando a estrada dos humanos para as estrelas. Chamou as crianças para junto de si (elas sempre entendiam quando ele queria realmente ser obedecido) e apontou para a montanha no sul.
- Vocês sabem perfeitamente - disse ele, com uma exasperação que só em parte era simulada - que o Terraporto Um foi construído dois mil anos depois deste palácio em ruínas. - As crianças sacudiram a cabeça, concordando solenemente. - Nesse caso - perguntou o ilhéu, traçando uma linha do zênite ao topo da montanha -, por que vocês chamam aquela coluna de... Torre de Kalidasa?
Arthur C. Clark
O melhor da literatura para todos os gostos e idades