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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


Uma Paixão / Danielle Stel
Uma Paixão / Danielle Stel

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Uma Paixão

 

          

 

            O matraquear de uma máquina de escrever antiga fez‑se ouvir na sala silenciosa, enquanto uma nuvem de fumo azulado se erguia do canto onde Bill Thigpen trabalhava. Tinha os óculos presos no alto da cabeça, os olhos azuis franziam‑se para aquilo que ele estava a escrever com uma expressão atenta, intensa. A mesa achava‑se cheia de copos de papel com restos de café e os cinzeiros transbordavam. Bill escrevia mais depressa, cada vez mais depressa, olhando de relance, por cima do ombro, para o relógio que se encontrava na parede, atrás dele. Escrevia como se estivesse a ser perseguido por demônios que o espreitassem na sombra. O cabelo castanho, com alguns fios grisalhos, dava a impressão de que dormira e acordara várias noites sem nunca se ter penteado. O rosto do homem que escrevia tinha uma expressão bondosa, de feições fortes e, ao mesmo tempo, suaves. Não era um homem que se pudesse definir claramente por atraente, mas, contudo, pedia um segundo olhar. Dava a idéia de alguém que poderia ser uma companhia agradável. Mas não naquela altura, enquanto batia desesperadamente nas teclas da máquina, resmungando e olhando amiúde para o relógio, para logo a seguir voltar a escrever ainda com maior velocidade. Finalmente, fez‑se silêncio, ele garatujou qualquer coisa com um lápis, pôs‑se de pé, agarrou na mão‑cheia de folhas que escrevera desde as cinco horas da manhã, sete horas antes daquele momento. Eram quase 13 horas.

            Faltava pouco para o programa ir para o ar. Bill voou pela sala, abriu a porta rapidamente e passou pela mesa da sua secretária como um campeão olímpico, evitando colisões, contornando os grupos, ignorando os olhares de surpresa e as expressões amigáveis. Bateu a portas que só se abriam alguns centímetros para receber as folhas com as emendas acabadas de fazer. Tratava‑se de um procedimento familiar. Sucedia uma, duas vezes, ocasionalmente mesmo três ou quatro durante um mês, sempre que Bill ficava descontente com a maneira como escrevera. Como criador da série de maior êxito na TV, no horário diurno, sempre que ficava preocupado com o espetáculo, parava, escrevia um episódio ou dois, voltava tudo de pernas para o ar, e só então ficava satisfeito. O seu agente chamava‑lhe a mãe mais neurótica da TV, mas também sabia que Bill era o melhor. Bill Thigpen tinha um instinto infalível para o seu trabalho atingir o êxito e até então nunca se enganara.

            Uma Vida Digna de Ser Vivida era a série diurna de maior êxito na América e William Thigpen orgulhava‑se dela. Começara a escrevê‑la para sobreviver quando, anos antes, passava fome em Nova Iorque como jovem dramaturgo. A idéia do argumento surgira-lhe no intervalo entre duas peças. Nesses tempos em que aspirava a ver as suas peças interpretadas na Broadway, ele fora um purista: o teatro acima de tudo. Mas entretanto casara, vivera no Soho e passara fome. A mulher, Leslie, fora bailarina da Broadway e, nessa altura, também não tinha emprego, porque estava grávida do primeiro filho de ambos. No princípio, Bill sentira uma certa ironia ao pensar que pudesse ter êxito com uma telenovela, mas afinal esse trabalho tornara‑se para ele uma obsessão. Tinha de triunfar, devia fazê‑lo por Leslie... pelo bebê. E a verdade é que começou a gostar do que fazia. E não só ele. A rede de televisão para a qual trabalhava ficou entusiasmada com o seu trabalho. Podia dizer que Adam, o seu filho, e o argumento da série tinham nascido ao mesmo tempo. Um era um bebê gordo e bonito, com os olhos azuis do pai e caracóis louros, e a outra, a série televisiva, tornara‑se um êxito imediato que atingira os picos da audiência e que provocou protestos quando deixou de ser apresentada no final do Verão. Uma Vida Digna de Ser Vivida voltou ao pequeno ecrã e Bill Thigpen ia a caminho de se tornar o criador da série televisiva de maior êxito do horário diurno da TV. As decisões importantes surgiram mais tarde.

            Bill começou por escrever alguns dos primeiros episódios, que eram bons, mas que punham os atores e o realizador doidos. Nessa altura, a sua carreira como autor de peças para a Broadway estava esquecida. A televisão tornou‑se, de um momento para o outro, o seu principal interesse na vida.

            Mais tarde, foi‑lhe oferecida uma boa quantia para vender a idéia do argumento. Poderia ter ficado em casa sem nada fazer, recebendo o dinheiro que lhe era oferecido, ou voltar a escrever peças para a Broadway. Mas, nessa altura, a série que ele começara a criar representava quase tanto para si como se se tratasse de uma filha, ou até como Adam, o filho, agora com seis meses, a quem ele chamava Life1. Era inimaginável para ele deixar a série televisiva que iniciara, e muito menos vendê‑la. Precisava de continuar com ela. Para Bill tratava‑se da realidade. Sentia‑se vivo ao escrever e preocupava‑se com o que dizia. Falava acerca das angústias da vida, das decepções, dos desgostos, dos triunfos, dos desafios, da excitação, do amor e da beleza. Na série transparecia todo o seu entusiasmo pela vida, a sua tristeza pelos desgostos, a sua alegria de viver. Dava às pessoas esperança depois do desespero, a luz do Sol depois dos temporais. A essência da história e os principais personagens eram boas. Havia personagens maus, claro, e as pessoas detestavam‑nos. A história irradiava uma inteireza de caráter básica que fazia com que os espectadores que a viam desenrolar‑se sentissem por ela uma verdadeira devoção. Isso era, com efeito, um reflexo da personalidade do autor. Bill era, de fato, um homem decente, bondoso, confiante, inteligente, ingênuo, criativo e cheio de entusiasmo pela vida. E gostava do espetáculo que oferecia aos telespectadores, quase como se este fosse uma criança que tivesse de criar, com um amor quase igual ao que nutria por Adam e por Leslie.

 

Nesses primeiros tempos, Bill sentia‑se constantemente dividido entre o desejo de estar junto da mulher e do filho e de acompanhar o "seu" espetáculo, certificando‑se de que tudo estava no lugar certo e de que não fora contratado nenhum diretor ou argumentista menos competente. Observava tudo com atenção e desconfiança e mantinha um total controlo sobre tudo. Eles não percebiam nada do "seu" espetáculo... do seu bebê. E andava de um lado para o outro, incessantemente, como uma mãe‑galinha nervosa, louco de receio de que algo pudesse correr mal. Continuava a escrever alguns episódios, ocasionalmente, mas dirigia e orientava totalmente a produção do espetáculo. Ao fim do primeiro ano ninguém tinha dúvidas de que Bill Thigpen não mais voltaria à Broadway. Estava preso, loucamente apaixonado pela televisão e pelo seu programa. Deixou mesmo de se mostrar evasivo quando os amigos lhe perguntavam se voltaria a escrever para a Broadway, declarando que gostava daquilo que fazia. Não poderia fazer mais nada, explicou uma noite a Leslie, depois de ter passado longas horas a desenvolver novos enredos, novas personagens, novas idéias, para o ano seguinte.

            Não podia abandonar as suas personagens, os seus atores, as complicações do enredo e as suas avalanches de tragédias, traumas e problemas. Gostava daquilo. O programa ia para o ar cinco vezes por semana, e, mesmo quando não tinha verdadeira razão para estar no estúdio, Bill comia, bebia, dormia, respirava e amava ali. Tinha argumentistas que se ocupavam com o progresso da história, dia a dia, mas Bill vigiava constantemente o trabalho deles. E sabia o que fazia. Todos concordavam com uma coisa: Bill era bom no que fazia. Mais do que bom, excelente. Possuía um sentido instintivo sobre o que resultava ou não, sabia do que as pessoas gostavam, das personagens que as apaixonariam e daquelas que gostariam de odiar.

            E na altura em que o seu segundo filho, Tommy, nasceu, dois anos mais tarde, Uma Vida Digna de Ser Vivida ganhara dois prêmios da crítica e um Emmy. Foi depois do primeiro Emmy que a rede de televisão sugeriu que o programa passasse para a Califórnia. Fazia mais sentido criativamente: os arranjos da produção seriam mais fáceis ali e até porque achavam que o espetáculo "pertencia" à Califórnia. Para Bill fora uma boa notícia, mas já não sucedera o mesmo com Leslie. Ia voltar a trabalhar, não apenas como uma jovem corista da Broadway. Depois de ter observado durante dois anos e meio a obsessão de Bill pelo espetáculo que criara, ficara farta. Enquanto ele escrevera noite e dia sobre o incesto, a gravidez na adolescência e "casos" extraconjugais, tentando triunfar na Broadway, ela freqüentara aulas de ballet e agora queria dar aulas dessa disciplina na Juilliard.

            ‑ Vais o quê? ‑ gritara Bill nessa manhã de domingo quando ambos tomavam o pequeno‑almoço. Tudo tinha corrido bem para eles, Bill ganhava muito dinheiro, os filhos eram maravilhosos e, tanto quanto ele sabia, tudo corria sem problemas. Até essa manhã.

            ‑ Não posso, Bill, não vou.

            Olhou‑o calmamente, com os seus grandes olhos castanhos, meigos como os de uma criança, exatamente como quando ele a conhecera aos vinte anos. Nascera no estado de Nova Iorque e fora sempre uma rapariga decente, bondosa e despretensiosa, uma alma gentil com olhos expressivos, tímida, mas com um sentido de humor genuíno. Nos primeiros tempos costumavam conversar e rir até tarde, no pequeno apartamento gelado que tinham alugado e onde haviam morado até ele comprar o luxuoso e caro apartamento em Soho. Bill mandara colocar numa das salas um varão ao longo da parede para que ela pudesse fazer os seus exercícios de ballet sem ter de ir ao estúdio. E agora, subitamente, ela dizia‑lhe que estava tudo terminado.

            ‑ Mas por quê? Que estás a dizer, Les? Não queres sair de Nova Iorque?

            Sentiu‑se frustrado e incrédulo ao ver os olhos de Leslie encherem‑se de lágrimas enquanto ela abanava a cabeça, voltando‑a para o lado oposto durante instantes. Depois fitou‑o de novo e o que ele viu nos olhos da mulher fez‑lhe doer o coração. Era zanga, desapontamento, derrota. Então viu pela primeira vez o que devia ter visto meses antes e pensou, aterrorizado, se ela ainda o amaria. Que era? Que sucedera? "Como ainda não percebera?", perguntou a si próprio. "Como podia ter sido tão estúpido?"

            ‑ Não sei... mudaste... ‑ Leslie abanou de novo a cabeça com o longo cabelo escuro esvoaçando à volta dela como as asas negras de um anjo caído. ‑Não... isso não é justo... Mudamos ambos... ‑ Respirou fundo e tentou explicar‑lhe. Devia‑lhe isso após cinco anos de casamento e dois filhos. ‑ Creio que trocamos de lugares. Dantes, eu ambicionava triunfar, tornar‑me uma estrela da Broadway, e tu desejavas apenas escrever peças com "integridade", "coragem" e "significado". E, de repente, começaste a escrever...

‑ Hesitou com um leve sorriso triste. ‑ Começaste a escrever coisas lucrativas e isso tornou‑se uma obsessão. Nos últimos três anos pensaste apenas no teu espetáculo... Sheila casará com Jake?... Henry será homossexual?... e Martha?... Larry terá realmente querido matar a mãe?... Martha irá de fato deixar o marido para ir viver com outra mulher?... De quem será Hillary filha realmente?... Mary irá fugir de casa?... E se o fizer voltará a drogar‑se?... Helen será ilegítima? Casará com John? ‑ Leslie levantou‑se e começou a andar de um lado para o outro enquanto dizia os nomes familiares. ‑ A verdade é que estão a pôr‑me doida. Não quero voltar a ouvir falar deles. Não quero continuar a viver com eles. Quero ter uma vida simples, saudável e normal, sem todas essas personagens inventadas. Quero dançar, dar aulas. ‑ Olhou‑o com ar infeliz e ele sentiu vontade de chorar. Fora um louco. Enquanto brincava com os seus amigos imaginários, ia perdendo as pessoas que realmente amava sem sequer dar por isso. E, todavia, não lhe podia prometer que desistiria do seu trabalho e que voltaria a escrever peças que ninguém queria pôr em cena. Como poderia fazer isso agora? Gostava do que fazia, do seu programa. Fazia‑o sentir‑se competente, feliz, realizado. Mas Leslie queria deixá‑lo e, ironia das ironias, agora que era rico e um homem bem sucedido, tinha saudades dos tempos em que passara fome.

            ‑ Lamento ‑ disse, tentando conservar‑se calmo e raciocinar com ela. ‑ Sei que só tenho pensado no meu trabalho nos últimos três anos, mas achei que precisava de controlar tudo. Se deixasse a série completamente fora das minhas mãos poderiam torná‑la vulgar, transformá‑la numa dessas telenovelas ridículas que nos causam arrepios. Não podia consentir que fizessem isso. E o meu espetáculo tem integridade. Quer o queiras admitir quer não, Les, é a essa integridade que as pessoas respondem. Mas isso não significa que eu precise de continuar a fazer o mesmo para sempre. Penso que na Califórnia as coisas poderão ser diferentes... de uma forma mais profissional... mais controlada. Devo poder ausentar‑me mais dos estúdios. ‑ Bill só escrevia agora episódios ocasionais, mas era ele quem controlava tudo.

            Leslie abanou a cabeça com uma expressão de incredulidade. Conhecia‑o bem. Sucedera o mesmo quando ele escrevera as suas primeiras peças. Trabalhava dois meses seguidos sem um dia de descanso, quase sem comer e dormir, quase sem pensar em mais nada. Mas eram só dois meses e, nessa altura, ainda achava encanto nisso. Agora não sucedia assim. Estava farta. Cansada da intensidade com que ele se dedicava ao trabalho, da obsessão, da sua mania da perfeição. Sabia que ele a amava e gostava dos filhos, mas não da maneira como ela queria. Queria um marido que fosse para o trabalho às nove horas e voltasse para casa as dezoito, pronto para falar com ela, para brincar com os filhos, que a ajudasse a fazer o jantar e a levasse ao cinema. Não queria uma pessoa como ele, que trabalhava durante toda a noite e que saía de casa a correr às dez da manhã, carregado com folhas cheias de idéias e de emendas que iriam ser introduzidas no ensaio a realizar às dez e meia. Era de mais, demasiado exaustivo e esgotante, e depois de três anos daquela vida Leslie estava farta. Não agüentava mais; tinha a impressão de que se voltasse a ouvir falar outra vez de Uma Vida Digna de Ser Vivida, ou dos nomes das personagens que ele estava constantemente a acrescentar ou a retirar, teria um ataque de nervos.

            ‑ Leslie, dá‑nos mais uma oportunidade, querida, por favor... dá‑me outra oportunidade. Vai ser bom em Los Angeles. Nem neve, nem frio de gelar. Vai ser ótimo para os rapazes. Poderemos levá‑los à praia... podemos até ter uma piscina no jardim... podemos ir à Disneylândia... ‑ Mas ela continuou a abanar a cabeça. Conhecia‑o bem.

            ‑ Não. Eu poderei levá‑los à Disneylândia e à praia. Tu estarás sempre a trabalhar, passarás noites inteiras a emendar ou a introduzir novos fatos para os ensaios. Quando levaste os garotos ao jardim zoológico a última vez? Ou a qualquer outro sítio?

            ‑ Pois bem... pois bem... tenho trabalhado de mais... sou um pai horroroso... um patife... um marido que não presta e tudo o que tu quiseres... mas lembra‑te, Les... durante anos passamos fome e agora podes ter tudo quanto queres e eles também. Poderemos mandá‑los para boas escolas e mais tarde para a universidade. Será uma coisa assim tão horrível? E verdade que têm sido tempos duros, mas podem melhorar e tu vais‑te embora antes de isso suceder? É ir muito depressa. ‑ Fitou‑a com as lágrimas nos olhos, estendendo uma mão para ela. ‑ Amo‑te, querida... por favor não me faças ... ‑ Mas Leslie não se aproximou dele. Fechou os olhos para não ver a dor nos dele. Sabia que ele a amava e sabia melhor que ninguém como adorava os filhos. Mas também não ignorava que, para seu próprio bem, tinha de proceder assim.

            ‑ Queres continuar aqui? Vou dizer-lhes que não quero ir para a Califórnia e terão de aceitar a minha decisão. Se é por causa disso, a Califórnia que vá para o diabo... ficaremos aqui. ‑ Mas havia agora na voz dele uma expressão de pânico, porque compreendera que a Califórnia nada tinha a ver com o caso.

            ‑ Isso não altera coisa alguma. ‑ Leslie falou em voz baixa e doce, cheia de pena. ‑ É demasiado tarde para nos. Não sei explicar, mas sinto que preciso de fazer algo diferente.

            ‑ Como, por exemplo? Mudares‑te para a Índia? Mudares de religião? Ires para freira? Não é algo diferente dares aulas na Juilliard? Que estás a querer dizer‑me? Que me queres deixar? Isso nada tem a ver com a Juilliard ou com a Califórnia?

            Bill sentia‑se magoado, confuso e finalmente zangado. Porque estaria ela a fazer‑lhe aquilo? Que fizera ele para o merecer? Trabalhara arduamente e triunfara. Os pais ficariam orgulhosos dele se fossem vivos, mas ambos haviam morrido, quando ele tinha pouco mais de vinte anos, ambos com cancro e no espaço de um ano. Não tinha irmãos. A família dele era apenas Leslie e os filhos e agora ela estava a dizer‑lhe que se iam embora e que ele ficaria novamente sozinho. E isso porque fizera uma coisa errada, trabalhara muito e vingara. A injustiça do que ela lhe estava a fazer encolerizou‑o subitamente.

            ‑ Não compreendes ‑ insistiu ela, debilmente.

            ‑ Não, não compreendo. Dizes que não vais para a Califórnia. Respondo‑te que se isso te desagrada ficaremos aqui e a rede de televisão que vá para o diabo. E então? Em que ficamos? Volta tudo ao mesmo, ou não? Que se passa, Les? ‑ Sentia‑se dividido entre a cólera e o desespero e não sabia o que dizer para a fazer mudar de idéias. Mas o que não compreendera ainda era que ela estava decidida e que nada poderia dissuadi-la.

            ‑ Não sei como te hei‑de dizer isto... ‑ Os olhos dela encheram‑se de lágrimas ao fitá‑lo, e durante instantes ele teve a louca sensação de ter entrado numa das suas próprias histórias e de não saber como sair dela. Leslie deixaria? Poderá Bill realmente mudar?... Leslie compreenderia como Bill a amava?... De repente apeteceu‑lhe rir ou chorar, mas não fez nenhuma dessas coisas. Leslie continuou: ‑ Está acabado. Creio que é a única maneira de dizer isto. A Califórnia nada tem a ver com o caso. Eu é que não tive ainda coragem de admitir a mim mesma. Não posso continuar assim. Quero viver a minha própria vida com os pequenos. Trabalhar naquilo que gosto sem viver à sombra dos teus programas... ‑ E queria viver sem ele. Mas não tinha coragem de lho dizer. A expressão de dor no olhar dele era tão pungente que ela se sentia prestes a desmaiar. ‑Lamento... ‑ murmurou.

            Bill parecia ter sido fulminado por um raio. Estava mortalmente pálido e os seus grandes olhos azuis exprimiam uma terrível angústia.

            ‑ Levas os nossos filhos? ‑ Que teria ele feito para merecer aquilo? Ambos sabiam que, por mais que ele tivesse passado o tempo a trabalhar nos últimos três anos, adorava os filhos.

            ‑ Não podes cuidar deles sozinho na Califórnia. ‑ Era um fato, mas ele olhou Leslie com terror.

            ‑ Pois não, mas tu podias ir comigo para me ajudar.

            Tratava‑se de um fraco gracejo e nenhum deles estava com disposição para rir.

            ‑ Bill, não...

            ‑ Vais deixá‑los irem ver‑me?

            Ela disse que sim com a cabeça e ele rezou mentalmente para que ela estivesse a falar verdade. Por momentos, pensou em abandonar o seu trabalho na televisão, ficar em Nova Iorque e pedir‑lhe para não o deixar. Mas sentiu que, fizesse o que fizesse, agora era demasiado tarde para ele. Leslie já o deixara, na alma, no coração e na mente. E o que ele censurava agora a si mesmo era não se ter apercebido disso mais cedo. Talvez que se o tivesse feito pudesse ter alterado as coisas. Mas conhecia a mulher demasiado bem para saber que agora nada a demoveria. Acabara tudo, sem um lamento ou um gemido. Perdera a guerra há muito e só agora se apercebia disso. A sua vida estava acabada. Os dois meses que se seguiram foram de tal maneira angustiosos que Bill ainda chorava ao pensar nisso. Tivera de contar aos filhos, de os ajudar a mudarem‑se para um apartamento em West Side antes de partir. Era um pesadelo recordar a primeira noite que passara sozinho em casa e sem eles. Pensara várias vezes em desistir do seu trabalho na televisão e em pedir a Leslie que o aceitasse de novo, mas sabia que a porta dela se encontrava agora fechada para sempre e que nunca mais se abriria para ele. Descobrira, antes de partir para a Califórnia, que havia outro professor na Juilliard de quem Leslie "gostava muito". Não havia uma relação amorosa entre eles e Bill conhecia suficientemente bem Leslie para saber que ela lhe fora fiel, mas estava a apaixonar‑se pelo outro e essa fora em parte a razão por que o deixara. Queria ser livre para prosseguir o seu relacionamento com o outro sem se sentir culpada. Ela e esse professor tinham tudo em comum, afirmara‑lho ela própria, enquanto Leslie e Bill já nada tinham, a não ser os filhos. Adam ficara muito triste ao separar‑se do pai, mas tinha apenas dois anos e meio e adaptara‑se rapidamente. Quanto a Tommy, apenas com oito meses, parecera nem se aperceber de nada. Só Bill sentira realmente um verdadeiro desgosto, e as lágrimas corriam‑lhe pelo rosto enquanto o avião sobrevoava Nova Iorque seguindo na direção da Califórnia.

            Uma vez ali, Bill lançou‑se de novo ao trabalho com renovado ardor, como para se vingar. Trabalhava dia e noite, chegando a dormir no sofá do escritório. O programa ganhou inúmeros Emmys. Durante os sete anos que vivera na Califórnia, Bill Thigpen tornara‑se apenas um pouco menos maníaco. Uma Vida Digna de Ser Vivida era o seu orgulho e a sua alegria, o seu melhor amigo, o seu filho e companheiro. Já não tinha qualquer razão para se afastar do trabalho. Deixou que ele se tornasse a sua paixão diária. Os filhos visitavam‑no nas férias e um mês no Verão e ele adorava‑os mais do que nunca. Mas viver a perto de cinco mil quilômetros de distância deles, quando desejava vê‑los todos os dias, era extremamente doloroso. Várias mulheres passaram pela vida de Bill durante esses anos, mas a sua ocupação constante, a sua paixão era o trabalho para a televisão, a saga que prosseguia com os atores que encarnavam as personagens. Esperava sempre ansiosamente as férias com Adam e Tommy. Leslie casara há muito com o professor e tivera mais dois filhos. Por fim, deixara de dar aulas. Com quatro filhos com menos de dez anos em casa, devia ter muito que fazer, mas ela parecia gostar disso. Ela e Bill falavam ao telefone de vez em quando, especialmente quando os filhos estavam com ele, quando algum deles se encontrava doente ou havia qualquer problema, mas já não tinham muito que dizer um ao outro, a não ser no que se referia a Adam e a Tommy. Era duro recordar como tinha sido quando eram casados. A dor de a ter perdido desaparecera e as recordações dos tempos felizes estavam quase apagadas. A não ser os filhos, tudo o que os unira desaparecera. E os dois rapazes eram realmente o grande amor da vida de Bill. No Verão, quando passavam um mês inteiro com ele, dava‑lhes toda a sua atenção e concentrava‑se apenas na alegria de os ter junto de si. Parte desse mês de férias passavam‑na em qualquer sítio fora da cidade e o tempo restante ficavam em Los Angeles, visitavam a Disneylândia, ou simplesmente permaneciam em casa. Bill comprazia‑se a cozinhar para os filhos e a tomar conta deles. Sentia sempre uma grande tristeza quando chegava a altura de os garotos o deixarem e voltarem para junto da mãe. Adam, agora quase com dez anos, era uma criança responsável, séria, engraçada, muito parecida com a mãe. Tommy continuava a ser um bebê, embora já tivesse sete anos, um pouco caprichoso, alegre e por vezes muito engraçado. Leslie dizia muitas vezes a Bill que Tommy era tal qual ele, mas Bill ainda não conseguira descobrir essa semelhança. No entanto, adorava os dois filhos e muitas vezes, nas suas longas noites solitárias, sentia uma dor no coração, desejando que viessem ainda a viver todos juntos. Era a única coisa que lamentava na sua vida, aquilo que o deprimia e que ele não podia alterar. A idéia de que tinha dois filhos que adorava e que só raramente podia ver parecia‑lhe um preço muito alto a pagar por um casamento falhado. Porque teria ela sido recompensada pelos anos perdidos e ele castigado? Onde estava a justiça disso? Em parte alguma. Mas uma coisa ficara ele a saber. Nunca mais deixaria que isso acontecesse. Não voltaria a apaixonar‑se loucamente, a casar e a ter filhos para depois os perder. Nem pensar. No decorrer daqueles anos encontrara a solução perfeita. Atrizes. Muitas atrizes. Quando tinha tempo, o que não acontecia frequentemente.

            Quando chegara à Califórnia, doente de desgosto por ter ficado sem a mulher e sem os filhos, caíra com gratidão nos braços de uma realizadora. Fora um caso que durara seis meses e que quase acabara em desastre. Ela fora viver com ele e começara a dirigir‑lhe por completo a vida, mobiliando o apartamento a seu gosto, convidando amigos para passar os fins‑de‑semana e governando de tal maneira que ele começou a sentir‑se estrangulado. Ela estivera na UCLA, formara‑se em Yale, falava constantemente num doutoramento, estava empenhada em "filmes sérios" e insistia em que Uma Vida era um trabalho que ficava aquém das possibilidades de Bill. Falava acerca do trabalho que o apaixonava como de uma doença de que ele em breve estaria curado, se a deixasse ajudá‑lo. Além disso, ela detestava crianças e tinha o hábito de esconder as fotografias dos filhos de Bill. Este precisou de seis meses para recuperar o fôlego e lhe dizer o que pensava dela, isto porque ela era boa na cama e o tratava como a uma criança de seis anos numa altura em que ele precisava desesperadamente de carinho. Além disso, afirmava conhecer tudo a respeito da indústria de televisão em Los Angeles. Mas quando ela lhe disse que devia deixar de falar nos filhos e que o melhor era esquecê-los, Bill alugou um bangalô no Beverly Hills Hotel durante um mês, deu‑lhe as chaves, disse‑lhe que passasse muito bem e que não se incomodasse a telefonar‑lhe quando arranjasse um apartamento. Levou as coisas dela para o bangalô nessa mesma tarde e não voltou a vê‑la durante quatro anos, altura em que a encontrou numa cerimônia de distribuição de prêmios, onde ela fingiu não o conhecer.

            O que viera depois disso fora intencionalmente fácil e despreocupado. Atrizes, aspirantes a estrelas, modelos, raparigas que queriam passar um bom bocado e que ocasionalmente o acompanhavam a uma festa quando ele tinha tempo livre, sem quererem mais nada dele. Para elas, Bill era apenas um homem mais nas suas vidas e parecia não se preocuparem quando ele não voltava a telefonar‑lhes. Algumas delas faziam‑lhe ocasionalmente um jantar, assim como ele o preparava para elas, pois gostava de cozinhar. As que tinham inclinação por crianças eram algumas vezes convidadas a acompanhá‑lo à Disneylândia quando tinha os filhos consigo, mas quase sempre ele preferia estar sozinho com os filhos quando eles o visitavam na Califórnia.

            Mais recentemente, Bill envolvera‑se com uma das atrizes do seu programa. Sylvia era uma bonita rapariga de Nova Iorque e tinha um papel importante na série televisiva. Era a primeira vez desde há muito tempo que ele se deixava envolver sentimentalmente com uma pessoa ligada ao seu trabalho. Mas Sylvia era uma rapariga com uma aparência sensacional e fora‑lhe muito difícil resistir‑lhe. Entrara na série como jovem atriz e modelo que aparecera na capa da Vogue. Estivera um ano em Paris a trabalhar para Lacroix e seis meses em Los Angeles, desempenhando pequenos papéis numa série de filmes sem êxito. Contudo, era uma atriz bastante boa e, além disso, uma rapariga meiga. Bill ficou surpreendido quando percebeu como gostava dela. Gostava, não amava. O amor era algo que reservava para Adam e para Tommy, que tinham então, respectivamente, nove anos e meio e sete. Sylvia tinha vinte e três e às vezes Bill achava que ela procedia como uma criança. Juntamente com a sua meiguice, ela possuía uma simplicidade e ingenuidade que o comoviam e divertiam. Apesar da sua experiência do mundo, pois há nove anos que trabalhava como atriz e modelo, parecia ter permanecido relativamente pouco 50fisticada, o que era ao mesmo tempo refrescante e maçador. Parecia desconhecer os inevitáveis enredos que se desenrolavam nos bastidores dos estúdios. Algumas das suas atuações eram soberbas, mas ela era uma presa fácil das maquinações das atrizes mais experientes com as quais contracenava. Bill avisava‑a constantemente que tivesse cuidado com elas e com os problemas que, sub‑repticiamente, procurariam causar‑lhe. Mas Sylvia mostrava uma despreocupação infantil por tudo isso e parecia contentar‑se quando ele não podia dar‑lhe qualquer atenção, como sucedera durante as duas semanas em que trabalhara dia e noite para juntar duas novas personagens a história e fazer desaparecer de surpresa uma outra. Bill tinha todo o cuidado em renovar a sua história para manter as audiências fascinadas com as infindáveis peripécias do enredo.

            Aos trinta e nove anos, Bill tornara‑se o rei daquele gênero de programas televisivos e a fileira de Emmys que se alinhavam sobre uma das prateleiras do seu escritório eram bem o testemunho disso. Todavia, Bill continuava a ser a mesma pessoa simples, e percorria o seu escritório a passos largos, vezes sem conta, preocupado com a forma como o público reagiria, isto sempre que introduzia uma mudança inesperada à última hora. Duas das atrizes adaptavam‑se normalmente bem a essas alterações, mas havia um ator que se atrapalhava quando era surpreendido com mudanças rápidas, que o enervavam. Há dois anos que ele tomava parte no espetáculo e Bill pensara mais de uma vez em substituí-lo, mas gostava da qualidade humana que ele dava à sua maneira de representar e na força da sua interpretação quando acreditava naquilo que estava a dizer.

            A série parecia significar muito para milhões de pessoas em todos os Estados Unidos, e o volume de correspondência que Bill, os atores e os produtores recebiam, era espantoso. A equipe que trabalhava no programa transformara‑se numa espécie de família, com o decorrer dos anos, e o que faziam tinha um grande significado para todos eles. Passara a ser um lar e um modo de vida para uma porção de pessoas talentosas.

            Nessa tarde, Sylvia ia representar o seu papel como Vaughn Williams, a linda irmã mais nova da heroína principal da série, Helen. "Vaughn" fora seduzida pelo cunhado e iniciada por ele nas drogas. Ninguém na família tinha conhecimento disso e muito menos a irmã. Presa numa teia da qual lhe parecia impossível libertar‑se, e na qual o cunhado a enterrava cada vez mais, Vaughn estava a ser empurrada para a sua própria destruição. Numa reviravolta inesperada dos acontecimentos, Vaughn viria a ser, no desempenho desse dia, testemunha de um crime perpetrado pelo cunhado, e a policia iria começar a procurá‑la como assassina do traficante que lhe fornecia a droga desde que John, o cunhado, lho apresentara. Fora uma série de acontecimentos difíceis de orquestrar e Bill vigiara de perto os argumentistas, pronto a intervir se houvesse necessidade disso. Mas era exatamente a espécie de enredo que mantinha a série continuamente no pequeno ecrã há dez anos e Bill mostrava‑se claramente satisfeito com o trabalho dessa manhã. Preparava o esboço dos próximos episódios sentado no seu gabinete. Acendeu um cigarro e bebeu um gole da chávena de café bem quente que a sua secretária acabara de lhe colocar na frente. Pensava no que Sylvia diria das alterações feitas no guião que ele lhe entregara havia pouco. Não a via desde a noite anterior, quando saíra de casa dela às três da manhã para se dirigir para ali e começar a trabalhar na idéia que remoera durante toda a noite. Ela ficara a dormir quando ele saíra e Bill fora primeiro a casa tomar uma ducha e mudar de roupa antes de chegar ao gabinete pelas quatro e meia. Ao meio‑dia e meia hora, a atmosfera no seu local de trabalho estava ainda carregada de eletricidade quando ele se levantou, apagou o cigarro, e correu para o estúdio para ver o realizador tratar cuidadosamente das alterações feitas à última hora. O realizador era um homem que Bill conhecia há muitos anos e que começara a fazer parte da sua equipe depois de ter realizado inúmeros filmes de êxito para a televisão. Fora uma escolha invulgar para aquele gênero de trabalho, mas era óbvio que Bill sabia por que a fizera. Allan McLoughlin mantinha toda a gente na linha. Naquela altura falava com ar grave com Sylvia e com o ator que representava o papel de John. Bill entrou no estúdio e deixou‑se ficar discretamente num canto afastado, de onde podia observar sem perturbar ninguém.

            ‑ Um café, Bill? ‑ perguntou uma anotadora. Tratava‑se de uma rapariga bonita que mostrava interesse por ele há um ano. Gostava dele. Bill era o que algumas pessoas poderiam descrever como um "urso". Alto, forte, afetuoso, esperto, com um aspecto simpático sem ser bem‑parecido. Tinha o riso fácil e uns modos meigos que, de certo modo, atenuavam a intensidade com que trabalhava. Mas Bill limitou‑se a sorrir e a abanar a cabeça. Quando se encontrava ali estava demasiado concentrado no que se passava diante das câmeras e na sua cabeça, planeando o futuro desenvolvimento da história, que não podia pensar em mais coisa alguma. Para ele, aquela rapariga não era mais do que uma bonita anotadora.

            ‑ Não, obrigado. Estou ótimo. ‑ Sorriu para a rapariga e voltou novamente a sua atenção para o realizador. Reparou que Sylvia estudava o seu papel e que os atores que representavam Helen e John falavam calmamente a um canto. Viu dois homens vestidos de policias e a "vítima", o traficante de drogas que John ia "matar" no espetáculo dessa tarde. Vestia já uma camisa encharcada em sangue que parecia perturbadoramente realista. Ria e gracejava com um assistente. Era a sua última aparição e não tinha qualquer papel para decorar. Já apareceria morto quando a câmera o mostrasse.

            ‑ Dois minutos! ‑ disse uma voz suficientemente alta para todos ouvirem, e Bill sentiu um ligeiro aperto no estômago. Sentia‑o sempre desde os seus primeiros tempos, como ator, quando ainda estava na universidade. Em Nova Iorque sentia‑se sempre agoniado durante uma hora antes de a cortina correr no início de uma das suas peças. E agora, dez anos depois de Uma Vida ter nascido, ele ainda sentia essa impressão quando estavam prontos para ir para o ar. E se resultasse mal?... Se o nível de audiências diminuísse?... Se os atores se enganassem?... Se ninguém quisesse ver o programa?... Se todos os atores se despedissem?... Se... As possibilidades de que algo corresse mal eram infindáveis.

            ‑ Um minuto! ‑ Sentiu o estômago mais apertado. Os olhos de Bill percorreram o estúdio. Sylvia, de olhos fechados, decorava o seu papel. Helen e John ocupavam já os seus lugares preparados para a colossal discussão que iria dar início ao episódio desse dia. O traficante de droga comia uma enorme sanduíche com a camisa cheia de sangue e ninguém fazia o menor ruído, isto enquanto o assistente do realizador, com uma mão erguida e os dedos esticados, indicava cinco segundos (antes de irem para o ar)... quatro... três... dois... um dedo... o estômago de Bill deu um salto e a mão baixou‑se. Helen e John discutem acaloradamente, com uma linguagem agressiva mas dentro dos limites impostos pelos censores. A situação é tensa e explosiva. As palavras são‑lhe familiares mas por vezes os atores alteram‑nas, Helen faz isso mais do que John, mas tal desvio resulta com ela e Bill não se importa que ela o faça, desde que não vá longe de mais e não atrapalhe os outros atores. Até agora resultara... a porta é atirada com estrondo após quatro minutos de drama intenso e chega o intervalo para a publicidade. Helen está muito pálida. O trabalho que os atores fazem é breve e intenso, o diálogo e as situações parecem tão reais que eles próprios acreditam neles. Bill olha‑a e sorri. Ela fizera um bom trabalho. Fazia‑o sempre. Era uma ótima atriz. Helen sai e a mão levanta‑se outra vez. Silêncio total. Não se ouve qualquer som. Nem uma moeda a tilintar num bolso, nem uma chave, nem um passo. John fora à casa de campo isolada do traficante de droga, que fizera um telefonema anônimo para Helen, contando-lhe do envolvimento do marido com a sua própria irmã. Ouvem‑se tiros e vê‑se apenas o corpo imóvel do homem, com a camisa cheia de sangue, obviamente morto. Um grande‑plano do rosto de John, com um olhar assassino, e Vaughn junto dele. Na cena seguinte, Vaughn surge num apartamento pequeno mas muito luxuoso, incrivelmente bonita. John fizera de uma boa rapariga uma má rapariga. Vê‑se que ela se está a despedir de um homem. Percebe‑se que é uma prostituta. Os olhos de Vaughn fitam a câmera. Um olhar perturbado, bonito e um pouco vidrado. Bill observa atentamente o desenrolar da história e começa a descontrair‑se quando surge um novo intervalo para publicidade. É como se se tratasse de uma peça nova todos os dias, um novo drama, um mundo completamente novo, e a magia de tudo isso nunca deixava de o intrigar às vezes admirava‑se de como aquilo resultava, de como a série tinha tanto êxito. Mas admitia que seria por ele estar tão empenhado naquilo que fazia. Por vezes pensava, embora raramente, no que teria sucedido se ele tivesse vendido a sua idéia e deixado o espetáculo uns anos antes... se tivesse ficado em Nova Iorque... a trabalhar noutra coisa qualquer... se continuasse casado com Leslie e ficado com os filhos... Teriam tido mais filhos? Estaria agora a escrever peças para a Broadway? Era estranho olhar para trás e tentar imaginar o que poderia ter sucedido.

            Bill saiu do estúdio, convicto de que tudo continuaria a correr bem. O realizador tinha tudo sob controlo. Bill encaminhou‑se lentamente para o seu escritório, cansado, aliviado e seguro da direção que iriam seguir os próximos episódios. Uma das coisas que lhe agradava naquele trabalho era o fato de ele nunca poder ficar preguiçoso ou complacente, pois não podia limitar‑se a utilizar uma fórmula ou seguir as mesmas linhas no enredo. Tinha de manter o seu espetáculo vivo, fresco, ou ele morreria. Gostava da excitação do desafio diário. Depois de ter enfrentado o desafio voltava para o seu escritório, estendia‑se no sofá e ficava a olhar pela janela.

            ‑ Como correu? ‑ perguntou Betsey. Ela era secretária dele há quase dois anos, o que, em televisão, era metade de uma vida. A noite trabalhava como figurante e olhava embevecidamente para Bill quando ele não estava a ver.

            ‑ Correu bem. ‑ Parecia aliviado e contente. O nó no estômago transformara‑se numa agradável sensação de satisfação.

            ‑ Tivemos alguma notícia da rede de televisão? ‑ perguntou. Enviara à administração novas idéias sobre algumas sugestões interessantes para o programa e estava à espera de uma resposta, embora tivesse quase a certeza de que diriam que fizesse o que quisesse.

            ‑ Ainda não. Mas creio que Leland Harris está fora da cidade, assim como Nathan Steinberg.

            Eram os deuses que governavam a vida dele, pensou Bill, oniscientes, onipresentes, onipotentes, vendo tudo, sabendo tudo. Ele e Natham iam pescar juntos de tempos a tempos e embora dissessem que Natham era um filho da mãe, Bill gostava dele e afirmava que ele se mostrara sempre muito correto para consigo.

            ‑ Vai sair mais cedo hoje? ‑ Betsey olhou‑o esperançosamente. De vez em quando, quando chegava ao escritório ao romper da aurora, Bill saia antes das cinco, mas isso era raro. Abanou a cabeça ao dirigir‑se para a sua secretária, junto da qual se encontrava a sua antiga máquina de escrever, uma Royal, uma das poucas recordações que haviam ficado do pai.

            ‑ Creio que vou ficar aqui. As modificações que introduzimos hoje resultaram, o que significa que vão ter de fazer uma porção de modificações nos próximos episódios. Barnes acaba de ser morto. Tem de desaparecer. E Vaughn vai parar à cadeia, isto para não falar do fato de Helen se aperceber da traição de John. E ainda temos de mostrar qual a reação dela quando souber o que a irmã mais nova anda a fazer para comprar droga, tudo graças ao seu querido marido. ‑ Sorriu de satisfação ao estender as pernas e inclinar-se para trás, apoiando a nuca nas mãos, numa pose de total descontração.

            ‑ Tem uma mente doentia ‑ disse Betsey, fazendo uma careta e saindo do escritório. Mas pouco depois entreabriu a porta e perguntou: ‑ Quer que lhe encomende alguma coisa para jantar?

            ‑ Valha‑me Deus! Agora compreendo que está a querer matar‑me. Arranje‑me apenas duas sanduíches e um termos com café e deixe‑os em cima da sua secretária. Irei buscá‑los se tiver fome.

            Contudo, a maior parte das vezes não dava sequer pelas horas antes da meia‑noite e, nessa altura, já não sentia fome. Era de admirar que não morresse de fome, costumava dizer Betsey, quando percebia que ele trabalhara toda a noite, deixando os cinzeiros cheios, catorze copos de café frio e algumas sanduíches por desembrulhar.

            ‑ Devia ir para casa dormir.

            ‑ Obrigado, mamã. ‑ Sorriu quando ela fechou a porta outra vez. Era uma pessoa fantástica e gostava muito dela.

            Estava ainda a sorrir para si próprio, a pensar em Betsey, quando a porta se abriu outra vez e ele olhou para lá. Como sempre sucedia quando a via, conteve rapidamente a respiração. Era Sylvia, ainda com a maquiagem e o vestido que usara em cena, e o seu aspecto era deslumbrante.

            Alta, delgada e de formas esculturais, com seios altos que pareciam pedir que lhes tocassem e pernas tão altas que davam a impressão de começar debaixo dos braços, Sylvia era uma rapariga que poderia fazer parar o tráfego em qualquer sítio. Quase tão alta como Bill, Sylvia possuía, além de uma cascata de cabelo escuro que lhe chegava à cintura, uma pele branca e macia e uns olhos verdes cintilantes. Sylvia era uma linda mulher, mesmo em Los Angeles, onde as atrizes e os belos modelos abundavam. Mas Sylvia Stewart era um caso excepcional, e Bill não se cansava de lhe dizer que ela contribuía em grande parte para o nível de audiência atingido pelo programa.

            ‑ Bom trabalho, querida. Foste fantástica hoje, como de resto és sempre. ‑ Ela sorriu e ele levantou‑se, deu a volta à secretária e deu‑lhe um beijo meio sério, enquanto ela se sentava numa cadeira e cruzava as pernas. Olhando‑a, Bill sentiu o coração começar a bater um pouco mais depressa.

‑ Céus, dás cabo de mim quando apareces aqui vestida dessa maneira!

            Sylvia usava o vestido preto, muito sexy, que vestira para a última cena desse dia, e ficava irresistível com ele. O departamento encarregado do guarda‑roupa pedira‑o emprestado a Fred Heyman, um famoso costureiro.

            ‑ O menos que podes fazer é vestires umas jeans e uma camisola ‑ disse Bill. Mas na verdade as jeans pouco alteravam as coisas. Ela usava‑as tão justas que pareciam uma outra pele e, ao vê‑la com elas, Bill só pensava em tirar‑lhas.

            ‑ O departamento disse que eu podia ficar com o vestido. ‑ Sylvia conseguia parecer simultaneamente inocente e apaixonada.

            ‑ Isso foi simpático ‑ respondeu Bill, indo sentar‑se novamente à secretária. ‑ Fica‑te bem. E se para a semana pudermos ir jantar fora e tu o vistas?

            ‑ Para a semana? ‑ Sylvia parecia uma criança a quem tivessem acabado de dizer que a sua boneca favorita estava a ser arranjada e que só estaria pronta na terça‑feira. - Porque não havemos de sair hoje? ‑ Mostrava‑se amuada e isso divertia‑o. Sylvia era especialmente boa em cenas dessas. Eram uma faceta da sua personalidade, que completava a sua aparência incrivelmente bonita e o seu corpo sexy.

            ‑ Deves ter reparado que hoje houve modificações no enredo e que tu própria vais parar à prisão. Os argumentistas vão ter de escrever inúmeras cenas e eu quero escrever algumas também, ou pelo menos ver como eles as estarão a fazer. ‑ Qualquer pessoa que o conhecesse sabia que ele iria trabalhar entre dezoito e vinte horas por dia nas semanas seguintes, dirigindo, corrigindo e voltando a escrever alguns episódios, mas que o material que dali acabaria por sair seria bom.

            ‑ Não podemos ir para fora este fim‑de‑semana? ‑ As pernas incrivelmente bem feitas cruzaram‑se e descruzaram‑se, provocando perturbação nas calças de Bill, mas ela parecia continuar a não o perceber.

            ‑ Não, não podemos. Se eu tiver sorte e tudo correr bem, talvez no domingo possamos jogar um pouco de tênis.

            O amuo tornou‑se mais profundo. Sylvia não se mostrava satisfeita.

            ‑ Queria ir a Las Vegas. Uma quantidade de atores da My House vão passar o fim‑de‑semana a Las Vegas. ‑ My House era a série que lhes fazia maior concorrência.

            ‑ Nada posso fazer, Sylvia. Preciso de trabalhar. ‑ Então, sabendo que seria preferível ela ir sozinha do que ficar com ele e queixar‑se, sugeriu que ela fosse a Las Vegas com os outros: ‑ Porque não vais com eles? Amanhã não entras em cena e podes divertir‑te. De qualquer maneira, vou passar todo o fim‑de‑semana preso aqui. ‑ Fez um gesto que abarcava as quatro paredes da sala, e embora fosse só quinta‑feira, sabia que iria ter pelo menos três ou quatro dias de trabalho intenso com a sua equipe de argumentistas. Sylvia pareceu ficar satisfeita com a sugestão que ele fizera para ir sem ele.

            ‑ Irás ter a Las Vegas quando acabares? ‑ Parecia outra vez uma criança e, por vezes, a simplicidade dela comovia‑

- Na verdade, sentia uma grande atração pelo corpo dela, e o relacionamento entre eles, nos últimos meses, fora fácil, ainda que não fosse uma coisa de que ele se orgulhasse. Sylvia era uma rapariga decente e ele gostava dela, embora não a amasse, e sabia que nem sempre era para ela aquele de quem ela precisava. Ela queria alguém que estivesse sempre disponível para andar com ela, para a acompanhar a festas e a jantares no Spago, às dez da noite, e ele estava quase sempre preso ao seu trabalho, arquitetando novas cenas, ou sentindo‑se demasiado cansado para ir fosse onde fosse. Além disso, as festas de Hollywood nunca tinham sido o seu forte.

            ‑ Não creio que me despache a tempo de ir. Vejo‑te no domingo à noite, quando voltares. ‑ Ia ficar com tempo para trabalhar à vontade, sem que ela o interrompesse, e isso era ótimo, embora sentisse remorsos por pensar assim. Mas sempre era mais fácil saber que ela estava satisfeita noutro sítio do que ter de receber um telefonema dela de duas em duas horas, a perguntar‑lhe se ainda não tinha acabado o trabalho.

            ‑ Está bem ‑ disse Sylvia, levantando‑se com ar satisfeito. ‑ Não te importas? ‑ Sentia‑se um pouco culpada por o abandonar assim, mas ele limitou‑se a sorrir e a acompanhá‑la à porta.

            ‑ Não, não me importo. Só te peço que não deixes os "rapazes" de My House tentarem impingir‑te outro contrato.

‑ Ela sorriu e dessa vez ele beijou‑a com força, na boca. Vou sentir a tua falta.

            ‑ Eu também. ‑ Mas havia uma certa melancolia nos olhos dela e, por instantes, Bill pensou se alguma coisa não estaria bem. Era algo que já vira noutros olhos... começando por Leslie. Era algo que as mulheres diziam às vezes, sem no entanto pronunciarem as palavras. Tinha qualquer coisa a ver com o estar só e sentir‑se só. E ele sabia‑o bem, mas não ia mudar coisa alguma. Nunca o fizera antes e aos trinta e nove anos achava que era demasiado tarde para qualquer mudança.

            Sylvia saiu e Bill voltou ao trabalho. Precisava de escrever uma montanha de notas acerca dos novos episódios, com várias modificações. Quando voltou a olhar para o relógio já escurecera lá fora e ficou espantado ao ver que já eram dez horas. Ao mesmo tempo, apercebeu‑se de que tinha uma sede desesperada. Levantou‑se da secretária, acendeu mais algumas luzes e bebeu uma soda. Sabia que Betsey devia ter deixado uma porção de sanduíches na secretária dela, mas não tinha muita fome. O trabalho, quando lhe corria bem, parecia alimentá‑lo e ele olhou com satisfação para o que fizera. Recostou‑se para trás na cadeira, bebendo a soda. Havia só mais uma cena que ele queria alterar e, durante duas horas, matraqueou na velha Royal, completamente esquecido de tudo, a não ser do que estava a escrever. Quando parou era meia‑noite. Praticamente há vinte horas que trabalhava e quase não se sentia cansado. Sentia‑se entusiasmado com as mudanças que fizera e com a maneira como o trabalho corria. Pegou nas folhas que escrevera, fechou‑as numa gaveta da secretária, serviu‑se de outra soda antes de sair e deixou os cigarros em cima da secretária. Raramente fumava quando não estava a trabalhar.

            Passou pela mesa de Betsey, reparou no embrulho com as sanduíches, e dirigiu‑se para o vestíbulo iluminado para onde davam meia dúzia de estúdios, quase todos eles fechados nessa altura. Num deles estavam ainda a trabalhar e Bill reparou num grupo de rapazes com roupas punk que iam fazer de figurantes. Bill sorriu‑lhes, mas não retribuíram o sorriso. Estavam demasiado nervosos. Passou depois pelo estúdio onde ia para o ar o noticiário das onze; mas estava também às escuras, com tudo pronto para o programa da manhã.

            O porteiro entregou a Bill a folha das saídas para ele lá pôr a sua assinatura e fez um comentário a respeito do mais recente jogo de basebol. Bill e o velho guarda tinham uma paixão comum pelos Dodgers. Depois saiu para o ar livre e aspirou profundamente o ar perfumado da noite primaveril. O nevoeiro não parecia tão mau àquela hora e ele sentiu‑se bem. Gostava do que fazia e, de certo modo, parecia‑lhe que valia a pena trabalhar até àquelas horas ridículas. Enquanto trabalhava, tudo fazia sentido para si, e quando acabava ficava sempre satisfeito com o que fizera. De vez em quando, sentia‑se angustiado quando uma cena não lhe corria bem ou quando uma personagem saía de controlo e se tornava alguém que ele não tencionara que existisse, mas quase sempre fazia aquilo de que gostava. Contudo, havia ocasiões em que tinha pena de tal não acontecer. E, não raro, invejava os argumentistas. Suspirou profundamente quando lig6u o motor do carro. Era uma station wagon Chevrolet, de 49, parcialmente de madeira. Comprara‑a em segunda mão, sete anos antes, por quinhentos dólares, mas gostava dela. A station castanha encontrava‑se em condições menos que perfeitas, mas tinha alma e muito espaço. Os filhos gostavam de passear nela, quando o vinham visitar.

            Ao dirigir‑se para casa pela Santa Monica Freeway, em direção a Fairfax Avenue, percebeu subitamente que estava com fome. Sentia‑se esfomeado. E não havia nada para comer no seu apartamento. Há dias que não comia em casa. Estivera muito atarefado com o trabalho, comera fora e passara o fim‑de‑semana anterior em casa de Sylvia, em Malibu. Ela alugara‑a a uma atriz idosa que vivia agora num lar, mas que ainda conservava a casa onde vivera.

            Bill parou em Safeway no caminho para casa; já passava da meia‑noite quando parou a station no estacionamento em frente da entrada principal. Deixou a station ao lado de um velho MC vermelho descapotável, entrou no supermercado brilhantemente iluminado, aberto toda a noite, e foi buscar um carrinho enquanto pensava no que queria comer. Num dos corredores havia frangos a assar e achou que cheiravam espantosamente bem. Tirou um deles, uma embalagem com seis cervejas, salada, salame, picles. Dirigiu‑se então para a secção dos legumes e tirou alface, tomates e outros vegetais para preparar uma salada. Quanto mais pensava na comida mais fome tinha. Estava ansioso por chegar a casa e comer. Não conseguia lembrar‑se se tinha almoçado, e se tinha, do que comera. Parecia-lhe que não comia há anos. Lembrou‑se então de que precisava também de toalhas de papel e de papel higiênico para as duas casas de banho. Sabia que precisava de creme para a barba e tinha a impressão de estar a acabar a pasta dentífrica. Parecia nunca ter tempo de fazer compras para si mesmo e percorreu o supermercado sentindo‑se tão desperto como se estivesse a meio da tarde. Comprou também azeite, produtos de limpeza, café em grão, salsichas, mistura para panquecas, xarope de bordo ‑ para a próxima vez que tomasse o pequeno‑almoço em casa, ou para o fim‑de‑semana. Depois meteu no carrinho uns bolos folhados, um pacote de uns novos cereais, um ananás e uma papaia. Sentia‑se como um garoto a quem tivessem permitido comprar o que quisesse. Extraordinariamente, não tinha pressa, não ia trabalhar e não estava ninguém à espera de si. Podia explorar as prateleiras à sua vontade. Precisou de decidir se havia de levar pão francês e Brie para o jantar e quando ia a voltar uma esquina, à procura do pão, esbarrou com uma rapariga que parecia ter surgido do chão com os braços cheios de rolos de toalhas de papel. Bill quase lhe passou por cima com o carro das compras e ela ficou sentada no chão, deixando cair tudo o que levava. Bill, perplexo, tentou ajudá‑la Havia algo de muito atraente nela, de um modo limpo, saudável, e ele não pôde deixar de ficar a olhá‑la, enquanto ela se levantava rapidamente, sorrindo e corando ao de leve.

            ‑ Não há problema. ‑ O sorriso dela era claro, aberto; os olhos grandes e azuis pareciam os de uma pessoa que tinha muito para dizer. Bill ficou parado a olhá‑la, como um garoto, enquanto ela se afastava com o carrinho das compras dela, sorrindo‑lhe de novo por cima do ombro. Parecia quase a cena de um filme, ou qualquer coisa que ele tivesse escrito para a televisão. O rapaz encontra a rapariga. Apeteceu‑lhe correr atrás dela e gritar: "...espere... pare!" Mas ela já desaparecera com o seu cabelo preto e brilhante que lhe caía sobre os ombros, solto, o seu largo sorriso luminoso e os enormes olhos azuis. Havia algo de direto no olhar que a rapariga lhe lançara, embora o sorriso fosse interrogativo, como se ela lhe quisesse fazer uma pergunta e se risse de si própria. Bill não pensou em mais nada enquanto acabava de fazer as suas compras. Maionese, anchovas... creme de barbear?... Ovos? Precisaria de ovos? Natas? Já não conseguia concentrar‑se. Era ridículo. Achara a rapariga bonita, mas afinal nada tinha de sensacional. Tinha o aspecto fresco de uma colegial. Vestia jeans, uma camisola de gola alta e sapatilhas. O coração de Bill bateu mais depressa quando viu que ela se encontrava junto da caixa para pagar as suas compras. Parou de empurrar o seu carro e ficou a olhá‑la. "Ela não era assim tão fantástica", pensou. Bonita, sim... bastante bonita. Mas para o seu gosto, o seu gosto atual, em todo o caso, tinha uma aparência muito normal. Dava a impressão de ser alguém com quem se pudesse conversar à noite, alguém que soubesse dizer um gracejo, preparar uma sobremesa rápida ou contar uma boa história. Para que precisaria ele de raparigas como aquela quando tinha mulheres como Sylvia para lhe aquecerem a cama? Enquanto a via pôr de lado o carro vazio, não conseguiu explicar por que, mas sentiu uma espécie de vazio... um desejo de estar com ela. Passara a ser para si alguém a quem ele gostaria de conhecer e imaginou qual seria o seu nome, enquanto empurrava lentamente o carrinho das compras na direção dela. "Olá... eu sou Bill Thigpen..." disse mentalmente, levando o carro para a caixa onde ela estava a pagar. Dessa vez ela não pareceu dar por si. Estava a preencher um cheque. Ele olhou para lá de relance, mas não conseguiu ler o nome dela. Viu que tinha uma aliança de ouro na mão esquerda. Uma aliança de casamento. Fosse quem fosse, já não lhe interessava. Era casada. Sentiu o coração apertado, como uma criança desapontada, e quase riu de si próprio quando ela o olhou e sorriu, reconhecendo nele a pessoa com quem chocara momentos antes. "Olá... eu sou Bill Thigpen, e você é casada... que pena... se se divorciar telefone‑me..." Não queria nada com mulheres casadas. Mas apetecia‑lhe perguntar‑lhe porque estava a fazer as suas compras tão tarde. Não valia a pena. Já não tinha importância.

            ‑ Boa noite ‑ disse ela com uma voz suave e ligeiramente rouca, enquanto pegava nos dois sacos com as compras e Bill começava a esvaziar o seu carro.

            ‑ Boa noite ‑ respondeu Bill vendo‑a afastar‑se. Alguns minutos depois ouviu um automóvel afastar‑se e, quando chegou ao parque de estacionamento, viu que o velho MC que estivera ao lado da sua station desaparecera. Pensou se seria o carro dela. Então sorriu para si próprio. Era óbvio que estava a trabalhar demasiado, se começava a apaixonar‑se por desconhecidas. "Tem calma, rapaz, calma" disse para consigo pondo a station em andamento com grande ruído. Riu baixinho ao sair do parque de estacionamento e, enquanto se dirigia para casa, ia pensando no que estaria Sylvia a fazer em Las Vegas.

 

            Enquanto, afastando‑se do supermercado, se dirigia para casa, os pensamentos de Adrian Townsend concentravam‑se em Steven, que estaria à sua espera em casa. Há quatro dias que não o via, atarefado que estivera com reuniões com um cliente, em St. Louis. Steven Townsend era a estrela da agência em que trabalhava, e ela sabia que um dia, se quisesse, iria dirigir o escritório da agência de publicidade em Los Angeles. Aos trinta e quatro anos, percorrera um longo caminho desde os seus humildes começos no Midwest, e ela sabia o que o êxito significava para ele. Odiava a pobreza da sua infância e, em sua opinião, fora salvo dela há dezesseis anos por uma bolsa de estudo que o levara à Universidade de Berkeley. Formara‑se em comunicação, tal como sucedera com Adrian, três anos mais tarde, em Stanford. A paixão dela fora a TV, mas Steven apaixonara‑se desde o princípio pela publicidade. Fora trabalhar para uma agência de publicidade em S. Francisco, logo que acabara o curso secundário, e, estudando à noite, conseguira a sua bolsa de estudos. Ninguém duvidava de que Steven Townsend iria triunfar, fosse qual fosse o esforço que isso lhe exigisse. Era uma dessas pessoas determinadas, que chegavam aonde queriam, que planeavam as coisas minuciosamente. Na vida de Steven Townsend não havia acidentes, nem erros, nem falhas. às vezes, falava com Adrian durante horas a respeito de clientes em potência ou sobre uma promoção que ambicionava. Ela admirava a determinação dele, a sua coragem e firmeza. A vida não fora fácil para ele. O pai era operário numa fábrica de montagem de automóveis, em Detroit. Tivera cinco filhos: três raparigas e dois rapazes. O irmão mais velho de Steven morrera no Vietnam e as três irmãs tinham ficado perto de casa, perfeitamente contentes por não irem para qualquer universidade. Duas delas foram forçadas a casar ainda adolescentes, por estarem grávidas, claro, e a mais velha casara aos vinte um, mas antes de completar os vinte e cinco já era mãe de quatro filhos. O marido dela era operário na fábrica onde trabalhava o pai e, quando houvera uma greve, passaram a viver dos subsídios da Assistência. Era uma vida que ainda causava pesadelos a Steven e raramente falava acerca da sua infância. Só Adrian sabia como ele a detestara. Nunca mais voltara a Detroit depois de lá sair, e Adrian sabia que há cinco anos ele não comunicava sequer com a família. Não era capaz de falar com eles, detestava‑os, dissera certa vez a Adrian numa ocasião em que bebera um pouco de mais, de regresso a casa depois de uma festa. Odiava a pobreza deles e o seu desespero, odiava a expressão de desgosto constante no olhar da mãe por causa daquilo que não podia fazer pelos seus cinco filhos. Mas ela devia amá‑los a todos, tentara explicar‑lhe Adrian, apercebendo‑se do amor da mãe pelos filhos e da sensação de impotência ao ver o que lhes faltava e ela não lhes podia dar, em especial ao filho mais novo, o ansioso, o ambicioso Steven.

            ‑ Não creio que ela amasse alguém ‑ disse‑lhe azedamente Steven. ‑ Não havia nada dentro dela... a não ser por ele. No ano em que eu me vim embora engravidou outra vez... e nessa altura devia ter quase cinqüenta anos. Felizmente, abortou espontaneamente. ‑ Adrian sentia pena dessa mulher que era a mãe de Steven, mas há muito tempo que desistira de pleitear a causa deles perante o marido, e mesmo qualquer alusão a respeito deles se tornava muito doloroso. De tempos a tempos imaginava o que eles pensariam do filho se o vissem agora. Era atraente, atlético, bem educado, inteligente, extrovertido, ousado e, por vezes, até demasiado pretensioso. Sempre admirara a energia, a firmeza e a ambição dele, mas contudo, em certas ocasiões, desejava que tais predicados não fossem tão evidentes. Talvez isso viesse com o tempo, com a idade, com o amor daqueles que gostavam dele. Em certas alturas ela brincava com ele, dizendo‑lhe que fazia lembrar um cacto. Não deixava que ninguém se aproximasse muito ou lhe tocasse no coração, a não ser quando ele o permitia.

Estavam casados quase há três anos e o casamento fizera bem a ambos. Steven continuara a subir meteoricamente na agência, nos dois últimos anos. Desde que começara a trabalhar, doze anos antes de se formar, já estivera em três agências e era conhecido como sendo esperto, competente e por vezes mais do que impiedoso. Tirara clientes a amigos, em circunstâncias que chegavam a atingir os limites da ética profissional. Mas a agência para a qual ele trabalhava nunca ficara a perder com isso e Steven também não. Crescia de dia para dia e a importância de Steven aumentava.

            Adrian sabia que ela e o marido eram muito diferentes, mas respeitava‑o. Sobretudo respeitava a maneira como ele se esforçara e trabalhara para subir na vida. Pelo pouco que ele lhe contara, fizera‑a compreender que a sobrevivência no mundo de onde viera devia ter sido brutal. Os princípios dela tinham sido totalmente diferentes. Pertencia a uma família da classe média, freqüentara sempre escolas particulares e tinha apenas uma irmã mais velha. Ela e Adrian não se viam com bons olhos e Steven afastara‑se também da família dela, embora os pais todos os anos a viessem visitar à Califórnia. Mas a vida ali era muito diferente da vida confortável que eles levavam no Connecticut e, da última vez, não se tinham entendido bem com Steven. E Adrian tinha de admitir que ele não se mostrara simpático para com eles. Criticara abertamente o sogro pela falta de interesse que revelara em fazer carreira. O pai era advogado, mas reformara‑se cedo e, durante vários anos, dera aulas numa faculdade de Direito. Adrian ficara embaraçada pela maneira agressiva como Steven criticara o pai dela, mas tentara explicar‑lhes que ele não o fazia por mal, que era apenas a sua maneira de ser. Depois de eles regressarem a casa, Connie, a irmã, telefonara a Adrian e dera‑lhe uma tremenda descompostura por ela ter permitido "que Steven fizesse aquilo aos pais". Fizesse o quê?, quisera saber Adrian. "Fizesse com que o papá se sentisse tão insignificante. A mamã diz que ele o humilhou e o papá declara que não vai mais à Califórnia."

            "Connie... por amor de Deus..." Adrian ficara perturbada ao perceber como o pai se mostrava magoado, e tivera de admitir que Steven fora um pouco... exuberante ao falar com ele, mas era esse o seu estilo. Tentara em vão explicar isso a Connie: ela e a irmã nunca tinham sido muito chegadas. Faziam cinco anos de diferença uma da outra e Connie parecera sempre desaprovar o que ela fazia. Fora por isso que, depois de se formar, Adrian ficara na Califórnia. Isso e o fato de ter querido trabalhar na televisão.

            Adrian fora para Los Angeles, a fim de freqüentar um curso de filmagem na UCLA e fizera‑o com êxito. Tivera vários empregos extremamente interessantes. Depois conhecera Steven e ele vira outras oportunidades de fazer carreira para ela e, de certo modo, isso alterara as coisas. Ele achava que o meio em que se faziam os filmes, ou mesmo filmes para a TV, era demasiado indefinido e que ela devia interessar‑se por coisas mais concretas. Viviam juntos há dois anos quando ela recebera a proposta para trabalhar no noticiário da TV. Isso representava muito mais dinheiro do que aquele que ela alguma vez ganhara, mas era também muito diferente daquilo que ela alguma vez sonhara. Andara angustiada sem saber se devia aceitar a proposta, pois apercebia‑se de que não se sentiria "ela", mas por fim Steven convencera‑a e tivera razão. Nos últimos três anos habituara‑se a gostar do seu trabalho. E, seis meses depois de ela ter aceitado o emprego, fora com Steven passar um fim‑de‑semana ao Reno e casaram‑se. Ele detestava grandes casamentos e reuniões de família, no que ela concordou, para lhe agradar. Mas isso desgostara os pais dela. Eles gostariam que a filha mais nova se tivesse casado saindo de casa deles, numa bonita cerimônia. Em vez disso, ela e Steven tinham‑se metido num avião e quando apareceram em casa, os pais não ficaram satisfeitos por eles já se terem casado. A mãe chorou, o pai ralhou e eles sentiram‑se ambos como crianças vadias. Steven mostrara‑se muito irritado com eles e, como habitualmente, Adrian tivera uma discussão com a irmã. Connie estava nessa altura grávida do seu terceiro e último filho, e fizera com que Adrian se sentisse de certo modo culpada, como se tivesse feito algo de errado.

            ‑ Nós não queríamos um grande casamento. Que tem isso de mal? Tenho vinte e nove anos. Acho que posso casar da maneira que quero.

            ‑ Porque magoaste a mamã e o papá? Não podes fazer um esforço uma vez na vida? Vives a cinco mil quilômetros de distância, fazes o que queres. Nunca estás aqui para os ajudar, ou para fazeres qualquer coisa por eles... ‑ A voz dela arrastara‑se acusadoramente enquanto Adrian a olhava, pensando no azedume que existia entre si e a irmã, e na possibilidade de este vir a aumentar. Ultimamente, o seu relacionamento com a irmã começara a deprimi‑la seriamente.

            ‑ Eles têm sessenta e dois e sessenta e cinco anos, de que auxilio precisam? ‑ perguntara Adrian, e Connie ficara pálida.

            ‑ Muito. Quando neva, é Charlie que vem aqui tirá‑la por causa do carro do papá. Alguma vez pensaste nisso? Connie tinha lágrimas nos olhos e Adrian sentira uma vontade imensa de lhe bater.

            ‑ Talvez fosse melhor eles irem viver para a Florida e tornar assim as coisas mais fáceis para nós duas ‑ dissera calmamente Adrian. Connie começara a soluçar.

            ‑ É só o que sabes fazer, não é? Esconderes‑te e viver do outro lado do país.

            ‑ Connie, eu não me escondo. É lá que tenho a minha vida.

            ‑ A fazer o quê? A trabalhar como anotadora numa equipe de produção? Não é trabalho que preste e tu sabes isso muito bem. Cresce, Adrian. Sê uma esposa, tem filhos, sê normal como nós. E se queres trabalhar, pelo menos faz alguma coisa que valha a pena, algo de normal.

            ‑ Como quem? Como tu? És normal porque foste enfermeira antes de teres os filhos, e eu não presto porque tenho um trabalho que tu não entendes? Bem, pois fica sabendo que eu trabalho como assistente de produção dos noticiários, talvez compreendas isso um pouco melhor.

            Adrian detestava que as suas relações com a irmã se tivesse deteriorado com o passar dos anos. Elas nunca tinham sido muito chegadas, mas pelo menos eram amigas, ou fingiam sê‑lo. Mas o verniz estalara e acabara por ficar apenas a inveja e o rancor de Connie por a irmã se ter afastado e acabado por ter uma vida livre, fazendo o que queria na Califórnia. E Adrian não lhe dissera que ela e Steven tinham concordado em não ter filhos. Era uma coisa que significava muito para ele, depois dos horrores da sua infância. Adrian não concordava com ele, mas sabia que Steven atribuía a miséria dos pais ao fato de terem tido filhos, ou, pelo menos, tantos. Mas ele dissera‑lhe há muito que não queria ter filhos e quisera ter a certeza de que Adrian concordava com ele. Falara mais de uma vez em fazer uma operação para se tornar estéril, mas ambos recearam que, se a fizesse, isso tivesse repercussões de ordem física. Quisera então que ela laqueasse as trompas, mas Adrian hesitara, por lhe parecer demasiado radical. Por fim, tinham concordado em métodos alternativos para terem a certeza de que ela não engravidaria. Adrian sentia‑se por vezes triste com a idéia de nunca ter um filho, mas, no entanto, estava disposta a fazer esse sacrifício por Steven. Sabia como isso era importante para ele. Queria ser livre para prosseguir a sua carreira sem nada que o perturbasse e desejava o mesmo para ela. Apoiava‑a imenso nas suas tarefas e Adrian habituara‑se a trabalhar no noticiário, o que fazia há três anos, mas ainda sentia a falta do seu antigo trabalho nas minisséries e programas especiais. Falava frequentemente em deixar o noticiário e arranjar trabalho na produção de uma série.

            ‑ E quando essas séries acabam? ‑ perguntava sempre Steven. ‑ Ficas no desemprego, voltas à estaca zero. Fica com as notícias, querida, pois elas nunca serão canceladas.

‑ Tinha horror aos despedimentos, em deixar passar oportunidades, ou não seguir a carreira até ao topo. Steven nunca perdia de vista os seus objetivos e esses eram sempre os de chegar ao topo. E ambos sabiam que ele iria consegui‑lo.

            Nos últimos dois anos de casamento, eles haviam feito grandes progressos: ganhavam bastante dinheiro, tinham alguns amigos e ultimamente haviam comprado uma bonita casa num condomínio. Era exatamente aquilo de que eles precisavam. Um duplex com um grande quarto de casal em cima, outro quarto que lhes servia de sala, uma sala de jantar e uma grande cozinha. Adrian gostava de cuidar do pequeno jardim nos fins‑de‑semana. O complexo incluía uma piscina para todos os moradores e um campo de tênis. Além disso, havia a garagem para dois carros, onde ela guardava o seu velho MG e Steven o Porsche preto, reluzente, comprado há pouco. Steven insistia para que Adrian vendesse o seu velho carro, mas ela não queria. Comprara‑o em segunda mão, treze anos antes, ao ir para Stanford, e ainda gostava muito dele. Adrian era uma pessoa que se agarrava às coisas antigas. Steven, pelo contrário, queria sempre tudo novo. E todavia, em conjunto, eles formavam uma boa equipe. Ele dava‑lhe a ambição que ela podia não ter se estivesse sozinha, e ela suavizava um pouco as arestas de Steven, mas não o suficiente para toda a gente. A irmã dela, Connie, e Charles, o cunhado, detestavam‑no e os pais também não gostavam dele. Isso afetara o relacionamento dela com a família e Adrian sentia‑se por vezes desgostosa por ver como se afastara de todos. Mas, apesar do seu amor por eles, sentia que a sua principal lealdade era para com Steven. Era ele quem partilhava a sua cama, era a vida dele que ela ajudava a consolidar e o futuro de ambos que estava a forjar. E por mais que gostasse dos pais, eles representavam o passado, enquanto ele consubstanciava o presente e o futuro. Os pais também compreendiam isso e nunca mais perguntaram quando ela e Steven lá iriam. Tinham até deixado de lhe perguntar quando é que ela teria um bebê. Adrian acabara por dizer à irmã que ela e o marido não queriam ter filhos e estava certa de que ela fora contar isso imediatamente aos pais. O relacionamento entre ela e Steven parecia pouco natural a todos eles. Aos olhos de toda a família, Steven e Adrian eram dois jovens egocêntricos, hedonistas, que viviam uma vida superficial na Califórnia, e aos quais era impossível tentar fazer ver as coisas de um ponto de vista diferente. Era mais fácil falarem raramente uns com os outros, e os pais de Adrian não voltaram a comunicar que a iam visitar.

            No entanto, Adrian não pensava nos pais ao sair de Fairfax Avenue para Santa Monica Freeway nessa noite. Pensava apenas em Steven. Sabia como ele estaria cansado, mas comprara‑lhe uma garrafa de vinho branco, queijo e o necessário para lhe fazer um bom omelete. E sorria ao parar o carro na garagem, junto do Porsche dele. Steven estava em casa. Adrian lastimara o fato de não o poder ir esperar ao aeroporto, mas tivera de trabalhar até tarde, como sucedia muitas vezes, pois era a principal assistente do produtor do noticiário da noite. Tratava‑se de um trabalho interessante, embora fosse também muito cansativo.

            A chave girou na fechadura e, quando abriu a porta, Adrian reparou que as luzes estavam todas acesas, mas ao princípio não viu Steven.

            ‑ Olá!... está alguém em casa?... ‑ O rádio encontrava‑se ligado e a mala dele estava no vestíbulo, mas Adrian não viu a pasta. Descobriu‑o então na cozinha, ao telefone. Tinha a cabeça, de cabelo muito escuro, inclinada e tomava notas. Adrian desconfiou de que ele estivesse a falar com o patrão, pois nem parecera dar pela presença dela. Adrian aproximou‑se, rodeou‑lhe o corpo com os braços e beijou-o. Ele olhou‑a com um sorriso e beijou‑lhe os lábios, enquanto continuava a ouvir o patrão falar sem perder uma palavra. Em seguida, empurrou‑a gentilmente e continuou a falar.

            ‑ Exato... foi o que eu lhes disse. Eles afirmaram que voltariam a contatar‑nos para a semana, mas estou convencido que conseguiremos que venham ter conosco antes disso. Certo... certo... é exatamente o que eu penso... ótimo... até amanhã. ‑ E, subitamente, ele apertou‑a nos braços, com força, e o mundo pareceu‑lhe maravilhoso. Adrian sentia‑se sempre feliz quando estava com ele, sempre certa de que se encontrava precisamente onde desejava estar. E, enquanto o beijava, só conseguia pensar como sentira a falta dele.

            Steven beijou‑a longamente e quando a largou, ela estava ofegante.

            ‑ Bem, bem... Gosto muito de o ter novamente em casa, senhor Townsend.

            ‑ Também não posso dizer que não estou contente por te ver ‑ respondeu Steven apertando‑a com força contra si e comprimindo‑lhe as nádegas. ‑ Onde estiveste?

            ‑ A trabalhar. Tentei livrar‑me do horário da noite hoje, mas não havia mais ninguém disponível. Parei no caminho para comprar umas coisas. Tens fome?

            Ele sorriu com ar feliz, sem estar a pensar no que ela levara para comer.

            ‑ Com efeito, tenho. ‑ Apagou a luz da cozinha e Adrian riu.

            ‑ Não era a isso que eu me estava a referir. Comprei vinho e... ‑ Ele voltou a beijá‑la nos lábios, com força.

            ‑ Depois, Adrian. ‑. depois... ‑ Levou‑a para as escadas, deixando as malas abandonadas no vestíbulo e os sacos com as compras dela no chão da cozinha. Olhou‑a com desejo enquanto ela começava a despir‑se; em seguida aumentou o volume de som do rádio e deitou‑a em cima da cama a seu lado.

 

            Saíam ambos para o trabalho ao mesmo tempo. Todos os dias a rotina era a mesma em todas as manhãs. Steven ia correr um bocado antes de se arranjar, depois voltava e, enquanto pedalava na sua bicicleta de exercício, ia fazendo a barba e vendo o noticiário, enquanto Adrian preparava um pequeno‑almoço ligeiro. Nessa altura já tomara ducha e se vestira. Ele fazia o mesmo enquanto ela arrumava o quarto e limpava a cozinha. Aos fins‑de‑semana ele ajudava‑a, mas durante a semana estava demasiado ocupado e apressado para a poder ajudar.

            Adrian via sempre o noticiário da manhã antes de saírem e se havia alguma coisa com interesse falavam disso. Mas, habitualmente, não diziam grande coisa um ao outro de manhã. Contudo, nesse dia foi diferente. Tinham feito amor duas vezes durante a noite e Adrian sentia‑se faladora e afetuosa ao beijá‑lo e oferecer‑lhe uma chávena de café. Ele vinha suado da corrida e com a camisola colada ao corpo, mas mesmo assim parecia uma estrela de cinema. Fora outra coisa que o fizera destacar‑se quando tentava sair de Detroit e da casa dos pais. Mostrara‑se demasiado esperto, demasiado ambicioso e bem‑parecido para a vida que lhe estivera destinada pelo nascimento. Adrian era também muito bonita, à sua maneira, mas era uma coisa em que ela nunca pensava. Andava muito ocupada com a sua vida e nem pensava na sua aparência, a não ser quando se vestia para ir a uma festa com Steven. Mas tinha um ar fresco e natural que sobressaía no ambiente artificial em que ambos viviam. Adrian não tinha verdadeira consciência da sua própria beleza e o marido raramente a mencionava. Andava sempre preocupado com outras coisas, como a sua vida, a sua carreira. Havia ocasiões em que mal a via.

            ‑ Há alguma coisa de especial hoje? ‑ Olhou por cima do jornal para ela enquanto comia o pequeno‑almoço. Adrian aqueceu os bolos folhados que comprara na véspera e preparara‑lhe uma taça com salada de fruta misturada com iogurte.

            ‑ Que eu saiba, não. Vejo o que houver quando chegar. Parece não ter sucedido nada de especial, mas podem ter dado um tiro no presidente enquanto aqui estamos sentados a tomar o pequeno‑almoço... ‑ Steve olhava para as cotações da Bolsa e continuou a folhear as páginas de negócios enquanto ela falava. ‑ Trabalhas até tarde hoje?

            ‑ Não sei. Só logo à tarde poderei saber. Estão algumas pessoas em férias e é até possível que tenha de lá ir no fim‑de‑semana.

            ‑ Espero que não. Lembras‑te da festa de amanhã à noite em casa dos Jameses?

            Adrian olhou‑o e sorriu. Ele parecia nunca acreditar que a mulher pudesse lembrar‑se de qualquer coisa, embora ela fosse assistente de produção do noticiário de uma importante rede de televisão.

            ‑ Claro que me lembro. É uma coisa importante?

            Ele sorriu sem humor como sempre sucedia quando se tratava da sua carreira, mas Adrian já estava habituada a isso.

            ‑ Toda a gente com importância em publicidade lá estará. Só queria ter a certeza de que te lembravas. ‑ Ela disse que sim com a cabeça, ele olhou para o relógio e levantou‑se... ‑ Logo às dezoito horas vou jogar squash. Se trabalhares até tarde, não virei jantar a casa. Deixa recado no escritório.

            ‑ Sim, senhor. Há mais alguma coisa que eu deva saber antes de começarmos o dia e desaparecermos nos nossos mundos separados?

            Ele pareceu tentar lembrar‑se de qualquer coisa durante um momento e depois abanou a cabeça e olhou para Adrian, que ainda estava sentada à mesa da cozinha. Mas os pensamentos dele encontravam‑se já longe dali: pensava em dois novos clientes que queria abordar e de um cliente que desejava tirar a um empregado ligeiramente mais importante da agência em que trabalhava. Era algo que já fizera com êxito anteriormente com outros clientes e tratava‑se de um modus operandi que não o embaraçava nem lhe causava receio. Os fins justificavam os meios. Para ele fora sempre assim. Mesmo dezesseis anos antes, quando tirara ao seu melhor amigo a possibilidade de ganhar a bolsa de estudo para Berkeley. O outro rapaz tinha notas mais altas que as suas, mas Steven sabia que ele copiara num exame e fez com que as pessoas adequadas ficassem a saber isso na altura certa. Apesar de as classificações desse amigo terem sido perfeitas desde então e de o outro o ter ajudado a preparar‑se para todas as provas, durante anos, Steven não deixou de o denunciar. E o rapaz fora reprovado. E Steven ganhara a bolsa e saíra de Detroit sem olhar para trás. Soubera por uma irmã, há uns anos, que Tom abandonara os estudos e trabalhava numa bomba de gasolina. Depois nada mais soubera dele. Por vezes, as coisas eram assim. A sobrevivência dos mais aptos. E Steven Townsend era apto de todas as maneiras possíveis. Ficou a olhar para Adrian por momentos e depois correu para a escada para tomar ducha e se vestir.

            Adrian encontrava‑se ainda na cozinha quando ele desceu, impecavelmente vestido com um fato de caqui, camisa azul‑clara e gravata amarela e azul. Com o seu cabelo preto, brilhante, parecia outra vez um ator de cinema, ou pelo menos um homem de um anúncio. Adrian sentia sempre uma certa perturbação quando o olhava, por ele ser tão incrivelmente bem‑parecido.

            ‑ Estás com bom aspecto, rapaz!

            Ele pareceu satisfeito com o cumprimento e olhou‑a enquanto ela pegava no saco que levava sempre para o trabalho. Era um saco de pele preta, macia, de Hermés, que ela tinha há anos e de que gostava muito, como do seu velho carro de desporto. Vestia uma saia de fazenda azul‑escura, uma blusa de seda branca e um casaco de malha branco pelos ombros. Calçava sapatos de pele preta, italianos, e todo o seu aspecto era de discreta e luxuosa elegância, apesar da aparente simplicidade. Tudo nela revelava gosto e requinte, embora sem qualquer espécie de vaidade. O casal que saiu de casa formava um belo par. Steven entrou no Porsche enquanto ela se metia no MC e Adrian sorriu ao ver a expressão embaraçada do marido. Não gostava de ser visto junto do velho carro e ameaçava‑a de a obrigar a utilizar o parque de estacionamento ao ar livre, em frente do complexo habitacional.

            ‑ És um esnobe! ‑ disse Adrian, rindo. Momentos depois, o Porsche desaparecia no meio do ruído do seu potente motor, enquanto Adrian punha um lenço em volta da cabeça, ligava o motor do seu querido automóvel e ouvia com satisfação o motor começar a trabalhar. Partiu então em direção ao escritório, mas a estrada estava cheia de carros e, daí a um bocado, Adrian viu‑se presa num enorme engarrafamento. Pensou se Steven se teria livrado daquilo e, ao pensar nele, lembrou‑se de repente de outra coisa, de algo que raramente lhe sucedia. Estava com um atraso. Devia ter tido o seu período menstrual dois dias antes, mas sabia que isso nada significava. Com as horas que ela trabalhava, com o stress constante, não era de estranhar que se atrasasse, embora realmente isso não lhe sucedesse muitas vezes. Tomou mentalmente nota para voltar a pensar nisso daí a dias e, como o tráfego estava novamente a fluir, carregou no acelerador e dirigiu‑se para o escritório.

            Quando chegou encontrou tudo num caos total. O produtor ficara em casa, doente. Dois dos melhores operadores de câmera tinham sofrido um pequeno acidente e dois repórteres, com quem não simpatizava, discutiam acaloradamente a pouca distância da secretária dela, o que fez com que Adrian gritasse com toda a gente, fato que os surpreendeu, pois ela raramente perdia a calma.

            ‑ Como é que se pode trabalhar aqui? Se querem bater um no outro, vão fazê‑lo para outro sítio.

            Um senador morrera num desastre de aviação. Os repórteres que se encontravam no local acabavam de informar que não havia sobreviventes. Uma famosa estrela de cinema suicidara‑se nessa noite. E dois conhecidos atores de Hollywood acabavam de anunciar o seu casamento. Um tremor de terra no México ceifara quase um milhar de vidas. Ia ser o gênero de dia propicio para causar úlceras a Adrian. Mas, pelo menos, a vida tinha interesse para ela, ou pelo menos era o que Steven dizia quando ela se queixava. Quereria ela realmente viver no país da fantasia, trabalhando em minisséries ou em programas especiais acerca das damas de Hollywood? Não, mas gostaria de trabalhar numa série bem sucedida e sabia que tinha suficiente experiência na produção para o poder fazer. Mas sabia também que nunca conseguiria convencer Steven de que um trabalho desses era digno da atenção dela.

            ‑ Adrian?

            ‑ Sim? ‑ Por um minuto permitira que a sua mente fosse à deriva para aquilo que não era e podia ter sido, e não tinha tempo para isso, pelo menos nesse dia. E também era fácil perceber que nesse dia não iria jantar com o marido. Pediu a alguém para lhe telefonar e dar o recado. Depois voltou‑se para a assistente que pedia a sua atenção. Houvera uma inundação no estúdio e era preciso utilizar outro, mas estava tudo a postos e por isso não havia razão para pânico.

            As dezesseis horas, Adrian ainda não tinha almoçado e só às dezoito se lembrou de telefonar a Steven. Mas sabia que a essa hora já ele saíra para ir jogar squash com os amigos e que, de qualquer maneira, já sabia que ela trabalharia até tarde. Enquanto se preparava para um longo serão de trabalho teve uma estranha sensação de solidão. Era uma noite de sexta‑feira e toda a gente saía, ou estava em casa, ou com amigos, ou preparando‑se para um encontro, ou apenas estendida a ler um bom livro, e ela ali a trabalhar, a ouvir informações da polícia, e a ler telexes de desgraças ocorridas no mundo inteiro. Parecia‑lhe uma maneira triste de passar uma noite de sexta‑feira, mas de repente sentiu‑se tola por pensar isso.

            ‑ Estás com um ar terrivelmente sombrio hoje ‑ observou Zelda, uma assistente de produção, sorrindo e oferecendo‑lhe um copo de papel com café. Adrian simpatizava com ela. Mostrava‑se quase sempre bem‑disposta e risonha. Devia ter uns quarenta anos, divorciara‑se várias vezes, era bonita e parecia despreocupada.

            ‑ Isto nunca te acontece? O noticiário é tão deprimente!

            ‑ Nunca o ouço. ‑ Encolheu os ombros com indiferença. ‑ E a maior parte das noites, quando saio daqui, vou dançar.

            ‑ Acho que fazes bem.

            Muitas vezes, quando Adrian chegava a casa, Steven estava já a dormir tranquilamente. Mas pelo menos de manhã tomavam o pequeno‑almoço juntos e tinham os fins‑de‑semana.

            Adrian trabalhou durante as quatro horas seguintes, ordenando a papelada, em seguida foi examinar o estúdio para ver se estava tudo a postos para o último noticiário, conversou um pouco e leu as histórias mais sensacionais do dia. A noite estava bonita, tranqüila, e Adrian sentia‑se ansiosa por ir para casa ter com Steven. Sabia que ele fora jantar fora, com amigos, mas tinha a certeza de que já se encontraria à espera dela quando ela chegasse. Raramente ele aparecia tarde em casa, a não ser que tivesse alguma coisa a ganhar com isso, como por exemplo tratar de um assunto importante com um cliente.

            Tudo correu bem no último noticiário, como era previsível, e às 23.35 horas ela ia a caminho de casa, em Santa Monica Freeway. Entrou em casa quando faltavam cinco minutos para a meia‑noite; as luzes do quarto encontravam‑se ainda acesas. O coração de Adrian saltou de alegria, subiu os degraus da escada dois a dois, rindo quando viu o marido. Steven dormia profundamente, com os braços estendidos como um rapazinho, exausto e descontraído depois de um dia de trabalho no escritório, seguido de um animado jogo de squash e do jantar. Adrian viu que o sono dele era tão pesado que por mais barulho que fizesse ele não acordaria.

            ‑ Bem, príncipe encantado ‑ murmurou Adrian com um sorriso ao sentar‑se junto dele já com a camisa de noite vestida ‑, pareces um boneco de trapos, como se costuma dizer.

            Beijou‑o ao de leve, na face, e ele não se mexeu nem mesmo quando ela apagou a luz e se estendeu ao seu lado na cama. E nesse momento, pensou outra vez no atraso da menstruação, mas sabia que não devia ser nada.

 

            Quando acordou, às nove e quinze minutos, Adrian sentiu o cheiro a bacon lá em baixo e ouviu Steven a andar de um lado para o outro na cozinha. Sorriu e rolou para o outro lado da cama. Gostava dos sábados, gostava de estar em casa com Steven, encantava‑a ele trazer‑lhe o pequeno‑almoço à cama e fazerem amor a seguir.

            Ouvia‑o a subir as escadas, cantarolando, batendo com o tabuleiro na porta, ao entrar. Ouviu também a voz de Bruce Springsteen, na aparelhagem.

            ‑ Acorda, dorminhoca! ‑ Steven sorriu e pousou o tabuleiro sobre a cama, ao lado dela, enquanto Adrian se espreguiçava e lhe sorria em resposta. Steven era uma visão de juventude e de beleza masculina. O cabelo dele estava ainda úmido da ducha, que tomara antes dela acordar, e vestira roupa própria para jogar tênis. As pernas, fortes e bem feitas, estavam bronzeadas e do sítio onde Adrian se encontrava, na cama, os ombros do marido pareciam‑lhe enormes.

            ‑ És muito jeitoso e não só para cozinhar, sabes? ‑ disse ela, sorrindo e apoiando‑se no cotovelo.

            ‑ E tu também, mandriona. ‑ Steven riu e sentou‑se na cama ao lado dela.

            ‑ Devias ter‑te visto ontem à noite quando eu cheguei.

            ‑ Tive um dia cansativo e depois do jogo de squash fiquei exausto.

            Pareceu ter ficado ligeiramente embaraçado e, para o disfarçar, beijou‑a prometedoramente nos lábios, no momento em que ela ia a comer um pouco de bacon.

            ‑ Vais jogar tênis hoje? ‑ perguntou Adrian. Sabia que ele gostava de desportos competitivos, especialmente do tênis.

            ‑ Sim, mas não antes das onze e meia. ‑ Olhou para o relógio e sorriu. Adrian riu outra vez, mas antes de poder dizer uma palavra, ele despiu‑se e meteu‑se na cama com ela.

            ‑ Que se passa, senhor Townsend? Isto não irá enfraquecer o seu jogo de tênis? ‑ Ela gostava de o arreliar por causa da intensa seriedade com que ele falava do tênis.

            ‑ Pode ser. ‑ Ficou pensativo e ela riu outra vez. Steven voltou‑se então para ela com um sorriso malicioso: Mas também pode ser que valha a pena.

            ‑ Pode ser? Pode ser? Mas que lata!

            Steven calou‑a com um beijo e, poucos minutos depois, ambos tinham esquecido o jogo de tênis e meia hora mais tarde ela dormitava, satisfeita, nos braços dele, enquanto ele lhe acariciava o cabelo preto que lhe caía para a cara e murmurava:

            ‑ Pessoalmente... prefiro fazer isto a jogar tênis... em qualquer altura...

            Ela abriu os olhos e estendeu a boca para o beijar.

            ‑ Também eu.

            Espreguiçou‑se indolentemente e, uma hora mais tarde, teve de sair da cama para tomar uma nova ducha antes de ir jogar com um homem que vivia no mesmo complexo habitacional e que apenas conhecia por "Harvey".

            ‑ Voltas para almoçar? ‑ perguntou ela, e Steven respondeu‑lhe que faria uma salada quando voltasse. Lembrou‑lhe outra vez que nessa noite iriam a casa dos Jameses, às sete. Mas ia ser tudo muito apertado para ela. Soubera na noite anterior que tinha de ir trabalhar por causa do noticiário das seis, e que teria de lá voltar para as notícias da noite. Isso significava ter de se vestir para a festa antes de ir trabalhar, depois voltar a casa a correr para se encontrar com Steven, ou talvez fosse ter com ele à festa. Depois teria de sair cedo da festa para ‑ regressar ao trabalho. Mas sabia que a festa era importante para ele e, por isso, acompanhá‑lo‑ia, por mais atrapalhada que fosse a sua noite. Adrian tentava sempre não desiludir Steven, e especialmente não deixar que o trabalho dela interferisse com a vida deles. Steven, por seu lado, precisava de viajar frequentemente, mas a verdade é que isso só tornava as coisas mais fáceis para ela quando necessitava de trabalhar até tarde.

            Steven voltou às duas horas, todo suado e satisfeito com a sua vitória. Vencera Harvey com facilidade.

            ‑ É gordo e não está em boa forma. Além disso, confessou‑me que não deixou de fumar. O pobre diabo teve muita sorte em não sofrer um ataque cardíaco em pleno jogo.

            ‑ Espero que tenhas tornado as coisas fáceis para ele disse Adrian da cozinha, onde acabara de preparar uma limonada para o marido, mas ambos sabiam que provavelmente não fora assim.

            ‑ Ele não o merecia. Não passa de um parvo.

            Adrian também já lhe preparara a salada e pôs as duas coisas em frente dele enquanto lhe dizia que tinha de ir trabalhar antes da festa e provavelmente depois. Ele pareceu não se importar.

            ‑ Está bem. Posso voltar para casa com outra pessoa e tu ficas com o meu carro.

            ‑ Ou posso eu ir ter contigo e trazer‑te. ‑ Olhou‑o como que a desculpar‑se: ‑ Tenho pena. Se não estivessem pessoas em férias e o produtor doente...

            ‑ Não há problema. Desde que consigas fazer o teu trabalho está tudo bem.

            Adrian olhou interrogativamente para o marido enquanto ele comia a salada feita por ela. ‑ Por que motivo é essa festa tão importante para ti, querido? Passa‑se alguma coisa importante de que eu não tenha conhecimento? ‑ Talvez fosse outra promoção.

            Steven teve uma expressão misteriosa durante um momento e depois sorriu:

            ‑ Se tudo correr bem esta noite, pode ser que possamos apanhar a IMFAC como cliente. Obtive umas certas informações na semana passada de que não estão muito satisfeitos com a agência que atualmente trabalha para eles e que andam discretamente à procura de uma outra. Fiz‑lhes um telefonema e Mike ficou entusiasmado com isso. Pode até dar‑se o caso de ele me deixar ir a Chicago segunda‑feira para os contatar.

            ‑ Meu Deus, isso é realmente uma coisa importante. Era de fato magnífico, mesmo para ele. A IMFAC era uma das empresas com maior impacte publicitário no país.

            ‑ Sim, é. Provavelmente estarei fora toda a semana, mas tenho a certeza de que concordas que merecerá a pena.

            ‑ Sem dúvida. ‑ Adrian recostou‑se para trás na cadeira e olhou‑o. Steven era um homem notável. Aos trinta e quatro anos, não ia parar sem ter conseguido tudo quanto ambicionava. Mas tinha de se admirar, particularmente quando se sabia de onde ele viera. Ela tentara fazer ver isso aos pais dela durante anos, contudo eles pareciam decididos a ignorar todas as boas qualidades de Steven e a ver apenas o lado negativo das ambições dele. Como se fosse um crime almejar o êxito, ir para a frente. Ela não pensava assim. Steven tinha o direito de querer atingir os seus objetivos, não tinha? E sabia que ele sentia necessidade de vencer. às vezes chegava a ter pena dele por perceber que tal necessidade era tão forte nele. Na verdade ficava magoado, quase fisicamente, quando perdia, mesmo que fosse um jogo de tênis.

            E Steven voltou a jogar tênis nessa tarde, e ainda jogava quando Adrian saiu para o trabalho. Ela prometera voltar a casa para se encontrar com ele às sete em ponto. Quando ela chegou, Steven esperava‑a, impecável, com um blazer novo, calças brancas e uma gravata vermelha que ela lhe oferecera. Estava muito elegante e Adrian disse‑lho. Steven respondeu‑lhe que ela estava também muito bonita. Adrian vestira um fato de saia‑e‑casaco de seda verde‑esmeralda com sapatos a condizer. Lavara o cabelo, que brilhava como ônix polido. Mas ao entrar no Porsche, Adrian reparou que Steven se mostrava distraído e nervoso. O que não admirava, com a perspectiva de conseguir um cliente como a IMFAC. Podia compreender o estado de espírito dele.

            Durante o caminho para Beverly Hills, Adrian falou despreocupadamente sobre coisas sem importância. Ficou impressionada ao ver a casa de Mike James, o patrão de Steven. A mulher dele era uma das mais caras decoradoras de Beverly Hills. A festa destinava‑se a festejar a inauguração da casa, e há meses que Adrian ouvia falar em renovações de muitos milhões de dólares. Contudo, o resultado era impressionante. Deviam estar reunidas ali umas duzentas pessoas quando Steven e Adrian entraram, e esta viu‑se quase imediatamente separada do marido, começando a deambular entre os muitos bares e bufês, ouvindo, aqui e ali, bocados de conversas.

            As pessoas falavam acerca dos filhos, dos empregos, das viagens e das casas.

            Várias pessoas falaram com Adrian, mas ela não conhecia ninguém e manteve‑se afastada, não permanecendo muito tempo em qualquer grupo. E reparou, como lhe acontecia cada vez mais vezes, que as pessoas, ao saberem que ela era casada, lhe perguntavam se tinha filhos. Às vezes sentia‑se estranha ao responder que não. Era como se ô fato de não ter filhos fosse uma espécie de malogro, apesar de ter um bom emprego aos trinta e um anos. As mulheres que tinham filhos mostravam‑se orgulhosas por isso, e ultimamente Adrian começara a pensar se havia perdido algo quando concordara com Steven em não ter filhos. Não se tratava de um decreto, claro, e era óbvio que a decisão tomada podia alterar‑se, mas Adrian sabia bem o que o marido pensava disso, o que fazia com que ela tivesse uma ligeira sensação de pânico de cada vez que pensava que poderia estar grávida. E cada dia que passava o atraso era maior.

            Pensara em comprar um teste para fazer em casa, nessa tarde, mas parecera‑lhe um pouco prematuro; não havia necessidade de exagerar por causa de uns dias de atraso... Mas, e se estivesse grávida? Ficou sozinha a olhar para as pessoas. Entretanto, apareceu um homem ao pé dela a oferecer‑lhe uma taça de champanhe. Mas ela não tinha vontade de falar com ele. E depois de ele se ir embora, ficou a pensar: e se fosse realmente ter um bebê? Que diria? Que faria Steven? Seria realmente uma coisa terrível? Ou seria maravilhoso? Estaria ele enganado na sua aversão veemente a ter filhos? Iria ele eventualmente mudar de idéias?... E ela própria? Ter um filho iria interferir com a sua carreira? Terminá‑la definitivamente? Ou poderia continuar a trabalhar depois da licença de parto? Muitas mulheres o faziam. Ter filhos não parecia ser o fim do mundo para as outras pessoas. Tinham filhos e trabalhavam. Não era uma coisa desastrosa... ou seria? Não tinha a certeza. E quando pensava nisso, Steven apareceu subitamente ao lado dela.

            ‑ Feito! ‑ declarou, sorridente.

            ‑ Conseguiste? ‑ Sentia‑se atordoada. Estivera tão imersa nos seus pensamentos que ficou sobressaltada quando viu o marido a seu lado; sentiu quase receio de que ele ouvisse os seus pensamentos ou adivinhasse o que ela estava a pensar.

            ‑ Não. Ainda não está o negócio feito. Mas Mike quer que eu vá com ele a Chicago na próxima segunda‑feira. Vamos efetuar umas reuniões discretas com eles, discutir as nossas idéias e as deles. E se tudo correr como eu espero, e há‑de correr, na próxima semana voltarei lá sozinho para concluir o contrato.

            ‑ Oh, Steven, isso é fabuloso! ‑ Ele pareceu estar de acordo quando ela o beijou. Steven permitiu a si mesmo beber duas bebidas e estava ainda a sorrir de orelha a orelha quando a acompanhou ao carro para ela voltar para o trabalho, dizendo‑lhe que não se preocupasse pois alguém o levaria a casa. Disse‑lhe que não se incomodasse em voltar à festa quando acabasse o trabalho, porque ele não pensava permanecer ali muito tempo. E quando ela se afastou no Porsche, acenou‑lhe, voltando imediatamente para junto do seu anfitrião. Para Steven fora uma noite fabulosa.

            Já assim não acontecera a Adrian e, apesar da oportunidade fantástica que Steven tivera para valorizar o seu trabalho, ela só conseguia pensar se estaria ou não grávida. A idéia atormentou‑a durante as horas de trabalho e estava ainda preocupada ao voltar a casa. Subitamente, num impulso súbito, parou numa farmácia de serviço. Steven não precisava de saber tudo. Não era obrigada a contar‑lhe tudo. Mas, subitamente, quis saber... mesmo que não fosse nessa noite, poderia fazer o teste em qualquer altura em que tivesse coragem suficiente para isso. Poderia até fazê‑lo quando Steven estivesse em Chicago.

            Comprou o estojo para o teste e guardou o pequeno embrulho bem no fundo do seu saco de cabedal. Em seguida, voltou a entrar no Porsche, dirigindo‑se então para casa.

            Quando ela chegou, Steven estava em casa, meio adormecido, mas com uma expressão de profunda felicidade no rosto. Tinha agora a certeza de que iria a Chicago para fazer o negócio mais importante da sua vida.

 

            No seu apartamento, olhando pela janela para a escuridão da noite de sábado, William Thigpen, sentia‑se tudo menos feliz. Escrevera durante um bocado, comprara comida chinesa para levar para casa, telefonara para os filhos em Nova Iorque, vira televisão e sentia‑se agora bastante só. Era uma da manhã e decidiu ligar para o quarto de Sylvia, em Las Vegas. Já poderia estar lá ou, na pior das hipóteses, ele podia deixar‑lhe uma mensagem. O telefone tocou uma dúzia de vezes e, quando se convenceu que ninguém respondia, Bill esperou que a voz do telefonista se fizesse ouvir para deixar a mensagem. Quando isso sucedeu, ouviu a voz arrastada de um homem, que lhe pareceu meio adormecido e que disse apenas:

            ‑ Está? ‑ enquanto Bill esperava.

            ‑ Quero deixar uma mensagem para a pessoa que se encontra no quarto quatrocentos e dois ‑ declarou com firmeza Bill.

            ‑ Este é o quatrocentos e dois ‑ respondeu o homem. Que quer?

            ‑ Deve ser de outro quarto, desculpe... ‑ murmurou Bill. Mas de repente ouviu...

            ‑ ... estás à espera de alguma chamada? ‑ perguntou a voz sonolenta a alguém do outro lado do fio. Bill percebeu que alguém murmurava com uma mão sobre o telefone e, de repente, Sylvia falou com uma voz muito nervosa. Teria sido mais inteligente não atender o telefone, mas ela não pensara nisso e, provavelmente, não previra que Bill lhe telefonasse de Los Angeles.

            ‑ Olá... houve uma terrível confusão ‑ começou ela a explicar e, Bill quase se riu do absurdo da situação. ‑ Esqueceram‑se de reservar metade dos quartos e estamos quatro em cada quarto. ‑ Bonito. Parecia‑lhe uma história digna da sua série na televisão, e ele estava no centro dela, com a sensação de que se tratava da vida de qualquer outra pessoa e não da sua.

            ‑ Isto é ridículo, Sylvia... que se passa? ‑ Parecia um amante irado, mas o estranho era que não se sentia assim. Sentia‑se estúpido e a verdade é que nem sequer estava zangado, mas apenas atordoado e desapontado. Tinham tido algo agradável durante uns tempos, mas tornava‑se mais do que óbvio que acabara.

            ‑ Eu... eu... lamento realmente, Bill. Não posso explicar bem agora, mas houve aqui uma grande confusão. Eu...

‑ Sylvia chorava e ele sentia‑se completamente tolo por a estar a ouvir. Apanhara‑a em flagrante e era ele que tinha vontade de lhe pedir desculpa por ser estúpido.

            ‑ Porque não falamos disso quando voltares?

            ‑ Vais despedir‑me? Tiras‑me o papel na série? ‑ Bill sentiu‑se triste por ela ao ouvi‑la. Não era uma pessoa que fizesse tal coisa e sentia‑se magoado por ela não o saber.

            ‑ O espetáculo nada tem a ver com isto, Sylvia. São duas questões diferentes.

            ‑ Está bem... Desculpa... Estarei de volta domingo à noite.

            ‑ Diverte‑te ‑ disse ele em voz baixa, e desligou. Estava acabado. Nunca devia ter começado, mas começara porque ele era preguiçoso e ela era conveniente e espantosamente sexy. Era de fazer perder a cabeça, sem dúvida, e agora estava a fazer com que qualquer outra pessoa a perdesse. Por um instante, Bill desejou que o homem com a voz pastosa a fizesse mais feliz do que ele a fizera. Sempre tivera muito pouco que dar às mulheres da sua vida, o tempo era sempre multo escasso e tinha ainda menos interesse em ficar magoado, em poder voltar a ser vítima do desgosto que sofrera quando da perda de Leslie e dos filhos. O que tivera depois disso fora fácil de conseguir, mas terminara quase sempre como acontecera com Sylvia, ou de modo semelhante. Ele percebera desde há uns tempos que ela desejava o que ele não lhe podia dar. Tempo. Dedicação. Talvez até amor. Mas ele só podia oferecer afeto e alguma distração, enquanto durava.

            Ficou a pensar em Sylvia durante um bocado, enquanto olhava para o céu noturno, e depois fez‑lhe um brinde com um copo de soda, ao ir para a cama pensar na sua vida. De repente, sentiu‑se muito só, triste por aquilo que existira entre si e Sylvia ter terminado assim, com um telefonema para Las Vegas.

            Permaneceu acordado durante muito tempo nessa noite, a pensar nas mulheres que haviam passado pela vida dele nos últimos anos, e em como de fato elas tinham significado tão pouco para ele, como o seu relacionamento fora vago e casual. Antes de adormecer lembrou‑se de Leslie, pela primeira vez em muitos anos, no relacionamento que existira entre eles, em tudo quanto tinham partilhado. Tudo isso lhe parecia ter acontecido há uma eternidade e, com efeito, assim era. Duvidava que pudesse vir a repetir‑se outra vez. Talvez só acontecesse às pessoas uma vez na vida, na juventude. Talvez nunca houvesse uma segunda oportunidade e talvez, afinal, isso não tivesse importância. Adormeceu finalmente, pensando não em Sylvia, nem na sua ex‑mulher... mas sim nos seus rapazes, Adam e Tommy. Eles eram, afinal, tudo o que importava.

 

            O domingo passou‑se num instante com os preparativos para a viagem de Steven, intercalados com jogos de tênis. Adrian não tocou no material para fazer o teste, que se encontrava escondido no fundo do seu saco. Tratou‑lhe da roupa, preparou o almoço para ele e para os três amigos que tinham jogado tênis com ele e quase não falou, mas Steven pareceu não dar por isso. Nessa noite foram ao cinema. Ela mal ouviu o que se dizia e, enquanto estiveram sentados no escuro a ler as legendas do filme sueco, Adrian só conseguia pensar se estaria ou não grávida. Era uma loucura, nos últimos dois dias isso tornara‑se uma obsessão para ela, e, contudo, o atraso não era muito grande. Não se sentia agoniada e o corpo dela não se tinha alterado, a não ser da maneira que normalmente sucedia quando se aproximava a menstruação. Os seios estavam ligeiramente maiores, o corpo um pouco inchado, ia à casa de banho com mais freqüência, mas não havia qualquer alteração radical. E, contudo, agora só queria que Steven partisse. Desejava vê‑lo longe dali para poder descobrir a verdade em paz. Sentia uma enorme necessidade de saber, mas de certo modo pressentia que se fizesse o teste com Steven por perto, ele ficaria a saber o que se passava. Nem sequer se atreveu a fazê‑lo depois de ele ter saído rumo ao aeroporto na segunda‑feira de manhã. E se ele voltasse?... se se tivesse esquecido de alguma coisa?... Ela poderia estar então na casa de banho com um tubo de teste cheio de um líquido de cor azul... se estivesse grávida.

            Adrian ainda não podia crer que isso tivesse sucedido. Eram quase sempre muito cuidadosos... mas houvera uma ocasião... uma vez... quase há três semanas... três semanas... Pensou nisso todo o dia enquanto estava no emprego, correu para casa depois do noticiário das dezoito, subiu as escadas com toda a velocidade e foi diretamente para a casa de banho. Fez tudo o que estava indicado no teste e ficou sentada nervosamente a olhar para o despertador do quarto. Não confiara sequer no seu relógio de pulso. Se o liquido ficasse azul, isso significava... era uma espera de dez minutos... mas três minutos depois já nada precisava de adivinhar.

            Não se tratava de uma questão de intensidade da cor, não precisava de perguntar a si própria se a cor do liquido que estava no tubo se alterara, se talvez... provavelmente... não, ao olhar para o tubo, Adrian viu‑o azul, definitivamente azul, e todas as dúvidas desapareceram. Ficou completamente imóvel e, em seguida, sentou‑se para continuar a olhar para a cor brilhante, azul, do líquido do tubo. Percebeu então que, apesar de todos os cuidados, apesar de Steven não querer e de terem concordado com isso há anos... apesar de tudo isso, ela estava grávida. Os olhos encheram‑se de lágrimas não derramadas. Estava grávida.

            A única verdadeira questão que a preocupava agora era saber o que iria dizer Steven. Tinha a certeza de que ele ia ficar aborrecido, mas não sabia até que ponto. Iria mudar de opinião ou manteria a sua aversão quanto a ter um filho? Poderia adaptar‑se à idéia de terem um bebê? Certamente não repetiria as coisas horrorosas que dissera nos últimos três anos. Com certeza que uma criança pequena não provocaria muitos estragos. Sabia que estava grávida há cinco minutos e para ela era já um bebê e estava já a arranjar argumentos para defender a vida dele, rezando para que Steven a deixasse tê‑lo. Não podia forçá‑la a desfazer‑se dele, afinal. E porque havia de querer que ela o fizesse? Steven era uma pessoa razoável e tratava‑se do filho dele. Ficou sentada na casa de banho, enquanto as lágrimas lhe caíam lentamente pelas faces. Chorava com medo. Que iria fazer agora? Sentia‑se ao mesmo tempo triste e feliz, e aterrorizada com o que iria dizer ao marido. Ele sempre dissera que se ela ficasse grávida e decidisse conservar a criança a deixava. Mas com certeza não falava a sério... e se falasse?... Que havia ela de fazer? Não queria ficar sem o marido, claro, mas como poderia desfazer‑se daquele bebê?

            Foi uma semana diabólica para ela, passada numa enorme angústia a pensar em como havia de dar a notícia a Steven quando ele voltasse para casa. De cada vez que ele lhe telefonava de Chicago com noticias excitantes a respeito das suas reuniões com a IMFAC, Adrian sentia‑se cada vez mais confusa, mais distante, mais infeliz, até que por fim, na quinta‑feira à noite, ele lhe perguntou o que tinha. Ela mal ouvia o que o marido lhe dizia. A reunião correra brilhantemente e ele regressaria no dia seguinte a Los Angeles, mas regressaria de novo a Chicago na terça‑feira.

            ‑ Adrian, estás bem?

            ‑ Por quê? ‑ Tudo parou para ela quando pronunciou aquela palavra. Que quereria ele dizer? Saberia? Mas como?

            ‑ Estou ótima... não, na verdade tenho tido muitas dores de cabeça. Creio que é só stress... do trabalho... Com efeito, sentira‑se esquisita uma vez ou duas, mas tinha a certeza de que fora imaginação. Porém a gravidez não era. Tinha a certeza. Voltara até a fazer outro teste, para ter a certeza absoluta.

            Os olhos encheram‑se‑lhe de lágrimas enquanto ouvia Steven. Agora queria que ele voltasse, para lhe poder dizer. Queria acabar com aquilo, ser sincera com ele, para que Steven lhe pudesse dizer que estava tudo bem, que ela poderia acalmar‑se e ter o bebê... O bebê... era espantoso... em poucos dias a vida dela dera uma reviravolta e ela só conseguia pensar no seu bebê. Sentira‑se sempre perfeitamente contente por desistir da idéia de ter filhos, por causa de Steven, e agora estava disposta a virar a sua vida de pernas para o ar por causa de um bebê desconhecido. Sentia‑se pronta a alterar o apartamento, a mudar o seu estilo de vida, o emprego, a ficar sem a sala, sem as noites tranqüilas, sem a existência independente e descuidada que era a deles. Ainda se sentia assustada quando pensava nisso, ainda se preocupava por ir saber, finalmente, o que era ser mãe. Receava desesperadamente falhar e, apesar de tudo isso, sabia que tinha de tentar.

            Adrian quis ir esperar Steven ao aeroporto, mas foi obrigada a trabalhar até tarde e só o viu quando chegou ao apartamento. Steven tirava a roupa das malas e via televisão ao mesmo tempo. A aparelhagem estava ligada. A casa enchera‑se de vida com a chegada do marido. Cantarolava quando Adrian entrou e ao vê‑la sorriu.

            ‑ Olá... onde estiveste?

            ‑ A trabalhar, como de costume. ‑ Sorriu nervosamente e aproximou‑se devagar dele, mas quando ele a envolveu com os braços, agarrou‑se a ele como se se estivesse a afogar se o deixasse um instante.

            ‑ Que se passa... querida? ‑ Percebera durante toda a semana que algo não estava bem, mas não conseguia perceber o quê. Ela parecia‑lhe bem, e de repente lembrou‑se de que ela podia ter sido despedida e se estivesse a sentir embaraçada em lho dizer. Talvez que agora, que o trabalho dele estava a ir tão bem, ela estivesse receosa de lho contar. E com um lugar tão bom como ela tinha, era uma pena que o tivesse perdido. ‑ É por causa do trabalho... é... ‑ Calou‑se quando viu a expressão do olhar dela. Não sabia do que se tratava mas percebeu imediatamente que algo de grave sucedera. Sentou‑a na cama a seu lado, com um braço em volta dos ombros dela, querendo dar‑lhe todo o apoio que pudesse. Agora podia fazê‑lo, visto a vida dele estar a correr tão bem. Mike já lhe prometera uma grande promoção se a agência conseguisse realmente o contrato com a IMFAC. O que é?

            Os olhos dela encheram‑se de lágrimas ao olhá‑lo e, por momentos, não conseguiu falar. Aquele devia ser o momento mais feliz da sua vida de casados, e contudo, por causa das coisas que ele lhe dissera no passado, era de fato o momento mais assustador.

            ‑ Foste despedida?

            Ela riu através das lágrimas e abanou a cabeça:

            ‑ Infelizmente, não. às vezes penso que seria um alívio.

‑ Mas ele não a levou a sério. Sabia como a mulher gostava do trabalho dela. Era um grande emprego, na verdade. Ele sabia isso.

            ‑ Estás doente?

            Ela abanou a cabeça mais lentamente dessa vez, e os seus olhos fitaram‑no com um desespero silencioso.

            ‑ Não, não estou... ‑ E, de repente, com uma súbita decisão, declarou: ‑ Estou grávida!

            Fez‑se um silêncio total no quarto. Adrian sentia o seu próprio coração a bater desordenadamente e a respiração apressada dele. Então, ele levantou‑se e olhou‑a com um desespero silencioso.

            ‑ Não falas a sério, pois não, Adrian?

            ‑ Sim, falo. ‑ Sabia que sena um choque para Steven. Fora também um choque para ela, mas a culpa não era sua. Fora um erro honesto.

            ‑ Quiseste enganar‑me?

            Ela abanou a cabeça solenemente.

            ‑ Não. Não fiz isso. Apenas sucedeu.

            ‑ É uma infelicidade. ‑ O rosto dele tomou uma expressão gélida e Adrian sentiu‑se invadida pelo pânico. Tens a certeza?

            ‑ Absoluta.

            ‑ É uma pena ‑ disse calmamente Steven com um olhar de desgosto intenso. ‑ Lamento, Adrian. Foi pouca sorte.

            ‑ Eu não lhe chamaria exatamente sorte ‑ respondeu ela. ‑ Nós tivemos algo a ver com isso.

            Ele disse que sim com a cabeça, sentindo pena dela e de si próprio.

            ‑ Creio que terás de tratar disso na próxima semana.

            Adrian sentiu o sangue gelar‑se‑lhe nas veias quando o olhou. Era assim tão simples para ele. Tratar disso. Mas para ela o caso não apresentava essa simplicidade.

            ‑ Que queres dizer com isso?

            ‑ Sabes bem o que quero dizer. Não podemos ter um filho, sabe‑o muito bem.

            ‑ Por quê? Há alguma coisa que eu desconheça? Alguma doença hereditária terrível? Estamos a planear uma viagem à Lua? Existe alguma razão para que não possamos ter um bebê?

            ‑ Sim, uma ótima razão. ‑ Ele parecia determinado ao olhá‑la. ‑ Concordamos há muito em não termos filhos. E eu julguei que ambos estávamos convencidos do que dizíamos.

            ‑ Mas porque não havemos de ter um filho? Não existe nenhum verdadeiro motivo para isso. ‑ Olhou‑o suplicantemente. ‑ Ambos temos bons empregos. Temos uma boa vida. Com o que ganhamos podemos criar facilmente um bebê.

            ‑ Tens alguma idéia de quanto custa uma criança? Educação, vestuário, médicos. E não seria justo trazer à vida uma criança indesejada. Não, Adrian, não está certo. ‑ Ele parecia aterrorizado, sobretudo por perceber que não a convenceria. Ela sabia como as opiniões dele eram extremadas, por causa da pobreza da sua própria infância, mas a vida deles era completamente diferente.

            ‑ O dinheiro não é tudo. Nós temos tempo e amor, uma bela casa e temo‑nos um ao outro. Que mais se pode desejar?

            ‑ O desejo de ter filhos ‑ respondeu calmamente Steven ‑, e eu não o tenho. Não quero filhos, Adrian. Nunca quis e nunca quererei. Disse‑te isso antes de casarmos e se agora mudastes de opinião não ficarei passivamente a apoiar‑te. Tens de te ver livre disso... ‑ Hesitou, mas apenas por um instante... ‑ da gravidez. ‑ Recusava‑se a dizer bebê.

            ‑ E se eu não quiser fazê‑lo?

            ‑ Será uma estupidez não o fazeres, Adrian. Tens uma grande carreira na tua frente, se quiseres, e não há possibilidade de continuares a fazer o que agora fazes e teres um bebê.

            ‑ Posso tirar uma licença durante seis meses e depois regressar ao trabalho. Muitas mulheres fazem isso.

            ‑ Sim, e amiúde acabam por desistir das suas carreiras, têm mais dois filhos e tornam‑se donas de casa. E no fim detestam‑se a si próprias e aos filhos por terem feito isso. Ele estava a dar voz aos piores receios de Adrian, mas mesmo assim ela continuava a pensar que valia a pena tentar. Não queria desistir apenas por ser mais fácil não ter filhos. Que importância tinha não ser milionário? Por que motivo teria tudo de ser completamente perfeito? E por que motivo não seria ele capaz de compreender o que ela sentia?

            ‑ Julgo que devíamos pensar um pouco mais, antes de fazermos algo de drástico que mais tarde ambos venhamos a lamentar. ‑ Adrian conhecia mulheres que tinham abortado deliberadamente e que se detestavam a si próprias por isso, e outras que não, claro. Mas Steven não concordava com ela.

            ‑ Acredita, Adrian ‑ falou com voz mais suave e deu um passo para ela ‑, não irás lamentar o que fizeres. Quando pensares nisto mais tarde hás‑de sentir alívio. Esta coisa pode ser uma séria ameaça para o nosso casamento. – Esta "coisa" era o filho deles. O bebê que ela começara a amar naqueles quatro dias, desde que sabia da existência de uma vida nova dentro de si.

            ‑ Não precisa de ser uma ameaça ao nosso casamento. Os olhos encheram‑se de lágrimas e encostou‑se a ele. ‑ Steven, por favor... por favor, não me obrigues a fazer isso... ‑

            ‑ Eu não te obrigo a fazer coisa alguma. ‑ Parecia aborrecido e andava de um lado para o outro no quarto como um animal enjaulado. Sentia‑se ameaçado no mais profundo do seu ser e terrivelmente assustado. ‑ Estou apenas a dizer‑te que foi uma pouca sorte tremenda e que é loucura pensar sequer em deixar isso ir avante. A nossa vida está em jogo. Por favor, faz o que tens a fazer.

            ‑ Porque hás‑de ver as coisas dessa maneira? Por que motivo é um bebê uma tão grande ameaça? ‑ Adrian não entendia por que razão Steven se mostrava tão radical a respeito de ter um filho. Ela nunca sentira isso. Ele considerava as crianças como se fossem a ameaça de uma invasão inimiga.

            ‑ Não fazes idéia do que os filhos podem fazer à tua vida, Adrian. Eu faço. Vi isso na minha própria família. A minha mãe nunca teve nada. A minha mãe teve um único par de sapatos durante toda a minha infância. Ela fazia tudo quanto podia e nós usávamos as nossas roupas até caírem aos bocados. Não possuíamos livros nem brinquedos nem bonecas. Tínhamo‑nos apenas uns aos outros e à pobreza. Adrian sentiu pena dele e achou que devia ter sido terrível, mas aquilo nada tinha a ver com a realidade da vida dele, embora ele continuasse a recusar‑se a ver os fatos.

            ‑ Lamento que isso te tivesse sucedido, mas os nossos filhos nunca teriam de viver assim. Ambos ganhamos excelentes salários que dão para vivermos com um filho mais do que confortavelmente.

            ‑ É isso que tu pensas? E a educação? Os colégios? A universidade? Fazes idéia do que custa ter um filho em Stanford hoje em dia? ‑ Depois, como uma criança teimosa, continuou: ‑ E a nossa viagem à Europa? Teríamos de desistir dela. De desistir de tudo. Estás preparada para isso?

            ‑ Não compreendo por que motivo consideras o caso com tais extremos, Steven! E mesmo que tivéssemos de fazer sacrifícios, achas que não valia a pena? ‑ Steven não respondeu, mas os seus olhos disseram tudo. Disseram claramente que para ele não valia.

            ‑ E, de qualquer maneira, nós não estamos a planear ter filhos numa data futura. Estamos a falar de um bebê que já aqui está. É muito diferente.

            Para ela era uma certeza, mas não para ele. Isso era óbvio.

            ‑ Não estamos a falar de um bebê. Falamos de coisa nenhuma. Um pouco de esperma tocou num óvulo microscópico e esse pontinho é apenas uma possibilidade futura, nada mais. É só isso que deves pensar. Basta‑te ir ao médico e dizer que não o queres.

            ‑ E depois? ‑ Adrian sentia‑se invadir pela cólera, enquanto ele falava. ‑ E depois, que faz o médico, Steven?

Diz: "Está bem, Adrian, não quer o bebê, não há problema!" E risca o nosso bebê da sua lista? Não! Tira‑o de dentro de mim com uma bomba de sucção e depois raspa o meu útero com um bisturi e mata o nosso bebê. É isso que ele faz, Steven. É isso que significam as tuas palavras "diz‑lhe que não o queres". E o que sucede é que eu o quero e tu precisas de pensar nisso também. Não é apenas o teu bebê, é também meu. É o nosso filho, quer o queiras quer não. E eu não vou livrar‑me dele só porque tu o queres. ‑ Adrian começara a chorar, enquanto falava, mas Steven parecia não a ouvir. Estava tão aterrorizado que se transformara num homem de gelo. Achava‑se petrificado de pavor e Adrian esmagada pela angústia.

            ‑ Compreendo ‑ disse Steven com voz fria, olhando para a mulher com um novo distanciamento. ‑ Estás a dizer‑me que não te livrarás dele?

            ‑ Não te estou ainda a dizer coisa alguma. Estou só a pedir que reflitas e a explicar‑te que gostaria de ter o bebê.

‑ Adrian surpreendera‑se a si própria confessando que queria o filho. E o fato de estar a pedir ao marido para o ter, dava‑lhe a sensação de estarem a falar de um cãozinho de estimação e não de um filho, e isso horrorizava‑a.

            Steven baixou a cabeça com ar infeliz, agarrou‑lhe na mão e puxou‑a para a cama, para junto de si. De repente, Adrian deixou de conseguir controlar‑se e, quando ele a abraçou, começou a chorar desesperadamente.

            O choque, a tensão e o medo explodiram dentro dela, e ela soluçou durante muito tempo, incontrolavelmente, enquanto ele a abraçava.

            ‑ Tenho pena, querida... tenho pena que isto nos tenha sucedido... vai ficar tudo bem... veras... tenho pena... Adrian nem percebia bem o que ele lhe estava a dizer, mas sentia‑se contente por o abraçar. Talvez ele mudasse de idéias depois de pensar mais maduramente no caso. Parecia‑lhe que ele o faria, mas sentia‑se emocionalmente esgotada por ter de lutar contra a resistência dele.

            ‑ Também tenho pena ‑ disse ela finalmente. E ele limpou‑lhe os olhos e beijou‑a. Começou depois a acariciar‑lhe o cabelo, beijando as lágrimas nas pestanas e nas faces dela. Depois desabotoou‑lhe a blusa e puxou‑lhe as cuecas e o resto da roupa para baixo, pelos pés. Ela ficou nua estendida ao lado dele e ele manteve‑se imóvel, a admirá‑la. Adrian era muito elegante e, na opinião dele, desfigurá‑la com uma gravidez seria um crime. Ela nunca mais voltaria a ser a mesma e ele sabia‑o.

            ‑ Amo‑te, Adrian ‑ murmurou meigamente. Amava‑a demasiado para a deixar fazer uma loucura tão grande. E gostava de si mesmo e da vida que levavam, tudo aquilo por que tinham lutado e conseguido obter. Não podia de maneira alguma pôr tudo isso em risco por causa de um bebê.

            Beijou‑a demoradamente e ela retribuiu o beijo, pensando que ele acabara por compreender o que ela sentia. Fizeram amor meiga e calmamente. Era altura de se sentirem perto um do outro e de porem de parte a discussão. Cada um deles esperava que o outro compreendesse o seu ponto de vista, enquanto se conservavam abraçados, beijando‑se meigamente e sentindo‑se muito unidos.

            Já a tarde ia a meio quando acordaram no dia seguinte. Steven sugeriu que fossem à piscina nadar, o que fizeram. Em seguida, tomaram uma ducha e comeram o pequeno‑almoço. Adrian estava pensativa e manteve‑se calada enquanto se dirigiam para a piscina de mãos dadas. A piscina destinava‑se a ser utilizada por todos os moradores do complexo, mas nesse dia não se encontrava ali ninguém. Estava uma bonita tarde de Maio, cheia de sol, e muita gente tinha ido para a praia ou visitar amigos, ou estavam simplesmente nos terraços das casas estendidos ao sol para se bronzearem, quase sempre nus.

            Steven nadou aos bocados, enquanto Adrian tomou um banho prolongado, saiu da água e ficou deitada ao sol dormitando. Não queria voltar a falar acerca do bebê, pelo menos por enquanto. Esperava que ele se acalmasse e se adaptasse à idéia. Fora um grande ajustamento para ela e sabia que para ele ainda seria maior.

            ‑ Vamos para casa? ‑ perguntou por fim Steven, depois das cinco horas. Mal tinham falado durante a tarde e Adrian sentia‑se ainda exausta da discussão da véspera.

            Entraram em casa e depois de Adrian ter tomado a ducha, Steven ligou a aparelhagem e ouviram o UB40 enquanto ela preparava o Jantar.

            Adrian queria passar um serão tranqüilo com ele. Tinham muito em que pensar, muita coisa a considerar.

            ‑ Sentes‑te bem? ‑ perguntou Steven enquanto ela cozia massa e preparava uma grande taça com salada verde.

            ‑ Estou bem, apenas um pouco cansada ‑ respondeu Adrian em voz baixa. Steven disse que sim com a cabeça.

            ‑ Vais‑te sentir melhor para a semana, quando fores tratar disso.

            Ela mal podia acreditar no que o marido estava a dizer e olhou‑o com assombro.

            ‑ Como podes dizer tal coisa? ‑ Ficou chocada e compreendeu então que ele continuava tão irredutível como sempre.

            ‑ Adrian, agora trata‑se apenas de um problema físico. E está a fazer com que te sintas mal, portanto trata disso. Nada mais. Não precisas de pensar nisso de qualquer outra maneira. ‑ Adrian não podia acreditar que ele fosse tão frio, que conseguisse manter‑se emocionalmente tão alheio ao problema de irem ter um filho.

            ‑ Isso é repugnante. É muito mais do que isso e tu sabe‑o bem. ‑ Ela não planeara voltar a mencionar o assunto nessa noite, mas já que ele falara nisso, ia discuti‑lo.

            ‑ É o nosso filho. ‑ Os olhos encheram‑se‑lhe novamente de lágrimas e ficou furiosa com isso. Normalmente não chorava, mas ele estava a levá‑la a extremos com a sua atitude quase indiferente acerca de ela fazer um aborto. Não vou fazê‑lo! ‑ disse subitamente, deixando o jantar em cima do balcão da cozinha e subindo as escadas rapidamente para o quarto. Só mais de uma hora depois é que Steven foi ter com ela para continuarem a conversa. Adrian estava estendida em cima da cama e ele sentou‑se ao lado dela falando com muita meiguice:

            ‑ Adrian, tens de fazer um aborto ‑ disse calmamente. Se dás valor ao nosso casamento. Se o não fizeres, arruinarás tudo.

            Tanto quanto ela podia ver, o casamento estaria arruinado de qualquer das maneiras. Se não tivesse o bebê, sentiria sempre tê‑lo perdido e, se o tivesse, Steven poderia nunca lhe perdoar.

            ‑ Não creio que o possa fazer. ‑ Falou com a cara enterrada na almofada e estava a ser honesta com ele. A última coisa que queria fazer era um aborto.

            ‑ Penso que podes. Se não abortares vais destruir o nosso casamento e ficar sem o teu emprego.

            ‑ Não quero saber do meu emprego para nada. E, na verdade, em comparação com o desejo de ter o filho, não queria mesmo. Era espantoso como em tão pouco tempo o bebê se tornara importante para ela.

            ‑ Claro que te importas com o teu emprego. ‑ Steven tinha a sensação de que ela se transformara noutra pessoa de um dia para o outro.

            ‑ Não, não me importo... mas não quero destruir o nosso casamento ‑ disse Adrian tristemente, voltando‑se para ele.

            ‑ Posso dizer‑te uma coisa que com certeza não quero, Adrian, e isso é o bebê.

            ‑ Podes vir a mudar de opinião mais tarde. Isso acontece a muita gente ‑ respondeu ela. Mas Steven abanou a cabeça.

            ‑ Não. Não quero filhos. Nunca quis e nunca quererei e tu costumavas ser da mesma opinião. Não é verdade?

            Adrian hesitou e então disse‑lhe uma coisa que nunca dissera antes:

            ‑ Pensei que... eventualmente... tu pudesses um dia mudar de opinião. Se nunca tivesse ficado grávida creio que não me importaria. Mas num caso destes... pensei que... talvez... Não sei, Steven. Eu não quis que isto sucedesse. Mas agora que sucedeu, como hei‑de varrer um filho da nossa vida sem pensar duas vezes? ‑ Era terrível.

            ‑ Penso assim porque a qualidade da nossa vida será melhor se tu abortares. E tu és mais importante para mim do que um bebê.

            ‑ Há lugar para os dois ‑ suplicou ela. Mas Steven abanou novamente a cabeça.

            ‑ Não, na minha vida não há. Há lugar para ti e para mais ninguém. Não quero competir com um bebê pela tua atenção. Não creio que os meus pais tivessem dito mais de duas palavras um ao outro em vinte anos. Não tinham tempo, nem energia, nem emoção. Estavam esgotados. Quando nós já éramos crescidos não restava nada deles. Eram duas pessoas velhas, acabadas. É isso que tu queres?

            ‑ Um bebê não vai fazer isso ‑ disse Adrian, com modos suplicantes, sem nada conseguir.

            ‑ Não estou disposto a arriscar, Adrian ‑ disse Steven, olhando‑a. ‑ Livra‑te dele. ‑ A voz do marido tremia ao falar e ele foi para baixo e ficou lá muito tempo, só para fugir dela e da ameaça do bebê que ela transportava.

            Adrian ficou a pensar no assunto durante muito tempo, esperando que Steven voltasse para junto dela. Sabia que se desistisse do seu bebê, uma parte importante da sua própria alma estaria perdida para sempre.

 

            O domingo e a segunda‑feira foram um pesadelo de discussões e recriminações entre os dois, e às seis da manhã de terça‑feira, dia em que Steven ia partir para Chicago, Adrian acabou por sofrer um colapso, soluçando histericamente e concordando em fazer tudo o que Steven quisesse. Havia dois dias que não ia trabalhar e não queria perder o marido que amava, mesmo que para isso tivesse de sacrificar o filho. Prometeu tratar do aborto enquanto ele estava fora, mas nesse dia apenas conseguiu ficar estendida na cama a soluçar até ir ao médico às 16.30.

            Estivera deitada toda a tarde com uma sensação de temor que se transformou num verdadeiro terror na altura em que acabou de se vestir. Tinha vontade de fugir de tudo aquilo, do que lhe estava a suceder, daquilo que Steven esperava que ela fizesse e que ela achava que devia fazer para salvar o seu casamento.

            ‑ Adrian ‑ chamou a enfermeira. Ela levantou‑se, muito nervosa. Vestira umas calças pretas e uma blusa da mesma cor. Os sapatos eram igualmente pretos. Com a sua pele muito branca e o cabelo escuro, o seu aspecto era desusadamente sombrio.

            A enfermeira conduziu Adrian para um pequeno compartimento e disse‑lhe que se despisse da cintura para baixo e vestisse uma bata. Adrian já ali estivera antes, mas parecera‑lhe tudo menos assustador das outras vezes, quando ali fora por uma questão de controlo de nascimentos e para o exame anual.

            Adrian sentou‑se na marquesa com a sua blusa de seda preta e a bata azul a cobrir‑lhe o resto do corpo, parecendo uma rapariguinha tímida, enquanto tentava não pensar na razão que a levara ali e no que ia fazer. Lembrava constantemente a si própria que fazia aquilo por Steven, porque o amava.

            O médico apareceu finalmente e sorriu‑lhe quando olhou para a ficha dela e a reconheceu. Era uma rapariga simpática e sempre gostara dela.

            ‑ Que posso fazer por si hoje, senhora Townsend?

            O médico era um homem que devia ter a idade do pai dela, simpático e de modos antiquados.

            ‑ Eu... ‑ Adrian não conseguia forçar‑se a dizer as palavras e os seus olhos pareciam enormes no rosto pálido. Vim aqui para... abortar. ‑ Essas palavras foram ditas em voz tão baixa que ele mal as ouviu.

            ‑ Compreendo‑a. ‑ Ele sentou‑se num banco giratório e olhou para a ficha dela. Casada, trinta e um anos, saudável. Não percebia. Talvez o bebê não fosse do marido. Alguma razão especial?

            Ela disse que sim, dolorosamente. Tudo nela lhe dizia que não queria estar ali. A maneira como estava sentada, encolhida, como para se proteger dele, a maneira como ela recuava de cada vez que ele se aproximava, o modo como falava parecendo ter dificuldade em pronunciar as palavras. O médico vira muitas mulheres aflitas, mulheres que teriam feito tudo para deixarem de estar grávidas, mas aquela não era uma dessas. Ele seria capaz de apostar em como ela não queria fazer o aborto.

            ‑ O meu marido acha que não é boa altura para termos filhos.

            O médico disse que sim com a cabeça, como se compreendesse perfeitamente.

            ‑ Existe alguma razão para ele achar isso, Adrian? Não tem emprego? Tem problemas de saúde? ‑ Ia saber que motivo levara aquela rapariga ali e não lhe faria o aborto sem uma boa razão. Legal ou não, ele tinha ainda responsabilidades morais para com os seus doentes. Ela abanou negativamente a cabeça a todas as perguntas dele.

            ‑ Não, ele apenas... ele apenas acha que não é altura certa para termos um filho.

            ‑ Ele quer ter filhos? ‑ Ela hesitou, depois abanou a cabeça e os olhos encheram‑se‑lhe de lágrimas.

            ‑ Não ‑ disse num murmúrio. ‑ Creio que não. Os pais dele tiveram cinco filhos e a infância dele foi infeliz. É difícil para ele compreender que as coisas possam ser diferentes.

            ‑ Penso que poderiam ser. Você tem um bom emprego e penso que ele também. Acha que ele poderá mudar de idéias com o tempo?

            Adrian abanou tristemente a cabeça e as lágrimas correram‑lhe pelas faces. O médico apressou‑se a dizer‑lhe uma coisa que certamente a ia fazer ficar menos nervosa.

            ‑ Não vou fazer‑lhe o aborto hoje, Adrian. ‑ Começara a tratá‑la pelo primeiro nome logo que percebera qual a gravidade do problema. Não era altura para formalidades, ela precisava de um amigo e ele queria ajudá‑la. ‑ Em primeiro lugar quero ter a certeza de que está realmente grávida e de que não há engano. Fez algum teste? ‑ Devia ter feito ou não estaria ali.

            ‑ Sim, fiz. Em casa. E tenho um atraso de duas semanas.

            ‑ Então está grávida de quatro semanas, segundo a maneira como nós calculamos. Estou certo de que está, mas vamos já verificar. E depois disso aconselho‑a a ir para casa e pensar nisto, só para ter a certeza. Se depois ainda achar que quer interromper a gravidez, pode voltar aqui amanhã. Acha razoável?

            Ela disse que sim, sentindo‑se simultaneamente histérica e atordoada. Tinha a sensação de que o traumatismo emocional que estava a sofrer a ia matar. Mas o médico era afetuoso e gentil. Confirmou o que ela já sabia e disse‑lhe que fosse para casa e voltasse a falar com o marido. Achava que, visto ela não desejar decididamente fazer o aborto, talvez o marido mudasse de opinião se ela lhe explicasse isso. O que ele não sabia era que Steven era irredutível acerca do assunto. Quando nessa noite lhe telefonou, mostrou‑se claramente aborrecido por ela não ter ainda feito o aborto.

            ‑ Por que motivo não o fez ele já hoje? Que vantagem há em esperar?

            ‑ Ele quer que pensemos no assunto antes de tomarmos uma decisão tão drástica. E talvez não seja má idéia. ‑ Pensar no que ia fazer deixava‑a com uma enorme sensação de depressão. ‑ Quando voltas? ‑ perguntou ansiosamente, mas ele não pareceu aperceber‑se do pânico na voz dela ao fazer‑lhe a pergunta.

            ‑ Não antes de sexta‑feira. E Mike e eu estamos a planear jogar tênis sábado de manhã. Talvez tu e Nancy se possam juntar a nós mais tarde para jogarmos a pares. Adrian mal podia acreditar naquilo que ouvia. Ou ele era completamente insensível ou estúpido.

            ‑ Não creio que possa jogar tênis nessa altura. O sarcasmo na voz dela era óbvio e brutal.

            ‑ Oh, é verdade! Esqueci‑me. ‑ Em dez segundos. Como podia ele esquecer tão depressa? E, em primeiro lugar, como podia deixá‑la fazer aquilo?

            ‑ Creio que devias pensar bem nisto, Steven. O bebê não é apenas meu. É também teu. ‑ Mas mesmo ao dizer aquelas palavras sabia que nada serviriam.

            ‑ Já te disse o que penso a respeito disso, Adrian. Não quero discutir mais o assunto. Faz o que tens a fazer, que diabo! E não percebo para que tens de esperar até amanhã.

            Ela não lhe respondeu, esmagada pela brutalidade do que ele dissera. Era como se o bebê o ameaçasse e ela o traísse por deixar que aquilo sucedesse. Agora tinha de se livrar do bebê de qualquer maneira, sem querer saber do mal que isso lhe pudesse causar a ela.

            ‑ Telefono‑te amanhã à noite. ‑ Adrian conteve a respiração quando sentiu que ia começar a chorar.

            ‑ Para quê? Só para teres a certeza de que o fiz? O coração parecia querer rebentar‑lhe ao despedir‑se dele, pensando que daí a umas horas seria demasiado tarde para salvar o seu bebê. E ficou estendida na cama, acordada, toda a noite, chorando e pensando nessa criança, que nunca veria, a criança que iria sacrificar ao marido. Estava ainda acordada quando o Sol nasceu na manhã seguinte. Sentia‑se como se estivesse à espera de ser executada. Tirara uma semana de licença e o que tinha a fazer era apenas ir ao consultório do médico e fazer o aborto.

            Enquanto se vestia dizia a si própria que Steven poderia telefonar no último minuto dizendo‑lhe para não o fazer. Mas ele não telefonou. A casa continuava todavia silenciosa quando ela saiu e se meteu no carro, de sandálias, com uma saia de ganga e uma blusa que costumava usar em casa. E chegou ao consultório às nove horas, como lhe fora dito se decidisse fazer o aborto. Não comera nem bebera nada desde a noite anterior para o caso de ter de ser anestesiada.

Estava pálida e trêmula ao parar o carro junto do consultório, cinco minutos antes da hora. Disse à enfermeira que se encontrava ali e sentou‑se na sala de espera, com os olhos fechados e uma sensação no coração que sabia que nunca mais esqueceria durante toda a vida. Pela primeira vez na sua vida, concluiu que odiava Steven. Desejava ansiosamente telefonar a Steven e dizer‑lhe que ele tinha de mudar de opinião, mas sabia que seria inútil.

            A enfermeira apareceu à porta e chamou‑a. Adrian seguiu‑a pelo corredor. Foi conduzida para uma sala ligeiramente maior e dessa vez a enfermeira disse‑lhe que se despisse e ficasse apenas com a bata. Em seguida devia deitar‑se na marquesa. Havia junto dela uma máquina com aspecto ameaçador e Adrian sabia o que era. Sentiu a garganta seca e os lábios colados um ao outro como um lenço de papel molhado. Agora só queria acabar com aquilo, ir para casa e tentar esquecer tudo. Sabia que, no resto da sua vida, nunca mais iria deixar‑se engravidar. E todavia parte de si ainda desejava conservar o bebê. Era loucura, visto ela estar a servir‑se de todas as suas forças para se livrar dele, mas parte dela ainda queria ficar com o bebê, sucedesse o que sucedesse, dissesse Steven o que dissesse, por mais neurótico que se mostrasse a respeito da sua infância.

            ‑ Adrian? ‑ A cabeça do médico espreitou à porta e ele olhou‑a com um sorriso afetuoso. ‑ Sente‑se bem? ‑ Ela disse que sim com a cabeça, mas não lhe ocorreram quaisquer palavras enquanto o olhava com mal oculto terror. O médico entrou na sala, dirigiu‑se para ela e falou com firmeza. ‑ Tem a certeza de querer fazer isto? ‑ Ela disse outra vez que sim em silêncio, as lágrimas vieram‑lhe aos olhos e ela abanou a cabeça com honestidade. Sentia‑se tão confusa, aterrorizada e infeliz, desejando acima de tudo não estar ali. Queria estar em casa, com Steven, à espera do seu bebê. ‑ Não precisa de fazer isto. Não o deve fazer se não quer. O seu marido há‑de habituar‑se à idéia. Há muitos maridos que tomam essa atitude ao princípio e são depois os mais entusiasmados quando o bebê nasce. Quero que pense bem nisto antes de o fazer.

            ‑ Não posso ‑ disse Adrian com voz rouca. – Não posso. ‑ Soluçava abertamente ao sentar‑se na marquesa.

‑ Não o posso fazer.

            ‑ E eu também não. ‑ O médico sorriu: ‑ Vá para casa e diga ao seu marido para comprar um charuto e o guardar até que... Oh... ‑ verificou a ficha outra vez... digamos até ao princípio de janeiro, e nessa altura dar-lhe-emos um lindo bebê gordinho. Que lhe parece, Adrian?

            ‑ Parece‑me maravilhoso. ‑ Sorriu por entre as lágrimas e o bondoso médico pôs‑lhe um braço por cima dos ombros.

            ‑ Vá para casa, Adrian. Descanse e chore um bom bocado. Vai correr tudo bem. Você vai ficar ótima e o seu marido também. ‑ Deu‑lhe uma palmadinha num ombro e saiu da sala para ela se poder vestir e ir para casa com o seu bebê. Adrian sorriu e chorou enquanto se vestia e saiu com a sensação de que lhe sucedera algo de maravilhoso. Fora poupada e ainda não sabia bem por que. Sabia apenas que o experiente médico fora suficientemente esperto para perceber que ela não o podia fazer.

            Encaminhou‑se para casa mas, subitamente, decidiu ir antes para o escritório. Sentia‑se bem melhor do que há muitos dias e queria ir para o trabalho e esquecer tudo nas pilhas de papéis que a esperariam. Dirigiu‑se para o estúdio com o vento a agitar‑lhe os cabelos. Respirou fundo e sorriu para si mesma. A vida tornara‑se repentinamente muito doce e ela ia ter o seu bebê.

            Entrou no escritório com a Primavera atrás de si, mas interiormente sentia‑se como se tivesse corrido dez quilômetros. Não fora com efeito uma manhã fácil, nem uns dias fáceis os que passara em casa. Além disso, ainda tinha de enfrentar Steven quando ele voltasse de Chicago. Mas pelo menos agora sabia o que estava a fazer. Sentia‑se mais descontraída do que alguma vez se sentira nos últimos tempos e a esmagadora sensação de depressão parecia ter desaparecido.

            ‑ Olá, Adrian. ‑ Zelda meteu a cabeça pela porta entreaberta a meio da manhã. ‑ Está tudo bem?

            ‑ Ótimo. Por quê? ‑ Adrian parecia distraída, com um lápis metido atrás de cada orelha, e era inusitado ela ir trabalhar com roupas velhas e sem maquiagem.

            ‑ Bem, para dizer a verdade não pareces mal, mas dás a impressão de teres estado metida numa máquina de secar roupa. ‑ E tinha. ‑ Sentes‑te bem? ‑ Zelda era mais observadora do que Adrian julgava. Ela tinha razão. As coisas tinham estado muito mas.

            ‑ Tive gripe. ‑ Sorriu com gratidão para Zelda. Mas agora estou bem.

            ‑ Julguei que tinhas tirado uma semana de licença. Olhava‑a intensamente, como se estivesse a decidir se devia acreditar em Adrian ao ouvi‑la dizer que estava bem. Mas Adrian parecia satisfeita, sentada à sua secretária em frente de montes de papelada.

            ‑ Senti a falta disto tudo.

            ‑ És doida. ‑ Zelda sorriu‑lhe.

            ‑ Provavelmente. Daqui a um bocado queres ir comer um sanduíche?

            ‑ Com certeza.

            ‑ Aparece aqui quando estiveres pronta.

            ‑ Está bem.

            Zelda desapareceu outra vez e Adrian voltou ao trabalho, sentindo‑se melhor do que se sentira desde há muitos dias. A idéia de um bebê ainda a assustava um pouco, mas era algo a que havia de se habituar. Era melhor do que a alternativa. Sabia que não poderia ter vivido com isso, e sentia ressentimento contra Steven por a querer forçar a fazê‑lo. Pensou se alguma vez se curariam dos traumas emocionais infligidos um ao outro nos últimos dias, ou se alguma vez o esqueceriam. Começou novamente a trabalhar e tentou não pensar nele. Precisava de meditar no que lhe iria dizer mais tarde.

 

            Bill Thigpen estava sentado num banco, a falar com o realizador e a resmungar.

            ‑ Como diabo hei‑de saber onde ela está? Deixou o hotel em Las Vegas há uma semana. Não sei com quem ela se encontra. Não sei para onde foi. É uma mulher adulta e nada tenho a ver com isso... até ela começar a prejudicar o meu programa. Nessa altura já o caso começa a dizer‑me respeito, mas continuo sem saber para onde ela foi.

            Sylvia Stewart não regressara de Las Vegas no domingo anterior. Deixara o hotel na segunda‑feira de manhã, exatamente nove dias antes, segundo informações do próprio hotel, e ainda não voltara ao trabalho. Sentindo‑se um pouco embaraçado, Bill fora ao apartamento dela, mas Sylvia também não estava lá.

            Tinham escrito novos guiões na passada semana, mas Bill começava a ficar desesperado com o desaparecimento da jovem.

            Dentro de mais alguns dias teriam de a substituir. Bill acabava de dizer isso mesmo ao realizador. Não telefonando para explicar o que se estava a passar, ela violava claramente o seu contrato.

            ‑ Se ela não aparecer antes do programa de amanhã teremos de arranjar outra pessoa ‑ dizia Bill ao realizador e aos assistentes da produção. Nesse dia haviam já telefonado para algumas agências, mas não era fácil substituí‑la sem perturbar os espectadores.

‑ Já todos receberam hoje o material? ‑ perguntou o realizador, franzindo a testa ao ver o que Bill acabara de lhe entregar. Tratava‑se de um guião inteiramente novo e era óbvio que Bill fazia os argumentistas escreverem dia e noite na ausência de Sylvia. Era um esforço heróico que mantinha a história a flutuar enquanto ela não aparecesse. Havia tantos dramas a desenrolarem‑se ao mesmo tempo na série que até então podia parecer plausível que Vaughn Williams não tivesse sido vista durante nove dias, mas isso não podia continuar. Ela estava ainda na prisão, acusada do crime que o cunhado praticara nove dias antes, numa sexta‑feira.

            Bill permaneceu no estúdio até a série ir para o ar. Assistiu ao espetáculo todo, satisfeito por ver que toda a gente conseguira dominar as modificações introduzidas no guião. Quando acabou, depois de felicitar toda a gente, voltou para o seu gabinete. Meia hora mais tarde, a secretária falou com ele pelo intercomunicador e disse‑lhe que estava ali uma pessoa para lhe falar.

            ‑ Alguém que eu conheça? Ou vai guardar segredo? Sentia‑se cansado pelas longas noites de trabalho, mas satisfeito por tudo ter corrido bem. Isso devia‑se principalmente ao formidável elenco, dois ótimos argumentistas e a um notável realizador. ‑ Quem é, Betsey?

            Houve uma longa pausa.

            ‑ É Miss Stewart.

            ‑ A nossa Miss Stewart? A Miss Stewart que andamos a procurar por todo o estado do Nevada? ‑ Ergueu os sobrolhos, com interesse.

            ‑ Essa mesma.

            ‑ Faça favor de a mandar entrar. Estou ansioso por a ver.

            Sylvia entrou logo que Betsey abriu a porta. Parecia uma criança assustada e vinha mais bonita do que nunca. O seu comprido cabelo preto caía‑lhe pelas costas, como o da Branca de Neve, e os olhos dela, fitando‑o com remorso, pareciam enormes. Bill levantou‑se quando ela entrou e julgou ver uma visão.

            ‑ Onde diabo te meteste? ‑ perguntou com voz ameaçadora. E por momentos ela ficou sem saber o que esperar, por isso começou a chorar olhando‑o. ‑ Telefonamos para todos os sítios de Las Vegas, loucos de inquietação. Os atores de My House disseram que tu tinhas partido com um tipo qualquer. Íamos telefonar à Policia do Nevada e participar o teu desaparecimento. ‑ Bill estivera genuinamente preocupado com ela durante a última semana, assustado com o que pudesse ter‑lhe acontecido.

            Sylvia sentou‑se no sofá e ele deu‑lhe uns lenços de papel. ‑ Lamento ‑ murmurou ela.

            ‑ Acho que deves lamentar. Preocupaste uma quantidade de gente. ‑ Era como se estivesse a falar com uma criança, contudo Bill sentia‑se aliviado por ela deixar de ser um problema seu. ‑ Onde estiveste? ‑ Não que isso tivesse realmente importância agora, visto ela ter voltado sã e salva. Isso é que o preocupara. Ultimamente tinham sucedido algumas coisas desagradáveis em Las Vegas. Especialmente a raparigas com o aspecto de Sylvia Stewart. Particularmente quando dormiam com desconhecidos.

            Mas agora ela olhava‑o fixamente, começando a chorar outra vez. ‑ Casei‑me.

            ‑ O quê? ‑ Bill ficou assombrado. Imaginara tudo o que lhe pudesse ter acontecido, menos tal hipótese. ‑ Com quem? Com o tipo que estava no teu quarto na outra noite?

            Ela disse que sim com a cabeça e assoou‑se outra vez.

            ‑ Ele trabalha na indústria de vestuário. De Nova Jersey.

            ‑ Oh, meu Deus! ‑ Bill sentou‑se pesadamente ao lado dela, pensando se alguma vez chegara a conhecê‑la. O que é que te levou a fazer uma coisa dessas?

            ‑ Não sei. Eu apenas... tu trabalhas sempre tanto e eu sentia‑me tão só... ‑ Céus! Ela tinha vinte e três anos, era linda e chorava a dizer que se sentia só. Metade das mulheres na América seriam capazes de dar o seu braço direito e mais para terem o aspecto dela, e ela casara com um fabricante de vestuário que nem sequer conhecia e passara uma semana com ele em Las Vegas. Então Bill pensou subitamente se a culpa seria sua. Talvez se ele não a tivesse abandonado tanto, se não estivesse tão empenhado no espetáculo... era um refrão familiar. De certa forma, esse coro vinha desde os tempos com Leslie. Mas porque haviam elas de se ir embora e fazer qualquer loucura? Aquela tolinha casara com um desconhecido. Bill olhou‑a com assombro.

            ‑ Que vais fazer agora, Sylvia? ‑ Estava ansioso por conhecer a resposta.

            ‑ Não sei. Creio que para a semana terei de ir para Nova Jersey com Stanley. Ele tem de estar em Newark na terça‑feira.

‑ Isto é inacreditável! ‑ Bill deitou a cabeça para trás e começou a rir. Durante um bom minuto não conseguiu parar. Betsey ouviu‑o e ficou aliviada. Receava que começasse a gritar. Ele raramente o fazia, mas ela achava que o desaparecimento de Sylvia talvez o levasse a isso. ‑ Tu e Stanley têm de estar em Newark terça‑feira. É isso?

            ‑ Bem... ‑ Ela mostrou‑se subitamente preocupada.

‑ Pois é. Isto é... eu sei que tenho um contrato para entrar na série durante mais uma época. ‑ A verdade era que ela julgara que ele a ia tirar da série depois do telefonema de sábado e, em pânico, casara com Stanley. Não fazia idéia do que lhe iria suceder, mas este mostrara‑se muito carinhoso com ela e comprara‑lhe um lindo anel com um diamante, em Las Vegas. Além disso, prometera‑lhe cuidar dela em Newark e dissera‑lhe que lhe arranjaria trabalho como modelo e nos filmes publicitários, ou talvez mesmo em pequenas séries em Nova Iorque. Era um novo horizonte que se abria para ela e, de certo modo, o fato de ter casado com um homem ligado à indústria de vestuário de Newark talvez não fosse um erro para uma rapariga como Sylvia Stewart.

            ‑ E que vou fazer a respeito do meu contrato? ‑ Sylvia olhou suplicantemente para Bill e ele quase começou a rir outra vez. Era tão absurdo que ele tinha dificuldade em se conter. Era a vida a imitar a arte e ele não era tão louco que não percebesse o humor disso.

            ‑ Sabes o que vais fazer a respeito do teu contrato, Sylvia? Vais dar‑me mais dois dias, hoje e amanhã, para tomar parte no programa, e depois vamos matar‑te numa cena extremamente dramática, mais do que a que viste na sexta‑feira. Depois disso ficas livre para ires para onde quiseres. Podes ir para Newark com Stanley e teres dez bebês desde que ponhas o meu nome ao primeiro. Liberto‑te do teu contrato.

            ‑ Libertas? ‑ Ela parecia tão assombrada que ele sorriu, divertido.

            ‑ Sim. Faço‑o porquê sou boa pessoa e porque te fiz passar um mau bocado a aturar‑me sem te dar a atenção devida. Fiquei em dívida para contigo, querida, e isto é a retribuição. ‑ Bill sentia‑se satisfeito por ela ter aparecido. Ia permitir‑lhe que a série prosseguisse sem problemas. John iria matar Vaughn em cena, porque ela o vira assassinar o traficante. E a saga podia continuar a partir daí, ad infinitum.

‑ Lamento o sucedido ‑ disse‑lhe meigamente. ‑ Eu não sou grande companheiro para ninguém. Creio que nunca fui. Estou casado com o meu espetáculo.

            ‑ Não tem importância. ‑ Sylvia olhou‑o quase com uma certa astúcia. ‑ Não estás muito zangado comigo?... Por ter casado?

            ‑ Não. Se fores feliz, não. ‑ E estava a ser sincero.

            O tempo que haviam passado juntos fora passageiro e ambos sabiam isso. Era algo que significava muito pouco para qualquer deles. O que ela provara passando um fim‑de‑semana com um desconhecido em Las Vegas, e Bill suspeitava corretamente que para isso é que ela lá fora.

            ‑ Posso beijar a noiva? ‑ Sylvia levantou‑se e Bill também. Ela ainda se sentia admirada por ele a ter deixado quebrar o contrato com tanta facilidade. Esperara ir encontrá‑lo furioso e receava que ele a despedisse sem a desligar do contrato. Seria muito mais fácil arranjar trabalho em Nova Iorque da maneira como ficavam agora as coisas. Voltou‑se para ele, pronta para um abraço apaixonado, mas Bill limitou‑se a beijá‑la ao de leve, na face. Contudo por instantes, compreendeu que ia sentir a falta dela. Havia em Sylvia uma meiguice e uma afetuosidade de que ele gostava, e tinham‑se divertido juntos. Ela era‑lhe familiar e consideravam‑se bons amigos. Agora ia ficar novamente só. Mas nunca mais se deixaria envolver com alguém que tomasse parte no espetáculo. Era um erro que não voltaria a cometer. Não havia nenhuma mulher na sua vida e, de momento, nem sequer tinha a certeza de se importar com isso. ‑ Que queres fazer com as coisas que tens na minha casa?

            ‑ Creio que é melhor ir buscá‑las. ‑ Sylvia não se lembrara disso. Tratava‑se de uma mala com roupa que deixara no roupeiro dele.

            ‑ Queres ir lá agora?

            ‑ Sim. Preciso de ir ter com Stanley ao Beverly Wilshire às quatro. Mas tenho muito tempo. ‑ Havia uma insinuação na voz dela, mas Bill fingiu não a perceber. Para ele estava tudo acabado. Ela fizera o que fizera e ele não lhe desejava mal, mas também não a queria mais.

            Saiu do gabinete com ela, e teve a certeza de que toda a gente pensava que eles iam ao apartamento dele para uma "rápida". Riu‑se apenas e limitou‑se a conduzi‑la a casa para a ajudar a reunir as coisas dela. E, em seguida, levou‑a ao apartamento onde ela vivia.

            ‑ Queres subir?

            Sylvia olhou‑o com tristeza enquanto ele tirava a última caixa da station, mas Bill apenas abanou a cabeça. E, momentos depois, afastava‑se; esse capítulo da sua vida estava encerrado.

 

            Quando Adrian chegou a casa, depois do noticiário das seis, o telefone estava a tocar e ela levantou o auscultador no momento em que a mensagem deixada no gravador era transmitida. Adrian falou rapidamente, desligou o gravador e atendeu, ainda com a mala na mão, o jornal e um saco com compras que fizera antes de chegar a casa. Tudo parou quando ouviu a voz. Era Steven.

            ‑ Estás bem? ‑ Parecia ansioso e tenso e Adrian compreendeu imediatamente por que. ‑ Tenho estado a ligar para aí toda a tarde. Porque não atendeste o telefone? ‑ Estivera terrivelmente preocupado com ela todo o dia. Ligara inúmeras vezes a partir do meio‑dia e só lhe respondera o atendedor de chamadas. às sete, quando Adrian finalmente atendeu, ele estava desesperado. Não lhe ocorrera telefonar para o escritório dela. Ela também não tivera vontade de lhe telefonar. Precisava de tempo para pensar como havia de dizer‑lhe que não fizera o aborto.

            ‑ Não estive em casa ‑ disse Adrian quase com remorsos, compreendendo que precisava de mudar rapidamente a conversa. Ela conseguira aceitar o que estava a ocorrer na vida deles. Mas Steven não tinha idéia do que ela fizera e continuava a pensar que ela fizera o aborto.

            ‑ Onde estiveste? Foi preciso estares no médico todo o dia? Correu alguma coisa mal? ‑ Parecia preocupado e Adrian teve pena dele, mas sentia‑se também zangada. Steven quisera que ela fosse tratar do aborto completamente só, fazendo‑lhe crer que se tratava de uma coisa sem importância, quando o era, ou devia ter sido. E agora estava ainda zangada com ele por causa disso.

            ‑ Não correu nada mal. ‑ Houve uma longa pausa, um silêncio infindável, e ela decidiu contar‑lhe imediatamente, sem mais evasivas. ‑ Não o fiz.

            Houve um instante de incredulidade silenciosa e depois a voz dele explodiu ao telefone.

- O quê? Por quê? Alguma coisa o impediu?

            ‑ Sim ‑ respondeu calmamente Adrian, sentando‑se. De súbito, sentiu‑se muito velha e muito cansada. As emoções que reprimira durante todo o dia avassalaram‑na e ela ouvia o marido, exausta, vazia.

            ‑ Sim, houve um impedimento. Não o quis fazer.

            ‑ Tiveste medo? ‑ Steven parecia horrorizado e também furioso, o que a perturbou ainda mais e a fez ficar mais zangada.

            ‑ Se achas que é assim. Decidi que queria ter o nosso filho. Quase todos os maridos ficariam lisonjeados com isso, ou contentes, ou qualquer coisa mais humana. ‑ Mas ambos sabiam que ele não era humano a esse respeito.

            ‑ Eu não sou um desses, Adrian. Não estou comovido... nem lisonjeado... acho que és parva. E penso que estás a tentar atingir‑me de qualquer maneira, mas podes estar certa de que não permitirei que isso aconteça.

            ‑ De que estás a falar? Pareces doido. Não se trata de uma vingança... Trata‑se de um bebê... sabes como é, uma coisinha pequena, feita por ti e por mim, toda azul e rosa, que chora ocasionalmente. A maior parte das pessoas pode habituar‑se a eles. Não agem como se estivessem a ser ameaçadas por um assassino da Máfia.

            ‑ Adrian, o teu sentido de humor não me diverte.

            ‑ E o teu sentido dos valores ainda me diverte menos. Que se passa contigo? Como pudeste deixar‑me sozinha para fazer um aborto? Não é uma coisa insignificante, como tu julgas, é algo de muito importante... e uma das razões que me levou a não o fazer é amar‑te.

            ‑ Isso são tretas e tu sabe‑lo. ‑ Parecia assustado, encurralado e ameaçado por tudo quanto ela lhe dissera. Adrian compreendeu que não ia resolver o assunto pelo telefone e, possivelmente, nem poderiam resolvê‑lo num futuro próximo. Ia apenas ter de se acalmar e fazer com que o bebê não fosse arruinar a sua vida. Mas primeiro iam ter os dois de deixar de estar zangados.

            ‑ Porque não falamos calmamente disto quando vieres para casa? ‑ perguntou, mas Steven estava agora encolerizado.

            ‑ Não há nada a falar a não ser que recuperes o bom senso e faças o aborto. Não vou discutir nada contigo sem que o faças. Compreendes? ‑ Steven gritava ao telefone como um doido.

            ‑ Pára, Steven! Controla‑te! ‑ Adrian falou‑lhe como se falasse com uma criança que se encontrasse descontrolada, mas ele já não conseguia acalmar‑se. No quarto do hotel, em Chicago, tremia de fúria.

            ‑ Não me digas o que devo fazer, Adrian! Tu traíste‑me!

            ‑ Não te trai. ‑ Adrian quase riu com aquelas palavras absurdas, mas a verdade é que não tinha graça. ‑ Foi um acidente. Não sei como aconteceu ou quem teve a culpa. Já não interessa. Não te censuro a ti, nem a mim, nem ninguém. Apenas quero ter o bebê.

            ‑ Não estás boa da cabeça e não sei o que estás a dizer. Steven falava como alguém que ela desconhecia. Fechou os olhos e tentou manter‑se calma.

            ‑ Pelo menos não estou histérica. Porque não esquecemos o assunto e falamos calmamente quando vieres para casa?

            ‑ Não tenho mais nada a dizer‑te, até tu tratares disso.

            ‑ Que queres dizer com isso? ‑ Adrian abriu os olhos outra vez. Havia na voz dele algo de estranho que ela nunca ouvira antes, uma frieza que a assustava, de tal modo que teve de lembrar a si própria que aquela voz era de Steven.

            ‑ Quero dizer exatamente aquilo que acabas de ouvir. Ou eu ou o bebê. Livra‑te dele. Agora, Adrian, quero que voltes ao médico amanhã. ‑ Adrian sentiu que uma mão lhe apertava o coração por um momento e pensou se ele estaria a falar a sério, mas sabia que não podia ser. Não podia fazê‑la escolher entre o bebê e ele; isso era uma loucura. Ele não podia estar convencido do que dizia.

            ‑ Querido... por favor... não sejas assim... não posso lá voltar... não posso... não posso...

            ‑ Tens de o fazer. ‑ Ele parecia prestes a chorar e ela tinha vontade de lhe rodear o pescoço com os braços, confortá‑lo e dizer‑lhe que tudo ia ficar bem. E um dia, depois de o bebê nascer, ele iria rir da maneira como ficara perturbado de início. Mas agora não conseguia pensar noutra coisa: ‑ Adrian, eu não quero o bebê.

            ‑ Ainda não o tens. Porque não te acalmas e esqueces o assunto durante uns dias? ‑ Adrian sentia‑se exausta, mas mais calma desde que tomara a decisão.

            ‑ Não vou acalmar enquanto não te livrares dele. Quero que faças um aborto. ‑ Adrian ficou sentada a ouvi‑lo em silêncio. Pela primeira vez em três anos, era incapaz de lhe dar o que ele queria. Incapaz e sem vontade de ser capaz, o que a perturbava ainda mais. Não lhe podia prometer que faria o que ele queria.

            ‑ Steven... por favor... ‑ Os olhos encheram‑se‑lhe de novo de lágrimas, pela primeira vez desde essa manhã. Não posso. Não posso. Não consegues compreender isso?

            ‑ Só compreendo o que me estás a fazer. Recusas‑te maldosamente a ter em conta os meus sentimentos. ‑ Recordava‑se muito bem de como o pai ficava deprimido de cada vez que a mãe ficava grávida. Tivera dois empregos durante anos, depois três, até que, finalmente, estava quase a morrer com uma cirrose. E nessa altura já todos os filhos tinham saído de casa, mas a sua vida estava acabada. ‑ Não queres saber do que eu sinto, Adrian. Não te importas comigo. Apenas queres o teu maldito bebê.

            Steven estava agora a chorar e Adrian não compreendia o que tinha feito. Ele dissera certa vez que talvez quisesse um filho quando "estivessem bem instalados na vida", mas nunca dissera que odiava crianças, nunca lhe dissera que era impensável vir um dia a ter um filho.

            ‑ Pois bem, Adrian, podes ter o teu bebê. Podes ter o teu bebê... mas não me terás a mim... ‑ Soluçava ao telefone e ela chorava também ao ouvi‑lo.

            ‑ Steven... por favor... ‑ Mas quando ela disse essas palavras ele desligou e ela ficou imóvel, sem compreender. Não podia crer que ele ficasse tão perturbado, tão desesperado, e nas duas horas seguintes torturou‑se a pensar se devia acabar por fazer o aborto. Se isso significava tanto para ele, se ele se sentia tão profundamente ameaçado, que direito tinha ela de o forçar a aceitar o bebê? E, no entanto, que direito tinha ela de matar o bebê por um adulto não ser capaz de encarar a perspectiva de ser pai? Steven poderia adaptar‑se, habituar‑se à idéia, descobrir que ela não o amava menos por ter um filho, que talvez o amasse ainda mais, e que a vida dele não estava acabada. Não podia desistir do bebê. Recordou o que passara quando fora ao médico para fazer o aborto e sabia que não o podia fazer. Steven teria de o aceitar. Ela responsabilizar‑se‑ia pelo filho e tudo o que Steven tinha a fazer era descontrair‑se e não se deixar enlouquecer.

            Adrian estava ainda a dizer isso a si própria quando foi para o trabalho, no dia seguinte, às onze. E à meia‑noite, quando regressou a casa, ligou o gravador para saber se Steven telefonara, mas não havia nenhuma mensagem. No dia seguinte, ligou para o escritório dele e informou‑se da hora da chegada do avião em que vinha Steven. Devia chegar às duas da tarde. Era perfeito. Ela teria muito tempo para o ir esperar ao aeroporto. Nessa noite já deviam ter acalmado e a vida voltaria à normalidade. Tão normal quanto deveria ser por enquanto. Daí a uns meses teriam de ser feitas algumas alterações na vida deles, tais como comprar roupas e preparar um quarto para o bebê. Adrian sorriu só de pensar nisso e, ao entrar no escritório, forçou‑se a não pensar em Steven.

 

            Toda a gente estava no estúdio para assistir à cena em que Sylvia seria assassinada, nessa tarde. John foi visitá‑la à prisão, fazendo‑se passar por advogado dela. Vaughn pareceu ficar admirada ao vê‑lo, e, momentos depois, quando a guarda os deixou sós, ele pôs‑lhe as mãos em volta do pescoço e estrangulou‑a. Ela emitiu uns sons maravilhosos enquanto ele lhe apertava o pescoço. Foi uma boa cena e Bill ficou extremamente satisfeito com todos. Em seguida chegou o momento de dizerem adeus a Sylvia, depois do programa acabado, e de repente toda a gente chorou. Ela fazia parte do elenco há um ano e sentiriam a sua falta. Era uma pessoa com quem se tornava fácil trabalhar e até as outras mulheres gostavam dela. O realizador mandou servir champanhe e ofereceram também um copo de papel a Bill. Este observava a cena, como se a série se tivesse tornado realidade. Stanley, o marido de Sylvia, olhava‑os, um pouco embaraçado. A certa altura, Bill tentou sair discretamente, mas Sylvia viu‑o, e dirigiu‑se a ele, dizendo‑lhe em voz baixa qualquer coisa que mais ninguém ouviu. Ele sorriu e ergueu o copo para ela e depois para Stanley.

            ‑ Desejo‑lhes boa sorte, aos dois. Que tenham uma boa vida em Nova Jersey. E não te esqueças de escrever ‑ acrescentou, dirigindo‑se a Sylvia e beijando‑a na face enquanto ela começava a chorar outra vez. Sabia que arriscara muito ao casar com Stanley. Ele alugara uma limusine branca para os levar ao aeroporto e as malas já estavam no carro. Sylvia deixara o seu apartamento. Iam partir nessa noite para Newark. Quando Bill deixou o estúdio, Sylvia olhou‑o com uma certa tristeza, mas ele voltou para o seu gabinete sem olhar para trás. Fora uma longa semana para ele, porém tudo acabara bem e ele iria tirar esse fim‑de‑semana para descansar. Enquanto Bill se dirigia para casa, depois do programa, Adrian ia a caminho do aeroporto. Só conseguia pensar no que iria dizer a Steven.

            Quando Steven saiu do avião e viu Adrian dirigiu‑se para ela sem dizer uma palavra. Os olhos dele estavam cheios de hostilidade e de interrogações.

            ‑ Porque vieste aqui? ‑ perguntou, furioso depois da conversa da noite anterior.

            ‑ Vim esperar‑te ‑ respondeu ela docemente. Tentou pegar na pasta para lhe dar a mão, mas ele não deixou.

            ‑ Não precisavas de ter vindo. Preferia que não viesses.

            ‑ Então, Steven... não sejas assim...

            ‑ Não sou assim? ‑ Parou bruscamente no meio do aeroporto. ‑ Dizes‑me isso depois do que me tens feito?

            ‑ Não te estou a fazer coisa alguma, Steven. Estou a tentar fazer o melhor possível para enfrentar uma situação que surgiu. Que sucedeu a nós dois. E não creio que seja justo quereres que eu faça uma coisa tão traumatizante.

            ‑ O que tu estás a fazer é muito pior. ‑ Começou a andar para a saída e ela seguiu‑o sem saber para onde ele ia. Deixara o carro no parque de estacionamento, mas ele dirigiu‑se para a área dos táxis.

            ‑ Steven, para onde vais? ‑ Ele estava já fora do terminal e chamara um táxi, cuja porta abrira. ‑ Que vais fazer?

‑ Adrian começava a entrar em pânico. Ele procedia como alguém que ela desconhecia. E começava a ficar assustada com o significado daquilo. Não podia compreender. ‑ Steven... ‑ O motorista observava‑os com óbvia irritação.

            ‑ Vou para o apartamento...

‑ Também eu. Por isso vim ao aeroporto buscar as minhas coisas. Reservei um quarto num hotel até tu recuperares o senso.

            Estava a fazer chantagem com ela. Ia deixá‑la até ela se ver livre do bebê.

            ‑ Por amor de Deus, Steven... por favor... ‑ Mas ele fechou a porta do táxi e deu a direção ao motorista. Um momento depois, O táxi afastava‑se, deixando‑a parada, a olhá‑lo incredulamente, sem saber o que iria ser a sua vida.

            Adrian não podia acreditar no que ele estava a fazer, nem que fosse de fato deixá‑la. Mas quando chegou ao apartamento ele já fizera três malas, uma mala cheia de papéis e juntara‑lhes duas raquetas de tênis e os tacos de golfe.

            ‑ Não acredito que estejas a fazer isto. ‑ Adrian olhou à sua volta sem crer no que via. ‑ Não podes estar a fazer isto a serio.

            ‑ Estou ‑ disse ele friamente. ‑ Muito a sério. Leva o tempo que quiseres a decidires‑te. Podes telefonar‑me para o escritório. Voltarei quando te livrares do bebê.

            ‑ E se eu não o fizer?

            ‑ Virei buscar o resto das minhas coisas quando me disseres.

            ‑ Tão simples como isso? ‑ Dentro do coração de Adrian algo começara a arder, mas outra parte dela tinha vontade de se meter num buraco e morrer. No entanto, não deixou que o marido se apercebesse do pânico que a invadia.

‑ Estás a proceder como um louco. Espero que o saibas.

            ‑ Não acho isso. E por meu lado acho que tu violaste qualquer base de confiança e decência neste casamento.

            ‑ Por querer ter o nosso filho?

            ‑ Por ires contra uma coisa que sabes que eu sinto profundamente.

            Disse aquilo com um ar tão convencido e severo que ela teve vontade de lhe bater.

            ‑ Está bem. Sou humana. Mudei. Mas estou convencida de que podemos fazer isto. Temos muito para oferecer a um filho. E creio que qualquer pessoa normal pensaria o mesmo.

            ‑ Eu não quero um filho.

            ‑ E eu não quero fazer um aborto só por tu achares que não gostas de crianças e não quereres que um bebê interfira com a tua viagem à Europa.

            ‑ Isso é um golpe baixo! ‑ Steven mostrou‑se altamente insultado. ‑ A viagem à Europa nada tem a ver com o caso. O que me interessa são os fatos. Uma criança privar‑nos‑ia de um estilo de vida que nos esforçamos por conseguir, e eu não estou disposto a prescindir dele por causa de um capricho, ou por tu teres medo de fazer um aborto.

            ‑ Eu não tenho medo! ‑ gritou ela. ‑ Eu quero o bebê! Ainda não compreendeste isso?

            ‑ Só compreendi que estás a proceder assim para me atingires a mim. ‑ Aos olhos dele era a última, a maior das traições.

            ‑ Para que faria eu uma coisa dessas? ‑ perguntou Adrian, enquanto ele observava o armário para ver se não esquecera qualquer coisa que quisesse levar.

            ‑ Não sei. Ainda não pensei nisso.

            ‑ Estás a dizer‑me que se eu conservar o bebê me deixas para sempre? ‑ Ele disse que sim com a cabeça e olhou‑a nos olhos. Adrian limitou‑se a abanar a cabeça e a sentar‑se nos degraus enquanto ele pegava nas malas. ‑ Estás realmente a deixar‑me?

            Adrian começou a chorar e deixou‑se ficar sentada nas escadas enquanto ele levava as malas para fora, incapaz de acreditar que Steven estivesse a abandoná‑la. Mas estava. Após dois anos e meio de casamento, ele deixava‑a por ela querer ter um filho dele. Era difícil de acreditar, mas enquanto ela continuava a olhá‑lo com incredulidade, ele levou para fora a última mala, transportou‑as para o carro e voltou para lhe dizer:

            ‑ Informa‑me do que decidires. ‑ Os olhos dele pareciam gelo e o seu rosto estava perfeitamente calmo quando Adrian avançou para ele a soluçar:

            ‑ Por favor, não me faças isto... serei boa... prometo... nem sequer o deixarei chorar... Steven... por favor... não me faças desistir dele... e não me deixes... preciso de ti. Agarrou‑se a ele como uma criança e ele recuou um passo, como se ela lhe repugnasse, e isso ainda fez com que ela sentisse maior pânico.

            ‑ Domina‑te, Adrian. Podes escolher. É contigo.

            ‑ Não, não é. ‑ Ela chorava agora quase descontroladamente. ‑ Estás‑me a pedir uma coisa que eu não posso fazer.

            ‑ Podes fazer tudo o que quiseres fazer ‑ disse friamente.

            Ela então olhou‑o com cólera.

            ‑ Também tu. Podes adaptar‑te, se quiseres.

            ‑ A questão é essa ‑ disse Steven, olhando‑a. ‑ Já to disse. Não quero. ‑ Pegou nas raquetas de tênis e com um último olhar para ela, mas sem dizer uma palavra, fechou a porta. Adrian ficou a fitar o ponto onde ele estivera. Era difícil acreditar no que ele lhe fizera. Tinha‑a deixado.

 

            Nesse sábado, quando ela acordou, não havia cheiro a presunto, o tabuleiro do pequeno‑almoço não a esperava, preparado por mãos amorosas. Não havia cheiros agradáveis, sons agradáveis, amigáveis. Só silêncio. Estava sozinha. E a realidade atingiu‑a como um peso no coração, assim que despertou. Mexeu‑se na cama, procurando‑o. E então lembrou‑se: Steven deixara‑a.

            Falara para o estúdio a dizer que estava doente e faltara ao último noticiário na noite anterior. Ficara demasiado perturbada para ir fosse onde fosse e deixara‑se apenas ficar estendida na cama a chorar, até que finalmente adormecera com as luzes acesas. Acordara outra vez às três da madrugada, despira‑se, apagara as luzes e vestira a camisa de noite. Agora, ao acordar, de manhã, sentia‑se como uma alcoólica, com a boca seca, os olhos inchados e o corpo todo dorido. Fora uma noite terrível, uma semana terrível. Com efeito, os dez dias decorridos desde que soubera que se encontrava grávida haviam sido horrorosos. Mas ainda podia escolher, como Steven lhe dissera. Podia fazer o aborto e ele voltaria, mas se o fizesse, que lhes restava agora? Ressentimento mútuo, zanga e, eventualmente, ódio. Sabia que se desistisse do bebê por causa dele, viria eventualmente a odiá‑lo, e se o não fizesse ele ficaria sempre ressentido com ela. Numa única semana fora destruído aquilo que ela sempre considerara um casamento estável.

            Deixou‑se ficar na cama durante muito tempo, pensando no marido e naquilo que o levara a proceder assim. Obviamente, as recordações que ele tinha da infância deviam ser muito piores do que ela pensara, e ele ficara verdadeiramente traumatizado, não apenas desagradado com a perspectiva de ter filhos. Não se tratava de uma coisa que pudesse mudar de um dia para o outro, e talvez nunca mudasse. E ele teria de querer que isso se alterasse, o que não sucederia.

            Ouviu então o telefone tocar, e durante um momento desesperado rezou para que fosse Steven. Ele recuperara o senso, mudara de idéias... queria‑a a ela... e ao bebê... Pegou no auscultador, esperançadamente, e logo a seguir ficou desanimada. Era a mãe. Telefonava de meses a meses e Adrian nunca gostava de falar com ela. A conversa centrava-se sempre em volta dos feitos gloriosos da irmã, que, segundo a opinião de Adrian, eram poucos, e referências desagradáveis a Steven. Quase sempre a mãe fazia comentários velados a respeito das muitas falhas de Adrian. Não telefonava, não ia passar o Natal a casa há anos, esquecera‑se do dia dos anos do pai, do aniversário de casamento dos pais, mudara‑se para a Califórnia, casara com uma pessoa de quem eles não gostavam e, finalmente, ainda não tivera um filho. Pelo menos, a mãe deixara de perguntar se ela e Steven já tinham consultado um médico.

            Adrian assegurou‑lhe que estava tudo bem, desejou que ela tivesse passado um feliz Dia da Mãe na semana anterior, percebendo que mais uma vez se esquecera, e dizendo à mãe que tinha tanto trabalho que nem sabia em que dia estava, para não mencionar o fato de ter também os seus problemas.

            ‑ Como está o papá? ‑ conseguiu perguntar, mas a mãe respondeu‑lhe que o pai estava a ficar velho, que Charlie, o marido de Connie, comprara um Cadillac novo, e quis saber que gênero de carro tinha Steven. Um Porsche? O que e' isso? Ah!, um carro estrangeiro? E Adrian ainda tinha aquele ridículo carro que comprara quando ainda estava na universidade? A mãe confessou‑lhe que se sentia chocada por Steven não lhe comprar um carro decente. A irmã tinha agora dois carros. Um Mustang e um Volvo. A conversa destinava‑se a irritá‑la de todas as maneiras possíveis e conseguiu‑o. Adrian conseguiu dizer que estava tudo bem, que Steven se encontrava fora a jogar tênis. Seria bom ter uma mie com quem pudesse falar, alguém em cujo ombro pudesse chorar, alguém que a animasse. Mas a mãe estava apenas interessada em cumprir uma formalidade e após ter falado o suficiente desligou, depois de enviar "cumprimentos" a Steven. A conversa não deu a Adrian qualquer conforto.

            O telefone tocou novamente e dessa vez Adrian não respondeu. Ouviu depois a mensagem deixada no gravador e descobriu que fora Zelda quem falara, mas não tinha a certeza de querer falar com ela. Apetecia‑lhe estar só para lamber as suas feridas e a única pessoa com quem realmente desejava falar era com Steven. Mas ele não telefonou durante todo o dia, e nessa noite ela ficou sozinha diante do televisor, embrulhada no seu roupão e a chorar.

            O telefone tocou de novo e Adrian atendeu sem pensar. Era Zelda a telefonar do escritório para lhe perguntar qualquer coisa e adivinhou rapidamente que alguma coisa estava mal. Adrian tinha uma voz terrível.

‑ Estás doente?

            ‑ Mais ou menos... ‑ murmurou, desejando não ter atendido. Respondeu às perguntas de Zelda a respeito do trabalho e então Zelda pareceu hesitar. Queria perguntar‑lhe outra vez se ela estava bem. Ultimamente achava Adrian muito perturbada.

            ‑ Posso fazer alguma coisa por ti, Adrian?

            ‑ Não... eu... ‑ Adrian ficou comovida com a pergunta dela. ‑ ... eu estou bem.

            A voz de Zelda, do outro lado, era afetuosa.

            ‑ Não parece. ‑ E Adrian, ao ouvi‑la, começou a chorar.

            ‑ Sim ‑ fungou ruidosamente, sentindo‑se tola por se ter descontrolado tão rapidamente, mas já não conseguia continuar a fingir. Era tudo muito difícil e muito doloroso, agora que Steven a deixara. Ainda lhe custava a acreditar que ele pudesse ter feito tal coisa e desejava ter alguém com quem pudesse desabafar. ‑ Não estou assim muito bem. Riu, por entre as lágrimas, sufocando um soluço. Zelda ficou preocupada com o que poderia ter acontecido. E então Adrian decidiu contar‑lhe. Não tinha mais ninguém em quem confiar e sempre se dera bem com Zelda desde que trabalhavam juntas, há anos. ‑ Steven e eu... bem... ele deixou‑me... ‑ As últimas palavras não foram mais do que um murmúrio e começou a chorar outra vez. Zelda teve pena dela. Sabia como essas coisas custavam. Passara por isso antes, e por esse motivo é que agora só saía com jovens. Queria divertir‑se e passar um bom bocado, mas não desejava apaixonar‑se e sofrer de novo.

            ‑ Tenho muita pena, Adrian. Sinceramente. Posso fazer alguma coisa por ti?

            Adrian abanou a cabeça enquanto as lágrimas lhe corriam pelas faces.

            ‑ Não, eu hei‑de ficar bem. ‑ Mas quando... ele voltaria? Rezava para que ele recuperasse o juízo.

            ‑ Com certeza hás‑de ficar ‑ disse encorajadoramente Zelda. ‑ Sabes, embora pensemos que não podemos viver sem eles, a verdade é que podemos. Daqui a seis meses podes até sentir‑te satisfeita por isto te ter acontecido. Porém, as palavras de Zelda fizeram‑na chorar ainda mais.

            ‑ Duvido.

            ‑ Espera e verás. ‑ Falava com convicção, mas Adrian sabia uma coisa que ela desconhecia. ‑ Daqui a seis meses podes estar apaixonada por alguém que nem sequer conheças agora.

            E então, subitamente, ao ouvir aquelas palavras, Adrian começou a rir. A imagem era cômica ao máximo. Daí a seis meses ela estaria grávida de mais de sete meses.

            ‑ Duvido disso. ‑ Assoou‑se outra vez e suspirou.

‑ Como podes ter tanta certeza?

            Então Adrian mostrou‑se séria outra vez.

            ‑ Porque vou ter um bebê. ‑ Houve um momento de silêncio do outro lado, enquanto Zelda absorvia a informação. Depois ouviu‑se um longo assobio.

            ‑ Isso lança uma luz diferente sobre as coisas. Ele sabe?

            Adrian hesitou por uma fração de segundo. Precisava de falar com alguém. Zelda era esperta e sensata e Adrian sabia que podia confiar nela.

            ‑ Foi por isso que ele me deixou. Não quer filhos.

            ‑ Ele há‑de voltar. ‑ Zelda parecia confiante. ‑ Está apenas a reagir. Talvez esteja só assustado. ‑ Zelda tinha razão. Steven estava aterrorizado, mas Adrian não se sentia totalmente convencida de que ele voltasse ao seu perfeito juízo. Adrian desejava isso mais do que tudo, mas era difícil prever o que ele faria. Era a mesma pessoa que abandonara a família, sem nunca olhar para trás. Com efeito, tinha a certeza de que Steven nunca sentira a falta da família. Uma vez tomada uma decisão, era capaz de cortar um laço que antes lhe fora caro, se isso servisse os seus propósitos.

            ‑ Espero que tenhas razão. ‑ Adrian suspirou outra vez, com um soluço sufocado, como uma criança que estivesse estado a chorar. Então lembrou‑se de uma coisa: Não digas a ninguém ai. ‑ Estava longe de querer anunciar a gravidez. Queria primeiro resolver a questão com Steven. Seria mais simples se ele voltasse e as coisas se acalmassem antes de dizer às pessoas que esperava um bebê. Também não queria que no trabalho os outros ficassem nervosos, sem saberem se ela se iria embora ou não.

            ‑ Não direi coisa alguma ‑ tranquilizou‑a Zelda. Que vais fazer? Despedes‑te ou tiras uma licença?

            ‑ Não sei. Ainda não pensei nisso. Talvez tire uma licença.

            E se Steven não voltasse? O que faria se ficasse sozinha? Como havia de trabalhar e cuidar de um bebê? Ainda nem sequer pensara nisso. Mas custasse o que custasse, sabia que o iria conseguir.

            ‑ Tens razão. Não digo a ninguém. Isso só os iria pôr nervosos.

            Adrian sabia que tinha uma bom emprego, talvez até um ótimo emprego. Era um trabalho que Zelda não quereria de modo algum. Requeria muitas responsabilidades e causava muitas dores de cabeça, mas Adrian era muito competente e parecia gostar do que fazia. Zelda não sabia que quem incitara Adrian a aceitar o lugar fora Steven e que Adrian, por vezes, desejava trabalhar em algo mais íntimo. Trabalhar com o noticiário dia após dia poderia ser brutal de vez em quando e todos sabiam que se tornava deprimente. Estavam muito perto dos horrores que os homens praticam diariamente uns contra os outros, das tragédias infligidas pela Natureza, e raramente tinham conhecimento de uma história feliz. Mas havia a satisfação de um trabalho bem feito e Adrian fazia‑o. Todos sabiam isso.

            ‑ Descontrai‑te, Adrian. Não deixes que tudo isto te faça mal. A questão do emprego há‑de resolver‑se, o bebê virá quando chegar a altura e provavelmente Steven aparece‑te daqui a dois dias, com um ramo de rosas vermelhas e um presente, fingindo que nunca te deixou.

            ‑ Espero que tenhas razão. ‑ Pouco depois desligaram.

Zelda não sabia o que Steven iria fazer. Vira‑o várias vezes, ele mostrara‑se simpático, mas lá no fundo do coração nunca gostara dele. Havia algo de frio e de calculista nesse homem. Olhava para as pessoas com total desinteresse e não lhe parecia nada uma pessoa afetuosa e humana como Adrian. Havia em Adrian algo de que ela gostara mal a conhecera. E tinha pena dela agora. Era duro para uma mulher estar grávida e ser abandonada pelo marido. "Não era justo", pensou Zelda indignada, e Adrian não o merecia.

            Não o merecia, mas ela nada podia fazer a esse respeito. Nada podia fazer para ele mudar de idéias e voltar para casa. Nessa noite, Adrian voltou a estar sentada em frente do televisor, cega pelas lágrimas. Acabou por adormecer no sofá e às quatro horas despertou com os acordes do hino nacional. Desligou o aparelho de TV e estendeu‑se no sofá. Não queria ir deitar‑se na cama vazia. Despertou quando os primeiros raios do Sol passaram através da persiana. Ouvia os pássaros a chilrear lá fora e estava um dia bonito, mas ela tinha a sensação de ter um elefante sentado em cima do peito, ao lembrar‑se de Steven. Porque estaria ele a fazer‑lhe aquilo? E a ele também. Porque estaria a privá‑los de algo com tão grande significado? Era estranho como depois de se ter resignado a não ter filhos, estivesse agora disposta a sacrificar tudo por aquele. "Era tudo bastante estranho", pensou para consigo ao levantar‑se lentamente. Sentou‑se no sofá como se tivesse sido espancada. Doía‑lhe o corpo todo e sentia os olhos inchados por ter chorado tanto. Quando se dirigiu para a casa de banho, minutos depois, gemeu ao ver‑se ao espelho. "Não admira que ele te deixasse", disse para consigo, e as lágrimas encheram‑lhe novamente os olhos ao mesmo tempo que ela riu. Não havia nada a fazer. Não fazia outra coisa senão chorar. Então, lavou a cara, escovou os dentes, escovou o cabelo, vestiu uma jeans e uma velha camisola de Steven. Assim sentia‑se mais perto dele. Já que não o tinha a ele, podia usar as roupas dele.

            Fez uma torrada com relutância e aqueceu café da véspera. Sabia terrivelmente mal, mas ela não se importou. Bebeu apenas um gole e ficou a olhar para o vácuo, pensando de novo nele e no motivo que o levara a deixá‑la. O cérebro dela parecia ter apenas um tema e, quando o telefone tocou, ela deu um salto para atender. Era Steven. ‑. era ele que vinha para casa... tinha de vir. Que outra pessoa lhe iria telefonar às oito horas de uma manhã de domingo? Mas quando atendeu ouviu uma voz chinesa e desligou. Tratava‑se de um número enganado.

            Arrastou‑se pelo apartamento na hora seguinte, pegando em coisas e largando‑as, pondo roupa a lavar. Mas a maior parte da roupa era dele e Adrian começou a chorar quando a viu. Nada era fácil. Tudo a magoava, tudo lhe lembrava o que se tinha passado, e estar no apartamento sem ele pareceu‑lhe de repente muito doloroso. Às nove não podia suportar mais e decidiu ir dar um passeio. Não sabia para onde ir. Queria apenas ir a qualquer lado e apanhar ar, fugir das roupas e das coisas dele, das salas vazias que a faziam sentir‑se ainda mais só. Pegou nas chaves e saiu, dirigindo‑se para a frente do complexo. Há dois dias que não ia ver se tinha correio e, na verdade, não lhe interessava. Mas era qualquer coisa para fazer enquanto andava. Parou junto da caixa do correio e encostou‑se à parede, examinando as contas e duas cartas para Steven. Não havia nada para ela e voltou a meter novamente tudo na caixa, dirigindo‑se lentamente para o automóvel, pensando em ir dar um passeio. Deixara o carro em frente do complexo no dia anterior e reparou que se encontrava uma velha station, com a parte de trás de madeira, estacionada ao lado do carro dela. Quando se aproximou viu um homem a tirar de lá um bicicleta. O homem parecia suado e com calor, dando a impressão de ter dado um passeio matinal de bicicleta. Quando ela se aproximou voltou‑se e olhou‑a. Ficou a olhá‑la durante muito tempo como se estivesse a recordar‑se de qualquer coisa, e depois sorriu, pois lembrara‑se exatamente de como a vira. Tinha uma memória fantástica para coisas dessas, pequenos pormenores, rostos que só vira uma vez e nomes de pessoas que não voltaria a encontrar. Desconhecia o nome dela porque nunca o soubera, mas lembrou‑se instantaneamente que se tratava da rapariga bonita que vira no Safeway semanas antes. E lembrava‑se também de que ela era casada.

            ‑ Olá! ‑ pousou a bicicleta no chão ao lado dela e

Adrian encontrou‑se perante uns olhos azuis diretos, afetuosos e amigáveis. Ela calculou que devia ter quarenta ou quarenta e um anos e tinha umas pequenas rugas em volta dos olhos, que lhe davam uma expressão amigável e feliz. Parecia uma pessoa que gostava da vida e se sentia bem consigo mesmo e com os outros.

            ‑ Olá. ‑ Ela respondeu em voz muito baixa e Bill reparou que parecia diferente da primeira vez que a vira. Parecia cansada e pálida e Bill pensou se ela andaria a trabalhar de mais. Ou talvez estivesse doente. Além disso, tinha um ar triste, como se tivesse sofrido algum desgosto. Quando a vira no supermercado, ela parecera‑lhe mais animada, mas continuava bonita e ele ficou feliz por a ver.

            ‑ Vive aqui? ‑ Bill queria falar‑lhe, saber alguma coisa a respeito dela. Era estranho que os seus caminhos se tivessem cruzado de novo. Talvez os destinos dos dois estivessem interligados, pensou ele, ao admirá‑la. Nada lhe agradaria mais, exceto, claro, o fato de isso significar ligar‑se também ao destino do marido dela.

            ‑ Sim, vivemos. ‑ Sorriu com suavidade. ‑ Vivemos num dos apartamentos do outro lado. Habitualmente não estaciono aqui. Mas já tenho visto o seu carro. É ótimo.

Admirara‑o frequentemente, sem saber a quem pertencia.

            ‑ Obrigado. Gosto muito dele. Também tenho visto o seu aqui. ‑ Percebia agora que era dela. Sempre gostara do velho MC e recordava‑se agora que uma vez a vira sair dele, ao longe. Ela ia acompanhada por um homem alto, elegante, de cabelo escuro. Tinham‑se metido depois num carro qualquer, algo aborrecido, como um Mercedes ou um Porsche. E agora, ao pensar nisso, percebia que devia ser o marido dela. Formavam um belo par, mas ela causara‑lhe maior impressão quando a vira sozinha no Safeway. A verdade é que uma mulher sozinha lhe despertava sempre maior interesse do que um belo casal.

            ‑ Gosto muito de a encontrar outra vez ‑ disse ele, sentindo‑se subitamente embaraçado diante dela. Então riu:

‑ Não se sente como uma garota outra vez quando encontra uma pessoa desta maneira?... "Olá... eu sou Bill... como e o seu nome?... Anda nesta escola?..." ‑ Fez uma voz de rapazinho e ambos riram porque aquilo era verdade. Casada ou não, ela era uma bonita rapariga e tornava‑se óbvio para ambos que lhe agradava. ‑ O que me faz lembrar... ‑ Estendeu‑lhe a mão, ainda a segurar a sua bicicleta de montanha com a outra: ‑ Sou Bill Thigpen e encontramo‑nos no Safeway há cerca de duas semanas, por volta da meia‑noite. Eu tentei atropelá‑la com o meu carrinho e você largou uns catorze rolos de toalhas de papel que levava nas mãos.

            Ela sorriu ao lembrar‑se e estendeu‑lhe por sua vez a mão.

            ‑ Sou Adrian Townsend. ‑ Ela apertou‑lhe a mão com um leve sorriso solene, pensando como era estranho encontrá‑lo outra vez. Recordava‑se agora dele, embora vagamente. A vida dela mudara muito desde então. Tudo... "Olá, sou Adrian Townsend e a minha vida desmoronou‑se totalmente... o meu marido deixou‑me... e vou ter um bebê..."

‑ Prazer em conhecê‑lo. ‑ Adrian tentava ser delicada, mas os olhos dela estavam tão tristes! Olhando‑a, Bill tinha vontade de lhe pôr um braço em volta dos ombros. ‑ Onde é que costuma andar de bicicleta? ‑ Adrian esforçava‑se por lhe dizer qualquer coisa, porque ele parecia querer continuar a falar.

            ‑ Oh... aqui e ali... vou até Malibu com o carro. O dia hoje estava lindo. Às vezes fico apenas sentado na praia a relaxar e a aclarar idéias, isto quando estive a trabalhar toda a noite.

            ‑ Costuma fazer isso muitas vezes? ‑ Ela tentou mostrar‑se interessada, embora não soubesse bem por que. Só sabia que ele lhe parecia uma pessoa amigável e simpática e não queria ferir‑lhe os sentimentos. Além disso, havia qualquer coisa naquele homem que a fazia ficar ali a conversar com ele a respeito de ninharias. Era como se, junto dele, estivesse em segurança durante um bocado e nada de terrível lhe pudesse suceder. Ele dava essa sensação. Parecia ser capaz de se encarregar das coisas e, enquanto ela falava, ele observava‑a atentamente. Alguma coisa lhe sucedera nas últimas semanas. Tinha a certeza disso. Não fazia idéia do que fosse, mas mudara. Parecia magoada por dentro. E isso fazia‑o ter pena dela.

            ....... as vezes trabalho até tarde. Muito tarde. E você? Faz as compras sempre à meia‑noite?

            Adrian riu da pergunta, mas, com efeito, fazia‑as sempre que se esquecia de comprar qualquer coisa mais cedo. Gostava de ir às compras depois do noticiário da noite. Sentia‑se descontraída, embora ainda bem desperta depois do trabalho, e o supermercado estava sempre vazio. ‑ Sim, às vezes faço. Acabo o meu trabalho às onze e meia. Trabalho no noticiário da noite e no das dezoito horas. É uma boa altura para ir às compras.

            Ele pareceu achar graça:

            ‑ Para que rede televisiva trabalha? ‑ Ela disse‑lhe e ele riu outra vez. Talvez os destinos deles estivessem realmente interligados. ‑ Sabe que trabalhamos também no mesmo edifício? ‑ Apesar de nunca se terem visto lá, o programa dele ia para o ar três andares acima do local onde ela trabalhava.

            ‑ Isso é engraçado. ‑ Adrian achou graça à coincidência, embora menos encorajada por ela do que Bill. ‑ Qual é a série?

            ‑ Uma Vida Digna de Ser Vivida. ‑ Bill deu a informação com ar casual, tentando não revelar que Uma Vida era a sua paixão.

            ‑ É boa. Eu costumava vê‑la quando tinha tempo, antes de ir trabalhar para as notícias.

            ‑ Há quanto tempo está lá? ‑ Bill sentia‑se intrigado com ela e agradava‑lhe estar ali a ouvi‑la. Quase podia imaginar que chegava até ele o perfume do shampoo que ela usava. Ela tinha um aspecto tão limpo, claro e decente, que subitamente ele começou a pensar coisas estúpidas, como se ela usaria perfume e se esse perfume lhe agradaria.

            ‑ Há três anos ‑ respondeu ela. ‑ Trabalhava na produção. Mas depois surgiu uma oportunidade de trabalhar nas notícias... ‑ A voz dela tornou‑se hesitante como se ela ainda não tivesse a certeza de ter sido uma boa oportunidade, e Bill não percebeu por que.

            ‑ Gosta?

            ‑ Às vezes. Há alturas em que se torna muito opressivo e me impressiona. ‑ Ela encolheu os ombros, como se estivesse a desculpar‑se de alguma fraqueza intrínseca.

            ‑ A mim também me impressionaria. Não creio que pudesse fazer esse trabalho. Prefiro inventar tudo... crimes, violações e incesto. Os assuntos saudáveis que agradam à América. ‑ Sorriu outra vez e inclinou‑se na bicicleta enquanto ela ria; por instantes, ela pareceu‑lhe feliz e despreocupada como quando ele a vira pela primeira vez.

            ‑ É escritor? ‑ Adrian não sabia bem o que a levara a fazer a pergunta, mas era fácil conversar com ele e ela nada tinha para fazer nessa manhã de domingo.

            ‑ Sim, sou ‑ respondeu Bill. ‑ Mas agora já não escrevo os episódios todos. Apenas dirijo dos bastidores. Ela não adivinhara que era ele o criador da série e Bill não lho queria dizer.

            ‑ Deve ser divertido. Em tempos quis escrever, mas sou melhor na produção. ‑ Ou, pelo menos, fora isso que Steven dissera. Logo que pensou nele os olhos de Adrian tornaram‑se novamente tristes, e Bill reparou nisso.

            ‑ Aposto que se tentasse o faria bem. Há muita gente que pensa que escrever é difícil, como as matemáticas, por exemplo, mas não é. ‑ E enquanto falava, Bill percebeu que o espírito dela se afastava dali e que ela recaía na tristeza inicial. E, por um instante, nenhum deles falou e ela forçou‑se a pensar que talvez pudesse voltar a escrever, para afastar o pensamento de Steven.

            ‑ Não creio que seja capaz de escrever. ‑ Adrian olhou‑o com tal tristeza que ele teve vontade de estender as mãos para lhe tocar.

            ‑ Talvez deva tentar. Por vezes, é uma tremenda libertação... para aquilo que se junta dentro de nós e nos entristece. ‑ Bill queria transmitir‑lhe todos os seus bons pensamentos, mas nada lhe podia dizer. Afinal, eram estranhos e ele não podia perguntar‑lhe o que a estava a tornar tão infeliz.

            Ela abriu então a porta do carro e olhou‑o antes de entrar no velho MC. Era quase como se tivesse pena de o deixar, mas não sabia que mais havia de lhe dizer. A conversa entre os dois estava a esmorecer e pensava que tinha de se ir embora, sem todavia ter vontade de o fazer. ‑ Até outra vez... ‑ disse Adrian em voz baixa, enquanto ele baixava a cabeça num gesto de concordância.

            ‑ Espero que sim. ‑ Sorriu, desafiando a aliança de casamento que ela trazia no dedo, o que era raro nele, mas ela era também uma rapariga rara. Sem sequer a conhecer, Bill sabia isso.

            E, enquanto ela se afastava, Bill ficou a segurar a sua bicicleta de montanha e a olhá‑la.

 

            Steven telefonou‑lhe finalmente para casa, dois dias depois e antes de ela sair para o trabalho. Nessa altura, ela estava desesperada com a falta de noticias dele e alegrou‑se ao ouvir a voz de Steven, mas o desânimo invadiu‑a quando o ouviu dizer que precisava da sua outra máquina de barbear.

            ‑ Se a levares para o trabalho hoje, eu vou lá buscá‑la amanhã de manhã. A que eu trouxe avariou.

            ‑ Lamento. ‑ Tentou mostrar‑se animada, para ele não saber como andava deprimida. ‑ Como estás?

            ‑ Ótimo ‑ respondeu friamente. ‑ E tu?

            ‑ Estou bem. Sinto a tua falta.

            ‑ Aparentemente não o bastante. A não ser que tenha sucedido alguma coisa que eu não saiba. ‑ Steven voltava ao mesmo ponto. Não havia qualquer mudança nele, qualquer apaziguamento, e Adrian pensou subitamente se Zelda não se teria enganado e o casamento deles terminado. Era difícil de acreditar, mas também o era o fato de ele ter saído de casa por causa do bebê.

            ‑ Lamento que continues a pensar assim, Steven. Queres vir ter comigo este fim‑de‑semana para falar?

            ‑ Nada temos a dizer, a não ser que tenhas mudado de idéias.

            Era quase infantil a maneira como ele insistia em que ela fizesse o aborto, ou...

            ‑ Então vamos ficar a viver assim para sempre e eu mando‑te dizer quando o bebê nascer? ‑ Ela estava a gracejar, mas ele não.

            ‑ Talvez. Penso que devemos esperar uns tempos, para ver se mudas nas próximas semanas. E se decidires ir... ir para a frente... então começarei à procura de outro apartamento.

            ‑ Não falas a sério, pois não? ‑ Adrian não conseguia acreditar.

            ‑ Falo. E acho que sabes isso. Conheces‑me suficientemente bem para saberes que não vou ficar à espera muito tempo, Adrian. Decide‑te e diz‑me para podermos continuar com a nossa vida. Isto não é saudável para qualquer de nós.

            Adrian achava aquilo inacreditável. Ele queria ser notificado o mais depressa possível para começar a sair com outras mulheres e para arranjar um apartamento. Parecia‑lhe incrível.

            ‑ Com certeza que não é saudável. E será interessante explicar isto ao teu filho ou à tua filha. ‑ Mas a flecha não atingiu o alvo. Steven não mostrou importar‑se com o que ela lhes dissesse.

            ‑ Porque é que não deixamos as coisas assim durante algumas semanas e depois me dizes o que resolveste? Para a próxima semana irei a Nova Iorque e depois a Chicago. Com efeito, viajarei bastante. Deixemos as coisas assim até meados de Junho. Isso dá‑te um mês para decidires o que queres fazer. ‑ Adrian queria matar‑se, era isso que ela tinha vontade de fazer... ou matá‑lo a ele. Não queria esperar até meio de Junho para saber se ele se ia divorciar dela ou não.

            ‑ Estás realmente disposto a deitar fora dois anos e meio da nossa vida por causa de um desacordo?

            ‑ É disso que tu julgas que se trata? Então não compreendes. É uma questão de objetivos da vida e os nossos dois são aparentemente muito diferentes.

            ‑ Tens razão. Não estou disposta a vender a minha alma, ou o meu filho, por causa de uma aparelhagem nova ou uma viagem à Europa. Não estamos a falar de um jogo. Trata‑se da nossa vida e do nosso filho. Estou farta de te dizer isto, mas tu pareces não me ouvir.

            ‑ Ouço‑te, Adrian, mas não concordo com o que dizes. Falarei contigo dentro de semanas. Entretanto, se mudares de idéias, podes telefonar‑me.

            ‑ Como te hei‑de encontrar? ‑ E se houvesse uma emergência e ela precisasse do auxilio do marido? Ele era ainda o seu parente mais chegado em todos os documentos pessoais. Isso fê‑la sentir‑se tomada de pânico, totalmente abandonada.

            ‑ Telefona para o escritório. Eles saberão onde estarei.

            ‑ Sorte a deles ‑ respondeu Adrian sarcasticamente.

            ‑ Não te esqueças da máquina de barbear.

            ‑ Sim... com certeza... ‑ Steven desligou e ela ficou sentada na cozinha durante muito tempo, pensando no que ele dissera, e perguntando a si própria se alguma vez o teria conhecido. Começava a duvidar disso.

            Levou a máquina de barbear para o escritório, nesse dia, e, no dia seguinte, já lá não estava. Ele fora buscá‑la na noite anterior, sem deixar qualquer recado para ela, mas Adrian não falou nisso a ninguém. Nem sequer a Zelda. E não contara a ninguém que Steven a deixara, a não ser a Zelda. Era demasiadamente embaraçoso. E quando ele voltasse para ela, umas semanas mais tarde, seria melhor que ninguém, além de Zelda, soubesse que ele a abandonara.

            Quando contou a Zelda que ele lhe telefonara, aquela afirmou que daí a pouco tempo ele estaria em casa.

            Entretanto, os fins‑de‑semana pareciam não ter fim. Ele não telefonava e Adrian acabou por compreender que estava tão habituada a estar com ele que não sabia o que fazer sem o marido. Zelda tinha a vida dela. Arranjara um novo namorado, de vinte e quatro anos, que era modelo. Apesar de se preocupar com Adrian, queria viver a sua vida e Adrian não desejava tornar‑se uma maçada.

            Adrian sentiu‑se mais sossegada enquanto Steven esteve fora. Deixou de esperar que ele lhe telefonasse, ou que o encontrasse. Não se deixava ficar na cama à espera que ele aparecesse de repente no apartamento para ir buscar qualquer coisa, ou para lhe dizer que fora uma tolice e que estava arrependido do que fizera. Sabia que ele estava em Chicago, há semanas que não tinha notícias dele, mas talvez quando o marido voltasse o caso se resolvesse e eles pudessem continuar a viver juntos.

            Entretanto, tinha a sensação de estar tudo parado. Trabalhava, comia, dormia, mas não ia a parte alguma, nem sequer ao cinema. Fora uma vez ao médico e ele dissera‑lhe que a gravidez estava a progredir bem e que tudo se encontrava normal. Tudo normal, exceto o fato de o marido a ter deixado, pensou Adrian. Mas ficou aliviada por o bebê estar bem. Agora o filho era tudo para ela... tudo o que lhe restava... esse pequeno ser de amor... um ser que ainda nem sequer nascera. Sentia‑se tão só que uma ou duas vezes esteve tentada a falar para os pais, mas resistira a esse impulso. Em vez disso, almoçava com Zelda, de tempos a tempos, para conversarem a respeito do bebê.

            Também encontrou Bill Thigpen no trabalho e, agora que já se conheciam oficialmente, pareciam encontrar‑se amiúde em toda a parte: no elevador, no parque de estacionamento, e até se voltaram a encontrar no Safeway. Uma vez viram‑se no complexo onde habitavam e Bill não lhe disse que vira o marido dela sair de casa deles com uma quantidade considerável de malas. Sabia que ele devia ter ido para qualquer sítio, mas não lhe perguntou para onde, já que Adrian não lhe falara nisso quando se encontraram na piscina. Em vez disso, falaram durante muito tempo acerca de livros e de filmes preferidos e ele falou‑lhe dos filhos. Era óbvio que adorava os filhos e Adrian sentiu‑se comovida pela maneira como Bill falava deles.

            ‑ Devem ser muito importantes para si.

            ‑ São. São a melhor coisa da minha vida. ‑ Sorriu para Adrian, admirando‑a enquanto ela punha mais bronzeador. Parecia‑lhe mais feliz do que quando a encontrara no parque de estacionamento, mais tranqüila, mas ainda muito calada. Pensou se ela seria sempre assim, ou apenas um pouco tímida com estranhos.

            ‑ Não tem filhos, pois não? ‑ Calculava que não os tivesse, pois nunca a tinha visto com uma criança e, com certeza, ela teria falado nos filhos, se os tivesse. A maior parte das pessoas que ali viviam não os tinham. Havia alguns casais com bebês recém‑nascidos, mas geralmente quem tinha filhos saía dali e comprava uma casa maior.

            ‑ Não. ‑ Ela pareceu hesitar e ele olhou‑a, pensando se haveria algo mais na história. ‑ Não... não temos... temos estado sempre muito ocupados a trabalhar.

            Bill fez um gesto que mostrava ter compreendido, ao mesmo tempo que pensava como seria realmente ser amigo dela. Há muito tempo que não sentia amizade por uma mulher de uma maneira meramente platônica, e havia alturas em que ela lhe fazia lembrar Leslie. Denotava a mesma seriedade e intensidade, os mesmos valores morais a respeito de muitas coisas. E Bill deu por si a pensar se gostaria do marido dela. Talvez pudessem ser todos amigos. Bastava‑lhe apenas esquecer que ela tinha um aspecto sensacional e um corpo terrivelmente sexy.

            Bill forçou‑se a olhá‑la nos olhos e a falar do futuro dela nos noticiários. Era uma maneira de esquecer como ela ficava bem de fato de banho, e do fato de que daria tudo para se inclinar sobre ela e a beijar.

            ‑ Quando é que o seu marido volta? ‑ perguntou casualmente, e ela pareceu ficar sobressaltada com a pergunta. Não sabia que Bill tinha conhecimento de que Steven se fora embora. Talvez ela tivesse dito qualquer coisa e não se lembrasse.

            ‑ Muito em breve ‑ respondeu calmamente. ‑ Está em Chicago.

            E quando ele voltasse, iam tentar resolver, de uma vez por todas, a questão do futuro do seu casamento. Adrian temia e, ao mesmo tempo, desejava o regresso de Steven. Ansiava por o ver, mas receava dizer‑lhe que não mudara de idéias acerca do bebê. O filho fazia agora parte dela e ia continuar assim até nascer. E sabia que Steven não iria ficar contente por saber isso.

            Finalmente, na segunda semana de junho, teve notícias de Steven. Eram nove da manhã de segunda‑feira e ela acabava de chegar ao escritório. A secretária dela anunciou‑lhe que ele estava ao telefone e atendeu imediatamente. Há um mês que esperava esse telefonema e, quando ouviu a voz de Steven, as lágrimas vieram‑lhe aos olhos. Sentia‑se feliz. Mas a voz dele não era amistosa. Perguntou‑lhe como ela estava e parecia querer saber sobretudo da saúde dela. Adrian compreendeu o que ele queria e resolveu não estar com evasivas.

            ‑ Steven, estou ainda grávida e vou continuar a estar.

            ‑ Também pensei isso. ‑ E logo a seguir: ‑ Lamento saber isso. Então não mudaste de idéias?

            Adrian abanou a cabeça e as lágrimas saltaram‑lhe dos olhos e rolaram lentamente pelas faces.

            ‑ Não, não mudei. Mas gostava de te ver.

            ‑ Não creio que seja boa idéia. Só servirá para nos deixar confusos. ‑ Porque teria ele medo dela? Porque estaria a fazer aquilo? Continuava a não entender.

            ‑ Que mal faz um pouco de confusão entre amigos? Riu por entre as lágrimas e tentou falar com despreocupação, mas o caso era grave.

            ‑ Nas próximas semanas vou tirar as minhas coisas lá de casa. Começarei a procurar um novo apartamento.

            ‑ Por quê? Porque não voltas para casa só por uns tempos? Tenta.

            Eles nunca se tinham dado mal, nunca tinham discutido. Não houvera problemas de adaptação nos primeiros tempos. Só agora, por causa do bebê, havia desavenças. E, de repente, estava tudo acabado.

            ‑ Não merece a pena torturarmo‑nos, Adrian. Tomaste a tua decisão. Agora só nos resta tentar resolver o assunto e prosseguir a nossa vida o melhor possível.

            Ele falava como se ela o tivesse traído, como se a culpa fosse toda dela e ele uma pessoa decente e razoável. Adrian pensou se ele iria falar a um advogado.

            ‑ Que pensas fazer a respeito da casa? ‑ perguntou ele.

            Adrian não percebeu o que ele queria dizer. Claro que tencionava lá viver com o filho.

            ‑ Tencionava lá viver. Pões alguma objeção a isso?

            ‑ Agora, não. Mas, eventualmente, poderei pôr objeções. Acho que o melhor seria vendê-la para dividirmos o dinheiro e podermos comprar outras casas, a não ser que queiras comprar a minha parte. ‑ Mas ambos sabiam que isso era impossível porque ela não tinha dinheiro para isso.

            ‑ Quando queres que me mude? ‑ Ele estava a pô‑la na rua, e tudo por causa da gravidez.

            ‑ Não há pressas. Digo‑te quando pensar em fazer qualquer coisa a esse respeito. De momento, apenas irei alugar outro apartamento. ‑ Que maravilha. Adrian sentia‑se nauseada ao ouvi‑lo. Já não podia ter ilusões. Ele deixara‑a. Estava tudo acabado. A não ser que mais tarde... depois de o bebê nascer, ele voltasse e visse como procedera mal. Tinha ainda algumas pequenas esperanças de que isso pudesse suceder. Não acreditaria que ele a deixasse para sempre até ver o filho e lhe dizer que não o queria. Adrian estava disposta a esperar, por mais neurótico que ele se mostrasse entretanto. E mesmo que ele se divorciasse dela, poderiam voltar a casar mais tarde.

            ‑ Faz o que quiseres ‑ disse calmamente.

            ‑ Irei buscar as minhas coisas neste fim‑de‑semana.

            Mas Steven acabou por aparecer só na semana seguinte, porque teve gripe. Adrian observou‑o tristemente, enquanto ele metia tudo o que lhe pertencia em caixas de cartão.

            O marido levou horas a emalar as suas coisas. Alugara um pequeno caminhão para as transportar e pedira a um amigo do escritório que o ajudasse a levar as caixas para o caminhão. Adrian sentia‑se embaraçada por estar ali. Ao princípio, ficara satisfeita por o ver, mas ele mostrara‑se frio e distante.

            Saíra enquanto carregavam o caminhão, metera‑se no carro e fora dar uma volta só para não ver. Não podia suportar a dor que aquilo lhe causava; por outro lado, Steven parecia ansioso por a evitar.

            Quando voltou a casa, depois das seis horas da tarde, o caminhão já lá não estava. Adrian entrou em casa e soltou uma exclamação de assombro ao olhar à sua volta. Quando ele dissera que "ia levar tudo", queria dizer isso mesmo. Steven levara tudo quanto era tecnicamente dele, tudo o que lhe pertencera antes de se casarem, e tudo o que ele pagara depois disso, ou mesmo que ajudara a pagar, depois de casarem. Adrian começou a chorar. Ele levara o sofá e as cadeiras, a mesa da sala, a aparelhagem, a mesa onde tomavam o pequeno‑almoço, as cadeiras da cozinha, tudo o que houvera nas paredes. Não ficara uma única cadeira na sala e quando subiu as escadas viu que no quarto ficara apenas a cama. Todas as roupas dela, guardadas nas gavetas da cômoda, haviam sido cuidadosamente dobradas e metidas em caixas. A cômoda desaparecera, assim como os candeeiros e o confortável cadeirão de cabedal. Levara também o televisor e inúmeros pequenos objetos. Quando entrou na casa de banho, Adrian viu que até a sua escova de dentes desaparecera. Começou então a rir daquele absurdo. Ele era louco. Levara tudo. Deixara‑lhe apenas a cama, o carpete da sala, alguns bibelôs e o serviço de louça que ela já tinha antes de casar e que estava agora quase todo partido.

            Não houvera discussões nem conversas sobre o que pertencia a um e a outro, não houvera qualquer partilha. Ele levara tudo, porque achava que pagara todas aquelas coisas, ou quase, e que, por isso, tinha o direito de o fazer. Adrian desceu as escadas, foi ao frigorífico e descobriu que ele levara os refrigerantes todos. Adrian começou a rir outra vez. Nada podia fazer. E ainda estava a olhar à sua volta, com assombro, quando o telefone tocou. Era Zelda.

            ‑ Então que há?

            ‑ Pouca coisa. ‑ Adrian olhou em volta, com tristeza: ‑ De fato, absolutamente nada.

            ‑ Que quer isso dizer? ‑ Mas dessa vez não pareceu preocupada. Adrian parecia‑lhe melhor do que já estivera desde há muito tempo. Parecia quase feliz. Mas não estava. A depressão já passara. Ele fora longe de mais. Agora só lhe dava vontade de rir.

            ‑ Átila, o Huno, passou por aqui. A pilhar e a roubar.

            ‑ Foste roubada? ‑ Zelda mostrava‑se chocada.

            ‑ Acho que se pode dizer isso. ‑ Adrian sentou‑se no chão ao lado do telefone. A vida tornara‑se muito simples.

‑ Steven veio hoje buscar o resto das coisas. Deixou‑me a cama, o carpete e levou tudo o mais, incluindo a minha escova de dentes.

            ‑ Oh, meu Deus! Como pudeste deixá-lo fazer isso?

            ‑ Que achas que eu devia ter feito? Querias que fosse atrás dele com uma arma? Devo lutar por causa de cada toalha e gancho do cabelo? Que vá para o diabo! Se quer tudo pode ficar com tudo. ‑ Se ele um dia voltasse, como ela achava que iria suceder, traria tudo de novo. Não que isso lhe interessasse verdadeiramente. Sentia‑se demasiado cansada para discutir por causa de uns móveis.

            ‑ Precisas de alguma coisa? ‑ perguntou Zelda com sinceridade. E Adrian apenas riu.

            ‑ Com certeza. Tens por acaso um carregamento de mesas e cadeiras, pratos, toalhas de mesa, uma cômoda, toalhas... oh, e não te esqueças da escova de dentes.

            ‑ Estou a falar a sério.

            ‑ Também eu. Não tem importância, Zelda. De qualquer maneira, ele quer vender esta casa. ‑ A amiga não podia crer no que estava a ouvir. Adrian também tivera dificuldade em acreditar no que via. Ele levara‑lhe tudo. Mas deixara‑lhe a única coisa que lhe importava. O seu bebê.

            Adrian manteve‑se surpreendentemente bem‑disposta, apesar de tudo, e só no dia seguinte, estendida junto da piscina, compreendeu bem o que lhe sucedera. Esteve deitada muito tempo a pensar em Steven, recordando como a sua vida se modificara completamente em tão pouco tempo. Algo devia ter estado errado desde o inicio, devia ter faltado algo de essencial, talvez nele, se não no casamento deles. Pensou no modo como ele deixara os pais e os irmãos uns anos antes, no amigo que, sem escrúpulos, ele atraiçoara. Talvez houvesse uma parte dele que não soubesse amar. Se assim não fosse, não teria sido possível que tudo se desmoronasse como sucedera. Ele não poderia ter feito aquilo... mas fizera‑o. Numa questão de semanas, o casamento deles acabara. Sentia‑se deprimida ao pensar nisso agora, mas era obrigada a encarar o fato de que ele se fora embora. Tinha trinta e um anos, estivera casada dois anos e meio e estava grávida. Contudo, não queria confessar às pessoas que Steven a deixara. Dizia a toda a gente que ele se encontrava fora. Custava‑lhe muito e embaraçava‑a dizer que o marido a abandonara. E quando Bill Thigpen, nessa tarde, apareceu na piscina e lhe perguntou se iam mudar‑se, ela respondeu-lhe que estavam a vender a mobília para comprar tudo novo, mas a maneira como o disse não lhe pareceu convincente, nem sequer a si mesma.

            ‑ Pareceram‑me coisas muito boas ‑ disse Bill cautelosamente, sentando‑se perto dela, à beira da piscina. Reparara na expressão do marido de Adrian e julgara ver nele algo que lhe fizera lembrar Leslie quando o deixara. Mas Adrian tinha um ar perfeitamente tranqüilo. Segurava nas mãos um livro, sem reparar que estava com a parte de cima para baixo, enquanto sentia uma dor no coração, ao pensar em Steven.

 

            Na semana em que Steven saiu definitivamente de casa, Adrian viveu como se estivesse num sonho. Levantava‑se, ia trabalhar, voltava para casa à noite e sempre que chegava, esperava ir encontrá‑lo ali. Ele já devia ter recuperado o senso. Devia estar mortificado, com remorsos do que fizera. Ririam ambos, deitar‑se‑iam juntos e tudo passaria. Daí a dez anos, ele havia de contar ao filho como procedera absurdamente ao saber que ela ia ter um bebê.

            Porém, quando chegava a casa, noite após noite, não o encontrava. Nunca mais lhe telefonou. Adrian deixava‑se ficar sentada no carpete da sala, tentando ler ou fingindo remexer em papéis.

            Pensara em comprar mobiliário novo depois de ele levar o que tinham, mas decidira não o fazer: talvez ele voltasse, pois ainda acreditava que o faria. E para que precisavam de dois conjuntos de mobílias para um só apartamento?

            A maior parte do tempo conservava o atendedor de chamadas ligado, assim ouvia os telefonemas que lhe eram feitos. Nunca era Steven, mas sim pessoas amigas, ou alguém do escritório, mas quase sempre Zelda. Porém, a maior parte das vezes, também não lhe apetecia falar com ela. A única concessão que fazia a uma vida normal era continuar a ir trabalhar e voltar para casa. Fazia‑o automaticamente, como um robô. Saia, trabalhava, voltava a casa, arranjava qualquer coisa para comer, voltava a sair para o último noticiário e regressava. Sentia‑se presa numa cadeia infindável. Havia nos olhos dela uma constante expressão de dor. Zelda sentia muita pena de a ver assim, mas nada podia fazer. Adrian ainda lhe custava a crer no que Steven fizera e não compreendia se seria para sempre. Telefonava frequentemente para o escritório dele, mas a secretária dizia‑lhe que ele estava fora, o que ela não sabia se era ou não verdade. Continuava a sentir pânico só de pensar no que poderia suceder se viesse a precisar realmente dele, mas, de momento, não precisava e sabia que devia agüentar até ele recuperar o bom senso.

            Foi na sexta‑feira do fim‑de‑semana do Quatro de Julho que Adrian encontrou novamente Bill Thigpen no Safeway. Saíra do trabalho, depois das notícias da noite, e lembrara‑se que não dispunha de nada em casa para o dia seguinte e tinha esse fim‑de‑semana de folga. Ele ia a empurrar dois carros cheios com carvão, duas dúzias de bifes, várias embalagens de cachorros‑quentes e carne moída, pães, croissants e uma variedade de coisas que davam a impressão de que estava a preparar um piquenique.

            ‑ Olá! ‑ exclamou ele quando pararam lado a lado e ele tirava de uma prateleira dois grandes frascos de Ketchup.

‑ Não a vi toda a semana. ‑ E, ao dizer isto, Bill compreendeu que sentira a falta dela. Havia algo de fresco e atraente no rosto dela de que ele gostava, e o seu sorriso afetuoso comovia‑o. ‑ Como vão as noticias?

            ‑ Na mesma. Guerras, tremores de terra... vagas de maremotos... o habitual. Como vão as coisas em Uma Vida?

‑ A idéia de que ele trabalhava numa série televisiva ainda a divertia.

            ‑ O mesmo que nos noticiários... guerras... maremotos... terremotos... explosões... divórcios... ilegalidades... a costumada felicidade. Tenho a impressão de que trabalhamos com o mesmo material.

            Ela sorriu:

            ‑ O seu parece mais divertido.

            ‑ E é... as vezes... ‑ Bill sentia‑se muito só desde que Sylvia abandonara a série, mas tinha de admitir que era estúpido. Dera‑se bem com ela, a ligação entre ambos fora fácil e agradável. Mas, na verdade, ela não melhorara a qualidade da vida dele, nem ele a dela, e Sylvia estava melhor com o seu fabricante de vestuário, em Nova Jersey. Sylvia escrevera um postal aos colegas, falando entusiasticamente da casa que Stanley lhe comprara. Olhando para trás, Bill sentia‑se tolo por ter tido uma ligação com ela. Agora sentia isso a respeito de quase todas as mulheres com que andara. E decidira voltar uma nova página, envolvendo‑se apenas com mulheres que significassem alguma coisa para ele, mas o problema era que isso se tornava muito difícil. No seu trabalho conhecia muitas atrizes, muitas mulheres que apenas queriam dormir com ele a troco de ele lhes dar um bom papel, uma oportunidade de aparecerem no seu programa. Consideravam isso uma troca justa, e essa atitude não podia conduzir a qualquer romance. Como resultado, ele não saía com ninguém há mais de um mês e, na verdade, não sentia falta disso. Mas gostava de ter alguém com quem conversar, à noite, alguém que pudesse apreciar e criticar as suas idéias para a série, alguém com quem partilhasse alegrias e desgostos. Contudo, de qualquer maneira, Sylvia também não lhe proporcionara isso. Com efeito, mais ninguém o fizera desde que Leslie o deixara.

            ‑ Vai ao barbecue amanhã à noite? ‑ perguntou a Adrian, com a esperança de que ela lhe dissesse que sim. Gostava de conversar com ela e sentia curiosidade a respeito do marido. Ela dissera‑lhe que este trabalhava em publicidade, mas Bill achava que ele tinha mais o aspecto de ser ator. Há duas semanas que não o via, desde que ele metera uma porção de mobiliário num caminhão e partira. ‑ O barbecue do Quatro de Julho no nosso complexo habitacional é o meu momento culinário mais importante do ano. Não o devia perder. ‑ Apontou para os dois carros cheios de compras e sorriu. ‑ Faço isto todos os anos, a princípio por pedido popular, agora já por hábito. Mas faço uns belos bifes. Sorriu outra vez. ‑ O ano passado foi lá? ‑ Não se lembrava de os ter visto, embora soubesse que devia. Uma rapariga como aquela não lhe poderia passar despercebida. Mas talvez estivesse distraído.

            ‑ Habitualmente vamos para fora ‑ respondeu ela. ‑

O ano passado estivemos em La Jolla.

            ‑ Vai para fora outra vez? ‑ parecia desapontado.

            Ela abanou a cabeça.

            ‑ Não... eu... Steven... o meu marido... está fora, Chicago. ‑ Adrian falou com uma certa hesitação e Bill mostrou‑se surpreendido.

            ‑ No Quatro de Julho? Essa é única! E que vai você fazer enquanto ele está fora? ‑ Bill não estava a ser atrevido, mas apenas a mostrar‑se amigável. Gostavam de conversar. E sabia que ela era casada e compreendia isso.

            ‑ Nada de especial ‑ respondeu nervosamente.

            ‑ Então apareça no barbecue. Hei‑de preparar‑lhe um excelente bife à Thigpen. ‑ Adrian sorriu da expressão ansiosa dele. Era realmente uma pessoa simpática.

            ‑ Vou jantar com uns amigos. ‑ Sorriu, mas os seus olhos estavam outra vez tristes e ele reparou nisso. ‑ Talvez para o ano.

            Ele disse que sim com a cabeça, ao mesmo tempo que reparava no relógio que se encontrava na parede, atrás dela. Era meia‑noite e meia hora e estavam a conversar como se fossem dez horas da manhã.

            ‑ Bem, tenho de ir buscar o resto das coisas ‑ disse ele como se o lamentasse. ‑ Se mudar de idéias apareça. Leve os seus amigos. Tenho comida suficiente para um exército.

            Ela não tinha intenção de ir ao barbecue ou a qualquer outro sítio. Lembrava‑se de ter visto um convite para a festa ao ar livre, mas deitara‑o fora. Outras coisas a preocupavam na altura. E não lamentava tê‑lo feito. A última coisa que desejava era ver‑se metida no meio de um grupo de solteirões e solteironas solitárias que viviam no complexo. Tinha a sua vida e não estava interessada em cultivar novas relações ou amizades. Era casada e devia apenas esperar que Steven voltasse para casa. Era apenas uma questão de tempo, tinha a certeza. E, quando ele voltasse, pensariam na vinda do bebê. Entretanto, mal pensava nisso. Tomara a sua decisão e fora avante com a gravidez, mas agora evitava o mais possível pensar nisso. Além de que, por enquanto, ainda era fácil esquecer. Se excetuasse um certo enjôo matinal e um aumento do apetite no resto do tempo, um pouco de fadiga, quase podia esquecer que estava grávida. Não se notava nada: a gravidez era de apenas três meses. E precisava apenas de pensar no seu trabalho e em esperar por Steven. Quando ele saíra de casa, ao principio, julgara que fosse para sempre. Mas nas últimas duas semanas conseguira convencer‑se de que se tratava de um lapso temporário, de um momento de loucura no casamento deles, que dantes sempre lhe parecera saudável. Recusava‑se a acreditar que o fato de ele nunca lhe telefonar e não atender os telefonemas dela, de nunca ter dado noticias depois de ter tirado tudo da casa deles, fosse sinal de que o casamento tivesse verdadeiramente acabado.

            Viu novamente Bill quando ele saía da caixa, com três carros cheios de compras, e sentiu‑se novamente triste. As mercearias que ela levava para a semana inteira cabiam agora em dois sacos que levou para o carro. Tudo na vida dela parecia ter encolhido desde que Steven a deixara. Ao chegar a casa, o apartamento pareceu‑lhe ridiculamente vazio. Meteu as compras no frigorífico, apagou as luzes e subiu para o quarto, onde as suas roupas continuavam nas caixas onde Steven as deixara, no chão. Ficou deitada, acordada, durante muito tempo, pensando nele e tentando imaginar o que ele faria nesse fim‑de‑semana. Sentiu‑se tentada a telefonar‑lhe, a pedir‑lhe para ele vir para casa, a dizer‑lhe que faria tudo... tudo, exceto o aborto. Esse ponto já não podia ser discutido. Agora a questão era continuar a sua vida sem um marido. Surpreendia‑se a si própria ao compreender como se sentia perdida, desamparada e abandonada. Após dois anos e meio, nem sequer conseguia lembrar‑se daquilo que fazia para se entreter antes de ser casada. Era quase como se nunca tivesse vivido sozinha antes de conhecer Steven, como se não houvesse vida sem ele.

            Já passava das três quando, por fim, adormeceu e eram quase onze quando acordou na manhã seguinte. Era a única coisa que parecia fazer agora com facilidade. Poderia dormir todo o dia, se tivesse oportunidade para isso. O médico dizia‑lhe que era por causa do bebê. Do bebê. A idéia ainda lhe parecia irreal. O pequeno ser que lhe custara o casamento. E, no entanto, continuava a querê-lo. Achava que valia a pena.

            Levantou‑se, tomou uma ducha, e ao meio‑dia fez uns ovos mexidos, tratou da roupa e foi pagar algumas contas. Olhou para a casa vazia e riu. Era realmente fácil cuidar da casa daquela maneira. Tinha apenas de fazer a cama e aspirar.

            Não havia nada para arrumar, nem pó, nem nódoas no sofá, nem sequer plantas para regar, pois Steven levara‑as também.

            As duas e meia dirigiu‑se para a piscina e viu Bill a preparar tudo para o barbecue. Falava com dois homens que Adrian conhecia de vista, enquanto duas mulheres colocavam uma grande taça com flores numa comprida mesa de piquenique. Era quase certo que iria ser um acontecimento e Adrian quase teve pena de ter dito que não ia. Não tinha nada para fazer e nenhum sitio para onde ir. Zelda estava no México com um amigo e Adrian apenas podia pensar em ir a um cinema.

            Disse adeus a Bill, com um aceno, e dirigiu‑se para a piscina. Esteve muito tempo na água, a flutuar debaixo do sol quente, e depois foi estender‑se numa das cadeiras de descanso. Mais tarde, Bill aproximou‑se e sentou‑se numa cadeira vaga ao lado dela. Parecia satisfeito, mas exausto.

            ‑ Lembre‑me de não voltar a fazer isto para o ano disse, como se fossem velhos amigos. Tinham‑se familiarizado apenas por viverem e trabalharem nos mesmos sítios e por se encontrarem muitas vezes nos mesmos locais. Até faziam ambos as compras no mesmo supermercado aberto toda a noite. ‑ Todos os anos digo isto. ‑ Baixou a voz como se estivessem a conspirar: ‑ Esta gente põe‑me doido.

            Ela sorriu ao olhá‑lo. Bill era engraçado sem o querer ser. Parecia muito cansado, mas ao mesmo tempo contente.

            ‑ Aposto que se diverte com isto ‑ disse Adrian.

            ‑ Claro que me divirto. Provavelmente, Sherman divertiu‑se imenso na marcha sobre Atlanta. Mas se calhar foi uma coisa mais fácil de orquestrar do que isto. ‑ Aproximou‑se mais para não o poderem ouvir. ‑ Os tipos acham que este ano eu podia ter comprado lagosta. Dizem que há três anos que faço bifes, cachorros‑quentes e hamburgers, e que começam a estar cansados disso. As mulheres acham que podíamos encomendar o piquenique a um restaurante. Alguma vez foi a um piquenique desses? ‑ Bill parecia indignado e ela achou a idéia engraçada. ‑ Foi alguma vez a um piquenique do dia Quatro de Julho quando era adolescente?

            Adrian disse que sim com a cabeça.

            ‑ Costumávamos ir a Cape Cod. Mais crescida, íamos a Martha's Vineyard. Eu gostava muito. Aqui não há nada como isso. A maravilhosa sensação que é chegarmos a uma estância balnear, as praias perfeitas, os garotos com que brincávamos todos os Verões e que esperávamos voltar a ver no ano seguinte. Era fantástico.

            ‑ Sim. ‑ Bill sorriu das suas próprias recordações. Nós costumávamos ir a Coney Island. Íamos andar de barco e víamos o fogo de artifício. O meu pai preparava um grande barbecue à noite, na praia. Quando eu era mais velho, tinham uma casa em Long Island e a minha mãe fazia um verdadeiro piquenique no quintal. Mas sempre achei que os tempos de Coney Island eram melhores. ‑ Bill ainda tinha maravilhosas recordações de coisas que fizera com os pais na sua infância. Fora filho único e adorava os pais.

            ‑ Ainda fazem isso?

            ‑ Não. ‑ Abanou a cabeça, pensando neles, mas as recordações tristes estavam agora misturadas com sentimentos suaves. A dor de os perder desaparecera, o choque há muito que passara. Olhou para Adrian e gostou do que viu nesses olhos, gostava do modo como os cabelos escuros lhe caíam sobre os ombros. ‑ Morreram. Depois de terem comprado a casa em Long Island. Há muito tempo. Dezesseis anos. Bill tinha vinte e dois quando o pai morreu, vinte e três na altura do falecimento da mãe, um ano depois. ‑ Creio que faço isto no Quatro de Julho por causa deles. Talvez seja a minha maneira de dizer: Lembro‑me. ‑ Sorriu afetuosamente para Adrian: ‑ Parece que a maior parte das pessoas que vive aqui não tem família. Temos namoradas, filhos, cães e amigos, mas não temos tios, tias, avós e primos, que estão todos noutros sítios. Estou a falar a sério. Conhece alguém que tenha crescido em Los Angeles? Refiro‑me a uma pessoa normal que não se pareça com Jean Harlow e que não seja um tipo que está apaixonadíssimo pela irmã? ‑ Ela riu com vontade. Ele era tão verdadeiro, tão profundo e tão sólido, sendo ao mesmo tempo despreocupado e engraçado.

‑ De onde é você?

            Ela queria dizer de Los Angeles, mas não disse.

            ‑ Sou de Connecticut. New London.

            ‑ Eu sou de Nova Iorque. Mas agora é muito raro lá ir. Você costuma ir a Connecticut?

            ‑ Só se não puder deixar de ser. ‑ Sorriu: ‑ Deixou de ter graça desde que deixaram de ir a Martha's Vineyard, quando fui para a universidade. Mas a minha irmã vive lá.

‑ Ela, os filhos e o incrivelmente maçador marido. Era difícil dar‑se com eles e desde que casara com Steven deixara mesmo de tentar. Sabia que devia contar‑lhes que estava grávida, mas queria esperar até que Steven voltasse para casa. Seria demasiado complicado explicar‑lhes que estava grávida, mas que ele se fora embora, e ainda por cima dizer-lhes por que. Por isso é que, de momento, tentava não pensar na gravidez.

            ‑ É uma pena não poder vir esta noite ‑ disse Bill desanimado. Adrian baixou a cabeça, embaraçada com a mentira, mas tornava‑se mais fácil não ir. Meteu‑se na água e nadou mais um bocado. Bill voltou aos seus preparativos para o jantar e, pouco depois, foi para casa temperar os bifes. O barbecue prometia ser uma coisa em grande.

            Ás cinco, Adrian voltou para casa. Estendeu‑se na cama e tentou ler. Mas não conseguia concentrar‑se. Ultimamente sentia dificuldades em fazê‑lo. Tinha demasiadas coisas na cabeça. E ali estendida ouvia os sons do barbecue que chegavam até ela. Os convidados começaram a chegar. Havia musica e risos. Deviam ali estar umas cinqüenta pessoas. Foi para o terraço, passado um bocado. Ouvia o ruído e chegava até ela o odor da comida, mas não via coisa alguma. Parecia tudo muito festivo. Ouviu o tilintar dos copos, as gargalhadas. Alguém pusera a tocar um velho disco dos Beatles, dos anos 60. Pareciam estar a divertir‑se e ela tinha pena de não ter ido. Mas seria embaraçoso explicar a ausência de Steven, embora ela tivesse dito que ele se encontrava em Chicago a tratar de negócios. Sentia‑se embaraçada por sair sozinha. Ainda não o fizera e não se sentia preparada para começar. Entretanto o cheiro da comida estava a fazer‑lhe fome. Por fim, desceu as escadas, foi ao frigorífico, mas nada lhe pareceu tão bom como o aroma que chegava até ali, além de que dava muito trabalho a cozinhar. Às sete e meia, Adrian desejava desesperadamente um hambúrguer. Não comera nada desde o meio‑dia e estava esfomeada. Pensou se poderia meter‑se no grupo, arranjar alguma coisa para comer e depois vir‑se embora. Mais tarde poderia passar um cheque a Bill Thigpen pela sua participação no jantar. Não fazia mal ir. Não era o mesmo que ir sozinha a uma festa. Ia apenas para comer. Era o mesmo que ir a um self-service ou a um restaurante chinês para levar comida para casa. Não precisava de ficar na festa.

            Subiu outra vez as escadas, olhou para o espelho da casa de banho, penteou‑se, prendeu o cabelo com uma fita de cetim branco e vestiu um vestido de renda branca, mexicana, que ela e Steven tinham comprado em Acapulco. Era bonito, feminino e fácil de usar. Além disso, ocultava a pequena saliência do seu ventre, que mal se notava, mas que tornava difícil vestir calças ou saias justas. Porém, com os vestidos ainda não se notava. Adrian calçou umas sandálias prateadas e pôs nas orelhas uns brincos oscilantes, de prata. Hesitou um momento antes de descer as escadas. E se todos tivessem ido aos pares e ela não conhecesse ninguém e se sentisse deslocada? Mas, pelo menos, conhecia Bill Thigpen, que se mostrava sempre amistoso e com quem era fácil conversar. Saiu e, daí a momentos, aproximou‑se de um grupo de pessoas reunidas em torno de uma enorme mesa de piquenique cheia de comida. Havia pequenos grupos que conversavam e riam, algumas pessoas estavam sentadas em volta da piscina com os pratos no colo, ou bebendo vinho. Todos pareciam divertir‑se. Junto do grelhador, com uma camisa de riscas brancas e vermelhas, calças brancas e um grande avental azul, encontrava‑se Bill Thigpen.

            Adrian hesitou. Ele distribuía bifes com um ar muito profissional, conversava com toda a gente que se aproximava dele, mas parecia não estar acompanhado. Adrian pensou que isso não tinha qualquer importância e lembrou‑se então de que nem sabia se ele tinha namorada. Mas, sem saber por que, convencera‑se de que ele vivia sozinho, sem estar envolvido com alguém. Sempre lhe dera a sensação de ser livre. Adrian dirigiu‑se‑lhe lentamente e o rosto dele abriu‑se num largo sorriso quando a viu. Bill viu o vestido branco, o cabelo preto, lustroso, os grandes olhos azuis. Estava muito bonita e ele ficou encantado por a ver. Sentia‑se um garoto apaixonado por uma vizinha. Não a via há semanas e depois ela aparecia‑lhe de repente, bonita, encantadora e ele ficava entontecido, apatetado. Depois, ela desaparecia outra vez e o mundo parecia acabar até a encontrar de novo. Ultimamente começava a sentir que a vida dele, ou pelo menos a parte digna de ser vivida, estava presa a uma série de encontros ocasionais.

            ‑ Olá! ‑ Corou e esperou que ela pensasse que era do calor do grelhador. Não sabia por que, mas aquela era a primeira mulher casada por quem ele se interessava. E não era só gostar de olhar para ela. Gostava de falar com ela. E o pior era que tudo nela lhe agradava. ‑ Trouxe os seus amigos?

            ‑ Eles telefonaram‑me no último minuto e disseram que não podiam vir. ‑ Disse a mentira com facilidade e olhou‑o com contentamento.

            ‑ Ainda bem... isto é... na verdade, ainda bem. Apontou para a carne que estava a cozinhar. ‑ Que quer que eu lhe arranje? Cachorro‑quente, hambúrguer, bife? Recomendo-lhe o bife.

            Tentava ocultar o que sentia com a conversa sobre a comida. Com efeito, sentia‑se um garoto de cada vez que a via. Mas o mesmo se passava com ela. E o que era engraçado é que apenas queria falar com ele, que era sempre tão simpático, tão afável e com quem era tão fácil conversar.

            Minutos antes, Adrian desejava desesperadamente um hambúrguer mas, de repente, os bifes pareceram‑lhe suculentos.

            ‑ Como um bife, se faz favor. Mal passado.

            ‑ Sai já. Há ai muitas outras coisas na mesa. Catorze saladas diferentes, suflê frio, queijo, salmão da Nova Escócia. Eu nada tenho a ver com essas coisas. Sou o especialista do barbecue, mas vá dar uma espreitadela e, quando voltar, terei o seu bife pronto. ‑ Ela foi e, quando voltou, Bill reparou que tinha enchido o prato com salada, camarões e outras coisas que encontrara na mesa do bufê. Tinha um apetite saudável, o que era de admirar visto ser tão esbelta. Era obviamente muito atlética.

            Bill pôs‑lhe o bife no prato, ofereceu‑lhe vinho, que ela recusou, indo sentar‑se perto da piscina. Bill desejou que ela ainda lá estivesse quando ele acabasse de cozinhar. Meia hora mais tarde, depois de já toda a gente ter sido servida e alguns terem repetido, Bill deu o seu trabalho por terminado. Um dos outros homens ofereceu‑se para tomar o lugar dele e Bill aceitou com satisfação. Foi logo procurar Adrian, que estava tranquilamente sentada a acabar de comer a sua sobremesa, ouvindo os outros a conversar.

            ‑ Como estava tudo? Parece que não estava mau de todo. ‑ O bife desaparecera, juntamente com tudo o que ela pusera no prato. Adrian pareceu ficar embaraçada e riu para esconder o seu embaraço.

            ‑ Achei tudo delicioso. E eu estava cheia de fome.

            ‑ Ótimo. Detesto cozinhar para pessoas que não têm apetite. Você gosta de cozinhar?

            Bill sentia curiosidade a respeito dela, queria saber como era, daquilo que gostava, se era feliz com o marido. Ouvia o sinal de alarme a tocar na sua cabeça, que lhe dizia para parar, mas outra voz, mais forte, dizia‑lhe que não o fizesse.

            ‑ Às vezes, cozinho muito bem, embora não tenha muito tempo para isso. ‑ E agora, pelo menos, não tinha para quem cozinhar. Mas Steven também não era grande comilão. Sempre preferira apenas uma salada.

            ‑ Se faz os dois noticiários da noite, realmente não tem tempo. Vem a casa entre os dois noticiários? ‑ Queria saber tudo acerca dela.

            ‑ Quase sempre. A não ser que haja qualquer coisa verdadeiramente dramática, venho a casa por volta das sete e regresso ao estúdio cerca das dez e meia. Volto para casa outra vez mais ou menos à meia‑noite.

            ‑ Bem sei. ‑ Sorriu. Era nessa altura que ocasionalmente se encontravam no Safeway.

            ‑ Você também trabalha até tarde. ‑ Adrian sorriu, debicando a sua torta de maçã, envergonhada por a devorar à frente dele.

            ‑ Trabalho. Algumas noites durmo no sofá do meu gabinete.

            Esse sofá fazia-lhe muita companhia, como muitas mulheres poderiam dizer‑lhe.

            ‑ Os nossos guiões mudam por vezes tão rapidamente, que as posições das personagens mudam todas. É como as ondas provocadas por um barco, e muitas vezes é difícil manter o ritmo. Mas também é cansativo. ‑ Adrian achava que devia ser divertido e falaram acerca da série durante um bocado, da maneira como ela começara em Nova Iorque há dez anos, e como ele se mudara depois para a Califórnia. O mais difícil para mim foi deixar os meus rapazes ‑ disse Bill em voz baixa. ‑ São uns garotos fantásticos. E eu sinto muito a falta deles. ‑ Bill já lhe falara dos filhos, mas havia ainda muita coisa que ela não sabia sobre eles, e também acerca do pai deles.

            ‑ Vê-os muitas vezes?

            ‑ Não tantas como gostaria. Vêm aqui passar as férias escolares durante o ano e, no Verão, estão um mês comigo. Estarão aqui dentro de duas semanas. ‑ O rosto dele iluminou‑se ao dizer isso e Adrian ficou comovida ao vê-lo.

            ‑ Que costuma fazer quando eles estão consigo? ‑ Trabalhar como ele trabalhava e tomar conta de duas crianças não seria fácil.

            ‑ Trabalho como um louco antes de eles virem e depois tiro quatro semanas de férias. Apareço de vez em quando no estúdio, para ver como estão as coisas, mas a verdade é que, embora eu deteste admiti‑lo, o programa corre lindamente sem mim. ‑ Bill sorriu com ar divertido: ‑ Geralmente, fazemos uma viagem de uns quinze dias, acampando aqui e ali, e nas outras duas semanas ficamos em casa. Eles adoram. Eu passava bem sem o campismo. A minha idéia de acampar é passar uma semana no Bel‑Air Hotel. Mas os garotos apreciam o desconforto das tendas, no meio das árvores. De uma maneira geral, para tornar as coisas mais fáceis, acampamos durante uma semana e passamos a outra num hotel. Como o Ahwahnee, em Yosemite, ou vamos até Lake Tahoe. Uma semana é o máximo que eu consigo agüentar numa tenda e a dormir num saco‑cama. Mas faz‑nos bem. Torna‑nos humildes. ‑ Soltou uma gargalhada e Adrian acabou de comer a sua torta de maçã. Estavam nervosos um com o outro, dessa vez, mas não era tanto nervoso como excitação. Era a primeira vez que estavam juntos, intencionalmente, num convívio social.

            ‑ Que idade têm eles?

            ‑ Sete e dez anos. São formidáveis. Há‑de vê‑los aqui na piscina. Eles acham que a Califórnia é quase toda piscinas. É muito diferente de Great Neck, perto de Nova Iorque, onde vivem com a mãe.

            ‑ São parecidos consigo? ‑ perguntou Adrian, com um sorriso. Podia imaginá-lo com dois ursinhos de pelúcia, parecidos com ele.

            ‑ Não sei bem. Há quem diga que o mais pequeno se parece comigo, mas eu acho que são ambos parecidos com a mãe. ‑ E depois, nostalgicamente: ‑ Tivemos o mais velho no ano seguinte ao nosso casamento. E foi duro. Leslie teve de deixar de dançar. Nessa altura era bailarina na Broadway. E eu lutava pela vida, nessa época. Houve alturas em que julguei que íamos morrer de fome, mas não morremos. E o bebê foi a melhor coisa que alguma vez nos sucedeu. Creio que é uma das poucas coisas em que ainda estamos de acordo. Adam e a minha série nasceram quase ao mesmo tempo. Sempre senti que era a Providência a enviar‑nos aquilo de que precisávamos para ele e para nós. Tem sido uma coisa boa para mim desde há muito tempo. ‑ Falava de uma maneira que parecia achar que não merecia o êxito mas que apenas tivera sorte. E Adrian, ao ouvi‑lo, pensou como ele era diferente de Steven. Os filhos significavam muito para ele e encarava o seu triunfo com modéstia. Os dois homens tinham muito pouco em comum.

            ‑ E você? ‑ perguntou‑lhe então Bill. ‑ Vai continuar com os noticiários?

            ‑ Não sei. ‑ Adrian também já pensara nisso. Talvez quando tivesse a licença de parto houvesse tempo para pensar naquilo que queria continuar a fazer durante o resto da vida, além de ser mãe.

            ‑ Ás vezes penso em trabalhar noutra área. Mas nunca tenho tempo para pensar nisso, quanto mais para tentar fazê-lo. Uma série como Uma Vida requer um empenhamento total.

            Daí a pouco, enquanto bebia uma limonada que alguém lhe oferecera, Adrian perguntou:

            ‑ Onde é que vai buscar as idéias para a sua história?

            ‑ Só Deus sabe. Não são cenas da vida real, claro disse sorrindo. ‑ É tudo quanto me vem à cabeça e parece ficar bem. São coisas que acontecem às pessoas. Meto‑as todas na mesma panela, mexo‑as e sirvo‑as. As pessoas fazem as coisas mais incríveis e metem‑se nas mais estranhas situações.

            Adrian concordou com um gesto da cabeça, pensativamente. Sabia exatamente o que ele queria dizer. Bill olhava‑‑a. A certa altura teve a impressão de que ela ia dizer qualquer coisa. Mas não disse.

            Os convidados começaram a deixar a festa. Muita gente vinha agradecer a Bill Thigpen. Ele parecia conhecê‑los a todos e mostrava‑se sempre afável e prazenteiro. Adrian gostava de estar com ele e surpreendia‑se por se sentir tão à vontade. Podia imaginar‑se a contar‑lhe fosse o que fosse. Bem, quase tudo. Não gostaria de lhe falar de Steven, por exemplo. O fato de ele a ter deixado fazia‑a sentir‑se humilhada.

            ‑ Quer uma bebida? ‑ perguntou ele. Bill tinha estado toda a noite com o mesmo copo de vinho na mão, e quando ela recusou, pousou o copo e deitou café numa chávena. Bebo pouco ‑ explicou. ‑ Se bebesse não podia trabalhar toda a noite.

            ‑ Nem eu. ‑ Adrian sorriu. Havia ali vários casais jovens, que conversavam tranquilamente, por vezes de mãos dadas, e ela sentiu‑se muito só, ao vê‑los. Lembrou‑se de novo de que estava só. Depois de viver com Steven durante quase cinco anos, encontrava‑se sozinha, sem ter ninguém que lhe desse a mão e que a amasse.

            ‑ Então, quando é que volta o seu marido? ‑ perguntou Bill, sentindo pena. Continuava a desejar que ela não fosse casada.

            ‑ Para a semana.

            ‑ E onde está ele?

            ‑ Em Nova Iorque ‑ respondeu rapidamente Adrian. Bill notou qualquer coisa quando ela o disse.

            ‑ Julguei que me tinha dito que ele estava em Chicago! declarou, perplexo, mas recuou ao ver a expressão de pânico no rosto dela. Algo a perturbara terrivelmente e ele não teve a certeza do que seria, pois Adrian depressa mudou de assunto.

            ‑ Foi uma grande idéia ‑ disse ela erguendo‑se nervosamente e olhando à sua volta. ‑ Foi uma festa encantadora.

            Ela ia‑se embora e Bill estava desolado. Assustara‑a e não queria que se fosse embora. Sem pensar, estendeu a mão e tocou na dela, querendo fazer tudo para a conservar junto de si.

            ‑ Por favor, não vá, Adrian... está uma noite tão boa e é tão agradável estar aqui a falar consigo. ‑ Bill parecia muito novo e muito vulnerável e Adrian ficou comovida pela maneira como ele falou.

            ‑ Pensei que... talvez... você tivesse outros planos... Não queria aborrecê‑lo... ‑ Parecia sentir‑se desconfortável, mas ele continuava sem perceber por que. Ela sentou‑se novamente, e ele conservou a mão dela na sua, pensando no que estava a fazer. Era uma mulher casada e ele não queria ficar com o coração destroçado.

            ‑ Não me aborrece. Acho‑a maravilhosa e gosto de estar ao pé de si. Fale‑me de si. Que gosta de fazer? Qual é o seu desporto favorito? De que gênero de música gosta?

            Adrian riu. Há anos que ninguém lhe perguntava essas coisas, mas sabia‑lhe bem conversar com Bill desde que não lhe falasse de Steven:

            ‑ Gosto de todos os gêneros... de música clássica... de jazz... de folclore... de rock... Gosto de Sting, dos Beatles, do U2, de Mozart. Esquiei bastante na adolescência, mas há anos que não o faço. Gosto de praia... e de chocolate quente... e de cães... ‑ De repente riu: ‑ E de cabelos ruivos...

‑ Mas de súbito ficou séria. ‑ E de bebês. Sempre gostei de bebês.

            ‑ Também eu. ‑ Bill sorriu, desejando passar a vida inteira junto dela e não apenas um serão. ‑ Os meus filhos eram tão engraçados quando eram bebês que não imagina. Quando me separei, Tommy ainda nem sequer tinha um ano. Isso ia‑me matando. ‑ E nos olhos dele brilhou a recordação de um verdadeiro desgosto ao dizer aquelas palavras. ‑ Gostava que os conhecesse quando eles vierem, dentro de duas semanas. Talvez possamos passar um serão juntos. ‑ Bill sabia que se queria ser amigo de Adrian, teria de se tornar também amigo do marido. Era o único relacionamento possível entre eles e Bill estava disposto a isso para a conhecer melhor. E talvez o marido dela fosse mais simpático do que lhe parecera, embora achasse isso pouco provável.

            ‑ Gostava de os conhecer. Quando irão acampar?

            ‑ Daqui a duas semanas. ‑ Sorriu. ‑ Vamos no carro até Lake Tahoe, via Santa Bárbara, São Francisco e Napa Valley. Depois, quando lá chegarmos, acampamos durante cinco dias.

            ‑ Parece uma viagem muito civilizada. ‑ Ela esperava algo mais violento.

            ‑ Tenho de fazer as coisas dessa maneira. Demasiado ar livre é um choque para o meu organismo.

            ‑ Joga tênis? ‑ perguntou Adrian hesitantemente. Não era que os quisesse comparar, mas para Steven o tênis era quase uma obsessão.

            ‑ Se se pode chamar assim ‑ disse ele como que a desculpar‑se. ‑ Não sou grande jogador de tênis.

            ‑ Nem eu. ‑ Adrian riu. Apetecia‑lhe outra fatia de torta, mas envergonhava‑se de se levantar para a ir buscar. Ele ia pensar que ela era uma glutona se comesse mais, mas o jantar estava verdadeiramente delicioso. Nesse momento um grupo de pessoas levantava a mesa e arrumava tudo. Começava a escurecer. Havia agora muito menos gente ali, mas ela sentia‑se bem em companhia de Bill e não lhe apetecia ir‑se embora, embora começasse a pensar que devia ir. E então, subitamente, começou o fogo de artifício. Estava a ser lançado de um parque próximo e era lindo. Toda a gente ergueu a cabeça para o ver, e Adrian fez o mesmo como uma criança deliciada, enquanto Bill lhe sorria. Ela era tão bonita, tão afetuosa e tão doce. Parecia uma menina, com o rosto levantado para o céu, uma menina muito bonita, e ele sentiu um desejo imenso de a beijar. Já sentira anteriormente esse desejo, mas tornava‑se mais forte cada vez que a via.

            O fogo de artifício continuou durante uma hora e acabou por fim com uma explosão de vermelho, branco e azul que parecia interminável. Então o céu escureceu outra vez, com as estrelas a cintilarem lá no alto, e o pó escuro deixado pela pólvora a cair lentamente, em pequenos farrapos, sobre a terra. Bill aproximou‑se um pouco mais dela e aspirou o seu perfume. Era Chanel n.° 19 e Bill gostava dele.

            ‑ Tem alguns planos para este fim‑de‑semana? ‑ perguntou hesitantemente, sem saber se seria próprio perguntar‑lhe isso. Mas afinal podiam ser amigos. Desde que ele se controlasse não havia razão para não poderem estar juntos.

‑ Pensei que talvez gostasse de ir à praia ou qualquer coisa ‑ sugeriu, dado que ela já confessara que gostava de praias.

- ... bem... não sei... o meu marido pode chegar...

Adrian sentia‑se embaraçada e, contudo, queria ir. Não sabia bem como havia de aceitar o convite.

            ‑ Julguei que ele estava em Nova Iorque... ou em Chicago... até à próxima semana. Tenho a certeza de que ele não se importa. Sou muito respeitável. E é melhor do que ficar sozinha em casa, visto não ir trabalhar. Podíamos ir a Malibu. Tenho amigos que me deixam utilizar a casa que lá têm. Vivem em Nova Iorque e nunca lá vão. Eu, de vez em quando, vou lá. Pode dizer‑se que tomo conta da casa. Havia de gostar.

            ‑ Está bem. ‑ Adrian sorriu, sem saber bem porque estava a fazer aquilo. Mas havia algo de irresistivelmente reconfortante e atraente naquele homem. Levantou‑se e preparou‑se para ir para casa.

            ‑ As onze horas acha bem? ‑ Adrian disse que sim com a cabeça. Parecia‑lhe perfeito, mas também um pouco assustador. ‑ Eu acompanho‑a a casa. ‑ Bill tirara o avental há muito e Adrian reparou que o aspecto dele era agradável. Quando chegou à porta do apartamento, Adrian abriu apenas uma fresta, tendo o cuidado de não acender a luz. Não queria que ele visse a sala vazia.

            ‑ Muito obrigada, Bill. Foi uma noite encantadora. Agradeço ter‑me convidado. ‑ Fora muito melhor do que ficar sentada em casa, com pena de si própria, e a imaginar o que estaria Steven a fazer.

            ‑ Eu também passei uma ótima noite. ‑ Bill sorriu, sentindo‑se feliz, descontraído e contente. ‑ Então amanhã às onze.

            ‑ Está bem. Podemos encontrar‑nos na piscina.

            ‑ Não precisa de fazer isso. Virei buscá‑la aqui.

            Ele mostrou‑se firme e Adrian nervosa ao preparar‑se para entrar rapidamente em casa, antes de ele poder olhar lá para dentro.

            ‑ Mais uma vez obrigada. ‑ Olhou‑o uma última vez e depois desapareceu de repente, como uma aparição. Um minuto antes estava em frente dele, e no minuto seguinte encontrava‑se dentro do apartamento com a porta fechada. Ele nem percebeu bem como ela fizera aquilo. Fora uma das despedidas mais rápidas que já fizera, depois caminhou lentamente para sua casa, sorrindo.

 

            Bill foi buscar Adrian no dia seguinte às onze em ponto; ela esperava‑o à porta, quando chegou. Vestira umas jeans, uma grande camisa larga e tinha um chapéu na cabeça. Calçava sapatilhas. Na mão um grande saco com toalhas, bronzeador, livros e um Frisbee. Bill, ao vê‑la, riu.

            ‑ Com essa roupa aparenta ter uns catorze anos. A camisa fora de Steven, mas ela sempre gostara dela e vestira‑a porque encobria o fato de as calças já lhe estarem um pouco apertadas. Bill pareceu não dar por isso quando a olhou.

            ‑ É um cumprimento ou uma censura? ‑ perguntou Adrian sorrindo. Sentia‑se perfeitamente à vontade com ele e começou a segui-lo.

            ‑ É um cumprimento. Sem qualquer dúvida. ‑ Então parou. Esquecera‑se de qualquer coisa. Voltou‑se para ela.

‑ Tem alguma bebida fresca no seu frigorífico? Eu acabei as minhas. ‑ E estava tudo fechado. Era domingo.

            ‑ Tenho.

            ‑ Seria melhor levarmos algumas, para o caso de ficarmos com sede. ‑ Adrian voltou‑se para se dirigir a casa, mas quando chegaram à porta, parou e olhou para trás.

            ‑ Eu vou buscá‑las. Pode ficar aqui com as nossas coisas? ‑ Ela procedia como se receasse que alguém lhe roubasse o saco de praia.

            ‑ Eu vou dar‑lhe uma ajuda.

            ‑ Não, não vale a pena. A casa está toda desarrumada. Ainda não tive tempo de fazer arrumações desde que Steven foi para Nova Iorque. ‑ Seria Nova Iorque ou Chicago, pensou Bill, mas nada disse, porque era óbvio que ela não queria que ele entrasse.

            ‑ Então, espero‑a aqui ‑ disse Bill, ficando junto da porta da rua. Adrian entrou em casa e deixou a porta encostada para ele não poder olhar lá para dentro. Parecia que tinha alguma coisa escondida no apartamento.

            E, de repente, ouviu um estrondo; sem pensar duas vezes correu para dentro para a ajudar. Adrian deixara cair duas garrafas de soda que se tinham partido ruidosamente. Havia soda espalhada pela cozinha toda.

- Magoou‑se? ‑ perguntou Bill preocupado. Ela disse que não com a cabeça e ele pegou numa toalha para a ajudar a limpar o liquido entornado.

            ‑ Que estupidez a minha. Quis segurar todas ao mesmo tempo e deixei cair duas. ‑ Levaram dois minutos a limpar tudo e Bill não notou nada de especial até ela ir buscar mais duas sodas e ele ver que não havia qualquer mobiliário na cozinha. O local onde devia haver uma mesa estava desocupado e viu apenas um banco solitário junto do telefone, no outro extremo da cozinha. Quando atravessaram a sala, Bill pensou que a casa tinha quase um aspecto fantasmagórico. Não se encontrava ali absolutamente nada, mas nas paredes havia marcas dos quadros que lá tinham estado pendurados. Bill lembrou‑se então de que ela lhe dissera que Steven vendera a mobília para comprar tudo novo, contudo, entretanto, o apartamento estava vazio e tinha um ambiente deprimente. Adrian apressou‑se a explicar. ‑ Já encomendamos a mobília nova, mas sabe como essas coisas são. A entrega devia ser feita entre as dez e doze semanas, mas estou a ver que antes de Agosto esta casa não voltará a ter um aspecto decente. ‑ Na verdade, não encomendara nada. Ainda estava à espera que Steven voltasse com a mobília.

            ‑ Claro que sei como essas coisas são. ‑ Porém, havia qualquer coisa que não lhe soava bem. Talvez eles não tivessem dinheiro para comprar mobília. Talvez não a tivessem pago e a tivessem vindo buscar. Havia muita gente em Hollywood que vivia assim. Tinha muitos amigos que o faziam. E era óbvio que Adrian se sentia embaraçada com qualquer coisa. ‑ A casa fica com um aspecto agradavelmente limpo ‑ disse ele. ‑ E é mais fácil de arrumar... ‑ Ela mostrou‑se embaraçada outra vez e ele acrescentou suavemente: Deixe lá. Vai ficar linda quando chegarem as novas mobílias. ‑ Mas, entretanto, não estava. A casa parecia abandonada.

            Logo que saíram ambos esqueceram o assunto e passaram um tempo maravilhoso na praia. Ficaram lá até depois das cinco da tarde, altura em que começou a refrescar, falaram de teatro e de livros, de Nova Iorque, de Boston e da Europa. Conversaram a respeito de política e de crianças, das políticas que se encontravam por trás das séries televisivas e dos noticiários, do gênero de coisas que ele gostava de escrever e dos contos que ela escrevera na universidade. Falaram a respeito de tudo o que lhes ocorreu e iam ainda a conversar quando voltaram para casa na station dele.

            ‑ A propósito, gosto imenso do seu carro. ‑ Admirara o MG quando o vira a primeira vez.

            Adrian pareceu satisfeita com o elogio.

            ‑ Também eu. Toda a gente tem tentado convencer‑me a trocá‑lo, mas não posso. Gosto demasiado dele. Faz parte de mim.

            ‑ Também a minha station. ‑ Sorriu, satisfeito. Aquela mulher até sabia o que era ter amor por um carro. Era uma mulher que compreendia muitas coisas, como integridade, amor e respeito. Partilhava até a paixão dele por certos filmes antigos. A única coisa errada nela, pondo de lado o fato de comer por duas famílias, era ser casada. Mas ele decidira deixar de pensar nisso e de apreciar apenas a amizade dela. Era raro homens e mulheres serem amigos, sem se meterem nisso questões de sexo, mas se conseguissem conservar‑se apenas amigos, ele já se sentiria muito feliz com isso.

‑ Quer ir jantar antes de ir para casa? Há um grande restaurante mexicano em Santa Monica Canyon, se quiser experimentar. ‑ Tratava‑a como a um velho amigo, alguém que sempre tivesse conhecido e de quem muito gostasse. ‑ Ou então fazemos outra coisa. Tenho ainda uns bifes que me restaram. Quer ir à minha casa comê‑los?

            Adrian pensou em recusar, tinha estado todo o dia fora e devia ir para casa, mas não havia qualquer razão para o fazer e não lhe apetecia estar sozinha. Estava uma linda tarde e sentia‑se bem em companhia de Bill. Não havia realmente qualquer razão para não ir jantar com ele.

            ‑ Podíamos cozinhá-los em minha casa ‑ propôs ela.

            ‑ Bem, não tenho grande vontade de comer sentado no chão ‑ gracejou ele. ‑ Ou há mais mobília que eu não visse? ‑ Havia apenas a cama dela, mas Adrian não o disse.

            ‑ É um esnobe! exclamou sentindo‑se novamente como um miúda. Bem, vamos jantar a sua casa.

            Há anos que ela não dizia isso a um homem. Ela e Steven já andavam juntos antes de se casarem e ali estava ela, cinco anos depois de o ter conhecido, a dizer que ia jantar a casa de outro homem. Mas, realmente, não se importava. Bill Thigpen era uma pessoa fantástica. Era inteligente, interessante, bondoso e dava‑lhe sempre a sensação de querer cuidar bem dela, em todas as ocasiões. Estava sempre preocupado em saber se ela tinha sede, fome, se queria um gelado, um refresco, se precisava de um chapéu, se se sentia confortável, feliz, ao mesmo tempo que a divertia com as suas histórias da sua série televisiva, sobre os amigos e os filhos, Adam e Tommy.

            E quando entrou no apartamento dele, Adrian viu ainda outra faceta de Bill. Nas paredes havia bonitos quadros modernos e sobre os móveis algumas interessantes esculturas que ele trouxera das suas viagens. Os sofás, de cabedal, eram confortáveis e macios. Os cadeirões enormes e convidativos. Na casa de jantar encontrava‑se uma linda mesa que ele descobrira num mosteiro, em Itália, e uma carpeta que comprara no Paquistão. Adrian viu por toda a parte maravilhosas fotografias dos filhos. Tudo aquilo tinha um aspecto confortável e aconchegado que fazia com que apetecesse ali ficar; estantes cheias de livros, uma chaminé de sala em tijolo e uma linda mesa de cozinha com um belo desenho campestre. Parecia mais uma casa grande do que um apartamento. Bill mostrou‑lhe o pequeno gabinete onde trabalhava, o seu escritório, com uma velha máquina de escrever, quase tão antiga como a sua querida Royal, mais estantes com livros e um velho cadeirão de cabedal, muito usado, que pertencera ao pai dele. O quarto de hóspedes, que parecia nunca ter sido utilizado, estava decorado em suaves tons bege, com uma macia carpeta de pele de cabra e uma cama moderna, de pés altos. Havia também um grande quarto para os filhos, com um beliche vermelho que parecia uma locomotiva. O quarto de Bill, muito espaçoso, estava decorado em tons de terra e tinha duas grandes janelas que davam para um jardim que Adrian nem sequer sabia que existia naquele complexo. Era uma casa perfeita. Parecia‑se com ele. Simpática, afetuosa, acolhedora. E algumas partes dela pareciam um pouco gastas pelas mãos que lhes tocavam. Era o gênero de casa onde apetecia ficar um ano, só para a conhecer bem e se sentir confortável. Tudo aquilo era muito diferente da elegante esterilidade que ela partilhara com Steven, até ele se ir embora e lhe levar tudo, deixando‑a só com a cama e a carpeta.

            ‑ Bill, mas que linda casa! exclamou ela com franca admiração.

            ‑ Eu também gosto dela confessou Bill. ‑ Viu a cama dos meus rapazes? Mandei‑a fazer a um tipo de Newport Beach, há cerca de um ano. Podia escolher entre esta e um autocarro de dois andares. Um inglês qualquer comprou essa e eu escolhi a locomotiva. Sempre tive um fraco por comboios. São grandes, antiquados e confortáveis. ‑ Parecia estar a descrever‑se a si próprio e Adrian sorriu‑lhe.

            Não se admirava de que ele tivesse rido do apartamento vazio em que ela habitava. O dele tinha caráter e conforto. Era um sítio maravilhoso para se viver e trabalhar. ‑ Há anos que ando a tentar convencer‑me a comprar uma casa, mas detesto mudar‑me. Sinto‑me bem aqui e os meus rapazes adoram isto.

            ‑ Posso compreender por que. ‑ O pai dera-lhes o maior quarto, apesar de passarem tão pouco tempo com ele. Mas achara que valia a pena.

            ‑ Espero que quando crescerem, passem cá mais tempo.

            ‑ Tenho a certeza de que hão‑de passar. ‑ Quem não passaria, com um pai como ele e uma casa daquelas. Não era por ser muito grande e muito luxuosa, pois não era. Mas quem lá entrava sentia‑se aconchegado. Era como receber um grande abraço, entrar ali. Adrian sentiu isso ao sentar‑se no sofá confortável, mas pouco depois levantou‑se e foi ter com Bill à cozinha para o ajudar a fazer o jantar. Fora ele quem fizera muitas das partes da cozinha e via‑se que era perito a cozinhar.

            ‑ O que é que não sabe fazer? ‑ perguntou Adrian.

            ‑ Sou péssimo em desportos. Já lhe disse que jogo muito mal o tênis. Não sou capaz de acender uma fogueira no meio do mato nem para salvar a minha vida. Quando acampamos quem faz isso é Adam. E sinto‑me aterrorizado ao andar de avião.

            A lista era pequena, em comparação com o que ele sabia fazer.

            É bom saber que pelo menos é humano.

            ‑ E você, Adrian? O que é que não faz bem? ‑ Tinha sempre interesse em ouvir o que as pessoas diziam de si próprias. Fez-lhe a pergunta enquanto cortava finamente manjericão para a salada.

            ‑ Não sou boa numa porção de coisas. Esquio muito mal, jogo tênis assim‑assim, e sou terrível no bridge. Jogo pessimamente qualquer jogo. Nunca me lembro das regras e não me importo se vou ganhar ou não. Detesto computadores. ‑ Pensou muito séria durante uns instantes: ‑ E não gosto de fazer concessões quando se trata de coisas em que acredito.

            ‑ Eu diria que se trata de uma virtude e não de um defeito. Não acha?

            ‑ Às vezes ‑ respondeu Adrian pensativamente. Por vezes, isso pode custar‑nos muito caro. ‑ Estava a pensar em Steven. Ela pagava nesse momento um alto preço por aquilo em que acreditava.

            ‑ Mas não vale a pena? ‑ perguntou Bill calmamente. ‑ Não prefere pagar esse preço e manter‑se firme nas suas convicções? Eu sempre o fiz. ‑ Mas acabara por ficar sozinho, embora isso agora já não lhe importasse.

            ‑ Às vezes é difícil saber qual é a coisa acertada a fazer.

            ‑ Devemos fazer o melhor que sabemos. Fazemos isso e esperamos que dê certo. E se os outros não gostarem... disse, encolhendo filosoficamente os ombros ‑...tanto pior para eles. ‑ "Era fácil de dizer", pensou Adrian. Mas ela ainda não podia acreditar no que lhe sucedera por se manter firme nas suas convicções. E, de resto, não se tratava de escolher. Ela não podia proceder de outra maneira. Não podia. Não havia qualquer raciocínio que a fizesse mudar. Era o seu filho, o filho dela e de Steven e ela amava‑o. Era‑lhe impossível ver‑se livre dele, como Steven dizia, só porque ele se sentia assustado com a idéia de ser pai. Mas perdera Steven.

            ‑ Você seria capaz de se manter firme nas suas convicções sucedesse o que sucedesse com outra pessoa? ‑ perguntou Adrian quando se sentaram em frente dos bifes suculentos que Bill preparara enquanto ela se limitara a olhar para ele. Adrian pusera a mesa e temperara a salada, mas ele fizera tudo o resto e o jantar tinha um aspecto delicioso. Bifes, salada, pão de alho. E para sobremesa morangos com chocolate. ‑ Será capaz de se manter firme contra tudo e contra todos?

            ‑ Isso depende. Refere‑se a sacrificar outra pessoa?

            ‑ Talvez.

            Bill ficou um bocado pensativo, enquanto ela se servia de salada.

            ‑ Creio que isso dependeria da intensidade das minhas convicções. Provavelmente, se achasse que a minha integridade estava realmente em perigo, ou mesmo a integridade da situação. Há alturas em que não importa tornarmo‑nos impopulares. O que importa é que não nos podemos desviar daquilo em que acreditamos. Sei que à medida que envelhecemos nos vamos tornando mais moderados, e, de certa maneira, isso passou‑se comigo. Tenho trinta e nove anos e sou mais moderado do que dantes, mas ainda acredito em manter firmeza nas coisas que realmente são importantes para mim. Não quer dizer que isso me tenha servido de muito, mas pelo menos os meus amigos sabem que sou uma pessoa com a qual podem contar. Isso é alguma coisa, creio eu.

            ‑ Também acho ‑ murmurou ela, suavemente.

            ‑ E que pensa Steven a esse respeito? ‑ Bill começava a sentir curiosidade pelo marido de Adrian. Ela falava muito pouco nele e Bill tentava imaginar se eles se dariam bem. Pensava se teriam muita coisa em comum. A primeira vista, pareciam‑lhe muito diferentes.

            ‑ Acho que ele também é firme nas suas opiniões. E nem sempre é muito bom a compreender as posições das outras pessoas. ‑ Era uma resposta que não lhe dizia quase nada.

            ‑ Ele adapta‑se bem às suas opiniões? ‑ O casamento deles intrigava‑o e tentava conhecê‑los, visto não poder ter Adrian para si como gostaria.

            ‑ Nem sempre. Ele gosta de... ‑ Adrian procurou a palavra exata e depois concluiu: ‑ Um modo de viver paralelo seria a melhor maneira de descrever aquilo que ele pensa ser o melhor. Ele faz o que quer e deixa‑me fazer o que eu quero sem interferir. ‑ Desde que achasse que ela fazia o que estava certo, como sucedera com o trabalho nos noticiários.

            ‑ E isso resulta?

            Costumava resultar. Até ele ter saído da vida dela por não gostar daquilo que ela estava a fazer. Respirou fundo e tentou explicar a Bill Thigpen o que pensava.

            ‑ Creio que para fazer um casamento realmente resultar, é preciso um maior envolvimento, mais interligação, mais interação. Não é suficiente deixar o outro existir, é preciso serem alguma coisa juntos.

            Bill compreendia isso e já o sentira quando era casado com Leslie. Mas respondeu:

            ‑ Concordo. Contudo, só recentemente o descobri. E o problema é que tudo reside nisso. A maior parte das pessoas estão prontas a deixar os seus companheiros fazerem o que querem. Mas o mais difícil é encontrar duas pessoas que gostem de fazer as mesmas coisas. Eu nunca encontrei ninguém, embora deva confessar que não procurei muito nestes últimos anos. Não tenho tido tempo, nem inclinação acrescentou Bill.

            ‑ Por quê? ‑ Adrian também se sentia intrigada com ele. Bill parecia‑lhe um homem que devia gostar de ser casado.

            ‑ Creio que tenho tido medo. Sofri tanto quando o casamento com Leslie se desfez e ela levou os meus filhos que prometi a mim mesmo nunca mais correr o risco de isso poder acontecer de novo. Não quis voltar a ter filhos que pudessem ser‑me tirados, nem gostaria muito de alguém que um dia me deixasse por o casamento não resultar. Nunca me pareceu justo. Porque teria de ficar sem os meus filhos, só porque a minha mulher deixou de me amar? Por isso, tenho sido cuidadoso. ‑ E preguiçoso. Não procurara nunca um relacionamento sério, depois de se divorciar, dizendo a si próprio que não estava preparado para isso.

            ‑ Acha que ela alguma vez lhe dará os filhos a tempo inteiro, ou pelo menos durante mais tempo do que apenas algumas visitas por ano?

            ‑ Duvido. Ela acha que tem direito a eles, que lhe pertencem e que me faz um grande favor ao deixá-los virem visitar‑me. Mas a verdade é que eu tenho tanto direito a estar com eles como ela. Por azar meu, vivo na Califórnia. Podia voltar para Nova Iorque e vê‑los mais vezes, mas receio que lá ainda fosse pior. Não quero viver a dez quarteirões de distância deles e pensar todas as noites no que eles estarão a fazer. Quero entrar e sair do quarto deles quando eles estão ao telefone, ou a fazer os trabalhos de casa, ou a conversar com os amigos. Quero ter lágrimas nos olhos ao vê‑los a dormir todas as noites. Quero estar junto deles quando estão doentes, ou vomitam, ou estão constipados. Quero tê‑los sempre comigo e não apenas durante algumas semanas para uma ida à Disneylândia ou a Lake Tahoe durante o Verão.

            Bill encolheu então os ombros, mas tinha feito com que ela compreendesse o que realmente lhe importava na vida e isso comoveu‑a. Ele continuou:

            ‑ Contudo, isso é, na realidade, apenas o que tenho, por isso aproveito‑o o melhor possível. E de uma maneira geral aceito bem isso e não me preocupo. Costumava desejar ter mais filhos para poder "fazer as coisas certas", mas agora estou convencido que é melhor continuar assim. Não quero ficar outra vez com o coração destroçado, no caso de alguém decidir que já não gosta de mim.

            ‑ Talvez para a próxima vez pudesse ficar com os filhos. ‑ Adrian sorriu tristemente e abanou a cabeça. Sabia que não era assim.

            ‑ Talvez o mais inteligente seja não casar e não ter filhos. ‑ Que era o que ele fazia há anos, mas no fundo do coração, sabia que essa também não era uma solução. E você e Steven vão ter filhos? ‑ Era uma pergunta indiscreta, mas ele sentia‑se tão à vontade com Adrian que se atreveu a fazê‑la.

            Adrian hesitou durante um bocado antes de responder, sem saber bem o que lhe havia de dizer. Por momentos, esteve prestes a contar‑lhe a verdade, mas não o fez.

            ‑ Talvez... mas por enquanto não. Steven fica um pouco nervoso quando pensa em ter filhos.

            ‑ Por quê? ‑ Isso intrigava‑o. Bill achava que os filhos eram uma das melhores coisas num casamento. Mas tinha o beneficio da experiência. Já sabia que assim era.

            ‑ Teve uma infância infeliz. Pais muito pobres. E Steven acha que os filhos são a causa de todos os problemas.

            ‑ Oh, ele é desses! E você, que acha?

            Adrian suspirou e os seus olhos encontraram‑se com os de Bill.

            ‑ Nem sempre é fácil. Estou sempre à espera que ele mude de idéias. Talvez lá para Janeiro...

            ‑ Não espere demasiado tempo, Adrian. Terá pena se o fizer. Os filhos são a maior alegria do mundo. Se puder, não se prive dessa alegria. ‑ Para Bill, não ter filhos parecia‑lhe uma verdadeira privação.

            ‑ Hei‑de contar a Steven o que você disse. ‑ Sorriu e Bill retribuiu o sorriso, desejando que Steven desaparecesse. Seria tão bom se ela fosse livre... Estendeu a mão tocou‑lhe na dela, não de um modo atrevido, mas apenas afetuoso.

            ‑ Passei um dia maravilhoso, Adrian. Espero que saiba isso.

            ‑ Também eu. ‑ Adrian sorriu, contente, e devorou o resto do bife enquanto Bill acabava a salada.

            ‑ Sabe uma coisa? Admiro‑me de a ver tão magra com um apetite tão grande.

            Bill gracejava, mas estava a ser sincero, e ambos riram.

            ‑ Deve ser de ter passado todo o dia ao livre. ‑ Adrian sabia bem qual a razão do seu apetite, mas não lha ia dizer.

            ‑ Tem sorte. Pode comer sem engordar. ‑ Adrian tinha um linda figura e Bill estava obviamente satisfeito por ela gostar dos cozinhados dele.

            Conversaram até cerca das onze e ela ajudou‑o a limpar a cozinha. Finalmente, ele acompanhou‑a a casa, transportando o saco de praia dela. Estava outra noite bonita, quase sem nevoeiro, e as estrelas brilhavam lá no alto, por cima da cabeça deles. Adrian detestava a idéia de ter de ir trabalhar no dia seguinte. Fora um fim‑de‑semana de três dias, pois tinha a segunda‑feira livre, mas como nada tinha que fazer a não ser esperar que Steven telefonasse, Adrian dissera que ia trabalhar. Havia o noticiário regular, apesar do fim‑de‑semana prolongado. E Bill também tinha o seu programa.

            ‑ Quer encontrar‑se comigo amanhã? ‑ perguntou Bill.

‑ Tenho de estar no meu escritório às onze da manhã.

            ‑ Pode ser.

            ‑ Vamos para o ar às treze. Apareça se tiver uns minutos livres. Poderá assistir ao programa de amanhã. É dos bons. ‑ Adrian sorriu com a perspectiva e dessa vez mostrou‑se mais descontraída ao abrir a porta. Ele já vira o seu apartamento vazio. Já nada tinha a esconder‑lhe, a não ser o fato de Steven a ter deixado há dois meses e ela estar grávida.

            ‑ Quer entrar e tomar um café? ‑ Ele ia dizer que não, mas resolveu aceitar só para prolongar o serão. Ela ofereceu‑lhe o banco enquanto fazia o café e depois foram os dois para a sala com as chávenas e sentaram‑se no chão, porque não tinham outro sítio onde o pudessem fazer. Era muito diferente do confortável apartamento em que ele vivia.

            Quando se sentaram, Bill reparou que ela nem sequer tinha um aparelho de rádio ou de televisão. Mas notou o sitio onde deviam ter estado as colunas de uma aparelhagem estéreo. Não acreditava que ela a tivesse vendido. Não havia absolutamente nada na sala a não ser a carpeta e um atendedor de chamadas, no chão, ao lado do telefone. Até a mesa do telefone desaparecera. Parecia uma casa de onde tivessem retirado os móveis para fazer uma mudança. A idéia ocorreu subitamente a Bill que olhou para Adrian, sobressaltado, como se tivesse pensado em voz alta, mas não se atreveu a fazer‑lhe a pergunta.

            ‑ Fale‑me da sua nova mobília ‑ disse fingindo um ar casual. ‑ Que gênero de mobília encomendou?

            ‑ Oh, o normal ‑ disse Adrian vagamente, continuando a falar do seu trabalho, para o distrair.

            ‑ Sabe, a sua casa é tão diferente da minha que não têm nada em comum.

            ‑ Eu sei. É engraçado, não é? Reparei nisso quando entrei em sua casa. ‑ Adrian sorriu. Passara um dia agradável e sentia‑se totalmente descontraída, embora um pouco cansada.

            ‑ Quantas divisões tem lá em cima? ‑ perguntou Bill.

            ‑ Só o quarto e casa de banho. Cá em baixo temos outra sala, mas nunca a utilizamos.

            ‑ Posso ver? ‑ Ele deixara‑a andar por todo o seu próprio apartamento e parecia mal dizer‑lhe que não, por isso Adrian baixou a cabeça, hesitantemente. Bill pediu‑lhe outra chávena de café e, enquanto ela a foi buscar, subiu rapidamente as escadas e entrou como um furacão no quarto dela. Estava tão vazio como ele esperara. As roupas dela estavam no chão, em caixas, e até a fotografia do casamento, com uma moldura de prata, se encontrava no chão. Bill abriu o armário e não viu nenhuma roupa de homem. A não ser que as coisas dele estivessem lá em baixo... Foi à casa de banho, abriu os armários e de repente um sexto sentido disse‑lhe o que ela lhe ocultara. Steven Townsend levara tudo num caminhão, mas não fora com a intenção de mobiliar o apartamento de novo. Bill queria saber, mas não ousava fazer a pergunta a Adrian.

            ‑ Gosto da disposição da casa ‑ disse Bill descendo as escadas com ar descontraído, pois ela não tivera tempo de se aperceber da rápida investigação que ele acabara de fazer.

            Pouco depois pediu-lhe para ir à casa de banho. Havia duas portas lado a lado, no andar de baixo. Bill abriu a primeira, sabendo perfeitamente que se tratava de um roupeiro e viu que se encontrava vazio, ou melhor, que tinha apenas cabides de madeira. Em seguida, abriu a porta certa e fechou‑a ao entrar nessa casa de banho. Abriu todos os armários o mais silenciosamente possível e depois puxou o autoclismo e abriu a torneira. Quando se sentou novamente junto de Adrian para beber o café, olhou‑a para procurar nos olhos dela a resposta às suas mudas perguntas. Mas ela não lhas deu. Ficou calada. Há semanas que fingia que Steven se encontrava fora, em negócios, e que estava tudo bem, embora ao jantar tivesse confessado que nem sempre era fácil. Era uma rapariga bonita e Bill sabia que era casada. Usava ainda a aliança de casamento no dedo. Mas também sabia outra coisa, depois de ter aberto todos os armários da casa. Por quaisquer razões que ela não queria revelar, Steven Townsend não vivia já com a mulher, e quando saíra de casa levara tudo consigo.

            Passado um bocado, Bill agradeceu‑lhe o café e disse que iria ter com ela, no dia seguinte, ao estúdio. E quando se dirigiu para casa, no outro lado do complexo, foi constantemente a pensar em Adrian. Não conseguia compreender o que se passava. Sentia‑se completamente intrigado. Que estaria ela a fazer? E por quê? Por que motivo estaria ela a fingir que estava tudo bem? Porque não dissera que vivia sozinha? Que estaria a ocultar? E por quê? Mas ao lembrar‑se outra vez dos armários vazios, Bill Thigpen sentiu‑se encantado.

 

            O complicado enredo que Bill conseguia arranjar para a sua série parecia infindável. O segredo de que Vaughn se drogava fora revelado no momento em que o marido de Helen foi preso pelo assassínio da irmã de Helen, Vaughn desempenhado por Sylvia antes de ela ter ido para Nova Jersey ‑ e também pela morte de um jovem traficante de droga chamado Tim McCarthy. Além disso, ficara a saber‑se também que ela se prostituía e que um político com quem estivera envolvida, e por causa do qual fizera um aborto, estava prestes a ser desmascarado publicamente se o caso aparecesse nos jornais. Mas a questão mais importante no programa dessa semana era o fato de Helen estar grávida e de o marido não ser o pai do bebê, o que, dadas as circunstâncias, era ótimo, para além de isso ir ser, certamente, motivo de infindáveis conversas nas cozinhas de todo o país durante os meses seguintes. Quem seria o pai da criança? Eventualmente, o casamento de Helen e de John acabaria em divórcio, quando ele fosse condenado a prisão perpétua pelos dois crimes. A identidade do pai do bebê seria então revelada, mas faltava ainda muito tempo para isso, e Bill, entretanto, divertia‑se com os meandros em que metia as suas personagens.

            No dia seguinte, quando se dirigia para o trabalho, Bill ia a pensar em Adrian. Tinha a impressão de que a vida dela não era muito diferente das que ele apresentava nas suas histórias, embora as suas razões devessem ser bastante mais simples. E, claro, havia sempre a possibilidade de ele estar enganado, embora achasse isso difícil. Não havia qualquer peça de roupa masculina no apartamento dela, nem artigos de toalete, como after‑shave, nem sequer uma máquina de barbear. Estava certo disso, após a breve investigação que fizera. Mas por que motivo não lho diria ela? Talvez se sentisse embaraçada ou não quisesse ainda sair com ninguém.

            Logo que chegou ao escritório, Bill deixou de ter tempo para pensar nisso. Um dos atores estava doente e dois dos principais argumentistas tinham‑se zangado. Bill não teve tempo para respirar antes de ser quase meio‑dia. Queria ir ter com Adrian para a levar ao estúdio onde o programa dele ia para o ar, às treze horas.

            E no seu gabinete, compilando as notícias, Adrian descobrira que o filho de um senador local fora raptado e assassinado na noite anterior. Tratava‑se de um caso chocante e a família estava destroçada. O rapaz tinha apenas dezenove anos e toda a equipe que trabalhava no noticiário ficara comovida. Adrian sentiu‑se doente ao ver as gravações que chegavam. O rapaz fora deixado nos degraus da porta da entrada da casa dos pais, com a garganta cortada.

            Adrian estava atarefada a indicar chefes de redação para trabalhar no caso, e a enviar repórteres para falarem com familiares e amigos do rapaz assassinado, quando alguém lhe disse que havia uma chamada em espera para ela. Adrian não reconheceu o nome da pessoa que lhe queria falar. Era um homem e chamava‑se Lawrence Allman.

            ‑ Sim? ‑ Adrian ocupava‑se de uma dúzia de coisas e escrevia freneticamente notas, enquanto esperava ouvir o que lhe queriam dizer.

            ‑ É a senhora Townsend?

            ‑ Sim.

            ‑ O seu marido pediu‑me para lhe telefonar. ‑ O coração dela parou ao ouvir aquelas palavras.

            ‑ Teve algum acidente? Ele está bem?

            Allman teve pena dela ao ouvir como reagia. Não se tratava de uma mulher que não ligasse ao marido, contrariamente ao que Steven lhe dissera.

            ‑ Não. Ele está ótimo. Pediu‑me para eu o representar. Sou advogado.

            Adrian ouvia‑o, confusa. Por que motivo estaria um advogado a telefonar-lhe a pedido de Steven?

            ‑ Passa‑se alguma coisa?

            Por momentos, o advogado ficou sem saber o que dizer. Ela parecia não estar de modo algum preparada para o que lhe ia dizer e sentiu‑se um verdadeiro patife por telefonar.

            ‑ Julguei que o seu marido lhe tivesse dito alguma coisa, mas estou a ver que não o fez. ‑ Talvez ela estivesse a fingir que nada sabia, mas não lhe parecia ser esse gênero de pessoa. ‑ O seu marido pediu a dissolução do casamento e disse‑me para eu tratar do caso consigo, senhora Townsend.

            Adrian sentiu a cabeça a andar à roda e o coração tão apertado que mal podia respirar. Steven estava a fazer o quê?

            ‑ Desculpe... não compreendo. De que se trata?

            Da dissolução do casamento, senhora Townsend. Falou o mais gentilmente que pôde. Era um homem decente e o caso não lhe agradava. Steven não se mostrara totalmente razoável a falar do assunto. Um divórcio. O seu marido quer o divórcio.

            ‑ Eu.... compreendo... não será um pouco cedo?

            ‑ Perguntei‑lhe se ele não queria falar consigo, tentar uma reconciliação, mas insiste em que existem diferenças irreconciliáveis.

            ‑ Posso recusar?... isto é... o divórcio. ‑ Fechou os olhos, tentando não chorar ao telefone, pois o homem havia de pensar que ela era tola. Precisava de se manter calma, mas estava a descontrolar‑se ao ouvir o advogado. Não podia acreditar naquilo. Steven queria o divórcio e nem sequer fora capaz de lho dizer. Mandara um desconhecido falar com ela.

            ‑ Não, não pode recusar ‑ explicou‑lhe o advogado.

‑ Essas leis foram alteradas há muito tempo. Qualquer dos cônjuges tem o direito de pedir o divórcio sem a anuência do outro. ‑ Adrian ainda estava menos preparada para o que ouviu a seguir. ‑ Há alguns documentos adicionais que o senhor Townsend quer que conheça.

            ‑ Quer vender o apartamento, não é? ‑ As lágrimas brilhavam nos olhos de Adrian enquanto ouvia o advogado falar e sentia que o mundo inteiro se desmoronava à sua volta.

            ‑ Bem, sim. Mas está disposto a dar‑lhe três meses antes de o pôr à venda, a não ser, é claro, que queira comprar a parte dele, ao preço normal do mercado. ‑ Adrian sentiu náuseas. Steven queria o divórcio e vender o apartamento.

‑ Mas não era a isso que eu me estava a referir, senhora Townsend ‑ continuou o advogado. ‑ O meu cliente está disposto a ser razoável a respeito do apartamento. Referia‑me a... ‑ Pareceu hesitar. Tentara dissuadir Steven daquele procedimento e julgara que ele punha em causa a paternidade do bebê, ao insistir na ação que desejava tomar. ‑ Há outros papéis que ele me pediu para lhe enviar. Gostava que os lesse.

            ‑ De que tratam exatamente? ‑ perguntou Adrian, tentando recompor‑se enquanto limpava com dedos trêmulos as lágrimas que lhe corriam pelas faces.

            ‑ O seu... hum... o bebê. O senhor Townsend gostaria de renunciar aos seus direitos paternais antes do nascimento. Parece‑me um pouco prematuro e devo dizer‑lhe que o aconselhei a não o fazer. E um procedimento altamente inusitado. Mas ele é peremptório. É o que quer fazer. Fiz um rascunho do que será o documento e gostaria que o lesse. Declara simplesmente que renuncia a todos os direitos sobre o bebê. Como resultado, não terá direito a visitar a criança nem qualquer poder sobre a criança após o nascimento. Não quer que ela use o nome dele. Ser‑lhe‑á pedido a si para renunciar ao seu nome de casada e não o dar ao bebê. O nome dele não aparecerá na certidão de nascimento e, é claro... nem a senhora nem o bebê poderão legalmente pedir comparticipação financeira ao senhor Townsend. Ele gostaria de lhe oferecer alguma compensação monetária por isto, mas eu expliquei‑lhe que, segundo as leis da Califórnia, não o poderá fazer. Não deve haver trocas de dinheiro na renúncia aos seus direitos paternais, ou esta poderia mais tarde ser invalidada. ‑ Nessa altura Adrian soluçava descontroladamente, não se importando que o advogado a ouvisse ou não.

            ‑ Que quer de mim? E porque me telefonou hoje? É feriado e nem sequer devia estar a trabalhar.

            Steven dissera‑lhe que, provavelmente, ela estaria na estação de televisão e que seria boa altura para a apanhar, por isso ele estava‑lhe a falar de casa. Sentia‑se terrivelmente mal por lhe estar a dizer aquelas coisas, mas julgara ser pior se ela abrisse o correio e encontrasse lá aquilo. Steven insistira em que não tivera nada contra ela. A mulher fora uma boa esposa e tinham sido felizes, mas que não queria o bebê e ela recusava‑se a abortar. Isso parecia‑lhe perfeitamente sensato e Larry Allman achava que Townsend era menos que razoável nessa questão. Mas não lhe competia a ele discutir com o cliente. Aconselhara‑o a não tomar decisões apressadas, a tentar uma reconciliação e a não renunciar aos seus direitos paternais antes de o bebê nascer e o ver. Mas Steven nada quisera ouvir.

            ‑ Senhora Townsend ‑ disse calmamente Allman. Lamento imenso. Não havia qualquer maneira agradável de lhe dar conhecimento de tudo isto. Achei que talvez um telefonema...

            ‑ A culpa não é sua ‑ respondeu Adrian, soluçando, desejando poder mudar a maneira de pensar de Steven, mas sabia que não podia. ‑ Ele está bem? ‑ perguntou com grande assombro de Allman.

            ‑ Ele está bem. E a senhora? ‑ Isso parecia‑lhe muito mais importante.

            Ela sorriu enquanto novas lágrimas lhe rolavam pela cara:

            ‑ Estou bem.

            O advogado sorriu com tristeza, do outro lado:

            ‑ Desculpe dizer‑lhe que não parece.

            ‑ Tem sido um dia mau... primeiro o filho do senador e agora isto. ‑ Era tudo tão terrível. E o fim‑de‑semana fora tão agradável. ‑ Acha que... ‑ Adrian sentia‑se estúpida ao fazer a pergunta, mas queria saber se ele julgava que Steven pudesse mudar de idéias. Continuava a acreditar que se ele visse o bebê tudo mudaria. Afinal era ele o pai do bebê.

‑ Não acha que ele possa mudar? Mais tarde...

            ‑ É possível, mas ele está a proceder de forma muito radical. Indevida em certas áreas, mas parece decidido a fazer isto agora, para bem da sua paz de espírito. Quer tudo bem definido e legalmente resolvido.

            ‑ Quanto tempo levará o divórcio a concretizar‑se? Não que isso lhe importasse. Que diferença faria? Mas gostaria de ainda estar casada quando o bebê nascesse.

            ‑ Ele requereu o divórcio há duas semanas. Isso significa que estará concretizado... em meados de dezembro.

‑ Maravilhoso! Duas semanas antes de o bebê nascer.

Sem o nome do pai na certidão de nascimento. Grandes notícias!

            Realmente, devia estar‑lhe grata por ele ter telefonado.

            ‑ É tudo?

            ‑ Sim... amanhã envio‑lhe os papéis.

            ‑ Obrigada. ‑ Limpou novamente a cara com as mãos.

            ‑ Daqui a dois meses entraremos em contacto consigo por causa do apartamento. E é claro que qualquer pedido de apoio financeiro será bem recebido se for proposto por um advogado.

            ‑ Não tenho advogado. E não quero qualquer apoio financeiro.

            ‑ Creio que deve consultar um advogado, senhora Townsend. Segundo as leis da Califórnia, tem direito a apoio financeiro. ‑ E pensou que ela seria bem tola se o não aceitasse. Detestava o caso. E gostaria que ela, pelo menos, recebesse qualquer compensação financeira da parte de Steven. Ele devia‑lhe isso. ‑ Bem, ficaremos em contacto.

            ‑ Obrigada. ‑ Adrian ouviu o estalido do telefone a ser desligado do outro lado e ficou com o auscultador na mão durante muito tempo, como se esperasse que uma voz lhe viesse dizer que fora um engano e que estavam só a brincar. Mas não estavam. Steven pedira o divórcio e ia enviar‑lhe documentos a informá‑la de que desistia dos seus direitos paternais sobre o bebê. Era a pior coisa que ela já ouvira e ficou a tremer, pensando no que iria fazer agora. Na verdade, nada se alterara. Continuava a ter o apartamento durante uns tempos, ele estava do mesmo modo de posse de todo o mobiliário e ela tinha ainda o bebê. Mas na realidade tudo mudara. Deixara de ter esperança, a não ser uma vaga fantasia, de que Steven aparecesse mais tarde e se tomasse de amores pelo filho. Mas mesmo ela tinha de reconhecer que isso era pouco provável. O que tinha de enfrentar agora era ter o bebê sozinha, conservar o emprego, arranjar outra casa e, pelo menos, comprar um sofá para se sentar. Mas mais importante que tudo isso, ela tinha de encarar o fato de Steven se estar a divorciar dela e legalmente o bebê não ter pai. Adrian recebera um tremendo golpe; ao pousar o auscultador os seus ombros eram sacudidos por violentos soluços. Estava de costas voltadas para a porta e não ouvira ninguém entrar. E, ao vê‑la de costas, ele não se apercebera de que ela estava a chorar. Ela virou‑se lentamente com o rosto lavado em lágrimas e viu‑o como através de um nevoeiro. Era Bill Thigpen.

            ‑ Oh, meu Deus... desculpe... eu não quis... vim em má altura. ‑ Bill não sabia que dizer e Adrian sorriu por entre as lágrimas enquanto procurava os lenços de papel numa gaveta.

            ‑Não... não tem importância... estou bem... ‑ E deixou‑se cair numa cadeira, a chorar, com a cara escondida entre as mãos. ‑ Não... é terrível. ‑ Não havia maneira de lhe explicar aquilo e ela não queria fazê‑lo. ‑ É que... eu não... não posso... ‑ O que ela dizia nem sequer fazia sentido. Bill aproximou‑se dela e começou a massagear‑lhe suavemente os ombros.

            ‑ Calma, Adrian. Isso há‑de passar. Seja o que for, mais tarde ou mais cedo acaba por passar. ‑ Pensou se ela teria sido despedida ou se houvera alguma morte. Adrian tremia toda e estava mortalmente pálida. Bill julgou que ela ia desmaiar. Mas fê‑la respirar fundo e deu‑lhe um copo de água e pouco depois ela estava melhor. ‑ Parece que teve uma manhã terrível. ‑ Olhou‑a com simpatia e Adrian tentou sorrir, mas foi um esforço quase inútil.

            ‑ Tem sido um dia tremendo ‑ confessou Adrian, assoando‑se outra vez e olhando‑o com um misto de embaraço e apreço. ‑ Primeiro, o filho do senador foi raptado e morto e nós recebemos quilômetros de fitas sobre o caso, com o pescoço cortado do rapaz em grandes planos. ‑ Soluçou outra vez ao pensar nisso... Hesitou, olhando para Bill, sem saber se havia de lhe contar ou não. Mas não valia a pena continuar a guardar segredo, e mesmo sendo por culpa sua, não fora ela quem tomara a decisão. ‑ E depois... recebi esse estúpido telefonema do advogado do meu marido. ‑ Os olhos encheram‑se‑lhe de lágrimas e a sua voz tremeu ao dizer isso.

            ‑ Advogado? Por que um advogado? E hoje é feriado.

            ‑ Foi isso que eu lhe disse.

            ‑ Que queria ele? ‑ perguntou Bill, sentindo desejo de a proteger.

            Adrian respirou fundo e apertou o lenço de papel nas mãos, ao mesmo tempo que voltava a cabeça para outro lado:

            ‑ Telefonou para me dizer que o meu marido... a voz dela era tão baixa que ele mal a conseguia ouvir pediu o divórcio. Há duas semanas.

            Durante um momento Bill ficou petrificado. Mas foi mais pela maneira como ela o dissera do que pelo fato em si. Era a angústia dela que o comovia. Adivinhara na noite anterior que eles estavam separados e sentia‑se aliviado agora por a situação se ter tornado oficial. Mas tinha pena dela, pois Adrian parecia estar a sentir um grande desgosto, como se fosse algo que não tivesse esperado.

            ‑ Isto surgiu como um choque para si, Adrian? A voz dele era muito meiga.

            ‑ Sim. ‑ Adrian suspirou e ergueu os olhos para Bill. Ele encontrava‑se encostado à secretária e olhava‑a com simpatia. ‑ Nunca pensei que ele o fizesse. Ele disse que o faria, mas eu não acreditei.

            ‑ Há quanto tempo estão em desacordo?

            ‑ Há cerca de seis semanas, talvez sete... Ele levou as coisas dele há três semanas. As dele e as minhas também. Sorriu enquanto os dois pensaram no apartamento vazio. Isso não me interessa. Eu não pensei... eu não queria...

            ‑ Compreendo. Senti‑me assim quando Leslie se divorciou. Eu nunca quis divorciar‑me. Mas, de repente, ela decidiu que estava tudo acabado. Não parece justo quando é outra pessoa a tomar a decisão.

            ‑ Foi o que ele fez. ‑ Adrian começou a chorar outra vez, sentindo‑se embaraçada em frente de Bill, mas ele parecia aceitar aquilo com grande calma. ‑ Desculpe... estou um horror.

            ‑ Tem o direito de estar. Pode sair e ficar com a tarde livre? Eu levo‑a.

            ‑ Não creio que possa. Temos uma emissão especial marcada para antes do noticiário.

            ‑ Porque não lhe telefonou ele próprio?

            ‑ Não sei. Suponho que não quer voltar a falar comigo.

            ‑ Essa é a pior parte quando uma pessoa se divorcia sem ter filhos. Pelo menos, quando se tem filhos, somos obrigados a falar um com o outro, até eles crescerem, em todo o caso. As vezes custa, mas não se perde completamente o contacto.

            Adrian disse que sim com a cabeça, pensando que ela e Steven tinham um filho. Ou pelo menos ela tinha‑o. Steven "renunciara" ao bebê.

            ‑ O que é que fez deflagrar isto? Ou não tenho nada com isso?

            Adrian sorriu tristemente:

            ‑ Sei por que foi e agora já não interessa. Ele tomou uma posição e eu tomei outra. Não pude fazer o que ele queria e creio que cada um de nós pensou que estava pessoalmente em risco e fizemos finca‑pé. E ele ganhou. Ou perdemos ambos. Qualquer coisa dessas. Ele tomou uma decisão e nada o fez voltar atrás.

            ‑ Faz‑me lembrar Leslie. Mas no meu caso havia uma terceira pessoa envolvida no caso. Acha que ele também estará envolvido com outra pessoa?

            ‑ Talvez. Mas não o creio. Penso que tem mais a ver com o que ele ambiciona da vida, ou aquilo que ele não quer. E de repente os nossos caminhos tornaram‑se demasiado divergentes.

            ‑ Foi um passo muito brutal por causa de "caminhos divergentes". Mas as pessoas são estranhas, procedem de modo estranho. ‑ Ambos sabiam isso. ‑ Vinha convidá-la para ir beber uma chávena de café ao estúdio, mas talvez não seja boa altura. ‑ Bill sentia pena dela. Inclinou‑se para ela e tocou‑lhe ao de leve com a mão na cara. ‑ Talvez noutro dia.

            Adrian concordou. Sentia‑se como se as palavras de Allman a tivessem espancado.

            ‑ Tenho de voltar ao trabalho. Estamos a preparar uma emissão especial a respeito da família do senador. O rapaz fazia parte da equipe de râguebi da UCLA, era um excelente aluno e mostrava‑se muito empenhado em obras sociais. A namorada dele é sobrinha do governador.

É uma coisa que destroça o coração de toda a gente. ‑ Isso sucedera com ela e Steven acabara de a destroçar completamente. Sentia‑se como se estivesse a morrer. ‑ Vou ficar aqui até à uma ou às duas da madrugada. – E já parecia exausta.

            ‑ Não pode fazer um intervalo? Pelo menos sair e ir comer alguma coisa?

            ‑ Duvido. Amanhã entro mais tarde. ‑ O que lhe faltava agora era perder o bebê. Mas nem nisso podia pensar naquela altura. Tinha de ir para a frente nesse dia, no seguinte e continuar assim.

            ‑ Eu também vou trabalhar até tarde. Temos uma porção de desenvolvimentos na história. Crimes, julgamentos, divórcios, filhos ilegítimos. O costume. Isso vai manter‑me muito ocupado. Quero ter a certeza de que os nossos argumentistas têm uma boa quantidade de guiões feitos antes da chegada dos meus rapazes.

            ‑ Parece a história da minha vida. ‑ Adrian sorriu debilmente e Bill beijou‑a ao de leve no alto da cabeça quando se preparou para sair.

            ‑ Se precisar de alguma coisa mande‑me dizer. A cozinha do nosso estúdio está cheia de comida, porque a maior parte dos restaurantes aqui ao pé estão fechados hoje.

            ‑ Obrigada, Bill. ‑ Adrian olhou‑o com gratidão e ele saiu com um aceno. Adrian ficou a olhar para fora, pela janela, durante um minuto. Era um mundo louco. Steven deixara‑a e abandonara‑a a ela e ao filho. E alguém matara um inocente rapaz de dezenove anos, com um coração de ouro e a vida toda à sua frente, ceifada num instante.

            Voltou então ao trabalho e tentou esquecer os seus problemas, mas lembrava‑se constantemente de Bill e do inestimável apoio que ele lhe dava.

            A peça especial que ela produziu foi para o ar às cinco e revelou‑se extremamente comovente. Até o pessoal do estúdio chorou ao vê‑la. Em seguida, fizeram o noticiário das seis, após o que ela teve de ver um filme para poder decidir se o iria acrescentar à emissão especial da meia‑noite. Foi um dia infindável e já passava das nove quando ela viu o jantar que Bill lhe enviara. A meia‑noite, quando Adrian se encontrava sentada no estúdio, viu‑o entrar e fez‑lhe sinal para se sentar numa cadeira ao lado dela. Bill obedeceu e viu a peça especial que ela preparara, obviamente comovido com o programa.

            ‑ Que coisa terrível ‑ disse ele quando deixaram de estar no ar. O senador chorara abertamente em frente das câmeras. E tinham falado de Deus e no Seu amor por todas as pessoas, e na fé que tinham n'Ele, mas isso de pouco serviu para consolar os corações destroçados por aquilo que sucedera. Bill olhou então para Adrian. Ela estava ainda com pior aspecto do que nessa tarde. O dia fora infindável. Como se sente?

            ‑ Cansada. ‑ A palavra não podia descrever de modo algum aquilo que ela sentia, mas Bill não queria ser intrometido. Só queria ajudá‑la. Ela parecia‑lhe demasiado esgotada para ir a conduzir para casa e ele ofereceu‑se para a levar.

            ‑ Porque não me deixa levá‑la a casa? Amanhã pode vir de táxi para aqui. Deixe cá o seu carro. Ou posso ir eu a conduzi‑lo, se quiser.

            Não confiava nela a conduzir nesse dia. Parecia‑lhe demasiado exausta e receava que pudesse adormecer ao volante. Adrian aceitou imediatamente a proposta dele. Não tinha energia para a discutir.

            ‑ Está bem. Deixo o meu carro aqui. E obrigada pelo seu jantar. ‑ Ele parecia pensar em tudo, mesmo trabalhando até tão tarde. Ambos puseram a sua assinatura na folha do guarda da noite, à saída, e ela murmurou ao sentar‑se no confortável banco da station: ‑ Oh, Deus... parece‑me que estou a morrer.

            ‑ Precisa é de um bom sono. ‑ Bill sentou‑se ao volante e Adrian estava tão cansada que não disse uma palavra enquanto seguiam por Santa Monica Freeway a caminho de casa. Ao chegarem à porta do prédio onde ela vivia, Bill acompanhou‑a sem dizer uma palavra. Quando ela abriu a porta, olhou‑a com ar preocupado e perguntou:

            ‑ Vai ficar bem?

            Adrian disse que sim com a cabeça, sem parecer convincente.

            ‑ Creio que sim. ‑ Mas nunca se sentira mais só ou mais triste em toda a sua vida. Sentia‑se como se Steven a tivesse deixado outra vez.

            ‑ Telefone‑me se precisar de mim. Não estou muito longe. ‑ Tocou-lhe num braço e ela sorriu, ‑mas quando fechou a porta sentiu‑se esgotada. Subiu lentamente a escada, sem sequer acender a luz. Não queria ver as paredes nuas e as salas vazias. Atravessou o quarto e atirou‑se para cima da cama. Ficou deitada a soluçar, até adormecer, com toda a roupa vestida e com o filho de Steven dentro de si.

 

            Durante as duas semanas seguintes, Adrian sentiu‑se como se estivesse a viver num sonho. Os papéis prometidos por Lawrence Allman tinham chegado. E ela assinara‑os nos sítios apropriados. Dispensou qualquer pensão de alimentos e concordou em pôr o apartamento à venda no dia 1 de Outubro. Contou muito pouco de tudo isso a Bill Thigpen, embora ele a fosse ver ao escritório do estúdio quase todos os dias. Ele também não a pressionou. Sentia que ela estava ainda muito deprimida pelo pedido de divórcio. Tinham‑lhe sucedido muitas coisas e o trabalho assoberbava‑a. Bill andava também extremamente atarefado, porque queria deixar o trabalho adiantado antes de ter as quatro semanas de férias.

            No entanto, tivera tempo de ir buscar Adrian para a levar ao estúdio, uma tarde, e ela assistira fascinada ao programa que, nesse momento, estava a ser transmitido. Isso fez‑lhe recordar os tempos em que ela trabalhara noutras series. E, em seguida, Bill apresentou‑a a toda a gente. Quando voltaram ao escritório dele, Adrian admirou os Emmys ganhos por ele e Bill mostrou‑lhe a bíblia do programa, onde ele delineava o enredo da série para os meses seguintes, com soluções alternativas para problemas que pudessem surgir. Em cima da secretária encontravam‑se pilhas de guiões à espera da aprovação dele. Bill explicou‑lhe isso tudo e Adrian pensou que gostaria de trabalhar na produção de um programa daqueles em vez de nos noticiários e, ao ler algumas notas, fez uns comentários muito interessantes.

            ‑ Não me quer ajudar a escrever a bíblia? Ou a dar‑me sugestões para os guiões? Os argumentistas apreciariam uma ajuda. Precisam constantemente de idéias novas. Não é fácil manter um programa destes cinco dias por semana.

            ‑ Calculo que não... ‑ E então olhou‑o com entusiasmo: ‑ Fala a sério, Bill? Quer que eu escreva alguma coisa para o seu programa?

            ‑ Claro que quero. Poderemos conversar a respeito disso enquanto jantamos, um dia destes, se quiser. Eu posso pô‑la a par dos antecedentes das personagens. ‑ Bill parecia pensar que se tratava de uma grande idéia e ela achava o mesmo. Falaram nisso, enquanto ele a acompanhava à sala dos noticiários, e novamente na noite seguinte. Até que, finalmente, duas semanas depois do barbecue do Quatro de Julho, ela concordou em ir jantar fora com ele.

            Foi num sábado à noite. Eles tinham‑se encontrado nesse dia de manhã, na piscina. Adrian parecia mais bem‑disposta. Devia ter acabado por se recompor do choque que lhe causara o pedido de divórcio do marido. E estava ainda excitada por ter assistido ao programa de Bill na tarde anterior. E, ao falar nisso, parecia mais bonita do que nunca.

            ‑ Estará interessada num famoso bife à Thigpen logo à noite? Ou numa coisa um pouco melhor, como, por exemplo, um jantar no Spago? ‑ Era o ponto de reunião favorito de toda a gente que tivesse qualquer coisa a ver com cinema ou televisão. Wolfgang Puck fizera do restaurante o sítio onde toda a gente gostava de comer, com massas deliciosas e pizzas, além dos milagres da nova cozinha criada por ele.

            Adrian começara a aceitar a realidade da sua vida nas últimas duas semanas, e a perspectiva de ir jantar. fora com Bill parecia‑lhe muito atraente. Bill mostrara‑se incrivelmente paciente com ela. Observara‑a com calma, sem se intrometer. Ia visitá‑la no trabalho, enviava‑lhe comida se ela ficava a trabalhar até tarde, oferecera‑lhe boleia uma ou mais vezes, mas nunca a convidara para sair, pressentindo que ela não estava em condições de aceitar um convite desse gênero. E recomendara‑lhe um advogado que trataria do assunto do divórcio, o qual já falara várias vezes com Lawrence Allman. Mas, após duas semanas de angustia, Adrian sentia‑se ligeiramente mais animada, e ambas as sugestões de Bill lhe pareceram magníficas.

            ‑ Qualquer das duas me agrada ‑ disse Adrian, sorrindo com ar grato. Ele tornara‑se um bom amigo para ela no curto espaço de tempo em que o conhecia.

            ‑ Vamos ao Spago?

            ‑ Ótimo!

            Bill sorriu e daí a pouco cada um deles voltou ao seu próprio apartamento, para fazer aquilo que havia a fazer, como tratar da roupa e pagar contas, uma tarefa que parecia nunca acabar, sobretudo agora que não tinha Steven para se ocupar disso. O que ela ganhava chegava para cobrir todas as despesas, mas ultimamente tentava poupar o mais possível por causa do bebê. Visto Steven não ir contribuir com coisa alguma, ela precisava de ser mais cuidadosa.

            Bill apareceu às oito horas. Vestia calças de caqui, uma camisa branca e um blazer azul. Adrian escolhera um vestido que tinha há anos. Era de uma seda macia, de um rosa‑salmão, que realçava a sua elegância sem lhe moldar o corpo. Meteram‑se no carro em direção a Sunset Boulevard, conversando a respeito do trabalho e de como as últimas semanas tinham sido cansativas. Era óbvio que Bill se sentia entusiasmado com a chegada dos filhos na quarta‑feira seguinte. Passariam dois dias com ele ali na cidade e depois embarcariam para a grande aventura.

            Bill pediu pizza com pato quente e Adrian comeu cappelletti com tomate fresco e manjericão. Como sobremesa, partilharam uma enorme fatia de bolo de chocolate, que foi para a mesa afogado num chantilly delicioso. Como de costume, Adrian comeu tudo e Bill gracejou novamente com ela por causa do apetite que revelava, sem que aparentemente engordasse por isso. Mas quando ele o disse, ela pareceu‑lhe um pouco nervosa.

            ‑ Tenho de começar a ter cuidado com o que como.

            Bill reparara que ela não era muito magra, mas também não tinha excesso de peso. Contudo, notara também que o peito parecia estar maior de dia para dia, admitindo não saber se essa impressão se devia a não ter observado bem anteriormente.

            ‑ Vou passar a comer só saladas.

            ‑ Que deprimente. ‑ Bill conteve a respiração, fingindo apertar a cintura. Ele possuía uma constituição sólida, mas também não tinha peso a mais. ‑ Durante as próximas duas semanas vou comer hamburgers e batatas fritas nos restaurantes à beira da estrada. Será um milagre se eu não voltar com acne juvenil. ‑ Riram ambos da idéia e ele olhou‑a de uma maneira estranha. Há semanas que queria fazer‑lhe a pergunta, desde que soubera o que se passava com Steven, mas não quisera ser apressado. Pensava agora se ela estaria preparada para ouvir o que lhe queria dizer. ‑ Tenho uma pergunta engraçada para lhe fazer, Adrian. ‑ Quando acabou de proferir essas palavras, ela pareceu subitamente tomada de pânico. ‑ Não se enerve. Não se trata de uma coisa muito pessoal e eu não ficarei ofendido se disser que não. Acho que devo fazer a pergunta, pois talvez haja uma probabilidade de você concordar. ‑ Fez uma pausa e logo a seguir acrescentou: ‑ Há possibilidade de a Adrian tirar agora uma ou duas semanas de férias?

            Adrian desconfiou do que ele lhe ia perguntar e sorriu, lisonjeada. Sabia o que os filhos significavam para Bill e o fato de ele estar disposto a partilhar a companhia deles com ela, ou até apresentá‑los a si, revelava grande consideração.

            ‑ Não é impossível. Tenho quatro semanas de férias. Estava a guardá-las para uma viagem à Europa, em Outubro. ‑ Tratava‑se de uma viagem que ela sabia agora que não faria. Não iria a lado algum, com quem quer que fosse. E nessa altura a sua gravidez teria seis meses.

            ‑ Acha que a dispensariam a tão curto prazo? Tenho pensado se você gostaria de nos acompanhar na nossa peregrinação para norte. Está interessada? Se não estiver, respeito o seu juízo e o seu bom senso. Não será uma viagem fácil estar metida dentro do carro grande parte do dia, a ouvi‑los discutir constantemente, a comer uma comida intragável de um extremo ao outro da Califórnia e a dormir num saco‑cama sobre o chão duro, em Lake Tahoe. ‑ Mas a verdade é que Bill gostava disso e ela sabia‑o, e era uma verdadeira honra ele convidá-la para os acompanhar.

            ‑ Deve ser fantástico. ‑ Adrian sorriu.

            ‑ Acha que a dispensarão?

            ‑ Não sei. Posso perguntar. ‑ Não tinha a certeza do que lhe diriam, mas talvez lhe dessem as duas semanas. Uma davam com certeza e, provavelmente, as duas. Aquilo parecia‑lhe ser, exatamente, do que ela estava a precisar.

            ‑ Se não conseguir ter a primeira semana livre, pode ir de avião até Reno e juntar‑se a nós em Lake Tahoe para passar a segunda conosco. Mas a primeira parte da viagem também é divertida. Vamos parar em San Ysidro Ranch, perto de Santa Bárbara, ficaremos num pequeno hotel antigo de que gostamos, em São Francisco, e iremos em seguida até Napa Valley. Aí há umas pequenas estalagens encantadoras e eu acho que será uma paragem agradável a caminho de Lake Tahoe.

- Parece‑me maravilhoso. ‑ Sorriu‑lhe, descontraída pela primeira vez em muitas semanas. ‑ Sabe, na verdade tenho de lhe pedir desculpa. Creio que tenho andado em estado de choque durante as últimas duas semanas. Desde que recebi o telefonema do advogado do meu marido. ‑ Quando ela lhe disse aquilo, Bill lembrou‑se de uma pergunta que andava a querer fazer‑lhe.

            ‑ Porque não me falou no que se estava a passar antes disso?

            ‑ Não sei... Bill. Sentia‑me embaraçada. Creio que... que me considerava uma falhada por Steven se querer divorciar de mim. ‑ Bill disse que sim com a cabeça. Ele compreendia isso, mas se ela lho tivesse dito ter‑lhe‑ia poupado alguma angústia. Pela primeira vez na sua vida, considerara a hipótese de tentar conquistar uma mulher casada e, por isso, lutara contra si próprio durante dias. Ela podia ter‑lhe poupado aquilo, mas agora já não tinha importância. E Adrian tinha muito melhor aspecto agora. O primeiro choque passara e ele nunca mais a vira chorar. Era uma mulher forte, muito mais forte do que ele imaginara.

            ‑ Então que diz a respeito da viagem? Acha que a deixarão ter férias agora?

            ‑ Na segunda‑feira de manhã irei logo tratar disso. Há possibilidades. As coisas têm andado um pouco lentas e não há muita gente em férias. Muitas pessoas preferem a Primavera e o Outono, quando há menos gente por todo o lado.

            ‑ Também eu preferia, mas tenho de aproveitar as férias deles.

            Adrian olhou para Bill, imaginando como é que ele pensaria fazer as coisas. Não queria dormir no quarto com ele, mas nem sequer conhecia os garotos e eles, provavelmente, não ficariam satisfeitos com a idéia de ela dormir no quarto deles. Seria fácil quando estivessem nas tendas, mas ia ser mais complicado nos hotéis, a não ser que ela pedisse um quarto para si própria e o pagasse. Era isso que se propunha sugerir a Bill, quando ele começou a rir‑se.

            ‑ O que é que tem tanta graça?

            ‑ Você. Posso ver as rodas a girarem na sua cabeça. Está preocupada com os arranjos para dormir?

            ‑ Sim. ‑ Ela sorriu. ‑ Não é por não confiar em si. Confio, mas...

            ‑ Bem, não devia confiar ‑ confessou ele. ‑ Eu próprio não tenho a certeza de confiar em mim. Mas tenho também muito respeitinho pela minha ex‑mulher. Prometo que será tudo muito respeitável. Dormirei com os rapazes. Costumo fazê-lo. Eles gostam. E você ficará com o quarto que seria para mim.

            ‑ Isso não será um incômodo para si?

            ‑ Não, pelo contrário ‑ respondeu Bill meigamente ‑ representa muito para mim levá‑la conosco. Vou gostar de estar junto de si e dos meus rapazes. ‑ Bill queria dizer‑lhe muito mais coisas sobre o que sentia, mas sabia que ainda não era altura de o fazer. Adrian estava ainda a recompor‑se do golpe que lhe fora desferido pelo marido. E o chefe dos criados esperava ansiosamente pela mesa deles: havia uma fila de clientes à espera de mesas vagas. Quando saíram viram Zelda acompanhada por um jovem ator da televisão. Zelda mostrava‑se muito alegre e feliz com a sua conquista. Quando viu Adrian com Bill fez um circulo com o polegar e o indicador, mostrando a sua aprovação. Adrian riu e seguiu Bill até ao carro. Agradeceu‑lhe o jantar e depois olhou‑o muito séria:

            ‑ Quero agradecer‑lhe o ter‑me convidado para o acompanhar a si e aos seus filhos. Isso significa muito para mim. Sei o que eles representam para si, Bill.

            ‑ Representam, sim ‑ respondeu ele com um baixar de cabeça, e depois fitou‑a com mais intensidade. ‑ E você também representa muito para mim, Adrian. É uma pessoa muito especial.

            Adrian desviou o olhar, sem saber que dizer. Não podia prometer-lhe coisa alguma. Havia ainda uma grande confusão na vida dela. Se Steven não a queria com o filho que era dos dois, certamente mais ninguém a quereria e ela sabia disso.

            ‑ Aprecio tudo o que tem feito por mim ‑ disse, voltando a cabeça antes de entrar para o carro. Estava a pensar como ele ficaria quando soubesse do bebê e não o queria afastar.

            ‑ Passa‑se alguma coisa, Adrian? ‑ Segurou‑lhe meigamente numa mão. Estavam ainda estacionados a pouca distância do restaurante e Bill ficou de repente preocupado com ela. Havia breves momentos em que ela parecia tão infeliz e tão preocupada. Sabia que devia ser por causa do divórcio mas entristecia‑se por ela e queria ajudá-la.

            ‑ A minha vida, por enquanto, está muito complicada respondeu enigmaticamente Adrian e ele sorriu.

            ‑ Parece uma das minhas personagens. Com efeito, ainda ontem escrevi essas palavras. E você a julgar que tem problemas. A minha personagem está grávida e não tem marido. ‑ As palavras dele quase a fizeram sufocar e ela tentou rir para disfarçar a sua perturbação enquanto ele punha o carro em andamento, mas apenas conseguiu sorrir fracamente. A arte a imitar a vida, mais uma vez. Por vezes, era algo que sucedia com demasiada freqüência.

            Dirigiram‑se para o complexo e Bill convidou Adrian a tomar uma chávena de café. Ele tinha uma bela máquina elétrica e ficaram os dois sentados muito tempo na cozinha confortável, a beber café e a conversar.

            ‑ Gosto sempre de olhar bem o que me rodeia antes de os meus filhos chegarem ‑ disse Bill com um sorriso. Desde o momento em que chegam até se irem embora, a casa fica completamente de pernas para o ar. A televisão está constantemente ligada, há roupas em todas as cadeiras, meias em cima das mesas, as casas de banho parecem ter sido atingidas por uma bomba e espalham pastilhas elásticas e doces por toda a parte. É inútil tentar fazer alguma coisa contra isso.

            ‑ Mas dá a idéia de uma casa feliz ‑ respondeu Adrian.

            ‑ Essa atitude é perigosa. ‑ Sorriu. Por tudo o que vira nela até então, achava‑a uma mulher perfeita. E há muito que pensava que Steven Townsend ou era um patife ou um tolo, mas parecia‑lhe loucura deixá‑la fugir, quanto mais divorciar‑se dela. ‑ Estou ansioso por que você os conheça.

            ‑ Também eu ‑ disse ela, bebendo o seu café.

            ‑ Espero que, de fato, lhe seja possível fazer a viagem conosco.

            ‑ Também eu. ‑ E estava a ser sincera. ‑ Se não puder, talvez vá de avião até Lake Tahoe só para o fim‑de-semana.

            ‑ É boa idéia, mas eu quero muito mais do que isso. E pensou que duas semanas com ela e com os filhos seriam algo de absolutamente maravilhoso. Era o gênero de vida que ele há sete anos ansiava, o gênero de vida que perdera e que não mais voltara a conhecer. Mas Adrian era uma mulher muito especial. Por um lado, Bill tinha medo do que sentia por ela, por outro agradava‑lhe.

            Levou‑a a casa por volta da meia‑noite, e sentiu‑se como um adolescente à porta dela. Estava a morrer por lhe tocar, mas instintivamente apercebia‑se de que ela não se encontrava pronta para isso. E Tahoe não era também a resposta aos seus desejos. Não se atrevia a meter‑se com ela enquanto andassem a viajar com os filhos. Iam ter de esperar, ou ele ia ter de esperar. Nem sequer sabia se ela sentiria atração por si e receava tentar descobri‑lo demasiado cedo. Havia sempre a possibilidade de a assustar e de ela se afastar.

            Adrian estava grata por ele não a pressionar. Beijou‑o castamente na face e Bill, ao dirigir‑se para casa, sentia um tal desejo por ela que quase o enlouquecia.

            No dia seguinte, levou‑a a dar um passeio de carro e, no domingo, almoçaram no Ritz‑Carlton, em Laguna Niguel. Depois do almoço voltaram porque ele tinha de ir trabalhar. Como de costume, o trabalho ajudava‑o a ultrapassar a sua frustração constante. Sylvia já se fora embora há bastante tempo e desde que conhecera Adrian ele não estivera com mais ninguém. Mas começava a sonhar frequentemente com Adrian.

            Ela apareceu‑lhe no estúdio pouco antes do meio‑dia de segunda‑feira, com um sorriso e uma expressão triunfante.

            ‑ Posso ir! Deram‑me as duas semanas de férias! ‑ disse num murmúrio que toda a gente no estúdio ouviu. Depois riu e duas das atrizes emitiram risinhos abafados. Bill olhou‑a com assombro e satisfação e pediu‑lhe para o esperar enquanto acabava o que estava a fazer, antes de irem para o ar. Em seguida, convidou‑a a ver o programa com ele, da cabina de controlo.

            Era um episódio cheio de ação, com inúmeros conflitos e emoção. Helen já confessara estar grávida, mas não queria dizer a ninguém quem era o pai do bebê. John encontrava‑se preso e o julgamento estava marcado para breve. Helen faz um telefonema para um desconhecido e ameaça‑o de se matar se ele dissesse a alguém que era o pai do bebê. O guião estava feito de uma forma emocional e a atriz que desempenhava o papel de Helen era uma excelente artista. Fazia parte do elenco há anos e era um dos esteios de Uma Vida. Mas, ao vê‑los representar, Bill voltou‑se para Adrian, satisfeito com o espetáculo e ficou encantado por ver o entusiasmo nos olhos dela. Ela gostava da série e de tudo o que lhe dizia respeito.

‑ E uma grande série, Bill. Um excelente espetáculo.

            Bill ficou contente por ver que ela gostava. E estavam ainda a falar do espetáculo quando saíram da cabina de controlo. Bill apresentou então Adrian aos outros atores que ela ainda não conhecia e ela cumprimentou "Helen" pelo seu trabalho. Depois voltou para o seu gabinete.

            Pensava na viagem com entusiasmo e estava ansiosa por conhecer os filhos de Bill. Só esperava, pensava excitadamente, caber dentro das suas jeans até ao princípio de agosto.

 

            Os garotos chegaram dois dias mais tarde, na quarta‑feira, e Bill foi esperá‑los ao aeroporto. Convidara Adrian a acompanhá‑lo, mas ela não aceitara. Os garotos não faziam idéia de quem ela fosse e não viam o pai desde as férias da Páscoa. De qualquer modo, tinha uma consulta marcada para o médico, nesse dia. E fora a primeira vez que ouvira bater o coração do bebê. O médico colocara o estetoscópio nos ouvidos dela e a primeira pulsação forte que ouviu era dela mesma; tratava‑se, na realidade, da placenta a bombear sangue para o bebê. Mas além disso, muito mais baixo e batendo muito mais depressa do que as pulsações dela, havia um som repetido, o débil pat‑pat do coração do bebê. Adrian ouviu‑o com uma expressão de assombro e com os olhos cheios de lágrimas de emoção.

            ‑ Está tudo bem ‑ disse-lhe o médico quando ela se sentou. A tensão arterial dela estava boa, o peso também, embora tivesse engordado já um bom bocado. Não restavam dúvidas agora de que o corpo dela estava a mudar. Quando se via de perfil ao espelho, o seu corpo descrevia um S. Por isso, começara a usar os vestidos um pouco mais soltos, mas até agora, a não ser que soubesse, ninguém diria que ela estava grávida de três meses e meio.

            ‑ Há algum problema, Adrian? ‑ perguntou o médico. Não a via há um mês, pouco antes de Steven lhe ter tirado tudo da sua casa, e de lhe ter enviado os papéis para o divórcio.

            ‑ Não notei nada ‑ respondeu Adrian tranquilamente.

‑ Sinto‑me bem. ‑ E, na verdade, sentia‑se quase sempre bem, a não ser de vez em quando, quase sempre que tinha um dia de trabalho exaustivo, ou trabalhava até altas horas.

‑ Como está o seu marido a adaptar‑se à idéia? ‑ perguntou o médico enquanto lavava as mãos Tinha a certeza de que agora já estava tudo resolvido. Não fazia idéia do que sucedera nos últimos meses e Adrian não lho queria dizer. Era demasiadamente embaraçoso e transmitia‑lhe uma esmagadora sensação de falhanço. Ainda não dissera a ninguém, no trabalho, a não ser a Zelda, e essa jurara não dizer a ninguém. A amiga insistia em que era tolice não contar francamente às pessoas, pois ela não fizera qualquer mal. Steven é que devia envergonhar‑se do modo como procedera e não ela. Mas Adrian continuava a fingir que estava tudo bem e dizia sempre que o marido viajava muito. Também disse isso à mãe, nas raras ocasiões em que falaram. Além de Zelda, não falara a ninguém no bebê.

            ‑ Está bom ‑ respondeu Adrian com ar inocente. Encontra‑se fora agora.

            Adrian levantou‑se e puxou o vestido para baixo depois do exame. O médico limitava‑se a medir a pressão arterial e ouvir o coração do bebê. Tentara ouvi-lo no mês anterior mas nessa altura ainda não conseguira.

            ‑ Vai para fora este verão? ‑ perguntou o médico, conversando amigavelmente, enquanto Adrian se sentia embaraçada por lhe mentir a respeito de Steven.

            ‑ Vamos uns dias para fora. Acampar em Lake Tahoe.

            ‑ Acho bem. Mas não se canse muito na altitude. Se for a conduzir, pare de duas em duas horas e ande um pouco para desentorpecer as pernas. Isso far‑lhe‑á bem.

            Até àquele momento a gravidez decorrera sem incidentes. A não ser, claro, o fato de o marido a ter deixado e se estar a divorciar dela.

            Adrian voltou para o escritório e como habitualmente esperava‑a uma montanha de trabalho. Não teve notícias de Bill e calculou que os filhos tinham chegado bem. Ele telefonou‑lhe mais tarde, pouco antes das notícias das onze. Os filhos já estavam deitados e ele parecia exausto e feliz.

            ‑ Parece que passou por aqui um furacão ‑ disse Bill com um suspiro. Mas ambos sabiam que ele se sentia feliz com isso.

            ‑ Aposto que estão contentes por terem vindo.

            ‑ Espero que sim. Eu estou de certeza feliz com a presença deles. Vou levá-los amanhã ao estúdio durante um bocado, para que destruam tudo o que lá houver. Adam mostra‑se sempre fascinado pelos estúdios, acha que, quando crescer, quer ser realizador, mas Tommy não aprecia muito. Pensei que talvez pudéssemos passar por aí para lhe falar ou levá‑la a almoçar conosco, se tiver tempo para isso. Depende do trabalho que tiver. Os meus filhos querem conhecê‑la.

            ‑ Eu também estou ansiosa por os ver. ‑ Sorriu, apesar de isso também a enervar. Os filhos eram tão importantes para Bill que ela receava o que pudesse suceder se não gostassem dela. É verdade que ela e Bill não tinham um envolvimento emocional profundo, mas Adrian gostava muito dele e esperava pelo menos que fosse o início de uma grande amizade, pois sentia que ele também gostava de si. Percebia que havia mais qualquer coisa da parte dele, mas de momento, dadas as circunstâncias, nenhum deles sabia bem como encarar a questão. Haviam‑lhe sucedido recentemente demasiadas coisas. Entre o aparecimento do bebê e o divórcio pedido por Steven, ela não se sentia ainda capaz de iniciar um relacionamento mais profundo. E, contudo, estava a habituar‑se a Bill. Por vezes, inesperadamente, sentia necessidade dele e, de certo modo, tinha medo disso, ou melhor, de se deixar apaixonar por ele.

            ‑ Quer ir ter ao estúdio amanhã, ou prefere que passemos por aí? ‑ perguntou Bill. Falara nela aos filhos e eles não pareceram surpreendidos. Já tinham conhecido senhoras amigas do pai e estavam habituados a isso. Geralmente, diziam‑lhe o que pensavam delas e duas de entre essas mulheres tinham‑nos acompanhado nas viagens. Bill tivera dificuldade em explicar aos filhos que aquela era diferente. Tratava‑se de uma mulher de quem ele gostava e a quem respeitava, alguém que ele achava que podia amar, mas não lhes quis di2er nada disso. Receava assustá‑los.

- Irei ter ao estúdio. Quero ver o que vai fazer àquela pobre gente. Como vai a personagem que tem o filho ilegítimo?

‑ Bebe demais, compreensivelmente. Toda a gente quer saber quem é o pai do bebê. Nunca recebemos tanto correio. É espantoso como essas coisas fascinam os espectadores. Uma paternidade duvidosa parece ser uma questão que interessa a muitas pessoas. Ou talvez sejam apenas os bebês que despertam o interesse. ‑ Ele estava novamente a tocar num ponto sensível e só por o ouvir ela sentia‑se nervosa. A paternidade do bebê dela causava-lhe grandes preocupações e suspirou ao perceber que precisava de sair da cabina de controlo.

            ‑ Como vão as coisas? ‑ perguntou‑lhe Zelda. Preocupava‑se com Adrian, mas tinham ambas demasiado trabalho para poderem conversar demoradamente uma com a outra. Zelda quis saber se tinha notícias de Steven de tempos a tempos, e ficou chocada quando ela lhe disse que não.

            ‑ Não tem importância. ‑ Adrian sorriu. Sabia que Zelda não contaria a ninguém o seu segredo.

            ‑ Vi‑te outro dia com Bill Thigpen. ‑ Zelda conhecia‑o e sabia que ele tinha grande êxito com o seu programa. Pensou se haveria alguma coisa entre ambos e perguntou abertamente: ‑ Há alguma coisa entre vocês?

            Adrian pareceu ofendida com a franqueza de Zelda e respondeu:

            ‑ Sim, uma excelente amizade ‑ respondeu, dirigindo‑se apressadamente para a cabina de controlo.

            Nessa noite, ao chegar a casa, Adrian sentia‑se demasiadamente exausta até para pensar. Precisava de preparar imensas coisas para partir com Bill e os filhos daí a dois dias.

            Foi ao estúdio de Bill no dia seguinte, mesmo a tempo de ver a transmissão do programa e assistiu, fascinada, enquanto a mulher supostamente grávida soluçava, falando acerca do bebê. O marido encontrava‑se ainda preso e ela estava a ser vítima de chantagem por parte de uma mulher que afirmava saber quem era o pai da criança. O julgamento do marido começara e Helen chorava ainda a morte da irmã. Era fácil de ver por que motivo as pessoas se deixavam prender pela série. Era tudo absurdo e exagerado, e contudo não o era. O exagero assemelhava‑se ao da vida real, com as suas reviravoltas inesperadas e desastres súbitos. As pessoas tinham acidentes, eram mortas, enganavam‑se umas às outras, tinham filhos ou perdiam filhos. Na série havia um pouco mais melodrama do que na maior parte das vidas, mas não tanto como se poderia pensar. Adrian pensou que a vida dela também poderia ser considerada exagerada.

            Logo que entrou no estúdio, sem fazer ruído, viu os dois garotos de pé ao lado de Bill, olhando para os atores com uma expressão de fascínio. Adam parecia alto para a idade e mantinha‑se quieto ao lado do pai. Tinha cabelo muito louro e uns grandes olhos azuis. Vestia jeans, uma t‑shirt e sapatos de tênis de marca. Tommy, encostado a uma cadeira, tinha uma camisa de quadrados e calções. O rosto dele arvorava exatamente a mesma expressão que Bill costumava mostrar quando estava concentrado em qualquer coisa. Os dois irmãos quase pareciam gêmeos, embora um fosse muito mais pequeno do que o outro. Bastava olhar para Tommy para apetecer abraçá‑lo. Tinha o cabelo louro mais escuro, encaracolado, e uns olhos azuis ainda maiores do que os do irmão. Foi ele o primeiro a notar a presença de Adrian e ficou a observá‑la com curiosidade em vez de olhar para o espetáculo. Adrian sorriu‑lhe e disse‑lhe adeus e ele sorriu, puxando pela manga do casaco do pai. Sussurrou qualquer coisa ao ouvido de Bill e ele voltou‑se e viu‑a. Bill não saiu do mesmo sítio até haver um intervalo para a publicidade. Nessa altura apresentou‑os rapidamente e disse aos filhos que tinham de continuar a estar quietos. Tommy sorriu para Adrian e perguntou‑lhe se era ela que ia com eles a Lake Tahoe. Ela só teve tempo de murmurar um "sim" e deu por si a acariciar os caracóis macios de Tommy, enquanto via o resto do espetáculo. Mas o petiz pareceu não se importar com isso.

            ‑ Foi bom, papá ‑ elogiou Adam logo que o programa terminou. E Bill apresentou‑o aos atores. Ele já conhecia muitos deles, mas havia algumas caras novas e Adrian sentiu‑se comovida por ver como Bill se mostrava orgulhoso deles. Era claramente um pai maravilhoso.

            Tommy estava a trepar a uma das câmeras, e Adrian observava‑o. Reparou então que ele a observava também, embora fingindo não o fazer. Eventualmente. Mais tarde, foram todos almoçar e, enquanto comiam as sanduíches, Tommy olhou‑a com ar curioso.

            ‑ Há quanto tempo conheces o meu pai? ‑ perguntou enquanto Adam o olhava com ar de censura.

            ‑ Tommy, pára com isso. Não é delicado fazer perguntas.

            ‑ Não faz mal. ‑ Adrian sorriu para ambos e tentou lembrar‑se. Dependia de quando começassem a contar. Da primeira vez, no supermercado, ou quando ele começara falar com ela. Não sabia qual das vezes mencionar, mas decidiu‑se pela primeira. Fazia com que o conhecimento mais antigo. ‑ Há uns dois meses, parece.

            ‑ Sais muitas vezes com ele? ‑ continuou Tommy, dar importância ao irmão que lhe dizia para se calar.

            ‑ Às vezes. Somos bons amigos.

            Mas o garoto descobrira qualquer coisa num dedo da mão esquerda de Adrian, enquanto ela comia a sanduíche.

            ‑ És casada?

            Houve uma longa pausa e ela evitou o olhar de Bill. Queria ser verdadeira com eles, mas aquilo não ia ser fácil.

            ‑ Sou. ‑ Ainda usava a aliança de casamento. Não fora capaz de a tirar. Bill também reparara nisso, mas nunca lhe dissera coisa alguma a esse respeito e nunca teria a coragem do filho mais novo para lhe pedir que explicasse porque a usava. Depois Adrian corrigiu: ‑ Fui.

            ‑ És divorciada? ‑ Dessa vez Adam pareceu interessado no interrogatório que o irmão estava a fazer.

            ‑ Não, não sou ‑ respondeu Adrian calmamente. Mas vou ser.

‑ Quando?

            Essa pergunta inocente atingiu‑a em cheio no coração, mas Adrian não quis mostrar isso.

            ‑ Talvez perto do Natal.

‑ Oh!

            Então Tommy disse outra vez:

            ‑ Porque usas a aliança de casamento? A minha mãe usa uma dessas ‑ informou ‑, mas é mais larga e tem um grande diamante. ‑ A de Adrian era fina e simples e ela sempre gostara muito dela.

            ‑ Deve ser bonita. Uso a minha por que... bem, creio que é apenas por estar habituada. ‑ Pensara em a tirar no último mês, mas não fora capaz de o fazer.

            ‑ Queria divorciar‑se? ‑ perguntou então Adam, e Bill decidiu então intervir para acabar com o interrogatório.

            ‑ Vá, meninos, deixem a senhora em paz. Tommy, tem cuidado para não entornares o teu sumo. ‑ Apanhou uma lata de sumo que estava quase a cair e olhou para Adrian como a pedir‑lhe desculpa. Não tencionara submetê‑la a tal inquisição. ‑ Creio que temos de pedir desculpa a Adrian. Não temos nada com a vida privada dela.

            ‑ Desculpe ‑ disse Adam com ar arrependido. Tinha quase dez anos e já compreendia que não devia ter feito àquela pergunta, mas deixara‑se arrastar pelo irmão mais novo.

            ‑ Não tem importância. Às vezes é preferível perguntar-lo que ficar a imaginar as coisas. Se não quisesse responder não o teria feito. ‑ No entanto, não respondera à pergunta de Adam sobre se tinha querido ou não divorciar‑se. Era ainda demasiado doloroso. ‑ E vocês? ‑ Olhou para os dois garotos com ar sério. ‑ Algum de vocês foi alguma vez casado? ‑ Adam sorriu e Tommy ficou de boca aberta.

            ‑ Vá, eu disse‑lhes, agora digam‑me vocês a mim. Qual é a história? ‑ Olhou para um e para o outro e ambos começaram a rir. Tommy foi o primeiro a querer dar informações.

            ‑ Não, mas Adam tem uma namorada. Chama‑se Jenny.

            ‑ Não é nada! ‑ Deu um empurrão ao irmão e fez um ar carrancudo.

            ‑ É sim, senhor! ‑ Tommy defendeu a sua veracidade. ‑ Dantes tinha uma namorada chamada Carol, mas ela deixou‑o.

            Adrian riu e olhou com simpatia para Adam:

            ‑ São coisas que acontecem, até aos melhores. ‑ Sorriu; ‑ E tu, Tommy? Há alguma rapariga sobre a qual queiras falar‑me? Já que vamos ser amigos, é melhor contares-me essas coisas. ‑ Era o que eles lhe tinham feito a ela e Adrian achava graça as expressões deles. Bill olhava‑a, encantado. Adrian mostrava‑se meiga, afetuosa e franca com os filhos dele, tal como com ele. Era fantástica.

            Conversaram durante todo o almoço e Adrian detestou ter de os deixar para voltar para o escritório. Convidou‑os para irem visitar a sala dela, mas não para assistir ao noticiário. Alguns dos fatos que iam ser apresentados eram demasiado sombrios e ela não queria que eles os vissem. Mas mostrou‑lhes o estúdio e as salas de trabalho e apresentou‑os a toda a gente, incluindo Zelda, que olhou para eles e para o pai com interesse. Logo que eles saíram perguntou‑lhe:

            ‑ Isto está a tornar‑se uma coisa séria?

            ‑ Não é provável ‑ respondeu Adrian friamente. Zelda sabia que ela estava grávida, mas também sabia que Steven a deixara. ‑ Dadas as circunstâncias.

            ‑ Podias arranjar pior ‑ replicou Zelda, referindo‑se a Bill. ‑ Hoje em dia já não existem virgens. ‑ Adrian riu do que a amiga acabara de dizer. Era, com efeito, uma maneira de ver as coisas.

            ‑ Hei‑de lembrar‑me disso se alguma vez sentir inclinação para começar a andar com alguém. ‑ Mas não era assim que ela considerava a sua amizade com Bill Thigpen. Gostava muito dele e se quisesse analisar‑se bem, sabia que sentia atração por ele, mas nunca sentira que fosse isso que a levara a aceitar os convites dele. A verdade é que se sentiam bem um com o outro, que gostavam de conversar e que tinham muitas coisas em comum. E achava os filhos dele formidáveis. Começava a sentir‑se entusiasmada com a viagem e estava encantada por Bill a ter convidado a acompanhá‑los. Ia ser maravilhoso poder sair da cidade, de férias. Admitiu deixar um bilhete a Steven, para lhe dizer onde estaria, mas logo a seguir pensou que isso seria ridículo. Ele pedira o divórcio e nem sequer lhe falava. Era pouco provável que lhe interessasse saber onde ela estava. E se decidisse voltar para casa, certamente telefonaria para o escritório dela para a descobrir. Por isso, deixou uma nota a Zelda e ao diretor do gabinete das notícias com a lista dos hotéis que Bill lhe dera, mas duvidava que alguém lhe telefonasse. E, ao dirigir‑se para a sua secretária, depois do almoço, Adrian pensava nas perguntas que Tommy e Adam lhe tinham feito acerca da aliança de casamento e do divórcio, e sobre se ela se quisera divorciar.

            Mais tarde, enquanto ia ficando cada vez mais ocupada com o seu trabalho, acabou por se esquecer disso.

            Voltou a vê-los no dia seguinte, quando Bill lhe foi perguntar se ela tinha um saco‑cama. Acabara de descobrir que só lhe restavam três e queria saber se precisava de comprar outro.

            ‑ Oh, não tenho ‑ disse Adrian, atrapalhada. Nem sequer se lembrara disso. Mas Bill assegurou‑lhe que não era problema e que não faltaria coisa alguma. Disse‑lhe para levar um vestido bom para irem a qualquer lado e um casaco quente por causa das noites em Lake Tahoe.

            ‑ Só isso? Nada mais?

            ‑ Exato. ‑ Bill sorriu e aproximou‑se, gostando da excitação que sentia perto dela. Tornava‑se cada vez mais difícil conservar‑se à distância. ‑ Só um fato de banho e um par de jeans.

            ‑ Vai ficar muito aborrecido comigo se eu levar só isso avisou Adrian, mas Bill abanou a cabeça e olhou‑a com uma expressão afetuosa.

‑ Duvido.

            ‑ E jogos? Há alguma coisa de que gostem? Bingo, cartas, jogo das palavras? ‑ Fizera já uma lista para comprar alguns jogos que os pudessem entreter no caminho. E Tommy fez‑lhe imediatamente a encomenda de livros de quadradinhos e uma pistola de água.

            ‑ Não faça caso disso! ‑ ralhou Bill quando iam a sair. Precisava de ir fazer umas compras, pois partiriam na manhã seguinte.

            Adrian preparou tudo nessa tarde, depois de fazer o noticiário das seis. Quando voltou a sair, para o último noticiário, já deixou tudo pronto e colocado junto da porta. As suas duas pequenas malas tinham um ar estranho no apartamento vazio. Parecia que ela ia, finalmente, sair também dali. O apartamento tinha um ambiente deprimente e Adrian pensou que, provavelmente, teria de comprar alguma mobília de tempos a tempos, mas a verdade é que não lhe apetecia fazer isso. Era como se tivesse desistido de esperar que Steven voltasse para casa com tudo. E, de qualquer modo, dentro de poucos meses teria de vender o apartamento. Entretanto, não lhe faria mal nenhum ter alguma mobília. Mas nem tinha tempo nem vontade de a comprar.

            Bill telefonou-lhe logo a seguir ao noticiário e falaram durante alguns minutos acerca da viagem. Ele parecia tão excitado como ela. Adrian tinha a sensação de ser uma garota que fosse para um acampamento de férias pela primeira vez e também pela primeira vez, desde há muito tempo, sentia‑se realmente feliz. Fora tudo muito difícil durante os últimos dois meses, excetuando o tempo que passara com Bill.

            ‑ Pensei em sairmos por volta das oito ‑ disse Bill.

Assim chegaremos a Santa Bárbara cerca das dez e teremos tempo para dar um passeio a cavalo, ou coisa assim, do almoço. Os meus filhos estão ansiosos por montar a cavalo. ‑ Era a primeira vez que ela pensava nisso. Tratava de uma das poucas coisas que ela não deveria fazer e não sabia se Bill iria ficar desapontado com ela por causa disso.

            ‑ Creio que ficarei a descansar enquanto os cavalheiros vão montar a cavalo.

            ‑ Não gosta de cavalos, Adrian? ‑ Bill parecia surpreendido. Pensara em organizar um passeio a cavalo quando chegassem a Lake Tahoe, mas se não pudesse, também não tinha importância. Não era coisa que o preocupasse.

            ‑ Não é por não gostar. Mas não sou boa cavaleira.

            ‑ Nós também não. Bem, amanhã veremos. Estaremos aí à oito.

            Bill mal podia esperar pela hora da partida, e ela também. Pensava nisso, estendida na cama, nessa noite. Então passou a mão pelo estômago e sentiu que já não estava tão côncavo, havia uma subtil elevação no ventre. Sobretudo quando estava em pé apercebia‑se disso. Algumas das suas roupas começavam a estar‑lhe apertadas e pensou quando é que as pessoas passariam a reparar. Nessa altura tudo mudaria para ela, incluindo o seu relacionamento com Bill. Sabia que ele não quereria nada com ela logo que soubesse que estava grávida. Mas, de momento, podia gozar a companhia dele e estava realmente desejosa de ir para férias. Ele não iria desconfiar desde que ela usasse camisas soltas sobre as jeans, ou camisolas largas.

            Eles apareceram exatamente às oito e quinze, mas ela já estava pronta. Bill pegou nas duas malas dela e Adrian levou apenas o seu saco, com os seus artigos de toalete, umas sanduíches para o caminho e os jogos que comprara para os filhos de Bill. Este parecia feliz e descontraído e, quando a viu, inclinou‑se para ela como se a fosse beijar. Depois recuou e olhou de soslaio para os filhos. Alugara uma carrinha e estavam completamente equipados para todas as necessidades da viagem. A parte de trás encontrava‑se cheia de malas, sacos‑camas e equipamento.

            ‑ Estão todos prontos? ‑ perguntou, sorrindo para Adrian, que também sorria, sentada ao lado dele, e ambos se voltaram para trás, para as duas crianças.

            ‑ Estamos! ‑ responderam os garotos em uníssono.

            ‑ Bom! Então a caminho! ‑ Pôs o carro em andamento e dirigiram‑se para norte pela auto-estrada. Adam pusera os auscultadores nos ouvidos e ouvia uma gravação, enquanto Tommy cantarolava ao mesmo tempo que brincava com soldadinhos de chumbo. Bill e Adrian conversavam tranquilamente. Pareciam uma verdadeira família a partir para férias e, ao pensar nisso, Adrian soltou uma pequena gargalhada. Trazia um grande laço azul a prender‑lhe o cabelo na nuca, e vestira uma camisola de algodão de um azul mais claro, por cima de umas velhas calças de ganga. Calçava sapatilhas e Bill achou que ela parecia uma garota, assim vestida. ‑ Porque é que está a rir?

            ‑ É engraçado. Tenho a sensação de estar a representar um papel numa série.

            ‑ É melhor do que isso ‑ disse ele sorrindo. ‑ Se fosse na peça teria de ser casada com um homem que bebesse de mais e de ser mãe de uma filha que tivesse fugido de casa, ou poderia até estar grávida de outro homem, ou de ter uma doença mortal.

            Bill enumerava todas as possibilidades, e uma delas estava mais perto da verdade do que ele julgava.

            ‑ Isto é muito melhor, com efeito.

            ‑ Claro que é. ‑ Bill ligou o rádio e seguiram para Santa Bárbara sem problemas. Pararam no San Ysidro Ranch cerca das dez e meia. Esperava-os uma adorável casinha, com dois quartos e duas casas de banho e uma bonita salinha com lareira. Parecia uma casinha apropriada para uma lua‑de‑mel. Bill pôs as coisas dele no quarto dos filhos, como prometera, e deu a Adrian o melhor dos dois quartos.

            ‑ Quer assim, com certeza? ‑ perguntou Adrian. Tinha remorsos por ficar com o quarto mais bonito, mas Bill insistiu em que gostava de dormir com os filhos. ‑ Eu podia dormir no sofá da sala.

            ‑ Com certeza. Ou no chão. Podemos fazer isso São Francisco.

            Ela riu e ajudou os garotos a transportarem as coisas deles. Alguns minutos depois, Bill e os filhos foram saber o que havia sobre cavalos para alugar. Ela disse que não ia e declarou que organizaria tudo. Iriam ficar ali durante dois dias. Quando eles v9ltaram, estava tudo arrumado nos seus lugares.

            ‑ Você é uma boa organizadora ‑ disse Bill.

            ‑ Obrigada. Que tal foi o passeio?

            ‑ Ótimo. Os cavalos são tão mansos que se podem conduzir de olhos fechados. Podia ter ido.

            "Sim", pensou Adrian. "Mas não com o meu bebê".

            ‑ Talvez para a próxima vez. ‑ Ele percebeu que se tratava de uma coisa que ela não queria fazer, por isso não insistiu. Almoçaram em casa e depois foram descansar para junto da piscina. Mas, a meio da tarde, os dois rapazes começaram a ficar desassossegados, sem terem que fazer, e Bill organizou um jogo de tênis. Foi um jogo perfeito, pois jogavam todos igualmente mal e riam tanto que mal conseguiam tocar na bola. Por fim, Adrian e Tommy ganharam, mas só por defeito, pois Adam e Bill jogavam ainda pior do que eles.

            Jantaram na casa de jantar do rancho e depois voltaram para casa, a fim de os garotos tomarem banho e se irem deitar, às nove. Bill foi metê‑los ria cama e disse que não queria ouvir nem mais uma palavra, mas claro que ouviu até quase às onze horas. Sussurravam e brincavam e Tommy apareceu uma vez lavado em lágrimas porque não conseguia encontrar o velho coelho de pelúcia com o qual sempre dormia. Adam escondera‑o debaixo da cama. Bill tinha um ar feliz e cansado quando os filhos por fim adormeceram, cerca das onze. Ele e Adrian ficaram sentados em frente da lareira, a conversar em voz baixa.

            ‑ São tão engraçados ‑ disse ela. Admirava realmente a maneira como ele os tratava, com mais afeto que firmeza, muito bom senso, amor e razão.

            ‑São engraçados especialmente quando estão a dormir ‑ concluiu Bill. Apetecia‑lhe dizer‑lhe como ela também era engraçada, mas não se atreveu. Um dos filhos podia ter acordado e ouvi‑lo. ‑ Tem a certeza de que vai agüentar duas semanas assim?

            ‑ Sim, e vou sentir‑me de novo terrivelmente só quando voltar para casa.

            ‑ Também eu, quando eles se forem embora ‑ disse ele, pensativamente. ‑ É brutal. É sempre uma recordação dos maus dias em que Leslie me deixou e levou os filhos. Agora, pelo menos, estou constantemente ocupado com o meu trabalho. ‑ E esperava vir a estar ocupado também com ela. Desejava que assim fosse, mas não sabia o que Adrian esperaria dele. Proximidade ou afastamento. Nunca tinha a certeza. Amizade ou amor, ou ambas as coisas. Procedia com extrema cautela, receoso de a perder. Ela raramente falava no marido, mas sabia que ainda pensava muito nele, por causa de pequenas coisas que dizia. E Adam tivera razão ao fazer‑lhe a pergunta acerca da aliança de casamento. Por que motivo continuaria a usá-la?

            ‑ Não sei como hei‑de agradecer‑lhe ter‑me convidado para estas férias.

            ‑ Não se preocupe. Antes de elas acabarem vai ficar a detestar‑me. ‑ Sorriu, mas ambos sabiam que não era verdade. Os filhos dele eram encantadores.

            ‑ Há algo de especial que eu possa fazer? Em que possa ajudá‑lo com eles?

            ‑ Deixe, eles vão incumbir‑se disso.

            ‑ Não sei muito acerca de crianças ‑ disse Adrian com urna certa melancolia, mas ia ter de aprender muito em breve.

            ‑ Eles ensinar‑lhe‑ão tudo quanto vai precisar de saber. Creio que o que tem mais significado para eles é a sinceridade ‑ murmurou Bill pensativamente ao sentar‑se no sofá ao lado dela. ‑ Isso significa muito para as crianças.. Respeitam quem os trata dessa maneira.

            ‑ Também eu. ‑ Era uma coisa que ela sempre apreciara em Bill, desde o princípio.

            ‑ Também gosto disso em si ‑ disse Bill calmamente, ainda falando em voz baixa para não acordar as crianças. Há muitas coisas em si de que eu gosto, Adrian.

            ‑ Não devo ter sido uma companhia muito agradável nas últimas semanas ‑ respondeu ela. ‑ A minha vida tem estado como que suspensa. ‑ E isso ainda era dizer pouco.

            ‑ Você tem conseguido enfrentar as coisas muito bem, dadas as circunstâncias. Passamos um mau bocado quando não somos nós a querer o divórcio. Mas às vezes penso que essas coisas sucedem por uma razão. Talvez haja algo de melhor à sua espera... uma situação que a torne mais feliz do que o seu casamento com Steven.

            Era difícil imaginar isso. Não que eles fossem sempre completamente felizes. Mas ela nunca pusera em questão aquilo que tinham. Parecia‑lhe bem e julgava que fosse assim para sempre.

            ‑ Que disseram os seus pais quando ele a deixou? Bill já percebera que ela não se dava muito com os pais, mas imaginava que eles se tivessem mostrado muito chocados, à maneira própria de Boston.

            Ela hesitou e depois sorriu, ligeiramente embaraçada:

            ‑ Não lhes disse.

            ‑ Fala a sério? ‑ Ela disse que sim com a cabeça. Por quê?

            ‑ Não quis perturbá‑los. E pensei que se ele voltasse seria preferível não lhes dizer coisa alguma.

            ‑ É uma maneira de ver as coisas. Acha que ele vai voltar? ‑ O coração de Bill bateu mais depressa ao fazer a pergunta.

            Adrian abanou a cabeça, incapaz de explicar todos os meandros da situação. Isto é, não querendo explicar. Não queria dizer‑lhe que estava grávida.

            ‑ Não, mas há alguns problemas complicados que tornam difícil pôr os meus pais a par da situação. ‑ Talvez ele fosse homossexual, pensou Bill. Era uma possibilidade em que não pensara. Mas não queria embaraçá‑la com mais perguntas. Isso explicaria muita coisa, mas Bill calou‑se, porque percebia que Adrian não desejava continuar a falar no assunto.

            Conversaram durante mais um bocado, depois levantaram‑se e deram mutuamente as boas‑noites. Ele olhou‑a, com pena de a ver afastar‑se, e ela sorriu e disse‑lhe adeus antes de fechar a porta. Adrian não deu a volta à chave, porque confiava nele e sabia que não precisava de o fazer. Só acordou no dia seguinte de manhã ao ouvir Adam e Tommy na sala, a verem televisão. Eram oito da manhã e quando Adrian apareceu, depois de ter tomado a ducha, fresca, com uma camisa e sapatilhas cor‑de‑rosa, Bill já pedira o pequeno‑almoço para ela.

            ‑ Acha bem panquecas e salsichas? ‑ perguntou Bill olhando‑a por cima do jornal.

            ‑ Ótimo. O pior é que antes de chegar a Lake Tahoe estarei do tamanho desta casa.

            Bill já sabia que ela gostava de comer e admirava o fato de não ser gorda, a não ser, talvez, ter um bocadinho de barriga.

            ‑ Poderá fazer dieta quando voltarmos. Eu faço‑lhe companhia.

            Bill comeu salsichas, ovos, torradas e bebeu sumo de laranja e café. Os dois garotos devoraram as panquecas com satisfação. Adrian comeu tudo o que tinha no prato. Depois do pequeno‑almoço foram novamente dar uma volta a cavalo e, nessa tarde, deslocaram‑se a pé até Santa Bárbara. Adrian comprou-lhes um papagaio de papel e, em seguida meteram‑se no automóvel para o irem lançar na praia. Estavam todos desgrenhados e felizes quando voltaram ao hotel para jantar. E, nessa noite, os rapazes caíram na cama, exaustos, pouco depois das dezenove. Adrian forçara‑os a tomar banho e eles resmungaram, mas Bill secundou a sugestão dela.

            ‑ Que férias são estas, afinal? ‑ perguntou Tommy, indignado.

            ‑ Asseadas! ‑ respondera Adrian. Mas quando foram para a cama já lhe tinham perdoado, pois ela contou‑lhes uma longa história. Adrian lembrava‑se de o pai lhe ter contado essa história quando ela era pequena. Tratava‑se de um rapaz que atravessara o oceano e descobrira uma ilha mágica. Adrian embelezou a história com bocados de outras de que se recordava e eles adormeceram logo que ela acabou de a contar.

            ‑ O que é que lhes fez? Deu‑lhes comprimidos para dormir? Nunca os vi adormecer tão depressa! ‑ exclamou Bill com admiração.

            ‑ Creio que isso se deveu ao passeio, à estada na praia, ao banho e ao grande jantar. Eu também estou pronta para dormir.

            Bill riu e encheu um copo de vinho para cada um. Fora um dia maravilhoso e nem sequer um telefonema do realizador da série o perturbara. Tratava‑se de um pequeno problema fácil de resolver pelo telefone, e Bill sentia‑se completamente descontraído ao sentar‑se junto de Adrian no sofá.

            ‑ Sempre soube que ia gostar de crianças? ‑ quis saber Adrian.

            ‑ Não, claro que não. Quando soube que Leslie estava grávida, da primeira vez, fiquei assustado. Não percebia nada de bebês. ‑ Adrian sorriu da resposta dele. Fora isso o que Steven sentira, mas Bill não fugira como fizera o marido dela. Estava convencida de que se ele não tivesse fugido ainda viria a convencer‑se que não era assim tão mau... se ele estivesse disposto a tentar... e podia ser que o filho... ‑ Você tem jeito para as crianças, Adrian. Devia ter filhos. Seria uma mãe maravilhosa.

            ‑ Como é que sabe isso? ‑ perguntou ela, preocupada. E se não fosse? ‑ Era uma coisa que ultimamente a inquietava.

            ‑ Como é que se pode saber? Cada um faz o melhor que pode. Não é possível fazer mais do que isso.

            ‑ Assusta um bocado.

            Ele concordou, em silêncio:

            ‑ Mas o mesmo se passa com tudo na vida. Como é que você sabia se faria um bom trabalho nas notícias, ou se teria êxito na universidade, ou com o casamento? Tentou. É tudo o que se pode fazer.

            ‑ Sim. ‑ Adrian sorriu com tristeza: ‑ E eu não tive muito sucesso nisso.

            ‑ Disparate! A mim parece‑me que ele foi o culpado e não você.

            ‑ Ele teve as suas razões.

            ‑ Provavelmente. Mas pelo menos você tentou. Não pode passar o resto da vida a censurar‑se ou a sentir‑se culpada.

            ‑ Isso não se passa consigo? ‑ perguntou Adrian com franqueza. ‑ Não se sente um pouco responsável pelo falhanço do seu casamento?

            ‑ Sim. ‑ Bill foi também sincero. ‑ Mas sei que a culpa não foi inteiramente minha. Trabalhei muito e não fiz muita companhia à minha mulher, mas amava‑a e era um bom marido e nunca a teria deixado. Portanto tive alguma culpa, mas não toda. Não me sinto tão responsável como costumava sentir‑me.

            ‑ Isso é encorajador. Eu sinto‑me ainda terrivelmente culpada. ‑ Hesitou e depois concluiu: ‑ Sinto que falhei.

            ‑ Mas não. Apenas deve pensar que não resultou. Para a próxima vez será melhor ‑ disse confiantemente, o que a fez rir.

            ‑ Da próxima vez. O que o faz pensar que haverá urna próxima vez? Não sou tão parva como isso... ou tão corajosa! ‑ Além disso, quem a quereria com um bebê? Ainda não conseguia imaginar o futuro sem ser com Steven.

            ‑ Você fala a sério? Acha que a vida está acabada para si aos trinta e um anos? ‑ Parecia mais divertido do que compadecido. ‑ Isso é a maior patetice que já ouvi. ‑ Especialmente para uma mulher com o aspecto, a maneira de pensar e de proceder dela. Qualquer homem se consideraria feliz por partilhar a vida com ela e ele sentir‑se‑ia mais que feliz se pudesse fazê-lo.

            ‑ Mas você não voltou a casar‑se. ‑ Adrian disse estas palavras ao mesmo tempo que o olhava atentamente e Bill sorriu.

            ‑ Tem razão. Porque ainda não encontrei a mulher certa. ‑ E além disso, tivera o cuidado de não a encontrar.

‑ Por quê?

‑ Com medo ‑ confessou ele. ‑ Atarefado. Preguiçoso.           Sem disposição para isso. Além disso, era mais velho que você quando me divorciei. E já tinha dois filhos. Isso foi uma coisa que nunca me incentivou para procurar outra pessoa.

            ‑ Por quê? Não queria ter mais filhos, não?

            ‑ Não quero voltar a ter filhos e perdê-los de novo respondeu ele quase tristemente. ‑ Uma vez chegou. Não podia voltar a passar por isso. Fico com o coração dilacera cada vez que eles partem para Nova Iorque. Não estava disposto a sofrer outra vez da mesma maneira. ‑ Adrian concordou. Julgava compreendê-lo.

            ‑ Deve ser duro ‑ disse com simpatia.

            ‑ É mais duro do que pode imaginar. ‑ Então Bill sorriu‑lhe com ternura e ela teve vontade de lhe contar acerca do bebê.

            ‑ Às vezes a vida é mais complicada do que parece disse enigmaticamente.

            ‑ Isso é verdade. ‑ Bill não sabia ao que ela se referia, mas não a quis pressionar. Calculava que se tivessem passado coisas com Steven que não lhe queria dizer. Outra mulher, outro homem, qualquer desapontamento ou desgosto especial.

            Conversaram durante muito tempo nessa noite, sentados lado a lado, olhando para o lume. A noite estava bastante fresca, Bill acendera a lareira cedo e ela ainda ardia. As crianças dormiam e ambos se sentiam cansados, mas nenhum deles desejava deixar o outro. Pareciam ter uma miríade de coisas sobre as quais falarem, experiências a relatar, opiniões a partilhar, e, à medida que a noite avançava, sem pensar, Bill ia‑se aproximando mais dela. Era um modo de exprimir o que sentia por ela e Adrian parecia não se opor. Subitamente, perto da meia‑noite, ele olhou para ela e ficou sem saber o que ia dizer. Só conseguia pensar em como a desejava e sem pensar prendeu‑lhe a cara com as duas mãos e murmurando o nome dela beijou‑a ternamente. Ela não estava preparada para isso e foi apanhada totalmente de surpresa. Mas não o afastou, nem se mexeu. E deu por si a retribuir o beijo e a desejá‑lo quando ele a abraçou. Finalmente, afastou‑se e olhou‑o com tristeza.

            ‑ Bill... não...

            ‑ Lamento... ‑ disse ele, mas não lamentava. Nunca se sentira mais feliz na sua vida, nunca desejara mais uma mulher, nunca amara ninguém como a amava a ela. Amava‑a com todo o vazio e desejo que sentira, durante sete anos, e com a ternura e a sensatez dos seus quarenta anos. ‑ Desculpe, Adrian. Não a quis perturbar...

            Ela levantou‑se lentamente e atravessou a sala, como se tivesse de se distanciar fisicamente dele para não fazer nenhuma tolice.

            ‑ Não me perturbou... não o posso explicar... não lhe quero causar desgostos.

            ‑ A mim? ‑ Ele ficou assombrado. ‑ Como poderá causar‑me desgostos? ‑ Dirigiu‑se para ela e segurou‑lhe nas mãos, olhando para os olhos azuis que tanto amava.

            ‑ Acredite no que eu lhe digo. Agora não tenho nada para dar a ninguém. A não ser dores de cabeça.

            ‑ Faz com que as coisas pareçam muito atraentes ‑ disse Bill, sorrindo. Queria beijá‑la outra vez, mas forçou‑se a não o fazer.

            ‑ Falo a serio. ‑ E tinha um ar sério. Falava muito mais a sério do que ele julgava. Não queria sobrecarregar ninguém com a responsabilidade do filho dela, muito menos Bill, que tinha a sua vida e os dois filhos. E acabara de lhe dizer que não queria mais filhos. O problema era dela e de mais ninguém.

            ‑ Eu também falo a sério, Adrian. Não queria pressioná‑la porque sei que o divórcio foi um golpe tremendo para si. ‑ Olhou‑a e tudo o que sentia por ela transpareceu nele.

            - Adrian... amo‑a. Sei que isto parece loucura e não sucedeu há muito tempo, mas amo‑a. Não quero pressioná‑la e se ainda não for boa altura eu espero... mas dê‑me uma oportunidade, por favor. ‑ Falava num murmúrio e, não se contendo mais, beijou‑a de novo. Ao princípio ela tentou resistir-lhe, mas apenas por um momento, e depois abandonou‑se nos braços dele, percebendo que estava também a apaixonar‑se. Mas não podia fazê‑lo. Não era leal. Estava ofegante e parecia preocupada quando ele acabou. Bill apenas sorriu e tocou-lhe com os dedos nos lábios. ‑ Sou um rapaz crescido. Sei cuidar de mim próprio. Não se preocupe comigo. Posso esperar até você resolver tudo com Steven.

            ‑ Mas não é justo para consigo.

            ‑ É ainda menos justo não deixar que isto aconteça. Fomos atraídos um para o outro por uma força magnética desde que nos vimos. Chame‑lhe destino, chame-lhe o que quiser. Mas eu sinto que isto estava predestinado. E não quero perdê‑lo. Não pode fugir do que nos está a acontecer e não a apresso. Esperarei o tempo que for preciso, esperar para sempre, se tiver de ser.

            Era um oferecimento espantoso e Adrian sentiu‑se comovida no mais fundo do seu ser. Sentia o mesmo por ele mas o bebê alterava tudo para ela. Tinha de dar a Steve uma oportunidade para voltar, se mudasse de idéias. E tinha de devotar todo o seu amor e energia ao filho que trazia dentro de si. E não era justo entrar na vida de Bill grávida de outro homem. Aquilo parecia‑se bastante com o enredo da série dele e ela quase gemeu ao pensar em explicar‑lhe situação.

            ‑ Prometo que não tentarei forçar seja o que for. Nem sequer voltarei a beijá‑la enquanto andarmos em viagem, você não quiser. Quero apenas estar junto de si e conhecê‑la melhor.

            ‑ Oh, Bill. ‑ Caiu nos braços dele outra vez e ele apertou‑a contra si durante muito tempo. Ele era tudo o que sempre desejara, mas infelizmente não era seu marido nem o pai da criança. ‑ Não sei que dizer.

            ‑ Não diga nada. Tenha paciência consigo e comigo. E dê tempo ao tempo. E depois veremos. Talvez venhamos a descobrir que não está certo e nunca estará. Mas pelo menos vamos dar uma oportunidade a nós próprios. Está bem? ‑ Olhou‑a com ar esperançoso enquanto ela ficava pensativa. ‑ Por favor...

            ‑ Mas você não sabe... há muita coisa que não sabe a meu respeito.

            ‑ O que poderá ser assim tão terrível? Enganou o seu marido? Que terríveis segredos está a esconder‑me? ‑ Estava a arreliá‑la para tornar o momento mais leve e ela sorriu.

Não se tratava de um segredo terrível, mas sim de um grande segredo. Um bebê. ‑ Não posso crer que haja algo de terrível no seu passado, nem sequer no seu presente, que possa mudar o que sinto por si.

            Adrian quase riu ao lembrar‑se do que Steven pensava a respeito do bebê. Mas não era Steven quem falava, mas sim Bill, e Adrian quase acreditava que ele a amava realmente.

Mas aceitá‑la grávida era algo que não se podia pedir a ninguém, nem mesmo a Bill. Não podia fazer isso.

            ‑ Porque não deixamos as coisas assim, gozamos as nossas férias e, quando voltarmos para casa, falamos nisto outra vez? Está combinado? As coisas ficam assim até lá. E eu prometo portar‑me bem. ‑ Estendeu as mãos para Adrian e dominou, com dificuldade, o desejo avassalador de a beijar outra vez. ‑ De acordo?

            Ela apertou‑lhe as mãos relutantemente e sorriu:

            ‑ Você é um grande argumentador. ‑ Mas estava contente. Por momentos, estivera tentada a voltar para Los Angeles para fugir do seu próprio desejo por ele, mas sentia‑se feliz por não ter de o fazer.

            ‑ E não se esqueça ‑ disse, de dedo em riste para ela ‑: falo a sério ‑ sussurrou enquanto apagava as luzes e, pouco depois, cada um deles deitava‑se com os seus próprios pensamentos e a recordação da paixão que quase se desencadeara entre eles. Mas agora ambos sabiam que ela existia, e, embora a controlassem, mais cedo ou mais tarde teriam de a enfrentar. Adrian sabia que Bill era um homem sério e um contestador de força.

 

            Partiram para S. Francisco no dia seguinte, e no caminho pararam em Carmel, percorreram as pequenas lojas, rindo e conversando. Adrian comprou pequenos presentes para os dois garotos. Mas nesse dia Bill estava muito calado. Pensava na noite anterior, imaginando o que preocuparia Adrian e por que motivo estaria ela tão certa de que ele a rejeitaria. Sabia que isso se relacionava com o casamento dela, ou com o divórcio, mas não percebia qual a razão que a levava a não lho dizer.

            Na altura em que chegaram a S. Francisco, porém, já ia descontraído outra vez: sentia‑se melhor. Foram ao Cais dos Pescadores, passearam nos elétricos, visitaram Ghirardelli Square e pararam em todos os locais de atração turística. Foram dois dias cansativos, e Adrian estava pálida quando, finalmente, se dirigiram para Napa Valley.

            ‑ Sente‑se bem? ‑ perguntou Bill meigamente na manhã em que partiram. Ele ia a conduzir, embora ela se tivesse oferecido para o revezar. Bill queria que ela fosse descontraída e gozasse o passeio através de Sonoma. Campos com vinhas e flores silvestres estendiam‑se a perder de vista, vacas, cavalos e ovelhas pastavam tranquilamente nos prados, enquanto eles passavam na estrada ladeada por belas árvores frondosas, e viam os montes, à distância.

            ‑ Parece muito cansada ‑ insistiu Bill, preocupado com ela. Adrian cansava‑se facilmente, achava ele, e ficava pálida, embora de uma maneira geral parecesse saudável e nunca se queixasse. Comia bem e mostrava‑se sempre bem‑disposta. Depois do que se passara entre eles na segunda noite da viagem, Bill forçara‑se a não se aproximar muito dela, nem falar de assuntos sérios. Sabia o que sentia por Adrian e apercebia‑se de que esta sentia o mesmo, mas havia qualquer coisa que a detinha e ele queria dar‑lhe tempo para resolver isso. A única coisa de que tinha a certeza era de não a querer perder.

            Adrian era maravilhosa para os filhos dele e estes nunca se tinham sentido tão felizes com qualquer das amigas que anteriormente os haviam acompanhado. Brincavam amiúde com ela e Tommy gostava de lhe fazer cócegas, de lhe mexer no cabelo e de trepar por cima de Adrian, só para lhe mostrar que gostava dela. Bill pensou que pareciam uma família perfeitamente normal e feliz enquanto atravessavam Napa Valley. Ficaram numa acolhedora estalagem vitoriana, visitaram vários vinhedos e dirigiram‑se lentamente para norte, depois de passarem uma tarde quente a andarem de planador em Calistoga. Adrian não os acompanhou nisso e também não quis subir no balão de ar quente que ele alugou para os filhos terem uma vista geral de Napa Valley, observada de cima e ao nascer do Sol. Ela insistiu em que detestava altitudes e recusou‑se decididamente a ir. Bill ficou com a impressão de que havia qualquer coisa por detrás da sua atitude, mas não lho quis perguntar. Os rapazes ficaram desapontados por ela não querer ir e Adrian tentou animá‑los. Depois, sem pensarem mais nisso, seguiram a caminho de Lake Tahoe. Ela ajudou‑o na condução, mas gostava de parar de duas em duas horas para desentorpecer as pernas. Dizia que ficava perra se conduzisse durante muito tempo sem parar. Por isso fizeram uma paragem em Nut Tree e novamente em Placervilie. Os garotos divertiram‑se imenso a andar de comboio em Nut Tree.

            Chegaram a Lake Tahoe sexta‑feira à tarde. O ar da montanha era fresco e puro. O céu, muito azul, estava salpicado de pequenas nuvens brancas que pareciam perseguir‑se através das montanhas. Era perfeito.

            Encontraram facilmente o lugar que Bill reservara no parque de campismo e armaram habilmente as tendas. Havia uma maior para ele e para os filhos, e outra, mais pequena, que comprara especialmente para Adrian. Colocaram‑nas lado a lado e Tommy anunciou que queria dormir com ela, o que significava ficarem um pouco apertados, mas Adrian mostrou‑se lisonjeada. Tinham sido todos maravilhosos para ela, e, de certa maneira, achava que não o merecia. Ficava maluca a pensar em tudo, a pensar no que eles representavam para ela, e, no entanto, sentindo que, a determinada altura, teria de se afastar. Não podia deixar‑se envolver com Bill, por causa do bebê. E, no entanto, não sabia como havia de estar longe dele. Só queria falar com ele dia e noite, olhar para ele e gozar a sua companhia, sentindo o seu afeto rodeá‑la. Dava constantemente por si junto dele, tocando‑lhe nas mãos, desejando sentir de novo as suas mãos na cara, e os lábios dele nos seus. E apenas podia olhá‑lo e desejar que as coisas fossem diferentes. Não lamentava ter o bebê dentro de si, mas tinha pena que não fosse filho de Bill, e desejava que a vida tivesse sido diferente e que ela nunca tivesse casado com Steven.

            ‑ Em que é que estava a pensar agora? ‑ Ela estivera parada, imóvel, a olhar para os bosques, e ele observara‑a. Parecia tão triste que ficara preocupado, tal como se inquietava com a sua palidez ocasional.

            ‑ Em nada... ‑ Não lhe queria dizer. ‑ Apenas sonhava.

            ‑ Sim, estava a pensar em qualquer coisa. Tinha um ar muito triste. ‑ Bill tocou‑lhe na mão durante um instante e retirou logo a dele. Precisava de lembrar constantemente a si mesmo que não devia tocar‑lhe, mas não era fácil. Queria dizer‑lhe outra vez que a amava, mas sabia que tinha de esperar até ela estar pronta para o ouvir.

            Continuou a armar as tendas com a ajuda de Adam. Fizeram um bom trabalho e, em seguida, Adam e Adrian foram comprar artigos de mercearia, enquanto Bill e Tommy "se instalavam". Estavam a divertir‑se imenso e Adrian sentia‑se encantada. Compraram bifes para Bill grelhar, cachorros‑quentes e marshmallows, além de muitas coisas boas para o pequeno‑almoço Adrian começava a ter a sensação de que comiam noite e dia e apercebia‑se nitidamente de que a sua cintura continuava a aumentar. Na semana decorrida, a maior parte das coisas que ela levara deixara de lhe servir. Não aumentara muito de peso, mas a forma do seu corpo mudara radicalmente e, na primeira noite que passaram acampados, ela teve de pedir a Bill que lhe emprestasse um dos seus grandes camisolões. Ele não mostrou importar‑se, ou reparar no motivo que a levara a pedir‑lho, e ela ficou‑lhe reconhecida por isso. Não queria que ele soubesse e estava ainda a pensar como havia de se afastar dele quando voltassem a casa. Não era justo continuar a atormentá‑lo, a ele e a si própria, e não podia iniciar um romance com Bill estando grávida. Talvez mais tarde, se continuassem amigos. Talvez nessa altura, depois de ele saber da existência do bebê, fosse possível... Adrian pensava constantemente nisso e Bill apercebia‑se que ela andava muito per,turbada.

            ‑ Está outra vez pensativa ‑ disse‑lhe Bill nessa noite, quando se encontravam sentados lado a lado junto da fogueira, após um jantar delicioso. Os dois garotos cantaram até adormecerem. Encontravam‑se ambos na tenda de Bill, mas Tommy jurara que na noite seguinte dormiria com Adrian.

            ‑ Pensativa? ‑ perguntou Adrian olhando para o lume com um olhar distante. Fora uma tarde encantadora.

            ‑ Sim. Vi que pensava em algo de muito sério. De vez em quando os seus olhos ficam tristes. Gostava que me dissesse o que a preocupa.

            Bill gostaria que ela se abrisse, mas, no entanto, nunca se sentira tão perto dela.

            ‑ Nada me preocupa. ‑ Mas não falou com convicção e ele não ficou convencido.

            ‑ Gostava de poder acreditar.

            ‑ Nunca me senti mais feliz. ‑ Adrian fitou‑o nos olhos e ele viu que era verdade; contudo, sabia que algo a preocupava. Adrian pensava no bebê. Como havia de cuidar dele. Como seria ficar sozinha com ele... dar à luz sem ter ninguém em quem se apoiar. A medida que o bebê ia crescendo dentro dela, ia‑se tornando mais real e mais ela se inquietava. E receava perder Bill, mas sabia que isso teria de suceder. Seria inevitável logo que ele soubesse, ou ainda mais cedo. E, de repente, ao pensar em tudo isso, os olhos dela encheram‑se de lágrimas. Bill viu‑as e, sem dizer uma palavra, puxou‑a para si e apertou‑a nos braços.

            ‑ Estou aqui, Adrian... estarei sempre junto de si quando precisar de mim.

            ‑ Porque é tão bom para mim? ‑ murmurou ela por entre as lágrimas. ‑ Não mereço isto.

            ‑ Pare de dizer isso.

            Adrian sentia‑se culpada para com ele. Não era leal não lhe falar no bebê, e, contudo, não era capaz de o fazer. Que lhe poderia dizer? Que se encontrava ali com ele e com os filhos, que se apaixonara por ele, mas que esperava um filho de Steven. Como poderia fazê‑lo? E, subitamente, começou a rir e a chorar ao mesmo tempo com o absurdo da situação. Era ridículo.

            ‑ Onde estava há uns anos, Bill? ‑ perguntou de repente Adrian, rindo, e ele sorriu em resposta à pergunta dela.

            ‑ A fazer figura de parvo, como de costume. Mas mais vale tarde que nunca. ‑ O problema é que podia ser demasiado tarde.

            Adrian baixou a cabeça e ficaram assim durante muito tempo, abraçados e a olharem para as chamas, mas dessa vez ele não a beijou. Queria fazê‑lo, mas receava perturbá‑la mais.

            Por fim, Bill sugeriu que se fossem deitar e ajudou‑a a entrar na tenda dela. Depois foi meter‑se no seu saco‑cama, ao lado dos filhos. Momentos depois, porém, ouviu um ruído e viu Adrian de pé junto dele, com ar preocupado.

            ‑ Que se passa? Não se sente bem?

            ‑ Estou bem ‑ murmurou ela nervosamente ‑, mas ouvi um barulho ali. ‑ Apontou para a distância, fora da tenda. ‑ Não ouviu?

            Bill abanou a cabeça. Estava quase a dormir quando ela o acordara.

            ‑ Não. Não é nada. Talvez sejam coiotes.

‑ Acha que poderia ser um urso?

            Bill sorriu, com vontade de lhe dizer que deviam ser uns dez ursos e que era melhor ela meter‑se dentro do saco‑cama dele para ficar em segurança, mas não o fez.

            ‑ Creio que não. E os ursos que há por aí são bastante domesticados. ‑ Claro que já haviam ocorrido desastres. Mas nesses casos os ursos eram provocados, pois nunca atacavam ninguém sem provocação, e ela estava a provocá‑lo apenas a ele, ali parada, vestida com as calças azuis e o camisolão que ele lhe emprestara.

            ‑ Quer dormir aqui conosco? Ficamos um pouco apertados, mas os meus filhos vão ficar encantados. ‑ Adrian disse que sim com a cabeça, parecendo uma criança, e Bill sorriu para ela ao vê‑la enfiar‑se no saco‑cama dela ao lado do dele. Adormeceu pouco depois de mão dada com ele. Bill ficou a observá‑la com ternura durante muito tempo até adormecer também.

 

            No dia seguinte, acordaram os quatro ao mesmo tempo e Tommy aproveitou de imediato a situação para começa dar socos no pai. Fazia‑lhe cócegas impiedosamente e, seguida, Adam e Bill fizeram‑lhe o mesmo a ele. Adrian veio ao seu socorro, por isso Bill fez‑lhe cócegas a ajudado por Adam. Daí a pouco eram um emaranhado de pernas e de pés, de mãos que tentavam fazer cócegas fosse onde fosse. Riam tanto que Adrian teve de pedir para pararem, pois tinha rebentado o fecho das suas calças de ganga. Felizmente dispunha de outro par, por isso não entrou em pânico. Mas ria de tal maneira que mal podia andar e o mesmo sucedia aos outros ao saírem da tenda para o ar livre. Estava um lindo dia de sol e era uma boa maneira de acordar, aquela, pensou Adrian. Certamente muito melhor do que despertar no silêncio vazio do seu apartamento sem mobília.

            ‑ Como é que foste dormir conosco esta noite? ‑ perguntou Adam enquanto se espreguiçava ao sol.

            ‑ Estava com medo de ser comida por um urso ‑ explicou Bill calmamente.

            ‑ Não estava nada ‑ disse Adrian enquanto Bill se ria dela e os garotos a olhavam com complacência.

            ‑ Isso é que estava! Quem entrou na nossa tenda depois de estarmos todos a dormir e disse que ouvia ruídos?

            ‑ Julguei que me tinha dito que eram coiotes.

‑ E disse.

            ‑ Está bem. Então estava com medo de ser comida por um coiote ‑ replicou Adrian, rindo. Todos riram e Adrian foi preparar o pequeno‑almoço com a ajuda de Adam, enquanto Bill anunciava planos para irem todos pescar depois de comerem.

            ‑ E ao jantar podemos comer o peixe que apanharmos.

            ‑ Muito bem. E quem arranja o peixe? ‑ perguntou rapidamente Adam. Já sabia o que acontecia pela experiência que tivera quando iam pescar com outras amigas do pai. Habitualmente era ele quem acabava por amanhar o peixe todo, porque elas eram sempre muito susceptíveis.

            ‑ Vou propor‑lhes uma coisa ‑ sugeriu Bill enquanto Adrian acendia o lume: ‑ cada um arranja o peixe que apanhar. Acham bem?

            ‑ Perfeitamente ‑ concordou Adrian com um largo sorriso ‑, porque eu nunca apanhei um único peixe na minha vida. Comerei um cachorro‑quente.

            ‑ Não é justo! ‑ gritou Adam, aspirando o cheiro do bacon que ela estava a fritar.

            ‑ Podemos comer pão de milho? ‑ perguntou Tommy. Era do que mais gostava quando estavam acampados. Disso e de dormir no saco‑cama com o pai. Era como dormir com um grande urso de pelúcia que o abraçava toda a noite e o mantinha bem quentinho.

            ‑ Está bem. Hei‑de arranjar algum para o jantar ‑ prometeu Bill olhando para o céu. Estava um dia lindo e ele sentia‑se em paz com o mundo. Olhou para Adrian por cima da cabeça dos filhos e sorriu‑lhe. Ela sentiu o coração fundir‑se dentro do peito.

            ‑ Porque não vamos nadar hoje? ‑ sugeriu Adrian, enquanto estrelava os ovos. Já estava uma manhã amena e daí a uma hora estaria suficientemente quente para tomar banho. A água do lago era gelada, mas haviam descoberto um rio ali perto, por detrás do sítio onde estavam acampados. Tinham‑no descoberto no dia anterior. O rio corria das montanhas e a grande diferença de nível fazia com que a corrente fosse suficientemente forte para arrastar as jangadas.

            ‑ Vamos pescar primeiro ‑ sugeriu Bill, enquanto Adrian lhes servia o pequeno‑almoço. Mas Adam e Tommy concordaram com Adrian e disseram que preferiam ir nadar primeiro e pescar depois.

            ‑ Está bem, está bem. Vamos nadar e, em seguida, vou comprar o isco. E depois do almoço trataremos então de assuntos sérios. E quem não apanhar peixe não come! Olhou para os filhos com ar carrancudo e eles riram enquanto Adrian o fitava indignadamente.

            ‑ Não se esqueça do meu cachorro‑quente.

            ‑ Oh, não. Também você! Não me diga que tem medo da água. ‑ Estava a arreliá‑la por ela não ter querido ia andar de planador nem de balão em Napa Valley, assim como evitara montar a cavalo em Santa Bárbara. Era por causa bebê, mas ele não o sabia.

            ‑ Não tenho medo da água. ‑ Adrian parecia muito ofendida com a sugestão enquanto ia acabando de comer ovos. Acabava de comer outro pequeno‑almoço abundante. Mas o ar da montanha causava‑lhe uma fome terrível. Era eu a chefe da equipe de natação em Stanford. E fui nadadora‑salvadora durante alguns verões.

- Sabes mergulhar bem? ‑ perguntou Tommy, muito impressionado com as credenciais dela.

            ‑ Bastante bem. ‑ Sorriu‑lhe, desgrenhando‑o meiguice.

            ‑ Podes‑me ensinar quando voltarmos para casa papá?

            ‑ Com certeza.

            ‑ A mim também ‑ disse Adam calmamente. Gostava muito dela e admirava‑a, embora ela não tivesse querido ir com eles no balão de ar quente. ‑ O papá ensinou‑me ano passado, mas creio que me esqueci durante o inverno.

            ‑ Havemos de tratar disso logo que chegarmos. Adrian arrumou as coisas do pequeno‑almoço e eles ajudaram‑na. Em seguida, enrolaram os sacos‑camas e foram tirar os fatos de banho à vez, antes de fecharem as tendas e irem para o rio. Adrian vestiu uma T‑shirt por cima do fato de banho, o que pareceu bem, até mesmo a Bill.

            E encontraram um local protegido no rio onde podiam nadar sem perigo e onde já se encontravam outras famílias. Para além dessa área protegida, ficavam os rápidos onde andavam pessoas com jangadas.

            Brincaram naquela espécie de piscina durante mais uma hora e, finalmente, Bill disse que se ia meter no carro para ir comprar isco e algumas provisões para a noite. Adrian e os dois rapazes ficaram na zona reservada para nadar, tencionando permanecer ali até Bill voltar. Estavam a divertir‑se imenso. Tinham muito tempo para pescar mais tarde. Bill queria também alugar um barco para eles e precisava de ir à loja onde vendiam o isco e apetrechos de pesca para o alugar.

            ‑ Vou ter com vocês ao acampamento ‑ gritou Bill de longe acenando para Adrian antes de desaparecer na clareira. Adrian voltou‑se então para as crianças. Tommy estava satisfeitíssimo e Adam queria mergulhar para ver a profundidade debaixo da água, mas Adrian disse‑lhe para não fazer isso. A água não era transparente e não se sabia se havia rochas e ela não queria que ele se magoasse. Adam era uma criança muito sensata e ouviu com atenção o que ela lhe dizia. Adrian explicou‑lhe que nunca se devia mergulhar sem se saber exatamente qual a profundidade, e voltou‑se para dizer o mesmo a Tommy, mas não o viu em parte alguma. Começou a assustar‑se por não o descobrir, mas, de repente, viu‑o empoleirado nuns rochedos na margem do rio, fora do sítio onde se podia nadar. Estava a ver as jangadas que corriam para os rápidos. Chamou‑o, preparada para ralhar com ele por ter saído de junto dela sem lhe dizer, mas ele pareceu não a ouvir. Chamou‑o outra vez e então decidiu ir buscá‑lo. Disse a Adam para sair da água e esperar ali por ela. Depois começou a subir as rochas para apanhar Tommy.

            Chamou por ele e o garoto voltou a cabeça e olhou‑a com ar malicioso. Adrian continuou a subir e a descer rochedos, no esforço para o ir buscar. Ele encontrava‑se de pé na margem, todo inclinado para a frente, porque se aproximavam três jangadas que iam passar velozmente por ele. Estava muito satisfeito e pensava até em pedir ao pai que alugasse uma jangada daquelas, pois seria muito mais divertido do que ir pescar para o meio do lago num barco a remos.

            - Tommy! Volta para aqui! ‑ gritou Adrian. Adam seguia‑a, aborrecido por o irmão os ter feito sair do sítio onde podiam nadar. Mas quando olhou para o irmão viu‑o desaparecer subitamente nas águas turbulentas.

- Tommy! ‑ gritou Adrian, que também o vira cair na água. Tommy porém não a ouvia. Era arrastado pelas águas que corriam rapidamente em direção a uns rochedos que ficavam mais adiante.

            Adrian procurou freneticamente qualquer coisa a que a criança se pudesse agarrar, uma vara, um tronco, um remo, mas ao princípio nada viu e ninguém dera pelo sucedido. Adam aproximou‑se a correr e começou também a gritar pelo irmão, mas Adrian apenas via a expressão de pânico no rosto de Tommy ao ser arrastado ao longo do rio.

Próximo dali, dois homens aperceberam‑se do que se estava passar.

            ‑ Apanhem‑no!... Apanhem o rapaz!... ‑ gritou um deles para os homens que iam na jangada, mas eles não ouviram acima do trovejar da água, e não viam o pequeno vulto de fato de banho azul que se debatia e que de vez quando ficava submerso pelas águas. Adrian percebeu imediatamente que algo de terrível estava prestes a sucede Adam chorava histericamente e ia‑se preparar para saltar para a água, mas Adrian agarrou‑o e puxou‑o com força trás, gritando‑lhe:

            ‑ Não, Adam, não saltes para a água! ‑ E logo acabou de dizer essas palavras começou a correr o mais depressa que podia ao longo do rio, saltando por cima rochas, obstáculos e troncos de árvores, empurrando as pessoas que se encontravam no caminho. Nunca correra tanto na vida dela e sabia que a vida de Tommy dependia disso Ao longo do rio as pessoas gritavam. Já o tinham visto, parecia que ninguém podia fazer qualquer coisa. Um homem estendeu‑lhe um remo, mas a criança era demasiado pequena e estava assustada demais para o poder agarrar. Continuando a correr, Adrian viu a cabeça de Tommy desaparecer abaixo da superfície. Ela corria sem parar. Não exatamente o que estava a fazer e para onde ia. Só rezava para que não fosse demasiado tarde quando lá chegasse. Sentia os ramos rasgarem‑lhe a pele das pernas, tinha os pés doridos das rochas aguçadas e os pulmões ardiam‑lhe terrivelmente, mas continuava a ver Tommy. Então mergulhou um pouco antes de chegar aos rochedos mais escarpados. Mergulhou suavemente perto da superfície da água, desejando não bater em nada e poder apanhar Tommy antes de ser tarde demais. Se ela não o conseguisse naquela altura não havia nada a fazer e ela não podia, não podia de maneira nenhuma deixar que isso sucedesse.

            Adrian quase foi atingida por um remo, enquanto nadava com braçadas fortes, rápidas e seguras, lutando contra a força da corrente. Ouvia pessoas a gritar ao longe e uma sereia a apitar. E então, de súbito, sentiu algo duro contra si, algo que lhe bateu na cara. Agarrou‑o com força e percebeu que o tinha apanhado. Era Tommy. Empurrou‑o para cima, para a superfície, ofegante ela própria, e a corrente arrastou‑a para baixo outra vez, mas ela ergueu Tommy acima da sua cabeça, tentando fazê‑lo sair da água. Ele esbracejava, aflito para respirar, e engolia água de cada vez que ia para baixo, lutando contra os braços dela com todas as suas forças, mas ela nunca o largou, continuando a levantá‑lo até que, subitamente, ele desapareceu. Adrian já não sentia o peso de Tommy sobre o seu corpo, nos seus braços. Ele estava algures e ela não conseguia alcançá‑lo, estava a ser levada para um buraco negro, caía sobre qualquer coisa profunda e macia, onde tudo era silêncio. E continuava a cair.

 

            Quando saiu da loja onde fora comprar o isco, Bill ouviu o apito das sereias por toda a parte. Pousou as compras ao lado da tenda e deu uns passos ao sol quanto esperava por eles. De repente, viu uma ambulância passar por ele a toda a velocidade. Teve uma sensação estranha quando a viu desaparecer e depois, quase instintivamente, começou a correr até à zona destinada aos banhistas, onde deixara Adrian e as crianças. Ao chegar ali viu Adam a correr pela margem do rio, chorando histericamente e agitando os braços em direção ao rio.

            ‑ Oh, meu Deus... ‑ Bill sentiu todo o seu corpo tremer ao correr para o filho e viu vários adultos que se tinham aproximado e tentavam consolá‑lo. Adam gritava o nome de Tommy e, quando viu o pai, correu para ele. Bill apertou o filho contra si e logo a seguir afastou‑o perguntando: ‑ Que sucedeu? Que sucedeu? ‑ Sacudiu o filho, tentando acalmá‑lo para perceber o que ele dizia, mas Adam conseguia apontar na direção de uma ambulância e dos jipes da guarda florestal. Bill largou‑o e correu desesperada mente para lá.

            Havia agora uma multidão ali reunida e pessoas que encontravam nas jangadas agitavam qualquer coisa justamente na altura em que Bill chegou junto de um grupo guardas meio metidos na água. Bill viu‑os agarrar um corpo inerte, com fato de banho azul vivo, e compreendeu com horror que era o filho, inconsciente e com a pele azulada. Os homens estenderam‑no rapidamente no chão, e um deles começou a fazer‑lhe respiração artificial enquanto Bill soluçava. Estava morto... Devia estar... As pessoas horrorizadas, viram Bill correr e ajoelhar junto dos guardas.

            ‑ Por favor, meu Deus... por favor... faz qualquer coisa... ‑ Olhava apavorado para o filho, o seu bebê que ele tanto amava, e, de repente, enquanto ele olhava, viu‑o tossir, arquejar e sair‑lhe da boca um jorro de água. Estava ainda cinzento, mas mexia‑se. De repente, abriu os olhos e olhou para o pai. Pareceu um pouco atordoado ao princípio e depois começou a chorar quando o pai se agarrou a ele a chorar também. ‑ Meu querido... meu querido filho... gosto muito de ti...  eu... eu. ‑ Engasgou‑se outra vez e vomitou o que parecia serem galões de água, mas os enfermeiros vigiavam‑no de perto e disseram‑lhe que ele ia ficar bem. Parecia magoado, tinha lama no cabelo e arranhões por toda a parte, mas estava vivo. Continuou a olhar desesperadamente para o pai e, quando parou de vomitar, falou. O coração de Bill quase parou quando o ouviu dizer:

            ‑ Onde está... Adrian? ‑ Adrian. Oh, meu Deus. Voltou‑se subitamente e viu os homens a retirarem o corpo inerte da água.

            ‑ Tome conta dele! ‑ gritou para um dos homens, e em duas passadas chegou junto de Adrian. Mas ela parecia morta. Estava de uma palidez acinzentada e tinha um enorme golpe num braço e numa perna. Porém, o aspecto do rosto dela é que se tornava mais assustador. Bill lembrou‑se de um acidente de viação que presenciara em tempos, em que encontrara uma mulher morta dentro do carro quando lá chegara. ‑ Oh, meu Deus, podem fazer alguma coisa? ‑ mas ninguém o ouvia. Tentavam ressuscitá‑la sem obterem qualquer reação da parte dela.

            ‑ É sua mulher? ‑ perguntou alguém. Bill ia começar a abanar a cabeça, mas depois disse que sim com um gesto. Era mais simples do que explicar a situação. ‑ Foi ela quem salvou o rapaz. Mais uns minutos e ele teria passado pelos rochedos. Conseguiu mantê‑lo à superfície até nós o agarrarmos, mas creio que apanhou uma pancada na cabeça. Bill viu o sangue a correr do ferimento do braço. Havia sangue por toda a parte.

            ‑ Respira? ‑ perguntou Bill, olhando‑a, aterrorizado.

            Encontravam‑se quatro homens inclinados sobre o corpo dela. Bill observava‑os com as lágrimas a correrem‑lhe pelas faces. Ela morrera ao querer salvar o filho dele... salvara‑o e agora tentavam ressuscitá‑la, mas nada sucedia. E, subitamente, a ambulância aproximou‑se e dois dos homens gritaram para o motorista:

            ‑ O coração está a bater! ‑ Adrian soltou então um pequeno suspiro, enquanto continuavam a fazer‑lhe respiração artificial, e daí a pouco os homens olharam vitoriosamente para Bill: ‑ Ela está a respirar pelos seus próprios meios. Vamos levá‑la para o hospital. Quer vir também?

            ‑ Sim. Ela vai ficar bem? ‑ perguntou olhando desesperadamente para o sítio onde deixara Adam.

            ‑ Não sabemos ‑ respondeu o homem com sinceridade. ‑ Não se sabe qual é a gravidade da pancada na cabeça perdeu muito sangue com o corte no braço. Foi mesmo perto de uma artéria. Foi por pouco. ‑ Fitou Bill com simpatia enquanto apertava um torniquete em volta do braço Adrian, fazendo pressão. Adam apareceu então a correr e chorar e agarrou‑se ao pai. Os enfermeiros meteram Tommy na ambulância e ergueram a maca com Adrian. Bill subiu e alguém ajudou Adam a subir também e entregou uma manta. Adrian estava ainda mortalmente pálida e máscara de oxigênio cobria‑lhe a cara. A respiração dela quase imperceptível.

            ‑ Morreu? ‑ perguntou Adam com uma voz cheia pesar e Tommy limitou‑se a olhar para ela. Havia ainda tolhas no cabelo dela e um dos homens fazia pressão no braço ferido. Bill abanou a cabeça em resposta à pergunta Adam. Não morrera, mas mal respirava.

            Fizeram o percurso até ao hospital em dez minutos, quanto Bill rezava e lhe acariciava o rosto. Por duas vezes viu os enfermeiros olharem‑na mais atentamente e percebeu que não estavam a gostar do que viam, mas havia uma equipe de médicos à espera quando chegaram a Truckee. Tommy foi tirado da ambulância depois de Adrian e Adam saiu de lá com o pai. Pareciam estar todos em estado de choque e uma enfermeira mais velha falou calmamente com Bill.

            ‑ Vou ficar com os seus filhos para que o senhor possa estar com a sua mulher. Vão ficar bem. Vamos arranjar‑lhes roupas quentes e vigiar o mais pequeno durante um bocado.

            Bill fez um gesto de assentimento, disse aos filhos que não se demorava e correu para o edifício para onde Adrian fora levada.

            ‑ Onde está ela? ‑ perguntou quando lá chegou. Todos sabiam a quem ele se referia. Era a paciente em estado mais grave que ali se encontrava de momento e uma enfermeira apontou para uma porta de molas quase no mesmo momento em que ele a transpôs a correr. Encontrou‑se então numa sala de cuidados intensivos, onde parecia ver milhares de botões e mostradores, jorros de luz branca e dezenas de pessoas vestidas de verde debruçadas sobre o corpo inerte de Adrian. Essas pessoas pareciam fazer mil coisas ao mesmo tempo, enquanto olhavam para meia dúzia de monitores e diziam coisas que não entendia. Bill tinha a sensação de estar a assistir a um filme de ficção científica. E por dentro estava completamente atordoado. Ainda não compreendera bem o que se passara. Sabia apenas que algo terrível sucedera a Tommy e que ela o salvara. Mas a que preço! Se ela vivesse, ficar‑lhe‑ia eternamente grato. Contudo, de momento, isso parecia menos que provável. Aquela mulher a quem ele mal conhecia, a rapariga por quem se apaixonara, estava ali estendida como se aquela cena pertencesse a um pesadelo, ou a um mau filme.

            - Que está a suceder? ‑ perguntava repetidamente, mas os homens e mulheres de verde encontravam‑se demasiado ocupados para lhe responder. Viu‑os coser o braço dela, iniciar uma transfusão de sangue, pôr‑lhe soro na veia, injetá‑la, e mesmo assim ela continuava cinzenta e inconsciente. E ele não podia aproximar‑se dela. Estavam ali muitas pessoas, Adrian encontrava‑se gravemente ferida e eram precisas muitas coisas para tentarem salvá‑la.

            Finalmente, quando Bill começava a sentir‑se mal, um dos médicos chamou‑o e disse‑lhe para ele o acompanhar a outra sala.

            - Quer sentar‑se? ‑ Reparara no desespero de Bill e este deixou‑se cair com gratidão sobre uma cadeira, pensando no que estava a acontecer naquela sala, no desesperado combate pela vida que eles estavam a travar e que Adrian parecia estar a perder.

            ‑ Que se passa? ‑ repetiu, e dessa vez obteve a resposta.

            ‑ Como obviamente sabe, a sua mulher esteve quase a afogar-se. Entrou‑lhe uma quantidade de água para os pulmões e perdeu muito sangue devido ao ferimento no braço. Foi atingida uma artéria e só isso podia ter sido fatal. Devia haver algum rochedo aguçado abaixo da superfície da água. Além disso, parece ter dado uma pancada violenta com a cabeça. Receamos que houvesse fratura, mas creio que não é o caso. Acho que se tratou apenas da pancada, mas, devido ao seu estado, as coisas são mais complicadas, claro.

            ‑ Que estado? ‑ Bill mostrava‑se confuso. ‑ O estado de saúde dela era um mistério completo para ele e só conseguia lembrar‑se de coisas como diabetes, por exemplo. Ela vai ficar bem?

            ‑ Ainda não sabemos. ‑ Olhou para Bill com uma expressão ainda mais grave. ‑ Devido à gravidade dos ferimentos, há grande risco de ela perder o bebê.

            ‑ O bebê? ‑ Bill sentia‑se completamente confuso e estúpido.

            ‑ É claro. ‑ O médico prosseguiu, achando que ele estava em estado de choque e que tinha dificuldade em se lembrar fosse do que fosse, depois de ter estado quase a perder o filho e a mulher grávida. ‑ Ela deve estar grávida de quatro... quatro meses e meio, não?

            ‑ Eu... eu... é claro... estou tão perturbado que... Era uma loucura estar a fingir que ela era sua mulher. E porque estaria a sentir‑se assim? Porque se sentiria como se Adrian fosse de fato sua mulher e o bebê seu filho? E por que motivo não lho dissera ela? Bill sentia‑se cada vez mais em estado de choque, quando o médico lhe disse para se deixar estar e esperar ali um bocado, pois viria informá‑lo logo que houvesse qualquer evolução na situação.

            Bill ficou sentado durante muito tempo, tentando absorver o que acabara de ouvir, e durante um bocado não o conseguiu. Era impossível compreender o que se passava. Mas, pouco a pouco, as peças do puzzle começaram a encaixar... o enorme apetite de Adrian... o fato de ela parecer ter engordado um pouco desde que a conhecera... e, o mais importante, o fato de Steven a ter deixado... mas por que, se ela ia ter um filho? Devia ser um grande patife, pensou Bill. E por isso é que ela devia estar ainda à espera de que ele voltasse e usava sempre a sua aliança de casamento... e também por isso é que ela não queria aprofundar o seu relacionamento com ele. Subitamente, tudo passou a ser claro para Bill. Mas agora ela estava em riscos de perder o bebê... e até de perder a vida, o que sena muito pior. Sentia o coração dilacerado, quando outro médico se aproximou. Bill olhou‑o com ar assustado, com medo do que ele lhe fosse dizer.

            ‑ Fizemos tudo quanto pudemos. Está a respirar pelos seus próprios meios e já recebeu uma transfusão de sangue. A pancada na cabeça foi grande, mas não é necessariamente fatal... não existe fratura... mas vamos ter de esperar. Ela ainda se encontra inconsciente. ‑ Bill sabia que ela podia entrar em estado de coma e morrer. Às vezes essas coisas sucediam. ‑ Não há motivo para se esperarem danos permanentes por causa disto, se ela sobreviver. A grande questão é saber se isso sucederá. E ainda não temos a resposta.

            ‑ E o bebê? ‑ Bill sentia‑se agora responsável pelo bebê. Por ambos. Queria que a mãe e o filho vivessem. Queria‑os a ambos... ou apenas a ela... qualquer coisa... mas por favor não os deixem morrer... Olhou para o médico à espera que ele respondesse à sua pergunta.

            ‑ A gravidez continua viável. Ligamo‑a a um monitor e até agora está tudo bem. Continuamos a ouvir o coração do feto.

            ‑ Graças a Deus! ‑ Bill levantou‑se, à espera de ouvir mais informações. Mas o médico nada mais tinha para lhe dizer. Só o tempo poderia revelar o que iria suceder a Adrian. ‑ Posso vê‑la?

            ‑ Com certeza. Vamos deixá‑la onde ela está até vermos o que acontece. Encontra‑se ainda na unidade de urgências. Mais tarde irá para um quarto, se melhorar.

            Bill tinha dificuldade em acreditar no que se estava a passar. Poucas horas antes, Adrian fritava ovos com bacon e agora encontrava‑se à beira da morte, depois de ter salvo Tommy.

            ‑ O meu filho está bem?

            ‑ Não fui eu quem o viu, mas, segundo as últimas informações que tive, estava a almoçar com o irmão na enfermaria de pediatria. ‑ Sorriu para Bill: ‑ É um rapaz com sorte. Disseram‑me que só a rápida visão e a heróica determinação da sua mulher o salvaram. Ela é uma mulher muito leve. É espantoso como conseguiu agarrá‑lo daquela maneira. Deve ter rasgado o braço e batido com a cabeça nessa altura. ‑ E, pensou Bill, quase se afogara... e quase perdera bebê... não hesitara, apesar de saber que estava grávida Devia‑lhe tudo. Se ela vivesse o tempo suficiente para pagar.

            Dirigiu‑se para a unidade de cuidados intensivos das emergências e sentou‑se ao lado de Adrian. Parecia haver máquinas ligadas a todas as partes do corpo dela, e a máscara oxigênio tapava‑lhe parte da cara, mas ele pegou‑lhe meigamente na mão e beijou‑lhe os dedos. Estes estavam arranhados e com nódoas negras e ainda havia terra debaixo unhas. Devia ter lutado ferozmente para salvar Tommy.

            ‑ Adrian... murmurou para o vulto imóvel. Amo‑a, querida. Amei‑a desde o momento em que a vi. Bill receava nunca vir a ter oportunidade de lhe dizer o que sentia e decidira dizer‑lho agora, quer ela o ouvisse quer não, e talvez ela o ouvisse e fosse importante para ela. Amei‑a desde a primeira noite, no supermercado, quando quase a atropelei... lembra‑se? ‑ Sorriu enquanto as lágrimas lhe corriam pela cara e beijou‑lhe novamente os dedos.

‑ E amei‑a quando a vi no parque de estacionamento. Lembra‑se? Creio que foi num domingo de manhã... e na piscina... e no apartamento... amo‑a... amo tudo em si... e os meus rapazes também gostam muito de si... Adam e Tommy. Eles também querem que se ponha boa. ‑ Continuou a falar com ela, com a sua voz forte e meiga, segurando a mão dela entre as suas, com cuidado. ‑ E também amo esse bebê... isto também é verdade. Se o quer eu também o quero... quero‑a a si e ao bebê, Adrian... os dois... e o bebê vai ficar bom... o médico disse que sim. ‑ Observou o rosto dela. Julgou tê‑la visto mexer‑se, mas quando olhou mais atentamente julgou que fora imaginação sua, pois Adrian continuava adormecida. Continuou a falar com ela durante muito tempo, murmurando o nome dela e repetindo como a amava a ela e ao bebê. E então pousou a mão ao de leve na barriga dela e descobriu a pequena elevação em que ainda não reparara, e disse ao bebê que o amava muito e que era melhor aguentar‑se, para não tornar uma porção de pessoas muito infelizes. ‑ Isso mesmo... não penses que a tua mamã passou por tanta coisa para tu agora a deixares. Por isso sossega e descontrai‑te. Está bem... Adrian? Diga ao bebê para descansar... ‑ Então beijou‑a ternamente na face e falou mais algum tempo com ela, enquanto uma das enfermeiras o observava da porta. Nunca vira ninguém tão infeliz e nunca ouvira um homem falar assim com uma mulher. Enquanto o ouvia, pensava que Adrian tinha muita sorte em haver um homem que a amava daquela maneira. E, ao olhar, viu algo nos monitores que atraiu a sua atenção. Franziu a testa e entrou na sala; quando ela se aproximou Adrian abriu os olhos e olhou para Bill. Depois fechou‑os outra vez. Por um instante de terror, Bill julgou que ela morrera e soltou um grito de dor quase animalesco, ao mesmo tempo que se levantava e olhava angustiadamente para ela. Mas quando o fez, Adrian abriu novamente os olhos. A enfermeira viu que ela estava a reagir e sorriu‑lhe. Bill sorriu também, embora estivesse a chorar. Não podia falar e estava tão comovido que tremia dos pés à cabeça.

            ‑ É uma senhora cheia de sorte ‑ disse então a enfermeira. ‑ O seu filho está bem. Dei‑lhe um Popsicle. Olhou para Bill, encorajando‑o: ‑ E o seu marido tem estado a falar consigo desde que aqui chegou. ‑ Depois olhou para o monitor fetal e de novo para Adrian: ‑ E o seu bebê também está bom. Parece que vão ficar todos bem. Como se sente, senhora Thigpen?

            Adrian tentou tirar a máscara de oxigênio e a enfermeira ajudou‑a.

            ‑ Não muito bem ‑ murmurou com uma voz quase inaudível. Tinham‑lhe extraído água do estômago com uma bomba e ela estava rouca, sentia náuseas e tinha o corpo todo dorido. A última coisa que recordava era ter deslizado para um sítio quente e macio, ao dar a pancada na rocha, com a cabeça, e começar a afogar‑se.

            ‑ Aposto que não se sente muito bem. ‑ A enfermeira sorriu e levantou‑lhe um pouco a cabeça. ‑ Travou um grande combate com uma rocha e uma grande quantidade de água. Mas disseram‑me que ganhou uma corrida. Salvou o seu rapazinho! ‑ A enfermeira sorriu e Bill, depois de conseguir recuperar a fala, olhou com gratidão para Adrian, apertando‑lhe a mão ao de leve, sem contudo poder ocultar as lágrimas.

            ‑ Salvou Tommy, Adrian! ‑ Começou a chorar com mais força e depois inclinou‑se e beijou‑a na face. ‑ Querida, salvou‑o.

            ‑ Estou tão contente... tive tanto medo... não o poderia segurar muito mais tempo... ‑ Bill ainda recordava o corpinho inerte e o rosto azulado de Tommy quando o tirado das mãos dela, debaixo de água. ‑ A corrente forte... e eu tive medo de não correr bastante depressa... Havia lágrimas nos olhos dela, mas eram lágrimas de e de vitória, quando ela segurou a mão de Bill e a enfermeira se apressou a sair da sala para ir informar o médico das me1horas da paciente. Então Bill inclinou‑se mais para Adrian e disse‑lhe ao ouvido: ‑ Porque não me contou do bebê?

            Houve um longo silêncio enquanto ela o olhou, grata por ele estar ali, com os olhos cheios de amor por ele, esse amor contra o qual lutara desde que o conhecera.

            ‑ Não achei que fosse leal para consigo. ‑ Adrian começou a chorar ao dizer isso e Bill voltou a beijá‑la e abanou a cabeça.

            ‑ Não teria alterado coisa alguma. ‑ Sorriu então e sentou‑se ao pé dela sem nunca deixar de a olhar. ‑ Admito que seja um pouco invulgar, mas que diabo, para um tipo como eu que ganha a vida a escrever telenovelas, não achou que eu podia compreender?

            Adrian sorriu e depois tossiu e Bill, que a abraçava, deitou‑a outra vez suavemente na almofada.

            ‑ Francamente, Adrian, sinto‑me aliviado. Estava com medo que o seu apetite fosse normal.

            Adrian riu e depois suspirou: ‑ O bebê está realmente bem?

            ‑ Dizem que sim. Acho que vai ter de descansar um bocado durante uns tempos. Mas os bebês são muito resistentes. ‑ Recordava‑se de uma grande queda que Leslie dera da primeira vez que estivera grávida. Ele quase tivera um ataque cardíaco ao vê‑la cair por um lanço de escadas, mas afinal nada sucedera. E depois lembrou‑se de perguntar uma coisa a Adrian, algo de que agora suspeitava. ‑ Foi por isso que Steven a deixou? ‑ Era uma dúvida que ele queria esclarecer agora. Era algo indesculpável, se fosse verdade, e enquanto Adrian estivera inconsciente, ele calculara que fosse essa a razão da separação deles.

Adrian disse que sim com a cabeça, vagarosamente:

            ‑ Ele nunca quis filhos e deu‑me a escolher. Ou ele ou o bebê... ‑ Adrian começou a chorar outra vez, ao pensar nisso, agarrando com força a mão de Bill. ‑ Eu tentei... mas não fui capaz. Fui tentar fazer um aborto, mas não consegui... por isso ele deixou‑me.

            ‑ Deve ser uma excelente pessoa...

            ‑ Tem idéias muito firmes a esse respeito ‑ tentou explicar Adrian. Bill olhou‑a com ar sombrio.

            ‑ Creio que isso é dizer pouco. Então o tipo divorcia‑se de si por ir ter o filho dele. Sabe que é dele, ou também põe isso em causa?

            ‑ Não. Sabe que é dele. O advogado enviou‑me os papéis. Ele renunciou a todos os direitos paternais, por isso nem a criança nem eu podemos declarar ser ele o pai. Em suma, o bebê será ilegítimo ‑ disse tristemente.

            ‑ Isso é repugnante.

            Então Adrian suspirou outra vez:

            ‑ Mas ele poderá mudar de idéias... talvez venha a entender.

            Bill compreendeu então qual era o problema dela; aguardava ainda que Steven voltasse por causa do bebê. Em seguida, Bill perguntou‑lhe outra coisa que também queria saber nessa altura:

            ‑ Adrian, ainda o ama? ‑ Ela hesitou durante um bocado e depois abanou a cabeça, olhando para Bill:

            ‑ Não ‑ respondeu. ‑ Não o amo. Mas o bebê tem direito ao seu pai natural.

            ‑ Se ele a quisesse de novo você voltaria para ele?

            ‑ Talvez... por causa do bebê. ‑ Fechou os olhos. Sentia‑se agoniada e exausta. Bill olhava‑a, entristecido com o que ela acabava de dizer, grato pela honestidade dela. Era uma das coisas que apreciava nela. Estava convencido de que Steven não voltaria, visto ter renunciado à criança e pedido o divórcio. O tipo era obviamente louco. Mas tornava‑se também óbvio que Adrian achava que lhe devia qualquer coisa a ele e à criança, um relacionamento a que tinham direito, embora isso significasse desistir ela própria de algo que lhe fosse caro. Mas ela era assim mesmo. Ao tentar salvar Tommy, dispusera‑se a pôr em risco a vida dela e a seu bebê. Era uma pessoa de "ou tudo ou nada". Adrian conservou os olhos fechados e durante muito tempo nenhum deles falou. Depois Adrian olhou outra vez para ele,preocupada com o que ele estivesse a pensar. – Odeia-me?

            ‑ Perdeu o juízo? Como pode dizer uma coisa dessas. Acabou de salvar o meu filho. ‑ E isso quase lhe custara vida. Bill aproximou‑se mais dela outra vez e tocou na face arranhada, com suavidade. ‑ Amo‑a, Adrian. Pode não ser esta a altura mais indicada para lho dizer, mas amo‑a. Mais do que isso, estou apaixonado por si. Estou‑o há dois meses, talvez há três. ‑ Beijou‑lhe a mão e depois os dedos. Receava magoá‑la se a beijasse realmente.

            ‑ Não está zangado por causa do bebê? ‑ Brilhavam lágrimas nos olhos dela ao fazer a pergunta.

            ‑ Como poderia eu estar zangado? Acho‑a maravilhosa por fazer o que está a fazer. É muito corajosa e incrivelmente forte; uma mulher boa, decente. E acho deveras excelente o fato de ir ter um bebê. ‑ Eram as primeiras palavras afetuosas que ela ouvia dizer a respeito da sua gravidez, excetuando Zelda. Ouvira tantas coisas desagradáveis que, perante as palavras afetuosas de Bill, começou a chorar. Este limpou‑lhe docemente os olhos, enquanto ela soluçava e tentava explicar‑lhe tudo. Sentia‑se muito nervosa e sensível, depois de tudo o que se passara com o marido e de ter tido de enfrentar sozinha a gravidez.

            ‑ Acalme‑se, descanse. ‑ Bill viu que ela se estava a comover muito e receava que lhe pudesse fazer mal. O organismo dela já sofrera um tremendo golpe. ‑ Vai tudo correr bem. Sim? ‑ Alisou‑lhe o cabelo e afastou uma madeixa que lhe caíra para a testa, acariciando‑a carinhosamente. Adrian parecia uma criança espancada e soluçava sem parar.

‑ Vai ter o seu bebê e ele será lindo. ‑ Inclinou‑se mais sobre ela e beijou‑lhe os lábios com muito cuidado. Tinha lágrimas nos seus olhos ao murmurar: ‑ Amo‑a, Adrian... amo‑a tanto... tanto... e ao bebê também. ‑ E a beleza daquilo era ele estar a ser sincero.

            ‑ Como pode dizer isso? ‑ Steven abandonara‑a por causa do bebê e agora Bill, que mal a conhecia, dizia‑lhe que o amava. ‑ Nem sequer é o seu bebê.

            ‑ Gostava que fosse ‑ respondeu com sinceridade, olhando‑a. ‑ E talvez um dia, se eu tiver sorte, o seja. Novas lágrimas rolaram então pelas faces de Adrian que não disse uma palavra. Limitou‑se a apertar a mão de Bill com mais força.

            Daí a pouco, Bill viu que ela adormecera e ficou a olhar para os monitores enquanto ela dormia. A enfermeira entrou várias vezes na sala e assegurou a Bill que estava tudo normal. Bill saiu então para ir ver os filhos. Encontrou Tommy também a dormir, mas o seu aspecto era bom. Estavam a dar‑lhe glicose nas veias e verificavam a temperatura dele regularmente, mas disseram que ele poderia ir para casa ao fim da tarde. Adam encontrava‑se sentado na sala da televisão a ver desenhos animados.

            ‑ Como estás, filho? ‑ perguntou Bill sentando‑se ao lado de Adam. Dali podia ver a cama onde Tommy dormia.

            ‑ Como está Adrian? ‑ perguntou com ar preocupado, mas Bill parecia tão aliviado que o garoto percebeu que ela devia estar bem. Uma enfermeira dissera‑lhe que a "mãe" estava muito melhor. Adam não a emendara. Já era suficientemente crescido para compreender que era mais simples nada dizer.

            ‑ Está a dormir, mas está melhor.

            Bill estivera toda a tarde a pensar no que devia fazer. Achava que ela não devia prosseguir a viagem imediatamente, em especial por estar grávida e ter sofrido um grande abalo, mas também não achava que devesse ir acampar. O que precisavam era de um fim‑de‑semana tranqüilo num bom hotel, de algum sol e de lhes levarem as refeições ao quarto.

            ‑ Que dizes a ficarmos num hotel em vez de irmos acampar? ‑ Não queria desapontar os filhos, mas agora sentia responsabilidade também para com ela, especialmente depois daquilo que ela fizera. O dia podia ter acabado em tragédia para todos e Bill tinha a certeza de que se ela não tivesse reagido tão rapidamente e não fosse tão perseverante nos seus esforços para salvar Tommy, a criança já não estaria ali com eles. Era uma dívida que nunca lhe poderia pagar. Mas precisava igualmente de pensar em Adam, pois também ele parecia abalado. ‑ Importas‑te de não voltarmos acampamento?

            Adam respondeu prontamente:

            ‑ Só quero que estejam os dois bem. Devias tê‑la visto, papá. Ela correu como um raio quando a corrente começou a arrastá‑lo. Creio que tentava chegar junto dos rochedo antes dele, para o poder agarrar ali, mas eu nessa altura percebi. E resultou. Mas foi terrível. ‑ Adam parecia sufocar ao dizer isso: ‑ Eles apareciam e desapareciam, e a princípio ninguém os ajudou. Adrian levantava Tommy para ele ficar com a cabeça fora da água e a corrente empurrava‑a para baixo. E, de repente, ela levantou‑o mais uma vez e desapareceu. Foi horrível... ‑ O garoto escondeu a cara no peito do pai e ficaram assim durante muito tempo.

            ‑ Em primeiro lugar, Tommy nunca devia ter saído de junto dela. Que diabo estava ele a fazer?

            ‑ Creio que estava a ver as jangadas ou qualquer coisa assim. E caiu quando se debruçou mais para a frente.

            ‑ Vamos ter de falar a esse respeito quando ele acordar. Bill foi olhar o filho adormecido. A cor era boa e a respiração e a temperatura normais. Quase não tinha um arranhão. Era difícil acreditar que se tratava da mesma criança que ele vira tirar da água, com a pele azulada, algumas horas antes. Bill sabia que, enquanto vivesse, nunca mais esqueceria aquele dia.

            Em seguida, fez alguns telefonemas e reservou uma suíte num hotel de luxo. Dirigiu‑se novamente à sala onde estava Adrian, para a ver e falar com o médico dela. Adrian continuava a dormir e eles queriam que estivesse assim durante mais algum tempo. Ainda tinham uns exames a fazer‑lhe, mas achavam que ela poderia deixar o hospital no dia seguinte, se não surgissem mais problemas. Queriam ter a certeza de que ela não iria ter pneumonia, ou complicações com o bebê. Mas até àquela altura as coisas pareciam correr bem.

            Disse ao médico que voltaria daí a pouco tempo e foi também dizer isso a Adam. Depois meteu‑se no carro e dirigiu‑se ao acampamento. Tremia ao pensar que nessa manhã tudo parecera tão calmo e despreocupado e que, daí a umas horas, subitamente, duas das pessoas a quem ele mais amava no mundo quase tinham perdido a vida... três, se contasse com o bebê. Teve uma sensação de reverência e gratidão, e ficou aliviado quando acabou de arrumar tudo na carrinha e se dirigiu para o hotel. Tinham‑lhe reservado uma bonita suíte com dois quartos, mas ele decidiu‑se logo a dormir no sofá. Queria vigiá‑la de noite e ter a certeza de a ouvir se ela o chamasse. Teria preferido dormir no mesmo quarto, mas receava que isso perturbasse os filhos.

            Logo que deixou as coisas nos quartos, Bill voltou ao hospital. Ficou admirado ao ver que eram seis horas e que os filhos estavam a jantar.

            ‑ Onde é que estiveste? ‑ perguntou Tommy. Tinham‑lhe já tirado o soro e parecia que nada lhe sucedera. Por isso, Adam disse‑lhe que parasse de comer o purê de batata com os dedos. A enfermaria das crianças estava quase vazia. Encontrava‑se ali um garoto com uma perna fraturada, outro com um braço partido e outro que fora vítima de um pequeno acidente de automóvel e que levara alguns pontos. Este estava em observação. Quase todas essas crianças eram mais velhas e conversavam entre si, durante o jantar.

            ‑ Fui arranjar um quarto num hotel para nós todos explicou Bill. ‑ Vim aqui à tarde, mas estavas a dormir. Inclinou‑se para beijar o filho e percebeu então que estava com fome. Não comia desde o pequeno‑almoço que Adrian preparara nessa manhã.

            ‑ Adrian está bem? ‑ O rosto de Tommy tomou uma expressão preocupada ao fazer a pergunta, mas Bill disse rapidamente que sim com a cabeça.

            ‑ Vai ficar boa, mas feriu‑se muito ao tentar salvar‑te. Isso faz‑me lembrar que te quero perguntar o que estavas a fazer fora da zona protegida, sem os outros?

            Os grandes olhos de Tommy encheram‑se de lágrimas. Sabia bem o que fizera e já era suficientemente crescido para perceber que fora por sua culpa que ele e Adrian quase se tinham afogado, e sentia‑se muito envergonhado com isso.

‑ Lamento o que fiz, papá... de verdade.

            ‑ Eu sei, filho.

            ‑ Posso vê‑la?

            ‑ Talvez amanhã. Ela fica no hospital. Talvez possa sair amanhã e ir para o hotel conosco.

            ‑ Posso sair hoje?

            ‑ Veremos.

            Bill gostaria de passar a noite junto de Adrian, mas não queria deixar os filhos sozinhos no hotel. Tommy havia de esperar que o pai passasse a noite junto dele, e as enfermeiras já tinham dito que Adam não poderia ficar ali durante a noite visto não estar doente. Por isso, Bill não pôde fazer outra coisa senão ir com os filhos para o hotel e voltar ao hospital na manhã seguinte.

            Quando foi ver Adrian, antes de levar os filhos para o hotel, Bill viu que ela não daria pela sua falta. Estava tão exausta do esforço, dos ferimentos e da emoção que mal abriu os olhos para o ver e voltou a adormecer outra vez. A enfermeira sugeriu que era preferível ir‑se embora e deixá‑la descansar.

            ‑ Ela nem sequer dará pela sua ausência, e eu explicar‑lhe‑ei que o senhor esteve aqui, se ela acordar ‑ prometeu a enfermeira. ‑ E se ela quiser, poderá mesmo telefonar‑lhe.

            Bill deixou então o número do hotel e o número do quarto e foi buscar os filhos. Uma hora mais tarde, eles saltavam em cima das camas, viam televisão e Tommy queria que lhe levassem gelado de chocolate ao quarto. Era difícil acreditar que estivera quase a morrer nessa manhã.

            Bill deu‑lhes banho e meteu os dois na cama. Depois foi estender‑se no quarto que iria ser para Adrian, sentindo‑se completamente exausto. Não se lembrava de outro dia tão traumatizante em toda a sua vida. Não podia deixar de pensar nos dois corpos a serem tirados da água e depois estendidos no chão rodeados pelos enfermeiros... o ruído das sirenas... os gritos... os rostos cinzentos deles. Sabia que iria ter pesadelos com essas visões durante anos e, ao pensar em tudo isso, sentiu a falta de Adrian e desejou tê‑la junto de si. Havia tanta coisa que lhe queria dizer, tanta coisa para ambos descobrirem, para fazer em conjunto. E havia o bebê. Nem sequer conhecia de quantos meses era a gravidez. Só sabia o que o médico calculara, mas não fazia idéia quando seria o nascimento. Era espantoso como um novo ser entrara tão subitamente na sua vida... uma nova perspectiva de felicidade para o futuro. Amava Adrian antes de saber que ela estava grávida, mas agora amava‑a duplamente. E, enquanto pensava nisso, estendido na cama, o telefone tocou.

            ‑ Está? ‑ A voz dele estava rouca só por se encontrar ali estendido a reviver as emoções do dia, mas sorriu logo que ouviu a voz dela. Era Adrian, que lhe falava do hospital. Acordara, perguntara por ele e a enfermeira dera‑lhe o número do hotel. Sentia a falta dele, tal como ele sentia a dela. Um novo elo formara‑se entre eles desde essa manhã.

            ‑ Onde está?

            ‑ Aqui, na sua cama ‑ disse ele, sorrindo ‑, desejando tê-la aqui comigo. ‑ Dada a castidade das relações entre ambos, parecia uma coisa muito ousada dizer aquilo, mas Bill desconfiava que ela não se importaria depois de tudo o que tinham passado. Sentia‑se quase como se fossem casados e ela lhe tivesse dito que iam ter um bebê.

            ‑ Está a ouvir alguns ursos? ‑ perguntou ela com uma voz ainda muito rouca, mas mais perceptível.

            ‑ Nem ursos nem coiotes. ‑ Dado o preço que pagara pela suíte só devia ouvir o som de arminhos e de Rolls‑Royces. ‑ Mas isto é muito solitário sem si.

            ‑ Eu também me sinto só. ‑ Detestava estar no hospital e sentia realmente a falta dele. ‑ Como estão os garotos?

            ‑ A dormir, espero. Meti‑os na cama há uma hora e se não estão a dormir não o quero saber. ‑ Estava quase tão cansado como ela. E depois, com um sorriso terno: ‑ E o bebê?

            ‑ Está bem, acho eu. ‑ Ainda se sentia um pouco embaraçada por falar com ele sobre o bebê. Era tudo muito novo para ela. Durante meses, tinha fingido ignorá‑lo e, de repente, tornara‑se o centro das suas atenções. ‑ É tudo tão estranho. Ainda não estou habituada a isto.

            ‑ Mas vai estar. A propósito, quando é que irá nascer?

            ‑ No princípio de janeiro. A dez.

            ‑ Mesmo a propósito para os meus quarenta anos. Faço‑os no dia de Ano Novo.

            ‑ Que engraçado.

            ‑ Engraçado vai ser o bebê. Há tanto tempo que nem sequer pensava num recém‑nascido. Faz‑me lembrar quando Adam e Tommy nasceram. Eram tão pequeninos, tão engraçados. E este também vai ser. Aposto que se vai parecer consigo.

            Adrian não podia acreditar no que ouvia. O homem que era seu marido e pai do bebê deixara‑a, furioso, por ela estar grávida, e aquele homem, quase um desconhecido, que apenas conhecia há três meses, mostrava‑se entusiasmado com o bebê dela. Isso fê‑la sentir‑se subitamente protegida, feliz e muito menos só.

            ‑ Porque está a ser tão bom para mim? ‑ Que queria ele? Quando iria magoá‑la? Não era possível que fosse tão bondoso. Ou seria?

            ‑ Porque você o merece.

            E então, de repente, Adrian riu:

            ‑ Já sei. Está a servir‑se de mim como fonte de histórias para a sua série.

            E ele riu também, lembrando‑se como era absurda a semelhança entre a gravidez ilegítima da sua heroína e a de Adrian.

            ‑ Realmente você dá animação à vida, senhora Townsend. Ou deverei tratá‑la por outro nome? ‑ Não sabia se ela iria mudar de apelido.

            ‑ O meu nome de solteira é Adrian Thompson. Eventualmente, ela teria de voltar a utilizar apenas esse apelido, visto o bebê não poder usar o de Townsend, mas ainda faltava um bom bocado para isso. ‑ Estou ansiosa por amanhã. Isto aqui é muito deprimente.

            ‑ Espere até ver onde estamos instalados.

            ‑ Estou ansiosa. ‑ Sentia‑se como se estivesse para partir em lua‑de‑mel, apesar de ainda ter a agulha do soro espetada num braço, lhe estivessem a dar oxigênio através de dois pequenos tubos metidos no nariz, e os seus braços dessem a impressão de ter andado a lutar com um gato. Recordava‑se de que a maior parte daqueles arranhões tinham sido feitos por Tommy. Fora um dia incrível, um milagre que os tocara a todos, e todos se sentiam um pouco assombrados pelo desfecho feliz. Com efeito, algum bem saíra daquilo. Bill ficara a saber da existência do bebê. E não a repelira... e... Adrian sorriu para si própria... dissera‑lhe até que a amava.

            ‑ Vemo‑nos amanhã. Agora descanse ‑ disse‑lhe meigamente Bill num murmúrio doce. Era tarde e ele teve a sensação de que o mundo inteiro sossegara. ‑ Vou ter saudades suas...

            ‑ Eu também, meu querido, boa noite ‑ sussurrou ela da cama do hospital, em Truckee.

            ‑ E não se esqueça ‑ lembrou ele com um sorriso que eu a amo muito.

 

            No dia seguinte, Bill foi buscar Adrian ao hospital e levou os filhos consigo. Levavam flores, balões e um grande cartaz onde estava escrita a palavra OBRIGADO, que Tommy insistiu em levar. Quando a ajudaram a entrar no carro, dava a impressão a quem os visse que tinham sido contemplados com um jackpot no cassino. Adrian sentia‑se ainda bastante abalada. Dirigiram‑se imediatamente para o hotel, para ela poder descansar. Bill instalou‑a no terraço da suíte, numa chaise-longue cheia de almofadas. Adrian mostrou‑se impressionada pelo luxo da suíte e disse confidencialmente a Bill que era muito melhor do que acampar. Ele riu replicando que havia pessoas capazes de tudo só para não dormirem numa tenda, e que ela era com certeza uma delas: num só dia, conseguira pôr em risco a sua própria vida, salvar Tommy e confessar que estava grávida.

            Pediram que lhes levassem o almoço ao quarto e depois Bill saiu para ir pescar com os filhos. Apanharam três peixes e entregaram‑nos na cozinha do hotel para os arranjar e cozinhar. Uma solução perfeita.

            ‑ Gosto deste gênero de acampamento ‑ confessou Adrian quando ao jantar lhes levaram os peixes deliciosamente cozinhados com molho de manteiga e limão. Bill e os filhos estavam convencidos de que se tratava, na verdade, dos peixes pescados por eles, mas Adrian desconfiava que não. Depois do jantar viram filmes antigos na televisão e, em seguida, foram todos deitar‑se. Durante a noite Adrian acordou várias vezes, julgando ouvir ruído no quarto. Era Bill que a ia espreitar para ver se ela estava bem e para lhe perguntar se precisava de alguma coisa. No dia seguinte, ao pequeno‑almoço, Adrian agradeceu‑lhe.

            ‑ Não precisa de se preocupar comigo. Estou bem.

            ‑ Só quero ter a certeza disso. Só ontem é que saiu do hospital. ‑ Bill parecia uma mãe‑galinha, mas Adrian achava‑o fantástico e gostava de se ver rodeada de tantos cuidados.

            ‑ Sinto‑me ótima. ‑ Mas Bill reparou que ela ainda não recuperara por completo e não parecia ter vontade de sair do quarto. Foram precisos quatro dias para que ela voltasse ao seu normal, e, nessa altura, as férias estavam quase acabadas. Mas passaram uns dias encantadores em passeios nas imediações do lago. Mantiveram‑se sempre longe do rio e os dois garotos nunca mais falaram em alugar uma jangada.

            Visitaram o parque em Sugar Pine Point e ficaram fascinados com o que viram. Também viajaram no elevador dos esquiadores em Squaw Valley até ao cimo e voltaram. Na última noite de férias, Adrian e os dois jovens tinham‑se tornado grandes amigos. Parecia que sempre se haviam conhecido. Ao telefonarem à mãe para lhe contarem o que sucedera a Tommy, haviam mencionado o heroísmo de Adrian. E ela insistira em falar com esta para agradecer‑lhe. Mostrara‑se simpática e chorara copiosamente, só de pensar no que poderia ter acontecido.

            ‑ Parece‑me uma boa pessoa ‑ disse depois Adrian a Bill. ‑ E dá‑me a impressão de que ainda gosta de si.

             ‑ Creio que sim. E eu também gosto dela, embora por          vezes nos irritemos bastante um com o outro quando discordamos de qualquer coisa acerca dos meus filhos. Mas o marido dela é um cretino empertigado. Acha que a Califórnia não é um estado civilizado, que não tem cultura, e pensa mais ou menos o mesmo de mim por causa da série. Mas não creio que Leslie o deixe dizer muita coisa sobre isso. Pelo menos é o que Adam e Tommy me dizem. Contudo, as             outras crianças são muito bem‑educadas. São duas meninas, de quatro e cinco anos, uma já toca piano e a outra violino.

            ‑ Eu acho que isso pode esperar uns anos. ‑ Fez uma careta:

            ‑ O que acha?

             ‑ Concordo consigo. Mas Leslie pareceu‑me simpática.

             ‑ Creio que ela queria uma pessoa completamente diferente de mim... ou, pelo menos, daquilo que eu era nessa altura... queria um marido que passasse muito tempo em casa, que fosse muito controlado, não tão compulsivo e talvez não tão exuberante. E creio que o arranjou.

             ‑ É pena ‑ disse Adrian sem pensar, e depois riu: ‑ Eu queria dizer era que me parece melhor ser como o Bill é.

            ‑ Obrigado. ‑ E dizendo isto inclinou‑se na cadeira e beijou‑a. E pelo canto dos olhos viu Tommy, do outro lado da sala, soltar uma pequena gargalhada. Mas, logo a seguir, o seu pensamento voltou‑se de novo para Adrian. Durante os últimos quatro dias tivera a cabeça cheia de interrogações.

            ‑ Que vai suceder quando voltarmos, Adrian? Refiro‑me a nós.

            ‑ Não sei. ‑ Olhou‑o nos olhos. Também ela queria saber e ainda não tinha a certeza. ‑ Que quer que suceda?

‑ Adrian julgava sabê‑lo, mas precisava que ele lho dissesse. Necessitava, além disso, de pensar e saber o que faria em relação a Steven, se ele voltasse. Não seria leal iniciar um relacionamento com Bill, sabendo bem que se Steven voltasse o aceitaria. Sentia que tinha essa obrigação para com ele e com o bebê. Mas, por outro lado, não podia ficar à espera dele toda a vida. De momento, ele nem sequer queria falar consigo e dava todos os sinais de a ter abandonado definitivamente. Se fosse esse o caso, ela devia continuar a viver.

            ‑ Que quero que aconteça? ‑ Bill ficou pensativo durante uns momentos e depois sorriu: ‑ Quero um final feliz, precedido por um começo feliz. Creio que temos condições para um bom início, não acha? ‑ Ela disse que sim. Quero estar consigo, sair consigo, quero que façamos coisas juntos quando não estivermos a trabalhar. E desejo conhecê‑la. Creio que já conheço, mas quero conhecer mais. E desejo que me conheça a mim. Quero que sejamos... bem disse, procurando as palavras, sem deixar de a olhar ‑ algo de muito especial. ‑ Sorriu e prosseguiu: ‑ Em Janeiro quero ‑ quase que se engasgou ao dizer as palavras ‑ quero partilhar esse bebê consigo, Adrian. É um milagre... e eu quero partilhá‑lo consigo, se tiver sorte e você ainda precisar de mim.

            ‑ Não será você a ter sorte ‑ disse Adrian com lágrimas nos olhos. ‑ Serei eu. Porque quer fazer isto tudo por mim? ‑ quis saber, ainda com um certo receio, ainda perplexa. Depois de tudo o que Steven fizera para a abandonar, era difícil acreditar que tivesse encontrado alguém que quisesse ficar a seu lado.

            ‑ Quero fazer "isto tudo" porque a amo ‑ disse simplesmente Bill. ‑ E quero que saiba que para mim isto é uma verdadeira partida. Já há muitos anos que não tenho um envolvimento sério com ninguém. Provavelmente desde que o meu casamento se desfez. E também jurei a mim próprio que não teria mais filhos... não quero apaixonar‑me pelo seu... e depois perdê‑lo, se a Adrian me deixar. Mas estou disposto a correr esse risco se for sincera comigo. E se essa sinceridade quer dizer que se está a guardar para a possibilidade de Steven voltar quando a criança nascer, já decidi que estou disposto a correr esse risco agora. Não posso ser mais franco. Estou a dizer‑lhe que quero correr o risco e estar a seu lado. Mas não se esqueça de me ir dizendo o que se passa, como se esqueceu de falar na gravidez.

            ‑ Não me esqueci ‑ respondeu ela. E Bill sorriu.

            ‑ Sim, eu sei. Apenas omitiu. E como é que me ia explicar isso daqui a uns meses, depois de me comer tudo quanto eu tivesse em casa? ‑ Ele gostava de gracejar com ela e Adrian atirou‑lhe com um guardanapo.

            ‑ Não como assim tanto!

            ‑ Claro que come, mas tem de comer porque o bebê necessita disso.

            Adrian pôs‑se muito séria:

            ‑ Não tem medo de correr o risco? E se Steven voltar? Devo ao bebê e a ele uma vida em conjunto.

            ‑           Não concordo consigo. Não lhe deve coisa alguma depois da maneira como ele a tratou. Mas se pensa que sim, eu respeito a sua opinião. Apenas não acredito que ele volte. Uma pessoa que renuncia aos seus direitos paternais, num estado em que quase é possível cometer assassínios em série e não os perder, é porque não tenciona voltar a ser um papá. Mas posso estar enganado. Já lho disse. Estou disposto a correr o risco. Porque a amo.

            Quando Bill disse essas palavras, Adrian levantou‑se do sítio onde estava e foi beijá‑lo. Começara a sentir‑se melhor nos últimos dois dias e havia uma paixão crescente nos beijos roubados ocasionalmente. Adrian pensava no que os esperaria quando voltassem para Los Angeles, mas enquanto os filhos dele ali estivessem não valia a pena pensar nisso.

            Passaram a última noite de férias tranquilamente, de mãos dadas, conversando no terraço e olhando para as estrelas.

            De súbito, Bill riu e olhou‑a, sentindo‑se ridiculamente feliz:

            ‑ Já reparou na loucura disto? ‑ Sorriu. ‑ Estou apaixonado por uma mulher que está grávida de quatro meses. Já pensou como vai ser divertido quando não conseguir olhar para os seus pés? Falamos de um romance moderno!

‑ Ela começou também a rir e ficaram os dois às gargalhadas por causa do absurdo da situação. ‑ É uma história quase boa para a televisão... um homem encontra uma rapariga num supermercado e apaixona‑se loucamente por ela. De vez em quando, encontram‑se por acaso. A rapariga é casada, mas o marido deixa‑a quando descobre que ela está grávida, com um filho dele. O tipo do supermercado reaparece e eles apaixonam‑se loucamente. A rapariga faz então danças do gênero Fred Astaire‑Ginger Rogers com o nosso herói. Casam‑se. Têm o bebê. E vivem felizes para sempre. Bonito, não é? Talvez pudesse utilizar a história para a minha série. Mas é demasiado simples. Para pôr isto numa telenovela para o horário diurno na TV, teríamos de matar Steven, o bebê deveria ser filho de outra pessoa qualquer, e ir‑se‑ia descobrir que eu já era casado com a sua irmã, ou talvez fosse seu pai. É uma idéia interessante. Terei de tentar trabalhá‑la mais tarde. ‑ Adrian continuava a rir. Mas era verdade. A situação tornava‑se ridícula. Entretanto, Bill lembrou‑se de uma questão mais séria: ‑ Quando é que o seu divórcio se concretiza? Antes ou depois do bebê?

            ‑ Mais ou menos na mesma altura. Não tenho a certeza da data exata.

            ‑ Poderá ser agradável dar ao júnior outro nome sem ser apenas Thompson. ‑ Era o nome de solteira de Adrian e ela ficou satisfeita pela maneira como ele disse aquilo. Estava a oferecer‑se para casar com ela, quanto mais não fosse para legitimar o bebê. Inclinou‑se e beijou‑o por aquilo que ele dissera.

            ‑ Não precisa de fazer isso, Bill.

            ‑ Sei que não preciso. Mas nessa altura poderei querer fazê‑lo. E você também... se eu jogar bem a minha cartada e tiver sorte. ‑ Piscou um olho e Adrian inclinou a cabeça para trás e olhou para as estrelas. Quem lhe dera poder responder a todas aquelas interrogações. Mas Bill estava disposto a deixar‑lhe uma porta aberta e ela não pedia mais. Com efeito, era muito mais do que ela alguma vez ousara esperar. Imaginara‑se sozinha e desesperadamente solitária até o bebê nascer. Nunca pensara que pudesse passar‑se tanta coisa antes de ter o filho.

            Deixaram Lake Tahoe no dia seguinte e seguiram sem pressas em direção a Los Angeles. Pararam novamente em S. Francisco por uma noite. Depois meteram pela auto-estrada e chegaram a Los Angeles mesmo à hora do jantar. Adrian fez tostas de queijo para todos, na cozinha de Bill, enquanto ele preparava os filhos para dormirem. Comeram já de pijama, enquanto Adrian lhes contava histórias disparatadas ocorridas na sala dos noticiários, onde ela trabalhava. Uma delas era acerca de um porco que aparecia numa peça de publicidade e que se soltara e andara perdido, pondo em alvoroço a estação inteira. Outra foi a respeito de uma luta com alimentos, numa cena cômica, que se descontrolara, ficando comida espalhada por toda a parte até no teto. Adam, sobretudo, achou muita graça à história e Bill sorria ao ouvi‑la contá‑la. Estavam todos um pouco tristes por terem voltado para casa, especialmente Adrian. Bill ainda tinha mais duas semanas de férias, mas ela devia voltar ao trabalho no dia seguinte.

            ‑ Vamos ver‑te todos os dias? ‑ perguntou Tommy com ar preocupado.

            ‑ Virei aqui todas as noites depois do trabalho. Prometo.

            Adam quis saber se poderiam ir visitá‑la à televisão.

            ‑ Podem, mas não é muito divertido. ‑ Adrian estava geralmente muito atarefada e Bill sabia isso. Sugeriu que fossem à Disneylândia no fim‑de‑semana seguinte e Adrian ficou satisfeita com a perspectiva. Começava a sentir‑se deprimida por não poder estar sempre com eles. Tinha a sensação de estar de fora e mostrou‑se realmente triste quando ajudou os dois garotos a deitarem‑se e acabou de lhes ler as histórias preferidas.

            ‑ Detesto ir‑me embora ‑ disse em voz baixa a Bill, enquanto acabavam de arrumar a cozinha. Ela ainda não fora a casa e as malas dela estavam no vestíbulo da casa dele.

            ‑ Então não vá. Pode dormir no quarto de hóspedes.

            ‑ Os garotos vão achar estranho. Afinal, tenho o meu apartamento e não se pode dizer que seja longe.

            ‑ Então finja que perdeu as chaves. ‑ Bill gostava da idéia e ela concordou com uma risadinha. Meia hora mais tarde estavam ambos sentados no sofá, ela já de camisa de noite, com um roupão de Bill por cima.

            ‑ É divertido ‑ disse Adrian. Ele acabara de fazer uma taça cheia de pipocas. ‑ É como ser criança outra vez e passar a noite em casa de uma amiga.

Bill sorriu‑lhe inocentemente:

            ‑ Dá‑se‑lhe outro nome quando se tem a minha idade. ‑ Afinal, ele tinha quase quarenta.

            ‑ Dá? ‑ perguntou Adrian caindo na armadilha. Qual?

            ‑ Creio que lhe chamam casamento. ‑ Adrian ficou calada e continuou a comer pipocas. Bill sentou‑se novamente junto dela e sorriu: ‑ Pode ser uma coisa feliz, sabe. Especialmente entre duas pessoas que sabem o que fazem e que estejam apaixonadas. Nós podemos aspirar a ambas as coisas. Podíamos até ter um bebê. Isto é, nosso. Não seria outra coisa? ‑ De repente, essa idéia agradava‑lhe, apesar dos seus muitos anos de reservas. Mas gostava também da idéia do bebê dela e ficara excitado com isso desde que tivera conhecimento da gravidez de Adrian. Estava constantemente a dizer‑lhe o que ela devia fazer por causa do bebê.

            ‑ Que acha que Adam e Tommy dirão?

            ‑ Ficariam surpreendidos, com certeza. ‑ Sorriu e deu‑lhe uma mão‑cheia de pipocas. ‑ Os garotos não pensam nessas coisas. Podia esperar até estar grávida de sete meses para lhes dizer, e eles ficariam igualmente surpreendidos. Apenas achariam que estava gorda, até lhes dizer algo diferente.

            ‑ Isso é razoável... Foi também o que eu pensei... até fazer o teste.

            ‑ Ficou surpreendida? ‑ perguntou Bill com curiosidade.

            ‑ Mais ou menos. Talvez menos que mais. Na altura disse a mim própria que estava chocada. Mas creio que não. Apenas receava a reação de Steven.

            ‑ Quando é que lhe disse?

            ‑ Quando ele regressou de uma viagem. E ele não ficou nada satisfeito. ‑ O que era dizer muito pouco.

            Adrian dormiu no quarto de hóspedes nessa noite e quando a viram, na manhã seguinte, os dois rapazes ficaram encantados e não chocados por a verem ali. E queriam que ela lá ficasse todas as noites, mas Adrian disse que tinha de voltar para o apartamento dela. Com efeito, precisava de lá ir nessa manhã para se vestir, a fim de ir trabalhar. Adam e Tommy acompanharam‑na. Ficaram surpreendidos por verem que ela não tinha mobília e Tommy olhou à sua volta com óbvia desaprovação.

            ‑ Porque vives assim? ‑ perguntou. ‑ Nem sequer tens um sofá! ‑ para ele isso era o mínimo. Adam teve pena dela. Pensou que talvez ela fosse muito pobre e não o pudesse comprar e achou que o pai lhe devia oferecer um sofá, mas Adrian tranquilizou‑os rapidamente.

            ‑ Foi o meu marido que levou a mobília toda quando se foi embora ‑ explicou.

            ‑ Foi muito mau ‑ disse Tommy e Adrian não discordou dele.

            ‑ Porque não compraste outra mobília? ‑ perguntou Adam.

            ‑ Ainda não me dispus a isso. Ele não se foi embora há muito tempo.

            ‑ Há quanto tempo? ‑ quis saber Tommy.

            ‑ Há dois meses... não... três.

            ‑ É melhor comprares algumas coisas ‑ declarou gravemente Thomas Thigpen.

            ‑ Vou pensar nisso. Talvez quando cá voltarem já tenha esta casa decentemente mobiliada.

            Subiu então as escadas para se ir vestir e ir depois para o escritório e, quando voltou para baixo, Adam assobiou. Adrian envergara um vestido simples, de linho preto, mas era bem cortado e realçava‑lhe as pernas. Era quase só o que restava da sua elegante figura.

            ‑ Sabes, devias fazer dieta ‑ disse Adam. ‑ A minha mamã fez. E ficou mais bonita. Tu podias ser muito bonita se perdesses algum peso... já és bonita agora, mas... sabes, ficavas ainda melhor se perdesses um pouco de... bem, de barriga. ‑ Adrian começou a rir, mas depois fingiu levar as palavras de Adam a sério. Nessa altura, apareceu Bill para ficar com eles.

‑ Bem, estivemos a resolver todos os meus problemas explicou ela. ‑ Preciso de um sofá e tenho de fazer dieta.

Mal podia manter‑se séria, enquanto olhava com simpatia para os seus amiguinhos.

            ‑ Disseste isso a Adrian? ‑ perguntou Bill a Tommy.

            ‑ Não ‑ interrompeu Adrian. ‑ Chegamos a essa conclusão em conjunto. E eles têm razão, claro.

            Obviamente, Adrian não lhes ia dizer que devia pôr o apartamento à venda daí a dois meses, e que esperava um bebê.

            Adrian saiu para ir trabalhar e o dia pareceu‑lhe não ter fim sem eles. Estava ansiosa por voltar para junto de Bill e dos garotos, mas nessa noite dormiu no apartamento dela. Na verdade, achava que Bill devia estar algum tempo a sós com os filhos. Passaram um fim‑de‑semana divertido na Disneylândia e o dia da partida de Adam e de Tommy chegou muito em breve. Bill levou‑os a todos ao Spago, para um jantar de despedida. Mas foi uma refeição triste. Bill e Adrian sentiam uma grande tristeza por eles se irem embora, e os dois garotos pareciam muito desgostosos. Choraram ambos quando se deitaram, nessa noite, e no dia seguinte Adrian acompanhou‑os ao aeroporto para Bill não se sentir tão só. Depois deles partirem, ela sentia‑se como se alguém tivesse morrido, e parecia. Os dois pequenos rostos exprimiam uma grande tristeza ao dizerem adeus até ao último momento, quando entraram no avião. Tinham prometido telefonar logo que chegassem a casa e muitas vezes depois disso. Tommy agradecera‑lhe novamente por o ter salvo, ao dar‑lhe um beijo de despedida e Adrian chorara tanto como eles.

            ‑ Nunca consegui habituar‑me a isto ‑ disse Bill quando se dirigiam para o carro. Tinham ido para o aeroporto na sua querida station. ‑ Quase me sentia morrer quando me despedia deles, de cada vez que eles se iam embora. E ainda sinto isso. ‑ E quando se meteram no carro, Bill pôs um braço por cima dos ombros de Adrian, para se confortar. Mas não havia nada que ela lhe pudesse dizer que lhe tirasse a mágoa, nada que ela pudesse fazer para os trazer de volta antes do Dia de Ação de Graças. ‑ Foi por isso que eu nunca mais quis filhos. Não queria perdê‑los depois.

            E, contudo, estava disposto a partilhar com ela o bebê que iria nascer... e a deixá‑lo ir mais tarde se ela voltasse para Steven. Bill Thigpen era, na verdade, uma pessoa espantosa.

 

            O silêncio no apartamento de Bill, depois da partida dos dois garotos, era "ensurdecedor". Bill parecia ter perdido o seu melhor amigo e Adrian tentava a todo o custo distrai-lo. Ofereceu‑se até para fazer o jantar.

            ‑ Porque não fica a ver televisão enquanto eu preparo qualquer coisa? ‑ sugeriu ela, enquanto ele olhava para o televisor com ar ausente, pensando nos filhos. Bill ouvia vagamente o ruído que Adrian fazia a remexer tachos e talheres, a abrir e a fechar as portas dos armários. Finalmente, apercebeu‑se de que ela estava a deixar cair tudo. Primeiro, deixara cair a tigela de metal, logo em seguida uma concha, e Bill começou a sorrir para si mesmo. Adrian era uma pessoa extremamente competente em tudo o que fazia, exceto a cozinhar.

            ‑ Precisa de ajuda? ‑ perguntou Bill, da sala, e a voz dela, ao responder‑lhe, parecia um pouco desanimada.

            ‑ Não, obrigada. Onde é que tem a baunilha?

            ‑ O que é que está a fazer?

            ‑ Lasanha ‑ respondeu ela, deixando cair mais três coisas e atirando outra vez com a porta do forno. Bill apareceu então à porta da cozinha, sorrindo.

            ‑ Detesto dizer‑lhe isto, Adrian, mas a lasanha não leva baunilha. Pelo menos na minha receita. Deve estar a fazer uma coisa diferente. ‑ Bill tinha um ar divertido e Adrian sentia‑se completamente atrapalhada. Tinha todas as tigelas, todos os tachos e formas em cima da pedra da bancada, mas Bill não fez qualquer comentário a isso.

            ‑ Oh, cale‑se ‑ respondeu Adrian, olhando‑o e levantando um braço para afastar o cabelo que lhe caíra para a cara. ‑ Sei muito bem que a lasanha não leva baunilha. Ia fazer suspiros para a sobremesa. E uma salada César.

            ‑ Parece‑me ótimo. Quer uma ajuda?

            ‑ Não. O que na verdade gostaria era de um cozinheiro. ‑ Sorriu timidamente. ‑ E se comêssemos uma sanduíche?

            Bill já estava a rir quando entrou na cozinha e a abraçou. Nunca estivera sozinho com ela, depois de os filhos terem chegado e ele lhe ter dito que a amava. Os filhos tinham estado ali um mês e, entretanto, muito coisa se passara.

            ‑ Quer ir jantar fora? ‑ perguntou aspirando o aroma do cabelo dela. ‑ Podíamos ir ao Spago. ‑ Bill era uma das poucas pessoas que tinham lugar no restaurante a qualquer hora. Pertencia à elite de Hollywood. Havia pessoas capazes de matar para arranjarem uma mesa no Spago. ‑ Ou posso fazer eu o jantar. Que diz? ‑ Gostava da idéia de estar em casa com ela e de passar um serão tranqüilo. Era sábado e todos os restaurantes da cidade estariam cheios.

            ‑ Não ‑ respondeu Adrian obstinadamente, olhando para a desordem que a rodeava. ‑ Disse que fazia o jantar e faço.

            ‑ E se eu a ajudar? Serei o ajudante de cozinheiro.

            - Está bem ‑ replicou maliciosamente Adrian. ‑ Diga‑me como é que faz a lasanha. ‑ Bill soltou uma gargalhada e começou a arrumar tudo. Fizeram os dois uma salada e uns bifes grelhados, enquanto iam conversando a respeito do trabalho, dos rapazes e da nova época. O programa de Bill não era muito afetado pelo horário de Verão, porque ia para o ar todos os dias, em direto. Bill voltara já ao trabalho e começara a ocupar‑se do desenvolvimento dos vários temas para o enredo. Adrian dera‑lhe algumas idéias que ele achara interessantes e entregara‑lhe algumas notas que escrevera e que o tinham impressionado. Conversaram sobre o assunto durante o jantar.

            ‑ Concordo consigo, Adrian ‑ disse Bill. ‑ É um ponto interessante. Mas primeiro o bebê de Helen tem de nascer ‑ explicou, contrariando a idéia dela. ‑ No entanto, em seguida, acho bem a idéia de um rapto. O bebê desaparece... o raptor deve ser alguém que odeia John, e não tem nada a ver com ela, ou... ‑ franziu a testa, pensativo, enquanto ia arrumando as idéias na cabeça. ‑ Ou... talvez possa ser o pai do bebê que o leva... haverá uma tremenda perseguição através de numerosos estados, e levantando todo o gênero de problemas... e quando o encontrarmos, a ele e ao bebê, ficaremos a saber a identidade do pai da criança.

‑ Bill parecia satisfeito e Adrian olhava-o, fascinada. Admirava‑se da maneira como ele tinha constantemente aquelas personagens todas na cabeça, mas começava agora a compreender.

            ‑ A propósito, quem é o pai do bebê?

            ‑ Ainda não pensei nisso.

            Adrian riu da resposta dele.

            ‑ Ela já está grávida e ainda não sabe quem é o pai? Isso é terrível!

            ‑ Que lhe hei de dizer? É um romance moderno.

            ‑ Extremamente.

            ‑ Gosto, na verdade, da sugestão que me fez, Adrian. Se fizermos com que o pai do bebê seja alguém simpático, de quem a audiência goste, podemos tirar grandes vantagens a partir daí.

            ‑ Que diz a Harry? ‑ sugeriu Adrian.

            ‑ Harry? ‑ Bill pareceu surpreendido. Era uma personagem na qual não pensara. Era demasiado óbvia, mas, por outro lado, nada óbvia. Tratava‑se do viúvo da melhor amiga de Helen. Era, sem dúvida, uma sugestão perfeita. Estando John condenado a prisão perpétua por ter cometido dois assassínios, fazia sentido ligar Helen a alguém com quem ela pudesse eventualmente vir a casar. ‑ É uma idéia brilhante.

‑ E o ator que desempenhava esse papel iria ficar encantado. O papel dele não tinha grande relevância, mas era na realidade um excelente ator. ‑ Adrian, você é um gênio!

            ‑ Sim. ‑ Sorriu meigamente. ‑ E uma cozinheira fabulosa, não acha?

            ‑ Com certeza ‑ inclinou‑se e beijou‑a com um largo sorriso. A companhia dela era divertida e agradável. Além disso, Adrian não parecia detestar o tempo que ele consagrava ao seu trabalho. Tinha até a impressão de que gostava dele. ‑ Pode imaginar‑se a trabalhar num programa destes? Bill lembrara‑se disso há pouco tempo, quando ela começara a fazer sugestões úteis.

            ‑ Nunca pensei nisso. Estou sempre muito atarefada a lidar com notícias de crimes, violações e desastres naturais na vida real. Mas uma telenovela deve ser muito mais interessante. Por quê? Está a recrutar pessoal?

            ‑ Posso estar. Estaria interessada?

            ‑ Fala a sério? ‑ Olhou‑o, espantada, e disse que sim com a cabeça. ‑ Adoraria!

            ‑ Também eu. ‑ Bill gostava da idéia de trabalhar perto dela. Mas ambos tinham uma porção de coisas a levar em consideração primeiro, e ela sabia bem isso. O advogado que Bill lhe arranjara estava a tratar do problema do divórcio e em janeiro nasceria o bebê. Já decidira pedir uma licença, mas ainda nada dissera no seu trabalho. Talvez que em vez de voltar a trabalhar nas notícias, fosse trabalhar com Bill, depois de o bebê nascer. Era certamente uma idéia interessante. E pensava nisso enquanto ia bebendo o cappuccino que Bill preparara. Na verdade, agradava‑lhe. Contudo, era também um pouco assustador combinar as suas carreiras e o seu relacionamento, mas talvez resultasse. De qualquer maneira, valia a pena pensar nisso.

            ‑ Há alguma coisa que não saiba fazer? ‑ perguntou ela, olhando‑o com admiração, pensando como seria agradável trabalharem juntos.

            ‑ Sim ‑ respondeu Bill com um sorriso meigo, inclinando‑se para ela e beijando‑a ao de leve nos lábios. ‑ Ter bebês. E por falar nisso, como se sente? ‑ Adrian sentia‑se embaraçada quando ele lhe perguntava pela saúde. Não estava a vontade para falar da gravidez com ele, apesar de Bill se mostrar tão meigo e carinhoso para ela desde que soubera. Mas falar disso ainda lhe parecia estranho. Era o seu mais profundo, mais recôndito segredo.

            ‑ Estou ótima ‑ respondeu. Na realidade, a aventura de Lake Tahoe não lhe parecia ter causado danos. Fora consultar o médico logo que regressara e ele assegurara‑lhe que estava tudo bem com o bebê. Quando contou ao médico o que se passara, ele olhou‑a com incredulidade e disse‑lhe que o bebê dela devia ser incrivelmente resistente. Bill ficara aliviado ao ouvir isso. Agia como se o filho fosse dele e Adrian sensibilizava‑se com isso.

            ‑ Assusta‑a estar grávida, Adrian? Sempre achei que devia ser um pouco assustador. Faz‑se amor e uma pequena semente cresce dentro da mulher e transforma‑se numa minúscula pessoa, como se ela a tivesse engolido. E cresce, cresce dentro da mãe até dar a impressão de que ela está prestes a rebentar. Depois vem a parte mais difícil. O bebê tem de sair. Deve ser o mais assustador. Psicologicamente, claro. Fisicamente funciona sempre, de uma maneira ou de outra. O que sempre me impressionou, como homem, foi pensar: "Meu Deus, se estivesse no lugar dela, não voltaria a passar por isto!", e duas horas depois de ter um filho, urna mulher é capaz de dizer que não foi assim tão mau e está pronta a repeti‑lo. Notável, não acha?

            ‑ Acho. E tudo isso me parece um pouco estranho. Especialmente no meu caso, visto eu não ter ninguém com quem falar sobre o bebê. A maior parte do tempo parecia que nem existia. Só agora começo a compreender que não o posso ignorar por muito mais tempo. ‑ Ele entregou‑lhe outro cappuccino e ela provou as natas espumosas, polvilhadas com chocolate ralado. Bill era decididamente muito melhor cozinheiro do que ela.

            ‑ Já o sente mexer? ‑ Ela abanou a cabeça. ‑ É tão encantador quando isso acontece. A vida... ‑ sentou‑se e olhou‑a amorosamente... ‑ e um milagre tão grande, não é? Olho para os meus filhos e ainda penso que milagre eles são, mesmo grandes como estão agora, desgrenhados, com os joelhos das calças rasgados e tênis sujos. Para mim são lindos. ‑ Era em parte por isso que ela começara a amá‑lo. Bill era bom, verdadeiro e bondoso. Sério a respeito das coisas que realmente tinham importância, como o amor e a amizade, a família e a verdade. Adrian apreciava os valores dele, aquilo em que ele acreditava. Era o contrário de Steven, que fugira perante a ameaça que para ele representava um filho. Não queria dar coisa alguma a ninguém, o que era a antítese de Bill. Ela ainda não podia acreditar que tivera a sorte de o conhecer. Bill meteu as chávenas no lava‑louças e voltou‑se para ela com um sorriso tímido. Quando os olhos dos dois se encontraram, Adrian sentiu‑se atraída para ele. Havia nele algo de magnético que sempre a atraíra.

            ‑ Sim? ‑ Ela sabia que ele lhe ir perguntar qualquer coisa e Bill riu da sua clarividência.

            ‑ Ia fazer‑lhe uma pergunta, mas não sei se a devo fazer.

            ‑ A respeito de quê? Quer saber se sou virgem? Na verdade, sou.

            ‑ Graças a Deus! ‑ Bill soltou um suspiro de alívio. Detesto mulheres que não sejam virgens.

            - Também eu. Bill sorriu:

            ‑ Nesse caso... gostaria de passar aqui a noite? Pode dormir no quarto de hóspedes, se de fato quiser.

            Era uma tolice. Ela tinha a casa dela praticamente do outro lado da rua. Mas sentia‑se tentada a ficar com ele. Sentia‑se tão só na casa dela, apenas com um candeeiro a iluminar‑lhe o quarto. Mas dizia a si própria que não valia a pena comprar mobília se ia vender a casa. E o quarto de hóspedes de Bill era bonito e acolhedor, um porto de abrigo onde ela se poderia esconder das pressões do mundo e gozar o calor da presença dele.

            ‑ Parece tolice, não parece? ‑ murmurou hesitante. provavelmente devia ir para casa.

            ‑ Pensei que... ‑ Bill mostrou‑se triste. ‑ Vou ficar muito só sem os meus filhos esta noite. ‑ Adrian sabia que era verdade e queria estar ali com ele. ‑ Podíamos fazer pipocas e ver filmes antigos na televisão.

            ‑ Pronto! Aceito. ‑ Sorriu. Gostava de estar com ele, mas Bill fingiu‑se muito sério e fez‑lhe outra pergunta:

            ‑ O que é que a fez decidir‑se: as pipocas, ou os filmes na TV? Preciso de o saber, pois posso voltar a ter de a convencer noutra altura?

            Adrian riu, descontraída.

            ‑ Foram as pipocas. E o pequeno‑almoço gratuito amanhã de manhã.

            - Quem falou em pequeno‑almoço? ‑ gracejou Bill.

            ‑ Seja simpático. Ou então faço-lhe uma lasanha... com baunilha!

            ‑ Já receava isso. A Virgem da Baunilha é um belo título para uma nova série... ou talvez para um só episódio... o que é que acha? ‑ Bill voltou‑se e ficou muito perto dela enquanto ambos se dirigiam para a sala.

            ‑ Acho que você é maravilhoso.

            Bill abraçou‑a e beijou‑a ao de leve no pescoço.

            ‑ Estou satisfeito por a ouvir dizer isso. Creio que a amo... ‑ Mas ela sabia que o amava. Soubera‑o há semanas, desde que acordara no hospital de Truckee, e ele lhe dissera que a amava a ela e ao bebê. E era estranho falar disso com ele agora. Ele parecia saber muito mais a respeito de gravidez e de bebês do que ela. De certo modo, era reconfortante e gostava da idéia de o ter junto de si. ‑ Que diz a vermos televisão no meu quarto? ‑ perguntou Bill. Tinha um grande televisor no quarto e os filhos costumavam meter‑se na cama com ele para verem televisão. Ela juntara‑se‑lhes várias vezes, nas noites em que ficara no quarto de hóspedes, mas agora era diferente, pois estavam sozinhos. Achava um pouco estranho estar na cama com ele, sozinha, mas tinha de admitir que lhe agradava.

            Adrian sentou‑se na cama, recostada nas almofadas, Bill ligou o aparelho com o comando à distância. Em seguida, saiu do quarto para fazer as pipocas e ela não o seguiu. Ficou sentada a pensar nele, no que Bill significava para ela e em como se sentia atraída para ele.

            Era estranho sentir desejo sexual por um homem que não era o seu marido e para mais estando grávida quase de cinco meses. Porém era o que acontecia. Sentia‑se extremamente atraída por ele e não sabia bem como mostrá‑lo.

            ‑ Pipocas! ‑ anunciou ele, aparecendo momentos mais tarde com uma grande tigela de metal. As pipocas estavam quentes e tinham manteiga e sal.

            ‑ Estão ótimas! ‑ disse Adrian, encostando‑se a Bill, enquanto ele carregava nos botões do controlo à distância para encontrar o canal que só dava filmes antigos. Estavam a passar um filme com Gary Grant e Adrian pediu para ele o deixar ficar. ‑ Gosto disto! ‑ disse ela, enquanto ia mastigando as pipocas com ar satisfeito. Bill sentou‑se junto dela e beijou‑a ao de leve.

            ‑ Também eu ‑ disse ele com sinceridade. Ela era a sua melhor amiga e não só amiga. Sentia que não conseguia parar de a beijar, enquanto ela mastigava as pipocas e fingia ver o filme. Ela estava estendida na cama dele, recostada sobre as almofadas, sem poder ver bem o que se passava na televisão, e ele percebeu que ela não se importava com isso

Adrian retribuía os beijos dele e sentia a paixão crescer dentro de si, uma paixão que nunca conhecera, enquanto ele lhe sussurrava: ‑ Andas a tomar a pílula? ‑ Então começou a rir e beijou‑o outra vez.

            ‑ Sim, estou ‑ murmurou ela. Havia amor, boa disposição e humor entre os dois, mas ambos se tornaram sérios à medida que a paixão crescia, e o romance à Gary Grant foi esquecido. Bill pousou a tigela com as pipocas no chão, apagou a luz e voltou‑se outra vez para Adrian. Ela era linda, sexy e meiga. Usava ainda o vestido largo com que fora ao aeroporto e ele foi‑o desabotoando lentamente, enquanto as mãos dela se enfiavam por baixo da camisa dele. Os seus lábios tocaram‑se e afastaram‑se, e tocaram-se de novo. Ele parecia devorá‑la com beijos até que, finalmente, ficaram nus nos braços um do outro e ele esqueceu todas as cautelas quando se uniram e fizeram amor. O corpo dela vibrava sob as mãos dele e os dois passaram a ser um só. Pareceram ficar assim estendidos durante horas, dando um ao outro prazer e êxtase.

            Nenhum deles fazia idéia de quanto tempo decorrera até que ficaram finalmente estendidos lado a lado, ainda a beijarem‑se e a murmurarem no escuro.

            ‑ És tão bonita ‑ disse Bill tocando‑lhe na cara com as mãos e deixando que os seus dedos deslizas sem ao longo do corpo dela. Adrian tinha um corpo bonito, e mesmo agora era fácil de perceber como ela devia ser esbelta e elegante quando não estivesse grávida. ‑ Estás bem? ‑ Bill ficou subitamente receoso de poder tê‑la magoado a ela ou ao bebê. Por momentos, ele esquecera‑se de tudo. Mas Adrian apenas sorriu e beijou‑lhe o pescoço e os lábios, tocando-lhe no peito musculoso com as mãos. Ele fazia sentir‑se feliz, segura e protegida.

            ‑ És maravilhoso. ‑ Os olhos de Adrian brilhavam de amor por ele e enquanto Bill a olhava, quase hipnotizado, ia‑lhe passando as mãos pela barriga arredondada. De repente, Adrian olhou‑o surpreendida. ‑ Foste tu que fizeste isso?

- O quê?

            ‑ Não sei... uma coisa... nem sei bem o que foi.. ‑ Sentira uma ligeira agitação e, ao princípio, julgara tratar‑se das mãos dele, mas estas não se tinham mexido. De repente, ambos souberam, ao mesmo tempo, que o bebê se mexera pela primeira vez. Era como se o bebê se tivesse animado com o amor deles. Agora o bebê era de ambos, porque ele o queria e a amava.

            ‑ Deixa‑me senti‑lo. ‑ Bill pôs novamente as mãos sobre a barriga dela mas nada sentiu, depois julgou sentir alguma coisa, mas muito ao de leve. Os movimentos eram tão suaves que se tornava difícil dar por eles. Bill puxou‑a mais para si, sentindo o corpo dela contra o seu e pousando uma mão nos seus seios redondos. Amava tudo nela. Era estranho conhecê‑la daquela maneira, num estado de transição. Não a conhecera antes e sentia‑se ligado ao bebê como se ele lhe pertencesse também. A verdade é que a criança era parte integrante dela e por isso ele a amava.

            Bill tapou cuidadosamente Adrian com o lençol e os cobertores e ficaram deitados, abraçados, a conversarem em voz baixa.

            ‑ É tão engraçado ‑ confessou Bill, ouvindo vagamente a voz de Gary Grant ao fundo. Tinham esquecido completamente as pipocas e o filme. ‑ Sinto‑me agora como se o bebê fizesse parte de mim mesmo. Não sei... faz‑me recordar todo o gênero de sensações familiares que experimentei antes de Adam e Tommy nascerem... Dou comigo a pensar em comprar um berço, a ajudar‑te a decorar o quarto, em estar junto de ti quando o bebê nascer... de tal modo que tenho de dizer a mim próprio para ir mais devagar... que o bebê não é meu... ‑ concluiu com pena. Mas desejava que fosse. Apesar de ser a primeira vez que fazia amor com ela, desejava que o bebê que Adrian trazia dentro dela fosse também seu.

            ‑ Sentia‑me tão perdida antes de tu apareceres. Tão só.

‑ Olhou‑o com ar sério. ‑ Não te importas realmente com o bebê? As vezes sinto‑me tão gorda, tão feia.

            Bill soltou uma pequena gargalhada:

            ‑ Isso, meu amor, vai piorar antes de melhorar. Vais ficar soprada como um balão e eu vou adorar isso. Vais ficar grande e engraçada e nós vamos passar uns dias felizes com o bebê.

            ‑ Tolo. ‑ Adrian franziu o sobrolho à idéia de que ia ficar enorme. Era algo em que não pensara ainda e que quase temia. Tinha a sensação de que as coxas dela tinham o dobro da largura de há dois meses atrás e os seios pareciam enormes em comparação com o normal. Antes da gravidez tinha uns seios pequenos e agora começava a sentir‑se peituda. Essas mudanças pareciam‑lhe estranhas e, contudo, estava excitada com o bebê. E custava‑lhe a acreditar que Bill se sentisse também. Fora um verdadeiro milagre tê-lo conhecido.

            ‑ Parece ser justiça poética o fato de eu me apaixonar por uma mulher grávida de quatro meses e meio ‑ disse Bill, sorrindo. ‑ Estive envolvido com mais mulheres a sofrerem de anorexia e mais atrizes com bulimia do que alguém merece estar numa vida inteira, e, de repente, aqui estou eu com a mulher que amo, em pleno desabrochar, e que além disso, daqui a pouco nem sequer poderá ver os pés.

            ‑ Estás‑me a aterrorizar. Há alguma coisa a fazer para evitar que eu me transforme num balão? ‑ perguntou Adrian, preocupada. Bill riu e beijou‑a.

            ‑ Nada. É uma bela dádiva. Desfruta‑a.

            ‑ Ainda gostarás de mim quando eu estiver gorda? Era uma pergunta familiar para qualquer homem cuja mulher estivesse grávida.

            ‑ Claro que sim. Não gostarias de mim se fosse eu que tivesse o bebê cá dentro?

            Ela riu da idéia, mas ele deu à sua resposta um ar tão natural que Adrian deixou de se sentir assustada. Bill fazia isso com tudo. Com ele tudo se tornava natural, fácil e simples.

            ‑ Claro que gostaria. ‑ Adrian sorriu, sentindo‑se aconchegada na cama, ao lado dele.

            ‑ Isso responde à tua pergunta, não responde? Tu ficas linda, grávida. Talvez te devesses preocupar com o fato de me poderes deixar quando estiveres magra. Mas agora sei o que me fazes ‑ sorriu maliciosamente e ela riu. Sentia‑se totalmente à vontade com ele e amada como nunca fora. E o melhor era que ela também o amava, amava‑o mais do que alguma vez amara alguém... incluindo Steven. Nunca Steven fora tão bom para ela, tão terno, tão cuidadoso, tão sensível às necessidades dela, aos seus receios e disposições. Adrian não duvidava de que era uma mulher cheia de sorte, pois William Thigpen revelava‑se como uma pessoa rara.

- Fazes‑me enlouquecer de desejo ‑ disse ele num tom brincalhão, fingindo rugir e atirar‑se a ela, mas a brincar.

            ‑ Deixa‑te disso ‑ disse Adrian, rindo. ‑ Onde estão as minhas pipocas?

            ‑ Não tens coração. ‑ Bill inclinou‑se e deu‑lhe a tigela com as pipocas. ‑ Só estômago. ‑ Beijou‑a ruidosamente antes de se levantar e ir buscar uma garrafa de sumo, pois sabia que ela devia ter sede.

            ‑ Lês os meus pensamentos, sabias?

            Bill desejava ardentemente voltar a fazer amor com ela, mas receava exagerar e magoar o bebê. Estava disposto a ser paciente e a amá‑la com cuidado durante os quatro meses e meio seguintes. Parecia‑lhe um pequeno preço a pagar pelo milagre de um bebê e a dádiva de o poder partilhar com ela. Comeu algumas pipocas, aumentou o som da televisão e olhou para Adrian. Sentia que pertenciam um ao outro agora, como se fossem apenas um e sempre tivessem sido casados. Era impossível acreditar que ela era casada com outra pessoa e que trazia em si o filho de outro homem. Um homem que não a queria a ela nem ao filho.

            O telefone tocou quando Adrian estava a mergulhar no sono, aninhada contra Bill, enquanto ele via televisão e a olhava ocasionalmente com um sorriso meigo. Tommy e Adam tinham chegado bem a Nova Iorque e estavam a telefonar.

            ‑ Como foi a viagem?

            ‑ Formidável! ‑ disse Tommy. A hospedeira dera-lhe três cachorros‑quentes. Bill pagara refeições especiais para eles, como sempre fazia. Era apenas uma das muitas coisas em que ele pensava. ‑ Como está Adrian? Está aí? ‑ perguntou com esperança de que assim fosse. Bill olhou para ela e disse: ‑ Está. Estamos a ver televisão e a comer pipocas e temos muitas saudades de vocês. Isto ficou muito triste depois de se irem embora.

            Bill era sempre sincero com os filhos.

            ‑ Estamos ansiosos pelo Dia de Ação de Graças.

Utilizava já o plural para falar de si e de Adrian. Não tinha dúvidas de que, nessa altura, ainda estariam juntos. Quando eles viessem teriam então de lhes falar do bebê. Deixaria que Adrian decidisse o que lhes queria dizer. E, ao pensar nisso, pôs uma mão sobre a barriga dela para ver se sentia novamente o bebê. Sentia‑se possessivo em relação a ele, agora que estivera mais junto dele e sentido o corpo de Adrian unido ao seu. Nunca se sentira mais intimamente ligado a uma mulher.

            Adam falou então e aludiu ao filme que vira no avião. Era sobre a guerra do Vietnam. Bill achava que isso o devia ter perturbado, mas Adam parecia ter gostado. Pediu então para falar com Adrian. Bill sacudiu‑a gentilmente e tapou o bocal com a mão.

            ‑ É Adam, querida. Quer falar contigo.

            ‑ Está bem. ‑ Estendeu a mão para o telefone com um sorriso sonolento, mas quando falou esforçou‑se por parecer normal.

            ‑ Olá, Adam. Como foi a viagem? Algumas raparigas engraçadas?

            Ele soltou uma gargalhada abafada ao ouvir a pergunta. Ela fora a primeira a perceber que ele começara a interessar‑se por raparigas. Passava muito tempo na casa de banho a pentear o cabelo com diversos produtos.

            ‑ Nem por isso. Só uma, que ia sentada atrás de nós.

            ‑ Ficaste com o número dela?

            ‑ Sim. Vive em Connecticut. O pai dela é piloto.

            ‑ Que pena não estares interessado nela... muito...

            Ambos riram, e um minuto depois Adrian estava a falar com Tommy e a dizer-lhe como sentiam a falta dos dois.

            ‑ O teu papá e eu estávamos aqui sentados, muito tristes. Nem as pipocas têm o mesmo sabor sem ti.

            ‑ Muito obrigado. ‑ Bill fingiu amuar e ficou a ouvir a conversa animada entre os três. Adrian era maravilhosa para os garotos, e ele nunca esqueceria que ela salvara a vida a Tommy pondo em risco a vida dela e a do filho. Nunca se sentira tão assustado como quando vira o corpo do filho que ele julgara sem vida, e depois o dela... estremeceu ao pensar nisso.

            Entregou o telefone a Bill, ele falou com os filhos mais um bocado e depois desligaram. Deviam estar ansiosos por falar com a mãe.

            ‑ Parecem tão próximos, mas estão tão longe ‑ disse tristemente Adrian. Três meses pareciam‑lhes um tempo de espera interminável, especialmente para quem não tinha mais família na Califórnia. Não era como se Bill tivesse voltado a casar e tivesse mais filhos. E mesmo assim podia não ser diferente. Adam e Tommy eram especiais e únicos, e ela sabia agora como Bill sentia a falta dos filhos. ‑ Parece faltar muito tempo para o Dia de Ação de Graças.

            ‑ Agora sabes como é, ou pelo menos um pouco disse Bill metendo‑se na cama outra vez e desligando a televisão. ‑ Foi por isso que não quis ter mais filhos. Nunca quis voltar a passar pelo que passei. Ficar sem eles. Por mais decente que Leslie seja, privou‑me dos meus filhos. Não é justo que eles passem o ano inteiro com ela e apenas seis, no máximo sete, semanas comigo.

            ‑ Compreendo ‑ disse Adrian. E compreendia. Conhecia‑o agora suficientemente bem para saber quanto isso o magoava. E, subitamente, a voz dela ouviu‑se no escuro.

Eu nunca te faria isso, Bill.

            ‑ Como podes saber? Nunca é possível ter‑se a certeza. Repara... tu ainda sentes qualquer obrigação para com Steven. Se ele voltar depois de o bebê nascer, que nos sucederá a nós? Também não sabes a resposta a isso. ‑ Por momentos, Bill mostrou‑se zangado e amargo, mas foi só porque a amava e sentia falta dos filhos.

            ‑ Não, não sei a resposta a isso. Mas nunca te magoaria. ‑ Sabia isso. Não poderia dizer como reagiria se Steven voltasse e realmente ainda sentia uma certa obrigação para com ele. Mas agora sentia algo mais, um elo com Bill, um laço que se formara, talvez nessa noite ao fazerem amor, ou talvez mais lentamente, durante os últimos meses, ao tornarem‑se amigos. Mas algo sucedera para os unir, e ela sabia que nunca se iria embora... nem lhe tiraria algo de que gostasse. Estava certa disso... ou pelo menos esperava nunca o fazer.

            ‑ Amo‑te, Bill ‑ disse docemente, pensando nele, nos filhos e no bebê.

            ‑ Eu também te amo ‑ retorquiu Bill, pensando apenas nela, e ao fazê‑lo, o seu desejo por ela aumentou e acariciou‑lhe suavemente o corpo, até ela ficar ofegante de desejo. E fizeram amor outra vez. Foi uma noite longa e feliz, e os seus corpos estavam ainda entrelaçados quando acordaram na manhã seguinte.

            Adrian abriu um olho e ficou surpreendida quando o viu. Por um momento julgou tratar‑se de um sonho. Mas não era. Bill estava ainda a dormir e ressonava suavemente. Mas acordou alguns minutos depois quando ela se espreguiçou e mudou um pouco o peso da perna dele sobre a sua.

            ‑ És tu? ‑ perguntou sonolentamente ‑, ou morri e fui para o céu? ‑ Sorriu com uma expressão feliz e os olhos ainda fechados ao sol da manhã.

            ‑ Sou eu. E és tu? ‑ sussurrou ela. Fora a mais bela noite da sua vida, a lua‑de‑mel perfeita, apesar de estar grávida.

            ‑ Sou eu... ainda és virgem? ‑ murmurou ele. Adrian sorriu.

            ‑ Não o creio.

            ‑ Bom. Esperemos que não fiques grávida.

            ‑ Não te preocupes. Ando a tomar a pílula. ‑ Ambos riram abraçados, deitados ainda na cama desmanchada em que tinham dormido.

            ‑ Ainda bem que dizes isso... vais fazer‑me lasanha para o pequeno‑almoço? ‑ Bill espreguiçou‑se e sorriu quando ela respondeu:

- Com baunilha.

            ‑ Perfeito. É mesmo assim que eu gosto. ‑ E voltou‑se de barriga para baixo para lhe beijar os lábios. ‑ Tenho uma idéia melhor. Fica quieta enquanto eu te preparo o pequeno-almoço. Que preferes: croissants ou panquecas?

            ‑ Não achas que eu devo fazer alguma dieta? ‑ Adrian começava a ficar preocupada. Não fazia outra coisa senão comer, mas ela não estava realmente gorda, a não ser na cintura e no estômago. O bebê parecia estar a ocupar todo esse espaço.

- Preocupa-te com isso mais tarde. O que é que preferes?

            ‑ Prefiro‑te a ti. ‑ E demonstrou‑lhe amplamente isso antes do pequeno‑almoço, para grande satisfação dele. Só duas horas depois é que voltaram a falar do pequeno‑almoço, e dessa vez Bill fez ovos mexidos com bacon e um café forte, a fumegar. E sentaram‑se os dois a tomar o pequeno‑almoço envergando roupões de seda iguais, ambos dele.

            ‑ É uma maneira perfeita de passar uma manhã de domingo ‑ declarou Adrian.

            ‑ Concordo inteiramente ‑ afirmou Bill. ‑ Absolutamente perfeita.

            Em seguida tomaram ducha, vestiram‑se e saíram para dar uma volta no velho MC de Adrian, que Bill gostava de conduzir. Pararam em Malibu para um longo passeio pela praia e, ao pôr do Sol, dirigiram‑se lentamente para casa, com a capota do carro descida e o vento a bater‑lhes no rosto. Sentiam‑se felizes, jovens, descontraídos e o mundo parecia pertencer‑lhes. Pararam no supermercado onde se tinham conhecido e depois voltaram para casa e fizeram o jantar. Bill deitou champanhe em taças para os dois, para celebrar a sua união.

            ‑ Ao casamento de dois corações... com um terceiro a caminho. ‑ Bill sorriu ao fazer o brinde e beijou‑a: Amo‑te, meu amor. ‑ Beijaram‑se de novo e passaram um serão tranqüilo em casa, vendo televisão, e Adrian falou em ir para casa. Não se queria instalar ali. Ainda tinha o apartamento dela, afinal, mas Bill nem quis ouvir falar disso. Queria mudar para ali algumas das coisas dela, nessa semana. Não havia razão para ela continuar no apartamento vazio, no que ela concordou. Realmente, agora não a atraía muito, para além de só querer estar junto de Bill.

            No dia seguinte, Bill levou‑a no carro para o trabalho e disse‑lhe que a levaria a casa depois do noticiário das seis e que a iria pôr novamente na televisão para a sua intervenção no noticiário da noite. Quando Zelda a viu sentada à secretária, sorridente, percebeu que algo sucedera a Adrian. Mas não fez perguntas. Apenas adivinhou e caminhou pelo corredor, sorrindo também, feliz por ver a amiga feliz. E quando Bill apareceu à porta do escritório, ao meio-dia, Zelda ficou a saber exatamente o que se passara.

            ‑ Resultou! ‑ exclamou Bill, sorridente.

            ‑ O quê? ‑ Um urso atacara uma criança no Jardim Zoológico e a criança quase morrera. Adrian tinha de decidir que parte da gravação passar, mas de qualquer modo ficara satisfeita por ver a expressão de Bill. ‑ O que é que resultou? ‑ perguntou um pouco mais suavemente. A manhã fora trabalhosa, mas tudo parecia envolto numa névoa de felicidade e de prazer.

            ‑ A tua idéia. Acerca de Harry ser o pai do bebê de Helen. Resulta perfeitamente. E toda a gente está satisfeita, incluindo o realizador. George Orben é uma pessoa com quem dá prazer trabalhar e todos ficaram satisfeitos por ele ir ficar com um papel maior. És um gênio!

            ‑ Sempre às ordens, senhor Thigpen. Sempre às ordens ‑ respondeu Adrian, sorrindo. Esperava que a proposta que Bill lhe fizera para trabalhar com ele se viesse a concretizar e que pudesse trabalhar no espetáculo criado por ele em vez de intervir nas noticias.

            ‑ Podes sair para almoçar? ‑ perguntou Bill, esperançoso.

            Mas Adrian abanou a cabeça. Havia muita coisa a fazer. Além do acidente no zôo, um polícia fora brutalmente assassinado uma hora antes e na Venezuela o Governo caíra.

            ‑ Não creio que possa sair daqui antes de acabar o noticiário das seis. ‑ Ele disse que sim com a cabeça, foi‑se embora e voltou meia hora depois com um recipiente com sopa, um grande hambúrguer e uma salada de fruta.

            ‑ Tudo bom para ti. Come.

            ‑ Sim, senhor. ‑ E depois sussurrou: ‑ Amo‑te ‑ e viu pelo canto dos olhos o olhar reprovador da secretária dela e lembrou‑se então do que fizera. A sua secretária nem sequer sabia que Steven e ela estavam separados e agora vira‑a beijar outro homem. Reparou em vários olhares interessados e pensou que haveria muitos mais quando soubessem que ela estava grávida.

            ‑ Quem era? ‑ perguntou um dos redatores quando Bill saiu.

            Chama‑se Harry ‑ respondeu misteriosamente Adrian. ‑ A mulher dele morreu há uns meses. ‑ Estava a falar da personagem da série de Bill, mas claro que o redator não podia saber ‑ ... Ela era a melhor amiga de Helen... ‑ O redator ergueu as sobrancelhas, perplexo, abanou a cabeça e voltou para o seu trabalho. Adrian fez o mesmo. E quando olhou de novo para Adrian, antes de sair da sala, viu que ela sorria.

 

            O mês de Setembro passou rapidamente com muito trabalho, noites felizes e fins‑de‑semana abençoados. No fim desse mês, as pessoas começaram a desconfiar que ela estava grávida. A gravidez era quase de seis meses e por mais largas que fossem as roupas que ela usava, era impossível não ver que havia qualquer coisa por baixo delas. Ela ainda não pedira licença de parto, pois tencionava trabalhar até ao fim e só ter a licença depois de o bebê nascer. Parecia-lhe mais simples.

            ‑ Se ficar sem fazer nada antes morro de aborrecimento ‑ disse Adrian a Bill e ele não discordou. Achava que enquanto o médico dissesse que ela se encontrava de boa saúde, devia fazer o que quisesse. E sugerira‑lhe de novo que pensasse em ir trabalhar na equipe dele depois do nascimento do bebê. Talvez apresentasse a sua carta de demissão na televisão em Dezembro.

            Bill e Adrian saíam bastante, iam a restaurantes sossegados, onde podiam conversar tranquilamente, como o Ivy e Chianti e o Bistro Garden, e, ocasionalmente, iam ao mais animado Morton's, ou ao Chasen's, e, é claro, ao Spago. Telefonavam a Adam e a Tommy pelo menos duas vezes por semana. Eles também estavam bons. A série de Bill atingia um nível de audiências cada vez maior. Tudo corria bem e Bill lembrava-lhe constantemente que da próxima vez que ela fosse ao médico a queria acompanhar. O bebê era agora também dele, embora não fossem os seus genes, mas eles tinham feito amor muitas vezes e Bill sentia que podia ter sido ele o pai, o que Adrian não negava.

            Desde Junho que Steven não lhe falava e o advogado dele não voltara a contatá‑la desde Julho. Adrian não se preocupava com isso. Calculava que o divórcio seguia os seus trâmites legais. Estava muito ocupada com o trabalho e muito feliz com Bill. Não voltara a dormir no apartamento desde a noite da partida dos filhos de Bill.

            No entanto, o telefonema do advogado dela, no dia 1 de outubro, ainda a surpreendeu. O telefonema destinava‑se a informá-la de que Steven queria que a casa fosse posta à venda. Adrian esperava isso, mas mesmo assim custou‑lhe Gostava de saber que tinha um sítio onde viver, embora não morasse lá.

            ‑ Querem ter a certeza de que não se encontrará lá quando o apartamento for mostrado.

            ‑ Ótimo ‑ respondeu friamente Adrian.

            ‑ Querem que entregue a sua chave aos funcionários da agência encarregada da venda e que deixe o apartamento em boa ordem.

            ‑ Isso não é difícil. Eles não lhe disseram que ele levou todo o mobiliário, deixando apenas a cama, uma carpeta e um banco na cozinha, além das minhas roupas? Vou fazer o possível por o deixar limpo.

            Apesar da crueldade daquele telefonema, Adrian acabara por o achar divertido.

            ‑ E não voltou a mobiliá‑lo? ‑ O advogado pareceu ficar muito surpreendido com o que ela acabara de lhe contar. Adrian não se lembrara de lho dizer antes e o advogado de Steven também nada lhe dissera. Adrian desconfiava que o advogado de Steven não dissera várias coisas ao advogado dela, como o fato de Steven rejeitar o seu próprio filho e se querer divorciar, por isso, de uma mulher que era simultaneamente decente e razoável.

            ‑ Não, não voltei. O apartamento está vazio.

            ‑ Pode não ter tão bom aspecto dessa maneira. Provavelmente, julgam que voltou a mobiliá‑lo.

            ‑ Steven devia ter pensado nisso antes de tirar de lá a mobília. Não vou mobiliá‑lo só para ele o poder vender melhor.

            ‑ Tem algum interesse em comprar a parte dele, senhora Townsend?

            ‑ Não, não tenho. E mesmo que tivesse não o podia comprar. ‑ O advogado dissera‑lhe o que Steven pedia pelo apartamento e ela achava um preço muito alto. Mas não ia discutir isso, pois se ele conseguisse vendê‑lo metade era para si. ‑ Como vai o divórcio? ‑ perguntou cautelosamente Adrian, pois ainda era um assunto difícil para ela.

            ‑ Tudo em ordem. ‑ O advogado hesitou e, em seguida, fez‑lhe uma pergunta pessoal, embora Steven não o tivesse encarregado de a fazer: ‑ Como vai a gravidez?

            ‑ Bem. Foi o advogado de Steven quem lhe disse para perguntar?

            ‑ Não, não foi ‑ respondeu o interlocutor de Adrian. E esta limitou‑se a abanar a cabeça.

            ‑ Há mais alguma coisa?

            ‑ Não. Apenas a questão do apartamento. Trataremos do assunto e avisaremos do nome da agência encarregada da venda. Quando se poderá começar a mostrar?

            Adrian pensou um minuto nisso e depois respondeu:

            ‑ Pode ser já amanhã. ‑ Realmente nada havia a fazer. Até mesmo os armários estavam limpos, pois todas as suas coisas se encontravam no quarto de hóspedes de Bill.

            ‑ Manter‑nos‑emos em contacto consigo. ‑ Adrian agradeceu e desligaram, mas ela estava ainda pensativa quando Bill a foi buscar para a levar a casa depois do noticiário das seis.

            ‑ Sucedeu alguma coisa hoje? ‑ perguntou Bill quando se dirigiam para casa. Tinha comprado caranguejo fresco para o jantar.

            ‑ Nada de especial. ‑ Ainda se sentia perturbada com o telefonema do advogado.

            ‑ Estás muito calada.

            ‑ És demasiado esperto ‑ disse Adrian inclinando‑se e beijando-o. ‑ O meu advogado telefonou hoje.

            ‑ Que há? ‑ Por momentos Bill pareceu preocupado.

            ‑ Steven quer pôr o apartamento à venda.

            ‑ Importas‑te? ‑ Bill olhou‑a de sobrolho franzido. Na verdade, não gostava nada das conversas acerca de Steven. Mas Adrian também não apreciava ouvir falar de Leslie.

            ‑ Talvez. Sempre era agradável saber que tinha uma casa minha, embora não a utilize.

            ‑ Por quê? Que diferença faz?

            ‑ E se tu te cansares de mim... ou nos zangarmos... ou... o que faremos quando Adam e Tommy vierem no Dia de Ação de Graças? ‑ observou Adrian, embora achasse que o apartamento ainda não estaria vendido nessa altura.

‑ Dir‑lhes‑emos que nos amamos, que vivemos juntos e vamos ter um bebê. Não tem importância nenhuma.

Adrian sorriu com uma certa tristeza:

            ‑ Escreves telenovelas há demasiado tempo. Pode parecer‑nos normal a nós, mas não o parecerá às outras pessoas, nem a Adam e a Tommy. Podem até ficar aborrecidos comigo por não te terem só para eles. ‑ Adrian pensara nisso todo o dia e estava preocupada.

            ‑ Queres‑me dizer que desejas viver num apartamento teu? ‑ perguntou Bill, visivelmente infeliz.

            ‑ Não, não é isso. Apenas não me agrada a idéia de vender o apartamento. Agradava‑me tê‑lo.

            ‑ Quanto pedem por ele? ‑ Adrian disse‑lhe e Bill assobiou. ‑ É muito, mas pelo menos ficarás com metade dessa quantia, se conseguirem vender o apartamento por esse preço. Talvez seja melhor teres dinheiro no banco do que um apartamento que não te serve para coisa alguma.

            Adrian suspirou, concordando com as palavras sensatas de Bill.

            ‑ Provavelmente tens razão. De resto, não tem importância. Trata‑se apenas de uma mudança, nada mais. ‑ E tinha havido muitas desde Junho, algumas delas maravilhosas.

            ‑ Ele quer falar contigo? ‑ perguntou Bill calmamente quando pararam a station no parque de estacionamento. Mas Adrian abanou a cabeça:

            ‑ Não.

            Mas na manhã seguinte, Adrian ligou para o escritório de Steven. Reconheceu a voz da secretária dele e pediu delicadamente para falar com o marido.

            ‑ Lamento, mas o senhor Townsend não pode atender. Está numa reunião.

            ‑ Pode fazer o favor de lhe dizer que eu estou ao telefone?

            ‑ Não sei se poderei interrompê‑lo.

            ‑ Por favor, tente ‑ pediu Adrian, sentindo‑se cada vez mais aborrecida. Era óbvio que Steven dissera à secretária dele que, se a mulher telefonasse, dissesse que ele não podia atender e Adrian sentia que não merecia isso.

            A secretária voltou a falar dois minutos depois. Não levara o tempo suficiente para dar qualquer recado fosse a quem fosse. Estava apenas a fingir.

            ‑ Lamento, o senhor Townsend vai estar ocupado todo o dia, mas eu poderei transmitir‑lhe qualquer mensagem. Adrian esteve tentada a dizer "Diga‑lhe que vá para o Inferno", mas não o fez. Não disse nada do que teve vontade de dizer.

            ‑ Diga‑lhe apenas que telefonei por causa do apartamento ‑ começou a dizer, e a seguir decidiu pregar‑lhe uma partida, e acrescentou: ‑ É por causa do bebê. A bomba caiu e fez‑se silêncio do outro lado. ‑ Muito obrigada.

            ‑ Dir‑lhe‑ei de imediato ‑ respondeu apressadamente a secretária. Adrian sabia que Steven detestaria receber essa mensagem. Ficando a secretária a saber, mais cedo ou mais tarde as pessoas começariam a falar.

            Contudo, Steven não lhe telefonou. Quem o fez foi o advogado dele, meia hora mais tarde. Steven telefonara‑lhe sete minutos depois do telefonema de Adrian e ele tentara contatar com o advogado dela mas não conseguira. Por isso, ligara diretamente para Adrian para acalmar os receios do seu cliente.

            ‑ Há algum problema, senhora Townsend? Sei que telefonou ao seu... ao meu cliente.

            ‑ E verdade. Quero falar com ele. ‑ Por um momento quisera perguntar‑lhe por que motivo ele lhe estava a tirar tudo quanto era dela e a rejeitar o seu bebê. Agora que ele se mexia, que estava vivo, que o sentia, ainda compreendia menos por que razão Steven os rejeitava a ambos. Isso nada tinha a ver com o seu amor por Bill. Mas Steven era ainda o pai do bebê.

            - Importa‑se de me dizer qual o motivo do seu telefonema? ‑ Tentou mostrar‑se afável. Steven fora peremptório nas suas instruções.

            ‑ Sim, importo. É um assunto pessoal.

            ‑ Lamento. ‑ O advogado fez uma pausa e Adrian compreendeu o que isso significava.

            ‑ Ele não quer falar comigo, não é?

            O advogado não lhe quis responder logo, mas a falta de resposta foi igualmente clara. ‑ Ele acha que... que seria demasiado difícil para ambos, especialmente dadas as circunstâncias. ‑ Receava que ela se exaltasse emocionalmente e tentasse impor‑lhe o bebê. Não fazia idéia de que ela estivesse a viver com um homem que a amava genuinamente e queria o bebê dela. E nunca seria capaz de compreender tal coisa.

            ‑ Existe algum problema com a gravidez? Algo que se relacione com o senhor Townsend, apesar do seu afastamento legal da criança? ‑ Adrian queria dizer‑lhe que se calasse, que deixasse as legalidades e que tratasse com ela como um ser humano. Mas o mais triste era que ele estava a tentar isso mesmo.

            ‑ Não, não importa. Diga‑lhe para esquecer o assunto.

‑ Era exatamente isso que ele queria. Dissera ao advogado que queria esquecê‑la completamente e tudo o que se relacionasse com ela, mas o advogado nunca teria coragem para dizer tal coisa.

            Adrian desligou, e nessa tarde sentiu‑se ainda mais deprimida. Bill apercebeu‑se novamente disso, mas julgou que fosse ainda por causa do apartamento, embora considerasse isso uma tolice. Contudo, não fazia idéia de que ela tentara falar com Steven apenas para saber, para ele lhe explicar por que motivo deixara de a amar e se recusara a aceitar o filho. Devia haver uma razão para isso, algo mais do que uma infância difícil. Mas ela não quisera contar a Bill. Sabia que tal o magoaria. Em vez disso, sugerira que telefonassem a Adam e a Tommy depois do jantar. Sentia‑se sempre mais animada quando falava com eles. E, no dia seguinte, o advogado dela telefonou‑lhe e deu‑lhe o nome da agência encarregada de mostrar e vender a casa.

            Nesse fim‑de‑semana Adrian e Bill saíram da cidade e, na segunda‑feira, ela sentia‑se melhor. O apartamento já não lhe parecia tão importante e ela percebeu que não precisava de uma casa sua. Sentia‑se perfeitamente feliz com Bill. De resto, o apartamento em que vivera com Steven não era nada de especial.

            O fim‑de‑semana fora passado com amigos de Bill em Palm Beach. O dono da casa era um antigo ator que se tornara um realizador bem sucedido. Adrian achou‑o um homem interessante, com uma mulher de quem ela gostou muito e uma família feliz. Fora um fim‑de‑semana perfeito e tinham gracejado muito com Bill a respeito do bebê. Pensaram que o bebê era dele e não se mostraram surpreendidos por eles não serem casados, embora falassem calorosamente do casamento. Janet, a mulher do realizador, falou com grande satisfação das "maravilhas" da gravidez. Havia alturas em que Adrian perguntava a si própria se sobreviveria à gravidez, outras ocasiões em que nem sequer se lembrava de que estava grávida. Isso dependia da sua disposição e do que se tivesse passado nesse dia. Mas o que ela não devia esquecer, insistiu Janet, era que, no fim do caminho, a recompensa não eram as coxas gordas, que desapareceriam, mas a coisa mais maravilhosa do mundo: o bebê. Adrian e Bill regressaram desse fim‑de‑semana mais frescos e mais excitados com o bebê. Bill foi buscar alguns livros que comprara e que Adrian ainda não lera e leu‑lhe todo o gênero de coisas que a teriam aterrorizado se ela não estivesse tão bem-disposta. E no fim fizeram amor, o que foi ainda melhor.

            Na manhã seguinte, no trabalho, Adrian recebeu novo telefonema do seu advogado, que a surpreendeu ao anunciar‑lhe que havia uma oferta que quase cobria o preço pedido por Steven e que ele estava disposto a aceitá‑la. Adrian mal podia acreditar.

            ‑ Já?

            ‑ Nós também ficamos surpreendidos, mas o comprador quer a casa dentro de trinta dias, se a senhora achar bem. Compreendemos que poderá ser demasiado rápido para si.

            Então, de repente, Adrian compreendeu que já não se importava. Teria de entregar a casa em Novembro e os filhos de Bill viriam no Dia de Ação de Graças, mas ele continuava a insistir para que permanecessem juntos e até já sugerira que transformassem o quarto de hóspedes num quarto para o bebê, o que a entusiasmara.

            ‑ Que acha do prazo de trinta dias? ‑ quis saber o advogado.

            ‑ Acho bem. ‑ O advogado ficou surpreendido por a ouvir dizer aquilo.

            ‑ E o preço? ‑ Ela ficou calada por momentos, mas só porque na sua cabeça estava a dizer adeus ao apartamento e a Steven.

            ‑ Também está bem.

            ‑ Então, aceita‑o?

            ‑ Com certeza.

            ‑ Vou tratar de lhe enviar os papéis logo à tarde. Pode assiná‑los e eu endossá‑los‑ei imediatamente ao advogado d0 seu marido.

            ‑ Excelente.

            ‑ Vou mandá-los já. ‑ Quando recebeu os papéis, Adrian sentiu estranheza ao ver a assinatura de Steven. Há tanto tempo que não via nada dele, que aquilo parecia um salto ao passado. Mas não havia mais nada, nem um bilhete, nem uma palavra. Apenas os documentos para ela assinar. Steven retirara‑se completamente da vida dela e queria permanecer assim, sucedesse o que sucedesse. Era quase como se tivesse medo dela, mas ela não podia compreender por que. Parecia‑lhe um disparate total, mas já não lhe interessava.

            Nessa noite, Adrian mostrou os papéis a Bill e ele disse que lhe pareciam bem, mas fez algumas sugestões a respeito do espólio da casa e de como tratar do depósito do dinheiro. Disse‑lhe que devia falar com o seu advogado a esse respeito para que ela não ficasse prejudicada. E depois fez‑lhe uma pergunta que há muito lhe queria fazer, mas que ainda não proferira por recear perturbá‑la.

            ‑ E a respeito de uma pensão de alimentos? Ele ofereceu‑te alguma coisa? E dinheiro para o bebê?

            ‑ Eu não quis nada ‑ respondeu Adrian calmamente. Tenho o meu salário. E ele disse logo que não daria dinheiro para o bebê. Renunciou a todos os seus direitos paternais antes do nascimento. Já te contei. ‑ Adrian mostrou‑se perturbada a falar nisso. ‑ Não quero nada dele. ‑ Se Steven não a queria a ela nem ao bebê, também ela não queria o dinheiro dele. Mas Bill achava que os sentimentos dela eram simultaneamente nobres e errados.

            ‑ E se estiveres doente? ‑ perguntou meigamente. Se te suceder alguma coisa?

            ‑ Tenho seguro ‑ respondeu ela encolhendo os ombros. Então Bill voltou‑se para ela com uma expressão de calmo exaspero.

            ‑ Porque estás a deixar que esse tipo fique livre de todas as responsabilidades, Adrian? Ainda o amas? Ele abandonou‑te. Deve‑te qualquer coisa. E ao bebê também. ‑ Mas sentiu o coração apertado quando viu que ela abanava a cabeça e estendia a mão para si.

            ‑ Sabes que não o amo, Bill. Mas fui casada com ele... foi meu marido... ainda o é, teoricamente... e ‑, custou‑lhe a dizer a palavra, depois de tudo o que Bill fizera por ela, mas era a verdade ‑ é o pai do meu filho. ‑ Adrian não o queria magoar, mas era verdade e isso significava algo para ela, como Bill bem sabia.

            ‑ Isso significa muito para ti, não é verdade?

            Adrian olhou para as mãos e depois para Bill e falou com toda a suavidade.

            ‑ Sim, é. Não muito. Mas alguma coisa. É o filho dele. E se ele um dia voltar ao seu juízo? Tem direito a qualquer coisa... a uma parte dele... não quero fechar‑lhe todas as portas.

            ‑ Não creio que alguma vez volte ‑ disse Bill falando com a mesma calma. Não desejava discutir com Adrian e também não valia a pena dizer mal de Steven. Não queria ficar magoado. Também não queria perder Adrian, nem o bebê. ‑ Deves estar a sonhar se pensas que ele vai voltar. Acho que ele tornou a sua posição bem clara.

            ‑ Pode mudar de idéias.

            ‑ Queres que ele mude, Adrian? Queres que ele volte?

            Ela fitou‑o nos olhos e abanou a cabeça. Bill acreditou nela. E sem outras palavras tomou‑a nos braços.

            ‑ Morrerei, se te perder. ‑ Adrian sabia isso e sabia que morreria também se o perdesse, e contudo havia ainda o espectro de Steven...

            ‑ Também não te quero perder.

            ‑ Não perderás. ‑ Depois sorriu. Ao apertá‑la contra si podia sentir os pontapés do bebê.

            ‑ Obrigada por seres tão bom para mim.

            ‑ Não sejas tola.

            Bill beijou‑a e ficaram sentados durante muito tempo, a conversar, mas a conversa causou‑lhe preocupações. Bill sabia como ela era forte nas suas lealdades e, apesar de o amar, era importante para ela o fato de Steven ser o pai da criança. E Bill sabia também que nada podia fazer para se proteger. Tinha apenas de a amar e correr os riscos inevitáveis.

 

            A venda do apartamento concretizou‑se rapidamente e sem problemas e, na primeira semana de Novembro, Adrian e Bill foram buscar o resto das coisas dela e levaram‑nas para o apartamento de Bill, do outro lado do complexo. Foi tudo muito simples e muito menos emotivo do que ela receava. Não restava nada a que se agarrar, ou que lhe causasse qualquer reação sentimental. Steven levara tudo consigo, cinco meses antes, até mesmo o álbum com as fotografias do casamento. Adrian tentava adivinhar o que ele fizera delas. Natura1mente atirara‑as fora. Era estranho. Ele desaparecera tão completamente da vida dela, que parecia nunca ter existido. Adrian explicou isso a Bill enquanto arrumava as suas coisas no quarto de hóspedes.

            ‑ E quase como se nunca tivéssemos casado. Sinto‑me como se jamais o tivesse conhecido.

            E, contudo, Bill sabia que ela continuava a sentir uma estranha lealdade para com Steven.

            ‑ Pode ser que nunca tenhas sido. Há pessoas assim. Mas sentia‑se feliz por ver que Adrian não ficara deprimida. Adrian começava a cansar‑se mais facilmente, agora, mas mesmo assim sentia‑se bastante bem. Estava grávida de sete meses e os filhos de Bill deviam chegar dentro de duas semanas. Na semana anterior, Adrian fora à médica e Bill acompanhara‑a. Há meses que o queria fazer, mas surgia sempre à última hora qualquer coisa que o impedia de ir com ela. Dessa vez dissera à sua secretária que estaria fora durante duas horas e metera‑se no carro com Adrian. Pouco tempo depois de conhecer Bill, Adrian mudara para uma médica que lhe fora recomendada por várias amigas e parecia realmente gostar dela. Quando Bill a conheceu pôde compreender por que. Jane Bergman era inteligente, direta e tratava todo o processo da gravidez como uma coisa natural e normal, garantindo a ambos que tinha todas as razões para acreditar que o parto seria fácil e normal. Parecia também perfeitamente à vontade com o fato de eles viverem juntos sem serem casados. A principal razão que levara Adrian a mudar de médico devia‑se ao fato de o antigo médico ter conhecimento do que se passara com Steven e poder fazer demasiadas perguntas. Aquela médica não fazia idéia de que o bebê não fosse de Bill, mas sim de outro homem. Deixara que Bill ouvisse o coração do bebê a bater e Bill sorrira, encantado.

            ‑ Parece um hamster ‑ disse Bill com seriedade, escutando o coração do bebê.

            ‑ Uma coisa muito simpática para dizer ‑ exclamou Adrian, rindo. Mas Bill ficara extremamente comovido por ter ouvido as leves pulsações e também pela vulnerabilidade de Adrian, estendida na marquesa com a sua enorme barriga. A Dra Bergman disse que o bebê tinha um bom tamanho e recomendou a Adrian que fizesse ginástica de preparação para o parto. Ambos sabiam do que se tratava, mas Adrian duvidava de que desse algum resultado e já tinham passado oito anos desde que Bill a fizera com Leslie.

            ‑ Pode ajudar ‑ disse a médica. Era uma mulher mais ou menos da idade de Bill e pareceu‑lhe muito competente. Sentia‑se satisfeito por ter acompanhado Adrian. Gostara da médica. Disse isso mesmo a Adrian ao voltarem para o escritório.

            ‑ Gostava de ter o bebê em casa ‑ murmurou Adrian olhando para fora, pela janela.

            ‑ Por quê? ‑ exclamou Bill. ‑ Não digas uma coisa dessas!

            ‑ Por quê? ‑ Ela parecia queixosa, quase infantil e estava a pô‑lo extremamente nervoso. ‑ Seria muito mais agradável.

            ‑ E muito mais perigoso. Faz o que a doutora Bergman te diz e tem calma. Faremos a ginástica depois de os meus filhos se irem embora.

            Ficariam com um mês para a fazer antes do nascimento do bebê. Mas Bill reparara ultimamente que Adrian começava a andar muito nervosa. Durante sete meses evitara isso e fingira não estar grávida, mas de repente o parto aproximava‑se e ela começava a ter medo. Fazia imensas perguntas a Bill sobre o nascimento dos filhos e andava a ler os livros que ele lhe oferecera. Bill suspeitava de que ela receava as dores e as possíveis complicações. E ele começava a achar o bebê enorme.

            ‑ Amo‑te ‑ lembrou‑lhe ao deixá‑la no corredor junto da sala onde ela trabalhava.

            ‑ Olá, Harry! ‑ disse um dos redatores ao passar por eles quase a correr. Bill olhou para Adrian, cheio de confusão.

            ‑ Quem é o Harry? ‑ Adrian começou a rir recordando-se da história que inventara meses antes quando lhe tinham feito perguntas.

            ‑ És tu. Eu disse‑lhes que te chamavas Harry e que eras viúvo. Que a tua mulher tinha sido uma das melhores amigas de Helen... ‑ Adrian fez um ar sério enquanto resumia as peripécias da série dele e Bill riu às gargalhadas.

            ‑ És impossível. Volta para o trabalho e não te preocupes com o bebê.

            ‑ Quem é que está preocupada? ‑ Ela fingiu despreocupação, mas Bill sabia que estava nervosa, apesar do que dizia, e não a censurava. Sofria um duplo stress do divórcio e da gravidez.

            ‑ Até logo, querido. ‑ Bill beijou‑a outra vez antes de a deixar, depois de prometer ir buscá‑la logo após o último noticiário para irem jantar fora.

            Foram ao Le Chardonnay e comeram uma refeição deliciosa. Bill acabara de conquistar outro prêmio para a sua série. A imprensa estivera presente em força e Bill ficara muito satisfeito. Adrian sentia‑se orgulhosa dele, mas ele insistia em atribuir‑lhe crédito pelo êxito recente.

            ‑ Consegues manter vivo o interesse da série com as tuas loucas idéias. ‑ Adrian fez‑lhe uma porção de sugestões para futuros desenvolvimentos e Bill insistiu para que ela fosse trabalhar consigo depois do nascimento do bebê. E estavam a falar e a rir quando um casal se sentou na mesa ao lado da deles. Bill não percebeu o que se estava a passar, mas viu que Adrian se fazia muito pálida enquanto os observava. Olhava para o homem como se tivesse visto um fantasma e Bill mostrou‑se horrorizado ao vê‑la naquele estado. O outro, voltou a cara e continuou a falar com a mulher que o            acompanhava. Ela era nova, esbelta e atraente, mas não tão bonita como Adrian, apesar de dever ser mais nova. Entretanto, Bill não olhava para a mulher que se encontrava na outra mesa. Olhava para o homem. E reconheceu então Steven.

            Adrian estava ainda a olhar para ele e inclinou‑se um pouco para a outra mesa, como para chamar a atenção dele e murmurou:

            ‑ Steven ‑ mas só a rapariga a olhou. Ele fingiu estar a chamar o criado. ‑ Steven... Adrian disse o nome dele mais claramente e a rapariga pareceu ficar sem saber se havia de sorrir ou de olhar para outro lado. Adrian tinha uma expressão estranha, perturbada, e a outra apercebeu‑se então de que ela se encontrava em adiantado estado de gravidez.

            Então, apercebendo‑se que não podia continuar a ignorá‑la, Steven levantou‑se e falou asperamente com a rapariga:

            ‑ Vamos. O serviço aqui é péssimo. ‑ Estava já junto da porta quando a rapariga conseguiu dizer qualquer coisa, olhando para Adrian com ar perplexo e confuso, como que a desculpar‑se. Antes de seguir Steven a rapariga murmurou apenas:

            ‑ Creio que ele não a ouviu.

            ‑ Ouviu, sim ‑ disse Adrian, muito pálida, com as mãos úmidas. ‑ Ouviu‑me perfeitamente. E o serviço aqui é impecável.

            ‑ Desculpe. ‑ A rapariga apressou‑se a seguir Steven e Adrian viu‑a falar com ele, mas ele fê‑la sair, ao mesmo tempo que Adrian ficava a tremer. Bill pagava a conta, também pálido. Não disse nada enquanto saíam para o exterior do restaurante. Quando o ar fresco lhe bateu na cara, Adrian respirou fundo. Sentia‑se enjoada depois do delicioso jantar. E quando chegaram à rua viram Steven afastar‑se com a rapariga, no Porsche.

            ‑ Porque lhe falaste? ‑ perguntou Bill quando entraram na station. ‑ Para quê incomodares‑te? ‑ Bill parecia perturbado e ela olhou‑o, zangada. Não tinha disposição para discutir com ele nem com ninguém. Steven mostrara claramente a sua posição.

            ‑ Há cinco meses que não o via e fui casada com ele dois anos e meio. É assim tão estranho que lhe quisesse falar?

            ‑ Dada a maneira como ele te tratou, é. Ou ias agradecer-lhe todas as coisas simpáticas que ele ultimamente te tem feito? ‑ A verdade era que Bill sentia ciúmes e detestava‑se por se irritar com o assunto, detestava a expressão dos olhos dela, a angústia que lia no rosto de Adrian, e detestava Steven por a ter magoado. Queria que ele saísse da vida de Adrian para sempre.

            ‑ Não embirres comigo. ‑ Adrian começou a chorar, muito pálida e a esfregar a barriga. Até o bebê estava perturbado. Agitava‑se violentamente. Só queria ir para casa esquece-lo, mas sabia que não conseguiria. ‑ Nem sequer olhou para mim.

            ‑ Adrian! ‑ disse Bill por entre os dentes apertados ‑, o tipo não vale nada. Quanto tempo vais levar a aceitar isso? Um ano? Cinco? Dez? Continuas à espera que ele volte e te ofereça rosas a ti e ao bebê. E eu estou farto de te dizer que ele nunca o fará. Percebeste a mensagem que ele te transmitiu esta noite? Nem sequer te quis falar, levantou‑se e saiu. É um homem que não quer saber de ti, nem do bebê. E Bill desconfiava que nunca o quisera, apesar de não lho dizer a ela.

            ‑ Como pode ele fazer isso? Como poderá ele fazer isso ao seu próprio filho? Está a reprimir‑se, mas há‑de ter de enfrentar a situação.

            ‑ Quem terá de a enfrentar és tu. Ele foi‑se embora, querida. Esquece‑o. ‑ Ela não respondeu e fizeram o resto do caminho em silêncio, mas quando chegaram a casa começaram a discutir outra vez e Adrian foi deitar‑se para o quarto de hóspedes, lavada em lágrimas. No dia seguinte de manhã encontraram‑se na cozinha e ele não lhe disse uma única palavra. Deixou que ela fizesse o seu próprio pequeno‑almoço enquanto lia o jornal desportivo, mas por fim disse‑lhe: Afinal o que esperas dele? Queres fazer o favor de me explicar para eu tentar compreender de uma vez por todas o que esperas dele?

            De Steven? Não sei. Só espero que encare o fato de que vai ter um filho. Ele nem sequer sabe o que está a rejeitar. Posso aceitar o fato de ele se querer divorciar de mim por pensar que eu o ludibriei. Mas já não aceito que ele vire as costas ao seu próprio filho. Um dia há‑de lamentar isso.

            ‑ Claro que sim, mas será esse o preço que terá de pagar pelo que fez. E talvez nunca venha a recuperar o juízo. E como pode ele dizer que o ludibriaste? Foi assim? Ficaste grávida de propósito?

            ‑ De maneira nenhuma. ‑ Ela mostrou‑se insultada. Era uma pergunta que ele nunca ousara fazer‑lhe, embora tivesse pensado nela. Imaginara que talvez por isso ela se sentisse culpada. ‑ Sabia que ele não queria e tinha sempre cuidado.

            ‑ Era o que eu pensava. ‑ Bill sorriu. Amava‑a muito e detestava discutir com ela, o que, pelo menos, era raro suceder e apenas por causa daquele assunto: Steven. ‑ Vá, diz. Que queres dele? ‑ Queria realmente sabê‑lo para seu próprio bem e para bem dela. Precisavam de enfrentar o caso.

            ‑ Só quero que ele admita que o filho é dele, que encare esse fato. Ele fugiu desde o princípio, mas eu quero que ele o veja e diga: "Está bem, sei que é meu, mas de fato não o quero." Ou então "Estava enganado, amo o meu filho." Mas o que eu não quero é que ele fuja sempre de mim, porque nesse caso ficarei convencida de que um dia poderá voltar a estragar a minha vida, fazendo‑me sentir culpada. Preciso de me sentir completamente liberta dele para seguir a minha vida, e para eu sentir isso é preciso que ele encare o fato de que vai ter um filho e me explique frontalmente porque procede desta maneira. Nem sequer teve a decência de voltar a falar comigo desde que deixou o apartamento.

            Era a primeira vez que Adrian explicava as coisas tão claramente e Bill compreendeu‑a. Adrian não conseguia acreditar que Steven se tivesse ido embora para sempre e queria uma confirmação direta da parte dele de que assim era. Fazia sentido, mas Bill achava que Steven não o faria. Não era pessoa para isso e provara‑o na noite anterior e nos cinco meses decorridos desde que abandonara Adrian. Fugira, tratara do divórcio por meio de um advogado e nunca quereria sequer ver o filho. Era assim mesmo e Adrian tinha de enfrentar esse fato.

            ‑ Não creio que consigas obter mais nada dele. Ele não é capaz de encarar a questão diretamente.

            ‑ Como sabes?

            ‑ Repara no procedimento dele ontem. Achas que foi de um homem com coragem para te enfrentar? Praticamente fugiu pela porta fora à frente da namorada.

            ‑ E isso que ela era? ‑ Adrian mostrou‑se intrigada e Bill ficou aborrecido.

            ‑ Como diabo hei‑de saber?

            ‑ Ela parecia muito nova ‑ disse Adrian pensativamente.

            ‑ Também tu, porque o és. Pára com isso. Que diferença faz, afinal? A questão é que tens de deixar de pensar nele.

            ‑ E se ele volta? ‑ Era uma coisa que a preocupava muito. Adrian tinha a certeza de que ele voltaria depois de o bebê nascer.

            ‑ Se isso suceder logo vês.

            ‑ Mas o bebê tem direito...

            ‑ Eu sei, eu sei. ‑ Bateu com o punho no tampo da mesa da cozinha e Adrian deu um salto. ‑ O bebê tem direito ao seu pai natural, não é? Já ouvi isso antes. Mas se o seu pai natural for um cretino? Então? Não seria mais simples pô-lo de lado desde já?

            ‑ E se Leslie te tivesse dito que te queria deixar, quando se encontrava embriagada? Não te sentirias na obrigação de esperar até que ela estivesse sóbria?

            ‑ Talvez. Por quê?

            ‑ Porque acho que Steven tem estado ébrio de medo desde o dia em que eu lhe disse que estava grávida. E logo que ele acalmar, de deixar de estar em pânico, vai sentir de maneira diferente.

            ‑ Talvez não. Talvez ele deteste realmente crianças e seja verdade o que sente.

            - Só quero ouvir da boca dele que sabe o que estive a fazer. Talvez não saiba. E vais ficar à espera dele para sempre? Ou, melhor, ia adiar a vida dos dois para sempre? Mas Bill sabia que não era fácil para ela esquecer um homem que era o pai do filho que trazia dentro de si e com o qual estivera casada dois anos e meio antes de ficar grávida.

- Achas que sou estúpida por me preocupar com isso, não achas?

- Não. ‑ Bill suspirou e recostou‑se na cadeira. ‑ Só acho que estás a perder o teu tempo. Esquece‑o.

            ‑ Tenho a sensação de lhe estar a roubar qualquer coisa ‑ explicou Adrian. ‑ Estou a tirar‑lhe o bebê e a dá‑lo a ti, porque tu o queres. Mas se ele voltar e disser: "Ele é meu,... dá‑mo." Então, que fazemos? ‑ Era uma boa pergunta, mas Bill continuava a pensar que Steven nunca o faria. Não mudaria de idéias a respeito dela e do bebê. Era um louco, e Bill acreditava sinceramente que ele não mudaria.

            ‑ Só tens de esperar para ver. Não vamos fugir para a África com o bebê.

            Isso era verdade, mas ele e Adrian cada vez se sentiam mais profundamente envolvidos um com o outro e ele sabia‑o. Reconhecia que já quase se considerava como o verdadeiro pai da criança e, de certa maneira, sabia que Adrian estava a tentar protegê‑lo para ele não vir a sofrer se Steven chegasse à conclusão que cometera um erro que lamentaria para sempre.

            ‑ Não podes ser responsável por todos. Deixa que cada um de nós faça as suas opções e, se forem más, o problema continua a não ser teu. ‑ Depois pôs o jornal de lado e olhou‑a com ternura: ‑Amo‑te... quero o bebê... e se Steven voltar e mudar de idéias, teremos de enfrentar essa situação. Qual será a pior coisa que poderá suceder? Que ele consiga o direito de visitar o filho? Não é uma coisa assim tão terrível. Poderíamos aceitar isso. ‑ Mas de súbito, ao olhar para Adrian, ocorreu‑lhe uma idéia que o aterrorizou:

‑ Ou tu serias capaz de voltar para ele? ‑ perguntou, contendo a respiração. Ela abanou a cabeça após uma breve hesitação.

            ‑ Não o creio.

            Bill julgou desmaiar ao ouvir a resposta dela.

            ‑ Que queres dizer com isso?

            ‑ Quero dizer que não, que não estaria disposta. Mas dependeria das circunstâncias... de uma porção de coisas... Bill, eu já não o amo, se é nisso que estás a pensar. Amo‑te a ti. Mas não podemos pensar apenas em nós... há o bebê...

            ‑ E irias viver com um homem que já não amas, por causa de o teu filho ser dele também?

            ‑ Duvido. ‑ Mas não podia jurar que não fosse capaz de o fazer.

            Bill levantou‑se e saiu da mesa. Passaram alguns dias difíceis até que ambos se acalmaram. Finalmente, fizeram as pazes e o fim‑de‑semana foi passado praticamente todo na cama, a conversarem e a fazer amor, tentando explicar as Suas posições. Ela só queria ter a certeza de que Steven não mudaria de disposição e não reclamaria o bebê. Achava que ele devia pelo menos gostar de ver o filho quando ele nascesse. Bill não gostava da idéia, mas estava disposto a aceita-la. E depois da atitude de Steven no restaurante, considerava altamente improvável que ele quisesse ver o filho.

            ‑ E depois disso casarás comigo? ‑ perguntou Bill, muito sério. Adrian sorriu, encantada, quando ele lhe fez a pergunta.

            ‑ Sim. Se ainda me quiseres. ‑ Mas não queria que Bill dissesse aos filhos que iam casar logo que todos os pormenores estivessem esclarecidos, o divórcio consumado e de ela ter a Certeza de que Steven renegaria o filho. Bill achava que Steven não merecia que ela procedesse assim, mas estava disposto a esperar e sentia‑se entusiasmado com a idéia de casar com ela.

            ‑ Achas que os teus filhos se importarão? ‑ perguntou Adrian, preocupada. Ela começava a preocupar‑se com tudo, mas a médica explicara‑lhes que naquela fase da gravidez seria de esperar que sentisse ansiedade. Estava preocupada com o parto, com as dores, com a saúde do bebê, mas Bill sabia que ela se ressentia também com o divórcio e com a venda do apartamento. Aguentara‑se lindamente, porém agora começava a preocupar‑se com as mais pequenas coisas. E suspeitava que a obsessão dela por Steven fazia parte do mesmo processo.

            Adrian mostrava‑se ainda mais tensa do que habitualmente quando Adam e Tommy chegaram. Sentia‑se incomodada por recear que os dois garotos ficassem perturbados por causa do bebê. E decidiu ser sincera com eles. Adam e Tommy mostraram‑se realmente surpreendidos ao repararem na barriga dela quando ela e Bill os foram esperar ao aeroporto.

- Oh! ‑ exclamou Tommy, assombrado. ‑ Que aconteceu?

            ‑ Não faças perguntas dessas ‑ ralhou Adam.

            ‑ Vou ter um bebê ‑ explicou Adrian desnecessária mente. Isso era óbvio, mesmo para Tommy.

            ‑ É do papá? ‑ perguntou Tommy. Adam deu‑lhe um pontapé.

            ‑ Não. Não é ‑ explicou Adrian quando chegaram a casa e já bebiam chocolate quente na cozinha. ‑ É do meu ex‑marido. Ainda estamos a divorciar‑nos. De fato... Adrian queria ser totalmente sincera com eles e Bill dissera que a apoiaria ‑ ... de fato foi por isso que ele me deixou. Não queria o bebê. Por isso estamos a tratar do divórcio e ele vai perder todos os direitos sobre o bebê. ‑ Adrian disse isso com muita simplicidade e os dois garotos mostraram‑se chocados, especialmente Adam.

            ‑ Isso é horrível!

            ‑ Não é nada ‑ retorquiu calmamente Tommy. ‑ Se Adrian não se estivesse a divorciar não estaria conosco e não me podia ter salvo em Lake Tahoe, no Verão passado.

            ‑ Isso é verdade! ‑ Adrian riu. As crianças tinham maneiras de reduzir tudo a termos práticos.

            ‑ Quando nascerá o bebê? ‑ quis saber Adam.

            ‑ Em janeiro. Daqui a umas sete semanas.

            ‑ Falta pouco tempo. ‑ Adam parecia estar com pena dela: ‑ Onde é que vão viver? No apartamento? ‑ Mas dessa vez o pai interrompeu.

            ‑ Não. Aqui conosco, comigo. ‑ Sorriu: ‑ Vamos pôr o bebê no quarto de hóspedes.

            ‑ Vão‑se casar? ‑ perguntou Tommy com voz esperançosa. E Adam também não pareceu contrariado com a idéia.

            ‑ Provavelmente ‑ respondeu Bill. ‑ Mas por enquanto não. Precisamos de resolver a situação primeiro.

            ‑ Que bom! ‑ Tommy estava visivelmente satisfeito e Adam inclinou‑se para Adrian e abraçou‑a. Estava chocado com a história de o marido a ter abandonado e mais tarde disse ao pai que devia casar com ela antes de o bebê nascer.

            ‑ Não me esquecerei disso, filho. ‑ Depois acrescentou com seriedade: ‑ Também gostaria de o fazer, mas teremos de esperar que o divórcio se conclua.

            ‑ Quando será?

            ‑ Muito em breve. Dir‑lhes‑emos o que se passar.

            Pareciam demasiadas coisas para eles absorverem de uma vez, mas na manhã seguinte voltou a normalidade. A televisão passou a estar constantemente ligada, havia roupa por todo o lado, os rapazes conversavam e riam, e Bill preparava o pequeno‑almoço na cozinha. Parecia uma família. Tommy declarou que esperava que o bebê fosse um rapaz, porque as raparigas eram umas parvas, mas Adam sorriu e disse que gostaria dele quer fosse rapaz ou rapariga. Adrian ficou comovida com as palavras de Adam e as lágrimas vieram‑lhe aos olhos. Mais tarde, os dois rapazes saíram para ir dar um passeio com o pai e, quando voltaram, trouxeram‑lhe um ramo de flores. Adrian arrumou a casa enquanto eles estiveram fora e depois ajudou Bill a fazer o jantar do Dia de Ação de Graças. Correu tudo às mil maravilhas para todos, até que Bill ouviu Adrian a falar com a mãe no telefone da cozinha.

            ‑ Não ‑ dizia ela ‑, está em Londres em negócios. Adrian reparou na cara de Bill e quando ela desligou ele perguntou‑lhe:

            ‑ De quem estavas a falar? ‑ Mas sabia, sem que ela lho dissesse, que Adrian estava a mentir à mãe por causa de Steven

            ‑ Não quero perturbá‑la ‑ explicou Adrian. ‑ Nunca houve um divórcio na minha família e no dia de hoje não queria entristecê‑la.

            ‑ Trata‑se de uma coisa que se passou há seis meses, Adrian Já tiveste muito tempo para lhe dizer. ‑ Então ocorreu‑lhe outra idéia: ‑ Já lhe contaste acerca do bebê?

Adrian abanou a cabeça e Bill sentou‑se em frente dela e olhou‑a. Os dois rapazes já se tinham deitado e estavam a dormir. Bill falou em voz baixa: ‑ Que jogo é este que estás a jogar? Por que motivo o proteges?

            ‑ Não estou a protegê‑lo ‑ replicou Adrian com lágrimas nos olhos. ‑ Apenas não quero contar à minha mãe o que se passou. Ao princípio nada disse por que pensava que Steven voltaria para casa, e agora não sei como fazê‑lo. Direi mais tarde.

            Havia lágrimas nos olhos de Adrian. Era‑lhe difícil explicar a Bill que nunca se sentira muito ligada à família.

            ‑ Quando é que tencionas informar os teus pais? Depois de nascer o nosso terceiro filho? Ou quando o bebê se formar? Podias apenas dizer‑lhes que vais ter um filho.

            ‑ Por quê? ‑ Mas até ela própria compreendeu que a pergunta era estúpida.

            ‑ Então porque esperas? ‑ Olhou‑a de frente e, por momentos, Adrian teve medo. Bill parecia magoado e zangado: ‑ Estás à espera que ele volte, para não teres de dizer a ninguém que ele te deixou? ‑ Bill sabia que tocara num ponto vital, ao dizer aquelas palavras.

            ‑ Talvez ao princípio fosse isso... mas agora complicou‑se tudo. Como hei‑de explicar‑lhes?

            ‑ Alguma vez terás de o fazer... ‑ respondeu Bill.

A não ser que Steven voltasse para ela, claro. Mas Bill não queria voltar a falar do assunto e limitou‑se a acrescentar:

- Olha, é a tua vida... tu é que sabes... mas não compreendo o que estás a fazer.

            ‑ Às vezes, nem eu entendo, Bill ‑ murmurou Adrian.

‑ Lamento, Bill. Tudo se complicou quando Steven me deixou e eu não disse a ninguém. Ao princípio, sentia‑me embaraçada em dizê‑lo, depois tornou‑se demasiado tarde e agora é ridículo. Até os meus colegas de trabalho pensam que eu ando a enganar o meu marido. ‑ Adrian olhou‑o com um sorriso triste e ele puxou‑a para si.

            ‑ Às vezes pões‑me doido, mas talvez seja por isso que te amo.

            ‑ E é por isso que Harry ama Helen, que era a melhor amiga de... ‑ Adrian começou a rir e Bill atirou‑lhe o pano da louça à cara enquanto metia na máquina os últimos pratos.

            ‑ Acaba com isso, Adrian. Parece que estás a recitar os versículos da Bíblia.

            ‑ Desculpa, Bill... às vezes complico tudo.

            ‑ Todas essas coisas hão‑de ser resolvidas mais cedo ou mais tarde ‑ respondeu Bill, desejando de todo o coração que isso acontecesse o mais depressa possível.

 

            O fim‑de‑semana prolongado a seguir ao Dia de Ação de Graças passou‑se depressa. Agora que os filhos de Bill sabiam que Adrian vivia ali e ia ter um bebê ainda tinham mais coisas em que falar. Adam sentia‑se especialmente fascinado com a situação e queria tocar na barriga de Adrian para sentir o bebê mexer. Ficava encantado quando sentia os movimentos repetidos do bebê e olhava Adrian com uns grandes olhos muito abertos, o que fazia Bill sorrir.

            ‑ É engraçado, não é? ‑ O próprio Bill se sentia maravilhado de cada vez que sentia os pezinhos do bebê.

            E acharam todos muita graça quando, ao prepararem‑se para sair para irem dar um passeio pelo parque, Adrian não conseguir apertar os atacadores das sapatilhas.

            ‑ Tenho a sensação de me estar a debruçar sobre uma bola de praia.

            ‑ Também eu ‑ murmurou Bill ao ajoelhar para lhe apertar os sapatos. ‑ Continuavam a fazer amor sempre que tinham energia e tempo para isso, mas pela mesma razão que a levava a não poder tocar nos pés, isso tornara‑se quase um desafio. ‑ Isto só a mim me podia acontecer! exclamou Bill, rindo, sentado no chão. Adrian olhava‑o por cima da enorme barriga.

            ‑ O quê?

            ‑ Apaixonar‑me por uma mulher grávida de oito meses.

            Adrian riu, achando graça também. A situação era realmente invulgar.

            ‑ Talvez possas aproveitar o nosso caso para a série. Talvez Harry possa abandonar Helen e ela apaixonar‑se por outra pessoa ‑ sugeriu Adrian, vestindo um dos grandes camisolões de Bill.

            ‑ Ninguém acreditaria numa coisa destas ‑ disse Bill, sorrindo. E saíram para irem jogar à bola com os dois garotos em Penman Park.

            No dia seguinte, Tommy e Adam voltaram para Nova Iorque e a casa ficou novamente silenciosa sem eles. Nas agora havia muita coisa a fazer antes do Natal. Adrian estava assoberbada com trabalho e Bill continuava atarefadíssim0 com a sua série, pois tudo se tornava mais premente com a proximidade do Natal. As pressões da sua própria vida combinadas com os traumas imaginários da história criada por Bill, pareciam interligar‑se. Adrian atarefava‑se com o enxoval e com o quarto para o bebê. Todas as noites, quando vinha a casa entre os dois noticiários, passava horas preocupada com pormenores da decoração e em arrumações. Quisera até ser ela a colocar as cortinas.

            ‑ Deixa‑me fazer isso! ‑ Bill estava sempre a impedir que ela subisse ao escadote e carregasse pesos. Fora ele próprio quem armara o berço. E olhavam um para o outro, rindo, quando ficavam cansados. A excitação ia aumentando a cada dia que passava. Adam e Tommy andavam excitados também. Nenhum deles se mostrara aborrecido com o nascimento do bebê. Pelo contrário, tinham pena de Adrian, por ter sido abandonada pelo marido, e gostavam da idéia de haver um bebê em casa do pai. Sempre que telefonavam, a primeira coisa que perguntavam era se o bebê já tinha nascido. Bill prometera telefonar‑lhes imediatamente, dizendo‑lhes que eles seriam os primeiros a saber. Queriam que fosse um rapaz, mas Bill preferia secretamente uma menina, embora isso para ele não tivesse importância.

            Assistiram à primeira aula de ginástica de preparação para o parto logo depois dos feriados do Dia de Ação de Graças. Adrian conseguira lugar numa aula que começava logo após o noticiário das seis horas. Iam lá mais uma dúzia de casais, os quais, exceto um, se preparavam para ser pais pela primeira vez. Adrian não se sentia muito à vontade a fazer aquele gênero de ginástica numa sala cheia de pessoas desconhecidas. Mas Bill e a médica tinham insistido em que isso a ajudaria.

            ‑ Me ajudaria em quê? ‑ perguntou Adrian, enquanto comia uma sanduíche de peru feita com o que restara do jantar. Tinha de voltar para o trabalho logo a seguir à aula, para a última emissão. ‑ O bebê sairá de qualquer maneira, quer eu sopre ou não.

            ‑ Ajudar‑te‑á a relaxar ‑ disse ele calmamente.

            Adrian olhou‑o quase com ciúmes, enquanto comia os picles.

            ‑ Também fizeste isto com a Leslie? ‑ Começava a aborrecê‑la o fato dele já ter feito tudo aquilo antes e parecer saber muito mais acerca dos mistérios da gravidez do que ela.

            Bill mostrou‑se muito vago. Não gostava de comparar a sua vida anterior com aquela. Agora era diferente de tudo quanto ele partilhara com quem quer que fosse... era algo de único.

            ‑Sim.... mais ou menos... ‑ foi tudo quanto disse. Porém, continuou a insistir em que a aula de ginástica de preparação para o parto merecia a pena ser freqüentada.

            ‑ Continuo a pensar que preferia ter o bebê em casa. Era um refrão que Bill já ouvira muitas vezes, mas nem queria pensar em tal coisa.

            Pararam o carro no parque de estacionamento do hospital e entraram no edifício atrás de um grupo de mulheres grávidas. Subiram ao terceiro andar onde todas se reuniram acompanhadas pelos respectivos maridos. Foram então convidadas a sentar‑se em tapetes, de pernas cruzadas, a fim de se apresentarem mutuamente. Havia duas professoras, uma enfermeira, duas donas de casa, uma secretária, uma empregada dos correios, uma instrutora de natação que parecia estar em excelente forma, uma cabeleira, uma música e uma afinadora de pianos. E os maridos tinham também atividades muito diversas. Adrian e Bill pareciam ser os mais sofisticados, mas ambos disseram apenas que trabalhavam na TV, na área da produção, e ninguém ficou impressionado. A única coisa que aqueles casais tinham em comum era o fato de as mulheres estarem grávidas. Até as idades eram muito diferentes. Das duas mulheres que não trabalhavam, uma era ainda estudante e tinha dezenove anos. O marido tinha vinte. E a empregada dos correios tinha quarenta e dois anos, o marido cinqüenta e três e iam ter o primeiro filho. No espaço entre estes dois extremos, as idades variavam entre os vinte e os trinta e tal. Adrian sentia‑se interessada por todas essas pessoas tão diferentes e passou mais tempo a observá‑las do que a fazer exercícios, até que foram convidadas a parar para um "intervalo para o café". As mulheres beberam água ou sumos, e os homens café ou chá. Todos se mostravam um pouco nervosos.

            O instrutor dirigiu‑se‑lhes então e assegurou‑lhes que, se praticassem bastante, as técnicas de respiração poderiam ajudar durante o parto. E para ilustrar o que dizia mostrou‑lhes um filme de um parto natural em que a parturiente utilizava o método de respiração Lamaze, do princípio ao fim. E, enquanto via a mulher no ecrã a torcer‑se com dores, Adrian apertava a mão de Bill com horror. Era o segundo filho dessa mulher, explicou o instrutor. O primeiro parto fora "sem dor" disse com desdém. E aquele parto, com a ajuda das técnicas de respiração, era um melhoramento. Observavam cada passo do processo de dar à luz, ouviam cada gemido e Adrian achou que a descrição do que se estava a passar era tudo menos reconfortante. A parturiente parecia que ia morrer e, finalmente, soprando sempre e depois fazendo força até ficar com o rosto todo vermelho, a mulher soltou um longo gemido e uma série de gritos e logo a seguir apareceu entre as pernas dela um pequeno rosto vermelho, ao mesmo tempo que a mulher chorava e ria. Era uma menina. A mulher deitou a cabeça para trás, vitoriosa, enquanto o marido sorria e ajudava a cortar o cordão umbilical. Então as luzes acenderam‑se. O filme acabara. Adrian estava horrorizada com o que vira e não disse uma única palavra até se encontrar de novo no carro de Bill, para regressar ao trabalho.

            ‑ Então ‑ disse Bill calmamente ‑ que dizes? ‑ Via bem que ela ficara perturbada, mas não fazia idéia até que ponto. Só percebeu isso quando a viu olhar para ele com uma expressão aterrorizada.

            ‑ Quero fazer um aborto. ‑ Bill quase riu, mas inclinou‑se e beijou‑a. Achara o filme muito radical. Devia haver maneira de fazer com que o parto parecesse menos assustador. E não sabia se seria boa idéia mostrar um filme daqueles a mulheres que iam ter o seu primeiro filho.

            ‑ Vais ver que não será tão mau como parece ‑ disse ternamente. Amava‑a mais do que nunca. Só queria que tudo corresse bem e que ela tivesse um bebê saudável. Lembrava‑se ainda do que Leslie passara quando Adam nascera. Mas com Tommy já fora mais fácil. Esperava que o pouco que ele aprendera e ainda recordava servisse de alguma coisa para a ajudar. A única coisa que detestava era a perspectiva de a ver sofrer.

            ‑ Como sabes que não vai ser tão mau? retorquiu Adrian. ‑ Já tiveste algum bebê? Viste a cara daquela mulher? Julguei que ela ia morrer, quando estava a fazer força.

            ‑ Também eu. O filme não prestava. Esquece‑o.

            ‑ Não volto ao hospital.

            ‑ Isso não resolverá coisa alguma. Aprende ao menos a técnica da respiração, para eu te poder ajudar.

            ‑ Quero uma anestesia geral ‑ declarou Adrian, decidida.

            Mas quando falou no assunto a Jane, a sua médica, ela apenas sorriu com simpatia.

            ‑ Só fazemos isso em casos muito raros, numa emergência grave, quando não temos tempo para fazer uma cesariana com uma epidural. E não há qualquer razão para pensar que vá ter problemas, Adrian. Continue a ir às aulas de ginástica e vai ver como o parto será fácil.

            ‑ Não quero ter o bebê ‑ repetia Adrian para Bill, enquanto se dirigiam para o carro, ao saírem do consultório da médica.

            ‑ É um pouco tarde para isso, querida ‑ respondeu calmamente. Adrian trazia um vestido cor‑de‑rosa e o cabelo preso num rabo‑de‑cavalo. Parecia uma criança aterrorizada com a idéia de ter o bebê, sobretudo desde a primeira aula. Tinham já assistido a duas.

            ‑ A respiração não resulta. Nem sequer me lembro de como se faz.

            ‑ Não te preocupes. Vamos praticar. ‑ Nessa noite fê‑la deitar‑se e agir como se tivesse uma contração. Ele fingia controlar a duração da dor, enquanto ela experimentava a técnica da respiração. Mas a meio do ensaio ela meteu‑lhe a mio nas calças e começou a fazer‑lhe cócegas.

            Vamos fazer outra coisa disse Adrian com um brilho malicioso no olhar, atacando‑o.

‑ Adrian... a sério. Pára com isso!

‑ É a sério, mas não a respeito da respiração.

            ‑ Foi isso que te meteu nestes apuros.

            ‑ Talvez tenhas razão. ‑ 'Tentou voltar‑se de barriga para baixo mas não conseguiu. A barriga estava cada vez maior e o bebê era muito mexido, principalmente durante a noite. Só parecia descansar de madrugada. ‑ Talvez seja melhor eu continuar grávida. É muito difícil fazer com que ele saia daqui. ‑ Era como construir um transatlântico na cave.

            ‑ Não me importo de voltar a ver‑te magra ‑ murmurou Bill. ‑ Tinhas uma linda figura quando te conheci.

            ‑ Obrigada ‑ disse Adrian, voltando à anterior posição de costas como uma baleia que tivesse dado à praia. Deitada, daquela maneira, Adrian parecia enorme. ‑ Não gostas da minha figura agora? ‑ Adrian falou meio a sério, meio a brincar, e Bill percebeu que precisava de ter cuidado com a resposta. Ficou deitado ao lado dela, de barriga para baixo, e soergueu‑se apoiando‑se nos cotovelos para a beijar.

            ‑ Acho que és a mulher mais bonita que eu conheço, grávida ou não.

            ‑ Obrigada. ‑ Adrian sorriu com as lágrimas nos olhos e depois pôs‑lhe os braços em volta do pescoço, como uma criança enquanto as lágrimas transbordavam. ‑ Estou assustada ‑ confessou, e as palavras dela tocaram‑lhe no coração.

            ‑ Sei que estás, querida, mas vai tudo correr bem. Prometo.

            ‑ E se não correr? Se me acontecer qualquer coisa a mim... ou ao bebê? ‑ Parecia estúpido, mas ela tinha medo de morrer. Pensava na mulher do filme, a gritar com dores terríveis. Nunca ninguém lhe dissera que seria assim. Julgara que o bebê saía com facilidade. Não fazia idéia de que pudesse ser tão doloroso.

            ‑ Não te vai acontecer nada, nem a ti nem ao bebê. Não deixarei. Estarei sempre junto de ti, dando‑te a mão e ajudando‑te. E tudo se passará num instante.

            ‑ É realmente assim tão mau? ‑ Adrian fitou‑o ansiosamente, mas Bill não lhe podia contar como fora difícil para Leslie. Ele quase enlouquecera por a ver sofrer.

            ‑ Nem sempre. Creio que para algumas mulheres é bastante fácil.

            ‑ Sim, se tiverem ancas da largura do canal do Panamá

‑ respondeu tristemente Adrian, porque ela não as tinha.

            ‑ Vai correr bem. ‑ Beijou‑a meigamente nos lábios e ela meteu‑lhe as mãos por baixo da camisa e tocou‑lhe nos ombros, depois passou‑lhe as mãos pelas costas e ele sentiu um tremor de excitação. Beijaram‑se, enquanto ele lhe passava docemente as mãos sobre o corpo. Então Bill sorriu no meio das carícias ardentes. ‑ Devia ser morto por estar a molestar uma mulher no teu estado.

            ‑ Não, não devias ‑ murmurou Adrian e Bill surpreendeu‑se ao ver como ela ainda o excitava. Deitou‑se então de costas e puxou‑a para cima de si, enquanto tirava as roupas. E, meia hora mais tarde, encontravam‑se estendidos lado a lado, exaustos e ele olhava‑a com remorsos. Sentia‑se aterrorizado com receio de a fazer entrar em trabalho de parto, mas a médica não lhe recomendara que não tivessem relações.

            ‑ Estás bem? ‑ perguntou nervosamente, olhando‑a como se ela pudesse explodir a qualquer momento.

            ‑ Nunca estive melhor. ‑ Adrian olhou‑o, parecendo embriagada e depois começou a rir.

            ‑ Sou repugnante ‑ disse Bill, observando‑a. ‑ Não devia ter feito isto.

            ‑ Devias sim. Gosto muito mais de fazer amor contigo do que de ter o bebê. E pelo menos não posso ficar grávida.

            Bill franziu a testa:

            ‑ Julguei que me tinhas dito que eras virgem.

            ‑ E sou ‑ replicou Adrian, feliz. Parecia‑lhe um milagre manterem uma relação tão apaixonada estando ela grávida de mais de oito meses.

            ‑ Queres tentar a respiração outra vez? ‑ perguntou Bill. Queria fazer alguma coisa para se redimir da sua paixão desenfreada.

            ‑ Julguei que já tínhamos feito os nossos exercícios de respiração ‑ respondeu tranquilamente Adrian. Depois Olhou para o relógio com ar desanimado. Eram dez horas e ela devia voltar ao trabalho para o noticiário da noite. Estava ainda a planear trabalhar a tempo inteiro até à altura do parto. Zelda já se oferecera para a substituir, quando fosse preciso, mas Adrian ainda a não chamara. Tencionava iniciar a sua licença de parto no dia em que o bebê nascesse. Bill Já lhe dissera que ela estava a exagerar.

            ‑ Porque não descansas umas semanas antes do parto? sugerira ele.

            ‑ Terei muito tempo para descansar depois de o bebê nascer.

            ‑ Isso é o que tu pensas. ‑ Sorriu. Lembrava‑se muito bem das noites sem dormir, do sono interrompido para alimentar o bebê que queria comer de duas em duas, ou de três em três horas. Tentou dizer‑lhe isso, mas ela teimou em trabalhar até ao fim. Sentia‑se bem e insistia em que precisava da distração que o trabalho lhe proporcionava. Mas Zelda sentia‑se incomodada sempre que a via chegar para trabalhar.

            ‑ Como é que consegues andar de um lado para o outro com isso? ‑ perguntou, apontando para a barriga de Adrian. ‑ Não dói?

            ‑ Não respondeu Adrian, sorrindo. ‑ Habituamo‑nos a isso.

            ‑ Espero que não ‑ retorquiu Zelda com simpatia. Era algo totalmente estranho para ela e não sentia qualquer desejo de o tornar familiar. Não desejava ter filhos. Nem sequer um marido. Gostava muito de Bill, mas confessara a Adrian que estar com eles a enervava. Era como se fossem casados. Mas sentia‑se feliz por Adrian. Ninguém mais do que ela merecia um bom homem e Zelda não tinha dúvidas de que Bill o era. Não se parecia nada com aquele patife do Steven. Encontrava‑o de vez em quando. Ele freqüentava o mesmo ginásio que ela, mas parecia não a ter reconhecido. Zelda vira‑o várias vezes com raparigas diferentes, todas novas e bonitas, mas tinha a certeza de que nenhuma delas sabia que ele abandonara a mulher devido à gravidez.

            Zelda perguntara uma ou duas vezes a Adrian se voltara a ter notícias de Steven e ela limitara‑se a abanar a cabeça. Percebera então que se tratava de um assunto que sensibilizava Adrian e deixara de lhe fazer perguntas.

            Bill levou Adrian ao trabalho, nessa noite, como fazia sempre, nos últimos tempos, indo ele trabalhar também para o seu escritório enquanto esperava por ela. Quando concluía o seu trabalho, Adrian ia ter com ele e, por vezes, ficavam um bocado a conversar ali. Nunca lhes faltava assunto de conversa, nem idéias para discutirem em conjunto, ou novos enredos para a série. Formavam um par perfeito em muitos aspectos e passavam bons bocados, na cama e fora dela. Nessa noite, quando se dirigiram para o elevador, iam ambos a rir, mas de repente ela parou com uma expressão estranha.

            ‑ Que se passa? ‑ perguntou Bill, preocupado.

            ‑ Não sei... ‑ Adrian encostou‑se a ele, surpreendida com o que sentira. Toda a barriga se tomara dura como uma pedra e parecia estar a ser apertada num torno. Sabia do que se tratava por causa da descrição feita na aula de ginástica. Creio que tive uma contração. ‑ Parecia assustada e ele passou‑lhe um braço por cima dos ombros. Mas a dor passara e ela estava bem, embora o olhasse com uma expressão de pânico.

            ‑ Tens trabalhado de mais. Precisas de abrandar, ou o bebê nascerá mais cedo.

            ‑ Não pode fazer isso. Ainda não estou preparada. O quarto do bebê estava quase pronto, mas a cabeça dela ainda não se preparara para o que tinha de enfrentar. Quero gozar o Natal antes de o ter.

            ‑ Então pára de te cansares ‑ insistiu. ‑ Diz‑lhes que não podes continuar a fazer o noticiário da noite. Eles compreenderão. Que diabo, estás grávida de oito meses. E Adrian nem sequer sabia se voltaria a trabalhar ali. Durante a licença de parto decidiria se iria trabalhar com Bill, mas ainda a assustava um pouco ficar tão dependente dele.

            Foram para casa e, durante o trajeto de carro, Adrian teve mais duas contrações. Mas quando chegaram a casa, Bill deu‑lhe um cálice de vinho branco e, milagrosamente, as contrações desapareceram. Adrian mostrou‑se encantada. Receava que o bebê fosse nascer naquela altura.

            ‑ Resultou ‑ disse.

            ‑ Claro que sim. ‑ Parecia satisfeito consigo mesmo ao beijá‑la. Então, de repente, sentiu‑se culpado. ‑ Talvez já não devêssemos fazer amor. ‑ Pensava se o que tinham feito antes teria provocado as contrações.

            ‑ A médica não falou nisso. E creio que estas são contrações preliminares para prepararem as coisas.

            ‑ Quanto mais contrações tiveres agora, mais fácil será.

            ‑ Ótimo. Então façamos amor outra vez. ‑ Acabou de beber o vinho e sorriu‑lhe, fazendo lembrar um gnomo com uma enorme barriga.

            ‑ Estás a ser perversa ‑ respondeu Bill. E o mais terrível era ele apetecer‑lhe fazer amor com ela. Apetecia‑lhe fazer amor com ela a toda a hora. Como podia ele desejar uma mulher grávida de oito meses? Mas sentia que cada vez a amava mais e ela parecia‑lhe mais amorosa assim. Era vulnerável, meiga e precisava do amor dele. Inclinou‑se e beijou‑a mas conseguiu evitá‑la quando ela tentou mostrar‑se sexy.

            ‑ Pára com isso, Adrian, se não queres ter três bebês ao mesmo tempo.

            ‑ Era uma idéia ‑ replicou Adrian, mas logo a seguir ficou quieta quando pensou no parto. ‑ Aposto que deve doer. E se eu tiver gêmeos sem saber?

            ‑ Podes ter a certeza de que se saberia se assim fosse. Hoje em dia, é fácil ver‑se isso. ‑ Adrian preocupava‑se com tudo e parecia ir uma dúzia de vezes ao futuro quarto do bebê durante a noite, verificando se tudo estava no lugar, ou indo alterar qualquer pormenor. Bill comovia‑se por a ver assim e pensava que Steven fora um idiota por a abandonar. Mas o que tanto significava para Bill não representava coisa alguma para Steven.

            Bill forrara as paredes do quarto que iria ser para o bebê com um papel branco salpicado de estrelinhas azuis e cor de rosa, com uma orla azul e rosa também. A cama e o resto da mobília do quarto de hóspedes fora guardada na arrecadação, na cave do prédio. Bill acompanhara Adrian na compra da mobília do quarto do bebê, logo no início de dezembro. Finalmente, uma semana antes do Natal, ficou tudo pronto. Compraram também uma árvore de Natal e decoraram‑na com enfeites antigos, arandos e pipocas.

            ‑ Gostava que os meus filhos vissem isso ‑ disse orgulhosamente. Era uma linda árvore de Natal e o apartamento exibia um ar alegre e festivo. Adam e Tommy tinham ido esquiar com a mãe para o Vermont e Adrian e Bill tinham falado várias vezes com eles antes de partirem. Mas Bill tinha pena de não passar o Natal com eles. Só viriam em Fevereiro, para as férias da Primavera e, nessa altura, iria ser bom. O bebê teria então três semanas de idade e Adrian já estaria completamente recomposta, não falando nas noites mal dormidas, claro. Adrian estava decidida a alimentar o filho e por isso iam deixá‑lo a dormir numa cestinha junto da cama deles, para que ela não tivesse de se levantar de cada vez que o bebê quisesse mamar.

            Adrian arranjou um dia de folga para concluir as suas compras de Natal, pois para eles seriam duas festas. Bill fazia quarenta anos no dia de Ano Novo e ela comprara‑lhe um bonito relógio de pulso na Cartier, em Rodeo Drive. Custara‑lhe uma fortuna, mas merecia‑a. Era uma coisa que ele poderia usar o resto da vida e fora desenhado segundo um modelo feito para um sultão nos anos 20, por isso se chamava apropriadamente "Paxá". Adrian sabia que ele iria gostar. E para o Natal comprara‑lhe um minúsculo telefone portátil que se dobrava e cabia num estojo do tamanho de uma gilete. Era uma engenhoca perfeita para Bill, visto ele gostar de estar acessível em qualquer altura, e a equipe que trabalhava com ele na série passava a vida à sua procura quando não se encontrava presente. Comprara‑lhe também outras coisas, uma camisola, uma água‑de‑colônia, um livro que ele admirara numa montra, sobre filmes antigos, e um televisor minúsculo que ele poderia ver na casa de banho ou no carro, se tivesse de ir a qualquer sítio, mas não quisesse perder o seu programa. Adrian passara uma tarde maravilhosa a fazer compras para ele. Posteriormente tinham ido ambos comprar prendas para Adam e Tommy, para lhes serem enviadas muito antes do Natal. Bill comprara esquis e botas de esquiar para os dois filhos e Adrian comprara‑lhes belas parkas adequadas para a neve e um jogo eletrônico para cada um. Poderiam jogar com eles no carro, quando, no verão seguinte, fossem todos para férias. Mas dessa vez haviam já decidido ir passar um mês ao Hawai e, com essa finalidade, alugarem com a devida antecipação um apartamento ali. Sentiam‑se agora menos entusiasmados com a perspectiva de acampar novamente em Lake Tahoe.

            Faltavam três dias para o Natal e Adrian estava a fazer os embrulhos. Queria concluir o seu trabalho antes de Bill chegar. Nessa noite iam à festa de Natal anual onde se reuniam todos os que trabalhavam no espetáculo de Bill. Adrian queria esconder os presentes. Guardara‑os quase todos no berço do bebê e tapara‑os com o edredom. Sorria para si própria ao embrulhar o pequeno telefone. Sabia que Bill iria gostar dele e que não o comprara para não gastar tanto dinheiro consigo mesmo. Era bom poder comprar‑lhe todas aquelas coisas. Quando acabou o seu trabalho, Adrian foi buscar o correio e ficou surpreendida quando viu um sobrescrito da Câmara. Abriu‑o sem pensar e soltou uma exclamação abafada quando viu o que continha.

            O seu divórcio ficara concluído a 21 de dezembro. Já não era casada com Steven, e apesar de ele não lhe poder tirar o nome, exprimira a sua preferência de que ela deixasse de o usar. E os documentos que referiam a sua desistência de todos os direitos paternais sobre o bebê que estava para nascer encontravam‑se também ali. Legalmente, o filho de Adrian já não era de Steven. Pertencia apenas a Adrian. O bebê não tinha um pai legítimo. E o nome de Steven Townsend não apareceria na certidão de nascimento, tal como o advogado dele lhe explicara no Verão anterior. Adrian ficou sentada durante muito tempo a olhar para os papéis e os olhos encheram‑se‑lhe de lágrimas, molhando‑lhe as faces. Era tolice deixar‑se impressionar passado tanto tempo, disse Adrian a si própria. Não se tratava de uma surpresa. Já o esperava. E, contudo, ficara magoada. Era a rejeição total, completa. Steven rejeitara‑a completamente, a ela e ao bebê.

            Adrian guardou calmamente os papéis numa das gavetas da secretária de Bill. Pensou nele. Bill partilhara desinteressadamente com ela tudo quanto tinha, o seu coração, o seu apartamento, a sua cama, a sua vida e estava até disposto a ajudá‑la a criar o bebê. Era espantosa a diferença entre os dois homens, totalmente opostos de todas as maneiras e. contudo, ela sentia ainda tristeza por causa de Steven e ainda desejava que ele pudesse gostar do bebê.

            Bill chegou a casa quando ela se estava a vestir e, como de costume, notou logo que algo se passara. Julgou que ela estivesse outra vez preocupada por causa do bebê, pois ultimamente Adrian mostrava‑se ansiosa, com receio de que o filho não fosse normal. Tinham‑na avisado nas aulas de preparação para o parto que todos esses receios eram normais e não significavam qualquer espécie de pressentimento.

            ‑ Estás outra vez com contrações? ‑ perguntou Bill ao ver que ela estava perturbada com qualquer coisa.

            ‑ Não, estou bem. E decidiu contar‑lhe sem rodeios, como sempre fazia: ‑ Os papéis do meu divórcio chegaram hoje. E a renúncia aos direitos paternais. É tudo oficial.

            ‑ Podia dar‑te os parabéns, mas não o farei. ‑ Olhou‑a atentamente. ‑ Sei o que isso significa, mesmo quando se espera. É sempre um choque. ‑ Abraçou‑a ternamente e beijou‑lhe as faces molhadas pelas lágrimas. ‑ Lamento, querida. Não é agradável para ti numa altura destas. Mas um dia será apenas uma recordação e já não terá importância.

            ‑ Espero que sim, mas senti‑me tão mal quando os recebi! Não sei... mas foi como se tivesse sido expulsa da escola, por ter feito qualquer coisa errada.

            ‑ Não foste tu que procedeste mal. Foi ele ‑ lembrou Bill. Adrian, sentada à beira da cama, limpava os olhos.

            ‑ Não sei... sinto que fiz algo mal feito... para ele não querer o bebê... devo realmente não ter sabido fazer bem as coisas.

            ‑ Por aquilo que me contaste, não creio que pudesse ser diferente. Se esse homem tivesse alguma humanidade, há muito que se teria arrependido. ‑ E não precisava de lhe recordar que Steven não o fizera. Nem sequer se dignara falar‑lhe quando a encontrara no restaurante, em Outubro. Que espécie de homem seria capaz de fazer isso? Um verdadeiro sacana, um egoísta, foi a resposta silenciosa de Bill. ‑ Só tens que atirar isso para trás das costas. ‑ Adrian disse que sim com a cabeça. Sabia que ele tinha razão, mas, de qualquer maneira, era duro. Nessa noite, durante a festa de Natal, Adrian manteve‑se calada e ficou sentada a um canto. Toda a gente estava bem‑disposta e até um pouco mais do que "alegre". Subitamente, ela sentiu‑se gorda, feia e desconfortável. Bill reparou que ela estava deprimida e saiu cedo da festa para a levar para casa. Os outros compreenderiam. E se não compreendessem, paciência. Adrian era a sua principal preocupação. Quando se foram deitar, Adrian estava a sentir contrações outra vez, mas nessa ocasião não mostrou o mais pequeno interesse em fazer amor com ele.

            ‑ Agora vejo que estás realmente deprimida ‑ gracejou ele. ‑ Pode ser até que o bebê esteja a chegar. Queres que chame a médica?

            Bill fingia‑se exageradamente preocupado e isso fê‑la rir, mas Adrian continuou com ar triste. A cestinha do bebê, coberta de renda branca, estava já a um canto do quarto, pronta. A data do nascimento estava marcada para daí a duas semanas e meia e Adrian continuava muito nervosa. Até então, as aulas de preparação para o parto não a tinham tranqüilizado, embora as informações que aí davam fossem abundantes e úteis. Mas as realidades do nascimento ainda a aterrorizavam. Todavia, nessa noite, Adrian nem sequer estava a pensar nisso. Pensava apenas em Steven, no divórcio, e no fato de o bebê não ter um pai legítimo.

            ‑ Tenho uma idéia ‑ disse Bill, sorrindo. ‑ uni pouco inusitada, mas não totalmente inadequada. Casemos no Natal. Temos três dias para fazermos o teste sanguíneo e para obtermos a licença. Creio que é tempo suficiente. E tudo isso custa dez dólares. Pode ser que eu consiga arranjar esse dinheiro. ‑ Bill olhou‑a com ternura e, apesar de estar a brincar, a proposta era séria.

            ‑ Isso não está certo ‑ disse ela tristemente.

            ‑ O quê, os dez dólares? Se for mais, tentarei arranjar o resto.

            ‑ Não. Estou a falar a sério. Não é justo que cases comigo por teres pena de mim. Tu mereces mais e Adam e Tommy também.

            ‑ Oh, por amor de Deus! ‑ exclamou Bill deitando‑se para trás com um gemido. ‑ Não queiras salvar‑me de mim próprio. Sou um rapaz crescido, sei o que faço e acontece que te amo.

            ‑ Eu também te amo ‑ respondeu Adrian com ar fúnebre. ‑ Mas não é justo.

            ‑ Para quem?

            ‑ Nem para ti, nem para Steven, nem para o bebê.

            ‑ Importas‑te de me explicar por que caminhos neuróticos, tortuosos, conseguiste chegar a essa conclusão?

            Às vezes Adrian exasperava‑o, sobretudo ultimamente, por se preocupar com demasiadas coisas e sentir a obrigação de ser justa para toda a gente... para com ele... para com o bebê... e até mesmo para com o malandro do Steven.

            ‑ Não quero que cases comigo sentindo que me deves alguma coisa, ou por obrigação de me ajudares, ou mesmo para que o bebê tenha um pai. Quando te casares deve ser por o quereres fazer, não por teres de o fazer, ou por pensares que deves isso a alguém.

            ‑ Ainda não te disseram que és tolinha? Bonita... sexy... com umas belas pernas... mas completamente tola. Não te estou a pedir para casares comigo por obrigação. Sucede que estou loucamente apaixonado por ti desde há seis meses, ou ainda não deste por isso? Não sei se te lembras que sou o tipo que vive contigo desde o Verão passado, o pai do garoto que tu salvaste, ou melhor dos garotos que te adoram.

            Adrian ficou satisfeita com o que ele disse, mas continuou a abanar a cabeça.

            ‑ Mesmo assim não é justo.

            ‑ Para quem?

            ‑ Para o bebê.

            Bill olhou‑a então quase com dureza. Já conhecia aquele argumento e não gostava dele.

            ‑ Ou estarás a dizer que não é justo para Steven?

            Adrian hesitou um momento e depois disse que sim com a cabeça. Sentia‑se também na obrigação de o salvar de si próprio.

            ‑ Ele não sabe o que está a perder. Tem de ter oportunidade de compreender essa decisão, de pensar claramente depois de o bebê nascer, antes de eu o deixar de fora para sempre.

            ‑ A lei parece não concordar contigo. Esses documentos foram aprovados. Ele deixou de ter qualquer poder sobre esse bebê.

            ‑ Legalmente, é certo. Mas moralmente? Tens a certeza de que tens razão?

            ‑ Meu Deus, já não sei o que te hei‑de dizer mais! Bill saiu da cama e começou a andar de um lado para o outro no quarto, olhando de vez em quando para ela, e quase tropeçando na cestinha do bebê. ‑ Só sei uma coisa... tudo o que tenho feito por ti é porque te amo... e te amo... e te amo, a ti e ao bebê. Não preciso de esperar para o ver, ou decidir se é bonito ou feio, nem tenho de medir a minha temperatura emocional no dia em que ele nascer. Ele é, tu és e eu sou, nós somos exatamente aquilo que eu sempre desejei. Estou a dizer‑te que quero casar contigo, para o melhor e para o pior, na saúde e na doença, para sempre. É tudo quanto eu quero. Apenas a ti e a ele. E nos últimos sete anos senti‑me demasiadamente assustado para poder oferecer isto fosse a quem fosse. Mesmo demasiado assustado para pensar nisso. Porque, como já te disse, não queria voltar a gostar assim de ninguém, para não ver a mulher que eu amasse deixar‑me e levar os meus filhos. O bebê que aí tens não é meu, é dele, como tu não te cansas de me dizer, mas gosto dele como se fosse meu e não quero perdê-lo. Não quero brincar contigo. Não quero ficar aqui sentado à espera que Steven venha e me leve tudo o que agora amo. Não creio que ele o faça, é certo, e também já to disse. Mas também não vou ficar à espera com a minha porta aberta para sempre, aguardando que ele recupere o juízo, ou se aborreça com as "bimbas" da vida dele e venha buscar‑te a ti e ao bebê. Quanto a mim ele não pode ter‑te. Mas se ele te quer e tu o queres a ele, é melhor decidirem‑se depressa. Desejo que continuemos a nossa vida juntos, desejo casar contigo e adotar esse bebê que trazes dentro de ti há nove meses e que eu tenho sentido mexer‑se. Não vou ficar de braços cruzados e o coração aberto para ti para sempre. Por isso, se queres falar de ser justo e leal, vamos falar disso mesmo. O que é justo? Durante quanto tempo? Durante quanto tempo achas que eu deva ser "leal" para com Steven?

            ‑ Não sei.

            Adrian estava impressionada por tudo o que ele dissera e amava‑o mais do que nunca. Queria ficar com ele, viver com ele para sempre, mas continuava a achar que devia esperar. Mas Bill tinha razão. Não podia esperar para sempre.

            ‑ O que é que te parece justo? Uma semana? Um mês? Um ano? Queres dar-lhe um mês após o nascimento do bebê e certificares‑te, por intermédio do advogado dele, que ele não quer qualquer contacto com a criança? Isto parece‑te razoável? ‑ Bill tentava ser compreensivo, mas por vezes ela punha‑o doido.

            ‑ Eu não vou voltar para ele ‑ explicou Adrian. Sobre isso já não restavam quaisquer dúvidas na cabeça dela. Mas, às vezes, Bill não tinha a certeza. Ainda se preocupava com isso quando ela falava em não ser justo para com Steven. E as mulheres tinham por vezes uma estranha complacência para com os pais dos seus filhos. Não se passava o mesmo com os homens, que nunca podiam ter a certeza absoluta se os filhos eram deles. Mas as mulheres podiam. Sabiam. E Bill pensava se, de certa maneira, ela se sentiria ligada a Steven para sempre por causa do filho. ‑ É apenas que o bebê... não sei, Bill... eu...

            ‑ Compreendo... compreendo... mas tu às vezes assustas‑me.

            Bill sentou‑se na cama, junto dela, e nos olhos dele também havia lágrimas.

            ‑ Amo‑te.

            ‑ E eu também te amo ‑ disse Adrian em voz baixa, quando ele a beijou.

            ‑ Damos-lhe então um mês? Um mês depois de o bebê nascer. Contatamos com o patife depois do nascimento e damos‑lhe um mês para mudar de idéias. E depois esquecemo-lo para sempre. Está combinado?

            Adrian disse que sim com a cabeça. Parecia‑lhe razoável e era mais do que Steven merecia. Afinal, ele assinara os papéis para renunciar ao bebê, e pedira o divórcio... parecia‑lhe quase um crime e, de certa maneira, fora‑o. O que ele lhe fizera quase a matara. E Bill salvara‑a. E ficar‑lhe‑ia eternamente grata por isso. Na verdade, devia muito mais a Bill, mas no entanto... Steven fora marido dela. Era tudo tão confuso. A quem devia mais lealdade? A qual deles devia mais? A Bill, claro, porque se não fosse ele... e todavia... Adrian detestava‑se por se sentir indecisa, mas sentia‑se. No seu coração só havia um, mas no seu cérebro eram sempre dois. Era esse o problema. Mas tinham concordado no prazo de um mês após o nascimento do bebê e isso parecia‑lhe justo. E depois disso as portas fechar‑se‑iam para sempre a Steven. Em relação a ela e ao bebê. Steven nem sequer o sabia, mas ela estava a dar‑lhe um presente de tempo e de escolha, algo que ele nem sequer desejara.

            ‑ E depois casarás comigo? ‑ insistiu Bill. Adrian disse que sim com a cabeça, esboçando um tímido sorriso:

- Tens a certeza? ‑ Ela baixou novamente a cabeça e falou num murmúrio.

            ‑ Mas primeiro tenho uma confissão a fazer.

            ‑ Oh! Que temos agora? ‑ Bill estava a perder a paciência. A noite já ia adiantada e ele sentia‑se cansado.

            ‑ Menti‑te.

            Bill começou a ficar preocupado quando ela continuou, quase sem o olhar.

            ‑ Acerca de quê?

            Bill mal conseguia ouvir as palavras que ela dizia ao confessar..

            ‑ Eu não sou realmente virgem.

            Fez‑se um longo silêncio e Bill olhou‑a de sobrolho franzido e, ao mesmo tempo, com uma expressão de intenso alívio enquanto ela soltava uma gargalhada.

            ‑ Aldrabona! ‑ disse Bill com ar feroz, e em seguida, contra a sua vontade e apesar do remorso que sabia que sentiria depois, fez amor com ela, e, quando acabaram, dormiram tranquilamente nos braços um do outro até de manhã.

 

            Adrian estava de folga no dia de Natal e eles ficaram na cama durante muito tempo, dormitando, abraçados. O telefone tocou às nove e quinze. Eram Adam e Tommy a telefonarem de Stowe, onde se encontravam a passar as férias de Natal, numa estância de esqui, com a mãe. Estavam ambos excitados e cheios de vida. Depois desligaram, Adrian sorriu e desejou a Bill um Feliz Natal. Em seguida, saltaram ambos da cama e foram aos seus respectivos esconderijos buscar as prendas. Os presentes de Bill tinham sido todos embrulhados nas lojas, e os dela estavam feitos da mesma maneira como ela cozinhava, mas Bill gostou de tudo o que ela lhe deu. Ficou louco com a minúscula televisão e com o telefone portátil, e pôs a camisola por baixo de um blusão de basebol de cabedal vermelho que ela que comprara dois dias antes ao passar em Melrose.

            E Adrian também gostou dos presentes que recebeu. Bill comprara-lhe um bonito vestido de camurça verde de Giorgio, para vestir depois de o bebê nascer, e um saco de crocodilo preto da Hermés, um "Kelly", que ela cobiçava de cada vez que passavam ali. E livros, e um par de engraçados sapatos cor‑de‑rosa, com melancias, além de três bonitas camisas de noite e um roupão para levar para o hospital. E comprara‑lhe toda a espécie de pequenas coisas bonitas, como uma corrente de ouro para as chaves, uma caneta antiga, um relógio Mickey Mouse de que ela gostava, e um livro de poesia que dizia tudo quanto ela sentia por ele. Adrian chorava ao acabar de abrir os últimos presentes e Bill sentia‑se imensamente feliz com a reação dela. Depois Bill desapareceu outra vez e voltou com uma caixinha embrulhada em papel cor de turquesa e enfeitado com um laço de cetim branco.

            ‑ Oh, não, não. Mais não! ‑ Adrian ocultou a cara atrás das luvas de cabedal preto que ele lhe comprara na Gucci. Tinham pequenos laços vermelhos e ela gostava muito delas. ‑ Bill, não podes!

            ‑ Tens razão. ‑ Bill sorriu: ‑ Não posso e não o farei, mas abre isso. Porque não abres essa caixa?

            Contudo, Adrian receava abri‑la. O instinto dizia‑lhe que era algo de importante.

            ‑ Vá, não te amedrontes... ‑ Com dedos trêmulos, Adrian abriu a caixa e dentro dela havia outra, de camurça preta, onde estava escrito em letras douradas a palavra Tiffany. Adrian abriu‑a muito lentamente e soltou uma exclamação de assombro. Era uma aliança de diamantes e ela ficou a olhá‑la sem dizer uma palavra.

            ‑ Vá tolinha... pega-lhe... ‑ Bill pegou no anel cintilante e colocou-o no dedo. ‑ Vá, vê se serve... ‑ Sabia que as mãos dela estavam ligeiramente inchadas e comprara o anel calculando a medida dela, mas cabia‑lhe perfeitamente no dedo.

            ‑ Oh, meu Deus... oh, Bill! ‑ Ficou a olhar para o anel com lágrimas nos olhos. ‑ É lindo, mas... ‑ Ela dissera‑lhe poucos dias antes que ainda não estava pronta para se casar. Aquela era uma aliança de casamento maravilhosa um aro de diamantes, um desses anéis que só as mulheres com muita sorte recebem após vinte anos de casamento. Mas o programa de televisão de Bill acabara de conquistar outro prêmio e Adrian sabia que, apesar de Bill ser discreto a esse respeito, estava a ganhar uma fortuna, e que, graças a isso, podia comprar aquele anel.

            ‑ Achei que devias ter um ar respeitável quando fosses para o hospital. É um anel de noivado, mas achei‑o mais bonito do que os que têm apenas um grande brilhante, e, deste modo ‑ disse Bill timidamente ‑, poderá parecer uma aliança de casamento. Se quiseres compro‑te uma de ouro quando casarmos. ‑ O anel era lindo e Adrian gostava muito dele. E ainda gostava mais de Bill. Era fantástico. Adrian olhou novamente para o aro de diamantes que cintilava no dedo anelar da sua mão esquerda. Acabara por tirar a aliança de casamento, há dois meses, por lhe ter começado a apertar o dedo quando as mãos ficaram ligeiramente inchadas, e também por já não lhe parecer apropriado usá‑la.

            ‑ Meu Deus, Bill. E lindíssima!

            ‑ Gostas realmente dela? ‑ Bill mostrou‑se satisfeito e Adrian ficou comovida por ele ser tão bom para ela.

            ‑ Se gosto? Adoro! ‑ Sorriu e recostou‑se para trás na cama, examinando a aliança que cintilava. ‑ Vou impressionar as enfermeiras quando tiver o bebê.

            ‑ É estranho! ‑ disse Bill com o sobrolho franzido. Não pareces estar noiva. ‑ Acariciou‑lhe a barriga e sentiu o bebê dar-lhe um pontapé. ‑ Deve ser uma rapariga disse com satisfação.

            ‑ Por quê? ‑ quis saber Adrian ainda a olhar para o anel.

            ‑ Está constantemente a bater o pé.

            ‑ Talvez queira um anel como o da mãe. ‑ Sorriu e inclinou‑se para o beijar, duplamente satisfeita por lhe ter comprado o relógio de ouro para o aniversário dele. Gastara uma boa parte daquilo que recebera da venda do apartamento na compra do relógio, mas achava que merecia a pena. E estava a guardar o resto do dinheiro para o nascimento do bebê. Bill já lhe dissera que queria pagar a conta do hospital, mas ela insistira em não permitir que ele o fizesse.

            ‑ Tens a certeza de que não queres reconsiderar e casarmos já? ‑ perguntou Bill, tentando ainda persuadi‑la. Isso significaria pelo menos que o nome dele ficaria na certidão de nascimento do bebê, o que lhe parecia ficar muito melhor que "pai desconhecido" que era o que sucederia agora, ou então não pôr coisa alguma, como lhe sugerira o advogado. Mas se Adrian e Bill casassem, poderiam mais tarde acrescentar o nome dele ao do bebê.

            Adrian pareceu triste ao olhar para Bill:

            ‑ Ainda acho que devemos esperar. ‑ Tinham concordado em casar em Fevereiro, se tudo corresse bem e se Steven não aparecesse a pôr problemas que alterassem tudo. Era um período de espera que Bill continuava a achar que Steven não merecia. Mas Adrian parecia pensar ainda que Steven apareceria logo que ela tivesse o bebê. Contudo, Bill tinha a certeza de que Adrian veria as coisas com mais realismo logo que tivesse o bebê. Naquela altura ela parecia precisar ainda da idéia fantasiosa de que Steven se iria arrepender de ter rejeitado o bebê. Talvez fosse uma maneira de se proteger da triste realidade de que Steven não queria saber dela nem do bebê.

            Adrian e Bill passaram uma tarde tranqüila. Enquanto Bill preparou o peru para o jantar, Adrian dormiu uma sesta estendida no sofá, tendo no dedo a aliança que ele lhe dera nessa manhã.

            Quando Adrian foi trabalhar, na manhã seguinte, Zelda olhou para o anel de olhos arregalados.

- Oh! Casaste este fim‑de‑semana?

            ‑ Não ‑ respondeu Adrian, sorrindo. ‑ Estou noiva.

Riram ambas, pois Adrian, no fim da gravidez, transformara‑se numa estranha noiva.

            ‑ É um grande anel! ‑ disse Zelda com admiração.

            ‑ Bill é que é um grande homem ‑ disse Adrian, afastando‑se para ir falar com um dos redatores.

            Adrian passou o resto da semana a tentar não deixar assuntos pendentes e a explicar todos os seus projetos a Zelda. Ia deixar o trabalho daí a duas semanas e parecia uma tarefa impossível deixar tudo em condições antes de sair. A meio da semana foi contatada por um elemento da equipe de Bill que lhe disse estarem a preparar uma festa para o aniversário de Bill. Queriam fazer‑lhe uma surpresa e pediam a colaboração dela, a fim de convencer Bill a deslocar‑se ao estúdio, pois o dia dos anos dele era o primeiro de janeiro. E tudo isto porque eles pretendiam fazer a festa no estúdio, na tarde do feriado. Pensavam contratar uma orquestra e estariam presentes todos os elementos da equipe, passados e presentes, e muitos dos amigos de Bill. Adrian sentia‑se excitada com a perspectiva dessa festa e na véspera de Ano Novo mal se podia conter para continuar a guardar segredo.

            Na véspera de Ano Novo, Adrian e Bill jantaram com amigos. Um escritor que conheciam oferecera o jantar no Chasen's. Quando iam a caminho de casa, Adrian mostrou‑se muito sonolenta. Bill bebera bastante, mas não estava embriagado. No entanto, tinha sono e mal chegou a casa despiu‑se e deitou‑se.

            ‑ Feliz Ano Novo! ‑ murmurou Adrian deitando‑se ao lado dele. ‑ Feliz aniversário também! ‑ Estava a pensar na festa do dia seguinte, mas Bill adormeceu antes de ela acabar de pronunciar as últimas palavras e ela inclinou‑se e beijou‑o. Ele era tão meigo, tão bom para ela e ela amava‑o tanto!

            Adrian ficou acordada durante um grande bocado, cansada, mas não se sentindo tão sonolenta como uma hora antes. Então, de repente, sentiu o bebê agitar‑se dentro de si e ficou com o corpo todo tenso, desde o peito até às coxas, de tal modo que mal podia respirar mas sem sentir realmente dores. Agora já estava habituada às contrações. Sentia‑as sobretudo quando estava cansada e quase não a importunavam. Deixou‑se ficar estendida, calmamente, até que daí a pouco voltou a ter a mesma sensação de aperto e depois outro. Resolveu então tentar um dos remédios de Bill, sem o incomodar. Encheu um cálice com vinho branco e bebeu um gole. Mas dessa vez isso não resultou. Por volta das três da manhã, as contrações passaram a ser regulares, mas Adrian ainda não acreditava que tivesse chegado a altura do parto e por isso apagou a luz para tentar adormecer. Mas de cada vez que tinha uma dor acordava e mexia‑se na cama, até que por fim, Bill se apercebeu disso e lhe perguntou o que sentia.

            ‑ Nada ‑ respondeu ela. ‑ São estas estúpidas contrações.

            Bill abriu os olhos no escuro e perguntou-lhe:

            ‑ Achas que é chegada a altura?

            ‑ Não ‑ retorquiu Adrian. As dores incomodavam‑na, mas sabia que era por estar cansada, e tinha a certeza de que não chegara ainda a altura de o bebê nascer. O nascimento devia ocorrer daí a duas semanas e não havia qualquer razão para prever que nascesse antes de terminado o prazo. Estivera no consultório da médica dois dias antes e ela nada vira de especial, embora tivesse dito que o bebê se encontrava tecnicamente em condições de nascer a qualquer momento.

            ‑ Há quanto tempo estás com essas dores? ‑ quis saber Bill voltando‑se para o outro lado.

            ‑ Não sei... há três ou quatro horas. ‑ Eram quase três horas.

            ‑ Toma um banho quente. ‑ Essa era outra das suas receitas mágicas que resultava. Adrian experimentara‑a várias vezes quando tinha contrações e sempre as fizera parar. A médica dissera-lhes que quando chegava a altura do parto nada conseguia acabar com as contrações, nem banhos quentes nem um cálice de vinho. Quando o bebê queria nascer nada o podia deter. Adrian não tinha vontade nenhuma de se levantar e ir tomar um banho quente só para acabar com as contrações. ‑ Vai, vai, talvez depois consigas dormir.

            Adrian dirigiu‑se para a casa de banho e Bill sorriu ao ouvir a água correr para a banheira. Muito tempo depois pareceram‑lhe ter passado horas ‑, Bill ouviu‑a outra vez junto de si, mas de repente sentiu que ela ficava rígida e soltava um estranho gemido. Adrian apertou‑lhe a mão e ele sentiu que todo o corpo dela se tornara rígido.

            ‑ Estás bem, querida? ‑ Bill ficou preocupado ao acender a luz e ver a testa dela coberta de bagas de suor. O banho não fizera desaparecer as contrações. Depois sorriu quando o corpo dela se descontraiu, mas viu que havia receio nos olhos dela. Pegou-lhe na mão e beijou-lhe os dedos. ‑ Creio que o nosso amiguinho quer celebrar o Ano Novo conosco. Que dizes, querida? Vou chamar a médica?

‑ Mas era óbvio para ele que Adrian se encontrava em trabalho de parto.

            ‑Não... ‑ apertou‑lhe outra vez a mão. ‑ Estou bem... oh, não... oh, Bill! ‑ Agarrou-lhe a mão e apertou‑a com força, esquecendo tudo quanto aprendera a respeito da respiração. Mas Bill lembrou‑lho e ela começou a ofegar. Bill compreendeu então que não tinham tempo a perder. Adrian estava a ter dores muito fortes e era altura de irem para o hospital. Ajudou‑a a sentar‑se e ela dirigiu‑se para o roupeiro com uma expressão atordoada. Adrian estava cansada e assustada e Bill viu que ela começara a tremer. Um minuto depois Adrian voltou‑se para ele com uma expressão de pânico. Bill correu imediatamente para ela e ajudou‑a a sentar‑se numa cadeira. Adrian não conseguia falar enquanto estava com uma contração e veio‑lhe à memória a agonia da mulher que vira no filme. Mas o que sentia parecia‑lhe ainda pior. Não conseguia controlar a sua respiração. Subitamente, as dores passaram a ser seguidas.

            ‑ Não te mexas... fica calma... continua a fazer a respiração... ‑ Bill falava tanto para si próprio como para ela, enquanto ia ao roupeiro e tirava de um cabide um vestido largo. Ajudou‑a a despir a camisa de noite e enfiou‑lhe o vestido pela cabeça e calçou-lhe uns sapatos velhos.

            ‑ Não posso ir assim ‑ disse ela entre duas dores. Bill tirara do armário o pior vestido que ela tinha.

            ‑ Não tem importância. Estás bonita assim.

            Bill vestiu umas jeans, uma camisola e calçou uns chinelos que estavam debaixo da cama, olhando constantemente para Adrian, enquanto telefonava à médica. Esta prometeu encontrar‑se com eles no hospital daí a meia hora, Bill ajudou Adrian a levantar‑se da cadeira, mas antes de conseguir atravessar o quarto ela teve uma contração fortíssima. Bill começava a pensar que talvez fosse preferível chamar uma ambulância, ou se teriam esperado demasiado tempo. O que não queria era que o bebê nascesse ali em casa, como Adrian dissera desejar, e encorajou‑a a andar logo que a contração acabou. Ele levava a mala dela na mão e quase conseguiram chegar à porta da rua antes de ela ter outra contração. Avançavam muito lentamente e Adrian começou a chorar.

            ‑ Pronto, querida... vai passar. Daqui a uns minutos estaremos no hospital e vais sentir‑te melhor.

            ‑Não... não vou ‑ murmurou Adrian agarrando‑se a ele. ‑ Oh, Bill, isto é horrível...

            ‑ Bem sei, querida... bem sei... mas vai passar num instante e teremos um lindo bebê. ‑ Adrian sorriu através das lágrimas e tentou respirar como lhe fora ensinado, porém não era fácil, com aquelas dores. Não havia dúvida de que ajudava até certo ponto, mas ela estava rapidamente a chegar a um estado em que não era capaz de se controlar.

            Pareceram levar horas a chegar ao sítio onde ele deixara o carro, mas finalmente Adrian ficou sentada na station e Bill atirou a mala para o banco traseiro. Então partiram a caminho do hospital, o mais depressa possível. Bill esperava ser seguido por um carro‑patrulha da Polícia. Dessa vez não se importaria de ser mandado parar. Agradava‑lhe ter uma escolta policial para o caso de Adrian ter o bebê no caminho. Mas não teve e não apareceu nenhum carro da Polícia. Bill chegou à entrada das urgências e buzinou, esperando que alguém o fosse ajudar. Apareceu um auxiliar de enfermagem momentos depois, quando Adrian se agarrava a Bill com uma contração. Sentaram‑na numa cadeira de rodas e ela gemia enquanto a empurravam com toda a velocidade, e Bill corria ao lado dela.

            ‑ Não posso... Bill... oh... ‑ Ela mal conseguia falar e Bill reparou que ela tremia violentamente, por isso tirou o casaco e pôs‑lho sobre as costas.

            ‑ Podes sim... vamos... está quase acabado... vais ficar bem. ‑ Eram apenas palavras, mas ela não se podia agarrar a mais nada. Bill sabia que assim que a levassem para a sala de parto ela seria ligada a um monitor e eles poderiam saber exatamente qual a violência das contrações e quanto tempo duravam, quando atingiam o máximo ou diminuíam de intensidade, de modo que ele poderia dizer-lhe logo que uma contração estava quase a acabar. Mas ali não tinham isso, e Adrian apenas sentia a dor e uma sensação de terror que iria piorar até ela perder completamente o controlo. Ela começava a pensar que ia morrer e irritou‑se com Bill quando ele tentava ajudá‑la a sair da cadeira de rodas.

            A médica já os esperava e, de imediato, meteu Adrian na cama com a ajuda de uma enfermeira jovem e jovial com a qual Adrian antipatizou imediatamente. Adrian não estava decididamente a dominar‑se e começou a gritar quando a médica tentou apertar‑lhe o cinto do monitor por ocasião de nova contração.

            ‑ Calma, Adrian... ‑ disse a médica. ‑ Isto são uns minutos.

            Bill tentava fazer com que Adrian respirasse de uma forma controlada. Ela estava a passar um mau bocado. De repente, olhou‑os com uma expressão sobressaltada. ‑ Vai nascer... o bebê vai nascer...

            ‑ Não, não vai. Ainda é cedo! ‑ A médica tentou forçá‑la a acalmar‑se e disse‑lhe para respirar de maneira ofegante, enquanto Bill tentava lembrar‑lhe como se fazia, mas Adrian gritava e insistia em que o bebê ia nascer.

            ‑ Não faça força! ‑ quase gritou subitamente a médica, enquanto mais duas enfermeiras apareciam no quarto. A médica olhava para o monitor com a testa franzida ao mesmo tempo que lavava as mãos e dizia a Bill: ‑ Ela está a ter contrações muito violentas... e prolongadas... pode demorar menos do que julgávamos.

            A médica falou calmamente, mas Adrian gritava:

            ‑ Vai nascer... vai nascer... ‑ Chorava e gritava incoerentemente e Bill sentia vontade de chorar também. Não suportava vê‑la sofrer e foi ainda pior quando a médica a examinou. Adrian sentiu que uma dor terrível lhe rasgava o corpo todo, enquanto a médica sorria com satisfação.

            ‑ Está quase na hora de fazer força, Adrian... só mais algumas contrações.

            ‑ Não! ‑ gritou Adrian esforçando‑se por se sentar e por se libertar do monitor até conseguir deslocá‑lo da barriga inchada. ‑ Não! Não posso!

            ‑ Pode, sim ‑ respondeu a médica, enquanto Bill tentava sem êxito acalmar Adrian. Sentia‑se doente por a ver sofrer e ela torcia‑se na cama com dores enquanto a médica falava com as enfermeiras. Aquilo era muito pior do que o que vira no filme e Bill queria pedir-lhes se não podiam dar a Adrian qualquer coisa para as dores, mas a médica interrompeu‑o quando ele tentou fazer a pergunta: ‑ Quer ter o bebê aqui mesmo, Adrian? Ele vai nascer daqui a pouco. Já lhe vejo a cabeça... é isso... vamos... pode começar a fazer força.

            Adrian soltou um grito assustador e olhou para Bill como a pedir‑lhe que a salvasse. Uma das enfermeiras prendeu umas argolas à mesa e uma espécie de estribos para os pés e, subitamente, ficou tudo coberto com papel azul. Entregaram a Bill uma bata e uma touca de banho verdes e toda a sala ficou transformada enquanto Bill amparava os ombros de Adrian.

            ‑ É isso... vamos... faça força para o bebê sair daí!

ordenou a médica. Mas Adrian continuava a insistir que não podia. Toda ela parecia dominada pela dor e Bill queria‑lhes pedir para darem a Adrian alguma coisa para as dores, mas ninguém lhe prestou atenção. Adrian gritava sempre que fazia força e Bill segurava‑a e chorava. Mas nem a médica nem as enfermeiras reparavam nas lágrimas dele. Adrian chorava também. Choravam os dois e então de repente, quando ela se inclinou mais uma vez para a frente para fazer força, soltou um grito agudo e prolongado e Bill olhou‑a com assombro. Adrian sorria por entre as lágrimas. Gritou outra vez ao expulsar o bebê para fora. Depois caiu para trás, sobre as almofadas, exausta.

            ‑ É um rapaz! ‑ exclamou a médica, enquanto Adrian e Bill riam e choravam ao mesmo tempo. Bill viu então um rostinho que os olhava com uns grandes olhos muito abertos e um nariz pequenino como o da mãe. Adrian soerguera‑se também para o ver e soltou um gemido de dor quando a médica lhe puxou a placenta.

            ‑ É tão bonito! ‑ murmurou Bill com voz rouca.

E tu também. ‑ Bill inclinou‑se e beijou‑a e Adrian fitou‑o com um olhar que nunca voltariam a partilhar, um olhar e um sentimento nascido apenas daquele momento, mas que ambos recordariam para sempre.

            ‑ Ele está bem? ‑ perguntou Adrian debilmente.

            ‑ É perfeito ‑ declarou a médica que dava uns pontos a Adrian. Tinham‑lhe dado uma anestesia local, mas ela nem se apercebera disso. O pediatra interno acabara de chegar para examinar o bebê. Este parecia ótimo. Pesava três quilos e duzentos gramas, um bom peso, e Bill não se cansava de dizer que se parecia com a mãe, mas Adrian achava que ele se parecia com Bill, o que não fazia qualquer sentido, contudo Bill não a queria desdizer.

            Bill ajudou a levar o bebê para a sala dos bebês, enquanto lavavam Adrian, mas meia hora depois estava de volta. Eram apenas cinco e quinze. Para um primeiro filho, o parto fora notavelmente rápido. Tinham chegado ao hospital às quatro e meia. No entanto, os últimos momentos tinham parecido uma eternidade a Adrian.

            ‑ Tenho pena que tenhas sofrido tanto ‑ murmurou Bill debruçando‑se sobre ela, admirando‑se da transformação que se operara em Adrian em tão pouco tempo. O cabelo estava penteado, o rosto e o corpo lavados e ela pintara ligeiramente os lábios. Era uma mulher completamente diferente daquela que ele vira gritar histericamente tão pouco tempo antes.

            ‑ Não foi assim tão mau ‑ disse Adrian calmamente. Bill pensou que era estranho, mas o fato é que Adrian lhe parecia de repente mais adulta. Era como se, num momento, ela tivesse crescido. Antes desse momento ela fora uma rapariga. De certa maneira, ela tinha razão. Fora realmente virgem. ‑ E na verdade, não foi assim tão mau ‑ disse, contente. Voltaria a passar pelo mesmo... ‑ Adrian sorriu e Bill começou a rir. Ela estava a dizer exatamente aquilo que ele previra. ‑ Ele está bem?

            ‑ É maravilhoso. Estão a arranjá‑lo e a vesti‑lo para to trazerem.

            E, com efeito, alguns minutos depois apareceu uma enfermeira trazendo o bebê com as suas bonitas roupas novas e embrulhado numa pequena manta. Abriu os olhos quando a enfermeira o entregou à mãe e Bill e Adrian olharam‑no maravilhados. Era um bebê perfeito, um milagre para além do que Adrian alguma vez sonhara. Bill lembrou‑se de Adam e Tommy. Eram também assim, embora diferentes. Mas aquele bebê era algo de muito especial. Subitamente, Bill sentiu‑se muito mais perto de Adrian, mais perto do que nunca, como se partilhassem uma só alma, um só coração e uma só mente... e aquele bebê. Como se o coração batesse em uníssono. Então o bebê abriu os olhos e fitou‑os, como se tentasse recordar‑se se os conhecia.

            Adrian começou a chorar outra vez, mas agora as lágrimas eram de felicidade. Merecera a pena tudo o que passara para ter ali, junto de si, aquele pequeno ser. Valia toda a angústia, toda a ansiedade, todos os desgostos por que passara. Compensava‑a até do casamento desfeito com Steven e sentia‑se duplamente satisfeita por não ter deixado que Steven a forçasse a abortar. Era um pensamento hediondo, pensou Adrian, enquanto Bill a ajudava a abrir um pouco a pequena manta onde o bebê estava embrulhado, para o pôr ao peito. O bebê agarrou‑se imediatamente ao mamilo de Adrian e Bill sentiu lágrimas nos olhos, ao ver a mãe e o filho. Era tudo tão simples, tão fácil, tão natural. Duas pessoas que se amassem desejavam acima de tudo ter filhos que entrariam na sua vida como pequenas bênçãos.

            ‑ Como lhe vamos chamar? ‑ perguntou Adrian em voz baixa.

            ‑ Continuo a pensar que Thigpen seria bom, embora não seja um nome bonito.

            ‑ Gosto dele ‑ respondeu Adrian ternamente. Nunca esqueceria o que Bill fizera por ela, como estivera junto dela do princípio ao fim, e sabia que não teria conseguido que tudo corresse bem sem a ajuda dele. A médica e as enfermeiras pareciam-lhe bem menos importantes. ‑ Vou ter o próximo em casa ‑ anunciou Adrian e Bill gemeu.

            ‑ Por favor... deixa‑me respirar fundo. Ainda não são seis horas da manhã. ‑ Mas sentia‑se feliz por a ouvir falar do "próximo". Adrian sorriu e Bill lembrou‑se então que estavam no dia um e que festejava o seu quadragésimo aniversário.

            ‑ Parabéns ‑ e com isto, Adrian inclinou‑se para a frente e beijou‑o, enquanto o bebê os olhava. Fazia pequenos ruídos abafados, mas parecia estar perfeitamente à vontade entre eles.

            ‑ Que grande presente que me deste! ‑ Fora uma bela maneira de entrar nos quarenta anos, uma lembrança de como a vida era preciosa, simples e rara. A dádiva de um bebê da mulher que ele amava. Era perfeito. ‑ Que dizes a Teddy?

            Ela pensou um momento e sugeriu:

            ‑ E Sam?

            Bill disse que sim com a cabeça, olhando para o bebê. Era uma bonita criança e o nome ficava‑lhe bem.

            ‑ Gosto. Sam Thigpen. ‑ Depois olhou para Adrian, sem querer fazer‑lhe mais perguntas. Iria ser Sam Thigpen, ou Sam Townsend, ou Sam Thompson, que era o nome de solteira da mãe? Mas era demasiado cedo para lhe fazer perguntas.

            Bill ficou com ela até às oito horas e depois foi a casa tomar uma ducha e tomar o pequeno‑almoço. Prometeu voltar por volta do meio‑dia e disse a Adrian para dormir também um bocado. E quando saiu, em bicos dos pés, voltou‑se uma vez mais para os olhar. O bebê dormia nos braços da mãe, os dois tão tranqüilos e tão amados, e, pela primeira vez desde há muito tempo, Bill sentiu‑se completamente realizado e em paz, totalmente feliz.

 

            Adrian acordou outra vez cerca de uma hora depois de Bill ter saído. O bebê continuava a dormir, mas as enfermeiras vieram ver como é que se encontrava. Sentia‑se bem e estava ainda a ter pequenas contrações. Mas tudo parecia estar bem e ela ficou durante muito tempo quieta, a pensar. Precisava de fazer dois telefonemas e parecia‑lhe boa altura para isso. Tinha a sensação de estar carregada de eletricidade, ali estendida a olhar para o seu bebê adormecido. Era o dia mais excitante da sua vida, o momento mais feliz e, de certa maneira, queria partilhá‑lo.

            Ligou primeiro para o Connecticut. O telefonema era difícil, mas a boa notícia a dar tornava as coisas mais simples.

            ‑ Porque não me disseste? ‑ exclamou a mãe, chocada, ao saber que tinha um novo neto do qual nunca ouvira falar. Nem sequer sabia que Adrian estava grávida. ‑ Não é normal? ‑ Parecia‑lhe ser a única razão que poderia levar Adrian a não lhe ter dito nada. Mas isso era típico da espécie de relacionamento que Adrian tivera nos últimos anos com os pais. Desde que casara com Steven. E os pais não escondiam o fato de não gostarem dele. Tinham talvez razão, mas isso deteriorara as relações deles com a filha.

            ‑ Desculpe, mamã. Mas as coisas têm sido complicadas para mim. Steven deixou‑me em junho. E... eu julguei que ele iria voltar e não lhes quis dizer do bebê até que ele... creio que foi tolice.

            ‑ Acho que sim. ‑ Fez‑se um longo silêncio. ‑ Ele está a pagar‑te uma pensão para alimentos? ‑ Adrian pensou que era típico da mãe só se preocupar com isso.

            ‑ Não. Eu não quis.

            ‑ Ele vai querer ficar com o bebê à guarda dele?

            ‑ Não. ‑ Adrian decidiu não contar à mãe os pormenores do caso, nem falar de Bill, pois a mãe poderia pensar que ela tivera um "caso" com outro homem e que por isso é que Steven a deixara. Tinha muito tempo para a informar sobre os pormenores, mais tarde. Quisera apenas dizer à mãe que o seu filho nascera.

- Quanto tempo vais estar no hospital? ‑ A mãe era uma pessoa tão terrivelmente prosaica que era difícil sentir‑se muito ligada a ela, mesmo naquele momento em que Adrian acabara de ser mãe.

            ‑ Talvez até amanhã. Ou uns dois dias. Ainda não sei.

            ‑ Telefono‑te quando fores para casa. Ainda tens o mesmo número? ‑ Era muito raro a mãe telefonar‑lhe. Apesar de o fazer poucas vezes, mesmo assim era quase sempre Adrian quem telefonava.

            ‑ Sim. ‑ Mandara instalar o telefone no apartamento de Bill quando vendera o outro. Fora mais fácil fazer isso do que estar com explicações. ‑ Eu telefono‑lhe, mama.

            ‑ Está bem... e parabéns... ‑ Adrian percebeu que a mãe não sabia o que lhe havia de dizer e o pai não se encontrava em casa. Isso entristeceu‑a, mas pelo menos cumprira o seu dever.

            E o telefonema seguinte era ainda mais difícil. O advogado dela dera-lhe o número de Steven inadvertidamente, mas sugerira‑lhe que o não utilizasse. Adrian tirou a sua agenda com os números de telefone da mala, e segurando o bebê com a mão esquerda, fez a ligação.

            ‑ Está? ‑ Era uma voz familiar, mas Adrian não a ouvia há meses e de repente ficou atrapalhada ao ouvi‑la.

            ‑Está... Steven... Sou a Adrian... Desculpa telefonar‑te. ‑ Houve um silêncio prolongado enquanto ele se manteve calado tentando descobrir como é que ela sabia o número do telefone dele que nem sequer estava na lista.

            ‑ Que queres? ‑ perguntou ele como se ela não tivesse o direito de lhe telefonar. Adrian sentiu a mão a tremer ao ouvi‑lo.

            ‑ Achei que tinhas o direito de saber... o bebê nasceu esta manhã. É um rapazinho e pesa três quilos e duzentos gramas. ‑ De repente, Adrian sentiu‑se estúpida por ter telefonado, pois o silêncio persistia. ‑ Bem... acho que não devia ter telefonado... mas pensei...

            E então, finalmente, Steven falou:

            ‑ É normal? ‑ Era a mesma coisa que a mãe dela dissera e, de certo modo, a pergunta parecia‑lhe ofensiva.

            ‑ Sim, é ótimo ‑ respondeu calmamente. ‑ É realmente bonito.

            E depois, hesitantemente:

            ‑ Estás bem? Foi horrível, não? ‑ Ao fazer aquela pergunta, Steven parecia‑lhe quase o homem que ela conhecera.

            ‑ Correu bem. ‑ Não valia a pena explicar-lhe como era. Fora muito pior do que ela pensara, mas agora, com o bebê nos braços, já não lhe parecia tão mau.

            ‑ Mereceu a pena. Depois, com hesitação, quis telefonar‑te. Pensei que sei que assinaste aqueles papeis mas quis dar te oportunidade de o veres se quiseres

Era mais do que seria de esperar de qualquer mulher mas Adrian sempre fora assim Claro que não espero que venhas. . só achei que devia dizer-te no caso Adrian calou‑se e ele interrompeu‑a.

            ‑ Gostaria de o ver. ‑ Adrian ficou assombrada. Quisera dar‑lhe essa oportunidade, mas nunca esperara que ele aceitasse ver o bebê. ‑ Onde estás?

            ‑ No Cedars‑Sinai.

            ‑ Vou tentar ir esta manhã. ‑ Depois num tom estranho e ansioso perguntou: ‑ Já tem nome?

            Ela anuiu com a cabeça, as lágrimas a correrem‑lhe pelas faces. Não esperara isto, e agora estava perturbada. Não o via desde Junho, quando ele a deixara. E agora, depois deste tempo todo, queria ver o filho. ‑ Chama‑se Sam ‑ acrescentou Adrian, quase num sussurro.

‑ Dá-lhe um beijo por mim. Vou vê-lo mais tarde.

            Adrian ficou ainda mais chocada com estas palavras. Ele parecia subitamente tão diferente, tão meigo, que Adrian receava o que pudesse suceder quando viesse ver o filho. Adrian ficou acordada toda a manhã, com o bebê aconchegado a si, dormindo. Quase à hora do almoço viu a porta abrir‑se e Steven aparecer, de calças cinzentas, camisa azul e blazer azul‑escuro. Tinha o cabelo mais comprido do que antes, estava bronzeado e mais bem‑parecido do que nunca.

            ‑ Olá, Adrian. Posso entrar? ‑ Ele ficou parado à porta, hesitante, olhando‑a. Ela disse que sim, tentando não chorar ao vê‑lo. Mas os seus esforços foram inúteis. Subitamente, lembrou‑se de como o amara, em como confiara que o casamento deles durasse para sempre, de como ficara desolada e com o coração destroçado quando ele a deixara.

            Ao princípio, Steven apenas a viu a ela, ao dirigir‑se para a cama com um grande ramo de rosas amarelas, e só ao parar junto dela viu o bebê embrulhado na pequena manta azul, com o seu rostinho rosado como um precioso botão de rosa.

            ‑ Oh, meu Deus... ‑ murmurou, olhando‑o. ‑ É ele?

            Adrian disse que sim com a cabeça, sorrindo por entre as lágrimas da pergunta tola.

            ‑ Não é bonito?

            Dessa vez Steven também disse que sim com a cabeça e as lágrimas fizeram‑lhe brilhar os olhos ao olhar primeiro para o filho e depois para a mulher que o dera à luz.

            ‑ Que louco eu fui... ‑ Exatamente as palavras que ela fantasiara, mas que nunca esperara ouvir.

            Adrian chorava agora abertamente. Não podia discordar dele, mas na altura ninguém o conseguira dissuadir. Até o advogado o tentara sem êxito.

            ‑ Julgo que estavas apenas assustado.

            ‑ Sei que estava. Não podia imaginar‑me a ter filhos e a fazer os sacrifícios que é preciso fazer. Ainda hoje não consigo imaginar isso ‑ acrescentou com sinceridade. Mas estava assombrado ao ver o seu filho. O produto da sua criação!

            ‑ É bonito, não é? ‑ disse calmamente, olhando‑o de novo. Mas Adrian reparou que os olhos dele estavam normais, que não exprimiam ternura. ‑ Estes últimos meses devem ter sido difíceis para ti ‑ disse Steven.

            Adrian limitou‑se a baixar a cabeça. Não lhe queria falar de Bill. Não era coisa que lhe dissesse respeito.

            ‑ Onde estás a viver? ‑ Era estranho que ele lhe fizesse agora essa pergunta, depois de tanto tempo, e ela limitou‑se a responder:

            ‑ No mesmo sítio, mas do outro lado do complexo.

Ele devia ficar a pensar que ela comprara um apartamento mais pequeno com o dinheiro que recebera da parte dela.

Nunca se preocupara com ela e agora estava a preocupar‑se.

Mas estaria?

            ‑ Isso é bom. ‑ Então olhou de novo para o filho e tocou-lhe ao de leve nos dedos minúsculos. ‑ É tão pequeno...

            ‑ Pesa mais de três quilos ‑ disse Adrian, como que a defender‑se. Mas Steven não deixava de olhar para o filho, com assombro. Não o achava parecido com ninguém, a não ser talvez com Adrian, mas parecia ter uma identidade própria e a Steven não desagradava isso. Adrian voltou a olhá-lo com hesitação, com as mãos ainda a tremer do choque de ter voltado a ver Steven, e perguntou-lhe:

            ‑ Queres pegar‑lhe?

            Subitamente, Steven pareceu ficar aterrorizado e, em seguida, surpreendeu‑se a si próprio estendendo os braços para o bebê. E Adrian pousou‑lho delicadamente nos braços e sentiu um nó na garganta ao vê-lo olhar para o filho. O bebê era filho dele, afinal, e fora por isso que ela lhe telefonara. Para ver se o seu ex‑marido gostava dele, para lhe dar uma última oportunidade de tocar no bebê que rejeitara. Steven sentou‑se numa cadeira junto da cama, olhando para o bebê adormecido. Não se mexia, com os braços imobilizados, como se receasse que o bebê acordasse e o mordesse. Mas ficou sentado, a olhá‑lo, e nesse momento a porta abriu‑se e Bill entrou, trazendo nas mãos um enorme ramo de flores, duas dúzias de balões cheios de ar e um urso de pelúcia azul que colocou desajeitadamente junto da porta. Ia avançar para a cama no momento em que Steven se inclinava para devolver o bebê a Adrian e Bill apenas viu a cena da família reunida. Adrian olhou para Bill, sobressaltada, e Steven endireitou‑se, junto da cama, como se nunca a tivesse deixado e pela primeira vez o bebê começou a chorar, como se sentisse que algo de terrível acabava de acontecer.

            ‑ Oh... desculpem... vejo que não vim em boa altura... ‑ disse Bill, sem olhar diretamente para os olhos de Adrian, com medo do que poderia ver neles.

            ‑ Não tem importância ‑ disse Adrian, embaraçada. Este é Steven Townsend, o meu... ‑ E então pareceu sufocar‑se com as suas próprias palavras, pois estivera prestes a dizer "o meu marido". Viu Bill ficar pálido e quis dizer‑lhe que esperasse, que entrasse, pois Steven estava quase a sair, mas não conseguiu articular uma única palavra ao ver Steven olhar hostilmente para Bill e este precipitar‑se para fora do quarto sem esperar por uma explicação.

            ‑ Voltarei mais tarde.

            ‑ Não... Bill... ‑ Mas ele já se afastara e seguia rapidamente pelo corredor, sentindo uma pedra na garganta, a mesma pedra que sentira quando Leslie lhe dissera que não ia com ele para a Califórnia. Estava a acontecer‑lhe tudo outra vez, a perda, a dor, o desgosto, a solidão... mas desta vez não iria permitir que fosse assim.

            E na sua cama Adrian sentia‑se terrivelmente infeliz. Steven olhou‑a e perguntou com irritação:

            ‑ Quem era?

            ‑ Um amigo ‑ respondeu Adrian com suavidade. Viu que Steven ficara zangado, mas tanto ele como ela sabiam que não tinha esse direito. Steven olhou‑a então com gravidade. Pensara muito, desde o telefonema de Adrian e desde que vira o bebê.

            ‑ Tenho de te pedir desculpa ‑ disse sombriamente, enquanto Adrian se sentia angustiada ao pensar no que Bill devia estar a passar. Não esperara que Steven aparecesse ali tão depressa e, ao mesmo tempo, ficara satisfeita por poder acabar com o assunto e poder continuar a sua vida com Bill. Prometera a si própria telefonar a Steven, mas nunca acreditara que ele quisesse ir ver o filho, nem esperara que Bill aparecesse nessa altura. Subitamente, o bebê rompeu a chorar e ela nem sequer sabia o que fazer para calar o bebê. Chamou a enfermeira, que se ofereceu para levar a criança para o berçário durante um bocado, enquanto Adrian olhava Steven com uma expressão de angústia.

            ‑ Lamento ter‑te magoado, Adrian. ‑ E quando ele disse isso, ela lembrou‑se da noite em que ele a ignorara no restaurante, quando estava grávida de seis meses. ‑ Estes meses devem ter sido muito difíceis para ti ‑ disse ele. Mas as palavras de Steven não podiam descrever o que ela passara e se não tivesse sido Bill não sabia se teria sobrevivido. Mas também foram duros para mim ‑ continuou Steven. Adrian não podia acreditar no que estava a ouvir. Não fora ela quem se divorciara dele. E, ao ouvi-lo, compreendeu que se sentia ainda muito zangada com Steven pelo que ele lhe fizera. Zangada e magoada e não sabia se algum dia poderia perdoar‑lhe. ‑ Tu desafiaste‑me de uma maneira que me atingiu em cheio e, de certo modo, foi uma traição. ‑ Steven continuou enquanto Adrian o olhava com espanto. Ele era totalmente egoísta, como sempre fora. ‑ Mas para bem do meu filho... do nosso filho... creio que com o tempo talvez te possa perdoar.

            Adrian fitava‑o com os olhos muito abertos, incapaz de acreditar no que estava a ouvir. Ele estava disposto a perdoar‑lhe!

            ‑ És muito amável ‑ disse calmamente ‑ e aprecio isso. ‑ Quase sufocava com as suas próprias palavras. ‑ Mas Steven, não foste só tu que ficaste magoado. Abandonaste‑me estando eu grávida. Puseste‑me completamente fora da tua vida. Levaste a mobília, tiraste‑me a casa, divorciaste‑te e renunciaste aos direitos sobre o bebê. Nem sequer quiseste falar comigo quando te telefonei. ‑ A lista era impressionante, mas Steven não parecia impressionado.

            ‑ Seja como for. ‑ Steven ignorava tudo quanto ela dissera. ‑ Seja como for, acho que devemos voltar a viver juntos por causa da criança.

            ‑ Dizes isso a sério? ‑ Adrian olhou‑o quase com horror. Não fora o que ela planeara, por mais que quisesse ser leal para com ele. Via agora que ele era ainda mais insensível do que ela julgara e que o bebê, tal como tudo, seria mais um fator para aumentar o seu ego. Agora que vira que ele era um rapaz e bonito, estava de repente disposto a aceitá‑lo, depois de os ter abandonado. Era a oportunidade que ela lhe quisera dar. Mas o que esperara da parte dele fora algum sentimento genuíno pelo bebê. Mas Steven não mostrava qualquer sentimento de remorso ou de ternura por ela, algum vestígio, embora remoto, de decência e de carinho. Era a confirmação de que aquele homem não possuía nenhuma das qualidades que ela apreciava em Bill.

            ‑ Creio que não estás a compreender ‑ disse então Adrian. ‑ Abandonaste‑nos porque não querias saber nem de mim nem dele, do teu filho. E a única razão que me levou a telefonar‑te foi saber se tu, por acaso, lamentarias o que fizeste. Queria que tivesses oportunidade de ver o bebê. Mas tu não gostas de ninguém. Não tens sentimentos de qualquer espécie, não avalias o que fizeste. Ainda tens a coragem de te considerares "traído", porque só pensas em ti. Nem sequer estou convencida que pudesses vir a gostar do teu filho. Estás tão preocupado contigo mesmo que não queres saber dele, nem de mim. Creio que ficaste impressionado por teres um "filho", mas nada mais. O que é ele para ti? Que significa para ti? Estás preparado para lhe dar o quê?

‑ Era uma pergunta importante e Steven parecia aborrecido por ela lhe estar a fazer perguntas.

            ‑ Casa, comida, alimentação, brinquedos... ‑ Não podia lembrar‑se de mais nada e ela abanou a cabeça. Não, ele não conseguia compreender. Nunca conseguiria. Era isso que ela tivera de ver e agora estava satisfeita por lhe ter telefonado

            ‑ Esqueceste‑te de uma coisa muito importante.

            Steven pensou um bocado e olhou‑a sem a entender. Então, Adrian pensou que ele era bem‑parecido, mas que também era vazio.

            ‑ Esqueceste‑te do amor. Isso significa mais que abrigo, alimentação ou seja o que for. Significa mais que computadores, raquetas de tênis, mobílias, aparelhagens, apartamentos, empregos. Amor. Foi aquilo que esqueceste completamente no nosso casamento. Se me amasses não me terias abandonado a mim e ao bebê.

            ‑ Eu amava‑te... mas tu não me amavas. Quebraste uma promessa solene que tínhamos feito de nunca termos filhos! ‑ E Steven estava convencido de ter razão no que dizia.

            ‑ Não o pude evitar ‑ respondeu Adrian ‑, e não estou arrependida.

            ‑ Devias estar ‑ replicou Steven tristemente ‑ pelo desgosto que me causaste.

            ‑ O desgosto que eu te causei a ti? ‑ Adrian olhou‑o, espantada, enquanto Steven dava uns passos pelo quarto e olhava para o grande urso que Bill deixara junto da porta.

            ‑ A verdade é que me traíste, mas estou disposto a perdoar‑te agora por causa da criança. Devias estar grata por isso.

            Adrian julgava ter ouvido mal.

            ‑ Pois bem, não estou ‑ declarou sem rodeios. Depois fez‑lhe a pergunta mais temível: ‑ Steven, amas o bebê? Quero saber se gostas realmente dele? Se o queres mais do que a tudo na vida... se queres passar a tua vida a tornar a vida dele melhor?

            Steven olhou‑a e só passado um momento respondeu:

            ‑ Tenho a certeza de que com o tempo poderia aprender a amá-lo. ‑ Mas ao olhá-lo, Adrian viu que dentro dele algo morrera há muito tempo sem que ela o soubesse.

            ‑ E se voltares a sentir‑te ameaçado por nós? Que farás? Vais‑te embora? Ou vendes o apartamento? Ou limitas‑te a pedir o divórcio?

            Steven fora cruel para ela e indiretamente para com o filho e ele sabia muito bem, apesar de falar em "traição".

            ‑ Não te posso fazer promessas para o futuro. Só te posso dizer que vou tentar. Mas creio que me deves isso: voltar para mim e tentar viver comigo.

Ela devia‑lhe isso. Que terno!

            ‑ Em que base? Estás‑me a pedir que case contigo outra vez? ‑ Adrian queria esclarecer tudo de uma vez por todas. Era o confronto que tanto desejara.

            ‑ Não... penso que devíamos experimentar. Vivíamos juntos durante seis meses para ver se...

            ‑ Se tu gostas de ser pai, não é'? E se não gostares?

            ‑ Então não há nada perdido. Os papéis já estão assinados, apertamos as mãos e desejamos felicidade um ao outro.

‑ Parecia um acordo de negócios.

            ‑ E Sam? ‑ O bebê era já real para ela, um ser precioso, muito especial.

            ‑ Nesse caso será teu.

            ‑ Que simpático. E como lhe explicarei isso mais tarde? Que experimentaste e não gostaste dele? Não, não te deixo alugar o papel de pai. Ou se é pai, ou não é. Como o casamento, como o amor, como a verdadeira vida. Não se trata de nenhum dos teus jogos de tênis, em que experimentas vários adversários e escolhes aquele que joga pior para envaideceres o teu ego. ‑ Steven estava furioso com o que ela dizia, mas era tudo verdade e ele sabia‑o.

            ‑ Então para que me telefonaste? Não era isto o que querias de mim? Ou estás à procura da melhor oferta?

O anel de diamantes no dedo dela não lhe passara despercebido, nem a presença de Bill, com os seus muitos presentes abandonados à porta do quarto.

            ‑ Já não preciso da tua melhor oferta, mas queria ter a certeza de te dar oportunidade de veres o teu filho antes de o perderes para sempre. Achei que merecias isso, pois poderia haver uma remota possibilidade de tu vires um dia a lamentar sinceramente o que fizeste, ou que te apaixonasses pelo teu filho quando ele nascesse. Mas isso não sucedeu. Apenas o queres na base de um aluguer e queres que eu vá com ele para cuidar dele. E assim estarias "disposto" a perdoar a minha "traição", como disseste. Mas a traição não é minha, mas sim tua, e agora o bebê pertence‑me.

            Steven permaneceu imperturbável e nada infeliz com o que Adrian dissera. Adrian pensou se ele não teria até ficado aliviado. Mas, fosse como fosse, não mudara. Ela tinha agora a certeza disso.

            ‑ Podes dizer‑lhe que quis que voltasses para mim e que recusaste, visto estares tão preocupada com o que lhe terás de dizer mais tarde.

            ‑ Á experiência, Steven. Querias fazer uma experiência. Isso não é nada. ‑ De repente, Adrian compreendeu que estava a gritar, mas não se importou. Sabia‑lhe bem gritar finalmente com ele. ‑ Eu quero amá‑lo incondicionalmente, nos momentos bons e maus, quer seja feio ou bonito, quer esteja bem ou mal‑disposto. Quero amá‑lo na saúde e na doença com todo o meu amor. É isso que quero dar ao nosso filho. ‑ Havia lágrimas nos olhos de Adrian ao dizer estas palavras e ela compreendeu então que era também o que queria dar a Bill, para sempre.

            ‑ Não existe esse amor incondicional, a não ser entre loucos ‑ disse cinicamente Steven.

            ‑ Então é o que eu sou. ‑ Fora isso o que ela lhe oferecera em tempos e que ele desprezara.

            ‑ Então boa sorte. ‑ Steven ficou a olhá-la durante um bocado. O sentimento que existira entre eles dissipara‑se. Depois, um pouco mais gentilmente, ele acrescentou: ‑ Tenho pena que as coisas não tenham resultado, Adrian. Mas não parecia verdadeiramente desgostoso por renunciar ao filho. Por breves momentos sentira‑se intrigado com ele, fascinado, mas esse momento já passara. Na altura em que a enfermeira o levara para fora do quarto ele parecia tê‑lo esquecido.

            ‑ Também lamento. ‑ Adrian olhou‑o, pensando quem ele realmente seria durante todo o tempo em que ela julgara conhecê‑lo. ‑ Tenho pena por ti ‑ acrescentou calmamente.

            ‑ Não tenhas.

            Adrian sentia‑se finalmente livre, ao olhá‑lo, e estava duplamente satisfeita por lhe ter telefonado. Ele estava a ser sincero com ela. Não tinha nada a perder agora.

            ‑ Não estava preparado para isto, Adrian. Suponho que nunca estarei.

            Foram as palavras mais honestas que ele alguma vez lhe dissera, apesar de a beleza do bebê o ter intrigado. Mas Steven não era Bill, e ela teve a certeza de que não o amava. Há meses que deixara de o amar... talvez desde que ....... ou talvez desde que ficara grávida, embora não o soubesse.

            ‑ Eu sei. ‑ Adrian disse lentamente que sim, com a cabeça, e recostou‑se para trás sobre as almofadas. Fora uma longa manhã. ‑ Obrigada por teres vindo. ‑ Steven tocou‑lhe na mão com a dele e depois voltou costas e saiu do quarto sem dizer uma palavra. Dessa vez Adrian sabia que ele se ia embora para sempre, e tinha pena, mas sabia que nunca iria sentir a falta dele. Ficou estendida, a pensar em Bill, e terrivelmente preocupada com o que ele poderia ter pensado ao ver Steven ali. Só desejava que ele voltasse depressa para ela lhe poder explicar tudo.

            Enquanto ela pensava em Bill, Steven seguia ao longo do corredor a passos largos e calmos. Parou por momentos junto do berçário e viu o filho. Um embrulho azul dentro de uma cestinha azul um pouco inclinada para as enfermeiras o poderem observar melhor. Preso à pequena cama havia um cartão azul onde se podia ler: Thompson, sexo masculino, 3200 g, cinco e meia. Tinha o nome da mãe, tal como Steven o requerera ao tribunal por intermédio do seu advogado. Ao olhar para o bebê, Steven esperou sentir algo que nunca sentira antes, mas isso não sucedeu. Era bonito e incrivelmente pequeno e vulnerável. Apetecia tocar-lhe. Nunca esqueceria o que sentira ao 'pegar‑lhe, mas ficara aliviado quando o entregara de novo a Adrian, como estava agora, sabendo que o bebê era de Adrian e não seu. Era agradável saber que ele pertencia a outra pessoa. Steven pensara em experimentar ter o bebê consigo durante uns tempos, mas afinal sentia‑se aliviado por saber que não precisava disso. Compreendera que o seu relacionamento com Adrian terminara. Ela queria demasiadas coisas que ele não queria. Exigira demasiado de si.

            ‑ É seu? ‑ Um homem de idade, com um charuto na boca sorridente, olhou‑o com curiosidade ao fazer a pergunta. Steven abanou a cabeça. Não, não era dele. Pertencia a outra pessoa. Depois saiu, com passos calmos, sentindo‑se em paz. Para Steven acabara a provação.

 

            Adrian esperou durante todo o dia que Bill voltasse, mas ele não apareceu. Telefonou inúmeras vezes para o apartamento e ele nunca atendeu. As quatro da tarde, Adrian sentia‑se desesperada. Pensava com angústia no que ele teria imaginado. Queria explicar‑lhe o que se passara e contar‑lhe o resultado da conversa com Steven. Mas não conseguia encontrá‑lo. Estava também preocupada com a festa que os amigos tinham preparado para ele, pois contavam com ela para o levar ao estúdio onde todo o elenco o esperava. Ligou várias vezes para o estúdio, mas em vão. Finalmente, às seis, alguém atendeu o telefone. Adrian ouviu o ruído de muitas vozes e quase gritou para se fazer ouvir. Por fina, o assistente do realizador percebeu quem é que estava a falar.

            ‑ Adrian? Oh, parabéns pelo bebê! ‑ Bill contara a toda a gente que Sam nascera, mas os que o conheciam bem estranhavam que ele estivesse tão calado. Tinham, no entanto, pensado que Bill ficara cansado depois da longa noite passada a acompanhar Adrian. Bill acabara por aparecer na festa completamente por acaso. Depois de sair de junto de Adrian fora para casa. Mas, em seguida, sentiu necessidade de aclarar as idéias e dirigiu‑se ao estúdio. Chegara apenas um pouco atrasado em relação ao que esperavam. Era como se, com ou sem ela, estivesse destinado que ele fosse ali.

            ‑ Bill está aí? ‑ Finalmente, tinha‑o encontrado.

            ‑ Acabou de sair. Disse que precisava de fazer camas coisas. Mas a festa está magnífica. ‑ O assistente do realizador estava mais do que um pouco embriagado. Divertiam‑se tanto que nem sentiam a falta dos convidados de honra. Bill saíra cedo da festa. Ficara comovido com a surpresa, mas apetecia‑lhe ficar só. Sempre soubera que Adrian queria contatar com Steven depois de o bebê nascer, mas não esperara ir encontrá-lo sentado junto de Adrian, com o bebê nos braços. Fizera imediatamente suposições imensamente dolorosas. Adrian, por seu lado, começou a recear o pior quando se convenceu de que Bill nunca mais apareceria. Pensava que ele estivesse tão zangado que nunca mais lhe quisesse falar, E nada podia fazer para o descobrir. Não podia sair do quarto e do hospital e sentia‑se encurralada e desesperada.

            Passou quase toda a tarde com o bebê ao colo, ou no pequeno berço junto da cama. Quando lhe levaram o tabuleiro com o jantar, ela devolveu‑o sem lhe tocar. Colocou o grande urso azul numa cadeira e ficou a olhar para as rosas com tristeza. Só queria ver Bill e dizer‑lhe como o amava.

            ‑ Quer um comprimido para dormir? ‑ perguntou‑lhe a enfermeira, às oito horas. Mas Adrian abanou a cabeça e a enfermeira tomou nota na ficha da doente que poderia haver uma depressão pós‑parto. Tinham reparado que ela não comera nada nem ao almoço nem ao jantar e que parecia até pouco entusiasmada em amamentar o bebê. Mantinha‑se calada e pouco comunicativa, mas logo que a enfermeira saiu do quarto, Adrian ligou novamente para o apartamento. O atendedor de chamadas estava ainda ligado e Adrian deixou lá uma mensagem angustiada, pedindo a Bill que lhe falasse.

            Adrian pegou outra vez no bebê e manteve‑o encostado a si durante muito tempo, olhando para o pequenino nariz, para os olhos fechados, para a boca perfeita e para os dedinhos dobrados. Ele era tão pequenino, tão perfeito e tão querido e ela estava tão embevecida a olhá‑lo que nem ouviu a porta abrir‑se silenciosamente por volta das nove e Bill entrar. Ficou parado um minuto a olhá-la, querendo refrear o que sentia por ela e pelo bebê, quando de súbito, Adrian voltou a cabeça e o viu. Soltou uma exclamação abafada e estendeu as mãos para ele, ao mesmo tempo que tentava sair rapidamente da cama, o que não era fácil.

            ‑ Fica aí ‑ disse ele gentilmente. ‑ Não te levantes. Eu vim apenas dizer adeus.

            Bill parecia frio e calmo ao dirigir‑se para a cama, mas sem, contudo, se aproximar muito. Vinha muito bem vestido. Adrian teve a sensação de que ele não se vestira assim por causa da festa. Esta fora uma surpresa para ele e, nessa altura, ele tinha apenas umas calças de ganga e uma camisola. Mas agora parecia ter‑se vestido para uma ocasião importante. Vestira um fato completo de tweed, uma camisa creme, uma gravata da Hermés, sapatos de cabedal. No braço tinha um sobretudo dobrado. Adrian percebeu imediatamente que ele se ia embora.

            ‑ Aonde vais? ‑ perguntou com voz preocupada, sentindo instintivamente que tudo mudara entre eles. Tudo sucedera no espaço de poucas horas. Nessa manhã, apenas doze horas antes eles eram como um só coração, uma só alma, e agora ele afastava‑se e ia‑se embora. Adrian sabia por quê. E só queria saber se poderia curar o mal que lhe causara.

            ‑ Pensei ir a Nova Iorque visitar os meus filhos durante uns dias ‑ disse por fim Bill. ‑ Tenho de me apressar para não perder o avião.

            Adrian sentiu um aperto no coração ao vê-lo olhar para o relógio. Sentiu‑se tomada de pânico com medo de o perder. Viu que Bill olhava para o que a rodeava e para ela, mas que parecia evitar olhar para o bebê.

            ‑ Eles sabem que vais vê‑los?

            ‑ Não ‑ respondeu Bill com ar sombrio. ‑ Pensei em fazer‑lhes uma surpresa.

            ‑ Quanto tempo te irás demorar?

            Adrian não sabia que dizer, a não ser que lamentava o que fizera, que fora uma tola, que não se devia ter importado com o que Steven pudesse pensar, que ele era um cretino e ela também, que amava Bill mais do que à própria vida e que Sam iria crescer sendo o bebê dos dois... se ele não se fosse embora... se lhe pudesse perdoar.

            ‑ Não sei quanto tempo lá ficarei ‑ respondeu Bill, olhando‑a como se já tivesse saudades dela. ‑ Uma semana... duas... pensei em passar uns dias com eles depois de voltarem de Vermont, se Leslie os deixar ir... Estava sempre à mercê de outras pessoas para estar junto das pessoas que amava... Leslie... Adrian... Steven... mas, nessa ocasião, não podia pensar nisso. O presente de aniversário que ia dar a si mesmo era sair da cidade e deixar que os problemas se resolvessem por si. A sua equipe tinha muitos guiões para prosseguir o trabalho enquanto ele estivesse ausente.

            ‑ Contratei uma enfermeira para cuidar de ti, quando saíres do hospital. Irá lá a casa durante o dia e ficará também de noite, se achares necessário. Não a vi, mas na agência disseram‑me que é excelente. ‑ Bill pensava em tudo e os olhos de Adrian velaram‑se de lágrimas ao ouvi‑lo falar.

            ‑ Não precisas de fazer isso. Posso cuidar de mim própria e de Sam.

            ‑ Julguei que pudesses precisar de ajuda com o bebê. A não ser... ‑ Não pensara nisso, mas de repente a idéia ocorreu‑lhe e perguntou com hesitação: ‑ Vais voltar para a minha casa, ou para a de Steven?

            Adrian compreendeu nesse instante o que Bill julgara ter acontecido. Sentiu então uma dor inimaginável no coração. A culpa fora inteiramente sua. Isso ainda tornava as coisas piores para Adrian.

            ‑ Não vou voltar para Steven. Nem agora, nem nunca. Não quero mais nada com ele.

            Adrian disse essas palavras com tanta determinação que Bill a olhou com estranheza.

            ‑ Esta manhã fiquei com a impressão de que... pensei... sabia que lhe ias telefonar ‑ explicou então ‑ mas não pensei que o fizesses tão cedo. Devia ter estado preparado para isso. Fui apanhado de surpresa quando entrei aqui e vi os três... e eu sentia‑me tão excitado acerca de Sam e... Bill falava com um ar tão triste que as lágrimas começaram a rolar pelas faces de Adrian ao olhar primeiro para Bill e depois para o bebê.

            ‑ Eu só queria chegar a uma conclusão... sei que fiz mal, mas queria que ele visse o bebê... e queria presenciar a reação dele. Não sei bem o que esperava, não sei que loucas ilusões alimentei a respeito de dever algo a Steven e ao bebê. Talvez eu me sentisse culpada de lhe tirar uma coisa tão maravilhosa como Sam, sem que ele tivesse possibilidade de ver o que perdia. Mas a verdade é que ele nem sequer faz idéia do que significa ter um filho. Ele não sabe o que é o amor. Para Steven, um bebê apenas representa complicações. É um parvo, um tolo e eu ainda sou uma parva maior por ter casado com ele.

            Adrian olhou para Bill com um ar terrivelmente infeliz e começou a soluçar e, de repente, o bebê começou a chorar também. Bill pousou o sobretudo e correu a ajudá-la.

            ‑ Eu faço isso... ‑ Bill estava calmo e seguro de si e mexia no bebê com mãos hábeis e carinhosas. ‑ Ele tem fome?

            ‑ Não sei. Dei‑lhe de mamar ainda há pouco, mas talvez ainda queira mais.

            ‑ Talvez esteja molhado. ‑ Verificou a fralda do bebê e voltou a embrulhá‑lo na pequena manta azul, enquanto Adrian o olhava, admirada da maneira como Bill sabia fazer tudo bem, desde os argumentos da sua série televisiva, aos cozinhados, e aos cuidados com os bebês.

            ‑ Se calhar só queria sentir‑se mais aconchegado. Os bebês gostam de se sentir bem envoltos nas suas roupas, como se estivessem num casulo. ‑ E dizendo isso Bill pôs-lhe o bebê, de novo adormecido, nos braços. Adrian limpou as lágrimas, assoou‑se e agradeceu.

            ‑ Não sei no que estava a pensar quando telefonei a Steven. Mas logo que ele aqui chegou percebi que cometera um erro. Depois tu apareceste e antes de eu poder dizer fosse o que fosse, foste‑te embora. ‑ Adrian começou a chorar outra vez e, nessa altura, apareceu uma enfermeira que abanou a cabeça ao vê‑la assim, pensando que ela estava a ter os primeiros sintomas de uma depressão pós‑parto. Ou isso, ou o marido a estava a fazer passar um mau bocado. Alguma coisa era. ‑ E passei o dia a telefonar‑te ‑ continuou Adrian acusadoramente ‑, sem te conseguir encontrar. E hoje é o dia dos teus anos!

            ‑ Eu sei. ‑ Bill sorriu. Adrian tinha um ar tão patético, tão desesperado. Parecia apenas uma adolescente, com aquele laço azul a prender‑lhe o cabelo, uma adolescente tendo ao colo o bebê de outra pessoa qualquer. ‑ Mas fiquei muito embaraçado quando entrei aqui e vi Steven. Pareceu‑me uma cena tão íntima.

            ‑ Bem, ao princípio foi comovente ‑ explicou Adrian, desejando que Bill se sentasse e receando sugerir‑lhe isso, não fosse ele lembrar‑se da hora da partida do avião. ‑ Reparei que Steven olhava para o bebê como se nunca tivesse visto nenhum. Mas não há dúvida de que ele é um ser vaidoso e creio que nunca amou nada nem ninguém na vida dele, a não ser talvez a sua raqueta de tênis ou o seu Porsche. Disse‑me que estava disposto a perdoar‑me a minha traição e a aceitar‑me a mim e ao bebê numa base experimental. Podes imaginar tal coisa? ‑ Adrian disse as últimas palavras verdadeiramente zangada.

            ‑ E se ele te tivesse dito que te aceitava incondicionalmente? Se tivesse dito que te amava?

            ‑ Ao falar com ele apercebi‑me de que era demasiado tarde para isso. Eu deixei totalmente de o amar, se é que alguma vez o amei. Ele e eu nunca tivemos o que nós agora temos. Foi algo de muito novo e de muito superficial. Não conhecia o significado da palavra amor até te encontrar.

Adrian falou em voz baixa, com grande suavidade. Bill pousou o sobretudo na cadeira ao lado do urso azul e aproximou‑se da cama onde Adrian continuava na mesma posição, com o bebê nos braços.

            ‑ Não podia suportar a idéia de te perder, Adrian. Não podia... Já passei por isso e sei o que sofri. ‑ Olhou então para o bebê adormecido. ‑ E também não o quero perder a ele. Quero‑os a ambos, a Adam e Tommy sempre que possível... para sempre. Não tenho o direito de me interpor no teu caminho. Foste casada com Steven e tens o direito de voltar para ele, se quiseres. Mas se te decidiste, preciso de saber... agora. ‑ Olhou‑a com os olhos cheios de dor. Atingira a maioridade no seu quadragésimo aniversário.

            ‑ Nunca amei ninguém assim ‑ murmurou Adrian, estendendo os braços para ele, enquanto as lágrimas lhe rolavam pelas faces. Tinha a sensação de ter chorado o dia inteiro, mas o mesmo sucedia com Bill. Ele tivera um dia de anos terrível. ‑ Não podia viver sem ti! ‑ Adrian ainda tremia ao pensar que, devido à sua própria estupidez, estivera prestes a perdê‑lo.

            Bill sorriu durante longos momentos, enquanto a ajudava a deitar o bebê, depois olhou‑a de novo.

            ‑ Amo‑te. Só quero que saibas como te amo. ‑ Olhou então para o relógio e sorriu. ‑ Bem, parece‑me que vou perder o avião. Mas como os meus filhos não sabiam que eu ia não vão ficar desapontados. Importas‑te que eu passe aqui a noite?

            Adrian riu e assoou‑se outra vez. Tinha sido um dia muito cheio de emoções e a noite anterior também.

            ‑ Não sei o que as enfermeiras dirão. ‑ Mas nenhum deles parecia importar‑se com isso e Bill, completamente vestido, meteu‑se na cama ao lado de Adrian, muito bonita com uma camisa de noite cor-de‑rosa que ele lhe oferecera no Natal. Quando uma das enfermeiras voltou, um pouco mais tarde, para ver como Adrian se encontrava, viu‑os a beijarem‑se e fechou silenciosamente a porta. A Sra. Thompson estava a sentir‑se muito melhor.

            ‑ Vão pensar que nos estamos a portar mal ‑ sussurrou Adrian quando percebeu que a porta se acabava de fechar.

            ‑ Ótimo ‑ respondeu Bill com um sorriso.

            ‑ Tenho um presente para ti ‑ disse Adrian, lembrando‑se subitamente do relógio.

            ‑ Já? ‑ Bill soltou uma gargalhada. ‑ Não será demasiado cedo?

            ‑ Es repugnante! ‑ Mas ele beijou‑a demoradamente e sentiu‑se novamente em paz com o mundo, tendo Adrian junto a si.

            ‑ E eu tenho uma surpresa para ti ‑ disse Bill pensativamente, recostado sobre as almofadas, ao lado dela.

            ‑ O que é? ‑ falavam em voz baixa, com medo de acordar o bebê, e porque, subitamente, a vida lhes parecia muito simples e pacífica.

            ‑ Casamo‑nos dentro de dias.

            ‑ Já era a altura. ‑ Adrian fingiu uma expressão carrancuda e ergueu a mão onde cintilava a aliança que Bill lhe dera no Natal.

            ‑ Quero o meu nome na certidão de nascimento de Sam ‑ declarou Bill quase com severidade.

            ‑ Que achas de Samuel William Thigpen? ‑ sugeriu Adrian, com um sorriso tímido. Bill inclinou‑se e voltou a beijá‑la.

            ‑ Acho bem... ‑ Sorriu. ‑ Acho bem ‑ repetiu, puxando‑a mais para si e sentindo o coração dela junto do seu, batendo em uníssono, com uma única pulsação.

 

                                                                                            Danielle Stel

 

 

                      

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