Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
Transformações
— Doutor Hallam. Doutor Peter Hallam. Doutor Hallam. Unidade Cardiovascular de Cuidados Intensivos, doutor Hallam.
A voz continuava a chamar mecanicamente, enquanto Peter Hallam atravessava num passo apressado o átrio do Hospital Central, sem se deter para responder à chamada, uma vez que a sua equipe já sabia que ele ia a caminho. Franziu a testa ao premir o botão do elevador que o levaria ao sexto andar, com todos os seus pensamentos concentrados nas informações que recebera pelo telefone, há cerca de vinte minutos.
Havia várias semanas que aguardavam por aquele doador e, naquele momento, quase já era tarde demais. Quase. Quando as portas do elevador se abriram e ele se encaminhou rapidamente para a sala das enfermeiras da Unidade Cardiovascular de Cuidados Intensivos, a sua mente começara a funcionar a toda a velocidade.
— Já mandaram a Sally Block para cima? — perguntou.
Uma das enfermeiras soergueu o olhar, parecendo ficar em sentido quando os seus olhos se cruzaram com os do médico. Havia algo no seu interior que se sobressaltava um pouco sempre que o via. Existia qualquer coisa acerca daquele homem que era infinitamente impressionante; era alto, esguio, de cabelos grisalhos; os olhos eram azuis e falava com suavidade. O Dr. Hallam tinha o aspecto dos médicos presentes nos romances que as mulheres preferem. Havia nele algo que poderia ser considerado como intrinsecamente generoso e gentil, sem contudo deixar de dar a impressão de ser uma pessoa de grande virilidade. Esse aspecto poderia ser comparado à aura de um cavalo de corridas, extraordinariamente bem treinado, que fosse impulsivo ao sentir o jugo das rédeas, desejando seguir com maior velocidade, até mais longe. Querendo fazer mais. A lutar contra o tempo para conquistar o impossível que ficava para lá da esperança. Roubando apenas uma vida à morte. Um homem. Uma mulher. Uma criança. Mais uma. Muitas vezes era ele que saía vencedor. Frequentemente, mas nem sempre. Quando assim acontecia, sentia-se perturbado. Mais do que isso, ficava magoado. Era a causa das rugas que tinha por baixo dos olhos, da tristeza que se adivinhava no mais profundo do seu ser.
Não era suficiente o fato de Peter Hallam operar verdadeiros milagres quase todos os dias. Desejava mais do que isso, queria oportunidades mais vantajosas. O objetivo do Dr. Hallam era salvar todos os que lhe passavam pelas mãos, e não havia maneira de conseguir atingir essa meta cem por cento.
— Sim, senhor doutor — respondeu rapidamente a enfermeira com um aceno de cabeça. — Ela foi para cima agora mesmo.
— Estava pronta? — Aquele era outro fator que lhe era característico.
A enfermeira sentiu-se admirada ao ouvir aquela pergunta. Compreendeu de imediato o que ele queria dizer com a palavra pronta; não se referia à solução intravenosa aplicada no braço da doente, nem tão pouco aludia ao sedativo ligeiro que lhe fora administrado, antes de ela ter saído do quarto numa cadeira de rodas, para ser conduzida ao bloco operatório.
O médico pretendia saber em que é que a doente tinha estado a pensar, como é que se sentia, quem é que falara com ela e quem é que a acompanhara. Era seu desejo que cada um dos seus doentes soubesse, antecipadamente, aquilo que teria pela frente, até que ponto é que a equipe médica estava disposta a trabalhar. Também queria que todos os seus doentes compreendessem o quanto os médicos se preocupavam, a forma como tentariam esforçadamente salvar todas as vidas. Desejava que cada um deles se encontrasse preparado para entrar na batalha com ele próprio. Se eles não acreditarem com toda a convicção que têm uma oportunidade de lutar no momento em que entram ali, isso significa que logo de início se encontram perdidos para nós.
A enfermeira tinha-o ouvido dizer exatamente aquelas palavras aos seus alunos. Sabia que ele falara com toda a convicção. O Dr. Hallam costumava lutar com todas as fibras do seu ser, o que lhe custava bastante; apesar disso, considerava que valia a pena. Os resultados que o médico conseguira obter ao longo dos últimos cinco anos haviam sido surpreendentes, salvo em alguns casos raros e excepcionais. Essas exceções revestiam-se de um profundo significado para Peter Hallam, o qual encarava fosse o que fosse dessa maneira. Ele era um homem notável, de uma grande intensidade de caráter, além de ser brilhante e tão bem-parecido, recordou a enfermeira a si própria esboçando um sorriso ao vê-lo afastar-se num passo apressado, seguindo em direção um pequeno ascensor situado no corredor por detrás dela, e que o conduziria rapidamente até a um piso mais acima, deixando-o do lado de fora do bloco operatório, onde ele e a sua equipe costumavam realizar operações cardiovasculares, assim como transplantes do coração. Ocasionalmente, também executavam naquela sala operatória um tipo mais comum de cirurgia ao coração; todavia, tal não se verificava com muita freqüência. Na maioria das vezes, o que acontecia era Peter Hallam e a sua equipe realizarem intervenções cirúrgicas de grande envergadura, à semelhança da que iria ser efetuada naquela mesma noite.
Sally Block era uma jovem mulher de vinte e dois anos, a qual vivera a maior parte da sua vida de adulta numa situação de invalidez, aleijada devido à febre reumática que lhe fora diagnosticada em criança. Ao longo da sua existência sofrera múltiplas substituições de válvulas, acompanhadas por toda uma gama de medicação de várias ordens.
O Dr. Hallam, em conjunto com os seus associados, havia chegado à conclusão, semanas antes de Sally ter sido admitida no Hospital Central, que um transplante seria a única solução apropriada ao caso dela. No entanto e até a data, não fora possível encontrar um doador adequado. Até precisamente aquela noite, às duas e trinta da manhã, altura em que um grupo de delinqüentes juvenis tinha decidido organizar a sua competição particular de aceleração de automóveis, no vale San Fernando; dois deles haviam morrido na ocasião do impacto e, depois de vários telefonemas de caráter comercial, provenientes da eficiente organização que localizava e distribuía os órgãos de doadores, Peter Hallam ficou sabendo que já tinha um bom coração para transplantar. Antes disso, fizera vários telefonemas para todos os hospitais situados na zona sul da Califórnia, tentando encontrar um doador para Sally e agora, finalmente, estava na posse de um; isto é, se Sally conseguisse sobreviver à intervenção cirúrgica e desde que o seu organismo não sabotasse a operação que os médicos se propunham efetuar, ao rejeitar o novo coração que iria substituir o seu.
O Dr. Hallam despiu a roupa com que chegara ao hospital e, sem mais perda de tempo, vestiu o fato largo de algodão verde, próprio para o bloco operatório, que mais parecia um pijama; em seguida, lavou e esfregou cuidadosamente as mãos e os braços, tendo sido ajudado pelos assistentes de cirurgia, que lhe colocaram a máscara que lhe cobria o nariz e a boca, assim como uma touca para os cabelos. Mais três médicos e dois estagiários seguiram-lhe o exemplo, o mesmo acontecendo com um grupo de enfermeiras. Não obstante todos aqueles preparativos, Peter Hallam pareceu não se aperceber da presença dos outros quando entrou na sala de operação. Os seus olhos começaram imediatamente à procura de Sally Block, que se encontrava estendida em silêncio sobre a mesa operatória.
Os olhos da doente estavam fixos nas fortes luzes colocadas por cima dela. Até mesmo naquela situação que lhe era desfavorável, vestida com uma bata esterilizada e tendo os cabelos compridos e louros metidos dentro de uma touca de algodão verde, continuava a ser bonita. Sally não só era uma jovem lindíssima, como também um ser humano íntegro e generoso. Desejava com todo o desespero tirar um curso de artes plásticas, poder freqüentar uma universidade, ir a um baile de formatura, ser beijada, ter filhos.
Sally reconheceu o médico, apesar da touca e da máscara que ele usava, tendo-lhe sorrido meio inconsciente por causa do efeito da medicação que lhe fora ministrada.
— Olá! — saudou ela com um aspecto frágil; os seus olhos eram enormes naquele rosto tão debilitado. Parecia uma boneca de porcelana quebrada, à espera que ele a reparasse.
— Olá, Sally! Como é que está a sentir-se?
— Esquisita — redargüiu ela.
Os seus olhos mostraram-se agitados durante breves instantes, após o que sorriu para aquela expressão que lhe era tão familiar. Ao longo das últimas semanas, Sally ficara a conhecer o médico melhor do que conhecera qualquer outra pessoa nos últimos anos. Peter Hallam abrira-lhe as portas da esperança e do carinho, ao proporcionar-lhe cuidados médicos; toda aquela sensação de isolamento e solidão que sentira ao longo de tantos anos parecia-lhe agora ser bastante menos aguda.
— Durante estas horas mais próximas vamos estar muito ocupados. Tudo o que a Sally tem a fazer é ficar aí sossegadinha e passar pelas brasas. — Com estas palavras, ele olhou para a doente e em seguida observou os monitores próximos de si, após o que voltou a concentrar a sua atenção em Sally.
— Sente-se assustada?
— Um pouco — admitiu ela.
No entanto, o Dr. Hallam sabia que a sua doente se encontrava bem preparada. Passara várias semanas a explicar-lhe o intrincado processo cirúrgico, tendo-a também advertido dos perigos da medicação pré-operatória. Naquele momento, Sally sabia o que devia esperar; o grande momento havia chegado finalmente. Era quase como se estivessem preparados para ajudar um novo ser a nascer. Para o médico era como se ele próprio se preparasse para assistir ao seu nascimento, quase como se ela estivesse prestes a surgir da sua alma, da ponta dos seus dedos, enquanto ele lutaria para lhe salvar a vida.
Os médicos anestesistas aproximaram-se mais da cabeça de Sally, procurando o olhar de Peter Hallam, que acenou lentamente com a cabeça, sorrindo de novo à sua doente.
— Até já — despediu-se Peter.
A diferença é que não seria já. O mais certo era decorrerem umas cinco ou seis horas antes de ela voltar a estar consciente, o que não aconteceria por completo quando se encontrasse sob observação na sala de recuperação pós-operatória, antes de ser conduzida para a Unidade de Cuidados Intensivos.
— Vai estar presente quando eu acordar da anestesia? — perguntou Sally com as sobrancelhas franzidas, o que fez com que o Dr. Hallam acenasse afirmativamente com toda a rapidez.
— Pode ter a certeza de que estarei. Quando acordar, eu estarei ao seu lado, tal como agora me encontro aqui. — Naquele momento, fez um gesto na direção do anestesista, e os olhos de Sally agitaram-se, ficando cerrados durante breves instantes, sob o efeito do sedativo que lhe haviam ministrado anteriormente. O pentotal fora administrado por via intravenosa no braço de Sally Block. Uns momentos mais tarde adormecera e após breves minutos teve início o delicado processo cirúrgico.
Ao longo de várias horas, Peter Hallam trabalhou esforçadamente para lhe colocar o novo coração; no seu rosto espelhava-se uma expressão maravilhada de triunfo ao ver o músculo começar a bombear o sangue. Durante uma fração de segundos, os olhos dele cruzaram-se com os da enfermeira que se encontrava à sua frente e, por baixo da máscara, esboçou um sorriso.
— Desta já ela escapou — comentou o cirurgião.
No entanto, a enfermeira sabia bem que tinham conseguido ganhar somente o primeiro assalto. Ainda restava ver se o organismo de Sally aceitaria ou rejeitaria o novo coração. E, à semelhança do que acontecia com todos os doentes sujeitos ao transplante de qualquer lugar, as hipóteses de recuperação não eram excessivas. No entanto, eram muito melhores do que teriam sido se Sally não houvesse sido submetida àquela intervenção cirúrgica. No caso dela, tal como acontecia com todas as pessoas que Peter Hallam operava, aquela era a única esperança de sobrevivência que lhe restava.
Às nove e quinze minutos daquela mesma manhã, Sally Block foi conduzida para a sala de recuperação, ao mesmo tempo em que o Dr. Hallam fazia a primeira pausa desde as quatro e trinta da madrugada. Ainda decorreria mais algum tempo antes de o efeito da anestesia ter se dissipado, o que lhe permitia tempo para beber uma chávena de café e para poder ficar a sós com os seus próprios pensamentos. Os transplantes como o que ele fizera em Sally deixavam-no absolutamente extenuado.
— A operação foi espetacular, doutor! — cumprimentou-o um jovem estagiário que se aproximou com uma expressão de grande admiração.
Peter serviu-se de uma chávena de café simples e voltou-se para o jovem.
— Muito obrigado — agradeceu com um sorriso enquanto lhe ocorria o quanto aquele jovem médico estagiário se parecia com o seu próprio filho.
Para ele teria tido uma satisfação extraordinária se Mark tivesse mostrado ambições no campo da Medicina; todavia, o filho já fizera outros planos que tinham a ver com uma faculdade de Gestão ou de Direito. Mark pretendia fazer parte de um mundo bastante mais alargado do que aquele em que ele próprio se movimentava. O filho tivera oportunidade de observar ao longo dos anos o quanto o pai havia dado generosamente de si próprio e o que lhe custava de cada vez que um dos seus doentes, submetido ao transplante de um rim, acabava por falecer. Aquilo não era para o jovem. Peter semicerrou os olhos enquanto bebia um gole do café simples, pensando que talvez a decisão de Mark tivesse sido a mais acertada. Pouco depois, voltou a concentrar a sua atenção no jovem estagiário.
— Foi a primeira operação desta natureza a que assistiu?
— Foi a segunda. Nessa também foi ao senhor que coube o papel de cirurgião.
De uma maneira estranha, a palavra papel parecia ser a mais apropriada àquela situação. Em ambos os transplantes, estivera envolvida a maior carga de dramatização teatral a que o jovem médico alguma vez assistira. Existira mais tensão e drama no bloco operatório do que ele experimentara ao longo de toda a sua vida; observar Peter Hallam a operar era como assistir a um bailado de Nijinsky. Aquele cirurgião era do melhor que existia na sua profissão.
— Em sua opinião, como é que ela irá reagir?
— Ainda é demasiado cedo para se poder aventar qualquer prognóstico. Tenho esperanças de que terá uma boa recuperação — respondeu Peter, rezando em silêncio para que houvesse verdade no que acabara de dizer.
Algum tempo depois, vestiu uma outra bata esterilizada por cima das roupas de cirurgia e dirigiu-se para a sala de recuperação pós- operatória. Deixou o café do lado de fora e, em passos silenciosos, foi sentar-se numa das cadeiras junto da cama onde Sally estava deitada. Encontrava-se presente uma enfermeira, assim como uma bateria de monitores que vigiavam cada exalação de Sally; até o momento, parecia que tudo estava a correr pelo melhor. Os problemas, na hipótese de se verificarem, começariam a surgir um pouco mais tarde, a não ser que, como era evidente, tudo tivesse começado a correr mal desde o início da intervenção. O que também já tinha acontecido ao Dr. Hallam. Mas não desta vez. Desta vez não. Por favor, Deus do céu, agora não. A ela não. Era tão jovem! Não que ele se sentisse de maneira diferente se Sally tivesse cinqüenta e cinco anos em vez de vinte e dois.
Quando perdera a mulher, reagira exatamente da mesma maneira. Naquele momento, estava sentado ali a olhar para Sally, tentando não ver um rosto diferente, numa ocasião diversa. E, contudo, apesar de todos os seus esforços era o que acontecia sempre. Continuava a vê-la como ela estivera durante aquelas últimas horas: sem oferecer luta, distanciada dele. Nem sequer lhe havia permitido tentar. Apesar de tudo o que Peter na ocasião dissera e a intensidade com que tentara convencê-la. Tinha surgido um doador. No entanto, ela recusara essa oferta. Nessa noite, Peter dera murros de frustração na parede do quarto onde ela estivera internada.
Tinha ido para casa de automóvel, percorrendo a auto- estrada a cento e setenta quilômetros por hora. Quando o mandaram parar por excesso de velocidade, não se preocupou com coisa alguma. Naquelas circunstâncias, não havia fosse o que fosse que pudesse incomodá-lo, exceto ela e aquilo que a mulher não lhe permitira fazer. O Dr. Hallam havia mostrado um comportamento tão estranho que o polícia da patrulha que o detivera o obrigara a sair do carro e percorrer uma linha reta. Mas ele não estava embriagado; encontrava-se entorpecido pelo sofrimento que o assolava. Tinham-lhe permitido que e fosse embora, acompanhado por uma repreensão e uma multa pesada; quando chegou à casa, começou a percorrê-la sem qualquer objetivo, enquanto pensava na mulher enferma e sofria por sua causa, sentindo uma enorme necessidade de tudo o que ela lhe tinha podido dar e que nunca mais daria. Perguntava a si mesmo se seria capaz de continuar a viver sem ela.
Naquela época, até mesmo os filhos lhe tinham dado a impressão de serem seres remotos e distantes. Todos os seus pensamentos se concentravam em Anne. Ela fora uma pessoa forte durante muito tempo e por causa dela Peter Hallam amadurecera ao longo dos anos de vida em comum. A mulher instilara-lhe uma espécie de força interior, à qual ele recorria constantemente, da mesma forma que se apoiava na sua própria capacidade profissional. E, bruscamente, tudo isso se tinha desvanecido. Naquela noite, Peter Hallam deixara-se ficar sentado, sentindo-se aterrorizado, sozinho e assustado, como se fosse uma criança pequena. De súbito, com o despontar da alvorada, sentira-se atraído por um chamamento irresistível. Era forçoso que voltasse para junto de Anne. Tinha de abraçá-la uma vez mais. Era imperativo que lhe dissesse tudo aquilo que anteriormente jamais lhe dissera. Regressara ao hospital com toda a rapidez que lhe foi possível, tendo entrado em silêncio no quarto de Anne e dispensado a enfermeira que a vigiava; foi ele próprio quem se ocupou dessa tarefa, segurando-lhe a mão com todo o carinho e afastando-lhe suavemente os cabelos que lhe caíam sobre a testa pálida. Naquela altura, Anne tinha o aspecto de uma boneca de porcelana muito frágil e, exatamente antes da manhã entrar pelo quarto adentro, abriu os olhos.
— Peter. — O som da sua voz enfraquecida não passara de um mero murmúrio a quebrar o silêncio.
— Amo-te, Anne. — dissera-lhe ele com os olhos marejados de lágrimas.
Quisera gritar-lhe: Não me deixes! Ela sorrira com aquele ar mágico que sempre tivera o condão de lhe encher o coração; pouco depois tinha partido, com a facilidade de um suspiro, fazendo com que Peter se tivesse sentido horrivelmente despojado, a olhar para o vazio. Por que motivo se recusara ela a lutar? O que a levara a não querer que o marido tentasse salvá-la? Porque é que ele próprio se sentia incapaz de aceitar aquilo que as outras pessoas eram obrigadas a aceitar dele todos os dias? Mas, naquele momento, não era capaz de fazê-lo.
Quando da morte da mulher, o Dr. Hallam tinha-se levantado da cadeira e deixara-se ficar a observá-la com fixidez, enquanto soluçava de mansinho, até que um dos seus colegas o levara para fora do quarto. Alguém tinha se encarregado de levá-lo à casa e de metê-lo na cama; e, de uma maneira que para ele continuava a ser incompreensível, conseguira ultrapassar os dias e as semanas seguintes, executando tudo o que era esperado dele. Porém, toda aquela época lhe parecera um sonho horrível passado debaixo de água, da qual ele emergia somente de vez em quando, até que, por fim, se apercebeu do quão desesperadamente os filhos tinham necessidade do pai. Com lentidão, Peter começou a regressar ao mundo dos vivos; três semanas mais tarde, recomeçara a sua atividade profissional. No entanto, nesse momento tinha sentido que havia algo que lhe faltava. Tratava-se de qualquer coisa que para si fora da maior importância, e que se traduzia na presença de Anne. Ela nunca se mantinha afastada dos seus pensamentos durante muito tempo. Entrava neles mil vezes ao dia, quando ele saía de casa para ir trabalhar, enquanto saía e entrava nos quartos dos seus doentes, sempre que se dirigia para o bloco operatório ou ainda quando entrava no automóvel ao fim do dia, para regressar a casa. Ao chegar à porta da frente, parecia que uma faca se lhe espetava no coração de todas as vezes que entrava em casa, sabendo antecipadamente que ela não estaria lá para saudá-lo.
Tudo aquilo acontecera havia pouco mais de um ano e, apesar de o sofrimento ter abrandado de intensidade, ainda não desaparecera por completo. De uma maneira ou de outra, Peter suspeitava que aquela dor jamais o abandonaria. Apenas se sentia capaz de continuar com o seu trabalho, dando o melhor de si mesmo às pessoas que a ele recorriam, solicitando-lhe a sua ajuda. E é claro que ainda havia Matthew, Mark e Pam. Graças a Deus, continuava a poder contar com eles. Sem a companhia dos filhos, jamais teria sido capaz de sobreviver. Todavia, conseguira, chegara até ali e continuaria a viver, mas de uma maneira tão diferente... Sem a presença de Anne.
Peter permaneceu sentado, envolto pela tranqüilidade que reinava na sala de recuperação, com as pernas compridas estendidas à sua frente, o rosto com uma expressão tensa, enquanto observava Sally; por fim, os olhos da doente abriram-se durante breves instantes, percorrendo a sala com uma expressão desnorteada.
— Sally. Sally, sou eu, o Peter Hallam. Estou aqui e a Sally está ótima — assegurou o cirurgião. “Pelo menos, de momento” pensou, mas não partilhou esse pensamento com ela; tão pouco se permitiu pensar muito sobre o assunto. Sally estava viva e até então tinha passado bem. Iria continuar a viver. O médico estava disposto a fazer tudo o que estivesse ao seu alcance para que tal viesse a verificar-se.
Peter manteve-se sentado à beira da cama de Sally durante mais uma hora, a observá-la e a falar com ela sempre que recobrava a consciência, tendo mesmo sido brindado com o esboço de um sorriso vago e um pouco a medo, antes de tê-la deixado um pouco depois da uma da tarde. Nessa altura, foi até ao refeitório para comer um sanduíche, após o que regressou ao seu gabinete por alguns momentos, antes de iniciar a ronda aos seus doentes hospitalizados, por volta das dezesseis horas.
Às dezessete e trinta já se encontrava a rolar pela auto-estrada, a caminho de casa; uma vez mais, a imagem de Anne preenchia-lhe os pensamentos. Continuava a ser-lhe extremamente difícil acreditar que ela não estaria à sua espera quando chegasse em casa. Quando é que ele deixaria de esperar encontrá-la de novo? Havia cerca de seis meses que Peter tinha perguntado a um amigo: “Quando é que poderei finalmente compreender o que é que se passou?” O sofrimento que se abatera sobre ele ao longo do último ano e meio tinha dado origem a uma certa vulnerabilidade que se refletia no seu rosto. Essa expressão não existia antes; aquele sofrimento tão visível provocado pela perda, pela saudade e pela dor amarga que se instalara na sua alma. Anteriormente, a sua fisionomia costumava refletir somente força e confiança, o que se traduzia numa certeza de que nada poderia vir a correr-lhe mal. Nessa altura da sua vida, tivera três filhos perfeitos e uma mulher inesquecível, o que era complementado por uma carreira que dominava, como poucos homens o conseguiam fazer. Havia conseguido chegar ao topo, não através de métodos brutais, mas sim de uma maneira maravilhosa; adorava encontrar-se naquela posição. E agora, o que? Para onde poderia ir, e com quem?
Ao mesmo tempo em que Sally Block se encontrava de cama, no seu quarto na Unidade de Cuidados Intensivos, do Hospital Central de Los Angeles, as luzes num estúdio de televisão em Nova Iorque começaram a brilhar com uma luminescência muito especial. Delas irradiava uma brancura ofuscante, a qual trazia à mente a imagem das salas destinadas aos interrogatórios, características dos filmes de série B. Fora do espaço iluminado, o ambiente no estúdio era de frialdade, devido à correntes de ar.
Apesar disso, diretamente por baixo daquelas luzes tão fortes, quase conseguia sentir-se a pele a distender-se sob o efeito do calor e da luminosidade. Todo o ambiente que reinava naquela sala se conjugava para que houvesse uma concentração sobre o objeto que era iluminado pelos projetores; todos os focos de luz convergiam num só, intensificando-se de momento a momento, ao ponto de até mesmo as pessoas que se encontravam presentes se sentirem como que atraídas para o centro, onde se via um estrado pouco elevado e com uma saliência estreita. Também havia uma mesa que nada tinha de impressionante, com um tampo de fórmica, e um pano azul-garrido onde se via um único logotipo. No entanto, não era o logotipo que despertava mais a atenção; era sim o cadeirão vazio que mais se assemelhava a um trono que aguardasse o seu rei ou rainha.
A andar de um lado para o outro da sala estavam técnicos, operadores de câmara, um maquiador, um cabeleireiro, dois assistentes do realizador, um encenador, os curiosos, as pessoas importantes, as necessárias e os demais que por ali perambulavam sem qualquer objetivo específico. Toda aquela gente se aproximava cada vez mais do estrado vazio, da mesa por detrás da qual ninguém se sentava, enquanto o feixe luminoso dos projetores pairava de forma reveladora sobre todo aquele conjunto de pessoas e objetos.
— Cinco minutos! — Era o aviso familiar numa cena habitual; no entanto, as notícias da noite revestiam-se de um certo ar de espetáculo. Aquela atmosfera era trespassada por uma vaga aura circense, acompanhada da magia e do brilhantismo projetados pelas luzes esbranquiçadas. Havia uma mistura de poder e mistério que envolvia todos os presentes; os corações pulsavam um tudo-nada mais apressados ao som das palavras:
— Cinco minutos! — Em seguida: — Três! — Depois: — Dois!
As mesmas palavras que se teria ouvido num corredor dos bastidores de um teatro na Broadway ou em Londres, na altura em que uma qualquer grande senhora do palco fizesse a sua entrada.
Nada do que ali se passava era assim tão espetacular; os membros das equipes de trabalho que permaneciam de pé usavam calças de ganga e calçavam sapatos de tênis; apesar da vulgaridade do vestuário, não deixava de existir no ar aquela sensação de magia, os murmúrios, a espera.
Esses aspectos foram sentidos por Melanie Adams, quando, num passo decidido, subiu ao estrado do estúdio. Como era hábito, a sua entrada foi sincronizada na perfeição. Dispunha de exatamente cem segundos antes de irem para o ar. Uma centena de segundos para passar outra vista de olhos pelos seus apontamentos, observando o rosto do realizador com o propósito de descortinar alguma coisa que houvesse surgido no último minuto e de que ela devesse tomar conhecimento, enquanto contava em silêncio para si mesma com o intuito de se acalmar.
Como de costume, o dia de trabalho fora longo. Melanie realizara a última entrevista relativa a um programa especial, cujo tema versava as crianças maltratadas. O assunto não era dos mais bonitos; contudo, ela tinha-o abordado com o tato adequado à situação. Ainda assim, por volta das dezoito horas, o dia havia começado a cobrar os seus dividendos.
Cinco. Os dedos estendidos e erguidos no ar pelo assistente de realização, numa contagem final. Quatro, três, dois, um.
— Boa noite — saudou ela com o sorriso experiente que jamais refletia um aspecto mecanizado, emoldurado pelos cabelos de um tom de conhaque que brilhavam sob as luzes.
— Eu sou a Melanie Adams e tenho o prazer de vos apresentar o noticiário desta noite.
O presidente fizera um discurso, havia uma crise militar no Brasil, a bolsa de valores sofrera uma descida acentuada e, naquela mesma manhã, um político local fora assaltado na rua, em plena luz do dia, quando se preparava para sair de casa. Além destas, existiam outras notícias a serem difundidas e o programa noticioso continuou a um bom ritmo, como aliás acontecia sempre. Toda a postura de Melanie refletia uma expressão credível de competência que fazia com que os índices de audiência subissem em flecha e lhe conferia um enorme magnetismo.
Mel era uma pessoa conhecida a nível nacional já havia bem mais de cinco anos; não que inicialmente tivesse planejado isso. Na altura em que decidira desistir da faculdade, onde estudava Ciências Políticas, para dar à luz as gêmeas, tinha apenas dezenove anos. Isso, porém, parecia-lhe ter acontecido havia muito tempo. Durante os últimos cinco anos, a televisão fora o fulcro de toda a sua vida. A televisão e as gêmeas. Na sua vida existiam alguns passatempos; contudo a sua carreira profissional e as filhas vinham sempre em primeiro lugar.
Depois de terem saído do ar, Melanie reuniu os apontamentos que colocara sobre a mesa e, como sempre, o realizador mostrava uma expressão de satisfação.
— Boa apresentação, Mel!
— Obrigada — retorquiu ela.
Havia um certo ar de distância fria que emanava da sua pessoa e que ocultava o que em tempos havia sido timidez e que agora não passava simplesmente de uma atitude reservada. Havia demasiadas pessoas que se mostravam curiosas em relação à sua pessoa, fazendo perguntas constrangedoras ou bisbilhotando.
Naquele momento, ela era Melanie Adams, um nome que possuía um certo toque de magia. “Eu conheço-a!” “Já a vi a apresentar o noticiário!” Hoje em dia sentia uma sensação estranha quando ia ao supermercado fazer compras, quando ia a uma loja comprar um vestido ou mesmo quando se limitava a andar pela rua na companhia das filhas. Inesperadamente, as pessoas ficavam a olhar fixamente para ela; e, embora no exterior Melanie Adams se mostrasse sempre senhora de si mesma, bem no seu âmago continuava a sentir-se pouco à vontade.
Mel dirigia-se para o seu gabinete, com a intenção de retirar um pouco do excesso de maquiagem e ir buscar a mala de mão antes de abandonar o estúdio, quando foi detida pelo editor do noticiário.
— Pode vir aqui por uns segundos, Mel? — pediu ele com a habitual expressão mortificada e distraída.
Melanie gemeu interiormente. “Vir aqui por uns segundos” poderia significar uma reportagem que a manteria afastada de sua casa durante toda a noite. Normalmente, além de ser a apresentadora principal do noticiário da noite, tratava apenas das reportagens de maior relevo, as notícias mais importantes de última hora ou os programas especiais. Todavia, naquele momento, apenas Deus sabia o que eles tinham em reserva para ela e, verdade fosse dita, Melanie não se encontrava com disposição. Chegara a um ponto da sua carreira em que já adquirira uma maneira de estar sobejamente profissional que lhe permitia não demonstrar fadiga, a não ser em ocasiões muito raras. No entanto, o programa especial acerca das crianças maltratadas extenuara-a, independentemente do ar alerta e enérgico que pudesse continuar a aparentar, graças à maquiagem.
— Sim? O que é que se passa? — perguntou Mel.
— Quero mostrar-te uma coisa — respondeu o editor do noticiário, agarrando um cassete de vídeo que inseriu no aparelho reprodutor. — Apresentamos isto no noticiário das treze. Não me pareceu que fosse suficientemente importante para ser exibido no noticiário da noite. Apesar disso, acho que poderia vir a ser uma história interessante a que pudesses dar seguimento — continuou ele.
Mel concentrou a sua atenção no aparelho de vídeo quando a fita começou a passar; o que viu foi uma entrevista com uma menina de nove anos, a qual necessitava desesperadamente de um transplante do coração sem que, todavia, até a data os pais houvessem conseguido encontrar um doador. Os vizinhos haviam decidido formar um fundo especial a favor de Pattie Lou Jones, uma rapariguinha adorável de raça negra, que conseguia conquistar de imediato o coração de qualquer pessoa.
À medida que a entrevista se aproximava da sua conclusão, Melanie quase lamentava ter visto o filme. Tratava-se apenas de mais um ser humano por quem sentir dó, com quem se preocupar e pelo qual não podia fazer-se rigorosamente nada. As crianças que tinham surgido no seu programa especial sobre os maus tratos também lhe haviam provocado a mesma reação. Por que razão é que a gente da estação de televisão não lhe podia dar um bom escândalo, de preferência de natureza política, logo a seguir ao outro programa? Não tinha qualquer necessidade de sentir outra vez aquele gênero de sofrimento.
— Sim — disse Melanie, virando uns olhos cansados na direção do homem que, entretanto retirava a cassete do aparelho. — E então?
— Pensei apenas que poderia dar um programa especial de interesse para ti, Mel. Acompanhar a criança durante algum tempo, ver o que é que consegues fazer por ela. Investigar quais os médicos dispostos a observar Pattie Lou.
— Oh, por amor de Deus, Jack! Por que é que isso tem de calhar-me a mim? O que é que eu sou? Uma espécie de novo departamento para a segurança social das crianças? — redargüiu ela. A sua expressão era de cansaço; as rugas pequeníssimas ao canto dos olhos começaram a aparecer. Tivera um dia demasiado longo, pois fora obrigada a sair de casa às seis horas da manhã.
— Ouve — continuou o homem, que parecia sentir-se tão cansado quanto ela própria. — Isto pode vir a ser um tema quente. Se conseguíssemos que a estação ajudasse os pais da Pattie Lou a encontrar um médico que se interesse pela situação da criança, talvez fosse possível acompanhá-la durante o transplante do coração. Com os diabos, Mel! Isto é que são notícias!
Melanie começou a abanar lentamente a cabeça, mostrando ceticismo. De fato, eram notícias. Todavia, não deixavam de ter o seu aspecto macabro.
— Já falaste com a família acerca do assunto? — perguntou ela.
— Não, mas tenho a certeza de que os pais se sentiriam entusiasmados com a idéia.
— Nunca se sabe. Por vezes, as pessoas preferem tratar dos seus próprios problemas sem quaisquer interferências. É muito possível que não lhes agrade a idéia de servirem a Pattie Lou durante o noticiário da noite — acrescentou Mel.
— E porque não? Hoje se dispuseram a falar conosco — continuou Jack. Mel acenou de novo com a cabeça. — Porque é que amanhã não falas com alguns dos cirurgiões mais importantes de cardiologia para saberes qual é a sua opinião? Alguns sentem prazer em mostrar-se em público. Depois de falares com eles, poderias telefonar aos pais desta criança.
— Vou ver o que posso fazer, Jack. Ainda tenho de terminar o meu programa sobre as crianças maltratadas — argumentou Melanie.
— Estava convencido de que hoje tinhas dado esse assunto por encerrado — retorquiu ele imediatamente, com um semblante irritado.
— Já acabei. Mas quero ver como é que a notícia fica montada antes de ir para o ar.
— Mas que grande treta! Isso não faz parte das tuas funções. Começa mas é a trabalhar nisto. Verá que vai ser um programa mais importante do que o das crianças maltratadas — insistiu Jack.
Mais importante do que queimar com fósforos uma criança de apenas dois anos? Ou que cortar a orelha de outra com quatro? Continuavam a existir algumas ocasiões em que aquela atividade jornalística a enojava.
— Vê lá o que é que podes fazer, Mel — finalizou o editor.
— Muito bem, Jack. De acordo. Vou ver o que é que consigo fazer. — prometeu Mel.
“Olá, senhor doutor, o meu nome é Melanie Adams e gostaria muito de saber se está na disposição de efetuar o transplante de um coração em uma menina de nove anos. Possivelmente sem cobrar quaisquer honorários à família. E depois, não poderíamos assistir a essa intervenção cirúrgica, para assim podermos pespegar consigo e com a rapariguinha em tudo o que seja noticiário?” pensava Melanie enquanto se dirigia apressadamente para o seu gabinete, mantendo baixa a cabeça onde os pensamentos fervilhavam e quase colidindo com um homem alto de cabelos negros.
— Ora viva! Mas que ar tão feliz que tu tens hoje! Apresentar o noticiário deve ser muito divertido — comentou mordaz.
Aquela voz profunda que fora treinada havia muito tempo como locutor de rádio fez com que ela erguesse os olhos do chão e sorrisse ao deparar com um velho amigo.
— Olá, Grant. O que é que andas a fazer por aqui a estas horas? — inquiriu Melanie.
Grant Buckley apresentava um talk show que ia para o ar todas as noites depois das últimas notícias. Ele era uma das personalidades mais controversas daquela cadeia de televisão, mas nutria um grande carinho por Mel, o que a levava a considerá-lo, há bastante tempo, um dos seus amigos mais chegados.
— Tive de vir ao estúdio examinar alguns cassetes de vídeo que pretendo apresentar no programa de hoje. E quanto a ti? Já passa um bocado da tua hora, não é verdade?
Habitualmente, àquela hora já ela costumava ter ido embora; no entanto, a história acerca de Pattie Lou Jones prendera-a no estúdio durante mais meia hora.
— Hoje fizeram o favor de me guardar um mimo muito especial — respondeu Melanie. — Pretendem que eu arranje o transplante de um coração para uma criança. O trivial, nada de muito elaborado. — Algumas das nuvens que lhe haviam ensombrado o rosto começaram a desaparecer quando fixou os olhos do amigo.
Grant era um indivíduo incrivelmente brilhante, um bom amigo e um homem atraente; todas as mulheres que trabalhavam naquela rede de televisão sentiam uma inveja óbvia da amizade que ambos partilhavam. O relacionamento entre os dois nunca fora além da amizade, embora de tempos a tempos se ouvissem vários rumores sem que qualquer deles merecesse a mínima veracidade. Serviam apenas para divertir tanto Grant como Mel, sempre que abordavam aquele assunto enquanto tomavam algumas bebidas depois do trabalho.
— Sendo assim, onde é que está a novidade? Como é que correu o programa especial que fizeste sobre as crianças maltratadas? — perguntou Grant.
Os olhos dela adquiriram uma expressão de seriedade quando se cruzaram com os dele.
— Foi muito difícil de fazer, mas a história resultou muito bem.
— Não há dúvida de que tens um jeito muito especial para agarrares nos casos mais difíceis.
— Ou é isso ou são eles que me escolhem. É o que se passa com este caso do transplante cardíaco que, supostamente, tenho de arranjar.
— Está a falar a sério? — De início, Grant pensara que ela tinha estado de brincadeira.
— Eu não, mas aparentemente, o Jack Owens está. Tens alguma idéia brilhante?
Grant franziu o sobrolho enquanto se concentrava nos seus pensamentos.
— No ano passado fiz um programa sobre esse mesmo assunto, onde apresentei algumas pessoas bastante interessantes — continuou Grant. — Vou procurar os nomes no meu ficheiro. Assim de repente, surge-me à memória o nome de dois deles, mas havia mais. Vou ver o que é que posso fazer, Mel. Quando é que precisas deste material?
— Ontem — respondeu ela com um sorriso. Grant despenteou-lhe os cabelos, sabendo de antemão que ela não voltaria a ir para o ar naquela noite.
— Queres ir comer um hambúrguer antes de ires para casa?
— É melhor não. Tenho de regressar à casa para junto das minhas filhas.
— Essas duas — disse ele, revirando os olhos; conhecia-as bem. O próprio Grant tinha três filhas, de três mulheres diferentes, mas não eram gêmeas, nem tão aventureiras como as duas raparigas de Mel. — O que é que elas têm andado a fazer ultimamente?
— O costume. Esta semana, a Val já se apaixonou quatro vezes, enquanto a Jess continua a trabalhar para tirar apenas vintes nos pontos. Os esforços combinados das duas tornam-me difícil conservar os cabelos ruivos, que gradualmente vão sendo substituídos por grisalhos.
Melanie acabara de fazer trinta e cinco anos, mas pelo seu aspecto, poderia concluir-se que uma década desses anos ficara perdida algures. Não obstante todas as responsabilidades com que era obrigada a arcar, não aparentava ter a idade que tinha, apesar de por vezes sentir a carga pesada que a sua profissão lhe colocava sobre os ombros, mas que mesmo assim ela adorava, a despeito das crises de várias naturezas que lhe haviam surgido na vida ao longo dos anos.
Grant tinha conhecimento da maior parte desses problemas, o que permitira a Melanie ter chorado no seu ombro em mais do que uma ocasião, fosse por causa de uma qualquer desilusão no trabalho ou devido a um caso amoroso que dera para o torto. Destes últimos não tinham existido muitos; Mel era bastante cuidadosa acerca dos homens com quem se relacionava e esforçava-se por manter a sua vida privada fora do alcance da curiosidade do público. Para além disso, receava envolver-se com algum depois de ter sido abandonada pelo pai das gêmeas, antes mesmo de estas terem nascido.
O marido dissera-lhe que não desejava ter filhos, e falara a sério. Tinham casado assim que ambos haviam concluído o curso liceal e ido para a Universidade da Colúmbia. Quando Melanie o informou de que estava grávida, o homem nem sequer quisera ouvir quaisquer argumentos.
— Livra-te disso — ripostou ele com uma expressão empedernida; Melanie continuava a recordar-se do seu tom de voz.
— Não vou fazer isso. A criança é nossa. A tua atitude não está certa.
— É muito mais errado estragarmos a nossa vida — retorquira ele na altura.
Conseqüentemente, optara por tentar estragar a vida dela. Tinha decidido ir para o México de férias na companhia de outra rapariga e quando regressou anunciou que estavam divorciados. Falsificara a assinatura da mulher na petição de divórcio e Melanie ficara tão chocada que não soubera como argumentar. Os pais gostariam que ela oferecesse luta ao marido; contudo, não lhe parecera que tivesse qualquer possibilidade. Sentia-se muito ferida por causa do comportamento dele e receosa perante a perspectiva de se encontrar sozinha quando do nascimento do bebê, o qual se veio a verificar serem dois. Durante algum tempo, os pais haviam dado o seu contributo, mas Mel decidira continuar com a sua vida de uma maneira independente; procurara emprego, tendo-se visto obrigada a fazer tudo o que lhe era possível, desde o trabalho de secretariado até a venda porta a porta dos produtos de uma empresa fabricante de vitaminas. Por último, conseguira empregar-se como recepcionista de uma cadeia televisiva, tendo finalmente acabado por ser colocada numa sala de secretariado onde as notícias eram datilografadas.
Entretanto, as gêmeas tinham conseguido florescer através de todas aquelas atribulações, embora a ascensão profissional de Melanie não tivesse sido fácil, nem tão pouco rápida; apesar disso, os vários dias passados a datilografar o que os outros escreviam deram-lhe a oportunidade de vir a descobrir o que desejava fazer na vida. Os programas de natureza política eram os que mais despertavam o seu interesse; traziam-lhe à memória os seus tempos de faculdade, antes de toda a sua vida ter sofrido tantas alterações. Aquilo que mais pretendia era começar a redigir os noticiários. Ofereceu-se numerosas vezes para aquela posição, até que acabou por compreender que o seu desejo não se transformaria em realidade, se continuasse a viver na cidade de Nova Iorque.
Primeiro decidiu mudar-se para Buffalo, em seguida para Chicago, tendo acabado por regressar de novo a Nova Iorque, onde finalmente conseguira arranjar trabalho como redatora de notícias. Aquela situação manteve-se até que a sorte a bafejou. Alguns dos membros da direção começaram a prestar-lhe atenção e um deles mandou-a para o estúdio. Melanie ficou horrorizada, mas não lhe restou qualquer alternativa. Era uma questão de fazer o que eles lhe diziam ou ser despedida, e isso não podia dar-se ao luxo de fazer. Tinha duas filhas pequenas para sustentar, o pai delas nunca havia contribuído com um único tostão, e deixara-a sozinha, a braços com todas as dificuldades inerentes àquela situação. Melanie conseguira obter muito. Tudo o que mais ambicionava era ter o suficiente para as filhas, não albergando quaisquer sonhos de glória, nem tão pouco o desejo de apresentar as notícias que ela própria escrevia. Mas, de súbito, ali estava ela, no ecrã de um televisor, e o mais engraçado foi verificar que isso lhe proporcionava uma sensação deveras agradável.
Depois disso, fora enviada para Filadélfia com o propósito de adquirir mais experiência e regressou de novo a Chicago para uma breve estada. Em seguida, fora enviada para Washington e, por fim, regressara à casa. Pelas estimativas dos responsáveis da direção, Melanie fora preparada de forma adequada e não andavam muito longe da verdade. Era uma mulher forte, poderosa e interessante, além de ser uma imagem maravilhosa que ia todas as noites para o ar e que dava prazer ver. Parecia combinar a honestidade com a compaixão e a inteligência, ao ponto de por vezes chegar quase a esquecer-se do seu aspecto encantador e atraente.
Quando fez vinte e oito anos, Melanie encontrava-se muito próxima do topo da sua carreira, apresentando as notícias no telejornal da noite, de parceria com um colega. Aos trinta anos, rescindiu o contrato e mudou-se para outra cadeia de televisão e, de repente, ali estava ela a apresentar o noticiário da noite sozinha. Os índices de audiência começaram a subir em flecha, não tendo parado desde então.
Desde essa época que Melanie trabalhava afincadamente, o que lhe proporcionou a reputação bem merecida de ser uma das mulheres mais importantes no mundo das notícias. Mais ainda, era uma pessoa por quem os outros sentiam estima. Naquele momento, sentia-se em segurança. Os dias de escassez havia muito que tinham ficado para trás, assim como a luta dia-a-dia a tentar fazer com que o dinheiro chegasse para tudo.
Se fossem vivos, os pais ter-se-iam sentido extremamente orgulhosos da filha. De vez em quando, Melanie interrogava-se em relação ao que o pai das gêmeas pensaria do seu êxito profissional: se lamentaria tê-la abandonado ou se chegaria mesmo a pensar nisso. Nunca mais tinha ouvido falar dele. No entanto, o ex-marido conseguira imprimir a sua marca nela, uma marca que se havia esbatido, mas que ao longo dos anos não desaparecera por completo.
Era uma marca que a mantinha em estado de alerta, senão de sofrimento, o que se traduzia no receio de se ligar em demasia a outro homem, de vir a acreditar em excesso. Mel receava vir a amar alguém demais, à exceção das gêmeas. Aquela sua atitude levara-a a envolver-se em alguns relacionamentos infelizes, com homens que se sentiam atraídos pelo que ela era ou que se serviam da sua maneira de ser distanciada e fria para se divertirem a seu bel-prazer; da última vez que tal acontecera, tinha sido com um homem casado. De início e de acordo com a perspectiva de Melanie, aquela relação parecera-lhe ideal, uma vez que ele não pretendia mais da relação do que ela própria. Não tinha quaisquer intenções de voltar a casar. Sem a ajuda de qualquer pessoa, conseguira alcançar tudo aquilo que mais almejara: sucesso, segurança, a educação das suas filhas e uma casa em que adorava viver.
— Que necessidade é que eu tenho de me casar outra vez? — perguntara ela a Grant numa ocasião qualquer. No entanto, o amigo mantivera-se crítico em relação àquele assunto.
— Talvez não precises, mas isso não quer dizer que não devas arranjar alguém que seja livre — retorquira ele com insistência e firmeza.
— Por que razão? Que diferença é que isso faria?
— A única diferença que poderá fazer, minha amiga, é que vais acabar por passar todos os Natais, férias, aniversários e fins-de-semana sozinha, enquanto ele se deixa ficar todo feliz junto da mulher e dos filhos.
— Talvez tenhas razão, mas para ele eu sou especial. Sou o caviar e não o bife com batatas fritas.
— Está completamente errada, Mel. Tu é que sofrerás com esse tipo de situação.
Viera a ficar provado que Grant tinha toda a razão. Com o passar do tempo, ela acabara por sofrer exatamente pelas razões que Grant mais receara e o fim daquela relação fora terrível e doloroso; Melanie sentira-se desolada durante várias semanas, isolando-se de todos.
— Da próxima vez, é preferível que dê ouvidos ao tio Grant. Eu sei como são essas coisas — dissera ele então.
Conhecia-a bastante bem e sabia que Melanie tinha erguido paredes em redor de si própria. Haviam-se conhecido há quase dez anos, quando ela já se encontrava em plena ascensão profissional. Naquela altura, Grant apercebera-se de imediato de que se encontrava em presença de uma nova estrela nos céus dos noticiários televisivos; mais do que isso: gostava de Melanie como ser humano e como amiga. Esse afeto era o suficiente para não desejar prejudicar o relacionamento que existia entre ambos. Haviam tomado todas as precauções para nunca se envolverem emocionalmente. Grant já fora casado por três vezes e mantinha uma coleção de mulheres temporárias, com as quais gostava de passar as suas noites. Contudo, Melanie tinha para ele muito mais significado do que todas as outras. Existia uma grande amizade entre os dois e, no que dizia respeito a Grant, era importante não atraiçoar a confiança que essa situação implicava. Mel fora atraiçoada antes, e ele não pretendia ser o homem que a magoaria de novo.
— A verdade é que, minha querida, a maior parte dos homens é uma merda — confessara-lhe ele numa noite que já ia bastante adiantada, depois de tê-la entrevistado no seu programa, o que fora bastante divertido. Depois, ambos haviam saído para tomar uma bebida, tendo acabado por ficar no Elaine's até às três da manhã.
— O que é que te leva a dizer isso? — perguntou Melanie; subitamente aparecera-lhe no olhar uma expressão distanciada e cautelosa. Melanie conhecia um homem que se ajustava àquela classificação, mas era triste pensar que todos procediam da mesma maneira.
— Porque são poucos os que estão dispostos a retribuir todas as coisas boas que lhes são proporcionadas — explicou Grant. — Querem uma mulher que os ame de alma e coração, mas guardam ciosamente uma parte importante para si próprios. Precisas é de um homem que esteja disposto a dar-te tanto amor como tu a ele.
— Por que motivo pensas que eu ainda tenho assim tanto amor para dar? — redargüiu Melanie, tentando apresentar um ar brincalhão, mas ele não se mostrou convencido. A antiga dor continuava dentro dela, distanciada, mas sem se ter desvanecido de todo.
Grant perguntava a si próprio se alguma vez desapareceria.
— Conheço-te demasiado bem, Mel. Melhor do que te conheces a ti própria.
— E estás convencido de que me sinto desejosa de encontrar o homem certo? — perguntou ela com uma gargalhada que fez com que ele esboçasse um sorriso.
— Não. Em minha opinião, tens um medo de morte que isso venha a acontecer — contrapôs Grant.
— Acertaste — admitiu Melanie.
— É possível que isso fosse bom para ti.
— Por que? Sinto-me feliz sozinha.
— Mas que grande treta! — exclamou Grant. — Ninguém é feliz assim, de verdade.
— Eu tenho as gêmeas.
— Isso não é a mesma coisa.
— Tu sentes-te feliz e vives sozinho — retrucou ela com um encolher de ombros.
Procurou os olhos dele sem ter bem a certeza do que iria encontrar; sentiu-se surpreendida ao observar um vago sentimento de solidão. Costumava surgir à noite; tal como um lobisomem, era uma emoção que se mantinha oculta durante o dia.
Até mesmo o ilustre Grant era um ser humano como todos os outros.
— Se eu me sentisse assim tão feliz sozinho, nunca teria casado três vezes — adiantou ele em defesa do seu argumento.
Ambos se riram com aquela observação; a noite já ia longa e ele acabou por deixá-la à porta de casa, despedindo-se com um beijo amigável na face de Melanie.
De quando em vez, ela interrogava-se sobre como seria um envolvimento amoroso com o amigo, mas sabia de antemão que essa situação iria arruinar a amizade existente entre os dois, e ambos queriam evitar a todo o custo que isso acontecesse. Aquele relacionamento era demasiado agradável.
No corredor onde se situava o seu gabinete, Melanie olhava para ele e, apesar de se sentir cansada, estava satisfeita por ver aquele rosto amigo ao fim de um longo dia de trabalho. Grant dava-lhe algo que mais ninguém conseguia. As gêmeas ainda eram pequenas e exigiam muito da mãe, tinham necessidades constantes de amor, de disciplina e da imposição de limites, de patins novos para o gelo e de calças de ganga de marca. Por seu lado, Grant possuía a capacidade de devolver qualquer coisa à sua alma e, na realidade, não existia mais ninguém que fizesse isso.
— A oferta desse hambúrguer fica para amanhã à noite — continuou Melanie.
— Não posso — retorquiu ele, abanando a cabeça num gesto de pesar. — Tenho um encontro marcado com um par de mamas sensacionais.
Melanie revirou os olhos como se estivesse a lidar com uma criança que não tinha emenda.
— És o homem mais perverso que eu conheço.
— Sim.
— E orgulhoso dessa faceta.
— Tens toda a razão — aquiesceu ele.
Melanie sorriu e olhou para o relógio de pulso.
— É melhor pôr-me a mexer e ir para casa, antes que a Raquel feche a porta à chave, tirana como ela é.
Havia sete anos que ela tinha a mesma governanta. Raquel era uma bênção para as raparigas, mas mantinha-as com rédeas curtas. Nutria uma enorme simpatia por Grant e havia já muitos anos tentava fazer com que Mel se envolvesse com ele.
— Diz à Raquel que lhe mando um beijinho.
— Vou mas é dizer-lhe que cheguei atrasada por tua culpa — retorquiu Melanie.
— Muito bem. Amanhã te entrego a lista com o nome dos cirurgiões de cardiologia de que te falei. Vais estar aqui?
— Sim, como de costume.
— Eu telefono-te — prometeu ele.
— Obrigada — agradeceu Mel, soprando-lhe um beijo.
Grant começou a afastar-se e Melanie foi para o gabinete, agarrando na mala de mão com um breve olhar para o relógio. Já eram dezenove e trinta e certamente que Raquel iria ter um fanico. Correu pelas escadas abaixo e quando chegou à rua fez sinal a um táxi; quinze minutos depois o motorista virava na Rua Setenta e Nove.
— Já cheguei! — gritou Melanie para o silêncio, enquanto atravessava o vestíbulo da frente.
O chão era revestido de mármore branco e as paredes estavam cobertas por um papel com flores delicadas. Assim que alguém entrava naquela casa, não podia deixar de sentir a atmosfera cordial e elegante que dela emanava. Devido à existência daquelas cores alegres, dos grandes ramos de flores nas jarras e dos toques de amarelo e tons de pastel que se viam por todo o lado, tinha-se imediatamente uma sensação de alegria. Aquela casa sempre tivera o condão de proporcionar uma enorme satisfação a Grant Buckley. Era por de mais evidente que se tratava de um espaço habitado por uma mulher. Se algum homem decidisse fazer daquela a sua casa, seria necessário que se começasse de raiz a fazer outra decoração.
No vestíbulo da frente via-se um enorme bengaleiro antigo de madeira atulhado com os chapéus de Melanie e com os que as duas raparigas mais gostavam de usar.
A sala de estar fora decorada em tons suaves de pêssego, com sofás fundos de seda, que convidavam as pessoas a nunca desejarem levantar-se deles. As janelas tinham uns cortinados de um delicado moiré e pendiam em dobras fartas, apanhadas por cordões de seda, enquanto as paredes estavam pintadas do mesmo tom suave de pêssego, com frisos e rodapés beges, havendo ainda vários quadros em tons pastel espalhados por toda a parte.
Melanie deixou-se afundar no sofá, soltando um suspiro de contentamento; aquele era o cenário perfeito para a sua pele acetinada e para os seus cabelos de um vermelho flamejante. O quarto de Melanie fora decorado em tons suaves de azul, a sala de jantar em branco, enquanto os tons usados na cozinha eram o laranja, o amarelo e o azul. No lar de Melanie reinava uma atmosfera alegre, que fazia com que se desejasse percorrer as várias dependências demoradamente. Era uma casa elegante, mas não em demasia, e chique, mas não ao ponto de fazer com que uma pessoa receasse sentar-se.
Tratava-se de uma casa pequena, mas perfeita para elas. A sala de estar e a de jantar, bem como a cozinha situavam-se no rés-do-chão; o quarto de Melanie, assim como o seu escritório e o quarto de vestir eram no primeiro andar; no andar acima, ficavam os dois quartos espaçosos e soalheiros das duas filhas. Não havia um centímetro de espaço que não estivesse utilizado, nem qualquer objeto a mais naquele lar. No entanto, sendo apenas para elas, era exatamente do tamanho certo, tal como Melanie percebera na primeira ocasião em que vira a casa, tendo-se apaixonado por ela logo no mesmo dia.
Dirigiu-se em passos apressados pelas escadas acima, até ao quarto das filhas, apercebendo-se de uma ligeira dor nas costas. Sem dúvida tivera um dia muito comprido. Não se deteve no seu próprio quarto, sabendo de antemão o que é que estaria à sua espera: uma pilha de correspondência que não sentia qualquer desejo de abrir, na sua maioria contas de despesas com as raparigas, além de várias outras cartas. Naquele momento, não era aquilo que a interessava. Desejava ver as gêmeas.
No segundo andar, encontrou as portas dos dois quartos fechadas, mas a música soava tão alto que ainda ia a meio das escadas e já sentia o coração a ribombar.
— Deus do céu, Jess! — gritou Melanie, tentando sobrepor-se àquela algazarra musical. — Baixa o som dessa coisa!
— O quê? — perguntou a rapariga alta e magricela de cabelos ruivos que se encontrava estendida na cama, virando-se na direção da porta. À sua volta viam-se livros da escola espalhados. Jess tinha o auscultador do telefone encostado à orelha. Acenou à mãe e continuou a falar ao telefone.
— Por acaso não tens exames?
A filha fez um gesto afirmativo em silêncio e o rosto de Melanie começou a exibir uma expressão de severidade.
Das duas gêmeas, Jessica era a que sempre se mostrava mais diligente nos estudos; porém, ultimamente, as suas notas haviam baixado. Andava aborrecida e o romance que mantivera ao longo de todo o ano acabara por ir por água abaixo. Para Melanie isso não servia de desculpa e a filha, fosse como fosse, continuava a ser obrigada a estudar para os exames, agora ainda mais do que antes.
— Vamos lá, desliga o telefone, Jess. — Melanie deixou-se ficar de pé e encostou-se à secretária, com os braços cruzados. Jessica mostrou-se aborrecida, disse algo incompreensível ao telefone, após o que desligou, olhando para a mãe com uma expressão de grosseria declarada e indisfarçável. — Agora, desliga essa coisa imediatamente!
Jessica descruzou com lentidão as pernas compridas, saindo da cama e dirigindo-se para a aparelhagem estereofônica; com um gesto da cabeça lançou a sua vasta cabeleira acobreada para trás, afastando-a dos ombros.
— Eu estava só a fazer um intervalo — justificou-se ela.
— Durante quanto tempo?
— Oh, por amor de Deus! Que mais é que agora sou obrigada a fazer? Marcar as horas num relógio de ponto?
— A tua atitude não é razoável, Jess. Podes ter toda a liberdade de que precisares — retorquiu a mãe. — Mas a realidade é que as tuas últimas notas...
— Eu sei, eu sei muito bem. Durante mais quanto tempo é que vou ter de ouvir falar nesse assunto?
— Até que as notas melhorem — respondeu Melanie, peremptória; não parecia impressionada pelo discurso da filha.
Desde o fim do seu romance com um jovem chamado John, que Jessica andava com os nervos em franja. Provavelmente, teria sido isso que afetara as suas notas na escola pela primeira vez. No entanto, Melanie pressentia que aquela situação já tinha começado a melhorar, mas ainda não achava que estivesse na altura de abrandar a sua atitude em relação à filha, pelo menos até se sentir segura de que tudo voltara ao normal.
— Como é que foi o teu dia? — perguntou, passando um braço à volta dos ombros de Jessica e acariciando-lhe os cabelos. A música fora desligada e o quarto parecia estar mergulhado num silêncio estranho.
— Foi bom. E o teu? Correu bem?
— Não foi mau — respondeu Melanie.
Jessica sorriu, ficando muito parecida com Melanie, quando esta tinha a idade da filha. A sua silhueta era mais angulosa do que a da mãe nessa altura e, mesmo descalça, já media mais cinco centímetros do que Melanie; no entanto, muitas das facetas desta refletiam-se na rapariga, criando uma aproximação pouco freqüente entre mãe e filha. Por vezes, não necessitavam de trocar qualquer palavra para se compreenderem. Noutras ocasiões quando a amizade que as unia explodia por causa das similaridades de caráter, isso fazia com que fossem quase demasiado unidas.
— Vi a peça que fizeste no noticiário da noite, acerca da legislação para as crianças incapacitadas.
— O que é que te pareceu? — inquiriu Melanie, que gostava de conhecer a opinião das filhas, especialmente a de Jess. Ela era inteligente e muito direta com as palavras, ao contrário da sua gêmea, mais generosa e menos crítica, mais terna em muitos aspectos.
— Pareceu-me bastante boa, mas não suficientemente dura — respondeu Jessica.
— Não há dúvida de que é muito difícil agradar-te — retorquiu Mel. Mas aquilo também acontecia em relação aos seus patrocinadores.
Jessica olhou para a mãe com um sorriso, acompanhado de um encolher de ombros.
— Foste tu que me ensinaste a questionar aquilo que ouço e a ser exigente com respeito às notícias — recordou a filha.
— Eu fiz isso? — As duas trocaram um sorriso termo e cúmplice. Melanie sentia-se orgulhosa de Jess, a qual por seu turno também se sentia orgulhosa da mãe. Ambas as gêmeas tinham orgulho nela e achavam-na uma mãe extraordinária. As três haviam partilhado alguns anos bem difíceis. Isso as aproximara bastante.
‘ Mãe e filha trocaram outro olhar demorado. De certa forma, Melanie era apenas um tudo-nada mais afetuosa do que a sua filha mais velha. Mas era fruto de outra geração, de um outro estilo de vida e de um mundo diferente. E, tendo em consideração a época em que tinha nascido, Melanie conseguira ir longe. No entanto, estava certa de que Jessica conseguiria ir ainda mais longe; seguiria em frente ainda com maior determinação do que aquela que ela própria mostrara.
— Onde é que está a Valerie?
— No quarto dela — replicou Jessica.
— Como é que vão as coisas na escola?
— Vão bem. — Todavia, a mãe pareceu ver uma expressão um pouco desanimada; Jessica, adivinhando os pensamentos dela, procurou de novo os seus olhos. — Hoje vi o John.
— E como é que te sentiste?
— Doeu cá dentro.
Melanie acenou com a cabeça e sentou-se na beira da cama, sentindo-se grata pela franqueza de diálogo que ambas sempre haviam partilhado.
— O que é que ele disse?
— Só disse olá. Não sei bem, ouvi dizer que ele anda com outra rapariga qualquer.
— Isso deve ser difícil para ti. — Naquela altura já tinha passado quase um mês e Melanie sabia que aquele fora o primeiro grande desgosto que Jessica sofrera desde que começara a escola.
A rapariga sempre fora uma das melhores da turma, rodeada de amigos e amigas, e tivera sempre atrás de si os melhores rapazes da escola desde que fizera treze anos. Pouco lhe faltava para completar os dezesseis anos quando sofreu o primeiro desgosto de amor.
Nessa ocasião, doera quase tanto a Melanie assistir ao desgosto da filha como à própria Jess.
— Já te esqueceste das ocasiões em que ele costumava enervar-te?
— Costumava? — retorquiu Jessica, mostrando-se surpreendida.
— Sim, minha menina. Recordas-te daquele dia em que ele apareceu uma hora atrasado para te levar a uma festa? De quando foi esquiar com os amigos, em vez de te levar ao jogo de futebol? Daquela vez em que... — Melanie recordava-se de todos aqueles incidentes. Mantinha-se bem a par da vida das filhas.
Jessica sorriu.
— Okay, okay — concordou ela. — Portanto, ele é um estupor. De qualquer forma, gosto dele.
— Dele ou de teres alguém que se interesse por ti? — perguntou Melanie.
Fez-se um momento de silêncio no quarto e Jessica olhou para a mãe com uma expressão de surpresa.
— Sabes, mamãe. Não tenho bem a certeza — admitiu. Sentia-se um pouco atordoada. Aquela incerteza constituía uma revelação para a rapariga.
— Não é caso para te sentires sozinha — continuou Melanie com um sorriso. — Metade dos relacionamentos que existem em todo o mundo mantêm-se exatamente por esse mesmo motivo.
Jessica fitou a mãe demoradamente; tinha conhecimento do quão difíceis eram os padrões que a mãe impunha a si própria, o quanto ela tinha sofrido, as precauções que tomava para não se envolver no plano sentimental. Às vezes, aquela atitude fazia com que Jess sentisse pena da mãe. Melanie necessitava da companhia de um homem. Havia algum tempo, a filha sentira-se esperançada de que essa pessoa fosse Grant, mas há já muito que se apercebera de que o destino não queria que assim fosse. Antes de poder acrescentar qualquer coisa mais, a porta abriu-se e Valerie entrou no quarto.
— Olá, mamãe! — Após aquela saudação, viu a expressão de seriedade que tanto uma como a outra mostravam. — Querem que me vá embora?
— Não — respondeu Melanie com rapidez, abanando a cabeça. — Olá, meu amor.
Com um sorriso, Valerie inclinou-se para poder dar um beijo à mãe, que continuava sentada na beira da cama.
Tinha umas feições tão diferentes das de Melanie e de Jessica que qualquer pessoa poderia perguntar se eram da mesma família. Era mais baixa do que a mãe e a gêmea, mas possuía um corpo de formas voluptuosas que fazia com que os homens se babassem quando ela passava. Os seus seios eram grandes e generosos, tinha uma cintura muito fina, ancas arredondadas, pernas bem feitas e uma farta cabeleira loura que quase lhe chegava à cintura. Havia ocasiões em que Melanie não podia deixar de observar as reações que a sua filha provocava nos homens e que a enfureciam visivelmente. Até mesmo Grant se mostrara bastante surpreendido ao vê-la, ainda não havia muito tempo.
— Por amor de Deus, Mel, põe um saco a tapar a cabeça dessa miúda até ela fazer vinte e cinco anos. Caso contrário, vai enlouquecer os homens todos da vizinhança.
Melanie, porém, respondera-lhe com um sorriso pesaroso.
— Não me parece que o fato de pô-lo somente a tapar-lhe a cabeça venha a ter qualquer efeito — retorquira ela.
Mantinha-se muito atenta em relação a Valerie, mais ainda do que com Jessica, uma vez que parecia fácil adivinhar de imediato que Valerie era demasiado aberta e muito ingênua. Mostrava-se esperta, mas não tão inteligente quanto Jess; grande parte do seu encanto residia no fato de se manter quase totalmente alheia ao efeito que provocava. Entrava e saía com toda a despreocupação de uma sala, com o à-vontade e a atitude de uma criança de três anos, deixando os homens com a respiração ofegante depois de ter saído, enquanto, como se não fosse nada com ela, ia aos seus afazeres.
Na escola era sempre Jessica quem se mantinha de olho na irmã e, atualmente, essa vigilância era ainda mais apertada. Jess dava-se bem conta do aspecto físico da irmã e Valerie tinha duas mães a vigiá-la.
— Esta noite, vimos-te no noticiário. Estiveste muito bem — disse Val.
Mas ao contrário da irmã, não explicou por que razão; não analisou nem criticou e, de uma maneira engraçada, aquilo que se passava dentro da cabeça de Jessica proporcionava-lhe uma beleza que era quase maior do que a da sua deslumbrante irmã gêmea. Juntas, formavam um par inigualável: uma de cabelos ruivos, alta e esbelta, a outra loura, com umas formas muito voluptuosas. — Esta noite jantas conosco?
— Com certeza que sim. Recusei um convite do Grant para poder jantar com vocês duas — afirmou a mãe.
— Por que é que não o trouxeste contigo? — perguntou Val cheia de pena.
— Porque às vezes gosto de desfrutar da vossa companhia sem a presença de mais ninguém. Posso estar com ele em qualquer outra altura — respondeu Melanie.
Valerie encolheu os ombros e Jessica acenou com a cabeça. Naquele instante, Raquel chamou-as pelo intercomunicador para que fossem para baixo. Val foi a primeira a dirigir-se para o aparelho na parede.
— Está bem, vamos já — disse ela, voltando-se para a mãe e irmã. — O jantar está pronto e a Raquel parece estar toda lixada.
— Val! — exclamou Melanie. — Não uses essa linguagem.
— E por que não? Toda a gente fala assim.
— Isso não é razão que justifique que tu o faças. — Com estas palavras da mãe, o trio começou a descer as escadas, enquanto tagarelavam acerca do que lhes acontecera naquele dia. Mel contou-lhes tudo sobre o programa acerca das crianças maltratadas, falando-lhes mesmo da história de Pattie Lou Jones, a menina necessitada de um transplante do coração, para a qual Melanie fora encarregada de encontrar solução, ou pelo menos tentar.
— Como é que vai conseguir fazer isso, mamãe? — perguntou Jess, intrigada. Adorava histórias daquele gênero e, em sua opinião, a mãe conseguia escrevê-las e apresentá-las extremamente bem.
— O Grant prometeu dar-me alguns nomes. No ano passado apresentou um programa em que participaram quatro dos maiores especialistas em transplantes do coração e as pessoas do departamento de pesquisa da televisão também poderão facultar-me algumas pistas.
— Deve dar um bom programa.
— A mim parece-me repulsivo — declarou Valerie com uma expressão de desagrado enquanto entravam na sala de jantar, onde Raquel as brindou com cara de poucos amigos.
— Estão convencidas de que eu vou ficar à vossa espera toda a noite? — resmungou ela em voz alta, apressando-se a sair pela porta de mola, ao mesmo tempo em que mãe e filhas trocavam um sorriso.
— Ela dava em maluca se não pudesse protestar — segredou Jessica a ambas, o que lhes provocou um riso que desapareceu, dando lugar a umas caras sérias porque Raquel entretanto regressara, trazendo uma travessa com rosbife.
— Tem ótimo aspecto, Raquel! — elogiou Val sem perder tempo, tendo sido a primeira a servir-se.
— Huummm — resmungou a governanta, que saiu de novo para regressar com batatas assadas e brócolis que ainda fumegavam.
As três instalaram-se à mesa para partilhar um jantar calmo e uma noite tranqüila passada em casa. Aquele era o único lugar na vida de Melanie onde ela podia libertar-se total e completamente das notícias.
— Sally? Sally?
A doente tinha passado o dia a acordar por escassos momentos para logo a seguir voltar a perder a consciência. Peter Hallam fora ao seu quarto umas cinco ou seis vezes. Era apenas o segundo dia a seguir à cirurgia, pelo que era difícil prever como seria a recuperação; no entanto, o médico era forçado a admitir que não se encontrava totalmente satisfeito. Por fim, Sally abriu os olhos e, reconhecendo-o, brindou-o com um sorriso caloroso. Peter puxou uma cadeira e sentou-se, agarrando-lhe a mão.
— Como é que está a sentir-se hoje?
— Não estou muito bem — respondeu ela num murmúrio.
— Ainda é demasiado cedo — retorquiu o médico com um acenar de cabeça. — Vai ver que a cada dia que passar se sentirá mais forte. — Peter parecia estar a tentar instilar-lhe a sua própria força através do tom de voz e das palavras, mas ela começou a abanar a cabeça com lentidão, num sinal de desânimo. — Já alguma vez lhe menti? — perguntou o cirurgião.
Sally abanou a cabeça de novo e falou outra vez, apesar do tubo nasogástrico lhe provocar desconforto, arranhando-lhe o fundo da garganta.
— Não vai resultar — continuou ela a medo.
— Se a Sally o desejar de verdade, vai ver que resultará — assegurou-lhe Peter. Sentiu que tudo o que havia dentro de si começava a ficar sob pressão. Ela não podia dar-se ao luxo de pensar daquela maneira. Muito menos naquele momento tão crítico da sua vida.
— O meu organismo vai rejeitar o coração — continuou Sally numa voz sussurrada.
O médico abanou a cabeça com obstinação, sentindo um músculo do maxilar a contrair-se. Raios, porque estaria ela pronta a desistir? E como é que sabia? Fora precisamente aquilo que o médico receara o dia todo. Apesar desse risco,
Sally não deveria desistir de lutar pela sua vida. Não podia. Caramba, era o que se tinha passado com Anne! Por que motivo é que elas perdiam subitamente toda a vontade de lutar? Fora a batalha mais encarniçada que tivera de enfrentar. Pior do que a medicação, que a rejeição e as infecções. Conseguiam lidar com tudo isso até certo ponto, mas apenas se o doente tivesse vontade de viver. Se acreditasse que viveria. Sem esse desejo, tudo estaria votado ao fracasso.
— A Sally está a recuperar muito bem — asseverou Peter. As suas palavras estavam imbuídas de determinação e firmeza. Ficou sentado à cabeceira da sua doente durante mais de uma hora, segurando-lhe na mão.
Em seguida, foi fazer a ronda aos outros doentes; em todos os quartos em que entrava, concentrava toda a sua atenção no doente que examinava, passando tanto tempo quanto era necessário para lhe explicar as intervenções cirúrgicas que seriam realizadas dentro em pouco ou a falar das que já haviam tido lugar. O tema abordado era a forma como os doentes se sentiam, o porque do seu estado, as reações que os medicamentos, nomeadamente os corticóides, haviam provocado ou qual o efeito secundário que poderiam vir a ter.
Depois de concluída a ronda, regressou de novo ao quarto de Sally, mas esta estava a dormir uma vez mais. Peter deixou-se ficar junto dela durante muito tempo, enquanto a observava atentamente. Não lhe agradava aquilo que via. Ela tinha razão; o médico sentia-o no mais fundo do seu ser. O organismo de Sally entrara num processo de rejeição do coração que lhe fora doado, e não havia razão para que tal estivesse a acontecer. Existira compatibilidade entre o órgão doado e o organismo de Sally. No entanto, Peter sentia instintivamente que a intervenção cirúrgica fora demasiado tardia para aquela doente. Saiu do quarto e foi invadido por um sentimento de perda iminente que lhe pesava sobre os ombros como se fosse um fardo de chumbo.
O Dr. Hallam dirigiu-se para o pequeno cubículo que lhe servia de gabinete sempre que se encontrava naquele piso do hospital e ligou para o seu outro gabinete, perguntando se necessitavam da sua presença.
— Está tudo bem, senhor doutor — informou uma voz com um timbre que denotava eficiência. — Acabou de chegar para si um telefonema, de Nova Iorque.
— Quem era? — perguntou o cirurgião sem parecer demasiado interessado naquela chamada; o mais provável era ter sido um outro cirurgião a pedir a sua opinião num caso difícil, mas os seus pensamentos estavam preenchidos por Sally Block; Peter tinha esperança de que, fosse qual fosse o motivo do telefonema, este pudesse ficar para mais tarde.
— A Melanie Adams, do noticiário do Canal Quatro — esclareceram do outro lado da linha.
Até mesmo Peter sabia quem ela era, apesar de por vezes se manter extremamente afastado do mundo exterior. Não era capaz de compreender o que a teria levado a telefonar-lhe.
— Ela disse-lhe o que é que pretendia? — perguntou.
— Não quis dizer, pelo menos não entrou em pormenores. Disse somente que era urgente, qualquer coisa acerca de uma menina.
Ao ouvir aquilo, Peter soergueu uma sobrancelha; até mesmo as mulheres que trabalhavam nos noticiários da televisão tinham filhos. Talvez aquele telefonema se relacionasse com um filho de Melanie. Anotou o número de telefone que ela deixara, olhou para o relógio de pulso e começou a fazer a ligação.
Quem atendeu do outro lado da linha transferiu a chamada de imediato.
Melanie atravessou a correr a parte da sala da redação para atender o telefone.
— Doutor Hallam? — perguntou ela com a respiração ofegante.
Do outro lado, a voz de Peter era máscula e profunda.
— O próprio. Deram-me um recado, dizendo que a senhora tinha telefonado.
— Telefonei, sim. Não estava à espera de que me ligasse com tanta prontidão. O nosso departamento de pesquisa facultou-me o seu nome — começou Melanie a explicar. Além disso, ela já ouvira o nome do médico em diversas ocasiões, mas como este vivia na Costa Oeste, não lhe ocorrera entrar em contato com ele.
Os quatro nomes que Grant lhe dera não lhe haviam produzido quaisquer resultados positivos. Nenhum estava disposto a realizar a intervenção cirúrgica na pequenita de raça negra. A publicidade assustava-os em demasia, além de que a operação teria de ser efetuada a título gratuito. Melanie também já tinha telefonado a um cirurgião de alguma nomeada que vivia em Chicago e fora informada de que o médico se encontrava presentemente na Inglaterra e na Escócia a efetuar um circuito de palestras. Em poucas palavras, explicou ao Dr. Hallam a situação da pequenita e o médico fez-lhe algumas perguntas pertinentes; naquele momento, Melanie já se encontrava preparada para poder responder. Inteirara-se de bastante num só dia, ao falar com os outros quatro médicos.
— Pelo que me diz, parece ser um caso bastante interessante — observou Peter. — O que é que a senhora tem a ganhar com este assunto? — perguntou abruptamente.
Melanie ficou sem fôlego; era difícil responder àquela pergunta.
— À primeira vista, doutor, uma reportagem para a minha cadeia de televisão acerca de um médico que é capaz de sentir compaixão de uma menina desesperadamente doente e, por último, de como é que os transplantes se efetuam.
— Tudo isso faz sentido, embora eu não tenha bem a certeza se o aspecto da publicidade me agrada. Além do mais, é extremamente difícil encontrar um doador para uma criança. O mais provável seria tentarmos algo um pouco mais fora do vulgar.
— O que é que pretende dizer com isso? — perguntou Melanie, intrigada.
— Tudo depende da gravidade do estado da pequenita. Primeiro gostaria de poder examiná-la. É muito possível que decidamos reparar o seu próprio coração que depois voltaremos a colocar dentro do peito.
Melanie franziu a testa. Aquele processo poderia criar uma verdadeira celeuma.
— Parece-lhe que esse método resultaria? — inquiriu ela pouco convencida.
— Às vezes obtemos bons resultados. Os médicos dela são da opinião de que não haverá riscos se ela tiver de viajar? — acrescentou Peter.
— Não sei. Tenho de me informar. Isso quer dizer que estaria preparado para operá-la?
— Talvez sim. Mas por causa dela e não por si. — Uma vez mais, Peter Hallam expressava-se com toda a franqueza, mas Mel não o levava a mal. O médico estava a prontificar-se a operar a criança e não a oferecer-se para um espetáculo no noticiário. Ela respeitava-o por aquela atitude.
— Está pronto a conceder-nos uma entrevista?
— Sim — respondeu ele, expressando-se sem mostrar qualquer apreensão. — Apenas desejo deixar bem clara a razão que me levaria a fazer essa intervenção cirúrgica. Além de médico, também sou um cirurgião empenhado naquilo que faço. Não pretendo transformar toda esta situação num circo.
— Eu nunca lhe faria uma coisa dessas — retorquiu Melanie. Peter já tinha visto as reportagens dela na televisão, o que o levava a acreditar que o que ela dissera era verdade. — Apesar disso, gostaria muito de entrevistá-lo. E se decidir fazer o transplante de Pattie Lou, a operação seria o começo de uma reportagem bastante interessante.
— Acerca de que? De mim? — perguntou Peter, chocado, como se aquela hipótese jamais lhe houvesse ocorrido.
Do outro lado da linha, Melanie sorriu. Seria possível que ele não se apercebesse do quanto o seu nome era conhecido? Estaria tão envolvido no seu trabalho que realmente não se dava conta desse fato? Talvez não prestasse grande atenção a esse aspecto da sua vida profissional. Aquela possibilidade intrigava Melanie.
— Se preferir, o tema seria a cirurgia cardiovascular e os transplantes de uma maneira geral — acrescentou ela.
— Prefiro, sim — respondeu Peter.
Melanie pressentiu um sorriso na voz dele e continuou a conversa.
— Isso poderia arranjar-se. E quanto à Pattie Lou? — inquiriu.
— Dê-me o nome do médico dela. Vou telefonar e veremos o que é que consigo ficar a saber a partir deste momento.
Se o estado de saúde da pequenita permitir uma operação, ela será enviada para aqui e depois logo se vê o que é que se pode fazer. — Nessa altura ocorreu-lhe outro pensamento. — Os pais dela estão de acordo com tudo isto?
— Parece-me que sim. Mas também preciso falar com eles. Eu sou uma espécie de casamenteira em todo este assunto — retorquiu Melanie com um sorriso.
— Aparentemente, assim é. Bom, pelo menos é por uma boa causa. Espero que possamos ajudar essa criança.
— Também eu. — Fez-se um pequeno silêncio entre eles e Melanie sentiu, como por milagre, que tinha ido parar nas mãos certas, bem como Pattie Lou. — Quer que eu volte a telefonar-lhe ou telefona o senhor?
— Neste momento, estou a braços com uma situação crítica no hospital. Telefono-lhe eu. — Subitamente, Peter exprimia-se outra vez num tom de grande seriedade, como se estivesse abstraído do assunto que ambos haviam discutido.
Melanie agradeceu-lhe uma vez mais, após o que ele desligou o telefone.
Naquela mesma tarde, Melanie foi visitar os Jones e a filha que estava tão desesperadamente doente; Pattie Lou conquistava o coração de qualquer pessoa e os pais mostraram-se encantados perante a ínfima hipótese de esperança que Melanie lhes oferecera. Os seus meios financeiros eram pouco abundantes, mas permitiam-lhes custear o bilhete de avião até Los Angeles, pelo menos para a viagem de um dos progenitores e o pai da criança disse de imediato que seria preferível que a mulher acompanhasse a filha. Tinham mais filhos em casa, todos mais velhos do que a criança que sofria do coração, e Mr. Jones pensava que poderiam desvencilhar-se sem a presença da mãe. Mrs. Jones começou a chorar. Os olhos do marido também estavam umedecidos quando se despediu de Melanie.
Duas horas depois de ela ter regressado ao seu gabinete, o Dr. Peter Hallam telefonou outra vez. Já falara com os médicos de Pattie Lou e, de acordo com o prognóstico destes, valia a pena correr os riscos inerentes da viagem. Era a única esperança que restava à pequenita. Peter Hallam estava na disposição de aceitar o caso.
Depois de ter visto Pattie Lou naquela mesma tarde, Melanie sentiu de imediato as lágrimas a assomarem-lhe aos olhos. Quando voltou a falar, a sua voz estava enrouquecida de emoção.
— Não há dúvida de que o senhor é um homem muito generoso.
— Muito agradecido — retorquiu Peter com um sorriso.
— Daqui a quanto tempo acha que consegue arranjar as coisas para que ela possa viajar?
— Não tenho a certeza. Vou por o pessoal da televisão a tratar de todos os pormenores. Quando é que quer que ela chegue ao hospital?
— A julgar pelo que os médicos dela dizem, não me parece que amanhã seja cedo demais.
— Vou ver o que posso fazer. — Melanie olhou para o relógio; estava quase na hora do noticiário da noite. — Dentro de algumas horas voltaremos a entrar em contato consigo e, doutor Hallam, estou-lhe muito agradecida.
— Não me agradeça. Faz parte do meu trabalho. Só espero que nos compreendamos acerca de todo este assunto. Estou pronto a operar gratuitamente, para bem da criança. No entanto, não permitirei a presença de câmaras no bloco operatório. Aquilo que a senhora tem a haver é uma entrevista depois de estar tudo terminado. Estamos de acordo?
— De acordo — retrucou Melanie. Em seguida, não conseguiu resistir à tentação de conseguir algo mais. Tinha uma obrigação para com a cadeia televisiva onde trabalhava, para já não mencionar para com os patrocinadores. — Será que podemos entrevistá-lo, focando também outros casos?
— Concretamente em que aspectos? — indagou ele. Naquele momento, a voz do médico dava a impressão de uma grande desconfiança em relação a Melanie.
— Gostaria muito de fazer uma reportagem sobre o transplante de corações, enquanto estiver aí consigo, doutor. Vê qualquer inconveniente nisso? — perguntou.
Talvez ele tivesse alguma opinião preconcebida a seu respeito. Esperava que assim não fosse; no entanto, nunca se sabia. Talvez o Dr. Hallam detestasse a maneira como ela apresentava o noticiário. Ao fim e ao cabo, também era difundido na Califórnia, pelo que ela não poderia ser-lhe totalmente desconhecida.
É claro que não era esse o caso. Os receios de Melanie não tinham qualquer fundamento, como verificou quando ele concordou com a sua proposta.
— É claro que estou de acordo. Não há qualquer problema no que me pede.
Houve um momento de silêncio, quebrado por Peter.
— É estranho discutir-se uma vida em termos de uma reportagem. — Pensava em Sally, prestes a atravessar um processo de rejeição maciça. Ela não era uma história, mas sim uma rapariga de vinte e dois anos; uma vida humana, tal como aquela criança em Nova Iorque.
— Quer acredite, quer não, mesmo depois de todos estes anos, ainda me é bastante difícil abordar este gênero de assunto nesses termos — retorquiu Melanie, respirando fundo, ao mesmo tempo em que se interrogava se ele estaria a pensar que ela era uma pessoa empedernida. Mas a realidade era que as notícias, por vezes, eram mesmo assim. — Eu entro em contato consigo mais tarde, para lhe dizer quando é que chegamos.
— Vou preparar tudo aqui no hospital para receber a criança.
— Muito obrigada, doutor.
— Não são necessários quaisquer agradecimentos; tudo isto faz parte do meu trabalho, Mistress Adams.
Melanie pensou que se tratava de uma tarefa muito mais nobre do que a difusão televisiva. Depois de ter desligado o telefone, começou a pensar no que ele dissera, enquanto tratava do que era necessário fazer para que Pattie Lou, acompanhada da mãe, pudesse partir para a Califórnia.
Em menos de uma hora já tinha tratado de tudo, desde a ambulância que as levaria de casa até ao aeroporto, a assistência especial durante o vôo, uma enfermeira para acompanhar Pattie Lou, a qual seria remunerada pela cadeia de televisão, uma equipe de filmagens que se lhes reuniria desde a partida, acompanhando-as ao longo do percurso até a Califórnia. Melanie também tratou de arranjar uma equipe similar que continuaria com elas em Los Angeles; tratara ainda das reservas no hotel para si própria, sem esquecer a mãe de Pattie Lou, assim como a equipe de filmagens.
Tudo o que lhe restava fazer era informar o Dr. Peter Hallam de todos aqueles preparativos; Melanie deixou uma mensagem nos serviços do hospital onde o médico operava. Aparentemente, ele não se encontrava disponível quando ela voltou a ligar algumas horas mais tarde. Naquela mesma noite, Melanie informou as gêmeas de que iria para a Califórnia durante alguns dias.
— Para que? — Como de costume, Jessica fora a primeira a perguntar, e Melanie explicou a ambas as filhas o que estava a passar-se.
— Ena, mamãe! Está a tornar-te uma verdadeira paramédica — comentou Val, divertida.
Melanie voltou-se para ela, soltando um suspiro de cansaço.
— Esta noite é como me sinto. Apesar dos inconvenientes, tudo isto deverá proporcionar uma boa história.
Outra vez aquela palavra: história, em paralelo com uma vida humana. O que é que aconteceria se fosse Valerie ou Jessica que se encontrassem naquela situação? Numa situação dessas, como é que ela se sentiria? Até que ponto é que isso seria uma história para si? Sentiu-se arrepiada por dentro com aquele pensamento, compreendendo uma vez mais a reação do Dr. Peter Hallam ao ouvir o termo. Melanie também perguntou a si mesma o que é que sentiria ao conhecê-lo pessoalmente; interrogava-se se ele seria uma pessoa simpática, com quem fosse fácil trabalhar, ou se seria terrivelmente egocêntrico. Ao telefone não lhe parecera que o fosse, mas sabia que a maioria dos cardiocirurgiões gozava daquela reputação. Todavia, Peter dera-lhe a impressão de ser diferente. Embora não o conhecesse, Melanie tinha gostado da sua maneira de falar, além de respeitar profundamente a vontade que o médico mostrara em ajudar Pattie Lou Jones.
— Está com um ar cansado mamãe — comentou Jessica, que tinha estado a olhar fixamente para a mãe.
— E estou — concordou Melanie.
— Amanhã a que horas é que te vais embora? — perguntou a filha.
As gêmeas já estavam acostumadas às suas idas e vindas, sentindo-se bem na companhia de Raquel quando a mãe se ausentava. Sempre que Melanie tinha de ir para fora, a governanta ficava com as gêmeas; quando isso acontecia nunca era por muito tempo.
— Estou a pensar em sair de casa às seis e meia da manhã. O nosso vôo está marcado para as nove e combinei encontrar-me com a equipe de filmagens à porta da casa dos Jones. Imagino que terei de me levantar às cinco horas.
— Que horror! — As duas raparigas fizeram uma careta e Melanie esboçou um sorriso.
— Exatamente. É uma vida que nem sempre é tão atraente como parece, não é verdade, meninas?
— Podes crer — retorquiu Val com rapidez.
Ambas conheciam todos os aspectos da carreira da mãe, o quanto ela trabalhava e com que freqüência ficara de pé à porta da Casa Branca, a gelar sob tempestades de neve; como cobrira também acontecimentos hediondos em selvas distantes, assassínios políticos e outros eventos de natureza cruel. Ambas as filhas a respeitavam ainda mais por essas circunstâncias, embora nenhuma das duas lhe invejasse a profissão nem ansiasse por uma carreira semelhante. Val pensava que gostaria apenas de se casar, enquanto Jess estava decidida a seguir Medicina.
Depois do jantar, Melanie acompanhou as duas até ao andar de cima, fez a mala para a viagem até a Costa Oeste e foi para a cama cedo. Segundos depois de ter desligado a luz da mesa-de-cabeceira, Grant telefonou-lhe para lhe perguntar se a lista que lhe dera de manhã com o nome dos médicos tinha servido para alguma coisa.
— Nenhum deles se prontificou a dar o seu contributo, mas o departamento de pesquisa da estação deu-me o número de telefone do doutor Peter Hallam. Telefonei-lhe para Los Angeles e amanhã temos um vôo marcado para irmos até lá.
— Tu e a miúda? — Grant parecia ter ficado surpreendido.
— E com a mãe e uma equipe de filmagens.
— O circo completo.
— Tenho a impressão de que foi assim que o Hallam se sentiu, ao tomar conhecimento destes preparativos. — De fato, o médico até tinha utilizado a mesma palavra.
— Estou admirado por ele ter concordado.
— Ao telefone pareceu-me ser uma pessoa bastante simpática.
— É o que as pessoas dizem de uma maneira geral. Com certeza que ele não tem necessidade da publicidade, apesar de manter em público um perfil mais modesto do que os outros cirurgiões da sua especialidade. Em minha opinião, isso se deve a uma escolha sua. Ele deu-te autorização para filmar a operação da miúda?
— Não — respondeu Melanie. — Mas prometeu-me uma entrevista para depois da intervenção. Além do mais, nunca se sabe, até é possível que ele mude de idéia depois de nós chegarmos a Los Angeles.
— Talvez sim. Telefona-me quando regressares, miúda, e tenta não te meteres em sarilhos.
Era o seu conselho habitual e Melanie sorriu enquanto voltava a desligar o candeeiro alguns minutos mais tarde.
Entretanto, na zona oposta do país, Peter Hallam não sorria. O organismo de Sally Block iniciara um processo de franca rejeição e, no espaço de uma hora, ela tinha entrado em coma. O médico ficou junto da doente até perto da meia-noite, saindo do quarto somente para falar com a mãe da rapariga até que, finalmente, permitiu à pesarosa senhora que se lhe juntasse à cabeceira da filha.
Não existia qualquer razão para que assim não fosse. O receio de a doente vir a contrair uma infecção deixara de ter a mínima relevância e, à uma hora daquela madrugada, hora de Los Angeles, Sally Block faleceu sem ter voltado a recobrar a consciência para poder ver a mãe ou o médico em que tanto havia confiado. A mãe saiu do quarto em silêncio, arrasada, com as lágrimas a correrem-lhe pelas faces abaixo. A guerra de Sally chegara ao fim. O Dr. Peter Hallam assinou a certidão de óbito, após o que foi para casa e sentou-se no seu gabinete, completamente às escuras a fitar a noite e a pensar em Sally e Anne, assim como noutras pessoas que haviam passado pela mesma situação.
Duas horas mais tarde, no momento em que Melanie saía de casa para se dirigir ao apartamento dos Jones, em Nova Iorque, ele encontrava-se ainda no mesmo lugar. Naquela altura, Peter Hallam nem sequer pensava em Pattie Lou Jones, nem tão pouco em Melanie Adams, somente em Sally, a bonita rapariga loura de vinte e dois anos que agora desaparecera, da mesma maneira que Anne. Como tantos outros. Em seguida, lentamente, sentindo o peso do mundo sobre os seus ombros, Peter dirigiu-se para as escadas e subiu até o quarto, fechando a porta e sentando-se na cama, no meio do silêncio que reinava por toda a casa.
— Lamento tanto!
As palavras foram sussurradas e ele nem sequer tinha a certeza a quem é que se destinavam: à sua mulher, aos filhos, a Sally, aos pais dela, a ele próprio. Pouco depois, as lágrimas surgiram, caindo suavemente enquanto ele se deitava no meio da escuridão, lamentando no mais fundo da sua alma aquilo que não havia sido capaz de fazer daquela vez. Naquela ocasião não lhe fora possível, mas da próxima vez... Talvez da próxima vez... E foi então que, finalmente, Pattie Lou entrou nos seus pensamentos. Não lhe restava nada a fazer além de tentar de novo. Houve algo, bem no seu âmago, que se agitou perante aquela perspectiva.
O avião descolou do Aeroporto J. F. Kennedy, levando a bordo Melanie, a equipe de filmagens, a enfermeira, Pattie Lou e a mãe, todos eles em segurança, sentados numa seção da primeira classe, interdita ao resto dos passageiros do avião. Pattie recebia soro por via intravenosa e a enfermeira que a assistia parecia ser extremamente eficiente. Fora recomendada pelo próprio médico que prestara assistência à Pattie.
Melanie deu consigo a rezar, pedindo que dali até chegarem a Los Angeles não acontecesse nada fora do normal. Uma vez chegados, ela sabia que estariam nas mãos competentes do Dr. Peter Hallam, mas, antes disso, a idéia que Mel fazia de um pesadelo era serem forçados a aterrar em Kansas com uma criança a morrer e a sofrer de uma paragem cardíaca, antes de conseguirem chegar junto do médico na Califórnia. Rezava fervorosamente para que tal não viesse a suceder.
Fizeram uma viagem tranqüila até Los Angeles, para cujo aeroporto o Dr. Hallam enviara dois membros da sua equipe, que os aguardavam com uma ambulância. Pattie Lou, acompanhada da mãe, seguiu no veículo para o Hospital Central. De acordo com o que fora combinado previamente, Melanie não foi com elas.
Peter queria permitir à criança tempo suficiente para se ambientar, sem que houvesse qualquer interferência, tendo concordado em encontrar-se com Melanie no refeitório, às sete horas da manhã do dia seguinte. Nessa altura, pô-la-ia ao corrente da situação de Pattie Lou, assim como a informaria quanto à forma como planeavam tratá-la.
Melanie poderia levar consigo um bloco de apontamentos e um gravador; no entanto, durante esse encontro, estava interdita a presença da equipe de filmagens. A entrevista oficial teria lugar mais tarde. Apesar de todas aquelas restrições, Mel chegou à conclusão de que se sentia grata pela pausa, que lhe permitia manter-se afastada de toda aquela tensão clínica, e seguiu para o hotel, de onde telefonou às gêmeas. Tomou um duche, trocou de roupa e decidiu dar uma volta pelas proximidades do hotel, desfrutando da agradável temperatura primaveril, com os seus pensamentos centrados em Peter Hallam. Sentia uma curiosidade enorme em conhecer o cirurgião. Às seis horas da manhã seguinte, levantou-se apressadamente e seguiu no automóvel alugado para o hospital.
Os saltos dos sapatos de Melanie batiam ritmadamente no chão de azulejos enquanto virava à esquerda depois de ter percorrido um corredor que parecia não ter fim. Passou por dois empregados da limpeza que arrastavam esfregonas molhadas atrás de si. Os homens observavam-na com uma expressão apreciativa até ela se ter detido do lado de fora da cafetaria para ler a placa. Depois, empurrou as portas duplas.
Chegou-lhe às narinas o aroma rico de café acabado de fazer. Enquanto Melanie percorria com o olhar a sala brilhantemente iluminada, ficou surpreendida ao ver o número de pessoas que ali se encontrava àquela hora da manhã.
Nas mesas, viam-se enfermeiras entre turnos a tomar café e o pequeno-almoço, alguns estagiários a fazer um intervalo, médicos internos que davam por terminada uma noite longa com uma refeição quente ou um sanduíche, além de uma ou duas pessoas, que não pertenciam ao corpo clínico, sentadas nas mesas fora da zona central do refeitório, mostrando um semblante acabrunhado e que deviam ter permanecido acordadas durante toda a noite, à espera de notícias de amigos ou familiares gravemente doentes.
Havia também uma mulher que chorava de mansinho, limpando os olhos com um lenço, na companhia de outra mais jovem que também chorava, apesar de tentar consolar a outra. Era uma cena estranha e cheia de contrastes: o cansaço silencioso dos jovens médicos, a tagarelice e jovialidade das enfermeiras, a tristeza e a tensão sentida pelas pessoas que estavam de visita a doentes e, como ruído de fundo, o entrechocar dos tabuleiros e o ruído da água fumegante que se espalhava pela louça suja no interior das eficientes máquinas de lavar.
Aquela sala assemelhava-se a um centro de operações de uma qualquer cidade moderna e estranha, o posto de comando de uma nave a atravessar o espaço, totalmente divorciada do resto do mundo.
Enquanto Melanie observava o que se passava à sua volta, perguntava a si mesma qual seria a figura de bata branca que corresponderia a Peter Hallam. Havia uns quantos homens de meia-idade com batas brancas, que conferenciavam com toda a solenidade sentados a uma mesa a comer bolos e a beber café; mas, de certa forma, nenhum deles se ajustava à idéia que Melanie havia formado dele e nenhum se aproximara dela. Pelo menos, o médico sabia qual era o aspecto físico dela.
— Mistress Adams?
Sentiu-se sobressaltada pela voz que soara diretamente por detrás de si e rodou sobre o salto de um sapato, ficando de frente para ele.
— Sim?
— Eu sou Peter Hallam — apresentou-se o médico, estendendo uma mão fria e vigorosa.
Enquanto Melanie lhe apertava a mão, deu consigo a erguer o olhar para aquele rosto de traços marcados, bem-parecido e de contornos perfeitos, pertencente a um homem de olhos azuis e de cabelos grisalhos. Nos seus olhos bailava um sorriso que contudo não chegava aos lábios. Não obstante as conversas que tinham mantido ao telefone, ele não era nada como ela esperara encontrar. Melanie havia concebido uma imagem mental do cirurgião completamente diferente.
Ele era muito mais alto e tinha uma constituição física tão avantajada que os ombros ameaçavam não caber na bata branca bem passada a ferro que usava por cima da camisa azul, complementada por uma gravata escura e calças cinzentas; adivinhava-se imediatamente que jogara futebol nos seus tempos de faculdade.
— Já está à espera há muito tempo?
— Não, de maneira nenhuma — redargüiu Melanie e seguiu-o até uma mesa, sentindo-se menos em controle da situação do que teria desejado. Estava acostumada a provocar um certo impacto nas pessoas com quem falava e, naquela situação, tinha a impressão de que estava simplesmente a ser arrastada por ele. Aquele homem tinha um magnetismo extraordinário.
— Toma café? — perguntou Peter.
— Sim, por favor — aceitou ela.
Os olhos de ambos cruzaram-se e prenderam-se, cada um deles a perguntar a si próprio o que encontraria no outro: um amigo ou inimigo, um apoiante ou um opositor. Contudo, pelo menos de momento, os dois tinham uma coisa em comum: Pattie Lou Jones. Melanie estava ansiosa por lhe fazer perguntas sobre a criança.
— Nata e açúcar? — acrescentou o Dr. Hallam.
— Não, obrigada — respondeu Mel, fazendo menção de se juntar à fila de pessoas que esperava para encomendar; Peter, com um gesto da mão, indicou-lhe que se sentasse.
— Não se incomode. Não me demoro. Fique aqui a reservar a mesa. — Peter sorriu e Melanie sentiu algo suave a invadi-la. O médico parecia ser uma pessoa simpática; pouco depois, ele regressou à mesa, trazendo um tabuleiro com duas chávenas fumegantes, dois copos de sumo de laranja e algumas torradas. — Eu não sabia se a senhora já tinha tomado o pequeno-almoço — disse ele. Havia qualquer coisa naquele homem que era fundamentalmente íntegro e honesto.
Melanie deu consigo a gostar do médico de imediato.
— Muito obrigada — agradeceu ela, sorrindo-lhe e, sem conseguir conter-se por mais tempo, acrescentou: — Como é que está a Pattie Lou?
— Ontem à noite adaptou-se muitíssimo bem. É uma pequenita muito corajosa. Nem sequer foi necessário que a mãe permanecesse junto dela — afirmou Peter.
Não obstante o que ele acabara de dizer, Mel suspeitava que o fato de a criança se ter sentido tão bem era devido às boas-vindas que Peter Hallam e a sua equipe lhe haviam dado; estava certa disso. Para o cirurgião, o bem-estar mental dos seus doentes era da maior importância, o que era extraordinariamente raro num médico.
Depois de Pattie Lou ter chegado ao hospital, Peter havia passado várias horas na sua companhia, tentando conhecê-la enquanto pessoa, não apenas como um conjunto de dados.
Com Sally morta, não tinha qualquer outro doente em estado crítico a quem tivesse de prestar assistência e, naquele momento, não pensava em Sally, só em Pattie Lou.
— Que hipóteses é que ela tem, doutor? — Melanie sentia-se ansiosa por conhecer a opinião dele e esperava que o prognóstico fosse positivo.
— Gostaria de poder dizer-lhe que são boas, mas essa não é a realidade. Acho que o termo razoável se adequa mais à avaliação do seu estado clínico.
Mel acenou com a cabeça, mostrando uma expressão sombria enquanto bebia o seu café.
— Sempre vai para a frente com um transplante do coração?
— Se conseguirmos encontrar um doador, o que não me parece que seja muito provável. Os doadores compatíveis com crianças são muito raros, Mistress Adams. Parece-me que o meu primeiro prognóstico estava certo. É preferível reparar o seu próprio coração, da melhor maneira que nos for possível, aplicando-lhe talvez uma válvula de porco, que irá substituir aquela que se encontra em más condições.
— A válvula de um porco?! — Aquele pensamento enervava-a um pouco.
— É o que me parece — afirmou ele com um aceno de cabeça. — Ou essa ou de uma ovelha. — A utilização de válvulas de animais há muito que era comum, pelo menos no que dizia respeito a Peter.
— Quando? — continuou Melanie.
O cirurgião suspirou e semicerrou os olhos, a pensar no assunto enquanto ela o observava.
— Hoje vamos fazer-lhe uma grande quantidade de análises e exames, e é possível que amanhã procedamos à intervenção cirúrgica.
— Ela estará em condições de sobreviver à operação?
— Parece-me que sim — respondeu Peter.
Os olhos de ambos encontraram-se e prenderam-se durante bastante tempo. Naquela atividade não existiam garantias. Nunca se tinha a certeza absoluta de que se sairia vencedor: a única realidade eram as perdas. Era duro viver com aquela certeza, dia após dia. Melanie admirava o que ele se propunha fazer. Sentiu uma grande necessidade de lhe dar a conhecer os seus pensamentos; mas, de certa maneira, parecia-lhe que essa atitude da sua parte seria uma declaração demasiado pessoal, o que a levou a manter-se calada, cingindo a conversa ao assunto de Pattie Lou e da reportagem. Ao fim de algum tempo, Peter começou a olhar interrogativamente para Melanie. Ela mostrava-se tão interessada, tão humana. Era mais do que uma simples repórter.
— Qual é o seu interesse em todo este assunto, Mistress Adams? Somente outra história ou trata-se de algo mais?
— A Pattie Lou é uma pequenita muito especial, doutor. É difícil não nos interessarmos pela sua sorte — respondeu Melanie.
— Preocupa-se sempre assim tanto acerca dos assuntos que noticia? Deve ser bastante cansativo — continuou Peter.
— Não é o que se passa consigo, doutor? Preocupa-se com todos eles?
— Quase sempre — respondeu Peter.
Estava a ser sincero e era fácil acreditar no que ele dizia. Um doente que não o interessasse profundamente seria uma exceção bastante rara. Melanie já se apercebera disso. Nesse momento, Peter fitou-a com um sorriso de curiosidade; ela mantinha as mãos entrelaçadas sobre o regaço enquanto o observava.
— Não trouxe o seu bloco de apontamentos. Isso significa que não está a gravar a nossa conversa?
— Não — respondeu Melanie com um sorriso, abanando lentamente a cabeça. — Não estou. Acho preferível que nos conheçamos melhor.
Aquela possibilidade deixou Peter deveras intrigado e não foi capaz de resistir a fazer outra pergunta.
— Por que?
— Porque farei um melhor trabalho de reportagem acerca do que o senhor faz neste hospital, se souber mais a seu respeito. Não a escrever no papel ou a gravar, mas sim a observar, a ouvir, a conhecê-lo.
Melanie era eficiente em tudo o que fazia, o que Peter pressentiu. Era bastante conhecida no seu ramo de atividade; podia-se mesmo dizer que era uma estrela, uma verdadeira profissional como poucas. Isso agradava a Peter Hallam. Era o mesmo que estar perfeitamente equiparado com um adversário num desporto competitivo, o que o excitava, levando-o a fazer uma oferta que não havia planeado.
— Gostaria de me acompanhar enquanto faço a ronda aos meus doentes esta manhã? Este convite deve-se apenas ao interesse que possa ter para si — acrescentou ele.
Os olhos de Melanie iluminaram-se. Sentia-se lisonjeada por aquela oferta inesperada e esperava que tal significasse que ele simpatizara com ela ou, melhor ainda, que já tinha começado mesmo a confiar nela. Isso era importante para que a reportagem corresse bem e sem quaisquer obstáculos.
— Terei o maior prazer nisso, doutor. — Melanie deixou que a sua expressão lhe indicasse o quanto se sentia sensibilizada pela oferta dele.
— Podia tratar-me por Peter.
— Se me tratar por Mel — replicou ela. Trocaram um sorriso cúmplice.
— De acordo — anuiu o médico, tocando-lhe no ombro quando se levantou.
Melanie pôs-se de pé sem mais delongas, sentindo-se excitada perante a perspectiva de acompanhá-lo durante a ronda aos doentes. Tratava-se de uma oportunidade rara, pela qual se sentia agradecida.
Enquanto saíam do refeitório, Peter voltou-se de novo para Melanie e desta feita exibia um sorriso.
— Os meus doentes vão ficar muito impressionados ao vê-la aqui no hospital, Mel. Tenho a certeza de que todos eles já a viram na televisão.
Aquele comentário surpreendeu-a, e ela esboçou um sorriso.
— Duvido muito — afirmou Melanie, que tinha sempre um ar de modéstia, o que levava a que aqueles que com ela conviviam estivessem sempre a provocá-la, muito em especial Grant e as filhas.
Desta vez, Peter riu-se abertamente dela.
— Sabe bem que não é uma figura anônima. Os doentes do coração também vêem as notícias da televisão.
— Parto sempre do princípio que as pessoas não me reconhecem fora da televisão — retorquiu Melanie.
— Aposto que não é assim. — Peter sorriu uma vez mais e Melanie assentiu.
O médico sentia-se intrigado pelo fato de Melanie não ter permitido que o êxito lhe tivesse subido à cabeça ao longo de todos aqueles anos. Tinha esperado alguém com uma personalidade bastante diversa.
— Em qualquer dos casos, doutor Hallam — continuou ela — aqui, o senhor é que é a estrela e com todo o direito.
— Os olhos dela brilhavam de franca admiração; daquela feita, foi a vez de ele mostrar uma expressão de humildade semelhante à que ela exibira.
— Não se pode dizer que eu seja uma estrela, Mel — disse ele, muito sério. — Limito-me a trabalhar neste hospital, fazendo parte de uma equipe extraordinariamente eficiente. Acredite no que lhe digo: os meus doentes vão ficar mais entusiasmados com a sua presença do que comigo, e com toda a razão. Far-lhes-á bem ver um rosto novo. — Peter carregou no botão para chamar o elevador e quando entraram premiu o do sexto andar, misturando-se com um grupo de médicos de bata branca e enfermeiras de faces frescas. Estava na hora da mudança de turno. — Gostaria de lhe dizer que sempre gostei das suas opiniões e da forma como realiza uma reportagem — acrescentou Peter, falando em voz baixa, enquanto o ascensor ia parando em todos os pisos. Melanie reparou em duas enfermeiras que a observavam com discrição. — Aprecio a sua abordagem direta e sincera das notícias. Acho que foi por isso que aceitei a sua proposta.
— Fosse qual fosse o motivo, estou muito satisfeita com a sua decisão — retorquiu Melanie. — A Pattie Lou precisa desesperadamente de si.
Peter acenou sem poder discordar. Contudo, naquele momento, havia mais alguma coisa. Tinha-se aberto com ela, dispondo-se a dar uma entrevista para uma cadeia de televisão; quando ambos se sentaram no seu cubículo no sexto andar, alguns minutos mais tarde, Peter olhou para Mel com uma expressão de franqueza e tentou explicar-lhe os riscos e os perigos que envolviam os transplantes. Avisou-a de que existia a probabilidade de ela, depois de concluir a reportagem, vir a ter sentimentos negativos em relação àquele tipo de intervenção cirúrgica. Era uma possibilidade em que Peter pensara antes de aceder à entrevista; contudo, encontrava-se disposto a correr o risco. Havia mais a ganhar ao dizer-se abertamente tudo à imprensa do que ao tentar escamotear certos aspectos e, se Melanie trabalhasse o assunto de maneira apropriada, poderia conquistar de uma forma significativa a opinião pública. No entanto, ela ficou surpreendida ao tomar conhecimento dos riscos e das probabilidades de sucesso.
— Está a pretender dizer-me que poderei chegar à conclusão de que os transplantes do coração não são uma idéia muito boa? — perguntou Melanie. — É isso que está a dizer-me, Peter?
— Pode ser que isso aconteça, embora fosse uma opinião muito idiota — respondeu o cirurgião. — A realidade é que os doentes submetidos a este gênero de transplantes viriam em qualquer dos casos a morrer e dentro de pouco tempo. O que nós lhes proporcionamos é uma oportunidade que, verdade seja dita, nem sempre é muito boa. Os riscos são elevados e, na maior parte das vezes, as hipóteses de êxito são bastante fracas, mas existe essa oportunidade e é ao doente que cabe decidir. Algumas pessoas preferem não ter de passar por essa prova — continuou Peter — e decidem não correr riscos. É uma opção que eu respeito, mas, se me permitirem, eu tento sempre. É o mínimo que qualquer pessoa pode fazer. Não sou apologista de se fazer um transplante em todos os doentes — acrescentou ele — isso seria uma loucura. No entanto, o fato é que para alguns é a solução ideal e, neste momento, temos uma enorme necessidade de abrir portas novas no campo da cirurgia de transplantes. Não podemos funcionar única e exclusivamente com os doadores de corações humanos, dado que precisamos de mais do que os que se encontram disponíveis. Por isso, andamos às apalpadelas à procura de novos caminhos e é esse processo a que o público resiste liminarmente. Certas pessoas pensam que estamos a tentar fazer o papel de Deus — continuou Peter — o que não é o caso. Tentamos apenas salvar vidas, dando o nosso melhor. É tão simples como isso. — Peter levantou-se e Melanie seguiu-lhe o exemplo; do alto da sua considerável estatura, ele ficou a olhar para ela. — Quando chegar ao fim do dia, diga-me o que é que pensa acerca deste assunto, sem se esquecer de referir se discorda dos objetivos que tentamos alcançar. De fato. — Peter semicerrou os olhos e fitou o rosto de Melanie. — Estou particularmente interessado em saber a sua opinião. A Mel é uma mulher inteligente, mas relativamente ignorante em relação a este assunto. Está a entrar nele sem saber o que vai ver. Diga-me no caso de se sentir chocada, consternada ou mesmo se não aprovar. — Enquanto saíam do cubículo, ocorreu outro pensamento à mente de Peter. — Diga-me uma coisa, Mel, por acaso já terá alguma opinião preconcebida? — perguntou ele, observando a expressão dela enquanto caminhavam; viu que Melanie franzia a testa.
— Sinceramente, não sei bem — redargüiu ela. — É evidente que, basicamente, estou convencida de que tudo o que o Peter faz tem uma lógica. Mas sou forçada a admitir que as hipóteses de êxito de que falou me assustam um pouco. As perspectivas de sobrevivência são bastante reduzidas.
O Dr. Peter Hallam olhou-a intensamente.
— Aquilo que para si pode parecer pouco razoável poderá ser a última réstia de esperança para uma mulher, homem ou criança, às portas da morte. É possível que, para eles, até mesmo dois meses, dois dias, duas horas mais de vida, valham a pena. É claro que essas probabilidades são tão escassas que também me assustam. Mas que outra escolha é que temos? Neste momento, isto é o melhor de que dispomos.
Melanie anuiu com um gesto de cabeça e acompanhou-o pelo corredor, pensando em Pattie Lou; observou o médico a examinar a papeleta dos seus doentes, mostrando uma expressão atenta com o sobrolho franzido, e fazendo perguntas à medida que ia lendo os resultados de análises e exames. Vezes sem conta, Melanie ouviu os nomes dos fármacos que eram ministrados aos doentes sujeitos a um transplante do coração, e que serviam para minimizar a rejeição do novo órgão. Começou a tomar nota de algumas perguntas que desejava fazer ao médico sobre os riscos inerentes àqueles medicamentos e os seus efeitos secundários na personalidade e mente dos doentes.
Subitamente, Melanie viu Peter Hallam levantar-se da cadeira onde estivera sentado e dirigir-se em passos rápidos para o corredor. Foi atrás dele durante algum tempo, mas deteve-se sem estar certa se ele quereria ou não que ela o acompanhasse; como se tivesse sentido essa hesitação, Peter, com um gesto da mão, deu-lhe a entender que se aproximasse.
— Vamos — disse ele, apontando para uma pilha de batas brancas que se encontravam num carrinho estreito de aço inoxidável, indicando-lhe que agarrasse uma, o que ela fez enquanto seguiam apressadamente; alcançou-o quando ainda estava a vestir a bata com uma certa dificuldade.
Peter tinha os braços cheios de relatórios médicos; ia acompanhado por uma enfermeira e dois estagiários, que o seguiam respeitosamente, mantendo-se alguns passos atrás.
O dia de Peter Hallam tinha começado. Esboçou um sorriso na direção de Melanie e empurrou a primeira porta, abrindo-a de par em par e entrando no quarto de um homem de idade. Este fora submetido a um quádruplo by-pass havia duas semanas, e afirmava que se sentia como se fosse de novo um rapazinho. Não tinha muito o aspecto de um rapaz; continuava bastante fatigado e a sua expressão era um pouco pálida. Depois de terem saído do quarto daquele doente, Peter assegurou-lhe que o homem iria ficar bom.
Entraram no quarto a seguir, onde Melanie sentiu bruscamente um aperto no coração. Deu consigo a olhar para o rosto de um rapazinho com uma enfermidade congênita nos pulmões e no coração; ainda não fora sujeito a qualquer intervenção cirúrgica. Tinha uma farfalheira horrível e uma notória falta de respiração. O seu tamanho era o de uma criança de cinco ou seis anos, mas uma olhadela à papeleta que se encontrava aos pés da cama indicou a Melanie que ele já fizera dez anos.
Os médicos andavam a considerar um transplante do coração e dos pulmões na criança, mas como até a data haviam sido realizados tão poucos, estavam convencidos de que seria prematuro tentar levar a cabo esse tipo de operação numa criança de tão pouca idade. Para o manterem vivo, haviam recorrido a algumas medidas intermédias.
Melanie viu Peter sentar-se numa cadeira junto à cabeceira da cama e falar demoradamente com o rapazinho. Mais do que uma vez, ela teve de lutar contra as lágrimas e voltar-se para que a criança não reparasse nos seus olhos umedecidos. Peter tocou-lhe no ombro de novo quando saíram do quarto; daquela vez, num gesto que pretendia confortá-la.
Continuaram a fazer a ronda aos doentes, entrando no quarto de um homem a quem havia sido colocado um coração de plástico, o qual, veio Melanie a descobrir, funcionava através de ar. Aquele doente sofria de uma grave infecção, o que ocorria por vezes. Levando em consideração as hipóteses e as circunstâncias que rodeavam aquele tipo de doentes, tudo constituía um risco, uma ameaça ou um problema. O perigo pairava por toda a parte, no interior dos seus próprios corpos, que tão debilitados se encontravam, e até mesmo no ar. Um dos maiores receios dos médicos era o aparecimento de uma infecção, que era quase impossível evitar, dado o seu estado de debilidade.
Em seguida, visitaram outro doente, este em estado de coma; depois de ter falado por breves instantes com a enfermeira, Peter não tardou a abandonar aquele quarto. Havia ainda dois homens de rosto muito inchado que haviam sido submetidos a um transplante do coração naquele mesmo ano. Graças ao material que tinha lido, Melanie sabia que, com muita freqüência, a prescrição de esteróides produzia aquele efeito secundário que acabava por ser controlado. Inesperadamente todas aquelas pessoas ganharam significado e, naquele momento, tornou-se para si ainda mais real o fato de as probabilidades de sucesso serem tão ínfimas. Pouco depois, quando se sentaram de novo no cubículo, Peter respondia a algumas das perguntas que Melanie tinha preparado. E, quando olhou para o relógio ficou surpreendida ao verificar que já era quase meio-dia. Havia quatro horas que faziam a ronda ao hospital e, provavelmente, tinham visitado cerca de vinte doentes.
— As probabilidades? — Peter olhou para ela por cima da sua chávena de café. — Os doentes que são submetidos ao transplante de corações têm sessenta e cinco por cento de probabilidades de viverem durante um ano depois de a intervenção cirúrgica ter sido efetuada. O que, grosso modo, de duas hipóteses em cada três de que consigam sobreviver durante esse período de tempo.
— E mais do que isso? — perguntou Melanie.
O Dr. Hallam suspirou; detestava estatísticas. Todos os dias se empenhava numa luta feroz contra elas.
— Ora bem, o melhor que podemos prever traduz-se em cerca de cinqüenta por cento de hipóteses durante cinco anos — replicou Peter.
— E depois disso? — insistiu Melanie. Naquele momento tirava apontamentos, sentindo-se perplexa ao ouvir os números daquelas estatísticas, mas sem poder deixar de simpatizar com o tom de desafio na voz dele.
— Por agora, o que acabei de lhe dizer é tudo. Não conseguimos obter resultados melhores do que esses.
Peter proferiu aquelas palavras com uma expressão de quem lamentava aquela realidade e, em simultâneo, ambos começaram a pensar em Pattie Lou, desejando que as perspectivas da criança fossem mais risonhas do que aquelas. Ela tinha direito a muito mais. Todos tinham. Perante aquela situação, uma pessoa ficava quase tentada a perguntar qual era o objetivo de tudo aquilo, mas, se fosse a nossa vida ou a de um filho que estivesse em jogo, seria que não nos agarraríamos a qualquer oportunidade, nem que fosse por um dia, uma semana ou mesmo um ano?
— Por que motivo é que morrem tão prematuramente? — continuou Melanie com uma expressão de desânimo.
— Na maior parte das situações, é o organismo que entra num processo de rejeição, seja sob que forma for. Pode ser uma rejeição direta e linear ou também o engrossamento das artérias, que levará a um ataque cardíaco. Um transplante poderá acelerar esse processo. Além disso — acrescentou Peter — o outro grande problema com que nos debatemos são as infecções. Estes doentes são mais atreitos a elas do que quaisquer outros.
— E não existe nada que possa fazer? — perguntou Melanie, como se tudo dependesse dele.
Estava a visualisá-lo no papel de Deus, à semelhança daquilo que alguns dos seus doentes faziam. Aquela atitude não era justa; no entanto, parecia que tudo se encontrava nas mãos do médico, ainda que não fosse esse o caso. De certa forma, ela desejava que pudesse ser assim. Tudo seria muito mais simples. Peter era um homem íntegro e procederia da forma mais adequada, se tal estivesse ao seu alcance.
— Neste momento, não há mais nada que possamos fazer, apesar de alguns dos novos medicamentos poderem vir a alterar esta situação. Ultimamente temos vindo a utilizar alguns dos mais recentes e isso pode ajudar. Aquilo que temos de manter em mente. — Peter falava-lhe com suavidade, quase como se ela fosse uma criança. — é que estes doentes não teriam a mínima hipótese sem o transplante de um coração novo. Portanto, o que quer que seja que lhes possa ser proporcionado é uma bênção. Os doentes apercebem-se desta situação. Se desejarem viver, estão dispostos a tentar qualquer coisa.
— O que é que isso significa exatamente? — indagou Melanie.
— Alguns não querem continuar. Não têm vontade de passar por uma operação desta natureza — respondeu Peter e, fazendo um gesto na direção das papeletas, recostou-se para trás, mantendo na mão a chávena de café. — Não sei se sabe que é necessária muita coragem.
Naquele momento, Melanie também se apercebia de outra coisa. Peter Hallam tinha muita coragem. Era uma espécie de toureiro que na arena se defrontava com um touro chamado Morte, numa tentativa desesperada para lhe roubar homens, mulheres e crianças. Perguntou a si mesma quantas vezes os seus desejos haviam saído gorados pela morte de doentes com quem se preocupara. Notava-se que ele era um homem que se interessava verdadeiramente pelos outros.
A voz de Peter, suavizou-se de repente, como se tivesse ouvido os pensamentos dela.
— A minha mulher decidiu não aproveitar essa oportunidade — disse, baixando o olhar ao ver que Melanie o fitava, imóvel.
O que é que ele dissera? A mulher? Então, ele ergueu o rosto e adivinhou o choque que lhe provocara; os seus olhos prenderam-se aos de Melanie. Não estavam umedecidos, mas ela observou o sofrimento que pairava naquele olhar e que lhe dava a conhecer algo do caráter dele.
— Ela sofria de hipertensão pulmonar primária. Não sei se isto significa alguma coisa para si ou não. É uma doença que deteriora os pulmões e depois o coração, sendo necessário efetuar um transplante do coração e dos pulmões. Nessa época, apenas se haviam efetuado duas operações desse gênero em todo o mundo, e nenhuma delas aqui. É evidente que não teria sido eu a levar a cabo essa intervenção cirúrgica. — Peter suspirou e inclinou-se para a frente. — A minha mulher teria sido operada por um dos meus colegas, assistido pelos outros membros da equipe ou, então, poderíamos tê-la levado até junto de qualquer um dos maiores cirurgiões de todo o mundo, mas ela recusou a operação com toda a tranqüilidade. Desejava morrer tal como estava, sem ser obrigada a fazer com que eu ou os nossos filhos, assim como ela própria, passássemos pelas agonias que sabia que os meus doentes sofriam, para depois acabarem por morrer ao fim de seis meses, de um ano ou no máximo dois. Enfrentou toda essa situação com uma calma aterradora. — Naquela altura, Melanie reparou que ele tinha os olhos umedecidos. — Nunca conheci uma pessoa como ela. Manteve-se absolutamente tranqüila durante toda a doença, até o fim. — A voz de Peter ficou embargada por breves instantes. — Aconteceu tudo há um ano e meio. Ela tinha apenas quarenta e dois anos.
Peter olhou para Melanie sem tentar ocultar os seus sentimentos; o silêncio que reinava naquele pequeno espaço era ensurdecedor.
— É possível que tivéssemos podido alterar tudo o que aconteceu, mas não durante muito tempo. — Naquele momento, o tom de voz dele era mais profissional. — No ano passado, eu próprio fiz dois transplantes do coração e dos pulmões. Por motivos óbvios, estou bastante empenhado nessas operações. Não existe qualquer razão que as impeça de resultarem, o que com o tempo virá a acontecer.
Era demasiado tarde para a sua mulher. Mas, no seu íntimo, ele jamais desistiria da luta, como se ainda pudesse convencê-la a deixá-lo tentar. Melanie observava-o, condoída, apercebendo-se daquilo por que ele havia passado e da sua impotência.
— Quantos filhos tem? — perguntou Melanie com suavidade.
— Três. O Mark tem dezessete anos, a Pamela vai fazer catorze em junho e o Matthew tem apenas seis anos. — Peter Hallam sorriu ao pensar nos filhos e olhou para Mel. São todos miúdos excelentes, mas o Matthew é do mais engraçado que existe. — Suspirou e levantou-se da cadeira. Apesar de a morte da mãe ter sido dura para todos, ele foi o que a sentiu mais. A Pam está na idade em que precisa verdadeiramente da mãe e, até certo ponto, o apoio que eu lhe posso proporcionar é bastante limitado. Todos os dias tento chegar cedo a casa, mas há sempre uma crise ou outra que surge quando menos se espera. Quando se está sozinho, é extremamente difícil proporcionar-lhes tudo o que eles necessitam.
— Eu sei bem como isso é — retorquiu Melanie. — Também tenho esse problema.
Peter voltou-se para ela, olhando-a bem nos olhos, com uma expressão de quem não ouvira o que ela tinha acabado de dizer.
— A minha mulher poderia, pelo menos, ter-nos dado uma oportunidade — continuou ele.
— E o mais provável teria sido ela já não pertencer ao mundo dos vivos. Deve ser uma situação extremamente difícil de aceitar.
Peter acenou com a cabeça em movimentos lentos, olhando para ela com um semblante pesaroso.
— Assim é. — Então, como se de repente tivesse ficado chocado consigo mesmo por tudo o que confidenciara, agarrou nas papeletas dos seus doentes, como se pretendesse voltar a colocar de novo uma barreira entre os dois. — Peço-lhe muita desculpa. Não sei o que é que me levou a confidenciar-lhe tudo isto.
No entanto, Melanie não estava surpreendida; estava habituada a que as pessoas se abrissem consigo. A única diferença foi que daquela vez essa situação acontecera mais rapidamente do que era habitual. Peter, com um sorriso, tentou pôr a conversa para trás das costas.
— Proponho irmos até ao fundo do corredor fazer uma visita à Pattie.
Melanie aquiesceu com um acenar de cabeça, ainda profundamente comovida por tudo o que acabara de ouvir. Naquele momento, era-lhe quase impossível encontrar as palavras adequadas. Quase se sentiu aliviada perante a idéia de ver a criança que trouxera consigo de Nova Iorque. Pattie Lou ficou radiante com a visita deles, o que fez com que Melanie se recordasse do motivo por que se encontrava ali. Passaram cerca de meia hora numa conversa agradável com a criança e, enquanto Peter lia os resultados das análises, o seu rosto mostrava uma expressão de satisfação. Pouco depois, dirigiu-se à menina com um semblante paternal.
— Sabes que amanhã é o nosso grande dia.
— De verdade? — Os olhos da pequenita abriram-se mais, mostrando uma expressão que tanto refletia entusiasmo como insegurança.
— Vamos trabalhar no teu coração, Pattie, e vamos fazer com que fique tão bom como se fosse novo.
— E depois já posso jogar basebol? — Aquela pergunta fez assomar um sorriso aos lábios de Peter e Melanie.
— É isso que tu queres?
— Sim, senhor! — respondeu a criança com um grande entusiasmo.
— Vamos ver o que é que se pode fazer.
Em seguida, Peter começou a explicar-lhe a operação do dia seguinte, com todo o cuidado e em termos que ela pudesse compreender facilmente e, apesar de parecer apreensiva, era evidente que não se encontrava demasiado receosa. Via-se que a criança já sentia carinho pelo Dr. Peter Hallam. Quando ambos saíram do quarto, Pattie Lou mostrou-se pesarosa. Peter olhou para o relógio; já passava das treze e trinta.
— E que tal se fôssemos almoçar? Já deve estar a morrer de fome — sugeriu ele.
— Não falta muito — retorquiu Melanie com um sorriso. — Mas fiquei tão interessada no que vi que ainda não tive tempo para pensar em comida.
— Também eu.
Peter pareceu satisfeito com a resposta dela; saíram do hospital, aliviados por respirar ar fresco. Sugeriu um almoço rápido, com o que Mel concordou enquanto se dirigiam para o automóvel do médico.
— Costuma trabalhar tanto como hoje? — perguntou ela. Ele sorriu.
— A maior parte das vezes. Não é possível gozarem-se muito tempo livre quando se tem uma profissão como a minha. Não nos podemos dar ao luxo de lhe voltarmos às costas, nem sequer por um dia.
— E a sua equipe? Não pode partilhar as responsabilidades de tudo isto? — inquiriu Melanie. De outra forma, o fardo seria demasiado pesado.
— É claro que partilho — respondeu Peter.
Todavia, algo na maneira como ele respondeu fez com que Melanie duvidasse das suas palavras. A impressão com que ficara foi a de que o cirurgião costumava chamar a si o maior quinhão das responsabilidades, e que gostava disso.
— O que é que os seus filhos pensam em relação ao seu trabalho?
Peter pensou durante algum tempo antes de responder.
— Para lhe ser franco, não tenho bem a certeza. O Mark quer seguir Direito e a Pam todos os dias muda de idéia, especialmente agora. E o Matthew é demasiado pequeno para fazer a mínima idéia daquilo que deseja fazer quando crescer, isto é, além de dizer que quer ser canalizador, profissão por que optou no ano passado — disse Peter, soltando uma gargalhada. — Calculo que é isso que eu sou, não é verdade? — comentou com uma careta risonha. — Um canalizador!
Ambos desataram a rir.
O sol brilhava sobre ambos, e Melanie reparou que Peter ficava com um ar mais jovem ao ar livre. De repente, quase conseguia imaginá-lo na companhia dos filhos.
— Onde é que havemos de ir almoçar? — perguntou ele sorrindo do cimo da sua grande altura, obviamente confortável nos seus domínios.
Mas não se tratava apenas disso. Havia algo mais. Naquela altura, existia um novo laço de amizade entre os dois. Peter havia aberto a sua alma, mostrando-lhe o que lhe ia no íntimo, ao falar-lhe de Anne. Como resultado, sentia-se mais livre do que se sentira havia muito tempo. Quase desejava celebrar a leveza de espírito que lhe invadia o coração.
Melanie percebeu isso e sorriu-lhe. Era notável ele lidar diariamente com a vida e a morte. Ela viera a Los Angeles com o propósito de lhe entregar uma criança doente e num estado desesperado. E, no entanto, no meio de toda aquela situação, a verdade era que ambos continuavam a ser jovens e a estar vivos, aproximando-se lentamente do início de uma amizade. E não tão lentamente como isso. Havia qualquer coisa em Peter que lhe trazia à memória a franqueza que ela sentira quando conhecera Grant; Melanie, porém, apercebia-se de que sentia algo mais por aquele homem. Aos olhos dela, Peter era bastante atraente; era forte, meigo, vulnerável, franco e modesto, apesar do enorme êxito profissional. Era um homem invulgar e, enquanto observava Melanie, Peter Hallam pensava as mesmas coisas em relação a ela. Estava satisfeito por tê-la convidado para almoçar. Ambos mereciam aquela pausa. Tanto um como o outro trabalhavam esforçadamente, cumprindo com as suas responsabilidades, pelo que não parecia despropositado que, naquele momento, se concedessem um pequeno intervalo. Melanie disse a si mesma que aquela refeição em conjunto contribuiria de forma positiva para a entrevista.
— Conhece bem Los Angeles? — perguntou ele.
— Nem por isso. Quando cá venho é sempre em trabalho e ando constantemente a correr de um lugar para o outro até ir-me embora. Nunca tenho tempo suficiente para refeições calmas e alongadas. — Peter sorriu. Com ele acontecia o mesmo, mas, naquele dia, um almoço sem restrições de tempo parecia-lhe ser o mais indicado. Também sentia que fizera uma nova amizade. Melanie ergueu o olhar e sorriu-lhe. — Tenho a impressão de que o Peter normalmente não sai do hospital para almoçar, não será verdade?
— De quando em vez, saio — respondeu Peter com um sorriso. — Tenho por hábito almoçar por aqui — continuou ele, fazendo um gesto na direção do hospital atrás deles, após o que se deteve junto do automóvel.
Melanie viu um Mercedes bastante espaçoso com pintura cinzento-prateada, o que a surpreendeu. A viatura tinha pouco a ver com o que ela conhecia dele.
Peter adivinhou-lhe o pensamento.
— Foi uma oferta que fiz à Anne há dois anos — explicou com calma, mas desta vez pressentia-se na sua voz um abrandamento da dor. — A maior parte das vezes, desloco-me no meu próprio automóvel, um pequeno BMW, mas neste momento está na oficina. Em casa tenho uma pequena station que é utilizada pela minha governanta e pelo Mark.
— A pessoa que trata das crianças é eficiente? — perguntou Melanie. Eram apenas duas pessoas normais que se dirigiam para Lilshire Boulevard.
— É fabulosa! — respondeu Peter e, continuando a conduzir, olhou para Melanie por breves instantes, sorrindo. — Sem ela, eu estaria perdido. É uma senhora de origem alemã que está conosco desde que a Pam nasceu. Quando do nascimento do Mark, foi a Anne que tratou dele, mas na altura em que a Pamela nasceu, ela já tinha problemas de coração, razão por que contratamos esta governanta para cuidar do bebê. De início era para ficar apenas durante seis meses — sorriu de novo, virando-se para Mel — e isso aconteceu há catorze anos. Hoje em dia, ela é uma bênção para a nossa família. — Peter hesitou muito ligeiramente. — Depois de a Anne nos ter deixado. — Já começara a habituar-se a falar acerca do assunto.
Melanie agarrou naquele tema para dar andamento à conversa.
— Eu tenho uma governanta oriunda da América Central, que é uma mulher maravilhosa e que me ajuda muito em casa com as minhas filhas.
— Que idade é que elas têm?
— Quase dezesseis. Fazem anos em junho.
— Ambas? — perguntou Peter com uma expressão de surpresa que provocou uma gargalhada em Melanie.
— Sim. São gêmeas.
— Idênticas? — Peter sorriu com aquela idéia.
— Não. Uma é esbelta e tem cabelos ruivos. As pessoas dizem que é parecida comigo, mas eu não tenho a certeza de que assim seja. Quanto à outra, sei que não se parece comigo em nada: é loura e tem um corpo voluptuoso, o que faz com que me sinta doente de cada vez que ela sai à rua.
Melanie sorriu e Peter deu uma gargalhada ao ouvir a descrição que ela fazia da filha.
— Nos últimos dois anos cheguei à conclusão de que é mais fácil educar os rapazes — disse Peter, mas o sorriso que esboçara desapareceu ao pensar em Pam. — A minha filha tinha doze anos e meio quando a Anne morreu. Calculo que a perda da mãe em conjunto com a entrada na puberdade foi quase demais para ela — acrescentou ele, suspirando. — Estou convencido de que o período da adolescência é difícil para qualquer criança. No entanto, quando o Mark tinha a idade dela, correu tudo com mais facilidade. Ele teve-nos a ambos.
— Imagino que isso tenha feito bastante diferença — redargüiu Melanie.
Fez-se uma longa pausa, e Peter procurou o olhar dela.
— Vive sozinha com as gêmeas? — Tinha a impressão de que ela já referira aquele assunto, ou não?
— Vivo sozinha com elas desde que elas nasceram — respondeu Melanie com um aceno de cabeça.
— O pai das suas filhas morreu? — Peter parecia sofrer por ela. Era o gênero de homem que mostraria simpatia pela dor dos outros.
— Não. — A voz de Mel era tranqüila. — Abandonou-me. Disse que nunca quisera ter filhos e falava muito a sério. Assim que eu lhe disse que estava grávida, foi o fim do nosso casamento. Nem sequer chegou a ver as gêmeas.
Peter Hallam ficou chocado ao ouvir aquilo. Não conseguia imaginar que alguém se comportasse daquela maneira.
— Para si deve ter sido uma situação terrível, Mel. Com certeza que ainda era muito jovem.
Ela acenou e sorriu. Naquela altura, aquele assunto já não a fazia sofrer. Não era mais do que uma memória esbatida. Um simples fato da sua vida.
— Tinha dezenove anos.
— Meu Deus, como é que foi capaz de se desvencilhar sozinha? Os seus pais ajudaram-na?
— Durante algum tempo. Quando as minhas filhas nasceram, desisti da faculdade. Ao fim de algum tempo, consegui arranjar um emprego. Na realidade, pode-se dizer que foram muitos empregos — continuou ela com um sorriso nos lábios. — Acabei por ir ocupar o lugar de recepcionista de uma cadeia de televisão, em Nova Iorque. A seguir a isso, fui datilógrafa na redação das notícias e o resto, calculo, já é história. — Naquela altura da sua existência, Melanie revia o passado sem grandes sobressaltos.
Apesar da forma fácil como Melanie falava, Peter adivinhava o quão duramente ela tivera de lutar para subir na vida. O mais espantoso era o fato de Melanie não ter sido afetada de uma maneira negativa. Não era uma pessoa amarga e endurecida, encarava o passado com realismo e de uma maneira tranqüila; no fim, tinha acabado por atingir os seus objetivos. Encontrava-se no topo da sua carreira e não se queixava da subida.
— A julgar pela maneira como fala agora, dá a impressão de que tudo foi muito simples, mas tenho a certeza de que, por vezes, deve ter sido um verdadeiro pesadelo — disse Peter.
— Acho que sim. — Melanie suspirou e observou a cidade através da janela do automóvel em movimento. — Para lhe dizer a verdade, sou obrigada a confessar que hoje em dia é-me um pouco difícil recordar essa época. É engraçado! Quando se atravessa uma situação dessas, existem ocasiões em que se pensa que não se é capaz de sobreviver a todos os problemas, mas, de uma maneira ou de outra, lá se vai conseguindo e, quando se olha para trás, nada nos parece tão difícil como na realidade foi.
Enquanto a ouvia, Peter perguntava a si próprio se haveria de chegar o dia em que ele sentiria o mesmo quanto à perda de Anne. Naquele momento, tinha dúvidas de que isso fosse possível.
— Sabe, uma das coisas que mais me custa, Mel, é compreender que jamais poderei ser pai e mãe para os meus filhos. Eles têm necessidade da presença de ambos, especialmente a Pamela.
— Não pode exigir uma coisa dessas a si mesmo. O Peter é somente o pai e dá o seu melhor. Mais do que isso é impossível fazer.
— Calculo que assim seja — aquiesceu Peter, embora não parecesse muito convencido. Uma vez mais, olhou de relance na direção de Melanie. — Já alguma vez pensou em voltar a casar, para bem das suas filhas?
Para Melanie a situação era bastante diferente, dizia ele a si mesmo, ela não era forçada a ultrapassar a recordação de uma pessoa que amara; era possível que houvesse amado o marido, mas tinha o recurso da câmera a que se agarrar e, nesse aspecto, era bastante mais livre do que ele. Para além disso, já se passara muito mais tempo sobre o desgosto que sentira.
— Não me parece que o casamento seja para mim — respondeu Melanie. — Estou convencida de que as minhas filhas agora já compreenderam isso. Costumavam incomodar-me bastantes vezes com esse assunto, quando eram mais novas. E, sim, é um fato que houve ocasiões em que me senti culpada. No entanto, estou convencida de que foi preferível que vivêssemos sozinhas do que com um homem que não fosse o adequado. O mais engraçado é que... — Melanie sorriu com alguma timidez. — Às vezes dou comigo a pensar que prefiro que seja assim. Neste momento, não estou bem certa de como é que me adaptaria a alguém que partilhasse as raparigas comigo. Talvez esta maneira de pensar seja horrível, mas por vezes é assim que eu sinto. Imagino que, à medida que foram crescendo, me tornei muito possessiva em relação às minhas filhas.
— O que é compreensível, uma vez que tem vivido sempre com elas durante todos estes anos — concordou Peter, recostando-se mais para trás para observar Melanie.
— É possível que a Jessica e a Val sejam a melhor coisa que existe na minha vida. São duas meninas extraordinárias — disse ela, muito mãe galinha, enquanto trocavam um sorriso.
Peter saiu do automóvel para lhe abrir a porta. Melanie desceu para o passeio, soerguendo o olhar com um sorriso. Encontravam-se na luxuosa zona de Beverly Hills, somente à distância de dois quarteirões da ilustre Rodeo Drive. Mel olhou à sua volta.
O Bistro Gardens era um restaurante magnífico, cuja sala parecia combinar a arte nova com uma enorme abundância de plantas que ladeavam a passagem que dava acesso ao pátio ao ar livre; para onde quer que olhasse, Melanie só via pessoas ricas, de aspecto sofisticado, vestidas de acordo com a última moda. O movimento próprio da hora do almoço continuava a ser bastante intenso. Deparou com rostos conhecidos sentados a várias mesas: estrelas de cinema, uma apresentadora da televisão já de certa idade, assim como um gigante do meio literário que apenas publicava best-sellers. Então, bruscamente, enquanto olhava em redor, Melanie reparou que os olhares das pessoas se concentravam em si, e viu duas mulheres segredarem algo para uma terceira.
Nessa altura, o chefe de mesa aproximou-se de Peter, exibindo um sorriso nos lábios e olhando também para Mel.
— Bem-vindo, senhor doutor. Olá, Mistress Adams, é muito agradável ter de novo o prazer da vossa companhia.
— Melanie não se recordava de alguma vez ter visto o homem; todavia, era evidente que ele sabia quem ela era e desejava que isso fosse do seu conhecimento. Seguiu-o divertida até uma mesa protegida por um guarda-sol, situada no pátio.
Peter fitava-a com uma expressão interrogativa.
— É costume as pessoas reconhecerem-na sempre?
— Nem por isso. Depende do sítio onde eu estiver. Imagino que num lugar destes é natural que seja reconhecida pelas pessoas. — Melanie observou as mesas cheias que se encontravam à sua volta.
O Bistro Gardens era frequentado pelos endinheirados, pelas celebridades, pela gente chique e pelas pessoas de sucesso; numa palavra, era um restaurante que costumava acolher nomes importantes.
Melanie sorriu de novo para Peter.
— A sensação é a mesma quando se está na companhia do doutor Hallam no hospital, onde toda a gente não se cansava de olhar para si. Tudo depende do lugar onde nos encontramos.
— Suponho que sim — aquiesceu Peter.
No entanto, nunca se tinha apercebido de que olhassem fixamente para si. Naquele mesmo momento, reparou que algumas pessoas não despregavam os olhos de Melanie e que ela não se mostrava desconcertada. Dava a impressão de estar alheia às atenções que despertava.
— Este restaurante é magnífico — começou ela, soltando um suspiro de satisfação ao sentir aquela temperatura agradável e sentando-se de forma a que o sol lhe batesse no rosto. Dava a impressão de que ali se estava em pleno verão e não se tinha a sensação de estar encurralado numa cidade, o que podia acontecer em Nova Iorque. Melanie cerrou os olhos, desfrutando dos raios solares. — Tudo isto é perfeito — acrescentou e olhou de novo à sua volta. — Estou-lhe muito agradecida por me ter trazido a este restaurante.
Com um sorriso, Peter recostou-se na sua cadeira.
— Não me pareceu que o refeitório do hospital se coadunasse bem com o seu estilo.
— Aí é que você se engana. Quando estou a trabalhar, a maior parte das vezes não saio para almoçar. Mas é isso mesmo que faz com que um almoço destes seja uma ocasião especial. No estúdio não tenho muito tempo para comer, nem para me recordar dos prazeres que um lugar maravilhoso como este pode proporcionar.
— Isso também acontece comigo — retorquiu Peter. Trocaram um sorriso rasgado, e Melanie soergueu uma sobrancelha.
— Acha que trabalhamos demais, doutor?
— Receio bem que sim, mas parece-me que ambos gostamos muito das nossas profissões. Isso ajuda bastante — respondeu Peter.
— Sem dúvida que sim — concordou Melanie com uma expressão de grande tranqüilidade. Peter sentia-se mais satisfeito do que ao longo de quase dois anos. Ao observar o médico, Melanie deu-se conta uma vez mais de que sentia admiração pela sua maneira de ser. — Hoje ainda tenciona regressar ao hospital?
— É claro que sim. Quero fazer mais exames em Pattie Lou — retorquiu ele.
Ao ouvir aquelas palavras, Mel franziu a testa, pensando na criança.
— A operação vai custar-lhe muito? — inquiriu Mel.
— Vamos fazê-la da melhor maneira possível. A sua única oportunidade é uma intervenção cirúrgica.
— Continua a pensar em extrair o coração, repará-lo e depois voltar a colocá-lo dentro dela? — perguntou Melanie.
— Parece-me que é a melhor solução. Há semanas que não aparecem doadores compatíveis com ela, e a situação pode arrastar-se por mais alguns meses. Existe uma grande escassez de doadores para os adultos, em que se verifica um maior índice de compatibilidade. A nossa média de transplantes do coração cifra-se entre os vinte e cinco e trinta por ano. Tal como pôde verificar durante a ronda de hoje ao hospital, fazemos essencialmente by-passes. O resto são intervenções cirúrgicas muito melindrosas, as quais não efetuamos em grande número, embora como é evidente, seja dessas que se ouve falar na imprensa.
— Peter, por que motivo tencionam utilizar uma válvula de porco? — perguntou Melanie, mostrando uma expressão intrigada, enquanto bebia um pequeno gole do vinho branco que o empregado de mesa entretanto servira. Chegou à conclusão de que cada vez se sentia mais fascinada pelo trabalho dele e, independentemente da reportagem que a levara àquela cidade, desejava ficar a saber mais.
— Ao usarmos as válvulas de animais não temos necessidade de tornar o sangue menos espesso, o que no caso dela é uma verdadeira vantagem. Utilizamos constantemente válvulas de animais, uma vez que os índices de rejeição são francamente inexistentes.
— É possível utilizar um coração inteiro de animal? — inquiriu Melanie.
Peter abanou a cabeça com rapidez.
— Não existe qualquer hipótese. A rejeição por parte do organismo do doente seria imediata. O corpo humano é uma máquina maravilhosa e complexa — explicou Peter.
Melanie assentiu, pensando naquela criança de raça negra.
— Espero que sejam capazes de pô-la boa.
— É essa a minha esperança. Neste preciso momento, temos mais três casos que aguardam doadores.
— Qual é o vosso critério para determinarem quem é que tem a primazia? — continuou Melanie.
— O doente que apresentar mais fatores de compatibilidade. Não pode haver mais de treze quilogramas e meio de diferença entre o doador e o receptor. Não podemos colocar o coração de uma jovem de quarenta e cinco quilos num homem de cem ou vice-versa. Na primeira das hipóteses, o órgão não agüentaria o peso do homem e, na segunda, não caberia no corpo.
Melanie abanou a cabeça, sentindo uma admiração enorme pelo que ele fazia.
— Aquilo que faz, meu amigo, é absolutamente espantoso.
— Também continuo a sentir-me surpreendido — disse Peter. — Não tanto pelo meu papel no processo cirúrgico como pelos aspectos verdadeiramente miraculosos que envolvem todo este processo. Eu tenho paixão pelo meu trabalho e imagino que isso seja uma grande ajuda.
Melanie observou Peter atentamente durante alguns momentos; em seguida, olhou de relance à sua volta para a multidão elegante que freqüentava o restaurante, após o que voltou a concentrar-se nele. Peter envergava um casaco de linho azul-escuro por cima de uma camisa de um azul mais claro. Melanie concluiu que o médico tinha um ar desportivo, mas distinto.
— É bom gostarmos do nosso trabalho, não acha? — perguntou Melanie. Peter sorriu ao ouvir as palavras dela. Partilhavam a paixão pelo trabalho. Sem mais nem menos, Melanie deu consigo a pensar em Anne. — A sua mulher trabalhava?
— Não — respondeu Peter, recordando-se do apoio constante que Anne sempre lhe tinha dado. Fora uma mulher com um caráter e personalidade muito diferentes das de Mel, mas, naquela época, ele precisara que ela fosse assim. — Não. Não trabalhava — repetiu. — Estava em casa a tratar das crianças, o que fez com que elas sofressem mais com a sua morte. — Por sua vez, naquele momento Peter também estava curioso em relação a Melanie. — Acha que as suas filhas se ressentem por causa da sua carreira profissional, Mel?
— Espero bem que não — respondeu ela, tentando falar-lhe com franqueza. — Talvez de quando em vez, mas tenho a impressão de que gostam do meu trabalho. — Esboçou um sorriso que a fazia parecer uma rapariguinha. — Provavelmente, o que eu faço impressiona os amigos e amigas das minhas filhas, o que, como é evidente, lhes agrada bastante.
— Espere até os meus filhos saberem que eu estive a almoçar consigo — retorquiu Peter.
Ambos começaram a rir-se e, quando a conta veio para a mesa, Peter pagou ambas as refeições. Foi com alguma pena que se levantaram da mesa, lamentando serem forçados a sair do restaurante e a por fim àquela conversa tão agradável.
Melanie espreguiçou-se quando já se encontravam dentro do automóvel.
— Estou cheia de preguiça — comentou, sorrindo-lhe com uma expressão de felicidade. — Aqui parece que já é verão. — Ainda decorria o mês de maio, mas ter-lhe-ia agradado poder estender-se à beira de uma piscina.
Enquanto ligava o motor do automóvel, Peter pensou nas férias.
— Este ano vamos para Aspen, como aliás é nosso costume. Onde é que costuma passar as suas férias de verão, Mel?
— Vamos todos os anos para Martha's Vineyard.
— E que tal é? — perguntou Peter.
Melanie semicerrou os olhos e apoiou o queixo na palma da mão.
— É um pouco como voltar a ser uma criança, ou brincar a imitar Huckleberry Finn. Vai-se para todo o lado de calções, anda-se todo o dia descalço e as crianças passam a vida na praia. As casas na ilha têm todas o mesmo aspecto. São do tipo onde costumavam viver as nossas avós ou tias-avós, que nós visitávamos quando éramos crianças. Eu adoro ir para lá — acrescentou Melanie — porque enquanto lá estou, não sou obrigada a impressionar quem quer que seja. Não tenho de me vestir formalmente, nem visitar seja quem for se tal não me apetecer. Muito simplesmente, posso fazer o que me der na real gana. Todos os anos passamos lá dois meses.
— E consegue tirar tantas férias no seu emprego? — Peter parecia surpreendido.
— Presentemente, existe essa cláusula no meu contrato de trabalho. Costumava ser um mês, mas durante os últimos três anos passaram a ser dois.
— Nada mau. Talvez seja disso que eu estou a precisar — replicou ele.
— Dois meses em Martha's Vineyard? — Melanie pareceu ficar encantada com aquela perspectiva. — Iria adorar, Peter! Trata-se de um lugar absolutamente maravilhoso e cheio de magia.
Peter sorriu ao ver a expressão do rosto dela e, pela primeira vez, apercebeu-se da textura dos seus cabelos. Brilhavam como se fosse cetim sob a luz do sol e, bruscamente, perguntou a si mesmo qual seria a sensação se lhes tocasse.
— Referia-me a acrescentar uma cláusula semelhante ao meu contrato — continuou ele, tentando afastar do seu pensamento, assim como do olhar, aquele cabelo tão cintilante e de um tom de cobre avermelhado. Os olhos dela eram de um verde que ele jamais havia visto. Quase que se assemelhavam a esmeraldas pontilhadas por partículas douradas. Melanie era uma mulher maravilhosa e ele sentiu algo a agitar-se no seu íntimo.
Levou-a de novo para o hospital, tentando manter a conversa centrada em Pattie Lou. No decorrer das últimas horas, tinham-se aproximado bastante um do outro, talvez até demais, o que até certo ponto preocupava Peter. Começou a pensar que atraiçoara Anne, por causa do que estava a sentir por Melanie. Quando entraram no hospital, ela perguntou a si própria o que o teria levado, de repente, a mostrar-se tão distante e frio.
Na manhã seguinte, Melanie saiu do hotel precisamente às seis e trinta, tendo seguido de imediato para o Hospital Central, onde encontrou a mãe de Pattie Lou sentada numa cadeira de plástico no corredor do lado de fora do quarto da filha. Mostrava-se bastante tensa e silenciosa; Mel sentou-se com gestos lentos na cadeira ao lado de Mrs. Jones. A intervenção cirúrgica estava marcada para as sete e trinta.
— Quer que vá buscar-lhe uma chávena de café, Pearl? — ofereceu-se Mel.
— Não, obrigada — declinou a mulher, sorrindo a Melanie com um semblante de quem parecia carregar o peso de todo o mundo sobre os seus ombros frágeis. — Quero agradecer-lhe tudo o que tem feito por nós, Mel. Se não fossem os seus esforços, hoje nem sequer estaríamos aqui.
— Não tem nada a ver comigo. A cadeia de televisão é que proporcionou a vossa vinda.
— Não estou assim tão certa disso — retorquiu Pearl, olhando para Melanie. — Por aquilo que sei, foi a senhora quem contatou o doutor Peter Hallam e tratou de tudo para que pudéssemos vir.
— Só espero que ele possa ajudar a sua filha, Pearl.
— Também é essa a minha esperança. — Os seus olhos encheram-se de lágrimas e ela virou o rosto para o outro lado.
Melanie tocou-lhe no ombro num gesto que pretendia incutir-lhe coragem.
— Há alguma coisa que eu possa fazer por si? — perguntou Mel.
Como resposta, Pearl Jones limitou-se a abanar a cabeça, levando um lenço aos olhos. Nessa mesma manhã, já tivera oportunidade de ver Pattie Lou; naquele momento, o pessoal da equipe médica preparava a criança para a operação. Dez minutos mais tarde Peter Hallam apareceu no corredor, pronto para meter mãos ao trabalho, mostrando-se bem alerta, apesar da hora tão matutina.
— Muito bom dia, Mistress Jones, Mel. — Sem dizer mais nada, entrou no quarto da sua doente.
Uns momentos mais tarde, ouviram um pequeno choramingar que vinha de dentro do quarto e Pearl Jones contraiu-se visivelmente na cadeira, começando a falar quase como se estivesse a dirigir-se a si própria.
— Disseram-me que não podia entrar enquanto a preparavam para a operação. — As mãos tremiam-lhe e começou a amarfanhar o lenço.
Melanie agarrou com firmeza numa das mãos de Mrs. Jones.
— Ela vai ficar boa, Pearl. Tem de esperar com paciência.
Quando acabou de falar, as enfermeiras saíram do quarto, empurrando uma maca aonde a criança vinha deitada. O Dr. Peter Hallam caminhava ao lado dela. Já haviam começado a dar-lhe soro, tendo-lhe também inserido o tubo nasogástrico de aspecto tão sinistro.
Pearl fez-se forte ao dirigir-se em passos rápidos para junto da filha, debruçando-se para beijá-la. Tinha os olhos brilhantes devido às lágrimas que os marejavam, mas, apesar da emoção que sentia, conseguiu falar com Pattie Lou numa voz firme e calma.
— Gosto muito de ti, minha querida. Dentro de pouco tempo ver-nos-emos outra vez.
O Dr. Peter Hallam sorriu às duas e fez uma festa amigável no ombro de Pearl, olhando de relance na direção de Melanie. Durante breves instantes, houve algo rápido e carregado de eletricidade que atravessou ambos. Sem mais demoras, o cirurgião dedicou toda a sua atenção a Pattie Lou. A criança, que tinha as faces pálidas, mostrava-se ligeiramente atordoada por causa de uma injeção que acabara de lhe ser dada; olhou para a mãe e, em seguida, fitou Peter e Melanie. O Dr. Hallam fez um gesto às enfermeiras e a maca começou a rolar lentamente pelo corredor a fora. Peter não largou a mão de Pattie Lou. Pearl e Melanie seguiam mesmo atrás do médico. Momentos mais tarde, a criança entrava no elevador com destino ao bloco operatório situado no piso acima.
Pearl deixou-se ficar a olhar, sem ver, para as portas do ascensor, após o que se voltou para Mel; os seus ombros estremeciam.
— Oh, meu Deus! — exclamou ela.
Durante alguns momentos, as duas mulheres abraçaram-se. Em seguida, regressaram às respectivas cadeiras, dando início à longa espera.
A manhã parecia não ter fim e foi preenchida por breves trocas de palavras, longos momentos de silêncio, várias chávenas de café, grandes caminhadas pelo corredor, e pela espera; uma espera que parecia interminável, até que, finalmente, Peter Hallam reapareceu. Melanie susteve a respiração, enquanto procurava os olhos dele. A mulher que se sentava a seu lado ficou imobilizada, a aguardar as notícias que ele lhe daria.
Contudo, Peter sorria ao dirigir-se para elas e, quando chegou junto da mãe de Pattie Lou, o seu rosto tinha uma expressão radiante.
— A operação correu muito bem, Mistress Jones, e a Pattie Lou está bem.
Pearl recomeçou a tremer e, de repente, caiu-lhe nos braços a chorar convulsivamente.
— Oh, meu Deus! A minha menina. Meu Deus!
— Estou a dizer-lhe a verdade — asseverou ele. — Correu tudo muitíssimo bem.
— Não lhe parece que o organismo dela vá rejeitar a válvula que lhe colocou no coração? — perguntou ela, olhando para o médico com um semblante preocupado.
— As válvulas não são rejeitadas, Mistress Jones — explicou o cirurgião com um sorriso nos lábios — e o trabalho de reparação que efetuamos no coração da sua filha correu às mil maravilhas. É claro que ainda é demasiado cedo para termos a certeza absoluta de que tudo correrá bem, mas, neste momento, tudo parece estar a correr pelo melhor.
Melanie sentiu os joelhos a tremer enquanto observava os dois, e deixou-se cair pesadamente sobre a cadeira. As quatro horas e meia de espera haviam sido as mais longas de toda a sua vida. Começara a gostar muito da pequenita. Então sorriu a Peter, que olhou para ela.
O médico parecia radiante e sentou-se ao lado de Melanie.
— Quem me dera que a Mel pudesse ter assistido — disse ele.
— Também eu — disse Melanie. No entanto, Peter proibira-a de estar presente durante a operação e fora inflexível quanto à presença de uma equipe de filmagens.
— Talvez noutra ocasião, Mel. — Lentamente, ele ia-lhe abrindo todas as suas portas secretas. — E o que é que lhe parece se tratássemos da nossa entrevista esta tarde? — Peter tinha-lhe prometido que ela teria lugar depois da intervenção cirúrgica de Pattie Lou, sem contudo especificar a hora.
— Eu informo a equipe de filmagens — respondeu Melanie, mas perguntou-lhe, preocupada: — Tem a certeza que não é demasiado cansativo para si?
— Que diabo, não! — respondeu ele com uma careta risonha.
Parecia um rapaz que tivesse acabado de ganhar um jogo de basebol. Aquela operação compensava-o por todas as outras vezes. Melanie esperava sinceramente que o estado de saúde de Pattie Lou não começasse a deteriorar-se, deitando por terra todas as esperanças que ambos tinham. A mãe entretanto afastara-se, tendo ido telefonar ao marido que ficara em Nova Iorque; Melanie e Peter estavam sós.
— Mel, de verdade que correu tudo muito bem.
— Fico muito contente por isso — retorquiu ela.
— Também eu — afirmou Peter e olhou para o relógio de pulso. — Está na hora de fazer a ronda aos meus doentes e depois vou telefonar para o meu gabinete, mas por volta das três da tarde posso estar à sua disposição. O que é que acha dessa hora para a entrevista?
— Vou saber quanto tempo é que a equipe de filmagens precisa para chegar ao hospital — respondeu Melanie. Mantinham-se à espera e preparados havia dois dias. Estava quase certa de que não haveria qualquer impedimento. — Não me parece que haja problema algum. Onde é que pretende que a entrevista se faça?
— No meu gabinete? — sugeriu Peter depois de ter pensado por breves instantes.
— Boa idéia. O mais provável é eles chegarem por volta das duas, para instalarem antecipadamente o material.
— Quanto tempo é que calcula que será necessário? — continuou Peter.
— Tanto quanto estiver disposto a conceder-nos. Parece-lhe que duas horas seja demasiado? — perguntou Melanie.
— Por mim, está ótimo — anuiu ele.
Naquele momento Melanie lembrou-se de outra coisa.
— E quanto à Pattie Lou? Haverá alguma possibilidade de podermos filmá-la hoje, durante alguns minutos?
O Dr. Hallam franziu o sobrolho e começou a abanar a cabeça.
— Não me parece, Mel. Talvez amanhã, mas apenas durante dois minutos, isto é, se ela recuperar tão bem como julgo que acontecerá. Mas escusado será dizer que toda a equipe será obrigada a usar roupas esterilizadas, e deverá ser uma filmagem curta.
— Não vejo qualquer inconveniente nisso — assegurou Melanie, começando a tomar alguns apontamentos rápidos num bloco que trazia sempre dentro da mala de mão. Naquela mesma tarde, tencionava entrevistar Pearl Jones, em seguida Peter e na manhã seguinte seria a vez de Pattie Lou.
No dia seguinte, a equipe de filmagens também poderia filmar alguns dos aspectos gerais do hospital, o que concluiria o trabalho que os trouxera a Los Angeles. Ela poderia apanhar o último vôo da noite para Nova Iorque, no dia seguinte. Fim da história. E talvez dentro de um ou dois meses já lhes fosse possível realizarem uma entrevista mais alargada com Pattie Lou, para se inteirarem do seu estado de saúde e da forma como estava a correr a vida da criança. Ainda era um pouco prematuro estar a pensar nisso. O fulcro da reportagem poderia ser feito agora e teria um grande impacto quando fosse apresentado no noticiário da noite.
Nesse momento, Melanie olhou para Peter.
— Um dia destes, gostaria imenso de poder fazer uma reportagem especial acerca de si — disse ela.
Peter sorriu com uma certa benevolência, ainda satisfeito com o êxito da operação da criança naquele dia.
— Talvez isso se possa arranjar numa ocasião qualquer. Nunca fui muito apologista desse gênero de coisa — retorquiu ele.
— Na minha opinião, é importante que as pessoas tomem conhecimento de como é que se processam os transplantes e a cirurgia cardíaca de uma maneira geral — justificou Melanie.
— Também penso assim. No entanto, isso terá de ser feito da maneira adequada e na altura certa — acrescentou Peter. Melanie acenou com a cabeça num gesto de aquiescência e ele deu-lhe uma pequena palmada na mão, levantando-se. — Nesse caso, encontramo-nos no meu gabinete por volta das catorze horas, Mel.
— Até às quinze não teremos necessidade de incomodá-lo. Diga apenas à sua secretária qual o sítio onde deseja ser entrevistado e nós trataremos do resto.
— Ótimo — redargüiu ele, após o que se dirigiu apressadamente para a sala das enfermeiras, onde foi buscar alguns relatórios, e momentos mais tarde desaparecia.
Melanie ficou sozinha no corredor, a recordar a longa espera por que tinham passado, sentindo-se invadida por uma grande sensação de alívio. Ao fim de algum tempo, dirigiu-se para os telefones públicos e acenou a Pearl, a qual chorava e ria ao mesmo tempo, enquanto falava num outro telefone. Melanie combinou com a equipe de filmagens entrevistarem Pearl Jones às treze horas. Essa entrevista poderia ter lugar num canto do átrio do hospital, de forma a que ela não fosse forçada a afastar-se muito de Pattie Lou.
Melanie olhou para o relógio e, mentalmente, organizou todo o plano de trabalho. Às catorze horas, subiriam até ao complexo onde se situava o gabinete de Peter e preparariam tudo para a entrevista com ele. Não previa qualquer problema com as entrevistas, e começou a pensar em regressar na noite seguinte a casa, onde as gêmeas a esperavam. Fora uma boa história, e Melanie só estivera fora durante três dias, apesar de lhe parecer mais que tinham sido três semanas. Desceu as escadas e ficou à espera da equipe de filmagens. Os técnicos chegaram pontualmente e começaram a entrevistar Pearl Jones, que se mostrou profundamente agradecida e muitíssimo emocionada. A entrevista decorreu sem quaisquer incidentes, tendo sido delineada com antecedência por Melanie, enquanto comia à pressa um sanduíche e bebia uma chávena de chá.
Às duas da tarde foram para o gabinete de Peter e às quinze horas, com toda a pontualidade, já estavam preparados para a sua chegada. O gabinete que ele ocupava tinha duas paredes cobertas de livros de medicina do chão ao teto; as outras paredes eram revestidas por painéis de uma madeira de um tom rosado muito agradável. O médico encontrava-se sentado por detrás de uma mesa de madeira maciça e, mostrando-se entusiasmado, começou a falar com Melanie acerca das ciladas que existiam na sua profissão, dos perigos, dos receios que eram efetivamente uma realidade, assim como da esperança que também proporcionavam às pessoas. Foi bastante prudente na abordagem que fez dos riscos e das hipóteses de êxito, mas, uma vez que os doentes submetidos a transplantes não tinham qualquer outra esperança, os riscos que corriam quase parecia valerem a pena, e as poucas perspectivas de recuperação eram melhores do que nenhumas.
— E a respeito dos doentes que decidiram não aproveitar essas hipóteses? — Melanie falava numa voz suave, esperando que aquela pergunta não o afetasse muito, causando-lhe demasiado sofrimento.
— Esses morrem — respondeu Peter com tranqüilidade.
Fez-se uma breve pausa e, quando ele recomeçou a falar, referiu-se especificamente à intervenção cirúrgica a que Pattie Lou fora submetida. O cirurgião começou a desenhar alguns diagramas, a fim de poder explicar com maior clareza o processo utilizado, mostrando um domínio perfeito do método cirúrgico enquanto o descrevia tanto para a câmera como para a Mel.
Quando finalmente deram a entrevista por terminada, eram quase dezessete horas, e Peter pareceu ficar aliviado. O seu dia tinha sido bastante longo e ele sentia-se cansado, em parte devido àquela entrevista que se alongara por duas horas.
— A Mel faz o seu trabalho muito bem, minha amiga — afirmou ele.
Melanie gostou daquele elogio e sorriu quando os operadores de câmera desligaram as luzes. Estes também se sentiam satisfeitos com o que tinham conseguido. O médico expusera o assunto de forma adequada, e Melanie soube instintivamente que haviam conseguido exatamente aquilo de que ela necessitava para a reportagem a ser apresentada no noticiário. Teria a duração de quinze minutos e, naquele momento, ela sentia-se tão entusiasmada que mal podia esperar para ver a gravação que tinham em cassete. Peter Hallam fora bastante eloqüente e estivera à vontade.
— Eu também diria que o Peter faz isto muito bem. Esteve lindamente ao longo de toda a entrevista — disse Melanie.
— Estava com receio de usar uma linguagem demasiado técnica ou de me envolver em demasia no plano emocional.
— Peter franziu o sobrolho.
— Correu tudo lindamente — asseverou ela com um abanar de cabeça.
O que também se verificara durante a entrevista com Pearl Jones. A mulher chorara e rira, mas depois de se ter recomposto, havia começado a descrever o que fora a vida da criança ao longo dos últimos nove anos. A despeito desse aspecto negativo, se a intervenção cirúrgica viesse a ser um êxito tão grande como Peter antevira, os corações dos telespectadores seriam inegavelmente conquistados por Pattie Lou, tal como acontecera tanto a Melanie como a Peter Hallem. Fosse como fosse, era impossível resistir a qualquer criança doente, e Pattie Lou encontrava-se envolta numa espécie de luminosidade mágica, talvez por ter estado tão enferma durante tanto tempo, ou talvez porque aquela fosse a sua maneira de ser. Nos últimos nove anos, a criança fora acarinhada por inúmeras demonstrações de um amor constante.
Peter observava Melanie a dar instruções à sua equipe de filmagens; os seus olhos espelhavam a franca admiração que sentia por ela, à semelhança do que acontecia sempre que Mel olhava para o médico. A linha de pensamento deste foi interrompida pela chegada de uma enfermeira, a qual começou a falar com ele em voz baixa; Peter franziu o sobrolho no momento em que Mel se virou para ele; sentiu o coração a cair-lhe aos pés. Não foi capaz de resistir ao impulso de ir até junto deles para lhes perguntar se havia algum problema com o estado de saúde de Pattie Lou.
Peter abanou a cabeça com rapidez, contrariando aquele receio.
— Não, ela está ótima. Um dos meus colegas esteve com ela há uma hora. Isto é outra situação. Acabou de ser admitida mais uma doente que precisa de um transplante do coração. Trata-se de um caso urgente. Necessita de um doador neste momento e nós não temos forma de socorrê-la — esclareceu Peter. Melanie sentiu-se imediatamente envolvida naquele novo problema, que carecia de uma solução rápida. Ele olhou de relance para ela. — Tenho de ir embora. Então, num impulso, voltou-se para Mel. — Quer vir comigo?
— Ir consigo ver a doente?
Peter acenou rapidamente que sim e Melanie sentiu-se agradada por ele lhe ter perguntado.
— Com certeza, mas não explique quem é — respondeu o cirurgião. — Eu posso sempre justificar a sua presença, apresentando-a como fazendo parte do corpo clínico de um hospital da zona leste. — Peter esboçou um breve sorriso. — A menos que venha a ser reconhecida. Só não desejo que a família fique transtornada ou que possam pensar que eu estou a explorar o caso. — Aquela fora uma das razões que fizera com que ele se tivesse mantido desde sempre afastado de qualquer publicidade.
— Com certeza, isso não será problema. — Melanie agarrou na mala, disse algumas palavras ao seu pessoal de filmagens e, na companhia de Peter, dirigiu-se em passos rápidos para o automóvel. Escassos momentos depois, encontravam-se no complexo central do hospital, no sexto andar, a percorrer rapidamente o corredor em direção do quarto da nova doente.
Peter abriu a porta para que Melanie passasse e ela ficou espantada com o que viu. À sua frente, encontrava-se uma rapariga de vinte e nove anos, notavelmente bonita.
Os seus cabelos eram de um louro esmaecido e emolduravam uns olhos enormes e tristes. A pele era do branco-cremoso mais maravilhoso que Melanie alguma vez vira. A rapariga, à medida que cada um deles se apresentava, parecia absorver todas as feições daqueles rostos, como se tivesse de se recordar de cada par de olhos, do menor traço fisionômico. Começou a sorrir e, num ápice, o seu aspecto transformou-se, ficando muito mais jovem.
O coração de Melanie sentiu-se imediatamente conquistado por ela. O que é que aquela rapariga tão adorável estava a fazer naquele lugar tão aterrador? Alguém já lhe colocara uma espessa ligadura à volta do braço, de forma a cobrir a região onde haviam sido feitas as incisões que permitiam chegar às artérias de onde fora extraída uma enorme quantidade de sangue; o outro braço encontrava-se cheio de nódoas negras, devido à administração de uma solução por via intravenosa havia somente alguns dias. No entanto e de uma maneira estranha, uma pessoa esquecia-se de tudo isso ao ouvi-la falar. A rapariga tinha uma voz suave com uma cadência musical, apesar de Lhe ser difícil respirar, e parecera ter ficado satisfeita por conhecê-los, tendo mesmo dito algo engraçado a Melanie ao serem apresentadas, após o que continuou a conversar com Peter.
Inesperadamente, Mel deu consigo a rezar para que se pudesse encontrar com a maior brevidade possível um coração compatível com ela. Como é que todas aquelas pessoas poderiam estar numa situação tão desesperada? O que é que havia de errado no mundo que impiedosamente atingia toda aquela gente, que morria pouco a pouco por causa dos seus corações cada vez mais fracos, enquanto outras cavavam valas, escalavam montanhas, dançavam e faziam esqui? Por que razão é que tinham sido enganados quando ainda eram tão jovens? Aquilo não lhe parecia justo. Porém no rosto da rapariga não se via qualquer ressentimento. Chamava-se Marie Dupret e explicou que os seus pais eram franceses.
— É um nome maravilhoso — comentou Peter com um sorriso. — Mas mais do que isso, Marie é uma rapariga lindíssima.
— Muito obrigada, doutor Hallam.
Ao ouvir aquelas palavras, Melanie reparou que ela tinha um ligeiro sotaque característico das gentes do Sul.
Momentos mais tarde, Marie comentou que crescera em Nova Orleães, mas que vivia em Los Angeles há quase cinco anos.
— Gostaria muito de poder regressar um dia a Nova Orleães. — A maneira como ela falava era um encanto para o ouvido. Marie sorriu de novo a Peter. — Isto é, depois de o nosso bom médico me ter remendado. — Fitou-o com um olhar inquiridor, ao mesmo tempo em que o seu sorriso se desvanecia, deixando adivinhar a preocupação e o sofrimento que a invadiam. — Dentro de quanto tempo é que calcula que isso possa vir a acontecer?
Com a exceção de Deus, ninguém tinha resposta para aquela pergunta, tal como todos sabiam, incluindo a própria Marie.
— Esperemos que dentro em breve — respondeu Peter. O timbre da sua voz era animador, instilando confiança. Continuou a conversar tranquilizando-a e explicou-lhe também o que é que iriam fazer-lhe naquele mesmo dia.
Marie não parecia assustada com os incontáveis exames e análises a que teria de ser sujeita, mas continuava a insistir em regressar às questões de fundo, falando enquanto mantinha os seus enormes olhos azuis erguidos para o médico numa expressão de súplica, como se fosse uma condenada que aguardasse pelo fim da sua vida na cela que antecedia a morte, procurando perdão por um crime que não havia cometido.
— Durante os próximos dias, Marie, vai andar muito ocupada — disse Peter, sorrindo-lhe de novo e dando-lhe uma pancadinha amigável no braço. — Amanhã de manhã venho cá outra vez, para ver como é que está a passar e, se lhe ocorrer mais alguma coisa que queira perguntar-me poderá fazê-lo nessa altura.
Marie agradeceu-lhe e, acompanhado por Melanie, o médico saiu do quarto.
Uma vez mais, esta se sentiu perplexa ao verificar o terror que cada um daqueles doentes sentia. Perguntava a si mesma quem é que Marie teria que lhe segurasse na mão e pressentiu que aquela mulher jovem se encontrava sozinha na vida. Não fosse esse o caso, o marido ou a família não teriam estado presentes naquele momento? Em todos os outros quartos se viam cônjuges e familiares ou, na falta destes, pelo menos algum amigo. Não era o que se passava em relação à Marie, que parecia sentir-se tão dependente de Peter. Enquanto percorriam o corredor, Melanie teve a sensação de que haviam abandonado Marie. Quando desciam as escadas, ergueu o olhar para Peter, mostrando uma expressão de tristeza.
— O que é que irá acontecer-lhe?
— Temos de encontrar um doador o mais rapidamente possível — respondeu o médico, preocupado. Recordou-se então da presença de Melanie. — Estou satisfeito por ter acedido a vir comigo.
— Também eu — redargüiu ela. — A Marie parece ser uma rapariga tão simpática.
Peter concordou com um aceno. Para ele, isso se passava com todos os doentes, fossem estes homens, mulheres ou crianças. Estavam todos muito dependentes dele. Peter ter-se-ia assustado se começasse a pensar em demasia naquele assunto. Isso raramente acontecia. Fazia o que podia por essas pessoas embora, por vezes, apenas pudesse fazer muito pouco.
Durante os últimos dias, Melanie interrogara-se sobre como Peter conseguia suportar aquele fardo, tendo pela frente tantas vidas em perigo e tão pouca esperança nas mãos. Apesar disso, naquele homem não se lobrigava o mais ínfimo traço de desolação. Quase se assemelhava a um transmissor de esperança e, uma vez mais, Melanie apercebeu-se de quanto o admirava.
— Isto é que tem sido um dia, não é verdade, Mel? — perguntou Peter, sorrindo enquanto saíam do hospital, caminhando lado a lado.
— Não sei como é que consegue fazer isto dia após dia. Se estivesse no seu lugar, morreria ao fim de dois anos. Não — interrompeu-se Melanie, sorrindo-lhe — reduza isso para duas semanas. Meu Deus, Peter, a responsabilidade e a tensão! Vai do bloco operatório para junto da cama dos doentes, passando pelo seu gabinete, para depois recomeçar tudo de novo. Estamos a falar de pessoas que não sofrem apenas de joanetes. Cada uma é um caso de vida ou de morte. — tornou a lembrar-se de Marie Dupret. — Como aquela rapariga.
— É isso que faz com que a minha profissão valha a pena. Quando se consegue vencer. — Ambos pensaram ao mesmo tempo em Pattie Lou. O último boletim clínico do dia fora otimista.
— Sim, mas não deixa de ser incrivelmente duro para si — continuou ela. — E, para culminar tudo o mais, foi obrigado a conceder-me uma entrevista de duas horas.
— Isso foi uma coisa que me deu prazer — afirmou Peter com um sorriso; apesar daquelas palavras, parte da sua mente continuava concentrada na imagem de Marie. Examinara os relatórios médicos, os quais mostravam que os seus colegas estavam bem inteirados da situação clínica. O aspecto principal daquele caso dependia de encontrar ou não a tempo um doador; não havia nada que ele pudesse fazer quanto a isso, para além de rezar.
Melanie deu consigo a pensar também no mesmo assunto.
— Acha que será possível encontrar um doador para a Marie? — perguntou ela.
— Não sei qual a resposta a essa pergunta. Tenho esperanças de que sim. Ela não tem muito mais tempo — respondeu Peter, pensando que o mesmo se passava com todos os doentes na mesma situação, o que era o pior de tudo. Limitavam-se a aguardar que alguém morresse e lhes proporcionasse a bênção da vida, sem o que estariam condenados.
— Também espero que sim. — Mel respirou fundo, inalando o ar da primavera enquanto olhava para o automóvel que alugara. — Bem... — continuou ela, estendendo a mão.
— Imagino que por hoje é tudo. Pelo menos para mim. Depois de um dia como o de hoje, espero que você consiga descansar alguma coisa.
— É o que faço sempre quando chego a casa e vejo os meus filhos — disse Peter.
— Não sei como é que pode dizer uma coisa dessas, se eles forem minimamente parecidos com as minhas filhas — retorquiu Melanie e riu-se. — Regra geral, depois de um dia terrível de dezoito horas de trabalho cansativo, arrasto-me até a casa e a Val está dividida entre dois rapazes e tem impreterivelmente de discutir comigo o problema. A Jess tem um trabalho de ciências, com pelo menos cinqüenta páginas, que sou obrigada a ler nessa mesma noite. Ambas falam comigo ao mesmo tempo e eu explodo e depois me arrependo disso. Esta é a parte mais difícil da ausência de um pai. Não existe outra pessoa com quem se possa partilhar o fardo, independentemente do quanto nos sintamos extenuados quando chegamos a casa.
Peter sorriu. O que ela acabara de dizer era-lhe familiar.
— Existe um pouco de verdade no que está a dizer, Mel — retrucou ele. — Em minha casa, esses problemas são causados pela Pam e pelo Matt. O Mark já é bastante independente.
— Quantos anos é que ele tem? — perguntou Melanie.
— Quase dezoito — respondeu ele. De repente, ocorreu-lhe uma idéia. Peter olhou para Melanie e esboçou um sorriso a medo; ambos continuavam no parque de estacionamento. Passavam quinze minutos das seis da tarde. — E que tal se agora viesse comigo até minha casa? Ainda poderia nadar um pouco e depois jantaria conosco.
— Eu não posso incomodá-lo dessa forma. — Mas ficou sensibilizada com a atenção que ele lhe demonstrava.
— E por que não? Não é agradável regressar a um quarto de hotel, Mel. Por que não vem comigo? Não costumamos jantar tarde, o que lhe permitirá estar de volta ao seu hotel por volta das nove horas.
Melanie não sabia bem porque, mas sentia-se tentada a aceitar aquela sugestão.
— Não lhe parece que os seus filhos podem preferir ter a sua companhia só para eles? — indagou ela.
— Não. Acho que eles vão ficar entusiasmados por terem a oportunidade de conhecê-la.
— Não dê demasiada importância a isso — disse Melanie. Apesar de tudo, de repente a idéia parecia-lhe deveras tentadora. — De verdade que não se sente demasiado fatigado?
— De maneira nenhuma. Venha comigo, Mel, vai ver que será um jantar divertido.
— No que me diz respeito não tenho qualquer dúvida — retorquiu ela com um sorriso. — Devo ir atrás de si no meu carro?
— Por que é que não o deixa estacionado aqui? — sugeriu Peter.
— Nesse caso, depois será obrigado a trazer-me. Ou então posso chamar um táxi.
— Eu trago-a. Assim terei oportunidade de ver como é que a Pattie Lou está a recuperar.
— O Peter nunca pára? — Melanie sorriu e entrou para o automóvel, satisfeita.
— Não, e consigo acontece o mesmo. — O médico parecia tão satisfeito como ela, ao saírem do parque de estacionamento do hospital, seguindo em direção a Bel-Air.
Melanie recostou-se para trás e soltou um suspiro, quando atravessavam os enormes portões negros de ferro forjado que davam acesso à zona de Bel-Air.
— Esta área é tão agradável — comentou ela, tendo a sensação de que seguiam pelo campo, ao rodar naquela estrada com lombas e curvas inesperadas, e vendo de relance aquelas vivendas palacianas abrigadas dos olhares indiscretos.
— É essa a razão por que me agrada viver aqui. Não compreendo como é que é capaz de suportar Nova Iorque — retrucou Peter.
— O tipo de vida empolgante que se vive lá faz com que valha a pena — retorquiu Melanie com uma careta risonha.
— Essa existência agrada-lhe mesmo, Mel?
— Sim. Gosto muito da minha casa, do meu trabalho, da cidade e dos meus amigos. Sinto-me absolutamente conquistada por Nova Iorque e, na realidade, não me parece que conseguisse viver noutro lugar qualquer — afirmou Melanie.
Ao acabar de proferir aquelas palavras, apercebeu-se de repente de que, ao fim e ao cabo, a perspectiva de regressar a casa no dia seguinte não era assim tão má como temera. A cidade de Nova Iorque era onde ela pertencia, não obstante o quanto pudesse gostar de Los Angeles, e apesar de toda a admiração que sentia por Peter. Quando ele olhou uma vez mais de relance para ela, apercebeu-se de que a sua atitude era descontraída. Descreveu uma última curva para a esquerda, entrando numa alameda muito bem cuidada que dava acesso a uma vivenda bastante grande, de traços arquitetônicos maravilhosos ao estilo francês, rodeada por árvores bem podadas e por canteiros com flores. A imagem daquela casa assemelhava-se a algo reproduzido num postal de França. Melanie olhou em volta, surpreendida. Não era nada o gênero de casa que ela esperara que Peter tivesse. Imaginara que ele vivia numa habitação mais rústica ou mesmo do estilo das casas dos ranchos. No entanto, quando ele parou o automóvel, Melanie reparou que a vivenda que tinha à sua frente era na realidade muito elegante.
— É maravilhosa, Peter — disse ela, observando a mansarda sob o telhado na expectativa de avistar crianças à janela, mas não havia nenhuma à vista.
— Parece ter ficado surpreendida — observou ele, rindo-se.
— Não — retorquiu Mel, corando a contragosto. — Só que não tem muito a ver consigo.
— Inicialmente não tinha — confirmou Peter, sorrindo de novo. — A Anne foi a responsável pela arquitetura da casa. Foi construída precisamente antes do nascimento do Matthew.
— Não há dúvida de que é uma bela mansão, Peter — continuou ela, chegando à conclusão que descobrira uma outra faceta de Peter.
— Muito bem, vamos entrar — disse ele e abriu a porta do automóvel. — Entremos. Quero apresentar-lhe os miúdos. O mais provável é estarem todos na piscina, acompanhados de muitos amigos. Prepare-se.
Ambos saíram do automóvel, e Melanie olhou à sua volta. Era tudo muito diferente da casa de cidade onde ela habitava em Nova Iorque; apesar disso, era bastante interessante poder ver como é que ele vivia. Seguiu atrás de Peter para o interior da vivenda. Estava curiosa perante a perspectiva de conhecer os filhos do Dr. Hallam, perguntando a si própria se seriam acentuadamente diferentes das gêmeas.
Peter meteu a chave à porta, abriu-a e entrou num vestíbulo cujo chão era revestido a mármore negro e branco, formando um padrão clássico, em forma de diamante. Nas paredes viam-se candelabros fixos de cristal. Uma das peças de mobiliário era um console de mármore negro, com pernas douradas estilo Luís XVI, sobre a qual fora colocada uma jarra de cristal repleta de flores acabadas de colher e de onde emanava uma fragrância primaveril.
Melanie observava tudo ao seu redor. Tudo aquilo era completamente diverso do que ela esperara encontrar. Peter parecia ser tão descontraído e despretensioso que nunca lhe passara pela cabeça que ele pudesse viver numa casa recheada de peças de mobiliário francês antigo e requintado. Mas essa era a realidade. Não que se tratasse de opulência vulgar; todavia, era bastante evidente que tudo aquilo fora muito dispendioso.
Em seguida, Melanie lançou uma espreitadela à sala de estar que também se encontrava mobiliada num estilo semelhante. Os tecidos delicados com que os cadeirões eram forrados consistiam, na sua maior parte, de brocados em tons de bege. As paredes estavam primorosamente pintadas em várias tonalidades de creme, sendo os frisos do teto em tons mais claros e com motivos intrincados, realçados pela pintura em bege e branco. Melanie continuava desconcertada, enquanto examinava tudo ao seu redor.
Peter conduziu-a para o seu escritório, convidando-a a sentar-se. Aquela sala era decorada em vermelhos, profundos e ricos, com cadeiras antigas estilo inglês, vendo-se ainda um sofá comprido de couro; nas paredes estavam pendurados alguns quadros que reproduziam cenas de caça emoldurados na maior perfeição.
— Parece muito surpreendida, Mel — comentou Peter que se mostrava bastante divertido.
Melanie abanou a cabeça e soltou uma risada.
— Não se trata disso — disse ela. — O que acontece é que eu o imaginei a viver num ambiente muito diferente deste. Mas é uma casa magnífica.
— A Anne freqüentou a Sorbonne durante dois anos e, depois disso, permaneceu em França mais outros dois anos. Na minha opinião, isso deixou uma marca permanente nos seus gostos. — Peter olhou em volta como se estivesse a ver a mulher de novo. — No entanto, não posso queixar-me. A decoração dos andares de cima é menos formal. Daqui a pouco mostro-lhe as outras dependências. — Sentou-se à sua mesa de trabalho e começou a ler as mensagens escritas num bloco de apontamentos, girou a cadeira para ficar de frente para ela e, repentinamente, deu uma palmada na testa como se lhe houvesse ocorrido algo. — Que diabo! Esqueci-me de lhe sugerir que passasse pelo seu hotel, para ir buscar um fato de banho. — Então, observou Melanie de olhar semicerrado. — Talvez a Pam possa dar uma ajuda. Gostaria de ir nadar?
Para Melanie tudo aquilo era espantoso. Haviam passado todo o dia no hospital, o qual terminara numa entrevista. Peter operara Pattie Lou e, subitamente, ali se encontravam os dois a contemplar a hipótese de irem nadar, como se não tivessem feito coisa nenhuma durante todo o dia. Era o suficiente para confundir as idéias de qualquer pessoa, mas tudo parecia normal naquela situação. Talvez fosse aquilo que lhe permitia sobreviver, pensou Melanie.
Peter levantou-se da cadeira e levou-a até um pátio revestido de pedra, à volta de uma grande piscina oval; Mel sentiu-se mais à vontade naquele lugar. Havia pelo menos uma dúzia de adolescentes, e um rapazinho todo molhado e a pingar, a correr. A gritaria que faziam era ensurdecedora. Estranhamente, ela não se apercebera daquele barulho enquanto tinha estado dentro de casa. Riu-se ao observar as brincadeiras com que eles se entretinham. Os rapazes exibiam-se, empurrando-se para dentro de água, onde jogavam pólo aquático numa das extremidades, enquanto na outra se encavalitavam nos ombros uns dos outros, acabando por caírem na água. Várias raparigas de formas generosas observavam a cena. Peter estava a alguma distância da água, mas foi salpicado enquanto batia palmas, sem que ninguém lhe prestasse a mínima atenção, até que, de súbito, o rapazinho correu para ele e rodeou-lhe as pernas com os braços, deixando marcas molhadas nas calças; Peter baixou o olhar com um sorriso rasgado.
— Olá, papai. Vem para dentro da piscina.
— Olá, Matt. Posso mudar de roupa primeiro? — perguntou Peter.
— Com certeza. — Pai e filho trocaram um olhar afetuoso. Ele era um rapazinho adorável, de aspecto traquinas, com o cabelo louro aclarado pelo sol e sem os dentes da frente.
— Gostaria de te apresentar uma amiga — continuou Peter, voltando-se para Melanie, que se aproximou dos dois. O pequenito era a cara chapada do pai e, quando ele sorriu, viu que lhe tinham caído os dois dentes do meio. Era a criança mais engraçada que alguma vez conhecera. — Matthew, esta é a minha amiga Melanie Adams. Mel, este é o Matt. — A criança franziu o sobrolho e Peter fez uma careta risonha. — Peço desculpa, Matthew Hallam — corrigiu ele.
— Muito prazer — disse o rapazinho, estendendo-lhe uma pequena mão molhada, que Mel apertou com toda a formalidade, recordando-se por breves instantes de como é que as gêmeas haviam sido quando tinham aquela idade. Isso acontecera havia dez anos, apesar de em certas ocasiões lhe parecer que apenas passara um momento.
— Onde é que está a tua irmã, Matt? — perguntou Peter, olhando em volta. À primeira vista, tinha a impressão de que via somente os amigos de Mark em volta da piscina, mas ainda não fora capaz de atrair a atenção do filho mais velho, o qual naquele momento atirava duas raparigas para dentro da água, após o que se pôs às cavalitas de um amigo. Todos eles se divertiam à grande, enquanto Mel observava as suas brincadeiras.
— Ela foi para o quarto — informou Matt com um olhar de desprezo no rosto. — O mais certo é estar a falar ao telefone.
— Num dia como o de hoje? — perguntou Peter, surpreendido. — A tua irmã tem estado dentro de casa o dia todo?
— A maior parte do tempo — retorquiu o rapazinho a revirar os olhos, enquanto olhava para o pai e para Melanie.
— Ela é tão parva. — Peter sabia que ele passava alguns maus bocados por causa de Pam. Em determinadas alturas todos eles passavam pelo mesmo; no entanto, a filha estava a atravessar um período difícil, particularmente devido ao fato de viver no seio de uma família formada na sua totalidade, com a exceção dela mesma, por homens.
— Vou até lá investigar o que é que ela está a fazer — disse Peter, olhando para o filho. — Por favor, anda com cuidado à volta da piscina.
— Eu tenho cautela — garantiu o garoto.
— Onde é que está Mistress Hahn? — acrescentou Peter.
— Foi agora mesmo lá dentro, mas eu estou bem, papai. A sério.
Como se desejasse ilustrar a sua afirmação, Matt começou a correr e deu um salto para dentro da piscina, salpicando os dois dos pés à cabeça. Melanie deu um salto para trás e começou a rir a bandeiras despregadas, enquanto Peter a fitava com uma expressão de quem pedia desculpa, e Matt vinha à superfície da água.
— Matthew, queres fazer o favor de não... — Mas a pequena cabeça submergiu de novo na água da piscina. O rapazinho começou a nadar debaixo da água como se fosse um peixe e dirigiu-se para o local onde os outros se encontravam, exatamente no momento em que Mark reparou na presença do pai e de Melanie e soltou um grito, acenando-lhes. Tinha a constituição física do pai, a mesma estatura, os mesmos membros alongados e a mesma graciosidade.
— Olá, pai!
Peter apontou para o filho mais novo que continuava a nadar na direção de Mark; o rapaz mais velho acenou com a cabeça num gesto de compreensão, prendendo a criança nos braços quando esta veio à tona da água. Disse-lhe qualquer coisa e afastou-o do local onde os amigos continuavam a jogar, para que não se magoasse.
Ao ver aquilo, Peter concluiu que estava tudo sob controle e ambos se dirigiram para o interior da casa.
— Já está toda encharcada?
De fato assim era, mas ela não se incomodava com isso. Era um alívio poder esquecer-se da seriedade que pontuara a primeira parte daquele dia.
— Isto já seca.
— Às vezes arrependo-me de ter feito o raio daquela piscina. Metade da vizinhança passa os seus fins-de-semana aqui.
— Deve ser ótimo para as crianças.
— E é — retorquiu Peter com um aceno de cabeça. — Mas é raro eu conseguir nadar um pouco em paz e sossego, exceto quando eles estão na escola. Quando tenho tempo, de vez em quando venho a casa almoçar.
— Quando é que isso acontece? — perguntou Melanie num tom de brincadeira. Inesperadamente, todos pareciam muito bem-dispostos.
— Cerca de uma vez por ano — respondeu Peter com uma gargalhada.
— Foi o que eu pensei — retorquiu ela. Então, ocorreu-lhe à mente a imagem de Matt com o seu sorriso desdentado. — Acho que estou apaixonada pelo seu filho mais novo.
— Ele é uma criança estupenda — retrucou Peter, satisfeito. Depois lembrou-se do filho mais velho. — O mesmo acontece com o Mark. É um rapaz tão responsável que por vezes me sinto assustado.
— Eu também tenho uma que é assim. A Jessica, a gêmea mais velha.
— Qual das duas é? — perguntou Peter, intrigado. — A que se parece consigo?
— Como é que se lembra disso? — interrogou ela com uma expressão de surpresa.
— Eu recordo-me de tudo o que me dizem, Mel. Isso é da maior importância na minha profissão. Um pequeno pormenor esquecido, uma pista ou uma indicação, tudo ajuda quando uma pessoa é constantemente forçada a tentar derrotar a morte. Não me posso dar ao luxo de esquecer o que quer que seja. — Era a primeira vez que admitira abertamente a existência da sua extraordinária capacidade profissional e Melanie fitou-o com interesse, enquanto seguia atrás dele para dentro de casa, para uma sala espaçosa banhada de sol, mobiliada com grandes cadeirões de vime branco, sofás do mesmo material, uma aparelhagem estereofônica e um televisor com um ecrã enorme. Naquela sala, também havia algumas palmeiras com cerca de três metros de altura, cujas copas frondosas tocavam no teto. Dava a impressão de ser uma sala bastante aprazível, onde uma pessoa se pudesse sentar num dia soalheiro.
Naquela dependência, Melanie deparou inesperadamente com meia dúzia de fotografias de Anne espalhadas por vários sítios, dentro de molduras prateadas, a jogar tênis, junto de Peter em frente ao Museu do Louvre, com um bebê ao colo, a posar com os filhos todos junto de uma árvore de Natal. O tempo parecia ter parado e Melanie ficou fascinada pelo rosto dela, pelos seus cabelos louros e por aqueles enormes olhos azuis. Anne fora uma mulher atraente, com um corpo atlético, adelgaçado e alto. Em certos aspectos, ela e Peter assemelhavam-se. A julgar por aquelas fotografias, ela parecia ser a parceira ideal para ele. Bruscamente, apercebeu-se de que Peter permanecia ao seu lado, a olhar também para uma das fotografias.
— Por vezes, é difícil acreditar que ela desapareceu — disse num tom de voz onde se adivinhava uma ternura enorme.
— Imagino — comentou Melanie, sem saber bem o que mais haveria de dizer, mas continuou: — Todavia, de certa forma ela continua a viver no seu coração, nos seus pensamentos e através dos filhos que deixou. — Tanto um como o outro sabiam que aquilo não era a mesma coisa, mas era tudo o que restara de Anne. Isso e aquela casa que fora decorada tanto a seu gosto. Melanie inspecionou de novo a sala onde ambos se encontravam; contrastava bastante com a formalidade da sala de estar e do escritório de Peter, que vira inicialmente. — Para que é que utiliza esta sala, Peter? — perguntou, curiosa. Aquele espaço era bastante feminino.
— Os miúdos vêm muitas vezes para aqui e, apesar da decoração ser na sua maior parte feita em tons de branco, aqui não podem fazer muitos estragos — respondeu ele. Naquela altura, Melanie reparou numa secretária de vime colocada de frente para a piscina. — A Anne costumava vir para aqui muitas vezes. Quando estou em casa, passo a maior parte do tempo no escritório ou lá em cima. — Com estas palavras, Peter fez um gesto na direção do vestíbulo. — Venha comigo que eu mostro-lhe o resto da casa. Vamos ver se conseguimos descobrir a Pamela.
No andar de cima, uma vez mais, todas as peças de mobiliário eram formais e no estilo francês. O chão dos corredores era em granito bege claro e nas extremidades haviam sido dispostas credências de um tom que se coadunava com a decoração; dos tetos pendiam uns candelabros maravilhosos de cobre, também de origem francesa. Naquele andar havia ainda uma outra sala de estar menor, mas igualmente formal, decorada em tons suaves de azul. Viam-se veludos e sedas, assim como uma lareira de mármore, enquanto nas paredes havia alguns candeeiros fixos e do teto pendia um lustre de cristal. Os cortinados eram de seda azul-pálida com orlas amarelo-claras e azuis e estavam apanhados, mantendo-se presos à parede por peças de latão, de forma a permitir que se desfrutasse de uma vista da piscina. Mais à frente, existia um pequeno escritório decorado em rosa-velho, mas Peter franziu a testa quando passaram pela porta daquela dependência, o que fez que Melanie pensasse imediatamente que aquela sala não era utilizada. Não apenas isso, mas também que pertencera a Anne.
A sala seguinte era uma biblioteca decorada com o maior bom gosto em verde-escuro, a qual era obviamente a sala de estar de Peter. Viam-se paredes e mais paredes pejadas de livros, e sobre a mesa havia uma pequena montanha caótica formada por vários papéis. Numa das paredes estava pendurado um quadro a óleo, que retratava Anne. Existiam ainda umas portas duplas de correr que davam acesso ao quarto de casal, onde Peter dormia agora sozinho. Era todo decorado com sedas de tom bege, cômodas francesas, um bonito sofá comprido, vendo-se ainda o mesmo tipo de candeeiros de parede e cortinados fartos; toda aquela decoração era complementada por outro lustre suntuoso. Havia algo estranho que impregnava aquele quarto e que fazia com que uma pessoa tivesse vontade de se despir para dançar num desafio a toda a formalidade. Tudo aquilo era excessivo, apesar de bonito, e quanto mais Melanie observava, mais se convencia de que aquilo não tinha muito a ver com a personalidade de Peter.
Subiram outro lanço de escadas e chegaram a um piso onde tudo era alegre e colorido, e as portas abertas deixavam ver três quartos espaçosos e soalheiros que obviamente pertenciam a crianças. No chão do de Matthew, havia brinquedos desarrumados e espalhados, enquanto as portas entreabertas do de Mark mostravam um interior onde imperava o caos; a terceira porta mantinha-se encostada e tudo o que Melanie conseguia lobrigar era uma enorme cama branca encimada por um dossel, ao lado da qual se viam no chão as costas de uma mulher deitada de lado. Ao ouvir o som dos passos deles a percorrer o corredor, ela voltou-se e pôs-se de pé, murmurando umas palavras ininteligíveis ao telefone, após o que desligou o aparelho. Melanie ficou admirada ao verificar que ela era alta e parecia bastante mais velha. Se aquela era a filha do meio, era difícil acreditar que ainda não tivesse catorze anos. Era alta, magra e loura, com madeixas da cor do trigo, à semelhança de Valerie, e uns olhos enormes azuis que tinham uma expressão sonhadora. Mas, acima de tudo, era muito parecida com a mãe que Melanie vira nas fotografias.
— O que é que estás a fazer cá dentro? — perguntou Peter, procurando os olhos da filha; Mel pressentiu a tensão que existia entre ambos.
— Precisava telefonar a uma amiga.
— Não te podias ter servido do telefone da piscina?
Pamela não respondeu ao pai de imediato; depois encolheu os ombros.
— E então? — perguntou ela.
Peter ignorou o comentário e voltou-se para Melanie.
— Gostaria de lhe apresentar a minha filha, Pam. Pamela, esta é Melanie Adams, a senhora de Nova Iorque que apresenta o noticiário e de quem eu te falei.
— Eu sei quem ela é — retorquiu Pamela sem que de início estendesse a mão, mas Melanie fê-lo e a rapariga acabou por lha apertar.
Perante aquela atitude da filha, o pai começara a fervilhar por dentro. Nunca desejara que a relação de ambos fosse assim, mas era o que acontecia sempre. A filha fazia invariavelmente qualquer coisa que o aborrecia, sendo grosseira para com os seus amigos, fazendo sempre ponto de honra em não cooperar, mesmo quando não existia justificação para tal. Por que, com todos os diabos, por que? Todos eles se sentiam tristes devido à morte de Anne, mas o que é que a levaria a descarregar para cima do pai? Já há ano e meio que Pamela se comportava assim e, atualmente, estava ainda pior do que antes. Peter dizia a si mesmo que aquela atitude de desafio se devia à idade, que era uma fase passageira, embora por vezes duvidasse disso.
— Será que podias emprestar um fato de banho à Melanie, Pam? Ela deixou o seu no hotel.
Uma vez mais, a rapariga hesitou durante uma fração de segundos.
— Com certeza. Acho que posso. Ela é... — Hesitou na busca da palavra adequada; sem dúvida que Mel não tinha um corpo avantajado; no entanto, não era tão esguia como Pamela. — Ela é maior do que eu — prosseguiu Pam, apercebendo-se de algo mais. O olhar que o pai e Melanie trocaram não lhe agradou. Ou, para se ser mais exato, desagradou-lhe acintosamente a maneira como o pai tinha olhado para Mel.
Esta compreendeu o que se estava a passar e sorriu com suavidade para a rapariga.
— Se preferes não me emprestar o fato de banho não existe qualquer problema.
— Não, por mim estou de acordo — assegurou Pam enquanto os seus olhos perscrutavam o rosto de Mel. — Parece diferente da imagem que mostra na televisão. — Nos olhos dela não se via o mínimo vestígio de um sorriso.
— Ai sim? — perguntou Melanie, esboçando um sorriso perante aquela jovem ligeiramente desconcertante, mas muito atraente. Não era nada parecida com Peter e a sua fisionomia continuava a mostrar uma infantilidade indefinível, apesar das pernas compridas, do busto desenvolvido e de um corpo que já a despojara da sua idade cronológica. — As minhas filhas estão sempre a dizer-me que eu pareço mais velha na televisão.
— Sim. É mais ou menos isso — concordou Pamela. — Fica com um aspecto mais sério.
— Imagino que seja isso que elas pretendem dizer — acrescentou Melanie.
Os três permaneciam de pé naquele bonito quarto branco, e Pamela não despregava os olhos de Melanie, como se estivesse à procura no seu rosto de uma resposta a qualquer pergunta por formular.
— Que idade têm as suas filhas?
— Em julho vão fazer dezesseis anos.
— As duas na mesma data? — perguntou Pam, confusa.
— São gêmeas — respondeu Melanie, com um sorriso nos lábios.
— Ah, são? Isso é giro! São parecidas uma com a outra? — indagou Pamela.
— De maneira nenhuma. São bivitelinas.
— Pensava que isso se aplicava somente no caso de animais — continuou a rapariga.
Melanie sorriu de novo, e Pamela corou.
— Isso significa que não são gêmeas idênticas ou univitelinas, mas o termo é confuso — acrescentou Mel.
— Como é que elas são? — Pam parecia fascinada pelas gêmeas de Melanie.
— São iguais a todas as raparigas de dezesseis anos — respondeu ela, rindo-se. — São elas que me mantêm na linha. Uma é ruiva tal como eu, enquanto a outra tem cabelos louros. Chamam-se Jessica e Valerie, ambas adoram ir a festas e têm montes de amigos e amigas.
— Onde é que vive? — continuou a rapariga.
Peter observava atentamente o diálogo que as duas mantinham, sem dizer fosse o que fosse.
— Em Nova Iorque, numa pequena casa de cidade. — Naquela altura, Melanie sorriu a Peter. — É muito diferente desta. — Em seguida, voltou a concentrar a sua atenção em Pam. — Tu tens uma casa maravilhosa, e deve ser muito agradável ter uma piscina.
— É bom — retorquiu Pam, mostrando-se pouco entusiasmada e encolhendo os ombros, num gesto de indiferença. — Ou está cheia dos amigos detestáveis do meu irmão ou, então, o Matthew entretém-se a fazer xixi para dentro da água. — Ela parecia aborrecida e Melanie riu-se.
No entanto, Peter não parecia nada satisfeito.
— Pam! Não devias dizer isso e, além do mais, não é verdade.
— É sim. Há uma hora que o fedelho voltou a fazer o mesmo, assim que Mistress Hahn veio para dentro de casa. E precisamente da borda da piscina. Pelo menos podia fazer isso enquanto está dentro de água a nadar.
Melanie foi forçada a conter uma gargalhada.
— Vou falar com o Matt sobre esse assunto — retorquiu Peter, corado.
— O mais provável é os amigos do Mark fazerem a mesma coisa — continuou Pamela. Era evidente que não gostava muito dos dois irmãos. Pouco depois, foi à procura de um fato de banho para emprestar a Mel, regressando com um branco, que calculou lhe pudesse servir.
Melanie agradeceu-lhe e olhou de novo em volta.
— Tu tens um quarto adorável, Pam.
— Foi a minha mãe que o decorou, precisamente antes de... — Faltaram-lhe as palavras; no seu olhar via-se uma grande tristeza. Ao fim de pouco tempo, Pamela fitou o pai com uma expressão de desafio. — É a única dependência nesta casa que é toda minha.
Melanie sentiu pena da rapariga. Esta parecia muito infeliz e às avessas com os que a rodeavam. Não era capaz de lhes dar a perceber o seu sofrimento, apenas a raiva que a invadia, como se a família fosse responsável por lhe terem arrancado a mãe.
— Deve ser muito agradável poderes partilhar este quarto com as tuas amigas — observou Melanie, pensando nas filhas, assim como nas amigas que costumavam sentar-se no chão do quarto, a ouvir discos e a falar de rapazes, rindo-se e trocando segredos umas com as outras, segredos que as filhas acabavam sempre por partilhar com ela.
Parecia serem bastante diferentes daquela rapariga hostil e um pouco desajeitada, com corpo de mulher e a mente de criança. Ela atravessava um período difícil e Mel apercebeu-se de que Peter tinha bastante com que se preocupar. Não admirava pois que ele tentasse chegar cedo a casa todos os dias. Com uma criança de seis anos carente de amor, um jovem quase adulto que era preciso vigiar e uma adolescente tão infeliz, a casa necessitava de algo mais do que os cuidados de uma governanta; também precisava de um pai e de uma mãe. Melanie compreendia agora por que motivo Peter sentia uma necessidade tão desesperada de estar com os filhos e qual a razão que o levava a pensar que por vezes não se encontrava à altura daquela tarefa. Não que fosse esse o caso, mas o fato era que os três filhos tinham uma enorme necessidade do pai, e também de algo mais, pelo menos no que dizia respeito àquela criança. Melanie deu consigo a desejar estender-lhe a mão, abraçá-la com força e poder dizer-lhe que tudo se haveria de compor.
Como se adivinhasse os pensamentos de Melanie, Pam deu um passo atrás, afastando-se dela.
— Ora bem, então encontramo-nos lá em baixo daqui a pouco. — Era a maneira de a jovem os convidar a deixarem-na sozinha.
Peter encaminhou-se com lentidão para a porta do quarto.
— Também desces, Pam? — perguntou.
— Sim — respondeu a filha, algo relutante.
— Não me parece acertado que passes a tarde toda encafuada no teu quarto — disse o pai com firmeza, mas ela parecia inclinada a discutir com ele. Melanie não lhe invejava o papel que era obrigado a desempenhar com a filha. Não era fácil lidar com aquela rapariga, pelo menos naquela altura.
— Vais para baixo dentro em pouco?
— Sim! — respondeu Pamela com uma atitude ainda mais beligerante do que antes.
Melanie e Peter saíram do quarto e ela seguiu-o, descendo as escadas. Junto ao seu quarto, Peter abriu a porta que dava para um bonito quarto de hóspedes em tons de azul e branco.
— Pode mudar de roupa aqui, Mel.
Peter não fez qualquer comentário a respeito da atitude de Pamela e, dez minutos mais tarde, quando Melanie saiu do quarto, ele parecia mais descontraído. Levou-a até a sala com o mobiliário de vime pintado a branco. Oculto por umas portas brancas lacadas, havia um frigorífico de onde ele tirou duas latas de cerveja, oferecendo uma delas a Melanie, enquanto com a outra mão retirava dois copos de uma prateleira e lhe indicava, com um gesto, que se sentasse.
— Já agora esperamos mais alguns minutos até que os miúdos se sintam cansados.
Melanie olhou através da janela e verificou que os adolescentes já tinham começado a abandonar a piscina, reparando então no quanto Peter era bem-parecido, mesmo descalço, com calções de banho azul-escuros e uma T-shirt de algodão. Não tinha qualquer semelhança com o homem que ela entrevistara ao longo dos últimos dois dias. Dava a impressão de ser uma pessoa completamente diferente. Um comum mortal, pensou Melanie, sorrindo enquanto ele a observava. Pouco depois, Peter adquiriu uma expressão de seriedade ao pensar na criança que deixara no andar de cima.
— A Pamela é uma rapariga difícil — disse. — Enquanto a mãe foi viva, ela era de trato dócil. Mas agora, umas vezes é muito possessiva em relação a mim, e outras parece que nos odeia a todos. Acha que ninguém consegue compreender o que ela está a sentir e, atualmente, comporta-se como se estivesse a viver em pleno campo inimigo. — Enquanto bebia a sua cerveja, Peter suspirou com um sorriso fatigado.
— Às vezes, também não é fácil para os irmãos.
— Acho é que ela precisa de uma grande dose de amor e carinho de todos vocês e em especial de si.
— Eu sei. Mas ela culpa-nos de tudo e mais alguma coisa. E, bem. — Peter interrompeu-se, algo constrangido. — Por vezes, a minha filha torna-se uma pessoa difícil de amar. Eu compreendo bem os motivos que a levam a proceder dessa maneira, mas os rapazes não são capazes de entender. Pelo menos, nem sempre. — Desde que se conheciam era a primeira vez que Peter admitia perante Melanie o problema que a filha constituía para si.
— Ela há de mudar — retorquiu ela. — Dê-lhe tempo.
— Já passaram quase dois anos — replicou ele com um suspiro de amargura.
Melanie não ousou dizer-lhe o que é que lhe ia no pensamento. Haviam decorrido quase dois anos, no entanto, as fotografias de Anne continuavam espalhadas pela casa, bem à vista. Nada naquela casa fora tocado, desde que Anne morrera, e o próprio Peter comportava-se como se ela tivesse falecido naquela mesma semana. Como é que poderia esperar que a criança se ajustasse à realidade, se ele próprio o não tinha feito? Continuava a reprovar-se por não ter sido capaz de convencer Anne, como se agora alguma coisa pudesse ser alterada.
— Eu sei. Tem toda a razão. Eu também continuo demasiado apegado ao passado.
— Talvez quando conseguir fechar a porta do passado, ela também faça o mesmo — disse Melanie num tom de voz suave e, sem que ele se apercebesse, os seus olhos desviaram-se para a fotografia mais próxima de Anne. De súbito, Mel perguntou algo que tinha prometido a si mesma não dizer. — Por que motivo é que não muda de casa?
— Sair daqui? — replicou Peter, chocado. — Por que motivo?
— Para que possam começar de novo. Poderia ser um alívio para todos — respondeu ela.
Peter foi rápido a abanar a cabeça, repudiando aquela sugestão.
— Não me parece que isso seja boa idéia — contrapôs ele. — Calculo que seria mais perturbador do que útil, quero dizer, mudarmo-nos para uma casa nova. Pelo menos, aqui, sentimo-nos todos bem e estamos felizes.
— Estarão? — perguntou Mel não parecendo muito convencida e compreendendo que ele se mantinha preso ao passado, da mesma forma que Pamela. Perguntou a si própria se os dois rapazes sentiriam a mesma coisa; nesse momento, entrou na sala uma mulher forte, de uniforme branco, que ficou a olhar para os dois e, muito em especial, para Melanie. Os seus traços fisionômicos mostravam a passagem do tempo, e tinha as mãos engelhadas por muitos anos de trabalho duro. Contudo, os seus olhos eram brilhantes e vivos, parecendo abarcar tudo de uma só vez.
— Boa tarde, senhor doutor. — Dava a impressão de que dizia a palavra doutor como se estivesse a dizer Deus.
Melanie sorriu, compreendendo imediatamente de quem é que se tratava, e Peter levantou-se para fazer as apresentações. Ela era a governanta indispensável de quem ele falara antes, a preciosa Mrs. Hahn, que apertou a mão de Melanie de forma quase brutal enquanto examinava aquela ruiva bonita, de fato de banho emprestado, e que ela reconheceu de imediato pertencer a Pamela.
A governanta sabia tudo o que se passava naquela casa, quem lá ia, quem saía, onde iam e por que razão. Era especialmente cuidadosa no que dizia respeito à Pamela. Já tinha havido problemas que bastassem com a jovem no ano em que a mãe morrera, pois ela alimentara-se muito mal durante seis meses, e depois vomitava após cada refeição. Porém, pelo menos naquele momento, o problema encontrava-se sob controle e Pam estava muito melhor do que antes. No entanto, Hilda Hahn sabia que a rapariga tinha passado por um período bastante difícil e que precisava da vigilância de uma mulher, o que era uma das razões por que Mrs. Hahn se encontrava naquela casa.
A governanta observou Melanie com toda a atenção e concluiu que esta parecia ser simpática. Sabia quem era Melanie, e que andava a fazer uma reportagem acerca do trabalho do médico. Esperara que ela fosse arrogante, mas não parecia ser esse o caso.
— Tenho muito prazer em conhecê-la, minha senhora.
A governanta mostrava-se formal e mantinha os lábios cerrados, sem retribuir o sorriso de Melanie, que esteve prestes a soltar uma gargalhada quando comparou mentalmente aquela governanta a Raquel. Na realidade, nas casas de ambos, quase tudo era diferente, desde as empregadas até a decoração, passando pelos respectivos filhos; porém, apesar de todos esses contrastes, Melanie tinha a sensação de que ambos tinham muito em comum.
— Posso servir-lhe um chá gelado? — perguntou Mrs. Hahn, olhando com reprovação para as cervejas, o que fez com que Melanie se sentisse uma criança travessa.
— Não, muito obrigada — respondeu, sorrindo de novo, o que não produziu o mínimo efeito na mulher.
Com um breve acenar de cabeça, Hilda Hahn retirou-se para os seus domínios atrás da porta de mola que dava acesso à cozinha, à despensa e à saleta onde a família costumava tomar o pequeno-almoço, e ao seu pequeno apartamento nas traseiras. Sentia-se extremamente confortável naquele lar. Quando Mrs. Hallam mandara construir a casa, prometera a Hilda que ela haveria de ter as suas próprias acomodações, e cumprira. Mrs. Hallam fora uma patroa muito boa, costumava dizer a governanta muitas vezes, e tornou a repeti-lo mais tarde, quando serviu o jantar, de forma a que Melanie a ouvisse.
Mel reparou no brilho que inundava os olhos de Pam sempre que Mrs. Hahn mencionava o nome da mãe. Dava a impressão de que todos se empenhavam numa luta renhida para recuperar a presença da falecida, apesar de já terem decorrido quase dois anos sobre a sua morte. Uma pessoa quase ficava com vontade de lhes prestar o favor de arrumar as fotografias, fazer-lhes as malas e mudá-los para outra casa. Continuavam todos a demonstrar uma tão grande devoção pela falecida, como se aguardassem a cada minuto que ela regressasse a casa, e isso deu-lhe vontade de lhes dizer que ela jamais haveria de voltar. Cada um dos membros daquela família devia dar continuidade às suas vidas.
Os dois rapazes, pelo menos aparentemente, pareciam mais ajustados à morte da mãe. Matthew ainda era tão pequeno na altura em que ela morrera que as recordações que ainda mantinha da sua presença já tinham começado a desvanecer-se, pelo que não lhe foi difícil trepar de boa vontade para o colo de Melanie depois de terem nadado juntos; ela falou-lhe das gêmeas. À semelhança de Pam, o rapazinho mostrou-se fascinado com a idéia de existirem irmãs gêmeas, querendo saber como é que elas eram. Por seu lado, Mark parecia ser um adolescente esperto, de dezessete anos, e de trato fácil. Nos seus olhos havia uma expressão de sabedoria, talvez demasiada para a sua idade; no entanto, o rapaz aparentava estar feliz, enquanto tagarelava tanto com Peter como com Melanie. A única altura em que se mostrou irritado foi quando Pamela chegou e começou a reclamar pelo fato de os seus amigos continuarem na piscina. Parecia que estava prestes a estourar uma discussão entre os dois, até que Peter decidiu intervir.
— Vamos lá a ver, vocês os dois. Hoje temos uma convidada. De fato, temos até vários convidados. — Após estas palavras, olhou com severidade para a filha e em seguida para os amigos de Mark.
Só restavam dois rapazes e uma rapariga, que se encontravam calmamente sentados no chão a conversar enquanto secavam o cabelo.
Parecia que Pam se ressentia da presença de alguém em sua casa, com a exceção de Peter, dos irmãos e de Mrs. Hahn. A rapariga resolvera o problema de Melanie, ao ignorar a sua presença quase por completo desde que ela chegara à piscina, salvo quando lhe lançava alguns olhares furtivos cheios de curiosidade, em especial sempre que Peter falava com ela. Era como se pretendesse assegurar-se de que entre ambos não havia nada, mas algo no seu íntimo lhe dizia que o perigo rondava por perto.
— Não verdade, Pam? — Peter estivera a falar acerca da escola da filha, mas ela não despregava os olhos de Melanie, sem ouvir uma palavra do que o pai dissera.
— O que? — perguntou Pamela.
— Estava a dizer que o programa de atletismo na tua escola é extraordinário, e que no ano passado ganhaste dois prémios de corrida em pista. Além de que vocês também têm acesso a alguns dos melhores estábulos desta zona.
Era uma escola muito diferente daquela onde as filhas de Melanie andavam, esta última uma escola urbana bastante sofisticada. O estilo de vida em Los Angeles centrava-se muito mais nas atividades ao ar livre do que era hábito na Costa Leste.
— Gostas da tua escola, Pam? — perguntou-lhe Melanie num tom de voz suave.
— Não é má. Gosto das minhas amigas.
Ao ouvir a irmã, Mark revirou os olhos em sinal de desaprovação; Pamela agarrou imediatamente a deixa.
— O que é que queres dizer?
— Que tens por amigas um bando de raparigas estúpidas, arrogantes e anoréxicas.
Aquela palavra enfureceu-a.
— Eu não sou anoréxica, bolas! — retorquiu ela aos guinchos, levantando-se de um salto.
Peter começava a ficar cansado de tanta discussão.
— Parem já com isso, vocês os dois! — Em seguida, dirigiu-se a Mark. — O teu comentário foi cruel e desnecessário.
— Peço desculpa — redargüiu Mark com humildade.
Ele sabia muito bem que aquela expressão passara a ser tabu, embora continuasse convencido de que a irmã não estava completamente curada. Na sua opinião, a magreza de Pam era pouco natural, apesar de tudo o que o pai e ela pudessem dizer em contrário. Com uma expressão de quem pedia desculpa, Mark olhou para Melanie, antes de se afastar para se juntar aos amigos.
Pamela foi para dentro de casa seguida por Matthew, à procura de qualquer coisa para comer. Durante longos instantes, Peter ficou a olhar atentamente para a piscina, após o que concentrou a sua atenção em Melanie.
— Imagino que a cena que acabou de presenciar não possa ser considerada das mais pacíficas. — Parecia magoado devido ao procedimento e às palavras dos filhos, como se pensasse que era o responsável pela discussão que haviam travado e pelo sofrimento que ambos sentiam. — Lamento muito que tenha assistido a esta situação confrangedora, Mel — desculpou-se.
— Não se incomode com isso. Não pense que com as minhas filhas é sempre tudo pacífico — retorquiu ela, apesar de nem sequer conseguir recordar-se da última ocasião em que as gêmeas tivessem discutido. Aquela família estava a atravessar um período de crise e Pam parecia ser uma jovem extremamente infeliz.
Peter suspirou e recostou-se na cadeira, fitando a água da piscina.
— Imagino que os meus filhos acabarão por se acalmar. No próximo ano, o Mark sairá de casa para tirar um curso universitário — continuou ele. Mas o problema não era Mark, mas sim Pam, a qual não iria a parte alguma durante os anos mais próximos. Peter olhou de novo para Melanie. — A Pam foi a que sofreu mais com a morte da mãe. — Isso era facilmente detectável; todavia, ele próprio sofrera muito e continuava a sofrer.
Melanie acreditava que ele precisava era de uma mulher que substituísse Anne, com a qual pudesse partilhar o seu fardo. Tanto Peter como os filhos precisavam disso. Era triste vê-lo tão sozinho. Era uma pessoa inteligente e atraente, capaz e com uma personalidade forte; tinha muito a oferecer a qualquer mulher. Sentada ali, ao lado dele, Melanie sorria a si mesma, pensando em Raquel e nas suas filhas; quase conseguia ouvi-las a perguntar: “E tu, mamãe? Ele é giro? Por que é que não saíste com ele?” Por que não a tinha convidado. Subitamente ocorreu-lhe um pensamento: se ele a convidasse para sair, aceitaria ela esse convite, caso a oportunidade surgisse? Era engraçado pensar nesse assunto, enquanto ambos estavam sentados lado a lado junto da piscina. Peter mostrava-se completamente diferente dos homens com quem ela se relacionara antes, que eram inadequados. Melanie tinha preferido que assim fosse. Naquele momento, era forçada a admitir que Peter era diferente. Era um homem franco e verdadeiro, uma pessoa que se equiparava a si própria. Mais importante ainda, sentia-se atraída por ele. Isso tê-la-ia assustado, caso não estivesse de partida no dia seguinte.
— Em que é que estava a pensar agora mesmo? — A voz de Peter era suave, harmonizando-se com o sol que brilhava naquele fim de tarde. Melanie, com um sorriso, ocultou-lhe os seus pensamentos.
— Nada de importância — respondeu Melanie.
Não existia a mínima justificativa para falar dos homens que haviam feito parte da sua vida nem partilhar aquilo que pensava dele. Entre os dois não havia nada de caráter pessoal e, contudo, existia uma presença imperceptível que Mel sentia quando se encontrava próxima de Peter. Era quase como que uma ilusão, como se o conhecesse melhor do que realmente era o caso. Havia algo de muito vulnerável naquele homem e de que Melanie gostava bastante. Levando em consideração quem era e o que fazia, Peter continuava a ser uma pessoa extremamente humana e, agora que tinha oportunidade de o ver no seu ambiente familiar, Melanie sentia ainda mais afeto por ele.
— A Mel tem estado a milhões de quilômetros daqui — comentou Peter.
— Não. Não estava assim tão longe. Pensava em algumas coisas relativas à minha vida em Nova Iorque; no meu trabalho... nas minhas filhas...
— Deve ser difícil para si ter de viajar por exigências da sua profissão — acrescentou ele.
— Por vezes, é. Mas as minhas filhas compreendem isso e já se habituaram à situação. Além disso, a Raquel olha por elas quando eu estou ausente de casa.
— Como é que é a sua governanta? — perguntou Peter, que mostrava uma curiosidade insaciável em relação a tudo o que dissesse respeito à vida de Melanie.
— Não é nada parecida com Mistress Hahn — disse ela, olhando-o com um sorriso. — Na realidade, estava a pensar como as nossas vidas são diferentes, pelo menos no que respeita aos aspectos exteriores.
— Como assim?
— Temos, por exemplo, as nossas casas. A sua é muito mais formal do que a minha — exemplificou Melanie com uma gargalhada. — Eu diria que a minha, quando comparada com a sua, é assim uma espécie de galinheiro. É evidente que é a habitação de uma mulher — continuou Mel, lançando um olhar à vivenda. — Por outro lado, a sua é muito maior e mais clássica. O mesmo se aplica a Mistress Hahn. A Raquel parece que nunca aprendeu a pentear o cabelo, o seu uniforme anda permanentemente mal abotoado e ela passa a vida a dar-me respostas tortas. Apesar disso, sentimos um grande carinho por ela, além de que é uma pessoa maravilhosa com as gêmeas.
Peter sorriu ao ouvir a descrição.
— Como é que é a sua casa?
— Cheia de luz, muito alegre e pequena. Exatamente aquilo de que eu e as minhas filhas precisamos. Comprei-a a alguns anos e, na altura, estava muito receosa por assumir um compromisso dessa natureza, mas não me arrependi. — Peter acenou em silêncio, pensando nas responsabilidades que Melanie fora forçada a assumir sozinha. Era uma das facetas dela que ele mais admirava. Havia muito naquela mulher que lhe agradava bastante. No entanto, sentia-se intrigado pela sua maneira de ser, tão diversa da de Anne.
Nessa altura, Melanie sorriu-lhe.
— Um dia destes, tem de ir visitar-me a Nova Iorque.
— Qualquer dia. — Apesar da resposta vaga, Peter desejou que esse dia não estivesse muito longe, sem compreender bem porque Ela era a primeira pessoa em muito tempo com quem ele se havia aberto com toda a franqueza.
Antes de ele ter oportunidade de acrescentar mais alguma coisa, Matthew regressou com um prato cheio de biscoitos acabados de fazer e, sem pensar duas vezes, instalou-se ao lado de Melanie, oferecendo-se para partilhar com ela os seus biscoitos. As suas faces e as pequenas mãos gorduchas estavam cobertas de migalhas, tendo algumas caído sobre Melanie, a qual pareceu não se sentir incomodada por isso. Para ela, os rapazinhos da idade de Matt constituíam uma novidade. Conversaram acerca da escola dele e do seu melhor amigo. Peter ouviu-os durante algum tempo e depois decidiu ir nadar um pouco. Quando saiu da piscina, os dois continuavam profundamente embrenhados na sua conversa. Entretanto, Matt aninhara-se no colo de Mel, parecendo muito feliz no sítio onde se encontrava.
Quando Peter saiu da piscina, deteve-se no cimo dos degraus por breves instantes, ficando a olhar para ambos com um sorriso cheio de tristeza. O pequenito precisava de alguém como Melanie, todos eles precisavam e, pela primeira vez em quase dois anos, apercebeu-se de tudo o que faltava na sua vida. No momento em que este pensamento lhe ocorreu, Peter afastou-o de imediato e, num passo apressado, juntou-se aos dois. Pelo caminho agarrou numa toalha que estava em cima de uma mesa e começou a secar o cabelo, como se tentasse varrer da cabeça os novos pensamentos que o assolavam.
Entretanto, os amigos de Mark foram-se embora, pelo que este se juntou a Melanie e a Matthew, sentando-se na cadeira de Peter, que estava desocupada.
— Espero que os meus amigos não tenham dado consigo em doida — disse ele, sorrindo-lhe com timidez. — Às vezes, descontrolam-se um pouco.
Melanie sorriu ao pensar nas amigas de Val e Jess; de tempos a tempos pouco faltava para que lhe destruíssem a casa.
— Pareceram-me ser ótimos rapazes — retorquiu ela por fim.
— Diga isso ao meu pai. — Mark brindou-a com um sorriso apreciador, esforçando-se por não reparar no aspecto sensual que Melanie tinha com o fato de banho da irmã.
— O que é que disseste? Invocaste de novo o meu nome em vão? — perguntou Peter.
Mark olhou para o pai com uma expressão de vítima.
Gostava da nova amiga do pai e as suas amigas tinham ficado extraordinariamente impressionadas ao verem que a famosa Melanie Adams estivera na piscina da sua casa.
— Mistress Adams acha que o meu grupo de amigos não é assim tão mau como isso.
— Ela está apenas a ser bem-educada. Não acredites numa palavra.
— Não é verdade. Devia ver os amigos da Jessica e da Valerie. Uma vez, elas deram uma festa e alguém, por acidente, pegou fogo a uma cadeira.
— Oh, meu Deus! — exclamou Peter, com uma careta, enquanto Mark se limitava a esboçar um sorriso.
Achava Melanie tão natural, franca e simpática, nada parecida com uma estrela da televisão. Se Mel tivesse sido capaz de adivinhar os pensamentos de Mark, ter-se-ia rido. Nunca pensava em si própria daquela maneira, como uma estrela de televisão; nem as gêmeas.
— O que é que aconteceu depois disso? — perguntou Mark.
— Pu-las de castigo durante dois meses. Mas, passado um, levantei as restrições.
— Tiveram muita sorte por não terem ido para um reformatório de menores — retorquiu Peter.
Mark e Melanie trocaram um sorriso cúmplice, enquanto Matthew, indiferente à conversa, se encostava um pouco mais a ela, para que Melanie não se esquecesse da sua existência. Gentilmente, começou a acariciar-lhe o cabelo; o rapazinho não parecia estar incomodado por ela ter deixado de conversar apenas com ele. Sabia que, à sua maneira, Melanie continuava a prestar-lhe toda a sua atenção. Precisamente nesse momento, ela olhou para a casa e reparou em Pamela,
À janela do seu quarto, tentando não ser vista ao observá-los. Os olhos de ambas encontraram-se e mantiveram-se presos por breves instantes; momentos depois, Pam desaparecia da janela.
Melanie interrogou-se sobre o motivo por que a rapariga não regressara à piscina. Dava a impressão de querer ser deixada à margem. Ou talvez desejasse o pai apenas para si, não estando disposta a partilhá-lo com Melanie nem tão-pouco com os irmãos. Desejava dizer algo a Peter sobre aquele assunto; no entanto, não lhe agradava interferir num assunto de tanta delicadeza.
Entretanto, a conversa ligeira e divertida que os quatro mantinham prosseguiu até ter começado a soprar uma brisa leve, que fez com que todos começassem a sentir um pouco de frio. Naquela altura, já passava bastante das seis da tarde e Mel viu as horas, apercebendo-se de que dentro em pouco deveria ir-se embora. Eram quase horas do jantar e Peter reparara que ela tinha olhado para o relógio de pulso.
— Mel, ainda não tomou banho. Por que é que não vai dar umas braçadas, para depois começarmos a comer? Mistress Hahn vai ficar furiosa se nos atrasarmos para o jantar.
Tudo aquilo lhe parecia tão mecanizado, gerido até o último minuto; sem que fosse necessário dizer-lhe, Melanie adivinhou que aquele modo de viver fora um legado de Anne, a qual havia gerido a sua casa como se esta fosse uma máquina bem lubrificada. Não era nada o estilo de Mel, mas não deixava de ser impressionante. E em parte fora isso que os ajudara a sobreviver à sua morte, embora agora uma mudança fosse o mais benéfico. Os velhos hábitos eram difíceis de perder, muito em especial no que dizia respeito a Peter e a Mrs. Hahn.
Momentos depois as crianças foram-se embora e Melanie mergulhou elegantemente na piscina, enquanto Peter a observava. Ela era uma pessoa que agradava ter à nossa volta, além de ser uma satisfação para o olhar. Peter sentiu-se invadido de novo por um enorme desejo ao vê-la a deslizar através da água com uma enorme perícia e facilidade, até que finalmente regressou para junto dele; tinha os cabelos molhados e os olhos brilhantes; nos lábios via-se um sorriso de felicidade que se destinava somente a ele.
— O Peter tinha razão. Era disto mesmo que eu estava necessitada — disse Melanie.
— Eu tenho sempre razão. E também está a precisar jantar na nossa companhia — retorquiu Peter.
Mel tomou a decisão de ser franca com ele.
— Espero que as crianças não se sintam demasiado incomodadas pela minha presença. — Já conseguira ler muita coisa nos olhos de Pam. Bastante mais do que Peter teria desejado que ela visse. — Não me parece que eles saibam como é que devem interpretar a minha presença nesta casa.
O olhar de ambos cruzou-se por momento. Peter aproximou-se da beira da piscina e sentou-se, incapaz de opor resistência ao que sentia ou àquilo que tinha para dizer.
— O mesmo se passa comigo — retrucou ele sem despregar os olhos dela, sentindo-se perplexo ao ouvir as suas próprias palavras.
Subitamente, Melanie ficou com uma expressão assustada.
— Peter. — Interrompeu-se e, sem saber porque, sentiu que naquele momento lhe poderia dizer algo mais acerca de si própria, falar das suas velhas cicatrizes emocionais, do medo que nunca a abandonava, do receio que sentia em poder vir a envolver-se em demasia com qualquer homem.
Ambos pressentiam no seu íntimo que qualquer coisa de estranho estava a acontecer aos dois.
— Peço-lhe desculpa. O meu comentário foi despropositado — disse ele.
— Não tenho bem a certeza de que tenha sido, mas... Peter... — Então enquanto ela afastava o olhar à procura das palavras que lhe faltavam, avistou Pam à janela, que logo desapareceu. — Não é meu desejo intrometer-me na sua vida — continuou Melanie.
— E por que não? — perguntou Peter.
Melanie respirou fundo, içando-se para fora da piscina.
Peter quase se engasgou ao reparar naquelas pernas compridas e esbeltas que saíam do fato de banho branco. Daquela vez, afastou o olhar, mas sentiu-se invadido por uma vaga de emoção.
— Desde que a Anne desapareceu da sua vida, houve mais alguma mulher?
Peter compreendeu o que é que ela pretendia dizer e abanou a cabeça.
— Não. Não da maneira que está a pensar.
— Nesse caso, por que razão é que nesta altura se haverá de aborrecer toda a gente?
— Quem é que está aborrecido? — perguntou Peter, mostrando-se surpreendido.
Melanie decidiu ser franca e direta.
— A Pam — redargüiu Melanie sem hesitar.
— Isso não tem nada a ver consigo, Mel — afirmou ele com um fundo suspiro. — Os últimos dois anos têm sido muito difíceis para a minha filha.
— Eu compreendo isso — prosseguiu ela. — No entanto, a realidade é que eu vivo a cerca de cinco mil quilômetros de distância, e não me parece muito plausível que nos voltemos a encontrar de novo, pelo menos nestes tempos mais próximos. Aquilo em que estamos empenhados, a entrevista para a reportagem acerca do seu trabalho, é uma coisa estimulante para ambos. Quando as pessoas se encontram numa situação semelhante, é natural que tenham reações estranhas. É como se fôssemos lançados à deriva num navio sem timoneiro, e a tendência é para nos aproximarmos uns dos outros. Mas amanhã a entrevista terá sido concluída e eu regressarei a casa. — Parecia triste.
— Sendo assim, que mal é que poderá advir de um simples jantar? — insistiu Peter.
Ela deixou-se estar sentada ao lado dele, pensativa.
— Não sei. O meu único desejo é não fazer algo de que venha a arrepender-me. — Melanie olhou de novo para Peter, apercebendo-se de que ele também se sentia triste. Tudo aquilo era complicado. Gostavam um do outro, quase demais, mas de que valia isso?
— Na minha opinião, está a fazer uma tempestade num copo de água, Mel. — A voz dele era profunda e um pouco enrouquecida.
— Estarei? — Os olhos de Melanie não abandonavam os dele e daquela vez Peter sorriu.
— Não. Talvez eu esteja. Parece— me que gosto muito de si, Mel.
— Eu também gosto de si.
— Não existe qualquer mal nisso, desde que não nos deixemos levar pelas nossas fantasias. — Todavia, inesperadamente, ela desejou que se deixassem levar.
Era inegável que se tratava de uma loucura; ali estavam eles, sentados à beira da piscina, enquanto falavam de algo que nunca acontecera e que nunca aconteceria, e contudo, havia ali qualquer coisa. Melanie não conseguia decidir se aquela situação não passava de uma ilusão criada pelo fato de terem trabalhado lado a lado ao longo de dois dias ou, se pelo contrário, era real. Não havia forma de saber e, no dia seguinte, ela teria partido para Nova Iorque. Talvez não houvesse mal algum numa mera refeição.
Peter baixou de novo o olhar e fitou-a, falando com ternura.
— Sinto-me contente por estar aqui, Mel. — Parecia Matt a falar, o que a levou a sorrir.
— Também eu — retorquiu ela.
Durante uma longa pausa os seus olhares encontraram-se e Mel sentiu um arrepio. Havia algo de mágico naquele homem.
Peter também dava a impressão de partilhar aquela sensação. Pôs-se de pé, esboçando um sorriso e estendeu-lhe a mão com uma expressão quase de timidez.
Melanie sorriu-lhe e seguiu-o até ao interior da casa, satisfeita por ter decidido ficar. Regressou ao quarto de hóspedes para mudar de roupa e passou o fato de banho por água, após o que subiu até o outro andar com o intuito de devolvê-lo a Pam. Prendera o cabelo molhado num carrapito e a única maquiagem que aplicara ao seu rosto ligeiramente bronzeado tinha sido um pouco de rímel e batom. Não existiam muitas mulheres da sua idade que ficassem com tão bom aspecto com uma quase total ausência de maquiagem. Encontrou Pamela sentada no seu quarto, a ouvir um cassete com uma expressão sonhadora no rosto. Pareceu ficar surpreendida pela presença de Melanie, que entretanto batera à porta que estava aberta antes de entrar no quarto.
— Olá, Pam. Obrigada pelo fato de banho. Queres que o leve para a tua casa de banho?
— Com certeza. Está bem. Obrigada — retorquiu ela, hesitante, levantando-se e sentindo-se um tudo-nada desajeitada na presença de Melanie, a qual foi de novo invadida por uma vontade imensa e quase incontrolável de abraçar aquela rapariguinha, apesar da sua altura. Bem no seu íntimo, Pam continuava a ser uma criança solitária e infeliz.
— Gosto dessa música. A minha filha Valerie também tem esse cassete.
— Qual é ela? — perguntou Pamela, mostrando-se de novo intrigada.
— A loura — respondeu Melanie.
— Ela é simpática?
— Espero bem que sim — retorquiu Mel, soltando uma gargalhada. — Talvez um dia destes, se fores com o teu pai a Nova Iorque, possas vir a conhecê-las.
— Gostaria de lá ir um dia — disse a rapariga, sentando-se de novo sobre a cama. — Mas é muito raro irmos para fora. O papai não pode deixar o trabalho no hospital. Há sempre alguém que necessita da sua presença. Exceto durante duas semanas no verão e, mesmo assim, ele não pensa noutra coisa a não ser no hospital e está sempre a telefonar para lá de duas em duas horas. Costumamos ir para Aspen — disse ela com uma expressão de desinteresse. Melanie observou-a. Nos seus olhos via muita dor. Parecia precisar ser incentivada, acarinhada. Melanie tinha a impressão de que a presença de uma mulher poderia produzir maravilhas naquela rapariga. Alguém que a amasse e que ocupasse o lugar deixado pela mãe. A criança tinha saudades de Anne e, apesar de toda a resistência que pudesse opor a alguém que entrasse na sua vida, era disso que ela mais necessitava. Aquele pau seco que era a mulher alemã que se encontrava lá embaixo, não lhe poderia dar amor e, embora Peter fizesse o seu melhor, Pam necessitava de algo mais.
— Aspen deve ser um lugar bastante agradável. — Melanie lutava para abrir uma porta entre ela e a rapariga. Numa ou duas ocasiões pareceu-lhe avistar um raio de esperança, mas não tinha a certeza disso.
— Sim, não é mau. Mas a verdade é que me aborreço quando vamos para lá.
— Onde é que preferias ir passar as férias? — acrescentou Mel.
— Para a praia. Para o México. Europa. Nova Iorque... Não sei bem, para um lugar que fosse giro. — Sorriu com uma certa hesitação, olhando para Melanie. — Para algum lugar onde costumam ir pessoas interessantes e não apenas os amantes da natureza e os que gostam de andar a pé pelas montanhas — disse Pam com uma careta. — Uma verdadeira chatice.
— Nós costumamos ir para Martha's Vineyard todos os verões — declarou Melanie com um sorriso. — Para a praia. Não se pode dizer que seja muito excitante, mas não deixa de ser agradável. Talvez um dia surja a oportunidade de nos fazeres uma visita, enquanto lá estivermos a passar férias.
Ao ouvir aquilo, Pamela mostrou de novo uma expressão desconfiada e, antes que Melanie pudesse acrescentar algo mais, Matthew entrou de rompante no quarto.
— Sai daqui, parvalhão! — ripostou Pam, levantando-se de um salto, como se pretendesse proteger os seus domínios.
— És uma grande idiota! — exclamou o irmão, mais irritado do que magoado, olhando possessivamente para Melanie. — O papai manda dizer que o jantar está pronto e que temos que ir para baixo. — O pequenito deixou-se ficar, à espera de a acompanhar até a sala de jantar, o que impediu Melanie de passar mais algum tempo a sós com Pam, para assegurar que o convite não fora mais do que uma sugestão amigável da sua parte e não um prenúncio de alguma coisa que se pudesse interpor entre a rapariguinha e o pai.
Mark juntou-se-lhes nas escadas; ele e a irmã não pararam de se espicaçar enquanto Matthew acelerava o seu pequeno passo, para se manter a par de Melanie.
Peter já se encontrava à espera na sala de jantar e Mel reparou imediatamente na sua expressão de sofrimento. Contudo, Peter recompôs-se logo. Aquela cena deveria ter-lhe parecido familiar, algo que ele não via há muito tempo.
— Eles fizeram-na refém lá em cima? Eu tinha receio de que isso pudesse acontecer.
— Não, eu estive apenas a conversar com a Pam — respondeu Melanie.
Peter mostrou-se agradado ao ouvir aquilo. Todos se sentaram à mesa, enquanto ela hesitava sem saber bem onde é que se deveria sentar. Com presteza, Peter afastou a cadeira à sua direita.
Ao ver aquilo, Pam exibiu uma expressão de choque e quase se levantou. Estava sentada à cabeceira da mesa, de frente para Peter e ladeada pelos rapazes.
— Esse lugar... — começou Pamela a dizer.
— Não interessa! — A voz do pai era firme, e Melanie apercebeu-se de imediato do que é que ele tinha feito. Sentara-a no lugar que costumava ser o da falecida mulher; desejou que ele não tivesse procedido daquela maneira. Na sala fez-se um silêncio longo e pesado. Mrs. Hahn ficou a olhar com fixidez quando entrou e Melanie olhou para Peter com uma expressão implorativa. — Está tudo bem, Mel — sossegou-a ele, abrangendo os outros com um único olhar, após o que a conversação foi retomada. Momentos depois, na sala de jantar faziam-se ouvir os barulhos habituais, ao mesmo tempo em que todos davam início à refeição com a sopa fria de agrião que Mrs. Hahn preparara.
A refeição decorreu de forma agradável, o que provou que Peter estivera com a razão do seu lado. Não havia qualquer necessidade de transformar aquilo num acontecimento significativo. Depois de terminado o jantar, ele e Melanie tomaram o café na sala de estar e as crianças foram para cima; só voltou a vê-las quando estava pronta para se ir embora. Pam, muito formal, apertou-lhe a mão. Melanie ficou com a impressão de que ela se sentia aliviada por vê-la partir. Mark pediu-lhe um autógrafo, e Matthew lançou os braços à volta do seu pescoço, implorando-lhe que ficasse.
— Não posso, mas prometo que te mando um postal de Nova Iorque.
— Isso não é a mesma coisa — argumentou o pequenito com os olhos marejados de lágrimas. Ele tinha razão, mas era o melhor que ela podia fazer. Abraçou-o durante alguns momentos e beijou-o ternamente na face, acariciando-lhe o cabelo.
— Talvez um dia destes me faças uma visita em Nova Iorque.
Apesar daquelas palavras, quando Matt olhou para ela, ambos sabiam que era muito pouco provável que isso viesse a acontecer nos tempos mais próximos, se é que alguma vez aconteceria. Melanie sentiu imensa pena do rapazinho. Quando finalmente se foi embora e ambos começaram a afastar-se de casa, seguindo no automóvel de Peter, Matthew continuou a acenar até o carro ter desaparecido da sua vista. Melanie estava prestes a chorar.
— Sinto-me tão mal por deixá-lo naquele estado — disse ela e olhou para Peter, comovido com o que via nos olhos dela; estendeu o braço, dando-lhe uma pancadinha na mão, como se pretendesse confortá-la. Era a primeira vez que se tocavam fisicamente, e ele sentiu um frêmito a percorrer-lhe o braço. Com rapidez retirou a mão, enquanto Melanie afastava o olhar. — Matt é um rapazinho esplêndido. Todos eles são ótimos.
Até mesmo Pam, pensava ela. Tinha gostado dos três, lamentando tudo aquilo porque tinham passado, da mesma forma que sentia pena de Peter. Melanie suspirou suavemente e acrescentou:
— Estou satisfeita por ter ficado para jantar.
— Também eu. A Mel fez-nos bem a todos. Há anos que não tínhamos uma refeição que tanto nos agradasse.
Melanie sabia exatamente há quanto tempo. Aquela família vivia numa espécie de sepultura e, uma vez mais, deu consigo a pensar que ele deveria vender a casa, mas não se atreveu a dizer-lhe. Em vez disso, voltou-se para Peter a pensar outra vez nas crianças.
— Obrigada por ter me convidado a ir a sua casa — disse Mel.
— Estou contente por ter acedido — retorquiu Peter.
— Eu também — retribuiu ela.
O parque de estacionamento do hospital surgiu depressa demais. Estavam do lado de fora do automóvel dela sem saberem bem o que haveriam de dizer um ao outro.
— Uma vez mais, muito obrigada, Peter. O tempo que passei em sua casa foi deveras agradável. — Melanie tomou mentalmente nota de enviar flores no dia seguinte, e talvez algo especial para as crianças, se tivesse tempo para ir às compras antes de partir para Nova Iorque. Também tinha de comprar prendas para as filhas.
— Muito obrigado, Mel. — Peter olhou-a nos olhos durante um longo momento, após o que deram um aperto de mão. — Então, encontramo-nos amanhã.
Melanie iria filmar Pattie Lou durante breves instantes antes de se ir embora e essa seria a última oportunidade de o ver.
— Uma vez mais, muito obrigada — repetiu Melanie.
— Boa noite, Mel — despediu-se ele com um sorriso, dirigindo-se para o hospital com a intenção de ainda fazer uma última visita a Pattie Lou.
No dia seguinte, a pequena filmagem a Pattie Lou na Unidade de Cuidados Intensivos processou-se sem qualquer problema. Apesar da intervenção cirúrgica e dos tubos, ela já apresentava um aspecto infinitamente mais saudável do que nos dias que tinham antecedido a operação, o que deixou Melanie perplexa. Quase que se poderia dizer que Peter havia conseguido efetuar uma cura milagrosa. Não se permitiu conjecturar por quanto tempo é que aquela situação se manteria. Ainda que fosse somente por alguns anos, sempre seria preferível a escassos dias. Com o exemplo vivo que Pattie Lou representava, Melanie sentia-se completamente conquistada por Peter Hallam.
Pouco depois de ter deixado a pequenita, Mel viu-o no corredor. A equipe de filmagens já havia partido e Melanie preparava-se para se despedir de Pearl. Ainda tinha de pagar a conta do hotel e de tratar de uns assuntos em Beverly Hills, incluindo comprar algumas lembranças para oferecer às filhas. Levava-lhes qualquer coisa sempre que possível. Era uma espécie de tradição que se vinha mantendo ao longo dos anos. Conseqüentemente, naquele momento estava a preparar-se para passar uma hora em Rodeo Drive a fazer compras.
— Olá! — Peter tinha um aspecto jovial como se não tivesse trabalhado toda a manhã — O que é que se prepara para fazer hoje?
— Apenas concluir umas quantas coisas — respondeu Melanie com um sorriso nos lábios. — Acabei agora mesmo de ver a Pattie Lou. Ela está com um ótimo aspecto.
— É verdade. — A expressão dele não podia ser mais radiante, parecia um galo orgulhoso. — Também a vi esta manhã. — De fato, estivera com ela por duas vezes, apesar de não ter mencionado isso a Melanie. Não queria preocupá-la, não fosse ela pensar que haveria algo a correr mal.
— Tinha a intenção de lhe telefonar esta tarde, para lhe agradecer o jantar de ontem. Para mim foi muito agradável.
— A medo, procurou os olhos de Peter, perguntando a si própria o que é que lá encontraria.
— As crianças adoraram conhecê-la, Mel.
— Eu também gostei de conhecê-las. — Mas não conseguiu deixar de se questionar sobre como teria Pam reagido quando ele regressara a casa depois de tê-la deixado.
Reparou que Peter a olhava com uma expressão melancólica e perguntou a si própria se haveria alguma coisa que não estivesse bem.
Peter pareceu hesitar, antes de se decidir a falar.
— Está com muita pressa? — perguntou ele.
— Para dizer a verdade, nem por isso. O meu vôo só está previsto para as dez da noite. — Melanie não mencionou os planos que fizera de ir às compras em Rodeo Drive. Aquilo parecia-lhe ser demasiado frívolo naquele lugar, onde se lutava por vidas humanas. — Por que pergunta?
— Lembrei-me que talvez gostasse de visitar a Marie Dupret outra vez.
Melanie podia ver que aquela rapariga já adquirira algum significado para o médico. Era o seu pequeno pássaro ferido mais recente.
— Como é que ela está hoje? — perguntou, observando os olhos dele e perguntando a si própria como é que um único homem conseguia preocupar-se tanto com os outros. Mas Peter era assim e isso era evidente em tudo o que ele dizia e fazia.
— Mais ou menos na mesma. Estamos a fazer o possível para encontrar um doador compatível.
— Espero sinceramente que surja um dentro em pouco — retorquiu Melanie; uma vez mais aquele pensamento parecia-lhe algo de macabro, visto que alguém teria de morrer para que tal pudesse concretizar-se. Pouco depois, Mel acompanhou Peter até ao quarto de Marie.
A doente tinha um aspecto mais pálido e de maior fraqueza do que no dia anterior. Peter sentou-se à beira da cama e começou a falar com ela, muito calmo e num tom de voz quase de intimidade, o qual excluía todos os que pudessem estar no quarto, salvo eles próprios. Dava a impressão de que entre os dois havia uma comunicação muito especial e, por uma fração de segundos, Melanie perguntou a si mesma se o médico se sentiria atraído pela doente. Mas o comportamento dele para com Marie era desprovido de quaisquer cambiantes de natureza amorosa; estava apenas preocupado com ela e parecia até que os dois se conheciam havia anos, o que Melanie sabia perfeitamente não ser o caso. Refletia apenas a existência de uma extraordinária afinidade entre os dois, induzida pela relação médico-doente. Algum tempo depois, Marie pareceu sentir-se muito mais tranqüila do que antes, e os seus olhos procuraram os de Melanie.
— Estou-lhe muito agradecida por ter vindo visitar-me outra vez, Mistress Adams. — Marie estava tão débil e pálida que se previa que ela não viveria durante muito mais tempo sem o transplante. Tudo indicava que o seu estado de saúde havia piorado desde o dia anterior. Melanie sentiu um aperto no coração quando se aproximou daquela jovem mulher.
— Esta noite regresso a Nova Iorque, Marie. Mas estarei desejosa de receber boas notícias suas.
Durante bastante tempo, a jovem, de uma palidez translúcida, não proferiu palavra, e depois esboçou um sorriso triste.
— Obrigada — agradeceu. Em seguida, perante o olhar de Peter, permitiu que os seus medos lhe levassem a melhor, e duas lágrimas rolaram-lhe pelas faces abaixo. — Não sei se vamos encontrar um doador a tempo.
— Nesse caso, será obrigada a manter-se viva, não é verdade? — interveio Peter. O seu olhar era tão intenso que, ao abarcar a doente parecia que ele pretendia instilar-lhe vida, forçando-a a desejar viver.
Melanie tinha a impressão de que seria capaz de tocar na força magnética que existia entre os dois.
— Tudo se irá resolver da melhor maneira — tranqüilizou ela, agarrando a mão de Marie, sentindo-se surpreendida pela sua frialdade. A rapariga praticamente não tinha circulação sanguínea, o que lhe provocava aquela lividez azulada. — Sei que será assim — assegurou Melanie.
Marie olhou para ela, parecendo demasiado enfraquecida para se poder mover.
— Parece-lhe que sim? — perguntou Marie Dupret.
Melanie acenou que sim, lutando contra as lágrimas que teimavam em assomar-lhe aos olhos. Tinha uma sensação aterradora de que aquela jovem não conseguiria sobreviver e deu consigo a rezar por ela em silêncio quando saíram do quarto. Já na segurança que o corredor lhe oferecia, voltou-se para Peter com um olhar preocupado.
— Poderá ela agüentar até o Peter encontrar um doador? — perguntou Mel, mas naquele momento duvidava que isso fosse possível.
Até mesmo Peter parecia sentir-se desanimado e pouco seguro. Tinha um aspecto exausto, o que era raro acontecer.
— Espero bem que sim — respondeu ele. — Tudo depende da rapidez com que isso acontecer.
Melanie não formulou a pergunta que era óbvia: “E se não acontecer?”, uma vez que a resposta era fácil de adivinhar, pelo estado de saúde da doente. Era a rapariga mais frágil e delicada que Melanie já vira e parecia um milagre que ela ainda continuasse viva.
— Espero ardentemente que tudo lhe corra bem — disse ela com convicção.
Peter olhou-a com intensidade e acenou com a cabeça.
— Também eu. Há ocasiões em que os fatores emocionais dão um contributo positivo — acrescentou ele. — Mais logo tenciono vir vê-la de novo e as enfermeiras mantêm-na sob apertada vigilância, não apenas através dos monitores. O problema é que a Marie não tem qualquer família chegada, nem sequer parentes afastados. Por vezes acontece que as pessoas que se encontram sozinhas no mundo têm menos razões para desejarem continuar a viver. É nossa obrigação instilar-lhes essa força de querer, por todos os meios ao nosso alcance. No entanto, o desenrolar da situação não depende de nós.
Queria aquilo dizer que dependeria dela? A responsabilidade seria daquela jovem de aspecto tão frágil, que teria de ter a força de vontade necessária para desejar continuar a viver? Melanie tinha a impressão de que isso seria pedir-lhe demais. Manteve-se em silêncio enquanto, num passo quase arrastado, acompanhou Peter até a sala das enfermeiras, onde estivera anteriormente. Não existia qualquer justificação para que continuasse no hospital. Peter Hallam tinha o seu trabalho e ela devia dar prosseguimento aos planos que fizera, apesar de essa perspectiva não a entusiasmar por aí além. Naquele momento, Melanie desejava permanecer por ali. Sentia vontade de vigiar Pattie Lou, de falar com Pearl Jones, de rezar pelo bem-estar de Marie e visitar outros dos doentes que vira no dia anterior. Todavia, naquela altura suspeitava de que o fulcro da questão não se centrava em qualquer daquelas pessoas. A razão daquele seu desejo traduzia-se no próprio Peter. Melanie já não queria afastar-se dele.
O cirurgião dava a impressão de se ter apercebido do que Mel sentia. Afastou-se das enfermeiras e largou as papeletas dos doentes, aproximando-se do lugar onde ela se sentara.
— Eu acompanho-a até lá embaixo, Mel — ofereceu-se.
— Obrigada — disse ela sem recusar a companhia dele.
Desejava estar a sós com ele; no entanto, nem sequer sabia por que motivo. Talvez essa vontade se devesse somente à maneira de proceder do médico, à forma como ele se sentava à cabeceira dos seus doentes, ao calor humano que irradiava dele. Contudo, Melanie sabia que existia algo mais. Sentia-se extraordinariamente atraída pela personalidade daquele homem, mas com que finalidade? Vivia em Nova Iorque e ele em Los Angeles. E se, por acaso, vivessem na mesma cidade? Nem sequer tinha uma resposta adequada para essa pergunta.
Entretanto, Peter acompanhou-a até ao parque de estacionamento do hospital, onde ela deixara o seu automóvel.
Melanie virou-se para ele.
— Uma vez mais, quero agradecer-lhe por tudo.
— Por que razão? — perguntou Peter.
— Por ter salvo a vida de Pattie Lou.
— Eu fiz isso por ela e não por si.
— Nesse caso, por tudo o resto. O interesse que mostrou, o tempo que me concedeu, a sua cooperação, o almoço, o jantar. — Bruscamente, Melanie sentiu que as palavras lhe faltavam.
Peter parecia divertido perante a hesitação dela.
— Existe mais alguma coisa que gostasse de acrescentar? O café que tomamos no corredor? — inquiriu ele.
— Está bem, está bem. — Ela sorriu-lhe e ele agarrou-lhe na mão.
— Eu é que devia agradecer-lhe, Mel. Fez muito por mim. No espaço de dois anos, foi a primeira pessoa com quem eu me abri. Estou-lhe muito grato por isso. — Em seguida, antes que ela tivesse oportunidade de responder, acrescentou: — Um dia destes, dê-me licença que lhe telefone para Nova Iorque ou estarei a ser despropositado?
— De maneira nenhuma. Terei todo o prazer em que me telefone. — O coração de Melanie começou a bater em sobressalto; tinha a sensação de que era uma rapariguinha muito jovem.
— Nesse caso, telefonar-lhe-ei. Faça uma boa viagem de regresso.
Uma vez mais, Peter apertou-lhe a mão e, em seguida, voltou-se e acenou-lhe, após o que se afastou. Tão simples como isso. Enquanto conduzia o automóvel na direção de Rodeo Drive, Melanie não foi capaz de se impedir de pensar se alguma vez voltaria a vê-lo.
Naquela tarde, enquanto fazia as suas últimas compras, Melanie compreendeu que era forçada a afastar Peter dos seus pensamentos vezes sem conta. Não fazia sentido que pensasse tanto nele. Ao fim e ao cabo, que significado é que ele tinha para si? Tratava-se de um homem interessante, que fora objeto de uma entrevista para uma reportagem e nada mais, independentemente do quanto pudesse ser atraente. Tentou preencher a sua mente com Val e Jess, mas era inútil; a despeito dos seus esforços, a imagem dele continuava a surgir-lhe na cabeça. Quando, às oito da noite, meteu as malas no porta-bagagens de um táxi que a levaria ao aeroporto, continuava a pensar no médico e, de repente, passou-lhe pela mente uma visão clara de Pamela, uma rapariguinha cheia de problemas, solitária e com o coração destroçado.
— Merda! — continuou Melanie em voz alta.
O taxista olhou para trás.
— Passa-se alguma coisa?
Melanie riu-se, abanando a cabeça.
— Desculpe. Estava a pensar noutra coisa.
O homem acenou com um semblante de neutralidade. Fosse como fosse, já tinha ouvido um pouco de tudo e, desde que ela lhe desse uma gorjeta decente, nada mais lhe interessava; Melanie não lhe gorou as expectativas. Para o taxista nada mais tinha importância.
Já no aeroporto, ela dirigiu-se ao balcão e despachou a bagagem; em seguida, comprou três revistas e sentou-se perto da porta de embarque, à espera que chamassem pelo seu vôo. Já eram nove horas da noite e, dentro de cinco minutos, os passageiros do vôo começariam a embarcar. Olhou à volta e apercebeu-se de que o avião ficaria cheio, mas, como de costume, Melanie viajaria em primeira classe, pelo que o vôo não seria assim tão mau. Começou a folhear as revistas, enquanto esperava pela chamada, mantendo-se atenta ao número dos vôos. Era o último daquele dia com destino a Nova Iorque, o qual era familiarmente apelidado de olhos vermelhos, porque era assim que as pessoas chegavam às seis horas da manhã, com os olhos congestionados e exaustas. No entanto, tinha a vantagem de não se perder um dia inteiro a viajar.
Enquanto prestava atenção ao altifalante, de repente ficou perplexa. Pareceu-lhe que tinham chamado pelo seu nome, mas imaginou que se enganara. O vôo foi chamado e Melanie esperou que a primeira vaga de passageiros entrasse a bordo do avião. Pouco depois, agarrou na pasta e no saco que levava consigo e colocou-se na fila, tendo o bilhete e o cartão de embarque na mão, e foi então que ouviu de novo o seu nome. Daquela vez, teve a certeza que não era fruto da sua imaginação.
— Melanie Adams, é favor dirigir-se ao telefone branco. Melanie Adams, o telefone branco. Por favor. Melanie Adams.
Olhando para o relógio para ver quanto tempo é que lhe restava, correu para um telefone branco que se encontrava numa parede um pouco afastada e agarrou no auscultador, identificando-se à telefonista que a atendeu.
— Está lá, daqui fala Melanie Adams. Estou em crer que me chamou através do altifalante há pouco. — Pousou as malas no chão junto dos pés e começou a ouvir atentamente o que lhe diziam.
— Chegou um telefonema para si de um tal doutor Peter Hallam. Se puder, ele pede que lhe telefone imediatamente.
A seguir, a telefonista deu a Melanie o número de telefone de casa do médico.
Repetiu-o para si mesma enquanto se dirigia à cabina telefônica mais próxima, à procura de moedas dentro da mala de mão, ao mesmo tempo em que verificava as horas num relógio grande suspenso do teto. Restavam-lhe cinco minutos para poder embarcar e não poderia de maneira nenhuma perder aquele vôo. Na manhã seguinte, tinha impreterivelmente de estar em Nova Iorque. Depois de ter encontrado a moeda, Melanie inseriu-a na ranhura e marcou o número.
— Está lá?
O coração de Mel batia com força quando ele atendeu, interrogando-se acerca dos motivos que o haviam levado a telefonar-lhe para o aeroporto.
— Peter, daqui fala Melanie, restam-me apenas dois minutos para poder embarcar.
— Eu também não disponho de muito mais tempo do que isso. — A sua voz soava tensa. — Acabamos de saber que há um doador compatível com a Marie Dupret. Neste momento, já estou de saída para o hospital e pensei em informá-la, na hipótese de estar interessada em ficar por cá mais algum tempo.
Os pensamentos de Melanie corriam velozmente enquanto ouvia o que Peter lhe dizia; por uma fração de segundos, sentiu-se decepcionada. De início pensara que ele lhe tinha telefonado com o propósito de se despedir, mas naquele momento sentia a adrenalina a fluir-lhe através do organismo, ao pensar no transplante do coração. Agora Marie tinha uma hipótese de viver.
— Não sabia se estaria disposta a alterar os seus planos — continuou Peter. — No entanto, pareceu-me que deveria informá-la se fosse esse o caso. Nem sequer tinha a certeza de qual era a companhia aérea do seu vôo, de maneira que adivinhei ao acaso. — O palpite dele provou ser correto.
— Apanhou-me por uma unha negra — retorquiu Melanie, franzindo a testa. — Permite-nos que filmemos o transplante? — Seria um acréscimo sensacional à reportagem, além de que lhe proporcionaria uma justificação da sua permanência em Los Angeles durante mais um dia.
— De acordo — anuiu Peter, depois de uma longa pausa. — Consegue arranjar uma equipe de filmagens que possa dirigir-se imediatamente ao hospital?
— Posso tentar — respondeu Melanie. — Tenho de obter autorização de Nova Iorque para poder ficar mais tempo. — O tempo de que necessitaria para telefonar poderia custar-lhe aquele vôo. — Não sei o que é que poderei fazer. Seja de que maneira for, deixar-lhe-ei uma mensagem no hospital.
— Ótimo. Agora tenho de me ir embora. Até mais tarde.
O tom de voz de Peter era formal e brusco, como se estivesse a tratar de um negócio; desligou sem mais qualquer palavra.
Melanie deixou-se ficar alguns instantes na cabina telefônica, a alinhar os seus pensamentos. A primeira medida que teria de tomar era falar com a supervisora de terra que se encontrava de serviço à porta de embarque. Não era a primeira vez que fazia aquilo e, se a sorte estivesse do seu lado, eles deteriam o vôo durante cinco ou dez minutos, o que lhe permitiria o tempo necessário para telefonar para Nova Iorque. Só esperava conseguir contatar alguém na estação de televisão, com responsabilidade suficiente para lhe garantir a autorização. Sem mais delongas, Melanie agarrou no saco de viagem e na pasta, desatando a correr para a porta de embarque, onde encontrou a supervisora de terra; começou a explicar quem era, ao mesmo tempo em que exibia o cartão de imprensa da cadeia de televisão.
— É possível deter o vôo durante dez minutos por minha causa? — perguntou Melanie. — Tenho de telefonar para Nova Iorque devido a uma grande reportagem.
A supervisora não se mostrou muito satisfeita, mas era freqüente as companhias de aviação fazerem favores especiais às pessoas da categoria de Melanie como, por exemplo, arranjarem-lhes lugar em vôos lotados, ainda que isso significasse impedirem o embarque de qualquer outro passageiro, que não tinha a mínima suspeita do que se estava a passar, ou então, atrasarem um vôo que se preparava para decolar, como era o caso.
— Concedo-lhe dez minutos, mas devo dizer que muito mais do que isso é impossível. — Era extremamente dispendioso para as companhias aéreas fazerem coisas daquele gênero. A supervisora voltou às costas a Melanie e começou a falar através de um pequeno transmissor portátil que trazia consigo.
Entretanto, Mel correu para um telefone público, efetuando o telefonema com o seu cartão de crédito. A telefonista passou imediatamente a chamada para a sala da redação; no entanto, foram precisos quatro minutos preciosos até se encontrar um assistente de produção e um diretor de reportagens que pudessem discutir o assunto com Mel ao telefone.
— O que é que se passa?
— Um verdadeiro furo! Uma das pessoas que entrevistei era uma doente à espera de um transplante. Acabei de receber um telefonema do doutor Hallam a dizer-me que tinham encontrado um doador e que a vão operar agora. Posso ficar e levar uma equipe de filmagens para o Hospital Central, a fim de filmarmos a operação? — Melanie estava quase sem respiração devido ao entusiasmo que sentia e de ter corrido até ao telefone.
— Não o filmaste antes no bloco operatório?
— Não — respondeu ela, sustendo a respiração, sabendo que aquela pergunta poderia decidir tudo.
— Nesse caso, podes ficar. Mas amanhã à noite põe-te a mexer e só podes parar em Nova Iorque.
— Sim senhor — retorquiu Melanie e, fazendo uma careta risonha enquanto desligava o telefone, começou a dirigir-se num passo apressado para a porta de embarque.
Disse à supervisora que não seguia naquele vôo, após o que telefonou para a estação local da cadeia de televisão, pedindo que lhe enviassem uma equipe de filmagens. Em seguida, dirigiu-se apressadamente para a saída do aeroporto, a fim de apanhar um táxi, esperando que a companhia de aviação lhe guardasse a bagagem em Nova Iorque, tal como havia prometido.
Quando Melanie chegou ao hospital, a equipe de filmagens já se encontrava à sua espera no átrio; subiram no elevador para o piso do bloco operatório. Antes de vestirem roupas de cirurgia e de colocarem máscaras e toucas, todos se lavaram escrupulosamente. Tinha-lhes sido designado um canto na sala, no qual seriam obrigados a instalar o equipamento de filmagem e de onde não poderiam sair. Apesar das restrições, Melanie mostrou-se irredutível, dizendo que teriam de agir de acordo com os regulamentos; sentia-se extremamente grata por Peter ter permitido a sua presença na sala de operações, pelo que não tinha intenções de abusar daquele privilégio.
Por fim, Marie fez a sua entrada na sala de operações, deitada numa maca com as proteções laterais levantadas. Mantinha os olhos cerrados e a sua tez estava de uma palidez que era prenúncio de morte. Não executou qualquer movimento até Peter ter entrado; este já envergara as roupas adequadas à intervenção cirúrgica. O cirurgião começou a falar com a sua doente. Naquela altura, Peter Hallam nem sequer pareceu dar pela presença de Melanie, embora tivesse olhado uma vez de relance para a equipe de filmagens, dando a impressão de que se sentia satisfeito por permanecerem no lugar que lhes fora previamente designado. Pouco depois, todo aquele processo teve o seu início, enquanto Mel observava tudo com uma expressão de fascínio no rosto.
Peter olhava constantemente para os monitores, após o que começou a dar uma série de instruções à sua equipe. Todos os membros do corpo clínico se movimentavam em uníssono, como se executassem uma dança intrincada com as mãos, passando-lhe instrumentos cirúrgicos que iam sendo retirados de um tabuleiro enorme.
Quando fizeram a primeira incisão, Melanie desviou o olhar; porém, depois disso, sentiu-se mesmerizada pela intensidade daquela cena e, hora após hora, permaneceu ali a observar com toda a atenção, enquanto rezava em silêncio pela vida de Marie. A equipe médica trabalhava sem se deter, com a finalidade de substituir o seu coração moribundo por um novo, que pertencera a uma jovem mulher que morrera apenas algumas horas antes. A observação da forma como os médicos retiravam do peito o coração deteriorado, colocando-o dentro de uma bacia de aço inoxidável, era fascinante.
Melanie nem sequer sentia a respiração acelerada ao ver os cirurgiões baixarem o novo coração até o interior da cavidade que tinham posto a descoberto, com as válvulas, artérias e demais vasos sanguíneos a serem ligados ao órgão através do trabalho daquelas mãos que se movimentavam continuamente e com toda a agilidade sobre o peito da jovem. Susteve a respiração e então, subitamente, os monitores regressaram de novo à vida e as pulsações do coração, que eram vigiadas através dos monitores, fizeram-se ouvir na sala de operações, como se fossem as batidas de um tambor. A equipe deu um grito de celebração. Era realmente extraordinário o que os médicos tinham acabado de fazer. O coração, que permanecera inanimado após a morte da sua doadora, tinha adquirido vida de novo ao ser colocado dentro do corpo de Marie Dupret.
Depois daquela fase, a intervenção cirúrgica prosseguiu por mais duas horas, até que, finalmente, a última incisão foi suturada e Peter afastou-se da mesa de operações; tinha as costas e o peito encharcados em suor e os braços doridos devido àquele trabalho minucioso. Observou os membros da sua equipe a empurrarem com lentidão a maca que levava Marie para fora do bloco operatório, conduzindo-a para um cubículo próximo, onde seria mantida sob vigilância constante, durante várias horas. No decorrer das próximas seis ou oito horas, ele próprio ficaria ali, para se certificar de que tudo se encontrava a correr pelo melhor. Naquele momento, dava a impressão de que a situação se encontrava sob controle. Peter saiu para o corredor onde respirou profundamente.
Entretanto Melanie foi atrás dele, sentindo as pernas a vacilarem. Observá-lo a trabalhar constituíra uma experiência empolgante e estava-lhe muito grata por ele lhe ter telefonado para o aeroporto. Peter trocou algumas palavras com os colegas, ainda com as roupas de cirurgia, depois de ter tirado a máscara que lançara para cima de uma mesa e, durante alguns minutos, Melanie falou com os membros da sua equipe de filmagens. Estavam prontos para regressar a casa, sentindo-se extremamente impressionados com o que tinham acabado de presenciar.
— Bolas, aquele tipo é mesmo bom! — comentou o chefe da equipe de filmagens, despindo a bata azul e acendendo um cigarro, para logo de seguida se interrogar quanto à sensatez do que acabara de fazer, apenas conseguindo pensar no que haviam acabado de registrar em filme; continuava a ter na mente aquelas mãos em constante movimento, o trabalho a dois, por vezes dois pares de mãos em conjunto, sem que se detivessem por um segundo, enquanto agarravam em pequenas seções de tecidos que necessitavam de ser reparados e manuseavam veias pouco mais espessas do que um fio de cabelo. — É isto que faz com que acreditemos em milagres — acrescentou ele, olhando para Melanie com uma expressão de incredulidade, enquanto lhe apertava a mão. — Foi muito agradável trabalhar consigo.
— Eu é que vos estou muito agradecida por terem conseguido chegar ao hospital com tanta rapidez — retorquiu ela com um sorriso, após o que ambos começaram a rever alguns apontamentos.
O homem disse-lhe que no dia seguinte o filme já estaria em Nova Iorque, para que pudesse ser montado juntamente com o outro material que ela já tinha em seu poder. Em seguida, o chefe da equipe de filmagens e os restantes membros foram-se embora, e Melanie foi trocar de roupa. Ficou surpreendida ao ver que Peter também envergava o vestuário com que fora para o hospital. Sem saber bem por que motivo, ficara com a impressão de que o médico iria permanecer na sala de operações, envergando as roupas de cirurgião. Mel não sabia explicar bem o que é que a levara a imaginar aquilo. Não deixava de ser estranho vê-lo de novo como um comum mortal.
— Como é que correu a operação? — perguntou Melanie quando ambos se encaminhavam para o corredor. Tinha a sensação de que nunca chegara a sair do hospital e algo no mais fundo do seu íntimo sobressaltou-se, ao ver Peter de novo.
— Até o momento está tudo bem, apesar das próximas vinte e quatro horas serem cruciais para Marie — respondeu ele. — É imprescindível que vigiemos a evolução do seu estado clínico. Antes de iniciarmos a operação, ela estava terrivelmente enfraquecida. Reparou naquele coração? Assemelhava-se a um bocado de pedra; não tinha absolutamente mais nada a dar. Não me parece que ela tivesse a mínima hipótese de sobreviver por mais vinte e quatro horas. Marie teve uma sorte dos diabos por termos conseguido arranjar aquela doadora a tempo.
Doadora... doadora. Sem rosto. Sem nome. Sem passado... muito simplesmente doadora, um coração anônimo a bater no corpo de uma pessoa conhecida com um rosto como o de Marie. Melanie ainda tinha uma certa dificuldade em absorver aquele conceito, a despeito do fato de ter tido a oportunidade de observar toda a intervenção cirúrgica ao longo de quatro horas. Olhou para o relógio e ficou surpreendida ao verificar que já passava bastante das seis horas da manhã— quando olhou para fora verificou que o sol começara a despontar. A noite tinha passado num ápice e Marie continuava viva.
— A Mel deve estar exausta — comentou Peter, olhando para ela com toda a atenção e reparando nas olheiras escuras que tinham começado a aparecer. — Permanecer na sala de operações como simples observador é mais cansativo do que quando se está a operar.
— Duvido muito dessa sua teoria — disse Melanie e contra a sua vontade, bocejou e perguntou a si mesma como é que Marie se sentiria quando despertasse da anestesia.
Aquela fase seria a pior e ela não invejava a doente. Depois da intervenção cirúrgica, Marie ainda seria obrigada a passar por um mau bocado, mesmo mais do que sofrera anteriormente. O seu organismo deveria absorver os medicamentos tendo de lutar contra o processo de rejeição e possíveis infecções, para não mencionar as dores provocadas pela incisão que lhe fora feita a toda a largura do peito para os médicos a poderem operar. Mel sentiu-se estremecer devido ao horror que aquele pensamento lhe provocava.
Peter apercebeu-se de que ela começava a empalidecer e, sem qualquer hesitação, empurrou-a para a cadeira mais próxima. Já tivera bastantes oportunidades de observar aqueles sintomas e apercebeu-se deles antes mesmo de Melanie compreender que estava prestes a desmaiar. Suavemente empurrou-lhe a cabeça na direção dos joelhos, servindo-se das suas mãos poderosas; Mel ficou demasiado surpreendida para dizer fosse o que fosse.
— Respire fundo, devagar e depois solte o ar através da boca — explicou o médico.
Ela preparava-se para fazer um comentário jocoso, mas subitamente apercebeu-se de que estava a sentir-se demasiado nauseada para conseguir falar; depois de se ter recomposto, olhou para Peter, perplexa.
— Nem sequer me apercebi de que ia sentir-me mal.
— Talvez não, minha amiga, mas o fato é que há pouco a sua pele adquiriu um tom esverdeado deveras interessante. Deve ir até lá embaixo comer qualquer coisa e em seguida regressar ao seu hotel para dormir. — Foi então que lhe ocorreu que ela já deixara o hotel, o que significava que não tinha um quarto onde ficar. — Por que não vai para minha casa descansar um pouco? Mistress Hahn poderá instalá-la no quarto de hóspedes e as crianças nem se darão conta da sua presença. — Olhou para o relógio. Faltavam poucos minutos para as sete. — Eu telefono-lhe a avisá-la da sua chegada.
— Não. Não faça isso. Eu posso regressar ao hotel onde estive — retorquiu Melanie.
— Isso é um disparate! Por que razão é que há de dar-se a esse trabalho, quando pode muito bem dormir em minha casa? — acrescentou Peter. — Ninguém a incomodará durante o dia todo.
Era uma oferta generosa; no entanto, Melanie não sabia se seria a mais acertada. Porém, quando se levantou da cadeira, verificou que se sentia demasiado fatigada para argumentar com ele ou até mesmo para telefonar para o hotel a fim de marcar um quarto. Quando Peter se dirigiu para uma mesa e agarrou num telefone, ela deixou-se ficar a observá-lo como se fosse uma criança exausta. Depois do telefonema, ele aproximou-se dela de novo com uma aparência tão fresca como a que tivera na manhã anterior, embora também tivesse passado a noite toda sem dormir. Peter parecia estar habituado àquela rotina, além de que continuava muito excitado por causa do êxito da operação.
— Mistress Hahn estará à sua espera quando a Mel chegar a minha casa. As crianças não se levantam da cama antes das oito, exceto o Mark, que já saiu de casa. — Peter olhou à sua volta e descobriu uma enfermeira com quem falou rapidamente, após o que foi de novo para junto de Melanie.
— Está tudo a correr bem com a Marie e eu vou consigo até lá embaixo para colocá-la num táxi. Depois volto aqui para examinar a Marie.
— Não é preciso. É um disparate. — redargüiu Melanie, constrangida. Toda aquela situação era ridícula; já fizera reportagens sobre assassínios em massa, guerras e agora, tinha a sensação de que todo o seu corpo se preparava para derreter. Sentiu-se grata pelo braço que Peter lhe oferecera enquanto a conduzia pelas escadas abaixo. — Devo estar a ficar velha — comentou Melanie com um sorriso pesaroso, quando aguardava a chegada de um táxi. — Não deveria sentir-me assim tão fatigada.
— Trata-se apenas de uma questão de enfraquecimento. Todos nós acabamos mais cedo ou mais tarde por senti-lo. O que acontece é que ainda não me atingiu — replicou ele.
— Quando surgir, o que é que fará?
— Fico sossegado e tenciono dormir no hospital durante algumas horas, isto é se tiver oportunidade para isso. Ontem à noite, depois de lhe ter telefonado para o aeroporto, liguei à minha secretária e disse-lhe que cancelasse tudo o que tinha agendado para hoje. Esta manhã, outro dos médicos da equipe substituir-me-á e à tarde eu próprio farei a ronda aos meus doentes. — Melanie sabia que Peter deveria estar prestes a cair de cansaço, embora não o mostrasse. O médico estava tão dinâmico e ativo como algumas horas antes. Peter olhou para ela enquanto se inclinava para ajudá-la a sentar-se dentro do táxi. — Quando é que está a pensar regressar a Nova Iorque?
— É necessário que volte esta noite. Não me permitem que fique nem mais um dia — respondeu Melanie.
Peter acenou com a cabeça, satisfeito por ter conseguido contatá-la na noite anterior, antes de ela ter embarcado no avião.
— De qualquer das maneiras, não haverá mais nada para filmar, Mel — acrescentou ele. — A partir de agora, o nosso trabalho limita-se a vigiar e a tentar dosar corretamente os medicamentos para níveis que a Marie consiga tolerar. Ontem à noite viu tudo o que havia para ver.
Melanie fixou os olhos de Peter.
— Estou-lhe muito agradecida por nos ter permitido assistir e filmar a operação.
— A sua presença foi muito agradável. Agora vá-se embora e durma um pouco.
Peter deu ao motorista do táxi o seu endereço e fechou a porta antes de o veículo desaparecer no meio do trânsito de Los Angeles, seguindo em direção a Bel-Air. Enquanto a observava a afastar-se, sentiu-se inesperadamente satisfeito por ela ainda não ter partido e por saber que dentro de algumas horas voltariam a encontrar-se. Sentia-se tão confuso quanto Melanie a respeito dos seus sentimentos. Mas não havia dúvida de que sentia algo por ela. Isso era certo.
Na casa em Bel-Air, Mrs. Hahn permanecia junto da janela, aguardando a chegada de Melanie. Quando esta chegou, saudou-a com um olá emitido de má vontade e subiu as escadas com ela, acompanhando-a até ao quarto de hóspedes. Mel agradeceu-lhe e ficou a olhar para o que a rodeava; sentia-se esfaimada e a cair de cansaço e ansiava por um bom banho quente de imersão. Contudo, estava demasiado exausta para fazer fosse o que fosse. Deixou cair ao lado da cama a pasta e o saco de viagem, perguntando-se se o resto da bagagem estaria à sua espera quando chegasse a Nova Iorque, mas, naquele momento, a realidade é que não estava muito preocupada com isso. Completamente vestida, deitou-se em cima da cama e começou a dormitar, sonhando com Marie e com Peter, quando ouviu uma pancada suave na porta do quarto. Virou-se para o outro lado, forçando-se a despertar.
— Sim? — perguntou.
Era Mrs. Hahn que trazia um pequeno tabuleiro de vime.
— O senhor doutor acha que deveria comer alguma coisa — disse a governanta. Melanie sentiu-se como uma doente, ao olhar para o prato onde fumegavam ovos mexidos, algumas torradas e uma caneca cheia de chocolate quente, cujo aroma lhe subiu às narinas e se espalhou por todo o quarto.
— Não lhe trouxe café para que pudesse dormir melhor.
— Muitíssimo obrigada — agradeceu Melanie.
Sentia-se constrangida por ter alguém a servi-la na cama, mas, por outro lado, a comida tinha um aspecto extremamente apetitoso; sentou-se à beira do leito, com o casaco amarrotado; a blusa cheia de vincos e os cabelos despenteados, uma vez que não se tinha despido antes de se deitar.
Sem proferir mais qualquer palavra, Mrs. Hahn pousou o tabuleiro numa pequena mesa-de-cabeceira e saiu do quarto.
Entretanto Melanie começara a devorar os ovos mexidos e as torradas, esfomeada. Pouco depois, começou a ouvir o ruído abafado de passos no andar de cima, interrogando-se sobre se seria Matthew ou Pamela a prepararem-se para a escola. No entanto, não tinha forças suficientes para se comportar com educação, indo ao andar de cima para cumprimentá-los. Acabou de beber o chocolate quente, comeu o resto da torrada e voltou a deitar-se, com a sensação de que estava saciada e exausta; sentia-se satisfeita com a noite de trabalho. Permaneceu deitada de costas e cerrou os olhos com a cabeça apoiada nos braços.
Quando acordou já eram três da tarde. Olhou para o relógio de pulso e ficou admirada. Pôs-se em pé de um salto, mas lembrou-se de que não teria de ir a parte alguma. Perguntou a si mesma o que é que Mrs. Hahn haveria de pensar por ela ter dormido o dia todo. As crianças também deveriam estar a chegar em casa a qualquer minuto. Quando finalmente adormecera, tinham elas acabado de se levantar, preparando-se para a escola. Pouco depois, enquanto andava de um lado para o outro no quarto, perguntou a si própria como é que Marie teria passado as últimas sete horas.
Entretanto, reparou num telefone sobre uma mesa no outro lado do quarto e descalça, só com as meias, aproximou-se do aparelho, ao mesmo tempo em que inspecionava as roupas todas amarrotadas que ainda vestia. Ligou imediatamente para o hospital e pediu que lhe ligassem ao piso da cirurgia. Quando a atenderam, disse que pretendia falar com o Dr. Hallam. A mulher que a atendeu informou-a de que de momento o médico não podia atender ao telefone. Melanie imaginou que ele também estivesse a dormir.
— Estou a telefonar para saber como que se encontra Marie Dupret, a doente que ontem noite recebeu um transplante do coração. — Do outro lado da linha fez-se silêncio. — Daqui fala Melanie Adams. Durante a operação eu estive no bloco operatório.
Não teve necessidade de acrescentar nada mais. Toda a gente no hospital sabia quem ela era, e que o motivo da sua presença se devia ao fato de estar a fazer uma reportagem acerca do Dr. Peter Hallam e de Pattie Lou Jones.
— Aguarde só um momento, por favor. — A voz expressava-se de maneira concisa.
Melanie aguardou e, alguns instantes mais tarde, ouviu uma voz que lhe era familiar.
— Já está acordada? — perguntou Peter.
— Não muito, mas sinto-me mortificada por ter dormido quase toda a tarde.
— Tretas. Estava a precisar de descansar — atalhou ele. — Quando saiu do hospital, por pouco não desmaiou. Mistress Hahn preparou-lhe alguma coisa de comer?
— Com certeza que sim. A sua casa é o melhor hotel da cidade — respondeu Melanie, sorrindo ao olhar à sua volta e observando aquele quarto tão bem decorado e confortável; uma vez mais, calculou que tudo aquilo fora obra de Anne.
— Como é que está a Marie?
— Está a se recuperar de uma maneira esplêndida. — A voz de Peter ecoava de satisfação. — Ontem à noite não me foi possível dispor do tempo necessário para lhe explicar, mas utilizamos uma nova técnica que deu bons resultados. Mais tarde eu desenho-lhe alguns esboços que exemplifiquem melhor o processo a que estou a referir-me. No entanto, por agora basta dizer-lhe que até o momento está tudo a correr da melhor maneira possível. Em qualquer dos casos, somente depois de decorrida pelo menos uma semana é que saberemos se existirá algum problema de rejeição.
— Daqui a quanto tempo é que lhe parece que ela esteja fora de perigo? — continuou Melanie.
— Algum tempo — retorquiu Peter. Melanie sabia que seria pelo resto da sua vida. — Estamos convencidos de que ela irá sair-se muito bem. A Marie reunia todas as condições para que a operação seja um êxito.
— Espero que ela não defraude as suas expectativas — desejou ela.
— Também eu — acrescentou Peter.
Melanie admirou-se uma vez mais ao verificar o quão pouco ele chamava a si os louros pelo sucesso daquela operação; não conseguia impedir-se de sentir uma grande admiração por aquele homem.
— Conseguiu dormir alguma coisa? — perguntou ela.
— Um pouco. — A resposta dele era vaga. — Decidi que seria eu próprio a fazer esta manhã a ronda aos meus doentes e depois disso deitei-me um bocado. Provavelmente esta noite irei cedo para casa, o que me permitirá jantar com os miúdos. Nessa altura já poderei deixar outra pessoa encarregada dos meus doentes no hospital. — Naquele momento ocorreu-lhe um pensamento. — Encontramo-nos nessa altura, Mel. — O tom da voz de Peter era tão caloroso e amigável que fez com que ela de súbito sentisse uma grande vontade de voltar a vê-lo.
— Os seus filhos vão ficar fartos da minha presença — disse Melanie.
— Duvido muito disso. Vão ficar todos satisfeitos por a Mel ainda se encontrar por aqui, e o mesmo se passa comigo. A que horas é que é o seu vôo? Ou ainda não teve oportunidade de pensar nisso? — perguntou Peter.
— Imagino que apanharei o mesmo vôo esta noite. — Melanie sentia-se suficientemente descansada para poder suportar os olhos vermelhos, depois de ter dormido durante quase todo o dia. — Vou ter de sair daqui por volta das oito horas.
— Esse horário enquadra-se perfeitamente no nosso. Mistress Hahn tem por hábito servir-nos o jantar sempre às sete da noite e, se tudo correr bem no hospital, penso chegar a casa por volta das seis. No caso de surgir algum imprevisto, eu telefono-lhe.
Durante breves instantes, Melanie quase conseguia imaginá-lo a dizer exatamente as mesmas palavras a Anne. Ouvi-lo provocou-lhe uma sensação de estranheza, como se ela estivesse a tentar ocupar o lugar da mulher que morrera. Ralhou consigo mesma por causa daquele disparate, enquanto Peter desligava o telefone, depois de se despedir. Não havia nada de invulgar no que ele acabara de dizer e Melanie sentiu-se irritada consigo própria por ter, uma vez mais, dado largas à sua imaginação.
Para tentar não pensar em Peter, entrou na casa de banho e abriu a água na força máxima, depois de ter estendido as roupas que usara sobre a cama; colocou-se debaixo da água envolta pelo vapor. Ocorreu-lhe então que podia aproveitar para nadar na piscina; todavia, ainda não lhe apetecia sair do quarto. Melanie necessitava de mais algum tempo para despertar completamente e para aclarar as idéias. Fora uma noite muito longa. Quando saiu do chuveiro lembrou-se de que tinha de telefonar para o estúdio em Nova Iorque e depois para Raquel.
Na noite anterior, Melanie pedira ao diretor do noticiário que telefonasse para sua casa, avisando que ela não seguia no avião da noite, e esperava que ele não se tivesse esquecido do seu recado. Raquel confirmou-lhe isso quando ligou para casa. As filhas tinham ficado tristes ao saberem que a mãe não regressara naquela manhã, mas Melanie prometeu-lhes que na manhã seguinte estaria sem falta em Nova Iorque. Em seguida, ligou para a sala da redação da estação de televisão, para informá-los de que estava tudo bem. Assegurou-lhes que o transplante do coração fora coroado do maior êxito e que tinham conseguido filmar todos os momentos da operação.
— Rapazes, vai ser uma reportagem estrondosa! Vocês vão ver — afirmou ela.
— De acordo. Vai ser bom ter-te de novo no estúdio, Melanie.
No entanto, ela não estava inteiramente de acordo. Não se sentia ansiosa por deixar Los Angeles ou Peter, parecia-lhe que existia ali um grande número de razões a prendê-la: Pattie Lou, Peter, Marie. Sabia bem que todas elas não passavam de meras desculpas; ainda assim, não lhe apetecia partir.
Largou o telefone e começou a vestir-se. Pouco depois, saiu do quarto e foi à procura de Mrs. Hahn. Encontrou-a na cozinha, a assar carne para o jantar daquela noite. Melanie agradeceu-lhe outra vez o pequeno-almoço que ela lhe levara à cama, e desculpou-se por ter dormido quase todo o dia.
Mrs. Hahn não deu mostras de estar muito interessada no que ela dizia.
— O senhor doutor disse que foi para isso que a senhora veio para cá. Quer que lhe arranje alguma coisa para comer?
A mulher era eficiente, mas carecia de cordialidade e havia algo de intimidativo na maneira como ela falava e se movimentava.
Decididamente, Mrs. Hahn não era a espécie de governanta que Mel desejaria que convivesse com as suas filhas e não compreendia como é que Peter a aceitava tão bem. Ele parecia-lhe ser um homem caloroso e dada a ausência da mulher... Mas, uma vez mais, recordou-se de que Mrs. Hahn fora contratada por Anne. A sagrada Anne.
Melanie declinou a oferta de comida e decidiu-se por uma chávena de café simples e ela mesma fez uma torrada. Em seguida, foi sentar-se no jardim de inverno que tinha muita luminosidade, ainda mais realçada pelo mobiliário de vime pintado de branco.
Na opinião de Melanie, aquela era a sala mais soalheira da casa e na qual se sentia mais confortavelmente. A formalidade das outras dependências deixava-a pouco à vontade, o que não acontecia com aquela sala; estendeu-se num sofá comprido e começou a comer a torrada, olhando para a vista tranqüila que a piscina lhe proporcionava. Nem sequer ouviu o som de passos, não fazendo a mínima idéia de que não estava sozinha, até ouvir a voz.
— O que é que está a fazer aqui?
Melanie deu um salto, sentindo-se sobressaltada e entornando café numa perna; graças às calças de gabardina preta, não se queimou. Quando se virou na direção da voz, deparou com Pam.
— Olá. Pregaste-me um susto de morte! — disse Mel com um sorriso que não foi retribuído.
— Pensei que já estava em Nova Iorque.
— Estive prestes a partir, mas decidi ficar para assistir a um transplante que o teu pai fez ontem à noite. Foi extraordinário. — Os olhos de Melanie iluminaram-se ao recordar-se de novo das mãos ágeis de Peter; no entanto, a filha do médico mostrava-se pouco impressionada e bastante mal-humorada.
— Oh, sim — retorquiu Pam, desinteressada.
— Como é que foi a escola hoje, Pam? — continuou Melanie.
— Esta era a sala preferida da minha mãe — replicou a rapariga, olhando-a fixamente.
— Compreendo porque. A mim também me agrada porque recebe muita luz do sol. — Mas aquele comentário apenas viera reforçar o constrangimento que existia entre as duas, tal como fora intenção de Pamela.
A rapariga sentou-se com movimentos lentos no outro lado da sala, em frente de Mel e a olhar através da janela.
— Ela costumava sentar-se aqui todos os dias e ficava a ver-me a brincar na piscina — acrescentou Pam. A sala encontrava-se bem posicionada para isso, além de ser um local agradável para se estar.
Melanie observava a expressão de Pamela, não lhe escapando a tristeza que aquele rosto refletia. Decidiu pegar o touro pelos cornos.
— Tenho certeza de que sentes imensas saudades da tua mãe — disse ela.
Houve algo que endureceu nas faces da rapariga, a qual levou muito tempo a replicar.
— A minha mãe poderia ter sido operada, mas não confiava no meu pai para lhe fazer a operação.
Aquilo era uma coisa brutal de se dizer e, por dentro, Melanie encolheu-se toda ao considerar a hipótese de a rapariga pensar naqueles moldes quanto à decisão que Anne tomara.
— Não me parece que tenha sido tão simples como isso — argumentou Melanie.
— O que é que a senhora sabe acerca deste assunto, exceto o que ele lhe disse? — ripostou Pam, levantando-se de um salto.
— Tratava-se de uma escolha que a tua mãe tinha todo o direito de fazer. — Melanie dava-se conta de que estava a entrar em terrenos extremamente delicados. — Existem ocasiões em que é bastante difícil compreender os motivos que levam as pessoas a fazer determinadas coisas.
— Em qualquer dos casos, ele não poderia tê-la salvo — contrapôs Pam, que começara a andar de um lado para o outro na sala, denotando nervosismo. Melanie observava-a. — Nesta altura já ela teria morrido, mesmo que o transplante do coração se tivesse realizado — concluiu.
Melanie acenou lentamente com a cabeça; era bastante plausível que assim fosse.
— O que é que terias preferido que a tua mãe tivesse decidido? — perguntou ela.
Pam encolheu os ombros e afastou-se.
Mel reparou que os ombros da rapariga estremeciam. Sem pensar duas vezes, aproximou-se dela.
— Pam. — Lentamente, Melanie virou-a de frente para si e viu as lágrimas a correrem pelas suas faces; suavemente, abraçou-a e deixou-a chorar à vontade. Pam manteve-se encostada a Mel durante alguns minutos, enquanto esta lhe acariciava os cabelos com gestos suaves. — Lamento muito, Pamela.
— Sim. Também eu — retorquiu a jovem, afastando-se bruscamente e sentando-se de novo, enquanto limpava as lágrimas com a manga. Olhou outra vez para Melanie com uma expressão cheia de sofrimento. — Eu gostava tanto da minha mãe!
— Tenho a certeza de que ela também sentia muito amor por ti — afirmou Mel.
— Então, por que motivo é que ela não tentou? Pelo menos poderia ter estado junto de nós até agora.
— Não sei qual é a resposta a essa pergunta. Talvez ninguém saiba. Tenho a impressão de que o teu pai faz a si próprio a mesma pergunta vezes sem conta, mas vocês têm de continuar com a vossa vida — continuou Melanie. — Apesar do sofrimento que sentem, não vos resta nada mais a fazer.
Pam acenou com a cabeça em silêncio e fitou Melanie.
— Durante algum tempo, recusei-me a comer. Imagino que também desejava morrer. Pelo menos foi essa a conclusão a que o psiquiatra chegou. O Mark é da opinião de que eu procedi assim apenas para irritar o papai, mas não é verdade. Foi mais forte do que eu.
— O teu pai compreende isso — retrucou Melanie. — Sentes-te melhor agora em relação a essa situação do que nessa altura?
— Às vezes — respondeu Pam. — Não sei bem.
Melanie pouco podia fazer ou dizer para aliviar tanto sofrimento. Podia apenas oferecer a sua amizade. Pamela tinha dois irmãos e nenhum deles a poderia ajudar muito, uma governanta alemã que era dura que nem uma pedra, incapaz de oferecer carinho, e um pai que se encontrava sempre demasiado ocupado a salvar a vida das outras pessoas. Aquela criança necessitava de outra pessoa, mas quem? Durante alguns instantes, Melanie desejou poder estar presente para ajudá-la no que pudesse, mas tinha a sua própria vida a cerca de cinco mil quilômetros de distância, as suas próprias filhas e os seus problemas, para já não falar na sua profissão.
— Sabes, Pam, teria o maior prazer em que me visitasses em Nova Iorque, um dia destes.
— O mais certo era as suas filhas pensarem que eu sou uma parva. Os meus irmãos acham que eu sou estúpida.
Pamela fungou ruidosamente e ficou com a expressão de uma criancinha.
— Espero que elas sejam suficientemente inteligentes para não terem atitudes dessas — retorquiu Melanie com um sorriso pleno de suavidade. — Os rapazes nem sempre compreendem o que se passa com os outros. O Mark está a atravessar a sua própria fase de crescimento, com todos os ajustes que é obrigado a fazer, e o Matthew é demasiado pequeno para te poder dar apoio.
— Não, não sou — disse uma vozinha esganiçada. Nenhuma delas tinha dado pela sua presença na sala. Matt acabara de chegar da escola; quem o trouxera fora uma das mães que se revezavam no transporte das crianças. — Sei fazer a minha cama, tomo banho sozinho e sei aquecer sopa — acrescentou ele, sentindo-se ofendido. Melanie sorriu-lhe e até mesmo Pam se riu ao ouvir o irmão.
— Eu sei que és um menino muito bem-comportado — afirmou Mel.
— Voltou para cá? — perguntou Matt, mostrando-se satisfeito ao aproximar-se dela e sentando-se numa cadeira próxima.
— Não, só me vou embora um pouco mais tarde do que tinha pensado. Como é que foi o teu dia, meu amigo? — perguntou Melanie.
— Bastante bom — respondeu o rapazinho, olhando fixamente para a irmã. — Por que é que estás a chorar outra vez? — Antes de Pam ter tido oportunidade de responder, Matthew virou-se para Melanie. — Ela passa a vida a chorar. As raparigas são parvas.
— Não são, não. Toda a gente chora. Até os homens crescidos — asseverou Mel.
— O meu papai nunca chora — continuou Matt, cheio de orgulho.
Melanie perguntou a si mesma se Peter representaria o papel de homem muito másculo perante o filho.
— Aposto que ele também chora — insistiu ela.
— Não — retorquiu o rapazinho num tom de firmeza.
Naquela altura, Pam decidiu intervir na conversa.
— Chora, sim. Eu vi-o, uma vez. Depois de... — Mas não chegou a concluir o seu pensamento. Não eram necessárias palavras. Todos eles compreendiam o que é que ela pretendera dizer.
Matt olhou para a irmã com uma expressão de grande intensidade.
— Isso não é verdade. Ele é duro e o Mark também é — defendeu o garoto.
Naquele momento, Mrs. Hahn entrou na sala, e insistiu para que o rapazito a acompanhasse para lavar as mãos e o rosto. Ele fez todos os seus esforços para lhe resistir, mas não havia maneira de demovê-la.
Melanie e Pamela ficaram de novo a sós.
— Pam. — Mel agarrou-lhe na mão. — Se houver alguma coisa que eu possa fazer por ti, se precisares de uma amiga, por favor telefona-me. Antes de me ir embora vou deixar-te o meu número de telefone. Podes ligar para minha casa, a pagar no destinatário, sempre que queiras. Eu não me importo que as pessoas desabafem comigo e, além do mais, Nova Iorque não é assim tão longe.
Pamela olhou para ela como quem pretendia certificar-se de que falava sinceramente, e em seguida acenou com a cabeça.
— Obrigada — agradeceu a rapariga.
— Estou a ser sincera. Podes dispor sempre de mim.
— Agora tenho de ir fazer os meus trabalhos de casa — disse Pamela, levantando-se. — Vai-se embora dentro de pouco tempo? — perguntou ainda, num misto de quem desejava que assim não fosse e o contrário; os seus sentimentos eram confusos, não sabendo bem o que sentia por Melanie.
— Parto para Nova Iorque hoje à noite. O mais provável é ficar por aqui até às oito — respondeu ela.
— Fica para jantar conosco? — inquiriu a jovem com uma expressão irritada.
Melanie recordou-se do que ela dissera.
— Talvez. Não tenho a certeza. Sentir-te-ias muito incomodada se eu jantasse em tua casa?
— Não — respondeu Pamela. À entrada da sala, voltou-se e perguntou: — Quer que eu lhe empreste outra vez o meu fato de banho?
— Parece-me que hoje não vou aproveitar a tua oferta, mas de qualquer forma agradeço-te.
— Com certeza. — Com um gesto de cabeça, Pam saiu da sala.
Alguns minutos mais tarde, Matthew regressou, trazendo dois livros que queria que Melanie lhe lesse. Era por demais evidente que tanto ele como a irmã sentiam uma enorme carência afetiva. O pequenito manteve Mel entretida e ocupada até Peter chegar e foi então que, finalmente, o dia começou a cobrar a sua dívida.
Estava pálido e fatigado e ela sentiu pena dele. Tinha muito a fazer naquela casa, com os filhos a sentirem necessidades tão diversas, ao mesmo tempo em que a sua profissão exigia tanto das suas energias e do seu tempo. Surpreendente era o fato de ainda lhe restar alguma para dedicar aos filhos.
— Qual é o estado da Marie? — perguntou Melanie com uma expressão de preocupação.
Peter esboçou um sorriso extenuado.
— O seu estado é muito satisfatório. Por acaso, o Matthew deu consigo em doida durante toda a tarde?
— De maneira nenhuma. E tive uma conversa muito agradável com a Pam.
A resposta de Melanie desconcertou Peter.
— Ora bem, isso já é alguma coisa. Apetece-lhe tomar uma bebida na sala de estar?
— Com certeza — retorquiu ela, aceitando o convite e acompanhando-o. Uma vez mais, Mel pediu-lhe desculpa por ter invadido a sua casa.
— O que está a dizer é ridículo — contrapôs Peter. Tenho a certeza de que a noite de ontem foi cansativa para si. Por que razão é que não haveria de ficar aqui por um dia?
— A oferta foi extremamente simpática da sua parte — replicou Melanie.
— Ótimo! — retorquiu Peter com um sorriso e oferecendo-lhe um copo de vinho. — A Mel também o é.
Parecia de novo mais meigo; à semelhança da filha, Peter parecia manter uma atitude alternadamente fria e calorosa em relação a Melanie, mas ela sentia as mesmas emoções em conflito e não sabia bem como lidar com elas. Limitou-se a olhá-lo nos olhos e a beber um pequeno gole do vinho. Ambos começaram a conversar sobre os assuntos do dia-a-dia do hospital, lugar que para ela já era familiar.
Antes de terminarem a segunda bebida, Mrs. Hahn bateu na porta com firmeza.
— O jantar está servido, senhor doutor — anunciou a governanta.
— Muito obrigado — agradeceu Peter, erguendo-se. Melanie imitou-o e seguiram lado a lado para a sala de jantar, onde Pam, Matt e Mark se lhes reuniram ao fim de breves instantes, tendo este chegado a casa não havia muito tempo.
Uma vez mais, Melanie viu-se no meio da conversa familiar do dia-a-dia. Sentia-se surpreendentemente à vontade na companhia deles e, quando chegou a hora de se ir embora para apanhar o avião, sentiu realmente pena de deixá-los. Abraçou Pamela, deu um beijo de despedida a Matthew e apertou a mão de Mark, não se esquecendo de agradecer a Mrs. Hahn, e teve realmente a sensação de que estava a despedir-se de velhos amigos. Então concentrou a sua atenção em Peter e apertou-lhe a mão.
— Uma vez mais, obrigada. De todos estes últimos dias, o de hoje foi o melhor — afirmou, olhando para as crianças que se mantinham perto, após o que se voltou para Peter. E agora é melhor telefonar a um táxi, caso contrário, terão de me aturar durante mais tempo.
— Não diga disparates. Eu vou levá-la ao aeroporto — disse ele num tom de voz que não admitia qualquer recusa.
— Nem pensar nisso. O Peter também esteve em pé a noite inteira e não dormiu o dia todo como eu.
— Dormi o suficiente. Vamos lá e deixe-se de disparates — retorquiu Peter. — Onde é que está a sua mala?
— Espero bem que esteja em Nova Iorque à minha espera — respondeu Melanie com uma gargalhada. Ele mostrou-se admirado e Mel explicou. — Ontem à noite, quando telefonou, eu já tinha despachado a bagagem para o avião.
Ao ouvir aquilo, Peter soltou uma gargalhada sonora.
— A Mel encara as situações adversas de bom humor — disse ele.
— Com as roupas um pouco amarrotadas, mas bem-humorada. Não teria perdido a oportunidade que me deu por nada deste mundo — retrucou Melanie, olhando para as calças de gabardina amarrotadas, e das quais se havia esquecido ao longo das últimas horas. Naquele lugar, o estado do seu vestuário não lhe parecia importante. — Mas não seja teimoso. Deixe- me chamar um táxi — insistiu Melanie enquanto olhava para o relógio; passavam quinze minutos das oito. — Tenho de sair já.
Peter tirou da algibeira as chaves do automóvel e acenou-lhe com elas.
— Despache-se! Vamo-nos embora — retorquiu ele, voltando-se para os filhos e para Mrs. Hahn. — Se telefonarem do hospital, digam que estarei em casa dentro de uma ou duas horas. Levo o meu pager, o que significa que se alguém tiver necessidade de me contatar poderá fazê-lo com facilidade.
Queria jogar pelo seguro e telefonou para o hospital para saber qual o estado de saúde de Pattie Lou e de Marie Dupret, antes de saírem de casa. O médico de serviço responsável pelas duas doentes informou-o de que ambas se encontravam bem. Concluído aquele assunto, Peter acompanhou Melanie até a porta, de onde esta acenou às crianças uma última vez, após o que ambos se dirigiram para o automóvel.
Melanie tinha a sensação de que alguém tomava as decisões por si; no entanto, isso era uma mudança agradável da rotina.
— Existe uma particularidade acerca de si, doutor. Tenho a impressão de que está a tomar decisões por mim e nem sequer posso dizer que me apeteça pôr quaisquer objeções à sua atitude.
— Suponho que essa minha faceta se deva ao fato de estar muito habituado a dar ordens — retorquiu Peter com uma gargalhada. — E a ser obedecido — concluiu com um sorriso.
— Também eu — continuou Melanie com uma careta risonha. — No entanto, sou forçada a admitir que, até certo ponto, é agradável receber ordens de alguém para variar, até mesmo no que diz respeito a uma coisa tão simples como chamar ou não um táxi.
— É o mínimo que posso fazer. Nos últimos quatro dias a Mel tem sido quase a minha sombra e tenho a impressão de que fez um trabalho maravilhoso.
— Não diga isso até ver o filme depois de terminado.
— A julgar pela maneira como trabalha, estou certo de que assim será — acrescentou Peter.
— Isso é ter muita fé no meu trabalho. Não estou certa de merecer tanta confiança.
— Sim, merece — retorquiu ele, olhando para ela. Mudando de assunto, como é que foi a sua conversa com a Pam? — perguntou, franzindo o sobrolho.
— Muito comovente — respondeu Melanie com um suspiro. — A sua filha não é uma criança muito feliz, não é verdade?
— Infelizmente, é verdade — admitiu Peter.
— Ela atormenta-se por causa da Anne. — Era estranho pronunciar o nome daquela que fora a mulher dele; saía-lhe dos lábios de uma forma esquisita. — Acho que com o decorrer do tempo ela conseguirá ultrapassar a dor que sente pela falta da mãe. Precisa é de falar com alguém que compreenda aquilo por que está a passar.
— A Pam tem consultas regulares com um psiquiatra — retorquiu Peter na defensiva.
— Ela precisa de mais do que isso. E... — Melanie hesitou por uma fração de segundos, tendo decidido seguir em frente. — Mistress Hahn não parece ser uma pessoa muito calorosa.
— E não é. Pelo menos à primeira vista, mas eu não duvido de que ela sente carinho pelos meus filhos, além de ser extremamente competente.
— A Pam necessita de alguém com quem possa abrir-se, e o Matt também.
— E o que é que me sugere? — perguntou ele com um tom de voz amargo. — Que procure uma mulher com quem me casar, apenas por causa deles?
— Não. Se levar uma vida normal, no devido tempo encontrará alguém de quem goste.
— Isso não faz parte dos meus planos para o futuro — ripostou Peter e Melanie viu que ele contraía o maxilar; apercebeu-se de que ambos se sentiam mais fatigados do que supunham.
— E por que não? Já esteve casado antes e foi feliz. Não há nada que o impeça de se casar de novo e de voltar a sentir essa mesma felicidade.
— Nunca voltaria a ser o mesmo — argumentou Peter, olhando-a com tristeza. — A realidade é que não tenho a mínima vontade de voltar a casar-me.
— O Peter não pode ficar sozinho para o resto da vida — acrescentou Melanie.
— Por que não? A Mel nunca mais voltou a casar-se. Por que motivo haveria eu de fazê-lo? — contrapôs Peter.
Melanie foi forçada a admitir que ele tinha uma certa razão.
— Eu não sou do tipo de casar, mas o Peter é.
— Essa é boa! — retorquiu Peter com uma gargalhada sonora. — Pode dizer-me por que?
— Acontece que é assim. Estou demasiado envolvida no meu trabalho para me prender de novo a um marido.
— Não acredito nisso. Acho que tem é medo — continuou ele.
Ao ouvir aquilo, Melanie sentiu-se hesitante; ele tocara num nervo.
— Medo? — retrucou ela com um ar surpreendido, sabendo que ele talvez tivesse razão. — De que?
— De se comprometer, do amor, de se sentir demasiado próxima de alguém. Não tenho a certeza do motivo, uma vez que não a conheço muito bem — respondeu Peter.
Não havia dúvida de que ele conseguira ver algo do que lhe ia no íntimo. Melanie não proferiu palavra durante bastante tempo; deixou-se ficar a olhar fixamente para as sombras da noite, enquanto o automóvel continuava a rodar.
— Acho que tem razão — admitiu ela por fim, voltando-se para ele. — Mas já estou demasiado velha para poder alterar agora a minha maneira de ser.
— Aos trinta e dois, trinta e quatro, trinta e cinco anos... seja qual for a idade que tem? O que está a dizer é um disparate — asseverou Peter.
— Não, não é. E tenho trinta e cinco anos — redargüiu com um sorriso. — Mas acontece que a minha vida me agrada da forma como a vivo.
— Quando as suas filhas saírem de casa, não lhe agradará tanto assim.
— Isso é uma coisa com que o Peter também deveria preocupar-se. Contudo, no seu caso existe uma particularidade: os seus filhos têm necessidade de alguém neste momento, e o Peter também — disse Melanie, começando a rir-se inesperadamente ao olhar para Peter. — Isto é de doidos. Aqui estamos nós quase aos gritos insistindo que cada um de nós deveria voltar a casar. E mal nos conhecemos!
Peter olhou de relance para ela, com uma expressão um tanto perplexa.
— O estranho é eu sentir que nos conhecemos. Tenho a impressão de que há anos que convivemos um com o outro — afirmou Peter.
— Eu também tenho a mesma sensação — retorquiu ela com um ar pensativo — mas sou obrigada a reconhecer que tudo isto é um pouco irracional. — De súbito, pareceu a ambos que tinham chegado ao aeroporto com demasiada rapidez.
Entraram no meio da multidão e das luzes brilhantes. Peter gratificara um dos porteiros para poder deixar o automóvel estacionado junto ao passeio da entrada, o que lhe permitiu acompanhar Melanie até ao interior, lamentando que não tivessem tido mais tempo para poderem conversar a sós. Depois da noite anterior, ele sentia-se ainda mais próximo dela. Era como se houvessem partilhado qualquer coisa de especial: a salvação da vida de uma jovem mulher. Tinha a impressão de que ambos se haviam transformado em parceiros de combate ou em algo mais, e lamentava que ela fosse obrigada a partir naquele momento.
— Cá estamos. Depois não se esqueça de me dizer como é que o filme ficou — pediu Peter. Enquanto esperavam que o vôo fosse anunciado através do altifalante, ambos permaneciam junto da porta de embarque, sem saberem bem o que dizer um ao outro.
Melanie desejava ser abraçada por ele.
— Não me esquecerei — assegurou ela. — Tenha cuidado consigo e dê um beijo às crianças por mim. — Aquela cena parecia déja vue, mas de forma mais pungente do que anteriormente. — O mesmo para a Marie e a Pattie Lou concluiu Melanie num tom de voz terno.
— Tenha cuidado consigo, Mel, e não trabalhe em demasia — aconselhou Peter.
— O mesmo para si — retribuiu ela.
Os olhos dele procuravam os dela e não encontrava palavras que descrevessem o que lhe ia no âmago; não sabia o que deveria fazer a seguir. Ali no aeroporto, não podiam desfrutar de qualquer espécie de privacidade, e ele continuava a ter uma grande incerteza em relação aos seus sentimentos para com Melanie.
— Estou-lhe eternamente agradecida por tudo. — Depois daquelas palavras, ela desconcertou-o ao dar-lhe um beijo de fugida na face, após o que atravessou a porta de embarque num passo rápido, acenando-lhe uma última vez.
Peter deixou-se ficar imobilizado a olhar fixamente para o lugar onde ela desaparecera, mas naquele momento o seu pager entrou em funcionamento; procurou apressadamente o telefone mais próximo. Não poderia aguardar que o avião se deslocasse. Telefonou para o hospital de onde o informaram que o médico de serviço tinha uma dúvida quanto ao estado de Marie, a quem surgira um pouco de febre. O médico precisava saber se Peter desejava prescrever qualquer alteração na dosagem de algum dos medicamentos que lhe estavam a ser ministrados. Indicou as alterações necessárias, após o que se dirigiu para o carro. Os seus pensamentos eram preenchidos por Melanie e não por Marie, enquanto o aparelho decolava e se erguia no ar, qual gigante prateado.
Naquele preciso momento, Melanie olhava para baixo, observando os inúmeros parques de estacionamento, e perguntava a si mesma onde é que ele estaria naquela altura e se alguma vez voltaria a vê-lo ou aos filhos. Não existia qualquer dúvida na sua mente. Estava triste por ser obrigada a partir e mais triste ainda por ter de regressar a casa. Naquela noite, nem sequer tentou convencer-se de que aquele sentimento não era verdadeiro. Limitou-se a olhar com fixidez através da pequena janela do avião, a pensar em Peter e nos últimos quatro dias, sabendo de antemão que gostava demasiado dele e que isso não a levaria a parte alguma. Levavam vidas diferentes em mundos diferentes, em cidades que distavam uma da outra cerca de cinco mil quilômetros, e essa era a realidade dos fatos. Nada disso viria alguma vez a alterar-se.
O vôo até Nova Iorque decorreu sem qualquer incidente. Melanie tirou da pasta um bloco para tomar alguns apontamentos relativos aos últimos quatro dias, enquanto ainda estavam frescos na sua cabeça. Havia um certo número de aspectos que ela pretendia focar nos comentários da reportagem. Depois daquela tarefa concluída e sentindo-se finalmente extenuada, fechou o bloco de apontamentos e recostou a cabeça, cerrando os olhos. A hospedeira de bordo já lhe tinha oferecido cocktails, vinho e champanhe por diversas vezes, mas ela recusara. Queria ficar a sós com os seus pensamentos. Por fim, deixou-se adormecer durante as últimas horas do vôo. A viagem da Costa Oeste para a Costa Leste fazia-se sempre com demasiada rapidez para se poder descansar grande coisa. Devido aos ventos que sopravam da retaguarda e que empurravam o avião, fazendo-o seguir em frente a uma velocidade maior, chegaram a Nova Iorque em pouco menos de seis horas. Melanie acordou de novo com o som da comunicação de que se encontravam prestes a aterrar, ao mesmo tempo em que uma hospedeira de bordo lhe tocava no braço, pedindo-lhe que apertasse o cinto de segurança antes da aterragem.
— Muito obrigada — agradeceu Melanie, olhando para ela, ensonada e, contendo um bocejo, cumpriu as instruções que lhe foram dadas; em seguida, abriu a mala de mão e tirou um pente.
Sentia-se como se houvesse usado as mesmas roupas durante vários dias, interrogando-se de novo sobre se encontraria a bagagem à sua espera em Nova Iorque. Melanie tinha a sensação de que fora há uma eternidade que estivera prestes a entrar a bordo do avião em Los Angeles, havia cerca de trinta horas, tendo sido impedida de o fazer pelo telefonema de Peter. Uma vez mais, os seus pensamentos concentravam-se na sua imagem. Quando cerrou os olhos, pareceu-lhe que o rosto dele adquiria vida; algum tempo depois forçou-se a abri-los quando sentiu que o aparelho tocava na pista de aterragem do aeroporto em Nova Iorque.
Melanie chegara à sua cidade. Tinha uma montanha de trabalho a fazer para os noticiários e para a reportagem sobre Peter e Pattie Lou, já para não mencionar tudo o que a aguardava em relação às filhas. Era importante que desse seguimento à sua própria vida e, todavia, parecia estar com pena de ter regressado. Desejava ter ficado mais tempo em Los Angeles, mas não houvera necessidade para tal e nunca teria sido capaz de encontrar uma justificação que pudesse apresentar à cadeia de televisão onde trabalhava, em Nova Iorque.
Na área de serviços especiais de entrega de bagagens no aeroporto, Melanie encontrou a sua mala, levantou-a, saiu do edifício, chamou um táxi e seguiu a grande velocidade para o centro da cidade. Àquela hora da manhã, praticamente não havia trânsito e o sol lançava os seus raios dourados que se refletiam nos vidros das janelas dos arranha-céus da cidade. Enquanto o táxi atravessava a ponte e se dirigia para sul por East River Drive, Melanie sentiu algo a agitar-se dentro de si. Nova Iorque tinha o condão de lhe provocar sempre aquela reação. Não havia dúvida de que era uma cidade esplêndida.
Inesperadamente, deu consigo a pensar que afinal não era assim tão mau estar de volta a casa. Era ali que pertencia e aquela era a sua cidade. Enquanto sorria para si mesma, reparou que o motorista do táxi a observava através do espelho retrovisor com uma expressão de curiosidade. À semelhança do que acontecia muitas vezes com estranhos, o rosto de Melanie parecia familiar ao homem, apesar de ele não ser capaz de identificá-la. Talvez já a tivesse transportado no seu veículo noutra ocasião, pensava ele com os seus botões ou, então, era possível que fosse casada com algum homem importante, um político ou uma estrela de cinema e ele já a tivesse visto nos noticiários. O homem tinha a certeza de que já vira aquele rosto anteriormente, mas não sabia onde.
— Esteve fora muito tempo? — perguntou o taxista ao mesmo tempo em que vasculhava a memória.
— Só durante alguns dias, na Costa Oeste — respondeu Melanie.
— Sim — retorquiu ele, acenando com a cabeça e virando à direita na Rua Setenta e Nove, em direção a oeste. — Uma vez fui até lá. Mas não há outra cidade como Nova Iorque.
Melanie sorriu; os nova-iorquinos eram uma raça de gente muito especial, leais à sua cidade até as últimas conseqüências, apesar da caca dos cães, do lixo que invadia as ruas, do índice de criminalidade, da poluição, do excesso de população e da miríade de desvantagens e pecados característicos daquela cidade. No entanto, possuía uma qualidade que não se encontrava em mais parte alguma, uma espécie de energia que tocava as pessoas no mais íntimo de si próprias. Até mesmo naquele momento, Melanie sentia essa mística ao observar a cidade a adquirir vida, depois de passada a noite, enquanto percorria velozmente as suas ruas.
— É uma grande cidade — afirmou o motorista, dando de novo realce à paixão que sentia pela sua terra.
Melanie acenou a cabeça, concordando com ele.
— Não há dúvida de que assim é — aquiesceu ela, pensando subitamente que na realidade estava bastante contente por ter regressado e, quando o táxi parou em frente da sua casa, sentiu-se feliz.
Estava ansiosa por voltar a ver as filhas. Pagou ao taxista e levou a bagagem para dentro, deixando-a no vestíbulo da entrada, após o que subiu as escadas para ver as gêmeas. Ambas se encontravam a dormir e Melanie entrou em silêncio no quarto de Jessica, sentando-se na beira da cama e ficando a olhar para a filha. Os cabelos dela, que mais pareciam labaredas estavam espalhados pela almofada, como se fosse um lençol vermelho-escuro. Jessica mexeu-se ao ouvir a voz da mãe e abriu um olho.
— Olá, minha preguiçosa — disse Melanie, debruçando-se para lhe beijar a face.
Jessica sorriu.
— Olá, mamãe. Até que enfim, chegaste — retorquiu, sentando-se na cama e espreguiçando-se, após o que abraçou a mãe com um sorriso ensonado. — Como é que correu a viagem?
— Bem. É bom estar de volta a casa. — E falava a sério. Já deixara a Califórnia para trás, assim como Peter Hallam, Marie Dupret, o Hospital Central e tudo o que fizera desde que tinha saído de Nova Iorque. — Conseguimos fazer um filme espantoso.
— Pudeste assistir a alguma operação? — perguntou Jessica, mostrando-se imediatamente intrigada. A rapariga teria dado qualquer coisa para poder ter estado presente, embora a sua gêmea tivesse empalidecido só de pensar nisso.
— Sim. Fiquei mais um dia, porque ontem à noite tive a possibilidade de ver os médicos a fazerem um transplante do coração. Não, foi na noite anterior. — Naquele momento, Melanie ainda tinha as horas todas confundidas na sua cabeça, o que a fez sorrir. — Fosse quando fosse, foi um êxito. Tratou-se de uma experiência extraordinária, Jess.
— Depois posso ver o filme? — perguntou a filha.
— É claro que sim. Até podes ir ao estúdio antes de apresentarmos a reportagem.
— Obrigada, mamãe — agradeceu Jessica, saindo da cama com movimentos lentos, e as suas pernas compridas pareciam ainda mais alongadas, por baixo da curta camisa de dormir cor-de-rosa.
Melanie saiu do quarto para ir ver a outra filha. Valerie encontrava-se completamente coberta pelo cobertor, mergulhada num sono profundo, e foram necessários vários puxões e pancadas suaves para que ela despertasse. Por fim, foi obrigada a afastar o cobertor para trás e a abaná-la por cima do lençol.
Finalmente e a muito custo, Valerie acordou com um resmungo ensonado.
— Pára com isso, Jess... — resmungou, mas, quando abriu os olhos e viu a mãe em lugar da irmã, mostrou-se surpreendida e confusa. — Por que é que estás em casa?
— A isso é que eu chamo boas-vindas! Acho que ainda vivo aqui — disse Melanie na brincadeira.
Valerie fez uma careta risonha e virou-se para o outro lado.
— Esqueci-me de que regressavas hoje.
— Nesse caso, o que é que planeavas fazer? Dormir o dia todo e faltar à escola? — perguntou Melanie apesar de na realidade não se preocupar com essa hipótese no que dizia respeito às duas filhas, embora por vezes Valerie fosse a menos responsável de ambas.
— É uma boa idéia. Ao fim e ao cabo, o ano escolar está quase a chegar ao fim.
— Sendo assim, o que é que me dizes a aguentares-te por lá durante mais duas semanas?
— Ai, mamãe! — Valerie tentou voltar a adormecer, mas Melanie começou a fazer-lhe cócegas. — Pára com isso! — exclamou ela, sentando-se na cama, para se poder defender das mãos da mãe.
Esta sabia quais eram as regiões do corpo onde a filha sentia mais cócegas e, um minuto mais tarde, as duas riam às gargalhadas; Val continuava a gritar quando Jessica entrou no quarto e, num movimento rápido, saltou para cima da cama com o propósito de ajudar a mãe.
Algum tempo depois, iniciava-se uma batalha de almofadas, a qual foi começada por Valerie que tentava defender-se das duas. Momentos depois, mãe e filhas deixaram-se ficar deitadas em cima da cama, a rirem-se, com a respiração entrecortada.
Melanie sentiu-se emocionada. O que quer que fizesse, fosse onde fosse, o regresso a casa para junto das filhas era sempre uma sensação compensadora. Quase ao mesmo tempo, deu consigo a pensar em Pam e como a sua existência era tão diferente da das suas filhas. A vida daquela jovem seria muito mais feliz se se assemelhasse à das gêmeas.
Depois de as duas raparigas se terem vestido e enquanto tomavam o pequeno-almoço, Melanie falou-lhes dos filhos de Peter Hallam, especialmente de Pamela, e as gêmeas ficaram cheias de pena depois de a mãe lhes ter explicado as circunstâncias da morte de Anne.
— Deve ser uma situação bastante difícil para ela — disse Valerie que era das duas a que mais se compadecera. Depois sorriu, perguntando: — Como é que é o irmão dela? Aposto que é giro.
— Val... — retorquiu Jessica com um olhar de reprovação. — Nestes últimos tempos, só pensas nisso.
— E o que é que isso tem de mais? Aposto que ele é giro — retrucou a irmã.
— Que é que interessa se é ou não? Ele não vive aqui. O mais provável é existirem muitos rapazes giros em Los Angeles. Diz-me em que é que isso te vai afetar em Nova Iorque? — perguntou Jessica, irritada, o que Melanie achou divertido.
Depois de ter acabado o seu chá, dirigiu-se a Valerie.
— Isso quer dizer que já esgotaste o fornecimento de rapazes em Nova Iorque?
— Há sempre lugar para mais um — respondeu Val, rindo-se.
— Não sou capaz de entender como é que consegues recordar-te do nome deles — continuou a mãe.
— Não me parece que ela consiga — acrescentou Jessica com rapidez.
Naquele assunto em especial, não aprovava a maneira de ser de Val. Jess era mais como Melanie, independente e fria, mostrando-se cautelosa no que dizia respeito ao relacionamento com rapazes; por vezes, era demasiado acautelada, ao ponto de chegar a preocupar a mãe, cujo estilo de vida deixara uma marca indelével naquela filha. Talvez mesmo em ambas as gêmeas. Possivelmente, era por essa razão que Valerie se mostrava sempre tão ansiosa quanto à possibilidade de não ter um namorado. Não tencionava acabar como Melanie.
— Toda ela é carinhas meigas e sorrisos derretidos para os rapazes que encontra nos corredores da escola — continuou Jessica. — Não me parece que eles se sintam muito incomodados pelo fato de ela se esquecer dos seus nomes.
Em ocasiões como aquela, essas palavras transmitiam mais reprovação do que ciúme, tal como Melanie sabia. A paixão que Val tinha pelo sexo oposto era, na opinião de Jessica, uma atitude leviana. Jess costumava andar mais preocupada com trabalhos e projetos da escola, mas também já tivera a sua quota-parte de namorados, como a mãe lhe recordou com gentileza depois de Valerie ter saído da sala para ir buscar os livros que tencionava levar para a escola.
— Eu sei que assim é, mas às vezes ela comporta-se como se não tivesse um mínimo de juízo — acrescentou Jessica pouco depois. — A Val só pensa em rapazes, mamãe.
— Verás que dentro de alguns anos ela há de ultrapassar essa fase — retorquiu Melanie.
— Sim — retorquiu Jessica com um encolher de ombros. — Talvez.
Pouco depois, as duas irmãs apressavam-se a sair de casa para a escola, que se situava na Rua Noventa e Um, perto da Quinta Avenida, a uma distância de dez quarteirões. Melanie ficou sozinha para desfazer as malas e para reunir os seus pensamentos. Naquele dia, pretendia chegar cedo à estação de televisão para rever os apontamentos. Eram dez horas, e tinha acabado de sair do chuveiro quando ouviu o telefone a tocar. Atendeu-o ainda toda molhada e a pingar água no chão.
Era Grant e a voz dele fez com que lhe assomasse um sorriso aos lábios.
— Com que então estás de volta. Já tinha começado a pensar que te tinhas ido embora de vez — disse ele.
— Não foi nada de tão dramático como isso, apesar de o último dia ter tido uma grande dose de dramatização — replicou Melanie. — Os médicos encontraram um doador para uma doente que se encontrava às portas da morte e eu perdi o vôo para poder voltar ao hospital e assistir à operação.
— O teu estômago é infinitamente mais forte do que o meu — retorquiu Grant.
— Não estou bem certa disso. De qualquer das maneiras, tratou-se de uma experiência fascinante — acrescentou Melanie e, uma vez mais, a imagem de Peter atravessou-lhe a mente. — Levando tudo em consideração, pode-se dizer que foi uma viagem bastante frutuosa. E tu, como é que estás?
— Na mesma. Telefonei algumas vezes às tuas filhas, para saber se estava tudo a correr bem e elas estavam ótimas. No entanto, receio muito que não seja capaz de manter-me a par da vida social delas — declarou Grant.
— Também eu não — retorquiu Melanie. — Mas foi simpático da tua parte teres telefonado.
— Eu tinha-te dito que o faria. — Grant parecia feliz ao ouvir a voz dela, Melanie sentia o mesmo. — Como é que está a pequenita que levaste para o hospital?
— Está ótima. Da última vez em que a vi, parecia estar novinha em folha. Só te posso dizer que foi espantoso, Grant.
— E quanto ao bom do médico que tratou de tudo? Ele também era espantoso? — perguntou Grant, como se conseguisse pressentir o que lhe ia na alma.
Melanie sentia-se um pouco ridícula ao considerar a idéia de partilhar com ele o que sentia. Já estava demasiado velha para aquilo. As atrações amorosas tão repentinas como aquela ficavam melhor em alguém da idade de Valerie.
— Era um homem interessante — disse ela.
— É tudo? Um dos cirurgiões mais proeminentes do país, e isso é tudo o que tens a dizer acerca dele? — perguntou Grant e, de súbito, começou a rir-se. Ele conhecia-a bem demais. — Ou dar-se-á o caso de haver algo mais que não me queiras dizer?
— Não existe nada mais. O que acontece é que os últimos dias foram muito empolgantes — retorquiu Melanie, desejando guardar para si própria os sentimentos em relação a Peter Hallam. Não valia a pena partilhá-los com quem quer que fosse, nem mesmo com o seu amigo Grant. O mais provável seria ela não voltar a encontrar-se com o médico, pelo que aquelas palavras ficariam melhor se nunca fossem proferidas.
— Bom, quando te instalares de novo, Mel, dê-me um telefonema para combinarmos ir tomar um copo.
— Está combinado — concordou Melanie mas, naquele momento, nem sequer sentia vontade de aceder ao convite. Permanecia no mundo das nuvens e não lhe apetecia sair dele, pelo menos por enquanto.
— Até depois, miúda — despediu-se Grant, acrescentando depois de uma pausa: — Estou contente por teres regressado.
— Obrigada, eu também — retorquiu ela apesar de ser mentira. Nem a excitação de se encontrar de novo em Nova Iorque conseguia conquistá-la daquela vez.
Ao sair de casa, Melanie olhou para o relógio e verificou que já eram onze horas. Àquela hora, Peter deveria estar no bloco operatório. Sem qualquer razão aparente, sentiu-se invadida por uma enorme vontade de telefonar para o hospital para saber como estava Marie. Resistiu àquele impulso. Era necessário que voltasse a entrar na rotina do seu dia-a-dia profissional. Não podia chamar a si todos os problemas dos outros como se fossem os seus. O coração de Marie Dupret, os filhos de Peter Hallam, a vida vazia e solitária de Pamela, o pequeno Matthew com os seus enormes olhos azuis. De súbito, sentiu saudades deles todos.
Melanie expulsou-os com determinação dos seus pensamentos, chamou um táxi e seguiu em direção à baixa, observando aquela cidade que tanto amava, as pessoas que iam às compras ao Bloomingdale's, que desciam pelas entradas das estações do metropolitano, que chamavam táxis ou entravam e saíam num passo apressado dos arranha-céus, a caminho dos seus empregos. O simples fato de se encontrar ali lhe dava a sensação de que fazia parte de um filme, sentia-se eufórica e cheia de energia apesar de ter dormido muito pouco na noite anterior. Entrou na redação do estúdio com um sorriso de felicidade a aflorar-lhe os lábios.
— O que é que se passa contigo? — perguntou num resmungo o diretor das notícias, ao passar por ela apressadamente, levando duas caixas com filmes.
— Sinto-me feliz por estar de regresso — respondeu Melanie.
— Doida — resmungou o homem, abanando a cabeça enquanto desaparecia.
Sobre a sua secretária, Melanie encontrou uma pilha de correspondência, de memorandos internos, de resumos de peças dos noticiários que não tinha visto enquanto estivera ausente. Pouco depois saiu para o corredor com o propósito de ver alguns dos telex que estavam a chegar naquela altura. Tinha havido um terremoto no Brasil, uma inundação em Itália que provocara a morte de cento e sessenta e quatro pessoas, e o presidente tencionava ir às Bahamas passar um fim-de-semana prolongado a pescar. As notícias do dia não parecia serem nem particularmente más nem boas; quando a sua secretária lhe veio dizer que tinha um telefonema, Melanie regressou ao seu gabinete e agarrou no telefone sem se sentar, atendendo de uma forma vaga e distraída, ao mesmo tempo em que olhava de relance para os memorandos sobre a mesa.
— Daqui fala Adams.
Fez-se uma pausa, como se ela houvesse desconcertado o seu interlocutor com aquelas palavras bruscas e foi então que ouviu na linha os ruídos característicos de uma chamada interurbana. Mas nem sequer teve tempo para se perguntar quem é que estaria do outro lado.
— Telefonei em má altura?
Melanie reconheceu imediatamente a voz e sentou-se, surpreendida por ele ter telefonado. Era muito possível que depois de ter tido tempo para pensar, começasse a sentir-se preocupado por causa da reportagem.
— De maneira nenhuma. Como é que está? — perguntou ela num tom de voz suave.
No outro lado da linha, Peter sentiu uma agitação que lhe era familiar desde que se conheciam.
— Eu estou ótimo. Hoje acabei de operar mais cedo e achei que devia telefonar-lhe para saber se tinha chegado bem. Encontrou a sua bagagem em Nova Iorque? — perguntou ele com algum nervosismo.
Melanie sentia-se satisfeita com aquele telefonema.
— Estava à minha espera — respondeu. — E a Marie? Como é que ela está? — Ocorreu-lhe que talvez Peter lhe tivesse telefonado para lhe dar más notícias.
— Ótima. Hoje perguntou por si e a Pattie Lou também. Devo dizer-lhe que ela se transformou na estrela do hospital.
Os olhos de Melanie ficaram marejados de lágrimas e, uma vez mais, sentiu o mesmo que sentira a bordo do avião; desejou poder estar em Los Angeles e não em Nova Iorque.
— Diga-lhe que eu mando um grande beijinho. Talvez lhe telefone quando ela já estiver mais forte.
— Ela haveria de ficar muito satisfeita com isso — retorquiu Peter. — E como é que estão as suas filhas? — Ele dava a impressão de que estava a tentar arranjar qualquer coisa que lhe permitisse continuar a conversa; ao aperceber-se disso, Melanie sentiu-se confusa e sensibilizada.
— Estão ótimas. Acho que enquanto estive fora, a Valerie se apaixonou mais umas quantas vezes, ao passo que a Jess está cheia de inveja por eu ter tido a oportunidade de assistir a um transplante do coração. Das duas, ela é a que tem mais juízo.
— A Jessica é a que tenciona seguir Medicina, não é verdade? — perguntou Peter, surpreendendo-a por não se ter esquecido daquele pormenor, o que a fez sorrir.
— É essa mesmo. Esta manhã, pregou um grande sermão à irmã por ela se ter apaixonado seis vezes numa só semana.
No seu pequeno cubículo do hospital, Peter deu uma gargalhada. Transferira o custo do telefonema para a conta do seu telefone em casa.
— Costumávamos ter o mesmo problema em relação ao Mark, quando ele tinha mais ou menos a idade da Pam. Mas apesar disso, ele assentou nestes últimos anos.
— Ah, mas espere pelo Matthew! — retorquiu Melanie, rindo-se. — Esse seu filho vai ser um verdadeiro galã, adorado pelas mulheres.
— Desconfio que tem razão — disse Peter, rindo-se também.
Entretanto, fez-se uma pausa agradável e foi Melanie quem a interrompeu.
— Como é que está a Pam? — inquiriu ela.
— Está bem. Nada de novo — respondeu Peter com um suspiro. — Sabe, parece-me que a conversa que ela teve consigo lhe fez bem. Pelo menos pôde se comunicar com outra pessoa que não Mistress Hahn.
Melanie não se atreveu a dizer-lhe qual era a sua opinião sobre aquela mulher de coração de gelo. Não se achava com direito a isso.
— Eu também gostei muito de falar com ela — retrucou, pensando que as carências afetivas da rapariguinha eram extremamente desesperadas e nela havia uma grande cólera à qual era necessário dar vazão. Não resistiu a perguntar-lhe: — Eles já receberam os pequenos embrulhos que lhes mandei?
— Embrulhos? — indagou Peter, surpreendido. — Mandou-lhes prendas? Não devia ter-se incomodado com isso.
— Não fui capaz de resistir — redargüiu ela. — Encontrei algo que me pareceu ser perfeito para a Pam, e não podia deixar o Matthew e o Mark de mãos a abanar. Além do mais, eles foram muito tolerantes, quando eu lhes invadi a casa. Tal como o Peter reconheceu, não se têm dado com muitas pessoas desde que... durante o último ano e meio — atalhou Melanie, apressando-se a preencher aquela pausa constrangedora. — Conseqüentemente a minha presença deve ter sido estranha para os seus filhos. O mínimo que eu podia fazer era enviar-lhes uma pequena surpresa como prova do meu apreço pela sua hospitalidade.
Peter sentiu-se comovido pela atenção que ela tivera para com os filhos; a sua voz suavizou-se.
— Volto a repetir que não precisava de se incomodar com isso, Mel. Tivemos todo o prazer na sua companhia — afirmou ele.
Melanie teve a sensação de que as palavras de Peter quase lhe acariciavam as faces e sentiu-se enrubescer. Sentia-se muito próxima dele, mesmo numa simples conversa ao telefone, havendo entre ambos uma distância de cinco mil quilômetros. Contra a sua vontade, deu consigo a pensar nele outra vez de uma maneira que não desejava. Era-lhe quase impossível não se sentir atraída por Peter. Era simultaneamente vulnerável e forte, humilde e bondoso, e fazia milagres. Aquela combinação atraía Melanie. Sempre gostara de homens com uma personalidade vincada, embora muitas vezes se afastasse deles. Tornava-se mais fácil manter um envolvimento com pessoas mais obscuras do que Peter.
— Devo dizer-lhe que tive imenso prazer em trabalhar consigo. — Melanie não sabia bem o que dizer e continuava sem perceber a razão que o levara a telefonar-lhe.
— A Mel tirou-me as palavras da boca. Foi para lhe dizer isso mesmo que eu lhe telefonei. Inicialmente, senti-me bastante apreensivo com respeito à entrevista. Mas não me fez arrepender de ter concordado com ela. Todo o pessoal do hospital está satisfeito com a reportagem. — Mas não tanto como ele estava, embora não lhe dissesse.
— Espere até poder ver tudo em filme. Só desejo que goste tanto nessa altura como agora — retorquiu ela.
— Sei antecipadamente que vai agradar-me.
— Estou-lhe muito agradecida pela fé que deposita em mim — retrucou Melanie com sinceridade, mas também havia algo mais nas suas palavras.
— Não é só isso, Mel, eu... — Peter não sabia como havia de pôr em palavras o que lhe ia no coração. Perguntou a si mesmo se aquele telefonema teria sido sensato. Melanie era uma mulher a quem as pessoas tinham por hábito pedir autógrafos e que aparecia regularmente numa cadeia de televisão nacional. — Acontece que eu gosto muito de si. Depois de ter feito aquela confissão, Peter sentiu-se constrangido como se fosse um rapaz de quinze anos; os dois sorriram: um em Los Angeles e o outro em Nova Iorque.
— Eu também gosto muito de si — retorquiu ela. Talvez tudo fosse assim tão fácil sem qualquer maldade. Por que razão é que ela estaria a lutar tão fortemente contra os seus sentimentos? — Deu-me imenso prazer trabalhar consigo, gostei muito de conhecer os seus filhos e a sua casa — acrescentou Melanie. Naquele momento, apercebeu-se de algo mais. — Acho que fiquei especialmente comovida pelo fato de me ter permitido entrar na sua vida familiar e pessoal.
— Imagino que me senti em segurança ao deixar que tal acontecesse consigo — replicou Peter. — Não tinha planeado que as coisas viessem a ter essa evolução. Na realidade, eu disse a mim próprio, antes da sua chegada, que não iria partilhar consigo o que quer que fosse da minha vida pessoal... ou da Anne...
— Estou satisfeita por ter mudado de idéias — atalhou Melanie apressadamente.
— Eu também... acho que tratou o assunto da Pattie Lou de uma maneira extraordinária.
— Obrigada, Peter. — Gostara do que ele dissera. O problema era que gostava de tudo naquele homem.
Então, ouviu-o a suspirar suavemente do outro lado da linha.
— Muito bem, parece-me que o melhor será permitir que regresse ao seu trabalho. Nem sequer tinha a certeza de que estivesse no estúdio, depois de ontem à noite ter seguido no “olhos vermelhos”.
No seu gabinete, Melanie riu-se.
— A vida tem de continuar e às dezoito horas tenho de apresentar um noticiário. Quando telefonou, eu estava a ver as notícias que tinham acabado de chegar.
— Espero não ter interrompido nada de importante.
— É a mesma coisa que observar os teleimpressores. Ao fim de algum tempo uma pessoa deixa de ver aquilo para que está a olhar. Pelo menos até o momento, hoje não aconteceu nada de muito relevante no mundo.
— Aqui passa-se mais ou menos o mesmo. Agora vou para o meu gabinete. Tenho de pôr-me a par de muitos assuntos que fui forçado a descurar nos últimos dias para poder vigiar a Pattie Lou e a Marie — acrescentou Peter.
Haviam regressado às suas vidas rotineiras, ao trabalho, aos filhos e às responsabilidades e, uma vez mais, Melanie deu-se conta do quanto tinha em comum com ele. Peter era forçado a carregar aos ombros tanto como ela própria; podia mesmo dizer-se que o seu fardo era ainda maior. Para ela era um conforto saber que existiam outras pessoas no mundo obrigadas a assumir responsabilidades de natureza tão exigente como a sua.
— Sabe, até certo ponto é agradável saber que existe alguém que trabalha tão esforçadamente como eu — disse Melanie.
Peter sentiu-se esquisito ao ouvir o que ela dissera. Desde que se conheciam que ele próprio pensara o mesmo em relação a ela. Com Anne, houvera ocasiões em que se sentira incomodado ao verificar que tudo o que ocupava o tempo da mulher era decorar vezes sem conta a casa e comprar antiguidades, fazer parte da Associação de Pais e Professores e servir de motorista às crianças.
— Não pretendi ser presunçosa — continuou Melanie — uma vez que o meu trabalho não inclui salvar vidas, mas, ainda assim, não deixa de ser diabolicamente exigente, e a maior parte das pessoas não consegue compreender isso. Há algumas noites em que, quando saio do estúdio, sinto o cérebro em papa. Não estou capaz de dizer uma palavra inteligente mesmo que a minha vida dependesse disso. — Era uma das muitas razões por que nunca se sentira tentada a casar de novo. Não tinha a certeza de que pudesse ser capaz de atender às necessidades de um casamento.
— Sei precisamente o que quer dizer — retorquiu Peter, sentindo-se tão aliviado como ela. — Mas, por outro lado, existem ocasiões em que é duro não ter alguém com quem partilhar a nossa vida.
— Não se pode dizer que eu alguma vez tenha tido esse privilégio. Estou praticamente sozinha desde que comecei a sair-me bem profissionalmente. Acho que é mais fácil desta maneira.
— Sim. — aquiesceu Peter, não muito convencido. Mas, nesse caso, também não se tem uma pessoa com quem se possa partilhar os triunfos. — Anne sempre fora boa nisso e a partilhar as tragédias e o sofrimento que se passavam no hospital. Ela nunca tivera uma vida tão cheia como a dele, mas por outro lado, talvez isso lhe tivesse proporcionado liberdade para o poder apoiar.
Era-lhe difícil imaginar ter uma mulher com uma carreira profissional, apesar de ter sido sempre um grande admirador dos casais que trabalhavam duramente, médicos casados com médicas, advogadas casadas com bancários, professores e cientistas. A combinação era ideal, proporcionando a cada um dos elementos do casal um novo ímpeto, embora por vezes pudesse desgostá-los ainda mais.
— Eu não estou de posse das respostas a todas estas questões, minha amiga — continuou Peter. — Sei apenas que não é tarefa fácil estar-se sozinho.
— Nem tão-pouco quando se é casado — retorquiu Melanie com convicção.
— Não, mas não deixa de ter as suas vantagens — afirmou Peter, sentindo-se seguro do que dizia. Especialmente, quando olhava para os seus filhos.
— Calculo que existe alguma verdade nisso. Eu própria não tenho as respostas. Só sei que é agradável poder conversar com alguém que compreende o que é trabalhar que nem uma escrava e depois regressar a casa ao fim do dia e ser-se obrigado a desempenhar o papel de dois progenitores, em vez de apenas um — asseverou Melanie.
Houvera alturas em que ela estivera prestes a admitir que não era capaz de levar aquela tarefa a bom termo, mas acabara por ser bem sucedida. O seu emprego estava seguro, tivera um êxito enorme na sua profissão, as suas filhas eram felizes e bem-comportadas.
— A Mel fez um bom trabalho — afirmou Peter.
Aquelas palavras tinham mais significado para Melanie do que qualquer outra coisa que ele pudesse ter dito.
— Também o Peter — retribuiu ela por sua vez. A voz de Melanie tinha a delicadeza da seda para os ouvidos de Peter.
— Mas eu só estou sozinho há ano e meio — continuou ele. — A Mel há já quinze anos. Isso significa alguma coisa.
— Apenas uns quantos cabelos grisalhos a mais — retrucou Melanie, rindo-se suavemente. Naquele momento, um dos redatores chegou à porta do gabinete e fez-lhe um sinal. Por gestos, deu-lhe a entender que iria ter com ele dentro de alguns minutos, após o que o homem desapareceu. — Bem, parece-me que eles querem que eu faça algum trabalho por estas bandas. Um dos redatores acabou de sair daqui. Espero que a visita dele signifique que o nosso filme já chegou de Los Angeles.
— Com tanta rapidez? — perguntou Peter.
— É complicado explicar, mas fazem tudo através de computadores — continuou Melanie. — No espaço de um dia recebemos o material em Nova Iorque. Mais tarde digo-lhe como é que ficou.
— Gostaria muito — assegurou ele.
— Muito obrigada por ter telefonado, Peter — disse Mel. — Tenho saudades de todos vocês. — A palavra “todos” dava à expressão um caráter seguro. Queria dizer que ela não sentia apenas saudades dele. Era como se estivesse a ouvir Valerie ou Jessica a falarem ao telefone com os namorados. Aquele pensamento fez com que se repreendesse, apesar de ter esboçado um sorriso. — Dentro em pouco voltaremos a falar-nos.
— Ótimo! Nós também temos saudades suas — replicou Peter. O “nós” em lugar do eu. Ambos estavam a jogar o mesmo jogo, sem que qualquer deles compreendesse a razão para tal; todavia, ainda não se encontravam preparados para avançar mais. — Tenha cuidado consigo.
— Obrigada. O Peter também — retribuiu Melanie. Ambos desligaram e ela deixou-se ficar sentada à secretária a pensar em Peter. Tudo aquilo era uma loucura, mas a realidade era que se sentia excitada por ele ter telefonado.
Estava tão entusiasmada como uma rapariguinha. Pouco depois percorreu o corredor, dirigindo-se para o laboratório onde eram montados os filmes; nos lábios levava um sorriso rasgado que não conseguia desfazer. Um sorriso que não a deixou até o início da projeção do filme. Viu-se a olhar para Peter e pouco mais adiante, também surgiram Pattie Lou, Pearl Jones e até mesmo Marie, que às duas horas da manhã fora submetida ao transplante do coração. De cada vez que Peter falava, Melanie sentia as batidas do seu coração a acelerarem; todas as vezes que a câmera apresentava um grande plano do rosto do médico, não podia deixar de reparar no carinho e na franqueza que se refletia nos olhos dele. Quando finalmente ligaram as luzes da sala, verificou que estava quase sem respiração. Acabara de ver a projeção de uma reportagem magnífica.
No atual estado de pré-montagem, o filme alongava-se por diversas horas; necessitava de muito trabalho de montagem e de cortes. Contudo, ao deixar a sala, Melanie só conseguia pensar nele.
Naquela noite, Melanie apresentou pela primeira vez o noticiário desde que regressara, e tudo decorreu com a mesma normalidade de sempre. Saiu do ar com o sorriso agradável e profissional que as pessoas reconheciam em qualquer parte dos Estados Unidos e, enquanto saía do estúdio, não se lembrou que o Dr. Peter Hallam estivera a vê-la com toda a atenção, sentado na sala da sua casa em Los Angeles onde costumava tomar o pequeno-almoço. A meio do noticiário, Pamela havia entrado na sala, tendo ficado de pé a olhar fixamente para o ecrã do televisor. Peter nem sequer se tinha apercebido da presença da filha.
— Alguém disparou contra o presidente ou qualquer coisa assim, papai? — perguntou Pam.
Peter olhou para ela com uma expressão enfadada. Tivera um longo dia de trabalho e pretendia continuar a ver Mel antes que ela saísse do ar. Já a tinha visto a apresentar o noticiário em ocasiões anteriores, mas nunca desde que se conheciam. Teve a impressão de que o fato de poder vê-la depois do telefonema daquele mesmo dia era de uma importância vital.
— Pam, daqui a pouco eu vou ao teu quarto. Agora só quero ficar sozinho enquanto vejo as notícias.
Durante um longo momento, Pamela deixou-se ficar à entrada da sala, dividida entre os seus próprios sentimentos de cólera e de atração em relação à Melanie. Quando a conhecera tinha gostado dela, mas não lhe agradava o ar do pai sempre que a via.
— Sim, com certeza. Está bem — aquiesceu ela.
No entanto, Peter não reparou na expressão do rosto da filha quando esta saiu da sala onde ele ficou a olhar fixamente para o televisor, enquanto Melanie dava o noticiário por concluído. Permaneceu sentado durante mais alguns instantes, após o que desligou o aparelho e subiu as escadas para dar boa-noite aos filhos. Estava verdadeiramente exausto. Naquela tarde, passara duas horas junto de Marie no hospital. O seu organismo parecia estar a desenvolver uma infecção, apresentando também algumas reações negativas à medicação. Era uma reação esperada, embora difícil. E, em Nova Iorque, Melanie dirigia-se apressadamente para casa depois de ter apresentado o noticiário. Jantou com as filhas e em seguida regressou ao estúdio para apresentar o programa das vinte e três horas. Pela primeira vez, desde que tinha regressado de Los Angeles, encontrou Grant.
Ele tinha ficado no estúdio À espera que ela acabasse a apresentação do noticiário.
— Esta noite estiveste muito bem — cumprimentou ele, fitando-a com um sorriso cordial e apercebendo-se de como Melanie estava fatigada. Mas também reparou noutra coisa: algo que não estivera presente anteriormente; uma espécie de brilho. — Estás a conseguir agüentar com tão poucas horas de sono?
— Estou a começar a entrar em colapso — admitiu Melanie com um sorriso de cansaço, mas apesar de tudo, sentia-se satisfeita por tê-lo encontrado.
— Ora bem, vai para casa e tenta descansar — aconselhou Grant.
— Sim papai! — retorquiu Melanie num tom jocoso.
— Tenho idade suficiente para o ser. Portanto, tem atenção ao que fazes.
— Sim, senhor! — anuiu ela, dando uma gargalhada. Alguns minutos depois abandonou o estúdio e, já no táxi, começou a dormitar.
Ao chegar a casa, Mel subiu as escadas até o quarto, despiu-se e deixou a roupa caída no chão ao lado da cama, passados cinco minutos, já dormia a sono solto, nua e tranqüila entre os lençóis frescos. Finalmente, tinha a cabeça vazia de quaisquer outros pensamentos. Até ao princípio da tarde seguinte não fez qualquer movimento, altura em que foi acordada pela campainha do telefone. Quando atendeu, Melanie ouviu de novo a voz de Peter.
— Bom dia. É muito cedo para lhe telefonar? — perguntou ele.
— De maneira nenhuma — respondeu ela enquanto continha um bocejo e olhava de relance para o relógio sobre a mesa-de-cabeceira. Na Costa Oeste, onde Peter estava eram dez horas e dez minutos. — Como é que vai a vida em Los Angeles?
— Atarefada. Tenho dois triplos by-passes agendados para hoje — respondeu Peter.
— Como é que a Pattie Lou e a Marie têm passado? — perguntou Melanie, sentando-se na cama do seu quarto em Nova Iorque e olhando à sua volta.
— Ambas se encontram de boa saúde, embora a Pattie Lou esteja melhor do que a Marie — retorquiu Peter. A intervenção cirúrgica a que ela se submetera fora um triunfo para o médico. — Mas, mais importante do que isso, como é que está?
— Quer que lhe responda com franqueza? — perguntou Melanie com um sorriso. — Sinto-me como se já tivesse morrido.
— Devia descansar mais. Trabalha em demasia, Melanie.
— Olha quem fala! — retrucou ela, tentando fingir que o fato de ele ter telefonado era uma coisa banal, mas bem no seu íntimo estava toda entusiasmada. — Seja como for, dentro de pouco tempo entro de férias.
— De verdade? — indagou Peter, surpreendido por ela não ter mencionado aquele assunto antes, compreendendo no entanto que, durante os poucos dias que Melanie passara em Los Angeles, não tinha havido tempo para aquele tipo de conversas. — Para onde é que tenciona ir?
— Para as Bermudas — respondeu ela, satisfeita.
Havia muito tempo que ansiava por aquelas férias. Uma das produtoras da televisão propusera-lhe alugar a sua casa por alguns dias. Como não coincidiam com as férias das gêmeas, ela tinha decidido ir sozinha.
Quando Peter voltou a falar, havia um certo nervosismo na sua voz.
— Vai com alguns amigos? — inquiriu ele.
— Não. Vou sozinha.
— A sério? — retorquiu ele num timbre de voz onde se adivinhava alívio e perplexidade. — Mas que senhora tão independente que é! — Admirava-a por isso. Ele próprio ainda não se encontrava preparado para ter férias sozinho.
Ter-se-ia sentido perdido sem a presença dos filhos, agora que Anne havia falecido. Mas a realidade era que Melanie vivia sozinha havia muito mais tempo do que ele.
— Pensei que poderia passar uns dias divertidos. As minhas filhas estão com uns ciúmes infernais por não poderem ir. Mas têm os seus amigos e nessa mesma semana há uma grande festa de fim de curso.
— Eu também sinto ciúmes — declarou Peter.
— Não é caso para isso. O mais provável é eu passar uns dias muito aborrecidos — acrescentou Melanie, pensando que, se os pudesse passar na companhia dele, tal não se verificaria. Obrigou aquele pensamento a abandonar-lhe a cabeça. — Mas vão fazer-me bem.
— Sim, isso é uma verdade — admitiu Peter sem se sentir ressentido com ela por causa dessa viagem. Apesar de a idéia ser uma loucura, o que mais desejava era poder acompanhá-la. No entanto, eram quase dois desconhecidos.
Continuaram a falar ao telefone durante mais algum tempo, até chegar o momento de ele ser forçado a ir para o bloco operatório. Por seu lado, Melanie pretendia ir ao estúdio de televisão ver os técnicos montar algumas partes do filme relativo à reportagem que fizera de Peter.
Na quarta-feira seguinte, o telefone começou a tocar no preciso momento em que Melanie se preparava para sair de casa. Estava com pressa de chegar ao Bloomingdale's. Tinha de comprar mais fatos de banho para levar na viagem às Bermudas, que estava marcada para essa mesma semana. Inspecionara os que comprara no verão anterior e chegara à conclusão de que todos haviam perdido a elasticidade e tinham as cores desbotadas. Durante os dois meses de verão, só vestia fatos de banho, pelo que o aspecto deles não era muito notável.
— Está lá? — perguntou Melanie quando atendeu.
— Sim, sou eu — respondeu a voz de Grant.
— O que é que se passa? — perguntou ela. — Estava de saída para ir comprar uns quantos fatos de banho para a viagem. — Sentia-se ansiosa. Partiria dali a dois dias. — Queres que te compre alguma coisa? Vou ao Bloomingdale's.
— Não, mas obrigado. Tinha-me esquecido que ias de férias. Precisas de um mordomo ou de um secretário enquanto estiveres ausente?
— Não, mas agradeço-te na mesma — retorquiu Melanie, sorrindo ao telefone.
Então Grant apercebeu-se do pouco que a tinha visto desde que ela regressara de Los Angeles.
— Só queria fazer-te uma pergunta acerca da Marcia Evans — continuou Grant. Estava a referir-se à grande dama do teatro clássico, uma vez que Melanie lhe fizera uma entrevista bastante íntima, havia mais ou menos seis meses. — Ela vai estar presente no meu programa desta noite.
— Desejo-te muita sorte — redargüiu Melanie, encolhendo-se toda por dentro. — Ela é um autêntico dragão.
— Merda! — exclamou Grant. — Foi exatamente isso que pensei. E o produtor teve a coragem de me afirmar que não havia qualquer razão para eu me preocupar. Tens algumas dicas que me permitam sobreviver?
— Leva contigo os primeiros socorros e não te esqueças do antídoto contra as mordidelas de serpentes. Ela é a mulher mais venenosa que alguma vez conheci. Não a chateies, porque, caso contrário, verás como ela te ataca.
— Isso é uma grande ajuda — retrucou Grant sem se mostrar muito agradado e sentindo-se furioso com o seu produtor por lhe ter arranjado aquela entrevista.
— Enquanto estiver a fazer compras, pensarei mais sobre o assunto e quando chegar a casa telefono-te — ofereceu-se Melanie.
— Queres jantar comigo logo à noite para me dares um pouco de coragem? — convidou Grant.
— Porque é que não passas antes por minha casa e assim também poderás ver as gêmeas? — sugeriu ela.
— Vou tentar fazer isso — respondeu ele com um sorriso rasgado — isto é, se entretanto não surgir nenhum contratempo.
— Tu e as mamas, Grant! — exclamou Melanie com uma gargalhada.
— Não posso evitar ser um homem fraco. Telefono-te mais tarde, miúda.
— Está bem — concordou ela, desligando o telefone e dando uma última olhadela ao espelho, enquanto agarrava na mala de mão.
Melanie usava um vestido branco de linho, um casaco de seda negra e um par de sapatos de verniz branco e preto, que comprara no ano anterior em Roma. Estava bastante elegante e sentia-se satisfeita com a sua aparência. Durante uma semana tinham trabalhado freneticamente no estúdio da televisão, a fim de concluir a montagem do filme com a entrevista a Peter Hallam e a Pattie Lou Jones; à medida que o trabalho progredia, cada vez lhe agradava mais o material que haviam conseguido recolher. A história estava a ficar cada vez mais interessante. Quando chegou à porta, o telefone recomeçou a tocar e Melanie sentiu-se tentada a não atender. O mais provável era ser o maldito do responsável pela montagem a dizer-lhe que fosse já para o estúdio. Ao menos uma vez, ela desejava poder dispor de algum tempo para si própria, o que lhe permitiria fazer as suas compras. O aparelho continuava a tocar com tanta persistência que Melanie desistiu da idéia de não atender e dirigiu-se de novo para a sala de estar, agarrando no telefone branco oculto num nicho.
— Sim? — perguntou Mel à espera e sentindo-se receosa ao pensar que ouviria de novo a voz do técnico. Naquela manhã, o homem já havia ligado por duas vezes. Mas não era ele. Uma vez mais, ouviu a voz de Peter Hallam.
— Olá, Mel — saudou ele, um pouco hesitante, ao ouvir o tom ríspido de Melanie.
Aquela reação fez com que se sentisse embaraçada.
— Olá, Peter. Lamento muito se fui desagradável. Estava preparada para sair de casa. Mas interrompeu-se, sentindo-se rejuvenescida de novo e nervosa, tal como acontecera nas outras ocasiões em que ele tinha telefonado. Peter conseguia produzir um efeito estranho nela, que parecia anular a sensação de triunfo por uma carreira profissional repleta de sucesso assim como a sua autoconfiança. Sempre que falava com Peter, Melanie voltava a ser de novo uma rapariguinha... ou talvez, apenas uma mulher. — É bom ouvir de novo a sua voz — continuou ela, dado que havia alguns dias que ele não lhe ligava. — Como é que está a Marie? — Ocorreu-lhe que talvez ele estivesse a telefonar para lhe dar más notícias.
Pelo contrário, Peter sossegou-a de imediato.
— Está muito melhor. Ontem à noite tivemos um problema, o que me levou a pensar que ela estivesse prestes a entrar num processo de rejeição, mas agora está tudo de novo sob controle. Alteramos-lhe a medicação. Estamos mesmo convencidos de que dentro de algumas semanas ela poderá voltar para casa — concluiu o médico.
Aquilo era algo a que Melanie gostaria de assistir, mas não justificava uma viagem até a Costa Oeste, e o seu produtor nunca a autorizaria a viajar apenas com esse propósito.
— E as crianças? — perguntou Melanie.
— Estão ótimas. Eu apenas queria saber como é que a Mel estava. Telefonei para o seu gabinete, mas disseram-me que não se encontrava lá — continuou Peter.
— Estou apenas a fazer gazeta — disse ela com uma risada, sentindo-se feliz e de coração leve. — É neste fim-de-semana que vou para as Bermudas e preciso fazer algumas compras.
— Aí está uma perspectiva que parece ser bastante agradável — retorquiu ele. — Eu e os miúdos vamos ficar por aqui durante este fim-de-semana. O Mark vai entrar num torneio de tênis e o Matthew foi convidado para uma festa de anos.
— As minhas filhas vão à festa de que lhe falei e depois irão para Cape Cod com uma amiga e com os pais desta — disse Melanie por sua vez. Ambos davam a impressão de ocultar os sentimentos que tinham um pelo outro atrás das conversas que mantinham sobre os respectivos filhos. Melanie deu consigo a perguntar a si própria como é que ele estaria, independentemente de Pamela, Mark ou Matthew. Num impulso, decidiu perguntar-lhe: — E o Peter? Está bem? Não tem trabalhado muito?
— É claro que tenho — respondeu ele, rindo-se da pergunta, apesar de se sentir satisfeito por Mel ter perguntado. — Não saberia proceder de outra forma, ainda que o quisesse, e tenho a certeza de que o mesmo aconteceria consigo.
— É verdade — retrucou Melanie. — Quando eu for velha e estiver toda enrugada, sendo forçada a aposentar-me, não saberei o que fazer todas as manhãs.
— Verá que há de pensar em alguma coisa — assegurou-lhe Peter.
— Sim. Talvez numa operação na cabeça. — Aquele comentário provocou uma gargalhada em ambos.
Melanie decidiu sentar-se e a idéia de ir ao Bloomingdale's comprar os fatos de banho apagou-se por completo da sua memória.
— Para lhe ser franca, acho que quando chegar essa altura gostaria muito de começar a escrever um livro.
— Sobre que assunto? — perguntou ele.
— As minhas memórias — respondeu ela na brincadeira.
— Não acredito! De verdade? — redargüiu Peter incrédulo.
Não era freqüente Melanie confessar os seus sonhos a qualquer pessoa, mas era-lhe fácil dialogar com ele.
— Ainda não sei bem. Mas tenho a impressão de que gostaria de escrever um livro sobre a situação da mulher na carreira jornalística. De início, esta profissão foi bastante difícil para mim — admitiu ela. — Embora agora as coisas se tenham tornado bastante mais fáceis, a realidade é que nem sempre foram assim. As pessoas, de uma maneira geral, ressentem-se muito quando alguém consegue alcançar êxito. Em parte sentem-se tão satisfeitas como chateadas. Tem sido bastante interessante lidar com essa situação, e acho que muitas mulheres podem identificar-se com ela. Não é relevante que se trabalhe na minha atividade ou noutra qualquer. O fulcro da questão é a ascensão, e eu sei o que isso é, o esforço que é necessário fazer e o que acontece quando chegamos lá em cima.
— Pelo que está a dizer-me, acho que vai ser um best-seller.
— Talvez não, mas ainda assim gostaria de tentar escrevê-lo — retorquiu Melanie.
— Eu sempre desejei escrever um livro sobre cirurgia cardiovascular que pudesse ser entendido pelos leigos e que explicasse de que trata esse tipo de intervenção cirúrgica, aquilo que há a esperar, o que deve ser exigido de um médico, quais os riscos que se correm em certas situações específicas — confidenciou Peter. — Não sei bem se o assunto poderia vir a ter algum interesse para as pessoas, mas o fato é que existe muita gente que não se encontra preparada e é prejudicada pelos seus médicos.
— Ora isso me parece ser uma idéia muito interessante — afirmou Melanie, sentindo-se impressionada e acreditando na necessidade da existência de um livro naqueles moldes. Deveria ser bastante interessante ver como é que Peter abordaria um tema daquela natureza.
— Talvez nós devêssemos fugir juntos para o sul do Pacífico, a fim de podermos escrever os nossos livros. Quando as crianças forem adultas — acrescentou ele.
— E por que é que haveríamos de esperar? — Era uma fantasia divertida, que lhe trouxe de repente à memória a sua viagem para as Bermudas. — Nunca estive no sul do Pacífico. — Já estivera nas Bermudas. Era uma região tropical não muito distanciada, mas pouco excitante. Talvez isso se devesse ao fato de a perspectiva de ir sozinha não a entusiasmar por aí além. E seria que Peter a entusiasmava? Melanie tinha medo de responder a essa pergunta.
— Eu sempre tive vontade de ir a Bora-Bora — confessou ele. — Mas nunca consigo afastar-me dos meus doentes durante tempo suficiente para que a viagem valha a pena.
— Talvez, bem no fundo, não deseje fazer isso — retorquiu Melanie.
Anne também o havia acusado do mesmo, e o mais provável era que fosse verdade.
— Talvez tenha razão — anuiu ele. Era-lhe fácil falar francamente com ela. — Vou guardar essa viagem para depois de me aposentar. — Guardara muita coisa e, agora que Anne tinha desaparecido da sua vida, nunca mais partilharia nada com ela. Peter adiara tanta coisa para mais tarde, e agora arrependia-se. Não existia mais tarde. Pelo menos para ele e para a sua falecida mulher. Interrogava-se quanto à sensatez de continuar a adiar constantemente as coisas. E se viesse a sofrer um ataque do coração, se morresse, se... — Talvez me decida a ir antes da reforma — concluiu Peter em voz alta.
— Faça isso. Acho que deve a si próprio uma recompensa — acrescentou Melanie.
Mas qual? Ultimamente, tudo o que ele mais desejava era estar na companhia dela.
— Sente-se entusiasmada com a viagem, Mel?
— Sim e não — foi a resposta dela. Já estivera sozinha em locais românticos em ocasiões anteriores, e chegara à conclusão de que isso tinha as suas desvantagens.
— Não se esqueça de me enviar um postal — pediu Peter.
— Assim farei — prometeu Melanie.
— É melhor desligar — disse ele, pouco depois. — Quando regressar da sua viagem, telefone-me. E descanse!
— O Peter tem tanta necessidade disso como eu. Provavelmente, ainda mais.
— Duvido muito — replicou Peter.
Naquele momento, Melanie olhou para o relógio de pulso, perguntando a si mesma de onde é que ele lhe estaria a telefonar. Na Califórnia eram nove e trinta da manhã.
— Hoje não está a operar?
— Não. Na última quarta-feira de todos os meses costumamos efetuar reuniões para pôr toda a equipe médica ao corrente das novas técnicas e maneiras de operar. Discutimos o que está a ser feito em todos os hospitais do país e os objetivos que cada um de nós tentou alcançar nas intervenções cirúrgicas realizadas ao longo do último mês.
— Quem me dera ter tido conhecimento dessas reuniões! Adoraria ter filmado uma — disse Mel, apesar de ter material suficiente para a reportagem.
— Costumamos começar às dez horas e nesses dias termino a ronda aos meus doentes mais cedo do que é hábito. Este telefonema é uma recompensa que já ando a prometer a mim mesmo há alguns dias — continuou Peter num timbre de voz agarotado. Era-lhe fácil dizer coisas daquele teor ao telefone. De repente sentiu-se grato pela distância que naquele momento existia entre ambos.
— Sinto-me muito lisonjeada com as suas palavras — asseverou Melanie.
Peter desejava dizer-lhe que ela deveria realmente sentir-se assim, uma vez que ele nunca havia telefonado a uma mulher com o propósito de manter uma conversação semelhante àquela desde que casara com Anne, mas ficou calado.
— Também me ocorreu diversas vezes telefonar-lhe para saber o estado de saúde da Marie, mas a diferença horária foi sempre um impedimento — afirmou Melanie.
— Isso também me aconteceu. Seja como for, estou contente por ter decidido ligar-lhe. Passe um fim-de-semana agradável nas Bermudas — desejou-lhe Peter.
— Muito obrigada. Também espero que o seu seja bom. Quando regressar, dou-lhe uma apitadela — prometeu Melanie. Era a primeira vez que fazia uma promessa daquele teor e já se sentia ansiosa pelo seu cumprimento. — A propósito, o nosso filme está a ficar sensacional.
— Fico muito satisfeito com isso — retorquiu Peter, esboçando um sorriso caloroso. Mas essa não havia sido a razão que o levara a telefonar-lhe. — Tenha cuidado consigo, Mel.
— Ligo-lhe na semana que vem — prometeu Melanie, sentindo inesperadamente que se tinha estabelecido entre ambos um elo de união que não existira antes. Quando se dirigiu ao Bloomingdale's, viu-se invadida por uma sensação de juventude, de entusiasmo e de despreocupação.
Já na loja, experimentou dois fatos de banho azuis, um preto e um vermelho; o vermelho nunca havia sido uma cor que a favorecesse devido à cor dos seus cabelos, o que a levou a decidir-se por um azul-marinho e por outro preto. Ambos eram um tudo-nada ousados, mas naquele dia ela sentia-se exótica. Enquanto permanecia junto do balcão à espera que alguém a atendesse para poder pagar, já com o cartão de crédito na mão e com os dois fatos de banho, avistou uma mulher banhada em lágrimas que se aproximava rapidamente de si.
— O presidente foi alvejado! — gritava ela para quem a quisesse ouvir. — Foi atingido no peito e nas costas e encontra-se às portas da morte!
Todas as pessoas que naquele momento se encontravam presentes no estabelecimento pareceram subitamente trespassadas por um choque elétrico, enquanto aos gritos passavam aquela informação umas às outras e começavam a correr como se pelo fato de se movimentarem com frenesi pudessem dar algum contributo positivo numa situação daquelas. Por seu lado, Melanie, em obediência a um reflexo, largou os fatos de banho sobre o balcão e, a correr, desceu três lanços de escadas, após o que saiu velozmente porta fora. Entrou no primeiro táxi que lhe apareceu à frente e, quase sem respiração, deu ao motorista a morada da estação de televisão. Quando já se encontravam a caminho, pediu ao motorista que ligasse a telefonia. Tanto ela como o homem permaneceram em silêncio, enquanto se inteiravam das notícias. Naquele momento, ninguém parecia saber ao certo se o presidente se encontrava vivo ou morto. Passara o dia em Los Angeles, numa reunião com o governador da Califórnia, e com outros dirigentes estaduais naquela cidade. Alguns momentos antes, fora levado apressadamente numa ambulância para o hospital, devido à gravidade dos ferimentos que sofrera, e dois homens dos Serviços Secretos jaziam mortos no pavimento, perto do local onde ele tinha sido alvejado. No momento em que colocou uma nota de dez dólares nas mãos do motorista, o rosto de Melanie estava pálido.
Depois irrompeu pelas portas duplas que davam acesso ao interior do edifício da cadeia de televisão. Deparou com uma cena de caos absoluto desde o átrio até a sala de redação e, quando se dirigiu num passo apressado para a mesa de trabalho do diretor da redação, este a olhou com uma expressão de alívio.
— Graças a Deus! Tinha esperanças de que aparecesses, Melanie — disse o homem.
— Vim a correr desde o Bloomingdale's — retorquiu ela, sentindo a impressão de que fora isso que acontecera, e que o teria feito sem dúvida alguma se a tal se tivesse visto obrigada. Sabia que o único lugar onde naquele momento deveria estar era precisamente no estúdio.
— Quero que entres no ar de imediato para apresentares os boletins noticiosos especiais — continuou ele, observando o vestuário que ela tinha e que lhe pareceu ótimo, apesar de naquela situação se estar absolutamente nas tintas se ela tivesse aparecido nua. — Vai já pôr um pouco de maquiagem. Podes abotoar o casaco um pouco mais? O vestido é demasiado branco para a câmera.
— Com certeza. Há já alguma novidade?
— Nada ainda. Ele continua na sala de operações e a única coisa que sabemos é que o seu estado de saúde é grave, Mel.
— Merda! — exclamou Melanie, correndo para o seu gabinete onde guardava os produtos de maquiagem.
Cinco minutos mais tarde encontrava-se de volta à redação; entretanto, já penteara os cabelos e vinha maquiada, tendo também abotoado o casaco. Estava pronta a entrar no ar. O produtor seguiu atrás dela até o estúdio e entregou-lhe uma pilha de papéis para que os lesse rapidamente, uma vez que não havia tempo a perder. Alguns instantes depois, Melanie olhou para o homem com uma expressão acabrunhada.
— A situação não parece nada boa, não é verdade? — perguntou ela.
O presidente fora alvejado no peito com três tiros, suspeitando-se de que a coluna vertebral tivesse sido afetada, a julgar pelo que diziam os relatórios anteriores. Ainda que ele conseguisse sobreviver, ficaria paralisado ou, pior ainda, poderia transformar-se num vegetal. Fora internado no Hospital Central e, naquele momento, era submetido a uma intervenção cirúrgica. De repente, Melanie lembrou-se de tentar saber se Peter Hallam saberia algo de que a imprensa não estivesse ao corrente, mas não teve tempo de lhe telefonar antes de entrar no ar.
Dirigiu-se apressadamente para a sua mesa no estúdio e começou a improvisar para as câmaras enquanto permanecia sob as luzes dos projetores, sentindo o calor que irradiava deles; começou a apresentar os boletins noticiosos à medida que estes iam surgindo. Toda a programação habitual fora interrompida para poderem apresentar as notícias que chegavam constantemente, apesar de não haver ainda muito a dizer. Melanie foi obrigada a fazer render as informações que possuía durante grande parte daquela tarde, sem ter feito qualquer intervalo durante três horas consecutivas, altura em que foi substituída por um dos outros pivots, um homem que costumava apresentar os noticiários aos fins-de-semana.
Todos haviam sido chamados ao estúdio. Rapidamente, organizaram-se algumas trocas de impressões intermináveis, em que se aventava todo o tipo de conjecturas ao vivo. Entre a chegada dos relatórios provenientes da Costa Oeste, os apresentadores entravam em contacto direto com os repórteres que se encontravam em Los Angeles, no átrio do Hospital Central, um local que tão familiar era a Melanie. Enquanto ouvia as notícias que continuavam a chegar, tudo que desejava naquele momento era poder estar lá. Por volta das dezoito horas, as notícias continuavam a não ser conclusivas, informando apenas que o presidente continuava vivo e que, sobrevivera à operação. Teriam de se contentar com aquele jogo da espera, à semelhança da primeira dama, a qual naquele momento se encontrava a bordo de um avião com destino a Los Angeles, que deveria aterrar dali a uma hora.
Melanie apresentou o seu noticiário habitual das dezoito horas, o qual como era evidente cobriu quase exclusivamente as notícias que vinham de Los Angeles, e, quando saiu do ar, o produtor encontrava-se à sua espera para falar com ela.
— Melanie — começou ele com uma expressão sombria entregando-lhe outra pilha de papéis — quero que vás para o hospital. — Durante breves instantes, ela sentiu-se atordoada. — Vai para casa, embala as tuas coisas e depois volta aqui para apresentares o noticiário das vinte e três horas. Assim que terminares, segues diretamente para o aeroporto. Já tratamos de marcar lugar num vôo e a primeira coisa que vais fazer amanhã de manhã assim que lá chegares é começar a relatar o que se está a passar em Los Angeles. Nessa altura, apenas Deus saberá o que é que terá acontecido. — O homem que alvejara o presidente já se encontrava detido e a sua história era constantemente transmitida, intercalada com entrevistas feitas aos cirurgiões de maior notoriedade do país. Estes expressavam a sua opinião quanto às hipóteses de sobrevivência do presidente.
— Estás disposta a fazer o que te peço? — perguntou o produtor.
Ambos sabiam que a pergunta era retórica. Não lhe restava qualquer alternativa; era para isso que lhe pagavam: para cobrir emergências de âmbito nacional. Mentalmente, Melanie passou em revista a lista de coisas que tinha a fazer. Sabia por experiências anteriores que Raquel tomaria conta das filhas e teria oportunidade de falar com elas quando fosse a casa fazer as malas, entre os dois noticiários.
Quando chegou, Melanie deparou com as gêmeas e com Raquel lavadas em lágrimas em frente do televisor.
Jessica foi a primeira a aproximar-se da mãe.
— O que é que irá acontecer, mamãe? — perguntou a filha ao mesmo tempo em que a governanta assoava ruidosamente o nariz.
— Ainda não sabemos — respondeu Mel, após o que começou a informá-las das novidades. — Tenho de ir para a Califórnia ainda esta noite. Vocês ficam bem? — indagou, dirigindo-se a Raquel, apesar de saber de antemão que a resposta seria afirmativa.
— É claro que sim — respondeu a governanta com uma expressão de quem se sentia quase insultada.
— Regressarei logo que isto tudo chegue a uma conclusão — assegurou Melanie depois de ter feito as malas.
Deu um beijo a todas e apressou-se a voltar ao edifício da estação televisiva, onde apresentaria as últimas notícias. Assim que saiu do ar, deixou o estúdio acompanhada por dois polícias que haviam sido designados para a escoltar até junto de um carro-patrulha, que se encontrava estacionado na rua. Ouviram atentamente as notícias difundidas pela rádio enquanto seguiam para o aeroporto a grande velocidade, com as sirenas a soarem estridentemente. A meia-noite e quinze, chegaram ao Aeroporto J.F.K. e, dez minutos depois de Melanie ter entrado a bordo, o avião descolou.
Enquanto atravessavam os céus do país, as hospedeiras entregaram-lhe por diversas vezes boletins que iam sendo recebidos pelos pilotos e enviados pelos coordenadores de tráfego aéreo que se encontravam nas torres de comando. O presidente continuava vivo, apesar de não haver maneira de saber por quanto tempo. Aquela noite pareceu não ter fim, até que, finalmente, Melanie aterrou no aeroporto da cidade, sentindo-se verdadeiramente extenuada. À sua espera, encontrava-se outra escolta da Polícia, e ela decidiu seguir de imediato para o Hospital Central antes de ir ao hotel dormir algumas horas. Teria de começar a trabalhar às sete da manhã e já eram quatro horas.
Quando chegou ao hospital, não havia mais novidades, e chegou ao hotel pouco antes das cinco da manhã. Calculou que ainda poderia dormir cerca de uma hora antes de se apresentar ao trabalho. Seria obrigada a beber uma grande quantidade de café simples. Pediu à telefonista do hotel que a acordasse com receio de poder adormecer. Haviam lhe reservado um quarto num hotel onde nunca se alojara, mas ficava perto do hospital. De súbito, apercebeu-se da estranheza daquela situação que a forçara a regressar a Los Angeles ao fim de tão pouco tempo, interrogando-se sobre se teria oportunidade de encontrar-se com Peter. Talvez depois de todo aquele assunto chegar ao fim. A não ser, é claro, que o presidente morresse.
Melanie poderia ser forçada a seguir para Washington ao mesmo tempo em que o Air Force One para assistir às exéquias.
Se fosse esse o caso, não teria quaisquer hipóteses de se encontrar com Peter. Esperava que, para bem do presidente, isso não viesse a concretizar-se. E tinha uma enorme vontade de ver Peter durante os dias mais próximos. Perguntava a si mesma se ele saberia da sua presença na cidade.
Quando a telefonista do hotel ligou, Melanie despertou imediatamente; todos os seus sentidos estavam em estado de alerta, apesar de sentir os membros doridos como se não tivesse dormido nada. Teria de funcionar à base de café simples e da sua energia nervosa. Não era a primeira vez que se via numa situação daquele gênero, e sabia que daquela vez também conseguiria levar a sua missão a bom termo. Melanie começou a vestir-se com gestos apressados, tendo optado por um vestido cinzento e sapatos pretos de salto alto. Às seis e trinta da manhã já se encontrava fora do hotel, seguindo num carro da Polícia que a deixou no hospital dez minutos mais tarde, onde foi posta ao corrente das últimas notícias, a fim de poder entrar no ar. Naquele momento já eram quase dez horas em Nova Iorque e havia já algumas horas que a zona leste do país aguardava ansiosamente por notícias.
‘ Avistou a equipe de filmagens com que tinha trabalhado antes, bem como cerca de outros cinqüenta operadores de câmara e mais duas dúzias de repórteres. Tinham assentado arraiais no átrio, enquanto um porta-voz do hospital lhes ia transmitindo os boletins clínicos de meia em meia hora. Finalmente, às oito horas, sessenta minutos depois de Melanie ter entrado no ar, apresentando um ar de austeridade impressionante, as primeiras boas notícias chegaram junto da imprensa.
O presidente encontrava-se consciente e a sua medula não havia sido cortada nem tão-pouco atingida. A fazer fé no que os médicos podiam concluir até o momento, se o presidente conseguisse sobreviver, não ficaria paralisado e não se verificara qualquer lesão cerebral. No entanto, continuava em estado crítico. A sua sobrevivência ainda não era um dado adquirido e, três horas mais tarde, a primeira-dama juntou-se aos membros da imprensa, dirigindo umas breves palavras à nação.
Melanie conseguiu que ela lhe concedesse três minutos e a pobre mulher tinha uma expressão de grande sofrimento e de um imenso cansaço, mas falou com voz firme e uma postura cheia de dignidade. O coração dos americanos estava com a mulher do presidente quando os seus olhos se marejaram de lágrimas, apesar de a sua voz nunca ter vacilado. Mel deixou-a falar fazendo-lhe apenas algumas perguntas, depois de lhe dizer que toda a nação rezava com ela pelo bem-estar do marido. Alguns minutos mais tarde e de uma maneira miraculosa, conseguiu falar durante breves instantes com o cirurgião que operara o presidente.
Por volta das dezoito horas daquela mesma noite, não se verificava qualquer alteração adicional, e Melanie foi substituída por um apresentador local que trabalhava para a mesma cadeia de televisão. Concederam-lhe cinco horas para regressar ao hotel e poder dormir, se tal lhe fosse possível. Porém, naquela altura, Melanie sentia-se tão excitada pelos acontecimentos do dia que não foi capaz de conciliar o sono quando chegou à cama. Deixou-se ficar deitada no escuro, a pensar num milhar de coisas diferentes; de repente agarrou o telefone e ligou um número local.
Mrs. Hahn atendeu do outro lado da linha e, sem qualquer preâmbulo amigável, Melanie perguntou por Peter, o qual atendeu instantes depois.
— Mel?
— Olá. Estou exausta e não sei se digo coisa com coisa, mas só queria dizer-lhe que estou em Los Angeles — informou ela.
Peter esboçou um sorriso de ternura. A voz dela denotava um cansaço enorme.
— Recorda-se de mim? — perguntou ele. — Eu também trabalho no Hospital Central. Para já não mencionar que também temos televisão. Hoje já a vi por duas vezes, apesar de não conseguir ver-me. Está a agüentar-se bem?
— Hei de sobreviver — respondeu Melanie. — Já estou habituada a este tipo de situação. Ao fim de algum tempo, só precisamos pôr o corpo a funcionar através do piloto automático e esperar que não choquemos contra uma parede qualquer, ao procurarmos uma casa de banho.
— Onde é que está neste momento? — perguntou Peter.
Melanie disse-lhe o nome do hotel. Peter sentiu-se surpreendido por, uma vez mais, se encontrarem tão próximos um do outro. Era forçado a admitir que, apesar das circunstâncias trágicas, aquela proximidade lhe agradava, embora não tivesse a certeza de que poderiam voltar a encontrar-se.
— Há alguma coisa que eu possa fazer por si? — continuou ele.
— Neste momento, não — respondeu Melanie. — Mas se houver, não hesitarei em dizer-lhe.
Peter sentiu-se um perfeito idiota ao fazer-lhe a pergunta seguinte, mas não foi capaz de se conter.
— Existe alguma possibilidade de que nos possamos encontrar em qualquer altura? Quero dizer, além de nos vermos num átrio repleto de membros da imprensa e da televisão?
— Ainda não sei. Tudo depende muito da evolução da situação — respondeu Melanie, soltando um suspiro profundo. — O que é que lhe parece que vai acontecer, Peter? Quais são as verdadeiras hipóteses de sobrevivência do presidente? — Ter-lhe-ia feito a pergunta antes; no entanto, sentia-se tão exausta que só naquele momento é que lhe ocorrera fazê-la.
— São boas, mas tudo depende do seu estado de saúde antes do acidente. O coração não foi afetado, senão teriam requerido a minha presença. Quando os médicos o operaram, eu encontrava-me no bloco operatório para o que desse e viesse, mas a minha intervenção não foi necessária.
Os relatórios que Melanie recebera não haviam referido aquilo, mas suspeitava que existisse muita coisa que naquele momento não estava a ser revelada. Tudo o que a imprensa sabia a fundo era o que dizia respeito ao passado do atirador: um homem de vinte e cinco anos, que passara os últimos cinco anos internado num hospício. Dois meses antes tinha confessado à irmã que iria assassinar o presidente. Nessa ocasião, ninguém o levara a sério, uma vez que o homem se mostrava convencido de que o seu companheiro de quarto no hospício era nada mais nada menos do que Deus, e que a chefe das enfermeiras era Marilyn Monroe. Ninguém pensava que ele soubesse ao certo quem era o presidente. No entanto, veio a provar-se que sabia o suficiente para ter estado prestes a matá-lo. E era provável que viesse a concretizar o seu intento.
—Amanhã saberemos muito mais, Mel — continuou Peter.
— Se conseguir obter alguma informação sigilosa, importa-se de me telefonar?
— Pode ficar descansada quanto a isso. Mas agora porque não tenta dormir um pouco, antes de se transformar na próxima doente? — sugeriu ele.
— Vou tentar, mas o problema é que estou tão excitada que não consigo adormecer.
— Experimente. Feche os olhos e descanse. Não pense em adormecer. — A voz de Peter acariciava-a e ela sentiu-se satisfeita por ter decidido telefonar-lhe. — Quer boleia para o hospital amanhã de manhã — perguntou ele.
— Amanhã? — retorquiu Melanie com uma gargalhada. — Esta noite ainda tenho de lá ir às vinte e três horas.
— Isso não é humano! — exclamou Peter com indignação.
— Alvejar o presidente também não o é — disse ela.
Ambos estavam de acordo. Pouco depois, Melanie desligou o aparelho, satisfeita. Esperava apenas que pudessem encontrar-se, antes de partir de Los Angeles. Teria muita pena se se fosse embora sem poder ver Peter, mas isso era uma possibilidade. Enquanto se virava para o outro lado na sua cama de hotel rezou para que tal não acontecesse.
Na sexta-feira seguinte, Melanie e o resto dos membros da imprensa passaram um dia cheio de ansiedade, no átrio do Hospital Central. Havia meia dúzia de moços de recados encarregados de fornecerem sanduíches e cafés aos jornalistas; periodicamente, estes iam para o ar a fim de fornecerem às respectivas estações emissoras os últimos boletins clínicos do presidente. No entanto, não se verificara qualquer alteração até às dezenove horas daquele dia. Depois de ter recomeçado o seu trabalho às vinte e três horas da quinta-feira anterior, Melanie só saiu do hospital às vinte horas da sexta-feira seguinte, tão cansada que a sua cabeça latejava e os olhos ardiam-lhe. Encaminhou-se para o parque de estacionamento e, quando se sentou ao volante do automóvel, que alguém havia alugado na noite anterior para seu uso, sentiu a visão tão desfocada que teve medo de rodar a chave e regressar ao hotel. A voz que ouviu parecia chegar-lhe de um espesso manto de nevoeiro; voltou-se para ver quem é que se encontrava ao lado do automóvel e lhe dirigia a palavra.
— Não está em condições de conduzir, Mistress Adams.
De início, Melanie pensou que fosse um polícia, mas, quando prestou mais atenção, viu um rosto familiar que a fez sorrir. Mel encostou a cabeça para trás. A janela estava completamente aberta: precisaria de muito ar fresco para não adormecer ao volante na viagem de regresso ao hotel.
— Ora bem, raios me partam! O que é que está a fazer aqui? — perguntou ela. Apesar da sua exaustão, ainda conseguia ver o azul-profundo dos olhos dele; era-lhe extremamente confortante vê-lo ali, perto de si.
— Eu trabalho aqui ou já se tinha esquecido desse pormenor? — retorquiu Peter.
— Mas não é um bocado tarde para ainda não ter ido para casa? — acrescentou Melanie.
Peter acenou com a cabeça e ficou a observar-lhe a expressão dos olhos; viu que ela também ficara feliz por encontrá-lo, apesar de se sentir demasiado fatigada para fazer qualquer movimento.
— Chegue-se para lá. Eu levo-a até ao hotel.
— Não diga disparates, eu estou bem — disse Melanie.
— Necessito apenas de...
— Ouça o que lhe digo e seja prática, Mel — replicou Peter, cortando-lhe a palavra. — Com o presidente hospitalizado aqui, se a Mel estatelar o automóvel contra uma árvore, nas urgências não haverá pessoa alguma que lhe faça sequer um penso. Todo o pessoal médico deste hospital foi destacado para prestar assistência única e exclusivamente ao presidente. Portanto, vamos poupar a nós próprios uma grande dor de cabeça, e deixe-me levá-la ao hotel. Estamos de acordo? — concluiu Peter com determinação.
Melanie nem sequer tinha a força necessária para lhe opor resistência. Limitou-se a sorrir como se fosse uma criança cansada ao fim de um dia de brincadeiras e aquiesceu com um gesto de cabeça, deslizando para o lugar do passageiro.
— Menina bonita — disse Peter.
Observou-a para ver se as suas palavras tinham sido bem aceitas e ficou aliviado ao ver que assim era. Melanie olhava para o vazio e não parecia sentir-se incomodada pelo fato de ele ter assumido o controle da situação. Peter conduziu habilmente por entre o tráfego de Los Angeles, ainda bastante intenso àquela hora e, de vez em quando, olhava de relance para Melanie. Por fim, falou de novo:
— Sente-se bem, Mel?
— Estou apenas derreada. Depois de ter dormido um pouco, estarei de novo em forma.
— A que horas é que tem de recomeçar a trabalhar? — indagou ele.
— Só às seis da manhã de amanhã, graças a Deus — retorquiu Melanie. — Por acaso sabe de alguma coisa quanto ao estado de saúde do presidente? — perguntou ela pouco depois, sentando-se um pouco mais a direito no assento do automóvel. Como resposta, Peter limitou-se a abanar a cabeça. — Merda! — exclamou Melanie. — Espero que ele consiga safar-se desta.
— Esse é o desejo de todos os cidadãos deste país, incluindo o meu. Uma pessoa sente-se muito impotente numa situação como esta. Mas por acaso ele teve uma sorte dos diabos. Podia ter morrido logo. De fato, a julgar pelas radiografias que tive oportunidade de examinar, foi por uma unha negra. O presidente esteve a uma fração de milímetros de perder a vida ou as faculdades ou, na melhor das hipóteses, a capacidade de poder movimentar-se do pescoço para baixo. Se a bala tivesse feito ricochete numa trajetória ligeiramente diferente... — Peter não teve necessidade de concluir a frase. Os cirurgiões que haviam operado o presidente eram seus amigos, o que lhe permitia manter-se bem informado de toda aquela situação trágica.
— Eu tenho imensa pena da mulher — retrucou Melanie. — Ela está a ser muito corajosa e não perdeu ainda a esperança. — A primeira-dama já não era uma mulher jovem e os últimos dois dias tinham posto à prova a sua capacidade de resistência.
— Não sei se sabe, mas ela tem problemas cardíacos — disse Peter. — Não se trata de uma coisa por aí além, mas esta não é exatamente a situação emocional que o médico lhe teria recomendado.
— Pelo menos, o Peter está perto dela, no caso de surgir qualquer problema — disse Melanie com um sorriso cansado, olhando para ele. Sem saber como nem porque, sentiu-se grata por ele também se encontrar junto de si. Nunca teria sido capaz de ter conduzido incólume por entre o tráfego daquela auto-estrada. Na altura em que estacionavam à frente do hotel, Melanie disse-lhe isso.
— Não seja disparatada. Eu nunca a teria deixado conduzir nesse estado — declarou Peter.
— Tenho muita sorte por o Peter ter aparecido quando eu saía do hospital — redargüiu Melanie, sentindo-se um pouco mais animada, ainda que apenas ligeiramente. Até ao momento, não se dera conta de que Peter tinha estado à sua espera, uma vez que antecipara aquele problema. Desejara fazer aquilo por ela, e sentia-se satisfeito por ter procedido dessa forma. — Estou-lhe muitíssimo agradecida, Peter — continuou ela.
Ambos saíram do automóvel e ele baixou o olhar para Melanie.
— Está em condições de entrar sozinha no hotel? — perguntou com alguma preocupação.
Melanie sorriu perante a preocupação dele. Há anos que não via ninguém preocupar-se assim com ela.
— Eu estou bem — assegurou ela. — Posso perfeitamente caminhar, o que não posso é conduzir. — Mas tê-lo-ia feito, se a tal se visse obrigada.
— Amanhã de manhã venho buscá-la. Às seis menos um quarto está bem para si? — perguntou Peter.
— Não posso permitir que faça isso — recusou Mel.
— E por que não? Normalmente, eu estaria no hospital por volta das seis e meia. Que diferença é que trinta minutos podem fazer? — argumentou ele.
— A sério, eu posso conduzir — respondeu Melanie, sentindo-se quase embaraçada pela atenção que ele lhe dedicava.
Peter, contudo, manteve-se irredutível.
— Não estou a ver por que motivo é que deveria ir sozinha para o hospital — insistiu.
— Como é que vai agora para casa? — perguntou ela.
— Não se preocupe com isso. Vou apanhar um táxi até ao parque de estacionamento do hospital, onde deixei o meu automóvel. Estou completamente desperto. A Mel é que se encontra mais morta do que viva, e vê-se que mal se consegue agüentar de pé.
— Oh, Peter. Eu não tive intenção de... — Com um bocejo, Melanie interrompeu-se, dando uma gargalhada.
— Sim? Há mais alguma coisa que pretenda dizer ao seu público? — perguntou Peter na brincadeira, o que fez com que ela lamentasse o fato de se sentir tão extenuada.
— Só quero agradecer-lhe — continuou ela. O olhar dos dois encontrou-se e ficou preso. — É tão agradável vê-lo de novo.
— Não, não é. Nem sequer é capaz de ver. Tanto quanto sabe, apareceu-lhe um estranho que a trouxe ao hotel — concluiu Peter, conduzindo-a gentilmente para a porta do edifício e acompanhando-a até ao vestíbulo.
— Todos os estranhos deveriam ser assim tão simpáticos — murmurou Melanie baixinho.
— Agora seja boazinha, meta-se no elevador até ao seu quarto e veja se dorme. Já comeu? — perguntou ele.
— O suficiente. Neste momento, aquilo que mais desejo é a minha cama. Pensando melhor, qualquer cama serve — retorquiu Melanie. Até mesmo o chão começava a parecer-lhe apetecível.
Peter carregou no botão de chamada do ascensor e empurrou-a com suavidade para o interior antes que ela pudesse dizer mais alguma coisa, após o que retrocedeu e se despediu.
— Até amanhã de manhã.
Melanie teria objetado, mas as portas fecharam-se e o elevador deixou-a no andar onde se situava o seu quarto. Tudo o que tinha a fazer era dar alguns passos até a porta, abri-la, voltar a fechá-la e dirigir-se para a cama. Fez tudo isso com gestos mecanizados que mais pareciam de um robô. Nem sequer se deu ao trabalho de despir a roupa; porém, antes de adormecer ligou para a telefonista do hotel, pedindo que a acordassem às cinco da manhã. Adormeceu e teve a sensação de que no momento seguinte o telefone começou a tocar.
— São cinco horas, Mistress Adams.
— Já? — perguntou Melanie numa voz enrouquecida e ensonada. Obrigou-se a despertar, enquanto se sentava com o auscultador na mão. — Ouviu algumas notícias? O presidente ainda está vivo?
— Estou em crer que sim. — Se não fosse esse o caso, já lhe teriam telefonado do hospital ou da cadeia de televisão em Los Angeles.
Melanie desligou e marcou o número da estação televisiva local. Ficou a saber que o presidente continuava vivo e que desde a noite anterior não tinham surgido mais novidades. O seu estado de saúde permanecia estável, apesar de crítico. Em seguida, dirigiu-se para o chuveiro. Ainda era demasiado cedo para poder pedir que lhe levassem café ao quarto. Faltavam vinte minutos para as seis quando Melanie desceu e ficou à porta do hotel a pensar que deveria ter insistido na noite anterior para que Peter não a fosse buscar. Não existia qualquer razão que justificasse ele andar a fazer de seu motorista. Realmente, era um disparate.
Pontualmente às cinco e quarenta e cinco, ele chegou ao hotel e abriu a porta do automóvel para que Melanie entrasse. Peter parecia estar completamente desperto. E, enquanto ela se sentava ao seu lado, ofereceu-lhe uma termo que continha café.
— Meu bom Deus, este é o melhor serviço de limusine que alguma vez tive — comentou Melanie.
— Nesse saco estão alguns sanduíches — disse Peter, indicando com um sorriso um saco de papel castanho no chão da viatura. — Bom-dia! — saudou. Tinha calculado acertadamente que ela não havia jantado na noite anterior. Fora ele mesmo a preparar os sanduíches que lhe trouxera.
— É bastante agradável ter um amigo em Los Angeles — declarou Melanie depois de dar uma dentada num sanduíche de peru em pão de forma, recostando-se no banco do Mercedes, com a chávena de café na mão, grata pela atenção que Peter lhe dispensava. — Isto é que é vida — afirmou, olhando para ele com um sorriso tímido. — Não sei bem porque, mas, quando parti de Los Angeles há duas semanas, tinha a impressão de que realmente não voltaríamos a ver-nos de novo. Ou pelo menos durante muito tempo.
— Foi isso que eu também pensei. Só lamento que o nosso reencontro fosse proporcionado por uma tragédia como esta. No entanto, estou satisfeito por estar aqui, Mel.
— Quer saber uma coisa? — perguntou ela, bebendo outro gole do café fumegante. — Eu também sinto o mesmo. É uma coisa horrível de se dizer, dadas as circunstâncias que me trouxeram à cidade. Mas, não sei bem Melanie interrompeu-se e afastou o olhar durante alguns instantes, depois do que voltou a concentrar a sua atenção em Peter. Tenho pensado muito em si desde que regressei a Nova Iorque e não sei bem ainda qual o motivo. Talvez o meu regresso aqui me ajude a esclarecer as idéias.
Peter acenou com a cabeça. Também ele se debatera com o mesmo problema.
— É-me bastante difícil explicar-lhe aquilo que tenho sentido nestes últimos dias. Estou sempre com uma vontade constante de lhe telefonar, para lhe contar as coisas que me acontecem, para lhe dar as últimas notícias do estado de saúde de Marie... Ou para lhe falar de uma qualquer operação que tenhamos acabado de fazer... Ou ainda acerca de algo que um dos miúdos tenha dito ou feito.
— Acho que, nos últimos tempos, o Peter se tem sentido terrivelmente sozinho e eu abri-lhe uma porta. Agora não sabe o que é que há de fazer com ela — disse Melanie com um ar pensativo e Peter assentiu com a cabeça. — Mas o mais engraçado é que eu também não sei. Também me abriu uma porta e eu continuei a pensar em si quando fui para casa. Fiquei tão contente quando me telefonou pela primeira vez!
— Não tive qualquer alternativa — retorquiu Peter. — Senti que era obrigado a ligar-lhe.
— Mas por que? — perguntou ela.
Ambos procuravam respostas que nenhum deles possuía.
— Não sei, Mel. Na realidade, para mim foi um alívio enorme saber que estava de volta. Talvez desta vez eu consiga descobrir aquilo que pretendo dizer-lhe — continuou ele.
— Ou também é possível que não me atreva a confessá-lo... Melanie, porém, teve a audácia de lhe fazer a pergunta mais difícil.
— E isso o assusta?
— Sim — respondeu Peter com uma voz que vacilava, sem olhar para ela enquanto continuava a conduzir o automóvel. — Assusta-me e muito.
— Se lhe serve de alguma consolação, devo dizer-lhe que também tenho medo.
— Mas por que motivo? — indagou ele, olhando para ela com uma expressão de perplexidade. — A Mel há já muitos anos que enfrenta o mundo sozinha. Sabe bem o que é que anda a fazer, enquanto eu não sei.
— Esse é exatamente o fulcro da questão. Há quinze anos que vivo sozinha. Nunca permiti que homem algum se aproximasse demais. Se o fizesse, eu afastava-me dele sem qualquer hesitação. No entanto, existe algo em si... Não sei bem o que pensar acerca de si, mas o fato é que me senti irresistivelmente atraída por si, durante a última vez que estive em Los Angeles.
Peter parou o automóvel no parque de estacionamento do Hospital Central e olhou para o rosto de Melanie.
— Para além da minha falecida mulher, a Mel é a primeira mulher em vinte anos por quem me sinto atraído. Este sentimento assusta-me muito, Mel.
— Por que razão?
— Não sei — respondeu Peter. — Mas é assim. Desde que a Anne morreu que eu me tenho afastado da vida. E agora já não sei se quero continuar a proceder assim.
Ambos se deixaram ficar sentados durante longos momentos, e Melanie foi a primeira a quebrar o silêncio.
— Por que é que nós não nos limitamos a aguardar até vermos o que acontecerá? Não é aconselhável forçar o que quer que seja. Até a data, nenhum de nós arriscou fosse o que fosse. O Peter fez-me uns quantos telefonemas e eu encontro-me aqui porque o presidente foi alvejado. De momento, não há mais nada — finalizou Melanie, tentando assegurar-se do que acabara de dizer, pretendendo que ele fizesse o mesmo; porém, nenhum deles parecia muito convencido.
— Tem a certeza de que isso é tudo? — perguntou Peter com uma expressão de ternura nos olhos.
— Não. Não tenho — respondeu ela com um sorriso. Aí é que está o problema. Mas, talvez se levarmos as coisas com calma, não nos sintamos assustados com o que está a passar-se.
— Espero não assustá-la, Mel — acrescentou Peter por sua vez. — Gosto demasiado de si para desejar incutir-lhe o mínimo receio, levando-a a afastar-se de mim.
— Eu assusto-me mais a mim mesma do que o Peter alguma vez conseguiria fazer. Nunca foi minha intenção permitir que alguém voltasse a fazer-me sofrer, nem tão-pouco depender de alguém para além de mim própria. Erigi à minha volta os muros de uma fortaleza e, se permitir a entrada de alguém, essa pessoa poderá destruir tudo o que construí ao longo da minha vida. Levou-me muito tempo a alcançar tudo o que tenho.
Peter viu que nos seus olhos havia algumas lágrimas.
— Eu nunca a magoarei, Mel, nunca, desde que isso esteja ao meu alcance. Pelo contrário, gostaria de aliviá-la de parte do fardo que é obrigada a carregar.
— Não tenho a certeza de querer desistir disso — retrucou Melanie.
— E eu não tenho a certeza de estar preparado para carregá-lo.
— Não faz mal. É melhor assim — disse Mel, recostando-se durante breves instantes, antes de ser obrigada a deixá-lo. — O único contra é vivermos tão longe um do outro. O Peter aqui... e eu lá. Desta forma, nunca chegaremos a descobrir seja o que for.
— Talvez o consigamos durante esta sua estada — replicou Peter com um timbre de esperança na sua voz.
Melanie abanou a cabeça, desanimada.
— Isso é muito pouco provável enquanto eu estiver a trabalhar tantas horas.
No entanto, ele não estava disposto a ser desencorajado. Pelo menos, ainda não. Tinha uma enorme necessidade de descobrir o que sentia por aquela mulher, que tanto o atraía.
Olhou para aqueles enormes olhos verdes, de que se recordara tanto durante a sua ausência.
— Da última vez que aqui esteve, acompanhou-me sempre enquanto eu trabalhava. Desta vez, permita que eu me coloque à sua disposição, tanto quanto me for possível. Talvez possamos ter algum tempo livre para conversarmos.
— Essa idéia agrada-me — retorquiu Melanie. — Mas aviso-o de que vai ter uma surpresa. Neste momento estou a trabalhar noite e dia.
— Isso é o que veremos. Depois de terminar no bloco operatório e de ter feito a ronda aos meus doentes; vou tentar arrancá-la do átrio do hospital. Talvez possamos ir comer um sanduíche — retorquiu ele.
Aquela sugestão satisfazia Melanie, apesar de não saber se disporia do tempo necessário para o que ele sugerira.
— Farei o possível para poder ir. Mas, Peter, tem de compreender que talvez não consiga afastar-me.
— Eu compreendo isso — tranqüilizou-a ele e então, pela primeira vez desde que se tinham reencontrado, Peter tocou-lhe na mão. — Não há problema, Mel. Eu estou aqui e não tenciono ir a parte alguma.
Mas talvez ela tivesse de ir. Em silêncio, ambos esperavam que essa possibilidade não se verificasse demasiado cedo.
— Obrigada pela boleia, Peter — agradeceu Melanie com um sorriso, agradando-lhe sentir a mão dele na sua.
— Ao seu serviço, minha senhora — retorquiu ele na brincadeira, saindo do automóvel para lhe abrir a porta; momentos mais tarde, ambos eram engolidos pela multidão que se apinhava no átrio do hospital.
Peter virou-se para trás, olhando uma última vez para Melanie, mas ela já se embrenhara numa conversa com outros colegas menos importantes que haviam permanecido durante a noite no hospital, e as portas do elevador fecharam-se, impedindo que ela o avistasse de novo.
As notícias que Melanie recebera deram-lhe alguma esperança. O presidente continuava vivo e, trinta minutos antes, um porta-voz do hospital anunciara à imprensa que se haviam registrado melhorias no seu estado de saúde.
Às oito horas, a primeira-dama regressou. Encontrava-se hospedada no Hotel Bel-Air e, quando chegou, vinha rodeada de agentes dos Serviços de Segurança, os quais abriram caminho pelo vestíbulo. Era absolutamente impossível a alguém aproximar-se da mulher do presidente, apesar de Melanie e alguns dos seus colegas terem tentado. A pobre mulher parecia muito abatida e Mel sentiu pena dela. Às oito e meia, entrou no ar, efetuando uma transmissão para Nova Iorque, e depois às nove para as notícias do meio-dia, hora de lá. Tudo o que ela podia dizer à nação era que o presidente continuava vivo. Ao longo do dia, fora reunindo os boletins médicos à medida que estes lhe iam sendo facultados, sem ter um momento para poder pensar na sua própria vida ou em Peter Hallam.
Melanie não voltou a vê-lo até às três da tarde, altura em que ele inesperadamente surgiu junto de si, com um aspecto impressionante na sua impecável bata branca e, num ápice, foi rodeado pela imprensa. Estes pensaram que o médico trazia mais notícias. Foi quase impossível a Peter fazer-se ouvir acima do barulho, para poder explicar que estava ali apenas para ver uma amiga e não como profissional de saúde. Por fim, Peter e Melanie conseguiram escapulir para um canto, o que levou alguns dos jornalistas a pressuporem que ela conseguira um furo, ficando em vantagem em relação aos colegas.
Por fim, num gesto de quase desespero, Peter despiu a bata branca e largou-a atrás de um caixote do lixo no átrio do hospital.
— Credo, cheguei a pensar que iam atacar-me! — queixou-se ele.
— Era o que fariam se a oportunidade surgisse. Lamento muito o sucedido — disse Mel com um sorriso de fadiga. Já estava a trabalhar a nove horas consecutivas e a única comida que ingerira tinha sido o sanduíche que ele lhe oferecera de manhã, embora tivesse bebido litros de café.
— Comeu alguma coisa? — perguntou Peter.
— Ainda não.
— Pode largar o trabalho?
— Tenho de estar pronta a entrar no ar dentro de dez minutos para apresentar o noticiário das seis, hora de Nova Iorque — respondeu Melanie, olhando para o relógio de pulso. — Mas, depois disso, devo poder tirar algum tempo.
— Durante quanto tempo mais é que tem de ficar no hospital? — continuou Peter.
— Por mais algumas horas. O mais certo é poder sair por volta das dezoito horas. Se for forçada a isso, posso sempre regressar às oito da noite, a fim de apresentar as notícias das onze, hora de Nova Iorque. De fato, o mais provável é que isso venha a acontecer. Mas, depois disso, espero poder dar o dia por terminado, a não ser que surja algo de inesperado.
Peter ficou a pensar durante alguns momentos.
— A minha sugestão é ir-me embora agora e voltar aqui às seis da tarde para a vir buscar. Poderemos ir a qualquer sítio sossegado para jantar. Desta forma, poderei trazê-la de volta ao hospital, a tempo de apresentar o noticiário e depois a levo até ao seu hotel.
— Nessa altura, já devo estar mais morta do que viva e talvez adormeça em cima do prato.
— Não me importo. Já antes pus pessoas a dormir durante um jantar — retorquiu ele na brincadeira. — Pelo menos, desta feita poderei convencer-me que é capaz de haver uma justificação para o seu comportamento — acrescentou com um sorriso, sentindo uma enorme vontade de tomá-la nos braços.
— Gostaria muito de me encontrar consigo esta noite — disse Melanie, esboçando um sorriso.
— Ótimo. Nesse caso está combinado. Até mais logo, às seis! — despediu-se Peter, seguindo num passo apressado para o seu gabinete.
Exatamente três horas mais tarde regressou ao átrio. Nessa altura, já Melanie tinha umas olheiras escuras e, quando entrou no automóvel, Peter viu que ela estava exausta.
Melanie olhou para ele com um sorriso cansado.
— Não sei se sabe, Peter, mas qualquer atração que possa sentir por mim neste momento é pura necrofilia.
Ele riu-se ao imaginar aquela sugestão horrorosa, fazendo uma careta.
— O que disse é absolutamente macabro.
— É como eu me sinto — afirmou Melanie. — Como é que foi o seu dia de trabalho?
— Ótimo. Como é que o presidente está esta noite? — perguntou ele, imaginando que, naquela fase, ela já sabia mais do que ele próprio. Estivera demasiado ocupado com os seus doentes para pensar noutra pessoa.
— Continua a agüentar bem. Começo a convencer-me de que é capaz de escapar desta, uma vez que conseguiu sobreviver até agora. Qual é a sua opinião? — perguntou Melanie.
— Penso que poderá ter razão — retorquiu o médico com um sorriso nos lábios. — Só espero que ele não decida levantar-se amanhã de manhã, obrigando-a a apanhar um avião de volta a casa.
— Não me parece que de momento haja alguma probabilidade de isso vir a suceder, não acha?
— Francamente, acho — declarou Peter satisfeito, olhando para Melanie, enquanto conduzia o automóvel que os levaria a um restaurante não muito distanciado do hospital.
— A propósito, como é que estão os seus filhos? — perguntou ela.
— Bem. Já sabem que a Mel se encontra na cidade, uma vez que a vêem nos noticiários, mas ainda não tive oportunidade de lhes dizer que me tinha encontrado consigo.
Melanie ficou em silêncio durante alguns instantes.
— Talvez fosse melhor não lhes dizer.
— E por que não? — inquiriu ele surpreendido.
— Podem ficar nervosas. As crianças têm um poder de detecção notável. Eu sei que isso se passa com as minhas filhas, em especial com a Jess. Consigo ocultar qualquer assunto da Valerie durante algum tempo por ela andar sempre tão envolvida nas coisas do seu dia-a-dia — continuou Melanie. — Mas a Jess possui instintivamente o poder de detectar as coisas antes de estas terem lugar.
— Às vezes a Pam também é assim, mas os rapazes são diferentes — redargüiu Peter.
— Exatamente. E a sua filha já tem bastantes coisas que a preocupem, sem que haja necessidade que o faça por causa de mim — retorquiu Melanie.
— O que é que a leva a pensar que ela poderia sentir-se preocupada? — perguntou ele intrigado.
— E o Peter, por que é que há de pensar que isso não pode acontecer? Pense bem. Durante os últimos dois anos, o mundo dela ficou virado do avesso, mas pelo menos, sabe que o tem a si. E não houve outras mulheres que pudessem competir com ela, pelo menos na sua mente. De repente, eu entro em cena e constituo uma ameaça imediata — explicou Melanie.
— Que motivo a leva a pensar assim? — perguntou Peter.
— Eu sou uma mulher. Ela é uma rapariga e o Peter é o pai dela. Pertence-lhe.
— O fato de eu me sentir interessado em alguém não iria alterar isso — retorquiu Peter.
— Iria sim, de forma tênue. Tenho a certeza de que, quando a sua mulher estava viva, a relação que tinha com a sua filha era muito diferente. Dispunha de menos tempo para ela, tinha outras coisas a fazer. Agora pertence-lhe por inteiro, ou quase. Alterar essa situação, por causa de uma estranha, não vai agradar-lhe muito.
Peter parecia pensativo quando estacionou o automóvel em frente de um pequeno restaurante italiano.
— Nunca pensei nesse assunto à luz dessa perspectiva disse ele, esboçando um breve sorriso. — Mas nunca foi necessário. Talvez eu deva ser um pouco mais cuidadoso no que lhe digo.
— Acho que sim — anuiu ela com uma careta risonha.
— Que diabo! É muito possível que o Peter não me queira ver outra vez depois destes dias mais próximos. Está prestes a poder observar-me no meu pior. Depois de vários dias a dormir pouco, começo a cair aos bocados.
— É o que acontece a todos nós — retrucou Peter.
— Nunca pensei que isso também lhe acontecesse — disse ela. — Apesar de todas as suas responsabilidades, parece agüentar-se miraculosamente.
— Também tenho os meus limites — retorquiu ele.
— Comigo passa-se o mesmo, mas o problema é que os atingi há já dois dias — acrescentou Melanie.
— Vamos entrar. Precisa comer qualquer coisa. Isso ajudará — contrapôs Peter, enquanto entravam no restaurante, onde o chefe de mesa os encaminhou para uma mesa sossegada. — Bebe vinho, Mel?
— Se beber, é certo e sabido que vou desfalecer em cima do prato — respondeu ela com um vigoroso abanar de cabeça.
Soltou uma gargalhada e mandou vir um pequeno bife. Já nem sequer tinha fome, mas sabia que as proteínas lhe fariam bem. Ambos desfrutaram do jantar e da conversa trivial. Melanie estava espantada por se sentir tão à vontade na companhia do médico. Peter parecia interessado no seu trabalho e ela já sabia bastante do dele. A conversa foi descontraída e estimulante. No fim da refeição e enquanto o café era servido, Melanie recostou-se na cadeira, satisfeita e saciada.
— Peter é uma verdadeira dádiva de Deus — acrescentou ela. — Sabia disso?
— Eu também estou a sentir muito prazer no nosso jantar — reciprocou Peter.
— Quando vim a Los Angeles não esperava nada que me viesse a acontecer uma coisa destas — disse Melanie.
— Eu sei — retorquiu Peter com um sorriso. — Estava convencida de que, nesta altura, já estaria nas Bermudas.
— Era hoje que eu deveria ter partido? — Melanie perdera a noção do tempo e nem sequer tinha telefonado às filhas desde que chegara, mas sabia que elas haveriam de compreender. De qualquer das formas, as gêmeas tinham ido para Cape Cod passar o fim-de-semana prolongado. Nem sequer se dera conta de que esses dias de descanso já haviam começado, mas de fato assim era. Tinha a sensação de que já se encontrava em Los Angeles havia várias semanas. De certa forma, desejava que assim fosse. Jamais sentira o que sentia naquele momento. Regra geral, toda a vida de Melanie se centrava em Nova Iorque, mas não naquele momento. A vida dela encontrava-se em Los Angeles.
— Lamento que tenha perdido a viagem para as Bermudas, Mel.
— Eu não — retrucou ela, olhando francamente para Peter. — Aqui é onde eu prefiro estar.
Peter não sabia ao certo como é que haveria de responder àquilo, pelo que optou por lhe agarrar na mão.
— Sinto-me feliz por ter voltado, Mel. Lamento apenas que seja obrigada a trabalhar tanto.
Os olhos dela fitavam-no com uma expressão de extrema intensidade.
— É um preço pequeno a pagar para poder encontrá-lo outra vez.
— Estou certo de que o presidente não é dessa opinião — acrescentou Peter sem conseguir reprimir um pensamento de tristeza.
Ficaram ambos sérios e depois Melanie, a contragosto, olhou para o relógio. Estava na hora de regressar ao trabalho. Peter ofereceu-se para acompanhá-la ao hospital, dizendo que esperaria por ela, mas Melanie começou a protestar.
— Posso muito bem apanhar um táxi depois da apresentação do noticiário das onze horas — assegurou ela. O que correspondia aproximadamente às vinte horas em Los Angeles.
— Já disse o que tinha a dizer. Enquanto cá estiver serei o seu motorista. — Depois ficou um pouco constrangido. — A não ser que prefira que assim não seja.
Daquela vez, foi Melanie quem estendeu a mão para agarrar a dele.
— Adoro a sua sugestão — asseverou ela.
— Ótimo.
Pagaram a conta e saíram do restaurante, regressando ao hospital a horas de ela anunciar aos telespectadores de Nova Iorque que o presidente tinha um pouco de temperatura, o que seria de esperar. Meia hora depois, Peter conduziu-a ao hotel e deixou-a à entrada, prometendo que iria buscá-la à mesma hora na manhã seguinte. Uma vez mais, Melanie subiu no elevador até ao seu quarto e deitou-se imediatamente. Mas, naquela noite levou mais tempo até conseguir adormecer, e, quando ele telefonou trinta minutos mais tarde, ainda se encontrava acordada.
— Está lá? — atendeu Melanie, receando que fossem más novas quanto ao estado do presidente.
— Sou eu — anunciou Peter. Ao ouvir a voz dele, Mel soltou um suspiro de alívio, informando-o da razão. — Peço desculpa se a assustei.
— Não tem importância. Passa-se alguma coisa de errado? — perguntou Melanie.
— Não — respondeu Peter; ela quase conseguia ouvir a respiração dele ao telefone. — Queria dizer-lhe apenas que a acho uma pessoa maravilhosa. — Ele próprio se sentiu surpreendido ao ouvir as palavras que acabara de proferir e ao sentir o coração a bater mais depressa.
Melanie sentou-se na cama, nervosa e satisfeita.
— Eu cheguei à mesma conclusão acerca de si da primeira vez que aqui estive — retorquiu ela.
Peter corou e sentiu-se um idiota, e ela sorriu; falaram de trivialidades durante algum tempo, até que acabaram por desligar, ambos excitados, felizes e assustados como dois adolescentes. Haviam começado a dar pequenos passos no desconhecido e ainda não era tarde demais para poderem retroceder, mas o equilíbrio tornava-se cada vez mais difícil com o decorrer de cada dia. Nenhum dos dois conseguia adivinhar o que aconteceria quando Melanie fosse forçada a regressar a Nova Iorque; todavia, era demasiado cedo para começarem a preocupar-se com isso. Naquele momento, limitavam-se a desfrutar do prazer de caminharem no desconhecido.
— Boa noite, Mel. Até amanhã.
Ela ainda conseguia ouvir a voz de Peter a soar-lhe aos ouvidos quando se deitou e tentou adormecer no escuro. Sentia-se como se tivesse sido convidada para o baile de finalistas pelo rapaz mais atraente das redondezas. Era engraçada a maneira como a companhia dele a fazia sentir-se de novo tão jovem.
Na manhã seguinte, Peter foi buscá-la de novo ao hotel, deixando-a no hospital, onde a informaram que o estado de saúde do presidente apresentava ligeiras melhoras. E, pela primeira vez nos últimos dias, Melanie descobriu que podia dispor de alguns minutos para si própria a meio do dia. Telefonou para a Unidade Cardiovascular, perguntando se haveria possibilidade de visitar Marie Dupret. Subiu no elevador até o sexto piso e quando entrou no quarto deu com ela sentada na cama, com um aspecto bonito apesar da palidez. Reparou que as suas faces se tinham arredondado um pouco. Sentindo pena, Melanie apercebeu-se de que aquele inchaço pouco natural se devia à ingestão dos medicamentos e que já começara a instalar-se. No entanto, os olhos da doente brilhavam, e ela pareceu ficar satisfeita com a visita de Melanie.
— O que é que está a fazer aqui? — perguntou-lhe Marie, erguendo um olhar de perplexidade ao vê-la entrar no quarto. Nos seus braços ainda se viam alguns dos tubos que serviam para a administração de soluções por via intravenosa, mas parecia mais saudável do que nos dias anteriores ao transplante.
— Vim visitá-la, mas tenho de confessar que não vim de propósito de Nova Iorque. Há já alguns dias que estou no átrio do hospital, por causa do que aconteceu ao presidente — explicou Melanie.
Marie assentiu com uma expressão de gravidade.
— Que coisa tão terrível! Ele está melhor? — perguntou ela.
— Hoje já — confirmou Melanie. — Mas ainda não está fora de perigo. — De repente apercebeu-se da sua falta de tato, uma vez que Marie também ainda não estava fora de perigo. Sorriu com ternura à jovem mulher, a qual era apenas alguns anos mais nova do que a própria Melanie, e cuja vida se mantinha num equilíbrio tão delicado. — Ele não tem tanta sorte como a Marie.
— Isso é porque não é um dos doentes do doutor Peter Hallam — retorquiu a doente, exibindo um brilho carinhoso nos seus olhos ao proferir o nome do médico.
Melanie compreendeu o que estava a passar-se. Peter Hallam havia-se transformado numa espécie de deus para aquela jovem e ela suspeitava que Marie tinha uma paixonite por ele. Não se tratava de um acontecimento invulgar, dada a dependência que ela tinha do médico, acrescida do fato de ele lhe ter salvo a vida com o transplante do coração.
No entanto, só um pouco mais tarde, quando o próprio Peter entrou no quarto, tendo corado ao deparar com a presença de Melanie, é que ela se apercebeu de algo mais: da extraordinária comunicação que existia entre o médico e a doente. Ele sentou-se ao lado da cama de Marie e falou-lhe na sua voz meiga e tranqüila e foi como se todas as pessoas que estivessem no quarto desaparecessem, restando apenas os dois.
Melanie sentiu-se uma intrusa e decidiu sair pouco depois, regressando para junto da imprensa, no átrio do hospital. Não voltou a ver Peter até a hora em que ele foi buscá-la para acompanhá-la ao hotel. À semelhança do que acontecera na noite anterior, Melanie tinha direito a uma pausa de duas horas, após o que teria de regressar ao hospital às vinte horas para apresentar uma reportagem direta para o noticiário das onze, hora de Nova Iorque. Já se encontravam a caminho do restaurante onde iam jantar quando Melanie falou em Marie.
— Ela idolatra-o, Peter.
— Não seja disparatada. A Marie não é diferente de qualquer outra das minhas doentes. — Mas compreendia onde é que Melanie quisera chegar; existia uma ligação muito especial entre ele e todos os seus doentes, e talvez essa união fosse mais forte em relação a Marie, a qual não tinha ninguém que estivesse à cabeceira da sua cama. — Ela é simpática, Mel, e necessita de falar com alguém enquanto estiver a passar por esta situação tão trágica. Quando se é obrigado a permanecer deitado numa cama de hospital todo o dia, começa-se a pensar e, por vezes, pensa-se demais. Ela precisa desabafar com alguém tudo o que lhe vai na alma — disse ele.
— E o Peter é muito paciente — retorquiu Melanie com um sorriso nos lábios, perguntando a si mesma como é que ele era capaz de proceder daquela forma. Peter entregava-se de corpo e alma, e dava o seu coração, o seu tempo e a sua paciência. Para ela, isso era incrível.
A meio do jantar, o pager do médico apitou e ele teve de regressar ao hospital devido a uma situação de emergência.
— É alguma coisa com a Marie? — quis saber Melanie, enquanto voltavam à pressa para o automóvel.
— Não — respondeu ele, abanando a cabeça. — Trata-se de um homem que foi hospitalizado ontem à noite. Necessita desesperadamente de um coração, e ainda não conseguimos localizar um doador — explicou Peter. Aquele era o eterno problema: a ausência de um coração quando a necessidade era tão premente.
— Acha que ele conseguirá agüentar-se? — perguntou Melanie.
— Não sei, mas espero que sim — respondeu Peter, enquanto se desvencilhava com destreza por entre o trânsito, tendo conseguido chegar ao hospital em menos de dez minutos.
Foi a última vez que Melanie o viu naquela noite. Algum tempo depois e antes de apresentar o noticiário, foi informada de que tinha uma mensagem para si no átrio do hospital. Ficou inteirada de que o Dr. Hallam teria de operar durante várias horas. Melanie perguntou a si própria se aquilo significava que haviam encontrado um doador ou se Peter tentava remediar a situação com os meios que tinha ao seu alcance. Algum tempo depois regressou sozinha ao hotel num táxi e sentiu-se surpresa ao verificar que sentia muitas saudades dele. Tomou um banho quente de imersão e ficou sentada na banheira, a olhar com uma expressão vazia para a parede de azulejos, arrependendo-se de lhe ter falado sobre Marie. Tinha visto algo no rosto da jovem mulher ao dizer o nome do médico, e o tom de voz dele refletira uma intimidade tão grande que quase a fizera sentir ciúmes.
Por volta das nove e meia, já se encontrava na cama, e dormiu profundamente até às cinco horas da manhã seguinte, altura em que recebeu a habitual chamada de despertar.
Às cinco e quarenta e cinco, Peter já se encontrava à entrada do hotel, tal como nos últimos dias. Mas naquela manhã tinha uma expressão abatida e de cansaço.
— Olá! — saudou Melanie enquanto entrava apressadamente no automóvel e, durante uns breves instantes, esteve prestes a ter uma reação que não passava de um mero reflexo. Quase se inclinou para ele com o propósito de lhe dar um beijo na face, mas no último instante deteve-se. Procurou os olhos dele e apercebeu-se imediatamente de que havia algo que correra mal.
— O Peter está bem? — perguntou.
— Estou ótimo — respondeu Peter.
— Como é que se passou a noite de ontem? — insistiu ela, não acreditando no que ele lhe respondera.
— Não fomos capazes de salvá-lo — respondeu Peter por fim, ligando a ignição da viatura, e Melanie ficou a olhar para o seu perfil. Havia algo de duro e solitário na expressão dos seus olhos. — Demos o nosso melhor, mas a doença já estava num estado demasiado adiantado.
Bruscamente, Melanie apercebeu-se de algo que lhe passara despercebido até então.
— O Peter não tem de me convencer — disse ela. — Sei o quanto se esforçou para salvá-lo.
— Sim. Talvez precise de me convencer a mim mesmo. — Naquela altura, Peter estendeu a mão e tocou-lhe no braço.
— Peter...
— Peço-lhe desculpa, Mel — retorquiu ele, olhando para ela de relance com um sorriso que espelhava uma tristeza enorme. Melanie desejou poder fazer alguma coisa para aliviar aquele desânimo, mas não sabia o que.
— Não faça isso a si mesmo — aconselhou-o ela.
— Sim — resmungou Peter. — Ele tinha uma mulher ainda jovem e três filhos — continuou ele, cinco minutos mais tarde.
— Pare de se culpar — repreendeu Melanie.
— Quem é que eu devo culpar? — perguntou ele, virando-se para ela com uma expressão de cólera repentina.
— Por acaso já lhe ocorreu que não é Deus? Que não tem motivos para se sentir culpado? Que não tem em seu poder a bênção da vida? — Eram palavras duras, mas reparou que ele estava a ouvi-la com toda a atenção. — Não está em suas mãos, independentemente da sua competência.
— Este doente teria sido um candidato perfeito a um transplante do coração, se eu tivesse conseguido encontrar um doador.
— Mas não encontrou. Acabou-se. Dê o assunto por encerrado — retorquiu Melanie. Pouco depois chegavam ao parque de estacionamento do hospital e ele olhou para ela.
— A Mel tem razão e eu compreendo isso. Ao fim de todos estes anos não deveria punir-me, mas em situações destas é o que faço sempre — retrucou Peter com um suspiro quase inaudível. — Ainda tem tempo para tomar um café? — perguntou ele. Havia algo de reconfortante na presença de Melanie, e ele precisava muito de ser confortado.
Melanie olhou para o relógio e franziu a testa.
— Com certeza. Vou só dizer que já cheguei. O mais provável é não haver nada de novo — adiantou ela. Mas quando entrou no átrio do hospital, ficou a saber que havia novidades.
O último boletim médico iria ser transmitido dentro de três minutos pela cadeia de televisão. O estado de saúde do presidente já não era considerado crítico. Quando as boas notícias foram anunciadas, ouviu-se um grito de contentamento no átrio do hospital. Para a maior parte dos jornalistas, aquilo significava que poderiam regressar a suas casas dentro em pouco.
Melanie entrou no ar para apresentar as notícias na Costa Leste, enquanto Peter a observava. Ao mesmo tempo em que todo o país se regozijava, ela e Peter sentiam-se estranhamente deprimidos. Os seus olhares encontraram-se quando ela saiu do ar.
— Isto quer dizer que agora vai ter de partir? — perguntou ele num sussurro.
— Ainda não. E acabei de receber um memorando — respondeu Melanie. — Querem que eu ainda hoje entreviste a primeira-dama, isto é, se tal for possível.
Naquele preciso momento, Peter foi chamado pelo pager e teve de deixá-la.
Melanie enviou um bilhete para um dos pisos superiores do hospital, dirigido à mulher do presidente, a qual, durante a hospitalização do marido, dormira num quarto junto do dele. Um pouco mais tarde, veio a resposta. A primeira-dama concederia a Melanie uma entrevista em exclusivo ao meio-dia, numa sala privada do terceiro andar, o que a impediria de poder almoçar com Peter. Apesar de se sentir decepcionada, a entrevista correu bem e ficou satisfeita com o resultado. Nessa mesma tarde, o porta-voz do hospital leu um outro boletim médico bastante encorajador. O presidente conseguira escapar daquele golpe. Ao fim desse mesmo dia, Peter acompanhou-a para comerem qualquer coisa, uma vez que a atmosfera de tensão vivida por causa do estado de saúde do presidente havia desaparecido em parte.
— Como é que foi o seu dia? — perguntou ela, encostando-se, exausta, ao banco do carro, enquanto olhava para ele com um sorriso nos lábios. — O meu foi de morrer, mas as coisas estão a melhorar.
— Eu não parei o dia todo. A Marie manda-lhe cumprimentos.
— Retribua — disse Melanie, mas preocupada com outros assuntos. Perguntou a si própria quando é que teria de partir. Corria um rumor de que dentro de alguns dias o presidente iria ser transferido para o Hospital Lalter Reed em Washington, D.C.; no entanto, a primeira-dama não quisera ou não pudera confirmar esse rumor.
— Em que é que está a pensar, Mel? — perguntou Peter.
Ela reparou que ele se mostrava menos deprimido do que naquela manhã. Sorriu.
— Em dez mil assuntos ao mesmo tempo — retorquiu ela. — Ouvimos dizer que vão transferir o presidente dentro de poucos dias. Parece-lhe que realmente vão mudá-lo de hospital?
— Nesta altura, correriam um grande risco, mas, se o seu estado de saúde continuar a registrar melhoras, dentro em pouco poderão fazê-lo. E podem transportar todo o equipamento necessário a bordo do Air Force One — explicou Peter, sem mostrar grande entusiasmo perante aquela perspectiva.
Melanie partilhava do mesmo desânimo. Apesar disso, durante o jantar, puseram aquela idéia para trás das costas, e Peter contou-lhe algumas histórias engraçadas passadas com Matthew quando ele tinha dois ou três anos, alguns episódios ridículos que haviam acontecido no hospital, durante os seus tempos de estagiário. Riram-se que nem duas crianças e quando ele a levou ao hospital, poucos minutos antes das oito horas, Melanie teve alguma dificuldade em apresentar o noticiário com uma expressão de seriedade no rosto. Surpreendentemente, ambos continuavam muito bem-dispostos quando, trinta minutos mais tarde, saíram do hospital. Juntos, estavam sempre animados e sentiam que a vida valia a pena ser vivida.
— Quer ir a minha casa tomar uma bebida? — convidou Peter sem ter vontade de deixá-la naquele momento, lembrando-se que ela poderia partir dentro de poucos dias. Desejava desfrutar ao máximo da sua presença.
— Não me parece que seja aconselhável — respondeu Melanie. — Continuo a pensar que isso aborreceria os seus filhos.
— E quanto a mim? Não terei eu o direito de convidar uma amiga a ir a minha casa?
— Claro que sim. Mas, quando levamos alguém ao nosso lar, isso pode tornar-se num grande problema — respondeu ela. — Como é que julga que a Pam reagiria se me encontrasse outra vez?
— Talvez ela seja forçada a fazer esse ajustamento — disse Peter.
— Acha que vale a pena, só por alguns dias? — perguntou Melanie. — Em vez disso, porque não vem tomar uma bebida ao meu hotel? A decoração é feia como o pecado, mas o bar não parece ser mau. — Nenhum deles estava interessado em beber. Apenas desejavam sentar-se e poder conversar durante horas a fio, até estarem prestes a tombar de exaustão.
— Sabe, eu podia ficar sentado aqui, a conversar consigo durante toda a noite — asseverou Peter.
Continuava a sentir-se um pouco atordoado pelo grande número de emoções contraditórias que sentia por ela: excitação e proximidade, tudo ao mesmo tempo. Mas, fosse o que fosse, era algo de que não conseguia saciar-se. A presença de Melanie Adams na sua vida era viciante. Não conseguia libertar-se e não sabia o que fazer.
— Eu tenho a mesma impressão, e o mais engraçado é que, apesar de mal nos conhecermos, tenho a sensação de que já o conheço há muitos anos.
Nunca gostara tanto de falar com qualquer outra pessoa, o que ainda lhe causava algum receio, quando se permitia pensar nisso. Era um tema que nenhum deles desejava discutir, mas em que ambos pensavam. Naquela noite, Melanie era a menos cansada dos dois. Fitou Peter enquanto bebiam o segundo irish cofee. As bebidas ajudavam a suavizar os problemas. Era a mistura do café com uísque que produzia aquele resultado, ajudada pelo efeito inebriante que cada um deles provocava no outro.
— Quando regressar a Nova Iorque, vou ter umas saudades loucas de si — continuou Melanie com ousadia.
Peter observou-a atentamente por cima do seu copo.
— Comigo vai acontecer o mesmo. Quando a deixei esta manhã no hospital, estava a pensar precisamente nisso. Aquilo que me disse acerca do meu doente tinha toda a razão de ser. Conseguiu fazer com que o meu dia melhorasse e animou-me. Eu estava prestes a descontrolar-me. Vai parecer-me estranho deixar de vir buscá-la ao hotel todos os dias às seis da manhã.
— Até é possível que volte a poder desfrutar de algum tempo para si próprio, e para passar com os seus filhos. Eles já começaram a queixar-se? — perguntou Melanie.
— Parecem andar muito embrenhados nas suas próprias vidas.
— Da mesma forma que as minhas gêmeas — retorquiu Melanie, pensando que elas deveriam regressar de Cape Cod naquela noite. — Tenho de telefonar-lhes, isto é, se conseguir calcular a diferença horária como deve ser. Quando acordo já elas saíram para a escola, e quando regresso ao hotel já elas estão a dormir.
— Dentro de pouco tempo poderá regressar a casa — retorquiu Peter com tristeza.
Melanie manteve-se calada durante algum tempo.
— A vida que eu levo é uma loucura, Peter — disse ela por fim, olhando diretamente para ele, como se quisesse saber qual a sua opinião sobre aquele assunto.
— Mas suspeito que a deixa realizada. Tanto a Mel como eu parecemos viver sem fazer qualquer pausa, mas isso não é assim tão mau, se gostarmos do nosso trabalho.
— Sempre achei isso — retorquiu Melanie, esboçando um sorriso, e Peter agarrou-lhe na mão que estava sobre a mesa. Era o único contato físico que existira entre ambos, mas naquela altura já era um gesto com que se sentiam à vontade. — Obrigada por tudo o que fez por mim, Peter.
— Tudo o que? Tê-la levado e trazido do hospital umas quantas vezes? Isso não foi nada.
— No entanto, foi muito agradável — retorquiu Melanie com um sorriso que Peter retribuiu.
— Para mim também. Vai ser estranho quando tiver partido, Mel.
— O mais provável é eu ficar à porta da minha casa em Nova Iorque às cinco e quarenta e cinco da manhã, à espera que você contorne a esquina no seu Mercedes — disse ela com uma gargalhada.
— Quem me dera! — disse Peter.
Ambos ficaram em silêncio enquanto o empregado de mesa trouxe a conta. Ele pagou e dirigiram-se lentamente para o átrio. Já era tarde e tinham de levantar-se cedo na manhã seguinte. Quando se despediram, Melanie desejou que não fossem obrigados a separarem-se.
— Até amanhã, Peter — despediu-se ela.
O cirurgião assentiu e acenou com a mão quando as portas do elevador começaram a fechar-se. Durante a viagem, pensou em Melanie e perguntou a si próprio como é que a sua vida voltaria a ser sem a presença dela. Enquanto se despia, Peter tentou não pensar nisso.
Por seu turno, no quarto de hotel, Melanie ficou durante bastante tempo à janela a olhar para a rua, enquanto pensava em Peter e nas coisas que haviam dito um ao outro ao longo dos últimos dias. Inesperadamente, sentiu-se sozinha como nunca se sentira antes. Não tinha a mínima vontade de regressar a Nova Iorque, o que era uma autêntica loucura. Sentira o mesmo da outra vez que estivera em Los Angeles, mas agora sentia-o com mais intensidade.
Melanie foi para a cama com a sensação pouco tranqüilizadora de que Peter conseguira afetar a sua vida mais do que desejara. No entanto, quando se encontrava na sua companhia não pensava nisso. Limitava-se a conversar com ele como se o conhecesse há muitos anos. Melanie questionava-se sobre se aquela sensação seria devida ao jeito que ele tinha para falar com as pessoas.
Naquela noite, dormiu mal. Ficou aliviada ao avistar Peter na manhã seguinte. Entrou rapidamente no automóvel e fizeram a viagem habitual até ao hospital, enquanto conversaram sem constrangimentos.
De repente Peter começou a rir-se, voltando-se para ela.
— Isto é assim uma espécie de casamento, não é verdade?
— O que? — retorquiu Melanie, sentindo-se empalidecer.
— O fato de irmos juntos para o trabalho todos os dias — explicou Peter com alguma timidez. — Tenho uma confissão a fazer-lhe. Se existem coisas que me dão prazer, uma delas é a rotina. Sou uma criatura de hábitos.
— Também eu — redargüiu Melanie, rindo-se e sentindo-se melhor de novo. Durante alguns instantes o medo apoderara-se dela. Recostou-se para trás e viu que se aproximavam do hospital. — Pergunto a mim mesma que notícias estarão à minha espera.
O estado de saúde do presidente continuava a progredir de maneira favorável e os jornalistas estavam apenas à espera que comunicassem a sua transferência para outro hospital.
Contudo, quando foi anunciado naquela manhã que o presidente iria para Washington no dia seguinte, a bordo do Air Force One, acompanhado por uma equipe de médicos, Melanie ficou atordoada, como se tivesse levado um forte murro no peito. Durante breves instantes ficou sem respiração e soltou um não que mal se ouviu. Mas era verdade. O presidente ia-se embora.
Entretanto, no átrio do hospital, o caos instalou-se de novo. Inúmeros boletins noticiosos foram para o ar, bem como várias entrevistas aos médicos. Melanie teve de fazer uma dúzia de telefonemas para Nova Iorque. Os seus superiores tentavam arranjar-lhe uma autorização para seguir a bordo do Air Force One, mas até o momento, tudo o que se sabia era que só seis jornalistas teriam autorização para viajar com o presidente. Melanie passou o dia todo a rezar para não ser uma dessas pessoas afortunadas. Infelizmente, às cinco da tarde recebeu um telefonema de Nova Iorque. Estava entre as seis. A partida fora prevista para o meio-dia do dia seguinte. Ela deveria estar no hospital às nove horas, a fim de poder cobrir todos os preparativos. Quando se encontrou com Peter naquela noite no parque de estacionamento do hospital, toda a postura do seu corpo refletia o desânimo que lhe ia na alma.
— O que é que se passa, Mel? — perguntou o médico, pressentindo imediatamente que havia algum problema.
Ele próprio passara um dia extenuante. Estivera quatro horas na sala de operações a colocar um coração de plástico num doente. Inicialmente, não quisera fazê-lo. Mas naquele caso, não restava outra opção. A equipe médica já havia recorrido a todas as alternativas possíveis, uma vez que não existia qualquer probabilidade de encontrar um doador a tempo de permitir um transplante. Peter sabia muito bem os riscos que estavam a correr quanto à ocorrência de infecções.
Além do mais, naquele dia, Marie também tivera uma série de complicações. Peter, contudo, optou por não falar a Melanie dos seus problemas, ao ver que ela o olhava desolada.
— Amanhã vou-me embora — anunciou ela.
— Merda! — exclamou ele, olhando para Mel e abanando a cabeça num gesto de impotência. — Ambos sabíamos que não ficaria em Los Angeles para sempre. — Foram-lhe necessários alguns minutos para recobrar a compostura. Pouco depois, ligou a ignição do automóvel. — Esta noite ainda tem de voltar ao hospital?
— Não, só às nove de amanhã.
Ele sorriu mais animado, olhando-a com carinho.
— Nesse caso, proponho que vá para o hotel, a fim de descansar durante algum tempo, mude de roupa se lhe apetecer e depois levá-la-ei a um restaurante agradável. O que é que me diz a esta sugestão?
— Sim — aceitou Melanie. — Tem a certeza de que não está cansado? — perguntou ao reparar pela primeira vez desde que se tinham encontrado que ele tinha uma expressão fatigada.
— De maneira nenhuma. É o que me apetece fazer. Gostaria de ir de novo ao Bistro?
— Sim — respondeu ela, esboçando finalmente um sorriso. — O único lugar onde eu não quero ir é para Nova Iorque. Não acha que isto é horrível?
Estava ausente havia uma semana, mas tinha a sensação de que se ausentara havia já um ano; de súbito, a sua vida em Nova Iorque parecia muito distante. Os noticiários das seis e das onze, a sua rotina diária. Naquele preciso momento, tudo aquilo que constituíra uma parte integrante da sua vida deixara de ter relevância.
Quando subiu no elevador para ir ao quarto mudar de roupa, continuava a sentir-se deprimida. A única coisa que lhe deu alguma alegria foi ver Peter de novo, quando ele a foi buscar às dezenove e trinta. Usava um fato de flanela cinzento-escuro com um casaco assertoado, e ela pensou que nunca tinha visto um homem tão bem-parecido. Tudo o que ela própria tinha para vestir era um vestido de seda bege e um casaco da mesma cor em seda que trouxera para usar quando estivesse no ar, mas que ainda não fora utilizado.
Os dois formavam um casal muito elegante e distinto ao entrarem no Bistro. O chefe de mesa conduziu-os a uma mesa situada num lugar acolhedor. Peter mandou vir as bebidas e o empregado levou-lhes a ardósia onde a ementa estava escrita a giz. Melanie não tinha muito apetite. Tudo o que lhe apetecia fazer era conversar e ficar junto de Peter. Ao longo da noite, apeteceu-lhe em diversas ocasiões agarrar-se a ele. Finalmente, depois do bolo de chocolate e do café, ele mandou vir conhaque para ambos. Olhou-a com uma enorme tristeza.
— Quem me dera que não se fosse embora, Mel.
— Também eu. Sei que isso parece uma loucura, mas esta última semana foi extremamente agradável, apesar de tantas horas de trabalho — retorquiu Melanie.
— A Mel há de regressar — continuou Peter, pensando que só Deus sabia quando.
Quando o fora entrevistar, havia mais de um ano que não ia a Los Angeles. Fora um acaso infeliz que ditara aquela segunda viagem tão pouco tempo depois.
— Só desejava que não vivêssemos tão afastados um do outro — disse Melanie com uma expressão de desânimo, como se fosse uma rapariguinha forçada a separar-se da sua melhor amiga.
Peter sorriu-lhe e colocou um braço por cima dos ombros.
— Também eu queria que assim fosse — retorquiu ele.
— Mas tenciono telefonar-lhe. — E depois, o que é que aconteceria?
Era impossível ter resposta para aquelas perguntas. Viviam em zonas opostas do país, cada um deles tinha filhos, casas, carreiras e amigos. Nada daquilo poderia ser metido dentro de uma mala de viagem e levado para outro sítio. Os telefonemas e as visitas ocasionais teriam de bastar tanto a Melanie como a Peter. Enquanto passeavam ao longo de Rodeo Drive depois do jantar, ela deu consigo a pensar que aquela situação era quase insuportável.
— Quem dera que as nossas vidas fossem diferentes, Peter!
— De verdade? — perguntou ele, surpreendido com as palavras dela. — Como?
— Pelo menos podíamos ter tido a sorte de viver na mesma cidade.
— Nisso estou inteiramente de acordo. Mas, de resto, eu diria que tivemos sorte em nos conhecermos. Isso enriqueceu muito a minha vida.
— A minha também — retorquiu ela com um sorriso apertando-lhe mais a mão enquanto caminhavam, cada um mergulhado nos seus próprios pensamentos.
— Isto por aqui vai ficar muito solitário depois de a Mel partir — disse Peter, baixando o olhar para ela e continuando de mãos dadas. Apesar de ter ouvido as suas próprias palavras, custava-lhe a acreditar que as tivesse proferido, mas assim fora e a realidade era que, naquele momento, já não receava tanto os seus sentimentos. O conhaque ajudava e a semana que partilhara com Melanie havia sido como uma prenda inesperada que lhe fora oferecida. Com o passar de cada dia, Peter sentia mais carinho por ela, pelo que a perspectiva de vê-la partir deprimia-o bastante, muito mais do que alguma vez esperara.
Por fim, começaram a dirigir-se com lentidão para o automóvel. Peter levou-a até o hotel e deixaram-se ficar sentados dentro do veículo, sob a luz de um candeeiro de rua, enquanto olhavam um para o outro.
— Haverá possibilidades de nos encontrarmos amanhã, Mel? — perguntou Peter.
— Só tenho de estar no hospital às nove horas — respondeu ela.
— Às sete, devo entrar no bloco operatório. A que horas é que o avião do presidente parte?
— Ao meio-dia — respondeu Melanie.
— Nesse caso, imagino que não nos veremos mais antes da sua partida — redargüiu ele. Ambos ficaram sentados em silêncio, tristes, a olharem um para o outro. Peter inclinou-se para Melanie, segurou o rosto dela nas suas mãos e beijou-a. Melanie cerrou os olhos e sentiu os lábios a derreterem-se entre os dele. Quando Peter parou de beijá-la, sentiu-se entontecida e agarrou-se a ele durante um longo momento. Pouco depois, Melanie olhou para Peter e acariciou-lhe o rosto com a ponta dos dedos, percorrendo a linha dos lábios enquanto ele os beijava.
— Vou ter muitas saudades tuas, Mel.
— E eu de ti — retrucou Melanie.
— Eu telefono-te — disse ele de novo, perguntando-se uma vez mais o que iria acontecer-lhes. Continuava a não ter respostas.
Sem dizer mais nada, Peter puxou-a para si e abraçou-a durante muito tempo. Finalmente, acompanhou- a até ao vestíbulo do hotel, beijando-a uma última vez antes de ela entrar no elevador. Em passos lentos, dirigiu-se para o automóvel e seguiu para casa, sentindo um aperto no coração que não sentia desde que havia perdido Anne. Tinha dito a si mesmo que não queria voltar a experimentar aquela sensação. Sentia-se assustado ao perceber o quanto gostava de Melanie. Tudo seria bastante mais fácil se ele não tivesse deixado chegar os seus sentimentos àquele ponto.
No dia seguinte, quando Melanie chegou ao hospital, subiu no elevador acompanhada por dois membros da equipe de filmagens e trocou umas breves palavras com a primeira-dama, enquanto prosseguiam os preparativos para a partida do presidente. Estava previsto deixarem o hospital às dez horas para chegarem ao Aeroporto Internacional de Los Angeles um pouco antes das onze. Logo que possível, o avião levantaria vôo. O presidente registrava melhoras evidentes, mas a primeira-dama estava extremamente preocupada. Apesar de o estado dele ter estabilizado, era difícil prever o que poderia acontecer durante o vôo. Não obstante as possíveis complicações, ele pretendia regressar a Washington, e os seus médicos haviam autorizado a viagem.
Depois de terminada a entrevista, Melanie esperou no corredor durante quarenta e cinco minutos até o presidente sair do quarto, deitado numa maca. Acenou com a mão às enfermeiras e demais pessoal médico que se encontrava alinhado no corredor, sorrindo corajosamente enquanto dizia em voz baixa algumas palavras de despedida. O seu rosto ainda estava muito pálido, tinha várias ligaduras no peito e, no braço via-se um tubo para administração intravenosa. Havia uma grande quantidade de agentes dos Serviços Secretos à volta da maca, bem como vários médicos e enfermeiras que o acompanhariam até Washington.
Melanie seguia atrás a uma distância respeitosa, descendo para o átrio noutro elevador, onde se reuniu aos outros jornalistas selecionados para viajarem a bordo do Air Force One.
Seguiriam à parte numa limusine que fora designada para o seu transporte. Melanie entrou no veículo com um último olhar para o Hospital Central. Gostaria de ter deixado uma mensagem para Peter na recepção, mas não houvera tempo nem oportunidade. Momentos depois seguiam a grande velocidade em direção ao aeroporto.
— Como é que ele te pareceu? — perguntou-lhe o jornalista que ia sentado ao seu lado, enquanto verificava alguns apontamentos e acendia um cigarro apenas com uma mão. Formavam um grupo de profissionais tranqüilos, mas não deixava de se sentir uma certa tensão e eletricidade no ar. Fora uma semana interminável para todos e estavam ansiosos por chegar a casa. Assim que aterrassem em Washington, a maior parte deles regressaria logo às cidades onde trabalhavam. A cadeia de televisão de Melanie já lhe havia reservado um lugar num vôo para Nova Iorque, que partiria às dez horas daquela mesma noite. Às onze, estaria alguém à sua espera em La Guardia, com o fim de conduzi-la a casa.
De certa forma, ela sentia-se como se estivesse prestes a regressar à sua cidade vinda de um outro planeta. Porém, naquele momento, não se encontrava absolutamente segura de que desejasse voltar a casa. Os seus pensamentos centravam-se nas palavras de Peter, no seu rosto e na sua família.
— O que? — Não ouvira a pergunta do repórter.
— Perguntei-te como é que achaste o presidente? — repetiu o colega mais velho, irritado.
Melanie semicerrou os olhos, tentando concentrar-se na imagem do presidente deitado na maca.
— Péssimo. Mas está vivo — respondeu ela por fim.
E, a menos que acontecesse qualquer coisa de drástico durante o vôo para a Costa Leste ou que surgissem complicações graves, era pouco provável que ele viesse a morrer. O presidente era um homem com muita sorte, tal como a imprensa e a televisão se tinham fartado de repetir. Outros presidentes não haviam tido tanta sorte como este, quando das tentativas de assassínio.
Ao longo do percurso até ao aeroporto, os repórteres entretiveram-se com as suas conversas triviais e habituais, contando anedotas porcas e trocando bisbilhotices, assim como novidades antigas. Ninguém oferecia nada sem ter uma contrapartida; no entanto, aquela viagem não foi tão tensa como a que os levara à cidade de Los Angeles. Melanie reviu os acontecimentos da última semana e a viagem que lhe permitira conhecer Peter. Perguntou a si própria quando é que voltaria a vê-lo. Não era capaz de imaginar a hipótese de uma outra viagem num futuro próximo e, ao aperceber-se disso, sentiu-se deprimida.
O repórter que ia sentado ao seu lado olhou outra vez de relance para ela.
— Pelo teu aspecto, dir-se-ia que a última semana te correu mal, Melanie.
— Não — respondeu ela e abanou a cabeça, desviando o olhar. — Estou apenas cansada.
— Quem é que não está?
Trinta minutos mais tarde, entraram a bordo do avião e sentaram-se na zona reservada aos passageiros, na retaguarda. Na área da frente, havia sido montado uma espécie de sala-hospital para acolher o presidente, e nenhum dos jornalistas tinha autorização para se aproximar daquela zona. Mais ou menos de hora a hora ao longo de todo o vôo, o secretário informava os jornalistas do estado de saúde do presidente. A viagem decorreu sem qualquer percalço e o avião aterrou em Washington quatro horas e trinta minutos depois da partida. Uma hora depois disso, o presidente já se encontrava instalado no Hospital Lalter Reed.
Subitamente, Melanie compreendeu que para si estava tudo acabado. O correspondente da cadeia de televisão em Washington fora esperar o avião ao aeroporto; depois de ter acompanhado o presidente até ao hospital juntamente com os outros colegas que também tinham vindo de Los Angeles e de ter falado de novo com a primeira-dama por breves instantes, Melanie saiu do edifício e entrou na limusine que a aguardava, tendo regressado ao aeroporto. Sentou-se e esperou pelo vôo que dali a uma hora a levaria a Nova Iorque, sentindo-se em choque. A última semana começava a parecer-lhe não ter passado de um mero sonho, e interrogou-se se não teria imaginado a existência de Peter, assim como o tempo que passara na sua companhia.
Ao fim de algum tempo, levantou-se e dirigiu-se num passo lento para uma cabina telefônica, situada junto de uma porta de embarque; inseriu uma moeda na ranhura e pediu uma chamada para sua casa a pagar no destino.
Jessica atendeu ao telefone e, por uns instantes, Melanie sentiu os olhos alagados de lágrimas, apercebendo-se até que ponto é que se sentia exausta.
— Olá, Jess.
— Olá, mamãe! Já chegaste a Nova Iorque? — perguntou a filha, parecendo de novo uma criancinha com uma voz muito excitada.
— Quase, minha querida. Estou no aeroporto em Washington — respondeu a mãe. — Devo chegar a casa por volta das onze e meia. Meu Deus, tenho a impressão de que estive ausente durante um ano!
— Temos tido umas saudades loucas de ti — disse Jessica sem sequer repreender a mãe por não ter telefonado para casa antes. Sabia que ela tinha trabalhado muito. — Estás bem?
— Exausta. Mal posso esperar para chegar a casa. Mas não fiquem acordadas. Quando chegar, vou logo para a cama sem querer saber de mais nada — continuou Melanie.
Naquele momento não era somente a fadiga que a abatia. Começava a sentir uma espécie de depressão ao dar-se conta da distância que a separava de Peter. Reconhecia que a sua atitude era um disparate. Todavia, aparentemente não era capaz de pôr um travão nos seus sentimentos.
— Estás a brincar? — Do outro lado da linha, Jess parecia indignada. — Há uma semana que não te vemos! É claro que vamos esperar por ti. Levamos-te ao colo pelas escadas acima, se for preciso.
Enquanto sorria ao telefone, os olhos de Melanie encheram-se de lágrimas.
— Adoro-te, Jessica — disse ela à filha. — Como é que está a Val?
— Está bem. Temos muitas saudades tuas — respondeu a filha.
— E eu de vocês, minha querida — retorquiu ela.
Mas algo importante acontecera durante a sua estada na Califórnia. Havia muita coisa em que tinha de pensar para poder arrumar as suas idéias e as únicas pessoas que desejava ver naquele momento eram as filhas.
Ambas estavam à sua espera na sala de estar quando chegou a casa. Abraçaram-na, felizes por terem a mãe de novo junto delas. Ao olhar em volta, Melanie concluiu que a sua casa nunca lhe parecera tão agradável como naquele momento, nem as filhas.
— Como é bom estar de volta, meninas! — exclamou ela, mas uma pequena parte de si dizia-lhe que não era.
Parte de Melanie desejava estar a cinco mil quilômetros de distância, a jantar com Peter. No entanto, agora tudo aquilo tinha ficado para trás e era necessário que ela o esquecesse, pelo menos de momento.
— Deve ter sido horrível, mamãe. Pelo que nós vimos nas notícias, parecia que nunca estavas fora do átrio do hospital.
— Era muito raro, exceto durante algumas horas, de vez em quando, para poder dormir. — disse Melanie enquanto pensava no tempo passado na companhia de Peter. Olhou para as filhas, quase à espera que elas reparassem que havia qualquer coisa de diferente em si. Mas isso não aconteceu. Não havia nada que pudesse ser observado, exceto o que sentia bem no fundo do coração, e mantinha isso bem escondido. — Vocês duas comportaram-se como deve ser durante a semana? — perguntou a mãe. Val trouxe-lhe uma coca-cola, e ela sorriu, grata, à filha de formas voluptuosas.
— Obrigada, amor. Em seguida fez uma cara risonha e perguntou: — Estás apaixonada outra vez, minha menina?
— Ainda não — respondeu Valerie, rindo-se da pergunta da mãe. — Mas estou a tratar do assunto.
Melanie revirou os olhos. As três ficaram a conversar durante bastante tempo. Quando finalmente foram para os quartos já era uma da manhã. À porta do quarto da mãe, as gêmeas deram-lhe um beijo de boa-noite, após o que subiram as escadas, indo para os respectivos quartos. Melanie começou a tirar as roupas da mala de viagem, para depois tomar um duche bem quente. Quando olhou de novo para o relógio já eram duas da madrugada. Onze horas na Costa Oeste. De repente, tudo o que parecia ter importância era o local onde Peter se encontrava e o que estaria a fazer. Mel sentia-se dividida. Tinha de viver a sua vida em Nova Iorque, mas deixara uma parte do seu ser a cinco mil quilômetros de distância. Seria uma maneira difícil de viver, pelo menos de momento, e continuava a ter necessidade de arrumar as suas idéias, para descobrir qual o significado que tudo aquilo tinha para si. Qual a importância que Peter Hallam tinha na sua vida. Todavia, bem no seu íntimo, Melanie já sabia.
Na manhã seguinte, Melanie foi acordada por um telefonema de Grant antes do meio-dia; a voz dele fê-la sorrir enquanto se virava para o outro lado na cama, e olhava para o sol daquele dia soalheiro de Junho.
— Bem-vinda a casa, velha amiga. Como é que estava Los Angeles? — inquiriu ele.
— Oh, encantadora — respondeu Mel com um sorriso e a espreguiçar-se. — Não fiz mais nada além de ficar todo o dia sentada na piscina, a bronzear-me. — Ambos começaram a rir-se, sabendo bem o inferno que haviam sido os últimos dias. — E tu? Como é que tens passado?
— Atarefado, amalucado, o habitual — respondeu Grant.
— E quanto a ti?
— O que é que te parece, dada toda aquela loucura que se viveu em Los Angeles? — retorquiu Melanie.
— Se queres saber a minha opinião, acho que deves estar meio morta — disse ele, embora a julgar pela sua maneira de falar, Mel não desse essa impressão.
— Tens toda a razão. Estou meio morta.
— Hoje vens trabalhar? — perguntou Grant.
— Só à noite, para apresentar o noticiário das dezoito horas. Não me parece que antes disso tenha coragem de ir para a redação.
— É justo. Vou tentar dar pela tua chegada. Tive saudades tuas, miúda. Achas que terás algum tempo para tomarmos uma bebida? — acrescentou Grant.
Tempo de fato tinha, apesar de a vontade não ser muita. Melanie continuava a querer dispor de algum tempo para si própria, a fim de ordenar as idéias. E, de momento, não se sentia inclinada a contar o que quer que fosse a Grant sobre Peter.
— Esta noite não, meu querido. Talvez para a semana que vem — respondeu por fim Melanie.
— De acordo. Vemo-nos mais tarde, Mel — disse ele, despedindo-se.
Enquanto saía da cama e se espreguiçava, pensou em Grant e sorriu. Tinha muita sorte por ter um amigo como aquele. Quando se dirigia à casa de banho para pôr a água do duche a correr, ouviu a campainha do telefone. Deduziu que talvez fosse ele de novo. Não havia muita gente que tivesse o hábito de lhe telefonar para casa ao meio-dia, além de que muito poucas pessoas sabiam que ela já tinha regressado da Costa Oeste. Essa informação apenas seria do conhecimento geral quando fosse vista no noticiário dessa noite. Melanie atendeu ao telefone, franzindo a testa, intrigada; aproximou-se da mesa completamente nua, enquanto olhava para o jardim das traseiras da casa.
— Está lá?
— Olá, Mel!
Ele parecia nervoso, e o coração dela deu um salto enorme no peito, ao ouvi-lo. Era Peter.
— Não sabia se te apanharia em casa. Tenho muito pouco tempo para estar ao telefone, mas seja como for decidi telefonar-te. Chegaste bem a Nova Iorque? — indagou ele.
— Sim. Muito bem! As palavras de Melanie saíam-lhe dos lábios a custo; cerrou os olhos para poder ouvir melhor a voz dele.
— Fizemos um pequeno intervalo entre as operações de hoje, e eu só queria dizer que sinto muitas saudades tuas — acrescentou Peter. Com uma frase curta, ele conseguira a proeza de, uma vez mais, pôr o coração dela aos pulos. Melanie não proferiu palavra. — Mel?
— Sim. Estava apenas a pensar. — retorquiu ela, um pouco hesitante. Em seguida, decidiu abandonar todas as precauções e sentou-se, suspirando profundamente. — Também eu tenho saudades tuas. Não há dúvida de que conseguiu virar a minha vida do avesso, senhor doutor.
— A sério? — perguntou Peter, aliviado.
Ela produzia o mesmo efeito nele. Na noite anterior mal fora capaz de conciliar o sono, mas não se tinha atrevido a telefonar-lhe com receio de acordá-la. Sabia o quão fatigada Melanie estava quando partira de Los Angeles.
— Já te apercebeste até que ponto toda esta situação é disparatada, Peter? Só Deus sabe quando é que voltaremos a ter a oportunidade de nos encontrarmos de novo, e aqui estamos... como dois adolescentes apaixonados.
Mas Melanie estava de novo feliz. Tudo o que desejara fora ouvir a voz de Peter.
— É assim que clarificas a nossa relação? — perguntou ele, rindo-se perante a escolha das palavras que ela utilizara. — Como dois adolescentes? Duvido que assim seja!
— O que é que te parece? — perguntou Melanie, sem saber bem de que resposta estava à espera, sentindo-se um pouco assustada pelo que podia ouvir. Não se encontrava preparada emocionalmente para grandes declarações apaixonadas da parte dele, mas por seu lado, Peter não estava preparado para fazê-las. Ela continuava a salvo de um amor avassalador. No entanto, o pior de tudo era que Melanie nem sequer tinha a certeza de desejar ficar a salvo das demonstrações amorosas de Peter.
— Parece-me que tens razão — respondeu ele. — Pareço um adolescente apaixonado, não é verdade?
Ambos desataram a rir, e ela sentiu-se de novo como se fosse uma criança. De todas as vezes que falavam, ele provocava-lhe aquela reação. Peter era apenas nove anos mais velho do que ela.
— A propósito, como é que estão as tuas filhas?
— Ótimas. E a tua trupe? — perguntou Melanie.
— Não estão mal. O Matthew queixou-se ontem à noite de que nunca me via. Neste fim de semana, se eu conseguir escapar-me do hospital, tencionamos ir pescar ou qualquer coisa do gênero. No entanto, tudo depende da forma como irá decorrer uma operação que já tenho marcada.
— De que é que se trata? — quis saber Melanie.
— É um triplo by-pass, mas não deve haver qualquer complicação — respondeu Peter, enquanto olhava para o relógio de parede, na pequena sala. — A propósito, tenho de voltar ao banco operatório e lavar-me outra vez, antes de iniciar a operação. Vou pensar em ti, Melanie.
— É melhor não fazeres isso, pensa antes no doente — redargüiu ela, com um sorriso nos lábios. — Por este andar, o melhor é eu começar a concluir o noticiário dizendo: "e muito boa noite, Peter, onde quer que estejas".
— Sabes onde eu estou — protestou ele. Mas a sua voz era tão meiga, que Melanie sentiu um grande aperto no coração
— Sim. A cinco mil quilômetros de distância — retorquiu ela com uma expressão de tristeza.
— Porque é que não vens cá passar o fim-de-semana? — sugeriu Peter.
— Estás doido? Ainda mal acabei de chegar de Los Angeles! — Mas ela adorava a idéia, apesar da impossibilidade de vir a concretizar-se.
— Isso foi diferente, estiveste aqui em trabalho. Tira uns dias de férias e vem visitar-nos — insistiu Peter.
— Assim, sem mais nem menos? — perguntou ela, divertida.
— Com certeza. Por que não? — redargüiu ele.
No entanto, Melanie suspeitava que ambos se teriam sentido aterrorizados se ela aceitasse aquela sugestão. Ainda não estava preparada para dar um passo tão importante.
— É possível que o que lhe vou dizer seja um choque para si, doutor Hallam, mas acontece que eu tenho uma vida aqui, assim como duas filhas.
— E tiras férias todos os anos nos meses de julho e agosto. Foste tu própria quem me disse — adiantou Peter.
— Traz as tuas filhas para uma visita à Disneylândia ou qualquer coisa no gênero.
— Nesse caso, por que não vais tu visitar-nos em Martha's Vineyard? — perguntou Melanie por sua vez. Ambos sabiam que estavam a jogar um com o outro, mas era agradável fazê-lo.
— Antes disso, minha boa amiga, tenho de fazer um triplo by-pass — disse Peter. Estava concluído o primeiro assalto.
— Boa sorte. E muito obrigada por teres telefonado — agradeceu Melanie.
— Telefono-te mais tarde, Mel. Esta noite vais estar em casa? — indagou Peter.
— Tenciono vir a casa entre os noticiários.
— Então, ligo-te nessa altura — concluiu ele.
Peter cumpriu o prometido, e Melanie sentiu de novo o coração em sobressalto. Tinha acabado de jantar na companhia das filhas e, por seu lado, ele acabara de chegar a casa, vindo do hospital. O telefonema deixou-a eufórica, até que foi forçada a sair para apresentar o noticiário das vinte e três horas. Uma vez mais, repetiu a si mesma que tudo aquilo não passava de uma loucura. Tentou várias vezes concentrar-se nas notícias, enquanto as apresentava no pequeno ecrã, e conseguiu-o até sair do ar. A despeito disso, quando encontrou Grant do lado de fora do estúdio, Melanie tinha um ar perturbado.
— Olá, Mel. Passa-se alguma coisa? — perguntou ele. Preparava-se para entrar no ar dentro de quinze minutos, o que não lhe deixava muito tempo para poder conversar.
— Não. Por que é que perguntas? — inquiriu ela.
— Não sei, tens um aspecto estranho. Sentes-te bem? — continuou Grant.
— Claro que sim — respondeu Melanie. Mas nos seus olhos havia uma expressão sonhadora, e Grant achou que ela parecia estar muito longe dali.
Subitamente, compreendeu o que é que estava a passar-se. Já tinha visto nos olhos dela, numa ocasião anterior, uma expressão semelhante, embora Melanie não se tivesse mostrado afetada com tanta intensidade como naquele momento. Perguntou a si próprio quem seria o homem, sem conseguir descobrir como é que ela tinha arranjado tempo para se apaixonar. Ou onde. Em Nova Iorque ou em Los Angeles? Grant sentia-se um pouco intrigado. Melanie parecia estar a viver num mundo diferente.
— Vai para casa e dorme, miúda — aconselhou ele. — Tens todo o aspecto de quem ainda não sabe bem o que é que anda a fazer.
— Imagino que sim — retorquiu Melanie, sorrindo-lhe.
Viu-o dirigir-se para o estúdio que ela acabara de deixar. Apercebeu-se de que o telefonema de Peter naquele dia a tinha feito recordar o passado. Como diabo é que conseguiria concentrar-se de novo no trabalho? Mal era capaz de coordenar os seus pensamentos de uma forma coerente.
Apanhou um táxi para casa e abriu a porta. As filhas já se encontravam na cama a dormir, e Raquel havia tirado uns dias de folga para compensar a semana anterior. Deitou-se ao comprido no sofá da sala de estar, a pensar na sua vida. Também considerou a sugestão que Peter lhe fizera para que fosse a Los Angeles, mas chegou à conclusão de que essa viagem seria um disparate. A única atitude sensata seria deixar-se ficar por Nova Iorque durante as semanas mais próximas, até chegar a altura de ir para Martha's Vineyard. Talvez nessa ocasião conseguisse pôr as suas idéias em ordem, à semelhança do que acontecia todos os anos. Naquele ambiente tão diferente, as coisas voltariam a entrar na ordem, com a ajuda do sol e do mar e da vida totalmente descontraída que levava quando lá passava férias.
— Estão todas prontas? — gritou Melanie do vestíbulo do rés-do-chão, dirigindo-se às filhas que estavam no andar de cima.
Olhou à sua volta uma última vez. Preparava-se para fechar a casa de Nova Iorque durante o verão. As duas malas grandes de viagem que continham as suas coisas já se encontravam à porta, juntamente com três raquetas de tênis e dois amplos chapéus de palha que pertenciam às filhas. Mel levava o seu na cabeça. A pequena mala verde de Raquel também estava preparada para seguir viagem. Todos os anos, a governanta passava seis semanas com elas, passando as restantes duas sozinha em Nova Iorque.
— Vamos lá, meninas! Temos de estar no aeroporto dentro de trinta minutos! — disse Melanie, dando pressa às gêmeas, embora soubesse que chegariam a tempo, uma vez que teriam de ir apenas até o aeroporto de La Guardia.
Todos os anos, a partida para férias era rodeada de um grande entusiasmo e sentiu-se de novo uma rapariguinha quando seguiam para Martha's Vineyard. Na noite anterior apresentara o último noticiário até depois das férias. Depois de Grant ter acabado de apresentar o seu programa, ambos tinham saído para tomarem uma bebida, a fim de celebrarem a libertação temporária do trabalho de Melanie. Haviam estado ambos muito descontraídos, apesar de ele continuar a ler nos olhos dela a confusão que lhe ia na alma. Ultimamente, Melanie mostrara-se fatigada e nervosa. Andava a trabalhar muitas horas na televisão; acabara a reportagem que fizera em Los Angeles, tendo ainda feito duas entrevistas importantes e concluído uma outra reportagem, antes das férias. Esse material seria transmitido durante o verão. Como era seu hábito, Melanie executara conscientemente o seu trabalho, o que nos últimos tempos parecia ser mais difícil.
Grant tinha fortes suspeitas de que aquela situação se devia ao estado emocional em que ela se encontrava, embora continuasse sem ter conhecimento de qualquer pormenor.
A realidade era que Peter telefonava a Melanie todos os dias. Todavia, esta continuava a não saber o que é que poderia advir de tudo aquilo. Nos últimos tempos também tivera uma preocupação adicional relativa ao seu contrato de trabalho, o qual supostamente deveria ser renovado em outubro. A cadeia de televisão atravessava uma fase de muitas alterações de caráter político a nível interno, havendo rumores da entrada de um novo acionista majoritário. Somente Deus sabia o que é que isso significaria. Na noite em que saíram, e para sua grande tranqüilidade, Grant assegurou-lhe que não existia absolutamente qualquer motivo para ela se preocupa, e Peter disse-lhe a mesma coisa quando partilhou os seus receios com ele. No entanto, aquele assunto não lhe saíra da cabeça. Naquele momento, todos esses problemas poderiam ser afastados da sua mente, pelo menos durante dois meses. Melanie tencionava não dedicar um único pensamento ao trabalho, o mesmo acontecendo em relação a Peter ou Grant. Limitar-se-ia muito simplesmente a seguir viagem para Martha's Vineyard com o propósito de descansar na companhia das filhas. O que não se concretizaria se estas últimas não se despachassem, disse ela a si própria enquanto aguardava juntamente com Raquel no vestíbulo da frente. Finalmente, as raparigas começaram a descer ruidosamente as escadas, carregando nos braços vários sacos, jogos e livros. Val também trazia um enorme urso de pelúcia.
— Val! Por amor de Deus! — começou a mãe a objetar.
— Mamãe, tenho de levá-lo. Foi o Josh que mo deu na semana passada e os pais dele têm uma casa em Chappaquiddick. Portanto, o mais certo é ele decidir visitar-nos e se eu não...
— Está bem. De acordo. Mas, por favor, junta essa tralha toda e vamos a despachar, porque o táxi está à nossa espera. De outra forma nunca mais chegaremos ao aeroporto — apressou Melanie.
Ir de viagem com as filhas era sempre um desafio. Felizmente, o motorista do táxi conseguiu enfiar quase tudo dentro do porta-bagagens, o que, diga-se de passagem, foi uma façanha. Por fim, o táxi arrancou com Melanie e as filhas sentadas no assento de trás. Valerie levava ao colo o enorme urso, enquanto Raquel se sentava à frente com os chapéus e as raquetas de tênis. Ao longo do caminho até o aeroporto de La Guardia, Melanie ia verificando mentalmente uma lista, assegurando-se de que fechara à chave o portão do jardim, assim como todas as janelas, que ligara o alarme e que não se tinha esquecido de desligar o gás. Existia sempre aquela sensação de mal-estar, sem se saber ao certo se no último instante algo fora esquecido. Apesar disso, na altura em que entraram a bordo do avião, todas se mostravam bastante alegres e, quando o aparelho decolou, Melanie sentiu um alívio que não experimentava havia várias semanas, como se estivesse a deixar todas as dúvidas em Nova Iorque, sabendo antecipadamente que iria encontrar paz e sossego na pequena ilha de Martha's Vineyard.
Peter continuara a telefonar-lhe uma ou duas vezes por dia e, independentemente do quanto Melanie gostava das conversas que mantinham, não deixava de se atormentar por causa delas. Por que motivo é que ele telefonava? Quando é que voltariam a encontrar-se? E, por último, qual era o objetivo de tudo aquilo? Peter reconhecia que sentia a mesma confusão. No entanto, ambos pareciam incapazes de pôr um travão àquela situação que, inexoravelmente, ia avançando em direção a um objetivo indefinido, que continuava a assustar ambos, pelo que faziam o possível para evitar aquele assunto tão melindroso. Limitavam-se a temas mais banais, embora de vez em quando admitissem que sentiam saudades um do outro. Mas por que razão, perguntava Melanie a si própria com freqüência, é que eu tenho tantas saudades dele? Invariavelmente a resposta a essas perguntas fugia-lhe ou então não a desejava encontrar.
— Mamãe, achas que a minha bicicleta ainda está em condições ou já estará ferrugenta? — perguntou Valerie no avião com um olhar ausente, enquanto abraçava o urso e exibia uma expressão de felicidade. Um homem que ia sentado na outra fileira de assentos, olhava para ela, fascinado.
Melanie sentiu-se satisfeita por não lhe ter permitido vestir os calções azuis que ela usara ao pequeno-almoço e que ameaçara usar durante a viagem aérea até a casa de férias.
— Não sei, meu amor. Quando chegarmos, veremos como é que as coisas estão — respondeu a mãe.
A senhora a quem alugavam a casa todos os anos permitia-lhes que deixassem algumas coisas na cave de um verão para o outro.
Quando chegaram a Boston, alugaram um automóvel e seguiram para Loods Hole, onde apanharam o barco que fazia a travessia até Vineyard Haven. O barco era a parte da viagem que elas mais apreciavam. Ficavam com a impressão de que deixavam para trás o mundo da realidade, assim como todas as responsabilidades que o acompanhavam. Melanie ficou sozinha durante alguns minutos junto à amurada, deixando que o vento lhe açoitasse os cabelos; há vários meses que não se sentia tão liberta. Apercebeu-se do quanto estava necessitada de umas férias, enquanto desfrutava daqueles breves instantes de solidão, antes de as filhas irem à sua procura. Haviam deixado Raquel a falar com um homem no tombadilho inferior e, quando finalmente a governanta se lhes juntou, começaram a troçar dela por causa daquele interregno.
Naquele momento, Melanie deu consigo a rir-se ao lembrar-se de Mrs. Hahn; era-lhe impossível imaginar alguém a fazer troça daquela mulher, e muito menos imaginá-la a namoriscar com um desconhecido num barco. Apesar de Raquel ser bastante independente, tinham um grande carinho por ela. Foi com uma enorme satisfação que viu Jessica dar um grande abraço à governanta, na altura em que o barco atracava na ilha. Até mesmo Raquel sorriu perante aquele gesto de ternura. Na opinião de todas, aquele lugar era um autêntico paraíso e, no momento em que chegaram à casa em Chilmark, que tão familiar lhes era, as gêmeas desataram a correr descalças em direção à praia, seguindo uma atrás da outra até tão longe quanto lhes foi possível, enquanto Melanie as observava.
Não se verificaram dificuldades maiores para se instalarem, à semelhança do que acontecia todos os anos e, ao fim do dia, parecia que as quatro já haviam chegado há um mês. As poucas horas que tinham passado na praia naquela mesma tarde deixaram-lhes as faces rosadas. Arrumaram tudo o que tinham trazido nas malas, e o urso de pelúcia foi instalado numa cadeira de baloiço que havia no quarto de Valerie. A casa estava mobiliada de uma maneira acolhedora, apesar de não haver peça alguma que se pudesse classificar de rebuscada. Tinha o aspecto de ser a casa de uma avó, com um alpendre onde se encontrava uma cadeira de baloiço feita de vime. Todas as dependências estavam decoradas com cortinas garridas de algodão estampado. Nos primeiros dias, persistia sempre um ligeiro cheiro a bafio que, ao fim de algum tempo, acabava por desaparecer sem que se voltasse a notar. Até mesmo aquele pormenor fazia parte da sensação de familiaridade que sentiam sempre que se encontravam em Chilmark. Passavam os verões naquele lugar desde que as gêmeas eram crianças e, tal como Melanie explicou a Peter quando ele lhe telefonou naquela mesma noite, Chilmark fazia parte do seu lar.
— Elas adoram estar aqui, exatamente como eu — disse Melanie.
— Tudo isso lembra muito a Nova Inglaterra, Mel — retorquiu ele, tentando imaginar o local pela descrição que ela fizera. Praias extensas de areias brancas, um estilo de vida informal em que predominavam os calções, as camisolas de algodão e os pés descalços, alguns intelectuais oriundos de Nova Iorque que tinham por hábito reunir-se de tempos a tempos em jantares de lagosta e em mariscadas. Entretanto, Peter acrescentou: — Nós vamos todos os anos para a montanha, para Aspen. — O ambiente nas montanhas era muito diferente do que reinava em Martha's Vineyard, mas a forma como ele descrevia aquela estância de esqui tornava-a deveras intrigante. — Por que é que não vais lá passar uns dias com as tuas filhas? — sugeriu ele. — Estamos a pensar em ir durante os primeiros dez dias de Agosto.
— Não conseguiria arrancá-las daqui nem que lhes pagasse um milhão de dólares, ou lhes prometesse um encontro com a estrela de rodeio que elas preferem. Isto é... — respondeu Melanie, mas reconsiderou a última hipótese e ambos começaram a rir.
Tinham um relacionamento ao telefone que era fácil de manter, mas que não deixava de parecer extremamente irreal em determinadas ocasiões. Eram vozes sem corpo que viviam na linha do telefone, noite após noite, sem nunca se aproximarem demasiado.
— Suponho que não me seria possível arrancar-te daí — continuou Peter.
— Duvido muito — concordou Melanie. Naquele momento fez-se um estranho silêncio e ela aguardou, perguntando a si própria o que lhe iria na mente. Mas quando Peter retomou a palavra dava a impressão de que estivera na brincadeira.
— É uma pena — disse ele.
— O que? — redargüiu Melanie, pensando que ele não fazia qualquer sentido. Sentia-se maravilhosamente descontraída depois do jantar. Não lhe apetecia estar com charadas ao telefone; contudo, era óbvio que Peter estava com disposição para brincar.
— Que não queiras sair daí — continuou ele.
— Por que é que dizes isso? — Melanie sentia a cabeça a latejar. Peter estava a provocar-lhe um estranho nervosismo.
— Porque vai realizar-se uma conferência em Nova Iorque, em que participará um grupo de cirurgiões de toda a Costa Leste, e eu fui convidado para ser um dos oradores. Terá lugar no Hospital Columbia Presbyterian — finalizou Peter.
Melanie ficou calada durante alguns instantes, contendo a respiração, após o que começou a falar apressadamente.
— De verdade? E vais? — perguntou ela.
— Poderia ir. É o tipo de coisa em que eu normalmente me recusaria a participar, muito em especial nesta altura do ano. O calor que faz em Nova Iorque no mês de julho é insuportável, mas pensei que talvez e dadas às circunstâncias... — continuou Peter, corando intensamente do outro lado da linha.
Melanie sentiu a respiração mais célere.
— Peter! Vais à conferência?
Ele riu-se, divertido com a atitude de ambos. Não havia dúvida de que pareciam duas crianças.
— Precisamente às quinze horas de hoje informei-os de que aceitava o convite. E com relação a ti e a Martha's Vineyard?
— Merda! — exclamou Melanie, olhando para a sala com uma careta bem-humorada. — Acabamos de chegar à ilha.
— Preferes que eu não vá? — perguntou ele com rapidez. — Não sou obrigado a ir.
— Por amor de Deus! Não sejas idiota. Durante quanto tempo é que pensas que podemos continuar assim? A falarmos ao telefone duas vezes por dia, sem nunca nos vermos?
— retrucou Melanie.
Haviam passado duas semanas e meia desde que ela deixara a Califórnia, apesar de tanto um como o outro terem a sensação de que haviam sido três anos. Tinham necessidade de se encontrar outra vez, quanto mais não fosse para tentar esclarecer alguns dos sentimentos.
— Foi o que eu também pensei. Portanto... — Peter não acabou a frase, rindo-se de novo, satisfeito perante a perspectiva daquela viagem.
— Quando é que chegas? — perguntou Melanie.
— Na próxima terça-feira — respondeu ele e acrescentou com uma voz terna: — Quem me dera que fosse já amanhã!
— Também eu — disse Melanie e em seguida soltou um assobio. — Faltam só seis dias!
— Eu sei — retorquiu Peter com um sorriso; sentia-se tão excitado como uma criança a quem tivessem oferecido um novo brinquedo. — Reservaram-me um quarto no Hotel Plaza — acrescentou.
Porém, naquele momento, Melanie lembrou-se de uma coisa. Sentia-se hesitante em lhe dar voz, com receio de poder colocar ambos numa posição pouco agradável; todavia, se fossem capazes de lidar com aquela situação, esta poderia resultar a contento de todos.
— Por que é que não ficas em nossa casa? As gêmeas não estão lá e terias o andar delas só para ti. Seria muito mais confortável do que ficar alojado num hotel — sugeriu Melanie.
Ao ouvir aquela proposta, Peter ficou em silêncio por alguns momentos, enquanto considerava todos os prós e os contras à semelhança do que ela fizera antes de formular o convite. O fato de ficarem sob o mesmo teto poderia ser um pouco embaraçoso, sendo quase um compromisso... Mas num andar separado.
— Tens a certeza de que não te importas? — perguntou Peter, hesitante. — Seria mais fácil para mim, mas não tenho intenção de provocar qualquer incômodo ou... — Interrompeu-se, sem saber o que dizer.
Melanie começou a rir-se ao aperceber-se do constrangimento dele, e estendeu-se na cama, continuando a manter o auscultador junto do ouvido.
— A idéia deixa-me igualmente nervosa — continuou ela. — Mas, cos diabos, ambos somos adultos e podemos lidar muito bem com uma situação destas.
— Achas que sim? — perguntou Peter, esboçando um sorriso ao telefone. Não tinha a certeza de ser capaz. E tu? Consegues deixar as tuas filhas sozinhas?
— A Raquel veio conosco, o que significa que elas ficarão bem entregues — retorquiu Melanie, sentindo-se subitamente muito excitada pela ida dele a Nova Iorque. — Oh, Peter, mal consigo esperar!
— O mesmo se passa comigo!
Os seis dias seguintes pareceram arrastar-se de maneira insuportável. Falavam ao telefone duas ou três vezes ao dia, o que deu azo a que, por fim, Raquel começasse a desconfiar que havia alguém importante na vida de Melanie. Por seu lado, as gêmeas pareceram não reparar em nada de anormal.
Na noite de domingo seguinte, Melanie mencionou casualmente que tinha de ir a Nova Iorque por uns dias, tencionando partir na terça-feira de manhã. Aquela notícia foi acolhida com olhos arregalados e bocas abertas. Durante o período de férias, ela nunca se tinha deslocado a Nova Iorque, fosse para o que fosse, exceção feita no ano em que Jessica partira um braço, tendo ela insistido para que a filha fosse observada por um ortopedista da cidade. Nessa ocasião, haviam ficado apenas dois dias, e o motivo justificara terem-se ausentado da ilha. Melanie comunicou-lhes que só regressaria na sexta-feira à tarde, o que significava que estaria ausente quatro dias. Tanto as filhas como a governanta achavam difícil acreditar que ela se dispusesse a ausentar-se; no entanto Mel insistiu, argumentando que tinham surgido alguns problemas no acabamento de uma reportagem que de veria ser apresentada na sua ausência, o que a obrigava a ir ao estúdio para assistir à montagem do filme.
Naquela mesma noite, quando voltaram à praia para se encontrar com alguns amigos e fazer uma fogueira, as gêmeas continuavam muito admiradas com a decisão da mãe.
Por seu lado, Raquel observava-a com olhos inteligentes enquanto levantavam a mesa.
— Estou a ver que desta vez é a sério, não é? — perguntou a governanta.
Melanie esquivou-se ao olhar dela, agarrando numa pilha de pratos sujos que levou para a cozinha.
— De que é que está a falar? — perguntou ela, fazendo-se desentendida.
— A mim não me consegue enganar. Arranjou um novo namorado — continuou Raquel.
— O que está a dizer não tem a mínima ponta de verdade. A pessoa em questão foi objeto de uma entrevista que eu fiz há tempos — justificou-se Melanie, continuando a evitar olhar de frente para a governanta, sabendo que se o fizesse não seria capaz de a convencer. — Vigie as meninas enquanto eu estiver ausente, especialmente a Valerie. Reparei que o rapaz dos Jacob já está muito crescido e, de cada vez que a encontra, baba-se todo.
— Esteja descansada que ele não vai fazer-lhe mal algum. Eu vou ficar de olho no rapaz — sossegou-a a governanta, mas ficou a observar Melanie que, entretanto, se retirou para o seu quarto, ao mesmo tempo em que Raquel se dirigia para a cozinha e acendia um cigarro, com um sorriso cúmplice. Era evidente que ela não tinha coisa alguma em comum com Mrs. Hahn, mas era uma mulher inteligente e adorava aquela família.
Na manhã da terça-feira seguinte, Melanie apanhou o barco que fazia a travessia até Boston, de onde seguiu num avião para Nova Iorque. Chegou ao aeroporto às dezesseis horas da mesma tarde, o que lhe deu tempo suficiente para arejar a casa, ligar o ar condicionado e, em seguida, ir à loja da esquina comprar flores frescas, assim como alguma comida de que pudessem necessitar. O vôo de Peter só deveria chegar às nove da noite, mas, à cautela, Melanie saiu de casa por volta das dezenove e trinta, rumo ao aeroporto. Foi uma sorte ter decidido ir com bastante antecedência, porque o trânsito era intenso e havia muitos automóveis nas bermas devido ao sobreaquecimento dos motores. Só chegou ao aeroporto às vinte e quarenta e cinco.
Mel dirigiu-se num passo apressado para a porta por onde ele deveria desembarcar, tendo ficado à espera a bater o pé com nervosismo durante os trinta minutos seguintes, uma vez que o avião estava quinze minutos atrasado.
Exatamente às vinte e uma horas e quinze minutos, o enorme pássaro prateado começou a aproximar-se da porta da manga de desembarque, através da qual os passageiros foram surgindo. Melanie observava atentamente as pessoas que iam saindo, bronzeadas pelo sol da Califórnia; usavam chapéus de palha e tinham as pernas desnudadas, mostrando um tom dourado. Os homens envergavam camisas de seda desabotoadas até a cintura, o que permitia ver fios de ouro à volta do pescoço. De súbito, Mel avistou um homem que não se assemelhava em nada aos outros, o qual envergava um fato de linho bege por cima de uma camisa azul; esta indumentária era complementada por uma gravata azul-marinho. Peter tinha os cabelos ligeiramente descoloridos pelo sol e o seu rosto estava bronzeado. No entanto, o seu aspecto era de austeridade ao encaminhar-se para o sítio onde ela se encontrava, olhando-a do alto da sua estatura elevada e dando-lhe um beijo sem qualquer hesitação. Permaneceram no mesmo lugar durante o que pareceu ser uma eternidade, enquanto as pessoas passavam à sua volta como se fossem um rio a passar por entre rochas.
Peter olhou para Melanie e esboçou um sorriso.
— Olá — saudou ele.
— Como foi o vôo? — perguntou ela.
— Não tão agradável como isto — redargüiu ele com uma careta risonha, após o que, de mãos dadas, se dirigiram para o terminal das bagagens. Saíram do aeroporto e chamaram um táxi. Enquanto seguiam para casa dela, beijaram-se vezes sem conta e Melanie perguntava a si mesma como é que havia sobrevivido até então sem a presença dele. — Estás muito bonita, Mel — comentou Peter, ao observar a pele bronzeada que fazia realçar os olhos verdes e os cabelos acobreados, onde ela colocara uma flor.
Mel usava um vestido de seda branca e sandálias de salto alto da mesma cor. Apresentava um aspecto saudável e feliz, de onde emanava uma aura estival; ao fitarem-no, os seus olhos pareciam querer absorvê-lo, dando a impressão de que ela esperara por Peter ao longo de toda a vida.
— Devo dizer-te que não vinha a Nova Iorque há anos — disse ele a olhar para a paisagem desprovida de beleza, enquanto seguiam para o centro da cidade. Abanou a cabeça. — Costumo recusar este tipo de convites, mas desta vez... — continuou Peter, encolhendo os ombros e inclinando-se na direção de Melanie para beijá-la de novo.
Esta não tinha esperado que ele se comportasse de maneira tão ousada, nem previra que a sua própria reação fosse tão receptiva. No entanto, as intermináveis conversas telefônicas tinham-nos aproximado bastante. Naquela altura conheciam-se havia somente dois meses; contudo, parecia-lhes que se tinham encontrado pela primeira vez havia dois anos ou talvez mais.
— Sinto-me muito satisfeita por não teres recusado o convite desta vez — retorquiu Melanie com um sorriso; depois olhou para a estrada. — Tens fome? — perguntou ela.
— Nem por isso — respondeu Peter para quem eram apenas seis e quarenta e cinco, apesar de, pela hora de Nova Iorque, faltarem poucos minutos para as vinte e duas horas.
— Tenho alguma comida em casa — acrescentou Melanie. — Mas se preferires podemos ir a qualquer sítio comer alguma coisa.
— Faremos o que te apetecer — replicou Peter que não era capaz de despregar os olhos do rosto dela. Tudo o mais lhe abandonou a mente enquanto lhe agarrava na mão. Estou tão feliz por poder ver-te de novo, Mel. — Tinha a impressão de que o fato de se encontrarem de novo juntos era quase irreal.
— Tudo isto parece quase um sonho, não é verdade? — comentou Melanie, esboçando um sorriso.
— É. O melhor sonho que eu tenho de há muitos anos a esta parte. — Ficaram em silêncio durante algum tempo. Pouco depois, ele sorriu e acariciou-lhe o pescoço. — Cheguei à conclusão de que te devia pelo menos uma viagem até a Costa Leste. Ao fim e ao cabo, já foste duas vezes a Los Angeles.
No entanto fora necessária uma justificativa para que ele se decidisse a viajar até Nova Iorque. Peter não tinha apanhado um avião com o único propósito de visitá-la. Contudo havia que reconhecer que aquele pretexto tornava a situação bastante mais fácil para ambos. Assim poderiam aproximar-se mais um pouco.
— Não há dúvida de que o presidente se recuperou de uma maneira notável — continuou Peter.
— Decorreram apenas cinco semanas, e ele já anda a pé e consegue mesmo trabalhar algumas horas por dia. — Melanie abanou a cabeça, ainda perplexa. Naquele momento ocorreu-lhe outra coisa. — A propósito, como é que está a Marie?
— O estado de saúde dela é razoável — respondeu Peter, enrugando a testa. Afastou aquela preocupação dos seus pensamentos. — Deixei dois médicos a cuidarem dela durante a minha ausência. Ficou em boas mãos, mas passou um mau bocado por causa dos corticóides. Neste momento, as faces dela estão inchadas como uma lua cheia e nada podemos fazer quanto a isso. Já tentamos tudo o que estava ao nosso alcance. Apesar de todo o desconforto, a Marie nunca se queixa — acrescentou Peter, olhando Melanie com uma expressão de tristeza. — Quem me dera que as coisas não fossem tão difíceis para ela!
Durante algum tempo, Melanie tentou concentrar os seus pensamentos na imagem de Marie, mas só conseguia pensar em Peter. Tudo o mais lhe parecia irreal. Os filhos, os doentes, as guerras e os programas de televisão. Só eles contavam.
O automóvel entrou na Drive', e ao fim de algum tempo, virou na Rua Noventa e Seis. Peter ia observando as ruas que percorriam, sentindo curiosidade quanto à zona da cidade onde Melanie habitava, perguntando a si próprio como seria a sua casa; em suma, desejando saber tudo o que dissesse respeito a ela. Sob certos aspectos, ele já sabia muita coisa em relação à maneira como ela pensava e sentia, mas desconhecia ainda o ambiente onde ela vivia.
Finalmente chegaram e Melanie sorriu ao recordar-se da primeira vez que vira a casa de Peter em Bel-Air, e ficara surpreendida pelo seu ar formal. Sabia antecipadamente que Peter chegaria à conclusão de que a sua casa era muito diferente, e não se enganou.
Ele mostrou-se encantado ao entrar, sentiu o aroma das flores que ela comprara, olhou para as cores vivas e para o pequeno jardim que era tão agradável. Virou-se para ela com um sorriso, delicado.
— Esta casa é a tua cara, Mel. Eu já sabia que não poderia ser de outra forma — comentou ele, colocando as mãos na cintura de Melanie e sorrindo.
— Gostas dela?
— Adoro-a — confirmou Peter.
Anda daí, para eu te mostrar o resto — disse ela, agarrando-lhe na mão e começando a subir as escadas.
Quando chegaram ao seu quarto, ambos ficaram junto à porta durante algum tempo, seguindo depois para o pequeno escritório e para o quarto de uma das gêmeas, onde já tinha tudo preparado para ele. Mel colocara jarras cheias de flores frescas na mesa em frente da cama onde Peter dormiria. Também enchera uma termo prateada com água gelada e colocara uma grande quantidade de espessas toalhas turcas junto da banheira. As luzes estavam ligadas, proporcionando uma atmosfera convidativa. Melanie instalara-o no quarto de Jessica, uma vez que, das duas filhas, ela era a mais arrumada, o que lhe tornara mais fácil a tarefa de preparar o quarto para recebê-lo de maneira confortável.
— Isto é encantador — comentou Peter, sentando-se à secretária a olhar em redor com uma expressão de agrado, para depois fixar o olhar em Melanie. — Consegues emprestar a tudo um toque tão delicioso! — Melanie pensava o mesmo a respeito dele, embora tal não fosse visível na casa de Peter, cuja atmosfera ainda se encontrava impregnada dos traços frios que Anne lhe imprimira. Naquele momento, enquanto ele se aproximava de Mel, os seus olhos refletiam um sentimento de grande ternura. Melanie dirigiu-se para ele em movimentos lentos e Peter agarrou-lhe na mão. — Sinto-me tão feliz por poder ver-te de novo, Mel. — Começou a beijá-la.
Quando regressaram ao rés-do-chão, Melanie ainda estava ofegante.
Ambos se sentaram à mesa da cozinha, onde falaram durante horas, à semelhança do que vinham fazendo ao telefone, havia semanas. Eram quase duas horas da manhã quando finalmente decidiram ir para cima e se despediram à porta do quarto de Melanie, com um beijo que parecia interminável, após o que, com um acenar da mão e um sorriso, Peter desapareceu escadas acima, dirigindo-se para o quarto de Jessica. Melanie entrou no seu próprio quarto a pensar em todas as palavras que ele lhe dissera naquela noite e nas que lhe dirigira anteriormente, apercebendo-se outra vez do quanto se sentia feliz na sua companhia. Tudo o que necessitava era da presença dele e estender-lhe a mão. Depois de lavar os dentes e de se ter despido, não conseguiu parar de pensar em Peter. Enfiou-se na cama, satisfeita por ele ter decidido alojar-se em sua casa. Aparentemente, tanto um como o outro eram capazes de encarar aquela situação com facilidade. Melanie gostou de ouvir o som dos passos de Peter no andar de cima.
Apesar da diferença horária, Peter ainda não estava cansado, e o mais estranho era que ela também não conseguia conciliar o sono. Tudo o que estava capaz de fazer era ficar deitada na cama a pensar nele, tendo-lhe parecido que haviam decorrido horas quando o ouviu a descer as escadas de mansinho, passando pela porta do seu quarto. Melanie pôs-se à escuta e ouviu o suave bater da porta da cozinha a fechar-se. Com um sorriso saiu da cama e foi atrás de Peter até o andar de baixo.
Mel encontrou-o sentado à mesa da cozinha, a comer um sanduíche que acompanhava com uma cerveja.
— Eu bem te disse que devíamos ter comido! — exclamou ela com um sorriso, tirando uma seven-up do frigorífico para si própria.
— O que é que estás a fazer acordada a esta hora, Mel? — perguntou ele.
— Não consigo dormir. Imagino que seja por me sentir demasiado excitada — respondeu Melanie e sentou-se em frente dele a olhar para o seu rosto sorridente.
— Também eu — retorquiu Peter. — Era capaz de ficar aqui sentado a conversar contigo a noite toda, mas o resultado seria acabar por adormecer amanhã, quando estivesse a apresentar a minha palestra.
— Já tens o discurso preparado? — perguntou Melanie.
— Mais ou menos — retorquiu Peter, começando a explicar-lhe qual o tema que iria abordar. Tencionava utilizar diapositivos relacionados com várias intervenções cirúrgicas, incluindo a de Marie. — E tu? O que vais fazer ao longo desta semana?
— Absolutamente nada — respondeu Melanie. — Durante dois meses não tenho de trabalhar, pelo que tenciono ficar por aqui enquanto estiveres na conferência. Posso assistir?
— Amanhã não, mas na sexta-feira não há qualquer inconveniente — respondeu Peter. — Gostarias de ir comigo?
— Claro que sim! — Ele ficou admirado e ela sorriu. — Lembras-te de mim? Sou a jornalista que te entrevistou no Hospital Central.
Peter deu uma palmada na testa, fingindo-se surpreendido.
— Então é isso! Eu sabia que já nos tínhamos encontrado, mas não conseguia recordar-me em que circunstâncias.
— Palhaço! — exclamou Melanie, mordiscando-lhe o lóbulo da orelha, enquanto ele lhe acariciava as costas.
Era agradável estarem os dois ali sentados a meio da noite. Algum tempo depois, ambos subiram as escadas de novo, lado a lado e de mãos dadas, como um casal; quando Peter se deteve junto da porta do quarto de Melanie, inclinou-se para beijá-la de novo.
— Boa noite, minha amiga.
— Boa noite, meu amor. — As palavras saíram-lhe automaticamente da boca e Mel ergueu o olhar para o rosto dele. Peter envolveu-a nos braços uma vez mais, fazendo com que Melanie se sentisse em segurança naquele abraço.
— Boa noite — repetiu Peter com outro beijo, após o que subiu as escadas até o andar de cima. Melanie entrou no seu quarto, acendeu a luz, e meteu-se na cama, enquanto pensava nele outra vez e nas palavras que tinha acabado de proferir. E o mais espantoso era que ela sabia serem verdadeiras.
Por seu lado, Peter, deitado na cama no andar superior, sabia que também a amava.
Quando Melanie despertou na manhã seguinte, Peter já tinha saído de casa. Levantou-se com lentidão e dirigiu-se ao andar de cima para fazer a cama dele, tendo encontrado o quarto todo arrumado. Quando desceu para a cozinha, encontrou um bilhete.
“Venho ter contigo às seis da tarde. Passa um bom dia. Com amor, P.”
Melanie sorriu ao ler aquelas palavras simples, mas cuja leitura lhe proporcionava tanto prazer. Durante todo o dia sentiu-se nas nuvens. Foi ao Bloomingdale's e fez algumas compras para si própria, assim como para as filhas e para a casa. Quando regressou, sentia-se invadida por uma sensação indescritível ao pensar que dentro de algumas horas não se encontraria sozinha.
Sentou-se na sala de estar depois de ter colocado uma garrafa de vinho no frigorífico, à espera de Peter, que finalmente chegou com um aspecto desalinhado e fatigado, mas feliz por estar com ela.
Melanie levantou-se com rapidez do sofá e aproximou-se dele.
— Olá, meu amor. Como é que foi o teu dia? — perguntou ela.
— Agora está a ser maravilhoso — respondeu Peter com um sorriso, dirigindo-se para a sala de estar. As luzes ainda não estavam acesas e a sala encontrava-se banhada pela luz tênue dos raios solares. — Como é que foi o teu? — perguntou ele por sua vez.
— Sem ti, pareceu interminável — retrucou Melanie com toda a sinceridade, ao mesmo tempo em que se sentava de novo e indicava um lugar no sofá junto de si. — Vem sentar-te aqui e conta-me tudo o que fizeste hoje — convidou ela.
Era engraçado ter alguém com quem conversar ao fim do dia, além das filhas. Mel disse-lhe o que tinha comprado e onde é que havia ido, após o que, com certa timidez confessou que passara literalmente o dia a contar as horas até ele chegar em casa.
Peter ficou radiante.
— Eu senti o mesmo — disse ele por sua vez. — Levei o dia a pensar em ti. Parece um disparate, não é verdade? Colocou um braço sobre os ombros dela, puxando-a para mais perto de si. De súbito, os lábios de ambos uniram-se e, daquela vez, beijaram-se até ficarem quase sem respiração.
Quando pararam, parecia não haver nada a dizer. Só queriam beijar-se de novo.
— Talvez esteja na hora de eu começar a preparar o jantar? — sugeriu Melanie com uma gargalhada, como se necessitassem de algo que os distraísse.
— E que tal um duche frio à deux ? — aventou Peter.
— Não sei se o à deux ajudaria — retorquiu Melanie com um sorriso nos lábios, levantando-se do sofá.
Peter puxou-a uma vez mais para os seus braços.
— Amo-te, Mel — declarou ele.
Parecia que o mundo tinha parado. Peter nunca dissera aquilo a uma mulher, excetuando Anne e havia anos que Melanie dizia a si mesma que nunca mais iria desejar dizer ou ouvir de novo aquelas palavras. Todavia, naquela ocasião, elas tinham significado para ambos e, quando Peter a beijou outra vez, Melanie sentiu que elas marcavam a sua alma, tendo-se agarrado a ele como se ao largá-lo pudesse afogar-se. Peter começou a beijar-lhe as faces, os lábios, o pescoço e as mãos e, inesperadamente, quase sem se aperceber do que fazia, Melanie levantou-se e agarrou-lhe na mão, conduzindo-o para as escadas e subindo até ao seu quarto.
Naquele momento virou-se para Peter.
— Eu também te amo — confessou ela num tom de voz tão baixo que, se naquele momento ele não estivesse a olhar para ela, não teria compreendido as palavras.
— Não tenhas receio, Mel... Por favor...
Peter aproximou-se dela e desapertou-lhe o vestido devagar, enquanto Melanie lhe desabotoava a camisa. Depois de tê-la despido, Peter deitou-a cuidadosamente sobre a cama, percorrendo-lhe a pele sedosa com mãos acariciadoras e em movimentos lentos, até que, por fim, ela arqueou o corpo, aproximando-se mais dele, como se lhe pedisse com sofreguidão que unisse o seu corpo ao dela. Abraçaram-se com força, enquanto saboreavam com deleite todos aqueles momentos antes de Peter a penetrar por fim. Ele ficou com a impressão de que quase conseguia ouvi-la a ronronar até que por fim Mel soltou um grito, enquanto ele gemia de prazer, após o que ambos se deixaram ficar deitados em silêncio. Os raios do sol refletiam-se no soalho do quarto.
Quando Peter olhou para o rosto de Melanie, verificou que lhe corriam lágrimas pelas faces abaixo.
— Oh, minha querida, lamento muito. Eu. — Receou tê-la magoado, mas ela abanou a cabeça e beijou-o de novo.
— Amo-te tanto que às vezes me sinto assustada — disse ela.
— Eu sinto o mesmo — retorquiu Peter.
Naquela noite, abraçou-a com tanta força que era impossível acreditar que qualquer dos dois alguma vez pudesse sentir outra coisa que não uma enorme alegria.
Por volta das nove da noite desceram os dois, completamente nus e de mãos dadas. Melanie preparou alguns sanduíches e ambos regressaram ao quarto, onde ficaram a ver televisão, rindo-se de vez em quando.
— Tal e qual como duas pessoas casadas — comentou ele na brincadeira, e Melanie revirou os olhos e fingiu desmaiar; Peter abraçou-a.
Ela chegou à conclusão de que nunca se sentira tão feliz na companhia de outro homem. Naquela noite, dormiram os dois na cama dela e acordaram diversas vezes para fazer amor. Quando Peter se levantou para ir uma vez mais para a sua conferência, ela saiu da cama ao mesmo tempo para lhe preparar ovos mexidos e café, antes de ele partir. Depois de Peter se ter ido embora, deixou-se ficar sentada, nua e sozinha, a desejar ansiosamente a hora do seu regresso.
Na sexta-feira seguinte, Melanie acompanhou Peter à conferência para assistir à sua palestra; sentiu-se fascinada pelas suas palavras e satisfeita ao observar a reação da assistência. A intervenção do médico, que versava as técnicas cirúrgicas mais recentes, acompanhada da exibição de diapositivos, foi recebida com aplausos estrondosos. Peter ficou rodeado pelos seus colegas durante quase uma hora, enquanto Melanie se mantinha a uma distância discreta, observando-o, cheia de orgulho.
— Ora bem, qual é a tua opinião? — perguntou Peter quando finalmente ficaram de novo a sós naquela noite. Optaram por jantar tranquilamente em casa, uma vez que ele partiria no dia seguinte, e ambos desejavam passar sozinhos o tempo que lhes restava.
— Penso que és sensacional — respondeu Melanie com um sorriso de felicidade, enquanto os dois partilhavam uma garrafa de vinho branco. Naquele dia, ela comprara algumas lagostas enormes do Maine, que lhe trouxeram à memória os jantares que ambos poderiam ter comido em Martha's Vineyard, caso estivessem lá. Decidira servi-las frias acompanhadas com salada e pão de alho, e para beber havia vinho Pouilly-Fum gelado. — Também achei que a reação da assistência foi extremamente calorosa — acrescentou ela.
Peter mostrou-se satisfeito ao ouvir aqueles comentários e esboçou um sorriso.
— Também sou dessa opinião — retorquiu ele, inclinando-se para Melanie e beijando-lhe os lábios com ternura. Estou satisfeito por teres assistido à conferência.
— Também eu — continuou ela, mas logo em seguida o seu rosto ensombrou-se ao pensar no dia seguinte e na partida dele.
Tinham combinado sair às oito da manhã para o aeroporto. O vôo de Peter era às dez horas, devendo aterrar em Los Angeles às treze, hora local, a tempo de ele ainda poder estar algum tempo com Pamela, antes de ela partir no dia seguinte para um acampamento de verão. Por seu turno, Melanie, depois de deixá-lo, seguiria viagem para junto das filhas que haviam ficado na ilha.
— O que é que se passa, meu amor? — perguntou Peter, agarrando-lhe na mão com ternura. — Há alguns instantes parecias tão triste. — Perguntava a si próprio pela centésima vez desde que haviam feito amor se ela lamentaria ter-se envolvido com ele. Ao fim e ao cabo, Peter preparava-se para partir de novo e nenhum dos dois sabia quando é que voltariam a ter oportunidade de se encontrar novamente. Era uma incerteza que tinham de enfrentar constantemente.
— Estava apenas a pensar no dia de amanhã e na tua partida — respondeu Melanie.
— Também eu — disse ele, pousando o copo de vinho sobre a mesa e fazendo o mesmo ao dela, para poder segurar-lhe na mão. — A vida que tu e eu temos é uma loucura — continuou Peter. Melanie aquiesceu com um acenar de cabeça. Ambos sorriram. — Mas haveremos de encontrar uma solução. — Naquele momento, Peter decidiu contar-lhe uma idéia que entretanto lhe ocorrera. — O que é que te parece a idéia de passares uns dias em Aspen com as tuas filhas? Estamos a planear partir dentro de três semanas e tenho a certeza de que a Valerie e a Jessica iriam adorar, Mel. É um sítio maravilhoso para os miúdos. Para nós. De fato, poder-se-ia dizer que para qualquer pessoa. — Peter tinha os olhos brilhantes ao pensar naquela hipótese. — Além de que nos proporcionaria uma oportunidade de estarmos juntos outra vez.
— Mas não desta forma — redargüiu Melanie com um suspiro, indo de encontro ao seu olhar com um sorriso pesaroso. — O mais certo seria os nossos filhos enlouquecerem quando se apercebessem daquilo que se passa entre nós dois.
Pelo menos, a filha de Peter dar-se-ia conta, mas Melanie sabia antecipadamente que aquela situação surpreenderia as suas filhas da mesma maneira. Não tinha havido tempo algum para prepará-las. Peter não passava de um estranho para as filhas, um nome de que mal tinham ouvido falar, exceto no contexto da atividade profissional da mãe. De súbito, zás! Adivinhem meninas, vamos para Aspen com ele e com os seus filhos! Melanie compreendia que o mais certo seria dar-lhes um fanico.
— Adaptar-se-ão, além de que não precisam saber de todos os pormenores — continuou Peter, exibindo uma segurança tão grande que Melanie se sentou para trás, fitando o seu rosto com um sorriso rasgado e cheio de preguiça.
Para um homem que nos últimos vinte anos não mantivera qualquer relação amorosa com uma mulher, para além daquela com quem tinha casado, Peter mostrava-se notavelmente confiante naquele momento no que dizia respeito à vida. Melanie não tinha a certeza se aquela atitude seria um indicador dos sentimentos que ele nutria por ela ou, simplesmente, resultante da sua postura habitual.
— Estás muito à vontade acerca de tudo isto, meu amado senhor — disse ela, trocista.
— Nunca me senti assim antes, Mel — retorquiu ele com um sorriso. — Mas tudo isto me dá a sensação que é assim que deveria ser. — Pelo menos, ali, em Nova Iorque, sozinhos na bonita casa de Melanie, todas as peças se ajustavam. Talvez a situação viesse a sofrer alterações na altura em que ambos se encontrassem rodeados pelos filhos; contudo, Peter não acreditava que tal pudesse vir a acontecer. — Imagino que os nossos filhos terão capacidade para enfrentar uma situação destas, não achas? — perguntou ele.
— Quem me dera estar assim tão segura como tu! E quanto à Pam? — inquiriu Melanie.
— Ela gostou de ti quando te conheceu em Los Angeles — retorquiu Peter. — Além do mais, em Aspen toda a gente tem sempre algo a fazer: escalar montanhas, nadar, andar de bicicleta, caminhar, jogar tênis, pescar, assistir aos festivais musicais noturnos, etc. Os miúdos estão sempre a encontrar velhos amigos. De certa forma, a realidade é que eles nos prestariam menos atenção num lugar assim, porque têm os seus próprios interesses — acrescentou Peter. Apesar de todos os esforços que ele envidava para convencê-la, Melanie continuava a pensar que tudo aquilo parecia ser fácil de mais, interrogando-se sobre até que ponto é que Peter estaria a ser realista. — Além do mais — continuou ele, aproximando-se dela — não me parece que eu seja capaz de sobreviver sem ti durante mais do que duas semanas.
— Dá a impressão que o tempo nunca mais passa, não é verdade? — concordou Melanie num tom de voz cheio de ternura e entristecido, encostando a cabeça ao peito dele e sentindo-se envolvida pelo calor que irradiava do corpo de Peter. — Mas continuo sem saber se será acertado fazermos a viagem até Aspen. É obrigar os miúdos a aceitar muita coisa de uma só vez.
— O que? Que somos amigos? — perguntou ele, admirado e aborrecido. — Não inventes problemas.
— Eles não são cegos, Peter. Já são quase todos adultos, com exceção do Matt — argumentou Melanie. — Não penses que os nossos filhos vão deixar enganar-se.
— Quem é que pretende enganar quem? — perguntou Peter, afastando-se dela por breves instantes, a fim de poder fitá-la nos olhos. — Eu estou apaixonado por ti, Mel. — Era tudo em que ele conseguia pensar de cada vez que via o rosto dela, de todas as vezes que Melanie entrava numa sala. Sempre que a sua imagem lhe ocorria ao pensamento.
— Queres que eles saibam disso? — retrucou Melanie.
— Mais dia menos dia tal será inevitável — respondeu Peter com um sorriso nos lábios.
— E depois o que é que acontecerá? Cada um de nós irá para seu lado e continuaremos a viver as nossas vidas a cerca de cinco mil quilômetros um do outro e eles saberão que tivemos um caso? Pensa como é que os nossos filhos se sentiriam — argumentou Melanie, pensativa, ao visualizar o rosto atormentado de Pamela. — Muito em especial, a tua filha.
— Tu pensas demais — contrapôs Peter, com um suspiro.
— Sou uma pessoa muito ponderada — afirmou Mel.
— Pois bem, não sejas. Diz-me que concordas em ir até Aspen e vais ver que vamos divertir-nos, sem quaisquer preocupações por causa dos miúdos. Não haverá qualquer problema com eles. Acredita no que te digo — asseverou Peter, convicto.
Melanie sentia-se confusa pela inocência dele. Havia ocasiões em que ficava perplexa ao observar a ingenuidade que Peter demonstrava em relação aos filhos. No entanto, era forçada a admitir que apesar das suas reservas em relação à viagem, estava ansiosa por poder voltar a encontrar-se com ele, e não havia a mínima dúvida de que Aspen lhe proporcionaria uma oportunidade irrecusável. Tudo o que lhe faltaria fazer seria convencer as gêmeas a deixarem as praias de Martha's Vineyard por uma semana ou duas. Melanie franziu o sobrolho ao pensar no que é que diria às filhas quando regressasse.
— Não te preocupes tanto com este assunto, Mel. Aceita o meu convite — insistiu Peter.
Ela sorriu perante a insistência dele e beijaram-se. Pouco depois, Melanie sentou-se com uma expressão pensativa enquanto bebia pequenos goles de vinho.
— Não sei bem o que dizer para justificar a saída da ilha.
— Diz-lhes que o ar da montanha lhes faz melhor à saúde do que o da praia — alvitrou Peter.
Ela riu-se, olhando para ele com a cabeça inclinada para o lado.
— Por acaso não gostas da praia? — perguntou Melanie.
— Claro que sim, mas adoro as montanhas. Todo aquele ar saudável, o cenário esplêndido e os bons passeios que se podem dar — justificou Peter.
Melanie nunca o imaginara como o tipo de pessoa que apreciasse as atividades ao ar livre; todavia, depois de todos os esforços que o seu trabalho lhe exigia, era fácil compreender que ele necessitasse de uma qualquer válvula de escape. As montanhas satisfaziam essa necessidade a Peter; no entanto, desde a sua meninice que ela adorava ir para a praia e Martha's Vineyard era precisamente o lugar onde desejava passar as suas férias, na companhia das filhas.
— Calculo que poderia recordar-lhes a existência do Mark — continuou Melanie com um sorriso trocista. — Pelo menos, isso bastaria para convencer a Valerie, mas não precisamos dessa dor de cabeça — concluiu ela.
As suas palavras provocaram uma gargalhada em Peter.
— Talvez fosse boa idéia eu falar-lhe das gêmeas antes de irmos para férias — retorquiu Peter.
Naquela noite, não se atreveu a perguntar-lhe se ela já decidira ir. Mas, na manhã seguinte, enquanto ambos estavam sentados a tomar café, ele tinha de saber a resposta. Dali a uma hora sairiam de casa para o aeroporto. As malas de Peter já se encontravam feitas, assim como o pequeno saco de viagem que Melanie trouxera consigo. Não tivera intenções de regressar de novo à casa da cidade até setembro.
— Ora bem, Mel. Sempre te decidiste a ir? — indagou ele.
— Quem me dera que assim fosse! — redargüiu ela, soltando um suspiro.
Peter pousou a sua chávena sobre a mesa e inclinou-se para beijá-la.
— Aceitas ir ter comigo a Aspen no fim do mês, Mel? — insistiu ele.
— Vou tentar. Mas primeiro tenho de pensar bem no assunto — respondeu Melanie. Continuava bastante indecisa. A realidade era que, se ela e as filhas não fossem, o mais provável seria não voltar a ver Peter durante vários meses, e não desejava que tal viesse a acontecer. Com um suspiro, Melanie pousou a sua chávena de café na mesa, fitando-o nos olhos com toda a intensidade e acrescentando:
— O problema é que não sei se será uma boa idéia envolvermos as crianças na nossa relação.
— E por que não? — perguntou Peter com mostras evidentes de aborrecimento.
— Pela simples razão de que poderá ser demais para eles compreenderem.
— Na minha opinião, estás a subestimar as capacidades dos nossos filhos — argumentou Peter.
— Como é que vais justificar a nossa ida a Aspen? — perguntou Melanie.
— Mas por que motivo é que terá de haver uma justificativa? — contrapôs Peter.
— Oh, por amor de Deus, o que é que te parece? É claro que é necessário uma justificativa! Como é que poderias evitar isso? — insistiu Melanie.
— Está bem. De acordo. Nesse caso, não nos resta qualquer alternativa senão dar-lhes uma explicação. Dizemos-lhes simplesmente que somos velhos amigos — sugeriu Peter.
— E eles sabem perfeitamente que isso não é verdade — retorquiu Melanie, mostrando uma certa irritação.
Peter olhou para o seu relógio de pulso. Já eram sete e trinta e dentro de meia hora seriam obrigados a seguir para o aeroporto. Não lhe restava muito tempo para tentar convencê-la. Se Melanie decidisse não ir, só Deus sabia quando é que ele voltaria a vê-la de novo.
— Não me interessa o que raio lhes vais dizer, Mel! Isto aplica-se tanto às tuas filhas como aos meus. O certo é que quero que vás a Aspen — acrescentou Peter com firmeza.
Ele estava a ser teimoso e intransigente e isso a irritou.
— Tenho de pensar melhor — repetiu ela.
— Não, não tens — afirmou Peter do alto da sua estatura com uma expressão irredutível e teimosa. — Há tanto tempo que tomas todas as tuas malditas decisões sozinha que já não és capaz de ceder e de confiar em qualquer outra pessoa.
— Isso não tem nada a ver com o que estamos a discutir — atalhou Melanie. Entretanto, as vozes de ambos começavam a subir de tom. — Estás a ser demasiado ingênuo em relação à forma como os nossos filhos possam reagir.
— E o que é que isso tem? Por amor de Deus! Será que também não temos o direito a viver a nossa vida? — perguntou Peter. — Por acaso, não me assiste o direito de te amar?
— Sim, mas isso não nos dá o direito de criar problemas aos nossos filhos devido a uma relação que não irá a lado algum, Peter — replicou Melanie.
— E o que é que te leva a pensar assim? — retorquiu ele que naquela altura já gritava. — Ou dar-se-á o caso de já teres feito outros planos?
— Eu vivo em Nova Iorque e tu vives em Los Angeles, ou por acaso já não te lembras disso? — perguntou Melanie com ironia.
— Lembro-me perfeitamente, e é por isso que quero encontrar-me contigo daqui a três semanas. Isso será pedir demasiado? — replicou Peter, mordaz.
— Oh, valha-nos Deus! De acordo! — aquiesceu Melanie aos gritos. — Está bem! Eu vou a Aspen.
— Ótimo! — exclamou Peter enquanto olhava de relance para o relógio.
Passavam cinco minutos das oito e, num movimento brusco, estendeu os braços e puxou-a para junto de si. O tempo estava a passar depressa demais. Deveriam ter saído de casa havia cinco minutos e, naquele momento, ele não era capaz de deixá-la. Beijou-lhe a nuca e afagou-lhe os cabelos sorrindo.
— Acho que acabamos de ter a nossa primeira discussão. Não há dúvida de que és uma mulher extremamente teimosa, Melanie.
— Eu sei. Lamento muito — desculpou-se ela, erguendo o olhar. Beijaram-se. — Eu pretendo apenas fazer o que está certo e não perturbar nem os teus filhos nem as minhas filhas.
— Eu sei — retorquiu Peter, assentindo. — Mas agora temos de pensar em nós próprios.
— Há já muito tempo que não sei o que isso é. Exceto quando foi necessário assegurar-me de que não viria a sofrer — disse Melanie.
— Eu não pretendo magoar-te, Mel — continuou Peter com um timbre de voz pleno de tristeza. O fato de imaginar que ela pudesse estar à defesa em relação a ele deprimia-o. — Espero com toda a sinceridade nunca vir a fazê-lo — acrescentou Peter.
— Não é algo que se possa evitar. Quando duas pessoas se querem bem, acabam sempre por se magoar. A menos que permaneçam sempre a uma distância segura — retorquiu Melanie.
— Isso não é viver.
— Não, de fato, não é. Mas em contrapartida é seguro — afirmou ela.
— Que se lixe a segurança! — redargüiu Peter, olhando para ela com uma expressão de austeridade no rosto. — Eu amo-te, Mel.
— Também eu te amo. — Melanie ainda tremia ao proferir aquelas palavras. — O que mais desejava é que não tivéssemos de partir já.
Para que ele pudesse embarcar no seu vôo era imprescindível não perderem mais tempo. Peter olhou primeiro para o seu relógio e depois para Melanie.
— Tenho uma sugestão a fazer — anunciou ele.
— De que é que se trata? — perguntou ela com curiosidade.
— Vou telefonar para o hospital a ver se consigo arranjar quem me substitua por mais um dia. Se foram capazes de sobreviver este tempo todo sem a minha presença, com certeza que também conseguirão agüentar-se por mais um dia. O que é que te parece? — indagou Peter.
Melanie sorriu como uma criancinha e deixou que o seu corpo se descontraísse, encostando-se toda a ele.
— Acho que é uma idéia maravilhosa — respondeu ela, mas nesse momento ocorreu-lhe algo. — E a Pam? Não disseste que querias vê-la antes de ela partir para o campo de férias?
— Sim, mas pela primeira vez em quase dois anos, e para variar, tenciono fazer aquilo que mais me apetece. Quando ela voltar para casa dentro de três semanas, terei muito tempo de vê-la — respondeu Peter. — Tenho a certeza de que a Pam poderá sobreviver muito bem sem a minha presença.
— Tens certeza disso? — perguntou Melanie, com ar de dúvida.
— E quanto a ti? — perguntou Peter por sua vez enquanto a abraçava e olhava para ela. — Haverá possibilidades de adiares o teu regresso à ilha até amanhã?
— Estás a falar a sério, Peter? — inquiriu Melanie, virando-se para ficar de frente para ele, espantada com a sua decisão. No entanto, verificou de imediato que Peter falava muito a sério quanto à possibilidade de ficarem mais um dia em Nova Iorque.
— Sim. Não quero deixar-te. Proponho que passemos o fim-de-semana juntos — sugeriu ele com um sorriso que lentamente lhe assomou aos olhos.
— Tu és o homem mais extraordinário que eu conheço — disse Melanie e abraçou-o.
— Que está apaixonado pela mulher mais espantosa do mundo — afirmou Peter. — Atrevo-me a dizer que nós os dois formamos um casal deveras impressionante, não achas? — perguntou ele.
— Sim. Tens razão. — A voz de Melanie era terna. Os dois continuavam na cozinha. Em seguida, ela soergueu o olhar para Peter, esboçando um sorriso um pouco tímido.
— Uma vez que já não vamos hoje para o aeroporto, o que é que te parece se formos até lá em cima, doutor Hallam?
— Acho que é uma idéia excelente, Mistress Adams — respondeu ele.
Melanie subiu as escadas e, momentos depois, Peter seguiu-lhe o exemplo. Tinha ficado na cozinha somente o tempo necessário para poder telefonar ao médico que estava a substituí-lo no hospital em Los Angeles, a fim de lhe perguntar se ele se importaria de continuar a substituí-lo por mais dois dias. O colega começou a brincar com ele, sem parecer sentir-se minimamente incomodado por causa daquele pedido. Dois minutos mais tarde, Peter dirigiu-se para as escadas, subindo os degraus dois a dois e entrou de rompante no quarto de Melanie, exibindo um sorriso rasgado e agarotado.
— Posso ficar! — exclamou ele.
Ela não disse nada. Limitou-se a aproximar-se dele e começou a despir-lhe todas as peças de roupa, uma a uma, após o que ambos se deixaram cair na cama com uma atitude de abandono resultante de terem dado mais um passo na direção um do outro.
— Mas por que motivo não vens para casa? — perguntou Pamela com uma voz chorosa quando Peter lhe telefonou antes da hora do almoço. — Não tens doentes em Nova Iorque — continuou a filha num tom de voz que era uma mistura de irritação e de dor, onde se adivinhavam as acusações.
— Atrasei-me por causa da conferência, Pam. Amanhã à noite já estarei em casa — argumentou o pai.
— Mas amanhã vou para o campo de férias! — retorquiu Pamela.
— Eu sei. Mas acontece que Mistress Hahn pode muito bem levar-te na camioneta. Não é exatamente a primeira vez que vais — acrescentou Peter. Era engraçado como uma pessoa era forçada a colocar-se na defensiva perante as reações dos filhos, pensava Melanie enquanto escutava aquela conversa. — É o quarto ano que vais para o mesmo campo de férias. Nesta altura já devias ser uma profissional experimentada nessas viagens, Pam. Além do mais, dentro de três semanas já estarás de novo em casa.
— Sim, sim — disse ela com uma voz distante e acabrunhada.
Peter sentiu remorsos, uma vez que a decisão já fora tomada. Fizera amor com Melanie durante as últimas duas horas. Naquele momento, parecia-lhe que o fato de alongar a sua estada perdera alguma da urgência anterior e a filha fazia-lhe recordar as responsabilidades que tinha em casa.
— Está bem — continuou Pam, dando a conversa por encerrada, o que fez com que o pai se sentisse mal consigo próprio.
— Minha querida, foi-me completamente impossível partir hoje. — Mas não fora, e isso provocou-lhe um mal-estar ainda maior. Ao decidir ficar, teria tomado uma decisão pouco acertada? Mas, que diabo, não teria ele o direito de viver a sua própria existência e de passar algum tempo na companhia de Melanie?
— Está tudo bem, papai — acrescentou a filha.
Todavia, Peter pressentia que ela se sentia desolada e deprimida, sabendo por experiências passadas o quão insensato era entristecê-la.
— Ouve, no próximo fim-de-semana vou visitar-te ao campo de férias — disse Peter. O campo era próximo de Santa Barbara, o que lhe permitiria ir facilmente de automóvel, mas então se recordou de que naquela data poderia estar de serviço no hospital. — Raios, lembrei-me agora que não posso! Sendo assim, prometo-te que vou no fim-de-semana a seguir.
— Não precisas te incomodar — retorquiu Pam. — Diverte-te em Nova Iorque.
Subitamente, Peter pressentiu que a filha se encontrava ansiosa por desligar o telefone.
No seu quarto, Melanie observava a expressão do rosto de Peter, lendo com facilidade as emoções que o assaltavam. Quando ele desligou o aparelho, ela aproximou-se e sentou-se ao seu lado.
— Ainda estás a tempo de apanhar um avião esta tarde. Sabes isso, não é verdade? — perguntou ela.
Peter abanou a cabeça num gesto de recusa, mostrando-se cabisbaixo.
— Não me parece que deva aceitar essa sugestão, Mel. Tudo o que eu disse há pouco é verdade. Temos todo o direito de passar algum tempo juntos — redargüiu ele com firmeza.
— Mas ela também precisa da tua companhia, e sentes-te dividido — continuou Melanie.
Não era necessário ser-se vidente para se perceber isso. Peter assentiu.
— De uma maneira ou de outra, a Pam consegue sempre fazer com que eu me sinta culpado. Fá-lo desde que a Anne morreu. Quase que se poderia dizer que ela me considera responsável pela morte da mãe. Como se eu fosse obrigado a expiar os meus pecados durante o resto da minha vida, sem jamais o conseguir — disse Peter, acabrunhado.
— É um fardo demasiado pesado para carregares. Isto é, se estiveres na disposição de aceitá-lo — retorquiu Melanie.
— Que outra escolha é que me resta? — perguntou Peter com uma grande tristeza refletida no rosto. — Desde que a mãe faleceu, a Pam sofre de todos os problemas emocionais que vêm nos livros, desde a anorexia até os problemas de pele, sem esquecer os pesadelos.
— Esse tipo de situações traumáticas acontece a toda a gente, mais cedo ou mais tarde — argumentou Melanie. — A tua filha vai ser obrigada a aceitar o que aconteceu, Peter. Ela não pode fazer com que fiques a pagar por essa tragédia para sempre.
Mas iria tentar fazê-lo. Pelo menos era essa a impressão que Melanie tinha. No entanto, não partilhou aqueles pensamentos com Peter. Ele mostrara-se determinado em ficar e decidira que a filha teria de se ajustar à situação. Um pouco mais tarde, Melanie telefonou para Chilmark a fim de falar com as gêmeas e com Raquel.
Como seria de esperar, as filhas não esconderam a decepção que sentiam pelo fato de a mãe não regressar a casa naquele dia; Jessica mais do que Valerie, mas ambas disseram que não havia problema e que a veriam no dia seguinte. Em seguida, passaram o telefone a Raquel, a qual esperou até as gêmeas terem saído da sala para fazer o seu comentário.
— Ora bem, ele deve ser qualquer coisa do outro mundo! — exclamou a governanta.
— Quem? — perguntou Melanie com uma expressão enigmática a olhar para Peter.
— O novo namorado em Nova Iorque — respondeu Raquel.
— Que namorado? — retorquiu ela, sentindo-se corar. — Raquel, você só pensa em sexo! Como é que vão as meninas?
— Estão bem. A Val arranjou um namorado novo que conheceu ontem na praia e, ou muito me engano ou há um rapazinho interessado na Jessica, mas ela não se mostra muito entusiasmada com as atenções dele.
— Pela sua conversa, deduzo que está tudo a correr normalmente — disse Melanie com um sorriso nos lábios. — Como é que o tempo tem estado?
— Uma maravilha. Eu pareço uma jamaicana — respondeu Raquel. As duas começaram a rir.
Melanie cerrou os olhos e começou a pensar em Martha's Vineyard. Desejava encontrar-se na ilha na companhia de Peter, e não enfiados em Nova Iorque num sábado de julho.
No seu íntimo sabia que, apesar de ele ser um apaixonado das montanhas, não poderia deixar de adorar as praias da ilha.
— Até amanhã, Raquel. Se precisarem falar comigo, eu estou na casa da cidade.
— Não vai ser necessário — retrucou a governanta.
— Obrigada, Raquel — agradeceu Melanie, pensando no descanso que era saber que as filhas se encontravam bem entregues. Desligou o telefone, sorrindo ao imaginar aquela mesma troca de palavras com a governanta de Peter, Mrs. Hilda Hahn. Nem a própria Melanie conseguia imaginar isso. Riu-se ao contar a Peter os seus pensamentos.
— Tu gostas muito da tua governanta, não é verdade? — perguntou ele.
— Podes crer — concordou ela com um acenar de cabeça. — E estou-lhe muito grata por tudo o que tem feito. Por vezes ela é intratável, mas adora as miúdas e até consegue gostar de mim.
— Isso não é muito difícil — retrucou Peter e beijou-a em cheio nos lábios, afastando-se para poder observá-la melhor.
Melanie lidava com as filhas de uma maneira diferente da sua, falava com a governanta de uma forma que ele nunca seria capaz, e a sua vida dava a idéia de decorrer sem sobressaltos maiores. Durante breves instantes, perguntou a si próprio se a sua presença serviria apenas para perturbar toda aquela tranqüilidade.
Quando se levantou e se espreguiçou, Melanie reparou na expressão que se refletia nos olhos dele. Haviam passado uma manhã maravilhosa, algo inesperada, dado que não tinham contado poder estar juntos por mais tempo, o que fazia com que apreciassem ainda aquelas horas extras.
— Em que é que estavas a magicar agora mesmo, Peter? — Melanie sentia-se sempre curiosa no que respeitava aos pensamentos dele e, geralmente, sentia-se intrigada com o que ele lhe dizia.
— Estava a pensar que a tua vida está muito bem organizada, e que tens conseguido fazer com que decorra da melhor forma possível — respondeu Peter. — Perguntava a mim mesmo se a minha presença não será mais uma perturbação nessa harmonia do que uma vantagem.
— O que é que te parece? — inquiriu Melanie, estendendo-se ao comprido no sofá do seu quarto, completamente nua.
Ao olhar para ela, Peter deu consigo a querer possuí-la de novo. Era espantosa a forma como o seu corpo reagia na presença dela.
— Acho que não consigo pensar quando estás despida — respondeu ele.
— Comigo passa-se o mesmo — disse Melanie com uma careta risonha, indicando-lhe com um dedo que se aproximasse.
Peter fez-lhe a vontade e deitou-se ao seu lado no sofá e, momentos depois, com movimentos lentos, rolou para cima dela.
— Estou doido por ti, Mel — afirmou ele.
Ela mal conseguia respirar, tão grande era o desejo que sentia outra vez por ele.
— Também eu. — respondeu ela.
Fizeram amor uma vez mais. Ambos se esqueceram completamente dos seus problemas, sentimentos de culpa e responsabilidades, até mesmo dos filhos.
Já eram treze e trinta quando tomaram duche e se vestiram. Melanie sentia-se muito feliz quando saíram de casa e foram para a rua banhada pela luz do sol.
— Não há dúvida de que somos um casal de preguiçosos — comentou ela.
— E por que não haveríamos de ser? Trabalhamos tanto que nem sequer consigo recordar-me de alguma vez ter tido oportunidade de passar um fim-de-semana como este — retrucou Peter, dirigindo-lhe um sorriso cheio de satisfação.
— Também eu não. Se me tivesse surgido essa hipótese, sem dúvida que teria ficado cansada de mais para poder trabalhar a seguir — redargüiu Melanie por sua vez.
— Ótimo! Talvez seja preciso que eu te mantenha demasiado fatigada para poderes trabalhar, para não estares sempre a pensar na tua carreira profissional.
Melanie sentiu-se surpreendida ao ouvir aquele comentário de Peter.
— É assim que eu procedo? — perguntou, perplexa. Não se apercebera de que estava sempre a pensar no seu trabalho e perguntou a si própria o que ele teria querido dizer com aquelas palavras.
— Para dizer a verdade, não. No entanto, uma pessoa que não te conheça, não pode evitar adivinhar que tens uma outra vida, não apenas as tuas filhas, a tua casa e um marido — replicou Peter.
— Ah! — exclamou Melanie. Começava a perceber. — O que pretendes dizer é que eu não sou apenas uma dona de casa. Por acaso, incomoda-te que seja assim?
— Não — respondeu Peter, abanando a cabeça com lentidão enquanto pensava no assunto. Ambos desciam num passo vagaroso a Avenida Lexington, sem terem um destino definido em mente. Aquele era somente um dia quente de verão e sentiam-se felizes por poderem estar juntos. — Não me incomoda — continuou Peter. — Estou bastante impressionado com o teu trabalho e respeito-te. Todavia, não deixa de ser muito diferente do que se tu fosses apenas. — Interrompeu-se à procura das palavras. — Se fosses apenas uma comum mortal.
— Isso é uma treta! O que é que o meu trabalho tem de diferente? — perguntou Melanie.
— Por exemplo, se fosse possível, não poderias acompanhar-me numa viagem à Europa durante seis meses, pois não? — aventou Peter.
— Não. Acontece que o meu contrato de trabalho não desapareceria no ar sem que antes houvesse um processo judicial bastante complicado. Mas tu também não poderias fazer isso — argumentou Mel.
— Isso é muito diferente. Eu sou um homem — contrapôs ele.
— Oh, Peter! — exclamou Melanie, escandalizada. — Não passas de um machista nojento!
— Sim — aquiesceu ele, olhando para ela com orgulho. — É verdade, mas continuo a respeitar a tua carreira profissional. Desde que te mantenhas sempre tão feminina como és agora e consigas fazer todas as coisas características do teu sexo — acrescentou ele.
— O que é que pretendes dizer com isso? — de repente, Melanie sentia-se imensamente divertida com o que Peter dizia. Vindas de qualquer outra pessoa, aquelas palavras poderiam tê-la irritado, mas saídas da boca dele não tinham esse efeito. — Estás a referir-te a encerar soalhos e a fazer bolos?
— Não, estou a falar de seres uma boa mãe, teres filhos e preocupares-te com o homem da tua vida, sem colocares o teu trabalho à frente de tudo o mais — continuou ele. — Sempre me senti feliz pelo fato de a Anne não trabalhar, porque isso significava que ela estava presente quando eu necessitava dela. Incomodar-me-ia bastante se a mulher que eu amasse não pudesse proceder dessa maneira.
— Ninguém consegue estar presente em todas as situações, Peter. Nenhuma mulher, nem tão-pouco homem algum. E, se uma pessoa gosta o suficiente de alguém, a maior parte das vezes consegue arranjar as coisas de forma a suprir todas as lacunas e a estar presente sempre que tal é necessário — retorquiu Melanie. — É tudo uma questão de boa organização e de uma noção adequada das prioridades. Na maioria dos casos, sempre que as minhas filhas precisaram de mim, puderam contar comigo. Para te dizer a verdade, tal aconteceu quase sempre.
— Eu sei — disse Peter que pressentira isso desde o primeiro minuto em que se tinham conhecido. — Mas a realidade é que não tens tido vontade de proceder da mesma maneira em relação a um homem.
— Não, não tenho — concordou Melanie com toda a franqueza.
— E agora? — perguntou Peter, preocupado, como se fosse um rapazinho com medo de não encontrar a mãe.
— O que é que estás a perguntar-me Peter? — De repente fez-se silêncio entre ambos. Peter demonstrava ser o mais corajoso dos dois ao apontar um assunto tão melindroso. Queria saber qual a posição de Melanie, sem correr o risco de amedrontá-la. Talvez ainda fosse cedo de mais para fazer aquele tipo de perguntas. Ela adivinhou a sua preocupação e chegou-se mais a ele. — Não te preocupes tanto — acrescentou Mel.
— Por vezes, pergunto a mim mesmo que significado é que tudo isto tem para ti — retorquiu ele.
— O mesmo que tem para ti. É algo de maravilhoso e extraordinário que nunca me aconteceu antes — disse Melanie. — E se pretendes saber a que é que conduzirá, digo-te já que não faço a mínima idéia.
— Eu sei — retrucou Peter com um aceno de cabeça. — E também me incomoda. Acontece-me o mesmo quando estou a operar. Não me agrada improvisar, gosto sempre de saber para onde é que vou, qual o passo seguinte a dar. Sou um homem que faz planos, Mel — concluiu Peter com um sorriso.
— Também eu. Mas é impossível fazer planos a respeito deste gênero de situações.
Sorriram, mais animados.
— E por que não? — questionou ele com uma expressão brincalhona.
— O que é que pretendes? Um contrato da minha parte? — perguntou Melanie num tom jocoso.
— Claro. Um contrato em que figure esse corpo esplêndido para que possa ser meu sempre que o queira — respondeu Peter.
Deram as mãos e abanaram os braços. Melanie olhou para ele com uma expressão de felicidade.
— Estou tão contente por teres decidido ficar este fim-de-semana! — disse ela.
— Também eu — replicou Peter.
Seguiram em direção a Central Park, por onde passearam até cerca das cinco da tarde, e em seguida subiram a Quinta Avenida até ao Hotel Stanhope e sentaram-se na esplanada a tomar uma bebida. Pouco depois, percorreram os poucos quarteirões que distavam da casa de Melanie, prontos para se seqüestrarem no interior daquele lar tão acolhedor. Deitaram-se na cama e fizeram amor. Por volta das vinte horas, sentaram-se para assistir ao pôr do sol; em seguida, tomaram um duche e vestiram-se para irem jantar ao Elaine's. O restaurante estava à cunha.
Melanie chegou à conclusão de que conhecia metade das pessoas que lá se encontravam, apesar de grande parte dos seus conhecimentos terem por hábito sair da cidade no verão durante os fins-de-semana. Qualquer pessoa se apercebia que aquele ambiente fazia parte da sua vida: as pessoas célebres que ela conhecia e que a conheciam, aquela aura de fama e a atmosfera eletrizante de Nova Iorque pareciam coadunar-se com a sua pessoa. Em Los Angeles também existia um meio social semelhante àquele, mas Peter nunca quisera fazer parte dele. Estava sempre demasiado ocupado com a sua própria vida, a família e os seus doentes.
— Então, doutor, o que é que acha de Nova Iorque? — perguntou Melanie. Naquele momento caminhavam de braço dado, seguindo pela Segunda Avenida de regresso a casa dela. — Penso que te adora e que é adorada por ti — respondeu Peter.
— Imagino que tenhas razão — retorquiu Melanie com um sorriso de felicidade. — Mas acontece que eu também te adoro.
— Apesar de eu não ter o meu próprio programa na televisão, nem ser um político ou um escritor?
— Tu és melhor do que tudo isso, Peter. Tu és uma pessoa verdadeira — afirmou ela.
— Muito obrigado, mas eles também são — disse Peter, sorrindo com o elogio.
— Com eles não é a mesma coisa. Essas pessoas apenas afloram metade da minha vida, Peter. Existe uma outra parte de que jamais se aproximam — acrescentou ela. — Nunca fui capaz de encontrar alguém que pudesse compreender as duas partes da minha existência. Tanto a minha vida familiar como a profissional são igualmente importantes para mim apesar de diametralmente opostas.
— Pareces conseguir gerir ambas a contento — retorquiu Peter.
— Nem sempre é fácil — redargüiu Melanie, sorrindo e acenando com a cabeça.
— E o que é que é?
De súbito, Peter deu consigo a pensar na reação da filha quando lhe telefonara a dizer que ficaria em Nova Iorque. Suspeitava que ela o faria pagar caro por isso. Era sempre assim. Contudo, naquele momento, Melanie olhou para ele com um sorriso rasgado, enquanto seguiam para oeste na Rua Oitenta e Um em direção a sua casa. Quando chegaram, deitaram-se na cama e ficaram a conversar até às duas da madrugada.
Na manhã seguinte, foram à Tavern-on-the-Green tomar um pequeno-almoço reforçado, após o que desceram até Greenwich Village onde decorria uma feira ao ar livre. Durante os meses de verão não havia muita coisa para fazer em Nova Iorque, mas nenhum deles parecia incomodado por essa falta de atividades recreativas. Desejavam apenas estar juntos, tendo percorrido as ruas da cidade durante várias horas, enquanto falavam do seu passado, das suas vidas, das suas carreiras profissionais, dos filhos e deles próprios. Era como se cada um deles não conseguisse saciar-se do outro. Por volta das cinco da tarde, regressaram, cheios de pena, para a casa de Melanie, onde fizeram amor uma última vez. Às dezenove, apanharam um táxi para o aeroporto. De repente, o tempo começou a passar com grande celeridade. Na altura em que se despediram e se abraçaram intensamente junto da porta de embarque pareceu-lhes que haviam decorrido somente alguns momentos.
— Vou ter muitas saudades tuas — afirmou Peter, sentindo-se infinitamente grato por ter ido a Nova Iorque. Pressentia que aquela viagem alterara o curso de toda a sua vida, e deixara de se sentir assustado devido àquela transformação. Colocou um dedo sob o queixo de Melanie e encostou o rosto dela ao seu. — Prometes que vais a Aspen? — perguntou ele.
Ela sorriu a lutar contra as lágrimas que teimosamente lhe embargavam a voz e ameaçavam assomar-lhe aos olhos.
— Lá estaremos — afirmou ela, apesar de ainda não saber como é que deveria dar a novidade às filhas.
— Espero bem que sim — retorquiu Peter, abraçando-a com força e dando-lhe um último beijo, antes de entrar a bordo do avião com um aceno de despedida. Quando ele desapareceu da sua vista, Melanie sentiu que Peter levara consigo o seu coração.
A viagem que Melanie fez naquela noite foi longa e solitária. Quando chegou à casa em Chilmark já passava da meia-noite, tendo encontrado toda a gente mergulhada num sono profundo. Sentiu-se aliviada por ninguém estar em pé. Não existia uma única alma no mundo com quem ela desejasse falar naquele momento, com a exceção de Peter Hallam, e ele continuava a bordo de um avião com destino a Los Angeles.
Melanie deixou-se ficar sentada no alpendre da casa durante muito tempo, a ouvir o som que vinha do oceano e sentindo a brisa ligeira que lhe acariciava as faces. O fato de se encontrar sentada ali proporcionava-lhe uma sensação maravilhosa de paz e de tranqüilidade; sentia uma grande tristeza por Peter não poder ter estado ali junto de si. Mas, de momento, talvez isso fosse preferível. Ambos tinham necessidade de estar sozinhos. A perspectiva de se encontrarem com os filhos em Aspen constituía por si só um desafio suficiente. Melanie ainda não decidira como e quando informaria as filhas daquela viagem.
No entanto, na manhã seguinte durante o pequeno-almoço chegou à conclusão de que seria mais acertado dar-lhes todo o tempo possível para que se fossem habituando à idéia. Nunca haviam deixado a casa a meio do verão durante os meses de férias; pelo que ela sabia de antemão que as gêmeas iriam achar aquela viagem bastante estranha. Mais do que isso, iriam pensar que tudo aquilo era suspeito.
— Aspen?! — exclamou Jessica, olhando para a mãe com uma expressão de grande perplexidade. — Por que motivo é que haveremos de ir a Aspen?
Melanie tentou mostrar-se desinteressada, não obstante o seu coração ter começado a bater mais depressa. Por um lado, porque as filhas estavam a colocá-la numa situação desconfortável e, por outro, porque se encontrava prestes a dizer uma mentira.
— Porque foi um convite que me entusiasmou bastante, e nunca lá fomos — justificou-se Melanie.
Raquel sorria a caminho da cozinha para ir buscar mais melaço para as panquecas, e Val ficou a olhar para a mãe com uma expressão horrorizada.
— Mas nós não podemos sair daqui! — protestou a filha. — Tudo o que tem interesse acontece aqui e, além disso, não conhecemos ninguém em Aspen.
Melanie fitou Valerie com uma expressão bastante calma.
Seria mais fácil convencê-la a aceitar a viagem do que à irmã.
— Não te preocupes, Val. Em Aspen também existem rapazes — garantiu a mãe.
— Mas é muito diferente. Além de que conhecemos toda a gente aqui! — retorquiu Valerie, parecendo estar prestes a chorar.
No entanto, Melanie conseguiu manter uma atitude de firmeza.
— Estou convencida de que nós não devemos desperdiçar esta oportunidade. — Ou teria ela querido dizer eu?
Sentia-se culpada por ocultar a verdade das filhas.
— Por que? — perguntou Jessica, decidindo intervir na conversa. Observava todos os movimentos da mãe. — O que é que há de especial em Aspen?
— Nada... Quero dizer... Oh, por amor de Deus Jess, pára de te comportar como se fosses uma comissão de inquérito! Trata-se de um lugar maravilhoso, as montanhas são fabulosas e existem montes de rapazes e raparigas da vossa idade, além de inúmeras atividades, como por exemplo passeios pelas montanhas, equitação, pesca, montanhismo...
— Que grande porcaria!!! — exclamou Valerie com desdém, interrompendo a mãe. — Odeio tudo isso!
— Será bom para vocês — contrapôs Melanie.
Mostrando mais uma vez o seu sentido prático, Jessica interveio.
— Mas isso significa que vamos perder parte do verão aqui, e nós alugamos a casa por dois meses.
— Só estaremos ausentes durante uma quinzena. O que significa que ainda nos restarão seis semanas para passarmos aqui — argumentou a mãe.
— Continuo sem compreender — continuou Jessica, levantando-se da mesa com uma irritação evidente.
Por seu lado, Valerie desatou a chorar e foi a correr para o seu quarto.
— Recuso-me a ir! — gritou ela. — Este é o melhor verão que eu estou a passar aqui e tu estás a tentar destruí-lo!!!
— Eu estou apenas a tentar... — ia Melanie a dizer, mas a porta do quarto da filha bateu com estrondo antes de ela ter tempo de terminar a frase. Olhou para Raquel com uma irritação indisfarçável, enquanto esta levantava a mesa.
— O caso deve ser sério — comentou a governanta, abanando a cabeça com um semblante de quem compreendia tudo o que estava a acontecer.
Melanie levantou-se com modos bruscos, emitindo um resmungo acompanhado de uma expressão agastada.
— Oh, por amor de Deus, Raquel!
— Está bem, está bem! Não me conte nada. Mas espere para ver, daqui a seis meses já estará casada. Nunca a vi disposta a interromper as férias na ilha — replicou a governanta.
— Esta viagem será fabulosa — argumentou Melanie a tentar convencer todos, incluindo ela própria, e desejando que aquela conversa tivesse sido mais fácil.
— Eu sei — redargüiu Raquel. — E quanto a mim? Eu também tenho de ir? — perguntou ela sem parecer mais entusiasmada do que as gêmeas.
— Porque não tira as suas férias nessa altura, em lugar de esperar até ao fim do verão?
— É uma boa sugestão — concordou a governanta.
Pelo menos aquela era uma preocupação a menos. Valerie não saiu do quarto durante duas horas, após o que apareceu com os olhos e o nariz vermelhos, para se ir encontrar com as amigas e amigos na praia; era óbvio que não tencionava falar com a mãe.
Trinta minutos mais tarde, Jessica foi ter com a mãe, que se encontrava no alpendre a responder a algumas cartas. Sentou-se nos degraus, perto dos pés de Melanie e ficou à espera que esta erguesse o olhar da carta que escrevia no momento.
— Mamãe, diz-me porque é que decidiste ir a Aspen — pediu ela, olhando diretamente para a mãe, ao ponto de esta achar difícil não lhe contar a verdade, que seria: “Porque me apaixonei por um homem que costuma passar o Verão em Aspen.”
— Pensei que seria uma mudança agradável para todos nós, Jess — retorquiu ela em vez de confessar a verdade e evitando olhar para a filha, o que a impediu de ver como esta a fitava atentamente sem perder o mínimo gesto.
— Existirá, por acaso, outra razão? — insistiu Jessica.
— Como por exemplo? — retrucou Melanie, tentando ganhar tempo e colocando a caneta sobre o papel de carta.
— Não sei. O certo é que não consigo compreender o que é que te levou a decidir ir a Aspen — continuou a filha.
— Fomos convidadas por uns amigos — explicou a mãe a pensar que aquilo pelo menos era uma meia verdade. Mas a realidade era que aquele assunto se estava a tornar tão difícil como ela receara e, se Peter pensava que era mais fácil abordá-lo com os seus próprios filhos, então estava completamente louco.
— Quais amigos? — continuou Jessica a olhar para a mãe com mais atenção.
Melanie respirou fundo antes de responder. Dentro em pouco, haveria de chegar à conclusão que não valia a pena mentir à filha.
— Trata-se de um homem que se chama Peter Hallam e os filhos dele — respondeu Melanie.
— Estás a referir-te ao médico que entrevistaste quando foste à Califórnia?! — inquiriu a filha, mostrando-se chocada. A mãe respondeu afirmativamente com um aceno de cabeça. — Por que motivo é que ele haveria de nos convidar a ir a Aspen?
— Porque ambos estamos sozinhos com os nossos filhos, além de que foi muito agradável entrevistá-lo e ficamos bons amigos. Ele tem três filhos mais ou menos da vossa idade.
— E o que é que isso tem? — contestou Jessica com uma expressão de grande desconfiança perante os argumentos que a mãe apresentava.
— Pensei que poderia ser divertido — justificou Mel.
— Para quem? — continuou Jessica sem desarmar.
Touché! Estava furiosa, e Melanie sentiu-se invadida por uma grande fadiga. Talvez fosse uma estupidez insistir com as filhas para que fizessem aquela viagem.
— Olha Jess, não quero discutir este assunto contigo. Nós vamos e não há mais nada a dizer quanto a este assunto!
— Mas o que é isto?! — exclamou a filha, pondo-se de pé, com as mãos na cintura numa atitude de desafio, a olhar para a mãe com determinação. — Uma ditadura ou uma democracia?
— Podes chamar-lhe aquilo que mais te aprouver. Dentro de três semanas iremos para Aspen, quer vos agrade quer não. Espero bem que se divirtam. Se não for esse o caso, só têm a considerar que perderam duas semanas de um verão bastante longo e agradável. Permite-me que te recorde — acrescentou Melanie — que vais passar aqui uma temporada bastante agradável em que poderás fazer, tu e a tua irmã, tudo o que vos der na real gana durante quase dois meses, e, para culminar, tu e ela vão ter uma festa de anos na próxima semana que, deixa que te diga, será bastante requintada. Não me parece que tenham muitos motivos para se queixarem.
Infelizmente, Jessica não mostrou ser da mesma opinião e afastou-se com modos desabridos e a resmungar de indignação, sem dirigir mais qualquer palavra à mãe.
Ao longo das duas semanas seguintes, a situação não registrou grandes melhorias, apesar da mariscada que teve lugar na praia, por ocasião da festa de aniversário dos dezesseis anos das gêmeas, e para a qual foram convidados setenta e cinco amigos e amigas de ambas. Foi uma festa maravilhosa e toda a gente se divertiu bastante, o que fez com que tanto Jessica como Valerie ficassem ainda mais ressentidas por serem obrigadas a ter de partir na semana seguinte. Naquela altura, Melanie já estava farta de ouvi-las a reclamarem constantemente.
— E quanto a ti, meu amor? — perguntou ela uma noite em que se encontrava estendida sobre a cama a falar com Peter ao telefone. Continuavam a falar-se duas vezes todos os dias e, a julgar pelo teor das conversas, morriam de saudades um pelo outro, apesar dos problemas provocados pelos respectivos filhos.
— Ainda não lhes disse — respondeu Peter. — Há muito tempo para isso.
— Estás a brincar? É já na semana que vem — retorquiu Melanie, agastada. Havia duas semanas que ela se sentia pressionada psicologicamente pelas filhas e ele nem sequer tinha ainda começado a abordar o assunto com os filhos.
— É preciso encarar isto com alguma despreocupação — continuou Peter, mostrando-se extremamente desinteressado, o que levou Melanie a pensar que ele era doido ao proceder daquela maneira.
— Peter, tens de dar-lhes tempo para se habituarem à idéia de que vamos ter convosco. Caso contrário, os teus filhos vão ter uma enorme surpresa e o mais provável é virem a sentir-se muito ressentidos contigo.
— Não vai haver qualquer problema com eles. Agora, diz-me como é que tens passado — pediu ele, mudando de assunto.
Melanie contou-lhe o que tinha feito e Peter descreveu-lhe uma nova técnica de cirurgia que havia utilizado naquela manhã. Marie encontrava-se de excelente saúde, apesar de se ter verificado um contratempo de somenos importância, estando previsto que tivesse alta do hospital dentro de alguns dias, mais tarde do que inicialmente se previra, mas muito animada.
— Mal posso esperar por voltar a ver-te, meu amor — afirmou Melanie.
— Também eu — retorquiu Peter, esboçando um sorriso perante aquela perspectiva. Continuaram a conversar de trivialidades durante mais algum tempo. Porém, passados quatro dias, ele não sorria ao enfrentar Pamela.
— O que é que pretende dizer com isso de este ano ter convidado amigos a irem a Aspen? — perguntou a filha com o rosto lívido, sentada à mesa do jantar de frente para o pai.
Na noite anterior, este informara Mark de uma maneira casual, quando ele se preparava para sair. Não obstante o filho ter mostrado uma expressão de perplexidade, não tivera tempo para discutir o assunto com maior minúcia. Peter tencionava dizer a Matthew depois de ter falado com Pam. Mas esta mostrava-se tão furiosa que parecia prestes a sair pelo telhado, enquanto olhava para o pai.
— Mas de que amigos é que está a falar?!
— De uma família que eu pensei que fosse do teu agrado — respondeu Peter a sentir a transpiração a escorrer-lhe pelas faces, irritado consigo mesmo por se deixar afetar daquela maneira. Por que é que permitia que a filha o pusesse tão nervoso? — Além de que vão duas raparigas quase da tua idade — acrescentou Peter, que tentava ganhar tempo, e ambos sabiam que assim era. No entanto, sentia-se aterrorizado por ter de dizer à filha que se tratava de Melanie. E se ela mergulhasse de novo numa grande depressão.
— Com que idade? — quis saber Pam.
— Têm dezesseis anos — respondeu ele, mas as esperanças que até então albergara de que tudo iria resolver-se pelo melhor, foram por água abaixo.
— O mais provável é serem umas estúpidas que não vão querer andar comigo por ser mais nova do que elas — retorquiu a filha.
— Duvido que seja assim — assegurou o pai.
— Não quero ir — declarou a rapariga, obstinada.
— Pam. Por amor de Deus!
— Tenciono ficar aqui com Mistress Hahn — interrompeu ela, decidida a não ceder um milímetro.
— Ela vai de férias nessa altura — argumentou Peter.
— Nesse caso, irei com ela. Não vou para Aspen consigo, a não ser que se livre dessa gente. Afinal quem é que são essas pessoas?
— A Melanie Adams e as gêmeas — respondeu o pai.
Tinha de ser revelado.
A reação de Pamela foi arregalar os olhos, exprimindo assim a sua perplexidade.
— Ela? Recuso-me a ir! — declarou, peremptória.
Houve qualquer coisa na maneira como a filha falou que finalmente afetou Peter e, antes de ser capaz de se controlar, bateu na mesa com o punho fechado, empregando toda a sua força.
— Tu fazes aquilo que eu te disser. Estás a compreender? E, se eu te digo que vais para Aspen, é exatamente isso o que farás! Percebeste? — contrapôs ele com irritação.
Pamela, sem oferecer qualquer comentário, agarrou no prato vazio, arremessou-o contra a parede e saiu a correr da sala de jantar. O pai observou-a, sentindo-se impotente para fazer fosse o que fosse. Se Anne continuasse viva, tê-la-ia obrigado a voltar à sala para limpar a porcaria que havia feito, mas Peter não tinha coragem de proceder daquela maneira. A filha era uma criança sem mãe. Deixou-se ficar sentado na sala de jantar, a olhar fixamente para o prato. Algum tempo depois, dirigiu-se para o escritório e fechou-se por dentro. Foi-lhe preciso meia hora para arranjar coragem para telefonar a Melanie. Tinha necessidade de ouvir a voz dela, mas não lhe disse nada do que se passara entre si e a filha.
Na manhã seguinte, Pam não desceu para o pequeno-almoço, e Matthew interrogou o pai com um olhar inquiridor. Tinha regressado de casa da avó no dia anterior depois do jantar.
— Quem é que vai conosco para Aspen, papai? — perguntou o garoto.
Com uma expressão de beligerância, Peter olhou de frente para o filho.
— Mistress Adams. A senhora que jantou aqui conosco uma noite. As filhas também vão — respondeu ele enquanto se preparava para o pior, uma vez que fora isso que acontecera anteriormente. Mas, para sua grande surpresa, Matthew explodiu numa demonstração de alegria ao ouvir as notícias.
— Ela vai! Que bom! Quando é que ela chega? — perguntou o pequenito, todo satisfeito.
Peter começou enfim a descontrair-se e sorriu, olhando para o seu filho mais novo com um alívio evidente. Graças a Deus que um deles mostrava uma atitude positiva. Continuava a desconhecer qual a opinião de Mark, mas o mais provável seria o filho mais velho comportar-se nos mesmos moldes estranhos de Pamela, pensava Peter, apesar de bem no fundo estar convencido de que tal seria pouco plausível. Naquela altura, Mark encontrava-se demasiado envolvido na sua própria vida para causar problemas.
— Ela vai ter conosco a Aspen, Matt, juntamente com as filhas — acrescentou Peter.
— Mas que bom! Por que é que ela não vem para cá e assim podíamos ir todos no mesmo avião? — perguntou Matthew.
— Ir de avião para onde? — perguntou Mark, que entrara na sala com um rosto ensonado.
Na noite anterior, deitara-se tarde, e naquele momento tinha de se despachar para ir trabalhar, mas estava cheio de fome. Já tinha pedido a Mrs. Hahn que lhe preparasse ovos estrelados, toucinho fumado, torradas, sumo de laranja e café.
— Estávamos a falar sobre a nossa ida para Aspen — respondeu Peter, olhando para o filho com a expressão de quem se encontrava na defensiva, à espera da explosão de fúria que provavelmente viria a seguir. — O Matthew dizia que achava melhor que a Melanie Adams e as filhas se encontrassem aqui conosco — continuou ele, sem obter qualquer reação por parte do filho mais velho, pelo que dirigiu a sua atenção para Matthew. — Mas acontece que elas vêm da Costa Leste. Portanto, é mais fácil apanharem um avião até Denver, de onde seguirão para Aspen.
— São giras? — perguntou Mark.
— Quem? — retrucou Peter com uma expressão abstrata.
Naquela altura não se encontrava capaz de acompanhar os filhos a cem por cento; continuando a sentir-se enervado pela reação que Pam tivera durante o jantar do dia anterior. Esta ainda não se tinha decidido a sair do quarto; ao tentar abrir a porta, Peter tinha verificado que estava fechada à chave. Apesar de tê-la chamado não obtivera qualquer resposta. Decidira então que o melhor seria deixar a filha sozinha durante o dia dando-lhe tempo para se acalmar. Naquela noite, depois de regressar do hospital, falaria com ela.
— Estou a perguntar se as filhas são giras — insistiu Mark a olhar para o pai com a expressão de quem pensava que ele era uma pessoa extremamente estúpida, o que fez com que Peter se recostasse para trás na cadeira e começasse a rir-se, no momento em que um repasto digno de Gargântua chegava à mesa.
— Deus do céu, para quem é isso tudo? — perguntou Peter, admirado.
— Para mim. Muito bem. São ou não?
— São o que? Oh, oh, desculpa! Não sei — respondeu por fim o pai. — Deduzo que sim. Ela é uma mulher muito bem-parecida, o que me leva a concluir que as filhas também o sejam.
— Humm. — resmungou Mark, hesitante entre devotar toda a sua atenção ao pequeno-almoço e falar sobre as filhas de Melanie. — Espero bem que não sejam muito feias.
— Tu és um idiota! — disse-lhe o irmão mais novo com um ar desdenhoso. — O mais certo é serem uns borrachos.
Naquele ponto da conversa, Peter levantou-se da mesa com um sorriso rasgado.
— Meus senhores, desejo que passem um muito bom dia — disse o pai. — Se por acaso virem a vossa irmã, digam-lhe que gosto muito dela. Até logo à noite. Mark, tencionas estar em casa esta noite quando eu chegar?
O filho mais velho acenou com a cabeça enquanto tragava metade de uma fatia de pão torrado. Peter não tirava os olhos do relógio, preocupado por poder chegar ainda mais atrasado ao trabalho do que já estava.
— Acho que sim, pai — respondeu Mark.
— Não te esqueças de dizer a Mistress Hahn quais são os teus planos — retorquiu Peter.
— Não me esqueço — replicou o filho.
Com aquelas palavras, Peter saiu de casa, seguindo para o hospital, a fim de fazer a ronda aos seus doentes. Naquela manhã não tinha marcada qualquer intervenção cirúrgica. Havia sido convocada uma reunião extraordinária onde seriam discutidas as técnicas operatórias mais recentes, entre as quais a última de Peter, que ele explicou até o mais ínfimo pormenor a Melanie naquela mesma tarde, quando lhe telefonou. Depois de ter concluído aquele assunto, decidiu ser franco para com ela acerca da reação de Pamela quanto ao assunto da estada em Aspen.
— Tenho a certeza de que ela irá superar o problema — afirmou ele. — Na minha opinião, a Pam deve estar a sentir que esta situação é bastante ameaçadora.
— Continuas a querer que eu vá com as minhas filhas passar duas semanas convosco? — perguntou Melanie.
— Estás a brincar? — redargüiu Peter, horrorizado por ela ter feito aquela pergunta. — Nem sequer consideraria a idéia de ir se tu não fosses. E a respeito da tua ninhada: estão a ajustar-se à idéia da viagem?
— De muito má vontade — respondeu Mel.
A reação despreocupada que ele esperara havia-se desvanecido no ar. Melanie tivera toda a razão, pelo menos no que dizia respeito a Pam.
— O Matt está todo entusiasmado, e receio bem que o Mark já esteja a pensar nas gêmeas com demasiada ansiedade. Mas ele é inofensivo.
— Não me digas isso! — exclamou Melanie com uma gargalhada. — Espera até conheceres a Val!
— É impossível que ela seja tão exótica como tu dizes! — retorquiu ele.
Melanie falava constantemente da figura voluptuosa da filha e da atração que ela despertava. O mais provável seria ela ver a filha a partir de uma perspectiva pouco objetiva, na sua qualidade de mãe.
— Peter! — exclamou Melanie num tom de voz firme. — A Valerie não é exótica. Ela é pura e simplesmente sensual. É melhor começares a pôr imediatamente nitrato de potássio na comida do Mark.
— Pobre rapaz. Eu acho que ele ainda é virgem e esforça-se até mais não poder para alterar essa situação — continuou ele. — No mês que vem faz dezoito anos e começa a freqüentar a faculdade em setembro. A última coisa que ele quer é continuar a ser virgem.
— Pois bem, diz-lhe que pratique noutra rapariga qualquer sem ser a minha filha — acrescentou Melanie.
— Está combinado, desde que eu possa praticar com a mãe dela — disse Peter. Ambos começaram a rir. Sentiam-se ansiosos pelo dia em que se encontrariam em Aspen, apesar de todos os problemas que os filhos levantavam.
— Achas que vamos conseguir sobreviver, Peter? — inquiriu Melanie.
— Não tenho a mínima dúvida de que seremos capazes, meu amor. Vamos passar duas semanas muito agradáveis.
— Parece-te que a Pam conseguirá ultrapassar a sua má vontade? — perguntou ela.
— Tenho a certeza que sim. Temos de pensar também em nós próprios. Amo-te, Mel — confessou Peter.
Melanie respondeu dentro das mesmas linhas, após o que, finalmente, desligaram o telefone.
No entanto, o diagnóstico que Peter fizera parecia ser um tudo-nada otimista, tal como se veio a verificar alguns dias mais tarde, já no aeroporto de Los Angeles, quando entraram a bordo do avião que haveria de os levar a Denver.
— Vamos lá, minha resmungona, está na hora de embarcar — incitou Mark, que achava a irmã insuportável quando se decidia a embirrar, como tinha vindo a fazer ao longo dos últimos dias. Pamela nem sequer dirigia a palavra ao pai. — As férias contigo vão ser muito agradáveis, não é verdade? — perguntou o irmão com ironia.
— Vai bugiar! — respondeu ela, falando num tom de voz que faria eriçar os pêlos de qualquer pessoa. Mark tinha ar de quem desejava dar-lhe uma sova.
— Vamos lá, vocês os dois! — interveio Peter, tentando apaziguar os ânimos.
Usava umas calças de algodão, uma camisa axadrezada, um pulôver vermelho por cima dos ombros e levava uma pequena mochila. Numa das mãos tinha o cartão de embarque de todos eles e dava a outra a Matthew. O pequenito estava tão bem disposto que compensava o mau feitio de Pam, a qual se sentou no avião longe da família assim que entraram a bordo. Os três homens ficaram ao lado uns dos outros, com Matthew junto da pequena janela do aparelho, o que lhe permitia ver a paisagem, enquanto Peter se sentou no lugar da coxia para poder vigiar a filha, embora esta tivesse virado ostensivamente o rosto para o lado oposto. Pam olhou fixamente através da janela, durante a primeira metade do percurso, após o que começou a ler um livro até que o almoço foi servido. Limitou-se a petiscar a comida até o tabuleiro ser levantado. Peter tentava ocultar a preocupação que sentia. Um pouco mais tarde, quando ofereceu as guloseimas que trouxera para os filhos, também ofereceu algumas à filha, que recusou sem sequer olhar para o pai.
— Ela está a ser uma idiota, papai — comentou Mark em voz baixa antes de aterrarem em Denver.
— Ela há de mudar de atitude — retorquiu Peter. — As filhas da Melanie irão distraí-la. O mais provável é a tua irmã estar a sentir-se ameaçada, porque durante algum tempo não poderá representar o papel da rainha. Está habituada a ser a única rapariga entre nós os três, e agora se vê forçada a encarar a perspectiva da chegada de mais três. De início, isso não pode deixar de ser um choque para ela.
— Ela gosta muito é de levar sempre a sua avante. Em especial desde que a mamãe morreu — continuou Mark, olhando com reprovação para o pai. — A mamãe jamais consentiria que ela se comportasse desta maneira.
— Talvez não — admitiu Peter. Mas o fato era que até aquela reprovação o magoava. Tentava dar o seu melhor, mas por que motivo é que os filhos pensavam sempre que Anne teria agido de maneira mais adequada?
Naquele momento, Matthew exigia a atenção do pai; começara a aterragem. Tiveram de correr a fim de conseguirem apanhar o vôo de ligação para Aspen. Era uma viagem curta e um pouco atribulada, feita por cima das montanhas. Pouco depois, o piloto efetuou uma aterragem espetacular, descendo por entre as montanhas até tocar no pequeníssimo aeroporto apinhado de jatos Lear, além de outros pequenos aparelhos particulares.
Aspen era um pólo magnético para as pessoas muito ricas e para um outro grupo de gente mais variado e interessante. Parecia haver de tudo naquela estância de esqui, assim como toda a espécie de pessoas, razão essa que fazia com que Peter gostasse de lá ir. Tratava-se de uma das muitas tradições que havia partilhado com Anne e que continuava a manter, uma vez que ambos tinham vivido muitos momentos felizes durante as férias ali passadas, quer de verão, quer de inverno.
— Já chegamos! — exclamou Peter numa voz cheia de alegria, depois de os quatro terem desembarcado e alugado um automóvel no aeroporto para se dirigirem ao apartamento, que em nada se diferenciava dos que haviam alugado nos últimos cinco anos. Daquela vez, parecera-lhes que tinha chegado a altura de mudarem, e até mesmo Pam se mostrava mais entusiasmada à medida que se aproximavam da cidade. Como de costume, tudo se mantinha na mesma, incluindo o cenário espetacular das montanhas. Tiveram apenas tempo para desfazer as malas, instalar-se e ir ao supermercado comprar comida antes de Peter ter de seguir para o aeroporto, onde aguardaria pelo avião em que vinha Melanie. Olhou para os filhos enquanto tiravam a comida dos sacos, antes de se ir embora, fez um dos seus convites aparentemente casuais.
— Alguém quer vir comigo?
— Eu vou — respondeu Mark, largando sem mais demora tudo o que estava a fazer para ir calçar os sapatos, dado que se encontrava descalço.
Vestia uns calções de caqui e uma camisola de algodão vermelho de manga curta. Com os seus cabelos mais louros devido ao sol de Los Angeles e a pele bronzeada, até Peter era forçado a reconhecer que o rapaz era extraordinariamente bem-parecido. As gêmeas de Melanie iriam derreter-se e, se o não fizessem, então isso significaria que havia algo de errado com ambas, pensou ele para si mesmo enquanto fazia uma careta risonha, sentindo-se deveras orgulhoso do filho mais velho.
— Eu também quero ir — disse Matthew numa voz esganiçada, agarrando na sua arma especial favorita.
— Precisas dessa coisa? — perguntou o pai a olhar de relance para a arma que, quando em funcionamento, fazia uma barulheira que dava consigo em doido.
— É evidente que sim — respondeu o filho mais novo. — Podemos ser invadidos por criaturas vindas do espaço.
— E essas criaturas vêm a bordo do próximo vôo — interveio Pamela, sem papas na língua, perante o olhar de espanto de Peter.
— Já chega! De fato. — continuou ele, olhando com irritação para a filha. — Acho que também devias vir. Nós somos uma família e como tal fazemos as coisas em conjunto.
— Mas que comovente! — exclamou a rapariga, da cozinha, com a atitude de quem não tencionava arredar pé. — Parece-me que prefiro ficar por aqui.
— Anda lá, cara de parva — atalhou Mark enquanto empurrava a irmã na direção da porta, a qual por sua vez começou a empurrá-lo.
— Raios! — gritou Peter. — Exijo que te portes como deve ser!
Pam acalmou-se ao ouvir o pai a gritar. Finalmente, os quatro meteram-se no automóvel e seguiram para o aeroporto em silêncio. Pelo caminho, ele ia preocupado a pensar no que Pam pudesse dizer a Melanie e às filhas. Apesar dos seus receios, assim que viu Mel a sair do avião, só conseguia pensar no quanto a amava e quão desesperadamente desejava tê-la nos seus braços. Contudo, em frente dos filhos ambos seriam forçados a dominar-se. Ela aproximou-se dele com os cabelos presos num rabo-de-cavalo pouco apertado e um chapéu de palha que lhe resguardava os olhos dos raios solares; usava um bonito vestido bege de linho e calçava sandálias.
— É bom ver-te de novo, Mel — saudou Peter, agarrando-lhe na mão enquanto os filhos os observavam atentamente.
Melanie deu-lhe um beijo fugaz no rosto, após o que concentrou de imediato a sua atenção nos filhos de Peter. Fora-lhe necessário todo o seu poder de concentração para não o beijar em cheio nos lábios.
— Olá, Pam, que bom ver-te outra vez! — saudou Melanie, tocando-lhe ao de leve no ombro e baixando-se para dar um beijo a Matthew, o qual lhe lançou os braços à volta do pescoço. Por último, voltou-se para Mark para cumprimentá-lo, mas este olhava com fixidez para uma mulher jovem que se encontrava atrás dela. — Permitam que vos apresente as minhas filhas. Esta é a Jessica. — Era fácil ver que eram mãe e filha, devido aos cabelos vermelhos comuns em ambas; no entanto, tinha sido a outra gêmea quem despertara a atenção de Mark. — E esta é a Valerie — acrescentou Melanie.
As gêmeas cumprimentaram-no sem grandes efusões, após o que a mãe as apresentou a Peter, o qual tentava controlar-se para não desatar às gargalhadas. O seu filho mais velho parecia que estava prestes a desmaiar aos pés de Valerie. Quando os dois foram recolher as bagagens, Peter olhou para Melanie com um sorriso rasgado, enquanto abanava a cabeça.
— Tinhas razão, e nem sequer sei se o nitrato de potássio teria feito alguma diferença. — A rapariga tinha um ar muito sedutor, que era realçado pela sua aparência tão cheia de frescura e de ingenuidade. — Devias mantê-la fechada em casa, Mel — afirmou Peter.
— Eu tento, meu amor, eu tento — retorquiu ela, voltando-se para ele. — E tu, como é que estás? A viagem foi boa?
— Ótima.
— Como é que está a Pam? — perguntou Melanie, observando a jovem pelo canto do olho; reparou que Jessica falava com ela e, por seu lado, o pequeno Matt não despregava os olhos de Valerie, com uma expressão de franca adoração no rosto. — Atrevo-me a dizer que nem tudo vai correr mal.
Val e Mark travavam um animado diálogo, e Pam respondia a Jess, enquanto esta agarrava na pequena mão de Matthew e admirava a pistola espacial entre pausas na conversa que mantinha com a irmã.
— São bons miúdos, o que em princípio contribuirá para facilitar a nossa estada.
— O mesmo se aplica à mãe — retorquiu Peter.
— Amo-te — disse Mel, desenhando as palavras com os lábios, numa altura em que tinha as costas voltadas para as filhas.
Peter sentiu uma vontade enorme de tomá-la nos seus braços.
— Também eu te amo — segredou ele junto ao ouvido de Melanie.
Entretanto, chegou um bagageiro que os ajudou a levar as malas. Era uma vantagem ele ter alugado uma pequena furgoneta fechada. Ao todo, as duas famílias formavam um grupo de sete pessoas, além da bagagem das Adams, pelo que a viatura ia cheia até ao tejadilho no caminho de regresso ao apartamento. Toda a gente falava ao mesmo tempo, e até mesmo Pamela parecia estar à sair da sua concha aos poucos, com Jessica a dedicar-lhe toda a sua atenção.
Pam nem objetou com a veemência que Peter temera quando começou a explicar onde é que cada um iria dormir. Pam, Jess e Val partilhariam o quarto que tinha dois beliches. Seria um pouco apertado, mas elas não pareceram incomodadas com isso. Naquela altura, Pam estava mesmo a rir-se devido a uma piada qualquer que Jessica lhe dissera. Os dois rapazes dormiriam no mesmo quarto em camas separadas, enquanto Melanie e Peter ficariam nos dois quartos menores, com camas de solteiro. Habitualmente, os filhos deste ocupavam cada um o seu quarto; no entanto, naquele ano fora necessário um pouco de imaginação criativa para que todos pudessem ficar alojados a contento, tendo os adultos direito a um quarto para cada um, o que era um aspecto crucial naquela primeira estada, em que se encontravam acompanhados dos respectivos filhos.
— Já está toda a gente instalada?
— Estamos muito bem — apressou-se Valerie a responder lançando um olhar de admiração na direção de Peter, tendo segredado à mãe mais tarde: — Ele é giro. — Aquela observação fez com que ela soltasse uma gargalhada. Infelizmente, era óbvio que Val também tinha a mesma opinião acerca de Mark.
Mel tivera o cuidado de avisá-la antecipadamente que um novo romance só serviria para complicar a vida de toda a gente ao longo das próximas duas semanas. Obediente, Valerie tinha concordado quando ainda iam a caminho de Denver, mas nessa noite, quando preparavam o jantar e ela e Mark ficaram a tratar da salada e das batatas assadas, Melanie começou a perder as esperanças de pôr um travão num romance que se desenhava ao longe. Esperava apenas que ambos se fartassem um do outro durante os quinze dias mais próximos. Valerie não era famosa pela duração dos seus romances, tal como Jessica fizera notar à mãe com uma gargalhada quando se sentaram junto da lareira depois de ter ajudado Pam a deitar Matthew. Jessica parecia compreender o que Pamela sentia.
— Não me parece que o Mark tenha pestanejado desde que vocês as duas chegaram aqui — comentou Peter com um sorriso rasgado, grato pelo esforço que Jessica fazia por pôr a sua filha mais à vontade.
A jovem parecia ser uma rapariga muito especial e, naquele momento, Peter começou a recordar-se de tudo o que Melanie lhe contara sobre ela. Era curioso conhecê-las depois de tudo o que ouvira, mas tanto uma como a outra se aproximavam bastante da descrição que Melanie fizera delas especialmente Valerie, a qual se poderia muito bem imaginar na página dupla central da Playboy, em vez de no último ano do liceu. Não obstante o seu corpo espetacular, Val era muito inocente.
— Ouvi dizer que queres estudar Medicina, Jess — comentou Peter.
Os olhos da jovem brilharam ao passo que Pam mostrava uma expressão de aborrecimento.
— Que nojento! — exclamou esta.
— Eu sei — retorquiu a Jessica, tentando apaziguar Pamela. — Toda a gente acha o mesmo. A especialidade que eu pretendo é ginecologia ou pediatria.
— São especializações muito boas, mas exigem bastante do médico — adiantou Peter.
— Eu quero ser modelo — anunciou Pamela por sua vez, com uma pose de indiferença.
Aquela atitude fez assomar um sorriso aos lábios de Jessica.
— Eu também não me importava, mas não sou tão bonita como tu. — Não era verdade, mas ela acreditava piamente que assim era. Vivia a demasiado tempo à sombra de Valerie.
— Tu podes vir a ser tudo o que quiseres, Jessica — interveio a mãe que continuava sentada junto da lareira, descontraída e feliz por estar de novo na companhia de Peter. Parecia-lhe que haviam decorrido mil anos desde a última vez que o tinha visto.
— Alguém quer ir dar um passeio? — sugeriu Mark entrando na sala. Depois de ter insistido durante algum tempo, todos eles concordaram, com a exceção de Matthew, que j estava deitado e dormia profundamente.
— Não há problema por ele ficar em casa sozinho? — perguntou Melanie com uma certa preocupação.
Peter acenou com a cabeça, esboçando um sorriso.
— Ele fica bem. O Matt dorme que nem uma pedra. O ar da montanha tem esse efeito nele. A Anne até costumava dizer... — interrompeu-se a meio da frase, visivelmente pálido.
Melanie estremeceu. Era uma sensação estranha estar a seguir as pisadas de Anne; encontrava-se ali com os filhos dela. Perguntou a si mesma se aquilo afetaria Pam, tomando nota mentalmente para não se esquecer de tentar conversar com a jovem, enquanto passeavam e desfrutavam do ar fresco da montanha. No entanto, Pamela parecia muito mais interessada em tagarelar com Jessica. Durante cerca de trinta minutos passearam divididos em três casais que pareciam entender-se bem: Valerie e Mark, Jessica e Pamela e Melanie e Peter.
— Estás a ver? Tudo se resolve a contento, não é verdade? — comentou Peter com uma expressão altiva, que fez com que Melanie começasse a rir.
— Não comeces já a cantar vitória. Ainda agora chegamos — disse ela.
— Não sejas parva. O que é que poderia vir a acontecer?
Ela fingiu proteger a cabeça da ira dos deuses e olhou de relance para Peter.
— Estás a brincar? Qualquer coisa. Esperemos apenas que não se cometam assassínios, que não haja ossos partidos ou gravidezes indesejadas quando esta pequena aventura chegar ao seu termo.
— Tu és tão otimista! — troçou Peter, puxando-a para detrás de uma árvore para lhe dar um beijo fugaz, sem serem observados pelas crianças.
Quando recomeçaram o passeio, os dois riam-se à socapa. Era agradável poderem estarem juntos uma vez mais. Além disso, existia algo que lhes provocava uma grande satisfação: o fato de verem os filhos todos juntos, a despeito de todos os horrores que Melanie profetizara.
Finalmente, regressaram ao apartamento, sentindo-se felizes e descontraídos, embora fatigados da viagem e da ambientação ao local. Cada um foi para o quarto que lhe havia sido destinado; todos tinham uma casa de banho individual, o que evitava uma fila para lavar os dentes. Depois de se terem apagado as luzes, Melanie conseguia ouvir as raparigas a rirem-se À socapa no quarto. Estava ansiosa por ir em bicos de pés pelo corredor até o quarto de Peter, apesar de não achar que isso fosse sensato da sua parte. Ainda não chegara a altura. Os filhos encontravam-se demasiado próximos. Enquanto permanecia deitada na cama, a pensar nos dias que tinham passado juntos em Nova Iorque, reparou que a sua porta se abria, dando entrada a um vulto que atravessou o quarto e que fez com que ela, surpreendida, se sentasse na cama, no momento em que ele se metia dentro dos seus lençóis.
— Peter! — exclamou ela, mal acreditando na presença dele no quarto.
— Como é que sabes que sou eu? — perguntou ele, sorrindo na escuridão.
Melanie enlaçou-o e beijou-o.
— Não devias. E se os miúdos... — começou ela a dizer.
— Não te preocupes com eles. As raparigas estão demasiado ocupadas a pensar que não conseguimos ouvi-las a conversar e nesta altura o Mark já deve estar tão morto para o resto do mundo como o Matthew. Agora está no momento de pensarmos em nós, miúda — finalizou Peter, abraçando-a e deslizando uma mão por baixo da camisa de dormir de Melanie, enquanto ela tentava não fazer o mínimo ruído. — Meu Deus! As saudades que eu tive de ti! — acrescentou ele.
Melanie não proferiu uma única palavra, mas os seus gestos demonstraram que também sentira a sua falta. Os seus corpos fundiram-se durante horas até que, com relutância, Peter teve de deixá-la. Mel acompanhou-o, caminhando na ponta dos pés até a porta do quarto, onde lhe deu um beijo de boa-noite. Viu-o percorrer o corredor em passos leves. Dos quartos dos jovens não vinha qualquer som. Todos dormiam profundamente e Melanie não era capaz de se recordar de outra ocasião em que se tivesse sentido tão feliz como naquele momento. Dirigiu-se para a sua cama, em cujos lençóis ficara o cheiro doce da paixão que unira os dois, e adormeceu agarrada à almofada.
No dia seguinte fizeram uma marcha de cerca de oito quilômetros e a meio do caminho comeram o piquenique que haviam levado. Instalaram-se junto de um pequeno ribeiro, por onde entraram a vau. Matthew apanhou uma cobra que ofereceu a Mark, o que pôs as três raparigas a gritarem por Peter e Melanie, os quais começaram a rir-se delas. Ao fim de algum tempo, Matt decidiu soltar a cobra e continuaram a sua marcha até o fim da tarde, altura em que regressaram ao apartamento com a intenção de darem um mergulho na piscina. As crianças confraternizavam como se fossem amigos de há muito. Mas não escapou a Melanie que Pamela, sempre que não estava junto de Jessica, continuava a observá-la atentamente assim como ao pai.
— Formam um grupo simpático, não concordas, Mel? — perguntou Peter.
Era verdade. E também um grupo bonito. Tanto os rapazes como as raparigas primavam pela beleza. No entanto, a expressão do olhar de Pamela ainda refletia um brilho de tristeza; em especial, sempre que via o pai e Melanie juntos. Esta se sentia particularmente agradecida a Jessica por mantê-la distraída. E, como seria de esperar, Mark e Valerie haviam sido inseparáveis desde o pequeno-almoço daquela manhã.
— Não há dúvida de que formam um grupo muito agradável — concordou Mel com um sorriso fatigado. — Mas necessita de bastante vigilância.
— Lá estás tu outra vez. O que é que está a preocupar-te agora? — perguntou Peter com uma expressão divertida por causa das reações dela.
Melanie mantinha-se sempre atenta a tudo o que se passava com os filhos de ambos, mas isso agradava a Peter. Era fácil verificar que ela era uma excelente mãe.
— Não estou preocupada com nada em especial, mas acho que devo ficar de olho neles — retorquiu ela com um sorriso franco.
Peter olhou para Valerie e Mark, os quais continuavam sempre juntos.
— Na minha opinião, ambos são inofensivos — disse ele. — Têm muita energia e corpos jovens, mas, felizmente, nenhum deles descobriu ainda que uso dar a essas dádivas. Para o ano que vem, é possível que não tenhamos tanta sorte.
— Oh, céus! — exclamou Melanie revirando os olhos. — Espero que isso não seja verdade. Quem me dera ter casado aquela miúda quando ela tinha doze anos!Não me parece que possa continuar a observá-la durante mais quatro ou cinco anos.
— Na realidade, não me parece que tenhas de proceder assim — retorquiu Peter. — A tua filha é uma rapariga muito às direitas.
Melanie concordou com um acenar de cabeça, apesar de manter uma expressão cautelosa.
— Mas confia em demasia — acrescentou. — A personalidade dela é completamente diferente da de Jessica.
Peter aquiesceu com um aceno de cabeça. Já havia chegado àquela conclusão.
— A Pam parece gostar muito da Jess — comentou ele.
— Ela dá-se muito bem com os mais novos.
— Estou a ver que sim — concluiu Peter com um sorriso de felicidade. Aquela era a época mais feliz da sua vida durante os últimos dois anos. — O Matt adora-a — continuou Peter, inclinando-se para baixo e aproximando a boca do ouvido de Melanie. — E eu adoro-te. Pensas que poderíamos ficar aqui para sempre?
— Gostaria muito que isso fosse possível — retorquiu Mel, apesar de isso não ser inteiramente verdade.
Sentia saudades dos dias que tinham passado juntos em Nova Iorque. Ali, Melanie não se sentia livre para poder ser ela própria. Tinha de vigiar os jovens e não receava fazer-se obedecer quando tal era necessário.
Naquela noite Melanie deu autorização para que os quatro mais velhos fossem ao cinema, enquanto ela e Peter ficavam em casa com Matthew. Quando Mark e Valerie quiseram sair sozinhos, depois de terem levado Jessica e Pamela a casa, Melanie vetou a idéia sem dar margem a qualquer argumento.
— Não seria agradável para os outros se vocês saíssem sozinhos. Estamos aqui a passar férias em grupo.
Havia outras razões que ela não desejava alegar e que a levavam a manter-se vigilante todos os dias, quando davam passeios, andavam a cavalo ou faziam piqueniques nos campos cheios de flores silvestres. Havia naquele ambiente muita sensualidade natural; shirts justas, calções curtos e reduzidos fatos de banho em mistura com o ar fresco da montanha e com a constante proximidade física do apartamento. Melanie nunca vira Valerie tão presa a um rapaz, e isso a preocupava mais do que ela admitia a Peter. Houve um dia em que ficou a sós com Jessica e aproveitou para lhe falar naquele assunto. A filha também tinha reparado naquele apego da irmã.
— Achas que ela está bem, mamãe? — perguntou Jess. Existia uma forte ligação entre as gêmeas e esta sempre se preocupara com a irmã.
— Acho que sim, apesar de pensar que ela precisa ser vigiada — retorquiu a mãe.
— Achas que ela... — Jessica sentia-se pouco à vontade a acusar a irmã perante a mãe. — Não imagino que a Val seria...
— Eu também não — atalhou Melanie com um sorriso — mas calculo que seja fácil uma pessoa deixar-se levar pelas emoções, em campos cheios de flores silvestres, com a neve no cume das montanhas ou à noite quando se está sozinha. Acho que o Mark é um rapaz mais sério do que muitos dos que a tua irmã conheceu até agora. Só pretendo assegurar-me de que ela não comete qualquer asneira de que venha a arrepender-se. Apesar de bem no fundo não acreditar que ela procedesse dessa maneira, Jess — acrescentou Mel.
— Desta vez, a Valerie não se anda a abrir muito comigo, mamãe.
Isso não era muito vulgar. Habitualmente, a irmã contava-lhe tudo o que acontecia na sua vida, muito em especial quando o assunto envolvia rapazes. Mas, em relação a Mark, Val mantinha um estranho silêncio.
— Talvez ela esteja convencida de que o caso é mais sério do que é na realidade. O primeiro amor — retorquiu Melanie com um sorriso de ternura.
— Desde que ela não faça qualquer estupidez — acrescentou Jessica.
— Vais ver que não — asseverou a mãe, sentindo-se confiante na vigilância que exercia sobre a filha e na própria sensatez desta. — E quanto à Pam? O que é que achas dela, Jess? — perguntou. Confiava quase tanto nas opiniões daquela filha como nas de qualquer outra pessoa, exceto talvez nas de Peter; mas ele era incapaz de mostrar-se objetivo no que dizia respeito à filha.
— Tenho a impressão de que ela não é uma rapariga feliz. Temos conversado sobre muita coisa e há ocasiões em que se abre bastante, mas noutras alturas fecha-se — continuou Jessica. — Acho que a Pam sente muito a falta da mãe, talvez mesmo mais do que os irmãos e o pai. O Mark é mais velho e o Matthew era ainda muito pequeno quando ela morreu, mas a Pam sente-se destroçada. Às vezes zanga-se com o pai por causa do que aconteceu.
— Ela disse-te isso, Jess? — perguntou Melanie preocupada.
— Mais ou menos. Acho que ela está extremamente confusa. As coisas na idade dela não são fáceis, mamãe — retorquiu Jessica, aparentando uma grande maturidade, e Mel sentiu-se sensibilizada.
— Eu sei. E tens sido muito simpática com ela. Obrigada, Jess.
— Eu gosto dela — retorquiu Jess com franqueza. — É uma miúda bastante inteligente. Às vezes, tem as idéias um bocado baralhadas, mas é extremamente esperta. Convidei-a para nos visitar em Nova Iorque quando lhe desse jeito e ela aceitou — continuou Jessica, vendo que a mãe se mostrava surpreendida. — Importavas-te se ela decidisse ir?
— De maneira nenhuma. Fica sabendo que todos os membros da família Hallam serão muito bem-vindos a nossa casa.
Jessica manteve-se em silêncio por uns momentos, após o que olhou para a mãe.
— O que é que se passa entre ti e o doutor Hallam, mamãe? — perguntou a filha.
— Nada de mais. Somos apenas bons amigos. — Mas Melanie pressentiu que a filha já se apercebera de muito mais. — Eu gosto dele, Jess.
— Muito? — perguntou a filha, procurando os olhos da mãe.
Mel compreendeu que naquele momento tinha de ser sincera com ela.
— Sim — admitiu.
— Estás apaixonada por ele? — interrogou Jessica.
Melanie susteve a respiração. Qual seria o significado daquelas palavras? O que é que Jess pretendia saber? A verdade, disse Melanie a si mesma. Somente isso. Era forçada a contar-lhe a verdade.
— Sim, acho que estou — respondeu a mãe.
Jessica tinha o aspecto de quem acabara de levar um murro.
— Oh!
— Estás surpreendida? — inquiriu Melanie.
— Em parte, estou, mas por outro lado não. Já tinha suspeitado disso antes, mas não tinha a certeza. É diferente quando se ouve a própria pessoa a admiti-lo — disse Jessica com um suspiro, olhando para a mãe. — Eu gosto dele.
— Fico satisfeita por me dizeres isso.
— Estão a pensar em casar-se? — redargüiu Jessica.
Ao ouvir aquela pergunta, Melanie abanou a cabeça.
— Não, não me parece que nos venhamos a casar.
— E por que não? — continuou a filha.
— Porque as nossas vidas são demasiado longe uma da outra — respondeu Mel. — Eu não posso despedir-me do meu emprego e mudar-me para Los Angeles e o Peter não pode ir viver para Nova Iorque. E temos demasiados interesses que nos prendem ao lugar onde vivemos.
— Isso não ajuda nada — retrucou Jessica com uma expressão compreensiva, fitando a mãe. — Se vocês vivessem na mesma cidade, achas que te casarias com ele?
— Não sei bem. Mas esse assunto não é algo que possamos levar em consideração. Portanto, é agradável podermos desfrutar das poucas ocasiões em que estamos juntos — replicou Melanie, estendendo a mão para tocar na filha. — Gosto muito de ti, Jessica.
— Eu também gosto muito de ti, mamãe — retribuiu a filha com um sorriso. — E estou muito satisfeita por, apesar de tudo, termos decidido fazer esta viagem. Lamento muito ter-te dificultado tanto a nossa vinda.
— Não te preocupes com isso. Ainda bem que tudo se resolveu pelo melhor — sossegou-a Melanie.
— Estou a interromper alguma coisa? — perguntou Peter, parando à entrada da sala e vendo as duas de mãos dadas.
— Acabamos de ter uma conversa muito agradável — respondeu Mel com um abanar de cabeça.
— Folgo em saber isso — retorquiu Peter com uma expressão de satisfação e sorrindo para Jessica. — Onde é que anda toda a gente?
— Não sei — respondeu Melanie, que tinha acabado de chegar do supermercado quando começara a falar com a filha.
Eram cerca de cinco horas da tarde. Supunha que os outros se encontrassem na piscina, à semelhança do que costumavam fazer todos os dias àquela hora.
— A Valerie e o Mark foram dar um passeio com o Matthew.
— Ah, sim? — retorquiu Melanie com perplexidade. — Nesse caso, onde é que está a Pam?
— No quarto a dormir. Esta tarde começou a queixar-se de dores de cabeça. Pensei que sabias — continuou ele, mas Melanie continuava a mostrar-se surpreendida.
Peter deu-lhe uma palmada amigável no braço.
— O Mark toma bem conta da Val e do Matt. Não te preocupes por causa deles Mel.
Porém, quando os três ainda não haviam regressado a casa por volta das dezenove horas, Melanie começou a ficar seriamente preocupada. Por seu lado, Peter já não exibia o mesmo aspecto confiante que apresentara horas antes. Dirigiu-se ao quarto das raparigas com o intuito de falar com Pamela e Jessica.
— Alguma de vocês sabe onde é que eles foram? — perguntou ele.
Jessica limitou-se a abanar a cabeça e Pam ficou com uma expressão vazia.
— Eu estava a dormir quando eles saíram de casa — informou esta.
Peter acenou com a cabeça e foi para junto de Melanie. Ainda não era noite, mas ele queria ir dar uma volta, na esperança de encontrá-los.
— Não me demoro muito — disse ele antes de sair.
No entanto, depois de decorrida uma hora, ao ver que ele também não voltava para casa, Melanie começou a ficar tão assustada quanto as raparigas.
— O que é que imaginas que possa ter acontecido, mamãe? — perguntou Jessica num sussurro.
Pamela, com o rosto ainda pálido por não se sentir bem, ficara sentada no quarto.
— Não sei, minha querida. Tenho a certeza de que o Peter há de encontrá-los.
Ao mesmo tempo em que Melanie dizia aquelas palavras, Peter procurava-os em vão nas colinas atrás do apartamento, tendo abandonado os trilhos enquanto gritava pelo nome dos jovens desaparecidos. Quando por fim encontrou Mark e Valerie já era noite cerrada. Ambos estavam bastante arranhados, além de assustados e sozinhos.
— Onde é que está o Matthew? — perguntou ele, dirigindo-se diretamente ao filho numa voz repassada de medo e de tensão, e reparou que as faces de Valerie se encontravam cobertas de arranhões, assim como de lágrimas.
Mark também parecia prestes a desatar a chorar.
— Não sabemos — respondeu o rapaz.
— Quando é que o viste pela última vez? — continuou Peter, sentindo os maxilares a contraírem-se.
— Há cerca de duas ou três horas. Andávamos apenas a passear e, de repente, viramo-nos para trás e não o vimos — respondeu Mark.
Valerie recomeçou a chorar, apresentando uma versão muito incoerente daquilo que se tinha passado.
Peter apercebeu-se de que o filho ainda se mantinha de mãos dadas com ela e começou a imaginar o que é que tinha acontecido e a compreender a razão pela qual não haviam dado pelo desaparecimento de Matthew.
— Vocês os dois estavam “na marmelada”? — perguntou ele sem medir as palavras, fazendo com que Val recomeçasse a chorar ainda mais. Por seu lado, Mark deixou pender a cabeça para a frente com uma expressão humilhada, mas não sem que antes a mão pesada do pai lhe assentasse uma bofetada em cheio. — Meu parvo! Eras responsável pelo teu irmão, uma vez que saíste de casa com ele!
— Eu sei, pai — reconheceu Mark, enquanto as lágrimas começaram a deslizar-lhe pelas faces.
Uma hora mais tarde, as buscas que, entretanto, tinham encetado não produziram quaisquer resultados, e Peter decidiu levá-los para o apartamento situado a uma considerável distância no sopé da montanha. Tinham de telefonar ao xerife e começar à procura de Matthew. Encontrou Melanie muito pálida na companhia das raparigas, as quais, ao verem que ele regressava acompanhado apenas de Mark e Valerie, desataram a chorar. Peter dirigiu-se imediatamente ao telefone e Melanie seguiu-o.
Em menos de trinta minutos o grupo encarregado das buscas chegou ao apartamento, com cordas e macas, lanternas enormes e uma equipe de paramédicos.
— Amanhã subimos nos helicópteros no caso de não conseguirmos encontrá-lo esta noite.
Peter não era capaz de conceber a idéia de o filho continuar perdido e sozinho durante toda a noite, sentindo-se aterrorizado com a hipótese de o pequenito poder ter caído por uma ravina e partido uma perna ou algo pior. Matthew podia muito bem estar algures inconsciente. Peter acompanhou os homens da equipe de salvamento, enquanto Melanie ficava em casa com as raparigas e Mark. Naquele momento, o jovem chorava e ela tentava confortá-lo em vão, mas não havia qualquer forma de diminuir o sentimento de culpa dele. Melanie conteve-se, evitando dirigir a palavra a Valerie. Naquela altura já passava bastante das dez da noite e não havia ainda qualquer vestígio da criança.
Inesperadamente, Pamela explodiu e começou a gritar com Valerie.
— É tudo culpa tua, minha grande cadela com cio! Se não andasses lá por fora a fornicar com o Mark, o meu irmão mais novo não se teria perdido! — acusou ela cheia de fúria. Val não proferiu palavra, deixando-se cair nos braços de Jessica, a chorar convulsivamente.
Foi nessa altura que, vindo da escarpa da montanha, Melanie ouviu um grito e cornetas. Os feixes de luz atravessavam a escuridão e, momentos mais tarde, a equipe de buscas iniciou a descida. Com uma expressão de triunfo, os homens traziam Matthew nos braços. Peter, que tentava lutar contra as lágrimas de alívio que teimavam em lhe assomar aos olhos, acenou a Melanie.
— Ele está bem? — perguntou ela com ansiedade enquanto corria para junto de Peter. Por fim, ele começou a chorar e ficou abraçado a ela durante muito tempo.
Matthew ainda vinha um pouco mais atrás, nos braços dos homens do xerife. Tinham-no encontrado à entrada de uma gruta. O garoto estava cheio de medo e gelado, mas sem qualquer ferimento. Dissera-lhes que tinha decidido ir passear um pouco sozinho e que se havia perdido. Afirmava ainda que conseguira avistar um urso enorme.
— Oh, Mel! — disse Peter sem conseguir largá-la. — Pensei que também o tínhamos perdido para sempre.
Ela acenou com a cabeça e dos olhos corriam-lhe lágrimas que não era capaz de conter.
— Graças a Deus, ele está bem! — retorquiu Melanie.
Naquele momento viu a criança. O pequenito vinha todo sujo e tinha o rosto arranhado; as roupas estavam rasgadas e percebia-se que ele caíra algumas vezes. No entanto, mostrava-se todo entusiasmado por se encontrar no meio dos homens do xerife, trazendo na cabeça o chapéu de um deles.
Melanie tomou-o nos braços e apertou-o com força.
— Pregaste-nos um grande susto, Matt.
— Eu estou bem, Mel — disse o pequenito, parecendo de súbito uma pessoa muito crescida e corajosa.
— Ainda bem — retorquiu ela, dando-lhe um beijo no rosto e entregando-o nos braços do pai.
Peter agradeceu a todos os polícias e, por fim, entraram em casa e instalaram-se na sala de estar. Mark apertava o irmão mais novo contra o peito; apesar de Valerie continuar a chorar, naquele momento já sorria tal como os outros. Até mesmo Pamela chorara de alívio. Começaram todos a mimar Matthew. Era já meia-noite quando conseguiram finalmente acalmar-se. Pam pediu desculpa a Valerie pelas palavras que lhe dirigira e Mark jurou que nunca mais se aventurariam sozinhos.
Estavam todos sentados à lareira, a comer os hamburgueres que Melanie lhes tinha preparado, quando Peter se dirigiu a todos os presentes.
— Quero deixar bem clara uma coisa. Penso que o que aconteceu esta noite nos ensinou alguma coisa — começou ele, olhando diretamente para Valerie e Mark, depois para Matt, passando a Jessica e a Pam. — Podemos passar umas férias maravilhosas, enquanto estivermos aqui. Mas vocês não podem pôr-se com brincadeiras, uma vez que existe o risco de se perderem nos bosques, de serem mordidos por serpentes e sabe Deus que mais. Quero que cada um de vocês se sinta responsável pelo bem-estar de todo o grupo. A partir de agora, desejo ver sempre os cinco juntos ou, caso contrário, não saem para parte alguma. Se alguém quiser ir a algum lugar terá de ser acompanhado pelos outros. Compreendido? — perguntou Peter a olhar muito especialmente na direção do filho mais velho.
Mark respondeu que sim com a cabeça sem conseguir evitar uma expressão de agonia. Ele estivera tão entretido a enfiar a língua na boca de Valerie e as mãos nos calções dela que se havia esquecido por completo da existência de Matthew. Quando ambos tinham recuperado o fôlego, o pequenito já tinha desaparecido.
— Se eu voltar a encontrar alguém aos pares — acrescentou Peter — essas pessoas regressarão à casa nesse mesmo dia, independentemente de quem forem. — Apesar daquela acalorada admoestação dirigida a todos, sabiam bem que ele se estava a referir a Mark e a Valerie. — Agora vão dormir, pois foi uma noite difícil para todos — concluiu ele.
Tanto os rapazes como as raparigas foram rápidos em se dispersar, dirigindo-se para os respectivos quartos. Mas a verdade é que, depois do que acontecera, havia começado a existir um novo tipo de camaradagem entre os jovens.
Melanie reparou que Val se reaproximara de Jess, o mesmo acontecendo com Pam e Mark, e até com Val e Pam. Matt passou a ser mais querido de todos os que haviam receado que ele se encontrasse perdido para sempre. Haviam aprendido uma boa lição, embora Melanie e Peter tivessem dispensado uma aflição daquelas.
— Meu Deus, Mel, cheguei a pensar que morreria no meio daquela montanha, sem ver o meu filho! — disse ele deitado na cama dela naquela noite, a reviver de novo tudo o que acontecera.
Melanie abraçava-o com força, sentindo-o a tremer nos seus braços.
— Já acabou tudo, meu amor. O Matt encontra-se a salvo e nada disto voltará a suceder.
Naquela noite nem sequer fizeram amor. Abraçaram-se com força e Melanie deixou-se ficar deitada ao lado dele, permanecendo acordada durante a maior parte da noite, a observá-lo adormecido, até que a luz do sol começou a raiar no céu, às primeiras horas do amanhecer. Naquele momento, despertou-o com suavidade e Peter foi para o seu próprio quarto. Finalmente, Mel conseguiu adormecer. Durante toda a noite pensara no quanto amava Peter, Pam, Mark e Matt e desejava que nada de mal voltasse a acontecer a qualquer deles. Era a primeira vez que se dava conta do quanto gostava de todos e de como todos tinham um lugar no seu coração. Quando se levantaram na manhã seguinte, davam realmente a impressão de que formavam uma única família.
A partir daquele momento as cinco crianças tornaram-se inseparáveis e, embora Melanie reparasse que Mark dava muitas vezes a mão a Valerie ou que a olhava atentamente nos olhos, fazendo-a sorrir de felicidade, nunca mais se atreveram a afastar-se sozinhos para longe. A semana que lhes restava para passarem juntos decorreu com demasiada rapidez.
Durante a última noite que passaram em Aspen, Peter levou-os a jantar fora, e todos gostaram muito; riram-se e conversaram como se fossem conhecidos de longa data. Quem os visse, jamais adivinharia que não tinham crescido sob o mesmo teto, nem acreditaria o quanto as crianças se haviam oposto de início à realização daquela viagem. Peter sorriu à Melanie várias vezes durante o jantar. Fora uma quinzena de férias perfeitas, apesar daquela noite horrível em que Matthew se tinha perdido, mas até mesmo esse incidente parecia estar esquecido naquele momento de tanta alegria.
Nessa mesma noite, quando regressaram a casa, ficaram junto da lareira até bastante tarde. Matthew acabou por adormecer ao colo de Jessica, a qual o meteu na cama com a ajuda de Pamela. Quando finalmente se despediram, ainda nessa noite, foi com muita pena por terminarem aquele convívio que tanto lhes agradara. Peter e Melanie permaneceram acordados durante várias horas, ambos tristes por serem forçados a separar-se de novo.
— Não sou capaz de acreditar que tenhas de me deixar outra vez — disse ele apoiado num cotovelo, mantendo-se inclinado para ela, depois de terem feito amor.
— Não posso evitá-lo — retorquiu Melanie, mas de súbito teve uma idéia e olhou para ele com uma expressão de esperança.
— Por que é que vocês não vão passar o fim-de-semana comprido do próximo feriado conosco em Martha's Vineyard? — sugeriu ela.
— Estás a falar de uma viagem demasiado longa para três dias apenas, Mel — retorquiu Peter com uma expressão de dúvida, apesar de querer agarrar-se a qualquer esperança que lhe surgisse pela frente.
— Nesse caso, fiquem durante uma semana — continuou ela, pensando que por si até podiam ficar um mês. Um ano que fosse.
— Não posso ir — declarou Peter.
— Mas as crianças podem — argumentou ela, defendendo uma idéia que lhe parecia ser excelente. — A Pam e o Matt podem com toda a certeza. Por essa altura, o Mark já terá deixado o emprego. O teu filho poderia ir contigo de avião e passar o fim-de-semana. Entretanto, os outros dois iriam antes de vocês.
— É uma idéia a considerar — concordou Peter, sorrindo-lhe sem que naquele momento estivesse realmente a pensar nas crianças, mas apenas nela. Desejava com toda a sua alma poder ficar junto de Melanie, apesar de não haver forma de concretizarem essa vontade. — Eu amo-te tanto, Mel.
— Também eu te amo — confessou ela. Deixaram-se ficar deitados nos braços um do outro e fizeram amor várias vezes, até aos primeiros alvores do dia.
Na manhã seguinte, apresentavam um aspecto deprimido quando se levantaram, já nos seus respectivos quartos. Naquela noite não haveria oportunidade de voltarem a fazer amor, nem de dar longos passeios pelos bosques ou pelos campos cheios de flores.
Para Melanie estava na hora de regressar à casa de verão. De volta à realidade do dia-a-dia, e às conversas telefônicas com Peter. Mencionou a idéia que lhe ocorrera para o fim-de-semana prolongado, o que arrancou das crianças uma explosão de alegria.
— Nesse caso, está resolvido — disse Melanie a olhar para Peter com uma expressão de triunfo, que lhe provocou uma gargalhada.
Também ele se mostrava satisfeito pela perspectiva daqueles dias a mais de férias.
— De acordo. Ganhaste. Nós iremos — afirmou ele.
— Hurra!!! — gritaram os jovens em uníssono, tão alto que se podia ouvir até o meio das escarpas da montanha.
Durante todo o vôo de Aspen a Denver, a tagarelice foi incessante. As crianças ficaram sentadas do outro lado da coxia, enquanto Melanie e Peter ficavam sozinhos uma última vez. Quando chegaram a Denver, toda a gente começou a chorar.
Peter fitou os olhos de Melanie e segredou-lhe ao ouvido:
— Amo-te, Mel. Nunca te esqueças disso.
— Recorda-te sempre de que eu também te amo — retribuiu ela.
Os filhos fingiam não reparar no que estava a passar-se, mas Val e Mark sorriram enquanto Pamela virou as costas, para não ser obrigada a observar aquela demonstração de ternura. Ela e Jessica estavam de mãos dadas, o que proporcionava a Pamela algum conforto. O pequeno Matt deu um beijo afetuoso de despedida a Melanie.
— Gosto muito de si, Mel! — afirmou o garoto.
— Também eu de ti, Matt — disse-lhe ela, afastando a custo os olhos dele e beijando cada uma das crianças. Quando chegou a vez de Pam, olhou-a bem nos olhos, dizendo-lhe: — Toma bem conta do teu pai — desejando acrescentar: “por mim”.
— Assim farei — prometeu Pamela com uma voz onde se notava uma nova ternura.
Todos se mostravam acabrunhados ao encaminharem-se para destinos diferentes. Matthew chorava abertamente ao dar a mão ao pai quando se dirigiam para o avião.
— Eu quero que elas venham conosco — disse o pequenito.
— Daqui a pouco, estaremos de novo com elas — garantiu-lhe o pai.
— Quando? — perguntou o garoto.
— Dentro de poucas semanas, Matt — respondeu Peter, olhando de relance para Mark e reparando na expressão sonhadora no rosto do filho mais velho. Perguntava a si mesmo até que ponto é que a relação entre ele e Valerie havia progredido, apesar de imaginar que não poderia ter sido coisa de grande monta. O avião que seguia para Boston decolou à mesma hora do que seguia rumo a Los Angeles.
Valerie e Jessica mal abriram a boca para falar, enquanto Melanie olhou através da janela do aparelho, sem ver nada a não ser a imagem do rosto de Peter que tinha gravada na mente. As três semanas que distavam até o fim-de-semana prolongado pareciam-lhe uma eternidade. E em seguida? Um ano interminável até chegar a altura de regressarem de novo a Aspen? Era uma loucura que ambos infligiam um ao outro, mas Melanie sabia tão bem quanto Peter que era demasiado tarde para que qualquer deles pudesse retroceder.
As semanas que passaram em Martha's Vineyard arrastavam-se de uma maneira interminável, depois do regresso de Aspen. Em nada se pareciam com os dias que lá haviam estado em julho. Valerie parecia passar o tempo todo a olhar absorta para o vazio, enquanto Melanie gastava uma grande parte dos seus dias agarrada ao telefone.
Por seu turno, Jessica limitava-se a troçar tanto da mãe como da irmã.
— Nossa senhora, não há dúvida de que vocês as duas são muito divertidas — comentava ela.
Valerie quase se matava de tanto correr até a caixa do correio todos os dias, para ver se havia alguma carta de Mark.
Por seu lado, Melanie, de cada vez que saía de casa, perguntava com ar indiferente ao voltar:
— Telefonou alguém? — O que provocava o riso em ambas as filhas.
Apenas Raquel parecia encarar toda a situação como uma doença grave que se abatera sobre aquela casa. Avisou-as a todas que dentro de seis meses... iriam ver! A governanta tinha por hábito nunca finalizar os seus avisos, mas estes não deixavam de soar um pouco tenebrosos a quem os escutava e Melanie ouvia-a sempre com uma certa dose de divertimento.
— Vamos a ver, Raquel, descontraia-se! — dizia ela.
— Desta vez o caso é muito sério, Mistress Mel — advertiu a governanta.
— Sim é, mas sério e terminal são palavras que não têm o mesmo significado.
Grant também telefonou para cumprimentá-las. Estava loucamente apaixonado pela apresentadora da meteorologia do Canal Cinco, existindo também na sua vida uma mulher pequena de cabelos ruivos que vivia em Lhite Plains, para não mencionar uma estonteante e sensual rapariga cubana. Melanie brincava com ele por causa daquilo, dizendo-lhe que se comportasse mais de harmonia com a sua idade. Finalmente, ela acabou por lhe contar tudo em relação a Peter, ou melhor dizendo, as filhas encarregaram-se desse assunto.
Grant parecia magoado quando Melanie voltou ao telefone, depois de as gêmeas terem falado.
— Era muito difícil contares-me o que estava a passar-se? — perguntou ele, ofendido. — Pensei que éramos amigos!
— E somos, mas acontece que eu precisava de tempo para pôr as minhas idéias em ordem.
— O caso é assim tão sério? — inquiriu ele surpreendido.
— Poderia ser, mas ainda não fomos capazes de resolver o problema da distância.
— Distância? — retorquiu Grant, mas bruscamente todas as peças começaram a ajustar-se nos seus devidos lugares. — Sua sirigaita! Trata-se do cirurgião da Costa Oeste, não é verdade?
Melanie riu-se ao telefone, como se fosse uma criança apanhada em falta.
— És uma idiota — continuou Grant. — E agora o que é que te propões fazer? Vives aqui e ele em Los Angeles, não é verdade?
— Ainda não sei como é que vou resolver esse pequeno problema — admitiu Melanie.
— O que é que há para resolver, Mel? Cometeste de novo o mesmo erro. Deste contigo mesma no Sonho Impossível. Nenhum de vocês estará disposto a abandonar o respectivo emprego, por amor de Deus! E estão bastante presos ao local onde vivem — acrescentou Grant. — Minha boa amiga, voltaste a fazer o mesmo. Estás a jogar pelo seguro.
As palavras do amigo deixaram-na deprimida até muito depois de ela ter desligado o telefone. Durante vários dias, não se cansou de perguntar a si própria se o que ele dissera tinha algum fundo de verdade. Estaria ela realmente envolvida numa qualquer espécie de romance, cuja concretização era impossível?
Como se pretendesse validar os seus sentimentos, Melanie ligou para a Califórnia com o intuito de falar com Peter.
Ele estava bastante entusiasmado com os progressos verificados no estado de saúde de Marie; tinha-a visto naquele mesmo dia e verificara que ela melhorara bastante. Melanie deu consigo a rezar, pedindo a Deus para que na semana seguinte não surgisse algum doente com necessidade de um transplante do coração, impedindo-o de seguir viagem para o Leste, a fim de passar o fim-de-semana prolongado.
Peter informou que Pam e Matt se encontravam preparados para a viagem e acrescentou que Matthew andava tão excitado com a idéia que mal conseguia ver a direito.
— E a respeito de Pamela? — perguntou Melanie.
— Ela oculta melhor o que sente, mas eu sei que está tão entusiasmada como o irmão.
— Com as minhas filhas passa-se o mesmo. Estão ansiosas pela chegada dos teus filhos.
As gêmeas já haviam feito inúmeros planos que incluíam Pam, o que deixaria tempo a Melanie para se poder ocupar de Matthew. Até mesmo Raquel se mostrava excitada pela perspectiva daquelas visitas, embora fingisse queixar-se do acréscimo de trabalho que isso lhe acarretava. Haviam passado horas a planear a forma como seriam distribuídos os quartos. Finalmente, tinham chegado à conclusão de que Mark dormiria num saco-cama, em cima do sofá da sala de estar. Pam dormiria numa cama articulada que se colocaria no quarto das gêmeas, enquanto Matthew ficaria na cama vaga existente no quarto de Raquel. Por seu lado, Peter quando chegasse, dormiria no quarto de hóspedes. Fora preciso fazer alguma ginástica, mas a casa chegava para acomodar todos a contento.
Quando Pamela chegou acompanhada do irmão mais novo, havia na casa uma aura de festa e os jovens foram logo para a praia, enquanto Melanie os observava a juntarem-se aos amigos e amigas que as filhas costumavam encontrar todos os dias. O rapaz que Valerie tinha conhecido no início do verão já não lhe despertava qualquer interesse e havia uma meia dúzia de outros loucamente apaixonados por Jessica, a qual nem sequer se mostrava disposta a dizer-lhes as horas, se eles lhe perguntassem. Um ou dois desses achava que Pamela era uma rapariga extremamente atraente, e ninguém podia acreditar que ela tivesse apenas catorze anos. Era muito alta e aparentava ter mais idade.
Durante toda aquela semana, Melanie sentiu-se feliz com a sua ninhada acrescida, e duas vezes por dia fazia um relatório a Peter das atividades do dia.
— Quem me dera que te despachasses e que viesses para aqui — dizia-lhe ela.
— Também eu. O Mark está praticamente catatônico, porque nunca mais chega o dia de partir — retorquiu Peter.
Na noite anterior à partida, a viagem esteve prestes a ir por água abaixo. Dera entrada no hospital uma mulher ainda bastante jovem, que fora submetida a um transplante do coração havia quatro meses, com sintomas de rejeição e com uma infecção bastante grave. Melanie ouviu aquelas notícias algo apreensiva, embora não tivesse exercido pressão sobre Peter quanto à viagem nem lhe pedisse para deixar a doente entregue aos cuidados dos seus colegas. Mas a pobre mulher veio a falecer antes da manhã seguinte.
Nesse mesmo dia, Peter telefonou a Melanie, bastante deprimido.
— Não pudemos fazer nada — afirmou ele. Apesar disso, tratava-se de uma situação que o deprimia sempre.
— Tenho a certeza de que fizeram tudo o que estava ao vosso alcance — retorquiu Melanie, tentando encorajá-lo. Mas isso é mais uma razão para que neste momento te afastes do hospital por uns dias.
— Acho que tens razão — anuiu ele.
No entanto, o sucedido retirava algum do encanto de que a viagem iminente se revestira até então. Peter manteve-se em silêncio enquanto ele e Mark seguiam no avião com destino a Boston. Porém, na segunda parte da viagem, deu mostras de se sentir mais encorajado e ambos começaram a falar sobre Melanie e as gêmeas.
— Elas são muito simpáticas, pai — disse Mark a corar, tentando parecer desinteressado.
Aquela atitude fez assomar um sorriso aos lábios do pai.
— Fico satisfeito por teres essa opinião que, aliás, também é a minha — retorquiu Peter. Seria maravilhoso ter a oportunidade de ver Melanie outra vez. Concluiu que só conseguia pensar nisso enquanto o pequeno avião aterrava no aeroporto de modestas dimensões. Peter saiu apressadamente do aparelho, logo atrás do filho.
Mark dava a impressão de estar a ser impulsionado por reatores a jato, saindo porta fora e começando a descer as escadas de metal, que não ofereciam muita segurança. Deteve-se de rompante em frente de Valerie, sem saber bem se lhe deveria apertar a mão, beijá-la ou dizer apenas olá. Deixou-se ficar no mesmo lugar a tropeçar nos próprios pés, enquanto corava intensamente. Val reagiu da mesma forma. Por seu lado, Peter puxou Melanie para junto de si e abraçou-a com força; em seguida, beijou Pamela, depois Jessica e Valerie, tendo Matthew ficado para último. Após os cumprimentos, Val e Mark foram juntos para o terminal da bagagem.
Peter reparou que o filho agarrava às escondidas a mão da rapariga e sorriu para Melanie.
— Ali estão eles outra vez — comentou ele.
Ela esboçou um sorriso ao olhar para os dois apaixonados que seguiam mais à frente.
— Pelo menos aqui é impossível que se percam nas montanhas — replicou ela.
Durante aquele fim-de-semana, os dois jovens passaram a maior parte do seu tempo num barco à vela, pelo que Peter foi forçado a recordar-lhes de novo as regras que estabelecera para o grupo em Aspen.
— As mesmas regras devem ser aplicadas aqui — intimou ele.
— Oh, pai! — objetou Mark quase num gemido, ansioso por estar a sós com Valerie. Tinham tanto a contar um ao outro. — Nós queremos apenas poder conversar um com o outro.
— Nesse caso, façam-no na companhia dos outros — insistiu Peter irredutível.
— Que nojo! — exclamou Pamela a revirar os olhos, enquanto apertava o nariz com os dedos. — Vocês deviam ouvir a porcaria que eles dizem um ao outro.
Apesar daquele ar desdenhoso, Melanie, apercebera-se de que havia um certo rapazinho de catorze anos que costumava parar pela praia e que Pamela não tinha achado particularmente nojento. Do grupo, somente Jessica e Matthew tinham conseguido manter a sua sanidade mental, quando aquele fim-de-semana chegou ao fim. Jessica já começara a pensar no primeiro dia de escola e Matthew sentia-se tão feliz na companhia do pai e de Melanie que não provocava o mínimo problema. Havia anos que ele inconscientemente ansiava por aquela espécie de segurança, sem que na realidade compreendesse o que é que faltava na sua vida.
Por seu lado, Peter sentia-se divertido com Raquel, a qual obviamente lhe dera a sua aprovação e passava bastante tempo a dizer-lhe que ele tinha muita sorte por ter encontrado uma pessoa como Melanie, que ela necessitava de um homem bom e que, naquele momento, do que ela mais precisava era de se casar.
Melanie sentiu-se horrorizada quando Peter lhe contou aquilo, no domingo, quando ambos se encontravam deitados na praia.
— Estás a brincar comigo? Ela disse isso? — perguntou Mel sem querer acreditar.
— Disse, sim, senhora. Talvez a Raquel é que tenha razão. É possível que estejas a precisar disso. De um bom marido que te mantenha grávida e descalça — disse Peter, parecendo divertido com tudo aquilo e mais ainda ao observar as crianças que se empenhavam em todas as loucuras próprias de um fim do verão.
Peter mantinha Mark sob uma vigilância apertada. Não queria que ele saísse da linha com respeito a Valerie, e apercebendo-se de que os hormônios de ambos funcionavam a toda a velocidade. Naquela altura virou-se para Melanie, recordando-se de novo do que Raquel lhe dissera.
— O que é que tens a dizer a isto?
— Tenho a certeza de que a cadeia de televisão iria adorar — retorquiu ela, divertida com a idéia, sem que, no entanto, considerasse aquela sugestão uma verdadeira ameaça. Tudo o que lhe interessava era passar aqueles dias na companhia de Peter. Não pensava no futuro mais próximo, nem nas medidas que teriam de tomar para poderem continuar a encontrar-se e quando é que isso teria lugar. — Acabaste de me recordar uma coisa. Depois do fim-de-semana, não posso esquecer-me de telefonar ao meu advogado.
— Por que motivo? — perguntou ele curioso.
— O meu contrato de trabalho expira em outubro e quero começar bem a tempo a delinear as cláusulas que pretendo ver inscritas no próximo — explicou Melanie.
Peter admirava a forma como ela abordava a sua atividade profissional. De fato, havia nela bastantes mais coisas que ele admirava.
— Nesta altura, já deves fazer o que bem te apetecer — continuou ele.
— Até certo ponto assim é. Mas não inteiramente. Seja como for, tenciono reunir-me com ele durante as próximas duas semanas para saber qual é a sua opinião a respeito deste assunto — acrescentou ela.
Peter fez uma careta risonha, sentindo-se um tanto ou quanto idiota. A loucura de fim de verão começava a atacar toda a gente.
— Por que razão é que não te despedes? — sugeriu ele.
— Para fazer o que? — retrucou Melanie sem achar a idéia tão engraçada como ele parecia julgar.
— Muda-te para a Califórnia — adiantou Peter.
— Para vender tacos na praia?
— Não necessariamente. O que te vou dizer poderá ser um choque para ti, mas nós em Los Angeles também temos televisão. Até chegamos ao ponto de ter noticiários! — respondeu ele trocista, esboçando um sorriso.
Melanie pensou que nunca o achara tão bem-parecido como naquele momento.
— De verdade? Mas que intrigante! — replicou ela sem levar a sério a hipótese que ele aventara.
Pouco depois Peter agarrou-lhe no braço e ela reparou que ele a olhava com uma expressão estranha.
— Não sei se sabes que poderias muito bem fazer isso — continuou Peter.
— O que? — perguntou Mel, sentindo um arrepio pela espinha, apesar do sol radioso e do tempo quente que se fazia sentir.
— Despedires-te do teu emprego e mudares-te para Los Angeles. Tenho a certeza de que haveria alguém que te poria no ar na Califórnia.
Naquele momento, Melanie sentou-se a direito e olhou para Peter, que permanecia deitado sobre a areia da praia.
— Fazes idéia de quantos anos é que precisei para chegar onde cheguei na cadeia de televisão onde trabalho? Terás por acaso a mais remota noção de como era Buffalo, com vinte graus negativos, ou Chicago? Matei-me a trabalhar para ter a posição que tenho presentemente, e não estou disposta a desistir agora. Portanto, peço-te que não brinques com este assunto, Peter. Nunca mais — concluiu Melanie e, quando se voltou a deitar na areia ao lado de Peter, ainda se mostrava aborrecida. Não considerava a sugestão dele minimamente engraçada. — Por que motivo é que não desistes tu da tua carreira médica em Los Angeles e recomeças tudo em Nova
Iorque?
Mel apercebeu-se de que Peter a fixava atentamente e lamentou ter utilizado um tom de voz tão ríspido. Tinha a impressão de que ele se sentia magoado.
— Era o que faria se pudesse, Mel. Faria qualquer coisa para poder estar junto de ti — retorquiu Peter. Subentendia-se que Mel não o faria, o que não era justo.
— Compreendes que para mim esse passo não seria fácil? — continuou ela numa voz mais suave. — O fato de sair de Nova Iorque seria uma despromoção, fosse eu para onde fosse.
— Até mesmo para Los Angeles? — perguntou Peter, deprimido. Parecia não haver solução.
— Até mesmo para Los Angeles — respondeu Melanie.
Ambos guardaram alguns momentos de silêncio, enquanto olhavam para o mar, tentando sarar as feridas — Vamos ter de descobrir uma forma de podermos estar juntos — acrescentou Melanie.
— O que é que sugeres? Fins-de-semana passados em Kansas? — redargüiu Peter que daquela feita era o que se mostrava amargo e zangado, baixando para ela aqueles olhos azuis de onde parecia saírem centelhas. — Como pensas que será o nosso relacionamento, quando se intensificar mais, Mel? Um mero romance de férias? Contentamo-nos em encontrarmo-nos nos fins-de-semana grandes, na companhia dos nossos filhos? — insistiu Peter.
— Não sei o que hei de sugerir. Sabes que posso ir de avião a Los Angeles, assim como tu podes vir a Nova Iorque — continuou ela.
— Sabes bem que só muito raramente é que posso deixar os meus doentes.
E Melanie não podia negligenciar as filhas constantemente, o que era do conhecimento de ambos.
— Então, o que pretendes dizer-me? Que deveria desistir de ti agora? — perguntou ela. De repente, começou a sentir-se assustada pelo rumo que a conversa estava a tomar. — Eu não tenho as respostas, Peter.
— Pois bem, também eu não e, além do mais, alguma coisa me diz que não tens muita vontade de encontrá-las — continuou ele.
— Isso não é verdade. A realidade é que temos ambos carreiras em zonas opostas do país e nenhum de nós pode, de ânimo leve, deixar tudo para trás para nos mudarmos, nem desejaríamos fazê-lo. De qualquer maneira, ainda não estamos preparados para uma situação dessas — argumentou Melanie.
— Não estamos? — perguntou Peter, exibindo de novo uma expressão irritada. — E por que não?
— Porque nos conhecemos somente há quatro meses e não sei o que pensas e, em minha opinião, não me parece muito tempo — contrapôs Melanie.
— Eu teria casado com a Anne cinco minutos depois de tê-la conhecido, e não me enganaria.
— Isso era com a Anne — retrucou Melanie, que naquele momento já falava aos gritos; felizmente, encontravam-se sozinhos na praia. Os jovens tinham ido jogar voleibol para outro lado, e Matthew fora com Raquel apanhar conchas. — Eu não sou a Anne, Peter. Eu sou eu e não estou disposta a seguir-lhe os malditos passos, apesar de me teres convidado a ir a Aspen, que é o sítio onde costumavas ir com ela todos os anos!
— E o que é que isso tem, que raio! Não gostaste de lá estar? — inquiriu Peter furioso.
— Gostei, sim. Mas só depois de ter conseguido esquecer que já lá tinhas estado com ela, e, muito provavelmente, dormido na mesma cama — continuou Mel.
Ambos se tinham posto de pé.
— Pode ser que te interesse saber que, para estas férias, aluguei um apartamento diferente — disse Peter. — Não sou tão insensível como parece pensar Mistress Adams. — Depois daquela tirada, os dois ficaram imóveis.
Melanie deixou descair a cabeça para a frente.
— Lamento muito. Não tinha intenção de te magoar. — disse ela, soerguendo o olhar para o rosto de Peter. Por vezes é difícil para mim, sabendo o quanto estavas preso a ela.
Ele puxou-a lentamente para junto de si.
— Eu estive casado com ela durante dezoito anos, Mel.
— Eu sei. Mas acontece que sinto que estou sempre a ser comparada com ela. A esposa perfeita. A mulher perfeita. E eu não sou perfeita — continuou Melanie. — Eu sou eu, muito simplesmente.
— Mas quem é que faz comparações? — inquiriu Peter, exibindo uma expressão de choque. Nunca dissera nada daquilo.
Melanie encolheu os ombros enquanto ambos se sentavam de novo na areia, muito juntos.
— Tu. As crianças. Talvez mesmo Mistress Hahn — continuou Mel.
Peter observava o rosto dela muito perto do seu.
— Tu não gostas de Mistress Hahn, não é verdade? — perguntou ele. — Por que?
— Talvez por ela ter sido a governanta da Anne. Ou porque é tão fria. Não me parece que ela nutra grande simpatia por mim — retorquiu Melanie com um sorriso nos lábios, pensando em Raquel.
Peter riu-se, adivinhando em quem é que ela estava a pensar.
— Não, ela não é nada parecida com a Raquel, mas isso ninguém consegue ser. Exceto a própria Raquel.
Também começara a gostar da governanta de Melanie, apesar de não estar muito certo se seria capaz de viver continuamente com aquela língua incansável. Agradava-lhe a maneira de ser comedida de Mrs. Hahn e o controle que ela exercia sobre os seus filhos. Raquel era mais uma amiga com uma esfregona numa mão e um microfone na outra.
— Estavas a falar a sério quando sugeriste que eu me mudasse para a Califórnia, Peter? — perguntou Melanie, preocupada.
— Acho que não — respondeu ele, abanando a cabeça. — Estava apenas a sonhar. Compreendo que não possas desistir da carreira que tens em Nova Iorque. Seja como for, também não me agradaria por aí além que o fizesses. Mas isso não significa que não deseje que houvesse uma maneira de podermos estar juntos. Andarmos para cá e para lá, a fim de nos podermos ver, será um esforço enorme.
As palavras de Grant ecoaram nos ouvidos de Mel: “Beco sem saída. Beco sem saída.” Ela não desejava que as coisas chegassem a esse ponto.
— Sei que deslocares-te a Nova Iorque é um grande sacrifício para ti. Farei o que estiver ao meu alcance para ir mais vezes a Los Angeles — garantiu Melanie.
— Eu farei o mesmo — prometeu Peter por sua vez.
No entanto, ambos sabiam que seria ela a fazer a maior parte das viagens. Não lhes restava qualquer alternativa. A verdade é que era mais viável Melanie deixar as filhas do que ele abandonar os seus doentes, além de que, por vezes, poderia também levá-las.
Como que para provar isso, na noite de domingo, Peter recebeu um telefonema. Um dos seus doentes mais antigos submetido a um transplante do coração acabara de sofrer um ataque cardíaco e o seu estado de saúde era grave. Pelo telefone, Peter deu todas as instruções possíveis. Mas o transplante havia sido realizado dois anos antes, e as hipóteses de sobrevivência do homem eram poucas, quer Peter estivesse presente ou não. Apesar de as perspectivas não serem boas, Peter manteve-se acordado toda a noite, preocupado com o doente, sentindo que deveria ter estado no hospital para lhe poder prestar assistência.
— Eu tenho responsabilidades para com estas pessoas, Mel. As minhas obrigações não terminam quando tiro a máscara e as roupas de cirurgia, depois de concluída a operação. Continuam enquanto esses doentes viverem. Pelo menos é o que sinto.
— É por isso mesmo que és um excelente médico — retorquiu Melanie.
Naquele momento ambos estavam sentados no alpendre da casa. Ela tinha os braços à volta dos joelhos e os dois assistiam ao nascer do sol. Uma hora mais tarde chegou um telefonema de Los Angeles, a informá-lo de que o doente havia falecido. Deram um longo passeio pela praia, de mãos dadas, e quase não falaram. Quando regressaram a casa, Peter sentia-se melhor. Aquilo seria uma das coisas que lhe fariam falta quando regressasse à Califórnia. Precisava de Melanie junto de si.
A segunda-feira foi o último dia daquele fim-de-semana que passaram juntos na ilha. Os filhos haviam traçado planos para todo o dia, enquanto que Raquel andava atarefada com a limpeza da casa, antes de esta ser fechada. Melanie tivera o cuidado de dizer a todos que fizessem as malas no dia anterior, para não perderem parte do último dia de férias a embalar as coisas. Já tinham decidido que só se iriam embora na terça-feira de manhã. Peter e os seus filhos partiram tal como tinham chegado, no vôo que saía de Martha's Vineyard às sete da manhã, o qual lhes permitia a ligação com o avião que partiria do aeroporto de Boston às nove horas e chegava a Los Angeles ao fim da manhã. A diferença horária estaria a favor de Peter e ele podia ir para o hospital fazer a ronda aos seus doentes, depois de deixar os filhos em casa.
Pamela e Matthew só começariam o novo ano letivo na semana seguinte e Mark teria ainda três semanas antes de começar as aulas na faculdade.
Por seu lado, Melanie e as filhas fariam a travessia de barco até Loods Hole, seguiriam de automóvel até Boston, entregavam o automóvel alugado e apanhariam o avião para Nova Iorque, chegando a casa mais tarde do que o grupo que viajaria para Los Angeles. Mas quando sugeriram a hipótese de partir na segunda-feira à noite, fez-se um grande silêncio. Todos sentiam uma grande tristeza por serem obrigados a separar-se de novo, pois agora as duas famílias formavam uma só. Pamela foi a primeira a lamentar a partida e Mark não perdeu tempo a secundar a irmã, enquanto agarrava com força na mão de Valerie, um gesto que naquela altura já todos se tinham habituado a ver constantemente.
— Será que nunca conseguiremos separar aqueles dois? — perguntou Peter quando estavam já na cama, na última noite, continuando ligeiramente preocupado, apesar de Melanie ter começado a sentir-se mais condescendente em relação ao romance dos dois jovens.
— Não vejo problema algum. Em minha opinião, quanto menos alarido fizermos, mais depressa eles se fartarão um do outro — disse ela.
— Desde que ela não fique grávida — retorquiu Peter.
— Não te preocupes. Eu tenho a Val debaixo de olho e a Jess tem feito o mesmo. Além de que, muito francamente, acho o Mark um rapaz bastante responsável. Não me parece que ele se aproveitasse da Val. Nem que ela o tentasse, o que peço a Deus não venha a acontecer — acrescentou Melanie.
— Só espero que não estejas a sobrestimar o caráter do meu filho, Mel. — colocou-lhe um braço à volta dos ombros, enquanto rememorava o fim-de-semana. Pouco depois, olhou para Melanie com um sorriso terno. — Ora bem, para quando é que estás a planear uma viagem até Los Angeles?
— Dentro de dois dias regresso ao trabalho. Deixa-me ver primeiro como é que as coisas vão correr e depois falaremos sobre esse assunto. Talvez seja possível no fim-de-semana depois do próximo ou então no outro a seguir. Quem sabe? — respondeu ela, esperançada.
Peter parecia deprimido.
— Isso já será quase em outubro — lamentou-se ele.
— Farei o que for possível — prometeu Mel.
Peter assentiu, sem desejar discutir com ela; no entanto, pensava que o possível de Melanie não iria inteiramente ao encontro daquilo que pretendia. Queria que ela estivesse sempre junto de si e não estava a ver como é que o seu desejo se poderia concretizar. Mas, por outro lado, Peter também não se encontrava na disposição de desistir dela. Para sua grande surpresa, no decorrer do último mês, tinha chegado à conclusão de que não podia viver sem Melanie. Sabia que aquilo não passava de uma loucura, mas esses eram os seus sentimentos. Precisava dela junto de si, para que ambos pudessem partilhar as alegrias e as agruras da vida diária, as coisas engraçadas que Matthew costumava dizer, os doentes que morriam, as lágrimas choradas por Pamela, a beleza, os traumas, tudo. Nada daquilo tinha o mínimo significado sem a presença de Melanie. Mas o grande obstáculo à realização dos seus desejos era não haver maneira de poder levá-la para Los Angeles. Enquanto faziam amor naquela mesma noite, Peter sentiu uma enorme vontade de poder beber o espírito de Melanie e de absorver a sua alma, para se recordar de cada ângulo e de cada saliência do seu corpo.
— Tens a certeza de que não queres vir comigo? — segredou-lhe ele quando, na manhã seguinte, se preparava para embarcar no avião que o levaria a Boston.
— Quem me dera poder. Mas dentro de pouco tempo estarei lá — assegurou Melanie.
— Telefono-te logo à noite — prometeu Peter, apesar de entristecê-lo a idéia de lhe telefonar e não a poder ver.
Conseguira finalmente encontrar a mulher que tanto tinha desejado, para chegar à conclusão de que ela não se encontrava ao seu alcance, não devido à existência de um outro homem, mas sim porque uma cadeia de televisão se arrogava o direito de posse sobre ela e, o que era pior ainda, porque isso agradava a Melanie. Todavia, Peter sabia que ela o amava. Tratava-se de uma situação desagradável e a única esperança que lhe restava era aguardar que, com o passar do tempo, viesse a acontecer alguma coisa que a resolvesse a ir ter com ele. Peter sorriu. Talvez Melanie chegasse à conclusão de que não podia viver sem ele.
— Amo-te, Mel.
— Eu amo-te ainda mais — retorquiu ela num sussurro.
Pelo canto do olho, ambos viram Mark e Valerie a beijarem-se e a abraçarem-se e Pam a fazer uma careta horrorosa.
— Que porcaria! Eles metem nojo! — comentou ela.
No entanto, o rapaz que conhecera na praia e de quem gostava também tinha ido despedir-se, e ela corou intensamente quando lhe disse adeus. Apenas Matthew se encontrava de fora de todo aquele cenário de romantismo, e toda a gente o beijou pelo menos uma meia dúzia de vezes: Raquel, as gêmeas e Melanie. Esta e Peter beijaram-se uma vez mais.
— Vai visitar-me dentro em pouco — pediu ele.
— Prometo que sim.
As duas tribos despediram-se com acenos de mão enquanto o contingente da Califórnia embarcava no pequeno avião, tentando em vão não verter lágrimas. As Adams entraram no automóvel e dirigiram-se ao barco que faria a travessia, enquanto as gêmeas acenavam com lenços e choravam abertamente e Melanie tentava ocultar o seu sofrimento.
A entrevista que Melanie fizera a Peter quando se haviam conhecido foi apresentada na primeira semana de setembro. Após a sua exibição, a opinião geral era de que se tratava de um dos documentários mais extraordinários realizados na história da televisão. As opiniões eram unânimes: Melanie iria ser galardoada por aquele trabalho de tanta qualidade. De um dia para o outro, o nome do Dr. Peter Hallam começou a andar na boca de toda a gente. E para melhorar ainda mais as coisas, Pattie Lou Jones parecia ter renascido desde que fora submetida à intervenção cirúrgica. Também foi apresentada uma peça breve sobre a sua excelente recuperação.
Toda a gente em Los Angeles telefonava a Peter para lhe dizer que a entrevista fora magnífica, que fora uma excelente oportunidade para os transplantes de coração se tornarem mais aceitos. Todavia, Peter atribuía todo o crédito por aquele trabalho aos esforços de Melanie e não se cansava de afirmar que o mérito era todo dela. Os elogios que ele lhe tecia eram tais que, quando finalmente ela foi a Los Angeles durante o último fim-de-semana em setembro, todo o pessoal médico do hospital a tratou como se fosse uma amiga de longa data, tal como Mark e Matthew. Pamela continuava a mostrar uma certa reserva e Mrs. Hahn parecia mais cordial.
— Tenho quase a sensação de que regressei à casa, Peter — disse Melanie com um sorriso de felicidade nos lábios, enquanto ele a levava de automóvel até o hotel.
Tinha marcado quarto no Bel-Air por este ficar mais próximo da casa dele e porque ela preferia um sítio sossegado. Haviam decidido que Peter passaria a noite com ela e tanto um como o outro mal podiam esperar por esse momento. Pareciam dois jovens a escapulir-se para um hotel e Melanie riu-se ao pensar nisso.
No dia seguinte Peter diria aos filhos que tivera de ficar no hospital por causa de um doente. Apesar daquela combinação, tivera o cuidado de informar todos os seus contatos no hospital a respeito do local onde poderia ser encontrado, no caso de a sua presença ser necessária durante a noite.
— É tão bom estar de volta. — Melanie deu uma volta pelo quarto grande e alegre, despiu-se e sentou-se, apenas com a roupa interior, a olhar para Peter com um ar feliz. Tinham passado três semanas e meia desde a última vez que o vira, mas não conseguira ir mais cedo, a despeito das saudades e da solidão que sentira.
Houvera uma emergência na estação de televisão, Jessica adoecera e precisara de mais tempo do que o previsto para reorganizar as suas vidas. Era sempre assim, mas naquele ano, Melanie tivera mais pressa. Sentia uma necessidade absoluta de seguir para Los Angeles, a fim de poder estar com Peter.
— É uma sensação maravilhosa ver-te de novo, Mel — confessou ele. — É horrível termos de estar separados por cinco mil quilômetros.
— Eu sei — concordou Melanie, mas não existia qualquer solução para aquele problema, o que ambos sabiam. Encomendaram o jantar através do serviço de quartos, e saborearam aqueles momentos a sós. Já haviam feito amor uma vez, quando Peter perguntou a Melanie como é que ia a elaboração do novo contrato de trabalho. — Pelo menos, sabemos aquilo que eu pretendo — respondeu ela. — A grande questão é saber se as minhas pretensões serão satisfeitas.
Aquela situação assemelhava-se à relação de ambos e Peter sorriu e beijou-a nos lábios com ternura.
— Eles são doidos se não te derem o que quiseres. Tu és a melhor coisa que eles têm e sabem-no bem — declarou Peter com convicção.
Melanie sorriu perante o elogio.
— Talvez eu devesse encarregar-te de negociar o meu contrato, em vez do advogado — retorquiu ela.
— Quando é que começas realmente as negociações? — perguntou Peter.
— Dentro de mais ou menos duas semanas. Peter parecia triste, mas mais resignado.
— Isso significa, calculo eu, que não te poderei ver durante um mês — continuou ele.
Mel não podia contradizer o que Peter dizia. A negociação do contrato era sempre um período de grande tensão para si, e queria estar disponível durante esse processo. Não estaria com disposição para ir a lado nenhum, nem sequer para se encontrar com Peter.
— Achas que, desta vez, podes ser tu a ir a Nova Iorque? — perguntou ela.
— Duvido muito — respondeu ele, abanando a cabeça. — No mês passado, fizemos dois transplantes do coração. — continuou Peter, mas ela já estava ao corrente daquelas operações. — E estamos à espera de poder vir a realizar um transplante duplo de coração e pulmão. Durante bastante tempo, não poderei ir a parte alguma.
— Poderias — chamou-lhe Melanie a atenção — mas não queres. Existe uma diferença. — Todavia, ela compreendia as razões que o levavam a assumir aquela atitude. Ambos eram prisioneiros das suas carreiras profissionais, das suas vidas e dos filhos. Tratava-se de uma situação impossível; era quase como se estivessem casados com outras pessoas, sendo obrigados a aceitar aquilo que lhes era concedido, enquanto pudessem.
Melanie não voltou a ver os filhos de Peter até domingo à tarde, na noite anterior àquela em que apanharia o vôo “olhos vermelhos”. Durante os dias que ela passara em Los Angeles, ambos se haviam mantido quase escondidos no Hotel Bel-Air. Desejavam estar sozinhos o máximo de tempo possível, e Melanie achava que era melhor não estarem com os miúdos. J se apercebera de que Pamela, regressada ao seu próprio território, não se mostrava tão simpática. Em sua casa, a rapariga sentia-se mais confiante, além de que tinha de novo a presença do pai, sem ser obrigada a partilhá-lo com estranhos. Mas os rapazes não haviam mudado de atitude. Mark não a largou, querendo saber todas as novidades sobre Valerie, enquanto Matthew apenas desejava sentar-se ao seu colo e abraçá-la. A tarde e o serão passaram com demasiada rapidez. Melanie tinha a impressão de que haviam decorrido apenas algumas horas desde que chegara e já estava de novo no aeroporto com Peter, à espera do avião e com lágrimas nos olhos. Não queria deixá-lo, mas era forçada a isso.
— Esta vida que nós levamos é de loucos, não concordas? — perguntou ela.
— De fato assim é — aquiesceu Peter.
Nessa altura, o pager entrou em funcionamento e ele apressou-se para o telefone mais próximo. Foi informado de que havia um problema com um dos seus doentes submetido a um transplante. Aquela emergência obrigava-o a ir-se embora imediatamente. Durante alguns segundos, aquele telefonema trouxe-lhe à memória a noite em que operara Marie Dupret e telefonara a Melanie para o aeroporto, precisamente quando ela se encontrava prestes a entrar no avião. Mas, daquela vez, ela não fora convidada, não se encontrava a fazer uma reportagem e tinha de estar em Nova Iorque sem falta na manhã seguinte. Peter nem sequer teve possibilidades de aguardar pela chamada do vôo em que Melanie seguiria. Foi forçado a beijá-la naquela altura e correu pelo longo corredor do terminal, voltando-se para trás uma ou duas vezes para lhe acenar antes de desaparecer, deixando-a sozinha.
Era cruel terem ambos carreiras tão exigentes, pensou ela quando entrou no avião e se dirigiu para a primeira classe. Se alguém lhe pedisse um autógrafo, partiria o braço a essa pessoa. Não estava com disposição para ser simpática com quem quer que fosse. Felizmente, ninguém lhe dirigiu a palavra durante o percurso de Los Angeles até Nova Iorque. Às seis e trinta da manhã seguinte, entrou em casa, sentindo-se fatigada e deprimida. Quando telefonou a Peter para o hospital às sete da manhã, hora dele, foi informada de que o médico tinha acabado de ir para o bloco operatório. Era uma existência deveras solitária para ambos, mas não havia forma de ser evitada. Melanie não teve possibilidades de voltar a encontrar-se com Peter durante todo o mês de outubro. As negociações do seu novo contrato de trabalho estavam a decorrer de maneira acalorada e difícil.
— Já te esqueceste completamente de mim ou existe algum resquício de esperança para o próximo mês? — perguntou Peter, que já tinha começado a queixar-se todos os dias ao telefone.
Por seu lado, Melanie pensava que se voltasse a ver outro sobrescrito florido de Mark para Valerie desataria aos gritos.
Naquela altura, o rapaz já deveria ter comprado todos os cartões românticos que pudessem existir em todo o estado da Califórnia, e a correspondência entre os dois enlouquecia-a, mas fazia as delícias de Valerie.
— Prometo que este mês vou sem falta — afirmou ela.
— Foi precisamente isso o que disseste no mês passado — queixou-se Peter.
— É por causa do maldito contrato e, além disso, sabes bem que tive de trabalhar durante dois fins-de-semana — justificou-se ela. Isso acontecera quando o presidente da União Soviética, acompanhado da mulher, se tinha deslocado aos Estados Unidos para uma visita inesperada. Melanie fora enviada para Washington, D. C. a fim de entrevistar a primeira-dama soviética, e simpatizara bastante com a senhora. No fim-de-semana a seguir, tivera de fazer uma reportagem sobre a recuperação do presidente. — Não há nada que eu possa fazer, Peter — continuou Melanie.
— Eu compreendo isso, mas não posso queixar-me a mais ninguém — retorquiu Peter.
Mel sorriu. Havia ocasiões em que se sentia da mesma maneira em relação aos doentes dele.
— Prometo que no próximo fim-de-semana estarei em Los Angeles. — E foi fiel à sua palavra.
Por pouca sorte, Peter passou a maior parte do tempo no bloco operatório com Marie, a qual vira a sua saúde a deteriorar-se subitamente. Durante o último mês fora sujeita a duas intervenções cirúrgicas, o que não evitara que viesse a padecer de todas as complicações características dos transplantes.
Em virtude daquela situação, Melanie viu-se forçada a passar grande parte do seu fim-de-semana a fazer compras e a sair com os filhos de Peter. Quando fez algumas compras para as filhas, levou Pamela consigo, e almoçaram as duas no Polo Lounge do Hotel Beverly Hills, o que Pam adorou, apesar de não o ter admitido. Os olhos dela ficavam arregalados de surpresa sempre que alguém se aproximava da mesa com o intuito de pedir um autógrafo a Melanie, o que aconteceu umas quatro ou cinco vezes antes de terem terminado o almoço. Depois disso, levou Matthew ao cinema. Finalmente, encontrou-se na companhia de Peter, mas este estava distraído, sempre à espera que o telefone tocasse e a pensar em Marie.
— Sabes, se ela não estivesse tão doente, eu teria ciúmes — disse Melanie a tentar brincar com ele acerca do assunto, mas nenhum deles se encontrava com disposição para brincadeiras.
— Ela está muito doente, Mel — redargüiu Peter.
— Eu sei disso. No entanto, é difícil partilhar-te com ela, quando temos de esperar tanto para nos encontrarmos.
Peter recordou-se de algo que tivera intenção de lhe perguntar.
— E quanto ao feriado do Dia de Ação de Graças?
— O que é que queres dizer? — perguntou ela com uma expressão abstrata.
— Tenho andado para te perguntar se te agrada a idéia de vires até cá com as tuas filhas. Costumamos comemorar o Dia de Ação de Graças de maneira tradicional e gostaríamos que vocês estivessem conosco — acrescentou Peter. — Seria uma espécie de reunião familiar.
— O feriado é daqui a cerca de três semanas, não é verdade? — Peter consultou o seu calendário e acenou que sim.
— Nessa altura, com certeza já teremos acordado os termos do contrato — continuou ela.
— Melanie, dar-se-á o caso de tudo ser determinado por isso, até mesmo o Dia de Ação de Graças? — interrogou Peter com uma expressão irritada, que a levou a tentar pôr água na fervura com um beijo.
— Ando debaixo de uma enorme tensão, nada mais. Mas nessa altura já todas as negociações deverão estar concluídas.
— Isso quer dizer que vens? — perguntou ele.
— Sim — confirmou ela.
Primeiro Peter mostrou-se entusiasmado com aquela promessa para logo em seguida ficar com uma expressão preocupada.
— E se por acaso o contrato não for celebrado até o Dia de Ação de Graças?
— Nesse caso, venho de qualquer maneira. O que é que pensas que eu sou? Algum monstro? — perguntou Mel, trocista.
— Não, uma mulher extremamente ocupada e, além do mais, demasiado importante! — respondeu Peter.
— Continuas a amar-me apesar disso? — inquiriu Melanie que, de tempos a tempos, perguntava a si própria se isso não afetaria os sentimentos de Peter. Sempre tivera medo de que o seu êxito profissional lhe pudesse custar o amor de um homem tão bom como ele.
Porém, naquele momento, Peter tomou-a nos braços, apertando-a com força contra o seu corpo.
— Estou mais apaixonado por ti do que nunca — afirmou ele.
Naquela noite, quando acompanhou Melanie ao aeroporto, ficou junto dela até a hora do embarque no avião.
Na manhã seguinte, quando deu as novidades a Jessica e a Valerie, esta soltou um grito de alegria e subiu as escadas a correr, entrando no quarto para escrever rapidamente um bilhete a Mark, antes de ir para a escola. A mãe ficou a olhar para as escadas com uma expressão de aborrecimento.
— Será que ela já não pensa noutra coisa? — perguntou Mel agastada.
— Quase nunca — respondeu Jessica com franqueza.
— Mal posso esperar para ver as notas da tua irmã no fim do semestre — disse Melanie.
Jessica não fez qualquer comentário, visto que sabia o quanto seriam más. Aquela escrita constante de cartas para Mark refletira-se de forma negativa nos trabalhos de casa da irmã.
— Vai ser divertido ir à Califórnia passar o Dia de Ação de Graças — continuou ela, tentando mudar de assunto.
— Espero bem que sim — redargüiu Melanie, sentindo-se cansada.
Antes de desfazer as malas que levara para o fim-de-semana, despediu-se das filhas com um beijo e telefonou para o advogado. Sabia que ele ia para o escritório antes das oito todas as manhãs. As notícias que ele tinha para lhe dar não eram muito agradáveis. A cadeia de televisão continuava a empatar a celebração do contrato, na esperança de que Melanie acabasse por desistir de algumas das coisas que reivindicava. Apesar daquele impasse, o advogado chamou-lhe a atenção para o fato de que não seria obrigada a fazer concessões e que o mais provável seria eles acabarem por aceitar as condições que ela impunha. No caso de não estarem dispostos a ceder, haveria de surgir pelo menos uma dúzia de ofertas de trabalho, numa questão de momentos, caso ela desse a entender que se encontrava receptiva a ofertas.
— Mas a questão não é essa, George. Quero continuar a trabalhar onde estou — disse Melanie.
— Sendo assim, deve manter uma posição firme — aconselhou ele.
— É essa a minha intenção. Há alguma possibilidade de termos este assunto resolvido até o feriado do Dia de Ação de Graças? — perguntou Mel.
— Vou fazer todo o possível — respondeu o advogado.
Contudo o possível não foi suficiente. Quando Melanie, acompanhada das filhas, embarcou três semanas mais tarde no avião que as levaria a Los Angeles, nada havia sido acordado em relação ao seu contrato de trabalho. O advogado insistia que se encontravam à beira de um acordo; no entanto, nada fora ainda assinado, o que estava a enlouquecê-la.
No momento em que desembarcou, Peter conseguiu aperceber-se do seu nervosismo pela sua maneira de andar, mas agora dispunham de quatro dias juntos e ele esperava que ela conseguisse abstrair-se daquele problema. Peter rezava aos céus para que o presidente não sofresse um atentado e que ninguém necessitasse de um transplante do coração durante o fim-de-semana. As suas preces foram ouvidas. Passaram um feriado em paz e sossego, com os cinco jovens felizes por se encontrarem de novo reunidos. Mrs. Hahn esmerou-se na preparação da festa do Dia de Ação de Graças, o que deixou todos os comensais com grandes dificuldades para conseguirem deixar a mesa do jantar.
— Meu Deus! Não sou capaz de me mexer — queixou-se Valerie, olhando com desespero para o estômago. Mark apressou-se a ir em seu socorro, ajudando-a a levantar-se da cadeira.
Jessica e Pamela foram para o quarto jogar xadrez. Matthew aninhou-se junto da lareira embrulhado na sua manta favorita, e adormeceu na companhia do seu urso de pelúcia.
Melanie e Peter retiraram-se para o escritório para conversarem mais à vontade. Todos pareciam felizes. Ele havia insistido para que não ficassem num hotel, mas sim em sua casa, no quarto dos hóspedes. Uma vez que Jessica também se encontrava presente, Melanie presumia que Pamela não se sentiria tão perturbada com a estada das visitas em sua casa. Na realidade, a filha mais velha era a garantia de uma visita sem problemas emocionais no que respeitava a Pamela.
— O jantar estava excelente, Peter — elogiou Mel.
— Sinto-me muito satisfeito por vocês estarem aqui — retorquiu ele à procura dos olhos dela e reparando nas rugas de cansaço. Quando Melanie estava no ar, a maquiagem ocultava aquelas rugas, mas ele sabia que existiam e para si eram uma fonte de preocupação. Ela não deveria ter andado a trabalhar tanto, nem tão-pouco permitir que a tensão do seu dia-a-dia a afetasse daquela forma. — Tens andado a esforçar-te em demasia, meu amor.
— O que é que te leva a dizer isso? — perguntou Melanie, estendendo as pernas na direção da lareira.
— Perdeste peso e tens um ar cansado — respondeu Peter.
— Suponho que sim... O meu trabalho é muito difícil — disse ela, sorrindo-lhe.
Mas sabia que ele também não estava a ter uma vida fácil, por causa de dois novos doentes submetidos a transplantes e a Marie, a qual, uma vez mais, começara a sofrer de problemas devido aos corticóides, apesar de mostrar algumas melhoras.
— Nada de novo sobre o teu contrato de trabalho? — inquiriu Peter.
— O George diz que agora é uma questão de horas. Deverá ser assinado na segunda-feira quando eu regressar ao trabalho — replicou Melanie.
Peter manteve-se em silêncio durante bastante tempo, depois olhou para ela. Não sabia de que maneira deveria abordar aquele assunto, mas era agora ou nunca. Talvez fosse a sua última oportunidade para sempre ou, pelo menos, por um ano. Tinha de fazê-lo.
— Mel.
— Sim? — retorquiu ela, que até então estivera a olhar fixamente para as chamas da lareira em silêncio. Quando ele começou a falar, ergueu o olhar e esboçou um sorriso, sentindo que o corpo se relaxava, por fim, após as últimas semanas de grande tensão. — Sim, senhor doutor?
Peter desejou aproximar-se mais dela, mas conteve-se.
— Quero perguntar-te uma coisa.
— Há algum problema? — inquiriu Melanie, julgando que talvez fosse algo relacionado com Pamela; contudo, ultimamente a jovem tinha andado bem. Com certeza muito melhor do que Valerie, cujas notas nunca tinham sido tão baixas. No entanto, tencionava falar com Peter sobre esse assunto quando o fim-de-semana estivesse prestes a terminar. Tinham de impor algumas restrições aos dois apaixonados, antes de Valerie acabar por chumbar o ano, e Melanie queria o apoio de Peter. Todavia, não havia pressa em falar naquele assunto desagradável.
— O que é que se passa, meu amor? — perguntou ela.
— É uma coisa que tenho andado para falar contigo a algum tempo. É sobre o teu contrato — disse ele por fim.
Melanie mostrou-se surpresa. Até então, Peter tivera o cuidado de se manter afastado daquele assunto, não a aconselhando sobre a sua carreira, o que ela considerava ser a melhor atitude. Peter sabia tanto da sua atividade profissional como ela de cirurgia. Só poderiam oferecer um ao outro apoio moral.
— O que é que tem o meu contrato de trabalho? — inquiriu Melanie, perplexa.
— E se não o assinasses?
— O problema não reside em mim — retorquiu ela com um sorriso — mas sim neles. — Por mim, assinava-o já, se aqueles estupores concordassem com todas as condições que eu e o meu advogado estabelecemos. Acho que eles acabarão por ceder, apesar de até agora isto ter sido uma constante guerra de nervos.
— Eu sei. Mas, e se te recusasses a assiná-lo. — Peter interrompeu-se, contendo a respiração e prosseguindo momentos depois, ao verificar que Melanie se mantinha calada. — Supõe que te decidias a fazer um contrato com qualquer outra cadeia de televisão? — perguntou ele por fim.
— É muito possível que venha a ter de fazer isso mesmo, se não conseguir o que quero — replicou Melanie sem ter compreendido ainda onde é que Peter queria chegar. Estava longe de imaginá-lo. — Mas por que é que perguntas isso? Em que é que estás a pensar?
Peter fitou-a diretamente nos olhos e disse o que tinha a dizer, numa única palavra.
— Casamento.
Melanie ficou perplexa, depois chocada e, em seguida, empalideceu. Olhou fixamente para Peter.
— O que é que queres dizer com isso? — perguntou ela num murmúrio.
— Que quero casar contigo, Mel. Há meses que ando a tentar arranjar coragem para te pedir em casamento, mas não queria arruinar a tua carreira. Agora, e uma vez que o teu contrato está a levar tanto tempo para ser assinado, pensei que... Perguntei a mim mesmo. — Peter interrompeu-se, faltando-lhe as palavras.
Melanie levantou-se e atravessou a sala em passadas largas, colocando-se junto da lareira de costas para ele. Ao fim de algum tempo, voltou-se em movimentos lentos.
— Não sei o que hei de dizer, Peter.
Este tentou esboçar um sorriso, mas sentia-se tão constrangido que não foi capaz, apesar de todos os seus esforços.
— Um simples sim bastaria — disse.
— Mas eu não posso fazer isso. É impossível desistir agora de tudo o que consegui fazer em Nova Iorque em termos de carreira. É absolutamente impossível! — acrescentou Melanie com a voz embargada e lágrimas nos olhos. — Amo-te, mas não posso fazer o que me pedes. Começou a tremer sem conseguir controlar-se.
Peter aproximou-se para abraçá-la. Apertou-a contra si com lágrimas nos olhos, que Melanie não conseguiu ver, enquanto a enlaçava.
— Está tudo bem Mel. Eu compreendo a tua posição, mas ainda assim, tinha de fazer-te esta pergunta — justificou-se Peter.
Ela afastou-se para poder ver melhor o rosto dele. Naquele momento, as lágrimas brotavam dos olhos de ambos, correndo-lhes livremente pelas faces.
— Eu amo-te. Oh, meu Deus, não me peças para fazer isso, Peter! Não me obrigues a provar-te algo que não posso provar — pediu Melanie.
— Não precisas de provar-me o que quer que seja, Mel — afirmou ele, limpando as lágrimas do rosto e sentando-se no sofá.
Não podiam continuar a tentar enganar-se um ao outro. Aquela situação era insustentável, sendo impossível continuarem a atravessar o país, a fim de se poderem encontrar. O fim daquela relação era inevitável e ambos se apercebiam disso.
Peter olhou atentamente para ela, tentando ler-lhe a alma, enquanto abanava a cabeça com lentidão num gesto de desânimo.
— Eu costumava pensar que éramos pessoas bafejadas pela sorte — continuou ele. — Ambos temos filhos excelentes, boas carreiras profissionais, e o privilégio de nos termos conhecido. — Peter sorriu com uma expressão de sofrimento. — Agora já não penso que tenhamos assim tanta sorte.
Melanie não fez qualquer comentário; assoou o nariz e limpou as lágrimas que lhe corriam pelas faces.
— Não sei o que hei de dizer, Peter — repetiu ela.
— Não digas nada. Apenas pretendo que saibas que se por acaso mudares de idéias, eu continuo aqui e que te amo. Quero casar contigo. Terás todo o meu apoio para o que decidires fazer, desde que esteja dentro dos limites considerados razoáveis. Tu poderias trabalhar tanto quanto te apetecer em qualquer das cadeias de televisão de Los Angeles — argumentou Peter.
— Mas não compreendes que Los Angeles não é o mesmo que Nova Iorque? — perguntou Melanie com uma expressão de desespero.
Naquele momento, Peter sentiu vontade de lhe perguntar se Nova Iorque tinha mais importância para ela do que ele próprio, mas compreendeu que aquela pergunta não seria justa.
— Eu entendo isso — respondeu ele. — Não é necessário discutirmos esse assunto. Mas eu tinha de te fazer essa pergunta.
— Até parece que eu estou a optar pela minha carreira em detrimento da tua pessoa, o que é tão desagradável — redargüiu Melanie.
— Por vezes, a verdade é desagradável — continuou Peter.
— Queres continuar a ver-me. A nossa relação... enfim, o que quero perguntar é: se eu assinar o meu novo contrato e continuar a viver em Nova Iorque, fica tudo como dantes? — perguntou Melanie a tremer com receio da resposta. O que lhe restaria naquele momento se viesse a perdê-lo? Nada.
— Sim, continuaremos a manter esta relação durante tanto tempo quanto formos capazes de suportá-la — afirmou Peter. — Todavia, é uma situação que não poderá arrastar-se indefinidamente, como bem sabemos e, quando acabar, Mel, ambos iremos perder algo de maravilhoso, algo de que precisamos muito. Nunca amei uma mulher com a mesma intensidade com que te amo. — Ao ouvir aquelas palavras tão sinceras, Melanie recomeçou a chorar, sem conseguir agüentar mais tempo a tensão emocional. Saiu de casa para apanhar um pouco de ar fresco. Decorrido algum tempo, Peter foi ter com ela. — Lamento muito ter perguntado se querias casar comigo, Mel. A minha intenção não era fazer com que te sentisses infeliz.
— Não fizeste. O que acontece é que por vezes... — Melanie interrompeu-se com os olhos marejados de lágrimas.
— Por vezes a vida obriga-nos a fazer tantas escolhas que se torna difícil encará-la. Tudo o que eu pretendia era um contrato de trabalho mais vantajoso e agora sinto que se decidir assiná-lo estarei a despedaçar o teu coração.
— Isso não é verdade — disse Peter, para a tranqüilizar e abraçando-a com mais força. — Estás a fazer o que é melhor para ti, Mel, o que é da maior importância. Respeito essa tua atitude.
— Por que raio é que nós temos tão pouca sorte? — retrucou ela a chorar convulsivamente. — Porque é que não vivemos na mesma cidade?
Peter sorriu. Naquela altura já tinha aceitado a sorte que o destino lhes reservara. Ela continuava a ser a mesma pessoa do início da relação e ele procedera erradamente ao tentar alterar isso.
— Porque a vida se encontra cheia de desafios, Melanie. Haveremos de conseguir ultrapassar tudo. Que diabo, ainda que eu seja forçado a percorrer cinco vezes a distância que existe entre nós, continuo a querer encontrar-me contigo! — afirmou Peter, olhando para ela outra vez por entre a escuridão que os envolvia. — Queres vir cá passar o Natal?
— Sim; isto é, se não estiver a trabalhar — respondeu Melanie.
— De acordo — aquiesceu Peter, tentando contentar-se com aquela resposta, embora não fosse esse o caso.
No entanto, não lhe restava qualquer outra opção e, naquela noite, deitados lado a lado, ambos se encontravam embrenhados nos seus próprios pensamentos. No dia seguinte e no que se lhe sucedeu, o ambiente era pesado.
A presença dos filhos não contribuiu para aligeirá-lo. Val e Mark haviam feito planos para todos os momentos do fim-de-semana, enquanto Jessica, Pam e Matthew haviam decidido ir ao cinema e visitar amigos; tudo atividades que os mantinham fora de casa. Daquela vez, Peter nem sequer se deu ao trabalho de insistir para que se mantivessem juntos; tinha demasiadas coisas em que pensar. Por seu turno, Melanie dava a impressão de estar ainda mais preocupada quando se foram embora do que quando da chegada.
O telefonema do seu advogado na manhã seguinte não a animou nada.
— Ora bem, conseguimos! — anunciou ele quase a gritar vitória.
Melanie andara de um lado para o outro no silêncio do seu quarto, a pensar no rosto de Peter quando se despedira dele. Ele havia-se mostrado devastado, ela sentira-se ainda pior do que já estava, mas não lhes restara qualquer alternativa.
— Conseguimos o que? — Melanie sentia-se nervosa demais para conseguir raciocinar. Tinha mandado as filhas para a escola apesar de terem viajado toda a noite no “olhos vermelhos”.
— Deus nos valha! — exclamou o advogado. — O que é que andou a fazer na Califórnia, Mel? Passou o fim-de-semana todo a marijuana ou a LSD? Conseguiu o contrato que tanto almejava! — continuou o advogado que obviamente estava tão exausto como ela própria. Daquela feita, a luta fora longa e bastante renhida, mas tinha valido a pena.
Melanie tivera a coragem de se manter irredutível e ele havia conseguido obter tudo o que ela pretendera. O advogado não tinha muitos clientes com coragem para proceder daquela maneira, mas Melanie tinha.
— A assinatura do contrato está marcada para hoje ao meio-dia. Consegue estar no estúdio a essa hora?
— Que diabo! Claro que sim! — respondeu ela com um sorriso rasgado.
Havia dois meses que esperavam por aquele desenlace; todavia, de uma forma estranha, quando desligou o telefone não se sentiu entusiasmada por ter conseguido o que mais desejava. A vitória perdera o seu conteúdo, graças a Peter. Melanie sentia que, no momento em que estivesse a assinar o contrato, estaria a atraiçoá-lo.
No entanto, ao meio-dia em ponto Melanie encontrava-se nos escritórios da cadeia de televisão, onde George e todos os diretores aguardavam a sua chegada. Na sala encontravam-se dez pessoas, tendo sido ela a última a chegar; envergava um fato preto Dior e sobre o braço levava um casaco de vison. A indumentária era complementada por um chapéu preto com um véu, que se coadunava com o seu estado de espírito. Mel parecia uma viúva, num filme antigo, que se preparasse para assistir à leitura de um testamento.
Fez uma entrada dramática, o que pareceu agradar bastante aos homens da cadeia de televisão. O dinheiro que dispendiam com Melanie Adams era sempre bem aproveitado e até mesmo eles sentiam respeito pela longa batalha que ela os obrigava a travar.
Mel distribuiu sorrisos por todos os presentes como se fossem bagos de arroz lançados num casamento e sentou-se com um olhar na direção de George, o qual lhe acenou. O advogado mal conseguia aguardar pelo momento em que convocaria a imprensa e anunciaria o término daquelas negociações. Melanie conseguira um contrato magnífico e todos os que se encontravam naquela sala tinham conhecimento disso, incluindo a própria Melanie. Ela passou uma vista de olhos pelo contrato, de caneta na mão. Os responsáveis pela cadeia de televisão já haviam assinado e tudo o que faltava era ela assinar na linha tracejada. Preparou a caneta, mas deteve-se, sentindo a palma das mãos umedecida ao mesmo tempo em que o seu rosto empalidecia; de súbito, parecia-lhe estar a ver o rosto de Peter à sua frente. Imobilizou-se, pálida e pensativa, a olhar para George, o qual acenou de novo com a cabeça.
— Está tudo bem, Mel — assegurou ele, com um sorriso.
Subitamente, Melanie apercebeu-se de que não era capaz de ir com aquilo para a frente. Levantou-se, continuando a segurar na caneta, e abanou a cabeça, fitando os homens para quem havia trabalhado até então.
— Lamento muito, mas não posso assinar o contrato — declarou ela.
— Mas o que é que não está certo? — perguntou um deles, mostrando uma enorme perplexidade. Estaria ela louca? Se lhe tivessem feito aquela pergunta Mel teria respondido afirmativamente. — Está tudo aí, Melanie, preto no branco. Tudo o que pediu.
— Eu sei — retorquiu ela, sentando-se de novo. Estava desfeita. — Não consigo explicar o motivo, mas o certo é que não posso assinar o contrato.
Como se fossem um só corpo, os presentes afivelaram uma expressão carrancuda. George seguiu-lhes o exemplo.
— Mas que raio...! — começou o advogado a dizer.
Melanie olhou para cada um dos homens, continuando a tremer e sentindo as lágrimas a arderem-lhe nos olhos, mas naquele momento não estava capaz de chorar. Tinha desejado aquele contrato com tanto desespero que quase fora capaz de saboreá-lo, mas havia algo que almejava ainda mais e que sabia que perduraria ao longo de toda uma vida, não somente pelo espaço de um ano. Peter tinha toda a razão. Ela poderia trabalhar em Los Angeles. A sua carreira profissional não chegaria ao fim só por decidir abandonar Nova Iorque.
Melanie levantou-se outra vez da cadeira e começou a falar numa voz cheia de firmeza.
— Meus senhores, decidi mudar-me para a Califórnia.
Na sala fez-se silêncio.
— Quer dizer que assinou com uma cadeia de televisão de lá? — perguntou alguém incrédulo.
Agora sabiam que ela estava louca. Não poderiam ter-lhe oferecido mais dinheiro. Ou poderiam? Os petulantes! No entanto, Melanie sempre mostrara ter mais classe do que isso. Ninguém compreendia o que é que se tinha passado, muito menos o seu próprio advogado.
Então, Melanie engoliu em seco e dirigiu-se a todos em geral.
— Vou casar-me — anunciou ela.
E sem mais uma palavra saiu da sala em passos rápidos, dirigiu-se para o elevador e saiu do edifício antes que alguém a pudesse impedir.
Foi a pé até a casa e, quando chegou, sentia-se um pouco melhor. Tinha acabado de deitar pela janela toda a sua carreira, mas pensava que Peter era merecedor daquela decisão. Esperava apenas não se ter enganado enquanto agarrava no telefone e começava a ligar o número dele.
A telefonista do hospital chamou-o pelo altifalante, até que finalmente ele respondeu. Em menos de um minuto, Peter atendeu a chamada, parecendo atarefado e distraído, mas feliz com o telefonema.
— Estás bem? — perguntou ele, apesar de estar a prestar pouca atenção à resposta.
— Não, não estou nada bem — retorquiu Melanie.
Ao ouvir aquilo, Peter começou a prestar-lhe mais atenção, apercebendo-se da estranheza na voz dela. Deus do céu! Tinha acontecido alguma coisa. Recordou-se do dia em que Anne falecera... As gêmeas...
— O que é que se passa? — perguntou Peter com ansiedade, sentindo o coração a bater apressadamente; parecia que lhe saltava do peito.
— Fui aos escritórios da cadeia de televisão com a intenção de assinar o contrato. — começou Melanie a dizer, parecendo atordoada. — E não assinei.
— Não... que!? — perguntou Peter, incrédulo.
— Não assinei — repetiu ela.
— Tu... o que!? — continuou ele, sentindo que lhe faltavam as pernas que parecia terem-se transformado em gelatina. — Estás doida?
— Foi isso mesmo que eles disseram — retorquiu Melanie e, de súbito, entrou em pânico, aterrorizada ao pensar que Peter poderia ter mudado de idéia e que agora talvez fosse tarde demais. Tinha arremessado com tudo pela janela fora. Perguntou quase num sussurro: — Estarei louca?
Naquele momento, Peter compreendeu tudo o que ela tinha feito e por que razão; sentia as lágrimas a marejarem-lhe os olhos.
— Oh, minha querida, não estás doida. Sim, claro que estás! Oh, meu Deus, amo-te tanto! Tencionas manter essa decisão? — perguntou ele sem querer acreditar no que acontecera.
— Tenho a impressão de que sim. Acabei apenas de deitar fora um milhão de dólares, que é o quanto valia um ano de trabalho. Parece-me que isto significa que estou a falar a sério — acrescentou Melanie, sentando-se e começando a rir às gargalhadas. Não foi capaz de deixar de rir e ele também não. Melanie tirou o chapéu e o véu da cabeça e lançou-os pelo ar. — Doutor Hallam, tenho a informá-lo de que a partir do dia trinta e um de dezembro, véspera do Ano Novo, estarei desempregada. Praticamente, tornar-me-ei uma vagabunda.
— Magnífico! — exultou ele. — O meu maior desejo sempre foi contrair matrimônio com uma vagabunda.
O riso do lado da linha de Melanie interrompeu-se.
— Ainda queres? — perguntou ela a medo.
— Sim — respondeu Peter com uma voz cheia de ternura. — Queres casar comigo, Mel? — Ela acenou que sim e ele aguardou, sentindo-se aterrorizado pelo silêncio dela. — Não consigo ouvir-te.
— Eu respondi que sim — afirmou Melanie, após o que se sentiu assolada por um enorme nervosismo. — Parece-te que haja alguém em Los Angeles que esteja disposto a contratar-me?
— Estás a brincar? — perguntou Peter, começando a rir-se de novo. — Ainda esta noite irão bater à tua porta. Mas naquele momento havia outras coisas a preencher-lhe os pensamentos. — Mel, gostaria que nos casássemos no Natal.
— De acordo — aquiesceu ela, ainda um pouco atordoada pela alteração que de súbito a sua vida sofrera; tudo o que ele dissesse naquela altura mereceria o seu acordo. — No Natal, exatamente quando? — continuou Melanie.
Aquele momento parecia-lhe um sonho e ainda não sabia durante quanto mais tempo é que continuaria a sonhar. Recordava-se de uma sala de reuniões cheia de homens de fatos escuros e de ter-se recusado a assinar um contrato de trabalho. Depois disso, tudo o mais não passava de imagens desfocadas, com a exceção daquela chamada telefônica.
Mal se recordava de como é que havia chegado a casa. Teria ido a pé? Por acaso apanhara um táxi? Teria voado?
— O que dizer na véspera de Natal? — perguntou Peter.
— Com certeza. Dentro de quanto tempo é que isso é? — inquiriu Melanie.
— Cerca de três semanas e meia. Calha-te bem?
— Sim — respondeu ela, acenando com a cabeça em movimentos lentos, para em seguida perguntar: — Peter, achas que eu estou louca?
— Não, acho que és a mulher mais corajosa que alguma vez conheci e amo-te ainda mais por seres assim.
— Estou capaz de morrer de medo — afirmou Melanie.
— Não há motivos para isso — tranqüilizou-a Peter. — Vais conseguir arranjar um emprego magnífico em Los Angeles e seremos muito felizes. Verás que tudo vai correr de uma maneira maravilhosa — continuou ele, tentando afastar os receios que ela sentia.
Melanie esperava que ele estivesse certo. Só conseguia pensar no que tinha feito ao recusar-se a assinar o contrato por que tanto lutara. No entanto, se lhe pedissem de novo que o fizesse, teria recusado uma vez mais. Tomara uma decisão com a qual seria forçada a viver, quaisquer que fossem as conseqüências que daí adviessem, e as quais ela ainda não abarcara em toda a sua amplitude.
— O que é que vou fazer com a minha casa?
— Vais ter de vendê-la — respondeu Peter.
— Não achas que posso alugá-la? — Melanie sentia-se doente com a idéia de ter de desistir da sua casa para sempre. Naquela altura, via-se obrigada a tomar decisões muito importantes.
— Tens alguns planos de voltar a viver em Nova Iorque? — continuou ele.
— É claro que não, a não ser que tu decidas mudar-te para aqui — retorquiu ela.
— Nesse caso, por que motivo é que haverias de continuar a ter essa casa? Vende-a, Mel. Poderás utilizar o dinheiro em investimentos aqui, em Los Angeles — aconselhou Peter.
— Tencionas comprar uma casa nova? — Melanie começava a sentir que a confusão se apoderava de si, enquanto se sentava a olhar para o vazio.
Ouviu a campainha da porta soar à distância, mas não se levantou para abri-la. Era o dia de folga de Raquel e não havia pessoa alguma que ela desejasse ver naquele momento, muito particularmente repórteres, caso estes já se houvessem inteirado da novidade.
— Melanie, não precisamos de uma casa nova. Já temos esta — respondeu Peter, que dava a impressão de se sentir muito feliz; Mel, porém, sabia que não desejava viver naquele lugar. Fora a casa de Anne. O lar que ela tinha partilhado com Peter. Jamais seria a sua casa. No entanto, talvez de início... — Mel, tenta descontrair-te. Toma uma bebida ou qualquer coisa. Tenho de voltar ao meu trabalho no hospital. Telefono-te mais tarde e não te esqueças de que te amo — finalizou Peter.
— Também te amo — retorquiu ela num sussurro.
Durante a hora seguinte, Melanie não se levantou da cadeira onde se sentara, a pensar no que tinha feito.
Pouco depois George telefonou-lhe e ela tentou explicar-lhe o sucedido. O advogado disse-lhe que era da opinião que ela estava completamente doida, mas não deixava de admitir que a decisão que Mel tomara era de caráter bastante pessoal. Concordou em sondar as cadeias televisivas de Los Angeles e, naquela mesma noite, Melanie recebeu três ofertas de trabalho. Na semana seguinte, já tinha um contrato de trabalho, de acordo com o qual iria auferir o mesmo montante que teria recebido em Nova Iorque, e pelo qual tivera de esperar dois meses.
É claro que se tratava de Los Angeles, cidade que nada tinha a ver com Nova Iorque. A celeuma que Melanie havia originado com a sua despedida era inimaginável, o que lhe provocava agonias de cada vez que tinha de ir trabalhar.
Os responsáveis pelo estúdio tinham-lhe pedido que ficasse até o dia 15 de dezembro, o que lhe permitia sair duas semanas antes do termo do contrato. No entanto, era tratada por todos como uma traidora, e até mesmo Grant lhe fora dizer que pensava que ela tinha enlouquecido, achando que a decisão que Melanie tomara jamais daria bons resultados, que ela fora talhada para a vida frenética de Nova Iorque, que nunca se adaptaria ao mercado televisivo de Los Angeles e que o casamento não se coadunava com o seu estilo de vida. Melanie sentia-se à deriva no meio de um pesadelo horrível.
Por seu lado, as filhas observavam a mãe constantemente, como se esta as tivesse atraiçoado.
— Sabias de antemão que ias tomar essa decisão? — perguntara-lhe Jessica na altura em que tinha dado a novidade às gêmeas, estando a referir-se à aceitação da proposta de Peter. Mas a maneira como a filha se expressara dava a impressão de que lhe estava a perguntar se sabia que iria suicidar-se.
— Não, não sabia — respondeu Melanie.
— Quando é que ele te pediu em casamento? — continuou a filha.
— No Dia de Ação de Graças — respondeu Melanie.
De cada vez que Jessica olhava para a mãe nos seus olhos estava bem patente a acusação que não proferia. Valerie ficara tão nervosa que, sempre que a mãe olhava para ela, parecia estar prestes a vomitar, e nem ela parecia muito satisfeita com a mudança iminente. Teriam de mudar de escola a meio do ano, abandonar a casa a que se haviam habituado e os amigos. Quando Melanie colocou a casa à venda no mercado imobiliário, Val pensou que morreria. A propriedade foi vendida no primeiro fim-de-semana em que esteve à venda. Quando Mel tomou conhecimento do sucedido, sentou-se num degrau das escadas e começou a chorar. Tudo aquilo estava a acontecer com demasiada rapidez.
A única pessoa que parecia normal era Raquel, enquanto tratava de embalar as inúmeras caixas que seguiriam para a Califórnia.
— Eu disse-lhe, Mistress Mel. Eu bem lhe disse no verão passado que, dentro de seis meses...
— Oh, por amor de Deus, Raquel, cale a boca! — atalhou Melanie, impaciente.
No entanto, quando metade das coisas já se encontrava empacotada, deu-se conta de que não tinha pensado no que iria fazer com respeito à governanta. Na casa de Peter não havia lugar para Raquel e há já muitos anos que a mulher trabalhava na sua casa.
À meia-noite, hora da Califórnia, Melanie telefonou a Peter em pânico. Eram três horas da manhã em Nova Iorque.
— O que é que eu hei de fazer com a Raquel? — perguntou ela.
— Ela está doente? — retorquiu Peter, que na altura já se encontrava meio a dormir.
— Não, quero dizer quanto à sua ida para Los Angeles — explicou Melanie.
— Não a podes trazer, Mel — disse ele.
— E por que não? — ripostou ela.
— Para além de não haver espaço, Mistress Hahn não hesitaria em matá-la — continuou ele.
— Pessoalmente, prefiro muito mais que seja a Raquel a matar Mistress Hahn.
— A minha governanta é uma pessoa extremamente dedicada aos meus filhos. — Era a primeira vez que Peter falava com Melanie naquele tom de voz agreste, o que a esta não agradou.
— Ah, sim? E a Raquel é dedicada às minhas. Portanto, em que é que ficamos? — retrucou ela por sua vez.
— Por favor, tenta ser razoável — pediu Peter.
No entanto, até que ponto é que ela poderia ser razoável? Já tinha desistido do seu emprego e da sua casa, as suas filhas tinham de deixar os amigos, assim como a escola que freqüentavam. Que mais é que ele pretenderia que ela deixasse para trás? Raquel também?
— Peter, se ela não nos acompanhar, eu e as gêmeas também não estamos dispostas a ir.
— Oh, por amor de Deus! — exclamou ele, decidindo que já era tarde demais para discutir com Melanie. — De acordo, nós alugamos-lhe um apartamento.
— Muito agradecida — disse Mel.
Na manhã seguinte, deu aquela novidade a Raquel continuando a sentir-se irritada com a atitude que Peter assumira na noite anterior; porém, daquela vez, foi Raquel quem a surpreendeu.
— Para a Califórnia? Está louca? Eu vivo aqui, em Nova Iorque — declarou a governanta com um sorriso e beijando-lhe a face. — De qualquer forma, estou-lhe muito agradecida. Vou sentir saudades vossas, mas não tenho intenção de me mudar para a Califórnia. Só desejo que tenham uma vida cheia de felicidade. Vai casar-se com um homem bom, mas eu tenho o meu namorado nesta cidade. Talvez mais cedo ou mais tarde também eu decida casar-me — acrescentou Raquel com uma expressão esperançada e, obviamente, determinada a não ir para a Califórnia.
— Também nós vamos sentir muitas saudades suas — retorquiu Melanie ao pensar que, além dela e das filhas, não haveria um único rosto familiar na sua nova casa. Até mesmo a sua mobília seria armazenada. No lar de Peter não existia lugar para o seu mobiliário. À medida que os dias iam decorrendo, Melanie ia-se dando conta de que aquela nova situação não seria nada fácil.
No dia 15 de dezembro, exatamente duas semanas antes de expirar o seu contrato de trabalho, Melanie apresentou o noticiário das vinte e três horas pela última vez, a partir de Nova Iorque. Sabia que aproximadamente quinze dias mais tarde entraria no ar, já a serviço de uma cadeia de televisão de Los Angeles. Aquele período da sua vida tinha chegado ao fim. Desaparecera para sempre. Começou a chorar quando pousou o microfone e saiu do estúdio. Grant estava à sua espera do lado de fora. Abraçou-a e ela chorou nos braços dele. Grant abanou a cabeça, à semelhança de um pai demasiado atônito para falar, apesar de sentir orgulho nela. Melanie fizera algo de bom para si própria, o que lhe dava alegria. Peter Hallam era um homem excelente. Apenas esperava que tudo corresse pelo melhor: a carreira, as filhas e a mudança. Até certo ponto, era pedir demasiado. Porém, se havia alguém que pudesse ser bem sucedido, essa pessoa era Melanie.
— Desejo-te as maiores felicidades, Mel. Vamos ter saudades tuas — disse Grant.
Os colegas tinham querido organizar uma festa de despedida, mas Melanie havia recusado. Não seria capaz de assistir serenamente. As suas emoções encontravam-se demasiado à flor da pele. Prometeu que regressaria e que visitaria os antigos colegas e que lhes apresentaria Peter. Para eles, Melanie estava a viver um conto de fadas. Fora encarregada de fazer uma reportagem e apaixonara-se pelo médico bem-parecido que entrevistara.
Apesar disso, naquele momento, tudo aquilo a fazia sofrer demais. Deixar os colegas, fechar a casa e abandonar Nova Iorque.
— Adeus Grant. Tem cuidado contigo — despediu-se ela, dando-lhe um beijo no rosto e afastando-se com as lágrimas a correrem-lhe pelas faces abaixo.
Melanie preparava-se para deixar para trás tudo o que lhe era familiar, assim como as suas velhas amizades. Cinco minutos mais tarde, abandonava para sempre o edifício onde tivera tantas aspirações e conseguira chegar tão longe. Quando regressou a casa naquela noite, tudo o que se lhe deparou pela frente foi uma montanha de caixas. A companhia que fora encarregada da mudança viria na manhã seguinte e também seria o último dia em que Raquel trabalharia para si. Durante o fim-de-semana, Melanie e as filhas ficariam alojadas no Hotel Carlyle e na segunda-feira fecharia a venda da casa. Em seguida, iria buscar o vestido branco de lã Bilf Blass que comprara na Bendel's e, no dia seguinte, a 19 de dezembro, embarcariam no avião para Los Angeles, cinco dias antes da data marcada para o casamento.
— Oh, meu Deus! — exclamou Melanie sentada na cama a olhar para o caos que reinava à sua volta. As lágrimas começaram a brotar-lhe dos olhos. Perguntou a si mesma que loucura é que se havia apossado da sua vida. Até mesmo a lembrança de Peter à sua espera em Los Angeles não lhe serviu de consolo.
No sábado, dia 19 de dezembro, Melanie encontrava-se pela última vez de pé no seu quarto da Rua Oitenta e Um Leste. Havia dois dias que o pessoal da mudança tinha posto a sua casa de pernas para o ar. O último caminhão acabara de se afastar ruidosamente pela rua abaixo, transportando os seus bens, pensava ela, utilizando a expressão com que eles classificavam as suas coisas, com destino à Califórnia, onde tudo, com exceção do seu vestuário e do das filhas, assim como alguns pequenos tesouros a que era mais apegada, seria armazenado. Acontecia que, muito simplesmente, o resto dos seus pertences não se adequaria ao interior da casa de Peter, de acordo com o que ele próprio lhe dissera. As filhas, acompanhadas por Raquel, permaneciam no vestíbulo da frente do andar térreo, à espera que a mãe descesse. Mas Melanie quisera olhar uma última vez para a vista que se desfrutava da janela do seu quarto. Nunca mais poderia deixar-se ficar na cama de manhã, a olhar através da janela enquanto ouvia o chilrear dos pássaros no pequeno jardim. Na Califórnia, com certeza existiriam outros pássaros, assim como um outro jardim e uma vida completamente diferente da que levara até então. Não obstante aquela perspectiva de uma nova existência, Melanie não conseguia evitar pensar no enorme significado que para si tivera a compra daquela casa. Estava a desistir de muito por causa de um homem que amava, embora, ao fim e ao cabo, se tratasse apenas de uma mera casa.
— Mamãe? — gritou-lhe Valerie do vestíbulo da frente.
— Estás pronta para descer?
— Não me demoro nada — gritou ela à filha com um olhar que se arrastava pelo quarto uma derradeira vez.
Em seguida, desceu as escadas num passo apressado, indo ao encontro das filhas e de Raquel, que continuavam à sua espera; tinham os braços cheios de prendas que haviam trocado e estavam perto das malas de viagem que levariam para o hotel. Quando Melanie saiu para a rua a fim de chamar um táxi, reparou que havia uma ligeira camada de neve no chão. Passaram quase trinta minutos antes de ter conseguido arranjar um táxi.
Quando regressou para chamar as filhas, encontrou-as lavadas em lágrimas nos braços de Raquel.
— Vou ter muitas saudades vossas, minhas meninas — dizia a governanta, fitando Melanie e a sorrir por entre as lágrimas que teimavam em assomar-lhe aos olhos. — Mas procedeu acertadamente, Mistress Mel. Ele é um bom homem.
Melanie acenou com a cabeça, incapaz de proferir uma única palavra. Deu um beijo no rosto de Raquel e olhou para as filhas.
— O táxi está lá fora, meninas — disse ela ao fim de algum tempo. — Por que é que vocês não põem as vossas coisas no banco da frente? — perguntou a mãe.
Acatando o que a mãe dissera, as gêmeas saíram de casa; ambas iam bem agasalhadas com blusões quentes, calças de ganga, botas e tinham à volta do pescoço um cachecol de lã. Melanie deu consigo a pensar que aqueles dias, a partir de então, também se encontravam contados, exceto quando fossem esquiar para qualquer lado, uma vez que a temperatura na Califórnia não exigia aquele tipo de agasalhos, próprios de invernos mais rigorosos.
— Raquel. — começou Melanie a dizer com a voz enrouquecida pela emoção. — Quero dizer-lhe que nós gostamos muito de si, nunca se esqueça disso. Se alguma vez precisar de alguma coisa ou se mudar de idéia quanto a ir viver, para Los Angeles... — interrompeu-se com os olhos marejados de lágrimas. As duas mulheres abraçaram-se.
— Vai tudo correr bem, hija . Verá que vai ser feliz em Los Angeles. Não chore. — disse ela, apesar de também estar a chorar.
Ambas haviam partilhado muitos anos e, juntas, tinham criado as gêmeas. Aquela fase das suas vidas estava prestes a terminar. Melanie desistira de tudo o que lhe era querido por uma nova vida, desistira até de Raquel.
— Vamos ter tantas saudades suas — continuou ela no momento em que a buzina do táxi se fazia ouvir na rua. Melanie abraçou Raquel uma vez mais e lançou um derradeiro olhar à casa mergulhada em sombras. A venda celebrar-se-ia na segunda-feira e os novos proprietários mudar-se-iam na terça. A partir de então, tudo seria muito diferente. Começariam a pintar e a aplicar papel de parede em toda a casa, iriam redecorar a cozinha e deitar abaixo algumas paredes. Melanie estremeceu ao pensar naquilo.
Raquel observava-a atentamente.
— Vamos lá, Mistress Mel, é preciso partir — encorajou a governanta, agarrando na mão dela num gesto afetuoso.
Ambas abandonaram a casa.
Já na rua, Melanie voltou-se para trás, fechando pela última vez à chave a sua porta da frente. Sentia-se desolada.
Mas havia sido ela quem quisera que as coisas fossem assim e, naquele momento, não tinha possibilidades de voltar atrás.
Ambas ficaram lado a lado no passeio durante alguns momentos. Raquel vestira o casaco que elas lhe tinham oferecido como prenda de Natal e que naquele ano decidira abrir mais cedo. Pouco depois, Melanie dirigiu-se para o táxi. Também tinha dado à governanta um cheque num montante suficiente para que se pudesse manter durante um mês ou dois, acompanhado de uma carta de recomendação que lhe proporcionaria um novo emprego sem qualquer dificuldade. Abriu a porta da viatura e sentou-se ao lado das filhas, acenando a Raquel enquanto o táxi se afastava. Tanto a mãe como as filhas, sentadas no banco de trás, continuavam a chorar. Raquel, fazendo-lhes adeus, também estava lavada em lágrimas, tendo-se deixado ficar sob a neve que começara a cair.
Uma vez chegadas ao hotel, as gêmeas mostraram-se extremamente excitadas com a suíte requintada onde ficariam hospedadas. Telefonaram logo para o serviço de quartos, ligaram a televisão e telefonaram às amigas. Finalmente, Melanie podia dispor de algum tempo apenas para si própria. Do telefone do seu quarto, telefonou a Peter.
— Olá, meu amor! — saudou ela.
— A julgar pela tua voz, diria que estás cansada. Encontras-te bem? — perguntou ele.
— Sim. Dizer adeus a Raquel foi um horror. Também me foi muito difícil abandonar a casa.
— Dentro de pouco estarás aqui, e tudo isso não passará de uma mera recordação, Mel — disse Peter.
Em seguida informou-a de que tinha recebido uma pilha de papéis para ela remetidos naquele dia pela cadeia de televisão em Los Angeles. Estava previsto que Melanie começasse a trabalhar no dia 1 de janeiro e, assim que chegasse, os responsáveis desejavam encontrar-se com ela nos estúdios.
— Quando chegar na terça-feira dou-lhes um telefonema — retorquiu Melanie.
— Foi isso mesmo que eu lhes disse. Estás bem, minha querida? — insistiu Peter, sabendo o quanto lhe custava abandonar Nova Iorque. Não podia deixar de admirá-la pela decisão corajosa que havia tomado. Embora a tivesse pedido em casamento, na altura quase não albergara a mínima esperança de que Melanie viesse a aceitar. Tudo aquilo se assemelhava a um sonho que iria transformar-se em realidade.
— Eu estou bem, meu amor. Apenas um pouco cansada — respondeu Melanie, pensando que também se sentia deprimida. Ficaria melhor quando se encontrasse novamente junto dele. Nessa altura, a angústia que se apoderara de si devido à mudança não seria tão aguda como naquele momento.
— Como é que vai o trabalho? — perguntou Melanie.
— Nesta altura é bastante. Tenho a impressão de que temos o hospital cheio de doentes a precisar de transplantes e não dispomos de corações. É quase fazer malabarismo, em que tentamos manter no ar dez bolas ao mesmo tempo — retorquiu Peter.
Porém Melanie sabia que ele era bom nisso e sorriu, apercebendo-se de novo do quanto sentia a falta de Peter. Não o via desde a viagem que fizera com as filhas a Los Angeles, para passarem o Dia de Ação de Graças, o que significava que desde que aceitara casar-se não se encontrara com ele.
— Como é que a Marie tem passado? — perguntou Melanie.
— Está outra vez bastante melhor. Parece-me que vai ficar boa — respondeu Peter.
Era evidente que ele estava bem-disposto, e quando Melanie desligou o telefone sentia-se de novo melhor.
Naquela noite, ela e as filhas pediram o jantar no quarto.
Depois de terem acabado a refeição, foram para a cama, deitando-se cedo. Quando acordaram na manhã seguinte, verificaram que havia cerca de trinta centímetros de neve no solo.
— Olha, mamãe! — exclamou Jessica, esquecendo-se por momentos dos seus pensamentos sempre tão sérios, e gritando como uma criancinha. — Vamos ao parque para travarmos uma luta com bolas de neve — sugeriu ela.
Foi isso precisamente o que as três fizeram, após o que Melanie propôs que alugassem patins no Ringue Lollman, onde patinaram no gelo, caindo por vezes no meio da brincadeira. Valerie não se mostrou tão entusiasmada com o plano como a mãe e a irmã, mas algum tempo depois começou a alinhar e as três acabaram por passar umas horas deveras agradáveis.
Finalmente, regressaram ao hotel onde beberam chocolate quente e nata.
— Imagino que neste momento somos umas simples turistas — disse Melanie com um sorriso nos lábios.
Naquela noite foram ao cinema. As gêmeas tinham combinado sair com as amigas no dia seguinte, mas não tinham feito quaisquer planos para a noite. Na segunda-feira de manhã, Melanie tratou de concluir a venda da casa. Depois passou pela Bendel's para ir buscar o seu vestido de noiva, de acordo com o que havia planeado. Era um vestido simples, branco, de lã, complementado por um casaco bege-claro também de lã, do costureiro Bill Blass. As filhas acompanharam-na para escolherem os seus próprios vestidos azul-claros e, por sugestão de Melanie, também compraram um igual para Pamela.
O casamento estava marcado para a véspera de Natal na igreja de Saint Albans, em Beverly Hills, na Avenida Hilgard no lado oposto da UCLA . Haviam sido convidadas somente uma meia dúzia de pessoas, todas amigas de Peter, uma vez que Melanie não tinha quaisquer conhecidos em Los Angeles.
— O casamento vai ser esquisito sem os nossos amigos, não É verdade, mamãe? — perguntou Valerie, preocupada.
— Durante algum tempo é assim que as coisas serão, até os amigos de Peter passarem a ser também nossos amigos — respondeu a mãe com um sorriso.
Valerie acenou com a cabeça e Jessica estava cabisbaixa. Aquela conversa relembrava-a de novo que tanto ela como a irmã não conheciam uma única pessoa em Los Angeles, além de serem forçadas a freqüentar uma escola nova. Não sentia grande vontade de passar por aquela situação. Valerie era a única que não se sentia incomodada por aí além, dado que para ela a mudança seria mais fácil devido à presença de Mark.
Na noite de segunda-feira, Melanie levou as filhas a jantar ao 21, onde comeriam a sua última refeição em Nova Iorque. Após o jantar regressaram ao hotel numa limusine que a mãe alugara. Antes de se irem deitar, as três ficaram durante algum tempo a olhar para o contorno da cidade recortado no firmamento. Melanie sentiu de novo as lágrimas que teimavam em assomar-lhe aos olhos.
— Havemos de regressar de visita — afirmou ela sem saber se estava a assegurar-se, ou às filhas, que assim seria. E quando chegar a altura de vocês entrarem na universidade, talvez prefiram freqüentar a de cá — continuou ela.
Dali a dois anos apenas, as filhas estariam em posição de fazer aquela escolha, enquanto que para ela... Exceto quando fosse de visita, não haveria qualquer regresso à cidade de que tanto gostava.
No dia seguinte, não lhes custou tanto sair do Hotel Carlyle como custara sair da casa. Parecia-lhes que iam começar a viver uma aventura. As gêmeas mostravam-se extremamente bem-dispostas quando entraram na limusine que as levaria ao aeroporto, onde apanhariam o avião com destino a Los Angeles. Dois dos passageiros eram estudantes de regresso a casa e já tinham reparado em Jessica e Valerie; depois de o aparelho ter decolado, Melanie mal viu as filhas até a hora de aterrarem.
— Onde é que vocês as duas têm andado? — perguntou ela sem se mostrar demasiado preocupada, quando ambas regressaram aos assentos na altura da aterragem do aparelho.
Dentro do avião não havia possibilidades de se afastarem para muito longe.
— Estivemos a jogar brídge com dois rapazes de Los Angeles. Eles freqüentam a Universidade de Colúmbia e convidaram-nos para uma festa amanhã à noite em Malibu — respondeu Valerie com os olhos a brilharem, o que fez com que Jessica se risse da irmã e olhasse para a mãe com um olhar cúmplice.
— Sim, e aposto contigo em como a mãe não nos deixa ir — disse a Jessica com ironia. Conhecia melhor as regras da mãe do que a irmã.
Melanie riu-se ao ouvir o comentário da filha.
— Poderíamos levar o Mark conosco — insistiu Valerie numa tentativa para convencer Melanie.
— Acho que vamos ter de nos instalar primeiro — retorquiu esta.
— Oh, mamãe... — continuou Val.
Naquela altura, o avião aterrou e o tempo no exterior estava soalheiro e cheio de luminosidade. Quando saíram, mãe e filhas olharam à sua volta com ansiedade, perguntando a si mesmas que membros da família Hallam estariam à sua espera no aeroporto. Então Valerie deu um grito de alegria ao avistar Mark e Melanie verificou que todos eles se encontravam presentes, até mesmo o pequeno Matthew.
Melanie correu para os braços de Peter, que a abraçou fortemente e, naquele preciso momento, teve a certeza de que havia tomado a decisão certa. Não tinha sombra de dúvida; amava-o.
Melanie e as filhas ficaram instaladas no Hotel Bel-Air até o dia 24 de dezembro. Às dezessete horas desse mesmo dia, tinham à sua espera uma limusine alugada, que as conduziu até a Igreja de Saint Albans, na Avenida Hilgard. Melanie estava lindíssima no seu vestido branco de lã, enquanto as filhas tinham um aspecto adorável com a sua indumentária azul-clara. Melanie levava um ramo de frésias brancas, misturadas com orquídeas da mesma cor e gipsofila; Jessica e Valerie levavam pequenos ramos de asclépias brancas, num arranjo com minúsculas flores silvestres; nos cabelos que reluziam, tinham entrelaçado pequenas flores do mesmo gênero.
Melanie olhou para as filhas uma última vez antes de saírem do automóvel, agradada com o seu aspecto.
— Vocês estão maravilhosas, meninas! — disse ela.
— Também tu, mamãe — replicou Jessica, de olhos brilhantes. — Sentes-te assustada?
— De morte — respondeu ela, hesitante, mas com um sorriso rasgado depois de pensar por breves instantes.
Jessica sorriu e logo de seguida mostrou uma expressão preocupada; apesar de tudo, talvez acabassem por regressar a casa.
— Vais-te arrepender? — perguntou ela à mãe.
— Que diabo, não, nem pensar nisso! — respondeu Melanie ao ouvir a pergunta da filha. — Tu sabes o que é que se costuma dizer: O que não tem remédio, remediado está.
Porém reparou que os olhos de Jessica eram atravessados por uma sombra e arrependeu-se de ter falado num tom de ligeireza. Estendeu a mão e agarrou na da filha.
— Desculpa, Jess — disse ela com ternura. — Dentro de pouco tempo, a nossa casa será aqui.
No entanto Melanie sabia que Jessica era a que tinha sido mais afetada por aquela mudança e, contudo, a filha dava a impressão de que nunca se queixava. Passara os últimos cinco dias a ajudar Pamela a reorganizar o quarto, ajudando também Valerie a levar as coisas de ambas para o quarto de hóspedes. Ambas partilhariam aquele quarto e sem dúvida que o fato de cada uma delas não ter o seu próprio quarto lhes iria parecer estranho.
— Se ela não fosse tão desarrumada, eu não me importaria muito — confidenciara Jessica a Pamela com um encolher de ombros.
A verdade era que não havia espaço suficiente naquela casa para que pudessem ter quartos separados e Jess aceitava aquela realidade de bom grado. A jovem estava sempre pronta a aceitar tudo. Até mesmo a recepção fria de Mrs. Hahn, a qual bisbilhotava constantemente as malas de viagem que haviam trazido, assim como os roupeiros, com olhos que pretendiam ver tudo o que se passava. O resto das coisas aguardava naquele momento dentro de malas no Hotel Bel-Air, onde alguém as iria buscar naquela mesma noite, para serem levadas para a residência dos Hallam. Melanie não quisera que tanto ela como as filhas se mudassem até ao dia do casamento.
— Pois bem — começou Jessica a dizer enquanto olhava através da janela da limusine para a bonita igreja, apesar de pequena — imagino que chegou o grande momento.
Melanie manteve-se em silêncio, limitando-se a olhar ao seu redor, enquanto Valerie quase ficava sem respiração ao ver Mark que entrava na igreja; estava tão tonto, jovem e forte! Peter e Matthew já se encontravam lá dentro, enquanto Pamela esperava por elas no átrio. Estava planeado que a jovem seguiria à frente da noiva; ela e as gêmeas vestiam vestidos semelhantes num tom azul-claro e levavam o mesmo tipo de flores. Valerie seguiria atrás de Pam e por sua vez Jessica iria atrás da irmã. O cortejo seria fechado por Melanie pouco depois. Peter acompanhado dos filhos estaria à espera delas junto do altar. Depois da cerimônia, Matt e
Pamela dariam as mãos, avançando à frente do cortejo até a porta da igreja, seguidos por Mark e por último Melanie e Peter. Haviam planeado todos os pormenores da cerimônia numa questão de semanas. Melanie tratara de encomendar os convites em Nova Iorque e a secretária de Peter fora incumbida de enviá-los para os amigos mais chegados do médico.
Ao olhar em volta no interior da igreja enquanto percorria a coxia, Melanie não deixou de reparar que não se encontrava presente uma única pessoa que conhecesse. Ali se encontrava ela prestes a casar-se sem que houvesse uma só pessoa amiga, excetuando a presença das filhas. À medida que se aproximava do altar, ia empalidecendo progressivamente, sentindo-se exaurida devido a toda aquela antecipação e excitação; os seus olhos procuraram Peter ao ver que este se lhe dirigia e lhe dava o braço em silêncio. De súbito, nada mais no mundo tinha qualquer importância, exceto ele. O rosto de Melanie começou a ficar de um rosado suave, que lhe deu de novo vida às faces.
Peter segredou-lhe ao ouvido com ternura antes do início da cerimônia:
— Amo-te, Mel. Verás que tudo vai correr da melhor maneira possível.
— Também eu te amo. — Era tudo o que ela conseguia proferir.
Em seguida, o clérigo começou a recordar à congregação o motivo que os levara ali.
— Queridos irmãos, estamos reunidos aqui, na véspera de Natal, uma data tão sagrada — dizia ele, sorrindo — para unir este homem e esta mulher pelos laços do santo matrimônio.
Melanie conseguia ouvir o seu coração a bater velozmente e, mais ou menos de dois em dois minutos, Peter tocava-lhe ternamente na mão. Por fim, chegou o momento de trocarem os votos matrimoniais e as alianças. Peter escolhera a da noiva sem que ela estivesse presente. Era uma aliança estreita e simples de diamantes. Melanie insistira que não queria um anel de noivado. Naquele momento, enquanto baixava o olhar para a aliança, sentiu os olhos marejados de lágrimas, o que quase a impediu de ver Peter na altura em que ele lhe enfiou no dedo a aliança.
— Para amar e honrar, nos dias bons e maus, até que a morte os separe — continuou o clérigo.
Ao ouvir as palavras dele, Melanie sentiu um arrepio de frio a percorrer-lhe a espinha. Depois de tudo por que tinha passado, não conseguia suportar o pensamento de poder vir a perder Peter. No entanto, ele fora capaz de superar a morte de Anne e agora ali estava junto de si. Olhou para o rosto dele, erguendo o olhar para o homem que já era o seu marido.
— E agora, declaro-vos marido e mulher — concluiu o homem do clero. O órgão adquiriu vida e o coro entoou uma canção alusiva à quadra natalícia.
Quando Melanie fitou os olhos de Peter, teve a sensação de que estava prestes a derreter-se.
— Pode beijar a noiva — disse o entroncado clérigo ao noivo e sorrindo à noiva, dando por terminada a cerimônia.
Peter beijou-a e pouco depois, ao percorrerem a coxia, ambos tinham a sensação de ir a flutuar.
Durante a hora que se seguiu, Melanie apertou a mão a dezenas de pessoas que nunca tinha visto, tendo encontrado ocasião para dar um beijo a Mark, Pamela e Matthew, após o que lhes confidenciou o quanto se sentia feliz. À distância também avistou de relance Mrs. Hahn. Até mesmo no dia do seu casamento, ela ficou com a impressão de que a mulher tinha uma expressão azeda, mas Peter insistiu em que se aproximassem dela, para lhe apertarem a mão. Nesse momento, Melanie descortinou um sorriso nos lábios da mulher. Sem qualquer motivo, perguntou a si mesma se não mereceria a aprovação da governanta. Era muito possível que ela ainda sentisse a falta de Anne. Naquela ocasião, ao encarar Mrs. Hahn, recordou-se da imagem de Raquel. Melanie desejou que a sua antiga governanta pudesse ter estado na igreja, para assistir ao seu casamento, acompanhando-a naquele dia. Dada a ausência de qualquer família, podia-se dizer que Raquel fora quase uma mãe para si.
Depois de saírem da igreja, os sete entraram numa limusine e dirigiram-se para o Hotel Bel-Air, onde teria lugar os festejos. De repente, Melanie deu-se conta de que a sua festa de casamento era maior do que tinha previsto. Os convites para a boda informavam que esta teria lugar às dezoito horas, tendo o jantar sido marcado para as dezenove e trinta. Ao entrarem nas espaçosas instalações do clube, Melanie apercebeu-se de que se encontravam presentes pelo menos cem pessoas. Um conjunto composto por sete músicos começou a tocar a Marcha Nupcial e Peter deteve-a naquele mesmo instante e beijou-a em cheio na boca.
— Olá, Mistress Hallam! — cumprimentou ele cheio de júbilo.
Subitamente, tudo aquilo parecia ser uma loucura maravilhosa para Melanie, não tendo a mínima importância quem seriam aquelas pessoas, estranhos ou não, ou gente que ela nunca mais voltaria a ver. Todos os presentes partilhavam o momento mais feliz da sua vida. As pessoas não paravam de se aproximar dela para lhe apertar a mão, dizendo-lhe que gostavam muito de vê-la na televisão, e que Peter tinha muita sorte em ter casado com ela, o que fazia com que deixassem de lhe parecer tão desconhecidos como anteriormente.
— Não, eu é que tenho muita sorte — insistia ela de todas as vezes que alguém dizia aquilo.
Houve um único momento que ofuscou toda aquela felicidade: quando Melanie viu Valerie a falar com Mark e a chorar de mansinho num canto da sala de jantar. Todavia, no momento em que se aproximou do local onde ambos permaneciam, Val dava a impressão de se ter recomposto, sorrindo ao abraçar a mãe.
Jessica observava com toda a atenção o que se passava; pouco depois também abraçou Melanie.
— Nós gostamos muito de ti, mamãe, e estamos muito felizes por ti. — Mas ela viu nos olhos da filha uma pontinha de sofrimento.
Iriam todos precisar de algum tempo, até mesmo ela, que tinha Peter ao seu lado. No entanto, Mel tinha a certeza absoluta de que tomara a decisão certa para todos eles, especialmente no que respeitava a Peter e a si própria, pelo que as filhas não teriam qualquer alternativa a não ser adaptar-se. Contudo, sabia bem que todas aquelas transformações ainda continuavam a parecer-lhes algo repentinas; Melanie estava-lhes infinitamente grata por não terem dado largas à sua frustração na pessoa de Peter. Isso poderia ter sido uma possibilidade bem real, se as filhas não fossem aquelas jovens que tanto apoio sempre lhe tinham dado.
Melanie tivera ocasião de reparar uma ou duas vezes que Pamela fora ríspida para consigo. Mas, com o passar do tempo, esse também seria um problema que acabaria por se resolver, logo que a rapariga se habituasse à idéia de que o pai se tinha casado de novo. A seu tempo, tudo haveria de ficar sanado, recordava Melanie a si mesma vezes sem conta.
A julgar pelas aparências, o romance que existia entre Valerie e Mark continuava a florescer, apesar de ambos não parecerem tão felizes como antes. Melanie tinha fortes suspeitas de que o fato de passarem a viver debaixo do mesmo teto iria retirar parte do encanto que os jovens sentiam um pelo outro. Quando Mark visse até que ponto é que a filha era uma desmazelada, adjetivo que Jessica costumava aplicar à irmã devido à sua maneira de ser, e ela, por sua vez, o tivesse sempre à sua volta, o romance estaria destinado a esfriar. Pelo menos, era o que Melanie esperava que viesse a acontecer. Afastou o pensamento dos dois jovens, passando a concentrá-lo no pequeno Matthew, o qual, naquele momento, fazia uma vênia e a convidava para dançar.
Melanie dançou com ele uma música rápida, enquanto os convidados os observavam com um sorriso nos lábios.
Quando a música estava quase a chegar ao fim, Peter interrompeu-os e arrastou-a para dançarem uma valsa.
— Fazes alguma idéia do quanto estás bonita? — perguntou ele.
— Não, mas fazes alguma idéia do quanto me sinto feliz? — retorquiu ela com um sorriso de felicidade.
— Diz-me. Eu quero ouvir — pediu ele, mostrando-se tão feliz como ela. Mas a verdade era que as transformações haviam sido mais fáceis para ele.
Melanie é que tivera de desistir do seu emprego, de tirar as filhas da escola onde andavam, de vender a casa, de dispensar os serviços de Raquel e de abandonar Nova Iorque...
— Nunca me senti tão feliz em toda a minha vida — disse ela.
— Ótimo, é assim que as coisas devem ser — retorquiu Peter quando ambos ainda continuavam a girar ao som da valsa. Entretanto, ele olhou em sua volta. — Os nossos filhos também parecem sentir-se satisfeitos — comentou.
Pamela ria-se devido a algo que Jessica lhe dissera e Mark dançava com Valerie; por seu lado, Matthew tentava entreter os convidados.
— Também acho que sim — concordou Melanie. — No entanto, Mistress Hahn não parece estar muito entusiasmada.
— Tens de lhe dar algum tempo. Ela é uma pessoa um pouco rígida — disse Peter. Melanie decidiu não dar seguimento ao assunto. — Ela também gosta de ti, tal como todos os meus amigos.
— Parecem simpáticos — redargüiu Melanie. Mas poderiam muito bem serem os convidados de qualquer outro casamento, enviados por uma agência de atores, com a finalidade de comer, dançar e exibir sorrisos rasgados.
— Mais tarde, quando tudo voltar à normalidade, hei de combinar uns serões tranqüilos para que tenhas oportunidade de conhecer estas pessoas, em grupos reduzidos. Compreendo que tudo isto deve ser bastante difícil para ti.
— Nem por isso — disse Melanie, fitando-o e sorrindo-lhe. — Graças à tua presença. Tudo o que para mim é importante aqui és tu, exceto, é claro, os nossos filhos.
Pela expressão de Peter, poder-se-ia concluir que ficara satisfeito com as palavras dela; contudo, desejava que ela gostasse dos seus amigos. Estes já sabiam quem ela era, mas agora faltava a Mel conhecê-los bem.
— Vais ver que também gostarás deles — continuou ele.
Ao fim de algum tempo deram a valsa por terminada. Um dos colegas de Peter do hospital aproximou-se e os três começaram a falar da reportagem que ela fizera havia alguns meses. Aquele médico estivera no bloco operatório quando do transplante do coração a que Marie tinha sido submetida, e Melanie recordava-se dele.
Entretanto, Melanie teve ocasião de dançar com dúzias de homens que não conhecia de parte alguma, rindo-se das piadas que lhe diziam e apertando várias mãos, enquanto tentava recordar-se dos nomes das pessoas que lhe eram apresentadas, sabendo de antemão que jamais o conseguiria. Por fim, cerca das vinte e três horas, os convidados começaram a sair. Em seguida, a limusine levou a família para casa de Peter, situada na Copa de Oro Drive, em Bel-Air. Mark levava Matthew nos braços, o qual acabara por adormecer no automóvel. Por seu lado, as raparigas continuavam numa tagarelice incessante entre bocejos. Antes de entrarem em casa, Peter deteve Melanie pelo braço, impedindo-a de se aproximar da porta.
— Espera um minuto, por favor — disse ele.
— Passa-se alguma coisa? — perguntou ela, mostrando-se surpreendida.
O motorista preparava-se para levar as suas malas para dentro e Peter sorria-lhe, mas inesperadamente, ergueu-a do chão e ficou com ela ao colo, levando-a através da ombreira da porta, após o que a depositou no interior junto da árvore de Natal.
— Bem-vinda a casa, meu amor — desejou-lhe Peter, beijando-a.
Os filhos começaram a subir as escadas em bicos de pés, mas o único que esboçou um sorriso foi Mark. As três jovens mostravam-se tensas, ao tentar não pensar no significado daquele dia. Toda aquela situação deixara de ser um jogo. Era uma realidade. Pamela e as gêmeas desejaram-se boa-noite em voz baixa, após o que foram para os seus quartos e fecharam as portas. Pam não gostava de ver Melanie nos braços do pai, à semelhança de Jessica e Valerie, as quais compreendiam que a mãe deixara de ser sua propriedade exclusiva. Os limites haviam sido estabelecidos.
Peter e Melanie deixaram-se ficar no andar de baixo durante algum tempo, a falar do seu dia de casamento. A festa correra de forma excelente, e ambos se tinham divertido. Ele serviu-lhe outro copo de champanhe do bar da sala; era da marca Cristal e tinha-o guardado havia já algum tempo. Peter fez um brinde enquanto o relógio dava as badaladas da meia-noite.
— Feliz Natal, Mel! — desejou ele.
Melanie levantou-se do sofá e pousou o copo sobre a mesinha. Beijaram-se durante muito tempo, muito tempo e, em seguida, Peter tomou-a nos braços e subiu as escadas com ela ao colo.
Peter e Melanie passaram o Natal na companhia dos filhos, na casa em Copa de Oro Drive e, na noite da Consoada Mrs. Hahn preparou um jantar magnífico para toda a família, que consistiu num ganso e arroz, purê de castanhas, ervilhas e cebolas pequenas com empadas de carne picada, e para a sobremesa pudim de passas.
— Este ano não há peru? — perguntou Jessica surpreendida, quando foram para a sala de jantar.
Ao olhar para o ganso, Valerie desatou a chorar e saiu da sala a correr, subindo as escadas e, quando Melanie fez menção de ir atrás da filha para confortá-la, Mark impediu-a.
— Eu vou, Mel — ofereceu-se ele com uma expressão estranhamente tranqüila, no que ninguém reparou além de Jessica.
Val parecia chorar com muita freqüência nos últimos tempos, ou pelo menos era o que Jess pensava, pois a ouvira chorar de mansinho na cama na noite anterior. No entanto, a irmã recusara-se a dizer-lhe o que é que a afligia, e Jessica não queria causar preocupações à mãe.
Esta, aparentemente, não havia reparado em nada de anormal no comportamento de Valerie.
— Obrigada, Mark — agradeceu Melanie e depois se dirigiu a Peter. — Peço desculpa. Tenho a impressão de que todos nós nos sentimos fatigados.
Ele acenou com a cabeça sem se mostrar preocupado. As tradições da sua família eram uma novidade para as gêmeas. Todos os anos no Natal, a refeição era ganso, graças a Mrs. Hahn nos tempos mais recentes e a Anne antes disso. Apenas comiam peru no Dia de Ação de Graças, enquanto que na Páscoa o costume era comerem perna de porco assada.
Quando Mrs. Hahn serviu as empadas de carne picada, Jessica e Valerie limitaram-se a provar, lembrando-se da torta quente de maçã a que estavam habituadas a comer em Nova Iorque, naquela época do ano. Até mesmo a árvore de Natal lhes parecia estranha. Fora decorada com umas luzes ínfimas que se acendiam e apagavam, e somente algumas bolas grandes e douradas. Todas as decorações natalícias com que todos os anos costumavam adornar a árvore e de que tanto gostavam, e que tinham vindo a colecionar ao longo dos anos, assim como as luzes multicolores, tinham sido armazenadas juntamente com o resto dos seus haveres.
— Estou cheia — declarou Melanie, olhando para Peter com uma expressão de desespero, enquanto se levantavam da mesa.
A única coisa boa que podia dizer com respeito a Mrs. Hahn era que se tratava de uma excelente cozinheira. O jantar tinha sido uma refeição requintada e abundante, e todos se sentiam cheios na altura em que se retiraram para a sala de estar. Em seguida, quando Melanie olhou à sua volta, observando o seu novo lar, reparou nas fotografias de Anne, que continuavam espalhadas pela casa, assim como uma pintura a óleo pendurada na parede por cima de uma mesa estreita.
Peter apercebeu-se de que ela olhava para as fotografias de Anne e preparou-se para a reação da mulher, perguntando a si próprio se ela faria algum comentário. No entanto, contra todas as suas expectativas, Melanie não fez referências ao assunto. Mentalmente, tomou nota para não se esquecer de guardá-las quando regressassem da lua-de-mel, na manhã da véspera de Ano Novo.
Peter havia sugerido que fossem para Puerto Vallarta, um dos seus locais preferidos. Tinham planeado levar os cinco filhos, apesar de Melanie recear levar o pequeno Matthew para o México, não fosse ele adoecer. Os outros já tinham idade suficiente para serem cuidadosos com o que comiam e bebiam, mas ela teria de se manter atenta a Matt. Tanto Melanie como Peter haviam chegado à conclusão de que não demonstraria grande tato da sua parte deixar os filhos tão cedo logo após o casamento. Mais tarde, poderiam fazer uma viagem sozinhos, talvez até a Europa ou ao Havaí, dependendo da época do ano em que pudessem gozar de uns dias de férias.
As cláusulas do novo contrato de trabalho de Melanie não contemplavam um período de férias anual de dois meses, prerrogativa de que ela gozara em Nova Iorque. Tinha apenas trinta dias e licença de parto. Ficara bastante divertida quando os seus novos patrões haviam insistido em inserir aquela última cláusula no contrato. Já dera à luz todos os bebês que tencionava vir a ter e todos de uma vez. Rira-se de novo ao contar aquele episódio a Peter, o qual tinha começado a brincar com ela acerca de engravidá-la se ela não se portasse bem. Como resposta, Melanie empunhara uma tesoura de picotar, ameaçando-o na brincadeira.
Na noite de Natal, enquanto estavam sentados na sala de estar, Melanie gemeu ao pensar que teria de fazer malas de novo. Tinha a impressão de que ao longo do último mês passara o tempo todo a fazer e a desfazer malas, mas, pelo menos, daquela vez não teria necessidade de levar muita coisa para Puerto Vallarta. As crianças mostravam-se todas entusiasmadas com a perspectiva da viagem. Naquela noite houve muitas correrias e os jovens tentavam reprimir o riso, andando numa brincadeira constante a tirar coisas dos quartos uns dos outros. Matthew fartou-se de pular na cama de Valerie, enquanto Pamela se apoderava de algumas camisolas de Jessica, a convite da sua nova irmã.
Peter e Melanie conseguiam ouvir a barulheira no quarto, e ela sorriu.
— Acho que eles vão conseguir entender-se — disse ela, apesar de continuar a sentir uma certa tensão entre os dois grupos.
— Preocupas-te demasiado com eles, Mel. Vai tudo correr pelo melhor, verás — assegurou-lhe Peter com um sorriso nos lábios, enquanto atendia ao telefone que começara a tocar. Em seguida sentou-se com o sobrolho franzido, continuando a segurar no auscultador do aparelho, ao mesmo tempo em que fazia uma série de perguntas rápidas e concisas. Pouco depois, pousou o telefone e agarrou no casaco que se encontrava pendurado nas costas de uma cadeira, enquanto ia explicando apressadamente a Melanie o que acontecera. — É a Marie. O seu organismo entrou de novo num processo de rejeição.
— É grave? — perguntou ela.
— Entrou em coma — respondeu ele bastante pálido. — Não compreendo por que motivo é que não me telefonaram mais cedo do hospital. Tentaram impingir-me uma história de merda em relação a hoje ser dia de Natal, pelo que não quiseram incomodar-me uma vez que não estou de serviço. Raios partam isto tudo! — praguejou Peter da porta, a olhar para Melanie com uma expressão desolada. — Logo que puder, voltarei para casa.
Depois de Peter se ter ido embora, Melanie começou a ver a viagem ao México a ir por água abaixo. Quando as crianças desceram para lhe darem a boa-noite, ela não mencionou o assunto, uma vez que não queria que ficassem aborrecidas devido àquele contratempo inesperado. Informou-os apenas de que Peter tivera de ir ao hospital ver uma doente. Depois de os jovens terem saído da sala, deu consigo a pensar em Marie e começou a rezar por ela. Peter não chegou a telefonar para pô-la ao corrente da situação. Finalmente, quando já eram duas e meia da manhã, Melanie desistiu de esperar por ele e foi para a cama. Ainda tinha esperanças de que pudessem realizar a viagem que haviam programado. Caso contrário, seriam forçados a cancelá-la. Ela não tinha a mínima vontade de ir sem ele. Supostamente, aquela seria a sua viagem de núpcias.
Passava pouco das cinco da manhã, quando ela o sentiu a entrar na cama. Melanie estendeu o braço para acariciá-lo e sentiu que ele se mostrava distanciado; o seu corpo mantinha-se rígido. Aquela atitude era tão pouco característica de Peter que ela entreabriu os olhos e aproximou-se mais dele.
— Olá, meu amor. Está tudo bem? — perguntou Melanie, sem contudo obter qualquer resposta, o que a levou a abrir bem os olhos. Algo não estava bem. — Peter?
— Ela morreu às quatro da manhã. Ainda começamos a operá-la, mas o seu estado de saúde já se tinha agravado em demasia. Foi acometida do pior caso de endurecimento das artérias que alguma vez me foi dado ver, apesar de ter recebido um coração novo. Raios! — exclamou ele com frustração.
Era evidente que se sentia culpado. Peter e os colegas haviam dado a Marie mais sete meses de vida, o que se traduzia em mais sete meses de vida que ela não teria tido sem o transplante.
— Lamento muito. — Melanie não sabia o que mais dizer.
Ele estava a pô-la de parte, partindo do princípio de que aquilo não lhe dizia respeito. Peter resistiu a todos os esforços que Melanie fez no sentido de confortá-lo. Por fim, às seis da manhã, ele levantou-se da cama.
— Devias tentar dormir um pouco antes de voltares para o hospital — aconselhou Mel num tom de voz cheio de ternura, preocupada com ele.
Também se sentia entristecida com aquele desenlace. Desde o início que Marie fora uma doente importante para os dois. Melanie tinha assistido ao transplante do coração, o que fazia com que se sentisse afetada pela morte da jovem mulher. No entanto, não se encontrava preparada para o que Peter disse pouco depois. O marido parecia uma criança encolerizada e infeliz.
— Eu não tenciono ir para o México. Vai tu com os miúdos — declarou ele com uma expressão de petulância e enfado, enquanto se sentava pesadamente numa cadeira do quarto.
Como lá fora o dia ainda não tinha nascido, Melanie ligou um candeeiro para poder observá-lo melhor. Peter mostrava-se cansado e tinha umas olheiras enormes. O dia do casamento acabara muito mal e a lua-de-mel começava ainda pior.
— Não podes fazer mais nada aqui. E, se não fores, nós também não vamos — argumentou Melanie.
— Não estou com disposição para viagens, Mel — afirmou ele.
— Isso não é justo. Os miúdos vão ficar decepcionados e, ao fim e ao cabo, sempre se trata da nossa viagem de núpcias — insistiu ela. Peter estava a mostrar-se pouco razoável, mas Melanie compreendia que ele se encontrava demasiado fatigado para conseguir raciocinar com coerência. — Peter, por favor...
— Raios! — exclamou ele, erguendo-se da cadeira de um salto e a olhar intensamente para ela. — No meu lugar, como é que te sentirias? Só sete míseros meses e é tudo... Foi tudo o que eu consegui proporcionar-lhe!
— Tu não és Deus, Peter. Limitaste-te a fazer o melhor que sabias, e de uma maneira brilhante. Mas é Deus que toma esse gênero de decisões e não tu — retorquiu Melanie.
— Uma ova! Devíamos ter sido capazes de fazer melhor — continuou ele, impotente perante o destino.
— Pois bem, não foram, e ela está morta — disse Melanie que naquele momento também já gritava. — E não te podes dar ao luxo de ficar aqui amuado. Também tens responsabilidades para conosco! — continuou ela com irritação.
Peter ficou a olhar para a mulher durante alguns instantes, após o que saiu do quarto com modos bruscos, mas voltou meia hora mais tarde com duas chávenas de café. Não precisavam chegar ao aeroporto antes do meio-dia, pelo que ainda restava tempo a Melanie para tentar convencê-lo a mudar de idéias. Com uma expressão azeda, Peter entregou-lhe uma das chávenas de café fumegante. Ela olhou-o atentamente e agradeceu-lhe.
— Lamento muito, Mel. Mas acontece que nunca sou capaz de me sentir bem comigo mesmo sempre que perco um doente, e ela era uma jovem, tão meiga. Não é justo. — Peter interrompeu-se com uma voz esmorecida.
Melanie pousou a sua chávena e colocou os braços à volta dos ombros do marido.
— O teu trabalho nada tem a ver com a justiça daquilo que acontece ou não, meu querido. Sabes muito bem que assim é. De cada vez que operas, conheces antecipadamente quais são as hipóteses que o doente tem. Tentas esquecê-las, o que não invalida que não estejam presentes — disse Melanie.
Peter acenou com a cabeça, indicando-lhe que tinha razão. Ela conhecia-o bem. Virou-se para a mulher com um sorriso pleno de tristeza.
— Apesar de tudo, posso considerar-me um homem de sorte — acrescentou Peter.
— E um cirurgião brilhante. Nunca te esqueças disso — encorajou-o Melanie.
Não voltou a fazer referência à viagem ao México, até terem tomado o pequeno-almoço com os filhos.
Durante a refeição, Peter mostrara-se anormalmente acabrunhado, o que levou Mark a perguntar a Mel qual a razão daquela tristeza, enquanto ambos subiam as escadas lado a lado.
— O que é que se passa com o pai?
— Perdeu uma doente a noite passada — respondeu Melanie.
— Ele costuma aceitar sempre muito mal esse tipo de situação — disse Mark com uma expressão de compreensão. Em especial, quando se trata de doentes que tenham sido submetidos a transplantes. Foi esse o caso?
— Sim — respondeu Melanie — Foi uma rapariga que ele operou quando eu o entrevistei em maio.
Mark acenou com a cabeça, dando a entender que se recordava do caso em questão e olhou para ela com uma expressão inquiridora.
— Sempre vamos para o México, tal como estava planeado? — perguntou.
— Espero bem que sim — retorquiu Melanie.
— A Mel ainda não sabe como é que ele costuma ficar quando lhe acontece uma coisa destas — continuou o rapaz, olhando para ela pouco seguro quanto à concretização da viagem. — É muito provável que os planos venham a ser cancelados.
— Vou fazer todo o possível para que isso não aconteça — assegurou Melanie.
Mark ficou a olhar para ela durante alguns instantes, parecendo prestes a acrescentar algo; entretanto Matthew entrou na sala, o que interrompeu a conversa. Não conseguia encontrar as barbatanas e queria saber se Melanie as tinha visto.
— Não, não vi, mas está descansado que vou procurá-las. Já foste ver se estão na piscina?
Ele acenou que não, e Melanie subiu para o seu quarto, enquanto Matt continuava a procurar as barbatanas. Encontrou Peter sentado numa cadeira a olhar fixamente para o vazio; de repente, ele parecia bastante mais velho do que era; Mark conhecia bem o pai. Este não aceitava a morte de Marie, e Melanie começou a ter sérias reservas quanto a irem onde quer que fosse naquele dia.
— Então, meu amor — disse ela, sentando-se na beira da cama perto dele — o que é que vamos fazer?
— Com respeito a que? — perguntou Peter com uma expressão absorta. Estivera a pensar nas condições em que encontraram o coração de Marie quando a tinham aberto.
— Estou a referir-me à viagem. Vamos ou ficamos? — respondeu ela.
Peter hesitou durante alguns momentos enquanto olhava para a mulher.
— Não sei — respondeu ele, parecendo incapaz de tomar uma decisão naquele momento.
— Na minha opinião, a viagem far-te-ia bem e seria bastante agradável para os miúdos. Todos atravessamos um período difícil, em que foi necessário fazer um grande número de ajustamentos, muitas transformações e não sabemos o que o futuro ainda nos reserva. Imagino que, neste momento, uma viagem seria exatamente aquilo que o médico recomendaria — finalizou Melanie com um sorriso, sem lhe chamar a atenção para o fato de que começaria a trabalhar dentro de uma semana, numa nova cadeia de televisão, o que faria com que ela própria passasse a estar submetida a uma enorme tensão. A realidade era que Melanie precisava muito mais de uns dias de férias do que ele.
— De acordo. Está decidido. Vamos para o México. Calculo que tenhas razão. Não temos o direito de frustrar os miúdos. Além do mais, já arranjei alguém que me substitua no hospital — decidiu Peter por fim.
— Obrigada — agradeceu Melanie, colocando-lhe os braços à volta do pescoço e abraçando-o, mas Peter mal lhe respondeu e, durante todo o caminho até ao aeroporto não abriu a boca. Por uma ou duas vezes os olhos dela cruzaram-se com os do Mark, embora não tivessem trocado uma única palavra, até ficarem sozinhos por breves instantes no avião, já depois de terem partido.
Mark começou a informá-la acerca do que é que deveria esperar.
— Não sei se sabe, mas ele é capaz de ficar assim durante vários dias.
— Por quanto tempo é que o teu pai costuma manter-se neste estado de espírito? — perguntou Melanie.
— Uma semana, às vezes mesmo duas — respondeu o rapaz. — Em certas ocasiões é muito possível que se mantenha assim durante um mês, tudo depende do grau de responsabilidade que sentir, assim como da relação que ele tenha tido com o doente.
Melanie acenou com a cabeça num gesto de compreensão. Aquilo não lhe permitiria esperar muito da lua-de-mel.
Veio a comprovar-se que Mark estivera certo.
Depois de aterrarem em Puerto Vallarta, seguiram em dois jipes para o hotel, onde haviam reservado três quartos com vista para a praia. Havia um espaçoso bar ao ar livre no andar térreo, mesmo por baixo das janelas dos quartos, além de três piscinas cheias de gente que ria e gritava. Sobrepondo-se a todos os restantes barulhos havia o som de um conjunto de metais, que de vez em quando intercalava com os mariachis. O ambiente que reinava naquele lugar era festivo, o que levava os jovens a sentirem-se muito excitados, muito em particular Jessica e Valerie, que nunca tinham estado no México. Mark levou todos ao bar para tomarem um refrigerante, após o que foram nadar. Por seu lado, Peter insistiu em ficar no quarto. Melanie empregava todos os seus esforços para que o marido se mostrasse mais bem-disposto.
— E que tal se fôssemos dar um passeio na praia, meu amor? — sugeriu ela.
— Na verdade, não me apetece, Mel. O que eu quero mesmo é ficar sozinho. Por que é que não vais para junto dos miúdos? — respondeu Peter.
Apetecia-lhe ser brusca com o marido, chamando-lhe a atenção para o fato de que, ao fim e ao cabo, aquela era a sua viagem de núpcias e não a dos filhos. No entanto, decidiu que seria mais prudente não fazer qualquer comentário.
Talvez aquela depressão lhe passasse rapidamente. Por fim, Mel deixou-o sozinho no quarto. Porém, à medida que os dias iam passando, a disposição de Peter não melhorava. Melanie foi à cidade fazer compras com Pamela e as gêmeas, tendo adquirido umas blusas bordadas lindíssimas, assim como alguns vestidos que tencionavam usar em Los Angeles, quando estivessem na piscina. Por sua vez, Mark levou Matthew à pesca por duas vezes.
Melanie levou toda a gente, com a exceção de Matt, ao Carlos O'Brien's para tomarem uma coca-cola, assim como a outros lugares conhecidos, tendo mesmo ido com os mais velhos a uma discoteca numa noite. Peter não lhes fez companhia uma única vez que fosse. Continuava obcecado com o final trágico de Marie e, durante várias vezes ao dia, passava uma hora fechado no quarto, tentando conseguir ligação com Los Angeles, para se inteirar do estado de saúde dos seus doentes.
— Realmente, tenho de admitir que não valia a pena termos vindo, se a tua intenção era permaneceres sentado no quarto toda a semana, a telefonar para o hospital — disse-lhe Melanie finalmente com brusquidão, já quase no fim da estada.
Todavia, Peter limitou-se a olhar para a mulher com uma expressão vazia.
— Quando ainda estávamos em casa, eu disse-te isso mesmo, mas tu não querias que os miúdos se sentissem decepcionados — argumentou ele.
— Esta é a nossa lua-de-mel e não deles — ripostou ela sem se poder conter por mais tempo.
Sentia-se amargamente frustrada. Durante toda a semana, Peter não fizera o mínimo esforço para ser agradável e, desde que Marie tinha morrido, não faziam amor. Aquela não era uma viagem de núpcias para se recordar.
— Lamento muito, Mel. Mas acontece que esta viagem não poderia ter sido feita em pior altura. Mais tarde verás que te compensarei — prometeu ele.
A despeito daquela promessa, Melanie perguntava a si mesma se o marido alguma vez conseguiria cumprir o que dizia. Nessa altura, ocorreu-lhe que nem sequer tinha uma casa a que pudesse chamar sua, para onde pudesse regressar no fim da viagem. De súbito foi acometida de uma enorme saudade da sua casa em Nova Iorque, cuja falta sentia mais do que nunca. Aquela recordação trouxe-lhe à memória as fotografias de Anne, as quais tinha intenções de guardar quando regressassem a Los Angeles. Melanie perguntava a si mesma o que é que Peter decidiria fazer com o quadro a óleo da falecida mulher. O lar dele passara a ser também a sua casa e ela não pretendia olhar para a imagem de Anne sempre que virasse a cabeça. Isso lhe parecia ser absolutamente normal, embora não fizesse intenções de abordar o assunto até voltarem à Califórnia. Melanie continuava a referir-se à sua nova casa como Los Angeles e nunca como o seu lar, uma vez que ainda não considerava a casa de Peter como sendo verdadeiramente sua. Esse termo aplicava-se àquela onde vivera em Nova Iorque. Já tinha reparado que as filhas pensavam da mesma maneira. No dia em que tinham ido ao Carlos O'Brien's, alguns rapazes haviam perguntado a Jessica de onde é que eram, tendo a filha respondido sem hesitação que vinham de Nova Iorque, sem sequer ter pensado. Mark fez troça dela e Jess começou a explicar apressadamente que se tinham mudado para Los Angeles ainda não havia muito tempo. No entanto, existiam outros ajustamentos que se iam fazendo com maior facilidade. Melanie deu-se conta de que os jovens se referiam entre si como sendo irmãos e irmãs, com a exceção de Mark e de Valerie que tinham sobejos motivos para não utilizarem esse tratamento fraternal.
No último dia que passaram em Puerto Vallarta, Val adoeceu. Comprara um sorvete na praia e, pouco depois de tê-lo comido, começara a sentir-se mal. Quando a mãe soube o que é que tinha acontecido foi para junto da filha, enquanto esta vomitava horas a fio, tendo levado toda a noite a correr para a casa de banho com um forte ataque de diarréia. Peter quis dar-lhe um medicamento, mas ela recusou-se terminantemente a tomar o que quer que fosse.
Quando, por fim, Melanie conseguiu ir para a cama às quatro da manhã, o marido acordou com os seus instintos médicos em estado de alerta.
— Como é que ela está? — perguntou ele.
— Finalmente, lá conseguiu adormecer. Pobre rapariga! Nunca vi uma pessoa tão maldisposta como ela — respondeu a mulher. — Não compreendo por que motivo é que ela se recusou a tomar o Lomotil que tu lhe quiseste dar. A Val não costuma ser tão teimosa.
— Tens a certeza de que ela está bem? — insistiu Peter de sobrolho franzido.
— O que é que queres dizer com isso? — perguntou Melanie um pouco surpreendida.
— Não tenho bem a certeza. Eu ainda não a conheço muito bem. No entanto, parece-me uma pessoa diferente da que esteve em Aspen e no Dia de Ação de Graças.
— Diferente como? — indagou Melanie sem compreender onde é que ele queria chegar.
— Para te dizer a verdade, não sei lá muito bem o que quero dizer. Trata-se apenas de um pressentimento. Nestes últimos tempos, ela foi vista por algum médico? — continuou Peter.
— Estás a pôr-me nervosa. De que é que suspeitas? — perguntou ela com ansiedade, à espera de algo grave como uma leucemia.
— Talvez ela sofra de anemia — explicou Peter de uma maneira casual, acenando com a cabeça. — A Valerie tem andado a dormir imenso e a Pam disse-me há dias que ela vomitou depois do jantar de Natal.
— Imagino que tudo isso não passe de nervos — retorquiu Mel com um suspiro. — Também acho que a Jessica anda com um aspecto horrível. Penso que a mudança constituiu uma grande alteração na vida de ambas. Além de que na adolescência tudo se torna mais difícil. Apesar disso, talvez tenhas razão. Quando regressarmos tenciono levar as duas ao médico.
— Eu dou-te o nome de um médico que costumamos consultar. Mas não te preocupes por causa da tua filha — continuou Peter para tranqüilizá-la, dando-lhe um beijo pela primeira vez em alguns dias. — Não me parece que seja grave e acho que deves ter razão. As raparigas na idade de Val têm tendência para andar nervosas. Mas desde que a Pam sofreu de anorexia no ano passado, as minhas antenas entram em ação sempre que algo não me parece estar certo. O mais provável é que não se trate de nada de especial.
Naquele mesmo momento, no quarto que Pamela partilhava com as gêmeas, Mark encontrava-se sentado na cama de Valerie. Tinha esperado horas a fio que Melanie se fosse embora. Val mantinha-se acordada, sentindo-se terrivelmente enfraquecida pelo ataque daquilo a que chamavam “a doença dos turistas”. A rapariga chorava de mansinho e Mark tentava confortá-la, acariciando-lhe os cabelos enquanto conversavam em voz baixa para não acordarem Pam e Jessica.
— Achas que poderá prejudicar o bebê? — perguntou ela a Mark numa voz segredada.
Ele olhou para a jovem com uma expressão de grande infelicidade. Dois dias depois de terem chegado de Nova Iorque, Valerie inteirara-se do seu estado. O rapaz acompanhara-a para que fizesse um teste da gravidez. Ambos sabiam quando é que aquilo tinha acontecido; fora no Dia de Ação de Graças, quando haviam feito amor pela primeira vez. Naquele momento, Valerie era a imagem de uma jovem aterrorizada. Ainda não haviam decidido qual seria a melhor maneira de resolverem aquele assunto; porém, se chegassem à conclusão de que iriam ter aquele bebê, Val não queria correr o risco de a criança vir a nascer deformada.
— Não sei — respondeu Mark por fim. — Tomaste algum remédio? — perguntou.
— Não — murmurou ela. — O teu pai insistiu para que eu tomasse uma coisa qualquer, mas eu recusei-me.
Mark acenou com a cabeça. Aquele era o menor dos problemas que ambos tinham de momento. Valerie encontrava-se grávida de apenas cinco semanas, o que significava que dispunham de menos de dois meses para poderem tomar qualquer medida, isto é, se ela estivesse disposta a isso.
— Achas que agora já consegues adormecer? — perguntou ele.
Valerie acenou que sim com os olhos a quererem fechar-se e ele debruçou-se para beijá-la, após o que deixou o quarto em bicos de pés. Sentia uma vontade enorme de contar ao pai o que se estava a passar, mas não fora capaz de reunir a coragem necessária devido ao fato de ter sido Natal, de ter havido o casamento e tudo o mais. Val implorara-lhe que não dissesse nada. Se ela decidisse ir para a frente com um aborto, o rapaz teria de levá-la a um bom médico e não a uma clínica qualquer. Todavia, aguardava que regressassem a Los Angeles, onde então teria uma conversa com ela sobre aquele assunto. Não adiantava nada abordarem aquela questão enquanto estivessem no México. Não havia nada que pudessem fazer e, naquele momento, tudo o que pudesse dizer a respeito daquilo apenas serviria para enervá-la ainda mais.
— Mark? — chamou Jessica da sua cama, voltando-se para o outro lado, no momento em que ele se preparava para sair do quarto. O ruído dos seus passos em direção à porta tinha-a despertado. — O que é que se passa? — perguntou ela, sentando-se na cama a olhar para ele e depois para a irmã.
— Vim apenas ver como é que a Val se encontrava — respondeu ele. A rapariga já tinha adormecido, e Mark, ao ser interpelado por Jessica, não se afastou da porta do quarto.
— Passa-se alguma coisa de errado? — continuou Jessica. Mark concluiu que ela devia ter andado na lua, se não se lembrava como a irmã estivera doente.
— Ela ficou maldisposta por causa de qualquer coisa que comeu — respondeu ele.
— Não é isso. O que eu quero dizer é se haverá algo mais além desse motivo — acrescentou Jessica.
— Não. Ela está bem — redargüiu Mark.
No entanto, quando regressou ao seu próprio quarto, todo ele tremia. Jess tinha pressentido que havia qualquer coisa mais e ele sabia bem o que é que se costumava dizer a respeito dos gêmeos: que possuíam uma faculdade de percepção quase sobrenatural. Tudo o que era necessário seria ela mencionar alguma coisa ao seu pai ou à mãe, o que provocaria um autêntico pandemônio. Mark desejava tratar do assunto sem a ajuda de ninguém. Era obrigado a isso. Não existia qualquer alternativa.
Na manhã da véspera de Ano Novo, partiram para Los Angeles com Valerie ainda um pouco adoentada, apesar de se encontrar em condições de poder viajar. Chegaram a casa às quatro da tarde, fatigados, bronzeados e, apesar de tudo, satisfeitos com aqueles dias de férias.
Finalmente, Peter acedera em sair da reclusão no último dia, o que fez com que todos tivessem passado um dia bastante divertido. Até mesmo Melanie, apesar de a viagem de núpcias não ter sido grande coisa. Durante o vôo para casa, Peter pedira-lhe desculpas pelo seu comportamento, tendo-lhe ela dito que compreendia a sua atitude. Ao fim e ao cabo, sempre acabara por ter a oportunidade de descansar um pouco antes de começar a trabalhar para a cadeia de televisão de Los Angeles.
No dia seguinte, teria de se apresentar ao meio-dia; exatamente no dia de Ano Novo e, às dezoito horas, começaria a apresentar o noticiário de parceria com Paul Stevens. Havia anos que ele trabalhava naquela estação televisiva e, embora tivesse muitos admiradores que lhe eram dedicados, os níveis de audiência haviam começado a declinar, pelo que os responsáveis tinham decidido contratar Melanie com o propósito de alterar aquela situação. Era do consenso geral que os dois deveriam conseguir formar uma equipe imbatível.
Paul era um homem alto, de cabelos grisalhos e olhos azuis, senhor de uma voz sonante e profunda, além de possuir um estilo que agradava ao sexo feminino, a fazer fé no que as sondagens indicavam.
Por seu lado, Melanie atraía igualmente a audiência feminina e as sondagens diziam que os homens também a adoravam. Com aquela parelha no ar e em simultâneo, os responsáveis pela cadeia de televisão sabiam antecipadamente que teriam um programa de primeira qualidade e, ainda que Paul Stevens continuasse a perder qualidades, Melanie seria capaz de agüentá-lo. No entanto, era a primeira vez que ele iria trabalhar de parceria com alguém, pelo que se sentia muito pouco entusiasmado.
No que dizia respeito a Melanie, aquela situação também constituía uma espécie de despromoção, uma vez que havia muitos anos que trabalhava como apresentadora única. Iria ser uma experiência em humildade e uma lição em diplomacia.
Peter e Melanie decidiram ficar em casa na véspera do Ano Novo a beber champanhe junto da lareira e Mark levou Jessica e Valerie a duas festas para as quais tinha sido convidado. Melanie ficou bastante agradada por ele ter incluído Jessica no convite, apesar de esta não se ter mostrado particularmente satisfeita por sair. Por seu lado, Val ainda não se havia recuperado por completo. Mel sugeriu aos jovens que não ficassem fora até muito tarde, advertindo-os para que conduzissem com prudência. Pouco depois, foi ao quarto de Pamela, a qual convidara uma amiga para passar a noite lá em casa. Matthew já estava a dormir e tinha ao seu lado na cama uma corneta. Pedira que o acordassem à meia-noite para poder tocá-la. No entanto, Melanie previu, acertadamente, que àquela hora já não haveria pessoa alguma acordada na casa que o pudesse despertar.
Ainda se sentiu tentada a esperar por Mark e pelas gêmeas, mas a verdade era que tanto ela como Peter estavam bastante exaustos. O marido ficou durante algum tempo sentado na cama, a ler algumas publicações médicas, enquanto ela percorria a casa, tentando convencer-se a si mesma de que naquele momento aquele também era o seu lar, embora essa expectativa continuasse a ser gorada. Foi então que Melanie se recordou das fotografias de Anne, ao vê-las nas suas molduras prateadas. Pegou nelas uma a uma, chegando à conclusão que perfaziam um total de vinte e três. Nessa altura, decidiu guardá-las dentro de uma gaveta no escritório de Peter e, enquanto atravessava a sala de estar levando nos braços as últimas, deparou com Pamela. A rapariga permanecia de pé à entrada da porta.
— O que é que está a fazer? — perguntou a jovem.
— A guardar algumas fotografias — respondeu Melanie.
Entre as duas houve uma estranha troca de olhares, e ela reparou que a enteada mantinha uma postura de rigidez, continuando no mesmo lugar de pé junto à porta.
— De quem? — interrogou Pam.
— Da tua mãe — redargüiu Melanie numa voz firme.
— Ponha-as onde estavam! — ripostou a rapariga num timbre de voz que mais se assemelhava a um rosnar.
Naquele momento, Melanie apercebeu-se de que a amiga que Pamela tinha convidado para passar a noite se encontrava mesmo atrás dela.
— Desculpa?! — exclamou com uma expressão de incredulidade.
— Eu disse para voltar a colocar as fotografias nos seus lugares. Esta é a casa da minha mãe e não a sua — continuou Pam.
Se Melanie não soubesse que isso seria impossível, atrever-se-ia a dizer que a rapariga estava embriagada. Mas esse não era o caso. Pamela encontrava-se extremamente encolerizada e preocupada, a tal ponto que todo o seu corpo estremecia enquanto falava.
— Parece-me que podemos discutir este assunto noutra ocasião mais apropriada, Pam. Quando estivermos sozinhas — continuou Melanie, decidida a não perder a calma, a despeito de também estar a tremer.
— Dá-me essas fotografias! — vociferou Pamela, que subitamente se atirou a Melanie, a qual ao ver aquele ataque de fúria deixou cair as molduras em cima de uma cadeira, agarrando no braço da jovem antes que esta tivesse oportunidade de lhe causar algum mal.
— Vai para o teu quarto de imediato! — ordenou ela, furiosa, mantendo o braço da rapariga firmemente seguro. A sua reação não diferia em nada da que teria tido para com as filhas numa situação análoga.
Todavia Pamela ignorou-a e começou a apanhar todas as fotografias que Mel havia deixado cair na cadeira, com gestos frenéticos, após o que se imobilizou e ficou a olhar para Melanie com uma expressão de raiva, mantendo as fotografias nos braços.
— Odeio-a! — gritou a rapariga.
— Podes ficar com todas as fotografias que quiseres. O resto estará guardado no escritório do teu pai — acrescentou Melanie.
— Esta é a nossa casa — ripostou Pam, ignorando o que ela lhe dissera. — Nossa e da minha mãe e nunca se esqueça disso!
A palma da mão de Melanie ansiava por lhe assentar uma bofetada, mas reconsiderou e achou melhor não fazer nada na presença da amiga. Optou por lhe agarrar no ombro com firmeza, impelindo-a na direção da porta.
— Vai para cima imediatamente, Pam, e deixa-te ficar no teu quarto. Caso contrário, vou telefonar à mãe da tua amiga e peço-lhe que a venha buscar. Estás a compreender? — perguntou Melanie.
Pamela não proferiu palavra e furiosa começou a subir as escadas, levando as fotografias da mãe. Joan, a amiga, ia atrás dela, bastante constrangida. Por sua vez, Melanie apagou as luzes e voltou para o seu quarto, onde Peter continuava a ler as suas publicações médicas, com uma expressão de contentamento no rosto. Melanie olhou com fixidez para o marido durante longos momentos, dando-se conta de que, pelo menos parcialmente, parte do que Pamela lhe dissera correspondia à verdade. Aquela casa era de fato deles. Nem sequer lhe fora permitido trazer as suas peças de mobiliário. Por todo o lado continuava a existir o toque de Anne.
Continuando a tremer por causa da troca de palavras com Pamela, Melanie fitava o rosto de Peter quando este soergueu o olhar.
— Amanhã quero que aquele quadro seja retirado da parede — disse ela peremptória.
— De que quadro é que estás a falar? — perguntou Peter sem saber a que é que a mulher se referia.
— Refiro-me àquele da tua falecida mulher — elucidou ela por entredentes cerrados.
Era evidente que a atitude de Melanie desconcertava o marido. Talvez o champanhe lhe tivesse subido à cabeça.
— Por que motivo? — inquiriu Peter.
— Porque agora esta casa também é minha e não dela. E eu quero que o quadro seja retirado da parede. Imediatamente! — ripostou-lhe Melanie quase a gritar.
— Devo dizer-te que foi pintado por um artista famoso — retrucou Peter, que começava a mostrar uma certa rudeza.
O comportamento dela parecia-lhe absolutamente despropositado. Era óbvio que ele não tinha conhecimento do incidente com Pam.
— Estou-me nas tintas para o pintor! Quero é que te livres do quadro! Deita-o fora! Queima-o! Oferece-o a alguém! Dispõe dele como raio mais te apetecer, desde que o tires da minha sala de estar! — vociferou Melanie, que naquele momento se encontrava à beira das lágrimas.
Peter continuava a fitar a mulher com uma expressão de quem não queria acreditar no que estava a ver.
— Mas que diabo é que se está a passar contigo, Mel?
— O que é que se passa comigo?! Tu instalaste-me numa casa em cujo interior nem sequer a cabeça de um alfinete me pertence, onde tudo é propriedade tua e dos teus filhos e, para cúmulo, mantêns as fotografias da tua primeira mulher em tudo quanto é sítio, e é suposto que eu me sinta em casa?
Peter já tinha começado a compreender qual a natureza do problema, pelo menos pensava que assim era; contudo achava que Melanie continuava a mostrar uma atitude bastante irracional. E por que naquele preciso momento?
— Nesse caso, põe as fotografias onde bem te apetecer, se é esse o teu desejo. Mas não percebo qual o motivo porque não levantaste quaisquer objeções há mais tempo — acrescentou ele.
— Porque antes eu não vivia nesta casa, mas agora vivo — contrapôs Melanie.
— Aparentemente assim é — retorquiu ele, dando mostras de aborrecimento. — Suponho que não aches a decoração adequada aos teus gostos — continuou Peter com ironia, falando de súbito com um timbre de voz pouco delicado.
— Adequa-se na perfeição para quem não se sinta incomodado em viver num lugar parecido com Versalhes. Pessoalmente preferia muito mais viver numa casa a que pudesse chamar um lar, algo um pouco mais acolhedor e mais humanizado — ripostou Melanie.
— Deduzo que semelhante àquela casa de bonecas onde costumavas viver em Nova Iorque, não! — continuou Peter, cada vez mais acerbado.
— Precisamente! — redargüiu ela.
Ambos permaneciam em lados opostos do quarto e pareciam fumegar de irritação.
— Ótimo! Então, põe as fotografias onde muito bem te apetecer. No entanto, devo dizer-te que o quadro fica onde está — concluiu Peter com a intenção de irritá-la, uma vez que não lhe agradava minimamente a maneira como ela tinha abordado aquele assunto.
Melanie ficou de boca aberta durante breves instantes.
— O raio que te parta é que fica! — exclamou ela e continuou: — Ou o quadro vai ou então vou eu.
— Não te parece que estás a ser ridícula? O teu comportamento é o de uma idiota chapada. Ou será que ainda não te deste conta desse fato? — disse Peter.
— E tu estás a portar-te como um perfeito mentecapto — ripostou Melanie por seu turno. — Por acaso, estarás à espera que seja eu a única pessoa obrigada a fazer todos os ajustamentos necessários a uma nova vida, sem que tu tenhas de alterar seja o que for? Nem sequer estás disposto a guardar as fotografias da tua primeira mulher!
— Se pensas assim, a solução é tirares algumas fotografias de ti própria, para nós podermos espalhá-las também pela casa — replicou Peter desabrido, sabendo que estava a proceder com crueldade, mas a verdade é que já se encontrava farto de ouvir Melanie a protestar por causa das fotografias de Anne. Ocorrera-lhe mesmo por uma ou duas vezes que devia ser ele próprio a guardá-las; contudo, era uma perspectiva que o deprimia bastante, além de não desejar provocar aborrecimentos aos filhos. Naquele momento, decidiu chamar-lhe a atenção para esse aspecto.
— Imagino que nem sequer tenhas pensado na reação que se verificaria se eu guardasse o quadro.
— Oh, sim! Sei o que é que aconteceria — retorquiu Melanie, avançando para ele com uma expressão de maldade afivelada no rosto. — Há pouco eu estava a guardar no teu escritório as fotografias em questão e a tua filha apareceu e informou-me de que esta era a tua casa e não a minha ou, para ser mais precisa, da mãe dela.
Naquele instante, Peter compreendeu tudo. Sentou-se com os ombros descaídos e soergueu o olhar, fitando Melanie. Era capaz de imaginar a cena que se tinha passado entre a mulher e a filha, o que explicava o seu comportamento.
Até a pouco, tudo o que acontecera não havia feito qualquer sentido. Nunca lhe parecera que ela fosse dada a ataques súbitos de raiva.
— A Pam disse-te isso, Mel? — perguntou ele numa voz mais suave.
— Disse, sim — confirmou Melanie com os olhos marejados de lágrimas, sem fazer qualquer movimento para se aproximar mais do marido.
— Lamento muito — disse Peter e, com um gesto, indicou-lhe que se aproximasse. Melanie estava a chorar. Peter aproximou-se dela e colocou os braços à volta dos seus ombros. — Tenho imensa pena que isso tenha acontecido, minha querida. Sabes bem que esta casa também é tua — continuou ele, abraçando-a, o que não impediu que Melanie continuasse a chorar convulsivamente. — Amanhã vou tirar o quadro da parede. Foi uma estupidez da minha parte não ter feito isso há mais tempo.
— Não, não se trata disso. O que se passa é que... — redargüiu Melanie sem acabar de formular o seu pensamento.
— Eu sei. — continuou Peter.
— É tão difícil tentar viver numa casa de outra pessoa — adiantou ela. — Eu estou tão acostumada a ter o meu próprio lar.
— Eu compreendo o que sentes... Mas, agora, esta casa também é tua — disse ele, sentando-a ao seu lado na cama.
Melanie ergueu o olhar para o marido e começou a fungar.
— Não, não é! Tudo o que se encontra aqui dentro pertence à Anne e a ti. Eu nem sequer tenho o direito de ter qualquer das minhas coisas nesta casa.
Peter ficou com uma expressão pensativa enquanto ouvia o que Melanie lhe dizia.
— Tudo o que possuo é teu, Mel — afirmou ele. Contudo, ela desejava sentir-se rodeada das suas coisas e não das do marido.
— Dê-me mais algum tempo — pediu Melanie. — Hei de acabar por me acostumar a tudo. O que se passa é que me sinto cansada; têm acontecido muitas coisas ao mesmo tempo e a Pam irritou-me.
Peter beijou a mulher e pôs-se de pé.
— Eu vou lá em cima falar com ela — disse ele.
— Não. Deixa que seja eu a tratar do assunto. Se tu intervieres, o resultado será ela ficar ainda mais ressentida comigo.
— A Pam gosta de ti. Eu sei que assim é — retorquiu Peter, tentando tranqüilizá-la apesar do seu olhar refletir inquietação.
— Mas agora a situação é muito diferente. Anteriormente, eu não passava de uma convidada da casa, ao passo que agora passei a ser uma intrusa.
Peter ainda se mostrou mais preocupado com aquelas palavras de Melanie. Seria aquilo demonstrativo da sua maneira de sentir?
— Tu não és uma intrusa. És a minha mulher. Espero que não te esqueças disso.
— Eu sei! — retorquiu Melanie por entre as lágrimas amargas que continuava a chorar. — Mas acontece que nesta altura estão a suceder muitas coisas em simultâneo, e amanhã começo o meu novo trabalho.
— Eu compreendo a tua situação — acrescentou Peter, que realmente percebia o que é que estava a passar-se, mas mesmo assim sentia-se entristecido por ver a mulher a chorar, e jurou a si mesmo que no dia seguinte não se esqueceria de tirar o quadro da parede. Melanie tinha toda a razão. — E que tal se esta noite fôssemos para a cama mais cedo? Estamos exaustos, e a última semana não foi nada fácil — sugeriu Peter.
Melanie não discordou do marido. A mudança de Nova Iorque, acrescida do casamento e da viagem de lua-de-mel, a par da morte de Marie.
Foram lavar os dentes, após o que se deitaram; Peter manteve- junto de si, abraçando-a na escuridão, enquanto sentia o calor que irradiava do corpo da mulher junto do seu. Ansiara por aquela proximidade durante os últimos seis meses. Mais do que isso, ao longo dos dois anos mais recentes e, porque não dizê-lo, até mesmo antes disso, uma vez que nunca se sentira assim na companhia de Anne. Ao contrário de Melanie, a sua primeira mulher havia mantido sempre uma certa distância entre os dois. Peter tinha a impressão de que a sua mulher atual quase fazia parte de si mesmo e, pela primeira vez naquela semana, sentia algo que muito no seu íntimo afetava os seus sentimentos; enquanto a abraçava, aproximando-a mais do seu corpo, desejava-a mais do que nunca. Quando o ano velho deu lugar ao novo, Peter estava a fazer amor com a mulher.
De acordo com os termos do seu novo contrato de trabalho, o qual havia sido negociado quando Melanie ainda se encontrava a trabalhar em Nova Iorque, a limusine chegou para ir buscá-la ao início da tarde, conduzindo-a ao estúdio da cadeia de televisão onde ela começaria a desempenhar as suas funções. No momento em que entrou nos escritórios, apercebeu-se de centenas de olhares na sua direção. Existia uma enorme curiosidade a seu respeito. Melanie Adams encontrava-se prestes a iniciar a sua atividade profissional. Foi apresentada aos produtores, assim como aos assistentes de produção aos diretores, aos operadores de câmara, aos redatores dos noticiários e o restante do pessoal técnico.
De súbito, não obstante aquele novo ambiente, Mel começou a sentir-se num mundo familiar. Não diferia dos de Nova Iorque, Chicago ou Buffalo, onde ela trabalhara anteriormente. Um estúdio de televisão era um estúdio de televisão fosse onde fosse. Observou o gabinete que lhe havia sido destinado, suspirou fundo e sentou-se à sua nova mesa de trabalho. De uma certa forma, tinha a sensação de que regressava à casa. Passou toda a tarde a familiarizar-se com as pessoas que iam e vinham, assim como com os programas e reportagens que tinham sido realizados mais recentemente. Pouco depois, tomou uma bebida com o produtor e com a sua equipe de filmagens. Às dezessete e trinta, Paul Stevens fez a sua aparição no estúdio. Sem mais perdas de tempo, o produtor começou a fazer as apresentações.
Melanie sorriu ao apertar a mão ao seu novo colega de trabalho.
— Tenho a certeza de que será muito agradável trabalhar consigo, Paul — disse ela.
— Quem me dera poder dizer o mesmo — retorquiu o homem, apertando-lhe a mão e afastando-se logo de seguida, enquanto o produtor envidava todos os seus esforços para colmatar aquela falha.
Melanie limitou-se a soerguer uma sobrancelha e a afastar-se do novo colega.
— Pois bem, pelo menos sei quais são as linhas com que me coso — comentou para si mesma com um esgar.
Porém, sabia que não ia ser tarefa fácil trabalhar com um homem daqueles. Paul estava absolutamente furioso por ser forçado a aceitar trabalhar de parceria com uma mulher e iria fazer tudo para lhe dificultar a vida. Melanie apercebeu-se disso imediatamente assim que ambos entraram no ar naquela noite. Sempre que Paul lhe dirigia a palavra, era num tom agridoce, e interrompia-a e suplantava-a sempre que a ocasião se lhe apresentava, num esforço para tentar enervá-la e fazer com que ela perdesse o controlo; de uma maneira geral, tentava enlouquecê-la de desespero. A indignação que o homem sentia era tão evidente que, quando saíram do ar, ela pôs-se de pé em frente da mesa de trabalho dele, fitando-o com fixidez.
— Haverá alguma coisa que devêssemos esclarecer de imediato, antes que a situação fique fora de controle? — perguntou ela.
— Com certeza. Por acaso agradar-lhe-ia ser obrigada a partilhar comigo o cheque do seu vencimento? Eu estou a dividir o meu lugar consigo. Portanto, a minha sugestão parece-me ser bastante justa — retorquiu Paul com uma expressão diabólica que se refletia no seu olhar.
Aquelas palavras levaram Melanie a compreender qual a natureza do problema. Havia muito que a imprensa divulgara os termos do seu novo contrato de trabalho, o que muito provavelmente se traduzia num quantitativo três vezes superior ao que ele auferia, mas essa situação não era de maneira nenhuma culpa sua.
— Eu não sou responsável pelo que a cadeia de televisão acordou comigo, Paul. Tratou-se de uma guerra de remunerações que foi travada com a gente de Nova Iorque. Você sabe muito bem como é que essas coisas costumam acontecer.
— Não, mas gostaria de tentar — retorquiu ele.
Havia vários anos que andava a tentar conseguir ir trabalhar para Nova Iorque. Melanie tinha acabado de deitar aquela oportunidade pela janela fora e, na sua opinião, para lhe fazer sombra. Paul odiava-a, apesar da fama de boa profissional que ela tinha. Não precisava que Melanie trabalhasse de parceria consigo. O homem levantou-se da cadeira com uma atitude de quem se sentia tentado a agredi-la.
— Agradeço-lhe que não me chateie e verá que ficaremos muito bem — acrescentou ele. — Percebe o que estou a dizer-lhe?
Melanie olhou para o homem com um ar triste e, em seguida, voltou-lhe as costas e afastou-se. Não ia ser nada fácil trabalhar com ele. Quando chegou a hora de ir para casa, foi durante todo o percurso a pensar naquele assunto. No seu novo emprego, Melanie tinha apenas de apresentar o noticiário das dezoito horas, pelo mesmo ordenado que auferira em Nova Iorque para apresentar as notícias das seis da tarde e das vinte e três horas. Verdade fosse dita, a cidade de Los Angeles era-lhe favorável, o que fazia com que Paul Stevens lhe tivesse tamanho ódio.
— Então, como é que correu o teu dia? Estiveste magnífica — elogiou-a Peter, bastante orgulhoso quando ela entrou em casa. Continuavam sentados em frente ao televisor; todavia, Melanie não se mostrava muito satisfeita.
— Tenho de trabalhar com um homem que me detesta. Isso deve tornar as coisas deveras engraçadas — explicou ela. Isso e o fato de Pamela lhe ter recordado que se encontrava a viver na casa de Peter e de Anne; pensou ela enquanto pendurava o casaco.
— Vais ver que ele acabará por se render a ti — tranqüilizou-a Peter.
Melanie não se mostrava assim tão segura.
— Eu não apostaria nisso — redargüiu ela. — Tenho a impressão de que ele tem a esperança que eu morra ou que decida regressar a Nova Iorque. — Com aquelas palavras, o olhar de Mel dirigiu-se para Pamela, perguntando a si mesma o que é que iria adivinhar na atitude da rapariga, mas os olhos desta mantinham-se vazios de qualquer expressão.
Quando olhou de relance para a parede da sala de estar, verificou que o famigerado quadro havia desaparecido, o que lhe agradou bastante. Envolveu com os braços o pescoço de Peter, sentindo-se mais bem-disposta e segredando-lhe ao ouvido:
— Obrigada, meu amor.
Pamela pressentiu qual o assunto da conversa entre ambos.
Levantou-se do sofá e saiu da sala, enquanto os demais a observavam.
— Decidi pendurar o quadro da Anne no corredor — disse Peter com um ar bastante casual.
Ao ouvir o marido, Melanie imobilizou-se.
— Ah, sim? Estava convencida de que tinhas dito que ias guardá-lo.
— No sítio onde está não incomoda quem quer que seja — retorquiu ele. — Ai não? — Os olhos de ambos cruzaram-se e prenderam-se. — Não te importas, pois não?
— De fato — respondeu Melanie, falando numa voz muito tranqüila — acontece que me importo e muito. Não foi isso que ambos acordamos.
— Eu sei, mas. — continuou Peter, voltando-se para ela. — É um pouco difícil para os miúdos alterar tudo de uma só vez. Todas as fotografias desapareceram — justificou-se o marido.
Melanie acenou com a cabeça sem proferir palavra, tendo começado a subir as escadas para o quarto, com o fim de lavar o rosto e as mãos. Pouco depois, juntou-se ao resto da família para o jantar. Quando a refeição terminou, bateu à porta do quarto de Pamela.
— Quem é? — perguntou a jovem.
— A malvada da tua madrasta — respondeu Melanie com um sorriso para a porta.
— Quem? — insistiu Pam.
— Mel.
— O que é que quer?
— Tenho uma coisa para te oferecer — retrucou Melanie e, quando Pamela abriu a porta cautelosamente, entregou-lhe uma dúzia de fotografias de Anne em molduras prateadas. — Calculei que gostasses de tê-las no teu quarto — continuou Mel.
Pamela ficou a olhar para as fotografias e pouco depois aceitou-as.
— Obrigada — agradeceu a rapariga sem mais palavras, após o que se limitou a voltar-lhe as costas e a fechar-lhe a porta na cara.
Melanie desceu as escadas até ao andar de baixo.
— Estiveste lá em cima com a Pam? — perguntou Peter com uma expressão de satisfação, quando a mulher entrou no quarto que ambos partilhavam.
Uma vez mais, estava concentrado a ler as suas publicações médicas. Era importante que se mantivesse sempre ao corrente de todas as inovações no campo da medicina.
— Sim — respondeu Melanie. — Fui levar-lhe ao quarto algumas fotografias da Anne.
— Sabes, Mel, a verdade é que não devias dar tanta importância ao assunto.
— Ai não? — perguntou ela. Ele não compreendia o que lhe ia na alma e Mel estava demasiado fatigada para começar a discutir com ele. — E por que não?
— Porque ela já não está viva — respondeu Peter em voz baixa, ao ponto de Mel ter de fazer um esforço para conseguir ouvi-lo.
— Eu compreendo isso, mas, no entanto, é bastante difícil viver nesta casa com as fotografias dela a olharem para mim constantemente — argumentou Melanie.
— Estás a exagerar — retorquiu Peter. — Não havia assim tantas fotografias como estás a dizer.
— Ontem à noite, guardei vinte e três no teu escritório. Mas não é assim tão mau como isso. Acabei de entregar doze dessas fotografias à Pamela, e acho que vou colocar algumas nos quartos do Mark e do Matthew, que é onde elas pertencem.
Peter não ofereceu qualquer comentário e voltou a concentrar a sua atenção nas publicações que continuavam no seu colo, enquanto Melanie se estendia ao comprido sobre a cama.
O seu produtor havia-lhe sugerido que fizesse tantas reportagens especiais quantas lhe fossem possíveis ao longo do mês seguinte. Os responsáveis pela cadeia de televisão andavam desesperados para conseguir fazer subir os níveis de audiência e era do conhecimento geral que as reportagens que ela fizera enquanto tinha trabalhado em Nova Iorque haviam conseguido milagres para a programação dos noticiários. Melanie prometera que daria o seu melhor, pelo que já tinha começado a tirar apontamentos acerca de meia dúzia de assuntos que lhe interessavam. No entanto, já estava a imaginar o que é que Paul Stevens iria dizer, quando isso lhe chegasse ao conhecimento. Talvez fosse preferível que ela muito simplesmente ignorasse o homem.
Na noite seguinte, ele voltou a comportar-se de forma grosseira, desde o momento em que entrara no estúdio e, não obstante a expressão encantadora que persistira em exibir durante o tempo em que ambos tinham feito a emissão, na altura em que saíram do ar, Melanie ficara com a sensação de que ele teria um enorme prazer em lhe dar um murro, se surgisse a oportunidade para tal. Era insuportável trabalhar daquela forma e muito diferente daquilo a que ela estivera acostumada em Nova Iorque.
A despeito de toda aquela situação de conflito, nessa mesma noite, Melanie submeteu à apreciação do produtor a lista de possíveis reportagens que elaborara. O homem adorou quase todas as suas sugestões, atitude que se traduzia em boas e más notícias. Significava que teria de fazer horas extraordinárias durante um ou dois meses, mas talvez isso fosse a melhor maneira de se ambientar no seu novo emprego.
Em certa medida, quando se começava a trabalhar numa nova cadeia de televisão a fase inicial era sempre um pouco estranha. Mas as coisas pareciam ainda mais estranhas devido ao fato de estar a tentar ao mesmo tempo adaptar-se ao seu novo lar.
— Hoje tiveste um dia atarefado? — perguntou Peter, olhando para ela distraidamente quando chegou a casa. Melanie sorriu-lhe. Havia chegado por volta das dezenove e quinze e ele ainda mais tarde. Eram quase oito horas da noite.
— Bastante — respondeu ela, sentindo-se agora mais calma. Os atritos com Paul Stevens haviam-na deixado extenuada.
— Esse tipo de quem falaste, Paul ou lá como é que se chama, comportou-se melhor do que antes? — continuou o marido.
Melanie sorriu. Todos os habitantes de Los Angeles conheciam aquele nome, quer sentissem simpatia por ele ou antipatia.
— Não — respondeu ela. — Tenho a impressão de que ele ainda procedeu de forma mais desagradável.
— Filho de uma cadela! — exclamou Peter.
— E quanto a ti? — perguntou ela por sua vez.
As crianças já haviam regressado das aulas, pelo que tinham jantado às dezoito horas. Melanie e Peter iriam jantar por volta das vinte.
— Fiz três by-passes de seguida. O meu dia no hospital não foi muito excitante — respondeu o marido.
— Combinei uma entrevista com a Louisa Garp — informou Melanie. A mulher a quem ela se referia era a estrela mais famosa de Hollywood.
— De verdade? — perguntou ele.
— Assim é.
— Quando? — continuou Peter.
— Na próxima semana. Ela acedeu hoje a dar a entrevista — disse Melanie com mostras evidentes de satisfação.
Peter ficara impressionado. Melanie sorriu e ele agarrou-lhe na mão. Naquele momento, ambos se encontravam extremamente ocupados com as respectivas carreiras profissionais. Tinham profissões que exigiam muito deles. Peter esperava que aquela situação não os impedisse de voltar a ter tempo para si próprios. Aquele não era o modo de vida que lhe agradasse por aí além. Gostava de saber que a sua mulher estaria sempre à sua disposição; em contrapartida, também se encontrava disposto a proporcionar-lhe todo o apoio de que ela necessitasse.
— Hoje tive saudades tuas, Mel.
— Também eu de ti — retorquiu ela, sabendo de antemão como é que seriam os dois meses seguintes. Mal teria oportunidade de o ver. Apesar disso, era possível que depois de decorrido esse período as coisas pudessem estabilizar.
Terminado o jantar, ambos se instalaram na sala de estar, onde ficaram a conversar durante algum tempo, até Pamela ter descido do quarto. Peter estendeu um braço na direção da filha.
— Como é que está a minha menina? — perguntou ele.
Pam dirigiu-se para o pai com um sorriso nos lábios.
— Sabias que a Melanie vai entrevistar a Louisa Garp? — continuou Peter.
— E então? — retorquiu ela, desinteressada.
Nos últimos tempos, a filha dava a impressão de que estava sempre a implicar, como se Melanie representasse uma verdadeira ameaça para ela.
Peter mostrou-se aborrecido com a atitude de Pam.
— Essa não é uma maneira muito agradável de comentar o assunto — retorquiu ele.
— Acha que não? — perguntou a rapariga de uma maneira arrogante. Ao ouvir aquilo, Melanie achou que Pam estava mesmo a pedir uma boa ensinadela, mas não abriu a boca. — O que é que isso tem de especial? Hoje tive um vinte no meu trabalho de História — acrescentou Pamela.
— Mas isso é fantástico! — exclamou o pai, deixando que o primeiro comentário da filha fosse posto de parte. Melanie sentiu-se furiosa e, quando a rapariga saiu da sala, deu a saber ao marido o que pensava quanto à maneira de agir dele. — O que [e que querias que eu dissesse? No ano passado, a garota esteve prestes a chumbar e agora diz-me que teve um vinte.
— Esplêndido! — exclamou Melanie. — Mas isso não impede que ela se tenha comportado de uma maneira grosseira para comigo.
— Por amor de Deus, Mel, dê-lhe tempo para se adaptar — redargüiu Peter, que naquele momento se sentia fatigado. Tivera um dia de trabalho muito comprido. A última coisa que desejava era chegar a casa e começar a discutir com a mulher. — Sugiro que subamos para o nosso quarto e que fechemos a porta. — Apesar daquela intenção, assim que passaram das palavras à ação, Jessica entrou no quarto e a mãe pediu-lhe com gentileza que saísse.
— Por que? — perguntou a filha, mostrando-se chocada.
— Porque não estive com Peter durante todo o dia, além de que temos coisas a conversar.
— Eu também não te vi o dia todo — retrucou Jess, obviamente magoada com a atitude da mãe.
— Eu sei. Mas nós podemos conversar de manhã, Jess. Nessa altura, o Peter já terá ido para o hospital. — O visado saiu do quarto para ir tomar um duche e Melanie deu um beijo na face da filha, que se afastou.
— Deixa estar, não tem importância — disse a jovem.
— Jess, vamos lá a ver. É impossível que eu me corte aos pedacinhos para toda a gente. Dê-me uma oportunidade para conciliar tudo — pediu a mãe.
— Sim, sim, com certeza — retorquiu a filha, agastada.
— Como é que está a Valerie? — perguntou Melanie, mudando de assunto.
— Como é que eu hei de saber? Pergunta-lhe tu! Ela deixou de falar comigo e tu não tens tempo para conversar conosco.
— O que estás a dizer não é justo — contrapôs Melanie.
— Não é? No entanto, é a verdade. Deduzo que ele esteja em primeiro lugar — continuou Jessica com um acenar de cabeça na direção da porta da casa de banho.
— Jess, agora sou uma mulher casada. Se durante todos estes anos em que vivemos sozinhas eu tivesse estado casada, a nossa vida teria sido muito diferente daquilo que foi.
— É o que estou a concluir. Mas, pessoalmente, preferia que as coisas fossem como antes — acrescentou Jessica.
— Jess. — começou Melanie a dizer, sentindo uma enorme agonia ao olhar para a filha. — O que é que está a passar-se contigo?
— Nada — respondeu a filha com os olhos cheios de lágrimas, sentando-se na cama da mãe e fazendo esforços evidentes para não chorar. — Acontece que... Eu não sei bem. — Abanou a cabeça num gesto de desespero ao olhar para a mãe. — É tudo. Uma escola nova, um quarto novo. Nunca mais vou poder ver os meus amigos outra vez. Sou obrigada a partilhar um quarto com a Valerie e ela é uma grande desmazelada. Serve-se de tudo o que é meu e nunca me devolve coisa alguma — Justificou Jessica, para quem aqueles problemas eram da maior importância. — E além do mais, ultimamente, a Valerie está sempre a chorar.
— Ai sim? — perguntou Melanie. Aquelas palavras deixaram-na pensativa. Deu-se conta de que Valerie, nas últimas semanas, chorava por tudo e por nada. Talvez Peter tivesse razão e Val estivesse doente. — Ela está bem, Jess?
— Não sei. Comporta-se de uma maneira esquisita e está sempre na companhia do Mark — explicou Jessica.
Melanie tomou mentalmente nota para não se esquecer de ter uma conversa com os dois acerca daquele assunto.
— Eu vou falar com eles outra vez.
— Isso não irá alterar o que quer que seja. A Val passa a vida no quarto dele — continuou Jessica.
— Eu ordenei-lhe especificamente que não fizesse isso — retorquiu a mãe com a testa franzida.
Não obstante as suas instruções, existiam outras coisas em que ela fora bastante específica para com a filha, e que esta não devia fazer. Apesar de Jess saber perfeitamente que a irmã não acatava a vontade da mãe, seria incapaz de lhe dizer. Melanie abraçou a filha e deu-lhe um beijo no rosto. Aquele gesto de ternura fez com que um sorriso de tristeza assomasse aos lábios de Jessica.
— Desculpa se eu me mostrei intransigente — desculpou-se a filha.
— De início, estas transformações são difíceis para todos nós, mas havemos de nos habituar a tudo. Tenho a certeza de que também não é fácil para o Mark, a Pam e o Matt terem-nos a viver cá em casa — continuou Melanie. — Sejamos indulgentes e concedamos a nós próprios um pouco de tempo, para que nos consigamos adaptar.
— O que é que se passa aqui? — perguntou Peter que saíra do chuveiro, tendo uma toalha enrolada à volta da cintura e sorrindo para Jessica. — Olá, Jess. Está tudo bem?
— Com certeza — respondeu ela com um sorriso nos lábios enquanto se levantava da cama. Sabia que devia deixá-los sozinhos. — Boa noite, mamãe.
Ao ver a filha sair do quarto, Melanie sentiu o coração despedaçado por ela se mostrar tão triste. Não mencionou a Peter a conversa que ambas tinham tido, mas a verdade era que aquilo constituía mais um fardo a carregar no coração, que levou consigo quando saiu para ir trabalhar na manhã seguinte, sendo obrigada a contatar de novo com Paul Stevens.
Naquela noite, depois de Melanie ter chegado a casa, Peter telefonou para lhe dizer que surgira uma emergência no hospital de que só ele poderia tratar, mas que iria para casa dentro de algum tempo; acabou por chegar às onze da noite.
Ultimamente, dava a impressão de que não eram capazes de sair daquele carrossel e, para agravar ainda mais aquele estado de coisas, durante as três semanas seguintes, Melanie pareceu estar constantemente ausente de casa, a fazer as suas entrevistas, a discutir com Paul Stevens antes ou depois do programa que ambos apresentavam, ou ainda a ter que ouvir as queixas de Valerie e de Jessica quando chegava a casa.
Mrs. Hahn não as deixava entrar na cozinha para petiscar qualquer coisa. Por seu lado, Pamela servia-se das roupas das gêmeas e Jessica dizia que a irmã se mantinha fechada à chave no quarto de Mark o tempo todo.
Para completar toda aquela situação, em finais de janeiro, Melanie recebeu um telefonema da escola de Matthew. O garoto tinha caído de um baloiço, e o resultado da queda fora um braço partido. Peter encontrou-se com os dois no serviço de urgências de um hospital, onde trabalhava um ortopedista seu amigo. Nessa altura, Melanie disse na brincadeira que aquela era a primeira ocasião que se lhes oferecia de se encontrarem em algumas semanas. Quase todas as noites, o cirurgião tinha-se visto a braços com situações de emergência, tendo de realizar inúmeros by-passes, e dois dos seus doentes, candidatos a transplantes do coração, tinham falecido por falta de doadores.
— Parece-te que sejamos capazes de sobreviver, Mel? — perguntou-lhe ele numa noite em que ela se deixara cair de exaustão na cama.
— Há dias em que não tenho a certeza. Nunca fiz tantas entrevistas na minha vida — respondeu Melanie.
Continuava a sentir que vivia na casa de outra pessoa, o que não contribuía em nada para que as coisas melhorassem, mas, verdade fosse dita, era ela própria que ainda não pudera dispor do tempo necessário para resolver aquela situação. Nem sequer tinha tido tempo para enfrentar a fria Mrs. Hahn.
— Quem me dera que te livrasses dela — admitira finalmente Melanie numa tarde em que ambos estavam a conversar.
— Estás a referir-te a Mistress Hahn? — perguntou ele com uma expressão chocada. — Há anos que ela trabalha em nossa casa.
— Pois bem, essa mulher está a dificultar muito a vida da Jess e da Val, e não é nada simpática para mim. Se calhar, está na altura de fazer uma mudança. — Havia muitas coisas que pretendia ver alteradas naquela casa, mas de momento não podia dispor de tempo para isso.
— Essa idéia é de loucos, Mel — retorquiu Peter, mostrando-se irritado ao pensar naquilo que a mulher lhe propunha. — Ela faz parte desta família.
— Da mesma forma que a Raquel fazia parte da nossa e eu fui forçada a deixá-la em Nova Iorque.
— E guardas-me ressentimento por causa disso? — inquiriu ele, perguntando a si mesmo se pedira demasiado ao fazer com que Melanie mudasse de cidade.
Nos últimos tempos, ela mostrava-se sempre ligeiramente mal-humorada em relação a ele. Peter também se apercebia de que a mulher não andava muito entusiasmada com o seu novo emprego. O vencimento que ela auferia era fabuloso, mas as condições de trabalho não eram tão boas como as que Melanie tivera anteriormente, para não falar nos eternos problemas que ela continuava a ter com Paul Stevens.
— Culpas-me de tudo o que corre mal, não é assim? — perguntou Peter à procura de uma discussão. Por uma razão qualquer que não era capaz de especificar, naquela manhã um bypass, que aparentemente fora feito na perfeição, não impedira que o doente tivesse morrido posteriormente.
— Não estou a culpar-te — retorquiu Melanie, muito cansada. — Mas o que é inegável é que temos carreiras que exigem muitíssimo de nós, além de cinco crianças. Mistress Hahn só está a complicar as coisas ainda mais.
— Talvez para ti, mas não para nós — disse Peter, olhando para a mulher com uma expressão de teimosia.
A atitude do marido fez com que ela desejasse começar a gritar.
— Dar-se-á o caso de eu também não viver aqui? Bolas, entre ti e a Pam...
— Agora o que é que temos? — replicou Peter, sentindo que aquele comentário o atingia em cheio.
— Absolutamente nada. O que se passa é que a tua filha se ressente da nossa presença nesta casa. Mas eu estava à espera que assim fosse — continuou Melanie.
— E não te parece que as tuas filhas também se sentem melindradas com a minha presença? Estás louca se pensas que isso não acontece. Estão habituadas a terem cem por cento do teu tempo e agora, de cada vez que fechamos a porta do nosso quarto, elas ficam chateadas — contrapôs ele.
— Não posso evitar isso, tal como não está nas minhas mãos mudar a maneira de ser da Pam. As crianças necessitam de tempo para se adaptar, mas não podemos ignorar que a Jess e a Val foram as que viram as suas vidas mais alteradas.
— Isso não é verdade — ripostou Peter. — A Pam perdeu a mãe.
— Lamento muito.
Não havia maneira de abordar aquele assunto com ele, nem se podia tocar em nada que respeitasse a imagem sagrada de Anne. Não escapara à sua atenção que algumas das fotografias da primeira mulher haviam sido devolvidas aos seus lugares originais, embora tivesse decidido não voltar a tocar naquele assunto; o quadro continuava pendurado no corredor.
— Também eu lamento — retrucou Peter.
— Não, não lamentas — disse Melanie, que obviamente não se encontrava na disposição de deixar que a discussão acabasse, o que demonstrava pouca sensatez. — Tu estás à espera que eu e as minhas filhas nos adaptemos a esta casa.
— Ai sim? Então o que achas que eu devia fazer? Mudar-me para Nova Iorque?
— Não — respondeu ela, olhando-o diretamente. Mas sim que nos mudemos para uma casa nova.
— Isso é um absurdo! — argumentou ele.
— Não, não é, mas a realidade é que as transformações na vida te assustam de morte. Quando eu apareci na tua vida, continuavas a manter tudo como no tempo de Anne, como se esperasses que ela regressasse a casa um dia destes. E agora decidiste mudar-me para a casa dela. Achas que não existe nada de mais no fato de toda a minha vida ter ficado de pernas para o ar, mas desejas continuar a ter tudo como antigamente. E adivinha uma coisa? Isso não resulta! — ripostou Melanie.
— É possível que seja do casamento que queiras sair, Mel, e não desta casa — argumentou Peter.
Ao ouvir aquilo, ela pôs-se de pé no lado oposto do quarto, fitando-o, completamente desesperada e frustrada.
— Estás preparado para desistir? — perguntou Melanie, desafiando o marido.
Peter deixou-se cair pesadamente sobre a sua cadeira preferida.
— Por vezes, estou — admitiu ele, olhando para ela com toda a franqueza e sentindo-se desalentado. — Por que motivo é que pretendes alterar tudo, Mel? É Mistress Hahn, a casa... Por que é que não podes deixar as coisas como estão?
— Porque aqui está tudo mudado, quer queiras ou não admiti-lo. Eu não sou a Anne, sou eu, a Melanie, e quero viver uma vida que nos pertença e que não nos tenha sido emprestada por outra pessoa — respondeu Melanie.
— Esta vida é nova — argumentou Peter, sem se mostrar muito convencido do que estava a dizer.
— Numa casa que não é nova. Eu e as minhas filhas sentimo-nos umas intrusas neste lar.
— Talvez estejas simplesmente à procura de uma desculpa para poderes regressar a Nova Iorque — retorquiu Peter, desanimado.
Melanie sentiu vontade de começar a chorar.
— É isso que pensas? — perguntou ela.
— Por vezes, sim — redargüiu Peter com sinceridade.
— Pois bem, permite-me que te explique uma coisa. Eu celebrei um contrato de trabalho nesta cidade. Se decidirmos desistir esta noite, continuarei presa aqui durante dois anos, quer isso me agrade quer não. Não posso regressar a Nova Iorque.
— E odeias-me por causa disso — redargüiu Peter.
— Eu não te odeio por motivo nenhum. Eu amo-te — afirmou Melanie, aproximando-se do marido e ajoelhando-se junto à cadeira onde ele estava sentado. — Quero que o nosso casamento seja bem sucedido, mas tal não acontecerá por si só. É essencial que ambos desejemos transformar certas coisas na nossa vida — continuou ela. Estendeu a mão e acariciou-lhe o rosto.
— Acho que... — Inesperadamente, as lágrimas começaram a correr-lhe pelas faces; virou o rosto para o outro lado e pouco depois voltou a olhar para a mulher. — Acho que pensei que pudéssemos manter as coisas da mesma maneira.
— Eu sei — retorquiu Melanie, aproximando-se mais e beijando-o. — Amo-te muito, mas estão a acontecer tantas coisas ao mesmo tempo, que por vezes sinto a cabeça a andar à roda.
— Eu compreendo. — De uma maneira ou de outra, depois das discussões, acabavam sempre por se entender. Eu devia ter-te obrigado a assinar o contrato com a cadeia de televisão de Nova Iorque, Mel. Não foi justo ter-te arrastado para Los Angeles.
— Foi sim — retrucou Melanie com um sorriso nos lábios, apesar das lágrimas que lhe marejavam os olhos. — E não me arrastaste para parte alguma. Fui eu quem não quis ficar em Nova Iorque. Tudo o que eu mais desejava era poder estar aqui contigo.
— E agora? — perguntou ele, com medo da resposta de Melanie.
— Estou contente por termos vindo. Dentro de algum tempo, estou certa de que os problemas desaparecerão.
Naquele momento, Peter agarrou-lhe na mão e com suavidade levou-a para a cama. Fizeram amor como haviam feito em ocasiões anteriores e Melanie soube que voltara a encontrá-lo. Não lamentava o que fizera até então, mas não havia sido fácil. Só esperava que conseguissem sobreviver.
Mas, com Peter a seu lado, sabia que conseguiria. A única coisa de que Peter não era capaz de protegê-la era do trabalho. Numa noite em fevereiro, viu-a chegar a casa prestes a ter uma crise de choro.
— Meu Deus, se soubesses como aquele homem é idiota! — desabafou ela. Paul Stevens andava a enlouquecê-la. — Uma noite destas vou matá-lo, ali mesmo no estúdio e quando estivermos no ar.
— Ora bem, isso é que eu classificaria de notícias — retorquiu Peter na brincadeira. Contrariando a regra, naquele momento as coisas andavam bastantes calmas no hospital. — Tenho uma idéia.
— Um assassino a soldo — alvitrou Melanie. — Essa é a única coisa que quero ouvir.
— Melhor do que isso — retorquiu Peter.
— Uma placa de cimento — acrescentou ela.
Peter soltou uma gargalhada.
— Proponho que este fim-de-semana toda a família vá esquiar. Será bom para todos nós. Eu não estou de serviço e ouvi dizer que a neve está ótima nesta altura. — Melanie não pareceu muito entusiasmada com a idéia. Ficava exausta só de pensar que tinha de fazer as malas. — O que é que achas da minha sugestão? — perguntou ele, entusiasmado.
— Não sei — respondeu ela, detestando fazer o papel de desmancha-prazeres, além de que, por uma vez, Peter parecia estar de excelente humor. Ele sorriu-lhe, colocando os braços à volta dos ombros da mulher.
— De acordo — acedeu Melanie. Pelo menos, teriam oportunidade de se afastar dos problemas da casa.
— Então está combinado? — insistiu ele.
— Sim, senhor doutor — concordou Mel com uma careta risonha, após o que subiu as escadas para dar a novidade às filhas.
Encontrou Valerie na cama com o que parecia ser uma gripe com alguma gravidade. A filha tinha uma palidez assustadora e estava meio adormecida. Quando Melanie lhe tocou na testa, verificou que a temperatura era elevadíssima. Mark encontrava-se sentado perto da cama com um semblante de extrema preocupação. Aquilo não parecia muito diferente das gripes que ela tantas vezes tinha em Nova Iorque. A constituição física daquela filha era bastante mais frágil do que a de Jessica.
— Tenho boas notícias a dar-vos — anunciou Melanie a Mark e às gêmeas. — O Peter vai levar-nos a esquiar neste fim-de-semana.
Apesar de se terem mostrado satisfeitos, a reação dos jovens não foi de grande euforia. Mark não escondia o quanto se sentia envolvido com Valerie e, por seu lado, Jessica exibia uma expressão bastante vaga ao olhar de relance para a irmã.
— Mas que agradável! — comentou Val, que foi a primeira a reagir às boas novas, apesar de a sua voz estar bastante enfraquecida.
— Estás bem, minha querida? — perguntou a mãe, sentando-se na cama de Valerie, que se retraiu.
— Sim. É só uma gripe — afirmou ela.
Melanie acenou com a cabeça, apesar de continuar preocupada com o estado de saúde da filha.
— Achas que no fim-de-semana já estarás boa?
— Claro — confirmou Val.
Em seguida, Melanie foi até o fim do corredor para informar Pamela e Matthew, após o que, regressou ao quarto das filhas com um copo de sumo e aspirinas para Valerie. Pouco depois foi para o andar de baixo.
— Toda a gente ficou satisfeita? — perguntou Peter.
— Calculo que sim. Mas a Val está doente.
— O que é que ela tem? — indagou ele com um ar preocupado. — Queres que eu a observe?
Melanie sorriu ao ouvir a sugestão do marido. Ela conhecia bem a filha.
— Estou convencida de que ela ficaria constrangida se fizesses isso. De qualquer maneira, não passa de uma constipação — assegurou ela.
— No fim-de-semana já estará boa — disse Peter com um acenar de cabeça.
— Ainda não fui ao médico que me sugeriste — recordou-se Melanie. Mas a realidade era que de cada vez que mencionava aquele assunto a Valerie, esta desatara a chorar, insistindo que se encontrava bem de saúde.
Quando finalmente chegou o tão almejado fim-de-semana, apanharam o avião para Reno. Depois de aterrarem, meteram-se numa furgoneta rumo ao Squaw Valley. Valerie continuava muito pálida, mas todos os outros sintomas pareciam ter desaparecido e naquele momento Melanie andava bastante preocupada com outros problemas. Paul Stevens tinha feito uma cena terrível no estúdio, exatamente antes do início da emissão do programa, na noite anterior à viagem para Reno. À medida que os dias iam passando, Melanie sentia uma agonia maior sempre que tinha de ir trabalhar, receando cada vez mais a perspectiva de outro dia de trabalho. No entanto, sentia-se firmemente determinada a ultrapassar aquela situação, custasse o que custasse. Dadas aquelas circunstâncias, todos os fins-de-semana eram uma bênção, muito em especial, aquela viagem até Squaw Valley.
Entoaram algumas canções enquanto se ajudavam a arrumar os esquis e os sacos de viagem na carrinha. Peter deteve-se para dar um beijo a Melanie antes de entrarem, o que fez com que as crianças colassem o rosto aos vidros das janelas, a gritar e a aplaudir. Até mesmo Pamela se mostrava mais bem-humorada do que habitualmente. Por seu lado, Valerie conseguira adquirir um pouco de cor nas faces. Finalmente, partiram para Squaw Valley e, quando chegaram todos se riam e diziam piadas, o que fez com que Melanie se sentisse encantada por terem decidido fazer aquela viagem. Seria bom para toda a família estar fora de Los Angeles por uns dias e sair daquela casa, que se estava a transformar numa verdadeira fonte de discórdia entre ela e Peter.
Ele alugara um apartamento pequeno, mas bastante acolhedor, num lugar onde se haviam alojado anteriormente. Apesar da sua pequenez, tinha espaço suficiente para todos. Dormiam tal como haviam feito no México: as raparigas num quarto e os rapazes noutro, enquanto Peter e Melanie partilharam um terceiro. Por volta da hora do almoço, já se encontravam nas encostas cobertas de neve, rindo-se, brincando e correndo atrás uns dos outros pela montanha abaixo. Como já vinha sendo habitual, Mark mantinha-se junto de Valerie, mas parecia haver entre os dois menos frivolidade do que antes. Jessica e Pamela deslizavam a grande velocidade pelas pistas mais inclinadas, com Matt logo atrás.
No fim da primeira descida, Melanie deteve-se no sopé da montanha com a respiração ofegante, tendo ficado ao lado de Peter à espera que os outros chegassem. Apenas o fato de estarem ali, a respirar o ar fresco e puro da montanha, era fantástico, e Melanie sentiu-se mais jovem. Olhou para Peter com uma alegria que se espelhava no seu rosto, observando por cima do ombro dele os filhos de ambos a descerem a encosta da montanha.
— Não te sentes satisfeita por termos vindo, Mel? — perguntou ele.
Melanie olhou-o bem nos olhos com uma expressão de felicidade. Peter estava mais bem-parecido do que antes; os seus olhos azuis brilhavam, tinha as faces rosadas e de todo o seu corpo emanava uma grande vitalidade.
— Fazes-me muito feliz — retorquiu ela.
— Ah, sim?
Amava-a muito e nunca tivera a mínima intenção de torná-la infeliz, mas receava que, de vez em quando, isso acontecera simplesmente devido ao fato de, até certo ponto, a ter forçado a mudar-se para a Costa Oeste e, indiretamente, obrigado a optar por um outro emprego. Fora quase como pedir uma noiva por catálogo. Peter sorriu.
— Espero bem que sim — acrescentou ele. — Há tantas coisas que quero fazer contigo e te quero dar!
— Eu sei — retorquiu Melanie, compreendendo-o melhor do que ele pensava. — Mas temos tão pouco tempo. Pode ser que com o passar do tempo venhamos a aprender a coordenar melhor os nossos tempos livres. — Mas haveria sempre entrevistas, peças e novas reportagens a fazer e existiriam sempre pessoas a necessitar de um novo coração ou de recuperar os que tinham. — Pelo menos, os miúdos não terão problemas com o período de adaptação — finalizou ela.
— Eu não apostaria nisso — disse Peter com uma gargalhada, enquanto observava os cinco jovens que se iam aproximando cada vez mais do lugar onde os pais se encontravam, com Matthew a fechar a retaguarda, apesar de não estar muito afastado dos outros. O garoto conseguia ser quase tão lesto como os mais velhos.
— Nada mau, meus meninos. Querem experimentar uma vez mais? — perguntou Peter.
— Ou preferem interromper agora para irmos almoçar?
Haviam comido durante o vôo e comprado algumas sanduíches em Reno, que comeram na furgoneta.
— Acho que a Val devia comer qualquer coisa — respondeu Jess apressadamente.
Melanie sentiu-se comovida ao ver a maneira como ela continuava a olhar pela irmã e foi então que reparou na palidez de Val. Ainda com os esquis nos pés, aproximou-se da filha e colocou a mão sobre a testa de Val. Verificou que não tinha febre.
— Estás bem, Valerie? — perguntou a mãe.
— Com certeza, mamãe — respondeu ela, apesar de a expressão dos seus olhos ser um pouco vaga.
Quando já tinham começado a subir a montanha, Melanie tornou a falar da filha a Peter.
— Quando voltarmos para casa, tenho de ir com a Val ao médico, e não me interessa se ela começar a gritar e a chorar. Não consigo compreender por que razão se mostra tão renitente e teimosa sempre que se fala em ir a um médico que não conhece.
Peter sorriu enquanto seguiam pelo ar; parecia que flutuavam por cima da copa dos enormes pinheiros durante o percurso até ao cume da montanha.
— Há cerca de dois anos, tive de ir com a Pamela ao pediatra antes de recomeçar as aulas, e ela começou a correr aos gritos pelo consultório, dizendo que não queria que ele lhe desse o reforço da vacina contra o tétano. A verdade é que, independentemente da altura que elas possam ter ou do tamanho dos seios, continuam a ser umas crianças. Às vezes é fácil esquecer esse aspecto, dado que têm uma aparência tão sofisticada. Mas essa maturidade aparente não passa de uma camada de verniz. Por baixo dessa superfície, elas são tão adultas como o Matthew.
Melanie sorriu, concordando. Observou os esquis que lhe balouçavam dos pés e que iam suspensos no ar.
— Tens razão a respeito da Val, mas não me parece que essa teoria se aplique à Jessica. Aquela rapariga possui uma alma madura desde que nasceu, e sempre olhou pela irmã. Por vezes dou comigo a pensar que conto com ela em demasia.
Peter olhou para ela.
— Eu acho o mesmo. Tenho a impressão de que ela anda preocupada desde que vocês chegaram a Los Angeles. Será por minha causa ou terá a Jess ciúmes da relação do Mark com a Val? — perguntou ele.
Melanie não se apercebera da tensão de Jessica e ficou admirada pelo fato de o marido se ter dado conta disso. Era surpreendentemente perceptivo, tendo em conta o fato de passar muito pouco tempo com as gêmeas.
— Parece-me que é um pouco os dois casos. A Jessica está acostumada a contar mais comigo — retorquiu Melanie. — Nestes últimos tempos, tenho tentado melhorar a minha relação com a Pam e o Matt precisa de mim mais do que os outros. Tem uma grande necessidade de amor.
— Eu tentei suprir essa lacuna — declarou Peter com uma expressão magoada.
— Eu sei bem que te esforçaste, mas nunca poderás ser uma mãe — disse ela, inclinando-se para lhe dar um beijo.
Quando chegaram ao topo da montanha, saíram apressadamente do assento-elevador. Melanie apreciava poder dispor de tempo para falar com o marido. Isso raramente acontecia em Los Angeles. No entanto, ali, ainda que somente por algumas horas, tinha a impressão de que ambos haviam estabelecido contacto de novo. Melanie olhou de relance para trás uma ou duas vezes, enquanto esquiavam pela encosta da montanha abaixo, certificando-se de que estavam todos presentes. Reconhecia cada um dos membros da família pela combinação de cores das roupas de cada um. Jessica e Valerie iam de amarelo, Mark de vermelho e preto, Matthew de azul-carregado e amarelo, e Pamela de vermelho dos pés à cabeça. Melanie vestira um casaco de peles e chapéu condizente e usava umas calças de esqui pretas, enquanto Peter tinha optado por um fato de esqui azul-escuro. Formavam um conjunto bastante multicolorido.
Ao fim da tarde, foram ao apartamento beber chocolate quente, após o que regressaram à encosta da montanha para esquiar mais um pouco. Nesta altura, os jovens decidiram ir para uma pista diferente daquela por que Mel e Peter tinham optado. Porém, essa decisão não representava qualquer problema, uma vez que Melanie já se certificara de que eram todos esquiadores experimentados, pelo que sabiam olhar por si próprios, incluindo o pequeno Matthew. Também se sentia segura por saber que Jessica estaria de olho no garoto, no caso de Pam não se dar a esse cuidado. Era divino esquiar ao lado de Peter e sentir nas faces o ar agreste da montanha. Na última descida, fizeram uma corrida na pista, a qual foi ganha por Peter, que ficou com a vantagem de alguns metros; quando por fim ela se lhe juntou, tinha a respiração ofegante e ria-se.
— Tu és magnífico! — exclamou Melanie com admiração, olhando para o marido. Ele parecia nunca ter medo de fazer nada.
— Agora já não sou — retorquiu Peter. — Quando andava na faculdade fiz parte da equipe de esqui, mas há muitos anos que não praticava a sério.
— Ainda bem que só agora é que te conheci. Nunca teria sido capaz de acompanhar a tua velocidade — disse Melanie.
— Não esquias tão mal como isso — retrucou ele com um sorriso nos lábios, dando-lhe uma palmada no traseiro com uma luva de pele. Melanie riu-se e o marido deu-lhe um beijo. Pouco depois abandonaram a pista e tiraram os esquis dos pés, após o que ficaram à espera que os filhos chegassem ao sopé da montanha. Pareceu-lhes que a espera foi longa, mas, algum tempo depois, os jovens começaram a aproximar-se do local onde se encontravam. Em primeiro lugar vinha Mark seguido de Jessica, Pamela e Matthew. Daquela feita, era Valerie que fechava a retaguarda, a qual andava bastante mais devagar do que os outros, e Jessica virara-se várias vezes para trás, certificando-se de que a irmã se encontrava bem, o que Melanie observou através dos olhos semicerrados.
— Ela estará bem? — perguntou Melanie.
— Quem? — retorquiu Peter, que tinha estado a observar Matthew. O garoto estava a fazer progressos extraordinários na prática do esqui.
— Estou a referir-me à Valerie — esclareceu Melanie.
— É ela que vem logo atrás do Mark? — interrogou Peter, que não conseguia identificar a gêmea, por não poder ver a cor dos cabelos ocultos pelo gorro de lã, tendo-a tomado pela irmã.
— Não, ela é a que vem em último lugar e ainda se encontra um pouco mais acima do que os outros. Usa um fato da mesma cor do da Jess — explicou Melanie, continuando a observar a filha. Ela hesitou uma ou duas vezes, tropeçou e recuperou o equilíbrio, continuando a descer pela encosta, e por pouco que não chocava com dois outros esquiadores, tendo conseguido passar entre ambos. — Peter. — disse Melanie, agarrando-se instintivamente ao braço do marido, enquanto continuavam a olhar para Valerie. — Passa-se alguma coisa.
Nessa altura a filha rodopiou sobre si mesma de uma maneira estranha, para pouco depois recuperar o equilíbrio, após o que começou a dar voltas sem nexo, enquanto o resto da família não tirava os olhos dela e, inesperadamente, caiu quando já se encontrava quase no sopé da montanha. Os esquis desprenderam-se das botas e Val caiu desamparada na neve com o rosto para baixo. Melanie foi a correr para junto da filha.
Peter, que não perdeu tempo, tendo ido atrás da mulher, ajoelhou-se rapidamente junto da rapariga, a qual perdera a consciência. Puxou-lhe as pálpebras para cima, a fim de poder observar-lhe as pupilas e, em seguida, tomou-lhe o pulso. Fitou Melanie, que não era capaz de compreender o que é que se tinha passado.
— Ela está em choque — explicou-lhe ele e sem mais palavras abriu o fecho de correr do seu blusão, cobrindo Valerie.
Por reflexo, Melanie fez o mesmo, enquanto os outros jovens olhavam para Val com uma expressão incrédula. Jessica ajoelhou-se ao lado da irmã e segurou-lhe na mão. Peter olhou à sua volta, na esperança de que a patrulha de vigilância das pistas não levasse muito tempo a reparar neles.
— Alguém sabe o que é que aconteceu? Terá ela dado uma queda má e batido com a cabeça? Será que partiu alguma coisa ou torceu um pé com gravidade? — perguntou Peter a ninguém em especial.
Mark mantinha-se estranhamente silencioso e Pamela abanou a cabeça, enquanto Matthew começava a chorar, agarrando-se a Melanie.
Bruscamente, esta soltou um grito ao avistar uma extensa mancha vermelha que começara a aparecer entre as pernas de Val, espalhando-se pela neve à volta do corpo.
— Peter! Oh meu Deus. — murmurou Mel, descalçando as luvas e acariciando as faces geladas de Valerie.
Peter olhou para a mulher e depois para a enteada.
— Ela está a ter uma hemorragia — explicou ele.
Afortunadamente, a patrulha de vigilância chegou naquele momento. Dois homens jovens e possantes, que usavam braçadeiras vermelhas e brancas, ajoelharam-se de imediato ao lado de Peter.
— Foi uma queda má? — perguntou um deles.
— Não. Eu sou médico. Ela está com uma hemorragia. Daqui a quanto tempo é que conseguem trazer uma maca para levá-la? — inquiriu Peter.
Um dos homens falou através de um pequeno transmissor, dando o alerta e indicando o local exato onde se encontravam.
— Deve chegar rapidamente — informou o homem e, quase antes de ele ter acabado de falar, começou a ver-se à distância um trenó, em cima do qual era transportada uma maca e que era flanqueado por dois esquiadores.
Melanie continuava ajoelhada junto da filha, com o seu próprio casaco a cobrir-lhe o corpo inerte e verificando que, a despeito de todos os seus esforços, os lábios da rapariga inconsciente começavam a ficar azulados. Olhou para o marido com uma expressão de pânico.
— Não podes fazer nada? — perguntou ela com uns olhos cheios de lágrimas onde se lia uma acusação, o que fez com que ele a fitasse com desespero.
Se Valerie não recobrasse a consciência, a mulher jamais lhe perdoaria. No entanto, não havia rigorosamente nada que ele pudesse fazer naquele momento.
— Temos de estancar a hemorragia e fazer-lhe uma transfusão de sangue logo que possível — disse Peter, olhando para um dos rapazes da equipe de vigilância das pistas. — A que distância é que fica o posto de socorros mais próximo? — O rapaz apontou para o sopé da montanha. O posto ficava situado a um minuto do local onde se encontravam.
— Vocês têm plasma?
— Temos, sim, senhor — respondeu o homem.
Entretanto, Valerie já fora colocada na maca dentro do trenó, tendo deixado na neve uma extensa poça de sangue. Toda a família seguiu atrás do trenó em direção ao pequeno posto de socorros.
Peter voltou-se para Melanie.
— Qual é o grupo sanguíneo dela? — perguntou.
— O Rh positivo — respondeu ela.
Naquela altura, Jessica já chorava de mansinho, o mesmo acontecendo a Pam; e Mark tinha o aspecto de quem seria o próximo a necessitar do trenó. Agarraram o mais depressa possível na maca onde Valerie fora colocada e levaram-na para o interior do posto. A enfermeira já tinha pedido a presença de um médico. Este encontrava-se de momento numa das pistas, por causa de um esquiador que partira uma perna, e que tinha de trazer para baixo. Sem perder mais tempo, Peter posicionou as ancas de Valerie de forma a que ficassem a uma altura superior à da cabeça, enquanto a enfermeira o ajudava a despir as roupas da jovem. Os outros membros da família permaneciam no posto, observando tudo o que se estava a passar. Começaram a ministrar plasma à rapariga, que continuava inconsciente. O rosto de Melanie espelhava medo e desânimo.
— Meu Deus, Peter. — disse ela a olhar para o sangue que parecia espalhar-se por todo o lado. De repente voltou-se para Pamela que se mantinha junto de Jessica, ao recordar-se da presença de Matt.
— Pam, leva o teu irmão lá para fora.
Esta anuiu com um acenar de cabeça e saiu do posto de socorros, enquanto Mark e Jessica não arredavam pé, agarrando-se um ao outro com quanta força tinham. Peter, ajudado pela enfermeira, lutava para salvar a vida da enteada.
O médico chegou, decorridos alguns minutos, e começou a coordenar esforços com Peter. Já havia sido chamada uma ambulância. A rapariga tinha de ir imediatamente para um hospital; era evidente que Valerie sofria de uma hemorragia do foro ginecológico; todavia, não havia qualquer forma de se saber o que é que dera origem àquela situação, e qual fora o motivo.
— Alguém sabe... — começou o médico a perguntar, tendo sido interrompido por Mark que se aproximou, provocando o espanto dos outros e começando a falar numa voz trêmula.
— Na terça-feira passada, ela foi fazer um aborto — esclareceu ele.
— Ela... o que?! — exclamou Melanie, começando a sentir a sala a andar à roda, enquanto olhava para Mark e depois para Peter.
Entretanto, a enfermeira fora buscar sais de cheiro, enquanto o médico continuava a dedicar toda a sua atenção a Valerie, apesar de ser evidente que a única maneira de estancar a hemorragia seria através de uma intervenção cirúrgica e, até mesmo isso não era uma certeza naquele momento. Ela perdera uma quantidade enorme de sangue.
Peter olhou para o filho com uma expressão aterrorizada.
— Em nome de Deus, diz-me quem é que é responsável por isto? — perguntou ele ao filho.
Naquele momento, Mark tinha os olhos marejados de lágrimas e a voz tremia-lhe incontrolavelmente.
— Não quisemos ir a um médico que fosse teu conhecido, o que eliminou quase todos os médicos de Los Angeles. A Valerie quis ir a uma clínica, pelo que optamos por uma a oeste da cidade — explicou o rapaz.
— Oh, por amor de Deus! Dás-te conta de que isso pode vir a ser a causa da morte dela? — perguntou Peter aos gritos.
Melanie começou a chorar convulsivamente enquanto Jessica se agarrava a ela.
— Ela vai morrer. Oh, meu Deus! Ela vai morrer — disse Jess, que tinha perdido todo o autodomínio ao ver a irmã às portas da morte.
Isso fez com que a mãe recuperasse a razão, ao ver o que se estava a passar à sua volta. Melanie começou a falar com a filha num tom de brutalidade, sendo a sua voz a única que se fazia ouvir na pequena sala.
— Ela não vai morrer — disse Melanie com brutalidade. A sua voz era a única que se ouvia na sala. — Estás a ouvir? Ela não vai morrer!!! — Mel dirigia-se tanto a Deus como todos os que se encontravam presentes no posto de socorros. Numa fúria súbita, olhou para Mark e para Jessica. — Por que raio é que nenhum de vocês me pôs ao corrente disto? — A resposta que obteve do rapaz foi o silêncio. Teria sido demais esperar que algum deles lhe contasse o que se passara. Em seguida, voltou-se para Jess. — E tu! Tu sabias! — continuou ela, num tom de acusação cheio de cólera.
— Adivinhei. Eles nunca me disseram — retorquiu a filha, tão furiosa como a mãe. — E que diferença é que teria feito se te tivéssemos contado? Tu andas sempre tão ocupada com a porcaria do teu emprego e com o teu marido, e com a Pam e o Matt. Teria sido melhor que nos tivesses deixado em Nova Iorque; teria sido melhor. — Mas foi silenciada por uma bofetada da mãe, dirigindo-se para um canto da sala a soluçar. Entretanto, começou a ouvir-se à distância o som estridente da sirena. Momentos depois, apressaram-se a meter Valerie no seu interior, com dois paramédicos acompanhados de Melanie.
— Eu vou atrás de vocês na furgoneta — apressou-se Peter a dizer à mulher. Correu para fora do posto de socorros, onde deixou todos os esquis. Poderiam voltar mais tarde para os ir buscar. Naquele momento, aquela era a menor preocupação de toda a família. Ligou a ignição e, em silêncio, os jovens entraram no veículo. Jessica e Mark sentaram-se na frente ao seu lado, enquanto no assento de trás seguiam Matthew e Pamela. A caminho do hospital em Truckee, nenhum deles proferiu uma única palavra. Peter foi o primeiro a quebrar o silêncio que se instalara entre eles.
— Tinhas a obrigação de me ter contado o que se estava a passar, Mark — disse ele numa voz tranqüila. Peter imaginava a tensão por que o filho estava a passar naquele momento de tanta gravidade.
— Eu sei, pai. Parece-lhe que ela vai conseguir salvar-se? — perguntou ele com voz trêmula, com as lágrimas a caírem-lhe pelas faces abaixo.
— Acho que sim, se conseguirem levá-la com rapidez para o hospital. A Val perdeu uma grande quantidade de sangue, mas o plasma vai ajudar.
Jessica ia sentada entre os dois, permanecendo num silêncio de morte. A marca da mão da mãe ainda estava marcada na sua face.
Em seguida, Peter olhou para ela, tocando-lhe no joelho com a mão.
— A tua irmã vai ficar bem, Jess. A situação parece pior do que na realidade é. É sempre muito impressionante quando se vê uma grande quantidade de sangue — explicou Peter.
Jessica acenou com a cabeça sem proferir palavra. Quando chegaram ao hospital em Truckee, saíram da furgoneta, mas os jovens não conseguiram ir além da sala de espera. Peter e Melanie acompanharam Valerie, enquanto esta estava a ser preparada para a operação. Peter optou por não assistir à intervenção cirúrgica, a fim de poder ficar junto da mulher, enquanto esta aguardava o resultado da operação.
Entretanto, já fora chamado um cirurgião especializado em ginecologia. Foram apenas informados de que a rapariga se encontrava em estado grave, e que havia a possibilidade de ela vir a fazer uma histerectomia. Não se saberia nada ao certo até começarem a operar.
Ao ouvir aquilo, Melanie acenou com a cabeça, exibindo uma expressão aparvalhada. Peter conduziu-a para a sala de espera, onde ficaram junto dos filhos. Ela mantinha-se afastada de Mark e Jessica permanecia longe da mãe. Algum tempo depois, Peter dirigiu-se ao filho mais velho e deu-lhe vinte dólares, dizendo-lhe que levasse os outros à cafetaria para comerem alguma coisa.
Mark aquiesceu e saiu, seguido do resto dos jovens, apesar de nenhum deles ter vontade de comer. A única coisa em que conseguiam pensar era no estado de Valerie, a qual naquele momento se encontrava sobre uma mesa na sala de operações.
Depois de os jovens se terem ido embora, Melanie, com as lágrimas a correrem-lhe pelas faces, voltou-se para Peter e encostou-se ao peito dele, soltando um gemido de desespero. Ele estava habituado a assistir todos os dias àquelas cenas. Desta vez, era a eles que aquilo acontecia. A Melanie. A Valerie. Peter sentiu a mesma coisa que sentira quando Anne morrera: uma impotência total. Pelo menos agora poderia ajudar a mulher. Abraçou-a com força enquanto lhe sussurrava palavras de conforto.
— Vais ver que ela vai ficar bem, Mel. A Val vai ficar...
— E se ela nunca mais puder ter filhos? — interrompeu-o a mulher, a chorar convulsivamente nos seus braços.
— Se isso vier a acontecer, ficará viva e nós não a perderemos — retorquiu Peter.
— Por que motivo é que ela não me disse? — perguntou Melanie num tom de queixume.
— Calculo que tenham tido receio — redargüiu o marido. — Queriam ser eles a resolver o problema sem a ajuda de qualquer pessoa — continuou Peter.
Fora uma atitude admirável da parte dos jovens, embora tivesse sido uma loucura.
— Mas a minha filha só tem dezesseis anos — acrescentou Melanie.
— Eu sei, Mel. Eu sei. — Peter interrompeu-se, ocorrendo-lhe então que havia algum tempo que suspeitava que os dois já mantinham relações sexuais. Mas preferira não partilhar a sua suspeita com a mulher, receando preocupá-la.
Naquelas circunstâncias, compreendia que deveria ter tido uma conversa com o filho mais velho. Peter ainda estava a pensar naquilo tudo quando Mark regressou da cafetaria com os outros e se aproximou do pai e de Melanie. Esta ergueu o olhar para o rapaz com uma expressão que refletia o seu desespero, continuando a chorar.
Mark sentou-se e olhou para ela, sofrendo terrivelmente.
— Não sei o que é que hei de dizer. Lamento muito. Eu. Eu nunca pensei... Não devia tê-la deixado... — Baixou a cabeça, desolado e a soluçar.
Peter e Mel abraçaram-no. Depois Mark e Mel choraram nos braços um do outro. Pam, Matt e Jessica aproximaram-se dos três. Formavam um quadro muito triste. O cirurgião entrou na sala de espera e ficou a olhar para eles, com uma expressão desolada. Peter foi o primeiro a dar pela presença do médico, tendo-se afastado dos outros para se lhe dirigir; falou com o médico em voz baixa, enquanto Melanie o observava, aterrorizada.
— Como é que correu a operação? — perguntou Peter. O cirurgião assentiu e Mel susteve a respiração.
— No meio de toda esta desgraça, ela teve muita sorte. Não fomos obrigados a extrair-lhe o útero. Sofreu somente uma grande hemorragia, mas não houve danos permanentes. No entanto, sugiro que ela não volte a tentar fazer outro aborto — concluiu o médico.
Peter acenou com a cabeça. Esperava que isso não voltasse a suceder.
— Estou-lhe muito agradecido — disse ele, e os dois médicos apertaram a mão.
— Fui informado de que o senhor também é um cirurgião.
— De fato, assim é. Especializei-me em cirurgia cardiovascular. Somos de Los Angeles — explicou Peter.
Nessa altura, o médico que operara Valerie semicerrou os olhos, dando uma palmada na testa com um sorriso aberto.
— Oh, bolas! Eu sei quem o senhor é. Hallam! — exclamou ele com tanta excitação que quase rebentava. Em seguida, começou a rir-se. — Ainda bem que não soube isso antes de entrar para a sala de operações, senão teria ficado uma pilha de nervos.
— Não havia razão para isso. Eu nunca poderia ter feito a operação que acabou de realizar — retorquiu Peter.
— Pois bem, estou satisfeito por poder ter prestado o meu contributo — disse o outro médico, apertando de novo a mão de Peter. — Foi um prazer.
Peter sabia que não lhe seria enviada qualquer conta, o que lamentava. O cirurgião fizera um excelente trabalho, tendo conseguido salvar a vida de Valerie, assim como a dos seus futuros filhos e talvez até mesmo a de Mark. Perguntou-se se aquela tragédia iria pôr cobro ao romance que os dois jovens mantinham ou se, pelo contrário, os aproximaria ainda mais.
Durante a última hora, aquela situação unira ainda mais a família. Enquanto esperavam que Valerie recobrasse a consciência depois de passado o efeito da anestesia, começaram a ficar mais animados. Conversaram e disseram mesmo algumas piadas; mas, de uma maneira geral, o ambiente que reinava entre eles continuava a ser taciturno. Tinham atravessado um momento difícil. Antes de Valerie ter acordado da anestesia, Peter levou Pam e Matt para o apartamento. Mark e Jessica tinham insistido em permanecer junto de Melanie, pois queriam ver Valerie logo que possível.
Todavia, naquele momento, as duas crianças mais novas estavam com um aspecto pior do que o da própria doente. Apesar de todos os seus protestos, Peter insistira em levá-los para casa.
— Nós também queremos ver a Val — choramingava Matthew.
— Os médicos não vão deixar, Matt, e além do mais já é muito tarde — argumentou o pai com ternura, mas firmemente. — Tens muito tempo de vê-la amanhã, se já for permitido.
— Mas eu quero vê-la esta noite! — insistia o garoto, irredutível.
O pai, sem atender aos pedidos do filho mais novo, levou-o para fora do hospital juntamente com Pamela, que lançou um último olhar aos outros que ficavam. Quando Peter regressou, Val tinha acabado de acordar e já fora levada para o quarto. Quando a viram, ela ainda estava demasiado atordoada para poder compreender o que lhe diziam. Limitou-se a sorrir. Pouco depois, ao ver Mark, estendeu-lhe a mão e sussurrou:
— Desculpa. Eu... — disse ela sem acabar a frase, adormecendo uma vez mais.
Uma hora depois, deixaram o hospital e regressaram ao apartamento. Era quase meia-noite e todos se sentiam extremamente esgotados.
Melanie deu um beijo de boa-noite a Jessica, mantendo-a nos seus braços durante longos momentos, antes de esta ter ido para a cama.
A filha olhou para a mãe com uma expressão plena de tristeza.
— Desculpa a maneira como te falei — disse ela, com uma expressão de arrependimento.
— Talvez algumas coisas que disseste sejam verdade — retorquiu Melanie. — É muito possível que eu tenha andado demasiado ocupada com os problemas dos outros.
— Agora, somos muitos, o que exige demasiado da tua atenção. Eu compreendo isso, mamãe. — continuou Jess, recordando-se de outra época, de outro lugar, quando ela e a irmã não eram obrigadas a partilhar tanto como naquela altura.
— Isso não serve de desculpa, Jess. A partir de agora vou tentar proceder de forma mais correta — prometeu a mãe.
No entanto, que mais poderia ela fazer? Quantas mais horas é que havia num dia? Como é que Melanie poderia proporcionar a cada um o que ele necessitava, executar o seu trabalho de forma adequada, ficando ainda com tempo para poder respirar? Naquela altura era a mãe de cinco jovens, mulher de um cirurgião ilustre, e apresentava o noticiário de parceria com um colega. Mal tinha tempo para si. E a sua filha havia-a acusado de estar mais interessada nos enteados do que nas próprias filhas. Era muito possível que Melanie estivesse a tentar excessivamente agradar a todos. Também deu um beijo de boa- noite a Mark e em seguida foi para a cama com Peter. Contudo, sentia-se tão esgotada que não conseguia conciliar o sono. Deixou-se ficar deitada na cama durante várias horas a pensar no que Jessica lhe dissera, vendo a imagem de Valerie caída sobre a neve e coberta de sangue. Peter sentiu-a estremecer ao seu lado.
— Nunca me perdoarei por não ter percebido o que estava a acontecer — recriminou-se ela.
— Não podes saber tudo, Mel. Eles já são quase adultos.
— Não foi isso que disseste ainda hoje. Afirmaste que eram tão adultos como o Matthew.
— Talvez eu me tenha enganado — reconsiderou Peter, sentindo-se ainda bastante chocado pelo fato de o seu filho ter estado prestes a ser pai. Não obstante isso, não se poderia esquecer de que Mark fizera dezoito anos em agosto. Era um homem. — Eu sei que eles são jovens, demasiado imaturos para fazerem o que têm feito: ter relações sexuais, engravidar e fazer abortos; mas tudo isso são coisas que acontecem, Mel — continuou Peter, apoiando-se sobre um cotovelo a olhar para a mulher. — Tentaram resolver a situação. Tens de lhes reconhecer esse mérito.
Todavia, Melanie não se encontrava disposta a reconhecer qualquer mérito nas ações dos dois jovens. Recusava-se a tal.
— Sabes, algumas das coisas que a Jessica me disse são verdade. Eu tenho andado tão envolvida contigo e com a Pam e o Matthew que não tenho dedicado muito tempo às minhas filhas — reconheceu Melanie.
— Não te esqueças de que agora tens cinco miúdos, um emprego, uma casa maior e tens-me a mim — contrapôs Peter. — Que mais é que podes exigir de ti, Mel?
— Calculo que mais — redargüiu ela, sentindo-se esgotada só de pensar nisso.
— Que mais é que poderás fazer? — continuou Peter.
— Para te ser franca, não sei — respondeu Melanie. — Mas, aparentemente, aquilo que tenho feito não é suficiente ou isto não teria acontecido à Valerie. Tinha obrigação de ter me dado conta do que estava a acontecer. Devia ter-me apercebido sem que ninguém me contasse.
— O que é que pretendes fazer? — insistiu Peter, sem se mostrar convencido. — Desempenhar o papel de polícia? Desistir da tua carreira profissional, para poderes levar as crianças à escola?
Não era uma sugestão muito tentadora, mas, um pouco mais tarde, Melanie respondeu numa voz a medo:
— Era isso que a Anne costumava fazer, não é verdade?
— Sim, mas tu e ela são duas mulheres muito diferentes, Mel. E acho que ela nunca se sentiu absolutamente realizada, se queres saber a verdade. A diferença é que tu sentes-te, o que te torna uma pessoa mais feliz — acrescentou Peter.
Melanie sentiu-se satisfeita ao ouvir as palavras do marido. Voltou-se para ele com um sorriso nos lábios. Estavam deitados na cama, completamente às escuras, salvo a luz do luar que entrava pela janela e que projetava sombras vagas sobre ambos.
— Sabes, Peter, tu tens o condão de fazer com que eu me sinta melhor em relação a vários aspectos e, muito em particular, a mim mesma — retrucou Melanie.
— Espero que sim. Tu também fazes com que eu me sinta mais satisfeito comigo próprio. Tenho sempre a sensação de que o que eu faço te merece o maior respeito — disse Peter. Respirou fundo. — A Anne nunca gostou do meu trabalho — prosseguiu ele, olhando para a mulher com um pequeno sorriso. — Achava que o transplante de órgãos era um processo nauseabundo e pouco correto. A mãe dela pertencia a uma seita que era contra o avanço da ciência e ela mostrou sempre uma enorme desconfiança em relação à profissão médica.
— Com certeza que isso deve ter sido muito duro para ti.
O marido nunca lhe havia contado aquilo e Mel sentiu-se intrigada.
— De fato foi. Nunca senti que tinha a aprovação dela.
— Tens a minha, Peter, como sabes.
— Sim, e ela significa muito para mim. Acho que essa foi uma das primeiras facetas em ti que me agradou. Eu sentia respeito por ti e pressentia que esse sentimento era retribuído — redargüiu Peter com um sorriso e beijando-lhe a ponta do nariz. — Em seguida, apaixonei-me pelas tuas pernas sensuais, assim como pelo teu maravilhoso traseiro. E aqui estamos nós.
Na escuridão, Melanie riu-se com ternura, sentindo-se surpreendida ao verificar o quão estranha era a vida em determinadas ocasiões. Ainda há poucas horas estivera à beira da histeria, certa de que ia perder uma filha e, agora, ela e o marido encontravam-se deitados na cama a trocar confidências e a conversar. No entanto, apercebeu-se de algo que até então lhe escapara. Ela e Peter tinham-se tornado bons amigos ao longo dos últimos meses, amigos íntimos, e compreendia que nunca se sentira tão próxima de qualquer outra pessoa, quer fosse homem ou mulher. Peter fora capaz de derrubar as paredes que Melanie construíra ao longo dos anos, sem que ela se desse conta de que tal estava a acontecer.
— Amo-te, Peter Hallam, muito mais do que imaginas — disse Melanie. Bocejou e adormeceu nos braços do marido.
Quando olhou para a mulher, Peter reparou que ela tinha um sorriso nos lábios.
Na noite do domingo seguinte, Peter levou Jess, Pam, Mark e Matthew para casa, enquanto Mel ficava em Truckee junto de Valerie. Desistiram do apartamento, tendo ela alugado um quarto num motel, de onde podia ir facilmente a pé para o hospital todos os dias. Na quarta-feira seguinte o médico informou-a de que a doente estava em condições de apanhar um vôo para casa. Surpreendentemente, aquele período fora bastante agradável tanto para a mãe como para a filha. As duas conversaram como havia anos não o faziam, acerca da vida em geral, dos namorados, de Mark, das relações sexuais, do casamento e de Peter, assim como da vida de Melanie.
Quando, na quarta-feira à noite, aterraram em Los Angeles, ela sentia que conhecia a filha melhor do que nunca. Desejava apenas poder passar mais tempo com as filhas, sem que fosse necessário passarem por uma situação traumática como aquela.
Val parecia estar em perfeitas condições psicológicas e físicas. Sentia-se mal por se ter desfeito de um bebê, mas chegara à conclusão de que, se tivesse um filho aos dezesseis anos, a sua vida ficaria estragada. Melanie era da mesma opinião. Isso teria transformado toda a existência de Val, forçando-a a manter um relacionamento duradouro com Mark, o que, muito possivelmente, não seria o que ela desejaria mais tarde. Confessou à mãe que se encontrava preparada para se afastar do rapaz durante algum tempo e sair com outros rapazes. A intensidade daquela relação assustava-a e não desejava que lhe voltasse a acontecer a mesma coisa.
Melanie sentiu-se satisfeita com as resoluções da filha. Talvez aquela lição lhe servisse para o resto da vida. Nunca mais se mostraria desinteressada pelos métodos de controlo da natalidade nem tão-pouco voltaria a envolver-se numa relação sexual sem que previamente pensasse muito a sério no assunto. No entanto, Melanie lamentava que a filha tivesse sofrido tanto. Valerie contara-lhe como havia sido o aborto e ela ficou espantada com a coragem que a jovem demonstrara.
— Não me parece que numa situação dessas eu tivesse a tua coragem — confessou Melanie.
— Não achei que me restasse qualquer outra alternativa, e o Mark esteve sempre presente — retorquiu Valerie. Tentava pôr o assunto para trás das costas, mas ambas sabiam que isso jamais seria possível.
Melanie abraçara-a e ambas tinham começado a chorar.
— Lamento muito, minha querida — disse Melanie.
— Eu também, mamãe. Tenho tanta pena. — disse Val.
Quando regressou a Los Angeles, mostrava-se arrependida e, nessa mesma noite durante o jantar, Melanie reparou que a filha adotara uma forma mais fraternal de tratar Mark, o que pareceu não incomodar o rapaz. Já se tinha verificado uma sutil mudança entre ambos, o que sem dúvida seria pelo melhor.
Aquela transformação também não passara despercebida a Peter, fato que nessa noite mencionou a Melanie.
— Eu também dei por isso — afirmou ela com um acenar de cabeça. — Estou convencida de que o grande romance chegou ao fim.
— O que é o melhor que poderia ter acontecido — replicou o marido com uma expressão de cansaço. Tivera um longo dia de trabalho, tendo passado cinco horas na sala de operações nessa manhã. Regressara de novo ao mundo real, onde encontrara uma montanha de trabalho. — O fato é que agora podemos deixá-lo à solta pela vizinhança e desejar-lhe boa sorte. Até agora, nunca me tinha apercebido da agonia que é ter filhas. — Apesar de ter tido a sua quota-parte de preocupações com Pamela, tal não acontecera com a mesma intensidade que se verificara em relação à Valerie. Era aquele maldito corpo da rapariga que fazia com que uma pessoa se preocupasse tanto! — É uma pena ela não ser feia — comentou Peter.
— Diz-me outra coisa que eu não saiba — redargüiu Melanie com um sorriso rasgado. — Por causa disso, já há anos que tenho cabelos brancos.
A despeito de todos os problemas familiares, no dia seguinte, assim que entrou na sala de redação do estúdio, Melanie chegou à conclusão de que o trabalho também lhe provocava cabelos grisalhos. Durante a sua ausência, Paul Stevens tinha criado toda a espécie de problemas caóticos. Melanie dera parte de doente por um período de três dias e, ao voltar ao trabalho na quinta-feira seguinte, verificou que o homem tinha feito o possível e o impossível para sabotar as suas funções.
Felizmente o produtor sabia o que ia na cabeça de Stevens e que ele odiava profundamente Melanie, o que evitou que os prejuízos que ele pretendera causar tivessem sido de grande monta. No entanto, não deixou de ser bastante desagradável quando ela se inteirou dos boatos que ele fizera circular e dos problemas que tentara provocar. O homem chegara ao ponto de dizer que em Nova Iorque Melanie era considerada má colega, que toda a gente a detestava e que ela se servira de todos os meios para chegar ao topo da sua carreira.
Nessa mesma noite, Melanie pôs Peter ao corrente de tudo aquilo e ele ficou lívido ao ouvir o que acontecera.
— Não me digas! Esse grande filho da puta! — praguejou ele, furioso, cerrando o punho.
Melanie esboçou um sorriso fatigado ao ver a reação do marido.
— Realmente, o homem é um estupor — afirmou.
— Lamento muito que tenhas de passar por tudo isso — retorquiu o marido com simpatia.
— Também eu, mas é essa a realidade — redargüiu ela.
— Por que motivo é que ele te odeia assim tanto?
— A principal razão é o dinheiro. Para além disso, ele não gosta de partilhar as luzes da ribalta. Há já muitos anos que não trabalha de parceria com outra pessoa e não quer ver essa situação alterada. Mas também isso acontecia comigo. Todavia, cheguei à conclusão de que é necessário uma pessoa adaptar-se às situações — continuou Melanie. — Não existe nada que me agradasse mais do que livrar-me do homem, mas parece-me que é melhor ignorá-lo.
— É uma pena ele não pensar dessa maneira — retorquiu Peter.
— Pois é.
A situação não sofreu qualquer transformação ao longo do mês seguinte, de tal maneira que Melanie começou a sentir-se adoentada a maior parte do tempo: tinha dores de cabeça, assim como um nó no estômago que nunca a abandonava, pelo que começou a detestar ir trabalhar. Fez o máximo de entrevistas possíveis com a única finalidade de se manter afastada.
Também tentava passar todo o tempo de que podia dispor com as raparigas, particularmente com as gêmeas. Aquilo que Jessica dissera na ocasião do aborto que Valerie fizera não tinha caído em saco roto. Acusara a mãe de estar mais interessada nos filhos de Peter do que nelas, o que levara Melanie a tentar transformar aquela situação. Contudo, tinha a sensação que Pamela se sentia posta de lado. Reparou que a jovem estabelecia uma certa cumplicidade com Mrs. Hahn sempre que a oportunidade lhe surgia e, para evitar isso, Melanie fazia o possível por incluir Pam em tudo o que dissesse respeito às gêmeas.
No entanto era difícil manter toda a gente feliz e ultimamente Melanie andava tão por baixo, que ir ao encontro das necessidades dos outros, sem esquecer as suas próprias, era uma tarefa quase impossível. A tensão era tanta que, num dia em que fora às compras com Matthew, chegou ao ponto de ser obrigada a sentar-se para recuperar o fôlego. Estava tão tonta e enjoada que julgou que ia desmaiar no Safeway. Obrigou o garoto a prometer-lhe que não contaria ao pai o sucedido; no entanto, Matt ficara tão preocupado que não resistiu e disse a Jessica, a qual, por sua vez, não perdeu tempo a relatar o incidente a Peter, assim que este chegou a casa no mesmo dia. Durante o jantar, ele olhava pensativamente para a mulher e nessa noite fez-lhe várias perguntas.
— Sentes-te doente, Mel?
— Não, por que? — indagou Melanie, virando a cabeça para que o marido não lhe pudesse ver a cara.
— Não sei bem. Um passarinho disse-me que hoje não te sentiste muito bem — continuou Peter, fitando-a com um semblante de preocupação quando ela virou o rosto.
— E o que é que esse passarinho te disse? — perguntou ela, tentando descobrir o que ele sabia.
— Sei que estiveste quase a desmaiar no supermercado — respondeu Peter, puxando-a para junto de si na cama, a fim de poder observá-la melhor. — Isso é verdade, Mel?
— Mais ou menos — admitiu ela a custo.
— O que é que se passa? — insistiu Peter.
Melanie suspirou e fixou o olhar no soalho. Algum tempo depois olhou para o marido.
— Aquele estupor do Paul Stevens anda a dar comigo em doida. Desconfio que tenho uma úlcera e nas últimas semanas não me tenho sentido muito bem.
Peter olhou para Melanie com uma expressão de infelicidade.
— Mel, prometes-me que vais a um médico?
— De acordo — anuiu ela com um suspiro, apesar de não parecer muito convencida. — A verdade é que eu não tenho tempo para isso.
— Nesse caso, arranja tempo — disse Peter, agarrando-lhe num braço. Já lhe morrera uma mulher e não conseguia suportar a idéia de que poderia vir a perder outra. — Estou a falar a sério, Mel! Ou fazes como te digo ou então não me restará qualquer alternativa a não ser eu próprio internar-te no hospital.
— Não digas disparates. Tive apenas algumas tonturas e nada mais — retorquiu Melanie.
— Tens andado a comer como deve ser? — continuou o marido.
— Ultimamente, nem por isso — admitiu ela.
— Sendo assim é possível que seja isso que fez com que te sentisses mal. Mas, seja como for, quero que vás ao médico. — Naquela altura, Peter reparou que ela tinha perdido peso e que as faces estavam encovadas e muito pálidas. Estás com um aspecto horrível — concluiu ele.
— Obrigadinha pelo cumprimento — agradeceu Melanie com ironia.
Peter inclinou-se na direção da mulher e agarrou-lhe na mão.
— Estou preocupado contigo, Mel. Eu amo-te tanto! Prometes-me que amanhã marcas uma consulta e que vais ao médico?
— Está bem, de acordo — aquiesceu ela. No dia seguinte, Peter deu-lhe uma lista com o nome de alguns médicos de clínica geral, assim como de especialistas. — Pretendes que eu seja observada por todos eles? — perguntou Melanie, mostrando-se horrorizada.
— Um ou dois será o suficiente — retorquiu ele com um sorriso nos lábios. — A minha sugestão é que comeces por consultar o Sam Jones, que é de clínica geral e deixes que seja ele a decidir por quem é que deverás ser observada em seguida.
— Por que é que não me internas na Clínica Mayo durante uma semana? — perguntou Melanie na brincadeira apesar de o marido não se mostrar nada divertido. Melanie estava com uma aparência ainda pior do que na noite anterior.
— É possível que faça isso mesmo — retrucou ele.
— Uma ova é que fazes! — exclamou Melanie.
Apesar de todas as suas reticências, marcou uma consulta com o Dr. Sam Jones para essa tarde. Noutras circunstâncias, teria sido forçada a esperar quatro semanas, mas quando informou a recepcionista do consultório da sua identidade, milagrosamente passou a haver uma vaga para o mesmo dia. Às catorze horas, dirigiu-se ao consultório, uma vez que tinha de se apresentar no trabalho às quatro da tarde. Dada aquela restrição de tempo, o médico aproveitou para proceder a uma coleta de sangue, assim como de urina, examinou-a cuidadosamente, tomou nota do seu historial clínico, auscultou-a e mediu-lhe a tensão. Quando o médico deu a consulta por terminada, Melanie sentia-se como se ele houvesse sondado e tocado em cada centímetro do seu corpo.
— Ora bem, até agora tudo indica que a senhora está de boa saúde. Talvez um pouco cansada, mas saudável. Mas vamos esperar pelos resultados das análises. Há já muito tempo que anda a sentir-se embaixo?
Melanie descreveu-lhe todos os sintomas que começara a sentir, as tonturas e as dores de cabeça, as pressões no local de trabalho, a mudança de Nova Iorque e de emprego, o aborto de Valerie, o casamento, a adaptação a mais três crianças e é vida na companhia do fantasma da primeira mulher de Peter, numa casa que ainda não considerava sua.
— Pare aí! — exclamou o médico, recostando-se na cadeira e soltando um gemido, após o que deu uma palmada na testa. — Também eu já estou a começar a sentir tonturas. Parece-me que a senhora acabou de fazer o seu próprio diagnóstico, minha amiga. Não acho que tenha qualquer necessidade dos meus serviços. Aquilo de que precisa é de passar seis semanas numa praia estendida na areia — concluiu o médico.
— Quem me dera poder fazer isso! — disse Melanie com um sorriso. — Mas eu disse ao Peter que tudo isto não passava de nervos.
— É muito possível que tenha razão — retorquiu ele, oferecendo-se para lhe receitar medicamentos que a ajudassem a dormir melhor, o que ela recusou.
Nessa noite, quando Peter regressou a casa do hospital, Melanie contou-lhe o que Sam Lhe havia dito.
— Como podes ver, estou em perfeitas condições de saúde. O que se passa que trabalho em demasia.
Contudo, Peter não se mostrava muito convencido. Tinha propensão para ser excessivamente cauteloso no que dizia respeito à mulher, o que Mel sabia bem.
— Vamos aguardar pelos resultados das análises — disse ele com cautela.
Melanie revirou os olhos e foi levar Matthew para a cama. Pamela estava a ouvir música na sua aparelhagem, enquanto as gêmeas faziam os trabalhos de casa no quarto. Mark tinha saído. Melanie ouvira dizer alguns dias antes que o rapaz arranjara uma nova namorada, uma caloura que freqüentava a UCLA, o que parecia não incomodar minimamente Valerie. Havia um rapaz na turma que ela achava muito giro. Jessica tinha finalmente acabado por encontrar alguém de quem gostava e fora com ele ao cinema. Pelo menos naquela ocasião, tudo parecia estar a correr pelo melhor.
Melanie regressou para junto de Peter, soltando um suspiro de felicidade.
— Até que enfim que as hostes estão todas tranqüilas — disse ela.
Peter ficou satisfeito com as novidades. Por fim, tudo parecia estar a entrar nos eixos. Mas nenhum dos dois se encontrava preparado para as notícias que receberam no dia seguinte.
Antes de sair para o trabalho, Melanie tinha-se esquecido de telefonar ao Dr. Jones, e quando voltou a casa ao fim da tarde tinha um recado para lhe telefonar para casa assim que chegasse. Peter chegou à casa primeiro e viu o recado, pelo que decidiu telefonar ao médico, mas o seu colega e velho amigo recusou-se a dizer-lhe o que quer que fosse.
— Diz à tua mulher que me telefone quando chegar a casa, Peter — disse o médico.
— Por amor de Deus, Sam! O que é que se passa? — perguntou Peter, sentindo-se aterrorizado, mas o Dr. Jones manteve-se inflexível.
Assim que Melanie chegou a casa, Peter não perdeu tempo.
— Telefona já ao Jones! — pediu ele, ansioso.
— Neste momento? Por que? Ainda agora cheguei. Posso ao menos pendurar o meu casaco?
— Por amor de Deus, Mel. — insistiu o marido.
— Jesus! — exclamou ela ao ver a expressão preocupada nos olhos do marido, perguntando a si mesma o que é que ele estaria a esconder-lhe. — O que é que se passa?
— Não sei. Ele recusa-se a dizer-me seja o que for — confessou Peter.
— Isso quer dizer que já lhe telefonaste? — interrogou Melanie, exibindo um semblante irritado.
— Sim — admitiu ele. — Mas o Sam não me quis dizer coisa alguma.
— Ainda bem! — exclamou ela.
— Por amor de Deus! — continuou Peter.
— Está bem, está bem! — aquiesceu Melanie para que ele se calasse.
Ligou para o número de telefone de casa que o médico deixara. Atendeu a esposa. Peter não arredava pé de junto de Melanie, mas com um gesto ela pediu-lhe que se afastasse. Trocou os cumprimentos de praxe com o Dr. Jones antes de falarem de coisas sérias.
— Eu não quis contar ao Peter antes de falar consigo — começou o médico a dizer com um timbre de voz bastante sério, que alarmou Melanie. Esta susteve a respiração. Talvez Peter tivesse razão. Talvez ela estivesse muito doente. A senhora está grávida, Mel, mas achei que não gostaria que fosse eu a contar ao Peter. — Do outro lado da linha, o médico parecia radiante, mas Melanie não se mostrava muito feliz. Estava boquiaberta.
Ao ver a expressão da mulher, Peter ficou convencido de que as notícias eram más. Deixou-se cair lentamente em cima de uma cadeira, ficando à espera até que Melanie desligasse o aparelho.
— Então? — perguntou ele, mostrando uma grande ansiedade.
Era difícil afastá-lo; Peter observava-a atentamente.
— O que é que ele disse?
— Nada de especial — respondeu Melanie.
— Que grande treta! — exclamou ele e de um salto levantou-se da cadeira. — Eu vi a tua expressão. Vamos a ver, és tu quem me vai dizer o que é que se passa ou serei obrigado a telefonar ao Sam?
— Ele não te dirá nada — redargüiu Melanie.
— Uma ova! — ripostou o marido que começava a ficar furioso.
Por seu lado, Melanie sentia-se em choque. Olhou intensamente para Peter e este levantou-se.
— Podemos ir para o escritório? Assim falaremos mais à vontade — sugeriu ela. Peter não proferiu palavra, mas seguiu-a e fechou a porta. Melanie voltou a sentar-se e ficou a olhar para o marido. — Não compreendo o que é que se está a passar — desabafou ela.
— Conta-me o que é que ele te disse e eu tentarei explicar-te o que se passa contigo, Mel, mas por amor de Deus diz-me o que é que não está bem!
Daquela vez, Melanie sorriu. Era óbvio que ele estava à espera que os resultados das análises fossem complicados, apesar de não haver nada de complicado no que o Dr. Jones acabara de lhe transmitir. O único aspecto que poderia ser complicado era o efeito que aquela novidade iria ter na sua vida.
— Estou grávida — anunciou Melanie.
— Estás o que? — perguntou ele, sem querer acreditar no que ouvia. — Não estás!
— Estou sim — contrapôs Melanie.
Subitamente ele fez uma careta risonha.
— Ora bem, raios me partam! Com que então estás grávida?!
— Estou sim — repetiu ela com a expressão de quem tinha acabado de ser atropelada por um comboio.
Peter aproximou-se da mulher e tomou-a nos braços.
— É a melhor notícia que recebo em muitos anos.
— De verdade? — perguntou ela, ainda em choque.
— Que diabo, sim! — afirmou Peter.
— Por amor de Deus, Peter, era só isto o que nos faltava! Já estamos a afogar-nos em responsabilidades e ainda por cima um bebê? Agora? Eu tenho trinta e seis anos, entre nós os dois temos cinco filhos! — Melanie interrompeu-se, horrorizada com aquele pensamento.
Peter sentiu-se magoado.
— Tencionas fazer um aborto? — perguntou ele num tom casual.
Melanie fitou o vazio, recordando-se do que Valerie lhe havia confidenciado acerca da ida à clínica com Mark.
— Não sei. Não sei bem se teria coragem para isso — admitiu ela.
— Nesse caso, não há qualquer decisão a tomar, não é verdade? — retorquiu Peter.
— Fazes tudo muito simples — disse Melanie com uma expressão de grande infelicidade. — Mas as coisas não são tão simples como isso.
— Com certeza que são — argumentou Peter. — No teu contrato de trabalho, existe uma cláusula referente à licença de parto. Foste tu mesma que me disseste.
— Meu Deus! Tinha-me esquecido disso por completo — exclamou Melanie, rindo-se ao recordar-se do quanto se sentira divertida ao verificar que aquela cláusula fora inserida no seu contrato.
De repente, tudo aquilo lhe parecia ser muito divertido. Começou a rir-se a bandeiras despregadas. Peter beijou-lhe as faces e foi buscar uma garrafa de champanhe ao pequeno bar do seu escritório. Abriu-a com um som estridente e serviu dois copos, fazendo um brinde com a mulher.
— À nossa — brindou ele e em seguida: — À do nosso futuro bebê.
Melanie sorveu um pouco de bebida e pousou o copo de imediato, sentindo-se entontecida assim que começou a beber.
— Não sou capaz — disse ela, muito enjoada. Peter pousou o copo, após o que se aproximou da mulher.
— Minha querida, estás a sentir-te bem? — perguntou com ansiedade.
— Estou bem — respondeu Melanie com um sorriso, apoiando-se nele e continuando a não ser capaz de acreditar na ironia de toda aquela situação. — Tenho duas filhas quase de dezessete anos e aqui estou eu, grávida de novo. Haverá alguém que acredite? — interrompeu-se sem poder conter as gargalhadas. — Nem sequer sou capaz de compreender como é que isto aconteceu, a não ser que tenhas perfurado o meu dispositivo intra-uterino.
— Quem é que se preocupa com isso? Deves encarar a situação como se fosse uma benesse — retorquiu ele, olhando para a mulher com um ar muito sério. — Mel, eu sou obrigado a lidar com a morte todos os dias da semana. Travo lutas com ela, odeio-a, tento ser mais esperto do que ela ao colocar corações de plástico no peito dos meus doentes, válvulas de porcos e de carneiros e fazendo transplantes e tudo o que estiver ao meu alcance para enganar essa velha que é a morte, e que está sempre a olhar por cima do meu ombro. Foste abençoada com a dádiva da vida e seria um crime não lhe dares valor.
Melanie acenou lentamente com a cabeça, comovida com o que o marido acabara de dizer. Que direito tinha de questionar uma dádiva daquela natureza?
— O que é que vamos dizer aos miúdos? — perguntou ela ao marido.
— Que vamos ter um bebê e que nos sentimos muito entusiasmados com essa perspectiva. Que diabo! E eu a pensar que estavas doente! — exclamou Peter.
— Também eu estava convencida disso — redargüiu Melanie com um sorriso sentindo-se de novo melhor, agora que já não tinha o sabor do champanhe na boca. — Estou muito satisfeita por não ser esse o caso.
— Não tanto como eu, Mel. Não conseguiria viver sem ti — retrucou Peter.
— Pois bem, nem sequer terás de tentar — continuou Melanie.
Pouco depois Matthew fez a sua aparição, batendo à porta para anunciar que estava na hora do jantar.
Peter reuniu-os a todos na sala de estar e fez um pequeno discurso.
— Temos algo de importante a comunicar — começou ele com uma expressão radiante, enquanto olhava para Melanie.
— Vamos à Disneylândia na próxima semana! — exclamou Matthew todo excitado, o que fez com que todos se começassem a rir e tentassem adivinhar aquilo que Peter iria anunciar. Mark sugeriu que iam começar a construção de um campo de tênis, Pamela alvitrou que iriam comprar um iate, enquanto as gêmeas se decidiram por um Rolls-Royce e uma viagem a Honolulu, uma idéia que mereceu a aprovação de todos os presentes. Mas, de cada vez que um deles dava o seu palpite, Peter acenava que não com a cabeça.
— Não, não é nada disso. Embora tenha de admitir que a idéia de Honolulu é bastante agradável. Talvez façamos essa viagem por altura da Páscoa. No entanto, há algo que é muito mais importante do que tudo isso e que queremos partilhar convosco.
— Vá lá, papai. O que é? — perguntou Matt, morto por saber qual era a novidade.
Peter olhou de frente para o filho mais novo.
— Vamos ter um bebê, Matthew — anunciou ele e, em seguida, observou os jovens um a um, exemplo que Melanie seguiu. Mas estavam tão preparados para as reações dos filhos como haviam estado para os resultados das análises que Sam Jones lhes dera.
— Vocês vão o que? — perguntou Pamela, incrédula, levantando-se de um pulo, sem ocultar o quanto se sentia horrorizada, e olhando para Melanie sem poder acreditar no que ouvira. — Isso é a coisa mais asquerosa que ouvi em toda a minha vida! — Com aquela tirada desfez-se em lágrimas e saiu da sala a correr, enquanto Matt olhava para ambos com os lábios a tremer.
— Não precisamos de outro miúdo nesta casa, já somos cinco — disse ele.
— Mas é possível que o bebê venha a ser um bom amigo para ti Matt — argumentou Peter, olhando para o filho cujos olhos se enchiam de lágrimas. — Os outros são muito mais velhos do que tu.
— Eu gosto que seja assim — afirmou o garoto, seguindo atrás da irmã em direção ao seu quarto.
Melanie voltou-se para as suas próprias filhas, vendo Valerie banhada em lágrimas.
— Não estejas à espera que eu fique radiante, mãe — declarou ela, levantando-se com o seu busto generoso a arfar. Matei o meu bebê há dois meses e agora esperas que eu me sinta feliz por causa do teu? — perguntou Val, saindo da sala a correr com as lágrimas a correrem pelas faces abaixo.
Por seu lado, Mark limitou-se a encolher os ombros, embora também não parecesse muito entusiasmado, e Jessica olhou para o casal com fixidez, mostrando uma expressão abalada. Sabendo as responsabilidades que tinham, não compreendia por que motivo tinham querido arranjar mais uma. E o pior de tudo era que Melanie pensava que a filha tinha toda a razão. Jessica foi para cima com a desculpa de ir ver se a irmã se encontrava bem, e Mark também deixou a sala, enquanto Melanie limpava as lágrimas.
— Ora bem, lá se vão as nossas esperanças de um bom acolhimento às notícias — comentou ela.
— Eles hão de mudar de atitude — disse Peter, confiante, rodeando-lhe os ombros com um braço e erguendo o olhar, tendo deparado com Hilda Hahn a olhar fixamente para ambos.
— O jantar está a arrefecer — anunciou a governanta com uma expressão de desafio.
Melanie levantou-se do sofá, sentindo-se obviamente deprimida. As crianças tinham ficado todas furiosas perante a perspectiva do nascimento de outro irmão e ela continuava a ter problemas no emprego. Naquele momento, tudo aquilo parecia ser excessivo para as suas capacidades. Melanie e Peter dirigiram-se para a sala de jantar; ela sentia o seu coração muito apertado. Soergueu o olhar e verificou que Mrs. Hahn a fitava com uma expressão implacável.
— Não pude evitar ter ouvido as novidades — disse a governanta com o seu acentuado sotaque alemão, que nunca falhava em ferir os nervos de Melanie.
Não havia qualquer cordialidade ou ternura na maneira de falar de Mrs. Hahn, ao contrário de outras mulheres de nacionalidade alem que ela conhecera. A governanta fixara de novo o olhar em Mel.
— Não é perigoso ter um filho na sua idade? — perguntou ela.
— De maneira nenhuma. — respondeu Melanie com toda a doçura. — Eu só tenho cinqüenta e dois anos — continuou ela, sabendo que Mrs. Hahn tinha cinqüenta e um.
Peter sorriu à mulher. Tudo o que ela decidisse fazer dali para a frente merecia a sua aprovação. Estava-se nas tintas para o comportamento dos filhos, sentia-se extremamente entusiasmado e queria que Melanie o soubesse.
Porém ela não estava capaz de tocar na refeição; tudo o que lhe preenchia os pensamentos eram as crianças e a forma como haviam reagido. Subiu as escadas com intenção de falar com eles, mas encontrou todas as portas fechadas. Quando desceu as escadas até ao seu quarto, Peter insistiu para que ela se deitasse e descansasse: Melanie, ao ver a preocupação do marido, começou a rir-se.
— Por amor de Deus, estou grávida apenas de quatro ou cinco semanas — disse Melanie.
— Isso não interessa. É preferível que leves a gravidez como deve ser desde os primeiros tempos — argumentou Peter.
— Parece-me que foi isso mesmo que fizemos na sala de estar, há cerca de duas horas — retorquiu ela com um suspiro e deitando-se na cama. — Aquilo é que eu chamo uma recepção calorosa, não concordas? — A atitude dos jovens deixara-a de rastos emocionalmente, e o resultado era que ela se sentia desprotegida, indesejada e solitária.
— Dá-lhes uma oportunidade — aconselhou Peter. — Os únicos que realmente têm motivos para se sentirem aborrecidos são a Valerie e o Matthew, e tenho a certeza de que tanto um como o outro acabarão por ultrapassar este choque inicial.
— Pobre Matt! — Melanie sorriu, pensando no rapazinho. — Ele quer ser o nosso bebê e não o culpo nem um bocadinho.
— Talvez seja uma menina — retorquiu o marido com uma expressão deveras excitada.
— Mais outra não — disse Melanie a gemer ao pensar naquela possibilidade. — Três chegam. — Tinha começado a ajustar-se à idéia da futura criança, e o milagre que aquele nascimento representava parecia-lhe ser um fato extraordinário.
Naquela noite, marido e mulher falaram durante horas acerca daquele assunto e na manhã seguinte, antes de ir para o hospital, Peter beijou-a com toda a ternura. No entanto, quando Melanie desceu para tomar o pequeno-almoço e deparou com Matthew, Pamela e as filhas, ficou com a impressão de que estava a aventurar-se no campo do inimigo. Olhou para cada um deles e foi como se um enorme desespero a assolasse. Eles jamais se adaptariam à idéia de outra criança em casa.
— Lamento imenso que pensem dessa maneira — disse Melanie, dirigindo-se a todos. Valerie recusava-se a olhar de frente para a mãe, Jessica mostrava-se extremamente deprimida e Matt não tocou na comida que tinha no prato. Quando Melanie fitou os olhos de Pamela ficou horrorizada com o que viu; apercebeu-se de um intenso sentimento de ódio, ira e medo. Dava a sensação de que a rapariga se refugiara num lugar distante que existia na sua cabeça, onde Melanie não teria possibilidades de alcançá-la.
De todos eles, Pam era de longe a que mais se sentia encolerizada. Mel tentou conversar com ela sobre o assunto, quando a rapariga chegou a casa, mas Pamela bateu-lhe com a porta do quarto na cara, fechando-a à chave. Mesmo depois de Melanie ter batido com toda a força na porta, ela recusou-se terminantemente a abri-la de novo.
Aquela casa transformou-se num lar onde imperava o sofrimento, a dor e a cólera. Era como se cada um dos jovens desejasse apenas castigar Melanie, cada um à sua própria maneira. Mark nunca estava em casa, para desespero do pai; as gêmeas mantinham-se afastadas da mãe tanto quanto lhes era possível, recusando-se a manter qualquer diálogo com ela; Matt fartava-se de chorar e as suas notas pioraram e Pamela alheara-se de tudo e tinha começado a faltar à escola. No espaço de quatro semanas, Melanie recebeu outros tantos telefonemas do estabelecimento de ensino que Pamela freqüentava a informá-la de que a rapariga havia desaparecido antes da segunda aula e, quando lhe pediu explicações sobre o assunto, Pamela limitou-se a encolher os ombros e a subir as escadas, indo para o quarto e fechando-se à chave. O último ato de maldade de Pam fora o de pendurar o quadro com a imagem da mãe na parede por cima da cama que Melanie partilhava com Peter. Num dia em que chegou a casa do trabalho e deparou com aquilo, quase ficou sem fôlego.
— Viu-a fazer aquilo? — perguntou Mel a Mrs. Hahn, enquanto segurava o quadro de Anne com mãos trêmulas.
— Eu não vi coisa alguma, Mistress Hallam — respondeu a governanta, mas Melanie sabia que a mulher não falava verdade.
Quando dias mais tarde lhe voltaram a telefonar da escola da rapariga, para a informarem que mais uma vez ela tinha faltado às aulas, decidiu ficar em casa à espera que Pam aparecesse. No entanto, por volta das quatro da tarde, a jovem ainda não dera sinais de vida. Daquela vez, Melanie começou a perguntar a si mesma se não haveria um rapaz envolvido no assunto. Às dezessete horas, a jovem entrou em casa afoitamente, exibindo um sorriso rasgado nos lábios e mostrando-se muito divertida ao verificar que Melanie ficara em casa todo o dia à sua espera. Mas, quando esta olhou bem para o rosto da rapariga, chegou à conclusão de que ela se encontrava sob o efeito de drogas. Depois de enfrentá-la, ordenou-lhe que fosse para o seu quarto, após o que saiu para a redação da televisão. Mais tarde, disse a Peter o que é que pensava.
— Sou forçado a dizer que duvido muito disso, Mel. A Pam nunca fez uma coisa dessas — disse ele taxativamente.
— Acredita no que estou a dizer-te — insistiu ela, mas o marido limitou-se a abanar a cabeça.
Não acreditava no que a mulher lhe tinha contado e, quando interrogou a filha sobre o assunto, esta negou tudo o que Melanie dissera. Pam tinha começado a provocar um estado de grande tensão entre os dois e Melanie sentia que naquele momento estava prestes a perder o seu único aliado. Peter tomava sempre o partido da filha contra a mulher.
O lar de Melanie encontrava-se cheio de inimigos, se é que se poderia dizer que aquilo era o seu lar. Para cúmulo, o marido acabara por ficar do lado da filha.
— Peter, eu sei que ela está sob o efeito de qualquer droga.
— Acontece que eu não partilho da tua opinião — retrucou o marido.
— Acho que deverias falar com as pessoas responsáveis da escola — contrapôs Melanie. Quando tentou conversar com Valerie e Jessica acerca do assunto, as filhas mantiveram-se distanciadas, apesar de educadas. Não desejavam envolver-se naquele caso, o mesmo acontecendo a Mark.
Naquele momento, Melanie não passava de uma pária no seio daquela família, por causa da criança que ainda trazia no ventre. Na opinião dos jovens, ela atraiçoara-os.
Algumas semanas mais tarde, quando alguém do Departamento da Polícia de Los Angeles telefonou, a vitória soou-lhe falsa; fora esvaziada de qualquer prazer. Provara-se que a razão tinha estado do seu lado. Pamela fora apanhada a comprar uma dose de marijuana a uns miúdos da baixa da cidade, em uma hora em que supostamente deveria ter estado na escola.
Peter ficou desnorteado, ameaçando mandar a filha para um colégio interno. Uma vez mais, a rapariga virou-se contra Melanie.
— Desta vez foi você que o virou contra mim. Quer é que eu saia de casa! — acusou Pamela.
— Enganas-te! Não quero nada disso — retorquiu Melanie. — A única coisa que eu desejo é que te comportes como deve ser e parece-me que chegou a altura de o fazeres. Já é tempo de deixares de faltar à escola dia sim dia não, de fumares marijuana e de deixares de ter atitudes impróprias de uma menina. Este é o teu lar e nós sentimos muito afeto por ti, mas a realidade é que não podes proceder como muito bem te apetecer. Em todas as sociedades, em qualquer comunidade, em todos os lares, existem regras que devem ser obedecidas e cumpridas.
Porém, como vinha sendo hábito, Peter salvou a filha de apuros, pondo-a de castigo durante uma semana e permitindo que o assunto acabasse por morrer por si. Não apoiou a posição que Melanie assumira, e o resultado foi que, uma quinzena mais tarde, a filha foi apanhada de novo pela Polícia. Daquela feita, a rapariga conseguiu que lhe dedicassem mais atenção do que da vez anterior, levando o pai a telefonar ao seu antigo psiquiatra.
Naquela altura foram escalonadas uma série de consultas, e Peter perguntou à mulher se poderia certificar-se de que Pam não faltaria. Melanie quase teve de arrastar Pamela até o consultório quatro vezes por semana; fez tudo para conseguir chegar ao trabalho a horas; à noite ia a correr para casa, onde tentava dedicar alguma atenção a Matthew e às filhas. Quando não estava a vomitar as refeições pesadas que Mrs. Hahn teimava em preparar para toda a família, tudo o que Melanie mais desejava era dormir.
— O senhor doutor gosta deste gênero de alimentação — afirmava a governanta enquanto colocava em frente de Melanie um outro prato de chucrute.
Finalmente, um mês depois daquele regime alimentar, ela acabou por ir parar ao hospital numa sexta-feira à noite, sofrendo de uma hemorragia e com dores.
O obstetra que a assistia olhou-a muito sério.
— Se não começar a viver com mais moderação, Melanie, vai acabar por perder este bebê — afirmou o médico.
Ao ouvir aquelas palavras, as lágrimas começaram a assomar-lhe aos olhos; ultimamente, não havia nada na sua vida que não fosse uma luta constante.
— Não me parece que alguém se preocupasse se isso viesse a acontecer — disse Melanie com tristeza.
— E a senhora? — perguntou o obstetra.
— Sim. Começo a pensar que essa possibilidade me iria afetar. — Respondeu Melanie com um acenar de cabeça, mostrando-se fatigada e desolada.
— Nesse caso, aconselho-a a que diga às pessoas que contatam consigo que passem a ter mais consideração por si.
No dia seguinte, Peter foi visitar a mulher ao hospital, olhando-a com uma expressão entristecida.
— A verdade é que tu não queres ter este bebê, não é, Mel?
— Pensas que eu estou a tentar livrar-me dele? — perguntou ela.
— Pelo menos é isso o que a Pam diz. Contou-me que foste andar a cavalo na semana passada — respondeu Peter.
— O que?! Mas tu estás doido? Passa-te pela cabeça que eu fizesse uma coisa dessas? — replicou Melanie, indignada.
— Não sei — retorquiu o marido. — O que eu sei é que esta gravidez irá interferir com o teu trabalho, e tenho a certeza de que é isso que tu pensas. — Melanie olhou para o marido sem querer acreditar no que estava a ouvir; saiu da cama e começou a fazer as malas. — Onde é que tencionas ir? — perguntou Peter.
— Para casa — respondeu ela, fixando-o bem de frente. — Para dar uma tareia à tua filha.
— Mel, vamos lá a ver. Por favor.
Contudo, Melanie, mostrando uma grande determinação, saiu do hospital e foi para casa. Assim que chegou deitou-se imediatamente, ignorando todos os pedidos de desculpa do marido e, nessa mesma tarde, desceu até a cozinha e ordenou a Mrs. Hahn que preparasse galinha com arroz para o jantar dessa noite, algo que ela pudesse comer, para variar, após o que se deitou à espera que os jovens chegassem a casa. Por volta das dezoito horas, já todos tinham chegado, mostrando-se surpreendidos ao depararem com ela em casa. Quando desceram as escadas para irem jantar, Melanie já se encontrava à mesa à espera deles; os seus olhos cintilavam de fúria.
— Boa noite, Pamela — saudou Melanie, começando pela rapariga. — Como é que te correu o dia?
— Bem — respondeu a jovem, tentando exibir uma expressão de confiança em si mesma, apesar de olhar constantemente de relance para Melanie, mostrando um certo nervosismo.
— Tanto quanto eu sei, disseste ao teu pai que na semana passada eu fui andar a cavalo. Isso é verdade? — fez-se um silêncio de morte na sala de jantar. — Volto a repetir a minha pergunta. Isso é verdade? — insistiu Mel.
— Não — respondeu Pamela numa voz que mal se conseguia ouvir.
— Não consigo ouvir o que disseste, Pamela! — ripostou ela.
— Não! — gritou a rapariga na sua direção.
— Mel, por favor não te preocupes com isso. — disse
Peter, agarrando no braço da mulher e tentando apaziguá-la.
— Precisamos clarificar certas coisas — retorquiu ela olhando de frente para o marido. — Ouviste o que a tua filha acabou de dizer?
— Ouvi, sim — respondeu Peter.
— Por que razão disseste uma mentira ao teu pai? — continuou Melanie, voltando a concentrar o seu olhar na rapariga. — Quiseste criar problemas entre nós dois? — Pam limitou-se a encolher os ombros. — O que é que te levou a isso, Pam? — perguntou Melanie, estendendo a mão e tocando na da rapariga. — Por que eu vou ter um bebê? Será isso uma coisa assim tão horrível que tenhas de me punir? Pois bem, quero dizer-te uma coisa. Não interessa o número de bebês que possamos vir a ter. Continuaremos sempre a gostar muito de ti — continuou Melanie; reparou que os olhos da jovem se enchiam de lágrimas, enquanto Peter continuava a agarrar-lhe no braço. — No entanto, se não puseres cobro à porcaria toda que tens andado a fazer desde que eu vim para esta casa, vou dar-te uma tareia tão grande que vais daqui até ao outro extremo da cidade.
Por entre as lágrimas que lhe marejavam os olhos, Pam sorriu e olhou para Melanie.
— De verdade que seria capaz de fazer isso? — perguntou a rapariga.
A sua voz quase tinha um timbre de satisfação. Aquela afirmação dizia-lhe que continuavam a interessar-se por ela.
— Podes crer que sim. — Melanie olhou para os outros que continuavam sentados à mesa de jantar. — O que acabei de dizer aplica-se também a todos vós — afirmou ela, apesar de ter suavizado o tom de voz ao olhar para Matthew. — Nunca deixarás de ser o nosso bebê e o que vai nascer nunca ocupará o teu lugar — continuou ela, mas o garoto não pareceu acreditar no que ela dizia. Em seguida, Melanie concentrou a sua atenção nas gêmeas. — E vocês duas também — acrescentou olhando especificamente para Valerie. — Não planeei esta gravidez com o intuito de te fazer sofrer, Val. Não previ o que iria acontecer, da mesma maneira que tu não sabias de antemão aquilo por que irias passar. A realidade é que vocês duas se têm mostrado extremamente insensíveis para com a forma como eu me sinto, o que, na minha opinião, não é nada simpático. — Em seguida, Melanie voltou-se para o filho mais velho de Peter. — E muito francamente, Mark, surpreende-me bastante ver-te aqui esta noite. Parece que nos últimos tempos não temos tido muitas oportunidades de te pôr a vista em cima. Por acaso ficaste sem dinheiro e foste forçado a comer em casa?
— Sim — respondeu o rapaz com um grande sorriso.
— Pois bem, parece-me que há algo que deverias ter sempre em mente: enquanto estiveres a viver nesta casa, tens responsabilidades para com esta família, o que significa que deverás dar-nos o prazer da tua companhia mais do que uma vez por mês. Todos nós esperamos ver-te um pouco mais do que tem vindo a acontecer ultimamente.
O rapaz ficou surpreendido ao ouvir o que Melanie lhe dissera, e o pai observou-o atentamente.
— Sim, senhora — aquiesceu Mark.
— E, quanto a ti, Pam. — A filha de Peter olhou-a cautelosamente. — A partir de agora, passas a ir sozinha ao psiquiatra. Podes muito bem ir de autocarro como, aliás, toda a gente. Não estou disposta a ser o teu motorista e conduzir-te por toda a cidade. Se tiveres vontade de ir às consultas, tenho a certeza de que poderás ir sozinha, uma vez que eu me recuso a levar-te ao consultório arrastada pelos cabelos. Já tens quase quinze anos. Está na altura de assumires algumas responsabilidades com respeito à tua própria vida.
— Quando sair da escola também tenho de vir de autocarro para casa? — perguntou Matthew numa vozinha esperançosa. Ele adorava andar de autocarro.
— Não, não tens — disse Melanie, esboçando um sorriso e abanando a cabeça, após o que olhou à volta da mesa.
— Espero ter sido bem clara. Por razões que somente vocês conhecem, têm se comportado de uma maneira atroz para comigo, desde que o vosso pai e eu vos comunicamos que me encontrava grávida. Pessoalmente, penso que a vossa atitude é nojenta. Não está ao meu alcance mudar o que vocês pensam, mas isso não invalida que não possa mudar a maneira como se comportam. Não estou disposta a suportar a forma como vocês têm procedido comigo. O que acabei de dizer aplica-se a todos vós — acusou Melanie, chegando mesmo a envolver a Mrs. Hahn no seu olhar. — Nesta casa há espaço para toda a gente: para vocês, para o vosso pai, para mim e para o novo bebê, mas temos de ser simpáticos uns com os outros. Não vou permitir que cada um de vocês continue a castigar-me — Os olhos de Melanie ficaram rasos de lágrimas que começaram a correr-lhe pelas faces. — por causa desta criança que ainda não nasceu.
Arremessou o guardanapo para cima da mesa e, num passo apressado, subiu as escadas; não tinha tocado numa migalha de comida, mas pelo menos conseguira levar a sua avante em relação aos hábitos alimentares daquela casa, ao ponto de Mrs. Hahn se ter dado ao trabalho de preparar uma salada para acompanhar a galinha assada no forno e o arroz.
Peter observou os jovens. Tinham um aspecto constrangido e humilde, tal como deveriam ter.
— A Mel tem toda a razão — declarou ele. — Todos vocês se têm portado de uma maneira inaceitável para com a Melanie.
Pamela, ao ouvir o pai, fitava-o nos olhos, numa tentativa para que ele desviasse o olhar do dela, o que não resultou. Por sua vez, Mark agitou-se na cadeira, pouco à vontade e Valerie baixara a cabeça.
— Não tive a intenção de... — começou Pam a dizer.
— Ah! Isso é que tiveste! — interrompeu-a Jessica. Todos nós tivemos. Andávamos irritados com ela.
— Não é justo que vocês descarreguem as vossas frustrações em cima da Melanie — continuou Peter.
— Está tudo bem, papai. A partir de agora vamos todos ser bonzinhos — assegurou o pequeno Matthew, enquanto dava pancadinhas no braço do pai, o que provocou um sorriso em todos os presentes.
Pouco depois Peter levou um prato para o quarto de ambos, onde Melanie se encontrava deitada na cama a chorar.
— Vamos lá, minha querida, não fiques assim tão aborrecida — pediu ele. — Trouxe-te um prato com um pouco de comida.
— Não me apetece comer. Estou enjoada — disse Melanie.
— Não devias exaltar-te desta maneira, visto que não é nada bom para ti — aconselhou o marido.
Melanie, ao ouvir aquelas palavras, voltou-se para ele, olhando-o com uma expressão de descrença.
— Dizes que não é bom para mim? Já alguma vez pensaste como me prejudica que toda a gente nesta casa me trate como se eu fosse um monte de esterco?!
— Vais ver que a partir de hoje toda a gente entrará nos eixos — assegurou Peter, mas a mulher não lhe deu resposta. — Além de que não devia ser tão dura para com eles, Melanie. Ao fim e ao cabo, não passam de umas crianças.
Mel semicerrou os olhos e olhou com fixidez para o marido.
— Não estou a incluir o Matt neste assunto, uma vez que ele tem apenas seis anos e o direito de se sentir irritado com esta situação. Todavia, os outros são praticamente adultos e, ao longo do último mês, não têm feito outra coisa senão espezinharem-me de todas as formas imagináveis. A Pam chegou ao ponto de te dizer uma mentira sem pé nem cabeça, para que julgasses que eu estava a tentar perder o nosso filho e o mais grave de tudo isto é que tu acreditaste no que a tua filha te disse! — ripostou ela num súbito ataque de fúria.
Sentindo-se culpado, Peter baixou a cabeça. Ao fim de algum tempo, soergueu o olhar, fitando a mulher.
— Bem, eu sei que esta criança irá interferir com a tua carreira profissional e que de início não mostraste muita vontade de tê-la — justificou-se Peter.
— Nem agora sei se desejo o seu nascimento. Mas a realidade é que ela vai nascer, o que constitui um outro problema. Talvez me possas dizer onde é que vamos instalá-la nesta casa? — perguntou Melanie.
— Ainda não tinha pensado nisso — admitiu o marido.
— Também não me pareceu que tivesses — ripostou ela, mostrando-se acabrunhada. Não desejava discutir com ele, mas a verdade era que o marido, à sua própria maneira, também a fazia sofrer. Melanie começou a falar com Peter numa voz mais calma. — Será que finalmente vamos decidir vender esta casa?
— Perdeste o juízo por completo? — perguntou ele com uma expressão horrorizada. — Esta é a casa dos meus filhos.
— E tu construíste-a de acordo com a vontade de Anne — redargüiu Melanie.
— Isso não tem nada a ver com o assunto.
— Não é essa a minha opinião — continuou ela. — Ainda que não existissem outros motivos, aqui não há espaço para o nosso bebê.
— Podemos acrescentar uma ala nova — sugeriu Peter.
— Onde? Só se for por cima da piscina!
A idéia era absurda e Peter dava-se conta de que assim era.
— Vou dizer ao meu arquiteto que venha cá e veremos o que é que ele tem a sugerir — acrescentou ele.
— Não é com ele que estás casado — retrucou Melanie.
— E eu não estou casado contigo. Tu desposaste aquele maldito emprego, do qual passas a vida a dizer tanto mal! — ripostou o marido cheio de fúria.
— O que estás a dizer não é justo — queixou-se Melanie.
— E não estás disposta a desistir dele por um único dia, não será verdade? — continuou Peter, enraivecido. — Ainda que o preço a pagar seja o nosso próprio filho. — As vozes de ambos ecoavam por toda a casa.
— Isso não virá a acontecer — retorquiu Melanie desabridamente, levantando-se da cama de um salto, enfrentando o marido. — Mas, em contrapartida, tu e os miúdos consegui-lo-ão, se não me deixarem em paz e sossego e se, para variar, não decidirem começar a fazer algo por mim. Eles só desejam espezinhar-me por eu ter me atrevido a engravidar, enquanto tu pretendes encaixar-me na tua vida anterior, seja de que maneira for. Por seu lado, a tua filha tem o atrevimento de pendurar o quadro da mãe por cima da minha cama!
— Ela fez isso uma vez. Mas que grande coisa! — exclamou Peter sem dar grande importância àquele assunto que, no entanto, era tão melindroso para a mulher.
— Essa coisa nem sequer deveria estar nesta casa!!! — vociferou ela, olhando para ele. Aquela discussão já tinha ido longe de mais. — E eu também não devia. De fato... — Melanie interrompeu-se e dirigiu-se para o roupeiro, de cujo interior tirou uma mala de viagem, que arremessou para cima da cama; em seguida e num passo apressado, aproximou-se da cômoda e começou a tirar de lá peças de vestuário, que ia atirando para dentro da mala aberta. — Vou-me embora desta casa até que vocês tenham tido tempo para pensar maduramente nos problemas que nos afligem. Aqueles miúdos têm é que comportar-se como deve ser, e tu... o melhor que tens a fazer é parar de tratar a Pam como se ela fosse uma pequena flor prestes a definhar, com uma frágil corola de cristal. Caso contrário, estás a correr o risco de ela acabar por se tornar numa drogada ou numa outra coisa qualquer quando fizer dezesseis anos. Não há nada de errado com a tua filha que não possa ser corrigido com uma grande dose de disciplina — concluiu Melanie.
— Permite-me que te recorde que não foi a minha filha quem apareceu grávida no princípio deste ano — retorquiu Peter com sarcasmo.
Fora um golpe baixo, como ele se apercebeu assim que as palavras lhe saíram da boca. Infelizmente, naquele momento era demasiado tarde para poder voltar atrás.
— Touché! — exclamou Melanie com uma expressão de ódio no olhar. — E não esqueçamos que é ao teu filho que devemos agradecer essa façanha!
— Escuta, Mel. E se nos acalmássemos e conversássemos como duas pessoas racionais? — sugeriu Peter a tentar apaziguar a mulher.
Sentia-se receoso pelo que lia nos seus olhos, sabendo que ela não deveria preocupar-se devido ao seu estado; contudo, Melanie encolerizara-o a tal ponto que perdera todo o controle sobre si mesmo.
— Pelo menos, em parte, estás com a razão. Eu vou tentar acalmar-me, mas não vamos conversar. Seja como for, essa conversa não terá lugar neste momento. Esta noite vou embora desta casa e tu terás de te haver com os miúdos como melhor entenderes. De fato, aconselho-te a que fiques aqui sentado e tentes descobrir o que é que pretendes fazer quanto a eles, assim como quanto a esta casa e a mim própria — acrescentou Melanie, mostrando-se irredutível.
— Isso é um ultimato, Mel? — perguntou Peter num tom de voz estranhamente tranqüilo.
— De fato assim é — respondeu ela.
— E o que é que tencionas fazer entretanto?
— Vou para fora a fim de organizar os meus próprios pensamentos em relação a alguns assuntos. Tenho de descobrir se quero continuar ou não a viver nesta casa; se desejo ou não despedir-me do meu emprego; se quero livrar-me desta criança — finalizou Melanie.
— Estás a falar a sério? — perguntou Peter, incrédulo e mostrando-se chocado com as palavras da mulher; esta, porém, apresentava uma expressão de uma tranqüilidade tão grande que o assustava.
— Estou — afirmou ela.
— Estarias disposta a abortar o nosso filho?
— É muito possível que sim — replicou Melanie. — Vocês todos parecem partir do princípio de que eu devo fazer o que me mandam, assim como aquilo que todos esperam de mim. Eu sou obrigada a estar aqui dia após dia, a aturar o mau feitio de Mistress Hahn, a agüentar tudo o que os miúdos dizem da boca para fora, a viver com as fotografias da Anne a olharem inexoravelmente para mim, a levar a Pamela ao psiquiatra, a dar à luz este bebê, custe o que custar. Pois bem, imagina isto! Não sou forçada a nada disto. Tal como toda a gente, eu também tenho direito a fazer escolhas!
— E suponho que eu não sou perdido nem achado em tudo o que acabaste de enumerar? — perguntou Peter, exibindo de novo um semblante cheio de fúria.
— Tu já disseste o suficiente. De cada vez que eu abro a boca, corres em defesa da Pamela — respondeu Melanie. — Não te cansas de me dizer o quanto Mistress Hahn é uma pessoa maravilhosa, apesar de eu te ter dado a saber que odeio a mulher. Dizes-me ainda que esta é a tua casa e assumes que eu tenho obrigação de ter o nosso filho. Pois bem, não é assim. Tenho trinta e seis anos e, muito francamente, acho que já sou demasiado velha para agüentar esta situação e demasiado adulta para ter de agüentar este tipo de merda de quem quer que seja, de ti ou dos miúdos!
— Nunca me tinha apercebido de que tinhas de suportar merdas de mim, Mel — retorquiu Peter.
Melanie olhou para o marido com um ar de grande tristeza.
— Por causa de ti, toda a minha vida se alterou nos últimos seis meses. Despedi-me do meu emprego, desfiz-me da minha casa, saí da cidade onde gostava de viver e cedi toda a minha independência. Aqui em Los Angeles, tenho um emprego que poderá ou não correr bem, e que foi uma espécie de despromoção e, para cúmulo, sou obrigada a trabalhar com um grande filho da puta. Tu não pareces dar o mínimo valor a nada disto. Para ti tudo se deve manter inalterado. Cada um dos teus filhos continua a ter o seu próprio quarto, a viver na sua própria casa, a ter as fotografias da mãe por tudo quanto é sítio, a mesma governanta, assim como o papai deles. A única maçada é terem de suportar a minha presença. Pois bem, se querem que eu me mantenha aqui, parece-me que o melhor seria que começassem a pensar muito seriamente nas transformações a que sem dúvida terão de proceder. Caso contrário, o mais provável será eu mesma fazer algumas transformações importantes, decidindo regressar a Nova Iorque.
Peter mostrava-se horrorizado, apesar de a sua voz se manter firme.
— Mel, estás a preparar-te para me deixares?
— Não, não estou — afirmou ela. — No entanto, estou decidida a ir para fora durante uma semana, para poder pensar na minha vida em paz e sossego e decidir o que é que quero fazer daqui para a frente — respondeu Melanie.
— Tencionas fazer o aborto enquanto estiveres ausente? — quis saber o marido.
Ela abanou a cabeça, fazendo um esforço enorme para conter as lágrimas.
— Não seria capaz de te fazer uma coisa dessas. Se chegar à conclusão de que é isso que desejo fazer, informar-te-ei primeiro.
— Começa a ser bastante tarde para isso. Haverá alguns riscos a considerar — adiantou ele.
— Sendo assim, também terei de levar esse aspecto em consideração — disse Melanie. — Mas, neste momento, vou concentrar todos os meus pensamentos naquilo que eu quero, e não no que tu desejas ou esperas de mim, assim como não vou preocupar-me com as necessidades dos miúdos, nem tão-pouco com o teu bem-estar. Acontece que eu também tenho carências e, durante muito tempo, não houve ninguém, incluindo eu própria, que desse qualquer valor a essas necessidades.
Peter acenou com a cabeça em movimentos lentos, sentindo-se destroçado perante a perspectiva de a mulher se ir embora, ainda que fosse somente por uma semana.
— Depois dizes-me onde estás?
— Não sei.
— Sabes para onde vais? — perguntou ele.
— Não, não sei. Vou meter-me no automóvel e começar a conduzir. Ver-nos-emos dentro de uma semana — concluiu Melanie, preparando-se para deixá-lo com muita coisa em que pensar. Naquela semana, ela não seria a única a coordenar os seus pensamentos e emoções.
— E a respeito do teu trabalho? — questionou Peter com curiosidade.
— Vou dizer que estou doente outra vez. Tenho a certeza de que o Paul Stevens vai ficar encantado ao ter conhecimento dessa notícia.
Peter sabia que deveria dizer-lhe algo antes de ela partir e antes de, pelo menos em pensamento, decidir acabar com o casamento.
— Mas eu não ficarei, Mel. Vou ter umas saudades terríveis de ti — admitiu ele.
Melanie levava no rosto uma expressão triste ao afastar-se com a mala de viagem, em direção à porta.
— Também eu, mas talvez seja essa a finalidade. É possível que tenha chegado a hora de tentarmos avaliar a natureza dos sentimentos que temos um pelo outro, qual o seu valor e até que ponto estamos dispostos a investir emocionalmente naquilo que mais desejamos. Nesta altura, não estou capaz de fazer essa aferição. Pensei que conseguia, mas subitamente tenho dúvidas acerca de tudo, o que me leva a sentir necessidade de pensar com toda a calma.
Peter acenou com a cabeça num gesto de compreensão, ficando a observar a mulher enquanto esta saía pela porta do quarto. Alguns momentos mais tarde, ouviu a porta da entrada a fechar-se depois de ela ter saído. Tivera uma enorme vontade de abraçá-la, dizendo-lhe que a amava mais do que a própria vida e que desejava aquele filho; contudo, fora demasiado orgulhoso, deixando-se ficar ali imobilizado sem tomar qualquer iniciativa. E agora Melanie fora-se embora. A sua ausência seria de uma semana. Contudo, poder-se-ia dar o caso de ser por mais tempo? Mesmo para sempre?
— Onde é que está a mamãe? — perguntou Valerie, surpreendida ao passar pelo quarto deles.
— Saiu — respondeu Peter a olhar fixamente para a rapariga. — Foi-se embora — continuou ele, tendo decidido não lhe omitir a verdade.
Estava disposto a contar a todos. Os jovens mereciam saber o que é que se estava a passar. Era preciso não esquecer que também tinham contribuído para aquela situação. Todos eles eram responsáveis pela maneira como Melanie se sentia. Peter não estava disposto a arcar sozinho com as culpas todas, não obstante ter compreendido naquele momento que grande parte do mal-estar da mulher fora obra sua. Fora bastante teimoso em relação à casa; em relação a tudo. Melanie fizera de boa vontade todas as alterações que haviam sido necessárias para que ambos pudessem encetar uma nova vida, ao passo que ele não tinha feito a mínima concessão. Melanie tinha toda a razão; o seu procedimento não fora nada justo.
— Embora? Foi-se embora para onde? — insistiu Val.
— Não sei. A tua mãe deverá regressar dentro de uma semana — informou Peter.
A rapariga deixou-se ficar no mesmo lugar, enquanto olhava fixamente para ele. Valerie compreendia o que se tinha passado. Todos eles haviam ido longe de mais. No entanto, a realidade é que se tinham sentido muito furiosos com a mãe, o que, em contrapartida, desencadeara a fúria de Melanie. Naquele momento, todos aqueles agravos não pareciam ter o mínimo valor.
— Acha que ela vai ficar bem?
— Espero que sim, Val — retorquiu Peter e dirigiu-se para o corredor, passando-lhe um braço à volta dos ombros, ao mesmo tempo em que Jessica subia as escadas e olhava para ambos.
— A mamãe saiu? — perguntou a outra gêmea.
— Sim — respondeu Valerie por Peter. — Foi-se embora por uma semana.
Enquanto os outros subiam as escadas, também ouviram o que Val dizia, e pararam, ficando a olhar para o rosto de Peter.
Quando Melanie saiu de casa naquela noite, entrou no automóvel e seguiu em frente, sem ter estabelecido qualquer plano quanto ao seu destino; não havia pessoa alguma que tivesse vontade de visitar. O seu único desejo era afastar-se daquela casa, do trabalho, das crianças e do marido. Durante os primeiros oitenta quilômetros, pensou apenas no local que deixara para trás, não no sítio para onde iria.
No entanto, pouco depois, começou a descontrair-se e, decorridas quase duas horas de viagem, parou para meter gasolina e sorriu. Nunca fizera nada de tão ousado em toda a sua vida. Mas a realidade era que não fora capaz de suportar aquela situação por mais tempo. Toda a gente tinha abusado dela e estava na altura de começar a pensar em si mesma, em vez de dedicar toda a sua atenção à família e à criança ainda por nascer.
Não era obrigada a fazer rigorosamente nada que não lhe apetecesse. Nem sequer teria de viver naquela casa se lhe desse na real gana. Que raio! Ao fim e ao cabo, ganhava um milhão de dólares por ano e poderia muito bem dar-se ao luxo de comprar uma casa que fosse apenas sua, pensou Melanie. Não era forçada a continuar a viver com o fantasma de Anne por companhia, se essa não fosse a sua vontade, e já sabia que não era. Quando retomou a estrada, depois de ter atestado o depósito de gasolina, começou a pensar em todas as transformações que a sua vida sofrera durante os últimos seis meses, comparando-as com as que Peter fizera por seu turno, chegando à conclusão que tinham sido quase inexistentes.
O marido continuava a trabalhar no mesmo local, com as mesmas pessoas que respeitavam o seu trabalho e dormia na mesma cama em que dormira ao longo de muitos anos. Os seus filhos não haviam sido forçados a sair da sua casa. Peter até chegara ao ponto de manter a mesma governanta. A única coisa que para ele tinha mudado fora o rosto que beijava de manhã antes de sair para o trabalho e talvez ele nem sequer reparasse nessa transformação.
No momento em que entrou em Santa Barbara, Melanie foi de novo invadida por um sentimento de fúria, o que a levou a sentir-se satisfeita por ter decidido partir. Lamentava somente não ter tomado aquela decisão mais cedo, mas quem é que teria tido tempo para isso, entre levar Pamela ao consultório do psiquiatra, tentar acalmar as gêmeas, manter uma vigilância ainda que vaga sobre Mark, representar o papel de mãe com Matthew, segurar na mão de Peter, confortando-o sempre que um dos seus doentes submetidos a um transplante acabava por morrer, para não mencionar as suas entrevistas e reportagens especiais e a apresentação do noticiário das dezoito horas todos os dias? De fato, era inacreditável que ela pudesse dispor de tempo para se vestir e para se pentear. Que fossem todos para o inferno! Peter, os miúdos e Paul Stevens também. Deixá-lo-ia fazer a apresentação das notícias sozinho durante algum tempo. Na estação de televisão poderiam alegar sempre que ela se encontrava doente. Melanie desejava que fossem todos para o inferno! Não se importava com coisa nenhuma!
Parou num motel e pagou antecipadamente um quarto, o qual tinha aquele aspecto incaracterístico que lhe permitia enquadrar-se em qualquer parte do mundo, desde Beirute até Nova Orleães. Melanie chegou a essa conclusão ao olhar para o tapete áspero cor de ferrugem que cobria o soalho, para as cadeiras de vinil cor de laranja, para a sua casa de banho impecável de azulejos brancos e para a colcha, que também era de um tom ferrugento. Decididamente, aquele quarto não tinha qualquer comparação com os do Hotel Bel-Air ou os do Baltimore de Santa Barbara, onde Melanie se hospedara havia alguns anos; apesar disso, estava-se nas tintas para a qualidade das suas acomodações.
Tomou um banho bem quente de imersão, ligou o televisor e viu as notícias das onze, o que fez mais por hábito do que por vontade própria e, por fim, apagou as luzes sem ter telefonado para casa. Que se lixassem todos, pensava Melanie para si própria e, pela primeira vez em vários meses, sentiu-se livre para fazer o que mais lhe apetecesse, ser ela mesma e poder tomar as suas próprias decisões sem ter de levar em consideração um único ser vivo à face do planeta.
Então, de súbito, enquanto se encontrava deitada na cama, pensou no ser que tinha dentro de si, compreendendo que até mesmo ali não se encontrava absolutamente sozinha. O bebê fora com ela. O bebê. Como se já fosse uma pessoa separada de si. Melanie pousou uma mão no ventre, o qual estivera tão plano no mês anterior. Agora verificava que havia uma saliência, pequena apesar de bem definida, onde o espaço côncavo entre os ossos da bacia tinha existido. Mel sentiu-se assolada por uma sensação de estranheza ao pensar no que poderia acontecer se levasse aquela gravidez para a frente. Para si, aquele bebê tornar-se-ia real e, dentro de cerca de cinco semanas, começaria a senti-lo a mexer-se dentro do ventre. Por breves instantes, sentiu um sentimento de ternura bem no seu íntimo, mas pouco depois o deixou desaparecer.
Naquela altura, não tinha vontade de pensar no assunto. Não desejava concentrar-se em coisa alguma, fosse o que fosse. Cerrou os olhos e adormeceu sem sonhar com Peter nem tão- pouco com a criança por nascer, nem mesmo com os miúdos. Naquela noite, o seu sono não foi interrompido por qualquer sonho. Deixou-se ficar deitada naquela cama do quarto do motel e dormiu. Quando despertou na manhã seguinte, os raios do sol tinham começado a entrar pelo quarto adentro. De início, não se recordou de onde é que se encontrava; porém, quando começou a olhar à sua volta e se apercebeu do lugar onde estava, riu para si mesma. Sentia-se bem: com vigor e em liberdade.
Nessa mesma manhã, quando Peter acordou em Bel-Air, estendeu instintivamente o braço para o outro lado da cama à procura da mulher e, quando a sua mão e perna sentiram o tecido macio dos lençóis vazios, abriu um olho e recordou-se de que ela se tinha ido embora. Sentiu um baque no coração. Voltou-se para o outro lado e deixou-se ficar a olhar fixamente para o teto, perguntando a si próprio onde Melanie estaria e recordando-se dos motivos que a haviam levado a partir. Na realidade, a culpa fora toda sua, disse ele a si mesmo sem poder assacar culpas aos miúdos, nem tão-pouco a Paul Stevens, ao trabalho dela ou mesmo a Mrs. Hahn. O fato inegável era que ele tinha procedido de maneira errada desde o início.
Peter esperara demasiado de Melanie; esperara que ela transformasse toda a sua vida por causa de si. Compreendia que a mulher lamentasse tudo o que tinha feito, pensou ele, repreendendo-se. Lembrou-se do quanto Melanie adorara viver em Nova Iorque e perguntou a si próprio como é que se atrevera a concluir que ela poderia desistir de tudo o que fora a sua vida até se conhecerem. Ela tivera um emprego que qualquer homem do país lutaria para ter, uma casa que adorara, os amigos, a sua vida, a sua cidade.
E quando Melanie arrancou lentamente rumo ao norte, pensava no rosto de Peter quando se tinham conhecido, naqueles primeiros dias infindáveis em que ela o entrevistara, nas horas esgotantes que ambos tinham partilhado quando do atentado à vida do presidente, na primeira viagem que ele fizera a Nova Iorque. Pensou não tanto no que deixara naquela cidade, mas mais no que obtivera em troca. Reviveu a primeira vez que o pequeno Matt se tinha aninhado no seu colo. A expressão no olhar de Pamela numa ou duas ocasiões. Os momentos em que Mark se tinha abraçado a ela a chorar, por ocasião da viagem em que tinham ido esquiar e em que Valerie quase perdera a vida. Inesperadamente, era-lhe difícil expulsá-los a todos da sua vida.
Naquele momento, a sua cólera dirigia-se mais às gêmeas, a Jessica, por ter esperado que a mãe estivesse sempre à disposição de todos e, muito em especial, à dela; e a Val, pelo seu ressentimento em relação ao bebê da mãe, devido ao fato de ela própria não ter podido ter o seu.
Melanie tinha a obrigação de dar muito de si às filhas. Mas até que ponto era ela obrigada a dar mais? Com certeza que essa obrigação não poderia exceder aquilo que já lhes havia dado. Era nesse aspecto que a tragédia toda residia, porque ela própria sabia que o seu melhor não era suficiente. Um dia viria a existir um outro par de olhos a fitar os seus, para lhe dizer que ela não lhe dava o suficiente de si mesma e não restaria nada de si própria. Ficava exausta só de pensar naqueles problemas.
Quando finalmente avistou Carmel, foi invadida por um sentimento de alívio. Tudo o que lhe apetecia fazer era alugar um quarto noutro motel, para poder voltar a dormir. Para se afastar dos problemas. Para sonhar. Para fugir.
— Quando é que a mamãe volta? — perguntou Matthew a olhar acabrunhado para o prato que tinha à sua frente, e em seguida para os outros, à procura de uma resposta.
Naquela noite nenhum deles proferira uma única palavra desde que se haviam sentado à mesa do jantar. Sem a presença de Melanie, aquela noite não parecia ser de domingo. Era o dia em que Mrs. Hahn folgava e, habitualmente, Melanie preparava uma refeição de que todos gostassem. Conversava, ria-se e escutava-os, enquanto mantinha um olhar atento sobre todos eles. Era naquela ocasião que costumava informá-los das atividades que havia planeado para a semana seguinte, sabendo antecipadamente que tudo se alteraria antes de a semana chegar ao meio. No entanto, costumava gracejar e brincar, conseguindo incluir todos nas conversas ou, pelo menos, esforçando-se por isso.
Naquela altura, Matt ergueu o olhar para o pai com uma expressão cheia de reprovação.
— Por que é que fizeste com que ela se fosse embora? — perguntou o pequenito.
— Ela há de voltar — respondeu Jessica com os olhos alagados de lágrimas, antecipando-se a Peter. — A mãe só se foi embora para poder descansar alguns dias.
— E por que é que ela não podia descansar aqui? — continuou Matthew, olhando para Jess com um rosto acusador.
Ela era a única que falava com ele. O resto da família dava a impressão que andava aparvalhada.
No entanto, foi Mark quem respondeu.
— Por que todos nós a cansamos, Matt. Esperamos sempre demasiado dela. — Mark olhou primeiro para Pamela e depois para os outros.
Após o jantar, Peter ouviu-o a gritar com Valerie.
— Tu culpaste-a de tudo e de mais alguma coisa de que foste obrigada a deixar Nova Iorque, os teus amigos, a tua escola. Chegaste mesmo ao ponto de a culpares pelo que nos aconteceu. Não foi culpa dela, Val. — Mas a bonita rapariguinha loura sentou-se e chorou tanto que o rapaz não teve coragem de continuar.
Peter subiu as escadas com lentidão, dirigindo-se para o quarto de Valerie, encontrando-os a todos ali sentados com a exceção de Pamela, a qual se deitara na sua cama a olhar para o teto com o rádio ligado. Desejara que Melanie fosse embora, admitia a rapariga, apesar de não ter confidenciado aquilo ao psiquiatra. Queria que a sua própria mãe pudesse regressar, mas naquele momento compreendia que aquele desejo jamais seria satisfeito. A escolha que lhe restava era Melanie ou aquele terrível vazio, exatamente a mesma situação que se tinha verificado quando a mãe morrera e só Mrs. Hahn olhava por eles. Então a jovem apercebeu-se de que não era aquilo que queria, nem para si nem para os outros. Levantou-se da cama e dirigiu-se para o quarto das gêmeas, onde encontrou o resto da família, até mesmo o pequeno Matthew, que estava sentado no chão, muito triste.
— Nunca tinha reparado que este quarto era tão pequeno — comentou Pamela, olhando à sua volta. O seu próprio quarto tinha o dobro do espaço daquele.
Val e Jess não ofereceram qualquer comentário, mas olharam para Pam ao repararem na presença de Peter à entrada.
— De fato é — reconheceu ele, recordando-se de que Melanie dissera que as gêmeas nunca tinham partilhado um quarto em todos os seus anos de vida.
No entanto, ali se encontravam elas, apinhadas como pobres órfãs, enquanto Pamela gozava do privilégio de um quarto duas vezes maior. Tudo o que a mulher dissera era verdade? Na sua maior parte, admitiu ele. Nem tudo. Mas demasiado para lhe permitir ignorar o que Melanie havia dito.
— Um quarto de casal? — perguntou o recepcionista do motel em Carmel.
— Não — respondeu Melanie com uma expressão de cansaço. — Um individual serve perfeitamente.
O homem olhou para ela com a expressão de quem lamentava a sua sorte. Todas elas costumavam dizer o mesmo, para pouco depois o marido e duas crianças entrarem sub-repticiamente no quarto, convencidos de que ele nunca adivinharia que se encontravam lá. O mais provável seria também terem um cão enorme que se babava. Todavia, o recepcionista verificou que daquela feita a sua suposição estava errada.
Melanie retirou do automóvel o seu pequeno saco de viagem e foi para o quarto, fechando a porta. Deitou-se na cama de imediato sem sequer olhar à sua volta. O aposento era quase idêntico àquele onde se alojara a noite anterior. Os quartos de motel eram iguais em todo o lado, pensou ela, ao observar o mobiliário de vinil cor de laranja, o chão coberto por um tapete áspero cor de ferrugem. Passado pouco tempo, havia adormecido de pura exaustão.
— Doutor Hallam? — disse uma enfermeira.
— Sim? — respondeu Peter do interior do cubículo onde examinava uma pilha de relatórios médicos, sentindo-se satisfeito por naquela manhã terem tido apenas duas intervenções cirúrgicas.
— Passa-se alguma coisa? — continuou ela.
Sentia sempre um certo receio na presença do médico, um homem de grande competência profissional; se ela cometesse algum erro, poria em risco o seu emprego. Para seu alívio, Peter limitou-se a erguer o olhar e a abanar a cabeça, exibindo um sorriso fatigado.
— Está tudo bem — sossegou-a ele. — Como é que está a Iris Lee? Já reagiu aos medicamentos?
— Ainda não — respondeu a enfermeira.
O médico estava a referir-se a uma doente submetida a um transplante havia uma quinzena e que dava a impressão de se encontrar bem, embora Peter não albergasse grandes esperanças quanto a uma evolução positiva do seu estado de saúde. Não haviam conseguido obter um coração a tempo, pelo que fora forçado a fazer o transplante de um coração de criança, que colocou sobre o da doente. Em determinadas ocasiões, obtivera êxito com aquela técnica; no entanto, o estado de saúde de Iris estava tão deteriorado na altura da operação que a intervenção cirúrgica fora levada a cabo como último recurso. Havia dias que Peter esperava que o pior viesse a acontecer. Daquela vez Melanie não estaria presente para lhe dar apoio e conforto. Aquela situação era semelhante à que se verificara nos dias que se seguiram à morte de Anne. Naquele momento, encontrava-se de novo sozinho, sentindo-se ainda mais solitário do que quando a primeira mulher falecera.
— Jess? — chamou Valerie da cama, depois de ter regressado da escola.
— Sim? — respondeu a irmã que estava sentada À mesa de estudo do quarto que ambas partilhavam.
— Alguma vez sentes vontade de voltar a viver em Nova Iorque? — continuou Val.
— Claro que sim — redargüiu Jessica, olhando para a sua irmã gêmea. — Muitas vezes até, o que não tem nada de mal. Foi lá que vivemos durante muitos anos.
— Achas que a mamãe decidiu ir para lá? — continuou Val, que não tinha pensado noutra coisa durante todo o dia.
— Não faço a mínima idéia. Até é muito possível que tenha ficado em Los Angeles.
— E não nos telefona? — retorquiu Valerie, mostrando-se horrorizada por a mãe poder proceder daquela forma.
— Se tu te sentisses como ela, achas que telefonarias? — perguntou Jessica com um sorriso.
— Calculo que não — admitiu a irmã.
— Nem eu tão-pouco — disse Jess a olhar através da janela e soltando um pequeno suspiro. — Eu culpei-a de tudo, Val. De tudo e de mais alguma coisa. Foi uma grande injustiça, mas todas as decisões foram da responsabilidade dela. A mãe costumava perguntar-nos sempre qual a nossa opinião acerca das coisas e desta vez, decidiu ir em frente, tirando-nos da escola e obrigando-nos a mudar para esta cidade. — Jessica interrompeu-se e ficou a pensar naquele assunto demoradamente. — Imagino que fiquei muito chateada com ela por ter tomado todas essas decisões sem nos ter consultado primeiro.
— A mãe deve ter pensado que estava a proceder da melhor maneira para nós — continuou Valerie com uma expressão de tristeza.
Jessica olhou para ela e assentiu.
— O problema todo foi a mamãe ter tomado essa atitude — continuou Jessica. — Eu até gosto do Peter. E tu? Gostas ou não?
— Quando ficou decidido que iríamos mudar para Los Angeles, a única coisa em que conseguia pensar era no Mark — admitiu Val.
— Eu sei disso — redargüiu Jess com um sorriso nos lábios. — O que não me serviu de grande ajuda quando ainda estávamos a viver em Nova Iorque. A mamãe tinha o Peter e tu podias contar com o Mark. Eu não tinha nada — continuou ela com uma careta risonha.
Naquele momento, aquilo já não lhe parecia tão terrível como antes. Gostava da escola que ambas freqüentavam e conhecera um rapaz simpático havia mais ou menos um mês. Pela primeira vez na sua vida, Jessica encontrara alguém por quem realmente sentia carinho. Ele tinha vinte e um anos e ela pressentia que a mãe, quando se inteirasse desse pormenor, iria ter um ataque de fúria, em particular depois do que acontecera entre Valerie e Mark. No entanto, Jessica sabia que aquele rapaz haveria de ser muito especial para si. Deixou-se ficar a olhar o vazio com um sorriso distante nos lábios.
— Por que é que estás a sorrir? — perguntou Val, que observava a irmã. — Estás para aí sentada com um sorriso todo contente. O que é que se passa?
— Nada de mais — respondeu Jess.
Val compreendeu tudo de imediato. Jessica podia ter notas mais altas na escola, mas Valerie tinha mais conhecimentos acerca de homens. Semicerrou os olhos e fitou o rosto da irmã.
— Por acaso, estarás tu apaixonada?
Jessica limitou-se a observá-la com um sorriso misterioso. Ainda não desejava partilhar aquele segredo com a irmã.
— Por enquanto, ainda não — respondeu ela. — Mas conheci uma pessoa que me agrada.
— Tu? — perguntou Valerie, muito admirada; Jessica limitou-se a abanar a cabeça, não desejando entrar em confidências. Contudo, Val não se deixou intimidar com a atitude da irmã. — Aconselho-te a ter cuidado — continuou ela.
Ambas sabiam a que é que ela se referia e aquele aviso era bastante acertado. A jovem aprendera uma das lições mais duras na vida de uma mulher e que jamais seria capaz de vir a esquecer.
Naquela noite, Mrs. Hahn serviu o jantar no meio de um grande silêncio. Eram nove horas quando Peter chegou a casa. Matthew já se encontrava deitado, tendo sido aconchegado por Jess, Pam e Val. Logo que chegou, foi aos quartos dos filhos para lhes dar boa-noite.
— Estão todos bem? — perguntou ele.
Os jovens não estavam muito conversadores e todos acenaram que sim, enquanto ele ia de quarto em quarto. O seu dia de trabalho fora bastante difícil, mas não havia ninguém com quem pudesse partilhar isso. Entrou no quarto das gêmeas e olhou para Jessica.
— Soubeste alguma coisa da tua mãe?
Ela limitou-se a abanar a cabeça. Peter dirigiu-se para a sala de estar.
Nesse mesmo momento, Melanie percorria a Rua Califórnia; estava na cidade de São Francisco e dirigia-se para o Hotel Stanford Court, onde alugou um quarto. Era uma mudança refrescante dos motéis onde se alojara nos últimos dias. O quarto fora todo decorado com veludos cinzentos, sedas e moirées. Deixou-se cair na cama, soltando um gemido de cansaço. Tinha a sensação de ter conduzido dias a fio. Recordou a si mesma que teria de abrandar um pouco aquele ritmo. Ainda não decidira sobre o que iria fazer da sua vida e não desejava perder o bebê antes de chegar a qualquer conclusão definitiva. Tinha responsabilidades para com aquele ser que trazia no ventre, no caso de optar por levar a termo a gravidez.
Naquela noite, ficou acordada na cama a pensar no assunto, recordando-se da cólera de Val; da fúria de Jess quanto ao número de transformações que a mãe esperava que elas fizessem; da hostilidade de Pamela e dos seus truques para chamar a atenção dos outros; do sofrimento do pequeno Matthew e das esperanças que Peter albergava a respeito de ela decidir dar à luz aquele bebê apesar de todos os problemas, como se aquele nascimento fosse um antídoto para os seus encontros freqüentes com a morte na sala de operações. Na opinião de Melanie, toda aquela situação parecia ser terrivelmente injusta. Deveria ter ou não a criança consoante a vontade deles. Uma vez mais, o cerne da questão estava neles e não nela própria.
No dia seguinte, deu um passeio pelo bairro chinês de São Francisco e, em seguida, foi de automóvel até ao Parque Golden Gate. Ali passeou pelos canteiros de flores. O mês de maio aproximava-se. Maio. Havia quase um ano que conhecera Peter e, agora, ali estava ela sem saber o que fazer da sua vida. Quando regressou ao hotel, tirou da mala a sua pequena agenda com os números de telefone, ligou o número oito para conseguir uma linha que lhe permitisse fazer uma chamada interurbana, e ligou o número da casa de Raquel. Em Nova Iorque ainda eram vinte horas. Havia meses que não tinha notícias da sua antiga governanta. Melanie nem sabia se ela conseguira arranjar outro emprego. Também se poderia dar o caso de Raquel não se encontrar em casa naquele momento, mas esta atendeu ao telefone ao primeiro toque.
— Está lá? — A voz da governanta era tão desconfiada como de costume sempre que atendia.
— Olá, Raquel — saudou Melanie com um sorriso bem-humorado. — Sou eu. — Tinha a mesma sensação de quando costumava telefonar para casa, em tempos idos, durante as ocasiões em que estivera a trabalhar fora. Foi forçada a recordar-se de que não deveria perguntar como é que estavam as gêmeas. — Como é que tem passado?
— Mistress Mel? — perguntou Raquel, surpreendida.
— Claro que sou eu.
— Passa-se alguma coisa?
— Não, apenas me lembrei de lhe telefonar para saber como é que estava — respondeu Melanie.
— Eu estou bem — afirmou a governanta num timbre de voz que deixava adivinhar satisfação. — Como é que estão as meninas?
— Estão ótimas — respondeu Melanie sem querer aludir ao problema que Valerie tivera. Naquele momento, aquele assunto já estava resolvido. — Elas gostam da nova escola e tudo parece estar a correr pelo melhor — continuou Melanie, mas a sua voz era pouco firme e sentiu as lágrimas a assomarem-lhe aos olhos.
— Passa-se qualquer coisa?! — afirmou Raquel num tom de acusação.
— Posso garantir-lhe que não — retorquiu Melanie com a voz embargada. — Tive de vir a São Francisco por uns dias e senti saudades suas.
— O que é que está a fazer aí? Continua a trabalhar demais? — perguntou Raquel.
— Não, não é tão mau como em Nova Iorque. Só tenho de apresentar o noticiário das seis da tarde — disse Melanie sem aludir à agonia constante que o seu novo emprego lhe provocava. — Vim a São Francisco para poder descansar uns dias.
— Por que? Está doente? — indagou Raquel, que sempre tivera o hábito de ir diretamente aos assuntos, sem quaisquer rodeios.
Melanie esboçou um sorriso. De que é que lhe servia tentar enganar a sua antiga governanta?
— Para lhe dizer a verdade, sua bruxa velha, decidi fugir.
— De quem? — interrogou Raquel, chocada.
— De toda a gente. Do Peter, dos miúdos, do meu emprego e até de mim mesma.
— O que é que se passa consigo? — Era evidente que aquela atitude não merecia a sua aprovação.
— Não sei — disse Melanie. — Acho que preciso apenas de algum tempo para poder pensar com clareza.
— Acerca de que? — perguntou a governanta, que naquela altura dava a impressão de se sentir irritada com Melanie. — O seu problema é pensar sempre demais. Não tem necessidade de pensar tanto. O seu marido está consigo? — perguntou ela a seguir.
— Não. Estou sozinha em São Francisco — elucidou Melanie imaginando a expressão no rosto de Raquel ao ouvir aquilo.
Perguntava a si mesma o que é que a levara a fazer aquele telefonema, mas sabia que tivera vontade de ouvir uma voz familiar, e não queria telefonar para casa.
— A senhora deve ir para casa imediatamente!
— Irei dentro de mais alguns dias — retorquiu Mel.
— O que eu quero dizer é que deve ir neste preciso momento. O que é que se passa consigo? Endoideceu desde que saiu daqui? — continuou Raquel indignada.
— Um pouco — reconheceu Melanie.
Ainda não queria mencionar a existência do bebê. Continuava a necessitar de tempo para poder tomar uma decisão quanto àquele assunto, e não faria qualquer sentido contar a quem quer que fosse, se viesse a optar pelo aborto quando voltasse a Los Angeles. Poderia dizer a qualquer altura que perdera a criança devido ao excesso de trabalho. Nenhuma das pessoas com quem trabalhava se encontrava a par da sua gravidez.
— Eu telefonei apenas para saber se a Raquel estava bem — acrescentou ela.
— Eu estou muito bem. Agora, vá para casa — disse a antiga governanta.
— Irei. Não se preocupe comigo, Raquel. Despeço-me com um grande beijo.
— Não me beije a mim, vá mas é para casa e beije a ele. Diga ao seu marido que está arrependida por ter fugido.
— Assim farei — assegurou Melanie. — Escreva-me um dia destes.
— Está bem, de acordo. Diga às gêmeas que tenho muitas saudades delas.
— Esteja descansada que eu digo — prometeu Melanie e desligou o telefone, deixando-se ficar na cama durante muito tempo.
Raquel não compreendia melhor a situação do que eles. Na perspectiva da governanta, o lugar de Melanie era em casa, independentemente daquilo que a família pudesse dizer ou fazer. O seu lugar era no lar e a verdade era que ela própria pensava a mesma coisa.
Naquela noite, jantou no quarto, tomou um banho bastante quente de imersão e viu televisão durante duas horas. Não lhe apetecia sair. Não havia lugar algum onde desejasse ir e às onze horas antes da apresentação do noticiário, agarrou no telefone e ligou o número que lhe permitia o acesso a uma linha para fora, mantendo o auscultador na mão durante muito tempo. Talvez Raquel tivesse razão, mas não queria telefonar a menos que se encontrasse absolutamente certa de que era isso que desejava fazer. Começou a marcar o número sem ter ainda a certeza se desligaria ou se falaria com Peter; quando ouviu a voz do marido, sentiu um sobressalto no coração, semelhante ao que lhe acontecera havia um ano.
— Está lá? — atendeu ele.
Melanie teve a certeza de que Peter ainda não se deitara. Hesitou por breves instantes.
— Olá — saudou ela a medo.
— Mel? — perguntou o marido.
— Não. É da Pizza Hut. Sim, sou eu.
— Por amor de Deus! Estás bem? Tenho andado preocupado de morte sem saber de ti.
— Estou bem — asseverou Melanie.
Peter não se atrevia a perguntar, mas não lhe restava qualquer alternativa.
— O bebê? Fizeste. Livraste-te dele?
— Eu disse-te que não faria isso até te comunicar a minha decisão — retorquiu ela numa voz magoada.
— E já decidiste? — insistiu ele.
— Ainda não. A verdade é que ainda não pensei muito sobre o assunto.
— Nesse caso, em que raio é que tens andado a pensar? — perguntou Peter.
— Em nada — respondeu Melanie.
— Oh! — exclamou ele depois de fazer uma longa pausa. — Também eu — admitiu. — Tenho-me comportado como um verdadeiro estupor, Mel. Os miúdos são da mesma opinião.
— Não, não quero que pensem isso — redargüiu ela com um sorriso. Era evidente que ele se recriminava desde que ela partira e essa não fora a intenção de Mel. — Isso é ridículo, Peter. Ambos fomos forçados a fazer muitas adaptações.
— Sim, e eu permiti que fosses tu a fazê-las todas — reconheceu ele.
— Isso não corresponde inteiramente à verdade — disse Melanie, apesar de pensar que em parte fora isso mesmo que acontecera. Ela não pretendia retirar toda a verdade à afirmação do marido. — Um de nós era forçado a mudar de cidade e a alterar a vida dos filhos e a desistir da vida que levara até então, o que no teu caso era impossível. A escolha foi minha.
— E eu permiti isso. Deixei que tudo caísse em cima de ti — continuou Peter. — Cheguei ao ponto de esperar que seguisses as pegadas da Anne. Agora, quando penso nisso, sinto-me doente.
Melanie suspirou. O que ele dizia não estava muito longe da verdade; contudo, havia algo mais.
— E, de certa forma, acho que esperava poder continuar a manter a minha vida como antigamente, sem abdicar da minha independência, tomando todas as minhas decisões sozinha sem te consultar, educar as minhas filhas da forma que eu desejava, e, por arrastamento, também os teus — reconheceu Melanie. — A realidade é que eu estava a contar que tu e os teus filhos desistissem dos vossos hábitos anteriores, sem qualquer relutância, só porque eu te dizia para procederes dessa maneira. Tenho de admitir que não estava certa.
— Também não estavas de todo errada — contrapôs Peter, arrependido.
— É possível que ambos estivéssemos meio certos e meio errados — redargüiu Melanie com um sorriso, comovida com as palavras do marido.
Por seu lado, ele ainda não tinha vontade de sorrir. Ela continuava ausente de casa e Peter ainda não sabia onde é que a mulher se encontrava.
— Em que situação é que isso nos coloca neste momento? — acrescentou ele.
— Ambos temos mais um pouco de sensatez do que antes.
— E tu, Mel? — inquiriu Peter, sem saber ao certo o que ela quisera dizer. — Tencionas regressar a Nova Iorque? — continuou ele com a respiração entrecortada.
— Estás louco? Por acaso estarás a pôr-me na rua? — perguntou Melanie.
— Não sei se estás recordada de uma coisa — disse ele com uma gargalhada — mas, da última vez que pensei no assunto, cheguei à conclusão de que foste tu quem fugiu. De fato, nem sequer sei do teu paradeiro.
Melanie sorriu ao ouvir aquela observação. Tinha-se esquecido de lhe dizer no início da conversa.
— Estou em São Francisco.
— Como é que foste para aí? — perguntou ele surpreendido.
— De automóvel — esclareceu Melanie.
— É um percurso demasiado longo, Mel — disse Peter a pensar no estado de gravidez da mulher, apesar de não lhe querer dar conhecimento disso.
— Durante o percurso parei em Santa Barbara e em Carmel — adiantou ela.
— Estás a sentir-te bem? — inquiriu ele com alguma ansiedade.
— Estou ótima — assegurou Melanie com um sorriso, enquanto se estendia na cama do seu quarto no Stanford Court. — Tenho muitas saudades tuas.
— Ora bem, aí está uma coisa agradável de se ouvir — retorquiu Peter, atrevendo-se finalmente a fazer-lhe a pergunta que lhe queimava os lábios. — Quando é que vens para casa?
— O que é que te leva a fazer essa pergunta? — quis Melanie saber.
O seu tom de voz era de desconfiança.
Perante a atitude da mulher, Peter soltou um gemido.
— Porque quero que tu faças a limpeza da casa e que apares o relvado, minha grande idiota! Por que é que te parece que seja? Porque também sinto saudades tuas — disse Peter e nesse momento ocorreu-lhe algo. — E se ficasses por aí mais uns dias e eu fosse ter contigo? — sugeriu ele.
O rosto de Melanie refletiu uma enorme felicidade.
— Essa é uma idéia maravilhosa, meu amor.
Era a primeira vez que, ao longo da conversa, a mulher utilizava aquele termo afetuoso; a expressão de Peter ficou radiante de alegria.
— Adoro-te Mel. Tenho-me comportado como um verdadeiro idiota.
— Não, não tens. Agimos ambos mal. Aconteceu muita coisa em pouco tempo e o nosso trabalho exige muito de nós — admitiu Melanie.
Peter concordou.
— O que é que pretendes fazer em relação à casa? Continuas a querer mudar-te? Por mim estou de acordo se for isso o que desejas fazer.
Peter havia pensado muito naquele assunto durante os últimos dias e não tinha grande vontade de abandonar aquela casa, de que tanto gostava; porém, se essa decisão tinha tanto significado para ela, estava disposto a ceder. Era inegável que as gêmeas não tinham espaço suficiente, a não ser que trocassem com Pamela, mas se assim fosse, ela teria um ataque de fúria, tal como o pai sabia de antemão.
— O que é que te parece? — acrescentou ele.
— Acho que deveríamos ficar aqui mais algum tempo, até todos se adaptarem um pouco mais, antes de procedermos a mais mudanças, o que também se aplica a Mistress Hahn.
Peter ficou aliviado ao ouvir o que Melanie dizia, pensando que ela tinha razão. Naquele momento, todos tinham necessidade de tempo para se adaptarem. Conseqüentemente, tudo estava resolvido, exceto os problemas que ela continuava a ter no trabalho e o que fazer em relação ao bebê.
— De verdade que queres vir ter comigo a São Francisco? — perguntou Melanie.
— Sim, quero. Tenho a sensação de que não estamos a sós há anos — respondeu Peter. — Até levamos os filhos na nossa viagem de núpcias ao México.
— De quem é que foi a idéia? — retorquiu Melanie com uma gargalhada.
— De acordo... Mea culpa. Mas, seja como for, neste momento, a perspectiva de um fim-de-semana romântico parece-me ser fabulosa.
— Vou fazer o meu melhor nesse sentido. Faz figa — retorquiu Melanie na brincadeira.
No dia seguinte, Peter telefonou-lhe. Tinha conseguido que dois dos cirurgiões da sua equipe o substituíssem, revezando-se durante o fim-de-semana. Fora-lhe necessário negociar um pouco, mas ele mostrara-se tão desejoso que os colegas cooperassem que ambos tinham acabado por aceder ao seu pedido.
— Dentro de dois dias estarei aí — anunciou Peter.
— Ótimo! — redargüiu Melanie a pensar que precisava desse tempo para poder refletir sobre se desejaria fazer o aborto ou não. A realidade é que ainda não conseguira chegar a uma decisão. — A propósito, como é que estão os miúdos?
— Estão bem. E começaram a aperceber-se do teu valor.
E ele também. Mal conseguia esperar por sexta-feira à noite para poder ver Melanie de novo. Era como na época em que ela vivera em Nova Iorque depois de se terem conhecido, só que pior, porque agora tinha conhecimento do que estava a perder. — Também tenho imensas saudades tuas, Mel. Mais do que possas imaginar — afirmou ele.
Tivera uma semana terrível no hospital. Naquele mesmo dia, Iris Lee acabara por falecer, mas ele já estava à espera e não abordou o assunto com Melanie. Naquela altura, ambos tinham os seus próprios problemas, sem que houvesse necessidade de lhes acrescer o que quer que fosse. Agora, sentia-se mais preocupado com ela do que com os seus doentes.
— Tens andado a sentir-te bem?
— Estou ótima — respondeu Melanie.
Peter não lhe perguntou se já tinha chegado a alguma conclusão quanto ao destino da criança por nascer.
No dia seguinte, Melanie foi dar um longo passeio no bosque de Muir, para refletir. Acabava sempre por pensar no que dissera a Valerie. Não me parece que, numa situação dessas, eu tivesse a tua coragem. Aquelas palavras não haviam representado uma acusação, apesar daquilo que a filha pudesse ter pensado na ocasião. Na sua idade, Melanie estava convicta de que havia algo de errado no aborto, dado que era uma mulher casada com um homem que amava, e tinham ambos bastante dinheiro. Não havia qualquer justificação para uma medida daquela natureza nem forma de ela poder explicá-la a si mesma de maneira coerente. O mais provável era ser-lhe impossível viver com uma decisão daquelas. Mas desejarás tu esta criança?, perguntava ela a si própria, concluindo que era aí que a sua linha de raciocínio encalhava. Não tinha a certeza. Mas era um luxo muito agradável ter o poder de dispor de uma vida só porque não estava com disposição de levar a gravidez a bom termo, uma vez que interferiria com o seu trabalho e irritava os outros filhos. Ali estavam eles de novo; os todo-poderosos que existiam na sua vida: o marido, as crianças. O que lhes devia. E quanto ao que ela devia a si própria? Subitamente, Melanie ouviu a sua voz no meio do bosque: Eu quero ter esta criança. Sentiu-se tão surpreendida que começou a olhar em volta, como se procurasse a pessoa que tinha proferido aquelas palavras, apesar de saber que fora ela mesma. Sentiu que um peso de mil quilos acabara de lhe sair do coração e esboçou um sorriso. Olhou para o relógio. Estava na hora do almoço. De ali em diante teria de olhar pelo bebê, uma vez que decidira tê-lo. Eu quero ter esta criança. As palavras haviam sido firmes e seguras, tal como ela se sentia enquanto se dirigia para o automóvel, caminhando pelo bosque.
Enquanto aguardava junto à porta de desembarque que Peter chegasse, Melanie sentia a palma das mãos umedecida, e o mesmo nervosismo que sentira havia um ano. Tinha a sensação de que iniciavam tudo de novo, com a diferença de que, daquela vez, seria melhor. Peter foi o terceiro passageiro a abandonar o avião e ela correu para os seus braços. Aquela semana parecera-lhe interminável.
— Oh, Mel! — disse ele com lágrimas nos olhos, ficando sem palavras enquanto a abraçava. Naquele momento, nem se interessava pelo que ela decidisse fazer quanto ao bebê. O que mais desejava era Melanie e mais ninguém... Mas não mais do que ela própria o desejava a ele.
— Deus do céu! Tive tantas saudades tuas — confessou ela, afastando-se e esboçando um sorriso com os olhos marejados de lágrimas.
Peter reparou que a mulher tinha melhor aspecto do que tivera havia vários meses; estava com um ar descansado e descontraído. As rugas de preocupação na testa que nos últimos tempos foram uma constante, tinham desaparecido.
— Estás com um aspecto maravilhoso, Mel.
— Também tu — retorquiu ela, olhando para o fecho de correr das suas calças que mal conseguira fechar, e que naquele momento estava prestes a abrir-se. — Engordei um pouco aqui e ali — continuou Melanie, fazendo com que o marido não soubesse o que dizer. Ela sorriu-lhe. — Decidi que... — Interrompeu-se ao sentir certa estranheza naquelas palavras. Quem seria ela para ter o poder de decisão numa vida? Tempos atrás, utilizara aquelas mesmas palavras ao falar com Peter. Era a Deus que competia tomar aquelas decisões e não a ele. Melanie sentia que o mesmo se aplicava a si. — O bebê não vai ter qualquer problema — disse ela por fim.
— A sério? — perguntou Peter querendo certificar-se de que compreendia bem o que ela dizia.
— Sim — afirmou Melanie com uma expressão radiante.
— Tens certeza absoluta? — insistiu ele.
— Tenho.
— Por minha causa?
Peter não pretendia que ela tivesse chegado àquela decisão apenas por ele. Era necessário que Melanie também o desejasse, o que seria pedir muito, tendo em conta que já havia cinco crianças em casa, para não mencionar a carreira profissional dela, que era de uma exigência extrema.
— Por mim própria, por ti, por nós. Por todos nós. — disse Melanie, corando. O marido deu-lhe a mão. Mas, principalmente, por minha causa — continuou ela.
Em seguida, contou-lhe o que acontecera quando fora passear para o bosque.
Peter sentiu as lágrimas a chegarem-lhe aos olhos, e tornou a abraçá-la carinhosamente.
— Oh, Mel.
— Amo-te tanto. — Era tudo o que Melanie conseguia dizer naquele momento de tanta emoção.
De braço dado, ambos se dirigiram para a saída do aeroporto.
Passaram um fim-de-semana magnífico.
No domingo à tarde encetaram a viagem de regresso a casa, seguindo de automóvel pela A-5 a fim de encurtarem caminho. Por volta das dez da noite já haviam chegado a casa e, quando Melanie olhou para o edifício, teve a sensação de que estivera ausente durante vários anos. Deixou-se ficar do lado de fora alguns instantes com um sorriso nos lábios, mas Peter agarrou-lhe na mão e conduziu-a para dentro de casa.
— Vamos lá, miúda, tens de ir para a cama. Foi uma viagem muito longa para ti no estado em que estás — disse o marido que começara a tratá-la como se a mulher fosse de cristal.
— Parece-me que conseguirei sobreviver — retorquiu Melanie, sorrindo-lhe.
Assim que ela entrou em casa, houve uma explosão de som. As crianças tinham ouvido o automóvel a aproximar-se e Pamela olhara pela janela, soltando um guincho estridente.
— Já chegaram! — gritou ela e foi a primeira a descer as escadas, abraçando-se a Melanie. — Bem-vinda!
Não foi bem-vinda a casa, mas andou lá perto. Em seguida, as gêmeas abraçaram a mãe, Mark também e, com todo aquele barulho, Matthew acabou por acordar e disse que queria dormir na cama de Melanie. Quando finalmente toda a gente foi para os respectivos quartos, depois de quase uma hora de conversa, de barulho e de tagarelice, Melanie deitou-se na cama que ambos partilhavam, sorrindo a Peter com uma expressão de felicidade.
— São bons miúdos, não são?
— Porque têm uma boa mãe — retorquiu ele e sentou-se na beira da cama, agarrando na mão da mulher. — Prometo, Mel, que daqui para frente farei tudo o que estiver ao meu alcance para te facilitar a vida. — Apesar daquela promessa, os seus esforços só poderiam ir até certo ponto e, naquela mesma noite, Peter recebeu um telefonema às duas da madrugada. Encontrava-se de novo de serviço no hospital, e um dos seus doentes, que fora submetido a um by pass, precisava imediatamente da sua assistência.
Melanie só voltou a ver o marido ao meio-dia, quando ele regressou a casa para mudar de roupa. Ela voltara a assumir o controle da casa, tendo dito a Mrs. Hahn o que é que pretendia que a governanta servisse ao jantar.
Peter reparou que a governanta não se sentia muito satisfeita, apesar de não lhe ter feito queixas. Mudou de roupa e regressou apressadamente ao hospital, ao mesmo tempo em que Melanie saía de casa. Ela sorriu-lhe e acenou-lhe quando ambos se afastaram em automóveis separados.
Naquele mesmo dia, Pamela iria sozinha ao psiquiatra, à semelhança do que fizera na semana em que Melanie estivera ausente. Mark tinha dito que estaria em casa depois do jantar, mas não muito tarde, uma vez que no dia seguinte tinha exames. Por seu lado, as gêmeas tinham ido jogar tênis com as amigas e planeavam voltar a casa por volta das dezessete horas. Mrs. Hahn fora incumbida de ir buscar Matthew à escola, tal como fizera no ano anterior e, pela primeira vez numa semana, Melanie foi trabalhar. Quando chegou à estação de televisão, nem mesmo a grosseria maldosa de Paul Stevens conseguiu abater a sua boa disposição. Tudo na sua vida lhe parecia tão bom que chegava a ser quase inacreditável.
No entanto, às dezoito e quarenta e cinco, depois de ter apresentado o noticiário das seis da tarde, o produtor foi à sua procura, tendo-a encontrado no gabinete que lhe fora destinado, a tomar alguns apontamentos antes de ir para casa. O homem entrou e fechou a porta. Melanie ergueu o olhar.
— Olá, Tom! Passa-se alguma coisa? — perguntou ela.
O produtor hesitou, e Melanie sentiu-se percorrida por um arrepio. Iria ser despedida? Poderiam eles fazer isso? Dar-se-ia o caso de Stevens ter acabado por vencer?
— Melanie, preciso falar contigo — anunciou o homem.
Oh, que merda!, pensou ela.
— Com certeza. Senta-te — retorquiu Melanie, indicando-lhe uma cadeira. Ainda não se sentia muito à vontade naquele gabinete, mas era o único de que dispunha de momento.
— Não sei como é que te hei de dizer isto, Mel. — começou ele.
Melanie sentiu que o seu coração parava de bater. Deus do céu, estava prestes a ser despedida. Fora a maior estrela do jornalismo televisivo na cadeia de televisão onde trabalhara, em Nova Iorque, ganhara quatro prêmios pelas reportagens documentais que havia realizado e o maldito Paul Stevens acabara por fazer com que fosse despedida.
— Sim? — inquiriu ela, a pensar que o melhor seria facilitar as coisas ao homem.
Desejava apenas ser capaz de se conter para não começar a chorar e, naquele momento, o que mais lhe apetecia era ir para casa, para junto de Peter. Que fossem para o inferno com aquele maldito emprego e com a porcaria do noticiário. Melanie encontrava-se disposta a ficar em casa, a ter o seu bebê e a tratar das outras crianças.
— Não te quero assustar. — continuou o produtor; as palavras do homem não faziam qualquer sentido para ela. — Mas a realidade é que temos recebido várias ameaças. A expressão de Melanie era vaga. — Começaram a chegar durante a semana em que estiveste ausente e recomeçaram hoje.
— Mas que espécie de ameaças? — perguntou ela sem compreender a que é que ele se referia.
Seria que aquele filho de uma cadela, Paul Stevens, ameaçara despedir-se? Pois que o fizesse. Os índices de audiência subiriam vertiginosamente. Mas para já, ela não tinha intenções de dizer isso a Tom.
— As ameaças são contra a tua vida, Mel — disse ele por fim.
— Contra mim? — perguntou Melanie, olhando fixamente para ele.
Aquilo já lhe acontecera uma vez em Nova Iorque, havia alguns anos. Fora um tarado qualquer a quem não agradara uma determinada reportagem que ela fizera e que durante meses a fio tinha telefonado para a estação de televisão, ameaçando estrangulá-la. No entanto, esse tarado aborrecera-se ou acabara por desistir. Melanie olhou para o produtor com uma expressão divertida, acrescentando:
— Pelo menos há alguém por aí que se mantém vigilante.
— Estou a falar a sério, Mel. Já tivemos esta espécie de problemas em ocasiões anteriores. Estamos na Califórnia e não em Nova Iorque. Por estas paragens, já aconteceram vários atentados à vida de presidentes da República.
— Sinto-me muito lisonjeada, Tom — retorquiu Melanie sem conseguir evitar um sorriso — mas não se pode dizer que eu faça parte dessa liga de personalidades.
— Para nós, tu és uma pessoa importante.
— Obrigada, Tom — agradeceu ela, sentindo-se comovida.
— Em conformidade com esta situação, resolvemos contratar um guarda-costas que te proteja.
— Vocês o que?! Oh, mas isso é ridículo... Não pensas realmente que...
— Tu tens filhos, Mel — continuou Tom. — Estás disposta a correr esse risco? — perguntou ele, o que fez com que ela se imobilizasse.
— Não, não estou, mas...
— Não quisemos assustar o teu marido enquanto estiveste fora, mas pensamos que o caso é sério.
— Por que motivo? — redargüiu ela, continuando a mostrar-se divertida com tudo aquilo.
Tratava-se de uma situação que acontecia com freqüência a quem exercia aquele tipo de atividade profissional.
— Porque na semana passada recebemos um telefonema e o homem que o fez disse que havia uma bomba na tua mesa de trabalho. E a realidade é que estava lá, Mel. Teria explodido exatamente uma hora depois de a termos encontrado, fazendo que fôssemos todos desta para melhor se estivesses no estúdio nessa altura.
Ao ouvir aquelas palavras, Melanie sentiu-se indisposta.
— A Polícia acha que sabe quem é o responsável — continuou o homem. — Mas, entretanto, enquanto não chegarem a uma conclusão definitiva, queremos que estejas em segurança. Ficamos muito satisfeitos por teres estado ausente na semana passada.
— Também eu — disse Melanie, sentindo uma contração inconsciente no olho esquerdo, enquanto falava.
Ergueu o olhar e deu com um homem de elevada estatura, de aspecto resoluto e firme, que entrara no gabinete. Tom apresentou-o sem mais demoras. Era o seu guarda-costas e, adicionalmente, haviam sido contratados mais dois. Os responsáveis pela cadeia de televisão pretendiam que todas as suas idas e vindas fossem escoltadas. Eram da opinião de que ela também tivesse o mesmo tipo de proteção em casa; no entanto, deixavam isso ao seu critério. A identidade do homem com quem Melanie estava casada não era segredo para ninguém, pelo que qualquer pessoa os poderia encontrar desde que o desejasse.
O nome do guarda-costas era Timothy Frank e quando este saiu do edifício, mantendo-se ao lado dela, Melanie sentiu-se como se estivesse rodeada por uma parede. Ele era o homem mais alto, com os ombros mais desenvolvidos e a expressão mais dura que ela alguma vez tinha visto. Quando a deixou em casa, Melanie agradeceu-lhe. Fora-lhe pedido que naquela noite deixasse o seu automóvel no parque de estacionamento da estação, para que pudesse ir para casa numa limusine, acompanhada de Tim. Quando chegou, viu que o marido já tinha chegado.
— Olá! — saudou ela.
Peter ergueu o olhar de uns papéis que estivera a ler e sorriu-lhe. Era tão agradável ter a presença dela de novo em casa. Mas, para sua surpresa, verificou que as rugas na testa tinham aparecido outra vez, e que ela estava extremamente tensa.
— Problemas no trabalho? — perguntou ele.
— Pode dizer-se que sim — respondeu ela, atordoada.
Tim já se tinha ido embora na limusine.
— O que é que se passa? — inquiriu o marido.
Melanie contou-lhe tudo acerca da bomba, e Peter ficou a olhar fixamente para ela.
— Meu Deus, Mel! Não podes continuar a viver assim e nós também não.
— O que é que estás à espera que eu faça? — perguntou ela.
Peter detestava ser forçado a dizer aquelas palavras, mas a realidade era que ela se encontrava grávida, e tudo aquilo era tensão demais para o seu estado. Ainda que fosse possível descobrir o responsável numa semana ou duas, o simples fato de se saber que a mesma situação poderia voltar a repetir-se seria uma pressão demasiada sobre ela, assim como para ele próprio. Não queria que a mulher fosse obrigada a ter de passar por aquilo. E se por acaso não apanhassem o tipo? Peter estremeceu perante aquele pensamento, levantando-se da cadeira para fechar a porta do escritório. Ficou de pé a olhar para Melanie.
— Na minha opinião, deverias despedir-te.
— Não posso! — redargüiu ela com uma expressão implacável e irredutível. — Isto já me aconteceu uma vez em Nova Iorque e nessa altura não deixei o meu emprego. Recuso-me a tomar esta atitude por uma razão como esta.
— De que motivo é que precisas para fazê-lo? — perguntou-lhe o marido aos gritos. Dava a impressão de que os problemas se recusavam a deixá-los em paz e sossego: ou eram os doentes que morriam, os filhos com comportamentos insuportáveis, as ameaças de bomba ou as gravidezes indesejadas. Enquanto olhava para Melanie, Peter pensava que tudo aquilo junto era quase mais do que ele se sentia capaz de suportar.
— E se alguém decidir fazer explodir uma bomba nesta casa e um dos miúdos vier a morrer?
Ao ouvir aquelas palavras, Melanie estremeceu, empalidecendo.
— Teremos a proteção de guarda-costas vinte e quatro horas por dia.
— Para cinco crianças? — perguntou Peter, mostrando-se incrédulo.
— Que diabo, não sei!— respondeu Melanie e levantou-se de repente. — Se quiseres, eu fico num hotel. Mas recuso-me terminantemente a ser pressionada a despedir-me por causa de um maldito tarado qualquer. Tanto quanto eu sei, é muito possível que seja o Paul Stevens a tentar assustar-me.
— É isso o que a Polícia pensa?
Melanie tinha de ser franca para com o marido.
— Não, não são dessa opinião. No entanto, acham que conhecem a identidade do homem.
— Nesse caso, mete uma licença até conseguirem apanhá-lo.
— Não posso fazer isso, Peter, seria ir contra todas as minhas convicções. Tenho de desempenhar as minhas funções profissionais.
O marido dirigiu-se para ela e agarrou-lhe num braço.
— Sendo assim, o mais certo será vires a morrer.
— Já antes corri esse risco — retorquiu Melanie com uns olhos que faiscavam.
O marido não conseguiria fazer com que ela se despedisse do seu emprego, não depois de ter passado tantos anos a trabalhar. Fazia parte do seu ser e ele prometera respeitar isso, para o melhor ou para o pior.
— Nunca correste um risco desses, estando grávida de um filho meu. Pensa bem nisso — replicou Peter.
— Não consigo pensar noutra coisa — admitiu ela.
— Exceto em ti própria — continuou ele.
— Vai-te foder! — gritou Melanie, saindo da sala e batendo com a porta, após o que foi para cima.
Naquela noite Peter não voltou a dirigir-lhe a palavra. Não havia dúvidas de que as coisas estavam de novo a começar de boa feição. Os jovens sentiam a tensão que reinava no ambiente da casa.
Nessa mesma noite, Melanie telefonou ao seu produtor para aceitar a oferta que ele lhe fizera de protegê-la, assim como à família, com a presença dos guarda-costas. Seria necessário quase um exército para que todos estivessem em segurança, mas a cadeia de televisão estava disposta a arcar com aquela despesa. Quando foram deitar-se, Melanie pôs Peter ao corrente daquela decisão.
— Vão começar amanhã de manhã às seis.
— Mas isso é absolutamente ridículo! — exclamou ele.
— O que é que é suposto eu fazer? A ronda aos meus doentes sob a proteção de um guarda-costas?
— Não me parece que tu sejas o problema. Talvez ele pudesse acompanhar-te somente quando andas fora do hospital. O verdadeiro problema sou eu.
— Já me apercebi disso — redargüiu Peter, sentindo-se indisposto só de pensar naquilo.
Na manhã seguinte e durante o pequeno-almoço, Melanie explicou a situação aos jovens. Enquanto ela falava, os olhos deles arregalaram-se cada vez mais, mas ela assegurou-lhes que as suas vidas não corriam perigo e que, dentro de alguns dias, a Polícia haveria de apanhar o responsável. Tratava-se apenas de uma inconveniência com que teriam de viver durante algum tempo.
Matthew achava que tudo aquilo era fantástico. Por seu lado, Mark sentia-se embaraçado por ter de ir para a faculdade escoltado por um guarda-costas, enquanto as raparigas se mostraram aterrorizadas. Quando cada um deles seguiu para a respectiva escola acompanhado pelo guarda-costas que lhe havia sido designado, Mrs. Hahn dirigiu-se ao quarto de Melanie, decidida a falar-lhe.
— Mistress Hallam? — chamou ela na sua maneira característica de pronunciar aquele apelido.
— Sim, Mistress Hahn — disse Melanie, voltando-se para a governanta.
De vez em quando, Peter tratava-a por Hilda, tratamento esse que Melanie jamais conseguira adotar. Nunca havia a forma de Mistress Mel, tal como Raquel costumava usar em Nova Iorque quando se lhe dirigia.
— Queria dizer-lhe que, dadas as circunstâncias, venho despedir-me.
— A sério? — perguntou Melanie, a olhar fixamente para a governanta.
Sem dúvida alguma que Peter iria ficar chocado quando soubesse aquilo e, possivelmente, sentir-se-ia irritado com a mulher por estar a provocar uma situação de caos naquela casa, apesar de não poder ser-lhe atribuída a mínima culpa.
— Não me parece que corra algum perigo aqui e, tal como expliquei esta manhã às crianças, a casa estará permanentemente sob proteção — disse Melanie.
— Nunca trabalhei num sítio onde tivesse de haver guarda-costas — retorquiu a governanta.
— Tenho a certeza de que isso nunca aconteceu, Mistress Hahn. No entanto, se quiser ser paciente durante algum tempo. — começou Melanie a dizer, sentindo que, pelo menos, devia fazer uma tentativa para que a mulher não se despedisse.
— Não! — exclamou ela com determinação, abanando a cabeça. — Não fico. Tenciono ir-me embora sem mais delongas.
— Sem nos dar qualquer pré- aviso? — perguntou Melanie.
Mrs. Hahn abanou de novo a cabeça, olhando para ela com uma expressão acusadora.
— Quando a mulher do senhor doutor era viva nunca aconteceu uma coisa destas.
Claro que a governanta se estava a referir a Anne, a qual fora a verdadeira Mrs. Hallam, ao contrário de Melanie.
Naquele momento esta não resistiu a forçar um pouco a mulher, mal conseguindo disfarçar um sorriso. Não poderia dizer que iria sentir muito a falta da governanta. Detestara-a desde que a vira pela primeira vez.
— Nessa altura, as coisas por aqui devem ter sido bastante aborrecidas — observou Melanie com uma expressão desinteressada, perante o semblante de horror indisfarçável que Hilda Hahn mostrara. Nem sequer se ofereceu para apertar a mão de Melanie antes de partir.
— Adeus. Deixei uma carta para o senhor doutor no meu quarto — declarou a mulher.
— Pode ficar certa de que ele a receberá — disse Melanie. — Não quer ficar o tempo suficiente para poder despedir-se dos meninos?
Aquela atitude parecia-lhe ser pouco amistosa da parte da governanta; no entanto, tinha a certeza de que os miúdos iriam sobreviver sem problemas de maior.
— Não tenciono permanecer nesta casa por mais uma hora que seja — declarou Mrs. Hahn.
— Ótimo — retorquiu Melanie com uma expressão imperturbável, ficando a olhar para a mulher enquanto esta se afastava e, quando ouviu o bater da porta da frente, esteve quase a gritar aleluia!
Todavia, naquela noite, Peter mostrou-se pouco entusiasmado com a notícia.
— Quem é que vai tratar da casa? Tu não tens tempo, Mel.
Ela procurou os olhos do marido, tentando detectar qualquer indício de acusação; no entanto, o que viu foi uma expressão preocupada.
— Haveremos de conseguir arranjar alguém — disse ela confiante. Já tinha telefonado a Raquel, mas esta continuava determinada a não deixar Nova Iorque, recomendando a Melanie que tivesse cuidado com as filhas. — Entretanto, eu e as crianças havemos de nos arranjar — acrescentou Mel.
— Isso é ótimo. Anda alguém a espalhar bombas com o teu nome e tu tens de te preocupar com a roupa e fazer camas.
— Nada te impede de dares também o teu contributo — retrucou ela com um sorriso nos lábios.
— Eu tenho outras coisas para fazer. — Além de suportar um guarda-costas, pensava ele. Aquela situação enervava-o e o bombista ainda não fora apanhado pela Polícia.
Entretanto, já se tinham verificado mais quatro ameaças e fora encontrada uma bomba defeituosa na secretária de Melanie. Finalmente, até o próprio Paul Stevens lamentava o que estava a acontecer-lhe. O homem tinha conhecimento de que ela se encontrava grávida e, nos últimos tempos, Melanie andava sempre com olheiras carregadas, uma vez que passava a maior parte das noites em claro, perguntando a si mesma se o criminoso alguma vez seria apanhado.
A verdade era que com o tempo isso acabaria por se verificar, acontecia sempre, mas quanto tempo é que ainda seria preciso?
— Lamento muito que isto esteja a acontecer contigo, Mel — disse finalmente Paul um dia, estabelecendo uma trégua ao estender-lhe a mão.
— Também eu — retorquiu ela com um sorriso de cansaço, depois de terem saído do ar. Durante todo o dia, o guarda-costas mantinha-se por perto. Melanie apercebia-se constantemente da presença do homem e, de manhã, quando as crianças saíam para a escola, a casa dava a impressão de se encontrar cheia de agentes de segurança.
Aquela situação enlouquecia Peter e era uma fonte constante de discussões. Chegara ao ponto de quase se ter habituado à companhia do seu guarda-costas, mas os restantes pareciam-lhe ser em demasia.
— Imagino que estas medidas de segurança façam parte da minha profissão — comentou Melanie um dia, falando com Paul Stevens.
— Não sei se sabes que houve ocasiões em que senti inveja de ti — retorquiu ele com uma expressão de tristeza.
— Eu sei — redargüiu Melanie, sorrindo ao colega.
— Mas pelo menos, não te vês obrigado a enfrentar uma situação destas.
— Não sou capaz de entender como é que consegues agüentar toda esta tensão — continuou ele.
— A minha preocupação principal são as crianças e o Peter. Quanto a mim própria. Se lhes vier a acontecer alguma coisa, jamais serei capaz de me perdoar — disse Melanie.
Naquela altura, já havia um mês que a situação se arrastava sem que se verificassem quaisquer alterações, o que a levava a considerar seriamente a perspectiva de se despedir. Ainda não conversara com o marido a esse respeito, uma vez que não queria irritá-lo, nem fazê-lo pensar que já tomara uma decisão. Todavia Melanie prometera a si mesma que, se o bombista não fosse identificado pelas autoridades durante a próxima quinzena, não hesitaria em largar o seu emprego.
Paul Stevens mostrou-se horrorizado ao ouvir o que ela dizia.
— Se eu puder fazer alguma coisa. — ofereceu ele.
Melanie abanou a cabeça e deu-lhe boa-noite, após o que foi para casa, desejando estar junto da família, que agora andava sempre tensa.
Na rua em que moravam havia vários automóveis da Polícia sem qualquer identificação e ninguém conseguia esquecer-se do perigo que os rondava constantemente, dia após dia.
— Achas que conseguirão apanhá-lo, mamãe? — perguntou-lhe Matt naquela noite.
— Espero bem que sim, Matthew — respondeu ela, pegando-o ao colo enquanto dirigia uma prece aos céus para que não acontecesse nada de mal ao garoto; ou a qualquer deles, pensava Melanie ao olhar para Pamela e para as gêmeas. Mark tinha saído.
Naquela mesma noite, Peter voltou a abordar o assunto.
— Por que motivo é que não te despedes, Mel? — insistiu ele.
Ela não queria dizer-lhe que estava a pensar fazer isso mesmo.
— Porque nunca desisto. Aí tens a razão — retorquiu Melanie, apesar de ultimamente não ter pensado noutra coisa. — E se fôssemos para fora? — sugeriu ela.
— Para onde? — perguntou o marido.
Já estavam no mês de junho, pensou ela com um suspiro a olhar, esperançosa, para Peter.
— O que é que te parece se fôssemos todos para Martha's Vineyard durante uns tempos? — perguntou ela, apesar de naquele ano não ter alugado a casa de verão, como era seu hábito. No entanto, talvez ainda o conseguisse fazer por umas semanas ou, então, alugar uma outra.
— Isso fica demasiado longe para ti — retorquiu Peter, abanando a cabeça. Naquela altura, Melanie já estava grávida de quatro meses e a barriga já começara a notar-se. — E, se fosses para lá, eu só te via de vez em quando. Por que razão não escolhes um sítio mais perto? — alvitrou Peter.
— Isto iria contra a finalidade da viagem — disse ela, sentindo-se extremamente fatigada por causa de toda aquela situação.
Começou a pensar no elevadíssimo preço que a cadeia de televisão dispendia na contratação dos guarda-costas, apesar de ninguém mostrar má vontade para com ela. Uma coisa era certa: a culpa não era deles se a segurança tinha começado a bulir com os seus nervos.
Naquela manhã, enquanto Melanie enchia um copo de leite para Matthew, um dos guarda-costas havia-lhe pedido que se afastasse da janela. Aquilo não permitia que uma pessoa se abstraísse do perigo.
— E se fôssemos de novo para Aspen? — perguntou Melanie a olhar, esperançada, para Peter.
— Não me parece que a altitude te faça bem — respondeu ele.
— Nem tão-pouco a tensão que se vive nesta casa.
— Ainda não sei. Prometo-te que hoje pensarei nesse assunto — asseverou o marido.
Melanie também pensou. De súbito, o que mais lhe apetecia fazer era fugir de novo. Havia um mês que vivia constantemente com aquele pesadelo e já não conseguia suportá-lo por mais tempo. Naquela tarde, foi trabalhar. Quando chegou ao seu gabinete, sentou-se à secretária, tendo o guarda-costas permanecido do lado de fora da porta. De repente, ergueu o olhar e viu que o produtor a olhava com um sorriso de orelha a orelha.
— Mel, temos boas notícias para ti — anunciou ele.
— Decidiram mandar-me para a Europa durante um ano? — perguntou ela com um sorriso e, pela primeira vez, julgou ter sentido o bebê a mexer-se.
Não havia sido feita qualquer referência à sua gravidez, por receio de que o tarado que a perseguia lhe pudesse fazer alguma coisa pior, se viesse a descobrir. Conseqüentemente, aquele segredo permanecia invisível e desconhecido, oculto sob a sua mesa de trabalho.
— As notícias que tenho ainda são melhores do que isso— afirmou ele com um sorriso ainda mais rasgado.
Naquela altura, Melanie deu conta da presença de Paul Stevens que estava no corredor, a olhar para ela com um sorriso.
— Vais dar o meu trabalho ao Paul — alvitrou ela.
O visado riu-se e acenou que sim, fazendo com que ela soltasse uma gargalhada. Naquela altura, já eram quase amigos, como resultado de todas as agonias por que ela tinha vindo a passar ao longo do último mês.
— Conseguiram apanhar o tarado que tem andado a ameaçar-te — continuou o produtor.
— De verdade? — perguntou Melanie de olhos arregalados e cheios de lágrimas, sem poder acreditar no que ouvia.
— Nesse caso, quer dizer que tudo isto chegou ao fim? — Tom acenou que sim com a cabeça e ela começou a tremer de emoção. — Oh, meu Deus! — exclamou, deixando cair a cabeça sobre a mesa, sem conseguir evitar um pranto convulsivo.
— Pois bem, meu amor — disse Peter a olhar para Melanie e exibindo uma expressão de felicidade, enquanto ambos se encontravam sentados à beira da piscina; os jovens tinham todos saído, deixando-os em paz e sossego. — O que é que haveremos de fazer esta semana, como divertimento? Ninguém nos poderá acusar de levarmos uma vida aborrecida.
— Deus nos livre! — exclamou Melanie, recostando-se com os olhos cerrados.
Sabia o que queria fazer. Desejava ir para Martha's Vineyard e estender-se na areia quente, mas, naquela altura, os miúdos já haviam traçado outros planos, Peter não podia afastar-se devido ao seu trabalho no hospital e ela concordara em não passar férias naquele ano, para poder gozar de licença de parto. Previa-se que o bebê nasceria por volta do Dia de Ação de Graças, pelo que Melanie decidira que deixaria de trabalhar no primeiro dia de outubro.
— Tive uma idéia, Mel — acrescentou Peter.
— Se envolver algo mais do que um mergulho na piscina, não te incomodes a dizer-me de que é que se trata — retorquiu ela, mantendo os olhos cerrados enquanto ele lhe sorria e se aproximava lentamente do lugar onde estava sentada.
— O que é que achas se hoje fôssemos ver casas novas? — sugeriu Peter.
— É evidente que estás a brincar — disse ela, abrindo um olho.
— Não, estou a falar a sério — afirmou ele.
— De verdade? — perguntou Melanie com uma expressão de espanto.
— Bem, por muito que eu deteste admiti-lo, não há espaço para instalarmos o bebê, exceto se considerarmos a garagem como uma hipótese viável, e tenho a impressão de que, se agora começássemos a fazer obras, isso daria conosco em doidos. Cada uma das gêmeas tem necessidade de ter o seu próprio quarto — continuou Peter.
Melanie sabia quanto custava ao marido reconhecer os seus próprios erros e estendeu os braços para ele. Peter compreendia bem até que ponto ela desejava sair da casa de Anne.
— Não preferes continuar a viver aqui? — perguntou Melanie. — De verdade que eu não me importo. Durante uns dois anos, haveremos de nos arranjar e o Mark dentro em pouco sairá de casa. — O rapaz decidira freqüentar uma universidade na Costa Leste durante os últimos anos do curso, o que significava que passaria somente mais um ano em casa. Por seu lado, Jessica já decidira ir para a Universidade de Yale, no caso de conseguir ser admitida. — Os miúdos praticamente já são todos adultos.
— O que é muito agradável para eles. Quem me dera poder dizer o mesmo a meu respeito — disse Peter na brincadeira.
— Tu és o melhor homem que alguma vez conheci — afirmou ela, beijando-o ternamente nos lábios.
O marido acariciou-lhe a perna.
— Que bom. Achas que alguém consegue ver-nos aqui?
— Apenas um ou dois vizinhos, mas o que é que uma paixão entre amigos tem de mais?
Naquele momento ele levou-a para dentro de casa. Fizeram amor de uma maneira que renovou a união que existia entre os dois. Pouco depois, Peter levou-lhe o almoço num tabuleiro e Melanie deixou-se ficar na cama, com o ar de quem se sentia muito confortável, feliz e descontraída.
— Por que és tão bom para mim? — perguntou ela.
— Não sei bem. Se calhar é porque te amo muito — retorquiu ele.
— Também eu a ti — confessou Melanie com um sorriso. — Estavas a falar a sério a respeito da nova casa? — perguntou ela, sentindo-se deliciada com aquela perspectiva, apesar de não querer insistir muito no assunto. Sabia bem o que aquele lar significava para o marido, apercebendo-se de todos os esforços que ele fizera para que continuassem a viver ali mantendo-se fiel à memória de Anne. Mas aquela nunca deixaria de ser a casa de Anne, não dele.
— Sim, estava a falar a sério — respondeu Peter.
Melanie mostrou-se radiante ao ouvir aquilo e apressou-se a acabar de almoçar. Em seguida, ambos se levantaram da cama e foram para o automóvel. Viram algumas casas que lhes agradaram, mas, infelizmente, essas não se encontravam à venda.
— Não sei se sabes que é muito provável que passemos anos à procura da casa adequada ao nosso gosto — comentou Melanie.
— Temos muito tempo — replicou Peter.
Ela acenou com a cabeça, sentindo-se descontraída enquanto desfrutava daquela agradável tarde de domingo. No fim-de-semana seguinte seria o 4 de Julho . Passado pouco tempo, avistaram a casa que lhes pareceu ser perfeita.
— Meu Deus! — exclamou Melanie olhando para Peter, enquanto davam a volta ao edifício pela segunda vez. — É enorme! — observou.
— Eu sei que isto poderá ser um choque para ti, Mistress Hallam, mas acontece que temos seis filhos.
— Cinco e meio — corrigiu ela com um sorriso nos lábios.
Mas a realidade é que aquela casa tinha espaço para todos eles, podendo ainda Melanie e Peter terem cada um o seu escritório. O jardim era muito agradável e estava bem cuidado, a piscina era enorme, além de ter um pequeno anexo de que os jovens se poderiam servir quando convidassem amigos. Tinha absolutamente tudo o que ambos desejavam, para além de se situar em Bel-Air, local que merecia a preferência de Peter.
— O que é que me diz, Mistress Hallam?
— Não sei bem, senhor doutor. Qual é a sua opinião? Será que temos o dinheiro suficiente para poder comprá-la? — inquiriu ela.
— Provavelmente não. Mas depois de vendermos a minha casa, essa situação transformar-se-á — respondeu ele.
Era a primeira vez que Peter admitia que a casa era dele e não de ambos, o que fez com que Melanie esboçasse um sorriso. O marido adorava aquela casa.
— E se déssemos um sinal para a compra? — aventou ele.
Era um projeto em que ambos teriam de investir; caso contrário, não haveria possibilidades de a adquirirem, o que ia precisamente ao encontro dos desejos de Melanie. Ela queria algo que pertencesse a ambos de igual modo e, além disso, continuava a ter o dinheiro que recebera da venda da sua casa em Nova Iorque e que poderia investir. Na semana seguinte, puseram à venda a casa onde viviam, mas só foi vendida pouco antes do feriado do Dia do Trabalho . No entanto, a que desejavam adquirir continuava à venda.
— Vamos lá a ver — disse Peter a olhar para o calendário enquanto fechavam o negócio referente à casa nova. O nascimento do bebê está previsto para o dia vinte e oito de novembro. Hoje estamos a três de setembro e dentro de quatro semanas entras em licença de parto. O que te dá exatamente dois meses para poderes arranjar a casa até nos mudarmos e, com um pouco de sorte, no Dia de Ação de Graças já cá estaremos instalados — continuou Peter com a expressão mais calma do mundo.
— Estás a brincar comigo? — perguntou Melanie, soltando uma gargalhada. — Vão ser precisos vários meses para que ela fique como deve ser — disse ela, apesar de a casa se encontrar em perfeitas condições de habitabilidade.
No entanto, ambos desejavam pintá-la e mudar o papel de parede, além de fazer algumas transformações no jardim. Também era necessário escolher tecidos e encomendar cortinados novos, havendo ainda que substituir a alcatifa e...
— Continua a sonhar! — prosseguiu Melanie.
— Não queres que o teu bebê nasça na casa nova? — perguntou Peter, mostrando-se surpreendido.
Na realidade era o que ela desejava; o instinto maternal era demasiado forte; no entanto, continuava a ter de fazer três reportagens importantes antes de iniciar a sua licença de parto, que seria de quatro meses.
— A propósito, o bebê também é teu — comentou ela.
— É o nosso bebê — observou ele no exato momento em que o pager começou a tocar, fazendo com que o agente da empresa imobiliária ficasse a olhar para ambos.
— Vocês os dois nunca param? — perguntou o homem.
— Nem por isso — respondeu Melanie com um sorriso.
Depois de estarem casados havía quase oito meses, já se tinham acostumado àquela situação. Durante esse espaço de tempo, Peter havia feito dezoito transplantes do coração e inúmeros by-passes, enquanto Melanie levara a cabo vinte e uma entrevistas importantes, além de apresentar o noticiário seis noites por semana. Tal como fora previsto, o programa tinha apresentado uma subida nos índices de audiência: Peter foi para outra sala, a fim de telefonar para o hospital. Passado pouco tempo, aproximou-se, apressado, e deu um beijo de despedida a Melanie.
— Tenho de ir-me embora. Encontramos um coração — disse ele. Tratava-se de um doador por que esperavam ansiosamente e ele já quase perdera a esperança de o vir a encontrar. — Achas que podes concluir o negócio? — perguntou ele.
Melanie acenou que sim, após o que ele saiu de rompante porta fora; pouco depois ouviu-se o motor do automóvel que se afastava a grande velocidade, enquanto o agente da imobiliária acenava com a cabeça uma vez mais. Melanie limitou-se a esboçar um sorriso.
— ...e agradeço a Deus pela minha avó — disse ele com um olhar tímido e um sorriso rasgado, enquanto baixava o tom de voz — e pela minha nova bicicleta. Amém.
Todos os que estavam sentados à mesa naquele jantar do Dia de Ação de Graças desataram a rir-se. Naquela mesma semana, Matthew fizera sete anos e a avó tinha-lhe oferecido uma magnífica bicicleta vermelha, novinha em folha. De súbito, o garoto entrelaçou de novo as mãos com toda a força e cerrou os olhos.
— E também Te agradeço por nos teres dado a Melanie. — Matt olhou para Val e Jess com uma expressão de quem pedia desculpa, mas já era tarde demais para recomeçar tudo de novo.
Mal podiam esperar pelo início da refeição. Peter já havia trinchado o peru e Pamela tinha confeccionado o seu doce preferido. As gêmeas também tinham dado o seu contributo para a refeição, e toda a gente estava bem-disposta, incluindo Melanie, que se queixava por não ter estômago para mais nada. Naquela altura, já estava com uma barriga enorme.
Havia dois meses que Peter gracejava constantemente com a mulher, dizendo-lhe que, uma vez mais estava destinada a dar à luz gêmeos. No entanto, o médico que a assistia jurava que não. Daquela feita conseguia ouvir apenas o bater de um coração.
Melanie optara por não saber o sexo do bebê. Mas, fosse o que fosse, não havia dúvida de que era avantajado. Estava previsto que nascesse dentro de dois dias e Melanie sentia-se grata por poder passar aquele Dia de Ação de Graças com toda a família. Receara já estar no hospital na altura daquele feriado. Embora houvessem contratado uma nova governanta, esta pedira para folgar naquele dia, razão por que Melanie tivera de cozinhar o jantar.
— Alguém quer repetir? — perguntou Peter, olhando para cada um dos comensais com um sorriso prazenteiro.
O seu último doente a ser submetido a um transplante do coração encontrava-se em franca recuperação. Havia três semanas que a família se tinha mudado para a casa nova e em todas as divisões ainda conseguiam cheirar a tinta fresca, apesar de nenhum deles dar mostras de se incomodar por causa disso. Todos eles tinham um aspecto de felicidade e de alegria; cada um ocupava o seu próprio quarto e até mesmo o bebê prestes a nascer já tinha um quarto cheio de brinquedos que todos eles haviam comprado. O contributo de Matthew fora um ursinho de pelúcia e um par de pistolas antigas de vaqueiro, e Pam, sem dizer uma palavra a Melanie, tricotara um agasalho de lã para o bebê usar quando viesse do hospital para casa. Tinha andado num enorme desespero com receio que a obra não saísse como devia ser. Todos sabiam o que ela andava a fazer, com exceção de Melanie, que desatou a chorar de comoção ao desembrulhar a prenda quando chegou a casa depois do último dia de trabalho, ainda um pouco abalada por aquele ter sido o seu último noticiário de sexta-feira, durante algum tempo.
Haviam necessitado de quase um ano para se adaptarem a uma nova vida, o que sob certos aspectos nunca viria a acontecer. Melanie andaria constantemente numa correria para cobrir as notícias e Peter continuaria a ter de sair de casa às duas da madrugada para acudir a um coração deteriorado. No entanto, naquele momento existia algo de diferente entre todos eles: um laço que os unia mais fortemente do que antes. Ao longo de um ano, haviam conseguido sobreviver a muitas situações: às ameaças à vida de Melanie, ao romance desastroso entre Mark e Valerie, ao novo bebê, à ameaça que o novo casamento representara para todos eles e até mesmo ao fantasma de Anne.
Melanie levara o quadro a óleo para a nova casa; naquele momento encontrava-se pendurado numa das paredes do quarto de Pam, onde ficava muito bem. Os móveis que trouxera de Nova Iorque saíram por fim das caixas.
— Sentes-te feliz, minha querida? — perguntou Peter, sorrindo para a mulher, quando ambos se encontravam junto da lareira do quarto. Os jovens encontravam-se todos no andar de baixo, na enorme sala junto da piscina, onde se entretinham com jogos e se divertiam.
Melanie soergueu o olhar para Peter e agarrou-lhe na mão.
— Sim, mas comi em demasia — reconheceu ela.
— Mas nem sequer se nota — retorquiu ele, e ambos começaram a rir-se por causa daquele comentário, ao verem a enorme barriga que parecia oscilar de um lado para o outro, sempre que o bebê dava pontapés.
Nos últimos dias dava a impressão que fazia aquilo amiudadas vezes, pelo que Melanie se encontrava preparada para dar à luz. Especialmente, após aquela noite. Depois de celebrado o Dia de Ação de Graças, sentia-se livre para poder encetar o trabalho de parto. Disse isso a Peter quando foram para a cama naquela noite.
— Não digas isso que ele pode ouvir-te e decidir sair — disse Peter.
Ambos se riram e foram-se deitar.
Duas horas mais tarde, Melanie começou a sentir uma dor familiar nos rins. Levantou-se e sentou-se numa cadeira, mas tudo o que lhe apetecia fazer era andar pela casa. Desceu as escadas e foi ver o jardim que, na primavera seguinte, deveria exibir todo o seu esplendor, apesar de naquela altura já estar bastante bonito. Em seguida, foi sentar-se na sala de estar e teve a sensação de que aquele era realmente o lar de ambos, e não apenas dele ou dela. Tratava-se de algo que eles haviam começado de raiz em conjunto, à semelhança de toda uma nova vida.
Pouco depois, Melanie regressou ao quarto e tentou deitar-se de novo, mas o bebê no ventre dava pontapés com muita força e, de súbito, ela sentiu uma dor curta e aguda na parte inferior do abdômen, tendo ficado sem respiração por uma fração de segundos. Sentou-se na cama e ficou à espera do que iria acontecer em seguida; bruscamente, sentiu outra dor e, radiante, Melanie tocou na mão de Peter.
— O que foi? — resmungou ele sem se mexer; eram quase quatro da manhã.
— Peter — sussurrou Melanie ao marido depois de sentir a terceira contração: sabia que ainda passariam algumas horas até o nascimento, mas não desejava ficar sozinha. Queria partilhar toda a excitação daquele momento com Peter. Haviam esperado ansiosamente por aquele momento, ela mais do que ninguém.
— O que é? — perguntou Peter e ergueu a cabeça da almofada, olhando para ela com uma expressão mais séria. — Talvez não passe de um falso alarme — continuou ele.
Melanie baixou o olhar para a sua barriga enorme e desatou a rir-se; todavia, o riso foi de pouca duração porque sentiu outra dor, a qual vinha acompanhada de uma contração que fez com que arqueasse as costas. Sentiu a respiração entrecortada e agarrou na mão do marido, ao qual se apoiou enquanto tentava normalizar a respiração. Depois de a dor ter passado, Peter olhou para o relógio.
— Com que freqüência é que tens as contrações?
Ela riu-se de novo e ficou a olhar para ele com uma expressão plena de ternura.
— Não sei. Esqueci-me de olhar para o relógio — respondeu Melanie.
— Oh, meu Deus! — exclamou Peter, sentando-se na cama.
De corações sabia ele, mas no que tocava a bebês o assunto mudava completamente de figura; havia nove meses que ele andava nervoso por causa do estado da mulher, apesar de manter aquele receio em segredo.
— Nesse caso, já há quanto tempo é que estás em pé?
— Não sei bem. A maior parte da noite — redargüiu Melanie.
Naquele momento já eram cinco horas da madrugada.
— Quando tiveste as gêmeas, durante quantas horas estiveste em trabalho de parto? — continuou o marido.
— Que diabo, não sei! Isso já aconteceu há dezessete anos e meio. Estou em crer que durante algum tempo — respondeu Melanie.
— Não há dúvida de que és uma grande ajuda — comentou Peter, sentando-se e continuando a vigiar a mulher.
— Vou telefonar ao médico e o melhor é começares a vestir-te.
Naquele momento foi acometida por outra dor, a qual lhe pareceu durar mais do que as anteriores. Peter estava prestes a entrar em pânico, mas não queria que ela se apercebesse. Não pretendia assistir ao nascimento do seu próprio filho em casa. Queria que ela desse à luz no hospital, não fosse acontecer alguma anomalia.
— Despacha-te — apressou-a ele, ajudando-a a levantar-se da cama.
Pouco depois, Melanie aproximou-se de novo do marido com um semblante um pouco desnorteado.
— O que é que eu hei de vestir? — perguntou ela.
— Por amor de Deus, Mel! Qualquer coisa serve. Calças de ganga. Um vestido.
Melanie sorriu perante o nervosismo do marido e afastou-se de novo. Pouco depois, sentiu as águas a rebentarem quando estava na casa de banho e chamou por Peter, enquanto se mantinha enrolada em várias toalhas turcas. O obstetra deu instruções a Peter para que a levasse imediatamente para o hospital. Deixaram uma mensagem para os filhos em cima da mesa da cozinha, num sítio onde todos a pudessem ver quando se levantassem de manhã: “Fomos buscar o bebê ao hospital, beijinhos, mamãe”, escreveu ela com um sorriso ao mesmo tempo em que Peter a apressava, indicando a porta da rua.
— Fazes o favor de te despachares?
— Por que? — perguntou Melanie com um ar de extrema calma que Peter lhe invejou.
— Porque não quero que o nosso filho nasça no nosso carro novo — respondeu ele. Finalmente, decidira vender o Mercedes que fora de Anne e comprara um novo a Melanie.
— E por que não? — continuou ela.
— Por nada, espertinha, por nada — redargüiu ele.
Nunca se sentira tão próximo da mulher como durante aquele trajeto que lhe era tão familiar e que costumava percorrer com tanta freqüência, a altas horas da noite. Quando chegaram ao hospital, Peter, prestes a rebentar de orgulho, conduziu a mulher numa cadeira de rodas para a ala da maternidade.
— Não sei se sabes, mas eu sou capaz de andar pelo meu próprio pé — disse ela.
— Por que motivo é que haverias de caminhar, quando eu te posso empurrar nesta cadeira?
Mas o gracejo mal conseguia ocultar tudo o que ele sentia pela mulher. Peter teve um milhar de pensamentos em simultâneo e rezou para que tudo corresse bem. Parecia-lhe que aquele bebê era muitíssimo avantajado, e preocupava-o a possibilidade de vir a ser necessária uma cesariana. Pouco depois, quando já se encontrava do lado de fora da sala de preparação, perguntou de novo ao médico obstetra se essa operação seria precisa.
Este, que era um amigo de longa data, deu-lhe uma palmada amigável no braço.
— Não te preocupes que ela está ótima — tranqüilizou-o o médico.
Naquela altura já eram quase oito horas, o que significava que Melanie entrara em trabalho de parto havia cinco ou seis horas.
— Quanto tempo mais é que te parece que isto durará? — perguntou Peter em voz baixa para que Melanie não pudesse ouvi-lo.
— Mais algum tempo — respondeu o obstetra com um sorriso compreensivo.
— Tu pareces a minha mulher a falar — acrescentou Peter a olhar para o médico, após o que entraram na sala.
Melanie disse que queria fazer força, mas o médico desaconselhou-a, dizendo-lhe que ainda era demasiado cedo. Pouco depois, quando voltou a examiná-la, verificou que a situação tinha progredido ao longo da última meia hora. Deu instruções para que a conduzissem à sala de partos, onde Melanie começou a ficar com as faces vermelhas, enquanto fazia força, e Peter e as enfermeiras a encorajavam.
— Já consigo ver a cabeça do bebê, Mel — disse o médico com um ar de triunfo.
— A sério? — perguntou Melanie com uma expressão radiante, apesar de o suor lhe escorrer pelas faces abaixo. Devido ao esforço, os seus cabelos assemelhavam-se mais a labaredas em contraste com o branco dos lençóis.
Peter nunca amara tanto a mulher como naquela ocasião. Ela continuava a fazer força; de repente, ouviram um grito. Peter deu um passo para poder observar o bebê que acabara de vir ao mundo. Tinha os olhos alagados de lágrimas e sorria.
— Oh, Mel! É maravilhoso... — exclamou ele, deleitado.
— É um menino ou uma menina? — perguntou Melanie, mas naquele momento teve de fazer força outra vez.
— Ainda não sabemos — disse o médico e todos os presentes começaram a rir. Bruscamente, os ombros começaram a sair, em seguida o tronco e as ancas, por fim apareceram as pernas.
— É uma rapariga!
— Oh, Mel! — repetiu Peter, extasiado, e aproximou-se da cabeceira, beijando-lhe os lábios.
Ela começou a rir e a chorar ao mesmo tempo, enquanto lhe entregavam a recém-nascida. Peter sabia o quanto ela desejara ter um rapaz, mas, naquele momento, Melanie parecia ter-se esquecido dessa preferência, ao tomar a filha nos braços.
Inesperadamente, fez uma careta horrível e agarrou-se ao braço de Peter, enquanto uma das enfermeiras lhe retirava com suavidade o bebê dos braços.
— Oh. Meu Deus! Está a doer tanto! — queixou-se Melanie.
— Agora só falta sair a placenta — informou o médico com uma expressão despreocupada.
Em seguida, Peter viu que o amigo franzia o sobrolho, o que lhe provocou um ataque de pânico.
Algo estava a acontecer a Melanie. Sofria de dores insuportáveis, mais agudas do que anteriormente.
— Oh, Peter! Eu não posso.
— Pode sim — encorajou-a o médico com meiguice, enquanto Peter lhe segurava na mão, ao mesmo tempo em que perguntava a si próprio por que motivo não tinham anestesiado a mulher para assim poderem observar melhor o que é que se estava a passar de anormal.
De súbito, enquanto Melanie continuava a fazer uma força enorme, ouviu-se outro choramingar, e os olhos de Peter abriram-se mais. Melanie ficou a olhar para o rosto do marido, sabendo o que é que tinha sucedido.
— Outra vez, não! — disse ela.
Peter continuava sem compreender coisa alguma. Naquele momento, o médico obstetra começou a rir-se e ouviu-se de novo o choramingar. Foi então que Peter compreendeu tudo e soltou uma gargalhada. Melanie era de novo mãe de gêmeos, e ninguém soubera antes, tal como tinha acontecido com Jess e Val.
Ela olhou para Peter com uma expressão que era um misto de pesar e de divertimento.
— Uma vez mais, vieram a dobrar — acrescentou Melanie.
— Exatamente, minha senhora — retorquiu o médico e, daquela vez, entregou o bebê nos braços do pai, o qual ficou a olhar para o recém-nascido com um espanto enorme.
Em seguida, Peter estendeu o filho a Melanie.
— Minha senhora — disse ele, olhando-a com ternura — aqui tendes o vosso filho.
Danielle Stel
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