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Um Processador de Textos Acionado por Vapor A.C.C
Um Processador de Textos Acionado por Vapor A.C.C

 

 

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Um Processador de Textos Acionado por Vapor

                  

      É muito escasso o material existente em torno da notável carreira do hoje quase esquecido gênio da engenharia reverendo Charles Cabbage (1815-188?), que foi pastor da paróquia do St. Simians, no povo do Far Tottering, Sussex. Entretanto, depois de muitos anos de busca exaustiva, tenho descoberto alguns dados novos que, no meu entender, deveriam ficar em conhecimento de um público mais amplo.

      Queria expressar minha gratidão a miss Drusilla Wollstonecraft Cabbage e às boas senhoras da Sociedade Histórica do Far Tottering, cujos prementes desejos de desvincular-se de muitas de minhas conclusões eu respeito e compreendo.

      Já em 1715, The Spectator faz menção da família Cabbage (ou Cubage) como ramo menor dos Coverley (gente sinistra, infelizmente, embora o próprio sir Roger fique à margem). Conseguiram amassar rapidamente uma enorme fortuna, como outros muitos membros da aristocracia britânica, graças a seus investimentos no negócio dos escravos. Por volta de 1800, os Cabbage eram a família mais opulenta do Sussex e da Inglaterra conforme diziam alguns, mas, dado que Charles era o menor de onze irmãos, não teve mais remedeio que entrar na Igreja sem muitas esperanças de herdar algo da fortuna dos Cabbage.

      Não obstante, antes de cumprir os trinta anos, o titular da paróquia do Far Tottering experimentou uma importante mudança de fortuna devido ao prematuro falecimento de cada um de seus dez irmãos, em uma série de trágicos acidentes.

            Este giro em sua vida que, aos comentaristas contemporâneos gostava de chamar «a maldição dos Cabbage», guardava uma relação muito estreita com a magnífica coleção de armas medievais, venenos orientais e répteis mortíferos do pastor. Logicamente, estes desventurados acidentes deram pé a numerosos comentários maliciosos e poderiam ser a razão de que o reverendo Cabbage optasse por conservar o amparo de suas Ordens Sagradas, ao menos até sua brusca partida de Inglaterra.

      Também caberia perguntar-se pela razão que moveu a um homem de tão grande riqueza e tão escassas obrigações públicas a dedicar a maior parte de seus anos férteis à construção de uma máquina de incrível complexidade, cuja finalidade e manejo só ele compreendia. Felizmente, o recente achado da correspondência Faraday-Cabbage nos arquivos da Royal Institution arroja nova luz sobre esse ponto. Lendo entre linhas, pode-se deduzir que o reverendo odiava a tarefa de redigir as duas horas de sermão semanal, jogando sempre com os mesmos temas fundamentais, cento e quatro vezes ao ano. (O reverendo dirigia, além disso, a paróquia do Tottering-in-the-Marsh, pob. 73.) Em um momento de inspiração, que deveu produzir-se por volta de 1851, provavelmente depois de visitar a Exposição Universal, aquela maravilhosa mostra do saber fazer vitoriano, Cabbage concebeu a idéia de uma máquina que organizasse automaticamente massas de textos diferentes em qualquer ordem que se desejasse. Desta forma poderia compor qualquer número de sermões a partir do mesmo material básico.

      O projeto, muito tosco em seus começos, foi adquirindo com o tempo uma grande sofisticação. Embora, como veremos, não chegasse nunca a terminar a versão definitiva de seu «Tear de palavras», planejou com todo detalhe uma máquina que não só funcionasse com parágrafos por separado, mas também também com frases independentes. (Não passou nunca a seguinte fase: a de palavras e letras, embora faça referência à possibilidade de levá-la adiante em sua correspondência com o Faraday, considerando-a seu objetivo último.)

      Uma vez terminado o projeto do tear de palavras, o criativo clérigo iniciou sua construção. Sua habilidade mecânica nada habitual, mas bem deplorável segundo alguns, tinha ficado bem patente nas engenhosas armadilhas como as que protegia seus enormes imóveis e com as que eliminou ao menos a outros dois pretendentes à herança familiar.

      Chegado a este ponto, o reverendo Cabbage cometeu um engano que pode ter trocado o curso da tecnologia, se não da história. Agora, graças à perspectiva que nos oferece o tempo, resulta-nos óbvio que seus problemas só os podia ter resolvido a eletricidade. Fazia já vários anos que se vinha utilizando o telégrafo do Wheatstone e Cabbage mantinha correspondência precisamente com o gênio que tinha descoberto as leis fundamentais do eletromagnetismo. Que estranho nos parece agora que não visse a resposta, quando a tinha ante seus próprios narizes!

      Entretanto, devemos recordar que o bom do Faraday entrava nesse momento na década de senilidade que precedeu a sua morte em 1867. Muitas das cartas que sobreviveram até nossos dias giram em torno de seu extravagante credo, a já extinta religião «sandemanista», que era algo que tirava de gonzo ao Cabbage.

      Do mesmo modo, o pastor mantinha contato diário, ou pelo menos semanal, com uma tecnologia muito desenvolvida que fala, indo aperfeiçoando-se ao longo de mais de mil anos.

       A igreja do Far Tottering gozava entre seus pertences de um magnífico órgão com vinte e um registros construídos pelo mesmo Henry Willis que em 1875 fabricou a obra professora que se encontra no Palácio Alexandra, ao norte de Londres, e que Marcel Dupre elogiou como o melhor órgão de concerto do mundo. *2

      Cabbage não o tocava mal de tudo e conhecia em perfeição seu intrincado mecanismo. Estava convencido de que, unindo uma série de tubos pneumáticos, válvulas e bombas, poderia controlar todas as operações de seu futuro tear de palavras.

      Foi um engano fatal, embora compreensível. Cabbage  havia passado por cima do fato de que a lenta velocidade do som, uns insignificantes trezentos e trinta metros por segundo, reduziria a velocidade operativa da máquina a um nível de rendimento virtualmente nulo. Como máximo, a versão definitiva podia ter alcançado assim um índice de transmissão de dados de 0,1 por dia, com o que a elaboração de um só sermão requerer nada menos que dez semanas.

      Passaram vários anos antes que o reverendo Cabbage se desse conta desta limitação fundamental. Ao princípio acreditava que simplesmente aumentando a potência disponível poderia lhe dar uma aceleração indefinida à máquina. A versão definitiva absorvia toda a energia de uma enorme debulhadora de vapor, tosco antecedente de nossos tratores e colheitadeiras.

      Este é um bom momento para resumir o pouco que se sabe a respeito da mecânica do tear de palavras. Para isso, temos que confiar na informação algo tendenciosa aparecida no Totterings Bulletin, do qual só se conservam alguns exemplares do período compreendido entre 1860 e 1880, anos cruciais para nosso estudo; e das notas esporádicas e fragmentos da correspondência ainda existente do reverendo. Ironicamente, em 1942 ainda se conservava uma boa quantidade de peças da máquina definitiva, mas foram destruídas quando uma bomba incendiária da Luftwaffe reduziu a cinzas a ancestral mansão do Tottering Towers.

      A «memória» da máquina se apoiava nos cartões perfurados de um tear Jacquard para estampado de tapeçarias, coisa nada estranha, pois não existia outra alternativa possível naquela época. Ao que Cabbage gostava de dizer que teceria pensamentos igual aquele tear tecia tapeçarias.

      Cada linha de saída constava de vinte, e posteriormente trinta, caracteres que o operador via através de uns guichês e que foram colocados sobre umas rodas giratórias.

      Os princípios que regiam o SOT(Sistema operacional por Cartões) da máquina não chegaram até nós e parece, o qual não é nada surpreendente, que o maior problema ao que se enfrentava Cabbage era o de colocar, retirar e pôr ao dia os diferentes cartões. Terminado o texto em questão, era fundido em tipos de chumbo para sua posterior impressão. Este surpreendente clérigo construiu um linotipo rudimentar pelo menos dez anos antes de que o patenteasse Mergenthaler em 1886.

      Antes de que a máquina estivesse pronta para ser utilizada, Cabbage se encontrou com a enorme tarefa de perfurar nos cartões, além da Bíblia inteira, todo o Concílio do Cruden, mas  encarregou deste trabalho, em troca de uns emolumentos irrisórios, às velhinhas do Lar de Descanso para Vizinhos de Idade Avançada, hoje discoteca e clube de breakdance, do Far Tottering. Outra desconcertante primícia que se antecipa em uns doze anos à famosa mecanização do Censo dos Estados Unidos, ideada pelo Hollerith em 1890.

      Mas nesse mesmo momento chegou a ruína. Tendo ouvido, e não pela primeira vez, estranhos rumores sobre a paróquia do Far Tottering, nada menos que o arcebispo do Canterbury em pessoa visitou o já obcecado pastor. Compreende-se que ficasse atônito ao descobrir que o órgão da igreja tinha ficado incapacitado para desenvolver sua função original ao menos por cinco anos. Cantuar, indignado, lançou um ultimato: ou desaparecia o tear de palavras ou partia o reverendo Cabbage (melhor que se fossem os dois; falava-se já de exorcismo e de voltar a consagrar a igreja).

      O dilema provocou, ao parecer, uma crise no já desequilibrado clérigo, que tentou uma última prova com a enorme e ingovernável máquina, que já ocupava todo o cruzeiro oeste do St. Simians. Face aos protestos dos granjeiros, pois era a época da colheita, a imensa máquina de vapor, com suas peças de cobre reluzentes, foi rebocada até a igreja e uma vez ali passaram a correia de  transmissão através do oco que tinham deixado ao retirar algumas das vidraças de seu sítio.

      O reverendo tomou assento ante a irreconhecível consola (não posso resistir à idéia de imaginar ativando o sistema a golpe de pedal) e começou a teclar. As rodas com os caracteres começaram a dar voltas ante seus olhos formando frases lentamente, linha a linha. Na sacristia, os crisóis com o chumbo fundido aguardavam as ordens que lhes chegariam trabalhosamente com cada jorro de ar procedente do órgão.

      — Mais rápido, mais rápido! — gritava o pastor, impaciente, enquanto os operários arrojavam pazadas de carvão naquele monstro que não deixava de vomitar fumaça no pátio da igreja.

      A correia, como uma larguíssima cobra apanhada na janela, retorcia-se sobrecarregada, acima e abaixo, bombeando um cavalo de vapor atrás de outro para o forçado mecanismo do tear.

      O resultado era previsível. Algo, em alguma parte das entraria do imenso aparelho, rompeu-se. Em só uns segundos, desgraçada, a máquina se fez pedaços. Segundo testemunhas presenciais, o pastor teve sorte de escapar ileso.

      O posterior desenlace foi tão rápido como inesperado. O reverendo Cabbage abandonou a Igreja, a sua mulher e seus treze filhos e fugiu a Austrália com seu primeiro ajudante, o ferreiro do povo.

      A julgamento daqueles vitorianos, tão preocupados com a consciência de classe, era imperdoável que se associou a um vulgar operário (inclusive um lacaio teria sido mais aceitável). O nome do Charles Cabbage foi banido da sociedade elegante e se desconhece qual foi seu destino final, embora chegaram algumas notícias segundo as quais se feito capelão do Botany Bay. E também é certamente apócrifa a lenda que corre sobre sua morte no deserto australiano, provocada por uma máquina tosquiadora de sua invenção que se voltou louca.

 

      A seção de livros estranhos do Museu Britânico possui o único exemplar conhecido dos Sermões a Vapor do reverendo Cabbage, que, conforme vem tradicionalmente alegando sua família, foram elaborados pelo tear de palavras. Desgraçadamente, não faz falta um estudo em profundidade para ver que não é assim. À exceção das últimas páginas, 223-4, resulta evidente que o volume se imprimiu em uma imprensa plana.

      Mas as páginas 223 e 224 são uma muito claro interpolação. A impressão é muito desigual e o texto está repleto de faltas de ortografia e enganos tipográficos. Trata-se, acaso, do único produto existente do mais notável e pior encaminhado, esforço tecnológico da era vitoriana? Ou é uma fraude deliberadamente criada para nos fazer acreditar que o tear de palavras funcionou de verdade uma vez pelo menos, embora o fizesse mal?

      Nunca saberemos a verdade. Mas, como inglês que sou, sinto-me orgulhoso de que um dos inventos mais importantes de nossa época fora ideado pela primeira vez nas Ilhas Britânicas. De ter tido um desenlace mais feliz, Charles Cabbage provavelmente seria agora tão famoso como James Watt, George Stevenson ou inclusive Isambard Kingdom Brunel.

                                                                                            Arthur C. Clark

 

 

                      

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