Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
Terra Imperial
UM GRITO NA NOITE
Duncan Makenzie tinha dez anos quando encontrou o número mágico. Foi pura sorte; queria chamar a avó Ellen, mas foi descuidado e seus dedos devem ter tocado as teclas erradas. Notou logo que tinha cometido um engano, porque o vídeo da avó tinha um atraso de dois segundos, mesmo em autogravação. Este circuito surgiu imediatamente. Contudo não houve ruído de chamada e nenhuma imagem. A tela estava completamente branca, sem nem mesmo um pontinho de interferência. Duncan supôs que tivesse ligado para um canal de apenas-áudio, ou que houvesse alcançado uma estação em que a câmara estivesse desligada. De qualquer modo, certamente aquele não era o número da avó e procurou interromper a ligação.
Aí notou um som. Primeiro, pensou que alguém estivesse respirando baixinho no microfone, na outra extremidade, mas rapidamente percebeu seu engano. Havia algo de ocasional e nada humano naquele sussurro delicado; não possuía um ritmo regular, e havia longos intervalos de completo silêncio.
Enquanto escutava, Duncan sentiu um crescente espanto. Aí estava uma coisa completamente fora da sua experiência cotidiana normal, no entanto reconheceu aquilo quase imediatamente. Nos seus dez anos de vida, as impressões de vários mundos foram gravadas em sua mente e ninguém que tivesse ouvido estes sons tão evocativos poderia jamais esquecê-los — estava ouvindo a voz do vento, que suspirava e sussurrava através da paisagem sem vida, cem metros acima da sua cabeça.
Duncan esqueceu-se completamente da avó e aumentou o volume ao máximo. Reclinou-se no sofá, fechou os olhos e tentou projetar-se no mundo desconhecido e hostil do qual estava protegido por todos os recursos de segurança que trezentos anos de tecnologia espacial puderam conceber. Algum dia, quando ele passasse nos testes de sobrevivência, subiria até aquele mundo e veria com seus próprios olhos os lagos e abismos e as nuvens cor de laranja, aparentemente baixas, iluminadas pelos raios tênues e frios do sol distante. Havia esperado por esse dia não com entusiasmo, mas com tranqüila expectativa — os Makenzies eram conhecidos por sua falta de entusiasmo —, mas agora percebeu subitamente o que estava perdendo. Tal como uma criança da Terra, em algum deserto poeirento longe do oceano, que tivesse apertado uma concha contra o ouvido e escutado com saudade doentia a música do mar inatingível.
Não havia mistério no som, mas, como o estava atingindo? Poderia estar vindo de qualquer dos cem milhões de quilômetros quadrados que ficavam acima da sua cabeça. Em alguma parte — talvez numa construção abandonada de projeto ou estação experimental — um microfone em ordem foi deixado ligado, exposto aos ventos gelados e venenosos do mundo superior. Era pouco provável que permanecesse desapercebido. Mais cedo ou mais tarde seria descoberto e desligado. Devia captar essa mensagem do mundo exterior enquanto ainda estivesse lá; mesmo que soubesse o número que chamou acidentalmente, duvidava que pudesse estabelecer de novo o contato.
A quantidade de material audiovisual que Duncan tinha armazenado sob a rubrica MISCELANEA era notável, mesmo para uma criança curiosa de dez anos. Não era que lhe faltasse capacidade de organização — esta era uma das qualidades mais elogiadas dos Makenzies —, mas estava interessado em mais coisas do que podia catalogar. Agora estava começando a aprender, à própria custa, que a informação que não é apropriadamente classificada pode ser irremediavelmente perdida.
Pensou atentamente por um minuto, enquanto o vento solitário soluçava e mugia trazendo o frio do espaço para dentro do seu quartinho quente. Aí ele apertou ALPHA INDEX SONS DE VENTO # REGISTRO PERMANENTE #.
No momento em que apertou a tecla do # ou tecla EXECUTE, tinha começado a captar aquela voz do mundo superior. Se tudo corresse bem, poderia trazê-la de volta a qualquer momento, usando o título SONS DE VENTO do índex. Mesmo se tivesse cometido um erro e o programa de seleção do aparelho tivesse falhado em localizar a gravação, esta estaria em algum lugar da memória permanente e inapagável da máquina. Havia sempre a esperança de que pudesse um dia encontrá-la de novo por acaso, como estava sempre acontecendo com as informações que arquivou na categoria de MISC.
Decidiu continuar gravando por alguns minutos mais, antes de completar a ligação interrompida para a avó. Como por acaso, o vento deve ter diminuído exatamente no momento em que ele tocou a tecla EXECUTE, porque houve um longo e frustrante silêncio. Então, surgindo do silêncio, apareceu algo novo.
Era vago e distante, contudo dava a impressão de uma força incrível. A princípio era um grito frio, que aumentou de intensidade a cada segundo, mas, seja como for, nunca se aproximou demais. O grito mudou subitamente para um uivo demoníaco, com subtons de trovão. Depois desapareceu tão rápido como tinha aparecido. Do início ao fim durou menos de meio minuto. Depois ficou apenas o sussurrar do vento, ainda mais solitário que antes.
Por um longo e delicioso momento, Duncan saboreou o prazer inigualável do medo sem perigo. Depois reagiu como sempre fez quando deparava com algo novo ou excitante. Ligou para o número de Karl Helmer e disse:
— Escute isto.
A três quilômetros de distância, na extremidade norte de Casis City, Karl esperou até que um fino grito morresse no silêncio. Como sempre sua cara não revelava seus pensamentos. Disse imediatamente:
— Vamos ouvi-lo novamente.
Duncan repetiu a gravação confiante de que o mistério seria logo resolvido. Pois Karl tinha 15 anos e, conseqüentemente, sabia tudo.
Aqueles olhos ofuscantemente azuis, aparentemente tão cândidos, porém já tão cheios de segredos, encararam Duncan. A surpresa e sinceridade de Karl eram totalmente convincentes quando exclamou:
— Você não reconheceu?
Duncan hesitou. Já havia pensado em várias possibilidades evidentes, mas se opinasse errado Karl acharia graça dele. Melhor se garantir. . .
— Não — respondeu. — E você?
— Claro — disse Karl, no seu tom de voz mais superior. Fez uma pausa para causar efeito, depois inclinou-se na direção da câmara, de modo que seu rosto cresceu enormemente na tela.
— É um Hidrossauro excitado.
Por uma fração de segundo, Duncan o levou a sério, o que era exatamente o que Karl tencionava. Rapidamente se recuperou e sorriu de volta para o amigo.
— Você está maluco. Então você não sabe o que é.
Pois o Hidrossauro Rex, monstro que respirava gás metano, era uma brincadeira deles, o produto de imaginações joviais, inflamada por figuras da Terra antiga e pelas maravilhas que ela produziu no início da criação. Duncan sabia perfeitamente que nada vivia agora, ou jamais viveu, no mundo que ele chamava de lar; somente o Homem caminhou sobre sua superfície gelada. Todavia, se o Hidrossauro pudesse ter existido, aquele som medonho poderia de fato ter sido seu grito de batalha, no momento em que pulasse sobre o calmo Carbotherium, chafurdando num lago de amônia. . .
— Ah, eu sei o que fez aquele barulho — disse Karl com esperteza. — Você não percebeu? Aquilo era a pá de um navio-tanque fazendo uma coleta. Se você chamar o Controle de Tráfico, eles vão dizer a você para onde estava indo.
Karl tinha-se divertido e sem dúvida a explicação estava correta. Duncan já tinha pensado nela, mas esperava algo mais romântico. Embora fosse talvez um exagero esperar monstros de metano, uma nave espacial como cotidiano era um anticlímax desalentador, Sentiu-se como que abandonado e ficou arrependido de ter dado a Karl uma outra oportunidade de esvaziar seus sonhos. Karl era bastante bom nisso.
Mas, como todos os meninos sadios de dez anos, Duncan era teimoso. A magia não tinha sido destruída. Embora as primeiras naves tivessem partido da Terra três séculos antes do seu nascimento, o fascínio do espaço ainda não havia sido extinto. Havia romantismo bastante num grito vindo do limite da atmosfera, enquanto o navio-tanque em órbita colhia hidrogênio para abastecer o comércio do Sistema Solar.
Em algumas horas aquela carga preciosa estava caindo na direção do Sol, passando pelas outras luas de Saturno, passando o gigantesco Júpiter, para encontrar-se com uma das estações de abastecimento que giram em torno dos planetas internos. Gastaria meses — mesmo anos — para chegar lá, mas não havia pressa. Desde que o hidrogênio barato corresse através da rede invisível através do Sistema Solar, os foguetes de fusão poderiam voar de mundo a mundo, assim como antes os transatlânticos percorriam os mares da Terra.
Duncan entendia deste assunto melhor do que qualquer garoto da sua idade. A economia do hidrogênio foi também a história da sua família e dominaria seu futuro quando ele estivesse com bastante idade para participar dos negócios de Titã. Já fazia quase um século que seu avô Malcolm percebeu que Titã era a chave para todos os planetas e sabiamente usou este conhecimento em benefício da humanidade e dele próprio.
Por isso Duncan continuou a ouvir a gravação depois de Karl ter desligado. Repetidas vezes reproduziu aquele grito triunfante de força, tentando detectar o momento exato em que foi finalmente engolido pelos abismos do espaço. Durante anos aquilo iria perseguir seus sonhos: ele acordaria durante a noite, convencido de que o tinha ouvido de novo através do teto do rocha que protegia o Oásis do deserto hostil acima da sua cabeça.
E quando finalmente adormecesse, iria sonhar novamente com a Terra.
DINASTIA
Malcolm Makenzie tinha sido o homem certo, no momento certo. Outros antes dele haviam olhado com cobiça para Titã, mas ele foi o primeiro a resolver todos os detalhes de engenharia e a conceber o sistema total dos coletores orbitais, compressores e tanques baratos que pudessem reter seu hidrogênio líquido com uma perda mínima, enquanto caíam lentamente na direção do Sol.
Anteriormente, em 2180, Malcolm fora um jovem e promissor desenhista espacial em Port Lowell, tentando fazer aeronaves que pudessem transportar cargas úteis na atmosfera tênue de Marte. Naquela época, ele era Malcolm Makenzie, porque o engano do computador que mudou irrevogavelmente seu nome de família não tinha ainda ocorrido até o momento da sua imigração para Titã. Depois de gastar cinco anos em fúteis tentativas de correção, Malcolm finalmente cooperou com o inevitável. Foi uma das poucas batalhas em que os Makenzies admitiram a derrota, mas agora estavam orgulhosos deste nome diferente.
Quando terminou seus cálculos e roubou bastante tempo do computador-esboçador para preparar um belo conjunto de desenhos, o jovem Malcolm já tinha se aproximado do Escritório de Planejamento do Departamento de Transporte de Marte. Não esperava críticas severas porque sabia que seus fatos e sua lógica eram impecáveis.
Uma nave transespacial de fusão das grandes poderia usar dez mil toneladas de hidrogênio apenas num vôo, meramente como fluido de trabalho inerte. Noventa e nove por cento deste fluido não tomavam parte na reação nuclear, mas eram lançados fora dos jatos sem transformação, a dezenas de quilômetros por segundo, fornecendo propulsão às naves que dirigiam entre os planetas.
Havia bastante hidrogênio na Terra, facilmente obtido nos oceanos; porém, o custo anual de megatons propulsores no espaço era tremendo. E os outros mundos habitados — Marte, Mercúrio, Ganymede, e a Lua — não podiam ajudar. Não tinham nenhum hidrogênio extra.
Claro que Júpiter e os outros gigantes gasosos possuíam quantidades ilimitadas deste elemento vital, mas seus campos de gravitação o guardavam mais eficazmente que qualquer dragão infatigável que vigiasse o tesouro mítico dos Deuses. Em todo o Sistema Solar, Titã era o único lugar onde a natureza tinha concebido o paradoxo da baixa gravidade e uma atmosfera notavelmente rica em hidrogênio e seus compostos.
Malcolm tinha razão em supor que ninguém poderia desafiar seus cálculos, ou negar a falibilidade do esquema, mas um bondoso administrador encarregou-se de ensinar ao jovem Makenzie os fatos políticos e econômicos da vida. Aprendeu, com notável velocidade, curvas de crescimento, descontos a longo prazo e dívidas interplanetares, e índices de depreciação e de desuso tecnológico, e entendeu pela primeira vez por que o solar era baseado, não em ouro, mas em kilowatts-hora.
— É um velho problema — seu mentor lhe explicava pacientemente. — De fato, origina-se bem no início da astronáutica, no século vinte. Nós não poderíamos ter tido vôos espaciais comerciais, até que houvesse colônias extraterrestres florescentes e não poderíamos ter tido colônias até que houvesse transporte espacial comercial. Nessa situação de aperto, tem-se uma taxa de crescimento muito lenta, até que se atinja o ponto de largada. Então, de repente, as curvas começam a disparar para cima e você está metido no negócio... Poderia ocorrer o mesmo com o seu esquema de reabastecimento de Titã. . . mas você tem alguma idéia do investimento inicial exigido? Somente o Banco Mundial possivelmente poderia financiá-lo. . .
— E o Banco de Selene? Não dizem que é mais corajoso?
— Não acredite em tudo que ouvir sobre os gnomos de Aristarco; são tão precavidos corno qualquer outro. Precisam ser assim; os banqueiros da Terra ainda podem continuar respirando, se fizerem um mau investimento. . .
Porém foi o Banco de Selene, três anos depois, que patrocinou os cinco megassóis para o estudo inicial de viabilidade. Depois Mercúrio se interessou, e finalmente Marte. Nesta altura, é claro, Malcolm não era mais engenheiro aeroespacial. Tornou-se — não necessariamente nesta ordem — especialista em finanças, conselheiro de relações públicas, manipulador de mídia e político sagaz. No espaço incrivelmente curto de 20 anos, os primeiros carregamentos de hidrogênio estavam partindo na direção do Sol, provenientes de Titã.
A façanha de Malcolm foi extraordinária, agora bem documentada por dúzias de estudos de doutorados, todos respeitosos, embora alguns pouco elogiosos. O que a tornava tão notável — mesmo única — foi a maneira pela qual ele converteu sua capacidade tecnológica, duramente obtida, em capacidade administrativa. O processo foi tão imperceptível que ninguém compreendeu o que estava acontecendo. Malcolm não foi o primeiro engenheiro a tornar-se chefe de Estado; mas foi o primeiro, seus críticos apontavam amargamente, a estabelecer uma dinastia. E ele o fez contra obstáculos que teriam desencorajado homens mais fracos.
Em 2195, na idade de 44 anos, casou-se com Ellen Killner, recentemente emigrada da Terra. Sua filha Anitra foi a primeira criança a nascer na pequena comunidade de fronteira Oásis, naquela época a única base permanente em Titã, e passaram-se vários anos até que seus devotados pais percebessem que a natureza lhes tinha pregado uma peça cruel.
Mesmo quando bebê, Anitra era bonita e confidencialmente lhe tinha sido vaticinado que quando crescesse estaria completamente mimada. Desnecessário dizer que ainda não havia psicólogos em Titã, de modo que ninguém tinha notado que a menina era exageradamente dócil, bem comportada demais e muito quieta. Só quando já estava com quatro anos é que Malcolm e Ellen finalmente aceitaram o fato de que Anitra nunca poderia falar e de que havia alguém realmente pouco à vontade naquele encantador invólucro que seus corpos tinham criado.
A culpa era dos genes de Malcolm, não dos de Ellen. Em algum momento durante suas mudanças para cá e para lá entre a Terra e Marte, um fóton errante, que estava cruzando o espaço desde a aurora cósmica, destruiu suas esperanças para o futuro. O dano foi irreparável, como Malcolm descobriu, quando consultou os melhores cirurgiões geneticistas dos quatro mundos. Era um pensamento aterrador saber que ele tinha sido até afortunado com Anitra. O resultado poderia ter sido pior, muito pior...
Para tristeza e alívio de um mundo inteiro, Anitra faleceu antes dos seis anos e o casamento dos Makenzies morreu com ela, numa rajada de mágoa e recriminação. Ellen se atirou ao trabalho e Malcolm partiu para o que seria sua última visita à Terra. Ele viajou por quase dois anos e conseguiu muito nesse período.
Consolidou sua posição política e determinou o padrão de desenvolvimento econômico em Titã para a metade do século vindouro. E conseguiu o filho ao qual agora se dedicava de corpo e alma.
O enxerto humano — a criação de réplicas exatas de outro indivíduo a partir de qualquer célula do corpo, excetuando-se as células reprodutoras — já tinha sido conseguido ainda no século vinte. Mesmo quando a técnica tinha-se aperfeiçoado, seu uso nunca se generalizou, parte por causa de objeções éticas, e parte porque havia poucas circunstâncias em que este uso se justificasse.
Malcolm não era rico — não existiam no mundo grandes fortunas pessoais, havia já algumas centenas de anos —, porém certamente não era pobre. Usava uma combinação habilidosa de dinheiro, elogios e as pressões mais sutis para atingir suas metas. Quando voltou a Titã, levou com ele o bebê que era seu gêmeo idêntico, porém meio século mais jovem.
Quando Colin cresceu, não havia maneira de distingui-lo do pai quando na mesma idade. Fisicamente, era uma duplicata exata em todos os aspectos. Mas Malcolm não era Narciso, interessado em criar uma simples cópia carbono dele mesmo; queria tanto um parceiro quanto um sucessor. De modo que o programa educacional de Colin concentrou-se nos pontos fracos de Malcolm. Embora Colin tivesse uma base em ciência, especializou-se em história, leis e economia. Enquanto Malcolm era engenheiro-administrador, Colin era administrador-engenheiro. Quando tinha apenas vinte anos, já estava atuando como representante do pai, sempre que isso fosse legalmente permitido e algumas vezes quando não era. Juntos, os dois Makenzies formavam uma dupla imbatível, e era um passatempo favorito em Titã a tentativa de delinear diferenças psicológicas sutis entre os dois.
Talvez porque nunca tivesse sido obrigado a lutar por algum grande objetivo e porque tinha suas metas formuladas desde o nascimento, Colin era mais gentil e dócil que Malcolm, e por isso mesmo mais popular. Ninguém, fora da família Makenzie, jamais chamou o mais velho pelo nome; mas poucos chamavam Colin de mais alguma coisa. Ele não tinha inimigos reais e só havia uma pessoa em Titã que não gostava dele. Ao menos se presumia que Ellen, a esquisita mulher de Malcolm, não o amasse, pois recusava-se a tomar conhecimento de sua existência.
Talvez olhasse para Colin como um usurpador, um substituto inaceitável para o filho que nunca pudera ter tido. Se isto era verdade, era de se estranhar a sua simpatia por Duncan.
Mas Duncan tinha sido enxertado de Colin quase quarenta anos depois, e nesta época Ellen havia sofrido uma segunda tragédia, que nada tinha a ver com os Makenzies. Para Duncan, ela era sempre Vovó Ellen, mas já estava bastante crescido para perceber que, em seu coração, ela combinava duas gerações e preenchia um vazio que épocas mais antigas tinham achado impossível imaginar ou acreditar.
Se a avó tinha qualquer parentesco genético real com ele, estes vestígios tinham sido perdidos séculos atrás em outro mundo. E, contudo, por algum estranho desvio da sorte e da personalidade, ela tornou-se para ela a mãe postiça que jamais tinha existido.
CONVITE PARA UM CENTENÁRIO
— Mas quem diabo é George Washington? — perguntou Malcolm Makenzie.
— É um fazendeiro de meia-idade da Virgínia, dirige um lugar chamado Mount Vernon...
— Você está brincando.
— Não estou. Não há parentesco, é claro, o velho George não tinha filhos, mas este é o seu nome verdadeiro e ele é perfeitamente autêntico.
— Presumo que você o tenha verificado com a Embaixada.
— Claro, e consegui uma cópia de cinqüenta linhas de sua árvore genealógica. Muito impressionante: metade da aristocracia americana destes últimos 300 anos. Uma porção de Cabots, Du Ponts, Kennedys e Kissingers. E, antes disto, um par de reis africanos.
— Isso pode te impressionar, Colin — interrompeu Duncan —, mas, agora que dei uma olhada no programa, tudo me parece um pouco infantil. Adultos fingindo ser figuras históricas. Será que realmente vão jogar chá na Baía de Boston?
Antes que Colin pudesse responder, o avô Malcolm chegou. Uma discussão entre os três Makenzies — o ,que era algo raramente presenciado por estranhos — tinha mais o caráter de monólogo que de discussão. Porque suas três personas diferiam apenas pelas influências ambientais diversas e pela educação. Desentendimentos genuínos entre eles eram virtualmente desconhecidos. Quando estavam em jogo decisões difíceis, Duncan e Colin tomavam pontos de vista opostos e os debatiam diante de Malcolm, que escutava sem dizer palavra, embora suas sobrancelhas pudessem ser muito eloqüentes. Raras vezes tinha que dar um julgamento, pois os dois advogados atingiam uma síntese sem muita dificuldade. Mas, quando intervinha era para liquidar o assunto. Era uma boa maneira de dirigir uma família ou um mundo.
— Nada sei sobre o chá, o que certamente seria um desperdício a cinqüenta dólares o quilo, mas vocês estão sendo muito severos com o Senhor Washington e seus amigos. Quando temos quinhentos anos nas costas, um pouco de pompa e cerimônia nos seriam perdoadas. E nunca se esqueçam de que a Declaração da Independência foi um dos eventos históricos mais importantes destes últimos três mil anos. Sem ela não estaríamos aqui. Afinal, o Tratado de Fobos começa com as palavras: Quando, no curso dos eventos da humanidade, torna-se necessário para um povo...
— Muito inapropriado naquele contexto. No geral a Terra estava muito contente por ver-se livre de nós.
— Inteiramente correto, mas que os terrenos nunca ouçam isto.
— Ainda estou confuso — disse Duncan meio queixoso. — Gostaria de saber exatamente o que o bom General deseja de nós. Como podemos nós, rudes colonos, contribuir para os processos?
— Ele é apenas Professor e não General — replicou Colin.— Eles estão extintos, mesmo na Terra. Parecem-me um punhado de discursos bem feitos, traçando quaisquer paralelos que possam ser encontrados entre nossas situações históricas. Um certo charme exótico, sabe, um clima de fronteira, onde os homens ainda vivem perigosamente. A habitual virilidade bárbara, tão irresistível para os decadentes terrenos de todos os sexos. E, também importante, uma gratidão genuína, porém mirrada, pela inesperada doação de uma Terra aberta. Despesas pagas pela estada de dois meses com passagem de volta para Titã. Isto resolveria vários de nossos problemas e seria muito apreciável.
— É a pura verdade — Duncan respondeu, pensativo—, mesmo que acabe com nossos planos para os próximos cinco anos.
— Não acaba com eles — disse Colin. — Adianta-os. Tempo ganho é tempo criado. E sucesso em política...—...depende de uma sábia administração do imprevisível, como você gosta tanto de dizer. Bem, este convite é certamente imprevisível e tentarei controlá-lo. Já mandamos os agradecimentos oficiais?
— Somente um agradecimento de rotina. Sugiro que você o complemente com um bilhete pessoal ao Presidente... hum, Professor Washington.
— Ambos têm razão — disse Malcolm, relendo o convite formal. — Aqui diz: "Responsável pela Comissão de Celebração do Quinto Centenário e Presidente da Associação Histórica de Virgínia". Pode-se escolher.
— Temos que ser muito cautelosos 4 respeito disto, ou alguém o apresentará na Câmara. O convite era oficial ou pessoal?
— Não é de governo para governo, felizmente, já que é a Comissão quem patrocina. E está endereçado ao Ilustre Malcolm Makenzie e não ao Presidente.
O Ilustre Malcolm Makenzie, também Presidente de Titã, estava visivelmente satisfeito com aquela pequena sutileza.
— Posso perceber nisto o toque delicado do seu bom amigo, o Embaixador Farrel? — perguntou Colin.
— Estou certo de que a idéia nunca lhe ocorreu.
— Também penso assim. Bem, mesmo que estejamos firmemente apoiados na lei, isto não impedirá objeções. Haverá as acusações costumeiras de privilégio e mais uma vez seremos tachados de estar governando Titã em nosso próprio benefício.
— Eu gostaria de saber quem começou a divulgar a palavra feudado. Tenho que verificar isso.
Colin ignorou a interrupção do velho. Como Administrador-Chefe, tinha que enfrentar os problemas cotidianos de governar o mundo e não podia se permitir a pequena irresponsabilidade que Malcolm estava começando a demonstrar na velhice. Não era senilidade — o avô tinha apenas cento e vinte e quatro anos —, mas a despreocupação, a atitude olímpica de quem já tinha visto e experimentado tudo e satisfeito todas as suas ambições.
— Há dois pontos a nosso favor — continuou Colin. — Não há fundos oficiais envolvidos, de modo que não podemos ser criticados por estarmos usando o dinheiro do governo. E deixemos de lado a falsa modéstia: a Terra está esperando um Makenzie. Se um de nós não for, poderá até ser tomado como insulto. E como Duncan é a única possibilidade, isso resolve o problema.
— Você está inteiramente correto, claro. Contudo, nem todos o verão desse modo. Todas as famílias desejarão enviar seus filhos e filhas mais jovens.
— Não há nada que os impeça — interferiu Duncan.
— Quantos poderiam se dar ao luxo? Nós não poderíamos.
— Poderíamos se não tivéssemos extras dispendiosos em vista. Também podem os Tanaka-Smiths, os Mohadeers, os Schwartz, os Deweys. . .
— Mas, acho que os Helmers não.
Colin falou despreocupadamente, mas sem humor. Seguiu-se um silêncio no qual os três Makenzies partilharam o mesmo pensamento. Então, Malcon disse calmamente:
— Não subestime Karl. Nós temos apenas poder e cérebros, mas ele é genial, e isto é sempre imprevisível.
— Porém é maluco — protestou Duncan. — A última vez que nos encontramos, tentou convencer-me de que havia vida inteligente em Saturno.
— Conseguiu?
— Quase.
— Se ele é maluco — o que duvido, a despeito do seu famoso esgotamento nervoso —, então ele é ainda mais perigoso. Especialmente para você, Duncan.
Duncan não procurou responder. Seus gêmeos mais velhos e sábios compreendiam seus sentimentos, mesmo que nunca pudessem partilhá-los inteiramente.
— Há um outro ponto — disse Malcolm pensativo —, e talvez seja o mais importante de todos. Podemos ter apenas dez anos para mudar toda a base da nossa economia. Se você puder achar uma resposta para este problema em sua viagem. Mesmo que um indício de resposta, será um herói quando voltar. Ninguém ousará criticar nenhuma de suas outras atividades, públicas ou privadas.
— É uma tarefa difícil. Não sou mágico.
— Então, é melhor começar a aprender. Se o Impulso Assimptótieo não é pura mágica, não sei o que possa sê-lo.
— Só um minuto! — disse Colin. — A primeira nave com Impulso A não deve chegar aqui nas próximas semanas?
— A segunda. Houve aquele cargueiro, o Fomalhaut. Fui a bordo mas não me deixaram ver nada. Sírio é a primeira nave de passageiros com Impulso A. Vai entrar na órbita de estacionamento creio que em cerca de trinta dias.
— Você poderá estar pronto nessa data, Duncan?
— Duvido muito.
— Claro que pode.
— Quero dizer, fisiologicamente. Mesmo num programa de colisão, leva-se meses de preparo para a gravidade terrestre.
— Hum. Mas esta oportunidade é boa demais para ser perdida. Tudo está encaixando perfeitamente. Afinal você nasceu na Terra.
— Você também. Quando voltou, levou quanto tempo para se preparar?
Colin suspirou.
— Parecia-me ter levado séculos. Mas, atualmente, creio que devem ter melhorado as técnicas. Eles agora estão usando neuroprogramação enquanto se dorme, não?
— Costuma causar pesadelos horríveis, e eu preciso de todo o sono possível. Porém, o que é bom para Titã. . .
Não precisou terminar a frase, que tinha sido criada por algum cínico desconhecido havia meio século. Durante trinta anos, Duncan nunca pusera realmente em dúvida esse velho clichê, antes usado para ferir, agora virtualmente adotado na família como um lema.
O que era bom para os Makenzies era mesmo bom para Titã.
A LUA VERMELHA
Dos oitenta e cinco satélites naturais conhecidos, apenas Ganimede, líder do Sistema Jupiteriano, excedia Titã em tamanho, e isso por pequena margem. Mas, em outros aspectos, Titã não tem rivais. Nenhuma outra lua de qualquer planeta tinha mais que um vestígio de atmosfera. A de Titã era tão densa que, se fosse de oxigênio, teria sido fácil para um homem respirar.
Quando este fato foi descoberto, no final do século vinte, ofereceu aos astrônomos um enigma de primeira classe. Por que um mundo pouco menor que a Lua, totalmente sem ar da Terra, poderia ser capaz de conservar alguma atmosfera, particularmente uma rica em hidrogênio, o mais leve dos gases? Há muito tempo deveria ter escoado no espaço.
E este não era o único enigma. Como a Lua, quase todos os outros satélites eram praticamente sem cor, cobertos de rochas e poeira causada por eras de bombardeios de meteoros. Mas Titã era vermelho, tão vermelho quanto Marte, cujo brilho maligno lembrava aos homens dos tempos antigos guerras e carnificinas.
As primeiras sondagens de robôs resolveram alguns dos mistérios de Titã, mas, como sempre acontece, levantaram uma enorme quantidade de novos problemas. A cor vermelha era originária de uma camada de nuvens baixas e densas, feita quase que da mesma mistura desconcertante de compostos orgânicos como a da Grande Mancha Vermelha de Júpiter. Debaixo dessas nuvens, havia um mundo cem graus mais quente do que tinha qualquer direito de ser; de fato, havia regiões em Titã onde um homem precisava pouco mais que uma máscara de oxigênio e uma simples roupa térmica para movimentar-se no exterior. Para grande surpresa de todos, Titã se apresentou como o lugar mais hospitaleiro do Sistema Solar, depois da própria Terra.
Parte deste calor inesperado vinha de um efeito de estufa causado pela captação dos raios tênues do Sol distante pela atmosfera de hidrogênio. Mas, muito mais do que isso, era devido a fontes internas; a região equatorial de Titã abundava em — na falta de uma expressão melhor — o que poderíamos chamar de vulcões frios. Em raras ocasiões, de fato, alguns deles realmente vomitavam água em estado líquido.
Essa atividade, provocada pelo calor radioativo gerado nas profundezas de Titã, lançava megatons de compostos de hidrogênio na atmosfera e, continuamente, continha sua perda no espaço. Um dia, é evidente, as reservas enterradas — como os poços de petróleo extintos da Terra — desapareceriam, porém os geólogos calcularam que Titã poderia manter o vácuo do espaço cercado por, pelo menos, dois bilhões de anos. As atividades humanas mais vigorosas para obter atmosfera teriam apenas uma influência mínima nesta cifra.
Como a Terra, Titã tinha diferentes estações — embora fosse difícil aplicar o termo "verão" onde a temperatura na metade do dia raras vezes subia para cinqüenta abaixo de zero. E como Saturno levava quase trinta anos para completar seu giro em torno do Sol, cada uma das estações de Titã tinha mais de sete anos terrenos de duração.
O pequeno sol, levando oito dias para cruzar o céu, era raras vezes visível através da capa de nuvens e havia muito pouca diferença entre a temperatura diurna e a noturna; ou também entre os pólos e o equador. Titã, portanto, não tinha clima, mas podia, em determinadas ocasiões, produzir sua espetacular espécie de clima.
O mais impressionante fenômeno meteorológico era a chamada Monção de Metano, que freqüentemente — embora não invariavelmente — ocorria com o surgimento da primavera no Hemisfério Norte. Durante o longo inverno, um pouco do metano da atmosfera condensava-se em pontos frios localizados e formava lagos rasos, que alcançavam até mil quilômetros quadrados, mas raras vezes mais do que alguns metros de profundidade e freqüentemente cobertos por montes de formas fantásticas e blocos flutuantes de gelo de amônia. Contudo, era necessária a temperatura extremamente baixa de menos cento e sessenta graus para manter o metano liqüefeito, e nenhuma parte de Titã era tão fria durante tanto tempo.
Um vento "quente" ou uma falha nas nuvens, e os lagos de metano transformavam-se subitamente em vapor. Era como se na Terra um dos oceanos fosse evaporar aumentando abruptamente centenas de vezes o seu volume, e assim mudando completamente a atmosfera. O resultado seria catastrófico, e em Titã às vezes era pouco menos do que isso. As velocidades do vento foram registradas em mais de quinhentos quilômetros horários ou, para ser mais exato, estimadas a partir de seus efeitos. Duravam apenas alguns minutos, porém era mais que suficiente. Muitas das primeiras expedições foram aniquiladas pela Monção, antes de ser possível predizer sua vinda.
Antes dos primeiros pousos em Titã, no começo do século vinte e um, exobiólogos otimistas esperavam encontrar vida em torno dos oásis relativamente quentes dos quais conheciam a existência. Esta esperança desvaneceu-se lentamente e por um tempo foi revivida pela descoberta das estranhas formações de cera nas famosas Cavernas de Cristal. Mas, no final do século, era absolutamente certo não ter jamais existido vida autóctone em Titã.
Nunca houve expectativa de se encontrar vida em outras luas, onde as condições eram ainda mais hostis. Somente Iapetus e Rhea, com menos da metade de Titã, tinham um pequeno traço de atmosfera. Os demais satélites eram áridos agrupamentos de rocha, bolas de neve exageradamente crescidas ou uma mistura de ambas as coisas. Em meados do ano 2200, mais de quarenta tinham sido descobertos, tendo, em sua grande maioria, menos de cem quilômetros de diâmetro. Os exteriores — a vinte milhões de quilômetros de Saturno — moviam-se em órbitas retrógradas e eram evidentemente visitantes temporários do cinturão de asteróides. Houve muita discussão sobre se deveriam ser considerados satélites genuínos, etc. Embora alguns tenham sido explorados por geólogos, muitos jamais foram examinados, exceto através de sondas-robô espaciais, mas não havia razão para supor que tivessem grandes surpresas.
Talvez um dia, quando Titã ficasse próspero e se tornasse um tanto monótono, futuras gerações aceitassem o desafio daqueles mundinhos. Alguns otimistas pensavam em tornar estas bolas de neve, ricas em carbono, em zoológicos orbitais, aquecendo-se ao calor de seus próprios sóis de fusão e pululando de estranhas formas de vida. Outros sonharam com redomas de recreio particulares e refúgios de baixa gravitação e ilhas no espaço para experimentos em estilos de vida super tecnológicos. Mas não passavam de fantasias de um utópico futuro. Titã necessitava agora de todas as suas energias para resolver a crise em marcha, neste ano de meio milênio de 2276.
A POLÍTICA DO TEMPO E DO ESPAÇO
Quando apenas dois Makenzies falavam um com o outro, sua conversa era ainda mais concisa e telegráfica do que quando todos três estavam presentes. Intuição, processos paralelos de pensamento e experiência já partilhada preenchiam as lacunas que tornariam grande parte de sua conversa completamente ininteligível para estranhos.
— Controlar? — perguntou Malcolm.
— Nós? — respondeu Colin.
— 31? Garoto!
O que poderia ser traduzido em linguagem simples como:
— Você acha que ele poderia controlar o trabalho?
— Você tem alguma dúvida de que podemos?
— Aos 31? Não tenho certeza. Ele é apenas um garoto.
— De qualquer maneira, não temos escolha. Esta é uma oportunidade enviada por Deus ou por Washington que não podemos perder. Ele terá que submete-se a um treinamento intensivo sobre assuntos terrenos, aprender tudo o que é necessário sobre os Estados Unidos. . .
— Isso me faz lembrar: o que serão os Estados Unidos atualmente? Perdi a conta.
— Agora existem quarenta e cinco Estados — Texas, Novo México, Alasca e Havaí retornaram à União, ao menos para o ano do Centenário.
— E o que significa isto legalmente?
— Não muito. Eles pretendem ser autônomos, porém pagam suas taxas regionais e globais como todo mundo. É um compromisso tipicamente terrestre.
Malcolm, relembrando suas origens, algumas vezes achava necessário defender seu mundo natal desses comentários cínicos:
— Pois eu gostaria que tivéssemos aqui um pouco mais de compromissos do tipo terrestre. Seria ótimo injetá-los em nosso primo Armand.
Armand Helmer, Superintendente de Recursos, não era de fato primo de Malcolm, porém sobrinho de sua ex-mulher Ellen. Contudo, naquele pequeno e fechado mundo que era Titã, todos, com exceção de imigrantes recentes, eram parentes. As designações tio, tia, sobrinho, primo eram lançadas ao acaso com alegre inexatidão.
— Primo Armand — disse Colin com satisfação — vai ficar muito aborrecido quando souber que Duncan está a caminho da Terra.
— E o que poderá fazer? — perguntou Malcolm suavemente.
Era uma pergunta adequada, e por um momento ambos os Makenzies ficaram cismando sobre a rivalidade crescente entre sua família e a dos Helmers. Sob certos aspectos, era bastante comum. Tanto Armand como seu filho Karl haviam nascido na Terra e tinham trazido com eles, através de um bilhão de quilômetros, aquela enlouquecedora aura de superioridade que tinha sido tão freqüentemente a marca registrada do mundo de origem. Alguns imigrantes finalmente conseguiram erradicá-la, embora o processo fosse difícil. Malcolm só tinha conseguido depois de três planetas e uma centena de anos, mas os Helmers nunca tinham tentado. E embora Karl tivesse apenas cinco anos de idade quando deixou a Terra, parecia ter passado os anos subseqüentes tentando tornar-se mais terrestre que os terrestres. E nem era coincidência todas as suas mulheres terem vindo da Terra.
Porém isto foi mais um assunto de diversão que de aborrecimento, até uns doze anos atrás. Quando crianças, Duncan e Karl tinham sido inseparáveis e não houve causa de conflito entre as duas famílias, até que a rápida subida de Armand através da hierarquia tecnológica de Titã o levou a uma posição de poder. Agora o Superintendente de Recursos não se preocupava em esconder sua idéia de que três gerações de Makenzies já tinham sido suficientes. Se foi realmente ou não o criador da frase "O que é bom para os Makenzies. . .", certamente a citava com prazer.
Para fazer justiça a Armand, sua ambição era mais concentrada em seu filho único do que nele mesmo. Apenas isto já teria sido o suficiente para pôr alguns freios na amizade entre Karl e Duncan, mas provavelmente ela teria resistido às pressões paternas de ambos os lados. O que tinha causado o rompimento final ainda era algo nebuloso e associado a um esgotamento nervoso que Karl tinha sofrido quinze anos atrás.
Ele emergiu do esgotamento nervoso com todas as suas capacidades intactas, mas com uma notável mudança de personalidade. Depois de se ter formado com louvor na Universidade de Titã, dedicou-se a uma série de atividades de pesquisa, que variavam desde a medição das ondas galácticas de rádio ao estudo dos campos magnéticos em torno de Saturno. Todos os seus trabalhos tinham muita importância prática e Karl também desempenhou papel importante no estabelecimento e na manutenção da rede de comunicação da qual Titã dependia. Todavia, é bem verdade que seus interesses eram mais teóricos que práticos e que algumas vezes tentava explorar este fato sempre que o debate sobre as "Duas Culturas" surgia novamente.
A despeito de alguns séculos de invectiva de ambas as partes, ninguém realmente acreditava que os Cientistas, com C maiúsculo, possuíssem mais cultura (seja o que fosse o significado desta palavra) do que os Engenheiros. A pureza do conhecimento teórico era uma aberração filosófica que provavelmente teria sido ridicularizada pelos pensadores gregos, aos quais foi impingida, mais de mil anos depois. O fato de que o maior escultor da Terra começou sua carreira como desenhista de pontes, e de que o melhor violinista de Marte ainda estava fazendo um trabalho original, em teoria dos números, não provava nada nem para um lado nem para o outro. Mas os Heimers gostavam de argumentar que já era tempo de mudar. Os engenheiros tinham governado Titã por bastante tempo e eles possuíam a substituição perfeita que traria destaque intelectual para seu mundo.
Aos trinta e seis anos, Karl ainda possuía o charme que tinha cativado todos os seus camaradas, mas parecia a muitos — e certamente a Duncan — que ultimamente havia algo de in-
flexível, calculado e levemente repelente em tudo aquilo. Ele ainda podia ser amado, mas tinha perdido a capacidade de amar. E era estranho que nenhum de seus casamentos espetaculares tivesse produzido descendentes.
Se Armand desejava desafiar o regime dos Makenzies, o fato de Karl não possuir herdeiros não era o único problema. Qualquer coisa que os Sete Mundos dissessem sobre sua independência, o centro do poder ainda permanecia na Terra. Tanto como há 2.000 anos os homens iam a Roma buscar justiça, prestígio ou conhecimento, nesta era o Planeta Imperial atraía os filhos espalhados. Nenhum homem poderia ser levado a sério na arena da política solar a não ser que tivesse relações pessoais com as figuras-chave dos negócios terrestres e houvesse traçado seu caminho ao menos uma vez através dos labirintos da burocracia terrestre.
E para fazê-lo era preciso ir à Terra. Como nos dias dos Césares, não havia alternativa. Aqueles que acreditavam — ou fingissem acreditar — no contrário arriscavam-se a ser rotulados com a temida palavra "colonial".
Talvez fosse diferente se a velocidade da luz fosse infinita; mas era a bagatela de um bilhão de quilômetros por hora, e, conseqüentemente, uma conversa em tempo real sempre seria impossível entre a Terra e qualquer pessoa que estivesse além da órbita da Lua. A aldeia global eletrônica, que tinha existido durante séculos no mundo de origem, jamais poderia ser estendida para o espaço. Os efeitos políticos e psicológicos dessa realidade eram enormes e ainda não totalmente compreendidos.
Por gerações e gerações, os habitantes da Terra tinham-se acostumado a ficar na presença uns dos outros mediante o toque de um botão. Os satélites de comunicação tornaram possível, e mais tarde inevitável, a criação de um Estado Mundial em tudo, menos no nome. E, apesar de muitos receios antigos, era um Estado ainda controlado por homens e não por máquinas.
Havia talvez mil indivíduos-chave e dez mil pessoas importantes que se comunicavam incessantemente de pólo a pólo. As decisões necessárias para governar o mundo tinham que ser tomadas, às vezes, em alguns minutos, e para isto a alimentação instantânea da conversa cara a cara era essencial. Durante uma fração de segundo-luz, era fácil conseguir estabelecer este contato, e, durante trezentos anos, os homens ficaram certos de que a distância não poderia mais afastá-los uns dos outros.
Mas, com o estabelecimento da primeira Base Marciana, esta intimidade terminou. A Terra podia falar com Marte, mas as palavras levavam pelo menos três minutos para chegar até lá e a resposta tomava exatamente o mesmo tempo. A conversa era, portanto, impossível, e todos os negócios tinham que ser feitos por telex ou seu equivalente.
Teoricamente, isto podia ser satisfatório e comumente o era. Mas havia exceções desastrosas: aconteciam mal-entendidos interplanetares onerosos e algumas vezes fatais, porque dois homens nas extremidades dos circuitos não se conheciam realmente ou não compreendiam as maneiras de pensar um do outro, porque nunca tinham tido um contato pessoal.
E o contato pessoal era essencial nos altos escalões do governo e da administração. Os diplomatas sabiam disso há muitos mil anos, com suas missões, embaixadores e visitas oficiais. Somente depois desse contato, onde a inevitável avaliação do caráter tivesse sido feita e os laços sutis de entendimento mútuo e interesse comum fossem estabelecidos, é que se podia fazer negócios através da comunicação a longa distância com alguma confiança.
Malcolm jamais poderia ter adquirido sua posição em Titã, sem as amizades feitas quando de sua volta à Terra. Houve tempo em que considerou estranho que uma tragédia pessoal o tivesse levado ao poder e à responsabilidade, muito além de todos os sonhos da juventude. Mas, ao contrário de Ellen, tinha enterrado seu passado e este já não o atormentava havia muito tempo.
Quando Colin repetiu o exemplo, quarenta anos depois, e voltou a Titã com o pequeno Duncan, a posição do clã ficou imensamente fortalecida. Para a maior parte da raça humana, a lua maior de Saturno era, agora, virtualmente identificada com os Makenzies. Ninguém podia pensar em desafiá-los, se não possuísse a rede de contatos pessoais estabelecida por eles, não somente na Terra mas em todos os lugares que importavam. Era através dessa rede, e não dos canais oficiais, que os Makenzies, e isto até os seus opositores admitiam de má vontade, Conseguiam Fazer as Coisas.
E agora uma quarta geração estava se preparando para consolidar a dinastia. Todo mundo sabia que isso aconteceria finalmente, mas ninguém esperava que fosse tão cedo.
Nem mesmo os Makenzies. E principalmente os Helmers.
NAS LINDAS, LINDAS MARGENS DO LAGO HELLBREW
Antigamente, Duncan sempre ia de bicicleta, ou de carro elétrico, para a casa da avó Ellen, toda vez que tinha de levar alguma coisa para a casa. Desta vez, porém, carregava quilos de peso cuidadosamente distribuídos que, apesar disso, ainda lhe deram dez quilos de peso extra. Se ele soubesse que antigamente existiam contrabandistas, certamente sentiria uma forte afinidade com um daqueles tipos, que usavam casacos elegantes forrados de barras de ouro.
Colin o tinha presenteado com um complexo equipamento, cheio de bolsas e correias, dizendo com alívio:
— Graças a Deus não vou usá-lo de novo! Sabia que o tinha posto em alguma parte, mas levei dias para encontrá-lo. É verdade que os Makenzies jamais jogam coisa alguma fora.
Duncan descobriu que precisava de ambas as mãos para tirar aquela coisa de cima da mesa. Quando correu o fecho éclair de um dos muitos bolsinhos, descobriu que continha uma haste do tamanho de um lápis de um metal opaco, tremendamente pesado.
— O que é isto? — perguntou. — É mais pesado do que ouro.
— É sim. Se não me engano, é uma superliga de tungstênio. O peso total é de setenta quilos, mas não comece a usá-lo todo imediatamente. Comecei com quarenta e acrescentei dois por dia. O importante é manter a distribuição uniforme e evitar aquecimento.
Duncan fez uns cálculos mentalmente e achou os resultados bastante deprimentes. A gravidade da Terra era cinco vezes maior do que a de Titã. Contudo, esse aparelho diabólico simplesmente dobraria o seu peso local.
— É impossível — disse tristemente. — Nunca serei capaz de caminhar na Terra.
— Bem, eu consegui, embora a princípio não tivesse sido fácil. Faça tudo o que os médicos mandarem, mesmo que pareça bobagem. Passe todo o tempo que puder tomando banho ou deitado. Não se envergonhe de usar cadeiras de rodas ou aparelhos ortopédicos pelo menos nas duas primeiras semanas. E nunca tente correr.
— Correr!
— Cedo ou tarde você esquecerá que está na Terra e poderá quebrar uma perna. Quer apostar comigo?
Apostas eram um dos vícios úteis dos Makenzies. O dinheiro ficava na família e o perdedor sempre aprendia uma lição valiosa. Embora Duncan achasse impossível imaginar cinco gravidades, não podia negar que Colin tinha passado um ano na Terra e sobrevivera para contar a história. Logo, esta não era uma aposta que prometesse lucros.
Agora estava começando a acreditar nas previsões de Colin e quase não notava o peso extra, pelo menos enquanto estava se locomovendo em linha reta. Somente quando tentava mudar de direção é que se sentia dominado por uma força irresistível. Sem contar os visitantes da Terra, ele era provavelmente o homem mais forte em Titã. Não que o seu corpo estivesse ganhando novas forças; em vez disso, estava retomando potenciais latentes que tinham sido abandonados, esperando pelo momento em que seriam postos novamente em uso. Dentro de alguns anos, o que estava tentando agora seria muito tarde.
O túnel de quatro metros de largura tinha sido aberto com laser anos atrás, na beira da pequena cratera que circundava Oásis. Originalmente, havia sido um conduto para os petroquímicos de amoníaco do apropriadamente chamado Lago Hellbrew, um dos recursos naturais mais importantes da região. A maior parte do lago tinha sido usada para abastecer as indústrias de Titã; mais tarde, a sucção do calor interno da lua, como parte do projeto de engenharia planetária local, provocou a evaporação do que restava.
Houve um resmungar surdo quando Ellen Makenzie tornou claras suas intenções, mas o Departamento de Recursos bombeou o gás de hidrogênio-metano para fora do túnel, e agora retirava seu oxigênio para a amolação anual dos auditores, no inventário, como parte das reservas de ar da cidade. Havia duas comportas operadas manualmente, assim como os selos de fechamento da cidade. Alguém que ultrapassasse a segunda comporta por conta própria estaria correndo riscos, mas isto era desprezível. O túnel corria através de rocha sólida, e como a pressão interna era maior que a externa, não havia perigo de que os venenos de Titã se infiltrassem.
Uma meia dúzia de túneis laterais, todos eles agora bloqueados, levava à passagem principal. Quando foi pela primeira vez àquele lugar, Duncan emprestou às manivelas seladas algo de fantástico e mágico. Agora sabia que elas apenas controlavam a passagem para as câmaras de gás, abandonadas há muito tempo. Contudo, embora todo o mistério estivesse dissolvido, ainda lhe parecia que aqueles corredores estavam assombrados por dois fantasmas. Um era o de uma mocinha que havia sido conhecida e amada apenas por um punhado de pioneiros; o outro era um gigante que tinha sido chorado por milhões.
Havia centenas de piadas com o nome de Robert Kleinman1, porque ele tinha quase dois metros de altura bem proporcionada. E seu talento igualava o físico; foi mestre-piloto com a idade de trinta anos, a despeito da dificuldade que tinha em adaptar-se com as roupas espaciais de tamanho padrão. Duncan nunca o considerou especialmente bonito, mas nesse aspecto foi vencido por um batalhão de mulheres que o achavam, inclusive Ellen Makenzie.
A avó tinha conhecido o Capitão Kleinman apenas um ano depois da separação definitiva de Malcolm. Ela poderia ter estado numa crise emocional, mas ele certamente não estava. Porém, após o encontro, o Capitão jamais olhou para outra mulher, e foi um desses casos de amor famosos em muitos mundos. Durou todo o período de planejamento e preparação para a primeira expedição a Saturno e fixação da Challenger na órbita fora de Titã. E, pelo menos do lado de Ellen Makenzie, esse amor jamais morreu; ficou congelado para sempre no momento em que a nave atingiu o seu misterioso e inexplicável fim nas profundezas das rotas de jatos da Zona Temperada do Sul.
Caminhando um pouco mais lentamente do que quando começou o passeio, Duncan chegou à comporta final. No dia do centésimo aniversário da avó, os membros mais jovens da família haviam pintado a comporta com brilhantes cores fluorescentes que não tinham ainda desbotado naqueles últimos doze anos. Como Ellen nunca se referiu a este gesto, e como nunca escutava perguntas que não desejava responder, não houve meio de descobrir se ela tinha gostado da homenagem.
— Estou aqui, Vovó — disse Duncan, através do intercomunicador antigo que havia sido presenteado a sua avó por um admirador anônimo, muito tempo atrás. (Ainda via-se a marca bem nítida: "Feito em Hong-Kong", e estava datado de cerca 1995. É vergonhoso contar, mas tinha havido uma tentativa de roubá-lo, embora o roubo em Titã fosse praticamente desconhecido. Talvez fosse apenas uma brincadeira de criança ou um gesto anti-Makenzie.)
Como sempre, não houve resposta, mas a porta destrancou imediatamente e Duncan penetrou no minúsculo vestíbulo. O cletrociclo da avó continuava no lugar onde estava havia muitos anos. Duncan verificou a bateria e deu um chute nos pneus, como sempre o fazia, com grande cuidado. Não havia necessidade de encher os pneus ou carregar a bateria desta vez: se a velha sentisse de repente o impulso de ir à cidade, não havia nada que a pudesse impedir.
A cozinha, que era uma peça retirada intacta de um pequeno veículo orbital de transporte de passageiros, estava mais arrumada que de hábito; presumivelmente uma das ajudantes voluntárias tinha acabado de fazer sua visita semanal. Não obstante, o cheiro azedo, enjoativo, habitual de desintegração culinária lenta e reciclagem inadequada, estava pesando no ar, e Duncan prendeu a respiração enquanto atravessava rapidamente para a sala de estar. Ele nunca aceitava mais que uma xícara de café na casa da avó e temia um envenenamento acidental se alguma vez se atrevesse a retirar amostras de produtos de seu robô reconstituidor. Mas, Ellen parecia à vontade; através dos anos ela deve ter estabelecido uma espécie de simbiose com sua cozinha. Ainda confiava na garantia do fabricante, embora produzisse os mais estranhos odores. Sem dúvida a avó nunca os notou; Duncan pensava no que ela ia fazer quando o desastre final ocorresse.
O salão principal estava superlotado como sempre. Apoiada em uma parede, a estante com rochas cuidadosamente etiquetadas: uma mineralogia completa de Titã e das outras luas pesquisadas de Saturno, bem como amostras de cada um dos anéis. Até onde Duncan podia se lembrar, havia apenas uma prateleira vazia, como se, ainda agora, sua avó estivesse esperando pela volta de Kleinman.
A parede oposta era mais esparsamente ocupada com os equipamentos de comunicação e informação e prateleiras de micromódulos que, se completamente ocupadas, poderiam conter mais conhecimento do que todas as livrarias da Terra até o século vinte e um. O resto da sala era uma pequena oficina cujo chão era quase totalmente ocupado por máquinas que sempre fascinaram Duncan desde sua mais tenra infância e às quais ele associaria sua avó Ellen enquanto vivesse.
Havia microscópios petrológicos, ferramentas de polir e de cortar, limpadoras ultra-sônicas, facas de laser, e toda a brilhante parafernália dos gemologistas e joalheiros. Duncan tinha aprendido a usar a maioria delas com o passar dos anos, embora não tivesse adquirido mais que uma fração da habilidade de sua avó, e lhe faltasse quase inteiramente o seu talento artístico. O que realmente compartilhava com ela era o seu interesse pela matemática, exemplificado pelo pequeno computador com um painel holográfico.
O computador, bem como a cozinha, já estavam obsoletos há bastante tempo. Mas era completamente autônomo, de modo que a avó não precisava depender de maneira alguma das imensas vantagens de armazenagem da cidade. Embora seu computador tivesse a memória apenas um pouco maior que a do cérebro humano, era o suficiente para suas modestas necessidades. Seu interesse em minerais levou-a inevitavelmente à cristalografia, depois à teoria de grupos, e depois para a obsessão inofensiva que dominou a maior parte da sua solitária existência. Vinte anos atrás, naquela mesma sala, ela contagiou Duncan com essa mesma obsessão. No seu caso, a doença não era mais virulenta, tendo percorrido o seu ciclo no prazo de alguns meses; mas ele sabia, com uma certa tolerância divertida, que poderia sofrer recaídas de tempos em tempos. Como era incrível que cinco quadrados perfeitamente idênticos pudessem criar um universo que nem o homem ou um computador poderiam jamais ser capazes de explorar inteiramente. . .
Nada tinha mudado naquele lugar desde sua última visita, três semanas atrás. Podia até imaginar que sua avó não tinha saído do lugar; ela ainda estava sentada em sua mesa de trabalho, selecionando rochas e cristais, enquanto às suas costas a tela vermelha do computador produzia intermitentemente soluções de um problema que estava analisando. Como sempre, a avó usava vestido longo, que a fazia parecer-se com uma matrona romana, embora Duncan tivesse a certeza de que nenhum vestido de matrona romana pudesse parecer tão descuidado ou, para ser perfeitamente sincero, tão necessitado de ser lavado. Desde que Duncan a conhecia, o cuidado que Ellen dedicava à sua aparelhagem jamais se estendeu à sua aparência pessoal.
Ela não se levantou, mas ergueu ligeiramente a cabeça para que ele lhe desse seu afetuoso beijo habitual. Assim que ele o fez, percebeu que o mundo exterior, pelo menos, tinha sofrido mudanças.
A vista da janela da sala de sua avó era famosa mas somente pela reputação, uma vez que poucas pessoas tinham tido o privilégio de tê-la apreciado com seus próprios olhos. Sua casa era parcialmente embutida na orla de uma encosta que dava para o leito seco do Lago Hellbrew e o desfiladeiro que levava a ele, o que lhe oferecia um panorama de cento e oitenta graus da paisagem mais pitoresca de Titã. Algumas vezes, quando as tempestades silvavam através das montanhas, a paisagem desaparecia durante horas por trás das nuvens de cristais de amônia. Mas hoje o tempo estava limpo e Duncan podia ver a uma distância de, pelo menos, vinte quilômetros.
— O que é que está acontecendo lá fora? — perguntou ele.
A princípio ele pensou que era uma das fontes de fogo que algumas vezes entravam em erupção em áreas instáveis. Mas, nesse caso, a cidade estaria em perigo e ele saberia há mais tempo. Então percebeu que a coluna brilhante, embora enfumaçada, de luz queimando firmemente no alto do morro, a uns três ou quatro quilômetros de distância, só podia ser obra do homem.
— Há um fusor funcionando em Huygens. Não sei o que estão fazendo, mas aquilo é combustão de oxigênio.
— Ah, um dos projetos de Armand. Não a incomodam?
— Não. . . acho que é lindo. Ademais, precisamos da água. Olhe para aquelas nuvens de chuva. . . chuva de verdade. E acho que há alguma coisa crescendo lá adiante. Percebi uma mudança nas cores das rochas desde que essas chamas começaram.
— É bem possível... o pessoal da bioengenharia deve estar a par disso. Um dia você terá uma floresta para olhar ao invés desta rocha nua.
Duncan estava brincando, claro, e ela o sabia. Excetuando áreas muito restritas, nenhuma vegetação poderia crescer ali no espaço aberto. Mas experiências como essas eram um início, e um dia...
Lá longe, na montanha, uma usina de fusão de hidrogênio estava em funcionamento, derretendo a crosta de Titã para retirar todos os elementos necessários às indústrias daquele pequeno mundo. E como metade daquela crosta consistia em oxigênio, agora somente necessário em muito pequena quantidade no ciclo econômico fechado das cidades, foi simplesmente permitida sua queima.
— Você percebe, Duncan — disse a avó subitamente —, como esta chama simboliza nitidamente a diferença entre Titã e a Terra?
— Bem, eles não têm que derreter as rochas para obter tudo o que precisam.
— Eu estava pensando em algo muito mais fundamental. Se o terráqueo quer fogo, acende um jato de hidrocarbono e deixa-o queimar. Nós fazemos exatamente o oposto. Botamos fogo num jato de oxigênio e o deixamos queimar na nossa atmosfera de hidrometano.
Este era um fato tão elementar da vida — na verdade um lugar-comum ecológico — que Duncan ficou desapontado; estava esperando, por uma revelação mais surpreendente. Seu rosto deve ter revelado seus pensamentos, porque sua avó não lhe deu oportunidade de fazer comentários.
— O que estou procurando dizer — continuou — é que pode não ser tão fácil você adaptar-se na Terra, como deve estar pensando. Você pode saber, ou pensa que sabe, quais as condições que são iguais às daqui, mas seu conhecimento não está baseado na experiência. Quando você precisar dela, numa emergência, não estará presente. Seus instintos de Titã poderão dar respostas erradas. Portanto, aja devagar e sempre pense duas vezes antes de movimentar-se.
— Não tenho escolha quanto a movimentar-me com lentidão. Meus músculos de Titã se encarregarão disto.
— Quanto tempo vai ficar ausente?
— Cerca de um, ano. Meu convite oficial é para dois meses, mas agora a viagem está sendo paga, de modo que terei dinheiro para uma estada mais longa, e parece-me uma pena desperdiçar esta oportunidade, já que é única.
Ele tentou dar à sua voz o tom mais alegre e otimista que podia, embora conhecesse perfeitamente bem os pensamentos que deveriam estar passando pela mente de Ellen. Ambos sabiam que este encontro poderia ser o último que teriam; cento e quatorze anos não eram uma idade avançada para uma mulher, mas, verdadeiramente, o que tinha agora a avó para se dedicar? A esperança de vê-lo novamente, quando voltasse da Terra? Gostava da idéia...
E havia também um outro assunto bailando no ar, ao qual não poderia nunca se referir. A avó sabia perfeitamente bem o objetivo principal de sua visita à Terra, e esse conhecimento era como uma facada em seu coração, mesmo após todos estes anos. Ela nunca perdoou Malcolm; nunca aceitou Colin; será que continuaria a aceitá-lo quando .ele retornasse com o pequeno Malcolm?
Agora a avó estava procurando algo, com uma falta de jeito muito diferente dos seus precisos movimentos normais, num dos escaninhos de sua mesa de trabalho.
— Isto é uma lembrança para você levar.
— O quê. . . oh, é lindo!
Ele não estava sendo excessivamente cortês. Sua reação fora forçada por uma surpresa genuína, A caixinha rasa, com tampa de cristal, que estava agora segurando era, de fato, uma das obras mais delicadas da arte geométrica que jamais tinha
visto. E a avó não poderia ter escolhido um objeto mais evocativo de sua juventude e do mundo que, embora estivesse prestes a deixar, deveria ser sempre o seu lar.
Enquanto olhava para o mosaico de pedras coloridas que ocupava inteiramente a caixinha, saudando cada uma daquelas formas familiares como um velho amigo, seus olhos se marearam e os anos pareciam retornar. Sua avó não havia mudado, porém ele estava apenas com dez anos...
UMA CRUZ DE TITANITA
— Você já é bastante adulto para compreender este jogo, Duncan. . . embora seja muito mais que um jogo.
Seja o que for, não parece muito estimulante, pensou Duncan. O que se pode fazer com cinco quadradinhos iguais de plástico branco, com dois centímetros de lado?
— Bem — continuou a avó —, o primeiro problema é ver quantos padrões diferentes você pode fazer colocando todos estes quadradinhos juntos.
— Enquanto eles estiverem deitados sobre a mesa?
— Sim, com as beiras combinando exatamente: não se pode virá-los.
Duncan começou a mexer nos quadradinhos.
— Bem — começou ele —, posso colocá-los todos em linha reta, assim.. . aí posso mexer com o último e formar um. L. . . e um da outra ponta e fazer um U. . .
Rapidamente formou meia dúzia de composições diferentes dos cinco quadradinhos e depois descobriu que estava se repetindo.
— Acho que é tudo. . . Ah, que burrice.
Havia esquecido da figura mais óbvia de todas: a cruz ou X, formado com um quadrado no meio e os outros quatro em volta.
— A maior parte das pessoas — disse a avó — descobre este em primeiro lugar. Não sei o que isto prova a respeito do seu processo mental. Você acha que descobriu todas as formações?
Duncan continuou a escorregar os quadradinhos de cá para lá e finalmente descobriu mais três figuras. Depois desistiu.
— Isto agora é tudo — anunciou com segurança.
— E esta aqui? — disse a avó, movimentando os quadrados rapidamente para formar uma figura que parecia um F corcunda.
— Ah!
— E esta...
Duncan começava a sentir-se meio tolo e ficou muito aliviado quando a avó continuou.
— Você saiu-se bastante bem... só esqueceu estes dois. Ao todo são exatamente doze destes padrões: nem mais nem menos. Aqui estão eles. Pode procurar à vontade que jamais encontrará outros.
Ela empurrou para o lado os cinco quadradinhos e colocou na mesa uma dúzia de pedaços de plástico brilhantes e coloridos. Cada um tinha um formato diferente e juntos formavam um conjunto completo de doze figuras que, Duncan estava agora bem preparado para admitir, era tudo o que pode ser feito com cinco quadrados iguais.
Mas certamente havia algo mais que aquilo. O jogo não podia ter terminado ainda. Não, Vovó deveria ter ainda algo escondido na manga.
— Agora, Duncan, preste atenção. Cada uma destas figuras — chamam-se pentominos, aliás — são obviamente do mesmo tamanho, já que são feitas de cinco quadrados iguais. E temos doze ao todo, logo a área total é de sessenta quadrados. Correto?
— Hum. .. correto.
— Bem, sessenta é um bom número par, que você pode dividir de várias %maneiras. Vamos começar com dez multiplicado por seis, o mais fácil. É a área desta caixinha: dez unidades multiplicadas por seis. Logo as doze peças devem caber exatamente dentro dela, como um simples quebra-cabeças.
Duncan estava procurando armadilhas: Vovó gostava de paradoxos verbais e matemáticos, nem todos compreensíveis para uma vítima de dez anos de idade, mas não conseguia encontrar nenhuma. Se a caixa tinha realmente o tamanho que a avó dizia, então os doze pedaços deveriam caber dentro dela. Afinal ambos tinham sessenta unidades de área.
Um momento... a área pode ser a mesma, mas a forma pode ser errada. Pode não haver jeito de colocar todos os doze pedaços dentro desta caixa retangular, mesmo que o tamanho esteja correto.
— Vou deixar você com o problema — disse Vovó, depois que ele movimentou os quadrados por alguns minutos. — Mas, garanto-lhe uma coisa: isso pode ser feito.
Dez minutos mais tarde, Duncan estava começando a duvidar. Era bastante fácil colocar dez pedaços na caixa e uma vez conseguiu colocar onze. Infelizmente o lugar vazio do quebra-cabeças não era do mesmo formato da peça que permanecia em sua mão, embora, é claro, fosse exatamente a mesma área. O vazio tinha forma de X e a peça era um Z.
Trinta minutos depois, ele estava quase estourando de frustração. A avó o tinha deixado completamente só, enquanto mantinha um sério diálogo com seu computador; mas de vez em quando atirava-lhe um olhar divertido, como se dissesse: — Vê. . . não é tão fácil assim. . .
Duncan era bem teimoso para a idade; a maioria dos meninos de dez anos já teria desistido (nunca lhe ocorreu que a avó estivesse fazendo também um hábil trabalho de teste psicológico). Ele não pediu ajuda durante quarenta minutos. ..
Os dedos da avó adejaram pelo mosaico. O U, o X e o L deslizaram dentro dos seus restritos limites e de repente a caixinha ficou completamente cheia. Os pedaços tinham se encaixado perfeitamente no quebra-cabeças.
— Bem — disse Duncan, um tanto sem jeito —, você já conhecia a solução.
— A solução? — replicou Vovó. — Você está interessado em saber de quantas maneiras diferentes estas peças podem ser colocadas dentro da caixinha?
Duncan estava certo de que havia algum truque ali. Ele não tinha encontrado uma única solução em quase uma hora de esforço e devia ter tentado no mínimo uma centena de arranjos. Mas era possível que houvesse apenas... ah, uma dúzia de soluções diferentes.
— Acho que pode haver umas vinte maneiras de colocar as peças na caixa — respondeu, decidido a se garantir.
— Tente de novo.
Isto era um sinal de perigo. Evidentemente, havia muito mais coisas naquilo do que parecia e seria bom não se comprometer.
Duncan balançou a cabeça.
— Não consigo imaginar.
— Menino sensato. A intuição é um guia perigoso, embora algumas vezes seja o único que temos. Ninguém poderia adivinhar a resposta certa. Há mais de duas mil maneiras diferentes de colocar estes doze pedaços dentro da caixa. Para ser exata, 2.339. Que acha disto?
Não era provável que Vovó estivesse mentindo. Todavia, Duncan sentiu-se tão humilhado pela sua total incapacidade de achar ao menos uma solução, que estourou:
— Não acredito!
A avó raras vezes se mostrava zangada, embora se tornasse fria e afastada quando ele a ofendia. Desta vez, porém, ela simplesmente riu e bateu umas instruções no computador.
— Olhe para isto — disse ela.
Um desenho de luzes claras apareceu na tela, mostrando o conjunto dos doze pentominos encaixados numa moldura de seis por dez. Permaneceu por alguns segundos e foi logo substituída por outra claramente diferente, embora Duncan possivelmente não pudesse se lembrar da forma anterior apresentada tão rapidamente. Depois uma outra. . . e mais uma, até que a avó cancelou o programa.
— Mesmo neste ritmo rápido — disse ela — levaria cinco horas para passar todos. E, garanto-lhe, embora nenhum ser humano tivesse conferido todos eles ou mesmo pudesse fazê-lo, são todos diferentes.
Duncan olhou durante muito tempo a coleção das doze decepcionantemente simples figurinhas. À medida que assimilava vagamente o que sua avó havia dito, teve sua primeira revelação matemática genuína. O que a princípio tinha parecido um jogo de criança lhe revelara infinitas possibilidades e horizontes, embora um dos meninos mais brilhantes de dez anos não pudesse imaginar a total extensão do universo que agora se abria diante dele.
Este momento de glorioso encantamento e espanto tinha sido puramente passivo; uma explosão muito mais intensa de
alegria intelectual ocorreu quando ele descobriu sua primeira solução verdadeira para o problema. Durante semanas, carregou com ele os doze pentominos em sua caixa plástica, brincando com eles a todo momento. Passou a conhecer cada uma daquelas doze formas como se fossem amigos, chamando-os pelas letras com as quais mais se assemelhavam, embora em alguns casos com bastante distorção imaginativa: o bizarro grupo F, I, L, P, N e a última seqüência alfabética T, U, V, 'W, X, Y.Z.
E uma vez, numa espécie de transe geométrico ou êxtase que jamais foi capaz de repetir, descobriu cinco soluções em menos de uma hora. Nem Newton, Einstein ou Chen-Tsu poderiam ter sentido identidade maior com os deuses da matemática em seus momentos de verdade. . .
Não lhe custou muito tempo para perceber, sem nenhuma orientação da avó, que também seria possível arranjar figuras em outras formas além do retângulo de seis por dez. Pelo menos teoricamente, os doze pentominos poderiam ocupar exatamente retângulos de cinco por doze, quatro por quinze e até a faixa estreita de três de largura por vinte de comprimento.
Sem muito esforço, encontrou vários exemplos de retângulos de 5x12 e 4x15. Depois passou uma semana decepcionante tentando arranjar as doze peças numa faixa perfeita de 3x20. Repetidas vezes criou retângulos ainda mais estreitos, mas sempre sobravam algumas peças, e afinal achou que aquela forma era impossível.
Derrotado, procurou a avó novamente e recebeu outra surpresa.
— Estou contente por você ter-se esforçado — disse ela. — Generalizando, explorando todas as possibilidades, é isto a matemática. Mas você está errado. Pode ser feito. Há apenas duas soluções, e se você achar uma delas encontrará também a outra.
Encorajado, Duncan continuou a caçada com vigor renovado. Depois de outra semana, começou a perceber a magnitude do problema. O número de diferentes maneiras pelas quais doze simples objetos poderiam ser colocados basicamente numa linha reta, desde que se admitisse que a maioria deles poderia ter no mínimo quatro orientações diferentes, era estarrecedor.
Mais uma vez apelou para a avó, apontando a injustiça das probabilidades.
— Se houvesse apenas duas soluções, quanto tempo gastaria para achá-las?
— Vou dizer — respondeu ela. — Se você fosse um computador sem cérebro e colocasse as peças num ritmo de um segundo para cada possibilidade, você poderia passar todo o conjunto em... — fez uma pausa para causar efeito — cerca de uns seis milhões, milhões de anos.
Anos de Titã ou da Terra?, pensou o apavorado Duncan. Não que isso tivesse muita importância. . .
— Mas você não é um computador sem cérebro — continuou a avó. — Você pode ver num segundo categorias inteiras que não se encaixariam no padrão. Logo não precisa se ocupar delas. Tente de novo.
Duncan obedeceu, embora sem muito entusiasmo ou sucesso. E aí teve uma idéia brilhante.
Karl estava interessado e aceitou o desafio imediatamente. Pegou o conjunto de pentominos e Duncan não o viu durante muito tempo.
Mais tarde Karl o chamou, parecendo um pouco desanimado.
— Você tem certeza que pode ser feito? — perguntou.
— Absolutamente. Na verdade há duas soluções. Não encontrou uma pelo menos? Pensei que fosse bom em matemática.
— Sou mesmo. Por isso sei como é difícil esta tarefa. Há mais de um quatrilhão de possibilidades a serem verificadas.
— Como é que você resolve esta dificuldade? — perguntou Duncan, deliciado por descobrir algo que surpreendesse seu amigo.
Karl olhou para um pedaço de papel coberto de esboços e números.
— Bem, excluindo proposições proibidas e permitindo simetria e rotação, chegamos ao fatorial doze vezes dois elevado a vinte e um. Você não entenderia por quê! É um número grande, aqui está ele.
Levantou o papel no qual tinha escrito em números grandes a fileira imponente de algarismos: 1 004 539 160 000 000.
Duncan olhou para o número com satisfação; não duvidava da aritmética de Karl.
— Então você desistiu.
— Não! Estou apenas lhe dizendo como é difícil.
E Karl, aparentando inflexível determinação, desligou.
No dia seguinte, Duncan teve uma das grandes surpresas de sua jovem vida. Apareceu na tela um Karl de olhos mortiços, que evidentemente não tinha dormido desde a última conversa.
— Aqui está a resposta — disse ele. Exaustão e triunfo rivalizavam na sua voz.
Duncan mal podia acreditar no que estava vendo; Estava convencido de que as probabilidades contra o sucesso eram demasiado grandes. Porém ali estava uma estreita faixa retangular de apenas três por vinte, formada pelo conjunto completo das doze peças. . .
Com dedos levemente trêmulos pela fadiga, Karl tomou as duas partes da extremidade e movimentou-as, deixando a parte central do quebra-cabeças intacta.
— E eis a segunda solução — disse ele. — Agora vou para a cama. Boa-noite, ou bom-dia, se já for dia.
Por um bom pedaço de tempo, um Duncan bastante castigado ficou olhando parado a tela em branco. Não entendia o que estava acontecendo, apenas sabia que Karl tinha ganho, a despeito de todas as razoáveis expectativas.
Não é que Duncan realmente se importasse. Gostava muito de Karl para ressentir-se com sua pequena vitória e era realmente capaz de alegrar-se com os triunfos dos seus amigos, mesmo quando estes eram à sua custa. Mas havia algo estranho naquilo. Algo quase mágico.
Tinha sido o primeiro contato de Duncan com o poder da intuição e da capacidade misteriosa da mente de ultrapassar os fatos disponíveis e contornar os processos da lógica. Em algumas horas, Karl tinha completado uma pesquisa que deveria exigir quatrilhões de operações, e teria ocupado inteiramente o mais rápido computador existente por uma apreciável quantidade de segundos.
Um dia Duncan perceberia que todos os homens possuíam esses poderes, mas apenas poderiam usá-los uma vez na vida. Em Karl, este privilégio era excepcionalmente bem desenvolvido. Daquele momento em diante, Duncan aprendeu a levar a sério até mesmo suas mais abusivas especulações.
Aquilo se passara há vinte anos. O que teria acontecido àquele pequeno conjunto de peças de plástico? Ele já não se lembrava de quando ás tinha visto da última vez.
Mas ali estavam elas reencarnadas em minerais coloridos, o peculiar granito rosado das Montanhas de Galileu, a obsidiana do Planalto de Huygens, o pseudo mármore da Escarpa Herschel. E ali — era inacreditável, mas impossível duvidar — estava a mais rara e misteriosa das pedras preciosas encontradas neste mundo. D X do quebra-cabeças era feito de titanita. Ninguém poderia confundir aquele brilho negro-azulado com pontos dourados. Era a peça maior que Duncan tinha visto e não podia nem adivinhar o seu valor.
— Não sei o que dizer — gaguejou. — É lindo. . . nunca vi nada parecido.
Colocou os braços em torno dos ombros magros da avó e percebeu, com pesar, que estavam tremendo incontrolavelmente. Abraçou-a delicadamente até que o tremor passasse, sabendo que não havia palavras para certos momentos, e percebendo como nunca que ele era o último amor em sua vida vazia e que a estava abandonando às suas memórias.
CRIANÇAS DOS CORREDORES
Havia um sentimento de tristeza e fim em quase tudo o que fazia naqueles últimos dias. Algumas vezes isto intrigava Duncan. Ele deveria estar excitado, antecipando a grande aventura que apenas um punhado de homens do seu mundo poderia partilhar. E apesar de nunca se ter afastado de seus amigos e familiares por mais de algumas horas, tinha a certeza de que um ano de ausência passaria rapidamente, entre as maravilhas e as distrações da Terra.
Então, por que essa melancolia? Se estava se despedindo das coisas de sua juventude, era apenas por um tempo curto, e as apreciaria ainda mais quando voltasse. . .
Quando voltasse. Aí, é claro, estava a raiz do problema. Num verdadeiro e profundo sentido, o Duncan Makenzie que estava deixando Titã agora jamais retornaria. Na realidade este era o propósito da experiência. Como Colin, havia trinta anos, e Malcolm, quarenta antes de Colin, ele estava se dirigindo para o Sol em busca de conhecimento, poder, maturidade e, sobretudo, em busca de um sucessor que seu próprio mundo nunca pudera lhe dar. Pois, é claro, sendo uma duplicação de Malcolm, também trazia em suas entranhas o gene fatal dos Makenzies.
Mais cedo do que esperava, teve que preparar sua família para receber o novo membro. Depois de um número habitual de experiências prévias, ele estabeleceu seu lar com Mirissa, havia quatro anos, e amava tanto os filhos dela, tinha certeza, como se fossem sua própria carne e sangue. Clyde tinha agora seis anos e Carline três. As crianças, por sua vez, pareciam gostar de Duncan tanto quanto gostavam de seus pais reais, que eram agora considerados membros honorários do Clã Makenzie. Mais ou menos a mesma coisa tinha ocorrido na geração de Colin; ele tinha adquirido ou adotado três famílias, o mesmo acontecendo com Malcolm. O avô nunca tinha-se dado ao trabalho de casar-se de novo depois que Ellen o tinha abandonado, mas nunca tinha ficado sem companhia por muito tempo. Somente um computador poderia manter as pegadas das idas e vindas na periferia do clã. Freqüentemente parecia que todo Titã era aparentado dos Makenzies, de uma maneira ou de outra. Um dos maiores problemas de Duncan, naquele momento, era resolver quem ficaria mortalmente ofendido se ele não procurasse para se despedir.
Excetuando o fator tempo, tinha outros motivos para fazer o mínimo possível de despedidas. Cada um dos seus amigos e parentes, bem como algumas pessoas quase completamente estranhas, pareciam ter algum pedido para fazer, alguma missão que desejavam que cumprisse assim que chegasse à Terra. Ou, pior ainda, havia alguma coisa especial ("Não vai dar nenhum trabalho") que queriam que trouxesse quando voltasse. Duncan calculou que teria que fretar um cargueiro especial se atendesse a todos os pedidos.
Todas as tarefas tinham que ser agora divididas em duas categorias: havia coisas que tinham de ser feitas antes de deixar Titã, e coisas que poderiam ser adiadas até que tivesse embarcado. Estas últimas incluíam seus estudos sobre a atualidade terrestre, que iam sendo postergados, apesar da frenética insistência de Colin em atualizá-los.
Subtrair-se de seus deveres oficiais também não era tarefa fácil e Duncan percebeu que dentro de mais alguns anos isso seria quase impossível. Ele. estava se envolvendo em coisas demais, embora isto fosse uma política já deliberada pela família. Mais de uma vez ele já tinha reclamado de que seu título de Assistente Especial do Administrador-Chefe dava-lhe responsabilidade e nenhum poder. A isso o Administrador-Chefe Colin respondeu:
— Você sabe o que significa o poder em nossa sociedade? Dar ordens a pessoas que as cumprem. . . somente quando o desejam e se as aceitarem.
Esta crítica era um tanto severa, claro, para a burocracia de Titã, que até funcionava surpreendentemente bem e com um mínimo de formalidades. Porque todas as pessoas-chave se conheciam, uma quantidade imensa de transações era feita através de contato pessoal. Todos que tinham vindo para Titã haviam sido selecionados pela inteligência e capacidade e sabiam que a sobrevivência dependia da cooperação. Aqueles que tinham vontade de abandonar suas responsabilidades sociais primeiro tinham que praticar a respiração de metano a cem abaixo de zero.
Tinha sido poupado de uma situação possivelmente embaraçosa. Não poderia deixar Titã sem despedir-se do seu ex-amigo íntimo, mas, afortunadamente, Karl não estava em Titã. Muitos meses atrás Karl tinha embarcado num dos ônibus espaciais para juntar-se a uma nave de pesquisa terrestre, investigando as luas externas. Bastante ironicamente, Duncan tinha invejado esta oportunidade de Karl conhecer mundos desconhecidos. Agora seria a vez de Karl invejá-lo.
Podia imaginar muito bem a frustração de Karl ao ser informado de que Duncan estava a caminho da Terra. O pensamento lhe dava mais tristeza do que prazer. Os Makenzies podiam ter defeitos mas não eram vingativos. Porém, Duncan não podia impedir-se de pensar na freqüência com que os sonhos de Karl agora se dirigiriam para o Sol e também nos momentos passados em que as emoções de ambos estavam ligadas ao mundo original.
Duncan tinha apenas dezesseis anos e Karl vinte e um, quando a nave de passeio Mentor fez o seu primeiro, e amplamente esperado, único encontro com Titã. Era um cargueiro de fusão convertido, lento mas econômico, desde que suprimentos adequados de hidrogênio pudessem ser obtidos em pontos estratégicos.
Mentor parou em Titã para seu abastecimento final, na última etapa de um Grand Tour que a tinha levado a Marte, Ganimede Europa, Palas e Iapetus e que havia incluído pequenas paradas em Mercúrio e Eros. Logo que tinham carregado cerca de quinze mil toneladas de hidrogênio, sua exausta tripulação planejou encaminhar-se para a Terra na órbita mais rápida que pudessem computar, se possível depois de abandonar todos os passageiros.
O cruzeiro deve ter parecido uma boa idéia quando o consórcio de universidades terrenas o tinha planejado havia alguns anos. E de fato o foi, na longa viagem, pois os recém-formados da Mentor provaram o seu valor através do Sistema Solar. Mas, quando a nave desequilibrou-se na sua órbita de estacionamento, sob o comando de um capitão prematuramente envelhecido, todo o empreendimento pareceu um desastre de primeira grandeza.
Os problemas para manter quinhentos adultos jovens ocupados e fora de perigo durante um cruzeiro de seis meses, mesmo a bordo da maior nave espacial, não tinham sido encarados com o devido cuidado. Do professor de direito, que havia assumido o posto de Master-at-Arms2, tinha-se ouvido mais tarde a queixa amarga de que nos almoxarifados da nave havia ausência completa de armas hipodérmicas e gases atordoantes. Por outro lado, não houve mortes ou prejuízos sérios, apenas uma pequena gravidez, e todos aprenderam um bocado, embora não necessariamente nas áreas pretendidas pelos organizadores. As primeiras semanas, por exemplo, foram ocupadas na sua maior parte por experiências de sexo em gravidade zero, a despeito dos avisos de que era um vício oneroso para os obrigados a passar a maior parte de suas vidas em superfícies planetárias.
Outras atividades a bordo — a opinião era geral — não eram tão inofensivas. Havia relatórios sobre fumar tabaco, não realmente ilegal, é claro, mas um comportamento pouco sensato quando havia tantas outras alternativas seguras. Ainda mais alarmantes eram os persistentes boatos de que haviam contrabandeado um Amplificador de Emoções para bordo da Mentor. As chamadas "Maquinas de alegria" estavam proibidas em todos os planetas, a não ser sob estrito controle médico. Porém, sempre haveria pessoas para quem a realidade não era suficientemente agradável e que tentariam buscar coisas melhores.
Não obstante as histórias de terror irradiadas pelos outros portos de escala, Titã estava ansioso para receber os jovens visitantes. Pensava-se que acrescentariam um certo colorido ao ambiente social e ajudariam a estabelecer um contato proveitoso com a Mãe Terra. E, ademais, seria apenas por uma semana...
Felizmente ninguém tinha pensado que duraria dois meses. Isso não foi culpa da Mentor; Titã tinha toda a responsabilidade.
Quando a Mentor instalou-se na sua órbita de estacionamento, a Terra e Titã estavam envolvidos numa daquelas suas disputas periódicas sobre o preço do hidrogênio, Potencial Gravitacional Zero, F. O. B. (Referência Solar). Os 15% de aumento propostos causariam o colapso do comércio interplanetário, gritavam os terrestres. Qualquer quantia abaixo de 10%, juravam os titanianos, os levaria à falência e tornaria impossível a importação de qualquer dos artigos dispendiosos que a Terra estava sempre tentando vender. Para qualquer historiador econômico o debate era tediosamente conhecido.
Sem conseguir um bom preço, a Mentor ficou encalhada em órbita, com os tanques de combustível vazios. A princípio, o capitão não ficou muito infeliz. Ele e a tripulação poderiam se arranjar com o resto, agora que os passageiros tinham ido para Titã e desaparecido por todos os cantos do infeliz satélite. Porém, uma semana se prolongou para duas, depois três, depois um mês. A esta altura, Titã estava disposto a liquidar de qualquer maneira. Infelizmente a Mentor havia perdido sua condição favorável de trajetória e ainda passariam mais quatro semanas até que a próxima janela de lançamento fosse aberta. Durante esse tempo, os quinhentos visitantes se divertiam, como de costume muito mais que seus anfitriões.
Para os jovens titanianos foi um período muito excitante, que recordariam toda a vida. Num mundo pequeno onde todos se conheciam, chegaram quinhentos estrangeiros fascinantes, cheios de conversas sobre as maravilhas da Terra, muitas delas verdadeiras. Ali estavam homens e mulheres, mal entrados nos vinte anos, que tinham visto florestas, planícies e oceanos de água em estado líquido, que tinham passeado sem proteção sob o céu aberto, debaixo de um sol cujo calor podia realmente ser sentido.. .
Este mesmo contraste dos meios ambientes, todavia, poderia ser uma fonte de perigo. Os terrestres não podiam passear desacompanhados, mesmo dentro das roupas. Tinham que ter acompanhantes, de preferência pessoas responsáveis mais ou menos da sua idade, que os impedissem de, inadvertidamente, se matarem ou a seus anfitriões.
Naturalmente, havia ocasiões em que se ressentiam desta proteção bem intencionada e tentavam mesmo escapar dela. Um grupo conseguiu e teve bastante sorte, pois apenas sofreu algumas baforadas de amônia. A lesão foi tão leve que aqueles tolos aventureiros necessitaram apenas de transplantes de pulmão rotineiros, mas após este episódio não tiveram mais problemas sérios.
Havia muitos outros problemas. O simples mecanismo de absorção de quinhentos visitantes era um desafio para uma sociedade onde os padrões de vida eram de certo modo espartanos e as acomodações limitadas. A princípio, os visitantes inesperados foram alojados num conjunto de galerias que tinham sido abandonadas após uma exploração de minério, apressadamente transformadas em dormitórios. Depois, tão rápido quanto possível, foram instalados — como os refugiados de uma cidade bombardeada numa guerra antiga — nos lares que podiam abrigá-los. Nesta época, ainda não havia falta de voluntários desejosos de hospedá-los, dentre eles Colin e Sheela Makenzie.
O apartamento estava solitário, agora que o pseudo-irmão de Duncan, Glynn, tinha saído de casa para trabalhar no outro extremo de Titã. Yuri, o outro filho de Sheela, se fora havia uma década.
Embora o número 402, Segundo Nível, Meridian Park, não fosse espaçoso, segundo os critérios terrestres, Colin Makenzie, naquela época Administrador-Assistente, havia selecionado uma criança abandonada para uma adoção temporária.
Foi assim que Calindy surgiu na vida de Duncan. E de Karl.
O PRESENTE FATAL
Catherine Linden Ellerman tinha comemorado seus vinte e um anos pouco antes da Mentor ter chegado a Saturno. Era opinião unânime que fora uma festa memorável, fornecendo o prateado final aos cabelos já escassos do capitão. Calindy teria passado incólume pela experiência. Além de sua beleza, essa era sua principal característica. No meio do caos — mesmo aquele caos gerado por ela própria — era o tranqüilo centro do furacão. Com um autodomínio muito além da sua idade, parecia a Duncan a própria encarnação da cultura e sofisticação terrestres. Quinze anos depois, podia sorrir maliciosamente desta sua ingenuidade de garoto. Mas não era, porém, totalmente infundada. Ela era, em qualquer padrão, um fenômeno notável.
Duncan sabia evidentemente que todos os terrestres eram ricos. (Como poderia ser de outro modo, se cada um deles era herdeiro de cem peles de um animal chamado marta?) Aquilo era típico de Calindy. Exibição de jóias e sedas, sem deixar perceber que tinha um guarda-roupa limitado, que variava com habilidade consumada. O mais impressionante de todos era um casaco estupendamente lindo, de pele dourada — o único jamais visto em Titã —, feito das peles de um animal chamado marta. Isto era típico de Calindy. Ninguém jamais sonharia em trazer um casaco de peles numa viagem espacial. E ela não o tinha trazido porque — segundo boatos maliciosos — fizesse frio na órbita de Saturno. Ela era muito inteligente para esse tipo de estupidez e sabia exatamente o que estava fazendo. Tinha trazido sua marta simplesmente porque era bonita.
Talvez porque só tivesse podido vê-la através de uma névoa de adoração, Duncan, mesmo anos mais tarde, nunca pôde
visualizá-la como uma pessoa real. Quando pensava em Calindy, e tentava evocar sua imagem, não via a moça real, mas sempre sua própria reprodução, numa daquelas estereobolhas que tinham-se tornado populares nos anos 50.
Quantos milhares de vezes tinha pegado aquela aparentemente sólida, contudo quase imponderável esfera nas mãos, sacudido delicadamente, o que provocava o círculo de cinco segundos! Através da sutil magia de moléculas de gás organizadas, cada uma delas liberando sua quantidade programada de luz, aparecia o rosto de Calindy, minúsculo mas perfeito na forma e no colorido, envolto na bruma movente. A princípio aparecia de perfil. Depois, virava-se e, repentinamente — Duncan nunca pôde ter certeza do momento exato —, surgia aquele leve sorriso que só mesmo da Vinci poderia ter captado nos tempos antigos. Ela não parecia estar sorrindo para ele, mas para alguém atrás dele. A impressão era tão forte que Duncan mais de uma vez tinha olhado para trás assustado, para ver se havia mesmo alguém atrás dele.
Depois a imagem se apagava, a bola tornava-se opaca e ele tinha que esperar cinco minutos para que o sistema se recarregasse. Não importava. Bastava fechar os olhos e podia ver aquele rosto de oval perfeito, a pele delicada de marfim, o lustroso cabelo negro, preso num coque por um pente de prata que tinha pertencido a uma princesa espanhola quando Colombo era criança. Calindy gostava de representar, embora não levasse nenhum papel muito a sério. Carmen era um dos seus prediletos.
Quando chegou à casa dos Makenzies, porém, era uma aristocrata no exílio, aceitando graciosamente a hospitalidade dos generosos provincianos, com algumas das relíquias da família, que tinha conseguido salvar da Revolução. Como isso não impressionasse ninguém, a não ser Duncan, rapidamente tornou-se uma antropóloga estudiosa, tomando notas para a sua tese sobre os estranhos hábitos das sociedades primitivas. Este papel era, pelo menos, parcialmente genuíno, pois Calindy estava realmente interessada em diferentes estilos de vida. E, por algumas definições, Titã poderia ser classificado de primitivo ou, pelo menos, de subdesenvolvido.
Assim os terrestres, aparentemente incapazes de se escandalizar, ficaram genuinamente chocados com a existência de famílias de três — e até quatro! — filhos em Titã. Os esqueletos de milhões de bebês do século vinte ainda perseguiam a consciência do mundo, e certos excessos trágicos mas compreensíveis, como a campanha do "Linchamento dos Procriadores", sem mencionar o incêndio do Vaticano, deixaram cicatrizes permanentes na psique humana. Duncan ainda se recordava da expressão de Calindy quando encontrou a primeira família de seis: ultraje colidindo com curiosidade, embora ambos moderados pela polidez terrestre. Pacientemente, ele lhe havia explicado que não tinha nada externamente sagrado sobre o dogma do Crescimento Zero, e que Titã realmente necessitava dobrar sua população cada cinqüenta anos. Finalmente, ela o admitiu logicamente, mas nunca foi capaz de aceitá-lo emocionalmente. E era a emoção que fornecia energia vital a Calindy. Sua vontade, beleza e inteligência estavam apenas a serviço de sua emoção.
Para uma jovem terrestre não era promíscua, disse ela uma vez a Duncan — e ele acreditou —, e nunca tinha mais de dois amantes de cada vez. Em Titã, para o enorme infortúnio de Duncan, tinha apenas um.
Mesmo que os Helmers e os Makenzies não fossem aparentados pelo lado de Vovó Ellen, seria inevitável que ela encontrasse Karl num dos inúmeros concertos, reuniões e bailes organizados para os refugiados da Mentor. Assim, Duncan não podia realmente se culpar de tê-los apresentado. Não faria nenhuma diferença, afinal. Contudo, mesmo assim, sempre pensava ...
Karl tinha quase vinte e dois — um ano mais que Calindy, embora fosse muito menos experimentado. Ainda possuía aquele porte um pouco musculoso dos nativos da Terra, mas tinha-se adaptado tão bem à baixa gravidade que se movia com mais elegância do que a maioria dos homens que tinham passado toda a vida em Titã. Ele parecia possuir o segredo da força sem a grosseria.
E, num sentido quase literal, ele era o menino de ouro de sua geração. Embora fingisse detestar a expressão, Duncan sabia que ele se orgulhava secretamente do título que alguém lhe tinha dado na adolescência: "O menino com os cabelos como o sol". A descrição só poderia ter sido feita por um visitante terrestre. Nenhum titaniano teria pensado nela, mas todos concordavam que era muito apropriada.
Pois Karl Helmer era um desses homens a quem os deuses, para seu próprio divertimento, tinham presenteado com o dom fatal da beleza.
Somente muitos anos depois, e parcialmente graças a Colin, é que Duncan começou a entender todas as nuances do caso. Logo após seu vigésimo terceiro aniversário, os Makenzies receberam o último cartão do Dia da Estrela que Calindy sempre lhes enviou.
— Até agora não sei se cometi um erro — disse Colin, pesaroso, enquanto segurava o brilhante retângulo de papel, com a saudação convencional, enviado através do Sistema Solar. — Parecia uma boa idéia naquela época.
— Bem, não penso que tivesse feito algum mal, afinal de contas.
Colin o encarou com um jeito estranho.
— Tenho dúvidas. Bem, de qualquer maneira não saiu como eu esperava.
— E o que você esperava?
Algumas vezes era muito vantajoso, e outras francamente embaraçoso, ter um pai que era também o seu gêmeo idêntico de quarenta anos. Ele conhecia todos os erros que você ia cometer porque já os tinha cometido. Era impossível esconder algum segredo dele, já que seus processos de pensamento eram idênticos aos seus. Nessa situação, a única política que fazia % sentido era a honestidade total, até onde esta fosse possível para um ser humano.
— Não estou bem certo. Mas, do momento em que vi Calindy brilhando como uma nova por entre toda aquela tristeza e confusão dos corredores daquela velha mina, eu quis saber algo mais sobre ela. .. queria torná-la uma parte da minha vida. Você sabe o que quero dizer.
Duncan pôde apenas sacudir a cabeça, concordando em silêncio.
— Sheela não se importava. Afinal, não sou um assaltante de meninas! E ambos esperávamos que Calindy significasse para você alguém a mais para se dedicar, além de Karl.
— Seja como for, eu já estava superando aquilo. Era muito decepcionante.
Colin deu uma risadinha, não sem simpatia.
— Então posso imaginar. Karl estava se distribuindo demais. Naquele tempo metade de Titã estava apaixonada por ele. . . ainda está, aliás. É por isso que precisamos mantê-lo afastado da política. Lembre-me de falar-lhe algum dia sobre Alcibíades.
— Quem?
— Um antigo general grego, muito inteligente e encantador para o seu próprio bem. Ou para o bem de outros.
— Agradeço sua preocupação — disse Duncan, com apenas um leve traço de sarcasmo. — Mas isto aumentou meus problemas cem por cento. Como Calindy tornou bem claro, eu era muito jovem para ela e, claro, Karl estava naquele momento apenas interessado nela. E para tornar piores as coisas, eles nem se importavam que eu partilhasse a cama deles, desde que não atrapalhasse. De fato...
— O quê?
O rosto de Duncan anuviou-se. Que estranho nunca ter pensado nisso antes; no entanto como era evidente agora!
— Não se importavam, que inferno! Se divertiam de me ter por perto, só para implicar comigo! Pelo menos Karl.
Poderia ter sido uma revelação arrasadora. No entanto, não o feriu tanto como era de se esperar. Ele já deveria ter percebido, embora sem querer admiti-lo, que havia um traço definido de crueldade em Karl. Certamente, suas relações sexuais eram freqüentemente sem ternura e consideração. Houve mesmo ocasiões em que assustou Duncan com algo que se aproximava da impotência. E fazer aquilo com um jovem viril de dezesseis anos não era nenhuma vantagem.
— Estou contente por você ter compreendido isso — disse Colin, sombriamente. — Você tinha que descobri-lo sozinho. Não teria nos acreditado. Mas fosse o que fosse que Karl tivesse feito, ele o pagou caro. Aquele esgotamento nervoso foi sério. E, francamente, não acredito que sua recuperação seja tão completa como dizem os médicos.
Esse também era um pensamento novo para Duncan, e ele o remoia na cabeça. O esgotamento de Karl era ainda um enorme mistério que a família Helmer jamais discutira com estranhos. Os românticos tinham uma explicação simples: ele estava profundamente desgostoso com a perda de Calindy. Duncan sempre achou isto difícil de aceitar. Karl era muito forte para consumir-se como qualquer personagem de melodrama antigo, especialmente quando havia no mínimo mil voluntárias esperando para consolá-lo. De qualquer maneira era inegável que o esgotamento surgiu apenas algumas semanas após a Mentor ter felizmente partido para a Terra.
Depois disso, houve uma mudança completa em sua personalidade. Todas as vezes que Duncan o encontrou, nos anos seguintes, ele lhe tinha parecido quase um estranho.
Fisicamente estava mais bonito do que nunca, talvez até um pouco mais, graças a sua maior maturidade. Podia ainda parecer amigável, embora houvesse silêncios súbitos em que ele ensimesmava-se sem nenhuma razão aparente. Mas, comunicação real estava faltando. Talvez nunca tivesse havido mesmo...
Não, isto era injusto e mentiroso. Eles tinham partilhado de muitos momentos antes que Calindy tivesse entrado em suas vidas. E um, embora apenas um, depois de sua partida.
Esta era a dor mais profunda que Duncan tinha conhecido. Estava sem fala de tanta dor quando fizeram as despedidas no terminal de Meridian, cercados dos outros hóspedes que partiam. Para sua grande surpresa, Titã tinha subitamente descoberto que ia sentir falta de seus jovens visitantes. Quase todos ali estavam cercados de um grupo de residentes em pranto.
A dor de Duncan também era, em quantidade não pequena, composta de ciúme. Nunca descobriu como Karl — ou Calindy — tinham conseguido, mas voaram juntos até a nave e foi lá que completaram suas despedidas. De modo que, quando Duncan viu Calindy pela última vez, quando ela acenou-lhe da barreira de quarentena, Karl ainda estava com ela. Naquele momento de desolação, ele jamais supôs que fosse vê-la novamente.
Quando Karl voltou no último vôo do aerônibus, cinco horas mais tarde, estava abatido, pálido, e tinha perdido toda sua habitual vivacidade. Sem dizer palavra, entregou a Duncan um pequeno pacote embrulhado em papel colorido brilhante, com a seguinte inscrição: COM O AMOR DE CALINDY.
Duncan o abriu com dedos trêmulos. Havia uma estereobolha dentro. Chorava tanto que levou muito tempo para conseguir ver, entre o nevoeiro de lágrimas, a imagem que ela continha.
Muito mais tarde, no mesmo dia, quando se amparavam um ao outro num sofrimento mútuo, uma pergunta óbvia ocorreu a Duncan.
— O que ela lhe deu, Karl? — perguntou.
Houve uma pequena pausa na respiração do outro e sentiu que o corpo levemente tenso de Karl se afastou dele. Foi um gesto quase imperceptível. Provavelmente, nem mesmo Karl o notara.
Quando respondeu, sua voz estava forçada e curiosamente na defensiva.
— É... é segredo. Nada importante. Talvez um dia eu lhe conte.
Nesse momento Duncan percebeu que ele jamais lhe contaria. E imediatamente percebeu que aquela seria a última noite que passariam juntos.
O FIM DO MUNDO
Os Veículos de Efeito de Solo eram muito atraentes num meio ambiente de baixa gravidade e de atmosfera densa, mas tendiam a transformar a paisagem, principalmente quando esta consistia, em sua maior parte, de neve fofa. Mas isto era problema apenas para quem estivesse viajando na traseira: quando alcançavam a velocidade normal de cruzeiro de duzentos quilômetros horários, o flutuador deixava sua nevasca particular para trás e a visibilidade para a frente era excelente.
Mas não estava viajando a duzentos, e sim a mais de trezentos, e Duncan estava começando a desejar ter ficado em casa. Seria muita burrice quebrar o pescoço numa missão em que sua presença era completamente desnecessária, apenas dois dias antes de sua partida para a Terra.
Contudo, não havia perigo real. Estavam viajando sobre neve de amônia macia e lisa, num terreno sabidamente sem acidentes. A velocidade máxima era segura e plenamente justificável. Esta era uma oportunidade boa demais para ser perdida e tinha esperado por ela há anos. Ninguém tinha jamais observado um verme-de-cera na fase ativa e aquele estava a apenas oitenta quilômetros de distância de Oásis. Os sismógrafos tinham registrado sua marca característica, e o computador do meio ambiente dera o alarma. O flutuador tinha saído da câmara de vácuo havia dez minutos.
Agora, aproximava-se da falda do Monte Shackleton, o vulcãozinho bem comportado que, depois de muito pensar, os pioneiros decidiram aceitar como vizinho. Os vermes-de-cera estavam quase sempre associados aos vulcões, e alguns estavam engrinaldados por eles, "como uma explosão numa fábrica de espaguete", como disse uma vez um dos pioneiros. Não era de espantar que sua descoberta tivesse causado tanto entusiasmo. Do ar, eles pareciam muito com os túneis protetores construídos pelas térmites e outros insetos que vivem em colônias na Terra.
Para a amarga desilusão dos exobiólogos, foi concluído que eram um fenômeno puramente natural, o equivalente, numa temperatura muito mais baixa, aos túneis de lava da Terra. A cabeça do verme-de-cera movimentava-se, de acordo com os registros sísmicos, à velocidade de até cinqüenta quilômetros por hora, preferindo encostas de menos de dez graus. Sabia-se até que subiam a montanha em curtas distâncias, quando a pressão de impulso era suficientemente alta. Uma vez passado o âmago de petroquímicos quentes, o que restava era um tubo oco de cerca de cinco metros de diâmetro. Os vermes-de-cera eram uma das manifestações mais benignas de Titã. Não só eram uma fonte valiosa de matéria-prima, como também podiam ser rapidamente adaptados para local de armazenagem ou mesmo para habitações temporárias de superfície, se alguém pudesse se acostumar com a rica harmonização de odores alifáticos.
O flutuador tinha uma outra razão para aquela velocidade. Era a estação dos eclipses. Duas vezes em cada ano de Saturno, próximo dos equinócios, o Sol desaparecia por trás do vulto invisível do planeta durante seis horas de cada vez. Não havia diminuição lenta da luz, como na Terra. Com chocante brusquidão, a monstruosa sombra de Saturno varreria Titã, trazendo noite súbita e inesperada a qualquer viajante que fosse tolo o suficiente para não verificar o calendário.
O eclipse de hoje estava sendo esperado dentro de uma hora e, a não ser que encontrassem obstáculos, daria plenamente para que atingissem os vermes-de-cera. O flutuador estava agora atravessando um vale estreito, flanqueado por belos penhascos de amônia, coloridos de todas as tonalidades possíveis de azul, desde o safira mais pálido ao azul-marinho. Titã já tinha sido chamado de o mundo mais colorido do Sistema Solar, sem exclusão da Terra. Se a luz do Sol fosse mais forte teria sido positivamente berrante. Embora vermelhos e laranjas predominassem, qualquer parte do espectro existia em algum lugar, embora raramente no mesmo local. As tempestades de metano e as chuvas de amônia estavam constantemente modelando a paisagem.
— Alô, Flutuador Três — disse o Controle de Oásis, subitamente. — Vocês estarão a céu aberto novamente daqui a cinco quilômetros. A menos de dois minutos, na sua velocidade atual. Depois, há uma subida de dez quilômetros para a Geleira Amundsen. De lá poderão ver o verme. Mas acho que estão muito atrasados. Ele está quase atingindo o Fim do Mundo.
— Diabo — disse o geólogo, que estava dirigindo o flutuador com perfeita habilidade. — Estava com receio de que isso acontecesse. Alguma coisa me diz que nunca poderei alcançar um verme na corrida.
Reduziu a velocidade abruptamente quando uma rajada de neve reduziu a visibilidade a quase zero, e por alguns minutos ficaram navegando só com o radar, através de um nevoeiro de um branco brilhante. Uma película pegajosa de neve amoniacal começou a se formar nas janelas dianteiras e rapidamente cobriria completamente o veículo se o motorista não tomasse providência imediata. Um gemido agudíssimo encheu a cabina enquanto as camadas de plástico rígido começaram a oscilar em freqüências quase ultra-sônicas e um padrão fascinante de ondas permanentes surgiu antes que a camada obscurecedora tivesse sido destruída.
Depois, atravessaram a pequena tempestade e a muralha de azeviche da Geleira Amundsen ficou visível no horizonte. Em alguns séculos, aquela montanha rastejante alcançaria Oásis e era preciso fazer alguma coisa a respeito. Durante os anos de verão, a viscosidade dos óleos e ceras impregnados de carbono tornava-se suficientemente baixa para permitir o avanço da geleira a uma velocidade espantosa de vários centímetros por hora, mas durante o longo inverno ficava imóvel como uma rocha.
Algumas eras atrás, o aquecimento local tinha derretido parte da geleira e formado o Lago Tuonela, quase tão infernalmente negro quanto sua originária, mas enfeitado de grandes espiras e volutas, onde um material mais leve tinha sido fixado em formas de turbulência que agora estavam congeladas para a eternidade. Todos que, do ar, viam o fenômeno pela primeira vez pensavam que estavam sendo originais quando exclamavam: "Puxa! Parecem exatamente com uma xícara de café onde se misturou um pouco de creme!"
Na medida em que o flutuador corria através do lago, aqueles estranhos formatos passavam em alguns minutos, perto demais para que suas volutas pudessem ser observadas adequadamente. Depois, houve uma outra longa subida, pontilhada por enormes rochedos arredondados, que somente podiam ser evitados com um impulso total dos jatos inferiores. Isto diminuía a velocidade para menos de cem quilômetros e o flutuador prosseguia em direção à crista em ziguezagues, com o motorista blasfemando e olhando o relógio a cada segundo.
— Lá está ele! — gritou Duncan.
Somente a alguns quilômetros de distância, surgindo acima do nevoeiro que sempre encobria os flancos do Monte Shackleton, surgia uma fina linha branca, como um pedaço de corda esticado sobre a paisagem. Prolongava-se montanha abaixo até desaparecer no horizonte. O motorista fez a curva, para acompanhar o rasto. Mas Duncan já sabia que estavam muito atrasados para atingir seu objetivo principal. Estavam muito perto do Fim do Mundo. Minutos mais tarde tinham chegado lá e o flutuador parou a uma considerável distância.
— É o mais próximo que pretendo chegar — disse o motorista. — Não quero que uma rajada de vento nos pegue quando estivermos percorrendo a borda. Quem deseja sair? Ainda temos trinta minutos de luz.
— Qual é a temperatura? — perguntou alguém.
— Quente. Só cinqüenta abaixo de zero. Roupas de uma camada serão suficientes.
Era a primeira vez, havia meses, que Duncan saía a céu aberto. Mas a nenhum habitante de Titã era permitido esquecer certas práticas. Testou a pressão de oxigênio, o tanque de reserva, o rádio, o encaixe do fecho do pescoço, todos aqueles pequenos detalhes dos quais dependiam as suas esperanças de uma velhice tranqüila. O fato de que estaria a cem metros da segurança, e cercado de homens que num momento poderiam vir em seu socorro, não afetou em nada sua meticulosidade.
Os verdadeiros espaciais às vezes subestimaram Titã, com resultados desastrosos. Parecia, de modo geral, ser muito fácil movimentar-se num mundo onde a roupa de pressão era desnecessária, e que todo o corpo podia ser exposto à atmosfera ambiente. Nem havia nenhuma preocupação com congelamento, mesmo durante a noite de Titã. Desde que a roupa térmica mantivesse sua integridade, os próprios cento e cinqüenta watts de calor do corpo poderiam manter infindavelmente uma temperatura confortável.
Estes fatos poderiam levar a um sentimento de falsa segurança. Um traje rasgado — que seria imediatamente notado e reparado num ambiente de vácuo — poderia ser desprezado neste ambiente como um ligeiro desconforto até que fosse tarde demais, e os dedos dos pés e mãos já estivessem caindo de tão congelados. E embora fosse incrível que alguém ignorasse um alarme de oxigênio, ou fosse suficientemente descuidado para ir além do seu ponto máximo, isto já tinha acontecido. O envenenamento por amônia não é a forma mais agradável de morrer.
Duncan não deixava esses fatos oprimi-lo, mas estavam sempre presentes no fundo de sua mente. Enquanto caminhava em direção ao verme, com os pés triturando uma fina crosta semelhante a espermacete congelado, automaticamente conferia as posições dos seus companheiros mais próximos, para o caso de precisarem dele ou ele precisar dos outros.
A parede cilíndrica do verme agora surgia acima dele, fantasmagoricamente branca, tecida com pequenas escamas ou placas que vagarosamente descamavam-se e caíam no chão. Duncan retirou uma luva e colocou a mão nua no tubo. Estava ligeiramente quente e havia uma delicada vibração. O âmago de líquido quente ainda estava pulsando dentro, como o sangue através de uma gigantesca artéria. Mas o próprio verme, controlado pelas forças de tensão e gravidade da superfície, que interagiam, tinha se matado.
Enquanto os outros se ocupavam com suas medições, fotografias e amostras, Duncan caminhou até o Fim do Mundo. Não era a sua primeira visita àquele famoso e espetacular panorama, mas o impacto não diminuiu.
Quase a seus pés, o solo caía verticalmente por mais de mil metros. Abaixo da beira da escarpa, o verme decapitado pingava vagarosamente estalactites de cera. De tempos em tempos, um glóbulo de óleo se desprendia e caía na camada de nuvens que ficava muito embaixo. Duncan sabia que o solo mesmo estava a um quilômetro abaixo daquele, mas o mar de nuvens que se estendia em direção ao horizonte nunca tinha se rompido desde que os homens o observaram pela primeira vez.
Contudo, no alto o tempo estava notavelmente claro. Afora um pequeno cirro de etileno, nada obscurecia o céu e o Sol estava tão claro e brilhante como Duncan nunca o tinha visto. Podia até perceber, trinta quilômetros ao norte, o inconfundível cone do Monte Shackleton, com sua perpétua coluna de fumaça.
— Apressem-se e tirem suas fotografias — disse uma voz no seu rádio. — Vocês têm menos de cinco minutos.
A um milhão de quilômetros de distância, a massa invisível de Saturno estava se aproximando da estrela brilhante que inundava esta estranha paisagem com uma luz dez mil vezes mais forte que a da lua cheia da Terra. Duncan afastou-se alguns passos da beira do precipício, mas não tão longe que o impedisse de olhar para as nuvens embaixo. Esperava poder observar a sombra do eclipse, quando esta viesse na sua direção.
A luz estava indo embora. . . indo. . . foi. Não conseguiu ver a aproximação da sombra veloz. Parecia que a noite tinha caído instantaneamente sobre todo o mundo.
Ele olhou para cima na direção do Sol desaparecido, esperando dar uma olhada na tênue coroa. Mas havia apenas um brilho que se estreitava, revelando por alguns segundos a curvatura de Saturno, enquanto o mundo gigantesco girava inexoravelmente pelo céu. Além, via-se uma estrela fraca e distante, que em poucos minutos seria também engolida.
— O eclipse terá uma duração de doze minutos — disse o motorista do flutuador. — Se algum de vocês desejar permanecer lá fora, fique longe da beira, pois pode facilmente perder a orientação no escuro.
Duncan quase não o ouviu. Alguma coisa tomou sua garganta, como se uma lufada da amônia circundante tivesse invadido seu traje.
Ele não podia afastar o olhar da pequena estrela, durante os poucos segundos antes de Saturno apagá-la do céu. Continuou a olhar muito depois de vê-la desaparecer, com toda sua promessa de calor e maravilhas e com séculos de história da sua civilização.
Pela primeira vez na vida, Duncan Makenzie tinha visto o planeta Terra a olhos nus.
SÍRIO
Após trezentos anos de naves espaciais que eram em sua maioria tanques de combustível, Sírio era quase inacreditável. Ela parecia ter janelas demais e havia escotilhas de entrada nos lugares mais improváveis, algumas delas ainda escancaradas enquanto a carga era transportada. Pelo menos ela estava recebendo algum hidrogênio, pensou Duncan com azedume. Seria acrescentar insultos à injúria econômica se ela fizesse a viagem completa com um único combustível. Diziam os boatos que ela era capaz disto, desde que duplicasse o seu tempo de trânsito.
Era também difícil de acreditar que aquele cilindro grosso, com o macio e brilhante anel do defletor de radiação circundando a unidade motriz como um guarda-sol gigantesco, fosse um dos mais rápidos objetos construídos pelo homem. Somente as sondas interestelares, no momento longínquas no abismo, em suas viagens de séculos de duração, poderiam exceder sua velocidade teórica máxima: quase um por cento da velocidade da luz. Ela jamais alcançaria sequer a metade dessa velocidade, já que tinha que carregar combustível suficiente para reduzir sua marcha e encontrar com seu destino. De qualquer modo, ela podia fazer a viagem de Saturno à Terra em vinte dias, a despeito de uma pequena volta para evitar os muito mais psicológicos acasos do cinturão de asteróides.-
O vôo de quarenta minutos da superfície para a órbita de estacionamento não era a primeira experiência espacial de Duncan. Ele tinha feito várias viagens pequenas para as luas vizinhas, a bordo daquele mesmo ônibus. A frota de passageiros de Titã consistia de exatamente cinco naves, e nenhuma possuía o luxo dispendioso da gravidade centrífuga. Todos os cintos de segurança mantinham-se apertados durante a viagem. Cada passageiro que desejasse experimentar as alegrias e acasos da falta de peso teria que aguardar exatamente duas horas para gozá-las a bordo da Sírio, antes que a máquina começasse a funcionar. Embora Duncan sempre tivesse se sentido à vontade em queda livre, deixou que os comissários o flutuassem, transformando-se num pacote inerte e sem resistência, através da câmara de vácuo e para dentro da nave.
Seria esperar muito desejar que a Comissão do Centenário providenciasse uma cabina individual — havia apenas quatro na nave — e Duncan sabia que teria que partilhar uma cabina dupla. A L3 era uma cela diminuta com dois beliches dobráveis, um par de armários, dois assentos — também dobráveis — e uma tela espelhada de visão. Não havia janelas para o espaço. Segundo o que a brochura Bem-vindos a Bordo! explicava cuidadosamente, a existência de janelas poderia criar imprevistos estruturais inaceitáveis. Duncan não acreditou nem um pouco naquilo e pensou se os desenhistas não ficaram com medo de uma tentativa de passageiros claustrofóbicos abrir uma saída.
Também não havia banheiro na cabina — esses confortos estavam todos num pequeno compartimento ao lado que servia às quatro cabinas do conjunto. Bem, seria apenas por duas semanas. ..
O ânimo de Duncan elevou-se um pouco, depois que adquiriu bastante confiança para iniciar a exploração daquele seu pequeno mundo. Rapidamente aprendeu a localizar-se olhando para os avisos impressos nos mapas de bordo. Era conveniente pensar em Sírio como uma torre cilíndrica de dez andares. As cinqüenta cabinas estavam distribuídas entre o sexto e o sétimo andar; imediatamente abaixo, no quinto piso, estavam o salão, a área de recreação e a sala de jantar.
O território além destes três andares era proibido aos passageiros. Subindo, os andares restantes eram Manutenção da Vida, Alojamento da Tripulação e — formando uma espécie de apartamento de cobertura com visibilidade total — a Ponte. Na outra direção, os quatro níveis eram: Cozinha, Segurança, Combustível e Propulsão. Era uma arrumação lógica, mas Duncan levou algum tempo para descobrir que o gabinete do Comissário de Bordo ficava no nível da Cozinha, a Cirurgia próxima do compartimento de carga, o Ginásio na Manutenção da Vida, e a Biblioteca era enviada numa câmara de vácuo de emergência, acima dos andares sexto e sétimo.
Durante a circunavegação do seu novo lar, Duncan encontrou uma dúzia de outros passageiros na mesma viagem exploratória e trocou os cumprimentos cerimoniosos próprios aos desconhecidos que brevemente se conhecerão, talvez até muito bem. Ele já havia dado uma olhada na lista de passageiros para ver se existia alguém conhecido a bordo e encontrou alguns nomes titanianos conhecidos, mas não próximos. Descobriu que partilhava a cabina L3 com uma Dra. Louise Chang, mas o rompimento com Mirissa ainda doía muito para que a "Louise" suscitasse mais que um vago interesse.
De qualquer modo, como descobriu quando voltou à cabina L3, a Dra. Chang era uma velhinha inteligente, sem dúvida beirando já o final dos cem anos, que o cumprimentou com uma polidez distraída que, mesmo no fim da viagem, nunca pareceu chegar a um reconhecimento completo da sua existência. Ela era, como descobriu logo, uma das físicas-matemáticas mais importantes do Sistema Solar, e autoridade em fenômenos de ressonância entre os satélites dos planetas externos. Havia meio século vinha tentando explicar por que os vazios entre os anéis de Saturno não estavam exatamente onde as melhores teorias o exigiam.
As duas horas passaram devagar, finalmente parecendo rapidamente adiantar-se para o anúncio esperado: "Aqui fala o Capitão Ivanov, falando a menos cinco minutos. Todos os membros da tripulação devem estar na estação ou a postos, todos os passageiros devem ter colocado as correias de segurança. A aceleração inicial será de um centésimo de gravidade — dez centímetros quadrados por segundo. Repito: um centésimo de gravidade, que será mantido durante dez minutos, enquanto o sistema de propulsão passar pelos exames de rotina".
Suponhamos que não passe nesses exames?, Duncan perguntou-se. Será que mesmo os matemáticos saberão o que acontece se o Impulso Assimptótico estiver funcionando mal? Esta forma de pensar não era muito proveitosa e ele a abandonou apressadamente.
— Menos quatro minutos. Espaçomoços, verifiquem a segurança de todos os passageiros.
Bem, essa ordem possivelmente não poderia ser obedecida. Havia 325 passageiros, metade deles em suas cabinas e a outra metade nos dois salões, e não havia a menor possibilidade dos doze cansados espaçomoços poderem ver se todos os seus passageiros estavam se comportando bem. Tinham feito uma ronda da nave a menos trinta e outra a menos dez minutos, e os passageiros que tivessem se desamarrado depois daquela vistoria só podiam culpar a si mesmos. E qualquer pessoa que pudesse se machucar com um centésimo de gravidade, pensou Duncan, certamente merecia. Impactos naquela aceleração tinham a força de uma esponja grande molhada.
— Menos três minutos. Todos os sistemas funcionando, normalmente. Os passageiros no Salão B poderão ver Saturno nascendo.
Duncan se permitiu um leve sentimento de satisfação. Era precisamente por isso que, depois de ter-se informado com um dos espaçomoços, estava naquele salão. Como Titã tinha sempre a mesma face voltada para o seu planeta, o espetáculo do grande globo surgindo acima do horizonte era uma visão que jamais poderia ser tida da superfície, mesmo que as quase perpétuas camadas de nuvens de hidrocarbono o permitissem.
Aquela cobertura de nuvens agora estava a milhares de quilômetros abaixo, escondendo aquele mundo que protegiam do congelamento do espaço. E de repente — inesperadamente, embora estivesse esperando — apareceu Saturno como um fantasma dourado.
Em todo o universo conhecido não havia nada comparável à maravilha que estava vendo naquele momento. Cem vezes maior que a insignificante Lua que flutuava nos céus da Terra, aquele globo amarelo achatado parecia um objeto de estudo visual de um planetário meteorológico. Seus anéis nodosos de nuvens podiam mudar de aparência quase de hora em hora, enquanto que a milhares de quilômetros abaixo, na atmosfera de hidrogênio-metano, erupções de causa ainda desconhecida atiravam bolhas maiores que continentes terrestres do seu âmago oculto. Elas se expandiam e estouravam quando atingiam o limite da atmosfera e, no espaço de minutos, o movimento furioso de rotação de Saturno, de dez horas, as tinha espalhado na forma de longas fitas coloridas, estendendo-se em torno da metade do planeta.
Em algum lugar naquele inferno, lembrava-se Duncan com espanto, o Comandante Kleinman tinha morrido havia setenta anos, e com ele uma parte da Vovó Ellen. Em todo aquele tempo ninguém tinha tentado voltar. Saturno representava ainda uma das maiores empresas inacabadas do Sistema Solar — talvez próxima do ardente inferno de Vênus.
Os próprios anéis eram ainda tão inexpressivos que era fácil desprezá-los. Por uma ironia cósmica, todos os satélites internos ficavam quase no mesmo plano daquela estrutura delicada, delgada como uma hóstia, que fazia de Saturno um planeta único. Finos como estavam agora, os anéis eram visíveis apenas como fios de cabelo luminosos, sobressaindo de cada lado do planeta. Porém lançavam uma larga e escura faixa ao longo do equador.
Em algumas horas, assim que Sírio ultrapassasse o plano orbital de Titã, os anéis se tornariam visíveis, numa glória total. E somente esta cena, pensou Duncan, já justificaria a viagem.
— Menos um minuto. . .
Ele nem tinha escutado o aviso de dois minutos. O grande mundo surgindo das nuvens do horizonte devia tê-lo hipnotizado. Em sessenta segundos, o graduador automático, no coração da unidade motriz, iniciaria seus mistérios finais. Forças que somente um punhado de homens vivos poderia perceber, e nenhum poderia realmente compreender, despertariam em sua fúria, arrancariam a Sírio das garras de Saturno e a arremessariam na direção do Sol, para a distante meta que era a Terra.
—... dez segundos.. . cinco segundos. .. ignição!
Como era estranho que uma palavra que já estava obsoleta, tecnologicamente, havia pelo menos duzentos anos, fizesse parte do jargão da astronáutica! Duncan quase não teve tempo de formular este pensamento quando sentiu o impulso. De zero exato seu peso pulou para menos de um quilo. Era o suficiente para fazer uma mossa na almofada acima da qual ele estava flutuando e era principalmente detectável pela tensão moderada no seu cinto peitoral.
Outros efeitos eram levemente mais dramáticos. Havia uma mudança bem distinta no timbre dos sons indefiníveis que nunca cessam a bordo de uma nave espacial quando seus centros mecânicos estão em funcionamento. E parecia a Duncan ouvir, ao longe, um silvo distante. Mas, não tinha certeza.
E depois, a mil quilômetros abaixo, ele viu a prova inegável de que a Sírio estava realmente se libertando da órbita. A nave estivera viajando durante a noite, na sua última volta sobre Titã, e o sol pálido estava rapidamente desaparecendo no mar de nuvens bem abaixo. Mas, agora, surgia uma segunda alvorada, numa faixa larga que cruzava o mundo que estava a ponto de deixar. Pois, a cem quilômetros atrás da nave em aceleração, uma coluna de plasma incandescente estava esparramando quintilhões de energia luminosa pelo espaço, e através da paisagem de nuvens carmesins de Titã. Sírio estava viajando na direção do Sol, com maior glória que o próprio Sol.
— Dez minutos após ignição. Todos os exames de impulso completados. Agora vamos aumentar o impulso do nível de cruzeiro para gravidade ponto dois: duzentos centímetros quadrados por segundo.
E agora, pela primeira vez, Sírio estava mostrando o que podia fazer. Numa suave onda de energia, o impulso e o peso multiplicaram vinte vezes, e mantiveram-se firmes. A luz nas nuvens embaixo era agora tão forte que feria os olhos. Duncan até deu uma espiada para o disco de Saturno em ascensão, para verificar se ele também mostrava algum sinal deste feroz novo Sol. Podia ouvir agora, distante porém inquestionável, o firme sibilar, o pano de fundo de toda a vida a borda da nave, até o fim da viagem. Deveria ser pura coincidência, pensou Duncan, que aquela voz espantosa do Impulso Assimptótico soasse tão semelhante à dos velhos foguetes químicos, que primeiro deram ao homem a liberdade do espaço. O plasma que saía do reator da nave movia-se mil vezes mais rápido que os gases de exaustão de qualquer foguete, mesmo de um foguete nuclear. E como criava este barulho aparentemente familiar era um quebra-cabeças que não seria resolvido por qualquer intuição mecânica primária.
— Estamos agora numa etapa de cruzeiro de um quinto de gravidade. Os passageiros podem se desamarrar e mover-se livremente mas, por favor, usem de precaução até que estejam completamente adaptados.
Isto não me tomará muito tempo, pensou Duncan enquanto se desamarrava. A aceleração da nave deu-lhe seu peso normal de Titã. Qualquer morador da Lua também se sentiria plenamente à vontade, enquanto que os marcianos e terrenos teriam uma deliciosa sensação de flutuar.
As luzes do salão, que tinham sido diminuídas quase ao mínimo para permitir melhor visibilidade do panorama, foram aumentando devagar, até chegarem ao normal. As poucas estrelas de primeira grandeza que eram visíveis desapareceram logo e o globo de Saturno ficou pálido e descorado, perdendo todo o colorido. Duncan poderia restaurar aquele cenário se puxasse as cortinas negras em torno do nicho de observação, mas seus olhos levariam alguns minutos para se readaptar. Estava pensando se faria o esforço, quando tomaram a decisão por ele.
Ouviu-se um "ding-dong-ding" musical, e uma voz nova, que parecia vir de uma camada social muito superior à do Capitão, anunciou lentamente:
— Aqui fala o Espaçomoço-Chefe. Senhores passageiros, peço-lhes a fineza de observarem que a primeira chamada para o almoço é às doze, a segunda às treze, e a última às quatorze horas. Por favor, não procurem fazer nenhuma mudança sem me consultar. Obrigado.
Um "dong-ding-dong" menos peremptório assinalou o final da mensagem.
Olhar para as maravilhas do universo dá fome, descobriu Duncan instantaneamente. Já eram onze e trinta, e ficou contente por estar na primeira chamada. Pensava na quantidade de passageiros famintos que estava procurando o Espaçomoço-Chefe na tentativa de almoçar mais cedo.
Gozando a sensação de peso fabricada pelo homem que, exceto acidentes, permaneceria constante até o meio da viagem, Duncan foi para a fila que se avolumava rapidamente na cafeteria.
Seus trinta anos de vida em Titã já pareciam pertencer a uma outra existência.
ÚLTIMAS PALAVRAS
Por mais um momento a dolorosa imagem familiar permaneceu congelada na tela. Por trás de Mirissa e das crianças, Duncan podia ver as duas poltronas da sala de estar, a fotografia do avô (como sempre, um pouco torta), a tampa da portinhola do distribuidor de comida, a porta para o principal quarto de dormir, a estante com poucos mas raríssimos tesouros que sobreviveram dois séculos de vagabundagens interplanetárias.
Aquele era o seu universo. Continha tudo o que amava e agora o estava deixando. Já pertencia ao passado.
Estava apenas a três segundos de distância, porém era o suficiente. Tinha viajado um mero milhão de quilômetros em menos da metade de um dia, mas o sentimento de separação era quase completo. Era intolerável esperar seis segundos para cada reação e cada resposta. Quando vinha uma resposta ele já tinha se esquecido da pergunta que a originara e já tinha K começado a fazer outra. Então, a tentativa de conversa tinha rapidamente degenerado numa série de paradas e partidas, enquanto ele e Mirissa se encaravam num sofrimento mudo, cada qual esperando que o outro falasse. . . Ficou contente quando aquele sofrimento terminou.
Esta experiência provou-lhe, como nada ainda o fizera, a enormidade descomunal do espaço. O Sistema Solar, começava a suspeitar, não tinha sido criado para a conveniência do Homem, e as tentativas dessa presunçosa criatura de usá-lo, em proveito próprio, seria sempre frustrada por leis acima do seu controle. Toda sua vida, Duncan esteve habituado a falar com amigos ou familiares instantaneamente, fosse onde estivesse. Porém, agora — mesmo antes de ter ultrapassado as luas externas de Saturno! — esse poder tinha-lhe sido tomado. Durante os próximos vinte dias, ia partilhar uma gota isolada e solitária de humanidade, capaz de interagir com seus companheiros de viagem, mas cortado de todo contato real com o resto da humanidade.
Sua autocomiseração durou apenas alguns momentos. Havia uma certa alegria — mesmo uma liberdade — naquela sensação de isolamento e no saber estar empreendendo uma das mais longas e mais velozes viagens que um homem podia fazer. As viagens para os planetas externos eram rotineiras e sem novidades, mas também raras, e só uma pequena quantidade da raça humana poderia experimentá-las. Duncan lembrou-se de uma frase terrestre favorita de Malcolm, habitualmente empregada num outro contexto, mas conselho respeitável para qualquer ocasião: "Quando é inevitável, relaxe e aproveite''. Ele faria o possível para aproveitar a viagem.
Contudo, Duncan estava exausto quando finalmente subiu para o beliche, no final do seu primeiro dia no espaço. A tensão das inumeráveis despedidas, não só de sua família como também dos seus incontáveis amigos, deixou-o completamente esgotado. Além disso, havia todas as preocupações da partida. O que havia esquecido de fazer? Que objetos de importância vital tinha esquecido de trazer? Sua bagagem tinha sido bem guardada e acondicionada? De quem tinha esquecido de se despedir? Era inútil preocupar-se com isso, agora que estava se afastando de casa a uma velocidade que aumentava de vinte e cinco mil quilômetros horários a cada hora que passava, porém não podia impedir-se de fazê-lo. Embora cansado como estava, seu cérebro superativo não o deixava dormir.
É preciso um verdadeiro gênio para fazer uma cama que pode se tornar inconfortável a um quinto de gravidade, e felizmente os desenhistas da Sírio não aceitaram essa desafiante tarefa. Depois de cerca de trinta minutos ou mais, Duncan começou a relaxar e colocar seus galopantes pensamentos em ordem. Orgulhava-se de -ser capaz de adormecer sem ajuda artificial e parecia que seria capaz, afinal de contas, de dispensar a eletronarcose. Esta, é claro, era tida como completamente inócua, mas Duncan nunca se sentia realmente acordado no dia seguinte.
Você está adormecendo, dizia para si mesmo. Você não saberá de mais nada até a hora do café. Você só terá sonhos felizes...
Um som semelhante ao de um pequeno vulcão pigarreando desmanchou seu bom trabalho dos últimos dez minutos. Ficou, de repente, completamente acordado, pensando no desastre que tinha acontecido à Sírio. Somente após alguns segundos de muita ansiedade pôde verificar que um anti-social companheiro de bordo tinha achado necessário usar o banheiro adjacente à cabina.
Praguejando, tentou recapturar o ânimo anterior e voltar à soleira do sono. Mas era inútil, as múltiplas vozes da nave começaram a exigir sua atenção. Parecia ter perdido o controle sobre a parte analítica de seu cérebro, e ocupou-se em classificar todos os ruídos do universo que o cercava.
Já haviam passado muitas horas desde que percebera o silvo distante e fantasmagórico dos propulsores. A cada segundo a Sírio estava lançando cem gramas de hidrogênio a um terço da velocidade da luz, uma perda insignificante de massa que, contudo, representava inexpressivos milhões de gigawatts. Durante os primeiros séculos da Revolução Industrial, todas as fábricas da Terra não teriam alcançado o potencial de energia que agora o impulsionava na direção do Sol.
Aquele silvo incongruentemente fraco e vago não era realmente perturbador, mas era encoberto por toda a espécie de outros ruídos peculiares. O que poderia estar causando os "buzzz. . . clique. .. clique. . . buzzz", os "tump. . . tump tump..." macios, os "grrr. . . hisss" e os "uí-uíi-uíi" intermitentes, que eram os mais enlouquecedores de todos eles?
Duncan rolou na cama e escondeu a cabeça sob o travesseiro. Não fez diferença alguma a não ser que os ruídos mais agudos ficavam mais filtrados e os de freqüência mais baixa aumentavam. Ficou também mais consciente da arme pulsação do "hisss" da cama e do "uí-uíi-uíi" intermitente, que era o mais enlouquecedor de todos.
Viva, aquilo era algo novo. Era uma espécie de desanimado "quer-plunc, quer-plunc, quer-plunc", que poderia ser comparado ao de uma antiga máquina de combustão interna no último estado de decrepitude. De qualquer maneira, Duncan duvidava seriamente de que houvesse máquinas de combustão interna, antigas ou novas, á bordo da Sírio.
Rolou para o outro lado e então percebeu a corrente de ar levemente frio que vinha do ventilador, e batia na sua face esquerda. Talvez, se a ignorasse, a sensação ficasse abaixo do limiar da consciência. Contudo, o mesmo esforço que fazia para fingir que não estava sentindo parece que ainda focalizava mais sua atenção naquele incômodo.
Do outro lado da fina divisão, as instalações hidráulicas da nave mais uma vez anunciavam sua presença com uma série de batidas suaves. Havia uma bolha de ar em algum lugar daquele sistema, e Duncan sabia, com absoluta certeza, que todas as técnicas de engenharia a bordo da Sírio seriam incapazes de corrigi-la antes do final da viagem.
E o que era aquilo? Era um som áspero e sibilante, tão irregular que nenhum mecanismo bem ajustado poderia produzir. Enquanto no escuro, quebrando a cabeça para encontrar uma explicação, seu aborrecimento transformou-se em alarma. Será que deveria chamar o espaçomoço para avisar que algo errado estava acontecendo?
Ainda estava tentando decidir-se, quando uma mudança súbita e explosiva na altura e na intensidade tirou-lhe as dúvidas quanto à origem daquele ruído. Resmungando e amaldiçoando sua sorte, Duncan resignou-se a uma noite em claro.
A Dra. Chang estava roncando. . .
Alguém o estava sacudindo delicadamente. Murmurou "Vá embora", e depois veio à tona, ainda tonto, das profundezas do sono.
— Se não se apressar, vai perder o café.
A MAIS LONGA VIAGEM
— Aqui fala o Comandante. Faremos uma manobra fora da velocidade eclíptica, nos próximos quinze minutos. Esta será sua última oportunidade para uma boa visão de Saturno, e estamos orientando a nave para que ele seja visível das janelas do salão B. Obrigado.
"Obrigado", pensou Duncan, embora tivesse ficado um pouco menos grato quando alcançou o salão B. Desta vez, muitos outros passageiros já haviam sido avisados pelos espaço-moços. Mesmo assim, conseguiu ficar num lugar razoável, embora de pé.
Apesar de a viagem mal ter começado, Saturno já parecia bem distante. O planeta tinha ficado reduzido a um quarto do seu tamanho habitual. Estava, agora, apenas duas vezes maior que a Lua vista da Terra.
Porém, ainda que reduzido em tamanho, ficara mais impressionante. Sírio tinha-se elevado a muitos graus do plano equatorial do planeta e agora finalmente Duncan podia ver os anéis em toda sua glória. Halos prateados, finos e concêntricos pareciam tão artificiais que era quase impossível acreditar que não eram produto de um artesão cósmico, cuja matéria-prima fossem mundos. Apesar de a princípio parecerem sólidos, quando Duncan olhou com mais cuidado pôde perceber o planeta brilhando através deles, com sua luz amarela contrastando estranhamente com a imaculada brancura de neve. Cem mil quilômetros abaixo, a sombra dos anéis constituía uma faixa escura ao longo do equador. Poderia ser mais facilmente confundida tom um cinturão de nuvens fora do comum do que atribuída a uma coisa tão longínqua no espaço.
As duas divisões principais dos anéis eram evidentes ao olhar mais casual, mas uma inspeção mais cuidadosa revelava no mínimo uma dúzia de separações mais tênues, onde havia mudanças abruptas de brilho entre faixas contíguas. Desde que os anéis tinham sido descobertos, no século dezessete, os matemáticos como a Dra. Chang vinham tentando calcular sua estrutura. Sabia-se, havia muito, que as atrações das várias luas de Saturno segregavam os bilhões de partículas em órbita, em faixas separadas, mas os detalhes do processo ainda estavam pouco claros.
Havia também uma certa variação dentro de cada uma das próprias faixas. O anel mais externo, por exemplo, apresentava um mosqueado ou pontilhado singular, e perto da sua extremidade leste era claramente visível um minúsculo coágulo de luz. Era uma lua que estaria para nascer. . . ou os últimos remanescentes de uma que havia sido destruída, pensava Duncan.
Meio timidamente, fez a pergunta à Dra. Chang.
— Ambas as possibilidades foram consideradas — disse ela. — Meus estudos indicam a primeira. Essa condensação pode vir a tornar-se, com sorte, um novo satélite dentro de alguns mil anos.
— Não posso concordar, Doutora — interferiu um outro passageiro. — É apenas uma flutuação estatística na densidade da partícula. São bastante comuns e raras vezes duram mais que alguns anos.
— As pequenas sim. Mas esta é muito intensa e muito próxima da beira do anel B.
— Mas a análise de Vanderplas do problema de Janos. . .
Nesse momento, o diálogo parecia mais um tiroteio num daqueles filmes antigos do Oeste. Os dois cientistas pegaram simultaneamente seus computadores portáteis e se retiraram, murmurando equações, para o fundo do salão. Dali para diante ignoraram completamente o Saturno real que tinham vindo de tão longe para estudar e que, com toda a probabilidade, jamais veriam novamente.
— Fala o Comandante. Concluímos nossa manobra de velocidade e estamos reorientando a nave para dentro do plano
da eclíptica. Espero que tenham apreciado a vista. Saturno estará distante por muito tempo, até que o vejam novamente.
Não havia nenhuma sensação perceptível de movimento, mas o grande globo começou a mexer-se lentamente abaixo da janela de observação. Os passageiros da frente estenderam o pescoço para continuar observando, houve um coro de "Ahs" desapontados quando finalmente se perdeu de vista por trás da larga borda que cercava a parte inferior da nave. Esta faixa de metal tinha apenas uma finalidade: bloquear qualquer radiação dos jatos que pudesse desviar-se para a frente. Mesmo uma olhada momentânea para aquele brilho intolerável, tão forte como o de uma supernova no momento da explosão, poderia causar cegueira total. Alguns segundos de exposição poderiam ser mortais.
A Sírio estava apontada quase que diretamente para o Sol, à medida que acelerava na direção dos planetas internos. Enquanto a propulsão estava em funcionamento, não havia possibilidade de visão da retaguarda. Duncan sabia que, quando pudesse ver Saturno a olho nu novamente, ele seria apenas uma estrela não muito visível.
Um dia mais tarde, viajando a trezentos quilômetros por segundo, a nave ultrapassou outra etapa. Tinha, evidentemente, se libertado do campo gravitacional do planeta algumas horas antes. Nem Saturno, nem o Sol, nesse sentido, poderiam recapturá-la. A fronteira que Sírio cruzava agora era puramente arbitrária: a órbita da lua mais afastada.
Mnemosine, com apenas quinze quilômetros de diâmetro, podia vangloriar-se de dois modestos recordes. Tinha um período de revolução mais longo do que qualquer satélite, levando nada menos que 1.139 dias para circular Saturno, a uma distância média de vinte e um milhões de quilômetros. Também possuía o dia mais longo que qualquer corpo do Sistema Solar: seu período de rotação era fantasticamente de 1.143 dias. Embora parecesse evidente que esses dois fatos deviam ter conexão, ninguém fora ainda capaz de fornecer uma explicação plausível do comportamento preguiçoso de Mnemosine.
Meramente por acaso, Sírio passou a menos de um milhão de quilômetros de distância do minúsculo mundo. A princípio, mesmo sob a maior capacidade do telescópio da nave, Mnemosine era apenas um pequeno crescente não apresentando quaisquer características visíveis. Mas, na medida em que crescia rapidamente para uma meia-lua, emergiam áreas de luz e sombra que finalmente se tornavam crateras. Isso era característico dessa espécie mais densa de satélite "tipo Mercúrio" — diferente das bolas de neve internas, como Mimas, Enceladus e Tethys —, mas para Duncan agora apresentava um interesse especial. Representava algo mais que a última etapa no caminho para a Terra.
Karl esteve lá e tinha permanecido, durante muitas semanas, com a Expedição Conjunta da Terra e Titã Para a Pesquisa dos Satélites Externos. Na realidade, essa pesquisa estava em andamento havia muito, como Duncan se lembrava — a superfície de todas as luas totalizava uma área surpreendente de um milhão de quilômetros quadrados —, e a equipe da ECTTPPSE estava fazendo um trabalho completo. Tinha havido protestos quanto ao custo, e as críticas só cessaram quando foi prometido que a pesquisa estava sendo tão completa que jamais haveria necessidade de se retornar às luas externas. De certo modo, Duncan duvidava que essa promessa pudesse sem cumprida.
Observou o pálido crescente de Mnemosine transformar-se em lua cheia, simultaneamente inclinando-se para o lado na medida em que a nave viajava em direção do Sol, pensando passageiramente se não deveria ter enviado a Karl suas despedidas. Mas, se o tivesse feito, só poderiam ser interpretadas como um insulto.
Duncan levou vários dias para adaptar-se ao programa complicado da vida de bordo, um programa dominado pelo fato de o salão de refeições (era como chamavam a sala adjacente ao café) só poder abrigar um terço dos passageiros de cada vez. De modo que, durante nove horas por dia, pelo menos cem passageiros estavam comendo enquanto duzentos estavam pensando sobre a próxima refeição ou reclamando da última. Isso fazia com que o Comissário, que também acumulava a função de Oficial de Diversões, tivesse dificuldade em organizar o programa recreativo para os passageiros. O fato de que a maior parte dos passageiros não queria ser organizada não o ajudava nem um pouco.
Não obstante, o dia era livremente estruturado em uma série de eventos, aos quais uma boa freqüência era a garantia do mais completo tédio. Havia um noticiário da Terra, com a duração de trinta minutos, às oito horas, com uma repetição às dez, e atualizações às 19:00 e às 21:00, No começo da viagem, o noticiário da Terra vinha com um atraso de no mínimo uma hora e meia, mas, na medida em que a Sírio se aproximava do seu destino, vinha-se tornando mais e mais pontual. Quando atingisse sua órbita de estacionamento final, mil quilômetros acima do equador, a demora seria efetivamente zero e os relógios poderiam finalmente ser acertados pelos sinais de rádio. Os passageiros que não percebiam isso estavam sujeitos a entrar num estado de confusão e, pior do que isso, perder o horário das refeições.
Todos os tipos de mostruários, incluindo o conteúdo de muitos milhões de volumes sobre ficção e não-ficção, bem como a maioria dos tesouros musicais da humanidade, estavam à disposição na pequena biblioteca. Podia receber dez pessoas apertadas. Contudo, havia a exibição de dois filmes no salão principal, todas as noites. A seleção era feita — a se acreditar no Comissário — através do voto, da maneira mais democrática. A maior parte dos filmes clássicos estava à disposição. Os filmes datavam desde o século vinte e Duncan pela primeira vez viu Tempos Modernos, de Charlie Chaplin, muito da obra de Disney, Napoleão Bonaparte3 de Kubrick, Moby Dick4 de Zymanowski, e muitas outras obras-primas, das% quais nunca tinha ouvido falar. Mas, o mais popular de todos era Se Hoje é Terça-feira, Isto deve ser Marte, uma seleção de inúmeros filmes sobre viagens espaciais, feitos antes que o vôo espacial fosse realmente um fato. Este invariavelmente reduziu a platéia a um punhado de histéricos, e era difícil acreditar que uma vez tivesse sido proibido fazer projeções deles durante vôos, porque algum burocrata sem imaginação temesse que aqueles desastres — como, por exemplo, chegar no planeta errado — pudesse assustar passageiros nervosos. Na verdade, o efeito era oposto: as pessoas riam demais em vez de se preocupar.
Mas, com aquela escrupulosidade que era o traço típico dos Makenzies, Duncan já estava trabalhando arduamente no segundo dia de viagem.
Ele tinha três projetos principais: um físico e dois intelectuais. O primeiro, a cargo da supervisão exigente e fria do medico de bordo, era o de preparar-se para a vida sob gravidade um. O segundo era de aprender tudo o que pudesse sobre seu novo lar, para que não parecesse, ao chegar, provinciano demais. O terceiro era preparar o seu discurso de agradecimento ou, pelo menos, preparar um esboço razoavelmente bem detalhado, que pudesse ser revisto, durante sua estada, se necessário.
O processo de fortalecimento incluía uma sessão de quinze minutos duas vezes por dia, na centrífuga da nave ou na "pista de corridas". Ninguém apreciava a centrífuga. Nem mesmo a melhor música de fundo poderia aliviar o aborrecimento de ser girado numa pequena cabina até que os braços e pernas parecessem ter-se transformado em chumbo. Mas a pista de corridas era tão divertida que funcionava quase o tempo todo, e alguns aficionados tentaram até conseguir tempo extra.
Parte do seu atrativo era indubitavelmente sua total novidade. Quem podia pensar que encontraria bicicletas no espaço? A pista era um túnel estreito, com o chão inclinado, que contornava inteiramente a nave. Parecia-se com um acelerador de partículas do tempo antigo. Só que neste caso as próprias partículas produziam a aceleração.
Todas as noites, antes de ir para a cama, Duncan entrava no túnel, montava numa das quatro bicicletas e começava a . pedalar devagar em torno da pista de sessenta metros. Sua primeira volta levava um calmo meio minuto, depois gradualmente ia aumentando até atingir a velocidade máxima. Na medida em que o fazia, ia subindo cada vez mais alto na parede inclinada, até que, ao atingir a velocidade máxima, ficava quase em ângulo reto com o chão. Ao mesmo tempo, sentia que o seu peso aumentava gradualmente. O velocímetro da bicicleta tinha sido preparado para marcar frações de gravidade, de modo que ele podia saber exatamente se estava indo bem. Quarenta quilômetros a hora, dez voltas em torno da Sírio a cada minuto, era o equivalente a uma gravidade da Terra. Depois de vários dias de prática, Duncan foi capaz de manter esse ritmo, sem muito esforço, durante dez minutos. No final da viagem, poderia tolerá-lo indefinidamente, o que seria necessário quando chegasse à Terra.
A pista de corridas era ainda mais estimulante quando havia dois ou mais ciclistas, especialmente quando estavam se movimentando em velocidades diferentes. Embora a ultrapassagem fosse estritamente proibida, era um desafio irresistível. E a pista de corridas deu-lhe também uma lembrança mais concreta: um pergaminho pseudomedieval que anunciava a quem estivesse interessado que EU, DUNCAN MAKENZIE, DA CIDADE DE OÁSIS, TITÃ, COM ESTE DOCUMENTO COMPROVO TER VIAJADO DE BICICLETA DE SATURNO À TERRA, A UMA VELOCIDADE HORÁRIA DE 2.176.420 QUILÔMETROS.
A preparação mental de Duncan para a vida na Terra ocupou muito mais tempo, mas não foi tão cansativa. Já possuía um bom conhecimento da história terrestre, da geografia e do dia-a-dia, mas até aquele momento tinha sido mais teórico, pela pouca aplicação prática para ele. Tanto astronômica como psicologicamente a Terra estava a uma distância muito grande. Agora estava se aproximando, à razão de milhões de quilômetros por dia.
O que ainda era melhor, estava agora cercado de terrestres. Havia apenas sete passageiros de Titã a bordo da Sírio; estavam, portanto, superados em cinqüenta por um. Gostasse ou não, Duncan estava rapidamente sofrendo uma lavagem cerebral e sendo moldado a uma outra cultura. Apanhava-se usando expressões terrestres, adotando a entonação meio cantada atualmente usada na Terra inteira e empregando cada vez mais palavras de origem chinesa. Tudo isto era de se esperar. O que considerava perturbador é que seu mundo, ora se afastando velozmente, estava se tornando mais irreal. Antes do término da viagem, suspeitava de que teria se tornado meio terrestre.
Passou a maior parte do tempo vendo cenas típicas da Terra, ouvindo debates políticos famosos e tentando entender o que estava acontecendo na cultura e nas artes, para que não parecesse ser um bárbaro completo de um obscuro mundo externo. Quando não estava sentado defronte ao vídeo, era possível encontrá-lo folheando uma pequena e grossa publicação, intitulada otimistamente Terra em Dez Dias. Gostava de verificar seus novos conhecimentos em conversas com os companheiros de viagem, para estudar suas reações e verificar sua própria compreensão. Algumas vezes a resposta era um olhar inexpressivo, outras um sorriso levemente condescendente. Mas, depois de algum tempo, todos eram muito cordiais com ele. Duncan percebeu que era verdade o velho chavão a respeito dos terrestres: eles jamais são rudes de propósito.
Evidentemente, seria absurdo aplicar um rótulo simples a meio bilhão de pessoas, ou mesmo aos trezentos e cinqüenta da nave. Porém Duncan surpreendeu-se ao verificar que, com freqüência, suas idéias preconcebidas — e mesmo seus preconceitos — eram perfeitamente corretos. A maioria dos terrestres tinha mesmo um ar inconsciente de superioridade. A princípio, Duncan se incomodou com aquilo, depois percebeu que muitos mil anos de história e cultura justificavam um certo orgulho.
Era ainda muito cedo para ele responder a pergunta tão discutida em todos os outros mundos: "A Terra está ficando decadente?" As pessoas que encontrou a bordo da Sírio não apresentavam nenhum traço daquela supersensibilidade de que eram freqüentemente acusados os terrestres mas, é claro, não constituíam uma amostra convincente. Qualquer pessoa que tivesse a oportunidade de visitar o extremos do Sistema Solar deveria possuir recursos e capacidades excepcionais.
Teria que esperar até chegar à Terra para que pudesse julgar essa decadência mais rigorosamente. O projeto poderia ser interessante, se seu orçamento e programação pudessem resistir ao esforço.
CANÇÕES DO IMPÉRIO
Em cem anos, ele jamais teria conseguido resolver aquilo deliberadamente, pensou Duncan. De fato, era uma administração magistral do imprevisto! Colin se orgulharia dele.
Tudo começou acidentalmente. Quando ele descobriu que o Engenheiro-Chefe tinha o sobrenome pouco incomum de Makenzie, achou muito natural apresentar-se e comparar as árvores genealógicas. Uma olhada foi suficiente para perceber que qualquer parentesco deveria ser remoto: Warren Makenzie, Doutor em Astrotecnologia (Propulsão), era um ruivo sardento.
Mas isso não importou, pois gostou de ter conhecido Duncan e conversar com ele. Uma amizade sincera desenvolveu-se, muito antes de Duncan decidir tirar vantagem desse episódio.
— Algumas vezes penso — lamentou Warren, não muito seriamente — que sou um lugar-comum vivo. Você sabia que houve um tempo em que os maquinistas de navios eram escoceses e se chamavam Mac-isto-ou-aquilo?
— Não sabia. Por que não russos ou alemães? Foram eles que começaram toda essa história.
— Você está no comprimento de onda errado. Falo de naves que flutuavam na água. As primeiras com motor — movidas a vapor, com máquinas a pistão, propulsionando hélices com forma de pás —, perto do início do século dezenove. Bem, a Revolução Industrial começou na Inglaterra e a primeira máquina usada foi feita por um escocês. Então, quando os navios a vapor começaram a operar em todo o mundo, os Macs foram com eles. Ninguém mais podia entender aquelas peças complicadas de maquinaria.
— Máquinas a vapor? Complicadas? Você deve estar brincando.
— Você já viu alguma? É mais complicada do que possa supor, embora não leve muito tempo para ser compreendida. De qualquer modo, enquanto duraram os navios a vapor — isso ocorreu até apenas cem anos atrás — os escoceses os manejavam. Estudo aquele período como um hobby; tem alguns surpreendentes paralelos com o nosso tempo.
— Vamos. . . surpreenda-me.
— Bem, aqueles velhos navios eram muito vagarosos, com uma média de apenas dez quilômetros, pelo menos para os cargueiros. De modo que viagens longas, mesmo na Terra, podiam levar semanas. Tanto quanto as viagens espaciais.
— Percebo. Naquela época os países na Terra estavam quase tão longe uns dos outros como os planetas.
— Bem, alguns deles. A analogia mais perfeita é a velha Comunidade Britânica, o primeiro e último império mundial. Durante quase cem anos, países como a Índia, a Austrália, o Canadá dependiam inteiramente dos navios a vapor para ligarem-se com a Inglaterra. Uma viagem de ida podia facilmente levar um mês ou mais, e muitas vezes era feita apenas uma vez na vida. Somente os ricos ou funcionários públicos poderiam fazê-las. E — exatamente como hoje — as pessoas nas colônias não podiam nem mesmo falar com o país de origem. O isolamento psicológico era quase completo.
— Eles tinham telefones, não tinham?
— Somente para uso local, e assim mesmo eram poucos. Estou falando do início do século vinte, lembre-se. A comunicação universal só aconteceu no fim dele.
— Sinto que a analogia está um pouco forçada — protestou Duncan.
Estava intrigado mas não convencido, porém queria continuar ouvindo os argumentos de Makenzie, embora sem nenhum motivo ulterior.
— Posso lhe dar mais provas que o levariam a me aceitar. Você já ouviu falar de Rudyard Kipling?
— Sim, embora não tenha lido nada dele. Era escritor, não era? Anglo-americano, viveu entre Melville e Hemingway.
A literatura inglesa é um território quase desconhecido para mim. A vida é muito curta.
— Infelizmente, isto é um fato. Mas eu li Kipling: foi o primeiro poeta da era da máquina, e algumas pessoas o consideram o melhor escritor de contos do seu século. Não posso opinar a respeito, evidentemente, porém ele descreveu exatamente o período de que estamos falando. O Hino de Mac Andrews, por exemplo, sobre as preocupações de um velho maquinista com pistões, engrenagens e caldeiras, e que levava seu navio ao redor do mundo. Sua tecnologia — sem mencionar sua teologia! — já está extinta há trezentos anos. Mas o espírito com o qual foi escrito ainda é válido como nunca.
E ele escreveu poemas e histórias sobre lugares distantes que os faz parecerem tão remotos como são os planetas hoje, e algumas vezes ainda mais exóticos! Há um que é meu favorito, chamado A Canção das Cidades. Não entendo metade das alusões, mas os tributos a Bombaim, Cingapura, Rangum, Sydney, Auckland... fazem-me pensar em Mercúrio, Lua, Marte e Titã...
Makenzie fez uma pausa e parecia um pouquinho embaraçado.
— Tentei fazer também algo semelhante, mas não se preocupe, não vou impor meus versos a você.
Duncan fez os ruídos de encorajamento que sabia serem esperados. Tinha certeza de que, antes do final da viagem, lhe seriam exigidos crítica, tradução e elogio aos esforços literários de Makenzie.
Foi um aviso oportuno a respeito de suas próprias responsabilidades. Enquanto a viagem ainda estivesse no começo, era bom começar a trabalhar.
Exatamente dez minutos, tinham sido as instruções de George Washington, nenhum segundo a mais. Mesmo o Presidente só teria quinze e todos os planetas deveriam ter o mesmo tempo. Toda a cerimônia estava programada para durar duas horas e meia, do momento da entrada no Capitólio até a saída para a recepção na Casa Branca. . .
Parecia-lhe meio absurdo viajar três bilhões de quilômetros para fazer um discurso de dez minutos, mesmo para uma ocasião tão singular como um aniversário de quinhentos anos. Duncan não ia desperdiçar mais do que o mínimo necessário com formalidades corteses. De qualquer forma, como tinha frisado Malcolm, a sinceridade de um discurso de agradecimento é com freqüência inversamente proporcional ao seu comprimento.
Para seu divertimento — e, mais importante ainda, porque isso ajudaria a fixar os outros participantes em sua mente —, Duncan tentou compor uma abertura formal, baseada na lista de convidados que o Professor Washington tinha-lhe enviado. Começava assim: "Senhora Presidenta, Sr. Vice-Presidente, Ilustre Juiz Supremo, Ilustre Presidente do Senado, Ilustre Presidente da Câmara, Suas Excelências, Embaixadores de Luna, Marte, Mercúrio, Ganimede e Titã — neste ponto, inclinaria levemente a cabeça na direção do Embaixador Farrel, se pudesse vê-lo na galeria superlotada —, "distintos representantes da Albânia, Austrândia, Chipre, Boêmia, França, Khmer, Palestina, Kalinga, Zimbawe, Eire..."
Calculava que, se citasse todas as cinqüenta ou sessenta regiões que ainda insistiam em receber alguma forma de reconhecimento individual, teria gasto um quarto do tempo do discurso antes de iniciá-lo. Isto, evidentemente, era um absurdo e esperava que os outros oradores concordassem. Sem se preocupar com o protocolo, Duncan resolveu optar por uma abreviação digna.
"Povo da Terra" poderia cobrir uma enorme extensão. Para ser mais exato, cinco vezes a área de Titã, um dado impressionante que Duncan sabia de cor. Mas isso não incluiria os visitantes. Que tal "Amigos dos outros mundos"? Não. . . era muito pretensioso, visto que a maioria era completamente estranha. Talvez: "Senhora Presidenta, distintos convidados, amigos conhecidos e desconhecidos de muitos mundos. . ." Assim era melhor, mas ainda não lhe parecia perfeito.
Havia mais naquela tarefa, percebeu Duncan, que ver ou ouvir. Havia muita gente se mostrando disposta a ajudá-lo, mas estava determinado, dentro da velha tradição dos Makenzies, a ver o que podia fazer sozinho, antes de pedir auxílio. Tinha lido em algum lugar que a melhor maneira de aprender a nadar era atirar-se na água. Duncan não sabia nadar — essa habilidade não era necessária em Titã —, mas entendia a analogia. Sua carreira na política solar poderia começar com uma barrigada espetacular, diante dos olhos de milhões de pessoas.
Não é que estivesse nervoso. Afinal, tinha-se dirigido a todo o seu mundo quando deu seu testemunho de perito durante os debates técnicos da Assembléia. Tinha-se saído bem, quando avaliou os argumentos complexos que existiam a favor e contra a mineração das geleiras de amônia no Mount Nansen. Mesmo Armand Helmer o tinha cumprimentado, apesar de terem chegado a conclusões diferentes. Naquelas discussões, que afetavam o futuro de Titã, tinha assumido sérias responsabilidades e sua carreira poderia ter sofrido um súbito colapso se tivesse feito papel de bobo.
Sua platéia terrestre poderia ser mil vezes maior, mas seria bem menos crítica. Na verdade, seus ouvintes seriam amistosos, a não ser que cometesse o pecado imperdoável de ser tedioso.
Isso, contudo, ainda não poderia garantir, pois ainda não tinha a menor idéia de como iria usar os dez minutos mais importantes da sua vida.
NO NÓ
Nos mares da Terra, eles o chamavam de "Linha de Travessia". Sempre que um navio passava de um hemisfério para o outro, havia cerimônias alegres e uma série de rituais, durante os quais os que até então ainda não tinham atravessado o equador eram submetidos a pequenos trotes pelo Rei Netuno e sua Corte.
Durante os primeiros séculos de vôo espacial, a transição equivalente não envolvia mudanças físicas. Somente o computador de navegação sabia quando uma nave tinha parado de cair na direção de um planeta e passava a cair na direção de um outro. Mas, agora, com o advento dos impulsos de aceleração constante, que podiam manter a propulsão durante toda a viagem, o ponto de Transição ou Mudança tinha um sentido físico real, e um impacto psicológico correspondente. Depois de viver e movimentar-se num aparente campo de gravitação, os passageiros da Sírio perderiam por várias horas seu peso e poderiam, finalmente, sentir que estavam verdadeiramente no espaço.
Eles podiam observar a rotação lenta das estrelas enquanto a nave se equilibrava a cento e oitenta graus, e a propulsão era dirigida precisamente contra sua linha de impulso anterior para reduzir lentamente a enorme velocidade criada nos dez dias antecedentes. Poderiam deliciar-se com o fato de estarem se movimentando agora mais rápido do que qualquer outro ser humano em toda a história, e também podiam pensar que se a propulsão viesse a falhar poderiam recomeçar e Sírio alcançaria a estrela mais próxima em não mais de mil anos.. .
É claro que podiam pensar em todas estas coisas, mas, como a natureza humana é por demais variável, a maioria dos passageiros da Sírio tinha em mente outras possibilidades.
A única chance que a maioria deles teria era a de experimentar a falta de peso por um longo prazo, o suficiente para ser aproveitado. Que crime desperdiçar essa oportunidade! Não era então de surpreender que o livro mais procurado na biblioteca da nave, nos últimos dias, fosse o Nasa Sutra — um velho livro e uma velha piada, tantas vezes explicada que já até perdera a graça.
O Capitão Ivanov, com uma indignação aparentemente convincente, negou que o programa da nave tivesse sido criado para apoiar os instintos primários dos passageiros. Quando o assunto foi levantado na mesa do Capitão, um dia antes do "Dia da Passagem", ele contra-argumentou com uma defesa bem plausível.
— É a única ocasião lógica para interromper a propulsão — explicou ele. — Entre zero-zero e zero-quatro, todos os passageiros estarão em suas cabinas, dormindo. De modo que nesse horário haverá um mínimo de perturbação. Não poderíamos interrompê-la durante o dia — lembrem-se de que as cozinhas e os banheiros estarão fora de funcionamento enquanto estiverem sem peso. Não se esqueçam disto! Nós lembraremos a todos no fim da tarde, mas há sempre um idiota que fica superconfiante, ou bebe muito, ou não tem muito juízo para ler as instruções naqueles saquinhos plásticos que vocês encontrarão dentro das cabinas.
Duncan estava tentado. Mirissa já começava a ser esquecida, e para que isso ocorresse não lhe faltava oportunidade. Recebera sinais inquestionáveis de várias direções e para grupos com todos os valores de "n" de um a cinco. Não seria fácil fazer uma escolha, mas o próprio destino evitou-lhe este trabalho.
Ainda havia uma semana, e o Dia da Passagem estava apenas a três dias de distância, quando se sentiu confiante para deixar passar algumas indicações sutis para o Engenheiro-Chefe Makenzie. Elas de imediato não foram desprezadas, mas Warren obviamente precisava de tempo para medir as possibilidades. Só comunicou a Duncan sua decisão com apenas doze horas de antecedência.
— Não vou dizer que isto poderá me custar o emprego — disse ele —, mas, se viesse a transpirar de algum modo, poderia ser no mínimo bem embaraçoso, isso para não pensar no pior. Mas você é um Makenzie, e também Assistente Especial do Administrador, e tudo mais. Se acontecer o pior, o que espero que não aconteça, poderemos dizer que seu pedido foi oficial.
— Claro, eu o entendo bem e realmente aprecio o que você está fazendo. Não vou deixar você em falta.
— Agora, tem a questão do tempo. Se tudo correr bem, e não há razões para se esperar o contrário, estarei livre em duas horas e poderei dispensar meus assistentes. Sairão como meteoros — todos eles têm algo programado, pode estar certo disto —, e ficaremos à vontade, o local ficará inteiramente livre. Darei um telefonema para você por volta das duas, ou tão logo seja possível.
— Espero não estar interrompendo nenhum, ha, ha, programa seu.
— Como você vê, não. A novidade já está gasta. De que você está rindo?
— É que me ocorreu agora — disse Duncan — que se formos os dois encontrados às duas da manhã do Dia da Passagem, teremos um perfeito álibi. . .
De qualquer maneira, sentia um leve sentimento de culpa, enquanto seguia pelos corredores atrás de Warren Makenzie. A nave sem peso — mas longe de estar insone — poderia estar deserta, pois não havia possibilidade de naquele momento alguém descer abaixo do convés para o piso três. Portanto, não era nem necessário que fingissem que estavam se encaminhando para alguma tarefa inocente.
Contudo, a culpa estava presente e ele sabia por quê. Estava usando um amigo para seus próprios objetivos secretos e sugerindo-lhe que o seu interesse no Impulso Assimptótico não era nada além de uma simples curiosidade comum às pessoas com formação científica. Mas talvez Warren não fosse tão inocente como parecia. Ele deveria estar sabendo que o Impulso Assimptótico representava uma ameaça para toda a economia da sociedade de Duncan. Estava talvez até tentando ajudar de uma forma delicada.
— Você poderá ficar desapontado — disse Warren quando passavam pela comporta que separava os níveis Três e Dois. — Não há muito o que ver. Mas, o que existe é suficiente para dar pesadelos às pessoas. É por isso que as desencorajamos sempre a visitar o local.
Esta não é a razão mais importante — pensou Duncan. O Impulso não era exatamente um segredo, havia até uma grande literatura a respeito que ia desde os ensaios matemáticos mais esotéricos até as divulgações populares que, de tão elementares, se reduziam a pouco mais do que isto: "Você puxa as alças de sua bota, e lá se vai você pelos ares". No entanto, era justo dizer que as Autoridades de Transportes Espaciais da Terra eram curiosamente omissas em relação aos detalhes práticos, e somente ao pessoal da organização era permitido acesso ao pequeno planeta onde o Impulso foi montado. As poucas fotografias do asteróide 4.587 eram fotos telescópicas difusas que mostravam duas estruturas cilíndricas de mais de mil quilômetros de comprimento, espichadas no espaço de cada um dos lados do pequeno mundo, que mais parecia um pequeno pontinho entre elas. Sabia-se que estas estruturas eram aceleradores que explodiam a matéria a tal velocidade que a fundiam para formar o Nódulo ou Singularidade no interior do Impulso. E isto era o que todos sabiam fora do ATET.
Duncan estava agora flutuando a alguns metros atrás de seu guia, através de um corredor coberto de condutos e cabos — toda a tubulação anônima de qualquer veículo do mar, ar » ou espaço nestes últimos três séculos. Somente o grande número de balaústres, acolchoados grossos, e lugares para agarrar com as mãos é que podiam revelar que se tratava do interior de uma nave criada para ser independente da gravidade.
— Você viu aquele cano? — disse o engenheiro. — Aquele vermelho, pequeno?
— Sim, o que é que tem?
Duncan certamente não o tinha reparado. Era quase tão fino quanto um lápis de chumbo.
— Aquilo é o conduto principal de hidrogênio, acredite ou não. O total de 100 gramas por segundo. Digamos oito toneladas por dia, sob impulso máximo.
Duncan imaginava o que os antigos engenheiros de foguetes poderiam pensar se vissem este pequeno tubinho. Ele tentava visualizar os primeiros Saturnos que levaram os homens à Lua, e qual era a ração de consumo de combustível? Ele estava certo de que queimavam mais por segundo do que a Sírio consumia num só dia. Esta era uma boa medida do progresso tecnológico atingido em três séculos. E nos próximos três. . .?
— Cuidado com a cabeça. São as serpentinas de deflexão. Não acreditamos em condutos à temperatura ambiente; estas são mais confiáveis, são criogênicas.
— Serpentinas de deflexão? Para quê?
— Já parou para pensar no que aconteceria se este jato tocasse parte da nave? Estas mangueiras mantêm o jato no centro, e também nos dão o controle de vetores de que necessitamos.
Estavam agora planando ao lado de um cilindro troncudo, porém surpreendentemente pequeno e que bem poderia ter sido um tambor de uma arma naval do século vinte. Então esta era a câmara de reatores do Impulso! Era difícil escapar de um sentimento de espanto supersticioso ao pensar no que estava a apenas alguns centímetros dele. Duncan poderia ter facilmente abraçado o tubo de metal com seus braços. Que estranho pensar em envolver com os braços uma Singularidade, e assim, se as teorias estivessem corretas, abraçar o universo inteiro. . .
Perto do meio do longo tubo de cinco metros havia um pedaço do revestimento que havia sido removido e substituído por uma pequena portinhola, que, com uma janela de cristal, mais se parecia com um guichê de banco. Através desta abertura, obviamente temporária, havia um microscópio montado num braço articulado de modo tal que poderia ser removido depois de usado. O microscópio apontava para o interior da unidade de impulso.
O engenheiro colocou-se na posição, guiado pelas manivelas convenientemente colocadas no revestimento, deu uma espiada pelo microscópio e fez alguns ajustes micrométricos.
— Dê uma espiada — disse ele depois que terminou o ajuste.
Duncan flutuou em direção ao objeto e desajeitadamente arrumou-se na posição. Não sabia o que poderia ver, e lembrou-se de que a vista precisava ser educada antes que pudesse passar impressões inteligíveis para o cérebro. Qualquer coisa pouco familiar poderia ser literalmente invisível. De modo que não se desapontou com sua primeira espiada.
O que via era perfeitamente comum — uma simples grade de finos fios de cabelos que se cruzavam em ângulos retos para formar um retículo do tipo usado comumente em medidas ópticas. Embora pesquisasse o bem iluminado campo de visão, nada mais podia encontrar. Poderia mesmo estar explorando um pedaço de papel em branco.
— Olhe exatamente para o centro do cruzamento — disse-lhe o guia — e vire a manivela para a esquerda bem devagar
Meia volta é suficiente, em qualquer direção.
Duncan obedeceu, mas por alguns segundos ainda não podia ver nada. Pouco depois percebeu um minúsculo volume tremulando ao longo do fio de cabelo enquanto ele mexia com o microscópio: era como se estivessem olhando para o retículo através de uma camada de vidro que tivesse uma pequena bolha de imperfeição.
— Você está vendo?
— Sim. Como se fosse uma lente do tamanho de uma cabeça de alfinete. Sem a grade, você jamais iria percebê-la.
— Cabeça de alfinete! Isto é um exagero. O nódulo é menor do que um núcleo atômico. Você na realidade não está vendo. Somente pode observar a distorção que é produzida.
— Contudo, contém milhares de toneladas de matéria.
— Bem, uma ou duas toneladas — respondeu o Engenheiro, meio evasivo. — Já fez doze viagens e está quase no ponto de saturação. Logo teremos que instalar um outro novo. Evidentemente, continuaria a absorver hidrogênio, desde que o abastecêssemos, mas não podemos carregar muita massa desnecessária, ou pagaremos um alto preço pela performance. Como os navios antigos que costumavam ficar cheios de cracas, e diminuíam sua marcha se não sofressem uma limpeza periódica.
— O que fazem com os nódulos quando já estão muito pesados para serem usados? É verdade que são lançados no Sol?
— Que utilidade teria isto? Um nódulo viajaria direto até o Sol e sairia pelo lado oposto. Francamente, não sei o que fazem com os nódulos obsoletos. Talvez os empilhem num Grande Nódulo Vovô, menor do que um nêutron porém com uma massa de alguns milhares de toneladas.
Havia uma dúzia de perguntas que Duncan estava ansioso para fazer. Como era feita a manipulação destas ínfimas mas exageradamente pesadas partículas? Agora que Sírio estava em queda livre, o nódulo ia permanecer flutuando onde estava — mas o que o impedia de romper através do tubo de impulso assim que a aceleração começasse? Supunha que alguma combinação de poderosos campos elétricos e magnéticos o mantivesse no lugar e transmitisse sua energia para a nave.
— Que aconteceria se eu tentasse tocá-lo? — perguntou Duncan.
— Você sabe, todo mundo pergunta isto.
— Não estou surpreso. Qual é a resposta?
— Você teria de abrir um selo a vácuo, e aí o inferno viria à tona assim que o ar começasse a entrar.
— Então eu não faria desta maneira. Eu visto um traje espacial, engatinho pelo túnel de impulso, estico o dedo e. . .
— Você foi muito inteligente no seu raciocínio! Porém, se você fizesse isso, quando o seu dedo chegasse à distância de, digamos, um milímetro, calculo que as forças gravitacionais começariam a impulsioná-lo. Logo que os primeiros átomos caíssem no campo, desprenderiam toda sua energia e você teria a sensação de que uma pequena bomba de hidrogênio estaria estourando na sua cara. A explosão provavelmente o expulsaria do tubo à razão de uma fração da velocidade da luz.
Duncan deu uma risadinha sentindo-se pouco confortável.
— Certamente seria necessário um homem muito inteligente para roubar um destes seus filhotes. Isto não lhes causa nenhum pesadelo?
— Não. É uma ferramenta que estou treinado a usar e conheço suas manhas. Não posso imaginar a manipulação de lasers. Eles me fazem morrer de medo. Você sabe, o velho Kipling tinha tudo isto calculado. Lembra-se que eu lhe falei dele?
— Sim.
— Ele escreveu um poema chamado O Segredo das Máquinas, e tem uns versos que sempre digo quando estou por aqui:
Lembre-se, por favor, das leis sob as quais vivemos Não fomos construídos para compreender a mentira, Não podemos nem amar, ter pena ou perdoar. Se você errar conosco, morrerá!
— E isto é verdadeiro para todas as máquinas. Para toda a força natural que pudemos aprender a manipular. Não há grande diferença entre o primeiro fogo do homem das cavernas e o nódulo dentro do Impulso Assimptótico.
Uma hora mais tarde, Duncan estava deitado sem sono em seu beliche, esperando o Impulso recomeçar e Sírio iniciar os seus dez dias de desaceleração que os levariam para o encontro com a Terra. Ele podia ainda ver aquele minúsculo ponto na estrutura do espaço, pendurado lá no campo microscópico, e sabia que esta imagem iria assombrá-lo para o resto de sua vida. Percebia agora que Warren Makenzie não tinha cometido nenhuma traição. Tudo o que tinha visto estava amplamente descrito e já havia sido exaustivamente publicado. Mas, nenhuma palavra ou fotografia poderia provocar o impacto emocional que ele tinha experimentado.
Pequenos dedinhos começavam a cutucá-lo; o peso estava voltando à nave Sírio. De uma distância infinita vinha o fino murmúrio do Impulso. Duncan dizia-se a si mesmo que estava ouvindo o grito de morte da matéria, no momento que esta deixava o universo conhecido, transferindo para a nave toda a energia de sua massa no seu momento final de dissolução. A cada minuto, muitos quilos de hidrogênio estavam caindo dentro daquele pequeno mas insaciável sorvedouro — o vazio que nunca poderia ser preenchido.
Duncan dormiu muito mal o resto da noite. Tinha sonhos onde também estava caindo, caindo num redemoinho infinitamente profundo. Na medida em que caía era esmagado e reduzido à dimensão molecular, depois atômica, e finalmente a dimensões subatômicas. Num dado momento tudo teria acabado, e ele desaparecia numa simples faísca de radiação. . .
Mas este momento não chegou, porque na medida que o Espaço se contraía, o Tempo se estendia infinitamente, os segundos passageiros iam se tornando mais longos... duradouros... duradouros — até que ele era preso para sempre numa eternidade imutável.
PORTO VAN ALLEN
Quando Duncan, pela última vez, foi para a cama a bordo da Sírio, a Terra ainda estava a cinco milhões de quilômetros de distância. Agora parecia encher o céu — e era exatamente igual às fotografias. Ele sorriu quando viajantes mais experimentados lhe disseram que se surpreenderia com esse fato. Agora estava surpreso com sua surpresa.
Como a nave havia atravessado diretamente a 'órbita da Terra, eles estavam se aproximando na direção do Sol, e o hemisfério abaixo estava completamente iluminado. Continentes de nuvens brancas cobriam a maior parte do lado diurno,- e havia apenas raros trechos de terra, só identificados com auxílio de um mapa. A brilhante luminosidade da calota polar do Antártico era a figura mais proeminente da superfície. Parecia estar muito frio lá embaixo, mas Duncan se lembrou de que o clima era tropical se comparado com grande parte de seu mundo.
A Terra era um belo planeta, isto era indiscutível. Mas era também estranha, e seus frios verdes e azuis nada fizeram para aquecer seu coração. Seria até um paradoxo se Titã, com suas alegres nuvens cor de laranja, parecesse tão mais hospitaleiro quando olhado do espaço.
Duncan ficou no Salão B, espiando a aproximação da Terra e despedindo-se dos seus muitos amigos temporários, até que o Porto Van Allen se tornasse uma brilhante estrela contra a negritude do espaço — e depois um tremulante anel — e finalmente uma enorme roda giratória. O peso gradualmente se esvaía na medida em que a força do impulso que os tinha levado pela metade do Sistema Solar ia decrescendo para nível zero. Depois vieram vários solavancos, quando os propulsores mais fracos equilibraram a posição da nave.
A estação espacial continuou a se expandir. Seu tamanho era inacreditável, mesmo quando se compreendia que ela tinha-se desenvolvido gradualmente através de três séculos. Agora já eclipsava completamente o planeta cujo comércio dirigia e controlava. Momentos depois, uma vibração quase que imperceptível, e que parou subitamente, informou a todos que a atracação havia sido feita. Segundos após o Capitão confirmou esta informação.
— Bem-vindos ao Porto Van Allen, portão para a Terra. Foi bom tê-los conosco, e esperamos que tenham uma boa estada. Por favor sigam os comissários e verifiquem se não deixaram nada em suas cabinas. E lamento falar sobre isto, porém três passageiros ainda não saldaram suas contas — o tesoureiro os estará esperando na saída. . .
Alguns murmúrios e elogios receberam este aviso, mas rapidamente se perderam no ruidoso burburinho do desembarque. Embora se esperasse que tudo já havia sido bem planejado, o caos reinava. Os passageiros errados iam para os pontos de verificação errados, enquanto que o alto-falante chamava insistentemente por indivíduos com nomes improváveis. Duncan levou mais de meia hora para chegar ao porto espacial, e não tornou a ver sua bagagem até o seu segundo dia na Terra.
Mas finalmente a confusão diminuiu quando as pessoas se espremeram através do cais de atracamento e se distribuíram pelos níveis apropriados da estação. Duncan cumpria as instruções com cuidado, e eventualmente encontrou-se com o resto do grupo alfabético alinhado do lado de fora do Escritório de Quarentena. Todas as formalidades tinham sido resolvidas uma hora atrás, através do circuito de rádio, mas isto era uma coisa que não podia ser feita pela eletrônica. Ocasionalmente, alguns viajantes tinham sido recusados neste ponto, logo à entrada da Terra, e não era sem preocupação que Duncan confrontava este último obstáculo.
— Não recebemos muitos visitantes de Titã — disse o Oficial Médico, que verificou sua ficha.
— Você pertence à categoria lunar. . . menos de um quarto de gravidade. Talvez seja um pouco difícil lá embaixo nos primeiros dias, mas você é suficientemente jovem para adaptar-se. Ajuda se ambos os pais nasceram. . .
A voz do médico baixou até o silêncio. Ele tinha visto o espaço que se referia à mãe. Duncan já estava acostumado com esta reação e há muito tempo que tinha deixado de se preocupar com isto. Na verdade, até se divertia um pouco com a surpresa que a descoberta de seu estado provocava. Ao menos o médico não faria a pergunta imbecil que os leigos sempre lhe faziam e para a qual há muito tempo já tinha formulado uma resposta automática: é claro que tenho umbigo, o melhor que o dinheiro pode comprar. O outro mito comum era de que os "clonados" homens deveriam ser muito viris — ''porque tinham tido um pai duas vezes". Este mito ele sabiamente deixava sem resposta. Foi útil para ele em várias ocasiões.
Talvez porque ainda havia mais seis pessoas esperando na fila o doutor reprimiu qualquer curiosidade científica que pudesse ter sentido e enviou Duncan para cima, para a seção de Gravidade Terrestre do porto espacial. Parecia ter levado muito tempo até que o elevador, movendo-se ao longo de uma das estacas da roda giratória, chegou ao seu destino. Ao mesmo tempo Duncan ia sentindo que o seu peso aumentava sem remédio.
Quando as portas se abriram finalmente, ele andou para fora da gaiola com as pernas duras. Embora estivesse ainda a mil quilômetros de distância da Terra, e seu novo peso fosse inteiramente artificial, ele se sentiu sob a cruel garra do planeta embaixo dele. Se não conseguisse passar neste teste, seria vergonhosamente devolvido a Titã.
Era verdade que aqueles que falhavam em atingir a marca poderiam tomar um curso intensivo de fortalecimento, primordialmente dedicado aos residentes da Lua que retornavam. Mas isto só era possível para os que tinham passado a maior parte de sua infância na Terra, e Duncan não poderia resistir.
Esqueceu todos esses medos quando entrou no salão e viu a Terra crescente, enchendo quase todo o céu, e vagarosamente escorregando pelas gigantescas janelas de observação — elas mesmas uma famosa obra de grande envergadura da engenharia espacial. Duncan não tinha a intenção de calcular quantas toneladas de pressão de ar elas estavam resistindo. Enquanto caminhava para a mais próxima, era fácil imaginar que não havia nada para protegê-lo do vácuo espacial. A sensação era tão eufórica como perturbadora.
Tinha a intenção de passar pela lista de verificação que o médico lhe havia dado, mas aquela vista deslumbrante fez com que isto se tornasse impossível. Paralisado, ficou no mesmo lugar, de quando em quando mudando o seu peso, ainda não habitual, de uma perna para a outra, pois músculos para ele ainda desconhecidos registravam de quando em quando suas queixas.
Porto Van Allen circulava o globo a cada duas horas e também girava em torno do seu eixo de três em três minutos. Depois de algum tempo sentiu que podia ignorar o giro da estação, sua mente foi capaz de eliminá-lo como a um fundo irrelevante ou a um odor persistente mas neutro. Depois de ter conseguido atingir esta altitude, podia imaginar-se sozinho no espaço como se fora um satélite humano correndo ao longo do equador dia e noite. A Terra estava crescendo visivelmente na medida em que ele se inclinava para o Leste e espiava a linha curva da alvorada que se movia continuamente em sua direção.
Como sempre, não havia terra visível, e o que podia ser visto através ou por entre as nuvens não parecia ter relação alguma com os mapas. E desta altura não havia o menor sinal de vida — e ainda muito menos de inteligência. Era difícil acreditar que a maior parte da história humana tivesse acontecido sob aquele cobertor branco e brilhante através do qual, há apenas trezentos anos, nenhum homem tinha ainda se elevado.
Continuava procurando algum sinal de vida quando o disco começou a se contrair novamente para a forma de um crescente, e o sistema de comunicações ao público chamou todos os passageiros para a Terra, pedindo-lhes que se apresentassem na área de embarque nos Elevadores Dois e Três.
Duncan teve tempo apenas para passar pelo banheiro "Última Chance" — tão famoso quanto as janelas de observação —, e de novo já estava no elevador, de volta ao mundo sem peso do cais da estação, onde o transporte Terra-Órbita aprontava para a viagem de retorno.
Aqui não havia janelas, mas cada passageiro tinha sua tela de visão nas costas do assento que estava à sua frente e podia mudar para a visão dianteira, traseira ou inferior de acordo com sua preferência. A escolha não era completamente livre, embora este fato não fosse amplamente divulgado. Imagens que poderiam ser perturbadoras — como os últimos minutos de atracamento ou aterrissagem — eram cuidadosamente censuradas pelo computador daquela nave.
Era agradável ficar de novo sem peso — mesmo que apenas durante os cinqüenta minutos da descida para o limite da atmosfera — e observar a Terra transformando-se lentamente de planeta para mundo. A curva do horizonte tornou-se cada vez mais plana, e havia rápidos indícios de ilhas e de uma espiral nebulosa de tempestade movendo-se, em silêncio, lá embaixo.
Finalmente, surgiu uma forma que Duncan pôde reconhecer — o istmo característico da costa californiana — assim que a nave saiu dos céus do Pacífico em direção a seu destino final, a uma distância ainda de quase um continente.
Agora sobrevoavam montanhas, achatadas quase à insignificância, e subitamente a paisagem tortuosa dos canyons interceptando-se. Mais parecia Marte do que a Terra, se rapidamente olhado. Aquilo deve ser o Colorado — pensou Duncan —, e aí vem a gravidade!
Sentiu-se afundando cada vez mais no assento superacolchoado, que distribuía seu peso de forma tão igual que a sensação de desconforto era reduzida ao mínimo. Mas, era difícil de respirar, até que se lembrou do Aviso aos Passageiros que finalmente conseguiu ler. "Não tente respirar profundamente", dizia. Tome fôlegos curtos e rápidos para reduzir o impacto sobre os músculos peitorais. Tentou fazê-lo e obteve resultado.
Agora ouvia-se um pequeno rumor e uma batida suave, e a tela de visão mostrou momentaneamente uma chama, depois automaticamente mudou da visão de retaguarda para a visão dianteira. Os canyons e desertos foram deixados para trás e substituídos por lagos — obviamente artificiais — com as minúsculas manchas de barcos a vela claramente visíveis. Pegou um detalhe da enorme esteira em forma de V, de vários quilômetros de extensão, de algum barco que corria a grande velocidade sobre as águas, embora daquela altura parecesse completamente inerte.
Depois o panorama mudou com tanta rapidez que Duncan foi apanhado de surpresa. Poderia estar passando mais uma vez sobre o oceano, de tão uniforme que era a paisagem abaixo. Ainda era muito alto para ver as árvores, mas estava passando sobre as intermináveis florestas do Meio-Oeste americano.
Havia ali prova cabal de vida — numa escala que jamais tinha imaginado. Em todo o Titã, havia apenas cerca de 100 árvores, cuidadas e protegidas com amorosa atenção. Espalhadas lá embaixo jaziam incomputáveis milhões.
Uma vez Duncan tinha lido a frase: floresta primária. Agora ela voltava-lhe à mente. Assim deveria ter sido a Terra anteriormente, quando o homem ainda não tinha surgido trazendo o fogo e o machado. Agora, com o final da Era Agrícola, de certo modo a Terra estava de volta para algo semelhante a seu estado original.
Embora fosse um fato difícil de acreditar, Duncan sabia perfeitamente que aquela Floresta Primária que via lá embaixo não era mais velha do que seu avô. Há apenas dois séculos, % tudo aquilo tinha sido terra agrícola, dividida em enormes quadrados e coberta de trigo no outono. (O conceito de estações era outra realidade terrena que achava difícil de atingir.) Ainda havia muitas fazendas no mundo, dirigidas por aficionados excêntricos ou por organizações de pesquisa biológica. Mas os desastres do século vinte ensinaram aos homens que eles não poderiam acreditar numa tecnologia que no máximo havia lhes dado uma eficiência de um por cento.
O Sol estava caindo, na direção do Oeste, com a velocidade antinatural produzida pela rapidez da nave. Ficou pendurado no horizonte por alguns segundos e depois desapareceu. Por apenas mais um minuto a floresta ainda era visível, depois apagou-se no entardecer. Mas não na escuridão. Como num passe de mágica, linhas de luzes tênues apareceram lá embaixo — como teias de aranha de luminosidade, esticando-se até onde a vista pudesse alcançar. Por vezes, três ou quatro linhas se encontravam num nó brilhante. Havia também ilhas isoladas de fosforescência, aparentemente separadas da rede principal. Ali estavam as provas mais evidentes da existência humana: a grande floresta era um lugar muito mais movimentado do que parecia ser à luz do dia. Todavia, Duncan não podia evitar de comparar esta visão moderna com as fotografias que conhecia do início da Era Atômica, quando milhões de metros quadrados luziam com tal brilho que os homens não podiam mais ver as estrelas.
Subitamente percebeu uma constelação compacta de luzes intermitentes, movendo-se independente do ofuscante panorama à sua frente. Por um momento ficou extasiado, depois constatou que estava olhando para um veículo aéreo gigantesco, que cruzava à sua frente com a mesma rapidez de uma nuvem com sua carga de frete ou de passageiros. Esta experiência Titã não poderia lhe oferecer e resolveu aproveitá-la assim que tivesse uma oportunidade.
Ali estava uma cidade — bem grande — com, no mínimo, cem mil pessoas. A nave voava agora tão baixo que ele podia perceber blocos de edifícios, estradas, parques — e um estádio todo iluminado, onde provavelmente deveria estar ocorrendo algum evento esportivo. A cidade saiu de seu campo visual, e alguns minutos mais tarde tudo estava encoberto por uma névoa cinzenta, iluminada por faíscas ocasionais de raios, não muito impressionantes para padrões de Titã. Dentro da cabina, Duncan não podia ouvir nada da tempestade que agora estavam atravessando. Porém, a vibração das máquinas tinha tomado uma nova forma e ele podia perceber que a nave estava descendo rapidamente. No entanto, foi completamente tomado de surpresa quando uma súbita carga de peso o engolfou — e na tela de visão viu um mar de concreto, uma confusão de luzes, e meia dúzia de ônibus e veículos de serviço, esquadrinhando sob a chuva.
Após trinta anos, Duncan tinha voltado para o mundo onde havia nascido mas que, até então, nunca tinha visto.
WASHINGTON, D. C.
— Desculpe-nos o mau tempo — disse George Washington. — Nós tínhamos controle local de temperatura, mas desistimos de usá-lo quando uma parada do Dia da Independência foi completamente impedida pela neve.
Duncan sorriu como seria devido, embora não estivesse certo de que deveria acreditar no que lhe estavam dizendo.
— Não importa — disse. — Tudo é novo para mim. Nunca tinha visto chuva antes.
Aquilo não era totalmente verdadeiro, mas se aproximava bastante. Ele já havia dirigido muitas vezes através das nuvens de amônia, e ainda podia se lembrar das cascatas venenosas escorrendo vidraças abaixo, somente a alguns centímetros de seus olhos. Mas isto era a simples e inofensiva água — não, a benfazeja água, fonte de vida, tanto na Terra quanto em Titã. Se agora abrisse a porta, apenas se molharia, e não teria morte horrível. Mas os reflexos de uma vida inteira eram difíceis de superar e sabia que para sair da limusine precisaria de uma enorme força de vontade.
E era uma limusine de verdade — outra primeira experiência para Duncan. Antes nunca tinha viajado com conforto tão oriental, com um balcão de comunicações de um lado e um bar muito bem guarnecido de outro. Washington percebeu seu olhar admirado e comentou:
— Impressionante, não? Hoje, não as fabricam mais. E esta era a favorita do Presidente Bernstein.
Duncan não era muito versado em presidentes norte-americanos — afinal até agora já tinha havido noventa e cinco —, mas tinha uma idéia aproximada do período de Bernstein. Fez alguns cálculos, não acreditou nos resultados e repetiu:
— Isto significa que ela tem mais de cento e cinqüenta anos!
— E provavelmente ainda durará outros tantos. Claro que o estofamento. . . couro verdadeiro, observe. . . é substituído a cada vinte anos ou mais. Se estes assentos pudessem falar, poderiam contar alguns segredos. Aliás, freqüentemente contavam. . . mas pode ter minha palavra de que atualmente estão completamente sem microfones.
— Sem microfones? Ah, sim, agora percebo o que quer dizer. De qualquer modo, não tenho segredos.
— Então brevemente lhe daremos alguns. Esta é a nossa principal indústria.
Enquanto o belo carro antigo rodava em perfeito silêncio, guiado por seus controles remotos, Duncan tentou ver o lugar por onde passavam. O espaçoporto ficava a cinqüenta quilômetros da cidade .— ninguém tinha ainda inventado um foguete sem ruído — e a rodovia de quatro pistas carreava uma enorme quantidade de tráfego. Duncan pôde contar no mínimo vinte veículos de vários tipos, e mesmo assim estavam todos se movimentando na mesma direção. O espetáculo era algo alarmante.
— Espero que todos os outros carros estejam também no automático — disse ansioso.
Washington, parecendo um pouco chocado, disse:
— Claro, dirigir veículos manualmente em rodovias públicas é considerado crime há no mínimo cem anos. Embora, por outro lado, ainda tenhamos psicopatas que se matam e matam outras pessoas.
Esta era uma afirmação interessante. A Terra não tinha resolvido todos os seus problemas. Um dos maiores perigos para a sociedade tecnológica era o maluco que tentava expressar suas frustrações — conscientemente ou não — através da sabotagem. Houve vários atos de sabotagem no passado: a destruição do reator de Gondwana no início do século vinte e um era talvez o exemplo mais conhecido. Como Titã ainda era mais vulnerável sob este aspecto do que a Terra, Duncan gostaria de tê-lo discutido mais aprofundadamente. Mas fazê-lo em sua primeira hora de visita seria muito pouco tático.
Estava certo de que, se cometesse este passo em falso, o seu anfitrião desviaria a conversação sem causar-lhe o menor embaraço. Durante o seu pequeno contato com Washington, Duncan percebeu que ele era um diplomata muito polido, dono de uma segurança que provém somente de uma árvore genealógica cujas raízes têm centenas de anos de profundidade. Porém, seria difícil imaginar alguém menos adequado fisicamente a tão distinta origem, pois este George Washington era baixo, careca e meio gordo. Um homem moreno, elegantemente trajado e cheio de jóias. A careca e a gordura eram um tanto surpreendentes, já que poderiam ser corrigidas tão facilmente. Por outro lado, proporcionavam um certo ar de distinção e talvez esta fosse a sua intenção. Mas este seria também um assunto delicado que Duncan deveria evitar — pelo menos até que conhecesse melhor o seu anfitrião. E, talvez, até mesmo quando o conhecesse.
O carro agora passava por uma ponte estreita, cruzando um rio largo e um tanto sujo. O espetáculo de ver tanta água genuína era muito impressionante, mas parecia muito frio e esvanecido naquela noite chuvosa.
— É o Potomac — disse Washington. — Mas, espere para vê-lo num dia de sol, e depois desta sujeira ter ido embora. E lá está o Watergate, não o original, é claro; foi removido perto do ano 2000. Os democratas queriam transformá-lo em monumento nacional. Lá está o Centro.Kennedy — este é o original, mais ou menos. A cada cinqüenta anos um arquiteto tenta recuperá-lo, porém, atualmente, já desistimos porque seria improdutivo.
Então, esta era a cidade de Washington, ainda se orgulhando de suas antigas glórias. Duncan tinha lido que a aparência física da cidade tinha mudado muito pouco naqueles trezentos anos, e agora podia acreditar nisso. A maior parte dos velhos edifícios públicos e do governo tinha sido cuidadosamente preservada. O resultado, segundo os críticos, era o "Maior Museu Inabitado do Mundo".
Um pouco mais tarde o carro penetrou numa estrada que levava através de gramados belamente cuidados. Ouviu-se um ruído delicado que vinha do painel de controle e um sinal abaixo do volante que dizia: Mude para Direção Manual. George Washington assumiu a direção, e prosseguiu, com marcha lenta, por entre os canteiros de flores e arbustos bem aparados e acabou parando sob o pórtico de um edifício obviamente muito antigo. Parecia ser muito grande para uma casa particular, mas um pouco pequeno para um hotel — a despeito do fato de trazer um cartaz, numa letra tão elaborada que era quase ilegível: "Hotel do Centenário".
O Professor Washington parecia ter um talento especial de antecipar perguntas antes que elas pudessem ser feitas.
— Foi construído por um barão da Estrada de Ferro, no século dezenove. Ele queria um lugar para recepções do Congresso e o investimento lhe rendeu muitos mil por cento de lucro. Nós o ocupamos para esta ocasião e a maioria dos convidados vai ficar aqui.
Para o espanto e embaraço de Duncan, já que o serviço pessoal não era conhecido em Titã, sua pequena bagagem foi carregada por dois cavalheiros negros vestidos na mais perfeita libre. Um deles se dirigiu a Duncan numa linguagem macia e musical da qual ele não conseguiu perceber uma palavra.
— Você está exagerando, Henry — disse Washington delicadamente. — Isto pode ser legítimo patuá de escravos, mas que utilidade pode ter, se somente vocês filólogos podem entendê-lo? E onde você conseguiu esta maquilagem? Posso precisar dela também.
Apesar de atraente, Duncan considerou aquela resposta ininteligível. Enquanto subiam naquele pequeno elevador que lhe parecia uma gaiola dourada, Washington comentou:
— Estou achando que o Professor Murchison está entrando demasiado no espírito de 76. De qualquer modo, demonstra que fizemos algum progresso. Há alguns séculos atrás, se você sugerisse que representasse um de seus ancestrais mais humildes, mesmo um pajem, ele teria lhe arrebentado a cara. Agora está se divertindo à grande, e talvez nem consigamos fazê-lo voltar às suas aulas em Georgetown.
Washington olhou para sua mão morena e gorda e suspirou.
— Está cada vez mais difícil encontrar pele negra genuína. Não sou nenhum vaidoso, mas será uma pena quando ficarmos todos com a mesma tonalidade de pele. Enquanto isso você deve perceber que leva uma pequena vantagem desleal.
Duncan olhou-o por um instante, sem compreender nada. Nunca levou em consideração sua cor de pele ou de cabelo. Na verdade, se fosse subitamente pressionado, teria dificuldades para descrever uma ou outra. Certamente jamais se considerou negro, mas, agora percebia, com compreensível satisfação, que era muitos tons mais moreno do que George Washington, descendente de reis africanos.
Quando a porta do hotel fechou atrás dele, e não era mais necessário manter as aparências, Duncan derramou-se agradecido em uma das confortáveis cadeiras. Ela inclinou-se para trás tão voluptuosamente que Duncan pensou que se destinasse a visitantes de mundos de gravidade mais baixa. Washington era sem dúvida um anfitrião admirável, e parecia ter-se preocupado com todos os detalhes. No entanto, Duncan sabia que levaria muito tempo até que pudesse se sentir realmente à vontade.
À parte a gravidade, havia uma dúzia de sutis pormenores, que lhe lembravam que não estava em seu lar. Um era o tamanho do quarto. Pelos padrões de Titã, era enorme. E estava mobiliado com tanto luxo que só tinha visto igual em sua vida nas peças históricas. Isto contudo era perfeitamente adequado, estava vivendo no meio da história. Esta mansão tinha sido construída muito antes que os primeiros homens tivessem se aventurado além da atmosfera, e supunha que a maioria de suas comodidades era daquela época. Os armários cheios de louça delicada, as pinturas a óleo, as fotografias estranhas de eminências posando rígidas (talvez o Washington original — não, ainda não havia câmaras fotográficas naquela época), as pesadas cortinas — nada disso poderia ter paralelo em Titã e Duncan duvidava se os seus clichês holográficos já não haviam sido arquivados na Biblioteca Central. O próprio painel de comunicações parecia datar do século anterior. Embora todos os elementos fossem familiares — a tela cinzenta em branco, a tábua alfanumérica, as lentes da câmara e a grade do microfone —, algo na sua forma lhes dava um aspecto de antigüidade. Quando sentiu que poderia andar um pouco sem correr o perigo de um colapso, Duncan encaminhou-se cuidadosamente para o painel e estacionou pesadamente na cadeira defronte.
Os tipos e os números seriados estavam no lugar de costume, enfiados ao lado da tela. Sim, havia a data — 2183. Tinha quase cem anos de idade.
Todavia, a não ser o fato de que o "e" e o "a" estavam meio apagados, não havia praticamente vestígio algum de falta de uso. E por que haveria de ter, num equipamento que não continha nem ao menos uma parte móvel?
Este fato lhe lembrava que a Terra era um velho mundo que tinha aprendido a conservar seu passado. A novidade sem sentido era uma relíquia sem valor dos séculos de desperdício. Se um equipamento funcionava satisfatoriamente, não era substituído apenas por motivo de mudanças na moda — mas somente se estivesse quebrado, ou se houvesse uma melhoria fundamental de performance que o aparelho não desempenhasse. O comsole de comunicações doméstico — ou com-sole — tinha atingido seu platô tecnológico no início do século , vinte e um, e Duncan podia apostar que havia unidades na Terra que já tinham dado serviço por mais de duzentos anos.
E isto não era nem um décimo da história deste mundo. Pela primeira vez em sua vida, Duncan se deu conta de um sentimento de inferioridade quase que esmagador. Não tinha ainda acreditado que os terrenos pudessem vir a considerá-lo* um bárbaro vindo da escuridão externa. Agora tinha certeza.
EMBAIXADA
O Minisec de Duncan tinha sido um presente de despedida de Colin, e ele ainda não estava completamente familiarizado com seus controles. Não havia nada de errado com sua velha unidade, e deixou-a para trás com alguma tristeza, mas o invólucro tinha ficado manchado e gasto,- e teve que concordar que não era o suficientemente elegante para a Terra.
O SEC era do tamanho padrão, determinado pelo tamanho da mão. Numa rápida olhada, via-se que não diferia muito das calculadoras eletrônicas portáteis que começaram a ser de uso geral no final do século vinte. Era, no entanto, infinitamente mais versátil, e Duncan não podia imaginar como seria possível a vida sem ele.
Por causa do tamanho finito dos desajeitados dedos humanos, não possuía mais controles do que suas antecessoras de três séculos atrás. Havia cinqüenta bem distintos botõezinhos, cada um porém tinha virtualmente um número ilimitado de funções, de acordo com a maneira de operá-los, porque o sinal visível em cada botão muda de acordo com o modo com que é operado. Logo, no Alfanumérico, 26 dos botões traziam letras do alfabeto, enquanto que dez deles mostravam dígitos de zero a nove. Em Math, as letras desapareciam dos botões alfabéticos e eram substituídas por x, + , +, —, = e todas as funções matemáticas padrão.
De um outro modo, era um dicionário. O SEC guardava mais de cem mil palavras, cujas definições de três linhas apareciam na pequena tela brilhante, virando página por página se assim fosse desejado. Clock e Calendário também usavam a
tela para demonstração, mas, para grande quantidade de informação, era melhor ligá-lo a uma tela maior de um com-sole. Isto poderia ser feito através da interface óptica do aparelhinho: um pequeno transmissor-receptor operando, quase um ultravioleta. Desde que suas lentes estivessem no limite visual do sensitizador correspondente de um com-sole, as duas unidades poderiam tranqüilamente trocar informações à razão de megabits por segundo. Desta forma, quando a memória interna do SEC estivesse já saturada, seu conteúdo poderia ser armazenado num continente maior para arquivo permanente, ou, inversamente, poderia ser recarregado através da conexão óptica com qualquer informação especial que fosse importante para algum trabalho em particular.
Duncan estava agora empregando-o para o seu uso mais simples — meramente como gravador, o que representava quase que um insulto para uma máquina tão poderosa. Mas, primeiro havia um assunto importante para ser resolvido — uma questão de segurança.
Uma palavra facilmente lembrada, preferivelmente uma que nunca fosse empregada neste contexto, seria a chave mais simples. Melhor ainda seria uma palavra que não existisse — deste modo nem acidentalmente poderia colocar em ação a memória do SEC.
De repente se lembrou. Havia uma palavra que jamais esqueceria, e se deliberadamente a registrasse com um erro. . .
Cuidadosamente escolheu Calindy, seguida da seqüência de instruções que encadearia a memória. Depois desligou o minúsculo microfone-rádio, alfinetou-o na sua camisa, falou uma mensagem de teste, e verificou se a máquina a reproduziria somente quando fosse dada a ordem correta.
Duncan nunca fez um diário, mas tinha decidido fazê-lo assim que chegasse à Terra. Em poucas semanas, encontraria mais gente e visitaria mais lugares do que em toda a sua vida, e certamente teria experiências que jamais se repetiriam quando voltasse a Titã. Estava decidido a não perder nada, desde que pudesse evitá-lo, pois as memórias que estava armazenando naquele momento seriam de inestimável valor nos próximos anos. Pensava em quantas vezes reproduziria estas gravações quando estivesse velho...
"2276, junho, dia doze. Ainda estou me adaptando à gravidade da Terra, e penso que jamais conseguirei adaptar-me totalmente. Mas, já posso suportar por uma hora de cada vez, sem ficar com muitas dores. Ontem vi um homem realmente pulando. Foi-me difícil acreditar no que estava vendo. . .
"O George, que pensa em tudo, arranjou um massagista para mim. Não sei se isto tem-me ajudado, mas certamente tem sido uma experiência interessante."
Duncan parou de gravar, quando observou esta afirmação. Estes luxos eram raros em Titã, e nunca havia recebido uma massagem em sua vida. Bernie Patras, o jovem desinibido e amável que o tinha visitado, demonstrou notável conhecimento de fisiologia, e também tinha dado a Duncan conselhos muito úteis. Era especialista em tratamento de estrangeiros de outros mundos, e recomendava um tratamento especial para as queixas de gravitação. Passar uma hora por dia flutuando numa banheira — ao menos no primeiro mês. "Não deixe nunca que o seu programa lhe retire esta hora, não importa quão ocupado você possa estar." Se for preciso poderá fazer vários trabalhos mesmo dentro da banheira: ler, ditar, etc, etc. Ora, o Embaixador da Lua costumava até a manter reuniões com apenas o nariz para fora da água. Dizia que podia pensar melhor daquela maneira. . .
Aquilo seria certamente um espetáculo pouco diplomático, disse Duncan para si mesmo, único mesmo nesta cidade, que provavelmente já viu de tudo.
"Estou aqui há três dias, e esta é a primeira vez que tive a energia — e a inclinação — e a oportunidade para colocar meus pensamentos em ordem. Mas, de hoje em diante, juro que o farei diariamente.
"A primeira manhã após a minha chegada, George — é assim que todos o chamam aqui — levou-me para a Embaixada, que fica a apenas alguns cem metros de distância do hotel. O Embaixador Robert Farrel desculpou-se por não ter podido ir encontrar-me no espaçoporto — disse que sabia que eu estava em boas mãos com o George —, e ele é o melhor organizador do mundo. Após isto George nos deixou e tivemos uma longa conversa em particular.
"Encontrei com Bob Farrel na ocasião de sua última visita a Titã, três anos atrás, e ele se lembra bem de mim — ao menos me deu essa impressão, o que suponho ser uma arte dos diplomatas. Foi muito simpático e colaborador, mas tive a impressão de que estava me sondando, e não me dizia tudo o que sabia. Concordo que esteja numa posição ambígua, sendo um homem da Terra que representa ao mesmo tempo os nossos interesses. Algum dia isto poderá nos causar dificuldades, mas não sei o que poderíamos fazer a respeito disto, já que nenhum nativo de Titã poderia viver na Terra. . .
"Felizmente, não há nenhum problema urgente, já que, para o acordo sobre o hidrogênio, só haverá reuniões para renegociações em 80. Mas, havia dúzias de pequenos itens nas minhas listas de compras, e deixei-o com bastante serviço para fazer. Tais como: Por que não podemos conseguir entregas mais rápidas de equipamentos? Alguma coisa poderia ser feita para melhorar os programas de envio de equipamento? O que aconteceu com a nova troca de estudantes? E outras perguntas deste tipo, que sacodem galáxias. Prometeu marcar encontros para mim com todas as pessoas que pudessem resolver estas coisas. Tentei dar-lhe a entender que desejava gastar algum tempo observando a Terra. E afinal ele não é apenas o nosso homem em Washington, mas nosso representante na Terra. . .
"Ele me pareceu surpreso quando lhe disse que pretendia permanecer um ano na Terra, mas a esta altura achei melhor não lhe dar a verdadeira razão — tenho certeza de» que a descobrirá bem rápido. Quando com muito tato me perguntou sobre o meu orçamento, disse-lhe que a Comissão do Centenário tinha sido de grande ajuda, e ainda havia o dinheiro dos Makenzies no Banco do Mundo que eu pretendia usar. Disse que estava compreendendo, pois o velho Malcolm já estava com mais de cento e vinte anos. Mesmo aqui na Terra, deixar o mínimo possível para o Fundo Comunitário é um passatempo comum. Depois disse também, embora não muito esperançoso, que qualquer conta pessoal poderia ser entregue legalmente à Embaixada como despesas de manutenção. Disse-lhe que considerava muito interessante este ponto e que o manteria em aberto. . .
Ofereceu-me para me dar assistência em meu discurso, o que foi muito gentil de sua parte. Quando lhe disse que ainda estava trabalhando nele, lembrou-me que era essencial que eu apresentasse um resumo final até fim de junho, para que todos os comentaristas importantes o estudassem com antecedência. De outro modo se afogariam na falação sobre o Dia 4 de Julho. Este era um aspecto sobre o qual ainda não tinha pensado, mas perguntei se os outros convidados já não teriam feito a mesma coisa. Ele me respondeu que era evidente que sim, mas que tinha bons amigos em toda a mídia e que havia grande interesse por Titã. 'Vocês ainda são intrépidos pioneiros no limite do Sistema Solar, lutando por uma nova civilização no deserto. Pode não haver muitos pioneiros por aqui, mas gostamos de ouvir o que eles têm a dizer.' A esta altura senti que estávamos nos entendendo, e, então, arrisquei implicar com ele: Quer dizer que é verdade que a Terra está decadente? Ele me olhou com um sorriso amarelo e respondeu depressa que não estavam decadentes, mas que a próxima geração estaria. . . Fico pensando se estava mesmo brincando. . .
"Depois falou uns dez minutos sobre amigos comuns como os Helmers, os Wongs, os Morgans e os Lees — parece conhecer todo mundo que é importante em Titã. E finalmente perguntou pela Vovó Ellen, e eu respondi que ela estava como sempre, o que ele entendeu perfeitamente. E aí veio o George e me levou para a sua fazenda. . . foi a primeira chance que tive de ver o campo, em plena luz do dia. Ainda estou tentando me recuperar da experiência..."
MOUNT VERNON
— Não leve este programa muito a sério — disse George Washington. — Ainda está sendo alterado diariamente. Mas seus compromissos principais — eu os marquei — não serão alterados. Especialmente no Dia 4 de Julho.
Duncan folheava a pequena brochura que o outro tinha-lhe dado quando entraram na limusine do Presidente Bernstein. Era um documento cansativo — completamente superlotado de endereços, recepções, bailes, procissões e concertos. Ninguém naquela cidade ia dormir muito nos primeiros dias de julho,e Duncan estava com pena da pobre Presidenta Claire Hansen.
Como um gesto de cortesia neste Ano do Centenário, ela não era somente a Presidenta dos Estados Unidos, mas também da Terra. É claro que não tinha pedido nenhum dos postos, e se o tivesse feito — ou mesmo se fosse suspeita» de ter dado este passo em falso — teria sido automaticamente eliminada. Durante o último século, quase todos os compromissos políticos da Terra tinham sido feitos ao acaso, por seleção de computador entre os indivíduos que tinham as qualificações necessárias para os cargos. A humanidade levou muito tempo para entender que certos cargos não deveriam ser dados para as pessoas que os desejavam, especialmente se estas demonstravam demasiado interesse. Como havia comentado um sagaz observador político: "Queremos um presidente que tenha que ser carregado aos gritos e pontapés para dentro da Casa Branca — mas que, quando lá estiver, faça o melhor trabalho possível, para que seja deposto por bom comportamento".
Duncan afastou o programa. Haveria bastante oportunidade de estudá-lo mais tarde. Agora só tinha olhos para sua primeira mirada no planeta Terra num brilhante dia de sol.
E este era o problema principal: nunca em sua vida tinha sido exposto a tanta luminosidade. Embora tivesse sido advertido, ainda estava estarrecido com a brilhante ferocidade luminosa de um sol quase cem vezes mais brilhante do que a estrela que brilhava delicadamente em seu próprio planeta. À medida que o carro deslizava automaticamente pelos arredores de Washington, ele ficava reajustando a transmissão de seus óculos escuros para encontrar um nível confortável.
Era quase uma criança recém-nascida, vendo o mundo pela primeira vez. Quase todos os objetos em seu campo visual eram-lhe pouco familiares, ou reconhecíveis apenas por descrições que havia estudado. As impressões o invadiam a uma tal velocidade que ficava intensamente confuso, até que decidiu se concentrar apenas em uma categoria de objetos e ignorar todo o resto — mesmo que estivessem clamando por sua atenção.
Árvores, por exemplo. Havia milhões delas — mas por isto ele já esperava. O que não tinha antecipado era a sua enorme variedade de forma, tamanho e cor. E não tinha palavras para nenhuma delas. Na verdade, como logo percebeu envergonhado, não poderia identificar nem ao menos as poucas árvores que havia no seu próprio Meridian Park. Ali estava um universo complexo, parte do cotidiano da maioria da humanidade desde o começo da história e, no entanto, não podia emitir nem ao menos uma frase significativa sobre tudo aquilo, por falta de vocabulário.
Depois vinham as flores. A princípio, Duncan ficou intrigado com as pinceladas de cores ao acaso que via de tempos em tempos. As flores não eram raras em Titã, mas sempre como espécimes isolados e muito caros, embora houvesse algumas no Parque. Aqui existiam tão incontáveis como as árvores, e ainda mais variadas. E mais uma vez não tinha os nomes para descrevê-las. Aquele mundo estava cheio de belezas das quais não podia falar. Viver na Terra iria lhe dar algumas frustrações imprevistas.
— O que é aquilo!? — gritou de repente.
Washington virou-se no assento para prestar atenção naquele pequeno objeto que tinha cruzado a estrada.
— Acho que é um esquilo. Há muitos deles nestas matas, e é claro que estão sendo freqüentemente atropelados. Este é um problema que ninguém conseguiu ainda resolver. Parou e depois acrescentou delicadamente:
— Não acredito que nunca tivesse visto um esquilo antes. Duncan sorriu meio sem graça.
— Nunca vi nenhum animal antes, a não ser o homem.
— Vocês não têm nem mesmo um Zôo em Titã?
— Não, temos discutido sobre isto há anos, mas os problemas são muito grandes. E para ser bem franco, acho que as pessoas têm medo de que algo corra errado — lembrando-se da praga de ratos na colônia lunar. Mas, o que realmente temem são os insetos. Se alguém um dia descobrisse que uma mosca fugiu da quarentena, haveria histeria universal. Possuímos um meio ambiente agradável, estéril, e desejamos mantê-lo assim.
— Hum — disse Washington. — Você não achará fácil adaptar-se ao nosso mundo sujo e infestado. Contudo, muitas pessoas têm-se queixado durante todo o último século de que está muito limpo e arrumado. Estão falando bobagem, é claro, há mais selva agora do que houve em mil anos.
O carro chegou à.crista de uma colina baixa, e pela primeira vez Duncan teve uma visão mais extensa do campo que os cercava. Podia ver a uma distância de no mínimo vinte quilômetros, e o efeito de todo aquele espaço aberto era estarrecedor. Era verdade que já tinha visto panoramas bem maiores e mais dramáticos — como as vistas de Titã. Mas, os panoramas de seu mundo eram implacavelmente letais, e quando viajava por seu interior tinha que ser isolado do meio ambiente hostil com todos os recursos da moderna tecnologia. Era quase impossível acreditar que aqui, em qualquer lugar, de horizonte a horizonte, ele não precisaria ficar protegido do ambiente. Respirava livremente uma atmosfera que não envenenaria instantaneamente os seus pulmões. O reconhecimento disto não lhe deu uma sensação de liberdade, mas sim quase uma vertigem.
Ainda era pior quando olhava para o céu, tão incrivelmente diferente daquele céu baixo, de um vermelho nebuloso de Titã. Ele tinha sobrevoado a metade do Sistema Solar e nunca recebeu tamanha impressão de espaço e distância como estava recebendo naquele momento, quando olhava para aquelas nuvens de aparência tão sólida, velejando pelo abismo azul que parecia interminável. Era inútil dizer-lhe que estavam a apenas dez quilômetros de distância — uma distância que uma nave espacial poderia percorrer em uma fração de segundo. Nem mesmo os campos estelares da Via-Láctea tinham percebido o infinito como ele.
Pela primeira vez, enquanto olhava para os campos e florestas espalhados em torno, sob o céu aberto, Duncan percebia a imensidade do planeta Terra pela única medida que contava — a escala do indivíduo humano. E agora entendia aquela observação crítica de Robert Kleinman, antes de sair para Saturno: o espaço é pequeno. Somente os planetas são grandes.
— Se você estivesse aqui há trezentos anos — disse seu anfitrião, com considerável satisfação —, quase que oitenta por cento disto tudo eram cobertos de edificações e rodovias. Agora os números baixaram para dez por cento, e esta é uma das áreas mais edificadas do continente. Tomou-nos muito tempo, mas finalmente conseguimos limpar a confusão que o século vinte nos deixou de herança. A maior parte, pelo menos. Guardamos ainda alguma coisa como recordação. Existem algumas cidades de aço na Pensilvânia, A visita a elas é uma importante experiência educacional da qual você não se esquecerá, mas que certamente evitará repetir.
— Um dos problemas maiores do entretenimento de estrangeiros como você .— disse Washington bruscamente depois de uma pausa — é que muitas vezes me vejo repetindo para vocês coisas que já conheciam há muito tempo mas que, por delicadeza, não admitem. Uns anos atrás levei um estatístico de Tranqüilidade por essa estrada, e dei-lhe uma aula brilhante sobre as mudanças de população aqui na região de Washington — Virgínia, durante os três últimos séculos. Pensei que se interessaria pelo assunto, e realmente se interessou. Se tivesse feito meu trabalho direito... — o que usualmente faço, mas por alguma razão não fiz neste caso —, eu já teria sabido que ele tinha escrito um conhecido trabalho sobre aquele assunto. Depois que foi embora, mandou-me uma cópia com uma dedicatória muito gentil.
Duncan se perguntava quanto trabalho Washington já tinha feito com ele, sem dúvida uma boa quantidade.
— Você pode deduzir minha total ignorância sobre o assunto. De qualquer maneira eu deveria ter percebido que a tecnologia de fusores seria tão importante na Terra como em qualquer planeta.
— Não é o meu campo, mas você deve estar certo. Quando era mais barato e mais simples fundir uma casa subterrânea do que construí-la acima do solo e muni-la de cortinas panorâmicas que eram bem melhores do que qualquer janela concebível, não é de surpreender que a superfície tivesse perdido muitos de seus atrativos.
O carro estava diminuindo a marcha, sentindo no seu computador que havia uma barreira mais adiante. A um determinado momento, contornou pelo caminho do parque, depois aumentou a velocidade através de uma estreita estrada que levava a um atalho, onde a grama encobria o caminho. Washington tomou o volante, justo no momento em que a luz do painel dizia: Fim do Automático.
— Estou levando você à fazenda, por muitas razões — disse ele. — A vida vai ficar atrapalhada para nós dois, na medida em que mais visitantes estejam chegando. Esta pode ser a última oportunidade que vamos ter para cumprir o seu programa em paz e com tranqüilidade. Também porque os extraterrenos podem aprender um bocado sobre a Terra num lugar como este. Mas a verdade é que, para ser honesto, tenho orgulho deste lugar e gosto de exibi-lo.
Estavam agora se aproximando de um muro de pedras alto, que se alongava por centenas de metros. Duncan tentou calcular quanto trabalho representaria, se todos aqueles pedaços desiguais tivessem sido colocados a mão — como certamente foram. O número era tão incrível que não podia acreditar.
E aquele portão enorme era feito de madeira genuína, pois estava sem pintura e podia se ver a textura. Enquanto ele era aberto automaticamente, Duncan leu o nome na placa e virou-se para o Professor com surpresa.
— Mas pensei... — começou a dizer.
George Washington olhou meio embaraçado e admitiu:
— O verdadeiro Mount Vernon fica a cinqüenta quilômetros a sudeste daqui; você não deve perder esse passeio.
Esta última frase, pensava Duncan, se tornaria muito familiar nos próximos meses — até que finalmente embarcasse de volta a Titã.
Do lado de dentro do muro, a estrada, agora mais firme, corria em linha reta através de pequenos campos divididos como um tabuleiro de xadrez. Alguns dos campos estavam arados, e havia um trator trabalhando num deles — sob controle humano direto, pois havia um homem sentado na direção. Duncan sentiu-se como se tivesse viajado para trás no tempo.
— A propósito, você reconhece algumas destas colheitas? — disse o Professor.
— Creio que não, embora perceba que seja grama, não?
— Bem, tecnicamente quase tudo aqui é grama. A grama inclui todos os cereais. . . cevada, arroz, milho, trigo, centeio, aveia. .. cultivamos todos eles exceto o arroz.
— Mas, porque, .. quero dizer, exceto pelo interesse científico e arqueológico? E a eficiência? Não gastam um quilômetro quadrado para alimentar um homem com este sistema?
— Lá em Saturno, talvez. Tenho a impressão de que você deixou escapar alguns zeros. Se fosse assim, esta pequena fazenda poderia suportar cinqüenta famílias com conforto, embora sua dieta fosse meio monótona.
— Eu não sabia. Meu Deus, o que é aquilo?
— Você está brincando. Não reconhece?
— Oh, sei que é um cavalo. Mas é enorme. . . pensei. . .
— Bem, não posso criticá-lo, mas espere até ver um elefante. O Charlemagne é provavelmente o maior cavalo vivo de nossos dias... é um Percheron, pesa mais de uma tonelada. Seus ancestrais costumavam carregar cavaleiros com armadura completa. Gostaria de conhecê-lo?
Duncan queria dizer que não necessariamente, mas já era tarde. Washington parou o carro e a gigantesca criatura trotou em direção deles.
Até aquele momento a limusine vinha fechada e eles estavam viajando com ar condicionado. Agora, com as janelas abaixadas, a Terra Primitiva agrediu Duncan em cheio pelas narinas.
O Professor Washington inclinou-se até o cavalo, oferecendo-lhe a palma da mão, onde dois pedaços de açúcar tinham aparecido magicamente. Delicadamente, como um beijo de moça, os beiços acariciaram a mão de Washington, e o presente desvaneceu-se como se tivesse sido inalado. Um olho doce e gentil, que à distância parecia ser do tamanho de um punho, mirou diretamente para Duncan, que começou a dar risadinhas histéricas assim que a aparição se foi.
— O que você achou tão engraçado? — perguntou Washington.
— Perceba-o sob o meu ponto de vista. Acabo de encontrar meu primeiro Monstro do Espaço Ulterior. Graças a Deus é bastante dócil.
UM GOSTO DE MEL
— Espero que tenha dormido bem — disse-lhe Washington enquanto saíam para uma bela manhã de domingo.
— Muito bem, obrigado — respondeu Duncan, prendendo um bocejo. Ele só queria que sua afirmação fosse verdadeira.
Tinha sido uma noite quase tão ruim como a sua primeira noite a bordo da Sírio. Lá, os barulhos tinham sido todos mecânicos. Desta vez, eram produzidos por coisas.
— Ter deixado a janela aberta foi um grande erro, mas quem poderia ter adivinhado? Não usamos o ar condicionado nesta época do ano — explicou George Washington. — O que, aliás, dá no mesmo porque não temos ar condicionado aqui. Os Regents não apreciavam muito nem a luz elétrica, nesta casa de quatrocentos anos de idade. Se você sentir muito frio, há alguns cobertores extras. Primitivos, mas muito eficientes.
Duncan não sentira muito frio, a noite estava muito fresca. Estava também muito movimentada.
Tinha ouvido batidas distantes que presumiu serem do Charlemagne ao deslocar seus quilos de músculos pelo campo. Tinha escutado estranhos pipilados e rangidos bem embaixo de sua janela, e um grito esgüelado que só poderia pertencer a uma pequena besta encontrando seu fim.
Finalmente, ele conseguiu cochilar — mas, para ser acordado de repente pela mais horrível das sensações que podem ocorrer a um homem em plena escuridão dentro de um quarto desconhecido. Algo estava se movendo pelo quarto.
Movia-se silenciosamente, mas com estupenda velocidade. Ouviu um sussurro apressado e ocasionalmente um pio fantasmagórico tão agudo que Duncan pensou que estivesse imaginando o fenômeno. Depois de alguns minutos ele decidiu que era bastante verdadeiro. Fosse o que fosse, era alado. Mas o que poderia mover-se a tal velocidade em total escuridão sem colidir com as coisas e mobílias do quarto?
Enquanto considerava o problema, Duncan fez o que qualquer pessoa sensata teria feito. Enterrou-se sob as cobertas, e, para seu grande alívio, o fantasma sussurrante, depois de alguns rodeios, voou para dentro da noite. Quando seus nervos foram se restabelecendo, pulou fora da cama e fechou a janela. Mas, parecia ter passado horas até que o seu sistema nervoso se acalmasse.
Naquela manhã tão clara os seus medos pareceram-lhe tão bobos como sem dúvida deveriam ter sido, e decidiu não perguntar a Washington sobre o seu visitante noturno. Presumivelmente seria um pássaro noturno ou um grande inseto. Todos sabiam que não havia mais animais perigosos na Terra, exceto nas bem guardadas reservas.
Todavia, estas criaturas que George Washington estava inclinado a lhe apresentar pareciam-lhe um tanto ameaçadoras. Diferentes de Charlemagne, possuíam armas embutidas. — Suponho — disse Washington, apenas com um pouco de dúvida — que você reconheça estes animais.
— Claro que conheço algo da zoologia terrestre. Se tem uma perna em cada canto e chifres, se não é um cavalo, deve ser uma vaca.
— Só lhe dou metade da nota. Nem todas as vacas têm chifres. E, falando nisto, antigamente havia cavalos com chifres. Estão extintos há muito tempo, desde que não havia mais virgens para colocar os arreios neles.
Duncan ainda estava decidindo se isto era uma piada ou não, quando sua atenção foi desviada: algo quase inacreditável estava voando na sua direção.
Era pequeno, e sua envergadura de asa não podia ter mais de dez centímetros, e freqüentemente traçava ziguezagues no ar, parecendo que queria aterrissar num arbusto ou pedaço de grama, e logo depois mudava de idéia. Como uma jóia viva, brilhava exibindo todas as cores do arco-íris. Sua beleza atingiu Duncan como uma inesperada revelação. Por outro lado, ficou pensando na utilidade que poderia ter esta maravilha.
— O que é isto? — sussurrou a seu companheiro enquanto a criatura voava de frente para trás a alguns metros de distância acima da grama.
— Uma borboleta.
Mas, Duncan quase não podia ouvi-lo. Aquela criatura iridescente, mantendo-se tão livremente no ar, fez com que esquecesse a ferocidade do campo gravitacional no qual estava preso. Começou a correr até ela, o que teve um resultado inevitável. Felizmente caiu num pedaço de grama.
Meia hora mais tarde, sentindo-se confortável mas um tanto bobo, Duncan estava sentado na cadeira antiga da casa de fazenda, com seu tornozelo enfaixado e esticado num banquinho, enquanto Mrs. Washington e suas duas filhas moças preparavam o almoço. Tinha sido carregado, como se fosse um guerreiro ferido num campo de batalha, por dois fortes trabalhadores que manejavam seu peso com uma facilidade quase que ridícula e que também — não podia deixar de ter notado — cheiravam a Charlemagne.
Era estranho, pensou, viver no que virtualmente parecia um museu mesmo que isso fosse um hobby. Teria sempre receio de quebrar algum artefato precioso, como a roca de fiar que Madame Washington lhe havia mostrado. Ao mesmo tempo, podia notar que toda esta atividade tinha sempre algum sentido. Não havia outra maneira de fazer alguém entender o passado, e ainda havia muitas pessoas na Terra que consideravam atraente esta maneira de viver. Os vinte ou mais trabalhadores da fazenda, por exemplo, estavam ali, permanentemente, no inverno e no verão. De fato, pensava ser difícil imaginá-los em qualquer outro ambiente — mesmo depois de terem sido bem lavados e escovados.
Mas, a cozinha era impecável, e havia um perfume dos mais atraentes exalando de lá. Duncan conseguia reconhecer muito pouco os ingredientes, mas um lhe era inconfundível, mesmo que o tivesse cheirado pela primeira vez naquele exato momento. Era o perfume apetitoso do pão recém-saído do forno.
Tudo cairia bem, dizia Duncan, em seu estômago. Tinha que ignorar o fato inegável de que todas as coisas que estavam sobre a mesa haviam crescido do pó da terra e não tinham sido sintetizadas a partir de produtos químicos limpíssimos numa fábrica impecável. Era assim que tinha vivido a raça humana durante a maior parte de sua história. Somente nos últimos segundos do Tempo é que surgiram outras alternativas.
Após alguns minutos, durante os quais seu estômago estava embrulhado e até que Washington assegurasse o contrário, Duncan pensou que iriam lhe servir carne. Aparentemente ainda havia carne no mercado, e não havia nenhuma lei que proibisse o seu uso, embora já tivesse havido algumas tentativas nesse sentido. Aqueles que se opunham à proibição argumentavam que não era muito produtivo tentar forçar uma moral através da proibição legal; se a carne fosse banida, todo mundo a desejaria mesmo que fosse prejudicial à saúde. E, de qualquer modo, esta era um perversão que não prejudicava ninguém. Não era assim, diziam os Proibicionistas, faria um mal irreparável a inúmeros animais inocentes e reviveria o revoltante ofício de açougueiro.
Confiante de que o almoço lhe apresentaria mistérios, mas não terrores, Duncan tentou ao máximo se divertir. No global, ele foi bem sucedido, e experimentou bravamente tudo o que havia diante de si, rejeitando um terço, tolerando outro terço e apreciando inteiramente o restante. No final, não havia nada de que não tivesse gostado especialmente, mas sim paladares tão estranhos e complicados que, para uma experiência inicial, eram na verdade um pouco fortes. Queijo, por exemplo, era uma novidade completa. Havia mais de seis qualidades diferentes e ele experimentou um bocadinho de cada. Percebeu que se quisesse se entusiasmaria pelo menos por duas qualidades. Mas isto poderia não ser uma boa idéia porque os químicos de alimentos em Titã eram muito resistentes à introdução de novos padrões em seus sintetizadores.
Alguns produtos eram bem familiares; batatas e tomates pareciam ter o mesmo gosto em todos os lugares do Sistema Solar. Já os havia encontrado como produtos de luxo das fazendas hidropônicas, mas sempre achou difícil entusiasmar-se por ambos devido a seu alto preço.
O prato principal era bem interessante. Era algo chamado bife e torta de rim, e talvez o nome infeliz o tivesse mobilizado. Sabia perfeitamente que o conteúdo se baseava em soja de alto teor protéico. Washington tinha-lhe confessado que a soja era o único alimento que não era produzido na fazenda, porque a tecnologia necessária era complicada demais.
A sobremesa não foi problema. Consistia de uma grande variedade de frutas, na sua maior parte desconhecidas para Duncan até mesmo pelo nome. Algumas insípidas, outras saborosas, mas sentiu que todas não ofereciam nenhum perigo. Os morangos lhe agradaram muito, embora tivesse desprezado o creme, quando descobriu, depois de um delicado interrogatório, como era fabricado.
Estava confortavelmente satisfeito quando a Sra. Washington lhe ofereceu uma pequena caixinha de madeira que continha um favo de mel de abelhas. Já há muito tempo este termo era conhecido de Duncan, e tinha que ver com estruturas leves; precisou dar um giro mental bem elaborado para perceber que este era o item genuíno, natural, construído por insetos terrenos.
— Começamos recentemente a criar abelhas — explicou o Professor. — São criaturas fascinantes e ainda não sabemos se vale a pena o esforço. Acho que gostará deste mel.. . tente prová-lo sobre uma fatia de pão.
Seus anfitriões o espiavam enquanto espalhava o líquido dourado que pensou parecer-se muito com óleo lubrificante. Esperava que fosse mais saboroso. Mas, agora já estava preparado para quase tudo.
Estabeleceu-se um longo silêncio. Depois experimentou mais um pedaço, depois mais outro.
— O que acha? — perguntou Washington finalmente.
— Delicioso, uma das coisas mais gostosas que provei até agora.
— Estou tão contente — disse a Sra. Washington. — George, providencie um pouco para mandar para o hotel do Sr. Makenzie.
O Sr. Makenzie continuou a provar o pão com mel muito lentamente. Havia uma expressão abstrata e remota em sua fisionomia, que seus anfitriões atribuíam a um prazer gastronô-
mico perfeito. Nunca poderiam ter adivinhado a razão verdadeira.
Duncan nunca foi muito interessado em comida, e nunca fez muito esforço para experimentar novidades ocasionais que eram importadas para Titã. Quando, por vezes, elas lhe eram empurradas não as apreciava. Ainda sorria à lembrança de uma especialidade chamada caviar. Estava, então, absolutamente certo de que nunca tinha experimentado o mel.
Contudo o reconheceu imediatamente, e isto era apenas a metade do mistério. Como um nome que está na ponta da língua e que evita todas as tentativas de ser retido, a lembrança de um encontro anterior estava logo abaixo do limite de sua consciência. Tinha acontecido há muito tempo. Mas quando e onde? Por um pequeno momento chegou a levar a sério a idéia de reencarnação. Você, Duncan Makenzie, era um criador de abelhas na outra encarnação.
Talvez estivesse enganado em pensar que conhecia o gosto do mel: a associação poderia ter sido disparada por alguma ligação ao acaso de seus circuitos mentais. E, de qualquer forma, não poderia ter a menor importância.
Contudo, de alguma forma, ele sabia mais do que isso. Era, aliás, uma lembrança muito importante.
CALINDY
O pacote foi entregue no quarto de Duncan, quando ele estava estudando. Era um pequeno embrulho, bem arrumado, de cerca de 15 centímetros de altura por dez de largura, e não podia imaginar o que continha.
Apalpou-o por algumas vezes; era bastante pesado, mas não o suficiente para ser um metal. Depois tocou-o com a ponta dos dedos, e o ruído era surdo.
Abandonou aquelas especulações fúteis e abriu-o.
Fazenda Mount Vernon
Caro Sr. Duncan.
Desculpe o atraso, mas tivemos um pequeno acidente: Charlemagne conseguiu caminhar entre as colméias numa dessas noites. Felizmente ou não — dependendo do ponto de vista —, nossas abelhas não dão ferroadas. Todavia, a produção foi bastante afetada.
Lembrando de sua reação da última vez, Clara e eu pensamos que gostaria deste souvenir de sua visita.
Cumprimentos, George
Que gentis eram eles, pensou Duncan. Quando acabou de desembrulhar achou um jarro de plástico transparente cheio do líquido dourado. O mecanismo de fechamento do jarro deixou-o meio confuso por alguns minutos — tinha que ser puxado para baixo e apertado antes de ser aberto —, mas, depois de algum tempo, conseguiu.
O cheiro era delicioso e, mais uma vez, sentiu aquela sensação de familiaridade distante. Como um garotinho, não pôde resistir, mergulhou o dedo e depois saboreou o mel.
Algum circuito de ação demorada estava agindo, lá no fundo, no recesso de sua memória, o sentimento mais primitivo e mais potente de todos estava abrindo compartimentos trancados há anos.
Seu corpo lembrou-se antes que sua mente. Enquanto relaxava contente, envolto pelo calor de um sentimento de prazer quase animal, tudo voltou à sua memória.
O mel tinha gosto de Calindy.
Mais cedo ou mais tarde, claro que iria procurá-la. Mas queria tempo para adaptar-se e sentir-se o mais à vontade possível na Terra; era isto que tinha dito a si próprio. Mas não era esta a única razão.
A parte lógica de sua mente não queria ser sugada de novo por aquele redemoinho de sentimentos que o tinha engolfado quando garoto. Mas, em matéria de coração, a lógica sempre foi derrubada. No fim de tudo ela diria, apenas, eu te avisei. .. e aí seria bem tarde.
Tinha conhecido o corpo de Calindy, mas não tinha conhecido o seu amor. Agora já era um homem — e não havia nada que Karl pudesse fazer para o impedir. »
A primeira tarefa seria localizar Calindy. Ficou meio desapontado por ela não o ter ainda procurado, porque as notícias de sua chegada tinham sido amplamente divulgadas. Será que ela estava indiferente? Bem, ele arriscaria.
Duncan dirigiu-se ao comsole, a tela acendeu quando os seus dedos tocaram o ON. Agora o que se via era um milagre aquém dos sonhos de qualquer poeta, uma caixa encantada que se abria para todos os mares, todas as terras. Através daquela janela poderia emanar tudo aquilo que o homem conhecia sobre o seu Universo e toda obra de arte que ele salvou do domínio dos tempos. Todas as bibliotecas e museus que já tinham existido poderiam ser afunilados através daquela tela e de milhões de outras telas espalhadas pela Terra. Mesmo o menos sensível dos homens não podia deixar de ficar estarrecido pelo pensamento de que, por mil vidas, ele poderia operar um comsole — e parcamente demonstrar o conhecimento armazenado dentro dos arquivos de memória que jaziam triplicados em suas cavernas, guardados mais fortemente que qualquer ouro. Havia uma ironia no fato de que dois desses complexos computadores enterrados tinham sido centros de controle para mísseis nucleares.
Mas agora Duncan não estava preocupado com as heranças da Humanidade, tinha um objetivo mais modesto em vista. Seus dedos dedilharam a palavra INFO e a tela instantaneamente mostrou: POR FAVOR ESPECIFIQUE CATEGORIA
01 Geral
02 Ciência
03 História
04 Arte
05 Recreação
06 Geografia
07 Endereços da Terra
08 Endereços da Lua
09 Endereços Planetários
e daí por diante, passando por mais de trinta assuntos.
Enquanto seus dedos tocavam 07, Duncan não podia deixar de se lembrar de seu primeiro encontro com o sistema terreno de comsole. As categorias eram quase as mesmas que em Titã, mas ACTIVATE ficava no lado esquerdo do teclado e aquela posição pouco familiar tinha-lhe feito esquecer de tocá-la, de modo que nada aconteceu por um prazo de cinco segundos; depois uma moça realmente bonita apareceu na tela e disse com uma voz que Duncan poderia ouvir eternamente: Você se lembrou de apertar a tecla ACTIVATE?
Contemplou-a até que a imagem desapareceu, deixando na sua memória aquele ar de gatinha dengosa. Embora tivesse repetido o erro umas cinco vezes seguidas, ela nunca mais voltou. Aparecia uma garota diferente cada vez que errava. Bem, pensou ele, elas já devem estar mortas há muitos anos.
Quando Endereços da Terra apareceu na tela, veio com um pedido para que desse os nomes, apelidos, número pessoal,
último endereço conhecido, região, país, província, código postal. Mas, aí é que estava o problema. Ele não tinha tido notícias de Calindy por quase cinco anos, e nunca soube o seu número pessoal. Foi até difícil lembrar-se de seu nome de família. Era Smith, ou Wong, ou Lee? Se não se lembrasse a tarefa ia ser muito difícil.
Bateu nas teclas ELLERMAN, CATHERINE LINDEN, e uma fileira de NÃO SEI. O comsole respondeu: QUE INFORMAÇÃO DESEJA? Duncan respondeu:
ENDEREÇO E NÚMERO DO VIDDY. . . ACTIVATE.
E supondo que Calindy tivesse mudado de nome? Pouco provável, ela não era a espécie de pessoa que se deixaria dominar por algum homem, mesmo que estabelecesse uma relação duradoura com alguém. Duncan podia pensar no homem mudando de nome, mas não Calindy.
Não tinha nem acabado seu pensamento quando, para sua surpresa, o comsole anunciou:
ELLERMAN, CATHERINE LINDEN
North Atlan
New York
New York
Personal: 373.496.000.000
Viddy: 99.373.496.000.000
A velocidade com que o sistema localizou Calindy era tão surpreendente que Duncan ainda levou vários segundos para % perceber dois fatos ainda mais surpreendentes.
O primeiro era que Calindy conseguiu obter uma identificação pessoal raríssima. O segundo era que conseguiu que esta fosse incorporada ao seu número de viddy. Duncan não podia acreditar que isto fosse possível. Karl tinha tentado fazer o mesmo e não tinha conseguido. Os poderes de persuasão de Calindy foram sempre notáveis, mas naquele momento percebeu que os tinha subestimado.
Então, lá estava ela, não só neste planeta, mas também no mesmo continente — a apenas quinhentos quilômetros de distância. Tinha apenas que dedilhar seu número e poderia novamente ver os olhos que tantas vezes tinha contemplado na bola de estéreo.
Sabia que iria fazê-lo, sobre isto não havia nenhuma dúvida. Porém, ainda hesitava, parte porque saboreava aqueles momentos de espera e parte porque ainda pensava no que iria dizer. Não tinha ainda se decidido quando quase impulsivamente dedilhou os quatorze dígitos que lhe abriam a estrada para o passado.
Duncan jamais a teria reconhecido se tivessem se cruzado na rua. Tinha esquecido o que os anos de gravidade podiam fazer. Por longos segundos contemplava a imagem incapaz de falar. Finalmente ela quebrou o silêncio com um Sim? levemente impaciente. — O que é?
Antes que ela começasse, Duncan sentiu necessidade de respirar de novo.'
— Calindy — disse. — Você não se lembra de mim?
A expressão daqueles olhos brilhantes mudou quase que imperceptivelmente. Depois houve um esboço de sorriso, embora um tanto preocupado. Seja razoável, disse Duncan para si mesmo. Ela não pode reconhecê-lo depois de quinze anos. Quantas mil pessoas ela não encontrou depois disto neste mundo ocupadíssimo e superpovoado? E quantos amantes desde Karl?
Mas ela o surpreendeu como sempre.
— Claro, Duncan. Mas que prazer em revê-lo. Sabia que você estava na Terra, e estava pensando em quando iria procurar-me.
Ficou um pouco embaraçado, como talvez tencionasse ficar.
— Perdoe-me — disse. — Mas tenho estado muitíssimo ocupado. As celebrações do Centenário, você sabe.
Enquanto mirava a tela, as feições antigas lentamente emergiram daquela estranha que o encarava. O impacto dos anos não era tão grande como tinha imaginado. Muito da diferença era puramente artificial. Ela tinha mudado a cor dos cabelos, de modo que não eram mais negros, mas castanhos, pincelados de reflexos dourados. O oval do rosto era ainda o mesmo, e a pele delicada ainda perfeita. Quando conseguiu esquecer a imagem da bola de estéreo, pôde perceber que ela ainda era a Calindy, mais madura e até mais desejável.
Podia ver também que estava sentada num escritório cheio de gente, cercada de vultos que vinham e voltavam e que ocasionalmente lhe davam folhas de documentos. De algum modo, nunca teria imaginado Calindy como uma executiva, mas estava certo de que, se havia se dedicado àquele papel, deveria ser bem sucedida. Era óbvio, no entanto, que aquele não era o momento para demonstrações de carinho. O melhor que poderia fazer seria marcar um encontro o mais cedo possível.
Tinha vindo desde Saturno, não seria difícil de percorrer uma distância extra até Nova York. Mas, parecia haver problema. Teve até a impressão de haver uma pequena hesitação por parte de Calindy. Consultou uma agenda complicada, deu-lhe algumas datas para escolher e pareceu aliviada quando Duncan descobriu que coincidiam com seus próprios compromissos.
Estava ficando bastante decepcionado quando ela, de repente, exclamou:
— Um minuto, você estará livre na próxima sexta-feira?
— Penso que sim. . . sim. Posso conseguir isto. Ainda faltava uma semana. Ele teria que ser paciente.
— Maravilhoso! — Um lento e misterioso sorriso espalhou-se no seu rosto e por um momento a antiga Calindy olhou para ele.
— E fica ótimo... perfeito. Não poderia ter sido melhor se tivesse sido combinado com antecedência.
— Combinado o quê? — perguntou Duncan.
— Procure os Van Hyatts no número que vou lhe dar... eles estão bem próximo de Washington... e faça exatamente o que eles lhe disserem. Diga que Enigma solicitou que o trouxessem como meu convidado pessoal. São muito agradáveis e você vai gostar deles. Bem, agora preciso desligar... vejo-o na próxima semana. — Parou por uns momentos e depois disse com cuidado: — Devo avisá-lo de que estarei tão ocupada que não terei muito tempo, mesmo na ocasião do nosso encontro. Mas prometo que realmente apreciará muito a experiência.
Duncan olhou-a desconfiado. Apesar de sua afirmação, sentiu-se desapontado. Também detestava estar envolvido em situações sobre as quais não possuía nenhum controle. Os Makenzies organizavam outras pessoas — para seu benefício próprio, claro, mesmo que a vítima estivesse em desacordo. Aquele reverso do seu procedimento habitual deixava-o sem jeito.
— Eu irei — disse tomando a dianteira. — Mas, pelo menos, diga-me do que se trata.
Calindy fez aquele muxoxo de teimosia do qual ele se lembrava tão bem.
— Não — respondeu ela com firmeza. — Estaria violando o lema de minha própria firma, e mesmo o vice-presidente não pode fazê-lo.
— Que firma?
— É mesmo? Pensei que você a conhecesse — disse ela com um sorriso de surpresa. — Pensava que Enigma fosse relativamente bem conhecida, mas isso ainda torna as coisas melhores. Qualquer pessoa daqui da Terra lhe dirá qual é o nosso slogan... — Ela interrompeu por alguns segundos para receber uns documentos de um outro assistente apressado.
— Até breve, Duncan... tenho que me apressar. Vejo-o depois.
— E o seu slogan? — disse quase berrando para ela. Ela soprou-lhe um beijinho faceira.
— Pergunte aos Van Hyatts. Um abraço. A tela ficou em branco.
Duncan não ligou para os Hyatts imediatamente. Esperou por alguns minutos, até ficar descontraído emocionalmente, e depois chamou seu anfitrião e conselheiro-geral.
— George — disse ele —, você já ouviu falar de uma firma chamada Enigma Associates?
— Sim, claro. O que houve com eles?
— Você conhece o slogan deles?
— "Nós estarrecemos".
— Hem?
Washington repetiu a frase, devagar e com cuidado.
— Bem, eu estou estarrecido. O que significa?
— Você poderia dizer que são empresários sofisticados, ou especialistas em diversões que trabalham em bases altamente individuais. Você os procura quando está entediado e quer novidades. Apóiam-se muito no elemento surpresa. . Mas, como ouviu falar deles? Espero que não esteja entediado.
Duncan sorriu.
— Ainda não tive tempo para este luxo. Mas, acabo de ter contato com uma velha amiga, que aparentemente é vice-presidente dessa organização e me convidou para juntar-me a um grupo na próxima sexta-feira. Você aprova?
— Qualquer programa para o qual ela o tenha convidado será bem brando e inócuo. Suas chances de sobrevivência são excelentes.
— Obrigado — disse Duncan. — Era tudo o que queria saber.
Os Van Hyatts lhe deram mais alguns detalhes quando se apresentou mais tarde a eles. Eram muito simpáticos, mas um pouco formais. Um casal já de meia-idade, o que por si só já era algo tranqüilizante.
— Disseram-nos para nos reunirmos no Rio Hudson e usarmos roupas velhas. Aqui diz também que, se for necessário, eles mesmo fornecerão os capacetes. Nem posso calcular o que estão tramando.
Duncan fez preparativos apressados para â reunião no Rio Hudson na próxima sexta-feira, saiu do hotel, e ficou sentado meditando se tinha feito o que devia.
Passou algum tempo até que foi repentinamente surpreendido com a lembrança de uma omissão muito estranha de Calindy — que ao mesmo tempo o surpreendia e entristecia. Ela não perguntou por Karl.
O FANTASMA DE GRAND BANK
Havia inúmeras pequenas mansões, cafés e lojas à beira do rio, assim como dúzias de pequenos cais com barquinhos e veleiros. Embora o transporte marítimo já tivesse sido extinto há mais de dois séculos, a água continuava exercendo um grande fascínio em grande parte da raça humana. Mesmo agora, uma barca de carreira, alegremente pintada e superlotada de turistas, estava singrando a costa de Nova Jersey. Duncan se perguntava se era uma antigüidade genuína ou uma reconstrução moderna.
Os Hyatts guiaram Duncan em direção a um cilindro enorme e translúcido, estirado ao longo de mais de trezentos metros fora da costa. Parecia uma estrutura temporária, arranjo de última hora, em mau estado de conservação comparado com o bom gosto e o cuidado de tudo à sua volta.
Agora, reunidos aos outros, que obviamente eram membros do grupo Enigma, eles entraram num pequeno edifício que era tão parecido com um túnel de vácuo que era fácil imaginar que estavam indo para o espaço. De fato, era mesmo um tipo de túnel de vácuo, contendo fileiras de roupas protetoras, capas, botas de borracha e os capacetes — que estavam exercitando a imaginação de Bill Van Hyatt. Com um ar de curiosa expectativa, e com rápidos sorrisos à transformação da aparência de seus companheiros, passaram todos para o túnel interno.
Duncan tinha expectativas de ver um navio. Em relação a isto, pelo menos, não ficou surpreendido. Mas, ficou completamente estarrecido com seu enorme tamanho: quase que preenchia a gigantesca estrutura que o envolvia. Ele sabia que nos últimos tempos os tanques de óleo tinham-se tornado enormes, mas não tinha a menor idéia de que os de passageiros tivessem se tornado tão grandes. E era óbvio, pela quantidade de janelas e portinholas, que aquele navio tinha sido feito para transportar pessoas e não óleo.
A plataforma mirante em que estavam ficava no mesmo nível do convés principal e logo em frente da ponte de comando. À sua direita, Duncan podia ver um grande mastro e uma confusão de cordoames, engrenagens, ventiladores e manivelas até alcançar a proa. Prolongando-se pela esquerda aparecia uma parede de metal que lhe parecia interminável, pontilhada de janelinhas. Dominando tudo lá no alto, havia três funis gigantescos, quase tocando o telhado do invólucro. Por sua distribuição percebia-se que havia um quarto funil que estava faltando.
Havia muitos outros sinais de dano. Janelas arrebentadas, partes do convés em mau estado, e quando Duncan olhou na direção da quilha pôde ver um enorme remendo de metal, de no mínimo uns cem metros de comprimento, correndo logo embaixo da linha dágua.
Somente naquele instante é que todas as peças daquele quebra-cabeças ficaram no lugar. Naquele dia ele era um garoto num mundo distante, mas ainda podia se lembrar quando o Titanic, depois da sua tricentésima viagem, havia chegado a Nova York.
Nunca mais construiriam nada igual. O Titanic marcou o fim de uma era. Uma era de riqueza e elegância que foi varrida apenas dois anos depois pela Primeira Guerra Mundial. Oh, eles construíram navios mais rápidos e maiores, no meio século anterior ao desenvolvimento da aviação que acabou por fechar para sempre aquele capítulo. Mas, nenhum navio jamais o venceu no luxo que o circunda neste momento. Muitos corações se partiram quando ele se perdeu.
Duncan acreditava. Estava ainda num sonho. O magnífico Grande Salão, com seus imensos espelhos, suas colunas douradas e um tapete que afundava até o tornozelo, era tão opulento como nunca poderia ter imaginado, e o sofá no qual estava afundando o fez esquecer a gravidade da Terra. Contudo, o fato mais impressionante de todos era que tudo aquilo que estava vendo e tocando tinha estado no fundo do Atlântico por três séculos e meio.
Não tinha pensado que o mar profundo era quase tão fora do tempo como o espaço. Todo o estrago tinha sido feito na primeira manhã. Quando o navio afundou, explicava o locutor, duas horas e meia depois que o iceberg rasgou a parte de estibordo, ele desceu para o abismo com a popa inclinada quase que na vertical. Tudo escorregou para a mesma direção até que, ou era esmagado diante dos obstáculos à sua frente, ou por eles detido. Por um milagroso golpe de sorte — e isto indica o quanto ele foi bem construído —, todas as três máquinas permaneceram intactas. Se também tivessem escorregado o casco teria ficado tão destruído que não teria sido possível recuperá-lo.
Mas, do momento que atingiu o fundo, a três quilômetros de profundidade, foi conservado por séculos: a combinação de frio com pressão evita toda a destruição, e inibe toda a ferrugem. Encontramos carne tão fresca nos refrigeradores como as que estavam em Southampton no dia 1.° de abril de 1912. E os alimentos enlatados ou engarrafados estão até hoje perfeitos. Quando o reconstituímos — um trabalho objetivo, embora nos tomasse um ano para tapar todos os buracos e reforçar os pontos fracos —, empurramos a água para fora com os foguetes de jato frio que o pessoal de salvamento a profundidade desenvolveu. Naturalmente as condições do tempo eram críticas; por sorte havia uma previsão ideal para o dia 15 de abril de 2262, de modo que surgiu à superfície trezentos e cinqüenta anos após o dia que tinha afundado. As condições eram idênticas — dia calmo, com a temperatura baixíssima —, e você não vai acreditar, mas tivemos que evitar um iceberg quando começamos a manobrá-lo!
Então trouxemos o navio até Nova York, bombeamos nitrogênio para evitar a ferrugem, e lentamente o fomos secando. Aqui não houve problemas, os arqueologistas oceânicos já preservaram navios mais antigos do que o Titanic. Foi apenas grande o tamanho do trabalho, que custou quatorze anos e ainda nos deverá tomar mais uns dez. Milhares de peças de mobília para serem selecionadas, centenas de toneladas de carvão para serem removidas — quase que pedaço por pedaço.
Algumas vezes nós nos perguntamos por que estamos fazendo este trabalho — dedicando muitos anos e milhões de "solares" para recuperar o passado. Bem, posso dar-lhe para isso algumas razões práticas e realistas. Este navio é parte de nossa história, podemos entender melhor a nós mesmos e à nossa civilização quando o estudamos. Alguém já disse que um navio naufragado é uma cápsula do tempo, porque preserva todos os artefatos do cotidiano exatamente como eram quando estavam em uso. E o Titanic era uma espécie de corte transversal de toda uma sociedade, num momento único anterior ao começo de sua dissolução.
Temos o camarote de John Jacob Astor — o homem mais rico de seu tempo — com todos os seus valores e objetos pessoais que levava para Nova York. Só isto teria pago o Titanic uma dúzia de vezes. E temos também o estojo de ferramentas que Pat 0'Connor trouxe com ele quando subiu a bordo em Queenstown, esperando encontrar uma vida melhor numa terra que nunca chegou a ver. Temos até os cinco soberanos que conseguiu economizar depois de mais anos de trabalho do que podemos imaginar.
Estes são os dois extremos: entre eles temos todo o percurso de vida — um tesouro sem preço para o historiador — do economista, do artista, do engenheiro. Mas, além disso, existe uma mística em torno deste navio que permaneceu através de todos esses séculos. A história da primeira e última viagem do Titanic deve ser contada de novo a cada geração, para fazer com que os homens se lembrem tanto do destino quanto do acaso.
Duncan estava tão absorvido que nem notou a mulher que havia entrado no Grande Salão e que estava em pé perto de uma das portas ornamentadas.
Mesmo com um capacete e vestindo uma roupa disforme à prova d'água, Calindy ainda lhe parecia elegante e de bom porte. Levantou-se e andou na sua direção, ignorando os olhares de seus acompanhantes. Silenciosamente, abraçou-a e beijou-a nos lábios. Ela não era tão alta como pensava — ou ele tinha crescido —, pois teve que curvar-se.
— Bem — disse ela, depois de ter-se afastado. — Depois de quinze anos!
— Você não mudou nem um pouco.
— Mentiroso. Espero ter mudado. Com vir . e um, eu era uma garota irresponsável.
Esta conversa tão animada chegou ao ponto final quando perceberam que enquanto se olhavam todos no Grande Salão os observavam. Estou certo de que pensam que somos ex-amantes, disse Duncan para si mesmo. Pena que não seja verdade. . .
— Duncan querido... desculpe, mas sempre começo a falar como no início do século vinte quando estou aqui. Sr. Makenzie, por favor permita-me que me afaste por alguns minutos enquanto falo com meus outros convidados. . . depois passearemos juntos pelo navio.
Ele a observou dirigindo-se de um a outro grupo, a perfeita encarnação de um administrador eficiente, confirmando que tudo estava andando conforme o previsto. Será que estava representando um de seus papéis ou esta era a Calindy real, se é que existia?
Voltou ao encontro dele uns cinco minutos mais tarde, com todos os auxiliares vindo diligentemente atrás dela.
— Duncan, não creio que tenha conhecido o Comandante Innes... ele conhece mais sobre este navio do que as próprias pessoas que o construíram. Ele nos acompanhará.
— Gostei muito de sua apresentação -— disse Duncan enquanto o cumprimentava. — É sempre bom ouvir um entusiasta.
Durante a hora seguinte exploraram o interior do navio, e Duncan agradeceu estar com a roupa protetora. Ainda havia lama e óleo espalhados em volta do convés G, e muitas vezes esbarrou a cabeça contra escapes inesperados e tubos de ventilação. Mas o esforço e o desconforto foram recompensados, pois só desta maneira poderia ter apreciado a inventiva e a genialidade que tinham navegado naquela cidade flutuante. O sentimento mais comovente foi o de ter tocado as pétalas de aço retorcido bem abaixo da parte de estibordo e imaginado as águas geladas invadindo através delas naquela trágica noite.
Estava exausto quando terminou de subir do convés G para o A (um dia os elevadores estarão funcionando, prometeu
o Comandante Innes), e ficou mais do que satisfeito quando sentaram para almoçar no Salão de Fumar da primeira classe. Quando tentou fisgar Calindy para um encontro em condições menos errantes, ela pareceu-lhe curiosamente evasiva. Não é que fosse desagradável, pois parecia estar realmente satisfeita em revê-lo. Mas alguma coisa a preocupava — ela estava mantendo uma certa distância. Era como se tivesse sido avisada de que ele tinha trazido germes perigosos de Titã para a Terra. O máximo que pôde extrair dela foi uma promessa vaga de que o procuraria assim que a temporada tivesse terminado — fosse o que fosse que isto significasse.
A Associação Enigma não o decepcionou, mas a sua vice-presidente o deixou intrigado e triste. Duncan preocupou-se com o problema durante todos os trinta minutos do percurso através do metrô a vácuo em direção a Washington. (Graças a Deus os Hyatts iam ficar em Nova York, pois seria difícil apreciar sua companhia no estado de ânimo em que se encontrava.)
Percebeu que não poderia fazer nada, se ficasse como um apaixonado conquistador perseguindo Calindy. Isto tornaria piores as coisas. Alguns problemas só podem ser resolvidos com o tempo, se de fato podem ser resolvidos.
Teria bastante o que fazer. Esqueceria Calindy. .. com alguma sorte, pelo menos por uma hora de cada vez.
AKHENATON E CLEÓPATRA
Sir Mortimer Keynes sentou-se em sua poltrona em Harley Street e, com interesse clínico, olhou para Duncan Makenzie, do outro lado do Atlântico.
— Então você é o último dos Makenzies e quer ter certeza de que não será o derradeiro.
Esta era uma afirmação e não uma pergunta. Duncan não tentou respondê-la, mas continuou a estudar o homem que, num sentido quase literal, era o seu criador.
Mortimer Keynes já estava quase com oitenta anos e parecia um leão, ainda que um tanto abatido e decrépito. À sua volta havia um ar de autoridade, mas também de resignação e distanciamento. Depois de meio século como o melhor cirurgião genético da Terra, já não esperava que a vida pudesse lhe trazer ainda alguma surpresa. Mas, não tinha perdido de todo o interesse pela comédia humana.
— Diga-me — continuou ele —, por que você veio de tão longe? Por que não me enviou as amostras de biotipo necessárias?
— Tenho negócios aqui — Duncan respondeu. — E também um convite para o Centenário. Era uma oportunidade muito boa para ser perdida.
— Você também poderia ter-me enviado as amostras com antecedência. Agora terá que esperar nove meses, quer dizer: se você tenciona levar seu filho de volta com você.
— Esta viagem foi decidida às pressas, muito inesperadamente. Posso ocupar este tempo. Esta é minha única oportunidade para conhecer a Terra. E daqui a dez anos eu já não poderia enfrentar a gravidade da Terra.
— Por que é tão importante produzir um outro Makenzie cem por cento garantido?
Presumivelmente, Colin deve ter passado por tudo isto com Keynes — mas, é claro, isto foi há trinta anos atrás, e Deus sabe quantas centenas de "clonações” 5 o cirurgião deve ter executado desde aquela época. Não poderia se lembrar. Por outro lado, ele deveria ter dados detalhados e provavelmente os estaria verificando naquele exato momento no painel de mostragem que existia sobre sua mesa.
— Para responder esta pergunta — Duncan falou devagar — teria que contar-lhe a história de Titã nos últimos setenta anos.
— Não creio que isto seja necessário — interrompeu o cirurgião, perscrutando rapidamente com os olhos seu painel de mostragem. — Só que os detalhes variam de época para época, embora seja uma velha história. Você já ouviu falar de Akhenaton?
— Quem?
— Cleópatra?
— Ah, sim. Era uma rainha egípcia, não era?
— Rainha do Egito, mas não egípcia. Amante de Antônio e de César. A última e a mais importante dos Ptolomeus.
O que será que isto tudo tem a ver comigo?, pensava Duncan. Não era pela primeira vez nem pela última que se sentia completamente estarrecido com a história da Terra. Colin, com seu grande interesse pelo passado, provavelmente já estaria sabendo o que Keynes estava querendo dizer, mas Duncan estava completamente perdido.
— Estou me referindo ao problema da sucessão. Como você pode se assegurar de que sua dinastia continua após sua morte, nas diretrizes que quer? Não há maneira de garantir
isto, é claro, mas você pode aumentar as possibilidades se deixar uma cópia carbono de você.. .
— Os faraós do Egito fizeram uma tentativa heróica para conseguir este intento — o melhor que poderiam fazer sem a ajuda da ciência moderna. Porque se julgavam deuses, não podiam casar-se com mortais, de modo que casavam irmãos. Os resultados, às vezes, eram que acabavam criando gênios, mas também deformações — no caso de Akhenaton, ambos. Contudo, continuaram esta tradição por mais de mil anos até que terminaram com Cleópatra.
— Se os faraós pudessem usar "clonações", com toda a certeza o teriam feito. Teria sido o melhor caminho, evitando os problemas de descendência interfamiliar. Mas a "clonação" introduz outros problemas, pois como os genes não são mais misturados com outros, o calendário da evolução é interrompido. Significa o final de todo o progresso biológico.
O que será que está querendo me dizer?, perguntou Duncan a si mesmo, já com impaciência. A entrevista não estava se encaminhando como ele queria. Tinha lhe parecido simples combinar tudo assim como o fizeram Colin e Malcolm, três e sete décadas atrás respectivamente. Agora, parecia que o homem que tinha feito o maior número de "clonações" na Terra estava tentando convencê-lo a desistir. Sentiu-se confuso, desorientado e também um pouco irritado.
— Não faço objeções — continuou o cirurgião — à "clonação" quando esta é combinada com reparos genéticos... o que não é possível no seu caso, como deve certamente saber. Quando você foi "clonado" de Colin, era apenas uma tentativa de continuar a dinastia. Não havia preocupação com cura... somente com a política e a vaidade pessoal. Oh, tenho certeza de que seus precursores estavam convencidos de que era tudo para o bem de Titã, e podem até ter estado absolutamente certos. Mas creio que desisti de ser deus. Perdoe-me, Sr. Makenzie. Bem, agora, se me dá licença. . . espero que tenha uma boa estada. Adeus.
Duncan foi abandonado, olhando para a tela em branco. Não teve nem tempo de responder à despedida — ainda menos para dar os cumprimentos de Colin, como era sua intenção, àquele homem que os tinha criado a ambos.
Estava surpreso, desapontado — e ferido. Com toda a certeza poderia fazer outras tentativas, mas nunca lhe tinha ocorrido ir a outra parte a não ser ao seu ponto de origem. Sentia-se como um filho que tivesse acabado de ser repudiado por seu próprio pai.
Havia algum mistério nisto tudo: de repente, como numa súbita descoberta, Duncan pensou ter adivinhado a solução. Sir Mortimer tinha se "clonado" a si mesmo com resultados negativos.
A teoria era ingênua, e não desprovida de uma certa verdade poética. Apenas não era correta.
REUNIÕES SOCIAIS
Era muito bom para Duncan que agora estivesse se tornando menos vulnerável a demonstrações intencionais de cultura. Ficava certamente impressionado — mas não estarrecido. Se tivesse um complexo de inferioridade provinciana muito forte, certamente este teria estragado o seu prazer nesta recepção.
Já havia estado em outras festas desde a sua chegada, mas esta era, sem fazer concessões, a melhor delas todas. Tinha sido subvencionada pela Sociedade Nacional de Geografia — não, esta seria amanhã —, pela Fundação do Congresso, seja o que for que isto quisesse dizer. Havia, no mínimo, uns mil convidados circulando através dos salões de mármore.
— Se o telhado caísse agora, ouviu alguém dizer, a Terra ia ficar correndo de um lado para outro como uma galinha sem cabeça.
Não havia razão para temer tal desastre. A Galeria Nacional de Arte tinha permanecido de pé por mais de quatrocentos anos. Muitos de seus tesouros — é claro — eram muito mais antigos. Ninguém poderia dar preço para as pinturas e esculturas expostas em seus salões. A Ginevra de Benci, de Da Vinci, o Davi, de Miguel Ângelo, miraculosamente reconstituído, o Willie Maughan, de Picasso, A Primavera Marciana, de Levinski — eram meramente as mais famosas das inúmeras maravilhas que tinham reunido através dos séculos. Duncan sabia que poderia estudar todos eles em detalhe através de hologramas — mas não era a mesma coisa. Embora as cópias pudessem ser tecnicamente perfeitas, estes eram os originais, para sempre únicos. Os fantasmas dos artistas mortos há tantos anos ainda pairavam no ar. Quando voltasse a Titã, poderia vangloriar-se para seus amigos: "Estive a apenas um metro de distância de um Da Vinci autêntico".
Também divertia muito a Duncan a idéia de poder passear no meio de tanta gente — sem ser reconhecido. Duvidava que houvesse ali dez pessoas que o reconhecessem à primeira vista. Ele era, de acordo com George Washington, uma das celebridades da Terra ainda desconhecidas. Excetuando acontecimentos imprevistos, sua posição permaneceria a mesma, até que se dirigisse ao mundo no Dia 4 de Julho. E talvez mesmo depois desta data.
Contudo, sua identidade poderia ser facilmente descoberta, exceto pelos indivíduos com vista deficiente. Ele estava usando uma fita que trazia os seguintes dizeres, em letras bem proeminentes: Duncan Mackenzie, Titã. Pensou que seria indelicado fazer exigências quanto à maneira de escrever seu nome; como Malcolm, já tinha desistido deste problema há muito tempo, e escreveu seu nome com "C" mesmo.
Em Titã, estas fitas teriam sido completamente desnecessárias; aqui, eram essenciais. O avanço da microeletrônica tinha relegado à história dois problemas que até o final do século vinte eram virtualmente insolúveis: numa festa muito grande, como encontrar quem está lá — e como localizar a pessoa? Quando Duncan se apresentou na recepção, defrontou-se com um quadro enorme que trazia centenas de nomes. Aquilo imediatamente estabelecia a lista de convidados, ou, para ser mais preciso, a lista dos convidados que desejavam fazer notar suas% presenças. Passou vários minutos estudando o quadro, e escolheu uma meia dúzia de alvos possíveis. George, é claro, estava lá; também estava o Embaixador Farrel. Não havia necessidade de caçá-los, pois sempre estava com eles.
Contra cada nome havia um botão e uma pequena lâmpada. Quando o botão era tocado, a fita do convidado emitia um som baixo, apenas suficiente para que ele próprio o escutasse, e sua luz começava a piscar. Aí, ele tinha duas alternativas: poderia desculpar-se com o grupo com que estava, e começar a dirigir-se para uma área central destinada aos encontros; quando atingisse o lugar — o que poderia levar-lhe de um minuto até meia hora depois do sinal, dependendo do número de encontros em andamento —, a pessoa que o estava chamando poderia estar lá, ou poderia ter-se entediado e ido embora.
A outra alternativa era apertar o botão da própria fita, o que interromperia o sinal. A luz do painel neste caso brilharia estavelmente, informando ao mundo que o convidado não desejava ser incomodado. Somente o interessado mais persistente ou mal-educado poderia ignorar este indício.
Embora algumas anfitriãs considerassem este sistema friamente mecânico e se recusassem a usá-lo, ele era deliberadamente imperfeito. Qualquer pessoa que desejasse poderia recusar sua fita e, desta forma, daria a perceber que não desejava disfarçar nada. Para acrescentar a esta decepção, havia um amplo suprimento de falsas fitas, e o protocolo que as acompanhava era bem compreendido. Se encontrasse um rosto familiar acima de um João da Silva inócuo ou de uma Maria Pereira, você não continuaria a investigação. Mas, um Jesus Cristo ou um Júlio César eram jogo aceito.
Duncan não tinha necessidade do anonimato, e ficaria contente de encontrar qualquer pessoa que desejasse conhecê-lo. Deixou então sua fita operando enquanto percorria o suculento bufê, e depois bateu em retirada para uma das mesas menores. Embora seu funcionamento fosse agora melhor do que esperava na gravidade da Terra, sempre se aproveitava de qualquer situação que lhe permitisse sentar. E esta era uma necessidade essencial até para os terrenos, exceto para aqueles que eram suficientemente habilidosos para manipular três pratos e um copo com duas mãos.
Tinha sido um dos primeiros a chegar — esta era uma loucura que nunca conseguiu curar durante toda sua estada na Terra —, e quando tinha acabado de beliscar aqueles quitutes desconhecidos, o vestíbulo já estava confortavelmente cheio. Resolveu, então, começar a circular entre os outros convidados, pois assim poderia ser identificado pelo que na verdade era — um estrangeiro solitário e perdido.
Ele não ouvia deliberadamente, mas os Makenzies tinham ouvidos excepcionais, e os terrenos — pelo menos estes que iam a festas — pareciam ansiosos por espalhar informações o mais largamente possível. Como um elétron livre que vaga por
um semicondutor, Duncan movia-se de um grupo para outro, ocasionalmente trocando alguns cumprimentos, mas nunca ficando envolvido por mais de alguns minutos. Estava bem contente de ser um observador passivo, e noventa por cento das conversas que ouviu eram para ele sem sentido ou tediosas. Mas, nem todas. . .
— Detesto festas como estas; você também?
— Dizem que é o único conjunto de mobília inflável antiga do mundo. É claro que não te deixam sentar nela.
— Comprando por um e cinqüenta e vendendo por um e oitenta. Você pode acreditar que homens adultos já tenham passado vidas inteiras fazendo este tipo de coisa?
— A ambição de Bill é ser assassinado com duzentos anos de idade por uma mulher ciumenta.
— Como é que está indo a Revolução? Se você precisar de mais dinheiro do Comitê de Vias e Meios me avise.
— A comida devia vir em pílulas do jeito que Deus queria. — Há alguém na sala com quem ela ainda não tenha dormido?
— Bem, talvez aquela estátua de Zeus.
— Estou levantando uma petição para salvar as partes selvagens da Lua.
— Pensei que fosse do Cinturão Van Allen.
— Isto foi no ano passado.
Naquela altura a fita de Duncan começou a buzinar suavemente. Por um momento foi tomado de surpresa, já tinha se esquecido de que fazia parte de um sistema de acompanhamento. Olhou em volta à procura do ponto de encontro, que nem tinha se preocupado em visitar. Eventualmente, percebeu uma discreta bandeirinha trazendo o aviso do local. É desnecessário dizer que ficava do outro lado do salão e que ele levou alguns minutos para atravessar a multidão.
Uma meia dúzia de pessoas completamente estranhas estava esperando embaixo da bandeira; perscrutou suas caras em vão, procurando algum sinal de reconhecimento. Mas, quando chegou próximo o suficiente para ler nomes, uma das pessoas do grupo aproximou-se dele estendendo as mãos.
— Sr. Makenzie, que bom o senhor ter vindo. Tomarei apenas alguns minutos do seu tempo.
Através de experiências amargas, Duncan tinha aprendido que esta expressão era uma das mais imprecisas da Terra. Olhou cautelosamente para seu interlocutor, tentando avaliá-lo e adivinhar o seu campo de atividade. O que viu foi bastante tranqüilizador: um homem pequeno, de cavanhaque, muito bem arrumado, usando a roupa indo-chinesa tradicional, o shervani, abotoada até o pescoço. Ele não lhe parecia um sujeito desagradável ou fanático, mas eles raramente o eram.
— Esteja à vontade Sr... err... Mandel’stahm. O que posso fazer para atendê-lo?
— Eu tinha a intenção de entrar em contato com o senhor... foi pura sorte ver o seu nome na lista. Sabia que só poderia haver um Makenzie. O D. significa o quê? Donald, Douglas, David?
— Duncan.
— Ah, sim. Vamos nos sentar naquela poltrona... será mais tranqüilo... depois, adoro este quadro de Winslow Homer, O Fair Wind, mesmo que a técnica seja tão primitiva... você quase pode sentir o cheiro do peixe deslizando em torno do barco... veja, mas que coincidência, tem exatamente quatrocentos anos! Você não acha que as coincidências são fascinantes? Tenho colecionado coincidências toda a minha vida.
— Nunca pensei nisto — replicou Duncan, já se sentindo um pouco sem ar. Tinha medo de ficar ouvindo muito tempo o Sr. Mandel’stahm e também começar a falar aos arrancos. O que desejava este homem? Haveria alguma maneira de descobrir as intenções de uma pessoa cujo fluxo de conversa parecesse disparado por impulsos ao acaso?
Felizmente, logo que se sentaram, o Sr. Mandel'stahm ficou bem mais coerente. Deu uma olhada conspiradora para verificar se havia alguém ouvindo, além dos meninos pescadores de Winslow Homer, e reassumiu a conversa num tom de voz completamente diferente.
— Prometi que levaria apenas alguns minutos. Aqui está o meu cartão. Você pode usá-lo para chamar o meu número. Sim, eu me denomino um negociante de antiguidades, mas isto encobre uma multidão de pecados. Meu interesse maior é por pedras preciosas. Possuo uma das maiores coleções particulares do mundo. De modo que você deve ter percebido por que estava ansioso por conhecê-lo.
— Continue.
— Titanita, Sr. Makenzie. Não há mais do que uma dúzia de fragmentos dela na Terra. .. cinco destes nos museus. Mesmo o Museu Smithsonian não possui um espécime e o seu Encarregado de Pedras Preciosas — aquele senhor alto que está ali — está muito infeliz. O senhor está ciente de que a titanita é um dos únicos materiais que não podem ser imitados?
— É o que penso — disse Duncan, agora muito cauteloso. O Sr. Mandel’stahm estava certamente mostrando os seus 1 interesses, mas não as suas intenções.
— O senhor então entenderia que, se aparecesse na minha frente um homem com jeito de duende, chifrudo, dentro de uma nuvem de fumaça, com um contrato de troca de alguns gramas de titanita pela minha assinatura feita com meu sangue,» eu nem me preocuparia em ler as palavrinhas impressas em tipo menor.
Duncan não sabia bem o significado da palavra chifrudo, mas pegou o sentido geral rapidamente e fez um sinal de aquiescência, sem compromisso.
— Bem, algo parecido com isto está acontecendo, nestes últimos três meses. . . não tão dramaticamente, é claro. Fui procurado por um negociante, com grande sigilo, que diz ter titanita para vender, totalizando uns dez gramas. O que diria o senhor a respeito disso?
— Eu ficaria extremamente desconfiado. Poderiam ser falsificações.
— Não se pode falsificar titanita.
— Bem, nem sintética?
— Também pensaria nisto... é uma idéia interessante, mas isto significaria muito trabalho e investigação científica em algum lugar que tornaria impossível o sigilo. Certamente não seria um trabalho simples como a manufatura de diamantes, por exemplo. Ninguém tem a menor idéia de como a titanita é produzida. Há pelo menos umas quatro teorias provando que não pode ser exeqüível.
— O senhor já viu titanita?
— Claro, o fragmento no Museu de História Natural de Nova York e o raro espécime exposto no Museu Geológico de South Kensigton.
Duncan refreou-se de acrescentar que ainda havia um espécime mais raro no Hotel Centennial, a menos de dez quilômetros dali. Até que este mistério fosse resolvido, e ele conhecesse mais a respeito do Sr. Mandel'stahm, esta informação deveria ser guardada para si mesmo. Não acreditava na possibilidade de visitantes com intuito de roubo, mas era bobagem correr riscos desnecessários.
— Não vejo como posso ajudá-lo. Se o senhor está certo de que a titanita é verdadeira, e de que não foi adquirida ilegalmente, qual o problema?
— Simplesmente este. Nem tudo que é raro é valioso. . . mas tudo que é valioso é raro. Se alguém descobrisse alguns quilos de titanita, seria apenas como qualquer outra pedra preciosa como a opala, a safira ou o rubi. Naturalmente, não quero fazer um grande investimento se houver perigo de que o preço baixe repentinamente.
Ele percebeu a expressão intrigada de Duncan e acrescentou rapidamente:
— É claro que agora a intenção de lucro está fora de questão; faço-o apenas por divertimento. Estou mais preocupado com a minha reputação.
— Compreendo. Mas, se tivesse havido uma descoberta semelhante, estou certo de que teria sabido dela. Teria sido comunicado ao meu Governo.
As sobrancelhas do Sr. Mandel'stahm ganharam perceptível altura.
— Talvez sim, talvez não. Especialmente se essa descoberta tivesse sido feita fora do planeta. Refiro-me, é claro, às teorias que sugerem que não é exclusiva a Titã.
O senhor está realmente bem informado — pensou Duncan —; de fato sabe mais sobre titanita do que eu. . .
— O senhor se refere à teoria de que pode haver depósitos mais ricos em outras luas?
— Sim. Na verdade foram encontrados traços em Iapetus.
— Isto é novidade para mim, mas não teria conhecimento disto a não ser que tivesse sido um achado de grande vulto. O que presumo é o que o senhor suspeita.
— Entre outras coisas.
Por alguns segundos Duncan processou esta informação em silêncio. Se fosse verdadeira — e não conseguia pensar em nenhum motivo para que o negociante estivesse mentindo —, era seu dever, como representante do Governo de Titã, tentar investigar sobre o assunto. Mas a última coisa que desejava agora era um trabalho extra, especialmente se lhe parecesse que podia levar a confusões. Se algum operador esperto estava contrabandeando titanita, Duncan teria preferido permanecer em tranqüila ignorância. Tinha coisas mais importantes a fazer.
Talvez Mandel’stahm tivesse entendido o motivo de sua hesitação, porque acrescentou delicadamente:
— A quantia envolvida pode ser muito grande. Não estou interessado neste aspecto, é claro, mas a maioria dos Governos fica bastante agradecida às pessoas que descobrem qualquer % perda de valores. Se eu puder ajudar o senhor a obter esta gratidão de seu Governo, ficarei muito feliz.
Compreendo-o perfeitamente — disse Duncan para si mesmo —, e isto torna a proposta muito mais atraente. Ele não conhecia a lei de Titã sobre estes assuntos, e, mesmo se havia recompensa, seria muito pouco tático, para um Assistente Especial do Administrador-Chefe, reclamá-la. Mas sua tarefa poderia ser bem mais favorecida se — como o esperava sem muito ânimo — fosse compelido a conseguir mais solares da Terra, antes do final de sua estada.
— Eu vou dizer-lhe o que farei — disse para Mandel'stahm. — Amanhã mandarei uma mensagem a Titã para iniciarem investigações a este respeito. Muito discretamente, é claro. Se souber de alguma coisa, mando avisar ao senhor. Mas não espere demasiado...ou melhor... não espere nada. Mandel'stahm parecia bastante satisfeito com este compromisso, e partiu com protestos de gratidão um pouco exagerados. Duncan decidiu que já passava da hora de deixar aquela festa — já estava de pé há mais de duas horas, e todas as suas vértebras estavam agora começando a protestar em conjunto. Quando se encaminhava para a saída, deu uma olhada para achar George Washington e o encontrou — apesar de sua pequena estatura —, sem cair de novo no sistema de acompanhamento luminoso.
— Tudo correndo bem? — perguntou George.
— Sim, me diverti muito. E encontrei um sujeito muito curioso, que se diz conhecedor de pedras preciosas.
— Évora Mandel'stahm. O que é que aquela velha raposa queria de você?
— Oh, apenas informação. Fui delicado, mas não muito útil. Posso levá-lo a sério? Pode ser dado crédito a ele?
— Ivor é simplesmente o maior conhecedor de gemas raras do mundo. E neste negócio não se pode ter sobre ele nem ao menos uma leve suspeita. Pode confiar inteiramente nele.
— Obrigado, era só o que desejava saber.
Meia hora depois, Duncan voltou ao hotel, abriu sua maleta e depositou sobre a mesa o conjunto de pentominos que sua avó Ellen lhe tinha oferecido. Ainda não havia tocado neles desde sua chegada à Terra. Cuidadosamente, levantou a cruz de titanita e observou-a contra a luz.
A primeira vez que tinha visto a pedra foi na casa da avó Ellen e podia lembrar-se da data com muita precisão. Calindy estava com ele, logo ele deveria ter uns dezesseis anos de idade. Não podia se lembrar de como aquela visita tinha sido combinada. Como a avó não gostava de estranhos (e mesmo de parentes), aquela visita deve ter sido um grande feito diplomático. Ele se recordava de que Calindy estava querendo muito conhecer a famosa velhinha, e tinha querido trazer amigos junto com ela. Isto, porém, foi-lhe firmemente vetado.
Tinha sido um daqueles dias em que o sistema de coordenação de Ellen Makenzie estava em sintonia com o mundo exterior, de modo que tratou Calindy como se ela realmente estivesse presente. Sem duvidar do fato de que quando ela tinha alguma novidade para exibir ficava muito mais comunicativa.
Este não era o primeiro espécime de titanita que tinha sido descoberto, mas o segundo ou terceiro — e o maior até aquela data, com uma massa de cerca de quinze gramas. Tinha a forma irregular e Duncan percebeu que a cruz que estava agora segurando devia ter sido recortada daquele pedaço. Naqueles tempos ninguém pensava na titanita como objeto de grande valor, era apenas uma curiosidade.
A avó poliu um pedaço de alguns milímetros e o espécime foi apoiado no estágio de um microscópio binocular, com um raio de luz pseudobranca de um laser tricromático projetado sobre ele. A maior parte da iluminação da sala tinha sido desligada. Mas focos refletidos e refratados, muitos deles completamente dispersos em suas três cores componentes, brilhavam firmemente nos lugares mais inesperados do teto e das paredes. A sala parecia uma cela de mágico ou de alquimista, e de certo modo na verdade o era. Naqueles tempos Ellen Makenzie seria provavelmente vista como uma feiticeira.
Calindy olhou pelo microscópio por muito tempo, enquanto Duncan esperava mais ou menos paciente. Depois, com um suspiro de "É lindo, nunca vi algo parecido", relutantemente se afastou do aparelho.
Um corredor hexagonal de luz, levando ao infinito, contornava milhões de pontos luminosos num arranjo perfeitamente geométrico. Mudando o foco, Duncan podia encurtar aquele corredor, mas jamais chegava ao final. Como era inacreditável que um universo como aquele estivesse preso dentro de um pedaço de rocha de um milímetro de grossura!
À menor mudança de posição, o hexágono brilhante se esvaía; isto dependia inteiramente do ângulo de iluminação, tanto quanto da orientação do cristal. Quando se perdia o ponto, mesmo a avó experimentada levava alguns minutos para encontrá-lo novamente.
— Único — disse ela alegremente. (Duncan nunca a tinha visto tão contente.) — E não tenho nenhuma explicação, meramente uma dúzia de teorias. Não estou nem mesmo certa de que o que estamos vendo é uma estrutura real ou uma espécie de padrão de moiré em três dimensões, se isto é possível.
Isto havia acontecido há quinze anos — e naquela época milhares de teorias tinham sido construídas e demolidas. Mas já era genérica a opinião de que a titanita e sua estrutura perfeitamente organizada deveria ser produzida por uma combinação de temperaturas extremamente baixas e em total ausência de gravidade. Se esta teoria estava correta, não poderia ter-se originado em nenhum planeta que estivesse mais próximo do Sol do que a órbita de Netuno. Alguns cientistas até construíram teorias sobre "cristalografia interestelar", apoiadas nesta afirmação.
Foram feitas sugestões ainda mais atrevidas. Algo tão estranho como a titanita naturalmente atraiu os impulsos especulativos de Karl.
— Eu não acredito que seja natural — dissera uma vez para Duncan. — Um material como este não poderia acontecer. £ um artefato de uma civilização superior — como — oh, uma de suas memórias de cristal.
Duncan tinha ficado impressionado, era uma daquelas teorias suficientemente loucas para serem verdadeiras e, a cada par de anos, alguém a redescobria. Mas como o debate continuava de modo não conclusivo, o público rapidamente se desinteressou. Somente os geólogos e os gemologistas ainda encontravam na titanita uma fonte de fascínio interminável — como Mandel'stahm tinha agora demonstrado.
Os Makenzies sempre cumpriam suas promessas, mesmo que se referissem aos assuntos mais insignificantes. Duncan tencionava enviar uma mensagem para Colin logo de manhã. Não havia pressa, e esperava que esta seria a última vez que tocaria no assunto.
Muito cuidadosamente, colocou a cruz de titanita em seu lugar entre o F, N, U e o V dos pentominos. Um dia, ele ia realmente fazer um esquema da configuração. Se aquelas peças um dia saíssem de seus lugares teria que levar horas para recolocá-las de novo na caixa.
OS RIVAIS
Depois do encontro com Mortimer Keynes, Duncan ficou corroendo suas feridas por vários dias. Não sentiu vontade de discutir a questão com seus habituais confidentes, George Washington e o Embaixador Farrel. E embora soubesse que Calindy deveria ter todas as respostas — ou poderia encontrá-las rapidamente —, também hesitou em chamá-la. Era o instinto prevalecendo sobre a lógica que lhe dizia que talvez não fosse uma boa idéia. Quando se encarou mais profundamente, Duncan teve que admitir, com pesar, que embora desejasse* Calindy com toda a certeza e talvez até a amasse, não confiava nela.
A seção "Classificada" do comsole não tinha muita utilidade. Quando ele quis informação a respeito de serviços de "Clonação", conseguiu muitas dúzias de nomes, nenhum deles, significando coisa alguma para ele. Não se surpreendeu ao verificar que a lista não incluía mais o nome de Keynes; quando verificou o endereço pessoal do cirurgião, estava escrito: "Aposentado". Ele poderia ter-se resguardado daquela situação embaraçosa, mas quem poderia adivinhar?
Como muitos desses problemas, este se resolveu inesperadamente. Estava gemendo sob as massagens de Bernie Patras quando, de repente, se deu conta de que a pessoa que poderia ajudá-lo estava bem ali pulverizando-o com sua habilidade impiedosa.
Se um homem tem ou não segredos para o seu camareiro, certamente não os tem para o seu massagista. Com Bernie, Duncan tinha estabelecido uma relação alegre e brincalhona,
sem com isso privar-se da séria consciência profissional de sua terapia — graças à qual ele estava não somente móvel, mas, também, ganhando cada vez mais força.
Bernie era um alcoviteiro inveterado, cheio de anedotas escandalosas, mas Duncan tinha notado que ele nunca revelava os nomes e era muito cuidadoso em não deixar escapar as fontes de suas informações como qualquer repórter mediano. Apesar de toda sua tagarelice, podia ser confiável. Também tinha todo o acesso que desejasse no meio médico. Era o homem perfeito para o papel.
— Bernie, existe uma coisa que quero que você faça para mim.
— Claro. Diga-me apenas se quer meninas ou rapazes, o tamanho exato. Eu me encarregarei dos detalhes.
— Isto é sério. Você sabe que sou um "clonado", não sabe?
— Sim.
Duncan já o tinha previsto. Aquele não era um dos segredos mais bem guardados do Sistema Solar.
— Ai... Você já ouviu falar no Dr. Mortimer Keynes?
— O cirurgião genético? Claro.
— Pois bem. Ele foi o homem que me "clonou". Bem, outro dia o procurei, só para dizer — err — como vai, e ele se comportou de uma forma muito estranha. Na verdade, foi quase rude.
— Você não o chamou de doutor? Os cirurgiões detestam este tratamento.
— Não, pelo menos não me lembro disto. Não foi nada ao nível pessoal. Ele apenas tentou me dizer que a "clonação" era uma má idéia e que era contra ela. Pensei até em pedir desculpas por estar existindo.
— Posso entender seus sentimentos. O que quer que eu faça? Meu preço para assassinato é bem alto, mas posso facilitar o pagamento.
— Antes que eu chegue tão longe, você poderia fazer algumas perguntas aos seus amigos médicos. Eu gostaria muito de descobrir por que Sir Mortimer Keynes mudou de idéia. . . quer dizer, se alguém sabe qual a razão.
— Eu descobrirei isto, não se preocupe... mesmo que me tome alguns dias.
Bernie estava obviamente encantado com aquele desafio. E também foi indevidamente pessimista em seus cálculos, pois chamou Duncan logo na manhã seguinte.
— Não há problema — disse triunfante. — Todo mundo sabe desta história. Eu mesmo deveria ter-me lembrado dela. Está prestando atenção? Prepare-se para enfrentar uns kilobits do World Times...
A tragicomédia andou reverberando nos serviços de noticiários da Terra por muitos meses, há mais de quinze anos, e de vez em quando ainda se escutavam alguns ecos. Era uma velha história — tão velha como a história da humanidade, de uma forma ou de outra. Duncan leu apenas alguns parágrafos antes que pudesse imaginar todo o resto.
Tinha o brilhante cirurgião um brilhante assistente, mais jovem do que ele e que, no curso natural dos acontecimentos, deveria ter sido o seu sucessor. Haviam vivido juntos os triunfos e as derrotas do trabalho que faziam, e estavam tão proximamente ligados que o mundo, muitas vezes, os considerava uma só pessoa.
Depois brigaram por causa de uma nova técnica desenvolvida pelo jovem. Não era preciso se esperar mais pelos imemoráveis nove meses entre a concepção e o nascimento, agora que todo o processo estava sob controle. Se certas precauções fossem tomadas para resguardar a saúde da mãe substituta que iria carregar o ovo fertilizado, não havia razões para que a gravidez durasse mais do que dois ou três meses.
É desnecessário dizer que esta afirmação atraiu a atenção geral. Havia até conversas sobre "clonação" instantânea. Mor-timer Keynes não disputou as teorias de seu colega, mas deplorou qualquer tentativa de colocá-las em prática. Com um conservadorismo que muitos achavam estranhamente inapropriado, ele sustentou que a Natureza havia escolhido um tempo de nove meses por muito boas razões, e que a raça humana deveria respeitá-la.
Considerando a violência que a "clonação" já representava para o processo normal de reprodução, esta atitude parecia ser muito estranha, como muitos críticos logo se apressaram a argumentar. Isto apenas fez com que Sir Mortimer ficasse ainda mais intransigente, e lendo nas entrelinhas Duncan pôde perceber claramente que as objeções expressadas pelo cirurgião não eram as verdadeiras. Por algum motivo desconhecido, e provavelmente impossível de vir a ser conhecido, o cirurgião tinha vivido uma crise de consciência. O que estava agora objetando não era apenas o encurtamento do prazo de gravidez, mas a própria "clonação".
O homem mais jovem, é evidente, discordava inteiramente. O debate tornou-se cada vez mais amargo — e também cada vez mais público — e foi inflamado por aqueles que gostam de ver o circo pegar fogo. Depois de uma tentativa mal sucedida de reconciliação, a dupla se separou e os dois homens jamais se falaram novamente. Um dos maiores problemas nos congressos era garantir que os dois não estivessem presentes nas mesmas reuniões.
Isto foi o fim da ativa carreira de Sir Mortimer. A famosa clínica fechou, embora ainda mantivesse seu consultório da Harley Street e até desse algumas consultas. Seu ex-sócio, que tinha uma grande habilidade para conseguir empréstimos, públicos ou particulares, prontamente estabeleceu-se num outro lugar e continuou seus experimentos.
À medida que continuava lendo, Duncan, com curiosidade e entusiasmo, ia percebendo que aquele era o homem de que precisava. Se aceitaria ou não a técnica de "clonação" a grande velocidade, isto ele decidiria mais tarde. Era interessante saber que a opção existia e, se desejasse, poderia retornar a Titã meses antes do que estava programado.
E agora partiria então para localizar o ex-colega e sucessor de Sir Mortimer. Por sorte a procura não tinha que se apoiar apenas num nome, porque este era um dos que tinha visto por algumas vezes no Catálogo de Endereços do Mundo. Agora teria apenas que procurar na Lista Classificada.
E aí, numa pequena ilha ao largo da costa este da África, Duncan descobriu El Hadj Yehudi ben Mohammed.
Estava iniciando os preparativos para voar a Zanzibar quando uma pequena bomba chegou de Titã. Trazia o número de identificação de Colin, mas não conseguiu entendê-la até perceber que estava não só cifrada como também em código Makenzie. Mesmo depois de duas passagens pelo Minisec, ainda era, de algum modo, bastante criptográfica.
PRIORIDADE AAA SEGURANÇA AAA
NENHUM REGISTRO CARREGAMENTO TITANITA NO MINISTÉRIO RECURSO ÜLTIMOS DOIS ANOS POSSÍVEL INFRAÇÃO LEIS FINANCEIRAS SE VENDAS PARTICULARES POR SOLARES CAMBIÁVEIS NÃO APROVADAS PELO BANCO DE TITÃ. RUMOR PERSISTENTE GRANDE DESCOBERTA EM LUA EXTERIOR PEDINDO A HELMER INVESTIGAÇÃO RELATÓRIO EM BREVE. COLIN.
Duncan leu a mensagem várias vezes sem reação imediata. Então, de repente, os pedacinhos do quebra-cabeças começaram a se configurar e surgiu um novo padrão, que não agradou a Duncan de modo nenhum.
Naturalmente Colin ter-se-ia dirigido a Armand Helmer, Controlador dos Recursos. A exportação de minerais ficava sob sua jurisdição. Além disto, Armand era um geólogo — de fato ele já tinha feito uma descoberta de titanita, da qual se orgulhava extremamente.
Seria concebível que o próprio Armand estivesse envolvido? O pensamento atravessou a mente de Duncan rapidamente, mas ele o desconsiderou na mesma hora. Conhecia Armand por toda a vida, e apesar de suas muitas divergências políticas e pessoais, por nenhum momento acreditaria que o Controlador se envolveria em atividades ilegais — especialmente numa que envolvia seu próprio departamento. E por que razão? Somente para acumular alguns solares num banco terrestre? Armand estava agora muito velho e muito condicionado à gravidade para poder retornar à Terra, e não era o tipo de homem que burlaria a lei pela trivialidade de poder importar artigos de luxo da Terra. Especialmente porque estas malandragens eram sempre descobertas mais cedo ou mais tarde. Os contrabandistas jamais resistiam a exibir seus tesouros. E isto só provocaria uma nova aquisição do Museu de Titã, enquanto que o criminoso seria banido de todos os melhores lugares por pelo menos um mês.
Não, Armand poderia ser excluído. Mas, e seu filho? Quanto mais Duncan considerava esta possibilidade, mais possível ela lhe parecia. Ele não tinha nenhuma prova, somente uma série de fatos, todos indicando numa só direção.
Era de se considerar que Karl sempre fora audacioso e aventureiro, desejoso de se arriscar por tudo que acreditasse valer a pena. Quando garoto sempre se deliciava em contornar os regulamentos — excetuando aquelas leis básicas de segurança, que nenhum habitante de Titã jamais desafiaria.
Se a titanita tivesse sido descoberta em um dos outros satélites, Karl estaria numa excelente posição para se aproveitar deste fato. Nos últimos três anos havia participado de várias expedições Titã-Terra a outros satélites. Pelo conhecimento de Duncan, era um dos poucos homens que tinham estado em Enceladus, Tethys, Dione, Rhea, Hiperison, Iapetus, Febos, Cronos, Prometeus. E agora estava no remoto Mnemosine.
Agora Duncan já podia visualizar um cenário bem plausível. Karl poderia até ter feito a descoberta sozinho. Certamente teria visto todos os espécimes sendo embarcados na nave de pesquisa, e o seu conhecido encanto pessoal teria feito o resto. Na verdade o real descobridor talvez jamais soubesse o que tinha descoberto. Poucas pessoas já tinham visto titanita em bruto, e era fácil identificá-la antes de ser polida. Logo, teria sido simples o envio de uma pequena quantidade para a Terra, talvez até dentro de uma das naves de reabastecimento, que nem chegavam a Titã. (Qual seria então a situação legal, neste caso? Esta poderia ser bem cheia de truques. Titã tinha poder de jurisdição sobre outros satélites permanentes, mas seu poder sobre os obviamente temporários ainda estava em disputa. Talvez possivelmente nenhuma lei tivesse sido ainda transgredida. . .)
Mas isto eram apenas conjeturas. Ele não possuía nem ao menos a menor prova. Por que teria ele pensado em Karl, neste contexto?
Releu a mensagem ainda brilhando no monitor do com-sole: GRANDE DESCOBERTA EM LUA EXTERIOR PEDINDO A HELMER. . . Era isto que tinha provocado a sua linha de pensamento. Culpa por associação, talvez. A justaposição poderia ser pura coincidência. Mas os Makenzies podiam ler as mentes uns dos outros, e Duncan sabia que a arrumação da frase tinha sido deliberada. Não havia nenhuma necessidade de Colin ter mencionado Helmer. Estava lhe enviando um sinal de aviso.
Era ridículo empilhar conjetura sobre conjetura, mas Duncan não pôde resistir ao próximo passo: na eventualidade de Karl estar envolvido, por quê?
Karl poderia correr riscos, poderia envolver-se em penalidades legais mas com boas razões. Se — e esta ainda era uma hipótese muito dúbia — estivesse tentando acumular dinheiro na Terra, deveria ter um objetivo de longo alcance em sua mente. O mais óbvio era o estabelecimento de uma rede de poder — precisamente o que Duncan estava tentando naquele momento.
Karl deveria ter algum agente na Terra. Alguém de sua inteira confiança. Isto não seria difícil. Karl tinha conhecido centenas de terrenos. . .
Meu Deus, isto explica tudo, suspirou Duncan.
Ficou pensando se deveria cancelar sua viagem para Zanzibar. Não, decidiu. Aquilo era prioritário sobre tudo mais, exceto o discurso para o qual tinha viajado tantos quilômetros para fazer. De qualquer maneira, ele não via o que poderia fazer naquele momento ali em Washington, até que recebesse novas notícias de casa.
Ainda estava operando sobre conjeturas, sem nenhum átomo de provas. Mas havia um sentimento de frio mortal em torno de seu coração. De repente, sem nenhuma razão aparente, pensou naquele iceberg solitário, escorregando na corrente oculta na direção de seu irrevogável destino.
A ILHA DO DR. MOHAMMED
O assistente do Dr. Hadj, Dr. Todd, era um daqueles médicos que pareciam — nem sempre com justiça — irradiar uma aura de confiança. Isto apesar de sua juventude e falta de formalidade. Por razões que Duncan jamais pôde descobrir, seus colegas o chamavam de "Sweeney".
Lamento o senhor não poder encontrar o Dr. Hadj desta vez — disse, desculpando-se. — Ele teve que ir correndo para o Havaí para uma operação de emergência.
— Surpreende-me que isto seja necessário nesta época.
— Normalmente não é. Mas o Havaí está exatamente do outro lado do mundo... isto significa que você tem que trabalhar através de dois constas em série. Durante uma telecirurgia este atraso extra pode ser perigoso.
Então, mesmo na Terra, a lentidão das ondas de rádio pode ser um problema. Uma interrupção de meio segundo numa conversação não teria importância, mas entre o olho e a mão do cirurgião poderia ser fatal.
— Até vinte anos atrás — explicou o Dr. Todd — este lugar era um famoso laboratório de biologia marinha. De modo ,que tinha todas as conveniências de que necessitávamos. . . incluindo o isolamento.
— Por que isto é necessário? — perguntou Duncan. Tinha-se questionado a respeito da distância e do isolamento tão inconveniente daquela clínica.
— Há grande quantidade de envolvimento emocional em nosso trabalho e temos que controlar os visitantes. Apesar do transporte aéreo, você pode fazê-lo muito mais facilmente numa ilha do que em qualquer outro lugar. E, acima de tudo, temos que proteger nossas mães. Elas podem não ser muito inteligentes, mas são sensíveis e não gostam de ser observadas.
— Eu ainda não vi uma sequer.
— Você gostaria mesmo de ver?
Esta era uma pergunta difícil de responder, pois Duncan sentia suas emoções o empurrando em direções opostas. Trinta e um anos atrás, ele deveria ter nascido num lugar não muito diferente, embora não tão particularmente bonito. Se se desenvolveu a termo — e naqueles dias ele presumia que todos os "clonados" o faziam —, alguma mulher desconhecida o tinha carregado em seu ventre durante no mínimo oito meses após a implantação. Será que ainda estava viva? Será que existia algum registro de seu nome, ou ela era apenas um número num arquivo de computador? Talvez nem mesmo isso, porque a identidade de uma mãe postiça era de mínima importância biológica. Um útero puramente mecânico poderia também ter servido, mas nunca houve real necessidade de aperfeiçoar um mecanismo de tal complexidade. Num mundo onde a reprodução era estritamente limitada, sempre haveria voluntários, e o único problema era o de selecioná-los.
Duncan não tinha nenhuma lembrança de sua mãe postiça desconhecida ou dos meses que deve ter passado na Terra ainda bebê. Toda a tentativa de penetrar no nevoeiro que permanecia no início de sua infância era um fracasso. Ele não sabia se isto era normal ou se seu passado remoto tinha sido deliberadamente ocultado através de uma amnésia induzida. Ele suspeitava da última hipótese, já que sentia uma relutância definida para investigar o assunto sob qualquer detalhe.
Quando formava o conceito "Mãe" em sua mente, instantaneamente via Sheela, a mulher de Colin. Sua cara era sua mais remota lembrança, seu afeto o seu primeiro amor, mais tarde dividido com a Vovó Ellen. Colin tinha escolhido com cuidado, e tinha aprendido com os erros de Malcolm.
Sheela tinha tratado de Duncan exatamente como tratava os seus filhos, e nunca ele tinha pensado em Yuri e Glynn como nada mais do que seu irmão e sua irmã mais velhos. Não podia se lembrar de quando foi que percebeu que Colin não era o pai deles, e que não tinham nenhuma relação genética com ele.
De qualquer modo isto parecia que nunca havia tido qualquer importância.
Ele agora apreciava a habilidade que tiveram para manter aquela família tão bem ajustada. Aquilo não seria possível numa época mais antiga, onde o casamento era exclusivo e havia possessividade sexual. Mesmo agora, não era uma tarefa fácil. Esperava que ele e Mirissa fossem igualmente bem sucedidos, e que Clyde e Carline aceitassem o pequeno Malcolm como seu irmão, tão entusiasticamente como o fizeram Yuri e Glynn...
— Desculpe-me — disse Duncan —, estava sonhando acordado.
— Não posso incriminá-lo. Este lugar é lindo demais. Muitas vezes tenho que fechar as cortinas quando quero trabalhar.
Isto era fácil de acreditar — embora a beleza não tivesse sido a primeira coisa a chamar a atenção de Duncan quando ele tinha aterrissado. Mesmo agora, o seu sentimento dominante era de espanto misturado com um pouco de medo.
Começando a uns doze metros de distância, e preenchendo o seu campo de visão até a linha azul forte do horizonte, havia ali uma quantidade de água que nunca pudera imaginar. Era verdade que já tinha visto os oceanos da Terra lá do espaço, mas, daquela posição de vantagem olímpica, tinha sido impossível visualizar o seu tamanho real. Mesmo o oceano mais imenso diminuía quando alguém o atravessava em dez minutos.
Este mundo estava mal denominado. Deveria ser chamado de Oceano e não de Terra. Duncan executou uns cálculos mentais rápidos — uma das habilidades em que os Makenzies se sobressaíam, apesar dos computadores onipresentes. Raio seis mil — e seus olhos estavam a cerca de seis metros acima do nível do mar (isto tornava tudo mais simples) — seis raiz de dois, ou aproximadamente oito quilômetros. Somente oito! Era incrível. Poderia ter facilmente acreditado que o horizonte estava a uns cem quilômetros de distância. Sua visão não podia atingir nem ao menos um por cento da distância à outra margem. E o que estava vendo agora era apenas a pele de duas dimensões de um universo estranho, pulsando com estranhas formas de vida que procuravam o que devorar. Para Duncan, aquela extensão de azul plácido escondia um mundo muito mais hostil e mais aterrador do que o Espaço. Mesmo Titã, com seus conhecidos perigos, parecia-lhe benigno nesta comparação.
Contudo, havia crianças na água, brincando e desaparecendo dentro da água por períodos de tempo bem assustadores. Um deles, pensava Duncan, tinha desaparecido por bem mais do que um minuto.
— Aquilo não é perigoso? — perguntou ansioso, apontando para a lagoa.
— Não os deixamos aproximar-se da água até que estejam bem treinados. E se você precisa se afogar. . . este seria o lugar ideal... com os melhores recursos médicos do mundo. Tivemos apenas uma morte permanente nos últimos quinze anos. Neste caso o ressuscitamento teria sido possível. Mas, uma hora debaixo da água faz danos irreversíveis ao cérebro.
— Mas, e os tubarões e outros peixes grandes?
— Nunca sofremos nenhum ataque dentro da rebentação... e fora dela, somente um. Este é um preço bem baixo para ser recebido nesta terra de sonho. Vamos tirar o barco grande amanhã. Por que não vem conosco?
— Vou pensar a esse respeito — respondeu Duncan evasivamente.
— Oh, suponho que nunca tenha estado debaixo da água.
— Nunca estive nem acima dela. . . exceto numa piscina.
— Bem, você não tem nada a perder. Contudo, os testes não ficarão completos antes de quarenta e oito horas. Tenho certeza de que poderemos "clonar" com sucesso dos genótipos que você nos forneceu. De modo que a sua imortalidade já está assegurada.
— Muito obrigado — disse Duncan muito secamente. — Isto faz uma grande diferença.
Estas crianças estavam obviamente se divertindo e a sua segurança era uma ofensa para sua masculinidade. O orgulho dos Makenzies estava em jogo. Olhava tristemente para aquela massa de água, e concluiu que precisava fazer qualquer coisa a respeito, antes que deixasse a ilha.
Nunca teve tão pouco entusiasmo a respeito de qualquer plano como daquela vez.
A noite estava linda, iluminada por mais estrelas do que qualquer homem pudesse ter visto da superfície de Titã,* não importa quanto tempo vivesse. Embora fossem apenas dezenove horas — muito cedo para o jantar, e muito mais cedo ainda para dormir —, o Sol parecia nunca ter existido, tamanha era a escuridão longe da parte iluminada pelos grandes edifícios, e das pequenas luzinhas colocadas ao longo dos caminhos de coral triturado.
De alguma parte no escuro chegava o som de música — um bater ritmado de tambores, tocados com mais entusiasmo do que habilidade. Sobrepondo-se ao som dos tambores, havia os de canções e de vozes femininas chamando-se umas às outras. Aquelas vozes fizeram com que Duncan ficasse de repente saudoso e solitário. Começou a andar ao longo do caminho que indicava para o som.
Depois de caminhar por várias alamedas sem nome, entrou em uma delas, que terminava num jardim encantador — que Duncan teve que deixar, desculpando-se profusamente com o casal que o ocupava. Outra o levou a uma clareira onde estava a festa. No centro havia uma grande fogueira fumegando uma coluna de fumaça e chamas na direção das estrelas, e algumas pessoas estavam dançando à sua volta. Como sacerdotisas de uma religião antiga.
Não estavam dançando com muita graça ou vigor. Na verdade seria mais correto dizer que elas estavam circulando num discreto balanço. Mas, apesar do seu óbvio estado de adiantada gravidez, as mulheres estavam evidentemente se divertindo, e eram tão ativas quanto era aconselhável naquelas circunstâncias.
Era um espetáculo meio grotesco, mas tocante, suscitando em Duncan uma mistura de pena e ternura — mesmo um amor impessoal e sem erotismo. Ternura é o que todos os homens sentem na presença do nascimento e do encantamento em relação à sua própria existência. A pena tinha uma causa diferente.
A feiúra e a deformidade eram raras em Titã — e ainda mais raras na Terra, já que ambas podiam ser sempre corrigidas. Quase sempre, mas nem sempre. Ali estava a prova deste fato.
A maioria destas mulheres eram extremamente comuns, algumas feias, algumas francamente horrendas. E, embora Duncan notasse que duas ou três pudessem até passar por bonitas, bastava apenas um olhar para perceber que eram mentalmente deficientes. Se sua irmã Anitra tivesse sobrevivido, sentir-se-ia à vontade nesta estranha assembléia.
Se as dançarinas — e aquelas que apenas estavam sentadas em torno tocando os tambores e as violas — não estivessem evidentemente alegres, teria sido uma cena deprimente, talvez até um espetáculo nauseante. Duncan não ficou descontrolado, embora estivesse um pouco assustado: já estava até certo ponto preparado para isto.
Sabia como as mães postiças eram escolhidas. A primeira exigência era a de não terem deficiências ginecológicas. Esta exigência era fácil de satisfazer. Mas, não era tão simples enfrentar os problemas psicológicos e talvez fosse uma tarefa virtualmente impossível antes que a população mundial fosse selecionada através de computadores.
Havia sempre mulheres que desejavam desesperadamente ter filhos, mas, por uma razão ou outra, não podiam cumprir o seu destino. Em épocas mais remotas a maioria delas teria » sido condenada a uma vida de frustração celibatária. Na verdade, neste mundo de 2276, muitas delas ainda sofriam por isto. O número de mães em potencial era maior do que o controle de nascimentos permitia, mas aquelas que fossem especialmente deficientes poderiam encontrar ali algumas compensações. As perdedoras na loteria da sorte poderiam ainda ganhar um prêmio de consolação e ganhar por alguns meses a felicidade que de outra forma lhes seria negada.
De modo que o computador mundial tinha sido programado como um instrumento de compaixão. Só este ato de humanidade, mais do que qualquer outra coisa, fez silenciar aqueles que objetavam a "clonação".
É claro que ainda havia problemas. Todas aquelas mães deviam saber, embora superficialmente, que viriam a se separar para sempre de seus filhos, logo após o nascimento. Este era um sentimento que os homens desconheciam e poucos poderiam compreender. Mas as mulheres eram mais fortes do que os homens, e os superavam — mais freqüentemente do que se pensa — tomando parte de novo na criação de uma outra vida.
Duncan permaneceu na sombra, não desejando ser visto e certamente sem querer se envolver. Algumas daquelas mulheres o reduziriam a uma pasta amorf a se o agarrassem e o introduzissem naquela dança. Tinha notado naquele momento que um punhado de homens — presumivelmente acadêmicos de medicina ou o pessoal da clínica — estavam alegremente circulando entre as mães e entrando no espírito das festividades. Não podia deixar de pensar que deveria também ter havido alguma seleção psicológica deste pessoal — muitos daqueles homens lhe pareciam efeminados, e tratavam suas companheiras de um jeito que só poderia ser chamado de afeição fraternal. Eram, obviamente, amigos íntimos, e isto é o que sempre seriam.
Ninguém poderia ter visto no escuro o sorriso de divertida lembrança que Duncan esboçou. Ele acabava de se lembrar de um menino que tinha se apaixonado por ele na sua adolescência. É difícil rejeitar alguém que é devotado, e embora Duncan tivesse por algumas vezes sucumbido à sedução de Nikk, conseguiu eventualmente desencorajá-lo, apesar das torrentes de lágrimas. Piedade não é uma boa base para um relacionamento, e Duncan não se sentia à vontade com uma pessoa cuja afeição era somente polarizada para um sexo. Que contraste para a agressiva normalidade de Karl, que não se importava se tinha mais casos com rapazes ou com moças, ou vice-versa. Ao menos até a chegada de Calindy. ..
Essas lembranças, tão inesperadamente desenterradas do passado, fizeram com que Duncan se desse conta das complicadas correntes emocionais que deveriam estar transitando naquele lugar. E, de repente, recordou-se daquela perturbadora conversa — ou melhor, daquele monólogo — com Sir Mortimer Keynes.
Que ele iria seguir os passos de Colin e de Malcolm era algo que Duncan sempre tinha aceito integralmente e sem a menor discussão. Mas, agora percebia, já no fim do dia, que havia um preço para tudo, e que deveria considerar este assunto com todo o cuidado antes que o contrato estivesse finalmente assinado.
O RECIFE DOURADO
O cinturão verde-vivo das palmeiras e a brilhante brancura da perfeita meia-lua daquela praia estavam agora a mais de um quilômetro de distância, no lado mais distante da rebentação do recife. Mesmo com os óculos escuros, que não ousava retirar nem por um momento, a cena era quase que dolorosamente luminosa. Quando olhou na direção do Sol, e avistou o seu reflexo na superfície do oceano, Duncan já estava completamente cego. Embora isto fosse apenas uma trivialidade, aumentava ainda mais o afastamento que sentia de seus companheiros. É verdade que a maioria deles usava óculos escuros — mas, no caso deles, era mais uma conveniência do que uma necessidade. A despeito de seu gene inteiramente terrestre, parecia que tinha se adaptado irrevogavelmente à luz de um mundo dez vezes mais afastado do Sol.
Sob os laterais deslizantes da embarcação, a água estava tão clara que aumentava ainda mais o sentimento de insegurança de Duncan. O barco parecia estar pendurado em pleno ar, sem suportes aparentes, por sobre um acidentado fundo de mar de cerca de cinco a dez metros de profundidade. Parecia estranho que isto pudesse preocupá-lo, quando já tinha olhado para a Terra de uma órbita a centenas de quilômetros acima da atmosfera.
Foi surpreendido com um estouro distante, bem fora de propósito num lugar como aquele, nesta pacífica e idílica manhã. Veio de algum lugar lá no mar, e Duncan virou-se a tempo de ver uma coluna de esguicho, vagarosamente caindo de volta na água. Certamente não deveria ser permitida a explosão submarina naquela área.
Agora era um jato de vapor, que brotava em diagonal do mar, pairava por uns tempos no sol brilhante e gradualmente se dispersava.
Durante um minuto nada mais aconteceu. E aí, Duncan ficou paralisado de espanto. Com incalculável lentidão, e com a inevitabilidade de um continente que estivesse surgindo das profundezas primordiais, uma enorme forma cinza estava surgindo do mar. Viu-se um vislumbre de branco enquanto monstruosas barbatanas batiam contra as ondas e criavam uma nuvem de esguicho. E aquele incrível volume ainda continuava a subir como que desafiando a gravidade, até que ficou completamente fora da água, e se manteve em pose por um momento sobre a superfície azul do oceano. Depois ainda em câmara lenta, como se relutante em abandonar um elemento estranho, caiu de novo no oceano e desapareceu por entre um gêiser final de esguicho. O estouro parece ter vindo séculos mais tarde.
Duncan nunca tinha imaginado um espetáculo daqueles, mas não precisava explicações. Moby Dick era um dos milhares de clássicos terrenos que conhecia somente pela reputação, mas agora entendia como Herman Melville deve ter-se sentido quando pela primeira vez viu o mar recoberto por um lombo brilhante tão grande como um casco de um barco virado, e concebeu na imagem da baleia branca o símbolo das forças que se escondem por trás do universo.
Ele esperou por vários minutos, mas o gigante não pulou novamente, embora houvesse de tempos em tempos breves esguichos de vapor, que foram se tornando cada vez mais distantes até desaparecerem de vista.
— Por que fez isto? — perguntou com a voz ainda sussurrante pela impressão deixada por aquela majestade em despedida.
— Ninguém sabe ao certo. Pode ser por pura alegria de viver. Pode ser que tenha sido para impressionar uma companheira. Ou, talvez, para ver-se livre de parasitas... as baleias são muito infestadas pelas lampreias e cracas.
Que coisa mais incongruente, pensou Duncan. Parecia um despropósito que um deus ficasse aflito com piolhos.
Agora a embarcação estava diminuindo a marcha, e a própria beleza e raridade da paisagem submarina capturou sua atenção de tal maneira que Duncan se esqueceu de sua distância da terra firme. Que formas fantásticas as dos corais e dos peixes que passeavam ou se escondiam entre eles. Já havia se surpreendido com a variedade de formas de vida sobre a terra; agora percebia que era ultrapassada pela incontável profusão de formas marinhas.
Algo como um avião a jato antigo passou batendo as asas vagarosamente e com graciosas ondulações. Nenhum dos outros peixes lhe deu importância. Para surpresa de Duncan, não havia nenhum sinal da carnificina que esperava testemunhar neste reinado onde tudo servia de alimento para tudo. De fato, era difícil imaginar uma cena mais pacífica. Os poucos peixes que estavam caçando outros faziam isso apenas para proteger seus próprios territórios. A impressão que reuniu dos livros ou filmes que conheceu foi quase que completamente distorcida. A cooperação e não a competição, como pensava, parecia prevalecer no recife.
O barco parou, a âncora foi lançada e seguida instantaneamente por duas bóias de borracha, quatro médicos, cinco enfermeiras e uma grande quantidade de equipamento de mergulho. A cena parecia ser, para Duncan, bastante confusa, mas na realidade estava muito mais organizada e disciplinada do que se pudesse imaginar. Os nadadores prontamente se dividiram em grupos de três, e cada trio se afastou com uma das bóias na direção definida de lugares que obviamente já tinham sido anteriormente escolhidos.
Está tudo tão calmo, pensou Duncan, depois que se afastaram. Por que todos eles carregavam facas e aqueles tridentes tão agressivos?
O barco estava quase deserto, sendo que os únicos ocupantes, além de Duncan, eram o Capitão, que prontamente adormeceu no timão, o Engenheiro, que sumiu do convés, e o Dr. Todd.
— Mas aquilo não são armas, são ferramentas de jardinagem.
— Vocês devem ter algumas plantinhas bem ferozes; eu não gostaria de enfrentá-las.
— Bem — disse Todd. — Algumas delas resistem bastante. Mas, por que não vai dar uma espiada? Você se arrependerá de perder esta oportunidade.
Aquilo era a pura verdade, contudo Duncan ainda hesitava. A água onde o barco gentilmente balançava era muito pouco profunda, parecia-lhe quase tão rasa quanto a piscina do Hotel Centennial.
— Eu vou com você. Você pode ficar em pé na escada de mergulho, até que se acostume com a máscara — e esta respiração deve ser fácil para os que estão acostumados a roupas espaciais.
Duncan não entregou a informação de que nunca tinha experimentado um traje espacial, mas, apesar disto, um treinamento no sistema de apoio à vida na superfície de Titã deveria ser adequado. E depois, o que poderia lhe acontecer em alguns metros de água? Havia lugares ali onde poderia ficar de pé com a cabeça fora da água. Sweeney Todd tinha razão, ele jamais se perdoaria se tivesse perdido esta ocasião.
Dez minutos depois ele estava brincando desajeitadamente na água. Embora lhe parecesse espantoso e até indecente colocar roupas para entrar na água, Todd insistiu para que ele colocasse uma roupa que o cobria dos pés à cabeça, feita de uma malha leve. Quase que não lhe afetava os movimentos, mas teria preferido não ter que usá-la.
— Alguns destes corais têm espinhos — explicou o Doutor. — Poderia ter seu dia estragado se se arranhasse com um deles e tivesse uma reação alérgica.
— Mais alguma recomendação?
— Não, isto é tudo. Só me observe e se pendure na bóia quando estiver cansado.
Ele agora estava rapidamente ganhando confiança e começando a se divertir. Não havia qualquer perigo possível se ficasse segurando no bote ou na corda. O Dr. Todd estava sempre à distância de um braço. Estava sendo ridículo com seu excesso de precaução. Mesmo que viesse um tubarão, estaria sobre o botinho de borracha em dois segundos, apesar da gravidade.
Agora que tinha aprendido a lidar com o tubo de respiração, ficava com a cabeça na água o tempo todo, e mesmo ensaiou mergulhos rasos, o que o forçava a prender a respiração por períodos bem longos. Na verdade, o panorama era tão fascinante que Duncan ocasionalmente esquecia a necessidade de ar, e emergia aflito. O primeiro cartaz estava a uma profundidade de cinco metros e dizia em letras amarelas fluorescentes: NÃO É PERMITIDO A VISITANTES SEM AUTORIZAÇÃO. O segundo era um brilhante painel holográfico dentro da água, que deveria tornar perplexos os peixes. Anunciava ameaçador: ESTE RECIFE ESTÁ MONITORIZADO. Duncan não pôde perceber nem traços dos projetores. Deveriam ter sido muito bem escondidos. Todd estava se dirigindo para a fila de mergulhadores que trabalhavam ao longo da beira do recife. Então ele não estava brincando. Estavam fazendo os indisfarçáveis movimentos dós jardineiros retirando ervas daninhas, e cada um deles estava cercado de uma nuvem de peixes brilhantemente coloridos que evidentemente se beneficiavam com esta atividade.
As formações de coral pareciam estar mudando de forma. Mesmo para os olhos destreinados de Duncan, eles pareciam estranhos — até anormais. Ele tinha-se acostumado a ver aquelas galharias, os labirintos com suas circunvoluções que lembravam gigantescos cérebros, os cogumelos delicados de, às vezes, metros de diâmetro. Estavam todos ali, mas sutilmente distorcidos.
Aí, notou o primeiro brilho metálico — depois outro, e mais outro. Na medida que se aproximava e que o sombreado azul da distância não diluía mais os detalhes do mundo submarino, Duncan pôde perceber que aquele recife era cuidadosamente protegido.
Onde quer que olhasse, brilhava como ouro.
Há duzentos anos, tinha sido um dos grandes triunfos da engenharia biológica, trazendo fama mundial a seus criadores. Ironicamente, o sucesso só chegou quando não era mais necessário. O que pretendia preencher uma necessidade vital tornou-se uma armadilha biológica.
Já era do conhecimento geral há vários séculos que certos animais marinhos eram capazes de extrair elementos presentes
nas águas do mar em quantidades ínfimas para o benefício de sua própria economia interna. Se esponjas, ostras e criaturas inferiores semelhantes podiam executar tais feitos de engenharia química com o iodo e o vanádio, por que não poderiam ser ensinadas a fazer o mesmo truque com metais mais preciosos? — pensaram os biologistas do ano 2100.
E, então, através de feitos heróicos na manipulação de genes, muitas espécies de coral foram persuadidas a se transformar em mineiros de ouro. Os mais bem sucedidos eram capazes de transformar quase que dez por cento de seus esqueletos em ouro. Mas este sucesso era medido somente em termos humanos. Desde que o ouro não tomava parte no processo bioquímico, os corais nunca estavam sadios e tinham que ser cuidadosamente protegidos da doença e dos predadores.
Somente algumas centenas de toneladas de ouro foram obtidas desta maneira antes que a transmutação em larga escala as tornasse obsoletas. Os fornos nucleares poderiam fazer ouro tão barato como qualquer outro metal. Por algum tempo, os recifes mais acessíveis foram mantidos como atração turística, mas os caçadores de souvenires rapidamente os destruíram. Agora havia apenas um, e a equipe do Dr. Mohammed estava interessada em preservá-lo.
Desta forma, em intervalos regulares, as enfermeiras e médicos se afastavam de suas tarefas cotidianas e aproveitavam um dia trabalhoso no recife. Cobriam os corais de fertilizantes e antibióticos cuidadosamente selecionados, e faziam guerra aos seus inimigos, o peixe-estrela com coroa de espinhos e seu parente menor, o ouriço espinhoso.
Duncan boiou perfeitamente relaxado naquela água, preguiçosamente se movimentando com os pés quando percebia que estava longe do barquinho. Agora entendia a função de todas aquelas facas e tridentes sinistros. Os adversários com os quais tinham que lidar eram muito bem protegidos na verdade.
A apenas alguns metros de distância um dos mergulhadores estava batendo numa colônia de pequenas esferas negras, cada uma delas no centro de uma rede ameaçadora de espinhos. De tempos em tempos, uma das esferas se partia e os peixes corriam para agarrar aqueles pedaços de carne branca que ficavam boiando. Era uma especialidade que jamais provariam sem a ajuda do ser humano. Duncan não podia imaginar que estes bichos tão espinhosos pudessem ter algum inimigo.
A mergulhadora — uma das enfermeiras — notou os dois espectadores flutuando acima de sua cabeça e acenou para que Duncan se aproximasse. Tinha ficado tão fascinado que agora obedecia automaticamente, sem pensar muito. Tomando alguns fôlegos e parte exalando no último, ele se içou, vagarosamente, até a linha, amarrando o barquinho de borracha no seu pequeno gancho.
A distância era maior do que imaginava — parecia-lhe uns cinco metros ao invés dos três calculados, pois tinha-se esquecido do efeito refratário da água. Durante o percurso seu ouvido esquerdo deu um desconcertante click, mas o Dr. Todd já tinha-lhe avisado sobre isto, e não interrompeu a descida. Quando alcançou a âncora e segurou na sua ponta sentiu um tremendo sentimento de vitória. Era um mergulhador submarino — tinha mergulhado à fabulosa profundidade de cinco metros. Bem, no mínimo, quatro e meio. . .
O brilho do ouro o cercava inteiramente. Não havia mais do que um pequeno pontinho, menor do que um grão de areia em cada lugar. Mas havia-os por toda parte; o recife inteiro estava impregnado. Duncan sentiu-se flutuar ao lado da obra-prima de um joalheiro louco, determinado a criar uma maravilha barroca, não obstante o que custasse. Porém, aqueles pináculos, plataformas e espirais retorcidas eram a obra de pólipos sem mente, e não — a não ser indiretamente — os produtos da inteligência humana.
Relutante, foi à superfície para buscar ar. Isto era fácil e ficou com vergonha de seus medos anteriores. Agora entendia por que os visitantes freqüentemente reagiam a Titã. Da próxima vez, quando alguém polidamente declinasse algum convite para passeio externo, seria mais tolerante.
— O que são aquelas coisas pretas? — perguntou ao Dr. Todd, que flutuava vigilante acima dele.
Ouriço de espinho longo, diadema, uma coisa ou outra. Quando você vê muitos deles, é sinal de poluição ou desequilíbrio ecológico. Eles não estragam o recife — como o Acanthaster —, mas são feios e incomodam. Se você esbarrar num deles, os espinhos podem levar até um mês para serem retirados. Você vai mergulhar de novo?
— Sim.
— Muito bem, mas não exagere. E preste atenção aos espinhos!
Duncan içou-se mais uma vez pela corda da âncora, e a mergulhadora o cumprimentou quando ele se aproximou dela. Aí ela lhe ofereceu sua faca e apontou para um grupo pequeno de ouriços. Duncan assentiu e tomou a lâmina de metal brilhante pelo cabo e começou a bater desajeitadamente, tomando cuidado com aquelas ameaçadoras agulhas pontudas.
Somente naquele momento é que percebeu que estes animais tão primários tinham consciência de sua presença, e não estavam se apoiando apenas numa defesa passiva. Os longos espinhos estavam se mexendo na direção dele, orientando-se na direção do perigo máximo. Presumivelmente, era apenas um reflexo automático, mas fez com que ele parasse por uns momentos. Havia mais coisas ali do que era possível perceber com os olhos. Talvez os primeiros leves indícios do nascimento da consciência.
A faca era mais longa do que os espinhos do ouriço, e el# bateu vigorosamente repetidas vezes. A carapaça era surpreendentemente forte, mas acabou cedendo e os peixes que esperavam se apressaram para agarrar a carne cremosa e branca que ficou de repente exposta.
E depois, com crescente desconforto, Duncan percebeu que sua vítima não estava morrendo em silêncio. Por algum tempo ele já vinha percebendo sons em demasia à sua volta — as marteladas dos outros mergulhadores no recife, a batida ocasional da âncora contra o rochedo. Mas este ruído vinha de muito mais perto, e era muito peculiar — até perturbador. Era um ruído de triturar e quebrar. Embora a analogia fosse totalmente ridícula, só poderia ser comparado com a trituração de milhares de dentinhos, rangendo com ódio e agonia. Além disto, não havia dúvida de que vinha do ouriço eviscerado.
Aquele desmaiado e desumano ruído de morte foi tão inesperado que depois de verificar seu equipamento Duncan permaneceu flutuando imóvel dentro da água. Tinha-se esquecido completamente da necessidade de ar, e a parte consciente de sua mente tinha desprezado os cada vez mais iminentes sintomas de sufocamento e os considerado como irrelevantes — para serem vistos mais tarde. Mas, finalmente, não pôde mais ignorá-los e dirigiu-se rapidamente para a superfície.
Com um profundo sentimento de choque — e mesmo de vergonha —, Duncan percebeu que tinha acabado de destruir uma criatura viva. Nunca poderia ter imaginado, antes de deixar Titã, que tal experiência algum dia pudesse atravessar o seu caminho.
Não se poderia sentir muita culpa a respeito do assassinato de um ouriço; não obstante, pela primeira vez em sua vida, Duncan Makenzie foi um assassino.
VESTÍGIO
Quando Duncan voltou para Washington, a segunda bomba de Colin estava latejando no Centennial Hotel. Mais uma vez estava tão cifrada que teria sido quase que ininteligível mesmo para um estranho que tivesse conseguido decifrá-la.
CONFIRMADO SEU VELHO AMIGO POSSUI CONTA NAO AUTORIZADA 65842 AGÊNCIA GENEVA PRIMEIRO BANCO DE ARISTARCO BALANÇO MUITOS DEZ MTL SOLARES ESTA INFORMAÇÃO NAO DEVE SER DIVULGADA EM NENHUMA CIRCUNSTANCIA PRESUMO DA VENDA TITANITA FAZENDO INVESTIGAÇÕES MNEMOSINE POR ENQUANTO SUGIRO FICAR ALERTA LEMBRANÇAS COLIN.
Duncan percebeu inteiramente por que esta informação não deveria ser divulgada. Os bancos lunares guardavam bem os seus segredos e Deus sabe que prodígios de persuasão ou corrupção fizeram Colin conseguir o número da conta de Karl. Mesmo assim, não foi capaz de conseguir um número total para o balanço — mas, obviamente, era quantia considerável. Dez mil solares era muito mais do que qualquer um necessitaria para adquirir alguns dos artigos de luxo da Terra. E muitas vezes mais do que os Makenzies tinham em sua própria conta, que era perfeitamente legal. Tal quantidade de dinheiro era mais do que uma causa de inveja, era perturbadora, especialmente se fosse dirigida para usos clandestinos.
Duncan permitiu-se alguns momentos de sonho, imaginando o que faria com vinte ou trinta mil solares. Depois colocou de lado a sedutora imagem e concentrou toda a sua mente no problema. Enquanto o envolvimento de Karl ainda era uma vaga suspeita, ele tinha ficado relutante em perder seu tempo com uma análise detalhada sobre como, quando e sobretudo por quê. Mas, agora que a especulação havia recaído em certezas, não poderia mais fugir daquele assunto.
Que pena que o meio mais óbvio de aproximação estivesse fora de questão! Ele não poderia de forma alguma chamar o Primeiro Banco de Aristarco e solicitar uma cópia da conta corrente número 65842. Nem mesmo o Governo Mundial poderia fazê-lo, a não ser que a fraude ou crime já tivesse sido provado sem nenhuma margem de dúvida. Mesmo a investigação mais discreta provocaria uma explosão: alguém seria demitido e Colin poderia ter que enfrentar perguntas bastante embaraçosas.
O único problema real da vida, tinha dito uma vez um antigo filósofo, era saber qual seria o próximo passo. Ainda não havia ligação nenhuma com Calindy ou quem quer que fosse. Duncan não gostaria de representar um papel mal alinhavado num melodrama de detetive ou de espião antigo, e não tinha mesmo a menor certeza de como alguém se iniciava numa empresa deste tipo. Colin ter-se-ia saído bem melhor nesta situação. Dos três Makenzies, ele era o único com algum traço de subterfúgio, evasão e sigilo. Deveria estar-se divertindo — principalmente porque jamais tinha gostado de Karl; era um dos poucos em Titã que eram imunes aos seus encantos.
Mas Colin, embora estivesse fazendo um trabalho notável, estava a mais de um bilhão de quilômetros de distância, no final de um dispendioso lapso de três horas. Não havia ninguém na Terra em quem Duncan pudesse confiar. Isto era um assunto privado de Titã e poderia até se tornar uma tempestade em copo d'água. Contudo, se fosse sério, quanto menos pessoas soubessem do assunto, melhor.
Duncan considerou e desprezou a idéia de falar com o Embaixador Farrel. Ele talvez tivesse que entrar na história mais tarde — mas não agora. Duncan não ficou muito bem impressionado com a discrição de Bob Farrel — e, é claro, ele era um terreno. Além do mais, se a Embaixada descobrisse que havia uma grande quantidade de dinheiro sem dono flutuando na Terra, isto na certa precipitaria um pé-de-guerra. Era verdade que o aluguel da Rua Wyoming tinha que ser pago, mas as necessidades de Titã eram bem mais urgentes.
Contudo, talvez ainda existisse na Terra alguém em quem poderia confiar — o homem que levantou a questão em primeiro lugar e que estava igualmente interessado em descobrir a resposta. Duncan bateu o nome em seu comsole, cogitando se este iria aceitar aquele apóstrofe ridículo (ele tinha conseguido perder o cartão do negociante, o que teria facilitado a sua chamada).
— Sr. Mandel'stahm? — disse ele, quando a tela se iluminou. — É Duncan Makenzie. Tenho algumas notícias para o senhor. Onde podemos nos encontrar para uma conversa em particular?
— O senhor está absolutamente certo de que ninguém pode nos escutar?
— O senhor andou vendo muitos filmes históricos, Sr. Makenzie — respondeu Ivor Mandel'stahm. Não estamos no século vinte, e teria sido necessário um estado policial singularmente determinado para colocar microfones em todos os carros de Washington. Sempre faço meus negócios confidenciais circulando em torno do Mall. Não há nada com que se preocupar.
— Muito bem, é imperativo que isto não transpire mais adiante. Estou quase certo de saber a origem da titanita. E ainda mais. . . tenho uma certa idéia de quem seja o agente na Terra, e que aparentemente já deve ter feito algumas vendas substanciais.
— Já descobri isto — disse Mandel'stahm, um pouco tristonho. — Você sabe o valor destas vendas?
— Algumas dezenas de mil solares.
Para surpresa de Duncan, Ivor alegrou-se apreciavelmente.
— Somente isto? — exclamou. — Estou bem aliviado. E você pode me dar o nome do agente principal? Tenho feito negociações com um intermediário muito discreto.
Duncan hesitou.
— O senhor está dizendo que não há neste negócio nenhuma transgressão das leis da Terra?
— Correto, não há taxas de importação sobre gemas não terrestres. Tudo até aqui está perfeitamente legal — a não ser
que a titanita seja roubada, e que o agente na Terra seja um cúmplice.
— Estou certo de que não é este o caso. O senhor vê... e não é uma coincidência assim tão grande como poderia supor. .. o agente é um amigo meu.
Um sorriso compreensivo encheu o rosto de Mandel'stahm.
— Percebo o seu problema.
Não, o senhor não o percebe, disse Duncan para si mesmo. Era uma situação terrivelmente complicada. Tinha agora quase certeza da razão por que Calindy o vinha evitando. Karl deveria tê-la avisado de que ele viria à Terra, e a teria aconselhado a afastar-se dele. Sim, Karl deveria estar bem preocupado, lá no pequeno Mnemosine, com a possibilidade de Duncan interferir em seus negócios.
Era essencial que ficasse completamente fora da jogada. Calindy jamais deveria saber que ele sabia. Não haveria possibilidade de que ela o associasse a Mandel'stahm, com quem já vinha mantendo negociações através de seu excepcionalmente discreto intermediário.
Contudo, Duncan ainda hesitava, como um mestre de xadrez numa importante jogada. Ele estava analisando seus próprios motivos e sua própria consciência, pois seus interesses pessoais e oficiais estavam agora quase que inextrincavelmente embaraçados.
Estava ansioso para saber o que Karl estava fazendo e, se necessário, frustrá-lo. Queria fazer com que Calindy ficasse envergonhada pela sua traição, e possivelmente aproveitar seu embaraço em benefício próprio (isto talvez fosse uma esperança perdida, pois Calindy não se envergonhava facilmente). E queria ajudar Titã e, conseqüentemente, os Makenzies. Todos estes objetivos não lhe pareciam compatíveis. Duncan começou a desejar que a titanita nunca tivesse sido descoberta. Mas, sem dúvida, existia aí uma brilhante oportunidade, desde que tivesse a sabedoria de tomar as providências corretas.
O carro estava deslizando à velocidade horária de vinte klicks entre o Capitólio e a Biblioteca do Congresso. A paisagem recordou-lhe seu outro compromisso: já estavam na última semana de junho, e seu discurso ainda consistia de apenas algumas páginas de anotações. A preocupação antecipada com os compromissos era uma das desvantagens dos Makenzies; o trabalho de última hora era totalmente estranho à natureza do clã. Mas mesmo consciente desta valiosa desvantagem, da qual se dava conta, Duncan estava começando a sentir um leve sentimento de pânico.
O problema era muito simples, contudo o seu diagnóstico não sugeria a solução. Apesar de todas as tentativas, Duncan ainda estava indeciso quanto ao tema básico ou qualquer mensagem de Titã mais inspiradora do que os corriqueiros cumprimentos oficiais sem nenhum conteúdo.
Agora o carro estava passando pela réplica do Saturno V, que jazia no terreno onde tinha existido o quartel-general da N,ASA. Eles não poderiam gastar o dia inteiro circulando a parte central de Washington, pensou Duncan com um suspiro.. — Posso ter sua promessa de que meu nome não transpirará sob nenhuma hipótese?
— Sim.
— E não haverá riscos de que meu amigo venha a ter problemas?
— Posso lhe garantir que não perderá o seu dinheiro. Mas não haverá nenhum problema legal... pelo menos em se tratando da legislação da Terra.
— Não é um amigo. Deixo os detalhes com o senhor, mas poderá fazer algumas perguntas discretas sobre a Vice-Presidente dos Associados Enigma, Catherine Linden Ellerman.
O DIA DA ESTRELA
Embora tentasse convencer a si mesmo de que tinha feito a coisa certa — mesmo a única coisa certa —, Duncan ainda estava meio envergonhado. No fundo de seu coração, sentia-se culpado de estar traindo uma velha amizade. Estava contente de que um impulso o tinha impedido de mencionar Karl, e com uma parte de sua mente ainda esperava que Mandel'stahm e Colin colidissem com obstáculos em branco e que toda a investigação fosse para o brejo.
Por enquanto havia tantas coisas para serem feitas e tanto para ver que por longos períodos de tempo Duncan podia esquecer seus problemas de consciência. Parecia-lhe ridículo ter vindo de tão longe para ficar sentado horas intermináveis todos os dias (com um tempo tão lindo lá fora!) num quarto de hotel falando num comsole.
Mas, todas as vezes que Duncan pensava que tinha terminado uma das inumeráveis tarefas que recebia de Titã, vinha uma nova mensagem reabrindo o assunto ou acrescentando novas complicações. Os seus deveres oficiais tomavam-lhe tempo suficiente. O que fazia as coisas piores eram os pedidos pessoais dos parentes, amigos e mesmo estranhos que supunham que ele não tivesse nada mais a fazer do que contatar parentes perdidos, obter fotografias de lares ancestrais, buscar livros raros, atuar como agente para escritores e artistas esperançosos, pesquisar genealogias terrenas, localizar obras de arte obscuras, conseguir bolsas de estudo e passagens grátis para a Terra — e agradecer a cartões do Dia da Estrela recebidos há dez anos e nunca respondidos. Tudo isto lembrou a Duncan que ele não tinha enviado os seus próprios cartões para esta ocasião quadricentenária. Ainda tinha tempo para enviar cartões para todos os seus amigos da Terra — Embaixador Farrel, os Washingtons, Calindy, Bernie Patras e meia dúzia de outros. Quanto a Titã, não havia pressa. Mesmo que levassem seis meses para chegar, os cartões, com seus lindos selos folheados a ouro — comemorativos do Centenário — e que tinham-lhe custado a quantia astronômica de cinco solares cada — mesmo que pela taxa mais barata de correio —, seriam muito apreciados.
Apesar destes problemas, Duncan ainda encontrou oportunidade para relaxar. Tinha visitado Londres, Roma e Atenas por telexcursões individuais, o que era a melhor coisa que podia ser feita, além de ir pessoalmente. Sentado num pequeno cubículo escurecido, com visibilidade e som de 360 graus de qualidade, podia facilmente acreditar que estivesse realmente caminhando através das ruas das antigas cidades. Ele podia fazer perguntas ao guia invisível que era seu alter ego, falar com qualquer transeunte, mudar de caminho para ver de mais perto algo que lhe chamasse a atenção. Somente o olfato e o tato ficavam de fora — e mesmo estes poderiam ser adquiridos por quem estivesse querendo pagar o acréscimo na nota. Duncan não podia assumir este luxo adicional, e não sentiu sua falta.
Bernie Patras, é claro, ficou feliz por ser-lhe útil e arranjou muitos encontros agradáveis. Uma moça dengosa e cheia de talentos que era sua amiga e que ele jurou que só fazia estas coisas com pessoas que realmente queria conhecer. Ela real-% mente demonstrou interesse real por Titã, mas quando Bernie, como parte interessada, quis juntar-se às reuniões, Duncan egoisticamente retirou-o da jogada.
Isto aconteceu logo depois que Ivor Mandel'stahm — desta vez no carro de Pensilvânia para Massachusetts — roubou-lhe toda a paz de espírito. Eles tinham acabado de deixar o Dupont Circle Interchange quando ele falou para Duncan:
— Tenho algumas notícias interessantes para você, mas não sei o que significam. Você talvez possa me explicar.
— Farei o possível.
— Acho que posso afirmar, sem muito exagero ou orgulho, que posso aproximar-me de qualquer pessoa na Terra. Mas, a discrição exige que isto seja feito a dois, e foi assim que procedi com Miss Ellerman. Nunca tive nenhum negócio com ela pessoalmente, ou assim eu pensava, até que você me mostrou o contrário. Mas temos amigos comuns, de modo que pedi a um deles, em quem posso confiar, sem qualquer sombra de dúvida, para que lhe desse um telefonema. . . Diga, você tentou entrar em contato com ela recentemente?
— Não, pelo menos... oh, por uma semana. Pensei ser melhor ficar fora do caminho.
Duncan não acrescentou a isto o fato de que estava envergonhado de enfrentar Calindy.
— Ela respondeu ao chamado do meu amigo, mas ocorreu algo muito estranho. Ela não colocou o viddy em funcionamento.
Aquilo era certamente estranho. Por uma questão de boas maneiras, ninguém desligava o circuito de visão, a não ser por muito boas razões. É claro que algumas vezes isto poderia causar sérios embaraços — um fato explorado demasiadamente em muitas comédias. Mas, fosse qual fosse a razão, a boa educação exigia uma desculpa. Dizer que o viddy estava com defeito era o mesmo que levantar suspeitas, mesmo nas raras ocasiões em que houvesse um real defeito.
— Qual foi sua desculpa?
— Uma plausível. Disse que tinha levado uma queda feia e desculpou-se por não mostrar o rosto.
— Espero que não tenha se machucado muito.
— Aparentemente não, embora parecesse um pouco infeliz. De qualquer maneira, meu amigo teve uma breve conversa com ela e levantou o assunto de Titã... de um modo tão autêntico que jamais poderia ter levantado suspeitas. Ele sabia que ela tinha estado lá, e pediu-lhe que o colocasse em contato com alguém na Terra que fosse de Titã. Na verdade, ele tinha uma ordem de exportação para expedir.
— Não foi uma história muito boa. Todos os negócios são efetuados através da Divisão de Comércio da Embaixada e ele poderia tê-los contatado.
— Se posso atrever-me, Sr. Makenzie, devo dizer que o senhor ainda tem muito que aprender. Posso pensar em meia dúzia de razões para não ir à Embaixada. . . pelo menos para
os primeiros contatos. Meu amigo sabe disso e o senhor pode ter certeza de que Miss Ellerman também sabe.
— Se o senhor está dizendo isto, não duvido. Qual foi a sua reação?
— Acho que o senhor vai ficar desapontado. Ela disse que tinha um bom amigo de Titã que talvez pudesse ajudar, e que ele tinha chegado há pouco para as celebrações do Centenário e que estava em Washington...
Duncan começou a rir. O anticlímax tinha sido ridículo.
— Então o seu amigo perdeu seu tempo. Estamos de volta onde começamos.
— Dentro deste ponto de vista, sim. Pensei que se surpreenderia. Mas, há mais detalhes ainda.
— Continue — disse Duncan, sentindo que sua confiança em Mandel'Pstahm estava diminuindo depois desta manobra.
— Tentei muitas outras linhas de investigação, mas todas resultaram em nada. Pensei até em chamar Miss Ellerman eu mesmo e dizer a ela que sabia que era a testa-de-ferro das negociações de titanita, sem acusá-la de nada, é claro.
— Estou contente em saber que não o fez.
— Oh, seria uma coisa perfeitamente razoável... ela não se surpreenderia se eu descobrisse mais cedo ou mais tarde. Mas, na realidade, eu tinha uma idéia melhor. .. uma que eu deveria ter tentado logo a princípio. Verifiquei seus visitantes neste último mês.
— Como — Duncan perguntou com espanto — você conseguiu isto?
— É o truque mais antigo do mundo. Você nunca viu aqueles velhos filmes de detetives franceses? Não, suponho que não. Perguntei ao porteiro.
— Perguntou a quem?
— Vocês não têm porteiros em Titã?
— Não sei nem o que são.
— Talvez você até tenha sorte. Na Terra, eles são um mal necessário. Miss Ellerman mora.. . . penso que sabe disto. .. num apartamento muito luxuoso ao sul do Monte Rockefeller. Na verdade, ela tem a cobertura do porão... um capricho que nunca pude compreender. .. pois quanto mais eu desço, mais claustrofóbico fico. Bem, qualquer construção muito grande tem um porteiro na porta para dizer quem está e quem não está, tomar mensagens, receber encomendas. . . e autorizar as pessoas certas a irem para os apartamentos certos. Isto é um porteiro.
— E você foi capaz de chegar até o seu "banco de memória"?
Mandel'stahm teve a delicadeza de mostrar-se um pouco encabulado.
— É surpreendente o que se pode fazer se você conhece as pessoas certas. Oh, não interprete mal. Não há nada de ilegal nisto, mas prefiro omitir detalhes.
— Em Titã somos muito exigentes em matéria de invasão de privacidade.
— Também o somos aqui na Terra. Qualquer pessoa que assim o deseje pode facilmente passar desapercebida pelo porteiro, o que a mim sugere que Miss Ellerman não tenha nada a esconder, ou uma consciência pesada. Mas, diga-me, Sr. Makenzie, o senhor não sabia que ela tinha alguém de Titã hospedado em sua casa?
Duncan olhou para ele boquiaberto, mas rapidamente se controlou. É claro que Karl pode ter-se prevalecido de algum amigo de confiança para atuar como seu emissário. Isto deve ter acontecido há alguns meses. Não houve nenhuma viagem de passageiros nas seis semanas antes da Sírio. Quem poderia?
Isto explicava tudo — quase tudo. Então era por isso que Calindy o estava evitando! Duncan sentiu, em igual medida, ciúmes, desapontamento — e alívio por suas manobras estarem sendo afinal justificadas pelos eventos.
— Quem é este titaniano? — perguntou tristonho. — Gostaria de saber se o conheço.
— Isto é o que gostaria de saber. O seu nome é Karl Helmer.
MENSAGEM DE TITÃ
— Isto é totalmente impossível — disse Duncan, depois de se refazer do choque inicial. — Deixei Helmer em Saturno, e vim para aqui na nave mais rápida do Sistema Solar.
Mandel'stahm deu de ombros.
— Então, há alguém usando o seu nome, por motivos conhecidos por ele. O porteiro de Miss Ellerman não é muito inteligente... eles raras vezes são... e incidentalmente tivemos a sorte de chegar logo a este ponto antes do reajuste regular da memória no fim do mês. Apoderei-me do código de reconhecimento visual e aqui está a reconstituição.
Ele estendeu a síntese cruel, mas perfeitamente adequada. Duncan podia identificá-la tão rapidamente como qualquer padrão de circuito de detecção de robô.
— Era Karl, sem nenhuma dúvida.
— Então você o conhece — disse Mandel'stahm.
— Muito bem — respondeu Duncan rapidamente. Sua mente estava ainda num redemoinho; mesmo agora não podia acreditar em seus próprios olhos. Teria que levar algum tempo para pensar em todas as implicações desta espantosa descoberta.
— Você disse que ele já não estava mais no apartamento de Miss Ellerman. Você sabe onde ele se encontra agora?
— Não. Estava esperando que você tivesse alguma idéia. Mas, agora que sabemos o seu nome, serei capaz de descobri-lo ainda que isto me tome algum tempo.
E, sem dúvida, despesas, pensou Duncan.
— Diga-me, Sr. Mandel'stahm. Por que está se dando todo este trabalho? Não percebo o que o senhor espera obter com isto.
— Não? Bem, é uma boa pergunta. Eu certamente comecei isto por uma pura e honesta cobiça pela titanita, e penso que com o tempo meus esforços ganharam a justa recompensa. Mas agora isto já foi ultrapassado. A única coisa que para mim é mais valiosa do que gemas e obras de arte é o divertimento. E esta pequena brincadeira, Sr. Makenzie, é mais interessante do que qualquer coisa que eu tenha visto no viddy por semanas.
Apesar de suas pesadas preocupações, Duncan não pôde evitar de sorrir. Ele tinha sido cauteloso na sua aproximação inicial, mas agora estava realmente começando a sentir uma simpatia autêntica pelo negociante. Ele era esperto e talvez até ardiloso, e Duncan não tinha dúvidas de que ele seria uma difícil barganha. Mas, agora estava totalmente convencido de que George Washington tinha razão. Ivor Mandel'stahm podia ser de confiança em tudo aquilo que realmente fosse importante.
— Posso fazer uma modesta sugestão?
— Claro — respondeu Duncan.
— Pode pensar em alguma razão, já que chegamos a este estado de coisas, que o impeça de procurar Miss Ellerman e dizer que o senhor acaba de saber que o seu amigo comum de Titã está na Terra, e se ela sabe onde ele se encontra?
Duncan pensou sobre o assunto; a sugestão era tão óbvia que, em seu estado de espanto, tinha completamente desprezado. Mesmo agora não tinha certeza de que podia avaliá-la perfeitamente.
Mas o caso não era mais um problema de táticas impessoais e políticas, para ser trabalhado como um xeque-mate de enxadrista. Por uma questão de amor-próprio e paz de espírito, já era tempo de um confronto com Calindy.
— O senhor está certo — disse ele. — Não há razão para que eu não lhe telefone. Eu o farei logo que voltar ao hotel. Vamos parar na Union Station e tomar o expresso. . .
Quando Duncan chegou ao hotel, uns vinte minutos mais tarde (o expresso não era bem rápido), teve a segunda surpresa do dia, embora nesse estado de coisas fosse algo como um anticlímax. A mais longa mensagem que Colin tinha-lhe enviado estava sobre o comsole.
Depois da leitura inicial, a reação de Duncan foi: "Desta vez pelo menos, sou eu que estou um passo à frente". Mas, mesmo isto, percebeu depois, não era bem verdadeiro. Quando se considerava que a mensagem de Colin tinha deixado Titã há duas horas, era virtualmente um furo.
SEGURANÇA AAA PRIORIDADE AAA
INVESTIGAÇÕES MNEMOSINE REVELAM KARL DEIXOU MEADOS MARÇO EM VÔO NAO PREVISTO PARA TERRA E CHEGOU APROXIMADAMENTE DUAS SEMANAS ANTES DE VOCÊ ARMAND AFIRMA SURPRESA E IGNORÂNCIA TOTAL PODE ESTAR DIZENDO VERDADE IMPERATIVO LOCALIZAR KARL DESCOBRIR O QUE ESTÁ FAZENDO E SE NECESSÁRIO AVISA-LO DAS CONSEQÜÊNCIAS PROCEDA COM EXTREMA CAUTELA POIS ANSIOSO EVITAR PUBLICIDADE COMPLICAÇÕES INTERPLANETÁRIAS SUA APRECIAÇÃO DO PROBLEMA PODE SER VANTAJOSA MAS DISCRIÇÃO ESSENCIAL SUGESTÃO CALINDY PODE SABER ONDE ELE ESTA COLIN & MALCOLM.
Duncan releu a mensagem mais devagar, absorvendo suas nuanças. Não continha nada de que não soubesse, ou tivesse já adivinhado, contudo não lhe agradou o seu tom descompromissado. Tendo sido assinada tanto por Colin quanto por Malcolm, tinha a autoridade de uma ordem direta, algo raro nos negócios dos Makenzies. Embora Duncan admitisse que fizesse sentido, ele podia também notar um certo ar de satisfação. Por um momento teve uma visão pouco elogiosa de seus gêmeos mais velhos movendo-se como um par de aves de rapina sentindo a carniça.
Estava ao mesmo tempo divertido perceber que Colin tinha enviado o telex com muita pressa: continha uma meia dúzia de palavras supérfluas, o que era muito ofensivo às máximas econômicas do clã.
Talvez no final das contas não fosse muito dotado para a política. Sentia um crescente desencanto por estas maquinações. Havia, apesar da genética, diferenças sutis entre os Makenzies, e talvez fosse até um fato que ele não era tão resistente ou tão ambicioso como os seus precursores.
Não foi surpresa quando Calindy não apareceu na tela de seu comsole, e logo teve provas de que a convenção social tinha sua razão de ser. A não ser por muito boas razões, era mesmo indelicado desligar um viddy. Duncan ficou frustrado e numa posição de séria desvantagem, sabendo que Calindy podia vê-lo, mas que ele não podia vê-la. A voz sozinha não trazia toda a gama das emoções. Havia tantas vezes em que a expressão dos olhos contradizia a palavra.
— Por que, o que está acontecendo, Calindy? — disse Duncan com falso espanto. Teria sentido autêntica compaixão se ela estivesse realmente ferida. Mas ele tencionava reservar os julgamentos.
Sua voz, seria imaginação sua? Não estava bem sob controle. Pareceu surpresa ao vê-lo, talvez desconcertada.
— Sinto terrivelmente, Duncan, mas prefiro não mostrar meu rosto neste momento. Caí e machuquei meu olho. .. está horrendo. Mas não é nada sério. . . ficará bom em alguns dias.
— Lamento ouvir esta notícia. Não a incomodarei se você não está se sentindo bem.
Esperou, desejando que Calindy notasse a preocupação que cuidadosamente imprimiu ao seu rosto.
— Oh, não há problemas. Continuo trabalhando como sempre. . . apenas cortei minhas idas ao escritório, e agora faço tudo pelo comsole.
— Bem, isto é um alívio. Bem, tenho umas notícias para você. O Karl está na Terra.
Houve um longo silêncio antes que Calindy respondesse. Quando ela respondeu finalmente, Duncan percebeu mortificado que realmente não fazia parte de seu fã-clube. Não podia ter esperanças de enganá-la por muito tempo.
— Duncan — disse ela num tom de voz resignado. — Você realmente não sabia que ele estava se hospedando aqui comigo?
Duncan fez o possível para exibir incredulidade, choque e suscetibilidade — nesta ordem.
— Por que você não me disse? — berrou ele.
— Porque ele me pediu que não o fizesse. Isto me botou numa posição difícil; que podia fazer? Disse-me que vocês dois já não eram mais amigos. . . e que seus negócios eram altamente confidenciais.
Duncan percebeu que Calindy estava dizendo a simples verdade, se é que a verdade era simples. Metade da sua suscetibilidade desapareceu.
— Bem, estou confuso e desapontado. Eu pensava que você tivesse confiança em mim. Bem, não há mais necessidade de subterfúgios. . . agora que sei que está aqui. Tenho uma mensagem urgente para ele. Onde poderei localizá-lo?
Houve outra longa pausa, depois Calindy respondeu:
— Não sei onde ele está. Foi embora subitamente e não me disse para onde ia. Pode até ter retornado a Titã.
— Sem dizer adeus? Dificilmente! E não há naves para Titã por um mês.
— Bem, suponho então que ainda esteja na Terra, ou não mais distante do que na Lua. Simplesmente não sei.
Por estranho que fosse, Duncan acreditava nela. Sua voz ainda estava com um ar verdadeiro, embora não tivesse ilusões de que ela poderia enganá-lo se desejasse.
— Neste caso, terei que usar outros meios para descobri-lo. É imperativo que nos encontremos.
— Eu não lhe aconselharia isto, Duncan. - Por que não?
— Ele está zangadíssimo com você.
— Não posso imaginar por que razão — respondeu Duncan rapidamente, imaginando várias. A voz de Calindy revelava uma preocupação tão genuína que se sentiu envolvido fortemente por seu cuidado.
Contudo, parecia que esta passagem estava fechada, pelo menos naquele momento. Ele sabia bem das coisas para discutir com Calindy. Com uma mistura de emoções, expressou seu desejo de que ela se recuperasse prontamente e interrompeu o circuito. Esperava que ela interpretasse sua atitude como tristeza e raiva, e que se sentisse culpada.
Um minuto mais tarde estava olhando para uma tela que não estava vazia — com algum alívio — e que podia revelar as reações do interlocutor.
— Você sabia — perguntou ao Embaixador Farrel — que Karl Helmer estava na Terra?
Sua excelência piscou.
— Certamente que não. Nunca me procurou. Vou ver se a Chancelaria sabe de alguma coisa.
Apertou alguns botões e era óbvio que nada aconteceu. O Embaixador olhou para Duncan com um ar aborrecido.
— Gostaria que pudéssemos comprar um novo sistema de interfone — disse de modo acusador. — Eles custam uma pequena fração do Produto Nacional Bruto de Titã.
Duncan achou mais sábio deixar passar, e afortunadamente na segunda tentativa o Embaixador conseguiu a ligação. Murmurou algumas perguntas inaudíveis, esperou por alguns minutos, depois olhou para Duncan sacudindo a cabeça.
— Nenhum vestígio dele. Nem mesmo um endereço terreno para mensagens de casa. Muito estranho!
— Você não diria. . . sem precedentes?
— Sim, diria. Nunca soube de ninguém que tivesse chegado e não procurasse a Embaixada tão logo atingisse a Terra. Habitualmente sabemos, é claro, quem está para chegar com semanas de antecedência. Não há nenhuma lei obrigando-os a se apresentarem. . . mas é uma questão de cortesia. Para não mencionar, de conveniência.
— Era isto que eu pensava. Bem, se souber alguma notícia dele, me avise, por favor.
O Embaixador olhou para ele em silêncio por alguns minutos e com um dos sorrisos mais enigmáticos no rosto. Depois disse:
— O que e que Colin e Malcolm pensam que ele está fazendo? Urdindo um golpe de Estado com armas contrabandeadas?
Depois de um momento de choque, Duncan riu da piada.
— Nem mesmo Karl é tão louco. Francamente. Estou completamente estarrecido com tudo isto. . . mas estou decidido a localizá-lo. Embora exista meio bilhão de pessoas na Terra, ele não é exatamente transparente. Por favor, fique em contato. Até breve.
Duncan pensou, dois já vistos e um ainda para ver. Era para Ivor Mandel'stahm, na sua função de detetive particular — aliás, bem sucedida, por escolha própria.
Mas, o comsole de Ivor respondeu: POR FAVOR NÃO PERTURBE. FAÇA O OBSÉQUIO DE DEIXAR UMA MENSAGEM.
Duncan ficou aborrecido. Estava explodindo de vontade de dar-lhe as novas, mas certamente não ia deixá-las arquivadas num comsole, Teria que esperar até que Mandel'stahm chamasse de volta.
Mandel'stahm levou duas horas, e nesse intervalo não foi fácil concentrar-se em outra tarefa. Quando o negociante finalmente respondeu ao chamado, desculpou-se profusamente.
— Estava tentando um golpe demorado — explicou ele. — Imaginei que pudesse ter comprado alguma coisa em Nova York com um cartão de crédito. Não há um número muito grande de filiados e o computador central de notas verificou-os em uma hora.. . Infelizmente... ele deve estar usando dinheiro. Não é um crime federal, é claro. Mas um trabalhão para nós, honestos investigadores.
Duncan riu.
— Foi uma boa idéia. Eu fiz algo um pouco melhor.. . pelo menos eliminei algumas possibilidades.
Fez para Mandel'stahm um resumo da sua discussão com Calindy e com o Embaixador Farrel, depois acrescentou:
— E agora, para onde seguimos?
— Não estou certo. Mas, não se preocupe. Pensarei em alguma coisa.
Duncan acreditou nele. Tinha agora uma confiança quase ilimitada na engenhosidade do negociante, sem mencionar sua influência e seu conhecimento dos métodos da Terra. Se alguém pudesse localizar Karl — excluindo ir à polícia ou colocar um anúncio no World Times —, esta pessoa seria Mandel'stahm.
De fato, custou-lhe apenas trinta e seis horas.
O OLHO DE ALÁ
— Eu o encontrei. Parecia cansado, mas estava vitorioso.
— Eu sabia que você o encontraria — respondeu Duncan com indisfarçável admiração. — Onde está ele?
— Não seja tão impaciente. .. deixe-me gozar meu prazer inocente. Afinal, o mereço.
— Bem, que porteiro você corrompeu desta vez? Mandel'stahm pareceu levemente melindrado.
— Ninguém. Primeiro tentei saber tudo o que podia sobre o seu amigo Helmer, pelo expediente brilhante de procurar o seu nome no Quem é Quem Interplanetário. Presumi que estivesse lá e estava. . . num artigo de cem linhas. Olhei o seu nome ao mesmo tempo, diga-se de passagem. Você tem bem menos linhas.
— Eu sei — disse Duncan, com toda a paciência de que podia dispor. — Continue.
— Eu imaginei que pudesse relacionar alguns de seus contatos na Terra, e de novo tive sorte. Ele pertence ao Instituto de Engenharia Eletrônica, à Sociedade Real de Astronomia, ao Instituto de Física e ao Instituto de Astronáutica, tanto quanto a várias organizações profissionais de Titã, é claro. Vi também que escreveu uma meia dúzia de trabalhos científicos e foi co-autor de outros tantos: A Ionosfera de Saturno, As Origens da Radiação Magnética das Ondas Ultra' longas, e outros esoterismos fascinantes. . . nada de utilidade para nós, contudo.
— Os astrônomos estão em Londres, é claro, mas os engenheiros, astronautas e físicos estão todos em Nova York,
e fiquei pensando se ele os tinha procurado. Então, chamei um dos meus amigos úteis... desta vez um cientista, aliás muito importante, que poderia abrir todas as portas sem fazer muitas perguntas. Supunha que um colega titaniano em visita seria um fenômeno raro que chamaria atenção... e de fato era.
Mandel’stahm fez mais uma de suas pausas significativas, para que Duncan cozinhasse um pouco, depois continuou:
— Isto é o que mais me surpreende. À parte de ter ignorado a Embaixada, dito a Miss Ellerman para calar a boca, ele não fez absolutamente mais nada para esconder-se. Não creio que alguém que tivesse muito a esconder se portaria desta maneira.
— Foi mesmo muito simples. Os eletricistas ficaram contentes em ajudar. Eles nos disseram que ele tinha ido a North Atlan e que poderia ser contatado através do Engenheiro-Chefe Assistente, na Divisão C do Quartel-General de Comunicações Mundiais em Teerã. Não é o tipo de endereço que você associaria a contrabando de pedras ou falcatruas internacionais...
— Então, foi para o Teerã... bem em tempo, mas não importa. Estará no mesmo local por alguns dias e, pelo seu passado, finalmente, temos algo que faça sentido.
— A Divisão de Comunicação Mundial é a que mantém o Projeto Ciclope andando. E até eu já ouvi falar disto.
Tinha sido concebido nas primeiras etapas luminosas do começo da Era Espacial. Era o instrumento científico de maior vulto, mais caro, e potencialmente mais promissor já concebido. Embora pudesse servir para muitas finalidades, uma era a mais importante — a procura de vida inteligente no universo.
Um dos sonhos mais antigos da humanidade tinha permanecido como sonho até o surgimento da radioastronomia na segunda metade do século vinte. Depois, no prazo curto de duas décadas, a criatividade combinada de engenheiros e cientistas deu à humanidade o poder de vasculhar os golfos interestelares — se estivesse querendo pagar o preço.
Os primeiros radiotelescópios, com alguns metros de diâmetro, tinham esperado ouvir os sinais vindos das estrelas. Ninguém esperou muito sucesso destes primeiros experimentos
e nem este sucesso foi atingido. Se fizéssemos algumas deduções plausíveis a respeito da distribuição da inteligência na Galáxia, seria fácil calcular que a detecção de civilizações emitindo ondas de rádio exigiria telescópios não de apenas decímetros, mas de quilômetros de abertura.
Havia apenas um método prático de conseguir este resultado — pelo menos com estruturas confinadas à superfície da Terra. Construir um único observatório gigante estava fora de questão, mas os mesmos resultados poderiam ser obtidos através de uma rede de centenas de outros menores. Ciclope era visualizado como uma fazenda de antenas de discos de cem metros, uniformemente espaçados num círculo de talvez cinco quilômetros de diâmetro. Os mais leves sinais de cada elemento deste exército de antenas seriam somados e depois acuradamente processados em computadores programados para observar os sinais únicos de inteligência contra o fundo de ruídos cósmicos.
O sistema todo iria custar tanto quanto o Projeto Apoio original. Mas, diferente de Apoio, poderia processar dados a intervalos de anos ou mesmo de décadas. Tão logo algumas antenas fossem construídas, o Ciclope poderia começar a funcionar. Desde o início seria um instrumento de grande valor para os radioastrônomos. Com o passar dos anos, mais e mais antenas seriam instaladas, até que um dia a rede completa fosse terminada. E durante todo o tempo ó Ciclope aumentaria estavelmente em poder e capacidade, tornar-se-ia capaz de sondar cada vez mais profundamente o universo.
Era uma intenção nobre, embora houvesse alguém que temia o seu sucesso tanto quanto o seu possível fracasso. Porém, durante os Tempos Problemáticos que levaram o século vinte a seu final pouco lamentado, havia pouca esperança de fundar este projeto. Só poderia ser considerado durante um período de estabilidade financeira e política, e deste modo o Ciclope só pôde ser realizado cem anos depois do início de sua concepção original.
Um herdeiro da breve mas brilhante Renascença Muçulmana ajudou a absorver parte da imensa riqueza acumulada pelos países árabes durante a Idade do Óleo. Os milhões de toneladas exigidas vinham dos virtualmente ilimitados" recursos das jazidas do Mar Vermelho, que cresciam ao longo do grande vale. Ali, onde a crosta da Terra estava literalmente se esgarçando nas costuras, enquanto as plataformas continentais lentamente se separavam, havia metais e minerais suficientes para banir qualquer receio de racionamento para os séculos futuros. O ideal seria que Ciclope fosse situado no equador, de modo que os seus espelhos indagadores pudessem varrer os céus de pólo a pólo. Seria necessário também um bom clima, ausência de terremotos e outros desastres naturais — e, se possível, um anel de montanhas para atuar como um escudo contra a interferência das ondas de rádio. Evidentemente, não existia um lugar perfeito, e foi necessário estabelecer compromissos de engenharia, políticos e geográficos. Após décadas de discussões, às vezes bastante agressivas, o desolado Empty Quarter da Arábia Saudita foi escolhido. Foi a primeira vez que alguém encontrou utilidade para aquele deserto.
Pistas largas foram rudemente abertas através do deserto para que os cargueiros-planadores de dez mil toneladas pudessem transportar os componentes vindos das fábricas do Mar Vermelho. Mais tarde foram suplementados por cargueiros aéreos. Na primeira fase do projeto, sessenta antenas parabólicas foram arrumadas na forma de uma cruz gigantesca % com seus braços de cinco quilômetros estendidos nas direções Norte-Sul e Este-Oeste. Alguns dos fiéis objetaram a este símbolo de uma religião não islâmica, mas disseram a eles que era apenas uma disposição temporária. Quando o "Olho de Alá" estivesse completo, o sinal ofensivo estaria inteiramente perdido entre uma rede total de setecentos discos enormes, espalhados uniformemente sobre um círculo de oitenta quilômetros quadrados de extensão.
Em fins do século vinte e um, porém, apenas metade dos setecentos elementos projetados tinha sido instalada. Duzentos tinham preenchido a maior parte da região central da rede, e os restantes formavam uma espécie de cerca, que delineava a circunferência do gigantesco instrumento. Esta escala reduzida, embora tivesse economizado muitos solares, reduziu apenas discretamente a performance. Ciclope virtualmente realizou todos os objetivos de sua concepção. E, durante o curso do século vinte e dois, provocou uma revolução tão grande na astronomia quanto a provocada pelos refletores do Monte
Wilson ou do Monte Palomar, duzentos anos antes. Pelo final daquele século, contudo, começou a dar problemas — sem que os seus construtores, ou o exército de engenheiros e cientistas que trabalhavam nele, tivessem alguma responsabilidade.
O Ciclope não podia competir com os sistemas que tinham sido agora construídos do outro lado da Lua — quase que perfeitamente protegidos da interferência terrestre por três mil quilômetros de rocha sólida. Por muitas décadas o Ciclope tinha trabalhado em conjunto com eles, pois dois grandes telescópios de cada lado da linha de base Terra-Lua formavam o interferômetro que podia investigar detalhes de sistemas planetários a centenas de anos-luz de distância. Mas agora havia radiotelescópios em Marte. O observatório lunar podia atingir muito mais com a colaboração de Marte do que jamais poderia com a da Terra. Uma linha de base com duzentos milhões de quilômetros de extensão permitia investigar as estrelas circundantes com uma precisão jamais imaginada anteriormente.
Como acontece mais cedo ou mais tarde com os instrumentos científicos, Ciclope foi superado. Mas, nos meados do século vinte e três, estava enfrentando um outro problema que poderia ser fatal: o Empty Quarter não era mais um deserto.
O Ciclope tinha sido construído numa região que poderia não ter chuvas por períodos de cinco anos. Em Al Hadidah havia meteoros que permaneciam sem ferrugem desde o tempo do Profeta; tudo isto tinha sido modificado por reflorestamento e controle climático. Pela primeira vez desde a Idade do Gelo, os desertos estavam em recesso. Caía mais chuva em alguns dias no Empty Quarter do que jamais tinha caído em anos.
Os construtores do Ciclope nunca puderam prever este fato. Haviam baseado seus projetos — o que era razoável — num ambiente quente e árido. Agora o pessoal de manutenção estava sempre ocupado numa batalha contínua contra corrosão, umidade nos cabos coaxiais, fungos que induziam interrupções nos circuitos de alta tensão, e todos os outros males que afligem o equipamento eletrônico quando lhes é dada a oportunidade. Algumas das antenas de cem metros tinham enferrujado tanto que não podiam movimentar-se, e tiveram que ser retiradas de serviço. Por quase duzentos anos, o sistema vinha funcionando com seu grau de eficiência decrescendo lentamente, enquanto que os engenheiros, administradores e cientistas levavam adiante uma discussão triangular na qual nenhuma das partes conseguia convencer as outras. Valeria a pena gastar milhares de solares para recondicionar o sistema? Ou não seria melhor aplicar este dinheiro do outro lado da Lua? Era impossível chegar a uma decisão definitiva, porque ninguém jamais conseguiu dar valor à pesquisa científica pura.
Fossem quais fossem os seus problemas atuais, o Ciclope tinha sido um sucesso espetacular, ajudando ao homem a reavaliar o tamanho do universo não só uma vez, mas inúmeras. Afastou os limites do conhecimento até o microssegundo, e capturou ondas de rádio que tinham circunavegado todo o espaço da criação. Tinha investigado as superfícies de estrelas distantes, detectado seus planetas ocultos e descoberto entidades estranhas, tais como sóis de neutrino, antitáquions, lentes gravitacionais, e terremotos do espaço revelaram os mistérios indecifráveis das probabilidades negativas dos estados "Fantasmas" e matéria invertida.
Mas havia uma coisa que não tinha feito. A despeito de milhares de alarmas falsos, nunca conseguiu detectar sinais de vida inteligente vindos do espaço. Ou o homem estava sozinho ou mais ninguém estava usando transmissores de rádio. E ambas as explicações pareciam altamente improváveis.
ENCONTRO EM CICLOPE
Ele sabia o que deveria esperar — ou pelo menos acreditava saber, mas a realidade ainda era mais espantosa. Duncan sentiu-se como uma criança numa floresta de árvores gigantescas de metal, estendendo-se em todas as direções até o limite de sua visão. Cada uma das árvores (idênticas) tinha o tronco de cinqüenta metros de altura levemente inclinado, com uma escadaria espiralada contornando-a até a plataforma que suportava o mecanismo de impulso. Soerguendo-se acima de tudo, ficava a larga concavidade da antena, enorme, mas surpreendentemente delicada, inclinada na direção do espaço enquanto ficava à escuta dos sinais do espaço profundo.
A antena número 005, como o seu número indicava, estava no centro da rede, mas era impossível verificar isto a olho nu. Para qualquer lado que Duncan olhasse, as fileiras e colunas das torres de metal confundiam-se na distância até que, eventualmente, formavam uma sólida muralha de metal.
Toda aquela vasta rede era um milagre de precisão da engenharia, numa escala incomparável a qualquer lugar na Terra. Era até bem congruente o fato de que muitos de seus componentes tivessem sido manufaturados no espaço. Os metais em espuma e as fibras de cristal, que davam aos refletores parabólicos força e leveza, só podiam ter sido fabricados nas fábricas da órbita de gravidade zero. De mais de uma maneira o Ciclope era uma criatura do espaço.
Duncan virou-se para o guia que o tinha levado através do labirinto dos túneis de acesso numa pequena motocicleta movida quimicamente.
— Não estou vendo ninguém. Você tem certeza de que ele está aqui?
— Foi aqui que o deixamos uma hora atrás. Ele estará na montagem do pré-amplificador, lá em cima da plataforma. Você terá que gritar. Os rádios não são permitidos aqui dentro, é evidente.
Duncan não podia deixar de sorrir ante mais este exemplo do controle quase fanático contra a interferência no Projeto Ciclope. Pediram-lhe para entregar o seu relógio, para evitar que seus frágeis impulsos elétricos fossem confundidos com sinais de uma civilização alienígena algumas centenas de anos-luz de distância. Seu guia estava com um relógio movido a mola — o primeiro que Duncan já tinha visto.
Colocando as mãos em concha, Duncan inclinou a cabeça em direção da torre de metal que se erguia acima dele e gritou: — Karl! Uma fração de segundos depois o "K" ecoou na próxima antena e reverberou fragilmente nas outras mais adiante. Depois disto, o silêncio parecia mais profundo do que antes. Duncan não quis perturbá-lo de novo.
Nem houve necessidade. Cinqüenta metros acima dele, uma figura tinha-se movimentado em direção da grade em torno da plataforma, e trouxe consigo o brilho familiar do ouro.
— Quem está aí?
Quem você pensa que é?, Duncan pensou para si mesmo. Claro que seria difícil reconhecer uma pessoa lá de cima, e as vozes ficavam distorcidas neste ambiente de escala tão pouco humana.
— É Duncan.
Houve uma pausa que parecia durar por mais de um minuto, mas que deve ter sido de apenas alguns segundos, naturalmente. Karl estava obviamente surpreso, embora a esta altura já deveria ter pressentido que Duncan soubesse de sua presença na Terra. Logo, ele respondeu:
— Estou no meio de um trabalho. Suba se você quiser. Não eram bem boas-vindas, mas a voz não lhe parecia
hostil. A única emoção que Duncan podia identificar a esta distância era uma espécie de resignação fatigada, e talvez até isto fosse produto de sua imaginação.
Karl tinha desaparecido de novo, sem dúvida para continuar a tarefa que tinha vindo desempenhar. Duncan olhou com bastante preocupação para a escadaria em espiral que circundava o tronco cilíndrico da torre da antena. Cinqüenta metros eram uma distância pequena, mas não em termos de gravidade da Terra. Eram o equivalente a duzentos e cinqüenta em Titã. Ele nunca teve que subir um quarto de quilômetro em seu mundo natal.
Karl, com toda a certeza, teria tido pouca dificuldade, pois tinha passado sua infância na Terra, e seus músculos já teriam retomado sua força original. Duncan pensava se não seria um desafio de Karl. Isto era bem típico dele, e se fosse assim ele não teria outra escolha.
Quando pisava no primeiro degrau o seu guia lhe disse:
— Não há muito lugar lá em cima na plataforma. A não ser que precise de mim, prefiro permanecer aqui embaixo.
Duncan podia reconhecer um homem preguiçoso quando o encontrava, mas ficou satisfeito em aceitar aquela desculpa. Não queria que houvesse estranhos presentes, quando estivesse encarando Karl frente a frente. Este confronto era algo que teria evitado se isto fosse possível, mas este não era um serviço que pudesse ser transferido para outra pessoa — mesmo que as instruções de Colin e Malcolm o tivessem permitido.
A subida foi bastante simples, embora a grade de segurança não fosse tão forte como Duncan desejasse. Além disso, havia pedaços bastante enferrujados, e agora que estava bem perto para tocar no metal podia ver que a montagem estava em piores condições do que tinha sido levado a imaginar. A não ser que reparos de emergência fossem feitos com presteza, Ciclope jamais veria o amanhecer do século vinte e quatro.
Quando Duncan tinha completado sua primeira volta, o guia chamou:
— Vamos selecionar um novo alvo daqui a cinco minutos; você vai achar muito dramático.
Duncan olhou para a enorme concavidade, agora encobrindo completamente o céu acima dele. A idéia daquelas toneladas de metal balançando logo ali em cima era bem perturbadora e ficou feliz por ter sido avisado a tempo.
O outro viu sua atitude e interpretou-a corretamente.
— Mas você não será perturbado. Esta antena já está congelada há mais de dez anos. O impulso enguiçou e não vale a pena consertá-lo.
Então, isto confirmava a suspeita de Duncan, que, aliás, a tinha desprezado como uma ilusão de óptica. A grande parábola acima dele estava na verdade a um ângulo bem pequeno em relação às outras. Não era mais parte ativa da rede de Ciclope e estava agora apontando cegamente para o espaço. A perda de um ou mesmo de uma dúzia de elementos não causaria diferenças muito grandes no sistema, mas era típica do ar de negligência geral.
Mais uma volta e estaria na plataforma. Duncan fez uma pausa para respirar, estava subindo muito devagar, mas suas pernas já estavam começando a doer com aquele esforço total-' mente inédito. Não se ouvia mais vestígio de Karl. O que. estaria ele fazendo naquele lugar fantástico de velhos triunfos e sonhos perdidos?
E como ele haveria de reagir àquele confronto inesperado e sem dúvida temido, quando se vissem cara a cara? Com um pouco de atraso, Duncan percebeu que uma pequena plataforma a cinqüenta metros do chão, nesta gravidade ameaçadora, não era o melhor lugar para ter uma briga. Ele sorriu à imagem desta conjetura. Qualquer que fosse o seu desacordo, a violência estaria fora de questão.
Bem, não tão inquestionável. Ele tinha acabado de pensas nisto. . .
Acima dele via uma faixa estreita de chão de metal perfurado, quase apenas suficiente para o lugar de onde saía a escada. Com um sentimento enorme de alívio, puxando-se para cima com suas mãos sujas de ferrugem, Duncan subiu os últimos degraus e ficou de pé entre monstruosas engrenagens, motores hidráulicos silenciosos, uma confusão de cabos, uma porção de encanamentos desmontados e a delicada trama de suportes da agora inútil parábola de cem metros.
Ainda não havia sinal de Karl e Duncan começou a circundar cautelosamente a base da antena. O piso tinha uns dois metros de largura, e a grade protetora ficava na altura da cintura, de modo que não havia muito perigo. De qualquer
maneira, ele ficou bem longe da beirada, e evitou olhar para baixo.
Não tinha ainda completado a volta quando algo infernal irrompeu. Ouviu um movimento súbito de motores virando, o denso ruído de máquinas em movimento, adicionado de silvos e rangidos das engrenagens protestando depois de estarem muito tempo paradas.
Por todos os lados, aquelas enormes concavidades que olhavam para o céu estavam começando a girar em uníssono, inclinando-se para o Sul. Somente a que estava imediatamente sobre sua cabeça permanecia imóvel, como um olho cego já incapaz de reagir a estímulos. O movimento era bastante surpreendente e continuou por alguns minutos; depois parou tão abruptamente quanto tinha começado. Ciclope tinha localizado um novo alvo para o seu escrutínio.
— Alô, Duncan — disse Karl no meio do silêncio. — Bem-vindo à Terra.
Enquanto Duncan estava distraído ele havia emergido pelo tumulto de um pequeno cubículo no lado de baixo da parábola, e estava naquele momento descendo uma espécie de escadinha precária. Sua descida lhe parecia extremamente perigosa, pois estava usando apenas uma mão; a outra estava segurando firmemente um caderno grande, e Duncan não relaxou enquanto não viu Karl inteiramente a salvo sobre a plataforma, a alguns metros de distância. Ele não fez nenhuma tentativa de aproximar-se, mas ficou olhando para Duncan com uma expressão completamente imensurável, nem amigável, nem hostil.
Depois veio aquela pausa embaraçosa quando nenhuma das partes deseja falar primeiro, e como se prolongasse interminavelmente, Duncan se deu conta pela primeira vez de um leve murmúrio onipresente que circulava em volta. A rede do Ciclope estava viva agora, e suas centenas de motores estavam funcionando em sincronia perfeita. Não havia nenhum movimento perceptível das grandes antenas, mas elas iriam começar a movimentar-se à fração de um centímetro por segundo. As múltiplas facetas do Olho do Ciclope, tendo fixado o seu alvo nas estrelas, estavam girando na velocidade precisa da contra-rotação da Terra.
Que tolice, dois homens adultos neste altar espantoso, dedicado ao próprio cosmo, portarem-se como crianças, cada um tentando suplantar o outro! Duncan tinha a dupla vantagem da surpresa e da consciência limpa. Não teria nada a perder se falasse primeiro. Não queria tomar a iniciativa e com isso antagonizar Karl, de modo que era melhor abrir a conversa com alguma coisa trivial.
Não, não o tempo. A quantidade de conversa sobre o tempo era uma coisa incrível na Terra! — mas algo igualmente neutro.
— Foi o trabalho mais duro que já fiz aqui. Não posso acreditar que estas pessoas escalem montanhas.
Karl examinou este truque verbal procurando por alguma armadilha. Depois encolheu os ombros e respondeu:
— A montanha mais alta da Terra é duzentas vezes mais alta do que isto aqui. E os terrenos a escalam todo o ano.
Pelo menos o gelo tinha sido quebrado e a comunicação estabelecida. Duncan se permitiu um sinal de alívio; ao mesmo tempo que agora estavam no mesmo lugar, ficou chocado com a aparência de Karl. Parte daquele cabelo dourado tinha-se tornado cinza, e havia muito menos cabelo. Naquele ano, desde que tinham se encontrado pela última vez, Karl tinha envelhecido uns dez anos. Havia pés-de-galinha de ansiedade em volta dos olhos, e seu cenho estava agora permanentemente franzido. Também parecia que tinha encolhido consideravelmente, e a gravidade da Terra não poderia ser a única responsável por aquilo, pois Duncan era ainda mais vulnerável. Em Titã, ele sempre tinha que olhar para cima para falar com Karl. Agora, enquanto estavam cara a cara, seus olhos estavam no mesmo nível.
Mas Karl evitava o seu olhar, e movia-se irrequieto de cá para lá, agarrando firmemente o caderno que ainda carregava. A um momento encaminhou-se para a beirada da plataforma e inclinou-se quase que com ostentatório descuido contra a grade protetora.
— Não faça isto — protestou Duncan —; me faz ficar nervoso.
Este, suspeitava Duncan, deveria ser o propósito daquele exercício.
— Por que você se importaria?
A resposta brusca entristeceu Duncan além da medida. Só pôde responder:
— Se você não sabe, é muito tarde para que eu lhe explique.
— Bem, creio que esta não deve ser uma visita social. Suponho que você tenha visto Calindy.
— Sim, eu a vi.
— O que está tentando fazer?
— Não posso falar por Calindy. Ela nem sabe que estou aqui.
— O que os Makenzies estão tentando fazer? Para o bem de Titã, claro.
Duncan achou melhor não discutir; ele nem ficou zangado com a provocação calculada.
— O que estou tentando fazer é evitar um escândalo... e ainda não está tarde demais.
— Não sei de que está falando.
— Você sabe perfeitamente bem. Quem autorizou sua viagem para a Terra? Quem está pagando suas despesas?
Duncan esperava que Karl mostrasse alguns sinais de culpa, mas estava enganado.
— Temos amigos aqui. E não me lembro de que os Makenzies tivessem preocupações com regulamentos. Como foi que o Malcolm conseguiu o primeiro contrato de reabastecimento orbital?
— Isto foi há cem anos, quando ainda estava tentando incentivar a economia de Titã. Agora não há desculpas para irregularidades financeiras. Especialmente para satisfazer fins pessoais.
Isto era claramente um tiro no escuro, mas parece que atingiu algum alvo. Pela primeira vez Karl aparentou zanga.
— Você não sabe o que está falando. Um dia Titã. . . Ciclope interrompeu-o delicada, mas friamente. Eles já tinham quase que esquecido do lento tracejar das grandes antenas por todo lado e não tinham nem se dado conta do leve murmúrio ou das centenas de motores ligados. Até alguns segundos atrás a plataforma superior da 005 tinha estado protegida pelo guarda-chuva invertido da antena vizinha, mas agora sua sombra já não estava caindo sobre eles. O eclipse artificial tinha terminado e foram atingidos pelo sol dos trópicos.
Duncan fechou os olhos até que seus óculos escuros se ajustaram à luminosidade. Quando os abriu de novo estava num mundo distintamente dividido entre a noite e o dia. De um lado, tudo era visível, enquanto que na sombra, a alguns centímetros de distância, não podia ver absolutamente nada. O contraste entre a luz e a sombra foi tão exagerado pelos seus óculos que Duncan podia até se imaginar na superfície sem atmosfera da Lua.
Estava também terrivelmente quente, principalmente para os titanianos.
— Se você não se importa — disse Duncan, ainda decidido a ser delicado —, vamos nos mudar para o lado da sombra.
Seria bem de Karl recusar-se, ou por simples teimosia ou para demonstrar sua superioridade. Ele não estava nem usando óculos, embora estivesse fazendo sombra com o caderno.
Para surpresa de Duncan, Karl seguiu-o docemente pelo patamar, para dentro da convidativa sombra da parte norte da torre. A simples banalidade da interrupção parece ter-lhe desviado do seu curso.
— Como estava dizendo — disse Duncan, depois que se acomodaram. — Estou apenas tentando evitar situações embaraçosas que trariam desagrado tanto para Titã como para a Terra. Não há nada pessoal nisto tudo e desejava que outra pessoa estivesse no meu lugar, acredite.
Karl não respondeu logo, mas curvou-se e cuidadosamente colocou o seu caderno no pedaço da grade mais sem ferrugem que ele pôde encontrar. O gesto fez com que Duncan recordasse tão vivamente os velhos tempos que ele ficou absurdamente emocionado. Karl nunca tinha sido hábil para externar suas emoções a não ser que quisesse ter as mãos livres e o caderno obviamente fosse um impedimento.
— Ouça com cuidado, Duncan — começou Karl. — Seja o que for que Calindy tenha-lhe contado. . .
— Ela não me disse nada.
— Ela deve ter ajudado você a me encontrar.
— Nem mesmo isso. Ela nem sabe que estou aqui.
— Eu não acredito em você.
Duncan sacudiu os ombros e permaneceu em silêncio. Sua estratégia parecia estar dando certo. Mostrando que sabia muito mais do que na realidade — o que na verdade era bem pouco —, ele esperava minar a segurança de Karl e suscitar mais afirmações da parte dele. Mas o que poderia fazer naquele momento ainda não sabia. Podia apenas se apoiar na máxima de Colin a respeito do melhor manejo do imprevisível.
Karl começou naquele momento a andar de um lado para outro de uma tal maneira que, pela primeira vez, Duncan se sentiu nitidamente nervoso. Lembrou-se do aviso de Calindy, e mais uma vez lembrou-se de que aquele lugar não era de modo algum adequado para o confronto com adversário que podia ser um pouco desequilibrado.
Subitamente Karl parecia ter tomado uma decisão. Parou seu hesitante passeio sobre o patamar estreito e virou-se nos calcanhares tão abruptamente que Duncan chegou a mexer-se involuntariamente para trás. Então percebeu com surpresa e alívio que as mãos de Karl estavam estendidas num gesto de súplica e não de ameaça.
— Duncan — começou ele numa voz agora completamente mudada. — Você pode ajudar-me para o que estou tentando fazer.
Era como se o Sol tivesse explodido. Duncan jogou as mãos para cima dos olhos e apertou-as firmemente, evitando a luminosidade intolerável. Ouviu um grito de Karl, e um momento depois o outro colidiu violentamente contra ele retornando imediatamente.
A detonação actínica havia durado apenas uma fração de segundo. Poderia ter sido um raio? Mas, se tinha havido, onde estava o trovão? Deveria ter vindo instantaneamente, com um relâmpago daqueles.
Duncan atreveu-se a abrir os olhos e notou que podia enxergar de novo, embora através de um nevoeiro meio cor-de-rosa. Mas Karl, era óbvio, não podia ver nada, estava esbarrando como um cego por tudo, com as mãos apertando os olhos. E ainda o relâmpago não tinha vindo. . .
Se Duncan não tivesse ficado paralisado com o choque, poderia ter agido em tempo. Tudo parecia acontecer em câmara lenta como num sonho. Não podia acreditar que era realidade.
Viu o pé de Karl bater no precioso caderno, de modo que este caiu voando no espaço, agitando-se em direção ao solo como um pássaro estranho. Cego como estava, Karl deve ter percebido o que tinha acontecido. Totalmente desorientado, fez um esforço inútil para agarrá-lo no ar, depois bateu na grade protetora. Duncan tentou alcançá-lo, mas era tarde demais. Mesmo naquele momento, não teria havido perigo, mas os anos e a ferrugem tinham feito o seu trabalho. Quando o traiçoeiro metal se partiu parecia a Duncan que Karl tinha gritado o seu nome. No último segundo de sua vida.
A AUDIÊNCIA
— Você não está sob sanção legal — explicou o Embaixador Farrel. — Se quiser, posso pedir imunidades diplomáticas para você. Mas não seria inteligente, e poderia levar a várias — ah — dificuldades. De qualquer maneira, este inquérito é do interesse geral das partes implicadas. Queremos saber o que aconteceu tanto quanto eles.
— E quem são eles?
— Mesmo que soubesse, não poderia dizer a você. Digamos, o Departamento de Segurança da Terra.
— Vocês ainda têm este tipo de tolice aqui? Pensava que espias e agentes secretos já estivessem extintos há cem anos.
— Burocracias são autoperpetuadoras. Você deveria saber disto. Mas as civilização terá sempre pessoas descontentes, para usar uma frase que já ouvi alguma vez. Embora a polícia, como em Titã, se ocupe da maioria das questões, existem casos que exigem tratamento especial. Em tempo, me pediram para assegurar-lhe que qualquer coisa que desejar revelar será mantida em sigilo e não será publicada sem a sua autorização. E se você desejar, posso ir com você para dar-lhe apoio moral e orientação.
Mesmo agora, Duncan ainda não sabia quem que o Embaixador estava representando, mas a oferta era razoável e ele a aceitou. Não podia ter nenhum prejuízo neste encontro privado. Alguma espécie de inquérito judicial obviamente era necessária, mas, quanto menos publicidade, melhor.
Ele mais ou menos esperava ser levado num carro às escuras numa viagem longa e tortuosa para algum prédio grande e subterrâneo nas profundezas da Virgínia ou de Maryland. Foi um pouco decepcionante terminar num pequeno escritório no antigo prédio do Departamento de Estado, falando com um Assistente do Subsecretário com o nome improvável de John Smith.
Uma investigação ulterior, feita por Duncan, revelou que ele realmente se chamava John Smith, embora logo tivesse ficado claro que havia muito mais naquele escritório do que a mesa e três poltronas confortáveis.
Duncan suspeitou de um grande espelho que cobria a maior parte da parede. Seu anfitrião ou interrogador — se quisermos ser melodramáticos — percebeu a direção do seu olhar e sorriu para ele candidamente.
— Com a sua permissão, Sr. Duncan, gostaríamos de gravar este encontro. E existem vários outros participantes observando. Eles poderão se apresentar de tempos em tempos. Se o senhor não se importa, não os apresentarei.
Duncan cumprimentou-os polidamente através do espelho.
— Não tenho nenhuma objeção à gravação — disse ele. — O senhor se importa se eu também usar o Minisec?
Houve um silêncio pesado, quebrado apenas pelos risinhos1 do Embaixador. Aí, o Sr. Smith respondeu:
— Preferimos lhe dar uma cópia do transcrito. Posso lhe prometer que será bem detalhada.
Duncan não fez muita pressão. Provavelmente causaria embaraços se aquelas vozes envolvidas fossem ouvidas por estranhos. De qualquer modo, uma transcrição seria perfeitamente aceitável. Poderia confiar em sua memória para localizar erros ou omissões.
— Bem, então, melhor ainda — disse o Sr. Smith, obviamente aliviado. — Vamos começar.
Simultaneamente, alguma coisa estranha aconteceu no escritório. Sua acústica mudou subitamente, como se tivesse de repente ficado maior. Não saberia dizer se estavam realmente em Washington ou em alguma parte distante da Terra. E deu-lhe uma sensação inconfortável de nudez o fato de estar cercado por uma audiência invisível de espectadores.
Um momento depois, uma voz falou no ar, imediatamente à sua frente.
— Bom-dia, Sr. Makenzie. Seria bom para o senhor poupar-nos o seu tempo, e por favor nos desculpe a reticência. Se o senhor pensa que isto é alguma espécie de melodrama de espionagem do século vinte, nossas desculpas. Em noventa e nove por cento das ocasiões, estas precauções são totalmente desnecessárias. Mas nunca podemos dizer qual ocasião será a centésima.
Era uma voz poderosa, amiga, muito profunda e ressonante. Contudo, havia nela algo de pouco natural. Um computador?, Duncan perguntou-se a si mesmo. Mas isto seria uma dedução muito fácil. De qualquer modo não havia meio de distinguir a vocalização de um computador da fala humana — especialmente agora que um número realístico de "err, bem", sentenças incompletas e erros gramaticais óbvios poderiam ser incorporados para que os participantes não eletrônicos de uma conversa pudessem sentir-se mais à vontade. Imaginou que estivesse ouvindo uma pessoa que falava através de um círculo que disfarçasse sua voz.
Enquanto Duncan estava ainda decidindo se seria necessário responder, um outro interlocutor falou. Desta vez a voz emergiu a cerca de meio metro de sua orelha esquerda.
— É justo reassegurá-lo num ponto, Sr. Makenzie. Até onde podemos saber, nenhuma das leis da Terra foi transgredida. Não estamos aqui para investigar um crime. . . somente para solucionar um mistério. .. para explicar uma tragédia. Se qualquer lei de Titã estiver sendo violada, isto será um problema seu. . . não nosso. Espero que compreenda.
— Sim — disse Duncan. — Presumia que fosse este o caso. Estou satisfeito por obter a sua confirmação.
Isto era, na verdade, um alívio, mas sabia que ainda não podia relaxar. Talvez aquela afirmação fosse exatamente o que parecia ser um amigável pedido de cooperação. Mas poderia também ser uma armadilha.
Agora veio uma voz feminina imediatamente por trás, e Duncan teve que resistir ao impulso de virar para falar com a sua interlocutora. Será que esta mudança bastante desnecessária de mudar o foco de som era uma tentativa deliberada para desorientá-lo? Será que o consideravam assim tão ingênuo?
— Para nos poupar tempo, deixe-me dizer que possuímos um completo sumário do passado do Sr. Helmer. (E meu, pensou Duncan.) O seu governo nos ajudou muito, mas o senhor deve estar de posse de informações que são totalmente desconhecidas para nós, já que era um de seus amigos mais próximos.
Duncan aquiesceu, sem se preocupar em responder. Deveriam saber tudo sobre aquela amizade e o seu fim.
Como se em resposta a um sinal oculto, o Sr. Smith abriu sua pasta e colocou cuidadosamente um pequeno objeto sobre a mesa.
— O senhor reconhecerá este objeto, evidentemente — continuou a voz feminina. — A família Helmer pediu que fosse entregue ao senhor, em custódia, junto com o resto dos pertences do falecido.
A visão do Minisec de Karl — virtualmente do mesmo modelo do seu — foi por si só um choque tão grande, que a princípio o resto da frase falhou em atingi-lo. Depois Duncan reagiu com um pulo e disse:
— Pode, por favor, repetir esta última frase?
Houve uma demora tão surpreendente que Duncan pensou que a pessoa estivesse na Lua. Durante o curso da sessão Duncan ficou quase certo disto. Com todos os interrogadores havia um rápido ir e vir, mas com a mulher havia sempre um lapso de tempo invariável.
— Os Helmers pediram que o senhor ficasse encarregado dos pertences de seu filho, até nova ordem.
Era um gesto de paz, através da sepultura de todas as suas esperanças, e Duncan sentiu seus olhos se encherem de lágrimas, que não pôde reprimir. Olhou para a quantidade de microeletrônicos na mesa, e sentiu uma profunda relutância mesmo em tocá-los.
Ali estavam todos os segredos de Karl. Será que os Helmers teriam pedido que ele os guardasse se tivessem algo a esconder? Mas certamente havia muita coisa que Karl tinha ocultado de sua família. Deveria haver muita coisa naquele Minisec que somente Karl sabia. É verdade que teria sido guardado em palavras-código muito bem escolhidas. Algumas delas possivelmente ligadas a circuitos para apagá-las, para evitar intrusões desautorizadas.
— Naturalmente — continuou a voz que vinha da Lua (se fosse mesmo da Lua). — Estamos interessados no que pode existir neste Minisec. Em particular, gostaríamos de qualquer lista de contatos aqui da Terra. . . endereços ou números pessoais.
Sim, pensou Duncan, eu posso entender isto. Tenho certeza de que foram tentados a fazer alguns interrogatórios a esta altura. Mas estão com receio de possíveis circuitos de anulação das gravações, e querem explorar outras alternativas primeiro . ..
Olhou pensativo para aquela pequena caixa sobre a mesa, com seus múltiplos botões e seu painel de leitura agora às escuras. Ali estava um invento de uma complexidade além da compreensão das eras mais antigas— praticamente, um simulacro de um cérebro humano. Dentro dele havia bilhões de bits de informação, guardados em intermináveis redes atômicas, aguardando para serem chamados através de sinais adequados — ou apagados pelos sinais errados. No momento, estava sem vida, inerte, como a própria consciência no seu mais profundo sono. Não, nem tão inerte assim. O relógio e o calendário ainda deveriam estar operando marcando os segundos, minutos e os dias, agora já sem interesse para Karl.
Uma outra voz apareceu, desta vez da direita.
— Perguntamos ao Sr. Armand Helmer se o seu filho tinha-lhe deixado algumas palavras do código, como é comum nestes casos. O senhor saberá outros detalhes sobre este assunto mais tarde. Por enquanto, não faremos nenhuma tentativa para obter leituras. Com sua permissão, nós gostaríamos de reter o Minisec no momento.
Duncan estava ficando meio cansado de ver tantas decisões sendo tomadas em seu lugar, e aparentemente os Helmers tinham afirmado que ele deveria tomar posse das coisas de Karl. Mas não havia possibilidades de objeção, e se o fizesse alguma formalidade legal sem dúvida se materializaria do ar como aquelas vozes misteriosas.
O Sr. Smith estava buscando na sua pasta de novo.
— Agora há um outro assunto. Tenho certeza de que o senhor também reconhecerá isto.
— Sim, Karl sempre carregava um caderno de desenho.
Era este o que tinha consigo quando...
— É. O senhor gostaria de dar uma olhada e ver se ha alguma coisa fora do comum. .. notável... de algum valor para esta investigação? Mesmo que lhe pareça muito trivial ou irrelevante, por favor, não hesite em dizê-lo.
Que abismo tecnológico entre estes dois objetos! O Minisec era um triunfo da Era Neoeletrônica; o caderno de desenho deve ter existido virtualmente imutável pelo menos por mil anos — também o lápis metido por dentro dele. Era verdade, como disse uma vez um filósofo da História, que o homem nunca abandona completamente suas ferramentas antigas. Contudo, os cadernos de Karl sempre foram uma espécie de afetação.
Ele podia fazer desenhos técnicos competentes, mas nunca demonstrou talento para desenho artístico.
Na medida que Duncan virava lentamente as páginas, estava consciente dos olhares ocultos à sua volta. Sem nenhuma dúvida, cada página tinha sido cuidadosamente registrada, usando todas as técnicas que pudessem mostrar marcas invisíveis ou traços apagados. Era difícil acreditar que ele pudesse contribuir além das investigações que já haviam sido feitas.
Karl, aparentemente, usava o caderno de desenho para anotar tudo que lhe interessava, tentando assim conduzir uma espécie de diálogo consigo mesmo, e expressar suas emoções. Havia palavras cifradas e pequenos números escritos numa letra precisa, fragmentos de cálculos e equações, esquemas matemáticos . ..
E havia vistas do espaço, obviamente desenhos esquemáticos de cenas nas luas externas, com o círculo formalizado de Saturno pendurado no céu...
Diagramas de circuitos, com mais cálculos cheios de lambdas e ômegas, e anotações de vetores que Duncan podia reconhecer, mas não podia entender. .. e aí, de repente, surgindo impetuosamente daquelas páginas de notas impessoais e esquemas mal feitos, algo que respirava parecendo ter vida, algo que poderia ter sido o trabalho de um verdadeiro artista: um retrato de Calindy desenhado com um cuidado obviamente amoroso.
Deveria ser instantaneamente reconhecível; contudo, por estranho que parecesse, Duncan, por uma fração de segundo, olhou para o retrato sem emoção. Esta não era a Calindy que ele conhecia agora, porque a mulher real já estava apagando a imagem do passado. Ali estava a Calindy de quem os dois se lembravam — a moça da bola de estéreo, além do alcance do tempo.
Duncan observou a figura por longos minutos antes de virar a página. Estava realmente excelente — bem diferente dos outros desenhos. Mas, também, quantas vezes Karl não a teria desenhado repetidas vezes durante os anos anteriores?
Ninguém à sua volta falou com ele, nem o interrompeu, e a um certo momento ele continuou. . . Mais cálculos. . . padrões de hexágonos, balançando na distância — mas, é evidente!
— Este é o entrelaçado da titanita, mas o número que está escrito nada significa para mim. Parece um código de viddy da Terra.
— Você está certo. E o número de um comerciante de pedras aqui em Washington. Não é Ivor Mandel'stahm, se é em quem estiver pensando. Esta pessoa nos assegura que o Sr. Helmer nunca o procurou e nós acreditamos. Provavelmente é um número que adquiriu de uma maneira ou de outra, anotou, mas nunca chegou a usar. . . mais cálculos, agora com muitas freqüências e ângulos de fase. Sem dúvida coisa de comunicações — parte do trabalho regular de Karl. . . figuras geométricas, todas baseadas no motivo hexagonal...
Calindy de novo — somente um perfil desta vez, não demonstrando o encanto do primeiro desenho. . . um padrão hexagonal de pequenos círculos, visto no plano e na elevação. Somente alguns estavam desenhados em detalhe, mas era óbvio que deveriam ser centenas. A interpretação era igualmente óbvia.
— A rede de Ciclope — ele tinha escrito o número de elementos e as dimensões totais.
— Por que você acha que ele estava tão interessado?
— Seria muito natural. . . é o maior e mais famoso telescópio da Terra. Ele me falou a respeito, muitas vezes.
— Alguma vez falou em visitá-lo?
— É possível que sim, mas não me lembro. Afinal, foram anos atrás.
As páginas seguintes, embora muito superficiais e diagramáticas, eram claramente dos detalhes do Ciclope — alimentação das antenas, mecanismos de escrutínio, pedaços obscuros de circuitos intercalados com mais cálculos ainda. Um desenho tinha sido esboçado, mas não terminado. Duncan olhou tristemente para o esboço, depois virou a página. Como já esperava, a outra página estava em branco.
— Sinto desapontá-los — disse fechando o caderno. — Mas não estou conseguindo perceber nada. A atividade de Karl, do Sr. Helmer, era ciência da comunicação. Ele tinha ajudado a criar a Ligação dos Planetas Internos de Titã. Isto tudo é parte de seu trabalho, seu interesse é absolutamente compreensível e não vejo nada de anormal nisto tudo.
— Talvez tenha razão, Sr. Makenzie, mas o senhor ainda não terminou.
Duncan olhou com surpresa para o ar vazio. Neste momento, o Subsecretário Smith fez um gesto referindo-se ao caderno.
— Nunca tome nada como definitivo. Comece pelo fim do» caderno.
Sentindo-se meio tolo, Duncan reabriu o caderno e o virou de cabeça para baixo, quando percebeu que Karl o tinha usado em ambas as direções.
A página da capa estava em branco, mas a página oposta continha uma única palavra enigmática: Argus. Não significava nada para Duncan, embora lhe trouxesse a vaga lembrança de uma associação não identificável com a História. Virou a página e teve um dos maiores choques de sua vida. Quando olhou para o desenho que ocupava quase todo o papel, foi transportado para o Recife Dourado. Não poderia haver engano. Contudo, pelo que Duncan sabia, Karl jamais tinha manifestado interesse nas minúcias da zoologia terrestre. Somente a idéia de que um titaniano pudesse se interessar por zoologia marinha era levemente incongruente.
No entanto, ali estava um estudo detalhado, com a perspectiva meticulosamente organizada em torno dos eixos x, y e z do Ouriço Pontudo, Diadema. Somente uma dúzia de seus espinhos radiais estava demonstrada no desenho, mas ficava claro que havia centenas ocupando a esfera de espaço em volta dele.
Aquilo era bastante espantoso, mas ainda havia algo mais notável. Este desenho deveria ter requerido horas de esforço devotado. Karl tinha dedicado a um insignificante invertebrado — que certamente nunca deveria ter visto em sua vida! — todo o amor de habilidade que tinha aplicado em seu desenho de Calindy.
À luz de um dia ensolarado, do lado de fora do Departamento de Estado, Duncan e o Embaixador tiveram que esperar uns cinco minutos até que o próximo carro de transporte chegasse deslizando silenciosamente ao longo da Virgínia Avenue. Não havia ninguém por perto, e Duncan então perguntou ao Embaixador:
— O nome Argus significa alguma coisa para você?
— De certo modo, sim. Só que não sei de que maneira pode ajudar. Tenho ainda os remanescentes de uma educação clássica, e, se não estiver muito enganado, Argus era nome do velho cachorro de Odisseu. Ele o reconheceu quando voltou para Itaca depois de ter-se ausentado por vinte anos, e depois morreu.
Duncan ficou cismando sobre esta informação por alguns segundos e depois deu de ombros.
— Você tem razão. Não ajuda em nada. E ainda gostaria de saber por que estas pessoas que eu encontrei. . . ou melhor, que não encontrei. . . estão interessadas em Karl. Como admitiram a princípio, não há nenhum indício de que Karl tenha feito algo ilegal, pelo menos em relação à Terra. Como suponho que tenha apenas "torcido" algumas leis de Titã e não "quebrado".
— Só um momento, só um momento! — disse o Embaixador. — Você me lembrou uma coisa. — Sua face passou por umas contorções bastante elaboradas, depois se alisou. Olhou para os lados com um ar conspirador, viu que não havia ninguém escutando, e o carro-transporte ainda estava a uns três minutos de distância, segundo o indicador.
— Penso que descobri. Mas peço-lhe que não o atribua a mim. Mas considere esta minha especulação meio louca:
— Todo o organismo possui mecanismos para sua defesa. Você acabou de encontrar um deles — parte do sistema de segurança da Terra. Este grupo em particular, sejam quais forem suas responsabilidades, provavelmente constitui uma boa porção" de pessoas importantes. Espero conhecer a maioria deles — de fato, uma das vozes... mas isto não importa...
— Você poderia chamá-lo de Comitê dos Cães de Guarda. Este comitê deve ter um nome — um nome secreto, naturalmente. No curso das minhas atribuições, ocasionalmente escuto coisas assim e cuidadosamente as esqueço. ..
— Bem, Argo era um cão de guarda. Então haveria algum nome mais apropriado para este grupo? Preste atenção para o fato de que ainda não estou afirmando nada. Mas imagine a situação crítica de uma organização secreta quando chega a descobrir o seu nome cuidadosamente soletrado em circunstâncias altamente misteriosas.
Era uma teoria bem plausível, e Duncan tinha certeza de que o Embaixador não a teria desenvolvido sem ter excelentes razões. Mas não tinha alcançado nem a metade do caminho.
— Tudo isto está muito bem. Estou preparado para aceitá-lo. Mas que diabo tudo isto tem a ver com um desenho de um ouriço do mar? Sinto que estou ficando maluco aos pouquinhos.
O carro-transporte estava agora parando em frente deles, e o Embaixador se despediu na porta.
— Se existe algum consolo nisto, Duncan, posso assegurar-lhe que está em muito boa companhia. Eu sacrificaria uma boa parte de minha modesta aposentadoria, se pudesse dar uma espiada agora no Subsecretário Smith e seus amigos invisíveis.
NEGÓCIOS E DESEJO
Não havia meios de precisar, olhando para Duncan de pé na janela de Calindy, se ele estava ou não olhando para o tráfego intenso da Rua 57, numa noite fria de inverno, quando os flocos de neve estavam caindo rapidamente para logo se derreterem contra a calçada aquecida. Mas estávamos no verão, e não no inverno. E mesmo a limusine do Presidente Bernstein não estava tão velha como os carros que se moviam silenciosamente cem metros abaixo. Ele estava observando o passado, talvez um holograma do finado século vinte. Contudo, embora soubesse que estava realmente sob a terra, não havia nada que pudesse fazer para convencer-se do fato.
Estava só com Calindy, finalmente, embora em circunstâncias com as quais nunca poderia ter sonhado alguns dias atrás. Que ironia, agora que a oportunidade tinha chegado, que não sentisse nem a mais leve flama de desejo!
— O que é isto? — perguntou desconfiado, quando Calindy lhe entregou um fino copo de cristal contendo um líquido vermelho-sangue.
— Eu disse que o nome não significaria nada, è se eu dissesse quanto custa você ficaria com receio de beber. Apenas, experimente-o devagar, não terá outra oportunidade. Fará bem a você.
Era gostoso, suave, levemente adocicado, e Duncan estava bastante convencido, carregado com muitos megatons de incontida energia. Ele o provou lentamente, na verdade, enquanto observava Calindy movimentando-se no quarto.
Ele não sabia o que esperar, contudo o seu apartamento tinha sido algo como uma surpresa. Era quase frio em sua simplicidade, mas grande e lindamente bem proporcionado, com paredes cinza-pombo e um teto azul abobadado como o céu, e um tapete verde que dava a impressão de um pequeno mar. Havia mesmo umas doze peças de mobília: quatro poltronas bem profundas, dois divas, uma escrivaninha fechada, uma vitrine cheia de porcelana chinesa, uma mesa baixa sobre a qual estava apoiada uma caixa pequena e um livro esplêndido de primitivos do século vinte — e, é claro, um comsole com sua tela exibindo arte abstrata muito distante da primitiva.
Mesmo sem a força da gravidade para lembrar-lhe, não havia perigo de Duncan esquecer-se de que estava na Terra. Duvidava que uma casa particular de qualquer outro planeta pudesse mostrar aquela arrumação, mas ele não gostaria de morar lá. Tudo era um pouco perfeito demais, e mostrando claramente a obsessão terrena pelo passado. De repente, lembrou-se da observação do Embaixador Farrel: não estamos decadentes, mas nossos filhos estarão. Talvez isto incluísse a geração de Calindy. O Embaixador Farrel deveria estar certo. . .
Tomou outro gole, enquanto observava Calindy em silêncio, a orbitar pelo quarto. Claramente preocupada, ela ajeitou a cadeira um milímetro para cá, e ajustou um quadro um igualmente invisível milímetro para lá. Depois veio de volta para o diva e sentou-se ao lado de Duncan.
Um pouco mais propositadamente, inclinou-se sobre a mesinha e pegou uma caixa que ali estava.
— Você já viu estas coisas? — perguntou enquanto destampava a caixa.
Deitada num ninho de veludo estava uma coisa que parecia um grande ovo de prata, duas vezes o tamanho dos ovos reais, que Duncan tinha encontrado no Hotel Centennial.
— O que é isto? — perguntou. — Uma escultura?
— Pegue-o, mas cuidado para não deixar cair.
Apesar do seu aviso, quase que deixou escapulir. O ovo não era pesado mas parecia vivo, até se mexendo em sua mão, embora não revelasse nenhum sinal de movimento. Contudo, quando o observou com mais cuidado, poderia ver desmaiadas faixas opalescentes surgindo sobre a superfície e momentaneamente embaçando o polimento especular. Pareciam muito com ondas de calor, porém não havia sensação de aquecimento.
— Envolva-o com ambas as mãos — instruiu Calindy — e feche os olhos.
Duncan obedeceu, apesar de um impulso quase irresistível de ver o que estava acontecendo ao objeto extraordinário que estava segurando. Sentiu-se completamente desorientado porque parecia que o sentido do tato — o mais confiável de todos os mensageiros do homem para o universo exterior — estava traindo-o.
Pois a própria textura do ovo estava constantemente mudando. Já não lhe parecia um metal, inacreditavelmente sentia-o peludo. Poderia estar acariciando um pequeno animal lanudo — um gatinho talvez...
Mas, somente por segundos. O ovo tremeu, tornou-se duro e áspero — era feito de lixa, grossa o suficiente para arranhar a pele... a lixa transformou-se em cetim, tão macio e sedoso que desejava acariciá-lo. Não houve quase tempo para obedecer àquele impulso, quando. . .
O ovo estava se liqüefazendo e tornando-se gelatinoso; parecia que estava quase escorrendo por entre os seus dedos, e Duncan teve que se esforçar para não largá-lo com nojo. Somente o conhecimento de que isto não poderia estar realmente acontecendo é que lhe deu forças para controlar o reflexo. . . era feito de madeira, não havia nenhuma dúvida sobre isto, pois podia até sentir a textura... antes tinha-se dissolvido em milhares de grânulos separados, cada um tão pontudo e distinto que podia senti-los espetando sua pele...
E havia sensações às quais nem podia dar nome, algumas deliciosas, outras neutras, mas algumas tão desagradáveis que ele quase não podia controlar sua repulsão. Finalmente, quando entre suas mãos em concha sentiu o único e incomparável toque da pele humana, a curiosidade e espanto triunfaram. Ele abriu as mãos e o ovo de prata estava completamente intacto, embora agora parecesse uma escultura de sabão.
— Como é o nome disto, céus? — gritou ele.
— É um tactóide. Nunca ouviu falar neles?
— Não.
— É fascinante, não é? Faz ao sentido do tato o que o caleidoscópio faz com o sentido da visão. Não, não me pergunte como funciona. É algo ligado à estimulação elétrica controlada.
— Para que é usado?
— Tudo precisa ter uma finalidade? É só um brinquedo... uma novidade. Mas eu tinha uma boa razão para mostrá-lo a você.
— Ah, eu sei. A última da Terra.
Calindy deu um sorriso conhecedor. Ela reconheceu aquela velha frase-arapuca. Trouxe para ambos, vividamente, a lembrança daqueles dias em Titã, anos atrás.
— Duncan — disse ela tão baixinho que quase não podia ouvir as palavras. — Você acha que foi minha culpa?
Estavam agora sentados a dois metros de distância no diva, e ele tinha que virar o corpo para encará-la. A mulher que via agora não era mais aquela executiva segura de si que encontrou no Titanic, mas uma menina infeliz e insegura. Pensava quanto tempo duraria aquele estado de contrição, mas aquele momento era bem verdadeiro.
— Como posso responder a isto? — respondeu ele. — Ainda estou completamente no escuro. Não sei o que Karl estava fazendo na Terra, ou por que veio até aqui.
Isto era uma verdade parcial. O Minisec de Karl tinha começado a revelar seus segredos. Mas Duncan ainda não estava preparado para discuti-los com ninguém, muito menos com Calindy.
Ela olhou para ele com um olhar de surpresa e respondeu:
— Você quer dizer que ele nunca lhe contou?
— Contou-me o quê?
— O que tinha acontecido naquela última noite a bordo da Mentor?
— Não — respondeu Duncan com lentidão dolorosa. — Ele nunca me falou a este respeito.
Depois de tantos anos, aquela traição ainda estava amarga em sua memória. Agora sabia, é claro, que seria absurdo para dois jovens obcecados por sua própria tristeza pensar nos sentimentos de um garoto que adorava a ambos. Não podia culpá-los agora, mas, em seu coração, nunca os tinha perdoado.
— Então você não soube que usamos uma máquina de alegria?
— Oh, não!
— Tinha este receio. A idéia não foi minha. Karl insistiu e eu não sabia nada melhor. Mas pelo menos fui sensata o suficiente para não usá-la em mim mesmo. Bem, só muito levemente. . .
— Eram ilegais mesmo naquele tempo. Como conseguiram uma a bordo da Mentor?
— Havia muitas coisas na Mentor de que ninguém nunca soube da existência.
— Tenho certeza disto. Mas, o que aconteceu?
Calindy levantou-se de novo e começou a caminhar de lá para cá, evitando o olhar de Duncan, e continuou:
— Não gosto de pensar nisto, mesmo agora me assusta, e posso compreender como as pessoas ficam desesperadamente viciadas com ela. Tenho certeza de que seus dedos jamais tocaram algo tão. . . palpável, seria a única palavra. .. como um tactóide. A Máquina do Prazer é a mesma coisa. Faz com que a vida real nos pareça pálida e pobre. . . e Karl, lembro-me bem, usou-a no ponto máximo. Eu lhe disse que não fizesse aquilo, mas ele riu. Estava certo de que poderia manejá-la.
Sim, pensou Duncan, seria bem a maneira como ele agiria. Embora nunca tivesse visto um Amplificador de Emoções, havia um sob controle apropriado no Hospital Central de Oásis. Era um instrumento psiquiátrico de valor, mas quando as versões simples, portáteis, batizadas de Máquinas do Prazer foram lançadas no mercado, perto da metade do século, espalharam-se como uma praga nos mundos habitados. Ninguém jamais poderia saber quantas mentes imaturas foram destruídas por elas. Queimadura do cérebro era uma doença dos anos sessenta, até que a epidemia percorreu o seu curso, deixando centenas de seqüelas emocionais. Karl teve sorte de ter escapado.
Mas, evidentemente, ele não tinha escapado. Era esta a verdade a respeito do seu esgotamento nervoso, e a explicação de sua mudança de personalidade. Duncan começou a sentir uma raiva gelada de Calindy. Ele não acreditava em seus protestos de inocência; ela já deveria saber das coisas mesmo naquela época. Mas parte da sua raiva era baseada em julgamentos morais. Ele culpava Calindy por ela ainda estar viva, enquanto que Karl estava congelado no necrotério de Aden, como uma esplêndida estátua de mármore destruída pelo tempo e depois cuidadosamente restaurada. Teria que aguardar lá naquele lugar até que as complicações legais que envolviam o destino de defuntos extraterrenos fossem resolvidas. Esta era uma outra tarefa que tinha caído sobre seus ombros. Ele tinha feito tudo que considerava necessário antes de despedir-se do amigo que já tinha perdido muito antes de sua morte.
— Acho que percebo o cenário — continuou Duncan, tão asperamente que Calindy o encarou com súbita surpresa. — Mas, fale-me do resto, o que aconteceu depois?
— Karl tinha o hábito de me mandar longos discursos loucos, selados em entrega especial. Dizia que jamais seria capaz de amar mais ninguém. Disse-lhe para não ser tolo, mas para esquecer-me o mais rápido que pudesse, desde que jamais poderíamos nos encontrar de novo. O que mais poderia dizer? Não percebia como era inútil aquele conselho. . . como se dissesse a alguém para que parasse de respirar. Só descobri anos depois o que é que a Máquina do Prazer causava no cérebro.
— Você sabe, Duncan, ele estava falando a verdade literal quando disse que nunca poderia amar mais ninguém. Quando as Máquinas do Prazer reforçam os circuitos de prazer, criam um padrão permanente de desejos quase indestrutível. Os psicólogos chamam a isto de impressões elétricas. Creio que devam existir técnicas para modificar estas impressões atualmente, mas antigamente, há quinze anos, não havia meios nem mesmo ha Terra. E certamente muito menos em Titã.
— Depois de algum tempo, parei de responder: não havia nada que eu pudesse dizer. Mas, ainda ouvia notícias de Karl, muitas vezes por ano. Jurava que mais cedo ou mais tarde viria à Terra para ver-me de novo. Eu não o levei a sério.
Talvez não, pensou Duncan. Mas, tenho certeza de que não estava completamente desinteressada. Devia ser muito sedutor ter nas mãos a alma de uma pessoa bonita e talentosa como Karl — mesmo que tivesse sido escravizada incidentalmente, com a ajuda de uma máquina. . .
Ele agora podia perceber por que os casamentos de Karl tinham todos terminado violentamente. Já eram condenados
ao fracasso desde o seu início. Sempre a imagem de Calindy deveria ter pairado, como um ideal inatingível, entre Karl e a felicidade. Como deveria ter sido solitário! E quantos mal-entendidos teriam sido evitados se a causa do seu comportamento tivesse sido compreendida a tempo.
Mas talvez nada pudesse ter sido feito, e de qualquer modo seria fútil sonhar com oportunidades perdidas. Quem era o velho filósofo que disse: A raça humana jamais conhecerá a felicidade se as palavras se fosse não forem esquecidas?
— Então deve ter sido uma surpresa para você quando ele finalmente apareceu?
— Não. Ele tinha-me dado vários indícios. Fiquei um pouco à espera dele durante um ano. Aí, ele me ligou do Porto Van Allen, dizendo que tinha chegado num vôo especial e me veria tão logo completasse o seu condicionamento à gravidade.
— Era uma nave de reabastecimento para a Pesquisa Terrena, voltando vazia e rápida. Mesmo assim, levou cinqüenta dias.
E não poderia ter sido uma viagem muito confortável. Duncan acrescentou para si mesmo — cinqüenta dias dentro daqueles "transportes do espaço", com sistema de manutenção de vida mínimo. Que contraste para a Sírio! Teve pena dos oficiais que inocentemente sucumbiram à persuasão de Karl, e esperava que a Corte de Inquérito não arruinasse suas carreiras.
Calindy tinha recuperado um pouco de sua pose. Parou de andar de lá para cá e juntou-se a Duncan no diva.
— Não estava certa de querer revê-lo, depois de todos esses anos, mas sabia o quão decidido ele estava. Teria sido inútil tentar evitá-lo. Então, suponho que você possa dizer que tomei uma atitude de mínima resistência. — Ela conseguiu arranjar um sorriso e continuou:
— Não funcionou, é claro, e eu deveria ter sabido disto. Depois vimos num jornal que você tinha chegado à Terra.
— Isto deve ter representado um choque para Karl. O que disse ele?
— Não falou muito, mas pude perceber que estava inquieto.
— Certamente ele deve ter comentado alguma coisa com você.
— Somente me pediu para que, se você me procurasse, eu não lhe dissesse que ele estava na Terra. Esta foi a primeira vez que suspeitei de que havia algo errado, e comecei a preocupar-me com a titanita que ele havia me pedido para vender.
— Isto é uma bobagem. Esqueça isto. Digamos que esta fosse uma das muitas ferramentas que Karl usava para chegar a seus objetivos. Mas gostaria de saber algo: Quando eu te procurei pela primeira vez, ele ainda estava com você?
Houve outra hesitação que por si só deu-lhe metade da resposta. Depois Calindy respondeu desafiadora:
— Claro que estava. E ficou muito zangado quando disse que ia ao seu encontro. Tivemos uma briga feia sobre o assunto. E não era a primeira. — Ela suspirou bastante dramática.
— Naquele momento mesmo Karl tinha percebido que não daria certo. Eu o tinha prevenido muitas vezes... mas não me acreditava. Ele se recusava a acreditar que a Calindy que tinha conhecido há quinze anos, e cuja imagem estava "queimada" em seu cérebro, já não existia mais...
Duncan não havia pensado ainda que um dia poderia ver lágrimas nos olhos de Calindy. Mas estaria ela chorando por Karl ou por sua juventude perdida?
Tentou ser cínico, mas não foi bem sucedido. Tinha certeza de que alguma parte do seu sofrimento era muito genuína e, independente dele próprio, ficou profundamente sensibilizado. E mais do que isso, porque agora, para sua grande surpresa, sentiu que a simpatia não era a única emoção que sentia por Calindy. Ele nunca havia pensado que a dor partilhada poderia ser um afrodisíaco.
Não fez nada para evitar aqueles sentimentos, apenas não desejava apressar as coisas. Ainda tinha muito que ouvir e só Calindy poderia lhe contar.
— Ele ficava sempre desapontado quando fazíamos amor — ela continuou chorosa —, embora a princípio tentasse disfarçar. Eu podia perceber muito bem. E não era nada agradável porque fazia com que eu me sentisse incompetente. A esta altura eu já tinha aprendido muita coisa sobre eletroimpressoes, e sabia exatamente qual era a dificuldade. O caso de Karl não é único. . .
— Então, ele ficou cada vez mais frustrado... e até violento. Algumas vezes me assustava. Você sabe como ele era forte. Olhe para isto.
Com outro gesto teatral, ela abriu a blusa mostrando o braço superior esquerdo — sem falar no busto todo.
— Ele me agrediu aqui tão violentamente que fiquei seriamente machucada. Você ainda pode ver a marca.
Mesmo com a maior boa vontade do mundo, Duncan não pôde descobrir nenhum traço de machucado na pele branco-leite, macia como o cetim, que estava exposta à sua admiração. De qualquer modo, a revelação não o deixou insensível.
— Então, foi por isto que você desligou o viddy — disse com simpatia e aproximou-se.
— Aí o amigo de Ivor me chamou com aquela pergunta sobre Titã. Pensei que fosse uma coincidência rara. . . você sabe, Duncan, aquilo foi um truque muito indelicado que me fizeram.
Ela parecia mais triste do que zangada, e não se afastou dele. Quase a metade do sofá estava agora desocupada.
— E, de repente, tudo começou a acontecer rapidamente. Você sabe que a Segurança Terrena mandou dois agentes me entrevistarem.
— Não, mas supunha que isto acontecesse. O que você disse para eles?
— Tudo, é claro, e eles foram muito gentis e compreensivos comigo.
— E também estabanados — disse Duncan com profunda mágoa.
— Oh, Duncan, aquilo foi um acidente! Você era um convidado importante... tinha que ser protegido. Teria havido um escândalo interplanetário se algo acontecesse antes do seu discurso no Congresso. Mas você nunca deveria ter ido atrás de Karl naquele lugar tão perigoso.
— Não era perigoso. Estávamos tendo uma discussão perfeitamente amigável. Como eu poderia saber que um daqueles idiotas apertadores de botões estava escondido na antena vizinha?
— O que ele poderia fazer. Tinha recebido ordem de protegê-lo a qualquer custo, e tinha sido avisado de que Karl poderia tornar-se violento. Pareceu-lhe que vocês tinham começado uma briga. . . e aquele tiro de laser teria apenas cegado Karl por algumas horas. Foi tudo um acidente terrível, ninguém é culpado.
Talvez, pensou Duncan, levasse um longo tempo para poder algum dia encarar aqueles acontecimentos sem se emocionar. Se havia alguma culpa, estava espalhada numa fina camada entre os dois mundos. Como a maioria das tragédias humanas, esta tinha sido causada não por más intenções, mas por erros de julgamento, mal-entendidos. . .
Se Malcolm e Colin não tivessem insistido que marcasse um encontro com Karl, para tirar as coisas a limpo... se não tivesse querido que Karl provasse sua inocência, e dado a ele deliberadamente a oportunidade para corrigir-se, mesmo ao ponto de — inconscientemente, mas agora já sabia disto — colocar-se inteiramente sob seu poder. . . Talvez Karl tivesse sido realmente perigoso. Mas aquilo era algo que jamais poderia saber.
Parecia que ambos haviam sido envolvidos numa complexa tessitura do destino, da qual não houve possibilidade alguma de escapar. E, embora a escala daquele desastre fosse muito maior e qualquer comparação pudesse parecer ridícula, Duncan lembrou-se novamente do Titanic. Ele também tinha sido condenado, como se os próprios deuses tivessem conspirado contra ele através de uma série de eventos aparentemente triviais e ocasionais. Se os avisos de rádio não tivessem sido soterrados sob os cartões e mensagens de negócios... Se aquele iceberg não tivesse espatifado inacreditavelmente todos aqueles compartimentos estanques... Se o operador de rádio do navio, somente a vinte quilômetros de distância, não estivesse fora do posto quando o primeiro sinal de SOS foi emitido na noite do Atlântico... Se existissem mais barcos salva-vidas .. . Tinha sido como uma falha em todas as séries de implementos de segurança, uma por uma, contra riscos incalculáveis, até que a catástrofe foi inevitável.
— Talvez você esteja certa — disse Duncan, tentando consolar-se a si mesmo, tanto quanto a Calindy. — Eu não culpo ninguém. Nem mesmo a Karl.
— Pobre Karl, ele realmente me amava. Ter vindo até aqui na Terra. . .
Duncan não respondeu, embora por um momento fosse tentado. Certamente Calindy não poderia acreditar que este fosse o único motivo. Mesmo um homem de cérebro "queimado" por uma daquelas diabólicas Máquinas do Prazer deveria ter outros interesses. E o objetivo de Karl era tão espantoso que, mesmo agora, Duncan não podia acreditar na figura que estava lentamente emergindo de seu caderno de notas e das porções secretas do seu Minisec.
Karl tinha sido um pesadelo — e Duncan era o único homem vivo que o entendia parcialmente. Como o Comitê Argus deveria estar estarrecido! Aquele pensamento deu a Duncan uma pesada noção de poder, embora em alguns momentos desejasse que o peso do conhecimento o tivesse alcançado de outra maneira... ou não o tivesse alcançado de maneira alguma. . .
Por que o poder e a felicidade eram incompatíveis? Karl tinha procurado ambos, e ambos escorregaram por entre seus dedos. Duncan ainda não sabia como iria aproveitar esta lição, que permaneceria por toda a sua vida.
Mas, se a felicidade era inatingível, pelo menos o prazer estava sob seu alcance e não deveria ser desprezado. Por alguns momentos esqueceria os negócios de Estado, e daria as costas para um enigma muito mais profundo do que aqueles que Calindy vendia a seus clientes.
Era estranho como a roda da vida tinha completado todo o círculo. Há quinze anos, Karl e ele tinham lastimado juntos a perda de Calindy. Agora ele e Calindy choravam a morte de Karl.
E, naquele momento, Duncan sabia, embora fosse apenas uma pequena sombra daquela terrível ânsia, alguma coisa a respeito do desapontamento que Karl deve ter experimentado. Como era verdadeiro o fato de que ninguém se recuperava inteiramente do passado...
Foi quase tão bom quanto esperava, mas Calindy já não tinha gosto de mel.
ARGUS PANOPTES
Quer dizer que tinham se enganado a respeito de Argus. Se isto fosse momento para risos, Duncan o teria feito.
Colin o colocou na pista com um de seus telex econômicos. Não seria necessário ir até Titã para verificar um ponto tão elementar.
QUE ARGUS VOCÊ FALA? — Colin tinha perguntado. — EXISTEM TRÊS.
Alguns minutos com a Enciclopédia do comsole esclareceu-lhe a dúvida. Como o Embaixador Farrel tinha lembrado, Argo era mesmo o cachorro de Odisseu, que tinha reconhecido o dono quando este voltou do seu exílio. O nome era certamente apropriado para uma organização secreta de vigilância, embora, agora que Duncan havia começado a fazer as suas investigações, o Comitê Argus não fosse tão secreto assim como parecia. Bernie Patras já tinha ouvido falar nele, e George Washington admitiu, com um certo embaraço, que eles o haviam interrogado.
— Claro que perguntaram algumas coisas. Mas não há nada com que se preocupar.
Ivor Mandel’stahm foi mais direto — mesmo um pouco sarcástico.
— Estou acostumado com o sigilo em meu negócio, e poderia ensinar-lhes algumas coisinhas. Eles não durariam nem cinco minutos no tempo de Stalin... ou mesmo no tempo dos velhos Czares. Mas, suponho que ainda sejam necessários. A sociedade sempre irá precisar de algum sistema de alarma, para localizar descontentes antes que estes causem alguma perturbação. Só duvido que algum sistema realmente funcione, quando se torna necessário.
O segundo Argus tinha sido o construtor do navio mítico —ou talvez não tão mítico —, o Argo. Duncan nunca tinha ouvido falar no Velocino de Ouro, e a lenda o fascinou. Argo seria um bom nome para uma nave espacial, pensou ele — mas, mesmo estas associações nada tinham a ver com as notas de Karl.
Pensava como foi que Karl tinha encontrado o terceiro Argus: sua mente inquisidora tinha percorrido muitos atalhos da fantasia, e também da ciência. E agora que tinha a chave, Duncan compreendia por que o projeto que tinha dominado os últimos anos da vida de Karl poderia ter tido apenas um nome — aquele do deus onividente, de múltiplos olhos que podia olhar em várias direções simultaneamente: Argus Panoptes. Este era diferente de Ciclope, que podia olhar apenas em uma só direção. ..
Houve uma demora de cerca de trinta horas antes que o computador legal de Titã pudesse aprovar o testamento de Karl. Depois, Armand Helmer informou, como Duncan esperava, que continha uma lista de palavras obviamente em código — presumivelmente as chaves para as lembranças privadas do Minisec.
Armand teria feito telex dos códigos com toda a boa vontade. Duncan o impediu em tempo. Graças à experiência recente, o ingênuo Makenzie que tinha chegado à Terra há apenas algumas semanas tinha-se tornado levemente paranóico. Esperava que não se tornasse obsessivo, como às vezes lhe parecia o caso de Colin. Contudo, talvez Colin estivesse com a razão. ..
Só quando o Comitê, ainda relutante, finalmente lhe entregou o Minisec de Karl é que Duncan permitiu a Armand que mandasse os códigos por telex. Agora não teria a menor importância se fossem interceptados. Somente ele poderia usá-los.
Ao todo eram doze combinações, com formatos idênticos. Todas iniciavam com G/T ou procure instruções, seguidas pelos seis dígitos binários 101000. Podia ser um número arbitrário, mas parecia ter alguma associação mnemônica implicada. Era um truque comum usar o dia ou ano de nascimento. Karl tinha nascido em 40 e Duncan não ficou surpreso com a resposta quando converteu a base 101000 para a base 10 — embora estivesse meio desapontado com um subterfúgio tão óbvio.
Contudo, o código estava bem resguardado, porque as oportunidades seriam bem remotas de que alguém, numa investigação ao acaso, pudesse se dar conta das seqüências alfabéticas que se seguiam.
Embora fossem fáceis de lembrar — ao menos para alguém de Titã —, estavam a salvo de descobertas acidentais. Cada uma era um nome soletrado às avessas, um velho truque que não tinha perdido sua eficácia.
A lista começou com G/T 101000 Samin e continuou com G/T Syhtet, G/T Sunaj, G/T Enoid, G/T Ebeohp. Aí, Karl ficou cansado de luas, porque o próximo era 101000 G/T Dnamra. Isto certamente seria uma mensagem pessoal — e também seria, evidentemente, G/T 101000 Ydnilac. . .
Não havia G/T 101000 Nacnud. Embora não fosse razoável esperá-lo, Duncan sentiu uma pontada momentânea de ressentimento.
Mais alguns nomes de família, mas ele nem os notou. Porque seus olhos já tinham percebido o nome final: G/T 101000 Sugra. A busca tinha terminado.
Mas não estava concluída, poderia haver ainda uma última barreira. A maior parte dos homens tinha segredos q^e gostaria de manter invioláveis, mesmo após sua morte. Ainda era possível que, a não ser que aqueles códigos fossem usados corretamente, pudessem dar partida à ordem de ANULAR.
Possível, mas pouco provável. Karl, com toda a certeza, queria deixar estas memórias, do contrário não teria deixado os códigos em seu testamento sem nenhum aviso em relação aos mesmos. Talvez a melhor coisa fosse um telex para Armand, no caso de Karl ter deixado algumas instruções que seu pai amargurado não tivesse notado.
Isto tomaria horas e poderia ainda ser inútil. Duncan verificou novamente a lista, procurando pistas e não encontrando nenhuma. A seqüência 101000 poderia significar ANULAR. Ele poderia especular para sempre, sem nada encontrar.
Não havia nenhum sinal ANULAR ou EXECUTE no final das seqüências, mas aquilo não provava nada, pois poucas pessoas se preocupariam em escrever coisas tão óbvias. Nove vezes dentre dez era omitido como já sendo do conhecimento geral. Contudo, uma das maneiras mais corriqueiras de cancelar a ordem ANULAR era bater EXECUTE duas vezes em rápida sucessão. A outra maneira era bater as teclas com um intervalo definido entre as duas batidas. Haveria algum significado na omissão de Karl, ou estava apenas seguindo a convenção usual?
O problema continha sua própria solução, embora o que apontava para ela era mais a emoção do que a inteligência. Duncan não via nenhuma imperfeição, embora tivesse explorado todas as possibilidades que podia imaginar. Depois, sentindo um leve traço de culpa, bateu G/T 101000 YDNILAC, parando por uma fração de segundo antes de completar a seqüência comMr.
Se estivesse errado, Calindy nunca saberia o que tinha perdido. E, embora a última mensagem de Karl para Calindy fosse anulada, nenhuma das outras mensagens seriam procuradas ao acaso.
Seus receios eram infundados. Duncan ouviu apenas as palavras iniciais: "Alô Calindy — quando você ouvir isto estarei..." — antes de tocar o botão de PARAR e o Minisec ficar de novo em silêncio. Ele estava atrás de coisas mais importantes. Talvez um dia quando tivesse mais tempo — não — aquilo era uma tentação à qual seria forte bastante para resistir. . .
E então, no ambiente luxuoso e isolado do Hotel Centennial, com um cartão de NÂO PERTURBE para todos os visitantes e mensagens que pudesse receber, Duncan bateu G/T SUGRA 3. Cancelou seus compromissos por dois dias, e recebia as refeições no quarto. Ocasionalmente, fazia alguma chamada para fora, para verificar algum ponto técnico, mas a maior parte do tempo ficava só, comungando com mortos.
Finalmente estava pronto para encontrar novamente o Comitê Argus, em seus próprios termos. Compreendeu tudo — exceto, é claro, o mistério maior de todos. Como Karl teria ficado deliciado se tivesse sabido algo sobre o Recife Dourado.
O escritório não tinha mudado, e talvez a audiência invisível ainda fosse a mesma. Mas não havia nenhum vestígio daquele Duncan Makenzie inseguro de alguns dias atrás, que pensava se deveria ou não pedir imunidades diplomáticas.
Aceitaram sem nenhuma discussão a sua explicação sobre a palavra ARGUS, embora não imaginasse que estivessem mui-
to impressionados por este súbito conhecimento da mitologia clássica.
Porém, ironicamente, havia uma certa conspiração, naquele desapontamento. Talvez o Comitê tivesse que encontrar uma nova razão para sua existência. (Haveria mesmo algum movimento subversivo na Terra ou era apenas uma piada?) Esta não era de modo algum a melhor ocasião para fazer esta pergunta, embora Duncan tivesse ficado tentado.
Podia ver pelo breve interrogatório que havia até um cerla mesma sala — uma conspiração em que todos mutuamente estavam de acordo. O Comitê suspeitava de que ele soubesse a importância do nome ARGUS para a Segurança da Terra — e ele sabia que eles sabiam. Cada lado entendia o outro perfeitamente, e o próximo item das negociações foi logo iniciado.
— Então, o que era o Argus de Karl Helmer? — perguntou a mulher que Duncan colocava na Lua. — E pode nos explicar este comportamento singular?
Duncan abriu o caderno de notas, já manchado, para demonstrar aquele desenho estarrecedor que o tinha surpreendido tanto quando o viu pela primeira vez. Mesmo agora que conhecia sua escala verdadeira, ele não podia pensar em nada além de um ouriço do mar. Mas o Diadema tinha apenas trinta ou quarenta centímetros de comprimento. Argus teria no mínimo mil quilômetros de diâmetro, se a análise de Karl estivesse correta. E sobre isto Duncan já não tinha a menor dúvida, embora não pudesse nunca dizer as suas razões. — Karl Helmer teve uma visão — começou. — Tentarei descrevê-la o melhor que puder, embora este não seja o meu campo de conhecimento. Mas eu conhecia sua psicologia e, talvez, possa fazê-los compreender o que ele estava tentando fazer.
— Vocês podem ficar desapontados novamente... e desprezar toda a teoria como uma ilusão de um cientista louco. Mas estarão enganados. Isto poderia ser infinitamente mais importante do que alguma conspiração trivial ameaçando o seu pequeno mundo...
— Karl era um cientista que sempre estava esperando fazer alguma descoberta grandiosa — mas nunca o conseguiu. Embora fosse altamente criativo, mesmo os seus mais audaciosos vôos estavam sempre baseados na realidade. E ele era muito ambicioso...
— Se fosse assim — murmurou uma voz baixa do ar ao seu lado —, seria uma falta grave. E de maneira severa César a teria respondido. Perdoe; por favor, continue.
A referência era pouco familiar a Duncan, e ele demonstrou seu desagrado com aquela interferência, parando por alguns segundos.
— Estava interessado em muitas coisas. . . quase em tudo, talvez, mas sua maior paixão era o ainda insolúvel CETI. Costumávamos discuti-lo por horas intermináveis quando éramos garotos. Não podia nunca perceber quando ele estava falando sério, mas, agora, eu estou falando muito sério.
— Por que nós nunca detectamos sinais de rádio das sociedades avançadas que certamente devem existir lá, no espaço? Karl tinha muitas teorias, mas no final ficou com a mais simples. Não é original e estou certo de que já a conhecem.
— Nós mesmos emitimos sinais somente há cerca de cem anos, cobrindo superficialmente o século vinte. No final deste século, mudamos para sistemas de cabos, de satélites e de ópticos, concentrando todo o poder destes sistemas onde eles eram necessários, sem desperdiçá-los nas estrelas. Isto deve ser igualmente certo para civilizações tão avançadas quanto as nossas. Eles só poluem o universo com sons indiscriminados de rádio há cerca de um século ou dois. . . uma breve fração de toda a sua história.
— Então, mesmo que existam milhões de sociedades avançadas nesta galáxia, talvez existam apenas algumas no estágio em que estávamos há três séculos — ainda espalhando sinais de rádio em todas as direções. E a lei das probabilidades demonstra ser quase impossível que qualquer destas culturas eletrônicas esteja dentro do alcance de detecção.
— Mas antes que abandonemos a pesquisa, devemos explorar todas as possibilidades... e há uma que nunca foi investigada porque até agora não havia muito para ser feito. Por três séculos estivemos estudando ondas de rádio nas faixas de centímetros e metros. Mas ignoramos completamente as ondas longas. . . de dezenas e centenas de quilômetros de extensão.
— Bem, havia, com efeito, muitas razões para esta negligência. Primeiramente, é impossível estudá-las da Terra. .. elas não atravessam a ionosfera, e deste modo jamais alcançam a superfície. Você tem que ir para o espaço para observá-las.
— Mas, para as ondas mais longas, não adianta ir apenas fora da órbita, ou para o outro lado da Lua, onde o Ciclope foi construído. Você tem que viajar pela metade do Sistema Solar.
— Por que o Sol possui uma ionosfera igual à da Terra. .. exceto que ela é bilhões de vezes maior? Absorve todas as ondas de mais de dez ou vinte quilômetros de extensão. Se quisermos detectá-las teremos que ir para Saturno.
— Estas ondas foram observadas, mas somente em algumas ocasiões. Há cerca de quarenta anos, uma missão de pesquisa solar captou-as. A missão não estava à procura de ondas de rádio; estava medindo os campos magnéticos entre Júpiter e Saturno. Observou pulsações que deveriam ser provocadas por uma emissão de rádio a cerca de quinze quilohertz, correspondendo a um comprimento de onda de vinte quilômetros. A princípio se pensou que viessem de Júpiter, que ainda está cheio de surpresas magnéticas... mas aquela fonte foi eventualmente desprezada, e a origem ainda é um mistério.
— Desde aquele momento já surgiram uma meia dúzia de observações, todas elas feitas por instrumentos que mediam outras coisas. Ninguém procurava diretamente por essas ondas, vocês verão por quê, dentro de alguns momentos.
— O exemplo mais impressionante foi detectado há dez anos, por uma equipe que fazia uma pesquisa em Iapetus. Obtiveram um registro bastante extenso, sintonizado com bastante precisão aos nove quilohertz, o que representa trinta e três quilômetros de extensão de onda. Pensei que gostaria de saber disto...
Duncan consultou um pedaço de papel e cuidadosamente bateu uma seqüência de números e letras no Minisec. Para dentro do silêncio sem eco daquela sala, Karl falou de seu sepulcro com a fala rápida de um profissional.
Esta é a gravação completa, demodulada e apressada até sessenta vezes, de modo que duas horas são comprimidas em dois minutos. Começando agora:
Através de vinte anos, uma lembrança infantil veio de repente à memória de Duncan. Lembrou-se de ter ouvido, na noite de Titã, aquele grito oriundo do espaço, imaginando se seria mesmo a voz de um monstruoso bicho, mas não acreditou em sua conjetura, mesmo antes de Karl a ter destruído. Agora aquela fantasia retornava, mais poderosa do que nunca.
Este som — ou melhor, este infra-som, pois estava muito abaixo da capacidade auditiva do ser humano — era como uma batida lenta do coração de um gigante, ou o dobrar de um sino tão imenso que a catedral poderia caber dentro dele, ao invés do contrário. Ou talvez as ondas do mar, com ritmo invariável rolando para sempre contra alguma praia desolada, num mundo tão antigo que, embora o Tempo ainda existisse, a Mudança já tinha sido extinta. . .
A gravação, como sempre tinha acontecido, deixava Duncan todo arrepiado e com calafrios na espinha. E ainda trouxe mais uma lembrança — a imagem daquela criatura mais poderosa da Terra, pulando com força e glória para o céu acima do Recife Dourado. Poderia haver bichos nas estrelas, em relação aos quais os homens se sentiriam como os piolhos em relação às baleias?
Foi um alívio quando a gravação terminou, e a voz de Karl, surpreendentemente sem emoção, comentou:
— Notem a incrível constância da freqüência... o período original é de 132 segundos, não variando por mais de 1 por cento. Isto implica num quociente de inteligência bastante alto, digamos.
— O resto é técnico — disse Duncan, desligando o gravador. — Eu apenas queria que ouvissem o que trouxe a equipe de pesquisa de Iapetus. E é uma coisa que jamais poderia ser captada dentro da órbita de Saturno.
Uma voz que ainda não tinha escutado antes — jovem, bastante segura de si — surgiu do ar por trás dele.
— Mas isto tudo é material antigo, familiar a todos que trabalham neste campo. Sandelman e Koralski demonstraram que estes sinais eram quase certamente as oscilações de relaxamento numa nuvem de plasma próxima dos Pontos Troianos de Saturno.
Duncan sentiu sua fachada de especialista de improviso murchar rapidamente. Ele deveria ter imaginado que haveria alguém naquela audiência que soubesse mais sobre o assunto do que ele — possivelmente até mais do que Karl.
— Não tenho competência para discutir este assunto — replicou. — Estou apenas relatando as opiniões de Karl Helmer. Ele acreditava que deveria haver toda uma ciência nova esperando para ser descoberta. Afinal, toda vez que explorávamos alguma nova região do espectro, isto nos levava a descobertas estarrecedoras totalmente inesperadas. Helmer estava convencido de que isto aconteceria novamente.
— Mas para estudar estas ondas gigantescas... mais de um milhão de vezes maiores do que aquelas observadas na radioastronomia clássica. .. precisamos usar antenas gigantescas, de tamanho correspondente. Tanto para captá-las, porque são fracas, como para determinar as direções de suas origens.
— Era isto o ARGUS de Karl Helmer. Seus registros de gravação e seus desenhos contêm esboços bastante detalhados. Deixo a outros a avaliação de sua exeqüibilidade.
— Argus olharia para todas as direções simultaneamente, como os radares detectores de mísseis do século vinte. Seria o equivalente tridimensional do Ciclope, e centenas de vezes maior do que ele, porque precisaria ter no mínimo mil quilômetros de diâmetro. Preferivelmente, dez mil quilômetros, para obter boa energia de resolução nestas freqüências ultrabaixas.
— Contudo, necessitaria de constituir-se com muito menos materiais do que o Ciclope, porque seria construído no espaço longínquo, sob condições de ausência de gravidade. Helmer escolheu como localização o planeta Mnemosine, a mais externa das luas de Saturno, e parece ter sido uma escolha muito lógica...
— Pois Mnemosine está a vinte milhões de quilômetros de distância de Saturno, bem livre da fraca ionosfera daquele planeta, e distante o suficiente para que suas forças de atração sejam pouco significativas. Mas, o mais importante de tudo. . . possui quase que.rotação zero. Somente uma quantidade bem modesta de energia de foguetes poderia cancelar o seu giro inteiramente. Mnemosine seria então o único corpo planetário sem rotação nenhuma, e Helmer sugere que possa ser um laboratório ideal para várias experiências cósmicas.
— Como, por exemplo, um teste no princípio de March — interrompeu aquela voz jovem e confiante.
— Sim — concordou Duncan, agora bem mais impressionado com seu crítico desconhecido —, esta era uma das possibilidades mencionadas por ele. Mas, voltando ao ARGUS. ..
— Mnemosine serviria de miolo ou núcleo de rede. Milhares de elementos, pouco mais que fios retesados, irradiariam dele, como... os espinhos de um ouriço. Assim poderia varrer os céus à procura de sinais. E, acidentalmente, a temperatura de Mnemosine é tão baixa que supercondutores bem baratos poderiam ser usados, contribuindo enormemente para a eficiência do sistema.
— Não ficarei envolvido em detalhes sobre ligações e fases que permitiriam ao Argus mover eletricamente suas antenas ... sem movê-las fisicamente... de modo a concentrá-las em qualquer região do espaço. Tudo isto, e ainda muito mais, Helmer desenvolveu em suas notas, usando técnicas inspiradas no Ciclope e outros radiotelescópios.
— Os senhores podem pensar, como eu o fiz, em como ele tencionava levar a cabo tal projeto. Ele planejou uma demonstração simples, a qual tinha certeza de que forneceria evidências necessárias para provar sua teoria.
— Ele ia lançar dois grandes pesos maciços em direções exatamente opostas, cada um rebocando um fio fino de muitas centenas de quilômetros de comprimento. Quando os fios estivessem completamente esticados, os pesos seriam propulsionados e ele obteria uma antena bipolar simples, de talvez uns mil quilômetros de extensão. Esperava poder persuadir o Sistema Solar a fazer o experimento, que seria bem barato, e certamente produziria alguns resultados de valor. Depois, tentaria segui-lo com esquemas mais ambiciosos, disparando fios. em ângulos retos, e assim por diante...
— Mas, acho que já disse o suficiente para que vocês julguem por si mesmos. Havia muito mais que não tive tempo de transcrever. Espero que possam ser pacientes, pelo menos até após o Centenário. Como sabem, foi para isto que vim à Terra. . . o tenho trabalho a fazer. . .
— Obrigado por seu apoio moral, Bob — disse Duncan quando ele e o Embaixador saíram para a luz do sol da Virginia Avenue.
— Mas eu não falei nada. Estava completamente fora do assunto. Estava esperando que alguém perguntasse aquilo que ainda estou ansioso para saber.
— O que é? — perguntou Duncan desconfiado.
— Como é que Helmer pensava que poderia consegui-lo?
— Oh, isto — disse Duncan meio desapontado —, este aspecto do assunto me parecia tão sem importância no momento. Penso que entendo sua estratégia. Quatro anos atrás, quando entregou seu projeto para um sistema simples de detecção de ondas longas... como nós não podíamos arcar com o projeto e ele não queria dizer o que na realidade tinha intenção de conseguir. . . ele tinha decidido que viria diretamente à Terra para convencer os grandes cientistas daqui. Isto significava adquirir dinheiro de alguma forma. Tenho certeza de que esperava obter sucesso tão rápido que nós esqueceríamos qualquer pequena infração das leis de câmbio. Era um jogo, é claro, mas ele o considerava tão importante que estava preparado para correr todos os riscos.
— Bom — murmurou o Embaixador, obviamente não muito impressionado.
— Sei que Helmer era seu amigo pessoal e não desejo falar asperamente de sua pessoa. Mas não seria justo chamá-lo de um gênio científico e um psicopata criminal?
Para sua surpresa, Duncan ficou abismado com aquela descrição. De qualquer modo tinha que admitir que havia nela algo de verdadeiro: um dos atributos do psicopata — um termo ainda popular entre os leigos, a despeito de trezentos anos de esforços profissionais para erradicá-lo — era a cegueira moral para quaisquer interesses que não fossem os próprios. É claro que Karl sempre podia produzir algum argumento bem convincente de que os seus interesses eram para o bem de todos. Os Makenzies, Duncan percebeu com um certo embaraço, também eram treinados neste tipo de exercício.
— Se havia elementos anormais no comportamento de Karl, eram devidos a um esgotamento nervoso que tinha tido há quinze anos. Mas isto nunca afetou o seu julgamento científico.
Todos a quem me dirigi concordam que o projeto ARGUS possa vir a ser viável.
— Não duvido; mas por que é importante?
— Eu pensei que havia deixado isto claro para nossos observadores invisíveis.
E penso que sim, disse para consigo mesmo, pelo menos para um deles. O seu inquisidor mais penetrante era certamente um dos mais destacados radioastrônomos da Terra. Ele teria entendido, e somente alguns aliados naquele nível eram necessários. Duncan estava certo de que algum dia se encontrariam de novo, desta vez cara a cara, e com uma marcante falta de referência a qualquer encontro anterior.
— Quanto ao por quê é importante, Bob, vou dizer-lhe algo que não mencionei no Comitê e que estou certo de que Karl nunca considerou, pois estava sempre muito absorvido com seus negócios. Você já pensou o que um projeto como ARGUS traria para a economia de Titã? Nos traria bilhões e nos tornaria o pólo científico do Sistema Solar. Poderia até resolver nossos problemas financeiros, quando a demanda de hidrogênio começasse a baixar no ano 2280.
— Eu avalio — disse Farrel secamente —especialmente quando minhas taxas irão para o brejo. Mas não vamos interferir com a Marcha da Ciência.
Duncan sorriu com simpatia. Ele gostava de Bob Farrel e ele lhe tinha sido extremamente útil. Mas estava cada vez menos seguro da lealdade daquele Embaixador, e talvez fosse tempo de arranjar um substituto. Infelizmente teria que ser novamente um terreno, por causa desta gravidade infernal. Mas este era um problema que Titã teria que resolver.
Certamente ele jamais diria a seu Embaixador, ou ao COMITÊ ARGUS, a razão por que a obra de Karl podia ser tão vital para a raça humana. Havia especulações naquele Minisec — felizmente não havia vestígios destas no caderno de notas — que seria melhor não publicar até que o projeto as provasse por si mesmas.
Karl tinha acertado tantas vezes no passado, atingindo verdades além dos limites da lógica ou da razão, que Duncan tinha certeza de que esta última intuição tão surpreendente estava também correta. Mas, se não estivesse, a verdade deveria ser ainda mais estranha; de qualquer modo, era uma verdade que deveria ser aprendida. Pois, embora a verdade pudesse ser assustadora, o preço da ignorância poderia ser — extinção.
Aqui nas ruas desta linda cidade, cercada de sol e da sua história, era difícil tomar a sério os comentários finais de Karl, quando ele especulava sobre a origem daquelas ondas misteriosas. E, certamente, mesmo Karl não acreditava em todos os pensamentos que revelou para a memória secreta do Minisec, durante a sua longa viagem para a Terra. ..
Mas, ele era diabolicamente persuasivo, e seus argumentos tinham uma lógica irresistível e um peso próprio. Mesmo que não acreditasse em todas as suas próprias conjeturas, ele ainda poderia estar certo.
Item um, murmurou para si mesmo (deve ter sido difícil encontrar privacidade naquela nave cargueira, e Duncan algumas vezes podia ouvir ruídos da nave, os movimentos dos outros membros da tripulação). Estas ondas quilohertz têm um alcance limitado por causa da absorção interestelar. Elas não poderiam normalmente passar de uma estrela para outra, a não ser que as nuvens de plasma sirvam como guias de onda, canalizando-as através de grandes distâncias. Então, a sua origem deve ser próxima do Sistema Solar.
— Meus cálculos todos apontam para uma fonte — ou fontes — a um décimo de ano-luz do Sol. Só um — quarenta avós da Alfa Centauro, mas duzentas vezes a distância para Plutão... terra de ninguém —, à beira do abismo entre as estrelas. Mas, é exatamente ali que os cometas nascem, numa concha grande e invisível que circunda o Sistema Solar. Há suficiente material lá dentro para milhões destes estranhos objetos que ficam orbitando nas profundezas geladas do espaço.
— O que será que acontece nestas imensas nuvens de hidrogênio e hélio e todos os outros elementos? Não há muita energia, mas pode haver o bastante. E onde existe matéria, energia e tempo — mais cedo ou mais tarde aparece uma organização.
— Vamos chamá-las de Bichos Estelares. Seriam vivas? Não. . . esta palavra não é apropriada. Digamos apenas — Sistemas Organizados. Eles teriam centenas ou milhares de quilômetros de diâmetro e poderiam ser vivos... quero dizer, manter identidade individual... por milhões de anos.
— Isto é um pensamento. Os cometas que observamos... seriam os cadáveres destes Bichos Estelares enviados na direção do Sol para cremação? Estou sendo ridiculamente antropomórfico. . . mas, o que mais poderia ser?
— E seriam eles inteligentes? O que significa esta palavra? As formigas são inteligentes? As células do corpo humano são inteligentes? Será que todos os Bichos Estelares que circundam o Sistema Solar formam uma única entidade... e esta entidade sabe de nós? Ou tem preocupação conosco?
— Talvez o Sol os mantenha a distância, do mesmo modo que nos tempos antigos a fogueira afastava os lobos e os tigres de dente de sabre. Mas nós já estamos a uma longa distância do Sol, e mais tarde ou mais cedo os encontraremos. Quanto mais aprendermos, melhor.
— E existe uma pergunta que tenho quase medo de pensar nela. Será que são deuses? OU SERÃO DEVORADORES DOS DEUSES?
O DIA DA INDEPENDÊNCIA
Extraído dos ANAIS DO CONGRESSO de 4 de Julho de 2276.
Palavras do Honorável Duncan Makenzie, Assistente Especial do Presidente, República de Titã.
Sr. Representante, Membros do Congresso, Distintos Convidados: Primeiramente desejo expressar minha profunda gratidão ao Comitê do Centenário, cuja generosidade fez possível a minha visita à Terra, e a estes Estados Unidos. Trago-lhes, a todos, os cumprimentos de Titã, a maior das muitas luas de Saturno — e o mais distante dos mundos já ocupados pela Humanidade.
Quinhentos anos atrás esta terra era também uma fronteira — não só geográfica como também política. Seus ancestrais, a menos de vinte gerações passadas, criaram a primeira constituição democrática que realmente foi eficaz — e que ainda o é» hoje, em mundos que não teriam imaginado, nem em seus mais fantásticos sonhos.
Durante estas celebrações, muitos falaram do legado que os fundadores da República nos deixaram naquele dia, há quinhentos anos. Mas já houve quatro Centenários desde aquela época. Gostaria de vistoriá-los brevemente, um a um, para verificar que lições nos deixaram.
No primeiro, 1876, os Estados Unidos ainda estavam se recuperando de uma desastrosa Guerra Civil. Contudo, estavam colocando as fundações da revolução tecnológica que cedo transformaria a Terra. Talvez não seja uma coincidência o fato de que, no exato ano do Primeiro Centenário, este País tenha nos trazido o invento que realmente deu início à conquista do espaço.
Pois, em 1876, Alexander Graham Bell fez o primeiro telefone prático. Tomamos a comunicação eletrônica como algo já tão estabelecido que não podemos imaginar uma sociedade sem ela. Ficaríamos surdos-mudos se estas extensões de nossos sentidos nos fossem subitamente retiradas. Logo, lembremo-nos de que há apenas quatrocentos anos o telefone iniciou a eliminação do espaço — ao menos neste planeta.
Um século mais tarde, em 1976, aquele processo estava quase terminado — e a conquista do espaço interplanetário estava próxima do seu começo. Naquele tempo os primeiros homens já tinham atingido a Lua, usando meios que hoje nos parecem incrivelmente primitivos. Embora todos os historiadores agora concordem que o Projeto Apoio tenha marcado uma suprema conquista dos Estados Unidos, e seu maior momento de triunfo, este foi inspirado por necessidades políticas que pareciam ridículas — na verdade, incompreensíveis — para nossas mentes modernas. E não foi da responsabilidade daqueles primeiros engenheiros e astronautas o fato de que seu remarcável esforço pioneiro tenha sido de um final vazio para a tecnologia, e de que a verdadeira viagem espacial não tenha se iniciado por muitas décadas, com veículos e sistemas de propulsão muito mais avançados.
Um século depois, em 2076, todos os instrumentos necessários para atingir os planetas estavam à mão. Sistemas de manutenção de vida de longa duração tinham sido aperfeiçoados. Depois dos desastres iniciais, o impulso de fusão foi domado. Mas a Humanidade estava exausta, pelo esforço de reconstrução global que seguiu a Época dos Tormentos, e na madrugada após a destruição populacional, havia pouco entusiasmo para a colonização de novos mundos.
A despeito destes fatos, a Humanidade colocou-se irrevogavelmente no caminho em direção às estrelas. Durante o século vinte e um, a Base Lunar tornou-se auto-suficiente, a Colônia Marciana tinha sido estabelecida, e tínhamos assegurado uma cabeça-de-ponte em Mercúrio. Vênus e os Gigantes de Gás nos desafiavam — como, aliás, ainda o fazem —, mas já visitamos todas as luas e asteróides maiores do Sistema Solar.
Em 2176, somente há cem anos, uma substancial fração da raça humana já não tinha nascido na Terra. Pela primeira vez, tínhamos a segurança de que, não obstante o que pudesse ocorrer à Terra Mãe, nossa herança cultural não estaria perdida. Estaria assegurada até a morte do Sol — e talvez até depois...
O século que nos antecede foi mais de consolidação do que de novas descobertas. Tenho orgulho de que o meu mundo tenha sido uma parte importante neste processo, pois, sem o hidrogênio facilmente acessível da atmosfera de Titã, as viagens interplanetárias representariam despesas exorbitantes.
Agora surge a velha pergunta: Para onde vamos daqui? As estrelas estão mais remotas do que nunca. Nossas primeiras tentativas, após dois séculos de viagens, ainda não atingiram a Próxima de Centauro, a vizinha mais próxima do Sol. Embora nossos telescópios possam agora perscrutar os limites do espaço, nenhum homem viajou além de Plutão. E ainda temos que alcançar a distante Persépona, o que poderíamos ter feito em qualquer época durante os últimos cem anos.
Será verdade, como muitos têm sugerido, que a fronteira está novamente fechada? Os homens já acreditaram nisto uma vez, e sempre estiveram errados. Podemos zombar agora daqueles pessimistas do início do século vinte que lamentavam não haver mais planetas para serem descobertos, no exato momento em que Goddard, Korolev e von BrAllen estavam brincando com seus primeiros foguetes primitivos. E ainda mais além, exatamente antes de Colombo abrir caminho para este Continente, deve ter parecido aos povos da Europa que o futuro não poderia oferecer nada que se comparasse aos esplendores do passado.
Não acredito que tenhamos chegado ao final da História, e que o que está para vir seja apenas uma elaboração e extensão de nossos poderes atuais em planetas já descobertos. Contudo, não pode ser negado que este sentimento está agora muito difundido, e se torna aparente de muitas maneiras. Há uma preocupação doentia com o passado, e uma tentativa para reconstruí-lo ou revivê-lo. Não me apresso a dizer que isto seja sempre ruim — o que estamos fazendo agora é uma prova disto.
Deveríamos respeitar o passado, mas não adorá-lo. Enquanto olhamos para os quatro centenários que nos precederam, deveríamos também pensar naqueles que serão celebrados nos anos vindouros. E 2376, 2476. . . 2776, um milhar de anos após a República? De que maneira o povo desta época irá se lembrar de nós? Lembramo-nos dos Estados Unidos principalmente em virtude do Apoio. Poderemos doar às idades futuras um feito comparável?
Ainda existem muitos problemas a serem resolvidos, em todos os planetas. Infelicidade, doença — e até a pobreza — ainda existem. Ainda estamos distantes de Utopia, e podemos até nunca atingi-la. Mas, sabemos que todos estes problemas podem ser resolvidos com os instrumentos que já possuímos. Nenhum pioneirismo, nenhuma grande descoberta é necessária para isto. Agora que os piores demônios do passado já foram eliminados, podemos olhar para outros lados, com a consciência lúcida, em busca de outras tarefas que desafiem a mente e inspirem o espírito.
A civilização precisa de metas de longo alcance. Anterior^ mente, o Sistema Solar as fornecia — mas agora temos que procurar mais longe. Não falo de viagens humanas às estrelas, que ainda podem estar séculos adiante. Refiro-me à procura de inteligência no universo, que começou há três séculos, com tão grandes expectativas — e ainda não foi bem sucedida.
Todos devem estar familiarizados com o Ciclope, o maior radiotelescópio da Terra. Foi construído com a finalidade primária de buscar provas de civilizações avançadas no universo. Transformou a astronomia, mas, a despeito de muitos alarmas falsos, nunca detectou sequer uma mensagem inteligente das estrelas. Esta falha contribuiu muito para voltar as mentes humanas para dentro, afastando-as do grande universo, e concentrando suas energias sobre este pequeno oásis do Sistema Solar.
Não estaríamos olhando para o lugar errado? Por lugar errado quero dizer o espectro imensamente grande das radiações que viajam entre as estrelas.
Todos os nossos radiotelescópios já buscaram as ondas curtas de centímetros, ou no máximo de metros de extensão. Mas, que dizer das ondas longas e ultralongas — de não só quilômetros, mas mesmo megâmetros de ponta a ponta? Ondas de rádio de freqüências tão baixas que soariam como notas musicais se nossos ouvidos pudessem detectá-las.
Sabemos que estas ondas existem, mas nunca pudemos estudá-las aqui na Terra. Ficam bloqueadas na distância, nos limites do Sistema Solar, pelos ventos de elétrons que sopram para sempre, vindos do Sol. Para saber o que está dizendo o universo com estas vastas e lentas ondulações, necessitamos construir telescópios de enorme tamanho, para além dos limites da ionosfera de bilhões de quilômetros de profundidade do próprio Sol — isto é, pelo menos tão distante quanto a órbita de Saturno. Pela primeira vez, isto se tornou possível. Pela primeira vez há estímulos reais para esta realização.
Tendemos a julgar o universo a partir de nosso próprio tamanho e nossa própria escala de tempo. Parece-nos natural trabalhar com ondas que podemos envolver com nossos braços, ou mesmo com a ponta de nossos dedos. Mas o cosmo não foi construído dentro destas dimensões, nem talvez o foram todas as entidades que habitam entre as estrelas.
Estas ondas gigantescas são mais comparáveis em medida com a escala da Via-Láctea, e suas vibrações lentas são uma melhor medida de sua imensa era galática. Elas podem ter muito que nos dizer quando decifrarmos suas mensagens.
Como teriam recebido bem este projeto nossos cientistas governantes, Franklin e Jefferson! Eles teriam percebido sua amplitude, se não a sua tecnologia — pois estavam interessados em todos os campos do conhecimento entre a terra e o céu.
Os problemas que enfrentaram há quinhentos anos jamais surgirão de novo. A idade dos conflitos entre as nações já passou. Mas temos outros desafios que podem ainda nos exigir o máximo. Devemos ficar gratos de que o universo possa nos. prover objetivos além de nós mesmos, e empresas para as quais podemos dedicar nossas vidas, nossas fortunas e nossa honra sagrada.
Duncan Makenzie fechou o belo livro de recordações — uma obra-prima da arte de impressão, como nunca tinha visto, e talvez nunca mais viesse a ver. Somente quinhentas cópias tinham sido editadas .— uma para cada ano. Ele levaria a sua em triunfo de volta a Titã, onde pelo resto de sua vida estaria entre as suas mais queridas relíquias.
Muitas pessoas o cumprimentaram por seu discurso, guardado para sempre nestas páginas — e muito mais acessível em memórias bibliográficas e bancos de informação por todo o Sistema Solar. Contudo, ficou embaraçado ao receber aqueles aplausos, porque no seu coração ele sabia que não os tinha ganho. O Duncan de algumas semanas atrás jamais teria concebido tal discurso. Ele era um pouco mais do que um médium, transmitindo a mensagem de um morto. As palavras eram dele, mas todos os pensamentos eram de Karl.
Pensava para si mesmo, preocupado, em como estariam espantados os seus amigos de Titã ao observarem aquela cerimônia! Talvez tivesse sido inapropriado usar uma reunião como aquela, para o que poderia ser considerado uma autopropaganda — mesmo que fosse uma solicitação especial para o bem de seu próprio mundo. Contudo, Duncan estava com a consciência limpa, já que não tinha havido crítica a este respeito. Mesmo aqueles que ficaram surpresos com sua tese ficaram agradecidos pelo entusiasmo que injetou em todas aquelas formalidades rotineiras.
E mesmo que o seu discurso fosse uma maravilha de uma semana para o público em geral, não seria esquecido. Tinha plantado uma semente; um dia ela iria crescer — na deserta Mnemosine.
Por enquanto havia um pequeno problema prático, embora não fosse ainda urgente. Este esplêndido volume de grosso pergaminho, com encadernação de couro lavrado, pesava cerca de cinco quilos.
Os Makenzies odiavam desperdício e extravagância. Seria agradável levar o livro consigo na volta para casa, mas o excesso de bagagem para Titã custava cem solares o quilo. . .
Teria que voltar mais tarde, num dos cargueiros vazios — BAGAGEM DESACOMPANHADA PODE SER GUARDADA NO VÁCUO. . .
O ESPELHO DO MAR
O Dr. Yehudi ben Mohammed não parecia pertencer a um hospital moderno, cercado de ofuscantes painéis de fisiologia, mostradores de comsole, vozes sussurrantes de microfones ocultos, e toda a tecnologia asséptica de vida e morte. Na sua vestimenta branca imaculada, com um círculo duplo de cordão dourado em torno da cabeça, ele deveria estar numa tenda do deserto, ou perscrutando o horizonte no lombo do seu camelo à procura de um oásis.
Duncan se lembrou do comentário de um dos jovens médicos, durante a sua primeira visita: "Algumas vezes eu penso que El Hadj acha que é uma reencarnação de Saladin e Lawrence das Arábias". Embora Duncan não entendesse todo o sabor do comentário, aquilo era dito mais em tom de brincadeira afetuosa do que de crítica. Será que o cirurgião usava aquelas roupas na sala de operações? Mas, lá, elas não seriam inadequadas e certamente não interfeririam com a graça felina de seus movimentos.
— Estou contente — disse o Dr. Yehudi, brincando com a adaga ornamentada sobre sua mesa cheia de incrustações elaboradas, os dois toques de antigüidade no seu moderno ambiente do século vinte e três — que o senhor, finalmente tenha tomado sua decisão. — A — ah — demora causou alguns problemas, mas nós já os ultrapassamos. Agora já temos quatro embriões perfeitos, e o primeiro será transplantado dentro de uma semana. Os outros serão guardados como reservas em caso de rejeição — embora isto agora seja muito raro.
E o que acontecerá com os três remanescentes? — perguntou Duncan a si mesmo e fugiu da resposta. Um ser humano tinha sido criado, e que de outra forma jamais teria existido. Este era o lado positivo; era melhor esquecer os três fantasmas que por um breve período tinham pairado nas fronteiras da realidade. Contudo, era duro ser lógico e frio em situações como estas. Enquanto olhava através dos intrincados arabescos, Duncan fazia conjeturas sobre a psicologia da figura elegante e calma cujas mãos habilidosas tinham controlado tantos destinos. À sua maneira própria e limitada, em seu próprio pequeno mundo, os Makenzies tinham brincado de Deus. Mas, isto era algo além do seu entendimento.
Evidentemente sempre se podia refugiar na fria matemática da reprodução. A velha Mãe Natureza não tinha a menor preocupação com a ética humana ou os sentimentos. No curso de sua vida todo homem gerava suficientes espermatozóides para povoar o Sistema Solar inteiro — multiplicado várias vezes —, e somente dois ou três daquela multidão eram concebidos. Alguém por acaso tinha enlouquecido contando cada ejaculação como cem milhões de assassinatos? Era bem possível. Não era à toa que os adeptos de algumas religiões antigas se recusavam a olhar no microscópio...
Havia obrigações morais e incertezas por trás de cada ato. No cômputo geral, um homem só poderia obedecer às necessidades daquela entidade misteriosa chamada consciência e esperar que o resultado não fosse desastroso. Não que, evidentemente, se pudessem saber os resultados finais de cada ato.
É estranho, pensava Duncan, como tinha resolvido as dúvidas que o tinham assaltado quando veio pela primeira vez à ilha. Ele tinha aprendido a olhar para mais longe, e colocar as esperanças e aspirações dos Makenzies num contexto mais amplo. Acima de tudo tinha visto os perigos de uma ambição exagerada. Mas a lição do destino de Karl ainda era ambígua, e lhe daria motivos para pensar toda sua vida.
Com um leve sentimento de choque, Duncan percebeu que já tinha assinado os documentos legais e os estava devolvendo ao Dr. Yehudi. Não importava; ele os tinha lido cuidadosamente e sabia suas responsabilidades. Eu, Duncan Makenzie, residente do satélite Titã, presentemente em órbita em torno do planeta Saturno (quando é que os advogados pensaram que ia fugir da órbita?), li o presente documento, aceito a guarda de um filho "clonado", do sexo masculino, identificado pelo cariótipo aqui incluído, e farei tudo o que puder... etc, etc, etc. Talvez
o mundo fosse um lugar melhor se os pais das crianças concebidas normalmente fossem forçados a assinar um contrato como este. Este pensamento contudo estava alguns bilhões de anos atrasado.
O cirurgião elevou-se à sua altura total de dominantes dois metros com um gesto de término de assunto, que, partindo de qualquer outra pessoa, teria parecido descortês. Mas não ali, pois El Hadj tinha muitas atribuições. A todo o tempo em que conversavam, seus olhos jamais se afastavam das linhas pulsantes de vida e morte que apareciam nos painéis que cobriam quase toda uma parede do seu consultório.
No vestíbulo principal do Prédio da Administração, Duncan parou por um momento diante da gigantesca hélice rotativa do DNA, que dominava a entrada. Enquanto seu olhar fixava a escada helicoidal, contemplando suas quase infinitas possibilidades, não pôde evitar de lembrar-se dos pentominos que sua avó Ellen tinha arranjado diante dele. Havia apenas doze daquelas formas — porém tomaria a vida toda do universo para saturar todas as possibilidades de arranjo. E ali não havia apenas uma dúzia, mas bilhões e bilhões de locações para serem preenchidas pelas letras do código genético. O número total de combinações não era de estarrecer a mente — porque não havia meio possível para a mente atingir nem mesmo a mais longínqua concepção deste número. O número de elétrons necessários para condensar o Cosmo inteiro era virtualmente zero comparado com este número.
Duncan saiu para o Sol luminoso, esperou que seus óculos escuros se ajustassem, e foi à procura do Dr. Todd, seu guia e amigo na última visita. Ele ainda iria demorar umas quatro horas para partir e havia um item principal do negócio que deveria ser combinado.
Felizmente, como "Sweeney" Todd explicou, não havia necessidade de sair do Recife.
— Não sei por que você está interessado nestes bichos feios. Mas, você encontrará alguns numa fileira de corais mortos no fundo daquela grota. Não haveria mais nada vivendo ali. A água tem apenas um metro de profundidade. .. você nem vai precisar das nadadeiras. . . somente um par de sapatos fortes. Se você pisar num peixe-pedra, os seus gritos nos trarão a
tempo de salvar sua vida... embora talvez você não o deseje.
Aquilo não era muito encorajador, mas dez minutos depois Duncan já estava caminhando cuidadosamente no raso, dobrado em dois, espiando através da máscara para dentro da água.
Aqui não havia aquela beleza que tinha contemplado ao aproximar-se do Recife Dourado. A água estava cristalina, mas o fundo do mar estava deserto. Era na maior parte de areia branca, misturada com pedaços quebrados de coral, como ossinhos desbotados de pequenos animais. Alguns peixinhos coloridos estavam nadando em volta, e outros olhavam para ele com olhos ansiosos e de poucos amigos, das pequenas tocas na areia. Uma vez, uma criatura brilhantemente azul, como uma enguia achatada, avançou em sua direção velozmente e deu-lhe uma rabanada forte, antes que a enxotasse. Deixou uma marca de uns três centímetros de comprimento, e Duncan, que nunca tinha ouvido falar de simbiose de limpeza, preocupou-se com envenenamento por alguns minutos. Porém, não sentiu sinais de dissolução iminente, e então continuou seu caminho através da água tépida.
A grota, ela mesma .— parte da defesa da ilha contra a erosão incessante das ondas —, estendia-se por uns cem metros distante da praia e depois afundava na água. Próximo ao final perto do mar, Duncan passou por umas pedras agrupadas, talvez empurradas por alguma tempestade. Elas deveriam estar ali por muito tempo, pois estavam cimentadas junto com cracas e pequenas ostras. Por entre suas entradas e passagens estreitas Duncan descobriu o que procurava.
Cada ouriço parecia ter feito sua própria cavidade na pedra dura. Duncan não podia imaginar como aquelas criaturas tinham conseguido aquele feito notável de escavação. Ancorados seguramente no seu lugar, com apenas uma afiada franja de espinhos exposta para o mundo exterior, eram invulneráveis a qualquer inimigo, exceto o homem. Mas Duncan não lhes desejava mal, e desta vez não trouxera nem a faca. Já tinha visto bastante mortes, e seu único propósito agora era confirmar ou refutar a impressão que o perseguia desde que seus olhos fixaram aquele desenho de Karl no seu caderno de notas.
Mais uma vez os espinhos começaram a se mexer lentamente em direção de sua sombra. Estas criaturas primitivas, apesar de sua aparente falta de órgãos do sentido, sabiam que ele estava ali, e reagiam à sua presença. Estavam perscrutando o seu pequeno universo assim como Argus perscrutaria as estrelas ...
É claro que não haveria nenhum movimento físico nas antenas — era desnecessário, e seria impossível para aquelas estruturas frágeis de milhares de quilômetros de extensão. Contudo, a sua capacidade eletrônica de varrer os céus estabeleceria um paralelo perfeito com a reação protetora dos Diademas. Se um monstro do tamanho do planeta, que usasse ondas ultralongas como visão, poderia observar o Sistema Argus funcionando, o que ele veria não seria diferente deste humilde habitante de recifes.
Por um momento, Duncan teve uma fantasia curiosa. Imaginou que era um desses monstros observando o Argus de silhueta contra o fundo de vibrações de rádio da Galáxia. Haveria centenas de linhas finas, irradiando-se de um ponto central — sendo a sua maior parte estacionaria, mas algumas delas balançando suavemente de trás para frente, como em resposta a uma sombra das estrelas.
Contudo, era difícil pensar que, mesmo que Argus fosse construído, nenhum olho humano poderia jamais vê-lo na sua totalidade. A estrutura seria tão gigantesca que seus finos fios e cabos ficariam totalmente invisíveis de qualquer distância. Talvez, como Karl tinha sugerido em suas anotações, haveria luzes de aviso, pontilhadas através dos milhões de metros quadrados da superfície esférica, e estendida ao longo dos seus seis principais eixos. Para uma nave espacial que se aproximasse, poderia parecer um brilhante ornamento do Dia da Estrela.
Ou — talvez mais apropriadamente — um brinquedo desprezado dos deuses...
Lá pelo fim da tarde, enquanto esperava pelo transporte para voltar à terra, Duncan encontrou um canto escondido na casa de lanches com bar, que dava para a lagoa. Sentou-se pensativo, bebendo aos pouquinhos uma bebida terrena que tinha descoberto — algo chamado Tom Collins. Era uma má idéia adquirir vícios que não poderia exportar para Titã; por outro lado, seria também discutível se não seria tolo não aproveitar
os únicos prazeres da Terra, mesmo que tivesse que abandoná-los brevemente.
Também sentia um infindável prazer com o brincar do vento sobre a água protegida pela parte interna do recife. Alguns trechos estavam completamente lisos, refletindo o azul do céu sem nuvens, como se fosse um espelho imaculado. Contudo, outras áreas, aparentemente iguais, estavam continuamente vibrando, de tal modo que nem por um momento a superfície das águas parava: era cruzada e recruzada por minúsculas ondinhas, de menos de um centímetro de altura. Presumivelmente alguma relação entre a variação de profundidade da lagoa e a velocidade do vento era responsável pelo fenômeno bastante diferente de qualquer coisa que Duncan tivesse visto antes. Não importava qual a explicação, era encantadoramente lindo, porque os incontáveis reflexos do sol na água dançarina criava padrões brilhantes que pareciam mover-se para sempre com o vento, sem, no entanto, sair do mesmo lugar.
Duncan nunca tinha sido hipnotizado, nem tinha experimentado mais do que alguns dentre os nove estados de consciência entre vigília completa e sono profundo. O álcool pode ter ajudado, mas o mar cintilante era sem dúvida o fator principal de influência no seu estado de ânimo. Ele estava completamente alerta — na verdade, sua mente parecia estar trabalhando com clareza fora do comum —, mas já não estava preso às leis da lógica que tinham controlado toda sua vida. Era quase como se estivesse num daqueles sonhos onde as coisas mais fantásticas podem acontecer, e são aceitas como coisas sem importância, ocorrências cotidianas.
Sabia que estava enfrentando um mistério da espécie que era um anátema para os Makenzies reputados como insensíveis. Ali estava algo que jamais poderia explicar para Malcolm e Colin; iriam zombar dele — ou pelo menos assim esperava —, e jamais o tomariam a sério.
Além de tudo, era tão incrivelmente trivial. Ele não estava divulgando alguma surpreendente revelação, como os antigos profetas recebendo a palavra de Deus.
Tudo que tinha acontecido era o fato de que havia-se defrontado com a mesma forma incomum em dois contextos independentes; poderia ter sido uma simples coincidência e o sentimento de déjà vu, uma auto-sugestão. Esta seria a resposta simples e lógica que satisfaria a todos.
Mas jamais satisfaria a Duncan. Tinha experimentado aquele choque que um homem só pode conhecer uma vez em toda a vida, quando está na presença do transcendental e sente as bases de seu mundo e de sua filosofia tremerem a seus pés.
Quando viu aquele cuidadoso desenho no caderno de Karl, Duncan o reconheceu imediatamente. Mas agora lhe parecia que aquele reconhecimento tinha vindo não somente do passado, mas também do futuro. Era como se tivesse surpreendido uma visão momentânea no espelho do tempo, refletindo algo que ainda não tivesse acontecido. E algo que deveria ser tremendamente importante para que tivesse conseguido reverter o fluxo da casualidade.
O Projeto Argus era parte do destino da Humanidade. Disto Duncan tinha certeza, além da necessidade de provas. Mas, quanto a se seria benéfico, era uma outra questão. Todo o conhecimento era uma espada de dois gumes, e bem poderia acontecer que alguma mensagem das estrelas não fosse do agrado da raça humana. Duncan lembrou-se dos gritos de agonia do ouriço que matou lá fora no Recife Dourado. Será que aqueles» frágeis, mas sinistros estertores, não tinham significado? Seriam um produto acidental? Ou teriam um significado mais profundo? Seus instintos não lhe davam o menor indício nem de uma nem de outra hipótese.
Mas, para Duncan era um ato de fé — e também para aqueles com quem trabalhou toda a vida — considerar covardia não encarar a verdade, fosse ela qual fosse, ou para onde levasse. Se estava em tempo de a Humanidade encarar os poderes além das estrelas, que assim fosse. Ele não tinha dúvidas, tudo o que sentia agora era um calmo contentamento — mesmo que fosse a calma do centro do ciclone.
Duncan observou a luz tremulando e dançando na lagoa, enquanto que o Sol afundava cada vez mais na direção do horizonte e da costa oculta da África. Algumas vezes pensou poder ver, naqueles padrões claros e ofuscantes, os sinais de aviso do Argus, clamando para os bilhões de quilômetros cúbicos de espaço que os incluíam a cinqüenta ou cem anos mais tarde. . .
Mudando de forma na medida que Duncan o mirava, o. Sol beijou o horizonte e espalhou uma saia escarlate com formato de sino sobre a superfície das águas. Agora parecia o filme de uma explosão atômica — mas, passado de trás para frente, para que as chamas do inferno mergulhassem sem perigo no oceano. O último arco dourado do disco em despedida debruçou-se no limite do mundo por um instante, e no mesmo momento em que desapareceu surgiu uma faísca momentânea e verde.
Enquanto Duncan vivesse, jamais talvez pudesse ver esta beleza tão comovente de novo. Levaria para Titã uma recordação da ilha na qual tomou a maior decisão de sua vida, e abriu o próximo capítulo na história dos mundos exteriores.
VOLTA AO LAR
Tinha terminado. Havia feito todas as despedidas para a tripulação e para os passageiros, todas as formalidades haviam sido cumpridas, tudo o que tinha trazido da Terra já estava se movimentando pela esteira de transporte de bagagem. Tudo, isto é, menos o presente mais importante de todos.
Poderia atravessar a porta que dizia CIDADÃOS DE TITÃ e estaria em casa. Já tinha se esquecido da gravidade deformante da Terra. A gravidade e muito mais já estavam se perdendo no passado como um sonho diluído. Era ali o seu lar, e onde o trabalho de sua vida seria feito. Ele jamais iria outra vez na direção do Sol, embora soubesse que haveria momentos em que algumas lembranças da beleza da Terra Mãe lhe dariam uma facada no coração.
A família devia estar esperando no salão de recepção; e agora, com apenas alguns segundos para o momento de reunião, Duncan sentiu relutância para enfrentar todo o clã dos Makenzies. Deixou que os outros passageiros passassem na sua frente, enquanto ficava indeciso, tentando reaver sua coragem, e apertando desajeitadamente contra o peito o seu precioso embrulho. Aí, andou para a frente, passando sob o arco e dirigindo-se para a rampa.
Havia tantos! Malcolm, Colin, Mirissa, mais bonita e desejável do que na maioria de seus sonhos inquietos, agora livres de Calindy para sempre. Clyde e Carline. Como ela tinha crescido em tão pouco tempo! E pelo menos uns vinte sobrinhos e sobrinhas, cujos nomes sabia tão bem quanto o seu próprio, mas simplesmente não conseguia recordar naquele momento.
Não — era impossível! Mas, lá estava ela, em pé, um pouco afastada dos demais, apoiada pesadamente na bengala; contudo, sob outros aspectos, inteiramente igual à última vez que a tinha visto nos rochedos de Lago Hellbrew. Muitas coisas devem ter mudado, com certeza, se Vovó Ellen estava de volta a Oásis pela primeira vez em cinqüenta anos.
Quando viu o olhar de espanto de Duncan, deu-lhe um sorriso quase imperceptível. Era mais do que um cumprimento, era um sinal de que estava tudo bem. Ela já sabe, pensou Duncan. Ela sabe e aprova. Quando a fúria toda dos Makenzies cair sobre a minha cabeça, poderei contar com ela. . .
Passou pela sua cabeça uma velha frase terrena, cuja origem tinha há muito esquecido: A Hora da Verdade. Bem, já estava chegando.
Todos se amontoaram sedentos em seu redor, enquanto retirava o xale. Só por um instante sentiu remorso: talvez devesse ter avisado. Não, era melhor assim. Agora iriam saber que era dono de si mesmo finalmente, e não mais um prolongamento dos outros — não obstante o muito que lhes devesse, não obstante o quanto fosse parte deles.
A criança ainda estava dormindo, mas normalmente agora, e não no transe eletrônico que a tinha protegido na sua longa viagem. Subitamente esticou o bracinho gordo, e os dedinhos minúsculos agarraram a mão de Duncan com força surpreendente. Pareciam os pálidos tentáculos de uma anêmona em contraste com a pele moreno-escura de Duncan.
A pequena cabecinha ainda estava limpa, mesmo de sonhos, e o rosto era vago e sem forma como o de qualquer bebê de um mês de idade. Mas a cabeça macia e rósea já mostrava um traço bem definido de cabelo: o cabelo louro que cedo traria de volta a Titã as glórias perdidas do Sol distante.
Arthur C. Clark
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