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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


Massa Crítica / Arthur C. Clark
Massa Crítica / Arthur C. Clark

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Massa Crítica

                           

      –- Falei-lhes –- disse Harry Purvis em tom humilde –- daquela vez que evitei a evacuação do sul da Inglaterra?

      –- Não –- respondeu Charles Willis –- ou, se o fez, fiquei dormido.

      –- Bom, contar-lhes-ei isso –- continuou Harry quando viu que se reuniram suficiente número de pessoas para formar um auditório respeitável. –- Ocorreu faz dois anos na Fundação de Investigações Atômicas, perto do Clobham. Todos a conhecerão, suponho. Mas não acredito ter mencionado que trabalhei ali durante algum tempo, em uma missão especial da qual não posso falar.

      –- Homem, que novidade! - disse John Wyndham, sem obter o menor resultado.

      –- Era um sábado à tarde –- prosseguiu Harry. –- Um dia maravilhoso no final da primavera. Achávamo-nos uns seis cientistas no bar “O Cisne Negro” e as janelas estavam abertas; por isso podíamos ver as ladeiras da colina do Clobham e, mais à frente, a umas trinta milhas de distância, Upchester. Havia tanta luz que podíamos divisar as agulhas da catedral do Upchester no horizonte. Não podia pedir um dia mais esplêndido.

      O pessoal da Fundação se dava muito bem com os clientes habituais do bar, embora em princípio não pareciam muito contentes de nos ter tão perto. Além da natureza de nosso trabalho, acreditavam que os cientistas formam uma raça diferente, sem necessidades humanas. Depois de ganhar nos dardos um par de vezes e lhes convidar para umas taças, trocaram de opinião. Mas sempre nos estavam tirando um sarro, nos perguntando que nova explosão preparávamos.

      Aquela tarde deveriam ter estado presentes mais cientistas, mas na Divisão do Radioisópotos tinham um trabalho urgente, por isso nos encontrávamos em inferioridade de condições. Stanley Charnbers, o dono, notou a ausência de algumas caras conhecidas.

      –- O que se passou com seus companheiros? –- perguntou a meu chefe, o doutor French.

      –- Estão trabalhando em casa –- respondeu French. Chamávamos “casa” à Fundação para que parecesse mais familiar e menos aterradora. –-Tínhamos que terminar umas coisinhas a toda pressa. Virão mais tarde.

      –- Um destes dias, disse Stan com seriedade, você e seus amigos vão deixar escapar algo que não poderão voltar a encerrar. E então, aonde iremos parar nós?

      –- Pelo menos, à Lua, respondeu o doutor French.

      Temo que tenha sido uma resposta um tanto irresponsável, mas sempre se perde a paciência com perguntas tão parvas como aquela.

      Stan Chambers olhou por cima de seu ombro, como medindo a distância que lhe separava de Globham. Acredito que estava calculando se teria tempo de chegar ao porão ou se mereceria a pena tentá-lo.

      –- A respeito desses... isótopos que enviam aos hospitais –- disse alguém com precaução. –- Estive no hospital de Santo Tomam a semana passada e vi como os transportavam em uma caixa de segurança, que devia pesar uma tonelada. Deu-me calafrio pensar o que ocorreria se lhes escapava das mãos.

      –- Calculamos no outro dia –- disse o doutor French, visivelmente molestado pela interrupção de seu jogo de dardos –- que havia urânio suficiente no Clobham para fazer explodir o Mar do Norte.

 

      Foi uma tolice que dissesse isso, porque além de tudo não é verdade. Mas não podia questionar o meu próprio chefe, não? O homem que tinha feito estas perguntas estava sentado no oco sob a janela; observei que olhava em direção à estrada com expressão preocupada.

      –- Transportam-no em caminhões da Fundação verdade? –- perguntou impaciente.

      –-Sim; alguns isótopos duram muito pouco, por isso têm que chegar a seu destino rapidamente.

      –-Olhe, ao pé da colina há um caminhão que parece ter dificuldades. É um dos seus?

      O lugar em que estava o tabuleiro de dardos ficou deserto porque todos se precipitaram à janela. Quando pude enxergar, vi um caminhão grande, cheio de embalagens, descendo a colina a toda velocidade a uma distância aproximada de um quarto de milha. De vez em quando ricocheteava contra a sebe; era evidente que os freios tinham falhado e o condutor tinha perdido o controle. Por sorte não se aproximava nenhum carro em direção contrária; de outro modo não se teria podido evitar um acidente. Entretanto, parecia mais que provável que ainda ocorresse.

      Então o caminhão chegou a uma curva, saiu da estrada e atravessou a sebe. Foi tendo inclinações bruscas durante cinqüenta jardas, diminuindo a velocidade e estalando violentamente sobre o terreno áspero. Quase tinha parado quando topou com uma sarjeta e, lentamente, caiu sobre um flanco. Segundos mais tarde pudemos escutar um som de madeira rachando, produzido pelas embalagens ao cair no chão.

      –- Acabou-se! –- disse alguém com um suspiro de alívio. –- Fez bem em desviar-se para a sebe. Suponho que o condutor estará aturdido, mas não ferido.

      A seguir vimos algo assombroso: abriu-se a porta da cabine e o condutor saltou para o chão. Inclusive, mesmo de tal distância, podíamos nos dar conta de que estava muito agitado embora, dadas as circunstâncias, isso parecer-nos o mais natural do mundo. Mas, contrariamente ao que esperávamos, ele não se sentou para tranqüilizar-se. Pelo contrário, pôs-se a correr através do descampado, como alma que leva o diabo.

      Contemplamo-lo com a boca aberta e com certa apreensão enquanto se afastava colina abaixo. Produziu-se um silêncio lúgubre no bar, só interrompido pelo tic-tac do relógio que Stan mantinha adiantado exatamente dez minutos. Então, alguém disse:

      –- Crêem que fazemos bem ficando aqui? Quero dizer... estamos só a meia milha...

      A gente começou a afastar-se com indecisão da janela. O doutor French emitiu uma risadinha nervosa.

      –- Não sabemos se foi um de nossos caminhões –- disse. –- Além disso, estava lhes tirando um sarro faz um momento. É totalmente impossível os isótopos explodirem. Terá medo de que se incendeie o depósito de gasolina?

      –- Ah! Se...? –- interveio Stan. –- E então por que segue correndo? Já quase desceu a colina.

      –- Já sei! –- exclamou Charlie Evans, da Seção de Instrumental. –- Transporta explosivos e pensa que vão detonar.

      Eu tinha que desmentir aquilo.

      –- Não há nenhum sinal de incêndio; assim, por que se preocupa? E se transportasse explosivos, levaria uma bandeira vermelha ou algo assim.

      –- Espere um momento –- disse Stan. –- vou procurar uns binóculos.

      Ninguém se moveu até que voltou com eles; ninguém, exceto aquela figurinha na orla da colina, que então já tinha desaparecido entre as árvores sem diminuir a velocidade.

      Stan esteve olhando com os binóculos durante uma eternidade. No final, baixou-os com um grunhido de desilusão...

      –- Não se vê muito –- disse –-O caminhão está em má posição. As caixas se dispersaram por toda parte... algumas têm se quebrado. Venha ver, o que lhe parece?

      French olhou duramente um longo momento e depois me passou os binóculos. Eram de um modelo muito antiquado e não serviam para muito. Por um momento me pareceu que as caixas estavam rodeadas de uma estranha bruma, mas pensei que aquilo não tinha sentido. Atribuí-o à má qualidade das lentes.

      E aí se teria acabado o assunto se não tivessem aparecido dois ciclistas. Subiam a colina com visível esforço em uma bicicleta de dois assentos e, quando chegaram à brecha da sebe, desmontaram rapidamente para ver o que ocorria. O caminhão era visível da estrada e se dirigiram para ele de mãos dadas. A garota parecia indecisa e o homem lhe dizia que não se preocupasse. Podíamos imaginar sua conversação; era um espetáculo enternecedor.

      Não durou muito. Chegaram a umas quantas jardas do caminhão... e saíram correndo a grande velocidade emdireções opostas. Nenhum dos dois se voltou para olhar o outro e observei que corriam de uma forma muito peculiar.

      Stan, que tinha recuperado os binóculos, baixou-os com mãos trementes.

      –- Aos carros! –- gritou.

            –- Mas... –- começou a dizer o doutor French.

      Stan lhe fez calar com um olhar.

      –- Malditos cientistas! –- disse, ao mesmo tempo em que fechava o caixa (inclusive em um momento como aquele não esquecia seu dever). –- Já sabia que isto se passaria cedo ou tarde.

      E segundos mais tarde tinha desaparecido, assim como a maioria de seus clientes. Não se detiveram nem para nos perguntar se queríamos ir com eles.

      –- Isto é ridículo! –- exclamou French.  –- Antes que saibamos de que se trata, esses imbecis terão provocado tal pânico que será difícil pôr remédio.

      Sabia o que queria dizer. Alguém o diria à polícia; desviariam os carros que viajassem de direção ao Clobham; as linhas telefônicas ficariam bloqueadas com centenas de chamadas... seria como o horror de “A guerra dos mundos” do Orson Welles em 1938.

      Possivelmente pensam que estou exagerando, mas nunca deve subestimar o poder do pânico. E recordem que essa gente tinha medo da Fundação e quase esperava que ocorresse algo assim.Inclusive não me importa lhes dizer que, então, nós mesmos começávamos a nos sentir preocupados.

      Éramos incapazes de compreender o que ocorria no caminhão derrubado e não há nada que um cientista deteste mais que não saber a que ater-se.

      Enquanto isso, tinha-me dado procuração dos binóculos do Stan e estudava a situação atentamente. Uma teoria começou a formar-se em minha mente. Havia algo... sobre as caixas. Segui olhando até que os olhos começaram a me arde e disse ao doutor French:

      –- Acredito que já sei do que se trata. Por que não telefona à agência de correios do Clobham para tratar de antecipar-se ao Stan e impedir que estenda qualquer rumor, se é que já chegou ali? Diga que tudo está sob controle; que não há nada do que preocupar-se. Enquanto você faz isso, eu vou aproximar-me do caminhão para comprovar minha teoria.

      Devo dizer que ninguém se ofereceu para me acompanhar. Embora começasse a andar com muita confiança, ao cabo de um momento me sentia um pouco menos seguro de mim mesmo. Recordei um incidente que sempre me pareceu uma das brincadeiras mais irônicas da história e comecei a me perguntar se não estaria ocorrendo um parecido. Havia uma vez uma ilha vulcânica no Longínquo Este, com uma população de cinqüenta mil habitantes. Ninguém se preocupava com o vulcão, que tinha permanecido inativo durante cem anos. Mas um dia começaram as erupções. A princípio eram pequenas, mas sua intensidade aumentou em questão de horas. Estendeu o pânico, e a gente tentou apinhar-se nos poucos botes disponíveis para alcançar o continente.

      Mas se encontrava à frente da ilha um comandante que estava decidido a manter a ordem em toda a costa.

      Publicou proclamas assegurando que não existia perigo algum e enviou tropas para que ocupassem os navios, para que não houvesse perda de vidas nos intentos de abandonar a ilha em embarcações sobrecarregadas. Sua personalidade era tão forte e seu valor tão exemplar, que conseguiu acalmar a multidão e aqueles que tentavam escapar voltaram envergonhados a suas casas e se sentaram a esperar que se restabelecesse a normalidade. Quando o vulcão voou pelos ares um par de horas mais tarde, levando consigo a ilha inteira, não ficou nem um só sobrevivente...

 

      Ao chegar ao caminhão, vi-me mesmo desempenhando um papel similar àquele comandante. Depois de tudo, às vezes é muito aconselhável ficar e encarar o perigo, mas em outras, o mais sensato é pôr pés na estrada. Mas já era muito tarde para voltar e, até certo ponto, estava seguro da certeza de minha teoria.

      –- Não continue –- interrompeu George Whitley, que sempre que podia tentava danificar os relatos do Harry –- Era gás.

      Ao Harry não pareceu lhe incomodar absolutamente que lhe adiantassem.

      –- É uma sugestão muito engenhosa. Eu também pensei isso; o que demonstra que, de vez em quando, todos passamos por tolos.

      Tinha chegado a uns cinqüenta pés do caminhão quando parei em seco e, apesar de ser um dia quente, um calafrio muito desagradável me percorreu a espinha dorsal. Porque tinha ante meus olhos algo que fazia em pedacinhos minha teoria do gás, sem deixar nada em seu lugar.

      Uma massa negra e movediça se retorcia sobre a superfície de uma das caixas. Por um momento quis acreditar que se tratava de um líquido escuro que gotejava de um recipiente quebrado. Mas é uma propriedade muito característica dos líquidos não poder desafiar à gravidade. Aquilo sim podia e, além disso, estava vivo. De onde me encontrava parecia o pseudópodo de uma ameba gigante trocando de forma e grossura, e se movia para frente e para trás sobre a borda de uma caixa rota.

      Em poucos segundos foram à minha mente todo tipo de fantasias próprias do Edgar Allan Poe. Mas recordei meu dever como cidadão e minha dignidade de cientista. Dirigi-me para aquilo, embora sem muita pressa.

      Farejei com cautela, como se a teoria do gás ainda estivesse em minha mente. Mas foram meus ouvidos e não meu olfato, quem me deu a resposta, quando me rodeou aquela massa sinistra e escorregadia. Tinha escutado aquele som milhões de vezes, mas nunca com tanta intensidade como então. Sentei-me a certa distância e comecei a rir até não poder mais. Depois me levantei e me dirigi ao bar.

      –- E então –- disse o doutor French com ansiedade –- do que se trata? Stan está esperando ao telefone; o pegamos na encruzilhada. Mas não voltará até que lhe digamos o que ocorre.

      –- Diga ao Stan –- respondi –- que envie o apicultor da vila e que ele também venha. Vai ter muito trabalho.

      –- A quem? –- perguntou French. Abriu a boca com assombro. –- Meu Deus! Não me diga que...

      –- Exatamente –- respondi enquanto inspecionava o lugar, no caso de Stan ter escondida alguma garrafa interessante. –-Começam a tranqüilizar-se, mas imagino que ainda estão muito chateadas. Não as contei, mas deve haver meio milhão de abelhas aí abaixo tentando voltar para suas colméias rotas.

 

                                                                                            Arthur C. Clark

 

 

                      

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