Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
Desassossego
Isabel é uma jovem órfã que trabalha como professora particular para jovens de famílias abastadas. Em suas novas funções como professora da ingênua Cris, vem a conhecer o tio desta, Raimundo, um homem sedutor acostumado a manter ligações ilícitas e secretas ao mesmo tempo em que finge ser um bom moço para a família e a sociedade. Ele a assedia incansavelmente querendo torná-la sua nova amante e Isabel a despeito da repulsa que sente pelo comportamento dele, acaba se apaixonando.
— Está mesmo decidida?
— Sim.
— Em seu lugar, pensaria mais. Madri oferece grandes possibilidades.
— Não me oferece nenhuma. Procurei, até dizer chega, uma ocupação, sem conseguir. Por outro lado, mesmo que a encontrasse, já não me interessa. Três meses de verão passam logo e quero sair deste braseiro.
— Eu lhe ofereço uma oportunidade.
Isabel Viñoles contemplou agradecida o atraente rosto do Artur Sanroman, seu eterno enamorado.
— Agradeço, mas não é essa oportunidade que espero na vida.
— Isabel, meu amor.
— Mas é que eu... não o quero desse modo. Você é meu melhor amigo, Artur, mas... nunca o vi com olhos de apaixonada. Compreenda e desculpe-me.
Artur Sanroman agitou-se no assento. O trem ia partir e levaria Isabel para uma terra desconhecida por três meses... E ele a amava. Queria Isabel para casar-se com ela. Convidara-a para ficar na Serra, com sua irmã, enquanto seus alunos de inverno desfrutavam do verão e retornavam à vida madrilenha e às aulas com a professora particular. Mas Isabel, orgulhosa e sempre dona de si, recusava aquele convite, embora com delicadeza.
Seu conhecimento havia sido simples e casual. Uma dessas amizades feitas nas grandes cidades e que não são levadas a sério no princípio e depois criam profundas e grandes raízes.
O primeiro encontro ocorreu no metrô. Artur dirigia-se para o escritório. Era chefe de vendas de importante companhia de seguros. Deviam ser nove horas da manhã e fazia um frio insuportável. O metrô estava cheio e na estação de Atocha, uma linda jovem, Isabel Viñoles, tentava tomar o trem. Alguns operários também pareciam ter pressa e Artur pôde ver que a jovem fazia um enorme esforço para entrar. Muito cortês, inclinou-se para ela esticando a mão. enquanto dizia:
— Por favor.
Isabel olhou-o, vacilante e Artur sorriu animando-a a entrar, conseguindo-lhe espaço.
— Obrigada - disse ela.
— Não há de que, senhorita.
— Isabel Viñoles...
— Prazer
Naquela ocasião pouco conversaram. No dia seguinte, voltaram a encontrar-se no mesmo lugar. E assim, pouco a pouco, Artur foi-se inteirando de quem era Isabel e aonde ia todos os dias à mesma hora, com a pasta de couro debaixo do braço.
Soube que não tinha pais, vivia em Recoletos, num colégio de senhoritas empregadas e ocupava todas as horas do dia em dar aulas particulares. Soube, ainda, que era órfã de um marinheiro de guerra, que não conhecera sua mãe e tinha um tio numa cidade do norte, a quem não conhecia.
Ao cabo de dois meses saíam juntos e eram bons amigos. Quando Artur declarou pela primeira vez que a amava, Isabel, sobressaltada, replicou que o estimava muito mas como um bom amigo.
Ao findar aquele inverno, Isabel explicou-lhe que seus alunos passavam o verão fora e ela tinha de procurar outros. Então, Artur apresentou-a a sua irmã, Engrácia, casada com um empresário de teatro. Engrácia convidou-a a passar o verão com eles num povoado da Serra. Isabel recusou, porém. Não amava Artur e não queria compromissos. Desejava trabalhar, viver, continuar livre como até então.
E graças à mãe de uma aluna, havia conseguido uma carta de recomendação e uma colocação bem remunerada num povoado costeiro do norte da Espanha. Era para lá que viajaria. Artur, porém, ainda insistiu para que ficasse. — Apesar disso, Isabel - repetia ele -, ofereço- lhe uma tranqüila situação a meu lado. Você não vai ficar toda a vida dando aulas a meninas travessas.
Isabel contemplou o amigo uma vez mais. Era alto, delgado e estava sempre bem vestido. Tinha cabelos louros, olhos azuis e um sorriso cinematográfico, mas ela não era mulher que se prendesse a um homem só por sua aparência física. Fora de dúvida, Artur era um homem com múltiplas qualidades para ser querido, mas nem por isso havia obtido o amor de uma mulher como Isabel, exigente por natureza em questões de amor.
Por outro lado achava-se bastante capaz para o trabalho e ganhava dinheiro com certa facilidade, já que sua inteligência e seus conhecimentos davam-lhe os meios de viver, sem ter que apelar para o casamento.
Só se casaria se estivesse realmente apaixonada e até àquela data seu coração não batera mais nem menos por um homem determinado, apesar de possuir em Madri muitos outros amigos, além de Artur.
— Mas ir para esse povoado distante, até princípios de outubro, para conviver com uma família desconhecida...
— Não são tão desconhecidos assim - disse ela, sorridente.
Seu sorriso tornava-a ainda mais bonita. Tinha o aspecto diferente das clássicas professoras que eram quase sempre louras, frágeis e carregavam nos erres ao falar. Isabel era morena, esbelta, a cútis bronzeada e os olhos negros, rasgados. Possuía uma boca carnuda, úmida e sempre aberta num sorriso cativante. Vestia-se na última moda e mais que uma professora, parecia uma jovem da alta sociedade, como qualquer de suas alunas, ao lado das quais jamais destoava. Com freqüência era convidada por elas para os mais variados programas. Sabia montar a cavalo, fumava com elegância, conversava fluentemente e não se sentia inibida em parte alguma.
Ainda sorrindo, daquela maneira cativante, observou:
— O trem já vai partir, Artur.
Ele olhou para fora. Sim, o trem ia começar a mover-se. Antes de sair do vagão de luxo, fitou-a seriamente e disse:
— Você sabe que a amo de verdade. Ficarei aqui à sua espera, disposto a casar-me com você quando desejar.
Isabel tinha vinte e dois anos e um temperamento emotivo como qualquer de suas jovens alunas. Ofereceu a mão que Artur apertou com força.
— Se algo acontecer - disse ele, não menos emocionado -, já sabe onde estou. Escreva-me sem demora e irei buscá-la.
— Obrigado, Artur. Não esquecerei seu oferecimento.
— Você sabe, Isabel, que é de coração. Tenho vinte e sete anos e nunca me apaixonei antes. Jamais pensei a sério em matrimônio... mas com você eu casaria imediatamente.
O trem ia partir. Artur ainda acrescentou, com súbita paixão:
— Um telegrama, Isabel, um telefonema e irei para seu lado.
— Obrigada.
— Gostaria que você não trabalhasse mais. Não tenho muito para oferecer-lhe, mas... tudo quanto tenho é seu.
— Quem dera - disse ela suavemente - pudesse corresponder a seus sentimentos.
— Talvez... algum dia...
— Sim, talvez, Artur.
— Adeus, querida.
— Até à vista.
As pequenas e finas mãos de Isabel ficaram sob os lábios de Artur. O trem entrou em movimento. Artur soltou as mãos femininas com nostalgia e afastou-se. Ficou ali, parado e silencioso, com um último aceno, até que o comboio perdeu-se numa curva.
Isabel suspirou, sentando-se junto à janelinha. Abriu uma revista e dispôs-se a ler e a fumar. Quando o criado entrou para fazer-lhe acama, ela ainda continuava na mesma posição.
Raimundo Encinares levantou-se do leito à uma em ponto, como de hábito. Seu criado Matias abriu as persianas, dispôs a roupa e preparou o banho do patrão. Raimundo, ao pé da janela, fez os exercícios habituais, encolhendo e esticando as pernas, batendo depois com as mãos no ventre.
— Como está o dia hoje, Matias? - perguntou.
— Esplêndido, senhor.
— Magnífica perspectiva. Há alguma novidade?
— A Senhorita Cristina chegou e procurou pelo senhor.
— Que queria minha sobrinha?
— Ia a caminho da estação para buscar a professora. Desejava que o senhor a acompanhasse.
— Hum... Meu banho está pronto?
— Sim, senhor.
— Bem. Alguma outra novidade?
— A Senhorita Berta telefonou.
— E o que desejava, desta vez?
— Convidá-lo para uma caçada.
— Oh, oh!...
Fechou-se no banheiro, rindo às gargalhadas. Meia hora depois, vestia-se ante o grande espelho que tomava toda uma parede do luxuoso quarto.
Era um homem alto e forte e teria uns trinta e quatro anos. Seu cabelo era negro, salpicado de fios de prata, os quais, no dizer das jovens casadouras, davam-lhe um aspecto de ator de cinema. Possuía uma fronte ampla, olhos de expressão indefinível, de um tom castanho-claro.
Vivia só com cinco criados naquele antigo casarão da Plaza del Agua. Não dava que fazer a seus serventes porque praticamente só parava em casa para dormir. Embora todos os habitantes do povoado o considerassem um homem rico, elegante e pacífico, na realidade ele era elegante e rico, mas de pacífico não tinha nada.
E enquanto seus amigos julgavam-no dormindo em seu leito como um santo, Raimundo saía à tarde
— Alguma outra novidade, Matias? - perguntou.
— Sua irmã, a condessa Maria Josefa telefonou e disse que o esperava para almoçar.
— Que aborrecimento! - exclamou, bocejando.
— Não suporto a comida de minha irmã. Há algum meio de escapar?
— Não creio, senhor.
— Tem certeza?
— Infelizmente.
— Bem. Então às duas telefone para o clube, lembrando-me. Algo mais?
— A Senhorita Sotomayor telefonou às onze. Disse que o esperava na praia.
— Você deu alguma desculpa, Matias?
— Sim, senhor - admitiu o criado, muito sério.
— E quem lhe deu permissão para isso? - bradou Raimundo, contendo a vontade de rir.
— Considerando que a Senhorita Sotomayor é muito feia em traje de banho...
— Você é um gênio, Matias. Não sei que seria de mim sem a sua ajuda. Que desculpa inventou?
— Disse que o senhor tinha ido ao dentista. Como ela detesta os dentistas e as dores de dentes...
— Você é um psicólogo de primeira qualidade, Matias, velho amigo. Que mais?
— Algo muito interessante, senhor. Ao voltar da estação, a Senhorita Cristina passou por aqui. Desejava que o despertasse para apresentar-lhe sua professora. É muito bonita.
— Velha raposa. Sabe do que me lembro neste momento? Quando você era meu ordenança de guerra.
— Eram tempos alegres, senhor.
— Sim, tem razão. Aquela cantineira que estava sempre a nosso lado era bem bonita. Lembra-se, Matias?
— Não me fale, senhor.
— E essa professora...
— Tem olhos negros, como cigana. Fala vários idiomas.
— Está bem, Matias. Vejo que ela o impressionou.
Saiu para o clube, onde passou toda a tarde. Quando voltou para casa encontrou Matias aborrecido.
— A senhora condessa telefonou. Creio que o senhor se esqueceu do convite.
— Perdoe, Matias.
— O senhor não tem desculpa.
— Lamento, Matias. Prepare-me o traje a rigor. Vou jantar com minha irmã.
— Pode subir, senhor - disse Matias, sorrindo.
— Eu vou ajudá-lo a vestir-se.
Isabel não gostou daquele olhar penetrante do tio de sua aluna. Ela estava em casa da condessa de Salcedo, na qualidade de professora e Maria Josefa Encinares recebera-a como pessoa distinta. Sabia por seus amigos de Madri que Isabel Viñoles cobrava caro e só se dedicava a dar aulas a moças de família importante. Por isso, após o recebimento protocolar, convidara-a a sentar-se à sua mesa e Isabel aceitara sem ruborizar-se, como era costume nela, com naturalidade e distinção.
Cristina, uma jovem loura, simpática e cordial, que contaria no máximo dezessete anos, conversava com Isabel na saleta, quando foi anunciada a chegada de Raimundo. Demonstrou grande entusiasmo pelo tio e contou à jovem professora tratar-se de um homem solteiro de trinta e quatro anos, muito rico, elegante e simpático, muito difícil de ser conquistado. — Minha mãe deseja que se case - explicou Cristina naquela tarde. - Comigo morre nosso nome, visto que sou Salcedo e meu tio é quem terá de dar herdeiros aos Encinares. Mas o tio Raimundo é tão sério e tão tímido ao mesmo tempo...
Tímido? Hum... Isabel, boa conhecedora de psicologia masculina percebeu imediatamente que aqueles olhos castanhos de Raimundo nada tinham de sérios. Cravavam-se nela com muito interesse e o pior é que pareciam desnudá-la. Não, decididamente, Cristina estava enganada ao julgar o tio. Mas Isabel não revelou sua opinião, visto que não lhe importava. Afinal ia ficar naquele palacete três meses e, talvez, não voltasse mais ali.
A própria condessa fez as apresentações e os três sentaram-se à mesa. Isabel vestia elegantemente, não destoando entre aqueles senhores e, embora atenta à conversa, manteve-se discretamente à margem.
— Você pouco vem por aqui, Ray - censurou a irmã, ao café. - Se não o chamo, esquece que tem família.
— Meus compromissos, querida.
— Você passa três meses em Encinares, depois vai embora e não se lembra de escrever duas linhas sobre esses lugares estranhos por onde anda.
Houve uma pausa na conversa e Isabel pediu permissão para retirar-se. Raimundo beijou-lhe as mãos e a jovem sentiu um certo mal- estar.
— Tive muito prazer em conhecê-la, Senhorita Viñoles.
— O prazer foi meu, Senhor Encinares - disse Isabel, retirando-se a seguir.
— De onde a tirou? - perguntou ele, depois, pensando que Matias tinha realmente um excelente gosto.
— Foi recomendada pela Sra. Espinosa. Ela é professora de sua filha no inverno.
— Estranha jovem. Geralmente as professoras de meninas da sociedade são francesas ou inglesas. Vocês, as mães, assim o exigem.
— Não sou tão fanática. Begônia recomendou-a e eu aceitei-a.
— Com a condição de participar da mesa? As nossas professoras não tinham essa regalia.
— Begônia disse que era conveniente. Contou que em Madri convive com suas alunas. É órfã de um marinheiro de guerra muito importante.
— Viñoles! Não recordo esse nome e eu fui também da marinha, durante a guerra.
— Isso não nos interessa. O essencial é que se ocupe de Cris durante estes meses. Não quero que minha filha esqueça o pouco que sabe de francês e inglês.
— É muito elegante, essa professora. Suas roupas não são nada vulgares e tem um porte altivo.
— Basta ver se é boa professora.
— Deve ser. Mas acho estranho que com esse corpo e aquele rosto, se limite a dar aulas.
— Mal intencionado...
— Mal intencionada é você, minha querida irmã. Bem, já estou caindo de sono. Você sabe que sou um dorminhoco.
— Sim, já sei. A propósito, Raimundo, você tem trinta e quatro anos e é o único dos Encinares.
— Sim, sei disso.
— Não pensa mesmo casar-se?
— Por caridade, Maria Josefa. Não muda nunca esse disco?
— É que me dá pena, Ray. Você é um homem normal, sério, competente... Daria um excelente marido e as moças de nossa sociedade ficariam honradas de acompanhá-lo ao altar.
— Por favor...
— Você não gosta de romances. Só tem uma paixão; as viagens e isso também acaba. Sabe o que penso, Ray?
— Creio que sim.
— Pois não sabe. Berta Almendra é uma mulher excelente para você. Acho que...
— Sim, sim - cortou, pensando nas sardas de Berta e seu nariz de papagaio. - Você tem razão, mas deixemos isso para outro dia, sim? Agora estou morto de sono.
E beijando a irmã, apressou-se em sair dali.
Isabel, em Madri, era bem acolhida em toda parte. Quando terminava a aula, gostava de dar um passeio e escapar até à praia. Assim fez naquela manhã e nadou em direção a uma rocha solitária, onde podia deitar-se ao sol, mantendo-se afastada dos intrometidos do pequeno clube.
— Bom-dia, senhorita professora - disse uma voz atrás dela.
— Oh! - exclamou assustada. - Julguei que estava só.
Ray sorriu de uma forma que Isabel julgou desagradável e num tom indiferente, observou:
— Chegamos quase ao mesmo tempo, por lugares diferentes. Desagrada-lhe minha companhia?
— Bah!
— Uma forma ambígua de responder. Ouça, Isabel. Não nos vimos em outra ocasião?
— Não creio.
— Não, acho que não. Se a tivesse visto antes, não a esqueceria tão facilmente. Você é dessas mulheres que deixam uma marca funda em nossa lembrança...
— Como devo interpretar suas palavras?
—- Deseja um cigarro? - perguntou, furtando-se a responder de imediato.
— Obrigada. Não desejo fumar agora.
— Bem, deve interpretar minhas palavras como quiser. Tem compromisso para esta tarde?
— Pensa convidar-me?
— Por que não?
— Porque não costumo sair com os tios de minhas alunas.
— Oh, lamentável! Com quem costuma sair então?
— Acho que isso não lhe interessa.
— É verdade,
— Com licença, vou voltar à praia.
— Que pena. Estávamos tão bem aqui, não acha?
— Não, não acho. Adeus.
— Isabel...
Ela voltou-se ligeiramente e deu de novo com aquele olhar penetrante e malicioso. Estremeceu e sem hesitar, correu para a água e nadou vigorosamente para a praia.
À tarde, conversava com Cristina e esta fazia rasgados elogios ao tio Raimundo, que tanto admirava.
— Quando você o conhecer melhor, gostará dele. É um tanto retraído, sabe? É sério e formal...
— Sério e formal... - repetiu Isabel baixinho.
— Conhece Berta Almendra? Está louca por ele. E há muitas outras. Ele é tão simpático, não acha?
— A que se dedica?
— A nada, claro. Os Encinares nunca trabalharam.
— Ah! - disse Isabel, contendo um sorriso de ironia.
— Tio Raimundo vive de seus rendimentos. Durante o inverno viaja por todo o mundo e seus quatro criados ocupam-se do casarão. Matias é seu criado de confiança e viaja com ele. Durante o verão passa aqui três meses e nunca se ausenta do povoado. Seus amigos passam as tardes na cidade, mas ele diz que está farto de cidades. Leva uma vida muito sedentária. Tem a admiração de todo o povoado, pois, outro em seu lugar, sendo livre e tendo tanto dinheiro, se divertiria mais. Não acha?
— Não sei, querida. E se estudássemos um pouco?
— É tão aborrecido.
— No entanto, estou aqui para isso.
— Não a aborreço falando tanto de meu tio?
— Não é que me aborreça, mas sua mãe contratou-me para dar aulas de francês e inglês, não para que me conte as qualidades de seu tio.
— Tem razão. Desculpe-me.
Começou a aula, mas logo depois Cris voltou a seu tema preferido.
— Não acha estranho que um homem como meu tio não tenha ao menos uma namorada?
— Não. Há muitos homens nas mesmas condições.
— Não conheço muitos homens. E você?
— Bastante. Continuamos a lição?
Eram quase três da tarde quando terminaram a aula. Isabel foi para o quarto e da janela podia ver o jardim e quantos estavam ali. A condessa e Raimundo conversavam, sentados
Contemplou-o detidamente. Em seu rosto aparecia uma sombra de cansaço. Quantos anos teria aquele homem? A julgar pelos cabelos brancos, devia ter quarenta e tantos; mas seu rosto dava a impressão de ter muito menos. Agora, quanto a ser um santo... Cris e o povoado estavam muito enganados ou ele, Raimundo Encinares, era um hipócrita consumado. Não uma criatura passiva e de hábitos moderados. Ela raramente se enganava ao analisar as pessoas.
Anoitecia quando Isabel voltou do passeio ao povoado, que ficava a meio quilômetro do palacete.
Vinha andando lentamente, distraindo-se com a paisagem, pensando em Artur por vezes, mas divagando sempre. De súbito, sobressaltou-se, quando um carro surgiu lançando os potentes faróis sobre ela. O auto avançou e deteve-se a seu lado.
— Em que pensamos, professora? - disse a voz de Raimundo.
— Olá - saudou ligeiramente.
— Quer carona? Levo-a de boa vontade.
— Obrigada, prefiro ir caminhando.
— Aviso-a que por Este lado há surpresas.
— Prefiro assim.
— Que tal fumarmos um cigarro? - disse Raimundo, descendo do carro.
— Obrigada. Aceito.
— Nunca vi olhos como os seus, Isabel. Onde os conseguiu?
— Foi a natureza...
— Sim, tem razão. É preciso reconhecer que foi muito generosa... Que tal nos aproximarmos?
— Com que fim?
— Como homem e mulher que somos.
— Prefiro manter bem marcada a distância.
— Oh! Acabarei pensando que é uma jovem antiquada.
— Incomoda-o?
— Diabos! Que olhar mais desafiador!
— É o que tenho.
— E me agrada.
— Quantas lhe agradaram antes de mim? - perguntou, quase sorrindo, ao pensar na falsa timidez daquele homem.
— Sente-se aqui, no estribo do carro. Gosto de conversar com você.
— Pois não digo o mesmo.
— Criança. Esquece-se que está falando com o tio de sua aluna.
— Não o autorizei a tratar-me assim, Senhor Encinares.
— Não suporto mocinhas formais. Não podíamos ver-nos em outra parte?
— Claro que não.
— Acho que tem medo de mim.
— É muito convencido, Senhor Encinares.
— Qual! É a primeira vez que uma mulher se atreve a dizer-me tal coisa!
— Talvez não tenham sido tão sinceras quanto eu.
— A cada momento que passa você me agrada mais.
— Lamento não poder continuar a conversa.
— Espere. Disse que a levava no carro. Não tenha medo, ainda não penso raptá-la.
— Já disse que prefiro ir a pé.
— Então, acompanho-a.
— Não! Só admito a companhia de homens que me agradam.
— E eu não lhe agrado? - riu, convencido.
— De modo nenhum.
— Lamentável.
— Pois eu não lamento. Sabe qual é a opinião de sua irmã e sua sobrinha a seu respeito?
— Sei, e o padre considera-me também um exemplo. Não lhe parece consolador?
— Acho-o detestável.
— Sua sinceridade é terrível.
— Não lamento ser assim.
— Estou vendo. Vamos deixar de tolices e aceitar meu convite? Sei de um lugar onde podemos dançar. Lá não vão os rapazes da colônia de veraneio. Portanto não há perigo de que eu perca o prestígio, e você, o bom conceito de que desfruta.
— Está me aborrecendo, Senhor Encinares.
— Bobagens. Você pode enganar o povoado, à cândida da minha irmã e minha incauta sobrinha, tal como eu os engano, mas a mim, não. Sou muito mais experiente e conheço pequenas como você.
— Ouça...
— Vem comigo?
Como única resposta, Isabel afastou-se rapidamente dali. Raimundo deu de ombros, subiu no carro e ao passar junto a ela, pôs a cabeça para fora e disse, sem piedade:
— Você seria uma amante magnífica. Algum dia o será. Por que não posso ser o favorecido?
Isabel empalideceu e quando quis responder a ofensa, o carro já se afastava estrada abaixo.
Sentiu que odiaria sempre aquele homem que não soubera julgá-la.
À noite, enquanto se vestia para ir à cidade, Raimundo confidenciava a Matias:
— É de fato muito linda. Que olhos, que corpo!
— E é "difícil"? - perguntou tranqüilamente o criado, como se estivesse habituado àquela classe de confidências com seu patrão.
— Claro que não. Não me empreguei a fundo, mas insinuei algo. Entre ser uma professora de idiomas e a amante de um homem rico como eu, a escolha é óbvia.
— Tem razão, senhor.
Raimundo jamais tinha sido chamado de velho nem fora desprezado por nenhuma mulher e muito menos lhe haviam dito que era um demônio ridículo agarrado a uma juventude que se ia, embora ele não o quisesse.
Por isso, quando ouviu tais Insultos, ficou triste primeiro, enfureceu-se depois e terminou por achar muita graça. Quem lhe disse todas aquelas "lindezas" foi a própria Isabel, que ainda sentia seu amor-próprio ferido e tão logo teve ocasião desafogou-se como pôde e como só podia falar, falou.
Isso ocorreu no jardim do palacete dos Salcedo, três dias depois do encontro da estrada. Isabel havia terminado a aula da manhã e Cris fora à praia com as amigas. A condessa saíra para a cidade, às compras.
— Bom-dia, professora - disse Raimundo, aproximando-se.
— Olá - replicou ela, serenamente.
— Outro dia você perdeu uma tarde estupenda em minha companhia - disse ele, inclinando-se.
— Está me tratando com cortesia?
— É apenas o começo. Aceita o convite hoje?
— Tenho vergonha de exibir-me com um homem como você. Um tipo ridículo que se presume um jovem bonito.
— Ouça, eu...
— Sinto dizer-lhe esta grande verdade, Senhor Encinares. Para as jovens do povoado poderá ter muitos encantos, mas para mim não passa de um tipo grotesco.
— Quê?!
— É o que ouviu. E sinto ter de ser tão sincera. Sempre tive piedade pelos homens que lutavam com o passar dos anos, procurando a forma de se sentirem eternamente jovens, mas a gente se cansa de sentir piedade por certos sêres desumanos.
Do assombro, Raimundo passou à indignação, mas não lhe serviu de nada, já que ela prosseguiu:
Gostaria de vê-lo sem um centavo. Não haveria jovem no povoado nem fora dele que lhe sorrisse. Por que vocês, os homens, são tão ridículos, agarrando-se a uma juventude que se vai e não perdoa?
— Se não calar a boca, Isabel, sou capaz de agarrá-la e levá-la em meu carro para...
— Aviso-o que não conseguiria mais que meu desprezo.
— Parece que sabe muito de homens e da vida. Quem foi seu último amigo?
— Que está dizendo?
— Que você não é uma jovem inocente, professora. Conheço as mulheres como você, que se revestem de uma capa de inocência para cobrir as aparências.
Isabel sentiu pela primeira vez uma vontade atroz de chorar e para que ele não notasse tal fraqueza, saiu correndo e o deixou com a palavra na boca.
Naquela tarde, Raimundo não saiu de casa e andou de espelho em espelho, observado por Matias. Seu humor estava abaixo de zero e depois de muita agitação, resolveu seguir o conselho do criado, passando alguns dias sem dar importância a Isabel.
Mas o método não surtiu efeito. Isabel Viñoles parecia ignorá-lo e dar-lhe pouca importância. Isto desconcertou o conquistador que se considerava infalível, mas que pela primeira vez tropeçava com uma inimiga que, em vez de dar- lhe importância, ria-se dele.
Decidiu abordá-la de novo e como sabia onde encontrá-la a uma certa hora da tarde, procurou- a e achou-a sentada à margem do rio, pintando uma paisagem.
Raimundo ia a pé. Aproximou-se dela pelas costas e contemplou silencioso, seu trabalho. Quando se cansou de apreciá-lo, sentou-se a seu lado, dizendo:
— Você não pinta de todo mal.
Isabel apenas virou a cabeça e seus olhos rasgados fitaram-no com indiferença.
— Seus olhos sempre me desconcertam - exclamou Raimundo. - São os mais estranhos e belos que já vi.
— Então viu muito poucos.
— Ao contrário, contemplei muitos e bem de perto.
— Nesse caso, tem péssimo gosto.
— Considero-me um homem de bom gosto, principalmente no que se refere ao belo sexo.
— Devo agradecer-lhe o galanteio?
— Ouça, Isabel, gostaria de fazer um acordo com você.
— Não faço acordo nenhum com você. Já conhece minha opinião a seu respeito e não mudei em nada.
— Você é mesmo teimosa. Mas imagine que sou seu amigo.
— Nem
— Às vezes formam-se opiniões que não correspondem à realidade.
— O que penso de você, não mudará nunca.
— Não há dúvida, você é teimosa. Não queria fazer-lhe uma proposta humilhante, mas me obriga a isso.
— Poupe seu esforço.
— Sinto não poder atendê-la. E não se levante. Você tem de ouvir-me. Não vou propor que se case comigo. Não sou dos que se casam, mas você vive em Madri escravizada, dando aulas a meninas tolas e...
— Quer ficar calado? Detesto "velhos" assanhados.
— Não sou um velho nem você me considera como tal. Mas se pretende fingir essa frieza, acho muito natural. Todas as mulheres procedem assim, mas depois...
— Acho, Senhor Encinares, que até a data de hoje não encontrou mais que mulheres fáceis.
— Quer deixar-me terminar?
— Não! Vou embora!
E começou a andar, mas ele seguiu-a com a maior tranqüilidade.
— Ouça, Isabel.
— Não quero saber nada.
— Eu a cobrirei de jóias. Estimo que seja digna de usar as melhores e mais caras do mundo.
— Nem coberta de ouro viveria com você. Primeiro.. iria viver com qualquer mendigo.
— Bobagens. Quer deixar-me continuar
— Não lhe permito. Você é um cínico, Raimundo Encinares e o mais grotesco é que todo mundo o considera um bom moço, sem malícia e sem desejo. Que diriam esses que o admiram se eu lhes contasse a perseguição que você me faz?
— Não acreditariam, pequena. Raimundo Encinares, no dizer dessa gente, é um cavalheiro inatacável.
— E você está orgulhoso de aparentar aquilo que não é.
— Pouco me incomodo com isso.
— Se eu contasse à sua irmã...
— Ela a chamaria de mentirosa ou algo parecido e a mandaria de volta a Madri. E a propósito de Madri, eu moro lá. E tenho um apartamento de solteiro na rua Serrano. Que tal se você fosse ver-me assim que sair daqui? Eu estarei esperando.
Isabel já não quis ouvir mais e apertou o passo. Desta vez ele não a seguiu. Ficou no meio do caminho, agitando uma vareta no barro.
Naquela noite foi à cidade no Opel e voltou já amanhecendo o dia, com um sabor amargo na boca e uma vontade tremenda de parar com aquela vida que a cada dia parecia-lhe mais monótona.
Matias, como sempre levou as sobras de seu mau humor.
Passou uma semana sem ir à casa de sua irmã, até que esta o chamou por telefone. Raimundo prometeu ir naquela mesma tarde.
A condessa estava preocupada, ao telefonar- lhe. Discutia com Cristina sobre a prolongada ausência do irmão, quando Isabel entrou na saleta.
— Falava de meu irmão - disse a condessa.
— Ah! - exclamou Isabel.
— Dizia que ele deveria casar-se.
— Se ele o deseja... - respondeu a professora.
— Pois deveria querer, não acha? É o último dos Encinares varão. Seu dever é dar herdeiros ao nome e por outra parte, está muito só. - Fez breve pausa para aduzir, depois: - Berta Almendra é a mulher apropriada para ele. Conhece-a?
Isabel não a conhecia nem lhe interessava, mas como antes de tudo era a professora e devia ser cortês, limitou-se a dizer que não tinha a honra de conhecê-la.
Cristina passou a menosprezar Berta a ponto da condessa chamar-lhe a atenção.
Isabel não fez nenhum comentário, pois não estava em situação de fazê-lo, mas pensou, pois o pensamento era livre. Raimundo Encinares era um homem frívolo. Mas alguém acreditaria, caso ela o dissesse? Lógico que não! A condessa seria a primeira a refutar redondamente tal acusação.
— Além de ter trinta anos - disse Cris, referindo-se a Berta -, tem um nariz de papagaio, umas sardas horríveis, uma boca que parece não sei o quê e um corpo mal feito.
— Cris!
— Não -é verdade, mamãe?
— Você não entende nada disso, pequena. Nem está em idade para julgar. Ademais, que importa um físico mais ou menos bonito, quando há uma alma digna de todo elogio?
— Tio Ray é um homem de bom gosto.
— Obrigado, querida sobrinha - disse uma voz atrás delas.
— Falávamos de você, tio - disse Cris, sorrindo. O milionário, dor de cabeça de todas as jovens casadoiras, deixou-se cair numa poltrona, diante de suas parentes. Vestia um terno de verão, cor de canela, sapatos brancos e não usava gravata. Tinha Isabel diante dele e por mais que fizesse, não conseguiu encontrar os olhos vivos da jovem, que deliberadamente o ignorava.
— De que se trata? - perguntou.
— De seu casamento - disse a sobrinha.
— Meu... casamento? - sobressaltou-se ele.
— Eu dizia que você e Berta fariam um belo casal - disse a irmã.
— E eu dizia que Berta, além de ser mais velha...
— Se voltar a dizer isso, Cris, não sairá de casa o dia todo - censurou a mãe.
— O tio Raimundo é um homem de gosto, já disse e ela...
— Você tem razão, querida sobrinha - riu ele.
Olhava de soslaio para Isabel, mas esta não dizia palavra, como se estivesse ausente dali. Ele desejou ouvir sua voz e não se conteve mais, perguntando:
— E o que diz, Senhorita Viñoles?
— Sobre o quê?
— De meu casamento com Berta Almendra.
— Não a conheço.
— Cris descreveu-a com todos os detalhes.
— Não entendo de beleza feminina.
— Uma desculpa pouco aceitável. — Lamento, Senhor Encinares.
— Vamos deixar isso de lado? - disse Cris. - Tenho que ir à cidade fazer umas compras, tio. Quer levar-me em seu carro?
Raimundo tinha outros planos, mas sempre havia atendido aos caprichos de Cris, de modo que respondeu, sorridente.
— Claro que sim, queridinha.
— A Senhorita Viñoles os acompanhará - interveio a condessa, causando um grande regozijo em seu irmão e uma terrível contrariedade na professora.
— Estupendo! - exclamou Cris. - Assim ela poderá ajudar-me a escolher os modelos. — Poderão sair depois ao almoço, não acha, Senhorita Viñoles?
Isabel não teve outro remédio senão concordar com as ordens da condessa. Mas por mais que Raimundo tentasse encontrar seus olhos, não conseguiu.
Cris ia sentada ao lado de Raimundo que dirigia, enquanto na parte de trás Isabel lia indiferente uma revista. Pelo retrovisor, Raimundo observava-a a cada instante, mas nem uma só vez conseguiu ver os olhos da professora.
Quando, afinal, o carro parou diante de uma casa de modas, Ray pretendeu oferecer a mão à Isabel, mas esta, mais rápida, desceu sozinha, mortificando-o.
— Suponho, tio, que depois de fazermos as compras nos convidará para um lanche num lugar animado. Não importa que haja dança - acrescentou com malícia. - Mamãe não saberá.
— Mas sua professora está aqui e tem um ar de fuxiqueira.
Cris começou a rir. Isabel não achou graça nenhuma na piada, mas absteve-se de falar. Raimundo provocava, mas ela estava disposta a não aceitar suas provocações. — Eu as espero na lanchonete - disse Raimundo. - Até logo, queridas. - E como Cris já se afastava, inclinou-se para Isabel e disse, baixinho: - Você é uma deliciosa pequena altiva, mas eu vencerei. Já decidi e nunca, até hoje, fracassei em meus intentos.
— Desta vez fracassará.
— Já veremos isso.
Picou à espera delas, imaginando coisas a respeito de Isabel. Sentia-se intrigado porque jamais se preocupara tanto com uma mulher e a recusa da jovem espicaçava-o a cada instante.
Por volta das seis da tarde, as duas moças saíram da casa de modas. Seguia-as um empregado carregado de embrulhos que foram colocados no carro. Depois ambos entraram na lanchonete.
— Lanchamos aqui, tio? Ou vai nos levar a um lugar mais alegre?
— Acho que a senhora condessa não ficará satisfeita - disse Isabel.
— Oh, senhorita Viñoles. Não me prive desse prazer.
— Você ainda não foi apresentada em sociedade - observou Isabel seriamente, pois não desejava ir a parte alguma onde se aproximaria mais de Ray.
— Por isso mesmo, senhorita. Permita-me sair da rotina ao menos uma vez.
— Se a senhora condessa souber, eu serei a responsável.
— O responsável sou eu - cortou Raimundo. - E encontrarei uma explicação plausível para minha irmã.
— Nesse caso - disse Isabel friamente -, eu os espero aqui.
— Isso é que não.
— Senhorita Cris...
— Que eu vá a um salão ou boate com meu tio e minha professora vá comigo, não inquietará mamãe. Mas que a senhorita fique longe de mim é que a deixará furiosa. Tenha a bondade de acompanhar-me, suplico-lhe.
— É a primeira vez que vou contra meus costumes, Senhorita Cris.
— Terá de ir muitas vezes - interveio ele com um tom intencional que Isabel captou de pronto.
— Engana-se - disse Isabel. - Não é nada fácil levar-me a agir contra meus princípios.
— Teremos de considerá-la uma dama ultravirtuosa.
— Não pretendo tanto. Basta que me considerem tal como sou e isso é o que vem ocorrendo até hoje.
— Oh, não fiquem zangados. Se não podemos ir, não vamos, pronto! - disse Cris.
— Por que não? - protestou Raimundo, que já se imaginava com Isabel nos braços, dançando.
— Claro que vamos. Pediremos um lanche aqui e depois iremos a uma boate que eu conheço. Não penso levá-las a um lugar qualquer, minhas queridas. Seria algo indigno da inocência de Cris e da classe da elegante professora.
Cris não reparou no acento irônico do tio. Isabel, sim, sentiu tal raiva que teve de apertar os punhos sob a mesa, para não esbofetear o impertinente.
A boate era um local elegante, seleto e a professora, habituada a dançar em lugares semelhantes, percebeu que aquela sala não era freqüentada por pessoas de condição humilde, mas ao contrário.
Eram oito horas da noite de um mês de agosto e havia ali uma tênue penumbra, apesar de que a jovem não estava de bom humor para apreciar tais detalhes.
Ocuparam uma mesa junto à pista. Havia um casal dançando e Cris observava-os com atenção. Era a primeira vez que freqüentava um lugar semelhante e a professora pensou que de futuro ela se tornaria elegante e frívola como o tio.
— Oh, tio! - exclamou a jovem, de repente. - Gostaria tanto de dançar aqui...
— Senhorita Cris...
— Por favor, professora. Permita-me ter uma tarde completa.
— Claro que dançaremos, pequena - disse Raimundo, levantando-se. - A professora não dirá nada. Vamos.
— Acho que a senhora condessa...
— Minha irmã não ficará zangada porque dancei com sua filha - disse ele. - Depois dançaremos nós dois.
Isabel estremeceu. Dançar com ele? Não, nunca. Bastante penitência era ouvir suas humilhantes propostas e sentir em seu rosto aquele olhar provocador.
Mas decidiu não responder. Ficou quieta em seu lugar até que os dois voltaram, terminada a dança.
— Agora é sua vez, professora - disse Ray.
— Eu não danço, Senhor Encinares.
— Mas, Senhorita Viñoles... - protestou Cris. - Precisa dançar.
— Lamento. Não sei dançar.
— Sou bom dançarino. Eu a ensinarei.
— Prefiro não fazê-lo.
Raimundo compreendeu com raiva que Isabel mentia, mas não dançaria com ele. Sentou-se diante dela e Cris levantou-se, dizendo que ia cumprimentar uma amiga, afastando-se para uma mesa colocada no outro lado da pista.
— Você sabe dançar - disse Raimundo, quando ficaram a sós.
— Devia saber que não dançaria.
— Mas algum dia você o fará.
— Receio que se engane.
— Receia?
— Por você. Sei que o deseja ardentemente.
— E acha que para mim seria um grande prazer?
— Sim.
— E não quer dá-lo...
— Não.
— Nenhuma alegria?
— Nenhuma.
— Pois agora digo como você: receio que se engane. O único prazer que você sentirá nesta vida serei eu quem o dará.
— Acho-o muito convencido e detesto pessoas assim.
Ele ia responder, mas Cris aproximou-se e a professora levantou-se, dizendo:
— É hora de regressar, Senhorita Cris.
— Oh! Já? Que acha, tio?
— Estamos sob o poder de sua professora.
— E logo na primeira vez na vida que posso ver algo diferente do habitual - lamentou-se ingenuamente. - Mas vamos, vamos. Não quero desgostá-la.
Durante o regresso, Isabel mergulhou na leitura de um livro. Raimundo continuava observando-a pelo retrovisor, enquanto ouvia as conversas infantis da sobrinha. Quando chegaram diante do palacete da condessa, Cris suspirou, dizendo:
— Foi uma tarde maravilhosa, Quando voltarei a ter outra igual?
Ninguém respondeu. Isabel desceu antes que Raimundo pudesse oferecer-lhe ajuda e, dando boa noite, subiu para o quarto. Ali encontrou uma carta de Artur. Sentou-se junto à varanda e começou a ler.
"Minha querida e sempre presente Isa: Sem notícias suas, pois não respondeu minha última carta, escrevo esta ansioso em saber como vai. Passo os dias sonhando com você e tenho no coração um mau pressentimento. Aconteceu algo, Isabel? Desde que você foi, sinto que vou perdê-la. Ainda restava a esperança de ver correspondido meu amor. Isabel, estou na Serra com minha irmã e sua filha, passando as férias. Se até o fim desta semana não receber notícias suas, irei vê-la. Não se zangue com minha presença nem me receba mal. Não posso mais suportar sua ausência. E perdoe que repita uma vez mais quanto sinto a sua falta e que a desejo a meu lado.
Seu fiel admirador, Artur".
Dobrou a carta e olhou para fora com nostalgia. Artur era merecedor de carinho. Por que não casar com ele? Terminariam as lutas, as situações falsas, as provocações e insinuações de Raimundo...
Mas não. Ela não podia ser tão covarde até o extremo de ligar-se a Artur sem amor, para escapar da atração de outro homem.
Acendeu um fósforo e queimou a carta. Não responderia. Desejava ver Artur. Seria consolador tê-lo ali alguns dias. Sentir sua voz, poder falar. Sim, por que não?
Raimundo Encinares estava aquela manhã de um humor insuportável. O pobre Matias, que sempre havia feito tudo a gosto do patrão e que jamais fora repreendido, ouvia pacientemente as queixas que lhe faziam.
Mas chegou um momento em que se sentiu humilhado. Contudo, manteve a dignidade e foi entregando a roupa que o patrão exigia. Depois ficou firme, perguntando:
— Deseja algo mais, senhor?
— Sim. Que você suma daqui.
— O senhor levantou-se de mau humor.
— Deixe-me em paz, Matias!
O criado saiu e Raimundo terminou de vestir-se, murmurando continuamente.
51
— Sim, sim, estou de mau humor - disse, diante do espelho. - Que há comigo? É a primeira vez que acontece isto. Irei à praia e tomarei um banho. Isto passará logo e se não passar, arranjarei alguém para distrair-me.
Chegou à praia por volta de uma e meia da tarde no momento
— Olá - saudou.
Já não estava de mau humor. Apenas sentia dentro de si o estranho desejo de implicar com a jovem. Esta levantou os olhos e fitou-o de relance.
— Olá - replicou friamente.
— Que há de novo, pequena?
— Nada. Peço apenas que se cale ou vá embora. Vim aqui para tomar sol.
— Ao menos deixe-me olhá-la - disse com cinismo.
— O olhar é livre, não tem ataduras nem pode ser proibido. Mas seu olhar, Senhor Encinares, é uma ofensa para uma mulher decente.
— A culpa não é minha. É dos meus malditos olhos tão desobedientes. Quer um cigarro?
— Não.
52
— Nem diz obrigado.
— Por que não quero.
— Sabe o que pensei a nosso respeito?
— Não me interessa.
— Assim mesmo contarei.
— Rogo-lhe que não o faça.
— O quê? Você suplicando, minha soberba pequena? Desde quando?
— Senhor Encinares, não apenas peço que se cale como também que me deixe
— Já terminou? - perguntou tranqüilamente.
— Não. Ainda lhe direi algo mais, para terminar. Mesmo que o amasse, mesmo que sofresse por sua causa, ainda que morresse de angústia... — Tudo isso? - riu, ocultando uma inquietude que começava a sentir naquele instante.
— Não seria sua.
— Agora terminou - disse ele.
— Sim.
— Pois então começo eu. Para tê-la para mim só o tempo que eu quisesse, eu lhe daria o que pedisse. Gosta de peles? Eu a cobriria delas. Jóias? Teria quantas desejasse. Agora já sabe, Isabel. É desse modo que a desejo. Gastarei até o último centavo para tê-la comigo e não falo de uma posse eterna. Confio em que breve me cansarei de você como antes me cansei das outras.
Isabel, sem responder, pôs-se de pé. Ele sentiu que o sangue fugia-lhe do rosto ao ver aquele olhar frio que era pior que uma bofetada. — Isabel...
A moça deu um passo para a água. Raimundo de um salto levantou-se e a segurou pelo braço. Ela agitou-se sentindo que ia chorar. Desprendeu-se e vibrou a mão no rosto de Raimundo. Depois, sem olhar para trás, lançou-se à água. As lágrimas de humilhação afluíram-lhe aos olhos, misturando-se com a água salgada e ninguém soube jamais que Isabel Viñoles havia chorado por um homem. Era a primeira vez que o fazia, mas também era a primeira vez que
um homem a humilhava daquela maneira.
* * *
Amanheceu um dia chuvoso. Raimundo subiu no carro e dirigiu-se à casa de sua irmã. Levava mais no íntimo que no rosto, a bofetada que Isabel lhe dera. As mulheres sempre o disputavam e jamais alguma delas se atreveu a chamá-lo de ridículo, velho e ainda por cima esbofeteá-lo. Era, pois, uma novidade e uma humilhação incalculável para o homem que se considerava o tal em questões de amor.
Estacionou o Opel numa esquina do parque e avançou devagar. Desejava ver Isabel, mesmo em companhia de sua família. Precisava observar sua reação e na primeira oportunidade devolveria a bofetada com um beijo que desejava dar-lhe ardentemente.
"Este assunto está me pondo muito inquieto — pensou. - É a primeira vez que me acontece tal coisa. Mas eu deixaria de ser quem sou se desistisse. "
A condessa encontrava-se na biblioteca e ao ver o irmão, deixou o livro no regaço e sorriu.
— Bom dia - saudou Raimundo, beijando-a no rosto. - De bom não tem nada, mas é a saudação usual.
— Sente-se.
— Está sozinha?
— Cris foi à casa de uma amiga. E a professora pediu-me licença para sair com seu namorado.
Raimundo podia esperar naquele instante que o céu se abrisse numa chuva torrencial, que sua irmã voltasse a tocar na história de seu casamento com Berta, inclusive que um terremoto assolasse o povoado; mas o que acabava de ouvir era algo que não podia esperar de modo algum e não pôde evitar um salto na cadeira, lançando uma rude exclamação:
— Namorado!
— Sim. Mas que há com você?
— Comigo? Nada.
— Parece assombrado que a professora tenha algum admirador. Não vejo razão para espanto. Ela é muito bonita.
— Sim, de fato.
— Ele chegou no trem da manhã, sabe? - continuou informando a condessa, para quem tudo o que se referisse a casamento e noivado era apaixonante. - Ela não o esperava. Notava-se sua alegria. Depois pediu-me licença para ir com ele à cidade e eu permiti.
Fez-se breve silêncio.
— Mas... o que há com você? - indagou então a condessa notando o ar aborrecido de Raimundo.
— Comigo? Nada, claro.
— Pois parece de mau humor.
— Dói-me a cabeça ou os rins. É essa maldita praia.
— Não é a praia, meu querido. É que está ficando velho. Acho que se você se casasse...
— Que casar... que nada!
— Nunca o vi tão aborrecido!
— Sim, estou mesmo. Até logo.
— Como? Não almoça conosco?
— Não, não. Estou de saída.
Caminhou para a porta e saiu. Instantes depois, chegava Cris. Ao vê-la, a mãe observou, ainda admirada:
— Você viu seu tio?
— Sim, saiu feito um foguete. Nem pude chamá-lo.
— Está de muito mau humor.
— Que estranho!
— De fato. Nunca vi meu irmão assim de mau humor.
— Deve estar apaixonado e as coisas não estão saindo muito bem.
— Não comece com suas novelas, querida. Vamos para a sala de jantar.
— A professora não vem?
— Foi à cidade com o namorado. Disse que não voltaria antes da tarde.
Mas, na verdade, Isabel não havia dito que aquele visitante fosse seu namorado.
O carro deteve-se ante um luxuoso restaurante, depois de ter percorrido parte da cidade. Raimundo saltou, atravessou a rua a passo ligeiro e penetrou na casa. Viu-a no mesmo instante e sem pensar mais, dirigiu-se para a mesa ocupada por Isabel e seu... noivo ou namorado. Não se importava com isso. Desejava, apenas, aborrecer Isabel e complicar seu suposto idílio. Também não pensou que Isabel pudesse contar ao namorado a perseguição que lhe movia e provocar um desentendimento. — Que surpresa, Senhorita Viñoles - exclamou detendo-se.
Isabel levantou os olhos e ficou desconcertada, olhando o intruso como se estivesse tendo visões.
— Olá - replicou.
Diante do olhar curioso de Artur, considerou necessário fazer as apresentações.
— Raimundo Encinares, tio de minha aluna. Artur Sanroman.
Raimundo saudou efusivo e Artur, que era a cortesia personificada, correspondeu na mesma medida.
— Vim à capital tratar de uns negócios - explicou Raimundo com a maior tranqüilidade. Resolvi almoçar aqui. A solidão aborrece-me. Não poderia partilhar de sua mesa?
— Naturalmente, Senhor Encinares.
— Obrigado, Senhor Sanroman. Senhorita Viñoles...
Isabel mordeu os lábios ao mesmo tempo em que dava de ombros, como se indicasse que não lhe dava nenhuma importância. Raimundo sentou-se e logo foi atendido por um garção a quem tratou familiarmente.
— É um esplêndido restaurante, não acha, Senhor Sanroman? - E sem que o outro respondesse, acrescentou: - Madrilhenho? Oh, Madri! Em nenhuma parte me senti tão bem como
— Claro.
— Nosso povoado também tem seus encantos - disse ele olhando cordialmente para Artur mas sua noiva não quer reconhecê-lo.
Esperou que Artur ou Isabel replicassem, mas ambos permaneceram calados.
— Eu tenho um apartamento
Artur, ignorando o que ocorria entre Isabel e aquele homem que considerava simpático, agradeceu o oferecimento com gentileza, retribuindo.
Isabel sabia que Raimundo estava se divertindo com Artur e com ela ao mesmo tempo e isso a humilhava mais que as propostas que lhe fizera na praia. Pensou em desfeiteá-lo diante de Artur e provar que ele, apesar de sua pose de grande senhor, era imoral e canalha. Um farsante que vivia duas existências, uma para o povoado e sua irmã e outra para si mesmo e para ela. Mas não o fez. Isabel temia muito o ridículo e sabia que, se falasse, Raimundo levaria tudo em tom de brincadeira e com sua esperteza a deixaria mal. E não apenas isso, mas ficaria mal ante os olhos do própria Artur, a quem, pelo visto, Raimundo estava parecendo muito simpático.
Durante o almoço Isabel não voltou a falar. Depois Raimundo convidou-os a aceitar condução em seu carro e Artur aceitou. Ela julgou que ao chegar ao povoado, Raimundo os deixaria em paz, mas enganou-se de novo. Ele ofereceu-se para mostrar a Artur alguns lugares típicos e Este aceitou, agradecido. Isabel sentia sobre ela os vivos olhos de Ray que pareciam dizer: "É Este o seu noivo? Um homem que admite que eu, um estranho para ele, partilhe de seu idílio?"
Ela fugia de seu olhar e quando, já de noite, Ray despediu-se, Artur lhe disse:
— É um homem muito educado, não?
— Bah!
— Parece que não o acha muito simpático.
— Não muito.
— Pois achei-o boa pessoa.
— Estou vendo.
— Incomoda-a que me agrade?
— Não. Que disparate! É indiferente.
Mas pensou que se algum dia teve intenção de aceitar Artur, naquele instante desprezava- o definitivamente. Achou-o sem personalidade, sem capacidade de observação. Um homem que se deixava impressionar apenas pelas aparências, carecia de personalidade. E o que Isabel mais admirava num homem era, precisamente, a personalidade. E assim Artur perdeu, naquele dia, vários pontos para ela.
Não obstante, teve bastante cuidado para ocultá-lo e naquela noite, a sós, imaginou, cheia de revolta e humilhação, quanto Raimundo teria rido dela e do homem que julgava seu noivo.
Não tinha grande interesse em passear com Artur, mas visto que tinha ido ao povoado para vê-la, preferiu sair com ele do que com Raimundo. Mas sua surpresa foi enorme quando, na manhã seguinte, uma vez terminada a aula, saiu para o jardim, encontrando-se com Raimundo e Artur, que, sentados em confortáveis cadeiras, fumavam e conversavam tranqüilamente, como dois velhos amigos.
Ficou embaraçada, os olhos fixos em Raimundo. Adivinhava as intenções daquele homem e odiou Artur por ser tão cândido. Contra a sua vontade imaginou aqueles homens com os papéis trocados, sendo Raimundo seu pretendente formal. O frívolo milionário teimava em partilhar com outro a companhia da mulher amada. Em troca, Artur, que dizia amá-la e havia ido ali para vê-la, mostrava-se encantado e quase parecia agradecido ao elegante senhor que lhe dava sua amizade.
Que diria Artur se ela lhe contasse... ? Talvez não acreditasse. Quando queria, Raimundo sabia mostrar-se amável e ninguém podia adivinhar que sob seu sorriso cordial, ocultava-se um tipo cínico e amoral. Não, ela nada diria. Três dias passariam depressa. Outros quinze e ela terminaria seu contrato, regressaria a Madri, ali organizaria de novo sua vida e se esqueceria daquele caso.
Ao vê-la, os dois homens puseram-se
— Raimundo - explicou Artur com uma vaidade que pareceu ridícula a Isabel - foi buscar-me no hotel. Tomamos café juntos e agora convida-nos a sair em seu carro. É tão amável que se ofereceu como cicerone.
Sorriu irônica e encontrou de novo o olhar de Raimundo.
— Esta manhã não posso sair - retrucou com suavidade, certa de que não desejava dizer aquilo. - Tenho trabalho atrasado e preciso pô-lo
— Senhorita Isabel - disse Raimundo amàvelmente -, ofereço-me com muito prazer para tudo que seu noivo deseje.
— Artur ficará agradecido - respondeu ela.
— Mas, Isa...
— Lamento, Artur. Não posso deixar de lado minhas ocupações.
Naquela noite, Raimundo comentava o caso com Matias, observando:
— Ela tem uma forte personalidade. E ele é um perfeito idiota.
— Então não me diga que são noivos.
— Claro que não são. É fácil compreender a mentalidade dos madrilhenhos. E sabe o que descobri?
— Não, senhor...
— Pois eu direi. Esse cândido Artur, que, diga- se de passagem, é um infeliz e por sorte parte amanhã, está louco pela professora, mas esta... não corresponde a seus sentimentos.
— Conseguiu descobrir tudo isso?
— É fácil averiguar certas coisas, com tipos ingênuos. Agora, já não é a mesma coisa, tratando-se de pequenas espertas como Isabel. Claro que aqui não posso estender muito as minhas asas, porque sou muito considerado no povoado e não quero perder essa reputação que me convém.
— Claro, senhor.
— Mas quando chegarmos a Madri...
— Não iremos viajar Este inverno?
— Claro que sim, mas depois. Antes tenho de cansar-me dessa jovem.
— E se o senhor não puder conquistá-la?
— Que está dizendo? Como se atreve a pensar semelhante coisa? É ou será uma jovem difícil, mas ainda que me custe a metade de minha fortuna, será minha como as demais.
Matias conhecia seu patrão e jamais o vira tão interessado por uma determinada mulher. Por isso, murmurou:
— Parece que o senhor está muito interessado nessa jovem.
— Natural. Mas quando a conseguir...
— E se não a conseguir, senhor?
— Quer calar a boca? Está estragando a única noite de minha vida em que pretendo descansar como um anjo.
— Está certo, senhor. Mas tenha cuidado.
— Vá dormir, Matias e deixe-me em paz.
Na manhã seguinte foi ao hotel buscar Artur, mas teve a surpresa de receber um envelope dirigido a ele, contendo o seguinte bilhete:
"Amigo Raimundo: Sinto não poder despedir-me de você. Ontem tive uma conversa definitiva com Isabel e ela recusou meu pedido novamente. Sinto-me desolado e humilhado em meu amor-próprio. Corro para Madri em busca de consolo. Espero que nos tornemos a ver e quando for a Madri agradecerei que me avise. Apreciei muito suas atenções e o saúdo com o maior respeito e consideração. Seu amigo, Artur. "
Raimundo dobrou a carta com um sorriso irônico.
O encontro teve lugar naquele mesmo dia, ao entardecer. Raimundo tinha ido à casa de sua irmã e, não vendo Isabel, usou de suas manhas para saber onde estava. A condessa não teve dúvidas em contar-lhe tudo. Disse-lhe que as relações entre Isabel e seu noivo não deviam ser muito cordiais, uma vez que Artur havia partido quase inesperadamente. Raimundo não lhe disse que tinha uma carta de despedida no bolso. Para quê? Não desejava que sua irmã percebesse que estava ao corrente dos fatos. Preferia que o julgasse à margem.
Depois a condessa contou-lhe que Isabel tinha ido ao campo para desenhar. Raimundo apressou-se
— Estou preocupada. Cris progrediu muito no estudo de línguas com essa professora. É verdade que ela parece um tanto enigmática e demasiado elegante para sua profissão, mas isso não tem muita importância.
— E daí?
— Eu pedi para que ela ficasse.
Raimundo torceu o nariz. Não lhe convinha semelhante coisa para seus fins. Desejava ver Isabel livre de compromissos, longe de sua família e então seria mais fácil que aceitasse de uma vez suas propostas.
— E que disse a professora?
— Que não podia. Que tinha suas aulas de inverno
— Dentro de quinze dias - observou Raimundo intimamente satisfeito.
— Sim.
— Lamentável, não?
— Muito. Sabe o que estou pensando, Ray? Não estava interessado nos pensamentos da
irmã. Estava perdendo o tempo ouvindo suas lamentações e desejava correr ao campo até encontrar Isabel.
— Não posso saber, irmã.
— Que seria bom para Cris passar o inverno em Madri. Desde que morreu meu pobre esposo - gemeu a condessa - não saí deste povoado.
— O ar daqui é saudável - argumentou Raimundo, que não tinha nenhuma vontade de ver sua irmã em Madri.
— Mas Cris está crescendo.
— Naturalmente. Não vai querer que fique uma anã.
— Claro que não. Mas é preciso dar-lhe um ambiente apropriado à sua posição. Acho que vou abrir minha casa
— Acho que devia pensar primeiro. Esperar mais um ano.
— Outro?
— Sim. Cris ainda é muito jovem e em Madri você não a teria tanto a seu lado. Lá terá de partilhá-la com os amigos.
— Acredita mesmo?
A condessa era muito ingênua, e Raimundo um ladino com cara de anjo. Ele tinha feito seus cálculos. Pensava convencer Isabel e entre convencê-la, tê-la à sua mercê e cansar-se dela passaria um ano e sua irmã em Madri estragaria tais planos.
— Acredito.
— Pois fica para o ano que vem.
— Acho que agiu bem.
— Deus queira que até lá você já esteja casado, Raimundo.
Ele tossiu ligeiramente. Casado, ele? Nem que estivesse louco. Ele não tinha queda para marido, embora a condessa julgasse o contrário. Antes a morte que ficar ligado para sempre a uma mulher.
Despediu-se apressadamente e vagou pela campina, até que a encontrou.
Isabel estava sentada à sombra de uma árvore. A seu lado os apetrechos do desenho. Ela não pintava naquele momento. Fumava e contemplava a paisagem com ar nostálgico. Raimundo jamais a tinha visto tão bela como naquele momento.
Por um breve instante vacilou e chegou a perguntar-se se estaria agindo mal. Estranhou aquele pequeno protesto de sua consciência e, decidido, aproximou-se da professora.
— Boa tarde, Senhorita.
Ela olhou-o brevemente, como se estivesse muito longe dali. Não respondeu e levou o cigarro à boca.
— Ficou "viúva" muito depressa - disse ele. - Por que o deixou ir tão cedo?
— Não era meu noivo, Senhor Encinares - replicou friamente. - Se o fosse, o senhor não teria ocasião de aproximar-se de nós.
— Hum... Sabe o que penso?
— Não me interessa.
— Pois a mim interessa dizê-lo.
— Acho que perde seu tempo. E saiba que mesmo que o amasse...
— Você já me disse isso outro dia. Não me julgue um vaidoso, Isabel - aduziu, sorridente -, mas a verdade é que as mulheres se enamoram de mim com muita facilidade.
A jovem fitou-o com um ar irônico e ele, contra a vontade, sentiu-se pequeno diante daquele olhar.
— Diabos de pequena! - resmungou. - Dê seu prêço, Isabel e deixemos de rodeios. Saiba, por mais alto que seja, eu pagarei com prazer.
As faces da professora tornaram-se róseas. Pareceu que ia protestar com violência, mas não foi assim. Sua voz soou calma, seu semblante serenou e Raimundo sentiu-se inquieto, pois preferia mil vezes vê-la enfurecida que sob aquela capa de serena frieza. E foi naquele instante quando pensou na desagradável possibilidade de um fracasso. E esta repentina suposição pôs um gosto amargo em sua boca. — Senhor Encinares - disse Isabel com grande dignidade - poderia cuspir-lhe no rosto e demonstrar-lhe assim meu grande desprezo. Poderia levantar minha mão e esbofeteá-lo como fiz em outra ocasião, ou poderia, ainda, falar a sua irmã e fazê-lo perder seu prestígio de senhor respeitável. Mas... - sorriu com desprezo - não farei nada disso. Seria descer até seu lugar, coisa que não desejo, absolutamente. Não sei o valor que terá minha pessoa. Para mim, claro está, vale muito, mas meu físico, que o senhor quer comprar, não tem valor algum, comparado com minha moral. Esta tem um valor incalculável, até o ponto de que toda a sua fortuna e uma penitência eterna por sua parte, não seriam suficientes para pagá-la. - Levantou-se e Ray ficou onde estava, olhando-a confuso. - Senhor Encinares, desta vez fracassou. E tem. mais: fosse o senhor o último homem do mundo e eu não o aceitaria, mesmo para salvá-lo do inferno. E agora que já conhece a minha opinião, espero não volte a molestar-me.
E sem esperar resposta, deixando-o perplexo, Isabel perdeu-se na escura campina que a noite
ia tingindo de sombras.
Três dias depois, Isabel voltava a passear pelo campo. Desta vez sem material de desenho. A praia pela manhã e o campo pela tarde, eram suas únicas diversões. Faltavam dez dias para voltar a Madri. Como passavam devagar aqueles dias!
A tarde era escura. Começara a chover. Isabel apressou o passo, mas grossas gôtas e relâmpagos cortaram-lhe o caminho. Seu cabelo começou a empapar-se. Procurou com os olhos um refúgio e viu uma cabana que parecia pertencer a antigos pastores. Dirigiu-se para lá e entrou. Cheirava a umidade. Havia palha sêca num canto e do outro lado e junto à boca que formava a rocha fazendo de porta, um grande penhasco. Sentou-se nele e acendeu um cigarro Não temia os trovões, mas ouvira dizer que por aquele lugar os raios mataram certa ocasião dois pastores e um rebanho de ovelhas.
O espetáculo era maravilhoso. Os raios riscavam o céu em chamas vermelhas e os trovões sucediam-se
A presença daquele homem assustou-a mais que a tormenta. Mas, firme em seu papel de jovem valente, monteve-se imóvel e indiferente. — Estava num café quando a vi atravessar a praça nesta direção - disse Raimundo. - Já me havia esquecido de você quando começou o temporal. E saí à sua procura. As chuvas, aqui, podem prolongar-se por um dia e uma noite e...
— sorriu - quis devolver a sua caridade. Você tem pena de mim e eu de você.
— Não pense que vou agradecer.
— Calculo. Posso sentar-me nessa pedra ou nesta palha?
— Prefiro que vá embora.
— Oh, não! - riu ele. - Nem de carro me atreveria a sair neste instante. Além disso, gosto desta intimidade a seu lado. Eu pensei muito em você, Isabel.
— Não me interessa que pense, Senhor Encinares. Já sabe a opinião que me merece.
— Claro. Pensei... que talvez pretenda que me case com você.
— O senhor detesta o casamento. Para mim, embora não acredite, isso é indiferente. Não quero casar-me com o senhor, visto que não o aceitaria nem coberto de ouro.
— Pois estou coberto de ouro - riu ele -, mas você não é mulher que se case com ouro. Já conheço seu desinteresse.
— Pois então, deixe-me
— Como?
— Quero dizer se nunca se analisou. O senhor é um homem que sempre conseguiu tudo que desejava da vida.
— É verdade.
— E sente-se feliz?
— Quê?
— Pergunto-lhe se está feliz com seus triunfos.
— Ora, sim. Mas não sei aonde quer chegar.
— A parte alguma. Simplesmente digo-lhe que não acredito em sua felicidade. Se por acaso é feliz, não passa de algo efêmero. Pode ser que esteja contente fazendo ver ao povoado, de pessoas cheias de preconceitos absurdos, que é bom, embora, na realidade seja um homem imoral e odioso.
— Escute, eu...
— Sinto ter que ser tão dura - acrescentou Isabel -, mas sempre tive a coragem de dizer aquilo que penso e sinto, e neste instante acho necessário fazê-lo saber o que penso de sua felicidade e de suas paixões.
— Gosto de ouvi-la. Continue. Esquecerei fàcilmente a tarde deste dia. Nem sua silhuêta sentada na pedra, nem os raios que rasgam o céu. E quero que saiba uma coisa. É a primeira vez que alguém me fala dessa maneira. Continue, vamos...
— Acho que já sabe tudo que posso dizer-lhe.
— Afirmo que não. Devo confessar que sou um pouco inconsciente. Agrada-me esta conversa. Falamos sinceramente. Eu não vou negar que desejo. Jamais desejei tanto uma mulher. Mas não acredito no amor. As mulheres demonstraram-me que tal sentimento não existe.
— A que espécie de mulheres se refere?
— Mulheres - recalcou. - Por acaso não são todas iguais?
— Esse é seu grande êrro. — Quer que o lamente?
— Não me interessa. Mas saiba que o amor existe.
— Você sabe... por experiência.
— Sei.
— Não fique tão solene.
— Estou apaixonada por você, Raimundo - disse ela com súbita decisão.
Ele esperava tudo naquele instante, que um raio o fulminasse, que surgisse um terremoto e até algumas bofetadas de Isabel, menos aquelas palavras que levavam em si um mundo de sinceridade e ao mesmo tempo de renúncia. Não ficou imóvel. Levantou-se como que impelido por uma mola e ficou olhando a jovem professora, como se a conhecesse apenas naquele instante.
— Isabel - exclamou com uma voz que ele próprio achou estranha. - Sabe o que está dizendo? — Você já o sabe. Meu amor surgiu de modo inesperado. Não sei como, nem em que circunstâncias.
— Que importa isso, querida?
Isabel levantou-se e colocou a mão entre os dois, como que pedindo distância. — Não me chame querida, Raimundo, nem pense que venceu. Confessei-lhe meu amor com toda lealdade, esperando encontrar em você uma lealdade igual à minha.
Olharam-se fixamente. Começava a escurecer e a brisa tornava-se intensa por momentos.
— Isabel - disse Raimundo. - Eu não sou leal. Não pode, portanto, apelar para o que não tenho. Mas se de fato você me ama, deixe-se querer naturalmente.
— Não é isso. Se lhe confessei meu amor, não quer dizer que declarei meu desejo - recalcou. - Quis demonstrar quanto desprezo o que há de errado em seus sentimentos e que saberei dominar meu amor e esquecê-lo.
— Você é um anjo ou o quê?
— Sou uma mulher honrada.
— Bobagens, Isabel. A honradez e o amor não precisam andar brigados. Acha que é pecado entregar-se a mim?
Isabel respirou fundo e seus olhos brilharam intensamente, antes de responder.
— Lembra-se do que lhe disse outro dia?
— Sim, sim - impacientou-se -, mas você me ama e isso é o que me importa..
— Você disse que as mulheres o amam com facilidade. Sim, é verdade. Você tem algo assim como um feitiço que atrai, mas para uma mulher como eu, não é bastante.
— Mas você me ama - resmungou, teimoso, como se não visse mais além daquele amor surgido de repente e como uma ventura.
— Sei bem que não é o suficiente para vencer- me. Quanto mais o ame, mais longe estarei de você.
— Como pode ser?
Ela esboçou um amargo sorriso e dando de ombros, afirmou:
—Pareço louca, não? Preferia ter ficado.
Ele contemplou-a perplexo por longos segundos, até que murmurou:
— Que me enforquem se a entendo.
— É lógico.
— O que lhe parece lógico?
— Sua incompreensão. Você precisaria, ser sensível e não o é. Para você o amor é um negócio e só quando chegar à velhice notará sua solidão e perceberá o grande êrro cometido na vida. Mas... não será demasiado tarde? — Ora, Isabel! Parece que está apelando para minha sensibilidade e eu nunca fui um sentimental nem um tímido.
— Você sufocou tudo de bom que havia em seu íntimo para desfrutar de certas paixões. Nunca pensou que tudo tem um fim?
— Aviso-a - disse, furioso - que não procure em mim um sonhador...
— Não pretendo. - E sem transição, olhando para a campina envolta em nuvens, concluiu: - Lamento, mas já é tarde e tenho de voltar para casa.
— Eu a levarei no carro.
— Prefiro ir a pé.
— Escute, pequena...
— Já disse que vou a pé.
Ele agitou-se. Por um instante julgara que a tinha em seu poder e eis que a sentia mais distante que nunca. Que espécie de amor sentia aquela jovem por ele?
— Você disse que me amava, Isabel.
— E não nego. Este amor é como um castigo do céu.
— Castigo? Eu diria que é uma ventura.
— Para você teria sido - disse Isabel, baixinho.
— Mas eu jamais... jamais lhe darei essa ventura.
— Como? E que vai fazer com seu amor?
— Dominá-lo.
— Isso é uma estupidez.
— Para quê vamos continuar falando disso, se você não me compreenderá jamais?
— E é bem verdade que não a entendo - retrucou, impaciente. - Quando uma mulher ama, o normal é que se deixe querer pelo objeto de seu amor.
— Talvez seja diferente das outras mulheres.
— Não, Isabel. Não queira aparentar uma virtude que não possui. Você é como todas.
Ia tocá-la, mas Isabel levantou a mão e a colocou entre eles.
— Cometeria um grande êrro se permitisse que você me beijasse.
— Quê? Não é o que está querendo?
— Exatamente por isso.
— Então você o quer?
— Sim. Mas você não me beijará. Raimundo bateu com o pé no solo, irritado.
Depois olhou-a duramente e vociferou:
— O que você quer é casar-se comigo. Mas não sabe que sou inimigo do casamento? Não casarei jamais enquanto o amor puder ser conseguido de outro modo.
— Você poderá comprar o dessa sociedade a que está acostumado. O meu sentimento não se vende. Compreenda de uma vez.
— Como? Quer dizer que não se casaria comigo, se eu lhe pedisse?
— Não!
Ele deu um passo atrás e contemplou-a, perplexo. Nos negros olhos de Isabel podia-se ler sua firme decisão, sua sinceridade. E Raimundo estava demasiado prêso às paixões vulgares para compreender, e menos aquilatar, o valor moral daquela jovem.
— Com mil diabos! Não a entendo! - bradou, o rosto congestionado.
— Sei que não me compreende e lamento muito. Agora, por favor, deixe-me passar.
— Não sairá daqui antes de esclarecer o que significa sua negativa.
Ela fitou-o, decidida, por instantes. Depois indagou num tom firme:
— Você seria mesmo capaz de pedir-me em casamento?
— Eh? Hum...
— Pediria?
— E eu sei lá? Se continuo pensando como antes, claro que não.
— Pois ainda que me pedisse, não casaria. Você não me ama. Deseja-me apenas. E seu desejo é humilhante para uma mulher decente. E eu, Raimundo, sou decente acima de tudo.
— Tolices, pequena! Venha aqui e deixe-me beijá-la.
— Eu o estaria desejando - disse ela com vigor seria minha única razão de viver, mas assim mesmo recusaria.
— Afinal, que deseja de mim então? - bradou alterado e fitando-a intensamente.
— Seu amor. Um amor como o que eu sinto. Raimundo sorriu como que tranqüilamente e avançou para ela.
— Pois já o estou sentindo. Venha aos meus braços.
Isabel horrorizou-se e deu um passo atrás. Estava à porta. Só precisava retroceder um passo mais e se acharia em plena campina.
— Isabel...
— Em meio de meu amor - disse ela baixinho - neste instante, o desprezo é maior que nunca, Raimundo. Você é mesquinho, traiçoeiro e egoísta.
E começou a correr sob a chuva. Raimundo apertou os punhos e bradou: — Não compreendo estas mulheres. Bolas, se as entendo.
Aquela noite foi à cidade e julgou que podia divertir-se mais que nunca. Mas a lembrança de Isabel perseguia-o como um fantasma.
Regressou ao amanhecer, cansado, enfastiado e irritadiço. Encontrou Matias em seu quarto dormitando, encolhido numa poltrona.
— Acorde, malandro! - gritou sem piedade.
O pobre Matias abriu um olho, depois outro e pôs-se finalmente em pé.
— Ainda não o esperava, senhor. Raimundo, como sempre, ia tirando a roupa
e jogando-a no tapête. Matias as recolhia com sua habitual calma e docilidade, sem resmungar.
— São cinco da manhã, Matias. Quer acordar de vez!
— Já estou acordado, senhor.
— Sente-se.
Matias obedeceu e Raimundo, em mangas de camisa, descalçou-se com uma expressão cansada que dava pena, deixando-se cair na borda da cama e começou a divagar:
— Você algum dia entendeu as mulheres, Matias?
— Algumas, senhor.
— Só sabe dizer isso? Acabo confundindo-o com Dom Ângelo.
— Sim, senhor.
— Deixe de dizer, "sim senhor", Matias, ou dou- lhe um murro.
— O senhor chegou de mau humor.
— Que mau humor qual nada! Aqui estamos falando de mulheres, não?
— É verdade.
— Está com sono, Matias?
— Bem... um pouco, senhor.
— Desperte!
— Já estou pronto para ouvi-lo.
E o pobre criado começou a piscar para provar que estava bem desperto.
— Matias, a professora me ama - disse com aquela puerilidade que às vezes o acometia.
— É um sucesso que eu já previa há muito tempo, senhor. Lembra-se?
— Sim, eh? - resmungou. - Pois fique sabendo que não levei vantagem nenhuma.
— Não?!
— Não. E não me olhe com essa cara de idiota, Matias. Não tenho muita paciência e os idiotas me aborrecem.
— Sim, senhor.
— Outra vez?
Matias tinha sono e nenhuma vontade de ouvir seu patrão naquela madrugada.
— Perdoe, senhor.
— Estou falando da professora.
— Sim, sim - murmurou, dando uma cabeçada. - Já sei que a conquistou, senhor.
— Conquistou? Diga antes que a perdi.
O sono de Matias passou como que por encanto. Olhou o amo sem entender.
— Perdeu-a? Mas não acabou de dizer que ela o ama? - perguntou, atônito.
— É o que não compreendo. Diz que me ama e me despreza.
— É muito estranho.
— E que sabe você? - gritou. E como se estivesse cansado daquela conversa, ordenou; - Vá para a cama, Matias. E não me acorde.
O criado apressou-se a obedecer e Raimundo tirou as calças e deitou-se no leito com um suspiro. Logo começou a pensar em voz alta: — Que está querendo Isabel? Que fez ela de minha vida? Que deseja mais ainda? Sou um pobre diabo perseguido por sua figura. - E quase com irritação prosseguiu: - Seus olhos me encantam e sua boca é para mim uma obsessão. E ainda por cima, diz que me ama. Que classe de amor é esse que não acalma minha ansiedade?
À uma e meia daquele mesmo dia, Raimundo saiu de seu casarão, vestido elegantemente, arrogante, cabeça erguida como um príncipe romano. Não subiu a seu carro; fez o caminho a pé, em direção ao palacete de sua irmã.
Desejava ver Isabel. Desejava-o como jamais desejara algo em sua vida e era aquela ânsia que o fazia estremecer; mas ignorava isso, como ignorava muitas outras coisas.
Para ele a vida havia sido muito fácil. Perdera os pais quando já tinha vinte anos. Deixaram-no dono de uma considerável fortuna, que jamais se preocupara
Por isso, Raimundo Encinares, apesar de seus trinta e quatro anos, ignorava muitas coisas, entre elas, que existe na vida um grande número de mulheres honradas a quem as peles, as jóias e os carros, não as preocupam e em troca não mostram tal desprezo pelo verdadeiro amor. Raimundo não acreditava nesse amor e, como jamais o havia sentido, considerava-o como secundário na vida do homem. O amor, para ele, havia sido até àquela data, um negócio, como um auto ou um cálice de conhaque ou simplesmente uma flor que após cumprir sua missão numa noite, atira- se fora, no dia seguinte. Isso era o amor, para ele.
Entrou no parque do palacete de sua irmã e caminhou até o jardim. Ali estava Maria Josefa tomando sol. Beijou-a e sentou-se junto a ela.
— Que há, querida? Onde está Cris?
— Na praia.
Ia perguntar pela professora, mas mordeu os lábios, contendo-se. A condessa fitou-o dizendo, naquele instante:
— A professora foi embora.
— Quê? - exclamou quase num grito.
A irmã contemplou-o, estranhando. Ray tratou de esboçar um sorriso.
— Que estranho! Por quê terá ido? Vocês brigaram ou algo parecido?
— Claro que não. Ela foi para Madri no trem desta manhã.
— Mas... ela, não pensava permanecer aqui até fins de setembro?
— Ontem, quando chegou de seu passeio habitual, disse-me que desejava ir embora. Por certo que vinha molhada até os ossos. Não compreendo essa mania de passear sob a chuva.
Ray tornara-se impaciente, mas dissimulava quanto podia seu estado de ânimo. Sua irmã sempre detalhava as coisas
Enquanto sua irmã falava, ele pensava na forma de chegar a Madri o quanto antes. Estaria o carro em condições? Ou iria de trem?
— Ela disse que havia recebido uma carta e que tinha de voltar a Madri o quanto antes.
— Você... viu a carta? — Não.
— Hum... Mas não brigou com ela, não?
— De modo algum. Achei-a um pouco inquieta, aborrecida e tive pena dela. Mas ainda que não fosse assim, nada lhe teria dito. Portou-se gentilmente conosco e achei-a sempre agradável e educada, Na hora de partir eu estava de pé e
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pedi-lhe que voltasse. Ofereci-lhe um ordenado melhor do que poderia ganhar
— Não - replicou cauteloso. - Todos temos nossos problemas.
— Já vai? Não almoça conosco?
— Não posso. Eu também vim despedir-me. Partirei esta tarde.
— Oh! Quando decidiu?
— Um amigo espera-me
Não foi tão fácil como parecia organizar sua vida em Madri. As companheiras, não todas, estavam de regresso ao colégio de Recoletos e a receberam alvoroçadas.
— Como tem passado? - perguntou-lhe Carmem, sua amiga mais íntima e companheira de quarto.
— Mais ou menos.
— Parece decepcionada. Você, por natureza tão otimista... Algum... homem?
— Um verdadeiro abacaxi.
— Oh, mau negócio! Não quer falar dele?
— Outro dia.
— Acho que você estragou sua tranqüilidade indo para esse povoado.
— Também acho.
Não falaram mais daquele assunto em vários dias. Carmem trabalhava numa agência de informações e voltou ao serviço. Isabel recomeçou a dar aulas, que a ocupavam desde as nove da manhã até às nove da noite, exceto às quintas e domingos que tirava para descanso. Era um costume que estabelecera desde o início e não estava arrependida, pois graças a isso podia ter em ordem suas coisas e descansar dois dias por semana, melhor dizendo, um dia, visto que o domingo era dedicado à diversão, ora com uma aluna, ora com suas companheiras de pensionato. De todas, Carmem era a mais sincera e honrada. Desde o início sentiu-se atraída pela beleza serena de seus olhos e sua sinceridade. Ademais ocupavam, um quarto e aquela intimidade aproximou-as mais.
Transcorridos alguns dias, Carmem, ao retirar-se para dormir, sentou-se na beira da cama de Isabel e a contemplou fixamente. Isabel tinha as mãos sob a nuca e olhava o teto. Ao sentir a amiga perto, fitou-a e esboçou um sorriso.
— Parece que você ainda não viu Artur, depois que voltou.
— Não.
— Não o avisou de sua chegada?
— Não fiz nem penso fazê-lo. Artur foi ao povoado visitar-me e eu lhe falei claro. Nunca poderei casar-me com ele.
— E... o outro?
— Bolas!
— Isabel, você nunca se apaixonou. Mas acho que desta vez a coisa é séria..
— E é.
— Então... por que esse amor não lhe traz felicidade?
Explicou-lhe com acento cansado. Não omitiu detalhe algum. Quando terminou, houve um silêncio que Carmem interrompeu, sentencionando:
— Isabel, esse homem a ama.
Isabel sorriu, incrédula. Deu de ombros e com acento de resignação, respondeu: — Essa classe de homens, Carminha, não amam a ninguém, exceto a si mesmos.
— E você o ama.
— Muito - confessou seriamente. - Pela primeira e última vez em minha vida. É... como um castigo.
— Eu diria que é como uma bênção, pois você, tão tímida quanto ao amor, entregou o melhor que possui em seu coração.
— Mas você não percebe, que Raimundo deseja-me para amante, não para sua esposa.
— Há alguns dias - disse a amiga, pensativa - completei vinte e sete anos. Até então, sofri muitos desgostos. Ouvi muitas propostas vergonhosas que me fizeram chorar e sentir-me pequena e amargurada. Consegui sair ilesa de todas elas, graças à minha formação moral, e, se não caí, isso serviu-me para fazer um juízo da vida muito acertado. Você é muito nova ainda - acrescentou, sorridente. - É a primeira vez que se vê às voltas com a humilhante proposta de um homem. E eu, com a minha experiência, Isabel, posso dizer-lhe que se esse homem não puder consegui-la como amante, há de consegui-la para esposa, se é que a ama de verdade. E se não a ama, deixe-o ir, pois não a merece e aprenda a esquecer, querida. Eu já esqueci muitas vezes. Oh, quantas vezes, querida Isabel!
— Você nunca me falou assim.
— Já sei. Você me viu sorrir e no entanto, talvez acabasse de chorar. Chorei a sós tantas vezes que já perdi a conta. Agora, não. Habituei-me à vida incerta, à minha solidão, às propostas dos homens que, só por me verem desamparada e só, julgam-me disposta a ceder à primeira tentação.
— Raimundo não me quer; deseja-me unicamente.
— E que é o amor, senão desejo? Não vai querer inspirar compaixão ao homem, não? Quando um homem conhece uma mulher, se lhe agrada, deseja-a e depois a ama, mais tarde a quer e Este carinho vai unido ao desejo, porque sem desejo, Isabel, não há amor.
— Detesto o modo de Raimundo me desejar - disse ela, teimosa.
— Isa, vou fazer-lhe uma pergunta. Você acha que Artur a ama simplesmente Não concebe que a deseja?
— O amor de Artur é puro.
— Você é uma ingênua, Isa e perdoe que o diga. Artur deseja-a tanto ou mais que esse tal milionário, a quem já tenho simpatia, embora não conheça. O que acontece é que Artur cala seu sentimento enquanto que o outro, habituado a certo tipo de conquistas confessa logo, considerando incrível que você se recuse a atendê-lo.
— E o farei mil vezes, se for preciso.
— E no entanto - raciocinou Carmem ironicamente você o ama muito.
— Sim - admitiu Isabel, baixinho. E com amargura, acrescentou: - Mas que importa tudo isso, se talvez não volte a encontrá-lo?
— Você descreveu-me esse homem de tal maneira que penso conhecê-lo bem. Raimundo Encinares não deve ser desses homens que desistem
facilmente. De uma forma ou de outra, ele a conquistará.
— Conquistar?
— Bem - retificou a outra. - Ele já a conquistou. O que fará será consegui-la como companheira.
— Nunca!
— Você o teme muito, Isa, confesse. E quando uma mulher teme a um homem é que está a ponto de ceder. E vou dar-lhe um conselho, levada pela minha experiência. Tenha cuidado. Se ele se convencer de que você é uma presa fácil, fará de você o que fez com outras mulheres. E uma vez obtido o que deseja, se cansará de você. Não se esquive, se ele a procurar, mas procure manter-se forte e ria dele se for possível, embora por dentro tenha vontade de chorar. É o que mais dói num homem.
Isabel sentou-se no leito e apertou a cabeça com as mãos.
— Você fala assim porque não o conhece, realmente. Creio que não o retratei exatamente porque, de outro modo, saberia que Raimundo Encinares é bastante forte para anular a uma jovem como eu e rir-se de suas ironias.
— É o que você imagina porque o ama demais. Eu analiso as coisas friamente e sei que esse conquistador volúvel é como os demais homens. E os homens, Isa, são quase todos talhados pelo mesmo molde.
— Mas eu sou fraca e lutei tanto comigo mesmo que fiquei sem forças. O único consolo que tenho é que confio não o encontrar em Madri.
Carmem lembrou-se que tinha sono e tratou de despir-se. Quando esteve acomodada na cama, paralela à da amiga, disse com suave ironia:
— Para essa classe de homens não há barreiras, Isa. Lembre-se disso. Se não a encontrar é porque não a deseja realmente.
Isabel recebeu um cartão naquela tarde. Levantou uma sobrancelha e leu o conteúdo com certa perplexidade. No distinto cartão, com um nome para ela desconhecido, havia uma oferta tentadora para uma aula particular. Uma hora de aula para uma menina paralítica, num elegante apartamento da rua Serrano. Convidavam- na a ir às sete horas daquele mesmo dia informando que o carro dos pais da menina chegaria às seis e quarenta ao pensionato para buscá-la.
Como tinha uma hora livre e podia dedicar- se àquela pequena, Isa dispôs-se a aceitar. Era um dinheiro que vinha bem a calhar para o inverno que já estava chegando. Preferia consultar-se com Carmem, mas esta não havia regressado do trabalho e eram já seis e um quarto. Se desejava ir, tinha de apressar-se. Afinal, não era a primeira vez que a convidavam daquela maneira e ela conseguia uma aula tão bem remunerada.
Trocou de roupa num instante. Pôs um traje de tarde que lhe ficava como uma luva e pintou- se diante do espelho.
— Estou mais delgada - murmurou, contemplando sua própria imagem. - Mas acho que tudo irá bem. Há quinze dias que saí de Encinares e acho que Raimundo não tentará localizar-me. Melhor assim.
Mas um sabor amargo acudiu-lhe à boca. Chegou à varanda. Um belo carro achava-se estacionado alguns metros adiante do colégio. Um chofer, de boné na mão, parecia esperar alguém, junto à portinhola.
— É esse. Vou descer.
Apanhou a bolsa e as luvas e saiu, gentil e bonita, na direção do carro. O chofer avançou para ela, inclinou-se respeitoso e perguntou:
— Senhorita Viñoles?
— Sim.
— Suba, por favor.
Isabel entrou no carro sem vacilação. Recostada no macio assento, semicerrou os olhos e pensou:
"Se me casasse com Raimundo, teria um carro assim. E peles, jóias e tudo o que quisesse, deixando esta vida de lutas e trabalho".
Suspirou, chamando-se idiota. Afinal, por que pensava naquilo? Raimundo nunca se casaria. Era dos homens que só vivem felizes livres, sem ataduras, porque obtêm tudo que desejam das mulheres. Mas dela, nada obteria.
— Chegamos, senhorita.
Sobressaltou-se. Desceu pressurosa, enquanto o chofer informava:
— Terceiro andar. Os patrões a esperam.
— Obrigada.
Subiu sem vacilações. Apertou a campainha e a porta foi aberta por um criado já idoso, vestido a caráter.
— Sou Isabel Viñoles.
— Ah! Entre, por favor. Por aqui, senhorita, Isabel avançou por um longo e atapetado corredor, seguindo o criado. Estava habituada ao luxo das moradias que diariamente visitava e aquela não desmerecia de quantas havia conhecido no transcurso de sua vida de professoras.
— Por aqui, senhorita - disse o criado, amàvelmente.
Franqueou a entrada e a professora caminhou sem hesitar.
— Sente-se, por favor. O patrão a receberá agora mesmo.
Fez uma inclinação respeitosa e afastou-se, fechando a porta atrás dele.
Isabel olhou de um lado a outro com curiosidade. Estranhou o luxo austero daquele salão. Não havia um só detalhe que denotasse a mão de uma mulher. Até os arranjos tinham algo de masculinizado, como se ali não entrasse nunca o bom gosto feminino.
Subitamente girou para a porta que se abria naquele instante e uma exclamação logo abafada surgiu de seus lábios. Diante dela, sorridente, elegante, irônico, encontrava-se Raimundo Encinares. Ficaram frente a frente; ela, muda de espanto. Ele, sorridente com seu pequeno triunfo. Avançou para ela com as mãos nos bolsos detendo-se a poucos passos. Contemplou-a fixamente, com aqueles olhos castanhos de expressão penetrante.
— Vim aqui - disse ela com um fio de voz - para tratar de uma aula...
— Eu sei perfeitamente, pequena. Fui eu quem escreveu aquele cartão, convidando-a para esta hora. - E rindo, acrescentou: - Este é meu lar e desejo que você veja como é confortável...
— Não me interessa. Se na verdade fui vítima de um logro, deixe-me ir embora.
E deu um passo à frente, mas Raimundo colocou-se diante dela e murmurou, persuasivo e autoritário:
— Acabemos de uma vez, pequena. Não a chamei aqui para vê-la, apenas. Há muitos dias que estou em Madri procurando-a como um louco e eu não costumo procurar as pequenas. São elas que, até hoje, andaram atrás de mim.
— Eu lhe disse certa ocasião, e repito-o agora, que você só tratou com certo tipo de mulheres. — Bobagens! Faça o favor de deixar essas tolices de lado. Não a mandei buscar para perder tempo. Que deseja afinal? Carro peles e jóias? Bem, você os terá. Não costumo comprar o amor a tão alto preço mas você é uma exceção.
Isabel já não sentia indignação. Desde que conhecera Raimundo Encinares habituara-se a ouvir a mesma coisa. Mas sentiu um tremendo desejo de chorar. Contudo, apertou os lábios impedindo que um grito lhe escapasse da garganta. Logo, com redobrado esforço para manter a calma, sentenciou:
— Eu lhe disse também uma vez e o repito hoje; nem coberto de ouro eu atenderia a seus desejos.
— Mas você me ama - protestou, mais impaciente que indignado.
Isabel voltou a morder os lábios, respirou fundo e disse:
— Sim, mas acima de meu amor está minha dignidade.
— Isso são escrúpulos de menina boba. Com quem estará melhor do que comigo? - Aproximou-se mais, porém ela manteve-se firme e silenciosa. Mais impaciente ainda, ele acrescentou: - Se não deseja viver comigo em Madri, iremos para outra parte. Quando eu me cansar de você, e costumo cansar-me depressa - riu cinicamente -, eu lhe darei o bastante para viver e ninguém, exceto você e eu, saberemos o que aconteceu. Eu ficarei com uma boa recordação e você terá dinheiro, muito dinheiro e nenhuma necessidade de voltar a andar de casa em casa dando aulas.
Isabel não pôde responder. Tinha um nó na garganta e tal desejo de chorar, que voltou a cabeça para um lado e dirigiu-se para a porta, como se a perseguisse o próprio demônio.
Raimundo não esperava aquela reação. Nem por um instante pensou que ela fosse negar-se. Claro que o fizera no povoado, mas
— Ouça! - gritou, detendo-a e sacudindo com fúria o braço feminino. - Que significa seu silêncio? Tenho pouca paciência, e estou interessado por você. Juro que ninguém saberá jamais o que ocorrer entre nós.
— Está esquecendo que temos um supremo Juiz e nada passa impune ante seus olhos. Mas ainda que não fosse assim, eu o saberia e tenho tal respeito próprio, que antes prefiro a morte a ser sua amante.
— O que está dizendo?
— Prefiro mil vezes a morte - sussurrou Isabel, com estranha firmeza.
E Raimundo percebeu, naquele instante, que jamais conseguiria dominar aquela bela professora. E aquele seu primeiro fracasso enfureceu-o. Apertou com raiva o braço da moça e gritou:
— Está querendo que me case com você? É isso o que deseja?
— Está me machucando - gemeu Isabel, procurando defender-se.
— Eu a mataria. Está entendendo?
— Talvez - disse ela, baixinho. - Mas nada conseguiria de mim.
Com um gesto brusco, Raimundo tentou apertá-la em seus braços enquanto Isabel agitava-se frenèticamente. Mas ele era mais forte e conseguiu mantê-la imóvel. Depois, com ansiedade febril, procurou-lhe os lábios. Foi tal o temor da jovem que temia ficar presa daquele sortilégio que dele emanava que levantou a mão e suas unhas cravaram-se com raiva no rosto de Raimundo. Este lançou um grito e soltou-a. Ficou parado diante dela, com a mão tapando as duas feridas que as unhas deixaram em sua face.
— Sua idiota! - gritou ele, enfurecido.
E seus dedos tocaram o rosto ferido com violência. Foi quando, ao levantar o olhar e fixá- lo no rosto pálido da jovem, sentiu um estremecimento que o deixou surpreso. Isabel chorava em silêncio.
Pela primeira vez, Raimundo via uma mulher chorar. Uma mulher firme, enérgica e honrada como aquela, que acabava de dar-lhe a única lição de sua vida.
— Isabel - exclamou com estranho acento. - Isabel...
A jovem correu para a porta com as mãos cobrindo o rosto, banhado em lágrimas,
— Isabel! - gritou.
Sua voz tinha um acento de angústia. Mas Isabel corria como que enlouquecida e ela mesma abriu a porta da rua, lançando-se a esta como se a perseguissem.
Raimundo deixou-se cair numa poltrona e tapou o rosto com as mãos. Naquele instante o sangue que emanava de seu rosto, produzido peIas unhas da jovem, não lhe importava nada. Algo bulia em seu íntimo. Algo desconhecido, que jamais sentira no transcurso de sua vida e que o surpreendeu.
Pôs-se em pé e, vacilante, saiu do salão e dirigiu-se para o quarto. Matias, ao vê-lo, avançou alarmado.
— Que aconteceu, senhor?
Raimundo tirou um lenço do bôlso e limpou o rosto, sem responder.
— Senhor...
— Acalme-se, Matias - disse Raimundo com um acento estranho para o criado. - Acabo de saber que há um amor neste mundo que não tem preço - sorriu com um esgar indefinível. - Parece inverossímel, mas é a realidade...
— Senhor...
— Dê-me um esparadrapo para o rosto.
— Mas...
— Acabo de ver uma mulher chorar, Matias - disse Raimundo, pensativo. - E não eram lágrimas fingidas. Eram, pelo contrário, lágrimas autênticas. E é isso que me espanta, Matias.
— Quer... quer tomar algo, senhor?
— Cale a boca. Não estou perturbado, fique sabendo. Estou... maravilhado.
E o criado, que pela primeira vez não compreendia seu amo, ficou observando-o aturdido. Mas Raimundo não o via. Pensava, pela primeira vez em sua vida, em algo puro e sério.
Não disse a ninguém o que sucedera, nem mesmo a Carmem. E não o fez, porque desejava esquecer, não apenas o incidente, mas também Raimundo, de quem já nada esperava, exceto uma atitude vergonhosa. Mas ela preferia morrer a aceitar uma situação humilhante.
Isabel tinha sido educada num lar cristão e até então ninguém lhe fizera proposta tão vergonhosa como aquela. Sentia-se mais magoada justamente por não estar habituada a receber golpes tão duros como aquele.
Passaram-se três dias. Artur chamou-a pelo telefone, propondo sair com ele. Escusou-se. Para que alimentar as esperanças de um homem
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que estimava, mas com o qual não se casaria jamais?
"Darei aulas toda a minha vida - pensou. - Hoje sou jovem, amanhã serei solteirona, mais tarde uma velha e depois... Bem, a partir de agora não comprarei modelos caros e pouparei o dinheiro. Preciso dele para assegurar minha velhice... "
Podia casar-se com outro homem e formar o lar tão sonhado e ter filhos...
Mas ela não podia amar homem algum depois de ter conhecido Raimundo. Talvez fosse um castigo, não o sabia... Por que fora tão descuidada? Devia ter-se precavido. Apaixonar-se por um homem como Raimundo havia sido um descuido imperdoável.
Numa daquelas tardes, duas alunas, as irmãs Espinhosa, convidaram-na para uma festa. Isabel procurou escusar-se, mas tanto Maria Begônia, que tinha sua idade, como Piluca, a menor, continuaram insistindo e a professora não teve outro remédio senão aceitar. — Será numa boate do centro - explicou Begônia. - Uma amiga comemora seu aniversário e nos pediu para convidar você. Lá estarão muitas de suas alunas e alguns homens muito interessantes.
— Francamente, não me interessam os homens
— disse Isabel, com amargura na voz.
— Você voltou muito estranha do povoado. Já disse à mamãe que fez muito mal recomendá-la e você em aceitar, deixando nosso convite para ir conosco a Algarta.
— Eu precisava trabalhar.
— Mas aposto que aconteceu alguma coisa séria nesse tal povoado para onde você foi.
— Não aconteceu nada.
— Tem mesmo certeza de que não deseja contar-nos? - indagou uma das irmãs.
— Francamente... nada tenho que dizer!
— Bem, seja como você quiser. A propósito, ouvi dizer que Cristina Salcedo tem um tio estupendo. É verdade?
Isabel não desejava falar de Raimundo. Há quatro dias que tentava por todos os modos esquecer aquele homem e o que sucedera em seu apartamento de solteiro.
— Não sei dizer...
— Você não o conheceu?
— Sim.
— E é mesmo tão interessante como dizem?
— Sei lá.
— Não tente enganar-nos. Minhas amigas estão loucas por ele. Dizem que tem fama de homem sério.
Isabel tossiu ao ouvir aquilo. Rápida, procurou dissimular a inesperada reação.
— Você tem fama de boa observadora, Isa. Que achou dele? Vamos, não seja teimosa.
— É muito elegante.
— Só isso?
— É bonito.
— Além disso, tem trinta e quatro anos e muito dinheiro. Um ótimo partido, não?
— Segundo o que você considere um ótimo partido - respondeu Isabel, sem muita vontade de continuar discutindo aquele assunto.
As duas colegas, muito curiosas, pareciam entusiasmadas e continuaram perguntando.
— No dizer de minhas amigas, Raimundo Encinares é de fato um homem muito interessante. Está aqui em Madri, sabe? E tem sido visto em muitos lugares. Eu gostaria de conhecê-lo. Será realmente tão sério como dizem?
— Não me interessei muito por ele - disse Isabel, evasiva. E procurou mudar o rumo daquela conversa.
Pela tarde, Begônia e Piluca passaram em seu carro para apanhá-la. Ao vê-la, ficaram impressionadas. Ela era muito bonita, muito distinta e todas as suas alunas o sabiam. Mas naquela tarde a beleza de Isabel Viñoles causava admiração. Vestia com apurado gosto, um traje de coquetel, sapatos e bolsa combinando com o jôgo. Seus olhos de cigana tinham no fundo uma expressão sonhadora que a favorecia de maneira extraordinária.
— Você está linda, querida - disse Begônia. Isabel deu de ombros e nada respondeu.
O que poderia dizer? Havia-se arrumado apenas para não destoar de suas alunas, mas Deus sabia que não se detivera mais em seu arranjo da tarde. Fizera-o, como vinha fazendo tudo ultimamente, de maneira automática, sem encanto e sem ilusão.
No salão de festas reinava grande alegria. Eram todos seus conhecidos e a rodearam com demonstrações de carinho. E, de repente, ela o viu.
Estava ali, a curta distância, olhando-a fixamente. Sentiu-se perturbada, fora de lugar. Desviou o olhar, mas não lhe serviu de nada. Raimundo aproximou-se, sentou-se a seu lado e disse:
— Estive a ponto de recusar o convite. Um sexto sentido preveniu-me, porém. Teria sido você que me deu o aviso para vir?
Ela não respondeu. Seus olhos caíram nas duas marcas vermelhas ainda visíveis no rosto de Raimundo. Ele levou a mão ao rosto e comentou com tom irônico:
— Foi uma grande lição, Isabel.
— Terá de receber ainda muitas outras, em troca de sua ousadia. Senhor Encinares.
— Hum...
Ninguém reparava neles. Cada um tinha seu próprio par e dançavam na pista com grande satisfação. Eles, como que isolados do mundo, fitavam-se de vez em quando. — Quero dançar com você, Isabel. — Não.
— Não seja tolinha...
— Jamais dançarei com você.
— Acho que daqui por diante, você só poderá dançar comigo, Isabel.
— Outra vez?
— Outra vez... o quê?
— Já sabe o que pode esperar de mim, não? Creio que já o demonstrei com toda clareza.
— Esqueçamos isso. Faça de conta que me conheceu neste instante.
— É impossível.
— Eu lhe suplico.
— Não!
— Definitivamente?
— Sim.
— Isabel - disse ele, tamborilando com os dedos sobre a mesa -, você está me saindo uma teimosa de primeira linha. Conheci muitas mulheres e jamais topei com uma assim, como você. Não há dúvida de que é uma novidade para mim.
— Não desejo ser uma novidade.
— Além disso, você é uma autêntica mulher - disse ele, de uma forma estranha, pondo-se de pé. - Vamos dançar, Isabel.
— Não!
— Eu lhe suplico. E veja que é a primeira vez que suplico algo. Até agora exigi, sem compreender que você não é mulher de aceitar exigências Hoje eu lhe suplico humildemente.
A tentação era grande, mas sua força de vontade maior, de modo que ela recusou com firmeza.
— Está bem - exclamou ele, resignadamente. - Ficarei a seu lado, mas aviso-a que não dançará com nenhum outro homem, a menos que deseje um escândalo.
Isabel não respondeu. Limitou-se a levantar os ombros e contemplar com um olhar vago o que se passava à sua volta. A Raimundo - não interessava o que sucedia na pista. Olhava para Isabel com atenção, enquanto um indefinido sorriso aparecia em seus lábios. De repente, disse: — Isabel...
Ela não respondeu. Raimundo sentiu uma estranha angústia e voltou a chamar:
— Isabel...
— Que deseja, afinal? - perguntou, os lábios trêmulos de nervosismo.
— Já lhe digo. Francamente, não consigo compreender como uma criatura como você conseguiu prender-me deste modo. Eu, inimigo declarado do casamento, vou ter de tomá-la pela mão e levá-la ao altar. Podem as criaturas humanas imaginar semelhante coisa?
Isabel manteve-se calada. Sentia dentro dela uma angústia e ao mesmo tempo um tremor de prazer ou de medo que não conseguia explicar ou definir.
— Desejo casar-me com você, Isabel.
Ela apenas estremeceu. Depois olhou para ele como que não acreditando.
— Ouviu bem, Isabel? - tornou ele. - Quero casar-me com você. Chame-me infeliz, idiota, o que quiser. Admito tudo, porque acredito que mereço, mas... acima de sua opinião e da minha, desejo agora que seja minha esposa. - Começou a rir e acrescentou de um modo indefinível. - Será que lhe serei fiel? Não sei. Não tenho muita tendência para isso... - Fitou-a ternamente, sem desejo. Isabel estremeceu dos pés à cabeça. - Mas é a única maneira de torná-la minha e eu não posso viver sem você. Aqui está o triunfador convertido num vencido... apaixonado.
Nesse momento, foram rodeados por um bando de jovens e uma pequena obrigou Raimundo a acompanhá-la para dançar, apesar dos protestos deste.
Um cavalheiro tentou fazer o mesmo com Isabel, mas a jovem não tinha a menor intenção de dançar e muito menos disposta a conversas frívolas. Precisava afastar-se dali e pensar, pensar muito.
Quando Raimundo voltou finalmente para a mesa, Isabel já não se encontrava ali. — Onde terá ido Isabel? - perguntou, aborrecido
— Acho que foi embora - disseram-lhe.
— Foi embora?
— Sim - confirmou um dos rapazes, - Parece que não se sentia muito bem,
Raimundo saiu às pressas do salão.
Outro homem teria certos escrúpulos. Mas Raimundo Encinares não era disso. Deteve o carro diante do pensionato e saltou, correndo escadas acima. Uma jovem atendeu-o.
— Desejo ver a Senhorita Isabel Viñoles. — Não sei se estará aqui.
— Tem que estar. Sou - disse com ênfase - o futuro marido de Isabel.
A jovem ficou boquiaberta, sem saber o que dizer ou fazer.
— Avise Isabel - disse Raimundo, impaciente. - Ou prefere que eu mesmo suba e vá buscá-la?
— Um momento, senhor. Desculpe - disse a moça, ainda aturdida. - Siga-me, por favor. Entre no salão de visitas.
Ficou ali vários minutos que lhe pareceram séculos, dando voltas de um lado para outro. Quando afinal a porta abriu-se ao fundo, avançou para Isabel.
Fitou-a intensamente e disse, com uma voz emocionada, muito diferente da que a jovem conhecia:
— Deixe-me contemplá-la e tê-la sempre a meu lado, Isabel.
— Tenho... medo.
— Medo... a meu lado?
— Sim, de sua inconstância.
— Hei-de adorá-la toda a minha vida. Nascemos um para o outro, querida. - Tomou-a em seus braços, feliz como uma criança. - Isabel... minha querida Isabel...
Seus lábios procuraram os da jovem. Quanto tempo havia desejado aquele instante! Agora aquele beijo nada tinha de falso. Sem que ele mesmo o soubesse, eram os cálidos e suaves lábios de um homem que amava sinceramente a uma mulher e a beijava pela primeira vez.
— Raimundo...
— Não fale, Isabel. Deixe-me abraçá-la. Permita que, finalmente, eu possa tocá-la e beijá-la. Quantos meses estive desejando Este momento. Isabel, minha Isabel...
Aquele era o instante mais sublime da vida de Isabel, pois pela primeira vez era beijada e querida e acreditava naquele homem tão diferente do que a fizera sofrer. Este que a tomava em seus braços não o fazia com a ânsia puramente sensual que era de se esperar de uma pessoa frívola como Raimundo. Era o homem apaixonado e vencido, que se entrega a um sincero e puro amor.
— Eu lhe serei fiel - dizia sem deixar de beijá-la, como se aqueles beijos e carícias fossem a razão de seu viver. Terei de ser-lhe fiel toda a minha vida. Você não é mulher que se possa esquecer. Você é a mulher que o destino me reservava para demonstrar-me que eu vivia errado até agora. Hoje, finalmente, em seus lábios, em seu olhar, em seu íntimo, encontro a verdade. Essa mesma verdade da qual eu fugia, até que encontrei você e descobri que a amava.
Afastou-a um pouco para vê-la melhor. Isabel chorava silenciosamente.
— Suas lágrimas - sussurrou ele com devoção
— foram para mim como que uma revelação. Tinha visto mulheres chorando por uma jóia, peles ou outras coisas fúteis, para logo exigirem um carro ou outra coisa qualquer, mas nunca vi uma mulher chorar para recusar o que um homem rico lhe oferecia.
— Por favor, não fale disso.
— Sim, tem razão. Tenho muito que dizer, mas também tenho uma vida inteira para dizê-lo. E você terá que deixar-me adorá-la, Isabel e continuar amando-me.
— Sim, sim - sussurrou ela.
Raimundo contemplou-a ternamente e procurou as finas mãos femininas, beijando-as seguidamente enquanto pronunciava frases ardentes que sensibilizavam o coração de Isabel como eternas promessas.
A condessa de Salcedo e sua filha leram o telegrama ao mesmo tempo, entreolhando-se com surpresa.
— Que estupenda notícia, mamãe!
— Sim - murmurou a condessa, que era uma sentimental incorrigível. - Uma grande notícia. Mas, por que não me avisou antes? Devia ter assistido ao casamento.
— O tio Raimundo é assim mesmo.
— Acho, minha filha, que só agora começamos a conhecer seu tio - sorriu. - Bem, é preciso preparar a comida. A que horas ele disse que chegarão?
Cris leu o telegrama em voz alta:
"Casamo-nos há seis dias. Somos imensamente felizes. Iremos vê-las amanhã.
Beijos.
Isabel Viñoles e Raimundo".
Sem dúvida alguma - observou a condessa -, o idílio começou aqui e nem você nem eu o percebemos. Agora compreendo por que Raimundo partiu tão depressa.
— Que maravilha, mamãe! A professora é uma criatura encantadora.
— Claro que é.
O casal encontrava-se naquele instante na cidade próxima. O carro, estacionado frente a uma confeitaria e eles sentados diante do balcão, tomando Martinis.
— Não me olhe assim, Isabel.
— Eu só olho para você, querido.
— Pois terá de fazê-lo toda a vida.
— Eternamente, meu amor.
— Uma coisa, Isabel querida. Você algum dia esteve apaixonada por Artur?
Isabel riu. Sua mão voou pelo ar e caiu, suave e terna sobre os dedos de seu marido. Seu marido! Muitas mulheres casam-se em todas as partes do mundo, mas nem todas vão para o casamento com as esperanças com que o fora Isabel Viñoles. Ela amava com intensidade e sabia-se querida de igual modo. E aquele homem que dissera desejá-la, amava-a agora com ternura. Isabel já sabia que o amor e o desejo são duas coisas na vida de um homem e uma mulher e ela não era uma visionária. Era uma deliciosa moça que Raimundo de Encinares estava tornando mulher com seu amor.
— Só você, Raimundo.
— Só?
— Sim, só você e por isso peço-lhe, suplico-lhe... que eu também seja o mesmo para você.
Meses depois, quando Isabel teve o primeiro filho, Matias dizia na cozinha:
— Parece mentira que o amor de uma mocinha tenha mudado assim um homem como o patrão.
— É que essa mocinha é deliciosa, Matias - respondeu a cozinheira. - E seu patrão cansou-se dos falsos amores. Achou finalmente o verdadeiro, compreende?
— Sim. E penso que hoje, de bom grado começaria minha vida de novo. Também teria esposa e filhos. É formidável ter esposa e filhos.
— Isso é um lamento que costuma inquietar um homem quando já não pode recomeçar... Por isso é sempre melhor começar bem.
Raimundo tinha Isabel em seus braços naquele instante e dizia-lhe com fervor:
— Nunca havia sentido a verdadeira felicidade, até que a conheci, Isabel.
Ela pousou os lábios nos do marido. Aquele homem era-lhe fiel. E o seria até a morte, ela bem o sabia.
CorinTellado
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