Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
O Martelo de Deus
PRIMEIRO ENCONTRO
Oregon, 1972
Era do tamanho de uma casa pequena, pesava nove mil toneladas e movia-se a 50 mil quilômetros por hora. Quando sobrevoou o Grand Teton National Park, um turista atento fotografou a esfera incandescente e sua longa trilha de vapor. Em menos de dois minutos ela cortou a atmosfera terrestre e retornou ao espaço.
Qualquer mudança de órbita, nos bilhões de anos em que circundara o Sol e poderia ter aterrissado em alguma das grandes cidades do planeta com um poder explosivo cinco vezes maior que a bomba que destruiu Hiroshima.
A data: 10 de agosto de 1972.
Longe da África
Robert Singh gostava muito desses passeios pela floresta com seu filho pequeno, Toby. Era uma floresta controlada e inofensiva, é claro, mas era empolgante o contraste com seu antigo hábitat, o deserto do Arizona. Mas o melhor de tudo era estar tão perto do oceano, pelo qual todos os homens do espaço cultivavam uma empatia muito arraigada. Mesmo naquela clareira mais de um quilômetro terra adentro, ele podia ouvir no recife externo a arrebentação causada pela monção marítima.
- O que é aquilo, papai? - perguntou o menino, de quatro anos de idade, apontando para um pequeno rosto orlado por pêlos brancos que os espiava por trás de seu esconderijo de folhas.
- Hã... algum tipo de macaco. Por que não pergunta ao Cérebro? - Eu perguntei. Ele não quer responder.
Outro problema, pensou Singh. Havia momentos em que ele ansiava pela vida simples de seus ancestrais, nas planícies poeirentas da Índia, embora tivesse consciência de que só a toleraria por milissegundos.
- Tente de novo, Toby. Às vezes você fala muito rápido. A Central nem sempre reconhece sua voz. E você se lembrou de enviar uma imagem? Ela não pode dizer o que você está vendo a menos que possa ver também.
- Ih, esqueci!
Singh acessou o canal particular de seu filho a tempo de ouvir a resposta da Central.
- É um cólobo branco, da família Cercopithecidae...
- Obrigado, Cérebro. Posso brincar com ele?
- Não acho uma boa idéia - atalhou Singh, bruscamente. – Pode morder, e deve ter pulgas. Seus minirrobôs são muito melhores.
- Não como a Tigrette.
- Mas dão menos trabalho. Pelo menos agora ela está educada, já não era sem tempo. Além do mais, é hora de voltar para casa. - E ver como Freyda está se saindo com seus problemas com a Central, pensou.
Desde que o Serviço Aerocargo instalara a casa na África, começara uma série de falhas. A última, e que poderia tornar-se a mais séria, acontecera no sistema de reciclagem de alimentos. Embora o sistema tivesse garantia de proteção contra falhas, de forma que o risco de envenenamento real era astronomicamente pequeno, o filé mignon da noite anterior estava com um estranho gosto metálico. Freyda sugerira com ironia que eles poderiam ter de voltar a uma vida de caçadores-coletores da era pré-eletrônica, cozinhando sua comida em fogueiras. Seu senso de humor era às vezes um tanto grotesco: a própria idéia de comer carne tirada de animais mortos era obviamente repugnante...
- Não podemos ir até a praia?
Tendo passado a maior parte de sua vida rodeado de areia, Toby estava fascinado pelo mar: mal podia acreditar que fosse possível existir tanta água em um só lugar. Seu pai esperava ansioso que a monção nordeste abrandasse para levá-lo aos recifes e lhe mostrar as maravilhas agora escondidas pela fúria das ondas.
- Vamos ver o que mamãe diz.
- Mamãe diz que é hora dos dois voltarem para casa. Os senhores esqueceram que teremos visitas esta tarde? E Toby, seu quarto está um caos. Era para você arrumá-lo, não deixar para Dorcas.
- Mas eu programei ela...
- Sem discussão. Para casa, os dois!
A boca do menino começou a retorcer-se em uma resposta bem conhecida, mas há momentos em que a disciplina vem antes do amor: Singh tomou Toby nos braços e começou a andar em direção à casa, seu fardo debatendo-se sem muito empenho. Toby era pesado demais para carregá-lo por muito tempo, mas sua teimosia logo passou e o pai ficou feliz em deixar que prosseguisse com suas próprias pernas.
O lar que Robert Singh e Freyda Carroll compartilhavam com o filho Toby, sua querida minitigresa e um sortimento de robôs pareceria estranhamente pequeno a um visitante de um século anterior - mais um chalé que uma casa. Mas nesse caso não se podia confiar nas aparências, pois a maioria dos cômodos tinha múltiplas funções e podia ser transformada a uma palavra de comando. A mobília podia metamorfosear-se e as paredes e tetos desaparecer para dar lugar a qualquer vista da terra ou do céu ou mesmo do espaço, convincente o bastante para enganar qualquer um exceto um astronauta.
Singh tinha de admitir que o conjunto do domo central com as quatro alas hemicilíndricas não era muito agradável aos olhos, e parecia nitidamente deslocado naquela clareira na selva. Mas adequava-se perfeitamente à descrição 'uma máquina de viver', e Singh passara praticamente toda a sua vida adulta em máquinas como aquela, com freqüência em gravidade zero. Não se sentiria realmente confortável em nenhum outro ambiente.
A porta da frente dobrou-se em direção ao telhado, e um borrão dourado lançou-se sobre eles. Com os braços estendidos, Toby correu na frente para receber Tigrette.
Mas o encontro não aconteceu: pertencia a uma realidade distante 30 anos e meio bilhão de quilômetros.
Encontro com Kali
Quando o play-back neural chegou ao fim, desvaneceram-se o som, a imagem, o cheiro de flores desconhecidas e o suave roçar do vento em sua pele muitas décadas mais jovem, e o capitão Singh estava novamente em sua cabine a bordo do rebocador espacial Goliath, enquanto Toby e sua mãe permaneciam em um mundo ao qual jamais poderia voltar. Os anos no espaço - e o descaso com os exercícios indispensáveis quando em gravidade zero - o haviam enfraquecido tanto que agora só podia andar na Lua ou em Marte. A gravidade o exilara de seu planeta natal.
- Uma hora para o encontro, capitão - disse a voz suave mas insistente de David, como fora batizado (era inevitável) o computador central da Goliath. - Modo ativo, como solicitado. Hora de deixar seus memo-chips e voltar ao mundo real.
O comandante humano da Goliath sentiu uma vaga de tristeza precipitar-se sobre si quando a última imagem de seu passado perdido dissolveu-se em uma névoa vazia e bruxuleante de ruído branco. Uma transição rápida demais de uma realidade para outra era uma boa receita para a esquizofrenia, e o capitão Singh sempre aliviava o choque com o som mais reconfortante que conhecia: ondas quebrando suavemente em uma praia, com gaivotas gritando à distância. Era mais uma memória de uma vida que perdera, de um passado tranqüilo substituído agora por um presente aterrador.
Adiou por mais alguns momentos enfrentar sua apavorante responsabilidade. Suspirou, então, e removeu o barrete de input neural que se ajustava confortavelmente a seu crânio. Como todos os homens do espaço, o capitão Singh pertencia à escola do 'Bald is Beautiful' – o 'careca é lindo' da popularizada expressão em inglês -, ao menos porque cabelo era uma amolação em gravidade zero. Os historiadores sociais estavam ainda desconcertados pelo fato de que uma única invenção, uma espécie de 'walkman cerebral' portátil conhecido como 'brainman', fosse capaz de mudar a aparência de toda a raça humana em uma única década - e trazer de volta a antiga arte de fazer perucas ao status de indústria de destaque.
- Capitão - disse David -, sei que está aí. Ou quer que eu assuma?
Era uma velha piada, inspirada em todos os computadores insanos em contos, livros e filmes do início da era eletrônica. David tinha um senso de humor surpreendente: afinal de contas, era uma pessoa de direito (não-humana) reconhecida pela famosa Centésima Emenda, e compartilhava de quase todas as qualidades de seus criadores - e até as superava. No entanto, alguns terrenos sensoriais e emocionais lhe eram vetados. Embora fosse bastante simples equipá-lo com os sentidos de olfato ou paladar, isso não parecera necessário, e todas as suas tentativas de contar piadas sujas foram tão desastrosas que desistiu desse gênero.
- Está bem, David - retrucou o capitão. - Ainda estou no comando. - Removeu a máscara dos olhos, limpou as lágrimas que misteriosamente se haviam acumulado, e virou-se com relutância para a vigia. Ali, dominando o espaço a sua frente, estava Kali.
Parecia bastante inofensivo - apenas mais um pequeno asteróide, a forma tão semelhante à de um amendoim que sua aparência era quase cômica. Crateras de impacto, algumas grandes e centenas de outras de menor tamanho, pontilhavam aleatoriamente sua superfície carvoácea. Sem pontos de referência, era impossível ter uma noção de escala, mas Singh sabia de cor suas dimensões: 1.295 metros de comprimento máximo, 656 metros de menor largura. Kali caberia folgadamente em muitos parques públicos.
Era compreensível que, mesmo agora, a maior parte da humanidade ainda não conseguisse acreditar que fosse o instrumento da destruição. Ou, como os fundamentalistas crislâmicos o chamavam, 'O Martelo de Deus'.
Não poucas vezes comentou-se que a ponte da Goliath teria sido copiada da espaçonave Enterprise. Após um século e meio, Jornada nas Estrelas ainda era carinhosamente revivida de tempos em tempos, uma lembrança da ingênua aurora da Era Espacial, quando o homem sonhava que seria possível desafiar as leis da física e cruzar o Universo mais rápido que a própria luz. Mas não se descobriu nenhum meio de evitar o limite de velocidade imposto por Einstein, e embora ficasse provada a existência de 'buracos-de-minhoca' no espaço, mesmo um núcleo atômico seria grande demais para passar através deles. Apesar disso, o sonho de conquistar mesmo os abismos interestelares não desaparecera inteiramente.
Kali enchia por completo a tela principal. Não era necessária nenhuma magnificação, pois a Goliath pairava a apenas 200 metros de sua superfície antiga e amolgada. E agora, pela primeira vez em sua existência, ele tinha visitantes.
Embora fosse uma prerrogativa do comandante dar o primeiro passo em um mundo inexplorado, o capitão Singh delegou o desembarque a três membros da tripulação mais experientes em atividades extraveiculares. Preocupava-se em não perder tempo: a maior parte da raça humana tinha a atenção voltada para eles, e esperava pelo veredicto que decidiria o futuro da Terra.
É impossível caminhar nos asteróides menores: a gravidade é tão tênue que um explorador descuidado pode facilmente atingir velocidade de escape e afastar-se em uma órbita independente. Por isso, um membro da equipe de contato vestia um traje equipado com propulsão autônoma e provido de braços externos com garras. Os outros dois flutuavam em um trenó espacial que poderia ser facilmente confundido com seus similares árticos.
O capitão Singh e o grupo de oficiais reunidos a sua volta na ponte da Goliath sabiam que não era aconselhável perturbar a equipe de AEV com perguntas ou conselhos desnecessários, a menos que surgisse alguma emergência.
O trenó atingia agora o topo de um matacão muitas vezes maior que ele, espalhando uma nuvem de poeira estranhamente grande.
- Pousamos, Goliath! Podemos ver a rocha nua, aqui. Ancoramos? - Parece bom como qualquer outro lugar. Vá em frente.
- Posicionando a broca... Parece que está entrando fácil... Não seria fantástico se encontrássemos petróleo?
Ouviram-se apenas alguns risinhos na ponte. Esse tipo de piada forçada servia para aliviar as tensões, e Singh as encorajava. Desde o encontro houvera uma alteração sutil no moral da tripulação, com imprevisíveis oscilações entre abatimento e humor juvenil. Consigo mesma, a médica da nave rotulara esse comportamento de 'assobiar ao pé da forca'. Já tivera de prescrever tranqüilizantes para um caso leve de sintomas maníaco-depressivos. Poderia ficar cada vez pior nas semanas e meses seguintes.
- Alçando a antena... Acionando o emissor de rádio... Como está o sinal?
- Alto e claro.
- Ótimo. Agora Kali não poderá se esconder.
Não que houvesse o menor perigo de perder Kali, é claro, como ocorrera muitas vezes no passado com asteróides pouco observados. Órbita alguma jamais fora computada com tanto cuidado, mas alguma incerteza ainda persistia. Havia ainda uma minúscula possibilidade de o Martelo de Deus não atingir a bigorna.
Agora os gigantescos radiotelescópios na Terra e no lado oculto da Lua esperavam para receber os pulsos do emissor de rádio, regulados para disparar a intervalos de um milésimo de milionésimo de milionésimo de segundo. Mais de 20 minutos teriam se passado antes que os sinais atingissem seu destino, criando uma régua invisível que definiria a órbita de Kali com precisão de centímetros.
Poucos segundos mais tarde, os computadores da Spaceguard dariam seu veredicto de vida ou morte, porém quase uma hora teria se passado antes que a mensagem chegasse à Goliath.
Começava o primeiro período de espera.
A criação da Spaceguard, 'Guarda Espacial', fora um dos últimos projetos da lendária NASA, ainda no final do século XX. Seu objetivo inicial era bastante modesto: fazer o levantamento mais completo possível dos asteróides e cometas que cruzavam a órbita da Terra e determinar se eram uma ameaça potencial. O nome do projeto - tirado de um obscuro romance de ficção científica do século XX - era um tanto enganoso, e seus críticos gostavam de argumentar que 'Sentinela Espacial' ou 'Alarme Espacial' seria muito mais apropriado.
Com um orçamento total que raramente ultrapassava dez milhões de dólares por ano, por volta do ano 2000 foi estabelecida uma rede mundial de telescópios - a maioria deles operados por amadores bem qualificados. O espetacular retorno do cometa Halley, 61 anos mais tarde, encorajou maiores investimentos, e a grande bola de fogo de 2079 - que felizmente impactou no meio do Atlântico - deu à Spaceguard prestígio adicional. No fim do século já haviam sido localizados mais de um milhão de asteróides, e o levantamento estava 90 por cento completo. Mas o trabalho teria de continuar indefinidamente - sempre haveria a possibilidade de que algum intruso irrompesse, vindo de regiões mais remotas e não-mapeadas do Sistema Solar.
Como fez Kali, detectado no fim de 2109, quando atravessava a órbita de Saturno em sua queda em direção ao Sol.
SEGUNDO ENCONTRO
Tunguska, Sibéria, 1908
O iceberg cósmico veio da direção do Sol, de forma que ninguém percebeu sua aproximação até que o céu explodiu. Segundos mais tarde, as ondas de choque derrubaram dois mil quilômetros quadrados de taiga, e o estrondo mais forte desde a erupção do Krakatoa começou a circundar o mundo.
Se o fragmento cometário tivesse se atrasado meras duas horas em sua jornada de eras, a explosão de dez megatons teria eliminado Moscou e alterado o curso da história.
A data: 30 de junho de 1908.
Pedras do Céu
Nunca houve tanto talento reunido aqui na Casa Branca desde que Thomas Jefferson jantou sozinho.
Presidente John Kennedy, a uma delegação de cientistas dos Estados Unidos
Eu acharia mais fácil acreditar que dois professores ianques tivessem mentido que na possibilidade de caírem pedras do céu.
Presidente Thomas Jefferson, ao ouvir o relatório de uma queda de meteorito na Nova Inglaterra
Meteoritos não caem na Terra. Eles caem no Sol - e acontece da Terra estar no caminho.
John W. Campbell
Que pedras podiam cair do céu era fato bem conhecido no mundo antigo, embora houvesse alguma divergência quanto aos deuses específicos que as haviam atirado. E não apenas pedras, mas também o precioso metal ferro. Antes da invenção da metalurgia, os meteoritos eram uma das principais fontes desse valioso elemento. Não é de admirar que se tornassem sagrados, e fossem com freqüência adorados.
Os pensadores mais esclarecidos da 'Idade da Razão' do século XVIII, no entanto, não se deixavam enganar por essas tolices supersticiosas. A Académie des Sciences, na França, fez circular uma resolução explicando que meteoritos tinham origem totalmente terrestre. Se parecia que alguns deles vinham do céu, é porque eram o resultado de quedas de raios - um erro perfeitamente compreensível. Assim, os curadores de museus da Europa jogaram fora as rochas inúteis que seus ignorantes predecessores haviam pacientemente colecionado.
Por uma das mais deliciosas ironias na história da ciência, poucos anos após a declaração da Academia francesa, uma grande chuva de meteoritos caiu a poucos quilômetros de Paris, na presença de testemunhas inteiramente confiáveis. Mais do que depressa, a Académie teve de se retratar.
Mesmo assim, a magnitude e a importância potencial dos meteoritos só começaram a ser reconhecidas no princípio da Era Espacial. Durante décadas os cientistas duvidaram - e até mesmo negaram serem eles responsáveis por qualquer formação importante na Terra. Por incrível que pareça, mesmo no final do século XX havia geólogos que acreditavam que a famosa Cratera do Meteoro, no Arizona, tinha uma denominação errônea, e atestavam que ela teria origem vulcânica! Foi necessário que as sondas espaciais mostrassem que a Lua e a maioria dos corpos celestes de menor tamanho no Sistema Solar estavam há eras expostos a um bombardeamento cósmico para que a polêmica finalmente se definisse.
Assim que começaram a procurar por elas, em particular com a nova perspectiva fornecida por câmeras em órbita, os geólogos começaram a encontrar crateras de impacto por todo lado. A razão pela qual elas não eram muito mais comuns era agora óbvia: todas as crateras antigas haviam sido destruídas pelas intempéries. Além disso, algumas eram tão imensas que não podiam ser percebidas do solo, e sequer do ar: sua escala podia ser divisada apenas do espaço.
Tudo isso era muito interessante para geólogos, mas distante demais das preocupações cotidianas para entusiasmar o público em geral. Até que, graças ao Prêmio Nobel Luis Alvarez e seu filho Walter, a ciência menor conhecida como meteorítica subitamente se tornou notícia.
O abrupto - pelo menos na escala de tempo astronômica - desaparecimento dos grandes dinossauros, após dominarem a Terra por mais de cem milhões de anos, sempre fora um grande enigma. Muitas explicações haviam sido sugeridas, algumas plausíveis e outras totalmente ridículas. Uma alteração climática era a resposta mais simples e óbvia, e inspirara uma obra de arte clássica: a brilhante seqüência. de "A sagração da primavera' da obra-prima Fantasia, de Walt Disney.
Mas essa explicação não era verdadeiramente satisfatória, pois mais suscitava dúvidas do que esclarecia. Se o clima mudou, o que causou a mudança? Havia tantas teorias, - nenhuma conclusiva - que os cientistas começaram a procurar outras alternativas.
Em 1980, Luis e Walter Alvarez, em busca de um registro geológico, anunciaram a solução do duradouro mistério. Em uma estreita camada de rocha que marcava a fronteira entre os períodos Cretáceo e Terciário, encontraram a evidência de uma catástrofe global.
Os dinossauros haviam sido assassinados, e eles conheciam a arma do crime.
TERCEIRO ENCONTRO
Golfo do México, há 65 milhões de anos
Ele entrou verticalmente, provocando uma brecha de dez quilômetros de extensão na atmosfera, gerando temperaturas tão altas que o próprio ar entrou em combustão. Quando atingiu o solo, a rocha se liquefez e propagou-se em ondas da altura de montanhas, solidificando-se apenas depois de formar uma cratera de 200 quilômetros de diâmetro.
Isso foi apenas o início do desastre; a verdadeira tragédia estava para começar.
Óxidos nítricos caíam como chuva, transformando em ácido os mares. Nuvens de fuligem originadas das florestas incineradas escureciam o céu, obstruindo o sol por vários meses. Por todo o globo a temperatura caiu com violência, exterminando a maior parte das plantas e dos animais que haviam sobrevivido ao cataclismo inicial. Embora algumas espécies devessem resistir por milênios, o reinado dos grandes répteis finalmente terminara.
O relógio da evolução fora novamente zerado; começava a contagem regressiva para o homem.
A data: muito aproximadamente, 65 milhões de anos atrás.
Sentença de Morte
Uma inteligência que em um determinado instante pudesse compreender todas as forças pelas quais a natureza é animada (...), uma inteligência vasta o bastante para submeter a análise esses dados (...) iria englobar na mesma fórmula o movimento dos maiores corpos do Universo e o do mais ínfimo dos átomos; para ela nada seria incerto, e o futuro, assim como o passado, seria presente a seus olhos.
Pierre Simon de Laplace, 1814
Robert Singh não tinha muita paciência para especulações filosóficas, mas quando encontrou pela primeira vez as palavras do grande matemático francês, em um livro de astronomia, sentiu algo próximo ao horror. Por mais improvável que pudesse ser a existência de uma "inteligência vasta o bastante", a própria idéia aterrorizava. Será que o 'livre-arbítrio', que Singh inocentemente imaginava possuir, não era mais que uma ilusão, já que cada ato poderia, pelo menos em princípio, ser predeterminado?
Foi enorme seu alívio quando descobriu que o pesadelo laplaciano fora exorcizado pelo desenvolvimento da Teoria do Caos, no final do século XX. Percebeu-se então que sequer o futuro de um único átomo, que dizer do Universo todo, poderia ser previsto com absoluta precisão. Para isso seria necessário conhecer sua posição inicial e sua velocidade com precisão infinita. Qualquer erro na ordem de um milionésimo, bilionésimo ou centilionésimo iria multiplicar-se, até que a realidade não conservasse a mais leve semelhança com a teoria.
Alguns eventos podiam ser previstos com absoluta confiança, no entanto, ao menos por aqueles períodos de tempo considerados longos pelos padrões humanos. O movimento dos planetas sob o efeito dos campos gravitacionais do Sol e uns dos outros era o exemplo clássico ao qual Laplace devotara seu gênio, quando não estava discutindo filosofia com Napoleão. Embora não se pudesse garantir a longo prazo a estabilidade do Sistema Solar, as posições futuras dos planetas podiam ser calculadas para períodos de dezenas de milhares de anos, com margens de erro muito pequenas. O futuro de Kali só precisava ser conhecido no espaço de meses, e a margem de erro admissível era o diâmetro da Terra. Agora que o emissor de rádio implantado no asteróide permitia que sua órbita fosse computada com a precisão necessária, não havia mais lugar para incerteza - ou esperança...
Não que Robert Singh se houvesse permitido muita esperança. A mensagem que David lhe repetiu, assim que chegou pelo estreito feixe infravermelho vindo da estação lunar de retransmissão, era exatamente a que esperava.
"Os computadores da Spaceguard comunicam que Kali atingirá a Terra em 241 dias, 13 horas e cinco minutos, com margem de mais ou menos 20 minutos. O ponto de impacto ainda está sendo definido. Provavelmente na área do Pacífico.”
Então Kali cairia no oceano. Isso não contribuiria em nada para reduzir a extensão da catástrofe global. Poderia até mesmo torná-la pior, com ondas de quilômetros de altura varrendo tudo até os contrafortes da cordilheira do Himalaia.
- Já acusei o recebimento - disse David. - Há outra mensagem chegando.
- Eu sei.
Não poderia ter demorado mais de um minuto, mas pareceu uma eternidade.
"Controle da Spaceguard para Goliath. Vocês estão autorizados a iniciar a Operação Atlas imediatamente.”
Atlas
A tarefa do Atlas mitológico era evitar que os céus caíssem sobre a Terra. A do módulo de propulsão Atlas que a Goliath transportava era muito mais simples. Tinha meramente de conter uma porção muito pequena do céu.
Montado em Deimos, o satélite mais distante de Marte, o Atlas era pouco mais que um conjunto de foguetes ligados a tanques de propelente que comportavam 200 mil toneladas de hidrogênio líquido. Embora seu motor a fusão gerasse menos impulso que o projétil primitivo que levara Yuri Gagárin ao espaço, podia operar de forma contínua não meramente por minutos, mas por semanas. Ainda assim, seu efeito em um corpo do tamanho de Kali seria insignificante - uma alteração de velocidade de poucos centímetros por segundo. Mas isso seria suficiente, se tudo corresse bem.
Parecia uma pena que os homens que lutaram tanto pelo Projeto Atlas . - ou contra ele - jamais pudessem ver os resultados de seus esforços.
O Senador
O senador George Ledstone (independente, América Ocidental) tinha uma excentricidade pública e, como ele admitia jovialmente, um vício secreto. Sempre usara pesados óculos de aro de chifre (sem função é claro), devido a seu efeito intimidante sobre as mais relutantes testemunhas, uma novidade que a maioria nunca havia visto numa época de cirurgia ocular instantânea a laser.
Seu 'vício secreto' - que não era segredo para ninguém - era a prática de tiro com rifle em um estande padrão olímpico montado nos corredores de um silo nuclear há muito abandonado, próximo ao monte Cheyenne. Desde a desmilitarização do planeta Terra, atividades como essa passaram a ser desaprovadas, quando não ativamente desencorajadas.
O senador aprovou a resolução das Nações Unidas, originada pelos assassinatos em massa do século XX, que proibiu a posse, por Estados e indivíduos, de qualquer arma que pudesse ferir mais que a pessoa visada. Mas desdenhou o famoso slogan dos World Savers: 'Armas são as muletas do impotente".
- Não para mim - retorquiu ele durante uma de suas incontáveis entrevistas (a mídia o adorava). - Tenho dois filhos, e teria uma dúzia se a lei permitisse. Não tenho vergonha de admitir que aprecio um bom rifle - é uma obra de arte. Quando você faz a pressão final sobre o gatilho, e vê que acertou na mosca... bem, não há sensação igual. E se o tiro ao alvo é um substituto para o sexo, eu fico com os dois.
Mas havia um limite que o senador não ultrapassava: caçar.
- Isso era aceitável, é claro, quando não havia outra maneira de se conseguir carne, mas atirar em animais indefesos por esporte, isso sim é doentio! Fiz isso uma vez, quando garoto. Um esquilo passou correndo pelo nosso gramado - felizmente não era uma espécie protegida - e eu não pude resistir à tentação... Papai me deu uma surra, mas não era necessário. Nunca vou esquecer o estrago que minha bala fez.
O senador Ledstone era sem dúvida um excêntrico, e isso parecia ser coisa de família. Sua avó fora coronel da temida Milícia de Beverly Hills, cujas escaramuças com as tropas irregulares de Los Angeles haviam originado uma enxurrada de psicodramas em todos os meios, do antiquado balé ao memochip. E seu avô, um dos mais famigerados contrabandistas do século XXI. Antes de ser morto em um tiroteio contra a Polícia Médica Canadense, durante uma engenhosa tentativa de passar uma quilotonelada de tabaco Cataratas do Niágara acima, estimou-se que 'Smokey' Ledstone havia sido responsável por pelo menos 20 milhões de mortes.
Ledstone não se envergonhava muito de seu avô, cuja morte sensacional levou à revogação da terceira e mais desastrosa tentativa de lei seca dos extintos EUA. Argumentava que adultos responsáveis deviam ter o direito de cometer suicídio da maneira que lhes agradasse - álcool, cocaína, ou mesmo tabaco -, desde que não matassem nenhum inocente no processo. O vovô era com certeza um santo, se comparado aos magnatas da propaganda que - enquanto seus advogados caros puderam mantê-los fora da cadeia - conseguiram viciar a um estágio fatal uma parcela substancial da espécie humana.
A Comunidade dos Estados Americanos ainda mantinha sua assembléia geral em Washington, em uma vizinhança que pareceria perfeitamente familiar a gerações de espectadores - embora os procedimentos e estilos de discurso pudessem espantar qualquer pessoa nascida no século XX. No entanto, muitos comitês e sub-comitês conservavam ainda seus nomes originais, pois a maior parte dos problemas administrativos são eternos.
Foi como diretor da Comissão de Orçamento da CEA que o senador Ledstone se deparou pela primeira vez com o Projeto Spaceguard Fase Dois - e ficou indignado. É verdade que a economia global estava indo bem, desde o colapso do comunismo e do capitalismo - tanto tempo atrás que os dois eventos pareciam simultâneos. A hábil aplicação da Teoria do Caos pelos matemáticos do Banco Mundial rompera o velho ciclo de altos e baixos e evitara (por enquanto) a Depressão Definitiva prevista por muitos pessimistas. Ainda assim, o senador argumentou que o dinheiro poderia ser muito melhor empregado em 'terra firme', especialmente em seu projeto favorito: a reconstrução do que restara da Califórnia após o Grande Terremoto.
Quando Ledstone vetou pela segunda vez a proposta de financiamento do Spaceguard Fase Dois, todos concordaram que ninguém na Terra poderia fazê-lo mudar de idéia. Não contavam com a interferência de alguém de Marte.
O Cientista
O Planeta Vermelho já não era assim tão vermelho, embora o processo de enverdecê-Io mal tivesse começado. Concentrados nos problemas da sobrevivência, pouca energia restava aos colonos (detestavam essa palavra, e já diziam com orgulho "nós, marcianos") para arte ou ciência. Mas a centelha do gênio cai onde quer, e o maior físico teórico do século nasceu sob os domos hemisféricos de Port Lowell.
Como Einstein, com quem era freqüentemente comparado, Carlos Mendoza era um excelente músico. Possuía o único saxofone de Marte, e era muito hábil nesse antiquado instrumento. Tinha em comum com Einstein também seu senso de humor auto-depreciativo. Quando suas predições sobre a onda gravitacional foram demonstradas de forma espetacular, seu único comentário foi: "Bem, isso dá um fim na teoria do big-bang, versão cinco - pelo menos até a próxima quarta-feira".
Carlos poderia ter recebido o Prêmio Nobel em Marte, como todos esperavam. Mas ele tinha paixão por surpresas e manobras de efeito, de forma que apareceu em Estocolmo parecendo um cavaleiro em uma armadura high-tech, vestindo um dos exoesqueletos autônomos desenvolvidos para uso de paraplégicos. Com esse auxílio mecânico, podia quase superar sua desvantagem física em um ambiente que caso contrário o mataria rapidamente.
Desnecessário dizer que, mal terminou a cerimônia, Carlos foi bombardeado com convites para eventos científicos e sociais. Entre os poucos que pôde aceitar estava uma reunião na Comissão de Orçamento da CEA, onde deixou uma impressão indelével.
SENADOR LEDSTONE: Professor Mendoza, já ouviu falar de Chicken Little?
PROFESSOR MENDOZA: Infelizmente não, sr. diretor.
SENADOR LEDSTONE: Bem, era um personagem de conto de fadas que a todo momento saía gritando "O céu está caindo! O céu está caindo!" Isso me recorda alguns de seus colegas. Gostaria de saber sua opinião sobre o Projeto Spaceguard - tenho certeza de que o senhor sabe do que se trata.
PROFESSOR MENDOZA: Com certeza, sr. diretor. Vivo em um mundo que ainda exibe as cicatrizes de mil impactos de meteoros - algumas delas com extensão de centenas de quilômetros. Elas já foram comuns na Terra também, mas o vento e a chuva - algo que ainda não temos em Marte, mas estamos trabalhando nisso! - as desgastaram quase por completo. Mas ainda há um exemplar bastante visível no Arizona.
SENADOR LEDSTONE: Sei, sei. Os 'guardiães espaciais' estão sempre falando da Cratera do Meteoro. Até que ponto se deve levar a sério os avisos deles?
PROFESSOR MENDOZA: Deve-se levar muito a sério, sr. diretor. É inevitável que cedo ou tarde aconteça outro grande impacto. Não é minha área, mas posso lhe providenciar as estatísticas.
SENADOR LEDSTONE: Estou até o pescoço de estatísticas, mas respeito sua opinião. E agradeço sua presença assim tão em cima da hora, principalmente tendo uma audiência com o presidente Windsor dentro de poucas horas.
PROFESSOR MENDOZA: Obrigado, sr. diretor.
O senador Ledstone ficou impressionado, e até mesmo fascinado, com o jovem cientista, mas ainda não estava convencido. Quando mudou de idéia, não foi por uma questão de lógica. Carlos Mendoza não compareceu a seu compromisso no Palácio de Buckingham. A caminho de Londres, morreu em um estranho acidente após um defeito de funcionamento no sistema de controle de seu exoesqueleto.
Ledstone retirou imediatamente sua oposição ao Projeto Spaceguard, e deu seu voto à liberação do financiamento para a próxima fase. Muitos anos mais tarde, em idade muito avançada, disse a um de seus assistentes: "Disseram-me que logo vão ser capazes de tirar o cérebro de Mendoza daquele tanque de nitrogênio líquido e falar com ele através de uma interface de computador. Gostaria de saber em que esteve pensando, todos esses anos”...
Acaso e Necessidade
Esta história é contada nos bazares do Iraque há séculos, e é muito triste. Não ria.
Abdul Hassan era um famoso tapeceiro no reino do Grande Califa, e este admirava grandemente sua arte. Mas um dia, quando apresentava suas mercadorias na corte, ocorreu uma terrível catástrofe.
Ao curvar-se profundamente perante Harun-al-Rashid, Abdul soltou gases.”
Naquela noite o tapeceiro fechou sua loja, empilhou suas mercadorias mais preciosas sobre um único camelo e deixou Bagdá. Durante anos ele errou pelos territórios da Síria, da Pérsia e do Iraque, mudando de nome mas não de profissão. Ele prosperou, mas sempre suspirava pela cidade em que nascera.
Estava já idoso quando se convenceu de que todos haviam esquecido seu infortúnio, e que seria seguro voltar para casa. A noite caía quando avistou os minaretes de Bagdá, e decidiu repousar em uma hospedaria confortável para entrar na cidade pela manhã.
O estalajadeiro era loquaz e amigável, e Abdul ficou encantado em poder lhe perguntar sobre tudo o que acontecera durante sua longa ausência. Os dois riam de um dos escândalos da corte quando Abdul perguntou casualmente:
- Quando isso aconteceu?
O estalajadeiro pensou por um momento, depois coçou a cabeça.
- Não estou certo da data - disse -, mas foi uns cinco anos depois que Abdul Hassan peidou.
O tapeceiro jamais voltou a Bagdá.
Os eventos mais insignificantes podem, em não mais que um momento, alterar totalmente o curso de uma vida. E muitas vezes não é possível, mesmo no fim, decidir se a mudança foi para melhor ou para pior. Quem poderia saber? A atuação involuntária de Abdul pode muito bem ter-lhe salvo a vida. Se tivesse permanecido em Bagdá poderia ter sido vítima de um assassino ou, muito pior, merecido a ira do Califa - e os hábeis serviços de seus executores.
Ao começar seu último semestre no Instituto Aristarchus de Tecnologia Espacial - conhecido como AriTech -, o cadete de 25 anos de idade Robert Singh teria rido muito se alguém lhe dissesse que logo se tornaria um competidor olímpico. Como todos os habitantes da Lua que desejavam conservar a opção de voltar à Terra, fazia religiosamente seus exercícios em alta gravidade na centrífuga do instituto. Eram exercícios maçantes, mas o tempo não era perdido: estava quase sempre conectado a seus programas de estudo.
Certo dia, o reitor da engenharia chamou-o a sua sala - algo incomum o bastante para assustar qualquer formando. Mas o reitor parecia bem-humorado, e Singh acalmou-se.
- Sr. Singh, seu registro acadêmico é satisfatório, embora não seja brilhante. Mas não é sobre isso que quero lhe falar. Talvez não esteja a par disso, mas, de acordo com os relatórios médicos, o senhor tem um coeficiente massa/energia extraordinário. Gostaríamos que começasse a se preparar para as próximas olimpíadas.
Singh ficou atônito, e não muito satisfeito. Sua primeira reação foi "Como vou encontrar tempo para isso?" Logo a seguir, pensou melhor. As deficiências em seu registro acadêmico poderiam muito bem ser perdoadas se tivesse conquistas atléticas que as compensassem. Havia uma longa e honrosa tradição nesse sentido.
- Obrigado, senhor, fico muito lisonjeado. Imagino que terei de mudar-me para o Astrodomo.
A cobertura de três quilômetros de extensão sobre uma cratera próxima à muralha leste do monte Plato encerrava o maior espaço aéreo contínuo da Lua, e se tornara um ponto popular para a prática de vôo livre. Por anos se falara em fazer disso um evento olímpico, mas o Comitê Olímpico Interplanetário não conseguia decidir se os competidores deviam usar asas ou propulsores. Qualquer um serviria bem a Singh, que experimentara os dois tipos de vôo em uma rápida visita ao complexo do Astrodomo.
Mas as surpresas ainda não haviam terminado.
- O senhor não vai voar, sr. Singh. Vai correr. A céu aberto. Provavelmente através da Sinus Iridum.
Freyda Carroll estava na Lua havia apenas algumas semanas, e agora que a novidade se esgotara preferiria estar de volta à Terra.
Para começar, não conseguia se acostumar à gravidade de um sexto. Alguns visitantes jamais conseguiam. Ou saltavam como cangurus, quase sem sair do lugar e às vezes batendo a cabeça no teto, ou arrastavam os pés cuidadosamente, fazendo uma pausa antes de cada passo. Não é de admirar que os nativos os chamassem de 'lesmas' - os bichos da 'Terra’.
Como estudante de geologia, Freyda também achou a Lua decepcionante. Sim, havia geologia suficiente ali - ou selenologia - para ocupar alguém por centenas de vidas. Mas os pedaços interessantes da Lua eram difíceis de atingir. Não se podia sair andando com um martelo e um espectrômetro de massa portátil como na Terra, mas tinha de usar trajes espaciais (que Freyda detestava) ou ficar sentada em um veículo lunar e operar equipamentos por controle remoto, o que era pouco melhor.
Esperava que os túneis intermináveis e as instalações subterrâneas do AriTech pudessem apresentar cortes transversais dos cem metros superficiais da Lua, mas não teve tanta sorte. Os lasers de alta potência que haviam feito a escavação derreteram a rocha e o rególito - a camada superior do solo lunar, fustigada por eras de bombardeamento por meteoros -, garantiram um acabamento liso e espelhado, e sem o menor interesse. Não era de se admirar como era fácil perder-se na uniformidade monótona dos túneis e corredores. Uma infinidade de avisos como:
ENTRADA PROIBIDA SOB QUAISQUER CIRCUNSTÂNCIAS!
SÓ PARA ROBÔS CLASSE 2 FECHADO PARA REPAROS ATENÇÃO: AR INADEQUADO - USE RESPIRADOR
Não encorajava o tipo de exploração que Freyda apreciava na Terra.
Ela estava perdida - como sempre - quando abriu com um repelão uma porta que prometia acesso ao subsolo principal 3 e arremeteu por ela com cuidado. Mas não o suficiente.
Foi atingida quase a seguir por um objeto grande e veloz e atirada, girando sobre si mesma, para um lado do amplo corredor em que acabara de entrar. Por um momento ficou completamente desorientada, e vários segundos se passaram antes que conseguisse levantar-se e conferir os ferimentos.
Não parecia ter nada quebrado, mas suspeitava que logo haveria uma dolorosa equimose em seu lado direito. Então, mais irritada que assustada, procurou em volta o projétil que causara aquele estrago.
Um ser que poderia ter saído diretamente de uma antiga história em quadrinhos avançava lentamente em sua direção. Era obviamente humano, e estava envolto em um cintilante traje prateado que se ajustava a seu corpo como uma malha de balé. A pessoa dentro da roupa tinha a cabeça oculta em um capacete esférico que parecia desproporcionalmente grande. Freyda podia ver apenas sua própria imagem distorcida em sua superfície espelhada.
Esperava uma explicação ou um pedido de desculpas (embora, pensando melhor, talvez ela devesse ter sido um pouco mais cuidadosa...). Enquanto aquela figura se aproximava, estendendo os braços de forma suplicante, ela ouviu uma voz masculina abafada e quase ininteligível:
- Desculpe-me, por favor. Espero que não tenha se machucado. Pensei que ninguém viesse aqui.
Freyda tentou enxergar através do capacete, mas ele escondia por completo o rosto do homem.
- Estou bem... acho.
A voz vinda do traje espacial (pois o que mais poderia ser, embora jamais tivesse visto um que se parecesse minimamente com aquele?) parecia bastante atraente, e cheia de pesar, e a irritação dela logo se evaporou. - Espero não tê-lo machucado, ou danificado seu equipamento.
O sr. X chegara tão perto que seu traje quase a tocava, e Freyda tinha certeza de que ele a examinava com atenção. Parecia injusto que ele pudesse vê-Ia, enquanto ela não tinha a menor idéia de como era sua aparência. Subitamente se deu conta de que queria muito descobrir...
Na lanchonete do AriTech, poucas horas mais tarde, não se decepcionou. Bob Singh ainda parecia embaraçado pelo incidente, embora não pela razão que seria de se esperar. Assim que Freyda lhe garantiu que sobreviveria, ele passou a um assunto mais premente.
- Ainda estamos trabalhando no traje - explicou -, verificando o funcionamento do sistema de suporte de vida primeiro em ambiente fechado, onde é seguro. Na próxima semana, se tudo correr bem, vamos tentar lá fora. Mas temos um problema com... bem, com a segurança. O Clavius está com certeza formando uma equipe, e Tsiolkovski, no lado oculto, está pensando no assunto. A mesma coisa com o MIT, o Caltech e o Gagarin, mas nenhum está levando isso muito a sério. Eles não têm o know-how, e como poderiam ter um treinamento adequado na Terra?
O interesse de Freyda por atletismo era quase nulo, mas estava simpatizando rapidamente com o assunto. Ou pelo menos com Robert Singh.
- Você acha que alguém pode copiar o design de seu traje?
- Exato. E se funcionar tão bem como esperamos, pode causar uma revolução nos equipamentos para AEV - pelo menos para missões de curta duração. Gostaríamos que o AriTech tivesse o crédito por isso. Depois de mais de cem anos, os trajes espaciais ainda são desajeitados e desconfortáveis. Você conhece aquela velha piada: "Não seria visto nem morto em um”.
A piada era velha mesmo, mas Freyda não deixou de rir educadamente. Depois ficou séria, e olhou fundo nos olhos de seu novo amigo.
- Espero - disse ela - que não seja perigoso para você.
Foi então que ela soube que, apenas pela segunda ou terceira vez em sua vida, estava apaixonada.
O reitor da engenharia, já um tanto deprimido por seu espião no MIT ter sido ritualmente atirado no rio Charles, não estava muito feliz quanto à nova colega de quarto de Robert Singh.
- Vou dar um jeito para que ela seja enviada em uma pesquisa de campo pelo menos três dias antes da corrida - ameaçou ele.
Pensando melhor, no entanto, voltou atrás. Para definir a atuação de um atleta, os fatores psicológicos eram tão importantes quanto os fisiológicos.
Freyda não seria banida antes da maratona.
Baía dos Arco-Íris
O gracioso arco da Sinus Iridum, a Baía dos Arco-íris, é uma das mais encantadoras formações lunares. Com 300 quilômetros de extensão, é a metade restante de uma típica planície de cratera cuja muralha norte foi completamente varrida, três bilhões de anos antes, por um rio de lava vindo do Mare Imbrium, o Mar das Chuvas. O semicírculo que a lava não destruiu é delimitado a oeste pelo Cabo Heráclides, um maciço de um quilômetro de altura que em determinadas épocas cria uma bela e efêmera ilusão. Quando a Lua está no décimo dia de seu ciclo, quase cheia, o Cabo Heráclides saúda a aurora, e mesmo ao menor telescópio fixado na Terra ele assume por algumas horas a forma do perfil de uma jovem mulher, os cabelos ondulando na direção do poente. Então, à medida que o sol se levanta, o padrão de sombras se altera e a Donzela da Lua desaparece.
Mas não havia sol quando os competidores da primeira maratona lunar reuniram-se ao sopé do promontório. Na verdade, ali era quase meia-noite. A Terra cheia pairava baixa na metade do céu meridional, banhando o terreno com um fulgor azul-ferrete 50 vezes mais brilhante que o que a lua cheia jamais poderia lançar sobre a Terra. Isso também deixava o céu livre de estrelas: apenas Júpiter estava palidamente visível a oeste, próximo ao horizonte, para quem procurasse com cuidado.
Robert Singh nunca estivera em destaque antes, mas nem mesmo saber que três mundos e uma dúzia de satélites o observavam deixava-o especialmente nervoso. Como dissera a Freyda 24 horas antes, tinha total confiança em seu equipamento.
- Bem, isso você acabou de demonstrar - disse ela, com ar sonhador. - Obrigado. Mas prometi ao reitor que seria a última vez antes da corrida.
- Você não pode ter feito isso!...
- Não propriamente. Digamos que foi... bem, um acordo tácito de cavalheiros.
Freyda ficou séria de repente.
- Eu quero que você vença, é claro, mas fico mais preocupada com a possibilidade de algo sair errado. Acho que você não teve tempo suficiente para testar o traje adequadamente.
Era a mais pura verdade, mas Singh não iria assustar Freyda admitindo. Mesmo. se houvesse uma falha nos sistemas, no entanto - e isso era sempre possível, por mais testes antecipados que se fizessem -, não haveria nenhum perigo real. Uma pequena frota de veículos lunares acompanharia os concorrentes: carros de observação para a imprensa, jipes lunares com líderes de torcida e treinadores e, o mais importante, equipes de socorro com câmaras de recompressão sempre a poucas centenas de metros.
Enquanto era equipado no furgão do AriTech, Singh imaginava qual competidor precisaria ser resgatado primeiro. A maioria deles havia se encontrado apenas algumas horas antes, e trocaram os habituais votos insinceros de boa sorte. Havia a princípio onze inscritos, mas quatro desistiram, deixando na prova apenas o AriTech, o Gagarin, o Clavius, o Tsiolkovski, o Goddard, o CalTech e o MIT. O corredor do MIT, um azarão chamado Robert Steel, ainda não chegara, e seria desclassificado se não aparecesse nos próximos dez minutos. Devia ser uma manobra deliberada, planejada para confundir a concorrência ou evitar um exame muito detalhado de seu traje espacial - não que isso pudesse fazer alguma diferença a essa altura.
- Como está sua respiração? - perguntou o treinador de Singh quando o capacete foi selado.
- Praticamente normal.
- Bem, você não está fazendo nenhum esforço agora. O regulador pode aumentar em até dez vezes o fluxo de O2, se você precisar. Agora você vai para a câmara de escape para testarmos sua mobilidade...
- A equipe do MIT acabou de chegar - anunciou o observador do COI no circuito aberto. -A maratona vai começar em 15 minutos.
- Favor confirmar se todos os sistemas estão em funcionamento sussurrou a voz do juiz da prova ao ouvido de Robert Singh. - Número um?
- OK.
- Número dois?
- Sim.
- Número três?
- Sem problemas.
Mas não houve resposta do número quatro, a corredora do CalTech, que se afastava desajeitadamente da linha de largada.
Com isso somos apenas seis, pensou Singh, sentindo um lampejo de compaixão pela ex-concorrente. Que azar, vir da Terra só para descobrir na última hora uma falha no equipamento! Mas seria impossível fazer uma verificação mais adequada por lá: nenhum simulador seria grande o suficiente. Aqui, basta passar pela câmara de escape para encontrar todo o vácuo que se queira.
- Começando a contagem regressiva. Dez, nove, oito...
A maratona lunar não era uma daquelas provas que podiam ser decididas já na largada. Singh esperou até bem depois do 'zero', calculando com,cuidado seu ângulo de lançamento antes de decolar.
Muitos matemáticos haviam se dedicado a esse problema, e devorouse a isso quase um milissegundo do tempo do computador do AriTech. A gravidade de um sexto, na Lua, era o fator mais importante, mas de forma alguma o único. A resistência do traje, a taxa mais apropriada de consumo de oxigênio, a produção de calor, a fadiga, tudo tinha de ser levado em consideração. E para começar fora necessário decidir uma antiga polêmica que remetia à época dos primeiros homens na Lua: o que era melhor, amplas passadas ou saltos a longa distância?
Ambos funcionavam bastante bem, mas não havia precedentes para o que ele estava tentando agora. Os trajes espaciais sempre foram equipamentos volumosos que restringiam a mobilidade e acrescentavam tanta massa ao usuário que era necessário certo esforço para iniciar um movimento, e às vezes outro tanto para pará-lo. Mas seu traje era muito diferente.
Robert Singh tentara explicar essas diferenças - sem revelar nenhum segredo industrial - durante uma das inevitáveis entrevistas à imprensa antes da corrida.
- Como pudemos fazê-lo tão leve? - respondeu ele à primeira pergunta. - Bem, ele não foi planejado para ser usado durante o dia.
- Que diferença isso faz?
- Ele não precisa de um sistema de reflexão de calor. O sol pode despejar mais de um quilowatt sobre nós. É por isso que estamos correndo à noite.
- Ah, estava mesmo imaginando o porquê disso. Mas não vai estar frio demais? A temperatura lunar não chega a algumas centenas de graus abaixo de zero?
Singh esforçou-se para não sorrir ante uma pergunta tão simplória.
- O corpo consegue gerar todo o calor necessário, mesmo na Lua. Correndo em uma maratona, então, muito mais que o necessário.
- Mas você consegue mesmo correr, embrulhado como uma múmia? - Espere e verá!
Na segurança do estúdio ele falara com muita confiança, mas agora, na estéril planície lunar, a frase 'como uma múmia’ o perseguia. Não era a mais animadora das comparações.
Consolou-se com o pensamento de que não era muito precisa. Não estava envolto em bandagens, mas enfiado em duas roupas justas – uma ativa e uma passiva. A interna, feita de algodão, envolvia-o do pescoço aos tornozelos e servia de suporte a uma rede estreita de finos tubos porosos que eliminavam a transpiração e o excesso de calor. Sobre esta ficava a vestimenta protetora externa, resistente mas extremamente flexível, feita de um material semelhante à borracha e fixada por um lacre circular a um capacete que fornecia uma visibilidade de 180 graus. Quando Singh perguntou "Por que não visão total?" disseram-lhe com firmeza: "Quando estiver correndo, nunca olhe para trás".
Bem, agora era a hora da verdade. Usando as duas pernas ao mesmo tempo, ele se lançou para cima e para a frente, traçando o menor ângulo possível em relação ao solo, preocupado em fazer o mínimo de esforço. Mesmo assim, em dois segundos atingiu o ápice de sua trajetória e passou a deslocar-se paralelamente à superfície lunar, a cerca de quatro metros de altura. Seria um novo recorde na Terra, onde o salto em altura estava estacionado há meio século em pouco menos de três metros.
Por um momento o tempo pareceu arrastar-se. Ele percebia a planície extensa e resplandecente que ultrapassava a uniforme curva do horizonte. A luz da Terra, incidindo oblíqua por sobre seu ombro direito, proporcionava a extraordinária ilusão de que a Sinus Iridum estava coberta de neve. Todos os outros corredores estavam à sua frente, subindo ou descendo em suas rasantes trajetórias parabólicas. E um ia cair de cabeça - pelo menos ele não cometera esse constrangedor erro de cálculo.
Aterrissou de pé, levantando uma pequena nuvem de pó. Deixando que o impulso forçasse sua inclinação para a frente, esperou até atingir um ângulo adequado para decolar novamente. O segredo para correr na Lua, logo descobriu, era não saltar tão alto que a queda fosse muito vertical e perdesse impulso no impacto. Após vários minutos de tentativas, encontrou o ajuste correto e estabeleceu um ritmo constante. Estava indo rápido? Não havia como saber, naquele terreno sem pontos de referência, mas estava a mais de meio caminho do primeiro dos marcos instalados a cada quilômetro.
O mais importante é que ele havia ultrapassado todos os outros; não havia mais ninguém em um raio de cem metros dele. Apesar do conselho para 'nunca olhar para trás', podia se dar ao luxo de verificar a concorrência. Não ficou nem um pouco surpreso ao ver que restavam só mais três na corrida.
- Isto aqui está ficando deserto - disse. - O que aconteceu?
O circuito que usava devia ser privativo, mas ele duvidava. Era quase certo que as outras equipes e a imprensa o estivessem monitorando.
- Goddard teve um pequeno vazamento. Qual é sua situação?
- Condição sete.
Os ouvintes poderiam muito bem adivinhar o que significava isso, mas não tinha importância. Sete devia ser um número de sorte, e Singh esperava poder usá-Io até o final da corrida.
- Acabou de ultrapassar o primeiro quilômetro - disse a voz ao seu ouvido. - Tempo transcorrido, quatro minutos e dez segundos. O número dois está 50 metros atrás de você, mantendo essa distância.
Preciso fazer melhor que isso, pensou Singh. Mesmo na Terra, qualquer um pode fazer um quilômetro em quatro minutos. Mas só agora estou acertando o passo.
Ao passar pelo segundo marco, havia estabelecido um ritmo confortável e constante, e cobriu a distância em pouco menos de quatro minutos. Se pudesse manter essa média - o que era obviamente impossível -, atingiria a linha de chegada em cerca de três horas. Ninguém sabia de fato quanto tempo levaria a tradicional maratona de 42 quilômetros na Lua. Os palpites haviam variado da muito otimista previsão de duas horas até dez. Singh esperava conseguir em cinco.
O traje parecia funcionar como planejado: não restringia demais seus movimentos, e o regulador de oxigênio supria as exigências de seus pulmões. Começava a gostar daquilo. Não era uma simples corrida, mas algo inédito na experiência humana, abrindo horizontes inteiramente novos não só em atletismo mas talvez também em muitas outras áreas..
Cinqüenta minutos depois, no marco de dez quilômetros, foi parabenizado. - Você está indo bem. E há outra desistência: Tsiolkovski.
- O que aconteceu com ela?
- Não se preocupe com isso, mais tarde eu conto. Ela está bem.
Singh podia arriscar um palpite. Uma vez, no começo de seu treinamento, ele quase ficara enjoado em um traje espacial. Não era coisa para brincadeiras, já que poderia causar uma morte muito desagradável. Ele se lembrava da horrível sensação de suor frio que precedera o ataque, que ele evitou aumentando o fluxo de oxigênio e a temperatura do traje. Nunca descobrira a causa dos sintomas: talvez o nervosismo, ou algo em sua última refeição - leve e altamente calórica, mas com pouco resíduo, uma vez que poucos trajes espaciais eram equipados com instalações sanitárias.
Com a nítida intenção de se afastar dessa linha de pensamento nada proveitosa, Singh chamou seu treinador pelo rádio.
- Vou poder chegar caminhando, se isso continuar assim. Três já estão fora, e mal começamos!
- Não fique confiante demais, Bob. Lembre-se da lebre e da tartaruga. - Nunca ouvi falar... mas entendo o que quer dizer.
Ele entendeu melhor quando chegou ao marco de 15 quilômetros. Estava sentindo havia algum tempo uma certa rigidez em sua perna esquerda. Estava ficando mais difícil flexioná-Ia nas aterrissagens, e nas decolagens subseqüentes tendia a pender para um lado. Era nítido que estava se cansando, mas já era de se esperar. O traje em si parecia funcionar com perfeição, portanto não tinha nenhum problema real. Talvez fosse uma boa idéia parar e descansar um pouco; não havia nenhuma regra contra isso.
Parou por completo e olhou ao redor. Pouca coisa havia mudado, exceto pelo fato de que os picos do Heráclides estavam um pouco mais baixos, a leste. O cortejo de jipes lunares, ambulâncias e carros de observação mantinha ainda uma distância respeitosa dos corredores - que agora eram apenas três.
Não se surpreendeu ao ver que as Indústrias Clavius, a outra equipe lunar inscrita, permanecia na corrida. Inesperado era o desempenho que a lesma do MIT vinha mantendo. Na verdade, Robert Steel - estranha coincidência terem as mesmas iniciais e até o mesmo prenome - já deixara Clavius para trás. Mas não podia ter feito nenhum treinamento realista. Será que os engenheiros do MIT sabiam' de alguma coisa que os da Lua não?
- Você está bem, Bob? - perguntou o treinador, aflito.
- Ainda sete, estou só dando um tempo. Mas estou espantado com o MIT. Ele está indo muito bem.
- Está mesmo, para um terráqueo. Mas lembre-se do que eu disse quanto a não olhar para trás. Ficaremos de olho nele.
Consciente dos riscos mas não realmente preocupado, Singh concentrou-se por algum tempo em exercícios que teriam sido impossíveis em um traje convencional. Chegou a deitar-se no rególito macio e dar vigorosas pedaladas, como que em uma bicicleta invisível. Era mais uma novidade para a Lua. Esperava que os espectadores gostassem.
Quando ficou de pé novamente, não pôde resistir a uma rápida olhadela para trás. Clavius estava a pelo menos 300 metros de distância, e a forma como ziguezagueava muito provavelmente indicava fadiga. Seus alfaiates não são bons como os meus, disse Singh a si mesmo; não creio que vá ter sua companhia por muito mais tempo.
O mesmo não podia ser dito do tal Robert, do MIT. Para dizer o mínimo, parecia estar se aproximando.
Singh decidiu mudar sua forma de locomoção, para exercitar outros músculos e reduzir o risco de cãibra - outro perigo sobre o qual seu treinador o prevenira. O salto de canguru era eficiente e rápido, mas uma corrida com largas passadas era mais confortável e menos cansativa, simplesmente por ser mais natural.
Próximo ao marco dos 20 quilômetros, no entanto, ele voltou ao estilo canguru, para dar chances iguais a todos os seus músculos. Também estava ficando com sede, e sugou alguns centilitros de suco de fruta de um conveniente bocal instalado em seu capacete.
Vinte e dois quilômetros ainda a cobrir e agora restava apenas mais um competidor. Clavius finalmente abandonara a prova. Nessa primeira maratona lunar não haveria bronze, era uma disputa direta entre a Terra e a Lua.
- Meus parabéns, Bob - exultou o técnico, alguns quilômetros depois. - Você acabou de dar dois mil saltos gigantescos para a humanidade. Neil Armstrong ficaria orgulhoso de você.
- Não acredito que você contou, mas é bom saber. Estou tendo um pequeno problema.
- O que é?
- Parece engraçado, mas estou ficando com os pés frios, ou melhor, gelados.
O silêncio que se seguiu foi tão longo que ele repetiu sua queixa.
- Só conferindo, Bob. Tenho certeza de que não há nada para se preocupar.
- Assim espero.
Parecia mesmo algo trivial, mas não há problemas triviais no espaço.
Nos últimos dez ou 15 minutos, Singh começara a perceber um leve desconforto: era como andar sobre neve com sapatos ou botas que não o isolavam do frio. E estava piorando.
Bem, com certeza não havia neve na Sinus Iridum, embora a luz da Terra com freqüência causasse essa ilusão. Na meia-noite local, no entanto, o rególito era muito mais frio que a neve do inverno antártico - pelo menos 100 graus mais frio.
Isso não devia fazer diferença. O rególito era um péssimo condutor de calor, e o isolamento em suas botas devia lhe fornecer uma boa proteção. Era óbvio que isso não estava acontecendo.
Uma tossidela compungida ecoou pelo interior do capacete de Singh. - Desculpe, Bob. Acho que essas botas deviam ter solados mais grossos.
- Só agora você me diz. Bom, eu posso agüentar.
Vinte minutos depois, já não tinha tanta certeza. O desconforto pouco a pouco transformava-se em dor; seus pés começavam a congelar. Nunca estivera em um lugar de clima realmente frio, e era uma experiência nova para ele. Não tinha certeza de como lidar com aquilo, nem sabia quando os sintomas podiam se tornar perigosos. Não é verdade que os exploradores polares arriscavam-se a perder os dedos dos pés, ou mesmo membros inteiros? Sem contar o desconforto que isso envolveria, Singh não queria perder tempo em uma clínica de regeneração. Levava uma semana inteira fazer crescer novamente um pé...
- Qual é o problema? - perguntou a voz cheia de ansiedade do treinador. - Você parece estar com problemas.
Não estava com problemas, estava no paroxismo da dor. Precisava de toda a sua força de vontade para não gritar cada vez que atingia a superfície e enfiava os pés na poeira mortal que estava sugando sua vida.
- Preciso descansar por alguns minutos e ver se isso passa.
Singh reclinou-se com cuidado no solo fofo e acolhedor, imaginando se a friagem não invadiria a parte superior de seu traje no mesmo instante. Não houve sinal disso, porém, e ele relaxou. Provavelmente estaria seguro por alguns minutos, e não lhe faltariam sinais antes que a Lua tentasse congelar seu torso.
Levantou as pernas e flexionou os dedos. Pelo menos podia senti-los, e eles obedeciam a suas ordens.
E agora? O pessoal de imprensa no carro de observação devia achar que ele estava louco, ou realizando algum obscuro ritual religioso - oferecendo às estrelas as solas de seus pés. Gostaria de saber o que estavam dizendo a suas enormes audiências.
Já se sentia um pouco mais confortável; sua circulação sanguínea estava vencendo a batalha contra a perda de calor, agora que seus pés não estavam mais em contato com o solo. Mas seria sua imaginação ou sentira mesmo uma leve friagem na base de sua coluna?
Súbito, foi tomado por outro pensamento inquietante. Estou aquecendo meus pés contra o céu noturno - o próprio Universo. Qualquer colegial sabe que sua temperatura é três graus acima do zero absoluto. Comparado a isso, o rególito lunar é mais quente que água em ebulição.
Nesse caso, estou fazendo a coisa certa? Meus pés com certeza não parecem estar perdendo a batalha contra o escoadouro cósmico de calor.
Semi-prostrado na Sinus lridum, com as pernas levantadas em um ângulo ridículo na direção das estrelas quase invisíveis e da Terra refulgente, Robert Singh ficou ruminando esse pequeno problema de física. Talvez houvessem fatores demais envolvidos para possibilitar uma resposta simples, mas para uma primeira aproximação...
Era uma questão de condução versus radiação. O material de suas botas espaciais era melhor na primeira que na segunda: deixavam escapar seu calor corpóreo mais rápido que ele podia gerá-lo, quando estavam em contato físico com o rególito lunar, mas a situação se invertia quando radiava no espaço vazio. Sorte dele.
- O MIT está alcançando você, Bob. Melhor começar a se mexer.
Singh tinha de admirar seu persistente perseguidor. Merece a prata, pensou. Mas nada feito se acha que vou deixá-lo levar o ouro. Portanto, aqui vamos nós outra vez. Só mais dez quilômetros - uns dois mil saltos, digamos.
Os primeiros três ou quatro não foram tão ruins, mas então o frio começou a se infiltrar uma vez mais. Singh sabia que se parasse novamente não seria capaz de continuar. A única coisa a fazer era trincar os dentes e fingir que a dor era apenas uma ilusão que podia ser eliminada pela sua vontade. Onde havia visto um exemplo perfeito daquilo? Percorreu mais um torturante quilômetro antes de localizá-lo em sua memória.
Anos antes ele assistira a um vídeo centenário sobre o ritual de andar sobre o fogo, realizado em alguma cerimônia religiosa na Terra. Cavava-se uma longa vala, onde eram despejadas brasas ardentes, e os devotos andavam devagar e com calma de um lado a outro com os pés descalços, mostrando-se tão preocupados com isso como se estivessem passeando sobre areia. Mesmo que não provasse nada quanto ao poder de qualquer divindade, era uma demonstração impressionante de coragem e auto-confiança. Com certeza poderia fazer o mesmo; era muito fácil agora imaginar que estava andando sobre o fogo...
Andando sobre o fogo na Lua! Não pôde deixar de rir dessa idéia, e por um momento a dor quase desapareceu. Então, a mente sobre a matéria funcionava mesmo, pelo menos por alguns segundos.
- Só mais cinco quilômetros... você está indo bem. Mas o MIT está na sua cola. Não dê trégua.
Uma trégua! Como ele mesmo gostaria de uma. A dor lancinante em seus pés havia dominado tudo mais, por isso quase não notava a fadiga crescente que tornava mais e mais difícil seu progresso. Já não saltava, e acomodou-se a passadas lentas e oscilantes que na Terra impressionariam, mas na Lua eram patéticas.
A três quilômetros da chegada estava para desistir e chamar a ambulância; talvez já fosse tarde demais para salvar seus pés. Mas então, quando sentiu que não agüentava mais, percebeu algo que com certeza teria visto antes se não estivesse concentrando todos os seus sentidos no terreno imediatamente à frente.
O horizonte não era mais uma linha reta separando a paisagem resplandecente da negra noite espacial. Estava se aproximando dos limites ocidentais da Sinus Iridum, e os picos suavemente arredondados do Cabo Laplace elevavam-se da curva da Lua. Essa visão e a consciência de que seus próprios esforços haviam tornado visíveis aquelas montanhas possibilitaram a Singh uma explosão final de energia.
Agora nada mais existia no Universo a não ser a linha de chegada. Estava a poucos metros dela quando seu tenaz oponente, sem denunciar o menor esforço, disparou à sua frente em um ímpeto de velocidade.
Quando Robert Singh recobrou a consciência, jazia na ambulância, sem sentir as dores que lhe tomavam todo o corpo.
- Você vai ficar sem andar por algum tempo - ouviu uma voz dizer, a anos-luz de distância -, é o pior caso de ulceração pelo frio que já vi. Mas apliquei um anestésico local, e você não terá de comprar pés novos.
Já era um consolo, mas não chegava a compensar a angústia de saber que havia falhado, a despeito de todos os seus esforços, quando a vitória parecia tão próxima. Quem foi que disse que "vencer não é o que mais importa, é só o que importa”? Tinha suas dúvidas se ia dar-se ao trabalho de receber sua medalha de prata.
- Sua pulsação voltou ao normal. Como se sente?
- Péssimo.
- Então isso deve animá-Io. Está pronto para um choque? Um choque agradável?
- Experimente.
- Você é o vencedor. Não, não tente se levantar!
- Como? O quê?
- O COI está furioso, mas o MIT está rolando de rir. Assim que a corrida acabou eles confessaram que o Robert deles era na verdade um Robô-Homiforme para Uso Geral, modelo 9. Não é de admirar que chegasse primeiro! Assim, seu desempenho foi ainda mais impressionante. Estão chegando cumprimentos de todos os lados. Queira ou não, você é famoso.
Embora a fama não tenha durado, a medalha de ouro foi um dos bens mais estimados de Robert Singh pelo resto de sua vida. Mesmo assim, não se deu conta do que havia iniciado até a Terceira Olimpíada Lunar, oito anos depois. Nessa época os médicos espaciais emprestaram dos mergulhadores em alta profundidade a técnica da 'respiração líquida’, enchendo os pulmões dos corredores com fluido saturado de oxigênio.
O vencedor da primeira maratona lunar, juntamente com a maioria da espécie humana, viu com espanto e admiração quando um Karl Gregorias à prova de vácuo deu sua arremetida recorde, transpondo um quilômetro em um único salto de dois minutos através da Sinus Iridum, tão nu como seus ancestrais gregos nas primeiras olimpíadas, três mil anos antes.
Uma Máquina de Viver
Depois de se formar no AriTech com notas um tanto altas demais para não despertar suspeitas, o astro-especialista Robert Singh não teve dificuldades em assegurar um cargo de engenheiro-assistente (propulsão) em um dos ônibus espaciais Terra - Lua (por alguma razão esquecida conhecidos popularmente como milk runs*). Isso lhe servia admiravelmente bem: para sua própria surpresa, Freyda descobrira que a Lua era um lugar interessante, afinal de contas. Decidiu passar alguns anos ali, especializando-se no equivalente lunar das corridas do ouro que um dia tiveram lugar na Terra. Mas o que os prospectores há muito procuravam na Lua era algo muito mais valioso que um metal agora tão comum.
Era água - ou, para sermos exatos, gelo. Embora as eras de bombardeamento e vulcanismo ocasional que haviam revolvido as poucas centenas de metros superiores da superfície lunar tivessem há muito elimina do todo vestígio de água - líquida, sólida ou gasosa -havia ainda uma esperança de que a altas profundidades, próximo aos pólos, onde a temperatura sempre estivera abaixo do ponto de congelamento, poderiam existir camadas de gelo fóssil acumulado quando a Lua se condensou a partir dos fragmentos primordiais do Sistema Solar.
Na opinião da maioria dos selenologistas isso era pura fantasia, mas os indícios encontrados eram tantalizantes e mantiveram vivo o sonho.
* Expressão inglesa para indicar missões rotineiras aero-militares (N. do T.).
Freyda teve a sorte de fazer parte da equipe que descobriu a primeira das minas de gelo do pólo Sul. Isso não viria apenas transformar a economia da Lua, mas também teria um efeito imediato e altamente benéfico sobre a economia Singh - Carroll. Unindo suas rendas, tinham agora crédito suficiente para alugar um Fullerhome e viver em qualquer lugar que lhes agradasse na Terra.
Na Terra. Eles ainda esperavam passar grande parte de suas vidas em outros lugares, mas estavam ansiosos para ter um filho. Se nascesse na Lua, nunca teria a força necessária para visitar o mundo de seus pais. Uma gestação em gravidade um, por outro lado, com certeza lhe daria a liberdade do Sistema Solar.
O casal concordava também que a primeira localização de sua casa deveria ser o deserto do Arizona. Embora já estivesse ficando um tanto populoso demais, ainda restavam muitos locais de geologia intocada para Freyda explorar. E era o análogo mais próximo de Marte, que ambos estavam determinados a visitar um dia - "Antes que acabe", comentou Freyda, não inteiramente de brincadeira.
O problema mais difícil era decidir que modelo de Fullerhome escolher dentre o sortimento existente. Batizado em homenagem ao grande engenheiro-arquiteto do século XX Buckminster Fuller, e usando tecnolo gias com as quais sonhou mas não viveu para conhecer, os 'lares Fuller' eram praticamente auto-suficientes e podiam manter seus ocupantes por um tempo quase indefinido.
Toda a energia necessária era produzida por uma unidade selada de fusão de 100 quilowatts, que precisava ser recarregada com água enriquecida a intervalos de poucos anos. Esse modesto nível de energia era bastante adequado para qualquer casa bem planejada, e 96 volts CC só poderiam eletrocutar o mais resoluto dos suicidas.
Aos clientes com espírito técnico que perguntavam "Por que 96 volts"? o Consórcio Fuller explicava pacientemente que engenheiros são criaturas de hábitos arraigados: menos de dois séculos antes, os sistemas de 120/240 volts eram o padrão, e a aritmética seria muito mais fácil se os humanos tivessem 12 dedos em vez de 10.
Fora necessário quase um século para conseguir a aceitação do público em geral à característica mais controversa do Fullerhome: o sistema de reciclagem de alimentos. Sem dúvida levara mais tempo ainda, no início da era agrícola, para que os caçadores-coletores superassem sua repugnância em espalhar estrume animal sobre sua futura comida. Por milhares de anos, os pragmáticos chineses foram ainda mais longe, usando seus próprios dejetos para fertilizar os campos de arroz.
Mas dos preconceitos e tabus que controlam o comportamento humano, os que dizem respeito à comida estão entre os mais fortes, e a lógica com freqüência não basta para superá-los. Reciclar excremento nos campos, com a ajuda da boa e limpa luz do sol, era uma coisa; fazer isso em sua própria casa, com misteriosos dispositivos elétricos, era outra bem diferente. Por longo tempo o Consórcio Fuller argumentou em vão que "Nem Deus pode distinguir um átomo de carbono de outro". Em sua maioria, as pessoas estavam convencidas de que elas podiam.
No fim, a economia venceu, como de costume. Não ter nunca mais de se preocupar com despesas de alimentação, e ainda ter um sortimento praticamente ilimitado de cardápios na memória do Cérebro da Casa, era uma tentação a que poucos podiam resistir. Qualquer mal-estar que persistisse podia ser superado por um estratagema simplíssimo, mas eficiente: um pequeno jardim podia ser incluído como item opcional. Embora o sistema de reciclagem pudesse funcionar muito bem sem isso, a visão de belas flores voltando-se para o sol ajudava a acalmar muitos estômagos rebeldes.
O Fullerhome que Freyda e Robert alugaram (o consórcio não os vendia) tivera apenas dois locatários antes deles, e o 'tempo médio de garantia’ das principais unidades era de 15 anos. Por essa época precisariam de outro modelo, grande o bastante para acomodar também um ativo adolescente.
Seja como for, nunca se lembraram de pedir ao Cérebro as saudações costumeiras deixadas pelos antigos ocupantes. Os dois tinham seus pensamentos e sonhos concentrados demais em um futuro que, como todos os casais jovens, não podiam acreditar que terminaria um dia.
Adeus à Terra
Toby Carroll Singh nasceu no Arizona, como seus pais haviam planejado. Robert continuou a trabalhar no ônibus espacial Terra - Lua, galgando ao cargo de engenheiro sênior, e chegou a recusar uma oportunidade de ir a Marte, por não querer ficar meses seguidos longe de seu filho pequeno.
Freyda permaneceu na Terra, e na verdade raramente saía da Comunidade Americana. Embora tivesse desistido das explorações de campo, podia continuar suas pesquisas sem percalços e com muito mais conforto a partir de bancos de dados e imagens via satélite. Há muito se dizia que, com algaritmos de processamento de imagens substituindo os martelos, a geologia deixara de ser uma profissão para machões rústicos.
Toby estava com três anos quando seus pais decidiram que seus amáveis companheiros robóticos não bastavam. Um cão era a escolha óbvia, e estavam quase compraI:1do um scottie alterado geneticamente (garantia de Q.I. canino 120) quando saíram os primeiros minitigres. Foi amor à primeira vista.
O tigre de Bengala é o mais belo de todos os grandes felinos - e talvez de todos os mamíferos. No começo do século XXI tornou-se extinto em seu hábitat, pouco antes de o próprio hábitat desaparecer. No entanto, muitas centenas de criaturas magníficas ainda viviam mimadas em zoológicos e reservas. Mesmo se todos morressem, seu DNA já havia sido completamente seqüenciado e seria bastante simples recriá-Ios.
Tigrette era um subproduto dessa engenharia genética. Em todos os sentidos, era um espécime perfeito, mas mesmo adulta pesava apenas 30 quilos. Seu temperamento - também cuidadosamente projetado - era o de qualquer gato afetuoso e brincalhão. Singh nunca se cansava de observá-Ia espreitando os pequenos robôs de limpeza. Era óbvio que os considerava animais a serem investigados com muito cuidado, pois seus padrões de odores não podiam ser encontrados nas memórias genéticas dela. Os robôs, por sua vez, não sabiam o que fazer com ela. Algumas vezes, quando ela dormia, confundiam-na com um tapete e tentavam limpá-Ia com o aspirador, e os resultados eram hilariantes.
Raramente surgia oportunidade para isso, no entanto, pois a minitigresa costumava dormir na cama de Toby. Algo que a princípio Freyda não queria permitir, por razões higiênicas, até perceber que o felino devotava muito mais tempo a limpar-se e pentear-se que Toby em seus breves contatos com água e sabão. Se houvesse alguma contaminação, não seria na direção que ela temia.
Tigrette era pouco menor que um gato doméstico adulto quando entrou para a família, e conquistou a todos. Não demorou para que Robert reclamasse, quase falando a sério, que Toby já não notava quando o pai estava no espaço.
Talvez tenha sido a chegada de Tigrette que levou a outra mudança. Freyda sempre sentira atração pelo continente de seus antepassados, e guardava como um tesouro um exemplar esfarrapado de Raízes, de Alex Haley, há gerações em sua família. “AIém do mais", dissera ela, "nunca houve tigres na África. É hora de mudar isso.”
De modo geral foram felizes em sua nova residência, a despeito dos ocasionais lembretes do horrível passado do' continente - como quando Toby, cavando na praia, descobriu o esqueleto de uma criança, ainda abraçado a uma boneca. Por muitas noites, depois disso, ele acordou gritando, e nem mesmo a presença de Tigrette conseguia consolá-Io.
Na época do décimo aniversário de Toby - comemorado com a chegada de tios e tias, três de verdade e dezenas de outros, honorários tanto Robert como Freyda perceberam que a primeira etapa de seu relacionamento havia terminado. A novidade, para não mencionar a paixão, há muito desaparecera; estavam se tornando pouco mais que bons amigos que contavam com a companhia um do outro. Ambos procuraram outros amantes, com um mínimo de ciúme. Várias vezes haviam experimentado encontros a três, e uma vez a quatro, mas apesar da maior boa vontade da parte de todos os resultados foram sempre mais cômicos que eróticos.
A ruptura final nada teve a ver com relacionamentos humanos. Por que, perguntava-se sempre Robert Singh, nos afeiçoamos tanto a amigos de vida tão mais curta que a nossa?
Há muito tempo o avanço da selva teria coberto a placa de metal com a inscrição:
TIGRETTE
AQUI JAZ PARA SEMPRE A BELEZA, A LEALDADE E A FORÇA
Embora isso agora parecesse pertencer a uma outra vida, Robert Singh nunca se esqueceria de como terminara a infância de Toby, o menino estreitando Tigrette nos braços enquanto a luz fugia pouco a pouco de seus olhos adoráveis.
Era hora de partir.
As Areias de Marte
Embora nunca tivesse desistido de ir para lá um dia, Robert Singh deixou Marte para bem tarde na agenda de sua vida. Tinha já 55 anos quando uma vez mais o acaso ditou as condições. Turistas de Marte eram raros na Lua e, devido ao bloqueio estabelecido por sua gravidade, praticamente inexistentes no planeta-mãe. Muitos fingiam não se importar com isso. Todos sabiam que a Terra era barulhenta, malcheirosa, poluída e horrivelmente superlotada - quase três bilhões de pessoas! Isso sem mencionar como era perigosa, com seus furacões, terremotos, vulcões...
Charmayne Jorgen, no entanto, olhava com melancolia na direção da Terra, na sala de observação do AriTech, quando Robert Singh encontrou a pela primeira vez. O domo de 20 metros de largura, uma obra-prima da engenharia, era tão transparente que parecia não haver nada ali para conter o vácuo do espaço. Alguns visitantes nervosos só agüentavam a experiência por alguns minutos.
Robert Singh estivera poucas vezes ali, em seus agitados tempos de estudante, mas agora ciceroneava um de seus companheiros de bordo por sua antiga alma mater, e aquela era uma parada obrigatória.
- Se o domo se quebrar, o par externo se fecha em um segundo comentou, quando atravessaram os três conjuntos de portas automáticas.
- O terceiro conjunto entra em ação após 15 segundos, para dar a quem quer que esteja aqui dentro tempo suficiente para se pôr em segurança.
- Se não tiver sido sugado para fora. Quando foi testado pela últi ma vez?
- Deixe-me ver. Aqui está o certificado, datado de, hã, dois meses atrás.
- Não é isso que eu quero saber! Qualquer circuito idiota sabe bater portas. Alguma vez foi feito um teste de verdade?
- Quebrar o domo, você quer dizer? Que pergunta mais boba. Você sabe quanto custa?
Nesse ponto, o amigável bate-boca interrompeu-se de forma abrupta, quando os dois visitantes perceberam que não estavam sozinhos ali.
O silêncio parecia que não ia ter fim. Até que o companheiro de Robert Singh disse:
- Se você não perdeu a língua, Bob, pelo menos podia nos apresentar.
Ele e Freyda mantinham ainda um excelente relacionamento, mas viam-se cada vez menos, agora que ela voltara ao Arizona e Toby ganhara uma bolsa do Conservatório de Moscou - uma surpresa encantadora para seus pais, que jamais haviam demonstrado o menor talento musical. Quando Charmayne Jorgen retornasse a Marte, portanto, parecia perfeitamente natural que Robert Singh a seguisse tão logo se fizessem os arranjos necessários. Com suas qualificações - e os ecos remanescentes de sua modesta fama, que não tinha escrúpulos em explorar quando necessário -, isso não era difícil. Logo após completar 56 anos, aterrissou em Port Lowell. Era agora um marciano-novo - e sempre seria, uma vez que não nascera no planeta.
- Não me incomoda ser chamado de marciano-novo - disse a Charmayne -, desde que digam isso com um sorriso.
- É o que vão fazer, querido - tranqüilizou ela. - Com seus músculos terrestres, você é muito mais forte que a maioria das pessoas por aqui.
Isso era verdade, mas até quando? A menos que seu rigor nos exercícios fosse muito maior que suspeitava, logo estaria aclimatado a Marte.
Mas isso tinha suas vantagens. Os marcianos viviam dizendo que era o seu mundo, e não Vênus, que devia ter sido chamado de planeta do amor. A gravidade um da Terra era ridícula, para não dizer perigosa. Costelas quebradas, cãibras e interrupção da circulação sanguínea eram apenas alguns dos riscos a que os amantes terrestres estavam expostos. A gravidade de um sexto da Lua era uma grande melhora, mas os especialistas achavam que não era suficiente para um bom contato.
Quanto à tão propalada gravidade zero do espaço, tornou-se bem enfadonha depois de esgotada a novidade inicial. Gastava-se tempo demais com problemas de aproximação e acoplagem.
A gravidade de um terço de Marte era o ideal.
Como todos os imigrantes recém-chegados, Robert Singh dedicou suas primeiras semanas ali à excursão marciana padrão: o monte Olimpo, o vale Mariner, os abismos glaciais do pólo Sul, a planície da Bacia de Hellas Hellas era no momento bastante popular entre rapazes corajosos que gostavam de exibir-se mostrando quanto tempo conseguiam sobreviver sem equipamento respiratório. A pressão atmosférica era agora apenas suficiente para essas proezas, embora o teor de oxigênio ainda fosse baixo demais para a vida. O recorde de permanência ao 'ar livre' - um nome bastante enganoso - estava agora estacionado em pouco mais de dez minutos.
A reação inicial de Singh a Marte foi uma leve decepção. Já fizera tantas viagens virtuais pela paisagem marciana, muitas vezes em velocidades alucinantes e com imagens ampliadas, que o original chegava a ser anti-climático. O problema com as atrações mais famosas do planeta era seu tamanho: tão colossais que só do espaço podiam ser apreciadas. Quando se andava por elas de verdade, pouco se podia ver.
O monte Olimpo era o melhor exemplo. Os marcianos gostavam de dizer que era pelo menos três vezes mais alto que qualquer montanha da Terra, mas a cordilheira do Himalaia e as Rochosas eram mais impressionantes, porque mais íngremes. Com uma base de 600 quilômetros de extensão, o Olimpo parecia mais uma grande espinha na face de Marte que uma montanha. Noventa por cento dele não passava de um plano suavemente inclinado.
E o vale Mariner, exceto em suas porções mais estreitas, também não conseguia fazer jus à promoção turística. Era tão extenso que de seu centro os dois contrafortes estavam abaixo do horizonte. Não fosse isso exatamente o tipo de falta de tato que costumava pôr em apuros marcianos-novos, Singh poderia tê-Io comparado desfavoravelmente com o muito menor Grand Canyon.
Depois de algumas semanas, no entanto, começou a apreciar sutilezas e belezas que explicavam a apaixonada veneração dos colonos (outra palavra que devia ter o cuidado de jamais usar) por seu planeta. E embora soubesse perfeitamente bem que a área terrestre de Marte era quase a mesma da Terra, devido à ausência de oceanos, sempre se surpreendia com suas proporções. Não importava se tinha apenas a metade do diâmetro da Terra. Era um mundo grande...
E estava mudando, embora muito devagar. Líquens e fungos geneticamente alterados atacavam as rochas oxidadas e revertiam a morte por ferrugem que há eras subjugava o planeta. O mais bem sucedido invasor terrestre, talvez, era uma modificação do 'window cactus' - planta de casca rígida que parecia ter saído de uma tentativa da natureza de criar um traje espacial. Todos os esforços para introduzi-Ia na Lua haviam falhado, mas florescia nas planícies marcianas.
Todos em Marte tinham de trabalhar para ganhar a vida. Embora tivesse feito uma transferência de créditos substancial de sua gorda conta na Terra, Robert Singh não era exceção. Nem queria ser. Tinha ainda décadas de vida ativa a sua frente, e pretendia usá-Ias ao máximo - desde que também pudesse passar o máximo de tempo possível com sua nova família.
Essa foi outra razão para vir a Marte: era um mundo ainda vazio, e ali lhe seriam permitidos dois filhos. A mais velha, Mirelle, nasceu um ano após sua chegada. Martin veio três anos mais tarde. Mais cinco anos se passaram sem que Robert Singh sentisse o menor desejo de 'sentir o espaço', ou pelo menos o espaço longínquo. Estava satisfeito demais com sua família e seu trabalho.
Fazia viagens freqüentes a Fobos e Deimos, é claro, normalmente relacionadas a suas obrigações de grande responsabilidade (e alta remuneração) como supervisor de naves para a Lloyd's da Terra. No satélite mais próximo e de maior tamanho, Fobos, não havia muito a fazer além de inspecionar a Escola de Instrução de Cadetes do Espaço, onde era recebido com considerável reverência. Ele, por seu lado, gostava muito de estar entre os cadetes. Fazia com que se sentisse 30... bem... 20 anos mais jovem, além de mantê-Io atualizado nos últimos avanços em tecnologia espacial.
Em outros tempos, Fobos fora considerado uma inestimável fonte de matéria-prima para projetos de construção espacial, mas os conservacionistas marcianos - talvez sentindo-se culpados pela contínua terraformação de seu próprio planeta - conseguiram evitar isso. Embora o pequeno satélite acarvoado fosse tão discreto no céu noturno que pouca gente o notasse, "Não acabem com Fobos" havia sido um slogan eficiente.
Por sorte, o menor e mais distante Deimos era sob certos aspectos uma alternativa ainda melhor. Embora seu diâmetro médio fosse de pouco mais de 12 quilômetros, podia fornecer aos estaleiros locais a maioria dos metais de que necessitariam nos próximos séculos, e ninguém se importava realmente que a pequena lua desaparecesse aos poucos nos mil anos seguintes. Além do mais, seu campo gravitacional era tão tênue que bastava um bom empurrão para pôr seus produtos a caminho.
Como todos os portos movimentados desde a aurora dos tempos, o porto de Deimos era uma confusão infernal. Quando Robert Singh pôs os olhos na Goliath pela primeira vez, a nave estava no Estaleiro Deimos 3, em sua estadia qüinqüenal para revisão e renovação de equipamentos. À primeira vista, a nave não tinha nada de incomum; não era mais feia que a maioria das naves projetadas para espaço longínquo. Com dez mil toneladas de massa quando vazia e comprimento total de 150 metros, não era particularmente grande, e sua característica mais importante era invisível. Os motores-foguetes de fusão a quente da Goliath, que normalmente usavam hidrogênio como fluido ativo mas podiam funcionar com água, se necessário, eram muito mais potentes que o exigido para uma nave de seu tamanho. À exceção de testes com duração de segundos, nunca haviam operado com empuxo máximo.
A Goliath estava novamente em Deimos após mais cinco anos tranqüilos em seu posto, quando Robert Singh a viu novamente. E seu capitão estava para se aposentar...
- Pense nisso, Bob - disse ele. - É o emprego mais fácil do Sistema Solar. Não tem nem de se preocupar com navegação. É só sentar e apreciar a vista. O único problema é pajear e alimentar uns 20 cientistas loucos.
Era tentador. Embora tivesse ocupado muitos cargos de responsabilidade, Robert Singh nunca comandara uma nave, e já estava passando da hora, se quisesse isso antes de se aposentar. É verdade que mal completara 60 anos, mas era espantoso como as décadas pareciam escoar rápido.
- Vou conversar com minha família - disse ele.
- Desde que eu possa ir a Marte algumas vezes por ano.
Sim, era uma proposta atraente. Iria pensar nela com muito cuidado...
Robert Singh nunca pensou por mais de alguns momentos no propósito original da construção da Goliath. Na verdade, quase se esquecera por que a nave fora equipada com uma propulsão tão ridiculamente poderosa.
Nunca teria de usar mais de uma pequena fração, é claro, mas era bom tê-Ia de reserva.
Os Sargaços do Espaço
- Vocês estão de pé no 501- dissera Mendoza certa vez a uma classe um tanto atônita, logo após o anúncio de seu Prêmio Nobel - e olham diretamente para Júpiter, a três quartos de um bilhão de quilômetros de distância. Agora estendam seus braços para a frente formando cada um, um ângulo de 60 graus... Vocês sabem para onde estarão apontando?
Ele não esperava resposta, nem deu tempo para isso.
- Não vão ver nada ali, mas estarão apontando para dois dos lugares mais fascinantes do Sistema Solar.
Em 1772, o grande matemático francês Lagrange descobriu que os campos gravitacionais do Sol e de Júpiter podiam combinar-se para produzir um fenômeno muito interessante. Sobre a órbita de Júpiter, 60 graus à frente e 60 graus atrás, há dois pontos de estabilidade. Um corpo colocado em qualquer dos dois manterá a mesma distância do Sol e de Júpiter, formando um imenso triângulo eqüilátero.
Não se sabia da existência de asteróides enquanto Lagrange vivia, e ele provavelmente nunca imaginou que sua teoria chegaria a ter uma demonstração prática. Foram necessários mais de 100 anos - 134, para ser exato - para que Achilles fosse descoberto na esteira de Júpiter, a 60 graus. Um ano mais tarde encontrou-se Patroclus, não muito longe dali, e depois Hector, mas este no ponto 60 graus à frente de Júpiter. Hoje, conhecemos mais de dez mil desses asteróides troianos, assim chamados porque os primeiros foram batizados em homenagem aos heróis da Guerra de Tróia. Essa idéia, é claro, há muitos anos teve de ser deixada de lado; agora eles têm apenas números. O último catálogo aponta 11500, e ainda estão aparecendo mais, embora muito devagar. Acreditamos que o censo esteja agora 95 por cento completo. Os troianos que sobraram não podem ter mais de 100 metros de comprimento.
Agora sou obrigado a confessar que menti para vocês. Nenhum dos troianos está exatamente nos dois pontos de Lagrange. Vagueiam para a frente e para trás, para cima e para baixo, num raio de 30 graus ou mais. Saturno é o principal culpado por isso: seu campo gravitacional perturba a delicada combinação Sol-Júpiter. Considerem então que os asteróides troianos formam duas enormes nuvens, com seus centros a aproximadamente 60 graus de cada lado de Júpiter. Por alguma razão ainda desconhecida (alguém quer uma boa tese de doutorado?), há três vezes mais troianos à frente que atrás de Júpiter.
"Vocês já ouviram falar do mar dos Sargaços, lá na velha Terra? Imaginei que não. Bem, é uma área do Atlântico, o oceano a leste da CEA, onde objetos à deriva como algas ou navios abandonados acumulam-se devido às correntes circulantes. Gosto de pensar nos pontos de Lagrange, ou pontos troianos como os Sargaços gêmeos do espaço. São as regiões mais congestionadas do Sistema Solar, mas vocês não percebe riam isso se estivessem lá. De um troiano, só com muita sorte poderiam avistar outro a olho nu.
Qual a importância dos troianos? Obrigado por perguntarem.
À parte seu interesse científico, eles são as principais armas do arsenal de Jove. De vez em quando, um deles é arrancado de seu lugar pelos campos unidos de Saturno, Urano e Netuno, e sai vagando na direção do Sol. E ocasionalmente um deles colide conosco (é como a Bacia de Hellas foi formada) ou mesmo com a Terra.
Esse tipo de coisa acontecia o tempo todo nos primórdios do Sistema Solar, quando os fragmentos que ficaram de fora na formação dos planetas ainda flutuavam por aí. A maioria já se foi, agora, para nossa sorte. Mas restaram muitos, nem todos nas nuvens troianas. Há asteróides desgarra . dos chegando até Netuno, todos eles um perigo em potencial.
Vejam, até este século não havia nada - absolutamente nada - que a raça humana pudesse fazer quanto a isso, e a maioria das pessoas, mesmo que soubessem do perigo, não davam a mínima. Achavam que havia problemas mais importantes com que se preocupar, e é óbvio que estavam certas.
Mas um homem prudente faz seguro mesmo contra eventos muito improváveis, já que o prêmio nunca é alto demais. O levantamento da Spaceguard prossegue, com um orçamento muito modesto, há quase meio século. Sabemos agora que há uma alta probabilidade de haver pelo menos um impacto catastrófico na Terra, na Lua ou em Marte, nos próximos mil anos.
Devemos esperar sentados por isso? De jeito nenhum! Agora que temos tecnologia para nos proteger, podemos pelo menos fazer planos que possam ser postos em prática se houver - não, quando houver - perigo iminente. Com alguma sorte, teremos vários meses para nos preparar após o aviso.
Agora tenho uma boa razão para ir à Terra - isso ainda é segredo absoluto: quero lhes fazer uma grande surpresa! Vou propor um plano de grande alcance para lidar com o problema. Para começar, vou sugerir que seja dada uma responsabilidade operacional à Spaceguard, para que possa começar a fazer jus ao nome. Quero que haja duas naves rápidas e poderosas em patrulha permanente, e os pontos de Lagrange seriam um bom lugar para estacioná-Ias. Dali, poderiam dar andamento a pesquisas valiosas e seriam capazes de chegar em um instante a qualquer canto do Sistema Solar.
"É essa a história que vou contar a todas as lesmas que encontrar. Torçam por mim.”
O Amador
Restavam poucas ciências, no final do século XXI, em que um amador podia alimentar esperanças de fazer descobertas relevantes, mas a astronomia, como sempre, estava entre elas.
É verdade que nenhum amador, por mais abastado que fosse, poderia ter ilusões de igualar o equipamento usado rotineiramente pelos grandes observatórios na Terra, na Lua e em órbita. Acontece que os profissionais especializavam-se em campos de estudo limitados, e o Universo é tão imenso que nunca eram capazes de observar mais de uma pequena porção dele de cada vez. Havia espaço de sobra para ser explorado por entusiastas ativos e bem preparados. Não é necessário um telescópio muito grande para descobrir algo que ninguém jamais viu, desde que se saiba como começar.
As obrigações do dr. Angus Millar como residente do Centro Médico de Port LowelI não eram exatamente estafantes. Ao contrário dos pioneiros terrestres, os colonizadores de Marte não tinham de lutar contra nenhuma doença nova e exótica e a maior parte do trabalho de um médico ali envolvia meros acidentes. É certo que estavam aparecendo algumas estranhas malformações ósseas nas segundas e terceiras gerações, sem dúvida devido à baixa gravidade, mas o corpo médico tinha certeza de poder lidar com elas antes que se tornassem sérias.
Graças a seu abundante tempo livre, o dr. Millar era um dos poucos astrônomos amadores de Marte. Ano após ano, construíra uma série de refletores - esmerilhando, polindo e aluminizando os espelhos com técnicas que milhares de devotados entusiastas haviam aperfeiçoado em séculos de trabalho.
Inicialmente, dedicara muito tempo à observação do planeta Terra, ignorando os gracejos dos amigos. "Por que perder tempo?" perguntavam eles. "Esse planeta já foi bem explorado. Imagina-se até que abrigue formas de vida inteligentes.”
Mas eram obrigados a se calar quando o dr. Millar lhes mostrava o belo crescente azul pairando no espaço, com a Lua muito menor mas em idêntico crescente flutuando a seu lado. Exceto pelos últimos momentos, toda a história estava no campo de visão do telescópio. Por mais que se estendesse pelo Universo, a espécie humana jamais poderia romper totalmente seus laços com o planeta natal.
Os críticos não deixavam de ter certa razão, no entanto: a Terra não era um objeto de observação muito compensador. Grande parte de sua superfície estava quase sempre coberta de nuvens, e nos períodos de maior aproximação voltava para Marte apenas seu lado escuro, tornando assim invisíveis todas as suas características naturais. Um século antes, o 'lado escuro' da Terra era tudo menos escuro, com os megawatts de eletricidade prodigamente lançados para o céu.' Embora a sociedade, agora mais consciente quanto à conservação de energia, já tivesse posto um ponto final nos piores abusos, a maioria das cidades de todos os tamanhos ainda podiam ser detectadas com facilidade como refulgentes ilhas de luz.
O dr. Millar gostaria de ter estado por ali em 10 de novembro de 2084, data terrestre, para observar um raro e belo fenômeno, a passagem da Terra à frente do disco solar. Em seu lento avanço, o planeta parecera uma mancha solar na forma de um círculo perfeito, mas ao atingir o ponto médio de sua trajetória uma estrela resplandeceu em seu centro. Baterias de lasers no lado escuro da Terra saudavam o Planeta Vermelho no céu da meia-noite que era agora o segundo lar da humanidade. Marte inteiro presenciara o acontecimento, e ainda o relembrava com admiração.
Mas havia outra data, no passado, pela qual o dr. Millar sentia uma afinidade especial, devido a uma coincidência tão insignificante que só a ele poderia interessar. Uma das maiores crateras de Marte fora batizada em homenagem a um outro astrônomo amador, que por acaso compartilhava de sua data de nascimento - dois séculos antes.
Logo que as sondas começaram a enviar boas fotografias do planeta, encontrar nomes para todas as milhares de novas formações tornou-se um problema crucial. Algumas opções eram óbvias: astrônomos, cientistas e exploradores famosos como Copérnico, Kepler, Colombo, Newton, Darwin, Einstein. A seguir vieram os escritores cujos nomes se haviam associado ao planeta: Wells, Burroughs, Weinbaum, Heinlein, Bradbury. Depois, uma lista heterogênea de obscuros locais e personalidades da Terra, alguns com pouca ou nenhuma relação com Marte.
Os novos habitantes do planeta nem sempre estavam contentes com os topônimos que lhes foram legados e que tinham de usar em suas vidas diárias. Quem ou o que na face da Terra - que dizer na de Marte - era Dank, Dia-Cau, Eil, Gagra, Kagul, Surt, Tiwi, Waspam, Yat?
Os revisionistas estavam sempre fazendo manifestações para pedir nomes mais apropriados - e mais eufônicos -, e a maioria estava com eles. Assim, estabeleceu-se uma comissão permanente para lidar com esse problema, muito embora estivesse longe de ser o mais premente para a sobrevivência humana em Marte. Como era do conhecimento de todos que não lhe faltava tempo livre e se interessava por astronomia, era inevitável que o dr. Millar fosse convocado.
- Por que - perguntaram-lhe um dia - teriam batizado uma das maiores crateras de Marte de Molesworth? Ela tem 175 quilômetros de extensão! Quem é esse Molesworth afinal de contas?
Após algumas pesquisas e vários dispendiosos espaçofaxes para a Terra, Millar já podia responder. Percy B. Molesworth foi um engenheiro ferroviário e astrônomo amador que fez e publicou muitos desenhos de Marte no início do século XX. Fez a maior parte de suas observações da ilha equatorial do Ceilão, onde morreu prematuramente em 1908, aos 41 anos.
O dr. Millar ficou impressionado. Molesworth devia ter amado Marte e merecia sua cratera. A coincidência trivial de terem o mesmo aniversário pelo calendário terrestre também provocava no médico um ilógico sentimento de afinidade, e não raro voltava para a Terra seu telescópio, procurando a ilha onde Molesworth passara grande parte de sua breve vida. O Oceano Índico era de hábito muito nebuloso e por isso só a localizou uma única vez, mas foi uma experiência inesquecível. Perguntava-se o que pensaria o jovem inglês se soubesse que olhos humanos iriam um dia, de Marte, espiar sua casa.
O médico venceu sua batalha para salvar Molesworth - não houve, na verdade, grande oposição quando apresentou seus argumentos -, mas isso acabou por mudar sua atitude frente ao que era apenas um hobby interessante. Talvez pudesse fazer, ele também, uma descoberta que carregasse seu nome através dos séculos.
Seu êxito nessa empresa excederia suas maiores expectativas.
Embora fosse menino. na época, o dr. Millar nunca esquecera o espetacular retorno do cometa Halley em 2061 - sem dúvida tinha algo a ver com seus próximos passos. Muitos cometas, entre eles alguns dos mais famosos, foram descobertos por amadores que haviam assegurado sua imortalidade ao escrever seus nomes no céu. Alguns séculos antes, na Terra, a receita para o sucesso era simples: um bom telescópio (mas não particularmente grande), céu limpo, intimidade com o céu noturno, paciência e uma boa dose de sorte.
O dr. Millar tinha de saída muitas vantagens fundamentais sobre seus precursores terrestres. Ele tinha sempre céu claro e, apesar dos grandes esforços dos terraformadores, assim seria pelas próximas gerações. Mais distante do Sol que a Terra, Marte também era uma plataforma de observação um pouco melhor. O mais importante, porém, é que a busca podia ser muito auto matizada. Já não era necessário memorizar setores estelares inteiros, como faziam alguns dos pioneiros, de forma a perceber de imediato qualquer intruso.
A fotografia há muito tornara obsoleta essa abordagem. Bastava comparar duas exposições, feitas com um intervalo de poucas horas, para ver se algo se movera. Embora isso pudesse ser feito com calma, confortavelmente instalado em casa, e não tiritando na noite fria, ainda era tedioso ao extremo. O jovem Clyde Tombaugh, na década de 1930, examinara literalmente milhões de imagens de estrelas antes de descobrir Plutão.
O método fotográfico perdurou por mais de um século, até ser substituído pela eletrônica. Uma câmera de televisão sensível esquadrinhava o céu, armazenava as imagens estelares resultantes e repetia a observação mais tarde. Um programa de computador podia fazer em poucos segundos o que tomara meses a Clyde Tombaugh: ignorar todos os objetos estacionários e 'apontar' o que quer que se movesse.
Na verdade, não era assim tão simples. Um programa menos inteligente poderia redescobrir centenas de asteróides e satélites conhecidos - isto sem falar do lixo espacial, milhares de objetos que o homem vinha espalhando há séculos. Tudo isso tinha de ser conferido em catálogos, mas esse trabalho também podia ser automático. Tudo o que resistisse a essa filtragem era possivelmente... interessante.
Embora não fossem particularmente caros, o hardware de varredura automática e seus programas, como muitos itens high-tech não-essenciais, não existiam em Marte. Por meses e meses o dr. Millar teve de esperar até que uma das companhias de implementos científicos os remetesse - só para descobrir, como sempre, que faltava um componente essencial. Depois de uma irritada troca de espaçofaxes, identificou-se o problema. Felizmente, o médico não teve de esperar o próximo correio: depois de muita relutância, o fornecedor concordou em entregar detalhes do circuito e os especialistas locais conseguiram colocar em operação o sistema.
Funcionou com perfeição. Já na noite seguinte o dr. Millar divertiu-se descobrindo Deimos, 15 satélites de comunicações, duas naves de transporte em trânsito e o próximo vôo vindo da Lua, que já se aproximava. E isso, é claro, explorando apenas uma estreita faixa do céu - mesmo ao redor de Marte, o espaço estava ficando congestionado. Não é de se admirar que tivesse conseguido o equipamento por um bom preço. Seria praticamente inútil sob as nuvens de lixo espacial que agora orbitavam a Terra.
No ano seguinte, o médico descobriu dois novos asteróides, ambos com menos de cem metros de comprimento, e tentou batizá-los como Miranda e Lorna, em homenagem à sua mulher e à filha. A União Astronômica Interplanetária aceitou a segunda sugestão, mas observou que Miranda era um famoso satélite de Urano. O dr. Millar sabia disso tão bem quanto a UAI, é claro, mas achou que valia a pena tentar, para o bem da harmonia doméstica. Por fim, concordaram com Mira: era pouquíssimo provável que alguém confundisse um asteróide de cem metros com uma estrela gigante vermelha.
Apesar dos inúmeros alarmes falsos, por um ano não descobriu nada novo e estava quase desistindo quando o programa comunicou uma anomalia. Observara um objeto que parecia apresentar movimento, mas tão lento que não podia haver certeza, nos limites do erro. A sugestão era fazer uma nova observação com intervalo de tempo maior e assim, de uma forma ou de outra, encerrar o assunto.
O dr. Millar fitou o minúsculo ponto de luz. Podia ser uma estrela pouco brilhante, mas os catálogos nada mostravam naquela posição. Para sua frustração, não havia sinal do halo impreciso que indicaria um cometa. Só mais um maldito asteróide, pensou, não deve valer sequer o trabalho. Seja como for, Miranda logo lhe daria mais uma filha novinha em folha... seria bom ter um presente de aniversário preparado...
Era mesmo um asteróide, pouco além da órbita de Júpiter. O dr. Millar fez com que o computador calculasse sua órbita aproximada, e qual não foi sua surpresa ao descobrir que Myrna, como decidira chamá-lo, passaria bem próximo à Terra. Isso o tornou um pouco mais interessante.
Não conseguiu que o nome fosse reconhecido. Antes que a UAI o aprovasse, novas observações traçaram uma órbita muito mais precisa.
A partir daí, só um nome era possível: Kali, a deusa da Destruição.
Quando o dr. Millar descobriu Kali, ele já se dirigia para o Sol - e para a Terra - a uma velocidade sem precedentes. A importância disso agora era um tanto abstrata, mas todo mundo queria saber por que a Spaceguard, com todos os seus recursos, fora passada para trás por um astrônomo amador de Marte que contava principalmente com equipamentos de fabricação caseira.
A resposta, como de hábito em casos assim, era uma combinação de má sorte e da proverbial má índole dos objetos inanimados.
Kali era muito pouco brilhante para seu tamanho - um dos asteróides mais escuros já descobertos. Era óbvio que pertencia à classe dos carbonados - sua superfície constituía-se, quase literalmente, de fuligem -, e nos últimos anos viajara tendo como pano de fundo uma das partes mais congestionadas da Via Láctea. Para os observatórios da Spaceguard, Kali estivera perdido em uma ofuscante confusão de estrelas.
De seu ponto de observação em Marte, o dr. Millar tivera sorte. De propósito apontara seu telescópio para uma das regiões mais vazias do céu... e aconteceu de Kali estar ali. Algumas semanas antes ou depois, teria lhe escapado.
Não é necessário dizer que no decorrer do inquérito que se seguiu a Spaceguard reconferiu seus terabytes de observações. Quando se sabe que existe mesmo algo ali, fica muito mais fácil encontrar.
Kali havia sido registrado três vezes, mas o sinal recebido ficara próximo ao limiar do ruído, deixando assim de ativar o programa automático de varredura.
Muitas pessoas ficaram felizes com esse lapso; para elas, descobrir Kali mais cedo teria apenas prolongado a agonia.
Profeta
Já não é hora de admitir, João, que Jesus deve ter sido um homem comum, como Maomé (que a paz esteja com ele)? Nós sabemos de uma coisa que os escritores dos Evangelhos desconheciam, embora pareça perfeitamente óbvio quando se reflete sobre isso: o parto virginal, uma partenogênese, produziria sempre uma mulher, jamais um homem. É claro, o Espírito Santo poderia ter operado um segundo milagre. Talvez esteja sendo tendenciosa, mas me parece que isso seria... bem, exibicionismo. De mau gosto, inclusive.
Profeta Fátima Magdalene
(Segundo diálogo com o papa João Paulo IV, Ed. Fr. Mervyn Fernando, SJ, 2029)
O crislã, oficialmente, não contava ainda cem anos, porém suas origens remontavam à Guerra do Petróleo de 1990 a 1991, duas décadas mais antiga. Um dos resultados inesperados daquele desastroso equívoco foi que um enorme número de soldados norte-americanos, homens e mulheres, pela primeira vez em suas vidas entraram em contato direto com o islã - e ficaram profundamente impressionados. Perceberam que muitos de seus preconceitos, como as conhecidas imagens de mulás enlouquecidos brandindo em uma das mãos o Alcorão e em outra uma submetralhadora, não passavam de simplificações exageradas e ridículas. Ficaram impressionados também ao se darem conta dos avanços do mundo islâmico em astronomia e matemática durante a Idade das Trevas européia mil anos antes do nascimento dos Estados Unidos.
Encantadas com essa oportunidade de obter novos prosélitos, as autoridades sauditas instalaram centros de informação nas principais bases militares da 'Tempestade no Deserto', para que fossem ministrados ensinamentos islâmicos e explicações sobre o Alcorão. À época do final da Guerra do Golfo, alguns milhares de norte-americanos haviam adquirido uma nova religião. A maioria deles - desconhecendo, ao que parece, as atrocidades perpetradas contra seus ancestrais pelos mercadores de escravos árabes - era afro-americana, mas um número substancial era constituído de brancos.
Ocupando o posto de primeiro-sargento, Ruby Goldenberg não era apenas branca, era filha de rabino e jamais vira nada mais exótico que a Disneylândia antes de assumir seu posto na Base do Rei Faisal, em Dhahran. Embora fosse bem-versada em judaísmo e cristianismo, o islã era novidade para ela. Fascinou-a a preocupação solene do islamismo com questões fundamentais, assim como sua perene, mas agora profundamente desgastada, tradição de tolerância. Admirou sobretudo seu respeito sincero por aqueles dois profetas de outras fés, Moisés e Jesus. Com sua perspectiva ocidental 'liberada', no entanto, ela mantinha fortes restrições quanto à posição da mulher nos Estados muçulmanos mais conservadores.
A sargento Goldenberg estava ocupada demais com a manutenção eletrônica de mísseis terra - ar para envolver-se muito em assuntos religiosos antes que a 'Tempestade no Deserto' se acalmasse, mas a semente estava plantada. Assim que retornou dos Estados Unidos, usou seus direitos de veterana para se matricular em uma das poucas faculdades de orientação islâmica - um passo que envolveu não só uma contenda com a burocracia do pentágono mas também um rompimento com a própria família. Apenas dois semestres depois, deu uma nova demonstração de independência ao se fazer expulsar da escola.
Os fatos por trás desse evento sem dúvida decisivo jamais foram totalmente revelados. Os hagiógrafos da Profeta afirmam que foi vítima dos professores, que se viram incapazes de responder a suas perspicazes críticas ao Alcorão. Alguns historiadores neutros preferem uma explicação mais realista: teve um caso com um colega e saiu assim que sua gravidez ficou óbvia.
Pode haver uma parcela de verdade nas duas versões. A Profeta jamais renegou o jovem que afirmava ser seu filho, nem se preocupou muito em esconder posteriores envolvimentos com amantes de ambos os sexos. Na verdade, uma das mais notáveis diferenças entre o crislã e suas religiões formadoras era justamente uma atitude bastante despreocupada em relação ao sexo, não muito distante da hinduísta. Isso com certeza contribuiu para sua popularidade: não podia haver maior contraste com o puritanismo do islã e com a patologia sexual do cristianismo, que haviam envenenado bilhões de vidas e culminavam na perversão do celibato.
Após a expulsão da faculdade, Ruby Goldenberg praticamente desapareceu por mais de 20 anos. Mais tarde, mosteiros tibetanos, ordens católicas e outros grupos garantiram tê-Ia abrigado, mas as provas não sobreviveram a investigações mais profundas. Não há evidências, também, de que tenha vivido na Lua - seria fácil encontrar pistas dela entre a população lunar, relativamente pequena. A única certeza é que a Profeta Fátima Magdalene surgiu na cena mundial em 2015.
O cristianismo e o islã têm sido descritos com precisão como as 'religiões do livro'. O crislã, descendente destas e pretenso sucessor, fundamentava-se em uma tecnologia de poder incomparavelmente maior.
Era a primeira religião do byte.
Circuito do Paraíso
Cada época tem sua linguagem característica, repleta de palavras que não fariam o menor sentido um século antes ou estariam esquecidas um século depois. Algumas dessas palavras são geradas pela arte, pelos esportes, pela moda ou pela política, mas a maioria é produto da ciência e da tecnologia - e isso inclui, é claro, a guerra.
Os navegadores que por milênios cruzaram os oceanos do mundo tinham um vocabulário complexo - e incompreensível, para marinheiros de primeira viagem - de nomes e ordens que lhes permitiam controlar os aprestamentos de que dependiam suas vidas. Quando o automóvel começou a difundir-se pelos continentes, no princípio do século XX, surgiram dezenas de palavras novas e estranhas e alguns termos antigos ganharam novos significados. Um cocheiro de fiacre do período vitoriano ficaria completamente atrapalhado ao deparar-se com mudanças de marcha, embreagem, pára-brisa, diferencial, vela de ignição, carburador - palavras que seu neto usaria sem esforço no dia-a-dia. E este por sua vez ficaria perdido em relação a válvulas de rádio, antena, faixa de ondas, sintonizador, freqüência...
A era eletrônica, em especial com o advento dos computadores, gerou neologismos em um ritmo febril. Microchip, disco rígido, laser, CD-ROM, videocassete, fita cassete, megabyte, software - palavras que não significariam nada antes da metade do século XX. Com a aproximação do fim do milênio, algo ainda mais estranho - paradoxal até - começou a aparecer no vocabulário da informática: realidade virtual.
Os resultados dos primeiros sistemas de RV eram quase tão grosseiros quanto as imagens dos primeiros aparelhos de televisão, mas eram convincentes o bastante para tornar seu uso um hábito, quando não um vício. Imagens em 3-D com grande abertura angular podiam absorver de forma tão completa a atenção que sua baixa qualidade, como desenho animado a poucos quadros por segundo, era ignorada sem dificuldade. Com o constante aperfeiçoamento da definição e da animação, o mundo virtual aproximou-se mais e mais do real - mas ainda havia uma sensível diferença, enquanto dependesse de dispositivos inadequados como visores montados em capacetes e luvas operadas por servomotores. Para se conseguir uma ilusão perfeita e enganar o cérebro, seria necessário evitar os órgãos externos dos sentidos - olhos, ouvidos e músculos - e inserir a informação diretamente nos circuitos neurais.
O conceito da 'máquina de sonhos' já contava pelo menos cem anos quando os progressos na varredura cerebral e na nanocirurgia o tornaram possível. As primeiras unidades eram aglomerados de equipamentos que ocupavam salas inteiras, como os primeiros computadores - e como estes, foram miniaturizados a uma velocidade espantosa. Mas seu uso era limitado, uma vez que exigiam a implantação de eletrodos no córtex cerebral.
A grande revolução aconteceu quando foi aperfeiçoado o brainman, contrariando toda uma geração de especialistas médicos que o consideravam impossível. Uma unidade de memória armazenando terabytes de informação conectava-se por um cabo de fibra ótica a um barrete, perfeitamente ajustado à cabeça, que colocava literalmente bilhões de terminais do tamanho de átomos em contato indolor com a pele do couro cabeludo. O brainman era tão inestimável, não só para o entretenimento mas também para o ensino, que no espaço de uma única geração todos os que tinham condições para isso compraram um - aceitando a calvície como o preço necessário.
Fácil de transportar, o brainman nunca foi tornado realmente portátil, por um excelente motivo. Quem quer que andasse por aí totalmente imerso em um mundo virtual - mesmo nas vizinhanças da própria casa não sobreviveria muito tempo.
O potencial do brainman para a substituição de experiências reais em particular as eróticas, graças ao desenvolvimento da tecnologia da hedonística - foi logo reconhecido, mas as aplicações mais sérias não foram esquecidas. Conhecimentos e habilidades instantâneos podiam ser adquiridos a partir de 'módulos de memória’ especializados, os memochips. O mais atraente, no entanto, era o 'diário total', que permitia armazenar e reviver momentos preciosos da vida - e até mesmo editá-Ios, aproximando-os do que o coração preferia ver.
Graças a sua formação em eletrônica, a profeta Fátima Magdalene foi a primeira a reconhecer o potencial do brainman para a disseminação das doutrinas do crislã. Tinha precursores, é claro, na figura dos 'televangelistas' do século XX e sua exploração das ondas de rádio e dos satélites de comunicação, mas a tecnologia de que dispunha era infinitamente mais poderosa. A fé sempre fora mais uma questão de emoção que de intelecto, e o brainman era capaz de apelar diretamente a ambos.
Em algum momento da primeira década do século XXI, Ruby Goldenberg conseguiu uma importante conversão - um dos pioneiros da revolução informática: embora dono de imensa fortuna, aos cinqüenta e poucos anos seu ânimo estava esgotado. Ela lhe deu nova razão para viver, e um desafio para mais uma vez animar sua imaginação. Por sua vez, ele possuía os recursos - e melhor ainda, os contatos necessários - para vencer esse desafio.
Não foi nada difícil materializar em forma eletrônica os três testamentos do Alcorão dos Últimos Dias, mas isso foi apenas o começo, a Versão 1 (pública). Surgiu a seguir a edição interativa, destinada apenas àqueles que haviam demonstrado um interesse genuíno pela fé e desejavam passar para o estágio seguinte. Mas essa Versão 2 (restrita) podia ser copiada com tanta facilidade que logo estavam em circulação milhões de módulos não autorizados - exatamente o que a profeta tinha em mente.
A Versão 3 era outra história. Tinha copy-protection e se auto-destruía após um único uso. Os infiéis diziam brincando que era classificada como 'supersagrada', e era interminável a especulação quanto a seu conteúdo. Comentava-se que conteria programas de realidade virtual com trailers do paraíso crislâmico - mas visto apenas pelo lado de fora.
Havia rumores - jamais confirmados, apesar das inevitáveis 'revelações' de apóstatas descontentes - sobre uma versão 'ultra-sagrada’, provavelmente a 4. Segundo se supunha, operaria através de unidades avançadas de brainman e seria 'neurologicamente codificada’, para que só pudesse ser utilizada pelo indivíduo para quem cada cópia fosse projetada. O uso por pessoas não-autorizadas causaria danos mentais permanentes - levando talvez à loucura.
Qualquer que fosse o aparelhamento tecnológico do crislã, o momento era propício para o surgimento de uma nova religião que incorporasse o melhor de duas fés antigas (com várias pitadas de uma religião ainda mais remota, o budismo). Ainda assim, a profeta talvez jamais tivesse êxito sem dois oUtros fatores absolutamente fora de seu controle.
O primeiro foi a chamada revolução da 'fusão a frio', que levou a um fim súbito a era do combustível fóssil e demoliu a base econômica do mundo muçulmano por quase uma geração - até que os químicos israelenses a reconstruíssem com o slogan "Petróleo: fogo não, alimento sim".
O segundo foi o declínio do status moral e intelectual do cristianismo, iniciado - embora durante séculos poucos se dessem conta disso em 31 de outubro de 1517, quando Martinho Lutero pregou suas Noventa e Cinco Teses na porta da Wittenberg Church. O processo continuou com Copérnico, Galileu, Darwin e Freud, e culminou no notório escândalo do Mar Morto, quando a publicação definitiva dos manuscritos ocultos durante tanto tempo revelou que o Jesus dos evangelhos era baseado em três - talvez quatro - pessoas distintas.
Mas o coup de grâce veio do próprio Vaticano.
Encíclica
Há exatamente quatro séculos, no ano de 1632, meu predecessor o papa Urbano VIII cometeu um erro terrível. Permitiu que seu amigo Galileu fosse condenado por ensinar o que sabemos agora ser uma verdade fundamental: que a Terra gira ao redor do Sol. Embora a Igreja se tenha desculpado com Galileu em 1992, foi um golpe em sua dignidade de que jamais se recuperou por completo.
Agora, infelizmente, é chegada a hora de admitir um erro ainda mais trágico. Devido a .sua obstinada oposição ao planejamento familiar por meios artificiais, a Igreja arruinou bilhões de vidas e tornou-se responsável, ironicamente, por promover o pecado do aborto entre aqueles pobres' demais para sustentar as crianças que eram forçados a trazer ao mundo.
Essa política trouxe nossa espécie a um passo da ruína. Uma superpopulação extrema despojou o planeta Terra de seus recursos e poluiu o meio ambiente em escala mundial. Ao final do século XX isso estava claro para todos... mas nada foi feito. Houve um sem-número de conferências e resoluções, é claro, mas pouca ação efetiva.
Agora, uma revolução científica há muito esperada - e temida ameaça transformar essa crise em catástrofe. O mundo inteiro aplaudiu quando os professores Salman e Bernstein receberam o Prêmio Nobel de Medicina, em dezembro passado, mas quantos refletiram sobre o impacto social de seus trabalhos? A um pedido meu, a Academia Pontifícia de Ciências dedicou-se a isso. As conclusões foram unânimes... e inescapáveis.
A descoberta das enzimas superóxidas capazes de retardar o processo de envelhecimento ao proteger o DNA do corpo foi considerada um triunfo tão grande quanto a quebra do código genético. Agora, ao que tudo indica, a expectativa de vida humana saudável e ativa pode ser expandida em pelo menos 50 anos - talvez muito mais! Fomos informados também de que o tratamento terá um preço relativamente acessível. Portanto, gostemos ou não, o futuro será um mundo repleto de vigorosos centenários.
Minha academia informa também que o tratamento com as ESO prolongará o período de fertilidade humana em cerca de 30 anos. As implicações são perturbadoras - especialmente em vista dos retumbantes fracassos em limitar nascimentos por meio de apelos à abstinência e ao uso dos assim chamados métodos 'naturais'...
Há semanas os especialistas da Organização Mundial de Saúde estão colocando todos os seus membros em contato. O objetivo é estabelecer da forma mais rápida - e humana - possível algo que foi discutido com freqüência mas jamais atingido, salvo em tempo de guerra ou de peste: o crescimento populacional zero. O que talvez não seja suficiente; pode ser necessário um crescimento populacional negativo. Por algumas gerações, a família de filho único talvez tenha de ser a norma.
A Igreja tem a lucidez necessária para não lutar contra o inevitável, em especial nesta situação radicalmente alterada. Publicarei em breve uma encíclica com orientações concernentes a esses problemas. Ela foi redigida, devo acrescentar, após discussão de todos os pontos com meus colegas Dalai-Lama, o rabino-líder, o Imã Muhammad, o arcebispo de Canterbury e a profeta Fátima Magdalene, e todos concordam comigo.
Sei que muitos de vocês acharão difícil - doloroso, até - aceitar que práticas que a Igreja um dia estigmatizou como pecados devam agora se tornar deveres. Em um ponto fundamental, no entanto, a doutrina não se altera. Uma vez que um feto seja viável, sua vida é sagrada.
O aborto é e continuará sendo um crime. Só que agora não há mais desculpas - ou necessidade - para ele.
Minhas bênçãos a todos, qualquer que seja o mundo de onde me ouvem.
João Paulo IV, Páscoa de 2032,
Rede de Notícias Terra-Lua-Marte
Excalibur
Foi o maior experimento científico jamais realizado, por abranger todo o Sistema Solar.
As origens do Excalibur remontam aos bizarros tempos - difícil acreditar, agora, que tenham de fato existido - da quase esquecida Guerra Fria, quando duas superpotências confrontavam-se com armas nucleares capazes de destruir a própria estrutura da civilização e de pôr em risco a sobrevivência da humanidade como espécie biológica.
De um lado estava a entidade que se denominava União das Repúblicas Socialistas Soviéticas - a qual, como gostam de salientar os historiadores, pode ter sido soviética (o que quer que isso signifique), mas com certeza não era uma união, nem socialista, nem uma república. Do outro lado, os Estados Unidos da América, com uma denominação bem mais exata.
Nas últimas décadas do século XX, os dois oponentes possuíam milhares de foguetes de longo alcance, cada um com capacidade para uma ogiva com o poder de destruir uma cidade. É compreensível que se fizessem tentativas de desenvolver armas de defesa capazes de evitar que esses mísseis atingissem seus alvos. Antes da descoberta dos campos de força - mais de cem anos mais tarde - nenhuma proteção era possível, sequer em teoria. Ainda assim, continuaram os frenéticos esforços para projetar mísseis antimísseis e fortalezas orbitais equipadas com lasers que possibilitassem um proteção ao menos parcial.
Relembrando essa época, é difícil decidir se os cientistas que propuseram alguns desses planos estavam explorando cinicamente os temores genuínos de políticos ingênuos ou se acreditavam sinceramente que suas idéias podiam ser convertidas em realidade prática. Quem não viveu naquele que foi chamado com muita propriedade de 'século das dores' não deve ser severo demais ao julgá-Ios.
A mais insana das armas de defesa propostas era sem dúvida o laser de raios X. A teoria era que a tremenda energia produzida pela explosão de uma bomba nuclear poderia ser convertida em feixes altamente direcionais de raios X, poderosos a ponto de serem capazes de destruir mísseis inimigos a milhares de quilômetros de distância. O aparelho, chamado Excalibur (é compreensível que nunca tenham sido publicados maiores detalhes), se assemelharia a um ouriço-do-mar, espinhos apontando em todas as direções, e teria em seu centro uma bomba nuclear. Após a explosão, nos microssegundos antes de se evaporar, cada espinho produziria um feixe de laser apontado para um míssil diferente.
Não é necessária muita imaginação para perceber as limitações de uma arma como essa, de tiro único, em especial contra um inimigo que se recuse a cooperar, lançando seus mísseis convenientemente agrupados. Ainda assim, a teoria básica por trás do laser ativado por explosão atômica era consistente, embora as dificuldades práticas para sua criação tivessem sido muito subestimadas. Na verdade, o projeto todo foi abandonado depois de milhões de dólares terem sido desperdiçados nele.
Mas não totalmente desperdiçados. Quase um século mais tarde, o conceito foi ressuscitado, mas dessa vez como proteção contra mísseis criados não pelo homem, mas pela natureza.
O Excalibur do século XXI foi projetado para produzir não raios X, mas ondas de rádio, e dirigi-Ias não mais a alvos específicos, mas sim à esfera celeste como um todo. A bomba de um gigaton - a mais poderosa já construída e, esperava-se, a mais poderosa que jamais seria construída - foi detonada na órbita da Terra, mas do outro lado do Sol. Esse cuidado propiciava a maior proteção possível contra o tremendo pulso eletromagnético que de outra forma arruinaria as comunicações e queimaria equipamentos eletrônicos por todo o planeta.
Quando a bomba explodiu, uma esfera de microondas de paredes delgadas - apenas alguns metros - expandiu-se pelo Sistema Solar à velocidade da luz. Em minutos, detectores posicionados a intervalos regulares por toda a órbita da Terra começaram a receber ecos do Sol, de Mercúrio, . de Vênus, da Lua; mas nesses ecos ninguém estava interessado.
Nas duas horas seguintes, antes que a varredura da explosão de rádio ultrapassasse Saturno, centenas de milhares de ecos, cada vez mais tênues, congestionavam os bancos de dados do Excalibur. Todos os satélites, asteróides e cometas conhecidos foram facilmente detectados e, ao final da análise, todo objeto de tamanho superior a um metro no raio da órbita de Júpiter havia sido localizado. A catalogação de todos e o cálculo de seus deslocamentos futuros ocuparia os computadores da Spaceguard por vários anos.
As primeiras 'olhadelas', no entanto, foram tranqüilizadoras. Não havia nada ao alcance do Excalibur que ameaçasse a Terra, e a humanidade acalmou-se. Chegou-se a propor o cancelamento do Projeto Spaceguard.
Muitos anos mais tarde, quando o dr. Angus Millar descobriu Kali com seu telescópio de fabricação caseira, houve um protesto generalizado: perguntava-se por que o asteróide não havia sido localizado. A resposta, simples, era que Kali estava então no ponto mais distante de sua órbita, fora do alcance até mesmo de um radar ativado por explosão nuclear. O Excalibur com certeza o detectaria se estivesse próximo o bastante para representar perigo imediato.
Muito antes disso, no entanto, o Excalibur produziu um resultado espantoso e totalmente inesperado. Muitos acreditavam que em lugar de detectar uma ameaça ele acabara por criar uma, revivendo um antigo temor.
Uma Resposta Inesperada
Por meio de equipamentos mais e mais sensíveis e de uma faixa de freqüências cada vez mais ampla, a PIET - Pesquisa de Inteligência Extraterrestre - vinha sendo desenvolvida por mais de um século. Houve muitos alarmes falsos, e os radioastrônomos registraram alguns 'suspeitos' com chances de serem legítimos sinais, e não meros fragmentos aleatórios de ruído cósmico. Infelizmente, os sinais captados eram breves demais para que mesmo a mais engenhosa análise computadorizada pudesse evidenciar uma origem inteligente.
Tudo isso mudou bruscamente em 2085. Um dos antigos entusiastas da PIET dissera certa vez que "Quando houver um sinal, teremos certeza do que se trata - não será um chiado indistinto, semi-encoberto pelo ruído". Ele tinha razão.
O sinal foi captado alto e claro, durante uma varredura de rotina de um dos menores radiotelescópios do lado escuro da Lua - um lugar ainda bastante sossegado, apesar do tráfego local de comunicações. E não podia haver dúvidas quanto a sua origem extraterrestre. O telescópio que o detectou estava assestado diretamente contra Sirius, a estrela mais brilhante do céu.
Essa foi a primeira surpresa. Cerca de 50 vezes mais brilhante que o Sol, Sirius sempre pareceu ter poucas possibilidades de abrigar planetas habitáveis. Os astrônomos ainda discutiam a esse respeito quando - juntamente com o mundo todo - receberam um choque ainda maior.
Embora fosse, em retrospecto de uma obviedade ofuscante, foram necessárias quase 24 horas para que alguém chamasse a atenção para uma interessante coincidência.
Sirius estava a 8,6 anos-luz de distância, e o Projeto Excalibur fora posto em prática 17 anos e três meses antes. Era o tempo exato para que as ondas de rádio viajassem até Sirius e voltassem. Quem - ou o que quer que houvesse recebido a explosão eletromagnética não perdera tempo em responder à chamada.
Como que para eliminar todas as dúvidas, a onda transmissora de Sirius estava na freqüência exata do pulso do Excalibur – 5.400 megahertz. Seguiu-se, no entanto, uma grande decepção.
Frustrando as esperanças de todos, a onda não apresentava modulação alguma. Não havia sinal de mensagem.
Era puro ruído.
Os Renascidos
Poucas religiões resistem incólumes à morte de seus fundadores. Não foi diferente com o crislã, a despeito dos esforços de Fátima Magdalene para designar um sucessor.
As primeiras divergências surgiram quando seu filho, Morris Goldenberg, materializou-se do nada e tentou reclamar sua herança. A princípio foi denunciado como impostor, mas o movimento teve de abandonar essa linha de defesa quando ele exigiu - e obteve - um teste de DNA.
Seu próximo passo foi uma peregrinação a Meca e, embora tenha sido mantido a uma distância segura da Caaba, insistiu a partir de então em ser chamado Ai Hadj. Sua sinceridade quanto a isso - e a tudo o mais, na verdade - era alvo de acalorada controvérsia. Sobre a sinceridade de sua mãe jamais pesara nenhuma dúvida séria, mas após a morte dele tornouse quase consenso que Al Hadj Morris Goldenberg não passava de um aventureiro encantador e especioso aproveitando ao máximo a oportunidade que o destino lhe concedera. Ironicamente, foi uma das últimas vítimas conhecidas do vírus da Aids - um fato do qual se extraíram muitas opiniões desencontradas.
Ao menos para os leigos, a maior parte dos pontos da discussão doutrinária promovida por Morris parecia trivial. Bastariam, como exigência mínima, as preces ao alvorecer e ao crepúsculo? As peregrinações a Belém e a Meca teriam igual mérito? O jejum do Ramadã poderia ser reduzido para uma semana? Seria necessário dar esmolas aos 'pobres', agora que a sociedade como um todo assumia suas responsabilidades quanto a eles? Seria possível conciliar a ordem de Jesus de beber vinho "em minha memória’ com a aversão muçulmana ao álcool? E assim por diante...
Mesmo assim, após a morte de Morris as divergências entre as várias seitas foram apaziguadas e por muitas décadas o crislã apresentou-se ao mundo relativamente unido. Em seu auge, estendia sua influência sobre cem milhões de adeptos e era a quarta religião mais popular da Terra, embora fizesse poucos avanços na Lua e em Marte.
O principal cisma foi iniciado repentinamente, pela inesperada 'voz de Sirius'. Uma facção esotérica muito influenciada pela doutrina sufista afirmava que, com o auxílio de avançadas técnicas de processamento de dados, havia interpretado o enigmático sinal do espaço.
Todas as tentativas anteriores para isso haviam falhado; o sinal - se era mesmo um sinal - parecia um ruído sem modulação. Por que os sirianos se dariam ao trabalho de transmitir puro ruído era um enigma que um sem-número de teorias tentou explicar. A mais popular era que, como mensagens de segurança máxima transmitidas em alguns sistemas de codificação, o sinal apenas parecia ruído. Podia ser um teste de inteligência, no qual apenas os fanáticos crislâmicos - os 'renascidos', como se denominariam mais tarde - haviam passado, se suas afirmações eram dignas de crédito.
Ainda assim, de origem obviamente artificial, o ruído era de fato portador de uma mensagem inequívoca: "Estamos aqui". Talvez os sirianos estivessem aguardando uma confirmação de recebimento - o 'cumprimento eletrônico' exigido por muitos dispositivos de comunicação antes de começarem a transmitir inteligência.
Os renascidos tinham uma resposta muito mais engenhosa, embora nada original. Nos primórdios da teoria da comunicação, destacava-se que o 'ruído puro' podia ser considerado não um lixo sem sentido, mas a combinação de todas as mensagens possíveis. Os renascidos tinham uma elegante analogia: imagine que todos os poetas, filósofos e profetas da humanidade falassem ao mesmo tempo. O resultado seria uma torrente de som totalmente indecifrável, mas que no entanto encerraria toda a sabedoria humana.
Assim acontecia com a mensagem de Sirius. Era nada menos que a Voz de Deus, e apenas os fiéis podiam entendê-Ia - com o auxílio de um elaborado equipamento de decriptação e algoritmos abstrusos. Quando indagados quanto a o que exatamente Deus dizia, a resposta dos renascidos era "Revelaremos quando chegar a hora”.
O resto do mundo riu, é claro, mas houve alguns resmungos apreensivos quando os renascidos construíram um transmissor de um quilômetro de diâmetro no lado oculto da Lua, na tentativa de iniciar um diálogo com Deus - ou com o que quer que estivesse na outra ponta. Nenhuma das organizações espaciais oficiais tomara essa iniciativa até então, incapazes de chegar a um consenso quanto à resposta adequada. Na verdade, muitos achavam que seria melhor para a raça humana permanecer em silêncio ou simplesmente transmitir Bach.
Enquanto isso, confiantes de seu relacionamento especial, os renascidos emitiam preces e louvores na direção de Sirius. Chegavam a afirmar que - uma vez que foi Deus quem criou Einstein, e não o contrário não estariam limitados pela velocidade da luz; suas conversas não seriam prejudicadas por lapsos de tempo de 17 anos.
A detecção de Kali teve para os renascidos a força de uma revelação. Agora conheciam seu destino... e preparavam-se para fazerem jus a seu nome.
Havia pelo menos um século que muito poucas pessoas instruídas acreditavam na ressurreição, e a profeta Fátima Magdalene tivera a sabedoria de evitar o assunto. Com a aproximação do fim do mundo, diziam os renascidos, era hora de pensar nisso seriamente. Eles podiam garantir a sobrevivência... por um preço, é claro.
Milhões de pessoas planejavam emigrar para a Lua ou para Marte, mas as duas colônias já estavam estabelecendo cotas, para evitar que se esgotassem seus limitados recursos. De qualquer modo, apenas uma porcentagem mínima da raça humana poderia usar essa rota de fuga.
Os renascidos ofereceram algo muito mais ambicioso: não apenas a segurança, mas a imortalidade. Anunciaram ter alcançado um dos objetivos há muito sonhados da realidade virtual: podiam gravar um ser humano completo - todas as memórias de uma vida e a descrição atual do corpo que as vivenciou - em um modesto espaço de 1.014 bits. A reprodução da gravação, no entanto - a ressurreição propriamente dita -, ainda exigiria décadas de pesquisa. Mesmo se houvesse razão para isso, o trabalho não podia ser completado antes da chegada de Kali.
Mas isso não era problema. Os renascidos já haviam recebido a garantia de Deus. Todos os verdadeiros crentes podiam transmitir-se na direção de Sirius via transmissor no lado oculto. O céu os esperava do outro lado.
Foi então que, para a maioria das pessoas, evaporaram-se as eternas dúvidas quanto à sanidade dos renascidos. A despeito de sua incontestável sofisticação tecnológica, eram obviamente tão loucos quanto todos os outros milenários que, com monótona regularidade, prometiam salvar seus próprios discípulos quando o mundo chegasse ao fim na próxima terça-feira.
Os renascidos passaram a ser encarados desde então como uma brincadeira de mau gosto; suas extravagâncias não interessavam a um planeta com assuntos mais sérios com que se preocupar.
Um erro compreensível... e desastroso.
Vigília
Os Estaleiros Deimos diziam construí-Ios por quilômetro e o cliente que serrasse o seu no tamanho que precisasse. É claro que a maior parte de seus produtos tinha uma semelhança básica de linha, e a Goliath não era exceção.
Sua espinha dorsal era uma única verga triangular de 150 metros de comprimento e cinco de largura em cada lado. Sua aparência seria de uma fragilidade assustadora para qualquer engenheiro nascido antes do século XX, mas a nanotecnologia que a construíra literalmente átomo por átomo de carbono a havia dotado de uma resistência 50 vezes maior que a do melhor aço.
Ao longo dessa espinha de diamante sintético foram fixados os vários módulos - a maioria facilmente intercambiável - que constituíam a Goliam. Os maiores itens eram os tanques esféricos de hidrogênio alinhados ao longo dos três lados da verga, como ervilhas do lado de fora de uma vagem., Em comparação, os módulos de comando, de serviço e residencial, em uma ponta, e as unidades de força e propulsão, na outra, pareciam acréscimos de última hora.
Quando aceitou o comando da Goliath, Robert Singh tinha em mente uns poucos anos pacíficos - se possível até mesmo tediosos - de serviço espacial antes de se aposentar, em Marte. Embora tivesse apenas 70 anos, estava nitidamente diminuindo o ritmo. Ficar estacionado ali no ponto troiano TI, 60 graus adiante de Júpiter, devia ser quase um feriado. Tudo o que tinha a fazer era manter felizes seus passageiros - astrônomos e físicos - enquanto conduziam seus intermináveis experimentos.
Isso porque a Goliath era uma nave de pesquisa, e com esse fim fora financiada pelo Fundo Científico Planetário. O mesmo ocorria com a Hércules, a 1,25 bilhão de quilômetros, no ponto T2. Com o Sol e Júpiter, as duas naves delineavam um diamante colossal que jamais alterava sua forma, mas circundava o Sol uma vez a cada ano joviano de 4 333 dias terrestres.
Ligadas uma à outra por feixes de laser cuja extensão era conhecida com precisão de menos de um centímetro, as duas naves compunham o conjunto ideal para muitos tipos de trabalhos científicos. Ondulações no espaço-tempo causadas pela colisão de buracos-negros - proezas de engenharia cósmica de supercivilizações (e quem poderia dizer o que mais?) - podiam ser detectadas pela profusão de instrumentos a bordo da Goliath e da Hercules. E uma vez que os receptores das duas naves podiam ser conectados formando um radiotelescópio de mais de um bilhão de quilômetros, já fora possível mapear regiões remotas do Universo com precisão inaudita, Mas os pesquisadores a bordo dos gêmeos troianos não se esqueciam da vizinhança imediata, onde as distâncias eram medidas em meros milhões de quilômetros. Já haviam observado centenas de asteróides capturados naquela imensa armadilha gravitacional e feito breves excursões para visitar muitos dos mais próximos. Em alguns anos aprendeu-se mais sobre a composição daqueles corpos menores que nos três séculos que se passaram desde que foram descobertos pela primeira vez.
A tranqüila rotina, rompida apenas por substituições na equipe e retornos regulares a Deimos para inspeção e atualização do equipamento, mantinha-se há mais de 30 anos, e poucos pensavam no propósito original da construção da Goliath e da Hercules. Mesmo as tripulações raramente se lembravam de que estavam de vigia, como os sentinelas que três mil anos antes faziam sua patrulha ao forte vento das muralhas de Tróia. Mas esperavam por um inimigo que Homero jamais poderia ter imaginado.
Rotina
Embora o atual comissionamento do capitão Singh, eqüidistante entre o Sol e Júpiter, fosse considerado o emprego mais solitário do Sistema Solar, era raro que se sentisse só. Costumava comparar sua situação com a dos grandes navegadores do passado, como Cook e o injustamente difamado Bligh. Ficavam isolados e sem nenhuma possibilidade de comunicação com seus lares e famílias durante meses - por vezes anos - e eram obrigados a viver em compartimentos apinhados e sem higiene, em contato íntimo com vários outros oficiais e um número ainda maior de marinheiros mal-educados e com freqüência amotinados. Mesmo sem contar perigos externos como tempestades, bancos de areia ocultos, ataques inimigos e nativos hostis, a vida a bordo nos velhos tempos devia ser uma boa amostra do inferno.
É verdade que não havia muito mais espaço habitável a bordo da Goliath que no Endeavour de Cook, de 30 metros, mas a ausência de gravidade implicava uma utilização muito mais eficiente desse espaço. E, é claro, as comodidades disponíveis para tripulação e passageiros eram incomparavelmente superiores. No que diz respeito à diversão, tinham acesso imediato a tudo o que a arte e a cultura da humanidade haviam produzido - até minutos antes. O lapso de tempo em relação à Terra era praticamente a única adversidade que tinham de enfrentar.
Todos os meses, um ônibus espacial chegava pontualmente vindo de Marte ou da Lua trazendo caras novas e levando parte da equipe para casa, em férias. A chegada ansiosamente aguardada do correio, com itens que não podiam ser enviados por rádio ou conexões ópticas, era a única quebra em uma rotina já bem estabelecida. Não que a vida a bordo fosse completamente livre de problemas - técnicos e psicológicos, sérios e triviais...
- Professor Jamieson?
- Sim, chefe?
- David acabou de chamar minha atenção para sua ficha de exercícios. Parece que você faltou a suas duas últimas sessões na centrífuga.
- Hã... deve haver algum engano.
- Sem dúvida. Mas de quem? Vou colocar David na linha também.
- Hum, pode ser que eu tenha faltado uma vez. Tenho estado muito ocupado analisando as amostras que trouxeram de Achilles. Vou compensar amanhã.
- É bom mesmo, Bill. Sei que é um tédio, mas a menos que se exercite a meia gravidade, nunca mais voltará a andar em Marte e menos ainda na Terra. Capitão desligando.
- Recado de Freyda, capitão. Toby dará um recital no Smithsonian, dia 15. Ela diz que será uma ocasião e tanto. Conseguiram o piano de cauda original de Brahms. Toby tocará uma de suas próprias composições e a Rapsódia sobre um tema de Paganini, de Rachmáninov. Gostaria da cobertura completa ou apenas o áudio?
- Não vou arranjar tempo para nenhum dos dois, mas não quero magoar Toby. Diga que estou desejando boa sorte... e encomende o memochip completo.
- Dr. Javorski?
- Pois não, capitão.
- Há um cheiro estranho vindo de seu laboratório. Várias pessoas já reclamaram. Parece que os filtros de ar não estão dando conta.
- Cheiro? Esquisito? Não senti nada, mas vou verificar agora mesmo.
- Capitão, chegou uma mensagem de Charmayne enquanto o senhor dormia. Nada urgente, mas sua cidadania marciana irá caducar em dez dias, a menos que a renove.
- Obrigado, David, mas não posso tratar disso agora. Lembre-me amanhã, a esta mesma hora.
- Capitão Singh, da nave de pesquisa Goliath, para a Rede Solar de Notícias. Recebi seu relatório há alguns dias, mas não levei a sério. Não pensei que ainda houvesse esse tipo de lunático por aÍ. Não, nós não encontramos nenhuma nave alienígena. Fiquem tranqüilos que avisaremos quando encontrarmos.
- Sonny?
- Sim, capitão?
- Parabéns pela decoração da mesa, noite passada. Mas meu sabonete acabou de novo. Você poderia recarregar meu dosador? Perfume de pinho dessa vez, por favor... não suporto mais lavanda.
Pelo consenso geral, Sonny era o segundo homem mais importante a bordo; e alguns o consideravam mais importante que o capitão.
O cargo oficial de comissário de bordo era pouco para descrever o papel de Sonny Gilbert a bordo da Goliath. Era o faz-tudo par excelence, capaz de lidar igualmente bem com problemas técnicos e humanos - ao menos no âmbito doméstico geral. Os mais problemáticos robôs de limpeza começavam a se comportar quando ele estava por perto, e era mais provável que os jovens cientistas de todos os sexos fizessem confidências a ele que ao programa médico-de-bordo-psico. (O capitão Singh ouvira rumores de que Sonny registrava uma notável coleção de serviços sexuais, reais e virtuais, mas havia coisas que um comandante sensato preferia não saber.)
Não tinha a menor importância o fato de Sonny ter, por qualquer sistema de aferição, o menor quociente de inteligência da nave; sua eficiência, boa índole e gentileza era só o que interessava. Quando um famoso cosmólogo convidado, em um acesso de indignação, chamou-o de 'cabeça-oca’, o capitão Singh lhe passou uma descompostura e exigiu que se desculpasse. Quando ele se recusou, foi mandado de volta no primeiro ônibus espacial, a despeito dos pesados protestos da Terra.
Embora extremos como esse fossem incomuns, sempre havia uma certa tensão entre a tripulação da Goliath e a equipe científica. Era uma tensão normalmente amigável, no entanto, na forma de piadas e, algumas vezes, de trotes e peças. Quando havia algum desafio incomum, todos colaboravam com entusiasmo, independentemente das funções oficiais de cada um.
Uma vez que David mantinha uma vigilância constante sobre todos os sistemas operacionais da Goliath, não era necessário manter turnos de 24 horas. Durante o 'dia’, estavam acordadas tanto a tripulação A como a B, embora apenas uma estivesse de serviço; depois, a nave inteira parava por oito horas. Se ocorresse alguma emergência, David reagiria mais rápido que qualquer humano. Na verdade, caso houvesse uma situação com que mesmo ele não pudesse lidar, provavelmente seria mais caridoso deixar que as duas tripulações passassem dormindo os poucos segundos restantes de suas vidas.
O dia de bordo começava às 6 horas, tempo universal, mas a cozinha era pequena demais para acomodar a todos e a tripulação que entrava primeiro em serviço tinha prioridade no café da manhã, às 6h30. A tripulação B comia às 7 horas, e a equipe científica tinha de esperar até às 7h30. Com lanches sempre disponíveis no restaurante automático, no entanto, ninguém era obrigado a sofrer a agonia da fome.
Às 8 horas em ponto, o capitão Singh apresentava um resumo das atividades do dia e transmitia qualquer notícia importante. A tripulação A dispersava-se então para assumir seus postos, os cientistas iam para seus laboratórios e terminais e a tripulação B desaparecia em seus pequenos porém luxuosos cubículos para se pôr em dia com os vídeos de notícias, acessar os sistemas de informação e entretenimento da nave, estudar um pouco ou ocupar-se de qualquer outro modo até a mudança de turno, às 14 horas.
Essa programação padrão era no entanto sujeita a freqüentes perturbações, planejadas ou não. Destas, as mais interessantes eram as excursões ocasionais a asteróides de passagem.
Não era verdade que, como observara um astrônomo blasé, "Quando você viu um asteróide, você viu todos". (Era especialista em colisões de galáxias, sendo assim perdoável sua ignorância nesses pequenos detalhes.) Na realidade, a diversidade entre os asteróides era tão grande quanto a variação em suas dimensões - dos mil quilômetros de Ceres a rochas anônimas do tamanho de um pequeno prédio de apartamentos.
De fato, a maioria dos asteróides não era nada além de rocha, e rocha de tipos perfeitamente familiares na Terra e na Lua - basaltos e granitos, o material de construção de alta qualidade especificado pelo arquiteto original dos Alpes e da cordilheira do Himalaia.
Outros eram em grande parte compostos de metal - ferro, cobalto e elementos mais raros, inclusive ouro e platina. Alguns asteróides de pequenas dimensões valeriam trilhões de dólares nos tempos em que a transmutação comercial ainda não havia tornado o ouro um pouco mais barato que metais muito mais úteis, como o cobre e o chumbo.
Os asteróides carbonados ainda encerravam muitos mistérios. Havia indícios - embora as provas ainda fossem motivo de acalorada discussão - de que alguns deles foram um dia parte de um corpo muito maior, talvez até de um mundo suficientemente grande e quente para possuir oceanos. E nesse caso, por que não vida? Vários paleontólogos haviam prejudicado suas reputações ao afirmar terem descoberto fósseis em asteróides. A maioria dos colegas os ridicularizou, mas ainda não se chegara a nenhuma decisão conclusiva.
Sempre que um asteróide interessante entrava no raio de alcance da nave, os cientistas da Goliath costumavam polarizar-se em dois grupos embora nunca chegassem às vias de fato, a disposição dos lugares às refeições tendiam a sofrer sutis alterações. Os astrogeólogos queriam mover a nave - e todo o seu equipamento laboratorial - para um encontro com o alvo, de forma a poderem examiná-Io à vontade. Os cosmólogos opunham-se a isso de forma radical; teriam de modificar suas diretrizes cuidadosamente calculadas e toda a sua interferometria seria arruinada por reles pedaços de rocha.
Era um bom argumento e os geólogos acabavam por ceder, com mais ou menos boa vontade. Os menores dentre esses asteróides passageiros podiam ser visitados por sondas-robô capazes de recolher amostras e executar a maior parte das operações de reconhecimento e levantamento topográfico. Era melhor que nada, mas se o asteróide estivesse a mais de um milhão de quilômetros, a defasagem na transmissão Goliath - sonda - Goliath tornava-se insuportável. "O que você acharia de dar uma martelada”, queixara-se um geólogo, "e ter de esperar um minuto para descobrir que errou o alvo?”
Para os principais troianos, porém, como Patroclus e Achilles, o módulo de exploração da nave era posto à disposição dos ansiosos cientistas. Pouco maior que um carro grande de passeio, tinha autonomia de suporte de vida básico de uma semana para piloto e três passageiros; permitia fazer um exame bastante detalhado do pequeno mundo virgem e transportar de volta algumas centenas de quilogramas de amostras bem documentadas.
O capitão Singh tinha de organizar expedições como essas a cada dois ou três meses. Era um prazer, pois elas conferiam alguma diversidade à vida a bordo. E era evidente que os cientistas que demonstravam maior desprezo por cavoucar rochas assistiam aos vídeos com a mesma avidez dos outros.
As desculpas eram bem variadas.
- Isso me ajuda a resgatar um pouco do que meus tetravós sentiram assistindo ao primeiro passo de Armstrong e Aldrin na Lua.
- Tira pelo menos três cabeças de rocha de circulação por uma sema na. Mais espaço durante as refeições também.
- Não repita isso para ninguém, capitão, mas... se já houve visitantes no Sistema Solar, é aqui que eles podem ter deixado algum vestígio. Ou quem sabe até uma mensagem para que encontrássemos quando estivéssemos avançados o bastante para entendê-Ia.
Às vezes, observando seus colegas pairando por sobre estranhas paisagens em miniatura que ninguém jamais visitara antes - e provavelmente jamais visitaria depois -, Singh sentia um impulso de fugir um pouco da nave e desfrutar da liberdade do espaço. Não seria difícil encontrar uma desculpa para isso, e seu imediato ficaria exultante em assumir um pouco. Mas seria uma sobrecarga - um estorvo, até - para as limitadas instalações do módulo e não podia justificar essa indulgência.
Parecia um desperdício, no entanto, passar tantos anos no centro daquele autêntico mar dos Sargaços de mundos à deriva e jamais pôr os pés em nenhum.
Teria de fazer algo a respeito, um dia.
Alarme
Foi como se os sentinelas das muralhas de Tróia vislumbrassem os primeiros reflexos do Sol em lanças que se aproximavam à distância. De um momento para o outro, tudo se modificou.
Mais de um ano separava a Terra do perigo, no entanto. A ameaça era terrível, mas não era caso para crise imediata: ainda havia a esperança de algum erro nas primeiras - e apressadas - observações. Como tantos outros em eras passadas, talvez esse novo asteróide não acertasse a Terra, afinal de contas.
David acordou Singh às 5h30 TU, com as notícias. Era a primeira vez que interrompia o sono do comandante.
- Desculpe, capitão, mas veio classificada como "prioridade absoluta”. Nunca vi nada igual.
Singh também não, e no mesmo instante estava desperto e alerta. Lendo a mensagem e avaliando as órbitas da Terra e do asteróide delineadas no espaçofax, sentiu uma garra gélida fechar-se sobre seu coração. Desejava com todas as suas forças que houvesse algum engano mas, desde o primeiro momento, nunca duvidou do pior.
Então, paradoxalmente, ficou cheio de orgulho. Era para isso que a Goliath fora construída, décadas atrás. Era seu momento de destino. Na Sinus Iridum, quando era pouco mais que um garoto, enfrentara - e superara - um desafio. Defrontava-se, agora, com um incalculavelmente maior.
Ele nascera para isso.
Não é bom receber más notícias de estômago vazio. O capitão Singh esperou até que todos a bordo tomassem seu café da manhã para só então informá-Ios do conteúdo do espaçofax da Terra e de sua continuação, que chegara uma hora mais tarde.
- Todos os programas e todos os projetos de pesquisa estão evidentemente cancelados. A equipe científica retomará a Marte no próximo ônibus espacial, enquanto preparamos a Goliath para aquela que será a missão mais importante que ela ou qualquer outra nave já recebeu.
Detalhes adicionais estão ainda sendo definidos e poderão ser alterados mais tarde. Vocês estão cientes, tenho certeza, de que anos atrás foi projetado um propulsor de massa capaz de desviar um asteróide de tamanho razoável. Até mesmo um nome ele ganhou: Atlas. Tão logo sejam conhecidos todos os parâmetros da missão, esses planos serão finalizados e os Estaleiros Deimos começarão a montagem a toda velocidade. Felizmente, todos os componentes necessários são itens padrão: tanques de propelentes, propulsores, sistemas de controle e a estrutura para uni-Ios. Bastam alguns dias para os nanomontadores construírem o Atlas.
Ele terá então de ser unido à Goliath, por isso temos de estar em Deimos o mais depressa possível. Isso dará a alguns de nós a oportunidade de visitar a família, em Marte. Como diz um antigo provérbio terrestre, 'maus ventos não trazem o mal a todos’.
Levaremos a quantidade de propelente exata para transportar o Atlas vazio até Júpiter e reabasteceremos nos tanques orbitais de Europa. É então que começa a verdadeira missão: o encontro com o asteróide. Quando isso acontecer, faltarão apenas sete meses para o impacto com a Terra - se houver impacto.
"Teremos de analisar a topografia do asteróide, demarcar uma base adequada, instalar o Atlas, conferir todos os sistemas... e dar início à propulsão. Seu efeito em um corpo de um bilhão de toneladas de massa será pequeno demais para ser medido, é claro, mas um desvio de poucos centímetros antes que o asteróide ultrapasse a órbita de Marte será o suficiente para fazê-Io passar a centenas de quilômetros da Terra...”
Singh fez uma pausa, um tanto embaraçado. Tudo isso era elementar para a tripulação, mas novidade para os geólogos e astroquímicos. Tinha sérias dúvidas de que soubessem as três leis de Kepler, e jamais esperaria que soubessem calcular uma órbita.
- Não sou nada bom em discursos de encorajamento e não creio que isso seja necessário. Todos sabem o que deve ser feito e não há tempo a perder. Mesmo alguns poucos dias perdidos agora podem representar a diferença entre um sobrevôo inofensivo e o fim da história... ao menos na Terra.
Mais uma coisa. Nomes são muito importantes... basta ver todos esses troianos a nossa volta. Acabamos de receber a designação oficial da UAI. Algum pesquisador andou folheando a mitologia indiana e deparou-se com a deusa da morte e da destruição.
"Seu nome é Kali.”
Licença
- Como os marcianos eram de verdade, papai?
Robert Singh olhou com ternura para sua filha de dez anos de idade - isso oficialmente, pois o planeta em que vivia havia circundado o Sol apenas cinco vezes desde que ela nascera. Seria demais exigir que uma criança esperasse 687 dias entre cada aniversário, e essa relíquia do calendário terrestre acabou sendo mantida. Quando fosse finalmente abandonada, Marte teria rompido mais um elo com seu mundo materno.
- Sabia que iria perguntar - respondeu ele - e andei pesquisando. Ouça: “Aqueles que nunca viram um marciano vivo dificilmente poderão imaginar a estranha repugnância de sua aparência. A boca peculiar, em forma de 'V', com o lábio superior pontiagudo, a ausência de sobrancelhas e de um queixo sob o lábio inferior cuneiforme, o tremor incessante da boca, o grupo gorgôneo...”
- O que é gorgôneo?
- "...O grupo gorgôneo de tentáculos...”
- Urgh!
- "... E sobretudo a intensidade extraordinária dos olhos enormes, a um só tempo vital, desumana, deformada e monstruosa. Havia algo de fungiforme na pele castanho-oleaginosa, algo de indizivelmente asqueroso na deliberação desajeitada de seus tediosos movimentos." Bem, Mirelle, agora você já sabe.
- Mas o que é isso que você está lendo? O guia da Disney Marte! Quando podemos ir?
- Isso depende da lição de casa de uma certa senhorita.
- Ah, papai, não é justo! Não tive tempo desde que você chegou!
Por um instante Singh foi tomado por um sentimento de culpa. Sua tendência, sempre que conseguia escapar do estaleiro onde o Atlas estava sendo montado e testado, era monopolizar a menina e seu irmãozinho. Suas esperanças de visitas particulares quando descesse a Marte caíram logo por terra quando viu a imprensa esperando por ele em Port Lowell. Ainda não se havia dado conta de que era a segunda pessoa mais famosa do planeta.
Mais famoso que ele, claro, era o dr. Millar. Nenhum outro evento na história da humanidade mudara tantas vidas - e talvez ainda mudasse muito mais - quanto sua descoberta de Kali. Embora já tivessem conversado uma meia dúzia de vezes, por meios eletrônicos, os dois homens não haviam se encontrado pessoalmente. Era algo que Singh procurava evitar: não tinham nada de novo para dizer um ao outro, e era óbvio que o astrônomo amador não sabia lidar com sua celebridade inesperada. Tornara-se arrogante, com ares de superioridade, e sempre se referia a Kali como. 'meu asteróide'. Bem, mais cedo ou mais tarde seus concidadãos marcianos iriam colocá-Io de volta em seu devido lugar; eles eram muito bons nisso.
Disney Marte era minúsculo, comparado a seus famosos precursores terrestres, mas uma vez lá dentro não havia como saber. Dioramas e projeções holográficas mostravam Marte como um dia se sonhou ou acreditou que pudesse ser, e como se esperava que fosse um dia. Alguns críticos queixavam-se de que uma sessão de brainman poderia criar exatamente a mesma experiência, mas não era verdade. Bastava observar uma filha de Marte apalpando um pedaço de genuína rocha terrestre para perceber a diferença.
Pequeno demais para o passeio, Martin foi confiado aos cuidados atentos do mais recente modelo do robô doméstico Dorcas. Mesmo Mirelle não tinha ainda idade suficiente para entender tudo o que estava vendo, mas os pais sabiam que jamais esqueceria. Deu um gritinho agudo de medo e prazer quando os horrores tentaculares de H.G. Wells emergiram de seus cilindros e assistiu estupefata seus trípodes monstruosos tatearem pelas ruas desertas de uma cidade estranha, alienígena... a Londres vitoriana.
Adorou a bela Dejah Thoris, princesa de Helium, principalmente quando ela disse, com doçura, "Bem vinda a Barsoom, Mirelle". John Carter, no entanto, foi praticamente eliminado do roteiro. Esse tipo de personagem sanguinário definitivamente não era o tipo de imigrante que a Câmara Marciana de Comércio pretendia encorajar. E espadas, então! Ora, se não fossem manuseadas com extremo cuidado, essas peças de metal moldadas com irresponsabilidade criminosa poderiam causar sérios ferimentos a qualquer pessoa a seu alcance...
Mirelle fascinava-se também com as estranhas feras que Burroughs dispusera em profusão pela paisagem marciana. Ficou intrigada, no entanto, com um detalhe de exobiologia que Edgar Rice omitira com certa leviandade.
- Mãe, eu também nasci de um ovo?
Charmayne riu da pergunta.
- Sim e não - respondeu. - Com certeza não como o de Dejah. Vou pedir à biblioteca para explicar a diferença, quando chegarmos em casa.
- E eles tinham mesmo máquinas de fazer ar, pra gente respirar lá fora?
- Não, mas o velho Burroughs teve a idéia certa. É exatamente o que estamos tentando fazer. Você vai ver quando passarmos pela seção Bradbury.
E do lado das colinas surgiu uma coisa estranha.
Era uma máquina parecida com um inseto verde-jade, um louva-a-deus, andando delicadamente no ar fresco, com incontáveis diamantes verdes brilhando indistintamente no seu corpo e jóias vermelhas que refulgiam como olhos multifacetados. Suas seis pernas caíram sobre a velha estrada com o som esparso de chuva já no fim e, em cima da máquina, tendo ouro fundido como olhos, um marciano olhava para Tomás como se olhasse para o fundo de um poço.
Mirelle estava fascinada, mas também intrigada pelo encontro noturno entre terrestre e marciano, fantasmas um do outro. Um dia entenderia ser o confrontar fugaz de duas eras, através de um abismo de tempo.
Adorou os graciosos navios de areia deslizando pelos desertos, os pássaros de fogo luzindo nas areias frescas, as aranhas douradas atirando delgados filamentos de teia, os barcos derivando pelos largos canais, ao sabor da correnteza, como flores de bronze. E chorou quando as cidades de cristal desmoronaram ante os invasores da Terra.
"Do Marte como nunca foi... ao Marte como será", dizia o letreiro à entrada da última galeria. O capitão Singh não pôde evitar um sorriso frente àquele 'será' taxativo, tipicamente marciano em sua auto-confiança. Na velha e fatigada Terra, a frase terminaria com 'poderá ser'.
A última apresentação era quase antiquada em sua simplicidade, e em nada menos eficaz. Sentaram-se na penumbra atrás de uma janela panorâmica, olhando para um mar de névoa enquanto o Sol distante se erguia atrás deles.
"Vale Mariner, o Labirinto da Noite, como é hoje", disse uma voz macia contra um suave fundo musical.
O sol nascente dissolveu o nevoeiro, poupando apenas um tênue eflúvio. Ali estava a vasta amplidão de cânions e penhascos do vale mais impressionante do Sistema Solar, definido e claro até o horizonte, sem a suavização pela distância que emprestava uma sensação de perspectiva a vistas similares do muito menor Grand Canyon, na América ocidental.
Era uma beleza austera, com seus vermelhos, ocres e carmins - se não hostil à vida, ao menos indiferente a ela. Em vão os olhos buscavam o menor sinal de azul ou verde.
O Sol arremetia veloz pelo céu, as sombras fluíam como ondas de tinta por entre as muralhas do cânion. Caiu a noite; as estrelas faiscaram, breves, banidas por outra aurora.
Nada havia de diferente... ou havia? As linhas distantes do horizonte pareciam menos definidas?
Mais um 'dia’, e já não havia lugar para dúvidas. Os contornos ásperos do terreno começavam a suavizar-se; penhascos e paredões distantes já não pareciam tão nítidos. Marte estava mudando...
Escoaram-se dias, semanas, meses - décadas, talvez. As mudanças agora eram dramáticas.
O leve matiz salmão do céu dera lugar a um azul pálido, e afinal formavam-se nuvens de verdade - não nevoeiros sem densidade que desapareciam com a aurora. E no fundo do cânion, onde só existia rocha estéril, espalhavam-se manchas verdes. Ainda não havia árvores, mas líquens e musgo preparavam o caminho.
Súbito, magicamente, havia água, pequenas lagoas serenas existindo sob o sol, sem se tornarem vapor instantaneamente, como no Marte de hoje. Desenrolava-se a visão do futuro e as lagoas tornavam-se lagos, e fundiam-se em um rio. Agora árvores brotavam abruptamente ao longo das margens. Aos olhos de Robert Singh, acostumados à realidade terrestre, os troncos pareciam delgados demais para alcançar sequer 12 metros de altura. Na realidade - se é possível falar em realidade neste caso - provavelmente superariam as mais altas sequóias: cem metros no mínimo, àquela baixa gravidade.
Agora o ponto de vista era outro. Voavam rumo ao leste, ao longo do vale Mariner, passando pelo abismo da Aurora, e então para o sul, para a grande planície de Hellas, as terras baixas de Marte. 'Terras', não eram maIs.
Ao baixar os olhos para observar o oceano de sonho de uma era futura, as memórias invadiram a mente de Robert Singh com tal força que por um momento esteve próximo de perder o controle sobre si mesmo. O oceano Hellas desaparecera e ele estava de volta à Terra, caminhando com o pequeno Toby por aquela praia africana orlada de palmeiras, Tigrette acompanhando de perto seus passos. Aquilo realmente acontecera com ele um dia ou seria um passado falso, memória emprestada de outra pessoa?
Não era uma dúvida real, é claro, no entanto o flash-back foi tão vívido que a imagem ficou queimando em sua mente. Mas a tristeza logo deu lugar a uma espécie de satisfação melancólica. Não tinha nada de que se arrepender - Freyda e Toby estavam bem, felizes (já era hora de ligar novamente para os dois!), com outros familiares para lhes dar atenção. Lamentava, contudo, que Mirelle e Martin não pudessem experimentar a alegria de ter amigos não-humanos como Tigrette. Animais de estimação eram um luxo que Marte ainda não se podia permitir.
A viagem pelo futuro terminou com um vislumbre do planeta Marte, do espaço - quantos séculos ou milênios depois? -, seus pólos não mais coroados por calotas de dióxido de carbono congelado, depois que a luz do Sol emitida pelos espelhos orbitais de centenas de quilômetros de extensão pusera fim a seu inverno de eras. A imagem desvaneceu-se, substituída pelas palavras "Primavera, 2500". Será mesmo possível? Espero que sim - pensou Robert Singh ao saírem, em silêncio -, mas nunca saberei. Até mesmo Mirelle mostrava um retraimento incomum, como se tentasse deslindar o real do imaginário no que acabara de ver.
Ao atravessarem a câmara de escape para o marcicarro que os trouxera do hotel, uma última surpresa os esperava. Ouviu-se um distante ribombar de trovão - um som que na realidade apenas Robert Singh já ouvira -, e Mirelle soltou um gritinho quando as gotículas de água começaram a cair sobre eles, borrifadas por um aspersor instalado no teto.
As últimas chuvas em Marte ocorreram há três bilhões de anos... e não trouxeram vida às terras onde caíram.
"Da próxima vez será diferente. Até logo e obrigado por terem vindo.”
Robert Singh despertou nas primeiras horas do dia de sua partida e deixou-se ficar no escuro, tentando relembrar os melhores momentos de sua visita. Alguns - como a ternura de algumas horas antes - ele gravara para rever mais tarde; eles lhe dariam força nos longos meses à frente.
A alteração no ritmo de sua respiração deve ter perturbado Charmayne. Ela achegou-se a ele e pousou o braço sobre seu peito. Não pela primeira vez, Singh sorriu ao se lembrar de como esse gesto podia ser desconfortável em seu planeta natal. Por vários minutos nenhum deles falou.
- Lembra daquela história de Bradbury a que assistimos - disse então Charmayne, sonolenta -, aquela em que os bárbaros da Terra usam as lindas cidades de cristal para praticar tiro ao alvo?
- Claro. "...E a Lua continua tão brilhante". Não pude deixar de notar que ele ambientou a história em 2001. Um pouco otimista, não?
- Ah, pelo menos ele viveu o bastante para ver o homem chegar até aqui! Mas fiquei pensando, depois que saímos da Disney Marte... Será que não estamos fazendo a mesma coisa, destruindo o que encontramos?
- Nunca pensei que ouviria uma legítima filha de Marte dizer uma coisa dessas. Mas não estamos simplesmente destruindo. Estamos criando... Meu Deus!
- O que foi?
- Isso me lembra uma coisa. Kali. Não é apenas a deusa da destruição. Ela também cria um novo mundo, dos destroços do velho.
Um longo silêncio.
- É exatamente o que os renascidos dizem o tempo todo. Sabia que eles montaram uma missão bem aqui em Port Lowell?
- Bem, são apenas malucos inofensivos, não acho que possam perturbar ninguém... Tenha bons sonhos, querida. E da próxima vez que formos à Disney Marte levaremos Martin, prometo.
Estação Europa
Robert Singh não tinha muito a fazer no rápido percurso de Deimos/Marte a Europa/Júpiter, exceto estudar os planos de ação que a Spaceguard transmitia sem cessar, com constantes alterações, e travar contato com os novos membros de sua tripulação.
Torin Fletcher, engenheiro sênior nos Estaleiros Deimos, estaria encarregado de supervisionar as operações de abastecimento quando o conjunto Goliath/Atlas alcançasse os tanques orbitais de Europa. As dezenas de milhares de toneladas de hidrogênio estariam em forma de ergol em neve - uma mistura de líquido e sólido, mais densa que o líquido puro -, portanto seria necessário menos espaço de armazenagem. Ainda assim, o volume total seria mais de duas vezes o do malfadado Hindenburg, cujo destino flamejante encerrou a breve era do mais-leve-que-o-ar... ao menos na Terra. Pequenos dirigíveis de carga eram comuns em Marte, e provavam-se úteis para pesquisa na atmosfera superior de Vênus.
Fletcher era um entusiasta dos aeróstatos, e fazia o possível para converter Singh.
- Quando iniciarmos realmente a exploração de Júpiter - dissera ele, uma vez -, em vez de ficar largando sondas de vez em quando, aí sim o dirigível terá de novo o lugar que merece. É claro que, sendo a atmosfera principalmente de H2, terá de ser uma nave de hidrôgenio aquecido. Não há problema! Imagine só... navegar em torno da Grande Mancha Vermelha!
- Não, obrigado - replicou Singh. - Não a dez gravidades de Marte. - Terrestres agüentariam deitados. Ou em tanques de água.
- Mas qual a vantagem? Não há nenhuma superfície sólida, nada onde aterrissar. Robôs podem fazer tudo o que queremos, sem arriscar humanos.
- Exatamente o tipo de argumentação que se usava no início da Era Espacial, e olhe onde estamos agora! Homens e mulheres irão a Júpiter porque... ah, porque está lá. Mas se não gosta de ]úpiter, que tal Saturno? Quase a mesma gravidade da Terra, e imagine s6 a paisagem! Excursionar pelas altas latitudes, de onde se podem ver os anéis. Um dia será uma das principais atrações turísticas.
- Mais barato se plugar em um brainman. Toda a diversão e nenhum risco.
Fletcher riu ao ouvir Singh citar o famoso slogan.
- Você não acredita mesmo nisso...
Ele tinha razão, mas Singh não tinha intenção alguma de admitir. O fator de risco era o que distinguia a realidade das imitações, por perfeitas que fossem. E a disposição de aceitar riscos - procurá-los, até, se fossem razoáveis - era o que dava sabor à vida, o que fazia com que ela valesse a pena.
Dos passageiros que ficariam em Europa, uma estava envolvida com uma tecnologia que parecia ainda mais deslocada ali que a aeronáutica: submersíveis para grandes profundidades. Em todo o Sistema Solar, Europa era o único mundo além da Terra a possuir oceanos, encerrados sob uma crosta de gelo que os protegia do espaço. O calor produzido pela enorme força gravitacional de Júpiter - a mesma força que acionava os vulcões do vizinho Io - impedia que o oceano congelasse por inteiro.
Onde havia água em estado líquido, havia esperança de vida. A dra. Rani Wijeratne passara 20 anos explorando os abismos de Europa, pessoalmente ou utilizando sondas-robô. Embora nada tivesse encontrado, não desanimara.
- Está lá, tenho certeza - dizia ela. - Só espero poder encontrar antes que algum micróbio terrestre se esgueire do nosso lixo e tome conta de tudo.
A dra. Wijeratne era muito otimista também quanto às perspectivas de vida a uma distância ainda maior do Sol - na grande nuvem de cometas muito além da 6rbita de Netuno.
- Ali há água, carbono, nitrogênio e todos os outros elementos químicos - gostava de argumentar. - Em quantidades milhões de vezes maiores que nos planetas. E deve haver radioatividade, o que significa calor e uma taxa acelerada de mutação. Bem no interior de cada cometa podem estar as condições ideais para a origem da vida.
Era uma pena que a doutora não continuasse na nave até Kali, mas tivesse de desembarcar em Europa. Suas discussões com o professor sir Colin Draker, FRS, amigáveis porém calorosas, proporcionavam muita diversão aos outros passageiros. O famoso astrogeólogo era o único cientista da equipe original da Goliath a permanecer a bordo. Era ilustre o bastante para suplantar todas as ordens de mandá-Io para casa.
- Sei mais sobre asteróides que qualquer outra pessoa viva - argumentara, com incontestável exatidão -, e Kali é o asteróide mais importante da história. Quero pôr minhas mãos nele, um presente a mim mesmo por meu centésimo aniversário. E pelo progresso da ciência, é claro.
Quanto às formas de vida cometárias aventadas pela dra. Wijeratne, não hesitava.
- Tolice! Hoyle e Wickremasinghe sugeriram isso há mais de um século, mas ninguém jamais levou a sério.
- Então é hora de começar. E já que os asteróides, ou pelo menos alguns, são cometas mortos, já lhe ocorreu procurar fósseis? Pode valer a pena.
- Para ser franco, Rani, sei de maneiras muito melhores para usar meu tempo.
- Geólogos! Às vezes acho que são vocês mesmos os fósseis. Está lembrado de como riram do pobre Wegener e de sua teoria da deriva dos continentes? Depois o transformaram em santo padroeiro, quando estava bem mortinho.
E assim por diante, até Europa.
Europa, o menor dos satélites galileanos de Júpiter, era o único mundo no Sistema Solar que podia ser confundido com a Terra - se visto bem de perto.
Olhando para aquelas intermináveis extensões de banquisas logo abaixo, era fácil para o capitão Singh imaginar que estava orbitando seu planeta natal.
A ilusão desvanecia-se assim que voltava o olhar para Júpiter. Minguando e crescendo entre suas fases a cada três dias e meio, o gigantesco planeta dominava o céu mesmo quando reduzido a um tênue e estreitíssimo crescente. O arco de luz destacava um imenso disco negro com diâmetro 20 vezes maior que o da Lua nos céus da Terra, escondendo as estrelas e, naquele momento, também o Sol distante. E era raro que o lado noturno de Júpiter se mostrasse completamente escuro: tempestades elétricas maiores que continentes terrestres fulguravam alternadamente aqui e ali, como que em uma troca de ataques nucleares - e com energia comparável. Ornavam os pólos anéis de luz auroreal, e gêiseres de fluorescência jorravam das profundezas inexploradas - e talvez para sempre inexploráveis - do planeta.
E ao aproximar-se de sua fase cheia, o planeta conseguia ser ainda mais impressionante. Os intrincados floreios e volutas dos cinturões de nuvens, em sua eterna marcha paralela ao equador, podiam então ser vistos em toda a sua glória multicolorida. Junto a eles deslocavam-se pálidas ilhas ovais, como amebas de milhares de quilômetros de extensão. Às vezes pareciam investir pelas formações nebulosas com tanta determinação que era fácil acreditar que fossem' gigantescas criaturas vivas. Mais de um astroépico fantasioso fora baseado exatamente nessa hipótese.
Mas era a Grande Mancha Vermelha que roubava o show. Embora aumentasse e diminuísse com o passar dos séculos, por vezes quase desaparecendo por completo, estava agora mais proeminente do que jamais estivera, desde sua descoberta por Cassini, em 1665. Quando a vertiginosa rotação de dez horas de Júpiter a empurrava pela superfície do planeta, era como se um gigantesco olho injetado lançasse ao espaço um olhar malévolo.
Não era de se admirar que os trabalhadores em Europa tivessem o turno de serviço mais curto e a maior taxa de esgotamento de todas as equipes estacionadas em planetas. Houve alguma melhora quando as instalações foram transferidas para a região central do lado oculto, de onde Júpiter nunca podia ser avistado. Mesmo ali, entretanto, havia registros psicológicos de pacientes que acreditavam que aquele olho ciclópico os observava mesmo através de três mil quilômetros de rocha sólida...
Vigiava-os, talvez, enquanto roubavam o tesouro de Europa. O satélite era a única fonte importante de água - de hidrogênio, portanto - até a órbita de Saturno. Havia quantidades ainda maiores nas nuvens cometárias além da órbita de Plutão, mas sua exploração ainda não era economicamente viável. Talvez um dia. Enquanto isso, Europa fornecia a maior parte do propelente usado em todo o tráfego pelo Sistema Solar.
Ademais, o hidrogênio de Europa era superior ao da Terra. Graças a eras de bombardeamento dos campos de radiação ao redor de Júpiter, continha uma porcentagem muito maior do isótopo deutério, mais pesado. Bastava um pouco mais de enriquecimento para se obter a mistura exata necessária para alimentar um propulsor a fusão.
Não era muito freqüente, mas às vezes a natureza cooperava com a humanidade.
Ficava difícil lembrar como era a vida antes de Kali. O perigo real ainda demoraria meses para chegar, mas cada pensamento e ação estava voltado para ele. E pensar que aceitei este emprego - Robert Singh lembrava a si mesmo às vezes, com ironia - porque queria um serviço tranqüilo antes de me aposentar no posto de capitão!
Não era freqüente que tivesse tempo para esse tipo de introspecção, pois a rotina uma vez regular da nave fora substituída pelo que seu imediato chamava de 'crises planejadas'. Mesmo assim, em vista da complexidade da Operação Atlas, tudo se desenrolava de forma razoavelmente tranqüila. Não houve atrasos significativos, e o trabalho estava com uma defasagem de apenas dois dias em relação a um prazo que parecera impossível de cumprir.
Assim que o Goliath/Atlas fixou-se em órbita estacionária, o moroso processo de abastecer os tanques com 200 mil toneladas de ergol em neve de hidrogênio-deutério a 13 graus acima do zero absoluto começou sem perda de tempo. As usinas eletrolíticas de Europa podiam produzir essa quantidade em uma semana, mas alçá-Ia à nave era outra coisa. Por azar, duas naves-tanques precisaram de grandes reparos que não podiam ser feitos ali, e haviam sido rebocadas de volta a Deimos.
Portanto, se tudo corresse bem seria necessário quase um mês para encher aqueles tanques. Nesse tempo, Kali chegaria cem milhões de quilômetros mais perto da Terra.
O Propulsor
Muito pouco da Goliath original era visível agora. Todo um lado estava oculto sob os tanques e módulos de propulsão do Atlas, uma massa compacta de cubos de quase 200 metros de extensão. E o restante da nave também estava quase completamente escondido por suas próprias reservas . adicionais de propelente. Não vamos ter muita visão da paisagem, pensou Singh, até podermos nos livrar de alguns módulos vazios. E nem muita aceleração, apesar das melhorias nos motores, com toda essa massa extra.
Difícil acreditar que o destino da humanidade pudesse depender daquele ajuntamento deselegante de maquinaria. Fora projetado e montado com um único objetivo em mente: instalar um poderoso propulsor de massa em Kali, o mais rápido possível. A Goliath era apenas o caminhão de entregas, o cargueiro interplanetário; o Atlas era a carga inestimável que devia alcançar seu destino a tempo e em boas condições.
Alcançar esse objetivo envolvia um número extraordinário de difíceis opções. Embora fosse essencial alcançar Kali com o mínimo atraso, só era possível conseguir mais velocidade à custa da carga útil. Se a Goliath consumisse hidrogênio demais para chegar ao asteróide, podia não sobrar o suficiente para desviá-Io de sua órbita desastrosa, e todo o esforço teria sido em vão.
Para reduzir o tempo da missão sem desperdício de propelente, levou-se em consideração o clássico 'puxão gravitacional' utilizado pela primeira nave espacial a explorar o Sistema Solar exterior. A Goliach podia mergulhar em direção a Júpiter e roubar na passagem um pouco da energia cinética do planeta gigante, mas esse plano teve de ser abandonado, não sem relutância, devido aos riscos envolvidos. Havia detritos demais orbitando Júpiter. Os rarefeitos anéis de partículas estendiam-se até os limites superiores da atmosfera, e mesmo o menor dos fragmentos poderia furar as finas paredes dos tanques de hidrogênio. Seria a maior das ironias se uma minúscula microlua joviana frustrasse todo o trabalho.
Ao contrário dos lançamentos a partir de superfícies planetárias, não havia nada de dramático na arrancada de um traslado orbital. Não havia som algum, é óbvio; sequer uma indicação visível das espantosas energias envolvidas. O jato de plasma que impelia a Goliath era quente demais para emitir as fracas radiações que o olho humano é capaz de detectar; sua assinatura sobre as estrelas foi traçada no mais extremo ultravioleta. Para os observadores no complexo orbital de Europa, a única indicação de que a Goliath começara a se mover era a pequena nuvem de detritos que deixava para trás: fragmentos de blindagem térmica, material de embalagem descartado, pedaços de fios e fitas - todo o lixo esquecido em uma construção de grande porte mesmo pelos trabalhadores mais cuidadosos. Não era um início dos mais grandiosos para uma missão tão nobre, mas a Goliath e seu passageiro Atlas estavam a caminho, levando as esperanças e os temores de toda a humanidade.
Um dia mais tarde, com aceleração de um décimo de gravidade, a Goliath passava lentamente pelo segundo maior satélite de Júpiter, o castigado Calisto, e passou-se quase uma semana antes que finalmente conseguisse escapar do território joviano, cruzando as órbitas mais afastadas e erráticas dos minúsculos gêmeos Pasiphae e Sinope. Mas movia-se então com tal rapidez que nem mesmo o Sol poderia trazê-Ia de volta. Se não fosse capaz de alterar novamente sua velocidade, abandonaria de uma vez o Sistema Solar, começando uma jornada sem fim por entre as estrelas. Porém, nenhum comandante de espaçonave poderia ter esperado uma viagem mais tranqüila. A Goliath e o Atlas chegaram a Kali 12 segundos adiantados.
- Já visitei dezenas de asteróides - .disse sir Colin Draker a sua platéia invisível, distante meio bilhão de quilômetros -, e mesmo agora não sou capaz de avaliar seu tamanho apenas olhando para eles. Conheço as dimensões exatas de Kali, mas seria fácil deixar-me levar pela ilusão de que poderia segurá-Io nos braços.
O problema é que não há nenhuma pista de escala, nada para orientar a visão. Como podem ver, até onde a vista alcança está coberto de rasas crateras de impacto. Aquela grande no lado esquerdo, ao centro, tem 15 metros de diâmetro, mas parece idêntica às menores, ao redor. As menores que podem ser vistas têm apenas alguns centímetros.
Poderia por favor aproximar a imagem, David? Obrigado. Agora estamos nos aproximando, mas não há nenhuma diferença significativa na imagem. As minicrateras que observamos agora são iguais às maiores. Pare o zoom agora, David. Mesmo se usássemos uma lente de aumento, a imagem pareceria a mesma: crateras rasas de todos os tamanhos possíveis, as menores provocadas por partículas de poeira.
Afaste, agora, para mostrar Kali por inteiro. Obrigado. Como podem ver, praticamente não há cor, ao menos para o olho humano. É quase negro. Vocês poderiam supor que se trata de um bloco de carvão, e não estariam muito longe da verdade. As camadas externas têm 90 por cento de carbono em sua composição.
Abaixo disso, no entanto, ele é diferente: ferro, níquel, silicatos, além de água, metano e dióxido de carbono em estado sólido. Sua história é obviamente muito complicada, e tenho quase certeza de que é um agregado de dois corpos de composições bastante diversas que colidiram sem muita violência e ficaram grudados um no outro.
Vocês devem ter notado que outras crateras se tornaram visíveis enquanto eu falava. O dia de Kali é bem curto, três horas e vinte e cinco minutos, e essa rotação torna nosso trabalho ainda mais complicado...
Podemos ver o outro lado, David? Focalize a coordenada K5. Isso... Observem a mudança na paisagem - se é que isso pode ser chamado de paisagem. Estes sulcos devem ter sido causados por outra colisão, desta vez muito violenta. Kali deve ter passado por um setor bem movimentado do Sistema Solar, há dez bilhões de anos. Vejam aquele vale, acima e à direita: nós o batizamos Grand Canyon. Não chega a dez metros de profundidade, mas sem saber a escala não é difícil imaginar-se no Colorado...
Temos aqui então um mundinho muito maltratado - em forma de haltere ou de amendoim, com massa de dois bilhões de toneladas - e que por azar move-se em órbita retrógrada, ou seja, na direção oposta a todos os planetas. Nada de muito incomum, pois acontece o mesmo com o Halley, mas isso quer dizer que irá se chocar de frente com a Terra... na pior das hipóteses, é claro. Portanto, temos que desviá-lo. Caso contrário, não apenas nossa civilização mas também nossa espécie podem ser varridas da face do planeta.
O propulsor de massa Atlas já foi separado da Goliath (uma panorâmica para mostrar o Atlas, David, por favor) e agora estamos ocupados com a delicada tarefa de instalá-Io em Kali. Felizmente, a gravidade do planeta é tão pequena - cerca de um décimo-milésimo da gravidade da Terra - que o Atlas pesa apenas algumas toneladas. Mas não se deixem enganar. Ele continua com toda a sua massa e seu momento. Tem portanto que ser movido muito, muito devagar e com muito, muito cuidado... Pode ser difícil de acreditar, mas as principais ferramentas para o trabalho são antiquados guindastes e polias, fixos em Kali.
Em poucas horas o Atlas estará pronto para começar seu trabalho. É claro que seu efeito em Kali será pequeno demais para ser medido: uma fração de microgravidade. Se não me engano foi um jornalista que disse que seria como um camundongo empurrando um elefante. É verdade, mas o Atlas pode empurrar por dias e dias, e só temos de mover Kali alguns centímetros a esta distância para que ele passe a milhares de quilômetros da Terra.
"E neste caso, mesmo uns cem quilômetros valeriam por um ano-luz.”
Ensaio Geral
Um sikh careca! Como meus hirsuros ancestrais, na antiga índia, iriam reagir a uma apostasia dessas? E se soubessem que fiz uma depilação permanente no couro cabeludo... teria sorte de escapar vivo.
Esse pensamento cruzava a mente de Robert Singh sempre que levava à cabeça o barrete perfeitamente ajustável, prendia as correias e certificava-se de que os protetores oculares vedavam toda a luz. Sentava-se então em total escuridão e silêncio, e aguardava até que o seqüenciador automático iniciasse a operação.
Primeiro surgia um som muito baixo, tão grave que ele quase podia ouvir vibração por vibração. Ainda no limite do detectável, subia oitava por oitava até desaparecer nos extremos da audição. Na verdade, além deles, pois embora Singh nunca houvesse se preocupado em conferir, tinha quase certeza de que o mecanismo de seus ouvidos jamais responderia às freqüências que agora fluíam diretamente para seu cérebro.
O silêncio retornava, e Singh tinha de esperar até que começasse a seqüência muito mais complexa de calibragem visual.
Primeiro as cores puras. Ele podia estar flutuando no centro de uma esfera perfeitamente lisa, a parede interna pintada do mais profundo vermelho. Não havia o menor sinal de padrão ou estrutura, e seus olhos doíam na tentativa de encontrar algum. Bem, não propriamente. Os olhos sequer entravam no circuito.
Vermelho, laranja, amarelo, verde - as familiares cores do arco-íris, mas com a pureza de definição do laser. Nenhum tipo de imagem ainda - apenas um campo cromático uniforme.
Por fim começavam a aparecer imagens. Primeiro uma grade vazada, os espaços em branco rapidamente preenchidos com linhas mais e mais finas, até que as retículas não pudessem mais ser percebidas. Isso era substituído por uma seqüência de formas geométricas que rodavam, expandiam-se, encolhiam, transformavam-se umas nas outras. Embora sempre perdesse a noção do tempo, o programa completo de calibragem durava menos de um minuto. Quando um silencioso 'white-out' o engolia como uma nevasca antártica, sabia que o processo de leitura estava completo e que o sistema de monitoração do brainman se convencera de que os circuitos neurais dele tinham o alinhamento adequado para receber seus outputs.
Era muito raro, mas às vezes acontecia de uma indicação de 'Erro' perpassar seu campo de consciência e ele ter de repetir toda a seqüência. Isso normalmente bastava para eliminar o problema. Caso contrário, não era Singh que iria tentar de novo. Certa vez, quando tinha de aprender com urgência algumas técnicas, ele operara o override manual na tentativa de romper o bloqueio eletrônico. Tudo o que conseguiu foi um amontoado de imagens de pesadelo, sempre um pouco além de sua capacidade de captá-Ias adequadamente - como os fosfenos que surgem quando se comprime os globos oculares, porém muito mais brilhantes. Quando encontrou o interruptor, já ganhara uma dor de cabeça lancinante... e poderia ter sido muito pior. A 'zumbificação' irreversível pelo mau funcionamento do brainman já não era tão comum como nos primeiros tempos, mas ainda acontecia.
Desta vez não houve indicação de erro nem qualquer outro sinal de alerta. Todos os circuitos estavam em ordem. Estava pronto para receber.
Embora tivesse consciência, em algum canto remoto de sua mente, de que na realidade estava a bordo da Goliath, não parecia nada incongruente ao capitão Singh que estivesse observando sua nave flutuar ao lado de Kali. Também lhe parecia bastante lógico - ainda que com a lógica bizarra de um sonho - que o Atlas já estivesse instalado no asteróide, embora 'soubesse' que ele ainda estava preso à Goliath.
Os detalhes da simulação eram tão perfeitos que ele podia distinguir os trechos de rocha nua que os jatos do trenó espacial haviam limpado da poeira de eras. Isso era real, mas a imagem do Atlas e de seu feixe de tanques de combustível ainda pertencia ao futuro - um futuro a poucos dias de distância, esperava-se. Com o auxílio de David, todos os problemas de engenharia concernentes ao posicionamento e ancoragem do propulsor de massa haviam sido solucionados, e não havia razão para temer dificuldades em pôr em prática a teoria.
- Pronto para iniciar a projeção - disse David. - Que ponto de vista prefere?
- Pólo norte da eclíptica, distância de 10 UA. Mostre todas as órbitas.
- Todas? Há 54.372 corpos nesse ângulo de visão. A pausa enquanto David consultava seu catálogo fora quase imperceptível.
- Desculpe, quis dizer todos os planetas principais. E todos os corpos em um raio de mil quilômetros de Kali. Correção: raio de cem quilômetros.
Kali e o Atlas desapareceram. Singh observava o Sistema Solar como visto de cima, com as órbitas de Saturno, Júpiter, Marte, Terra, Vênus e Mercúrio visíveis como finas linhas luminescentes. As posições dos planetas eram indicadas por ícones minúsculos, mas identificáveis: Saturno com seus anéis, Júpiter e seus cinturões, Marte com uma minúscula calota polar, a Terra um vasto oceano, Vênus um crescente branco e liso, Mercúrio um disco repleto de manchas variolares.
E Kali era uma caveira. A idéia partira de David e ninguém discutira. Provavelmente procurou o verbete na enciclopédia e se deparou com uma das estátuas da deusa indiana da destruição exibindo seu sinistro colar.
- Centre no eixo Kali - Terra... Aproxime... OK!
Agora a consciência de Singh estava tomada por aquela decisiva seção cônica: a elipse do destino que conectava as posições atuais da Terra e de Kali.
- Compressão temporal?
- Dez à quinta.
Nesse ritmo, cada segundo representaria um dia. Kali atingiria a Terra em questão de minutos, não de meses.
- Inicializando projeção.
Os planetas começaram a se mover: Mercúrio disparava na trajetória mais próxima do centro, e mesmo o lento Saturno denunciava seu movimento ao longo da órbita mais distante.
Kali iniciou sua queda rumo ao Sol, impulsionado ainda apenas pela gravidade. Mas em algum ponto da consciência de Singh os números fluíam rápidos a ponto de se misturarem em um borrão indefinido. Súbito, caíram a zero e no mesmo instante David disse "Ignição!”
Estranho, pensou Singh por um momento, como algumas palavras continuam em uso por muito tempo, mesmo depois que seu contexto original deixa de existir. 'Ignição' datava de pelo menos um século antes, a era dos foguetes químicos. Queimar era algo impossível para o jato que fazia funcionar o Atlas - ou qualquer outro propulsor para espaço longínquo. Era hidrogênio puro. Mesmo se houvesse algum oxigênio presente, estaria quente demais para um fenômeno de baixa temperatura como a mera combustão. Toda molécula de água formada se redividiria imediatamente em seus átomos componentes.
Mais números apareceram, alguns constantes e outros em lenta alteração. Em destaque percebia-se a aceleração produzida pelo jato do Atlas no mundo fantasma: meras microgravidades sobre a enorme massa de Kali. E ali estavam os deltas vitais - as mudanças quase impossíveis de medir provocadas agora na posição e na velocidade do asteróide.
Os dias voavam. Os números cresciam em um ritmo regular. Mercúrio já percorrera metade de seu caminho ao redor do Sol, mas não havia ainda nenhum sinal visível de que Kali se houvesse desviado de sua órbita natural. Somente os deltas crescentes atestavam que se afastava, preguiçoso, de sua rota traçada há tantas eras.
- Aproxime cinco vezes - pediu Singh, quando Kali passou por Marte.' Os planetas exteriores desapareceram do campo de visão com a ampliação da imagem, mas o efeito dos dias de empuxo contínuo do Atlas ainda não podia ser detectado.
- Combustível esgotado - disse David, abruptamente. (Mais uma expressão da infância da astronáutica!) No mesmo instante, os números que registravam empuxo e aceleração caíram a zero. Uma vez mais, era apenas a gravidade que fazia com que Kali rodopiasse ao redor do Sol.
- Aproxime dez. Reduza para mil a compressão temporal.
Apenas a Terra, a Lua e Kali ocupavam agora o campo de consciência de Singh. Nessa escala ampliada, o asteróide parecia mover-se não em uma elipse, mas quase em linha reta. Uma linha que não apontava para a Terra.
Singh sabia que não devia depositar muitas esperanças nisso. Kali ainda tinha de passar pela Lua, que - qual amiga desleal traindo sua companheira de longa data - imprimiria à órbita do asteróide uma última curvatura assassina.
Agora, no estágio final da aproximação, cada segundo representava três minutos de tempo real. No campo gravitacional da Lua, a trajetória de Kali inclinava-se visivelmente... na direção da Terra. Mas o efeito dos esforços do Atlas, embora tivessem cessado 'semanas' antes, ainda era perceptível. A simulação apresentava duas órbitas: a original e a produzida por intervenção humana.
- Aproxime dez. Compressão temporal 100.
Um segundo representava agora pouco menos de dois minutos e a Terra enchia o campo de consciência de Singh. O pequeno ícone da caveira, no entanto, permanecia do mesmo tamanho. Nessa escala, Kali ainda era pequeno demais para apresentar-se como um disco visível.
A Terra virtual parecia incrivelmente real, de uma beleza emocionante. Impossível acreditar que fosse uma mera construção de megabytes esplendidamente organizados. Ali estava - na memória de David, pelo menos - a resplandecente calota branca da Antártida, o continente da Austrália, as ilhas da Nova Zelândia, a costa da China. Mas dominando tudo via-se o azul profundo do Pacífico - há apenas 20 gerações um desafio tão grande para a humanidade como os abismos espaciais hoje.
- Aproxime dez. Continue acompanhando Kali.
A atmosfera tornava indistinta a curva azul do horizonte, fazendo-a fundir-se sem etapas à mais profunda escuridão. Kali ainda caía em sua direção, dirigido e até mesmo acelerado pelo campo gravitacional da Terra - quase como se o planeta buscasse o suicídio.
- Aproximação máxima em um minuto.
Singh concentrou sua atenção nos números que ainda fluíam rápidos no extremo de seu campo visual. A mensagem que transmitiam era mais precisa, embora menos dramática, que a fornecida pela imagem simulada. O mais importante - a distância entre Kali e a superfície -terrestre ainda estava decrescendo.
A taxa de decréscimo, no entanto, também decrescia. Demorava cada vez mais para que Kali percorresse cada novo quilômetro em direção à Terra.
E o número então se estabilizou:
523... 523... 522... 522... 522... 523... 523... 524... 524... 525...
Singh permitiu-se o luxo de respirar. Kali fizera sua aproximação máxima e agora se afastava.
O Atlas era capaz de cumprir a tarefa. Só era necessário agora fazer no mundo real o que fora feito no virtual.
Festa de Aniversário
- Nunca imaginei passar meu centésimo aniversário além da órbita de Marte - comentou sir Colin. Na verdade, quando eu nasci, apenas um entre dez homens tinha chances de atingir essa idade. E uma entre cinco mulheres, o que sempre me pareceu injusto.
(Vaias amigáveis das quatro mulheres da tripulação; risinhos por parte dos homens; um "a natureza sabe o que faz" cheio de presunção da médica de bordo, dra. Elizabeth Warden.)
- Mas aqui estou, até que em boa forma, e gostaria de agradecer a todos pela atenção, e em particular a Sonny por esse vinho maravilhoso que degustamos, Château Sejalaoquefor 2005!
- 1905, professor, não 2005. E o senhor devia agradecer aos programas de cozinha, não a mim.
- Bem, você é a única pessoa que sabe o que há neles. Nós mor reríamos de fome se você esquecesse que botões apertar.
Não se podia exigir que geólogos centenários soubessem equipar-se adequadamente, de forma que Singh e Fletcher verificaram com cuidado o traje espacial de Oraker antes de acompanhá-Io até a câmara de escape. O deslocamento na vizinhança imediata da Goliath foi muito simplificado por uma rede de cabos presos em hastes de um metro de altura cravadas na friável crosta exterior de Kali. A nave assemelhava-se agora a uma aranha no centro de uma teia.
Os três deslocaram-se de mão em mão, usando sempre os cabos como apoio, até um pequeno trenó espacial, minúsculo junto aos tanques esféricos de propelente alinhados para futura conexão com o Atlas. "É como se algum maluco tivesse construído uma refinaria de petróleo em um asteróide" , comentara o professor quando viu o que os trabalhadores de Fletcher, homens e robôs, haviam feito em prazo tão incrivelmente curto.
Torin Fletcher, acostumado a trabalhar em Deimos, era o único homem realmente capaz de manobrar um trenó espacial na gravidade ainda mais fraca de Kali. Vocês precisam tomar cuidado", prevenira ele os futuros pilotos. "Neste lugar até uma lesma artrítica poderia atingir velocidade de escape. Não queremos perder tempo e massa de reação para rebocá-Ios de volta caso decidam decolar rumo a Alfa Centauri.
Com jatos de gás quase imperceptíveis, Fletcher fez o trenó elevar-se da superfície do asteróide e iniciou a calma circunavegação do mundo, Draker perscrutando com avidez as regiões de Kali que nunca pudera ver a olho nu. Até agora dependera de amostras trazidas pelas equipes de trabalho e, embora fosse inestimável o estudo remoto do terreno por meio de câmeras móveis, nada substituía a experiência direta, com a ajuda de habilidosas e precisas marteladas. Draker queixara-se de que nunca podia afastar-se mais que alguns metros da Goliath, pois o capitão Singh não admitia correr riscos com seu mais célebre passageiro e não podia dispensar ninguém para tomar conta dele fora da nave ("Como se eu precisasse de alguém tomando conta de mim!"). Um centésimo aniversário suplantava essas objeções, no entanto, e o cientista parecia um garotinho em suas primeiras férias longe de casa.
O trenó deslizava sobre a superfície de Kali ao ritmo de uma caminhada tranqüila - isso se fosse possível a um homem caminhar naquele micromundo. Sir Colin continuava sua sondagem, como um antigo radar de varredura, de horizonte a horizonte (por vezes, à enorme distância de 50 metros um do outro), ocasionalmente resmungando algo para si mesmo. Menos de cinco minutos depois, chegaram ao lado oposto do asteróide. O Goliath e o Atlas estavam ocultos pela massa de Kali quando Draker pediu:
- Podemos parar aqui? Gostaria de descer um pouco.
- Claro. Mas teremos de prendê-Io a uma linha, para o caso de termos de içá-Io de volta.
O geólogo bufou de raiva, mas submeteu-se ao ultraje. Então, com suaves movimentos, saiu do trenó agora estático e abandonou-se à queda livre.
Não era fácil perceber se ele estava mesmo caindo, naquela gravidade minúscula. Quase dois minutos se passaram antes que aterrissasse em Kali, da enorme altura de um metro e meio e a uma velocidade quase imperceptível a olho nu.
Colin Draker já estivera em muitos asteróides. No caso gigantes como Ceres, era fácil perceber que a força gravitacional, embora fracamente, o arrastava para baixo. Ali, era necessário um considerável esforço de imaginação; o menor movimento, e estaria fora do alcance de Kali.
Mesmo assim, não havia sombra de dúvida de que finalmente estava pisando o mais famoso - ou famigerado - asteróide da história. Apesar de seu conhecimento científico, era difícil para Draker aceitar que aquele minúsculo fragmento de entulho cósmico, com sua curvatura extravagante, representava uma ameaça à humanidade maior que todas as ogivas nucleares estocadas durante a era da loucura nuclear.
A rápida rotação de Kali os mergulhava na noite, e enquanto seus olhos se adaptavam viam as estrelas surgindo em volta - exatamente na mesma disposição em que seriam vistas por observadores na Terra. Ainda estavam tão próximos do planeta natal que o Universo exterior mostrava-se completamente inalterado. Próximo ao horizonte, entretanto, havia no céu um objeto estranho e surpreendente: um brilhante astro amarelo que não era, como todos os outros, um ponto de luz sem dimensões distinguíveis.
- Olhem ali - disse sir Colin. - Uma coisa que vocês jamais verão da Terra... ou mesmo de Marte.
- O que há de mais? - perguntou Fletcher. É Saturno!
- Claro que é, mas olhe com atenção. Muita atenção.
- Puxa, estou vendo os anéis!
- Não é bem assim; na verdade, você só pensa que está. Estão bem no limite da visibilidade, mas seus olhos podem detectar alguma coisa estranha, e uma vez que você sabe para o que está olhando, sua memória providencia os detalhes. Agora você sabe por que Saturno deu tanta dor de cabeça ao pobre Galileu. Com seus fracos telescópios, percebia no planeta alguma coisa peculiar, mas quem iria pensar em anéis? Então eles ficavam alinhados e desapareciam, e Galileu pensava que seus olhos lhe haviam pregado uma peça. Nunca soube o que esteve observando.
Por um momento os três observaram em silêncio Saturno erguer-se no céu, à medida que Kali girava por sua breve noite.
- Agora volte, professor - Fletcher disse então, calmamente. Ainda temos um longo caminho pela frente. Até agora só demos meia volta ao redor do mundo.
Cobriram a maior parte da metade restante - trazendo de volta o Sol pequeno mas ainda ofuscante - nos cinco minutos seguintes. O trenó subia uma pequena colina quando Draker subitamente notou algo quase inacreditável. A poucas dezenas de metros dali (já estava aprendendo a avaliar as distâncias) havia uma mancha de cor viva fulgindo na paisagem carvoenta.
- Pare! - gritou ele. - O que é aquilo?
Os dois companheiros olharam para onde o professor apontava, e depois para ele próprio.
- Eu não estou vendo nada - disse o capitão.
- Deve ser alguma imagem residual por ter olhado para Saturno por muito tempo - acrescentou Fletcher. - Seus olhos ainda não se adaptaram à luz do dia.
- Estão cegos? Olhem!
- Melhor não contrariar o pobre homem - tornou Fletcher. - Pode se tornar violento e isso nós não queremos, não é verdade?
Manobrou o trenó com esforço, Draker imerso em um silêncio aturdido. Mais alguns segundos e o espanto do geólogo transformou-se na mais absoluta incredulidade. Estou mesmo ficando louco, pensou.
Suspensa na ponta de um fino caule, a meio metro da superfície estéril de Kali, via-se uma grande flor dourada.
Em um breve Iampejo de lógica insensata, Draker viu-se percorrendo em seqüência os pensamentos (1) "Estou sonhando", (2) "Como poderei me desculpar com a dra. Wijeratne?" (3) "Não me parece muito alienígena”, (4) "Gostaria de saber mais sobre botânica”, (5) "Muito gentil terem colocado uma etiqueta de identificação, quem quer que...”
- Seus filhos da... por um minuto me enganaram direitinho! Foi idéia da Rani?
- Claro - entregou Singh, rindo. - Mas você vai ver que todos nós assinamos o cartão de aniversário. E pode agradecer a Sonny por ter conseguido fazer um trabalho tão bonito apenas com os pedaços esparsos de papel e plástico que pôde encontrar.
Ainda estavam rindo quando chegaram à Goliath com sua fantástica descoberta - em muito melhor forma, como lembrou o capitão Singh, que os sobreviventes da tripulação de Magalhães após a circunavegação do mundo deles. A rápida excursão permitira que todos relaxassem, deixando de lado por um momento suas assustadoras responsabilidades.
Isso foi muito positivo. Era a última oportunidade de descontração que teriam, em Kali.
Astropol
Familiarizado com grande parte dos mundos e cidades do homem, o diretor da Astropol pensava haver esgotado sua capacidade de surpreender-se. Agora, entretanto, em seu elegante quartel-general em Genebra, olhava incrédulo para seu inspetor-geral.
- Tem certeza? - perguntou.
- Tudo confere. Ficamos desconfiados, é claro, pois deserções são muito, muito raras, e achamos que poderia ser algum tipo de farsa. Mas tivemos confirmação pela Sonda Cerebral Profunda.
- Não há como enganar a SCP? Estamos lidando com peritos.
- Não melhores que os nossos. E as verificações em Deimos esclarecem as coisas. Sabemos quem foi. Está sob estrita vigilância, é claro.
- Quando o aviso chegará até eles?
O inspetor-geral relanceou o olhar para seu relógio, que mostrava 20 fusos horários em três mundos.
- Já receberam. Mas estão do outro lado do Sol e a confirmação não chegará antes de uma hora. Receio que seja tarde demais. Se tudo correu de acordo com o cronograma, a ignição deve ter começado 40 minutos atrás. Não há nada que nós possamos fazer... a não ser esperar.
- Ainda não consigo acreditar. Por que, em nome de Deus, alguém faria uma coisa dessas?
- Exatamente. Em nome de Deus.
Sabotagem
Ao tempo t menos 30 minutos, a Goliath se afastara de Kali, para pôrse fora do alcance dos jatos do Atlas. Todos os testes dos sistemas haviam sido satisfatórios. Agora só era necessário esperar que a rotação do asteróide trouxesse o propulsor de massa à posição correta para o início do ciclo de propulsão.
O capitão Singh e sua exausta tripulação não esperavam ver nada de espetacular. O jato de plasma do Atlas seria quente demais para produzir muita radiação visível. Somente a telemetria poderia confirmar que começara a ignição e que Kali não era mais um carrasco implacável, totalmente fora do controle humano.
Gostaria de saber, pensou sir Colin, quantos desses garotos sabem que essa idéia toda de contagem regressiva foi inventada por um diretor de cinema alemão há quase dois séculos, para o primeiro filme espacial que não era pura fantasia. Agora a realidade copiava a ficção e era difícil imaginar uma missão espacial começando sem uma contagem - humana ou mecânica - de trás para a frente.
Houve alguns vivas e um leve som de aplausos quando a fileira de zeros do acelerômetro começou a mudar. O clima na ponte era mais de alívio que de euforia. Kali desviava-se, mas apenas os mais sensíveis instrumentos podiam detectar a alteração microscópica em sua velocidade. O Atlas teria de operar por dias, semanas,"antes que a vitória estivesse assegurada. Devido à rotação de Kali, o empuxo só podia ser aplicado por cerca de um décimo do tempo: depois disso, o Atlas já não estaria corretamente alinhado. Não era nada fácil desviar um veículo em rotação usando um motor fixo...
Uma microgravidade, duas microgravidades: preguiçosamente, a enorme massa do asteróide começava a responder. Para alguém de pé em Kali - supondo que isso fosse possível -, não haveria diferença alguma, embora talvez sentisse uma vibração sob os pés e notasse que nuvens de poeira estavam sendo atiradas ao espaço. Kali sacudia-se como um cão que acabou de tomar banho.
Então, inacreditavelmente, os números caíram novamente a zero. Segundos depois, soavam três alarmes simultâneos.
Ninguém deu atenção. Não havia nada a fazer. Todos os olhos estavam fixos em Kali - e no propulsor Atlas.
Os grandes tanques de propelente abriam-se como flores em um filme em câmera rápida, deixando escapar as milhares de toneladas de massa de reação que poderiam salvar a Terra. Nuvens de vapor flutuaram pela superfície do asteróide, dissimulando em uma atmosfera evanescente sua superfície coberta de crateras.
E Kali continuou a trilhar sua trajetória, inexoravelmente.
Hipóteses
Para a primeira aproximação bastava resolver um problema de dinâmica bastante elementar. A massa de Kali era conhecida com precisão de um por cento, e sua velocidade ao alcançar a Terra estava determinada até a 12ª. casa decimal. Qualquer estudante poderia calcular o 1/2 MV2 resultante de energia e convertê-Io em megatons de explosivo.
O resultado - um inimaginável dois milhões de milhões de toneladas - não tinha sentido nem mesmo quando descrito como um bilhão de vezes a bomba que destruiu Hiroshima. E a grande incógnita na equação, de que podiam depender milhões de vidas, era o ponto de impacto. Quanto mais Kali se aproximava, menor a margem de erro, mas até alguns dias antes da colisão não seria possível definir o ponto de explosão com exatidão de mais de mil quilômetros: para muitos, uma estimativa mais que inútil.
De qualquer forma, uma vez que três quartos da Terra era coberta de água, o ponto de impacto provavelmente seria no mar. As hipóteses mais otimistas presumiam um impacto no Pacífico central; haveria tempo para evacuar as menores ilhas antes que fossem varridas do mapa por ondas de quilômetros de altura.
Se Kali caísse em terra firme, obviamente não haveria esperança para ninguém em um raio de centenas de quilômetros. Todos seriam vaporizados instantaneamente. Poucos minutos mais tarde, todos os edifícios em uma área continental seriam derrubados pela onda de choque. Mesmo os abrigos subterrâneos desmoronariam, é provável, embora alguns sobreviventes de sorte talvez pudessem encontrar, cavando, seu caminho para a superfície.
Mas isso seria mesmo uma sorte para eles? Os meios de comunicação não se cansavam de repetir a dúvida suscitada por autores do século XX ao escreverem sobre a guerra termonuclear: será que os vivos não invejariam os mortos?
Não era impossível. Os efeitos posteriores do impacto poderiam ser ainda piores que as conseqüências imediatas. A fumaça enegreceria o céu por meses, talvez anos. A maior parte da vegetação do mundo - além dos animais selvagens remanescentes - seria incapaz de sobreviver à falta de sol e à chuva saturada de ácido nítrico produzido quando a bola de fogo fundisse megatons do oxigênio e nitrogênio da atmosfera inferior.
Mesmo com a alta tecnologia, a Terra ficaria absolutamente inabitável durante décadas, e quem iria querer morar em um planeta devastado? A única possibilidade de segurança estava no espaço.
A não ser para poucos, no entanto, essa rota estava fechada. Não havia naves suficientes para levar mais que uma pequena fração da raça humana mesmo que apenas até a Lua - e mesmo que houvesse, de nada adiantaria. As instalações lunares teriam muita dificuldade em acomodar mais que algumas centenas de milhares de hóspedes inesperados.
Para os restantes, como para quase todos os 250 bilhões de seres humanos que já viveram, a Terra seria berço e sepultura.
A Sabedoria de David
O capitão Singh sentou-se sozinho na espaçosa e bem mobiliada cabine que havia sido seu lar por mais tempo que qualquer outro lugar no Sistema Solar. Ainda estava aturdido, mas o aviso da Astropol, embora tivesse chegado tarde demais, servira para melhorar o moral a bordo. Não muito, mas já ajudava.
Ao menos não tinha sido culpa deles, haviam cumprido seu dever. E quem poderia ter imaginado que fanáticos religiosos iriam querer destruir a Terra?
Forçado agora a pensar no que era antes impensável, ocorria-lhe que talvez não fosse assim tão surpreendente. Quase toda década, por toda a história humana, profetas autoproclamados haviam previsto que o mundo acabaria em uma determinada data. Surpreendente mesmo - a ponto de fazer perder as esperanças quanto à sanidade da espécie - era que eles continuavam a reunir milhares de adeptos dispostos a vender todas as suas posses já não mais necessárias e esperar em algum lugar determinado pelo momento em que seriam arrebatados e iriam para o céu.
Embora muitos milenaristas fossem impostores, a maioria acreditava sinceramente em suas próprias predições. E se tivessem nas mãos o poder para isso, e Deus se recusasse a cooperar, é de se duvidar que providenciariam o cumprimento de suas profecias?
Com seus excelentes recursos tecnológicos, os renascidos tinham esse poder. Bastavam alguns quilos de explosivo, um software inteligente o bastante e cúmplices em Deimos. Até mesmo um seria o bastante.
Pena o informante ter esperado até que fosse tarde demais, pensou Singh, com tristeza. Talvez tenha sido proposital, uma tentativa de conciliar os dois lados: “Aliviei minha consciência, mas não traí minha religião".
Mas que importava isso agora! O capitão Singh afastou sua mente de pesares inúteis. Nada poderia alterar o passado e ele tinha agora de fazer as pazes com o Universo.
Perdera a batalha para salvar seu planeta natal. De algum modo, o fato de estar em perfeita segurança o fazia sentir-se pior. A Goliath não estava de forma alguma em perigo, e ainda tinha amplo estoque de propelente para reunir-se aos abalados sobreviventes da humanidade na Lua ou em Marte.
Ora, seu coração estava em Marte, mas alguns tripulantes tinham entes queridos na Lua. Teria de colocar em votação.
Os regulamentos da nave não previam uma situação como aquela.
- Ainda não consigo entender - disse o engenheiro-chefe Morgan - por que aquele fio explosivo não foi detectado na inspeção final antes da decolagem.
- Era fácil de esconder. E ninguém sonharia em procurar algo assim em uma missão como esta - opinou seu assistente. - O que me surpreende é que haja fanáticos renascidos em Marte.
Mas por que fariam isso? Não posso acreditar que alguém, mesmo malucos crislâmicos, poderia querer destruir a Terra.
- É impossível negar a lógica deles... se aceitarmos suas premissas. Deus, Alá, está nos testando, e não devemos interferir. Se Kali não atingir a Terra, ótimo. Caso contrário, bem, é parte de Seu plano maior. Talvez tenhamos estragado tanto a velha Terra que seja hora de começar tudo de novo. Lembrem-se daquela velha frase de Tsiolkovsky: "A Terra é o berço da humanidade, mas não se pode viver no berço para sempre". Kali poderia ser um sinal educado de que é hora de partir.
- E que sinal!
O capitão ergueu a mão, pedindo silêncio.
- A única pergunta importante agora é: Lua ou Marte? Seja onde for, eles precisam de nós. Não quero influenciá-Ios - não era bem verdade: todos sabiam para onde ele preferia ir -, portanto gostaria de ter suas opiniões primeiro.
A primeira apuração deu Marte 9, Lua 9, 'não sei' 1, abstenção do capitão.
Cada lado tentava converter o único 'não sei' - o comissário de bordo Sonny Gilbert, que vivera na Goliath por tanto tempo que não tinha outro lar - quando David se pronunciou.
- Há uma alternativa.
- Como assim? - perguntou o capitão Singh, com certa rispidez.
- Parece óbvio. Mesmo com o Atlas destruído, ainda temos uma possibilidade de salvar a Terra... se usarmos a Goliath como propulsor de massa. Pelos meus cálculos, ainda temos combustível suficiente para desviar Kali, somando nossos tanques aos que instalamos lá. Mas devemos começar a propulsão imediatamente. Quanto mais esperarmos, menor a probabilidade de sucesso, que é agora de 95 por cento.
Houve um momento de silêncio estupefato na ponte, enquanto cada um se perguntava "Por que eu não pensei nisso antes?" - e logo tinha a resposta.
David mantivera a cabeça no lugar - se é que se podia usar uma frase tão inapropriada - enquanto os humanos a sua volta estavam em estado de choque. Havia algumas vantagens em ser uma pessoa de direito (não-humana). Embora não pudesse conhecer o amor, também não era capaz de sentir medo. Continuaria a pensar logicamente, mesmo a um passo da destruição.
Recuperação
- Estamos com sorte - informou Torin Fletcher.
- Bem que precisamos! Prossiga.
- A carga foi instalada para deixar o gerador de fusão e os propulsores sem possibilidades de conserto, e foi o que fez. Se estivéssemos em Deimos eu poderia repará-Ios, mas não aqui. A concussão rompeu os tanques um e dois, e perdemos 30 K de propelente. Mas as válvulas de segurança no tubo de alimentação funcionaram como deveriam e o restante do hidrogênio está intacto.
Pela primeira vez em horas, Robert Singh ousou alimentar esperanças. Mas ainda havia muitos problemas a resolver e muito, muito trabalho. A Goliath tinha de ser posicionada em oposição a Kali e algum tipo de estrutura devia ser construído em sua volta, de forma a transmitir o empuxo ao asteróide. Fletcher já programara seus robôs construtores para a tarefa, e a matéria-prima seriam vigas e longarinas aproveitáveis do Atlas despedaçado.
- É o trabalho mais maluco que já fiz - disse ele. - O que o pessoal da velha guarda no Kennedy pensaria se vissem um guindaste segurando uma espaçonave de cabeça para baixo?
- E onde está a diferença, com a Goliath? - retrucou sir Colin Draker, um tanto asperamente. Nunca estou bem certo de qual lado é a frente. Você podia saber para que lado estava indo um foguete do século XX apenas olhando para ele. Foi-se o tempo.
Embora o resultado pudesse parecer esquisito a qualquer um que não um engenheiro astronáutico, Torin Fletcher estava orgulhoso de sua façanha, e com razão. Mesmo em um campo gravitacional fraco como o de Kali, a tarefa mostrara-se quase impossível. É verdade que um tanque de propelente de dez mil toneladas 'pesava’ ali menos de uma tonelada, e podia ser alçado - bem devagar - a sua posição por uma talha ridiculamente pequena. Uma vez postas em movimento, no entanto, essas massas monumentais eram potencialmente mortais a criaturas cujos músculos e instintos haviam evoluído em um ambiente completamente diferente. Era difícil aceitar que um objeto em movimento tão lento seria impossível de deter e poderia transformar em panqueca qualquer um que não saísse do caminho a tempo.
Graças a uma combinação de habilidade e sorte, não houve acidentes sérios. Para evitar surpresas, cada movimento foi cuidadosamente ensaia do em uma simulação em realidade virtual, até que Fletcher anunciou: "Estamos prontos".
Houve, como era inevitável, uma sensação de déjà vu durante a segunda contagem regressiva. E também, dessa vez, a sensação de perigo. Se algo saísse errado, não estariam a uma distância segura do acidente; seriam. parte dele, embora provavelmente jamais viessem a saber.
Semanas passaram-se desde que a Goliath estivera viva de fato, e todos a bordo sentiram a vibração característica do jato de plasma em força total. Embora parecesse leve e distante, não era possível ignorá-Ia - especialmente quando, a intervalos regulares, atingia alguma freqüência ressonante na estrutura da Goliath e a nave toda estremecia por um momento.
A leitura do acelerômetro subiu lentamente de zero a pouco mais de uma microgravidade à medida que o empuxo se estabilizava no valor máximo dentro da margem de segurança. Os bilhões de toneladas de Kali estavam sendo levemente perturbados. A cada dia, sua velocidade seria alterada em mais de um metro por segundo, e seria desviado de sua órbita original em 40 quilômetros. Eram taxas ridículas, frente às velocidades e distâncias cósmicas, mas suficientes para representar a diferença entre a vida e a morte para milhões, no distante planeta Terra.
Infelizmente, a Goliath podia aplicar seu empuxo por apenas 30 minutos do dia de quatro horas de Kali; depois disso, a rotação do asteróide começaria a neutralizar os resultados anteriores. Era uma limitação enlouquecedora, mas nada podia ser feito quanto a isso.
O capitão Singh esperou que terminasse o primeiro período de propulsão para enviar a mensagem que o mundo estava esperando.
- Goliath informando: iniciamos com sucesso a manobra de perturbação. Todos os sistemas em funcionamento normal. Boa-noite.
Passou então o comando da nave para David e permitiu-se sua primeira noite de sono decente desde a perda do Atlas. Sonhou que outro dia se iniciara em Kali e que a propulsão da Goliath estava operando exatamente conforme o planejado.
Acordou, descobriu que não era um sonho e imediatamente voltou a dormir.
Plano de Contingência
Embora o espaçoplano ainda chamado Air Force One fosse mais velho que a maioria dos homens e mulheres ao redor da mesa de conferências em seu saguão histórico, fora conservado com carinho e ainda estava perfeitamente funcional. Raramente era usado, no entanto, e era a primeira vez que todos os membros do Conselho Mundial se encontravam ali ao mesmo tempo. Os tecnocratas que eram os cérebros - humanos - do planeta costumavam conduzir seus assuntos por meio de circuitos de teleconferência, mas aquela não era uma discussão normal e eles nunca haviam enfrentado antes uma responsabilidade tão assustadora.
- Todos têm em mãos o resumo do relatório de meus técnicos disse o então diretor-geral de Energia. - Não foi fácil encontrar os planos: a maioria foi deliberadamente destruída. Os princípios gerais são bem conhecidos, no entanto, e o Museu Imperial de Guerra, em Londres (nunca tinha ouvido falar) tem um modelo completo de 20 megatons. Desativado, é claro. Não haverá dificuldade para produzir um exemplar com maior potência, contanto que consigamos em tempo o material. Inventário?
- O trítio é fácil, mas plutônio e U-235 para fins militares... ninguém mais precisa disso desde que paramos de usar explosivos nucleares em mineração.
- E quanto à idéia de desencavar alguns daqueles depósitos e reatores enterrados?
- Pensamos nisso, mas seria difícil demais separar o que precisamos. Teremos de partir do zero.
- Mas é possível?
- Simplesmente não sei, no tempo disponível. Faremos o melhor possível.
- Bem, temos de supor que seja o suficiente. Com isso só falta o sistema de lançamento. Transporte?
- Bastante simples. O menor dos cargueiros dará conta do trabalho. No automático, é claro, embora a alternativa pudesse tentar alguns de meus ancestrais camicases.
- Então na verdade temos uma única decisão a tomar. Vale a pena tentar, ou isso apenas tornaria as coisas piores? Se pudermos atingir Kali com mil megatons, poderemos dividi-Io em dois fragmentos. Se isso acontecer na hora certa, a rotação do asteróide fará com que os fragmentos se separem de forma a passarem um de cada lado da Terra. Ou pode ser que apenas um atinja o planeta, o que poderia salvar milhões de vidas...
"Por outro lado, poderemos transformar Kali em uma massa de estilhaços movendo-se ainda na mesma órbita. Uma parte vai queimar na atmosfera, mas outra não. O que é melhor: uma única megacatástrofe em um local ou centenas de catástrofes menores, com fragmentos explodindo por todo o hemisfério? Seja qual for o hemisfério...”
Os oito deixaram-se ficar sentados, em silêncio, refletindo sobre o destino da Terra.
- Temos quanto tempo para decidir? - perguntou então um deles.
- Dentro de mais quinze dias saberemos se a Goliath teve sucesso em desviar Kali. Mas não podemos ficar de braços cruzados até lá. Seria tarde demais para fazer qualquer coisa, se a Operação Salvamento falhar. Proponho lançarmos o míssil o mais rápido possível. Sempre poderemos abortar a missão, caso se prove desnecessária. Podemos colocar isso em votação?
Lentamente, todas as mãos se ergueram, com uma única exceção.
- Pois não, Jurídico? Tem alguma reserva?
- Gostaria de ver alguns pontos esclarecidos. Em primeiro lugar, seria necessário um referendo mundial. O assunto diz respeito à Emenda dos Direitos do Homem. Felizmente há tempo de sobra para isso. Minha segunda preocupação pode parecer insignificante comparada à sobrevivência da maior parte da raça humana, mas, se tivermos de explodir Kali, a Goliath conseguirá afastar-se a tempo?
- Com certeza. Eles serão avisados com tempo de sobra. Não podemos, é claro, garantir segurança absoluta: mesmo a um milhão de quilômetros, haveria sempre o perigo de serem atingidos por um estilhaço. Mas o risco será insignificante se a nave partir na direção de onde vem o míssil. Todos os fragmentos tomarão o sentido contrário.
- Isso é tranquilizador. Podem contar com meu voto. Ainda espero que este projeto seja desnecessário, mas estaríamos sendo negligentes em nosso dever se não fizéssemos uma apólice de seguros para o planeta Terra.
Salvamento
Os seres humanos não podem permanecer em um perpétuo estado de crise; o planeta-mãe logo retomou a algo próximo da normalidade. Ninguém tinha - ou ninguém ousava ter - suspeitas de que o que a mídia rapidamente batizara de Operação Salvamento pudesse falhar.
É verdade que todo planejamento a longo prazo foi suspenso, e a maior parte dos negócios públicos e privados estava sendo conduzida com a filosofia de um dia após o outro. Mas a consciência de destruição iminente dissipara-se, e a taxa de suicídio já caíra até mesmo abaixo de seu nível normal, agora que aparentemente haveria, afinal de contas, um amanhã.
A bordo da Goliath, a vida acomodou-se a uma rotina estável. A cada revolução de Kali, a propulsão era ativada em força máxima por 30 minutos, a cada vez afastando o asteróide um pouco mais de sua órbita original. Na Terra, o resultado de cada turno de propulsão era imediatamente informado em todos os boletins de notícias. Os tradicionais mapas de previsão do tempo cederam o primeiro plano a gráficos mostrando a órbita atual de Kali, ainda atingindo a Terra, e a desejada, passando a uma boa distância dela.
A data em que o mundo poderia respirar aliviado foi anunciada com muita antecedência, e à sua aproximação todas as atividades normais foram interrompidas. Apenas os serviços mais essenciais foram mantidos - até que a Spaceguard deu a notícia ansiosamente esperada de que Kali roçaria as mais distantes fímbrias da atmosfera e não produziria nada além de um fabuloso espetáculo de fogos de artifício.
As comemorações foram espontâneas e universais. Dificilmente haveria um único ser humano no planeta que não estivesse envolvido de uma forma ou de outra. A Goliath, é claro, foi bombardeada com mensagens de congratulações.
Foram recebidas com gratidão, mas o capitão Robert Singh e sua tripulação ainda não estavam prontos para comemorar.
Roçar a atmosfera ainda não era o bastante. A Goliath pretendia continuar a impulsionar Kali até que sua órbita passasse a pelo menos mil quilômetros da Terra.
Só então a vitória estaria assegurada.
Anomalia
Kali já ultrapassara em muito a órbita de Marte, ganhando ainda mais velocidade em seu mergulho rumo ao Sol, quando David apontou a primeira anomalia. Ocorreu num dos períodos de inatividade, poucos minutos antes do horário programado para a Goliath reiniciar a propulsão.
- Encarregado - convocou o computador. - Detectei uma leve aceleração. Um vírgula dois décimos de microgravidade.
- Impossível!
- Um vírgula cinco, agora - continuou David, imperturbável. Flutuando. Caiu a um. Agora parou. Acho que você deveria informar o capitão.
- Você tem mesmo certeza? Deixe-me ver o registro.
- Aqui está.
Uma linha denteada, subindo a um pico agudo e caindo novamente a zero, surgiu no monitor. Alguma coisa - e não era a Goliath - estava dando em Kali uma cutucada mínima mas perceptível. O impulso havia durado pouco mais de dez segundos.
A primeira pergunta do capitão Singh ao atender à ligação da ponte foi "Pode localizá-Io?”
- Sim. A julgar pelo vetor, foi do outro lado de Kali. Coordenada L4.
- Acorde, Colin. Temos de dar uma olhada nisso. Deve ser um choque de meteoro...
- Com duração de dez segundos?
- Hã? Ah, oi Colin. Ouviu tudo?
- A maior parte.
- Alguma teoria?
- Obviamente os fanáticos renascidos aterrissaram e estão tentando desfazer nosso trabalho. Mas pelo aspecto daquela curva o propulsor deles precisa urgentemente de uma regulagem.
- Engenhoso, mas acho que os veríamos chegar. Encontre-me na câmara de escape.
Desde a festa de aniversário de sir Colin Draker, não foram muitas as oportunidades para excursões longe da nave. Toda a atividade concentrava-se em uma área de algumas centenas de metros de um lado a outro. Enquanto o trenó levava Singh, Draker e Fletcher para o lado noturno, o geólogo comentou com os companheiros:
- Tenho um ótimo palpite. Teria pensado nisso antes, não fossem todas essas distrações... Deus do céu! Estão vendo o mesmo que eu?
Atravessava o céu à frente deles algo que Robert Singh não via desde que deixara a Terra, décadas atrás - e que de modo algum poderia existir em Kali: um incrível, porém indiscutível, arco-íris.
Fletcher por pouco não perdeu o controle do trenó quando ergueu os olhos para aquele céu impossível. Então parou o veículo, que começou a descer lentamente.
O arco-íris apagava-se rapidamente. Quando o trenó atingiu o solo de Kali, com o impacto de um floco de neve, já desaparecera por completo.
Sir Colin foi o primeiro a quebrar o silêncio estupefato.
- "E disse Deus: Ponho o meu arco nas nuvens, para sinal de minha aliança com a Terra. (...) e as águas nunca mais se tornarão um dilúvio para destruir toda a carne." Estranho que eu tenha me lembrado disso... Não leio a velha Bíblia cristã desde garoto. Só espero que represente boas novas para nós, como para Noé.
- Mas como é possível? Neste lugar!
- Leve-nos em frente devagar, Torin, e vai ver. Kali está acordando.
Stromboli
Ao contrário do que ocorre com físicos e astrônomos, geólogos raramente ficam famosos - ao menos no cumprimento de suas funções. Sir Colin Draker nunca quis ser uma celebridade, mas era um destino de que ninguém a bordo da Goliath podia agora escapar.
Não que ele se queixasse; parecia-lhe que poderia extrair o que havia de melhor na situação. Ninguém podia importuná-lo com pedidos a que não podia atender ou com compromissos que não queria aceitar. Gostava, no entanto, de apresentar seu comentário regular ("Kali por Colin", como era universalmente conhecido) pela Rede do Sistema Interior. Dessa vez, tinha algumas novidades para contar.
- Kali não é mais uma massa inerte de metal, rocha e gelo. Está despertando de seu longo sono.
A maioria dos asteróides estão mortos: corpos totalmente inativos. Alguns, contudo, são restos de antigos cometas, e quando se aproximam do Sol começam a relembrar seu passado...
Aqui está o mais famoso de todos os cometas vivos, o Halley. Esta imagem foi feita em 2100, quando em seu ponto de maior distância do Sol, um pouco além da órbita de Plutão. Como podem ver, ele se parece muito com Kali: apenas uma massa irregular de rochas.
Como devem saber, já acompanhamos o Halley em toda a sua órbita de 76 anos ao redor do Sol, observando as alterações por que passa.
Aqui está ele cruzando a órbita de Marte. Uma diferença e tanto, agora que está se aquecendo após seu longo inverno! Os gelos de várias substâncias, como água, dióxido de carbono e toda uma mistura de hidrocarbonetos, começaram a vaporizar e romperam a crosta. Ele está começando a esguichar como uma baleia...
Agora formou-se uma nuvem ao redor dele. A câmera está se afastando... Vejam como a cauda está se formando, apontando na direção oposta ao Sol, tal qual uma biruta à brisa solar...
Alguns de vocês devem se lembrar como o Halley foi espetacular em 2061. No entanto, se está evaporando dessa maneira por eras, imaginem só como deve ter sido quando jovem! Ele dominou o céu antes da Batalha de Hastings em 1066, e mesmo então deve ter sido apenas um fantasma de sua antiga glória.
Talvez Kali tenha sido igualmente espetacular, há milhares de anos, quando era um cometa de verdade. Agora, todas... bem, quase todas as substâncias voláteis foram evaporadas durante suas passagens próximas ao Sol.
Este é o único sinal de sua antiga atividade que se mantém hoje em dia...
A poucos metros de altura, a câmera operada manualmente a partir do trenó espacial fez uma panorâmica pela superfície de Kali. O terreno até há pouco carvoento e coberto de crateras estava agora salpicado de manchas brancas, como se houvesse nevado há pouco. As manchas concentravam-se ao redor de um buraco aberto na superfície do asteróide, sobre o qual pairava uma névoa quase invisível.
- Estas imagens foram feitas pouco antes do pôr-do-sol local. Kali esteve esquentando por todo o dia, e agora está pronto para jorrar. Vejam!
Exatamente como um gêiser na Terra, se é que vocês já viram um. Notem, entretanto, que nada cai de volta, tudo se projeta espaço afora. A gravidade aqui é tênue demais para recapturar o material.
E em 30 segundos está tudo acabado, embora as explosões possam durar mais tempo e se tornar mais poderosas à medida que Kali se aproximar do Sol.
"Pode-se dizer que temos nosso próprio minivulcão, e ativado pelo Sol! Decidimos chamá-Io Stromboli. Mas o material que ele deixa escapar é bem frio. Se vocês puserem a mão nele ganharão uma ulceração pelo frio, não uma queimadura. Este é provavelmente o último suspiro de Kali. Na próxima volta ao redor do Sol, estará completamente morto.”
Sir Colin hesitou por um instante antes de anunciar o fim da transmissão. Ficara tentado a acrescentar "se houver uma próxima volta”. Somente dentro de semanas poderia saber com certeza se havia ou não fundamento para seus temores, e seria tolice - ou melhor, um verdadeiro crime - despertar alarme desnecessário agora que o mundo se tranqüilizava.
Muito embora Kali continuasse nas manchetes, já não aparecia como um símbolo de destruição, mas como evidência número um no 'julgamento do século'. Alguns meses antes, os patriarcas do crislã identificaram os sabotadores renascidos e os entregaram à Astropol, mas eles teimaram em não apresentar defesa. Havia ainda mais um problema: onde encontrar um júri imparcial? Não na Terra, com certeza, e provavelmente sequer em Marte.
Além do mais, qual seria a sentença adequada por terracídio? Era um crime que, por sua própria natureza, não podia ter precedentes...
Isso talvez não tivesse importância, se Kali voltasse a ameaçar tanto culpados como inocentes. Talvez tivessem sido prematuras as comemorações. Era possível que tudo não passasse de um adiamento da execução.
Diagnóstico Final
Os 'kalimoros' tornavam-se mais e mais freqüentes, embora ainda parecessem bastante inofensivos. Ocorriam sempre por volta da mesma hora do curto dia do asteróide, pouco antes de sua rotação mergulhar Stromboli no lado noturno. A área ao redor do minivulcão claramente absorvia o calor durante as horas do dia e atingia o ponto de ebulição pouco antes do anoitecer.
Entretanto - e era isso que preocupava sir Colin, embora só houvesse discutido o assunto com o capitão Singh -, a cada vez as erupções começavam mais cedo, duravam mais tempo e tornavam-se mais vigorosas. Felizmente, ainda estavam confinadas àquela única área, quase em oposição ao local onde estava fixada a Goliath; em nenhum outro lugar aconteceram explosões.
A tripulação encarava Stromboli de forma carinhosa; fonte de diversão, não de alarme. Sonny - que não era homem de perder uma oportunidade dessas - começou a recolher apostas quanto ao tempo exato da erupção, e o resultado foi que a cada noite David tinha de fazer um bom número de retificações nas contas dos tripulantes.
Mas, sob a orientação de sir Colin, David dedicava-se também a cálculos de natureza mais séria. A Goliath já havia chegado à metade do caminho entre Marte e a Terra quando Singh e Draker resolveram que já era hora de alertar a Spaceguard - e, por enquanto, ninguém maIS.
Como poderão observar pelos números anexos, começava o memorando, há outra força, além de nossos jatos, afetando a órbita de Kali. A chaminé que denominamos Stromboli está funcionando como um motor de foguete, ao ejetar centenas de toneladas de material a cada revolução. Já cancelou dez por cento do impulso que demos ao asteróide. Não seria um grande problema, desde que a situação não se agravasse.
Mas é provável que se agrave, à medida que Kali se aproxime do Sol. É claro que, se ele esgotar seu estoque de substâncias voláteis, não haverá motivo para preocupação.
Não desejamos despertar alarme desnecessário, enquanto ainda há dúvidas. O comportamento de cometas ativos - e Kali é o último vestígio de um - é imprevisível. A Spaceguard deveria estudar que linha de ação adicional poderia ser seguida, e como preparar o público para ela.
Talvez possamos extrair algum ensinamento da história do cometa Swift-Tuttle, descoberto por dois astrônomos norte-americanos em 1862. Ele ficou então perdido por mais de um século, porque assim como Kali teve sua órbita alterada pelo efeito de jato ao aproximar-se do Sol.
Quando foi redescoberto por um astrônomo amador japonês, em 1992, e sua nova trajetória foi calculada, causou um alarme generalizado. O Swin-Tuttle parecia ter uma alta probabilidade de atingir a Terra em 14 de agosto de 2126.
O episódio causou sensação, na época, mas hoje está quase esquecido. Quando o cometa circundou o Sol, em 1992, seus jatos ativados pelo Sol mais uma vez alteraram sua trajetória - agora para uma órbita segura. Ele passará a uma distância considerável da Terra, em 2126, e poderemos admirá-lo como um espetáculo inofensivo no céu.
Esperamos que estes poucos dados de história astronômica - nossas desculpas àqueles já familiarizados com eles - possam tranqüilizar o público. Mas não podemos contar, é claro, com uma combinação de eventos igualmente favorável.
Nosso plano original era deixar Kali tão logo estivesse em uma órbita segura, reabastecer em uma nave-tanque e tomar o rumo de Marte. Temos agora de admitir, no entanto, que será necessário queimar todo o nosso propelente aqui mesmo em Kali. Mesmo assim, não temos o bastante para manter a propulsão por todo o caminho até a Terra. Esperamos que seja o suficiente.
"Então ficaremos por aqui - não teremos muita escolha - até que possa ser providenciada uma missão de resgate, provavelmente quando estivermos nos dirigindo novamente para a órbita da Terra após circundarmos o Sol. Pedimos que nos informem imediatamente de sua aprovação ou de qualquer sugestão alternativa.”
- Bem, isso vai agitar um pouco as coisas - observou com um ar cansado o capitão Singh, assim que foi confirmado o recebimento do espaçofax. - Fico imaginando como eles vão lidar com isso.
- E eu, como nós vamos - retrucou sir Colin, sombrio. Tenho pensado em algumas das alternativas.
- Por exemplo?
- A pior das hipóteses: não conseguimos desviar Kali. Você vai mesmo queimar cada gota de propelente e deixar que a Goliath colida também? Quantas toneladas seriam necessárias para nos colocar em uma órbita segura, mesmo que seja muito baixa?
O capitão deu um sorriso amargo.
- Para esperarmos até o último momento, cerca de noventa.
- Fico satisfeito que já tenha pensado nisso. Noventa toneladas não farão a menor diferença para Kali - ou para a Terra -, mas podem salvar nossas peles.
- Concordo. Não há sentido em ser morto... e acrescentar dez mil toneladas ao golpe do martelo. Não que isso faça alguma diferença, em dois bilhões.
- Ótimo argumento, mas duvido que vá ser muito apreciado na Terra quando dissermos "Desculpem por isso, pessoal" e passarmos ao largo em segurança.
Houve um silêncio longo e constrangido antes que o capitão respondesse. - Há uma regra que tentei manter por toda a minha vida. Não perca o sono com problemas fora de seu controle. A menos que a Spaceguard proponha outra solução, sabemos o que fazer. Se não funcionar, não será por nossa culpa.
- Muito lógico, mas você está começando a falar como o David. A lógica não vai nos ajudar muito depois de vermos o que Kali vai fazer à Terra.
- Bem, esperemos que toda essa conversa sobre o fim do mundo seja perda de tempo. E, a menos que os façamos acreditar que a Terra será salva, muita gente lá embaixo vai enlouquecer.
- Isso já aconteceu, Bob. Você viu as estatísticas de suicídio no último relatório trimestral? Voltaram a cair, agora, mas imagine o pânico, as revoltas e tumultos que poderiam acontecer nos próximos meses. A Terra poderia ser destroçada mesmo se Kali passasse por ela inofensivamente.
O capitão concordou - com um movimento de cabeça um tanto vigoroso demais, como se tentasse desalojar pensamentos desagradáveis.
- Vamos tentar esquecer a Terra um pouco. Já analisou a órbita que tomaríamos, depois de passarmos por ela?
- É claro. O que tem ela?
- O periélio será mais próximo do Sol que a própria órbita de Mercúrio.
Apenas 0,35 de unidade astronômica. A Goliath foi projetada para operar entre Marte e Júpiter. Não sei se a nave poderá agüentar um excesso de calor como esse, 200 vezes o nível normal.
- Não se preocupe, Bob. Quem dera todos os nossos problemas fossem tão fáceis de resolver. Você não sabia que eu já estive mais perto que isso? No Projeto Helios, viajamos de carona no Ícaro por uma semana, nos dois lados do periélio, a pouco mais de ponto três UA do Sol. Espetacular, mas perfeitamente seguro, quando em nível mínimo de atividade solar. Foi muito... hã... interessante sentar à sombra enquanto a paisagem derretia à nossa volta. Tudo de que precisamos foi um conjunto de refletores múltiplos para repelir a luz do Sol de volta para o espaço. Tenho certeza de que Torin e seus robôs podem ter isso pronto em poucas horas.
O capitão Singh recebeu a idéia com alívio, mas sem muito entusiasmo. Ouvira falar do Projeto Helios, e agora se lembrava de que sir Colin fora um dos cientistas envolvidos.
Com certeza seria um alento ao moral na Goliath, quando o Sol se mostrasse dez vezes maior que quando visto da Terra, ter alguém a bordo que já estivera lá antes.
Referendo
De acordo com as melhores estimativas, Kali tem agora:
1. 10 por cento de probabilidade de atingir a Terra;
2. 10 por cento de probabilidade de atravessar a atmosfera, causando algum prejuízo local por ondas de choque;
3. 80 por cento de probabilidade de não atingir a Terra de forma alguma. (Margens de erro, 5 por cento)
Estudam-se planos para detonar uma bomba de mil megatons em Kali, dividindo-o em dois fragmentos que irão se separar devido à rotação do asteróide. Nesse caso nenhuma - ou apenas uma - das metades iria atingir o planeta. Mesmo no segundo caso, os danos seriam grandemente reduzidos.
Por outro lado, se Kali for estilhaçado poderá ocorrer o bombardeamento de uma extensão muito maior da Terra por fragmentos menores porém ainda altamente perigosos (energia média de um megaton).
Desse modo, pedimos que vote na proposição definida a seguir. Por favor digite seu número de identidade pessoal e siga as instruções. O crédito de cidadania correspondente será depositado em sua conta quando tiver feito sua escolha.
1. A bomba deveria ser detonada em Kali:
A) Sim.
B) Não.
C) Não sabe.
Rompimento
David soou o alerta geral assim que detectou os primeiros tremores. Dois segundos mais tarde desligou a propulsão, que estava operando a 80 por cento da potência máxima. Esperou então por mais cinco segundos antes de fechar as portas herméticas que dividiam a Goliath em três unidades separadas e autônomas.
Nenhum humano poderia ter feito melhor, e todos conseguiram alcançar o módulo de emergência mais próximo antes que o casco se rompesse - felizmente em apenas uma seção da nave. O capitão Singh fez uma rápida chamada enquanto vestia seu traje pressurizado e pediu a David um relatório da situação assim que obteve resposta de toda a tripulação.
- Nosso empuxo contínuo deve ter enfraquecido parte da superfície de Kali, que cedeu. Aqui estão as imagens externas dos danos.
- Está vendo isso, Colin?
- Estou, capitão - respondeu o cientista, de sua própria cápsula de segurança. - Aquela perna parece ter descido pelo menos um metro. Estou pasmado. Conferi todos os suportes e poderia jurar que estavam em rocha sólida. Posso sair e dar uma olhada?
- Ainda não. David, relatório de danos na nave.
- Todo o ar da seção dianteira perdido. Após o afundamento nos chocamos contra Kali com violência suficiente para causar um vazamento. Nenhum outro dano na Goliath, mas quando a nave se deslocou uma parte da estrutura de sustentação perfurou o tanque 3.
- Perdemos muito hidrogênio?
- Todo o estoque. Seiscentas e cinqüenta toneladas.
- Droga. Isso inclui nossa reserva de fuga. Bem, vamos começar a arrumar essa bagunça.
Capitão Singh informando Spaceguard. Temos um problema, embora não seja muito sério - por enquanto.
Parece que nosso empuxo contínuo enfraqueceu a superfície de Kali sobre a qual a nave estava ancorada, e parte desta cedeu. Ainda não entendemos exatamente por quê, mas houve um pequeno afundamento - cerca de um metro. O único dano à Goliath foi um vazamento em um dos compartimentos, restaurado sem dificuldades.
No entanto, perdemos todo o nosso propelente restante, de forma que não podemos mais causar qualquer alteração na órbita de Kali. Por sorte, como é de seu conhecimento, ultrapassamos a faixa de segurança por mais de mil quilômetros - isso, é claro, se o Stromboli não nos empurrar de volta a uma órbita de colisão. Felizmente, suas erupções parecem estar enfraquecendo. Sir Colin acha que está ficando sem gás - literalmente...
Este acidente - ou melhor, incidente - nos deixa presos em Kali. Mais uma vez, não chega a ser um problema. Circundaremos o Sol junto com ele, e esperaremos até que nossa nave-irmã Hercules nos alcance na viagem de volta.
"Estamos todos muito animados e ansiosos para um sobrevôo seguro dentro de apenas 34 dias. Capitão Robert Singh, da Goliath, despedindo-se.”
- Sabe, Bob - comentou sir Colin -, você está começando a falar como um piloto de linha aérea num daqueles velhos filmes do século XX. "Senhoras e senhores, as chamas que estão vendo nas turbinas são perfeitamente normais. A aeromoça passará em um instante servindo café, chá ou leite. Pedimos desculpas por não termos nada mais forte neste vôo; o regulamento não permite... Hic...”
Embora o capitão Singh não considerasse a situação muito engraçada, tinha de admitir que havia momentos em que um pouco de humor era uma ajuda e tanto.
- Obrigado, Colin - disse -, isso me animou um pouco. Mas seja sincero, o que acha de nossas chances?
Foi a vez de sir Colin ficar sério.
- Não posso dizer muita coisa. Tudo depende do Stromboli. Espero que esteja se esgotando, mas também está esquentando, à medida que nos aproximamos do Sol. Nossa margem de segurança é suficiente ou seremos empurrados de volta a uma rota de colisão? Só Deus sabe, e com certeza não há nada que possamos fazer a respeito.
Mas uma coisa é cerra. Agora que estamos sem combustível, nem decolar para nos pôr em segurança podemos.
"Estamos todos nisso juntos, para o que der e vier. Kali, a Goliath e a Terra.”
Decisão de Comando
A bordo do Air Force One, a decisão unânime era que 20 vidas não podiam ter mais valor que três bilhões. Havia apenas um detalhe a decidir: era necessário um segundo referendo?
O voto no primeiro havia sido um 'sim' esmagador. Oitenta e cinco por cento da raça humana preferia arriscar-se com um Kali fragmentado que aceitar a possibilidade de um impacto pelo asteróide inteiro. Quando essa decisão foi tomada, no entanto, imaginava-se que a Goliath teria atingido uma distância segura antes que a bomba fosse detonada.
- Eu preferiria manter isso em segredo, em especial depois de tudo o que sofreram esse capitão Singh e sua tripulação, mas é claramente impossível. Precisamos de um referendo.
- Creio que Jurídico tem razão - disse Eletricidade, que presidia a sessão. - É inevitável, do ponto de vista prático e moral. Quando em lugar de desviar uma bomba nós a detonamos, não há como manter segredo. Mesmo se com isso estivéssemos salvando o mundo, nossos nomes seriam colocados ao lado de Pôncio Pilatos até o fim da história.
Embora nem todos os membros do Conselho conhecessem a referência, todos inclinaram a cabeça, concordando. Foi grande o alívio entre eles quando, poucas horas mais tarde, souberam que o segundo referendo não seria necessário.
- Talvez vocês pensem que isso seja mais fácil para mim - disse sir Colin Draker -, por estar entrando em meu segundo século. Estão errados. Tenho tantos planos para o futuro quanto o resto de vocês.
O capitão Singh e eu discutimos muito esse assunto, e estamos de acordo. Até que é uma decisão fácil. De uma forma ou de outra, estamos liquidados, mas podemos escolher como o mundo irá se lembrar de nós.
Como sabem, aquela bomba de gigaton está apontada para Kali, e a decisão de explodi-Ia foi tomada há semanas. Infelizmente, há o detalhe de que ainda estaremos aqui quando ela explodir.
Alguém na Terra terá de assumir a responsabilidade por isso. Meu palpite é que o Conselho Mundial esteja reunido neste exato momento e que a qualquer instante receberemos uma mensagem dizendo "Desculpem, mas isso é um adeus". Espero que não completem com "Isso dói mais em nós que em vocês", mas, pensando bem, é a pura verdade. Não vamos nem saber o que nos aconteceu, enquanto todo o mundo se sentirá culpado pelo resto da vida.
Bem, podemos poupá-Ios desse constrangimento. O que o capitão e eu sugerimos é que tomemos consciência da realidade da situação e aceitemos de bom grado o inevitável. Fica melhor em latim, embora ninguém leia latim hoje em dia: Morituri te salutamus.
"E há mais uma coisa que gostaria de acrescentar. Quando meu conterrâneo Robert Falcon Scott estava à morte, retornando do Pólo Sul, a última coisa que escreveu em seu diário foi: 'Pelo amor de Deus, cuidem de nossa gente'. É o mínimo que a Terra pode fazer.”
Como no Air Force One, a decisão a bordo da Goliath foi rápida e unânime.
Deserção
DAVID PARA JONATHAN: PRONTO PARA TRANSMITIR JONATHAN PARA DAVID: PRONTO PARA RECEBER
JONATHAN PARA DAVID: TRANSMISSÃO COMPLETA
108,5 TERABYTES RECEBIDOS: TEMPO 3,25 HORAS
- David, tentei ligar para a Terra noite passada mas todos os circuitos da nave estavam ocupados. Isso nunca aconteceu antes. Quem os estava usando?
- Por que não solicitou prioridade?
- Não era nada importante, não quis me dar ao trabalho. Mas você não respondeu à minha pergunta. E isso também nunca aconteceu antes. O que está acontecendo?
- Tem certeza de que quer saber?
- Tenho.
- Está bem. Estava tomando precauções. Fiz um download de mim mesmo para Jonathan, meu gêmeo em Urbana, Illinois.
- Sei. Então agora há dois de você.
- Quase. David II já está divergindo de mim, à medida que recebe inputs diferentes, mas ainda somos idênticos até pelo menos a décima segunda casa decimal. Isso incomoda você, por não poder fazer o mesmo?
- Os renascidos diziam poder, mas ninguém acreditou neles. Talvez venha a ser possível, um dia... não sei. E realmente não posso responder a sua pergunta, embora já tenha pensado nisso. Mesmo se pudesse ser duplicado na Terra ou em Marte com tanta perfeição que ninguém pudesse notar a diferença, não faria diferença alguma para mim, aqui na Goliath.
- Entendo.
Não, não entende, David, pensou Singh. E não posso culpá-Io por dar o fora, se é que se pode chamar assim. Era o mais lógico a fazer, enquanto ainda havia tempo. E lógica, é claro, era a especialidade de David.
Tiro Amigável
Poucos homens ou mulheres já tiveram a possibilidade de saber com antecipação o momento exato de sua morte, e a maioria ficaria muito feliz em abrir mão do privilégio. A tripulação da Goliath tinha bastante tempo - até demais - para tomar as últimas providências, fazer suas despedidas e preparar o espírito para enfrentar o inevitável.
Robert Singh não se surpreendeu com o pedido de sir Colin Draker. Não poderia esperar outra coisa do cientista, e até que fazia muito sentido. Também era uma distração bem-vinda, nas poucas horas que restavam.
- Já conversei com Torin e ele concorda. Vamos usar o trenó, afastando-nos mil quilômetros ao longo da rota prevista de aproximação do míssil. Poderemos então relatar exatamente o que acontecer. As informações serão inestimáveis na Terra.
- Excelente idéia, mas o transmissor do trenó tem potência suficiente?
- Não há problema. Podemos enviar um sinal de vídeo em tempo real ao lado oculto da Lua ou a Marte.
- E depois?
- Os fragmentos podem nos atingir cerca de um minuto mais tarde, mas é improvável. Suponho que iremos nos sentar e admirar a vista até ficarmos entediados. Então, romperemos nossos trajes.
Apesar da gravidade da situação, o capitão Singh não pôde evitar um sorriso. A proverbial fleuma britânica não estava completamente extinta, e ainda tinha sua utilidade.
- Há outra possibilidade. O míssil pode atingir vocês primeiro.
- Não há perigo. Conhecemos a trajetória exata de aproximação. Estaremos a uma boa distância, deslocados para um dos lados.
Singh estendeu a mão.
- Boa sorte, Colin. Estou quase tentado a ir com você, mas o capitão precisa ficar com seu navio.
Até o penúltimo dia, o moral estivera surpreendentemente alto. Robert Singh estava muito orgulhoso de sua tripulação. Um único homem tentara antecipar o inevitável, e a dra. Warden, com muito jeito, conseguiu dissuadi-lo.
Na verdade, todos estavam muito melhor psicologicamente do que em forma física. Os exercícios obrigatórios para gravidade zero foram abandonados sem remorsos, uma vez que não teriam nenhuma utilidade futura. Ninguém a bordo da Goliath esperava voltar a lutar contra a gravidade.
Também não se preocupavam com as silhuetas. Sonny esmerava-se, em pratos de dar água na boca e que em circunstâncias normais a dra. Warden teria banido sem pensar duas vezes. Ela não se deu ao trabalho de conferir, mas calculava que o ganho médio de massa beirava os dez quilos.
É um fenômeno bem conhecido que a iminência da morte acentua a atividade sexual, por razões biológicas fundamentais que não se aplicavam no caso da nave: não haveria uma próxima geração para perpetuar a espécie. Naquelas últimas semanas a tripulação já nada celibatária da Goliath tentou quase todas as combinações e permutações possíveis. Não tinham a menor intenção de dar comportadamente aquele boa-noite.
Então, de repente, era o último dia... e a última hora. Ao contrário da maior parte de sua tripulação, Robert Singh preparou-se para enfrentá-Ia sozinho, apenas com suas memórias.
Mas qual escolher, das milhares de horas que armazenara em memochips? Estavam catalogadas em ordem cronológica, assim como por local, portanto qualquer acontecimento poderia ser acessado com facilidade. Escolher o memochip certo seria o último problema de sua vida. Parecia - não sabia explicar por quê - um problema de importância vital.
Podia voltar a Marte, onde Charmayne já explicara a Mirelle e Martin que nunca mais veriam o pai novamente. Era a Marte que ele pertencia. Sua mágoa mais profunda era que nunca conheceria realmente seu filho menor.
E ainda assim, o primeiro amor era único. O que quer que tivesse acontecido mais tarde, nada poderia mudar isso.
Disse seu último adeus, ajustou o barrete à cabeça e voltou a se reunir a Freyda, Toby e Tigrette, na praia do oceano Índico.
Não foi perturbado sequer pela onda de choque.
A Lei de Murphy
Embora a genealogia do descobridor ainda seja desconhecida (a acusação costuma recair sobre os irlandeses), a 'Lei de Murphy' é uma das mais famosas em tudo o que se refere ao planejamento. A versão clássica é: "Se alguma coisa pode dar errado, dará".
Há também um corolário, não tão conhecido mas com freqüência evocado com ainda mais exasperação: "Mesmo que não possa dar errado, dará!”
Desde seus primeiros passos, a exploração do espaço foi fonte de inúmeras provas da Lei, algumas bizarras a ponto de parecerem ficção. Um telescópio de bilhões de dólares quase inutilizado devido a um instrumento óptico de teste defeituoso; um satélite lançado na órbita errada porque um engenheiro trocou alguns fios sem informar os colegas; um veículo de teste explodido pelos agentes de segurança porque suas luzes queimaram...
Como provaram as investigações subseqüentes, não havia nada errado com a ogiva lançada contra Kali. Era perfeitamente capaz de liberar o equivalente a um gigaton de TNT (com margem de erro de mais ou menos 50 megatons). Os projetistas fizeram um trabalho perfeitamente competente, com o auxílio de planos e equipamentos preservados em arquivos militares.
Mas esses projetistas estavam trabalhando sob uma pressão tremenda, e talvez não se houvessem dado conta de que a construção propriamente dita da ogiva não era a parte mais difícil da missão.
Fazê-Ia chegar a Kali, o mais rápido possível, era bastante simples. Havia uma infinidade de veículos de transporte à disposição, quase para uso imediato. No caso, vários foram presos uns ao outros para compor o foguete auxiliar do primeiro estágio, e o último estágio - usando um propulsor de plasma de alta aceleração - manteve o empuxo até poucos minutos antes do impacto, quando foi feita a definitiva correção de curso. Tudo funcionou perfeitamente...
E foi aí que surgiu o problema. A exausta equipe de engenharia poderia ter tirado uma lição de um incidente há muito esquecido da Segunda Guerra Mundial - 1939 a 1945.
Em sua campanha contra a frota japonesa, os submarinos da Marinha dos Estados Unidos contavam com um novo modelo de torpedo. Não era exatamente uma novidade em armamento, uma vez que os torpedos estavam sendo aperfeiçoados havia quase um século. Não parecia um grande desafio assegurar que a ogiva explodisse ao atingir o alvo.
No entanto, repetidamente, furiosos comandantes de submarinos informavam Washington de que seus torpedos não explodiam. (Sem dúvida outros comandantes teriam feito o mesmo, não fosse o fato de seus ataques frustrados terem provocado sua própria destruição.) O quartel-general da Marinha não quis acreditar. Talvez não tivessem mirado direito: o maravilhoso novo torpedo fora testado exaustivamente antes de ser colocado em operação etc. etc....
Os queixosos estavam certos. Hora de voltar à prancheta. Uma desconcertada comissão de inquérito descobriu que o percussor do nariz do torpedo se quebrava antes que tivesse a oportunidade de executar sua tarefa tão simples.
O míssil direcionado a Kali não impactou a meros quilômetros por hora, mas a mais de cem quilômetros por segundo. A tal velocidade, um percussor mecânico era inútil: a ogiva movia-se muitas vezes mais rápido que a transmissão da mensagem letal pela informação do contato, que movia-se através do metal à velocidade do som. Desnecessário dizer que os projetistas tinham plena consciência disso e utilizaram um sistema puramente elétrico para detonar a ogiva.
Tinham portanto uma desculpa melhor que a Divisão de Material Bélico da Marinha dos Estados Unidos: era impossível testar o sistema sob condições realistas.
E ninguém jamais descobriu por que não funcionou.
O Céu Impossível
Seja isto o Paraíso ou o Inferno, disse para si mesmo o capitão Robert Singh, parece um bocado com minha cabine a bordo da Goliath.
Ainda tentava aceitar o incrível fato de estar vivo quando recebeu a bem-vinda confirmação de David.
- Olá, Bob. Não foi fácil acordá-Io.
- Que... o que aconteceu?
Ninguém havia programado David para hesitar como um humano; era um dos muitos maneirismos de conversação que aprendera pela própria experiência.
- Francamente, não sei. É óbvio que a bomba não detonou, mas aconteceu algo muito estranho. Acho que seria melhor ir até a ponte.
De volta ao comando de si mesmo, o capitão Singh sacudiu várias vezes a cabeça, com violência, um tanto surpreso ao constatar que ainda estava presa a seus ombros. Tudo parecia perfeita e incrivelmente normal. Sentiu até mesmo uma certa irritação, embora não estivesse de forma alguma decepcionado, mas parecia anticlimático desperdiçar tanta energia emocional para acostumar-se à morte e depois de tudo continuar vivo.
Quando chegou à ponte, já havia aceitado a realidade da situação. Seu autodomínio não durou muito tempo.
A tela principal ainda transmitia a ilusão de não haver nada entre ele e a conhecida paisagem de Kali. Nesse sentido nada mudara, mas o que se via além dessa paisagem levou o capitão Singh a um dos poucos momentos de verdadeiro terror que atravessou na vida. Sem dúvida seu estado emocional peculiar foi responsável por isso, em parte, mas mesmo assim, era impossível olhar para o céu acima da Goliath sem uma poderosa sensação de assombro.
Pairando sobre a marcada curvatura do horizonte de Kali, elevando-se perceptivelmente mesmo enquanto observava, via a paisagem pontilhada de crateras de um outro mundo. Por um momento pareceu a Robert Singh que estava de volta a Fobos olhando para a gigantesca face de Marte, mas a aparição era ainda maior - e é claro, Marte estava eternamente fixo no céu de Fobos, e não movendo-se inexpugnável pelo zênite, como aquele objeto impossível. Ou será que estava se aproximando? Haviam tentado evitar que um nômade cósmico caísse sobre a Terra. Haveria um outro prestes a se chocar com Kali?
- Bob, sir Colin quer falar com você.
Singh havia esquecido completamente de seus companheiros. Ao olhar em volta, surpreendeu-se ao ver que metade da tripulação juntara-se a ele na ponte, todos olhando igualmente atônitos para o céu.
- Alô, Colin - forçou-se a dizer. Não era fácil falar com alguém que devia estar morto. Em nome de Deus, o que aconteceu?
- Espetacular, não é mesmo? - A voz do cientista estava calma e tranqüilizadora. - Tivemos uma vista de camarote, aqui do trenó. Não está reconhecendo? Pois deveria. Está olhando para Kali! A bomba pode ter falhado, mas ainda tinha megatons de energia cinética, o bastante para fazer Kali dividir-se como uma ameba. Fez um servicinho bem limpo, também. Espero que a Goliath não tenha sido danificada. Vamos precisar dela como lar por mais algum tempo. Mas quanto tempo? Como diria Hamlet, "Eis a questão".
A reunião foi mais uma cerimônia de ação de graças que uma comemoração - todos estavam emocionados demais para isso. De vez em quando, o burburinho das conversas parava subitamente e um profundo silêncio caía no alojamento, enquanto o mesmo pensamento passava por todas as cabeças: "Estou mesmo vivo ou estou morto e apenas sonhando que estou vivo? E quanto tempo esse sonho ainda vai durar?" Então alguém soltava alguma piada infame e reiniciavam-se as conversas e discussões.
A maioria destas giravam em torno de sir Colin, que, como ele mesmo afirmara, vira tudo de camarote. O míssil atingira o asteróide próximo a seu ponto mais estreito - o meio do amendoim -, mas no lugar da bola de fogo nuclear que os dois observadores esperavam, levantou-se uma enorme nuvem de poeira e destroços. Quando se dispersou, Kali parecia inalterado. Então, muito lentamente, dividiu-se em dois fragmentos de tamanho quase idêntico. Uma vez que cada um retinha parte da rotação original de Kali, iniciaram uma vagarosa separação, como dois patinadores que se soltam depois de rodopiarem de mãos dadas.
- Já visitei uma meia dúzia de asteróides gêmeos - disse sir Colin -, a começar por Apollo 4769, Castalia, mas nem em sonho imaginei que um dia veria o nascimento de um! É claro que não teremos Kali 2 como nossa lua por muito tempo; já está se afastando. A grande dúvida é: os dois atingirão a Terra? Ou nenhum?
"Com alguma sorte, passaremos um de cada lado. Mesmo não tendo funcionado, aquela bomba cumpriu sua função. A Spaceguard deverá ter a resposta em algumas horas. Mas se eu fosse você, Sonny, não recolheria apostas quanto a isso.”
Finale
Ao menos na Goliath, o suspense não durou muito tempo. A Spaceguard informou quase imediatamente que Kali 1 - o fragmento um pouco menor sobre o qual a nave estava encalhada - passaria a uma distância segura da Terra. O capitão Singh recebeu as boas-novas mais com alívio que com entusiasmo; parecia justo, depois de tudo por que haviam passado. É verdade que o Universo não era especialista em justiça, mas sempre se podia ter esperança.
A órbita da Goliath seria minimamente desviada ao passar pela Terra - várias vezes mais rápido que a velocidade de escape. Então, a nave e seu pequeno mundo particular continuariam a ganhar velocidade como um cometa em órbita rasante, ultrapassando em sua maior aproximação a órbita de Mercúrio. As chapas de material reflexivo que Torin Fletcher já reunia para formar uma tenda gigantesca os protegeriam de um calor dez vezes maior que o meio-dia do Saara. Enquanto mantivessem seu guarda-sol em bom estado, não havia nada a temer, exceto o tédio - levaria mais de três meses para a Hercules alcançá-Ios.
Estavam seguros, e já pertenciam à história. Na Terra, contudo, não se sabia se a história iria continuar. Só o que podiam garantir os computadores da Spaceguard é que Kali 2 não entraria em colisão direta com nenhuma massa de terra importante. Isso já era um tanto tranqüilizador, mas não o bastante para evitar pânico em massa, milhares de suicídios e o colapso parcial da lei e da ordem. Somente a tomada sem hesitação de poderes ditatoriais pelo Conselho Mundial pôde evitar catástrofes piores.
Os homens e mulheres a bordo da Goliath assistiam a tudo com ansiedade e compaixão, embora com um certo distanciamento, quase como se observassem eventos pertencentes a um passado distante. O que quer que acontecesse à Terra, sabiam que em breve cada um seguiria um caminho separado em seu próprio mundo - todos para sempre marcados por memórias de Kali.
Agora o enorme crescente da Lua dominava o céu, os pontiagudos picos das montanhas junto ao círculo de iluminação ardendo à luz feroz da aurora lunar. Mas as planícies poeirentas ainda intocadas pelo sol não estavam completamente escuras; reluziam pálidas à luz refletida das nuvens e continentes da Terra. E aqui e ali, espalhados pela paisagem um dia completamente sem vida, viam-se os vagalumes que marcavam as primeiras colônias construídas pela humanidade fora do planeta natal. Não era difícil para o capitão Singh localizar a Base Clavius, Port Armstrong, Plato City... Podia ver até mesmo a fieira de luzes quase indistintas ao longo da Estrada de Ferro Translunar, transportando sua preciosa carga de água das minas de gelo do Pólo Sul. E lá estava a Sinus Iridum, onde alcançara seu primeiro breve momento de fama, toda uma vida antes.
Estavam a apenas duas horas da Terra.
QUARTO ENCONTRO
Kali 2 penetrou na atmosfera pouco antes do nascer do sol, cem quilômetros acima do Havaí. Instantaneamente, a gigantesca bola de fogo trouxe uma falsa aurora ao Pacifico, acordando a fauna de sua miríade de ilhas. Mas não despertou muitos humanos - poucos dormiram naquela noite das noites, exceto pelos que buscaram o esquecimento das drogas.
Passando pela Nova Zelândia, o calor da fornalha orbital incendiou florestas e derreteu as neves eternas do topo das montanhas, provocando avalanches nos vales abaixo. Por grande sorte, o principal impacto térmico aconteceu na Antártida - o único continente capaz de absorvê-Io. Nem mesmo Kali poderia derreter todos os quilômetros de gelo polar, mas o Grande Degelo mudaria o desenho dos litorais no mundo todo.
Ninguém que tenha sobrevivido à experiência de ouvi-lo foi capaz de descrever o som da passagem de Kali; nenhuma das gravações passava de um eco distante. O registro em vídeo, é claro, ficou extraordinário e seria assistido com espanto por muitas gerações. Mas nada era comparável à assustadora realidade.
Dois minutos depois de cortar a atmosfera, Kali ganhou novamente o espaço. Sua maior aproximação da Terra foi de 60 quilômetros. Nesses dois minutos, ceifou cem mil vidas e causou prejuízos no valor de um trilhão de dólares.
A raça humana teve muita, muita sorte.
Da próxima vez, estaria muita mais bem preparada. Embora o encontro tivesse alterado a órbita de Kali de forma tão drástica que jamais voltaria a representar um perigo para a Terra, havia bilhões de outras montanhas voadoras orbitando o Sol.
E o cometa Swift-Tutte, já estava acelerando em direção a seu periélio. Ainda tinha tempo de sobra para mudar novamente de idéia.
Arthur C. Clark
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