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Em Busca do Amor / Nora Roberts
Em Busca do Amor / Nora Roberts

 

 

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Em Busca do Amor

 

A viagem de trem parecia interminável e Serenity estava muito cansada. A discussão que tinha mantido na noite anterior com Tony não contribuiu para melhorar seu estado de ânimo e a isso se somava o longo vôo de Washington a Paris. Agora, as tediosas horas no sufocante trem lhe tinham feito apertar os dentes para reprimir seu aborrecimento. Apesar de tudo, pensou com resignação, ela não era mais que uma pobre viajante.

A viagem tinha sido a desculpa perfeita para a última e definitiva batalha entre Serenity e Tony, já que sua relação tinha sido tensa e acidentada durante as últimas semanas. Sua permanente negação a ser pressionada para que aceitasse casar-se com ele tinha provocado inumeráveis discussões, mas Tony a amava e sua paciência não parecia ter limites. Sua obstinação não cedeu até que lhe anunciou que estava decidida a fazer essa viagem e, então, a guerra começou.

- Não pode partir de supetão para a França, para ver uma suposta avó cuja existência ignorava até algumas semanas atrás!

Tony tinha caminhado com uma agitação que se fazia visível pela forma com que permitia que sua mão desordenasse seu bem cuidado penteado.

- Bretanha. - tinha explicado Serenity - E não tem nenhuma importância quando descobri sua existência. Agora sei que ela existe.

- Esta anciã te escreve uma carta, te dizendo que é sua avó e que deseja te conhecer e você empreende a viagem, assim sem mais nem menos.

Tony tinha se mostrado extremamente irritado. Ela sabia que sua mente lógica era absolutamente incapaz de compreender seu impulso e tinha tido que fazer um grande esforço para conter seu próprio temperamento e tratar de explicar-lhe com calma.

- Ela é a mãe de minha mãe, Tony, a única família que tenho, e estou decidida a conhecê-la. Você sabe que estive fazendo planos para ir vê-la desde que recebi sua carta.

- Essa velha deixa se passarem vinte e quatro anos sem dar sinais de vida e agora, subitamente, chega este convite. - Tony tinha continuado seu nervoso passeio pela grande habitação de pé-direito alto antes de voltar-se novamente para ela - Por que diabos seus pais nunca lhe falaram dela? Por que esperou que estivessem mortos para entrar em contato contigo?

Serenity sabia que ele não queria mostrar-se cruel com ela. A crueldade não fazia parte da natureza do Tony, somente a lógica, e sua mente de advogado estava acostumada a tratar continuamente com fatos e dados. Nem sequer podia adivinhar a lenta e terrível dor que havia ainda nela, persistindo depois de dois meses, o tempo transcorrido desde a súbita e inesperada morte de seus pais. O fato de saber que suas palavras não tinham tido a intenção de feri-la não impediu que ela se enraivecesse e a discussão se tornou mais violenta até que Tony partiu, deixando-a sozinha, ressentida e ardendo de ira.

Agora, enquanto o tedioso trem ia em direção à Bretanha, Serenity viu-se obrigada a admitir que também ela abrigava várias dúvidas. Por que sua avó, essa desconhecida condessa Françoise de Kergallen, tinha permanecido em silêncio ao longo de quase um quarto de século? Por que sua mãe, sua encantadora, frágil e fascinante mãe, nunca lhe tinha dito que tinham um parente na remota Bretanha? Nem sequer seu pai, tão inconstante, extrovertido e direto como tinha sido, não tinha mencionado jamais que tivessem vínculos familiares mais perto do Atlântico?

"Tinham estado tão intimamente unidos", refletiu Serenity. Os três tinham feito muitas coisas juntos. Inclusive quando ela era uma menina, seus pais a tinham levado com eles para visitar senadores, congressistas e embaixadores.

Jonathan Smith tinha sido um renomado artista e um retrato criado por sua talentosa mão era uma posse muito valiosa. Os membros da alta sociedade de Washington lhe tinham encomendado trabalhos durante mais de vinte anos. Seu pai tinha sido apreciado e respeitado como homem e como artista.

A graça e o encanto de Gaelle, sua esposa, tinha contribuído para que o casal fosse muito estimado nos círculos importantes da capital.

Quando Serenity cresceu, e seu talento artístico natural se fez evidente, o orgulho de seu pai não  teve limites. Os dois tinham desenhado e pintado juntos, primeiro como professor e aluna, logo como homem e mulher, e sua relação se fez mais estreita ao compartilharem com idêntica alegria o chamado da arte.

A pequena família tinha desfrutado de uma existência idílica na elegante residência em Georgetown, uma vida cheia de amor e felicidade, até que o mundo de Serenity se fez em migalhas ao seu redor junto com o avião que levava seus pais à Califórnia. Tinha-lhe parecido impossível acreditar que estivessem mortos e que ela seguia vivendo. A habitação de pé-direito alto já não ressoaria com o eco da poderosa voz de seu pai ou com as suaves risadas de sua mãe. A casa estava vazia e só ficavam nela as lembranças, como sombras que dormiam em cada um dos silenciosos rincões.

Durante as duas primeiras semanas, Serenity não pôde suportar a visão de uma tela ou de um pincel, ou a idéia de entrar no estúdio do terceiro andar, onde ela e seu pai tinham trabalhado tantas horas, onde sua mãe entrava para lhes recordar que os artistas também devem comer. Quando finalmente foi capaz de reunir a coragem necessária para subir as escadas e entrar na sala banhada pela luz do sol, sentiu uma paz estranha e reparadora, mais que uma angústia surda e intolerável. A luz do sol invadia a habitação em uma cálida claridade e as paredes retinham o amor e a sorte que alguma vez tinham existido ali. Serenity havia tornado a viver, a pintar, e Tony se mostrou generoso e atento, ajudando-a a encher o terrível vazio que tinha deixado a perda de seus pais. Então foi quando chegou a carta.

E agora tinha abandonado Georgetown e Tony para ir em busca dessa parte dela mesma que pertencia  à Bretanha e a uma avó absolutamente desconhecida. A carta, estranha e formal, que a tinha feito viajar da familiaridade das concorridas ruas de Washington até a desconhecida campina na Bretanha, encontrava-se agora guardada na bolsa de pele que tinha no assento a seu lado. A missiva não transmitia nenhum afeto, só dados e um convite, ou melhor, uma ordem imperial, pensou Serenity, divertida e intrigada ao mesmo tempo. Mas embora seu orgulho se ferisse com a ordem, sua curiosidade, seu desejo de saber mais a respeito da família de sua mãe, fazia que aceitasse o estranho convite. Com seu sentido de organização e sua inata impetuosidade, Serenity fazia os preparativos da viagem, fechando sua amada casa em Georgetown e queimando as pontes que a uniam a Tony.

O trem gemeu e fez chiar suas rodas em sinal de protesto quando entrou na estação de Lannion. Um formigamento de excitação se apoderou dela quando reuniu sua bagagem de mão e desceu à plataforma para contemplar pela primeira vez, atentamente, a paisagem do país em que sua mãe tinha nascido. Olhou em todas direções com olhar de artista, perdida por um instante na serena beleza e nas cores suaves e combinadas que caracterizavam a região da Bretanha.

O homem observou sua expressão concentrada e o pequeno sorriso que havia em seus lábios entreabertos, e uma de suas escuras sobrancelhas se elevou em um gesto de surpresa. Demorou-se uns minutos examinando Serenity, admirando sua figura alta e esbelta embainhada em um traje de alfaiate cor verde-azulada, e o esvoaçar da ampla saia em torno de suas pernas longas e perfeitamente torneadas. A brisa suave passava seus dedos ligeiros pelo cabelo que o sol iluminava e o fazia flutuar, emoldurando o rosto ovalado e de traços delicados. Os olhos, concluiu o homem, eram grandes e redondos, sua cor era ambarina como o conhaque e estavam rodeados por espessas pestanas que eram mais escuras que seu cabelo claro. A pele parecia incrivelmente suave, delicada como o alabastro, e a combinação produzia um efeito etéreo: uma orquídea frágil e formosa. O homem logo descobriria que as aparências teimam em nos enganar.

Aproximou-se de Serenity lentamente, quase com relutância.

- É você mademoiselle Serenity Smith? - perguntou em um inglês com ligeiro sotaque.

Serenity se surpreendeu ao ouvir sua voz, já que se encontrava tão distraída na contemplação da paisagem que não tinha notado a proximidade do homem. Apartando uma mecha de cabelo, voltou a cabeça e elevou a vista, muito mais alto do que costumava, para olhar os olhos marrons e de espessas pestanas.

- Sim - respondeu, perguntando-se por que aqueles olhos faziam com que se sentisse tão estranha - Você vem do castelo de Kergallen?

O homem elevou ligeiramente uma sobrancelha e essa foi a única mudança de sua expressão.

- Oui, sou Christophe de Kergallen. Vim para levá-la ante a condessa.

- De Kergallen? - repetiu Serenity com certa surpresa - Não será você outro de meus misteriosos parentes?

A sobrancelha permaneceu elevada e os lábios plenos e sensuais se curvaram quase imperceptivelmente. - poderia-se dizer, mademoiselle, que somos, de algum modo, primos.

- Primos - murmurou ela enquanto ambos se observavam atentamente, como dois boxeadores profissionais que se estudam antes de decidir-se a lançar o primeiro golpe.

O cabelo negro, liso e sedoso caía sobre o pescoço e os olhos escuros, que não deixavam de olhá-la, pareciam quase negros em sua pele bronzeada pelo sol. Seus traços eram angulosos, como os de um falcão ou de um pirata, e toda sua pessoa emanava uma aura viril que a atraía e lhe repelia ao mesmo tempo. Serenity sentiu um súbito desejo de ter consigo um caderno de desenho, perguntando-se se seria capaz de captar a aristocrática virilidade daquele homem com a ajuda de um lápis e uma folha de papel.

O exaustivo exame de Serenity não pareceu perturbar absolutamente o seu longínquo primo, e ele sustentou seu olhar com olhos frios e distantes.

- Sua bagagem será levada diretamente ao castelo - disse. Então inclinou-se para recolher as malas que Serenity tinha desembarcado com ela à plataforma - Agora, se me acompanhar, a condessa está ansiosa por conhecê-la.

Conduziu-a até um reluzente sedan preto, ajudou-a a tomar assento no lugar do acompanhante e colocou a bagagem no porta-malas. Seu comportamento era tão frio e impessoal que Serenity se sentiu simultaneamente incomodada e curiosa. Christophe de Kergallen começou a conduzir absolutamente calado e Serenity voltou-se para lhe olhar abertamente.

- E como é que somos primos? - perguntou. "Como devo lhe chamar?", perguntou-se. “Monsieur Christophe ou você?"

- O marido da condessa, o pai de sua mãe, morreu quando sua mãe era uma menina. - Ele começou sua explicação em um tom cortês e visivelmente aborrecido, e Serenity sentiu a tentação de lhe dizer que não se incomodasse - Vários anos mais tarde, a condessa se casou com meu avô, o conde de Kergallen, cuja esposa tinha morrido lhe deixando um filho, meu pai. - Voltou a cabeça e a olhou fugazmente - Sua mãe e meu pai foram criados no castelo como se fossem irmãos. Meu avô morreu, meu pai se casou, viveu o tempo suficiente para ver-me nascer e acabou morrendo em um acidente de caça. Minha mãe suspirou por ele durante três anos e finalmente acabou por unir-se a meu pai na cripta da família.

A história tinha sido recitada com uma voz remota e carente de toda emoção e Serenity não sentiu por ele a compaixão que normalmente teria experimentado por um menino órfão. Observou por um momento seu perfil aquilino.

- De modo que isso lhe converte no atual conde de Kergallen e em meu primo por matrimônio.

De novo, ele a olhou brevemente e com certa negligência antes de responder.

- Oui.

- Não posso lhe dizer quão impressionada me sinto por ambos os fatos - exclamou Serenity sem preocupar-se com disfarçar o sarcasmo que se advertia em sua voz. A sobrancelha de Christophe voltou a elevar-se enquanto a olhava, e Serenity pensou por um instante que em seus olhos escuros havia um sorriso zombador. Mas enfim decidiu que não era possível, segura de que o homem que estava sentado junto a ela jamais ria - Você conheceu a minha mãe? - perguntou ela quando o silêncio começou a fazer-se desagradável.

- Oui. Eu tinha oito anos quando ela partiu do castelo.

- Por que partiu? - perguntou ela, lhe olhando fixamente com seus olhos cor âmbar.

Ele voltou a cabeça e a olhou com idêntica atenção. Serenity se sentiu perturbada por seu poder antes que Christophe voltasse a concentrar-se na condução do carro.

- A condessa lhe dirá o que ela desejar que você saiba.

- O que ela desejar? - exclamou Serenity, irritada por seu deliberado desprezo - vamos esclarecer as coisas, primo. Eu pretendo averiguar por que minha mãe abandonou a Bretanha e por que passei toda minha vida ignorando que tinha uma avó na França.

Com movimentos lentos e indolentes, Christophe acendeu um cigarro e expulsou a fumaça indolentemente.

- Não há nada que eu possa lhe explicar a respeito.

- Quer dizer - corrigiu ela, apertando os olhos -  que não há nada que você queira me explicar a respeito.

Ele se limitou a encolher seus poderosos ombros e Serenity se voltou para olhar através da janela aberta, imitando seus movimentos em versão americana, e não chegou a perceber o ligeiro sorriso que ele esboçou ante seu gesto.

Continuaram a viagem quase em silêncio, embora Serenity, ocasionalmente, perguntasse por alguns detalhes da paisagem, e Christophe respondesse com amáveis monossílabos, sem fazer nenhum esforço por estender-se na conversação. O dourado sol e o céu azul teriam sido suficiente estímulos para dissipar o mau humor da viagem, mas aquela contínua frieza pesava muito mais que os dons da natureza.

- Para um conde da Bretanha - observou ela com enganosa doçura, depois de lhe escaparem outros dois monossílabos -, você fala um inglês quase perfeito.

O sarcasmo escorregou por ele como brisa de verão e sua resposta foi levemente condescendente.

- A condessa também fala inglês muito bem, mademoiselle. Os criados, não obstante, só falam francês ou bretão. Se você se encontrar em dificuldades por esta razão, só tem que nos pedir, à condessa ou a mim, que a ajudemos.

Serenity elevou o queixo e voltou para ele seus olhos dourados, com evidente desprezo.

- “Ce n'est pas nécessaire, monsier. Je parle bien le français”.

Uma sobrancelha escura se elevou em um gesto altivo que harmonizava com seus lábios.

- Bem, - respondeu ele no mesmo idioma - facilitará sua visita ao castelo.

- Falta muito ainda para chegar ao castelo? - perguntou ela sem abandonar o francês. Tinha calor, estava cansada e necessitava de um banho. A longa viagem e a diferença horária contribuíam para que tivesse a impressão de que fazia dias que estava dentro de um veículo, e ansiava por dispor de uma banheira cheia de água quente e sais de banho.

- Faz algum tempo que estamos nas terras da família Kergallen, mademoiselle. - disse ele sem tirar os olhos do caminho - Logo avistaremos o castelo.

O carro tinha subido lentamente uma pequena colina. Serenity fechou os olhos ao sentir uma dor que tinha começado a lhe torturar a têmpora esquerda e desejou ardentemente que sua misteriosa avó tivesse vivido em um lugar menos complicado, como Idaho ou Nova Jersey. Quando voltou a abrir os olhos, as dores, a fadiga e os lamentos se desfizeram como o pó sob o sol ardente.

- Pare! - gritou em inglês, enquanto apoiava involuntariamente uma mão sobre o braço de Christophe.

O castelo se elevava ante eles, orgulhoso e solitário. Era uma imensa construção de pedra pertencente a outro século, com torres cilíndricas, muros ameados e uma cobertura cônica de telhas que brilhava em tons cinza contra o azul do céu. Tinha inumeráveis janelas, altas e estreitas, que refletiam a luz crepuscular com um grandioso mosaico de cores. Era um castelo antigo, arrogante e seguro, e Serenity se apaixonou instantaneamente pela construção de pedra.

Christophe observou a surpresa e o prazer que se refletiam no rosto despreparado do Serenity enquanto sentia sobre seu braço o contato quente e ligeiro de sua pequena mão. Um cacho rebelde caiu sobre a face de Serenity e Christophe estendeu uma mão para afastá-lo. Entretanto, reprimiu-se no último momento e se deparou com uma mescla de surpresa e incômodo.

Serenity estava muito absorta na contemplação do castelo e não percebeu o frustrado movimento de Christophe. Já estava planejando que ângulos utilizaria para seus esboços e imaginando o fosso que devia circundá-lo no passado.

- É fabuloso - disse por fim, voltando-se para seu acompanhante. Retirou apressadamente a mão que descansava sobre o braço de Christophe, perguntando-se como tinha chegado até ali - Parece saído de um conto de fadas. Com um pouco de imaginação, até posso ouvir o som dos clarins, ver os cavaleiros com suas resplandecentes armaduras e as damas da corte com seus amplos vestidos e seus chapéus altos e terminados em ponta. Por acaso também há um dragão na vizinhança?

Serenity sorriu com o rosto iluminado e incrivelmente encantador.

- Não - disse ele - A menos que contemos a Enjoe, a cozinheira - acrescentou, esquecendo-se por um instante do muro frio e cortês que tinha levantado entre eles e permitindo que ela notasse o amplo e cativante sorriso que o fazia parecer mais jovem e acessível.

"Então, apesar de tudo, é humano", deduziu Serenity. Mas enquanto seu pulso se acelerava em resposta a seu súbito e inesperado sorriso, ela compreendeu que ao mostrar-se humano era imensamente mais perigoso. Enquanto seus olhos se encontraram e ambos sustentaram o olhar, Serenity teve a estranha sensação de encontrar-se totalmente só com ele, e de que o resto do mundo era só uma cortina de fundo enquanto eles permaneciam sentados em uma solidão encantada, e Georgetown parecia estar imensamente longe.

O cortês e distante estrangeiro logo substituiu o acompanhante encantador, e Christophe reatou a marcha, mostrando-se ainda mais frio e remoto depois do breve e amistoso interlúdio.

"Cuidado, Serenity" - acautelou-se - "Sua imaginação se desvaneceu novamente. Este homem, definitivamente, não é para ti. Por alguma razão desconhecida, nem sequer se sente atraído por ti, e segue sendo um aristocrata frio e condescendente apesar de seu sorriso fugaz."

Christophe parou o carro em um amplo caminho circular rodeado por um pátio lajeado e com muros de pedra baixos, enfeitados por luxuriosas trepadeiras. Ele desceu do carro com elegantes movimentos e Serenity fez o mesmo antes que Christophe conseguisse chegar à sua porta para ajudá-la. Serenity estava tão fascinada pela atmosfera de conto de fadas que não percebeu o gesto contrariado dele perante sua ação.

Christophe ofereceu-lhe o braço e conduziu-a a uma enorme porta de carvalho, depois de subirem uns quantos degraus de pedra. Enfim, acionando uma reluzente maçaneta de bronze, fez uma pequena reverência e lhe indicou que entrasse.

O vestíbulo era enorme. Os pisos estavam polidos e brilhavam como espelhos e, além disso, viam-se deliciosos tapetes feitos à mão. As paredes estavam trabalhadas e nelas penduravam-se formosas tapeçarias, grandes, coloridas e incrivelmente antigas. Um grande cabide e uma mesa de caça, ambos de carvalho e com o brilho que lhes dava a pátina dos séculos, cadeiras também de carvalho com os assentos de couro, e o arranjo de flores naturais completavam a atmosfera da habitação, que à Serenity pareceu estranhamente familiar. Era como se ela soubesse o que lhe esperava quando cruzou a soleira antes de entrar no castelo, e a habitação pareceu reconhecê-la e lhe dar a boas-vindas.

- Algo aconteceu? - perguntou Christophe, ao advertir sua expressão confusa.

Serenity balançou a cabeça com um ligeiro estremecimento.

- “Déja vu” - murmurou voltando-se para ele - É muito estranho, mas tenho a sensação de que já estive neste lugar. - reprimiu-se bem a tempo, antes de acrescentar "com você". Deixou escapar um profundo suspiro e encolheu os ombros - É muito estranho.

- Então a trouxe, Christophe.

Serenity afastou o olhar dos olhos marrons, subitamente penetrantes, para observar a sua avó, que se aproximava dela.

A condessa de Kergallen era alta e quase tão magra quanto a própria Serenity. Seu cabelo era de um branco puro e brilhante e parecia uma nuvem em cima do rosto anguloso que desafiava a rede de rugas que o tempo tinha traçado sobre ele. Tinha os olhos claros, de um azul penetrante, debaixo das sobrancelhas perfeitamente arqueadas, e caminhava com ar régio, como a mulher que sabe que mais de seis décadas não puderam murchar sua beleza.

"Esta não é uma mulher qualquer. - pensou Serenity rapidamente - Esta dama é uma condessa da cabeça aos pés."

Os olhos claros observaram lentamente Serenity e ela percebeu que um tremor emocionado cruzava o rosto anguloso antes de voltar para sua expressão impassível. A condessa estendeu uma formosa mão coberta de anéis.

- Bem vinda ao "Cháteau" Kergallen, Serenity Smith. Eu sou a condessa Françoise de Kergallen.

Serenity tomou a delicada mão entre as suas, perguntando-se com certa extravagância se devia beijá-la e fazer uma reverência.

- Obrigado, madame. Estou feliz por estar aqui.

- Certamente está cansada depois de uma viagem tão longa. - disse a condessa - Eu mesma te indicarei quais são os seus aposentos. Certamente deseja descansar um momento antes de se trocar para o jantar.

A dama se dirigiu a uma grande escada curva e Serenity a seguiu. Deteve-se no patamar e voltou a cabeça para descobrir que Christophe a estava olhando com expressão sombria. Ele não fez nenhum esforço para suavizar a tensão de seu rosto e tampouco afastou seu olhar. Serenity se voltou rapidamente e continuou seu caminho atrás das já longínquas costas da condessa.

As duas mulheres caminharam ao longo de um estreito corredor iluminado com abajures de cobre embutidos na parede, substituindo, pensou Serenity, o que alguma vez deveriam ser certamente tochas. Quando a condessa se deteve em frente a uma das portas, voltou-se uma vez mais para Serenity e, depois de examiná-la atentamente, abriu a porta e lhe indicou que entrasse.

Os aposentos eram grandes e abertos, mas conservavam um ar de delicada graça. Os móveis eram de cor cereja brilhante e uma enorme cama com dossel dominava a peça. Sua colcha de seda estava adornada com alguns bordados que revelavam o inexorável passado do tempo. Uma lareira de pedra ocupava a parede oposta aos pés da cama, e uma coleção de figuras de porcelana de Dresde se refletia no grande espelho que estava pendurado acima da mesma. Um extremo do quarto era curvado e totalmente envidraçado e um banco interior, encostado à janela, convidava a repousar enquanto se admirava a maravilhosa paisagem.

Serenity sentiu intensamente o incontrolável feitiço dos aposentos, uma aura de amor e de felicidade na suave elegância do ambiente.

- Este era o quarto de minha mãe? - Novamente um esvoaçar de emoção cruzou o rosto da condessa, como se fosse a chama de uma vela surpreendida por uma corrente de ar.

- Oui. Gaelle o decorou pessoalmente quando tinha dezesseis anos.

- Obrigado por havê-lo reservado para mim, madame - disse ela. A fria resposta da senhora não tinha podido dissipar a calidez que o aposento oferecia a ela e Serenity sorriu - Durante minha estadia no castelo me sentirei muito perto de minha mãe.

A condessa se limitou a assentir com um leve gesto da cabeça e pulsou um pequeno botão que havia junto à cama.

- Bridget se encarregará de lhe preparar o banho. Sua bagagem chegará muito em breve e ela se ocupará de ordenar suas coisas. Costumamos jantar às oito, a menos que queira um lanche agora.

- Não, obrigado, condessa - disse Serenity, enquanto começava a sentir-se como uma hóspede em um luxuoso hotel - Às oito estarei preparada.

A condessa se dirigiu à porta.

- Bridget a levará ao salão uma vez que tenha descansado. Tomaremos um coquetel às sete e meia. Se desejar algo, só tem que utilizar o sinal.

A porta se fechou atrás dela. Serenity inspirou profundamente e se deixou cair na enorme cama.

"Por que vim a este castelo?" - perguntou-se, fechando os olhos ao sentir um súbito acesso de solidão - "Devia ter ficado em Georgetown, com o Tony, devia permanecer em um ambiente que pudesse entender. O que estou procurando aqui?"

Voltou a suspirar e examinou o local em um intento de combater a depressão que começava a invadi-la. "O quarto de minha mãe", recordou-se, e sentiu a carícia cálida de uma mão invisível. "Isto é algo que posso entender."

Logo se dirigiu à janela e contemplou o crepúsculo, um belo espetáculo com o sol que projetava seus últimos raios, antes de sucumbir a um ligeiro sonho. Uma doce brisa agitava o ar e as escassas nuvens se moviam ao seu impulso, vagando vagarosamente através do escurecido céu.

Um castelo em uma colina da Bretanha. Sacudindo a cabeça, Serenity se ajoelhou no banco que havia junto à janela e admirou o nascimento da noite. Como se encaixava Serenity Smith nesta paisagem? Franziu o cenho ante a revelação que surgia do mais profundo de seu coração. "De algum jeito pertenço a este lugar ou, ao menos, uma parte de mim. Senti no momento em que vi esses incríveis muros de pedra e novamente quando entrei no castelo." Afastou esse pensamento de sua cabeça e o guardou em algum local de sua mente para concentrar-se, em sua avó.

Era evidente que a condessa não se emocionou ao conhecê-la, decidiu Serenity com um triste sorriso. Ou talvez foi somente a tradicional formalidade européia o que a fazia aparecer fria e distante. Não era muito razoável que lhe pedisse que viesse a França se não tivesse sentido desejos de conhecê-la. Serenity supôs que esperava mais da condessa porque ela necessitava mais. Encolheu os ombros e logo relaxou. "A paciência nunca foi uma de minhas virtudes, mas suponho que será melhor que comece a desenvolvê-la. Possivelmente se a recepção que me deram na estação tivesse sido um pouco mais quente..." Voltou a franzir o cenho ao recordar a atitude de Christophe.

"Poderia jurar que ele sentiu desejos de me colocar de novo no trem no momento em que me viu." E então pensou na exasperada conversa no carro. A expressão de seu rosto se tornou mais severa e afastou o olhar da silenciosa penumbra do anoitecer. "É um homem muito desagradável - se disse e sua expressão se suavizou tornando-se pensativa - um verdadeiro compêndio do que é um conde bretão. Talvez por isso me afetou tão profundamente." Apertou o queixo na palma da mão e recordou a atmosfera que lhes tinha rodeado enquanto permaneciam sozinhos, sentados no carro, sob as sombras que os altos muros do imponente castelo projetavam. "É diferente de todos os homens que conheci em minha vida: elegante e viril ao mesmo tempo. Dentro dele se esconde uma tremenda potência, a virilidade envolta em um halo de sofisticação." Poder. A palavra relampejou dentro de seu cérebro e Serenity franziu o cenho. "Sim - admitiu com uma relutância que não podia compreender -  nele há poder e uma absoluta confiança em si mesmo."

"Do ponto de vista de um artista, Christophe constitui um estudo fascinante. Ele me atrai como artista - disse a si mesma -  e certamente não como mulher. Uma mulher teria que estar louca para enamorar-se por um homem assim. Absolutamente louca", repetiu-se firmemente.

 

O espelho ovalado e emoldurado em ouro refletiu a figura de uma mulher magra de cabelos loiros. O vestido solto, de decote fechado e de uma suave cor "cinzas de rosas" projetava um leve resplendor sobre a pele rosada, deixando nus os ombros e os braços. Serenity encontrou também o reflexo de seus olhos cor de âmbar, sustentou o olhar e deixou escapar um suspiro. Já era quase hora de descer e encontrar-se com sua avó - a régia e reservada condessa - e com seu primo, o formal e estranhamente hostil conde de Kergallen.

Sua bagagem tinha chegado enquanto desfrutava de um banho reparador e a pequena e morena criada bretã a tinha subido ao quarto. Bridget tinha se encarregado de desfazer a bagagem e tirar sua roupa, timidamente a princípio e logo falando e lançando exclamações de surpresa enquanto pendurava os vestidos no amplo armário, ou colocava os variados artigos nas gavetas da antiga cômoda. Sua demonstração de sincera amizade contrastou notavelmente com a atitude que tinham assumido aqueles que eram parte de sua família.

A intenção de Serenity de permanecer entre as frescos lençóis de linho da enorme cama com dossel tinha sido estéril, já que tinha todas as emoções à flor da pele. A estranha sensação experimentada antes de entrar no castelo, as boas-vindas afetadas e formais que lhe tinha dispensado sua avó e a poderosa resposta física a seu primo longínquo se uniram para lançá-la em um  anormal estado de nervos e lhe transmitir uma insegurança que era imprópria dela. Voltou a pensar que deveria ter permitido que Tony a dissuadisse de fazer a viagem, e permanecido entre as pessoas e as coisas que conhecia e compreendia.

Deixou escapar um longo suspiro, endireitou os ombros e elevou o queixo. Ela não era uma colegial ingênua que se impressionasse por castelos e rígidas formalidades, disse a si mesma. Ela era Serenity Smith, a filha de Jonathan e Gaelle Smith, e manteria bem alta sua cabeça ao lidar com condes e condessas.

Bridget chamou brandamente à porta e Serenity a seguiu pelo estreito corredor para descer posteriormente a escada curva em direção ao salão.

- "Bonsoir", mademoiselle.

Christophe a saudou com sua habitual formalidade ao chegar ao último patamar e Bridget desapareceu rapidamente.

- “Bonsoir”, senhor conde.

Serenity lhe respondeu aceitando o ritual, enquanto ambos se olhavam fixamente.

O traje negro conferia um aspecto quase satânico a seus traços aquilinos. Os olhos escuros brilhavam como azeviche, e sua pele tinha uma tonalidade bronzeada ao contrastar com a camisa branca e preta. Se sua linhagem incluía piratas, decidiu Serenity, tinham sido homens extremamente elegantes. Enquanto os olhos de Christophe se atrasavam nos seus, Serenity pensou que aqueles piratas deveriam ter obtido grandes êxitos em suas empresas bucaneiras.

A condessa nos espera no salão - anunciou Christophe depois de ter se deleitado longamente na contemplação de Serenity, e lhe oferecendo o braço em um gesto inesperadamente tenro.

A condessa os observou quando entraram no salão. O homem alto e arrogante e a mulher orgulhosa de cabelos dourados, contrastando perfeitamente a seu lado. "Um casal notavelmente atraente pensou a velha dama -, que obrigaria as pessoas a voltar a cabeça em qualquer lugar onde se encontrasse."

- Bonsoir, Serenity, Christophe - saudou. Tinha um aspecto imponente em seu vestido cor azul safira e os diamantes que resplandeciam como uma cadeia de fogo ao redor de seu pescoço - Meu aperitivo, Christophe, por favor. Você, que deseja beber, Serenity?

- Vermute, obrigado, madame - respondeu ela, com um sorriso amável nos lábios.

- Espero que tenha descansado bem - disse, a condessa enquanto seu neto lhe estendia uma pequena taça de cristal.

- Sim, muito bem, madame - respondeu, aceitando por sua vez a taça que Christophe lhe oferecia - Eu... As palavras que estava a ponto de pronunciar se detiveram em sua garganta quando seus olhos descobriram o retrato e se voltou para olhá-lo. Uma mulher de pele rosada e cabelos loiros lhe devolveu o olhar de um rosto que era a viva imagem do dela. Se não tivesse sido pelo comprimento do cabelo que caía sobre os ombros, e pelos olhos que tinham um brilho profundamente azul, em vez de cor de âmbar, aquele retrato poderia ter representado Serenity: o rosto ovalado, delicado, com interessantes covinhas, a boca plena e bem formada, a beleza frágil e esquiva de sua mãe, reproduzidos em óleo fazia um quarto de século.

Era um trabalho de seu pai. Serenity soube imediatamente e sem possibilidade de engano. Pinceladas, o uso da cor, a técnica pessoal que identificava Jonathan Smith com tanta segurança como se tivesse lido a pequena assinatura no ângulo inferior da pintura. Seus olhos se encheram de lágrimas e piscou para afastar a súbita tristeza que a embargava. O fato de descobrir aquele retrato havia tornado a fazer presente os seus pais por um instante e se sentiu invadida por uma profunda sensação de ternura e saudade, emoções ambas que já tinha aprendido a prescindir.

Serenity continuou estudando o retrato, permitindo-se captar os detalhes da obra de seu pai, as dobras do vestido branco que pareciam flutuar sob o influxo de uma brisa oculta, os rubis nas orelhas de sua mãe, um agudo contraste de cor que se repetia no anel que luzia em um de seus dedos. Durante a profunda observação que dedicou à pintura, algo se reanimou em um canto de sua mente, um pequeno detalhe desconexo, que resistia a acessar o campo da consciência. Serenity deixou que se esfumasse e se limitou a sentir.

- Sua mãe era uma mulher muito bela - disse a condessa um momento depois e Serenity lhe respondeu com ar ausente, absorvida ainda pelo brilhante olhar de amor e felicidade que tinha visto nos olhos de sua mãe.

- Sim, era-o. É assombroso o pouco que mudou desde que meu pai pintou este retrato. Que idade tinha então?

- Em torno de vinte anos - respondeu a condessa e o tom culto de sua voz se mesclou com uma aparente frieza - Vejo que reconheceste imediatamente o estilo de seu pai.

- Naturalmente - assentiu Serenity, sem perceber o tom de voz de sua avó e, voltando-se, sorriu com autêntica ternura - Como sua filha e discípula, sou capaz de reconhecer imediatamente tanto sua obra quanto sua escrita. - Olhou novamente o retrato e gesticulou com sua mão magra e de comprimentos dedos - Este retrato foi pintado faz vinte e cinco anos e ainda respira vida, como se os dois estivessem ainda nesta habitação.

- Sua semelhança com ela é verdadeiramente assombrosa - observou Christophe enquanto bebia um gole de sua taça de vinho, e dedicando toda sua atenção como se a houvesse tocado com uma mão -  Me senti impressionado quando desceu do trem.

- Exceto pelos olhos - disse a condessa, antes de que Serenity pudesse fazer algum comentário - Tem os olhos de seu pai.

A condessa não pôde ocultar a amargura que destilaram suas palavras. Serenity, entreabrindo os olhos e disposta a discutir com ela, voltou-se rapidamente fazendo que a saia de seu vestido descrevesse um giro antes de voltar para seu lugar.

- Sim, madame, tenho os olhos de meu pai. Acaso esse detalhe lhe incomoda?

Os elegantes ombros da dama se elevaram com indiferença e elevou a taça para beber lentamente seu aperitivo.

- Meus pais se conheceram aqui, no castelo? - perguntou Serenity, sentindo que lhe esgotava a paciência - Por que partiram sem retornar jamais? Por que nuca me falaram de você?

Serenity olhou para ambos e encontrou dois rostos frios e inexpressivos. A condessa tinha levantado um escudo e Serenity compreendeu que Christophe a ajudaria a mantê-lo. O não diria absolutamente nada. Todas as respostas deviam surgir da velha condessa. Abriu a boca para voltar a falar, mas foi interrompida subitamente por um gesto da mão adornada.

- Logo falaremos desse tema. - As palavras foram expressas como se se tratasse de um decreto real enquanto a condessa se levantava. - Agora iremos jantar.

A sala de jantar era impressionante, mas Serenity havia chegado à conclusão de que tudo era impressionante no castelo. Os altos tetos com vigas pareciam os de uma catedral e as paredes revestidas de madeira tinham sua uniformidade quebrada por grandes janelas emolduradas por pesadas cortinas de veludo cor de sangue. Uma lareira grande o bastante para se ficar em pé dentro dela se elevava presidindo toda uma parede, e Serenity pensou que o espetáculo seria fascinante quando estivesse acesa. Um gigantesco lustre iluminava o vasto salão e seus cristais projetavam um arco-íris de cores sobre os pesados móveis de escuro carvalho.

Os pratos começaram com uma sopa de cebola, espessa, substanciosa e muito francesa, e os três mantiveram uma amável conversação enquanto durou o jantar. Serenity observava a Christophe, intrigada, contra sua vontade, por seus atrativos traços morenos e seu porte arrogante.

"É evidente que não lhe agrado, - decidiu ela, um tanto confusa - Não lhe agradei do primeiro momento em que me viu. Pergunto-me por quê." Encolhendo-se mentalmente de ombros, dedicou-se a comer seu salmão ao creme. "Talvez não lhe agradem as mulheres em geral." Christophe elevou a vista e seus olhos se encontraram com os dela, com uma força que bem poderia rivalizar com uma tempestade elétrica. Serenity sentiu que seu coração dava um repentino salto como se quisesse escapar de seu peito. "Não - se corrigiu rapidamente, afastando seu olhar e fixando-o no vinho branco que enchia sua taça - é evidente que ele não odeia as mulheres. Esses olhos estão cheios de sabedoria e experiência. Tony nunca conseguiu produzir em mim estas sensações. - Elevou a taça e bebeu com determinação - Nenhum homem me fez reagir deste modo."

- Stevan, - ordenou a condessa - mais vinho para mademoiselle.

A ordem da condessa a seu criado serviu para afastar Serenity de suas especulações.

- Não, obrigado, não desejo mais - disse ela em francês.

- Fala muito bem o francês para uma americana, Serenity - disse a respeitável anciã - Me alegra que sua educação tenha sido completa, mesmo nesse país de bárbaros.

O desprezo que gotejavam suas últimas palavras foi tão evidente que Serenity não soube se sentia-se ofendida ou divertida por esse desprezo pela sua nacionalidade.

- Esse país de "bárbaros", madame - disse secamente - se chama Estados Unidos e na atualidade está praticamente civilizado. Às vezes passa bastante tempo sem que os índios nos ataquem.

A orgulhosa cabeça se elevou com toda sua arrogância.

- Não é necessário que se mostre impertinente, jovenzinha.

- É mesmo? - perguntou Serenity com um cândido sorriso - É estranho, mas estava segura de que sim.

Quando elevou sua taça de vinho descobriu, não sem surpresa, os brancos dentes de Christophe que cintilavam contra sua pele bronzeada, em um amplo e rápido sorriso.

- É provável que tenha herdado os suaves traços de sua mãe - disse a condessa - mas tem a língua de seu pai.

- Obrigado. - assentiu enquanto olhava fixamente os olhos azuis da anciã - Por ambas as coisas.

O jantar acabou e a conversação voltou para temas gerais. E embora o interlúdio tivesse todo o aspecto de ser uma espécie de trégua, Serenity ainda não podia compreender as causas dessa guerra. Dirigiram-se novamente ao salão principal e, enquanto Christophe se deixava cair com indolência em uma poltrona para beber uma taça de conhaque, Serenity e a condessa saboreavam café em delicadas taças de porcelana da China.

- Jean Paul lê Goff, o noivo do Gaelle, conheceu Jonathan Smith em Paris. - A condessa começou a falar sem nenhum tipo de preâmbulos e Serenity deteve a taça a meio caminho de seus lábios, enquanto seus olhos observavam o rosto da senhora - Jean Paul estava verdadeiramente impressionado pelo talento de seu pai e lhe encarregou que pintasse o retrato do Gaelle como presente de bodas.

- Minha mãe esteve comprometida com outro homem, antes de casar-se com meu pai? - perguntou  Serenity, depositando a taça com infinito cuidado.

- Oui. O compromisso tinha sido arranjado por ambas as famílias fazia vários anos e Gaelle estava satisfeita com esse acerto. Jean Paul era um bom homem e provinha de uma família tradicional.

- Teria sido um matrimônio arranjado, não é?

A condessa ignorou o desgosto de Serenity com um gesto de sua bem cuidada mão.

- Trata-se de um antigo costume e, como já lhe disse, Gaelle estava satisfeita. A chegada de Jonathan Smith ao castelo mudou tudo. Se eu estivesse mais alerta poderia perceber o perigo, olhares furtivos que ambos trocavam, o rubor que tingia as bochechas de Gaelle quando alguém mencionava e nome de Jonathan.

Françoise de Kergallen suspirou profundamente e elevou os olhos para o retrato de sua filha, - Nunca imaginei que Gaelle quebraria sua palavra manchando assim a honra da família. Sempre tinha sido uma criatura doce e obediente, mas seu pai a separou de seus deveres - Os olhos azuis se separaram do retrato para concentrar-se na imagem viva - Eu ignorava o que tinha ocorrido entre eles. Ela não confiava em mim nem seguia meus conselhos como tinha feito sempre. O dia em que o retrato foi acabado, Gaelle desmaiou no jardim. Quando insisti que devíamos chamar um médico, ela me disse que não havia necessidade de fazê-lo. Gaelle não estava doente, mas sim esperava um filho.

A condessa deixou de falar e o silêncio se estendeu pelo salão como um espesso manto.

- Madame  - disse Serenity, rompendo o silêncio com voz clara e decidida - se o que tenta é ferir minha sensibilidade me dizendo que fui concebida antes de que meus pais se casassem, temo que a decepcionarei. Acho absolutamente irrelevante. Os dias em que se lapidava as pessoas ou as estigmatizava com um ferro ardente já passaram à história, ao menos em meu país. Meus pais se amavam e se eles expressaram seu amor antes ou depois de seus votos matrimoniais, é algo que não me importa.

A condessa se acomodou em sua poltrona, entrelaçou dedos e olhou  Serenity fixamente.

- É uma jovem que não tem travas na língua, não é mesmo?

- Exato. - Serenity olhou a condessa de igual para igual - Entretanto, trato de que minha sinceridade não seja ofensiva.

- “Touché” - interveio Christophe e a condessa arqueou ligeiramente suas brancas sobrancelhas antes de voltar sua atenção a Serenity.

- Sua mãe se casou um mês antes de te conceber. - A declaração foi feita sem que sua expressão mudasse absolutamente - Ela e seu pai casaram em segredo na pequena capela de outro povoado, e pretendiam que ninguém se inteirasse até que seu pai pudesse levar Gaelle aos Estados Unidos com ele.

 

- Compreendo - Serenity se acomodou com um ligeiro sorriso—. Minha existência revelou o segredo antes do previsto. E o que fez você, madame, quando descobriu que sua filha se casou com um obscuro artista e estava esperando um filho dele?

- Repudiei-a, naturalmente, e disse a ambos que partissem de minha casa. Desde aquele dia, ela deixou de ser minha filha.

A condessa falou precipitadamente como se desejasse desprender-se de um peso que já se fazia intolerável.

Um gemido de angústia escapou dos lábios de Serenity e seus olhos voaram para Christophe só para encontrar-se com um muro inexpressivo. Levantou-se lentamente, sentindo que uma aguda dor a atravessava de lado a lado, e, voltando as costas a sua avó, olhou o suave sorriso nos lábios de sua mãe.

- Não me surpreende que a afastaram de suas vidas e também a mim. —voltou-se para enfrentar a condessa e a palidez de suas bochechas era a única evidência de seu estado emocional - Sinto muito por você, madame. Privou-se você de uma enorme felicidade. É você que permaneceu sozinha e isolada durante todos estes anos. Meus pais compartilharam um amor profundo e total, e você se enclausurou com seu orgulho e sua honra manchadas. Ela a teria perdoado, se você a tivesse conhecido. Meu pai também a teria perdoado, por minha mãe, porque ele era incapaz de lhe negar qualquer coisa.

- Me perdoar? - A cor vermelha substituiu a palidez de seu rosto e a ira fez tremer sua educada voz - Que necessidade tinha eu de que me perdoassem um vulgar ladrão e uma filha que traiu a sua família?

Os olhos ambarinos se acenderam como se fossem chamas douradas nas avermelhadas bochechas e Serenity envolveu sua fúria em um manto gélido.

- Um ladrão? Madame, você está tratando de me dizer que meu pai lhe roubou?

- Oui, ele me roubou. - A resposta foi dura e jogou com seu olhar - Ele não se contentou me roubando a minha menina, uma filha a que amava mais que a minha própria vida. Ele acrescentou a seu saque uma Madonna de Rafael que tinha pertencido a minha família durante gerações. Ambas inestimáveis, ambas insubstituíveis, ambas perdidas por culpa de um homem que recebi em minha casa e em quem confiava.

- Um Rafael? - repetiu Serenity, elevando uma mão para sua têmpora em um gesto de absoluta estupefação - Você está sugerindo que minha Mãe lhe roubou um Rafael? Você deve estar louca.

- Não estou sugerindo nada - corrigiu a condessa, elevando a cabeça como se fosse uma rainha a ponto de ditar uma sentença - Estou afirmando que Jonathan Smith roubou Gaelle e a Madonna de Rafael. Ele era um homem muito preparado. Sabia perfeitamente que eu pensava doar a pintura ao Louvre e se ofereceu para pô-la em condições. Eu confiei nele. - O rosto anguloso era novamente uma tétrica máscara de tranqüilidade - Seu pai soube explorar minha confiança, fez que minha filha esquecesse quais eram suas obrigações, e abandonou o castelo levando consigo meus dois tesouros.

- É mentira! - rebateu Serenity, sentindo que a fúria crescia dentro dela com a força de um maremoto - Meu pai jamais roubou nada... jamais! Se você perdeu a sua filha foi exclusivamente por seu próprio orgulho, por sua própria cegueira!

- E o que me diz do Rafael?

A pergunta  saiu com suavidade de lábios da condessa, mas seu eco reverberou nas antigas paredes de pedra.

- Não tenho a menor idéia do que pode ter ocorrido com seu bendito Rafael. - Olhou a condessa e logo desviou o olhar para o homem impassível que estava apoiado na chaminé, e se sentiu muito só - Meu pai não roubou essa pintura; ele não era um ladrão. Jamais em sua vida fez nada desonesto. —Começou a caminhar pelo salão, contendo o desejo de gritar e fazer pedaços a compostura de sua avó e de Christophe - Se estava tão segura de que meu pai tinha sua preciosa pintura, por que não fez que lhe prendessem? Por que não o demonstrou?

- Como já lhe disse, seu pai era um homem muito preparado - respondeu a condessa - Ele sabia que eu jamais envolveria Gaelle em semelhante escândalo, por mais danos que me tivesse feito ao me trair. Com ou sem meu consentimento, ele era seu marido, o pai do filho que estava esperando. Podia sentir-se seguro.

Serenity deixou de caminhar pelo salão e se voltou com a incredulidade pintada em seu rosto. – Crê por acaso que ele se casou por sua própria segurança? Você não pode imaginar que ambos o fizeram. Ele a amava mais que a sua vida, mais que a uma centena de pinturas de Rafael.

- Quando descobri que faltava a Madonna –continuou a condessa, como se Serenity não tivesse aberto a boca - fui ver seu pai e lhe exigi uma explicação. Já estavam preparados para partir. Quando lhe acusei de me haver roubado o Rafael vi o olhar que trocaram... aquele homem em que eu tinha confiado e minha própria filha. Soube que ele tinha roubado a pintura e Gaelle também sabia que ele era um ladrão, mas, mesmo assim, permaneceria a seu lado contra mim. Ela traiu a si mesma e também a sua família e a seu país.

A longa explicação concluiu-se com um suspiro de cansaço e um breve espasmo de dor no rosto tenso e controlado.

- Acredito que esta noite já se falou o suficiente deste tema - disse Christophe e ficou de pé para servir um pouco mais de conhaque de uma garrafa, e então estendeu a taça à condessa murmurando algo em bretão.

- Estou completamente certa de que eles não roubaram a pintura - disse Serenity. Quando deu um passo em direção à condessa, Christophe a deteve agarrando-a por um braço.

- Esta noite, não falaremos mais deste assunto.

Afastando-se dele bruscamente, Serenity descarregou toda sua fúria em seu arrogante primo.

- Você não me dirá quando devo falar! Não tolerarei que se acuse a meu pai de ser um ladrão! Me diga, senhor conde, se ele roubou essa pintura, onde está? O que fez com ela?

Christophe elevou uma sobrancelha e seu olhar foi suficientemente significativo. Serenity sentiu que a cor abandonava suas bochechas para voltar a elas violentamente e abriu a boca com impotência, antes de respirar com dificuldade.

- Se eu fosse um homem, faria-lhe pagar muito caro por ter insultado meus pais - disse com voz calma.

- “Alors, mademoiselle” - disse ele com um leve assentimento de cabeça - devo me considerar afortunado pelo fato de que não o seja.

Serenity fez pouco caso do tom zombador que Christophe tinha empregado e se dirigiu à condessa, que observava em silêncio o duro intercâmbio de palavras.

- Madame, se me convidou a vir a Bretanha porque acreditava que eu podia conhecer o paradeiro de seu Rafael, sentirá-se muito decepcionada. Eu não sei absolutamente nada. Por minha vez, eu tenho minha própria decepção porque vim a Bretanha pensando encontrar um laço familiar, outro vínculo com minha mãe. Acredito que nós duas devemos aprender a viver com nossas decepções.

Em seguida partiu do salão sem outro gesto que um ligeiro olhar a Christophe e à condessa.

Quando entrou em seu quarto bateu a porta com força e tirou as malas do enorme roupeiro, as colocando em cima da cama. Com um redemoinho de fúria girando em sua cabeça, começou a tirar as ordenadas roupas de seu guarda-roupas e as jogou nas malas abertas, em uma total e absoluta confusão de tecidos e cores.

- Vá embora! - gritou com violência quando alguém bateu na porta.

Quando se voltou descobriu que se tratava de Christophe, que tinha ignorado sua ordem, e lhe lançou um olhar gelado.

Antes de fechar a porta, o arrogante conde observou divertido sua peculiar técnica para preparar a bagagem.

- Então está de partida, mademoiselle.

- Uma dedução perfeita - disse ela. Serenity jogou uma blusa cor de rosa sobre a montanha que se formou em cima de sua mala e lhe ignorou por completo.

- Uma sábia decisão - exclamou ele quando lhe deu as costas - Teria sido muito melhor que não tivesse vindo.

- Melhor? - repetiu ela, voltando-se para ele e sentindo que sua ira ameaçava transbordar - Melhor para quem?

- Para a condessa.

Serenity se aproximou lentamente dele, entreabrindo os olhos como se se preparasse para começar uma batalha e amaldiçoando mentalmente a excessiva altura de Christophe.

- A condessa me convidou a vir a Bretanha. Convocou-me —se corrigiu, com voz imperiosa - Me convocou é mais correto. Como se atreve a ficar aí e a me falar como se eu tivesse invadido um terreno sagrado? Eu nem sequer sabia que essa senhora existia até que chegou sua carta, e me sentia tão enormemente feliz em minha ignorância.

- Teria sido mais prudente que a condessa não apagasse essa felicidade.

- Isso, senhor conde, é um exemplo admirável de modéstia. Alegra-me que compreenda que eu pude viver feliz sem conhecer a existência de meus parentes bretões.

Serenity virou-se em um claro gesto de despedida e descarregou toda sua ira sobre os inocentes objetos que havia em cima da cama.

- Espero que compreenda que nada lhe impedirá de seguir vivendo feliz, já que sua estadia aqui será muito breve.

- Você quer que eu parta, não é mesmo? - perguntou ela, voltando-se com celeridade e sentindo que a última fibra de dignidade se rompia - E quanto antes, melhor. Me permita lhe dizer algo, senhor conde de Kergallen: eu preferiria acampar junto a um caminho antes de aceitar sua graciosa hospitalidade. – Em seguida jogou uma blusa floreada em direção a Christophe - Por que não me ajuda a preparar minha bagagem?

Ele se inclinou, recolheu a blusa e a pôs sobre uma cadeira belamente estofada. Seu comportamento indiferente e despreocupado não fez mais que aumentar a fúria de Serenity.

- Enviarei Bridget - disse Christophe e a severa cortesia de sua voz impulsionou Serenity a procurar algo mais sólido para lhe jogar na cabeça - Eu diria que necessita que alguém a ajude.

- Não se atreva a me enviar ninguém! - gritou ela quando Christophe se voltou para a porta.

Seu arrogante primo inclinou a cabeça ante a ardem de Serenity.

- Como desejar, mademoiselle. O estado de seus vestidos é assunto seu.

Serenity sentiu a urgente necessidade de lhe provocar porque sua imaculada formalidade lhe produzia náuseas.

 

- Eu mesma me encarregarei de minha bagagem quando quiser partir do castelo, querido primo. - Com evidente deliberação agarrou um vestido da pilha de roupa - Talvez mude de Idéia e queira ficar mais alguns  dias. Ouvi dizer que o campo bretão é verdadeiramente agradável.

- Ficar no castelo é seu privilégio, mademoiselle - respondeu ele e Serenity percebeu um ligeiro desgosto em sua voz. Esta circunstância fez que sorrisse pela vitória obtida - Eu, não obstante, não o aconselharia dadas as pressentes circunstâncias.

- De modo que não, não é mesmo? - Serenity encolheu seus delicados ombros e elevou o rosto em atitude provocadora - Essa é outra boa razão para ficar.

Os olhos de Christophe se obscureceram de ira e Serenity comprovou que tanto suas palavras como seus gestos tinham alcançado uma fibra extremamente sensível. A expressão do conde, entretanto, conservou a calma e a compostura, e ela se perguntou como se manifestaria seu caráter quando se encolerizava, se é que alguma vez o permitia seu augusto comportamento.

- Você pode fazer o que mais goste, mademoiselle, imediatamente - Christophe a surpreendeu aproximando-se dela e agarrando-a pela nuca com dedos firmes. Ante seu contato, Serenity compreendeu que seu gênio não estava tão afastado da superfície como ela tinha imaginado - Não obstante, é provável que não ache sua visita tão desagradável quanto gostaria.

- Sou perfeitamente capaz de resolver situações difíceis.

Quando tentou afastar-se dele, sentiu que a mão do Christophe a imobilizava com um mínimo esforço.

- Talvez, mas uma pessoa inteligente trata de evitar as situações difíceis. - A cortesia do sorriso de Christophe era mais arrogante que depreciativa, e Serenity ficou rígida e tratou de livrar-se de seus dedos - Eu diria que você possuía inteligência, mademoiselle, ou talvez prudência.

Decidida a não submeter-se ao crescente temor que experimentava, Serenity olhou nos olhos e lhe falou com tranqüilidade.

- Minha decisão de partir ou de ficar no castelo é algo que não tenho porque discutir com você. Consultarei o travesseiro e amanhã tomarei medidas convenientes. Embora, naturalmente, você sempre possa me algemar a um muro nas masmorras.

- Uma alternativa interessante. - Seu sorriso se tornou zombador e divertido enquanto os dedos a acariciavam ligeiramente antes de afastar-se de sua nuca - Consultarei o travesseiro - acrescentou dirigindo-se à porta e fazendo uma pequena reverência antes de abri-la - E tomarei as medidas mais convenientes pela manhã.

Serenity se sentiu frustrada por ter permitido que ele a derrotasse e arremessou um sapato que foi bater contra a porta que Christophe acabava de fechar.

 

A quietude despertou Serenity. Abriu os olhos e olhou a seu redor, o sol entrava pela janela iluminando a peça e demorou uns minutos antes de recordar onde se encontrava. Sentou-se na cama e escutou. O silêncio, a rica e profunda qualidade do silêncio, alterada ocasionalmente pelo canto de um pássaro. Um silêncio que não existia nas barulhentas cidades que tinha conhecido em sua vida, do qual decidiu que gostava.

O pequeno e ornamentado relógio que havia em cima da escrivaninha de mogno escura lhe disse que eram seis horas, de modo que apoiou sua cabeça nos elegantes travesseiros e desfrutou lentamente de sua preguiça. Apesar de em sua mente se acumularem as acusações e os fatos que sua avó lhe tinha revelado, a fadiga produzida pela longa viagem se impôs à sua indignação e havia dormido profundamente poucos minutos após deitar-se, sentindo uma imensa paz naquela cama que uma vez pertencera à sua mãe. Agora elevou os olhos ao teto e recordou cada detalhe da tarde anterior.

A condessa era uma mulher amargurada. Todo o revestimento de ensaiada compostura não conseguia a disfarçar a amargura ou, talvez devesse admitir Serenity, a dor. Inclusive através de seu próprio alerta de ira, ela percebeu essa dor. Embora a velha condessa tivesse repudiado a sua filha, observava seu retrato e talvez, esta foi a conclusão a que chegou Serenity, essa contradição significava que o coração não era tão duro quanto o orgulho.

A atitude de Christophe, entretanto, era de ferver de raiva. Tinha a impressão de que um arrogante conde se erguia frente a ela como o fosse um juiz parcial, disposto a condená-la sem um julgamento prévio. "Muito bem, - decidiu ela - eu também tenho meu orgulho e não tremerei como uma covarde enquanto o nome de meu pai é lançado à lama e minha cabeça é colocada na guilhotina. Eu também posso praticar o jogo da gélida cortesia. Não fugirei como um cachorrinho ferido mas, pelo contrário, ficarei aqui."

Lançando um olhar à radiante luz do sol, Serenity suspirou profundamente. "Hoje é um novo dia, mamãe", disse em voz alta e, deslizando-se para fora da cama, caminhou até a janela. O jardim se estendia debaixo dela como um presente precioso. "Acredito que darei um passeio por seu jardim, mamãe, e em seguida desenharei seu castelo." Voltou a suspirar e agarrou o roupão. "Depois, talvez, a condessa e eu possamos chegar a um entendimento."

Lavou-se e vestiu-se depressa, escolhendo para a ocasião um vestido leve em tons pastel que deixava nus os braços e os ombros. O castelo seguia submerso em um profundo silêncio quando Serenity chegou ao térreo e saiu no calor da manhã estival.

Era estranho, pensou, girando sobre si mesma. Era muito estranho não ver outros edifícios ou carros, nem sequer outro ser humano. O ar era fresco e suavemente perfumado, e Serenity o aspirou profundamente antes de contornar o castelo em direção ao jardim.

O jardim era ainda mais maravilhoso visto de perto que da janela. As luxuriosas flores brilhavam em uma incrível profusão de cores, os aromas se mesclavam formando uma fragrância exótica, forte e ao mesmo tempo doce. Havia uma diversidade de atalhos que cruzavam os bem cuidados canteiros e as polidas lajes refletiam a radiante luz do sol. Serenity escolheu um atalho ao acaso e pôs-se a andar com indolente prazer, desfrutando da solidão. A artista que havia dentro dela se recreava na inundação de formas e cores.

- “Bonjour, mademoiselle”.

Uma voz profunda quebrou a silenciosa atmosfera do jardim e Serenity se voltou, surpreendida por esta intrusão em sua solitária contemplação. Christophe se aproximou dela lentamente, alto e magro, e seus movimentos lhe recordaram os de um bailarino russo que tinha conhecido durante uma festa em Washington. Elegante, seguro e extremamente viril.

- “Bonjour”, senhor conde.

Serenity decidiu não esbanjar um sorriso, então lhe saudou com estudada cordialidade. Christophe estava vestido informalmente com uma camisa de cor camurça e jeans marrons, e se antes ela havia sentido a brisa de um bucanero, agora se encontrava apanhada em uma tempestade.

Christophe chegou até ela e a observou com sua habitual expressão pensativa.

- Você levanta-se muito cedo. Espero que tenha dormido bem.

- Muito bem, obrigado - respondeu ela, irritada por ter que combater não só a aversão mas também a atração que começava a lhe inspirar. Os jardins são formosos e muito atraentes.

- Tenho uma queda por tudo aquilo que seja formoso e atraente.

Seus olhos eram penetrantes, a cor marrom escura apagando a tonalidade ambarina, e Serenity  se sentiu incapaz de respirar. Um momento depois baixou o olhar ante o poder que exerciam os olhos do conde.

- Olha só! - exclamou ela. Estado falando em francês mas, ao descobrir o cão que  descansava aos pés de Christophe, Serenity voltou a falar em inglês - Qual é seu nome? Agachou-se para acariciar a pele grosa e suave.

- Korrigan  - disse ele olhando a cabeça de Serenity enquanto a luz do sol formava um halo de pálidos cachos.

- Korrigan - repetiu ela, encantada com o cão e esquecendo a aversão que lhe provocava seu amo - De que raça é?

- Spainel bretão.

Korrigan começou a corresponder às carícias de Serenity, lhe lambendo as suaves bochechas. Antes que Christophe ordenasse ao cão que deixasse de fazê-lo, Serenity riu e afundou o rosto junto ao fofo pescoço do animal.

- Devia saber. Uma vez tive um cão, estava perdido e me seguiu até em casa. - Elevou a vista e sorriu quando Korrigan continuou de mostrando seu afeto com sua úmida língua – Na verdade, fui eu quem o incitou a me seguir. Pus lhe o nome de Leonardo, mas meu pai lhe chamava Horrível e esse foi o nome que finalmente ficou. O banho e a escova jamais conseguiram melhorar seu aspecto de vagabundo.

Quando Serenity decidiu ficar de pé, Christophe estendeu a mão para ajudá-la a erguer-se e seu contato foi firme e perturbador. Lutando contra o urgente desejo de afastar-se dele, soltou-se de sua mão com um gesto casual e continuou seu passeio. Tanto o amo quanto o cão se uniram a ela.

- Vejo que seu gênio se suavizou. Surpreende-me que possa existir uma personalidade tão perigosa dentro de uma cobertura tão frágil.

- Temo que se engane. - Serenity girou a cabeça para lhe olhar de forma fugaz - Não quanto à personalidade, mas à fragilidade. Na realidade, sou bastante forte e não cedo com facilidade.

- Talvez ainda não encontrou a fôrma de seu sapato. - respondeu ele e Serenity concentrou toda sua atenção em um arbusto repleto de rosas - Decidiu ficar um tempo entre nós?

- Sim - admitiu ela e se voltou para lhe olhar - embora tenha a impressão de que gostaria que não o fizesse.

Christophe se encolheu de ombros em um gesto muito eloqüente.

- Pois não, mademoiselle. Seja bem vinda ao castelo por todo o tempo que desejar permanecer nele.

- Seu entusiasmo me aflige - murmurou Serenity.

- “Pardon”?

- Nada. - Deixando escapar um suspiro elevou a cabeça e lhe olhou atrevidamente - Me diga, monsieur, não lhe agrado porque pensa que meu pai era um ladrão ou se trata de uma questão pessoal?

A expressão indiferente do rosto do Christophe não se alterou quando sustentou impávido o olhar de Serenity.

- Lamento ter dado essa impressão, mademoiselle, minhas maneiras devem ser as culpadas. Tratarei de ser mais cortês no futuro.

- Às vezes se mostra tão infernalmente cortês que me parece quase desagradável - exclamou Serenity, perdendo o controle e golpeando o chão com o pé.

- Talvez julga que a rudeza é mais de seu agrado?

O conde elevou uma sobrancelha enquanto contemplava o estado de Serenity com absoluta indiferença.

- Ah! - Ela se voltou com veemência, lhe dando as costas e estendendo a mão para apanhar uma rosa - Droga! Maldita seja! - exclamou ao cravar o polegar em um espinho - Olhe o que me fez fazer! – Levou o dedo ferido à boca sem olha-lo.

- Sinto muito - respondeu Christophe com um brilhe zombador nos olhos - foi uma estupidez de minha parte.

- Você é arrogante e pomposo, e se acha superior ao resto da humanidade - acusou Serenity agitando seus cachos.

- E você tem mau gênio, é mimada e obstinada - respondeu ele, entreabrindo os olhos e cruzando os braços em seu peito.

Durante um momento os dois se olharam fixamente. O verniz de cortesia se desprendeu ligeiramente do conde e Serenity pôde ver o homem cruel e excitante que se ocultava debaixo da capa de fria indiferença.

- Bem, parece que ambos temos uma excelente opinião do outro depois de tão pouco tempo de nos conhecermos - observou ela enquanto ordenava seus cachos rebeldes - Quando chegarmos a nos conhecer melhor, certamente nos apaixonaremos profundamente.

- Uma conclusão muito interessante, mademoiselle.

Com uma leve reverência, Christophe deu meia volta e tomou o caminho de volta ao castelo. Serenity sentiu nesse momento uma inesperada mas tangível perda.

- Christophe! - chamou-lhe obedecendo a um impulso, desejando inexplicavelmente esclarecer coisas entre os dois. Ele se voltou com uma expressão inquisitiva no rosto e Serenity se adiantou para ele - Por que não podemos ser simplesmente amigos?

Ele olhou-a brevemente mas com tanta intensidade que Serenity sentiu que estava lhe despindo a alma.

- Não, Serenity, temo que nós jamais seremos simplesmente amigos.

Ela observou a alta e magra figura que se afastava para o castelo, com o cão a seu lado. Uma hora mais tarde, Serenity se reuniu com sua avó e Christophe para o café da manhã, e a velha dama lhe perguntou como tinha passado a noite. A conversação discorreu pelos caminhos corretos, embora bastante aborrecidos, e Serenity percebeu que a condessa estava fazendo um esforço por atenuar a tensão que a confrontação da noite anterior tinha produzido. Talvez, decidiu, não se considerava adequado iniciar uma disputa perante um prato de croissants. "Que encantadoramente civilizados somos!" Reprimindo um sorriso irônico, Serenity imitou a conduta de seus acompanhantes.

- Gostaria de explorar o castelo, Serenity, não é?

Elevando a vista enquanto deixava o pote de creme sobre a mesa, a condessa revolveu seu café com uma mão perfeitamente manicurada.

- Sim, madame, eu adoraria - concordou Serenity com o esperado sorriso nos lábios - Mais tarde me agradaria fazer alguns esboços do exterior, mas antes me fascinaria conhecer seu interior.

- É claro. Christophe - disse, chamando a atenção do conde que bebia displicentemente sua taça de café - esta manhã devemos acompanhar Serenity em sua visita ao castelo.

- Nada seria mais de meu agrado, avó - disse ele, depositando a taça no pires de porcelana a China - Mas temo que esta manhã estarei muito ocupado. O novo touro que importamos chegará hoje e devo fiscalizar seu transporte.

- Ah, o gado! - A condessa suspirou e encolheu os ombros - Pensa muito no gado.

Tinha sido a primeira afirmação espontânea que Serenity percebeu desde sua chegada ao castelo, e a registrou automaticamente.

- Então se dedicam à criação de gado?

- Sim - confirmou Christophe olhando-a fixamente - A criação de gado é o negócio principal do castelo.

- É mesmo? - exclamou Serenity com exagerada surpresa - Não pensei que os Kergallen se ocupassem de assuntos tão mundanos. Imaginava que se limitavam a sentar-se e contar seus servos.

Os lábios de Christophe se curvaram ligeiramente e assentiu com a cabeça.

- Só uma vez ao mês. Os servos tendem a ser muito prolíficos.

Serenity riu, mas um segundo depois, quando o gesto sombrio de Christophe lançou um sinal de alarme a seu cérebro, concentrou toda sua atenção no café que ainda ficava dentro de sua xícara.

Finalmente, a condessa se encarregou em pessoa de acompanhá-la em seu passeio pelo irregular castelo, lhe explicando sua história enquanto passavam de um assombroso aposento a outro.

O castelo tinha sido construído no final do século XVII e, apesar de já ter quase trezentos anos, não era considerado antigo segundo os cânones bretões. O castelo em si e as propriedades circundantes tinham sido legados de geração em geração ao filho primogênito e, embora se tivessem efetuado algumas reformas que o tinham modernizado, era basicamente o mesmo que o primeiro conde de Kergallen viu ao atravessar a ponte levadiça com sua esposa. Para o Serenity era a essência de um encanto perdido e eterno. A fascinação e o imediato afeto que tinha experimentado ao ver o castelo pela primeira vez não deixaram de aumentar à medida que avançava na exploração de seus inumeráveis recantos.

Em uma galeria de retratos, Serenity descobriu a morena fascinação de Christophe reproduzida ao longo dos séculos. Embora se percebessem certas variações de geração em geração, permaneciam o inveterado orgulho, o porte aristocrático e aquele esquivo ar misterioso. deteve-se diante de um dos antepassados do século XVIII, cuja semelhança com Christophe era tão notável que a obrigou a aproximar-se do quadro para estudá-lo atentamente.

- Acha Jean-Claude interessante, Serenity? - perguntou a condessa, seguindo a trajetória de seu olhar - Christophe parece muito com ele, não acha?

- Sim, é assombroso.

Os olhos, julgou ela, eram muito seguros e muito vivos, e, a menos que se equivocasse, a boca tinha conhecido um grande número de mulheres.

- Tinha fama de ser um pouco, digamos, selvagem - continuou a condessa com indubitável admiração - Se diz que seu passatempo favorito era o contrabando. Era um verdadeiro homem do mar. A história conta também que, encontrando-se na Inglaterra, apaixonou-se perdidamente por uma mulher daquele país e, sem paciência suficiente para manter com ela uma relação prolongada e formal, seqüestrou-a e a trouxe para o castelo. Casou-se com ela, naturalmente, e ali pode ver seu retrato. - Assinalou uma pintura que reproduzia os traços de uma moça inglesa de pele rosada e com uns vinte anos - Não parece desventurada.

Depois deste último comentário, a velha condessa se afastou pelo corredor, deixando Serenity absorta na contemplação do rosto sorridente de uma noiva raptada fazia dois séculos.

O salão de baile era enorme e na parede mais afastada se viam grandes janelas com vitrais. Outra parede estava totalmente revestida de espelhos e refletia os brilhantes prismas dos três lustres que arrojavam emitindo luz como se fossem estrelas silenciosas no teto sulcado por grosas vigas de madeira. Elegantes cadeiras de estilo Regência, de respaldo rígido e belamente estofadas, distribuíam-se estrategicamente para aqueles convidados que só desejam contemplar aos casais que dançassem sobre o chão resplandecente. Serenity se perguntou se Jean-Claude tinha devotado um baile de bodas para sua esposa Sabina, e decidiu que indubitavelmente assim o teria feito.

A condessa guiou Serenity ao longo de outro estreito corredor até uns elevados degraus de pedra que ascendiam descrevendo uma espiral para a torre mais alta do castelo. Embora a peça estivesse virtualmente nua, Serenity lançou uma exclamação de alegria ao avançar para o centro da mesma e olhar a seu redor como se estivesse cheia de tesouros. Era ampla e completamente circular, e estava bem ventilada. As altas janelas que a circundavam permitiam que os radiantes raios do sol beijassem cada recanto daquele espaço. Sem o menor esforço, imaginou a si mesma pintando naquele lugar durante horas e desfrutando de uma assustadora solidão.

- Seu pai utilizava este local como estúdio - lhe informou a condessa com voz severa, e Serenity abandonou suas fantasias e se voltou para enfrentar a sua avó.

- Madame, se seu desejo for que eu permaneça no castelo, acredito que devemos chegar a um acordo. Se não pudermos fazê-lo, não terei nenhuma alternativa a não ser partir. - Conseguiu manter a voz em um tom firme, controlado e severamente cortês, mas seus olhos delatavam a luta que fazia para não discutir - Eu amava meu pai e também minha mãe. Não vou tolerar o tom que você emprega quando se refere a ele.

- Em seu país é normal que um jovem se dirija a seus idosos como você o faz?

A régia cabeça da anciã se elevou com orgulho e sua irritação era evidente.

- Só posso falar por mim mesma, madame - respondeu Serenity, erguendo-se sob o dourado resplendor do sol - E não compartilho a opinião de que a idade implique necessariamente sabedoria. E tampouco sou tão hipócrita para aparentar que estou de acordo com você, enquanto se dedica a insultar um homem a quem amei e respeitei mais que a qualquer outra pessoa.

- Talvez seja conveniente que não falemos de seu pai enquanto viver conosco.

A réplica da condessa era, obviamente, uma ordem, e Serenity sentiu que fervia de fúria.

- Eu acredito justamente o contrário, madame. Estou decidida a descobrir o que foi o que ocorreu com essa Madonna do Rafael e a lavar esse estigma que você pôs sobre seu nome.

- E como pensa consegui-lo?

- Não sei, - respondeu ela - mas o farei. - Começou a andar pela sala e estendeu as mãos em um gesto absolutamente francês - Talvez se ache oculto no castelo ou, possivelmente alguma outra pessoa o tenha. - voltou-se para a condessa com um arrebatamento de fúria repentina - Ou talvez você vendeu a pintura e fez recair a culpa sobre meu pai.

- É insultante! - exclamou a condessa e a ira se fez evidente em seus olhos azuis.

- Você chama a meu pai ladrão e diz que eu sou insultante? - replicou Serenity, sustentando o olhar da condessa com o mesmo fogo - Eu conhecia o Jonathan Smith, condessa, e ele não era um ladrão, mas a você não a conheço.

A condessa observou durante um momento e em silêncio a jovem, enquanto as chamas azuis de seus olhos se convertiam em um olhar reflexivo.

- Isso é verdade - reconheceu com um leve assentimento - Você não me conhece e eu não te conheço. E se ainda somos duas estranhas não posso fazer recair a culpa sobre sua cabeça. E tampouco posso te culpar por algo que ocorreu antes que nascesse.

A anciã se dirigiu para uma das janelas e observou a paisagem.

- Não mudei que opinião quanto a seu pai - disse finalmente e, voltando-se, elevou uma mão para interromper a réplica do Serenity - Mas temo que não fui justa no que concerne a sua filha. Você, uma desconhecida, veio a meu lar porque eu te convidei, e meu comportamento deixou muito a desejar. Peço desculpas por isso. - Seus magros lábios se curvaram em um sorriso - Se estiver de acordo, não voltaremos a mencionar o passado até que nos conheçamos melhor.

- Muito bem, madame.

Serenity se mostrou de acordo, sentindo que tanto a solicitude como as desculpas eram uma espécie de bandeira de paz.

- Tem um coração sensível acompanhado de um espírito indomável - observou a venerável anciã e no tom de sua voz se percebia certa aprovação - É uma boa combinação. Mas também tem um gênio muito vivo, sabia?

- Evidentemente - admitiu Serenity.

- Christophe também é muito dado aos humores e aos súbitos rompantes de mau gênio - lhe informou a condessa trocando de tema - é forte e obstinado, e necessita uma esposa igualmente forte, mas que tenha o coração sensível.

Serenity se sentiu perplexa ante a ambígua afirmação de sua avó.

- Compadeço-a - começou a dizer Serenity, mas logo entreabriu os olhos quando a sombra de uma dúvida cresceu em seu cérebro - Madame, o que têm que ver comigo as necessidades de Christophe?

- Ele já chegou à idade em que todo homem necessita uma esposa - disse simplesmente a condessa - E você superou a idade em que a maioria das mulheres bretã já está casada e criando uma família.

- Só sou meio bretã -  recordou-lhe ela, distraindo-se por um instante do núcleo da conversação, e seus olhos se abriram de surpresa - Certamente você não... não estará pensando que Christophe e eu...? Oh, que belamente ridículo! - pôs-se a rir e o estridente riso retumbou nas paredes nuas - Madame, lamento desiludi-la, mas ao conde não interesso absolutamente. Não lhe caí em graça do momento em que me viu na estação, e eu também me vejo obrigada a admitir que ele me resulta indiferente.

- O que tem que ver tudo isso com o que eu disse? —perguntou a condessa, enquanto descartava as palavras de Serenity com um leve movimento de sua mão.

Serenity deixou de rir e meneou a cabeça com incredulidade ao descobrir as intenções de sua avó.

- Já falou com o conde de todo este assunto, condessa?

- Sim, certamente - reconheceu a condessa. Serenity fechou os olhos e se sentiu transbordada de fúria e humilhação.

- Não me impressionaria se Christophe me rechaçasse, se apenas me viu... entre esta absurda situação e o que ele pensa de meu pai! - Afastou o olhar de sua avó e rapidamente se voltou para ela com crescente indignação - Você passou dos limites, condessa. Faz já muito tempo que os matrimônios arranjados passaram à história.

- Hã! - A exclamação pretendia ignorar as palavras de Serenity—. Christophe é muito orgulhoso para aceitar algo que tenha sido disposto por outra pessoa e vejo que você também é feita da mesma madeira. Mas - um leve sorriso iluminou o rosto anguloso enquanto Serenity a olhava com olhos incrédulos - é uma jovem muito atraente e Christophe é um homem viril e encantador. Talvez a natureza... como se diz?... siga seu curso.

Serenity só pôde observar boquiaberta o rosto inescrutável da condessa.

- Vê. - A anciã caminhou para a porta. - Ainda fica muito por ver.

 

A tarde estava quente e Serenity sentia que fervia de raiva. A indignação se estendeu de sua avó a Christophe e, quanto mais pensava nas palavras da condessa, mais irritada se sentia com ele.

"Aristocrata insensível e vaidoso! - pensou. O lápis corria com violência pelo papel enquanto esboçava as torres do castelo - Preferiria me casar com Atila, rei dos hunos, a fazê-lo com esse caipira irritante!" Serenity rompeu a quietude do meio-dia com um sorriso. "A condessa provavelmente está imaginando dezenas de condes e condessas em miniatura que praticam pequenos jogos formais no jardim e crescem para continuar a linhagem imperial no melhor estilo bretão..."

"Que lugar maravilhoso para criar filhos - pensou, deixando descansar o lápis e suavizando o olhar - É tão belo, tranqüilo e puro." Um profundo suspiro encheu o ar e ela se sobressaltou. Logo, ao dar-se conta que tinha vindo de seus próprios lábios, franziu furiosamente o cenho. "A condessa Serenity de Kergallen - disse em voz baixa e sua expressão se tornou mais sombria - Esse dia nunca chegará!"

Um movimento chamou sua atenção e voltou cabeça entrecerrando os olhos por causa da luz do sol. Christophe se aproximava dela. Seus passos eram largos e seguros e cruzou o prado com ritmo suave de membros e músculos. "Caminha como se o mundo lhe pertencesse", observou ela admirada e ressentida. Quando Christophe chegou a ela, o ressentimento se impôs claramente à admiração.

- Você!

Sua severa exclamação surgiu de seus lábios e se incorporou ao suave leito ervas, erguendo-se como um anjo esbelto vingador, dourado e reluzente.

Christophe pareceu surpreso pelo tom de voz de Serenity, mas o seu foi suave controlado.

- Há algo que a incomoda, mademoiselle?

O gelo de sua voz só serviu para avivar o fogo de sua ira, e Serenity abandonou toda dignidade.

- Sim, estou muito incomodada! Sabe muito bem que estou incomodada! Por que não me falou dessa ridícula idéia que a condessa colocou na cabeça?

- Ah. - Christophe elevou as sobrancelhas e seus lábios curvaram em um sorriso sardônico – “Alors”, avó lhe informou de seus planos para nossa união matrimonial. E quando, querida minha, anunciarão os esponsais?

- Você é um presunçoso... - replicou-lhe, incapaz de encontrar o insulto mais apropriado - Já o que pode fazer com seus esponsais! Não aceitaria nem de presente!

- Pois - respondeu ele assentindo com a cabeça - Por fim nos pusemos de acordo. Não tenho nenhum interesse em me unir a uma malcriada desbocada. Quem a batizou Serenity evidentemente não via além de seu nariz.

- Você é o homem mais detestável que conheci em minha vida! - exclamou ela, e sua atitude irascível contrastava com o frio comportamento de Christophe - Não suporto a idéia de ter que vê-lo todos os dias!

- Então decidiu interromper sua breve visita e retornar aos Estados Unidos?

Serenity elevou o queixo e meneou lentamente a cabeça.

- Oh, não, senhor conde, ficarei aqui. Tenho motivos para permanecer no castelo, que superam com folga minha aversão por você.

Os olhos escuros do conde se converteram em duas  linhas enquanto estudava atentamente o rosto do Serenity.

- Parece que a condessa acrescentou um punhado de francos para conseguir que se tornasse mais complacente.

Serenity o olhou sobressaltada até que o significado de suas palavras se revelasse em seu cérebro, fazendo que suas bochechas se tingissem de vermelho e uma sombra velasse seus olhos ambarinos. Elevou uma mão e  esbofeteou-o com todas suas forças para em seguida girar sobre seus calcanhares e correr para o castelo. Umas mãos poderosas se fecharam sobre seus ombros obrigando-a a dar a volta, esmagando-a contra o corpo rígido de Christophe, enquanto lábios dele desciam sobre os seus em um beijo brutal e destinado a castigá-la.

O impacto foi elétrico, como uma luz violenta que rasgasse a escuridão para logo extinguir-se. Durante um momento, permaneceu flácida contra ele, incapaz de sair à superfície de uma escuridão transbordante de calor e desejo. Sua respiração já não lhe pertencia e Serenity compreendeu que ele estava roubando inclusive isso, por isso começou a golpear seu peito com punhos impotentes, aterrorizada ante a possibilidade de ficar apanhada para sempre naquela terrível escuridão.

Os braços de Christophe a circundaram, acomodando a suavidade das formas dela contra o rígido e imóvel perfil do corpo dele, fundindo-os em uma só apaixonada forma. A mão de Christophe deslizou até acariciar sua nuca com dedos firmes e obrigando-a a manter imóvel a cabeça, enquanto o outro braço rodeava sua cintura e prolongava seu domínio total.

Os esforços que Serenity realizava para livrar-se de seu abraço escorregavam sobre ele como se ela não se movesse, fazendo ainda mais evidente sua força e a violência que pulsava debaixo da superfície. Sentiu que a boca de Christophe a obrigava a abrir os lábios em um assalto veemente que explorava sua boca com uma intimidade que não conhecia misericórdia ou compaixão. O aroma de almíscar de sua masculinidade embriagava os sentidos de Serenity, aturdindo sua vontade e sua mente, e acreditou ouvir misteriosamente a sua avó enquanto descrevia o falecido conde que era a viva imagem de Christophe. "Selvagem", disse sua avó. Selvagem.

Christophe afastou sua boca e manteve suas grandes mãos nos ombros de Serenity, enquanto olhava profundamente seus olhos nublados e confusos. Durante um instante o silêncio flutuou entre ambos, como um muro de calor.

- Quem lhe deu autorização para fazer isso? - perguntou ela com voz trêmula e levou mão à cabeça para que deixasse de girar.

 

- Era isso ou lhe devolver a bofetada, mademoiselle - disse Christophe e, pelo tom de voz e a expressão de seu rosto, Serenity pôde comprovar que ele ainda não tinha completado a transformação de pirata a aristocrata - Desgraçadamente, tenho certa aversão a golpear a uma mulher, por mais que o mereça.

Serenity se separou dele, sentindo que as traiçoeiras lágrimas afloravam em seus olhos e lutavam por derramar-se.

- Da próxima vez pode me esbofetear. Prefiro.

- Se voltar a me elevar a mão, querida prima, pode estar segura de que lhe machucarei algo mais que o orgulho - prometeu ele.

- Você mereceu - replicou Serenity mas a temeridade de suas palavras se viu atenuada por seus grandes olhos ambarinos que brilhavam tenuemente como dourados lagos de luz - Como se atreve a me acusar de ter aceitado dinheiro para ficar no castelo? Ocorreu a você alguma vez que eu pudesse desejar conhecer uma avó de cuja existência não soube até uns meses atrás? Pensou alguma vez que eu pudesse desejar conhecer o lugar onde meus pais se conheceram e se apaixonaram? Que preciso ficar e provar a inocência de meu pai? - Grandes lágrimas escaparam de seus olhos e rodaram pelas suaves bochechas, e Serenity desprezou cada uma das gotas de sua debilidade - Só desejaria ter golpeado com mais força. O que teria feito se alguém tivesse acusado a você de ter-se deixado comprar como um pedaço de carne?

Christophe observou o percurso descendente de uma lágrima até que ficou detida na acetinada pele e um leve sorriso surgiu no canto de seus lábios.

- Teria golpeado sem duvida, mas acredito que suas lágrimas são um castigo muito mais efetivo que os punhos.

- Eu não emprego as lágrimas como uma arma - Serenity enxugou o rosto com o dorso da mão e desejou poder reprimir as lágrimas.

- Não, e devido a isso são muito mais potentes - Um dedo comprido e bronzeado tirou uma gota da alva pele e o contraste de cores lhe conferiu uma aparência delicada e vulnerável. Christophe afastou rapidamente sua mão e acrescentou com indiferença - Minhas palavras foram injustas e lhe peço desculpas. Acredito que nós dois recebemos nosso castigo, de modo que agora estamos... como se diz? Em paz?

Presenteou-lhe com seu estranho e encantador sorriso, e Serenity olhou-o, fascinada por seu poder e comovida pela mudança positiva que conferia a seu rosto. Ela respondeu com seu próprio sorriso e foi como um repentino raio de sol através do véu da chuva. Christophe lançou um pequeno som de impaciência, como se lamentasse o momentâneo lapso e, depois de um leve movimento de cabeça, girou sobre seus calcanhares e se afastou pelo atalho, deixando-a só e perplexa.

 

Durante o jantar a conversação discorreu por leitos estritamente formais, como se o assombroso bate-papo na torre e o fogoso encontro nos jardins do castelo jamais tivessem acontecido. Serenity se sentiu maravilhada pela compostura de seus acompanhantes enquanto falavam de “langoustes a la creme”. Se não fosse pelo fato de que seus lábios ainda sentiam o fogo dos lábios de Christophe, poderia jurar que tinha imaginado o ardente e perturbador beijo que ele deu em sua boca. Aquele beijo tinha avivado uma íntima sensação de resposta alterando sua gélida indiferença muito mais do que ela estava disposta a admitir.

Mas isso não significava absolutamente nada, insistiu Serenity silenciosamente, e se dedicou a comer com gosto a lagosta que descansava em seu prato. Não era a primeira vez que um homem a beijava e tampouco seria a última. Não estava disposta a permitir que um tirano voluntarioso lhe preocupasse nem mais um segundo. Aproximando-se da tarefa de incorporar-se ao jogo da rígida formalidade, Serenity bebeu lentamente e fez um comentário sobre o vinho.

- Gosta? - Christophe se somou a seu comentário com voz igualmente neutra - É o Muscadet que produzimos nos vinhedos do castelo. Embora só produzimos uma pequena quantidade a cada ano, destinada a nosso consumo, e outra para os vizinhos.

- Eu gosto muito - comentou Serenity - Que excitante poder desfrutar de um vinho cultivado em vinhedos próprios. Nunca tinha provado algo semelhante.

- O Muscadet é o único vinho que se produz na Bretanha - informou a condessa com um sorriso - é uma região cuja riqueza provém do mar e das rendas.

Serenity deslizou com admiração um dedo sobre a imaculada toalha branca que cobria a mesa de carvalho.

- As rendas da Bretanha são maravilhosas. Parecem tão frágeis e, entretanto, os anos não fazem mais que aumentar sua beleza.

- Como em uma mulher - murmurou Christophe e Serenity elevou a vista para encontrar seu olhar escuro.

- Mas também têm o gado - disse Serenity, mudando de assunto para superar sua momentânea confusão.

- Ah, o gado.

Os lábios de Christophe se curvaram e Serenity teve a desagradável sensação de que ele era consciente do efeito devastador que exercia nela.

- Vivi toda a minha vida em uma cidade e, portanto, ignoro quando se refere ao gado - continuou Serenity, cada vez mais desconcertada pela intensidade de seu olhar - Estou certa de que as cabeças de gado compõem um belo quadro enquanto pastoreiam na campina.

- Acredito que devemos apresentar a campina bretã - interveio a condessa, atraindo a atenção de Serenity - Talvez amanhã queira dar um passeio para conhecer toda a propriedade.

- Eu adoraria, madame. Estou certa de que será uma agradável mudança depois das calçadas e dos edifícios do governo.

- Será uma honra para mim acompanhá-la, Serenity - se ofereceu Christophe.

Serenity se surpreendeu com o oferecimento do conde. Voltou-se para ele e em seu rosto se refletiram fielmente seus sentimentos. Ele sorriu e inclinou levemente a cabeça.

- Tem roupas adequadas?

- Roupas adequadas? - repetiu ela e a surpresa se mesclou com a confusão. - Naturalmente. - Ele pareceu divertir-se com suas mudanças de expressão e seu sorriso se fez mais amplo - Seu gosto para a roupa é impecável, mas acredito que achará bastante incômodo montar a cavalo com esse vestido.

Serenity baixou a vista para seu delicado vestido em tons verdes antes de olhar novamente Christophe.

- A cavalo? - perguntou franzindo o cenho.

- Não se pode percorrer nossa propriedade de carro, “ma petite”. O cavalo é mais apropriado.

Serenity se enrijeceu ante o brilho zombador que havia nos olhos de Christophe.

- Devo dizer que não sei montar a cavalo.

- “C'est impossible!” - exclamou a condessa com incredulidade - Gaelle era uma magnífica amazona.

- Talvez as habilidades eqüestres não se herdem, madame - sugeriu Serenity, divertida pela expressão de sua avó - Não sou absolutamente uma amazona. Nem sequer posso controlar um pônei em um carrossel.

- Eu lhe ensinarei como fazê-lo.

As palavras de Christophe eram mais uma afirmação que um oferecimento. Serenity se voltou para ele e a diversão se converteu em arrogância.

- Muito amável de sua parte, monsieur, mas não tenho nenhum desejo de aprender a montar a cavalo. Não se incomode.

- Não obstante - disse ele deixando a taça sobre a mesa - o fará. Estará pronta às nove, não é mesmo? Receberá sua primeira lição.

Serenity lhe olhou fixamente, atônita pelo pouco caso que ele tinha feito de sua relutância em montar a cavalo.

- Acabo de lhe dizer que...

- Trate de ser pontual, “chérie” - lhe advertiu ele com preguiça enquanto ficava em pé - Será mais cômodo caminhar até as cavalariças que ser arrastada por seus maravilhosos cabelos loiros. - Christophe sorriu como se esta última possibilidade lhe causasse um infinito prazer - Boa noite, avó - acrescentou com sincero afeto antes de abandonar o salão, deixando Serenity fervendo em fúria e a condessa absolutamente encantada.

- Maldito seja! - exclamou Serenity quando finalmente pôde articular uma palavra. Voltou seu furioso olhar para a condessa e acrescentou em tom desafiante - Se ele pensa que vou lhe obedecer mansamente...

- Seria muito inteligente de sua parte que lhe obedecesse, mansamente ou de qualquer outra forma - a interrompeu a anciã - Quando Christophe coloca algo na cabeça... - Com um breve mas significativo gesto deixou que a imaginação de Serenity acabasse a frase - Suponho que tem umas calças. Bridget entregará um par de botas de montar que pertenceram à sua mãe.

- Madame - começou a dizer Serenity lentamente como quisesse se certificar de que cada palavra fosse entendida sem possibilidade de equívoco - não tenho intenção de subir em um cavalo amanhã pela manhã.

- Não seja tola, menina. - Uma mão magra e cheia de anéis recolheu com displicência a taça de vinho - Christophe é muito capaz de levar a cabo sua ameaça. É um homem muito obstinado. - A condessa sorriu e, pela primeira vez, Serenity sentiu uma onda de afeto - Talvez inclusive mais obstinado que você.

 

Serenity calçou as fortes botas que tinham sido de sua mãe enquanto murmurava terríveis insultos. As botas tinham sido escovadas e lustradas até lhes dar um negro reluzente e se ajustaram a seus magros pés como se tivessem sido fabricadas para ela.

"Parece que você também está conspirando contra mim, mamãe", protestou Serenity em meio a seu desespero. Em seguida exclamou "entre" quando alguém bateu na porta do aposento. Não era a criada Bridget, quem abriu a porta, mas Christophe, arrumado com despreocupada elegância e vestindo suas calças de montar cor canela e uma camisa branca.

- Que deseja? - perguntou Serenity com manifesto mau humor, enquanto calçava a segunda bota com um firme puxão.

- Simplesmente comprovar se é pontual, Serenity - disse Christophe com um sorriso e seus olhos zombadores percorreram seu rosto rebelde e o corpo magro e flexível, vestido com uma camiseta estampada e jeans franceses.

Serenity ficou em pé em atitude defensiva e desejando que ele não a olhasse sempre como se tentasse memorizar cada traço.

- Estou preparada, capitão Bligh, mas temo que lhe decepcionarei como aluna.

- Isso veremos, “ma chérie”. —Os olhos de Christophe voltaram a deslizar por seu corpo como se estivesse acariciando-a - Parece muito capaz de seguir umas poucas e simples instruções.

Os olhos de Serenity se apertaram até formar duas ranhuras e se viu forçada a lutar contra o acesso de ira que ele tinha o costume de provocar.

- Sou uma mulher razoavelmente inteligente, obrigado, mas eu não gosto que me intimidem.

- “Pardon”?

A expressão confusa de Christophe provocou o sorriso de Serenity.

- Terei que recordar muitas expressões coloquiais, primo. Talvez, lentamente, possa enlouquece-lo.

Serenity acompanhou Christophe às cavalariças em silêncio, alargando deliberadamente seus passos para que coincidissem com o modo de andar do conde e reprimindo a necessidade de ter que correr atrás dele como se fosse um cachorrinho. Quando chegaram ao edifício anexo ao castelo, um cavalariço saiu dos estábulos levando dois cavalos convenientemente selados e com rédeas. Um era completamente negro e o outro era um baio quase branco e, aos olhos apreensivos de Serenity, ambos os animais eram enormes.

Deteve-se subitamente e observou os cavalos com certa dúvida. "Certamente, ele não me arrastará pelos cabelos", pensou.

- Se eu dissesse para dar meia volta e retornar por onde viemos, o que você faria? - perguntou com voz sonora.

- Não teria outra alternativa que obrigá-la a retornar, “ma petite”.

As sobrancelhas escuras de Christophe se elevaram ao observar a expressão de Serenity, revelando que já tinha previsto essa pergunta.

- O cavalo negro é, obviamente, o seu, conde - disse Serenity com um fio de voz, lutando para controlar o pânico que se apoderava dela - Posso imaginar o galopando pelo campo à luz da lua, e com o resplendor de um sabre no quadril.

- É você muito ardilosa, mademoiselle. - Christophe assentiu e, agarrando as rédeas do baio das mãos do cavalariço, levou o cavalo até onde ela se encontrava. Serenity retrocedeu involuntariamente e respirou com dificuldade.

- Suponho que deseja que eu suba nesse cavalo...

- Égua - corrigiu ele, curvando zombeteiramente os lábios.

Serenity lhe lançou um olhar flamejante, sentindo-se irritada e incomodada com sua própria apreensão.

- Não estou interessada no sexo. - Olhou novamente o cavalo e voltou a respirar - Ela é... é muito grande.

Sua voz soou muito mais fraca do que desejava.

- Babette é tão dócil quanto Korrigan - lhe assegurou Christophe em um tom de voz inesperadamente paciente - Você gosta de cães, não é mesmo?

- Sim, mas...

- É uma égua tranqüila, não acredita? - agarrou a mão de Serenity e a elevou até tocar a suave queixada de Babette - Tem bom coração e só deseja agradar a seu cavaleiro.

A mão de Serenity ficou presa entre a pele suave do animal e a dura insistência da palma de Christophe, e descobriu que essa combinação era estranhamente agradável. Relaxou e permitiu que ele guiasse sua mão sobre a égua. Serenity virou a cabeça por cima do ombro e sorriu.

- Parece mansa - começou a dizer, mas a égua soprou por suas amplas narinas e Serenity gaguejou até apoiar-se no peito de Christophe.

- Calma, “chérie” - disse ele com voz suave enquanto a agarrava pela cintura para acalmá-la - Babette só está dizendo que gosta de você.

- Assustei-me, isso é tudo - disse Serenity. Mas seu comentário foi defensivo e se sentiu desgostada com ela mesma, decidindo que era agora ou nunca. Voltou-se para lhe dizer que estava preparada para começar a aula de equitação mas se encontrou sem palavras, olhando seus olhos escuros e enigmáticos enquanto ele seguia agarrando-a pela cintura.

Serenity sentiu que seu coração detinha seu ritmo pausado, permanecendo imóvel durante um instante, e então se acelerava violentamente.

Por um momento acreditou que ele voltaria a beijá-la e, ante seu próprio desconcerto, compreendeu que desejava sentir o contato de seus lábios mais que qualquer outra coisa no mundo. De repente, Christophe franziu o cenho e a liberou de seu abraço com um gesto abrupto.

- Agora começaremos a aula.

Com atitude fria e controlada assumiu sem esforço sua condição de instrutor.

O orgulho se impôs sobre Serenity e decidiu ser uma aluna modelo. Reprimindo sua ansiedade, permitiu que Christophe a ajudasse a montar. Com certa surpresa, comprovou que o chão não estava tão longe como ela tinha imaginado em princípio e prestou atenção às instruções de Christophe. Fez tudo o que ele dizia e se concentrou em obedecer exatamente suas indicações, decidida a não ficar novamente como uma parva.

Serenity observou Christophe quando ele montou em seu corcel e invejou sua elegância e sua economia de movimentos. O brioso alazão harmonizava perfeitamente com o cavaleiro moreno e altivo, e Serenity pensou, com certo desgosto, que nem sequer Tony nos momentos mais ardentes a tinha impressionado como o tinha feito este homem estranho e remoto com seus perturbadores olhares.

Não podia sentir-se atraída por ele, refletiu com irritação, Christophe era muito imprevisível e, Serenity compreendeu subitamente que ele podia feri-la como nenhum homem tinha sido capaz de feri-la em toda sua vida. "Além disso, pensou, eu não gosto de sua atitude dominante e altiva."

- Decidiu dormir uma pequena sesta, Serenity? - A voz zombadora de Christophe a tirou de suas especulações e sentiu que se ruborizava apesar de seus esforços por evitá-lo - Em marcha, “chérie”.

A cor de suas bochechas se tornou mais intensa ao perceber o sorriso de Christophe quando ele dirigiu seu cavalo afastando-se das cavalariças e precedendo-a com passo lento.

Ambas as cavalgaduras partiam ao mesmo tempo e, à luz de uns minutos, Serenity relaxou sobre arreios. Guiou a égua segundo as instruções que lhe transmitia Christophe, e o animal respondeu com suave obediência. Sentia-se cada vez mais segura, permitindo-se admirar a paisagem e desfrutar da carícia do sol sobre seu rosto e o cadencioso ritmo da égua debaixo dela.

- Agora trotaremos um pouco - ordenou Christophe de repente, e Serenity voltou a cabeça para lhe observar seriamente.

- Talvez meu francês não seja tão bom quanto supunha. Você disse trotar?

- Seu francês é excelente, Serenity.

- Estou desfrutando plenamente deste passeio - disse ela com um leve encolhimento de ombros - Não tenho nenhuma pressa.

- Você deve mover-se você seguindo o ritmo da égua - a instruiu ele, ignorando deliberadamente suas palavras.

- Eleve-se com cada passo do animal. Faça pressão com os calcanhares.

- Escute...

- Tem medo? - perguntou Christophe com tom zombador.

Antes que o bom senso pudesse suplantar seu orgulho, Serenity meneou a cabeça apertou os calcanhares contra o flanco do animal.

"Isto é o que se deve sentir quando se utiliza um desses malditos martelos perfuradores que sempre estão fazendo buracos nas ruas", pensou Serenity ofegando, bamboleando-se desajeitadamente com o trote da égua.

- Deve seguir o ritmo do trote – recordou-a Christophe, e Serenity estava muito concentrada em sua difícil situação para perceber o amplo sorriso que acompanhou as palavras de Christophe.

Passados uns minutos abrandou o passo do animal.

- Como se sente? - perguntou ele enquanto cavalgavam juntos pelo enlodado atalho.

- Bom, agora que meus ossos deixaram estalar, não é tão mau quanto eu tinha imaginado. De fato, é bastante divertido - acrescentou com um sorriso.

- Bem. Agora já podemos nos lançar a um meio galope - disse ele simplesmente, e Serenity lançou um olhar implorante.

- Realmente, Christophe, se quer me assassinar por que não tenta algo mais simples, como veneno ou uma apunhalada nas costas.

Christophe riu e um som rico e pleno alagou a quieta manhã reverberando na brisa. Quando voltou a cabeça e lhe sorriu, Serenity sentiu que o mundo dava voltas e que seu coração, ignorando as advertências do cérebro, estava irremediavelmente perdido.

- “Allons”, valente amazona. - Sua voz era alegre, despreocupada e contagiosa - Aperte os calcanhares e lhe ensinarei a voar.

Seus pés obedeceram instantaneamente e a égua respondeu, lançando-se a um suave e fácil galope. O vento jogava com o cabelo de Serenity e acariciava suas bochechas com dedos frios. Sentiu que cavalgava sobre uma nuvem e não estava segura se a leveza era o resultado do vento ou da vertigem do amor. Fascinada pela novidade de ambas as sensações, não lhe deu nenhuma importância.

Obedecendo a ordem dada por Christophe, puxou das rédeas obrigando a égua a diminuir a velocidade e que trotasse uns metros antes de deter-se. Elevou o rosto para o céu e suspirou profundamente de prazer, antes de voltar-se para Christophe. O vento e a excitação tinham tingido de rosa suas bochechas, seus olhos tinham reflexos dourados e estavam muito abertos, e tinha o cabelo revolto, como se fosse um turbulento halo que rodeava sua felicidade.

- Você apreciou, mademoiselle?

Serenity lhe olhou com olhos brilhantes e um amplo sorriso distendeu seus lábios. Sentia-se intoxicada pelo potente vinho do amor.

- Vamos, diga que já tinha me avisado. Tem toda a razão.

- “Mais non, chérie”, é simplesmente o prazer que produz comprovar que uma aluna progride com tanta velocidade e talento. - Christophe lhe devolveu o sorriso e a barreira invisível que se levantou entre eles se esfumou repentinamente - Você se move com naturalidade sobre a sela. Enfim, é provável que o talento seja algo genético.

- Oh, monsieur! - Serenity fez vibrar as pestanas com um olhar travesso - Devo crédito às palavras de meu professor.

- Seu sangue francês começa a aparecer, Serenity, mas sua técnica necessita prática.

- Não é muito boa, não é mesmo? - Afastando franja, Serenity lançou um profundo suspiro - Suponho que nunca o conseguirei totalmente, houve muitos puritanos entre os antepassados de meu pai.

- Puritanos? - a risada de Christophe voltou a alterar a quietude da manhã – “Chérie”, nunca houve um puritano tão cheio de fogo.

- Tomarei como um elogio embora, sinceramente, duvido que essa tenha sido a intenção. - Voltando a cabeça, Serenity olhou do topo da colina para o vale que se estendia debaixo deles - Oh, que paisagem tão maravilhosa!

Uma cena de cartão postal se avistava à distância: suaves colinas salpicadas de gado que pastava tranqüilamente, contra um fundo formosas casas de campo. Um pouco mais à frente, Serenity descobriu um pequeno povoado, uma diminuta cidade de brinquedo colocada ali por uma mão gigante, dominada por uma igreja branca cujo campanário se elevava para o céu.

- É perfeito - exclamou - É como retroceder no tempo. - Seus olhos voltaram a posar-se no distante gado - Esses animais são seus? - perguntou, abrangendo-os com um amplo gesto de sua mão.

- Sim -disse Christophe.

- Então, todas estas terras formam parte da propriedade? - voltou a perguntar, sentindo um súbito sufoco.

- Isto só é uma parte de nossa propriedade.

A resposta de Christophe foi acompanhada de um leve encolhimento de ombros. "Cavalgamos durante vários quilômetros, - pensou Serenity enrugando a testa - e ainda estamos em suas terras. Só Deus sabe quanto se estendem em outras direções. Por que não pode ser um homem como todos os outros?" Voltando a cabeça, estudou o perfil aquilino do altivo conde de Kergallen. “Mas ele não é um homem comum – recordou - É o conde de Kergallen, amo de tudo o que se divisa desde esta colina, e não devo esquecê-lo." Seu olhar voltou a posar-se no vale. "Não quero me apaixonar por ele." Engolindo para eliminar a súbita secura da garganta, Serenity utilizava as palavras com uma defesa contra os desejos de seu coração.

- Que maravilhoso é possuir tanta beleza.

Christophe a olhou e franziu o cenho para ouvir as palavras que Serenity acabava de pronunciar.

- A gente não pode possuir a beleza, Serenity; somente pode cuidá-la e apreciá-la.

Serenity lutou contra a calidez que emanava de suas suaves palavras, mantendo os olhos fixos no vale.

- É mesmo? Eu tinha a impressão de que vocês, os aristocratas, davam todas essas coisas por fatos. - Serenity fez um amplo gesto que varreu a paisagem – Além do mais, isto só é seu direito.

- Você não gosta da aristocracia, Serenity, mas também leva sangue de aristocrata em suas veias. - Sua expressão severa se alterou ligeiramente com um lento sorriso que suavizou seus traços sombrios e o tom de sua voz era tranqüilo - O pai de sua mãe era conde, embora todas suas propriedades tenham sido destruídas durante guerra. A Madonna de Rafael foi um dos poucos tesouros que sua avó pôde salvar quando fugiram.

"O maldito Rafael outra vez!", pensou Serenity com aparente melancolia.

Christophe estava irritado. Serenity pôde percebê-lo pelo duro brilho de seus olhos e se sentiu estranhamente agradada. Seria muito mais fácil controlar seus sentimentos para ele se ambos mantivessem suas divergências.

- De modo que essa circunstância me converte em meio camponesa e meio aristocrata - replicou ela, encolhendo os ombros - Bem, querido primo, eu prefiro minha metade camponesa. Deixarei a você o sangue azul que corre nas veias de minha família.

- Mademoiselle, você faria muito bem em não esquecer que não existem laços de sangue entre nós. - A voz de Christophe era grave e, observando seus olhos entrecerrados, Serenity sentiu temor - Os Kergallen são famosos por seu costume de tomar tudo aquilo que desejam, e eu não sou precisamente uma exceção. Sugiro-lhe que cuide a forma em que utiliza seus olhos ambarinos.

- Essa advertência é absolutamente desnecessária, monsieur. Posso cuidar muito bem de mim mesma.

Christophe sorriu, lenta e confidentemente, e seu sorriso foi mais enervante que uma resposta colérica. Então, fazendo girar seu alazão, tomou o caminho de volta para o castelo.

A cavalgada de volta foi acompanhada de um incômodo silêncio, quebrado só ocasionalmente pelas instruções de Christophe. Os dois haviam tornado a cruzar suas espadas e Serenity se viu obrigada a admitir que ele tinha evitado sua estocada com absoluta facilidade.

Quando chegaram à cocheira, Christophe desmontou com sua elegância habitual, entregou as rédeas ao cavalariço e a ajudou a descer da égua antes que Serenity pudesse imitar seus movimentos.

Com gesto desafiante, Serenity ignorou a rigidez de suas extremidades quando ele rodeou sua cintura com os braços e a depositou brandamente no chão. As mãos fortes e magras de Christophe permaneceram em sua cintura durante um momento e ele a olhou intensamente antes de libera-la de um contato que parecia queimá-la através do fino tecido da camiseta.

- Vá tomar um banho quente - ordenou ele - Isso ajudará a relaxar a rigidez que certamente sente em suas pernas.

- Você tem uma assombrosa capacidade para dar ordens, monsieur.

Os olhos de Christophe se apertaram ligeiramente antes que seu braço a envolvesse com incrível rapidez, atraindo-a para ele e cobrindo seus lábios com um beijo intenso e prolongado que não lhe deu tempo para protestar ou debater-se, mas sim provocou uma resposta similar com a mesma facilidade com que uma mão faz girar uma torneira.

Ele a manteve prisioneira durante uma eternidade afundando-a cada vez mais dentro de seu beijo. A tórrida intensidade de seus lábios despertou em Serenity uma nova e primitiva necessidade e, abandonando o orgulho em altares de amor, submeteu-se a uma exigência que não podia resistir. O mundo pareceu esfumar-se, a suave paisagem bretã se mesclou como se fosse uma aquarela abandonada sob a chuva, deixando só uma pele cálida e uns lábios imperiosos que procuravam sua rendição. As mãos de Christophe deslizavam pela leve curva de seu quadril para ascender então pela coluna vertebral com segura autoridade, esmagando-a contra ele com uma força que teria destroçado todos os seus ossos se não estivessem dissolvidos já no calor que emanava de seu corpo.

Amor. A mente de Serenity era um torvelinho impulsionado por essa mágica palavra. O amor eram passeios sob a tênue chuva, um anoitecer tranqüilo ante a luz. Como era possível que fosse uma tormenta violenta e palpitante que a deixava sem fôlego, debilitada e vulnerável? Como podia ser que se implorasse essa debilidade tanto como a vida mesma? Tinha sido assim com sua mãe? Foi isto o que desenhou em seus olhos a sonolenta névoa do saber? "Não me soltará alguma vez?", perguntou-se com desespero e seus braços rodearam o pescoço de Christophe em um gesto em que seu corpo contradizia claramente a sua vontade.

- Mademoiselle - murmurou ele com tom suave e zombador, mantendo seus lábios separados dos do Serenity só pelo fôlego e acariciando sua nuca - tem você uma assombrosa capacidade para provocar o castigo. Sinto necessidade de lhe dar algumas aulas de disciplina.

Christophe se separou dela e se afastou com calculada indolência, detendo-se tão somente para corresponder às boas-vindas de Korrigan que trotava fielmente junto a ele.

 

Serenity e a condessa compartilharam o almoço no terraço, rodeadas de flores que lançavam um aroma adocicado. Recusando o vinho que lhe oferecia optou, em troca, por uma taça de café ignorando a expressão inquisitiva de sua avó.

"Suponho que isto me converte definitivamente em uma filistéia", deduziu, reprimindo um sorriso enquanto desfrutava do espesso líquido negro e também da sopa de frutos do mar.

- Confio que o passeio tenha lhe agradado - disse a condessa depois de terem ambas trocado os inevitáveis comentários sobre o tempo e a comida.

- Para meu enorme assombro, madame - admitiu Serenity - desfrutei muitíssimo. Deveria ter aprendido antes. Sua paisagem bretã é magnífica.

- Christophe se sente justificadamente orgulhoso de suas terras - afirmou a condessa enquanto estudava o vinho branco que repousava em sua taça - A ama do mesmo modo que um homem ama uma mulher, com a mesma paixão intensa. E embora a terra seja eterna, todo homem necessita uma esposa. A terra é uma amante muito fria.

Serenity elevou as sobrancelhas ante o comentário absolutamente franco de sua avó e o súbito abandono de toda formalidade. Seus ombros se encolheram ligeiramente em um típico gesto.

- Estou certa de que Christophe não tem nenhum problema na hora de procurar amantes mais cálidas.

"Provavelmente, ele estala os dedos e dúzias de mulheres caem rendidas a seus pés", acrescentou silenciosamente, e esteve a ponto de dar um salto pela intensidade do ciúme que sentia nesse momento.

- "Naturellement" - concordou a condessa e um brilho divertido iluminou seus grandes olhos azuis - Como poderia ser de outra maneira? - Serenity assimilou este comentário com expressão severa e a anciã elevou sua taça de vinho - Mas, depois de certo tempo, os homens como Christophe necessitam estabilidade e não variedade. Ah, mas ele é muito parecido o seu avô. - Serenity olhou a condessa e viu a expressão entusiasmada que transformava seu anguloso rosto - Estes homens de Kergallen são todos uns selvagens, dominantes e arrogantemente masculinos. As mulheres que recebem seu amor têm a bênção do céu e do inferno. - Os olhos azuis voltaram a posar-se nos ambarinos e a anciã sorriu - Suas mulheres devem ser fortes ou terminarão pisoteadas, e também deverão ser bastante ardilosas para saber quando devem mostrar-se delicadas.

Serenity escutava as palavras de sua avó como se se encontrasse sob o efeito de um encantamento. sacudiu-se e afastou o prato de camarões-rosa que já não lhe inspirava nenhum apetite.

- Madame, - começou a dizer, decidida a deixar bem clara sua posição - não tenho nenhuma intenção de entrar na competição pelo atual conde de Kergallen. Segundo minha modesta opinião somos tão afins como a água e o azeite. - Mas, de repente, recordou a sensação de seus lábios contra os dele, a urgente pressão de seu corpo musculoso e sentiu um estremecimento. Elevando os olhos em direção à sua avó, Serenity meneou a cabeça com obstinada determinação - Não - disse.

E não se deteve para raciocinar se estava falando com seu coração ou à anciã que estava a sua frente; simplesmente, ficou em pé e correu para o interior do castelo.

 

A lua cheia dominava o céu  repleto de estrelas e seus raios de prata se filtravam através das altas janelas enquanto Serenity permanecia acordada, sentindo-se desolada, dolorida e desgostada. Embora tivesse se retirado cedo ao seu quarto, pretextando uma fictícia dor de cabeça para afastar-se do homem que nublava seus sentidos, o sono se negou a chegar. E agora, poucas horas depois de ter conseguido dormir, o sono tinha fugido. Dando voltas na enorme cama choramingou em voz alta ante a revolução que sentia dentro do corpo.

"Estou pagando as conseqüências da pequena aventura desta manhã." Deu um salto e se sentou lançando um profundo suspiro. "Talvez necessite outro banho quente - decidiu com uma débil esperança - Deus sabe que a água quente não poderá me pôr mais tensa do que já estou." Deslizou para fora da cama e tanto seus ombros quanto suas pernas protestaram violentamente. Ignorando o roupão que jazia aos pés da cama, dirigiu-se ao quarto de banho contíguo através do aposento fracamente iluminado e golpeou a tíbia contra uma elegante cadeira Luís XVI.

Lançou uma maldição, dividida entre a ira e a dor. Sem deixar de murmurar esfregou a perna, voltou a pôr a cadeira em seu lugar e se apoiou nela.

- O que? - exclamou com rudeza quando alguém chamou à sua porta.

A porta se abriu e Christophe, vestido informalmente com um roupão de seda azul, observou-a de modo maroto.

- Fez mal a si mesma, Serenity?

Não era necessário ver sua expressão para saber que achava situação extremamente divertida.

- Só quebrei uma perna - respondeu ela - Por favor, não se preocupe comigo.

- Posso lhe perguntar por que você anda na escuridão?

Christophe se apoiou no marco da porta, tranqüilo e crédulo, e em total domínio da situação. Sua arrogância foi o catalisador que o gênio mercurial de Serenity necessitava nesse momento.

- Lhe direi por que andava na escuridão, seu bruto convencido! - começou a dizer Serenity em um sussurro furioso - Pensava em me colocar na banheira para me liberar do padecimento físico que você me fez sofrer hoje!

- Eu? - perguntou ele com ar inocente.

Seus olhos vagaram sobre figura magra e dourada dela sob a tênue luz da lua, as pernas largas e perfeitamente formadas e sua pele de puro alabastro se expuseram ao olhar de Christophe devido à leveza de sua delicada camisola. Serenity estava muito furiosa para esconder suas roupas de baixo ou perceber a admiração que despertava nele, e tampouco era consciente da luz da lua que se filtrava através da transparência do tecido e que sombreava maravilhosamente a sinuosidade de seu corpo esbelto.

- Sim, você! - espetou-lhe ela - Foi você quem me obrigou a montar essa égua esta manhã, não foi? E agora tenho todos os músculos feitos pó. - Proferindo um grunhido, esfregou a região lombar com a palma da mão—. É provável que nunca volte a caminhar corretamente.

- Ah.

- Oh - quanto significado em uma só sílaba. Olhou para ele fazendo o impossível por manter uma postura digna - Poderia voltar a fazê-lo?

- Minha pobre pequena - murmurou ele com exagerada compaixão - Me sinto desolado.

Christophe se ergueu e pôs-se a andar na direção dela. Então Serenity recordou subitamente que estava coberta então por um delicado tecido transparente e abriu os olhos com expressão sobressaltada.

- Christophe, eu... - começou a dizer enquanto as mãos do conde se deslizavam já por seus ombros nus, e as palavras morreram em um afogado suspiro quando os dedos peritos começaram a lhe massagear a zona dolorida.

- Tem descoberto novos músculos, não é? Temo que não tenham se mostrado muito complacentes. A próxima vez não será tão difícil.

Christophe a conduziu até a cama e a obrigou e sentar-se fazendo pressão sobre seus ombros. Serenity não resistiu, desfrutando dos firmes movimentos que massageavam os ombros e o pescoço. Sentando-se detrás dela, Christophe prolongou a massagem ao longo das costas e a dor desapareceu como por um passe de mágica.

Serenity tornou a suspirar, movendo-se inconscientemente contra ele.

 

- Tem umas mãos maravilhosas - sussurrou ela enquanto uma letargia começava a invadi-la ao tempo que a dor desaparecia e era substituída por uma sensação cálida e prazerosa - Dedos fortes e formosos; a qualquer momento começarei a ronronar.

Serenity não soube quando se produziu a transição, quando o suave relaxamento se transformou em um lento incêndio em seu estômago e a massagem de Christophe em uma insistente carícia, mas elevou a cabeça sentindo uma onda de calor.

- Já está melhor, muito melhor - balbuciou e tratou de erguer-se.

As mãos de Christophe voaram para a cintura dela e a imobilizaram enquanto seus lábios procuravam a zona vulnerável de sua nuca com um beijo ligeiro como uma pluma. Serenity estremeceu e logo deu um salto como se fosse uma lebre assustada, mas antes que conseguisse escapar Christophe a fez girar e uniu seus lábios aos dela com um beijo ardente que sossegou todos os protestos.

A luta terminou antes de converter-se em uma realidade, a lenha se fez chama e seus braços rodearam o pescoço de Christophe enquanto sentia seu corpo esmagado contra o colchão. Sua boca parecia devorá-la, firme e segura, e suas mãos seguiam as curvas de seu corpo como se tivessem feito amor inumeráveis vezes. Com febril impaciência, Christophe fez deslizar o fino tecido por cima dos ombros de Serenity, procurando e encontrando a suavidade acetinada de seus peitos. O contato de seus dedos quentes despertou nela uma tempestade de desejo e começou a mover-se debaixo dele. As demandas de Christophe se tornaram mais urgentes e suas mãos mais insistentes enquanto deslizavam com um murmúrio de sedas, e seus lábios abandonavam a boca de Serenity para assaltar seu pescoço com insaciável voracidade.

- Christophe - gemeu ela, sabendo-se incapaz de combater contra ele e também contra sua própria debilidade - Christophe, por favor, não posso lutar contigo aqui. Nunca poderia te derrotar.

- Não lute, "ma belle" -sussurrou ele em seu pescoço. - E os dois venceremos.

Sua boca ardente voltou a descansar sobre a dela, suave e ofegante, fazendo com que o desejo ganhasse ainda mais força e começasse a ascender desmesuradamente. Os lábios de Christophe exploraram lentamente seu rosto acariciando as covinhas de suas bochechas, estimulando a vulnerabilidade de seus lábios entreabertos antes de dedicar-se a outras conquistas. Uma mão cobriu seu peito esquerdo com um gesto de preguiçosa posse, os dedos riscaram o curvo perfil, atrasando-se em uma cálida carícia sobre o túrgido mamilo até que uma dor apagada e persistente estendeu-se por todo o corpo. A dor, doce e enervante, a fez gemer de prazer e suas mãos começaram a percorrer os músculos das costas de Christophe como se desejasse acentuar o poder que exercia sobre ela.

A lenta exploração de Christophe voltou a fazer-se imperiosa como se a submissão de Serenity tivesse exacerbado loucamente a paixão que embargava seus corpos palpitantes. As mãos percorriam a pele suave e a boca era um animal selvagem que se abatia sobre os lábios de Serenity, os dentes que tinham mordiscado com suavidade o lábio superior foram substituídos por uma boca que enlouquecia seu sentido e exigia algo mais que submissão, exigia paixão.

A mão abandonou o aceso seio e deslizou pelo flanco de seu corpo, detendo-se brevemente no quadril antes de seguir seu caminho, reclamando a pele suave e fresca de suas coxas, e a respiração de Serenity se converteu em uma sucessão de suspiros quando ele percorreu seu pescoço com os lábios até afundá-los entre seus peitos.

Um último relâmpago de lucidez lhe confirmou que se encontrava à beira de um precipício e que um só passo a mais a precipitaria em um vazio infinito.

- Christophe, por favor. - Serenity começou a tremer, embora estivesse virtualmente sufocada pelo incêndio que sentia dentro do corpo - Por favor, você me assusta, e sinto medo de mim mesma. E nunca... nunca estive com um homem.

Ele deteve suas carícias e o silêncio se fez espesso quando elevou o rosto para olhá-la. Brilhos de luar dormiam sobre o pálido cabelo de Serenity, enfraquecido em cima do travesseiro branco, e seus olhos estavam nublados pelo temor e a paixão recém-nascida.

Com um som áspero e breve, Christophe separou seu corpo do dela.

- Serenity, tenho que reconhecer que sua habilidade para escolher o momento oportuno é verdadeiramente incrível.

- Sinto muito - se desculpou ela.

- Por que pede desculpas? - perguntou Christophe e a ira era percebida por debaixo de sua fria calma geada - Por sua virgindade ou por ter permitido que me aproximasse de reclamá-la?

- Esse comentário me parece de muito mau gosto! - exclamou Serenity, lutando para acalmar o ritmo da respiração - ocorreu tão depressa que não pude pensar. Se tivesse estado preparada, você nunca poderia se aproximar desse modo.

- Você acha que não? - Obrigou-a a erguer-se até ficar ajoelhada sobre a cama e, uma vez mais, apertada contra seu corpo - Agora está preparada. Julga que não posso fazê-la minha neste mesmo minuto, se você deseja que o faça?

Christophe a olhou fixamente. O homem que a abraçava cintilava de fúria e absoluta segurança em si mesmo, e Serenity foi incapaz de dizer algo, sabendo que se encontrava indefesa perante o poder dele e sua própria urgente necessidade. Os olhos pareciam maiores em seu rosto pálido, o temor e a inocência brilhavam como faróis no âmbar de suas formosas pupilas. Christophe lançou uma maldição e a afastou com violência.

- Pelo amor de Deus! Olha-me com os olhos de uma menina. Seu corpo encobre a perfeição de sua inocência; é um disfarce muito perigoso. - dirigiu-se para a porta e logo se voltou para olhar a figura quase despida e que parecia ainda mais pequena na vastidão da cama - Durma bem, pequena - disse com tom zombador - A próxima vez que for levar por diante os móveis, será mais prudente que feche a porta com a chave, porque não voltarei a partir.

 

O frio recebimento que Serenity dispensou Christophe durante o café da manhã foi retribuído com um olhar gentil que procurou seus olhos por um instante e que não evidenciava sinal da paixão ou a ira que tinha mostrado na noite anterior. Ela se sentiu confusa por sua perversa falta de reação enquanto ele conversava com a condessa e se dirigia a ela só quando era estritamente necessário, e com uma cortesia formal que somente podia ser detectada por um ouvido muito sensível.

- Não terá esquecido que Geneviéve e Yves deverão jantar conosco esta noite? - perguntou a condessa dirigindo-se a seu neto.

- É obvio que não, avó - respondeu ele, depositando a taça no prato - Sempre é um prazer estar com eles.

- Estou certa de que os achará encantadores, Serenity. - A condessa voltou seus olhos azuis para sua neta - Geneviéve é uma jovem de sua idade, talvez um ano menos, e é muito doce e educada. Seu irmão, Yves, é um jovem adorável e muito atraente. - Um sorriso iluminou seu rosto – Você achará a companhia deles... divertida. Não acha, Christophe?

- Estou certo de que Serenity achará Yves extremamente divertido.

Serenity olhou brevemente Christophe. Havia em sua voz certa brutalidade? Mas ele bebia o café com indiferença e Serenity pensou que se equivocou.

 

- Os Dejot são velhos amigos da família - insinuou a condessa, solicitando novamente a atenção de Serenity - Estou certa de que alegrará você estar em companhia de pessoas de sua idade, não é? Geneviéve visita com freqüência o castelo. Quando era uma menina corria atrás de Christophe como um cachorrinho fiel. E, naturalmente, já não é uma menina.

A condessa enviou um olhar carregado de significado ao homem que se encontrava na cabeceira da grande mesa de carvalho e Serenity fez um grande esforço de vontade para não franzir o nariz em uma amostra de desdém.

- Geneviéve deixou de ser uma menina desajeitada e com rabo-de-cavalo para converter-se em uma mulher elegante e encantadora - disse Christophe e não pôde ocultar o afeto de sua voz. "Me alegro por ela", pensou Serenity, lutando por manter em seus lábios um sorriso de interesse.

- Será uma esposa maravilhosa - previu a condessa - Possui uma beleza serena e uma elegância natural. Devemos persuadi-la a que toque para ti, Serenity. Geneviéve é uma ótima pianista.

"Ressaltando outro tanto a esse modelo de virtudes", disse-se sombriamente Serenity, sentindo-se ciumenta da relação que mantinha com Christophe a ausente Geneviéve.

- Tratarei de estar à altura de seus amigos, madame - disse em voz alta e firme.

Estava certa de que não gostaria nem um pouco da perfeita Geneviéve assim que a visse.

 

A dourada manhã transcorreu depressa e um preguiçoso silêncio matinal se abateu sobre o jardim enquanto Serenity se concentrava em seus esboços. Tinha trocado algumas palavras com o jardineiro antes que ambos se dispusessem a iniciar suas respectivas tarefas. Ela pensou que o homem constituía um bom modelo e decidiu desenhá-lo enquanto ele se inclinava sobre os arbustos, podando as flores que se sobressaíam dos maciços e arrumando as suas coloridas e aromáticas companheiras.

O rosto do jardineiro não tinha uma idade definida e estava sulcado de rugas que conferiam força a suas feições e os olhos surpreendentemente azuis e brilhantes destacavam em sua tez morena. O chapéu que cobria o cabelo curto e cinzento era preto, de aba larga, e um suspensório era visível sobre suas costas. Usava uma camiseta sem mangas e calças gastas, e Serenity se sentiu maravilhada pela agilidade com que movia-se sobre seus rústicos tamancos.

Estava tão concentrada em captar a aura antiga que rodeava o homem que não ouviu os passos sobre os ladrilhos atrás dela. Christophe observou seu trabalho enquanto Serenity se inclinava ligeiramente sobre seu caderno e a graciosa curva de seu pescoço evocou na mente de Christophe a imagem de um cisne branco e orgulhoso que flutuasse sobre a superfície de um lago de águas claras e tranqüilas. Só quando ela colocou o lápis atrás de sua orelha e passou a mão pelo cabelo, ele decidiu revelar sua presença no jardim.

- Você soube captar com perfeição os traços de Jacques, Serenity.

Christophe elevou uma sobrancelha com expressão divertida quando ela deu um salto e levou uma mão ao coração.

- Não sabia que estava aqui - disse Serenity, amaldiçoando o tremor de sua voz e a acelerada pulsação em seu pulso.

- Estava concentrada em seu trabalho - explicou com indiferença e se sentou junto a ela no banco de mármore branco - Não era minha intenção perturbá-la.

"Não - corrigiu ela mentalmente - teria me perturbado mesmo que se encontrasse a milhares de quilômetros de distância."

- Obrigado - disse cortesmente - É muito considerador. - voltou-se para o cão que jazia aos pés de Christophe - Olá, Korrigan, como vai?

Acariciou ao spaniel detrás das orelhas e o animal lhe lambeu ambas as mãos com beijos carinhosos.

- Korrigan apegou-se muito a você - disse Christophe, observando como o cão umedecia as mãos de Serenity - Habitualmente se mostra bastante anti-social mas parece que você conquistou seu coração.

Korrigan rolou feito uma bola sobre os pés de Serenity.

- Um admirador muito meloso - disse ela lhe estendendo a mão.

- É o pequeno preço que terá que pagar, "ma belle", por tanta devoção.

Christophe tirou um lenço do bolso, agarrou-lhe a mão e começou a secá-la. O efeito que sortiu sobre Serenity foi devastador. Uma corrente elétrica nasceu da ponta de seus dedos e subiu pelo braço, disseminando um quente formigamento por todo seu corpo.

- Não é necessário. Tenho um pano aqui. Serenity assinalou sua caixa de lápis e pastéis e tratou de retirar a mão.

Christophe entrecerrou os olhos aumentando a pressão de sua mão e Serenity se sentiu eclipsada na silenciosa batalha. Com um suspiro de irritada exasperação, permitiu que sua mão permanecesse entre as dele.

- Você sempre sai por cima? - perguntou e seus olhos se obscureceram pela fúria reprimida.

- Certamente - disse ele com altiva segurança, soltando a mão dela e olhando-a longamente - Me parece que você também está acostumada a sair por cima, Serenity Smith. Não acha que será muito interessante ver quem,  como dizem vocês, "leva o gato à água" durante sua visita?

- Talvez devêssemos utilizar um tabuleiro de resultados - sugeriu Serenity, refugiando-se em uma armadura de frieza - Desse modo não haveria dúvidas a respeito de quem resultar o ganhador.

Christophe a olhou com olhos gozadores e lhe presenteou com um sorriso lento e preguiçoso.

- Não haverá nenhuma dúvida, querida prima.

A réplica do Serenity não chegou a concretizar-se pela súbita aparição da condessa e se viu obrigada a suavizar a expressão de seu rosto automaticamente, para evitar qualquer especulação por parte de sua avó.

- Bom dia, meus filhos. - A condessa saudou-os com um sorriso maternal que surpreendeu gratamente a sua neta - Vejo que estão desfrutando da beleza do jardim. Acredito que este é o momento mais tranqüilo do dia para estar aqui.

- É encantador, madame - disse Serenity - Sente-se como se não existisse outro mundo além das cores e do aroma deste lugar solitário.

- Freqüentemente experimento a mesma sensação - disse a condessa e os traços de seu rosto se suavizaram notavelmente - São incontáveis as horas que passei aqui durante todos estes anos. - sentou-se em um banco em frente ao homem moreno e à loira moça e lançou um profundo suspiro - O que você desenhou? - Serenity lhe entregou o caderno, e a condessa examinou cuidadosamente o desenho antes de elevar os olhos para estudar Serenity - Tem o talento de seu pai. - Ante o alusivo comentário, Serenity se dispôs a lhe replicar convenientemente, mas a condessa acrescentou - Seu pai era um artista com grande talento. E começo a compreender que tinha certas qualidades que souberam ganhar o amor de Gaelle e a lealdade de sua filha.

- Sim, madame - respondeu Serenity, compreendendo que a tinha recompensado com uma difícil concessão - Ele era um homem muito bom, um pai e marido exemplar.

Resistiu tenazmente a tentação de mencionar o tema da Madonna de Rafael porque não desejava romper os tênues fios de entendimento que se formaram entre elas. A condessa assentiu. Então, voltando-se para Christophe, fez um comentário a respeito do jantar daquela noite.

Serenity agarrou uma folha de papel em branco alguns pastéis e começou a desenhar a sua avó. As vozes zumbiam a seu redor e seus sons sossegados e tranqüilos harmonizavam com a paz do jardim. Ela não tentou seguir a conversação; simplesmente permitiu que o suave murmúrio caísse sobre ela enquanto se concentrava em seu trabalho.

Ao reproduzir no papel o rosto de formato delicado e a boca, surpreendentemente vulnerável, viu com absoluta claridade a semelhança que a condessa guardava com Gaelle, sua mãe, e portanto com ela mesma. A expressão de sua avó era aprazível, com uma beleza atemporal que continha instintivamente seu porte orgulhoso. Mas agora, de algum modo, Serenity teve uma visão fugaz da suavidade e fragilidade de sua mãe, o rosto de uma mulher que era capaz de amar profundamente... e também de sofrer terrivelmente o dano que pudessem lhe fazer. Pela primeira vez desde que recebeu a carta formal de sua avó desconhecida, Serenity sentiu um laço de parentesco, o primeiro sinal de amor pela mulher que tinha dado a luz a sua mãe e, em conseqüência, tinha sido a responsável por sua própria existência.

Serenity não estava consciente da variedade de expressões que cruzavam por seu rosto, ou do homem que estava sentado junto a ela observando a metamorfose enquanto seguia falando com sua avó. Quando terminou deixou os pastéis e moveu as mãos com ar ausente, sobressaltando-se quando voltou a cabeça e se encontrou com o olhar de Christophe. Os olhos escuros se fixaram no retrato que descansava no colo de Serenity antes de fixar-se na expressão absorta dela.

- Possui um estranho dom, "ma chérie" - disse ele. Serenity franziu o cenho assombrada, sem saber muito bem se ele se referia a seu trabalho ou a um tópico totalmente diferente.

- O que desenhou? - perguntou a condessa. Serenity afastou o olhar dos escuros olhos de Christophe e lhe entregou o desenho.

A condessa o estudou durante alguns momentos e a primeira expressão de surpresa se transformou em outra coisa que Serenity não conseguiu discernir. Quando a anciã elevou os olhos e a olhou, seu rosto tinha um amplo sorriso.

- Sinto-me honrada e muito melhorada. Se me permitir, eu gostaria de comprar este retrato. - O sorriso se fez ainda mais amplo - Em parte por vaidade, mas também porque eu gostaria de conservar uma amostra de seu trabalho.

Serenity a observou durante um momento e experimentou uma sensação que oscilava entre o orgulho e o amor.

- Sinto muito, madame. - Meneou a cabeça e pegou o retrato que acabava de desenhar - Não está à venda. - Olhou o desenho que tinha em mãos antes de voltar a entregar-lhe enquanto a olhava diretamente nos olhos - É um presente para você, avó - disse, observando o jogo de emoções que estremeciam os olhos e a boca da condessa antes de acrescentar carinhosamente - O aceita?

- "Oui". - A palavra saiu de seus lábios com um profundo suspiro—. O conservarei como um tesouro, e isto - olhou uma vez mais o retrato - me recordará que ninguém deve jamais permitir que o orgulho se interponha no caminho do amor.

A condessa ficou em pé, beijou levemente as bochechas de Serenity e se afastou para o castelo pelo atalho ladrilhado.

Serenity se recostou no banco de mármore.

 

- Você tem uma capacidade natural para agradar - disse Christophe e ela se voltou para ele, visivelmente emocionada.

- Ela também é minha avó.

Christophe percebeu o véu que cobria os olhos de Serenity e ficou em pé.

- Meu comentário pretendia ser um elogio.

- É mesmo? Pensei que era uma censura.

Desprezando a umidade de seus olhos Serenity sentiu, simultaneamente, o desejo de estar sozinha e de reclinar-se contra seu ombro.

- Sempre está na defensiva comigo, não é, Serenity?

Os olhos de Christophe se entrecerraram, como o fazia cada vez que estava irritado, mas Serenity se sentia muito preocupada em combater suas próprias emoções para lhe dar importância.

- Você me deu muitos motivos - replicou ela - Do momento em que desci do trem, seus sentimentos por mim foram absolutamente transparentes. Condenou o meu pai e o mesmo fez comigo. É frio e autocrático e não demonstra ter um pingo de compaixão ou de compreensão. Eu gostaria que você partisse e me deixasse sozinha. Vá açoitar os camponeses ou algo assim. Isso combina muito bem com sua personalidade.

O movimento de Christophe foi tão veloz que Serenity não teve possibilidade de afastar-se. Seus poderosos braços estiveram a ponto de parti-la em dois ao abraçá-la com veemência.

- Tem medo? - perguntou ele e seus lábios esmagaram a pequena boca de Serenity antes que ela pudesse atinar a responder, e qualquer sinal de razão se esfumou repentinamente.

Serenity choramingou ante a mescla de dor e prazer que lhe produziam os lábios de Christophe ao  queimar os seus, enquanto o abraço se fazia mais intenso, conquistando inclusive seu fôlego.

"Como é possível amar e odiar ao mesmo tempo?" perguntou seu coração a seu confuso cérebro, mas a resposta se perdeu em um mar de paixão turbulenta e vitoriosa. Os dedos se enredavam sem piedade em seu cabelo loiro, obrigando-a a inclinar a cabeça para trás para deixar exposta a rosada pele do pescoço e Christophe reclamou a pele vulnerável com lábios quentes e vorazes. O fino tecido da blusa dela não constituiu nenhuma barreira contra o calor  abrasador do corpo  dele, e ele superou com facilidade o obstáculo deslizando uma mão por debaixo da blusa, acariciando a carne febril e apoderando-se de seu peito túrgido em um alarde de absoluta e consumada posse.

A boca de Christophe voltou a devastar lábios, varrendo toda suavidade com uma urgência a que ela não podia resistir. Serenity deixou de questionar a complexidade de seu amor e, como se fosse um salgueiro na tormenta, cedeu às súplicas de seu próprio desejo.

Christophe elevou o rosto dela e seus olhos se mostraram escuros, quase negros pelos fogos de paixão e ira que ardiam dentro deles. Ele a desejava, os olhos de Serenity se abriram desmesuradamente devido ao terror que significava este descobrimento. Nenhum homem a tinha desejado nunca com esta intensidade e nenhum tinha tido o poder de tomá-la com tão pouco esforço. Porque inclusive sem o amor de Christophe, ela sabia que se entregaria. E inclusive sem sua entrega voluntária, Christophe a faria dela.

Ele leu o medo nos olhos de Serenity e a voz dele se fez ouvir, grave e perigosa.

- Sim, pequena prima, tem motivos para estar assustada, porque sabe perfeitamente que cederá. No momento está a salvo, mas cuidado a próxima vez que for me provocar.

Liberando-a de seu abraço, Christophe partiu pelo atalho que tinha tomado sua avó, e Korrigan, depois de olhar Serenity com olhos de desculpa, seguiu-lhe de perto.

 

Serenity vestiu-se com delicioso cuidado para o jantar que teria lugar naquela noite no castelo, empregando o tempo para pôr em ordem seus sentimentos e decidir um plano de ação. Nenhum argumento e tampouco raciocínio algum podia alterar o fato de que se precipitou temerariamente no amor com um homem que tinha conhecido fazia apenas uns dias, um homem que era terrivelmente excitante mas que, por sua vez, produzia-lhe verdadeiro pânico.

Um homem arrogante, autoritário e audaciosamente obstinado, acrescentou, subindo o zíper do vestido. E também um homem que tinha acusado meu pai de ser ladrão. "Como pude permitir que isto ocorresse? -repreendeu-se com veemência - Como poderia tê-lo impedido? refletiu com um profundo suspiro - É provável que meu coração tenha me abandonado, mas ainda conservo a cabeça sobre os ombros e vou ter que usá-la. Me recuso a permitir que Christophe descubra que me apaixonei por ele e me submeter, deste modo, a suas zombarias." Sentada em frente à penteadeira de madeira de cerejeira, Serenity passou repetidamente a escova por seus suaves cachos e deu os últimos retoques a sua maquiagem. "Pintura de guerra - pensou, e sorriu ao reflexo - É uma expressão que se ajusta perfeitamente, já que preferiria estar em guerra e não apaixonada por Christophe. Além disso - o sorriso se converteu em um gesto sombrio - esta noite também terei que lidar com mademoiselle Dejot."

Ficou em pé e observou atentamente a figura que se refletia no grande espelho de provas. A seda ambarina harmonizava com a cor de seus olhos e acrescentava um quente resplendor à sua pele rosada. Os magros tirantes do vestido revelavam seus ombros suaves e o decote baixo e redondo realçava a sutil curva de seus peitos. A saia vincada flutuava graciosamente até lhe roçar os tornozelos e sua cor diáfana e apagada tornava a sua beleza frágil maravilhosa, quase etérea.

Serenity franziu a testa ao efeito que o produzia sua imagem no espelho, demonstrando fragilidade ali onde desejava que houvesse sofisticação e aprumo. O relógio lhe informou que não havia tempo para trocar de vestido, de modo que, calçando-os sapatos e lançando uma nuvem de perfume a seu redor, abandonou rapidamente o quarto.

O murmúrio de vozes que chegava do salão principal confirmou a uma irritada Serenity que os convidados já tinham chegado. Seu olho de artista desenhou imediatamente a cena que a recebeu ao entrar no salão: o chão reluzente e as paredes com seus painéis de madeira lustrada, as janelas altas e com formosos vitrais, a enorme chaminé de pedra com seu exterior cuidadosamente esculpido, todos os detalhes se conjugavam para formar a cortina de fundo dos elegantes ocupantes do salão principal do castelo, com a condessa em primeiro plano, vestida regiamente de seda vermelha.

O severo smoking negro de Christophe ressaltava a imaculada brancura da camisa e acentuava maravilhosamente a cor bronzeada de sua pele. Yves Dejot também estava vestido de negro e sua pele era mais dourada que bronzeada, enquanto que o cabelo era de cor castanha. Mas foi a mulher que estava entre os dois homens a que chamou a atenção do Serenity e também sua imediata admiração. Se sua avó era a rainha, ali estava a princesa herdeira. A cabeleira, de um negro de azeviche, emoldurava um rosto pequeno e encantado de comovente beleza. Os olhos amendoados, de cor marrom, dominavam o rosto perfeito e o vestido verde intenso destacava contra a pele dourada.

Os dois homens ficaram em pé quando ela entrou no salão e Serenity concentrou toda atenção em Yves, consciente do intenso olhar que lhe dedicou Christophe. Uma vez feitas as apresentações de praxe, ela se encontrou olhando os olhos castanhos, da mesma cor do cabelo, que tinham um olhar de franca aprovação masculina e uma aparente luz picardia.

- “Mon ami”, não me havia dito que sua prima era uma deusa loira. -inclinou-se para roçar seus lábios à mão de Serenity - Terei que visitar o castelo com mais freqüência, senhorita, enquanto você se encontrar aqui.

Serenity sorriu com autêntico prazer, classificando Yves Dejot como um homem encantador e inofensivo.

- Estou certa de que minha estadia no castelo será muito mais agradável com essa perspectiva, “monsieur” - respondeu com o mesmo tom que ele tinha empregado e se viu recompensada com um luminoso sorriso.

Christophe continuou com as apresentações e a mão de Serenity ficou prisioneira em um apertão pequeno e vacilante.

- Sinto-me feliz de conhecê-la finalmente, mademoiselle Smith, - Geneviéve a saudou com um cálido sorriso – Você é idêntica ao retrato de sua mãe; é como se a pintura tivesse criado vida.

A voz era absolutamente sincera e Serenity pensou que, embora o tentasse, seria impossível ter aversão àquela mulher que parecia uma fada e que agora a olhava com os olhos aquosos de um cocker spaniel.

A conversação discorreu por leitos informais e agradáveis durante os aperitivos e o jantar, composto de umas deliciosas ostras ao champanha, que dispuseram os ânimos para desfrutar de uma comida preparada e servida com deliciosa elegância. Os Dejot se mostraram ávidos por conhecer detalhes sobre os Estados Unidos e sobre a vida que levava Serenity em Washington, e ela tratou de descrever aquela cidade de contrastes enquanto o pequeno grupo desfrutava o “ris de veau au Chablis”.

Serenity começou a desenhar com palavras os velhos edifícios do governo e as linhas e colunas da Casa Branca.

- Infelizmente, modernizaram bastante a cidade, incluindo enormes monstruosidades de aço e cristal para substituir algumas das antigas construções. São edifícios vastos, pulcros e carentes de todo encanto. Mas há dúzias de teatros, do Ford, onde foi assassinado o presidente Lincoln, até o Kennedy Center.

Serenity continuou seu relato e lhes levou da assombrosa elegância do Embassy Row até os bairros pobres e os apartamentos de aluguel que se elevavam fora do enclave federal, através de museus e galerias de arte e da sede do Congresso dos Estados Unidos.

- Mas nós vivíamos em Georgetown, que é um mundo completamente separado do resto de Washington. A maioria dos lares são casas geminadas ou apenas separadas, de dois ou três pisos, com pequenos pátios pavimentados e debruados com azaléias e maciços de flores. Algumas das ruas laterais ainda estão pavimentadas com os paralelepípedos originais e toda a zona conserva seu antigo encanto.

- Deve ser uma cidade excitante - comentou Geneviéve - Certamente, acha nossa vida aqui bastante tranqüila. Sente falta de animação, da atividade de sua cidade?

Serenity franziu o cenho à sua taça de vinho e então meneou a cabeça.

- Não - respondeu, surpreendendo-se pela resposta - Suponho que é bastante estranho. - Seu olhar se encontrou com os olhos marrons da outra mulher - Passei toda minha vida ali e me senti muito feliz, mas não sinto falta de absolutamente nada. Quando cheguei ao castelo, senti que tinha com ele uma inexplicável afinidade, algo assim como uma sensação de reconhecimento. Sinto-me muito bem aqui.

Deu uma olhada a seu redor e encontrou o olhar de Christophe, intenso e penetrante, sentiu um acesso de pânico.

- Certamente, é um verdadeiro alívio não ter que enfrentar uma batalha a cada dia para encontrar um local onde estacionar - acrescentou com um sorriso tentando romper o ambiente de solenidade que havia na mesa - Em Washington os locais de estacionamento são mais valiosos que o ouro e, atrás de um volante, inclusive a pessoa mais civilizada do mundo é capaz de cometer um assassinato para conseguir uma vaga.

- Você recorreu a tais táticas, “ma chérie”? - perguntou Christophe, elevando sua taça e olhando-a fixamente.

- Tremo ao pensar nos crimes que cometi - respondeu Serenity, aliviada por mudança de tema de conversação - Não me atrevo a confessar a que extremos cheguei para me assegurar uns poucos metros de espaço livre. Posso ser terrivelmente agressiva.

- Julgo totalmente impossível acreditar que a agressividade seja parte de uma flor tão delicada - disse Yves, acolhendo-a com seu encantador sorriso.

- Você se surpreenderia, "mon ami", - comentou Christophe inclinando levemente a cabeça - Esta flor tão delicada possui algumas qualidades insuspeitadas.

Serenity olhou-o com expressão desgostada e a condessa interveio trocando de tema.

O salão estava suavemente iluminado, conferindo ao enorme ambiente um clima de intimidade. Enquanto o grupo desfrutava do café e do conhaque que seguiram ao jantar, Yves se sentou junto a Serenity e começou a desdobrar seu abundante encanto francês. Serenity percebeu, com crescente desgosto em seu coração, que viu obrigada a reconhecer como um puro ataque de ciúmes, que Christophe se dedicava a entreter Geneviéve. Os dois falavam dos pais dela, que estavam realizando um cruzeiro pelas ilhas gregas, de amizades comuns e de velhos amigos. Christophe escutou atentamente enquanto Geneviéve lhe contava uma anedota e sorriu, adulou à preciosa jovem e brincou com ela, com uma atitude tenra e encantadora que Serenity nunca tinha visto nele. A relação entre ambos era tão obviamente especial, tão próxima e antiga que Serenity sentiu que o desespero invadia seu corpo.

"Christophe a trata como se ela fosse feita de fino e delicado cristal, pequena e preciosa, e me trata como se eu fosse feita de pedra, forte, tenaz e rústica."

Se Serenity pudesse sentir aversão pela outra mulher, tudo teria sido muito mais singelo, mas um natural sentimento de amizade se impôs aos ciúmes e, conforme passava o tempo, se deu conta de que os irmãos Dejot eram dois seres verdadeiramente encantadores.

Geneviéve, depois de uma cortês insistência por parte da condessa, aceitou interpretar algumas peças ao piano. A música se pulverizou pelo salão com a mesma doçura e fragilidade dos dedos de sua intérprete.

"Suponho que é uma mulher perfeita para ele - concluiu Serenity, sentindo-se terrivelmente desventurada - Eles têm muitas coisas em comum e ela desperta em Christophe uma ternura que impedirá que lhe cause algum dano." Elevou a vista e olhou em direção a Christophe, que estava sentado e relaxado contra as almofadas da poltrona, com seus olhos escuros e fascinantes fixos na mulher que tocava o piano. Uma série de emoções encontradas afetou seu ânimo: desejo, desesperança, ressentimento, unindo-se em uma irremediável névoa de depressão ao compreender que, independentemente de quão perfeita Geneviéve pudesse ser para ele, ela jamais poderia observar com indiferença Christophe quando cortejasse a outra mulher.

- Como a artista que é, mademoiselle - disse Yves quando a música cessou e todos reataram a conversação - Você deve necessitar de inspiração, não é?

- Certamente - disse Serenity e lhe sorriu.

- Os jardins do castelo constituem um belo motivo de inspiração à luz da lua - assinalou Yves.

- Esta noite, me sinto inspirada - decidiu Serenity com um repentino impulso - Talvez consiga lhe convencer para que me acompanhe.

- Mademoiselle - respondeu ele alegremente - para mim será uma honra.

Yves comunicou ao resto dos presentes sua intenção de sair ao jardim, e Serenity aceitou seu braço sem perceber o sombrio olhar que Christophe lhe lançou.

O jardim era, indubitavelmente, uma bela causa de inspiração, as brilhantes cores luziam apagadas sob o resplendor prateado da lua. Os aromas das flores se mesclavam formando um perfume embriagador, adoçando a cálida noite estival e convertendo-a em um abrigo para apaixonados. Serenity suspirou profundamente quando seus pensamentos se voltaram para homem que ainda permanecia no salão do castelo.

- Foi um suspiro de prazer, mademoiselle? - perguntou-lhe Yves enquanto caminhavam por um atalho sinuoso.

- Naturalmente - respondeu ela gentilmente, sacudindo os pensamentos sombrios e presenteando seu acompanhante com um de seus melhores sorrisos - Esta assustadora beleza me perturba.

- Ah, mademoiselle. - Ele agarrou sua mão e a levou aos lábios para beijá-la - A beleza de cada uma destas flores empalidece perante a sua. Que rosa poderia comparar-se com esses lábios, que gardênia com essa pele?

- Como é que os homens franceses aprendem a fazer o amor com palavras?

- É algo que se aprende do berço - disse com suspeita sobriedade.

- A uma mulher resulta verdadeiramente difícil resistir a este cenário. - Serenity voltou a suspirar - Um jardim banhado pela luz da lua junto a um castelo bretão, o ar perfumado pelo aroma das flores, um homem atraente com poesia nos lábios.

- Ora! - Yves suspirou por  sua vez - Temo que saberá encontrar a força para resisti-lo.

Serenity meneou a cabeça com fingido pesar.

- Eu, desgraçadamente, sou uma mulher extremamente forte e você - acrescentou com um sorriso - é um encantador lobo bretão.

A risada de Yves alterou a quietude da noite.

- Ah, já aprendeu a me conhecer bem. Se não fosse pela sensação que experimentei ao vê-la pela primeira vez, quando soube que estávamos destinados a ser amigos e não amantes, tentaria-o com maior afinco. Mas nós, os bretões, acreditamos cegamente no destino.

- E é tão difícil ser amigos e amantes.

- Exato.

- Então seremos amigos - afirmou Serenity estendendo a mão - Eu te chamarei Yves e você pode me chamar Serenity.

Ele agarrou sua mão e a sustentou durante uns instantes.

- "C'est extraordinaire" que possa me sentir honrado ao conquistar uma amizade com alguém como você. Possui uma beleza esquiva que impressiona vivamente a mente de um homem e lhe mantém caído por ti. - Seus ombros se moveram em um típico gesto francês que expressava mais que três horas de conversação - Bom, assim é a vida - disse com tom fatalista.

Serenity ainda estava rindo quando entraram novamente no castelo.

 

Na manhã seguinte, Serenity acompanhou a sua avó e Christophe a uma missa no pequeno povoado que se avistava do topo da colina. A chuva fina e persistente tinha começado a cair antes do amanhecer e o suave tamborilar na janela a tinha despertado até que o contínuo barulho da água a tinha feito adormecer novamente.

A chuva seguia caindo enquanto se dirigiam à igreja, empapando as folhas e fazendo que as flores nos jardins das casas inclinassem suas pétalas como se fosse uma congregação prostrada na prece. Serenity tinha percebido, com perplexidade, que Christophe se mantinha estranhamente silencioso sobre a noite anterior. Os Dejot partiram pouco depois que ela e Yves se reuniram com o grupo no salão e, embora a despedida de Christophe a seus convidados tinha sido carinhosa, ele tinha evitado dirigir-se diretamente a Serenity. A única comunicação entre eles tinha sido um breve - e ela tinha imaginado - ameaçador olhar, rapidamente velado.

Agora, ele falava quase exclusivamente com sua avó, com ocasionais comentários ou respostas dirigidas a Serenity cortesmente, com uma hostilidade dificilmente discernível que ela decidiu ignorar.

O ponto focal do pequeno povoado era a capela, uma diminuta construção branca rodeada por um canteiro perfeitamente cuidado e que contrastava quase humoristicamente com a condição ligeiramente penosa e a ponto de demolição da edificação. O teto tinha sido objeto de mais de uma reparação e a porta de carvalho, de uma só folha, estava gasta e solta pelo tempo e o contínuo uso.

- Christophe ofereceu construir uma nova capela - comentou a condessa - mas os habitantes do povoado não querem. Aqui é onde seus pais e avós oraram ao longo dos séculos e aqui continuarão elevando suas preces ao Senhor até que a capela desabe sobre suas cabeças.

- É encantadora - exclamou Serenity.

De algum jeito o ar vagamente dilapidado da pequena capela lhe outorgava uma certa dignidade, um sentido de orgulho ao ter sido testemunha de gerações de batismos, bodas e funerais.

A porta pareceu fazer gemer suas dobradiças a modo de desculpa quando Christophe a abriu, permitindo que as duas mulheres lhe precedessem para o interior da capela. O interior estava escuro e silencioso, e o teto, alto e cruzado por enormes vigas, acrescentava uma ilusão especial ao recinto. A condessa se dirigiu ao primeiro banco, sentando-se no lugar que estava reservado para a família Kergallen durante mais de três séculos. Olhando com a extremidade do olho viu Yves e Geneviéve através do estreito corredor. Serenity lhes enviou um cálido sorriso que foi correspondido por outro de Geneviéve e por uma ligeira piscada de Yves.

- Não acredito que este seja o lugar mais adequado pura suas aventuras amorosas, Serenity - sussurrou Christophe a seu ouvido enquanto a ajudava a tirar o impermeável.

Serenity sentiu que a cor subia a suas bochechas como se fosse uma menina a quem surpreenderam falando bobamente na sacristia. Voltou-se para lhe replicar justo no momento em que o sacerdote, que parecia tão velho como a mesma capela, aproximou-se do altar para dar começo ao ato religioso.

Uma sensação de paz a abrigou como se se tratasse de uma colcha suave e amaciada. A chuva isolava aos paroquianos do exterior e seus murmúrios pareciam unir-se ao silêncio em lugar de alterá-lo. O tom grave do sacerdote que se expressava em língua bretã, o leve murmúrio de resposta, o ocasional pranto de um menino, uma tosse afogada, os cristais chumbados pelos quais corriam pequenas cascatas de água... tudo se unia para conformar uma atmosfera atemporal. Sentada no gasto banco de madeira, Serenity não pôde deixar de sentir a magia de antiga capela e entendeu perfeitamente a negação dos habitantes a renunciarem a velha construção por uma estrutura mais moderna e segura, porque aqui havia paz, e a serenidade com a que ela tinha sido batizada. Tudo constituía uma continuidade com o passado e um vínculo com o futuro.

Quando a missa concluiu-se, a chuva também cessou, e um tímido raio de sol se filtrou através os opacos cristais, introduzindo um resplendor sutil e esquivo. Quando saíram ao exterior da capela, o ar era fresco e trazia o aroma da chuva. Algumas gotas ainda pendiam das folhas lavadas, brilhando como lágrimas na superfície verde.

Yves saudou Serenity com uma cerimonial reverência e um leve beijo no dorso da mão.

- Você trouxe o sol, Serenity.

- É obvio. - concordou ela, sorrindo amigavelmente - Ordenei que todos os dias que eu permanecer na Bretanha devem ser ensolarados e brilhantes.

Retirando sua mão, Serenity sorriu a Geneviéve, que parecia uma bela prímula com o vestido amarelo e o chapéu de aba estreita. Quando trocaram as saudações oportunas, Yves se inclinou sobre ela como fosse um conspirador.

- Talvez agradaria você agarrar a oportunidade "ma chérie", e me acompanhar a dar um passeio. O campo é verdadeiramente formoso depois da chuva.

- Temo que hoje Serenity estará muito ocupada - respondeu Christophe antes que ela pudesse aceitar ou declinar o gentil convite formulado por Yves, e lhe lançou um olhar fulminante - Sua segunda lição - disse Christophe brandamente, ignorando a fúria que se instalou nos olhos ambarinos dela.

- Lição? - repetiu Yves com um sorriso divertido - O que é que está ensinando à sua adorável prima, Christophe?

- Equitação - respondeu ele - no momento.

- Ah, não poderia ter encontrado melhor instrutor - interveio Geneviéve, roçando levemente o braço de Christophe

- Foi ele quem me ensinou a montar quando meu pai e Yves já tinham me catalogado como uma inútil irrecuperável. É tão paciente - acrescentou.

Seus olhos de cocker spaniel olharam ao homem moreno e esbelto e Serenity afogou um sorriso de incredulidade.

Paciente seria a última palavra que ela empregaria para descrever Christophe. Arrogante, exigente, autocrático, soberbo... começou a enumerar em silêncio as qualidades que atribuía ao homem que estava junto a ela. E também Cínico e altivo. Sua atenção se desviou da conversação e seu olhar se dirigiu para uma menina que estava sentada no pasto jogando com um cachorrinho preto e brincalhão. O cãozinho lambia alternadamente o rosto da pequena e punha-se a correr a seu redor descrevendo frenéticos círculos, enquanto as risadas jubilosas da menina se elevavam no ar. Os dois compunham uma imagem tão inocente e relaxante que Serenity necessitou uns segundos antes de reagir frente ao que aconteceu imediatamente depois.

De repente o cachorrinho cruzou correndo a erva em direção à rua e a menina, levantando-se, correu atrás dele lhe chamando. Serenity observou sem reagir o carro que se aproximava. Então uma gelada sensação de terror se apoderou dela quando comprovou que a pequena continuava sua corrida para a rua.

Sem pensar duas vezes, se lançou atrás da menina enquanto, em língua bretã, gritava-lhe que se detivesse. Mas a atenção da menina estava concentrada em sua pequena mascote e correu pelo pasto até acessar a rua por onde se aproximava o carro.

Serenity ouviu o chiado dos freios quando seus braços agarraram a menina e sentiu a corrente de ar e o ligeiro golpe do pára-choque do carro contra seu flanco enquanto se lançava através da rua com a menina firmemente sujeita entre seus braços, aterrissando a uns metros de distância. Durante um instante se fez um grande silêncio e logo se desatou uma verdadeira gritaria quando o cachorrinho, sobre o qual agora estava sentada Serenity, começou a uivar para sair de sua incômoda situação e a menina, soluçando, chamou a sua mãe unindo-se à indignação do cão.

De repente, um coro de vozes excitadas em uma mescla de dialetos locais se uniu aos uivos e aos soluços. Serenity, atordoada e confusa, não tinha forças para tirar seu peso de cima do pobre cachorrinho e a menina se liberou de seus braços para correr e refugiar-se entre os braços de sua pálida e chorosa mãe.

Uns braços fortes ajudaram Serenity a ficar em pé, agarrando-a pelos ombros e obrigando-a a girar a cabeça até encontrar-se com os olhos escuros e turbulentos de Christophe.

- Está ferida? - Quando ela meneou a cabeça, ele continuou com voz tensa e irritada - "Nom do Dieu"! Deve estar louca! - Sacudiu-a ligeiramente, aumentando seu atordoamento - Poderia ter se matado! O carro não atropelou você por verdadeiro milagre!

- Estavam brincando tão docemente - recordou Serenity com um fio de voz - Então esse cão tolo pôs-se a correr para a rua. Oh, pergunto-me se lhe terei feito mal; joguei-me em cima dele. Não acredito que o pobre bichinho tenha gostado.

- Serenity. - A voz furiosa de Christophe e a violenta sacudida a obrigaram a fixar sua atenção nele - "Mon Dieu"! Começo a acreditar que está louca!

- Sinto muito, - murmurou ela, sentindo-se vazia e enjoada - foi uma tolice pensar primeiro no cão e depois na menina. Ela está bem?

Christophe deixou escapar uma série de insultos enquanto suspirava.

- "Oui", a pequena está com sua mãe. Moveu-se como uma pantera; de outro modo nenhuma das duas estaria agora balbuciando tolices.

- A adrenalina - murmurou ela e se balançou - Acredito que já não fica uma só gota.

A pressão das mãos de Christophe se fez mais intensa em seus ombros enquanto lhe observava o rosto.

- Você vai ficar deprimida?

Pergunta-a foi acompanhada por uma expressão carrancuda.

- É obvio que não - replicou ela, tratando de que sua voz soasse firme e mesurada, mas conseguindo somente uma vacilante negação.

- Serenity. - Geneviéve chegou até ela, agarrando-a pelas mãos e abandonando toda formalidade - foste muito valente.

As lágrimas brilhavam nos grandes olhos marrons e Geneviéve beijou as pálidas bochechas de Serenity.

- Está ferida?

Yves repetiu a pergunta que lhe tinha feito Christophe e em seus olhos havia mais preocupação que ira.

- Não, não, estou perfeitamente bem - lhe assegurou ela, reclinando-se inconscientemente sobre Christophe em busca de apoio - O cachorrinho levou a pior parte quando aterrissamos em cima dele.

"Só quero me sentar - pensou cansada - até que o mundo deixe de girar." Serenity ouviu que a mãe da menina se dirigia a ela em língua bretã com os olhos ainda chorosos. As palavras saíam de seus lábios cheias de emoção e o dialeto era tão fechado que teve dificuldades para seguir a corrente de palavras. A mulher enxugava continuamente os olhos com um enrugado lenço que levava na mão e Serenity lhe respondeu com respostas que esperava fossem as corretas, sentindo-se incrivelmente cansada e comovida quando a agradecida mulher a beijou como amostra de gratidão. Ante uma ordem de Christophe, as duas mulheres se separaram e a mulher agarrou a sua filha e se mesclou com a multidão.

- Venha. - Christophe deslizou um braço em torno da cintura de Serenity e a multidão se separou em dois como as águas do Mar Vermelho quando ambos se dirigiram de retorno à capela - Acredito que tanto você quanto esse vira-lata deveriam levar uma surra.

- Que amável de sua parte nos pôr os dois juntos - disse ela e então ouviu o profundo suspiro de sua avó que estava sentada em um pequeno banco de pedra, pálida e subitamente envelhecida.

- Pensei que estaria morta - disse a condessa com voz pastosa e Serenity se abaixou diante dela.

- Sou indestrutível, avó - disse com um sorriso seguro - É uma virtude que herdei dos dois ramos de minha família.

Uma mão magra e ossuda colheu com força o braço de Serenity.

- É muito imprudente e obstinada - disse a condessa com voz firme - E gosto muito de você.

- Eu também gosto da senhora - disse Serenity simplesmente.

 

Serenity insistiu em tomar sua lição de equitação depois do almoço, desobedecendo tanto à prescrição de um prolongado descanso como a perspectiva de que visse um médico.

- Não necessito um médico, avó e tampouco necessito repouso. Estou perfeitamente bem. - encolheu-se de ombros, subtraindo importância ao incidente da manhã - Uns poucos machucados e arranhões. Já disse que sou indestrutível.

- É obstinada - a corrigiu a condessa, e Serenity se limitou a sorrir e a encolher-se novamente de ombros.

- Sofreu uma experiência traumática - disse Christophe, observando-a com olhos críticos - Seria conveniente não realizar exercícios violentos.

- Por Deus, você também! - Afastou com impaciência sua taça de café - Não sou uma dama vitoriana adoentada que sofre acessos de hipocondria e necessita que a mimem. Se não quiser me dar a lição de equitação, chamarei Yves e aceitarei o convite que você rechaçou por mim. - A expressão de seu rosto era decidida e mantinha o queixo elevado em atitude desafiante - Não vou me colocar na cama no meio-dia como se fosse uma criança.

- Muito bem. - Os olhos de Christophe se obscureceram - Terá sua lição de equitação, embora talvez não resulte tão estimulante como a que Yves pretendia dar a você.

Serenity olhou-o durante um momento e a surpresa deu lugar ao rubor que cobriu suas bochechas. - Oh, realmente, que coisas tão ridículas você diz...

- Me reunirei contigo nas cavalariças dentro de meia hora.

Christophe interrompeu seu protesto, levantou-se da mesa e abandonou a habitação antes que Serenity pudesse lhe responder como ele mereceu.

Voltou-se para sua avó com o rosto convertido em uma máscara indignada.

- Por que é tão terrivelmente rude comigo?

A condessa encolheu seus frágeis ombros em um gesto claramente expressivo e um olhar ardiloso brilhou em seus olhos azuis.

- Os homens são criaturas muito complicadas, "chérie".

- Um dia - predisse Serenity franzindo a testa - um dia ele não partirá até que eu tenha dito a última palavra.

 

Serenity se reuniu com Christophe à hora prevista, decidida a dedicar cada resquício de energia ao desenvolvimento da técnica eqüestre adequada. Procedeu montando a égua com concentrada segurança e então seguiu seu silencioso instrutor quando este dirigiu seu alazão em direção oposta a que tinham tomado em sua última saída. Quando Christophe impulsionou a sua montaria a um ligeiro galope, Serenity fez o mesmo e experimentou a mesma intoxicante liberdade que havia sentido antes. Não obstante, nos traços de Christophe não apareceu o súbito e brilhante sorriso e de seus lábios não saiu nenhuma frase zombadora, e Serenity disse a si mesma que na verdade estava melhor sem essas demonstrações. Christophe lhe deu algumas instruções ocasionais e ela obedeceu imediatamente porque precisava lhe provar, e provar-se a si mesma, que era perfeitamente capaz de fazê-lo. Assim Serenity se contentou seguindo as instruções e observando ocasionalmente o aquilino perfil de Christophe.

"Que o Senhor me ajude - suspirou Serenity sentindo-se frustrada - Ele vai obcecar-me pelo resto de minha vida. Terminarei sendo uma solteirona excêntrica e comparando todos os homens que encontrar com aquele que não pude ter. Quisera nunca o tivesse conhecido."

- "Pardon"?

A voz de Christophe a tirou de suas silenciosas meditações e Serenity se sobressaltou, dando-se conta de que talvez tinha  murmurado algo em voz alta.

- Nada - balbuciou - não era nada. - Lançou um profundo suspiro e franziu o cenho - Poderia jurar que cheiro o mar. - Christophe reprimiu seu cavalo e ela fez o mesmo com a égua até que ambos os animais caminharam no mesmo ritmo. de repente, um ruído surdo alterou o silêncio. - Foi um trovão? - perguntou Serenity elevando a vista ao céu azul, mas o ruído não cessou - É o mar! - exclamou, esquecendo toda animosidade - Estamos perto? Poderei vê-lo? - Ele se limitou a deter seu cavalo e desmontar - Christophe, pelo amor de Deus! - Serenity lhe observou com recente exasperação enquanto ele atava as rédeas a uma árvore - Christophe! - repetiu Serenity, saltando dos arreios com mais velocidade que graça. Ele a agarrou por um braço quando ela caiu desajeitadamente no chão e segurou a égua junto ao alazão antes de pôr-se a andar por um atalho - Pode escolher o idioma que desejar - convidou ela generosamente - mas fale comigo antes que eu enlouqueça!

Christophe se deteve, deu meia volta e, atraindo-a para ele, cobriu-lhe a boca com um beijo breve e perturbador.

- Você fala muito - disse, simplesmente, e continuou seu caminho.

- Realmente, acredito...

Serenity tentou lhe responder mas desistiu disso quando Christophe se voltou para olhá-la. Satisfeito, aparentemente, com seu silêncio, ele a guiou através da campina enquanto o rumor do mar se fazia mais insistente. Quando Christophe se deteve, Serenity conteve a respiração perante o panorama que se estendia a sua frente. O mar ocupava toda a distância que podia abranger seu olhar e os raios do sol dançavam sobre a superfície verde da água. As ondas chegavam a acariciar as rochas e sua espuma parecia um laço em um vestido de veludo. Com ar provocador, a água se retirava da areia só para retornar um momento depois como se fosse um amante caprichoso.

- É maravilhoso - suspirou Serenity, recreando-se no ar salino e na brisa que brincava com seu cabelo loiro - Suponho que você já deve estar acostumado a tanta beleza, mas duvido de que eu possa fazê-lo.

- Sempre desfruto da contemplação do mar - respondeu ele, enquanto seus olhos pareciam perder-se no horizonte longínquo, onde o céu azul beijava o verde intenso da água - Tem um caráter volúvel e, talvez por isso, os pescadores digam que é uma mulher. Hoje o vê tranqüilo e aprazível, mas quando está irritado constitui um espetáculo irrepetível.

Christophe deslizou uma mão pelo braço de Serenity em um gesto simples e íntimo que ela não esperava dele e seu coração pareceu dar um tombo dentro do peito.

- Quando eu era um menino, pensava em escapar ao mar e viver minha vida na água e navegar com suas mudanças de humor.

Seu polegar acariciou a palma da mão de Serenity e ela se viu obrigada a respirar antes de poder falar.

- Por que não fez isso?

Christophe se encolheu e ela se perguntou se recordaria que estava ali.

- Descobri que a terra também tinha sua própria magia..., pastos de brilhantes cores, um chão rico, vinhedos de cor púrpura e gado que pastoreia placidamente sob o sol. Lançar-se ao galope e percorrer estas terras é tão excitante quanto navegar sobre as ondas do mar. A terra é meu trabalho, meu prazer e meu destino.

Ele a olhou até o fundo de seus olhos ambarinos, abertos e assombrados no rosto rosado, e algo ocorreu entre eles, algo que brilhava tenuemente e se expandia, até que Serenity se sentiu sobressaltada por seu poder. Então, encontrou-se esmagada contra ele e o vento assobiava em torno deles como se fosse cordas que pretendessem enlaçá-los intimamente enquanto a boca de Christophe exigia uma rendição absoluta. Serenity se agarrou a ele quando o rugido do mar se intensificou até tornar-se ensurdecedor e, de repente, encontrou-se se apertando contra seu peito musculoso e lhe exigindo mais e mais.

Se o humor do mar era tranqüilo e aprazível, o de Christophe  absolutamente não parecia assim. Indefesa por sua própria necessidade, Serenity se recreou na selvagem posse de seus lábios ardentes e na urgente insistência das mãos que a reclamavam como se ela lhes pertencesse por direito. Tremendo, embora não de temor mas sim pelo desejo de entregar-se, apertou-se ainda mais contra ele, desejando febrilmente que ele tomasse o que lhe estava oferecendo.

A boca de Christophe se afastou ligeiramente por um instante e Serenity meneou a cabeça rechaçando a momentânea liberdade, atraindo sua cabeça novamente para ela com lábios que imploravam a fusão com os dele. Os dedos de Serenity se cravaram na lustrosa pele dos ombros de Christophe quando ele voltou a abraçá-la com paixão enquanto sua boca a buscava, presa de uma nova voracidade, como se precisasse mordê-la para não morrer de fome. Uma de suas mãos deslizou por debaixo da seda de sua blusa para reclamar um peito que se estremeceu ante a febril carícia, os dedos quentes vagavam como brasas acesas sobre a pele suave e, embora sua boca tenha sido conquistada, a língua de Christophe exigia agora a íntima e profunda umidade, fazendo que Serenity murmurasse uma e outra vez seu nome até que tudo pareceu esfumar-se.

Os poderosos braços de Christophe voltaram a envolvê-la contra ele, as mãos abandonaram sua exploração e o fôlego desapareceu e foi esquecido ante essa força nova e entristecedora. Os seios suaves estavam esmagados contra a dura rocha de seu torso, as coxas se acoplavam geometricamente, os corações pulsavam em uníssono e Serenity soube que tinha dado o passo para o precipício e que jamais retornaria à segurança da terra.

Christophe a soltou tão abruptamente que ela teria caído se ele não a tivesse pego por um braço.

- Agora devemos retornar - disse como se nada tivesse ocorrido - Já é tarde.

Serenity elevou as mãos para afastar os rebeldes cachos que caíam sobre seu rosto e olhou Christophe com olhos implorantes e confusos. - Christophe.

Pronunciou seu nome com um sussurro, incapaz de articular nenhum outro som, e ele a olhou com expressão sombria e, como sempre, insondável.

- Já é tarde, Serenity - repetiu e a ira que se percebia em sua voz não fez a não ser aumentar sua perplexidade.

Serenity sentiu um súbito golpe de frio e rodeou o corpo com os braços para controlar o tremor de seu corpo.

- Christophe, por que está zangado comigo? Não fiz nada de mau.

- Não?

Seus olhos se entrecerraram, obscurecendo-se com sua habitual mudança de humor e, através da dor que lhe produzia seu rechaço, Serenity sustentou seu olhar.

- Não. O que eu poderia fazer a você? É tão insuportavelmente superior, sentado em seu trono de ouro. Uma meio-aristocrata como eu dificilmente poderia subir a seu nível para causar-lhe dano.

- Sua língua lhe causará muitos problemas, Serenity, a menos que aprenda a controlá-la.

Agora a voz de Christophe era precisa e muito controlada, mas Serenity descobriu uma pontinha de prudência enterrada sob uma crescente montanha de fúria.

- Bem, até que resolva fazê-lo é provável que a empregue para dizer exatamente o que penso a respeito de sua atitude arrogante, autocrática, dominante e exasperadora para a vida em geral e para mim em particular.

- Para uma mulher com seu gênio, - começou a dizer ele com um tom de voz que ela julgou muito suave e muito meloso - minha querida prima, deve recordar permanentemente que há um só amo. - Agarrou-a pelo braço com veemência e pôs-se a andar afastando-os do mar - Digo que retornamos ao castelo.

- Você retornará ao castelo, monsieur - replicou ela, mantendo-se firme e olhando-o com fúria - Ou a qualquer outro lugar que desejar.

Sua retirada, furiosamente digna, só alcançou uns três passos antes que uns dedos de aço a agarrassem pelos ombros e a obrigassem a voltar-se para encontrar-se com uma explosão de ira que fez com que seu próprio estado de ânimo parecesse tranqüilo.

- Obriga-me a pensar novamente na sabedoria que implica golpear uma mulher.

Sua boca voltou a beijá-la com maior violência que se tivesse empregado os punhos e Serenity sentiu pânico ao encontrar em seus lábios somente ira e nenhum vestígio de desejo. Os dedos de Christophe se cravaram em seus ombros mas ela decidiu não lutar contra ele, permanecendo passiva entre seus braços enquanto toda sua coragem se dissolvia em pura indefensibilidade

Quando, finalmente, ele a soltou, Serenity o olhou, vencendo o véu de lágrimas que começava a cobrir seus olhos.

- Você tem todas as vantagens, Christophe, e sempre me derrotará fisicamente.

Sua voz era tranqüila e cuidadosamente modulada e percebeu que ele franzia o cenho com um gesto de assombro ante sua reação. Christophe estendeu uma mão para enxugar uma lágrima rebelde que tinha rodado pela lisa bochecha de Serenity e ela se afastou rapidamente, passando uma mão por seu rosto e piscando para reprimir o pranto.

- Por hoje já tive minha cota de humilhação e não penso me jogar a chorar para que se sinta satisfeito de sua obra. - Sua voz se tornou mais firme quando pôde controlar suas emoções, e seus ombros ficaram rígidos enquanto Christophe observava em silêncio a transformação que se operava nela - Como disse, está ficando tarde. - Dando meia volta, pôs-se a andar em direção aos cavalos.

 

Os dias transcorriam placidamente, quentes dias estivais cheios de sol e do doce perfume das flores. Serenity dedicava a maior parte das horas de luz pintando, reproduzindo sobre o tecido as linhas orgulhosas e inconquistáveis do castelo. Percebeu, ao princípio com desesperança e logo com crescente ira, que Christophe a evitava deliberadamente. Desde aquela tarde em que tinham estado junto ao escarpado, lhe tinha falado apenas o necessário, e sempre com forçada cortesia. O orgulho logo cobriu seu sofrimento como uma atadura sobre uma ferida aberta e a pintura se converteu em um refúgio contra a saudade.

A condessa não voltou a mencionar a Madonna de Rafael e Serenity se alegrou de que o tempo começasse a apagar suas diferenças, desejando fortalecer o vínculo que tinha nascido entre elas a se aprofundar no desaparecimento da famosa pintura e na acusação formulada contra seu pai.

Estava totalmente imersa em seu trabalho, vestida com uns jeans velhos e um avental manchado de pintura e com o cabelo alvoroçado por sua própria mão, quando viu que Geneviéve se aproximava cruzando o suave tapete de erva. "Uma formosa fada bretã, pensou Serenity, pequena e encantadora com sua jaqueta de equitação e suas calças cor camurça."

- "Bonjour", Serenity - exclamou quando ela elevou uma mão para saudá-la - Espero não incomodá-la.

- É obvio que não. Sempre é uma alegria voltar a ver você.

As palavras fluíram com facilidade de seus lábios porque era seu coração que falava. Serenity sorriu e largou seu pincel.

- Oh, fiz que deixasse de pintar - disse Geneviéve a modo de desculpa.

- Deu-me uma maravilhosa desculpa para que deixasse de fazê-lo - corrigiu Serenity.

- Posso olhar? - perguntou Geneviéve - Ou prefere que ninguém veja sua obra antes que esteja terminada?

- Claro que pode olhá-la. E me diga o que pensa.

Geneviéve se aproximou até ficar junto a Serenity. O fundo do quadro estava terminado; o céu cor azul celeste, nuvens como de lã, pasto de um verde intenso e árvores majestosas. O castelo ia tomando forma gradualmente: os muros cinzas resplandeciam com a cor das pedras sob a luz do sol e também as janelas verticais e as altas torres. Ainda havia muito por fazer, mas até em sua incompletação a pintura tinha captado a atmosfera mágica que Serenity tinha visto ao chegar ao castelo.

- Sempre amei este castelo - afirmou Geneviéve sem afastar os olhos da tela - E vejo que você também o ama. - Os olhos pensativos se separaram do tecido para fixar-se em Serenity - Soube captar sua calidez, e também sua arrogância. Alegra-me que o veja igual ao modo que o vejo.

- Apaixonei-me pelo castelo no primeiro momento em que o vi - admitiu Serenity - Os dias passam e me sinto mais prisioneira de sua serena beleza.

Suspirou sabendo que suas palavras se referiam, em realidade, ao homem e também a seu lar.

- É afortunada por possuir esse dom. Espero que não pense mal de mim se confessar algo.

- Não, certamente que não - lhe assegurou Serenity, surpreendida e ao mesmo tempo intrigada pelas palavras de Geneviéve.

- Sinto uma terrível inveja de ti - confessou de repente como se temesse que lhe falhasse a voz.

Serenity observou o formoso rosto com enorme surpresa.

- Você, me inveja?

- "Oui". - Geneviéve hesitou por um momento e então começou a falar precipitadamente - Não só por seu talento como artista, mas por sua segurança e sua independência. - Serenity a escutava com crescente perplexidade - Tem algo que faz com que a gente se sinta fascinada com você... uma sinceridade, uma calidez no olhar que faz que alguém queira confiar em você, sabendo que será capaz de compreendê-lo  em tudo.

- Que extraordinário - murmurou Serenity sobressaltada—. Mas, Geneviéve - começou a dizer com voz suave - você é tão encantadora e carinhosa, como pode invejar a alguém e muito menos a mim? Faz que me sinta como uma verdadeira amazona.

- Os homens lhe tratam como a uma mulher - explicou com um tom de voz que era quase desesperado - Eles a admiram não só por sua beleza, mas também pelo que é. - Geneviéve se voltou e logo olhou novamente Serenity enquanto passava uma mão por sua formosa cabeleira - O que faria você se amasse a um homem, se lhe tivesse amado toda sua vida com o coração de uma verdadeira mulher, e ele só a considerasse como uma menina divertida?

Serenity sentiu que uma nuvem de angústia envolvia seu coração. "Christophe, - pensou - Deus do céu, ela quer que a aconselhe com respeito a Christophe." Fez um grande esforço para não começar a rir histericamente. "supõe-se que devo lhe dar conselhos sobre o homem que amo. Pediria ela a mim se soubesse o que Christophe pensa de mim... e de meu pai?" Seus olhos se posaram no escuro olhar da jovem, um olhar cheio de esperança e espera. Lançou um profundo suspiro.

- Se estivesse apaixonada por um homem semelhante, me esforçaria por lhe fazer saber que sou uma mulher e que assim é como quero que ele me veja.

- Mas como? - a mão de Geneviéve se elevou em um gesto de impotência - Sou uma covarde. Inclusive é provável que chegue a perder sua amizade.

- Se realmente lhe ama terá que se arriscar ou passar o resto de sua vida como sua amiga. Deve dizer a... a esse homem, da próxima vez que a tratar como uma menina, que é uma mulher. Deve fazer que compreenda de modo que em sua mente não fique nenhuma dúvida de que fala a sério. Então ele deverá dar o passo seguinte.

Geneviéve suspirou e se encolheu. - Pensarei no que acaba de me dizer. - Voltou a olhar Serenity com olhos agradecidos - Obrigado por me escutar, por ser minha amiga.

Serenity observou a miúda figura quando Geneviéve se afastou pelo atalho. "É uma verdadeira mártir - disse a si mesma - Eu pensava que as renúncias produziam uma cálida sensação interior, mas me sinto fria e miserável." Começou a recolher seus materiais de pintura. Já não encontrava prazer em seu trabalho. "Acredito que renunciarei ao martírio e dedicarei às viúvas e aos órfãos. Isso não fará com que me sinta pior."

Com uma grande depressão instalada na alma, Serenity subiu ao seu quarto para guardar a tela e os pincéis. Com o que considerou um esforço hercúleo, a encobriu para sorrir à criada que estava colocando lençóis limpos no armário.

- "Bonjour", mademoiselle.

Bridget a saudou com um encantador sorriso e os olhos ambarinos de Serenity piscaram ante a alegria que emanava da moça.

- "Bonjour", Bridget. Parece que se sente muito feliz esta manhã. - Jogando uma olhada aos raios de sol que atravessavam triunfalmente o cristal da janela, Serenity suspirou e se encolheu de ombros - Suponho que é um formoso dia.

- "Oui", mademoiselle. Que dia! - Bridget assinalou o céu azul com uma mão em que brilhava a suave seda - Acredito que nunca tinha visto sorrir o sol com tanta doçura.

Serenity se sentiu incapaz de se deixar abater pela depressão ante semelhante ataque de bom humor e se deixou cair sobre uma cadeira enquanto sorria.

- A menos que minha leitura dos sinais não seja a correta, eu diria que é o amor quem está sorrindo docemente.

O intenso rubor acrescentou ainda mais encanto ao jovem rosto quando Bridget fez uma pausa em suas tarefas para lhe devolver um sorriso luminoso.

- "Oui", mademoiselle Serenity. Estou muito apaixonada.

- E deduzo por seu olhar... - Serenity continuou lutando contra a sensação de inveja que despertava nela a excitação da moça que também é amada.

- "Oui", mademoiselle. - A luz do sol e a felicidade formaram um halo em torno de Bridget - Jean Paul e eu nos casaremos no sábado.

- Casarão? - repetiu Serenity com perplexidade ao observar a figura miúda do Bridget - Que idade tem, Bridget?

- Dezessete - disse ela, com uma inclinação de cabeça pela vasta coleção de anos que acabava de confessar.

- Dezessete - repetiu Serenity com um suspiro involuntário.

"De repente me sinto como se tivesse noventa e dois."

- Casaremo-nos no povoado - continuou Bridget, inspirada pelo interesse que mostrava Serenity-  Depois da cerimônia, todo mundo virá ao castelo e dançaremos e cantaremos no jardim. O conde é um homem muito generoso e muito bondoso. Disse que haverá champanha.

Serenity descobriu que a alegria se convertia em admiração.

- Bondoso - sussurrou enquanto esse adjetivo dava voltas na cabeça.

"A bondade não é uma virtude que eu teria atribuído a Christophe." Deixando escapar um profundo suspiro, recordou a carinhosa atitude de Christophe para Geneviéve. "Obviamente, eu não acordo nele essas demonstrações de afeto."

- Mademoiselle tem coisas tão belas...

Serenity elevou a vista e viu que Bridget acariciava um salto de cama branco e vaporoso com olhos sonhadores.

- Você gosta?

Ficou em pé e roçou os bordados do tecido, recordando a sedosa textura contra sua pele e logo a deixou cair como se fosse um floco de neve. - Oh, oui, mademoiselle.

Com um suspiro de inveja e feminina admiração, Bridget se dispôs a pendurar o objeto no armário.

- É teu - disse Serenity impulsivamente e a criada se voltou com os olhos abertos, como dois pratos negros.

- "Pardon", mademoiselle?

- É teu - repetiu Serenity, sorrindo ante o assombro que expressava o rosto de Bridget - Como presente de bodas.

- Oh, não, eu não posso... é muito formoso. - Sua voz se converteu em um sussurro enquanto admirava o objeto com aparente desejo - Mademoiselle não resistiria desfazer-se dele.

- É obvio que posso me desfazer dele. - a corrigiu Serenity - É um presente e me alegrará saber que o desfruta. - Observando o delicado objeto que Bridget apertava contra seu peito, suspirou com uma mescla de inveja e desesperança - Foi confeccionado para uma noiva e estará preciosa com ele para seu Jean Paul.

- Oh, mademoiselle! - exclamou Bridget visivelmente emocionada e tratando de conter as lágrimas - O conservarei como se fosse um tesouro.

A estas palavras seguiu uma verdadeira corrente de expressões de agradecimento em língua bretã que comoveram Serenity. Deixou a futura noiva olhando-se no espelho com o salto de cama colocado em cima do avental e sonhando com sua noite de bodas.

 

O sol voltou a sorrir docemente no dia das bodas de Bridget. O céu estava incrivelmente azul e pequenas nuvens brancas salpicavam a uniformidade da cor.

Com o correr dos dias, a depressão que sentia Serenity se transformou em um frio ressentimento. O comportamento distante de Christophe avivava o fogo de seu temperamento mas, com firme determinação, ela o tinha enterrado sob um gelo igualmente desdenhoso. Em conseqüência, suas conversações se limitaram a umas frases breves e formalmente corteses.

Serenity estava entre a condessa e Christophe no cuidado canteiro da igreja do povo, esperando a procissão nupcial. O vestido de seda natural que tinha eleito deliberadamente por seu aspecto frio e intangível tinha sido rechaçado categoricamente por sua avó com uma gesto régio de sua enfeitada mão. Como resultado disso, se apresentou à cerimônia com um conjunto que tinha pertencido a sua mãe e o aroma a lavanda se percebia nitidamente no tecido como se a tivessem perfumado no dia anterior. Em lugar de parecer uma mulher sofisticada e distante, tinha o aspecto de uma moça que espera que alguém venha apanhá-la para levá-la a uma festa.

A saia vincada roçava apenas os joelhos, suas listas brancas e vermelhas verticais terminavam em um curto avental branco. A blusa camponesa de decote pronunciado se ajustava na breve cintura e suas mangas curtas e folgadas deixavam os braços nus ao sol. Um colete negro sem mangas se ajustava perfeitamente sobre a suave curva de seus peitos e seus loiros cabelos estavam cobertos por um chapéu de palha adornado com fitas.

Christophe não tinha feito nenhum comentário a respeito de seu aspecto, limitando-se a inclinar ligeiramente a cabeça quando ela desceu as escadas e agora Serenity mantinha a guerra de silêncio dirigindo toda a conversação para sua avó.

- Eles chegarão da casa da noiva - lhe informou a condessa e, embora Serenity era consciente da presença do homem moreno que estava junto a ela, parecia extremamente interessada no que sua avó lhe estava dizendo - Toda sua família a acompanhará em seu último passeio como solteira. Então, ela se reunirá com o noivo e entrará na capela para converter-se em sua esposa.

- É tão jovem - disse Serenity com um afogado suspiro - apenas um pouco maior que uma menina...

- "Alors", já tem idade suficiente para ser uma mulher, minha querida "anciã". - Com um leve sorriso, a condessa deu uns tapinhas na mão de Serenity - Eu tinha aproximadamente sua idade quando me casei com seu avô. A idade tem muito pouco a ver com o amor. Não acha, Christophe?

Serenity sentiu, mais que viu, como ele se encolhia de ombros.

- Isso parece, avó. Antes de cumprir os vinte anos, nossa pequena Bridget terá um pirralho brincando sobre seu avental e outro debaixo dele.

- Tomara! - suspirou a condessa com suspeita nostalgia e Serenity se voltou para observá-la com curiosidade - Parece que nenhum de meus netos está disposto a me dar meninos para que os malcrie. - Olhou Serenity com olhos tristes e inocentes - É muito difícil ser paciente quando se envelhece.

- Mas muito mais fácil ser ardiloso - comentou Christophe com voz seca e Serenity não pôde evitar olhá-lo.

Christophe retribuiu o olhar elevando uma sobrancelha e ela manteve seu olhar tranqüilamente, decidida a não sucumbir ao seu feitiço.

- Você quer dizer sábia, Christophe - corrigiu a condessa sem alterar-se - Essa é uma verdade absoluta. "Voilá"! - exclamou antes que ele pudesse fazer algum outro comentário - Ali vêm eles!

Um grupo de meninos pequenos jogava no ar suaves e delicadas pétalas que dançavam com a brisa antes de cair ao chão. As pétalas formavam um tapete de amor para os pés da noiva. Pétalas inocentes e silvestres do bosque e dos prados, e os meninos dançavam em círculos enquanto as ofereciam ao jogo caprichoso da brisa. Rodeada por sua família, a noiva caminhava como se fosse uma boneca pequena e delicada. Usava um vestido tradicional e obviamente antigo, e Serenity pensou que jamais tinha visto uma noiva tão radiante e um vestido mais perfeito.

De um branco antigo, a saia ampla e vincada caía da cintura até um palmo da rua semeada de flores. O decote era alto e fechado com um broche, e a parte superior do vestido era rodeada e estava adornada com um delicado bordado. Bridget não usava véu, mas sim um chapéu redondo e branco, coroado por uma meia lua de flores que conferia à noiva uma beleza exótica e atemporal.

O noivo se reuniu com ela e Serenity notou, quase com alívio maternal, que Jean Paul parecia tão bom e inocente quanto à própria Bridget. Jean Paul também estava vestido seguindo a tradição: calças brancas dentro de botas delicadas e uma jaqueta cor azul escura sobre uma impecável camisa branca com o peitilho bordado. O chapéu bretão de aba estreita, com suas fitas de veludo, acentuava sua juventude e Serenity supôs que era apenas um pouco mais velho que Bridget.

Um halo de amor jovem parecia rodeá-los, puro e tenro como o céu matinal, e o súbito e inesperado acesso de nostalgia deixou Serenity sem fôlego e logo cruzou com força as mãos para combater um repentino estremecimento. "Se só uma vez - pensou e engoliu com dificuldade para umedecer a secura que se instalou em sua garganta - só uma vez, Christophe tivesse me cuidadoso desse modo eu poderia viver com essa recordação durante o resto de minha vida."

Sobressaltou-se quando alguém lhe tocou o braço e elevou a vista para encontrar o olhar ligeiramente zombador de Christophe, seus olhos sempre frios. Elevando o queixo, permitiu que ele a acompanhasse até o interior da capela.

 

O jardim do castelo era um mundo perfeito para celebrar umas novas bodas, cheio de vida, de perfumes e de cores brilhantes. O terraço estava coberto de mesas com toalhas brancas sobre as quais se amontoavam as travessas com comida e numerosas garrafas de vinho da região. O castelo tinha cedido para a ocasião sua melhor baixela e a prata e o cristal esculpido refulgiam com o orgulho de sua antigüidade sob a luz do sol. E o povo, observou Serenity, aceitava-o como seu direito. Eles pertenciam ao castelo e este lhes pertencia . A música se elevava por cima do murmúrio das vozes e das risadas; as doces e alegres cordas dos violinos harmonizavam com o som das gaitas de fole.

Serenity observou do terraço o primeiro baile dos noivos já como marido e mulher, uma dança típica da Bretanha, cheia de encantadores e atrevidos movimentos, e Bridget paquerava seu marido com inclinações de cabeça e olhos zombadores enquanto os convidados celebravam jubilosamente. O baile continuou, cada vez mais animado, e Serenity se viu empurrada para a multidão por um Yves encantadoramente resolvido.

- Mas eu não sei como dançar esta dança - protestou ela, incapaz de impedir a risada que lhe provocava a insistência de Yves.

- Eu te ensinarei - respondeu ele simplesmente, lhe agarrando ambas as mãos - Christophe não é o único instrutor deste lugar. - Yves inclinou a cabeça ao perceber a expressão de Serenity - Ahá! Já suspeitava disso. - A expressão dela se fez mais eloqüente com a ambigüidade de suas palavras mas ele se limitou a sorrir, elevou uma mão até posá-la sobre seus lábios e acrescentou - Agora daremos um passo para a direita.

Apanhada em sua primeira lição de baile e então no prazer da música e dos diferentes movimentos que aquela sugeria, Serenity sentiu que as tensões acumuladas nos dias precedentes começavam a desvanecer-se. Yves era atento e encantador, dançava com ela e logo desaparecia para retornar com taças cheias de champanha. Em uma ocasião Serenity descobriu Christophe dançando com a graciosa e miúda Geneviéve e uma nuvem de desassossego ameaçou seu radiante sol. Voltou-se rapidamente porque não desejava ver-se novamente perdida em um poço de depressão.

- Vê, "chérie", já dança com absoluta naturalidade - disse Yves quando a música cessou.

- Certamente são meus genes bretões os que foram a meu resgate.

- De modo - repreendeu ele com ar divertido - que não outorga nenhum mérito a seu instrutor?

- É obvio que sim - Serenity sorriu e fez uma pequena reverência -  Meu instrutor é encantador e muito hábil.

-  É verdade - concordou ele e seus olhos castanhos desmentiram a solenidade de seu tom - E minha aluna é formosa e encantadora.

- É verdade - concordou ela por sua vez e, tornando-se a rir, enlaçou seu braço com o do Yves. - Ah, Christophe - a risada de Serenity se congelou quando viu que Yves olhava por cima de sua cabeça - usurpei seu papel como instrutor.

- Parece que ambos estão desfrutando com a mudança.

Para ouvir a gelada cortesia de sua voz, Serenity se voltou para ele cautelosamente. Christophe tinha uma incrível semelhança com o conde aventureiro e contrabandista cujo retrato estava pendurado em uma das paredes do castelo. Levava a camisa branca descuidadamente aberta para revelar o forte estrutura de seu pescoço, e o colete sem mangas constituía um assombroso contraste. As calças pretas estavam embutidas em um par de botas de couro e Serenity chegou à conclusão de que seu aspecto era mais perigoso que elegante.

- Uma aluna maravilhosa, "mon ami", e estou certo de que estará de acordo comigo. - A mão de Yves descansava naturalmente sobre os ombros de Serenity enquanto sorria ao rosto impassível de Christophe - Talvez goste de comprovar as bondades de minhas lições.

- Certamente.

Christophe aceitou a sugestão com uma leve Inclinação de cabeça. Então, com um gesto elegante e antiquado elevou uma mão com a palma para cima convidando que Serenity apoiasse a sua.

 

Ela duvidou por um instante, temendo e desejando o contato com sua pele. Então, advertindo um olhar desafiante em seus olhos escuros, apoiou a palma de sua mão com graciosa elegância.

Serenity se moveu ao compasso da música seguindo com facilidade os passos da antiga dança. Com os casais girando, inclinando-se e unindo-se brevemente, o baile começou como uma confrontação, uma luta formalizada entre o homem e a mulher. Seus olhares se encontraram: o de Christophe era confiante e descarado, o de Serenity desafiante, e ambos se moveram descrevendo círculos alternados e roçando as Palmas de suas mãos. Quando o braço de Christophe lhe enlaçou a cintura, Serenity jogou a cabeça para trás para não desviar o olhar, ignorando o súbito estremecimento provocado pelo roçar de suas coxas.

Os passos se fizeram mais rápidos com a música, a melodia se tornou mais exigente, a antiga coreografia da dança se tornou mais sedutora e o contato dos corpos se prolongava com o jogo galante. Serenity manteve o queixo elevado com expressão insolente e seus olhos brilhavam desafiantes, mas sentiu que uma onda de calor subia por seu corpo quando Christophe acentuou a pressão de seu braço em sua cintura, atraindo-a a ele em cada novo giro. Aquilo, que tinha começado como um duelo, era agora uma forma de total sedução e ela sentiu que a força silenciosa se apoderava de sua vontade com mesma segurança que o teriam feito seus lábios. Sustentando-se apenas em um precário controle de suas emoções, retrocedeu um passo procurando a segurança que a distância podia proporcionar. O braço de Christophe voltou a apertá-la contra seu corpo e, com absoluta impotência, seus olhos procuraram a boca que rondava perigosamente sobre seus lábios ansiosos. Sua boca se abriu, como protesto e também como convite, e a de Christophe desceu até que ela pôde saborear seu fôlego em sua língua.

Quando a música cessou, o silêncio foi como um trovão e Serenity observou assombrada Christophe quando ele afastava a promessa de sua boca com um sorriso vitorioso.

- Terá que felicitar seu professor, Serenity - disse.

Suas mãos abandonaram sua cintura e, com um leve reverência, partiu deixando-a sozinha.

 

Quanto mais remoto e taciturno se tornava Christophe, mais aberta e expansiva se mostrava à condessa, como se ela percebesse exatamente sua mudança de humor e procurasse lhe provocar.

- Parece preocupado, Christophe - disse a condessa ingenuamente, enquanto jantavam sentados à larga mesa de carvalho - Tem problemas com o gado ou, talvez, trata-se de um assunto do coração?

Serenity se obrigou a manter seu olhar fixo na taça de vinho, fascinada pela suave cor do líquido.

- Simplesmente, estou desfrutando desta excelente comida, avó - respondeu Christophe sem morder o anzol - No momento não tenho problemas com o gado... e tampouco com as mulheres.

- Ah. - A condessa suspirou - Talvez você coloque ambos no mesmo grupo.

Os largos ombros de Christophe se encolheram em um típico gesto francês. - Ambos exigem atenção e mão firme, não é verdade?

Serenity engoliu um pedaço de pato à laranja antes de correr o risco de sufocar-se.

- Deixou muitos corações destroçados nos Estados Unidos, Serenity?

A condessa falou antes que Serenity pudesse verbalizar os pensamentos assassinos que se formavam em seu cérebro.

- Dúzias - respondeu, dirigindo um tenebroso olhar a Christophe - Tenho descoberto que alguns homens carecem da inteligência do gado e com muita freqüência têm os braços, quando não o cérebro, de um polvo.

- Talvez estiveste se relacionando com homens que não eram os adequados - sugeriu Christophe com voz calma.

Esta vez foi Serenity a que se encolheu de ombros.

- Os homens são todos iguais - disse com indiferença, procurando lhe provocar com sua generalização - Eles querem um corpo quente para acariciar nas esquinas escuras ou uma peça de porcelana de Dresde para colocar sobre uma prateleira.

- E em sua opinião, como se deve tratar uma mulher? - perguntou Christophe, enquanto a condessa se acomodava em sua cadeira e desfrutava do frutos de sua instigação.

- Como um ser humano com inteligência, emoções, direitos e necessidades. - Suas mãos moveram expressivamente - E não como um objeto para o prazer do homem e que se despreza segundo a mudança de humor, ou como uma menina a que se mima ou se entretém.

- Parece ser que não tem muito boa opinião dos homens, "ma chérie" - disse Christophe, e nenhum dos dois era consciente de que estavam falando muito mais nesta conversação do que o tinham feito em vários dias.

- Só das idéias antiquadas e dos preconceitos - lhe corrigiu Serenity - Meu pai sempre tratou a minha mãe como a sua companheira, e os dois sempre compartilharam absolutamente tudo.

- Acaso procura seu pai nos homens que conhece, Serenity? - perguntou ele de repente, e Serenity abriu os olhos, surpreendida e desconcertada de uma vez.

- Naturalmente que não; ao menos, acredito que não - titubeou, tratando de olhar dentro de seu próprio coração - Talvez procure sua força e sua bondade, mas não uma réplica. Acredito que estou procurando um homem capaz de me amar tal como ele amou a minha mãe, alguém que me aceitasse com todos meus defeitos e imperfeições, e me amasse pelo que sou e não pelo que ele desejasse que eu fosse.

- E quando encontrar esse homem - perguntou Christophe olhando-a com olhos inescrutáveis - o que pensa fazer?

- Ser feliz - disse ela e fez um grande esforço para concentrar-se na comida que havia em seu prato.

 

No dia seguinte, Serenity continuou com a pintura enquanto o castelo ia tomando forma na tela. Na noite anterior tinha dormido muito mal, já que se sentia perturbada por ter respondido com tanta sinceridade às inesperadas perguntas formuladas por Christophe. Ela tinha falado espontaneamente e suas palavras refletiram um sentimento que ela ignorava possuir até aquele momento. Agora, com a cálida carícia do sol sobre suas costas e o pincel e a paleta na mão, dispôs-se a esquecer seu desassossego em seu amor pela pintura.

Mas era terrivelmente difícil concentrar-se; o rosto moreno de Christophe invadia sua mente e tornava imprecisas as austeras linhas do castelo. Passou a mão pela fronte e, finalmente, largou o pincel, irritada, e começou a recolher suas coisas, amaldiçoando mentalmente o homem que insistia em misturar-se em seu trabalho e também em sua vida. O ruído de um carro que se aproximava interrompeu seus eloqüentes juramentos e voltou a cabeça, fazendo viseira com a mão para proteger-se do sol.

O carro se deteve a poucos metros de onde ela se encontrava e sua boca se abriu em um gesto de absoluto assombro quando um homem alto e impecavelmente vestido desembarcou do carro e pôs-se a andar para ela.

- Tony! - exclamou, com uma mescla de perplexidade e alegria enquanto corria pela erva a seu encontro.

Os braços de Tony a enlaçaram pela cintura e seus lábios cobriram os seu em um beijo breve mas profundo.

- O que está fazendo aqui?

- Poderia dizer que estava dando uma olhada nos arredores - respondeu com um sorriso - mas não acredito que pudesse convencê-la. - Fez uma pausa e estudou o rosto de Serenity - Tem um aspecto maravilhoso - exclamou e se inclinou para beijá-la outra vez, mas ela se afastou.

- Tony, não me respondeste.

- A empresa tem que resolver alguns negócios em Paris - explicou - De modo que tomei um avião, pus as coisas em seu lugar e decidi vir fazer uma visita.

- Dois pássaros de um tiro só - disse Serenity ironicamente, sentindo-se decepcionada.

"Teria sido agradável - refletiu - que ele tivesse deixado seus negócios para cruzar o Atlântico porque não podia suportar a idéia de estar separado de mim." Mas Tony não era esse tipo de homem! Serenity estudou seus traços viris e atraentes. "Tony é muito metódico para ceder a seus impulsos e isso foi precisamente parte do problema."

Tony a beijou levemente na testa. - Senti saudades.

- É mesmo?

Ele pareceu surpreender-se pela pergunta. - Naturalmente que sim, Serenity. - Envolveu seus ombros com o braço enquanto caminhavam para o átrio - Desejo que retorne comigo.

- Ainda não estou disposta a partir, Tony. Tenho muitas coisas que fazer aqui. Há certas situações que devo esclarecer antes de pensar na volta.

- Que situações?

- Não posso explicar isso, Tony - se desculpou ela, não desejando lhe confiar seus problemas - Mas mal tive tempo de conhecer minha avó e devo recuperar o tempo perdido.

- Não pode permanecer aqui vinte e cinco anos até recuperar esse tempo perdido. - Em sua voz havia uma nota de exasperação - Em Washington tem sua casa, seus amigos e sua carreira. - Deteve-se e a agarrou pelos ombros - Você sabe que quero me casar com você, Serenity. Você deu desculpas durante meses.

- Tony, nunca prometi nada.

- Eu sei.

Soltou-a e jogou uma olhada a seu redor com gesto abstraído. Serenity se sentiu culpada e tratou de que ele entendesse sua posição.

- Neste lugar encontrei uma parte de mim mesma. Minha mãe cresceu aqui e sua mãe ainda vive neste castelo. - voltou-se para olhar a augusta construção de pedra e fez um amplo gesto - Olha-o, Tony. Viu alguma vez algo que possa comparar-se com isto?

Ele seguiu seu olhar e estudou a antiga construção de pedra com o cenho franzido.

- É impressionante - disse, sem um pingo de entusiasmo - Também é enorme, irregular e exposto às correntes de ar. Prefiro uma casa construída com tijolos em uma rua de Washington.

Serenity suspirou resignada e então, voltando-se para o Tony, sorriu com verdadeiro afeto. - Sim, tem razão; você não pertence a este lugar.

- E você sim?

- Não sei - murmurou ela enquanto seu olhar percorria as torres cônicas e o jardim - Não sei - repetiu.

Tony estudou o perfil de Serenity durante um momento e logo, estrategicamente, trocou o tema da conversa.

- O velho Barkley tinha alguns documentos para você. - referia-se ao advogado que tinha tratado dos assuntos de seus pais e com o qual Tony trabalhava como associado - De modo que, em lugar de lhe enviar isso por correio, trouxe-lhe isso pessoalmente.

- Documentos?

- Sim, muito confidenciais. - Tony sorriu ironicamente - Barkley não me deu nenhuma pista a respeito de seu conteúdo; só disse que era muito importante que chegassem a você o mais rápido possível.

- Logo lhes darei uma olhada - disse Serenity com indiferença. Desde a morte de seu pai, tinha ficado farta de papéis e formalidades técnicas - Deve entrar no castelo e conhecer minha avó.

Se Tony não se havia sentido impressionado pelo castelo, a condessa lhe fascinou. Serenity ocultou seu sorriso quando lhes apresentou e percebeu a expressão sobressaltada de Tony quando a condessa lhe ofereceu a mão para que a beijasse. Era uma mulher extraordinária, pensou Serenity com muita satisfação. Ao conduzir Tony para o salão principal, a condessa ordenou que trouxessem uns refrescos e logo procedeu a extrair de Tony até a última gota de informação sobre si mesmo. Serenity se sentou e observou a ardilosa manobra de sua avó, orgulhosa de seu rosto inexpressivo.

“Ele não tem nenhuma possibilidade", decidiu Serenity enquanto servia o chá com uma elegante jarra de prata. Quando lhe ofereceu a taça de porcelana da China a sua avó, seus olhares se encontraram. A inesperada picardia que notou nos olhos da condessa esteve a ponto de fazê-la estalar de risada, de modo que se concentrou em servir outra taça de chá.          

"A velha intrigante!" - pensou, surpreendida por não se sentir ofendida – “Está decidindo se Tony é um bom candidato para a mão de sua neta e o pobre Tony está tão impressionado com ela que não é capaz de dar-se conta do que ela está tramando."

Depois de uma hora de amena conversação, a condessa já conhecia perfeitamente a vida de Tony: os antecedentes de sua família, educação, afeições, carreira, preferências políticas e outros detalhes biográficos que a própria Serenity tinha ignorado até então. O interrogatório tinha sido muito hábil e levado com tanta sutileza que Serenity reprimiu um impulso de ficar em pé e aplaudir a sua avó quando terminou.

- Quando tem que retornar aos Estados Unidos? - perguntou Serenity, sentindo que devia salvar Tony antes que revelasse o balanço de sua conta bancária.

- Amanhã à primeira hora - disse ele, depravado e totalmente ignorante do terceiro grau a que lhe tinha submetido a condessa - Eu gostaria de ficar alguns dias mais, mas... - encolheu-se de ombros.

- Naturalmente, seu trabalho é o mais importante - a condessa terminou a frase por ele com um olhar pormenorizado - Você deve jantar conosco esta noite, monsieur Rollins, e ficar no castelo até amanhã.

- Não posso abusar de sua hospitalidade, madame - objetou Tony, talvez com uma certa indiferença.

- Abusar? Tolices! - Sua objeção foi dissipada com um régio gesto da mão enfeitada da condessa - Um amigo do Serenity que chegou de tão longe... Sentiria-me profundamente ofendida se você recusasse ficar no castelo até amanhã.

- É você muito amável. Agradeço.

- É um prazer - exclamou a condessa enquanto se levantava - Serenity, deve mostrar a seu amigo os arredores do castelo, e eu ordenarei que preparem seus aposentos. - Voltando-se para Tony, a condessa estendeu novamente a mão - Tomaremos um aperitivo às sete e meia, monsieur Rollins. Até lá.

 

Serenity se olhou no espelho de corpo inteiro sem ver a imagem que se refletia no cristal. A mulher alta e magra vestida com um conjunto cor ametista, cuja saia de crepe caía como uma brisa enfeitada, era incapaz de admirar a imagem que lhe devolvia a superfície lustrosa do espelho. A mente de Serenity recordava os acontecimentos que se desenvolveram aquela mesma tarde e suas emoções variavam do prazer, à irritação e do desengano à pura diversão.

Uma vez que a condessa lhes deixou a sós, Serenity tinha levado Tony a conhecer os arredores do castelo. Ele se tinha mostrado vagamente impressionado pelos formosos jardins, admirando sua beleza superficial, já que sua mentalidade lógica e racional era incapaz de ver além das rosas e os gerânios para entrar no romance que mantinham as cores, texturas e aromas. Tony se sentiu gratamente surpreso quando divisou o ancião jardineiro e ligeiramente inquieto ante a paisagem assustadora que podia admirar-se do terraço. Ele preferia, segundo suas palavras, algumas casas ou, ao menos, um pouco de tráfego. Serenity tinha balançado a cabeça pela sua evidente falta de sensibilidade mas, de uma vez por todas, tinha compreendido o pouco que tinha em comum com o homem com quem tinha compartilhado tantos meses.

Tony, entretanto, sentia-se completamente fascinado pela proprietária e senhora do castelo. Nunca tinha conhecido a nenhuma mulher como a condessa, tinha afirmado com grande respeito. Ela era incrível, acrescentou, e Serenity assentiu em silêncio, embora talvez por razões muito diferentes. A condessa parecia pertencer a um trono do qual concedesse suas indulgências, e além disso tinha sido muito amável, ao mostrar-se tão interessada em tudo o que ele havia dito. "Oh, sim", tinha concordado Serenity em silêncio, tentando sentir-se indignada e fracassando em seu intento. "Oh, sim, querido e ingênuo Tony, ela se mostrou terrivelmente interessada." Mas qual era o propósito do jogo que a condessa estava jogando?

Quando Tony foi instalado em seu aposento, estrategicamente escolhido, conforme percebeu Serenity, no extremo mais afastado do corredor com respeito a seu próprio quarto, ela foi em busca de sua avó com a desculpa de agradecer o convite a Tony.

A condessa, que estava sentada   a uma elegante escrivaninha tipo Regência em seus vastos aposentos, escrevendo cartas em folhas com seu anagrama, saudou-a com um sorriso inocente que lhe conferia o aspecto do gato que acaba de comer um canário.

- Bem? - A condessa largou a pena e lhe indicou que se sentasse em um divã baixo e decorado com brocado - Espero que seu amigo tenha gostado de seu quarto.

- "Oui", avó, estou muito agradecida de que tenha convidado a Tony a passar a noite no castelo.

- Não tem por que, "chérie". - A magra mão tinha gesticulado vagamente - Deve pensar neste castelo como se fosse seu lar.

- Obrigado, avó - disse Serenity modestamente, deixando que fosse a condessa quem realizasse o seguinte movimento.

- Um jovem muito educado.

- Sim, madame.

- Além disso, muito atraente... - fez uma leve pausa - embora em um estilo ordinário.

- Sim, madame - assentiu Serenity devolvendo a bola ao campo contrário.

A bola foi recebida e enviada de volta imediatamente.

- Sempre preferi traços menos convencionais em um homem, mais força e vitalidade. Talvez - acrescentou curvando os lábios - rasgos como os de um bucaneiro, se souber a que me refiro.

- Ah, "oui", madame. - Serenity assentiu enquanto mantinha um olhar inocente - Sei perfeitamente a que se refere.

- Bem. - A condessa moveu seus magros ombros - Algumas mulheres preferem homens dominantes.

- Isso parece.

- Monsieur Rollins é um homem muito inteligente e refinado. E também muito lógico e formal.

"E entediante." Serenity tinha acrescentado a este último comentário antes de falar em voz alta.

- Ajuda as velhinhas a cruzar a rua duas vezes ao dia - disse.

- Ah, uma bênção para seus pais, estou segura disso - decidiu a condessa, sem perceber a ironia que se desprendia das palavras de Serenity ou ignorando-a por completo - Estou certa de que Christophe se sentirá encantado de lhe conhecer.

Uma débil sensação de intranqüilidade se instalou no cérebro de Serenity.

- Tenho certeza de que assim será.

- Certamente que sim. - A condessa sorriu - Christophe se sentirá muito interessado em conhecer um amigo tão íntimo seu.

A ênfase que tinha dado à palavra “íntima” era inconfundível e a intranqüilidade de Serenity aumentou, enquanto todos seus sentidos ficavam em estado de alerta.

- Não compreendo por que teria Christophe que se sentir tão interessado no Tony, avó.

- Ah, "ma chérie", estou certa de que ele achará seu monsieur Rollins verdadeiramente fascinante.

- Tony não é meu monsieur Rollins - corrigiu Serenity, ficando em pé e aproximando-se da condessa - E não acredito que tenham absolutamente nada em comum.

- Não?

A condessa formulou a pergunta com uma inocência tão irritante que Serenity fez um esforço para não rir.

- É uma intrigante avó. O que pretende?

Os olhos azuis da condessa brilharam com a inocência de uma menina.

- Serenity, "ma chérie", não tenho idéia do que está falando. - Quando ela abriu a boca para lhe replicar, a condessa se afiançou uma vez mais em sua postura real - Devo terminar minha correspondência. Verei-te a hora do aperitivo.

A sugestão tinha sido absolutamente clara e Serenity se viu obrigada a abandonar o ambiente sentindo-se insatisfeita. A violência com que fechou a porta foi a única concessão de seu mau humor.

Os pensamentos de Serenity voltaram para o presente. Lentamente, sua magra figura vestida em cor ametista ficou perfeitamente enfocada no espelho. Passou a mão pelos cachos loiros, com ar ausente, e apagou a expressão sombria que tinha no rosto. "Jogaremos com muita tranqüilidade - disse a si mesma, enquanto colocava os brincos de pérolas - Ou muito me equivoco ou a minha aristocrática avó gostaria de acender alguns foguetes esta noite, mas as faíscas não chegarão até mim."

Bateu na porta do quarto de Tony. - Tony, sou eu, Serenity. Se já estiver preparado, desceremos juntos ao salão. - Tony lhe gritou que entrasse e ela abriu a porta, vendo o homem alto e de aparência agradável que lutava com as abotoaduras - Tem problemas?

- Muito engraçado. - Tony a olhou com severidade - Não posso fazer absolutamente nada com a mão esquerda.

- Meu pai tampouco podia - disse Serenity, muito nostálgica - Mas estava acostumado a amaldiçoar maravilhosamente. Era realmente assombrosa a quantidade de adjetivos que empregava para qualificar a um simples par de abotoaduras.  - aproximou-se dele e agarrou seu pulso - Me deixe ajudá-lo . - Serenity começou a manipular a pequena abotoadura. Não sei o que teria feito se eu não o acudisse  - disse.

- Teria passado toda a noite com uma mão no bolso - respondeu ele brandamente - Teria sido uma espécie de postura educada e muito européia.

- Oh, Tony! - Serenity elevou a vista com um amplo sorriso e os olhos brilhantes - Às vezes é incrivelmente encantador.

Um ruído no corredor chamou a atenção de Serenity e voltou a cabeça quando Christophe passou pela porta aberta e se deteve um instante para observar a cena da moça sorridente que colocava as abotoaduras do homem, enquanto ambos mantinham as cabeças muito juntas. Uma sobrancelha escura se elevou quase imperceptivelmente e, com uma leve inclinação de cabeça, Christophe continuou seu caminho deixando Serenity ruborizada e desconcertada.

- O que foi isso? - perguntou Tony com evidente curiosidade, e ela se inclinou para ocultar o intenso rubor de suas bochechas.

- O conde de Kergallen - respondeu com estudada indiferença.

- Não será o marido de sua avó?

Sua voz estava cheia de incredulidade e a pergunta provocou uma sonora risada de Serenity contribuindo a dissipar a tensão.

- Oh, Tony, é encantador! - Deu uns suaves tapinhas em seu pulso, onde a abotoadura já tinha ficado firmemente presa, e lhe olhou com olhos faiscantes - Christophe é o atual conde e é o neto de minha avó.

- Oh. - A expressão de Tony se tornou pensativa - Então ele é seu primo.

- Bom... - Serenity pronunciou lentamente as palavras - Não precisamente... - Explicou a complicada história de sua família e a resultante relação entre ela e o conde bretão - De modo que  - concluiu, agarrando Tony pelo braço e abandonando o quarto de uma maneira indireta nos poderia considerar primos.

- Primos consortes - observou Tony franzindo o cenho.

- Não seja parvo - protestou ela subitamente, perturbada pela lembrança de uns lábios ardentes e exigentes sobre sua boca.

Se Tony se surpreendeu da veemente negativa e do rubor de suas bochechas, não fez nenhum comentário.

Os dois entraram no salão de braços dados e Serenity sentiu que seu rubor se intensificava devido ao olhar fugaz mas descarado de Christophe. Seu rosto permanecia totalmente inexpressivo e Serenity desejou com repentino ardor poder ler os pensamentos que havia detrás daquela fria máscara.

Serenity viu que o olhar se desviava para o homem que estava a seu lado mas seus olhos permaneceram inescrutáveis.

- Ah, Serenity, monsieur Rollins! - A condessa estava sentada na elegante poltrona que havia junto à enorme lareira e era a viva imagem de um monarca recebendo seus súditos. Serenity se perguntou se a eleição daquela poltrona tinha sido deliberada ou acidental - Christophe, me permita apresentar monsieur Anthony Rollins, dos Estados Unidos, o convidado de Serenity.

Serenity percebeu que a condessa tinha catalogado Tony como sua propriedade pessoal. - Monsieur Rollins - continuou a anciã sem alterar seu ritmo - me permita lhe apresentar seu anfitrião, o conde de Kergallen.

O título foi sublinhado com delicadeza, estabelecendo claramente a posição de Christophe como senhor do castelo. Serenity olhou a sua avó com olhos perspicazes.

Os dois homens trocaram algumas formalidades e Serenity pôde observar a velha rotina de medir-se, própria dos homens, como se fossem dois mastins estudando ao adversário antes de entrar em combate.

Christophe serviu um aperitivo a sua avó e então perguntou a Serenity o que desejava beber, antes de dirigir-se a Tony. Ele pediu um vermute, a mesma bebida que Serenity tinha eleito, e ela sorriu levemente, conhecendo a predileção de Tony pelos martínis secos com vodca ou os ocasionais conhaques.

A conversação fluiu agradavelmente e a condessa inseriu numerosos dados pessoais que Tony se encarregou de lhe ministrar àquela tarde.

- É verdadeiramente tranqüilizador saber que Serenity se encontra em tão boas mãos em Washington - disse a condessa com um gracioso sorriso, e continuou, ignorando deliberadamente o olhar de Serenity - Faz muito tempo que são amigos, não é?

A leve acentuação, apenas perceptível, da palavra "amigos" fez que Serenity franzisse o cenho.

- Sim - assentiu Tony dando uns tapinhas afetuosos na mão de Serenity - Nos conhecemos faz um ano em uma festa. Lembra-se, querida?

Tony se voltou com um amplo sorriso e Serenity trocou rapidamente a expressão severa de seu rosto.

- Naturalmente. Foi na festa que os Carson deram.

- E agora viajou de tão longe só para lhe fazer uma breve visita. - A condessa sorriu com carinhosa indulgência - Foi um belo gesto de sua parte, não é mesmo, Christophe?

- Muito atencioso - disse ele.

Inclinando ligeiramente a cabeça, Christophe elevou sua taça e bebeu lentamente.

"É uma intrigante incorrigível - pensou Serenity - Sabe bem que Tony veio em viagem de negócios. O que é que pretende?"

- É uma verdadeira lástima que não possa ficar mais tempo entre nós, monsieur Rollins. É muito agradável que Serenity possa desfrutar da companhia de seus amigos americanos. Você monta  a cavalo?

- Montar a cavalo? - repetiu, Tony surpreso - Não, temo que não.

- É uma pena. Christophe esteve dando lições de equitação a Serenity. Como progride sua aluna, Christophe?

- Muito bem, avó - respondeu Christophe, olhando Serenity - Tem uma habilidade natural e agora que já perdeu o temor inicial - um sorriso fugaz iluminou o rosto de Christophe e ela se ruborizou ao recordar aqueles momentos - estamos fazendo muitos progressos, não é, pequena?

- Sim - assentiu ela, surpreendida por sua carinhosa atitude depois de vários dias de fria cortesia - Me alegra que tenha me convencido a que aprendesse a montar.

- Foi um verdadeiro prazer.

O enigmático sorriso de Christophe não fez mais que aumentar a confusão de Serenity.

- Talvez você possa ensinar monsieur Rollins a montar quando tiver oportunidade. - A condessa incitou sua atenção e os olhos ambarinos se entrecerraram ao perceber a falsa inocência de sua voz.

"Como é intrometida! - estalou Serenity internamente - Está incitando Christophe e Tony, e eu estou no meio como se fosse um osso apetitoso." A irritação se converteu em um sorriso divertido quando os olhos claros da condessa se posaram nos dela e um diabo travesso dançou dentro deles.

- Talvez, avó, embora duvide de que seja capaz de dar o salto de aluna a instrutora. Foram somente duas lições e isso, evidentemente, não me converte em uma perita.

- Mas haverá mais lições, não é? - Ignorando a réplica de Serenity, a condessa ficou em pé com um fluido movimento - Monsieur, faria-me a honra de me acompanhar à sala de jantar?

Tony sorriu, gratamente adulado, e ofereceu o braço à condessa, embora quem acompanhava o outro fosse dolorosamente óbvio para Serenity.

- Bem, "chérie". - Christophe se aproximou dela e estendeu uma mão para ajudá-la a levantar da poltrona - Parece que terá que me aceitar como substituto.

- Acredito que poderei suportá-lo - replicou ela, ignorando os furiosos batimentos de seu coração quando sua mão agarrou a dele.

- Seu amigo deve ser um homem muito lento - começou a dizer Christophe retoricamente, retendo a mão de Serenity e erguendo-se frente a ela com atitude indiferente - Faz um ano que te conhece e ainda não é seu amante.

O rosto de Serenity se voltou de cor púrpura e lhe olhou com fúria, sentindo-se ferida em sua dignidade.

- Realmente, Christophe, surpreende-me! Essa foi uma observação incrivelmente grosseira.

- Mas verdadeira - disse ele imperturbável.

- Nem todos os homens pensam exclusivamente em sexo. Tony é uma pessoa carinhosa e atenciosa, e não um ser arrogante como outros que conheço.

Christophe sorriu com exasperante segurança em si mesmo.

- Acaso seu Tony faz com que seu pulso se acelere deste modo? - O polegar de Christophe acariciou seu pulso - Ou que seu coração se estremeça como faz agora?

Sua mão cobriu o coração que galopava freneticamente como se fosse um cavalo selvagem e seus lábios roçaram sua boca com um beijo suave e prolongado, um beijo tão diferente dos outros que Christophe lhe havia dado que Serenity permaneceu imóvel, apanhada por sensações que a deixaram totalmente aturdida.

Os lábios de Christophe percorreram seu rosto, atrasando-se nos detalhes da boca e retendo a promessa do prazer com a experiência do avantajado sedutor. Seus dentes mordiscaram brandamente o lóbulo da orelha. Serenity lançou um estremecido suspiro quando a pequena dor enviou inapreciáveis e agradáveis correntes ao longo de sua pele, narcotizando-a com um delicioso e lento prazer. Com incrível suavidade os dedos de Christophe se deslizaram por sua coluna vertebral e logo continuaram seu caminho com devastadora excitação sobre a nua pele de suas costas até que Serenity sucumbiu ofegante entre os braços de Christophe enquanto sua boca procurava com paixão a satisfação de seu desejo. Só lhe fez provar brevemente o sal de seus lábios antes de deslizá-los para a rosada garganta, enquanto as mãos viajavam por cada curva do corpo de Serenity. Os dedos roçaram simplesmente os túrgidos seios antes de iniciar uma suave massagem em seus quadris.

Murmurando seu nome, Serenity se esmagou contra o corpo de Christophe, incapaz de exigir aquilo que ela implorava, desejando febrilmente a boca que lhe negava. Desejando só ser possuída, necessitando o que só ele podia lhe dar, seus braços o atraíram para ela em uma silenciosa súplica.

- Me diga - sussurrou Christophe e, através de uma bruma de lassidão, Serenity percebeu uma ligeira brincadeira em sua voz - Acaso Tony a ouviu suspirar entre seus braços e sussurrar seu nome? Ou sentiu seus ossos derretidos contra seu peito enquanto a abraçava?

Serenity, total e absolutamente aturdida, desfez-se de seu abraço enquanto podia sentir como a ira e a humilhação se mesclavam com o desejo.

- Está muito seguro de si mesmo, Christophe - disse - Não interessa o que eu possa sentir quando estou com o Tony.

- Acha que não? - perguntou Christophe com voz amável - Devemos discutir esse tema mais tarde, minha querida prima. Agora acredito que será melhor que nos reunamos com a avó e nosso convidado. - Sorriu-lhe maliciosamente e Serenity sentiu grandes desejos de lhe assassinar - Devem estar perguntando-se onde diabos estamos.

Era evidente que nenhum dos dois tinha se preocupado por onde eles estivessem, percebeu Serenity quando entrou na sala agarrada ao braço de Christophe. A condessa tinha engenhado maravilhosamente para entreter Tony falando sobre a fascinante coleção de caixas Fabergé que se exibiam em uma ampla vitrine.

O jantar começou com "vichyssoise", um prato frio e refrescante, e a conversação se desenvolveu em inglês como deferência para Tony. Os temas eram gerais e impessoais e Serenity se sentiu relaxada, ordenando a seus músculos que se desenredassem, quando terminaram a sopa e procederam a servir o "homard grillé". A lagosta era deliciosa e ela pensou ociosamente que, se a cozinheira era efetivamente um dragão como tinha brincado Christophe no primeiro dia, não havia dúvida de que era um dragão muito habilidoso.

- Imagino que a mudança do castelo até sua casa em Georgetown não deva ter sido muito complicada para sua mãe, Serenity - disse Tony de repente e Serenity lhe olhou confusa.

- Acredito que não entendo muito bem a que se refere.

- Existem tantas similaridades básicas - observou ele e, ao perceber a expressão sobressaltada de Serenity, acrescentou - Naturalmente, no castelo tudo está construído a uma escala maior, mas repara nos altos tetos, nas lareiras em cada aposento, no estilo dos móveis. Mas até o corrimão das escadas é igual. Não é possível que não tenha se dado conta?

- Pois, sim, suponho que sim - respondeu Serenity lentamente - embora não com a claridade com que o vejo agora.

Talvez, refletiu, seu pai tinha eleito precisamente aquela casa em Georgetown porque ele também tinha notado essas similaridades e sua mãe tinha escolhido os móveis seguindo os padrões de sua memória, cujas lembranças a remontavam à infância transcorrida no castelo. Esse pensamento lhe produziu uma cálida sensação.

- Sim, inclusive os corrimões das escadas - continuou dizendo com um brilhante sorriso - Eu costumava deslizar por eles continuamente, do estúdio que estava no terceiro andar até o primeiro piso e então continuava por esse improvisado tobogã até o térreo. - O sorriso se converteu em uma sonora gargalhada - Mamãe costumava me dizer que outra parte de minha anatomia devia ser tão dura como minha cabeça para suportar esse castigo.

- Ela também costumava me dizer o mesmo  - disse Christophe subitamente e o surpreendido olhar de Serenity se voltou para ele - É claro, pequena. -Christophe respondeu a seu olhar sobressaltado com um de seus incomuns sorrisos - Que sentido tem caminhar se a gente pode deslizar?

A imagem de um menino moreno voando para baixo pelo estreito sulco do corrimão e de sua mãe, Gaelle, jovem e formosa, lhe observando sorridente, encheu sua mente. Seu olhar de assombro se converteu gradualmente em um sorriso que imitava o de Christophe.

Serenity deu conta do estupendo "soufflé", ligeiro como uma nuvem, acompanhando-o com uns sorvos de champanha seco e borbulhante. Descobriu que desfrutava autenticamente do jantar e deixou que a conversação fluísse calidamente a seu redor.

Quando o jantar terminou, dirigiram-se ao salão principal e Serenity recusou o oferecimento de uma taça de conhaque ou licor. A sensação de plenitude persistia nela e suspeitou que ao menos parte dessa sensação, tinha decidido não pensar na outra parte e na apaixonada cena que tinha compartilhado com Christophe antes do jantar, devia atribui-la ao vinho que tinha bebido. Nenhum dos presentes pareceu notar seu estado pensativo, suas bochechas rosadas e suas respostas quase mecânicas. Seus sentidos estavam insuportavelmente atentos enquanto ouvia a música das vozes, o tom grave dos homens mesclando-se com os tons cristalinos da voz de sua avó. Inalou com prazer sensual a fumaça que se desprendia do cigarro de Christophe e aspirou profundamente a combinação de seu perfume e o da condessa com o aroma sutil das rosas que enchiam cada vaso do salão. Um agradável equilíbrio, refletiu, a artista respondendo e desfrutando da harmonia e da fluida continuidade da cena que se desenvolvia diante de seus olhos. As luzes suaves, a tênue brisa que agitava apenas as cortinas, o apagado som das taças ao serem depositadas sobre a mesa... tudo se fixava em um tecido impressionista que seu olho registrava e armazenava em sua mente.

A augusta condessa, magnífica em seu trono de brocado, presidia a reunião bebendo nata de hortelã em uma delicada taça com borda de ouro. Tony e Christophe estavam sentados frente a frente, como a noite e o dia ou anjo e demônio. Esta última comparação sobressaltou Serenity. "Anjo e demônio?", repetiu em silêncio enquanto estudava aos dois homens.

Tony, o doce, confiável e previsível Tony, que aplicava a mais tenra das pressões. Tony, o da infinita paciência e dos planos cuidadosamente raciocinados. O que sentia por ele? Afeto, lealdade, gratidão por estar aí quando ela necessitava dele. Um amor aprazível e confortável.

Seus olhos se moveram para Christophe. Arrogante, autoritário, exasperante e excitante. Um homem que exigia aquilo que desejava e acabava por tomá-lo, utilizando seu súbito e inesperado sorriso para lhe roubar o coração como um ladrão noturno. Christophe era taciturno, enquanto Tony era constante, um era imperioso enquanto que o outro era persuasivo. Mas se os beijos de Tony tinham sido prazerosos e incitantes, os do Christophe eram grosseiramente perturbadores e convertiam seu sangue em um rio de fogo e a transportavam a um mundo desconhecido de sensações e desejos. E o amor que sentia por ele não era aprazível nem confortável, era impetuoso e inevitável.

- É uma verdadeira lástima que não toque piano, Serenity.

A voz da condessa a fez retornar à realidade com um súbito estremecimento.

- Oh, mas Serenity toca piano, madame! - informou Tony com um amplo sorriso - Horrivelmente mal, mas o toca.

- Traidor! - exclamou Serenity com um encantador sorriso.

- Não toca bem o piano? - a condessa se mostrava absolutamente incrédula.

- Lamento trazer a desgraça novamente à família, avó - se desculpou Serenity - Mas não só não toco bem, sinto que o faço completamente mal. Inclusive ofendo a sensibilidade de Tony, que é virtualmente surdo em questões musicais.

- Querida, ofenderia um cadáver com sua forma de tocar.

Tony afastou um cacho rebelde do rosto de Serenity, com um gesto casual e carinhoso.

- É verdade. - Lhe sorriu antes de olhar a sua avó - Pobre avó, não faça essa cara tão triste.

O sorriso de Serenity se desvaneceu quando seus olhos perceberam o frio olhar de Christophe.

- Gaelle, por sua vez, tocava maravilhosamente - disse a condessa agitando uma mão.

Serenity voltou a atrair a atenção da condessa, tratando de sacudir o calafrio que lhe tinham produzido os olhos de Christophe. - Ela nunca pôde entender por que eu assassinava a música mas, inclusive com sua infinita paciência, finalmente se deu por vencida e me deixou com meus tecidos e minhas pinturas.

- "Extraordinaire"! - A condessa meneou a cabeça e Serenity se encolheu de ombros e bebeu lentamente seu café - Já que você não pode tocar para nós, "ma petite" - disse a anciã com uma repentina mudança de humor - talvez agrade monsieur Rollins dar um passeio pelo jardim. - Sorriu perversamente - Serenity desfruta muitíssimo do jardim à luz da lua, não é mesmo?

- Isso soa muito tentador - concordou Tony antes que Serenity pudesse responder. Enviando a sua avó um olhar carregado de significado, Serenity convidou a que Tony a acompanhasse ao jardim.

 

Pela segunda vez Serenity dirigiu seus passos para o jardim banhado pela luz da lua e acompanhada por um homem alto e atraente e, pela segunda vez, desejou fervorosamente que fosse Christophe quem estivesse a seu lado. Caminharam em silêncio, desfrutando do ar fresco da noite e do prazer das mãos entrelaçadas.

- Está apaixonada por ele, não é?

A pergunta de Tony quebrou o silêncio como uma pedra lançada contra um cristal. Serenity se deteve e lhe olhou com olhos assombrados.

- Serenity. - Tony suspirou e acariciou a bochecha da mulher com um dedo - Posso ler em você como em um livro. Está fazendo todo o possível para ocultá-lo, mas está louca por ele.

- Tony, eu... - balbuciou, sentindo-se culpada e muito miserável - Nunca foi minha intenção me apaixonar por ele. Na realidade, nem sequer gosto do jeito dele.

- Caramba! - Tony deu uma risada breve e falsa - Eu gostaria que não gostasse de mim desse modo. Mas - acrescentou, lhe elevando o queixo - isso nunca ocorreu.

- Oh, Tony...

- Sempre foi sincera comigo, querida - disse ele - Não tem por que se sentir culpada de nada. Eu pensei que com uma perseguição permanente e discreta podia acabar com sua resistência. Tony deslizou seu braço por cima dos ombros de Serenity enquanto continuavam o passeio pelo jardim na penumbra - Tem que saber, Serenity, que é muito enganosa. Parece uma flor delicada e frágil, tão frágil que um homem teme toca-la por medo de que possa se romper, mas na verdade é incrivelmente forte. Nunca cambaleia, querida. Esperei um longo ano para conquista-la, mas você nunca dá um passo em falso.

- Se meu comportamento e o mau humor que me caracteriza tivessem exasperado você, Tony. - Lançando um suspiro, Serenity se reclinou contra seu ombro - Eu nunca poderia ser o que você necessita e se tratasse de mudar não adiantaria. Terminaríamos nos odiando um ao outro.

- Sei. Sempre o soube, mas não queria admiti-lo. Quando partiu para a Bretanha, eu sabia que tudo tinha terminado entre nós. Por isso vim vê-la; tinha que vê-la uma vez mais.

As palavras de Tony pareciam tão definitivas que Serenity elevou rapidamente a vista e o olhou com surpresa.

- Mas voltaremos a ver-nos, Tony; ainda somos amigos. Eu retornarei logo a Washington.

Tony voltou a deter-se e a olhou enquanto o silêncio crescia entre ambos.

- Tem certeza, Serenity?

 

Uma vez que pronunciou estas palavras, Tony lhe fez dar meia volta e os dois empreenderam a volta ao iluminado castelo.

Na manhã seguinte, os raios de sol esquentavam os ombros nus de Serenity enquanto ela se despedia de Tony. Ele já tinha saudado a condessa e Christophe, e Serenity o tinha acompanhado da fresca atmosfera do vestíbulo principal até o calor que desprendiam os ladrilhos do pátio. O pequeno Renault cor vermelha lhe esperava com a bagagem já no porta-malas. Tony deu uma olhada antes de voltar-se para ela e lhe agarrar as mãos.

- Que seja feliz, Serenity - disse, apertando por um momento as mãos dela e logo as soltando - Pensa em mim alguma vez.

- É obvio que pensarei em você, Tony. Escreverei e o contarei a data de minha volta. Tony lhe sorriu e seus olhos se atrasaram no limpo rosto de Serenity, como se quisesse fixar em sua memória cada detalhe.

- Pensarei em ti exatamente como está hoje, com um vestido amarelo, o sol no cabelo e um castelo a suas costas... a beleza eterna de Serenity Smith, a moça dos olhos dourados.

A boca de Tony desceu ao seu rosto e Serenity sentiu uma súbita quebra de onda de emoção e a estranha premonição de que nunca mais voltaria a vê-lo. abraçou-se ao Tony, atendo-se a seu pescoço e ao passado. Os lábios dele beijaram seu cabelo antes de separar-se dela.

- Adeus, querida.

Tony sorriu e lhe deu uns tapinhas na bochecha.

- Adeus, Tony. Se cuide.

Devolveu-lhe o sorriso, reprimindo decididamente as lágrimas que lhe queimavam os olhos.

Serenity observou-o enquanto se afastava em direção ao carro, subia nele e, com uma saudação com a mão, perdia-se no sinuoso caminho. O carro se converteu em um ponto vermelho à distância e então, paulatinamente, foi perdendo-se de vista. Serenity permaneceu imóvel, sentindo que as lágrimas banhavam suas bochechas uma vez liberadas da prisão de seus olhos. Um braço a enlaçou pela cintura e, ao voltar-se, encontrou a sua avó com uma expressão tenra e pormenorizada em seu rosto anguloso.

- Está triste porque ele partiu, “ma petite”?

O braço da condessa era confortável e Serenity reclinou a cabeça sobre o frágil ombro de sua avó.

- “Oui”, avó, muito triste.

- Mas não está apaixonada por ele.

Era uma afirmação mais que uma pergunta, e ela lançou um fundo suspiro.

- Era uma pessoa muito especial para mim. – enxugou uma lágrima que permanecia em sua bochecha e soluçou como uma menina - Farei muito de menos. Agora irei a meu quarto e porei-me a chorar como é devido.

- “Oui”, acredito que é uma sábia decisão. - A condessa lhe espalmou o ombro - Um bom pranto é o melhor para esclarecer a mente e limpar o coração. - Serenity a abraçou estreitamente - Vamos, pequena, vai a seu aposento e derrama todas suas lágrimas.

Serenity subiu velozmente os degraus de pedra e entrou no fresco vestíbulo do castelo. Correu para a escada principal e se chocou contra algo duro. Umas mãos a aprisionaram pelos ombros.

- Deve olhar por onde vai, “ma chérie” - a voz zombadora de Christophe ressonou em seus ouvidos - Se chocará contra as paredes e poderia arruinar seu formoso nariz.

Tratou de escapar mas uma mão poderosa lhe impediu todo movimento enquanto a outra lhe jogava a cabeça para trás pressionando seu queixo. Ao descobrir os olhos avermelhados de Serenity, a expressão zombadora do Christophe se converteu em surpresa, então em preocupação e, por último, em uma desacostumada impotência. - Serenity?

Seu nome era em realidade uma pergunta e tinha empregado o tom de voz mais carinhoso que já tinha ouvido dele. A ternura que se advertia em seus olhos escuros terminou por destruir a delicada compostura que Serenity se esforçava por manter.

- Oh, por favor - exclamou com um soluço desesperado - Me deixe!

Debateu-se para liberar-se de seus braços enquanto lutava desesperadamente para não desmoronar de todo e desejando, não obstante, que ele a estreitasse contra seu peito.

- Posso fazer algo por ti?

Christophe a reteve colocando uma mão sobre seu braço.

"Sim, sou idiota!, - gritou seu cérebro - Me ame!"  - Não - disse em voz alta, correndo para cima das escadas - Não, não, não!

Subiu os degraus como se fosse uma lebre dourada perseguida pelos caçadores. Quando chegou a seu quarto, abriu a porta com violência, fechou-a e se jogou sobre a enorme cama, sepultando o rosto entre as duas mãos.

 

As lágrimas tinham produzido seu milagre. Serenity, finalmente, sentiu-se capaz de enxugar o rosto e enfrentar o mundo e qualquer surpresa que o futuro lhe proporcionasse. Deu uma olhada no envelope de papel pardo que tinha jogado com negligência sobre a escrivaninha.

- Bem, acredito que já é hora de ver o que o velho Barkley me enviou com o Tony. Serenity se levantou da cama e se dirigiu à escrivaninha para abrir o envelope. Voltou a deitar-se na cama, rompeu o lacre e deixou cair o conteúdo do envelope.

Havia só uma folha com o impressionante cabeçalho da assinatura de advogados, que a fez pensar novamente em Tony, e outro envelope selado. Agarrou a folha belamente datilografada, perguntando-se que novo formalismo tinha encontrado o testamento para que ela preenchesse. Quando começou a ler o conteúdo da carta e a inesperada mensagem que incluía, sentou-se de repente na cama.

 

Estimada senhorita Smith:

Anexo encontrará você um envelope dirigido a seu nome e que contém uma carta de seu pai. Esta carta foi deixada a meu cuidado para que fosse entregue só se você estabelecesse contato com a família de sua mãe na Bretanha. Através de Anthony Rollins, chegou a meu conhecimento que atualmente você reside no castelo Kergallen, em companhia de sua senhora avó, de modo que decidi que Anthony lhe entregue esta carta na data mais próxima possível.

Se você me tivesse informado sobre seus planos, eu teria completado antes com a vontade de seu pai. Eu, naturalmente, ignoro o conteúdo desta carta, mas estou persuadido de que a mensagem de seu pai a reconfortará.

M. Barkley

 

Serenity deixou de ler, pôs a carta do advogado de lado e agarrou a mensagem que seu pai lhe tinha deixado em custódia. Olhou o envelope que tinha ficado virado na cama e, lhe dando a volta, seus olhos se nublaram ao reconhecer a caligrafia familiar. Abriu muito rapidamente o mesmo.

A carta estava escrita com a letra clara e pessoal de seu pai:

 

Minha querida Serenity:

Quando leres está carta, sua mãe e eu não estaremos já contigo e rogo para que sua dor não seja muito profunda, porque o amor que nós sentimos por ti permanece vivo e intenso como a vida mesma.

No momento em que escrevo estas linhas tem dez anos e já é a viva imagem de sua mãe, é tão adorável que estou pensando inclusive nos meninos que terei que se separar de seu lado dentro de poucos anos. Esta manhã estive observando-a enquanto estava agradavelmente sentada, uma ocupação incomum em ti, já que estou acostumado a vê-la quando patina ou deslizando à velocidade vertiginosa pelos corrimões das escadas, sem pensar nos riscos.

Estava sentada no jardim com meu caderno de esboços e meus lápis, desenhando muito concentrada as azaléias. A vi nesse instante e compreendi, com orgulho e também com desespero, que estava crescendo e que, não seria sempre minha pequena menina, a salvo na segurança que sua mãe e eu lhe tínhamos dado. Soube então que era necessário que escrevesse alguns fatos que talvez algum dia tivesse necessidade de entender. Darei instruções ao velho Barkley (um sorriso apareceu nos lábios de Serenity ao notar que conhecia o advogado por esse nome fazia já muitos anos) para que conserve está carta para você até o dia em que sua avó, ou algum membro da família de sua mãe, entre em contato com você. Se isso não ocorrer, não haveria necessidade alguma de revelar o segredo que sua mãe e eu mantivemos durante mais de uma década.

Eu me encontrava pintando nas calçadas de Paris, desfrutando do esplendor da primavera, apaixonado pela cidade e sem mais amante que minha arte. Naquela época, eu era muito jovem e, temo, muito impulsivo. Foi então que conheci um homem, Jean-Paul le Goff, que se sentiu vivamente impressionado, segundo suas palavras, por meu jovem e acanhado talento. Encarregou-me que pintasse o retrato de sua noiva para dar de presente no dia de suas bodas e fez todos os acertos para que eu me mudasse para a Bretanha e me alojasse no castelo de Kergallen. Minha vida começou no momento em que entrei no enorme vestíbulo e vi pela primeira vez a sua mãe.

Não era minha intenção seguir os desmandos de meu coração do instante em que a vi, um delicado anjo com o cabelo da cor do sol. Tratei com todas minhas forças de antepor minha arte a meus sentimentos. Eu estava ali para pintar seu retrato, ela pertencia ao castelo e ao homem que me tinha contratado. Era um anjo, uma aristocrata que pertencia a uma família cuja linhagem se remontava do início dos tempos. Todas estas coisas me repeti centenas de vezes. Jonathan Smith, um artista itinerante, não tinha direito de possuí-la nem em seus sonhos; devia deixar em paz a realidade. Houve momentos, enquanto efetuava os esboços preliminares, em que acreditava que morreria de amor por ela. Dizia-me mesmo que devia partir, mas não encontrei a coragem para fazê-lo. Agora agradeço a Deus não tê-lo feito.

Uma noite, enquanto dava um passeio pelo jardim, encontrei-me com ela. Pensei em me afastar para não incomodá-la, mas ela me escutou e, quando se voltou, descobri em seus olhos aquilo com que não me tinha atrevido a sonhar. Ela me amava. Poderia ter gritado de felicidade mas existiam inumeráveis obstáculos. Ela estava comprometida a casar-se com outro homem e, além disso, a honra de ambas as famílias amparava esse vínculo. Nós não tínhamos direito a nosso amor. Mas alguém precisa ter direito para amar, Serenity? Alguns nos condenaram. Rogo que você não o faça. Depois de muitas palavras e muitas mais lágrimas, decidimos desafiar aquilo que alguns poderiam chamar o direito e a honra, e nos casamos. Gaelle me implorou que mantivesse as bodas em segredo até que encontrasse a melhor maneira de dizer a Jean-Paul e a sua mãe. Eu desejava que o mundo soubesse, mas acatei a seus rogos. Ela tinha renunciado a tanto por mim, que eu não podia lhe negar absolutamente nada.

Durante este tempo de espera, produziu-se um problema ainda mais sério. A condessa, sua avó, tinha entre suas posses uma Madonna feita por Rafael, que exibia com orgulho no salão principal do castelo. Tratava-se de uma pintura, conforme me explicou a condessa, que tinha estado em sua família durante gerações. Depois de Gaelle, ela amava esta pintura mais que qualquer outra coisa no mundo. Para ela, parecia simbolizar a continuidade de sua família, um farol brilhante que ainda projetava sua luz depois do inferno da guerra. Eu tinha examinado atentamente essa pintura e suspeitava que se tratava de uma falsificação. Mas não disse nada, pensando a princípio que talvez a condessa tivesse feito pintar uma cópia. Os alemães lhe tinham arrebatado tantas coisas - lar, marido, etc. - que também levaram possivelmente o Rafael original.

Quando anunciou que tinha decidido doar a pintura ao Louvre com objetivo de compartilhar sua grandeza, o medo esteve a ponto de me deixar paralisado. Eu me tinha afeiçoado àquela mulher, por seu orgulho e determinação, sua graça e sua dignidade. Não desejava que a ferissem e compreendi que ela estava convencida de que a pintura era autêntica. Eu sabia que a Gaelle atormentaria o escândalo se recusassem a pintura por ser uma fraude e a condessa não se recomporia jamais de semelhante golpe. Não podia permitir que tal coisa ocorresse. Ofereci-me a limpar a pintura a fim de poder estudá-la a fundo e me senti como um traidor.

Levei a Madonna a meu estúdio na torre e, depois, de um detido estudo, não tive nenhuma dúvida de que se tratava de uma excelente cópia. Não obstante, eu não teria sabido o que fazer se não fosse pela carta que encontrei oculta atrás do bastidor. A carta era uma confissão do primeiro marido da condessa, um grito desesperado pela traição que tinha cometido. Confessava ter perdido quase todas suas posses e também as de sua esposa. Estava afogado pelas dívidas e, depois de decidir que os alemães derrotariam aos aliados, deu todos os passos necessários para lhes vender a pintura. Encarregou que pintassem uma cópia e substituiu o original sem o conhecimento de sua esposa, convencido de que o dinheiro que receberia pela venda da Madonna lhe faria imune às conseqüências da guerra, e de que o trato com os alemães manteria sua propriedade a salvo. Quando já era muito tarde, compreendeu a insensatez de sua ação e, ocultando a confissão no bastidor do quadro falso, saiu ao encontro dos homens com quem tinha combinado para lhes devolver o dinheiro. A carta terminava no parágrafo em que falava desta decisão e rogava que perdoassem seu proceder em caso de não ter êxito em sua empresa.

Quando terminei de ler a carta, Gaelle entrou no estúdio. Eu não tinha tido a precaução de fechar a porta com a chave. Foi impossível ocultar minha reação e a carta que ainda conservava na mão, e portanto me vi obrigado a compartilhar essa carga com a única pessoa a quem eu teria economizado qualquer desgosto. Naquele momento, e naquela torre isolada, descobri que a mulher que eu amava possuía mais força que muitos homens. Ela decidiu que sua mãe jamais devia inteirar-se da existência dessa carta. Disse que era imperativo que a condessa fosse protegida da humilhação e que nunca devia inteirar-se de que essa pintura que ela amava tanto não era mais que uma falsificação. Elaboramos um plano para ocultar a pintura e fazer todo mundo acreditar que tinha sido roubada. Talvez cometemos um engano. Ainda hoje não sei se atuamos corretamente. Mas para sua mãe não havia outra saída. E, em conseqüência, levamos a cabo nosso plano.

Os projetos de Gaelle de informar a sua mãe sobre nossas bodas foram feitos realidade muito em breve. Gaelle descobriu, para nossa enorme felicidade, que levava um filho no ventre, você, o fruto de nosso amor e que cresceria até converter-se no tesouro mais prezado de nossas vidas. Quando contou a sua mãe que nos tínhamos casado em segredo e que estava grávida, a condessa ficou furiosa. Tinha direito de sentir-se assim, Serenity, e a animosidade que sentia por mim ficou plenamente justificada a seus olhos. Tinha-lhe arrebatado a sua filha sem sua autorização e, ao fazê-lo, tinha manchado a honra de sua família. Presa de ira, repudiou Gaelle, e nos ordenou que abandonássemos o castelo e não voltássemos a pôr nossos pés nele. Eu pensei que, transcorrido certo tempo, ela revogaria sua decisão, já que amava Gaelle mais que a sua vida. Mas esse mesmo dia descobriu que o Rafael tinha desaparecido. Somando dois mais dois, acusou-me de lhe haver roubado, não só a sua filha mas também seu tesouro familiar. Como podia negá-lo? Um delito não era pior que o outro e a mensagem nos olhos de sua mãe me implorava que mantivesse silêncio. De modo que levei a sua mãe do castelo, afastando-a de seu país, de sua família e de sua herança, e a levei comigo aos Estados Unidos.

Decidimos não falar de sua mãe, porque isso só nos produzia uma grande dor, e construímos nossa vida tendo a você para que fortalecesse ainda mais nosso vínculo. E agora já tem a história e com ela, me perdoe, a responsabilidade. Talvez no momento em que ler esta carta seja possível contar toda a verdade. Se não for assim, deixa que permaneça oculta, do mesmo modo que foi a falsa Madonna de Rafael, separada do mundo e oculta em algo imensamente mais precioso. Faz o que lhe disser o coração.

Seu pai que a ama.

 

As lágrimas de Serenity tinham caído sobre o papel desde a primeira linha e agora, quando acabou de ler a carta, secou o rosto e lançou um profundo suspiro. Abandonou a cama e caminhou para a janela. Olhou longamente o jardim onde seus pais confessaram pela primeira vez seu amor.

-O que devo fazer? - perguntou-se em voz alta, com a carta ainda na mão.

"Se tivesse lido esta carta faz um mês, teria ido diretamente falar com a condessa, mas agora não sei o que fazer", repetiu-se em silêncio.

Para deixar limpo o nome de seu pai teria que revelar um segredo que tinha permanecido oculto durante vinte e cinco anos. Obteria algo revelando o conteúdo da carta, ou só faria vãos os sacrifícios de seus pais? Seu pai lhe dizia na carta que devia fazer aquilo que lhe ditasse o coração, mas este estava tão cheio de amor e de angústia depois de ter lido a mensagem de seu pai, que ela era incapaz de escutar o que pudesse lhe dizer, e em sua mente se formaram grandes nuvens de confusão. Serenity sentiu o súbito impulso de consultar Christophe, mas o desprezou rapidamente. O fato de confiar nele a tornaria ainda mais vulnerável, e a separação que logo ocorreria entre eles seria mais angustiosa.

Devia pensar, decidiu, suspirando várias vezes. Devia afastar a névoa de sua mente e pensar clara e cuidadosamente, e quando achasse uma resposta tinha que se assegurar de que fosse a correta.

Caminhando de um lado a outro de seu quarto, deteve-se de repente e começou a trocar de roupa a toda pressa. Recordou a sensação de liberdade que tinha experimentado enquanto caminhava pelo bosque e era precisamente esta sensação, decidiu enquanto colocava os jeans e uma camisa, de que ela necessitava para tranqüilizar seu coração e esclarecer suas idéias.

 

O cavalariço obedeceu com receio à ordem de que selasse Babette. Argumentou, com todo respeito, que ela não contava com a autorização do conde para montar a égua e, por sua vez, Serenity empregou sua herança aristocrática e lhe informou altivamente que, sendo como era a neta da condessa, não deviam questionar-se seus desejos. O rapaz obedeceu, murmurando um protesto em língua bretã, e logo Serenity montou a égua e se dirigiu imediatamente para o atalho que Christophe tinha tomado na primeira lição.

O bosque era um lugar aprazível e formoso, e Serenity esvaziou completamente sua mente esperando que a resposta que desejava encontrasse seu caminho para fazer sua aparição. Levou a égua caminhando durante uns minutos e descobriu que era bastante fácil conservar o controle e a autoridade sobre o animal, agora que se sentia parte dele. Entretanto, a solução de seu problema não parecia estar perto e iniciou um ligeiro galope.

Ela e a égua se moviam compassadamente, e o vento agitava seu cabelo afastando-o do rosto e dando essa sensação de liberdade que estava procurando. A carta de seu pai estava bem segura em seu bolso posterior e Serenity decidiu galopar até o topo da colina que dominava o povoado e voltar a lê-la, esperando encontrar então a sabedoria necessária para tomar a decisão correta.

Ouviu um grito a suas costas e, ao voltar a cabeça, divisou Christophe que se aproximava à carreira montando seu brioso alazão. Ao voltar-se, seu pé fez pressão no flanco de Babette e a égua tomou como uma ordem e começou a galopar velozmente. Serenity esteve a ponto de cair dos arreios e lutou por permanecer erguida sobre a égua, enquanto Babette parecia voar pelo estreito atalho. A princípio, toda sua atenção se concentrou em manter o equilíbrio, sem pensar sequer em tentar frear a desenfreada carreira da égua. antes que seu cérebro tivesse a oportunidade de comunicar-se com suas mãos e lhe ordenar que freassem a Babette, Christophe chegou a seu lado. Logo, estendendo um braço, deteve a égua enquanto exclamava inumeráveis insultos em uma apaixonada variedade de idiomas.

Babette se deteve docilmente e Serenity fechou os olhos com profundo alívio. Imediatamente sentiu que a agarravam pela cintura e a tiravam dos arreios sem nenhum tipo de cerimônia, enquanto os olhos de Christophe, como brasas acesas, olhavam-na fixamente.

- O que pensava conseguir escapando de mim? - perguntou sacudindo-a como se fosse uma boneca de pano.

- Eu não estava escapando de ti - protestou Serenity com voz trêmula por causa das sacudidas que lhe dava Christophe - Suponho que devo ter incitado Babette quando dava a volta para ouvir seu grito. - Sua própria ira começava a substituir a sensação inicial de alívio - Nada disto teria acontecido se você não tivesse saído em minha perseguição. - Serenity começou a debater-se para afastar-se dele, mas Christophe acentuou dolorosamente a pressão de sua mão - Está me machucando! - gritou ela - Por que sempre tem que me machucar?

- Um pescoço quebrado é muito mais doloroso, minha pequena louca, - disse ele, afastando-a dos cavalos e caminhando com ela por um atalho - é o que teria ocorrido. O que fazia cavalgando sem escolta?

- Sem escolta? - repetiu Serenity, rindo e afastando-se dele - Que exótico. Acaso às mulheres não se permite passear a cavalo sem escolta na Bretanha?

- Não às mulheres que carecem de cérebro - replicou ele com fúria - e tampouco àquelas que só montaram duas vezes em sua vida.

- Não tinha tido nenhum problema até que você chegou. - Serenity elevou a cabeça altivamente - Agora parta e me deixe sozinha. - Ela notou que Christophe entrecerrava os olhos enquanto dava um passo para ela - Vá! - gritou Serenity retrocedendo - Preciso ficar sozinha. Tenho coisas no que pensar.

- Eu lhe darei algo mais em que pensar.

Christophe se moveu depressa, agarrando-a por trás da cabeça e lhe cortando o fôlego com seus lábios. Serenity tentou separar-se dele sem êxito, lutando contra seu abraço e também contra o torvelinho que começava a formar-se em sua cabeça. Agarrando-a pelos ombros, Christophe a sacudiu enquanto seus dedos se afundavam na carne de Serenity.

- Basta! Deixe de lutar! - Voltou a sacudi-la e ela descobriu pela expressão de seu rosto que o aristocrata se esfumou e agora só ficava o homem - Desejo você. E quero aquilo que nenhum homem pôde conseguir... e, Por Deus, que a farei minha.

Christophe a apertou contra seu corpo e Serenity se debateu com um medo selvagem e primitivo, golpeando seu peito como um pássaro prisioneiro que golpeava as grades de sua jaula, mas ele não se moveu e seu abraço se fez mais seguro, como se em lugar de uma mulher aterrorizada ela fosse uma menina obediente.

Um momento depois Serenity se encontrou sobre a terra úmida e esmagada sob o peso do corpo de Christophe, enquanto sentia que seus lábios lhe devastavam a boca. Seus protestos não tinham mais efeito que o de um movimento arrojado no oceano. Com um movimento veloz e violento, lhe abriu a blusa reclamando sua pele nua com dedos ardentes; sua paixão estava cheia de uma urgência desesperada que conquistava todo intento de resistência, toda vontade de luta.

A luta se transformou em exigência e sua boca se tornou ofegante sob os lábios de Christophe, as mãos que fazia um momento tinham tentado lhe separar dela agora o atraíam com frenesi. Inundada na vertigem da paixão, Serenity se recreou na intimidade daquele corpo duro que se movia ao ritmo do instinto atávico. Com absoluta liberdade e com crescente urgência, os dedos de Christophe riscavam sulcos de calor sobre sua pele nua, sua boca seguia o rastro do incêndio e voltava uma e outra vez a apagar a sede entre seus lábios. Mas a sede aumentava sem cessar e suas demandas a transportavam a um mundo novo e atemporal, a uma fronteira que separava o céu e o inferno, onde só podiam existir um homem e uma mulher.

Christophe a levou para insondáveis profundidades, até que o prazer e a dor se converteram em uma sensação turbulenta que exigia a satisfação imediata do prazer. Indefesa sob a ardente paixão, Serenity sentiu um lento tremor que foi fazendo-se mais intenso à medida que a viagem a levava longe do conhecido e mais perto do nunca visto. Com um gemido em que se mesclavam o temor e o desejo, seus dedos se cravaram nos ombros de Christophe como se tentasse não cair em um vazio eterno.

A boca de Christophe se afastou subitamente de seus lábios e, com a respiração entrecortada, sua bochecha descansou brevemente sobre seu rosto antes de levantar a cabeça e olhá-la intensamente.

- Acredito que estou te fazendo dano outra vez, "ma petite". - Lançou um suspiro e se separou dela até ficar de costas a seu lado - Joguei no chão e estive a ponto de violá-la como se fosse um bárbaro. É terrivelmente difícil controlar meus instintos quando estou contigo.

Serenity se sentou e começou a fechar a blusa com dedos trêmulos.

- Está bem. - Tentou que sua voz parecesse indiferente, mas não conseguiu - Não me tem feito mal. Freqüentemente me dizem que sou uma mulher muito forte. Não obstante, acredito que deveria aprender a controlar sua técnica - balbuciou para ocultar a profundidade de sua dor - Geneviéve é mais frágil que eu.

- Geneviéve? - repetiu ele, apoiando-se em um cotovelo para olhá-la diretamente aos olhos - O que tem que ver Geneviéve com isso?

- Com isso? - respondeu ela - Oh, nada. Não tenho intenção de lhe contar nada do que ocorreu. Gosto muito dela.

- Talvez devêssemos falar em francês, Serenity. Não consigo entender o que quer me dizer.

- Geneviéve está apaixonada por ti, seu idiota! - exclamou ela ignorando seu pedido de que falassem em francês - Ela mesma me disse isso. Veio me pedir que a aconselhasse. - Serenity conseguiu controlar a risada histérica que tentava escapar de seus lábios. - Ela me pediu que lhe aconselhasse - repetiu - o que devia fazer para que você a considerasse uma mulher e não uma menina divertida. Eu não lhe disse que opinião tinha de ti; Geneviéve não o teria entendido.

- Ela disse que estava apaixonada por mim? - perguntou ele com os olhos entrecerrados. - Não mencionou seu nome - disse ela, desejando que essa conversação não tivesse começado nunca - Disse que tinha estado apaixonada por um homem toda sua vida e que ele a olhava como se fosse uma menina. Eu simplesmente lhe disse que falasse claramente com ele e lhe fizesse compreender que ela era uma mulher... do que ri?

- E você pensou que ela estava falando de mim? - Christophe jogou a cabeça para trás e pôs-se a rir convulsivamente, de um modo que ela jamais tinha visto nele - A pequena Geneviéve apaixonada por mim!

- Como se atreve a rir dela? Como pode ser tão cruel e rir de alguém que o ama?

Christophe lhe sujeitou os punhos antes que estabelecessem contato com seu peito. - Geneviéve não a buscou para que a aconselhasse com respeito a mim, "chérie". - Christophe a manteve imobilizada sem maior esforço - Ela estava falando de Iann. Mas você ainda não conheceu o Iann, não é, "mon amour"? - Ignorou seus furiosos movimentos e continuou falando com um sorriso zombador dançando em seus lábios. Crescemos juntos... lann, Yves e eu. A pequena Geneviéve sempre nos seguia como um cachorrinho. Yves e eu seguimos sendo seus "irmãos" quando se converteu em uma mulher, mas estava apaixonada por Iann. Ele esteve em Paris a negócios durante todo o mês passado e retornou ontem a Bretanha. - Com um ligeiro movimento de seus pulsos a estreitou contra seu peito - Geneviéve me chamou por telefone esta manhã e me disse que se comprometeu. Também me disse que desse os agradecimentos em seu nome e agora sei a que se referia.

A careta zombadora de Christophe iluminou seu rosto quando Serenity mostrou sua perplexidade com seus olhos ambarinos totalmente abertos.

- Que ela se comprometeu com lann? Então não estava falando de você?

- Sim, eles vão casar se. E não, não estava falando de mim - respondeu ele - Me diga, minha preciosa prima, sentiu-se ciumenta pensando que Geneviéve estava apaixonada por mim?

- Não seja ridículo - mentiu Serenity, tratando de afastar sua boca da proximidade de seus lábios úmidos - Não estaria mais ciumenta de Geneviéve que você de Yves.

- Ah. - Com um rápido movimento Christophe se colocou em cima dela e a olhou com seus olhos escuros - Pensa isso? E deveria dizer que estava terrivelmente ciumento de meu amigo Yves e de que estive a ponto de assassinar o seu amigo americano? Deu de presente a ambos os sorrisos que deviam ser para mim. Do momento em que a vi desembarcar do trem, senti-me perdido, enfeitiçado, e lutei contra esse sentimento como luta qualquer homem contra algo que quer lhe escravizar. Talvez esta forma de escravidão seja a liberdade. - Sua mão acariciou o loiro cabelo do Serenity—. Ah, Serenity, "je t'aime".

Ela respirou com crescente dificuldade, em um intento para encontrar sua própria voz. - Quer repetir o que acaba de dizer?

Christophe sorriu e sua boca percorreu seus lábios por um instante.

- Em inglês? Amo você. Amei do primeiro momento em que a vi, e agora amo imensamente mais e a amarei pelo resto de minha vida.

Seus lábios desceram até posar-se sobre os dela, movendo-se com uma ternura que Serenity não havia sentido antes, afastando-se só quando percebeu a umidade de seus olhos.

- Por que chora? - perguntou Christophe com o cenho franzido - O que fiz agora? Serenity meneou a cabeça.

- É só que eu também amo você e pensei... - Vacilou por um momento e logo suspirou profundamente - Christophe, acha que meu pai era inocente ou pensa que sou a filha de um ladrão?

A expressão de seu rosto se fez mais severa e a estudou em silêncio.

- Direi o que sei, Serenity, e também direi o que penso. Sei que amo você, não só o anjo que desembarcou do trem em Lannion, mas também a mulher que cheguei a conhecer. Não haveria nenhuma diferença se seu pai foi um ladrão, um vigarista ou um assassino. Escutei quando falas de seu pai e vi seu olhar quando o faz. Não posso acreditar que um homem que mereceu esse amor e essa devoção pudesse ter cometido semelhante delito. Isso é o que acredito, mas não tem nenhuma importância, porque nada do que tenha feito ou deixado de fazer poderia mudar o amor que sinto por ti.

- Ah, Christophe - sussurrou Serenity aproximando seu rosto - toda minha vida estive esperando alguém como você. Há algo que devo mostrar. - afastou-se brandamente dele e tirou a carta que levava no bolso - Meu pai me disse que escutasse a meu coração e agora meu coração pertence a você.

Serenity se sentou frente a ele, observou a expressão de seu rosto enquanto lia a carta e sentiu uma profunda paz, uma alegria que não tinha experimentado desde que seus pais tinham morrido. O amor que sentia por Christophe a enchia e sabia que ele a ajudaria a tomar a decisão correta. O bosque estava em silêncio, a tranqüilidade reinava na floresta, e só se ouvia o sussurro da brisa entre as folhas das árvores e o canto dos pássaros. Por um momento, converteu-se em um lugar fora do tempo e habitado só por uma mulher e um homem.

Quando Christophe terminou de ler a carta, elevou a vista do papel e a olhou.

- Seu pai amava muito a sua mãe.

- Sim.

Christophe dobrou cuidadosamente a carta, voltou a colocá-la dentro do envelope e em nenhum momento deixou de olhá-la.

- Teria gostado de conhecê-lo. Eu era apenas um pirralho quando ele veio ao castelo e não permaneceu muito tempo.

Serenity sustentou seu olhar.

- O que devemos fazer?

Christophe se aproximou dela e pegou seu rosto entre suas mãos.

- Devemos mostrar esta carta à nossa avó.

- Mas eles estão mortos e ela está viva. Eu a quero muito e não desejo que sofra.

Ele se inclinou para lhe beijar as pestanas. - Amo você, Serenity, por muitas razões, e agora acaba de acrescentar outra à lista. - Christophe lhe elevou a cabeça para olhá-la novamente aos olhos - Agora me escute, "mon amour", e confia em mim. Ela deve conhecer o conteúdo desta carta para tranqüilizar sua consciência. A avó acredita que sua filha a traiu para então abandoná-la. Viveu durante vinte e cinco anos acreditando que sua filha manchou a honra da família. Esta carta significará muito para ela. Poderá ler nas palavras de seu pai o amor que Gaelle sentia por ela e, o que é igualmente importante, compreenderá o amor que seu pai sentia por sua filha. Ele era um homem honrado, mas viveu pensando que a mãe de sua esposa estava convencida de que era um ladrão. Chegou o momento em que todo este assunto deve esclarecer-se para sempre.

- Está bem - concordou ela - Se crê que é o correto, faremos isso.

Christophe sorriu e lhe beijou as mãos antes de ajudá-la a se levantar do suave colchão de folhas.

- Me diga, querida prima - a risada zombadora e familiar iluminou seu rosto - sempre fará o que eu disser?

- Não - disse ela meneando vigorosamente a cabeça - Absolutamente.

- Ah, imaginei. - Os dois caminharam para onde estavam os cavalos - Nossa vida não será nada aborrecida. - Agarrou as rédeas de Babette e Serenity montou sem necessidade de que a ajudasse - É perturbadoramente independente, obstinada e impulsiva, mas amo você.

- E você - disse ela, enquanto Christophe montava agilmente em seu alazão - é arrogante, autoritário e presunçoso, mas eu também o amo.

Logo chegaram às cocheiras. depois de lhe entregar os cavalos ao cavalariço, dirigiram-se ao castelo de mãos dadas. Quando chegaram ao jardim, Christophe se deteve e a olhou.

- Deve ser você a entregar a carta à avó, Serenity - disse, extraindo a carta do bolso e entregando-lhe.

- Sim, eu sei - disse ela, pegando o envelope - Mas você estará comigo, não é?

- "Oui, ma petite". - Envolveu-a entre seus braços - Ficarei a seu lado.

Beijou-a meigamente e Serenity enlaçou seus braços em torno do pescoço dele até que o beijo se fez mais profundo e só existiram eles dois no mundo.

- Muito bem, meus filhos. - A voz da condessa rompeu o feitiço e ambos se voltaram para descobrir sua magra figura na beira do jardim - Vejo que decidiram deixar de lutar contra o inevitável.

- É muito sábia, avó - disse Christophe elevando uma sobrancelha - Mas acredito que nos poderíamos arrumar isso sem sua valiosa cooperação.

Os elegantes ombros da condessa se moveram significativamente.

- Mas os dois teriam perdido muito tempo e o tempo é um produto muito valioso.

- Entra conosco, avó. Serenity tem algo que deseja mostrar a você.

Os três entraram no amplo salão e a condessa se sentou no trono de brocado.

- O que é o que quer me mostrar, "ma petite"?

- Avó - disse Serenity aproximando-se da anciã - Tony me trouxe alguns documentos que meu advogado me enviou. Não me preocupei em averiguar seu conteúdo até que ele partiu, mas quando o fiz descobri que eram muito mais importantes do que eu tinha imaginado. - Entregou-lhe a carta - Antes que leia esta carta, quero que saiba que gosto muito de você. - A condessa abriu a boca para falar mas Serenity continuou - Amo Christophe e, antes de ler o que tem nas mãos, ele me disse que também me amava. Não posso dizer quão maravilhoso foi que me dissesse isso antes de ler essa carta. Nós dois decidimos que devia lê-la porque a amamos.

Serenity se sentou no sofá enquanto sua avó procedia a leitura da famosa carta; Christophe se sentou junto a ela e lhe pegou a mão.

Os olhos de Serenity permaneciam fixos no retrato de sua mãe e voltou a comprovar que no olhar de Gaelle havia alegria e felicidade, que era o olhar de uma mulher profundamente apaixonada. "Eu também a encontrei, mamãe - disse em silêncio - a entristecedora alegria do amor, e o tenho aqui em minha mão."

Baixou a vista para as mãos entrelaçadas onde os dedos bronzeados se cruzavam com os de alabastro e o anel de rubis que tinha pertencido a sua mãe brilhava com o contraste das cores. Olhou o anel e então elevou a vista e olhou a réplica que levava sua mãe, e então compreendeu. O movimento da condessa ao ficar em pé tirou Serenity de suas divagações.

- Durante vinte e cinco anos julguei mal a este homem e à filha que tanto amava. - Suas palavras eram suaves e a condessa se voltou para olhar para a janela - Meu orgulho me cegou e endureceu meu coração.

- Você não podia sabê-lo, avó - disse Serenity, observando as rígidas costas da condessa - Eles só queriam proteger você.

 

- Para me proteger do fato de que meu marido tinha sido um ladrão e da humilhação de um escândalo público, seu pai permitiu que lhe acusassem de roubo e minha filha renunciou a sua família. - A condessa se deixou cair novamente em sua elegante poltrona - Através das palavras de seu pai percebo claramente o amor. Diga-me, Serenity, minha filha foi feliz?

- Pode ver seus olhos quando meu pai a estava pintando. - Serenity assinalou o retrato - Sempre teve esse olhar.

- Como posso me perdoar pelo que fiz?

- Oh, não, avó. - Serenity ficou de pé e foi ajoelhar-se frente à condessa, agarrando suas mãos e as beijando - Não entreguei essa carta para acrescentar dor a seu espírito, mas para tirá-la. Leu a carta e sabe que eles não a culpam de nada. Ao contrário, eles decidiram voluntariamente que acreditasse que lhe tinham traído. Talvez cometeram um engano, mas parece, e já não se pode voltar atrás. - Apertou com força as magras mãos da condessa - Eu não a culpo de nada e rogo que faça desaparecer esse sentimento de culpa.

- Ah, Serenity, minha querida menina! - A voz da condessa era suave como seus olhos - Está bem - disse bruscamente erguendo novamente os ombros - Só recordaremos os tempos felizes. Você me contará a vida de Gaelle com seu pai em Georgetown e voltará a aproximá-los de mim, não é mesmo?

- "Oui", avó.

- Talvez um dia me leve para conhecer a casa onde cresceu.

- Aos Estados Unidos? - perguntou Serenity profundamente assombrada - Não tem medo de viajar a um país tão incivilizado?

- Volta a ser impertinente - disse a condessa altivamente enquanto se levantava de seu trono - Começo a acreditar que chegarei a conhecer muito bem a seu pai através de ti, Serenity. - A anciã meneou a cabeça - Quando penso no preço que tive que pagar por essa maldita pintura! Alegro-me de me haver liberado dela! - Ainda tem a cópia, avó disse Serenity - Eu sei onde está.

- Como sabe? - perguntou Christophe falando pela primeira vez desde que entraram no salão.

Serenity se voltou para ele com um sorriso. - Está aí, na carta, mas ao princípio não descobri. Quando nos sentamos no sofá e você me agarrou a mão, dei-me conta. Vê isto? - Elevou a mão mostrando o anel de rubis - Era de minha mãe, o mesmo anel que usa no retrato.

- Eu tinha visto o anel na pintura - disse a condessa lentamente - mas Gaelle jamais teve um anel semelhante. Pensei que seu pai o tinha incluído só para que fizesse jogo com os brincos .

- Ela tinha o anel, avó. Era seu anel de compromisso. Mamãe sempre levava com o anel de bodas em sua mão esquerda.

- Mas, o que tem que ver tudo isto com a cópia da Madonna de Rafael? - perguntou Christophe franzindo o cenho.

- Na pintura ela leva o anel na mão direita. Meu pai jamais teria cometido esse engano de detalhe a menos que o fizesse intencionalmente.

- É possível - murmurou a condessa.

- Sei que está ali. Diz na carta. Meu pai diz que a ocultou, coberta por algo imensamente mais precioso. E, para ele, nada era mais precioso que minha mãe.

- "Oui" - concordou a condessa, estudando a pintura de sua filha - Não havia outro lugar mais seguro onde ocultá-la.

- Tenho uma solução - disse Serenity - Posso despintar uma esquina e então estaremos certos.

- "Non". - A condessa meneou a cabeça - "Non", não há necessidade de fazê-lo. Não permitirei que destrua nenhuma polegada do trabalho de seu pai mesmo que debaixo se encontrasse o Rafael original. - voltou-se para Serenity e lhe acariciou a bochecha - Agora meus tesouros são você, Christophe e esta pintura. Deixaremo-la ali. Esse é o lugar que lhe pertence. Agora lhes deixarei sozinhos. Os apaixonados devem ter sua intimidade.

Abandonou o salão com o porte de uma rainha e Serenity a olhou com admiração.

- É uma mulher magnífica, não acha?

- "Oui" - concordou Christophe, agarrando Serenity entre seus braços - E muito sábia. Não te beijei em toda uma hora.

Depois que Christophe solucionou essa discrepância para satisfação de ambos, olhou Serenity com seu habitual gesto de suficiência.

- Uma vez que estejamos casados, "mon amour", encarregarei a alguém que pinte seu retrato e acrescentaremos outro tesouro ao castelo.

- Nos casar? - repetiu Serenity franzindo o cenho - Nunca disse que pensava me casar com você. - separou-se dele como se lhe rechaçasse - Não pode me ordenar que faça algo semelhante. A uma mulher agrada que o peçam.

Christophe a atraiu para ele e a beijou profundamente com lábios quentes e insistentes. - Dizia algo, prima? - perguntou.

Serenity olhou-o com expressão séria, mas entrelaçou suas mãos atrás do pescoço dele.

- Nunca serei uma aristocrata.

- Que o céu não o permita - exclamou ele sinceramente.

- Brigaremos freqüentemente e o deixarei fora de si.

- Assim espero - disse ele.

- Muito bem - exclamou Serenity com um sorriso nos lábios - Me casarei contigo... com uma condição.

- E qual é essa condição? - perguntou Christophe elevando uma sobrancelha.

- Que esta noite me acompanhe a dar um passeio pelo jardim. - Serenity se enlaçou com força a seu corpo - Estou cansada de caminhar à luz da lua com outros homens e desejando que fosse você.

 

                                                                                            Nora Roberts

 

 

                      

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