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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O Casamento / Danielle Stel
O Casamento / Danielle Stel

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O Casamento

 

          

 

            O trânsito fluía a passo de caracol ao longo da Via Rápida de Santa Mônica, e Allegra encostou a cabeça ao banco do Mercedes 300 azul-escuro; a este ritmo, nunca mais chegaria ao seu destino. Não tinha nada de especial para fazer até chegar a casa, mas parecia-lhe sempre um incrível desperdício de tempo estar ali encurralada no meio do trânsito.

            Esticou as longas pernas, suspirou e ligou o rádio. Sorriu quando começou a tocar o último som de Bram Morrison. O cantor era um dos seus clientes na firma de advogados; há mais de um ano que o representava. Allegra tinha muitos clientes importantes. Concluíra o curso de Direito em Yale, há quatro anos, e aos vinte e nove era nova associada da Fisch, Herzog & Freeman, uma das firmas de advogados mais importantes de Los Angeles. O apoio jurídico à gente do mundo do espetáculo sempre fora a sua paixão.

            Havia já algum tempo que Allegra percebera de que queria cursar Direito. Depois de dois anos de férias de Verão em New Haven, na primeira fase da sua estada em Yale, só fugazmente admitira que talvez gostaria de vir a ser atriz, o que não teria surpreendido ninguém da família, mas também não lhes teria agradado. A mãe, Blaire Scott, escrevia e produzia um dos espetáculos de televisão que mais êxito alcançara e que estava há nove anos no ecrã. Era uma comédia, cheia de malícia, mas com alguns momentos sérios e umas pitadas de drama da vida real. Durante sete anos atingira o pico das audiências e valera sete Emmies à autora. O pai, Simon Steinberg, era um ilustre produtor de cinema, responsável por alguns dos filmes mais importantes de Hollywood. Ganhara três Oscar da Academia e uma reputação lendária associada aos êxitos de bilheteira. Por outro lado, ainda mais importante, era uma das raridades de Hollywood, um homem simpático, um cavalheiro, um ser humano verdadeiramente decente. Simon e Blaire constituíam um dos casais mais invulgares e respeitados da indústria cinematográfica. Trabalhavam muito e tinham uma família a sério, à qual dedicavam grande parte do seu tempo. Allegra tinha uma irmã de dezessete anos, Samantha. “Sam”, como era conhecida, estava terminando o ensino secundário, era modelo e, ao contrário de Allegra, queria ser atriz. Só o irmão, Scott, que acabara de ingressar em Stanford, parecia ter escapado por completo ao mundo do espetáculo. Estudava Medicina e sempre quisera ser médico. Hollywood e a sua alegada magia não atraíam Scott Steinberg.

            Com vinte anos, Scott já vira o suficiente do mundo do espetáculo e considerava até que Allegra fizera um disparate ao optar por tal ramo do direito. Scott não queria passar o resto da vida preocupando-se com a bilheteira, as receitas ou as audiências, pretendia especializar-se em medicina desportiva e ser cirurgião ortopédico. Era uma atividade interessante e natural: quando alguém fraturasse um osso, ele tratava-o. Sabia bem a ansiedade por que passara o resto da família com estrelas arrasadas e erráticas, atores excêntricos, gente desonesta que desaparecia de repente e investidores quixotescos. É certo que também haviam pontos altos, que se ganhava bom dinheiro e que todos pareciam adorar o que faziam. A mãe tirava enorme prazer do seu programa televisivo e o pai produzira alguns grandes filmes. Allegra gostava de ser advogada das estrelas e Sam queria ser atriz, mas, quanto a Scott, bem podiam tirar daí o sentido.

            Sorriu com os seus botões, pensando no irmão, ao som dos últimos acordes do disco de Bram. Até Scott ficara impressionado quando lhe dissera que Bram era um dos seus clientes. Era um herói! Allegra nunca divulgava o nome dos seus constituintes, mas Bram falara nela durante um programa especial com Bárbara Walters. Carmen Connors, uma loura explosiva que pretendia ser a nova Marilyn Monroe, também era sua cliente. Tinha vinte e três anos, nascera numa pequena cidade do Oregon e era uma cristã fervorosa. Começara como cantora, entrara em dois filmes seguidos e revelara-se uma atriz sensacional. A CAA falara-lhe na firma e um dos sócios mais velhos apresentara-a a Allegra. Criara-se de imediato uma empatia entre ambas, e agora ela era a menina querida de Allegra, literalmente, às vezes, mas a jovem não se importava.

            Ao contrário de Bram, que estava chegando aos quarenta e trabalhava no mundo da música há cerca de vinte anos, Carmen ainda era relativamente nova em Hollywood e parecia estar sempre afogada em problemas: encrencas com namorados, homens que se apaixonavam por ela e que a moça afirmava mal conhecer, seguidores obcecados, publicitários, cabeleireiros, tablóides, paparazzi e potenciais agentes. Carmen nunca sabia como havia de lidar com eles, e Allegra já estava habituada a atender os seus telefonemas a qualquer hora do dia ou da noite, mas sobretudo a partir das duas da madrugada. Muitas vezes, a jovem beldade era assaltada por terrores noturnos e tinha sempre medo que alguém entrasse em casa à força e lhe fizesse mal. Allegra conseguira controlar, em parte, o seu pavor recorrendo a uma empresa de segurança que vigiava a casa durante a noite, a um alarme extremamente sofisticado e a dois cães de guarda muito agressivos. Eram rottweilers e Carmen tinha medo deles, mas a verdade é que os possíveis assaltantes e seguidores também a assustavam. No entanto, apesar destas medidas, continuava telefonando para Allegra no meio da noite, só para lhe dar conta dos problemas que estava  encontrando, ou às vezes apenas para desabafar. Allegra não se aborrecia; já estava habituada, mas os amigos comentavam que ela era mais uma babá do que uma advogada. Porém, Allegra sabia que isto fazia parte do seu trabalho com celebridades. Vira o que os pais passavam com as estrelas e já nada a surpreendia. Apesar de tudo, adorava a sua profissão, e o mundo do espetáculo agradava-lhe em particular.

            Enquanto esperava que o trânsito avançasse, apertou outro botão do rádio e de súbito pensou em Brandon. Por fim, os automóveis recomeçaram a andar. Às vezes, quando regressava de uma reunião ou de um encontro com um cliente, levava uma hora para percorrer os quinze quilômetros que a separavam de casa, mas também já estava acostumada a isso. Gostava muito de viver em Los Angeles, e era raro aborrecer-se por causa do trânsito. Baixara a capota do carro. Na tarde quente de janeiro, os seus longos cabelos louros brilhavam com os últimos raios de sol. Estava um dia típico do sul da Califórnia, o gênero de tempo de que sentira a falta durante os sete longos invernos que passara em Yale, quando freqüentava a Faculdade de Direito. Depois do ensino secundário em Beverly Hills, a maioria dos seus amigos tinham ido para a UCLA, mas o pai preferira que ela fosse para Harvard. Allegra optara por Yale, embora nunca se tivesse sentido tentada a ficar no Leste depois da licenciatura. Toda a sua vida estava na Califórnia.

            Ao acelerar, pensou em telefonar a Brandon para o escritório, mas depois resolveu esperar até chegar em casa. Às vezes, no caminho, respondia do carro a alguns telefonemas de trabalho, mas nesse dia apetecia-lhe chegar em casa e descontrair-se um pouco antes falar com ele. Tal como o seu próprio dia de trabalho, também o dele era muito agitado, e às vezes piorava para o fim, quando se reunia com clientes que tinha de acompanhar ao tribunal no dia seguinte ou participava em reuniões com outros advogados ou juizes. Brandon era advogado de defesa, litigante, especializado em crimes de colarinho branco, na sua maioria delitos federais que envolviam bancos, desvio de fundos e extorsões. ‘Direito a sério’, como ele dizia, e não o que ela fazia, acrescentava, num tom jovial, mas até Allegra era obrigada a reconhecer que a atividade dele era muito diferente da sua. Também a personalidade dele era muito distinta. Brandon era muito mais tenso, muito mais grave, e tinha uma visão mais intensa da vida. Durante os dois anos de namoro com ele, a família de Allegra acusara Brandon Edwards mais de uma vez de não ter muito sentido de humor. Tratava-se de uma verdadeira falha de caráter para eles, que, na sua maioria, eram capazes de atitudes ousadas.

            No entanto, havia muitas coisas que Allegra apreciava em Brandon, nomeadamente o interesse que ambos nutriam pelo direito e o fato de ele ser firme e digno de confiança. Também lhe agradava saber que tinha uma família. Brandon casara há dez anos, quando ainda estava na faculdade. Fora para Boalt, na Universidade de Berkeley, Joanie, a namorada, engravidara pelo que se vira obrigado a casar com ela, e ainda se ressentia disso. Em certos aspectos, Joanie continuava muito ligada a ele, depois de dez anos de casamento e de dois filhos, e, às vezes, Brandon dizia detestar ainda não ter conseguido divorciar-se dela, que se sentia preso e que lamentava ter sido obrigado a casar de repente por Joanie estar grávida. Tinham duas filhas pequenas. Depois de acabar o curso, Brandon fora trabalhar para uma das firmas de advogados mais conservadoras de São Francisco. Só por acaso é que o haviam transferido para o escritório de Los Angeles, pouco depois de ele e Joanie terem chegado a acordo quanto a uma separação judicial. Conhecera Allegra três semanas depois de chegar à cidade, através de um amigo comum, e há dois anos que saíam juntos. Ela amava-o e adorava as filhas dele. Joanie não gostava de deixá-las vir a Los Angeles, e por isso em geral era Brandon que se deslocava a São Francisco para vê-las. Sempre que podia, Allegra acompanhava-o. O único problema era que, ao fim de dois anos, Joanie ainda não conseguira arranjar emprego e argumentava que a sua ausência de casa seria muito traumática para as filhas. Dependia totalmente de Brandon e continuavam em litígio por causa da casa e do apartamento nos arredores de Tahoe. De fato, em dois anos, pouco fora resolvido, o divórcio ainda não dera entrada no tribunal e os acordos financeiros não estavam concluídos. De vez em quando, Allegra importunava-o, insistindo no fato de ele ser advogado, mas não ter conseguido obrigar a mulher a assinar um contrato. Porém, não queria pressioná-lo. De momento, a situação de ambos teria de ficar como estava, num compasso de espera, e só poderia evoluir quando ele quebrasse todas as amarras com Joanie.

            Pensando em Brandon, virou para Beverly Hills e perguntou a si própria se ele teria vontade de ir jantar fora. Sabia que estava a preparar-se para um julgamento, e era mais do que provável que quisesse ficar trabalhando no escritório até tarde. Mas Allegra não podia se queixar; também passava muitas noites a trabalhar, embora não fosse preparando-se para julgamentos. Os seus clientes eram escritores, produtores, realizadores e atores, e ela fazia-lhes tudo, desde contratos a testamentos, desde negociar acordos até gerir-lhes o dinheiro ou tratar-lhes do divórcio. A componente legal da sua atividade era o que mais lhe interessava, embora reconhecesse que, com clientes famosos, ou pelo menos do mundo do espetáculo, tinha que estar disposta a tratar de todos os aspectos das suas vidas complicadas, e não apenas dos contratos.

            Mas às vezes Brandon não compreendia isso. Aquele meio continuava a ser um mistério para ele, apesar de Allegra ter tentado explicar-lhe várias vezes. Porém, ele dizia que preferia exercer advocacia para ‘gente normal’ e em circunstâncias legais que entendesse como a sala de audiências de um tribunal federal, por exemplo. Esperava vir a ser juiz federal e aos trinta e seis anos já se mostrava razoavelmente ambicioso. O telefone tocou no carro quando Allegra descrevia uma curva. Por instantes, teve esperança que fosse Brandon, mas não, era Alice, a secretária. Trabalhava na firma há quinze anos e era uma verdadeira tábua de salvação para Allegra. Muito sensata e inteligente, tinha um modo apaziguador e maternal de lidar com os clientes mais irascíveis.

            — Olá, Alice, o que há? — perguntou Allegra, sem tirar os olhos da estrada e ajustando o bocal do telefone.

            — A Carmen Connors telefonou agora mesmo. Pensei que quisesse saber. Está muito aborrecida. Vem na capa do Chatter.

             O Chatter era um dos tablóides mais repugnantes do mercado e há vários meses que andava a comer Carmen viva, apesar dos sucessivos avisos e ameaças de Allegra. Mas eles sabiam até onde podiam ir e eram mestres na arte de não ultrapassar os limites. Paravam sempre onde deviam, para não ser processados.

            — O que temos agora? — perguntou Allegra, de sobrolho franzido, aproximando-se rapidamente da pequena casa que os pais tinham ajudado a comprar quando terminara o curso. Já lhes pagara o que devia e adorava a sua casinha nos arredores de Doheny.

            — O artigo fala numa orgia em que ela participou com um dos médicos, o cirurgião plástico, segundo creio.

            A pobre Carmen caíra na asneira de ter saído com ele uma vez. Jantaram no Chasen’s e, segundo o que contara a Allegra, nem sequer houvera sexo, e muito menos uma orgia.

            — Oh, pelo amor de Deus! — exclamou Allegra entre dentes, entrando no jardim da sua casa com um ar de enfado. Tem aí algum exemplar?

            — Compro um quando for para casa. Quer que lho deixe aí?

            — Não tem importância, vejo-o amanhã. Estou em casa. Amanhã telefono para Carmen. Obrigada. Mais alguma coisa?

            — A sua mãe ligou. Queria saber se você podia ir lá jantar na sexta-feira e confirmar que vai ao Globo de Ouro no sábado. Disse que contava com a sua presença.

            — Claro. Sorriu e deixou-se ficar sentada no carro. Ela sabe que vou.

            Tanto o pai como a mãe tinham sido nomeados nesse ano, e Allegra não perderia a cerimônia por nada deste mundo. Convidara Brandon há mais de um mês, antes do Natal.

            — Acho que ela só queria ter a certeza de que você vai.

            — Eu também lhe vou telefonar. É tudo?

            — Sim.

            Eram seis e quinze. Allegra saíra do escritório às cinco e meia, o que era cedo para ela, mas levava trabalho para casa e, se não se encontrasse com Brandon, teria tempo para fazê-lo.

            — Até amanhã, Alice. Boa noite. — disse Allegra, tirando a chave da ignição.

            Pegou na pasta, fechou o carro e entrou  correndo. A casa estava vazia e às escuras. Atirou a pasta para cima do sofá, acendeu as luzes e dirigiu-se para a cozinha.

            À sua frente, a vista da cidade, lá em baixo, era espetacular. Anoitecera e as luzes cintilavam como jóias. Enquanto bebia um copo de água mineral, deu uma vista de olhos na correspondência. Algumas faturas, uma carta de Jessica Farnsworth, uma velha amiga da escola, uma mão-cheia de catálogos, uma série de papelada sem importância e um postal de outra amiga, Nancy Towers, que se encontrava esquiando em St. Moritz. Jogou quase tudo fora, e, enquanto bebia, reparou nos tênis de Brandon, e sorriu; a casa parecia sempre mais animada quando ele lá deixava as suas coisas. Brandon também tinha o seu apartamento, mas passava muito tempo com ela. Gostava da sua companhia e dizia-lhe, mas também deixava bem claro que não estava pronto para assumir qualquer compromisso. O seu casamento fora demasiado redutor e traumático. Receava cometer outro erro e talvez fosse por isso que demorava tanto a divorciar-se de Joanie. Mas Allegra tinha tudo o que desejava. Dissera-o várias vezes à psicóloga e aos pais. E tinha apenas vinte e nove anos. Não sentia pressa de casar.

            Pôs a correspondência de lado e puxou os longos cabelos louros para trás. Ligou a secretária eletrônica e sentou-se num banco de bar, junto da bancada. A cozinha, toda em mármore branco e granito preto, estava impecavelmente limpa e arrumada. O chão era de mosaicos pretos e brancos alternados, como num tabuleiro de xadrez, e Allegra fitou-o enquanto ouvia as mensagens. Como já esperava a primeira era de Carmen, que parecia ter estado a chorar. Disse qualquer coisa incoerente acerca do artigo, que a situação era injusta e que a avó ficara muito incomodada. Nessa tarde, telefonara a Carmen, de Portland. A jovem atriz não sabia se Allegra era de opinião que se movesse um processo, mas pensava que deveriam falar no assunto e pedia-lhe que lhe ligasse assim que chegasse em casa ou que tivesse um momento livre. Nunca lhe passava pela cabeça que Allegra tinha direito aos seus momentos de privacidade. Carmen precisava dela para resolver os seus problemas e só pensava nisso, o que não significava, no entanto, que fosse má pessoa.

            A mãe telefonara outra vez, convidando-a para jantar na sexta-feira, tal como lhe dissera Alice, e lembrando-lhe a cerimônia de atribuição dos Globos de Ouro nesse fim-de-semana. Allegra sorriu ao ouvir a voz da mãe, que parecia verdadeiramente entusiasmada. Talvez fosse porque o pai também fora nomeado, mas, de qualquer modo, disse que Scott vinha de Stanford com Sam e que esperava que Allegra fosse à cerimônia com eles.

            A mensagem seguinte era de um professor de tênis que Allegra andava evitando há algumas semanas. Começara as lições várias vezes, mas não tinha tempo para continuar. Tomou nota do nome dele, para lhe telefonar e, pelo menos, explicar o motivo que a levava a desistir.

            Seguiu-se uma mensagem de um homem que conhecera nas férias. Era atraente e trabalhava para um estúdio importante, mas não estava fazendo jogo limpo. Sorriu ao ouvir aquela voz forte. Ele deixou o nome e disse que esperava que Allegra lhe telefonasse, mas ela não tinha intenção de fazê-lo. Não estava interessada em sair com outro homem, exceto Brandon, que era o terceiro caso amoroso importante na sua vida. O anterior durara quase quatro anos e abrangera o seu último semestre na Faculdade de Direito e os dois primeiros anos como advogada em Los Angeles. Também se licenciara em Yale e era diretor, mas, passados quatro anos, não se comprometera com ela e acabara por ir para Londres. Pedira-lhe que o acompanhasse, mas Allegra estava cheia de clientes na Fisch, Herzog & Freeman nessa fase, e não pôde ir  com ele. Pelo menos, foi o que ela disse. Porém, mesmo que tivesse chegado à conclusão que não deveria largar um bom emprego e segui-lo até ao fim do mundo, a verdade é que ele se recusara a fazer promessas e até a falar do futuro. Roger vivia ‘para o presente, no presente’. Divagara muito sobre o carma, frivolidades e liberdade. E, após dois anos de terapia, Allegra tivera realmente o bom senso de não ir atrás dele para Londres. Ficara em Los Angeles e conhecera Brandon dois meses depois.

            E ainda antes de Roger houvera um professor casado de Yale. Allegra envolvera-se com ele durante o último ano do curso, e fora um caso pródigo em volúpia, entusiasmo e paixão. Nunca conhecera ninguém como ele, e só conseguiram pôr termo à situação quando Tom pediu uma licença sabática e percorreu a pé o Nepal durante um ano. Levou a mulher e o filho pequeno e, quando voltaram, ela estava grávida outra vez. Nessa altura Allegra já andava com Roger, mas criava-se sempre certa tensão quando os caminhos de ambos se cruzavam. Pouco depois, sentira-se aliviada quando ele fora dar aulas para Northwestern. Tom desejara-a ardentemente, mas nunca conseguira traduzir o seu desejo em qualquer espécie de projetos claros para o futuro. Tudo o que ele via, quando olhava para a longa estrada que tinha à sua frente, era Mithra, a mulher, e o filho, Euclid. Agora era pouco mais do que uma recordação no passado de Allegra, cuja psicóloga só falava dele para lhe lembrar que a relação de ambos nunca incluíra promessas de futuro.

            — Não sei ao certo se deveria incluí-las, tendo eu vinte e nove anos — respondera ela mais do que uma vez. A verdade é que eu nunca quis casar.

            — Não é essa a questão, Allegra retorquia sempre a Drª. Green num tom firme.

            A terapeuta era de Nova Iorque e tinha uns grandes olhos negros, que às vezes perseguiam Allegra depois das sessões. Já há quatro anos que se encontravam, com algumas interrupções pelo meio. Allegra sentia-se bem com a vida, embora estivesse sujeita a muitas pressões, como as expectativas da família e da firma de advogados e o grande volume de trabalho.

            — Alguém já quis casar com você? —  perguntara a Drª. Green mais do que uma vez, apesar de Allegra afirmar sempre que a questão não tinha importância.

            — O que interessa isso, se eu não quero casar?

            — Por quê? Porque é que não quer um homem que deseje casar com você, Allegra? O que se passa?

            Ela não dava tréguas.

            — Isso é uma estupidez! O Roger teria casado comigo, se tivesse ido com ele para Londres, mas eu não quis. Tinha muito que fazer aqui.

            — O que a leva a pensar que ele teria casado? —  A Drª. Green parecia um pequeno furão, metia-se em todos os cantos e farejava todas as pistas, todas as partículas de poeira aparentemente inofensivas, ou insetos. Ele alguma vez lhe disse?

            — Nunca falamos no assunto.

            — Isso não lhe dá que pensar Allegra?

            — Que importa? Já foi há dois anos — respondia ela, irritada. Detestava quando a Dr.ª Green a pressionava demasiado com perguntas. Isso é um disparate!

            Ela era muito jovem para casar, e nesse momento estava demasiado absorvida pela sua carreira para pensar em casamento.

            — E com Brandon? —  A Dr.ª Green adorava fazer dele cavalo de batalha. E Allegra detestava falar-lhe acerca do namorado. A psicóloga não compreendia as motivações dele nem sabia até que ponto ficara traumatizado por se casar quando a mulher engravidara. Quando é que ele avança?

            — Quando resolverem a questão dos bens e do dinheiro explicava sempre Allegra com toda a sensatez, falando como uma advogada.

            — Porque não dividem eles os encargos financeiros e se divorciam? Depois podem passar o tempo que quiserem  resolvendo a questão dos bens...

            — Por quê? Qual é a vantagem da divisão? Não é obrigatório que nos casemos.

            — Pois não. Mas ele quer? E você, Allegra? Já alguma vez falaram nisso?

            — Não precisamos falar, compreendemo-nos perfeitamente um ao outro. Estamos ambos ocupados, temos ambos carreiras importantes e, afinal, só estamos juntos há dois anos!

            — Há pessoas que se casam muito mais depressa do que isso, ou muito mais devagar. A questão é saber se você se voltou a envolver com um homem que não quer assumir um compromisso. Os olhos castanhos e vivos da Dr.ª Green fitavam os olhos verdes de Allegra.

            Claro que não a respondia, tentando evitar o olhar penetrante da sua interlocutora, mas sem êxito. Ainda não chegou o momento.

            Então a Dr.ª Green fazia um aceno de cabeça e ficava à espera do que Allegra diria a seguir.

            As trocas de palavras eram quase sempre as mesmas. Conheciam-se há dois anos, mas Allegra já não tinha vinte e sete nem vinte e oito anos, mas sim vinte e nove, e Brandon separara-se há dois anos. As filhas, Nicole e Stephanie, tinham onze e nove anos, e Joanie ainda não conseguira arranjar emprego. Continuava dependente de Brandon para tudo o que precisava. E, tal como ele, Allegra explicava a situação pelo fato de Joanie não ter experiência profissional. Desistira da faculdade para ter a Nicky.

            De fato, a voz de Nicole foi a que se seguiu na secretária eletrônica de Allegra. A menina esperava que ela fosse com o pai a São Francisco no fim-de-semana. Disse que tinha saudades dela, e esperava que estivesse tudo  correndo bem e que conseguissem ter tempo para ir patinar. ‘E, oh!... Está bem... Adoro o casaco que me mandou no Natal... Ia te escrever um bilhete, mas esqueci-me e a mamãe disse... ’ Seguiu-se um silêncio embaraçoso quando a menina de onze anos tentou recuperar a compostura, ‘dou este fim-de-semana. Adeus... Gosto muito de você... Oh!... Sou a Nicky. Adeus.’ A garota desligou e Allegra ainda sorria quando ouviu a mensagem de Brandon. Ficaria trabalhando até tarde e ainda  estava no escritório quando lhe telefonou. A mensagem dele era a última.

            Allegra desligou o aparelho, acabou de beber a água, jogou a garrafa no lixo e pegou no telefone para ligar para o escritório dele.

            Estava sentada no banco da cozinha, com as pernas compridas enroscadas à volta dele enquanto fazia a ligação. Era alta, magra e bela, mas não tinha consciência disso. Vivia há muito tempo num mundo de gente com um aspecto extraordinário e na sua vida eram mais importantes as coisas do espírito do que as da beleza do rosto e do corpo. Nunca pensava nisso, o que por vezes a tornava ainda mais atraente. Percebia-se facilmente que não dava importância à aparência, que se concentrava por completo nas pessoas que a rodeavam.

            Brandon atendeu ao telefone particular ao segundo toque e mostrou-se atarefado e distraído. Era fácil perceber que estava  trabalhando.

            — Brandon Edwards — disse.

            Allegra sorriu. Ele tinha uma voz profunda e sensual e ela gostava particularmente do seu tom. Brandon era alto, louro e com o cabelo bem aparado, como um aluno do liceu. Talvez fosse um pouco conservador na maneira de vestir, mas Allegra não se importava; havia nele qualquer coisa de saudável e de muito honesto.

            — Olá, recebi a sua mensagem — disse num tom enigmático, mas ele reconheceu-a logo. Como foi o seu dia?

            — Interminável respondeu, esgotado.

            Allegra não lhe falou no seu. Ele interessava-se muito pouco pela empresa dela e agia sempre como se considerasse que o seu ramo do direito era mais absurdo do que legal.

            — Tenho um julgamento para a semana e estou perdendo um tempo dos diabos com o trabalho de investigação. Terei muita sorte se conseguir sair daqui antes da meia-noite.

            Brandon parecia mesmo exausto.

            — Quer que te leve alguma coisa para comer? — perguntou ela com um sorrisinho. Podia aparecer aí com uma pizza.

            — Prefiro esperar. Tenho aqui um sanduíche e não quero interromper o trabalho. Compro qualquer coisa quando acabar, se não for muito tarde e você ainda me quiser receber...

            Allegra sentiu o calor na voz dele e respondeu com um sorriso.

            — Eu te quero sempre. Vem à hora que te apetecer. Também trouxe trabalho para casa. Guardava na pasta os documentos para a próxima tournée de concertos de Bram Morrison. Tenho muito com que me entreter.

            — Ótimo. Até logo.

            Foi então que ela se lembrou.

            — Oh! A propósito, Brandon, hoje recebi uma chamada da Nicky. Deve ter confundido as datas, porque julgou que nós íamos a São Francisco. Isso é para a próxima semana, não é?

            No fim-de-semana seguinte, Brandon acompanhava-a a festa dos Globos de Ouro, e no outro iam a São Francisco ver as crianças.

            —Por sinal... Eu... Eu devo ter-lhe falado nisso... Pensei que faria sentido lá ir antes do início do julgamento. Depois não poderei ausentar-me durante uns tempos, ou pelo menos não o devo fazer.

            Brandon parecia desajeitado ao tentar explicar a situação e Allegra franziu a sobrancelha, apreciando a vista da janela da cozinha.

            — Mas não podemos ir esta semana! O papai e a mamãe foram nomeados, além de três dos meus clientes. Entre estes figurava Carmen Connors. Esqueceu-se ?

            Allegra nem podia acreditar que Brandon tivesse mudado de idéias. Ela andava  falando no assunto desde o Natal!...

            — Não, mas julguei... Agora não tenho tempo para conversar sobre esse assunto, Allie, senão fico aqui toda a noite. Porque não falamos disso mais tarde?

            A resposta dele não a deixou descansada. Por instantes, ficou pensando, antes de telefonar à mãe.

            Blaire passava a semana inteira gravando o seu programa, como era habitual, e à noite estava cansada, depois de horas e horas em palco, mas ficava sempre satisfeita ao saber da filha mais velha. Viam-se com freqüência, embora menos nos últimos tempos, desde que Allegra andava com Brandon.

            Blaire reiterou o convite para o jantar de sexta-feira e disse-lhe que o irmão, Scott, também estaria lá. A vinda dele a casa constituíam momentos importantes para a família, e não havia nada de que Blaire gostasse mais que de um serão na companhia de todos os filhos.

            — Ele também vai aos Globos de Ouro? — perguntou Allegra, que gostava sempre de vê-lo.

            — Fica em casa com a Sam. Diz que estas cerimônias são mais divertidas na televisão. Pelo menos, vê-se todas as pessoas que quer, em vez de ser empurrado pela multidão e não conseguir descobrir atrás de quem correm os repórteres.

            — Talvez tenha razão.

            Allegra riu com a descrição. Sabia que Sam gostaria muito de ir, mas os pais não queriam expô-la, ou pelo menos a mantinham o mais longe possível da avidez da imprensa. Muito menos ela iria ao Globo de Ouro ou ao Oscar da Academia. Todas as jovens estrelas de Hollywood lá estariam, assim como os repórteres. Os pais só tinham aceitado que fosse modelo porque ninguém sabia quem ela era quando a via nas fotografias. Desfilava com o nome de Samantha Scott, o apelido de solteira da mãe, e, apesar de esta ser muito conhecida, Scott passava mais despercebido que Steinberg. Toda a gente em Hollywood sabia quem era Simon Steinberg e teria feito tudo para tirar fotografias à filha.

            — De qualquer modo, lá estarei garantiu Allegra. Já não sabia ao certo se Brandon iria, por isso não falou no assunto à mãe, porém Blaire perguntou-lhe. Não era segredo que Brandon não era das pessoas de quem Blaire mais gostava, nem Simon. Preocupava-os que ele saísse com a filha há dois anos e ainda não se tivesse divorciado da mulher.

            — O príncipe Brandon também vem? — perguntou Blaire com uma irritação óbvia na voz.

            Allegra hesitou. Não queria discutir com a mãe, mas também não gostara do que ela dissera, nem do seu tom.

            — Ainda não tenho a certeza — respondeu em voz baixa, que, no entanto, pareceu muito alta à mãe. Estava sempre o defendendo, e não devia fazê-lo, pelo menos perante Blaire. Está preparando-se para um julgamento e talvez tenha que trabalhar este fim-de-semana.

            Em sua opinião, não era da conta da mãe que ele fosse ver as filhas a São Francisco.

            — Não acha que podia interromper o trabalho por uma noite? — perguntou Blaire, cética, e o seu tom de voz teve o condão de exasperar Allegra.

            — Porque não deixa pra lá, mamãe? Tenho a certeza que ele fará o possível e, se puder, vai.

            — Talvez seja melhor pedir a outra pessoa que te acompanhe. Não há motivo para que vá sozinha. Assim você não se diverte...

            Blaire ficava aborrecida sempre que Brandon deixava Allegra só quando tinha outros planos, trabalho a mais ou disposição a menos. Ela fazia sempre o que era mais conveniente para ele, aceitava a situação com desportivismo, e Blaire não percebia por que.

            — Eu divirto-me de qualquer maneira — respondeu Allegra tranquilamente. Só quero lá estar quando você e o pai receberem os prêmios acrescentou, com orgulho.

            — Não diga isso, que dá azar — replicou Blaire, supersticiosa.

            Mas havia poucas coisas que pudessem dar azar a Blaire Scott e a Simon Steinberg. Ambos já tinham ganhado vários Globos de Ouro, o que não só lhes dava prestígio como era empolgante. Além disso, nos últimos anos, a atribuição dos Globos de Ouro prenunciava muitas vezes o que a Academia faria em Abril. Era uma noite muito importante em Hollywood e os Steinberg estavam entusiasmados.

            — Você vai ganhar um, tenho a certeza. Ganha sempre! — O Globo de Ouro era um troféu invulgar, porque tanto era atribuído em televisão como em cinema, e por isso qualquer dos membros do casal Steinberg o podia ganhar, e isso já acontecera várias vezes. Allegra sentia-se muito orgulhosa dos pais.

            — Deixa os elogios — disse a mãe, sorrindo, também orgulhosa da filha.

            Allegra era uma moça formidável. Entre ela e Blaire havia uma ligação especial, que sempre as mantivera muito unidas.

            — E na sexta-feira? Vem jantar?

            — Amanhã eu confirmo, se não se importa. Queria falar dos planos de Brandon com ele e ver o que o namorado pretendia fazer acerca de São Francisco. Se ele ficasse, Allegra gostaria que fosse jantar com ela na casa dos pais, mas concluiu que seria mais fácil negociar tudo de uma vez e adiou a conversa para a manhã seguinte. Passaram alguns minutos  falando de Scott, de Sam e do pai. Depois Blaire explicou-lhe que resolvera inserir uma nova personagem no programa e que a idéia fora muito bem recebida pela estação de televisão. Aos cinqüenta e quatro anos, Blaire ainda era muito bela e cheia de idéias novas e empolgantes. Adorava o que fazia e produzira outro espetáculo antes deste na mesma estação. Nos últimos nove anos, alcançara um êxito estrondoso com o seu programa atual, Buddies, mas os níveis de audiência tinham oscilado um pouco nesse ano, e ninguém duvidava de que os Globos de Ouro dariam uma ajuda. Desta vez Blaire queria mesmo ganhá-lo.

            Blaire Scott era alta e magra como Allegra e tinha um corpo de modelo. O cabelo era ruivo natural, mas há muito que adquirira um tom louro-morango que passava quase sem a ajuda de tinta. Há um tempo fizera uma operação nos olhos e mandara esticar a pele do pescoço há uns anos, mas nunca se submetera a um lifting ao rosto. Era invejada por todas as suas amigas e, ao vê-la envelhecer com tanta graciosidade, Allegra sentia-se esperançada no futuro. ‘O segredo está em não exagerar’, dizia ela às filhas com toda a naturalidade, falando de cirurgia plástica, mas Allegra apostava que a mãe nunca o faria. Considerava que era uma perda de tempo contrariar a natureza. ‘Esperem alguns anos e pensarão de maneira diferente’, afirmava Blaire com um ar sábio. Estava realmente convicta do que dizia, mas por fim, aos quarenta e três anos, o olhar do público obrigara-a a contrariar os seus planos e a fazer uma operação nos olhos e, aos cinqüenta, no pescoço E a verdade é que não parecia ter mais de quarenta e cinco. ‘Fica tudo estragado quando os outros sabem a nossa idade’, gracejava ela às vezes, embora não desejasse verdadeiramente esconder a idade, mas apenas manter-se atraente aos olhos de Simon. Aos sessenta anos, o marido continuava a ser o homem encantador que sempre fora. Quanto muito, afirmava Blaire, estava ainda melhor do que quando se casara.

            — Está mentindo — dizia ele, sorrindo sempre, com um ar triunfante, quando ouvia estas palavras.

            Allegra adorava estar com os pais. Eram pessoas afáveis, inteligentes e felizes, e espalhavam o bem-estar à sua volta.

            Eu quero um homem como ele disse uma vez à Dr.ª Green, embora com receio que a psicóloga invocasse Freud, mas esta não o fez.

            — Eu diria que é uma boa decisão, avaliando pelo que me contou do casamento dos seus pais. Acha que conseguiria conquistar um homem como ele?  — perguntou-lhe a Dr.ª Green de chofre.

            — Claro que sim — respondeu Allegra prontamente, mas ambas sabiam que não falava a sério.

            Allegra prometeu telefonar à mãe a dizer-lhe o que resolvera acerca do jantar de sexta-feira logo que soubesse quais eram os seus planos. Depois lembrou-se de falar com Nicole, mas mudou de idéia; talvez Joanie não gostasse. Foi buscar um iogurte já encetado na geladeira, começou a comê-lo e telefonou para Carmen. Esta estava completamente histérica, como acontecia sempre que surgia um novo artigo a seu respeito nos tablóides. No entanto, desta vez Allegra foi obrigada a concordar que a notícia era estúpida. Afirmava-se que ela participara numa orgia em Las Vegas com o seu cirurgião plástico. Este ter-lhe-ia dado um novo rosto, um novo nariz, um novo queixo e teria feito implantes mamários e lipoaspiração.

            — Como é que eu podia ter feito tudo isso? — perguntou ela, com um misto de surpresa e de ingenuidade, e, como sempre, escandalizada por verificar até que ponto a imprensa estava disposta a mentir a seu respeito.

            Como sucedia com todas as celebridades, as pessoas afirmavam que haviam estado na escola com ela, que eram as suas melhores amigas, que tinham viajado na sua companhia e, evidentemente, uma legião de homens asseguravam que tinham dormido com ela. Há pouco tempo, duas mulheres tinham afirmado o mesmo, o que deixara Carmen lavada em lágrimas. Parecia-lhe muito injusto que as pessoas estivessem tão empenhadas em inventar histórias a seu respeito.

            — É o preço da fama — recordava-lhe sempre Allegra com doçura, pensando que era difícil acreditar que tivesse apenas mais seis anos do que Carmen.

            A jovem estrela parecia tão ingênua em alguns aspectos, tão inconsciente do mal que espreitava em toda a parte e tão admirada com o aproveitamento jornalístico. Continuava a achar que todos eram seus amigos e que ninguém pretendia magoá-la Exceto às duas da madrugada, quando acreditava facilmente que metade de Los Angeles estava à porta, pronta a entrar-lhe em casa à força e a violá-la Por fim, Allegra contratara uma governanta interna e aconselhara Carmen a deixar uma luz acesa junto à porta do seu quarto. Tinha medo da escuridão e assustava-se por não ver nada lá fora.

            — Ouça, você não tem idade para já ter feito tudo isso — disse Allegra, sossegando-a mais uma vez quanto ao artigo do Chatter.

            — Acha que mais alguém chegará a essa conclusão? Eu limitei-me a tirar uma verruga da testa — redargüiu, desconsolada, assoando-se outra vez e pensando em tudo aquilo que a avó lhe dissera quando telefonara de Portland. A velhota acusara-a de ter coberto a família de vergonha e dissera-lhe que Deus nunca lhe perdoaria.

            — É claro que sim. Leu a página seguinte.

            — Não, por quê? — perguntou Carmen, esticando o corpo perfeito no sofá, sem largar o telefone.

            — Talvez na página seguinte digam que uma mulher deu à luz quíntuplos em Marte E, duas páginas mais à frente, que uma mulher deu à luz um macaco num disco voador. Se acreditarem nessas tretas, o que importa que digam que você fez uma remodelagem no rosto aos vinte e três anos? Mande-os à fava, Carmen, tem que endurecer um pouco, caso contrário eles te deixarão doida.

            — Já estão — retorquiu ela, desesperada. Falaram durante cerca de uma hora e por fim Allegra desligou e foi tomar uma ducha. Estava secando o cabelo quando Brandon chegou.

            Enquanto ele subia a rampa, Allegra apareceu à porta, de roupão turco, com o cabelo molhado a cair-lhe pelas costas e sem maquiagem. De certo modo, era ainda mais bela quando não estava arrumada, e Brandon gostava do seu aspecto natural, fresco e sensual.

            — Uau! — exclamou, beijando-a. Entrou atrás dela e Allegra fechou a porta à chave. Eram dez da noite. Ele tinha um ar exausto; deixou cair a pasta no hall e abraçou-a. Valeu a pena trabalhar até tarde — disse Brandon, beijando-a e passando a mão por dentro do robe turco. Allegra estava nua por baixo.

            — Está com fome? — perguntou ela no intervalo de dois beijos.

            — Estou morrendo de fome... — respondeu Brandon, referindo-se a ela e não ao jantar.

            — O que te apetece? —  perguntou a jovem, rindo-se, enroscando as pernas nas dele e despindo-lhe o casaco.

            — Peito, creio eu... Ou talvez perna respondeu ele com voz rouca.

            Beijou-a de novo e um minuto depois estavam sentados na cama dela. Enquanto desabotoava a camisa, Brandon fitava-a com um olhar de desejo. Parecia cansado, depois de um longo dia de trabalho, mas nem por isso estava mal disposto. Nem sequer queria falar com ela; apetecia-lhe apenas devorar o seu corpo.

            Allegra ajudou-o a despir a camisa e ele tirou as cuecas. Pouco depois estavam ambos nus, deitados na cama e a fazer amor, envolvidos na luz suave que Allegra deixara acesa. Brandon sentiu-se completamente inebriado por ela. Uma hora mais tarde, quando já estavam saciados e se preparava para dormir, sentiu-o levantar-se e despertou.

            — Aonde vai? —  perguntou Allegra, virando-se e abrindo os olhos para admirar o esplendor do seu corpo, alto, esguio e dourado. Estavam bem um para o outro e eram tão parecidos que por vezes algumas pessoas julgavam tratar-se de irmão e irmã.

            — É tarde — respondeu ele em tom de desculpa, apanhando lentamente as roupas do chão.

            —  Vai para casa?

            Allegra ficou admirada e sentou-se na cama, olhando para ele. Brandon mostrou-se atrapalhado quando ela lhe fez a pergunta. Nem sequer haviam falado um com o outro, só tinham feito amor, e Allegra não queria que ele fosse embora.

            — Julguei... Amanhã tenho de sair cedo e não queria te acordar.

            Parecia pouco à vontade, ansioso por ir embora. Fazia aquilo muitas vezes.

            — E o que importa que tenha que levantar cedo? Eu também. —  Allegra mostrou-se ofendida com o seu abandono. Tem aqui camisas lavadas. Eu também preciso de me levantar cedo. É tão agradável dormirmos juntos...

            Era agradável e Allegra sabia que Brandon também gostava, mas também sabia que às vezes ele preferia voltar para o seu apartamento. Gostava do seu espaço próprio, das suas coisas; nos dois últimos anos, dissera-lhe várias vezes que lhe agradava acordar na sua própria cama, apesar de ser raro fazerem amor na casa dele. Vinha sempre para ali, para casa dela, mas, ao mesmo tempo, gostava de voltar para a dele. Esta atitude levava-a a sentir-se usada, e dispensada, e era particularmente penoso o sentimento de solidão que a assaltava depois de Brandon sair e ela ficar sozinha na sua própria casa. Segundo afirmou à psicóloga, sentia-se abandonada. Porém, não queria pedir-lhe fosse o que fosse, nem forçá-lo a ficar, se ele não quisesse. Estava apenas muito desiludida.

            — Gostaria que ficasse Brandon —  disse em voz baixa, mas não acrescentou mais nada quando ele foi tomar ducha e voltou para a cama.

            Para Brandon, era mais fácil ficar do que discutir.

            Nessa noite, quando estavam deitados lado a lado, Allegra olhou para ele e sorriu. Talvez houvesse coisas a aperfeiçoar na relação de ambos, como o divórcio dele e a sua preferência por dormir só, mas não lhe restavam dúvidas de que o amava.

            Obrigada por ficar disse baixinho, abraçada a ele. Brandon tocou-lhe ao de leve na face e beijou-a. Pouco depois começou a ressonar.

 

            Na manhã seguinte, Allegra levantou-se antes de o despertador tocar, às seis e quinze. Fora a hora que Brandon determinara. Este se levantou e foi lavar os dentes e barbear-se, enquanto Allegra, nua, foi para a cozinha fazer café.

            Às seis e quarenta e cinco Brandon estava sentado à mesa, completamente vestido. Allegra pôs-lhe à frente dois pãezinhos e uma xícara de café fumegante.

            — Que belo serviço tem este restaurante! — exclamou ele, satisfeito. E gosto muito da farda das empregadas... acrescentou, admirando o corpo de Allegra quando ela, ainda nua, se sentou do outro lado da mesa, na sua frente.

            — Você também está com um ótimo aspecto —  disse ela, admirando-lhe o terno cinzento-escuro.

            Brandon comprava tudo o que vestia nos Brooks Brothers. De vez em quando, ela tentava levá-lo a um estabelecimento Armani ou Rodeo Drive, na esperança de modernizá-lo um pouco, mas esse não era o seu tipo. Brandon era cem por cento Wall Street.

            — Eu diria que estás lindo para esta hora da manhã. —  Allegra sorriu no meio de um bocejo e serviu-se de café. Só precisava estar no escritório às nove e meia. A propósito, o que vai fazer esta noite?

            Fora convidada para uma estréia e, como Brandon tinha o julgamento para preparar, não sabia se poderia acompanhá-la. Duvidava, e também não desejava ir.

            — Tenho que trabalhar. Acabou-se a brincadeira. Disse aos outros tipos que ficaria por lá até à meia-noite respondeu ele, quase em pânico ao lembrar-se de tudo o que tinha para fazer.

            A preparação de um julgamento era sempre assim, e por isso é que Allegra gostava que a sua firma tivesse uma equipE de litigantes, o que a dispensava de todo o trabalho deste gênero. Competia-lhe apenas colaborar com eles e fornecer-lhes informações. De certo modo, o que fazia era mais simples. Era uma atividade criativa, à sua maneira, mas não implicava as exigências brutais que o trabalho de defesa ao nível federal impunha a Brandon.

            — Quer vir para cá quando acabar? — perguntou, tentando não parecer suplicante. Gostaria que ele fosse para casa ao seu encontro, o que o jovem nem sempre estava disposto a fazer, e ela não o queria pressionar.

            — Adoraria —  respondeu Brandon, pesaroso, mas não posso. Quando acabar, estarei extenuado. Tenho de ir a casa.

            — Os meus pais convidaram-nos para jantar na sexta-feira —  disse ela; sabia que a mãe também acabaria convidando-o, só para agradar à filha, mesmo que não gostasse dele.

            — Na sexta-feira à noite vou ver minhas filhas —  respondeu Brandon com ar despreocupado, acabando de comer um dos pãezinhos. Já te tinha dito.

            — Julguei que não falava sério —  replicou ela, admirada. E o Globo de Ouro? Havia esperança no olhar de Allegra. Eles são importantes!...

            Eram para ela, mas não para Brandon.

            — Também a Stephanie e a Nicky são importantes. Tenho de ir vê-las antes do julgamento respondeu ele com firmeza.

            — Brandon, há meses que te falei no Globo de Ouro. Eles significam muito para mim e para os meus pais. E a Carmen também foi nomeada. Não posso esquecer tudo isto para ir a São Francisco objetou, tentando aparentar serenidade. Eram sete da manhã.

            — Compreendo que não possa ir. Não estava esperando que fosse —  disse ele, perfeitamente calmo.

            — Mas estou eu esperava que você viesse comigo — insistiu ela, com uma ponta de irritação na voz, apesar dos seus esforços. Quero que você vá!

            — Essa expectativa não é razoável, Allegra. Já te disse que não posso, expliquei-te o motivo. Não vejo vantagem em estarmos a repetir o assunto. Por quê?

            — Porque é muito importante para mim! Ganhou fôlego, tentando não se zangar com ele. Tinha de haver uma maneira de resolver o problema a contento de todos. Olha, porque não vai à entrega dos prêmios comigo e vamos os dois a São Francisco no domingo? Que tal te parece?

            Allegra parecia totalmente vitoriosa, entusiasmada por haver encontrado uma solução racional, mas ele abanou a cabeça e bebeu um gole de café antes de retrucar.

            — Esse plano não resolve, Allie, desculpe. Preciso de mais de um dia para estar com elas. Não posso fazer isso.

            — Por quê?

            Sentiu que ia desatar a chorar e tentou controlar-se.

            — Porque elas precisam de mais tempo, e, francamente, eu também preciso falar com a Joanie acerca do apartamento de Squaw. Ela quer vendê-lo.

            — Isso é ridículo! —  explodiu Allegra, perdendo, por fim, o controle. Podem tratar do assunto pelo telefone. Pelo amor de Deus, Brandon, não tem feito mais nada que não seja falar com ela do apartamento, da casa, do carpete, do carro e do cão nos últimos dois anos! Esta cerimônia dos prêmios é importante para nós! Allegra incluía a sua família, mas Brandon não se deixou comover. Para ele, a situação tinha a ver com a sua própria família, que era constituída pela ex-mulher e as duas filhas. Não vou desistir de você a favor da Joanie! — acrescentou ela abruptamente.

            — Pois não. Brandon levantou-se, sorrindo, sem querer deixar-se influenciar por ela e mostrando-o claramente. E a Stephanie e a Nicky?

            — Elas compreendem, se explicar.

            — Duvido. E, de qualquer modo, não se trata de uma opção.

            Brandon fitou-a com firmeza e Allegra encarou-o, incapaz de acreditar que ele a deixaria para ir a São Francisco.

            — Quando volta? — perguntou, consternada por dentro e muito contrariada.

            Mais uma vez, sentia-se abandonada e um pouco assustada, mas sabia que não podia ceder a estes sentimentos. Brandon ia ver as filhas em São Francisco, não era propriamente sua intenção desiludi-la. Acontecia, ponto final! No entanto, porque se sentia tão mal com a decisão dele?

            Allegra não conseguiu perceber a resposta de Brandon, nem sequer concluir se devia ficar furiosa ou triste por ele não a acompanhar à cerimônia dos Globos de Ouro. Seria assim tão importante? Teria o direito de fazer tais exigências?

            E por que motivo é que as reações dele eram sempre tão confusas quando estavam em causa as necessidades dela? Seria, como afirmava a Dr.ª Green, porque não queria admitir para si própria que ele se comportava de forma errada? Estaria rejeitando-a, ou apenas fazendo o que tinha que fazer? E porque é que nunca conseguia responder a estas perguntas?

            — Volto, como sempre, no último avião de domingo à noite. Chego às dez e quinze. Posso estar aqui por volta das onze assegurou ele para acalmá-la.

            Foi então que Allegra se lembrou que não estaria em Los Angeles.

            — Esqueci-me de te dizer que vou para Nova Iorque no domingo à noite. Fico lá toda a semana, até sexta-feira.

            — Então também não poderia ir comigo a São Francisco — replicou ele, descontraído.

            — Podia partir de lá, se quisesse. Se fôssemos no domingo.

            — Isso é ridículo! — exclamou ele, ignorando o plano dela e pegando na pasta. Você tem o seu trabalho, Allie, e eu tenho o meu, e às vezes basta que nos comportemos como pessoas adultas!

            De súbito, esboçou um sorriso melancólico. Nesse momento, ambos se aperceberam de que não se veriam durante dez dias, até ao outro fim-de-semana.

            — Quer aparecer esta noite e ficar aqui, já que vou estar tanto tempo sem te ver?

            Allegra desejava que ele o fizesse, mas, como era habitual, Brandon colou-se ao seu plano original. Era raro alterá-lo.

            — Não posso, sério. Quando acabarmos, estarei demasiado cansado. Não seria muito divertido, e não vale a pena eu vir  só para dormir, não acha?

            Mas era precisamente neste ponto que ambos discordavam.

            — É claro que vale! Não tem obrigação de me distrair. Dizendo isto, Allegra pôs-se na ponta dos pés, passou-lhe os braços pelo pescoço e beijou-o.

            — Te vejo na próxima semana, querida  — afirmou ele friamente, depois de beijá-la. Telefono esta noite e amanhã antes de ir para São Francisco

            — Quer ir jantar na casa de mamãe na sexta-feira, antes de partir? —  perguntou ela, furiosa consigo própria por estar suplicando. Era exatamente o que sabia que não devia fazer, mas não conseguiu refrear-se. Desejava estar com ele.

            — O mais provável era perder o avião, como aconteceu da última vez, e depois as meninas ficam aborrecidas.

            — As meninas? —  perguntou ela, erguendo a sobrancelha e esforçando-se por não disparatar. Ou a Joanie?

            — Ora, Allie, não seja má. Bem sabe que não posso. Eu tenho um julgamento, e você de ir  à Nova Iorque, eu tenho duas filhas em São Francisco. Ambos temos as nossas obrigações. Porque não fazemos o que temos que fazer e nos encontramos depois, descontraídos?

            Ele falava de modo que tudo parecesse razoável, mas havia uma parte de Allegra que não aceitava as coisas assim, a mesma parte que ficava desiludida quando ele não estava presente, como sucederia na cerimônia da entrega dos prêmios, ou quando ia para casa depois de fazerem amor e dormia sozinho. Pelo menos, passara a última noite com ela, e Allegra lembrou-se que devia estar grata por isso e não o aborrecer mais com o fim-de-semana.

            — Amo você —  disse-lhe, quando ele a beijou à porta, recuando para que ninguém a visse nua.

            — Eu também — respondeu ele, sorrindo. Divirta-se em Nova Iorque. E não esqueça de levar roupa quente. Li no Times de hoje que irá nevar.

            — Ótimo!

            Allegra tinha um ar desolado ao vê-lo afastar-se e acenou-lhe quando ele entrou no carro. Fechou a porta e foi espreitá-lo da janela do quarto até ele descer a rampa em marcha atrás. Sentiu-se mal ao vê-lo partir. Havia qualquer coisa que não estava bem, mas não sabia o quê. Seria o fato de ele não alterar os seus planos, ou de ir ver outra vez Joanie, com as filhas, ou seria apenas porque era obrigada a ir sozinha à cerimônia dos Globos de Ouro e a explicar-se aos pais? Talvez fosse por saber que não o veria durante dez dias... Tudo isto lhe criava um sentimento de infelicidade.

            Foi para o banheiro e abriu o chuveiro. Ficou ali durante muito tempo, com a água a escorrer pelo rosto, pensando nele e perguntando a si própria se Brandon se modificaria.

            Ou continuaria a preferir dormir sozinho, a achar que era muito incômodo aparecer depois do trabalho, mantendo-se casado com Joanie eternamente? Deixou que as lágrimas se misturassem com a água quente e disse com os seus botões que era um disparate aborrecer-se. Não conseguiu encontrar respostas para as suas questões.

            Estava exausta quando saiu da ducha, meia hora depois. Talvez Brandon já tivesse chegado ao escritório, mas parecia-lhe tão estranho que ele ainda estivesse na cidade, que passasse dois dias sem o ver. E, no entanto, quando tentava explicar-lhe sentimentos como este, quando lhe dizia que precisava da sua companhia ou que queria estar com ele, Brandon parecia não a entender.

            — Porque lhe parece que isso acontece? —  perguntava-lhe sempre a Dr.ª Green.

            — Como vou saber? —  retrucara Allegra mais de uma vez.

            — Acha que se deve a falta de empenho da parte dele? —  insistia, em geral, a Dr.ª Green. Talvez não se importe tanto com você como você com ele... Ou talvez não seja capaz de assumir o tipo de compromisso que você pretende —  insinuava com subtileza, insistindo num tema familiar que enervava Allegra.

            — Porque ela dava sempre a entender que os homens da vida de Allegra se entregavam pouco? Por que motivo este era um tema recorrente e porque é que continuava a dizer que se tratava de um padrão. Allegra ficava mesmo aborrecida.

            Jogou fora o resto dos pãezinhos de mirtilo. Brandon comera quase todos e ela não tinha fome. Fez um café fresco e depois foi se vestir. Por volta das oito e meia estava pronta para sair e ainda dispunha de algum tempo antes de enfrentar o trânsito na auto-estrada. Olhou para o relógio. Sabia que a mãe devia ter saído para o estúdio às quatro da manhã, mas deixou-lhe uma mensagem na secretária eletrônica, confirmando que iria jantar com eles na sexta-feira e que iria sozinha. Tinha a certeza que, quando chegasse, haveria comentários, sobretudo se lhes dissesse onde estava Brandon, mas, pelo menos por enquanto, não teria de ouvir nada.

            Em seguida, fazendo um esforço de memória, ligou para um número de Beverly Hills que metade das mulheres americanas trocaria por um braço. Eram amigos desde os catorze anos, tinham namorado durante seis meses quando andavam na escola secundária, e desde então havia mantido uma boa amizade. Ele atendeu ao segundo toque, como sempre, exceto quando estava ‘ocupado’ ou ausente, e Allegra sorriu ao ouvir aquela voz conhecida, que só ela não considerava insuportavelmente sensual.

            — Olá, Alan, sou eu, não se irrite...

            Allegra sorria sempre quando falava com ele. Alan era uma pessoa especial.

            — A esta hora? — Alan surpreso ao ouvir a voz dela, mas Allegra sabia que o amigo costumava levantar-se bastante cedo. Terminara um filme em Bancoc e passaria três semanas em casa. Allegra também sabia que ele acabara recentemente um romance com a atriz inglesa Fiona Harvey; conforme o seu agente. O que andou fazendo ontem à noite? Foi presa? Está  telefonando para eu te pagar a fiança?

            — Exatamente. Vai buscar-me à esquadra de Beverly Hills daqui a vinte minutos.

            — Nem pense nisso! Todos os advogados deviam estar na cadeia! Por mim, pode ficar aí.

            Alan tinha trinta anos e o rosto e o corpo de um deus grego, mas, além disso, era inteligente e genuinamente bem formado. Era um dos amigos mais íntimos de Allegra e o único homem de quem se lembrara para acompanhá-la à festa da entrega dos prêmios. Sorriu ao recordar que Alan fora seu namorado no passado. A maioria das mulheres americanas daria tudo para conhecê-lo.

            —  O que vai fazer no sábado? —  perguntou de chofre, balançando o pé como uma criança e fazendo um esforço para não pensar em Brandon, ou para não permitir que tal a aborrecesse.

            —  Você não tem nada com isso, muito obrigado — respondeu ele, fingindo-se ofendido.

            — Vai sair com alguém?

            — Por quê? Tem a intenção de apresentar-me mais uma das suas terríveis colegas? Acho que a última bastou, minha malvada!

            — Ora, não me aborreça! Não era uma namorada, e você bem sabe. Precisava de um especialista em direito peruano, e é isso mesmo que ela é, portanto não me chateie. Por sinal, soube que te deu, gratuitamente, uma consulta que valia três mil dólares, por isso não se faça de vítima.

            — Quem é que se fazendo de vítima? —  Alan mostrou-se reservado, fingindo-se escandalizado com a linguagem dela.

            — Você, e não respondeu à minha pergunta.

            — Vou sair com uma menina de catorze anos que talvez me atire para a prisão. Por quê?

            — Preciso de um favor.

            Allegra podia dizer-lhe tudo sem artifícios nem rodeios. Gostava dele como de um irmão.

            —  Que novidade! Precisa sempre de um favor. Quem é que quer o meu autógrafo desta vez?

            —  Ninguém, absolutamente ninguém. Preciso do teu corpo.

            —  Essa é uma proposta que me intriga...

            Nos últimos catorze anos, desde o fugaz namoro de ambos, pensara mais de uma vez em aproximar-se dela, mas Allegra nutria por ele sentimentos tão fraternos que Alan nunca conseguira tomar a iniciativa. No entanto, era bela e inegavelmente inteligente e Alan gostava dela mais do que de qualquer outra mulher no mundo. No fundo, talvez fosse esse o problema.

            — No que está pensando exatamente em relação a este corpo velho e decrépito?

            — Em nada que seja agradável, juro. —  Deu uma gargalhada. Também não é assim tão mau, por acaso. Preciso de companhia para a festa de entrega dos Globos de Ouro. A mamãe e o papai foram nomeados, e a Carmen Connors também, uma das minhas clientes. E há mais dois que são candidatos. Tenho de estar presente e não gostaria ir sozinha.

            Allegra estava sendo honesta com ele, como sempre, uma qualidade que Alan muito apreciava nela.

            — O que aconteceu ao... Como é que ele se chama? — Alan sabia perfeitamente o nome de Brandon e também dissera várias vezes a Allegra que não gostava dele. Considerava-o frio e petulante. Ela estivera várias semanas sem falar com ele por causa disso, mas depois se habituara, porque Alan não perdia uma oportunidade de lhe dizer o que pensava; porém, desta vez poupou-a.

            — Tem de ir a São Francisco.

            — Que simpático da parte dele, Al! Que grande sentido de oportunidade! Que tipo afável! Foi ver a mulher?

            — Não, estúpido, foi ver as filhas. Tem um julgamento que começa na segunda-feira.

            — Não sei se estou percebendo a relação... — replicou Alan com frieza.

            — Ele não poderá ir ver as filhas durante duas semanas, por isso quer visitá-las agora.

            — Cancelaram os vôos de São Francisco para Los Angeles? Porque é que os anjinhos não podem vir cá ver o papai?

            — A mãe não permite.

            — O que te deixa solitária, não é?

            — Sim, e foi por isso que te telefonei. Pode ir? — perguntou ansiosa.

            Seria divertido ir com ele. Aliás, era sempre divertido estar com Alan. Era como se voltassem os dois à adolescência. Contavam anedotas, riam de tudo e por nada e faziam muito barulho.

            —  É um sacrifício, mas acho que, se for obrigado a isso, posso alterar alguns planos... — disse ele, suspirando.

            Allegra riu.

            — Mentiroso! Aposto que não tem nada para fazer!

            — Ai isso é que tenho! Por acaso, ia jogar boliche.

            — Você?! — Allegra riu ainda mais. Cinco minutos depois estaria rodeado de gente. Não pode jogar boliche...

            — Um dia te levo, para acreditar em mim.

            — Está combinado. Adorarei ir — respondeu, radiante. Como era habitual, ele salvara-a. Não iria à festa sozinha.

            Alan Carr era um amigo com o qual podia contar sempre.

            — A que horas vou te buscar, Cinderela?

            Alan parecia satisfeito com a combinação. Gostava sempre de estar com ela.

            — Aquilo começa cedo. Seis horas?

            — Estarei lá.

            — Obrigada, Alan disse ela, com sinceridade. Agradeço-te muito.

            — Não seja tão agradecida, pelo amor de Deus!Você merece um tipo melhor do que eu... Merece que esse palerma te leve, se é o que deseja, portanto não me agradeça. Pense na sorte que eu tive. É assim que deve pensar. Do que você precisa é de mais afirmação. Onde foi buscar essa humildade? É demasiado inteligente para isso. Gostaria muito de te ensinar uma ou duas coisas sobre esse assunto... Ele não sabe a sorte que tem. São Francisco, o raio que o parta!

            Alan começou a resmungar e Allegra riu,  mas sentia-se mil vezes melhor.

            — Tenho de ir trabalhar. Até sábado. E por favor, tente manter-se sóbrio, combinado?

            — Não seja meiga! Não admira que não consiga arranjar quem vá com você!...

            Brincavam um com o outro. Ele bebia bastante, mas era raro embriagar-se e nunca se portava mal. Ambos gostavam de brincar. Allegra sentiu-se de novo confiante a caminho do emprego. Alan devolvera-lhe a boa disposição.

            Durante o dia, esqueceu a tristeza que a invadira de manhã. Encontrou-se com uns agentes ligados à tournée de Bram, tratou de alguns pormenores relativos à segurança de Carmen, reuniu-se com outro cliente por causa da custódia dos filhos e, ao fim do dia, ficou admirada ao verificar que nem se lembrara de Brandon. Continuava lhe desagradar que ele não a acompanhasse à cerimônia de entrega dos Globos de Ouro, mas pelo menos não se sentia tão mal como de manhã. E, ao pensar nisso, concluiu que não fora razoável. Ele tinha o direito de ir ver as filhas, e talvez estivesse certo. Talvez ambos tivessem que pensar nas suas carreiras, cumprir os seus compromissos e encontrar-se nos momentos livres. Não era um modo de vida muito romântico, mas era o possível nesta fase. Afinal, talvez não fosse assim tão mau, ela é que devia ser demasiado exigente, como ele insinuava de vez em quando.

            — É isso que você pensa? — perguntou-lhe a Dr.ª Green nessa tarde, durante a consulta semanal.

            — Não sei bem o que penso — admitiu Allegra. Sei o que quero, mas, quando falo com o Brandon, é como se estivesse a ser pouco razoável e exigindo demasiado dele. Não sei quem é que tem razão ou se estou assustando-o.

            — É uma hipótese interessante —  observou a Dr.ª Green com frieza. Porque julga que o assusta? 

            —  Porque ele não está preparado para aquilo que eu pretendo de uma relação, ou para o que eu quero dar.

            —  Acha que está disposta a dar mais? Por quê? —  insistiu a Dr.ª Green, interessada.

            —  Acho que gostaria de viver com ele, mas creio que isso o assusta de morte.

            —  O que a leva a dizer isso?

            A Dr.ª Green começava pensar que Allegra estava fazendo progressos.

            —  Acho que ele está assustado porque quer voltar para o seu apartamento, à noite. Nunca passa a noite em minha casa, se puder evitá-lo.

            —  E quer que você vá com ele? É uma questão de território?

            —  Não. —  Allegra abanou a cabeça lentamente. Diz que precisa do seu próprio espaço. Uma vez confidenciou-me que, quando acordamos juntos de manhã, se sente como se estivesse casado. E como o casamento não foi uma boa experiência para ele, não quer repeti-la.

            —  O Brandon tem de se libertar disso, caso contrário passará o resto da vida sozinho. Compete-lhe fazer essa opção. Mas as opções dele afetarão o relacionamento de vocês, Allegra.

            —  Eu sei, mas não quero apressá-lo.

            —  Já lá vão dois anos —   retorquiu a Dr.ª Green, discordando. Chegou o momento de ele mudar algumas coisas. A menos que você esteja satisfeita com a situação atual disse ela, sempre oferecendo opções a Allegra. Se é isso que pretende, então não temos queixas, não é verdade? É assim?

            —  Não sei. Não me parece  —  respondeu Allegra, nervosa. Eu queria mais. Não me agrada quando ele se retira para o seu mundo ou quando vai a São Francisco sem mim.

            E depois admitiu uma coisa que a fazia sentir-se estúpida.

            —  Às vezes preocupo-me com a ex-mulher dele, tenho medo que a Joanie consiga fazê-lo voltar. Ela ainda depende muito dele. Creio que é por isso que o Brandon não se quer comprometer.

            —  Bem, o melhor que ele tem a fazer é decidir-se um destes dias, não acha, Allegra?

            —  Penso que sim respondeu Allegra, com cautela, mas não acho que esteja certo fazer-lhe ultimatos.

            —  Porque não? —  perguntou a Dr.ª Green, afoita.

            —  Ele não ia gostar.

            —  E depois?

            A psicóloga pressionava Allegra, tal como gostaria que ela pressionasse Brandon.

            —  Ele pode terminar a relação se eu insistir demasiado.

            —  E qual seria o resultado? —  perguntou a Dr.ª Green.

            —  Não sei  —  respondeu Allegra, com ar assustado. Era uma mulher forte, todavia, nunca se sentia suficientemente forte na presença de Brandon, como se não tivesse amado dois homens antes dele. Tinha medo, e por isso recorria à Dr.ª Green há quase quatro anos.

            —  Se a relação terminar, você ficará livre para conhecer outra pessoa que esteja mais disposta a assumir um compromisso. Isso seria assim tão mau?

            —  Talvez não —   respondeu Allegra com um sorriso ansioso, mas seria muito assustador...

            —  Com certeza, mas você havia de ultrapassar a situação. Ficar sentada à espera que Brandon se digne abrir as portas do céu pode ser mais prejudicial para si do que o receio que tem de conhecer alguém disposto a amá-la, Allegra. É um assunto para pensar, não acha? —   perguntou ela, trespassando Allegra com o olhar e terminando a sessão com o habitual sorriso caloroso.

            De certo modo, era como se fosse ao encontro de uma cigana para lhe ler a sina. Ao sair, tentou passar em revista tudo o que dissera; havia coisas de que se lembrara e outras que tentara desesperadamente recordar, mas de que se esquecera. No entanto, de um modo geral, as sessões faziam-lhe bem e, ao longo dos anos, ambas tinham analisado o seu pendor para se envolver com homens que não conseguiam, ou não queriam, amá-la. Era um padrão muito antigo na sua      vida e Allegra não gostava de pensar nele, e ainda menos de falar. Ao fim de todo este tempo, tinha esperança de se melhorar.

            Voltou para o escritório, resolveu alguns assuntos pendentes e a sua última reunião do dia foi com Malachi O’Donovan. Era um amigo de Bram Morrison, também uma estrela do rock, com menos projeção do que ele, mas igualmente muito importante. Nascera em Liverpool, mas o casamento dera-lhe acesso à cidadania americana. A mulher chamava-se Rainbow, e tinham duas filhas, Swallow e Bird. Allegra já estava habituada a estas bizarrices. Muito pouco do que se dizia ou fazia no mundo do rock a surpreendia.

            O’Donovan tinha uma história complicada de detenções e drogas, dois assaltos e uns quantos processos judiciais confusos. Passara algum tempo na prisão ao longo dos anos e parecia muito intrigado com Allegra. A princípio reagiu em termos sexuais, mas, como ela o ignorou e se limitou propositadamente às questões de natureza profissional, acabou por se acalmar e tiveram uma conversa muito interessante. Allegra estava convencida de que poderia ajudá-lo em alguns dos seus problemas jurídicos, a maioria dos quais provinham de uma tournée mundial que ele andava tentando organizar, embora estivesse afundando-se em complicações burocráticas e questões legais.

            —  Veremos o que se pode fazer, Mal. Entrarei em contato depois de receber os dossiês do seu advogado atual.

            —  Não se preocupe com o meu último advogado  —  disse ele, encolhendo os ombros à saída. É um idiota! —  acrescentou, no seu belo dialeto irlandês.

            —  De qualquer modo, precisamos dos seus papéis. Allegra esboçou um sorriso afetuoso. Telefono-lhe assim que souber alguma coisa.

            O’Donovan gostou muito dela. Morrison não o encaminhara mal. A advogada era inteligente e ia direita ao assunto, sem rodeios. Isso lhe agradava.

            —  Telefone-me quando quiser, filha  —  disse ele em voz baixa, quando Rainbow já estava junto do elevador.

            Allegra fingiu que não ouviu, voltou a entrar e fechou a porta do gabinete.

            Por fim, foi para casa já tarde. Esteve lendo uns processos e analisou alguns dos contratos de Bram. Carmen acabara de receber uma proposta muito interessante para rodar um filme que poderia ser muito importante para ela. Era um desafio, o que Allegra adorava.

            Estava bem-disposta quando chegou a casa e só então se lembrou que não soubera de Brandon durante todo o dia. Perguntou a si própria se ele teria ficado irritado por haver pressionado-o com a questão dos Globos de Ouro nessa manhã.

            Por volta das nove horas telefonou para ele no escritório e ele mostrou-se satisfeito ao ouvir a sua voz. Disse-lhe que trabalhara treze horas seguidas e que ia precisamente ligar-lhe.

            —  Comeu alguma coisa? —  perguntou ela, solícita, arrependida de ter se zangado com ele.

            Depois se lembrou do que a Dr.ª Green lhe dissera. Tinha o direito de esperar mais do que ele queria, ou conseguia, dar-lhe.

            —  Nos trazem sanduíches de vez em quando. Às vezes até nos esquecemos de  comer...

            —  Devia ir para casa e deitar-se em horas decentes  —   lembrou-lhe, desejando que ele fosse ao seu encontro. Mas desta vez não lhe perguntou nada, e ele não falou no assunto. Agradava-lhe voltar ao trabalho e ao convívio com os colegas.

            —  Te telefono amanhã antes de partir para São Francisco.

            —  Estarei na casa dos meus pais. Vou diretamente do escritório para lá.

            —  Nesse caso, talvez não telefone —   disse ele.

            Allegra teve vontade de gritar. Porque Brandon se  afastava de tudo de que ela gostava, principalmente da sua família? Estava tudo relacionado com a fobia do compromisso.

            —  Te telefono depois de chegar. Ligo para sua casa.

            —  Como quiser  —   respondeu ela com calma,  satisfeita por ter tido oportunidade de falar do assunto com Jane Green. As conversas de ambas tornavam sempre tudo mais simples, mais claro e menos dramático. Era tão simples, de fato... Ele não conseguia chegar até ela nem amá-la livre e abertamente. Alguma vez o conseguiria? Allegra queria casar com ele, se conseguisse divorciar-se e descontrair-se o suficiente para amá-la. Estava convencida de que ele a amava, à sua maneira, mas também era óbvio que se sentia fortemente limitado pelas recordações do que se passara com Joanie.

            —  Conseguiu resolver a questão dos Globos de Ouro? —  perguntou Brandon de repente, e Allegra admirou-se de ele falar nisso, de um assunto tão melindroso.

            —  Sim, está tudo bem  —   respondeu, sem se alongar mais, sem querer admitir perante ele que estava aborrecida.

            —  Vou com o Alan.

            —  Alan Carr?

            Brandon ficou escandalizado. Esperava que ela fosse sozinha, com os pais.

            —  Julguei que iria só com o seu irmão e os seus pais, ou coisa do gênero.

            Allegra riu da ingenuidade dele. A cerimônia dos Globos de Ouro era um dos acontecimentos mais sofisticados do ano e não um daqueles a que mais gostaria de ir com o irmão de vinte anos.

            Estou ficando um pouco velha para isso, sabe? Mas o Alan é uma boa companhia. Me  faz rir a noite inteira e diz grosserias acerca das grandes estrelas, mas todos o conhecem e o adoram.

            —  Nunca esperei que preenchesses o meu lugar com tanta facilidade   —  replicou ele, mostrando-se simultaneamente irritado e ciumento.

            Allegra riu. Talvez lhe fizesse bem.

            —  Eu preferia estar com você  do que com o Alan, em qualquer circunstância  —  afirmou, honestamente.

            —  Não se esqueça disso  —   disse ele, sorrindo. Mas que raio de cumprimento, Allie! Nunca pensei estar na mesma turma do Alan Carr!

            —  Bem, não deixes que isso te suba à cabeça —   retorquiu ela, provocadora.

            A conversa durou mais alguns minutos e depois desligaram, mas Brandon nunca se referiu à hipótese de passar a noite com ela. Allegra sentiu-se de novo deprimida quando se deitou e ficou pensando nisso. Tinha vinte e nove anos e um namorado que preferia dormir sozinho na sua própria cama do que estar com ela, pelo menos às vezes, senão quase sempre, e que não a acompanhava numa ocasião que era importante para ela, para estar com a ex-mulher e as duas filhas. Por muito que desse a volta ao assunto ou tentasse esquecer, sentia-se magoada. E sozinha. Brandon era muito reservado, à sua maneira, e, fossem quais fossem as necessidades dela, fazia sempre o que queria.

            ‘Você merece melhor.’ Nessa noite, ao deitar-se, a voz da Dr.ª Green ecoou na sua cabeça, mas não conseguiu lembrar-se se as palavras que ela dissera tinham sido mesmo estas ou se tratava apenas da idéia que ela transmitira. Porém, prestes a adormecer recordou o brilho intenso dos olhos castanhos da psicóloga, que a observava e reforçava a mensagem. ‘Eu mereço melhor’, repetiu em surdina... ‘Melhor... Mas o que quer isto dizer?’ E depois, de súbito, viu apenas Alan... Riu ... Mas estaria rindo dela? Ou de Brandon?

 

            A casa dos Steinberg em Bel Air era uma das mais bonitas da zona. Era grande e confortável, mas não palaciana. Fora a própria Blaire que a decorara há anos, quando haviam mudado, logo depois do nascimento de Scott. Blaire era exímia em restaurar objetos e  redecorar divisões para mantê-las frescas, limpas e modernas. Os filhos brincavam com ela porque a casa estava em constante remodelação.

            Mas Blaire gostava de dar-lhe um novo aspecto e usava muitas cores claras e alegres. O ambiente era acolhedor, elegante e informal. Era um local que todos gostavam de visitar. A vista do pátio e da sala era espetacular. E há vários meses que Blaire falava em substituir as paredes da cozinha por vidro. Porém, andava tão atarefada com o seu programa que ainda nem tivera tempo para isso.

            Allegra saiu do emprego e foi diretamente para lá. Como sempre, ao chegar sentiu-se envolvida pelo calor e pelo aconchego da família e da casa onde crescera. O seu quarto ainda estava como o deixara há onze anos, quando fora para a universidade. O papel da parede, os cortinados e a colcha da cama, de uma seda clara, cor de pêssego, tinham sido substituídos quando ela estava na Faculdade de Direito. Allegra passava lá uma noite de vez em quando, ou um fim-de-semana. Ir para casa e estar com a família era sempre divertido e relaxante. O seu quarto ficava no mesmo piso da suíte dos pais, que era constituída pelo quarto, por duas salas de vestir adoráveis e por dois escritórios que eles utilizavam quando tinham de trabalhar em casa, o que era muito freqüente. Nesse mesmo piso havia ainda dois quartos de hóspedes. Lá em cima, Sam e Scott tinham também as suas suítes e uma grande sala no meio. Partilhavam um televisor enorme, uma pequena tela de cinema, uma mesa de pool e uma fantástica aparelhagem sonora que o pai dera no Natal. Estar ali era o sonho de qualquer adolescente, e havia sempre pelo menos meia dúzia de amigas de Sam lá em casa, a falarem do colégio, dos planos para a faculdade e dos namorados.

            Sam encontrava-se na cozinha quando Allegra entrou, e era difícil não reparar como se tornara bonita no último ano. Sem mais nem menos, com dezessete anos e meio, o seu aspecto, que já era extraordinário, melhorara ainda mais. Tinha o toque de uma estrela, diziam os sócios do pai, e a mãe resmungava sempre quando os ouvia falar assim. A prioridade de Sam sempre foram os estudos. Blaire não se importava que ela tivesse uma curta carreira de modelo, mas não a entusiasmava a idéia de que a filha mais nova se tornasse atriz. Era uma carreira dura e, perante o que via diariamente, começava a pensar que seria preferível que Samantha se mantivesse à margem. No entanto, era difícil os pais conseguirem ser muito convincentes. Sam vivera sempre naquele meio e, de momento, só pensava em ser atriz. Tinha concorrido à UCLA, Northwestern, Yale e NYU pelo que tinham a oferecer no domínio do teatro, e, graças às suas excelentes notas, fora aceita em todas, mas, ao contrário de Allegra dez anos antes, não pretendia ir para o Leste. Queria ficar em Los Angeles e talvez até viver em casa. Decidira ir para a UCLA e já fora aceita.

            Na noite de sexta-feira, Sam estava comendo uma maçã quando Allegra entrou. Os cabelos louros caíam-lhe pelas costas como um lençol amarelo-dourado e os olhos eram grandes e verdes como os da irmã.

            —   Olá, menina. Como vai a vida?

            Satisfeita, Allegra deu-lhe um beijo e abraçou-a.

            —  Nada mal. Fiz uns desfiles esta semana para um fotógrafo inglês. Era um tipo agradável. Gosto dos estrangeiros; são simpáticos para mim. Em Novembro trabalhei com um francês que estava a caminho de Tóquio. Desta vez foi uma amostra para o Times de Los Angeles. E vi um trecho do novo filme de papai.

            Como todas as adolescentes, Sam tinha um discurso inconseqüente, mas Allegra compreendia-a.

            —  Como era o filme? —  perguntou, servindo-se de palitos de cenoura e cumprimentando Ellie com um abraço afetuoso.

            Ellie, que era cozinheira da família há vinte anos, expulsou-as da cozinha

            —  Era bom. É difícil dizer. Algumas cenas ainda não estavam no seu lugar... Mas era legal.

            E Sam também o era. Allegra sorriu ao ver a irmã subir as escadas aos saltos. Toda ela era pernas, braços e cabelo; lembrava um belo potro selvagem a saltar por cima de tudo. Parecia tão jovem e ao mesmo tempo tão espigada! Custava a acreditar como crescera depressa, mas a verdade é que era quase uma mulher. Há onze anos, quando Allegra saíra de casa para ir para Yale, Sam tinha apenas seis anos, e em certos aspectos todos continuavam a pensar nela como se fosse um bebê.

            —  É você? —  gritou a mãe do alto das escadas, espreitando por cima do corrimão.

            Blaire parecia pouco mais velha do que as filhas. O cabelo ruivo e sedoso estava penteado para cima, com duas canetas e um lápis espetados, e emoldurava-lhe o rosto. Vestia jeans e uma camisola preta de gola alta e calçava uns tênis pretos que comprara para Sam, mas que esta não usava. Parecia uma menina, e só quem se aproximasse é que via como era bela, como a idade passava por ela de uma forma suave e como a sua figura era esbelta como a das filhas.

            —  Como está, querida? —  perguntou, beijando Allegra e correndo para atender o telefone.

            Era Simon. Estava atrasado. Tivera um problema no escritório, mas chegaria em casa à hora do jantar.

            Fora a proximidade um do outro que os salvara das pressões de Hollywood ao longo dos anos, isso e o fato de terem uma relação maravilhosa. Blaire raramente o admitia, mas a sua vida era um caos quando o conhecera. Estava desesperada e, depois do casamento, foi como se tudo tivesse mudado para melhor. A sua carreira disparara e os bebês haviam chegado depressa e com facilidade, além de serem recebidos com muito amor. Blaire e Simon adoravam a casa, os filhos, as carreiras, e adoravam-se um ao outro. Não havia mais nada que desejassem, exceto, talvez, mais filhos. Ela tinha trinta e sete anos quando Sam nascera, o que já lhe pareceu demasiado tarde. E parou. Agora lamentava não ter tido pelo menos mais um, mas os três filhos davam-lhe uma grande alegria, apesar de uma ou outra briga com Samantha.

            Blaire sabia que ela era mimada, mas tinha bom coração. Era aplicada nos estudos e nunca fazia disparates. Se discutia com a mãe de vez em quando, isso era próprio da sua idade e da sua cultura.

            Assim que Blaire desligou o telefone, subiu as escadas, viu Allegra a espreitar pela janela do quarto e foi ao seu encontro.

            —  Pode voltar para casa quando quiser, bem sabe —  disse em voz baixa, observando a filha mais velha, que parecia surpreendentemente melancólica. Desejou perguntar se tinha acontecido alguma coisa, mas não se atreveu. Blaire ficava sempre preocupada quando via que Allegra não recebia apoio emocional suficiente de Brandon. Ele era tão independente em tudo e parecia tão inconsciente das necessidades e dos sentimentos da filha! Blaire fizera o possível por gostar dele nos últimos dois anos, mas não conseguira.

            —  Obrigada, mãe.

            A jovem sorriu-lhe e depois deitou na grande cama de colunas. Algumas vezes, sentia-se muito bem em estar ali, nem que fosse só por algumas horas, outras, desagradava-lhe a influência que a família ainda exercia nela. Sentia-se muito ligada a eles, e isso às vezes dava-lhe que pensar. Gostava tanto dos pais e dos irmãos e não cortara os laços que os uniam, como acontecia com outras mulheres da sua idade, mas porque deveria de fazê-lo? Brandon queixava-se que continuava demasiado presa a eles e que isso não era saudável nem normal, mas Allegra dava-se tão bem com a família, que a apoiava tanto! O que havia de fazer? Deixar de vê-los porque estava  chegando aos trinta anos?

            —  Onde está o Brandon? —  perguntou a mãe, tentando mostrar-se despreocupada. Notara que Allegra viera jantar sozinha, e tinha de admitir que se sentira aliviada, mas não disse nada, evidentemente. Ficou trabalhando até tarde?

              — Teve que ir a São Francisco ver as filhas — respondeu Allegra, num tom tão despreocupado como o da mãe, porém, ambas sabiam que aquilo era uma farsa para dar a impressão que nenhuma delas estava inquieta nem aborrecida.

            — Mas tenho a certeza que volta amanhã. Blaire sorriu, irritada por causa de Allegra; Brandon nunca estava presente quando ela precisava. Contudo, ficou admirada com a resposta da filha.

            — Por acaso, não. Tem de passar o fim-de-semana com elas. Começa um julgamento na segunda-feira e não sabe ao certo quando voltará a vê-las.

            — Ele não vai à cerimônia de entrega dos prêmios? Blaire ficou estupefata. Isto teria algum significado? Seria um dos primeiros sinais de ruptura? Tentou mostrar-se apenas admirada e não esperançosa.

            — Não, mas não tem importância mentiu Allegra, sem querer admitir como ficara transtornada. Sentia-se tão vulnerável ao admitir perante a mãe que tinha problemas com Brandon! Ficava tão frustrada quando se aborrecia com ele! A mãe nunca se zangava com o pai. A relação de ambos sempre fora perfeita. Vou com o Alan.

            — Que simpático da parte dele! — disse Blaire, lacônica, sentando-se numa cadeira confortável junto da cama.

            Allegra observava-a. Sabia que haveria mais e inevitáveis perguntas. Porque ele não se divorciava? Porque ia constantemente a São Francisco para ver a ex-mulher? A relação de ambos teria futuro? Já se apercebera de que ia fazer trinta anos?

            — Não fica aborrecida quando ele não te acompanha em ocasiões que são importantes para você?

            O olhar azul e límpido da mãe parecia querer trespassá-la até ao âmago da sua alma, e Allegra tentou impedi-la.

            — Às vezes, mas, como ele diz, somos os dois adultos, com bons empregos e muitas obrigações. Nem sempre podemos estar um com o outro, mas temos de compreender. Não vale a pena discutirmos por causa disso, mãe. Ele tem duas filhas noutra cidade e precisa de vê-las.

            — O que me parece é que não tem um grande sentido de oportunidade. Não é da mesma opinião?

            Ao ouvi-la, Allegra teve vontade de chorar. E a última coisa que desejaria nessa noite era defender Brandon. Estava aborrecida consigo mesma e não queria justificar o comportamento dele perante a mãe. Mas, no momento em que as duas mulheres trocavam um olhar, apareceu à porta um jovem alto, de cabelo preto.

            — De quem vocês estão falando mal? De Brandon, calculo, ou há alguma coisa de novo no horizonte?

            O irmão, Scott, acabara de chegar do aeroporto. Allegra levantou-se, com um sorriso enlevado. Ele avançou, sentou-se ao seu lado e abraçou-a.

            — Meu Deus, você está cada vez mais alto, exclamou ela com um gemido, enquanto a mãe os observava com um sorriso embevecido. Scott era muito parecido com o pai. Tinha um metro e oitenta e, felizmente, não devia crescer mais. Jogava basquetebol em Stanford. Que número calça agora? — gracejou Allegra. Os pés dela eram pequenos para a sua altura, mas Sam calçava trinta e oito e Scott quarenta e quatro, da última vez que lhe fizera a mesma pergunta.

            — Continuo a calçar quarenta e quatro, muito obrigado.

            Aproximou-se da mãe e abraçou-a. Em seguida, sentou-se no chão, conversando com as duas.

            — Onde está o pai?

            — Está a caminho, espero. Telefonou há um bocado. A Sam está lá em cima. E o jantar deve ficar pronto daqui a dez minutos.

            — Estou morrendo de fome! Scott tinha um aspecto formidável, e era óbvio que, pela maneira como o olhava, a mãe se orgulhava dele. Todos, aliás. Daria um excelente médico. Então qual é o palpite? — perguntou ele, virando-se para Blaire. Vai ganhar, como é habitual, ou vai envergonhar-nos?

            — Vou envergonhar-los, tenho a certeza. Blaire riu-se, tentando não pensar nos Globos de Ouro. Mesmo depois de tantos anos escrevendo e a produzindo programas de sucesso, as cerimônias de entrega dos prêmios deixavam-na sempre nervosa. Acho que seu pai é que nos vai encher de orgulho este ano disse, misteriosa, mas depois se calou.

            Daí a cinco minutos, Simon entrou na rampa da casa. Todos desceram as escadas  correndo e Blaire gritou a Sam que largasse o telefone e viesse jantar.

            Foi uma refeição animada. Os dois homens tentaram manter uma conversa séria e sobrepor-se à tagarelice das mulheres, feita de boatos, de novidades e de comentários acerca dos prêmios, e à catadupa de perguntas de Sam sobre Carmen como era ela, o que vestia, com quem saía. No meio daquilo tudo, Blaire recostou-se na cadeira com um sorrisinho e ficou observando-os, os seus três filhos e o marido, que amava há tantos anos. Tal como Scott, Simon era alto, moreno e elegante. Tinha sessenta e quatro anos e uma pequena madeixa de cabelos grisalhos nascia-lhe agora nas têmporas. As pequenas rugas à volta dos olhos eram sinais do tempo que só o tornavam ainda mais atraente. Era um homem de aspecto fabuloso e, só de olhar para ele, Blaire sentia um formigueiro no corpo. Porém, ultimamente, de vez em quando sentia-se triste, inquieta. Preocupava-a o fato de estar se modificando. Parecia que ele não mudava, que melhorava à medida que ia envelhecendo, mas Blaire sentia-se diferente; afligia-se mais do que antes, com o marido, com os filhos, com a carreira. Pensava que poderia tornar-se obsoleta e ficava apreensiva ao pensar que os seus níveis de audiência tinham baixado um pouco no último ano e que Samantha iria para a faculdade. E se ela fosse para o Leste ou resolvesse ficar a viver numa residência universitária, se escolhesse a UCLA? O que faria quando todos fossem embora? E se não precisassem mais dela?... Ou se perdesse o programa? O que seria dela quando tudo acabasse? E se a sua situação com Simon se alterasse? Mas sabia que isso era um disparate. De vez em quando, tentava falar do assunto com Simon. De repente, tinha tantos medos, acerca de si, da sua vida, do seu corpo... Fora apenas há um ou dois anos... Sabia que o seu aspecto mudara, por muito que os outros lhe dissessem o contrário. Estava envelhecendo às vezes era doloroso verificar que parecia ter-se modificado mais do que Simon. Era espantoso como o tempo passava tão depressa! Já tinha cinqüenta e quatro anos... Daí a pouco faria cinqüenta e cinco... E depois sessenta... Desejaria gritar  ‘Oh! Meu Deus, pára o relógio... Espera... Preciso de mais tempo!’ Parecia-lhe estranho que Simon não compreendesse isto. Talvez porque os homens tinham mais tempo, os seus hormônios não se alteravam de repente aos cinqüenta anos e o seu aspecto modificava-se de uma forma mais subtil. Além disso, podiam sempre optar por uma mulher com metade da idade deles e por mais meia dúzia de filhos, mesmo que não os desejassem, como Simon repetia sempre que Blaire lhe lembrava que ele ainda podia ter mais filhos e ela não. Ainda que o marido não estivesse interessado, tinha essa opção, o que tornava as coisas diferentes entre eles. Mas quando tentava dizer-lhe tudo isto, Simon limitava-se a responder que ela trabalhava de mais e estava sendo tola. ‘Pelo amor de Deus, Blaire, a última coisa que eu quero é mais filhos. Adoro os que temos, mas se a Sam não crescer depressa e não arranjar a sua própria casa um destes dias para poder ultrapassar a barreira do som, fico doido!’ Ele dizia isto, mas Blaire sabia que Simon também não queria que Sam saísse de casa: era o seu bebê. No entanto não percebia por que motivo era tudo muito mais fácil para ele, por que razão se preocupava menos com estas coisas, porque afligia tanto com as notas de Scott ou com o fato de Allegra ainda estar com Brandon, passados dois anos, e ele continuar casado com outra mulher Mas nenhum destes assuntos foi abordado durante o jantar. Conversaram acerca de outras coisas. Simon e Scott falaram de basquetebol, de Stanford e de uma possível viagem à China. E depois todos se referiram aos Globos de Ouro, e Scott brincou com Sam por causa do último rapaz que vira na companhia da irmã. Disse que era um bobão, e Samantha defendeu-o acaloradamente, embora garantisse que não gostava dele. Blaire anunciou que os níveis de audiência tinham subido outra vez, depois de uma breve queda no mês anterior, e que tencionava remodelar o jardim e a cozinha no Verão seguinte.

            — Isso é alguma novidade? — perguntou Simon para arreliá-la, trocando um olhar afetuoso com a mulher. Está sempre arrancando qualquer coisa e instalando outra! E, para todos os efeitos, eu gosto do jardim tal como está. Por que mudá-lo?

            — Descobri um jardineiro inglês fabuloso, e ele diz que consegue mudar tudo em dois meses. A cozinha é outra história... — respondeu Blaire, sorrindo. Espero que todos vocês gostem de surpresas. Entre Maio e Setembro passaremos a comer sempre na cozinha.

            Seguiu-se um protesto geral e Simon lançou um olhar cúmplice ao filho.

            — Creio que é precisamente na altura da nossa ida à China.

            — Vocês não vão a lado nenhum! — Blaire lançou um olhar penetrante ao marido. Este ano passamos o Verão inteiro furiosa, e eu não vou ficar sozinha outra vez!

            Todos os anos pai e filho faziam uma viagem juntos, em geral a qualquer lugar onde Blaire não pudesse ir ter com eles mesmo que tentasse, como Samoa ou Botswana.

            — Podem ir passar o fim-de-semana em Acapulco... —  Scott riu deles, e as brincadeiras, as altercações e as trocas de brincadeiras continuaram até às nove horas. Por fim, Allegra levantou-se e disse que tinha de ir para casa. Ainda precisava fazer serão.

            — Você trabalha demais  — observou a mãe em tom de censura.

            Allegra sorriu.

            — E você não, mamãe? — Blaire trabalhava mais do que todas as pessoas que ela conhecia e Allegra respeitava-a muito por isso. Vejo-os amanhã à noite na entrega dos  prêmios  — disse quando todos se levantaram da mesa.

            — Quer vir conosco? — perguntou a mãe. Allegra balançou a cabeça.

            — O Alan atrasa-se sempre e encontra um grupo de amigos para onde quer que vamos. Talvez ele queira ir a algum lado depois da festa. É preferível encontrarmos-nos lá, ou os deixaremos  doidos!

            — Vai com o Alan e não com o Brandon? —  perguntou Samantha, admirada.

            A irmã mais velha fez um sinal afirmativo.

            — Por quê?

            — Ele teve que ir a São Francisco ver as filhas  — respondeu Allegra com naturalidade. Era como se já tivesse explicado o mesmo um milhão de vezes, e estava ficando cansada.

            — Tem  certeza que ele não está dormindo com a ex-mulher? — inquiriu Sam, de chofre.

            Por instantes, Allegra ficou sem fôlego. Depois foi rápida na resposta, furiosa com a impertinência da irmã mais nova.

            — Esse comentário é maldoso e totalmente desnecessário. Devia ter cuidado com o que diz, Sam  — replicou, irritada.

—        Bem, não fique paranóica por causa disso  —  retorquiu Sam, toda eriçada. Talvez eu tenha razão, talvez tenha sido por isso que você ficou toda irritada com o que eu disse.

            — Pare com isso, Sam! — exclamou Scott, vendo como Allegra ficara transtornada. A vida sexual dele não te diz respeito.

            — Obrigada  — segredou-lhe Allegra mais tarde, quando lhe deu um beijo de boa-noite, mas, por outro lado, perguntou a si própria por que motivo o comentário de Sam a incomodara tanto. Seria precisamente o que ela pensava? O que receava? Claro que não. Joanie era dependente, dengosa, e Brandon dizia-lhe muitas vezes que a mulher deixara de o atrair. O problema não residia aí, mas era muito doloroso ser obrigada a defendê-lo. Era óbvio que toda a família pensava que ele devia estar ali, e Allegra também. E, no seu íntimo, sentia-se furiosa por ele não estar presente.

            Nessa noite, durante o caminho, não pensou noutra coisa, e, quando chegou em casa, estava de novo zangada com ele. Sentou-se e ficou pensando no assunto, fingindo que olhava para o trabalho. Por fim, resolveu telefonar para ele. Sabia de cor o número de telefone do hotel onde Brandon ficava e digitou-o com os dedos trêmulos. Talvez conseguisse convencê-lo a voltar, mas depois teria de explicar a Alan que ele não poderia levá-la, apesar de a amizade de ambos permitir que lhe dissesse fosse o que fosse. Se Alan ficasse irritado com ela, não deixaria de lhe dizer.

            Ligaram para o quarto de Brandon e Allegra ficou esperando. Eram dez da noite, mas ele não atendeu. Pediu que tentassem de novo, caso tivessem se enganado no número, mas era óbvio que ele não se encontrava lá. Talvez ainda estivesse em casa, falando com Joanie acerca do divórcio. Às vezes, depois de as filhas irem para a cama, os dois ficavam discutindo durante horas. Ao pensar nisso, vieram-lhe à cabeça as palavras de Sam. E Allegra enfureceu-se outra vez, com ele, por estar ausente, e com a irmã, por ter dito tal coisa. Não queria passar a vida a aborrecer-se por causa de Brandon nem sentindo-se insegura devido às insinuações de uma adolescente. Já lhe bastava o resto! Assim que desligou, o telefone começou a tocar e Allegra sorriu. Ficara histérica sem motivo. Talvez fosse Brandon, que acabara de regressar ao hotel. Mas não. Era Carmen, e estava chorando.

            — O que está acontecendo?

            — Acabo de receber uma ameaça de morte —! Carmen soluçava e dizia que queria voltar para Óregon, mas a sua carreira não era das que desapareciam com facilidade. Tinha contratos a cumprir e o mundo solicitava Carmen Connors.

            Allegra franziu a sobrancelha.

            — Como foi isso? — Tente acalmar-se e conte-me.

            — Chegou pelo correio. Hoje me esqueci de abrir a correspondência. Assim que cheguei a casa, depois de jantar, abri-a, e lá estava aquilo. Diz... Carmen debulhou-se em lágrimas outra vez. Diz que sou uma cabra e que não mereço viver nem mais uma hora. Afirma que sabe que eu ando enganando-o e que sou uma prostituta, e jura que vai me pegar.

            — Oh céus! — pensou Allegra. Esses é deveriam de temer. Os que imaginavam que tinham uma relação, ou uma espécie de direito, e que se sentiam enganados. Esses é que eram verdadeiramente perigosos, mas não queria assustar Carmen ainda mais.

            — Não parece ser ninguém que você conhece, não é? Alguém com quem tenha saído e que possa estar zangado porque não quis sair com ele outra vez?

            Pelo menos valia a pena fazer a pergunta, embora Allegra soubesse como Carmen era recatada. Apesar das notícias dos tablóides, a jovem atriz vivia como a Virgem Maria.

            — Há oito meses que não saio com ninguém, e os dois últimos tipos com quem saí eram casados —  respondeu ela, desolada.

            — É o que eu calculava. Acalme-se. Ligue o alarme  — disse Allegra tranquilamente, como se estivesse falando com uma criança.

            — Já liguei.

            — Fez bem. Chame o segurança do portão e fale sobre carta. Eu vou telefonar para polícia e FBI, e amanhã conversamos com eles. Não vale a pena fazer nada esta noite, mas, de qualquer forma, vou dar-lhes conhecimento do que se passa. O LAPD pode mandar patrulhar a área da sua residência de meia em meia hora. Porque não leva um dos cães com você para cama esta noite, para se sentir melhor?

            — Não posso... Tenho medo deles —  respondeu Carmen com nervosismo, e Allegra riu, o que aliviou a tensão.

            — É esse o objetivo. Eles assustariam qualquer pessoa. Pelo menos deixe-os à solta na propriedade. Sabe, talvez não passe tudo de fogo de palha, mas não custa nada ter cuidado.

            — Porque é que eles fazem estas coisas? — choramingou Carmen.

            Já recebera ameaças antes e ficara assustada, mas nunca alguém tentara verdadeiramente fazer-lhe mal. Era apenas conversa, e todas as pessoas célebres que Allegra conhecia tinham sido vítimas de ameaças uma vez ou outra. Passava depressa, mas não era agradável. Os pais também já as tinham recebido, e houvera uma ameaça de rapto contra Sam quando ela tinha onze anos. A mãe contratara um guarda-costas para acompanhá-la durante seis meses e ele fizera todos perderem a paciência, vendo televisão de noite e de dia e a entornar café nas carpetes. No entanto, se fosse obrigada a isso, Allegra contrataria um para vigiar Carmen. Por sinal, tencionava arranjar-lhe um para a cerimônia dos Globos de Ouro. Havia dois de que gostava particularmente. Recorria aos seus serviços com freqüência, e um deles era uma mulher.

            — É gente estúpida, Carmen. Querem atenção e julgam que, se tentarem aproximar-se de si, conseguirão um pouco de notoriedade. É um método doentio, mas faça o possível por não se preocupar demasiado. Vou tentar arranjar-lhe duas pessoas para a noite de amanhã, uma mulher e um homem, como se você fosse com outro casal declarou Allegra para sossegá-la. Já lidara com muitas situações deste tipo e conseguia sempre apaziguar os seus clientes.

            — Talvez eu nem vá... — disse Carmen, nervosa. E se alguém me der um tiro durante a cerimônia?

            Desatou a chorar outra vez e a falar em regressar a Portland.

            — Ninguém vai dar-lhe um tiro na cerimônia dos Globos! Pode vir conosco. Quem é o seu acompanhante?

            — Um tipo chamado Michael Guiness. Foi o estúdio que escolheu. Nunca o vi.

            Carmen parecia desanimada, mas Allegra apressou-se a encorajá-la.

            — Eu o conheço. É um bom companheiro.

            Michael era homossexual, mas muito apresentável, e um dos jovens atores que iam e vinham e que talvez pensassem que seria benéfico para a sua imagem serem vistos na companhia de Carmen Connors. A homossexualidade de Michael Guiness era um segredo bem guardado.

            — Eu trato de tudo. Acalme-se e tente dormir. Allegra sabia que, às vezes, Carmen passava a noite sentada vendo filmes na televisão porque se sentia assustada ou só.

            — Com quem é que você vai? —  perguntou Carmen casualmente, partindo do princípio de que seria com Brandon. Vira-o uma ou duas vezes e considerava-o respeitável, mas enfadonho. Ficou admirada com a resposta de Allegra.

            — Vou com um antigo colega de escola,  Alan Carr  — respondeu Allegra com prontidão. Estava se preparando mentalmente para telefonar para a polícia e FBI.

            — Oh, meu Deus! — exclamou Carmen, abismada. O Alan Carr? Está brincando comigo? Você estudou com ele?

            — Exatamente  — confirmou Allegra, divertida com a reação de Carmen. Era muito freqüente isso acontecer.

            — Vi todos os filmes dele!

            — Eu também, e deixe-me que dizer-lhe que alguns não prestam para nada. Realmente, alguns eram uma miséria, e ela sabia-o. Estou sempre dizendo que ele precisa de um novo agente, mas o Alan é muito teimoso.

            — Oh, meu Deus, ele é uma maravilha!

            — Melhor do que isso, é boa pessoa. Vai gostar dele. — Allegra perguntou a si própria se Alan se interessaria por Carmen. Talvez simpatizassem um com o outro, o que seria divertido para todos. Depois vamos tomar uma bebida, e levamos você  e Michael, se quiser.

            — Eu adoraria...

            Quando desligaram, Carmen sentia-se muito melhor. Allegra sentou-se a olhar pela janela e pensando como a vida era estranha. O maior símbolo sexual da América não saía com um homem há oito meses e recebia ameaças de morte de loucos que julgavam ser donos dela. Isto estava profundamente errado, no mínimo. Por outro lado, Carmen ficara tão impressionada por Allegra conhecer Alan Carr... De fato, era tudo um pouco confuso.

            Quando acabou de falar com Carmen, olhou para o relógio. Tinham estado ao telefone durante mais de uma hora. Era quase meia-noite. Tinha receio de ligar outra vez a Brandon àquela hora, mas resolveu fazê-lo. Talvez ele já tivesse tentado ligar quando ela estava ao telefone. No entanto, quando voltou a ligar para o hotel, Brandon ainda não havia regressado, por isso deixou-lhe outra mensagem, desta vez a pedindo que lhe telefonasse.

            Allegra foi para a cama à uma hora. Ainda não tivera notícias de Brandon, mas não quis voltar a tentar. Começava a sentir-se ridícula e fazia o possível por não pensar nas palavras de Sam. Não sabia o que Brandon andava fazendo, embora tivesse a certeza de que ele não dormia com Joanie. Porém, não imaginava onde é que poderia estar àquela hora. São Francisco era uma cidadezinha sonolenta e, pelo que Allegra vira, as pessoas recolhiam a casa as nove ou dez da noite. Com certeza não tinha ido a um clube noturno. Talvez estivesse discutindo com a ex-mulher por causa do apartamento nos arredores de Tahoe. Sam não tinha o direito de dizer aquelas coisas a respeito dele. Ficava furiosa só de pensar nisso. Porque é que todos eram tão desagradáveis para com Brandon? E porque é que se via sempre obrigada a defendê-lo e a responder às perguntas dos outros sobre o seu comportamento?

            O telefone não voltou a tocar, e por fim Allegra adormeceu, às duas da madrugada. Depois tocou as quatro, e ela levantou-se de um salto, com o coração em alvoroço, julgando que era Brandon. Mas era Carmen. Ouvira um barulho e ficara aterrada. Falava em surdina e estava tão assustada que as suas palavras mal faziam sentido. Allegra levou quase uma hora para acalmá-la outra vez e perguntou a si própria se deveria ir ao seu encontro. Contudo, Carmen insistiu que já estava bem. Mostrou-se envergonhada por serem cinco da manhã, mas Allegra assegurou-lhe que não tinha importância.

            — Vá dormir um pouco, senão fica com um aspecto horrível para a festa desta noite, e, como é provável que ganhe, tem de se apresentar bem. Agora volte para a cama disse Allegra, como se fosse uma irmã mais velha.

            — Está bem.

            Carmen riu, sentindo-se como se fosse uma criança. Cinco minutos depois de ela desligar, Allegra adormeceu. Estava extenuada. Só se mexeu às oito da manhã, quando Brandon telefonou, acordando-a.

            — Estava levantada? —  perguntou ele.

            Allegra fingiu que já tinha acordado e gemeu ao olhar para o relógio. Dormira menos de cinco horas e ressentia-se disso.

            — Levantei-me várias vezes aliás, disse ela, recuperando a compostura. A Carmen teve um pequeno problema.

            — Oh, pelo amor de Deus! Não sei por que continua a aturar essa situação absurda! Devia ter um serviço de atendimento, ou então desligar o telefone.

            Não estava na natureza de Allegra fazer tal coisa, que, além disso, também não era compatível com a sua profissão, mas Brandon nunca a entenderia.

            — Não faz mal, já estou habituada. Ela recebeu uma ameaça de morte. Ao olhar para o relógio outra vez, viu que eram oito e cinco e lembrou-se que tinha de telefonar para a polícia e para o FBI a participar o sucedido. Ia ter uma manhã atarefada. Onde esteve ontem à noite?

            Tentou não falar num tom de acusação e não pensar nas palavras de aviso de Sam.

            — Sai com uns amigos. O que aconteceu? Porque me telefonou duas vezes?

            — Por nada  — respondeu ela, sentindo-se logo na defensiva —  Só queria te dar as boa-noite. Julguei que tinha ido ver as meninas ontem à noite.

            Se não fora, porque partira para São Francisco na sexta-feira?

            — E era para ir, mas o avião chegou atrasado e a Joanie disse que elas tinham tido um dia cansativo, por isso telefonei a dois colegas com quem trabalhei. Andamos pelos bares e estivemos conversando. Às vezes, Allegra esquecia-se de que ele vivera naquela cidade. Pensei que tivesse acontecido alguma coisa quando cheguei e soube que havia telefonado, mas calculei que já estivesse dormindo a essa hora. Afinal, acho que podia ter feito como os seus clientes e ligar a qualquer hora do dia ou da noite..

            Brandon não concordava com os telefonemas que ela recebia de madrugada, mas a maioria dos clientes de Allegra só o faziam quando eram obrigados a isso.

            — Parece que você tem se divertido —  observou Allegra, tentando não se mostrar irritada ou desapontada, como na realidade estava.

            — É verdade. Às vezes, é divertido voltar a esta cidade. Ontem à noite, foi interessante. Já não ia àqueles bares há séculos! A situação não a atraía, mas talvez fosse divertido para ele encontrar-se com os amigos. Brandon trabalhava muito e era raro fazer uma coisa deste gênero. Vou buscar minhas filhas às nove. Prometi levá-las a Sausalito e talvez a Stinson. É pena que não possas estar aqui  — disse ele, mostrando-se de novo mais terno.

            — Esta manhã tenho que ir à polícia por causa da Carmen, e talvez ao FBI, porque a carta chegou pelo correio, e à noite vou à festa dos Globos de Ouro.

            — Deve ser divertido —  disse ele, mostrando-se totalmente desinteressado, como se nunca tivesse feito parte dos seus planos ir lá. Como correu o jantar ontem à noite?

            — Bem. O costume: os Steinberg no seu melhor e no seu pior. O Scott veio a casa e foi agradável. A Sam está muito desprendida. Acho que é da idade, mas não posso dizer que me agrade.

            — Isso é porque a sua mãe a deixa fazer tudo o que ela quer. Na minha opinião, acho que não é a melhor maneira de tratar uma menina mimada, e ela está ficando demasiado crescida para isso. Admira-me que o seu pai não se imponha!

            Na opinião de Allegra, Brandon estava sendo um pouco ríspido, e, apesar de não discordar totalmente dele, estava admirada por se mostrar tão crítico para com os seus irmãos. Ela tinha sempre o cuidado de não dizer nada desagradável acerca das filhas dele.

            — O meu pai adora-a. E, além disso, a Sam tem trabalhado mais como modelo nestes últimos tempos, talvez seja por isso que está tão cheia de si  e julga que pode fazer tudo o que deseja.

            Allegra continuava pensando nos comentários de Sam na noite anterior, e agora estava duplamente ofendida com a irmã por ela a ter preocupado sem motivo. Era curioso que as palavras de Sam a tivessem afetado, mas Allegra sabia que isso se devia ao fato de se sentir triste por Brandon ter ido passar o fim-de-semana a São Francisco.

            — Um destes dias, ainda arranja problemas por causa dos ares de modelos. Algum fotógrafo se mete com ela, ou lhe oferece drogas... Acho que tudo isso é muito pouco saudável para a Sam. Estou admirado por os seus pais a autorizarem a fazer tal coisa.

            Para Brandon, tudo se devia aos malefícios do mundo do espetáculo, em todas as suas formas e variantes. Mostrava claramente o seu desacordo e dizia muitas vezes que nunca permitiria que as filhas fossem modelos, atrizes ou fizessem qualquer coisa que as expusesse ao olhar do público. Sempre fizera Allegra sentir que tais atividades eram desagradáveis e pouco interessantes, apesar de os seus pais terem saído muitíssimo bem e ela se orgulhar disso.

            — Talvez tenha razão —  respondeu diplomaticamente, perguntando a si própria se eles seriam demasiado diferentes ou se essa idéia se deveria ao fato de ele estar longe. A verdade é que sentia que Brandon a abandonara.

            Às vezes era difícil afirmar, mesmo passados dois anos, que fizera a escolha correta. Quase sempre pensava que Brandon era o homem certo para ela, mas de vez em quando, como agora, sentia que eram dois estranhos.

            — Tenho de ir buscar as meninas —  disse ele. Te telefono logo à noite acrescentou, para acalmá-la.

            — Estarei no Globo de Ouro... — ela lhe lembrou  com doçura.

            — É verdade, tinha esquecido —  disse ele, e o modo como falou fez com que Allegra tivesse vontade de bater nele. Te telefono amanhã de manhã.

            — Obrigada. Depois, odiando-se por isso, acrescentou: Tenho pena que não possa ir...

            — Vai e divirta-se, de qualquer modo. O Alan Carr é melhor companhia do que eu para essas coisas. Pelo menos, sabe com quem fala. Eu, não. Vê lá como ele se porta, e diz-lhe que é a minha garota, Allie. Nada de graças... —  advertiu Brandon.

            Allegra sorriu, de novo enternecida. Ele falava a sério e amava-a, embora não se apercebesse da importância que as cerimônias de entrega de prêmios tinham para ela. Elas eram a sua vida, eram importantes para a sua família e para a sua profissão.

            — Vou sentir a sua falta. E, só para que saiba, preferia ir com você do que com o Alan...

            — Farei o possível por ir no próximo ano, querida, prometo. —  Brandon parecia sincero.

            — Está bem —  disse Allegra, desejando que ele estivesse na cama, a seu lado.

            Pelo menos, era um lugar em que nunca sentia as diferenças, apenas as semelhanças que havia entre eles. Sexualmente davam-se muito bem. E talvez o resto também melhorasse. Os divórcios nunca eram fáceis.

            —Divirta-se com as meninas, querido, e diga que tenho saudades delas.

            — Prometo. Amanhã te telefono. Vou estar atento ao noticiário desta noite.

            Allegra riu. Seria a última pessoa a ser vista. Não fora nomeada, nem era apresentadora; era apenas uma anônima insignificante que não interessava às câmaras, a menos que a filmassem, se o pai ou a mãe ganhassem, ou Carmen. Mas eles guardavam-se para os vencedores. A única coisa que poderia atrair as atenções para ela seria o fato de acompanhar Alan Carr, mas, sendo relativamente desconhecida, não acreditava que tal acontecesse. Duvidava que Brandon a visse.

            Desligaram, e Allegra sentiu-se melhor depois de falar com ele. Às vezes Brandon não compreendia o seu meio e era lento em organizar a sua vida, mas era um grande tipo, e era sempre obrigada a explicar a todas as pessoas que o amava. Era lamentável que não vissem as suas virtudes, como ela via.

            Levantou-se e ligou a máquina do café. Em seguida, telefonou à polícia, ao FBI e à empresa de segurança que guardava a residência de Carmen. Pouco depois encontrou-se com eles em casa da atriz e ficou satisfeita por verificar que estava sendo feito tudo para protegê-la. Tinha contatado os seus dois guarda-costas preferidos, Bill Frank e Gayle Watels, que haviam saído da equipe de operações especiais do LAPD. Felizmente estavam livres e aceitaram trabalhar com Carmen durante algum tempo. Iriam com ela à cerimônia dessa noite, e Carmen ficara aliviada por se saber tão bem protegida. Allegra mandara Gayle à casa Fred Hayman para fazerem um vestido, o que não era tarefa fácil, porque teriam de esconder o coldre e todas as suas armas, mas as senhoras da Fred Hayman estavam habituadas a tarefas invulgares.

            Allegra conseguiu chegar a casa as quatro e quinze, enquanto o cabeleireiro e a esteticista se ocupavam de Carmen. Mal teve tempo de tomar ducha, pentear-se e enfiar-se no vestido preto comprido e colado ao corpo que comprara para a ocasião. Era discreto, mas de muito bom corte, e atraía as atenções. Era uma criação de Ferre e tinha um fabuloso casaco branco de organdi. Depois pôs os brincos de pérolas e diamantes que o pai lhe dera quando completara vinte e um anos. O cabelo louro e sedoso, apanhado no alto da cabeça, caía-lhe numa cascata de rolos e caracóis e dava-lhe um ar sensual. Alan Carr chegou, estonteante no seu novo smoking Armani. Usava uma camisa de seda branca de colarinho estreito e sem gravata e penteara o cabelo preto para trás. Estava ainda melhor do que nas suas seis últimas fotografias.

            — Uau! —  exclamou Alan, antes que ela pudesse dizer o mesmo.

            O vestido de Allegra tinha uma abertura que deixava ver as meias de seda preta e calçava umas sandálias de cetim preto, de salto alto.

            — Acha que posso me portar bem com você assim? — perguntou, fingindo-se incrédulo.

            Allegra riu e beijou-o. Ele sentiu o seu perfume no pescoço e no cabelo e, tal como noutras ocasiões, perguntou a si próprio porque nunca tentara reacender a velha chama nos últimos anos. Começava pensar que podia surgir uma nova oportunidade para ambos, e Brandon Edwards que fosse para o inferno!

            —  Obrigada, senhor. Também está muito elegante —  declarou Allegra, admirando-o com um afeto genuíno. Está mesmo com bom aspecto!

            —  Não devia ficar tão admirada —   disse ele, rindo —  Não é delicado da tua parte.      

            —  Às vezes esqueço-me de como é bonito. Penso em você mais ou menos como penso no Scott.. Um menino grande, percebe? De jeans esfarrapados e tênis sujos.

 

            — Está deixando-me destroçado... Fique quieta! Adoro o seu aspecto  —  disse ele com admiração, baixando subitamente a voz e com uma expressão no olhar que ela não via desde os tempos em que tinham catorze anos e que pensava que não voltaria a ver.

            Allegra fingiu não se importar com isso

            —  Vamos? —  perguntou Alan, enquanto ela pegava numa pequena bolsa preta de cerimônia com um fecho de pérola e cristal de rocha.

            Tudo na sua aparência era perfeito e formavam um par muito elegante. Allegra sabia que estar com ele equivalia a serem constantemente perseguidos pela imprensa. Queriam saber quem ela era e se haviam ou não de desencadear uma onda de novos boatos acerca da vida sentimental de Alan Carr.

            —  Prometi à Carmen que íamos buscá-la —  explicou Allegra, quando saíram e se dirigiram para a limusine que os aguardava. Era grande e a jovem não tinha dúvidas de que havia espaço para todos. Fora Alan que a alugara, com o motorista, numa base anual. Fazia parte do seu contrato atual.

            —  Importa-se?

            — Acho que sim. Não fui nomeado, por isso não tenho pressa de chegar. Ouça, talvez nós pudéssemos ir para outro lado qualquer. Está demasiado bonita para perder o seu tempo com aqueles estúpidos e os idiotas dos tablóides!

            —  Comporte-se... —   disse ela em tom de admoestação.

            Alan beijou-a no pescoço, mas apenas por brincadeira.

            —  Vê como eu me comporto bem. Nunca despenteio uma mulher. Fui treinado por especialistas.

            Com um gesto elegante, ajudou-a a entrar no automóvel e Allegra deu-lhe um sorriso quando ele entrou atrás dela.

            —  Bem sabe que metade das mulheres americanas daria o braço direito, e o esquerdo, para estarem sentadas aqui ao seu lado. Sou mesmo uma garota de sorte, não sou?

            Sorriu e ele deu uma gargalhada, fingindo-se envergonhado.

            —  Não seja tola, Al. Eu é que tenho sorte. Está deslumbrante esta noite!

            —  Espere até ver Carmen. Está absolutamente de morrer!

            —  Ela não te chega aos calcanhares, minha amiga —   retorquiu Alan com ar galante.

            Porém, quando chegaram a casa de Carmen e entraram na rampa ficaram estupefatos. A atriz estava ladeada pelos guarda-costas que Allegra contratara. Bill parecia uma parede enfiada num smoking e Gayle tinha um ar afetado no seu belo vestido de lantejoulas cor de bronze, que lhe realçava a figura e o cabelo acobreado. O casaco, combinado, disfarçava completamente as duas armas que trazia, uma Walker-PPK.380 e uma Derringer. 38 Special. Foi Carmen que lhes fez perder o fôlego e que deixou Alan literalmente sem fala. Usava um vestido de seda vermelha, de gola alta e mangas compridas, que realçava cada curva do seu corpo perfeito. Tal como o de Allegra, tinha uma grande abertura, que revelava as suas pernas de deusa. Quando se virava, quase parecia que o vestido não tinha costas, e via-se a pele cremosa até às nádegas, bem torneadas. O cabelo, louro-prateado, estava preso atrás num elegante coque. Carmen tinha não só um aspecto terrivelmente sensual, como um toque de distinção. Parecia uma versão muito sexy e jovem de Grace Kelly.

            —  Uau! —  exclamou Allegra, falando pelos dois. Está fabulosa!

            —  Gosta? —  Carmen parecia uma menina rindo para eles, e ficou mortificada ao sentir que corara quando Allegra a apresentou a Alan. Tenho o maior prazer em conhecê-lo  —  disse ela, quase engasgando com as palavras.

            Alan abanou a cabeça e garantiu-lhe que também sempre quisera conhecê-la. Acrescentou que Allegra só fizera referências agradáveis a seu respeito, e Carmen sorriu para a advogada com um misto de gratidão e de prazer.

            —  Acho que ela lhe mentiu. Às vezes sou muito chata —  retorquiu, e todos soltaram uma gargalhada.

            É a natureza da profissão  —  desculpou-se Alan.

            Os dois guarda-costas instalaram-se em frente deles, de cada lado do televisor e do bar. Ao arrancarem, Allegra ligou-o, para ver quem ia chegando à cerimônia e, pouco depois, avistou os pais. A mãe estaca com um vestido de veludo verde-escuro e estava muito bela quando os Steinberg sorriram para os repórteres. O locutor explicava quem eles eram aos telespectadores que se encontravam em casa no momento exato em que a limusine parou junto do apartamento de Michael Guiness. O jovem estava à espera deles e saiu a correndo, cumprimentou a todos e saltou para o banco da frente, ao lado do motorista. Alan e Michael já tinham trabalhado juntos num filme, e Allegra apresentou-o a Carmen e aos guarda-costas quando partiram para o Hilton.

            —  Nunca fui à cerimônia do Globo de Ouro  —  disse Michael, entusiasmado por ir com eles.

            Era pouco mais velho do que Carmen, mas menos sofisticado e muito menos famoso do que ela, e, por instantes, Allegra pensou que, de certo modo, Carmen se aliava mais como acompanhante de Alan, porém, sabia perfeitamente que isso seria uma história fantástica para os tablóides.

            Ao aproximarem-se do Hilton, puseram-se na longa fila de limusines que esperavam despejar os seus passageiros reluzentes, como pedacinhos de isco atirados à água para excitar os tubarões que patrulhavam os oceanos. Centenas de repórteres empunhavam máquinas fotográficas e estendiam microfones e gravadores, tentando captar um momento, um olhar, uma palavra, junto de uma pessoa importante E lá dentro a multidão era ainda mais compacta. Havia pequenas áreas destinadas aos jornalistas e aos operadores de câmara para entrevistarem os nomeados ou qualquer ator sedento de publicidade que lhes concedesse uns minutos. Além deles, viam-se filas de fãs, encostados às paredes, de tal modo que o enorme hall estava reduzido a um minúsculo corredor através do qual as pessoas entravam no grande salão de baile, onde se encontravam todas as estrelas de televisão e de cinema conhecidas, de maior ou menor grandeza. Era um grupo extraordinário e mesmo entre os fãs que estavam lá fora, havia um ambiente de grande expectativa. Assim que cada limusine se aproximava e surgia um novo rosto, gritavam o seu nome ou aplaudiam, e dezenas de repórteres precipitavam-se, à luz de centenas de flashes das máquinas fotográficas.

            Carmen Connors ficou apavorada só de ver aquilo. Fora ao Globo de Ouro no ano anterior, mas, como agora era uma das nomeadas, sabia que a imprensa estava muito mais ansiosa por devorá-la. E como recebera uma ameaça de morte na noite anterior, sentia-se ainda mais nervosa com a atenção, a multidão e as câmaras.

            — Você está bem? —  perguntou-lhe Allegra, num tom maternal.

            — Sim  —  respondeu ela, quase num murmúrio.

            —  Deixe-nos sair primeiro, a mim e ao Bill, depois o Michael e a seguir você. A princípio, ficaremos entre você e as câmaras —   explicou Gayle tranquilamente, transmitindo uma sensação de proteção só pela maneira como pronunciou estas palavras.

            —  Nós formaremos a retaguarda  —   acrescentou Allegra para sossegá-la, mas sabendo que as atenções se concentrariam extremamente em Alan. Este fato poderia desviar um pouco o interesse suscitado pela presença de Carmen, mas também atrairia mais repórteres sobre eles. Não era possível evitar a imprensa naquele local. Havia centenas de pessoas à espera deles, talvez um milhar. Nós ficamos aqui, Carmen. Você tem de entrar na sala. Vai ver que se sente bem.

            Allegra lembrou-se que estavam lá muitas outras estrelas.

            —  Vai habituar-se a isto —  disse Alan, tocando ao de leve no braço de Carmen.

            Havia nela uma ternura que lhe agradava e uma vulnerabilidade que não via há anos, mas que o atraía bastante. A maioria das atrizes que conhecia eram muito frias.

            —  Não creio que alguma vez me habitue —  respondeu Carmen em voz baixa, fitando-o com os seus grandes olhos azuis.

            Alan teve vontade de abraçá-la, mas sabia que a chocaria com o seu gesto.

            —  Vai sentir-se bem —   reiterou ele, calmo. Não lhe acontecerá mal nenhum. Eu estou constantemente recebendo ameaças desse gênero. São doidos! Nunca cumprem o que prometem!

            Alan disse isto com uma confiança total, porém não fora exatamente o mesmo que o FBI afirmara essa tarde. Segundo eles, a maior parte das ameaças concretizadas, em geral, eram antecedidas de qualquer tipo de explicação, como aquela que Carmen recebera pelo correio: a convicção de que andava enganando o homem que lhe enviara a mensagem e que lhe devia alguma coisa, embora ela tivesse a certeza de que nem sequer o conhecia. Tal como Alan, também os agentes pensavam que a maioria das ameaças eram apenas o grito débil de pessoas confusas e incapazes, mas havia sempre uma que fazia o que prometia e causava uma verdadeira desgraça. A polícia e o FBI haviam recomendado que tivesse cuidado durante uns tempos e que tentasse evitar aparições públicas ou esperadas e locais muito concorridos. Mostrar-se nessa noite era demasiado arriscado, mas, por outro lado, ir ao Globo de Ouro fazia parte da sua profissão, e Carmen sabia-o.

            —  Eu estou aqui  —  disse ele baixinho, agarrando-lhe no braço e ajudando-a a sair ao encontro de Bill e de Gayle, os seus guarda-costas, e de Michael, que a esperava na calçada. Alan não tirou os olhos dela, nem Allegra.

            O efeito foi quase instantâneo quando uma centena de repórteres se precipitou para Carmen e a multidão começou a chamá-la com vozes estridentes. Allegra nunca vira uma coisa assim. Era como se tivessem sido apanhados por uma onda, ao olharem para ela. Allegra e Alan pensaram quando fora a última vez que Hollywood produzira uma estrela com o carisma de Carmen.

            —  Pobre menina! —  exclamou Alan, com pena dela. Conhecia bem a situação, mas nunca se sentira tão dominado por ela como lhe parecia que sucedia com Carmen. Era um pouco mais velho quando alcançara o seu primeiro grande êxito e, depois de adulto, nunca tinham conseguido pressioná-lo tanto nem aproveitar-se dele daquela maneira.

            —  Anda —   disse ele, agarrando Allegra, mas sem tirar os olhos de Carmen, tentando esquivar-se, abrir caminho e sorrir, enquanto os fãs, os repórteres e as câmaras a empurravam. Eram às centenas, e até a fila das limusines estava bloqueada. Ninguém conseguiu se mexer, até a massa humana que envolvia Carmen dispersar. Vamos ajudá-la acrescentou, e abriu caminho entre a multidão, onde os guarda-costas se debatiam e a polícia começara a mudar de posição.

            Michael Guiness estava perdido naquele mar de gente, com um ar completamente indefeso, mas, pouco depois, Alan aproximou-se, com Allegra agarrada a ele, e pôs um braço firme nos ombros de Carmen.

            —  Olá! —   exclamou, hábil, como se oferecesse para proporcionar um momento de descanso a Carmen.

            Assim que o reconheceu, a multidão entrou em delírio, gritando o seu nome e o de Carmen.

 

            —  Claro que sim... Claro que estou... Temos aqui uma vencedora... Exatamente... Muito obrigado... Feliz por estar aqui... Miss Connors será uma das nossas vencedoras esta noite...

            Alan não deixava de gracejar com eles, ao mesmo tempo em que abria caminho com os seus ombros de futebolista e continuava a andar, e, ao verem o que ele fizera, Gayle e Bill conseguiram passar à frente. Gayle esgueirou-se por baixo de vários arcos com os seus saltos de estilete, fingindo uma inocência total, e Bill exibiu toda a sua corpulência, abrindo caminho para que Carmen entrasse no edifício. O passo era lento, mas por fim conseguiram avançar, e Alan aproveitou a ocasião, agarrando-se a Allegra e a Carmen. Pouco depois estavam lá dentro e ouviram-se novos gritos dos fãs. Os repórteres acorreram de novo, aproximando as câmaras de televisão do rosto deles. Por instantes, Carmen virou-se para o lado, mas Alan agarrou-a com força e continuou a falar para mantê-la calma e a ajudar a avançar.

            —  Você está bem —   repetia constantemente, você está bem... Venha, agora, sorria para as câmaras. Todo o mundo está vendo-a esta noite!

            Carmen parecia romper a chorar, e Alan apertou-a ainda com mais firmeza. Por fim, com um último impulso, entraram no salão, vendo-se livres dos seus perseguidores. Uma das  abas do casaco de Allegra estava ligeiramente rasgada e a abertura no vestido de Carmen subira consideravelmente. Um fã agarrara-lhe mesmo a perna e outro tentara pegar seus brincos. Fora a confusão total, e Carmen tinha os olhos marejados de lágrimas quando chegaram ao salão

            —  Nem se atreva! —  disse-lhe Alan em voz baixa. Se lhes der a entender que está assustada, da próxima vez que a virem será pior. Tem de agir como se nada disto a incomodasse. Finja que gosta...

            —  Detesto —  replicou Carmen, deixando escapar duas lágrimas, que lhe rolaram pela face.

            Alan estendeu-lhe o lenço.

            —  Estou falando a sério. Tem de ser muito forte quando os encarar Aprendi isso há cinco anos. Se não, eles arrancam-lhe o coração e a seguir rasgam-lhe a roupa!

            Allegra fez um sinal afirmativo, grata por Alan as acompanhar. Talvez tivesse sido melhor assim. Brandon não teria prestado qualquer ajuda, quanto muito, teria irritado a imprensa e Michael ainda não entrara no salão.

            —  Ele tem razão, sabe? Você tem que dar a impressão que controla isto de olhos fechados.

            —  E se não conseguir? —  perguntou Carmen, visivelmente abalada, fitando Alan com ar de gratidão. Tinha vergonha de olhar para ele. Era tão belo e famoso! A verdade é que era tão famosa como ele, mas não o sabia, o que contribuía muito para o seu encanto.

            —  Se não conseguir, então não pertence a este mundo —  disse Alan em voz baixa.

            —  Talvez não pertença... —  respondeu ela tristemente, devolvendo-lhe o lenço. Tocara apenas nos olhos e ficara quase sem rímel.

            —  A América diz que sim. Acha que eles são mentirosos? —  perguntou Alan propositadamente, avistando um grupo de gente conhecida.

            —  Apresentou-os a todos. Allegra conhecia a maior parte. Bill e Gayle tinham-se afastado alguns metros, cientes de que o perigo diminuíra. Alan e Carmen estavam agora com os seus pares, com outras estrelas, produtores e realizadores.

            Pouco depois, os pais de Allegra juntaram-se a eles. Blaire beijou Alan, manifestou a sua satisfação por voltar a vê-lo e disse-lhe que gostara muito do seu último filme. Simon abanou a cabeça, desejando intimamente, como sempre, que Allegra se apaixonasse por ele.

 

            Alan era o tipo de genro com que todos sonhavam. Era belo e inteligente, de trato fácil e porte atlético. Simon e Alan tinham jogado golfe e tênis várias vezes e, quando ele e Allegra andavam na escola secundária, Alan vivera literalmente na cozinha dos Steinberg, mas nos últimos anos andara muito atarefado, e Simon não sabia se estava ali como acompanhante de Allegra ou de Carmen Connors. Parecia igualmente atento a ambas. Por fim entrou Michael, que encontrou um grupo de amigos e ficou  falando com eles a alguns metros de distância.

            —  Há muito tempo que não o víamos  —  queixou-se Simon a Alan, mostrando-se bem-humorado. Não se afaste dessa maneira!

            —  No ano passado, estive seis meses na Austrália, e antes disso passei oito meses no Quênia rodando um filme. Regressei há pouco da Tailândia. Nesta maldita profissão, andamos sempre a viajar. Para o mês que vem, vou para a Suíça. Às vezes é divertido, como sabe...

            Firmou um olhar cúmplice em Simon. Nunca trabalhara para ele, mas, como toda as pessoas em Hollywood, gostava muito de Simon Steinberg. Era um homem inteligente, simpático, comportava-se sempre como um cavalheiro e, tanto nos seus acordos como na sua palavra, era infalivelmente honesto. Em muitos aspectos, era parecido com Allegra, e estas eram as mesmas qualidades que Alan apreciava nela. Isso e o fato de ter umas belas pernas e uma figura que não lhe permitia pensar nela como uma irmã. Ao princípio da noite recomeçara a acalentar sonhos românticos com ela, mas, assim que Carmen aparecera, fora como se  tivessem retirado as entranhas. Não sabia se estava de cabeça para cima ou para baixo ou o que sentia por ela; só sabia que lhe apetecia pegar Carmen no colo e atravessar a multidão até chegarem a um lugar onde fosse possível ficarem sós durante muito, muito tempo, onde pudesse conhecê-la. Apesar da sua afeição por Allegra nos últimos quinze anos, nunca se sentira assim; desde que Carmen Connors entrara na limusine que não conseguia tirar os olhos dela.

            Allegra também reparara e sorriu-lhe. Achava que ele acertara em cheio, e depressa, e não sabia ao certo se importava com isso.

            —  Eu disse-te que ias gostar dela... —   murmurou em tom adulador no momento em que se encaminhavam para a mesa e uma dúzia de fotógrafos tiravam fotografias deles. Carmen e Michael estavam atrás deles e Bill e Gayle eram os últimos. Carmen vinha bem protegida entre todos eles, mas a imprensa andava atarefada com outras estrelas de primeira grandeza, embora nenhuma fosse tão bela.

            —  Porque é que me faz lembrar a Sam quando fala comigo dessa maneira? —  replicou ele, mostrando-se um pouco aborrecido e sem querer admitir perante ela nesse momento que estava enamorado de Carmen.

            —  Está me chamando de menina ou só a dizer-me que pareço ter dezessete anos? —   gracejou Allegra, quando outro fotógrafo, este do Paris Match, tirou uma fotografia.

            —  Estou a te dizendo que é uma chata, mas te amo mesmo assim  —  retorquiu ele, sorrindo, com um olhar pelo qual milhões de mulheres teriam dado a vida.

            —  Você é mesmo muito engraçado, sabe? —   continuou ela, com vontade de lhe dar um empurrão, mas sem se atrever a tal naquele lugar. Acho que a Carmen pensa o mesmo, para te dizer a verdade —   acrescentou, como uma irmã mais velha e onisciente.

            —  Talvez seja preferível não se meter nisso —   disse ele em tom de aviso. Desejava  beijá-la outra vez no pescoço e sentia-se completamente louco.

            Era ridículo. Durante quinze anos conhecera-a e amara-a sobretudo como um irmão, e agora, de repente, sentia-se de novo sexualmente atraído por ela e, ao mesmo tempo, pela sua cliente, aquela loura explosiva. Nada disto devia acontecer. Virou-se e pediu um uísque com gelo a um criado que estava passando. Precisava de uma bebida para aclarar as idéias, ou talvez só para se sentir um pouco menos atordoado.

            —  Não quero que fale no assunto com ela —   disse ele a Allegra quando se encaminhavam para a mesa que lhes fora destinada.

            Era uma mesa para dez pessoas: Allegra e Alan, Carmen e Michael, um produtor amigo do pai que ela conhecia há anos, a mulher, que fora uma atriz muito famosa nos anos quarenta, um casal de que Allegra nunca ouvira falar, o que era raro, e Warren Beatty e Annette Bening.

            —  Estou falando a sério, Allegra —   disse Alan outra vez. Não quero que interfira nem que tente provocar seja o que for.

            —  Quem é que disse que eu ia interferir? —   perguntou ela com uma inocência angélica, quando Carmen se aproximou.

            A jovem atriz estava um pouco mais à vontade e fitou Alan com os seus grandes olhos azuis e um sorriso aberto quando ele se sentou ao seu lado. Conversaram durante alguns minutos e depois Allegra afastou-se para ir cumprimentar uns amigos. Encontravam-se lá vários sócios da firma de advogados e quase todos os clientes mais importantes. Os pais tinham uma mesa cheia dos seus amigos mais íntimos, muitos deles diretores e produtores, além da estrela do último filme do pai. Estavam todos no seu ambiente, e também Allegra se sentiu totalmente à vontade ao atravessar a multidão, cumprimentando as pessoas que conhecia bem e rindo aqui e ali com um velho amigo. Na sua maioria, eram escritores, produtores ou diretores. Também havia gente dos estúdios e das televisões muito em evidência. Era uma noite realmente importante.

            —  Você está estonteante! —  comentou Jack Nicholson quando ela passou.

            Allegra agradeceu o cumprimento.

            Nicholson era um dos amigos mais antigos do pai. Ao passar por Barbra Streisand, Allegra saudou-a com um gesto de cabeça e ela correspondeu. Não sabia ao certo se Barbra a conhecia, mas conhecia a mãe, Blaire Scott. E Allegra ficou particularmente satisfeita por parar para conversar com Sherry Lansing. Era reconfortante verificar que muitos homens olhavam para ela com uma admiração ostensiva. De certo modo, Brandon era tão reservado que era raro receber dele este tipo de atenção. Mesmo no meio das estrelas, Allegra mantinha a sua a brilhar, o que não deixava de surpreendê-la.

            —  O que anda fazendo? —  perguntou Alan quando ela voltou. Passeando?

Não pode, se for a minha acompanhante. Esse tipo com quem sai te fez criar maus hábitos... Fingiu-se irritado com ela, mas Allegra sabia que estava a brincar.

            —  Ora, cala-se e porta-se bem! —  replicou, com um sorriso.

            Sentou-se e pouco depois foi servido o jantar. Após o café, as luzes diminuíram de intensidade, e eles foram para o ar, com a música, o espetáculo e o Globo de Ouro televisionado em todo o seu esplendor. Quando a cerimônia começou, os corações bateram mais depressa. Durante algum tempo, os apresentadores saltaram entre o cinema e a televisão. Começaram pelos prêmios menos importantes, mas logo no início da noite várias pessoas que Allegra conhecia foram homenageadas. Todos se apressavam a empoar o nariz e a pôr batom durante os intervalos de publicidade e, à medida que os prêmios eram entregues, as câmaras focavam os nomeados e enervavam ainda mais todas as pessoas. Por fim, chegou a vez da mãe de Allegra. Ela ganhara o prêmio para a melhor série de comédia durante tantos anos que Allegra não duvidava que voltaria a alcançá-lo. Trocou um olhar cúmplice com Alan e lamentou não estar mais perto da mesa dos pais, para pegar na mão da mãe em sinal de apoio. Era difícil acreditar que Blaire estivesse preocupada ao fim de todos aqueles anos, mas ela confessava-se sempre inquieta, e, quando Allegra viu o seu rosto no monitor, verificou que estava tão aterrada como os outros nomeados. Parecia em pânico. Em seguida, disseram os nomes, um por um. A música, o silêncio interminável, enquanto todos aguardavam... E depois o nome dela... Só que nesse ano, pela primeira vez depois de sete anos consecutivos de vitória, não foi o nome da mãe que se ouviu, mas o de outra pessoa qualquer. Allegra ficou petrificada, como sabia que a mãe ficara. Nem podia acreditar! Virou-se para Alan com os olhos cheios de lágrimas, a pensar nela, na dor e no desapontamento que devia estar sentindo nesse momento. Mostraram de novo a imagem da mãe no monitor, logo a seguir à do vencedor, que se dirigiu para o pódio. A expressão de Blaire era agradável e sorridente, mas Allegra percebeu que ela estava destroçada. Aquele desfecho refletia as preferências que o público manifestara através das audiências.

            —  Não posso acreditar... —  segredou a Alan, sentindo-se esmagada e desejosa de poder confortar a mãe. Porém, não era possível circular pela sala quando as câmaras estavam filmando.

            —  Nem eu, —  respondeu ele em voz baixa. Continua a ser um dos melhores programas da televisão. Sempre que estou em casa, vejo-o.

            Allegra sabia que ele estava falando verdade, mas sete anos de prêmios em nove era muito tempo. Chegara o momento de outra pessoa vencer. E era exatamente isso que Blaire Scott receava. Sentada no seu lugar, sentiu um peso no estômago; quando olhou para Simon, ele fez um gesto de cabeça e deu-lhe uma palmadinha na mão, mas Blair não sabia ao certo se o marido compreendia o que ela estava sentindo. Simon fora distinguido com o prêmio muitas vezes, mas as suas vitórias eram sempre acontecimentos diferentes. Não tinha um programa recorrente como ela, cujo padrão de excelência tivesse que manter, semana após semana, temporada após temporada. Em certos aspectos, o que Blaire fazia era muito mais difícil. Depois se lembrou que Simon também fora nomeado e tentou não ser tão egoísta, mas era difícil. Era como se estivesse perdendo em várias frentes, mesmo que mais ninguém se apercebesse disso.

            —  Espero que a minha mãe esteja bem —  disse Allegra, preocupada, à medida que a cerimônia avançava, e Alan comungava do mesmo sentimento.

            Allegra desejou que aquilo terminasse rapidamente, mas ainda havia muitos prêmios para distribuir. Era como se nunca mais acabasse! Depois foi a vez de Carmen. Os nomes para a melhor atriz de cinema foram lidos e as câmaras focaram de perto as nomeadas, uma por uma. Debaixo da mesa, Carmen apertava a mão de Alan, que a agarrava com força, esperando que ela ganhasse. E, de repente, foi a explosão do seu nome, as câmaras, os flashes, os aplausos. Quando Carmen se levantou e olhou para ele, Alan retribuiu-lhe o olhar, radiante, como se tivesse vivido unicamente à espera desse momento. De súbito Allegra percebeu que acontecera qualquer coisa especial nessa noite, algo de que nenhum deles se apercebera ainda, não sabia quanto tempo levariam a compreender, mas sentia que se criara uma espécie de magia entre eles.

            Alan estava de pé, à espera dela, quando Carmen voltou, rendida e sem fôlego, rindo e chorando ao mesmo tempo, agarrada ao seu prêmio. Abraçou-a e beijou-a no momento em que um dos fotógrafos disparou. Allegra apressou-se a puxar-lhe a manga e ele sentou-se rapidamente ao seu lado

            —  Tem cuidado avisou.

            Alan sabia que ela tinha razão, mas não fora capaz de se conter. Carmen estava tão entusiasmada que nem conseguia ficar quieta, e Allegra sentia-se tão feliz e orgulhosa dela que esqueceu um pouco a desilusão causada pelo fracasso da mãe. Em certos aspectos, era como se Carmen fosse a sua irmã mais nova. Allegra ajudara-a e acompanhara a sua carreira nos últimos três anos, quase desde que entrara na firma, e agora Carmen era uma das vencedoras. E bem o merecia!

            Seguiu-se mais uma hora de entrega de prêmios, e as pessoas começaram desejar ir para casa e a sentir que estavam ali há muito tempo. Depois foram entregues os prêmios finais: melhor ator de cinema, a contrapartida do galardão de Carmen, que foi para outro cliente da firma de Allegra. Melhor filme, melhor diretor e, finalmente, melhor produtor de filmes de longa-metragem. O prêmio do melhor produtor foi para Simon nesse ano, como já acontecera duas vezes, e Simon estava radiante quando subiu ao pódio, pegou no seu troféu e agradeceu a todas as pessoas, e em particular à mulher, Blaire, que seria sempre a número um para ele, como não deixou de frisar. Havia lágrimas no sorriso de Blaire quando olhou para o marido, e ele beijou-a quando voltou para a mesa.

            E por fim, nos últimos minutos, o prêmio humanitário, que não era atribuído todos os anos, mas só quando era verdadeiramente merecido por uma pessoa célebre do mundo do espetáculo. Foram exibidos trechos de vários filmes e enumeradas diversas obras ao longo de quarenta anos e, no fim, já todos tinham percebido de quem se tratava, exceto o laureado, que ficou pasmado ao ouvir o seu nome. Dessa vez Blaire levantou-se para aplaudi-lo e chorou ao beijá-lo. Era Simon Steinberg, que se encaminhou para o pódio.

            —  Meu Deus... Eu... Eu não sei o que dizer —  murmurou, profundamente comovido. Por uma vez, sinto-me incapaz de exprimir o que sinto. Se ganhei este prêmio e tenho a certeza que não o mereço foi graças a todos vocês  e à sua generosidade para comigo ao longo dos anos, à honestidade, à diligência, aos objetivos que me ajudaram a atingir e aos extraordinários momentos que partilhamos. Saúdo-vos a todos; agradeceu ao público, com os olhos marejados de água.

            Allegra sentiu as lágrimas a rolarem-lhe pela face, e Alan pôs-lhe o braço à volta dos ombros.

            —  Agradeço tudo o que foram para mim e fizeram por mim, tudo o que me deram. Vocês é que são seres humanos de privilégio, a par da minha mulher, Blaire, da minha filha Allegra e dos meus dois filhos que ficaram em casa, Scott e Sam, e de todos aqueles com quem trabalhei. Continuo a ser o seu humilde servo.

            Com estas palavras, Simon desceu do pódio e recebeu uma estrondosa ovação do público que se encontrava no grande salão de baile do Hotel Hilton. Era de fato um grande homem, e Allegra, ali de pé, chorou de alegria e de orgulho pelo pai.

            Fora uma noite maravilhosa, por vários motivos, e quando todos pegaram nas suas coisas, Allegra disse a Alan que queria ir falar à mãe. Alan concordou, assegurando que esperava por ela na mesa, com Carmen. Allegra foi encontrar a mãe no meio de um grupo de amigos e de colegas. Deu-lhe um grande abraço e disse-lhe que gostava muito dela.

            —  Sente-se bem? —   perguntou em voz baixa. Blaire tinha os olhos úmidos das lágrimas que vertera por Simon. Fora uma noite importante para ele, e sentia-se feliz pelo marido e suficientemente orgulhosa dele para esquecer o seu próprio desapontamento.

            —  Teremos de nos esforçar mais para o ano que vem —   afirmou aparentemente animada, mas Allegra viu algo no seu olhar que não lhe agradou, e quando a deixou e se aproximou do pai reparou que a mãe o fitava com nervosismo. Simon estava conversando com Elizabeth Coleson, uma diretora com quem trabalhara. Era uma inglesa fora do comum, porque apesar de ser muito nova, fora-lhe atribuído o título de ‘Lady’ na Inglaterra, em sinal de reconhecimento pelo seu enorme talento. Estavam ambos profundamente embrenhados na conversa, Simon ria e havia um toque de intimidade no modo como falavam. Não era nada de grave, mas Allegra sentiu qualquer coisa estranha ao observá-los. Depois, antes de poder concluir o seu raciocínio, o pai virou-se para trás e viu-a. Acenou-lhe imediatamente e apresentou-a como a única pessoa da família que tinha um emprego respeitável. Elizabeth Coleson deu uma gargalhada forte e rouca, apertando a mão de Allegra e dizendo que tinha muito prazer em conhecê-la. Era apenas cinco anos mais velha que Allegra e possuía aquela sensualidade comum nas inglesas, que é simultaneamente muito atraente e despreocupada, na medida em que não fazem qualquer esforço para serem sensuais, mas conseguem-no por completo. Ao observá-la, Allegra pensou que exalava sexo e talento. Parecia ter saído da cama naquele momento, o que levava os outros a interrogar-se se traria mais alguma coisa por baixo do vestido de noite azul-marinho, bastante simples e um pouco fora de moda. Era óbvio, mesmo para Allegra, que Simon gostava dela.

            Estiveram conversando durante alguns minutos, e Allegra disse ao pai que se orgulhava muito dele. Simon deu-lhe um abraço e um beijo, mas, quando os deixou, mantinha ainda aquela sensação incômoda em relação a Elizabeth. Regressou à sua mesa e, quando voltou a olhar, verificou que Blaire juntara-se a eles. Allegra sabia que fora uma noite difícil para a mãe, embora nunca o admitisse perante ninguém, nem sequer à filha mais velha. Estava muito preocupada com o seu programa. Ao fim de nove anos, era difícil continuar a mantê-lo interessante. Nos últimos tempos, a estação tinha perdido alguns anunciantes de vulto, devido à queda dos níveis de audiência, e o fato de o programa não ter sido premiado poderia agravar a situação.

            Mas, nessa noite, Allegra pareceu aperceber-se de outro tipo de inquietação no olhar da mãe, e perguntou a si própria se isso teria qualquer relação com Elizabeth Coleson ou seria simplesmente fruto da sua imaginação, e Blaire estaria apenas desolada por o seu programa não ter sido premiado. No caso da mãe, era difícil chegar a uma conclusão; Blaire era uma profissional e possuía um espírito desportivo insuperável. À saída, pelo menos uma dúzia de repórteres perguntaram-lhe como se sentia por não ter sido premiada. Ela exprimiu a sua satisfação pelo argumentista/produtor que ganhara o prêmio e a sua admiração pelo respectivo programa com a elegância que lhe era peculiar e realçou a importância que os prêmios do marido tinham para si e as suas excepcionais qualidades humanas, acrescentando que talvez fosse tempo de serem reconhecidos talentos mais novos.

            À saída, Carmen foi de novo assediada pelos fotógrafos, ainda mais do que na chegada, e os fãs entraram em delírio quando a viram. Lançaram-lhe flores, quiseram tocar-lhe e uma mulher, gritando o seu nome, atirou-lhe um urso de pelúcia que a ia atingindo na cabeça. Felizmente, Alan apanhou-o a tempo.

            —  É como no futebol —  disse ele, sorrindo, a Allegra.

            Para sua grande surpresa, gostara verdadeiramente da noite, e propôs a Allegra que fossem comer um hambúrguer em um restaurante estilo anos cinqüenta que conhecia e que convidassem Carmen e Michael.

            Levaram meia hora para entrar no carro e, já lá dentro, sentiram-se como que apalpados, maltratados e puxados por milhares de mãos e de repórteres.

            —  Céus! Acho que quero ser entregador no Safeway quando for grande —  resmungou Michael do banco da frente, com um gemido de cansaço, o que provocou uma gargalhada geral.

            No entanto, quando Alan sugeriu que fossem comer um hambúrguer, ele disse que se sentia exausto, porque estava gravando um filme e no dia seguinte tinha de chegar cedo ao estúdio. Se os outros não se importassem, iria para casa. Carmen concordou. Estava satisfeita por ir sair com Allegra e Alan.

            Deixaram Michael em casa e em seguida foram para o Ed ebevic’s, em La Cienega. Carmen lamentou não ter trocado o vestido de noite por uma camiseta e  jeans.

            — Eu também —   disse Alan com ar travesso, fazendo rir as duas mulheres. Por sinal, acho que você ficaria incrível de jeans. E se amanhã fosse comigo até Malibu, para eu saber se gosto mais de te ver de vestido de noite vermelho ou de jeans? Uma espécie de Cortejo de Miss América... Com os diabos, você podia ganhar o prêmio de Miss Simpatia... Ou o concurso de trajes de banho..

            Carmen riu e Allegra acompanhou-a. Instalaram-se num compartimento e alguns dos clientes viraram-se quando os dois guarda-costas se sentaram ao lado deles. Passava da meia-noite.

            Alan pediu um hambúrguer com queijo e uma cerveja com chocolate, o que fez lembrar a Allegra os seus tempos de juventude. Ela mandou vir um café e um pratinho de rodelas de cebola, sem mais nada. Todos riram da garçonete, vestida à dona de casa dos anos cinqüenta. Parecia mesmo Ethel em I Love Lucy.

            —  E você, Miss Melhor Atriz do Ano? —  perguntou Alan a Carmen, que riu.

            Dava-se bem com ela, comportando-se simultaneamente como um irmão mais velho e um herói romântico. Ao olhar para ele, Allegra foi obrigada a admitir que Alan era o homem que todas as mulheres desejavam. Porém, conhecia-o há demasiado tempo para levá-lo a sério ou para se deixar  apaixonar por ele; naquele momento, só desejava Brandon

            —  Quero torta de maçã e uma batida de morango—   respondeu Carmen, com um ar maldoso.

            —  Agora que todos ganhamos os nossos prêmios, para o diabo com as calorias! Dêem-me gordura antes que eu morra! —  exclamou Alan. Depois beliscou Carmen e olhou-a com admiração. Você foi espantosa esta noite, por sinal. Portou-se muito melhor do que eu me teria portado na sua idade. Esta coisa do estrelato é assustadora!..

            Só outra pessoa que vivesse sujeita às mesmas pressões e ao mesmo sofrimento é que poderia perceber verdadeiramente Carmen, embora Allegra também a entendesse, porque estava muito próxima dela.

            —  Sempre que eles se aproximam de mim, os fotógrafos ou os fãs, desejaria desatar a fugir e regressar ao Óregon —  disse Carmen, suspirando.

            —  Nem fale disso... —  Allegra rolou os olhos nas órbitas e depois a encarou mais a sério. O Alan tem razão, você foi estupenda. Senti-me muito orgulhosa de você.

            —  Eu também — assegurou Alan, baixinho. Por instantes, quando estava ali, tive medo que passassem por cima de você na entrada. Às vezes, a imprensa e a televisão descontrolam-se, não acha?

            No entanto, os guarda-costas que contratara tinham feito um bom trabalho, pensou Allegra, olhando para eles na mesa ao lado.

            —  A imprensa assusta-me mortalmente — confessou Carmen, cujas palavras não surpreenderam ninguém.

            Em seguida, Alan perguntou a Allegra como encontrara a mãe.

            —  Aborrecida, creio, embora não o admitisse. É demasiado orgulhosa para permitir que alguém se aperceba de que está sofrendo. E talvez os seus sentimentos sejam contraditórios. Sei que ficou feliz pelo meu pai, mas tem andado extremamente preocupada com o seu programa, e isto não vai ajudar. Quando fui falar com ela, estava elogiando o meu pai, e ele mostrava-se muito satisfeito. Creio que o prêmio humanitário significou muito para ele, ainda mais do que aquele que recebeu pelo filme.

            —  Simon merece-o —  afirmou Alan. Carmen deu um olhar melancólico a Allegra.

            —  Gostaria de entrar num dos filmes dele...

            —  Hei de falar-lhe nisso — prometeu.

            Talvez Simon também estivesse interessado nela. Carmen era um sucesso de bilheteira e o seu talento evoluía rapidamente. No entanto, Allegra não lhes falou em Elizabeth Coleson. Fora a primeira vez que vira o pai comportar-se daquela maneira, a não ser com a mãe. Talvez se tratasse apenas de admiração profissional, e talvez a expressão que detectara no olhar da mãe fosse simplesmente de emoção, depois de uma noite tão empolgante, tão cheia de ondas de orgulho e de desapontamento.

            Saíram do Ed Debevic’s às duas horas, depois de conversarem sobre o passado no ensino secundário de Beverly Hills e a infância de Carmen em Portland, que fora bem mais normal que a deles, por isso ela tivera mais dificuldade em adaptar-se à insanidade da sua vida atual, com tablóides e paparazzi, prêmios e ameaças de morte. É uma vida normalíssima, a nossa concluiu Alan com um ar divertido. Quando entraram na limusine puxou Carmen para o colo e ela não fez menção de lhe fugir.

            —  Querem que eu vá de um táxi. —  perguntou Alegra, divertida. Nas duas últimas horas, tornara-se ainda mais óbvio que se sentiam extremamente atraídos um pelo outro.

            —  E que tal o porta-malas? —  sugeriu Alan. Allegra entrou no carro e deu-lhe um encontrão, perante o riso de Carmen. De certo modo, invejava aquela amizade de longa data. Não tinha amigos assim em Hollywood, não tinha amigos, aliás, exceto Allegra. Só conhecia as pessoas com quem trabalhava e nunca mais voltava a ver depois de acabar de gravar um filme. Continuavam o seu caminho, tal como ela, e uma das coisas que mais lhe desagradava na sua vida em Los Angeles era a solidão e as saídas raras, exceto em noites como aquela, com um acompanhante escolhido pelo estúdio, tão entediado como ela. Foi o que lhes transmitiu no caminho para casa, ante o olhar espantado de Alan.

            —  Talvez metade dos homens americanos dessem a vida para sair com você  e ninguém neste país acreditaria que passa as noites em casa a ver televisão — disse ele, e Carmen acreditou que a vida romântica de Alan era muito menos empolgante do que a maioria das pessoas julgava, exceto algum romance ocasional, que fazia sempre sensação nos tablóides —  Bem, teremos que tratar—   disso afirmou, com o ar mais natural do mundo Carmen já concordara em ir com ele a Malibu no dia seguinte, agora tentava convencê-la a ir jogar boliche.

            Alan e Carmen pareciam estar caminhando para um novo romance. Allegra sentia-se feliz por eles, o que a fez pensar de novo em Brandon. Assim que entrou na cozinha, foi ouvir as mensagens que tinha na secretária eletrônica. Não esperava que Brandon tivesse telefonado, mas existia sempre essa possibilidade, nem que fosse para dizer que a amava.

            Três amigos e um dos sócios da firma tinham deixado mensagens, apesar de nenhuma delas ser urgente, nem sequer importante. Por acaso havia uma de Brandon. Telefonara só para dizer que se divertira muito com as filhas e que lhe ligaria no domingo. Não fez qualquer referência aos prêmios, não vira a cerimônia na televisão e não sabia nem disse nada acerca de Carmen nem do pai de Allegra. De repente, ao ouvi-lo, a jovem sentiu-se só outra vez. Era como se nunca tivesse feito parte da sua vida, a não ser quando ele próprio queria, e mesmo assim só em certa medida. Brandon era uma espécie de turista. E apesar da intensidade dos sentimentos dela e da duração da relação de ambos, existira sempre uma distância cuidadosamente estudada entre os dois.

            Desligou a secretária eletrônica e dirigiu-se lentamente para o quarto, tirando os grampos. O cabelo caiu em cascata pelos ombros, e, sem que soubesse porquê, vieram-lhe as lágrimas nos olhos quando abriu o fecho do vestido e o atirou para as costas de uma cadeira. Tinha vinte e nove anos e não sabia ao certo se algum homem a amara verdadeiramente. Sentiu uma estranha solidão quando se viu ao espelho do quarto de vestir, nua, perguntando a si própria se Brandon a amava, se seria capaz de alargar as fronteiras que definira para si próprio e ficar à sua disposição, como Alan estava pronto a fazer com Carmen. Era tão simples como isso. Alan e Carmen tinham-se conhecido nessa noite e ele tentava chegar a ela, sem medos nem hesitações. E ali estava Brandon, dois anos depois, como um homem no cimo de um rochedo, com receio de saltar, sem conseguir recuar e sem lhe querer dar a mão para a confortar. Estava sozinha. Era uma daquelas conclusões chocantes que faziam estremecer qualquer pessoa na escuridão da noite. Allegra estava completamente só. Tal como Brandon, onde quer que se encontrasse nesse preciso momento.

 

            O primeiro telefonema que Allegra recebeu no domingo de manhã foi o de Brandon. Ia jogar tênis com as filhas e queria ter a certeza de que a encontrava antes de ela sair. Sabia que a jovem partia para Nova Iorque nessa tarde e não queria deixar de lhe falar

            —  Como estão todos os teus? —  perguntou interessado.

            Allegra estranhou que ele não se tivesse dado ao trabalho de ver os noticiários. Podia tê-lo feito, pelo menos pelos seus pais, se não por Carmen, mas não disse nada para recriminá-lo; estava satisfeita por ele ter telefonado.

            —  Carmen ganhou o prêmio de melhor atriz de cinema e o meu pai o título de melhor produtor de filmes de longa-metragem. E também lhe concederam um prêmio especial por motivos humanitários, o que foi magnífico Foi ótimo! Infelizmente, a minha mãe... —   Suspirou ao dizer isto, lembrando-se da expressão de preocupação e de derrota que vira no olhar da mãe. Não ganhou nada e creio que isso a afetou muito.

            — Tem que aceitar essas situações com desportivismo, pelo menos — disse o namorado, melífluo.

            De repente, Allegra irritou-se com ele. O fato de Brandon não ter estado presente na cerimônia já era mau, mas o que lhe desagradava ainda mais era a insensibilidade que demonstrava para com a mãe dela.

            —  A situação é um pouco mais complexa do que isso, tem a ver com a existência de um programa, quer se ganhe ou não um prêmio. Neste último ano, ela tem lutado pela sobrevivência do programa, e isto pode ter provocado a perda de patrocinadores importantes.

            —  Isso é que é pior... — replicou Brandon, sem se mostrar particularmente compreensivo. Dá os meus parabéns ao teu pai.

            —  Prometo que o farei.

            Em seguida, contou-lhe como passara o dia com as filhas, e o modo como ele mudou de assunto começou a aborrecê-la. O fato de ter visto como Alan tratara Carmen na noite anterior, e até o modo como se comportara com ela própria, recordara-lhe como certos homens eram sensíveis, solícitos e protetores. Nem todos eram distantes ou propositadamente indiferentes como Brandon. Mostrava-se auto-suficiente e esperava o mesmo dela. Não queria que Allegra lhe exigisse fosse o que fosse. Pareciam dois barcos com rotas paralelas, mas consideravelmente distantes no oceano. A solidão que Allegra sentira na véspera apoderou-se de novo dela ao ouvi-lo. Nos últimos tempos, sentia-se cada vez mais ansiosa com a relação de ambos e abandonada quando não o tinha junto de si. Sempre ambicionara uma ligação como a dos pais, mas começava a duvidar que estivesse preparada para ela e que não continuasse a escolher homens que não estavam dispostos a assumir um compromisso, como sugerira a Dr.ª Green.

            —  A que horas partes para Nova Iorque? —  perguntou ele para puxar assunto.

            Allegra ia encontrar-se com um escritor muito importante e de grande sucesso. O agente pedira-lhe que o representasse num acordo que visava a realização de um filme, e ela marcara também outras reuniões em Nova Iorque. Teria uma semana muito atarefada e esperava estar envolvida em negociações de grande responsabilidade.

            —  Parto no vôo das quatro —  respondeu, mostrando-se triste, mas ele nem deu por isso. Ainda tinha de fazer a mala e queria passar por casa da mãe para vê-la, se tivesse tempo, ou pelo menos telefonar-lhe para se certificar de que ela estava bem depois da noite anterior. E também queria saber de Carmen. —  Fico no Regency de Nova Iorque.

            —  Eu te telefono.

            —  Boa sorte para o teu julgamento.

            —  Quem me dera conseguir um acordo! Seria muito melhor para o meu cliente, mas ele é muito teimoso —  queixou-se Brandon.

            —  Talvez mude de idéias à última hora disse Allegra.

            —  Duvido, e já fiz todo o trabalho mais pesado. Como era habitual, Brandon retirara-se para o seu mundo, para a sua própria vida, e Allegra sentia que tinha de conquistar a sua atenção.

            — Vejo-te no próximo fim-de-semana —  acrescentou ele, mostrando-se pesaroso de repente. Vou sentir a tua falta... Parecia surpreendido, e Allegra sorriu. Eram estas pequenas coisas que a mantinham agarrada a ele, sempre com esperança. Talvez a amasse, mas não tinha muito tempo e estava bastante traumatizado pelo que se passara com a ex-mulher. Era sempre esta a desculpa: um trauma provocado por Joanie. Allegra explicara esta situação mil vezes as  pessoas e  havia exemplos que eram muito óbvios para si, além de ser evidente que ele a amava.

            —  Eu já sinto a tua falta... —  murmurou ela, com a sensibilidade à flor da pele.

            Seguiu-se um longo silêncio

            —  Eu não podia ter feito outra coisa, Allie Tinha de vir para cá este fim-de-semana.

            —  Eu sei, mas ontem à noite senti a tua falta. Foi importante para mim.

            —  Já te disse que irei no próximo ano.

            Brandon parecia estar a ser sincero, e Allegra acabou por sorrir.

            — Fico à espera.

            Mas qual seria a situação deles no ano seguinte? Estaria Brandon divorciado? Já teriam casado? Haveria ele superado o medo de se comprometer? Existiam muitas perguntas que continuavam sem resposta.

            —  Te telefono amanhã à noite —  prometeu outra vez e, antes de desligar, falou-lhe ao coração. —   Te amo, Al disse em voz baixa.

            —  Eu também —  respondeu ela, fechando os olhos com força. Brandon estava ali para ela, embora tivesse que lidar com os seus próprios medos e obrigações. Cuide-se esta semana.

            —  Prometo. E você também —  disse ele, como se fosse igualmente sentir a falta dela.

            Ao desligar, Allegra esboçou um sorriso melancólico. O que ambos tinham não fora conquistado com facilidade, mas chegariam lá, apesar do que os outros pensavam. Precisava ser paciente. Brandon merecia-o.

            Em seguida, telefonou aos pais, felicitou de novo o pai e transmitiu-lhe os parabéns de Brandon. Depois pediu para falar com a mãe e sentiu ainda uma réstia de tristeza na sua voz.

            —  Sente-se bem? —  perguntou, com ternura.

            Blaire sorriu, comovida por a filha ter telefonado.

            —  Não! Vou cortar os pulsos esta tarde, ou talvez enfie a cabeça no forno!

            —  Então vá, antes que desmontem a cozinha —   replicou Allegra com um sorriso, satisfeita por ouvi-la  gracejar. A sério mãe, merecia aquele prêmio outra vez, e bem o sabe.

            —  Talvez não, querida, talvez seja o momento de dar oportunidade a outra pessoa. Este Outono tivemos muitos problemas com o programa.

            Um dos atores se despediu, cansado de fazer o mesmo papel há nove anos, e outros tinham pedido aumentos fabulosos quando renovaram os contratos. Alguns dos argumentistas também tinha se afastado e, como era habitual, o fardo caíra em peso sobre os ombros de Blaire.

            — Talvez eu esteja ficando velha... —   acrescentou Blaire, querendo fazer humor, mas algo no seu tom de voz preocupou Allegra. Fora semelhante ao que vira no olhar da mãe na noite anterior, e que a assustara. Perguntou a si própria se o pai teria apercebido disso e se também ficara inquieto.

            —  Não seja ridícula, mãe, ainda tem mais trinta ou quarenta anos à sua frente —  disse ela com otimismo.

            — Oh!, Deus me livre... — gemeu Blaire, só de pensar nisso. Depois soltou uma das suas gargalhadas de antigamente —   Talvez viva mais vinte, e depois fecho a loja.

            —  Eu encarrego-me —  disso afirmou Allegra, já mais aliviada em relação à mãe e a Brandon.

            Sentia-se muito melhor do que na véspera e quase desejava não ter que ir para Nova Iorque sem o ver. Gostaria muito de ter passado a noite com ele antes de partir.

Falou à mãe da ida a Nova Iorque, assegurando que voltaria no fim da semana. Contava sempre aos pais para onde ia.

            —  Te vemos quando voltar —  disse a mãe, agradecendo-lhe o cuidado.

            O telefonema seguinte foi para Carmen. Ainda não estava histérica, mas aproximava-se do pânico a passos largos. A imprensa assentara raízes em frente da porta principal da sua casa e, segundo Carmen, encontrava-se lá um verdadeiro batalhão, pronto a atacá-la se pusesse um pé de fora. Os guardas contratados por Allegra também lá estavam, mas Carmen temia que a imprensa invadisse a casa se ela abrisse a porta para sair. Era uma prisioneira na sua própria casa; não conseguira ir a lado nenhum desde a madrugada.

            —  Não há uma porta de serviço? —  sugeriu Allegra.

            Carmen respondeu que sim, mas lá também estavam alguns fotógrafos à espera, com câmaras de televisão de várias estações.

            —  O Alan passou por aí? —  perguntou Allegra, pensativa, tentando encontrar uma saída que não implicasse um grande confronto com a comunicação social.

            —  Ontem à noite falamos em ir a Malibu, mas ele não telefonou e eu não quis incomodá-lo — disse Carmen, mostrando-se hesitante, mas Allegra teve uma idéia e estava certa de que Alan não se importaria de ajudar Carmen.

            —  Tem alguma peruca que a modifique completamente?

            —  Tenho uma preta, bem engraçada, que usei no Dia das Bruxas do ano passado.

            —  Ótimo! Vá buscá-la, pois pode precisar dela. Eu vou telefonar ao Alan.

            Juntos, traçaram um plano. Ele aproximar-se-ia da porta principal num velho caminhão que tinha e que raramente utilizava. Ninguém o reconheceria, exceto se averiguassem a chapa de matrícula, mas nessa altura já eles iriam longe. Allegra sugeriu que também usasse uma peruca; Alan tinha muitas. Recomendou-lhe que fosse pelos fundos, fingisse que estava  namorando a empregada e depois arrancasse; com sorte, ninguém descobriria quem ele era, nem que Carmen o acompanhara.

            —  Ela pode ficar na casa de Malibu durante uns dias, até que a situação volte à normalidade — propôs Alan. Pelos cálculos de Allegra, Carmen iria gostar. Alan prometeu que iria buscá-la à uma hora e Allegra telefonou para Carmen. Esta mostrou-se de súbito envergonhada pelo fato de Alan ir buscá-la, dizendo que não queria abusar da simpatia dele.

            —  Não hesite, aproveite! — gracejou Allegra. Ele vai adorar!

            Alan chegou à uma hora em ponto, segundo lhe contaram mais tarde, com uma cabeleira loura que lhe dava um aspecto de hippie. O caminhão Chevrolet estava tão velho e estragado que ninguém reparou nele quando Alan abordou a criadinha mexicana de cabelo preto e curto, que vestia um top grosseiro e  jeans boca-de-sino. Carmen levava dois sacos de compras com as suas coisas e saíram ambos pela porta das traseiras sem que ninguém  prestasse atenção nem tirasse uma única fotografia. Fora a fuga perfeita. Dez minutos depois, telefonaram a Allegra de uma estação de serviço.

            —  Bom trabalho! —  exclamou ela, felicitando-os. Agora divirtam-se, os dois, e não se metam em encrencas durante a minha ausência.

            Allegra lembrou a Carmen que ficaria hospedada no Regency de Nova Iorque e que regressaria a Los Angeles no fim-de-semana seguinte. Antes de desligar, agradeceu a Alan por tomar conta de Carmen.

            —  Não se trata exatamente de um sacrifício... —  assegurou ele com sinceridade à sua velha amiga. Estaria mentindo se dissesse que era —  acrescentou, em voz baixa.

            Alan estava admirado com o que sentia por Carmen. Não sabia qual o rumo que as coisas iriam seguir entre eles, mas adorava a idéia de tomar conta dela na ausência de Allegra. Nem sequer tinham levado os guarda-costas. Seriam apenas eles os dois na casa de praia.

            —  Não se porte mal, está bem? Enquanto eu estiver fora, quero dizer. Ela é uma boa moça... É muito religiosa e é uma menina simpática... Não é como as outras que nós conhecemos.

            Allegra procurava as palavras certas, receando que ele se lançasse num caso leviano e que depois a deixasse.

            —  Eu compreendo, Al, não precisas de me dizer. Eu sei.  Vou portar-me bem. Juro... Mais ou menos, claro... Deu um olhar ansioso a Carmen, que andava lá fora, de um lado para o outro, de jeans e top. Ouve, Allie. A Carmen é diferente, eu sei... Nunca conheci ninguém como ela... Exceto você, talvez, e isso foi há muito tempo. É parecida conosco quando éramos jovens, honestos, sinceros, puros, antes de crescermos e nos tornarmos cínicos e um pouco intrigados com as pessoas que não estiveram à altura das nossas expectativas. Não a magoarei, Al, prometo. Creio.. Não importa... Vai para Nova Iorque e trata da tua vida. Um destes dias, quando voltares, falaremos de nós, como nos velhos tempos.

            —  Toma bem conta dela!

            Era como se lhe confiasse a irmã mais nova, mas sabia que Alan era boa pessoa, e algo na sua voz lhe disse que ele seria carinhoso com Carmen.

            —  Te adoro, Alle. Quem me dera que conseguisses arranjar alguém que fosse bom para você, em vez desse idiota, com a sua ex-mulher e o seu divórcio eterno! Isso não leva a parte nenhuma, Al, e você bem sabe.

            —  Vai passear! —  replicou ela, bem-humorada, e ele riu.

            —  Está bem, já percebi. Vai para Nova Iorque e descansa. Pelo menos isso te faz bem.

            Allegra riu e em seguida desligaram.

            Alan e Carmen tiraram as perucas e partiram para Malibu. Quando lá chegaram, a casa estava silenciosa, tranqüila, cheia de sol e completamente deserta. Carmen nunca vira um lugar tão bonito, e Alan sentiu-se feliz por estar na sua companhia, desejando, de súbito, ficar ali para sempre.

            Allegra partiu para o aeroporto. Telefonara a Bram Morrison antes de sair e deixara-lhe o nome do seu hotel em Nova Iorque. Ele gostava sempre de saber onde ela estava. Era uma das suas manhas. As outras pessoas poderiam contatá-la, se precisassem, através da firma.

            Embarcou pouco depois das três horas, em classe executiva, e ficou sentada ao lado de um advogado que conhecia de uma firma rival. Às vezes era fácil acreditar que o mundo estava cheio de advogados. Pelo menos, assim parecia. Era estranho pensar, ao voar para leste, que a essa mesma hora Brandon regressava a Los Angeles. Nesse momento seguiam rumos opostos.

            Allegra leu os documentos do acordo que iria ser assinado no dia seguinte, tomou alguns apontamentos e até teve tempo de dar uma vista de olhos por alguns jornais. Quando chegou a Nova Iorque já passava da meia-noite. Tirou a mala da esteira rolante e, quando saiu para apanhar um táxi, ficou admirada ao ver que estava um frio cortante. Por volta da uma hora entrou no quarto do hotel. Não tinha sono e gostaria de  telefonar para alguém. Eram apenas dez horas em Los Angeles, mas sabia que Brandon só chegaria a casa às onze. Tomou uma ducha, vestiu a camisola, ligou a televisão e deitou-se nuns lençóis imaculados. Era o luxo total, e havia algo de divertido e de adulto no fato de se encontrar num hotel de sonho em Nova Iorque em serviço.

            Gostaria de conhecer alguém a quem pudesse telefonar ou de ver um amigo. Nessa semana teria de se encontrar com o escritor, no dia seguinte, e depois com outros advogados e agentes. Ia ser uma semana atarefada, mas, à noite, não tinha nada que fazer a não ser ficar sentada no hotel a ver televisão ou lendo documentos. E, ali deitada naquela cama enorme, sentia-se uma criança, com um sorriso travesso, a comer os chocolates que lhe haviam deixado na mesa-de-cabeceira.

            —  De que ri? —   perguntou ao rosto que viu no espelho quando foi lavar os dentes. Quem te disse que era suficientemente crescida para ficar num lugar destes e para se encontrar com um dos escritores mais importantes do mundo? E se descobrirem quem você é, que não passa de uma menina pateta?

            De súbito, a idéia de que fora tão longe e assumira uma tão grande responsabilidade pareceu-lhe divertida. Riu de novo, lavou os dentes, voltou para a cama enorme e suntuosa e acabou de comer as trufas de chocolate.

 

            O despertador tocou às oito horas do dia seguinte. A luz ainda era escassa naquela manhã de Janeiro. Estava nevando em Nova Iorque, e ainda eram cinco horas na Califórnia. Allegra virou-se para o outro lado, com um suspiro, e por um ou dois minutos esqueceu onde estava. Depois, lembrou-se da reunião dessa manhã com o escritor. Era um homem muito mais velho, desconfiado de tudo o que fosse ligado ao cinema, mas o seu agente estava convencido de que daria um impulso à sua carreira nessa fase, visto que caíra na inevitável curva descendente, e Allegra fora a Nova Iorque para ajudar a convencê-lo a fazer o acordo, a pedido do agente. Este era tão ilustre como as pessoas que representava, e o fato de ter solicitado a Allegra que interviesse na assinatura do acordo era uma honra para ela e um passo importante para que viesse a tornar-se sócia da firma. Porém, ao virar-se na cama, a perspectiva de se encontrar com qualquer deles pareceu-lhe muito pouco atraente, por mais importantes que eles fossem. Estava um dia de frio e de neve, e teria preferido passar a manhã na cama.

            Enquanto tentava levantar-se, levaram-lhe o café da manhã e com ele os jornais do dia, depois de beber o café, de comer cereais e croissants com geléia e de dar uma olhadela aos jornais, a perspectiva de um dia em Nova Iorque pareceu-lhe quase excitante. O escritório do agente literário ficava em Madison Avenue e a firma de advogados em Wall Street. Entre ambos havia mil e um estabelecimentos, outras tantas galerias de arte e muita gente fascinante. Por vezes, estar em Nova Iorque era uma experiência inebriante. Havia tantas pessoas a fazer inúmeras coisas interessantes, uma profusão de acontecimentos culturais, óperas, concertos, exposições de todo o tipo, peças de teatro. Por comparação, Los Angeles parecia a província!

            Allegra vestiu um traje preto e um casaco forte e calçou umas botas para a reunião das dez da manhã. Chegou de táxi, agarrada à carteira e à pasta, e, ao entrar, lamentou não ter levado um chapéu: tinha o rosto dolorido do frio e as orelhas geladas.

            O elevador parou no último andar, totalmente ocupado pela agência. Nas paredes via-se uma coleção impressionante de obras de Chagall, Dufy e Picasso, alguns pastéis, um pequeno óleo e uma série de desenhos. Era óbvio que a agência estava se saindo muito bem. No meio da sala encontrava-se uma pequena escultura de Rodin.

            Não a fizeram esperar e viu-se na presença do diretor da agência, um homenzinho rechonchudo com um leve sotaque alemão. Chamava-se Andreas Weissman.

            —  Miss Steinberg.

            O homem estendeu-lhe a mão, observando-a com interesse, o aspecto anglo-saxônico e distinto de Allegra e os seus cabelos louros não puderam deixar de lhe chamar a atenção. Considerava-a muito bela e durante toda a reunião, antes da chegada do autor, sentiu-se fascinado por ela. Por fim, uma hora depois, apareceu um homem que aparentava cerca de oitenta anos, mas com a agudeza de espírito de um de quarenta. Jason Haverton era ágil, espirituoso e muito arguto. Ao olhar para ele, Allegra apercebeu-se de que devia ter sido muito bonito, porque era ainda bastante atraente. Durante uma hora, conversaram sobre a indústria cinematográfica em geral, e Jason Haverton perguntou-lhe se ela era da família de Simon Steinberg. Quando respondeu afirmativamente, Haverton manifestou-lhe a sua admiração pelos filmes do pai.

            Os dois homens convidaram-na para almoçar em La Grenouille, e só quando foi servido o prato principal é que começaram a falar de negócios. Jason Haverton admitiu perante Allegra que fizera o possível por evitar aquele acordo e afirmou que não estava de modo algum interessado em que um dos seus livros fosse adaptado ao cinema. Considerava que, na sua idade, era um ato de prostituição. Por outro lado, escrevia com menos freqüência do que no passado, os seus leitores já não eram jovens e o seu agente estava convencido de que vender um livro para um filme era uma maneira ideal de aumentar de novo o seu público e atrair leitores mais novos.

            —  Concordo com ele — disse Allegra, sorrindo para Haverton e depois para Weissman. Não será necessariamente uma má experiência para si.

            Allegra continuou a falar, realçando vários caminhos possíveis para minimizar o stresse do escritor e para tornar o acordo mais atraente. Haverton apreciou as suas palavras e ficou impressionado com ela. Era uma garota inteligente e uma boa advogada. E, quando veio o suflê de chocolate, já eram amigos e ele confidenciou-lhe que gostaria de tê-la conhecido há cinqüenta anos. Casara quatro vezes, mas, segundo afirmou, já não tinha forças para arranjar uma quinta mulher.

            —  Dão tanto trabalho... —  disse ele, com uma piscadela de olho que fez Allegra rir.

            Era fácil perceber por que motivo fora tão bem sucedido com as mulheres, era inteligente, divertido e tremendamente encantador Mesmo com a sua idade avançada, despertava uma atração especial. Vivera em Paris na juventude e a primeira mulher era francesa. As duas seguintes eram inglesas e a última, americana, também fora uma escritora célebre. Morrera há dez anos e, apesar de ter se envolvido com várias desde então, nenhuma conseguira levá-lo ao altar.

            —  Elas absorvem tanta energia, minha querida... São como cavalos de corrida demasiado frágeis, mas lindas de ver e insuportavelmente dispendiosas. Porém, proporcionam um enorme prazer.

            Haverton sorriu-lhe e Allegra sentiu-se derreter ao olhar para ele. Tinha vontade abraçá-lo, mas desconfiava que, se o fizesse, ele se atiraria a ela de boa vontade, como um gato a um rato que tivesse confiado demasiado no felino E Jason Haverton não era um gatinho de estimação, ainda tinha muito de leão, apesar dos seus oitenta anos. E era um leão muito atraente. Weissman divertia-se a observar o assédio. Eram velhos e bons amigos e partilhava da opinião de Jason: Allegra era uma garota extraordinária e não se admiraria se Jason tentasse cortejá-la. Mas ela parecia demasiado esperta para ele e, apesar de não usar aliança na mão esquerda, conseguia dar a impressão de que estava comprometida, por pequenas coisas que disse.

            —  Sempre viveu em Los Angeles? —  perguntou Jason enquanto bebiam o café e brincavam com o que restava do suflê.

            Ficaria surpreendido se a jovem respondesse afirmativamente. A verdade é que havia nela um requinte que lhe lembrava a Europa ou o Leste dos Estados Unidos, pelo menos. Mas ela surpreendeu-o.

            —  Sempre vivi em Los Angeles, exceto quando fui para Yale.

            Então deve ter uns pais extraordinários disse ele em tom de cumprimento.

            Allegra sorriu. Haverton já sabia quem era o pai dela e, ao observá-la, reconheceu que era muito parecida com ele, pelo menos em espírito: sensível e sincera, direta e moderada nas palavras, mas não nos sentimentos.

            —  A minha mãe também escreve —  explicou Allegra. Dedicou-se à ficção quando era muito nova e há vários anos que faz argumentos para a televisão. Tem um programa de muito êxito, mas creio que, ainda que não confesse, intimamente, lamenta nunca ter escrito um romance.

            —  Devem ser pessoas de grande talento —  observou ele, muito mais interessado nela do que nos pais, mas bastante intrigado com aquela bela jovem.

            —  E são. Mas o senhor também — replicou Allegra com um sorriso, desviando cuidadosamente a conversa para ele, o que muito lhe agradou.

            Weissman, admirado e fascinado, observava como ela lidava com Haverton. Era sábia e hábil e disse-lhe assim que o motorista do velho escritor o veio buscar e o levou para casa. Haverton saiu, acenando afetuosamente a Allegra, como se fossem velhos amigos, depois de ter concordado com a maior parte das condições do acordo que ela lhe propusera. O agente e a advogada voltaram para o escritório de Weissman, na limusine deste, para discutirem as cláusulas mais importantes do contrato.

            —  Foi fantástica com ele! —  afirmou Weissman, fascinado e também divertido.

            Era muito jovem, mas de raciocínio rápido, e possuía uma habilidade especial para lidar com as outras pessoas.

            —  É essa a minha profissão —  explicou ela, sem artifícios,  lidar com pessoas como ele. A maioria dos atores parecem crianças.

            —  E também os escritores —  assegurou Andreas, sorrindo. Allegra agradava-lhe

            Passaram duas horas trabalhando no acordo e na quantia que, na opinião de ambos, Haverton deveria receber. Por fim, Allegra disse que iria telefonar à empresa cinematográfica e que lhe comunicaria a resposta dos seus responsáveis. Talvez conseguissem concluir o acordo ainda nessa semana, antes de ela partir de Nova Iorque, na sexta-feira. Entretanto, tinha outras reuniões marcadas sobre outros assuntos, mas entraria em contato com Andreas logo que recebesse notícias da Califórnia acerca do filme de Jason.

            —  Quanto tempo fica por aqui? —  perguntou ele outra vez.

            —  Até sexta-feira, a menos que conclua tudo antes disso, mas creio que será boa idéia ficar enquanto trabalhamos nisto. Estou certa de que teremos algumas respostas na quarta-feira, o mais tardar. Andreas concordou com ela e depois escreveu um endereço numa folha de um bloco de apontamentos Hermes. Tudo nele era da mais requintada qualidade. Era um homem que apreciava o melhor em tudo, até nos clientes.

            —  Eu e a minha mulher daremos uma pequena festa esta noite. Um dos autores que represento acabou de escrever um livro importante, que, na nossa opinião, poderá mesmo ganhar um prêmio literário. Duvido que Jason esteja lá, mas irão alguns dos nossos clientes e penso que você irá gostar. Estendeu-lhe o papel com um endereço na Quinta Avenida e o número do telefone de sua casa e disse-lhe que aparecesse entre as seis e as nove horas dessa noite. Teriam muito prazer em recebê-la.

            —  É muito amável —  agradeceu Allegra. Gostara do tempo que passara com ele nessa tarde e apreciara o modo como Weissman trabalhara. Mostrara-se arguto e rigoroso e, além da educação e do encanto europeu, era um empresário brilhante, que sabia exatamente o que estava fazendo e não admitia situações absurdas. E Allegra apreciava isso nele. Ouvira boas referências a seu respeito e sempre conseguira bons acordos com os seus clientes.

            —  Experimente e apareça. Ficará conhecendo um pouco do meio literário de Nova Iorque e talvez se divirta.

            Allegra agradeceu-lhe outra vez e saiu do escritório pouco depois. Fora uma tarde inesperadamente agradável. Quando chegou à rua, a neve já tinha derretido. Atravessou o passeio devagar e apanhou um táxi para o hotel, onde tinha vários telefonemas a fazer para a Califórnia.

            Eram cinco horas quando concluiu todas as chamadas do quarto para começar as negociações com vista no filme sobre o livro de Haverton. Uma hora depois, após ter feito alguns apontamentos, ainda não resolvera se encomendaria o jantar ou iria à festa dos Weissman. Lá fora estava um frio gélido e ela só trouxera roupas de trabalho e dois vestidos de lã, e a idéia de apanhar frio outra vez não a seduzia, mas, por outro lado, encontrar algumas das figuras literárias locais parecia-lhe uma razão válida. Levou meia hora pensando no assunto, enquanto via o noticiário, e depois correu para o guarda-roupa. Resolvera ir à festa dos Weissman. Optou pelo seu único vestido preto. Tinha gola alta e mangas compridas e era muito elegante, porque se moldava a sua figura. Calçou sapatos de salto alto e penteou-se. Por fim, viu-se ao espelho. Comparada com as pessoas sofisticadas de Nova Iorque, receava parecer uma camponesa. As únicas jóias que trouxera resumiam-se a uma pulseira que a mãe lhe dera e uns brincos de ouro. Prendeu o cabelo atrás numa trança, pintou os lábios e voltou a vestir o casaco. Era velho e já vinha dos tempos da faculdade, quando ia ao teatro, mas pelo menos era quente, mesmo que não fosse bonito.

            Desceu ao átrio e o porteiro arranjou-lhe um táxi. Por volta das sete e meia, estava na esquina da Rua Oitenta e dois com a Quinta Avenida, em frente do Metropolitan Museum. Era um edifício de apartamentos antigo e elegante, com um porteiro e dois ascensoristas, vários sofás de Veludo vermelho-escuro e uma carpete persa que impedia que o som dos saltos altos ecoasse no chão de mármore da entrada. O porteiro disse-lhe que os Weissman moravam no décimo quarto andar, e saíram seis pessoas do elevador quando  ela entrou. Pareciam ter vindo da festa do agente literário, e Allegra pensou se não se teria atrasado de mais, mas depois lembrou-se que Andreas dissera que ela podia aparecer até às nove. Assim que chegou lá  em cima, ouviu o barulho. Ainda se ouvia bem, e pelo menos ficou sabendo que a festa continuava. Tocou à campainha e um mordomo veio abrir a porta. À primeira vista, estaria ali mais de uma centena de pessoas. Allegra ouviu um piano a tocar.

            Entrou, entregou o casaco e, olhando à sua volta, examinou o vestíbulo do elegante duplex. No entanto, foram as pessoas que lhe despertaram a atenção. Era um ambiente tipicamente nova-iorquino, com vestidos de cocktail, trajes cinzento-escuros e alguns tweeds. Todas as pessoas parecia entusiasmada e cheia de vida, como se tivessem mil e uma histórias para contar acerca dos muitos lugares que haviam visitado. Definitivamente, Allegra não estava na Califórnia. E, por uma vez, não reconheceu os rostos célebres. Sabia que estava junto de pessoas igualmente famosas, mas era um mundo diferente do de Hollywood, e fascinavam-na porque não as conhecia. Talvez soubesse a maioria dos nomes. Olhou à sua volta e viu Tom Wolfe e Norman Mailer, Barbara Walters, Dan Ratcher e Joan Lunden, e uma série de figuras ilustres rodeadas de editores, professores e escritores. Havia um pequeno grupo que, como alguém explicou, era constituído pelos curadores do Metropolitan Museum. O presidente da Christie’s também lá estava e um punhado de artistas importantes. Era o tipo de reunião que nunca seria possível em Los Angeles, porque não havia uma tão grande variedade de figuras ecléticas e sonantes. Em Los Angeles todos estavam envolvidos na ‘indústria’, como  chamavam, como se fizessem automóveis em vez de filmes, mas em Nova Iorque havia de tudo, desde cenaristas de teatro a atores da Broadway, a gerentes de armazéns e joalheiros importantes, misturados com editores, escritores e dramaturgos. Era uma combinação fascinante. Serviu-se de uma taça de champanhe... Observando-os, e ficou aliviada ao ver Andreas Weissman aolonge. Foi encontrá-lo na biblioteca, junto de uma janela que dava para Central Park, a conversar com o seu maior concorrente no mundo literário, Morton Janklow. Falavam de um amigo comum que havia sido cliente de Weissman e morrera há pouco tempo. Fora uma grande perda para a comunidade literária, como ambos reconheceram. Nesse momento, Andreas reparou em Allegra e foi ao seu encontro. De vestido preto e cabelo puxado para cima, tinha um ar mais austero do que nessa tarde. Era muito bela e jovem. Dirigiu-se lentamente para ele, com a taça de champanhe na mão. Tudo no seu andar era elegância e leveza, o que lhe fez lembrar o bailado e os quadros de Degas. Jason Haverton tinha razão, pensou Weissman com um sorrisinho discreto. Haverton telefonara-lhe mais tarde, para lhe dizer que Allegra não só era uma boa advogada como uma pessoa requintada. Gostara muito de almoçar com ela e confidenciou a Andreas que, se tivesse uns anos a menos, as coisas poderiam ser diferentes. Disse isto com malícia, o que fez o agente sorrir naquele momento, quando estendeu a mão a Allegra. Ela parecia atear fogo no coração dos homens, mesmo em pleno Inverno.

            —  Ainda bem que veio, — Allegra.

            Passou-lhe o braço pelos ombros com delicadeza e conduziu-a através da sala até junto de um grupo de convidados. Allegra reconheceu mais pessoas, nomeadamente o dono de uma galeria importante, uma modelo famosa e um jovem artista. Formavam um grupo muito heterogêneo, e era exatamente isso que lhe agradava em Nova Iorque. Era por este motivo que os nova-iorquinos nunca queriam ir para o Oeste; Nova Iorque era demasiado empolgante. Andreas apresentou-a a várias pessoas que se encontravam na sala e explicou que ela era uma advogada da gente do espetáculo de Los Angeles. Todos se mostraram muito satisfeitos por conhecê-la.

            Em seguida Andreas desapareceu, deixando-a com os seus novos amigos. Uma mulher mais velha chamou-a para lhe dizer que ela se mexia como uma bailarina. Allegra admitiu que fizera oito anos de bailado em criança, e alguém lhe perguntou se era atriz. Dois jovens muito elegantes disseram que trabalhavam nos Lehman Brothers, em Wall Street, outros num escritório de advogados que a contatara para uma entrevista durante a sua estada em Yale. Allegra tinha a cabeça rodando quando subiu ao andar superior para admirar a vista espetacular do parque e travar conhecimento com outros convidados. Às nove horas voltou a descer. A festa continuava animada, e acabara de chegar um novo grupo que parecia ser de empresários, acompanhados de igual número de mulheres elegantemente vestidas. Algumas usavam gorros de pele e todas estavam muito bem penteadas. Tinham um aspecto diferente do das mulheres de Los Angeles, com as suas plásticas, a sua aparência jovem e os seus cabelos louros. Estas eram mais graves, mais interessantes, com menos artifícios e menos maquiagem, mas com roupas caras, algumas jóias e rostos sérios e intensos. Também se viam algumas plásticas, e corpos tão esguios que pareciam lápis, mas na maioria eram pessoas que desenvolviam ações importantes e cuja presença era suficiente para influenciar o mundo. Allegra sentia-se fascinada por elas e pelas suas conversas. Falavam de temas interessantes e eram, de fato, pessoas inteligentes.

            —  Isto é formidável, não é? —  exclamou alguém atrás dela.

            Allegra virou-se e viu um homem observando-a, tal como ela examinara as outras pessoas que se encontravam na sala. Era alto e magro, de cabelo preto e com o aspecto aristocrático de um verdadeiro nova-iorquino. Estava vestido a rigor para a ocasião, com uma camisa branca, um terno escuro e uma conservadora gravata Hermes em dois tons de azul-marinho, mas havia qualquer coisa nele que não condizia com a sua expressão. Allegra não percebia se era a pele bronzeada, o brilho do olhar ou o sorriso aberto. De certo modo, parecia mais um californiano do que um nova-iorquino, mas esta descrição também não se aplicava bem. Não conseguiu reconhecê-lo, mas ele mediu-a de alto a baixo e também ficou fascinado por ela. Parecia integrada, mas algo nela denotava que não pertencia àquele ambiente. Ele gostava de freqüentar a casa dos Weissman; encontrava sempre as pessoas mais fascinantes, desde bailarinos a agentes literários, capitalistas e maestros. Era divertido misturar-se com eles, tentar adivinhar de onde tinham vindo e de quem se tratava. Era o que fazia nesse momento, mas sem resultado. Allegra tanto podia ser decoradora como médica. Também ela tentava adivinhar o que ele fazia e oscilava entre o corretor e o banqueiro. Ao fitá-lo com um ar pensativo, o homem reagiu com um sorriso aberto.

            — Estava tentando descobrir o que você faz, quem é e de onde vem — confessou. Adoro fazer esse exercício aqui, embora erre sempre. Talvez seja bailarina, a avaliar pelo modo como se mexe e como posiciona o corpo, mas aposto que é editora na Doyle Dane. Que tal?

            — Péssimo — respondeu Allegra, rindo, divertida com o seu jogo.

            Ele aproximou-se um pouco mais. Parecia ter um bom senso de humor e estar totalmente descontraído quando a olhou de frente.

            — Talvez não ande muito longe. Também escrevo muito. Sou advogada — acrescentou Allegra, retribuindo o olhar.

            Ele ficou surpreendido.

            —Em que tipo de firma? — insistiu, divertido com o jogo. Gostava muito de adivinhar o que as pessoas faziam, e em Nova Iorque havia um grande leque de atividades. A resposta a qualquer pergunta nunca era simples, e muito menos se estava relacionada com a ocupação de alguém. Calou-se e continuou a tentar adivinhar. Acho que é direito das sociedades, ou talvez algo muito sério, como direito da concorrência. Acertei?

            A hipótese pareceu-lhe pouco provável, porque ela era muito feminina e muito bela, mas agradava-lhe a combinação de uma bonita mulher envolvida numa atividade de grande responsabilidade.

            Allegra respondeu com uma gargalhada que o encantou. Tinha um riso alegre, uns cabelos incríveis e exalava ternura. Apostava que gostava do seu semelhante, embora nos seus olhos houvesse um toque de mistério. Eles diziam-lhe muito acerca de quem ela era e no que estava pensando. Era uma mulher de princípios, disso tinha a certeza, convicções firmes e talvez opiniões fortes, mas também tinha sentido de humor, ria muito e havia algo suave e feminino no modo como mexia as mãos. E tinha uma boca deliciosa...

            —  O que o leva a pensar que sou uma advogada sisuda? —  perguntou Allegra, rindo de novo. Nem sequer sabiam o nome um do outro, o que, aliás, parecia ser pouco importante. Gostava de falar com ele e de entrar no seu jogo de adivinhação. Pareço-lhe assim tão séria? —insistiu, curiosa quanto à resposta.

            Ele ficou pensando, observando-a atentamente, e depois abanou a cabeça. Allegra não pôde deixar de reparar no seu belo sorriso: era muito atraente.

            — Enganei-me — disse ele, corrigindo-se, com um ar pensativo. Você é uma pessoa séria, mas não trabalha num ramo sério do direito. E que tal uma combinação singular? Talvez represente pugilistas profissionais ou esquiadores. Acertei?

            Estava brincando e ela achou graça.

            — Porque concluiu que eu não estou nas sociedades nem na concorrência?

            — Você não é enfadonha. É séria e conscienciosa, mas tem uns olhos risonhos. Os tipos de direito das sociedades nunca se divertem. Então, eu tinha razão? Está no ramo do desporto? Céus, não me diga que é do ramo jurisdicional. Detestaria pensar que faz esse gênero de trabalho!...

            Recuou ao pousar o copo, e ela sorriu. Tinham sido uns momentos divertidos, e sentiu-se muito à vontade ao olhar fixamente para ele.

            — Estou no ramo do espetáculo, em Los Angeles. Vim cá falar com Mister Weissman acerca de um dos seus clientes e fazer outros contatos. Represento pessoas do mundo do espetáculo em geral, como argumentistas, produtores, diretores e atores.

            — Interessante, muito interessante... — observou, mirando-a de novo, como se tentasse concluir se todas as informações condiziam. E é de Los Angeles?

            Mostrou-se surpreendido com a resposta afirmativa de Allegra.

            — Sempre vivi lá, exceto os sete anos que estive em Yale.

            — Eu fui para uma faculdade rival — disse ele. Allegra levantou a mão.

            — Espere, agora é a minha vez. Esta é fácil. Você foi para Harvard. É do Leste, provavelmente de Nova Iorque, ou talvez Connecticut ou Boston. Piscou-lhe o olho. E andou num colégio interno... Exeter ou St. Paul’s.

            Ele riu do perfil ultra conservador, ultra previsível e totalmente elitista que ela descrevia. Não sabia se a responsabilidade de tal juízo cabia ao terno escuro, à gravata Hermes ou ao corte de cabelo recente.

            —Está perto. Sou de Nova Iorque. Fui para Andover e para Harvard. Ensinei em Stanford durante um ano e agora estou...

            Allegra interrompeu-o e levantou a mão outra vez, observando-o. Não tinha ar de professor, a menos que desse aulas na Faculdade de Gestão, mas era demasiado jovem e bem-parecido para isso. Se estivessem em Los Angeles, diria tratar-se de um ator, mas também parecia ser demasiado inteligente e isento de egocentrismo para isso.

            — Agora é a minha vez — lembrou ela. Já me disse muito. Talvez ensine Literatura em Columbia, mas, para ser honesta, julguei que fosse banqueiro, quando o vi.

            Ele fazia lembrar Wall Street e tinha um ar muito respeitável, apesar do olhar malicioso.

            — É o traje — admitiu ele, sorrindo, como se fosse seu irmão. Era quase tão alto como o pai de Allegra e havia algo familiar no modo como ria. Trouxe o terno para agradar à minha mãe. Ela disse que eu tinha de vestir qualquer coisa que me desse um ar respeitável, já que voltava a Nova Iorque.

            — Tem estado fora?  — perguntou Allegra.

            Ainda não lhe dissera se era banqueiro ou professor, e estavam ambos a divertir-se com aquele jogo. Por fim, os convidados começaram a sair. Haviam passado cerca de duzentas pessoas pelo apartamento dos Weissman, que parecia agora quase vazio, com cerca de metade.

            — Estive ausente durante seis meses, a trabalhar noutro lado — respondeu ele, dando-lhe uma pista. Detesto dizer-lhe onde.

            Parecia muito divertido com as coisas que haviam dito acerca um do outro e Allegra continuava a tentar adivinhar onde ele estivera e o que fazia.

            — Talvez a dar aulas na Europa?

            Ele abanou a cabeça

            —Noutro lugar qualquer?

            Allegra sentia-se confusa. Talvez o terno a tivesse induzido em erro. Quando o fitava nos olhos, percebia que ele tinha uma imaginação viva, e era óbvio que gostava de associar fatos.

            — Não ensino há muito tempo, mas não anda longe. Digo-lhe?

            —Creio que é preferível. Desisto A culpa é toda da sua mãe; acho que o traje me confundiu —  retorquiu, bem-humorada.

            —Compreendo perfeitamente. Comigo acontece o mesmo. Quando me vi no espelho, esta noite, quase não me reconheci. Por sinal, sou escritor... Sabe como é. Tênis rotos, pantufas de tapete inglesa, roupões velhos, jeans desbotadas e camisetas de Harvard todas esburacadas.

            — Bem me pareceu que você era desse gênero!

            Mas na realidade o terno ficava-lhe muito bem, e Allegra desconfiava que no guarda-roupas dele devia haver mais fatos do que camisetas rotas. Tinha um aspecto formidável e devia ter uns trinta e cinco anos. Na verdade, tinha trinta e quatro e vendera o seu primeiro livro para o cinema há um ano. O segundo acabara de sair e estava sendso alvo de críticas esplêndidas e vendendo muito bem, o que o surpreendia. Era muito literário, mas sentira que tinha de escrever. Andreas Weissman tentara convencê-lo de que o seu verdadeiro talento residia na ficção comercial, por isso estava prestes a escrever o seu terceiro livro e tentar alargar os horizontes.

            — Então onde esteve durante seis meses? A escrever numa praia das Bahamas?

            A situação pareceu-lhe muito romântica, mas ele riu da sugestão.

            —Numa praia, mas não nas Bahamas. Passei seis meses em Los Angeles, em Malibu, a adaptar o meu primeiro livro para um filme. Foi uma loucura ter aceitado escrever o argumento e a co-produção. Talvez não volte a fazer o mesmo, embora esteja certo de que ninguém me pedirá. Um amigo meu de Harvard está produzindo-o.

            — E já está de regresso?

            Parecia tão estranho que se cruzassem ali depois de ele ter passado seis meses em Los Angeles... Era espantoso que, no meio de tantas pessoas que se encontravam na festa nessa noite, eles se tivessem descoberto, ambos recém-chegados da Califórnia, atraídos como dois imãs.

            —  Estou aqui há uma semana para falar com o meu agente —   explicou ele. Tenho uma idéia para um terceiro livro e, se alguma vez terminar este maldito argumento em que estou trabalhando, fecho-me à chave durante um ano e escrevo-o. Já recebi uma proposta para fazer um argumento inspirado no segundo, mas não sei se estou disposto a isso. Não me sinto muito atraído por Hollywood e pela indústria do cinema. Ainda não sei se prefiro voltar para Nova Iorque, dedicar-me a escrever livros daqui em diante e esquecer os filmes. Ainda não decidi. Agora, a minha vida está um pouco louca.

            —Não há motivo para que não faça as duas coisas. Nem sequer tem de escrever os argumentos, se não quiser. Venda os livros e deixe que alguém o faça por você. Assim fica com mais tempo para escrever o seu romance.

            Era como se Allegra estivesse  aconselhando um dos seus clientes. Ele riu do seu ar sisudo.

            — E se me destroem o livro? — perguntou, inquieto. Ao ver a expressão no seu olhar, Allegra não conseguiu conter o riso.

            — Isso é mesmo conversa de escritor!... As aflições de entregar o seu bebê a desconhecidos. Não posso garantir que não venha a ter problemas, mas por vezes é uma situação menos cansativa do que ser você a escrever o argumento, já para não falar da co-produção.

            — Acredito. Caminhar sobre pregos é menos cansativo. As pessoas de lá estão me deixando doido! Não respeitam o texto, só se preocupam com o elenco, e talvez com o diretor, guião não significa absolutamente nada para elas. São muito hábeis com as palavras. Enganam, mentem, dizem o que lhes convém só para conseguirem o que querem. Acho que já estou  habituando-me, Deus me livre, mas a princípio quase fiquei doido!

            — O que me parece é que você precisa de um bom advogado em Los Angeles, ou talvez de um agente local que lhe dê a mão. Devia pedir ao Andreas que o apresentasse a alguém da CAA — disse ela, cheia de sentido prático.

            Ele sorriu e estendeu-lhe a mão.

            — Talvez pudesse telefonar-lhe — sugeriu, considerando a idéia muito atraente. Ainda não me apresentei. Aqui estou eu a me lamentar, desculpe. Sou Jeff Hamilton.

            Allegra olhou para ele e sorriu. Estavam muito perto um do outro no meio das pessoas, que eram cada vez menos na festa dos Weissman. Reconheceu o seu nome assim que o ouviu.

            — Eu li o seu primeiro livro. Gostei muito. Era uma obra séria, mas por vezes muito divertida. Impressionara-a e ficara-lhe na memória, o que era significativo. Sou Allegra Steinberg — acrescentou.

            — Não é da família do produtor, calculo...  — disse ele casualmente, ainda divertido com o jogo e com o fato de ambos viverem em Los Angeles.

            Mas ela apressou-se a corrigi-lo. Orgulhava-se da família, embora nunca puxasse dos galões.

            — Simon Steinberg é meu pai — respondeu tranquilamente.

            — Por acaso deu uma olhada pelo meu primeiro livro, e simpatizei muito com ele. Passou uma tarde inteira no escritório a dizer-me o que estava errado no argumento, e o que é engraçado é que concluí que tinha razão. Depois, fiz várias alterações propostas por ele. Sempre quis telefonar-lhe para agradecer, mas não tive oportunidade.

            — O meu pai é extremamente inteligente e tem vastos conhecimentos em relação a uma série de coisas disse ela — sorrindo. Deu-me muito bons conselhos ao longo dos anos.

            — Imagino.

            Jeff imaginava muita coisa, mas uma delas era voltar a vê-la nessa noite.

            Allegra começava a olhar à sua volta, apercebendo-se de que tinham saído umas dezenas de convidados enquanto continuavam a conversar.

            —  Acho que vou andando — disse, com pena. Já passava muito das nove da noite, a hora a que a festa deveria ter acabado.

            — Onde está hospedada? —  perguntou Jeff, ansioso por não a deixar fugir. Havia algo de invulgar nela, e teve de se conter para não lhe tocar.

            — Estou no Regency. E você?

            — Eu sou um menino mimado. Estou em casa da minha mãe, aqui na cidade. Ela foi fazer um cruzeiro e só regressa em Fevereiro. A casa é sossegada, mas muito agradável. Fica aqui perto.

            Seguiu-a até ao vestíbulo, a par de meia dúzia de outros convidados. Allegra pediu o casaco e Jeff tirou o sobretudo de um cabide, com um longo cachecol de lã.

            —Posso levá-la a algum lugar? — perguntou, esperançoso, depois de terem agradecido a festa a Mrs. Weissman.

            Andreas estava lá em cima, embrenhado numa conversa com dois jovens autores, com o ar de quem não queria ser incomodado. Deixaram-no, portanto, e desceram as escadas.

            —Vou para o hotel — disse ela, assim que entraram no elevador e começaram a descer. É só apanhar um táxi.

            Atravessaram o átrio lado a lado; sentiam-se bem juntos. Jeff abriu-lhe a porta, saiu atrás dela e depois lhe pegou suavemente no braço. Estava nevando outra vez e a calçada estava escorregadia.

            —Quer ir tomar uma bebida? Ou comer um hambúrguer? É cedo, e eu adoraria ficar  conversando com você  mais um pouco. Detesto conhecer alguém assim, entusiasmar-me com uma pessoa que depois logo vai embora... Parece-me inútil! Tanta energia e emoção para nada!

            Fitou-a, ansioso. Allegra parecia muito jovem, mas havia qualquer coisa nela que o fascinava. Não sabia o que era, porém, a verdade é que ela também parecia sentir-se atraída por ele. Ambos viviam em Los Angeles, os seus domínios de atividade cruzavam-se e pareciam ter muitas coisas em comum. Fosse como fosse, não queria deixá-la, por enquanto, e ela não tinha vontade de regressar ao hotel. Iria sentir-se muito só. E deixaram-se ficar ali, a olhar para a neve, de braço dado.

            —  Tenho de ir ler uns contratos — disse ela, sem entusiasmo. Haviam-lhe enviado por fax um monte deles nessa tarde, a respeito da tournée de Malachi O’Donovan, mas claro que poderia sempre lê-los mais tarde; esta ocasião parecia-lhe muito mais importante. Era como se ela e Jeff Hamilton ainda tivessem muito a descobrir acerca um do outro, uma história para contar, uma missão a cumprir, por isso acrescentou. Pensando melhor, seria bom comer qualquer coisa. O hambúrguer parece-me uma boa idéia.

            Satisfeito, Jeff chamou um táxi e deu ao motorista o endereço do Elaine’s. Enquanto vivera em Nova Iorque e escrevera o seu primeiro livro, freqüentara-o muitas vezes, e, sempre que voltava, gostava de passar por lá, para recordar os velhos tempos.

            —  Tive receio que não quisesse sair admitiu.

            Era bonito e tinha um ar de rapaz, os olhos brilhantes e o cabelo salpicado de flocos de neve. Sair com Allegra era muito importante para ele; queria saber mais coisas a seu respeito, do seu trabalho, da sua vida, do pai, que conhecera há uns meses. Não percebia por que motivo os caminhos de ambos nunca se haviam cruzado em Los Angeles. Era como se tivessem vindo a Nova Iorque para se conhecer, como dois planetas que acabassem por colidir. E Jeff sentia-se muito contente

            —  Saio pouco —  explicou ela, estou sempre trabalhando. Os meus clientes contam muito comigo.

            Demasiado, na opinião de Brandon, que detestava o excesso de serviços que lhes prestava, mas fazia parte da sua maneira de ser, daquilo que ela era, e agradava-lhe.

            —  Eu nunca vou a lado nenhum—   disse ele, pensativo, enquanto seguiam para leste. Escrevo quase sempre à noite. Gosto muito de Malibu. Às vezes, vou passear para a praia de madrugada; ajuda a purificar as idéias. Onde é que você vive?

            A jovem despertava-lhe a curiosidade e esperava vê-la mais vezes, mesmo antes de deixarem Nova Iorque.

            —  Vivo em Beverly Hills. Tenho uma casinha engraçada, que comprei quando voltei de Yale. É pequena, mas perfeita para mim. Tem uma bela vista e um jardim japonês quase só com pedras. Assim, não deixo morrer as plantas; quando é preciso, fecho a porta e vou-me embora. Como agora —   afirmou Allegra, sorrindo.

            —  Viaja muito? —  perguntou Jeff. Ela abanou a cabeça.

            Tento estar presente o mais que posso, pelos meus clientes, só viajo quando preciso de estar com eles noutro lugar qualquer. Dois são músicos. Às vezes encontro-me com eles durante as tournées, aqui e ali, um ou dois dias, mas estou quase sempre em Los Angeles.

            Allegra já prometera a Bram Morrison que tentaria ir visitá-lo, e, se Mal O’Donovan quisesse, faria o mesmo por ele. Eram duas tournées longas e cansativas, e Allegra já dera meia volta ao mundo só para apoiá-los, de Bancoc às Filipinas e a Paris.

            —  Por acaso conheço alguns? —   perguntou Jeff, de novo intrigado.

            Allegra falava deles como se fossem pessoas sagradas, que tivesse jurado proteger do mal, e, de certo modo, era o que fazia.

            —  Alguns...

            —  Está autorizada a dizer quem? —   insistiu.

            Pagou o táxi e entraram no Elaine’s. Estava cheio e barulhento, mas o maitrê  reconheceu-o logo e fez-lhe sinal de que lhe arranjaria lugar dentro de alguns minutos.

            —  Então que clientes são esses a quem é tão dedicada? —  O modo como falou fê-la sentir que Jeff compreendia o carinho que nutria por eles, o que não a surpreendeu. Estava a quilômetros de distância de Brandon, que reclamava sempre que ela concedia um momento livre aos seus clientes.

            —  É provável que conheça a maior parte, e alguns não se importam que saibam quem é o seu advogado. Posso dizer-lhe quais são. Bram Morrison e Malachi O’Donovan, Carmen Connors, Alan Carr, etc. Para citar alguns.

            Orgulhava-se deles como uma mãe-galinha e, ao observá-la, Jeff compreendeu-a e percebeu sua lealdade e  como era protetora, o que só aumentou a sua admiração.

            —  Está me dizendo que são representados pela sua firma ou que são seus clientes pessoais?

            Os nomes pareciam-lhe demasiado importantes para uma pessoa tão nova como ela, Allegra aparentava pouco mais de vinte e cinco anos. Mas ela riu da pergunta e ele adorou o seu sorriso.

            —  Não, esses são mesmo meus clientes explicou. Há outros, evidentemente, mas não posso revelar a sua identidade. Creio que o Bram diria a qualquer pessoa quem é o seu médico e o Mal também é muito livre a este respeito E a Carmen, então, está sempre dizendo aos jornais quem é que a representa!

            Parecia citar estes nomes com uma grande naturalidade. Eram as pessoas que preenchiam a sua vida

            —  Meu Deus, mas que grupo, Allegra! Deve sentir-se muito orgulhosa! —  exclamou ele com admiração. Há quanto tempo está na firma?

            Talvez fosse muito mais velha do que parecia, considerou, mas ela riu, adivinhando-lhe o pensamento.

            —  Há quatro anos. Tenho vinte e nove... Quase trinta. Falta pouco... lamentou-se.

            —  Eu tenho trinta e quatro e você faz-me sentir como se tivesse passado os últimos dez anos dormindo. É uma grande carga, eles não devem ser fáceis de representar...

            —  Alguns são —  disse ela, sempre ansiosa por ser simpática. E não seja ridículo! Você escreveu dois livros e está prestes a começar o terceiro, anda escrevendo um argumento e a co-produzir um filme. O que fiz eu? Nada, exceto representar um grupo de pessoas de talento, pessoas como você. Redijo-lhes os contratos, represento-os nas negociações, preparo-lhes as procurações e os testamentos, enfim, protejo-os sempre que posso. Creio que, de certo modo, é um trabalho criativo, mas, sejamos honestos, não se compara com aquilo que você faz, por isso não tenha pena de si acrescentou em tom de censura. A verdade é que eram ambos pessoas realizadas, que adoravam o que faziam.

            —  Talvez eu venha a precisar dos seus serviços —  disse ele, pensativo, lembrando-se da sua última conversa com Andreas Weissman nesse dia, de manhã. Se vender outro livro em Hollywood, necessito de um advogado para verificar os meus contratos, pelo menos.

            —  A quem recorreu da última vez? —   inquiriu Allegra, curiosa quanto à colaboração de Weissman.

            —  O Andreas orientou tudo daqui. Foi uma negociação muito direta, e não posso dizer que tenha ficado prejudicado. O acordo consiste numa quantia fixa por eu escrever o argumento e numa percentagem das vendas brutas, se o filme vingar. Como estou produzindo-o com um amigo, não quis me mostrar muito agressivo. Fiz mais pela experiência do que pelo dinheiro. Cometo muitas vezes este erro. Sorriu, mas não tinha aspecto de quem estava morrendo de fome. O terno que vestia era caro. Se voltar a fazer isso, quero uma compensação econômica maior, e não estou disposto a abdicar tanto da minha vida.

            —  Terei o maior prazer em analisar os seus contratos em qualquer altura. Allegra sorriu e, aparentemente, ele gostou da idéia. Bastante, por sinal.

            —  Agradar-me-ia muito —   retorquiu Jeff.

            Não sabia por que motivo Andreas nunca lhe falara nela nem se oferecera para apresentá-los. A verdade é que o editor nunca pensara que o seu protegido, o seu jovem escritor de sucesso, se sentiria atraído pela bela advogada loura de Los Angeles.

            Sentaram-se numa mesa ao fundo da sala e conversaram durante horas, sobre Harvard, Yale e os dois anos que ele passara em Oxford. A princípio detestara aquele ambiente, mas depois acabara por adorar. O pai morrera quando lá estava, e ele começara a escrever a sério depois disso. Falou também da desilusão da mãe por não ter sido advogado, como o pai, ou, melhor ainda, médico, como ela própria.

            Jeff descreveu a mãe como uma mulher muito forte, muito puritana, uma autêntica ianque. Tinha idéias definidas sobre ética e responsabilidade profissional e continuava a pensar que escrever não era um trabalho sério para um homem.

            —  A minha mãe é argumentista —  explicou Allegra, falando de novo nos pais e admirada por sentir vontade de partilhar os seus assuntos prediletos com Jeff.

            Havia muito de que falar, tanta coisa que lhe queria contar. Era como se tivesse passado a vida à espera que ele fosse seu amigo. Jeff estava totalmente em sintonia com o que ela sentia e pensava e era muito compreensivo. Nenhum deles queria acreditar quando olharam para o relógio e viram que era uma da manhã.

            —  Adoro o modo como o direito funciona, a sua lógica e a satisfação pela resolução dos problemas confidenciou ela. Às vezes confunde-me, mas é realmente aquilo de que mais gosto.

            Allegra sorriu, sem se aperceber de que estavam ambos de mãos dadas. Havia uma espécie de fogo no seu olhar quando pronunciou estas palavras, e Jeff deleitou-se a olhar para ela. Não se lembrava de ter sentido algo semelhante por ninguém num primeiro encontro.

            Do que gosta mais, Allegra? —  perguntou, com voz terna. De cães? De crianças? Do habitual?

            —  De tudo isso, creio. Especialmente da minha família. Ela é tudo para mim!

            Jeff era filho único e invejava as histórias que Allegra contava de Sam, de Scott e dos pais. Aliás, invejava-a em muitos aspectos. A sua própria família dispersara-se depois da morte do pai, e a mãe não era uma pessoa afetuosa. No entanto, era fácil perceber que Simon Steinberg era um homem terno e adorável...

            —  Um dia destes tem de ir conhecê-los —  sugeriu Allegra amavelmente. E ao Alan. É o meu amigo mais antigo. Alan Carr. Queria apresentá-lo a toda as pessoas, como uma criança! Ansiosa por dar a conhecer o seu novo e melhor amigo. Oh, não! Como sempre acontecia, Jeff reagiu imediatamente ao nome. Era impossível não o fazer.

            —  Ele é o seu amigo mais antigo? Não acredito!

            —  Foi meu namorado na escola secundária, no segundo ano. Desde então ficamos amigos.            

            Era estranho como Jeff parecia encaixar em tudo isto...! Gostava de ouvi-la falar do trabalho, da família, dos amigos. Era tão diferente de Brandon! No entanto, Allegra sentia que não era justo compará-lo com um desconhecido: não sabia nada dos subterfúgios, das fraquezas e das falhas de Jeff. Mas sentia-se tão bem com ele! Era muito estranho. E ele adorava a franquezae a total ausência de pretensiosismo de Allegra. Era o tipo de mulher que sempre admirara, e há muito tempo que não encontrava ninguém assim. Não se cansava de olhar para ela, e, à medida que noite se aproximava do fim, sentia-se cada vez mais impelido a pôr-lhe uma questão importante. A princípio pensou que talvez não fosse muito correto fazê-lo, mas agora percebia que era inevitável, tinha de lhe perguntar.

            —  Existe algum homem na sua vida, Allegra? Um homem que signifique algo, uma relação a sério, quero dizer. Além de Alan Carr.

            Sorriu, tremendo ligeiramente antes de ouvir a resposta.

            A jovem hesitou, indecisa quanto ao que havia de dizer. Ele tinha o direito de saber. Ou não? Haviam passado muito tempo falando um com o outro e era óbvio que se sentiam fortemente atraídos, mas não podia negar que Brandon era um elemento importante na sua vida, e sabia que tinha de falar nele a Jeff.

            —  Existe —  respondeu Allegra tristemente, olhando Jeff nos olhos.

            —  Era o que eu receava. Não estou admirado, mas tenho pena. É feliz com ele?

            A pergunta era importante. Se a resposta fosse afirmativa, ele ficaria de fora. Queria lutar pelo que desejava, mas não era estúpido nem louco, e não queria sair magoado.

            —  Às vezes sou —  respondeu ela, com sinceridade.

            —  E quando não é feliz com ele, qual é o motivo? —  perguntou-lhe com muito cuidado, ansioso por saber se ainda haveria uma oportunidade. Mesmo que percebesse que não tinha qualquer hipótese, não teria sido tempo perdido, congratular-se-ia sempre por tê-la conhecido. Gostava verdadeiramente dela.

            —  Ele tem atravessado um período difícil —  explicou Allegra, sempre ansiosa por desculpá-lo, e admirada com a freqüência com que o fazia. Está passando um mau bocado, tratando do divórcio. Aliás... Havia qualquer coisa no aspecto dela e no que dizia que não agradou a Jeff. Na verdade, está separado. Ainda não entregou o processo.

            Não percebia porque contara isto a Jeff, mas fazia parte da história. Ele fitou-a e fez outra pergunta.

            —  Há quanto tempo foi isso?

            Era como se soubesse que este dado era fundamental para a história. Allegra dera-lhe a entender e Jeff aproveitara a oportunidade.

            —  Há dois anos —  respondeu ela tranquilamente.

            —  Isso a incomoda?

            —  Às vezes, embora não tanto como parece incomodar as outras pessoas. Há dois anos que andam discutindo a partilha dos bens. Por sinal, o que me aborrece é sentir que ainda há coisas na nossa relação que precisam  ser aperfeiçoadas.

            —  Por exemplo?

            —  Ele ainda necessita de manter uma certa distância — respondeu Allegra honestamente. Tem receio de assumir um compromisso, e talvez seja por isso que ainda não se divorciou. Se alguém se aproxima demasiado dele, mesmo com subtileza, recua. Diz que está traumatizado por ter sido forçado a casar, e eu compreendo, mas não percebo porque hei - de pagar por isso ao fim de todo este tempo. A culpa não é minha!

            — Há algum tempo vivi com uma mulher assim — declarou Jeff com calma, lembrando-se de uma escritora de Vermont que o fizera terrivelmente infeliz. Nunca me senti tão só na minha vida!

            —  Eu sei disse Allegra em voz baixa, sem querer trair Brandon perante Jeff. Amava-o, queria casar com ele, e não lhe parecia justo falar dele a mais ninguém. E, no entanto, sentia que tinha de fazê-lo. Precisava conversar com Jeff acerca da sua relação com Brandon. Era como se tivesse essa obrigação, apesar de tê-lo conhecido só nessa noite.

            —  Ele tem filhos?

            —  Sim, duas filhas. Está muito ligado a elas, e as crianças são adoráveis. Têm nove e onze anos. Passa muito tempo com elas em São Francisco.

            —  E você também vai?

            —  Quando posso. Trabalho muitos fins-de-semana, em conjunto ao que se passa com os meus clientes. Podem receber ameaças de morte, estar rodando um filme, fazer novos acordos, tournées, etc.

            Eles mantinham-na ocupada, mas Jeff tinha a certeza que as ausências freqüentes de Brandon também contribuíam para aumentar a sua solidão.

            —  Não se importa que ele vá sozinho?

            —  Não é justo impedi-lo, se não o posso acompanhar. Ele tem o direito de ver as filhas.

            Allegra parecia estar na defensiva, mas Jeff sentia-se cada vez mais intrigado com o que ouvia. Desconfiava que ela não fosse feliz com aquele homem, ainda que não o admitisse nem perante si própria.

            —  Não se aborrece por ele andar agarrado à mulher há tanto tempo? —  perguntou abertamente.

            Allegra franziu o sobrolho e respondeu:

            —  Você parece a minha irmã!

            —  O que pensa a sua família?

            —  Não morrem de amores por ele... —  respondeu Allegra, suspirando.

            Jeff começava a gostar do que estava ouvindo. Talvez ela tivesse se apaixonado por Brandon numa determinada fase, mas não era de maneira alguma uma situação imutável, e muito menos com uma moça como ela. Allegra merecia mais, e a aprovação da família contava muito para ela. Qualquer pessoa percebia isso.

            —  Não me parece que eles compreendam —  lamentou-se Allegra. Depois de tudo o que passou, Brandon tem dificuldade em se comprometer, o que não significa que não se interesse, só não pode dar aos outros o que esperam dele.

            —  E você, o que espera? —   perguntou Jeff ternamente.

            —  O que os meus pais têm —  replicou ela, sem pensar. Amor e carinho um pelo outro e pelos filhos.

            —  Acha que ele lhe dará tudo isso? —  insistiu Jeff, pegando-lhe de novo na mão.

            Allegra não a retirou. Ele fazia-lhe lembrar algumas pessoas de quem gostava, como o pai, Scott e até Alan, mas não Brandon. Brandon era frio e distante, receava ser obrigado a dar. Jeff parecia disposto a fazê-lo abertamente. Não recuava, não tinha medo dela, do que ela pudesse sentir, ou mesmo do que ele próprio pudesse sentir se viesse a conhecê-la. Parecia tão desejoso de estar junto dela, de entrar na sua intimidade, que Allegra parecia ouvir as palavras da Dr.ª Green a ecoar na sua mente e sorriu para Jeff, sem motivo. Mas ele repetiu a pergunta:

            —  Acha que o Brandon lhe dará o que deseja, Allegra? Era importante para ele saber isto.

            —  Não sei —  respondeu ela francamente. Penso que fará o possível.

            Ou não faria? Brandon tentara assim tanto?

            —  Quanto tempo está disposta a esperar? —  perguntou Jeff. Allegra ficou atônita. A Dr.ª Green perguntara-lhe precisamente o mesmo e ela nunca conseguira responder.

            Porém, era preciso que Jeff soubesse o que ela sentia. Não queria enganá-lo.

            —  Eu o amo, Jeff. Pode não ser uma situação perfeita, mas o aceito como ele é. Esperei dois anos e posso esperar mais, se for obrigada a isso.

            —  Talvez tenha de esperar muito tempo —  disse ele, pensativo, ao saírem do restaurante.

            Era fácil perceber que a relação era problemática, mas também que Allegra ainda não estava pronta para abandoná-la. Porém, Jeff era um homem paciente e disse para si próprio que, se os caminhos de ambos tinham se cruzado, devia haver qualquer motivo para isso. E enquanto esperavam por um táxi sob a neve que caía, pôs-lhe um braço à volta do corpo e puxou-a para si.

            —  E você? —  perguntou ela, enquanto esperavam no frio, lado a lado, batendo com os pés no chão. Quem é que existe na sua vida?

            —  A minha diarista, Guadaloupe, a minha dentista, em Santa Mônica e a minha datilografa, Rosie —   respondeu Jeff.

            Allegra sorriu e olhou para ele, divertida com a descrição.

            — Parecem formar um bom grupo. Mais ninguém? Nenhuma jovem estrela deslumbrante, interrompida temporariamente das suas palavras, a  te olhar à luz das velas e a esperar que você acabe o trabalho?

            —  Ultimamente, não.

            Jeff sorriu de novo. Houvera mulheres a sério na sua vida e vivera com duas, mas nunca durante muito tempo. O único obstáculo que ele tinha de ultrapassar era Brandon, e não sabia bem o que havia de fazer para isso.

            Por fim, apanharam um táxi e entraram, aliviados por o automóvel ser confortável e estar aquecido. Jeff deu o endereço do Regency ao motorista e, quando este arrancou, puxou Allegra mais para si. Nenhum deles disse uma palavra, limitando-se a ver a neve a rodopiar à sua volta.

            O percurso até ao hotel era curto, e ambos lamentaram ter chegado tão depressa, mas era tão tarde que até o bar já fechara. Passava das duas da manhã. Allegra não quis convidá-lo a subir para não lhe causar uma impressão errada. Despediu-se dele no átrio.

            —  Gostei muito, Jeff —  disse, melancólica. Obrigada por esta noite maravilhosa.

            —  Também gostei muito. Pela primeira vez na vida, sinto que devo alguma coisa a Andreas Weissman. Soltaram uma gargalhada, e ele acompanhou-a ao elevador. Como vai ser o resto da sua semana? —  perguntou ele, esperançoso.

            Mas ela abanou a cabeça, desapontada.

            —  Muito atarefado.

            Nos quatro dias seguintes tinha almoços e reuniões. Precisava de trabalhar na tournée de Bram e voltar a ver Jason Haverton. Restavam-lhe as noites, mas tencionava fazer serão.

            —  E amanhã à noite? —  sugeriu. Allegra hesitou. Não devia aceitar.

            —  Tenho uma reunião numa firma de advogados em Wall Street até às cinco, e depois vou encontrar-me com um jurista. Não creio que esteja livre antes das sete retorquiu, pesarosa.

Desejava voltar a vê-lo, mas não sabia se o devia fazer, por causa de Brandon. Por outro lado, parecia-lhe que não havia razão para que não fossem amigos.

            —  Porque não lhe telefono? Vejo que está muito cansada. Talvez pudéssemos comer alguma coisa aqui, ou dar um Passeio a pé. Gostava mesmo de vê-la —  insistiu, olhando-a com ar carinhoso.

            Allegra sentiu que ele estava sendo sincero; e estava pedindo, estava decidido, mas não a pressionava.

            —  Não acha que seria confuso, Jeff? —  perguntou. Não queria ser desagradável para ninguém, nem para ele, nem para Brandon, nem para si própria.

            —  Não tem de ser; vamos ver como as coisas correm — respondeu ele honestamente. Eu não a pressionarei, mas gostaria de vê-la outra vez.

            —  Eu também. —   reconheceu ela. O elevador desceu e despediram-se.

            Telefono-lhe amanhã às sete horas lembrou-lhe com um aceno, quando as portas se fecharam.

            Já lá em cima, Allegra só conseguia pensar em Jeff. Perguntou a si própria se não fora infiel a Brandon pelo fato de haver estado com ele e de terem falado de certas coisas. Também não teria gostado que Brandon fosse jantar fora com outra mulher, mas parecia haver qualquer coisa predestinada naquela noite. Era como se estivesse escrito que o conheceria, como se precisasse dele na sua vida e estivessem condenados a ser amigos. Jeff compreendia tão bem o que ela dizia tudo, na verdade e ela sabia o que ele estava pensando ainda antes de o dizer.

            Quando entrou no quarto, ainda se sentia culpada. Havia uma mensagem de Brandon debaixo da porta, que pareceu lembrar-lhe a vida real. Pensou em telefonar-lhe, mas hesitou, devido ao adiantado da hora, embora fossem apenas onze e quinze em São Francisco. Por fim, despiu o casaco, sentou-se e ligou. Ele atendeu no segundo toque. Estava trabalhando para o julgamento do dia seguinte e mostrou-se surpreendido por ela telefonar tão tarde, mas parecia satisfeito por ouvi-la.

            —  Onde esteve esta noite? Mostrava-se mais curioso do que despeitado.

            —  Fui a casa do agente do Haverton e ficou muito tarde. Em Nova Iorque, estas coisas da literatura duram toda a noite.

            Era mentira, mas não lhe quis dizer que fora ao Elaine’s nem falar-lhe de Jeff. Havia sido honesta para com ele e dissera-lhe que tinha uma relação séria. Isso é que era importante e nada mais devia a Brandon. Não acontecera nada. Não se sentia obrigada a falar-lhe de Jeff.

            —   Está se divertindo? —  perguntou ele no meio de um bocejo. Há horas que estava trabalhando para o julgamento.

            —  Como vai seu trabalho?

            —  Muito devagar. Estamos começando a agarrar o júri. Quem me dera que o tipo se limitasse a confessar, para que fôssemos todos para casa!

            Desde o princípio que Brandon não gostara daquele caso.

            —  Quanto tempo calcula que isso dure se ele não o fizer?

            —  Duas semanas, no máximo. E já chega!

            Estavam a analisar uma vasta quantidade de material e Brandon contava com a colaboração de três assistentes. Era um crime de colarinho branco na sua versão mais complicada.

            —  Voltarei para casa antes de terminar, pelo menos.

            —  É provável que tenha de trabalhar este fim-de-semana —  disse ele com naturalidade, mas Allegra já esperava esta resposta. Também precisava ir ao escritório no sábado, para se inteirar do que se passara na sua ausência, e talvez conseguisse convencê-lo a descontrair-se um pouco no domingo.

            —  Não se preocupe. Estarei em casa na sexta-feira à noite.

            Allegra partia no vôo das seis e chegaria por volta das dez, hora da Califórnia. Talvez aparecesse na casa dele para lhe fazer uma surpresa.

            —  Eu entro em contato com você durante o fim-de-semana —  retorquiu ele com frieza.

            Allegra lembrou-se da conversa com Jeff à saída do Elaine’s. Detestava que Brandon a pusesse à distância.

            — Te telefono amanhã à noite —  acrescentou, maquinalmente. Estará no hotel a essa hora?

            —  Por acaso, tenho um jantar de trabalho —  respondeu Allegra, mentindo pela segunda vez. Porque eu não te ligo quando voltar? Não devo chegar tarde.

            Não podia sair todas as noites até às duas da manhã, caso contrário não conseguiria trabalhar, e tinha a certeza que Jeff entenderia a situação. Essa noite fora uma exceção, um daqueles invulgares encontros da alma em que duas pessoas descobrem que têm mil e uma idéias e sentimentos em comum, mas não podia ser assim todas as noites.

            —  Não trabalhe de mais —  disse Brandon com pressa, e desligou, pretextando que tinha de voltar ao trabalho. Nem sequer disse que a amava ou que sentia a sua falta, não prometeu ir buscá-la ao aeroporto nem ir a casa dela.

            A reação de Brandon trouxe de novo à superfície a fragilidade da relação de ambos. Apesar disso, Allegra perseverava sempre, porque o amava. Do que estava à espera? Perguntou a si própria. O que iria mudar, em sua opinião? Tal como afirmara Jeff, poderia ser obrigada a esperar muito, muito tempo. Talvez para sempre.

            Dirigiu-se lentamente para o quarto, pensando em Brandon e nos bons momentos que tinham passado juntos. Houvera muitos naqueles dois anos, e tentou esquecer as desilusões, como a dessa noite. Também tinham sido muitas, momentos em que ele não estivera presente, nem em corpo nem em espírito, em que não pronunciara as palavras que ela precisava ouvir ou não comparecera a acontecimentos que eram importantes para ela, como o Globo de Ouro. Allegra não sabia se pensava nisso nesse momento porque estava furiosa ou porque conhecera Jeff e desejava que as coisas dessem certo com ele e não com Brandon. Procuraria em Jeff tudo o que Brandon não era? Seria Jeff uma fantasia e a afinidade apenas fruto da sua imaginação? Allegra ficou ali, sem respostas, pensando em ambos e olhando lá para fora.

 

            Na terça-feira, quando o despertador tocou, às oito horas, e Allegra se levantou, Nova Iorque estava coberta por um manto de neve. Park Avenue encontrava-se repleta de montículos brancos que mais pareciam nata batida, e já havia crianças a saltar, a escorregar e  atirando bolas de neve umas às outras no caminho para a escola. Visto de cima, o espetáculo era divertido, e Allegra teve vontade de se juntar a elas.

            Passou o dia em reuniões e telefonou a Carmen Connors para saber se estava tudo bem.

            A governanta saíra, a secretária eletrônica permanecia ligada e Allegra admitiu que Carmen tivesse ido às compras ou não se encontrasse na cidade. Deixou-lhe uma mensagem, esperando que estivesse tudo correndo bem, e telefonou a Alice para saber se havia mensagens dela, mais ameaças ou outros problemas quaisquer.

            —  Ela nunca mais deu notícias desde que você partiu. Por sinal, todos os clientes de Allegra tinham mantido o silêncio. Mal O’Donovan deixara uma mensagem, mas partira de novo, e Alan pedia-lhe que lhe telefonasse quando regressasse à cidade. Além disso, encontrava-se tudo em ordem.

            —  Como está Nova Iorque? —  perguntou Alice.

            —  Toda branca respondeu Allegra.

            —  Não será por muito tempo...

            Na manhã seguinte, estaria toda negra e coberta de lama, mas entretanto proporcionava um belo espectáculo.

            Allegra almoçou com um advogado com o qual se correspondia há alguns anos, no World Trade Center, e passou o resto da tarde com os promotores de Bram e mais dois advogados. Em seguida regressou rápida ao hotel, onde se reuniu com outro advogado para discutir um acordo de licenciamento que envolvia Carmen. Alguém pretendia lançar um perfume e usar o seu nome, mas Allegra não gostara da idéia. O produto não era de alta qualidade e Carmen não tencionava ficar sentada em armazéns vendendo perfumes. Quanto mais pensava nisso, menos lhe agradava. Às seis e meia voltou para o quarto, extenuada devido à neve, durante o dia o trânsito fora um horror. Levara uma hora desde Wall Street até ao hotel e a perspectiva de se meter de novo naquela confusão para ir a qualquer lado era aterradora. Os táxis buzinavam, os automóveis derrapavam e os peões avançavam penosamente através da neve e da lama. Recomeçara a nevar. Central Park devia estar bonito, mas as ruas de Nova Iorque eram um pesadelo.

            Allegra leu as mensagens e tomou apontamentos. Carmen não respondera ao seu telefonema, mas Alice contatara a polícia e o FBI e não havia notícia de mais ameaças nem de outros problemas; estava tudo sob controle. Tinha uma mensagem de Bram, que queria saber a sua opinião acerca dos promotores, e vários faxes do escritório, mas nada de importante. O telefone tocou quando estava verificando as mensagens e Allegra atendeu-o inadvertidamente.

            —  Steinberg —  disse, distraída. Só depois percebeu que se enganara, mas a resposta do outro lado da linha foi instantânea.

            —  Hamilton. Como foi o seu dia? Parece atarefada...

            —  Muito. Passei-o quase todo lutando contra o trânsito.

            —  Ainda está trabalhando?

            Jeff não queria incomodá-la, mas gostava de ouvir a sua voz, mesmo que ela estivesse ocupada. Esperara o dia inteiro por aquele momento.

            Allegra sorriu ao escutá-lo. Hamilton tinha uma voz profunda, agradável e tremendamente sensual.

            —  Não, estava dando uma vista de olhos pelas mensagens e pelos faxes. Parece que está tudo calmo. Como passou o seu dia?

            —  Muito bem. O Weissman fez um bom trabalho negociando o novo contrato.

            —  Para o filme ou para o livro? Estou confusa, você tem muitos projetos.

            —  Olha quem fala! —  exclamou Jeff, rindo. O do terceiro livro. Vou deixá-la negociar o filme. Por acaso, falei-lhe no assunto, e ele achou que era uma ótima idéia. Disse-me que nunca fez tal sugestão porque pensava que eu estava prestes a sair da esfera do cinema, que odiava o meio, e não se enganava, mas parece que estou disposto a tentar de novo, pelo menos mais uma vez. Assegurou que você é uma advogada estupenda, mas eu não tenciono incomodá-la, a menos que seja obrigado a isso. Ele avisou-me que anda sempre atarefadíssima e tem vários clientes muito importantes. Riram ambos da advertência de Andreas.

            —  Estou impressionada —  replicou ela, divertida com o que Weissman dissera dos seus clientes.

            —  Eu também, Miss Steinberg. E quanto ao jantar? Ainda tem forças para comer, depois de todos esses acordos importantes?

            —  Não fiz um único acordo importante, hoje. Passei a tarde falando com advogados e com agentes musicais, e há pouco recusei um perfume com o nome de Carmen.

            —  Pelo menos é divertido. Como eram os tipos da música? Bastante fracos, não?

            —  Talvez, mas eram espertos. Gostei deles. Planejaram uma tournée incrível para o Bram. Se ele estiver em forma, acho que devia aproveitar.

            Jeff gostava de ouvi-la falar do que fazia, de escutar a sua voz, de saber as suas idéias e os seus interesses. Passara o dia inteiro pensando nela ou antes, não conseguira deixar de pensar nela e agradava-lhe tudo o que lhe dizia respeito. Era uma loucura. Mal a conhecia e, de repente, não conseguia tirá-la da cabeça. No entanto, Allegra também foi obrigada a admitir que, durante as reuniões dessa tarde, a imagem de Jeff lhe viera frequentemente a mente, e às vezes distraíra-se.

            —  O senhor afeta a minha vida profissional, Mister Hamilton. Esta gente de Nova Iorque vai julgar que eu sou uma toxicodependente da Costa Oeste! Esqueço-me constantemente do que dizem e estou sempre a pensar na nossa conversa, ontem à noite. Isto não é maneira de trabalhar.

            —  Pois não, mas sabe bem, não sabe? —  retorquiu ele. Sorriram ambos. Jeff teve vontade de lhe perguntar se tivera notícias de Brandon, mas não o fez, limitou-se a indagar se trouxera agasalho, umas calças, um gorro de lã e luvas.

            —  Por quê? —  Allegra não conseguia adivinhar qual o  motivo da pergunta, a menos que não quisesse que ela apanhasse frio, mas Jeff parecia ter qualquer outra coisa em mente. Passara a tarde inteira pensando nisso e esperava que ela tivesse trazido a roupa adequada.

            —  Tenho umas calças de lã, que vesti hoje, e um gorro, mas é muito feio.

            —  E não trouxe luvas? —  perguntou ele, solícito.

            —  Há vinte anos que não uso luvas.

            — Na verdade esquecera-se de trazê-las e passara o dia com as mãos enregeladas, devido às entradas e saídas constantes.

            —  Eu levo-lhe umas da minha mãe. Agrada-lhe qualquer coisa um pouco invulgar, ou prefere um programa fantasioso?

            Jeff partira do princípio de que ela queria jantar com ele, e não se enganava. Allegra levara o dia inteiro pensando nisso e convencendo-se de que não havia mal nenhum, apesar da sua relação com Brandon.

            —  Não é preciso fazermos nada de especial —  respondeu, tranqüila. Já tinha muitas ocasiões especiais na sua vida, nomeadamente quando saía com os clientes, ia a cerimônias de entrega de prêmios ou a jantares em Hollywood. Gostava de noites simples. O que tem em mente? —  acrescentou, simultaneamente entusiasmada e desconfiada.

            —  Vai ver... Vista roupa quente, calças e botas e o seu gorro feio. Encontramo-nos no átrio do hotel daqui a meia hora.

            —  O que será? Não terei motivos para me preocupar? Não irá levar-me para Connecticut ou Vermont, ou para qualquer lugar ainda pior?

            Allegra parecia uma menina prestes a dar uma escapadela.

            —  Não, mas por sinal bem gostaria de levá-la para qualquer lado. Não pensei nessa opção... Jeff riu, fascinado com a sugestão.

            —  E fez bem. Amanhã tenho que ir trabalhar.

            —  Eu sei. Não se preocupe, que não é nada que meta medo, apenas um divertimento à moda de Nova Iorque. Até daqui a meia hora.

            Jeff desligou. Allegra acabou de ler as mensagens e pensou em telefonar a Brandon, mas duvidava que ele já se encontrasse em casa ou que tivesse voltado para o escritório.

            Eram apenas quatro e meia na Califórnia. De súbito sentiu-se mal, ao pensar que o fato de lhe telefonar era uma obrigação, como tomar um medicamento, por exemplo. Era estranho sentir-se assim de repente, mas a verdade é que nutria certo sentimento de culpa por causa de Jeff, embora não tivessem feito nada reprovável até então e estivesse certa de que não o fariam.

            Encontrava-se no átrio à hora certa, de calças, casaco de frio e o velho gorro vermelho de esqui na cabeça. Através da porta giratória, viu que ainda estava nevando. As pessoas entravam e batiam com os pés no chão, para afastar a neve, e sacudiam o cabelo e os gorros, rindo umas para as outras, com flocos brancos nas pálpebras. Era divertido observá-las. De súbito, ao olhar lá para fora, avistou uma carruagem fechada, como uma antiga sege inglesa. Tinha janelas e teto e parecia muito confortável. Parou em frente do hotel e o cocheiro saltou para o passeio. O porteiro ajudou-o a segurar os cavalos e alguém saiu, entrando apressado no hotel. Quando chegou à porta giratória, Allegra viu que era Jeff, com um gorro de esqui parecido com o seu e uma parka bem quente.

            —  A sua carruagem aguarda-a    — disse radiante, com um brilho nos olhos, corado do frio. Enfiou a mão dela no seu braço e entregou-lhe um par de luvas brancas de angorá. Calce-as, que está um gelo lá fora.

            —  Você é incrível! —  exclamou, espantada. Jeff alugara a carruagem para ela. Ajudou-a a entrar, fechou a porta e em seguida cobriu-a com uma manta de pele. O cocheiro já recebera as devidas instruções. Não posso acreditar!

            Allegra olhava para ele, deslumbrada e muito comovida. Parecia uma garota que tivesse saído pela primeira vez com um rapaz. Sentou-se ao seu lado, aconchegou-se no interior da manta e Jeff pousou o braço nos seus ombros.

            —  Aceitei a sua sugestão: vamos a Vermont. Voltaremos na próxima terça-feira. Espero que isto não altere nenhum dos seus compromissos —  disse ele, deliciado.

            —  De modo algum.

            Sentada ao seu lado, Allegra sentia que poderia fazer tudo o que Jeff quisesse.

            —  Dirigiram-se lentamente para o parque e ele ajudou-a a calçar as luvas brancas de angorá. Eram confortáveis e quentes e as mãos da mãe de Jeff eram mais ou menos do tamanho das suas. Allegra fitou-o e os olhos de ambos encontraram-se. Ele era um belo homem e estragava-a com mimos

            —  Isto é maravilhoso, Jeff. Obrigada.

            —  Não seja boba —  retorquiu, atrapalhado. Pensei que devíamos fazer qualquer coisa especial, já que estava nevando.

            A carruagem aumentou ainda mais a confusão no trânsito já tão estrangulado. Por fim chegaram a Central Park South e em seguida dirigiram-se para norte, até alcançarem o rinque de patinagem de Wollman. A carruagem parou e Allegra olhou para a escuridão lá fora.

            —  Onde nos encontramos? —  perguntou, um pouco nervosa.

            Estava tanto frio e vento que nem os ladrões teriam se atrevido a sair. De súbito a porta abriu-se e o cocheiro ajudou-os a descer. Jeff olhou para ela, sempre deliciado.

            —  Sabe patinar?

            —  Mais ou menos. Não patino desde os meus tempos de Yale e não sou nenhuma Peggy Fleming.

            —  Quer tentar?

            Ela riu da idéia, que lhe pareceu divertida. Não conseguiu resistir e fez um sinal afirmativo.

            —  Adoraria.

            Correram para o rinque, de braço dado, e a carruagem ficou à espera. Jeff alugara-a até à meia-noite. Alugara também patins para ambos, e ajudou Allegra a apertar os seus. Em seguida deu-lhe a mão, mas ela conseguiu levantar-se bastante depressa. Jeff pertencera à equipa de hóquei de Harvard e era um excelente patinador. Deu uma volta rápida ao rinque, só para aquecer, e depois voltou para junto dela. Allegra patinava razoavelmente. Continuava  nevando e não se via mais ninguém à volta. Comeram cachorros-quentes, para ganhar forças, e beberam três copos de chocolate fumegante. Allegra estava divertindo-se muito, e ambos riam e brincavam como dois velhos amigos. Para ela, era como se estivesse com Alan, ou talvez um pouco melhor.

            —  Não me lembro de me ter divertido tanto —  declarou, quando se sentaram para descansar, porque os tornozelos estavam doloridos.

            —  De vez em quando, vou patinar em Los Angeles, mas os rinques da Califórnia são muito fracos. No ano passado experimentei em Tahoe, mas o rinque é bastante pequeno.

            —  Definitivamente, não é um esporte do Oeste. É pena. Eu gosto de patinar.

            —  Eu também. Allegra olhou para ele com uma expressão feliz. Jeff era aquilo a que Sam teria chamado uma ‘brasa’; era alto, viril e atlético, e parecia estar sempre rindo. Já nem me lembrava como é divertido —  assegurou, radiante, agradecendo-lhe outra vez.

            —  Pouco depois, ele foi comprar-lhe um pretzel e um chocolate quente. Não estava tanto frio, o vento abrandara, mas continuava nevando intensamente.

            — Amanhã a cidade estará intransitável, se isto continuar. Talvez os nossos compromissos sejam cancelados —  disse ele, animado, e Allegra riu-se, antevendo a situação. Ia encontrar-se com Haverton outra vez e falou no escritor a Jeff

            —  Gosto mesmo dele. Deve ter sido um terror na juventude, mas é um homem simpático, interessante e culto, e arguto como sempre. Allegra admirava-o e gostara de conhecê-lo. É curioso... Tudo parece ser muito mais civilizado aqui do que na Califórnia. Existe mesmo um meio literário, cheio de senhoras e de cavalheiros, e com gente erudita, que se comporta como deve ser e respeita as tradições. Lá são todos muito menos requintados. Às vezes, esqueço isso, mas volto para cá e lembro-me novamente. Na Califórnia, um homem como Jason Haverton não poderia existir. Seria atacado pelos jornais, receberia ameaças de morte e os tablóides insinuariam que tinha um caso com a enfermeira geriátrica.

            —  Quem sabe, Allegra? Sendo ele um velho, talvez isso desse algum sal à sua vida. Talvez gostasse.

            —  Estou falando sério —  disse ela. Tinham recomeçado a Patinar, e ele agarrava-a com força, com o pretexto de impedi-la de cair. Allegra não objetou, a situação agradava-lhe. É um mundo diferente, Jeff.

            —  Eu sei —  concordou ele, falando num tom mais grave. Para alguns dos seus clientes, deve ser difícil ter uma vida tão exposta, tão cheia de medos, de ameaças de morte e do assédio constante a si próprios e às famílias.

            —  Um dia isso também vai acontecer-lhe. Sucede a todos aqueles que fazem algum dinheiro e que são célebres. É um processo quase automático. Uma pessoa ganha uns dólares, torna-se famosa e alguém quer matá-la. É como no Oeste selvagem: pum, pum, e acaba tudo. E os tablóides também não são muito divertidos. Inventam qualquer mentira para aumentar as vendas e não se importam de magoar seja quem for.

            —  Você deve estar sempre a lidar com essa escória, dado os clientes que tem. Consegue fazer alguma coisa para protegê-los?

            —  Muito pouco. Aprendi com os meus pais a ser discreta, a levar uma vida honesta e a ignorar essas coisas, mas eles perseguem-nos, de qualquer maneira. Costumavam tentar tirar-nos fotografias quando éramos pequenos, mas o meu pai parecia um leão enjaulado, nunca  deixava, e, quando era obrigado a isso, recorria a medidas restritivas para nos proteger. Mas agora as coisas estão muito mais soltas, é preciso haver duas tentativas de assassinato para conseguir proteção Pouco antes de vir, tomei um grande susto com a Carmen, mas hoje falei com a polícia e com o FBI, e parece que a situação acalmou. Isso a aterroriza, pobrezinha. Às vezes, telefona-me às quatro da manhã só porque ouviu um barulho e ficou apavorada.

            —  Você deve dormir bastante... —  gracejou ele.

            Allegra riu. Não lhe disse que Brandon detestava aqueles telefonemas nem que protestava constantemente devido às intromissões dos seus clientes. Não lhe parecia correto queixar-se dele a Jeff, e também não lhe queria criar falsas esperanças, mostrando-se infeliz por causa de Brandon. Ainda estavam muito unidos Além disso, na semana seguinte Jeff regressaria a Los Angeles, e não haveria mais noites como aquela. Quanto muito, talvez almoçassem juntos uma vez por outra. Podia até apresentá-lo a Alan, ou mesmo aos pais. Sabia que Blaire iria adorá-lo, e Simon já o conhecia. Pareceu-lhe estranho pensar nisso, era como se o levasse a casa dos pais para estes lhe darem a sua aprovação.

            —  Em que está pensando? —  perguntou Jeff, fitando-a.

            Allegra tinha uns olhos expressivos e franzira o sobrolho. Hesitou antes de responder.

            —  Estava pensando que gostaria de o apresentar à minha família, e isso pareceu-me estranho, portanto procurava justificar a situação a mim própria.

            —  E tem de fazê-lo, Allegra? —  perguntou ele ternamente.

            —  Não sei. Terei?

            Ele não respondeu. Estavam no limite do rinque de patinagem, encostados no corrimão. Jeff olhou para ela, com a neve caindo sobre ambos, aproximou-se mais e beijou-a. Allegra ficou tão admirada que nem reagiu: ficou encostada a ele, para não cair, e depois retribuiu o beijo, deixando que o seu corpo se colasse ao dela. Quando pararam, estavam ambos sem fôlego.

            —  Oh... Jeff —  disse, baixinho, atordoada com o que tinham feito. Sentia-se de novo uma menina e, ao mesmo tempo, uma mulher.

            —  Allegra... —  Jeff murmurou o seu nome e abraçou-a de novo. Ela não ofereceu resistência.

            Por fim separaram-se e recomeçaram a patinar. Durante alguns minutos, nenhum disse uma palavra.

            —  Não sei se devo pedir desculpa por isto, mas não me agrada —  disse ele muito sério, olhando para Allegra enquanto patinava.

            —  Não tem de fazê-lo. Eu também o beijei —  respondeu ela tranquilamente.

            Então Jeff olhou-a bem de frente.

            —  Sente-se culpada em relação ao Brandon?

            Queria saber o que ela sentia. Estava apaixonando-se por Allegra, estava completamente enamorado dela, das suas idéias, dos seus princípios e dos seus sonhos, para não falar da sua beleza. Agradava-lhe estar com ela, abraçá-la, beijá-la e fazer amor com ela, e Brandon que fosse para o inferno!

            —  Não sei. —  respondeu a jovem o mais sinceramente possível. Não sei ao certo o que sinto. Por um lado, acho que deveria sentir-me culpada. Quero casar com ele. Há dois anos. Mas o Brandon é tão rígido, Jeff! Recusa-se a dar mais do que quer, e tudo o que faz é calculado, limitado e restrito.

            —  Porque é que pretende casar com uma pessoa assim; pelo amor de Deus? —  perguntou Jeff, irritado, parando de novo. A sessão estava quase terminando e as poucas pessoas que ainda se encontravam no rinque começavam a se retirar.

            —  Não sei. —  respondeu ela, lamurienta, cansada de explicar a mesma coisa a toda as pessoas e tentando justificar-se, até a si própria. Talvez porque tenho estado ao lado dele há tanto tempo, ou porque penso que ele necessita de mim. Creio que seria boa para ele. O Brandon precisa aprender a dar, a soltar-se, a não ter tanto medo de amar e de se comprometer...

            Os olhos de Allegra encheram-se de lágrimas quando se virou para Jeff. Tudo parecia tão estúpido em comparação com a generosidade dele!

            —  E se o Brandon não aprender, o que lhe resta. Que tipo de casamento será o seu? Possivelmente semelhante ao que ele teve com a ex-mulher, péssimo. Talvez fique sempre ressentido consigo por tê-lo obrigado a dar qualquer coisa que não está na sua natureza. Parece que foi isso mesmo que o aborreceu no primeiro casamento, e, no entanto, ainda nem sequer se divorciou. Quanto tempo irá durar essa situação? Mais dois anos? Cinco? Dez? Porque faz isto a si própria? É como se estivesse a castigar-se. Você merece muito mais, não acha?

            Era o que a mãe lhe costumava dizer, mas a voz de Jeff era mais clara.

            —  E se você for como ele. —  retorquiu, tristemente, verbalizando o seu pior receio, o seu maior terror. No fim, todos eram como Brandon, mas era assim que ela os escolhia.

            —  Acha-me parecido com ele neste momento? —  perguntou Jeff.

            Allegra riu através das lágrimas e respondeu

            —  Não, você me faz lembrar o meu pai, Simon Steinberg.

            —  Tomo essas palavras como um cumprimento —  afirmou Jeff sinceramente

            —  E são, é sério. Você me faz lembrar um pouco o meu irmão, e também o Alan —  acrescentou, com um sorriso triste, pensando em todos os homens bons da sua vida e não naqueles que eram prisioneiros da sua incapacidade de dádiva, como Brandon e outros antes dele.

            —  Já alguma vez tentou falar com alguém acerca disto? —  perguntou Jeff com ingenuidade.

            Ela riu.

            —  Ah, sim, o grande entendido da psicoterapia! E durante quanto tempo é que se suporta tal coisa? Faço terapia há quatro anos. Vejo a minha psicóloga às terças-feiras —  respondeu Allegra com naturalidade.

            —  E o que diz ela?... Ou prefere não falar nisso? —  continuou, hesitante.

            Ficava confuso que se mantivesse ligada a uma pessoa que lhe dava tão pouco. Até ela própria parecia ter consciência disso, embora tivesse reparado que o defendia muito, e parecia habituada a fazê-lo. Com certeza que outras pessoas lhe teriam já dito o mesmo.

            —  Não, não tenho problema em falar nisso —  respondeu Allegra abertamente, dando mais uma volta ao rinque ao lado de Jeff. Ela diz que é um velho problema, e é. Escolho homens que não são capazes de me amar, nem a mim nem a outra pessoa qualquer, mas creio que o Brandon é melhor do que os anteriores. Pelo menos, tenta.

            Jeff não sabia como os outros tinham sido, mas não ficou impressionado com o que ouviu acerca de Brandon.

            —  Como é que sabe? O que faz ele por si? —  perguntou, quase envergonhado.

            —  Brandon ama-me —  respondeu ela com obstinação. Pode ser tenso e retraído, mas, apesar disso, creio que me ajudaria, se eu precisasse dele.

            Allegra sempre se convencera disso, mas Brandon nunca tivera oportunidade de o provar.

            —  Tem a certeza? —  insistiu Jeff, contundente. Pense nisso. Quando é que ele a ajudou? Eu mal a conheço, mas começo a estar convencido de que ele a vai deixar ficar mal um destes dias. Nem sequer consegue divorciar-se da ex-mulher! De que está ele à espera?

            Porém, Allegra ficou tão triste com a pergunta que Jeff resolveu mudar de assunto.

            —  Desculpe, talvez eu esteja com ciúmes. Não tenho o direito de dizer estas coisas, mas a situação parece-me tão injusta! É difícil encontrar alguém por quem me interesse, e de repente surge você, com o Brandon a seu lado, como uma série de latas vazias atadas ao rabo de um gato. Acho que gostaria de me ver livre dele e simplificar a situação.

            Allegra riu da analogia e compreendeu as implicações.

            —  Eu percebo.

            Jeff tocara-lhe num ponto sensível, mas não o admitiria perante ele. Há dois anos que andava com Brandon e não ia acabar a relação por ele não a ter acompanhado à cerimônia do Globo de Ouro, por não lhe ter dito ao telefone que a amava, porque gostava de voltar para casa depois de fazer amor com ela nem porque conhecera um escritor belo e atraente em Nova Iorque. Não estava disposta a atirar a vida pela janela fora só porque alguém a levara para patinar. Jeff desarmara-a, e ela tinha consciência disso, mas esse fato nada tinha a ver com Brandon.

            Continuaram a patinar, de braço dado, até ao fim da sessão, e em seguida devolveram os patins. Allegra não disse uma palavra até voltarem para a carruagem. Jeff lamentou ter se excedido e convidou-a para ir até a casa da mãe para tomar qualquer coisa, mas Allegra considerou que era mais acertado regressar ao hotel. Já era tarde e tinha de se levantar cedo no dia seguinte.

            —  Prometo que me porto bem. Eu não devia ter dito aquelas coisas a respeito dele, Allegra. Desculpe.

            —  Sinto-me lisonjeada —  replicou Allegra, sorrindo, e muito gostaria que me renovassem o convite, mas amanhã tenho de me levantar cedo.

            Dizendo isto, reclinou-se no banco, nos braços dele, e Jeff imaginou como seria bom acordar a seu lado na manhã seguinte, porém não disse nada e limitou-se a ouvir o ruído dos cascos dos cavalos no pavimento e a ver a neve pela janela.

            —  É bonito, não é? —  perguntou, ternamente. Allegra fez um sinal afirmativo e sorriu.

            —  Adorei ir patinar. Obrigada, Jeff.

            O jantar fora mais do que criativo. Allegra apreciara todos os momentos passados com ele, mesmo quando fizera afirmações contundentes acerca de Brandon, e, por muito que isso a irritasse, compreendia perfeitamente as motivações de Jeff. Brandon continuava a ser merecedor de crítica, mas não era nele que Allegra pensava nesse momento, e sim em Jeff, enquanto a carruagem atravessava o parque em direção ao Plaza.

            —  Você patina bastante bem —  disse ele em tom de elogio, mas beija ainda melhor.

            Allegra reagiu com uma risadinha.

            —  Também você, e tem espírito desportivo. Recomeçaram a conversar e, quando saíram do parque, riam e falavam à vontade um com o outro. Assim que chegaram à porta do hotel, o cocheiro ajudou-os a descer; Jeff pagou-lhe e a carruagem afastou-se.

            —  Sinto-me uma espécie de Cinderela —  disse ela, observando os cavalos que desciam Park Avenue, coberta de neve, e devolvendo-lhe as luvas.

            —  E agora? Transformamo-nos em abóboras? —  perguntou ele, divertido e mais feliz do que nunca. Allegra era formidável.

            —  Foi tão divertido... Adorei!

            A situação fora perfeita, com a neve e a patinagem. Allegra olhou para ele e pensou em beijá-lo, roída pelo desejo. Jeff entrou a seu lado e esperou que o elevador descesse. Ficou admirada ao ver que ele entrara também, mas não disse nada. Subiram os dois lado a lado, em silêncio, até ao décimo quarto andar. Jeff seguiu-a até à porta do quarto e esperou que ela tirasse a chave do bolso. Allegra não o convidou a entrar e ficou ali olhando para ele, com um ar melancólico. Gostaria que a situação fosse diferente, que Brandon não existisse na sua vida há dois anos, mas era impossível negá-lo, e não estava em causa trocar uma relação por uma noite romântica na neve com um desconhecido.

            —  Deixo-a aqui —  disse Jeff, tão perturbado como ela. Não queria sair magoado, mas também não queria separar-se dela nem acreditar que desejava ou que tinha ou não tinha com Brandon.

            —  Ia desejar-lhe boa-noite, sem tencionar pressioná-la mais, quando ela deu um passo na sua direção, e Jeff não conseguiu conter-se. Puxou-a para si e beijou-a, apertando-a tanto que ela quase nem conseguia respirar. Mas Allegra gostou. Sentiu-se segura, protegida e desejada, embora soubesse que, se passasse a noite com ele, Jeff só quereria sair de manhã.

            Beijou-o de novo, tão cheia de desejo como ele; depois se afastou e abanou a cabeça tristemente.

            —  Não posso fazer isto, Jeff —  murmurou, com os olhos marejados de lágrimas.

            Jeff fez um sinal afirmativo.

            —  Eu sei. Nem eu queria tal coisa neste momento. Você passaria a odiar-me. Porque não nos deixamos ficar assim por enquanto, como num romance à antiga, com uns abraços e uns beijos, sem mais nada, ou talvez apenas como amigos, se é isso que deseja? Eu farei o que você quiser —  disse ele com ternura. Não me vou embora. Não se sinta pressionada.

            —  Nem sei o que sinto —  respondeu ela com sinceridade. Estou tão confusa... Olhou para ele com uma expressão verdadeiramente atormentada. Eu desejo-o... Também desejo o Brandon... Quero que ele seja o que nunca foi, mas acho que ele podia... E porque me aflijo? Porque faço isto? Não percebo o que estou aqui a fazer. Acho que estou apaixonando-me por você. Isto é real? Ou apenas um devaneio nova-iorquino? Não sei o que está acontecendo... —  disse ela, tropeçando nas suas próprias palavras.

            Jeff sorriu, enlevado, e beijou-a outra vez.

            Allegra não o afastou. Adorava beijá-lo, aninhar-se nos seus braços, estar junto dele, sentada numa carruagem, patinando...

            —  O que acontecerá quando voltarmos? —  perguntou. Estavam encostados à parede do lado de fora do quarto.

            Não se atrevia a levá-lo para dentro, porque não sabia se não acabariam na cama ao fim de cinco minutos, e isso não seria justo para ninguém, apesar de tentador. Conseguiria Jeff acompanhá-la, fosse qual fosse a vida dela? Era uma pergunta interessante.

            — Isto é tudo muito romântico, mas o que aconteceria quando eu tivesse de ir ao mercado comprar comida, quando a Carmen me telefonasse às quatro da manhã porque um cão derrubou um latão do lixo ou o Mal O’Donovan fosse preso por embriaguez e distúrbios em Reno e eu tivesse de me levantar da cama e ir ao encontro dele para  pagar sua fiança?

            — Eu iria com você. Nem mais nem menos. Não considero nada disso assim tão chocante nem impositivo. Até seria divertido para mim. Daria-me excelentes idéias para algumas das minhas aventuras na ficção comercial.

            — Não brinque. Isso equivale a ter meia dúzia de filhos adolescentes e rebeldes.

            — Acho que conseguiria sobreviver. Pareço-lhe assim tão frágil? Sempre fui muito flexível. Aliás, seria um bom treino para quando tivéssemos filhos, que fazem tudo isso, ou talvez não, se os educarmos bem.

            — O que é que está dizendo?

            Allegra parecia totalmente confusa e um pouco infeliz, mas tinha de reconhecer que era uma infelicidade agradável.

            — Que quero estar com você, que quero acompanhá-la, e ver o que acontece. Comigo passa-se o mesmo: estou apaixonando-me e não sei por que, mas também não quero perder nem devolver tudo a um tipo que, em minha opinião, não a aprecia nem a merece. Afastou com os dedos uma madeixa do cabelo sedoso de Allegra e fitou os olhos que conhecia apenas há dois dias, mas que já confiavam tanto nele. O que eu não quero é fazê-la infeliz, nem afastá-la. Deixemos estar tudo assim, por enquanto; as coisas acabarão por se resolver. Veremos o que acontece quando regressarmos a Los Angeles — disse Jeff, mostrando-se razoável.

            Aterrada, Allegra olhou para ele.

            — E se eu concluir que não poderemos voltar a ver-nos? — perguntou.

            Não seria solução continuarem a se ver e a beijar-se de vez em quando; Brandon decerto não iria gostar.

            — Espero que não tome essa decisão — respondeu ele, sem perder a calma.

            — Não sei o que fazer... — disse ela, sentindo-se como uma criança.

            Jeff sorriu, tirou-lhe a chave da mão e abriu a porta

            — Tenho algumas idéias, mas não creio que nenhuma delas seja apropriada, dadas as circunstâncias. Beijou-a de novo, provocando-lhe um estremecimento interior, e estendeu-lhe a chave, sem sair do corredor. E amanhã?

            — Tenho uma reunião com o Haverton e com os promotores e mais duas nos arredores. Depois lembrou-se que combinara jantar com um advogado que não tinha hipótese de se encontrar com ela de outra maneira. Seria um dia longo e não disporia de muito tempo para vê-lo. Acho que não estarei livre antes das nove, ou talvez mais tarde.

            — Telefono a essa hora.

            Jeff inclinou-se, beijou-a e desceu.

            Allegra sentiu-se em paz ao fechar a porta do quarto. Pensou em telefonar a Brandon, mas sentiu que não era capaz. Seria muito desonesto ligar e fingir que ficara sentada no quarto pensando nele. Sabia que tinha de deixar de ver Jeff, ou pelo menos parar de beijá-lo, mas a sensação de desistir de tudo era demasiado penosa. Talvez conseguisse encarar a situação como um interlúdio sem importância, com alguns beijos, e depois tudo voltaria à normalidade, quando ambos regressassem à Califórnia. Passou-se uma hora, e continuava a pensar no mesmo, quando Jeff telefonou. Deu um salto ao ouvir o toque e pensou em não atender: tinha a certeza de que era Brandon. Ele não ligara nesse dia e não havia mensagens de casa. Por fim resolveu atender, mas ao fazê-lo sentiu-se imediatamente culpada.

            —Alô?

            Parecia uma criminosa ao pegar no telefone, e Jeff deu uma gargalhada do outro lado.

            — Céus! Nem tente sequer jogar pôquer. Está com uma voz horrível,

            — É assim que eu me sinto, Jeff, profundamente culpada.

            Foi o que me pareceu. Ouça, você não fez nada de mal, os danos podem ser reparados. Não traiu a confiança dele e, se se sentir melhor assim, podemos fazer um intervalo. Era uma proposta sensata, mas custava-lhe muito fazer tal sacrifício. Jeff por seu lado, gostaria de vê-la tantas vezes quantas ela quisesse.

            — Acho que devemos fazer uma pausa — respondeu, desolada. Eu não agüento isto!

            — Você é uma mulher honesta. É uma pena... — gracejou ele, sem querer entristecê-la. Porém, era terrível pensar que não voltariam a encontrar-se.

            — Amanhã à noite não posso te ver — disse ela, recuperando a firmeza.

            Jeff sentiu um aperto no coração.

            — Compreendo. Telefone, se mudar de idéia. Allegra tinha todos os números dele.

            — Sente-se bem?

            Mal a conhecia, mas preocupava-se com ela.

            — Sim, só preciso recuperar o meu equilíbrio. Os dois últimos dias foram uma loucura total!

            — E muito agradáveis — acrescentou ele, recordando a boca dela e com receio de não voltar a beijá-la. Telefonara para dar boa-noite, mas acabara por proporcionar a oportunidade de fugir, o que contrariava o seu intento.

            — Os dois últimos dias foram maravilhosos — disse ela, pensando na patinagem, na carruagem e nos beijos que haviam trocado sob a neve. Ele virara a sua vida do avesso, e agora ela tinha de se concentrar na realidade e voltar para Brandon. Eu telefono acrescentou, com a voz entrecortada, pensando em Jeff e não em Brandon. Boa noite, Jeff.

            — Boa noite.

            Jeff não chegou a explicar porque ligara. Telefonara apenas para dizer que a amava.

 

            O dia de quarta-feira pareceu-lhe interminável. Tinha vários compromissos, tanto no centro da cidade como nos arredores, um almoço tardio e por fim um jantar de última hora com um especialista em direito fiscal que trabalhava para um dos seus clientes. Foi um dia longo. Ao sair do restaurante, em Park Avenue, para apanhar ar, pensou em Jeff pela milésima vez desde manhã.

            Mantivera-se firme, o que quase lhe custara a vida, mas não telefonara para ele. Não podia fazê-lo; os sentimentos de ambos estavam muito frescos, mas eram demasiado intensos. Era muito perigoso brincar com o fogo.

            No caminho para o hotel olhou casualmente para uma livraria e viu-o. Da contracapa de um livro, Jeff observava-a através da vitrine. Allegra parou e fitou aqueles olhos que lhe diziam tanto. Contrafeita, entrou no estabelecimento e comprou um exemplar.

            Já no quarto, pousou o livro na mesa a seu lado e ficou olhando para a fotografia. Por fim, guardou-o na pasta. Não havia mensagens, nem dele nem de mais ninguém. Tinha chegado um monte de faxes e, nessa manhã, as ligações telefônicas com Bram Morrison e Malachi O’Donovan haviam sido longas. Carmen deixara uma mensagem codificada a Alice, dizendo que estava bem, e tudo o resto parecia correr dentro da normalidade, só Bram é que tinha um problema, alguém fizera uma estranha ameaça a um dos seus filhos. Chegara pelo telefone, e a governanta espanhola mal percebera o que o homem dissera, mas o tom não era dos melhores. O próprio Bram ligara à polícia e contratara guarda-costas para proteger os dois filhos. Tal como Allegra explicara a Jeff, os problemas eram inúmeros, ameaças, decisões a tomar, tournées, licenças, exploração de todo o gênero e os intermináveis contratos.

            Mas nessa noite Allegra não encontrou consolo no trabalho; só conseguia pensar em Jeff. Por fim, às dez horas, ele telefonou.

            — Como foi o seu dia de trabalho?

            Tentou não se mostrar demasiado insistente, mas estava muito nervoso e com as palmas das mãos úmidas da transpiração. Só o fato de ouvir a voz dela e de não poder vê-la fazia-o sentir-se infeliz.

            — Não foi mau.

            Allegra falou-lhe de Bram, da tournée e da ameaça e Jeff ficou impressionado com o perigo que corriam os filhos do ator.

            — Essas pessoas estão doentes, deviam ir para a cadeia! E como foi o resto do dia?

            Allegra deu um olhar desolado à pasta, que estava do outro lado do quarto.

            — Comprei o seu livro.

            — Sério? — Jeff parecia satisfeito. Agradava-lhe saber que ela pensara nele. O que TE levou a comprá-lo?

            — Queria ter o seu retrato.

            Allegra parecia uma menina. Jeff riu e teve vontade de abraçá-la.

            — Eu podia passar por aí e mostrar-lhe o original... — sugeriu, animado.

            Foi a vez de ela dar uma gargalhada.

            — Acho que não devemos.

            — Como está o Brandon? — perguntou ele, por fim, depois de uma pausa. Detestava até ouvir o seu nome, mas queria saber se ela lhe telefonara.

            — Liguei agora a pouco. Ele tinha saído. Deve andar atarefado com o julgamento.

            — E nós, Allegra? — perguntou Jeff em voz baixa. Não conseguira concentrar-se, pensar ou fazer o que quer que fosse nessa manhã.

            — Acho que vamos continuar como estamos até aprendermos a controlar-nos—  respondeu ela.

            — Vou te comprar uma pistola de alarme para você disparar sempre que eu me aproximar. Garanto que não teria descanso!

            —  Sou tão má como você  —  disse ela, ainda com remorsos.

            — Não seja tão implacável para consigo mesma, pelo amor de Deus! Você fez tudo o que estava certo: impediu-me de avançar, mandou-me embora, disse que não voltaria a ver-me.

— Jeff enumerou-lhe as virtudes que detestava, mas sem deixar de respeitar a coragem e a ética de Allegra. Ela estava determinada a ser fiel.

            — Pois, eu fiz tudo isso, mas depois de tê-lo beijado várias vezes —           retorquiu, corrigindo-o.

            — Ouça, conselheira, beijar não é crime neste país. Tenha calma! Não estamos na Inglaterra vitoriana! Você fez o que estava certo e devia sentir-se satisfeita consigo mesma — lembrou-lhe Jeff, desejoso de que ela não fosse tão fiel a Brandon.

            — Não estou satisfeita Sinto-me mal e, ainda por cima, tenho saudades suas confessou Allegra.

            — Agrada-me ouvir isso — disse ele, radiante. Como vai ser o dia de amanhã, ou isso não interessa?

            — Muito ocupado, e sim, interessa.

            — á imaginava... — suspirou, deprimido. Quando regressa a Los Angeles?

            — Na sexta-feira.

            — Eu também. Podemos, ao menos, ir no mesmo vôo? Prometo não fazer nada de impróprio no avião.

            Allegra riu, mas a idéia não lhe pareceu a melhor. Porque haviam de se torturar? Era óbvio que não conseguiriam deixar de tocar-se.

            — Não me parece, Jeff. Talvez um dia possamos almoçar em Los Angeles.

            — Ora, ora, isso não chega — replicou ele, queixoso, merecemos mais. Não podemos ser amigos, pelo menos? Isto não faz sentido! Você não é uma freira, é uma mulher, e nem sequer está casada com ele! E, pelas suas contas, tal nunca viria a suceder, mas quando ela chegasse a essa conclusão e recuperasse a liberdade, o que estaria ele fazendo, onde viveria? O sentido de oportunidade era importante na vida, e Jeff não tencionava esperar que ela desistisse de Brandon. Naquele ritmo, levaria anos. Allegra, encontre-se comigo só mais uma vez antes de voltar. Por favor. Preciso vê-la!

            — Você não precisa, você quer argumentou ela.

            — Faço uma fita se você não concordar. Vou ao hotel e deito-me no chão do átrio. Levo a carruagem e o cavalo e entro pela porta giratória. Jeff fazia-a sempre rir, o que o deixava muito feliz. O que nos está fazendo, sua marota? O que se passa?

            — Estou mantendo a minha palavra, e honrando um compromisso.

            — Esse tipo não faz idéia do que é isso, e você bem sabe. Ele não a merece! Aliás, nem eu. Pelo menos me deixe levá-la ao aeroporto.

            — Eu telefono em Los Angeles. — respondeu ela com firmeza.

            — E diz o quê? Que não me vê por causa do Brandon?

            — Você prometeu que não me pressionava... — lembrou-lhe a jovem, sentindo-se esgotada.

            — Menti — retorquiu ele calmamente.

            — Você é impossível!

            — Vá ler o meu livro, ou olhar para a minha fotografia. Telefono amanhã à noite.

            — Não estarei.

            Allegra tinha de demovê-lo, embora contra a sua própria vontade.

            — Então telefono mais tarde.

            — Porque me pressiona deste modo?

            — Porque a amo.

            Fez-se um longo silêncio do lado dela. Jeff fechou os olhos e ficou à espera, ciente de que não devia ter dito aquilo.

            — Está bem, não a amo, foi um disparate. Gosto muito de você e quero conhecê-la melhor.

            Ouviu-se uma risadinha do outro lado da linha.

            — Allegra Steinberg, sabe que está me deixando doido. E como me vai representar se não me vir?

            — Você não tem qualquer acordo para fazer neste momento — disse ela.

            Jeff ficou furioso.

            — Então me arranje um! Que tipo de advogada é você?

            — Perdi o juízo, graças ao meu cliente mais recente.

            — Vá-se embora, volte para ele! E não quero voltar a vê-la. Além disso, patina mal — gracejou ele.

            — É verdade — reconheceu Allegra, rindo de novo. Ambos guardavam boas recordações da noite anterior

            Ao pensar nisso, custava-lhe a acreditar que não o via apenas há um dia: parecia-lhe uma eternidade! Como conseguiria sobreviver em Los Angeles se não se encontrassem?

            — Estava brincando, é uma excelente patinadora — disse ele com ternura. Aliás, tem uma série de atributos ótimos, e um deles é a fidelidade. Espero ter a sorte de encontrar alguém como você, um dia. As mulheres da minha vida sempre me deram a impressão de que a fidelidade incluía pelo menos meia dúzia de pessoas, ou a maioria dos habitantes do sexo masculino de uma pequena cidade. De qualquer modo, telefono amanhã à noite, Miss Steinberg — insistiu, com delicadeza.

            — Boa noite, Srtª. Hamilton — respondeu ela, aprumada. Tenha um bom dia amanhã. Falo com você à noite.

            Não podia dizer-lhe que não telefonasse; gostava muito de falar com ele, e a conversa representava um estímulo para ambos, o que era conveniente, porque o dia seguinte ia ser terrível.

            Choveu a cântaros. Allegra não conseguiu arranjar um táxi e o ônibus parou quando se decidiu tentar este meio de transporte. Todas as suas reuniões se prolongaram ou foram canceladas. Por volta das seis horas, quando chegou ao hotel, estava ensopada. De manhã fora convidada para jantar em casa dos Weissman, às sete e meia, e, para afastar Jeff da sua mente e não ficar sentada no quarto pensando nele, aceitara o convite. Ele enviara um ramo de rosas vermelhas logo de manhã. Ficara encantada ao ver as flores, mas, felizmente, ele não insistira. Allegra sentia que devia mais do que isso a Brandon e sabia que ele lhe era fiel; apesar das suas muitas falhas, a leviandade não era uma delas. Na verdade, estava admirada consigo própria em relação a Jeff, nunca acontecera ficar prisioneira de uma atração irresistível

            Regressaria a Los Angeles no dia seguinte, mas não falava com Brandon desde segunda-feira. Telefonara e deixara várias mensagens, mas ele saíra sempre ou fora para o tribunal ou estava em reuniões. Era irritante não conseguir falar com ele, mas concluiu que talvez fosse o seu castigo por não ter sido totalmente fiel. Procedera mal ao beijar Jeff e sabia que, se o voltasse a ver, não conseguiria resistir. Sentia-se triste, mas ao mesmo tempo, aliviada por saber que não estaria no hotel nessa noite, se ele telefonasse.

            Escolheu um vestido de lã vermelho e soltou o cabelo e depois enfiou a capa de chuva. Ainda tentou falar com Brandon mais uma vez antes de sair, mas voltaram a dizer que ele estava numa reunião, por isso deixou mensagem dizendo que telefonara. Em seguida desceu  correndo e pediu ao porteiro que lhe arranjasse um táxi.

            Esperou meia hora e acabou por chegar atrasada, tal como a maioria dos convidados, aliás, pelo mesmo motivo. Os Weissman esperavam catorze pessoas para jantar. Andreas já lhe dissera que Jason Haverton estaria presente, além de mais dois ou três escritores.

            Assim que entrou, foi apresentada a uma jovem muito atraente. Era uma escritora feminista bastante controversa, mais uma cliente de Andreas. Também lá estava um célebre locutor, um correspondente do New York Times, o diretor da CNN, com a mulher, e uma atriz da Broadway conhecida da sua mãe, que fez questão de a cumprimentar antes de se sentar. A mulher era muito respeitada e imponente e fez uma entrada arrasadora na sala, que foi observada por todos. Era o evento nova-iorquino perfeito para uma noite de chuva.

            Só faltava uma pessoa, e a campainha da porta tocou no último minuto. Allegra levantou a cabeça e, quando o convidado entrou na sala, reconheceu que devia ter adivinhado: era tão óbvio! Nenhum deles desconfiara, e Jeff ficou ainda mais admirado do que ela.

            — É o destino... — disse ele, fitando-a com um sorrisinho perverso.

            Allegra riu, aliviada, e muito mais satisfeita do que queria admitir, sem conseguir disfarçar o que sentia. Estendeu-lhe a mão como se tivessem acabado de se conhecer.

            —  Sabia de alguma coisa? —   perguntou, a meia voz, sentando-se ao seu lado. Tinha o cabelo molhado da chuva e estava muito atraente.

            — Claro que não — respondeu ela, denunciando com o olhar os sentimentos que procurava combater. Era uma sorte ele não a beijar em frente dos Weissman.

            — Diga a verdade. — Jeff gracejava com ela e divertia-se com isso. Foi você que combinou tudo? Não tenha vergonha de me contar.

            Allegra deu-lhe um olhar malévolo. Ele riu, inclinou-se, deu-lhe um beijo na face e foi buscar um uísque com água. Voltou pouco depois e sentou-se conversando com ela. Por fim, Jason Haverton aproximou-se. Estava satisfeito com o acordo que haviam conseguido e as suas reticências quanto à hipótese de um dos seus livros ser adaptado ao cinema tinham-se dissipado, em grande parte graças a Allegra

            — Ela é formidável! — afirmou o velho escritor, com admiração, aproveitando uma ocasião em que Allegra se aproximara de Andreas para dizer qualquer coisa. É excelente no que faz e muito bonita — acrescentou, fazendo acompanhar o elogio de um gim tônico.

            — Acabei de contratar os serviços dela — confirmou Jeff, divertido com a conversa.

            — Pode crer que vai fazer um bom trabalho — disse o velho para sossegá-lo.

            — Espero que sim — respondeu Jeff, quando Allegra se dirigia para junto deles.

            Foi uma noite interessante para todos e o final perfeito para a estada de Allegra em Nova Iorque. Jeff saiu com ela. Allegra desistira de mantê-lo à distância; era tão natural estarem juntos! E ele parecia tão feliz na sua companhia! Mostrava-se muito orgulhoso e protetor.

            — Quer ir tomar um suco a qualquer lado? — perguntou com ar inofensivo. Se confiar em mim, claro está.

            Os seus olhos transbordavam de ternura e amor.

            — Você nunca foi problema, o problema sou eu — respondeu, sorrindo, quando desciam no elevador.

            — Julgava que éramos ambos. Quer passar pela casa da minha mãe? Fica a três quarteirões daqui. Prometo portar-me bem, e, se me descontrolar, pode sair quando quiser.

            — Você me parece muito perigoso. Allegra riu das precauções de Jeff. Temos de saber lidar com isso, não acha?

            Mas a verdade é que nenhum deles conseguia fazê-lo. Desceram a Quinta Avenida debaixo do mesmo guarda-chuva, até chegarem ao apartamento.

            O vento estava forte e empurrava Allegra para o lado de Jeff. O prédio era muito semelhante àquele em que os Weissman viviam. Tinha um único apartamento em cada andar e o elevador dava em átrios particulares e individuais. Era um edifício pequeno e os apartamentos, apesar de não serem grandes, eram muito bem lançados, com uma vista soberba.

            No andar da mãe de Jeff, o chão do átrio era de mármore preto e branco. O mobiliário resumia-se a uma mesa e a uma cadeira antigas compradas num leilão da Christie’s. No interior do apartamento havia uma grande coleção de antiguidades inglesas. Quanto aos tecidos, brocados amarelos de grande requinte conviviam com sedas de tons cinzentos e com alguns chintz de cores sóbrias. Estava muito bem decorado, mas o ambiente era um pouco austero. Só num pequeno escritório com um sofá de couro é que Jeff e Allegra sentiram que poderiam sentar-se e conversar. Era a única divisão que agradava a Jeff. Allegra pegou numa fotografia da mãe dele e examinou-a com interesse. Era uma mulher alta e magra, muito parecida com o filho, mas tinha uns olhos tristes, os lábios finos, e era difícil imaginá-la sorrindo. Não parecia muito divertida, e neste aspecto era difícil compará-la a Jeff, cujo rosto era a imagem do riso e do bom humor.

            — Tem um aspecto muito sisudo — comentou Allegra com delicadeza, pensando como era diferente da sua família, em que todos riam e falavam alto, e da sua própria mãe, que era tão bonita.

            — Ela é uma pessoa sisuda. Não creio que tenha voltado a ser feliz desde que perdeu o meu pai — explicou ele.

            — Oh, que pena! — exclamou Allegra, embora com a sensação de que ela sempre fora assim.

            — O meu pai é que tinha senso de humor.

            — O meu também  — disse Allegra, mas depois lembrou-se que Jeff já o conhecia.

            — Sentou-se no sofá, ao seu lado, com um copo de vinho na mão, e estendeu as pernas, enquanto ele acendia a lareira.

            Fora uma semana longa e cansativa, mas também tivera os seus pontos altos, nomeadamente o passeio de carruagem e o rinque de patinagem, e até o jantar dessa noite. Tinham ficado sentados um ao lado do outro. Com Jeff à direita e Jason Haverton à esquerda, a conversa fora animada.

            — Esta noite diverti-me — disse, observando-o, satisfeita por estar ali com ele. E você?

            Jeff virou-se para ela e sorriu.

            — Claro, muito. Sabe, por acaso passou-me pela cabeça que você estivesse lá, mas nem sequer me atrevi a perguntar. Tive receio que não aparecesse, se soubesse que eu também fora convidado. Teria ido, em qualquer dos casos?

            Ela encolheu os ombros

            — Talvez. Nem sequer acalentei a esperança de que você estivesse lá. Ela destrói as nossas ilusões, não é?

            Na verdade, ficara tão feliz ao vê-lo que o seu coração dera um pulo. Por muito pouco razoável que isso fosse, estava a tornar-se impossível controlar os seus sentimentos E, contudo, havia sempre Brandon, escondido na sombra.

            — E agora? — perguntou Jeff sentando-se a seu lado com um copo de vinho na mão e passando-lhe o braço por cima dos ombros.

            Sentiam-se tão bem juntos, desde que se conheciam. E assim sentados lado a lado, no apartamento da mãe, o momento era perfeito, pensou Jeff.

            — Voltamos para Los Angeles e veremos o que acontece, acho eu — respondeu ela honestamente. Acho que tenho de dizer qualquer coisa ao Brandon.

            A situação era incontornável. De certo modo, Allegra sentia que tinha obrigação de lhe contar o que se passara. Ao rever Jeff percebera que não poderia manter o silêncio

            — Vai falar-lhe acerca de nós? — perguntou ele, escandalizado.

            — Não sei. Allegra ainda não se decidira. Talvez só precise dizer que me sinto atraída por outra pessoa, assim, o Brandon perceberá o que falta.

            — Francamente, acho que devia guardar isso para você. Veja o que sente por ele, o que você quer, o que não tem, e depois tire as suas conclusões.

            Aparentemente eram muitos os motivos de preocupação, ambos estavam cansados de pensar neles, por isso, a conversa derivou para outros assuntos, o seu novo livro, o contrato para mais um filme... Nessa noite, aceitara algumas sugestões de Jason, todas elas instigadas por Allegra.

            Jeff estava entusiasmado com a perspectiva de escrever outro livro, mas muito menos com a conclusão do argumento. Tencionava instalar-se em Malibu e começar a trabalhar assim que voltasse. Não tinha planos para o fim-de-semana.

            —  E você? —  perguntou, interessado.

            A lenha crepitava, e começavam  ficar com sono. A salinha estava quente e confortável, e Jeff sorriu, deliciado com a presença de Allegra. A casa da mãe sempre lhe parecera tão austera! Era agradável ver Allegra aninhada no sofá, a seu lado.

            — Preciso me organizar para o fim-de-semana. Allegra tinha de negociar o próximo filme de Carmen e precisava trocar impressões com Alan acerca de um novo acordo. Havia uma série de grandes e de pequenos projetos que exigiam a sua atenção. Nem sequer imaginava o que se teria acumulado na sua secretária durante a sua ausência!

            — Acho que vou trabalhar no sábado e talvez jante com os meus pais. No domingo vejo o Brandon.

            — Só no domingo? — Jeff ficou admirado. Ele não vai a casa de seus pais no sábado à noite? Não vai buscá-la ao aeroporto?

            — Não pode, está num julgamento. Diz que tem de trabalhar pelo menos até domingo, e não quer que eu o distraia.

            Jeff ergueu o sobrolho e bebeu mais um gole de vinho.

            — Pois eu adoraria que você me distraísse, Allegra — declarou, sorrindo. Telefone-me, se se sentir só. Mas não disse mais nada, e nenhum deles voltou a falar de Brandon.

            Ficaram sentados no sofá durante muito tempo e portaram-se bem, até que ele se levantou para ir buscar gelo. Allegra foi atrás dele. Na cozinha estava tudo imaculado e impecável; a mãe de Jeff era meticulosa e a governanta passara a semana inteira fazendo limpeza. Porém, assim que ele pousou o gelo no lava-louças e olhou para Allegra, não conseguiu refrear-se, aproximou-se dela e abraçou-a. Sentiu-a a tremer nos seus braços, com as pernas encostadas às suas, e pareceu-lhe que todo o seu corpo se derretia com o calor dela.

            — Oh! Céus, Allegra... Não sei como consegue pôr-me neste estado...

            Tivera muitas mulheres na sua vida, mas nenhuma lhe despertara tais sensações. Talvez fosse por saber que não a poderia possuir por enquanto, ou talvez nunca. Havia um sentimento simultaneamente amargo e doce no desejo de ambos. A boca dele encontrou a sua, e pouco depois ela estava encostada à parede. Jeff colou o seu corpo ao dela, mas Allegra não objetou. Desejava-o. No entanto, ele era o fruto proibido, e sabia que não podia ter.

            — Acho que devemos parar... — disse ela distraidamente, com voz rouca, acompanhando os movimentos do corpo de Jeff. Tinha o rosto e o pescoço em brasa. Jeff acariciava-lhe os seios enquanto a beijava.

            — Não sei se agüento isto... — murmurou ele, gemendo e tentando parar, mas sem conseguir.

            Por fim, devagar, penosamente, recuperou o controle. Fora um esforço tremendo, mas Jeff o fez por ela, porque acreditava que aquilo não era o que ela queria. As bocas de ambos continuavam coladas e a mão de Allegra deslizara lentamente pela perna dele. Era uma doce tortura.

            — Desculpe — sussurrou ela, com voz rouca.

            — Também peço desculpa — disse Jeff, desejoso de a possuir ali mesmo, no chão da cozinha, em cima da mesa, em qualquer lado, no silêncio do apartamento da mãe. Não sei quantas vezes conseguirei voltar a fazer isto.

            — Talvez a oportunidade não volte a surgir — replicou Allegra, tristemente. Daqui em diante passamos a encontrar-nos no Spago, em Los Angeles, para almoçar. Lá só poderemos conversar.

            — Que desilusão! Eu estava gostando — gracejou ele. Tocou-lhe de novo no seio, para atormentá-la, e depois a beijou.

            —  Estamos torturando-nos! —   exclamou, destroçada.

            Era tudo tão estúpido! E, todavia, Allegra não pôde deixar de perguntar a si própria se Brandon teria honrado as suas obrigações numa situação semelhante.

            — É divertido, mas perverso — disse Jeff, com um sorriso amarelo, tentando tirar o melhor partido da situação. Não estou interessado em repetir — afirmou, olhando-a bem de frente.

            Allegra perguntou a si própria se haveria um aviso implícito nas suas palavras.

            Jeff foi mostrar-lhe o quarto. Era uma divisão sombria, masculina, com cortinados  riscados e uma profusão de antiguidades inglesas. Conseguiram afastar-se da cama, o que foi um milagre, e riram disso enquanto percorriam o resto do apartamento.

            Pouco depois da meia-noite, Jeff levou-a ao hotel. Subiu com ela, e dessa vez entrou. Havia uma pequena sala de estar. Sentou-se e Allegra mostrou-lhe o livro. Pusera-o de pé, para ver a fotografia dele.

            — Perdemos o juízo, sabe? Eu ando correndo atrás de você como um menino, e você olha para a minha fotografia.

            Fora uma semana estranha para ambos, e, de certo modo, era como se tivessem estado num cruzeiro, longe da vida habitual e das obrigações diárias. Logo veriam o que aconteceria quando voltassem para casa. Por enquanto, era difícil imaginar.

            Jeff ficou mais um pouco, mas já tinham bebido e dito tudo o que podiam, restava-lhes despedirem-se, por uns tempos, pelo menos, ou para sempre. Esse momento chegara depressa para eles, mais depressa do que era habitual para a maioria das pessoas. Era pegar ou largar, deixar correr ou fugir, ou agarrar a oportunidade. Todavia, qualquer caminho que escolhessem seria doloroso.

            Jeff fez um esforço para se levantar e ficou olhando para Allegra durante muito tempo. Depois a abraçou; queria ficar com ela, protegê-la, estar à sua disposição, mas sabia que não podia.

            — Prometa que me telefona se necessitar de alguma coisa. Não precisa fazer nada por minha causa, não é obrigada a romper com ele, se não quiser, mas ligue-me, se precisar de mim.

            — Prometo. E você também anuiu, tristemente. Parecia uma despedida, e por enquanto nenhum deles sabia se aquele momento não passaria de uma simples recordação de uns dias em Nova Iorque, com neve e um passeio de carruagem à meia-noite.

            — Telefono quando receber a minha primeira ameaça de morte — gracejou ele.

            Allegra acompanhou-o à porta. Então Jeff abraçou-a de novo, fechou os olhos e aspirou o perfume dos seus cabelos.

            — Oh, como vou sentir a sua falta!

            — Eu também.

            Allegra nem sabia ao certo o que estava fazendo. Nada tinha sentido. Tentava agir de forma correta, mas tudo aquilo parecia um disparate.

            — Eu ligo só para saber como você está.

            Jeff iria dar uns dias para assentar e depois lhe telefonava para o escritório.

            De repente, ficaram sem palavras. Abraçaram-se uma última vez e beijaram-se. Por fim, Jeff saiu. Ela sentou-se na cama e chorou, já sentindo a sua falta. O telefone começou a tocar pouco depois, mas Allegra não atendeu. Receava que fosse Brandon.

 

            Allegra passou o dia seguinte numa roda-viva. Teve duas reuniões no centro da cidade e o avião partia às seis da tarde, o que implicava que teria de sair do hotel as quatro, ou talvez ainda mais cedo, se estivesse mau tempo e devido ao trânsito de sexta-feira. Telefonou a Andreas Weissman para se despedir e para lhe agradecer todo o apoio prestado durante aquela semana e os seus dois convites extremamente hospitaleiros. Ele reafirmou que fora um prazer conhecê-la, prometeu telefonar- para Los Angeles e agradeceu-lhe o seu trabalho com Jason.

            Fez a mala às pressas as três horas, depois de um almoço tardio, e por fim, com um misto de remorso e de pânico, resolveu telefonar a Brandon. Não falava com ele há dias e começava a sentir-se mal, ainda que, de um modo geral, Brandon nunca tivesse ciúmes nem se mostrasse preocupado com o que ela fazia em Nova Iorque. Sabia que estava trabalhando. E era verdade. Mas surgira Jeff, e Allegra continuava a interrogar-se se a sua vida alguma vez voltaria à normalidade. Jeff telefonara de manhã, quando acabara de se levantar, e o simples fato de ouvir sua voz fizera vir lágrimas aos olhos. Quisera apenas dizer que pensava nela e, apesar de não ter falado nisso, Allegra percebera que ele estava na cama e não pensara noutra coisa durante toda a manhã.

            Quando telefonou para o gabinete de Brandon, a secretária eletrônica estava ligada. Acionou o botão adequado que a pôs em contacto com a assistente e perguntou se ele estava no tribunal; ficou surpreendida ao saber que não.

            — Ele não está no julgamento? Alguma coisa teria corrido mal?

            — Chegaram a um acordo esta manhã.

            — Ótimo! Ele ficou satisfeito?

            — Muito — respondeu a assistente secamente.

            Allegra não gostava dela.

            — Nesse caso, diga-lhe que o vejo esta noite. Se quiser ir me buscar, chego no United 412. Aterrissamos as nove quinze; estarei em casa por volta das dez.

            — Ele não pode ir, parte para São Francisco às quatro horas.

            — Sim? Por quê?

            — Para ver a família, suponho respondeu a assistente num tom desagradável.

            Allegra ficou pensando no que ouvira. Brandon fora a São Francisco no fim-de-semana anterior e sabia que ela voltava nessa noite, mas como não falavam há dois dias, não sabia se haveria algum problema com as filhas.

            — Diga-lhe só que eu liguei — replicou Allegra com rispidez. Chego a casa por volta das dez. Ele que me telefone.

            — Sim senhora —  respondeu a outra com um sarcasmo evidente.

            Allegra já se queixara dela a Brandon, mas ele respondera que era uma ótima secretária e que gostava dela.

            Depois de desligar, Allegra ficou pensando. Brandon terminara o julgamento. Estava livre no fim-de-semana e ia a São Francisco. Dissera-lhe que não podia vê-la no domingo, mas talvez julgasse que ela tinha outros planos ou lhe pedisse que fosse ter com ele assim que chegasse, no sábado, por exemplo. Mas de que serviria? Seria uma canseira. Foi então que teve uma idéia. Telefonou para a companhia aérea e perguntou se havia lugar no vôo para São Francisco. Sabia onde Brandon ficava hospedado e iria encontrar-se com ele no hotel. Que grande idéia... Poderia fazer-lhe uma surpresa!

            Havia um vôo às cinco e cinqüenta e três, apenas sete minutos antes da sua partida para Los Angeles. Allegra sabia que conseguiria chegar a tempo. Reservaram um lugar na primeira classe, o único disponível, e ela agarrou-o. Valia a pena, só para ver Brandon. Precisava mesmo estar com ele depois de toda aquela loucura com Jeff nos últimos quatro dias. Talvez tudo não tivesse passado de uma ilusão romântica. Para ela, Brandon representava solidez, tempo e história. Estavam juntos há dois anos e acompanhara todo o seu processo de separação. Adorava as filhas dele e amavam-se, tinham uma vida em conjunto. O que acontecera entre ela e Jeff não passara de um lampejo de magia. Acontecia às vezes, mas não era suficiente para alicerçar uma vida, pensou Alegra com firmeza, enquanto ligava pedindo que fossem buscar sua bagagem.

            Não telefonara para despedir-se de Jeff. Sabia que ele partira num vôo anterior, e ficara tudo esclarecido entre ambos. Agora chegara o momento de se separarem e de verem o que aconteceria se voltassem a encontrar-se, mas não tencionava pôr em risco o seu futuro com Brandon, e congratulou-se com o fato de as coisas não terem ido mais longe. Teria sido um erro da sua parte, e o que se passara já causara remorsos suficientes. Contudo, resolveu não contar nada a Brandon; só serviria para magoá-lo. Sorriu, pensando como ele iria ficar satisfeito ao vê-la e como ela própria se sentiria feliz. Ainda pensou em deixar-lhe uma mensagem no gabinete, a avisá-lo que mudara de planos, mas concluiu que seria mais divertido fazer-lhe uma surpresa.

            Saiu do hotel e entrou na limusine que a aguardava. No caminho para o aeroporto, teve de enfrentar o trânsito da hora do rush na sua fase pior e por pouco não conseguia chegar a tempo. Teve de trocar o bilhete e despachar a bagagem e embarcou um minuto antes de fecharem as portas. O avião estava repleto e a maioria das comissárias pareciam de mau humor. No fim da semana todos estavam cansados e o avião ia demasiado cheio. O mau tempo provocou um atraso de meia hora na descolagem. No interior do aparelho, o ambiente era pesado e abafado, e o filme foi interrompido na classe econômica, o que irritou todas as pessoas.

            Allegra pegou no livro de Jeff e virou-o várias vezes, só para olhar para a fotografia. Havia algo de misterioso nos seus olhos, de familiar na sua boca, como se fosse transmitir qualquer coisa, ou desaparecer. Estava encostado em um prédio revestido de tijolo. Era uma ótima fotografia. Por fim, guardou o livro na mala.

            Quando chegaram a São Francisco, tiveram que esperar meia hora na pista por um terminal livre. Eram onze horas locais, duas horas mais tarde do que o previsto, e todos estavam exaustos. Fora um vôo típico dos tempos modernos, alimentação de má qualidade, falta de conforto, atrasos intermináveis e o conseqüente desagrado dos passageiros. Bem-vindos às viagens da nova era!

            Allegra encaminhou-se para a esteira rolante da bagagem e, apesar dos dissabores da viagem, havia qualquer coisa de divertido no fato de se encontrar ali inesperadamente. Era como se partilhasse um grande segredo. Não regressava a uma casa suja com a correspondência acumulada, não tinha de desfazer as malas nem de levar a roupa à lavanderia, não precisava ir para o escritório no sábado. Era como se recebesse um presente extraordinário Um fim-de-semana com Brandon, e nesse momento não necessitavam de mais nada, nem ele tinha que saber o que se passara. Allegra estava entusiasmada com a sua decisão

            Ao pegar na mala, porém, pensou de novo em Jeff. Já devia ter chegado a Los Angeles, à sua casa de Malibu. Como se sentiria. Dissera que telefonaria daí a uns dias, mas Allegra não sabia se atenderia a chamada. Precisavam ambos de digerir a loucura que se apoderara deles, e se se encontrassem seria ainda pior. Agora que saíra de Nova Iorque, estava determinada a fortalecer a sua decisão e a tentar esquecer tudo o que acontecera.

            Apanhou um táxi à saída do terminal e pediu ao motorista que a levasse ao Fairmont. Era um hotel antigo e imponente, onde Brandon gostava sempre de ficar. Em sua opinião, era uma aventura para as filhas e ficava perto de tudo. Allegra tentara convencê-lo a ir para um hotel menor em Pacific Heights, mas era difícil quebrar velhos hábitos e Brandon contrapunha sempre que as garotas adoravam o Fairmont.

            Àquela hora da noite, não levaram mais de vinte minutos para chegar à cidade. Allegra teve a sensação de que se deslocava debaixo de água quando o empregado lhe pegou na mala.

            — Fez reserva, senhora? — perguntou ele com ar solícito. 

            Com um sorriso frio, Allegra respondeu que ia ter com o marido.

            Calculava que ele estivesse dormindo a essa hora, mas a surpresa de vê-la ali compensaria. Tencionava pedir uma chave, entrar no quarto, despir-se e deitar-se na cama a seu lado. Gostaria de tomar uma ducha, mas não era justo fazer tanto barulho quando ele estava dormindo, guardaria o banho para o dia seguinte

            Eram onze e meia quando chegou à recepção, e no átrio as pessoas entravam e saíam. Havia vários restaurantes, onde pessoas de toda a cidade iam jantar: o Tonga Room, de comida oriental e polinésia, o Venetian Room, com orquestras de renome e artistas famosos, e o Mason’s, para refeições mais íntimas, mas Allegra só queria a chave do quarto de Brandon. 

            — Edwards, por favor — disse, mostrando-se distraída e afastando o cabelo dos olhos. Sentia-se desleixada com o casaco de frio que levara para Nova Iorque e a capa de chuva. Trazia o nécessaire numa das mãos, a pasta na outra, e tinha a mala a seu lado.

            —  Nome? —   perguntou a recepcionista, sem expressão.

            — Brandon.

            — Já deu entrada no hotel?

            — Tenho a certeza que sim. Chegou esta tarde. Apanhei o vôo de Nova Iorque para vir ter com ele.

            — E a senhora é?...

            A mulher olhou maquinalmente para Allegra.

            — A senhora Edwards.

            Sentia-se à vontade com a mentira, pois ficava sempre hospedada no Fairmont como Srª. Edwards. Era mais simples.

            — Obrigada, senhora Edwards. Quarto quinhentos e catorze.

            A recepcionista deu-lhe a chave e fez sinal ao carregador. Este pegou na mala e encaminhou-a para o elevador, oferecendo-se para levar os volumes menores, que entregou de bom grado; sentia-se desfalecer. Eram duas e meia da manhã, hora do Leste, e levantara-se às sete e meia. Além disso, a sua viagem fora fértil em emoções... Allegra afastou este pensamento e entrou no elevador, tentando reprimir um sorriso ao pensar na surpresa que iria causar a Brandon. Talvez ele nem sequer acordasse e só a visse de manhã, deitada a seu lado. Não sabia se já estava com as filhas ou se só as iria buscar no dia seguinte, mas desconfiava que elas já se encontrassem lá, e talvez fosse por isso que Brandon chegara tão cedo.

            O carregador abriu-lhe a porta e ela pediu-lhe que pousasse a bagagem do lado de dentro e a deixasse ali. Gratificou-o e levou o dedo aos lábios, com receio que Brandon estivesse dormindo. Tivera uma semana difícil, por causa do julgamento, e devia estar esgotado. Acendeu a pequena luz da sala da suíte e fechou a porta. Brandon era um bom cliente, e quase sempre o instalavam numa suíte com dois quartos pelo preço de dois quartos grandes. Allegra atravessou a sala. À luz difusa, com cuidado para não acordar ninguém, não se ouvia qualquer som no quarto ao lado. Brandon devia estar dormindo. A pasta dele encontrava-se junto da secretária, o casaco pendurado nas costas de uma cadeira, e viam-se vários livros e jornais espalhados. The Wall Street Journal, The New York Times, uma revista de direito e, debaixo da cadeira onde deixara o casaco, um par de sapatos e os mocassins que usava quando estava trabalhando. Era razoavelmente arrumado em casa, mas pouco cuidadoso nos hotéis.

            Allegra pousou as suas coisas e, com um sorriso, entrou no quarto às escuras, na ponta dos pés, só queria vê-lo, despir-se e deitar-se ao seu lado. Não havia luz, mas, quando os seus olhos se habituaram à escuridão, verificou que a cama estava vazia, com os lençóis afastados para trás, e viam-se chocolates em cima das almofadas. Brandon não se encontrava lá. Allegra perguntou a si própria se ele estaria com as filhas, a conversar com Joanie acerca dos bens ou se teria ido ao cinema. Por vezes gostava de ir ver um filme para se descontrair, sobretudo depois de uma semana atribulada ou de um julgamento, mas ficou um pouco desapontada por não o encontrar. Depressa se apercebeu de que teria tempo de tomar uma ducha, lavar a cabeça e descansar um pouco antes de ele voltar. Iriam para a cama juntos, provavelmente com um desfecho mais interessante. Ao pensar nisso, foi obrigada a expulsar Jeff da sua mente mais uma vez. Era ridículo, mas a verdade é que sentia que estava sendo infiel nesse momento Era uma situação completamente louca, mas Allegra procurou não pensar mais nele e acendeu a luz para se preparar.

            Despiu o casaco e foi pendurá-lo no roupeiro e, assim que se aproximou, percebeu por que motivo Brandon não estava na cama haviam-lhe dado a chave do quarto errado, aquelas roupas pertenciam a outra pessoa qualquer. Havia meia dúzia de vestidos de mulher, dois deles bastante vistosos, umas jeans e vários pares de sapatos. Ao ver aquilo, Allegra afastou-se rapidamente do roupeiro. Correu para a sala, para pegar nas suas coisas antes que os hóspedes voltassem e ficassem furiosos com a sua intromissão, mas, ao entrar lá, viu outra vez o casaco dele, e os sapatos, e ficou a olhar, atônita. Não tinha dúvidas: eram os de Brandon. E a pasta também era a dele. Teria reconhecido em qualquer lugar e, além disso, tinha as suas iniciais. Era o quarto de Brandon... Mas havia roupas de mulher no roupeiro... Allegra voltou atrás e verificou de novo, admitindo, por momentos, que fossem roupas suas e que Brandon as tivesse trazido na esperança de ela ir ter com ele, mas depressa percebeu que essa idéia era ridícula, pois se tratava de peças de vestuário de uma mulher dez ou doze centímetros mais baixa do que ela. Depois apalpou os vestidos, como se tentasse perceber por que motivo estavam ali. Sentia-se muito cansada e a sua mente recusava-se a aceitar o que os seus olhos viam.

            Em seguida entrou no banheiro e deparou com várias peças de maquiagem, chinelos dourados com penas brancas e uma camisola de renda branca quase transparente. Ficou a olhar para aquilo, estupefata, e só então sentiu o impacto do que tinha à sua frente: ele fora para São Francisco com outra mulher. Aquelas coisas não eram suas, nem pertenciam às filhas dele, que, de resto, não estavam ali. Só então é que reparou que, dessa vez, não lhe tinham dado uma suíte com dois quartos, como era habitual, para instalar as garotas, e as roupas de mulher que vira eram demasiado pequenas para serem de Joanie. Pertenciam claramente a outra pessoa. Mas quem? A pergunta ficou sem resposta. Ao olhar mais atentamente à sua volta, Allegra viu artigos de vestuário feminino espalhados por todo o lado, meias-calças em cima da cama, um  sutiã nas costas de uma cadeira, uma calcinha junto do lavatório... O que ele estava  fazendo? E há quanto tempo? Quantas vezes a enganara? Quantas vezes fora para São Francisco com outra pessoa e lhe dissera que queria estar sozinho com as filhas? Allegra nunca desconfiara, nem por um minuto, sempre acreditara nele, e ele enganara-a e mentira. E em Los Angeles tivera muitas oportunidades de fazer o mesmo. Ao pensar em tudo isto, o rosto de Jeff surgiu na sua mente. Deixara-se consumir pelo remorso por causa de meia dúzia de beijos e abandonara um homem que se mostrava seriamente interessado nela, tudo porque acreditava que estava ligada a Brandon pelo sentimento e pelo dever. E, entretanto ele era um impostor, um mentiroso! Allegra continuou olhando à sua volta, com os olhos marejados de lágrimas, mas não havia mais nada para ver, e não queria estar ali quando eles voltassem do jantar.

            Sentiu-se corar ao pensar em todas as vezes que o namorado se mostrara desinteressado e afirmara que precisava de ‘espaço’ e de ‘estar só’, sem combinar nada com ela. Não admirava: Brandon era um autêntico patife!

            Pegando em toda a sua bagagem atabalhoadamente, Allegra apressou-se a abandonar o quarto e correu para o elevador, rezando para não dar de caras com eles ao entrar. Desceu até à saída de Califórnia Street e, já na rua, tentou apanhar um táxi, mas não era tão fácil arranjar táxi em São Francisco como em Nova Iorque, e a maior parte deles esperavam em fila à porta principal do hotel. Porém, esse era o último lugar onde queria estar nesse momento: não desejava encontrar com Brandon quando ele voltasse sabia-se lá de onde e com quem! E ficou em Califórnia Street, agarrada às malas, a ver passar os bondes elétricos repletos de turistas. Mirou-os com os olhos cheios de lágrimas de raiva.

            Era inacreditável o que ele fizera! Enganara-a descaradamente! O mestre da fuga aos compromissos andara distribuindo a sua pessoa com a maior prodigalidade!

            Por fim avistou um táxi e largou a mala para lhe fazer sinal. O motorista saiu do automóvel para ajudar a arrumar a bagagem.

            — Muito obrigada — disse ela distraidamente, entrando no carro.

            — Para onde vamos?

            — Para o aeroporto — respondeu Allegra com voz trêmula, e cobriu o rosto com as mãos.

            — Sente-se bem, menina?

            Era um homem idoso e simpático, que teve pena dela. Parecia uma menina fugindo de casa.

            — Sim — murmurou, lavada em lágrimas.

            Dirigiram-se para o aeroporto, de onde saíra há menos de uma hora, e só então é que Allegra reparou que ainda tinha a chave do quarto na mão. Largou-a em cima do banco e espreitou pela janela, perguntando a si própria há quanto tempo é que a sua vida assentaria numa mentira. Brandon dissera-lhe tantas vezes que tinha de ir ver as filhas ou que precisava de espaço e de estar só! Naquele momento, porém, não sabia se ele a enganara desde o princípio ou se este era um velho truque que fazia parte do seu estilo de vida.

            Chegaram ao aeroporto em menos de vinte minutos e o motorista ajudou-a a sair do carro.

            — Para onde vai esta noite? — perguntou o homem afetuosamente.

            Era um velhote barrigudo e com um bigode farto. Allegra era jovem, muito bonita, e chorara até chegar ao aeroporto, e ele tinha pena dela e queria ajudá-la.

            Volto para Los Angeles respondeu Allegra, tentando recuperar a compostura. Mas era inútil. Tirou um lenço da mala e assoou o nariz. Desculpe... Eu estou bem acrescentou, em tom evasivo.

            — Filha, não parece... Mas tudo vai correr bem. Vá para casa. Amanhã ele vai arrepender-se do que fez disse o motorista carinhosamente, partindo do princípio de que ela tivera problemas com um homem. No entanto, Brandon nunca lamentaria tanto essa noite como ela.

            Agradeceu ao homem e dirigiu-se para o terminal, onde lhe disseram que perdera o último vôo, que partira para Los Angeles às nove horas. Já passava da meia-noite, e restava-lhe ficar no aeroporto à espera do primeiro avião da manhã. Nem sequer havia ninguém que lhe tomasse conta das malas! Sugeriram-lhe que fosse para o hotel do aeroporto, mas recusou a oferta: não lhe agradava ir para lado nenhum, queria apenas ficar ali sentada. Tinha muito em que pensar e, por uma fração de segundo, lembrou-se de telefonar a Jeff, mas não lhe pareceu certo queixar-se a ele depois do que acontecera em Nova Iorque. Fizera-o suar por cada um dos seus beijos, enquanto Brandon talvez tivesse passado a semana na cama, divertindo-se. Allegra não podia deixar de perguntar a si própria quem seria a mulher do Fairmont, mas ficara demasiado abalada para tentar procurar a sua identificação ou o nome em qualquer lado. O ambiente que encontrara era muito íntimo, com a roupa íntima e a camisola transparente espalhadas por todo o lado. Ainda não conseguia acreditar no que vira! Sentira-se uma intrusa, e ficara grata por eles não terem regressado quando se encontrava no quarto. Isso teria sido a gota de água, Ou, pior ainda, se ela tivesse entrado quando eles estavam na cama. O simples fato de pensar nisso a fez estremecer.

            Alugou um  armário e guardou as malas lá dentro para poder ir beber um café sem ter de arrastar a bagagem atrás. Pouco depois, começou a sentir-se mais calma. De vez em quando a raiva vinha à superfície, mas era quase sempre a tristeza que dominava. Pensou em telefonar à mãe a contar o sucedido, mas ela detestava de tal modo Brandon que não queria dar a satisfação de participar que ele sempre a enganara Ou não? Nunca viria a saber ao certo, e duvidava que Brandon fosse sincero para com ela. Nesse momento, nem sequer sabia que fora apanhado em flagrante.

            Allegra bebeu cinco cafés duplos e passou a noite acordada, lendo revistas, pensando nele e passeando de um lado para o outro. Por instantes pôs a hipótese de escrever uma carta e dizer tudo o que sentia, mas a atitude não pareceu suficientemente enérgica. Não sabia o que  faria. Podia ter voltado ao Fairmont ou telefonar para ele, para ver o que diria. Podia, aliás, ter feito muitas coisas, mas, acima de tudo, queria ir para casa e meditar no assunto.

            Por fim sentou-se olhando o nascer do sol e desatou de novo a chorar ao pensar nele. Às seis da manhã, quando embarcou no primeiro avião, sentia-se a enlouquecer. Era sábado e o avião não estava cheio, transportava apenas alguns empresários e duas famílias.

            A comissária serviu-lhe outro café e um pãozinho, em que nem sequer tocou: achava-se completamente destroçada! Estava viajando há mais de vinte horas e sentia-o bem na pele quando finalmente saiu do avião. Eram sete e dez. Apanhou um táxi. Aquele era o terceiro aeroporto por onde passava em menos de dois dias. Encostou a cabeça ao banco do carro, fatigada; às oito horas entrou em casa. Estivera fora sete dias, quase se apaixonara por um homem a quatro mil e quinhentos quilômetros de distância e descobrira que aquele a quem se dedicava há mais de dois anos a enganava. Fora uma semana dura, sobretudo desde a noite anterior, em São Francisco.

            Pousou a mala e olhou à sua volta. A empregada deixara-lhe uma pilha de correspondência em cima da secretária e a secretária eletrônica estava quase cheia quando  ligou. Havia as mensagens habituais da lavanderia qualquer coisa acerca de um casaco que não podiam limpar e de umas fronhas que se tinham perdido, de um  clube que solicitava a sua inscrição e da garagem onde comprava os pneus para o automóvel. A mãe telefonara na véspera para saber se queria ir jantar com eles no domingo e Carmen ligara comunicando que estava na casa de uns amigos; deixara um número que Allegra já conhecia, mas não se lembrava de onde. O último telefonema era de Brandon. Dizia que ia ver as filhas em São Francisco; haviam chegado a acordo no julgamento e este acabara cedo, e as garotas queriam mesmo que ele fosse. Tinha a certeza que estava cansada depois de uma semana em Nova Iorque e que precisava de se pôr a par do que se passara durante a sua ausência, por isso vê-la-ia no domingo à noite, quando regressasse. Allegra perguntou a si própria se ele se daria ao trabalho de voltar a ligar ou se pensaria que tinha cumprido a sua obrigação. Talvez ficasse à espera que ela o fizesse.

            Porém, Allegra não tencionava telefonar, nem a ele nem a ninguém, nesse momento. Queria estar só, lamber as feridas e resolver o que havia de fazer. Ainda não sabia ao certo se iria falar com ele, mas a situação fora muito clara, não havia dúvidas quanto ao que Brandon fizera, e não tencionava manter a relação.

            Desfez a mala e guardou as roupas; em seguida preparou uma torrada e um chá. Tomou uma ducha e lavou a cabeça, tentando relaxar, mas sentia uma dor constante e quase física no peito. Era como se algo se tivesse partido lá muito no fundo no momento em que vira o sutiã e a camisola transparente da namorada de Brandon.

            Telefonou para os pais às dez da manhã, mas ficou aliviada por não estarem em casa. Segundo Sam, tinham ido jogar tênis no clube. Allegra disse apenas que estava bem e que tinha regressado de Nova Iorque nessa manhã, mas não podia ir lá jantar no domingo, porque tinha muito que fazer.

            — Explica à mãe, está bem, Sam?

            — Claro — respondeu a irmã, maquinalmente. Allegra ficou preocupada, que a mãe não recebesse o recado. Às vezes era o que acontecia, quando Samantha tinha coisas mais importantes em que pensar, como uma festa, um rapaz ou uma ida às compras com uma amiga. Não te esqueças, por favor, está bem? Não quero que julgue que não respondi ao telefonema dela.

            — Ouve lá, Miss Importante, o seu recado não é assim tão especial, não acha?

            — Talvez sejam para a mamãe.

            — Acalme-se, que eu dou. A propósito, como estava Nova Iorque? Comprou alguma coisa?

            — Sim, um livro de um homem que conheci e com quem fui patinar —  pensou Allegra.

            — Não tive tempo para fazer compras.

            — Bolas! Isso não tem graça nenhuma!...

            — Não era propriamente uma viagem de turismo, estive trabalhando. Como está  mamãe?

            — Bem. Por quê?

            Sam ficou admirada com a pergunta, nunca lhe passara pela cabeça que houvesse qualquer problema. Aos dezessete anos, todo o mundo girava em torno dos seus interesses e, naquela fase, os pais ocupavam uma posição muito marginal.

            — Ela está bem, apesar de não ter recebido o prêmio?

            — Claro. Sam encolheu os ombros. Nem disse nada. Não me parece que se preocupe com isso!

            Estas palavras só provaram a Allegra que Samantha conhecia mal a mãe. Blaire era uma perfeccionista e uma vencedora, que se preocupava com os mais ínfimos pormenores. Tinha a certeza que sofrera muito por não haver ganhado o prêmio, mas era demasiado orgulhosa para admitir, e era evidente que Sam, com os seus dezessete anos, não tinha consciência dos sentimentos da mãe. Estava prestes a ingressar na universidade e só pensava em passagens de modelos e em fazer compras.

            — Diz que eu telefono quando tiver tempo e dá beijinhos também no papai.

            — Baaa!... Quer que tome nota de mais alguma coisa?

            — Desliga.

            — Está com uma disposição péssima!

            — Passei a noite inteira no aeroporto.

            Nem falou do que sucedera com Brandon; não lhe agradava ouvir disparates da boca de uma menina de dezessete anos!

            — Desculpa...

            — Tchau, Sam.

            Allegra já tinha a sua dose e, depois de desligar e de refletir um pouco, resolveu telefonar a Alan, mas o amigo não estava em casa e ninguém respondeu.

            Gostaria de trocar impressões com ele acerca do que acontecera. Alan não simpatizava com Brandon, mas era sempre justo, e também queria falar-lhe de Jeff, e ver se ele julgava que ela estava louca por se sentir tão atraída por um homem que era praticamente um desconhecido.

            Por volta do meio-dia, estava de tal modo esgotada que não conseguia pensar como devia ser, por isso desistiu e deitou-se na cama. Ninguém lhe telefonou e a campainha da porta não tocou. Brandon nem sequer ligou para saber se ela chegara bem de Nova Iorque. Acordou seis horas mais tarde. Lá fora já escurecera outra vez. Sentia-se como se tivesse um peso de dez toneladas em cima do peito e uma bola de boliche no estômago. Deixou-se ficar deitada durante muito tempo, a olhar para o teto, pensando em Brandon, e, ao recordar o que acontecera, as lágrimas rolaram-lhe lentamente pela face. A noite anterior fora desastrosa para ela, e nem sequer sabia o que faria. Não queria continuar, nem recomeçar, nem voltar a confiar em ninguém. Talvez Jeff fosse igual aos outros. Era só o que conseguia arranjar, homens que a evitavam e a magoavam, que não davam nada de si próprios e acabavam por fugir. O único homem na sua vida que nunca a magoara nem fugira dela era Simon Steinberg. Era o único em quem podia confiar e que se atrevia a amar. E tinha a certeza que ele nunca a trairia.

            Mas agora teria de se confrontar com Brandon. A situação era tão desagradável que nem suportava pensar nela. Não queria ver a cara dele, sobretudo os olhos, quando ele  mentisse, odiá-lo-ia por isso!

            Nessa noite nem se deu ao trabalho de comer e deixou-se ficar deitada, alternando as lágrimas com o sono. Meditou muito e só no dia seguinte, que era domingo, é que se levantou. Quando acordou, parecia que tinha levado uma sova; o corpo doía da cabeça aos pés, nem sabia bem por que, estava magoada por fora e por dentro e continuava a sentir o mesmo peso no peito. Não desejava conversar com ninguém, e, quando Carmen ligou, nem sequer atendeu. Carmen fartou-se de rir, sinal de que estava bem. Allegra não atendeu um único telefonema senão quando Brandon falou, às quatro da tarde de domingo.

            Levantou o fone assim que o ouviu; queria acabar com aquela situação. Ele dissera que podia ir ter com ela nessa noite, quando chegasse de São Francisco.

            — Olá, Brandon — disse, com calma.

            A mão tremia como vara verde, mas a voz não a traiu

            — Olá, querida, como está? Como foi o vôo de Nova Iorque?

            — Bom, obrigada.

            Mostrou-se fria, mas não zangada, e ele pensou que estava distraída com o trabalho. Às vezes sucedia o mesmo com ele, e por isso não estranhou. Telefonei na sexta-feira à tarde, mas ainda não tinha chegado continuou ele num tom descontraído.

            — Recebi a mensagem. Onde está? Allegra começava a ficar mais tensa.

            — Ainda me encontro em São Francisco — explicou ele sem dificuldade. Passei uns dias formidáveis com as meninas. Agora que o caso está resolvido, sinto que me tiraram um grande peso das costas.           

            — É ótimo! E, aparentemente, o fim-de-semana não ficara atrás... Ainda bem. Quando voltas para Los Angeles?

            — Pensei em ir no vôo das seis. Posso aparecer aí por volta das oito.

            — Está bem assentiu, sentindo-se como um autômato. Por fim, ele percebeu que se passava qualquer coisa de anormal.

            — Há algum problema? Não se mostrou preocupado, mas surpreendido. Em geral, ela era tão alegre! Ainda está cansada da viagem?

            — Sim, um pouco. Na verdade, nunca se sentira tão fatigada na sua vida. Até logo.

            — Até logo.

            Brandon hesitou um pouco, como se sentisse que devia dizer mais qualquer coisa do que era habitual, e, por uma vez, dispôs-se a dar um pouco de si. Era muito hábil quando queria disfarçar.

            — Allegra... Tive muitas saudades suas.

            — Também senti — respondeu ela, com os olhos marejados de lágrimas. Até logo.

            — Quer ir jantar fora?

            Allegra ficou admirada com a energia dele depois de um fim-de-semana com a Miss Camisola Transparente, ou talvez se tratasse de uma chama antiga e não precisasse de tanto zelo como ela julgava.

            — Por acaso, prefiro ficar por aqui.

            Não podia dizer-lhe o que queria num restaurante nem em qualquer outro lugar público. As quatro horas seguintes pareceram-lhe intermináveis: precisava tirar aquele peso do peito o mais depressa possível, para seu próprio bem.

            À tarde foi dar um grande passeio a pé e telefonou para os pais. Disse à mãe que tinha que ir ao escritório e ficar estudando uns contratos até tarde.

            — No domingo? Isso é ridículo! — retorquiu Blaire, preocupada com ela. A filha trabalhava de mais e parecia exausta.

            — Estive ausente durante uma semana, mãe. Apareço aí um destes dias.

            — Tome cuidado, insistiu Blaire, que, excepcionalmente, não perguntou por Brandon.

            Allegra ficou-lhe grata. Jantou um iogurte e deu uma olhadela ao noticiário, na televisão, mas depressa concluiu que nem sabia o que estava vendo e acabou por se ir deitar no sofá, esperando. Às oito e quinze ouviu-o subir a rampa e, quando o sentiu enfiar a chave na fechadura, sentou-se. Dera-lhe a chave há um ano.

            Brandon tinha um ar feliz e descontraído. Sorriu-lhe, aproximou-se dela e abraçou-a, mas Allegra evitou-o completamente e surpreendeu-o ao levantar-se para cumprimentá-lo. Recuou um passo para observá-lo melhor e procurou-lhe os olhos, mas não encontrou respostas às suas perguntas.

            Brandon ficou chocado. Em geral Allegra era tão meiga e simpática que se admirou por ela evitar seu abraço. Durante algum tempo, Allegra não disse uma palavra, e ficaram olhando um para o outro em silêncio.

            — Há algum problema? — perguntou ele, por fim.

            — Eu acho que sim. Você, não?

            Allegra não disse mais nada, mas reparou que um músculo do pescoço dele se retesara assim que ficara de sobreaviso.

            — O que isso quer dizer?

            — Talvez você deva explicar-me. De repente, tenho a sensação que se passaram várias coisas que eu não sabia, Brandon. Coisas de que devia ter me falado.

            — Por exemplo?... Ficou olhando para ela, já um pouco irritado, mas Allegra sabia que se tratava de uma defesa; fora apanhado e apercebeu-se disso antes de ela continuar a conversa.

            — Não sei do que está falando!

            Afastou-se para o outro lado da sala e, sem tirar os olhos dele, Allegra voltou a sentar-se.

            — É claro que sabe! Você sabe muito bem do que eu estou falando, só não sabes exatamente o que eu sei, aliás, nem eu. E é isso que quero saber agora! Quantas vezes e há quanto tempo? Com quantas mulheres tem ido para a cama? Anda enganando-me há dois anos ou começou há pouco tempo? Quando é que foi, Brandon? De repente, lembro-me de todas as vezes que foi a São Francisco, que me disse que queria estar só com as meninas ou que tinha de conversar com a Joanie. Isso para não falar da tua ida a Chicago  e do acordo que teria te levado a Detroit... O que vem a ser isto? Encarou-o com frieza; de repente, todo o sofrimento dos dois últimos dias se transformou em gelo. Por onde começamos?

            — Não faço a mínima idéia do que está falando —  disse ele, tentando fazê-la sentir-se ridícula, mas empalideceu e sentou-se, e Allegra reparou que tinha as mãos tremendo quando acendeu um cigarro.

            — Isto deve deixá-lo muito nervoso. Era como eu me sentiria, se estivesse no teu lugar continuou, sem tirar os olhos dele. A verdade é que não percebo o objetivo. Porque haveria de se incomodar? Nem sequer somos casados... Porque me enganou? Porque não telefonou na véspera e esclareceu tudo?

            — De que está falando? — insistiu Brandon, fingindo que não percebia. Gostaria de fazer sentir que estava a tresvariar, mas não se atreveu, pois percebeu logo que ela estava furiosa.

            — Estou falando do teu fim-de-semana no Fairmont. Com certeza que não quer me obrigar a dizer mais nada...

            Allegra nem imaginava como estava bela, com o cabelo louro caído sobre os ombros, umas  jeans e uma camiseta azul-marinho.

            — O que significa tudo isto?

            Brandon representava a farsa até ao fim, e Allegra olhou para ele com um desprezo total.

            — Muito bem, se quer eu que seja um pouco mais explícita... Se eu estivesse no seu lugar, acho que não faria o mesmo. Telefonei para o teu gabinete na sexta-feira, e a tua secretária disse-me que o julgamento terminara e que ia ver suas filhas em São Francisco. Estúpida como sou, resolvi fazer uma surpresa e troquei a minha passagem.

            Brandon empalidecia à medida que ela falava, mas continuava aparentando calma e  fumando o seu cigarro, franzindo o sobrolho.

            — Peguei o avião para São Francisco — prosseguiu Allegra. O vôo estava atrasado, mas poupo todos esses pormenores. Cheguei ao Fairmont por volta das onze e meia de sexta-feira e pensei que faria uma surpresa indo encontrar-me com você. Deram-me a chave do teu quarto quando eu disse que era a Senhora Edwards.

            Brandon ficou aborrecido e apagou o cigarro.

            — Não deviam ter feito isso!

            — Creio que não, concordou Allegra tristemente. A história não era agradável, e a fazia reviver tudo. De qualquer modo, entrei no quarto, e, pesando os prós e os contras, acho que tive sorte: você e a sua amiga tinham saído. A princípio, julguei que me enganara, mas depois reconheci a sua pasta e o seu casaco. Mas não reconheci tudo o resto. Não era meu, nem da Nicky, nem da Stephanie, nem da Joanie. De quem era então, Brandon? Devo dar-me ao trabalho de perguntar, ou ficamos por aqui e esquecemos tudo?

            Olhou para ele, sem se levantar. Brandon encarou-a, em silêncio, à procura das palavras para responder. Durante muito tempo, não as encontrou.

            — Não tinha nada que ir lá, Allegra — disse, por fim.

            Ela ficou atônita. Nem podia acreditar no que estava ouvindo!

            — Por quê?

            — Não foi convidada. Pensando melhor, talvez tenha tido o que merecia. Eu não venho a sua casa quando está fora em serviço. Não pertencemos um ao outro, não somos casados; temos direito à nossa própria vida.

            — Ai sim? — Allegra ficou olhando para ele, pasmada. Julguei que fôssemos mais ou menos namorados. Ou isso pertence ao passado. Se não vivemos juntos, então o que somos? Pensei que éramos ambos monogâmicos, mas parece que não!

            — Não devo explicações, não sou casado com você! — retorquiu Brandon, levantando-se.

            — Não, não é —  disse ela, observando-o. É casado com outra pessoa.

            — Isso é que te incomoda, não é? O fato de eu ter mantido a minha independência Não sou propriedade sua, nem de ninguém! Não é minha dona, Allegra! Nunca será, nem você, nem a sua família, nem ninguém! Eu faço apenas o que quero!

            Allegra nunca compreendera a extensão do ressentimento de Brandon, jamais imaginara que era isto que ele sentia.

            — Nunca quis que fosse minha propriedade! Eu só desejava te amar e talvez vir a ser sua mulher.

            — Não estou interessado nisso! Se estivesse, teria me divorciado. Mas nunca o fiz. Não percebeu?

            Allegra não só se sentia magoada como estúpida. A mensagem fora clara, tal como afirmara a Drª. Green, e ela a ignorara; não quisera ouvi-la, tal como não queria ouvi-la nesse instante. Porém, estavam ambos furiosos e, finalmente, tudo fora esclarecido. Era um momento muito doloroso.

            — Você se aproveitou de mim! — exclamou do outro lado da sala, em tom de acusação. Mentiu, me enganou! Não tinhas o direito de fazer isso! Eu fui decente com você, Brandon, isso não é justo!

            — Não sei o que é ser justo. Quem é que conhece que seja justo neste mundo? Não me venha com essa conversa! Tem que aprender a olhar por você, Allegra!

            — Foi para a cama com outra mulher e me disse que estava com as suas filhas! Que porcaria é ser essa?

            — É a minha vida, que só a mim diz respeito, são as minhas filhas! O que você sempre pretendeu foi meter o nariz em tudo! Eu nunca quis, e você sabia!

            — Não, não sabia — replicou ela, queixosa. Nunca percebi isso. E talvez devesse ter explicado antes de chegarmos a este ponto. Desperdiçamos dois anos da nossa vida!

            — Eu não desperdicei nada — disse ele, complacente, fiz exatamente o que quis.

            — Sai da minha casa! — exclamou Allegra, olhando para ele e falando a sério. Você é uma pessoa miserável, um mentiroso, um impostor, e eu é que tenho agüentado o teu peso morto emocional nos últimos dois anos! Não dá nada a ninguém, nem a mim, nem aos seus amigos, nem às pessoas que conhece, nem mesmo àquelas por quem finge interessar-se! Nem sequer dá nada às tuas filhas! Está muito preocupado que alguém dependa de você, te faça sentir alguma coisa ou te peça um compromisso! É um arremedo patético de um ser humano! Agora, saia da minha casa!

            Brandon hesitou por instantes, olhando para o quarto dela. Allegra levantou-se, encaminhou-se para a porta principal e abriu-a.

            — Ouviu o que eu disse? Sai. Não estou brincando.

            — Acho que ainda tenho algumas roupas no teu quarto

            — Eu envio-as pelo correio. Adeus

            Allegra ficou à porta, à espera que ele saísse. Brandon passou por ela como se quisesse estrangulá-la, sem um beijo nem um pedido de desculpa, um último olhar, uma ponta de remorso ou sequer um adeus. Era completamente insensível e as coisas que lhe dissera tinham-na deixado destroçada. Ao ouvi-lo Allegra percebera que nunca lhe havia sido fiel e que sempre fizera o que queria. Brandon fora egoísta e toda a paciência e ternura do mundo não chegariam para modificá-lo. E o pior tinham sido as palavras que nunca escutara da boca dele, o fato de não a ter amado. Porém, a sua atitude provara que a Drª. Green tinha razão, e Allegra não percebia porque tinha sido tão estúpida.

            Depois que ele saiu, sentou-se e ficou pensando durante muito tempo, por fim, desatou a chorar. Brandon era realmente um miserável e um egoísta, mas durante dois anos insistira em convencer-se que se amavam e doía-lhe terrivelmente ter-se enganado a respeito dele. Nem sequer se atreveu a telefonar à Drª. Green em busca de conforto, pois não a queria ouvir dizer que cometera o mesmo erro outra vez, e também não desejaria escutar da boca da mãe que o seu afastamento era uma bênção. Sabia agora que estava melhor sem ele, mas ainda lhe doía muito pensar que fora usada e enganada. Brandon estivera desinteressado nela e admitira-o claramente, sentado no sofá, fumando um cigarro e destruindo o que restava dos seus sentimentos. Allegra precisava de um ombro amigo para desabafar, alguém a quem confessar que tudo aquilo era injusto, que ele era um filho da mãe, mas não tinha ninguém. Estava sozinha tal como se encontrava quando o conhecera, rejeitada, só, abandonada pelo seu último amante. Estava convencida de que aprendera a lição desde então, mas aparentemente enganara-se, e isso era o pior. Nesse momento não era possível esconder a verdade

            Deitou-se na cama e ali ficou durante muito tempo depois que Brandon saiu, pensando nele, convencendo-se de que era melhor assim, lembrando-se do que sentira no quarto do Fairmont, mas, ao olhar para a fotografia deles em Santa Bárbara no ano anterior, quando as coisas corriam bem e estava tão apaixonada por ele, teve uma sensação de perda incomensurável.

            Por alguns momentos perguntou a si própria se Brandon voltaria a telefonar, se  manifestaria o seu arrependimento, se reconheceria que tinha sido injusto para com ela, mas já passara duas vezes pelo mesmo, e ninguém tomara essa atitude. Eles desapareciam depois  deixarem-na destroçada e atiravam-se para os braços de outra qualquer. Allegra vira  dois anos da sua vida saírem pela porta fora com Brandon Edwards.

            Mais tarde, teve de fazer um grande esforço para levantar e apagar as luzes. Olhou lá para fora e pensou nele. Sabia que podia ter telefonado a Jeff e dizer-lhe que estava livre, mas não quis. Precisava de tempo para fazer o luto de Brandon. Por muito que ele não prestasse nem fosse querido da sua família, continuava a amá-lo.

 

            Na segunda-feira depois da chegada de Nova Iorque, quando foi trabalhar, parecia que tinha passado por uma prensa. Estava pálida e com um ar cansado, e Alice comentou que parecia exausta e mais magra.

            — O que lhe aconteceu? — perguntou a secretária discretamente.

            Allegra encolheu os ombros; a situação continuava a ser muito penosa. Não podia deixar de pensar como fora tola. Há quanto tempo Brandon estaria enganando-a? Parecia uma atrasada mental! Ao longo do dia, porém, começou a perceber que, apesar de o seu orgulho ter sido ferido, não sabia exatamente até que ponto estava destroçada nem sequer qual a dimensão do amor que dedicara a Brandon. Isso é que era estranho. Sentia-se triste, mas não lamentava que tudo tivesse acabado. Durante a última semana em Nova Iorque questionara a sua relação com ele e começara a prestar atenção nas coisas de que as outras pessoas falavam, a distância, o desinteresse, a falta de intimidade, a indisponibilidade, que já não era surpresa, tivesse ele dez namoradas ou apenas mais uma. Nunca saberia quantas tinham sido, nem qual a seriedade dessas relações, mas o fato de elas terem existido não só a irritava como a fazia sentir-se ridícula.

            No entanto, por volta do meio-dia, estava tão atarefada com o trabalho que se acumulara que já nem pensava em Brandon. Bram adorou a tournée que ela e os promotores tinham organizado e Malachi telefonou-lhe da clínica de reabilitação para pedir dinheiro, mas, por solicitação da mulher, Allegra recusou.

            — Desculpe, Mal. Faça-me o mesmo pedido um mês depois da sua desintoxicação, e então falaremos nisso.

            — Para quem você trabalha, afinal  — perguntou ele, furioso.

            Allegra sorriu, tomando nota para a reunião seguinte.

            — Para você. Sabe muito bem que precisa fazer esse tratamento!

            Falou também da tournée e distraiu-o um pouco, antes de ele ir para a massagem e para a seção de terapia.

            —  Quem me dera ter tempo para essas coisas! Desabafou com Alice, enquanto engolia um iogurte e um café e examinava um contrato para um filme de Carmen que acabara de chegar.

            Parecia fabuloso e Carmen iria ficar deslumbrada: era um filme que a tornaria definitivamente numa grande estrela. Contudo, quando telefonou para casa de Carmen, respondeu-lhe a secretária eletrônica.

            — Onde diabo ela anda? —  resmungou Allegra entre dentes.

            Tentara todos os números de que dispunha, mas nenhum respondia. Fez um esforço para se lembrar de outros que Carmen lhe dera, de amigos, ou da avó, em Portland. Nunca tinha desaparecido daquela maneira e, em geral, telefonava para Allegra uma dúzia de vezes por dia, falando dos problemas mais comezinhos. Era um comportamento muito invulgar em Carmen Connors. Aparentemente, ninguém sabia onde se encontrava.

            Só o Chatter publicara uma notícia sobre ela depois da cerimônia do Globo de Ouro, com uma fotografia de Allegra de braço dado com Alan saindo do automóvel e Carmen atrás. O jornal dava a entender que Allegra era apenas uma acompanhante e que existia um grande romance entre Alan Carr e Carmen Connors. O engraçado é que, por uma vez, talvez tivesse acertado.

            Ao ler aquilo, Allegra lembrou-se de uma mensagem que recebera na secretária eletrônica de sua casa quando estava em Nova Iorque, com um número de telefone que lhe parecia familiar. Procurou o bloco de apontamentos na pasta: tomara nota do número, junto com vários outros, num pedaço de papel e enfiara-o ali. Levou algum tempo procurando-o, mas, por fim, o encontrou. Esquecera-o completamente, porém, ao olhar para ele, reconheceu-o de imediato: era o número do telefone da casa de Alan em Malibu. Carmen estava lá, e de súbito Allegra recordou-se que ele lhe oferecera a casa. Sorriu enquanto fazia a ligação. Foi Alan que atendeu.

            No fim-de-semana, Allegra telefonara para o apartamento  de Beverly Hills, mas ele não estava. Nem sequer se lembrara de ligar para Malibu, porque era raro o amigo ir para lá, nem supusera que pudesse estar lá com Carmen.

            — Olá... — disse num tom inocente, como se estivesse telefonando-lhe sem um motivo especial.

            — Não me venhas com subterfúgios  — disse ele, rindo. Conhecia-a muito bem. A resposta é: não tens nada com isso!

            — Qual é a pergunta? — retorquiu ela, dando uma gargalhada.

            Alan parecia feliz e até um pouco pateta. Allegra ouviu alguém a conversar e a rir do outro lado e teve a certeza de que era Carmen.

            — A pergunta é ‘onde é que esteve toda a semana’? A resposta é ‘não tens nada com isso’.

            — Deixe-me adivinhar... Em Malibu, com alguém que ganhou um Globo de Ouro este ano. Acertei?

            — Em cheio. Ela telefonou e deixou o meu número, portanto não é um detetive assim tão especial. Tinha uma pista.

            — E eu  não a aproveitei. Pareceu que conhecia o número, mas só agora vi a quem pertencia. Então como vai a vida na praia?

            Era bom ouvir de novo a voz de Alan. Allegra tivera vontade de lhe contar o que se passara com Brandon, mas nesse momento não quis falar no assunto, e muito menos estando ele junto de Carmen. Não gostava de partilhar os seus problemas pessoais com os clientes. Com Alan era diferente, eram amigos desde a infância.

            — A vida vai ótima  — Alan estava radiante, mesmo muito boa...

            Ao dizer isto, inclinou-se e beijou Carmen.

            — Não devia estar trabalhando?

            Allegra perdera seus últimos passos. Fora o agente de Alan na CAA que redigira o último contrato.

            — Não tenho intenção de trabalhar durante um ou dois meses. Continuo esperando a decisão final em relação ao filme.

            — Bem, tenho uma grande novidade para a Carmen. Talvez ela te passe à frente!...

            — Mesmo que aceitasse a proposta, Carmen só começaria a filmar em Junho.

            — Onde serão as filmagens?

            Alan tentou mostrar-se despreocupado, mas Allegra percebeu o seu interesse velado.

            — Aqui mesmo em Los Angeles, ao contrário de você. Os filmes dele eram sempre realizados em lugares muito distantes. O próximo seria na Suíça, mas há pouco tempo tinham-lhe proposto outro cujas filmagens decorriam no México, no Chile e no Alasca. Era um grande filme de aventuras, mas prometia ser muito trabalhoso e turbulento. O último fora rodado na Tailândia, e dois dublês tinham morrido. Agora com Carmen talvez ele deixasse de fazer o seu próprio trabalho dublê.

            — A Carmen sabe para onde vai?

            — Já lhe contei. Ela disse que iria comigo. Pelo menos a Suíça era um país civilizado, ao contrário da maioria daqueles em que Alan trabalhava.

            — Talvez acabe a tempo de assistir à filmagem do filme dela.

            — Iria certamente ser um grande êxito, e Allegra estava entusiasmada com a sua cliente.

            — Posso falar com a Carmen?

            — Ah é assim é? Quinze anos de amizade, um acompanhante para o Globo de Ouro, e agora me põe de lado como se eu fosse um trapo velho!

            — Não exatamente — replicou ela, rindo, de repente mais animada do que durante o resto do dia. Ainda se sentia triste e estúpida por causa de Brandon, mas o fato de ter esclarecido tudo e de se ter confrontado com ele dera-lhe mais força. Gostaria de contar tudo a Alan, mas ainda não estava preparada para isso. Precisava de tempo para admitir perante os outros que Brandon a enganara e que o desmascarara. Mas pelo menos fora ela a acabar. Não era mau...

            — Como estava Nova Iorque? Conseguiu bons acordos?

            — Alguns. Foi divertido. Havia montes de neve... E de Patinagem... E de beijos...

            — A neve não tem muita graça em Nova Iorque.

            Alan não percebeu por que motivo é que ela estava tão satisfeita.

            — Por acaso, fui patinar.

            — Ai sim? Hum, deve haver alguma coisa nos ar. Teve algum caso com aquele velho escritor de que me falou? Como se chama ele?... Dickens?... Tolstoi?

            — Jason Haverton. É um homem formidável! Não, não tive nenhum caso com o Haverton, idiota, apesar de ter gostado muito dele, mas talvez a idéia o agradasse.

            — Os velhos fazem qualquer coisa em troca de sexo, Al. Já devia saber isso, com a sua idade.

            — Anda a preparar o terreno? É isso?

            — Antipática! Não te fica bem ser malcriada para o seu namorado do colégio!

            — Já não é namorado de ninguém, exceto talvez da Carmen.

            Para não falar de milhões de mulheres em todo o mundo, claro, mas eram amigos há tanto tempo que Allegra não teve dificuldade em ignorar este fato.

            — Deixe-me falar com ela, ou tenho de aturar esta conversa a tarde toda? — insistiu, rindo.

            — Alan era impossível, mas adorava-o.

            — Vou perguntar se ela quer falar com você. A propósito, quando é que te vemos?

            Alan falava como se Carmen e ele fossem casados, e Allegra gostou de ouvi-lo.

            — Talvez este fim-de-semana, se não tiver mais nada que fazer.

            — Eu fiz a pergunta no singular, e não no plural Não incluí o morto.

            — Não seja desagradável para com o Brandon replicou, mais por hábito do que por sentimento. Ela também gostaria de ter oportunidade de ser dura para com Brandon, mas não estava preparada para falar nesse assunto a Alan.

            — Nunca sou antipático para com os mortos. Bem, tenta ver se se livra dele antes de irmos jantar. Ou talvez nós fiquemos por aqui. Vou passar para a patroa retorquiu, entregando o telefone a Carmen e beijando-a.

            Fez-se um longo silêncio e Allegra ficou à espera.

            Passara nove dias formidáveis com Alan, num isolamento total. Houve várias pessoas do lugar a reconheceram quando foi à praia, mas nenhuma a incomodou. Eram mais ou menos tão famosas como ela e estavam habituadas à presença de celebridades. Cruzavam-se com Nicholson, Streisand e Nick Nolte quase todos os dias, e com Cher, Tom Cruise e Nicole Kidman. Em Malibu, junto de Alan, Carmen Connors encontrava-se entre os seus pares, e a segurança era enorme.

            — Senti a sua falta — disse Carmen, apesar de ter andado muito ocupada.

            — Eu também. Nova Iorque estava uma loucura, mas adorei. Vamos a outro assunto: adivinhe o que eu consegui para você... Allegra estava tão entusiasmada que parecia uma menina.

            — Não sei. O perfume? Falou com eles em Nova Iorque?

            — Falei. É horrível. Você iria detestá-lo e teria de passar meses para vendê-lo. Esqueça! Não... Fez uma pausa, despertando-lhe ainda mais a curiosidade. E que tal um grande,  novo e suculento filme, com um papel que lhe valerá o Oscar da Academia? Aposto!

            — Uau! Quem é que entra?

            — Você! E nomeou mais cinco atores que deixaram Carmen sem fôlego. E que tal três milhões de dólares para a vencedora do Globo de Ouro deste ano? Que lhe parece?

            — Não acredito!

            Carmen correu a dar a notícia a Alan e voltou ao telefone.

            — Você merece — garantiu Allegra, perguntando a si própria por que motivo pensava que toda pessoa que conhecia tinha direito de alcançar o melhor, desde relações pessoais a filmes, e ela própria nunca se considerava digna de coisa alguma. Era uma questão interessante.

            — Gostaria que voltasse para falar com os produtores — acrescentou amavelmente.

            — Claro. Quando?

            — Diga-me qual a data que lhe convém, e eu marco a reunião. Olhou para o calendário.

            — Que tal na quinta-feira?

            — Ótimo! O Alan pode ir?

            — Se ele quiser...

            Alan fez sinal afirmativo a Carmen.

            — Ele diz que sim... E, Allie... Carmen hesitou, mas a questão era importante para ela nesse momento. Talvez da próxima vez eu e o Alan possamos fazer um filme juntos.

            — Céus! — pensou Allegra. Seria um acordo de grande monta, e nem sempre era fácil concretizar contratos desse tipo. Além disso, as americanas, para não falar das mulheres de todo o mundo, não iriam gostar que lhes atirassem à cara que o seu símbolo sexual preferido casara, e ainda por cima com Carmen Connors!

            — Podemos falar nisso. As coisas não são assim tão simples, mas podemos tentar. Qualquer dia. Se for uma situação que vocês levam a sério...

            O que Allegra não queria era que se definisse um acordo da ordem dos sete ou oito milhões de dólares para ambos, ou mesmo de dez milhões, visto que Alan entrava, e depois eles se separassem e se recusassem a entrar no filme ou, pior ainda, que este viesse a tornar-se num fiasco. Não precisava de mais dores de cabeça.

            — Vamos aguardar algum tempo.

            — Eu sei, está convencida de que acabaremos por nos separar — disse Carmen, compreendendo o ponto de vista de Allegra Mas não. Tenho a certeza! É o homem mais incrível que já conheci — continuou, baixando a voz num tom conspiratório. Não posso viver sem ele.

            — Como vão as ameaças? A situação acalmou?

            — Completamente. Carmen não fora para lado nenhum e, depois de ter ganhado o Globo de Ouro, até os tablóides a haviam deixado em paz. Sinto-me tão segura aqui

            Allegra sorriu. Quem não se sentiria seguro junto de Alan? Sam é que tinha razão, ele era uma ‘brasa’, e muito simpático.

            — Fico feliz pelos dois — disse Allegra sinceramente

            — Obrigada, Allie. Tudo isto se deve a você. Quer vir jantar conosco este fim-de-semana para celebrar?

            — Gostaria muito.

            — Que tal no sábado? No domingo o Alan gosta de ir jogar boliche.

            — Nesse caso, porque não vou no domingo? Adoraria vencê-lo!

            — Então vamos jogar boliche no sábado, se quiser. Mas tem de jantar conosco!

            — Quem é que cozinha? — gracejou. Carmen riu-se.

            — Nós os dois. Ele está me ensinando. E Allie... Carmen deu outra gargalhada nervosa. A sua vida estava apenas começando. Obrigada pelo filme.

            — Agradeça aos produtores, não a mim. Foram eles que me telefonaram. Estou convencida de que vai gostar.

            — Adorei!

— Até sábado. A menos que nos encontremos com os produtores antes disso.

— Telefone-me se precisar de alguma coisa.

            Mas Alan encarregaria de tudo. Carmen só ligara uma vez numa semana e deixara uma mensagem banal. A situação começava a estabilizar, o que também era bom. Allegra precisava de algum tempo para si própria, para lamber as feridas e compreender o que se passara.

            Dedicou a semana inteira ao trabalho e a encontros com os clientes. Carmen e Alan tinham ido a Los Angeles na quinta-feira e o acordo para o novo filme fora assinado. Nessa tarde, Allegra foi ao consultório da Drª. Green, preparando-se para ouvir novas acusações. Porém, teve uma agradável surpresa: a psiquiatra ficou orgulhosa com o modo como ela gerira a situação e só a censurou por não ter telefonado.

            — Porque não me ligou para conversarmos no fim-de-semana? Essa fase deve ter sido muito dura para você, sobretudo entre a sua ida a São Francisco e o regresso de Brandon, no domingo.

            — Tem razão, mas não havia muita coisa a dizer. O que mais me custou foi pensar que talvez ele sempre tenha feito o mesmo e que eu fui tão estúpida que nem dei por isso. Continuei a pensar que ele precisava de tempo, de espaço e de amor, mas a verdade é que não se importava comigo.

            — Talvez ele estivesse interessado em si corrigiu a Drª. Green. Agora Allegra exagerava em sentido oposto, devido à raiva que sentia por ter sido traída e por tê-lo encontrado com outra mulher Envolveu-se na medida das suas poucas possibilidades. Não é muito, Allegra, mas é alguma coisa.

            — Mas porque fui tão estúpida? Como é que posso ter sido tão idiota durante dois anos?

            — Porque quis ser. Você precisava de companhia e de proteção, É pena é que ele fosse um companheiro tão indisponível e que fosse você a protegê-lo. Foi um acordo muito desigual. E agora? Como está lidando com tudo isto?

            — Sinto-me irritada, estúpida, furiosa, independente, inteira, livre, arrependida e, ao mesmo tempo, nada arrependida, e com medo que o próximo não seja diferente. Talvez os homens sejam todos iguais, ou pelo menos aqueles com quem me relaciono. Creio que o que me assusta mais é pensar que isto pode acontecer outra vez, e outra, e outra, que estou condenada a  me prender a homens que não prestam...

            — Não tem de ser assim, e creio que desta vez você aprendeu alguma coisa.

            A psicóloga parecia mais confiante do que Allegra, o que a surpreendeu.

            — O que a leva a pensar dessa maneira?

            — Porque, assim que percebeu o que estava acontecendo, enfrentou a situação e deixou que a relação terminasse, quer tivesse sido ele a acabar ou você. Mas foi você. Você desmascarou-o e o Brandon desapareceu, como um verme num buraco. Pelo menos não fingiu que ele continuava a estar disponível, quando isso não acontecia. Foi um grande passo, Allegra.

            — Talvez — concordou, sem grande entusiasmo. E agora?

            — Você é quem sabe. O que pretende? Seja o que for, está ao seu alcance, se tiver confiança em si própria É com você, bem sabe. Pode encontrar uma pessoa formidável, se quiser.

            — Creio que conheci uma pessoa formidável em Nova Iorque, mas não tenho a certeza — disse Allegra, à cautela.

            Desconfiava de Jeff, agora que voltara. Aliás, duvidava de todas as pessoas, e talvez as recordações que tinha de Jeff não fossem tão fantásticas como tinham parecido. Se se sentira atraída, era porque ele era igual aos outros.

            — As relações à distância são outra maneira de evitar a intimidade lembrou-lhe a Drª. Green.

            Desta vez, Allegra sorriu.

            — Ele também trabalhando aqui. Embora seja de Nova Iorque, agora vive aqui.

            A Drª. Green apurou o ouvido.        

            — Que interessante! Fale-me dele.

            Allegra contou-lhe o que sabia e o que vira em Jeff, e o simples fato de lhe falar do passeio de carruagem e do rinque de patinagem deu-lhe a sensação de que tudo aquilo era irreal, mesmo aos seus próprios ouvidos, mas tinha saudades dele. No entanto, prometera a si própria não telefonar, por enquanto, e não o fizera. Depois do que acontecera com Brandon, precisava de tempo para a poeira assentar.

            — Por quê? Talvez isso o leve a pensar que você não está interessada nele disse a Drª. Green para encorajá-la. Parece ser muito simpático e normal. Porque não telefona?

            — Ainda não estou preparada. Allegra evitava a idéia, e nada do que a Drª. Green disse nessa tarde a convenceu. Preciso de um tempo, depois do Brandon.

            — Não, não precisa — replicou a Drª. Green, desarmando-a. Você levou dois anos  desculpando-o para todas as pessoas, e acabou de passar uma semana em Nova Iorque beijando um homem sempre que podia. Não me parece que esteja assim tão triste por causa do Brandon...

            Allegra sorriu. A psicóloga conhecia-a bem.

            — Talvez eu me ande escondendo.

            — Por quê?

            — Por estar assustada, creio eu — confessou Allegra. O Jeff parece tão fora de série que não quero sofrer outra desilusão. E se ele não for o que parece? Isso acabaria comigo!

            — Não, de modo algum. E se ele for humano? O que acontecerá? Será uma grande desilusão? Prefere-o como fantasia ou como contraponto do Brandon?

            — Não sei o que sinto por ele; só sei que, quando estou do seu lado, seria capaz de o seguir até ao fim do mundo. Confiei totalmente nele, e, agora que voltei para casa, acho que isso me assusta.

            — É compreensível, mas ao menos podia vê-lo.

            — Ele não me telefonou. Talvez tenha alguém.

            — Ou talvez ande atarefado, talvez esteja escrevendo ou receie intrometer-se, por você ter feito tanto alarido acerca da sua relação com o Brandon. Talvez tenha obrigação de lhe participar, pelo menos, que tudo acabou. Já seria alguma coisa...

            Mas Allegra preferia esperar e queria ver se ele telefonava.

            E foi o que aconteceu, na sexta-feira. Jeff ligou no fim da tarde, e parecia hesitante quando pediu para falar com ela, como se não soubesse se devia ter telefonado para o escritório. Quando Alice lhe disse que ele estava ao telefone, Allegra respirou fundo e pegou o aparelho com a mão trêmula; foi como se tivesse começado uma vida nova no momento em que ouviu sua voz.

            — Allegra?

            — Olá, Jeff. Como está?

            — Agora estou melhor. Eu sei que disse que não telefonaria, por enquanto, mas por você tenho trepado pelas paredes, por isso concluí que tinha de falar e que depois a deixaria de novo em paz algum tempo. Sinto mesmo a sua falta!

            Durante dois anos, Allegra suara para ouvir estas palavras da boca de Brandon, e com Jeff era tudo tão fácil! Teve remorsos por não ter telefonado, como sugerira a Drª. Green.

            — Também sinto a sua falta —  disse ela baixinho.

            — Como andam os seus protegidos, agora que voltou? Estão todos portando-se bem? Ou continua enfrentando ameaças de morte e afugentando tarados e paparazzi às quatro da manhã?

            — Por acaso tem sido uma semana calma. Exceto na sua própria vida, mas não se referiu ao assunto. E você? Como vai o argumento?

            — Muito mal. Não estou disposto a trabalhar desde que voltei. Acho que você me distraiu bastante.

            Seguiu-se uma pausa, e depois Jeff fez-lhe a pergunta que tinha em mente desde que saíra de Nova Iorque.

            — Como foi o seu fim-de-semana?

            — Muito interessante —  respondeu ela com frieza. Teremos de conversar sobre isso um dia.

            Allegra não queria falar do assunto no escritório.

            — Isso me soa a um encontro num futuro muito distante — disse ele tristemente. Esperara toda a semana para telefonar e ela parecia estar tão bem nesse momento. Morria de vontade de voltar a vê-la!

            — Não creio — respondeu Allegra tranquilamente. Tentou ser corajosa e lembrar-se das palavras da Drª. Green. O que vai fazer este fim-de-semana?

            Susteve o fôlego e ficou à espera. ‘Oh!, Meu Deus, faz com que ele não seja igual aos outros... ’

            — Isso é um convite?

            Jeff estava perplexo. O que fizera ela com Brandon? Mas teve receio de lhe perguntar e de estragar o momento.

            — Podia ser. Amanhã vou jantar com uns amigos em Malibu. Quer vir? É uma ocasião muito informal, de jeans e camisetas velhas. Talvez vamos jogar boliche.

            — Adoraria! — Jeff parecia maravilhado. Nem conseguia acreditar que ela o convidara.

            — Posso perguntar quem são os amigos, só por curiosidade, para não fazer figura de parvo quando lá chegarmos? Sabia o tipo de pessoas com quem ela se dava e tinha razão.

            — Alan Carr e Carmen Connors, mas não pode dizer a ninguém que os viu juntos. Estão escondidos em Malibu, para fugirem aos tablóides.

            — Tenho a certeza que consigo guardar segredo — prometeu Jeff, rindo. Ninguém lhe perguntaria tal coisa. Parece que vai ser uma noite deliciosa!

            — Não, não — disse Allegra, bem disposta. Eles são os dois uns péssimos cozinheiros, mas boas pessoas. Com sorte, vão comprar macarrão. Eu mesma vou fazer essa sugestão. A Carmen ainda não aprendeu a cozinhar e o Alan anda ensinando-a. Deve ser terrível!

            Deu uma gargalhada, feliz só por estar falando com ele, e ficaram conversando durante algum tempo sobre a semana que tinham passado um sem o outro.

            — Estava tudo bem quando você chegou? — perguntou Jeff, sinuoso.

            Allegra respondeu afirmativamente, embora tivesse percebido ao que ele se referia: queria saber de Brandon. Porém, parecia-lhe tão estranho contar o que se passara pelo telefone! A idéia não agradava. Seria mais fácil falarem do assunto no sábado, quando fossem para casa de Alan.

            A conversa durou mais alguns minutos e depois desligaram. Allegra passou o resto da noite pensando nele. Tencionava ir jantar com os pais nesse dia, mas eles tinham saído, por isso foi para casa, fez uns ovos mexidos e ficou pensando em Jeff e em Brandon. Não queria voltar a cometer o mesmo erro, não estava disposta a iludir-se e a enganar-se a si própria.

            No sábado, sentia-se muito calma quando Jeff chegou a sua casa, impecável, com um jeans desbotado, mas bem engomados, uma camisa branca grossa e um casaco. Continuava  vestindo-se à moda do Leste, o que ela adorava. Parecia saído de um anúncio de Ralph Lauren. Ela vestira umas jeans e uma blusa branca e pusera uma malha vermelha sobre os ombros.

            A princípio sentiu-se um pouco tímida na presença dele. Jeff olhou à sua volta, admirando a casa. Era como se recomeçassem tudo de novo, até que ele a puxou para os seus braços e a beijou.

            — Assim é melhor  — disse Jeff, baixinho. Esperei muito por isto.

            — Nove dias  — respondeu ela, num sussurro. Jeff abanou a cabeça.

            — Trinta e quatro anos. Há muito que estou à sua espera, Srtª. Allegra Steinberg.

            — Porque se demorou tanto? —  perguntou ela.          

            Jeff abraçou-a e sentaram-se no sofá admirando a vista. Allegra sentia-se completamente à vontade com ele, como se nunca se tivessem separado.

            — Não quero ser indelicado  — disse Jeff por fim, com cautela.

            Allegra foi buscar uma Coca Diet na cozinha e ele seguiu-a, sempre olhando à sua volta, mas não havia sinais de Brandon.

            — Onde está ele?

            — Quem?

            Allegra não percebeu a pergunta. O encontro com Alan e Carmen era em Malibu, e não em sua casa.

            — O Brandon. O meu rival. Jeff tinha curiosidade em saber o que acontecera e qual o motivo por que ela estava disponível numa noite de sábado: não lhe dera qualquer explicação ao telefone. Talvez Brandon estivesse em São Francisco. Ele foi-se embora?

            — Para sempre. Allegra sorriu com malícia. Parecia uma menina mimada que tivesse feito algo que não devia. Foi embora, sim. Acho que me esqueci de dizer.

            Jeff ficou olhando para ela e em seguida pousou o copo no balcão de granito.

            — Espere aí. Ele foi-se embora... Saiu de cena... Adeus... E você não me disse nada? Não acredito! Sua viborazinha! Abraçou-a de novo e apertou-a com força. Como se atreve a fazer-me uma coisa dessas? Desde ontem, quando telefonei e me convidou para jantar, que tenho tentado adivinhar. Porque não ligou para mim? Julguei que era esse o nosso acordo: telefonava-me se acontecesse alguma coisa.

            — Passou-se muita coisa desde que eu voltei, mas precisava de algum tempo para arrumar as idéias antes de telefonar.

            Jeff compreendeu, mas passara a semana sofrendo por causa dela. Teria gostado muito de saber que rompera com Brandon, e agora tinha mil e uma perguntas para lhe fazer.

            — Qual a pulhice que tenho a agradecer-lhe, se alguma vez o vir?

            — Aparentemente, várias de que eu não tinha conhecimento, mas a maior aconteceu quando fui a São Francisco e me apresentei no Fairmont, na sexta-feira à noite. Essa foi boa! Ele estava com uma mulher! De repente, percebi que sempre fizera o mesmo, e ele não deixou de confirmá-lo.

            — Bom tipo! Grandes princípios! Aprecio isso num homem! Boa fibra moral!

            Jeff estava brincando com ela, mas, no íntimo avaliava o que Allegra sofrera. Que humilhação! Que crueldade! No entanto, curiosamente, sentia-se satisfeito por isto ter acontecido, e tão depressa. Era o destino.

            — O problema é que eu também gosto de todos esses belos princípios, como a ética, a fidelidade, coisas enfadonhas que hoje já não estão na moda  — comentou Allegra, e parece que me iludo, convencendo-me de que as outras pessoas os têm. Infelizmente, costumo enganar-me. Parece que quase nunca acerto. A verdade é que, até agora, tenho escolhido sempre errados.

            — Talvez as coisas tenham mudado, finalmente  — disse Jeff, puxando-a mais para si outra vez, talvez o seu golpe de vista tenha melhorado.

            — Melhorou?... — perguntou Allegra com medo, desejosa de respostas e de confirmações.

            — O que acha?

            — Estou perguntando. Não creio que consiga passar por isso de novo, é a terceira vez que me acontece. Três fracassos! Não posso mais!

            — Não, Allegra  — disse ele, obrigando-a a virar o rosto para olhar para ela. Você está apenas começando, é um bebê. Isso foi tudo para ganhar experiência. Agora vamos ao que interessa. Desta vez vai conseguir... Bem merece...

            Os olhos de Allegra encheram-se de lágrimas, e dessa vez, quando ele a beijou, retribuiu o beijo do fundo do coração, sentindo que até aí desperdiçara os seus sentimentos. Mas Jeff tinha razão: dessa vez ia tudo dar certo. Ele era sincero e não a enganaria, tinha a certeza.

            Deixaram-se ficar sentados durante algum tempo e depois Allegra perguntou-lhe se queria ver a casa. Tinha a impressão que ele passaria ali muito tempo. Era uma sensação estranha, como se estivesse mostrando o seu novo lar.

            — Adorável... — disse Jeff, admirando o que ela fizera, o ambiente simples e confortável. Allegra também gostava muito da sua casa e sentia-se feliz por isso. Pouco depois, partiram para Malibu. Levaram quarenta e cinco minutos a chegar na casa de Alan. No caminho, Allegra falou sobre ele e das travessuras que ambos tinham feito juntos ao longo dos anos, e também de Carmen, mas, mesmo assim, Jeff ficou sem fala quando os viu. Carmen era de uma beleza invulgar, mesmo de camiseta e jeans. Tinha a mesma sensualidade sufocante de Marilyn, mas era muito mais bela, muito mais fascinante, e Jeff não estava preparado para conhecê-la. Quanto a Alan, era o mesmo que estar olhando para uma tela de cinema, mas com a vantagem de o ator estar vivo e a fitá-lo, rindo com aqueles dentes perfeitos, os olhos azuis incríveis e as feições tão bem modeladas. Lembrou-se de Clark Gable. Mas que par! Imaginou o que diria a imprensa quando soubesse. Especialmente os tablóides...

            Os anfitriões levaram-nos para dentro. Alan tinha feito tamales e guacamole e serviu uma tequilla a Jeff mas, apesar de se mostrar muito hospitaleiro, notava-se que estava um pouco confuso ao olhar para o companheiro de Allegra. Por fim, quando se viram a sós, não se conseguiu conter, e ela fitou-o com uma expressão maliciosa.

            — O que se passa, sua marota? Quem é ele? Onde está o soda? — Alan nunca se referia a Brandon em termos agradáveis ou amáveis, porque nunca gostara dele, mas desta vez Allegra não disse nada em sua defesa, limitou-se a sorrir. Este me agrada. O que fez ao outro? Matou-o?

            — Mais ou menos. Estava me enganando há dois anos, mais coisa, menos coisa explicou, resumidamente. Fui encontrá-lo com uma das namoradas no Fairmont, no fim-de-semana passado. Por acaso, não estavam no quarto, mas dei com o soutien, as calcinhas e a camisola transparente dela espalhados por todo o lado.

            — Porque não me disse, minha parva?

            Alan ficara magoado por ela não ter telefonado.

            — Precisava de tempo para me habituar à idéia —  respondeu Allegra, muito séria. Liguei uma vez, mas  você não estava em casa, e eu sentia-me tão mal que não me agradaria falar do Brandon com ninguém. Passei a semana  lambendo as feridas.

            — Dê graças a Deus! — disse Alan, com ar convicto, servindo-lhe uma soda. Allegra não queria tequilla. Esse sujeito a faria infeliz para o resto da vida, acredite.

            Allegra sabia agora que ele tinha razão; nesse momento, Carmen e Jeff foram ter com eles.

            — O que estão vocês tramando? —  perguntou Jeff, enlaçando Allegra, que esboçou um sorriso tímido. O que se passa aqui? Posso confiar neste homem? Diz a verdade, agora que eu sei ao que me arrisco. Receio não ter hipóteses de competir com ele. Será que constitui uma ameaça?

            Alan riu e apressou-se a sossegá-lo.

            — Não fui nos últimos quinze anos. Ela era muito louco aos catorze, mas só lhe consegui roubar meia dúzia de beijos lambuzados. Espero que, pelo menos nisso, tenha melhorado  — disse Alan, virando-se para Allegra.

            — Não tenho nada que agradecer. Você arranhava-me com a barba e deixava sempre em confusão com a minha mãe, safado!

            — E continua a fazer o mesmo, sabe? — afirmou Carmen, olhando para Allegra com ar compreensivo.

            Era divertido estarem juntos, os quatro, e Allegra nunca vira nenhum deles tão feliz.

            Alan fez tacos e tostadas para o jantar e Carmen preparou arroz-espanhol e uma boa salada. À sobremesa houve sorvete com creme de chocolate quente, e os quatro queimaram malvas na lareira, como se fossem crianças. Depois, foram dar um passeio pela praia, riram-se, conversaram e brincaram, entrando e saindo do mar, enquanto as ondas se espraiavam suavemente na areia, ao luar. Foi um serão encantador.

            Quando voltaram para casa, Carmen sorriu para Allegra e depois para Alan. Fitou-o com os seus grandes olhos azuis e segredou-lhe qualquer coisa. Perguntou se podia dar a notícia, e ele hesitou, olhando para a sua velha amiga e para Jeff, sem saber se ela aprovaria e se ele seria digno de confiança, mas concluiu que conseguiria enfrentar os dois, e Carmen mal conseguiu conter o seu entusiasmo.

            — Vamos casar em Las Vegas no Dia de São Valentim  — anunciou.

            Allegra fingiu que desmaiava e caiu para trás.

            O sonho de Cupido e o pesadelo de um advogado! Olhou para Alan com atenção, tentando apurar se aquilo era o que ele verdadeiramente desejava, e ficou convencida de que sim. Alan parecia seguro de si próprio e de Carmen, e Allegra nunca o vira tão feliz. Com trinta anos, devia saber o que lhe convinha.

            — Os jornais vão acabar com vocês! Espero sinceramente que usem outros nomes e vão incógnitos: ponham perucas, pintem o rosto, façam qualquer coisa. Vai ser a notícia do século! O casamento da princesa Di e do príncipe Charles não foi nada ao pé disto! Por favor, tenham cuidado.

            — Claro que sim  — garantiu Alan, e de súbito teve uma idéia: Quer ser a nossa dama de honra, ou testemunha, ou seja lá o que é? Em seguida olhou para Jeff, afável. Você também pode vir, se conseguir aturá-la até lá. Gostaríamos muito que estivesse presente.

            Alan fora generoso e Jeff ficou comovido com as suas palavras. Eram pessoas afetuosas e sinceras e passaram uma noite fabulosa. Não tinha sido pretensioso, nem intelectual, nem parecido com os salões de Nova Iorque, fora muito mais pé no chão, o que lhe agradara. Viera para a Califórnia precisamente por isso, mas esta gente era especial. Jeff gostava de ambos, e não conseguira tirar os olhos de Allegra durante toda a noite. Ainda não se convencera da sorte que tivera pelo fato de ela haver rompido tão depressa com Brandon.

            Passaram uma hora a falar do casamento, que se realizaria daí a duas semanas. Alan queria levar Carmen à pesca na Nova Zelândia, na lua-de-mel. Rodara lá um filme e adorara aquelas paragens. E ela queria ir a Paris, que ainda não conhecia.

            — Eu levo-o à Nova Zelândia, Jeff  — disse Alan, esfuziante, acendendo um cigarro. As pequenas podem ficar em casa enquanto nós vamos às compras.

            Mas, no meio das brincadeiras, Allegra não deixou de lembrar mais uma vez que tivessem cuidado. A imprensa faria da vida deles um inferno assim que descobrisse. Era fundamental que ninguém desconfiasse.

            — Como é que vocês vão para Las Vegas?

            — Pensei em irmos de carro  — respondeu Alan, com sentido prático.

            — Porque não alugo um trailer? O Bram usa um dos grandes. Vou ver se consigo arranjá-lo. É o meu Presente!

            Custaria cerca de cinco mil dólares irem nele para Las Vegas, mas o trailer era fabuloso e valia bem o dinheiro. Era como conduzir um iate ou um avião particular E, se o alugasse em seu nome, ninguém desconfiaria de nada.

            — Parece divertido  — admitiu Carmen. Alan cedeu e agradeceu à sua velha amiga

            Jeff e Allegra ajudaram-nos a arrumar a cozinha, puseram a louça na máquina, para a empregada tratar dela de manhã, e foram-se embora às onze horas. A Lua brilhava no céu. Jeff perguntou a Allegra se queria passar pela casa dele para conhecer, ficava apenas a alguns quarteirões. A princípio, Allegra hesitou, mas depois cedeu. Ainda era tudo muito novo para ela, e, de certo modo, sentia-se mais tímida com ele naquele momento do que em Nova Iorque. Fora tudo tão rápido. Tinham de aproveitar o máximo, enquanto era possível. Parecia que viviam um romance de sonho, mas temia que, de súbito, a realidade destruísse todas as suas esperanças. Allegra sabia que ambos levavam a sério a situação, mas era um pouco assustador, e ainda não se convencera de que Alan e Carmen iam casar

            — Apresentei-os há duas semanas  — explicou a Jeff, incrédula, ao pararem junto de uma casinha de praia bem conservada.

            — Isto é Hollywood. — exclamou ele, dando uma gargalhada.

            A verdade é que Alan e Carmen pareciam realmente talhados um para o outro. Casarem um mês depois de se conhecerem era arriscado, mas Jeff tinha a sensação de que a sua relação iria resultar, assim como Allegra.

            — São ambos pessoas formidáveis, embora eu preferisse que tivessem andado um pouco mais devagar

            A decisão não a surpreendia vinda de Carmen, mas sim de Alan. Em geral, era tão cauteloso. Talvez tivesse percebido que era a decisão certa para ele

            — Você vai mesmo ao casamento? —  perguntou a Jeff, seguindo-o em direção à porta.

            Jeff abriu-a e virou-se para Allegra, sem saber se havia de lhe pegar ao colo e entrar. Gostaria de fazê-lo, mas tinha receio de assustá-la com a seriedade do gesto, sobretudo depois de os amigos terem resolvido casar-se após quatro semanas de namoro.

            — Claro, se você quiser. Nunca fui a Las Vegas...

            — Vai ver! — exclamou Allegra, rindo-se. Ao lado de Las Vegas, Los Angeles parece Boston.

            — Estou ansioso  — disse ele, soltando uma gargalhada. Jeff estava ansioso por várias coisas, por tudo o que queria fazer e provar-lhe. Estavam apenas no princípio.

            Mostrou-lhe a casa: era pequena e asseada, e estava muito arrumada para um escritor. Havia um tapete de sisal no chão e sofás confortáveis forrados de sarja. Jeff alugara-a e, tal como ele, também a casa tinha um cunho muito oriental. Fazia-lhe lembrar Cape Cod, ou as casas de Verão de New England. Era perfeita para ele, um ótimo lugar para escrever ou para ler um bom livro num dia cinzento, em frente à lareira, sentado numa das poltronas de couro. No quarto, havia uma grande cama de colunas feita de toras de madeira, muito à moda do Oeste.

            O banheiro era enorme, com uma banheira de mármore com hidromassagem, e a cozinha rústica ampla, com uma mesa onde cabiam doze pessoas. Além disso, havia um escritório e um pequeno quarto de hóspedes. Era perfeita.

            — Como é que a descobriu?

            Allegra estava impressionada: arranjar uma casa em Malibu era quase o mesmo que encontrar uma agulha num palheiro.

            — Por sinal, pertence a um amigo que voltou para o Leste no Verão passado. Ele ficou contente por me alugar e eu fiquei satisfeito por a ter conseguido. Foi para Boston, e creio que acabará por vendê-la. Talvez eu a compre. Por enquanto, é alugada.

            Allegra olhou à sua volta, com um sorriso; a casa agradava a ambos e era muito diferente da de Alan, que lembrava mais Los Angeles e tinha um toque do Sudoeste.

            Foram dar um passeio pela praia, mas pouco depois a brisa obrigou-os a voltar para dentro. Sentaram-se no sofá e ali ficaram durante algum tempo, alternando a conversa com carícias. Era uma da manhã quando Allegra pensou em regressar à cidade. Detestava obrigá-lo a ir levá-la, mas tinham ido a casa de Alan no carro de Jeff e Allegra não tinha outra maneira de regressar a Beverly Hills.

            — Que estupidez a minha! — disse ela, desculpando-se. Devia ter vindo me encontrar com você aqui. É horrível obrigá-lo  ir levar-me!

            — Eu não me importo. É disso que é feita a Califórnia: conduzir.

            Era de trato fácil e bem-humorado, ao contrário de Brandon, que estava sempre irritado com qualquer coisa. A companhia de Jeff era tão agradável! Era como se já vivessem juntos há muitos anos. Tal como Carmen e Alan, também eles se sentiam completamente à vontade um com o outro.

            Beijaram-se outra vez, com mais fervor, e Allegra correspondeu. Era formidável estar sozinha com ele, com tempo, sem ter que ir para lado nenhum, sem pensar em mais ninguém... Era um verdadeiro luxo estarem juntos.

            — Se eu não me levantar já, nunca mais saio  — disse Allegra baixinho, quando ele a beijou de novo.

            — É essa a minha esperança  — respondeu ele em surdina.

            — Também a minha, mas acho que me devo ir embora —  insistiu ela, rindo.

            — Por quê? — perguntou Jeff, deitando-se a seu lado no sofá, sem que Allegra levantasse qualquer objeção.

            Durante algum tempo ficaram olhando para a lareira, que ele acendera ao entrar em casa. Era um ambiente acolhedor, com o mar banhando o areal, lá fora, e o brilho intenso do luar, mas Allegra só pensava em Jeff.

            — Julgaria que eu estava doido se lhe dissesse que a amava? — perguntou, fitando-a.

            Parecia tudo tão natural entre eles, como se estivessem destinados um ao outro... Fora isso mesmo que Allegra sentira assim que o vira em casa dos Weissman.

            — Não, de modo algum. Isso parece-lhe estranho? Para mim, é como se sempre o tivesse conhecido, como o Alan.

            — Quem me dera que nos tivéssemos cruzado nesse tempo! Aposto que era gira com catorze anos. — exclamou Jeff, imaginando-a com sardas, rabos-de-cavalo  e um aparelho nos dentes.

            — Eu também e os meus beijos lambuzados... Nós divertíamos-nos, e era tudo tão simples!...

            — Agora também é  — disse Jeff. Só é complicado quando está errado, e não é este o caso. A nossa relação está certa, e você sabe.

            — É? — perguntou Allegra, olhando para ele. Jeff puxou-a para si e beijou-a ainda com mais fervor. Às vezes sinto-me tão assustada! — confessou, à luz tênue da lareira.

            — Por quê?

            — Tenho receio de cometer novos erros ou de não estar com a pessoa certa. Não quero destruir a minha vida, como... Como algumas mulheres que casam com o homem errado e se arrependem para o resto da vida ou se consomem tentando alterar a situação. Não quero fazer uma coisa dessas!

            — Então não faça  — disse ele com naturalidade. Se ainda não o fez, porque havia de fazê-lo agora?

            — Tenho tanto receio de fazer o que está errado como o que está certo.

            Ao ouvir as suas palavras, Jeff teve a certeza de que aquela relação estava certa para ambos, que era o que eles precisavam. Chegara o momento; não valia a pena torturarem-se. Pegou nela ao colo com cuidado, levou-a para o quarto e deitou-a na cama de colunas, em cima da colcha de sarja. Era muito confortável. Allegra sentia-se segura junto dele e não fez qualquer gesto para se afastar. Ficou ali a observá-lo, com os seus grandes olhos verdes, e reagiu instantaneamente quando ele a beijou. A pouco e pouco, Jeff despiu-a, admirou o seu corpo, abraçou-a, beijou-a. A sua língua, as mãos, os olhos deleitaram-se com ela, e ela com ele. Fizeram amor durante horas e, por fim, Allegra adormeceu como um bebê nos braços de Jeff e só acordou no dia seguinte, quando o Sol ia alto no céu.

            Jeff levantou-se e foi preparar-lhe café da manhã. Levou à cama e em seguida acordou-a ternamente com beijos. Allegra abriu os olhos e fitou-o, sorrindo, deleitada. Nunca esqueceria aquela noite. Jeff tinha razão: chegara a hora de ambos.

            Tomaram o café da manhã e conversaram durante muito tempo. Depois levantaram-se, partilharam um banho longo e ocioso no Jacuzzi e foram dar um passeio pela praia. Avistaram Carmen e Alan ao longe, mas, antes que eles os vissem, voltaram para casa e fizeram amor outra vez. Passaram a tarde de domingo nos braços um do outro. Em casa de Alan, Carmen foi categórica:

            — Tenho a certeza que vi a Allegra esta manhã, a passear com o Jeff.

            — Eles foram-se embora ontem à noite  — disse Alan, corrigindo-a, já com os tiques de um marido. A Allegra não faria isso, pelo menos por enquanto. Ela leva algum tempo a fazer estas coisas, e creio que ainda está assustada por causa do Brandon

            — Garanto que os vi!

            Carmen tinha certeza. Ao fim da tarde, quando Jeff foi levar Allegra à cidade, passou pela casa deles. Estavam no jardim e Alan ficou admirado ao vê-los.

            — Olha! — apontou Carmen, quando o casal lhes acenou do carro.

            — Raios me partam! —  exclamou Alan ao vê-los. Desejou-lhes boa sorte. Jeff parecia ser bom homem e Allegra merecia o melhor que a vida tinha a oferecer. Gostava dela como de uma irmã.

            — Talvez tenhamos uma cerimônia dupla em Las Vegas  — disse Carmen, dando uma gargalhada, ao voltarem para dentro.

            Mas Alan duvidava.

 

            No início de Fevereiro, o volume de trabalho de Allegra era enorme. Tinha a tournée de Bram para preparar, o contrato do novo filme de Carmen para redigir, várias outras propostas de filmes para negociar e uma série de projetos pequenos e mais triviais da empresa para acompanhar. No entanto, estava sempre sorridente, e Alice nunca a vira tão feliz.

            Às vezes, quando tinha um intervalo ou um encontro ali perto, Jeff ia buscá-la para almoçar. Outras vezes, desapareciam misteriosamente na casa de Allegra, à hora do almoço. E quando regressava ao escritório, tinha de fazer um esforço enorme para se manter séria e se concentrar no trabalho: só pensava em Jeff. Nunca se sentira tão feliz. Pareciam talhados um para o outro, gostavam das mesmas coisas, dos mesmos livros, e partilhavam muitas idéias e interesses. Ele mostrava-se sempre amável e flexível e tinha um delicioso sentido de humor.

Depois da primeira semana de felicidade, quase toda passada na acolhedora casa de Jeff em Malibu, Allegra sugeriu que ele fosse jantar na casa dos pais, embora ainda não lhes tivesse participado a ruptura com Brandon.

            — Tem certeza? — perguntou Jeff, cauteloso.

            Estava louco por ela, mas não queria pressionar os acontecimentos. Sabia que era muito ligada à família e tinha receio que o seu aparecimento pudesse ser considerado uma intromissão.

            — Não seja palerma! A minha mãe adora que nós levemos amigos lá a casa!

            Sempre fora assim, desde que eram crianças. Os Steinberg gostavam de se ver rodeados pelos amigos dos filhos e sabiam fazer-lhes sentir que eram bem-vindos.

            — São pessoas tão ocupadas!

            Jeff hesitou; a idéia de estar sujeito à aprovação dos pais de Allegra deixava-o um pouco nervoso. Conhecer os pais de uma mulher nunca fora um dos seus passatempos favoritos e na sua idade, isso o fazia sentir um pouco ridículo.

            — Eu sei que eles vão gostar muito de te conhecer  — assegurou Allegra, com ternura.

            Apesar de todas as suas apreensões, Allegra conseguiu convencê-lo a ir jantar a casa dos Steinberg na sexta-feira.

            Quando foi buscá-la, Jeff apresentou-se de terno completo, muito à semelhança do que vestia quando o conhecera, em Nova Iorque: conservador, com um ar respeitável e muito elegante. No caminho para Bel Air, Allegra sorria-lhe de vez em quando: Jeff estava mesmo nervoso!

            — É por o meu pai ser uma pessoa importante ou só porque eles são meus pais? — gracejou Allegra.

            Parecia que voltara aos dezesseis anos, e a situação divertia-a. Allegra sabia que os pais iriam gostar muito de Jeff, tanto mais que detestavam Brandon. O pai tentava mostrar-se indiferente, mas a mãe odiava-o, e a verdade é que não se enganara a seu respeito.

            — Nunca me esqueço do que senti quando lhe enviei o meu primeiro livro. E se ele julga que é por isso que eu apareço?

            Jeff parecia um menino. Allegra riu e deu-lhe alguns conselhos.

            — Acho que ele vai descobrir e, em último caso, a minha mãe explica-lhe. Ela é muito inteligente  — disse Allegra. Era uma descrição acertada da mãe.

            Quando chegaram, Blaire estava examinando a planta da nova cozinha. Os papéis encontravam-se espalhados no chão da sala, e ela, agachada, explicava o seu conteúdo a Simon.

Blaire levantou-se, com um lápis enfiado no cabelo, e contemplou a filha mais velha com um sorriso carinhoso. Ficou admirada ao ver o seu companheiro, mas não fez comentários.

            — Olá, querida. Estou mostrando ao pai como vai ficar a cozinha  — disse, levantando-se e cumprimentando Jeff.

            Allegra avisara-a de que levaria outra pessoa para jantar e ela partira do princípio que era Brandon, mas teve o cuidado de disfarçar a sua surpresa. No entanto, queria saber quem era o companheiro de Allegra e estava morrendo de vontade de  fazer perguntas a respeito dele.

            Simon levantou-se e beijou a filha com um sorriso desolado.

            — Ela está mostrando-me o buraco que teremos no quintal nos próximos seis meses e a divisão vazia das traseiras, onde costumávamos tomar o café da manhã. O Verão vai ser um desastre nesta casa!

            Em seguida, apresentou-se a Jeff, com um ar natural, mas interessado. O sorriso afetuoso e o aperto de mão firme agradaram-lhe.

            — Conhecemo-nos há um ano  — explicou Jeff. O senhor teve a amabilidade de me receber por causa de um argumento que eu queria criar a partir de um livro que escrevi, Birds of Summer. Tenho a certeza de que não se lembra  — acrescentou, despretensioso e agradável.

            — Por acaso lembro-me. Simon abanou a cabeça com ar pensativo e sorriu. As suas idéias para o argumento eram muito boas, mas o plano tinha de ser mais trabalhado, tanto quanto me recordo. Acontece o mesmo com todos os livros.

            — Tenho trabalhado nele  — disse Jeff, um pouco pesaroso.

            Apertou a mão de Blaire com muita delicadeza. Em tudo se notava a sua boa educação.

            Pouco depois, Sam entrou na sala e sentaram-se todos conversando antes do jantar. Falaram da carreira de Jeff, da nova cozinha que Blaire planejava e de Hollywood em comparação com Nova Iorque. Jeff foi obrigado a admitir que sentia falta da vida nova-iorquina, mas havia muitas coisas na Califórnia que o atraíam; Allegra, sobretudo. A princípio, pensara em ficar por um ano e regressar a Nova Iorque para escrever o livro seguinte, e chegara mesmo a pensar em mudar-se para New England ou Cape Cod, mas, antes de ir fosse para onde fosse, tinha de iniciar o filme em Maio e talvez não o acabasse antes de Setembro. Allegra ficou ligeiramente preocupada quando ele explicou os seus planos. Só então se apercebeu de que Jeff poderia regressar ao Leste e ficou desanimada ao ouvir as suas palavras.

            — Não é uma boa notícia  — disse-lhe em voz baixa, quando foram jantar.

            Preocupava-a pensar na partida dele nesse momento, tão pouco tempo depois de se conhecerem e quando tudo parecia correr tão bem.

            — Estou aberto a sugestões... — segredou ele, e os seus lábios afloraram o pescoço de Allegra.

            — Espero que sim.

            Durante o jantar, Allegra divertiu-se ao ver que a mãe os observava. Queria saber quem ele era e onde tinha estado, o que era feito de Brandon e o que significava aquele homem para Allegra. No entanto, enquanto Jeff ali estivesse, não poderia perguntar nada à filha. O grupo era muito convival. Allegra reparou que Sam também olhava Jeff com atenção. Por fim, quando voltaram para a sala, a mãe chamou-a de parte e fez-lhe algumas perguntas.

            — Houve alguma mudança na sua vida, Allegra? — perguntou ela, quando Jeff e Simon se afastaram para trocar impressões sobre a indústria cinematográfica.

            Falavam de sindicatos, de quantias envolvidas na produção e de outros problemas, e Blaire sorriu, olhando para a filha. Queria saber toda a história. Era evidente que saltara alguns capítulos.

            — O que quer dizer com isso, mãe? — gracejou Allegra. As duas mulheres soltaram uma gargalhada e Sam rolou os olhos nas órbitas. Era fácil perceber que ele estava doido por Allegra.

            — Nunca julguei que assistíssemos ao fim do Brandon —  disse a mãe. Ele está em São Francisco este fim-de-semana, ou isto significa aquilo que eu julgo?

            Blaire não se atrevia a acalentar grandes esperanças.

            — Talvez...

            Allegra parecia uma Mona Lisa loura. Ainda não decidira nada, era demasiado cedo para fazer afirmações. Quisera apenas que os pais o conhecessem.

            — Podia ter dito alguma coisa. —. observou a mãe em tom de censura.

            Sam estendeu-se no sofá. Estava exausta e considerava que a vida sentimental da irmã era enfadonha, embora gostasse muito mais de Jeff que de Brandon.

            — Ele é muito mais legal que o Brandon  — declarou, com um interesse polido. O que aconteceu, Allie? O Brandon deu com os pés?

            — Isso não é maneira de falar! — repreendeu a mãe, franzindo o sobrolho e virando-se para Allegra. O que é que se passou, querida?

            Não conseguiu resistir à tentação de fazer a pergunta. Esperava que não tivesse acontecido nada de muito desagradável e sentia-se satisfeita por ele, aparentemente, se ter ido embora. Aliás, nunca acreditara que Brandon se interessasse verdadeiramente por Allegra. Sempre lhe parecera muito indiferente, distante e mesmo reprovador, e o fato de nunca se ter divorciado perturbava-a.

            — Acho que foi apenas o tempo... — respondeu Allegra, misteriosa.

            — Quando é que foi isso? — perguntou Sam, curiosa. Sentia que a irmã não estava a contar toda a história.

            — Há umas semanas. Conheci o Jeff em Nova Iorque. Allegra resolveu atirar-lhes um osso, a mãe ficou satisfeita. Gostava de Jeff e Simon também.

            — É muito bem-parecido  — apressou-se a dizer Blaire. Pouco depois, Jeff e Simon voltaram para dentro, ainda embrenhados na conversa sobre o filme.

            — Gostaria de ler o seu novo livro  — disse Simon, muito sério. Aliás, vou comprá-lo. Já saiu, não é verdade?

            — Sim, há pouco tempo. Acabei de fazer uma breve viagem promocional. Não percebo como tem tempo para ler, com tudo o que faz  — afirmou Jeff, impressionado com a conversa.

            — Eu me arranjo...

            Nesse momento, Simon fitou a mulher e Allegra percebeu de que ambos trocavam um olhar estranho; não era animosidade nem raiva, apenas um pequeno sopro de frieza. Allegra nunca vira nada daquilo e perguntou a si própria se algum deles estaria aborrecido, por causa da cozinha, por exemplo. O pai detestava o incômodo e a mãe adorava remodelações, o que provocava algumas fricções domésticas de vez em quando.

            Allegra não disse nada, mas quando entrou na cozinha, à frente da mãe, observou-a atentamente e não lhe pareceu que houvesse nada de grave entre eles. No entanto, Blaire andava muito cansada nos últimos tempos; estava preocupada com o programa, que a absorvia por completo.

            — O pai está bem? — perguntou tranquilamente, sem querer intrometer-se.

            Todos os casais tinham as suas discussões, de vez em quando, e talvez os pais estivessem aborrecidos.

            — Claro, querida. Por quê?

            — Não sei... Pareceu-me um pouco frio, esta noite. Deve ser a minha imaginação a trabalhar.

            — Talvez  — admitiu Blaire, despreocupada. Anda furioso por causa do jardim; gosta dele como está e não acredita que o que eu quero fazer o vá beneficiar.

            Era uma velha luta entre eles, e Allegra sorriu. Admitira que se tratasse de qualquer coisa desse gênero. Nunca havia nada mais grave entre eles.

            — A propósito, gosto do teu amigo. É inteligente, simpático e natural. Também é bonito. Blaire sorriu, enchendo um copo de água. Estou muito contente.

            Allegra riu. Sabia o que a mãe queria dizer. Estava aliviada por ver Brandon pelas costas.

            — Foi o que eu calculei  — disse Allegra.

            Não deixava de ser triste que todos estivessem tão satisfeitos por ela ter rompido com Brandon; parecia-lhe estranho que toda as pessoas tivesse visto o que ela não vira.

            — Isto foi uma espécie de furacão nas últimas semanas. Conhecemo-nos em Nova Iorque, na casa de um agente com quem me encontrei, e desde então temos estado quase sempre juntos. Olhou a medo para a mãe, que ficou comovida. O Jeff é tão bom para mim... Nunca conheci ninguém como ele... Exceto o pai.

            — Céus! — exclamou Blaire, fitando-a. Isto é mesmo a sério. As mulheres só comparam o pai ao homem com quem se casam!

            — Não exagere, mãe... — retorquiu Allegra, corando, envergonhada. Conhecemo-nos há três semanas!

            — É surpreendente como as coisas correm depressa quando aparece o homem certo!

            Ao ouvir estas palavras, Allegra lembrou-se de Alan e de Carmen, e sentiu-se tentada a falar deles à mãe, mas concluiu que não devia fazê-lo.

            Voltaram para a sala, para junto dos homens, e Sam foi telefonar a uns amigos. Jeff e Allegra ficaram até às onze horas. Conversaram, riram e passaram momentos muito agradáveis com os pais dela.

            Assim que eles saíram, Blaire sorriu para o marido.

            — Ora, vá lá, Blaire... Não tem importância... Não inventes... Ela mal o conhece!

            Simon riu-se, apercebendo-se do entusiasmo da mulher com o romance de Allegra.

            — Isso foi o que ela disse, mas você não está percebendo... O Jeff está louco por ela!

            — Tenho a certeza que sim, mas dá-lhe uma oportunidade antes de por um laço ao pescoço. Simon disse isto a brincar, mas no mesmo instante apercebeu-se de que não o devia ter feito. Não era isso que eu queria dizer... — acrescentou, tentando corrigir-se, mas era demasiado tarde.

            Blaire virou-lhe as costas, encolhendo os ombros; percebera exatamente o alcance das palavras do marido. Ele não costumava fazer aquele gênero de comentários, nem ela, mas, nos últimos tempos, reparara que faziam ambos o mesmo. Simon insistira que não era aquilo que queria dizer, mas ela não se deixava enganar. Ainda não houvera nenhum problema grave, mas de repente começavam a surgir pequenas sombras no casamento de ambos. Blaire estava convencida que sabia por quê, mas não tinha a certeza. E, quando olhou para o marido, sentiu-se desfalecer: não era nada definível, mas estava lá, como um fantasma que pairava sobre a casa e que lhe provocava um calafrio na espinha.

            — Vai para cima? — perguntou tranquilamente, com a planta da cozinha debaixo do braço.

            — Já vou —  respondeu ele.

            Depois, ao ver a expressão dela, Simon corrigiu:

            — Não me demoro nada.

            Blaire fez um gesto de cabeça e subiu as escadas, desolada. Não se abrira qualquer brecha grave, mas ultimamente surgira aquela estranha frieza entre ambos. Blaire perguntou a si própria se seria apenas uma fase passageira, uma pequena lombada na estrada, ou um sinal de que algo não estava bem. Porém, ainda não tinha a certeza.

            — Então, gostou dos meus pais? —  perguntou Allegra sem cerimônia, no caminho.

            Nessa noite ficavam em casa dela, porque era mais perto.

            — Acho que são formidáveis! — respondeu Jeff, sem disfarçar a sua admiração. Os pais de Allegra eram simples, afetuosos, simpáticos, interessados e uns ótimos companheiros. Contou a Allegra a conversa que tivera com Simon no quintal: Ele diz que quer ler o meu livro, mas pareceu-me que estava apenas a ser delicado. É agradável da sua parte.

            Ele adora fazer essas coisas. Está sempre encorajando os meus amigos com os seus filmes, as suas peças e os seus novos projetos. Essa atitude entusiasma-o e mantém-no jovem.

Com sessenta anos, Simon parecia dez anos mais novo. Ao pensar na mãe, Allegra franziu ligeiramente o sobrolho e acrescentou:

            — Por acaso, é a minha mãe que me preocupa.

            — Por quê? —  perguntou Jeff, admirado. Blaire era uma mulher bela, jovial, talentosa e bem sucedida, que dificilmente poderia suscitar preocupações. Além disso, gozava de boa saúde. Não percebia a inquietação de Allegra. Ela pareceu-me bem.

            — Sim, mas não tenho a certeza. Creio que o fato de não ter ganhado o Globo de Ouro este ano a afetou. O programa tem-lhe dado muitas dores de cabeça e... Não sei, é apenas uma sensação. Parece-me triste, por trás daquele sorriso e de todo o seu desportivismo.

            — Há qualquer coisa que a preocupa.

            — Perguntou-lhe?

            Pareceu-lhe uma boa solução, mas Allegra abanou a cabeça.

            — Sinceramente, não acredito que ela me diga. Perguntei-lhe se havia algum problema com o meu pai, porque ele me pareceu um pouco sério esta noite, mas respondeu-me que está furioso por causa do jardim.

            — Talvez seja só por isso  — disse Jeff, tranqüilizando-a. Eles trabalham muito, e isso tem um preço. São pessoas extraordinárias!

            Simon era o produtor mais importante de Hollywood e Blaire tinha um dos programas televisivos de maior êxito. Havia um nível a manter e não era de admirar que nenhum dos filhos tivesse optado por lhes fazer concorrência.

            — Eu gostei da Sam, a propósito.

            Sam tinha um aspecto espetacular e as suas opiniões, de tão jovens, eram revigorantes.

            — Também eu, às vezes  — respondeu Allegra, sorrindo, mas ultimamente anda muito saída da casca. Não é bom estar sempre sozinha com os pais; eles estragam-na com mimos. Era preferível quando eu e o Scott ainda vivíamos em casa, mas esse tempo já se foi. O meu pai derrete-se com a Sam, e ela sabe. A minha mãe é mais firme, mas a Sam dá-lhe a volta e faz o que quer. Eu nunca me atreveria a isso.

            — Creio que os pais se comportam sempre assim para com os filhos mais novos; tornam-se mais brandos depois de os mais velhos terem pago a sua fatura. Mas ela não me parece demasiado caprichosa; por sinal, foi muito educada.

            — Isso foi só porque te acha legal  — disse Allegra, sorrindo outra vez.

            — E se não achasse?

            Ignorava-te.

            — Então me sinto lisonjeado.

            Quando chegaram a casa de Allegra, foram logo para a cama. Estavam cansados e ela adorava ficar deitada a seu lado. As carícias raramente se ficavam pela castidade e depressa davam lugar à paixão. Eram momentos felizes e de manhã Allegra gostava de acordar junto dele. Às vezes, Jeff já se levantara para fazer café. Era a existência perfeita para os dois.

            No sábado de manhã, Alan telefonou e convidou-os para jantar.

            — Que vida esta! — comentou Jeff, enquanto Allegra, nua e com um avental de renda branca, lhe servia pãezinhos quentes com manteiga. Agora, aqui vai uma fotografia para os tablóides —  acrescentou, fingindo disparar uma máquina fotográfica, enquanto ela fazia uma pose provocante.

            Jeff puxou-a para o colo, o que teve resultados imediatos; pouco depois voltaram os dois para o quarto.

            Levantaram-se de novo ao meio-dia. Allegra não sabia o que havia de preparar para o almoço e Jeff comentou que não faziam mais nada além de comer e fazer amor.

            — Está lamentando-se? —  perguntou ela, mordendo uma maçã.

            — Claro que não! Adoro!

            — Também eu  — disse Allegra. Depois se lembrou do convite de Alan. E quanto ao jantar desta noite? Desejaria ir?

            Allegra não queria forçá-lo. Sabia que Jeff tinha os seus próprios amigos, mas a verdade é que engraçara com Alan e Carmen, o que a deixava muito satisfeita.

            — Por acaso, gostaria de ir  — respondeu ele, partilhando a maçã com ela. Era um fruto grande e sumarento. Jeff deu-lhe uma dentada e depois beijou Allegra. Os lábios dela tinham a cor da maçã e os seus beijos quase os iam levando de novo para o quarto.

            — Nunca conseguiremos fazer nada se continuarmos assim  — disse ela, rindo, enquanto ele lhe beijava o pescoço e a abraçava. Não faz mal. Vou telefonar ao Alan.

            Combinaram ir à casa de Alan em Malibu; mais tarde talvez fossem jogar boliche. Às sete horas, quando chegaram, Carmen estava a fazer pasta e Alan preparava o molho, fingindo que cantava ópera ao mesmo tempo. A cena provocou o riso geral e Jeff foi pôr a música para tocar.

            Estava uma noite bonita e perfumada, que convidava a comer lá fora, mas optaram por se sentar à mesa da cozinha, e, no fim do jantar, todos se queixaram por ter comido de mais. O molho do fettucane preparado por Alan estava delicioso.

            — Um dia destes, vou começar de novo a passar fome  — disse ele, com um gemido.

            — Iniciamos os ensaios no fim de Março e depois as filmagens em meados de Abril. Vamos para a Suíça, para os Alpes, como cabras-monteses.

            Era mais um filme de aventuras, com uma parte de leão para ele, e pagavam-lhe uma verdadeira fortuna.

            — Isso não vai ser perigoso? — perguntou Carmen, preocupada.

            — Não, a menos que eu escorregue  — respondeu Alan, mas Carmen não pareceu muito satisfeita, e Allegra ficou apreensiva ao ouvi-la dizer que queria acompanhá-lo. Iria criar-se uma situação difícil se ela insistisse em ir atrás dele; as mulheres que o faziam tornavam-se um autêntico estorvo e Alan era demasiado independente para aceitar tal coisa. Além disso, a maior parte dos locais de filmagem eram muito violentos para Carmen.

            — Mas, de qualquer modo, você estará filmando em Junho  — disse Allegra, tentando distraí-la, não terá tempo para ir com ele.

            — Eu podia ir passar lá seis semanas, antes de começarmos as filmagens.

            — Adoraria! —  afirmou Alan, encorajando-a.

            Allegra tinha quase a certeza de que ele se iria arrepender, mas a conversa derivou para outros assuntos. Depois da sobremesa banana split, desta vez, o suficiente para arruinar a dieta de qualquer pessoa Alan propôs que fossem jogar boliche à cidade. Adorava vaguear pelos bares e jogar pingue-pongue, como uma pessoa vulgar, e o boliche era um dos seus passatempos favoritos. Conseguiu convencê-los a sair e, no caminho para Santa Mônica, a conversa e as gargalhadas enchiam o Lamborghini. Era um carro blindado, construído como se fosse um tanque de guerra encomendado por um árabe importante. Havia apenas cerca de uma dúzia como aquele e Alan descobrira um exemplar vermelho e reluzente em São Francisco. O interior era todo em madeira e cabedal fino; na condução parecia um Ferrari e conseguia atravessar dunas de areia a mais de duzentos quilômetros por hora. Era um dos seus brinquedos preferidos e Alan era louco por ele. Era muito mais distinto do que a seu velho carrinho Chevrolet, mas também muito mais cômodo, e possuía uma sofisticada aparelhagem estereofônica. As pessoas ficavam espantadas ao vê-lo.

            — Onde é que arranjou esta coisa? —  perguntou Jeff. Nunca vira um automóvel como aquele.

            — No Norte. Foi construído para um príncipe do Kuwait que nunca lhe pegou. É completamente à prova de bala e as partes laterais são blindadas.

            Era uma bela máquina e Alan apreciava-a mais pela velocidade e pelo aspecto do que pela proteção que oferecia.

            Estacionaram junto do Hangtown Bowl e entraram para alugar os sapatos e reservar uma pista. Ficaram admirados ao ver que o recinto de boliche estava repleto. Disseram-lhes que esperassem, mas eles resolveram ir tomar uma cerveja.

            Vinte minutos depois, tinham uma pista disponível, e aproveitaram-na bem.

            Alan era muito bom e Carmen péssima, mas divertia-se sempre muito; Allegra não se saía mal e Jeff era um parceiro à altura de Alan. Enfim, todos gostavam daquele jogo, mas nenhum o tomava tão a sério como Alan. Adorava ganhar e reclamava constantemente a atenção de Carmen.

            — Estou atenta, querido, estou atenta  — dizia ela. Allegra reparou que as outras pessoas os observavam.

            A pouco e pouco se tinha juntado à volta deles, e era óbvio que não só haviam reconhecido Alan como Carmen.

            — Olá  — disse Carmen a um deles, totalmente inconsciente do seu aspecto.

            Vestira umas jeans brancas coladas à pele e uma camiseta também branca e justa, que lhe moldava o corpo. Apesar dos sapatos de boliche azuis-turquesa e castanhos, que eram feios, parecia uma rainha de beleza, e vários homens já com umas cervejas a mais se mostravam desejosos de agarrá-la.

            Sem dizer nada, Alan apercebera-se da situação e mantinha Carmen entre ele próprio e Jeff, mas a assistência também o observava e, pelo canto do olho, viu aproximar-se um rapaz forte de cabelo ensopado em gel que meteu conversa com Allegra.

            Allegra manteve a calma e não lhe deu grande importância. O rapaz fez-lhe perguntas sobre o carro que estava lá fora e ela disse que o tinham alugado para irem passear nessa noite; eram revendedores em Los Angeles, onde se fretavam automóveis antigos, Rolls-Royces ou Bentleys. Aliás, era possível alugar quase tudo, e era perfeitamente natural que fosse esse o caso do Lamborghini que se encontrava lá fora.

            — Aquela tem a mania que é esperta, não tem? — perguntou outro homem a Allegra, olhando para Carmen, que tentava ignorá-lo e concentrar-se no jogo. Nós sabemos quem ela é. O que é que julga que veio visitar os pobrezinhos esta noite? É um nojo!

            Allegra não respondeu e afastou-se, mas não quis irritá-los mais; estavam ambos embriagados e começavam a atrair as atenções das outras pessoas que se encontravam na pista.

            De repente, uma mulher pediu um autógrafo. Seguiram-se mais algumas e, num ápice, dezenas de pessoas empurravam Carmen contra uma mesa; antes que Alan se conseguisse virar para trás, um homem agarrou-o e deu-lhe um murro, mas estava demasiado bêbado para acertar no alvo, e, aplicando um golpe de karatê que aprendera com um dos duplos no seu último filme, Alan afastou-o facilmente.

            Porém, Allegra sabia muito bem como seria a seqüência daquele «filme». Freqüentava o meio há tempo suficiente para ter consciência de que estavam em apuros e, afastando-se de Jeff, dirigiu-se a um telefone público e ligou o 911. Ninguém reparou nela quando disse ao agente quem era, onde estava, quem a acompanhava e o que acontecera.

            — Falta pouco para que se arme uma desordem, e a Srtª. Connors pode ficar ferida — afirmou tranquilamente. Juntaram-se aqui umas cem pessoas que querem agarrá-la.

            — Vamos já para aí  — assegurou o agente, dando rapidamente as suas ordens a alguém através da rádio. Fique na linha, Srtª.  Steinberg. Como está o Sr. Carr?

            — Agüentando-se como pode neste momento... — Allegra vigiava-os do lugar onde estava. Não houvera mais agressões, mas a multidão, agitada, fechava o círculo à sua volta; queriam estar com eles, tocar-lhes, despi-los, empurrá-los. Enquanto Allegra observava a cena, Jeff apercebeu-se do que ela estava fazendo. Tentou aproximar-se, mas tinha receio de abandonar Carmen; havia muitos homens encostados nela, procurando agarrá-la, e alguém tentou arrancar-lhe uma manga da camiseta.

            Nesse momento entraram no bar três policiais, que se dirigiram para a pista de boliche. Percebendo o que se estava passando, agarraram os bastões, sem querer aumentar a confusão. Um aproximou-se de Carmen e o outro disse qualquer coisa a Alan. Pouco depois conseguiram afastar a multidão, mas algumas pessoas continuavam a puxar os cabelos de Carmen, tentando agarrá-la ou, pelo menos, tocar-lhe. Pouco faltou para se desencadear uma luta corpo-a-corpo entre os rufiões e a polícia; foram precisos dois agentes para  libertarem-na daquilo que parecia ser um charco de areia movediça. Nesse momento, uma mulher começou a gritar e atirou-se para os braços de Alan, suplicando-lhe que a beijasse. Era jovem, estava embriagada e tinha excesso de peso. Aquele era o sonho da sua vida, aproximar-se de Alan Carr, tal como arrancar a roupa a Carmen parecia ser o sonho de todos os homens que se encontravam no bar. Foram necessários os três polícias para libertar Carmen, Alan e Jeff, que se juntaram para sair do bar. Allegra tentou acompanhá-los, mas um dos bastões obrigou-a a recuar, e a multidão interpôs-se de novo entre eles. Jeff acenava freneticamente, mas ela não conseguia passar e ele tentava aproximar-se, sem conseguir. Os fãs, enlouquecidos pelo entusiasmo, não ajudavam.

            — Allegra! — gritou Jeff. Ela via-o, mas não o conseguia ouvir. Ela está conosco! —  bradou a um dos polícias

            Os dois homens obrigaram a multidão a recuar, formaram um cordão à volta de Allegra e conseguiram empurrá-la para a porta, atrás de Carmen e de Alan. Lá fora os aguardava outro policial. As mãos de Alan tremiam ao abrir a porta do carro. Os quatro agentes rodearam-nos, para eles entrarem, e, assim que os viram lá dentro, fizeram-lhes sinal para que se fossem embora o mais depressa possível. O susto acabara, e os quatro amigos mal tiveram tempo de lhes agradecer.

            O carro arrancou; pelo retrovisor, Alan viu a multidão enfurecida, enganada pelos alvos do seu afeto.

            — Céus, isto é sempre assim? —  perguntou Jeff, tentando endireitar a camisa e o casaco; pareciam náufragos, com a roupa rasgada e o cabelo em desalinho. Alguém arrancara o chapéu de Alan e lhe roubara os óculos escuros; Jeff perdera um sapato. Como é que vocês agüentam.

            Carmen choramingava e Allegra tentava consolá-la. Aquilo estava na natureza da besta que os idolatrava, e que os odiava, também: apoderava-se deles, devorava-os e, se não tivessem cuidado, destruía-os.

            — É assustador... —  disse Allegra, em voz baixa. Aquelas situações enervavam-na sempre, e Carmen detestava-as: ficava aterrada.

            — Parecem animais. Viram aquela gente? — perguntou com as lágrimas nos olhos, fitando Alan. Pouco faltou para me violarem! Um deles agarrou-se aos meus seios, e juro que senti a mão de alguém dentro da minhas calcinha. Que nojentos!

            Parecia completamente inocente ao queixar-se da invasão. Tinha enfrentado uma multidão esfomeada, lúbrica e furiosa: furiosa por não se ter apoderado deles. Aquela gente queria levá-los para casa, misturar-se com eles, tocar-lhes no corpo, roubar-lhes a alma.

            — Nunca mais vou jogar boliche... —  disse Carmen com um ar infantil. Detesto estas coisas!

            — Também eu  — admitiu Alan. Quem não detesta? Mas a verdade é que estava contrariado: gostava tanto de ir jogar boliche... Era por isso que muitas estrelas de cinema tinham pistas em casa, e recintos desportivos, rinques de patinagem e cinemas, porque não podiam ir a parte alguma, nem sair com os filhos, era impossível levar uma vida igual à das pessoas normais.

            — Vocês haviam de ver o que o Bram Morrison sofre nos concertos... — disse Allegra em jeito de consolação.

            Jeff continuava admirado por ela ter tido a presença de espírito de telefonar para a polícia, mas Allegra estava muito habituada àquelas situações e sabia o que fazia; apercebia-se quase instantaneamente de que as coisas iam correr mal, e em geral não se enganava, sobretudo se havia uma mulher pelo meio. Avisara Carmen disso tudo, dissera-lhe o que tinha a fazer e contratara uma pessoa para lhe ensinar a defender-se, mas nem por isso a situação era menos assustadora.

            — Obrigado por ter chamado a polícia, Al  — agradeceu Alan, um pouco deprimido. Era sempre degradante ser maltratado daquela maneira, ainda que as intenções fossem boas, a princípio.

            Nessa noite, quando regressavam, Allegra sentiu que causara uma boa impressão a Jeff, apesar de os acontecimentos no bar terem sido desanimadores. Alan deixou-os na casa de Jeff e pediu-lhes mais uma vez desculpa pela agitação dessa noite, mas Jeff e Allegra asseguraram-lhe que compreendiam, que lamentavam tanto como ele, e agradeceram o jantar a ambos.

            — Não sei como é que eles conseguem viver assim! Eles podem sair? Como pessoas normais? — perguntou Jeff, depois de Alan e Carmen se irem embora.

            — Vão às estréias, mas também aí têm de ser cautelosos.

            Em grandes acontecimentos, muito publicados, correm o risco de serem atacados com gravidade, e podem até nem sobreviver. Por vezes ficam feridos no meio de uma multidão como aquela. E de resto, se tentarem levar uma vida normal, acontece o mesmo desta noite, a menos que escolham lugares como o Spago. Lá é diferente

            Allegra sorriu. O Spago era o seu restaurante preferido e estava sempre cheio de estrelas. Aí ninguém se atreveria a incomodá-los, limitar-se-iam a admirá-los à distância.

            Mas num local como uma pista de boliche não havia fronteiras, e às vezes as coisas corriam mal. Felizmente, Allegra gerira a situação de uma forma admirável, pois estava habituada, desde os tempos em que vivia com os pais. Estes nunca tinham alcançado aquele tipo de fama, porque trabalhavam nos bastidores, mas as pessoas que eles conheciam, os atores, passavam sempre por cenas como as que Jeff presenciara nessa noite, e o mesmo acontecia com os seus clientes.

            — Fiquei morto de medo ao pensar que te podia perder no meio daquela gente  — disse ele.

            Entraram no quarto e começaram a despir-se. Era desagradável terem as roupas rasgadas e Jeff riu-se ao olhar para o pé

            — Que idiotas! Devem julgar que o meu sapato é do Alan!

            — Talvez um dia o recupere num leilão  — gracejou Allegra. Também estava aborrecida; multidões como aquelas eram sempre assustadoras, porque nunca se sabia se a situação se descontrolava antes de ser possível fugir.

            — Nem posso acreditar! Sinto-me uma verdadeira estrela. E francamente, Scarlett, cedo-te os louros  — declarou Jeff, deixando-se cair na cama com abandono.

            — Nem penses! — retorquiu Allegra. É por isso que sou advogada e não atriz. Não conseguirias vender-me essa treta por nada deste mundo. Eu não aturava aquilo nem por um minuto!

            — Mas desenvencilhaste-te bem  — disse ele, elogiando-a. Foi a única que se lembrou de chamar a polícia. Eu fiquei de boca aberta, pensando como havíamos de sair dali com vida.

            — O segredo está em telefonar depressa. Assim que vi aquilo, percebi imediatamente no que ia dar.

            Mas quando se deitou e se abraçaram, ainda afetados pelo que sucedera na pista de boliche, Jeff não pôde deixar de perguntar a si próprio o que iria acontecer quando fosse o casamento.

            — Se esta noite foi uma amostra do que pode acontecer, o que eles deviam fazer era casar numa ilha deserta.

            — Nos casamentos costuma ser pior. É aí que os fãs se excedem; ficam frenéticos. Os casamentos das celebridades são um pesadelo, quase tão maus como os concertos. Allegra riu, porém, ambos sabiam que a situação não era para brincar. Mas tenta falar nisso à Carmen! Recusa-se a acreditar em mim, e o Alan diz que ela deve casar-se como desejar. Tenho trocado impressões com vários peritos em segurança desde que nos participaram que vão casar.

            — E o que dizem?

            — Você verá —  respondeu ela com um sorriso enigmático; parecia a Mata Hari. Mas a segurança vai ser apertada, garanto-te. Bem, tanto quanto é possível em Las Vegas...

            — Porque será que começo a ter medo? — perguntou ele, puxando-a ainda mais para si por baixo da coberta.

            — Porque é inteligente. E se eles fossem espertos... Escapavam-se para outro lado qualquer, um lugar que não passasse pela cabeça de ninguém... Para uma cidadezinha perdida em alguma parte de South Dakota, por exemplo. O problema é que não seria muito divertido. Aí ninguém é importunado por desconhecidos.

            — Para a próxima, levo sapatos com cadarços disse ele, mais prudente depois daquela experiência.

            Mas, mesmo assim, Jeff ainda não estava preparado para o casamento de Alan Carr e Carmen Connors.

 

            O trailer que Allegra alugara foi buscar Alan e Carmen na casa de Jeff em Malibu. Ambos usavam  jeans e camisetas velhas; Carmen levava uma peruca castanha e um lenço e Alan escolhera uma preta. De óculos escuros, a mascar chiclete, simulavam um sotaque sulista. Jeff e Allegra, a condizer, também de perucas e com roupas leves de poliéster, iam muito mais bem vestidos do que os amigos, e quase tudo o que Allegra usava estava repleto de diamantes falsos.

            — Não sabia que a roupa era tão importante neste caso  — disse Jeff, divertido, ao vestir o traje. Mas uma coisa era certa,  ninguém reconheceria Alan nem Carmen.

            Sentaram-se numa grande sala apainelada, na parte traseira do trailer, contando anedotas e comendo sorvete. Sempre que se viam ao espelho, davam uma gargalhada. De vez em quando iam até à cozinha, onde havia queijo, fruta e sanduíches, e as senhoras usavam o banheiro de mármore rosa, mas nunca da banheira. Era o tipo de trailer geralmente utilizado por estrelas de cinema ou de rock; por sinal, estava muito bem conservado, pois pertencia a um particular. Allegra recorria a ele com freqüência; alugara-o uma vez como camarim para um dos seus clientes e para diversas viagens de estrada. Era um dos mais bem conservados e luxuosos, embora não se comparasse com o trailer de dois pisos do Eddie Murphy, cheio de antigüidades e de objetos preciosos, mas era bastante confortável, e os quatro amigos sentiam-se no ‘céu’, como diziam de vez em quando, a caminho de Las Vegas.

            Quando chegaram, foram diretamente para o hotel. Ficaram hospedados no MGM Grand, e, assim que os viram, os seis guarda-costas que os aguardavam no átrio misturaram-se com a multidão sem rosto que os envolvia. Eram duas mulheres e quatro homens e nem sequer se fizeram notados quando se instalaram nas suítes contíguas à de Alan e Carmen.

            Jeff e Allegra ficaram do outro lado do corredor. Allegra mantinha-se atenta aos tablóides, mas não vira um único fotógrafo à chegada. A relação de Alan e Carmen fora ventilada durante algum tempo não mais do que um mês e ninguém desconfiava que eles iam casar.

            Trocaram de peruca no hotel e ficaram todos ruivos, exceto Alan, que se transformou num louro oxigenado, o que o encantou.

            — Meu Deus! — exclamou Allegra, irônica. Fica horrível!

            — Mas eu gosto  — replicou ele, fingindo que brigava com ela e que lhe dava uma palmadinha. Em seguida voltou a pôr a peruca preta e imitou o Elvis.

            — Ainda bem que já tem a sua carreira  — disse Allegra, desapontada. Não creio que conseguisse emprego com esse aspecto!

            — Nunca se sabe, filha, nunca se sabe...

            Carmen desapareceu no quarto com o grande saco de plástico que trouxera; meia hora depois surgiu com um vestido de cetim branco curto e o cabelo penteado numa ‘banana’ fofa e coberto por um pequeno véu. A maquiagem, impecável, realçava-lhe o rosto, e as pernas compridas e esguias que a saia deixava ver eram ainda melhores. A transformação fora total e estava encantadora. Calçava uns sapatos de cetim branco de salto alto e o vestido era bastante decotado. Estava irresistível, e Alan ficou verdadeiramente emocionado ao olhar para ela. Ainda de jeans e peruca, foi trocá-las por um terno de linho e por uns sapatos ‘a sério’, mas resolvera casar com a peruca loura; assim teriam filhos louros, como ele dizia.

            — Está doido! — exclamou Carmen, beijando-o.

            Meia hora mais tarde apareceu o juiz de paz que Allegra contratara. Sabia que, se tivesse pedido ao hotel que o fizesse, a notícia surgiria nos jornais, o que ainda era possível, se o juiz reconhecesse Carmen. Os nomes de ambos teriam de figurar na certidão de casamento, mas então já seria demasiado tarde para prevenir alguém.

            Allegra resolvera manter o seu traje divertido. Por sinal, trouxera uma saia felpuda; vestira-a, pusera a cabeleira ruiva e calçara umas sandálias: ficara um mimo!

            — Estou ansioso por ver as fotografias do casamento... — disse Jeff, olhando para Alan.

            Allegra ficou comovida com o fato de Alan o ter convidado.

            — Também não está formoso!... —  retorquiu Alan, cortando as vazas a Jeff.

            Este vestira um casaco Ralph Lauren por cima de uma camisa de boliche e, tal como Alan, usava uma cabeleira loura.

            O juiz de paz não os reconheceu, mas pensou que eram completamente doidos. Despachou a cerimônia em menos de três minutos, declarou-os marido e mulher e assinou a certidão sem olhar sequer para os nomes. Chamara duas vezes ‘Carla’ a Carmen durante a cerimônia e ‘Adam’ a Alan. Assim que tudo acabou, Allegra serviu champanhe, encomendaram caviar e o casamento foi oficializado.

            — Carmen Carr... Gosto

            Allegra foi a primeira a pronunciar o nome da noiva e a segunda a beijá-la, depois de Alan.

            — Eu também  — disse Carmen, com lágrimas nos olhos.

            Continuava a desejar casar na igreja em Óregon, mas imaginava o circo que não seria, com paparazzi e helicópteros, fãs aos gritos e cordões de polícia. Não era possível.

            — Boa sorte  — disse o juiz de paz já à porta. Entregou a Alan a certidão de casamento e saiu correndo para ir celebrar mais umas dúzias de casamentos. Não fazia idéia de quem acabara de unir pelo matrimônio; para ele, eram apenas o Adam e a Carla.

            Uma hora depois desceram os quatro para ir jogar nos caça-níqueis. Allegra bateu discretamente à porta dos guarda-costas, à saída, e eles seguiram-nos. Foi uma operação sem mácula, e não houve problemas até quase à meia-noite, quando alguém reconheceu Carmen e lhe pediu um autógrafo. Carmen era sempre muito atenciosa nessas ocasiões e já tirara o véu, mas conservava o vestido de noiva. Pouco depois, alguém a fotografou, e Allegra percebeu que se aproximava o assalto.

            — Chegou a hora de partir, Cinderela  — disse em voz baixa. O coche te espera.

            Havia mais dois guarda-costas junto do trailer, onde ninguém voltara a entrar, exceto o motorista, que não sabia de nada.

            — É muito cedo... — lamentou-se Carmen, mas o cassino estava enchendo e a perspectiva de uma fuga precipitada, ou mesmo de uma aglomeração, não agradava a ninguém.

            «Olhem! A Carmen Connors casou-se agora mesmo... E o Alan Carr... Fotografias... Gritos... Guinchos... Apertos...» Nem pensar!

            — Venha daí, Sr. Carr, mexa esse traseiro! Esta é a minha noite de núpcias, e não vou ficar  jogando bingo!

            Alan beijou-a com firmeza e deu-lhe uma palmadinha. O grupo encaminhou-se para o trailer, que estava à espera. Ao subir os degraus, Carmen virou-se para Allegra e Jeff. Allegra ofereceu-lhe um ramo de flores brancas de plástico que deixara à guarda do motorista; Carmen atirou-o graciosamente do último degrau e Allegra apanhou-o. Apesar de toda aquela loucura e dos fatos estapafúrdios, estava de fato encantadora, e todo o grupo sorriu ao olhar para o casal. O motorista comentou que, com aquele vestido, ela parecia mesmo a Carmen Connors. Se não fosse o sotaque e o fato de ser um pouco mais alta, bem podia ser a atriz, confidenciara o homem a Allegra.

            — Sim, talvez  — disse ela, mostrando-se pouco convencida.

            Depois fecharam as portas. O trailer arrancou e os noivos disseram adeus a Jeff e a Allegra, que ficaram para trás com os guarda-costas. Ponto final. Tinham conseguido. Estavam em segurança. E não houvera problemas nem aparecera um único repórter. Allegra fizera um trabalho magnífico e Jeff estava mais impressionado do que nunca.

            — É um gênio — disse ele em jeito de cumprimento, ao verem o trailer desaparecer ao longe.

            Às quatro da manhã os noivos chegariam na casa de Alan. Restava-lhes pegar nas malas, mudar de roupa e partir para o Taiti no vôo das nove.

            — Foi legal, não foi? — disse Allegra, sorrindo. Estava satisfeita por tudo ter corrido tão bem; não queria que os tablóides estragassem a festa nem que os paparazzi os perseguissem

            — Eles não podiam ter feito um casamento a sério, não é mesmo? — perguntou Jeff, pensativo. Teria sido impossível, sem os disfarces e as perucas a privacidade da suíte, os guarda-costas ou mesmo o trailer das estrelas de rock. Fora tudo perfeito

            — Podiam  — admitiu Allegra, fora ela que afastara a idéia, em conversa com Alan, que convencera Carmen, mas teria sido um pesadelo, com helicópteros por toda a parte, fotógrafos e a comunicação social subornando os fornecedores. Daria mal resultado e a Carmen teria detestado

            Jeff fez um sinal afirmativo, já não se atrevia a discordar dela, pois a experiência na pista de boliche ensinara-lhe muita coisa acerca da maneira como viviam as estrelas. Apesar das vidas que todos invejavam e queriam para si próprios, nenhuma era fácil.

            — Pensei que assim seria mais divertido — acrescentou Allegra, lembrando-se de Carmen, tão bonita com o seu véu curto, e depois a atirar-lhe o ramo. Tenho de ir guardar isto —  gracejou, agitando o ramo na mão, quando regressaram ao hotel.

            Os guarda-costas haviam-se retirado discretamente. Já não eram necessários e a fatura seria apresentada à firma de advogados. Allegra agradecera-lhes no trailer, e depois eles tinham ido embora. Ela ficara só com Jeff e mais umas centenas de pessoas que se encontravam no átrio do hotel

            Voltaram para a suíte, passavam a noite em Las Vegas e de manhã regressavam a Los Angeles, numa limusine. A essa hora, Alan e Carmen já iriam no avião, a caminho do Taiti. Haviam combinado cuidadosamente como seria feito o anúncio do casamento, não diriam nada senão depois da lua-de-mel, para que não os descobrissem. Talvez alguém do hotel avisasse a imprensa, mas Bora Bora era muito longe e, na opinião de Alan, lá estariam a salvo. Quando voltassem, haveria uma conferência de imprensa de cinco minutos, com a presença de ambos, para anunciar o enlace e tirar fotografias. Dêem umas migalhas aos tubarões, um dedo do pé ou da mão, para eles ficarem satisfeitos, aconselhara Allegra.

            Nessa noite, aninhou-se nos braços de Jeff, feliz, pensando em Carmen e Alan. Ele era um dos seus melhores amigos, e era engraçado imaginá-lo casado.

            — Feliz Dia de São Valentim! — disse Jeff, baixinho.

            — Igualmente  — respondeu Allegra, virando-se e deixando que ele a abraçasse.

            Não se mexeu até de manhã. Sonhou que estava apanhando o ramo e que se ria por ele ser de plástico; porém, quando o agarrou, Jeff partiu num trailer e ela passou a noite inteira correndo para o alcançar. Nos seus sonhos, tal como na sua vida, as pessoas fugiam sempre dela. Mas isso acabara, pensou, ao acordar. Não nesse momento... E não com Jeff... Ele estava ali.

 

            Carmen e Alan regressaram de Bora Bora em meados de março, e dessa vez não conseguiram evitar os tablóides. A lista das nomeações para o Oscar da Academia fora publicada durante a sua ausência, e lá vinham os nomes de ambos. A imprensa estava presente em força quando saíram do avião, alguém da companhia aérea prevenira os jornalistas, mas os recém-casados estavam preparados. Muito bronzeados, tinham um aspecto fabuloso quando as máquinas fotográficas dispararam. Atravessaram lentamente a pequena multidão que os fora esperar ao aeroporto.

            Allegra alugara um carro para  ir buscá-los, e eles refugiaram-se lá dentro o mais depressa possível, depois de posarem para meia dúzia de fotografias Partiram na limusine e dois guarda-costas ficaram à espera da bagagem.

            Allegra também mandara comprar uma garrafa de champanhe para pôr no carro, e quando os noivos chegaram a casa de Alan, em Beverly Hills, encontraram-na cheia de flores. Porém, daí a uns dias a comunicação social começou a infernizar-lhes a vida, os fotógrafos vociferavam junto dos portões, enquanto os helicópteros pairavam sobre as suas cabeças, tentando captar imagens deles no jardim ou na piscina, e os tablóides contrataram pessoas para vasculharem o lixo. A situação era insuportável, o que os obrigou a mudar para Malibu, mas aqui ainda foi pior, e por fim esconderam-se em casa de Allegra por uns tempos. Jeff e Allegra foram passar uns dias com eles, e os quatro, de cabeleira postiça, freqüentavam restaurantes pequenos e pouco conhecidos no vale.

            — Não posso acreditar numa coisa destas —  disse Jeff, assustado com as intromissões que eram obrigados a enfrentar

            Continuava a dar os últimos retoques no seu guião. Ele e Allegra tinham passado um mês muito tranqüilo, interrompido apenas por mais uma ameaça a Bram Morrison, que dera que fazer a Allegra. A família dele fora de novo para Palm Springs, e Bram pedira a casa emprestada a um amigo, num lugar desconhecido. Nunca mais dispensara os guarda-costas, e uma série de artigos onde se lia que estava ganhando cem milhões de dólares com a tournée só contribuiu para agravar a situação. Todos queriam um pouco de ação, em troca fosse do que fosse, incluindo o rapto ou a chantagem.

            Alan e Carmen tinham regressado há duas semanas. Na tarde de primeiro de abril, Allegra e Carmen passaram duas horas discutindo os pormenores do novo contrato. Carmen deixara-o já assinado antes de partir para a lua-de-mel, mas havia alguns pontos sensíveis que Allegra pretendia analisar com ela, para apurar exatamente quais seriam as suas expectativas quando começasse a filmar. Precisavam falar do tipo de camarim que teria, dos horários, e havia que burilar todos os pequenos pormenores, para evitar crises desnecessárias.

            Já estavam quase acabando quando Carmen olhou para a sua advogada com um sorriso travesso, e Allegra lembrou-se que era o Dia da Mentira. Ao longo do tempo, tanto ela como Alan tinham pregado toda a espécie de partidas um ao outro nesse dia, e Scott, o irmão de Allegra, gostava particularmente de torturar a família nessa data. Aliás, estava admirada por ele não ter telefonado, pois todos os anos lhe pregava um susto, dizendo que estava no México, na prisão, casado com uma prostituta ou em São Francisco, fazendo sexo de grupo. Mas ela retribuíra-lhe na mesma moeda ao longo dos anos e, ao olhar para Carmen nesse momento, ocorreu-lhe que vinha a caminho mais uma mentira.

            — Há uma coisa que te quero contar  — disse Carmen com um grande sorriso.

            Allegra riu ainda antes de ouvir o que ela tinha para lhe comunicar.

            — Deixa-me adivinhar: você e o Alan vão-se divorciar. Ah, ah, hoje é o Dia da Mentira!

            Carmen sorriu; Alan já lhe pregara duas partidas nessa manhã. Primeiro dissera que estava à porta um ex-namorado dela, e depois que a mãe dele ia viver com eles durante seis meses. Ambas as novidades tinham provocado um choque em Carmen logo de manhã.

            — Não, não é nada disso  — objetou, subitamente envergonhada.

            Mas Allegra continuava desconfiada. À sua maneira, era muito parecida com Alan.

            — Vamos ter um bebê  — anunciou Carmen, radiante

            — Vão? Já? Allegra sabia que eles queriam ter filhos, mas julgava que esperariam um pouco mais. Carmen começava a trabalhar em junho; as filmagens duravam apenas três meses, mas agora a situação não seria fácil. De quanto tempo? — perguntou, sustendo a respiração, aterrada com a perspectiva de perderem o filme.

            — Só de um mês  — respondeu Carmen, embaraçada. O Alan disse que ainda era muito cedo para contar, mas eu quis dar-te a notícia E lembrei-me que talvez isso seja importante para o estúdio; estarei grávida de três meses quando começarmos, mas de seis quando acabarmos. Achas que eles vão rescindir o contrato?

            — Não tenho certeza —  respondeu Allegra, honestamente. Pode ser que consigam contornar a situação. Talvez não apareça mesmo até ao fim. Ainda bem que as filmagens não demoram mais tempo!

            Algumas levavam oito ou nove meses, o que, neste caso, teria sido um desastre, e Carmen era a personagem central, apesar de não aparecer sempre.

            — Talvez arranjem uma forma de solucionar as coisas. Farão tudo para consegui-lo... Bem sei como querem desesperadamente que você entre. Vou telefonar-lhes esta tarde —  prometeu Allegra, sorrindo. Parabéns... O Alan deve estar radiante!... Alan adorava crianças e sempre desejara ter uma mulher, uma família e um bebê. Que boa notícia! E não é mentira, espero!

            Carmen deu uma gargalhada.

            — Acho que não; pelo menos foi o que o médico disse... Fui lá ontem, para fazer uma ecografia. Havias de ver o coraçãozinho batendo: parece um feijão gelatinoso. Estou grávida de cinco semanas  — afirmou, com orgulho.

            — Custa a acreditar... — disse Allegra, sentindo-se de súbito muito velha.

            Carmen, com apenas vinte e três anos, tinha a perspectiva de uma grande carreira no cinema, e agora estava casada e ia ter um bebê; Allegra, por sua vez, quase com trinta, possuía apenas uma carreira que adorava e um homem que conhecia há pouco mais de dois meses, que ela amava, sem dúvida, mas quem sabia até onde iria aquela relação? Ainda estava tudo muito fresco, e a vida era incerta, traiçoeira.

            Sentou-se à secretária, sentindo-se melancólica e mesmo um pouco invejosa depois de Carmen sair, mas depressa concluiu que estava a ser estúpida; os amigos tinham direito à felicidade, e ainda havia muitas coisas para ela fazer na vida. Pelo menos já não estava com Brandon, à espera que ele tivesse a coragem de se divorciar de Joanie! Brandon só lhe telefonara uma vez desde que partira, para perguntar onde estava a sua raquete de tênis e a bicicleta de Nicky, pois as deixara na casa dela, e fora buscá-las no fim-de-semana seguinte. Jeff estava lá e Brandon mirara-o com curiosidade, mas não dissera nada. Parecia muito zangado com Allegra, agradeceu-lhe com frieza e saiu com  pressa. Assim mesmo! Dois anos, e o que restara fora uma bicicleta de criança e uma raquete de tênis, além de um grande vazio. Mas agora tinha Jeff, e a sua relação com ele era muito mais compensadora. Allegra encontrara em Jeff o que sempre desejara num homem compreensão, companhia, apoio emocional. Ele interessava-se pelo seu trabalho, gostava dos seus amigos e não tinha receio de se aproximar nem de amá-la. Passados dois meses, havia entre eles uma ligação profunda que Allegra nunca experimentara com ninguém, e muito menos com Brandon.

            Telefonou a Alan para lhe dar os parabéns, e ele mostrou-se satisfeito, mas um pouco envergonhado.

            — Eu disse-lhe que não contasse a ninguém por enquanto, mas acho que ela ficou entusiasmada quando viu o bebê ontem, na ecografia. Queria ir comprar um berço correndo...

            — Mas é preferível que eu saiba; tenho de avisar o estúdio. É melhor eles ficarem ao corrente da situação com antecedência —  disse ela com naturalidade, puxando os cabelos louros para trás e tentando esquecer o vazio e a inveja que sentira quando Carmen lhe dera a notícia. Não sabia o que se passava consigo; em geral, não era tão sentimental em relação a bebês. Talvez fosse apenas porque se tratava de Alan.

            — Acha que vai haver problema com eles?

            Alan estava preocupado; não queria estragar o contrato, mas agora era demasiado tarde; o bebê nascia em dezembro.

            — Espero que não. Eu aviso assim que lhes telefonar. Creio que, no caso especial deste filme, eles podem dar a volta. Se tencionassem mostrá-la em trajes de banho durante três meses, estaríamos em apuros, mas o guarda-roupa inclui uma série de casacos e de roupas largas.

            A ação decorria no Inverno. Havia algumas filmagens locais, e quase todas em interiores, mas, ainda assim, Carmen não seria obrigada a usar muitas roupas justas ao corpo.

            — Ela está mesmo entusiasmada, Al  — declarou o amigo, satisfeito, como se fossem o primeiro casal a realizar tal proeza.

            — Eu sei, foi uma ternura. Fez-me sentir velha, para ser sincera.

            E um pouco abandonada. Allegra conhecia Alan há muito mais tempo do que Carmen.

            — Qualquer dia te acontece o mesmo  — disse ele para consolá-la.

            — Espero que não. Riu e acrescentou, sem hesitar: Prefiro esperar pelo casamento, se puder.

            — Acho que devia agarrar o Jeff, antes que volte para o Leste. Ele é dos bons!

            — Obrigada, papai —  replicou Allegra, divertida com o conselho. Jeff era realmente dos bons, mas a decisão não cabia a Alan.

            — Fica à vontade... A propósito, ontem vi a Sam com uma pedra que até feria a vista!

            — Que pedra? — perguntou Allegra, empalidecendo.

            — O anel. O anel de noivado... Porque não me contaste? Ela parecia muito orgulhosa.

            — A Sam? — Allegra estava horrorizada. Ela não me disse nada. Está noiva. Desde, quando?

            — Desde ontem, segundo afirmou  — respondeu Alan com ar ingênuo.

            — De repente. — Allegra lembrou-se.

            — Raios! É mentira, não é? — perguntou, ansiosa, e ele riu. Te odeio!

            — Mas acreditaste em mim! Eu devia ter-te feito sofrer mais. É terrível!

            — E tu és parvo! Espero que tenha quadrigêmeos! — retorquiu com veemência.

            Alan enganava-a todos os anos, e ela acreditava sempre nele.

            Em seguida, telefonou para o estúdio e deu a novidade. Não ficaram loucos de alegria, mas agradeceram o aviso atempado e garantiram-lhe que o contrato se manteria, o que era uma boa notícia; iriam ter uma reunião com o diretor logo que possível para combinar como seriam as filmagens e tornear o ‘problema’.

            — Agradecemos muito  — disse Allegra.

            — Obrigada por nos ter avisado cedo —  afirmou a produtora. Era uma mulher de quem Allegra gostava muito e com quem já contatara várias vezes, embora não por causa de Carmen.

            — Vou dizer à Carmen que está tudo bem. Sei que ela vai ficar satisfeita, pois me pareceu muito preocupada.

            — Às vezes, temos de dar a volta à mãe-natureza. No mês passado trabalhei com a Allyson Jarvis, e ela tinha-se esquecido de nos dizer que estava a amamentar. Devia usar um quarenta e oito, e juro-lhe que julguei que nem sequer fôssemos capazes de meter o peito dela no filme!

            Riram. Em seguida Allegra telefonou para Carmen, garantindo-lhe que não perdera o filme.

            No entanto, ao fim do dia, quando foi para casa, sentia-se triste sem saber porquê. Não fora um mau dia, e as coisas tinham corrido bem para Carmen, apesar da gravidez, mas, mesmo assim, Allegra sentia-se abatida, e perguntou a si própria se não seria por causa do bebê. Talvez tivesse inveja deles, pensou, quando se dirigia para casa ao volante do carro, mas a idéia pareceu-lhe estúpida. O problema é que as vidas dos amigos pareciam tão realizadas, tão completas, enquanto a sua se assemelhava a uma obra em curso: continuava a ir ao consultório da Drª. Green, como sempre, ainda que a médica se mostrasse muito satisfeita com ela e impressionada com a sua relação com Jeff. Allegra ia meditando em tudo isto e reconheceu que se sentia feliz com ele, ao entrar na casa de Malibu. Nunca tivera uma relação como esta, nunca amara ninguém assim. Jeff era o homem que ela sempre desejara.

            — Tem alguém em casa? — gritou para o interior da casa, onde ficava o gabinete dele.

            Segundos depois Jeff apareceu, com um lápis atrás da orelha e um sorriso no rosto. Sentira a falta dela durante todo o dia; fartara-se de trabalhar e estava ansioso por voltar a vê-la.

Puxou-a para si e beijou-a longamente; qualquer frustração que Allegra pudesse ter sentido desvaneceu-se nesse mesmo instante.

            — Uau! Para que foi isso? Ou tiveste um grande dia à máquina de escrever, ou um muito mau.

            — Um pouco de ambos, como de costume. Senti saudades suas. Como foi o seu dia?

            — Bastante bom.

            Tirou uma Evian do frigorífico e deu-lhe uma cola. Depois lhe falou de Alan, do bebê e de Carmen.

            — Já? Foram rápidos! Deve ter havido farra em Bora Bora. Talvez devêssemos tentar fazer o mesmo na nossa lua-de-mel...

            — Quando eu me casar, serei tão velha que precisarei de uma cadeira de rodas, e não de um carrinho de bebê  — retorquiu ela, sorrindo. Sentia-se muito melhor e sabia que ele estava apenas brincando ao falar da lua-de-mel.

            — O que te leva a dizer isso?

            Jeff parecia interessado, quando se sentaram nos bancos da cozinha.

            — Tenho quase trinta anos, levei muito tempo construindo a minha carreira e ainda não cheguei onde quero, não sou sócia participante e tenho muito a fazer. Não sei... Há muito tempo que não penso em casamento  — respondeu, honestamente.

            Allegra limitava-se a viver o dia-a-dia e aceitava o que ia acontecendo. Parecia-lhe uma maneira mais realista de encarar a vida do que ficar sentada à espera do príncipe encantado e de casar de branco.

            — Sinto-me um pouco desiludido ao ouvi-la falar assim  — disse Jeff admirado, e com uma certa malícia.

            Allegra imaginou-se apanhada noutra partida do Dia da Mentira.

            — Por quê? Tencionas pedir hoje a minha mão? — perguntou, sorrindo. Ah! Hoje é Dia da Mentira!

            Jeff riu.

            — Por acaso, sim. Acho que o Dia da Mentira é uma boa ocasião para ficarmos noivos: ninguém sabe ao certo se estamos falando a sério ou não. Isso me agrada.

            — Que engraçadinho! O Alan já se antecipou —  redargüiu, muito descontraída, a beber a sua Evian. Era sempre divertido voltar para casa. Sentiam-se tão bem juntos!

            — O quê? Pediu-te em casamento hoje? Acho que é de muito mau gosto, se a mulher dele está grávida.

            — Não, parvo. Allegra riu de novo. Ele disse-me que a Sam tinha ficado noiva ontem. E eu acreditei. Devia conhecê-lo melhor, ao fim de todo este tempo. Faz-me o mesmo todos os anos e eu acredito sempre nele.

            Jeff sorriu. Estavam confortavelmente sentados na cozinha, ao pôr do sol.

            — Acreditava em mim se eu te pedisse hoje para casar comigo? — perguntou, inclinando-se mais para ela, quase a beijá-la.

            Allegra sorriu ternamente, pensando no que ele dissera.

            — Não, não acreditava  — respondeu, entrando no jogo de Jeff que abanou a cabeça.

            — Nesse caso, acho que terei de voltar a pedir amanhã  — disse ele, fingindo-se esmagado.

            Allegra riu outra vez e beijou-o, mas, de súbito, algo no olhar dele a levou a inclinar a cabeça para o lado e a fitá-lo com um ar intrigado.

            — Não está falando a sério, não é mesmo? Isto é tudo uma brincadeira, não é verdade?

            — Por acaso, seres casada comigo talvez tivesse o seu quê de brincadeira... Mas sim, estou falando sério. O que acha? Está fora de questão, ou gostaria de fazer a experiência durante cinqüenta ou sessenta anos? Eu tenho tempo, se quiser tentar...

            Jeff fitava-a com tal ternura que Allegra ficou sem fôlego ao perceber que ele estava a falar a sério.

            — Oh! meu Deus... Oh! meu Deus... — Levou as mãos à cabeça e por pouco não gritou ao olhar para ele. Está falando a sério?

            — É claro que estou falando a sério. Nunca propus casamento  a ninguém na minha vida. Pensei apenas que este seria um bom dia para fazê-lo. Assim nunca mais te esquecerias.

            — Tu és doido! — exclamou, atirando-se ao pescoço. Era incrível. Allegra conhecia-o há pouco mais de dois meses e, no entanto, aquela solução assentava-lhes que nem uma luva. Tivera outras relações de vários anos, que haviam derrapado, marcadas pelo afastamento, pela ausência de uma verdadeira intimidade, e agora estava ali com Jeff, e tudo parecia natural. Era espantoso!

            — Amo-te tanto murmurou, abraçando-o e beijando-o. Nunca fora tão feliz. Nesse momento, até o bebê de Carmen deixara de ter importância. Aquela situação era muito melhor; Jeff queria passar o resto da vida a seu lado e isso era o que ela sempre desejara. Era um sonho que se realizava, e parecia tudo tão fácil... Não se tratava de ‘funcionar’ ou de algo que tivesse que ser ‘resolvido’, nem tão-pouco necessitavam de ‘tentar’ ou de ‘pensar no assunto’. Allegra não precisava de psicoterapia para perceber que o desejava nem ele de dez, de dois ou de quatro anos para compreender que a adorava. Amavam-se, disso tinham a certeza, e iam casar-se.

            — Não me respondeu, sabe? —  lembrou-lhe ele. Allegra soltou um gritinho, deleitada, e desatou a correr pela cozinha como uma criança. Jeff deu uma gargalhada e ficou a observá-la.

            — Sim, respondi. A resposta é sim... Sim... Sim... Sim... Sim! — gritou, aproximando-se dele e beijando-o.

            — É Dia da Mentira. Eu estava a brincar  — disse Jeff, mas ela riu e não acreditou.

Nem tentes sequer escapar!

            Nesse momento, o telefone tocou. Era o irmão de Allegra.

            — Olá, Scott saudou, com naturalidade. O que há de novo? Pouca coisa.. Oh!, nada.. Eu e o Jeff ficamos noivos... Não, a sério! Não é mentira, juro!

            Allegra pareceu-lhe tão natural, que Scott não acreditou nela. Jeff ria ao ouvir a conversa.

            — És um monstro —  disse ele, em tom de reprimenda.

            — A sério! Estávamos aqui sentados e resolvemos casar... Sim, claro anuiu, quando o irmão lhe anunciou que também  ficara noivo. Escusado será dizer que não acreditara nela. A sério que não é mentira, a sério!...

            Mas Allegra ria, como se estivesse a fazer troça dele.

            — Bem, não te esqueças de me convidar para o casamento  — concluiu Scott com sarcasmo. A irmã estragara completamente o seu telefonema anual com o pretexto de se casar e ele tinha de regressar às aulas em Stanford.

            — Não acreditou numa única palavra, aposto disse Jeff, rindo-se.

            — Pois não, e vai resmungar quando perceber que eu estava falando verdade, ou já mudou de idéias? —  perguntou, fingindo-se preocupada.

            Jeff beijou-a.

            — Dá-me um dia ou dois. Nunca estive noivo, estou a gozar o momento.

            — Pois, também eu.

            Enquanto se beijavam, esqueceram o noivado e pensaram apenas um no outro. Ele despiu-lhe as calças e a blusa de seda e ela tirou-lhe os calções e a camiseta. Jeff tinha umas pernas grandes e morenas. Às vezes, a meio do dia, estendia-se na praia, quando precisava fazer um intervalo no trabalho. Allegra, por seu lado, era muito branca, magra e elegante. Já anoitecera quando acabaram de fazer amor na carpete da sala. Allegra riu ao olhar à sua volta.

            — Podemos continuar a fazer isto quando estivermos casados?

            — Estou contando com isso —  respondeu ele, com uma voz sensual.

            Levantaram-se no meio das roupas amontoadas e voltaram para o quarto. A noite já ia adiantada quando pensaram em jantar, em ir a qualquer lado ou mesmo no casamento.

            — Gosto de estar noiva  — disse Allegra.

            Levou uma embalagem de biscoitos para a cama e Jeff abriu uma garrafa de champanhe para comemorar.

            — Não devíamos telefonar a alguém? Não te parece necessário pedir a tua mão ao seu pai? —  perguntou, formal, fazendo um brinde.

            — Mais tarde. Saboreemos primeiro o momento, antes que fiquem todos loucos com a notícia.

            Em seguida, começou a pensar na logística.

            — Quando quer casar? — perguntou. A situação era mesmo divertida. Também ela nunca estivera noiva.

            — Não é da tradição ser em Junho? Eu gosto de tradições. Ainda devo estar filmando nessa altura, mas talvez seja possível. Desde que não te importe que a lua-de-mel fique para setembro... Seria muito mau? Prefiro não esperar tanto tempo pelo casamento.

            Dois meses já lhe pareciam de mais; estava ansioso por se ligar oficialmente a ela. Quanto a Allegra, a idéia de casar com Jeff daí a tão pouco tempo não a assustava, pelo contrário. Praticamente já viviam juntos; para quê esperar mais? Já desperdiçara muito tempo com pessoas que não lhe haviam dado nada em troca. Com Jeff não precisava aguardar: casaria nesse mesmo instante, se ele lhe pedisse.

            — Podíamos ir passar a lua-de-mel em Bora Bora. Talvez fôssemos tão felizes como o Alan e a Carmen disse ele, sorrindo.

            — Quer filhos assim tão depressa? — perguntou ela, admirada.

            — Sim, se estiver de acordo. Tenho trinta e quatro anos e você vinte e nove; não gostaria de esperar muito mais tempo. Quando te sentires preparada. Seria bom tê-los enquanto somos relativamente jovens, embora você seja mais nova do que eu, mas acho que seria formidável ter o meu primeiro filho aos trinta e cinco anos.

            — Talvez fosse melhor começarmos já. Faz aniversário daqui a seis meses e eu posso levar algum tempo para engravidar... Allegra estava a arreliá-lo, mas a verdade é que gostara de tudo o que ele dissera. Por sinal, adorara. Os meus pais convidaram-nos para jantar amanhã, a propósito. Podíamos aproveitar a oportunidade para dar a notícia, ou quer esperar mais um pouco?

            — Para quê? Não preciso de um período de nojo, conselheira. No que me diz respeito, a decisão está tomada, se estiver de acordo.

            — Talvez seja preferível experimentarmos outra vez, para nos certificarmos de que resulta. Uma espécie de exame de condução —  insistiu, arreliadora. Inclinou-se e beijou-o outra vez, enchendo a cama de migalhas, mas Jeff não se importou.

            — Tenciono fazer esse exame durante os próximos anos  — disse ele, beijando-a de novo.

            Pousou a taça de champanhe na mesa-de-cabeceira e recomeçaram a fazer amor. Por volta da meia-noite, sentiam-se felizes e exaustos.

            — Acho que vai dar cabo de mim antes do casamento —  queixou-se ele. Talvez seja melhor reconsiderar.

            — Não se atreva! — exclamou Allegra. Agora não pode voltar atrás; passa um minuto da meia-noite e o Dia da Mentira já acabou. Comprometeu-se comigo, Sr. Hamilton.

            — Aleluia! — exclamou Jeff, beijando-a.

            — Quer um casamento grande ou pequeno? — perguntou ela sorrindo, deitada na cama.

            — Não creio que tenhamos tempo para uma festa muito grande, porque só faltam dois meses, não acha?

            — Concordo. Quarenta ou cinqüenta pessoas no jardim da minha mãe seria o ideal. É tudo o que desejo. Ou talvez ainda menos... Calou-se e olhou para Jeff, envergonhada por não o ter consultado. A menos que queira convidar muitos amigos. Eu não tencionava decidir sozinha desculpou-se.

            — Não faz mal disse ele, sorrindo. A única pessoa que eu quero mesmo que esteja presente é a minha mãe. Tenho alguns amigos por aqui, mas não muitos, e os outros estão espalhados pelo Leste e pela Europa; seria um exagero esperar que venham de propósito à Califórnia. Acho que quarenta pessoas está bem. Tenho de telefonar à minha mãe para lhe dizer. Todos os anos vai à Europa em Junho e gosta de ser avisada com antecedência quando tem alterações a fazer.

            — Acha que vai ficar satisfeita? — perguntou Allegra, muito séria e um pouco inquieta. A fotografia da mulher que vira no apartamento de Nova Iorque assustara-a: tinha um ar tão austero e frio, tão diferente de Jeff ou do pai...

            — Tenho certeza. Há quatro anos que deixou de me perguntar quando é que eu me casava. Acho que desistiu quando passei dos trinta.

            Além de ter detestado todas as namoradas do filho nos últimos vinte anos... Mas Jeff sabia que a mãe iria gostar de Allegra. Quem não gostaria?

            — Estou ansiosa por contar à minha mãe —  disse Allegra esfuziante. Vai ficar tão feliz! Eles gostam mesmo de você.

            — Espero que sim. Virou-se para Allegra, muito sério, e beijou-a ternamente. Tomarei muito, muito bem conta de você para o resto da vida. Prometo.

            — Também eu. Prometo, Jeff. Estarei sempre a seu lado E de repente, quando estavam deitados na cama, lado a lado, de mãos dadas e falando dos seus planos, Jeff riu.

            — Porque não vamos de trailer a Las Vegas? Podíamos voltar a usar peruca e você atirava um ramo de orquídeas de plástico...

            A mãe dele morreria de susto, mas o casamento de Alan e Carmen fora muito divertido.

            — Tenho uma coisa a confessar a esse respeito  — disse Allegra. Se a minha mãe puder animar este casamento, fá-lo-á. Conta com isso. Talvez sejamos obrigados a ir a Las Vegas.

            Riram, felizes, e aninharam-se na cama, como duas crianças que planejassem uma grande aventura.

            No dia seguinte, quando foi para o emprego, Allegra estava tão entusiasmada que se esqueceu das chaves e teve de voltar atrás para buscá-las. Ganhou mais um beijo, e Jeff quase teve que a pôr na rua para ela não chegar atrasada à primeira reunião.

            — Vai-te embora... Vai! —  gritou. Desaparece! Vai. Disse-lhe adeus da pequena rampa, e ela ainda se estava a rir quando entrou na estrada. Nunca se sentira tão feliz!

            Passou a manhã a sorrir, parecia aquele gato proverbial que engolira o canário, mas não queria dar a notícia a ninguém senão depois de jantar com os pais nessa noite. Foi particularmente difícil encarar Alice e não contar nada a Carmen quando esta lhe telefonou. Carmen continuava nas nuvens por causa do bebê, mas, na opinião de Allegra, a sua notícia era ainda mais empolgante.

            Tentou que Jeff fosse almoçar com ela à cidade, mas ele disse que não podia; tinha que trabalhar muito no argumento.

            — Mas eu não posso almoçar com mais ninguém  — queixou-se. Não suportaria não dar a notícia. Tem de vir ter comigo.

            — Não, se quer que eu vá consigo esta noite, Srª. Hamilton.

            — Allegra gostou de ouvir estas palavras, e Jeff também. Escrevera ‘Allegra Hamilton’ várias vezes no seu bloco de apontamentos. Não brincava assim desde os catorze ou quinze anos, quando namorava com Alan.

            Por fim, resolveu descer Rodeo Drive e ir fazer umas compras, para ver se encontrava vestidos brancos bonitos ou trajes apropriados para um casamento no jardim da mãe. Foi às lojas Ferre, Dior, Valentino, Fred Hayman e Chanel, só para dar uma vista de olhos e ficar com uma idéia do que havia em branco, mas não encontrou nada. A Valentino tinha um belo traje de linho branco, mas não lhe pareceu suficientemente vistoso, e a Ferre uma blusa de organdi fabulosa, mas nada que desse com ela. No entanto, divertira-se. Nem podia acreditar: andava à procura do seu vestido de casamento, passados apenas dois meses de ter conhecido Jeff

            Apeteceu-lhe telefonar a Andreas Weissman, em Nova Iorque, para lhe agradecer.

            Pensou em não almoçar, mas depois resolveu passar pelo Grill para comer um sanduíche e beber um café. Em geral, encontrava gente conhecida, advogados da firma ou agentes da ICM, da CAA ou da William Morris. Também costumavam estar lá alguns atores e amigos. A comida era boa, o serviço rápido e a localização perfeita.

            Ao chegar, olhou em volta, à procura de um compartimento, e de repente avistou o pai ao fundo da sala; estava a rir, mas Allegra não via quem o acompanhava. Sentiu-se verdadeiramente tentada a ir contar-lhe a novidade, mas sabia que a mãe nunca lhe perdoaria tal coisa; tinha de esperar por essa noite, quando fosse jantar com Jeff a casa dos pais. De qualquer modo, podia ir cumprimentá-lo, e foi o que fez. Pôs o casaco azul em cima de uma cadeira da sua mesa e foi ter com ele. Vestia uma saia bege curta e uma camisa azul-clara e calçava uns sapatos Chanel beges, de salto raso, a condizer com a bolsa. Estava muito elegante e à moda, e como era habitual, mais parecia um modelo do que uma advogada.

            Assim que se aproximou do compartimento onde se encontrava Simon, este levantou a cabeça; ao deparar com a filha, ficou radiante. Só então Allegra viu com quem ele estava a almoçar. A princípio pareceu-lhe que já a encontrara antes e depois concluiu que se tratava da diretora com quem o pai estivera conversando na cerimônia do Globo de Ouro, Lady Elizabeth Coleson. Era uma mulher alta, muito jovem e bastante atraente. Tinha um riso profundo e sensual e era pouco mais velha do que Allegra.

            — Olá! Mas que surpresa! — exclamou o pai. Levantou-se, beijou-a e apresentou-a a Lady Elizabeth. Era uma mulher de talento e muito terra-a-terra, embora nada pretensiosa, e parecia estar a divertir-se na companhia de Simon. Esta é a minha filha Allegra  — disse ele a Elizabeth com um sorriso, explicando a Allegra que estavam falando acerca de um filme. Há meses que ando tentando convencer a Elizabeth a trabalhar comigo, mas até agora ainda não consegui lamentou-se, voltando a sentar-se.

            Allegra observou-os; pareciam completamente à vontade, como se fossem velhos amigos e tivessem passado muito tempo juntos. Simon perguntou-lhe se queria fazer-lhes companhia, mas Allegra respondeu que não desejava interromper a reunião.

            — Obrigada, pai. Tenho de voltar para o escritório daqui a pouco; passei por aqui só para comer um sanduíche.

            — O que andavas a fazer por estes lados? — perguntou ele. Allegra sorriu, morta por lhe contar, mas não podia.

            — Digo-lhe esta noite.

            — Combinado  — concordou Simon.

            Allegra apertou a mão de Elizabeth e voltou para a sua mesa. Pediu uma Salada César e um café, e um quarto de hora depois regressou ao escritório. Ao volante, deu consigo pensando no pai e em Elizabeth Coleson. Não sabia por que, mas sentira o mesmo que da última vez em que os vira juntos que se conheciam muito bem e que pareciam gostar muito da companhia um do outro. Perguntou a si própria se a mãe também simpatizaria com Elizabeth e resolveu perguntar. Em seguida, os seus pensamentos viraram-se de novo para o casamento. Tinha a cabeça cheia de idéias e nessa tarde telefonou três vezes para Jeff, só para rirem e conversarem sobre o seu segredo. Mal podia esperar e, nessa noite, quando ia a chegar na casa dos pais, sentiu-se prestes a explodir de entusiasmo.

            — Tenha calma... Tenha calma... —  disse Jeff para tranqüilizá-la.

            No entanto, também estava muito nervoso. E se levantassem objeções, ou pensassem que era demasiado cedo, ou não gostassem dele? Antes de saírem de Malibu, transmitira as suas preocupações a Allegra, que o achara ridículo, mas, mesmo assim, continuava apreensivo.

            O pai veio recebê-los à porta principal e explicou que Blaire estava ao telefone, na cozinha, a falar com o arquiteto. Pelo que Allegra podia ouvir, a conversa não era agradável: o homem acabara de lhe comunicar que, devido aos armários e aos azulejos que ela escolhera, seriam necessários pelo menos sete meses para acabar as obras, e Blaire não estava gritando com ele, mas pouco faltava.

            — Talvez tenhamos de passar seis meses em Bel Air disse Simon, meio a sério, meio a rir.

            Perguntou a Jeff o que queria beber e este pediu um uísque com água. Ao fim de alguns minutos de conversa agradável, apareceu Blaire, irritada e nervosa.

            — Mas que absurdo! — gritou ela ao marido, recusando uma bebida. Sete meses! Ele deve estar doido! Desculpa, querida... disse a Allegra; em seguida beijou-a e cumprimentou Jeff, tentando manter a compostura. Não posso acreditar!

            — Porque não deixamos a cozinha assim? — sugeriu Simon, com cautela, mas Blaire replicou que a achava fora de moda e que isso estava completamente fora de questão. Vou-me embora  — disse ele, baixinho.

            A mulher deu um olhar de censura e mudaram de assunto, mas Allegra mal se podia conter. Quando estavam sentados tranquilamente, antes do jantar, Jeff pousou os óculos e olhou para os pais dela.

            — Allegra e eu temos uma coisa a dizer... Ou melhor, a pedir-vos... Eu... Eu sei que não nos conhecemos há muito tempo, mas...

            Jeff nunca se sentira tão desajeitado na sua vida, parecia um menino, e Blaire fitava-o, incrédula, enquanto Simon lhe dava um sorriso; estava com pena dele.

            — Quer pedir-me o que eu julgo? — perguntou, tentando dar-lhe uma ajuda.

            Jeff lançou-lhe um olhar agradecido.

            — Sim, senhor. Parecia um menino de cinco anos sentado ali ao lado de Allegra, para pedir a mão dela aos pais. Nós gostaríamos... Nós vamos... Casar disse, tentando parecer de novo um adulto.

            — Oh, querida!

            Blaire correu a abraçar a filha, com lágrimas nos olhos. Depois Allegra olhou para o pai, que também tinha os olhos brilhantes, mas que parecia feliz pelos dois.

            — Papai?...

            Allegra também queria a bênção dele e percebeu que a tinha.

            — Aprovo do fundo do coração

            Simon deu um aperto de mão firme a Jeff. Os dois homens pareciam satisfeitos, como se tivessem acabado de fechar um negócio importante... Tratava-se do resto da vida de Jeff e de Allegra.

            — Obrigado  — agradeceu Jeff, sentindo um alívio enorme. Fora muito mais difícil do que julgara, apesar de os pais de Allegra terem facilitado muito a tarefa. No entanto, fora um momento assustador, que nunca mais esqueceria.

            Em seguida começaram todos a falar ao mesmo tempo, e quase não deram pelo anúncio do jantar. Não falaram de outra coisa durante a refeição. Samantha tinha saído com uns amigos, e o casamento foi o único tema de conversa.

            — Está bem, está bem  — disse Blaire depois do primeiro prato. Agora vamos aos pormenores. Quantas pessoas, quando, onde, que gênero de vestido, véu comprido ou curto..

            — Oh, meu Deus! — exclamou, enxugando os olhos com o guardanapo. Era uma das noites mais felizes da vida deles, e certamente também da de Allegra, que se esforçava por responder a todas as perguntas da mãe.

            — Queremos umas quarenta ou cinqüenta pessoas aqui em casa, no jardim. Nada de muito sofisticado, uma coisa íntima. Em junho  — disse Allegra, radiante, olhando para Jeff e depois para a mãe.

            — Deve estar brincando, querida, com certeza... — respondeu a mãe, sorrindo, mas Allegra deitou-lhe um olhar inocente, sem perceber o comentário.

            — Não. Falamos nisso ontem à noite e é assim que queremos.

            — Está fora de questão! — cortou Blaire, que mais parecia estar desempenhando o seu papel de produtora. Esquece! Não há contrato.

            — Mãe, isto não é o seu programa, é o meu casamento  — lembrou-lhe Allegra com delicadeza. O que quer dizer com isso de ‘esquece’?

            — Quero dizer que o jardim vai ficar completamente virado do avesso nas próximas duas semanas. Não haverá nada no quintal senão terra e a piscina até ao Outono, portanto o jardim não existe. E não pode estar falando a sério quando te referes a quarenta ou a cinqüenta convidados... Imaginas quantas pessoas conhecemos? Allegra, isso é uma loucura! Pensa nos seus clientes e em todos os seus amigos de escola, já para não falar dos amigos da família. E é claro que os pais do Jeff também hão de querer fazer os seus convites. Francamente, não vejo como conseguiremos ter menos de quatrocentas ou quinhentas pessoas! Talvez mais perto de seiscentas... O que significa que não pode ser aqui. E deve estar brincando quanto a junho; não se consegue organizar um casamento desses em dois meses. Allegra, agora falemos a sério, querida. Onde e quando é que vai ser?

            — Mãe, eu estou falando a sério  — insistiu Allegra, que começava a ficar tensa. Este é o nosso casamento, não é o seu, e nós não queremos mais de cinqüenta pessoas. É tudo. Para fazer uma coisa grande, temos de convidar muitas pessoas. Com quarenta ou cinqüenta, juntamos apenas os nossos amigos mais íntimos, o que terá mais significado para nós, e não são necessários seis meses para organizar um casamento de cinqüenta pessoas.

            — Para que me hei de eu incomodar? —  resmungou Blaire, aborrecida como Simon nunca a vira. A mulher exagerava em tudo, primeiro com o arquiteto e agora com o casamento da filha.

            — Mãe, por favor! — disse Allegra, à beira das lágrimas. Porque não deixa que sejamos nós a organizá-lo? Não é obrigada a fazê-lo.

            — Isso é ridículo! E onde se realiza o casamento. No seu gabinete?

            — Talvez. Podia ser na casa do Jeff, em Malibu. Seria o ideal.

            — Você não é uma hippie, é uma advogada, com uma série de clientes distintos, e os nossos amigos são muito importantes para nós, e para você. Voltou-se para Jeff, apelando à sua intervenção. Têm de pensar melhor no assunto...

            Jeff fez um sinal afirmativo e virou-se para Allegra.

            — Porque não falamos nisso esta noite e vemos o que podemos alterar? — disse ele tranquilamente, sob o olhar atento de Simon.

            — Eu não tenciono mudar nada. Nós já falamos no assunto e queremos um casamento com poucas pessoas, em junho, no jardim —  retorquiu Allegra, com veemência.

            — Não há jardim! — disparou a mãe. E eu estou filmando em Junho. Pelo amor de Deus, Allegra, porque está dificultando as coisas?

            — Não tem importância, mãe. Allegra afastou o guardanapo e levantou-se da mesa, olhando para Jeff com as lágrimas nos olhos. Nós vamos a Las Vegas. Não preciso que me faça isso. Só quero um casamento íntimo. Esperei trinta anos por ele, e quero fazê-lo à minha vontade e à do Jeff. Mãe. Nós é que vamos casar!

            Blaire ficou agitada ao ver como Allegra estava aborrecida e Simon tentou acalmar as duas

            — Porque não falamos nisso depois do jantar? Não é preciso enervarem-se dessa maneira  — disse ele, com calma.

            Mãe e filha acalmaram-se e Allegra voltou a sentar-se, mas era óbvio que a questão não ia ser tão simples.

            O resto da refeição foi um pouco tensa, e as duas mulheres mal falaram. Quando o café foi servido, na sala de estar, a discussão reacendeu-se. Allegra queria quarenta amigos e Blaire pensava que deviam ser quinhentos ou seiscentos convidados. Propunha o clube ou o Hotel Bel Air, e Allegra considerava que desse modo o seu casamento seria vulgar. Desejava que fosse em casa, ao que Blaire contrapôs que não conseguiria organizar um programa e um casamento ao mesmo tempo e que tentar fazê-lo em junho era ridículo. Pelo menos durante duas horas não se vislumbrou qualquer compromisso. Por fim, depois de as duas partes se terem desgastado mutuamente, Allegra, contrafeita, aceitou cento e cinqüenta pessoas, enquanto a mãe propunha duzentas e dizia que, se esperassem até setembro, durante as férias do programa, e quando as obras no jardim já estivessem concluídas, conseguiria fazê-lo em casa. Allegra hesitou durante muito tempo e consultou Jeff em voz baixa. A verdade é que não queriam esperar seis meses para se casarem, mas ele lembrou-lhe que estaria acabando o seu filme por essa altura e que poderiam partir imediatamente para a lua-de-mel, em vez de esperarem três meses após a boda; havia certa vantagem nisso. Muito contrariada, Allegra concordou, a pedido de Jeff.

            — Mas vai ser assim, mãe, não me pressione mais! Cento e cinqüenta convidados no jardim, em setembro. Ponto final! Nem mais uma pessoa! E só faço isto por si...

            Parecia que estavam a jogar ao Monopólio na presença dos dois homens. Simon deitou um olhar ansioso a Blaire.

            — Isso significa que posso ficar com a minha cozinha? Pelo que eles disseram esta noite, não conseguem instalar a nova até setembro.

            — Oh, cala-te! — disse Blaire ao marido, de novo furiosa. Mete-te na tua vida! Mas depois sorriu, acanhada.

            No entanto, daí a pouco, todos pareciam mais descontraídos; fora uma noite esgotante.

            — Não sabia que os casamentos eram tão importantes para a sua família  — desabafou Jeff, aceitando outro uísque, enquanto Simon se servia de um brande.

            — Nem eu  — admitiu Simon. O nosso foi bem simples, mas eu sei que a Blaire sempre desejou dar o melhor às nossas filhas.

            — Ela que faça isso com a Sam  — acrescentou Allegra ainda abalada pela discussão com a mãe. Eram ambas teimosas e o compromisso não fora fácil, mas, acima de tudo, detestava a idéia de esperar cinco meses pelo casamento.

            — Nós vamos nos arranjar... —  tranqüilizou-a Jeff, beijando-a.

            Allegra foi ter com a mãe à cozinha. Quando entrou, encontrou Blaire a assoar-se; estivera a chorar.

            — Desculpe, mãe  — disse Allegra, arrependida das palavras duras que proferira. Eu sei o que quero, mas não era minha intenção aborrecê-la.

            — Eu quero que o teu casamento seja bonito, que seja especial!...

            — Vai ser  — respondeu Allegra.

            O que importava era que Jeff estivesse a seu lado. Nesse momento, tudo aquilo lhe parecia uma estupidez e só lamentava que não tivessem fugido, como Carmen. Teria sido muito mais simples, e Allegra desconfiava que a situação fosse piorar.

            — E o vestido? — perguntou a mãe, mudando de assunto. Espero que me deixes ajudar-te a escolhê-lo...

            — Comecei a procurar hoje, à hora do almoço. Allegra sorriu e contou-lhe onde estivera, o que vira e o que queria. Na opinião da mãe, um vestido curto era uma boa idéia, mas a filha devia estar elegante, talvez com um grande chapéu, ou um pequeno véu.

            — Hoje, quando andava a ver as vitrines, encontrei o pai. Tive de morder a língua para não lhe dar a novidade, mas queria contar-lhe na sua presença, e na do Jeff, por isso não o fiz.

            — O que andava ele a fazer em Rodeo Drive? Blaire sabia que o marido detestava compras; era ela que lhas fazia.

            — Nada de especial. Estava no Grill, almoçando com a Elizabeth Coleson. Creio que o pai anda a tentar contratá-la para um dos seus filmes.

            Em seguida a conversa derivou para a presença, ou não, de damas de honra no casamento. Allegra ainda não tomara uma decisão, mas notou algo estranho no semblante da mãe. Quando voltaram para a sala, reparou que Blaire olhou de soslaio para Simon. Continuaram a falar do casamento e às onze horas o jovem casal foi-se embora. À saída, Blaire segredou qualquer coisa à filha, e Jeff, que também a ouviu, estranhou:

            — Tem de telefonar ao teu pai  — disse em voz baixa, quando estavam à porta.

            Allegra olhou para ela, pouco à vontade, e fez um sinal afirmativo. Pouco depois partiu com Jeff para Malibu. Estavam ambos exaustos com a primeira dose de preparativos para o casamento; fora um serão difícil.

            — O que queria a tua mãe dizer com aquilo? —  perguntou Jeff a caminho da auto-estrada.

            Allegra recostou a cabeça no banco e fechou os olhos.

            Devíamos ter ido a Las Vegas e telefonávamos depois observou, com ar exausto.

            — O que queria ela dizer com aquilo de ‘telefonar ao teu pai’? O que se passa?

            Allegra não respondeu. Ficou sentada, de olhos fechados, fingindo que estava a dormir, mas Jeff olhou para ela e apercebeu-se da tensão do seu silêncio. Não compreendia o que se estava a passar e tocou-lhe ao de leve na face.

            — Ouve, não me ignores. O que queria ela dizer? — Instintivamente sentira que se tratava de um assunto doloroso.

            Allegra abriu os olhos e fitou-o.

            — Não quero falar disso agora. Já basta por esta noite. Durante algum tempo, reinou o silêncio, mas Jeff recusava-se a ser posto à margem.

            — Allegra, o Simon não é teu pai?

            Seguiu-se uma longa pausa. Allegra procurava um escape, uma maneira de não lhe dizer. Detestava falar naquilo, mesmo com ele; era demasiado penoso. Abanou a cabeça tristemente, mas não olhou para Jeff limitou-se a espreitar pela janela.

            — A minha mãe casou com ele quando eu tinha sete anos.

            Para Allegra, era uma confissão terrível, algo que detestava aflorar ou admitir.

            — Não sabia —  respondeu ele, com cautela, sem pretender violar antigos segredos, mas ia casar com ela e queria ajudá-la, se pudesse, já que o assunto era tão doloroso como parecia, a avaliar pelo seu silêncio.

            — O meu ‘verdadeiro’ pai é médico e vive em Boston. Odeio-o e o sentimento é recíproco  — disse ela, olhando finalmente para Jeff.

            Era um assunto difícil e Jeff optou por não continuar a conversa naquele momento. Limitou-se a acariciá-la na face e, quando passou pelo semáforo seguinte, inclinou-se e beijou-a.

            — Seja o que for que tenha acontecido, quero que saibas que estou ao teu lado e que te amo. Nunca mais ninguém voltará a te magoar, Allegra.

            Ela tinha os olhos cheios de lágrimas quando ele a beijou e disse-lhe ‘obrigada’ em voz baixa. Não trocaram mais uma palavra até chegarem a Malibu

            Em Bel Air, os Steinberg encontravam-se no quarto, e Blaire observava Simon, que tirava a gravata.

            — Soube que almoçou hoje com a Elizabeth  — disse Blaire com frieza, fingindo folhear uma revista. Depois levantou a cabeça e olhou de novo para o marido. Julguei que isso tinha acabado.

            — Nunca começou  — respondeu ele tranquilamente, desabotoando a camisa e entrando no banheiro. Mas sentia a mulher atrás de si. Blaire seguira-o, e os seus olhos trespassaram-no quando se virou e deu de cara com ela. Já te disse que é uma relação estritamente profissional.

            Simon pronunciou estas palavras com muita calma, mas Blaire ficou desconsolada. Sentia-se tão velha só de olhar para o marido! Ele almoçava com mulheres da idade da filha, e continuava a ser tão atraente! E ela sentia-se tão gasta e tão pouco feminina! Era uma sombra do passado, mesmo em termos profissionais. E agora era a ‘mãe da noiva’... Sentia-se muito velha!

            — Também andavas a trabalhar com ela em Palm Springs? —  perguntou Blaire sem perder a calma.

            — Não me faças isso! — exclamou Simon, virando-lhe as costas. Recusava-se a entrar de novo no jogo dela; aquelas cenas começavam a tornar-se demasiado freqüentes. Estávamos apenas conversando, mais nada. Somos amigos. Acaba com a conversa, Blaire, por mim e por você. Deve-me isso!

            — Eu não te devo nada! —  retorquiu ela com os olhos cheios de lágrimas. Quando ia a sair dado banheiro, virou-se para trás e fitou-o de novo. Andas a propor-lhe fazer um filme? Foi o que a Allegra disse.

            — Foi o que eu lhe disse. Nós estávamos apenas conversando, mais nada. Ela vai regressar a Inglaterra.

            — E você? — perguntou Blaire, desolada. Vais filmar lá o seu próximo filme?

            — Vamos rodar o próximo filme no Novo México  — respondeu Simon. Saiu lentamente da banheiro e abraçou a mulher. Amo-te, Blaire, não te esqueças disso... Por favor, não me pressiones mais... Sairemos ambos feridos disto.

            Mas Blaire queria precisamente feri-lo, tal como ele a ferira quando descobrira que o marido tinha um caso com Elizabeth Coleson há seis meses. Simon fora muito discreto; mais ninguém soubera, a não ser ela. Blaire descobrira por acaso, quando alguém os viu em Palm Springs e lhe contou, sem se aperceber do que estava fazendo. Blaire compreendera imediatamente. Sentira um calafrio na espinha. E ele negara, claro, mas quando os viu  conversando um com o outro numa festa, durante alguns minutos, não lhe restaram dúvidas: tinham o aspecto daquelas pessoas que trocavam segredos na cama, à noite, e aparentavam a cumplicidade que nascia no quarto. Quando insistiu de novo com ele, Simon não disse nada, e ela percebeu que as suas suspeitas tinham fundamento.

            Allegra não soube. Ninguém soube. Blaire nunca contara a ninguém. Guardou o segredo, enquanto a sua alma definhava lentamente, como voltara a acontecer nessa noite, quando a filha lhe dissera que os vira juntos.

            — Porque tens de ir com ela para um restaurante? Porque não a recebes no teu escritório?

            — Porque, se o fizer, você pensaria que eu andava dormindo com ela. Achei que seria preferível vê-la em público.

            — O que seria preferível era não a ver, quaisquer que fossem as circunstâncias  — retorquiu Blaire sem perder a calma, sentindo uma lassidão apoderar-se-lhe do corpo e da alma, quando se sentou na cama. Talvez isso já não tenha importância... — acrescentou em voz baixa.

            Levantou-se, encaminhando-se para o seu quarto de dormir, e Simon não foi atrás dela. A situação estava tão difícil! Há meses que não dormiam juntos. Mesmo sem falarem no assunto, deixaram de fazê-lo assim que ela soube que ele tinha uma aventura. Blaire começava a envelhecer e sentia que o marido não a amava nem a desejava.

            Simon estava lendo quando ela voltou para o quarto, de camisola. Olhou-a com afeto. Sabia como a situação fora dolorosa para a mulher e lamentara-a terrivelmente, mas eram coisas que aconteciam, e não era possível anulá-las. Pesaroso, compreendia que Blaire nunca permitiria que ele esquecesse o que se passara. Talvez o merecesse. Aceitava o destino e mantinha a esperança de encontrar uma maneira de fazê-la sentir que continuava a amá-la. Porém, ela nunca acreditaria; agora, todas as suas atenções estavam concentradas em Elizabeth Coleson, ainda mais do que no seu programa de televisão. Simon perguntou a si próprio se o casamento de Allegra iria alterar a situação e deixá-la mais animada. Esperava que sim.

            — Estou contente pela Allegra —  disse, apaziguador. O Jeff é um tipo correto. Creio que será um bom companheiro para ela.

            Blaire encolheu os ombros; Simon também fora bom para si, durante mais de vinte anos, e agora tudo mudara. Haviam sido tão felizes, tão unidos! Consideravam-se especiais, incluídos no grupo dos que tinham alcançado a felicidade pela mão do destino, e, afinal, este acabara por lhes pregar uma partida. Agora tudo era diferente, a sua vida nunca mais seria a mesma, e Simon sabia isso, ainda que tivesse posto termo à relação depois de Palm Springs. Mas era demasiado tarde.

            Blaire enfiou-se na cama e pegou num livro; era o novo livro de Jeff. Comprara-o na semana anterior, e agora ele ia ser seu genro, embora mal pensasse nisso; o encontro de Simon com Elizabeth Coleson obcecava-a. Que mais teriam eles andado a fazer? Seria o almoço em público um disfarce descarado e enganador? Virou-se e olhou para o marido: Simon tinha adormecido de óculos e com o livro nas mãos. Ficou a observá-lo, sentindo que o sofrimento ocupava agora o lugar do amor de outrora. Há meses que era assim. Fechou-lhe o livro e tirou-lhe os óculos, perguntando a si própria se ele também adormeceria tão facilmente quando estava junto de Elizabeth Coleson.

            Guardou o seu livro e apagou a luz. Estava habituando-se à dor e à solidão. Aprendera a viver com elas, mas lembrava-se muito bem do passado, antes de as coisas terem mudado entre eles. E, ali deitada, ao recordar esse passado, fez um esforço para pensar no casamento de Allegra. Talvez fossem mais felizes do que ela e Simon, talvez a mão do destino nunca os tocasse. Blaire desejava-o sinceramente e, em silêncio, rezou pela filha.

 

            Na semana seguinte ao anúncio do noivado, a vida de Allegra no escritório parecia ter sido varrida por um furacão. Praticamente todas as pessoas que representava tiveram um problema qualquer, um novo acordo para fazer ou uma proposta de licenciamento que precisava ser analisada. Era como se alguém tivesse puxado uma corda em algum lugar e tentasse afogá-la.

            E quando Jeff telefonou à mãe para anunciar o noivado, a situação complicou-se ainda mais. O único comentário de Srª.Hamilton foi que a decisão parecia demasiado apressada, visto que nunca o ouvira falar de Allegra, e esperava que ele não viesse a arrepender-se. Depois de falar com Allegra durante alguns minutos, disse ao filho que gostaria que fossem a Nova Iorque, pelo menos por uns dias, para conhecê-la.

            — Devíamos lá ir antes de as filmagens começarem, em Maio  — sugeriu ele, depois de desligarem, mas Allegra não vislumbrava quando, pois tinha muito que fazer no escritório; no entanto, prometeu que arranjaria uma oportunidade nas semanas seguintes, desse por onde desse.

            A única coisa que não fez nessa semana, mais uma vez com o pretexto de que tinha muito trabalho, foi telefonar ao pai. Jeff evitava pressioná-la, mas ela já adiantara que os pais se haviam divorciado e que existia uma grande amargura entre eles. Vira-o poucas vezes nos últimos vinte anos, e nenhum dos encontros fora agradável. O pai parecia responsabilizá-la pelos atos da mãe.

            — Diz-me sempre que sou parecida com ela, que somos as duas insuportáveis e que não aprova o nosso ‘estilo de vida hollywoodesco’. Comporta-se como se eu fosse uma bailarina de rock e não uma advogada.

            — Talvez não saiba estabelecer a diferença...

            Jeff tentou introduzir uma nota de humor, mas era óbvio que Allegra não estava receptiva. A mãe dele também não simpatizava muito com Hollywood nem com aquilo que esse mundo, em sua opinião, representava, mas a situação com o pai de Allegra parecia ser muito mais grave, e Jeff tinha a impressão de que havia algo mais de que ela não falava. Contudo, teve o bom senso de esperar que desabafasse quando estivesse disposta a isso. Não podia deixar de perguntar a si próprio se fora por este motivo que Allegra sempre se envolvera com homens difíceis. Se o pai a rejeitara, talvez procurasse homens que fizessem o mesmo, e, se assim fosse, sofreria uma grande decepção com ele. A verdade é que não tencionava abandoná-la, pelo contrário, adorava os dias tranqüilos que passavam juntos, as tardes na cama, as muito raras manhãs de lazer.

            No fim-de-semana seguinte ao anúncio do noivado aos pais de Allegra, conseguiram finalmente passar uma noite tranqüila em casa, e no sábado até foram ao cinema. Deitaram-se assim que chegaram; nunca conseguiam resistir a fazer amor, e estavam quase a adormecer nos braços um do outro quando o telefone tocou.

            Jeff sentiu-se tentado a ignorá-lo, mas Allegra não conseguiu. Receava sempre que tivesse surgido algum problema grave a um dos seus clientes, e isso acontecia, às vezes, mas quase sempre era engano.

            —Alô? — disse, sonolenta, e por instantes reinou o silêncio do outro lado da linha. Ia a desligar quando ouviu um soluço. Alô? — repetiu, e ficou à espera. Quem fala? Fez-se de novo silêncio, a que se seguiu mais um soluço, e depois uma voz estrangulada do outro lado.

            — É a Carmen.

            — Está bem?

            Teria havido um acidente? Teria acontecido alguma coisa muito grave? Estaria ela ferida? Tê-la-ia Alan deixado? O que poderia ter sucedido?

            — Carmen, fala comigo  — disse Allegra, tentando não denunciar a irritação que sentia, enquanto Jeff suspirava a seu lado: sempre que Carmen e Alan discutiam, Carmen telefonava, histérica, e Jeff não gostava. Era muito amigo deles, mas considerava que não competia a Allegra resolver os seus problemas conjugais menores. Afinal, toda as pessoas os tinha, e a maioria não telefonavam aos advogados para estes os resolverem.

            — Ele vai-se embora... — conseguiu balbuciar Carmen Em seguida desatou a soluçar, e Allegra ouviu alguém a gritar

            — O que se passa? — perguntou, tentando transmitir-lhe calma através do telefone, mas sem êxito. Ele vai deixar-te

            — Sim...

            Carmen engasgou-se. Depois alguém lhe tirou o telefone da mão e Alan falou, irritado e exausto.

            — Eu não a vou deixar, pelo amor de Deus! Vou para a Suíça rodar um filme, e não vou morrer, nem ter uma aventura amorosa  — repetiu pela milésima vez nessa noite Vou trabalhar, mais nada! E, quando acabar, volto para casa! A minha vida é esta!

            Dizendo isto, devolveu o telefone à mulher, que, com um ataque de histerismo, chorava ainda mais.

            — Mas eu estou grávida...

            Allegra suspirou; agora entendia. Carmen não queria que ele partisse para ir rodar o filme, mas Alan tinha um contrato a cumprir, e dos bons. Não havia alternativa.

            — Ora, ora, Carmen, seja razoável, ele tem de ir. Tu podes ir lá visitá-lo antes de começares a trabalhar, em junho. Vai agora, pelo amor de Deus. Pode ir passar um mês antes de começarem as filmagens.

            De repente, os soluços pararam e fez-se silêncio.

            — Podia, não podia? Oh, meu Deus, obrigada, Allegra, gosto muito de ti!

            Talvez gostasse, mas Allegra não tinha a certeza de que Alan estivesse tão entusiasmado; quando queria, Carmen sabia ser cansativa e absorvente.

            — Amanhã telefono  —  disse Carmen com pressa, e desligou-lhe literalmente o telefone na cara.

            Allegra abanou a cabeça, apagou a luz e voltou para a cama, mas Jeff resmungou qualquer coisa para a almofada quando ela se aconchegou a ele.

            — Tem de dizer a essa gente que não te telefone de cinco em cinco minutos. È ridículo! Não sei como suportas uma coisa destas!

            Allegra percebia que a situação o incomodava, mas Jeff sabia que os seus clientes faziam aquilo há anos: Carmen, sem dúvida, e a mulher de Bram Morrison, e até Bram, quando precisava, e Malachi, sempre que estava pedrado ou embriagado e se convencia de que tinha um súbito distúrbio mental, e sobretudo quando se metia em confusão. E mesmo Alan. E os outros, também. Era assim em Los Angeles, e, se não telefonassem aos advogados, ligavam aos agentes.

            — Aqui é assim, Jeff. É difícil demovê-los.

            — Isso é neurótico! Afinal, o que aconteceu? Discutiram outra vez? Vai ser um casamento muito longo, se recebermos um telefonema à meia-noite sempre que discutirem acerca de quem vai pôr o lixo lá fora!

            Mas a verdade é que o lixo deles tinha que ser desfibrado e depois bem fechado num cofre com segredo, para ninguém o roubar.

            — Se você  não disser nada à Carmen, digo eu.

            — Ela não quer que o Alan vá para a Suíça na próxima semana, insiste para que fique em casa com ela e com o bebê.

            — Ainda não há bebê nenhum! — exclamou Jeff mais aborrecido do que nunca. Que estupidez! Está grávida há dez minutos e espera que ele fique em casa a fazer-lhe companhia durante nove meses?

            — Faltam só sete meses e três semanas. Ela está grávida de cinco semanas.

            Jeff gemeu outra vez e Allegra riu. Era, de fato, uma estupidez, mas era a realidade para Carmen.

            — Talvez fosse melhor dedicar-se ao direito da concorrência... — sugeriu.

            Por fim, resolveram não desperdiçar a oportunidade, já que estavam acordados. Jeff virou-se para Allegra e começou a fazer sérios avanços. Pelo menos, recuperou o bom humor. E dessa vez, quando adormeceram, não houve mais interrupções.

            Na semana seguinte, o Oscar absorveu a atenção de todos os clientes de Allegra, e Carmen andava atarefada fazendo planos para a viagem: ela e Alan partiam daí a dois dias.

            Tinham sido nomeados, e, apesar de nenhum deles estar esperando ganhar, a verdade é que a nomeação era importante para a carreira de ambos, mas Carmen estava completamente desinteressada da sua: nesse momento, só se preocupava com o bebê, e com Alan, é claro.

            Allegra e Jeff viram os Steinberg na cerimônia. O filme de Simon conquistou cinco Oscar, incluindo o de melhor filme, o que deliciou Allegra. A mãe também ficou radiante, mas Allegra continuava a notar nela certa tensão. Não sabia se era por causa do programa, se era apenas um estado de espírito ou imaginação sua, mas era mais uma sensação do que uma evidência. Quando falava nisso a Jeff, este jurava que não dava por nada.

            — Ela parece-me aborrecida, perturbada, triste ou outra coisa qualquer afirmava Allegra com convicção.

            — Talvez não se sinta bem ou esteja doente  — sugeriu ele, com sentido prático, mas Allegra ficou ainda mais preocupada.

            — Espero que não.

            Como era de prever, Alan e Carmen não ganharam qualquer Oscar, mas, aparentemente, nenhum deu importância ao assunto.

            Depois da cerimônia, Blaire não deixou de perguntar a Allegra se tinha telefonado ao pai para lhe comunicar o seu casamento.

            — Não, mãe, ainda não —  respondeu ela, com ar carrancudo.

            Escolhera um vestido prateado que lhe moldava o corpo e estava espetacular. A última coisa que lhe apetecia era ouvir falar do pai ou pensar sequer em telefonar-lhe.

            — Preciso saber, por causa dos convites insistiu Blaire.

            Allegra rolou os olhos nas órbitas.

            — Está bem, está bem, eu telefono-lhe. Depois pensou melhor e acrescentou:

            — Porque não liga para ele mãe e não l pergunta se ele quer que o seu nome figure nos convites? Por mim, não é essa a minha vontade, o Simon é que é o meu pai. Não preciso dele para nada! Porque não resolvemos não lhe telefonar? Devem ser vocês os dois a convidar. Eu já nem sequer uso o nome dele, portanto de que serve?

            As pessoas conheciam-na apenas por Allegra Steinberg, apesar de Simon nunca ter conseguido adotá-la oficialmente. Blaire não quisera discutir o assunto com o verdadeiro pai de Allegra, Charles Stanton. O nome Allegra Stanton nunca seduzira a filha.

            — E fique sabendo que não é ele que  vai me levar ao altar, é o pai!

            Antes que Blaire pudesse comentar as palavras da filha, a multidão separou-as. A imprensa e as pessoas que queriam felicitar Simon aglomeraram-se à sua volta.

            Mais tarde, quando os convidados começaram a dispersar, Allegra viu que Lady Elizabeth Coleson se aproximara do pai para cumprimentá-lo. Conversavam com à-vontade no meio de um grupo de pessoas e Blaire retirara-se discretamente para ir falar a uns amigos, mas Allegra reparou que ela olhava para Simon por cima do ombro e estava tensa. Começava a pensar se Jeff teria razão e a mãe não se sentiria bem.

            Em seguida dispersaram-se por diferentes festas. Allegra e Jeff foram a uma de Sherry Lansing, no Bistrô, logo a seguir à cerimônia, e depois a outra no Spago, mas nenhuma foi tão boa como as que Irving Lazar costumava dar nos bons velhos tempos. No entanto, divertiram-se bastante.

            Daí a dois dias, Carmen e Alan partiram para a Suíça, com um monte de malas, sacos e caixas. Parecia um circo ambulante a sair da cidade, mas, no meio daquilo tudo, Carmen estava em êxtase, porque ia com ele.

            — Não te esqueça de voltar a tempo  — lembrou-lhe Allegra, quando foi levá-los ao aeroporto.

            Alan parecia irritado com a quantidade de coisas que Carmen comprara, e a imprensa aparecera, depois de ter sido prevenida, como era habitual, o que só aumentava a tensão que rodeava aquela partida já de si caótica.

            Por fim, os representantes VIP da companhia aérea conduziram-nos até ao avião. Allegra conseguiu que Alan assinasse os últimos documentos que trazia na pasta e regressou à cidade em paz, na limusine, e até arranjou tempo para telefonar a Jeff. Que sossego!

            — Como foi? — perguntou Jeff quando atendeu.

            — Inacreditável, como de costume.

            — Levavam os trajes de poliéster e as perucas? Deviam tê-lo feito.

            — Tem razão  — concordou, rindo. O Alan levava uma espécie de urso que acompanha Carmen para todo o lado, e ela uma parka cor de areia e um traje colado ao corpo que fazia saltar os olhos das órbitas a qualquer pessoa. Continuo pensando que devíamos casar em Las Vegas, como eles fizeram.

            — Também eu. A propósito, hoje falei com a minha mãe  — disse Jeff, com cautela. Ela quer que vamos visitá-la. Gostaria de lá ir antes de começar o filme.

            A filmagem das primeiras cenas teria início daí a duas semanas e Allegra não sabia o que havia de fazer. Andava tratando de todos os pormenores de última hora para a tournée de Bram Morrison e a verificação dos acordos e dos contratos absorvia-a completamente. Além disso, conhecera Tony Jacobson, um amigo de Jeff dos tempos de Harvard; era co-produtor do filme, e estava ciente de que os dois tinham muito trabalho a fazer antes de iniciarem as filmagens. Não sabia como poderiam ir ao Leste, ainda que fosse para conhecer a mãe de Jeff.

            — Não vejo como, Jeff... Mas vou tentar, prometo.

            — Eu disse-lhe que iríamos lá no último fim-de-semana de Abril. Susteve o fôlego, rezando para que ela concordasse. A mãe já ficara aborrecida por ter pedido Allegra em casamento antes de ela a conhecer. Pode?

            — Hei-de poder, hei-de poder..

            Dois dias depois começava a tournée de Bram. Felizmente era local, mas, mesmo assim, a viagem iria obrigá-la a um grande esforço.

            — Aproveitamos o fim-de-semana. Vamos num dia e voltamos no outro, se preferir. Jeff queria fazer tudo o que fosse ao encontro da conveniência dela, mas essa ida era muito importante para ele, e Allegra não lhe podia negar tal coisa. Ele sempre a ajudara e se mostrara compreensivo. Allegra devia-lhe isso. Se quiser, no regresso podemos passar por Boston para ir ver o seu pai  — sugeriu, tentando ser eqüitativo.

            Fez-se silêncio, e depois Allegra disse:

            — Charles Stanton não é meu pai.

            Jeff estava ansioso por saber o porquê de tanto ressentimento e Allegra ainda não lhe contara, mas, nessa noite, o comentário dela deu-lhe oportunidade de fazer a pergunta, quando estavam a preparar o jantar. Haviam-se tornado uns verdadeiros especialistas. Ele cozinhava a carne e ela tratava dos acompanhamentos; era boa em legumes, saladas e toda a espécie de guloseimas saborosas e decorativas. Jeff adorava fazer bifes, costeletas e pratos de frango. Quando lhe voltou a pôr a questão, seguiu-se o silêncio habitual.

            — Talvez eu devesse deixar de te perguntar  — admitiu. Há duas semanas que Allegra evitava tocar naquele assunto, desde que ele ouvira falar no pai dela. Mas gostava de saber por que motivo é que isso é tão traumático para você. Talvez precisemos conversar. O que pensa a tua psicóloga? Já lhe perguntaste? —  insistiu Jeff com delicadeza.

            Allegra fez um sinal afirmativo.

            — Disse-me para eu te contar.

            Fez-se de novo silêncio, enquanto o servia de arroz e de brócolos; Jeff acrescentou o peixe cozido. Era um jantar muito agradável. Allegra fizera também pão de alho e uma salada.

            — Nem mais! — exclamou ele com um gesto exuberante, quando se sentaram.

            Allegra esboçou um sorriso triste. Estava pensando em Charles Stanton. Era como se Jeff lhe tivesse lido os pensamentos.

            — Porque o odeia tanto, Alie? O que te fez ele, ou à tua mãe?

            Jeff calculava que tivesse sido uma coisa terrível, mas Allegra encolheu os ombros e começou a comer.

            — Ele não fez verdadeiramente nada... Depois... É mais o que não fez... Eu tive um irmão chamado Patrick... Paddy. Sorriu, olhando para Jeff. Era o meu herói! Tinha mais cinco anos do que eu e fazia tudo por mim... Eu era a sua princesinha. A maior parte dos irmãos batem nas irmãs... O Paddy nunca o fez. Arranjava-me as bonecas quando se partiam, calçava-me as luvas, atava-me os atacadores, até...

            Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas; era sempre assim quando falava de Paddy. Ainda tinha uma fotografia dele. Guardava-a numa gaveta fechada à chave, no seu gabinete. Não conseguia pô-la em cima da secretária, passados quase vinte anos, a situação ainda era muito dolorosa.

            — Ele morreu quando eu tinha cinco anos  — continuou, com uma voz estrangulada. Sofria de uma variante rara de leucemia, que nesse tempo não tinha cura, e ainda hoje os médicos nem sempre são bem sucedidos. O Paddy sabia que ia morrer e costumava dizer-me que ia para o céu e que ficaria à minha espera

            Os olhos de Allegra voltaram a encher-se de lágrimas. Jeff parou de comer e estendeu a mão para acariciá-la.

            — Lamento disse, com um nó na garganta. Allegra abanou a cabeça, mas continuou a falar. Talvez a Drª. Green tivesse razão: era melhor contar-lhe e esclarecer tudo.

            — Eu costumava pedir-lhe que não me deixasse, mas ele dizia que tinha de ser. Por fim, estava tão doente! Ainda me lembro... Em geral, não nos recordamos do que nos aconteceu aos cinco anos, mas eu lembro-me de tudo o que diz respeito ao Paddy, principalmente do dia em que ele morreu.

            A sua voz fraquejou, mas continuou a falar. Jeff estendeu-lhe um guardanapo de papel. Allegra sorriu-lhe através das lágrimas e desejou que Jeff tivesse conhecido o irmão, que Paddy ainda estivesse vivo. Esta idéia assaltava-a tantas vezes!

            — Creio que o meu pai perdeu o juízo quando ele morreu. Tentara tratá-lo no fim, ao que parece. Eu não sabia, a minha mãe contou-me mais tarde. Mas ele nada podia fazer. Ninguém podia. O pior é que aquela era a especialidade do meu pai, e ficou desesperado por não o ter conseguido salvar. Nunca me deu muita importância, talvez por eu ser tão pequena, ou por ser menina, ou... Não sei. Não me lembro bem dele, só do Paddy. O meu pai nunca se encontrava presente, estava sempre trabalhando. Depois o meu irmão morreu, ele ficou destroçado e atirou a culpa para cima da minha mãe. Estava sempre a gritar com ela, acusava-a de tudo, e, como todas as crianças, eu pensava que a culpa era minha, julguei que tinha feito qualquer coisa de mal que provocara a morte do Paddy e despertara o ódio do meu pai. Só me lembro dele a gritar! Aquilo durou um ano. Creio que ele bebia muito. Os meus pais estavam sempre discutindo e o casamento desfez-se. Eu costumava esconder-me no roupeiro a chorar, à noite, para não os ouvir discutir.

            — Que horror! — exclamou Jeff, compreensivo.

            — E foi. Pouco depois, começou a bater-lhe. Eu tinha medo que ele me batesse também, e sempre me senti culpada por não conseguir impedi-lo, mas nada podia fazer. E continuava a pensar que, se o Paddy não tivesse morrido, nada daquilo teria acontecido, embora hoje já tenha as minhas dúvidas... Depois começou a acusar a minha mãe de tudo, e até dizia que o Paddy morrera por culpa dela, até que ela não agüentou mais e disse que o ia deixar. Então o meu pai avisou-a de que, se o fizesse, nos voltava as costas e nos deixava morrer de fome. A minha mãe não tinha família, e aposto que também não tinha dinheiro. Muito mais tarde, contou-me que esboçou um plano e começou a enviar contos para revistas. Poupou alguns milhares de dólares e uma noite, depois de ele lhe dar uma sova, pegou a mim e saiu de casa. Lembro-me que ficamos num hotel onde fazia muito frio, de ter muita fome e de ela me comprar donuts. Talvez tivesse medo de gastar muito dinheiro...

‘Creio que passamos algum tempo ali escondidas, e ele nunca nos descobriu, mas a minha mãe foi falar-lhe ao consultório e levou-me. Lá, todos se comportavam como se ele fosse um deus, ou coisa parecida, e era considerado uma sumidade na Faculdade de Medicina de Harvard. Ninguém sabia que costumava bater na minha mãe. Tinham pena dele por causa do Paddy.

‘A minha mãe disse-lhe que queria ir embora, e ele avisou-a de que, se o fizesse, nunca mais o veríamos, e eu podia morrer que não se importava; se nos fôssemos embora, eu deixava de ser filha dele... Os olhos de Allegra encheram-se de lágrimas mais uma vez; Jeff continuou a apertar-lhe a mão, mas manteve-se silencioso. Foi o que ele disse, que eu já não era sua filha. A minha mãe respondeu que nos íamos embora, de qualquer maneira; quando saímos do consultório, afirmou que tínhamos morrido para ele. E eu fiquei à espera de morrer. Não se despediu, nem me deu um beijo, nada; reagiu como se nos odiasse. Acho que odiava mesmo a minha mãe, nessa época, e, na sua mente, arrastava-me. A minha mãe disse que ele havia de mudar de idéia com o tempo e que eu seria sempre sua filha, que ficara destroçado com a morte do Paddy e só fazia disparates, e que íamos para a Califórnia. Viemos de ônibus, e de vez em quando he telefonava, mas ele nunca falava com ela e chegava a desligar-lhe o telefone.

‘Quando chegamos a Los Angeles, a minha mãe começou logo a escrever para a televisão. ‘Creio que teve sorte, porque gostaram do trabalho dela. Um dia, contou a sua história a um homem da estação na minha presença, e ele até chorou. Creio que lhe arranjou muito trabalho. Seis meses depois da nossa chegada, conheceu o Simon. Eu tinha seis anos e meio; havíamos saído de Boston pouco depois de ter feito seis anos. Passei o dia do meu aniversário naquele hotel gelado, e não tive bolo nem prendas. O meu pai nunca me deu os parabéns... Mas, depois de tudo o que se passara no ano anterior, eu achava que não merecia nada. Sentia-me culpada, embora não soubesse por quê; limitava-me a considerar que a culpa era minha.

‘Durante anos escrevi ao meu pai, pedindo-lhe que nos perdoasse, mas ele nunca me respondeu. Por fim, enviou-me uma carta a dizer que aquilo que a minha mãe fizera era lamentável e imperdoável e que nunca o devia ter deixado. Fora para Hollywood como qualquer prostituta e abandonara-o, e eu levava uma vida de pecado e de deboche na Califórnia, portanto não queria saber de mim. Rasguei a carta, para nunca mais a ler, e chorei durante semanas a fio. Nessa altura o Simon foi como um pai para mim e, pouco depois, desisti de Charles Stanton. Ele veio ver-me, ou esteve na Califórnia quando eu tinha quinze anos, e telefonou por qualquer motivo. Perguntei-lhe se nos podíamos encontrar, e ele concordou. Tinha curiosidade em relação a ele e queria ver como estava, mas aconteceu exatamente a mesma coisa. Lanchamos em Bel Air. A minha mãe foi-me levar, e ele limitou-se a dizer uma série de coisas terríveis acerca dela. Não perguntou como eu estava, nem disse que lamentava não me ter visto nem escrito durante dez anos; afirmou apenas que eu era tal e qual a minha mãe, o que era uma pena, disse que eu e ela tínhamos sido muito injustas para com ele e que um dia havíamos de pagar por isso. Foi uma tarde horrível! Voltei a correr para casa e nem esperei que a minha mãe me fosse buscar. Só queria afastar-me daquele monstro! E nunca mais ouvi falar dele, até que caí na asneira de convidá-lo para a cerimônia final do colégio, sete anos mais tarde. Ele foi a Yale e voltou a acusar-me de tudo, mas nessa altura eu já estava farta de aturá-lo, por isso respondi-lhe que nunca mais o queria voltar a ver depois de ele ter insultado a minha mãe.

‘Uma vez, pelo Natal, enviou-me um cartão de boas-festas, sabe Deus por que, e eu escrevi-lhe a dizer que andava na Faculdade de Direito. Depois disso nunca mais tive notícias dele, ignorou-me e rejeitou-me por completo. A minha mãe podia tê-lo abandonado, mas eu continuava a ser sua filha, não me devia ter riscado da sua vida, mas fê-lo. E durante anos eu mantive aquela obsessão de querer vê-lo, ter notícias dele, correr atrás dele, mas agora isso acabou, já não me interessa. Ponto final. Foi-se embora e não é meu pai! E agora a minha mãe anda sugerindo que eu inclua o nome dele nos convites para o nosso casamento... Não posso acreditar! Mas eu não quero o meu nome ao lado do dele, garanto-te! Ele não é meu pai! Nem quer ser... A única coisa decente que podia ter feito por mim era libertar-me completamente e deixar que o Simon me adotasse, mas quando lhe pedi isso, naquele dia em Bel Air, foi mal-educado, humilhou-me e disse que nunca autorizaria tal coisa. O tipo é um filho da mãe, um egoísta, e não me interessa que seja uma pessoa respeitável, nem um bom médico, porque é um miserável como ser humano. E já não é meu pai!

            Ele abandonara-a emocionalmente e Allegra pagara por isso durante cerca de vinte e cinco anos. Ainda não estava preparada para lhe perdoar e duvidava que algum dia tal viesse a acontecer.

            — Compreendo o que sente, Allie. Por que convidá-lo para o casamento? Não é obrigada a isso.

            Depois de ouvir aquilo tudo, Jeff tinha pena dela, apesar de saber que tivera uma vida boa e uma infância muito mais feliz em casa de Simon Steinberg, porém, a perda precoce do irmão e a rejeição do pai natural tinham-na magoado profundamente, e, durante vários anos, procurara repudiar outros homens, para que a história continuasse. Por fim, com a ajuda da Drª. Green, quebrara o enguiço.

            — A minha mãe acha que eu o devo incluir. Acredita nisto? Eu penso que ela ficou doida. Está tentando atirar para cima de mim a sua velha culpa e a relação desastrosa que teve com ele, e espera que eu consinta, mas está enganada. Não me interessa que aquele patife morra à minha porta! Não o quero no nosso casamento!

            — Então não o convide.

            — Vai dizer isso à minha mãe! Ela está me deixando doida! Continua perguntando se eu lhe telefonei, e eu respondi-lhe que não o farei

            — O que diz o Simon?

            — Não lhe pus a questão, mas ele é um obcecado com a delicadeza; foi por isso que convidei o meu pai para a cerimônia de fim de curso. O Simon andava sempre a dizer que era desagradável eu não o convidar, que devia orgulhar-se muito de mim, mas ele não se ralou: veio e foi malcriado para toda a gente, até para a Sam, que tinha dez anos nessa altura. O Scott detestou-o assim que o viu. Aliás, não percebeu quem ele era. Eu não deixei que a minha mãe e o Simon lhe contassem nada, por isso disseram-lhe que era um velho amigo. Agora sabem ambos, mas eu nunca admiti perante os meus irmãos que o Simon não era meu pai. Receei sempre que isso me transformasse numa cidadã de segunda classe e que eles não me estimassem tanto, mas a verdade é que o Simon nunca me tratou de modo diferente. Quanto muito, tratou-me melhor. Allegra sorriu e depois suspirou, remexendo no peixe. Tenho sido muito feliz, exceto nos primeiros anos de vida. O que acha que devo fazer? — perguntou, mais calma. Era óbvio que os pais a tinham traumatizado e que levara anos a recuperar.

            — O que quiser —  repetiu ele. Este é o nosso casamento Faça o que quiser e não o que a tua mãe acha que deve fazer.

            — Creio que às vezes ela sente remorsos de tê-lo deixado e quer atirar-lhe um osso, para compensá-lo, mas eu não lhe devo isso, Jeff. Ele nunca, nunca foi decente comigo!

            — Você não lhe deve nada. Se fosse eu, diria à tua mãe Que o excluísse dos convites! — declarou Jeff com firmeza.

            — Concordo contigo —  respondeu, aliviada; pelo menos ele compreendia-a. E não me interessa se é correto ou não pô-lo de lado; ele foi correto para mim nos últimos vinte anos?

            — Ele nunca voltou a casar? —  perguntou Jeff, curioso. A verdade é que se tratava de uma história trágica, e a morte do irmão de Allegra devia ter destroçado todos, ao ponto de nunca mais recuperarem do desgosto.

            — Não  — confirmou Allegra. Quem é que o queria?

            — Talvez já não esteja tão perturbado como naquela altura, sabe? Tudo isso deve ter sido muito traumático.

            — Os primeiros anos da minha infância foram péssimos. Allegra reclinou-se na cadeira e suspirou, aliviada por ter desabafado. Agora conheces todos os meus segredos desagradáveis. Sou Allegra Charlotte Stanton, mas, se me tratares assim, te mato. O nome Steinberg agrada-me mais — rematou, abruptamente.

            — Também acho  — concordou Jeff, pensando na história dela. Contornou a mesa e deu-lhe um beijo.

            Nessa noite, nenhum deles acabou o jantar. Foram dar um passeio pela praia para falarem do pai dela. Allegra sentia-se aliviada, como se lhe tivessem tirado uma tonelada de cima, e agradava-lhe que Jeff soubesse como fora a sua infância. E, apesar da raiva que o pai continuava a despertar-lhe, o fato de ter falado do seu relacionamento naquele momento fazia-a sentir-se muito distante dele. Tinha Jeff e a sua própria vida. Pelo menos, estava se recuperando.

            Ficou sentada na varanda durante muito tempo, encostada em Jeff, gozando a beleza da noite. Beberam um pouco de vinho e sentiram-se mais descontraídos. Já passava da meia-noite quando o telefone tocou.

            — Não atenda —  suplicou Jeff, mas ela não conseguiu resistir. Deve ser alguém que está com uma crise de hemorróidas ou que foi parar à cadeia e está à espera que você  resolva a situação.

            — Não posso deixar de atender É o meu trabalho e talvez alguém precise de mim.

            No entanto não era nenhum cliente, mas Sam, a perguntar-lhe se no dia seguinte poderiam encontrar-se.

            Allegra ficou um pouco admirada com o telefonema. De vez em quando, Sam recorria a ela, em geral quando precisava que convencesse os pais de alguma coisa.

            — Discutiu com a mãe? Não pôde deixar de perguntar, com um sorriso.

            — Não, ela anda demasiado atarefada gritando com todos por causa do jardim e da cozinha. Até admira que não tenha um ataque cardíaco  — replicou Sam, sem sentido de humor. Ultimamente, a mãe andava insuportável.

            Já para não falar do casamento acrescentou Allegra

            — Sim, eu sei  — disse Sam, num tom ainda mais grave. Onde me posso te encontrar?

            — De que se trata? Allegra queria saber com antecedência. De algum contrato para um desfile?

            — Sim... Mais ou menos respondeu Sam, enigmática.

            — Vou te buscar ao meio-dia. O Jeff vai almoçar com Tony Jacobson, o co-produtor dele. Podíamos ir a um lugar divertido, como The Ivy ou o Nate N Al’s.

            — Vamos a qualquer lado onde possamos conversar  — retorquiu Sam tranquilamente.

            Allegra sorriu.

            — Está bem. O assunto parece sério. Deve ser o amor

            — É admitiu Sam, de mau humor.

            — Bem, já estou mais descansada. Farei o que puder.

            — Obrigada, Al  — disse a irmã.

            Allegra reiterou a promessa de i-la buscar ao meio-dia de domingo. Sentia-se comovida por Sam lhe ter telefonado.

            — Ninguém liga para nós em horas normais? — lamentou-se Jeff, quando Allegra lhe falou do telefonema de Sam.

            — Ela pareceu-me preocupada. Deve ter um namorado novo.

            — Pelo menos é da família —  admitiu Jeff. Em sua opinião, isto fazia muito mais sentido do que Malachi O’Donovan telefonar a Allegra de uma taberna qualquer.

            — Não se importa que eu almoce com ela amanhã? — perguntou Allegra quando foram para a cama, pouco depois.

            Jeff gostaria que ela o acompanhasse no almoço com Tony e Allegra simpatizava com ele: era inteligente, muito à maneira da Costa Leste. Nascera em Nova Iorque e o pai era administrador de um dos maiores bancos de investimentos de Wall Street. Tony era muito diferente de Jeff, mas Allegra gostava verdadeiramente dele.

            — De modo nenhum. Vou ter contigo mais tarde. Talvez possamos ir todos jogar tênis. Eu compreendo, e o Tony também. Ele vai adorar a Sam acrescentou.

            — O meu pai vai gostar de saber  — replicou Allegra, fulminando-o com o olhar.

            Estava tudo correndo bem, e Jeff tinha razão: não precisava convidar Charles Stanton para o casamento e só tinha que transmitir a sua decisão à mãe. Poderia fazê-lo no dia seguinte, depois do almoço com Samantha. Sorriu, pensando no telefonema de Sam, e perguntou a si própria qual seria o conselho de que a irmã precisava por causa do namorado. Allegra não era uma especialista na matéria, mas sentiu-se lisonjeada por Sam ter recorrido a ela. A sua relação era muito importante para ambas, embora às vezes Sam fosse impertinente, mas, mesmo assim, Allegra adorava-a.

 

            Tal como prometera, no domingo Allegra foi buscar a irmã à hora combinada. Lembrou-se que talvez fosse divertido levá-la a almoçar ao Ivy. Depois poderiam deambular pelas lojas de velharias em North Robertson, estar à vontade uma com a outra e divertir-se. Ultimamente Sam andava bastante irreverente e Allegra estava ansiosa por passar algum tempo com ela.

            Mas nesse dia Sam não se mostrou impertinente; por sinal, mal abriu a boca quando a irmã saiu da rampa. Allegra não pôde deixar de lhe perguntar o que a preocupava, porém, durante o almoço Sam quase nem falou.

            — Então o que há? — insistiu Allegra, quando o empregado trouxe os cafés. A refeição estava deliciosa, como era habitual, mas Sam mal tocara na comida. Vá lá, Sam... Desabafa... Seja o que for, não será tão mau depois de o partilhar comigo.

            Mas aparentemente era, porque Sam pôs a cabeça entre as mãos e começou a chorar baixinho.

            — Oh!, Sam... Allegra passou-lhe a mão pelos ombros. Anda, querida, conta-me o que aconteceu disse em voz baixa, mas, quando a irmã levantou a cabeça, percebeu que ela estava profundamente desesperada.

            — Estou grávida. Sam quase sufocou ao pronunciar estas palavras. Vou ter um bebê...

            Sam ficou sentada chorando em silêncio; Allegra olhou para ela e abraçou-a.

            — Oh!, querida... Oh!, meu Deus... Como é que isso aconteceu? Quem foi? —  perguntou, como se aquilo fosse algo que alguém tivesse feito à irmã e não o fruto de uma situação partilhada. No entanto nunca a ouvira referir-se a nenhum homem e muito menos a um namorado certo.

            — Fui eu  — respondeu Sam, chamando a si todas a culpa. Estava desolada, e puxou os cabelos platinados e brilhantes para trás das costas.

            — Não foi você sozinha, a menos que as coisas tenham mudado muito nestes últimos tempos disse Allegra. Quem é o pai? Quem é o rapaz?

            Que palavras estranhas para uma criança de dezessete anos... ‘Pai’... ‘Mãe’... Mas a verdade é que Sam trazia dentro de si um bebê, um ser vivo, que respirava.

            — Isso não interessa  — respondeu Sam com ar carrancudo.

            — Isso é que interessa! —  insistiu Allegra. Anda com alguém do colégio?

            Mesmo sem o conhecer, tinha vontade de matá-lo, contudo fingiu-se calma, para não perturbar a irmã. Só de ouvi-la, o seu coração galopava e a sua mente avançava ao mesmo ritmo, mas Sam limitou-se a abanar a cabeça.

            — Vá lá, Sam. Quem é?

            — Se eu te disser, não quero que faça nada.

            — Foi violada? — perguntou Allegra em voz baixa, mas Sam voltou a abanar a cabeça.

            — Não, não fui. A culpa é minha. Fi-lo de livre vontade. Fiquei tão impressionada com ele... Pensei... Não sei... — murmurou, com os olhos marejados de lágrimas. Acho que me senti adulada. Ele era tão experiente, tão adulto... Tinha trinta anos.

            Um homem de trinta anos com uma moça de dezessete... Tinha obrigação de saber o que fazia, pelo menos, e era óbvio que não tivera a decência de usar proteção.

            — Era virgem? —  perguntou Allegra, muito preocupada com ela.

            Sam abanou a cabeça, mas não deu mais pormenores. Allegra sabia que a irmã não era leviana, mas tinha quase dezoito anos, e existira alguém antes que fora importante para ela. Não queria pressioná-la a não ser com o presente.

            — Como é que o conheceu?

            — Ele era o fotógrafo de um desfile em que eu participei  — explicou, desolada. É francês. Atraiu-me por ser de Paris. Tratou-me como uma mulher experiente e era muito elegante.

            — Já contou a ele?

            Allegra estava ansiosa por pôr as mãos em cima daquele homem: teria muita sorte se não fosse deportado! Podiam mandá-lo prender por violação. Qual seria a reação de Simon?

            Mas Sam parecia destroçada quando abanou a cabeça outra vez.

            — Eu não quero fazer isso. Telefonei para a agência e disseram-me que ele foi para o Japão, ou para outro lado qualquer; estava apenas de passagem, e não sabem verdadeiramente quem é. Ele quis as fotografias para a sua própria coleção antes de partir para Tóquio. Ninguém sabe como contatá-lo, mas isso não interessa: não quero voltar a vê-lo. Ele foi bestial, mas no fim tornou-se um bocado parvo: ofereceu-me drogas, e, quando eu disse que não queria, chamou-me bebê. O seu nome era Jean-Luc, mas ninguém sabe qual é o sobrenome dele.

            — Céus! — exclamou Allegra, furiosa. É assim que eles gerem a agência? Também deviam ir para a cadeia, se é desse modo que lidam com menores!

            — Eu tenho quase dezoito anos, Al. Pelo menos, devia ser capaz de ter uma relação ocasional sem me deixar apanhar.

            — Aparentemente, não é —  replicou Allegra, com firmeza, mas depois pensou que não devia mostrar-se demasiado dura para com a irmã: Sam estava sofrendo e ela queria ajudá-la. Não podia esquecer que era este o seu objetivo, e pelo menos Sam tivera a coragem de ir ter com ela para lhe falar do seu problema.

            — Presumo que ainda não disseste nada à mãe..

            — Não quero —  respondeu Sam.

            Allegra abanou a cabeça; também ela reagiria da mesma forma se tivesse a idade de Sam, apesar de a mãe ser, em geral, muito compreensiva e algumas das suas amigas sempre terem recorrido a ela quando tinham problemas, mas ultimamente andava tão perturbada com o casamento e com o programa que Sam não conseguira falar com ela.

            — Então como vamos resolver esta confusão? — perguntou Allegra, sentindo-se fraquejar. No seu caso, se tivesse a idade de Sam, só havia uma solução. Não conseguia imaginar a irmã a estragar a sua vida com uma criança nos braços. Amanhã vou levar-te à minha médica; talvez nem sequer tenhamos que contar nada à mãe. Quero pensar melhor antes de tomarmos uma decisão acrescentou.

            — Não posso retorquiu Sam, com obstinação. Allegra olhou para a irmã, confusa.

            — Não pode o quê?

            — Ir à médica com você... Livrar-me dele.

            — Por quê? Allegra estava aterrada. Não vai ficar com ele, pois não? Sam, você nem sequer sabe quem é esse homem. Não podes ter o bebê sozinha. É uma estupidez!

            Porque agia Sam com tal sentimentalismo? De repente, lembrou-se de Carmen, que se comportava como se o bebê já tivesse nascido só de ter visto o feto numa ecografia. Estaria  acontecendo o mesmo a Sam?

            — Não me posso ver livre dele, Al, nem fazendo um aborto.

            — Por quê?

            A família Steinberg tinha fortes convicções morais, mas em geral era razoável e não era católica. Allegra não compreendia.

            — Estou grávida de cinco meses.

            — O quê? Allegra ia caindo da cadeira ao ouvir estas palavras. Porque diabo não me disseste mais cedo? O que andou fazendo nos últimos seis meses? Sonhando?

            — Eu não sabia  — respondeu Sam, com as lágrimas a correrem-lhe pela face e a caírem em cima da mesa. Juro. Os meus períodos são muito irregulares, e julguei que era excesso de exercício, da dieta, dos exames ou da preocupação com a entrada na faculdade...

            — E nem sequer desconfiou? Ele não se mexia? Não se notava?

            Allegra olhou para a irmã, mas Sam era muito magra e usava roupas largas, por isso não notou nada.

            — Pensei que estava ganhando peso e tenho tido um apetite devorador.

            Depois acrescentou, com um ar ainda mais infeliz:

            — Ele só se mexeu na semana passada, e foi então que eu o senti. Admiti que tivesse um cancro e que ele estivesse a explodir dentro de mim.

            A pobrezinha não fazia idéia... Ali estavam elas no mundo civilizado, numa das cidades mais sofisticadas do país, e a pobre Sam julgava que tinha um tumor! Allegra sentiu muita pena dela, mas o problema complicara-se e exigia uma séria ponderação.

            — Vai ter de desistir dele, creio eu.

            Sam ficou olhando para a irmã, atordoada. Nem sequer imaginava quem era ‘ele’! Tinham-lhe proposto vê-lo na ecografia, mas recusara. Não queria saber o sexo, nem nada acerca dele; não queria que ele estivesse ali.

            — O que vou fazer, Al? Terei de fugir, para não dizer nada ao pai nem à mãe.

            Era um pensamento assustador. Toda aquela situação era um desastre.

            — Não pode fazer isso.

            — Não sei o que fazer. Na semana passada não pensei noutra coisa senão em fugir, mas queria conversar contigo primeiro.

            Só de falar nisso, Sam estremeceu.

            — Temos de contar à mãe. Se ela tiver um ataque, ou se te expulsarem de casa, podes ficar comigo. Allegra fitou de novo Sam. Quando é que ele nasce?

            A situação era péssima, e não se tratava de Carmen, mas sim da sua irmã de dezessete anos.

            — Em Agosto. Al... Ajuda-me a dar-lhes a notícia? — Allegra fez um sinal afirmativo e as duas irmãs apertaram as mãos por cima da mesa. Pouco depois, Allegra reparou que duas mulheres cochichavam e lhes sorriam com um ar aprovador; julgavam que elas eram amantes. Só isso a faria rir naquele momento... Comentou o assunto com Sam enquanto pagava a conta. Fora um almoço muito especial. Allegra estava à beira de uma indigestão.

            — Quando lhes queres dizer.

            — Nunca  — respondeu ela, honestamente, mas acho que é melhor contar-lhes depressa, antes que se comece a notar. A mãe olhou duas vezes para mim com um ar esquisito quando eu enchi o prato no café da manhã, porém, tem andado tão atarefada com o programa, com o quintal e com você, que não creio que tenha reparado, e o pai nem sonha. Ele continua a pensar que eu tenho cinco anos e que devia usar rabo-de-cavalo...

            Na verdade, ambas adoravam esta característica nele; apesar  da sua experiência em tantos domínios, havia no pai uma inocência que as comovia. Ele pensava o melhor a respeito das filhas e da maioria das pessoas que conhecia, era raro ser desagradável para alguém, e Sam sabia que a notícia iria deixá-lo destroçado. Faria tudo para não ter de lhe contar, embora soubesse que isso não era possível.

            — Amanhã apareço lá em casa e falamos com eles  — disse Allegra, como se fossem juntas para a guilhotina. E depois? O que resolveria quanto ao bebê? Essa era a verdadeira questão. O que é que tenciona fazer, Sam? Queres dá-lo? Ficar com ele?

            Allegra tinha de fazer estas perguntas à irmã; faltavam quatro meses para o bebê nascer e era preciso que ela enfrentasse a situação, mas não conseguia.

            — Sempre que penso nisso, fico tão assustada! Só queria que ele se fosse embora e que nada tivesse acontecido.

            — Isso é impossível disse a irmã mais velha, mas, quanto ao resto, Sam não estava à altura de tomar decisões.

            Depois de saírem do restaurante foram dar um passeio, mas não entraram em nenhum estabelecimento; não lhes agradou. Em seguida Allegra foi levar a irmã a casa. Deu-lhe um grande abraço e disse-lhe que tentasse manter a calma até à tarde do dia seguinte; depois tratariam do assunto juntas.

            — E nem fale em fugir, está ouvindo? — exclamou Allegra com energia. Não se pode fugir de certas coisas. Vamos enfrentar juntas a situação.

            — Obrigada, Al  — agradeceu Sam com sinceridade. Allegra sentiu-se desfalecer ao vê-la entrar em casa, mas pelo menos ainda não se notava nada. No entanto, começou a imaginar qual seria a reação dos pais. A tarde do dia seguinte não ia ser fácil; por muito compreensivos que fossem, aquilo seria um terrível golpe para eles, e era o gênero de problema que não poderia ter uma resolução feliz. Se Sam desistisse do bebê, talvez viesse arrepender-se mais tarde, ou pelo menos sofrer com isso de vez em quando; se ficasse com ele, essa decisão poderia alterar negativamente a sua vida para sempre. A verdade é que Allegra não vislumbrava quaisquer aspectos positivos. Nas circunstâncias de Sam, era um verdadeiro desastre.

            Era tão estranho pensar que a mesma situação era uma grande alegria para Carmen e que também poderia ser para si própria... Jeff falava mesmo em terem um bebê quanto antes, e essa idéia deixava-os muito felizes; no entanto, na vida de outra pessoa, a mesma circunstância era uma tragédia em vez de uma bênção. Era tudo tão complicado!

            Allegra regressou a Malibu muito deprimida, e ainda estava sentada na praia com os braços à volta dos joelhos quando Jeff chegou, duas horas depois. O almoço com o co-produtor prolongara-se muito para além do que previra; tinham tantas coisas para discutir acerca do filme... Mas, só de olhar para ela, percebeu que algo não correra bem nessa tarde. Allegra parecia completamente ausente, como se estivesse no seu mundo privado. Jeff admitiu mesmo que tivesse telefonado ao pai.

            — Olá  — disse, sentando-se a seu lado. Allegra virou-se para ele, mas não respondeu.

            — Você e Sam discutiram? — perguntou, acariciando-lhe os longos cabelos louros.

            — Não  — respondeu, com um sorriso triste.

            Jeff era tão bom para ela e, à sua maneira, muito parecido com Simon. Era estranho que, durante tantos anos, tivesse que combater os demônios da sua alma e agora, depois de apaziguá-los, fosse livre de amar alguém como ele!

            — Não parece muito feliz. Más notícias?

            Ela fez um sinal afirmativo e olhou para o mar.

            — Posso ajudar.

            Allegra calculava que Sam não quisesse que ela contasse a Jeff por enquanto, mas o segredo não poderia durar muito, se o bebê nascia em Agosto.

            — Não sei se alguém pode. Allegra fitou-o. A Sam está grávida de cinco meses.

            — Oh, merda! — exclamou ele. Quem é o pai? Jeff não sabia que ela tinha um namorado.

            — O pai é um francês qualquer de trinta anos, sem sobrenome, que passou aqui há cinco meses, ao que parece a caminho de Tóquio. A agência não possui dados sobre ele, nem a Sam. Apareceu na cidade, tirou umas fotografias e deixou-a com um bebê.

            — Bonito! Ainda pode fazer um aborto aos cinco meses? Está disposta a isso?

            — Nem uma coisa nem outra. É demasiado tarde, e ela não quer. Amanhã vamos dizer aos meus pais.

            — E vai ficar com o bebê?

            — Não sei. Acho que está demasiado afetada para tomar qualquer decisão. Em minha opinião, não é boa idéia; é muito nova e isso arruinaria sua vida. No entanto, não tenho o direito de lhe dizer o que deve fazer. É uma deliberação de grande importância para a vida dela.

            — Lá isso é  — reconheceu Jeff, um pouco assustado com o que os esperava. Se eu puder fazer alguma coisa para ajudar... — acrescentou, sentindo-se inútil. Ninguém podia fazer fosse o que fosse, exceto apoiá-la.

            — Eu disse que, se se criar uma situação insustentável com os meus pais, ela vem viver comigo. Eu posso voltar para a minha casa durante quatro meses continuou Allegra, deprimida perante esta perspectiva, mas era o mínimo que podia fazer pela irmã.

            — Ela pode ficar aqui conosco  — sugeriu Jeff. Falta pouco para eu começar a trabalhar no cenário a tempo inteiro. Posso ceder-lhe o meu escritório.

            — É mesmo bom —  retorquiu ela, beijando-o. Foram dar um longo passeio pela praia e à noite ficaram a conversar até tarde.

            No dia seguinte, depois de sair do emprego, Allegra foi a casa dos pais, tal como prometera. Passava pouco das cinco, e ambas ficaram à espera que os pais voltassem do trabalho. Em geral, chegavam por volta das seis e meia. As duas irmãs estavam sentadas quando Blaire e Simon entraram, com cinco minutos de diferença um do outro. Pareciam bem-dispostos e ficaram agradavelmente surpreendidos ao ver Allegra, mas, assim que Blaire reparou no modo como as filhas olhavam para ela, o seu coração alvoroçou-se. Era Scott. Acontecera-lhe alguma coisa, tinha certeza; pensou que haviam telefonado a Allegra e o seu olhar fixou-se na filha mais velha.

            — O que se passa?

            Allegra adivinhou logo o que ela estava a pensar e apressou-se a tranqüilizá-la.

            — Nada, mãe. Ninguém se feriu, estão todos bem. Só queremos falar com você.

            — Oh, graças a Deus. Blaire deixou-se cair numa cadeira, enquanto Simon as observava com ar preocupado. Até ele sentia que havia algo grave no ar, e era muito menos pessimista do que a mulher. Julguei que o Scott estava ferido confessou Blaire, lembrando-se de Paddy. É alguma coisa acerca do casamento, não é.

            Allegra tinha aquele ar obstinado que era próprio dela quando estava pensando numa coisa importante. Talvez fosse pedir para reduzir de novo o número de convidados, mas Blaire não tinha forças para discutir com ela.

            — O que é?

            — Preciso de falar com você, mãe  — balbuciou Sam

            O pai olhou para ela de sobrolho carregado, nunca a vira assim

            — Aconteceu alguma coisa —  perguntou, sentando-se

            — Mais ou menos —  admitiu Sam

            Fez-se um longo silêncio e depois, com os olhos cheios de lágrimas, ela virou-se para Allegra. Não conseguia falar

            — Quer que seja eu a dizer-lhes, Sam? — perguntou Allegra a meia voz

            A irmã mais nova fez um sinal afirmativo. Então Allegra olhou para os pais e deu-lhes a notícia mais difícil de todas as que se lembrava, mas era preferível ir direita ao assunto.

            A Sam está grávida de cinco meses disse, com muita calma

            Blaire ficou tão pálida que Allegra julgou que a mãe ia perder os sentidos, mas Simon não parecia melhor

            — O quê? —  limitou-se ele a dizer

            Fez-se um silêncio pesado na sala, com certeza não tinham ouvido bem.

            — Como é que é possível. Foi uma violação, ou qualquer coisa do gênero. Porque não nos contaste.

            Era inconcebível para ele que a filha tivesse colaborado naquele disparate, mas fora o que acontecera, e Blaire compreendeu isso ao olhar para as duas filhas. Não estava na sua maneira de ser oferecer compreensão ou conforto naquele momento, sentia-se demasiado chocada e ainda não se habituara à idéia.

            — Não foi uma violação, pai, foi uma coisa muito estúpida   — respondeu Sam, limpando as lágrimas da face com a mão. Tinha um aspecto que metia dó.

            — É alguém de quem goste? — perguntou Simon, ainda tentando imaginar o que se passara.

            — Não — respondeu Sam, com sinceridade. Eu julgava que sim, mas senti-me essencialmente adulada. Ele rojou-se aos meus pés e depois se foi embora.

            Quem é ele? — insistiu o pai, começando a ficar irritado.

            — Um fotógrafo que eu conheci. E não pode mandar prendê-lo, ele foi-se embora, pai. Nem eu o consigo encontrar!

            Allegra explicou-lhes a situação, e Blaire desatou a chorar ao olhar para a filha mais nova.

            — Eu não sabia, mãe, nem sequer desconfiava até à semana passada. Depois fui ao médico, e a seguir fiquei demasiado assustada para contar fosse a quem fosse. Estava disposta a fugir e a desaparecer, ou a morrer, ou qualquer coisa, mas resolvi telefonar à Allegra.

            — Graças a Deus!

            Blaire deitou um olhar de gratidão a Allegra. Em seguida sentou-se junto de Sam e abraçou-a. Do outro lado da sala, Simon reprimia as lágrimas. Allegra agarrou-se a ele.

            — Adoro-o, pai  — disse-lhe, em voz baixa.

            Simon abraçou-a e desatou a chorar. Aquilo era um desastre, mas pelo menos tinham-se uns aos outros.

            — O que vamos fazer? — perguntou, assoando-se e enxugando as lágrimas. Sentou-se ao lado de Allegra, em frente de Sam e de Blaire.

            — Não temos muitas opções  — retorquiu Blaire, pragmática. Olhou para Sam e ficou desolada: ela era tão bonita, tão jovem e tão destemida em relação à vida! Mas agora chegara a sua vez. A primeira cicatriz. A primeira grande experiência. A primeira tragédia, ou o primeiro desgosto. E Blaire nada podia fazer para protegê-la.

            — Vais ter esse bebê, Sam  — disse ela com doçura. É demasiado tarde para evitá-lo.

            — Eu sei, mãe  — murmurou Sam. Ignorava o que tal acontecimento acarretaria para o seu coração ou para o seu corpo. Até aí, tudo fora muito fácil: não estivera doente, não tivera nada, apenas fome, e agora estava assustada, mas o resto continuava a ser um mistério, e teria de desvendá-lo nos quatro meses seguintes. Ninguém o podia evitar.

            — E depois terá de desistir dele. Não há outra solução, a menos que estragues a tua vida. Não precisas de um bebê aos dezessete anos. Vais para a universidade no Outono. Quando nasce essa criança? — perguntou Blaire, cujo espírito de organização começava a entrar rapidamente em ação.

            — Em Agosto.

            — Pode tê-lo, dá-lo e entrar na universidade em Setembro. A única coisa que perderás, infelizmente, será talvez o fim do ano letivo e a entrega do diploma.

            Sam não disse nada; estava a pensar noutra coisa.

            — Terei dezoito anos quando ele nascer, mãe. Sam fazia anos em Julho. Há muitas mulheres que têm um bebê com essa idade.

            — Quase todas são casadas, e, neste caso, seria desastroso: nem sequer conhece o pai da criança! Como será esse bebê? Quem será?

            — Será metade de mim, mãe —  respondeu Sam com os olhos cheios de lágrimas. E terá uma parte de si... Outra parte do pai... E outra do Scott e da Allegra... Não podemos pô-lo de parte como um par de botas velhas.

            De súbito, o estado de Sam começava a apoderar-se do seu coração, e Allegra teve muita pena dela.

            — Pois não, mas podes dá-lo a pessoas que querem desesperadamente um bebê, que são casadas e que tentaram ter um, mas não conseguiram. Há pessoas assim, à espera de bebês, que não destruirão as suas vidas. Para elas, essa criança será uma bênção.

            — E nós? Talvez ele fosse também uma bênção para nós. Sam lutava pela sua vida e pelo seu bebê. Era um instinto mais antigo do que o próprio tempo, que nem ela entendia, mas não era o caso de Blaire, que dera à luz quatro filhos.

            — Está dizendo-me que quer ficar com ele? — Blaire estava aterrada. Você nem sabe quem é o pai, e agora queres ficar com esse bebê, Sam? Nem sequer é um filho do amor, não é nada.

            — Não é ‘nada’, é um bebê! —  respondeu ela com veemência, e desatou a chorar outra vez. As emoções eram demasiado fortes para todos, mas Blaire não permitiria que Sam a abalasse.

            — Tem que desistir desse bebê, Sam. Nós sabemos o que é melhor para você, confia em nós. Vais arrepender-te para o resto da vida se te amarrar agora a um bebê. Não é o momento adequado insistiu Blaire com calma, tentando restabelecer a serenidade. O abalo seria demasiado se Sam tivesse de criar um filho naquela idade.

            — Isso não é motivo suficiente para desistir de um bebê  —  retorquiu Sam.

            Por fim, Allegra achou que era altura de intervir: tinha de ser honesta para consigo mesma e para com a irmã.

            — Isso é verdade, Sam disse, serenamente, tens de ser você a querer desistir desse bebê. Tem de ser você a tomar essa decisão, porque terá de viver com ela até ao fim dos seus dias, e não nós.

            — A sua irmã tem razão —  interpôs o pai num tom afável. Mas, dito isto, concordo com a tua mãe. É demasiado jovem para ter um bebê. E nós somos demasiado velhos. Não seria razoável para a criança que fôssemos nós a ficar com ela. Nada disto é justo, nem para você, nem para a criança. Pode dar uma melhor oportunidade ao bebê se o entregar para adoção à pessoa certa.

            Blaire deu um olhar de gratidão ao marido. Como sempre, ele dizia o que ela queria dizer, mas com mais ternura, e melhor.

            — Como sabemos que essas pessoas o tratarão bem? E se assim não for? — Sam desatou a chorar desesperadamente.

            Allegra interveio de novo.

            — Há advogados que só tratam de adoções deste gênero, Sam, não é obrigada a ir a uma agência estatal. Pessoas com muito dinheiro, com boas casas, recorrem a advogados e pagam uma fortuna para encontrar mulheres como você. Só tem de escolher. Pode optar pelo casal de que mais gostar, a decisão é tua. Creio que será mais confortável para você. Não é uma opção agradável, mas, como diz o pai, há pessoas que gostariam muito de adotar uma criança. Tenho uma amiga que só trata de adoções. Posso telefonar-lhe amanhã, se quiser.

            Por sinal, Allegra deixara-lhe uma mensagem nessa manhã.

            Seguiu-se uma pausa interminável, e por fim Sam acedeu; não tinha alternativa e confiava na família. Estavam a dizer-lhe que seria preferível para o bebê que o entregasse, e ela acreditava neles. O que lhe custava era não ter mais ninguém com quem conversar, em quem se apoiar ou com quem chorar. Não queria contar às amigas do colégio, nem sequer tinha namorado nesse momento! Só tinha os pais e Allegra, e eles aconselhavam-na a dar o bebê. Sam sabia que desejavam o melhor para ela e para a criança.

            Allegra prometeu telefonar à advogada no dia seguinte e Sam foi para o quarto, deitar-se; estava enjoada e exausta. Depois de ela sair da sala, Blaire desatou a chorar. Allegra sentou-se a seu lado, tentando consolá-la. Simon parecia um moribundo, e era como se a casa estivesse envolvida numa mortalha. Até o casamento fora esquecido!

            — Pobre criança! — exclamou Simon, abanando a cabeça. Como pôde ser tão estúpida?

            — Agradaria-me matar o filho da mãe que fez isto! — exclamou Blaire. Ele é que tem sorte... Anda pelo Japão, a montar outra qualquer, e a vida da Sam está arruinada!

            — Não é forçoso que assim seja  — lembrou-lhe Allegra, mas a mãe sabia melhor do que ela.

            Ela nunca se esquecerá disto. Irá sempre lembrar-se, com mágoa, que teve este bebê, que o deu à luz, que lhe pegou ao colo e que depois se afastou dele para sempre. Não era a mesma coisa, mas Blaire pensava em Paddy. Vinte e cinco anos depois da sua morte, ainda sentia a falta dele; sabia que seria assim até morrer. E Sam nunca se esqueceria do recém-nascido que entregara a uns desconhecidos. Mas não há alternativa.

            — Não acha que ela devia ficar com o bebê, mãe? — perguntou Allegra,  com cautela.

            No seu íntimo, não estava convencida de que dar o bebê fosse a decisão acertada. Como Sam afirmara, havia outras mulheres que tinham filhos aos dezoito anos e sobreviviam; algumas até se tornavam boas mães.

            — Não, de maneira alguma respondeu Blaire tristemente. Acho que isso seria apenas insistir na estupidez. E no mundo atual há tantas pessoas decentes ansiosas por adotar uma criança, com toda a infertilidade que existe, que penso que é um erro ela destruir a sua vida e arrastar alguém nesse processo. Como é que toma conta dele? Leva-o para a residência universitária? Não vai para a universidade? Deixa-o em casa comigo? O que faço eu com um bebê nesta fase das nossas vidas? Somos demasiado velhos para tomar conta de uma criança, e ela é demasiado nova.

            Allegra sorriu, pesarosa.

            A mãe não tem lido os tablóides. Há muitas mulheres da sua idade que recebem óvulos doados e esperma e recorrem à fertilização in vitro, e sabe-se lá mais o quê... A mãe não é demasiado velha, bem sabe.

            Blaire quase estremeceu.

            Certas mulheres podem fazer tudo isso, mas eu não. Tive quatro filhos. Tive essa sorte. E não vou criar mais um bebê na minha idade. Teria setenta e tal anos quando ele fosse adolescente... Isso acabaria comigo!

            Todos sorriram tristemente e concordaram que a melhor solução era dar o bebê para adoção, sobretudo por causa de Sam. Ela precisava de uma ficha limpa, e depois poderia ir para a universidade no Outono e começaria uma vida nova. Já era uma vergonha que não pudesse estar presente na cerimônia de entrega dos diplomas do colégio. Blaire disse que teria de expor discretamente a situação à diretora do colégio; não era com certeza a primeira vez que tal coisa acontecia. Sam era uma boa aluna e o ano letivo estava quase no fim. Nisso, pelo menos, tinha sorte.

            — Amanhã vou telefonar à Suzanne Pearlman, aquela advogada de quem eu estava falando. Andamos juntas na faculdade e vejo-a de vez em quando. Ela é boa neste domínio e é muito exigente em relação aos seus clientes. Sempre lhe importunei o juízo por causa do ramo que escolhera, nunca julguei vir a ser sua cliente. Hoje lhe deixei uma mensagem e amanhã de manhã telefono-lhe.

            — Obrigada, Allie  — disse Simon, agradecido. Quanto mais depressa nos virmos livres disto, melhor. Talvez seja uma bênção ela estar tão adiantada. Daqui a quatro meses, tudo terá acabado, e pode esquecer o que aconteceu. ‘Se esquecer...’, pensou Allegra tristemente. Eram nove horas quando saiu de casa dos pais e regressou a Malibu, onde Jeff a esperava para saber como havia corrido a conversa. Tinha muita pena de Sam e ficou triste quando Allegra lhe contou tudo o que acontecera.

            — Pobrezinha! Deve sentir que a vida está se desmoronando. Mas que péssimo começo! Conheci uma garota na faculdade que engravidou —  disse ele, recordando tristemente o que sucedera há quinze anos. Foi terrível! Fez um aborto, mas foi tudo muito traumático. Ela era católica, de Boston, e os pais não souberam, evidentemente. Teve um esgotamento nervoso depois disso. Acabamos no psicólogo, e escusado será dizer que a relação não sobreviveu, mas nós também não íamos escapando. Talvez o que vocês estão a fazer com a Sam seja um caminho melhor. Não creio que a garota que conheci alguma vez tenha perdoado a si própria o fato de ter feito um aborto.

            — Não tenho a certeza de que isto seja melhor disse Allegra. No seu íntimo, tinha a sensação de que seria ainda pior, ou que ambos iriam pagar um preço demasiado alto pelo erro. Fosse qual fosse o caminho, Sam sofreria sempre. Tenho tanta pena dela!

            Nessa noite telefonou a Sam, que não estava nada bem; passara a noite inteira com enjôos e nem conseguira jantar. Allegra pediu-lhe que tivesse cuidado consigo e que tentasse acalmar-se. Blaire já dissera que a levaria ao médico no dia seguinte, para ter a certeza de que estava tudo bem; não valia a pena continuar a ignorar a situação. Agora tudo fora esclarecido e Sam tinha de se convencer de que ia ter um bebê. Dava-o à luz e separava-se dele, e tinha que fazer o que outros consideravam estar certo para ela. Era como se lhes tivesse confiado a sua própria vida, mas não queria ser má nem fazê-los sofrer; sabia que defendiam o que julgavam ser melhor para ela e, apesar de tudo, a família dera-lhe o maior apoio. Mesmo assim, sentia-se muito mal.

            Allegra telefonou à advogada às oito da manhã do dia seguinte, e Suzanne dispôs-se a recebê-las às nove, antes da sua primeira consulta.

            — Não me diga que queres adotar uma criança!... — exclamou, admirada, quando Allegra entrou no seu gabinete. Não usava aliança, e Suzanne sabia que não era casada, mas podiam acontecer as coisas mais estranhas.

            — Não, estou no outro extremo da situação, infelizmente  — respondeu Allegra com ar sofrido, olhando para a velha amiga.

            Suzanne era pequena e frágil; tinha o cabelo preto, que usava curto, e um sorriso afável. Todos os clientes a adoravam. Conseguia impossíveis e, graças aos médicos, aos advogados e a outras pessoas que conhecia, os bebês pareciam ir ao encontro dela. Allegra foi direita ao assunto.

            — A minha irmã, de dezessete anos, está grávida.

            — Oh, meu Deus! Desculpa. Isso é terrível! Mas que decisão difícil! É demasiado tarde para fazer um aborto?

            — É. Ela só se apercebeu na semana passada, mas está grávida de cinco meses.

            — Isso não é raro, sabe? — explicou Suzanne, quando se sentaram no sofá do seu gabinete. Muitas vezes, nessas idades, os períodos são irregulares, e elas não desconfiam senão quando é demasiado tarde. E a sua figura é de tal modo boa que não se nota nada. Têm vindo aqui garotas grávidas de sete meses, que nunca desconfiaram de nada. Depois surge sempre a negação. ‘Não é possível isto estar a acontecer-me! Como é que foi suceder logo à primeira vez?’ —  Suzanne suspirou. Era uma profissão sedimentada no sofrimento e na alegria; o segredo do seu êxito estava em saber misturar estas duas componentes. Ela quer dá-lo? — perguntou a Allegra com toda a franqueza.

            — Não creio que a Sam saiba o que quer, para ser honesta, mas sabe o que é melhor fazer na sua idade.

            — Não necessariamente. Tenho visto garotas de quinze anos que são mães formidáveis e mulheres da nossa idade que os dão porque sabem que não podem dedicar-se a mais ninguém e não os querem. Qual é o desejo dela? A solução está aí!

            Creio que, em parte, gostaria de ficar com o bebê. Talvez seja o instinto... Mas acho que também sabe que não pode tratar dele. Quer dá-lo.

            — Mas quer mesmo?

            — Alguém quer? — perguntou Allegra tristemente, e Suzanne concordou. Era boa no que fazia, e Allegra respeitava-a por isso; sempre gostara dela.

            — Algumas pessoas, sim. Certas mulheres, ou mesmo garotas, não têm instinto maternal, outras tomam decisões baseadas em motivos pragmáticos. Essa é a parte difícil. Gostaria de falar pessoalmente com a tua irmã, para me certificar de que ela se compromete a prescindir do bebê. Não quero fazer ninguém sofrer. Não me agrada a idéia de entregar o bebê  a um casal que tenta gerar um filho há dez anos e vir a descobrir que eles não se adaptam à situação, ou depois ver que a tua irmã, ou seja lá quem for, muda de idéias à última hora. Isso sucede às vezes, e nunca podemos prever totalmente como é que alguém se sente quando vê o seu bebê, mas quase sempre conseguimos avaliar se a pessoa está segura quanto à intenção de renunciar a uma criança

            — Penso sinceramente que ela o dará  — afirmou Allegra. Parecia ser a única solução para Sam.

            — Porque não a traz aqui?

            Marcaram uma reunião para a semana seguinte, e Allegra telefonou para o escritório da mãe. Blaire agradeceu a Allegra por se ter encarregado do assunto e depois lhe lembrou que tinha de começar a pensar em coisas como o vestido de noiva e as damas de honra.

            — Oh, mãe, passamos do sublime para o ridículo! — insurgiu-se Allegra. Como é que pode pensar nisso agora?

            — Tenho que pensar. Graças a Deus, o assunto do bebê já estará resolvido quando você se casar. Os próximos meses vão ser um pesadelo!

            Sobretudo para Sam, como ambas reconheceram. A mãe não estava zangada com ela, apenas a lamentava. Em seguida Allegra foi categórica e comunicou-lhe que, fosse ou não correto, não queria que o nome do pai figurasse nos convites. Poderia ir ao casamento, se quisesse, mas não o participaria. Era um compromisso razoável para ambas. Allegra prometeu que iria à procura de um vestido de noiva assim que Sam se entendesse com a advogada

            Allegra e Sam encontraram-se com Suzanne no fim da semana. Blaire não pôde estar presente, devido a um compromisso na estação; além disso, Sam disse que preferia ir com a irmã. Gostou da jovem advogada. Falaram a sós durante algum tempo, enquanto Allegra aguardava na sala de espera e fazia algumas chamadas do seu telefone celular. Pouco depois, Suzanne convidou-a a entrar e anunciou que a irmã resolvera dar o bebê para adoção. Explicou algumas das condições a ambas, o que era necessário que Sam fizesse e o que alguns pais adotivos esperavam dela, mas acrescentou que Sam teria uma palavra a dizer quanto ao casal que escolhesse. Havia sete excelentes casais à espera em Los Angeles, um na Flórida e dois em Nova Iorque. Todos eles eram candidatos que, em sua opinião, os Steinberg aprovariam, com certeza, mas para Sam era tudo muito confuso, e Allegra reparou que a irmã parecia um pouco atordoada. Em termos emocionais, aquilo era de mais para ela, embora não tivesse alternativa, por muito infeliz que se sentisse. Parecia resignada a dar o bebê, e não fez mais perguntas acerca do que aconteceria se ficasse com ele.

            Depois de sair do escritório da advogada, ligou o rádio no carro de Allegra e pôs a música tão alta que ia ensurdecendo no caminho para casa. Era como se não quisesse ouvir mais nada; naquele momento, a vida real atingira para ela os limites do tolerável. Agora era uma aluna independente e não teria de voltar para o colégio; bastava-lhe enviar os testes e fazer os exames numa sala especial para o efeito, mas tinha a sensação que, daí a pouco tempo, toda a gente saberia por que motivo deixara de ir às aulas. Só contara a duas amigas mais íntimas e obrigara-as a jurar que não diriam a mais ninguém, todavia, nenhuma a fora visitar durante toda a semana e ninguém telefonara, exceto Jimmy Mazzoleri, um rapaz que conhecera no terceiro ano e com quem saíra, mas de quem agora era apenas amiga. Jimmy ligara duas vezes, mas ela não atendera, não lhe desejava falar com ninguém. Por isso, Sam e Allegra ficaram admiradas ao vê-lo na rampa quando chegaram a casa. Jimmy tinha passado por ali para saber se ela estava, e já se ia embora quando Allegra parou para deixar a irmã.

            — Tenho andado a semana inteira a telefonar-te. Ficou com o meu livro de Ciências, e disseram-me que não volta —  disse ele, observando-a com cuidado, sob o olhar atento de Allegra.

            Eram os dois tão jovens e inocentes! Era uma dor de alma que Sam tivesse que sofrer tanto. Quando partiu, lembrou-se de si própria e de Alan com aquela idade. Também eles pareciam partilhar aquela espécie de amizade singela, que, no seu caso, durara dezesseis anos.

            No entanto, Sam mostrou-se fria na resposta.

            — Eu ia devolver o livro  — explicou, subitamente envergonhada e esperando que ele não tivesse ouvido dizer por que motivo saíra do colégio. Era bom rapaz e gostava dele, mas não tencionava contar-lhe que estava grávida.

            — Então o que aconteceu?

            — Ainda não o li  — respondeu, dirigindo-se lentamente para casa, ao lado dele.

            — Não me refiro ao livro. Porque não voltas para o colégio até ao fim do ano?

            Sam procurou inventar uma desculpa.

            — Problemas familiares. Os meus pais vão-se divorciar. Eu fiquei muito deprimida e tive de tomar uma série de medicamentos.. Prozac, por exemplo. A minha mãe estava com medo que eu matasse alguém no colégio, acha que ando muito estranha...

            Percebeu que fora longe de mais e sorriu. Até Jimmy reconheceu que a história era absurda.

            — Acaba com isso, está bem? Não é obrigada a dizer-me porquê.

            — Na verdade todas as pessoas sabiam, ou adivinharam. Era o único motivo pelo qual alguém abandonava o colégio, exceto para fazer uma cura de reabilitação, e Sam nunca se drogara. No entanto, Jimmy não lhe disse que desconfiava e, além disso, Sam não parecia estar grávida, portanto talvez estivessem todos enganados, talvez tivesse outro problema qualquer. Ele só queria certificar-se de que Sam não tinha nada de grave, como uma leucemia, por exemplo. Havia perdido uma amiga no segundo ano e entrara em pânico quando soubera que Sam não voltava às aulas. Fora assim que tudo começara com Maria.

            — Está bem? Era só isso que eu queria saber  — disse ele com ternura.

            Jimmy andava com alguém há uns tempos, mas sempre tivera um fraquinho por Sam, e ela tinha consciência disso.

            — Estou ótima  — respondeu, mas o olhar denunciou a tristeza que lhe ia na alma, e Jimmy percebeu.

            — Seja o que for, coragem! Sempre vais para a UCLA no Outono?

            Iam ambos para a universidade, e Jimmy ficou aliviado quando ela fez um sinal afirmativo.

            — Vou buscar o seu livro. Entra.

            Jimmy foi atrás dela e ficou à espera na cozinha enquanto Sam subiu ao primeiro andar. Ainda não a tinham esvaziado, e Simon continuava a pedir a Blaire que não o fizesse.

            — Talvez agora ela mudasse de idéia.

            Cinco minutos depois, Sam desceu com o livro e entregou-o. Jimmy pegou-lhe na mão e ela fitou-o, corando. Ultimamente sentia-se muito vulnerável, não sabia por quê. Nunca pensara que poderia ser por estar grávida.

            — Ouve... Se precisares de alguma coisa, telefona... Está bem?... Podemos ir andar de bicicleta... Ou comer alguma coisa. Às vezes, os problemas parecem diferentes quando conversamos  — disse ele com meiguice.

            Sam respondeu com um gesto de cabeça. Jimmy ia fazer dezoito anos e era muito maduro para a sua idade. O pai morrera há dois anos e ele ajudava a mãe a criar as três irmãs mais novas. Era invulgarmente responsável e muito carinhoso.

            — Não tenho nada para conversar  — respondeu Sam, olhando para o chão e depois para ele. Encolheu os ombros; era muito difícil dizer mais alguma coisa, e o rapaz compreendeu.

            Jimmy tocou-lhe apenas no ombro e depois foi-se embora. Da janela da cozinha, Sam viu-o partir no seu velho Volvo. A família vivia em Beverly Hills. Eram pessoas respeitáveis e viviam com conforto, embora não fossem muito abastadas. Continuavam a viver do dinheiro do seguro e do que o pai lhes deixara. Jimmy trabalhava aos fins-de-semana e candidatara-se a uma bolsa de estudo para ir para a universidade.

            Queria ser advogado, como o pai. Sam tinha a certeza de que conseguiria; entre outras qualidades, era muito determinado.

            Depois de ele ir embora, Sam sentou-se numa cadeira da cozinha e ficou a olhar para o teto. Tinha tanto em que pensar e tantas decisões a tomar! Suzanne Pearlman explicara-lhe exatamente como funcionava a adoção, e agora tinha de arranjar uns novos pais para o seu bebê. Parecia tão simples... Para todos, exceto para Samantha.

 

            As coisas acalmaram bastante nas duas semanas seguintes, ao contrário do previsto, sobretudo dadas as circunstâncias. Sam fora ao médico da mãe, e este confirmara que estava tudo em ordem. O bebê tinha um bom tamanho e parecia saudável. Sam estudava em casa e continuava muito silenciosa e distante. Tivera mais duas reuniões com Suzanne, e o número de casais estava agora restringido a quatro. Daí a dois meses tomaria novas decisões no sentido de reduzi-lo ainda mais. Suzanne dar-lhe-ia todas as informações possíveis, e não pretendia apressá-la. Queria que Sam estivesse segura de que tomava a decisão certa.

            Allegra tentava adiantar o máximo de trabalho possível para conseguir ir a Nova Iorque no fim-de-semana. Não estava particularmente ansiosa por conhecer a mãe de Jeff. Tinham falado ao telefone e Srª. Hamilton fizera uma série de perguntas concretas, como se estivesse a entrevistá-la para um emprego e ela não fosse uma candidata elegível. Allegra considerou a sua atitude um pouco estranha e insultuosa, mas não disse nada a Jeff. Entretanto procurava organizar tudo para a tournée de Bram. Começava em São Francisco na segunda-feira, e Allegra queria estar presente na noite da estréia, pelo menos. Nos meses seguintes fariam um percurso em ziguezague pelo país, e no 4 de Julho atuariam no Great Western Forum, em Ingleside, nos arredores de Los Angeles. Depois partiriam para o Japão, dariam a volta ao mundo e terminariam na Europa. Allegra prometera que apareceria de vez em quando, aqui e ali, se pudesse. A tournée iria render-lhe cem milhões de dólares, ‘uma boa pipa de massa’, como afirmara Jeff com humor quando ela lhe falara em números. Allegra nunca teria referido a quantia se esta não tivesse já aparecido em todos os jornais há vários meses e Bram não houvesse cometido a asneira de confirmá-la.

            No entanto, tudo parecia sob controle até à véspera do dia em que Jeff e Allegra partiriam para Nova Iorque. Os promotores tinham tratado de tudo, desde o pessoal ao itinerário.

            E depois, à meia-noite, na véspera de ir para Nova Iorque com Jeff, recebeu um telefonema: o baterista suicidara-se, intencionalmente ou por acidente, com uma overdose. Estavam todos em estado de choque. A comunicação social apoderara-se do acontecimento, a namorada encontrava-se detida e a tournée fora suspensa até conseguirem arranjar outro baterista.

            Às duas da manhã ainda Allegra estava ao telefone com Bram, que fora à necrotério identificar o corpo do seu amigo de longa data e se sentia muito deprimido. O mesmo sucedia com os promotores; haviam ligado para Allegra dez minutos antes de Bram. O telefone não parou de tocar até às seis da manhã, e Jeff estava desesperado quando se sentaram os dois a tomar o café da manhã. Fora impossível dormir com o telefone a tocar durante toda a noite, e ele tinha reuniões importantes nessa manhã.

            — Desculpa  — disse Allegra serenamente, servindo-lhe o café. Fizera uma declaração à imprensa na noite anterior e a notícia vinha na primeira página dos jornais de Los Angeles. Foi uma noite tremenda para todos

            — Devia ter sido polícia, motorista de ambulância ou qualquer coisa desse gênero! — replicou Jeff olhando para ela com irritação. Tem o perfil ideal! Eu, pelo contrário, não: preciso dormir de vez em quando, entre os telefonemas!

            — Eu sei. Desculpe, não pude evitar. A tournée do Bram está prestes a desfazer-se em fumo. Hoje tenho de ver se arranjo maneira de ajudá-lo.

            A mente de Allegra não parara desde manhã; Bram conhecia vários bateristas que poderia contratar, mas isso levaria tempo e quase todos tinham outros compromissos.

            — Não te esqueças que o avião parte às seis horas  — disse Jeff, veemente.

            — Eu sei —  respondeu Allegra, sentindo-se tensa.

            Hora e meia depois foi para o escritório, e não parou durante todo o dia. Esteve sentada com Bram, a ajudá-lo a reorganizar a tournée, e às quatro horas, quando olhou para o relógio, percebeu que ia haver confusão: não podia abandonar Bram numa situação daquelas e tinha de sair naquele momento,  se quisesse apanhar o avião; combinara encontrar-se com Jeff no aeroporto.

            Ligou para casa, mas ele já saíra e não acreditava em telefones no automóvel, que considerava demasiado californianos para o seu gosto. Restava a Allegra enviar-lhe uma mensagem pelo pager; o tão ridicularizado aparelho acabou por dar jeito.

            Allegra tentara contatá-lo às cinco horas, quando deveriam estar a fazer o check-in, e um quarto de hora depois Jeff telefonou-lhe para o escritório. Alice disse-lhe que ele estava na linha e Allegra apressou-se a atender. O namorado não parecia satisfeito.

            — Onde está? Creio que temos um problema, visto que te liguei para o escritório. O que se passa?

            Os promotores ameaçam cancelar a tournée. Afirmam que é uma quebra de contrato e, até agora, não conseguimos arranjar outro baterista. Não sei como te hei-de dizer isto, Jeff, mas não posso deixá-lo sozinho; a tournée começa na segunda-feira.

            Allegra tencionava ir a São Francisco na segunda-feira seguinte, para o ver atuar no Oakland Coliseum, mas agora isso estava fora de questão; não podiam ir para lado nenhum sem um baterista.

            — Não compete ao agente dele resolver essa trapalhada?

            — Se conseguir, mas eu estou envolvida nisto, e vão precisar de mim para redigir novos contratos.

            — Não lhes podes enviar um fax de Nova Iorque?

            Allegra queria responder afirmativamente. Detestava desiludi-lo, mas estava em causa um assunto da sua responsabilidade, e não podia descartar-se. Tinha de lhe dizer a verdade, por muito que isso desapontasse a mãe de Jeff.

            — Preciso mesmo de ficar aqui.

            — Está bem, compreendo  — respondeu ele com calma, mas a sua voz parecia gelo.

            Seguiu-se um longo silêncio.

            — O que vai fazer agora? — Allegra estava em pânico. E se ele acabasse tudo? E se o perdesse? Vai assim mesmo? — perguntou com nervosismo.

            — Vou apresentar-te à minha mãe, Allegra. Eu já a conheço  — retorquiu Jeff com frieza.

            — Desculpe —  disse ela, desesperada por não o acompanhar. Tentei apanhar-te em casa, mas não consegui. Posso telefonar à tua mãe a dar uma explicação?

            Eu trato disso; ela não iria compreender. Vou dizer-lhe qualquer coisa descabelada. Que houve uma morte na família, uma intoxicação alimentar, qualquer coisa... Ela não percebe nada de tournées de cantores de rock.

            — Jeff, estou desolada...

            — Eu sei. É inevitável. E quanto ao jantar? Pode safar-se, ou também vai fazer jejum?

            — Adoraria  — assegurou, agradecida por ele estar disposto a perdoar-lhe, ou, pelo menos, a dar-lhe de comer. Era um bom sinal. Jeff era uma pessoa fabulosa.

            — A culpa não é sua, Allegra, eu sei, mas é muito aborrecido sermos constantemente obrigados a modificar os nossos planos para ir ao encontro das conveniências dos outros. Quando nos casarmos, talvez consiga alterar um pouco isso. Desta vez faz sentido, mesmo para mim, mas quase sempre essas pessoas ficam à espera que você limpe-lhes o rabo e que decida por ela.

            — É para isso que me pagam...

            — Julguei que era pelo teu apoio jurídico...

            — Isso é o que nos dizem na Faculdade de Direito, mas, como tudo o resto que nos ensinam, é mentira. Pagam-nos para limparmos rabos.

            Allegra soltou uma gargalhada e Jeff acabou por sorrir.

            — Amo-te, minha tontinha. Vou sair do aeroporto e apareço aí no escritório para irmos tomar um copo, e, se o Morrison não te puder dispensar durante duas horas, dou-lhe um murro no queixo! Pode dizer-lhe isto mesmo.

            — Direi. Literalmente.

            — Está tudo bem? —  perguntou Bram Morrison quando ela acabou de falar com Jeff.

            Allegra parecia aliviada. Ficara aterrada com a hipótese de Jeff desfazer o noivado por ela não poder ir a Nova Iorque para conhecer a mãe dele.

            — Sim  — respondeu, com um sorriso. Este fim-de-semana devia ir a Nova Iorque para conhecer a minha futura sogra, e acabei de cancelar a viagem. O Jeff já estava no aeroporto.

            — Peço muita desculpa.

            Bram era brando e amável e um dos homens mais trabalhadores que Allegra conhecia. Tal como a maioria dos músicos com quem trabalhara, tivera uma história de drogas na juventude, mas, ao contrário de muitos, afastara-se delas há vários anos. Era um homem de família e um verdadeiro gênio da música. Além disso, era raro aproveitar-se do tempo de Allegra, exceto quando precisava verdadeiramente dela, como agora. No entanto, uma estrela da sua grandeza tinha problemas freqüentes e súbitos, como ameaças aos filhos e agora a morte do baterista.

            Bram usava os cabelos compridos e desgrenhados, barbas e uns óculos minúsculos com armações metálicas; parecia um homem das cavernas. Tinham acabado de lhe falar noutro baterista que talvez estivesse disponível, um dos bons. A situação parecia que começava a melhorar.

            Jeff chegou por volta das sete, e Allegra interrompeu a reunião com Bram por umas horas. O músico tinha de se agarrar ao telefone para ver se encontrava o baterista e disse-lhe que dispusesse da noite; voltariam a encontrar-se às nove da manhã do dia seguinte.

            Allegra e Jeff foram comer alguma coisa ao Pan e Vino. Allegra sentia-se incomodada e exausta, e até Jeff parecia um pouco abatido. A mãe ficara furiosa com o cancelamento. Fizera uma reserva no Twenty-One para o jantar de sábado e era uma pessoa que não gostava que ninguém lhe alterasse os planos, sobretudo uma garota da Califórnia que nem sequer conhecia.

            — O que disse ela? —  perguntou Allegra com nervosismo, convencida de que Srª. Hamilton a odiaria para sempre.

            — Aconselhou-me a desistir do casamento respondeu Jeff, muito sério.

            Allegra ficou sem fôlego. Jeff riu-se e acrescentou:

            — Disse que não se pode confiar na nossa geração, que não se pode contar com ninguém, e que lamentava a morte da tua tia-avó, mas podia lá ter ido por um dia, só para a conheceres. Expliquei-lhe que estavas muito desgostosa e que o funeral é no domingo. Não creio que tenha acreditado numa única palavra, mas o que havia ela de dizer? ‘Mostra-me o corpo. Envia-me um cartão com a hora da missa’? Telefonei a uma florista de Nova Iorque antes do fecho, e prometeram que lhe enviavam um grande ramo de flores da nossa parte logo de manhã.

            — Eu não te mereço  — disse Allegra com sinceridade

            — Ela também é da mesma opinião, mas eu garanti-lhe que estava enganada. Prometi-lhe que iríamos lá no fim-de-semana do Dia dos Combatentes. É muito importante para ela, porque abre a casa de Southampton nesse fim-de-semana, por isso, aconteça o que acontecer, teremos de lá ir nessa data.

            — E o teu filme?

            — Não trabalhamos no fim-de-semana do feriado. Jeff começava as filmagens daí a três dias, por isso é que deveriam ter ido a Nova Iorque nesse fim-de-semana

            Afinal, tudo acabou bem. Alegra passou os três dias seguintes atarefada resolvendo a questão da tournée com Bram Morrison e, no domingo à noite, estava tudo reorganizado e os promotores satisfeitos. Como era habitual, Allegra fizera um bom trabalho, e Bram ficara contente. Missão cumprida. No domingo à noite, Jeff apanhou-a de surpresa com um pequeno estojo de camurça preta que tencionava oferecer-lhe em Nova Iorque, mas ainda faltava um mês para lá irem, e não queria esperar tanto tempo.

            Allegra abriu-o com cuidado, depois do jantar. O pôr do sol na praia fora esplendoroso e era a última noite livre de ambos antes de Jeff começar a rodar o filme. Allegra tinha as mãos tremendo quando desembrulhou o estojo. Era impossível não adivinhar o que estava lá dentro, mas, quando o viu, perdeu o fôlego; era um belo anel antigo, com uma esmeralda cercada de diamantes.

            — Oh, Jeff, é tão bonito —  exclamou, com as lágrimas nos olhos

            Não era um vulgar anel de noivado, tinha uma personalidade própria e uma concepção maravilhosa. Allegra nem se importava de não ter anel de noivado, nunca haviam falado nisso.

            — Tencionava levar você comigo a uma ourivesaria, mas depois vi este, que é parecido com um que a minha avó tinha.

            — Comprei-o no David Webb, mas, se não gostar, podemos devolvê-lo ou trocá-lo por outra coisa que aprecie. Jeff sorriu e Allegra beijou-o.

            — Adoro... Eu não mereço isto. Amo-te tanto!

            — Gosta dele?

            — Gosto, a sério.

            Era uma jóia perfeita. Jeff enfiou-lha no dedo: acertara no tamanho, e Allegra ficou radiante; não tirava os olhos dele. O anel impressionava na mão dela, mas, como era antigo, não parecia espalhafatosa, apesar do seu tamanho. Era muito distinto.

            Nessa noite passaram horas sentados conversando sobre a família, das suas vidas, dos seus planos e do casamento. Parecia que o tempo voava; já estavam no primeiro dia de Maio e faltavam apenas quatro meses para a boda. Allegra ainda tinha mil e uma coisas para fazer, e a mãe estava constantemente a telefonar-lhe e a insistir com ela: queria que contratasse um consultor especializado em casamentos, para que se ocupasse dos pormenores. Na opinião de Allegra, era uma idéia ridícula, mas a verdade é que nem ela nem a mãe tinham tempo para organizar a cerimônia. Blaire andava mais atarefada do que nunca com o seu programa e os clientes de Allegra quase não a deixavam respirar.

            Nessa noite foram para a cama cedo. Jeff queria estar no estúdio às quatro da manhã, para ver se todos se encontravam presentes e certificar-se de que o mais ínfimo pormenor tinha sido acautelado. Allegra lembrou-lhe que Tony e o diretor também estariam lá e que a responsabilidade não assentava totalmente nos seus ombros, no entanto, era o seu livro, o seu primeiro filme, e Jeff queria estar lá, no caso de surgir algum problema.

            — Quem é que está agora a ser escravo das suas obrigações? — perguntou, arreliadora, fazendo faiscar o anel na direção de Jeff. Não despregava os olhos dele, e nem sequer o tirou quando foram para a cama, muito cedo, porque Jeff tinha de se levantar às duas e meia.

            Adormeceram por volta das dez horas, e Allegra ficou atordoada quando o telefone tocou, à meia-noite. Estava dormindo profundamente e levou algum tempo a perceber que alguém falava com ela numa língua estrangeira.

            — ‘Mademoiselle Steinberg, on vous appelle de la Suisse, de la part de Madame Alan Carr.’

            Allegra não fazia idéia do que estavam a dizer, mas reconheceu o nome de Alan no fim. Estaria perguntando se ela aceitava a chamada a pagar no destino?

            — Aceito! — gritou ao telefone. Jeff acordou sobressaltado e depois reclinou-se na cama, ao lado dela. Está? Está?

            Parecia que a chamada ia cair. Por fim, voltaram à linha. Ouviu-se uma série de ruídos provocados pela eletricidade estática e, de repente, a voz de Carmen.

            — Carmen? O que é? O que se passa? Havia uma diferença horária de nove horas, e na Suíça eram nove da manhã, mas Allegra percebeu que acontecera alguma coisa a Carmen para que ela lhe telefonasse à meia-noite. Sentiu um calafrio na espinha ao pensar que Alan poderia ter sofrido um acidente durante as filmagens. Só ouvia Carmen a chorar do outro lado da linha. Diz qualquer coisa, com os diabos! Começava a perder a paciência com ela; já que lhe pregara um susto de morte ao acordá-la àquela hora, queria saber a história. Jeff também acordara por completo. Acendera a luz e estava a ouvir a conversa. Carmen, o que aconteceu?

            Ouviu-se um choro agudo e prolongado do outro lado da linha.

            — Estou no hospital...

            — Oh, não! Por quê?

            — Perdi o bebê.

            Desatou a chorar convulsivamente, e só meia hora depois é que Allegra conseguiu acalmá-la. Entretanto, passara para a sala, para que Jeff pudesse dormir, mas ele estava bem acordado e não conseguira voltar a adormecer.

            Segundo parecia, Carmen não caíra, não acontecera nada dramático; sofrera um aborto natural, pura e simplesmente. Encontrava-se no local das filmagens, junto de Alan, e tivera uma forte hemorragia. Haviam mandado chamar uma ambulância e, segundo Carmen, Alan também ficara muito afetado. Carmen disse que não queria voltar para casa sem ele, o que fez estremecer Allegra, ambos tinham contratos a cumprir.

            — Agora ouve, Carmen  — disse Allegra, tentando manter a calma. Eu sei que é terrível, mas voltará a engravidar, e o Alan tem de acabar esse filme. Se falar em voltar para casa com você , eles nunca mais o contratam, não se esqueça disso. Você própria tem de estar aqui no dia quinze, por causa das filmagens.

            — Eu sei, mas sinto-me tão infeliz! E não quero deixá-lo. Carmen chorou até à uma da madrugada. Por fim Allegra conseguiu desligar, pensando nas ironias do destino: Carmen, tão ansiosa por ter um bebê, perdera-o, enquanto Sam estava a destruir a sua vida por causa de um bebê. Talvez pudesse dá-lo a Carmen, pensou, um pouco atordoada. Voltou para a cama e reparou que Jeff estava acordado e com cara de poucos amigos.

            — A Carmen perdeu o bebê  —  disse ela, em jeito de desculpa, enfiando-se na cama.

            — Calculei, mas eu estou quase a perder o juízo. Não posso viver neste ambiente de urgência de hospital, com telefonemas todas as noites, suicídios, overdoses, abortos, divórcios, tournées... Pelo amor de Deus, Allie, quem é você? Uma advogada ou uma assistente de psiquiatria?

            — É uma boa pergunta. Ouve, eu sei, desculpa. Talvez ela tenha calculado mal a diferença horária.

            — Tretas! Ela não se importa! Ninguém se importa! Telefonam-te a qualquer hora do dia ou da noite. Eu preciso dormir, tenho um filme para fazer. Também tenho um emprego, Allegra. Precisa dizer aos seus clientes que acabem com estes telefonemas.

            — Eu sei, eu sei... Desculpa... Juro que isto não volta a acontecer.

            — Mentirosa  — disse ele, puxando-a para si e encostando o corpo nu de Allegra ao seu. Fará de mim um velho, se não der fim a esta situação.

            — Eu vou avisá-los, prometo.

            Mas ambos sabiam que nunca o faria. Allegra era assim mesmo, estava sempre disponível para eles, fossem quais fossem os seus problemas.

            Duas horas mais tarde, Jeff saiu de casa, sonolento e de mau humor. Allegra fez-lhe um café antes de ele se ir embora. Depois voltou a deitar-se e telefonou a Carmen para o número que ela lhe dera. Foi Alan que atendeu. Estava num intervalo das filmagens e era óbvio que ficara muito transtornado por causa de Carmen e do bebê.

            — Lamento, querido  —  disse ela.

            Alan agradeceu e em seguida levou o telefone para o banheiro. Segundo ele, Carmen estava muito mal; ficara muito deprimida com a perda do bebê.

            — Tem de tomar conta dela quando voltar para casa  — disse, em tom de súplica.

            — Sim, juro, mas não saia daí e acaba o seu filme.

            — Eu sei  — respondeu Alan, atrapalhado. Já lhe disse isso, mas ela quer que eu a acompanhe.

            — Mato-te se fizer tal coisa! Não pode!

            — Eu sei, mas promete-me que toma conta dela quando chegar aí, depois de amanhã.

            — Prometo, não te preocupe —  garantiu Allegra, e desligou, pensando como às vezes a vida era complicada para todos.

            Carmen, Alan, Bram, Jeff: nenhum deles escolhera carreiras fáceis, e, contudo, por motivos diferentes, todos gostavam do que faziam. Allegra lembrou-se do que se passara nessa madrugada, quando se encontrava sentada, a enregelar, nos bastidores do Oakland Coliseum: Bram mandara buscá-la no seu avião particular e ela fora assistir à estréia. O grande recinto estava completamente esgotado; a multidão entrou em delírio mal viu Bram e aplaudiu longamente quando este apresentou o novo baterista. Depois cantaram uma canção especial e guardaram um minuto de silêncio pelo homem que morrera. E, no final do espetáculo, vinte mil fãs aplaudiram-no de pé. Allegra nunca vira uma coisa assim, nem sequer nos outros concertos de Bram. Os seguranças ficaram sem pele nas mãos para o protegerem das admiradoras. Acabaram por tocar sete extras e Bram estava ensopado em suor quando saiu do palco e abraçou Allegra.

            — Você é incrível  — gritou ela no meio da vozearia. Bram sorriu, fez um gesto de agradecimento, abraçou a mulher e beijou-a. A multidão continuava a chamar por ele e recusava-se a sair da sala.

            — Obrigado por nos ter salvo —  bradou Bram.

            Allegra sorriu. Todos juntos, tinham salvo a tournée; era para isso que lhe pagavam.

            Em seguida havia uma festa, mas Allegra precisava de regressar a Los Angeles. Quando entrou em casa eram três da manhã, mesmo a tempo de fazer um café para Jeff. Foi levá-lo à cama quando o despertador começou a tocar. Ele olhou para ela, estremunhado, e sorriu.

            — Mas que belo serviço de despertar. Como correu?

            — Foi fantástico! — Allegra inclinou-se e beijou-o. O Bram esteve melhor do que nunca! Preparou-se muito bem para esta tournée. Ainda bem que conseguiu rematou, deitando-se na cama ao lado de Jeff, exausta.

            Aposto que ele também está satisfeito disse Jeff, sorrindo e admirando a beleza dela, apesar do cansaço.

            — Como correram as coisas ontem? — perguntou Allegra, referindo-se ao filme dele e afastando um bocejo.

            — Foi assustador, mas divertido —  admitiu. É uma sensação incrível estar ali, a rodar o meu primeiro filme! Graças a Deus que o Tony sabe o que está fazendo. Jeff sorriu. Tony trabalhava naquilo há dez anos, desde que terminara o colégio, e ganhara quatro prêmios com curtas-metragens, além de ter sido muito elogiado por dois longas-metragens. Quando puder, vai lá ver-nos. Só Deus sabe quando o farás...

            Jeff nem a vira nas últimas vinte e quatro horas, e ela mal teve tempo de dormir um pouco antes de ir buscar Carmen ao aeroporto.

            Mas nem mesmo Allegra estava preparada para o estado em que ela se encontrava. Carmen sentia-se completamente deprimida com a perda do bebê . Tinha certeza de que nunca mais voltaria a engravidar e a ausência de Alan despertava nela pensamentos suicidas. Allegra precisou de toda a sua energia e concentração para levá-la a casa e a convencer de que tinha de ir aos ensaios. Passou a semana seguinte a tratar de Carmen como se esta fosse um bebê. Mal tinha tempo para ir ver Jeff ao estúdio, mas todos os dias conseguia alguns minutos, e o filme parecia estar a correr bem. Melhor do que os ensaios de Carmen no fim da semana... Pelo menos Bram Morrison já ia na estrada com a sua tournée, que estava a ter um êxito estrondoso, assim como o novo baterista. Allegra começava a sentir-se como se os trouxesse todos às costas e Jeff passou a primeira semana das filmagens com os nervos em franja. No fim dessa semana teve que refazer algumas partes do guião, porque dois dos atores não gostaram do diálogo; passava dias e noites com Tony e Allegra mal o via

            Felizmente foi obrigado a adiar a visita à mãe e só conseguiu prometer-lhe que voltaria ao Leste dentro de pouco tempo. Agora Srª.  Hamilton tinha de esperar pelo filme do filho, o que não lhe agradou.

            Quando Carmen começou a filmar, no dia 1 de Junho, Allegra estava tão atarefada e exausta que parecia à beira de um esgotamento nervoso. Carmen telefonava-lhe de cinco em cinco minutos a queixar-se de qualquer coisa e passava o resto do tempo a chorar, jurando que nunca mais voltaria a trabalhar num filme em que Alan não entrasse também. Estava a comportar-se de uma forma completamente absurda. Allegra perdeu três quilos na primeira semana do filme de Carmen. Também recebia mensagens da tournée de Bram e, sempre que o grupo tinha problemas em algum lugar, era ela que os resolvia. Era como se nunca mais visse Jeff: poucas vezes estavam em casa ao mesmo tempo, exceto quando um deles se encontrava  dormindo.

            Sam estava grávida de sete meses, mas parecia um pouco mais animada. Trabalhava em estreita colaboração com Suzanne Pearlman e, sempre que Allegra ia ver a irmã a casa dos pais, reparava que Jimmy Mazzolen também lá se encontrava, ou porque passara para a ver, ou porque a ajudava a fazer os trabalhos de casa... Por fim, Sam confessara-lhe que estava grávida, e ele mostrara-se surpreendentemente compreensivo e disposto a apoiá-la. Não namoravam, mas Jimmy parecia ser muito dedicado a Sam. Ela já usava roupa de grávida e o bebê crescera de repente. Às vezes, Jimmy gostava de pousar a mão na barriga de Sam e senti-lo a dar pontapés. Era freqüente levá-la a passear na praia ou a um restaurante, ou ajudá-la a fazer os trabalhos de casa. Tinha pena dela e considerava que não merecia o azar de ter engravidado. Às vezes Sam trocava impressões com ele acerca das pessoas que se candidatavam à adoção do bebê. Inclinava-se bastante para um casal de Santa Bárbara. Tinham perto de quarenta anos e diziam que adoravam crianças e a mulher lembrava-lhe um pouco Allegra. Também era advogada. Ele era médico. As suas qualificações eram excelentes e pareciam ter bastante dinheiro. Sam não queria que o seu bebê passasse privações ou que não tivesse uma boa educação. Além disso, afirmavam-se dispostos a adotar mais crianças. Chamavam-se Katherine e John Whitman.

            E, no meio de tudo isto, Blaire continuava a lembrar à filha que precisava de pensar no seu casamento. Allegra encomendara os convites à Carrier e experimentara vestidos de noiva na Saks, I. Magini e Neiman’s, mas nenhum a cativara. No entanto, o maior choque surgiu quando a mãe lhe participou que contratara Delilah Williams.

            — Quem é essa? Sorriu ao ouvir aquele nome, perguntando a si própria quais seriam as intenções da mãe.

            — Veio rodeada das maiores recomendações. É consultora matrimonial e vai tratar-nos de tudo o que respeita ao casamento. Disse-lhe que te telefonasse para o escritório.

            — Não posso acreditar! — exclamou Allegra quando contou a Jeff o sucedido, com ar divertido.

            A verdade é que não estava preparada para a mulher que foi ter com ela ao escritório daí a três dias. Delilah ia equipada com álbuns e fotografias, listas e dossiês, e parecia que não se calava. Tinha mais de um metro e oitenta de altura, e quando Allegra tentou descrevê-la a Jeff, só soube dizer que parecia um travesti. Levara um vestido cor de alfazema com um chapéu a condizer e ametistas por todo o lado. Tinha o cabelo oxigenado e os braços tão compridos que parecia um grande pássaro pronto a levantar vôo do sofá do gabinete de Allegra. O seu próprio escritório ficava em alguma parte no vale.

            — Vamos confirmar, — querida disse ela, dando palmadinhas na mão de Allegra, que a fitava, incrédula. Custava-lhe a acreditar que a mãe contratara aquela mulher. Devia estar desesperada... Tem de escolher as damas de honra, tratar-lhes do vestido, e do seu também, evidentemente... Sapatos... Não se esqueça dos sapatos... Temos de falar acerca do bolo... E das flores... Eu disse à sua mãe que vão precisar de uma tenda no jardim... A ementa... A orquestra... Não nos podemos esquecer da orquestra... Fotografias.. Vídeo... Véu comprido ou curto...

            A mulher continuou a falar e Allegra escutava-a, horrorizada. As palavras ‘Las Vegas’ continuavam a retinir na sua mente. Não conseguia perceber por que motivo Jeff e ela tinham optado por um casamento em casa, com uma multidão de convidados.

            — Voltamos a encontrar-nos aqui de hoje a uma semana  — declarou Delilah, levantando-se do sofá com as suas pernas de girafa. Allegra tentou não olhar para ela. Quero que me prometa que fará o seu trabalho de casa.

            — Com certeza  — respondeu Allegra solenemente, aceitando o álbum, os livros e as listas. Até havia um vídeo para escolher o bolo!

            — Você é uma querida. Agora vá às compras! Tem muito que fazer!

            Delilah disse-lhe adeus e desapareceu como uma personagem cômica numa peça nova-iorquina. Allegra ficou ali, a olhar, atônita. Dois minutos depois, aproximou-se do telefone e ligou à mãe. Blaire estava numa reunião, como era habitual, mas, por uma vez, Allegra pediu que a chamassem.

            — Allegra? O que se passa?

            — Está brincando? — perguntou Allegra, sentando-se à secretária. Estava petrificada.

            — Com quê, querida?

            — Aquela mulher! Não posso acreditar que me tenha feito uma coisa destas!

            — Refere-se à Delilah? Todos que recorreram aos seus serviços dizem que é fabulosa. Acho que vamos ficar satisfeitos com ela.

            A mãe deve estar brincando. Eu não posso com isto! Pelo menos, ria de todo aquele absurdo. A cada dia que passava o casamento tornava-se mais ridículo. Talvez ela e Jeff pudessem apenas viver juntos.

            — Querida, tem paciência, a Delilah vai te ajudar. Vai gostar dela.

            Era óbvio que a mãe perdera o juízo.

            — Nunca na minha vida vi ninguém como ela. De súbito, não conseguiu conter o riso. Riu até as lágrimas lhe correrem pela face, e Blaire também desatou a rir. Não posso acreditar que a tenha contratado! — repetiu, no meio de um riso convulsivo.

            — Ela é eficiente, não acha?

            — Espere que o pai a veja! E, mãe, só quero que saiba que gosto muito de você.

            Também gosto muito de você. E vai ser um lindo casamento.

            Mas o casamento parecia agora tão insignificante, no meio de tudo o resto! O que lhe interessava era Jeff, e não o casamento. E tinham que pensar em Sam e no seu bebê. O tipo de bolo, ou a cor do vestido das damas de honra, já para não falar dos sapatos, como Delilah dissera, pareciam totalmente irrelevantes.

            Ainda Allegra estava rindo quando o telefone voltou a tocar. Era Jeff.

            — Boas notícias! Foi a primeira coisa que ele disse. Estou livre este fim-de-semana. O Tony consegue agüentar o barco sem mim, e eu liguei para a minha mãe a avisar que iríamos ter com ela. Podemos aterrissar em Kennedy e ir direitos a Southampton. O coração de Allegra parou por instantes; julgara que estava definitivamente livre de tal responsabilidade. Jeff parecia tão atarefado com o seu filme... Ela ficou muito contente. Há tanto tempo que andamos a prometer-lhe isto, que creio que nem acreditou em mim. Pode ir, não pode?

            Jeff reparara no seu silêncio. Allegra tentava adaptar-se de novo à idéia de ter de conhecer a mãe dele. Não sabia por que, mas continuava a ter a sensação de que Srª.  Hamilton não gostava dela.

            — Por uma vez, não vejo qualquer obstáculo —  respondeu, um pouco desapontada. Ninguém estava em crise, nem sequer Carmen.

            — Não diga isso muito alto... Partimos na sexta-feira anunciou com ar solene. Queria apresentá-la à mãe.

            Lá estarei respondeu Allegra, rezando em silêncio para que dessa vez não acontecesse nada que os impedisse de ir, caso contrário a mãe dele nunca lhe perdoaria. Sabia por Jeff como ficara zangada da última vez que tinham cancelado a ida, mas Allegra só podia rezar para que nada acontecesse e ganhar forças para acompanhá-lo. Pelo menos, iriam passar um fim-de-semana fora, e bem precisavam. O único problema era que Allegra desconfiava há muito que não haveria nada de relaxante nesse fim-de-semana. Só pensava no rosto que vira na fotografia que Jeff lhe mostrara no apartamento de Nova Iorque, e essa recordação era suficiente para assustá-la.

 

            Allegra andava com o coração nas mãos na semana anterior à sua ida a Nova Iorque. Sabia que Jeff ficaria furioso se ela não pudesse ir. Mas até quinta-feira não acontecera nada, e nessa noite, enquanto faziam as malas, suspirou de alívio e concluiu que se preocupara inutilmente. Não surgira crise alguma que interferisse com a viagem, e reconheceu que era um disparate estar tão nervosa com a perspectiva de conhecer a mãe dele. Era também essa a opinião de Jeff: assegurava-lhe que a mãe ia gostar muito dela.

            Estavam ambos cansados, depois de longas semanas de pressão, mas tudo parecia correr bem para eles e para os clientes de Allegra. Até Carmen melhorara nos últimos dias; pelo menos, tinha a mente ocupada, agora que começara as filmagens. Continuava a sentir-se muito só sem Alan, mas falava-lhe constantemente, sobretudo pelo celular, que trazia na algibeira da bata. Na verdade, telefonava-lhe a toda a hora, quer de dia quer de noite, ainda mais do que a Allegra, que finalmente lhe pedira, pelo menos, para tentar não lhe telefonar muito tarde. E Carmen prometera não o fazer. Agora telefonava quase sempre a Alan.

            — Não posso acreditar que vamos mesmo! — exclamou Jeff quando pousaram as malas no vestíbulo, nessa noite. Ambos tinham reuniões de manhã e partiam logo a seguir. Southampton é fabuloso nesta época do ano acrescentou; mas não era Southampton que preocupava Allegra, o que a inquietava era ir conhecer a mãe de Jeff, apesar de este tentar tranqüilizá-la.

            Tratou do cabelo e das unhas e resolveu levar um traje de linho azul Givenchy na viagem. Queria ter um aspecto respeitável quando a visse. Tencionava até atar o cabelo atrás. Nessa noite, quando foram para a cama, Jeff sorrindo, falou de Southampton, de que tanto gostava em criança, e de Vermont, para onde a família costumava ir quando a avó era viva. Adormeceram como duas crianças e Allegra julgou que estava a sonhar quando ouviu campainhas. Algo tocava ao longe, mas não sabia o quê. Talvez fossem sinos em Vermont, admitiu, embrenhada ainda nas brumas dos sonhos. De repente, com um sobressalto, percebeu que era o telefone. Saltou da cama, como sempre fazia, para Jeff não ouvir, mas, como era habitual, ele já acordara. Quando atendeu, verificou no relógio da mesa-de-cabeceira que eram quatro e meia da madrugada.

            Se for a Carmen, diz-lhe que a mato  — resmungou Jeff, virando-se para o outro lado. Não se pode dormir nesta casa, desde que está aqui!

            Jeff não estava brincando e Allegra falou ao telefone em voz baixa, certa, tal como Jeff, de que era Carmen do outro lado da linha.

            — Está? Quem é? — perguntou Allegra, furiosa com a intromissão àquela hora e aterrada com a hipótese de se tratar de algo que a impedisse de ir a Nova Iorque.

            — É Malachi O’Donovan, querida  — respondeu Mal com o seu sotaque irlandês, arrotando em seguida. Estava perdido de bêbado.

            — Não me telefone a esta hora, Mal. São quatro e meia da manhã!

            — É a melhor hora para si, minha querida E fique sabendo que estou na cadeia. Disseram-me que me deixavam telefonar ao meu advogado, por isso, aqui estou eu. Agora seja uma menina bonita e venha cá pagar a fiança.

            — Oh!, pelo amor de Deus, outra vez? Que chatice! O’Donovan colecionava infrações por condução sob a influência de drogas ou do álcool, tal como outras pessoas colecionavam caixas de fósforos, e Allegra estava sempre a avisá-lo de que um dia ainda era preso, e perdia a carta de condução, mas, até então, ele mexera todos os cordelinhos que podia e tivera muita sorte. As estadas freqüentes em clínicas de reabilitação levavam as autoridades a fechar os olhos ao seu histórico, mas Allegra tinha  certeza de que dessa vez lhe iriam tirar a carta.

            — Eu sei, eu sei, desculpe.

            O’Donovan parecia arrependido, mas também esperava que Allegra o fosse tirar da cadeia. Afinal, era a advogada dele.

            — Não há mais ninguém que possa ir buscá-lo, Mal? É que eu estou em Malibu, e é de madrugada.

            Jeff tinha razão: se não tivesse atendido o telefone àquela hora, O’Donovan teria esperado pela manhã seguinte para lhe falar. Mas atendera, e agora ele estava à espera que o fosse buscar. Era difícil fugir à situação, e Mal insistia que queria que Allegra fosse imediatamente pagar a fiança para ele sair.

            — Está bem — disse ela, por fim. Onde está você? Mal se encontrava em Beverly Hills. Seguia pela faixa contrária da rua que descia até Beverly, e a polícia apanhara-o com uma garrafa aberta de Jack Daniel entre as pernas e um saco de erva no porta-luvas. Era uma sorte que não tivessem encontrado mais nada, mas também não haviam procurado muito. Os agentes que o tinham detido sabiam quem ele era.

            — Estarei aí dentro de meia hora.

            Desligou o telefone e olhou para o corpo imóvel de Jeff. Parecia que tinha voltado a adormecer, mas desconfiava que estivesse acordado, e, ao sair do quarto em bicos de pés, verificou que tinha razão.

            — Se não apanhares hoje aquele avião, Allegra, não haverá casamento  — disse ele tranquilamente por debaixo dos cobertores.

            Allegra parou e olhou para ele com um ar aborrecido.

            — Não me ameaces, Jeff. Eu faço o melhor que posso. Lá estarei.

            — Faz por isso.

            Jeff não disse mais nada. Allegra vestiu umas jeans e uma blusa branca. Ao descer a auto-estrada, sentia-se furiosa com todos eles: com Malachi O’Donovan, que julgava que podia fazer tudo o que lhe apetecia e depois ficava à espera que ela o fosse libertar, com Carmen, que se servia dela como se fosse um lenço de assoar, de dia e de noite, e com Alan, que lhe telefonava constantemente a pedir-lhe que tomasse conta da mulher. E até com Jeff, que às vezes ficava tão aborrecido, como se ele não tivesse também os seus momentos, entre levantar-se às três da manhã para chegar ao estúdio antes dos outros ou ter de voltar a escrever o seu argumento noite após noite. Todos esperavam que ela fosse compreensiva e só faziam o que lhes apetecia. Allegra começava a ficar furiosa, sobretudo com Jeff. É claro que apanharia o avião... Esperava... A menos que Malachi tivesse cometido uma infração muito grave. Além disso, tinha de ser ela a enfrentar os tablóides. Céus, também estava ficando cansada dessa parte! Todos esperavam que ela os livrasse das confusões, como se tivesse nascido para lhes resolver os problemas.

            Bateu com a porta do carro ao chegar à esquadra de Beverly Hills e, quando entrou, viu um agente que já conhecia. Explicou-lhe porque estava ali e ele fez um sinal afirmativo. Foi lá dentro e pouco depois saiu com Mal. Allegra teve de pagar a fiança, o que não constituiu problema, e dessa vez Mal foi obrigado a deixar a carta de condução. A polícia indicou-lhe a data na qual deveria apresentar-se em tribunal, e Allegra ficou aliviada ao ver que seria ainda nesse mês. Em seguida, com uma expressão firme, levou-o a casa. Mal tresandava a álcool e tentava constantemente beijá-la, para lhe agradecer o fato de tê-lo tirado da prisão, mas ela ordenou-lhe que se portasse bem. Quando chegaram, a mulher estava dormindo; Allegra perguntou a si própria por que motivo Mal não lhe telefonara, mas, assim que ela começou a praguejar quando soube o que acontecera, percebeu imediatamente.

            Rainbow O’Donovan quase o atirou para o quarto, e gritou tanto que devia ter acordado a vizinhança. Pouco depois, Allegra saiu, e quando chegou a casa eram sete horas. Jeff estava a tomar ducha; havia café no fogão. Serviu-se de uma chávena e sentou-se em cima da cama. Sentia-se absolutamente exausta, mas tinha muitas noites como aquela. Era disso que Jeff se queixava, e sabia que ele tinha razão. No entanto, pouco podia fazer e precisava que ele compreendesse a situação.

            Depois de sair da ducha, Jeff começou a secar o cabelo e assustou-se quando a viu; não a ouvira entrar. Não era difícil perceber como Allegra estava cansada.

            — Que tal correu?

            — Bem. Tiraram-lhe a carta  — respondeu com um gemido, deitando-se na cama.

            Jeff aproximou-se e sentou-se a seu lado.

            — Desculpa a minha irritação desta noite, mas estou cansado de ver os outros a abusarem de você. É como se quisessem te engolir. Não é justo!

            — Também não é justo para você. Vou ter de definir outros limites. Quando o levei a casa, percebi que ele podia ter telefonado à mulher. Acho que teve medo.

            — Mete-lhes medo também  — retorquiu Jeff, beijando-a. Tinha de estar no estúdio dentro de uma hora, e depois partiam no vôo das duas. Fica bem? — perguntou, ao sair de casa.

            — Sim, não te preocupe.

            — Vou te buscar ao meio-dia.

            Estarei pronta prometeu.

            Allegra chegou ao escritório às nove horas e deixou as malas no carro; Alice tinha uma pilha de mensagens e de documentos à sua espera. Verificou tudo e estava precisamente a afastar os dossiês quando a secretária entrou no gabinete com um exemplar do Chatter.

            — Por favor, não me diga que tenho de me preocupar com o que isso diz! —  exclamou, assustada. Se fosse qualquer coisa que importunasse algum dos seus clientes, o mais provável era nem sair da cidade.

            Alice pousou o jornal em cima da secretária como se o papel a queimasse, e Allegra percebeu por que: as fotografias eram terríveis e o título muito desagradável. Carmen ficaria furiosa quando o visse.

            — Oh, bolas! — praguejou, olhando para Alice. É melhor eu ligar para ela.

            Tinha o aparelho na mão quando a telefonista entrou na linha: Srª. Connors estava ao telefone. Não disse que ela estava histérica, mas Allegra percebeu assim que lhe ouviu a voz.

            — Acabei agora de o ver antecipou-se, sem perder a calma.

            — Eu quero processá-los!

            — Não me parece que seja uma atitude inteligente. Contudo, Allegra compreendia o que ela sentia e sabia que Alan também ficaria lívido: o jornal dizia que Carmen Connors, a mulher de Alan Carr, fora fazer um aborto à Europa, e havia algumas fotografias horríveis com ela saindo do hospital, como se fosse às escondidas, mas a verdade é que se tratava de um truque fotográfico.

            — Isto é uma calúnia! Como podem publicar uma coisa destas? — Carmen soluçava, e Allegra não sabia o que havia de dizer, mas processar os tablóides só contribuiria para agravar a situação. Eram venenosos e tinham bons advogados, que os ensinavam a proteger-se e que nunca falhavam. Porque me fazem isto? —  Chorava ela

            Allegra sentiu-se impotente, não podia fazer absolutamente nada para alterar a situação.

            — Para vender jornais, bem sabe. Joga isso fora e esquece.

            — E se a minha avó vê isto?

            — Ela vai compreender. Ninguém acredita nessa porcaria.

            — Ela acredita. Carmen riu no meio das lágrimas.

            — Julga que as mulheres de oitenta e sete anos dão à luz quíntuplos...

            — Bem, diz-lhe que são um bando de mentirosos. Lamento, Carmen, acredita.

            Allegra estava a ser sincera. Podia imaginar como era doloroso lidar com mentiras a toda a hora.

            O jornal local também publicava a notícia da detenção de Malachi O’Donovan.

            Decididamente, o dia era de exposição pública para alguns dos seus clientes.

            — É melhor avisares o Alan antes que alguém lhe telefone  — sugeriu Allegra. Também lêem porcarias dessas na Europa.

            Mas, assim que desligou, Alan telefonou-lhe da Suíça. O seu agente ligara para ele e lera-lhe o artigo.

            — Quero processar esses patifes —  vociferou. A pobrezinha esvaiu-se em sangue na ambulância, chorou durante seis semanas, e eles afirmam que fez um aborto! Vou dar cabo deles! A Carmen já sabe?

            — Acabamos de falar ao telefone agora mesmo  — respondeu Allegra, sentindo-se muito cansada. Dormira quatro horas na noite anterior e a manhã estava a ser muito agitada.

            — Ela também quer processá-los, mas eu digo-te o mesmo que lhe disse: não vale a pena. Ainda os ajuda a vender mais papel. Eles que se lixem! Era raro Allegra utilizar esta linguagem, mas os tablóides mereciam-na. Esquece! Não gastes o teu dinheiro com advogados!

            — Uns valem mais do que outros  — anuiu, um pouco mais calmo. Allegra era sempre tão sensata! Por isso é que lhe telefonara. A propósito, como está?

            — Deus é que sabe! Isto por aqui tem andado muito agitado, e daqui a duas horas parto para Nova Iorque. Vou conhecer a minha sogra, que está em Southampton.

            — Boa sorte. Diz a essa velha atrevida que é uma felizarda por o filho te ter escolhido.

            Allegra riu-se da imagem.

            — Quando volta, a propósito?

            — Só em Agosto, mas vai ser estupendo  — disse ele. Como está a Carmen? Às vezes não me parece nada bem. Estou sempre dizendo-lhe que haverá mais oportunidades, mas não acredita.

            — Eu sei, digo-lhe a mesma coisa. Está a agüentar-se. Acho que o filme a absorve, pelo menos, mas sente muito a tua falta.

            Allegra tivera de recorrer a todos os seus dotes de persuasão para impedir Carmen de fugir para a Suíça, e o artigo do tablóide não ia ajudar. Tinha pena de não estar em Los Angeles no fim-de-semana para chamá-la à razão e a distrair.

            — Também sinto a falta dela  — disse Alan tristemente.

            — Como vai o filme? — perguntou Allegra, interessada.

            — Ótimo. Deixam-me fazer uma grande parte do trabalho do meu duplo.

            — Não diga isso à tua mulher, senão ela mete-se no próximo avião!

            Riram ambos. Alan assegurou que a voltaria a ver daí a dois meses, mas Allegra sabia que falaria com ele muito antes. Assim que desligaram, Jeff entrou no gabinete.

            — Está pronta para sair? —  perguntou, apressado. Allegra estava pronta. E dessa vez nada a impediria.

            — Prontíssima.

            Jeff deu uma olhadela no jornal que estava em cima da secretária e reparou no título.

            — Muito bonito... — resmungou, abanando a cabeça; não havia nada que fizesse vergar aquela gente dos jornais. Haviam entrevistado duas enfermeiras, que talvez tivessem recebido uma boa quantia para vender os segredos de Carmen e destorcê-los. Eles já viram isto?

            — Acabei de falar ao telefone com os dois. Querem processar o jornal, mas aconselhei-os a não o fazerem. Isso só contribui para aumentar as tiragens.

            — Coitados! Detestava viver assim!

            — Existem outras compensações  — observou Allegra, pensativa, mas perguntou a si própria se elas seriam suficientes; era um preço muito alto a pagar pela fama.

            Deixaram os dois carros na garagem do escritório e apanharam um táxi para o aeroporto. Jeff nem podia acreditar que não tivesse acontecido nada que os retivesse dessa vez. Nenhum deles tivera uma emergência, um problema, uma reunião. Não haviam sido obrigados a cancelar a viagem outra vez; a mãe não ficaria furiosa com ele.

            Conseguiram chegar ao aeroporto na hora e instalaram-se nos seus lugares sem problemas. Era espantoso!

            Jeff olhou para Allegra com um sorriso quando o avião se elevou no ar

            — Não posso acreditar! E você? Tinham resolvido ir na primeira classe e recostaram-se nos bancos com um ar vitorioso, de mãos dadas. Pediram champanhe com sumo de laranja.

            — Conseguimos! — exclamou Jeff, beijando-a. A minha mãe vai ficar tão contente!

            Allegra sentia-se feliz só de estar com ele, de irem para fora juntos. Ainda não haviam resolvido onde passariam a lua-de-mel. Tinham três semanas de licença e falavam na Europa. Itália era linda no Outono, sobretudo Veneza. E depois Paris, e talvez Londres, para visitarem uns amigos. Jeff também gostava da idéia de irem para uma praia, talvez nas Bahamas ou em Bora Bora, como Carmen e Alan, mas Allegra não queria viajar para tão longe. Foi uma conversa animada, que durou quase uma hora, e só o fato de pensarem nisso era um verdadeiro luxo. Em seguida falaram do casamento. Jeff estava pensando em Alan para seu padrinho, e no irmão de Allegra, em Tony Jacobson e no diretor do seu filme para testemunhas. Allegra tinha o mesmo problema. Queria que Sam e Carmen fossem suas damas de honra, mas sentia que não devia esquecer outras amigas. Sempre pensara em convidar a sua colega de quarto em Yale, Nancy Towers, se ela tivesse chegado a casar, mas não a via há cinco anos e Nancy vivia em Londres.

            — Talvez ela viesse. Pergunta-lhe, pelo menos  — disse Jeff.

            E havia outra velha amiga, dos tempos da escola, Jessica Farrisworth, que fora viver no Leste há uns anos. Nunca mais se tinham visto, mas em crianças eram como irmãs. Allegra resolveu entrar em contato com ambas depois de falar com Jeff. Iam convidar os Weissman, evidentemente, e outras pessoas de quem gostavam e com quem trabalhavam. Allegra sugeriu a Jeff que convidasse alguns dos seus amigos do Leste, mas ele duvidava que viessem: eram pobres ou trabalhavam muito, mas, de qualquer modo, não deixaria de fazê-lo.

            Não atravessaram zonas de turbulência, e pouco depois começaram ambos a ler. Jeff continuava a tomar apontamentos acerca do guião e Allegra trouxera vários documentos numa pasta, assim como um novo romance, que teve a aprovação do namorado, mas, antes de chegar ao fim da primeira página, estava quase a dormir, com a cabeça encostada ao ombro de Jeff, que olhou para ela com ternura e a cobriu com uma manta.

            — Te amo  — segredou, beijando-a.

            — Eu também—  respondeu ela.

            Em seguida adormeceu e só voltou a acordar quando o avião aterrissou. Jeff teve de sacudi-la; dormia tão profundamente que a princípio nem sabia onde se encontrava. Estava exausta, depois da noite em claro para tirar Malachi da prisão e de ter ido a correr para o escritório.

            — Trabalha de mais  — disse Jeff quando desembarcaram e se dirigiam para a esteira rolante das bagagens.

            — Alugara uma limusine para i-los buscar ao aeroporto e os levar a Southampton. Queria que a viagem fosse o mais agradável possível para Allegra, porque seria uma das primeiras recordações felizes que conservariam do seu casamento. Havia champanhe e um balde de gelo na limusine, um daqueles absurdos modelos compridos, que nunca mais acabavam.

            — Não sabia que havia disto no Leste  — observou Allegra, rindo. Julguei que as únicas pessoas que alugavam estes carros eram as estrelas de rock.

            Apesar dos seus hábitos discretos, Bram Morrison adorava limusines, quanto mais compridas melhor, e Allegra arreliava-o sempre por causa disso. Chegara a ter uma com uma cama de casal. Fora um espetáculo!

            — Os traficantes de droga é que costumam alugá-las aqui  — explicou Jeff com um sorriso

            Lembrou que se tinham conhecido no Leste há cinco meses, que estavam agora de volta e que se casariam dentro de pouco tempo. Faltavam apenas dois meses e meio. Era inacreditável!

            A viagem entre o aeroporto e Southampton durou duas horas. Estava uma noite quente de Junho, mas o carro tinha ar condicionado e o ambiente era agradável. Jeff tirou o casaco e a gravata e arregaçou as mangas da camisa azul, impecavelmente engomada. Tinha sempre um aspecto imaculado e aprumado, mesmo depois de uma viagem de avião, exceto quando usava as suas famosas camisetas e  jeans em Malibu, mas, mesmo assim, mantinha um ar propositadamente informal, e Allegra gracejava porque os jeans estavam sempre muito bem engomados. Era uma das suas poucas obsessões

            — Em comparação cm você, estou com um aspecto desalinhado. Allegra penteou-se e atou o cabelo atrás, com nervosismo. O traje azul-marinho amarrotara-se bastante no avião, sobretudo quando adormecera no ombro de Jeff. Devia ter despido a saia comentou com um sorriso.

            — Teria sido um sucesso... — gracejou ele. Serviu-lhe uma taça de champanhe e beijou-a.

            — Já sei... Vou embebedar-me antes de conhecer a tua mãe, para lhe causar uma boa impressão.

            — Não se preocupe, ela vai te adorar  — assegurou, com ar confiante, olhando com enlevo para a noiva, que fez cintilar o anel na sua direção.

            Beijaram-se longamente e com ardor, até que o carro virou à direita para sair da auto-estrada.

            Seguiu-se mais meia hora de caminho, e era quase meia-noite quando descreveram a última curva da estrada. Allegra avistou uma casa antiga e imponente, com um alpendre a toda a volta. Mesmo no escuro, viu os móveis de vime dispostos em pequenos grupos e as árvores magníficas, que davam sombra à casa durante o dia. Havia uma cerca branca à volta da propriedade. O motorista levou-os até à porta e ajudou-os a transportar as malas. Devido ao adiantado da hora, tentaram não fazer barulho; Jeff desconfiava que a mãe não esperara por eles e se fora deitar. Com a diferença horária, era impossível terem chegado mais cedo, visto que ainda haviam aproveitado meio dia de trabalho.

            Jeff sabia onde a chave estava escondida. Pagou ao motorista e deu-lhe uma boa gorjeta; em seguida entraram os dois em casa com todo o cuidado. Havia um bilhete na sala da frente, em cima de uma bela mesa inglesa antiga. A mãe saudava-os, dizia a Jeff que ficasse no seu quarto e pedia a Allegra que ocupasse o grande quarto de hóspedes virado para o mar. A mensagem era clara, e Jeff sorriu, como se pedisse desculpa a Allegra.

            — Espero que não te importe  — disse, em voz baixa. A minha mãe é muito conservadora. Podemos deixar aqui as nossas malas e você vai dormir comigo, ou então durmo eu contigo, desde que voltemos para os nossos quartos de manhã.

            — Allegra estava divertida com o decoro, mas disposta a seguir as instruções.

            — Exatamente como na universidade  — retorquiu, sorrindo.

            Jeff fingiu-se escandalizado.

            — Era assim que fazias na universidade? Não sabia! Levou as malas dela para cima e Allegra subiu as escadas atrás dele, em bicos de pés. Era divertido estar em casa de Jeff, a cochichar e a tentar encontrar os quartos; parecia uma aventura. Allegra riu-se quando passaram pelo quarto da mãe. Era uma divisão enorme e arejada, decorada com chintz azul e branco, uma cama de colunas e reposteiros pesados, mas não puderam vê-la, porque a porta estava bem fechada. Ficou admirada por a mãe de Jeff não ter esperado por eles, vindos de tão longe para vê-la. Era apenas meia-noite, e Blaire decerto não teria feito o mesmo, embora Srª.  Hamilton  fosse muito mais velha. Tinha setenta e um anos e, segundo o filho, deitava-se sempre cedo.

            Jeff conduziu-a ao quarto de hóspedes a que a mãe se referira. Dava para o Atlântico e Allegra via as ondas a espraiarem-se na areia. Em cima de uma mesa, ao pé da cama, estava um jarro de água gelada e um prato com biscoitos de manteiga. Jeff ofereceu-lhe um e ela aceitou. Ficou admirada ao ver como era delicioso e se derretia na boca.

            — É a tua mãe que os faz? — perguntou, impressionada. Jeff riu e abanou a cabeça.

            — É a cozinheira.

            O quarto em que se encontravam estava forrado de um tecido cor-de-rosa com motivos florais e as cortinas da janela eram de renda. Ao lado de uma grande cama de ferro forjado branco viam-se tapetes de lã cardada. Era um ambiente muito característico de New England.

            — Onde é o teu quarto  — perguntou Allegra em voz baixa, comendo mais um biscoito. Estava esfomeada.

            — No fundo do corredor  — respondeu ele, também em surdina, para a mãe não ouvir

            A Srª. Hamilton tinha o sono leve e Jeff lembrou-se dos Verões da sua juventude, quando introduzia amigos em casa às escondidas, de noite, e roubavam uma ou duas cervejas. O pai mostrava-se sempre indulgente para com eles, mas a mãe admoestava-o na manhã seguinte.

            Foi mostrar o seu quarto a Allegra. Sobre uma cama estreita com uma bela cabeceira antiga via-se uma colcha verde-escura, a condizer com os cortinados. Em cima das cômodas e da secretária havia essencialmente fotografias do pai e nas paredes vários quadros com motivos marítimos, que o pai colecionara ao longo dos anos. Era um quarto totalmente masculino, e, de certo modo, lembrava a casa de Malibu, na medida em que tinha um toque de New England e do mar, mas era muito mais austero. E, apesar dos belos tecidos e dos móveis antigos, havia ali certa frieza, tal como nas fotografias da mãe de Jeff, no apartamento de Nova Iorque.

            Jeff voltou para o quarto de Allegra depois de ter deixado as malas no seu, fechou a porta devagarinho e levou um dedo aos lábios: fechara a porta do seu quarto antes de sair e não queria que a mãe os ouvisse a conversar naquele extremo da casa. Allegra compreendeu. Andaram em bicos de pés e não levantaram a voz. Ao chegar à janela, Allegra desejou poder ir para a praia. Estava tão bonita ao luar!

            — Adoro nadar aqui à noite. Talvez amanhã... — segredou ele, num tom quase inaudível. Não queria que a mãe os ouvisse nessa noite, e, de qualquer modo, estavam os dois muito cansados.

            Sentou-se na cama com Allegra e beijaram-se. Depois ela foi lavar o rosto e os dentes e vestiu a camisola. Trouxera uma camisola vaporosa e um robe clássico, não fosse a mãe de Jeff vê-la. Não sabia ao certo o que havia de usar. Escolhera umas calças brancas e uma blusa de seda de cores vivas para sábado, um vestido de linho preto para a noite e um branco, para o caso de acontecer alguma coisa ao outro, um traje de banho, calções e camisetas e um conjunto de casaco e calças de riscas para a viagem de regresso que lembrava um pouco os uniformes dos colégios do Leste. Tudo parecia estar devidamente acautelado. Allegra não sabia como era a mãe dele. Sempre imaginara que as outras mães eram iguais à sua, mas não aquela. As fotografias que vira falavam por si e, embora não tivesse dito nada a Jeff, Srª. Hamilton assustava-a.

            Jeff enfiou-se na cama com ela. Os lençóis estavam um pouco úmidos, como sempre acontece em qualquer casa de praia, mas eram da melhor qualidade e tinham flores bordadas. Jeff sentia-se feliz por estar ali com ela. Tinha medo de fazer amor no silêncio da casa, com receio de que a mãe os ouvisse, por isso abraçou-a e adormeceram, envolvidos pela atmosfera balsâmica do mar. Dormiram como duas crianças. O único problema é que só acordaram de manhã. Jeff esperava despertar com o nascer do sol, mas o seu relógio biológico devia estar regulado pela hora da Califórnia, porque acordou às nove e meia, e Allegra ainda estava a dormir. O pior é que Jeff não podia voltar para o seu quarto sem se arriscar a cruzar-se com a mãe.

            Espreitou para o corredor antes de sair e depois, como uma criança travessa, desatou a correr e desapareceu no interior do seu quarto, mas teve a sensação de que toda a casa sabia que ele vinha a fugir do quarto de hóspedes. E, como que para provar, a mãe apareceu à porta do quarto pouco depois. Jeff tinha acabado de vestir o roupão e preparava-se para abrir a mala.

            — Dormiu bem, querido? — perguntou ela.

            Jeff virou-se, sobressaltado, e viu a mãe com um vestido azul de flores e um chapéu de sol. Para uma mulher da sua idade, estava muito elegante. Fora bela, mas não durante muito tempo, e não havia ternura no seu olhar, exceto quando via o filho; mantinha sempre a distância.

            — Olá, mãe  — disse ele, aproximando-se para a abraçar. Tinha a afabilidade e o trato fácil do pai. Sempre fora parecido com ele. A mãe era muito mais ianque. Desculpe termos chegado tão tarde ontem à noite. Com a diferença horária, é difícil fazer melhor, e fomos ambos trabalhar de manhã.

            — Não há problema, eu não vos ouvi entrar. Sorriu e depois olhou para a cama do filho, que estava como na véspera. Jeff esquecera-se de abri-la e de amachucar os lençóis, e ela reparou. Obrigada por ter feito a cama, querido. É um dono de casa perfeito.

            — Obrigado, mãe agradeceu delicadamente, sabendo muito bem que fora apanhado em falta.

            — Onde está a tua noiva?

            Jeff ia a responder que ela ficara a dormir quando a deixara, mas calou-se. De certo modo, voltar àquela casa era difícil; há muito tempo que não se encontrava com a mãe e às vezes esquecia-se da sua inflexibilidade. Estava mais habituado quando era mais novo.

            — Não sei, ainda não a vi  — respondeu, num tom afetado. Quer que eu vá acordá-la?

            Eram dez horas e sabia que a mãe não gostava que os convidados passassem a manhã na cama.

            Foi bater à porta do quarto cor-de-rosa sob o olhar atento da mãe. Pouco depois Allegra apareceu, com o robe por cima da camisola de renda. Vinha descalça, mas penteara-se; estava tão jovem e bonita. Dirigiu-se imediatamente a Srª. Hamilton, apertou-lhe a mão e sorriu a Jeff.

            — Como está? Sou Allegra Steinberg

            Durante algum tempo, a mãe de Jeff não disse nada. Depois correspondeu com um gesto de cabeça. Era notório que inspecionava a futura nora. Allegra sentiu-se muito acanhada, mas encheu-se de coragem e continuou a sorrir.

            — Ainda bem que pôde vir desta vez  — disse Srª. Hamilton com frieza.

            Não houve um abraço, um beijo, um desejo de felicidades nem qualquer referência ao casamento.

            — Ficamos desolados por cancelar a nossa vinda da última vez afirmou Allegra, sem rodeios. Também conhecia aquele jogo, se fosse obrigada a isso. Não pudemos evitar.

            — Jeff disse-me. Bem, hoje está calor  — acrescentou, olhando lá para fora, para o mar. Estava um dia claro, luminoso e muito quente, mesmo àquela hora da manhã. Talvez queiram ir jogar tênis para o clube antes que o tempo aqueça mais.

            Mas Jeff não estava interessado.

            — Podemos jogar na Califórnia. Viemos cá para estar com você. Precisa que lhe façamos algum recado esta manhã?

            — Não, obrigada  — respondeu Srª. Hamilton secamente. O almoço é ao meio-dia. Calculo que não queira tomar um grande café da manhã a esta hora... Srtª. Allegra, mas há café e chá na cozinha, quando estiver vestida.

            Por outras palavras, não ande pela minha casa de camisola... A mensagem era clara, embora não verbalizada. Não fique a manhã inteira na cama. Não durma com o meu filho debaixo do meu teto. Não seja tão familiar. Não se aproxime mais.

            — Às vezes, a minha mãe é um pouco fria, a princípio  — tentou explicar-lhe Jeff quando desceram juntos, meia hora mais tarde. Allegra vestira uns calções cor-de-rosa e uma camiseta a condizer e calçara tênis. Não sei se ela é tímida ou apenas distante. Leva bastante tempo a conhecer as pessoas.

            — Compreendo. Allegra olhou para ele, enlevada, e sorriu. Você é o seu único filho. Não deve ser fácil para ela ‘perder-te’ e ver-te casado.

            — Acho é que vai ficar aliviada! — disse ele, soltando uma gargalhada. Costumava arreliar-me por causa disso, mas desistiu há muito tempo.

            Allegra teve vontade de lhe perguntar se ela também desistira  de rir ou mesmo de sorrir; parecia que não o fazia desde os tempos da Inquisição espanhola.

            Quando desceram, a Srª. Hamilton encontrava-se na cozinha  dando instruções à velha cozinheira irlandesa. Lizzie trabalhava para os Hamilton há quarenta anos e fazia tudo exatamente como ela queria, conforme explicava a todas as pessoas que a ouvia. Sobretudo as ementas.

            Estavam falando do almoço nesse preciso momento. A  Srª. Hamilton dissera-lhe para fazer uma salada de camarão e um aspic de tomate. Havia pão quente e farófias para a sobremesa. Para Allegra, era uma refeição muito característica do Leste.

            — Comemos lá fora explicou Srª. Hamilton.

            — Não se incomode, mãe. Não precisa de fazer cerimônia conosco: não somos visitas, somos da família.

            A mãe deu-lhe um olhar surpreso e gélido, como se não fizesse idéia do que ele estava dizendo.

            Depois do café e dos pãezinhos, Allegra e Jeff foram dar um passeio pela propriedade e em seguida desceram à praia. Allegra fez um esforço para se libertar da tensão que sentia. Srª.  Hamilton parecia criar um ambiente de mal-estar à sua volta, e aparentemente Jeff não dava por isso, como se considerasse que o seu rigor espartano e frio era normal. Talvez o fato de ter sido criado assim o tornasse mais tolerante, mas não percebia como é que ele podia ser tão carinhoso e afável com uma mãe que parecia um icebergue.

            Quando voltaram para casa, Srª. Hamilton estava à espera deles no alpendre, onde se encontravam dois jarros com chá gelado e limonada. Não havia vinho nem sinais de bebidas alcoólicas, embora Allegra não lhes sentisse a falta. Sentou-se numa das velhas cadeiras de vime e conversou com a futura sogra acerca da casa. Pertencera à tia do marido, que a herdara quando ela morrera, há trinta e nove anos, antes do nascimento de Jeff. Ele sempre fora para ali, explicou, e um dia a casa seria dele, acrescentou, com um ar pensativo e uma expressão dura.

            — Tenho a certeza de que a venderá  — declarou Srª. Hamilton.

            — Porque diz uma coisa dessas?

            Jeff ficara magoado por ela o considerar tão pouco sentimental.

            — Não te imagino vivendo outra vez no Leste, sobretudo agora, que vais casar com uma pessoa da Califórnia.

            — Era uma acusação, que não foi acompanhada de votos de felicidade.

            — Não faço idéia onde iremos viver  — respondeu Jeff com diplomacia, sem querer ferir os sentimentos da mãe.

            Para Allegra a situação começava a tornar-se impossível, era como se estivesse dentro de uma camisa-de-força. Nunca conhecera ninguém assim. Srª. Hamilton era completamente diferente dos pais.

            — Acabo o filme em Setembro, antes do casamento, e vou começar outro. Quem sabe onde iremos parar?

            Jeff sorriu vagamente e Allegra ficou a olhar para ele. O que estava a dizer? Ela exercia advocacia na Califórnia, e o seu ramo não tinha aplicação noutro lado exceto em Hollywood, e ele bem sabia. De qualquer modo, a mãe não se mostrou impressionada com as suas palavras. Pouco depois foram chamados para almoçar. Foi uma refeição formal e estranha, servida por Lizzie, durante a qual Jeff e Allegra se esforçaram por arranjar motivos de conversa.

            Depois, quando voltaram à praia, Allegra perguntou a Jeff o que quisera ele dizer quando afirmara que não sabia onde iriam viver.

            O que eu faço não é propriamente transportável, como sabes, tenho uma profissão muito específica.

            Jeff aborrecera-a com o que dissera e tinha consciência disso, mas tentara mostrar-se condescendente para com a mãe.

            — Eu não queria que a minha mãe sentisse que o único filho a abandonara para sempre. Além disso, tu podias exercer em Nova Iorque, se quisesses. Há a Broadway e certas personalidades da música e também da televisão.

            — Pois, as dos noticiários... Jeff, sê realista: o que eu faço só existe em Los Angeles. Eu sou advogada de artistas!

            — Compreendo, mas podia alargar os seus horizontes, se quiser.

            Jeff estava sendo obstinado e Allegra entrou em pânico.

            — Isso não seria alargar, mas sim estreitar respondeu, pouco à vontade. Eu perderia mais de metade dos meus clientes.

            — E todos aqueles telefonemas de madrugada... As pessoas de Nova Iorque não fazem coisas dessas, são mais profissionais — insistiu ele.

            De súbito, Allegra apercebeu-se de que Jeff parecia outra pessoa em Southampton.

            — Não sei se compreendo o que está me dizer, mas quero que saiba que adoro o meu trabalho e que não tenciono desistir dele e mudar-me para Nova Iorque. Isso nunca fez parte do nosso acordo. Que conversa é essa agora?

            Fez-se um longo silêncio e Jeff olhou para ela cautelosamente.

            — Eu sei que adora o teu trabalho e que é muito eficiente, mas eu sou do Leste, e seria agradável saber que um dia poderíamos voltar para aqui, se concluíssemos que era esse o nosso desejo.

            — É isso que você quer? — perguntou Allegra. Jeff nunca lhe falara com tanta clareza. Julguei que estava tentando adaptar-te a Los Angeles e que tinha compreendido que, quando casasse comigo, viveríamos lá. Essa solução já não te serve? Porque, se é esse o caso, talvez seja melhor falarmos do assunto agora, antes de um de nós cometer um erro terrível.

            Allegra estava em pânico com o que ouvira. O fim-de-semana ameaçava tornar-se muito desagradável.

            — Eu compreendo, sei que tens raízes em Los Angeles, Allegra  — disse ele devagar.

            Furiosa, Allegra retrucou:

            — Deixa de ser condescendente comigo, raios! Eu não sou uma criança, eu compreendo, mas não vou mudar-me para Nova Iorque, e, se a surpresa é assim tão grande, é melhor reconsiderarmos o que estamos fazendo. Talvez seja preferível vivermos juntos por uns tempos, até você perceber o que sente pela Califórnia.

            — Eu gosto muito da Califórnia  — respondeu Jeff, tenso. Não compreendia o que lhe passara pela cabeça. Também para si o fim-de-semana não estava sendo fácil. Sabia como a mãe era inflexível e como fora pouco acolhedora. Ouve, não está em causa desistires da tua carreira. Estamos falando de hipóteses, e eu não queria que ela pensasse que eu ia vender a casa assim que ela fechasse os olhos, Deus me livre! A casa é muito importante para a minha mãe e, quem sabe? Talvez pudéssemos trazer os nossos filhos para aqui no Verão. Isso agradar-me-ia.

            Jeff olhou para ela com ar pesaroso e Allegra acalmou-se e encolheu as garras.

            — Eu também gostaria, mas julguei que estava tentando dizer-me que esperava que me mudasse para o Leste assim que nos casássemos.

            — Não! Vamos esperar um ou dois meses, está bem? Talvez em Novembro... —  Jeff riu-se. Desculpe, querida, não queria te ameaçar. Sei que trabalha muito e que é extremamente eficiente. Pouco falta para chegares a sócia, a menos que forme a tua própria empresa, mas... Como hei-de explicar?... As pessoas do Leste são lentas para desistir. Eu nunca me convenci de que partiria para sempre, disse apenas a mim próprio, e a todas as pessoas, que ia para a Califórnia escrever um argumento, e talvez outro... E a seguir um livro... E um dia acabo por reparar que se passaram vinte anos e ainda continuo lá. Mas isso acontece a pouco e pouco; não consigo jogar fora a minha costela do Leste em cinco minutos.

            — Nunca há-de conseguir. Allegra beijou-o quando atravessavam as dunas atrás da casa. Agradava-lhe a idéia de possuí-la para os seus filhos, um dia, sobretudo sem a presença da mãe de Jeff. Continua a parecer um colegial gracejou.

            — O que deveria eu parecer?

            — Apenas o que é.

            Beijou-o outra vez e reparou no olhar de censura que a mãe de Jeff lhe deu do alpendre. Parecia muito inflexível, o que não era agradável. A sua presença gerava tensão em ambos, em Jeff, supostamente porque tinha de arcar com a responsabilidade por todos, e em Allegra, porque se sentia obrigada a conquistar a aprovação de Srª.  Hamilton.

            — Cuidado com as queimaduras avisou-a Srª. Hamilton, que tinha uma pele sensível, quando se serviam de limonada no alpendre.

            — Obrigada. Eu uso um protetor solar  — respondeu Allegra com delicadeza.

            A Srª. Hamilton observou a noiva do filho quando esta se sentou num confortável balanço a bebericar o refresco.

            — Parece que toda a sua família está ligada ao mundo do espetáculo... Allegra  — disse a Srª. Hamilton, como se não conseguisse acreditar.

            — Exceto o meu irmão  — respondeu a jovem, com um sorriso prazenteiro. Está a estudar Medicina em Stanford.

            Esta foi a primeira coisa que fez sorrir genuinamente a mãe de Jeff desde que haviam chegado.

            — O meu pai era médico. Por sinal, quase toda a família, exceto a minha mãe, evidentemente. Eram todos médicos.

            — O Scott quer ser cirurgião ortopédico. Nós, os restantes, fomos apanhados pelo ‘mundo do espetáculo’, como a senhora disse. A minha mãe escreve, dirige e produz, tem muito talento. O meu pai é produtor de cinema e eu dou apoio jurídico a artistas.

            — O que significa exatamente isso?

            A Srª.  Hamilton fitou Allegra como se ela viesse de outro planeta e fosse humana apenas na aparência.

            — Significa que distribuo muitos cumprimentos e que recebo uma série de telefonemas às quatro da manhã

            Srª. Hamilton ficou escandalizada com as palavras de Allegra e preparou a pergunta seguinte:

            — São todos assim tão mal-educados no mundo do espetáculo?

            — Só quando são presos  — respondeu Allegra com naturalidade, gozando o efeito do que acabara de dizer. A Srª. Hamilton merecia. Merecia muito mais! Allegra resolvera dar-lhe uma boa sacudida. Era a pessoa menos hospitaleira, menos agradável e menos terna que conhecia. E agora tinha pena de Jeff: era óbvio que só herdara os genes do pai, e nenhum da mãe.

            — Muitos dos seus clientes são presos? — perguntou Srª. Hamilton de olhos esbugalhados.

            Até Jeff estava divertido, mas Allegra já não.

            — Alguns. É por isso que precisam de mim. Eu pago-lhes as fianças, escrevo-lhes os testamentos, redijo-lhes os contratos, reorganizo as suas vidas e ajudo-os a resolver os problemas. É muito interessante e eu gosto muito.

            — A maioria dos clientes dela são grandes estrelas de cinema, mãe. Havia de ficar impressionada se os conhecesse!

            Mas Jeff não se ofereceu para enumerá-los; isso adensava o mistério.

            — Não duvido que seja um trabalho muito interessante. E também tem uma irmã?

            Allegra respondeu com um aceno de cabeça, pensando na pobre Sam, barriguda, e no bebê de que seria obrigada a desistir em Agosto.

            — Tenho, com dezessete anos. Ainda anda no colégio —  respondeu, e não ‘faz passagens de modelos de vez em quando e está grávida’. Pouco faltou para dar uma gargalhada. Vai para a universidade no Outono, estudar Teatro.

            — Mas que família estranha...

            Seguiu-se um breve silêncio, quando o balanço chiou, e a pergunta seguinte quase fez Allegra desistir da conversa; nunca esperara que ela fosse tão descarada!

            — Diga-me, Allegra, é judia?

            Jeff ia caindo da cadeira ao ouvir a resposta de Allegra.

            — Por acaso, não replicou friamente. Sou episcopaliana. Mas o meu pai é, e eu percebo muito de judaísmo. Queria saber alguma coisa acerca da religião judaica? — rematou, com delicadeza.

            No entanto, a Srª. Hamilton não lhe deu troco; era uma velha sabida e não se importava que Allegra não gostasse dela. Jeff estava horrorizado.

            — Também não pensei que fosse. Não tem aspecto —  disso retorquiu com desenvoltura.

            — Nem a senhora. Mas é? — continuou Allegra, imperturbável.

            Jeff ia-se engasgando e foi obrigado a virar-se para o lado, para que a mãe não o visse rir-se. Srª. Hamilton estava completamente escandalizada; nunca lhe haviam perguntado tal coisa.

            — Claro que não. ‘Hamilton’? Você está doida?

            — De modo algum. Porque não? Allegra parecia muito à vontade, e a mãe de Jeff continuava a não perceber; mas Jeff percebia, e estava mortificado.

            — Então depreendo que a sua mãe não é judia insistiu, aliviada pelo fato de os futuros netos não serem conspurcados. Mesmo assim, Allegra devia ser metade judia, por causa do pai.

            — Não, e o pai dela também não é  — interveio Jeff, decidido a libertar a mãe daquela agonia e a poupar-se a si mesmo e a Allegra aos seus comentários venenosos. Era como se estivesse traindo Allegra, mas era obrigado a isso, para seu próprio bem. O pai de Allegra é médico em Boston e chama-se Charles Stanton.

            — Então porque não usa o sobrenome dele? — perguntou Srª. Hamilton, olhando para Allegra com ar de censura.

            — Porque o detesto e não o vejo há anos  — respondeu Allegra serenamente. Quatro anos de psicoterapia tinham surtido algum efeito. Aquela era a conversa mais desagradável em que participara, e pouco faltava para dizer isso mesmo. Francamente, depois do que vi na minha família ao longo de todos estes anos, gostaria de criar os meus filhos na religião judaica. O meu irmão e a minha irmã são judeus, e eu acho que é uma coisa formidável para toda a gente.

            Jeff admitiu ter de reanimar a mãe e deu um olhar ácido a Allegra, que o retribuiu imediatamente: ele traíra-a só para calá-la! No fundo, os seus olhos diziam ‘está bem, está bem, desculpa, sabe que não foi por mal’. Mas havia de pagá-las... A mãe dele não só era afetada e desagradável, com água gelada nas veias, mas também anti-semita. Como é que Jeff saíra tão humano?

            — Calculo que esteja brincando  — retorquiu Srª.  Hamilton com frieza, mudando de assunto.

            Pouco depois, Allegra e Jeff foram vestir-se para o almoço. Cada um dirigiu-se para o seu quarto, mas, assim que mudou de roupa, Jeff saiu do seu sem ser visto e foi ter com Allegra.

            — Antes de me atirares uma cadeira à cabeça, quero pedir desculpa. Eu sei que te traí, mas foi só para te calar; esqueço-me sempre como ela é limitada em coisas deste gênero. A minha mãe pertence a um clube no qual não deixam entrar judeus há dois séculos. Para ela, isso é importante.

            — Também era importante para Hitler e para os amigos dele.

            — Este caso é diferente; é mesquinho, estúpido e ‘social’. A minha mãe considera que é aristocrática odiando todas as pessoas que não são como ela, mas isso não quer dizer nada, e você sabe que eu não penso dessa maneira. Não me interessa que eduque os nossos filhos no judaísmo ou no budismo. Amo-te, seja qual for o teu nome. Será Hamilton dentro de muito pouco tempo, portanto, porque nos havemos de preocupar?

            A mãe fazia-o sentir-se muito embaraçado e Allegra apercebia-se disso. Na realidade tinha pena dele e não estava tão zangada como devia, por causa de Simon. A situação era essencialmente ridícula.

            — Como é que tens suportado isto, Jeff? Ela não é aberta, nem meiga, nem de trato fácil.

            — Mas era, ou pelo menos era um pouco mais... —  disse ele, tentando defendê-la. Fechou-se em si mesma quando o meu pai morreu... Ficou destroçada sem ele.

            No entanto, Allegra não conseguia imaginá-la mais simpática do que era agora. Era uma víbora!

            — Não te sentia só com ela?

            — Às vezes, mas nós habituamo-nos. A família dela era toda assim. Já morreram...

            — E o que faziam quando se reuniam? Cubos de gelo?

            — Ela não é tão má como isso  — disse Jeff, puxando para cima o fecho do vestido preto de Allegra.

            Nesse momento, a mãe bateu à porta, e ele percebeu que não devia estar ali. Esgueirou-se para o banheiro, depois de lhe fazer sinal para que não o denunciasse. Allegra foi abrir a porta a Srª. Hamilton, que viera avisá-la que o jantar estava na mesa e que, talvez para atenuar o efeito dos seus comentários anteriores, lhe disse que ela estava muito bonita. A verdade é que passara a gostar muito mais de Allegra depois de saber que o seu verdadeiro sobrenome não era Steinberg.

            Allegra desceu as escadas atrás dela e Jeff apareceu, vindo não se sabia de onde. Como que por milagre, sobreviveram ao jantar, sobretudo porque se concentraram em temas seguros, como as viagens à Europa, arte e ópera. Foi a conversa mais enfadonha que Allegra se lembrava de ter mantido e, felizmente, a Srª. Hamilton foi para a cama depois do jantar. Nessa noite, Jeff e Allegra desceram até à praia e tomaram banho. Depois se estenderam na areia e ele abraçou-a.

            — Não se divertiu muito aqui, pois não?

            Allegra deitou-se de costas e suspirou, ao luar. Jeff queria realmente que ela fosse sincera ou não. Levou algum tempo a decidir o que havia de responder.

            — Foi diferente. Foi a resposta mais diplomática que encontrou.

            — Muito diferente da tua família  — reconheceu. Sentia-se culpado por tê-la trazido, mas tinha de apresentá-la à mãe. A tua família é muito terna, afável e extrovertida. Estão sempre todos a rir, a conversar ou a contar uma história engraçada. Gostei deles assim que os vi!

            Jeff sentia-se envergonhado por causa da mãe; até ele tinha de admitir que Srª.  Hamilton fora terrível para Allegra. Ao olhar para Jeff, ao ver como se sentia mal, Allegra tentou desdramatizar a situação.

            — Ela faz-me lembrar muito o meu pai. Não é que ele seja como a tua mãe, mas tem a mesma falta de capacidade de sentir, de exprimir ou de dar que é típica da classe alta do Leste. Reprovam tudo. O meu pai nunca gostou de nada em mim, e isso me matou. Agora não me importo... E a tua mãe também é assim; eu teria de lutar, suplicar e rastejar para conseguir a aprovação dela, se a quisesse, e talvez nunca a conseguisse. Estas pessoas divertem-se a impor restrições, é uma arte especial. E ela tem-na, tal como o meu pai.

            — Também era severa comigo, mas nada como foi para ti este fim-de-semana. Nunca a vi assim! —  confessou, desolado.

            — Eu sou uma grande ameaça. Te roubei Nova Iorque e agora a ela. A sua mãe não deve ter muito mais com que se entreter. Era compreensível, mas nem por isso Allegra gostava mais dela. Talvez melhore... — acrescentou, mais para animar Jeff do que por convicção

            Nessa noite dormiram outra vez os dois no quarto cor-de-rosa, mas dessa vez Jeff pôs o despertador para as sete e meia. Assim que acordou, voltou para o seu quarto, tomou uma ducha, vestiu-se e fez a mala. Em seguida foi acordar Allegra. Já bastava! Já tinham feito o que os trouxera ali e marcara o regresso para um dos primeiros vôos do dia. Depois de descer com Allegra para tomar o café da manhã, avisou as duas mulheres de que se iam embora no avião da uma, o que os obrigava a partir de Southampton às dez da manhã. Explicou-lhes que telefonara ao diretor e que havia problemas com o filme, por isso precisava regressar cedo.

            — O que se passa? — perguntou Allegra, preocupada com ele. Dormira como um bebê e sentia-se de novo forte e capaz de suportar as ofensas de a Srª. Hamilton.

            Quando saiu do quarto, Jeff explicou-lhe em voz baixa que já ali estavam há muito tempo e que já haviam cumprido o seu dever. Ele próprio não suportava aquele ambiente nem mais um minuto.

            — Tem certeza? —  perguntou em surdina, inclinando-se sobre os bolinhos de canela.

            Jeff fez um sinal afirmativo. Allegra não queria afastá-lo da mãe, mas ele ainda estava mais ansioso por se ir embora.

            À saída, recordou à mãe a data do casamento e disse-lhe que esperavam vê-la nessa altura. Abraçou-a com força, embora não fosse correspondido na mesma medida, e deu uma pequena gratificação a Lizzie. Allegra mal pôde conter o riso quando viu o carro que ele mandara chamar: alugara a limusine mais comprida da agência! Era branca e tinha um bar, televisão e sabe Deus mais o quê lá dentro. A Srª. Hamilton preferia morrer a ter aquilo à entrada da sua casa, mas Jeff parecia muito satisfeito.

            — São comuns na Califórnia, mãe. Vamos arranjar-lhe uma para o casamento  — disse, muito sério, dando-lhe um beijo de despedida.

            Entregou as malas ao motorista e partiram com um último adeus. A Srª. Hamilton parecia uma figura trágica na rampa da sua casa. Era a mais só das mulheres, mas também a mais mesquinha, e, na opinião de Allegra, não valia o trabalho que dera.

            Jeff tinha uma vida passada com ela, mas Allegra sabia que isso nunca aconteceria consigo. E também sabia que, depois daquele fim-de-semana, Jeff nunca mais a convenceria a ir lá. Haviam feito tudo o que podiam, tinham cumprido a sua obrigação, mas era inútil.

            — Estava pensando se não seria melhor usarmos solidéus no casamento  — disse ele quando iam na auto-estrada.

            — Você é atrevido e irreverente... Acaba com isso? E onde arranjou este carro? Allegra riu. Não tem respeito por nada!

            Riram e Jeff beijou-a. Estava ansioso por chegar em casa para ir para a cama com ela; só o seu forte sentido de posse é que o impedia de fazer amor naquela incrível limusine branca

No entanto ambos reconheceram em silêncio, pelo modo como se agarraram um ao outro e se acariciaram, que fora um fim-de-semana horrível.

            — Desculpa, Allegra, não sei como não imaginei que iria ser assim. Devo ter tido um problema de rejeição. Talvez devesse ir consultar a Drª. Green durante uns tempos, para me penitenciar.

            — Acho extraordinário que tenha sobrevivido a ela todos estes anos! — exclamou Allegra com admiração. Mary Hamilton era a mulher mais fria que conhecera, e Jeff era completamente diferente.

            — Eu nunca lhe dei muita atenção, e o meu pai era um pouco como o Simon.

            — Deve ter sido isso que se salvou  — disse ela com naturalidade

            Durante o resto do caminho falaram de outras coisas. Apeteceu-lhes ajoelhar e beijar o chão quando regressaram à Califórnia, e ainda mais quando chegaram a Malibu. A primeira coisa que fizeram foi rasgar a roupa um ao outro. Nem sequer foram para a cama, enroscaram-se no sofá da sala e nunca fizeram amor com tal intensidade. O ambiente repressivo em que tinham vivido nos dois últimos dias quase os levara à loucura. Allegra nunca se sentira tão feliz por regressar a casa. Não tencionava voltar a ver a mãe dele tão cedo.

 

            Na manhã de segunda-feira, depois do fim-de-semana em Nova Iorque, Jeff foi para o estúdio às três da manhã, como de costume, e Allegra começou o dia a ler uma pilha de faxes e de jornais. Estavam ambos bem-dispostos e satisfeitos por regressar, sobretudo depois da noite anterior, mas Allegra franziu o sobrolho ao deparar com um fax urgente do produtor de Carmen. Dizia que ela andava de tal modo deprimida que mal conseguia trabalhar no estúdio, e, na sexta-feira, ficara completamente alterada com o artigo sobre o aborto publicado nos tablóides.

            Eram seis horas quando Allegra leu o fax. Como, pelos seus cálculos, Carmen ainda devia estar no estúdio a essa hora, resolveu ir ter com ela.

            Organizou os seus documentos, de modo a levar alguns para ler lá, se fosse necessário, e por volta das seis e meia saiu. Às sete estava junto de Carmen. O produtor não exagerara: o seu estado era lastimoso. Passara o fim-de-semana em casa, a chorar por causa do artigo, e continuava profundamente deprimida com a perda do bebê.

            — Precisa ir a um psicoterapeuta  — disse Allegra em tom sereno, enquanto Carmen se assoava pela milésima vez nessa manhã.

            — Eles não fazem milagres! O meu bebê morreu e esta gente horrível publica mentiras a meu respeito!

            — Os jornais publicam mentiras a respeito de todos, mas não pode permitir que isso destrua a tua vida e a do Alan. Tens de lhes mostrar que não se importa, e tem de provar ao Alan que é capaz de fazê-lo. Julga que ele quer passar o resto da vida agarrado a uma incapaz, que se vai abaixo sempre que alguém a maltratar com críticas? Carmen, isso é ridículo!

            Allegra passou horas a animá-la e assistiu às filmagens. Carmen estava deprimida, mas continuava a fazer um bom trabalho em estúdio, isso era indiscutível.

            Eram dez horas, e Allegra ainda lá estava, quando foram avisá-la, ao estúdio fechado, de que tinha um telefonema urgente do escritório. Foi atender a chamada numa sala à prova de som. Era Alice, que disse ter uma chamada urgente de Delilah Williams, a consultora matrimonial.

            — Ela telefona-me para aqui? —  perguntou Allegra, incrédula.

            — Não, fui eu  — respondeu Alice, desculpando-se. Ela disse que tinha a máxima urgência em falar com você.

            — A mulher perdeu a cabeça?

            — É bem possível. Passo a chamada?

            — Está bem, mas quando eu estiver aqui, nunca mais o faça, tome nota da mensagem.

            — Allegra? — disse a garça gigante vestida de púrpura, mais medonha do que nunca. Você não respondeu a um único dos meus telefonemas! O seu tom de censura lembrava o de um amante furioso. Não sei nada do bolo, nem da música na igreja, nem da recepção, nem tão-pouco da cor do vestido das damas de honra!

            Delilah estava claramente fora de si, mas não tanto como Allegra, que ficara lívida.

            — Você apercebe-se de que me telefonou para um estúdio fechado? Imagina quanto isso é inconveniente, para não dizer impróprio? E se eu não liguei para você foi porque tenho andado demasiado ocupada tirando clientes da cadeia e a acompanhá-los em tournées ou em filmagens E a última coisa de que preciso é que me andem me alfinetando por causa das damas de honra!

            — Ao menos já sabe quem elas são?

            Parecia furiosa, mas Allegra estava ainda mais. Tinha que trabalhar e que prestar assistência aos seus clientes, não se podia incomodar com coisas absurdas!

            — Eu já escolhi as damas de honra —  respondeu, condescendendo um pouco, mas sem querer acreditar que aquela conversa era da ‘máxima urgência’. Estaria ela a pensar no bolo ou na música? Vou dar instruções à minha secretária para lhe enviar uma lista com os nomes  — acrescentou, furiosa por ter sido incomodada.

            — Precisamos de saber as medidas delas  — insistiu Delilah Williams com igual determinação. Estava habituada a lidar com pessoas como Allegra, médicos, advogados, psiquiatras, celebridades, atrizes, nenhum deles capaz de organizar um casamento. Todos se julgavam demasiado ocupados e importantes para isso, mas esse era o seu papel, e sabia obrigá-los a terem maneiras, se fosse preciso. Tem as medidas delas? — perguntou, com uma voz que Allegra só imaginava nas atrizes.

            — Diga à minha secretária que lhes peça.

            — Com certeza  — retorquiu Delilah, satisfeita com a comunicação. A propósito, não posso acreditar que ainda não tenha encontrado um vestido! Precisa de se esforçar mais!

            — Tenho de regressar ao trabalho  — vociferou Allegra, frustrada com o estado de nervos em que a mulher a deixara. Não queria ser indelicada, mas em certas ocasiões não havia alternativa.

            Assim que desligaram, telefonou à mãe, para a estação, e apercebeu-se de que estava a tremer.

            — Se não me tira aquela mulher do meu caminho, mãe, eu mato-a!

            — Qual mulher? Na mente de Blaire, a única mulher que merecia tal coisa era Elizabeth Coleson, mas não lhe parecia que Allegra a conhecesse.

            — Qual mulher? Aquela idiota que a mãe pôs atrás de mim para organizar o casamento. Preferia mil vezes festejá-lo no parque e servir cachorros-quentes e Twinkies do que ter esta mulher a telefonar-me para um estúdio fechado para discutir a música, o bolo e a ‘cor do vestido das damas de honra’. Mãe, não me faça uma coisa destas!

            — Confia em mim, querida. Ela vai fazer um magnífico trabalho e você vai ficar muito satisfeita.

            Era inimaginável! Allegra rolou os olhos nas órbitas, despediu-se de Blaire e voltou para junto de Carmen.

            — Está tudo bem?

            Por uma vez, Carmen parecia interessar-se por algo que não fossem os seus próprios problemas.

            — Nem vai acreditar! — exclamou Allegra, exasperada.

            — Conta.

            — A consultora matrimonial que a minha mãe contratou telefonou para importunar-me!

            — O quê? — admirou-se Carmen, enquanto tirava a maquiagem. Consultora matrimonial? O que é isso?

            — O que eu fiz quando comprei as cabeleiras e os trajes de poliéster, e o ramo de flores de plástico, para Las Vegas

            — É isso que ela anda fazendo? —  Excepcionalmente, Carmen estava divertida, e Allegra riu.

            — Espero que não, mas nunca se sabe. Vocês é que foram espertos, ao escolherem Las Vegas.

            — Vocês podem fazer o mesmo  — disse Carmen. Todos tinham adorado, e essa solução cada vez fazia mais sentido para Allegra e para Jeff, para evitarem todo o aparato do casamento.

            — A minha mãe ficaria destroçada se eu a privasse de uma festa no meu casamento.

            No entanto teria valido a pena, só para não voltar a ver Mary Hamilton. De certa maneira, era uma tentação, pensou Allegra.

            Acabou por ficar junto de Carmen até ao almoço. Depois regressou ao escritório para organizar e assinar vários documentos. Tinha de estar no gabinete de Suzanne Pearlman às duas e meia; iam conhecer outro grupo de pais, que tinham vindo de Chicago. Era espantoso como as pessoas percorriam o país de avião, à procura de bebês, entrevistando garotas que queriam dar os seus filhos para adoção e a ser interrogados por elas; parecia ser uma preocupação enorme. Contudo, ao ver como Carmen ficara obcecada com a perda de um feto de dois meses, Allegra começava a perceber: ter, manter e conseguir bebês transformara-se numa obsessão.

            Prometera a Sam que iria buscá-la a casa, e atravessou Bel Air, a caminho do escritório de Suzanne Pearlman. Ficou admirada ao ver como a irmã aumentara de volume em poucos dias. Estava grávida de sete meses e enorme e, de certo modo, o estranho contraste fazia que parecesse ainda mais jovem.

            — Como tens passado? —  perguntou Allegra quando a irmã entrou no carro.

            Sam trazia um vestido cor-de-rosa curto que lhe acomodava  a barriga, sandálias de atilhos, o cabelo louro penteado em um rabo-de-cavalo e uns grandes óculos escuros. Parecia a Lolita de Nabokov.

            — Bem  — respondeu ela, com um gesto de cabeça, dando um beijo à irmã. Estava-lhe agradecida pela sua companhia. Já conhecera vários casais e detestava essas situações; sentia-se sempre mal e não gostara de nenhum. Talvez os Whitman... Mas também não eram perfeitos. E Nova Iorque?

            — Interessante —  respondeu Allegra, lacônica. Sam riu; conhecia a irmã.

            — Olá... Isso não me soa bem.

            — Não correu bem.

            — Ela era uma cabra?

            — Completamente! Um icebergue humano. Estava com medo que eu fosse judia. Acreditas?

            — Espera que o pai a conheça... Ele vai adorar!

            — Nem posso pensar que  volto a vê-la, mas tem de ser. Não sei como é que o Jeff saiu tão normal!

            — Talvez tenha sido adotado  — disse Sam tristemente. Apesar do gracejo, não se esquecia do sítio aonde iam nem do motivo: ia conhecer outro casal que poderia vir a adotar o seu bebê, e só de pensar nisso ficava deprimida. Tentara explicar a Jimmy o que sentira da última vez que lá fora, e ele oferecera-se para acompanhá-la, mas Sam recusara; o casal poderia ficar confuso e julgar que Jimmy era o pai do bebê. Ela estava sempre disposta a contar aos potenciais pais adotivos o pouco que sabia de Jean-Luc, embora isso a fizesse sentir-se muito mal: era alto, bem-parecido e louro, era fotógrafo, francês e tinha cerca de trinta anos, o que significava que era estrangeiro, talvez com talento e atraente. Além disso, não podia dizer-lhes mais nada. Paradeiro: desconhecido. Sam não tinha uma história para lhes oferecer.

            Chegaram ao escritório de Suzanne dez minutos depois de Allegra ter ido buscar Sam em casa e subiram no elevador, em silêncio.

            Suzanne tinha uma sala de espera agradável, com gravuras artísticas de cores alegres e pilhas de revistas, que eram de dois tipos: World of Interiors, Parenting Magazine, Vogue, Connaissance dês Arts, Town & Country, Architectural Digest, para os futuros pais, e Seventeen, Rolling Stone, Elk, Young and Modem e até Mad, para as mães. Porém, nem Allegra nem a irmã pegaram numa revista, ficaram ali sentadas, à espera, com ar abatido. Cinco minutos depois, a recepcionista mandou-as entrar. O casal de Chicago já estava com Miss Pearlman. Assim que Sam os viu, percebeu que não gostava deles; eram nervosos e falavam muito das viagens que queriam continuar a fazer, de esqui e da sua última ida à Europa. Ela era assistente de bordo e ele trabalhava numa companhia de seguros e tinha a seu cargo uma grande área do Midwest. Não tinham filhos e haviam tentado a fertilização in vitro, mas o método era demasiado dispendioso a longo prazo, e estavam cansados de tentar. Sam já ouvira muitas histórias semelhantes

            — O que farão com o  bebê quando forem viajar perguntou, cheia de curiosidade

            — Deixamo-lo com uma baby-sitter  — respondeu o marido

            — Contratamos uma ama —  acrescentou a mulher

            — Porque querem adotar um bebê.

            Sam foi direita ao assunto, tal como faria a irmã mais velha, e Allegra sorriu

            — Eu tenho trinta e oito anos, a Janet trinta e cinco, e consideramos que chegou o momento —  respondeu ele, como se estivessem falando da compra de um automóvel. Todos os nossos amigos têm filhos. Vivemos nos subúrbios

            Moravam em Naperville, mas isso não era motivo suficiente para Sam lhes entregar o bebê. Não eram nada simpáticos

            — Mas querem mesmo um bebê  —  insistiu, verificando que tinham ficado atrapalhados com a sua pergunta.

            — Se não quiséssemos, não estaríamos aqui  — retorquiu Janet, tentando causar uma melhor impressão na garota, mas sem grandes resultados. Também eles não gostavam de Sam; parecia-lhes uma pessoa sobranceira e as suas perguntas eram muito contundentes.

            — Temos passagens gratuitas da companhia aérea, mas parece que viemos aqui para nada  — resmungou Paul.

            Sam olhou para Allegra

            — Têm mais algumas perguntas a fazer? — A advogada percebera que a entrevista não estava  correndo bem e que Sam não gostava deles.

            — Não, acho que é suficiente —  respondeu Sam com delicadeza.

            O casal saiu e ficou à espera noutra sala. Pouco depois Suzanne voltou, com um ar cândido, para trocar impressões com Sam e Allegra.

            — Detesto-os! — disparou Sam de chofre, assim que Suzanne entrou na sala.

            — Não me diga! — replicou Suzanne, rindo para suavizar o ambiente. Eu também me apercebi disso. Por quê?

            Embora soubesse o motivo, queria comprovar.

            — Eles não precisam de um bebê, deviam era comprar um cão! Só pensam em andar  viajando, porque têm bilhetes gratuitos, e vão entregá-lo a uma baby-sitter. Eles querem um filho só porque toda a gente tem um nas redondezas. Porque não se mudam para a cidade e esquecem o assunto?

            Sam foi cortante. Havia muita gente convencida de que queria bebês, mas na realidade não os desejava. Procuravam alcançar uma sensação de plenitude, de realização, talvez tentar salvar o casamento ou sentir-se jovens outra vez. Podiam querer muita coisa, mas não um bebê. Para elas, ter um bebê  ou adotá-lo não seria solução.

            — Não lhes vou dar o meu bebê! — disse Sam, resoluta.

            Allegra estremeceu ao ouvi-la. De repente, Sam começara a falar no ‘seu bebê’. A criança era agora muito mais real e Sam estava a sentir-se profundamente apegada a ela, apesar de fingir que não.

            — Eu compreendo  — assegurou Suzanne com ar calmo. E os Whitman, de Santa Bárbara? Eles estão muito interessados em você, Sam. Gostariam de levar o caso até ao fim.

            — Até agora, são aqueles de que mais gosto, mas ainda estou pensando  — admitiu Sam.

            Era como se alguém tentasse fazer um grande filme com um produtor de dezessete, quinze ou mesmo catorze anos. De súbito, Allegra sentiu-se aliviada por não ser aquela a sua especialidade.

            — Em que está pensando? — perguntou Suzanne.

            — Estou a tentando apurar se gosto ou não deles.

            — Porque hesita?

            Era nisto que Suzanne era muito boa: na mistura e na convivência entre mães abandonadas e pais adotivos.

            — Não sei, são um pouco velhos —  respondeu Sam honestamente. Os Whitman estavam ambos perto dos quarenta e nunca haviam tido filhos.

            — Eles tiveram muito pouca sorte —  explicou Suzanne, mais por Allegra do que por Sam, que já conhecia a história.

            Da última vez, Sam fora com a mãe. Apesar de Allegra fazer o possível por acompanhá-la, Blaire viera duas vezes, mas Simon nunca, não era capaz. A perspectiva de a filha ir ter um bebê e de, ainda por cima, o ir dar deixava-o destroçado. Nem queria ouvir falar no assunto! Só o fato de olhar para Sam já era penoso: estava tão inchada que parecia uma uva, mas, ao mesmo tempo, tão bonita... Em certos aspectos, ainda mais bonita. O seu rosto enchera um pouco, porém, havia nele uma doçura que o encantava.

            — Os Whitman são um casal fora do comum —  explicou Suzanne, em pormenor. Aliás, é o casal com mais azar que eu conheço. Tentaram adotar dois bebês que foram reclamados pelos pais naturais antes de a adoção ser oficializada Isto foi há dez anos, e eles resolveram desistir. Depois, com as novas técnicas, tentaram que a Katherine engravidasse, mas teve catorze abortos e um natimorto. Agora querem adotar outra vez, e eu sou obrigada a dar-lhes crédito, apesar de não serem tão jovens como alguns dos outros candidatos, Sam. Talvez não sejam assim tão maus. Pessoalmente, gosto deles, acho que têm muita coragem.

            No entanto, os Whitman eram o gênero de pessoas com as quais Suzanne não queria jogar. Não gostava de criar expectativas a pessoas como eles, com bebês que as mães viessem depois a reclamar, por isso perguntara a Allegra, logo ao princípio, se a irmã tinha a certeza de que queria dar o bebê. Mas Sam continuava a ser categórica; falara no assunto a Jimmy e, na sua opinião, não tinha alternativa.

            Jimmy continuava a rondar a porta, mas, no estado em que Sam se encontrava, os pais não levantavam objeções. Ela precisava de amigos, e Jimmy era um rapaz bom e com caráter, que não lhe oferecia mais do que a sua amizade. Considerava que era triste ter que dar o bebê, e dissera-o a Sam.

            — E os Whitman? Gostavas de voltar  a vê-los?

            — Talvez...

            Sam não se queria comprometer. Empurrara os óculos escuros para o cima da cabeça e parecia uma princesinha rechonchuda. Tinha a barriga grande e redonda, mas os braços e as pernas continuavam esguios e, apesar do volume, continuava a ser muito graciosa.

            — A Katherine Whitman gostava de assistir ao parto, se você os escolher.

            — Porquê?

            Na opinião de Sam, era uma idéia muito desagradável.

            — Porque quer ver o bebê à nascença e afeiçoar-se logo a ele. Há muitos casais que fazem o mesmo. Você não se importaria que o John também estivesse presente? Ele disse que gostava, mas, neste caso, é apenas uma hipótese.

            Allegra sentia-se mal ao ouvir todos estes acordos e condições. Aquilo era um autêntico negócio!

            — Eu não o quero lá! Quanto a ela, vou pensar.

            — John podia ficar à sua cabeceira, de onde não veria nada.

            Suzanne estava a pressioná-la de mais, e Sam reagiu imediatamente.

            — Não! Não o quero lá, já lhe disse!

            — Está bem, não há problema. Então, quem é que resta? A conversa estava deixando Allegra emocionalmente exausta.

            — Acho que só os Whitman  — respondeu Sam com ar triste. Detestava ir àquele lugar: era tão deprimente. Mas não havia saída, tinha de lhes entregar o bebê. Agora, a única coisa a resolver eram os pormenores.

            — Vai ao médico com regularidade? —  Suzanne lia a sua lista de perguntas. Sam também detestava essa parte, mas compreendia-a. Tem tomado a vitamina? Não consome drogas? Teve relações sexuais há pouco tempo? Sam fulminou-a com o olhar, mas respondeu a tudo.

            Ia ao médico, tomava as vitaminas, nunca tocara em drogas, não bebia cerveja nem vinho e não tivera relações sexuais desde que engravidara: era o sonho de todos os pais adotivos. Suzanne não lhe disse nada, porque não queria pressioná-la mais, mas os Whitman estavam desesperados para ficar com o bebê. Na opinião da advogada, tratava-se de uma boa oportunidade para eles, se lidassem habilmente com Sam. Não era o tipo de garota que reagisse bem a pressões, por isso Suzanne nunca o fazia; deixava que as coisas corressem com naturalidade e aceitava todas as suas decisões. E avisara os Whitman de que tinham de ser pacientes e esperar pela decisão dela. Chegou mesmo a aconselhá-los a tentarem outras pistas e a falarem com mais garotas, para não ficarem desiludidos se Sam optasse por outro casal. Era óbvio que o fato de serem mais velhos não lhe agradava.

            — Gostaria de voltar a vê-los? — perguntou Suzanne pela última vez, mas Sam abanou a cabeça.

            — Por enquanto, não

            Para já, queria descansar. Allegra levou-a a tomar um batido de leite no Johnny Rocket quando saíram do escritório da advogada. Tinha um aspecto horrível: a situação era esgotante e a decisão que tinha a tomar assustadora. O médico queria que ela freqüentasse aulas Lamaze, para que o parto fosse mais fácil. Sam fora à primeira na semana anterior, com Blaire, onde fora projetado um filme sobre um parto, e ia desmaiando: teria de passar pelo mesmo para depois entregar o bebê a outros. Era pedir muito! E, evidentemente, nem podia pensar que os Whitman estivessem presentes nesse momento, como sugerira Suzanne. Estava desolada quando acabou de beber o batido.

            — Quem me dera morrer  — disse, pesarosa.

            Allegra lembrou-se de novo de Carmen, que queria morrer porque não tinha um bebê. Às vezes, a vida possuía um estranho sentido de humor.

            — Não te parece que está exagerando? — perguntou Allegra tranquilamente, pensando que Carmen e a irmã eram muito parecidas. E que tal se desejasse ver isso tudo pelas costas?

            — Sim, acho que sim.

            Depois se lembrou que a cerimônia de fim de curso de Sam era nessa semana e ela nem podia ir assistir. Era mais um golpe. Perguntou à irmã o que sentia a esse respeito.

            — Não me importo. O Jimmy trouxe-me a papelada toda. O meu nome continua a constar do programa, mas o Jimmy disse que a cerimônia devia ser muito enfadonha.

            Sam recebera o seu diploma. Apesar de não ter ido às aulas nos dois últimos meses, acabara o curso com distinção.

            — Afinal o que existe entre vocês? — perguntou Allegra casualmente.

            Jimmy era um rapaz engraçado e, sobretudo nos últimos tempos, freqüentava muito a casa de Sam. Allegra encontrava-o sempre que lá ia, mesmo à noite. Aparentemente, fora o único amigo que nunca a abandonara. Era como se os outros estivessem envergonhados e não soubessem o que haviam de dizer. Todos tinham deixado de aparecer, mesmo as garotas.

            — Somos apenas amigos  — explicou Sam. Nesse momento, Jimmy era o seu melhor amigo. Ela confiava-lhe os seus medos e todas as suas esperanças e preocupações.

            — Eu e o Alan éramos assim na vossa idade. Começamos a namorar quando andávamos no colégio e éramos como irmãos. Ainda continuamos assim, creio.

            — Há tanto tempo que não vejo o Alan...

            Sam sorriu; sempre gostara dele. Alan adorava arreliá-la, embora ignorasse que estava grávida. Partira para a Suíça antes de Allegra saber a notícia, e ela ainda não lha dera. Já lhe bastavam os problemas que tinha com Carmen!

            — Ele está na Suíça a fazer um filme —  explicou Allegra.

            — Como vai a Carmen?

            — Não muito bem. Teve um aborto na Suíça. O Alan ainda lá está, trabalhando, e ela teve de voltar para fazer um filme. Sente-se muito infeliz e tem muitas saudades dele, mas o Alan só volta em Agosto.

            — Ela não pode ir lá vê-lo?

            — Não, a menos que queira que eu lhe aperte o pescoço. Está filmando.

            — Ah! Deve ser duro para eles não estarem juntos. Allegra concordou. O aborto fora muito penoso para Carmen.

            Allegra foi levá-la a Bel Air; já era muito tarde para regressar ao escritório e prometera ir ter com Jeff ao estúdio. Ao afastar-se, reparou que Jimmy ia a chegar. Perguntou a si própria se teria acontecido alguma coisa de grave, mas duvidava: o que poderia ter acontecido, se Sam estava grávida de sete meses?

            No caminho não conseguiu tirar a irmã da idéia e custava-lhe pensar no que ela tinha de sofrer. E ainda lhe custava mais imaginá-la a dar à luz com estranhos ao seu lado, à espera de lhe tirarem o bebê. Era assustador! Allegra ainda ia a meditar nisso quando chegou ao estúdio. Mais tarde, ao regressarem a Malibu, falaram no assunto.

            — Detesto vê-la nessa situação  — disse Jeff, abanando a cabeça.

            — Também eu  — confessou Allegra, mas a Suzanne está fazendo um bom trabalho. Eu não era capaz.

            — Ai isso é que era!

            Jeff inclinou-se e beijou-a. A conversa acabou por afastar-se de Sam e recair em Carmen. Jeff perguntou-lhe se ela estabilizara, e Allegra respondeu que as coisas pareciam mais calmas nesse momento.

            Depois esqueceram os outros e falaram do filme dele e do casamento.

 

            Por fim, no dia 1 de Julho, Allegra deu uma alegria a Delilah Williams: ela e a mãe foram fazer compras à Dior e encomendaram um vestido no qual o Sr. Ferre se dispôs a fazer ns pequenos ajustes para agradar a Allegra. Era de piquê branco, coberto de renda, curto à frente e comprido atrás, e ele ia acrescentar-lhe um casaco curto de renda branca, gola alta e mangas compridas. Condizia com um grande chapéu de renda branca e era exatamente o que Allegra sonhara para o seu casamento: elegante, jovem e discreto. Blaire chorou quando a filha o vestiu e Allegra ficou radiante ao ver-se ao espelho. Também tencionavam encomendar sapatos forrados de renda branca, e a mãe prometeu emprestar-lhe a gargantilha que Simon lhe oferecera quando fizera cinqüenta anos. Tinham exatamente as mesmas medidas, até nas jóias, o que era muito conveniente.

            Nesse mesmo dia encontraram um vestido curto de renda bege, com mangas curtas e uma pequena túnica atrás, ideal para as damas de honra. Blaire sugeriu que mandassem fazer uns chapelinhos de renda da mesma cor, umas versões menores da capelina da noiva. Na Dior tinham-lhe prometido acrescentar uma longa cauda de tule branco. Allegra ficaria deslumbrante!

            — Bem, tratamos de tudo  — afirmou Blaire, conferindo uma das listas que Delilah Williams lhe enviara.

            — Agora pode dizer-lhe que deixe de me telefonar para o escritório. Não tenho tempo para patetices!

            — Não são patetices, querida. Trata-se do teu casamento. Tinham escolhido música clássica para a cerimônia e Beethoven para o cortejo no jardim, no meio dos convidados. A mãe encarregara-se da ementa e o ramo ia levar rosas brancas, lírios-do-vale e orquídeas; para as damas de honra, pequenas orquídeas cor de chá. Há muito que tinham escolhido o bolo, e iriam oferecer aos convidados uma recordação numa caixinha branca com a data e o nome dos noivos gravados em prata, como na Europa. Ainda era preciso pensar nas flores para as mesas, a tenda fora encomendada há vários meses e Peter Duchin iria atuar na recepção. A única coisa que faltava era a limpeza do jardim, o arquiteto paisagista continuava a prometer que estaria completamente pronto no dia 1 de Setembro e o casamento era no dia 5.

            Haviam reservado uma suíte em Bel Air para a Srª. Hamilton e dois quartos menores para as damas de honra, que vinham de Nova Iorque e de Londres. Blaire apalavrara o cabeleireiro para todas elas e uma esteticista para quem quisesse. No dia 1 de Julho tudo parecia estar em ordem, faltava pouca coisa, exceto combinar aquilo a que Delilah chamava ‘acontecimentos satélite’ as despedidas de solteiros e o jantar de ensaio. Habitualmente, competiria a Srª. Hamilton oferecê-lo, mas, como ela vinha de Nova Iorque, não saberia onde realizá-lo, por isso os Steinberg chamaram a si essa obrigação e reservaram o primeiro andar do Bistrô. Era prático e seria divertido

            Por fim Allegra cedera e escrevera ao pai, participando-lhe que ia casar e que, apesar de não esperar que ele viesse, seria bem recebido. Esta atitude teve grandes custos emocionais para ela, que discutiu longamente o assunto com a Drª. Green, mas escrever fora mais fácil do que telefonar. Fizera-o no princípio de Junho e ele ainda não respondera, o que a levou a partir do princípio de que não viria, e ficou muito aliviada

            Regressou bem-disposta ao escritório, depois de ter comprado o vestido de noiva. Tinha falado com a mãe acerca do 4 de Julho, que recaía no fim-de-semana seguinte, e em que a família costumava reunir-se num piquenique. Os filhos convidavam sempre alguns amigos e Blaire e Simon um ou dois casais. Em geral, juntavam cerca de vinte pessoas no quintal. Nesse ano não haveria grama para fazer o churrasco, mas todos concordaram que o pormenor era irrelevante, o importante era estarem juntos E Jeff também lhes faria companhia. Era a sua iniciação na tradição da família, visto que não estivera presente no Dia de Ação de Graças nem no Natal. Os Steinberg adoravam feriados e tradições

            Na manhã seguinte, depois de ter comprado o vestido de noiva, Allegra, sentada no seu gabinete, descrevia-o a Alice.

            — Deve ser fabuloso concluiu a secretária

            O intercomunicador estava sempre a interrompê-las. Alice atendeu ao telefone, franziu o sobrolho e depois o passou a Allegra. Fez-se um longo silêncio. Allegra ouviu e tomou alguns apontamentos. Quando desligou, estava furiosa.

            Procurou qualquer coisa no meio de uns papéis, sem dizer uma palavra, e ligou para o estrangeiro, para o hotel de Alan, em Genebra. Pediu que ligassem ao quarto dele e, ao quarto toque, tal como esperava, Carmen atendeu.

            — O que você  está  fazendo aí? — perguntou, fora de si. Que disparate! Vai arruinar a sua carreira cinematográfica para estar ao pé dele. Os produtores não se esquecerão!

            — Foi superior a mim... —  choramingou Carmen. Tinha tantas saudades dele! Não se atreveu a dizer a Allegra que fora porque estava no período de ovulação e queria engravidar.

            — Eles disseram que você desapareceu ontem e que podem prescindir de você hoje e amanhã, mas está custando-lhes uma fortuna. De hoje em diante fica debaixo de olho. Depois de amanhã dispensam-te. Por outras palavras: sai daí amanhã, senão dou cabo de ti!

            — Eu não quero voltar...

            Carmen desatou de novo a chorar, e Allegra foi propositadamente ríspida para com ela.

            — Se não vier, bem pode pedir a reforma. Fica fora da carroça, Carmen Connors! Depois pensou melhor e perguntou por Alan. Manda-a embora, está a ouvindo? — disse-lhe com firmeza, e Alan percebeu que estava a falar a sério.

            — Não tenho culpa, Al, não sabia que ela vinha! Apareceu sem mais nem menos. Foi ótimo, mas eu sabia que tu irias ficar furiosa. Amanhã de manhã meto-a num avião para aí. De qualquer modo, também eu estarei de volta daqui a um mês lembrou Alan. Entretanto, toma conta dela.

            — Isso não é tarefa fácil, como sabe. Allegra começava a ficar verdadeiramente cansada de Carmen. Era uma criança mimada e estava sempre a lamentar-se que tinha saudades de Alan. Talvez ela tenha razão. Talvez daqui em diante seja preferível vocês só trabalharem juntos.

            — Falaremos nisso quando eu voltar.

            — Manda-a embora amanhã sem falta, caso contrário será obrigada a pagar uma grande quantia . A multa é de cinqüenta mil dólares por dia, e ela merece-a.

            Alan assobiou e apontou um dedo acusador para Carmen

            — Vou mandá-la imediatamente

            — Não falhe.

            Desligou e telefonou aos produtores do filme de Carmen. Pediu muitas desculpas por ela e explicou que estava emocionalmente doente e precisara ir ver o marido. Não voltaria a acontecer a mesma coisa, e Carmen pagaria a multa de boa vontade. Daí a dois dias estaria de volta ao trabalho. Os produtores aceitaram esquecer o que se passara, na condição de ela pagar a multa e regressar, como prometia.

            Avaliando pelo fim desse dia, o seguinte prometia ser agitado. Allegra mal dormiu nessa noite e de manhã foi esperar Carmen ao aeroporto. Leu-lhe a cartilha das suas obrigações assim que ela passou pela alfândega, e Carmen desfez-se em desculpas, continuando a dizer que sentira necessidade de estar com Alan. Por causa dela, seria necessário filmar no 4 de Julho, só para recuperar o tempo perdido. Carmen não teria feriado. Allegra estava de tal modo irritada que nem se lembrou de a convidar para o piquenique dos Steinberg

            Certificou-se de que Carmen estaria no estúdio às quatro da manhã do dia seguinte e andou a rondá-la até cerca das nove horas, só para ter a certeza de que não falhava. Em seguida foi para casa, meteu-se na cama com Jeff e dormiu até ao meio-dia. Quando acordaram foram para casa dos pais dela

            Estava lá toda a família, mesmo Scott que levara uma amiga e Sam convidara Jimmy Mazzoreli, que fazia agora parte da mobília, como dizia Simon, com sentido de humor. Jimmy estava sempre lá em casa. Também se encontravam presentes dois vizinhos e uns amigos de Scott, mas nenhuma amiga de Sam; nesse ano Era um grupo pequeno, porém, todos gostavam de festejar esse dia, e divertiram-se muito, apesar da confusão que reinava no quintal e da falta de um jardim.

            As pessoas que não viam Sam há algum tempo ficaram admiradas, ela estava grávida de oito meses e notava-se bem, Allegra ficou surpreendida por ninguém comentar o fato. O assunto era completamente tabu, e perguntou a si própria se isso não tornaria a situação ainda mais difícil para Sam. Em vez de ser o momento mais feliz da sua vida, era o mais triste.

            Blaire continuava a acompanhá-la às aulas Lamaze, e Allegra fora uma ou duas vezes, mas era raro ter disponibilidade. E Jimmy chegara a praticar algumas vezes com ela. Fascinava-o sentar-se e ver o bebê a mexer-se. Parecia correr de um lado para o outro, deslocando-se na barriga da mãe como um elefante debaixo de um cobertor num filme de desenho animado.

            — Como se sente? — perguntou Allegra, sentando-se ao lado dela numa cadeira de jardim.

            — Estou bem —  respondeu Sam, encolhendo os ombros. Jimmy vinha ao seu encontro com um dos cachorros-quentes de Simon na mão. Às vezes custa-me um pouco a andar.

            — Não falta muito  — disse Allegra, tentando animá-la, mas os olhos de Sam encheram-se de lágrimas ao ouvir estas palavras.

            Allegra não percebeu muito bem o motivo, e foi então que Sam lhe disse que tomara uma decisão.

            — Telefonei aos Whitman para Santa Bárbara. A Suzanne falou ontem com eles. Sentem-se um pouco estranhos depois de tudo o que passaram, mas acho que são simpáticos e querem mesmo o bebê. A Suzanne disse-me que ficaram mesmo felizes, por isso era importante que eu estivesse segura do que ia fazer e não mudasse de idéia, sobretudo depois de eles receberem o bebê, durante o período de espera legal, porque isso já lhes aconteceu duas vezes e acha que não agüentariam passar por tudo de novo.

            — Mas essa responsabilidade não é sua —  assinalou Allegra, e Sam concordou.

            — Mesmo assim não seria justo fazê-los sofrer outra vez. Já houve duas garotas que lhes tiraram os bebês, e a Katherine levou anos refazendo-se. Sam respirou fundo, como se tentasse habituar-se à idéia. De repente, desejaria ver-se livre daquilo: do parto, do processo legal de adoção, da agonia de dar a criança, desse momento terrível em que teria de entregá-la para sempre. Não conseguia ultrapassar essa fase nem imaginar como seria a sua vida daí em diante. Não pensava noutra coisa. Eles insistem em assistir ao parto  — disse Sam, constrangida.

            — Faz o que estiver certo para você, Sam  — retorquiu Allegra com firmeza.

            Simon, que andava à procura delas, aproximou-se

            — Porque estão com uma cara tão séria? — perguntou, deleitado ao olhar para as garotas.

            Havia muitos assuntos sérios na família. Sam, evidentemente, e o casamento, que era uma ocasião alegre, mas fértil em decisões e em caos. Além disso, os níveis de audiência do programa de Blaire tinham voltado a cair, e dessa vez drasticamente. Ela andava muito preocupada, apesar de evitar comentar o assunto com o marido. Aliás, não falavam muito nos últimos tempos, mas Simon não queria pressionar a mulher, por motivos óbvios.

            — Estávamos dizendo que os cachorros estão melhores do que nunca este ano  — respondeu Allegra, sorrindo. Depois se levantou e beijou-o. Por pouco Sam não foi parar à piscina quando a cadeira se ergueu numa extremidade, como um balanço, assim que Allegra se pôs de pé. O seu peso, solitário mas impressionante, fê-la aterrar no chão. Sam deu uma gargalhada e Allegra secundou-a. Pouco depois Jimmy aproximou-se outra vez, com mais um cachorro-quente para Samantha.

            — Precisa disto como contrapeso — disse ele com um sorriso, ao ver o que acontecera. Tem cuidado, caso contrário a tua irmã te catapulta por cima do muro, e ainda vai parar no quintal do vizinho!

            Riram ambos e Jimmy sentou-se ao lado dela, no lugar de Allegra, conversando. Mais tarde, quando ficaram de novo sós os outros foram jogar pingue-pongue e às ferraduras, Sam deu-lhe conta da sua decisão de aceitar os Whitman. Já tinham falado da adoção, mas agora ela assumira um compromisso. Ainda podia mudar de idéia, evidentemente, mas Suzanne dissuadi-la-ia de tal coisa, se pudesse. E, depois de o bebê nascer, tinha seis meses para alterar a sua decisão.

            — Não é obrigada, como sabe, já te disse —  afirmou Jimmy em voz baixa, para que mais ninguém ouvisse.

            Oferecera-se para casar com ela, mas Sam não quisera. De que serviria? Jimmy já tinha dezoito anos e ela fazia-os daí a duas semanas. Duas crianças a tomarem conta de um bebê? Sam sabia como estavam desamparados. Mal podiam sustentar-se a si próprios, como iriam criar um bebê? Além disso, sentia que Jimmy não merecia aquele fardo aos seus ombros, visto que o bebê não era seu. Samantha gostava demasiado dele para lhe fazer tal coisa. Tinham-se aproximado muito desde que Jimmy começara a ir ter com ela, a levar-lhe livros e a partilhar apontamentos e testes. Agora eram inseparáveis e, quando ele a beijava, era fácil adivinhar o que aconteceria depois de o bebê nascer. Mas Sam nem sequer queria pensar nisso agora. No entanto, beijavam-se muito e, ultimamente, quando o faziam, Sam tinha contrações que a assustavam. Por um lado, desejava ver-se livre daquilo, mas, por outro, preferia que o momento nunca chegasse. O que não lhe apetecia mesmo era sofrer.

            Blaire aproximou-se e sentou-se ao lado deles durante algum tempo. Sam já reparara que a mãe andava triste desde que a audiência tinha descido, estava mesmo aborrecida! O programa era muito importante para Blaire, trabalhava nele há nove anos. Vê-lo desmoronar-se lentamente era como ver uma velha amiga a morrer de cancro.

            É claro que tinham passado o dia falando do casamento, do número de convidados, da necessidade ou não de armar uma tenda, dos possíveis fornecedores do copo-d’água e da música para dançar. Não se falava de outra coisa! Depois, ao fim da tarde, Simon fez questão de conversar com Jeff a sós. Há várias semanas que tencionava telefonar-lhe, mas andara muito ocupado.

            — Há uns dias que ando para falar com você  — disse, apanhando-o finalmente junto dos gelados.

            Ninguém fizera mais nada senão comer durante todo o dia, e Sam jurou a Jimmy que teria o bebê ali mesmo se engolisse mais alguma coisa.

            Jeff estava a comer um último Esquimó e parecia muito bem-disposto.

            — Mas que piquenique formidável! — exclamou, em jeito de cumprimento. Gostava verdadeiramente de fazer parte da família Steinberg. Aquilo não se parecia nada com o fim-de-semana em casa da mãe, que fora um fiasco. Saiu-se muito bem com o churrasco. Há-de ensinar-me o segredo e ir visitar-nos em Malibu. Mas eu não sou um especialista como o senhor... —  acrescentou afetuosamente

            Simon sorriu. Gostava muito do futuro marido de Allegra; ela fizera uma escolha inteligente e, em sua opinião, seriam os dois muito felizes.

            — Creio que você tem outros talentos  — retorquiu Simon. Era acerca disso que eu lhe queria falar. Li o seu segundo livro e gostei. Gostei mesmo muito.

            — Isso é animador.

            Jeff sorriu, sem esperar mais nada; fora uma atitude simpática de Simon

            — O que tenciona fazer do argumento?

            — Nada, por enquanto  — respondeu Jeff honestamente. Já falei com algumas pessoas que se mostraram interessadas em comprá-lo, mas não me propuseram nada de jeito. Não quero ser eu a produzir o próximo filme; tem sido uma tarefa desgastante, e quero voltar a escrever. Aguardo a proposta certa para vender o próximo filme, e talvez me limite a fazer o guião.

            — É aí que eu quero chegar  — atalhou Simon com simplicidade; era assim que ele falava de negócios. Gostava de lhe fazer uma proposta. Se você tivesse tempo esta semana, podíamos encontrar-nos para conversar.

            Jeff ficou radiante, e nem conseguia acreditar no que estava ouvindo. Simon era um dos produtores mais importantes de Hollywood e queria fazer o seu filme seguinte. E o fato de ele ir casar com a filha não o preocupava. Ou, pelo menos, era o que as outras pessoas diriam. Mas Jeff conhecia Simon suficientemente bem para saber que, se não tivesse gostado do seu livro, não o compraria, fosse ele casado ou amigo de quem fosse.

            — Há séculos que não tinha uma notícia tão boa. —  exclamou Jeff, esfuziante

            — O que há? — perguntou Allegra, aproximando-se deles, curiosa em relação ao que diziam.

            — O teu pai gosta do meu novo livro e talvez queira fazer alguma coisa com ele  — respondeu Jeff com humildade. Depois se voltou para a futura mulher com um amplo sorriso. Porque não mantemos isto em família? Negocia o meu livro, Allie?

            — Existe conflito de interesses... —  respondeu Allegra, soltando uma gargalhada. Estava radiante por causa de Jeff. Não imaginava uma melhor dupla profissional que a de Jeff e o pai; eram perfeitamente talhados um para o outro.

            No fim da tarde, Allegra olhou para o relógio. Tinham de ir andando, para assistirem ao concerto de Bram Morrison do 4 de Julho. Era o ponto alto da tournée antes de ele partir para o Japão, e, apesar de Jeff não morrer de amores por concertos, Allegra prometera-lhe que iriam ambos. Estaria lá um mar de gente. Allegra sabia que haviam sido contratados oito guarda-costas, só para evitar que a multidão lhe tocasse. Até então, as tournées de Bram tinham sido sempre um grande êxito, e tornava-se cada vez mais uma figura de culto para todas as idades.

            — Onde vão vocês com tanta pressa? — perguntou Sam quando viu Jeff e Allegra pegarem nas suas coisas e começarem a preparar-se para sair.

            — Ao concerto do Bram Morrison no Great Western Fórum.

            — Oh, que sorte! — exclamou Sam com inveja. Jimmy também se mostrara interessado, mas tinham concluído que era perigoso encontrarem-se no meio de uma multidão como aquela, dado o estado de Sam.

            — Para a próxima vez, arranjo bilhetes  — prometeu Allegra.

            Pouco depois saíram e foram mudar de roupa na casa de Allegra, em Beverly Hills. Ia pô-la à venda, para tentarem comprar uma maior em Malibu.

            Às seis horas, Allegra e Jeff estavam prontos. Alugara uma limusine e os promotores ofereceram-se para fornecer um guarda-costas, se fosse preciso, mas ela duvidava. Os fãs adoravam Bram e às vezes aproximavam-se ou tocavam-lhe, mas eram inofensivos.

            Allegra e Jeff eram esperados nos bastidores antes do espetáculo, mas, quando chegaram, a multidão era tal que mal conseguiram dirigir-se até lá. Até nos bastidores havia mais gente do que era habitual. A maioria parecia estar sendo empurrada para o palco e durante o espetáculo quase se misturavam com a banda, mas era inevitável. O número de fãs era lendário, e Allegra nunca vira um concerto tão concorrido.

            Tanto ela como Jeff eram empurrados de um lado para o outro, e admitiu mais do que uma vez que o público pudesse mostrar-se agressivo, mas tal não aconteceu. O concerto durou várias horas e, a certa altura, a maior parte da assistência já estava drogada, alguns com drogas pesadas. Havia sido marcada uma sessão de fogo-de-artifício para as onze horas; cinco minutos antes, um homem de peito nu e colete, com os cabelos compridos, pôs-se de pé no palco e, tirando o microfone ao baterista, desatou a gritar, dizendo que adorava Bram Morrison e que sempre o adorara, que haviam estado juntos no Vietnam, que tinham morrido e que eram agora uma só pessoa. Parecia a letra de uma canção. O homem continuava aos berros quando um elemento da segurança se dirigiu a ele, mas eram tantos os basbaques no palco que não conseguiu aproximar-se; entretanto o fã gritava ‘Amo-te! Amo-te!’ a plenos pulmões. Felizmente o fogo-de-artifício distraiu as atenções de todos, e os guarda-costas não tiveram dificuldade em agarrá-lo. Arrastaram-no para fora do palco, enquanto ele continuava no mesmo falando, mas depois começou a chorar e sacou de uma arma que parecia um brinquedo; no céu, ouvia-se o estralejar do fogo-de-artifício. Então, Allegra olhou em frente, por acaso, e viu Bram de joelhos, com o sangue a jorrar do corpo, da cabeça, do peito e a escorrer pelos braços. Bram caiu para frente no momento em que Allegra deu um safanão num guarda-costas e o agarrou, gritando por socorro.

            — Ele está ferido!

            Apontou para Bram e foi então que os outros o viram. A mulher também o viu, e os filhos. De repente, a multidão fechou-se à volta dele num círculo impenetrável. Por fim, ergueram Bram por cima das cabeças, enquanto a música continuava a tocar e o sangue salpicava a multidão. A mulher pegava-lhe na mão e os filhos choravam. Morreu ainda antes de os paramédicos lhe tocarem. Allegra ajoelhou-se no chão ao lado deles. A mulher abraçava-o e suplicava-lhe que não os abandonasse, mas ele partira, e o seu espírito elevara-se no céu entre o fogo de cores vivas, enquanto as suas canções atroavam os ares como nunca. A multidão nem sequer se apercebera do que acontecera. A música continuava a tocar. À meia-noite deram a notícia. O público transformou-se numa multidão turbulenta e agitada, a chorar ao som da música, que continuava a tocar. Foi o último concerto de Bram Morrison.

            O homem que o matara nunca o vira, nunca o conhecera, mas Deus enviara-o para salvar Bram, segundo as suas próprias palavras. Tinha de resgatá-lo das pessoas que lhe fariam mal e devolvê-lo a Deus. E fizera-o. A sua missão fora cumprida, conforme disse à polícia, e agora Bram estava feliz. Mas era o único.

            Um lunático solitário assassinara Bram Morrison, um dos grandes heróis do rock, e cinqüenta mil fãs desesperavam, choravam, gritavam, soluçavam. Só na manhã do dia seguinte é que conseguiram arrancá-los do Fórum. Allegra estava acordada há várias horas, com as jeans e a blusa branca ainda salpicadas de sangue, de mão dada com Jeanie, tentando perceber o que ela pretendia fazer. Era provável que desejasse uma cerimônia simples, mas o público nunca permitiria tal coisa. Por fim, concordaram que o funeral seria privado e que se realizaria um concerto evocativo para cem mil pessoas no Coliseum. Os promotores encarregaram-se disso e Allegra tratou do resto: o funeral, o elogio fúnebre, as disposições legais e as implicações do cancelamento da tournée. Allegra fez tudo, incluindo pegar em Jeanie ao colo e consolar os filhos. Era o que Bram teria desejado. Sempre gostara dele, ao contrário do que sentia por Mal O’Donovan, que era um autêntico palhaço. Bram fora um dos grandes homens da música.

            — Não posso crer! — exclamou, quando regressaram a Malibu, de manhã. Já era meio-dia quando chegaram a casa, mas Allegra quis ir até à praia. Não acredito que ele morreu!

            Ficou ali chorando e pensando em tudo o que acontecera naquela noite, abraçada a Jeff.

            — Vivemos num mundo tresloucado, cheio de gente doida  — disse Jeff, baixinho. Pessoas que nos querem levar a alma, a vida, o dinheiro, a reputação, seja o que for!

            Também ele chorava, profundamente emocionado com a crueldade da morte de Bram, e pela mulher e os filhos, que iriam sentir a sua falta.

            Um louco roubara a vida a Bram, mas não a alma. A sua alma seria livre para sempre. Allegra sentou-se na areia e chorou, lembrando-se dele, do período em que se tinham conhecido e das suas conversas bem-humoradas. Fora um homem discreto, uma pessoa sem exigências, e, contudo, estava constantemente a ser ameaçado. Era demasiado bom, simples e puro, um fruto apetecível para os lunáticos.

            No fim dessa semana, quando o sepultaram e Allegra viu os filhos abraçados à mãe, sentiu algo novo para si, profundo: queria um filho, um bebê, um pedaço de Jeff, antes que o destino se abatesse sobre eles e os separasse. Nunca sentira aquilo! Acima de tudo, sabia que havia algo que tinha de fazer primeiro, uma obrigação do coração. A vida era tão preciosa, tão curta, tão facilmente roubada! Não era para ser arrebatada, ou desperdiçada; era para ser protegida e acarinhada. Ela já não podia salvar Bram, mas havia uma pequena vida que podia resgatar, e agora compreendia que estava destinada a fazê-lo: o bebê de Sam.

            Olhou para Jeff sem dizer nada, e depois fez-lhe a pergunta, quando iam para casa. A princípio, ele ficou admirado, mas depois a surpresa desvaneceu-se. Como não se haviam lembrado mais cedo? Iam casar daí a um mês. Sam era demasiado jovem para ter um filho, mas eles não. Para eles isso estava certo, e não havia razão para entregar a criança a desconhecidos.

            — Acho que é uma grande idéia  — concordou Jeff, vibrante e um pouco atordoado.

            — Está falando sério? — perguntou Allegra, deslumbrada; ele era realmente um ser humano extraordinário.

            — É claro que estou falando sério. Vamos dizer à Sam. Mal tinham sobrevivido ao funeral de Bram e ao choque de o terem perdido e, no entanto, curiosamente, aquele era o seu último presente. Era como se tivesse sido Bram a fazer a sugestão e eles tivessem agarrado aquele bebê, que ninguém se atrevera a aceitar antes. Agora, era deles.

            — Não posso acreditar... — disse Allegra, rindo. Vamos ter um bebê...

            Jeff também sorria, e Allegra esperava que Sam compreendesse o sentido da proposta. Os únicos que ficavam a perder eram os pais adotivos, os Whitman, mas, tal como Allegra lembrara a Sam, ela não lhes devia nada nessa fase, o bebê ainda não nascera.

            Mais tarde, nesse mesmo dia, quando falaram com Sam, ela concordou imediatamente: era a solução ideal e Jeff e Allegra seriam os pais perfeitos. Abraçaram-na e Sam chorou de alegria; pelo menos, o bebê estaria perto dela. Era uma bênção para todos e a resposta às preces de Samantha.

 

            Aparentemente, Katherine e John Whitman não concordaram com eles. Não se sentiram agradecidos nem abençoados, nem reconheceram que Jeff e Allegra seriam os pais perfeitos. Por sinal, ficaram furiosos. A raiva não foi sequer suficiente para descrever a sua reação; já tinham sofrido demasiado para conseguirem escutar a voz da razão. Suzanne Pearlman tentou explicar-lhes o que se passara, que ainda não havia contrato e que Sam não tinha obrigações para com eles, mas os Whitman sentiam que a vida lhes devia mais do que haviam alcançado até então, que já tinham sido alvo de bastantes partidas cruéis pregadas pelas mães que se arrependiam e lhes tiravam os seus bebês. Estavam sofrendo muito e procuravam magoar quem pudessem. Para eles, qualquer pessoa servia: os Steinberg, Allegra, Jeff, Sam, alguém que pudessem ofender de qualquer forma, desde que dentro da legalidade. Consideravam que Sam era particularmente merecedora da sua vingança.

            Venderam a sua história aos tablóides por cento e cinqüenta mil dólares, à revista What’s New por mais setenta e cinco mil e a três programas de televisão por vinte e cinco mil cada um. Ao todo um bom dinheiro pela destruição da paz de espírito de uma família e pela reputação de uma jovem. No seu décimo oitavo aniversário, Sam tinha o seu nome espalhado por toda a parte e nada do que diziam a seu respeito era agradável. Os Whitman insinuavam que era uma prostituta, que dormira com meio mundo em Hollywood e que nem sequer sabia quem era o pai da criança. Forneceram aos tablóides todos os pormenores de que dispunham e acrescentaram mais alguns: afirmaram que se drogava, que bebia e que ia para a cama com quase toda a gente, e que até se oferecera uma ou duas vezes a John quando estava grávida de oito meses. Era o tipo de história que causava pesadelos às estrelas de cinema, mas que era ainda mais devastadora para uma jovem da idade de Sam. E como os pais eram pessoas célebres e se poderia argumentar que a exposição pública de Sam se devia a eles, não tinha qualquer hipótese de recorrer à justiça, e os Whitman sabiam. Os tablóides jogavam sempre pelo seguro e a destruição de uma ou duas vidas não tinha qualquer importância para eles. Era o seu ofício.

            No entanto, para surpresa de todos, Sam suportou a situação com dignidade e com uma força discreta; sofrera tanto que aquilo já quase não a afetava. Reduziu um pouco a sua aparição em público, não recebia telefonemas e aparentava uma grande paz. E, como sempre, a família cerrou fileiras à sua volta e protegeu-a, tal como Jimmy. Ele estava a seu lado de noite e de dia e às vezes saíam os dois de carro ou a pé. Tornaram-se mais inseparáveis do que nunca, e ele tinha tanta força como ela. Falavam do assunto e das implicações que tinha para Sam: os seus sentimentos estavam feridos, fora humilhada, e a comunicação social estava tirando o máximo partido da situação, mas Sam sabia a verdade acerca de si própria, da sua vida e do bebê. Compreendia melhor do que nunca que fora estúpida com Jean-Luc, mas nunca fizera aquilo de que os tablóides a acusavam. E as histórias que os Whitman tinham vendido não lhes davam um bebê. Haviam feito tudo o que podiam para torturá-la e humilhar, para se vingar dela por não lhes ter dado o bebê, mas a verdade é que Sam tinha a sua vida, a sua alma, a sua integridade e o bebê. Sentia pena deles, mas, depois do que lhe tinham feito, não se arrependia de ter recuado na adoção: eram pessoas amargas, podres, vingativas. Os artigos tinham surgido em força nos tablóides nas três últimas semanas de Julho e a data do parto estava aproximando-se. As histórias a seu respeito continuavam a ser notícia, e os Whitman tinham dado mais uma entrevista, mas Sam parecia calma e cada vez mais próxima de Jimmy. Não fizera comentários à imprensa, e o pai garantira-lhe que o silêncio era a posição mais sensata, embora muitas vezes fosse também a mais difícil.

 

            Foi nessa semana que Alan voltou da Suíça. Telefonou a Allegra assim que chegou a casa e ficou magoado por ela não lhe ter dito nada mais cedo acerca de Sam. Carmen telefonara-lhe assim que a notícia estalara.

            — Meu Deus, o que está a acontecer? Não me contou nada quando eu te telefonei!

            — Eu não sabia o que ela ia fazer, por isso não quis falar no assunto. Isto tem sido duro por aqui. Não contei a ninguém, mas agora toda a gente sabe, portanto é diferente.

            ‘Todas as pessoas» era um eufemismo: os tablóides e a televisão tinham chegado a vários milhões de pessoas.

            — O que tenciona ela fazer com o bebê?

            Alan tinha pena de Sam; era uma menina tão doce e tão nova para ter um filho.

            — Eu e Jeff vamos ficar com ele  — respondeu Allegra, orgulhosa

            — Não está se precipitando? Vocês ainda nem se casaram. Quando é que ele nasce?

            — Daqui a três dias —  respondeu Allegra, soltando uma gargalhada.

            Allegra e Jeff tinham andado numa correria, tentando comprar fraldas e um berço, camisinhas, lençóis de flanela, resguardos, biberões e cobertores. O equipamento necessário era absolutamente esmagador. Era muito mais complicado do que um casamento, mas, de certo modo, mais divertido. Estavam os dois muito entusiasmados.

            E, no meio daquilo tudo, Jeff tentava acabar o filme e ela ia para o escritório, procurando resolver a situação dos bens de Bram e ocupando-se de todos os outros clientes. Andava à procura de uma baby-sitter que a ajudasse na fase do casamento e da lua-de-mel, e em seguida tencionava tirar uma licença, se possível depois da boda, até que todos estivessem adaptados à nova vida.

            Havia tanta coisa para organizar! Tinham colocado o berço mesmo no meio do quarto e Jeff pendurara no teto um móbile com carneirinhos e nuvens. Compraram bonecos com música, bolinhas e camisolas e uma montanha de equipamento. Tinham tudo! Alan riu quando Allegra lhe fez a lista e admitiu perante eles que Carmen estava grávida outra vez, mas não tencionavam dizer a ninguém, não fosse Carmen voltar a perder o bebê. Ainda faltava um mês para ela terminar as filmagens. Andavam todos muito atarefados.

            Na noite a seguir ao regresso de Alan, Jeff e Allegra tinham ido para a cama tarde e estavam exaustos. Quando o telefone tocou, às duas da madrugada, Jeff partiu do princípio de que devia ser Alan ou Carmen. Era óbvio que tinham discutido e Carmen queria desabafar.

            — Não atendas.. — gemeu Jeff.

            Precisava desesperadamente dormir, e por uma vez Allegra sentiu-se tentada a dar-lhe ouvidos, mas depois pensou na irmã.

            — E se é a Sam?

            — Não pode ser —  disse ele, com ar infeliz. Estou demasiado cansado para ter um bebê...

            Por fim, venceu a consciência de Allegra, que atendeu o telefone. Era a mãe. A bolsa de Sam tinha rebentado há uma hora, e a princípio nada acontecera, mas de repente começara a ter contrações fortes e regulares.

            — Tem certeza de que não é  um falso alarme? — perguntou Allegra com nervosismo, e Jeff suspirou.

            — Estou demasiado cansado para isto... — repetiu. Allegra riu-se e deu-lhe um empurrão.

            — Não, não está. Vamos ter um bebê.

            Um dia seria ela a acordá-lo àquela hora para ter o seu primeiro filho, mas naquele momento era Sam, e para eles o entusiasmo era semelhante.

            — É melhor vir —  disse a mãe. Não pode perder este momento.

            Já se encontravam no hospital, na sala de partos, e a dilatação de Sam estava a processar-se rapidamente.

            — Como é que ela está? — perguntou Allegra, preocupada com a irmã mais nova.

            — Não está mal —  respondeu a mãe, empunhando o relógio que usava para medir os intervalos das contrações. Depois acrescentou uma coisa que surpreendeu Allegra. Acabamos de telefonar ao Jimmy.

            Havia ternura na voz da mãe, e não censura.

            — Acha que fazemos bem? — perguntou Allegra.

            — Sam quer que ele esteja presente. Além disso, o Jimmy tem-na acompanhado na preparação.

            Com tudo o que a filha estava a passar, Blaire sentia que tinha o direito de ter a seu lado quem lhe apetecesse. Não quisera John Whitman ali, e com boas razões para isso, depois de tudo o que tinham dito a seu respeito, mas, curiosamente, queria Jimmy.

            Antes de saírem de casa, Allegra parou a olhar para o berço e para o móbile, no dia seguinte estaria ali um bebê. A emoção fê-la sorrir. Nunca se apercebera de que desejava tanto aquele bebê. Era o acontecimento mais empolgante da sua vida!

            — É emocionante, não é? — comentou Jeff, pensando na mesma coisa. Abraçou-a com um gesto carinhoso. Ainda bem que tomamos esta decisão!

            Era muito importante para eles, apesar de o momento ser um pouco estranho para terem um filho.

            — Também estou contente  — disse Allegra.

            Correram para o carro, de  jeans, camisetas e tênis velhos. Allegra tencionava ficar na sala de partos, e Blaire também, mas, quando chegaram ao hospital, estava sentada cá fora, com Simon.

            — O que se passa? — perguntou Allegra, em pânico. A mãe sorriu: em certos aspectos, Allegra encontrava-se menos preparada para aquele momento do que Sam. Jeff bocejou e sentou-se ao lado de Simon. Estavam ambos sonolentos e o seu papel parecia ser o menos emocionante. A única coisa que tinham a fazer era não se esquecerem de dizer a toda a gente o que haviam passado quando tudo aquilo terminasse.

            — Estão a observá-la —  explicou Blaire. Ela está a portar-se lindamente. A enfermeira acha que o parto não será demorado, se continuar a este ritmo.

            — Não devíamos estar lá dentro? — perguntou Allegra, preocupada. Não queria abandonar Sam nem perder o nascimento do bebê.

            — Achei que ela devia ficar uns momentos a sós com o Jimmy. Estão dando-se bem e ele tem-na ajudado muito na preparação para o parto. Parece-me que a Sam entrará em pânico se vir muita gente à sua volta.

            Deixaram-na sozinha com Jimmy durante mais algum tempo e depois Allegra e a mãe foram espreitá-la, em bicos de pés. Sam estava sentada na cama, com um ar assustado, tentando respirar no meio de uma contração, enquanto Jimmy falava com ela. Era extraordinariamente calmo para um rapaz de dezoito anos. Quando a dor terminou, deu-lhe  umas pedrinhas de gelo e passou-lhe um pano frio pela testa, enquanto ela se reclinava nas almofadas.

            — Como vai isso, Sam? — perguntou-lhe Allegra, com ternura.

            — Não sei —  respondeu a irmã, inquieta e agarrada à mão de Jimmy.

            O monitor mostrava que estava com mais uma dor, e eles repetiram o processo, sob o olhar atento e aterrado de Allegra. No entanto, Blaire considerava que estava tudo a correr bem e, quando o médico chegou, manifestou a mesma opinião e elogiou Sam.

            — Não vai demorar muito  — assegurou, alegremente, dando uma palmadinha na perna de Sam, depois de a ter observado. Iria ajudar o bebê a nascer ali mesmo, na cama de partos, quando chegasse o momento. Está quase...

            Sam soltou um gemido angustiado.

            — Quase... Não suporto isto por muito mais tempo  — disse ela, fitando Jimmy com os olhos cheios de lágrimas.

            — Estás se portando muito bem, Sam segredou Jimmy.

            Não parecia um rapaz, mas sim um homem, quando pegou na mão de Sam sem dizer nada e esperou pela contração seguinte. Blaire e Allegra sentiram-se completamente inúteis e saíram outra vez. Jeff adormecera e ressonava numa cadeira; Simon dormitava, com um jornal à sua frente. Era um lindo espetáculo!

            — O que acha do fato de o Jimmy estar tão envolvido com ela? —  perguntou Allegra à mãe, quando foram para o corredor e pararam para ver os bebês no berçário. Alguns estavam dormindo, mas a maioria chorava. Havia alguns recém-nascidos e outros ligeiramente mais velhos, esfomeados, à espera que os levassem às mães.

            Allegra foi de novo espreitar a irmã, que estava sentada na beira da cama, enquanto Jimmy lhe esfregava as costas, sentado mesmo atrás dela. Uma enfermeira mostrava-lhes o que haviam de fazer, e Jimmy ajudou-a até a dar uma volta pelo quarto, mas Sam começou a chorar quando veio a dor seguinte. Então pegaram-lhe ao colo e puseram-na de novo na cama. Sam começou a gritar quando a dor apertou e Jimmy mudou-a de posição. Estava a ser extraordinário e Allegra sentia-se profundamente comovida com o que via. Durante toda a noite, Sam lutou com as contrações. Ao amanhecer, ainda não havia sinais do bebê, mas todos diziam que ela se estava a portar muito bem, exceto Sam, que afirmava ter chegado ao limite das suas forças: queria medicamentos, queria ajuda, queria tudo. Estava agarrada aos braços de Jimmy e chorava sempre que tinha uma contração. Quando Allegra julgava que ela não agüentava mais, o médico disse-lhe que podia começar a fazer força. Iniciara-se verdadeiramente o trabalho de parto, mas Sam olhava para eles e chorava.

            — Não posso... — repetia. Estava exausta.

            — Sim, pode —  insistia Jimmy. Vá lá, Sam... Por favor... Tem de conseguir!

            Pareciam duas crianças a dar coragem uma à outra, mas Blaire, que os observava, via o que Allegra não via: eles já não eram crianças, eram muito mais do que isso. Tinham amadurecido durante a noite, eram um homem e uma mulher. Recordou-se do nascimento dos filhos, de Paddy, de Allegra, e depois dos outros. A sua vida mudara daí em diante, assim como a relação que tinha com o marido. Jimmy não era o pai do bebê, mas podia ter sido. Estava ali totalmente por causa de Samantha. E ela ignorava a presença de todas as outras pessoas que se encontravam no quarto. Só queria Jimmy.

            Haviam-lhe levantado as pernas. Sam tinha umas dores horríveis, suplicava-lhes que parassem com aquilo e agarrava-se a Jimmy. O médico dizia-lhe que fizesse força, mas ela não era capaz. Jimmy ajudou a levantar-lhe a cabeça e os ombros e, por fim, ela começou a colaborar. Com o auxílio de Jimmy, conseguiram animá-la e o bebê começou a mexer-se lentamente. Blaire não suportava vê-la a sofrer tanto e saiu do quarto, com Allegra, mas Jimmy não arredou pé durante toda a noite: estava ali para ajudá-la. Pouco antes das nove, Blaire voltara a entrar no quarto e deparara com um frenesi generalizado: estavam a levar um berço; tinham chegado mais duas enfermeiras, o médico agarrava nas pernas de Sam e Jimmy segurava-a, para ela conseguir expulsar o bebê. Seguiu-se uma súbita corrente de ar vinda do interior do corpo de Sam e ela deixou-se cair contra Jimmy, completamente  esgotada, incapaz de fazer mais nada. Depois desatou a gritar com a contração seguinte, mas, dessa vez, não a deixaram descansar, continuaram a pressioná-la, até que um som encheu o quarto: era a música do seu bebê, o seu vagido, e depois um grito, seguido dos risos e das lágrimas de Sam, misturados com os de Jimmy.

            — Oh!, meu Deus... Oh!, meu Deus... É tão bonito! Ele está bem? — perguntou Sam, sem fôlego, mas muito emocionada.

            — É perfeito —  respondeu o médico.

            Jimmy estava sem fala, mas a expressão do seu olhar fixo em Sam dizia tudo. Depois, com a mesma discrição, pegou-lhe na mão e beijou-a.

            — Amo-te, Sam. Você é incrível  — disse-lhe em voz baixa.

            — Eu não teria conseguido sem você!

            Sam encostou-se nas almofadas e ele ficou a seu lado, enquanto as enfermeiras deitavam o bebê junto da mãe. Sam levantou a cabeça e, ao ver Allegra, virou-se para Jimmy e trocou com ele um olhar de entendimento. Allegra e a mãe estavam no quarto. Jeff e Simon também se encontravam presentes e admiravam o rapazinho saudável que gritava a plenos pulmões, solicitando a mãe. Todos se riram, mas Sam fitou Jeff e Allegra, e havia remorso no seu olhar. Detestava feri-los, mas, por muito que os amasse, sabia que não havia alternativa. Tinha de fazê-lo.

            — Eu e o Jimmy temos uma coisa para dizer. Tomou fôlego e apertou a mão de Jimmy. Casamos na semana passada. Temos dezoito anos, e, apesar de sabermos que é difícil sustentá-lo sozinhos, queremos ficar com o bebê. Allegra, desculpa...

            Sam desatou a chorar e tocou na mão da irmã. Desiludira tanta gente! Os pais, os Whitman, que queriam adotá-lo, e agora Allegra e Jeff, que olhavam para ela, espantados.

            — Quer ficar com o bebê? — perguntou Jeff à futura cunhada, e ela fez um sinal afirmativo, sem conseguir dizer mais nada. Está bem, ele é teu filho acrescentou com ternura, dando-lhe uma palmadinha na mão. Tinha lágrimas nos olhos. Nós queríamos ficar com ele para que não saísse da família, mas o bebê te pertence. Depois olhou para Jimmy com um sorriso viril. Parabéns!

            Jeff pôs um braço à volta da cintura de Allegra

            — Não se importa, Allie — perguntou Sam, olhando para a irmã mais velha

            — Acho que não  — respondeu ela, tristemente. Parece que ainda estou atordoada com isto tudo. Sinto-me feliz por ti. Fiquei entusiasmada, mas, ao mesmo tempo, andava um pouco assustada. É cedo para nós. No entanto, queria o bebê, e desistir da idéia fora apenas um recurso, mas Jeff tinha razão afinal, o bebê pertencia à mãe. Vamos levar tudo o que temos para casa da mãe. Bem precisa.

            Allegra sorriu a ambos, com os olhos cheios de lágrimas; queria o bebê, mas, em parte, não queria. Tal como Jeff As emoções eram contraditórias, mas tentavam fazer o que fosse melhor para todos. Blaire fitou-os, incrédula, tentando interiorizar o que acabava de acontecer.

            — Sem cozinha, com um casamento à porta e agora com um bebê — disse ela, aligeirando o ambiente e referindo-se à declaração de Sam. Depois se virou para Jimmy com um sorriso. E um novo genro. Acho que vamos ter muito que fazer lá em casa

            Nunca voltariam as costas à filha, nem ao filho, e Blaire já sabia que Jimmy era digno desse afeto

            — Acho que sim, mãe  — concordou Sam, sorrindo e olhando para o seu bebê; era tão bonito e lutara tanto por ele.

            — Vocês podem ficar vivendo conosco  — disse Simon num tom um pouco ríspido, dirigindo-se ao jovem casal.

            Iam os dois para a mesma faculdade. Sam estava a pensar em levar o bebê, para poder amamentá-lo durante os primeiros meses. Ultimamente falara muito com Jimmy nesse assunto e tencionavam tentar aproveitar algumas aulas comuns

            — Isso significa que eu posso agora voltar para a cama —  perguntou Jeff com um bocejo, provocando o riso de toda a família. Em seguida olhou para o relógio. Acho que já não vou ter tempo. Tenho de ir trabalhar

            — É tão parvo, mas eu e amo  — disse Allegra. Todos beijaram Sam, Jimmy e o bebê, que ainda não tinha nome, andavam a pensar nisso. Sam gostava de Matthew, que, em sua opinião, dava bem com Mazzolen, Blaire tencionava falar com a mãe de Jimmy, agora que sabiam o que o jovem casal fizera. Tinham sido muito corajosos, embora bastante imprudentes, mas talvez conseguissem ultrapassar tudo. A verdade é que havia outras pessoas na família a quem tinham acontecido coisas mais estranhas. A avó de Blaire casara aos quinze anos e vivera setenta e dois com o mesmo homem. Talvez Sam fosse tão feliz como ela.

            Allegra foi levar Jeff ao estúdio. No caminho falaram do bebê e do que sentiam por não terem ficado com ele.

            — Ficou muito desiludida? — perguntou Jeff, tentando expulsar tudo da sua mente. Fora uma noite emotiva para todos e estava preocupado com Allegra.

            — Mais ou menos, mas acho que, em parte, também estou aliviada. Ainda não sei ao certo o que sinto, mas respeito a vontade da Sam.

            Ambos sabiam que fora a decisão acertada.

            — Também eu  — confessou ele. Sei que teríamos gostado muito do bebê, mas prefiro que comecemos por ter um nosso, se pudermos. De qualquer modo, faria isso pela Sam. Nunca concordei que ela o entregasse para adoção, parecia-me uma solução muito cruel para todos. Jeff fizera-o por Allegra e por Sam.

            Allegra concordou e Jeff olhou para ela com um sorriso rasgado.

            — Agora temos de fazer o nosso. Vai ser divertido... Sorriram ambos, pensando que aquele desfecho fora o mais certo para todos. Nos últimos tempos, a vida dera algumas reviravoltas estranhas, como se dançasse uma espécie de tango.

            Em Bel Air, Simon e Blaire deixaram-se ficar em casa. Entraram na cozinha recém-mutilada, que, ainda assim, não perdera toda a sua funcionalidade. Blaire fez café e sentaram-se ambos à mesa. Fora uma longa noite, repleta de uma miríade de emoções. Sentiam-se ambos orgulhosos, mas um pouco cansados. Fora difícil para Blaire ver a filha com tantas dores e o bebê despertara neles sentimentos ambivalentes. Porém, quando tinham visto Sam com ele ao colo, tudo lhes parecera certo. E o que sentiam nesse momento era ainda mais confuso: estavam contentes ou tristes? Aquele nascimento  fora uma tragédia, como haviam pensado a princípio, ou uma bênção?

            — Então o que acha? — perguntou Simon, suspirando. Sinceramente, Blaire. Aprova ou não? Aqui entre nós

            Já tinham prometido apoiar Sam e Jimmy em todos os seus esforços.

            — Eles são muito novos, mas, não sei por que, acredito que tudo correrá bem respondeu Blaire, esfregando os olhos e fitando o marido com ar sincero. O bebê é tão querido, independentemente do modo como entrou nas nossas vidas! Ele não tem culpa E eu gosto do Jimmy. Que menino fantástico! Tem sido maravilhoso para a Sam. Não era isto que eu queria para ela, se alguém me perguntasse, mas talvez dê certo, a longo prazo.      

            Era o que todos desejavam secretamente ao jovem casal. E Jimmy ficara ao lado de Sam muito antes de o bebê nascer; não seria possível pedir-lhe mais, mesmo que ele fosse o pai. A verdade é que a maioria dos homens da sua idade não teriam sido tão solidários.

            — Eles foram patetas, ao casarem assim, sem nos dizerem nada  — replicou Simon, de sobrolho franzido, bebendo o café, mas temos de reconhecer que, pelo menos, tentaram desfazer esta confusão. O Jimmy é bom tipo. E o bebê é lindo, não é? — acrescentou com enlevo, lembrando-se dos seus próprios filhos à nascença.

            — É adorável —  reconheceu Blaire, e depois esboçou um sorriso triste. Lembra-se como o Scott era bonito quando nasceu?

            — E a Sam  — disse ele, saudoso, recordando-se das madeixas de cabelo dourado e dos grandes olhos azul-escuros e olhando ternamente para Blaire.

            Ultimamente estas recordações pareciam muito longínquas, embora a culpa não fosse dela. Haviam começado a afastar-se e Simon aventurara-se a ir um pouco mais longe, mas agora ambos sabiam que o tecido do seu casamento se rasgara. Ele pensara, de forma idiota, que Blaire não se aperceberia se se afastasse por uns tempos. Continuava ali, oficialmente, mas, no seu íntimo, partira por uns meses, e agora sabia que o preço a pagar por ambos era muito alto.

            — Desculpe, Blaire. Sei que tem sido um ano difícil.

            A princípio, ela não respondeu; estava pensando no passado próximo. Às vezes, percorria a casa, via as fotografias, que lhe lembravam melhores dias, e emocionava-se. Lembrava-se dos tempos em que Simon a fitava daquela maneira, quando os seus abraços eram apertados e os olhares que trocavam emocionados e vivos. Agora se sentia morta por dentro. Nunca esperara, nunca imaginara, que o marido pudesse feri-la daquela maneira.

            — Fui tão estúpido... — disse ele em surdina, com as lágrimas nos olhos, pegando-lhe na mão.

            Simon sentiu-se mal ao ver o que fizera à mulher. Elizabeth fora um sopro de nova vida para ele, e empolgara-o, mas nunca a amara verdadeiramente, como amava Blaire. E nunca quisera que ela soubesse. Fora um erro terrível, mas agora era demasiado tarde. Via no abandono dos ombros de Blaire, nas cinzas que pairavam nos seus olhos quando a observava, que aquilo que ambos tinham partilhado noutros tempos desaparecera. A princípio ela ficara amarga, irritada e assustada, mas agora se sentia apenas cansada e triste. Simon apercebia-se disso, e, para si, a tristeza de Blaire era pior do que a fúria.

            — Essas coisas acontecem... — respondeu ela, filosofando. Não pronunciaram o nome de Elizabeth, mas ambos sabiam do que estavam a falar. Nunca esperei que isto nos sucedesse. Foi a parte mais difícil. A princípio não acreditei, mas depois compreendi que éramos como todas as outras pessoas, gastos, destroçados e amargos. Era como se tivéssemos perdido toda a nossa magia  — confessou, olhando para ele pela primeira vez desde há muito tempo.

            Simon falou baixinho e pegou-lhe na mão, do outro lado da mesa.

            — Você  nunca perdeu a sua magia, Blaire.

            — Perdi, sim... Quando nós perdemos a nossa.

            — Talvez não a tenhamos perdido... Talvez só a tenhamos utilizado mal  — insistiu ele, com esperança, e sorriu.

            Não podia imaginar que as coisas voltassem ao ponto em que se encontravam; fora uma grande mudança, embora não se visse. Aparentemente, eram os mesmos de sempre, delicados, inteligentes, criativos, pessoas felizes, com uma grande família e uma vida cheia de ternura, mas, por dentro, Blaire sabia que tudo era diferente. Passara o último ano completamente só, abandonada pela segunda vez na sua vida.

            — Vai ser bom ter um bebê em casa  — disse ele, baixinho.

            Blaire olhou-o com um ar triste e derrotado.

            — Se é o que deseja, Simon, ainda pode ter um filho. Eu não posso.

            — Isso é importante para ti? — perguntou ele, admirado. Jamais pensara nessa hipótese com Elizabeth. Casamento e filhos nunca tinham estado em questão, tratara-se apenas de prazer e de emoção. Porém, Blaire respondeu com um gesto de cabeça.

            — Às vezes, é. Ter filhos foi importante para mim. Agora sinto-me tão velha!

            Nesse ano passara pela mudança de idade, o mesmo ano que o marido escolhera para lhe ser infiel com uma mulher que tinha quase metade da sua idade, praticamente a mesma da filha mais velha. No mínimo, não fora muito oportuno, mas Blaire nada pudera fazer para  evitar.

            — Eu não quero mais filhos  — declarou Simon com determinação. Sempre quis estar casado contigo e com mais ninguém, nunca te quis deixar, Blaire. E tenho consciência de que cometi um erro tremendo, mas só queria afastar-me por uns tempos. Na verdade, não sei o que me aconteceu; sei apenas que estou velho e estúpido. Ela era nova, adulava-me, e talvez você e eu tivéssemos chegado a um impasse, mas nunca me arrependi tanto de uma coisa na minha vida. Ambos haviam pago um preço demasiado alto pelos prazeres de Simon. A Elizabeth não te chega aos calcanhares —  disse, com ternura. Era difícil ser tão honesto com ela, mas Simon sentiu que chegara o momento. Ninguém vale metade do que você vale assegurou, — inclinando-se para beijá-la.

            Por instantes, Blaire sentiu algo por ele que já não sentia há um ano.

            — Agora sou avó, sabe? — disse ela com um sorriso tênue. Beijou-o, hesitante; pronunciar estas palavras já era um choque.

            Riram-se ambos.

            — E depois? Eu até me sinto mais velho do que sou! A princípio, com Elizabeth Coleson parecia que havia rejuvenescido, mas perder Blaire, em termos emocionais, fizera-o sentir-se de repente cem anos mais velho. Vá lá  — insistiu, levantando-se lentamente e abraçando-a, leva este velhote lá para cima. A noite foi longa e eu preciso de me deitar.

            Havia malícia no seu olhar quando subiu as escadas com a mulher. Estavam ambos cansados, mas tinha algo em mente que não se atrevia sequer a sugerir há meses.

            — Se voltar a fazer o mesmo... —  advertiu Blaire com um lampejo no olhar que não lhe via há muito tempo e que o alvoroçou. O seu andar era leve e o corpo atraente. Blaire subiu as escadas à pressa e, quando chegou lá acima, deu-lhe um olhar violento e arrasador. Não repita a graça, Simon Steinberg! Não há compaixão nesta casa para velhos que se portem mal!

            Mas não foi necessário Simon dizer nada; no modo como a fitava Blaire viu o remorso e todo o amor que lhe dedicava. O marido voltara para ela, apesar de tudo. Blaire estremeceu ao pensar que estivera quase a perdê-lo.

            — Nem precisa de me avisar —  retorquiu, abraçando-a e beijando-a. Nunca mais voltará a acontecer!

            — Ai isso não! Blaire sorriu-lhe ao entrarem no quarto inundado de sol; estava um belo dia. Para a próxima, mato-te! — acrescentou baixinho. No entanto, o mais provável era que ela morresse se o perdesse.

            — Anda cá! — disse Simon num tom ríspido e sensual.

            Há meses que não faziam amor, e nesse momento ele desejava-a ardentemente. Atiraram-se para cima da cama como dois meninos. Blaire riu dele e, de súbito, Simon começou a beijá-la e ela recordou tudo o que tanto lhe custara a esquecer como o amava, como ele era atraente e como ambos se tinham divertido juntos. Nunca pensara que conseguiria voltar a confiar no marido, ou sequer a amá-lo, mas, ali deitados ao sol, no dia em que nascera o seu primeiro neto, ambos descobriram, aliviados, que nada se perdera. Quanto muito, o amor que sentiam um pelo outro aumentara, e reconheceram que tinham sido felizes e que o filho de Sam os abençoara.

 

            À medida que Agosto avançava, todas as coisas importantes das suas vidas pareciam acontecer tal como eles queriam. O filme de Jeff corria às mil maravilhas. Carmen continuava  trabalhando e a portando-se bem e a sua gravidez não causara problemas, embora Alan aparecesse sempre que filmava uma cena de amor, o que levara o diretor a manifestar o seu desagrado a Allegra. No entanto, os dois filmes iam de vento em popa. Allegra, entretanto, estava ajudando Jeanie Morrison a vender a casa de Beverly Hills e a mudar-se para o seu rancho, no Colorado. Jeanie queria afastar-se o mais possível e concluir a mudança antes de os filhos começarem as aulas, em Setembro. Continuavam rodeados de guarda-costas vinte e quatro horas por dia, mas, aparentemente, o acontecimento que destruíra as suas vidas fora o gesto perturbado e delirante de um pistoleiro ocasional. Provocara um grande clamor entre as celebridades de Los Angeles, porque realçara a insanidade do público e a proteção insuficiente que a lei lhes proporcionava, mas Jeanie não estava interessada em exercer pressões nem em fazer discursos, queria apenas sair da ribalta e desaparecer com os filhos.

            Allegra tinha muita pena deles, e em Setembro iria realizar-se um concerto em memória de Bram. Estava marcado para pouco depois do seu casamento, e ela falara com Jeff na hipótese de adiarem a lua-de-mel, mas, por fim, reconhecera que havia limites a definir daí em diante, por isso telefonou a Jeanie e explicou-lhe o que se passava; esta compreendeu perfeitamente. Allegra já fizera muito por eles e sempre fora extraordinária para Bram.

            O bebê de Sam, Matthew Simon Mazzoleri, era a alegria e o orgulho de todos e estava cada vez mais gordo. Sam amamentava-o e Jimmy tirava-lhe fotografias constantemente e filmava centenas de vídeos em todas as situações, tomando banho, dormindo, na piscina, na relva... O bebê acompanhava-os para toda a parte e, duas semanas depois, Sam voltara ao que era; recuperara até a sua figura esguia e elegante.

            Os Whitman continuavam a vender artigos vexatórios aos tablóides e deram mais uma entrevista à televisão depois do anúncio do nascimento de Matthew ‘Sr. E Srª.  James Mazzolen (Samantha Steinberg) tiveram um filho, Matthew Simon, no dia 4 de Agosto, em Cedars-Sinal, com quatro quilos e cem’. Em geral, os anúncios indicavam também que Srª.  Mazzolen era filha de Simon Steinberg e de Blaire Scott. Surgiu uma fotografia muito engraçada de Sam com Jimmy e o bebê num jornal de Los Angeles, e George Christy referiu-se a eles no Hollywood Reporter, na sua coluna ‘A boa vida’.

            Os Steinberg também se tinham reunido demoradamente com a Srª. Mazzolen, apesar de ter ficado chocada com o que o filho fizera; casar com Sam sem dizer a ninguém, afirmara que era típico dele tentar resolver os problemas sozinho. Desde que o marido morrera, Jimmy fora extraordinário para a família, mas preocupava-a aquilo que os Steinberg esperavam dele, pois queria que o filho fosse para a UCLA, como estava planejado. Porém, os Steinberg desejavam o mesmo. Blaire e Simon tinham-lhes oferecido a casa de hóspedes, que lhes servia perfeitamente. Iam ambos para a universidade no Outono, e Simon mostrou-se disposto a sustentá-los até que terminassem os estudos, depois, como todos os seus outros filhos, Sam e Jimmy ficariam entregues a si próprios. Blaire já pedira à governanta que ajudasse a tomar conta do bebê durante o dia, quando eles fossem para as aulas, e os pais encarregar-se-iam do resto. A Srª. Mazzolen ficou-lhes muito grata. Além disso, Simon assegurou-lhe que o filho fora fantástico para Sam e que, apesar da idade de ambos, acreditava que tudo havia de correr bem.

            A situação entre Simon e Blaire melhorara incomensuravelmente. Até parecia uma segunda lua-de-mel, agora que Sam vivia na casa de hóspedes com Jimmy e Matt e haviam ficado sozinhos Eles próprios estavam surpreendidos e envergonhados.

 

            Já não se lembravam de estar a sós fosse onde fosse, e depressa estabeleceram uma política, os filhos tinham de telefonar antes de entrarem na casa principal E, sempre que isso acontecia, Simon ficava admirado com a rapidez como se gerava o caos à sua volta: carrinhos, cadeirinhas, porta-bebês, fraldas descartáveis... As mil e uma coisas de que Matt precisava pareciam estar em todo o lado; Sam amamentava-o em todas as divisões e Jimmy parecia uma criança grande e desengonçada a correr pela casa. Simon montou um novo cesto de basquete no quintal e às vezes saíam e iam jogar os dois, para se distraírem, para se descontraírem ou só para conversarem. Simon sentia-se muito satisfeito com a inteligência de Jimmy e com a sua determinação em ir para a universidade e em se valorizar. Estava decidido a ir para a Faculdade de Direito, como o pai, e tentava convencer Sam a fazer o mesmo. Os Steinberg estavam satisfeitos e impressionados com a sua dedicação como marido.

            O único grande fator de perturbação na casa continuava a ser as obras. Dezenas de jardineiros atacavam o quintal todos os dias e na cozinha, onde ainda era possível fazer comida, os operários arrancavam os velhos azulejos e mudavam a instalação elétrica no teto.

            O que era assustador é que faltavam só três semanas para o casamento. O jardim estava longe de ficar pronto, as damas de honra ainda não tinham os seus vestidos e o da noiva nem sequer chegara. Allegra andava histérica por causa de mil e um outros pormenores. À noite tentava falar com Jeff, mas ele estava muito cansado. Queria acabar o filme daí a dez dias, por isso andava irritável e muitas vezes implicava com ela; a tensão do estúdio estava a dar-lhe cabo dos nervos.

            — Ouve, Allegra, eu sei... Mas não podemos falar disso noutra altura? — resmungava, entre dentes.

            Delilah Williams telefonava-lhes para casa de noite e de dia e perturbava-o ainda mais do que o filme. Tinham sido precisos seis meses para ensinar Alan e Carmen, e agora Delilah ligava para eles às onze da noite para trocar impressões sobre uma ‘alteração’ no bolo ou uma ‘idéia’ fabulosa para as flores e os ramos das damas de honra. Jeff e Allegra tinham vontade de matá-la!

            Haviam sido duas semanas infernais para ambos, e a tensão atingiu o auge quando, uma noite, o telefone tocou a altas horas, como era habitual. Allegra calculou que fosse Delilah outra vez, a queixar-se de que Carmen não provara o vestido, e ela teria de lhe lembrar que a amiga o faria assim que terminasse as filmagens. Todavia, ao pegar no aparelho, ouviu uma voz familiar, mas que a princípio não reconheceu: era o pai, Charles Stanton. Estava telefonando de Boston, em resposta à carta que ela lhe enviara há uns meses e à qual nunca respondera.

            — Você vai casar? —  perguntou, com cautela, depois de saber como estava. Há sete anos que Allegra não o via nem falava com ele.

            — Evidentemente.

            Só de lhe ouvir a voz, Allegra sentiu o corpo rígido. Jeff entrara no quarto e, ao olhar para ela, não pudera deixar de lhe perguntar quem estava ao telefone. Por instantes, admitiu que fosse Brandon; enviara-lhe um bilhete há umas semanas, a insinuar que teria casado com ela, e fizera questão de lhe participar que finalmente se divorciara de Joanie. Tivera mesmo o descaramento de lhe pedir que lhe telefonasse, para irem almoçar um dia. Allegra mostrara o bilhete a Jeff e em seguida jogara-o fora.

            — Algum problema? — perguntou, inquieto.

            Allegra abanou a cabeça e ele voltou para o escritório, onde estava a trabalhar.

            — Ainda quer que eu vá aí? — continuou o pai.

            Allegra não se recordava de lhe ter pedido nada, mas talvez o tivesse feito na carta que lhe enviara. Julgava que se limitara a participar-lhe o casamento.

            — Não creio que isso tivesse alguma importância para você  —  retorquiu. Os nossos contatos são praticamente inexistentes.

            Estas palavras eram ao mesmo tempo uma censura e uma constatação.

            — Continua sendo minha filha, Allegra. Tirei uns dias de férias e pensei que, se gostasse, poderia ir ao teu casamento.

            Allegra não ‘gostava’ de nada que lhe dissesse respeito, nem via interesse na sua presença, mas a verdade é que lhe pusera a questão há cerca de três meses. Já se arrependera; preferia não lhe ter dito nada. E apeteceu-lhe perguntar por que motivo é que ele queria agora vir ao seu casamento depois de todos aqueles anos, depois de todas as críticas, depois de tê-la rejeitado, que lhe interessava que ela se casasse?

            — Tem certeza que não é um grande incomodo para você? — perguntou, atrapalhada; o pai sempre lhe fizera sentir que a rejeitara.

            — De maneira nenhuma. Não é todos os dias que tenho oportunidade de levar a minha filha ao altar. Afinal, você  é a minha única filha!

            Allegra estava boquiaberta. O que lhe dissera ela? Como é que interpretara as suas palavras daquela maneira? Não tencionava ser conduzida ao altar por ele, Charles Stanton nunca a acompanhara, nunca! Seria Simon a levá-la ao altar, ele que estivera sempre presente.

            — Eu... Bem...

            Faltaram-lhe as palavras e não lhe conseguiu dizer que não queria entrar pelo braço dele na igreja. Antes que pudesse responder, ele participou-lhe que chegaria de Boston na sexta-feira à tarde, o dia do jantar de ensaio; ficaria em Bel Air. ‘Merda!’, exclamou Allegra entre dentes, ao desligar. Frenética, telefonou à mãe. Os preparativos para o casamento estavam sendo um tormento, e não podia acreditar no que acontecera: tinha dois pais à espera de a levarem ao altar, um dos quais odiava.

            Simon atendeu ao telefone ao segundo toque e pareceu-lhe muito calmo. Allegra conhecia aquela voz; em geral, queria dizer que havia algum problema grave, mas, como já tinha a sua conta nessa noite, não perguntou nada. À pressa, pediu para falar com a mãe.

            — Ela agora está ocupada  — respondeu, muito calmo. Pode telefonar mais tarde?

            — Não, preciso falar com ela imediatamente!.

            — Allie, ela não pode respondeu Simon num tom firme, que a assustou.

            — Há algum problema, pai? A mãe está doente? Era mesmo do que precisava, que a mãe adoecesse gravemente antes do pesadelo do casamento a que a tinham obrigado, com aquela tarada, a Delilah, a borboletear à sua volta! Onde está ela?

            — Aqui, mesmo ao meu lado  — respondeu Simon, tocando no braço da mulher. Está um pouco aborrecida. Blaire estava a chorar há uma hora. Simon ergueu o sobrolho, perguntando-lhe se podia contar o que se passara a Allegra, e ela fez um sinal afirmativo; a verdade é que seria mais fácil para ele dizer a todos.

            — Recebemos um telefonema do Tony Garcia há uma hora: vão cancelar o programa da tua mãe. Estão preparando um final em grande estilo, que tencionam transmitir daqui a umas semanas, e depois saem de cena.

            Ao fim de cerca de dez anos, era um rude golpe para Blaire; era como se tivesse perdido uma velha amiga.

            — Pobre mãe —  exclamou Allegra. Como é que está aceitando isso?

            — Mal  — respondeu Simon com sinceridade.

            — Posso falar com ela? — perguntou Allegra, hesitante. No entanto, quando Simon consultou Blaire, esta disse que telefonaria à filha mais tarde.

            Allegra desligou e ficou pensando na mãe: Blaire trabalhara muito e alcançara tantos êxitos com aquele programa! Durante muito tempo, ele realizara-a verdadeiramente, e agora acabara. Imaginava como a mãe devia estar e sentiu-se solidária com ela.

            — O que há? — perguntou Jeff, entrando e vendo a expressão de Allegra; parecia ter recebido uma má notícia.

            — Acabaram de cancelar o programa da minha mãe.

            Era um anúncio sombrio e, de certo modo, a poeira ainda não assentara. Buddies fazia parte da vida de Blaire, ao ponto de Allegra não conseguir pensar na mãe sem ele, e agora teria de preparar o último episódio à pressa. A ocasião era péssima, com o seu casamento à porta.

            — Lamento  — disse Jeff, compreensivo. Ela andava preocupada há algum tempo. Quem sabe se adivinhou?

            — É curioso... Pareceu-me que ela tinha melhorado nestas últimas semanas. E era verdade, desde que voltara a aproximar-se de Simon, Blaire parecia mais feliz e menos absorta. Talvez não se sentisse bem. De qualquer modo, o pai diz que aceitou mal a situação. Talvez eu devesse ir ter com ela.

            — Depois  — falou-lhe do telefonema do pai e do seu aparecimento inesperado no casamento. Convencera-se de que nunca mais ouviria falar dele. Até se esquecera da carta!

            — Está mesmo esperando de me levar ao altar. Acredita? Depois de todos estes anos, está convencido de que eu o deixo fazer tal coisa. Deve julgar que sou muito estúpida!

            — Talvez pense que é isso que você espera dele ou já não saiba como há-de agir contigo. Pode ser que tenha mudado. Devia dar-lhe uma oportunidade e, pelo menos, falar com ele enquanto estiver aqui.

            Tal como Simon, Jeff tentava sempre ser simpático, mas Allegra ficou furiosa com a sugestão.

            — Está brincando? E quando é que julga que eu vou ter tempo para uma conversa como essa? Dois dias antes do nosso casamento?

            — Talvez valha a pena arranjar disponibilidade. Ele teve um impacto enorme na sua vida, Allegra.

            De certo modo, Jeff considerava que era importante reconhecer esse impacto.

            — Nem sequer vale a pena eu vê-lo, Jeff. Estou arrependida de lhe ter escrito!

            Allegra ficara furiosa com Jeff, por ele ter sugerido que desse uma oportunidade ao pai, e com este, por ser tão arrogante.

            — Está sendo muito dura — insistiu Jeff serenamente. Ele vem porque você o convidou. Parece que está tentando.

            — Tentando o quê? Agora é demasiado tarde. Tenho trinta anos e não preciso de um pai!

            — Precisa, caso contrário não teria escrito. Não parece que chegou o momento de resolver as coisas entre vocês? Acho que esta é uma oportunidade como qualquer outra. Tudo tem um princípio e um fim.

            — Você não percebe nada disso! — explodiu Allegra, andando de um lado para o outro na sala. Não podia acreditar que Jeff lhe estava dizendo para dar uma oportunidade ao pai, ele que sempre fora um patife para ela! Não faz idéia do que se passou após a morte do meu irmão, o que ele bebia, como batia na minha mãe, como nos tratou depois de sairmos de casa e virmos para a Califórnia. Ele nunca perdoou à minha mãe o fato de tê-lo deixado e acusou-me sempre disso. Odiava-me! Talvez lamentasse que não tivesse sido eu a morrer, em vez do Patrick; é provável que o Paddy tivesse sido médico como ele.

            Allegra soluçava, e todos os seus terrores e imperfeições pairavam sobre ela.

            — Talvez precisem falar acerca disso  — sugeriu Jeff, aproximando-se dela. Como era ele antes de o teu irmão morrer, se é que te recordas?

            — Sempre foi frio e era uma pessoa muito ocupada. Faz-me lembrar muito a tua mãe, incapaz de se abrir, de se aproximar dos outros e de se relacionar fosse com quem fosse. Não era muito humano  — respondeu com candura, olhando para Jeff, embaraçada. Apesar de ambos terem reconhecido que o fim-de-semana em Southampton fora horrível, nunca criticara abertamente a mãe dele.

            — O que significa tudo isso? A minha mãe é muito reservada, mas é perfeitamente humana, Allegra  — replicou Jeff, gélido.

            — Não duvido. Allegra tentava retroceder, mas estava aborrecida por ele ter tomado o partido do pai e se mostrar compreensivo para com ele. Exceto se for judeu acrescentou, à pressa.

            De súbito, Jeff afastou-se, como se ela fosse radioativa.

            — Esse comentário é muito desagradável. A pobre senhora tem setenta e um anos e é de outra geração!

            A mesma que enviou os judeus para Auschwitz. Não me pareceu que fosse uma pessoa meiga e interessada enquanto nós lá estivemos. O que diria ela se não lhe tivesses participado que o meu ‘verdadeiro’ nome era Stanton e não Steinberg? Não devia ter feito isso. Foi um ato de covardia, na verdade.

            Allegra deu-lhe um olhar fulminante do outro lado da sala e Jeff tremia de raiva com aquilo que ela dissera da mãe.

            — Tal como é a recusa em falar com o seu pai. Provavelmente o pobre já pagou por aquilo que fez nestes últimos vinte anos. Ele também perdeu um filho, além da tua mãe. Ela teve mais filhos, tem outra vida, outra família, outro marido. E ele? Segundo diz, não tem absolutamente nada!

            — Porque se mostra tão compreensivo, pelo amor de Deus? Talvez ele não mereça nada, talvez seja por sua culpa que o Paddy tenha morrido. Se não tivesse sido ele a tratá-lo, ou se não estivesse embriagado, talvez o tivesse salvo!

            — É isso que você pensa? —  Jeff estava assustado: aqueles eram os demônios que a perseguiam há vinte anos, que dançavam naquela sala, e até Allegra parecia amedrontada. Acha que ele matou o seu irmão? — Insistiu, horrorizado. Era uma afirmação terrível acerca de qualquer pessoa, sobretudo de um pai.

            — Não sei o que penso —  respondeu ela com uma voz rouca.

            Porém, Jeff ainda estava arrepiado. Mal a reconhecia nas coisas que dissera nessa noite e não gostara de ouvi-la. Era a primeira discussão a sério que tinham, e nada pequena: lembrava as de Carmen e Alan.

            — Acho que me deve um pedido de desculpas pelo que disse da minha mãe. Ela nunca fez nada para te ofender, mostrou-se apenas tímida quando te conheceu.

            — Tímida? — gritou Allegra do outro lado da sala. Chama àquilo timidez? Eu chamo de maldade!

            — Ela não foi má para você!

            Jeff também gritava, o que não era do agrado de nenhum dos dois.

            — Mas odeia judeus! — retorquiu Allegra. Fora a única resposta que conseguira arranjar.

            — Se não é judia, o que te importa? — disparou Jeff. Allegra saiu de casa, batendo com a porta, e meteu-se no carro. Não sabia para onde ia, mas sabia que queria afastar-se de Jeff. Ele que fosse passear mais o casamento! Não casaria com ele nem que fosse o único ser humano existente na Terra, independentemente de quem organizasse o casamento ou a levasse ao altar. Queria que fossem todos dar uma curva! Seguiu pela Pacific Coast a cento e vinte à hora e daí a quarenta e cinco minutos chegou a casa dos pais. Abriu a porta principal com a sua chave, esquecendo que as novas regras a obrigavam a telefonar primeiro, e bateu com tanta força ao fechá-la que ia partindo o vidro do postigo. Os pais encontravam-se sentados na sala e a mãe deu um salto ao ouvi-la.

            — Meu Deus, o que te aconteceu? Está bem?

            Blaire olhou para a filha e ficou atônita com o seu aspecto desalinhado. Allegra vinha de calções e camiseta, descalça; apanhara o cabelo no alto da cabeça e prendera-o com um lápis.

            — Não, não estou  — respondeu, tresloucada. Vou cancelar o casamento!

            — Agora?! — perguntou a mãe, aterrada. Faltam menos de duas semanas... O que aconteceu?

            — Odeio-o!

            Simon virou-se para o lado, para disfarçar um sorriso, e a mãe ficou a olhar para ela, sem conseguir acreditar que fizesse tal coisa. Só lhe vinham à cabeça os intermináveis preparativos. Tanto trabalho para nada!

            — Vocês discutiram?

            — Isso é secundário. A mãe dele é um monstro e ele acha que eu devia dar uma oportunidade ao Charles Stanton ao fim de todos estes anos. ‘O pobre homem tem tido tantos problemas’... É revoltante!

            Allegra estava fora de si.

            — Como é que o Charles entra nisto?

            Blaire estava totalmente confusa; não o via há sete anos nem pensara mais nele desde que dissera a Allegra que, pelo menos, o convidasse para o casamento.

            — Telefonou hoje à noite. Julga que me vai levar ao altar Imagina? Ele quer vir ao meu casamento!

            — Isso está certo, querida  — replicou a mãe, com calma, esquecendo as suas próprias mágoas e desilusões e concentrando-se na filha. Talvez o Jeff tenha razão, talvez seja altura de fazer as pazes com ele.

            Ao ouvir estas palavras, Allegra ficou ainda mais irritada.

            — Estão todos doidos? O homem abandonou-me emocionalmente há vinte e cinco anos e vocês acham que devemos ser amigos? Perderam o juízo?

            — Não, mas não vale a pena odiá-lo por tanto tempo, Allegra  — disse Blaire, com sensatez. Passaram-se muitas coisas nessa época que você ainda não tinha idade para compreender, acerca do desgosto e do que lhe aconteceu. Ele não conseguiu se agüentar quando o Paddy morreu, afundou. Por sinal, creio que perdeu o juízo, em parte, ou pelo menos do ponto de vista emocional, e não sei se se recompôs por completo. Tenho a certeza de que é tecnicamente saudável ou, quanto muito, calculo que seja, mas a verdade é que nunca conseguiu recuperar depois disso, ter uma vida pessoal, pelo menos até agora. Devia ouvir o que ele tem a dizer.

            Enquanto Blaire falava, alguém tocou à campainha da porta com insistência. Admirado, Simon foi ver quem era. Parecia que vivia num aeroporto ou no meio de uma comédia de costumes. Para surpresa de todos, era Jeff, quase tão desalinhado e furioso como Allegra.

            — Como se atreve a virar-me as costas daquela maneira? — gritou para Allegra.

            Simon e Blaire trocaram um olhar de entendimento e subiram as escadas sem fazer barulho. Allegra e Jeff estavam tão irritados que nem os sentiram sair. Ficaram na sala e gritaram um com o outro durante uma hora, até que Blaire se aproximou do cimo das escadas, em bicos de pés, perguntando a si própria se ainda iria haver casamento.

            — Bem, não há dúvida que parecem talhados um para o outro  — observou Simon com um sorrisinho.

            Há anos que não se ouvia um rebuliço tão grande naquela casa. Pouco depois, Samantha telefonou. A noite estava quente e, com as janelas abertas, a gritaria da discussão entre Jeff e Allegra chegava à casa de hóspedes.

            — Está discutindo com a mãe, pai? — perguntou, inquieta. Tinha acabado de dar de mamar a Matt e deitara-o no berço. Nunca ouvira uma discussão daquelas na sua vida e Jimmy aconselhara-a a telefonar, para saber se os pais estavam bem. Simon riu da pergunta.

            — Não. É a tua irmã  — respondeu, sem mais pormenores.

            — Com a mãe? — Sam admirou-se. Allegra nunca discutia daquela maneira, nem com a mãe nem com ninguém.

            — Não, com o teu futuro cunhado, isto se o casamento vier a realizar-se. Simon não pôde conter o riso; era uma telenovela de primeira ordem! Teremos de  perguntar quando isto acabar.

            — Quando é que eles chegaram?

            Sam sentia-se intrigada com o que estava acontecendo, mas, pelo que se podia ouvir, a discussão continuava encarniçada. Finalmente, as comportas tinham-se aberto. Há meses que eles viviam sob tensão, com clientes, com filmes, com argumentos. Allegra lidara com ameaças de morte e abortos naturais e um dos seus clientes preferidos fora baleado e assassinado. Seguira-se a gravidez da irmã, quase decidida a prescindir do bebê, a hipótese de ser ela a adotá-lo e depois a desilusão de ter de abdicar, a pressão do casamento, o encontro com a futura sogra e todos os planos, expectativas e esperanças inerentes ao enlace... Era suficiente para deixar qualquer pessoa histérica, e Jeff e Allegra pareciam estar ambos com os nervos em franja.

            — Chegaram há pouco. Estou certo de que não se demoram, se sobreviverem.. —  retorquiu.

            Pouco depois Simon e Blaire desceram para ver se podiam ajudar a acabar com aquela guerra, antes que não houvesse sobreviventes. Allegra chorava baixinho na sala e Jeff parecia disposto a morrer ou a matar alguém, consoante a oportunidade que se lhe deparasse primeiro. Não parecia o momento indicado para lhes perguntarem se ainda tencionavam casar-se; era óbvio que ambos estavam dispostos a jogar o casamento pela janela fora.

            — Como estão vocês aqui em baixo? — perguntou Simon com calma, enchendo quatro copos de vinho e oferecendo o primeiro a Jeff, que parecia muito necessitado dele.

            Jeff pegou no copo, fez um gesto de agradecimento e voltou a sentar-se, muito longe de Allegra.

            — Estamos bem  — respondeu Allegra, a soluçar, em resposta à pergunta do pai.

            — Não sei se devo acreditar  — disse Simon.

            Blaire foi sentar-se ao lado da filha e fez-lhe a melhor das sugestões.

            — Acho que vocês os dois precisam ir passar o fim-de-semana fora. Esta pode ser a  última oportunidade antes do casamento. Blaire olhou para Jeff. Creio que o podem dispensar no estúdio por dois dias. Tem de tentar!

            Jeff respondeu com um aceno de cabeça; sabia que era uma sugestão acertada.

            — Lamento o que se passou com o programa —  comentou ele com simpatia, e depois olhou para Allegra.

            — Também eu, mãe  — disse ela, assoando-se outra vez. Nunca alguém fora tão injusto para consigo como Jeff: afirmara que estava a ser indelicada para com a mãe dele e que não queria dar uma oportunidade ao pai, e as suas recriminações pareciam o fim do mundo para Allegra. Isto a juntar ao fato de ter de ultimar tudo o que tinha em cima da secretária antes do casamento... Era quase desumano!

            — Obrigada  — agradeceu Blaire, com voz sumida. Já chorara o suficiente nessa noite, mas aquela cena era muito mais importante para ela; sabia que não era a sério, mas tratava-se da vida deles, e não de um absurdo programa de televisão. Felizmente, sabia estabelecer a diferença.

            — Acho que a tua mãe tem razão  — disse Jeff, acabando de beber o vinho. Talvez precisemos ir passar o fim-de-semana fora.

            Allegra teve vontade de lhe responder que não iria com ele para parte nenhuma, depois das coisas que lhe dissera, mas não se atreveu a fazê-lo na presença dos pais. Assim, concordou em irem para Santa Bárbara por dois dias. Por sugestão de Simon, ficariam em Saint Ysidro.

            Por fim, passadas duas horas, saíram em carros separados, entregues aos seus próprios pensamentos, medos, remorsos e terrores. A caminho de casa, Allegra pensou em Jeff e na frieza com que a mãe dele a tratara. Também pensou no pai e na angústia que ele lhe causara ao longo dos anos, mas reconheceu que tanto Simon como Jeff eram muito diferentes. No entanto, nada disto lhe pareceu tão importante quando regressou à casa de Malibu e Jeff lhe pediu desculpa pelo que dissera a seu respeito. Não era sua intenção fazê-lo, mas ficara muito aborrecido com as suas acusações e estava muito preocupado com o fim das filmagens. Nessa noite disseram mil e uma coisas um ao outro; mais tarde, quando se deitaram, conversaram, riram da sua própria estupidez e pediram desculpa pelos disparates com os quais se tinham mimoseado. Depois de tudo esclarecido, abraçaram-se e adormeceram.

            Em Bel Air, Simon e Blaire também foram para a cama, mas ficaram acordados  conversando acerca dos filhos.

            — Não sei ao certo se gostaria de voltar a ser nova  — segredou Blaire a Simon.

            Depois de Jeff e Allegra saírem, tinham conversado durante horas acerca da discussão frenética de ambos; fora esgotante assistir àquela cena

            Talvez seja divertido fazer tanta algazarra e berraria. Não há dúvida de que a Allegra ficou excitada. Você  nunca gritou comigo daquela maneira.

            Simon parecia divertido e Blaire riu.

            — Isso é uma reclamação? Eu posso aprender... Agora tenho muito mais tempo.

            Blaire ainda não se recompusera. Ia sentir muito a falta do seu programa, e não sabia o que havia de fazer. Não queria ficar em casa e limitar-se a tomar conta do neto. Tinha cinqüenta e cinco anos e muita vivacidade, mas já não tinha emprego, exceto a última sessão. Ainda lhe custava a acreditar!

            Esta noite tive uma idéia. Não sei qual é a tua opinião... — disse Simon, pensativo, quando estavam deitados lado a lado, às escuras; o espectro de Elizabeth Coleson desvanecera-se, finalmente. Virou-se e apoiou o corpo num cotovelo, para poder olhar para a mulher ao luar. Quero contratar mais um co-produtor para a minha equipe durante uns tempos; estou cansado de fazer tudo sozinho. Os louros são todos para mim, mas às vezes isso me põe doido, e você é muito melhor do que eu nos pormenores criativos. Eu prefiro as generalidades. O que achas se tentássemos uma colaboração no meu próximo filme? Ou no do Jeff? O que acha da idéia?

            Blaire ficou pensando e depois sorriu.

            — O que lhe vamos chamar? Empresa Familiar? —  respondeu, julgando que ele estava sendo caridoso, ou até brincando.

            — Estou falando a sério. Há anos que queria fazer uma coisa dessas, mas você nunca tinha tempo... É demasiado boa para a televisão. Porque não tenta?

            Simon adorava a idéia de trabalhar com ela; formavam uma boa equipe em vários domínios e as suas competências profissionais eram compatíveis. Blaire sorriu.

            Creio que podia tentar; não tenho mais nada que fazer.. Dentro de três semanas estarei disponível, precisamente depois do casamento da Allegra.

            Blaire gostara da idéia e beijou o marido em sinal de gratidão.

            — A propósito, o casamento ainda está de pé? —  perguntou Simon, arreliador. Não me atrevi a perguntar-lhes nada antes de eles saírem.

            — Espero que sim  — respondeu Blaire, suspirando e deitando-se outra vez. Agradava-lhe a idéia de ir trabalhar com Simon.

            — Então o que acha? —  insistiu ele.

            — Tenho de telefonar ao meu agente —  respondeu Blaire com ar modesto.

            Simon deu uma gargalhada.

            — Vocês, os de Hollywood, são todos iguais! Vá, telefona ao teu agente! Eu vou telefonar ao meu advogado!

            Deu-lhe um beijo no pescoço e ela aninhou-se nele. O dia fora desastroso, mas acabara bem. Blaire ainda se sentia desgostosa por ter perdido o seu programa, mas a idéia de uma parceria com Simon atraía-a. Queria trocar impressões com Allegra acerca disso na manhã seguinte. Quando se virou para Simon, ele adormecera profundamente; era muito tarde e o serão fora longo e agitado. Blaire sorriu, olhando para ele. Era um homem bom, e, depois de todo o sofrimento que lhe causara no último ano, era como se o houvesse reencontrado. Talvez uma parte desse sofrimento tivesse valido a pena...

 

            Allegra aplaudiu a idéia de os pais irem trabalhar juntos, sobretudo no filme do marido

Assim fica tudo em família disse ela, rindo. Não há nenhum papel para mim.

            Falou no assunto depois de regressar de Saint Ysidro com Jeff, depois de tudo ter acalmado entre eles A situação voltara à normalidade e faltavam seis dias para o casamento. Como dizia Delilah Williams, começara a contagem final.

            O vestido de noiva já chegara, assim como os chapéus, e o véu estava pronto. O arquiteto paisagista jurava que o jardim estaria a postos no fim-de-semana

            As duas damas de honra que não eram da cidade vinham daí a dois dias, uma de Londres e outra de Nova Iorque, e a mãe de Jeff no dia seguinte, ficava hospedada em Bel Air. O pior era que o pai de Allegra chegava também na sexta-feira

            — Acha que vamos sobreviver a isto, mãe? — perguntou Allegra, com ar aterrado.

            Tentava acabar a semana trabalhando e Jeff terminava o filme na quarta-feira, estava tudo rigorosamente programado e equilibrado como um castelo de cartas. Allegra conseguira vender a casa e o negócio seria ultimado daí a dois dias. Para onde quer que se virasse, havia mil e um pormenores a tratar

            As damas de honra chegavam na noite de terça-feira e na manhã de quarta faziam uma prova de última hora para quaisquer ajustamentos que fossem necessários Nancy e Jessica tinham enviado as suas medidas e não havia motivos para pensar que surgisse algum problema

            — Estou tão assustada  — segredou Allegra a Blaire quando a foi visitar, na manhã de segunda-feira. Jeff trabalhava até tarde, e ela fora ver Sam e o bebê.

            — Com o quê, querida —  perguntou a mãe, tentando acalmá-la

            — Com tudo. E se não resultar, como aconteceu entre você e... A mãe sabe... O Charles...?

            Allegra recusava-se a chamar-lhe ‘pai’.

            — Isso pode acontecer, mas as circunstâncias eram muito diferentes e eu era muito mais nova do que você quando me casei. Você e o Jeff são mais espertos do que nós éramos, e tudo vai correr bem com vocês, tenho certeza.

            Jeff e Allegra eram jovens e inteligentes e tinham ponderado muito o passo que iam dar. A Drª. Green estava satisfeita com o modo como Allegra geria os seus sentimentos e os seus velhos temores, mas não havia garantias. Podiam perder o emprego, pôr em risco as suas vidas, sofrer algum acidente, os filhos podiam morrer, como sucedera com Blaire, e os seus sonhos desfazer-se num ápice.

            — Na vida não há garantia. Tem de fazer o melhor que sabe e estar preparada para o que der e vier  — acrescentou Blaire, sorrindo.

            — Pois, e que nunca  falte a cerveja e a pizza congelada  — acrescentou Sam, contribuindo com o seu conselho matrimonial.

            Alimentar Jimmy era o mesmo que fornecer o Green Bay Packers, mas nunca fora tão feliz na sua vida e adoravam o bebê Matthew dormia ao colo da mãe e estava constantemente a mamar; tinha um mês e já pesava seis quilos. Sam parecia ter nascido para aquela vida e adorava a companhia de Jimmy, que não se cansava de ajudar a cuidar do bebê. As irmãs mais novas iam visitá-los com freqüência e brincavam no quintal. De repente, a casa de Blaire enchera-se de crianças. Era como se o tempo voltasse para trás, o que trazia vantagens e inconvenientes. Blaire e Simon tinham a sua vida própria e eram livres pela primeira vez desde há muito tempo, exceto quando queriam ver Jimmy e Sam, quando Allegra passava por lá ou quando Scott voltava de Stanford, o que era raro. Tinham tempo para estar juntos, faziam planos para o seu trabalho em conjunto, que começaria assim que Blaire concluísse o último programa, e falavam mesmo em ir à Europa antes do filme seguinte. Finalmente tinham tempo um para o outro, o que muito agradava a Simon. De vez em quando, até ia almoçar em casa, e passavam mais tempo na cama do que quando eram jovens.

            — Talvez envelhecer não seja assim tão mau  — gracejou Blaire uma manhã, quando o marido a foi buscar na ducha e a arrastou para a cama para fazerem amor, queixando-se de que ela se levantara muito depressa. Blaire ainda estava pingando e tinha o cabelo enrolado no alto da cabeça. Simon saíra logo a seguir, com meia hora de atraso, para uma reunião.

            Mas estavam no fim, ou a aproximar-se dele. Allegra e Jeff encontravam-se no princípio, como Jimmy e Sam, quando o amor ainda era uma criança, e havia montanhas para subir, antes dos filhos, da vida real, das vitórias e das derrotas, e de tudo aquilo de que é feita a vida. Em determinados aspectos, Blaire invejava-os, noutros, não. Já passara por aquela fase e agora se sentia bem onde estava, os acidentes de percurso tinham sido um pouco excessivos.

            — Descontraia-se e tente passar esta semana o mais calma possível. Esta é talvez a parte mais difícil

            Era o melhor conselho que Blaire lhe podia dar

            — Ainda bem que eu não passei por isso  — disse Sam, rindo. Pôs Matthew ao peito outra vez e acariciou o seu rostozinho aveludado com o dedo. No entanto, Blaire tinha pena que Sam não tivesse vivido aquela fase, a verdade é que saltara uma etapa da sua vida. Todavia, por enquanto, estava a agüentar-se bem, e a pobre Allegra continuava a girar no carrossel, com a cabeça à roda.

            As duas damas de honra telefonaram assim que chegaram, na terça-feira à noite Ficaram hospedadas em Bel Air, e Allegra encarregara Alice de lhes enviar flores, além de revistas e chocolates. Os vestidos estavam pendurados nos roupeiros, à espera delas, junto dos sapatos forrados de renda bege que Allegra mandara fazer de acordo com as medidas cedidas pelas amigas. Não falhara nenhum pormenor

            Na quarta-feira, à hora do almoço, Allegra ia ter com elas ao hotel, na companhia da modista. Alugara uma suíte enorme e levava Sam. Carmen também ia provar. Depois ainda precisava ir à agência para assinar os documentos relativos à venda da casa. Passou a semana numa roda-viva e sentia-se atordoada só de pensar em todos os seus afazeres

            Há cinco anos que não via Nancy Towers, desde que a amiga se mudara para Nova Iorque e depois para Londres, nem Jessica Farnsworth, desde a faculdade. Passara-se muito tempo, mas continuavam boas amigas, e a prová-lo estava o fato de tê-las convidado para o casamento.

            Allegra ajudou a irmã a transportar a alcofa de Matthew e um balanço para distraí-lo enquanto provavam os vestidos e almoçavam. Reservara uma suíte espaçosa, para que tivessem privacidade. O cabeleireiro também estaria presente e levava a esteticista. Além disso, haveria uma sessão informal de fotografias.

            Blaire resolvera não ir. Disse que não queria intrometer-se nos assuntos das mulheres mais jovens, e de nada serviram os argumentos para convencê-la, apesar de Delilah Williams repetir que ela ‘tinha’ de ir. Blaire queria ver as garotas todas juntas, com os seus belos vestidos, e não uma ou duas. Allegra fizera uma boa escolha ao optar pela renda bege, e, como todas eram elegantes, a prova não iria levantar problemas.

            No entanto, os deuses deviam estar distraídos nesse dia. Quando Sam e Allegra chegaram, a suíte não estava pronta, e, para cúmulo, começou a chover. Ficaram as duas ensopadas ao passarem correndo pelo lago dos cisnes, arrastando os pertences de Matthew. Carmen já chegara. Estava bebendo cola, comendo chocolates e falando ao telefone com o seu agente. Trançara as pernas, numa pose lendária, mas, assim que se levantou, Allegra percebeu que ia haver problemas: não via Carmen há um mês, e, embora estivesse grávida de dois meses e meio, mais parecia que esperava gêmeos. Tinha o dobro da cintura e as ancas estavam ainda mais largas. Com certeza que vestia o número doze! Allegra estremeceu ao lembrar-se do tamanho do vestido que encomendara para ela.

            — O que te aconteceu? — perguntou a meia voz. Eram suficientemente amigas para que Carmen tivesse sido franca. Quantos quilos aumentaste?

            — Dez  — respondeu Carmen sem pestanejar. Graças a Deus, acabamos o filme!

            — Como é que engordou tão depressa? A Sam não aumentou mais de doze quilos e meio até ao fim  — disse Allegra em tom de censura. Não conseguiriam metê-la dentro do vestido; não o poderiam fechar e Carmen ficaria com as costas  de fora, e não seria pouco. Iria arrepender-se mais tarde, certamente, mas sentia-se muito feliz por estar grávida outra vez, e não fazia mais nada senão ficar em casa, comer e dormir.

            — A tua irmã é uma menina  — retrucou Carmen com uma voz sibilante. Não admira que pese quarenta quilos!

            — Ela tem é autodomínio  — retorquiu Allegra. Em seguida sentaram-se todas a admirar Matthew. Sam foi a primeira a provar o vestido, e verificou-se que tinha menos peso do que antes de engravidar. Media um metro e setenta e pesava cinqüenta e cinco quilos. O fecho deslizou a toda a velocidade, mas parou no meio das costas, e era fácil perceber por que: ninguém se lembrara que ela estava a amamentar.

            — Que número de soutien está  usando? — perguntou Allegra, em pânico.

            — Trinta e oito, D — respondeu Sam com orgulho.

            — Oh, meu Deus! Fazem esse tamanho? —  admirou-se a irmã.

            Carmen rolou os olhos nas órbitas e exclamou, radiante:

            — Estou ansiosa por isso!

            — Não te lembraste que devia me  avisar? — perguntou Allegra à irmã. Passaste de um trinta e dois, A, para um trinta e oito, D, e nem pensou que isso faria diferença?

            — Esqueci-me  — desculpou-se Sam, mas a modista assegurou que tinha tecido suficiente para resolver o problema.

            O caso de Carmen era diferente. Desvairada, Allegra telefonou para a casa Valentino; disseram-lhe que tinham mais um vestido, um número catorze. Seria demasiado grande?

            — Acho que não  — respondeu Allegra, aliviada e com vontade de matar Carmen.

            Foram resolvendo mil e um pormenores, e pouco depois chegou Nancy Towers, radiante por voltar a vê-la. A amiga casara-se, divorciara-se e admitia regressar a Nova Iorque. Estava tentando lançar uma revista, pintara o cabelo e depois voltara à cor natural. Tinha uma relação com um homem divino em Munique e a sua vida repartia-se pelos quatro cantos do mundo. Allegra estava exausta quando acabou de ouvir tudo, ou a maior parte, porque parecia haver sempre mais.

            O pior é que também Nancy engordara. Afirmara que usava o tamanho quatro, mas agora mais parecia vestir um dez. Tornara-se rechonchuda. Felizmente o vestido destinado a Carmen poderia ser arranjado para ela, e mais uma vez se evitou um desastre.

            — Não me parece que os meus nervos agüentem  — disse Allegra, sentando-se, no mesmo tempo que fitava Sam com ar desesperado.

            — Descontraia-se. Vai ver que tudo corre bem  — replicou a irmã mais nova, de repente muito mais madura, com o bebê no colo.

            — Parece mesmo a mãe. Allegra sorriu e deu-lhe um beijo; sentia-se mais próxima dela desde o nascimento do bebê. És formidável! Já tinha te dito isto?

            — Ultimamente, não, mas eu já tinha percebido. E você é uma irmã mais velha do melhor que há!

            Depois, baixando o tom de voz, Sam acrescentou:

            As tuas amigas estão a engordar um pouco...

            As duas irmãs soltaram uma gargalhada. Pouco depois chegou Jessica. Allegra desconhecia as mudanças que se tinham registado na vida da amiga nos últimos cinco ou seis anos. Jessica usava o cabelo curto, não vinha maquiada e vestia um belo traje Armani que comprara em Milão. Trabalhava em publicidade, mas tinha uma série de amigos no mundo da moda. O seu aspecto austero e discreto estava muito em voga na Europa e na Costa Leste, mas havia mais... Havia qualquer coisa em Jessica que não existia antes, e Allegra não pôde deixar de reparar que ela olhara para Carmen com um interesse muito especial. Ao observá-la com mais atenção, percebeu o que mudara na amiga desde que se tinham visto pela última vez: Jessica era agora abertamente lésbica, embora se tivesse retraído durante anos.

            Jessica, agora ‘Jess’, falou da amante no almoço, da sua vida e do fato de sentir que o movimento lésbico tinha ganho força no Oeste, mas não tanto no Leste. Carmen fitou-a e afirmou que não havia lésbicas em Portland.

            — Bem, em Londres há muitas  — disse Nancy, rindo. Ria de tudo e de todos. Divertia-se onde quer que estivesse, e, apesar de exagerar um pouco na bebida, foi a alma do grupo.

            — Já teve alguma experiência homossexual? — perguntou Jess a Nancy com toda a naturalidade.

            Nancy ficou pensando, Carmen corou e Sam deu um olhar cúmplice à irmã mais velha, que tentava manter a calma. Agora estava definitivamente convencida de que não sobreviveria ao casamento.

            — Por acaso, não me lembro —  respondeu Nancy num tom despreocupado.

            — Ora, isso não se esquece...

            Em seguida dispôs-se a provar o vestido. Despiu a blusa e o traje Armani; usava uns calções de seda e mais nada, e Allegra foi obrigada a admitir que tinha um corpo fabuloso, mas não lhe dizia nada, e só de saber quais eram os interesses de Jessica sentiu-se pouco à vontade. Mais tarde, enquanto o criado servia champanhe, Jessica disse-lhe que ela cometia um grande erro ao casar com um homem e que devia ter-se unido a uma mulher. Foi então que Allegra reparou que a amiga usava uma aliança de ouro estreita, e ela explicou-lhe que vivia com a mesma mulher há dois anos. Era uma estilista do Japão, e trabalhavam ambas em toda a Europa e no Extremo Oriente sempre que tinham oportunidade, por prazer e por dinheiro. Jessica tinha uma vida interessante, embora as suas opções fossem diferentes das de Allegra.

            O vestido caía-lhe bem e, quando Delilah chegou, parecia estar tudo em ordem. Os sapatos serviam a todas e os chapéus assentavam na perfeição. O fotógrafo tirou algumas fotografias informais. Nancy bebera de mais e Jess resolvera brincar e, para se divertir, optara por assediar Carmen.

            — Eu estou grávida, pelo amor de Deus! — retrucou ela, quando Jess lhe pousou um dedo ávido no pescoço, embora o fizesse por brincadeira, Carmen não gostou.

            — Está bem, eu não me importo — disse Jess. Pouco depois começou conversar a sério com Sam e pegou no bebê. Era uma mulher simpática e assumira-se nos últimos anos. Não se envergonhava das suas opções e às vezes era ostensivamente descarada. De certo modo, Allegra continuava a gostar dessa sua faceta, mas precisava meditar um pouco nela para se adaptar à idéia.

            — Porque não me disse? — perguntou-lhe Allegra mais tarde.

            — Não sei. Eu não te conhecia bem. Às vezes é difícil explicar isto. Não me pareceu que compreendesses.

            — Talvez não  — admitiu Allegra.

            Depois falaram do impacto da AIDS na cultura americana e dos amigos que haviam perdido, sobretudo em Hollywood ou em meios criativos de Londres e Paris.

            Por fim, às cinco horas, entregaram a chave da suíte e saíram. As duas mulheres de fora tinham combinado encontrar-se com uns amigos e na noite seguinte voltavam a reunirem-se todas na festa de despedida de solteira de Allegra, após o jantar de ensaio. E depois, finalmente, o casamento.

            — Se eu sobreviver... — desabafou Allegra, quando foi levar Sam e o bebê a Bel Air.

            Foi uma tarde esgotante, mas divertida. Allegra não sabia ao certo se continuava a gostar das suas velhas amigas, mas elas faziam parte da sua vida e da sua história e estavam ali para assistir ao seu casamento. Ainda se sentia um pouco abalada por causa de Jess e ia  pensandp nela quando passou pelo escritório para recolher as mensagens e ir buscar trabalho. Depois encontrar-se-ia com Jeff no estúdio. Era um grande dia para ele: chegara o momento final, o fim do seu primeiro filme.

            Allegra entrou no estúdio discretamente e assistiu ao último take da cena final. Ouviu o grito de vitória do diretor ao pronunciar as palavras mágicas: ‘Está no papo, rapazes!’ Jeff e Tony apertaram as mãos e abraçaram-se; era um momento emocionante para eles e para toda a equipe. E quando Jeff se voltou e viu Allegra, ficou radiante. Tony foi ao encontro dela e abraçou-a também. Era baixo, magro e louro, o contrário de Jeff. Ambos sabiam que tinham feito um belo trabalho e orgulhavam-se dele; produzir o filme não fora tarefa fácil, mas as recompensas eram muitas. Nessa noite tinham uma festa, mas Allegra não ia. Quando chegaram a Malibu estava exausta.

            — Como foi o seu dia? — perguntou Jeff, concentrando-se nela ao entrarem em casa.

            Fora um grande dia para ele. O filme estava finalmente concluído. Agora tinham de tratar da pós-produção, mas os problemas afiguravam-se menores. As estrelas iriam para casa, assim como o elenco e a equipe. O resto era com os editores, o diretor, Jeff e Tony.

            — O meu dia foi bizarro  — respondeu Allegra com um sorriso.

            Falou-lhe de Nancy e de Jess. O mais estranho era que já não tinha nada em comum com elas. Eram velhas amigas, mas haviam-se tornado desconhecidas.

            — Foi por isso que eu não quis que viessem muitos ex-colegas meus de Nova Iorque. Já pouco temos em comum, o único que me interessa é o Tony.

            — Foi mais esperto do que eu!

            Sentaram-se e ficaram conversando durante algum tempo. Por fim, foram para a cama. Jeff ainda tinha alguns pormenores a ultimar no dia seguinte e ao meio-dia ia buscar a mãe.

            Allegra também iria, se não tivesse de ajudar nalguns preparativos finais para o casamento; Blaire precisava da sua colaboração na distribuição dos lugares no jantar de ensaio. Tudo lhe parecia tão descontrolado! Carmen é que fora esperta ao ir casar a Las Vegas. Já para não falar de Sam, que não fora a lado nenhum, mas o seu caso era diferente.

            Combinou encontrar-se com Jeff e com a mãe dele em Bel Air à hora do lanche, mas dessa vez levou reforços, pedira à mãe que a acompanhasse. Blaire prometera ir, apesar de estar muito atarefada, mas nem os avisos de Allegra foram suficientes para prepará-la.

            A Srª. Hamilton vestia uma roupa escura e uma blusa de seda branca. Caminhava, hirta, pelo jardim de Bel Air quando Allegra a viu.

            — Boa tarde, Srª. Hamilton. Como correu a viagem?

            — Bem, obrigada, Allegra —  respondeu ela, formal, sem convidar a tratá-la de uma forma mais familiar. Com certeza que não por Mary, mamã, ou mãe...

                        Foram sentar-se na casa de jantar e Blaire ocupou-se dela. Ao fim de uma hora não eram amigas, mas criara-se certo respeito mútuo e as duas mulheres tratavam-se com bastante cordialidade. Jeff estava particularmente grato à futura sogra. Ela sabia como havia de lidar com a mãe e, apesar de esta não ser fácil, era possível dar-lhe a volta, como Blaire disse mais tarde a Allegra.

            Quando Jeff foi acompanhar a mãe ao quarto, a Srª. Hamilton confessou-lhe que, para uma mulher do mundo do espetáculo, a Srª. Steinberg era muito inteligente e surpreendentemente distinta. Assim que foi ter com Allegra ao vestíbulo, contou-lhe tudo.

            — Ela gosta da tua mãe  — traduziu Jeff numa linguagem mais simples.

            — A minha mãe também gosta dela.

            — E você? Está bem?

            Jeff lembrou-se da terrível discussão que haviam tido duas semanas antes e dos insultos dirigidos às famílias um do outro, sobretudo à mãe dele. Sentia-se na obrigação de defendê-la, mas também sabia que Allegra tinha razão em certas coisas. A Srª.  Hamilton não era uma pessoa fácil. Não era nova, nem pertencia ao mundo moderno; era preconceituosa e limitada, à sua maneira. Porém Jeff era o seu único filho; era necessário dar-lhe um certo desconto, embora também compreendesse Allegra.

            — Estou bem, mas estou nervosa.

            — Quem não está? —  respondeu ele, sorrindo.

            Nessa noite tinham as respectivas festas de despedida de solteiros. Para Allegra, tratava-se essencialmente de sobreviver. Não era uma ocasião relaxante, nem divertida, era uma obrigação. Nem os presentes de casamento a entusiasmaram tanto como gostaria. Depois de ver o primeiro, um par de castiçais de cristal da Carrier, encontrara mais dez iguais, e tudo o que recebiam tinha que ser listado, catalogado, inventariado, computadorizado e agradecido. Tudo aquilo era trabalho, e não divertimento, e os pequenos pormenores transformavam-se numa dor de cabeça. Apetecia-lhe dizer às pessoas que esperassem e mandassem as coisas mais tarde.

            — Como vai ser a tua festa de despedida de solteira desta noite? — perguntou Jeff, quando a levou a casa para ela mudar de roupa.

            Allegra pouco fizera no escritório, mas também não alimentara grandes esperanças, e Alice tentava tapar todas as suas lacunas.

            — Vamos jantar ao Spago  — respondeu ela, encostando-se no banco e bocejando.

            — Nós vamos ao Troy.

            — Mas que distintos! Espero que não apareça ninguém com meia dúzia de prostitutas.

            Allegra nunca achara graça a essas histórias das festas de despedida de solteiros; não lhe parecia ser maneira de começar um casamento, e ficaria furiosa se alguém as levasse.

            No entanto, a festa dele foi muito mais casta que a sua, graças a algumas colegas que Carmen convidara. Na de Jeff houve a stripper da praxe que entrou e saiu sem incidentes, uma série de canções obscenas, versos e anedotas, e a única visita inesperada foi levada por Alan Carr; o ator apareceu com um jacaré, fortemente drogado, preso a uma coleira, com o seu tratador e com um pequeno cartaz ao pescoço onde se lia ALLEGRA. Os rapazes riram a bandeiras despregadas, mas Allegra ficou satisfeita por ninguém ter feito o mesmo na sua festa; teria ficado horrorizada. Eles, pelo contrário, adoraram.

            No Spago, foi contemplada com um stripper masculino, que Jess considerou muito enfadonho. Jess tinha um grande sentido de humor, arreliou muito as companheiras e, de certo modo, conseguiu fazer-lhes sentir que o lesbianismo nada tinha de ameaçador e até podia ser engraçado. Todas as amigas ofereceram a Allegra presentes ousados, filmes obscenos e vibradores, e houve partidas atrevidas e roupa interior erótica para todas, ‘fios dentais’ e ‘auxiliares conjugais’ para a noiva. A princípio foi divertido, mas depois se tornou cansativo, e Allegra só tinha vontade de chegar em casa, meter-se na cama, adormecer e esquecer o casamento.

            — É como se tivesse participado nos Jogos Olímpicos disse ela baixinho, antes de adormecer ao lado de Jeff, perguntando a si própria se estariam ambos a dar o passo certo. Porque se sentiam as outras tão seguras? Carmen... Sam... Porque era tão fácil para elas e tão difícil para ela? Tinha medo do casamento ou de Jeff? Não soube responder; caiu imediatamente num sono profundo e passou o resto da noite com pesadelos.

 

            Sexta-feira foi o dia mais difícil de todos para Allegra. Era o seu último dia de trabalho, e conseguiu deixar tudo pronto. A casa fora vendida e a escritura estava feita. Era como se esgotasse o seu tempo com pormenores de última hora. Além disso, estava-lhe reservada uma derradeira tarefa espinhosa: o pai chegava nessa tarde e combinara encontrar-se com ele no Belage para tomarem um café.

            Há várias semanas que receava esse confronto e os pesadelos repetiam-se todas as noites. Os seus receios nada tinham a ver com Jeff nem com o casamento, mas sim consigo mesma, com a sua vida, com as suas recordações e com a sua liberdade, e ela sabia. Esperara vinte e cinco anos por este momento.

            O que mais detestava nesta fase era ter a impressão de que estava  perdendo Jeff no meio de tantos preparativos. Tudo girava à volta de chapéus, sapatos e véus, vídeos e fotografias, bolos de noiva e damas de honra, não tinha nada a ver com Jeff nem com aquilo que os aproximara. Era como se tivessem que atravessar um labirinto para se encontrarem outra vez, e estava ansiosa por voltar a vê-lo.

            Nesse dia, de manhã, saíra de casa antes de ele se levantar e telefonara-lhe depois de ter saído sabe Deus para onde. Jeff tinha as suas voltas a dar por causa dos padrinhos. Gostariam de ter almoçado os dois, mas não com companhia, e Allegra ia encontrar-se com o pai, Charles Stanton.

            O ensaio seria ao fim da tarde, e então veria Jeff, mas voltariam a separar-se durante o jantar. Nessa noite, como mandava a tradição, Allegra ficaria em casa dos pais, para não ver o noivo antes do casamento e porque já não tinha a sua casa. Ao mesmo tempo, ansiava por estar com eles e talvez ficasse a conversar com Sam até de madrugada, se a irmã a fosse visitar.

            Entretanto, havia outras coisas a fazer. Tinha de ir ver o pai. Falara no assunto a Sam e mostrara-se relutante em ser conduzida ao altar por ele. Simon censurara-a.

            — Até parece que está falando de um rapto

            — No caso dele, é  — respondera Allegra.

            A caminho do hotel, só pensava que teria de lhe comunicar que, no seu casamento, ele era apenas um convidado e não o pai da noiva. ‘Esta noite, o papel do pai será representado por Simon Steinberg, e não por Charles Stanton’. Quando entrou no átrio, ainda ia pensando nisso. Foi direita ao pai, sem saber.

            Pediu desculpa e dirigiu-se à recepção. Depois se virou para trás e olhou com atenção, a expressão pareceu-lhe familiar, mas ele estava muito mais velho. Também a observava e aproximou-se lentamente.

            — Allegra? — perguntou,  com cautela.

            Allegra fez um sinal afirmativo e susteve o fôlego. Era ele, o seu pai!

            — Olá  — disse, sem encontrar mais palavras.

            Ele propôs que fossem para o bar, mas, quando se sentaram, pediu uma Coca-Cola, e Allegra ficou satisfeita; pelo menos, não andava bebendo. Eram as piores recordações que tinha do pai, quando estava embriagado e batia na mãe.

            Durante algum tempo falaram de ninharias, da Califórnia, de Boston, do trabalho dela, do tempo. Não perguntou por Blaire, e Allegra admitiu que ainda sentisse alguma animosidade em relação à mãe: nunca lhe perdoara por ela ter saído de casa. Allegra participou-lhe que Jeff era de Nova Iorque e que dois dos seus avós tinham sido médicos.

            — Como é que ele escapou? — perguntou Charles Stanton, tentando animá-la, apesar de a tarefa não ser fácil.

            Havia um muro entre eles. Allegra estava admirada com o ar envelhecido e fragilizado do pai. A mãe dissera-lhe que ele devia ter setenta e cinco anos, o que a deixara admirada, pois nunca pensara que fosse muito mais velho do que Blaire.

            — É escritor  — explicou Allegra, referindo-se a Jeff. Falou-lhe dos dois livros e do filme. Tem muito talento assegurou, sem se conseguir concentrar no que estava a dizer. Só queria saber por que motivo a odiara tanto, porque nunca a vira, nunca lhe telefonara, nunca a amara. Desejava perguntar-lhe o que acontecera quando o irmão morrera, não conseguia estar apenas ali sentada ao lado dele. A sua raiva assemelhava-se a uma pequena poça de petróleo, sem escoamento, a menos que alguém acendesse um fósforo e a incendiasse. Por fim, Charles Stanton falou. Perguntou-lhe pela mãe, e o seu tom de voz exasperou Allegra.

            — Porque fala dessa maneira quando se refere a ela? — disparou, atônita com as suas próprias palavras, saídas talvez de um canto recôndito do seu coração, sem mais nem menos.

            — O que quer dizer com isso? Charles ficou desconcertado e bebeu a sua Coca-Cola. Era mestre na agressão passiva. Eu não sinto rancor pela tua mãe.

            Estava mentindo, e o olhar denunciava-o. Odiara Blaire ainda mais do que Allegra. Em relação à filha, parecia sentir apenas indiferença, mas, quanto a Blaire, tinha umas contas a ajustar.

            — Sim, o senhor tem animosidade pela minha mãe  — insistiu Allegra, sem tirar os olhos dele, mas isso é compreensível. Ela deixou-o.

            — O que você sabe de tudo isso? —  perguntou, irritado e de mau humor. Foi há muito tempo, era uma criança nessa altura.

            — Ainda me lembro... Ainda me lembro das discussões... Dos gritos... Das coisas que vocês os dois diziam...

            Como é que isso é possível? Charles olhou para o copo, recordando também esse tempo. Eras pouco mais do que um bebê.

            — Eu tinha cinco anos, seis, quando nos fomos embora. Foi horrível!

            Charles concordou, com um gesto de cabeça, incapaz de negar. Receava que ela se lembrasse do tempo em que batia em Blaire e de tudo o resto. Tinha consciência de quão fora insensato. Depois Allegra resolveu remexer águas profundas. Sabia que era a única forma de alcançar de novo a outra margem, e tinha de fazê-lo. Talvez nunca mais o voltasse a ver, talvez fosse a única oportunidade de se libertar e de libertar o pai.

            — O pior foi quando o Paddy morreu —  disse ela. Ao ouvir estas palavras, Charles estremeceu, como se Allegra o tivesse agredido.

            — Isso não tem remédio! —  retorquiu bruscamente. O Paddy tinha um tipo de leucemia que não era curável, nesse tempo. Talvez nem mesmo hoje... —  acrescentou, com ar triste.

            — Acredito  — respondeu Allegra em voz baixa, e era verdade; a mãe dissera-lhe o mesmo alguns anos mais tarde. No entanto também sabia que o pai considerava que era seu dever ter salvo o filho e que nunca perdoara a si mesmo por ter falhado. Por isso é que bebia e as perdera. Mas eu lembro-me dele... Era sempre tão meigo para mim... Em certos aspectos, Paddy era parecido com Jeff, tão terno e generoso, tão cuidadoso com ela... Eu gostava tanto dele!

            O pai fechou os olhos e virou a cara para o lado.

            — Não vale a pena falar disso agora.

            Ao ouvir estas palavras, Allegra lembrou-se de que ele não tinha mais filhos, e por instantes teve pena do pai: estava cansado e só, talvez doente, e não tinha nada. Ela tinha Jeff e os pais, Sam e Scott, e até Jimmy e Matthew, Charles Stanton só tinha remorsos, fantasmas, um filho que amara e perdera e uma filha que abandonara.

            — Porque nunca quis me ver? —  perguntou sem levantar a voz. Depois disso, quero eu dizer. Porque nunca me telefonou nem respondeu às minhas cartas?

            — Eu fiquei muito zangado com a tua mãe  — respondeu ele, infeliz por lhe fazerem estas perguntas passados tantos anos.

            Mas a explicação não satisfez Allegra.

            — O senhor era meu pai.

            — Ela tinha me abandonado, e você também, e era demasiado penoso continuar ligado a você. Eu sabia que nunca conseguiria que vocês voltassem, nem uma nem outra. Era mais simples esquecer-vos.

            O que fizera ele então? Expulsara-a da sua mente? Repudiara-a? Sepultara-a, como a Paddy? Eliminara-a? Cortara os laços que os uniam?

            — Mas por quê? — insistiu Allegra. Porque não respondeu às minhas cartas? E quando eu falava consigo, zangava-se tanto, era tão mau!

Era duro pronunciar tais palavras, mas era inevitável. Então ele disse algo muito estranho.

            — Eu não te queria na minha vida, Allegra, não queria que gostasses de mim. Talvez isto te pareça absurdo, mas eu amava-vos muito, às duas, e, quando vos perdi, desisti. Era como se tivesse perdido o Paddy outra vez! Eu sabia que não podia lutar contra a distância, nem contra a nova vida aqui. Um ano depois de partir, tinha um padrasto, e, passados três anos, um novo irmão, e era natural que viessem mais. Ela tinha uma nova vida, e você também, seria uma crueldade eu tentar agarrar-me a vocês, às duas. Era preferível deixar partir, deixar que a maré as levasse para a uma nova vida. Desse modo, não teriam de olhar para trás. Não tinham passado, apenas futuro.

            — Mas eu levei tudo comigo, levei-o a você e ao Paddy para toda a parte. Nunca compreendi porque deixou de gostar de mim  — disse ela com as lágrimas nos olhos. Eu tinha de saber por quê. Sempre julguei que o senhor me odiava acrescentou, perscrutando-o, em busca de uma confirmação.

            — Eu nunca te odiei  — retorquiu ele com um sorriso triste, tocando-lhe ao de leve nos dedos, mas não tinha nada para te oferecer nessa altura, estava destroçado. Durante algum tempo odiei a sua mãe, mas depois até esse sentimento se desvaneceu. Eu tinha os meus próprios demônios... Suspirou e olhou para Allegra. Eu tentei um tratamento experimental no teu irmão, Allegra. Ele teria morrido, de qualquer maneira, mas eu tinha a certeza de que aquilo iria ajudá-lo. A verdade é que não ajudou, e sempre receei que o tratamento lhe tivesse encurtado a vida, talvez não muito, mas alguma coisa. A sua mãe culpou-me e afirmou que eu o matei —  concluiu, com ar derrotado.

            — Não era isso que ela me dizia quando falávamos no assunto, nunca o incriminou.

            — Talvez tenha me perdoado  — aquiesceu Charles tristemente.

            — Ela perdoou-lhe há muito tempo —  retorquiu Allegra em voz baixa.

            Não havia respostas fáceis. Não era possível compreender verdadeiramente o que o levara a afastar-se dela, mas pelo menos Allegra sabia agora que tinham sido os demônios do  pai, a sua própria culpa, os seus próprios terrores, as suas próprias insuficiências que o haviam convencido de que era essa a decisão certa. Charles Stanton não tinha nada para lhe dar. Fora o que a Drª. Green sempre lhe dissera, e ela nunca acreditara, mas pelo menos agora o ouvira da boca dele.

            — Eu gostava muito de você  — acrescentou, em surdina. Eram estas as palavras que Allegra sempre esperara ouvir. Creio que não sabia até que ponto, nesse tempo. Continuo a gostar muito de você, e foi por isso que vim. Começo a perceber que o tempo é um luxo e que é preferível gozá-lo. Às vezes penso nas coisas que te poderia ter dito, que te poderia ter telefonado, no teu aniversário, por exemplo... Sempre me lembrei dele, do teu, do Paddy, e do dela... Mas nunca telefonei. Pensei nisso durante muito tempo quando me escreveu. Não tinha a intenção de responder, mas depois percebi que não queria faltar ao seu casamento.

            Havia lágrimas nos seus olhos ao dizer isto; era muito importante para ele.

            — Obrigada  — murmurou Allegra, com as lágrimas a correrem pela face; agradecia-lhe as palavras, a honestidade e a sua própria liberdade. Ainda bem que veio —  assegurou, beijando-lhe a mão.

            Ele sorriu, sem se atrever a dizer mais nada. Tal como antes, era prisioneiro das suas próprias limitações, como todos os seres humanos.

            — Também estou contente por ter vindo  — respondeu em voz baixa, ainda abalado pela conversa.

            Depois beberam mais uma Coca-Cola e falaram do casamento. Allegra não lhe disse quem a levaria ao altar. Tencionava pedir a Delilah que o fizesse, mas sentia-se muito aliviada com o que ele dissera, por saber que se preocupara com ela, pensara nela e até se lembrara dos seus aniversários. De certo modo, nem era importante que não lhe tivesse telefonado, mas para Allegra havia uma tremenda diferença.

            Quando se levantaram, ofereceu-se para o levar ao ensaio, que se realizava no mesmo lugar do jantar; era preferível do que regressarem a Bel Air, à residência dos Steinberg, onde os jardineiros continuavam trabalhando freneticamente. O casamento era às cinco horas do dia seguinte, e faltavam exatamente vinte e três horas para concluir o trabalho.

            No caminho, o pai surpreendeu-a ao admitir que se sentia nervoso por ir voltar a ver Blaire. Era estranho. A mãe estava casada com Simon há vinte e cinco anos, e este homem não tinha lugar na vida dela. Mas tivera. Em termos históricos. O casamento de ambos durara onze anos e Blaire dera-lhe dois filhos. Até parecia mentira! Ele estava tão cansado e grisalho, tão velho! Era tão reservado e conservador. Tão diferente da mãe, que era bela, expansiva, jovial e dinâmica, e que parecia não ter nada a ver com Charles Stanton! E, de fato, agora não tinha.

            Às seis horas em ponto estavam no Bistrô, e o resto do grupo começava a chegar. Delilah e o padre confabulavam a um canto, enquanto as empregadas serviam champanhe. Às sete horas, Delilah impôs a ordem. Toda a família de Allegra estava presente, além das damas de honra, dos amigos, do padre e dos seus dois pais. A mãe de Jeff ficara ao lado de Charles e envergava um vestido preto, austero. Apanhara o cabelo atrás e estava terrivelmente séria, mas, apesar de tudo, Allegra achou-a bonita.

            Alan contava a Simon tudo acerca das filmagens na Suíça, enquanto Carmen falava com Sam do bebê. Por uma vez, a irmã deixara Matthew em casa com uma baby-sitter. Dera-lhe de mamar antes de sair e avisara Jimmy de que não queria demorar-se muito. Era a primeira vez que se afastava do filho, mas era formidável voltar a sair. Jimmy admirava a figura magnífica da mulher.

            Formavam um grupo elegante, e os tablóides teriam ficado satisfeitos com os nomes que ali estavam representados. O padre explicou o que se iria passar no dia seguinte, quem iria onde, quem faria o quê em primeiro lugar. Charles Stanton não sabia ao certo qual seria o seu papel, e Simon percebeu. Chamou-o de parte, discretamente, apertou-lhe a mão e disse-lhe que tinha uma proposta a fazer-lhe. Allegra ouvira o princípio da conversa, mas depois eles afastaram-se e não percebeu do que estavam falando.

            De súbito, era tudo muito emocionante. Estava acontecendo. Todas as peças do puzzle encaixavam! Os amigos mais antigos de Allegra estavam ali, além da família, e até o pai admitira que a amava. A confusão, a fragilidade e a desorientação tinham norteado o seu comportamento para com a filha, mas ela não fora abandonada. No fundo sempre o soubera, e escutara o mesmo dos especialistas, mas, por fim, ouvira-o da boca do seu próprio pai.

            Allegra apresentara-o a alguns amigos, à entrada. Havia uma certa semelhança entre pai e filha, mas era com Blaire que ela se parecia verdadeiramente e era Simon que amava como a um pai. Charles foi-se aproximando de Allegra e de Blaire, que estavam  falando acerca do jardim.

            — Olá, Blaire... Se fosse mais novo, teria corado, mas limitou-se a olhá-la fixamente. Estava quase na mesma e tinha um aspecto tão jovem! Para ele, era como se os ponteiros do relógio andassem ao contrário. Sentiu-se inundado por recordações contraditórias e lembrou-se do tempo em que Paddy e Allegra eram pequenos. Está com um ótimo aspecto —  acrescentou, em voz baixa.

            — Você também  — respondeu ela, sem saber o que lhe havia de dizer, quando os olhares de ambos se cruzaram.

            Partilhavam as mesmas recordações, a mesma dor, as mesmas esperanças frustradas, e, há muito tempo, tinham partilhado as mesmas alegrias e o mesmo riso. Era duro recordar essa época. Só restavam as tragédias: a morte de Paddy e a partida de ambas. Charles viera acrescentar mais uma recordação aos seus álbuns.

            — Foi simpático da sua parte ter vindo  — disse Blaire, quando Allegra foi cumprimentar Tony Jacobson, o diretor de JefF.

            Ao afastar-se, Allegra reparou que Nancy Towers movia uma perseguição feroz ao irmão, mas Scott parecia não reagir. Nancy já tinha bebido um pouco e a sua mão acariciava-lhe a coxa. Os olhares de Scott e de Allegra cruzaram-se.

            — Ela é muito parecida com você  —  disse Charles a Blaire. Observava Allegra, que voava pela sala, rindo, com o cabelo a esvoaçar, como o de Blaire. Era tão esbelta, jovem e graciosa! A princípio, ela assustou-me... Julguei que eras você... Tivemos uma conversa muito importante, esta tarde, no hotel.

            — Ela disse-me  — respondeu Blaire, que queria aproximar-se dele, confortá-lo, dizer-lhe que lamentava tudo o que se passara, ao fim de todos aqueles anos. Está bem, Charles? — perguntou, tentando não se lembrar do tempo em que eram novos e o tratava por Charlie.

            — Tenho uma vida muito discreta —  respondeu ele, com resignação. Você tem uma família encantadora.

            Era fácil identificar todos os membros, pois os filhos de Blaire eram parecidos com ela. E a conversa com Simon agradara-lhe. Talvez Blaire tivesse conseguido o que merecia. Não merecera, com certeza, o sofrimento que ele lhe infligira, mas fora inevitável. Charles esperava que ela percebesse. Como gostaria de lhe dizer tudo o que transmitira a Allegra nessa tarde!

            — Ainda bem que veio, Charles —  assegurou Blaire, e ele compreendeu.

            Tinha os olhos cheios de lágrimas quando lhe tocou na mão e se afastou. Não podia estar junto dela por mais tempo, era demasiado doloroso. Optou por meter conversa com Mary Hamilton e descobriu que não só tinham amigos comuns em Boston como conhecera o pai dela, que fora seu professor na Faculdade de Medicina. Falaram animadamente até que Blaire os chamou para jantar.

            Nessa noite fizeram-se vários brindes. Jeff e Allegra conseguiram sentar-se um ao lado do outro, falaram, riram e conviveram com os amigos. Na noite seguinte ficavam no Hotel Bel Air e de manhã partiam para a Europa. Custava a acreditar que chegara o momento, que chegara o dia... Quase... Ainda faltavam vinte horas para o casamento.

            Simon brindou aos noivos e Jeff à noiva. Blaire disse que se orgulhava dos filhos, e Allegra reparou que Charles Stanton olhara para ela mais do que uma vez. Estava a dar-se muito bem com a mãe de Jeff, que parecia muito mais simpática. No fim do jantar, Charles Stanton e Mary Hamilton eram bons amigos, e quando Allegra os viu pela última vez Charles ia levá-la a Bel Air.

            — Acho que o meu ex-pai anda atrás da tua mãe  — disse Allegra, divertida, a Jeff, antes de ele regressar a Malibu. Esta noite vou sentir a tua falta...

            De súbito, aquela tradição, que obrigava a que o noivo não visse a noiva antes do casamento, parecia estúpida e obsoleta. Noutros tempos, as pessoas não viviam juntas antes do casamento e não estava em causa perderem uma noite antes da lua-de-mel. Agora era apenas uma privação gratuita.

            — A propósito, como correram as coisas com ele? — quis saber Jeff, cauteloso. Não tivera oportunidade de lhe fazer a pergunta durante o jantar.

            — Muito bem  — respondeu ela com um sorrisinho. Acho que consegui algumas das pistas de que precisava. Ele é uma pessoa triste. Deve sentir-se muito só.

            — Talvez esteja melhor assim. Não consigo imaginar a tua mãe com ele. São diferentes como o dia da noite.

            — São, não são? Ainda bem para o Simon.

            — Já decidiu quem é que te leva ao altar? —  perguntou Jeff, sorridente. Custava-lhe muito separar-se dela.

            — O Simon disse que se encarregava disso, para eu não me preocupar. Graças a Deus!

            Allegra suspirou de alívio. Fizera as pazes com o pai ao fim de vinte anos, mas queria que fosse Simon a levá-la ao altar.

            À porta do Bistrô, entraram cada um no seu automóvel. Sam e Jimmy já tinham saído há uma hora. Os seios da irmã pareciam bolas de boliche, cheios de leite para o bebê. Allegra lembrou a Jeff onde estavam as suas malas para a lua-de-mel, receava que ele as deixasse em casa.

            — Não se esqueça das minhas malas! — gritou da janela do carro.

            — Vou fazer o possível! —  respondeu ele, seguindo o carro de Alan e Carmen, que também iam para Malibu. Agora estavam lá quase sempre.

            Dez minutos depois, Allegra chegou a casa dos pais, em Bel Air. Simon e Blaire verificavam alguns pormenores e, na casa de hóspedes, as luzes ainda estavam acesas. Allegra sentia-se ansiosa por ir visitar a irmã e o cunhado, mas não queria intrometer-se. Gostaria de ter falado com Scott, mas ele desaparecera com Nancy depois do jantar, e Allegra desconfiava que só voltaria de manhã.

            — É melhor ir dormir  — recomendou Blaire, enquanto Allegra vagueava pela casa, inquieta.

            — Não estou cansada  — respondeu ela

            Parecia uma criança, pensou a mãe, com um sorriso nos lábios.

            — Amanhã vai estar...

            Por fim, como já não tinha mais nada que fazer, subiu as escadas, entrou no seu antigo quarto, despiu-se e meteu-se na cama. Depois telefonou a Jeff, que acabara de chegar em casa, e trocaram impressões acerca da noite agradável que tinham passado, de alguns amigos e da excitação despertada pelo casamento.

            — Amo-te tanto  — disse ele, e era sincero. Nunca se sentira tão feliz.

            — Eu também te amo muito —  respondeu Allegra. Em seguida, desligaram. Allegra ficou acordada durante algumas horas, pensando nele e na sua felicidade. Encontrara exatamente o homem que desejava, ou o que era mais importante o homem de que precisava. E, tal como sempre sonhara, em certos aspectos ele fazia lembrar Simon. Nessa noite dormiu em paz, sem sonhar. Tratara de tudo. Do seu trabalho, da sua vida, do seu passado, do seu futuro e do seu pai.

 

            No sábado, 5 de Setembro, estava um dia cheio de sol em Los Angeles. Não havia névoa nem poluição. Soprava uma brisa quase imperceptível e o céu estava muito azul. Às cinco da tarde ainda havia muita luz.

            A essa hora, Allegra estava no seu quarto. O vestido assentava-lhe como uma luva, o chapéu era espetacular e o véu comprido e farto caía sobre ele e dava-lhe um ar de princesa saída de um conto de fadas. O cabelo fora cuidadosamente penteado por baixo do chapéu. Estava linda, com a saia de renda pelos joelhos à frente e comprida atrás. A mãe estendeu-lhe o ramo perfumado que David Jones criara especialmente para ela.

            — Oh!, meu Deus, Allegra.. —  exclamou Blaire, com as lágrimas nos olhos. Nunca vira uma noiva tão bonita como a filha. Estava absolutamente divina, com o vestido que Gianfranco Ferre desenhara para a Dior.

            Quando Simon a viu descer as escadas na sua direção, os olhos encheram-se-lhe também de lágrimas. Era uma emoção incontrolável.

            — Oh!, minha querida... —  murmurou. Não havia dúvida absolutamente nenhuma na mente de ambos de que Allegra era sua filha, e Simon percebeu, ao olhar para ela, que nenhum deles se esqueceria disso.

            Lá fora, a música tocava baixinho; os convidados aguardavam-nos. Delilah pavoneava-se pela sala, como um avestruz a vigiar as suas crias. As damas de honra já estavam em fila e encontrava-se tudo a postos quando Simon desceu com Allegra.

            — Ontem fiz uma coisa. Falei com o Charles. Tive uma idéia... Agora, não te zangues comigo disse ele. Allegra começou a ficar nervosa. É uma espécie de compromisso.

            Segredou-lhe o resto ao ouvido. Allegra pensou por instantes, sorriu e fez um sinal afirmativo. Logo a seguir apareceu Charles Stanton, de fraque e calças às riscas. Tinha um ar muito distinto e um pouco tenso. Simon tinha o aspecto magnífico de uma estrela de cinema.

            — Muito bem, minhas senhoras, vamos andando sem fazer barulho —  disse Delilah, fingindo bater as palmas em silêncio.

            Allegra riu: era tudo tão ridículo! Tinham levado meses naquilo, que não passava de um espetáculo com mil e um pormenores absurdos.

            — Sem fazer barulho e devagarinho  — segredou Delilah, demonstrando o passo solene.

            Nancy era a primeira. Passara uma noite inesquecível com Scott no seu quarto de hotel. Logo atrás vinha Jess, com um ar muito senhoril, de vestido de renda bege e chapéu de organza da mesma cor. Piscou o olho a Allegra antes de sair para o jardim, e a noiva soltou uma gargalhada irreverente. Era o dia mais feliz da sua vida, e daí a dez minutos estaria casada com Jeff... Para sempre.

            Carmen vinha a seguir. Aparecia propositadamente em terceiro lugar, para não monopolizar as atenções, mas, apesar de ter engrossado na cintura, era difícil não atrair os olhares. As pessoas ficaram sem fôlego ao vê-la e ouviu-se um cochichar quando desceu a nave na direção do altar florido. Depois vinha Sam, tão jovem, tão pura, tão fascinante com a sua figura alta e esguia, parecida com a de Allegra e de Blaire. Jimmy era um dos padrinhos e aguardava-a no altar, ao lado dos outros.

            Seguiu-se uma longa pausa, enquanto todos esperavam pela noiva. Por fim apareceu Allegra, belíssima, como seria de esperar. Vinha pelo braço do pai, com passos estudados e de olhos postos no chão por baixo do véu, e sentia-o tremer a seu lado. Ele regressara no momento certo da sua vida, o momento de ela o deixar, e não de ser deixada. E dessa vez continuariam o seu caminho, sem abandonos.

            Quando chegaram ao meio da nave, Charles Stanton parou e virou-se para ela com um sorriso. Depois lhe levou a mão aos lábios, beijou-a e deu-lhe a sua bênção.

            — Boa sorte, minha filha... Gosto muito de ti  — disse, em voz baixa.

            Admirada, Allegra olhou para ele. Charles Stanton desviou-se  no momento em que Simon avançou para junto dela. Deu-lhe o braço e encaminhou-a para o altar, tal como a encaminhara na vida. Ambos a acompanhavam há quase trinta anos: Charles nos primeiros anos de vida, e Simon depois. Apertando-lhe o braço com força, Simon olhou para a sua primeira filha, aquela que Blaire lhe trouxera, tão sedenta de amor, tão assustada!

            — Gosto muito de você  — disse ele, por entre as lágrimas. Allegra pôs-se em bicos de pés e beijou-o. Depois o deixou, como deixara todos os outros, abandonando-os da mesma maneira que os amara, para assumir o seu novo papel de mulher de Jeff. Simon foi sentar-se ao lado de Blaire e Allegra virou-se para Jeff, irradiando amor. Viera de longe para junto dele, e juntos iriam ainda mais longe. Tinham esperado muito um pelo outro.

            — Está tão bonita! — segredou Jeff quando ela lhe apertou a mão.

            — Amo-te tanto  — respondeu Allegra, também em surdina.

            Jeff olhou para ela, tão orgulhosa, tão bela, tão cheia de esperança, enquanto as pessoas que a tinham amado choravam de alegria e lhe desejavam um futuro feliz.

            Juraram amor e lealdade um ao outro e, por fim, Jeff deu-lhe um longo beijo, enquanto os convidados aplaudiam.

            O sacerdote declarou-os marido e mulher, e eles desceram a nave de mãos dadas, sob uma chuva de pétalas de rosa. Era um momento feliz, um dia feliz; era o culminar de uma vida.

            Os convidados garantiram que nunca tinham visto uma noiva tão linda. Allegra e Jeff agradeceram a todos. Por fim, Peter Duchin tocou Fascinação e eles começaram a dançar uma valsa lenta à volta da sala. Todos ficaram em transe: nunca tinham visto um casal tão atraente. Em seguida, Allegra dançou com Charles e por fim com Simon, que a conduziu sem dificuldade, fazendo-a rir com os seus disparates e com a alegria própria do casamento. A sua sutileza e o seu coração há muito tinham conquistado Allegra. Depois dançou com Alan, com o irmão, com o cunhado, com Tony, Art e os amigos de ambos, e de novo com Jeff. Dançou durante horas. Por fim, foram jantar. Allegra dançou mais um pouco. Agradeceu à mãe e a Simon o magnífico casamento e disse-lhes que se tinham portado muito bem. Haviam convidado duzentas e cinqüenta pessoas, e tudo correra às mil maravilhas. Até Mary Hamilton parecia estar divertindo-se. Charles Stanton não a largara durante toda a noite.

            Por último, enquanto Allegra mudava de roupa e vestia um traje Valentino de seda branca, Simon dançou lentamente com Blaire, saboreando os últimos momentos da festa. Jimmy e Sam também dançavam. De repente, Blaire sentiu-se terrivelmente culpada e olhou para Simon.

            — Já pensou que a pobrezinha teve um bebê e casou-se há mês e meio, e nem sequer teve uma festa? Talvez fosse boa idéia fazer-lhes qualquer coisa depois de termos a cozinha em ordem... — disse, com ar pensativo, olhando para o marido. De repente, tudo parecia tão simples!

            Mas Simon riu e abanou a cabeça.

            — Nem se atreva! Preferia dar-lhes um cheque e mandá-los para uma lua-de-mel. Não se atreva a organizar outro casamento! — disse ele com firmeza. Olhou para a filha mais nova, tão feliz nos braços do marido, e depois para a mulher. Sam ainda tinha um ar tão inocente e confiante! A menos que ela queira. Talvez seja preferível perguntar-lhe...

            Simon detestava sobrecarregar a filha com uma festa de casamento depois de tudo o que ela passara.

            — Podíamos fazer qualquer coisa no Natal... Ou na Primavera...

            Blaire já estava fazendo planos: uma festa de Natal para Sam.. Uma renovação dos votos... Pequenas árvores de Natal espalhadas pelo jardim... Uma tenda... Uma banda mais jovem que a de Peter, qualquer coisa de que os meninos gostassem...

            — Pára! —  exclamou Simon, rindo dela. Porque não nos casamos outra vez? Talvez fosse divertido... E, no caso deles, talvez se justificasse. Desde que Matthew nascera que o seu casamento sofrera uma renovação. Amo-te, minha tonta... Deixa de fazer planos para o casamento da Sam por cinco minutos. Só quero que saiba que te acho formidável.

            — Também eu. Considerei um golpe de gênio o que você fez com a Allegra e o Charles. Todos tiveram a sua oportunidade e, em certos aspectos, foi tão simbólico...

            — É por eu trabalhar com atores há quarenta anos... Compromisso e criatividade. Funciona sempre!

            — Não posso me esquecer disso quando começar a trabalhar contigo, na próxima  — semana gracejou ela, enquanto dançavam ao som de New York, New York.

            Nesse momento apareceu Allegra, deslumbrante com o seu vestido Valentino branco. Subiu ao estrado onde se encontrava a orquestra, virou as costas aos convidados e atirou o ramo para trás. Este atravessou o ar e foi cair nas mãos de Jess, que abanou a cabeça e voltou a atirá-lo, como se ele fosse uma granada de mão. Dessa vez, foi Samantha que o apanhou. As duas irmãs riram, e quando Allegra lhe deu um beijo de despedida, segredou-lhe que a mãe lhe queria oferecer uma festa de casamento no Natal.

            — Oh!, não... —  guinchou Sam, como uma criança diante de um prato de espinafres. Eu não agüentaria... O Jimmy matava-me... Eu morria...

            Sam estava sendo sincera. O casamento de Allegra fora maravilhoso, mas, em sua opinião, dera muito trabalho.

            — Diz isso à mãe  — retorquiu Allegra, acenando a todos e entrando no automóvel que os levaria para o hotel. Fora um casamento perfeito.

            Blaire e Simon viram-na partir. Ela fora dar-lhes um beijo e agradecer-lhes, e Jeff fizera o mesmo. Voltariam da Europa daí a três semanas. Assim que eles saíram, Jimmy empurrou Sam para a pista de dança, Scott desapareceu no seu quarto com Nancy e Simon puxou a mulher para si e beijou-a.

 

                                                                                            Danielle Stel

 

 

                      

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