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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


Hoje e Sempre / Nora Roberts
Hoje e Sempre / Nora Roberts

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Hoje e Sempre

 

A história de um amor eterno...

Anna MacGregor, esposa do casamenteiro Daniel há 40 anos, também tem sua história de amor para contar. Afinal, ela foi a primeira mulher que,Daniel MacGregor convenceu a se casar. Nesse caso, com ele mesmo.

Em Hoje e Sempre, finalmente ficamos sabendo como Anna Whitfield foi cortejada pelo audacioso Daniel, e como ele enfrentou seu maior desafio:  conquistar o amor de sua vida!

 

- Mãe.

Anna MacGregor apertou as mãos de seu filho quando ele agachou-se a seus pés. Pânico, medo e sofrimento emergiram em seu interior e encontraram uma parede sólida de força de vontade. Ela não iria perder o controle agora. Não podia. Seus filhos estavam vindo.

- Caine. - Os dedos de Anna estavam gelados, porém firmes, quando tocaram os dele. Seu rosto estava quase sem cor devido ao estresse das últimas horas, e os olhos estavam escuros. Escuros, jovens e assustados. Caine pensou que nunca tinha visto a mãe assustada antes. Jamais.

- Você está bem?

- É claro. — Ela sabia do que ele precisava e beijou o rosto do filho. Com a mão livre, pegou a da nora quando ela sentou-se a seu lado. Nos longos cabelos escuros de Diana havia neve, que já começava a derreter nos ombros do casaco. Anna respirou fundo antes de olhar para Caine.

- Vocês chegaram aqui rapidamente.

-Nós fretamos um avião. - Havia um menininho dentro do homem crescido, o advogado, o novo pai, que queria ganhar uma negação. Seu pai era invulnerável. Seu pai era o MacGregor. Ele não podia estar quebrado numa cama de hospital. - Como ele está?

Anna era médica e podia dizer-lhe precisamente... as costelas quebradas, o pulmão comprometido, a concussão e o sangramento interno, que seus colegas estavam agora se esforçando para deter. Ela era mãe também.

- Ele está sendo operado. - Anna apertou a mão na do filho e quase conseguiu sorrir. – Ele é forte, Caine. E o dr. Feinstein é o melhor do estado. - Ela precisava se apoiar nisso e em sua família. - Laura?

- Laura está com Lucy Robinson - respondeu Diana em tom calmo. Sabia bem como era controlar emoções. Vagarosamente, massageou os dedos de Anna. - Não se preocupe.

- Não estou preocupada. - Dessa vez, Anna conseguiu sorrir. - Mas você conhece Daniel. Laura é a primeira neta dele. Estará cheio de perguntas quando acordar. - E ele acordaria, prometeu a si mesma. Por Deus, ele acordaria.

- Anna. - Diana passou um braço ao redor dos ombros de sua sogra. Ela parecia tão pequena, tão frágil. - Você comeu?

- O quê? - Anna meneou a cabeça de leve, então se levantou. Três horas. Daniel estava na sala de cirurgia há três horas. Quantas vezes ela estivera na sala de cirurgia, lutando para salvar uma vida enquanto os parentes agonizavam naquelas salas de espera e corredores frios? Havia se esforçado e estudado para ser médica, a fim aliviar a dor, curar... fazer diferença de alguma forma. Agora, quando seu marido estava machucado, não podia fazer nada além de esperar. Como qualquer outra esposa. Não, não como qualquer esposa, corrigiu-se, porque sabia o que era uma sala de cirurgia, conhecia muito bem todos os sons e cheiros, bem como os instrumentos, as máquinas e o suor. Queria gritar. Cruzou os braços e andou até a janela.

Havia um poder de ferro atrás daqueles olhos escuros e tranqüilos. Usaria esse poder para si mesma agora, para seus filhos, mas, principalmente, para Daniel. Se fosse possível trazê-lo de volta somente com seu desejo, ela o faria. Sabia que era preciso muito mais do que conhecimento profissional para tratar, para curar.

A neve tinha quase parado. A neve - pensou Anna enquanto a observava cair de forma fina - deixara as estradas escorregadias e perigosas. A neve havia cegado um jovem, fazendo-o perder o controle do carro e bater no tolo carro de dois lugares de Daniel. Ela cerrou os punhos.

Por que você não estava na limusine, meu velho? O que estava tentando provar com aquele brinquedinho vermelho? Sempre querendo aparecer, sempre... Os pensamentos de Anna voltaram ao passado. Ela abriu as mãos. Essa não era uma das razões pela qual se apaixonara por ele? Não era um dos motivos pelo qual o amava e vivia com ele por quase quarenta anos? Que coisa, Daniel MacGregor, ninguém pode lhe dizer nada. Anna pressionou os dedos nos olhos e quase riu. Não podia contar o número de vezes que lhe dissera essa frase durante a vida toda. E o adorava por ser assim.

O som de passos a fez virar-se, fortificando-se. Então viu Alan, seu filho mais velho. Daniel tinha jurado, antes de ter um filho, que um de seus filhos estaria na Casa Branca. Embora Alan estivesse perto de transformar o juramento em realidade, era o único dos filhos que se parecia mais com ela do que com o pai. Os genes MacGregor eram fortes. Os MacGregors eram fortes. Anna deixou-se ser abraçada por Alan.

- Ele ficará feliz por você estar aqui. -A voz dela era firme, mas havia uma mulher em seu interior que queria chorar e chorar. - Mas vai lhe dar uma bronca por ter trazido sua esposa na condição em que ela está. - Anna sorriu para Shelby e ergueu uma das mãos. Sua nora, de brilhantes cabelos ruivos, estava grávida. - Você devia se sentar.

- Farei isso se você fizer. - Sem esperar resposta, Shelby levou Anna para uma cadeira. No momento em que Anna se sentou, Caine colocou-lhe uma xícara de café nas mãos.

- Obrigada - murmurou ela e bebeu para agradá-lo. Podia sentir o gosto do café, forte e quente, senti-lo queimar sua língua, mas não podia saboreá-lo. Anna ouvia o toque dos pagers, a rápida batida de sapatos de sola de borracha no piso frio. Hospitais. Eram sua casa tanto quanto a fortaleza que Daniel tinha construído para os dois. Sempre se sentira confiante em hospitais, confortável em seus corredores anti-sépticos. Agora, sentia-se impotente.

Caine andava de um lado para o outro. Era a sua natureza fazer isso... vaguear, rondar. Como ela e Daniel haviam ficado orgulhosos quando ele ganhara seu primeiro caso. Alan sentou-se a seu lado, quieto, intenso, exatamente como sempre fora. Ele estava sofrendo. Ela observou Shelby segurar-lhe a mão e ficou contente. Seus filhos haviam escolhido bem os parceiros. Nossos filhos, pensou, tentando se comunicar com Daniel. Caine com Diana, uma mulher tranqüila e com muita força de vontade, Alan com Shelby, impetuosa e corajosa. Equilíbrio era necessário em um relacionamento, quase tanto quanto o amor, e tanto quanto a paixão. Anna descobrira isso. Seus filhos tinham descoberto. E sua filha...

- Rena! - Caine atravessou a sala, abraçando a irmã.

Como eles se pareciam, pensou Anna vagamente. Tão delgados, tão destemidos. De todos os seus filhos, Serena tinha o temperamento mais parecido com o de Daniel. E a teimosia. Agora, sua filha também era mãe. Anna podia sentir a força silenciosa de Alan a seu lado. Eles todos haviam crescido. Quando isso acontecera? Nós fizemos um trabalho tão bom, Daniel Ela fechou os olhos apenas por um momento. Um momento era tudo o que podia se permitir. Você não ousaria me deixar para apreciar isso tudo sozinha.

- E papai? - Com uma das mãos, Serena segurou a do irmão, com a outra, pegou a do marido.

- Ainda está sendo operado. – A voz de Caine era áspera pelos cigarros e pelo medo quando se voltou para Justin: - Que bom que você veio. Mamãe precisa de todos nós.

- Mamãe. - Serena foi ajoelhar-se aos pés da mãe, como sempre fazia toda vez que precisava de conforto ou de uma conversa. - Ele vai ficar bem. É teimoso e forte.

Mas Anna viu o apelo nos olhos da filha. Diga-me que ele vai ficar bem. Se você disser, eu acreditarei.

- É claro que ele vai ficar bem. - Ela olhou para o marido da filha. Justin era jogador, assim como seu Daniel. Anna tocou o rosto de Serena. - Você acha que ele perderia uma reunião como essa?

Serena deu uma risada trêmula.

- Foi o que Justin falou. - Ela sorriu, vendo que Justin já tinha um braço ao redor do ombro da irmã. - Diana. - Serena se levantou para trocar um abraço com a cunhada. - Como está Laura?

- Ela está maravilhosa. Acabou de ganhar o segundo dentinho. E Robert?

- Um terror. - Serena pensou no filho, que já adorava o avô. - Shelby, como está se sentindo?

- Gorda. - Ela sorriu e tentou esconder o fato de que estava em trabalho de parto há mais de uma hora. - Liguei para o meu irmão. - Shelby voltou-se para Anna. - Grant e Gennie estão vindo. Espero que não tenha problema.

- É claro que não. -Anna acariciou-lhe a mão. - Eles são da família, também.

- Papai vai ficar radiante. - Serena engoliu o medo que lhe fechava a garganta. - Toda essa atenção. E então há a notícia que Justin e eu vamos lhe dar. - Ela olhou para o marido, esperando que a coragem retornasse. - Justin e eu iremos ter outro bebê. Para garantir a linhagem. Mamãe... - a voz falhou quando se ajoelhou de novo. - Daniel vai ficar tão orgulhoso disso, não vai?

- Sim. - Anna beijou as duas faces de Serena. Pensou nos netos que tinha, e naqueles que teria. Família, continuidade, imortalidade. Daniel. Sempre Daniel. - Seu pai vai dizer que tudo isso se deve a ele.

- E não se deve? - murmurou Alan.

Anna lutou contra as lágrimas. Como eles conheciam bem o pai.

- Sim. Sim, tudo se deve a ele.

Houve mais murmúrios, mais pessoas andando de um lado para o outro, apertos de mão, enquanto os minutos se arrastavam. Anna pôs sua xícara de café pela metade de lado, frio e indesejado. Quatro horas e vinte minutos. Estava demorando muito. A seu lado, Shelby tencionou e começou a respirar fundo deliberadamente. De modo automático, Anna colocou uma mão na barriga que levava seu neto.

- De quanto em quanto tempo estão as contrações?

- Menos de cinco minutos agora.

- Quando começaram?

- Algumas horas atrás. - Ela lançou um olhar a Anna que era um pouco excitado, um pouco apavorado. - Um pouco mais de três horas, na verdade. Eu gostaria de ter marcado melhor o tempo.

- Marcou perfeitamente. Quer que eu vá com você?

- Não. - Por um momento, Shelby enterrou o nariz no pescoço de Anna. - Ficarei bem. Todos nós ficaremos bem. Alan - ela estendeu as duas mãos, querendo ajuda para se levantar - eu não vou ter o bebê no Hospital Georgetown.

Ele a colocou de pé, gentilmente.

- O quê?

- Eu vou tê-lo aqui. Muito em breve. - Ela riu um pouco quando ele franziu o cenho. - Não tente a lógica com um bebê, Alan. Ele está pronto.

O clã inteiro se reuniu à volta de Shelby, oferecendo ajuda, conselho, apoio. De seu jeito calmo e eficiente, Anna providenciou uma enfermeira e uma cadeira de rodas. Com pouca confusão, preparou tudo para a nora.

- Vou descer para ver você mais tarde.

- Nós ficaremos bem. - Shelby estendeu o braço para pegar a mão de Alan. - Todos nós. Diga a Daniel que será um menino. Vou me certificar disso.

Anna observou quando Shelby e Alan desapareceram atrás das portas do elevador um momento antes de o dr. Feinstein entrar no corredor.

- Sam - exclamou Anna e estava a seu lado em segundos.

À porta da sala de espera, Justin pôs a mão nas costas de Caine.

- Dê um minuto a ela - murmurou ele.

- Anna. - Feinstein tocou-lhe os ombros. Ela não era somente uma colega agora ou uma cirurgia que ele respeitava. Era a esposa de um paciente. - Ele é um homem forte.

Ela sentiu uma onda de esperança e ordenou a si mesma para manter a calma.

- Forte o bastante?

- Seu marido perdeu muito sangue, Anna, e não é mais jovem. Mas nós detivemos a hemorragia. - Ele hesitou, então percebeu que a respeitava demais para poupá-la. - Nós o perdemos uma vez na mesa. Em segundos, Daniel estava lutando para voltar. Se a vontade de viver contar, Anna, ele tem muita chance.

Ela cruzou os braços sobre o peito. Frio. Por que os corredores estavam tão frios?

- Quando poderei vê-lo?

- Eles irão levá-lo para a UTI. - Sam estava com câimbras nas mãos depois de horas de trabalho delicado. Mas manteve-as firmes nos ombros de Anna.

- Anna, eu não preciso lhe dizer o que as próximas 24 horas significam.

Vida ou morte.

- Não, não precisa. Obrigada, Sam. Vou falar com meus filhos. Depois, subirei.

Ela virou-se para voltar a descer o corredor, uma mulher pequena e adorável, com alguns fios grisalhos entremeados nos cabelos profundamente negros. O rosto era finamente alinhado, a pele tão suave quanto fora em sua juventude. Tinha criado três filhos, chegado ao topo em sua profissão e passado mais da metade de sua vida amando um homem.

- Ele saiu da cirurgia - disse ela calmamente, chamando o controle com o qual nascera. - Eles o estão levando para o Centro de Terapia Intensiva. A hemorragia foi controlada.

- Quando nós podemos vê-lo? - A pergunta veio de diversos deles ao mesmo tempo.

- Quando ele acordar. - O tom de Anna era firme. Estava no comando de novo, e estar no comando era o que fazia de melhor. - Vou passar a noite aqui. - Ela consultou o relógio. - Ele pode acordar por alguns momentos e ficará melhor sabendo que estou por perto. Mas não poderá falar até amanhã. - Era toda a esperança que podia dar a eles. - Quero que vocês desçam para a maternidade e dêem uma olhada em Shelby. Fiquem com ela quanto tempo quiserem. Então, vão para suas casas e esperem. Ligarei assim que houver alguma notícia.

- Mamãe...

Ela interrompeu Caine com um olhar.

- Faça o que estou mandando. Quero você descansado e bem quando seu pai estiver pronto para vê-lo. - Ela ergueu uma mão para o rosto de Caine. - Por mim.

Ana deixou os filhos e o conforto e foi para o seu marido.

Ele estava sonhando. Mesmo sob o efeito das drogas, Daniel sabia que estava sonhando. Era um mundo suave, repleto de visões, de memórias. Entretanto, lutou contra isso, querendo, precisando se orientar. Quando abriu os olhos, viu Anna. Não precisava de mais nada. Ela era linda. Sempre linda. A mulher teimosa, forte e controlada que ele primeiro admirara, então amara, e depois respeitara. Daniel tentou tocá-la, mas não conseguiu erguer a mão. Furioso por sua fraqueza, tentou de novo, apenas para ouvir a voz de Anna sussurrar-lhe suavemente.

- Fique deitado, imóvel, querido. Eu não vou a lugar algum. Vou ficar aqui e esperar. - Ele pensou ter sentido os lábios dela nas costas de sua mão. - Eu amo você, Daniel MacGregor.

Os lábios dele se curvaram num sorriso. Os olhos se fecharam.

 

Um império. Na época em que tinha 15 anos de idade, Daniel MacGregor prometera a si mesmo que teria um, construiria um, governaria um. E sempre cumpria sua palavra.

Estava com 30 anos e trabalhando em seu segundo milhão com o mesmo ímpeto que o fizera ganhar o primeiro. Como sempre, usava corpo, cérebro e pura astúcia, em qualquer ordem que funcionasse melhor. Quando tinha ido para a América cinco anos antes, Daniel levara o dinheiro que havia economizado trabalhando e ascendendo desde escavador até contador - chefe da Hamus McGuire. Levara também um cérebro perspicaz e uma ambição gigantesca.

Ele poderia ter se passado por um rei. Com quase dois metros, possuía uma constituição física que combinava com sua altura. Apenas o seu tamanho o deixara fora de muitas brigas, assim como havia induzido alguns homens a desafiá-lo. De qualquer forma, estava bom para Daniel. Possuía a reputação de ter um temperamento forte, mas considerava-se uma pessoa tranqüila. Não achava que tinha quebrado mais do que sua cota de narizes em sua época. Não se considerava bonito também. O maxilar era longo e quadrado e, na extremidade direita, havia uma cicatriz que adquirira quando uma trave solta caíra sobre ele nas minas. Como um calmante para sua vaidade, tinha deixado crescer a barba quando adolescente. Uma dúzia de anos mais tarde, a barba permanecia, profundamente ruiva e bem aparada ao redor do rosto, misturando-se com cabelos que eram mais longos do que o normal para homens. A combinação lhe dava um aspecto feroz e aristocrático, o que o agradava. As maçãs do rosto eram altas e largas, e a boca parecia surpreendentemente macia em sua almofada de pêlos vermelhos. Os olhos eram profundamente azuis, e se iluminavam com humor e boa vontade quando ele sorria com sinceridade, assim como pareciam congelar quando sorria sem sinceridade.

Imponente. Aquele era um adjetivo apropriado para descrevê-lo. Rude era um outro. Daniel não se importava com a forma como era descrito, contanto que não passasse despercebido. Era um jogador que arriscava com ousadia. Imóveis eram sua força propulsora, e o mercado de ações seu jogo de mesa. Quando jogava, o fazia para ganhar. Os riscos que assumira tinham valido a pena. E, então, havia jogado mais. Nunca pretendia fazer jogos muito seguros, porque, com segurança, eles se tornavam tediosos.

Apesar de ter nascido pobre, Daniel MacGregor não idolatrava o dinheiro. Usava-o com eficácia, divertia-se com ele. Dinheiro era como poder, e poder era uma arma.

Na América, encontrou-se numa vasta arena de rotas e negociações. Havia Nova York com seu ritmo acelerado e ruas movimentadas. Um homem com cérebro e coragem poderia construir uma fortuna lá. Havia Los Angeles, com seu glamour e apostas altas. Um homem com imaginação poderia formar um império. Daniel tinha passado um tempo em ambos os lugares, feito negócios em cada costa, mas escolheu Boston como sua base e seu lar. Não era somente dinheiro e poder que procurava, mas estilo. Boston, com seu charmoso mundo antigo, sua dignidade teimosa e seu esnobismo natural, adequava-se perfeitamente a seu temperamento.

Daniel descendia de uma longa linha de guerreiros que tinham vivido tanto de acordo com sua inteligência quanto de suas espadas. O orgulho que sentia em relação à sua descendência era forte, tão forte quanto sua ambição. Pretendia ver sua linhagem continuar com filhos e filhas fortes. Como um homem de visão, não tinha problema em visualizar seus netos assumindo o que ele fundara e ampliando seu patrimônio. Não haveria império sem família para compartilhá-lo. Para iniciar uma família, precisava de uma esposa adequada. Arranjar uma, para Daniel, era tão desafiador e lógico quanto adquirir uma boa propriedade. Tinha ido ao baile de verão de Donahues a fim de especular as duas coisas.

Detestava o colarinho apertado pela gravata. Quando um homem possuía a constituição física de um touro, gostava de ter o pescoço livre. Suas roupas haviam sido feitas em Boston por um alfaiate da rua Newbury. Daniel as usava porque seu tamanho exigia isso, para que obtivesse prestígio. A ambição o colocara em um terno, mas não era obrigado a gostar disso. Um outro homem vestido com um elegante traje preto e camisa de seda teria parecido distinto. Daniel, tanto de terno preto quanto de camisa xadrez, parecia exibicionista. E preferia dessa maneira.

Cathleen Donahue, a filha mais velha de Maxwell Donahue, também preferia assim.

- Sr. MacGregor. - Recém-formada na Suíça, Cathleen sabia como servir chá, bordar e flertar com elegância. -Espero que esteja apreciando a nossa pequena festa.

Ela tinha o rosto que parecia de porcelana e cabelos que pareciam linho. Daniel pensou que era uma pena que os ombros da garota fossem tão estreitos, mas ele também sabia como flertar.

- Estou apreciando mais agora, srta. Donahue. Sabendo que a maioria dos homens não gostava de risadinhas, Cathleen riu baixo e suavemente. Suas saias de tafetá farfalharam quando ela posicionou-se ao lado dele no fim da longa mesa de bufê. Agora, qualquer pessoa que parasse para provar trufas ou musse de salmão, os veria juntos. Se ela virasse a cabeça apenas por um segundo, podia ter um vislumbre do reflexo dos dois em um dos espelhos estreitos que alinhavam a parede. Decidiu que gostava do que via.

- Meu pai me contou que você está interessado em comprar uma parte da terra nos penhascos que ele possui em Hyannis Port. - Ela piscou duas vezes. - Espero que não tenha vindo aqui esta noite para discutir negócios.

Daniel pegou dois copos de uma bandeja quando o garçom passou. Teria preferido uísque em copo grosso a champanhe em taça de cristal, mas um homem que não se adaptava a certas circunstâncias, fracassava em outras.

Enquanto bebia, estudou o rosto de Cathleen. Sabia que Maxwell Donahue não teria discutido negócios com a filha mais do que teria discutido moda, mas Daniel não a culpava por mentir. Em vez disso, deu-lhe crédito por saber como descobrir informações. Mas, enquanto a admirava por isso, era precisamente a razão pela qual não a considerava a esposa adequada. Sua esposa estaria muito ocupada cuidando dos filhos para se preocupar com negócios.

- Negócios vêem em segundo lugar para uma mulher adorável. Você já esteve nos penhascos?

- É claro. - Ela virou a cabeça, de modo que a luz refletisse as flores de diamante nas orelhas. - Mas prefiro a cidade. Você irá ao jantar dos Ditmeyer na próxima semana?

- Se eu estiver na cidade.

- Quantas viagens! - Cathleen sorriu antes de dar um gole no champanhe. Ela se sentiria muito confortável com um marido que viajasse. - Deve ser excitante.

- São negócios - disse ele. Então acrescentou: - Mas você acabou de voltar de Paris.

Satisfeita que Daniel estivera ciente de sua ausência, Cathleen quase sorriu.

- Três semanas não foram o bastante. Fazer compras sozinha tomou quase todo o tempo que eu tinha. Você não imagina quantas horas tediosas passei experimentando roupas para achar este vestido.

Ele a olhou de cima a baixo, como ela esperava.

- Só posso lhe dizer que valeu a pena.

- Bem, obrigada. - Enquanto ela se exibia, a mente de Daniel começou, a vagar. Sabia que mulheres se interessavam por roupas e estilos de cabelos, mas teria preferido uma conversa mais estimulante. Percebendo que estava perdendo a atenção dele, Cathleen tocou-lhe o braço.

- Já esteve em Paris, sr. MacGregor?

Ele estivera em Paris e vira o que a guerra podia fazer com a beleza. A bonita loira sorrindo-lhe nunca seria tocada pela guerra. Por que seria? Ainda assim, vagamente insatisfeito, Daniel bebeu o líquido borbulhante.

- Alguns anos atrás. - Ele olhou ao redor, para o brilho das jóias e o cintilar dos cristais. Havia um cheiro no ar que só podia ser descrito como riqueza. Em cinco anos, se acostumara com isso, mas não tinha esquecido do cheiro da poeira de carvão. Nunca pretendia esquecer. -Gosto mais da América do que da Europa. Seu pai sabe como organizar uma festa.

- Fico feliz que você aprove. Está gostando da música?

Daniel ainda sentia falta do lamento da gaita de fole. A orquestra composta de doze homens com gravatas brancas era um pouco estranha para seu gosto, mas sorriu.

- Muito.

- Achei que talvez não estivesse gostando. - Ela enviou-lhe um olhar derretido por sob os cílios. -Você não está dançando.

Em um gesto cortês, Daniel pegou o champanhe de Cathleen e pôs os dois copos sobre uma mesa.

- Oh, mas vou dançar, sita. Donahue - murmurou ele e levou-a para a pista de dança.

- Cathleen Donahue continua sendo óbvia. - Myra Lornbridge mordiscou um canapé e suspirou.

- Mantenha suas garras escondidas, Myra. - A voz era baixa e suave, mais por natureza do que de propósito.

- Não me importo quando uma pessoa é rude, engenhosa, ou até mesmo um pouco estúpida. - Com outro suspiro, Myra terminou o canapé. - Mas detesto quando alguém é tão óbvia.

- Myra.

- Tudo bem, tudo bem. - Myra tocou a musse de salmão. - A propósito, Anna, adorei o seu vestido.

Anna olhou para o tecido de seda cor-de-rosa do vestido.

- Você o escolheu.

- Eu lhe disse que adorei. - Myra deu um sorriso de satisfação pela maneira como as pregas drapejavam os quadris de Anna. Muito chique. - Se você desse às suas roupas metade da atenção que dá a seus livros, deslocaria o nariz empinado de Cathleen Donahue.

Anna apenas sorriu e observou os dançarinos.

- Não estou interessada no nariz de Cathleen.

- Bem, não é muito interessante. E quanto ao homem que está dançando com ela?

- O gigante de cabelos ruivos?

- Então, você notou.

- Não sou cega. - Ela perguntou-se quando poderia escapar dali com dignidade. Queria muito ir para casa e ler a publicação médica que o dr. Hewitt lhe enviara.

- Sabe quem ele é?

- Quem?

- Anna. - Paciência era uma virtude que Myra tinha apenas com as amigas mais íntimas. - Não se faça de desentendida.

Com uma risada, Anna deu um gole no vinho.

- Tudo bem, quem é ele?

- Daniel Duncan MacGregor. - Myra fez uma breve pausa, esperando despertar o interesse de Anna. Com 24 anos, Myra era rica e atraente. Mas não linda. Mesmo em sua melhor aparência, sabia que nunca seria linda. Entendia que beleza era um caminho para o poder. Cérebro era um outro. Myra usava seu cérebro. - Ele é o garoto maravilha atual. Se você prestasse mais atenção em quem é quem em nossa pequena sociedade, reconheceria o nome.

Sociedade, com seus jogos e restrições, não interessava a Anna em absoluto.

- Por que eu deveria? Você me conta tudo.

- Isso lhe serviria se eu não lhe contasse.

Mas Anna apenas sorriu e deu mais um gole em seu drinque.

- Tudo bem, eu vou lhe contar. - Fofoca era uma tentação a qual Myra achava impossível resistir. - Ele é escocês, o que suponho que é óbvio pela aparência e nome que tem. Você devia ouvi-lo falar. A voz é tão forte que parece cortar um nevoeiro.

Naquele momento, Daniel deu uma gargalhada tão alta e forte que fez Anna arquear as sobrancelhas.

- Parece que a voz dele poderia cortar qualquer coisa.

- Ele é um pouco rude, mas algumas pessoas - Myra deu um olhar significativo na direção de Cathleen Donahue -, acreditam que um milhão de dólares ou algo assim suavizaria qualquer coisa.

Percebendo que o homem estava sendo medido e julgado pelo tamanho de sua conta bancária, Anna sentiu uma onda de compaixão.

- Espero que ele saiba que está dançando com uma víbora - murmurou ela.

- Ele não parece estúpido. Comprou ações do banco Old Line Savings and Loan seis meses atrás.

- Verdade? - Anna deu de ombros. Negócios só a interessavam quando envolviam um orçamento hospitalar. Sentindo o movimento à sua esquerda, virou-se e sorriu para Herbert Ditmeyer, parado com um cavalheiro não familiar. - Como vai?

- Prazer em vê-lo. - Ele era apenas alguns centímetros mais alto do que Anna, e tinha o rosto magro e ascético de um estudante, com cabelos escuros que prometiam afinar dentro de alguns anos. Mas transmitia uma força que Anna respeitava, e possuía um senso de humor que somente pessoas inteligentes podiam entender. - Você está adorável. - Ele gesticulou para o homem a seu lado.

- Meu primo, Mark. Anna Whitfield e Myra Lornbridge.

- O olhar de Herbert se demorou apenas um momento em Myra, mas assim que a orquestra começou a tocar uma valsa, perdeu a calma e pegou o braço de Anna. -Você devia estar dançando.

Anna acompanhou-lhe os passos com naturalidade. Adorava dançar, mas preferia fazê-lo com alguém que sabia. Herbert estava à vontade.

- Eu soube que você está merecendo os parabéns, sr. Promotor. - Ela sorriu para o rosto confiável dele.

Herbert também sorriu. Era jovem para a posição, mas não pretendia parar ali. Se não considerasse um comportamento inadequado, teria contado a Anna sobre suas ambições.

- Eu não sabia que as notícias de Boston corriam tão rapidamente quanto as de Connecticut. - Ele olhou para onde Myra estava dançando com o seu primo. - Eu deveria ter percebido.

Anna riu quando eles giraram ao redor de outro casal.

- Porque estive fora da cidade, não significa que não quero acompanhar o que está acontecendo aqui em Boston. Você deve estar muito orgulhoso.

- É um começo - disse Herbert alegremente. - E você... mais um ano e teremos de chamá-la de dra. Whitfield.

- Mais um ano - murmurou Anna. - Às vezes, parece uma eternidade.

- Impaciente, Anna? Isso não se parece com você. Sim, parecia-se, mas ela sempre conseguia esconder isso com sucesso.

- Quero que seja oficial. Não é segredo nenhum que meus pais desaprovam.

- Eles podem desaprovar - acrescentou Herbert -, mas sua mãe não tem problema nenhum em mencionar que você é a melhor aluna da classe por três anos consecutivos.

- Verdade? - Surpresa, Anna pensou sobre aquilo. Sua mãe sempre fora mais inclinada a elogiar seu estilo de cabelo do que suas notas. - Terei de ficar grata por isso então, embora ela ainda tenha a esperança de que algum homem vai aparecer e me fazer esquecer as salas de cirurgia e as comadres.

Enquanto ela falava, Herbert a virou. Anna encontrou-se fitando diretamente os olhos de Daniel MacGregor. Sentiu os músculos do estômago se contraírem. Nervos? Ridículo. Sentiu um arrepio percorrendo-lhe a coluna de cima a baixo. Medo? Absurdo.

Apesar de ainda estar dançando com Cathleen, ele olhou para Anna. Olhou-a de um jeito que faria qualquer mulher enrubescer. Anna o encarou de volta friamente, enquanto seu coração disparava. Talvez tivesse sido um erro. Ele pareceu tomar seu olhar como um desafio e sorriu muito vagarosamente.

Com uma admiração objetiva, ela o observou agir. Olhando para um outro homem no canto da pista, Daniel lhe fez um sinal rápido e quase imperceptível. Em pouco tempo, Cathleen encontrou-se dançando nos braços de um outro homem. Anna preparou-se para o próximo passo.

Com a destreza de um homem experiente, Daniel circulou entre os dançarinos. Tinha notado Anna no momento em que ela começara a dançar. Notado, observado e, então, avaliado. Assim que ela o fitou daquela maneira fria e analítica, ele foi fisgado. Ela não tinha a estatura de Cathleen, mas era pequena e delicada. Os cabelos eram escuros e pareciam quentes e macios, combinando com os olhos, também escuros. A tonalidade rosa do vestido acentuava a pele suave e cremosa. Parecia uma mulher que se encaixaria com perfeição nos braços de um homem.

Com a confiança que sempre o acompanhava, Daniel bateu no ombro de Herbert.

- Posso interromper?

Daniel esperou somente até que Herbert tirasse a mão da cintura de Anna para começar a dançar com ela.

- Foi muita esperteza de sua parte, sr. MacGregor.

O fato de ela saber seu nome. e de ter certeza de que a pequena mulher se encaixaria com perfeição nos seus braços agradaram-no muito. O aroma feminino era como raios da lua, suave e tranqüilo.

- Obrigado, srta...

- Whitfield. Anna Whitfield. Foi também muito rude.

Ele a fitou por um momento, porque a voz séria não combinava com o rosto tranqüilo e adorável. Sempre apreciando uma surpresa, Daniel riu até que cabeças se viraram.

- Sim, mas eu faço o que dá certo. Não creio que já a vi antes, srta. Anna Whitfield, mas conheço seus pais.

- Isso é bem possível. - A mão que a segurava era grande, forte e incrivelmente gentil. A palma da mão de Anna começou a formigar. - É novo em Boston, sr. MacGregor?

- Terei de dizer que sim, porque estou vivendo aqui há apenas dois anos, e não há duas gerações.

Ela inclinou um pouco a cabeça de modo que pudesse encontrar-lhe os olhos.

- Você tem de voltar pelo menos três gerações para não ser novo.

- Ou você tem de ser inteligente. - Ele a girou em três círculos rápidos.

Agradavelmente surpresa que, para o tamanho dele, MacGregor possuía leveza nos pés, Anna relaxou um pouco. Seria uma pena desperdiçar a música.

- Ouvi dizer que você é esperto.

- Você ouvirá isso novamente. - Ele não se incomodou em manter o tom de voz baixo, embora a pista de dança estivesse congestionada. Poder, não propriedade, era seu forte.

- Ouvirei? - Anna arqueou uma sobrancelha. - Que estranho. - Apenas se você não entender o sistema - corrigiu ele, tranqüilamente. - Se não pode ter as gerações atrás de você, precisa de dinheiro na frente.

Embora sabendo que aquilo era verdade, Anna não gostou de ambas as formas de esnobismo.

- Que sorte a sua que a sociedade tem padrões tão flexíveis.

A voz seca e desinteressada dela o fez sorrir. Anna Whitfield não era uma tola, assim como não era um tipo predatório coberta de seda, como Cathleen Donahue.

- Você tem o rosto parecido com uma mulher de um camafeu que minha avó usava em volta do pescoço.

Anna arqueou uma sobrancelha e quase lhe sorriu. O olhar o fez perceber que ele não dissera nada além da verdade.

- Obrigada, sr. MacGregor, mas é melhor guardar os seus elogios para Cathleen. Ela é mais suscetível.

Daniel franziu o cenho e os olhos nublaram, parecendo forte e formidável, mas a expressão rapidamente desapareceu, antes que Anna pudesse avaliar a própria reação.

- Você tem uma língua afiada, moça. Admiro uma mulher que fala o que pensa... até certo ponto.

Sentindo-se hostil por nenhuma razão que pudesse nomear, Anna manteve os olhos diretamente nele.

- Que ponto é esse, sr. MacGregor?

- Até o ponto em que deixa de ser feminina. Antes que ela antecipasse o movimento dele, Daniel a conduziu para as portas do terraço. Até aquele momento, Anna não tinha percebido como o salão de baile se tornara quente e abafado. Independentemente disso, sua reação normal com um homem que não conhecia, seria desculpar-se com firmeza, e finalmente voltar a entrar. Em vez disso, encontrou-se parada onde estava, com os braços de Daniel ainda ao seu redor, a luz da lua refletindo nos ladrilhos e o aroma de rosas preenchendo o ar.

- Tenho certeza de que você tem a sua definição do que é ou não feminino, sr. MacGregor, mas pergunto-me se leva em conta o fato de que estamos no século XX.

Ele gostava do jeito como ela permanecia parada em seus braços, insultando-o sutilmente.

- Sempre considerei feminilidade uma coisa constante, srta. Whitfield, não algo que muda com os anos ou com a moda.

- Entendo. - Os braços dele pareciam se encaixar ao redor de Anna com muita facilidade. Ela afastou-se para andar até a extremidade do terraço, perto do jardim. O ar era mais doce ali, a luz da lua mais turva. A música se tornava mais romântica com a distância.

Ocorreu-lhe que estava tendo uma conversa privada, que poderia ter se aproximado de uma discussão, com um homem que acabara de conhecer. Contudo, não sentia vontade de interromper a conversa. Aprendera a se sentir confortável na presença dos homens. Tinha de fazer isso. Como a única mulher em sua turma na faculdade de medicina, Anna tinha aprendido a lidar com os homens no nível deles, e a fazer isso sem ferir-lhes os egos constantemente. Passara o primeiro ano de críticas e insinuações permanecendo calma e se concentrando nos estudos. Agora, estava prestes a entrar no último ano de medicina, e era aceita pela maioria de seus colegas. Todavia, tinha plena consciência do que enfrentaria quando iniciasse sua especialização. O estigma de ser rotulada como não feminina ainda a machucava um pouco, mas há muito já tinha se resignado a isso.

- Estou certa de que seu ponto de vista sobre as qualidades femininas são fascinantes, sr. MacGregor. -Abainha do vestido raspou na parede de ladrilhos quando Anna se virou. - Mas não acho que seja algo que quero discutir. Conte-me, o que exatamente você faz em Boston?

Ele não a ouvira. Não tinha ouvido nada desde o momento que ela se virará para encará-lo. Os cabelos balançavam suavemente sobre os ombros delicados e alvos. No fino tecido de seda cor-de-rosa, o corpo parecia tão delicado quanto porcelana chinesa. A luz da lua refletia-lhe o rosto, de modo que a pele parecia mármore, e os olhos tão escuros quanto a noite. Um homem não ouvia nada além de trovão quando era atingido por um raio luminoso.

- Sr. MacGregor? - Pela primeira vez desde que tinham saído ao ar livre, os nervos de Anna começaram a se exaltar. Ele era enorme, um estranho e a estava olhando como se tivesse enlouquecido. Ela endireitou os ombros, e lembrou a si mesma que podia lidar com qualquer situação que surgisse. - Sr. MacGregor?

- Sim. - Daniel saiu do mundo da fantasia e se aproximou. Estranhamente, Anna relaxou. Ele não parecia tão perigoso quando estava a seu lado. E possuía olhos lindos. Sim, havia uma simples razão genética para a sua cor peculiar. Ela poderia ter escrito um artigo sobre eles. Mas eram lindos.

- Você trabalha em Boston, não trabalha?

- Trabalho. - Talvez fosse um truque da luz que a fazia parecer tão perfeita, etérea e sedutora. - Eu compro. - Ele pegou-lhe a mão porque contato pessoal lhe era vital. E porque uma parte sua queria se certificar que ela era de verdade. - Eu vendo.

A mão de Daniel era quente e tão gentil quanto fora no momento em que haviam dançado. Atina retirou sua mão.

- Que interessante. O que você compra?

- O que eu quiser. - Sorrindo, ele se aproximou mais um pouquinho. - Qualquer coisa.

O pulso de Anna acelerou, a pele esquentou. Sabia que havia causas emocionais, assim como físicas para aquelas sensações. Embora não pudesse pensar nisso no momento, não recuou.

- Tenho certeza de que é um trabalho muito satisfatório. Isso me leva a pensar que você vende o que não quer mais.

- Em resumo, srta. Whitfield. E mediante um lucro. Homem arrogante, pensou ela pacificamente, e inclinou a cabeça.

- Algumas pessoas podem considerar isso arrogância, sr. MacGregor.

Ela o fez rir com o jeito frio e calmo com que falava, o jeito frio e calmo com que o olhava, enquanto ele podia ver traços de paixão naqueles olhos escuros e profundos. Aquela era uma mulher, pensou, que podia fazer um homem esperar na soleira da porta com buquês de flores e caixas de bombons em formato de coração.

- Quando um homem pobre é arrogante, isso é rude, srta. Whitfield. Quando se trata de um homem próspero, chama-se estilo. Eu já fui as duas coisas.

Ela sentiu que havia alguma verdade naquelas palavras, mas não estava disposta a ceder.

- Estranho, nunca achei que arrogância mudasse com os anos ou com a moda.

Daniel pegou um charuto enquanto a observava.

- Ponto para você. - O isqueiro foi aceso, iluminando os olhos azuis por um instante. Naquele momento, Anna percebeu que ele era perigoso, afinal de contas.

- Então, talvez devêssemos dizer que empatamos. - O orgulho a impediu de dar um passo atrás. A dignidade a impediu de dar continuidade ao que estava, apesar da lógica, se tornando interessante. -Agora, se me der licença, sr. MacGregor, eu realmente preciso entrar.

Daniel segurou-lhe o braço de uma maneira que era tanto abrupta como possessiva. Anna não se desvencilhou, e não ficou parada. Meramente olhou-o como uma duquesa olharia para um plebeu coberto de poeira. Deparado com aquela desaprovação serena, a maioria dos homens teria tirado a mão e murmurado um pedido de desculpas. Daniel sorriu-lhe. Ali estava uma moça, pensou, que faria os joelhos de um homem tremer.

- Eu a verei novamente, srta. Anna Whitfield.

- Talvez.

- Eu a verei novamente. - Ele ergueu-lhe a mão para os lábios. Anna sentiu o roçar surpreendentemente suave da barba contra seus dedos e, por um momento, o traço de paixão que Daniel vira nos olhos dela, voltou com força total. - E novamente.

- Duvido que teremos muitas oportunidades de nos socializar, uma vez que só ficarei em Boston por alguns meses. Agora, se me der licença...

- Por quê?

Ele não soltou sua mão, o que a perturbou mais do que poderia se permitir demonstrar.

- Por que o quê, sr. MacGregor?

- Por que você só ficará em Boston por alguns meses? - Se ela estivesse partindo para se casar, isso poderia mudar as coisas. Daniel a olhou e decidiu que não permitiria que nada mudasse.

- Vou voltar para Connecticut no fim de agosto, para meu último ano da faculdade de medicina.

- Faculdade de medicina? - Ele arqueou as sobrancelhas. - Você não vai ser enfermeira? - A voz de Daniel carregava a vaga perplexidade de um homem que não entendia, è possuía pouca tolerância por mulheres profissionais.

- Não. - Ela esperou até senti-lo relaxar. - Vou ser cirurgia. Obrigada pela dança.

Mas ele segurou-lhe o braço de novo antes que Anna pudesse chegar à porta.

- Você vai abrir os corpos de pessoas? - Pela segunda vez, ela ouviu a gargalhada estrondosa dele. - Está brincando.

Apesar de irritada, Anna conseguiu parecer simplesmente entediada.

- Prometo-lhe que sou muito mais divertida quando brinco. Boa noite, sr. MacGregor.

- Médico é profissão de homem.

- Aprecio a sua opinião. Mas acredito que não essa coisa de emprego de homem, se uma mulher é capaz de fazê-lo.

Ele bufou, deu uma tragada no charuto e murmurou:

- Isso é uma bobagem.

- Sucintamente colocado, sr. MacGregor, e, mais uma vez, rude. Você é persistente. - Ela andou em direção às portas do terraço sem olhar para trás. Mas pensou nele. Ousado, grosseiro, exibicionista e tolo.

Daniel pensou em Anna enquanto a observava misturar-se com a multidão. Fria, teimosa, desafiadora e ridícula.

Estavam ambos encantados.

 

- Conte-me tudo.

Anna colocou a bolsa sobre a toalha de Unho branco e sorriu para o garçom, que aguardava pacientemente seu pedido.

- Quero um coquetel de champanhe.

- Dois - decidiu Myra e inclinou-se para frente. - E então?

Sem pressa, Anna olhou ao redor do restaurante tranqüilo, decorado em tons pastel. Havia meia dúzia de pessoas que conhecia pelo nome, diversas outras que conhecia de vista. Achava o lugar aconchegante, seguro e calmo. Algumas vezes, na correria das aulas e dos estudos, ansiava por momentos como aquele. Algum dia, teria de haver um jeito de desfrutar ambas as coisas na sua vida.

- Sabe, uma coisa de que sinto falta de morar em Connecticut é almoçar aqui. Estou satisfeita por sua sugestão.

- Anna. - Myra não via razão para desperdiçar tempo com conversa educada quando havia novidades a serem compartilhadas. - Conte-me.

- Contar o quê? — murmurou Anna, e apreciou a expressão frustrada nos olhos da amiga.

Myra tirou um cigarro da fina cigarreira de ouro, deu duas batidinhas nele, então o acendeu.

- Conte-me o que aconteceu entre você e Daniel MacGregor.

- Nós dançamos uma valsa. - Anna pegou o cardápio e começou a estudá-lo. Mas pegou-se batendo os pés no ritmo da música que soou de volta em sua cabeça.

- E?

Ela desviou os olhos do cardápio.

- E, o quê?

- Anna! - Myra parou de falar quando os drinques foram servidos. Impaciente, empurrou o coquetel para o lado. - Vocês ficaram sozinhos no terraço por um bom tempo.

- Verdade? - Anna deu um gole no champanhe, decidiu-se por salada e fechou o cardápio.

- Sim, verdade. - Com exibicionismo calculado, Myra soprou fumaça para o teto. -Aparentemente, vocês devem ter encontrado algum assunto para conversar.

- Creio que encontramos. - O garçom voltou, e Anna pediu sua salada. Ainda muito frustrada, Myra pediu lagosta Newburg e disse a si mesma que não jantaria.

- Bem, sobre o que vocês conversaram?

- Lembro-me de que um dos tópicos foi sobre feminilidade. -Anna deu um outro gole casual em seu drinque, mas não foi totalmente capaz de esconder a expressão raivosa dos olhos. Vendo isso, Myra apagou o cigarro e animou-se.

- Imagino que o sr. MacGregor tenha algumas opiniões formadas sobre o assunto.

Anna deu mais um gole, saboreando o gosto do champanhe antes de largar o copo.

- O sr. MacGregor é um grosseiro teimoso. Totalmente satisfeita, Myra apoiou o queixo na mão.

O pequeno véu atado ao chapéu caiu-lhe sobre os olhos, mas não lhe ocultou o entusiasmo.

- Eu estava quase certa sobre a teimosia, mas teria apostado contra a parte de ele ser grosseiro. Conte-me.

- Ele admira uma mulher que fala o que pensa - continuou Anna, irritada - até certo ponto. Até certo ponto - repetiu com um suspiro não muito feminino. - E esse ponto surge sempre que algo conflita com a opinião dele.

Um pouco desapontada, Myra deu de ombros.

- Ele se parece com qualquer outro homem.

- São homens assim que vêem as mulheres como subsidiárias da virilidade deles. - Recostando-se, Anna começou a tamborilar os dedos em um ritmo lento e firme sobre a toalha da mesa. - Somos ótimas enquanto estivermos assando bolos, trocando fraldas dos bebês e esquentando os lençóis.

Myra deu um gole no champanhe.

- Meu Deus, ele mexeu com você em muito pouco tempo.

Deliberadamente, Anna recuou. Detestava perder a calma, e reservava o privilégio para alguma coisa que considerasse realmente importante. Lembrou a si mesma de que Daniel MacGregor não tinha tais qualificações.

- Ele é rude e arrogante - disse ela mais calmamente, a Myra considerou por um momento.

- Pode ser - concordou ela. - Mas isso não é necessariamente um ponto contra ele. Eu preferia estar perto de um homem arrogante do que de um tedioso.

- Tedioso ele não é. Você não viu a manobra que fez com Cathleen?

Os olhos de Myra se iluminaram.

- Não.

- Ele sinalizou para que um homem interrompesse a dança dos dois, de modo que pudesse afastar Herbert e dançar comigo.

- Que esperto! - Myra sorriu em aprovação, então riu da expressão de Anna. - Vamos, querida, você tem de admitir que foi esperteza. E Cathleen estava muito envolvida com seu próprio charme para notar. - Myra suspirou de prazer quando sua lagosta foi servida. - Sabe, Anna, você devia estar lisonjeada.

- Lisonjeada? - Ela espetou a salada com o garfo. -Não vejo por que eu deveria me sentir lisonjeada porque um homem enorme, tolo, que se acha muito importante, preferiu dançar comigo.

Myra parou um pouco para apreciar o cheiro da lagosta.

- Ele é certamente enorme, e talvez seja tolo, mas é importante. E, de um jeito rude, é atraente. Obviamente, pelo modo como você dispensa outros homens, não está interessada em um tipo suave e sofisticado.

- Tenho que pensar em minha carreira, Myra. Não tenho tempo para homens.

- Querida, há sempre tempo para os homens. - Com uma risada, ela levou uma garfada da lagosta à boca. - Não estou dizendo que você deva levá-lo a sério.

- Fico feliz em ouvir isso.

- Mas não vejo por que deve dispensá-lo.

- Não tenho intenção de enrolar o homem.

- Você está sendo teimosa.

Anna riu. Um dos motivos por que gostava tanto de Myra era pela forma como sua amiga via as coisas claramente... do jeito dela.

- Estou sendo eu mesma.

- Anna, sei o que se tornar médica significa para você, e você sabe o quanto admiro o que está fazendo. - Mas - continuou ela antes que Anna pudesse interromper -, você ficará em Boston durante o verão, de qualquer forma. Que mal pode haver em ter uma escolta agradável que obviamente a levará para sair?

- Não preciso de escolta.

- Precisar e ter são duas coisas diferentes. - Myra quebrou a ponta de um. pãozinho e jurou a si mesma que só comeria metade. - Diga-me, Anna, seus pais ainda a estão pressionando sobre sua decisão de se formar em medicina? Continuam selecionando homens elegíveis para fazê-la mudar de idéia?

- Eles já selecionaram três candidatos em potencial para mim só neste verão. - Ela tivera de convencer a si mesma que deveria se divertir com aquilo e quase conseguira. - No topo da lista, está o neto do médico da minha mãe. Ela acha que a conexão dele com a medicina pode me influenciar.

- Ele é atraente? - Myra descartou a pergunta com um aceno de mão quando viu a expressão de Anna. - Esqueça, então. A questão é que seus pais vão continuar colocando todos esses homens no seu caminho, esperando que algum dê certo. - Ela passou um pouco de manteiga no pão. - Mas, se você estiver saindo com alguém...

- Como Daniel MacGregor.

- Por que não? Ele certamente pareceu interessado ontem à noite.

Anna pegou o pão em que Myra havia passado manteiga e deu uma mordida.

- Porque é desonesto. Eu não estou interessada.

- Isso pode impedir sua mãe de convidar todos os homens solteiros, entre 24 e 40 anos, para tomar um chá na sua casa.

Anna suspirou longamente. Myra tinha razão naquela questão. Se pelo menos seus pais entendessem do que ela precisava, pelo que estava aspirando... Para seu próprio bem. Quantas vezes tinha ouvido essa frase em particular? Se um dia se casasse, e se um dia tivesse filhos, essas quatro palavras jamais sairiam de sua boca.

Anna estava bastante ciente de que seus pais haviam parado de discutir sobre seu ingresso na faculdade de medicina, porque acreditavam piamente que ela desistiria antes do fim do primeiro semestre. Se não fosse por tia Elsie, Anna sabia que provavelmente não teria conseguido cursar a faculdade de forma alguma. Elsie Whitfield, a irmã mais velha do pai de Anna fora bastante excêntrica... uma solteirona, que tinha ganhado dinheiro, alguns diziam, vendendo bebida alcoólica durante a Lei Seca. Anna mal podia culpá-la pela forma como ganhara dinheiro, uma vez que tia Elsie lhe deixara uma herança grande o bastante para sua instrução e independência, sem estabelecer qualquer condição.

Não se case com um homem a menos que esteja absolutamente certa disso, Anna lembrou-se do conselho de Elsie. Se você tem um sonho, persiga-o. A vida é muito curta para covardes. Use o dinheiro, Anna, e se torne alguém, faça alguma coisa para si mesma.

Agora, ela estava a poucos meses da realização de seu sonho... graduar-se, e depois fazer a especialização. Não seria fácil para seus pais aceitarem. Seria ainda mais difícil quando soubessem que pretendia começar a especialização no hospital Boston General... e que não pretendia morar em casa enquanto não a tivesse concluído.

- Myra, estou pensando em morar sozinha.

Com o garfo na metade do caminho para a boca, Myra parou.

- Você disse isso a seus pais?

- Não. - Anna afastou o prato de salada para o lado e perguntou-se por que a vida era tão complicada quando tantas coisas lhe pareciam claras. - Eu não quero aborrecê-los, mas está na hora. Nunca me verão como a mulher adulta que sou enquanto eu estiver morando com eles. Além disso, se eu não quebrar o elo agora, irão esperar que eu continue morando em casa depois que me formar.

Myra recostou-se e terminou seu champanhe.

- Acho que tem razão. Também acho que seria mais sábio você contar-lhes depois que o fato for consumado.

- Concordo. Gostaria de passar a tarde procurando apartamento?

- Eu adoraria. Mas depois de uma musse de chocolate. - Ela sinalizou para o garçom. - Entretanto, Anna, isso não resolve o problema com Daniel MacGregor.

- Não existe um problema.

- Oh, acho que você pode contar com um. Musse de chocolate - ela disse para o garçom. — Não economize no chantilly.

                                                         

Em seu escritório recentemente decorado, Daniel sentado atrás de uma enorme mesa de carvalho, acendeu um charuto. Havia acabado de fechar um negócio no qual comprara a maior parte de uma companhia que fabricaria televisões. Calculava que o que era agora uma novidade se tornaria artigo de consumo nas casas americanas em questão de poucos anos.

Além disso, gostava de assistir a um pouco de boxe. Comprar alguma coisa que o entrelinha lhe dava imensa satisfação. No entanto, seu maior projeto no momento era impedir a falência do Old Line Savings and Loan e transformar o banco na maior instituição de empréstimos em Boston. Ele já tinha começado concedendo dois grandes empréstimos e refinanciando diversos outros. Acreditava que fazer o dinheiro circular era fazê-lo crescer. O gerente do banco estava apavorado, mas Daniel imaginava que o homem cederia ou encontraria outro emprego. Enquanto isso, Daniel tinha algumas pesquisas para fazer.

Anna Whitfield. Conhecia a história da família dela porque o pai de Anna era um dos melhores advogados do estado. Daniel quase o contratara antes de decidir-se pelo mais jovem e mais flexível Herbert Ditmeyer. Agora que Herbert fora eleito promotor, ele poderia ter de repensar sobre isso. Talvez o pai de Anna Whitfield fosse a resposta. Já tinha decidido que Anna era.

A casa da família dela em Beacon Hill fora construída no século XVIII. Seus ancestrais haviam sido patriotas, que tinham começado uma vida nova no Novo Mundo e prosperado. Por diversas gerações, os Whitfield formavam uma unidade sólida na sociedade de Boston.

Daniel respeitava imensamente uma linhagem forte. Príncipe ou indigente, não importava, mas força e resistência. Anna Whitfield tinha uma boa linhagem. Esse era o principal pré-requisito para uma esposa. Ela possuía a cabeça no lugar. Não levou muito tempo para ele descobrir que, embora ela estivesse estudando alguma coisa tão estranha como medicina, era a melhor aluna da classe. Daniel não pretendia que seus filhos tivessem uma mãe com cérebro fraco. Ela era adorável. Um homem procurando por uma esposa e pela mãe de seus filhos precisava apreciar a beleza. Especialmente uma beleza daquele tipo suave.

Ela também não era ingênua. Daniel não queria uma esposa cegamente obediente, que sorrisse com afetação... embora esperasse uma mulher que respeitasse a autoridade do chefe da família.

Havia uma dúzia de mulheres que poderia cortejar e; conquistar, mas nenhuma lhe apresentara aquela qualidade extra. Um desafio. Após um único encontro com Anna, Daniel estava certo de que ela lhe daria isso. Ser perseguido por uma mulher alimentava o ego, mas um desafio... um desafio esquentava o sangue. E ele era guerreiro o bastante para ansiar por uma luta.

Se sabia fazer alguma coisa, era preparar o terreno para conquistar o que queria. Primeiro, descobria as forças e fraquezas do oponente. Então, jogava com ambas. Pegando o telefone, recostou-se em sua cadeira e começou.

Algumas horas depois, estava lutando com o nó de sua gravata preta de seda. O único problema em ser rico, até onde podia ver, era a parte do vestuário. Não havia dúvida de que era uma figura imponente vestido de preto, mas nunca deixava de se sentir tenso com a restrição dos movimentos. Entretanto, se um homem ia sair para conquistar uma mulher, teria mais vantagens se vestisse seu melhor traje.

De acordo com suas informações, Anna Whitfield passaria a noite assistindo a um bale com as amigas. Daniel teria de agradecer seu contador por tê-lo convencido a alugar um camarote no teatro. Podia não tê-lo usado muito até agora, mas esta noite compensaria tudo.

Estava assobiando quando desceu a escada para o primeiro piso. A maioria das pessoas consideraria sua casa de vinte cômodos um pouco de exagero para um único homem, mas, para Daniel, a casa com janelas altas e pisos brilhantes era uma declaração: enquanto a possuísse, jamais precisaria voltar para o chalé de três cômodos no qual crescera. A casa dizia o que Daniel precisava dizer... que o homem que a possuía tinha sucesso, presença e estilo. Sem essas coisas, Daniel Duncan MacGregor estaria de volta às minas, com a poeira de carvão em sua pele e os olhos avermelhados.

Ao pé da escada, parou para falar:

- McGee! - E sentiu uma tola onda de prazer pelo modo como sua voz grossa ecoou através das paredes.

- Senhor. - McGee andou ao longo do grande hall, a postura ereta e firme. Já tinha servido outros cavalheiros, mas nenhum tão pouco convencional ou tão generoso quanto MacGregor. Além disso, agradava-o trabalhar para um compatriota escocês.

- Vou precisar do carro.

- Está esperando pelo senhor do lado de fora.

- O champanhe?

- Gelado, é claro, senhor.

- As flores?

- Rosas brancas. Duas dúzias como o senhor requisitou.

- Ótimo, ótimo. - Daniel estava na metade do caminho para a porta quando parou e se virou. - Sirva-se de uísque, McGee. Você tem a noite livre.

Sem mudar a expressão, McGee inclinou a cabeça.

- Obrigado, senhor.

Assobiando de novo, Daniel foi para o carro que o esperava. Comprara o Rolls prateado por um capricho, mas não tinha motivo para se arrepender. Tinha dado ao jardineiro o emprego extra de chofer, e agradara a ambos presenteando o homem com um uniforme cinza perolado e um chapéu. A gramática de Steven podia ser falha, mas uma vez que estava atrás do volante, ele era a dignidade personificada.

- Boa noite, sr. MacGregor. - Steven abriu a porta, então poliu a maçaneta com um pano macio antes de fechá-la novamente. Daniel podia ter comprado o Rolls, mas Steven cuidava do carro como um filho.

Após acomodar-se no luxuoso banco traseiro, Daniel abriu a maleta que o esperava. Levariam 15 minutos para chegar ao teatro, o que significava que teria esses minutos para trabalhar. Tempo ocioso era para quando ficasse velho.

Se as coisas saíssem conforme o planejado por ele, teria aquele pedaço de terra em Hyannis Port na semana seguinte. Os penhascos, o rochedo cinza, o gramado alto. tudo o lembrava da Escócia. Faria seu lar lá, uma casa que já podia imaginar. Nada se compararia com aquela imagem.

Assim que a casa estivesse pronta, ele a preencheria com uma esposa e filhos. Então, pensou em Anna.

As rosas brancas estavam espalhadas no assento a seu lado. O champanhe estava coberto com gelo. Assim que se sentasse durante a apresentação de bale estaria iniciando sua corte. Pegando uma rosa, cheirou-a. O aroma era suave e doce. Rosas brancas eram as suas favoritas. Não levara muito tempo para descobrir isso. Uma mulher não resistiria a duas dúzias delas, não resistiria ao luxo que ele tinha a oferecer. Devolveu a rosa para junto das outras. Estava decidido. Levaria um curto período de tempo até que a tornasse sua. Satisfeito, recostou-se e fechou a maleta quando Steven parou em frente ao teatro.

- Duas horas - disse ele ao motorista. Então, num impulso, pegou uma das rosas novamente. Não faria mal algum começar sua campanha um pouco mais cedo.

A cena no saguão do teatro era bonita e brilhante. Vestidos longos em tons pastel contrastavam com ternos escuros. Havia o brilho de pérolas e diamantes, e o perfume feminino por todo lado. Daniel vagou entre a multidão. Seu tamanho e presença, adicionados ao seu jeito casual, fascinavam muitas mulheres. Ele sorriu. Uma mulher que era facilmente fascinada seria facilmente tediosa. Oscilações de humor não eram o que um homem sábio procurava em uma parceira. Especialmente quando o próprio homem tinha inclinação para mudanças de humor.

Enquanto andava por entre a multidão, de vez em quando era parado para uma palavra amigável ou para um cumprimento. Gostava das pessoas. Portanto, achava fácil socializar-se, tanto no saguão de um teatro quanto no pior de seus canteiros de obras. Uma vez que era, em primeiro, e em último lugar, um homem de negócios, sentia-se à vontade conversando sobre um assunto... enquanto pensava em outro totalmente diferente. Não considerava isso desonesto, era, simplesmente, prático. Assim, enquanto parava aqui e ali para falar com alguém, estava realmente procurando por Anna.

Quando a avistou, ficou tão impressionado quanto tinha ficado no baile. Ela estava de azul-claro. Um azul que fazia a pele alva brilhar como neve. Os cabelos estavam presos por fivelas no topo da cabeça, de modo que  o rosto sem moldura parecia-se mais do que nunca com o camafeu da avó de Daniel. Ele sentiu uma onda de desejo, então, alguma coisa mais forte e mais profunda do que esperava. Ainda assim, aguardou pacientemente até que ela virasse a cabeça e seus olhos se encontrassem. Anna não enrubesceu ou flertou, como outras mulheres teriam feito, mas simplesmente sustentou-lhe o olhar com calma e apreciação. Daniel sentiu a excitação e o desafio do jogo enquanto se aproximava.

Num movimento que era muito suave para ser considerado rude, dirigiu-se a ela e ignorou o grupo ao redor. 

- Srta. Whitfield, da valsa.

Quando ele lhe ofereceu a rosa, Anna hesitou, então viu que não havia um meio educado de recusar. Mesmo enquanto pegava a flor, o aroma da mesma preencheu-lhe os sentidos.

- Sr. MacGregor, não creio que conheça minha amiga, Myra. Myra Lornbridge, Daniel MacGregor.

- Como vai? - Myra ofereceu a mão, medindo-o com cuidado. Ele a fitou diretamente nos olhos, a expressão fria e cautelosa. Myra descobriu, embora não estivesse certa se gostava do homem, que o respeitava. - Ouvi falar muito a seu respeito.

- Já fiz alguns negócios com seu irmão. - Ela era menor do que Anna, embora mais rechonchuda. Uma olhada disse a Daniel que a moça era terrível, porém interessante.

- Não foi por ele que ouvi a seu respeito. Jasper nunca faz fofocas, infelizmente.

Daniel enviou-lhe um sorriso rápido.

- Motivo pelo qual aprecio fazer negócios com ele. Você gosta de bale, srta. Whitfield?

- Sim, muito. - Ela cheirou a rosa involuntariamente, então, irritada consigo mesma, baixou as mãos.

- Sinto não ter visto muitos bales, e parece não ter o mesmo impacto sobre mim. - Ele acrescentou um sorriso triste ao charme da rosa. - Eu soube que ajuda se você conhecer a história ou se assistir na companhia de alguém que realmente aprecia o bale.

- Tenho certeza de que isso é verdade.

- Eu gostaria de lhe pedir um grande favor.

Sinais de aviso brilharam na mente de Anna, fazendo-a estreitar os olhos.

- Pode pedir, é claro.

- Tenho um camarote. Se você se sentar comigo, talvez possa me mostrar como apreciar a dança.

Anna apenas sorriu. Não era fácil convencê-la.

- Em outras circunstâncias, eu ficaria feliz em ajudá-lo, mas estou aqui com amigas e...

-Não se importe conosco - interrompeu Myra. E ainda por cima, acrescentou: - Seria uma pena que o sr. MacGregor assistisse à Giselle sem apreciar o espetáculo completamente, você não acha? - Com o semblante perverso, sorriu para Anna. - Vocês dois, vão em frente.

- Fico grato. - Daniel fitou Myra, e seus olhos, os quais estiveram frios, aqueceram com humor. - Muito grato, srta. Whitfield?

Daniel ofereceu o braço. Por um instante, Anna considerou jogar a rosa no chão e amassá-la sob o pé antes de sair andando. Então, sorriu e enlaçou o braço no dele. Havia melhores maneiras de vencer um jogo, além de explosão de raiva. Daniel a conduziu, piscando para Myra enquanto andava. Myra recebeu a piscada e a carranca de Anna com a mesma confiança.

- Não é estranho manter um camarote no teatro quando você não é capaz de apreciá-lo?

- Negócios - disse Daniel brevemente, enquanto eles subiam a escada. - Porém, esta noite, tenho certeza de que vai valer a pena todo o dinheiro que gastei aqui.

- Oh, pode contar com isso. - Anna passou pelas portas e se sentou. Cuidadosamente, colocou a rosa no colo e permitiu que Daniel removesse o casaco de renda cor de marfim que ela vestia. Sob ele, os ombros de Anna estavam nus. Ambos se tornaram conscientes do que o toque mais leve de pele contra pele podia provocar. Ela cruzou as mãos e decidiu dar-lhe exatamente o que ele havia pedido.

- Agora, vou lhe fazer um resumo da história. - Em um tom de professora de jardim da infância, Anna contou-lhe a história de Giselle. Sem lhe dar a chance de fazer qualquer comentário durante o discurso, discorreu tudo que sabia sobre bale em geral. O bastante, pensou, para fazer um homem forte dormir.

- Ah, aí vem a cortina. Agora, preste atenção.

Satisfeita com sua tática, Anna recostou-se e preparou-se para se divertir. Não podia se concentrar. Nos primeiros dez minutos, sua mente vagou diversas vezes. Daniel estava sentado, quieto ao seu lado, mas não se sentia intimidado. Ela tinha certeza disso. Pensou que, se virasse a cabeça apenas alguns centímetros, o veria sorrindo. Olhou para a frente. Myra iria pagar por tê-la deixado na companhia de um ruivo bárbaro, pensou. E Anna não o olharia. Não faria isso, prometeu a si mesma, nem mesmo pensaria a respeito dele. Em vez disso, absorveria a música, as cores, a dança do bale que amava. Era romântico, excitante, comovente. Se pudesse apenas relaxar, esqueceria que estava ali. Decidida, respirou fundo cinco vezes. Então, ele tocou-lhe a mão, fazendo seu coração disparar.

- É tudo sobre amor e sorte, não é? - murmurou Daniel.

Ela percebeu que, bárbaro ou não, ele entendia, e, pelo tom calmo da voz, parecia apreciar. Incapaz de resistir, Anna virou a cabeça. Os rostos de ambos estavam perto, as luzes eram fracas. A música suave os envolvia. Uma pequena parte do coração de Anna enfraqueceu e ela se perdeu nele.

- A maioria das coisas é.

Ele sorriu, e, na luz parca, pareceu incrivelmente viril, incrivelmente gentil.

- Uma coisa sábia para se lembrar, Anna.

Antes que ela pudesse pensar em resistir, ele entrelaçou os dedos dela com os seus. De mãos dadas, assistiram à dança juntos.

Daniel manteve-se perto durante o intervalo, oferecendo-lhe um drinque e canapés antes que ela pudesse impedi-lo. De alguma maneira, distraiu-a até que era tarde demais para dar uma desculpa e juntar-se às amigas para a última parte do espetáculo. Quando Anna se sentou, depois do intervalo, disse a si mesma que estava apenas sendo educada, permanecendo no camarote até o final. Não era uma questão de querer estar lá, ou de estar se divertindo, mas de boas maneiras. Conseguiu ficar sentada de maneira adequada por cinco minutos antes de ser envolvida novamente pelo romance da história.

Sentiu lágrimas nos olhos quando Giselle deparou-se com á tragédia. Apesar de manter o rosto virado e piscar furiosamente, Daniel percebeu sua emoção. Sem uma palavra, passou-lhe um lenço. Ela o aceitou com um pequeno suspiro.

- É tão triste - murmurou Anna. - Não importa quantas vezes eu veja.

- Algumas coisas bonitas são tristes de propósito, para que possamos apreciar as coisas bonitas que não são.

Surpresa, ela virou-se para ele novamente, com os cílios ainda molhados pelas lágrimas. Daniel MacGregor não parecia um bárbaro quando falava daquela maneira. De alguma forma, Anna desejava que parecesse. Perturbada, virou-se para ver a dança final.

Quando os aplausos morreram e as luzes se acenderam, ela estava composta. Por dentro, as emoções ainda estavam em turbilhão, mas culpou a história da peça polisse Sem deixar transparecer as emoções, aceitou a mão de Daniel no momento em que ele a ajudou a levantar-se.

- Posso honestamente dizer que nunca apreciei tanto um bale antes. - Da maneira cortês que podia agir sem aviso, beijou-lhe a mão delicadamente. - Obrigado, Anna.

Cautelosa, ela pigarreou.

- De nada. Se me der licença agora, preciso encontrar minhas amigas.

Daniel continuou segurando-lhe a mão enquanto saíam do camarote.

- Tomei a liberdade de dizer à sua amiga Myra que eu a levarei para casa.

- Você...

- É o mínimo que posso fazer - interrompeu ele suavemente -, depois de ter sido tão gentil em me instruir. Isso me fez pensar por que você não pensou em lecionar.

A voz de Anna esfriou enquanto eles desciam a escada para o saguão. Ele estava rindo dela, mas isso já lhe acontecera antes.

- Não é prudente assumir responsabilidades por uma outra pessoa sem perguntar antes. Eu poderia ter planos.

- Estou à sua disposição.

Anna não perdia a paciência facilmente, mas estava perto.

- Sr. MacGregor...

- Daniel.

Ela abriu a boca, então a fechou novamente, até que estivesse certa de que poderia permanecer calma.

- Aprecio a oferta, mas posso ir para casa sozinha.

- Anna, você já me acusou de ser rude uma vez. - Ele falou alegremente enquanto a conduzia para seu carro. - Que tipo de homem eu seria se, no mínimo, não a levasse para casa?

- Acho que ambos sabemos o tipo de homem que você é.

- Verdade. - Ele parou do lado de fora da porta, onde algumas pessoas ainda conversavam. - É claro, se você estiver com medo, eu lhe chamo um táxi.

- Com medo? - Os olhos dela se iluminaram. Paixão, ardor, raiva, não importava. Daniel estava começando a adorar aquele olhar. - Você é prepotente.

- Constantemente. - Com um gesto, ele indicou a porta que Steven mantinha aberta. Muito zangada para pensar, Anna entrou e foi cumprimentada pelo aroma quente de rosas. Cerrando os dentes, colocou-as nos braços de modo que pudesse se sentar o mais perto possível da porta. Levou apenas um minuto para perceber que Daniel era muito decidido para tornar a distância viável.

- Você sempre mantém flores em seu carro?

- Apenas quando estou escoltando uma linda mulher.

Anna desejou que tivesse coragem de jogar as flores pela janela.

- Você planejou isso cuidadosamente, não planejou? Daniel tirou a rolha do champanhe gelado.

- Não faz sentido planejar se você não é cuidadoso.

- Myra diz que eu deveria ficar lisonjeada.

- Tenho a impressão de que Myra é uma mulher inteligente. Aonde você gostaria de ir?

- Para casa. - Ela aceitou o champanhe e deu um gole para acalmar os nervos. - Preciso acordar cedo manhã. Estou trabalhando no hospital.

- Trabalhando? - Ele virou-se para ela e franziu o cenho, enquanto colocava a garrafa de volta no gelo. - Você não disse que ainda falta um ano para terminar a faculdade?

- Mais um ano antes que eu tenha o diploma e comece a fazer a especialização. No momento, meu emprego inclui apenas esvaziar comadres.

- Isso não é algo que uma mulher como você deveria estar fazendo. - Daniel acabou a primeira taça de champanhe e serviu-se de outra.

- Eu lhe asseguro que aceitarei sua opinião para o que valer a pena.

- Não pode me dizer que você gosta disso.

- Posso lhe dizer que gosto de saber que estou fazendo alguma coisa para ajudar outras pessoas. - Ele bebeu de novo, e manteve a taça erguida. - Deve ser difícil para você entender, uma vez que não se trata de negócios, e sim de humanidade.

Ele poderia tê-la corrigido, então. Poderia ter contado que doava grande quantidade de dinheiro para serviços médicos em benefício dos mineradores em sua região, na Escócia. Não era algo que seu contador tinha aconselhado, mas uma coisa que tinha de fazer. Em vez disso, focou-se na única coisa destinada a deixá-la furiosa.

- Você deve estar pensando em casamento e uma família.

- Porque uma mulher não é capaz de fazer mais nada, exceto cuidar de uma criança puxando seu avental, enquanto o irmão se enfia por baixo dele?

As sobrancelhas de Daniel se arquearam. Supunha que devia estar acostumado com o jeito brusco com que as mulheres americanas falavam as coisas.

- Porque uma mulher é feita para ter um lar e uma família. Para o homem é mais fácil, Anna. Ele só tem de sair e ganhar dinheiro. A mulher segura o mundo nas mãos.

A maneira como ele falou aquilo fez Anna sentir dificuldade em retrucar.

- Já lhe ocorreu que um homem não precisa fazer uma escolha entre ter uma família ou ter uma carreira?

- Não.

Ela quase riu quando se virou para encará-lo.

- É claro que não. Por que lhe ocorreria? Aceite meu conselho, Daniel, procure uma mulher que não tenha dúvidas sobre o que quer e para o que foi feita. Encontre uma que não tenha de lutar contra oponentes imaginários.

- Não posso fazer isso.

Havia um meio sorriso em seu rosto, mas desapareceu rapidamente. O que viu nos olhos dele a fez sentir tanto pânico quanto excitação.

- Oh, não. - Anna falou rapidamente e bebeu o resto do champanhe. - Isso é ridículo.

- Talvez. - Ele segurou-lhe o rosto nas mãos e observou-a arregalar os olhos. - Talvez não. Mas, de qualquer forma, eu escolhi você, Anna Whitfield, e quero ter você.

- Você não escolhe uma mulher do jeito que escolhe uma gravata. - Ela tentou reunir dignidade e indignação, mas seu coração estava batendo descompassado.

- Não, você não escolhe. - Daniel percebeu a súbita ;j mudança na respiração dela, e passou um polegar ao longo do maxilar delicado para sentir o calor. - E um homem não aprecia uma peça de roupa, como se fosse um tesouro, da maneira que aprecia uma mulher.

- Acho que você enlouqueceu. - Anna pôs uma das mãos sobre o pulso dele, mas a mão enorme não se moveu. - Nem mesmo me conhece.

- Vou conhecê-la melhor.

- Não tenho tempo para isso. - Ela olhou ao redor, frenética, e viu que ainda estavam a vários quarteirões de sua casa. Ele era louco, decidiu. O que estava fazendo no banco de trás de um Rolls com um homem louco?

A inesperada onda de pânico de Anna o agradou.

- Para o quê? - murmurou ele e alisou-lhe o rosto com o polegar.

- Para nada disso. - Talvez pudesse zombar dele. Não, tinha de ser firme. - Flores, champanhe, luar. É óbvio que você está tentando ser romântico e eu...

- Deveria ficar quieta por um minuto - disse ele, e encerrou a questão fechando a boca sobre a dela.

Anna agarrou as rosas no colo até que um espinho picou-lhe a pele. Ela nunca chegou a notar. Como poderia ter imaginado que a boca de Daniel seria tão suave ou tão habilidosa? Um homem daquele tamanho devia parecer desajeitado ou dominador quando passava os braços ao redor de uma mulher. Ele a puxou para si como se tivesse feito isso incontáveis vezes. A barba roçou o rosto de Anna, sensibilizando-lhe a pele, enquanto ela se esforçava para permanecer insensível. Seus dedos cocavam de vontade de acariciar-lhe a barba, e ela a alcançou antes que o bom senso pudesse impedir.

Alguma coisa quente e poderosa a envolveu. A paixão que mantinha firmemente controlada, lutou para se libertar e zombar de tudo que um dia acreditara sobre si mesma. Se Daniel era louco, ela também era. Com um gemido que era em parte protesto, em parte confusão, segurou-lhe os ombros e correspondeu.

Daniel havia esperado uma luta, ou, no mínimo, indignação. Pensara que ela se desvencilharia e lhe desse um daqueles olhares frios para colocá-lo em seu lugar. Em vez disso, Anna pressionou-se contra ele e fez sua atitude impulsiva chamejar como uma tocha ao vento. Não sabia que ela podia tirar-lhe o controle com dedos tão delicados, e deixá-lo vazio e vulnerável. Não sabia que ela lhe despertaria um desejo tão avassalador. Anna era apenas uma mulher, uma que ele escolhera para completar seus planos de sucesso e poder. Não deveria fazê-lo esquecer tudo, e apenas querer senti-la e prová-la.

Ele sabia o que era querer... uma mulher, riqueza, poder. Agora, com Anna pressionada contra seu corpo, com o aroma das rosas invadindo-lhe os sentidos e o gosto doce preenchendo-lhe a alma, ela era todas essas coisas em uma só. Querê-la era querer tudo.

Anna estava sem fôlego quando eles se separaram. Sem fôlego, excitada e assustada. Para combater a sua ; fraqueza, usou o ataque.

- Suas maneiras continuam sendo rudes, Daniel. Ele ainda podia ver traços de paixão nos olhos dela,

ainda sentia paixão vibrando em Anna.

- Você terá de me aceitar como eu sou, Anna.

- Não preciso aceitá-lo de maneira alguma. -Dignidade, disse ela a si mesma. A qualquer custo, necessitava preservar algum resquício de dignidade. Um beijo no banco de trás de um carro não significava nada mais do que o tempo que levava para realizá-lo. Foi só naquele momento que Anna percebeu que estavam parados na porta de sua casa.

Há quanto tempo!, perguntou-se. Se estava vermelha, era de raiva, disse a si mesma. Lutou com a maçaneta da porta antes que o motorista desse a volta e a abrisse para ela.

- Leve as rosas, Anna. Elas combinam com você. Ela apenas o olhou por sobre o ombro.

- Adeus, Daniel.

- Boa noite - corrigiu ele, e observou-a correr pela calçada, com o vestido azul-claro girando ao redor das pernas. As rosas permaneciam no assento, ao lado de Daniel. Pegando uma delas, bateu-a contra seus lábios. O botão não era tão macio ou tão doce quanto Anna. Daniel o largou. Ela deixara as flores para trás, mas ele as enviaria para a sua residência na manhã seguinte, talvez acrescentando mais uma dúzia. Tinha apenas começado.

Sua mão não estava completamente firme quando pegou a garrafa de champanhe. Daniel encheu a taça até a boca e virou-a num longo gole.

 

Na manhã seguinte, Anna estava trabalhando no hospital. O tempo que passava lá lhe trazia, ao mesmo tempo, prazer e frustração. Nunca fora capaz de explicar para ninguém a excitação que sentia quando entrava no hospital, nem para seus pais nem para seus amigos. Ninguém entenderia a satisfação que lhe dava saber que era parte daquilo... o aprendizado e a cura.

A maioria das pessoas achava o hospital um lugar horrível. Para elas, as paredes brancas, as luzes brilhantese o cheiro de anti-séptico significavam doença, até mesmo morte. Para Anna, significavam vida e esperança. As horas que passava lá a tornavam mais determinada a ser parte da comunidade médica, assim como as horas que passava lendo livros e artigos de medicina a tornavam mais determinada a aprender tudo que pudesse.

Anna tinha um sonho que nunca fora capaz de compartilhar com ninguém. Para ela, era simples e pretensioso: queria fazer diferença. A fim de realizar o seu sonho, precisava devotar horas de sua vida ao aprendizado.

Trabalhando como leiga, separando roupas de cama distribuindo revistas, ainda aprendia. Observava médicos residentes fazerem turnos após cochilos. Um grande número deles não conseguiria se tornar médicos, independentemente de quão altas suas notas tivessem sido na faculdade. Mas ela conseguiria. Anna observava, ouvia e reforçava sua decisão.

Aprendeu uma outra coisa, algo que estava determinada a jamais esquecer. A espinha dorsal do hospital não eram os cirurgiões ou os médicos residentes. Não eram os administradores, embora eles fizessem orçamentos e regras. Era a equipe de enfermagem e de funcionários. Os médicos examinavam e diagnosticavam, mas os enfermeiros curavam, pensou Anna. Passavam horas em pé, andavam quilômetros de corredores todos os dias. Qualquer chapéu que estivessem usando... recepcionistas, atendentes de enfermagem, pessoal de apoio... Anna via a mesma coisa: dedicação, geralmente combinada com fadiga.

Foi então que, no verão antes de seu último ano da faculdade de medicina, fez uma promessa a si mesma. Seria médica, cirurgia, mas seria uma médica com a compaixão de uma enfermeira.

- Oh, srta. Whitfield. - A sra. Kellerman, a enfermeira chefe, parou Anna com um ligeiro sinal de mão, então acabou de preencher um relatório. Ela era enfermeira pelo mesmo tempo que era viúva, 20 anos. Aos 50, era forte como aço e incansável como uma adolescente. Kellerman era gentil com os pacientes e dura com as enfermeiras. - A sra. Higgs do quarto 521 está perguntando por você.

Anna mudou de braço a pilha de revistas que carregava. O quarto 521 seria sua primeira parada.

- Como ela está hoje?

- Estável - Kellerman respondeu sem olhar para cima. Estava no meio de um turno de dez horas e não tinha tempo para conversa fiada. - Passou uma noite tranqüila.

Anna reprimiu um suspiro. Sabia que Kellerman teria checado o relatório médico da sra. Higgs pessoalmente e poderia ter lhe dado informações exatas. Também conhecia a opinião de Kellerman sobre o sistema. Mulheres deveriam trabalhar em certas áreas, homens em outras. Não havia cruzamento. Em vez de questionar Kellerman, Anna desceu o corredor. Iria ver por si mesma.

As persianas estavam abertas no quarto da sra. Higgs. A luz do sol penetrava e fazia brilhar as paredes e lençóis brancos. O rádio tocava baixinho. A sra. Higgs estava deitada calmamente na cama. O rosto magro possuía rugas mais profundas do que o normal para uma mulher que ainda não chegara aos 60 anos. Os cabelos eram finos e grisalhos. As marcas de blush que ela tinha aplicado naquela manhã coloriam as faces pálidas. Embora a cor da mulher deixasse Anna apreensiva, sabia que tudo que podia ser feito estava sendo feito. Nas pontas das mãos fracas, as unhas da sra. Higgs estavam pintadas de vermelho forte. O que fez Anna sorrir. A sra. Higgs lhe dissera uma vez que podia perder sua boa aparência, mas nunca sua vaidade.

Porque os olhos da mulher estavam cerrados, Anna fechou a porta suavemente. Após largar as revistas, andou até a prancheta com o relatório aos pés da cama.

Como Kellerman tinha dito, o estado da sra. Higgs era estável, sem melhoras ou pioras por mais de uma semana.

A pressão sangüínea estava um pouco baixa e ela ainda era incapaz de comer alimentos sólidos, mas havia passado a noite confortavelmente. Satisfeita, Anna foi até a janela para fechar as persianas.

- Não, querida, eu gosto do sol.

Anna virou-se e encontrou a sra. Higgs sorrindo-lhe.

- Desculpe-me, acordei a senhora?

- Não, eu estava devaneando um pouco. -A dor estava sempre lá, mas a sra. Higgs continuou sorrindo enquanto estendia uma das mãos. - Eu tinha esperança que você viesse hoje.

- Oh, eu tinha de vir. - Anna se sentou ao lado da cama. - Peguei uma revista de modas emprestada de minha mãe. Espere até que veja o que Paris está nos preparando para o outono.

Com uma risada, a sra. Higgs desligou o rádio.

- Eles nunca serão melhores do que nos anos 1920. Nessa época, havia moda com ousadia. E claro, você precisava ter pernas longas e coragem. - Ela conseguiu uma piscada. - Eu tinha.

- A senhora ainda tem.

- A coragem, não as pernas. - Suspirando, a sra. Higgs mudou de posição. Anna levantou-se imediatamente para arrumar os travesseiros. - Eu sinto saudade de ser jovem, Anna.

- Eu gostaria de ser mais velha.

A sra. Higgs sentou-se ereta, com dificuldade, e deixou Anna cobri-la.

- Não deseje que os anos passem rapidamente.

- Não anos. - Anna sentou-se na beira da cama. - Apenas o próximo ano.

- Você terá o seu diploma num piscar de olhos. Então, de vez em quando, vai sentir falta de todo o trabalho e confusão que teve para consegui-lo.

- Tenho de acreditar na sua palavra quanto a isso. -Eficiente e discreta, Anna tomou-lhe a pulsação. - No momento, tudo em que posso pensar é em terminar o verão e recomeçar.

- Ser jovem é como ter um presente maravilhoso e não saber ao certo o que fazer com ele. Conhece aquela enfermeira bonita, alta, com cabelos ruivos?

Reedy, pensou Anna quando tirou os dedos do pulso da mulher. Pelo relatório da sra. Higgs, ela não deveria tomar medicação antes de uma hora.

- Conheço-a de vista.

- Ela estava me ajudando esta manhã. Uma pessoa tão doce. Vai se casar em breve. Gosto de ouvi-la falar sobre o namorado. Você nunca fala.

- Nunca falo o quê?

- Sobre o seu namorado.

Havia algumas flores levemente murchas em um vaso ao lado da cama. Anna sabia que uma das enfermeiras devia tê-las levado, porque a sra. Higgs não tinha família. Inclinando-se, tocou as flores para tentar reanimá-las.

- Eu não tenho um.

- Oh, não acredito nisso. Uma jovem adorável como você deve ter muitos namorados.

- Eles me distraem quando fazem fila na minha porta - brincou Anna, então sorriu quando a mulher mais velha deu uma risadinha.

- Isso não está muito longe da verdade, imagino. Eu só tinha 25 anos quando perdi meu marido. Então decidi que nunca mais me casaria de novo. É claro, tive namorados. - Um pouco sonhadora, um pouco triste, a sra. Higgs olhou para o teto. - Eu poderia lhe contar histórias que a deixariam chocada.

Com uma risada, Anna jogou os cabelos para trás. A luz do sol bateu sobre seus olhos, tornando-os mais profundos, mais calorosos.

- A senhora não poderia me chocar.

- Foi uma brincadeira terrível, lamento, mas eu me diverti tanto. Agora, eu desejaria...

- O que desejaria, sra. Higgs?

- Eu desejaria que tivesse me casado com um deles. Que tivesse me casado e tido filhos. Então haveria alguém que se importasse comigo e se lembrasse de mim.

- Há pessoas que se importam com a senhora. - Anna pegou-lhe a mão novamente. - Eu me importo.

Ela não cederia à dor, ou pior, à autopiedade. A sra. Higgs apertou a mão de Anna.

- Mas deve existir um homem em sua vida. Alguém especial.

- Ninguém especial. Há um homem - continuou Anna em tom frio. - Ele é uma chateação.

- Que homem não é? Conte-me sobre ele.

Porque os olhos cansados haviam se iluminado, Anna decidiu distrair a mulher.

- O nome dele é Daniel MacGregor.

- Ele é bonito?

- Não... sim. -Anna deu de ombros, depois descansou o queixo na mão. - Ele não é o tipo de homem que vemos em uma revista, mas certamente não é comum. Tem quase dois metros de altura, eu diria.

- Ombros largos? - perguntou a sra. Higgs, animando-se.

- Definitivamente. - Ela tinha decidido fazê-lo parecer muito grande para a alegria da sra. Higgs, então percebeu que não precisava exagerar. - Parece ser capaz de levantar dois homens em cada ombro.

Encantada, a sra. Higgs recostou-se.

- Sempre gostei de homens grandes. Anna começou a fazer uma careta, então admitiu para

si mesma que sua descrição de Daniel era melhor para; sra. Higgs do que a moda de Paris.

- Ele tem cabelos ruivos - continuou Anna e fez uma pausa antes de acrescentar -, e barba.

- Barba! - Os olhos da sra. Higgs brilharam. - Que elegante.

- Não. - A imagem de Daniel veio à mente de Anna com muita facilidade. - É mais arrojado. Mas ele tem olhos lindos. Muito azuis. - Ela franziu o cenho, lembrando-se. - E tende a olhar diretamente.

- Um homem ousado. - A sra. Higgs assentiu em aprovação. - Eu nunca pude tolerar um homem fracote. O que ele faz?

- É um homem de negócios. Bem-sucedido. Arrogante.

- Está ficando cada vez melhor. Agora, diga-me por que ele é uma chateação?

- Ele não aceita um simples não como resposta. - Irrequieta, Anna se levantou e andou até a janela. - Deixei muito claro que não estou interessada.

- O que o tornou determinado a fazê-la mudar de idéia.

- Alguma coisa assim. - Eu escolhi você, Anna Whitfield. E quero ter você. - Ele me mandou flores todos os dias desta semana.

- Que tipo de flores? Divertida, Anna virou-se.

- Rosas brancas.

- Oh. - A sra. Higgs deu um suspiro que era jovem e desejoso. - Faz mais anos do que posso contar desde que alguém me enviou rosas.

Emocionada, Anna estudou-lhe o rosto. A sra. Higgs estava cansada.

- Eu ficarei feliz em lhe trazer as minhas. Elas têm um aroma maravilhoso.

- Você é uma criatura meiga, mas não é a mesma coisa, é? Houve uma época... -A voz falhou, e ela meneou a cabeça. - Bem, já passou agora. Talvez você deva prestar mais atenção neste Daniel. Nunca é sábio rejeitar afeição.

- Terei mais tempo para afeição depois que eu terminar minha residência.

- Nós sempre achamos que teremos mais tempo. -Com um outro suspiro, a sra. Higgs fechou os olhos. - Estou apostando em Daniel - murmurou e adormeceu.

Anna observou-a por um momento. Deixando a sra. Higgs com a luz do sol e a revista de Paris, fechou a porta silenciosamente.

Horas depois, saiu para o sol da tarde. Seus pés estavam cansados, mas sentia-se animada. Tinha passado a última parte de seu turno na maternidade, ouvindo as novas mães e segurando bebês. Perguntou-se quanto tempo levaria antes que estivesse grávida e que trouxesse uma nova vida ao mundo.

- Você fica ainda mais linda quando sorri. Assustada, Anna virou-se. Daniel estava encostado

contra o capo de um conversível azul-marinho. Estava vestido de maneira mais casual do que das outras vezes em que ela o vira, de calça esporte e uma camisa aberta no colarinho. Enquanto a brisa leve despenteava-lhe os cabelos, ele sorria-lhe. Daniel estava maravilhoso, embora ela detestasse admitir. Enquanto Anna hesitava, tentando pensar na melhor maneira de lidar com a situação, ele endireitou o corpo e se aproximou.

- Seu pai me disse que você estava aqui. - Ela parecia tão... competente, de saia escura e blusa branca, constatou ele. Não tão delicada quanto estivera em vestidos cor-de-rosa ou azul, mas igualmente adorável.

Em um gesto casual, Anna pôs os cabelos atrás da orelha.

- Oh, eu não sabia que você conhecia meu pai.

- Agora que Ditmeyer é promotor, preciso de um outro advogado.

- Meu pai. - Anna lutou contra uma onda de raiva. -Certamente espero que você não o tenha contratado por minha causa.

O sorriso de Daniel foi lento e fácil. Sim, ela era adorável.

- Não misturo negócios com assuntos pessoais, Anna. Você não retornou nenhum de meus telefonemas.

Desta vez, ela sorriu.

- Não.

- Seus modos me surpreendem.

- Não deveriam, considerando seus próprios modos, mas, em todo caso, eu lhe enviei um bilhete.

- Não considero exatamente comunicação um pedido formal para que eu pare de enviar flores.

- Você também não parou de enviá-las.

- Não. Você trabalhou o dia inteiro?

- Sim. Então, agora, se me der licença...

- Eu vou levá-la para casa.

Anna inclinou a cabeça da maneira fria que ele passara a esperar.

- Muita gentileza sua, mas não é necessário. Está um dia lindo e não moro longe.

- Tudo bem, eu a acompanho a pé.

Ela descobriu que estava cerrando os dentes. Decidiu se acalmar.

- Daniel, tenho certeza de que fui muito clara com você.

- Sim, você foi. E eu também fui claro. - Ele pegou-lhe as mãos nas suas. - Portanto, é uma questão de ver qual de nós resiste por mais tempo. Espero que seja eu. Não há mal algum em nos conhecermos melhor, há?

- Tenho certeza de que há. - Anna começou a ver um dos motivos por que ele era tão bem-sucedido nos negócios. Quando queria, esbanjava charme. Nem todos os homens podiam enfrentar um desafio com um sorriso amigável no rosto. - Por favor, solte as minhas mãos.

- É claro... se você der uma volta de carro comigo. A raiva brilhou nos olhos dela.

- Não aceito chantagens.

- É justo. - Porque estava começando a respeitá-la, e porque ainda queria vencer, ele liberou-lhe as mãos. -Anna, está uma tarde linda. Venha dar uma volta comigo. Ar fresco e sol fazem bem para a saúde, não fazem?

- Fazem. - Que mal havia naquilo? Talvez se o distraísse um pouco, poderia convencê-lo a pôr sua considerável energia em alguma outra atividade. - Tudo bem, uma volta curta então. Seu carro é lindo.

- Gosto muito, embora Steven faça biquinho toda vez que saio sem ele e o Rolls. Uma coisa patética para um homem adulto fazer. - Ele começou a abrir a porta para Anna, então parou. - Você dirige?

- É claro.

- Ótimo. - Daniel pegou as chaves do bolso e entregou-as para ela.

- Não entendo. Você quer que eu dirija?

- A menos que você não queira.

Os dedos de Anna se curvaram em volta das chaves.

- Eu adoraria, mas como sabe que não sou imprudente?

Ele a olhou por um momento, então caiu numa gargalhada encantadora. Antes que ela se desse conta, Daniel a ergueu e girou-a nos braços em dois círculos estonteantes.

- Anna Whitfield, estou louco por você.

- Louco - murmurou ela, tentando arrumar a saia e a dignidade quando seus pés tocaram o solo novamente.

- Vamos, Anna. - Ele se sentou no banco de passageiro com um sorriso perverso. - Minha vida e meu carro estão em suas mãos.

Meneando a cabeça, ela circulou o veículo e acomodou-se atrás do volante. Incapaz de resistir, enviou-lhe um sorriso frio e perverso.

- Você é um jogador, certo, Daniel?

- Certo. - Ele recostou-se quando o motor foi ligado. - Por que não saímos um pouco da cidade? O ar é mais puro.

Dois quilômetros, pensou Anna enquanto afastava-se do meio-fio. Três no máximo.

Logo eles já haviam andado uns 15 quilômetros para fora da cidade e estavam rindo.

- É maravilhoso - gritou ela sobre o vento. - Eu nunca tinha dirigido um conversível antes.

- Combina com você.

- Vou me lembrar disso quando decidir comprar meu próprio carro. -Anna mordiscou o lábio inferior enquanto lidava com uma curva. - Talvez, eu procure por um em breve. Vou me mudar para um apartamento mais perto do hospital, mas um carro é sempre útil.

- Você vai sair da casa dos seus pais? Ela assentiu.

- No próximo mês. Eles não protestaram tanto quanto eu esperava. Suponho que a melhor coisa que já fiz foi cursar a faculdade fora do estado. Tudo que tenho de fazer é convencê-los que não precisam mobiliar o apartamento para mim.

- Não gosto da idéia de você morando sozinha. Anna virou a cabeça brevemente.

- Não é problema seu, claro, mas, de qualquer forma, sou adulta. Você mora sozinho, não mora?

- É diferente.

- Por quê?

Ele abriu a boca, então voltou a fechá-la. Por quê? Porque, apesar de não se preocupar consigo mesmo, preocupava-se com ela. Todavia, aquela não era uma razão que Anna aceitaria. Daniel já a conhecia o bastante para saber disso.

- Não moro sozinho - ele a corrigiu. - Tenho empregados. - De modo presumido, esperou pelo argumento que viria.

- Não acho que terei espaço para algum empregado. Olhe como a grama é verde aqui.

- Você está mudando de assunto.

- Sim, estou. Você sempre tira tardes de folga?

- Não. - Daniel resmungou um pouco, então deixou o assunto anterior morrer. Poderia verificar o apartamento dela e decidir se era realmente seguro. Se não fosse, poderia facilmente comprá-lo. - Mas decidi que apanhá-la no hospital era a única maneira de vê-la sozinha novamente.

- Eu poderia ter dito não.

- Sim. Eu estava apostando que diria. O que você faz lá? Não pode enfiar agulhas e facas em pessoas ainda.

Anna riu de novo. O cheiro do vento era delicioso.

- Pela maior parte do tempo, visito pacientes, converso com eles, levo-lhes revistas. Às vezes, ajudo a trocar as roupas de cama, se for preciso.

- Não é para isso que você está estudando.

- Não, mas estou aprendendo de qualquer forma. Os médicos, e mesmo as enfermeiras, não podem dar muita atenção pessoal aos pacientes, devido à falta de tempo e ao grande número de doentes. Estou livre para fazer isso agora, mesmo que por um curto período de tempo. O que me ajuda a entender como é ficar deitado lá, hora após hora, doente, desconfortável ou somente entediada. Irei me lembrar disso quando começar a minha prática.

Daniel nunca tinha pensado naquilo dessa forma, mas recordava-se da doença demorada que tirara a vida de sua mãe quando ele tinha dez anos. Lembrava-se também de como fora difícil para ela ficar confinada a uma cama. O cheiro enjoativo do quarto de doente era tão claro para Daniel agora quanto o cheiro das minas.

- Ficar cercada de pessoas doentes o tempo todo não incomoda você?

- Se me incomodasse, eu não sentiria a necessidade de ser médica.

Daniel observou o modo como o vento jogava os cabelos de Anna para trás. Ele adorara sua mãe, costumava se sentar a seu lado todos os dias, mas sentira pavor de enfrentar a doença e assisti-la morrer aos poucos. Anna, jovem, vital, estava escolhendo passar a vida enfrentando doenças.

- Não entendo você.

- Eu nem sempre entendo a mim mesma.

- Conte-me por que você vai àquele hospital todos os dias.

Ela pensou em seu sonho. Por que ele entenderia se ninguém mais entendia? Então, lembrou-se da sra. Higgs. Talvez Daniel pudesse compreender aquilo.

- Há uma mulher no hospital agora. Há algumas semanas, eles a operaram, removeram-lhe um tumor e parte do fígado. Sei que ela está sofrendo, mas raramente reclama. Ela precisa conversar, e posso lhe dar isso. E tudo que posso fazer em relação à medicina agora.

- Mas isso é importante.

Anna virou-se para ele novamente, e os olhos estavam escuros e intensos.

- Sim, para nós duas. Hoje ela estava me dizendo que desejaria ter se casado de novo depois que o marido faleceu.    Quer que alguém se lembre dela. O corpo está desistindo,  ' mas a mente é tão viva. Hoje eu lhe contei sobre...

- Você falou sobre mim.

Anna podia ter mordido a língua. Em vez disso, explicou cuidadosamente:

- A sra. Higgs puxou o assunto sobre homens, e eu disse a ela que conhecia um que era uma chateação.

Ele pegou-lhe a mão e beijou-a.

- Obrigado.

Lutando para não rir, Anna acelerou o carro.

- De qualquer forma, descrevi você. Ela ficou impressionada.

- Como você me descreveu?

- Você é vaidoso, também, Daniel?

- Absolutamente.

- Arrogante, arrojado. Não sei se me lembrei de incluir "rude". A questão é, se eu ainda posso me sentar e conversar com ela por alguns minutos todos os dias, levar um pouco do mundo externo para o quarto de hospital, torno as coisas mais fáceis. Um médico deve lembrar-se de que diagnóstico e tratamento não são suficientes. Talvez não tenham valor algum sem compaixão.

- Não acho que você vá esquecer disso. Anna sentiu uma onda de emoção.

- Você está tentando me elogiar de novo.

- Não. Estou tentando entendê-la.

- Daniel. - Como ela lidaria com ele agora? Podia lidar com a arrogância, com o exibicionismo, até mesmo com seu jeito autoritário. Mas como lidava com gentileza? – Se você realmente quer me entender, ouça-me. Conseguir um diploma, começar a minha prática não são apenas as coisas mais importantes da minha vida. Por enquanto, são apenas desejos. Quero isso há muito tempo. Trabalhei duro demais para ser distraída agora por algo ou por alguém. Ele trilhou um dedo pelo ombro dela.

- Você me considera uma distração, Anna?

- Isso não é brincadeira.

- Não, nada disso é brincadeira. Quero que você seja minha esposa.

O carro desviou quando as mãos de Anna tremeram no volante. Pisando no freio, ela parou no acostamento.

- Isso é um sim? - Porque gostava de ver o semblante chocado dela, Daniel sorriu.

Levou mais alguns segundos para Anna encontrar a voz. Não, ele não estava brincando. Era insano.

- Você é louco. Nós nos conhecemos há uma semana, nos vimos pouquíssimas vezes, e está me pedindo em casamento? Se você faz negócios com esse tipo de abandono, não entendo como ainda não faliu.

- Porque eu sei quais negócios fazer e quais recusar, Anna - ele aproximou-se e tocou-lhe os ombros. - Eu podia ter esperado para pedi-la em casamento, mas não vejo sentido quando estou tão certo.

- Você está certo? - Com um longo suspiro, Anna tentou controlar o caos de emoções em seu interior. - Talvez possa interessá-lo saber que são necessárias duas pessoas para se fazer um casamento. Duas pessoas decididas que se amam.

Ele descartou aquilo.

- Somos duas pessoas.

- Não quero me casar, nem com você nem com ninguém. Tenho um outro ano de faculdade, minha especialização, minha residência.

- Posso não gostar da idéia de você se tornar médica - nem ele achava que poderia fazê-la desistir -, mas estou disposto a fazer algumas concessões.

- Concessões? - Anna queria explodir de raiva. - Minha carreira não é uma concessão. - Sua voz estava muito baixa, calma demais. - Tentei ser razoável com você, Daniel, mas simplesmente não me ouve. Tente enfiar isso na cabeça. Está perdendo o seu tempo.

Ele a puxou para mais perto, excitado pela raiva dela, furioso pela rejeição.

- O tempo é meu para perder como quiser.

Não tão gentil como tinha sido antes, nem tão paciente, ele a beijou. Talvez Anna resistisse, Daniel não sabia. Naquele momento, estava absorto demais no desejo que o consumia, as emoções percorrendo-o loucamente para ter consciência de conformidade ou objeção.

Os lábios de Anna estavam quentes do sol forte, a pele macia de qualquer mágica feminina que ela usava. Ele a queria. Não era mais uma questão de escolher ou de qualquer plano que fizera. O desejo totalmente avassala-dor o conduzia.

Era assim que Anna pensava que ele seria: forte, exigente, perigoso, excitante. Não conseguiu objetar, embora soubesse que seria simples. Fria. Como podia ser fria quando seu corpo tinha ficado em chamas de repente? Insensível. Como podia ignorar as sensações que a percorriam? Apesar de toda a lógica, apesar de toda a força de vontade, derreteu-se contra ele. Derretendo-se, deu mais do que sabia possuir. Absorveu mais do que imaginava querer.

Ela quereria de novo. Enquanto o sangue corria freneticamente nas veias, soube disso. Enquanto Daniel estivesse perto, enquanto se lembrasse dos toques dele, iria querer novamente. Como podia impedir aquilo? Por que queria impedir? Havia respostas. Estava certa de que havia respostas se pudesse procurá-las. Necessitava de lógica, mas a fraqueza a dominou até que estava perdida rio poder que eles criavam juntos.

Quando a clareza de seus pensamentos retornou, estava mesclada com paixão. Paixão, Anna podia controlar. Lutando contra arrependimentos, voltou a dirigir. Endireitou-se no assento, e olhou para frente até que estivesse certa de que podia falar.

- Eu não vou vê-lo de novo.

A primeira onda de medo o surpreendeu. Daniel a reprimiu e virou o rosto dela para o seu.

- Ambos sabemos que isso não é verdade.

- Estou falando sério.

- Tenho certeza disso. Mas não é verdade.

- Que coisa, Daniel, ninguém pode lhe dizer nada. Era a primeira vez que ele a via expressar a raiva

abertamente, e, embora ela tivesse se controlado com rapidez, Daniel viu que o temperamento de Anna era forte o bastante para ser respeitado.

- Mesmo se eu estivesse apaixonada por você, o que não é verdade - continuou ela -, nada poderia resultar disso.

Ele enrolou uma mecha de cabelos dela no dedo e soltou.

- Vamos esperar e ver.

- Não vamos. -Ana freou e teve um sobressalto quando uma buzina soou. Um senhor de idade que estava atrás desviou o carro e parou ao lado deles o tempo suficiente para olhá-los e gritar alguma coisa que foi perdida sob o som do motor no momento em que continuou a dirigir na estrada. Quando Daniel começou a rir, Anna voltou para o acostamento, parou e deitou a testa no volante, rindo, também. Nunca conhecera ninguém que pudesse deixá-la tão furiosa, tão fraca, e ainda fazê-la rir.

- Daniel, esta é a situação mais ridícula que já vivi. -Ainda rindo, ela levantou a cabeça. - Eu quase acreditei que poderíamos ser amigos se você parasse de tentar me seduzir.

- Nós seremos amigos. - Ele inclinou-se para frente e a beijou de leve antes que ela pudesse se mover. - Quero uma esposa, uma família. Chega uma hora que um homem precisa dessas coisas, ou nada mais vale a pena.

Anna dobrou os braços sobre o volante e descansou o queixo neles. Calma novamente, olhou para o gramado alto ao longo da estrada.

- Acredito nisso... para você. Também acredito que decidiu se casar e começou a procurar pela mulher mais adequada para satisfazer seus planos.

Ele se movimentou, desconfortável. Não seria fácil ter uma esposa que podia ler tudo aquilo tão bem. Mas tinha escolhido Anna.

- Por que você pensa assim?

- Porque, para você, tudo se resume a negócios. - Ela lhe lançou um olhar firme. - De um jeito ou de outro.

Ele não podia mentir... não para ela.

- Talvez sim. A questão é: você é adequada. Somente você.

Suspirando, ela recostou-se.

- Casamento não é uma transação de negócios, ou não deveria ser. Não posso ajudá-lo, Daniel. - Anna ligou o carro novamente. - É hora de voltarmos.

Daniel colocou uma mão de leve sobre o ombro dela antes que Anna começasse a virar o volante.

- É tarde demais para voltarmos, Anna. Para nós dois.

 

Raios brilhavam no céu e trovões soavam alto, mas ainda não chovia. A noite, embora o verão mal tivesse começado, estava quase sufocante. De vez em quando, o vento passava por entre as árvores, mas sem som e sem refrescar o ar. Apreciando o calor e a ameaça de uma tempestade, Myra parou na frente da casa dos Ditmeyer, freando com violência e fazendo os pneus cantarem.

- Que barulho horrível. - Ela abaixou o protetor solar do carro para ver o rosto no espelhinho. - Realmente preciso consertar isso.

- Seu rosto? - O sorriso suave de Anna foi recebido com bom-humor.

- Antes que ele se acabe, certamente, mas, no momento, falo desse barulho horrível.

- Você pode tentar dirigir com um pouco mais de... discrição - sugeriu Anna.

- Que graça teria?

Rindo, Anna desceu do carro.

- Lembre-me de não deixá-la dirigir meu carro novo.

- Carro novo? - Myra bateu a porta, então ajeitou a alça do vestido. - Quando você comprou um carro?

Devia ter alguma coisa no ar, pensou Anna, que a fazia se sentir tão impaciente, tão impulsiva.

- Estou pensando em comprar um amanhã.

- Ótimo. Eu vou com você. Um apartamento novo, um carro novo. - Myra deu o braço para Anna enquanto elas andavam. Os aromas dos perfumes delas, um sutil, o outro extravagante, se misturaram. - O que deu na pequena e tranqüila Anna?

- Provei o gosto da liberdade. - Jogando a cabeça para trás, ela olhou para o céu. Estava cheio de nuvens. Excitação. -Uma única experiência e descobri que sou insaciável.

Não era uma palavra que Myra associasse a Anna, exceto no que se referia aos estudos. A menos que estivesse enganada, os pensamentos de sua amiga tinham se desviado de assuntos sobre medicina. Especulando, tocou o lábio superior com a língua.

- O quanto será que Daniel MacGregor tem a ver com isso?

Anna parou para arquear uma sobrancelha antes de tocar a campainha. Reconheceu a expressão nos olhos de Myra e sabia exatamente como lidar com ela.

- O que ele tem a ver com o fato de eu querer comprar um carro?

- Eu estava pensando sobre a palavra insaciável. Era difícil manter o semblante sério, mas Anna conseguiu ignorar o sorriso perverso que Myra lhe deu.

- Você está interpretando as coisas de maneira errada, Myra. Eu apenas decidi que quero voltar para Connecticut com estilo.

- Um carro vermelho - decidiu Myra. - E berrante.

- Não, um carro branco, acho. E de classe.

- Vai combinar com você, não vai? - Com um suspiro, Myra deu um passo atrás para estudar Anna. O vestido era da cor do interior de uma pêra, muito claro, com as mangas finas e abotoadas nos pulsos. - Se eu tentasse usar um vestido dessa cor, desapareceria no papel de parede. Você parece ter saído de uma vitrine de padaria.

Com uma outra risada, Anna pegou-lhe o braço novamente.

- Não vim aqui para ser provocada. De qualquer forma, cor forte combina com você, Myra, de um jeito que não combina com mais ninguém.

Satisfeita, Myra comprimiu os lábios.

- Sim, combina mesmo, verdade?

No momento em que o mordomo dos Ditmeyer abriu a porta, Anna entrou. Não podia explicar por que se sentia tão bem. Talvez fosse porque sua rotina no hospital estava se tornando cada vez mais gratificante. Talvez fosse a carta do dr. Hewitt e a fascinante técnica cirúrgica que ele lhe contara. Certamente não tinha nada a ver com as rosas brancas que continuavam a chegar todos os dias.

- Sra. Ditmeyer.

Vigorosa e formidável em voile de tonalidade lavanda, Louise Ditmeyer veio cumprimentar suas duas convidadas.

- Anna, como você está linda. - Ela parou para estudar o vestido cor de pêssego de Anna. -Adorável - continuou. - Tons pastel são bastante adequados para uma garota jovem. E, Myra, como vai você? - Ela olhou para o vestido verde-esmeralda vivido de Myra. A desaprovação era evidente em seus olhos.

- Muito bem, obrigada - disse Myra docemente. Mulher tola.

- Está maravilhosa, sra. Ditmeyer - Anna falou rapidamente, capaz de ler os pensamentos de Myra. Para manter a amiga na linha, deu-lhe uma leve cutucada nas costelas. - Espero que não tenhamos chegado muito cedo.

- De forma alguma. Há várias pessoas no salão. Venham. - A sra. Ditmeyer liderou o caminho.

- Parece um couraçado - murmurou Myra.

- Então, cuidado com o que fala ou você vai ser torpedeada.

- Espero muito que seus pais venham. - A sra. Ditmeyer parou na entrada do salão e deu uma olhada prazerosa para seus convidados.

- Eles não perderão a festa - Anna a assegurou, e perguntou-se se alguém ousaria dizer a Louise Ditmeyer que a cor de lavanda a fazia parecer doente.

A sra. Ditmeyer sinalizou para um empregado.

- Charles, traga xerez para as moças. Estou certa de que vocês duas podem se misturar à multidão. Tenho muito a fazer. - Com isso, ela partiu.

Sentindo-se arrojada, Myra foi para o bar.

- Uísque em vez de xerez, Charles.

- E um martíni - acrescentou Anna. - Seco. Tente se comportar, Myra. Sei que ela é irritante, mas é a mãe de Herbert.

- Fácil para você dizer. - Resmungando, Myra pegou o seu drinque. - Na opinião dela, você tem auréola e asas.

Anna recuou com a descrição.

- Você está exagerando.

- Tudo bem, só auréola, então.

- Ajudaria se eu derrubasse meu drinque no tapete? - Anna tirou a azeitona de dentro do copo.

- Você não faria isso - começou Myra, então engasgou quando Anna inclinou o copo. - Não! - Ela o endireitou com uma risada. - Esqueci como você gosta de um desafio. - Pegando a azeitona de Anna, comeu-a. - Eu não me importaria muito se você derrubasse na bruxa, mas o carpete é bonito demais. Pobre Herbert. - Ela virou-se para estudar os outros convidados. - Lá está ele, monopolizado pela didática caçadora de homens, Mary O’Brian. Sabe, ele é atraente de um jeito intelectual. E uma pena que seja tão...

- Tão, o quê?

- Bom - concluiu Myra. - Agora - ela ergueu o copo para esconder o sorriso -, tem alguém que não acho que possa ser chamado de bom.

Anna nem precisou se virar. O salão pareceu menor e mais quente, de súbito. Mais quente e mais carregado. Ela sentiu a excitação, lembrou-se da emoção. Por um momento, o pânico a assolou. As portas do terraço estavam à sua direita. Poderia passar por elas e sair num instante. Daria uma desculpa mais tarde, qualquer desculpa.

- Meu Deus. - Myra colocou uma mão no braço de Anna e sentiu-a tremer. - Você está mal.

Furiosa consigo mesma, Anna largou o copo e o pegou de novo.

- Não seja ridícula.

Divertimento foi mesclado com preocupação.

- Anna, sou eu. A pessoa que mais ama você.

- Ele é persistente, isso é tudo. Absurdamente persistente. O que me deixa nervosa.

- Tudo bem. - Myra conhecia bem a amiga para tentar convencê-la do contrário. - Vamos deixar as coisas como estão, por enquanto. Mas, uma vez que você parece precisar de um minuto para se recompor, vamos resgatar Herbert.

Anna não discutiu. Precisava de um minuto. Uma hora. Talvez de anos. Não importava que tivesse analisado sua reação a Daniel e julgado-a como sendo puramente física. A reação permanecia, e se tornava maior cada vez que o via. Não se importava com a excitação que ele podia fazê-la sentir só pelo fato de estar na mesma sala, portanto, o ignoraria e relaxaria. Sempre tinha conseguido controlar as reações de seu corpo. Respire devagar, disse a si mesma. Concentre-se nos músculos individuais: A tensão nos seus ombros diminuiu. Eles estavam, afinal de contas, numa festa, cercados por outras pessoas. Não era como se estivessem sentados em um carro parado numa estrada deserta. O estômago dela se contraiu.

- Olá, Herbert. - Myra colocou-se ao lado dele. - Mary.

- Myra. - Obviamente irritada pela interrupção, Mary voltou-se para Anna. Quando fez isso, Herbert rolou os olhos. Divertida e sentindo compaixão, Myra enlaçou o braço no dele. - Pondo alguns criminosos na cadeia ultimamente?

Antes que ele pudesse comentar, Mary enviou a Myra um olhar de repreensão.

- Você faz parecer como se isso fosse um jogo. Herbert é uma parte muito importante de nosso sistema judicial.

- Verdade? - Myra arqueou a sobrancelha de um jeito que só ela podia fazer. - E pensei que ele só jogasse bandidos na prisão.

- Regularmente. - O tom de Herbert era seco, o olhar solene. Assentiu para Myra. - Faço o possível para me certificar de que as ruas fiquem seguras. Você devia ver as fendas na minha maleta.

Encantada com a rapidez com que ele entrara no jogo, Myra aproximou-se mais e piscou.

- Oh, Herbert, eu simplesmente adoro homens durões.

Aquilo era, infelizmente, uma imitação inteligente e cruel de Cathleen Donahue, a melhor amiga de Mary. Ela fungou e tencionou.

- Se vocês me derem licença.

- Acho que o nariz dela é desconjuntado. - Myra pareceu inocente. - Anna, qual é a sua opinião médica?

- Malícia terminal. - Anna deu um tapinha no rosto de Myra. - Cuidado, querida, é contagioso.

- Belo desempenho.

Anna congelou, então, forçou-se a relaxar. Como teria adivinhado que um homem tão grande podia se mover tão silenciosamente?

- Boa noite, sr. MacGregor. - Myra estendeu uma mão amigável. O jantar festivo não seria tedioso, afinal. - Gostou do bale?

- Muito, assim como gostei de sua representação.

Herbert cumprimentou Daniel com um rápido aperto de mão.

- Você vai descobrir que Myra nunca é enfadonha. Lisonjeada e surpresa, Myra voltou-se para ele.

- Bem, obrigada. - Movida por impulso, tomou uma decisão. Amava Anna como uma irmã. Resolveu fazer o que era melhor para ela. - Acho que gostaria de um outro drinque antes do jantar. Você também, Herbert. - Sem dar-lhe a chance de concordar, ela o levou dali.

Meneando a cabeça, Daniel observou-a conduzir Herbert através da multidão.

- Ela é incrível.

Anna olhou a amiga indo para o bar.

- Oh, ela é definitivamente incrível.

- Gosto dos seus cabelos.

Ela quase levou uma mão para cima antes que pudesse deter-se. Porque não tivera tempo de arrumar os cabelos depois de seu turno no hospital, simplesmente os penteara para trás. Esperara parecer sofisticada na melhor das hipóteses, e competente na pior. Seu rosto estava exposto e vulnerável.

- Já esteve na casa dos Ditmeyer antes?

- Você está mudando de assunto de novo.

- Sim. Já esteve?

Um sorriso curvou os lábios dele.

- Não.

- Há uma coleção maravilhosa de Waterford na sala de jantar. Você devia dar uma olhada quando formos jantar.

- Você gosta de cristais?

- Sim. Parecem frios até que a luz os toca, então, há tantas surpresas.

- Se você concordasse em jantar comigo em minha casa, eu poderia lhe mostrar a minha coleção.

Anna ignorou a primeira parte da sentença, mas comentou a segunda.

- Você faz coleções?

- Gosto de coisas pequenas.

O tom era claro. O olhar de Anna foi direto e calmo como sempre.

- Se isso é um elogio, aceito pelo valor que tem. Mas não tenho intenção de ser colecionada.

- Eu não a quero em uma prateleira ou em um vaso de cristal. Apenas quero você. - Ele pegou-lhe a mão, entrelaçando os dedos de ambos para que ela não a removesse. - Você é arisca - comentou, e descobriu que o fato o agradava.

- Cuidado. - Sem mover a cabeça, Anna olhou para as mãos unidas de ambos. - Você tem a minha mão.

Ele pretendia mantê-la.

- Já notou como sua mão se encaixa bem na minha? Anna o fitou.

- Você tem mãos grandes. Qualquer mão se encaixaria na sua.

- Acho que não. - Mas ele liberou-lhe a mão, apenas para segurar-lhe o braço.

- Daniel...

- Parece que nós vamos jantar.

Ela não podia comer. Seu apetite nunca era muito grande, o que constantemente fazia Myra reclamar, mas, naquela noite, estava inexistente. No começo, achou que era um truque do destino o fato de Daniel estar sentado ao seu lado na longa mesa do banquete. Mas, estudando-lhe a expressão, teve certeza de que ele arranjara aquilo. Daniel serviu-se de sopa e frutos do mar sem problemas, enquanto ela beliscava pela segurança da boa forma.

Ele era atencioso, irritantemente atencioso, enquanto fazia tudo, exceto ignorar a mulher à sua direita. Inclinava-se para mais perto e murmurava ao ouvido dela encorajando-a a comer um pouco mais disso ou experimentar aquilo. Forçada a manter os modos adequados, Anna lutou por compostura. Seus pais estavam sentados perto da cabeceira da mesa. Daquela direção, ela via tanto especulação quanto aprovação. Cerrou os dentes e tentou engolir o bife Wellington. Não demorou muito a perceber que havia especulação na outra ponta da mesa também. Viu os sorrisos, cabeças assentindo, ouviu sussurros atrás de mãos erguidas. Daniel estava deixando claro, publicamente, que os considerava um casal.

Os nervos de Anna, sempre tão bem controlados, começaram a esquentar. Muito deliberadamente, cortou um pedaço de carne.

- Se você não parar de brincar de pretendente apaixonado - murmurou ela, sorrindo-lhe -, vou jogar meu copo de vinho no seu colo. O que vai deixá-lo muito sem graça.

Daniel acariciou-lhe a mão.

- Não, você não vai fazer isso.

Anna respirou profundamente e aguardou a hora certa. Assim que a sobremesa foi servida, correu a mão ao longo da mesa e deu uma cotovelada. Se Daniel não tivesse olhado para baixo naquele instante preciso, estaria com o colo cheio de burgundy. Num reflexo, agarrou o copo rapidamente, o qual se inclinou na outra direção. Antes que pudesse endireitá-lo, metade do conteúdo caiu sobre a toalha da mesa. Ouviu Anna praguejar baixinho e quase caiu na gargalhada.

- Desajeitado. - Ele enviou um olhar apologético em direção à anfitriã. - Tenho as mãos tão grandes. – Sem expressar arrependimento, usou uma delas para dar um tapinha na perna de Anna por baixo da mesa. Apesar de não ter certeza, pensou tê-la ouvido cerrar os dentes.

- Não foi nada. - A sra. Ditmeyer olhou para o dano e decidiu que poderia ter sido pior. - É para isso que servem as toalhas. Você não derramou vinho na própria roupa, derramou?

Daniel sorriu para a mulher, depois para Anna.

- Nem uma gota. - Quando a conversa voltou ao ritmo normal, ele inclinou-se sobre Anna. - Admirável e muito ligeira. Eu a acho cada vez mais excitante.

- Você estaria mais empolgado se minha mira tivesse sido melhor.

Daniel ergueu o copo e tocou o dela.

- O que acha que nossa anfitriã faria se eu a beijasse aqui e agora?

Anna pegou sua faca e examinou-a como se estivesse admirando o padrão. O olhar que enviou a Daniel era duro como pedra.

- Sei o que eu faria.

Desta vez, ele riu, alto e longamente.

- Estou perdido, Anna, você é a única mulher para mim. - A declaração chamou a atenção das pessoas dos dois cantos da mesa. - Mas não vou beijá-la agora. Não quero que experimente sua primeira cirurgia em mim.

Após o jantar, houve jogo de bridge no salão. Apesar de detestar o jogo, Anna considerou participar, a fim de se manter ocupada e em um grupo. Antes que conseguisse, todavia, foi levada para a parte externa da casa por meia dúzia de pessoas mais jovens.

A tempestade ainda ameaçava e a lua estava coberta por nuvens, mas havia uma brisa refrescando o ar. Enquanto a chuva se aproximava, o vento começou a dançar ao redor de sua saia. Havia luzes colocadas estrategicamente aqui e ali, de modo que as árvores e o jardim fossem banhados por um brilho suave. Alguém tinha ligado o rádio do lado de dentro, e a música soava através das janelas. O grupo passeava por ali sem destino, então, as pessoas vagarosamente emparelharam-se.

- Você entende de jardins? - Daniel lhe perguntou.

Anna não esperara se livrar dele facilmente. Dando de ombros, manteve diversas de suas amigas à vista.

- Um pouco.

- Steven é melhor motorista do que jardineiro. - Daniel inclinou-se para cheirar uma grande peônia branca. - Ele é cuidadoso, mas lhe falta imaginação. Eu gostaria de algo mais...

- Esplendoroso? - sugeriu Anna. Ele gostou da palavra.

- Sim, esplendoroso. Colorido. Na Escócia, nós tínhamos a urze, e os arbustos eram repletos de rosas selvagens. Não do tipo bonito que você compra em floriculturas, mas fortes, com caules da grossura de um polegar e espinhos que podiam realmente furá-lo. - Ignorando o murmúrio de desaprovação de Anna, ele arrancou uma flor e colocou-a atrás da orelha dela. - É agradável olhar para flores delicadas, vê-las nos cabelos de uma mulher, mas rosas selvagens... duram mais.

Ela esquecera que não queria ficar sozinha com ele, esquecera de manter uma distância segura de suas amigas. Perguntava-se como seria o aroma de uma rosa selvagem, e se um homem como Daniel a arrancaria ou a deixaria crescer como quisesse.

- Você sente saudade da Escócia?

Ele a fitou por um momento, perdido nos próprios pensamentos.

- Às vezes. Quando não estou muito ocupado e posso pensar nisso. Sinto saudade dos penhascos, do mar e da grama, que é mais verde do que tem o direito de ser.

Estava na voz dele, percebeu Anna. Luto. Ela nunca imaginara que fosse possível ficar de luto por uma terra, somente por pessoas.

- Você vai voltar? - Ela encontrou-se precisando saber e com medo da resposta.

Daniel desviou o olhar por um momento, e um raio no céu refletiu no rosto dele. O coração de Anna disparou violentamente. Ele parecia com a imagem que ela sempre pensou que Thor teria... corajoso, rude, invulnerável. Quando ele falou, a voz era calma e deveria tê-la tranqüilizado. Ela sentiu apenas mais excitação.

- Não. Um homem faz seu próprio lar em seu próprio tempo.

Anna alisou uma vinha frágil da glicínia. Apenas um truque de luz, disse a si mesma. Era tolice ficar emocionada por um truque de luz.

- Você não tem família lá?

- Não. - Ela pensou ter ouvido sofrimento na voz dele, um sofrimento mais profundo do que o de luto, mas o rosto de Daniel estava impassível quando a olhou. - Sou o último de minha linhagem. Preciso de filhos, Anna. - Ele não a tocou. Não precisava. - Preciso de filhos e filhas. Quero que você os dê para mim.

Por que, quando ele ainda falava um absurdo, de repente não parecia mais tão absurdo? Desconcertada, Anna continuou andando.

- Não quero discutir com você, Daniel.

- Ótimo. - Ele a segurou pela cintura e a girou. A expressão solene que estivera nos olhos de Daniel foi substituída por um sorriso. - Vamos viajar para Maryland e nos casar pela manhã.

- Não! - Embora aquilo tivesse ferido a dignidade de Anna, ela tentou desvencilhar-se.

- Tudo bem. Se você quer um grande casamento, vou esperar uma semana.

- Não, não, não! - Por que aquilo parecia engraçado, Anna não sabia, mas começou a rir quando ele a puxou para seu peito. - Daniel MacGregor, sob todo esse cabelo vermelho, você tem a cabeça mais dura que conheço. Não vou me casar com você amanhã. Não vou me casar com você em uma semana. Não vou me casar com você nunca.

Ele ergueu-lhe os pés do solo de modo que os rostos de ambos ficassem no mesmo nível. Depois de se recuperar do choque, Anna achou aquilo estranho e não uma sensação inteiramente desagradável.

- Quer apostar? - disse ele simplesmente.

Ela arqueou a sobrancelha e a voz era fria como um riacho de montanha.

- Perdão?

- Meu Deus, que mulher! - exclamou ele e beijou-a com ardor. As visões que vieram à mente de Anna giraram tão rapidamente que ela não podia separá-las. - Se eu não quisesse fazer a coisa honrada, juro que eu a jogaria sobre meu ombro e acabaria logo com isso. - Então, ele riu e beijou-a novamente. - Em vez disso, vou fazer uma aposta com você.

Se Daniel a beijasse mais uma vez, ela ficaria tão aturdida que não se lembraria do próprio nome. Agarrando-se à dignidade, colocou as mãos sobre os ombros largos e olhou-o com firmeza.

- Daniel, ponha-me no chão.

- Não - replicou ele e sorriu.

- Você ficará aleijado se não fizer isso.

Daniel lembrou-se da ameaça com o copo de vinho. Um compromisso, decidiu, e colocou-a no chão, mas manteve as mãos ao redor de sua cintura.

- Uma aposta - repetiu.

- Não sei sobre o que você está falando.

- Você disse que eu era um jogador, e estava certa. E quanto a você?

Anna descobriu que suas mãos estavam descansando contra o peito largo e abaixou-as.

- Certamente não.

- Ah! - Havia tanto desafio nos olhos dele que Anna achou difícil resistir. - Agora você está mentindo. Qualquer mulher que decide ser médica, torcendo o nariz para a sociedade, tem sangue de jogadora nas veias.

E ele estava certo. Ela inclinou a cabeça.

- Qual é a aposta?

- Boa menina. - Daniel teria lhe erguido os pés do chão novamente se ela não tivesse franzido o cenho. - Digo que você terá um anel meu no seu dedo dentro de um ano.

- E eu digo que não terei.

- Se eu ganhar, você passa a primeira semana como minha esposa na cama. Não faremos nada, exceto comer, dormir e fazer amor.

Se ele pretendia chocá-la, não obtivera sucesso. Anna meramente assentiu.

- E se você perder?

Os olhos dele estavam vivos com o desafio, com o gosto da vitória.

- Escolha.

Anna sorriu. Acreditava em apostas altas.

- Você faz uma doação para o hospital, o bastante para construir uma nova ala.

Ele não hesitou.

- Feito.

Se Anna tinha certeza de alguma coisa era de que ele cumpriria sua promessa, independentemente de quão absurdas fossem as circunstâncias. Solenemente, estendeu a mão. Daniel a aceitou para um aperto oficial, então, levou-a aos lábios.

- Eu nunca joguei alto para perder, nem farei isso. Agora, deixe-me beijá-la, Anna. - Quando ela afastou-se, ele a segurou novamente. - Fizemos a aposta e nomeamos o prêmio, mas quais são as chances? - Ele roçou os lábios contra a testa dela e sentiu-a tremer. - Sim, Anna, meu amor, quais são as chances?

Lentamente, deslizou a boca sobre a pele dela, provocando, prometendo, mas não lhe encontrando a boca. As mãos, de repente gentis e confiantes, subiam e desciam para brincar com a pele sensível do pescoço de Anna, então voltando para a cintura delicada. Ele pôde sentir o instante em que o corpo delicado cedeu às próprias necessidades e às dele. Sentiu seu próprio desejo aumentar. Mas continuou vagarosamente, sem esforço para seduzir.

Um trovão soou novamente, mas ela achou que era seu próprio coração. Quando o raio brilhou, era como se fosse fogo em seu sangue. O que era paixão? O que era necessidade? O que era emoção? Como podia saber quando nenhum homem nunca a fizera sentir nada disso com tanta intensidade? Sabia que era vital separá-los, mas os sentimentos se misturavam em uma única sensação incandescente.

Aquilo era bonito. Enquanto seu corpo se tornava fluido, pôde reconhecer isso. Aquilo era perigoso. Quando seus músculos relaxaram, Anna aceitou isso.

A boca de Daniel roçava sobre a sua, mas não se demorava. Frustrada, desejosa, ela gemeu e se aproximou. Ele riu, ou foi o trovão novamente?

Então o céu se abriu e a chuva caiu sobre eles. Praguejando, Daniel ergueu-a.

- Você me deve um beijo, Anna Whitfield - gritou ele. Ficou parado por um momento enquanto a chuva ensopava-lhe os cabelos ruivos. A luz do relâmpago estava nos olhos azuis. - Não pense que vou esquecer. - Com isso, apertou-a mais nos braços e correu para o terraço.

Era de se admirar que estava distraída no hospital no dia seguinte? Anna encontrou-se andando pelos corredores, então precisando parar e decidir para aonde estava indo e o que estava fazendo. Aquilo a preocupava, enfurecia-a. E se conseguisse seu diploma, tivesse pacientes e se tornasse absolutamente agitada? Não podia se permitir pensar em nada, exceto em seus deveres enquanto estivesse no hospital.

Mas recordava-se da louca excitação de ser carregada nos braços por Daniel em meio à tempestade de verão. Lembrava-se também da forma como ele entrara pelas portas do terraço e transformara o calmo jogo de bridge num caos, exigindo toalhas secas e uísque para ela. Deveria ter sido humilhante. Anna achou doce. Havia uma outra coisa que a preocupava. Pensando como os olhos de Louise Ditmeyer haviam se arregalado, Anna deu uma risadinha. Daniel certamente adicionava tempero a um jantar tranqüilo e sossegado.

Ela passou a maior parte do dia nos quartos, levando livros e revistas para os pacientes e conversando com eles enquanto estavam deitados em camas colocadas lado a lado. Falta de privacidade, pensou, podia ser tão debilitante quanto a doença que os levara para lá. Mas não havia muito espaço, nem muitos médicos. Anna sorriu, pensando que aquela aposta impulsiva que fizera com Daniel poderia resultar em algum bem.

Com uma olhada no relógio, percebeu que tinha menos de uma hora para encontrar Myra. Hoje, escolheria seu carro novo. Alguma coisa prática, certamente, lembrou a si mesma. Mas não sem graça. Talvez fosse tolice ficar excitada com a compra de quatro rodas e um motor, mas continuou pensando nas caminhadas longas e solitárias que fazia. Não tinha falado menos que a verdade para Myra quando lhe dissera que queria liberdade. Pensou sobre isso agora e a desejou. Todavia, não podia encerrar o dia sem passar no quarto da sra. Higgs.

Planejando o resto de seu dia enquanto se encaminhava para lá, Anna subiu para o quinto andar. Levaria Myra para jantar e pagaria a conta. Sua amiga adoraria isso.

Então, talvez saíssem da cidade e fizessem um teste com o carro novo. Algum fim de semana em breve, elas iriam para a praia e passariam o dia sob o sol. Satisfeita com a idéia, entrou no quarto 521. E ficou boquiaberta.

- Oh, Anna, temíamos que você não viesse.

Sentada na cama, com os olhos brilhantes, a sra. Higgs brincava com a ponta do lençol. Sobre a mesa ao lado dela, havia um vaso de rosas vermelhas, frescas, lindas e cheirosas. Sentado ao lado da cama como um pretendente, estava Daniel.

- Eu lhe disse que Anna não iria embora sem antes vir ver como você estava. - Daniel se levantou e ofereceu-lhe a cadeira.

- Não, é claro que eu não iria. - Confusa, Anna aproximou-se da cama. -A senhora parece ótima hoje.

A sra. Higgs tocou os próprios cabelos. A enfermeira ruiva a tinha ajudado a penteá-los naquela manhã, mas ela não pudera lavá-los por uma semana.

- Eu teria me arrumado melhor se soubesse que teria visita. - Ela olhou para Daniel com um sorriso de pura adoração.

- A senhora está adorável. - Ele pegou-lhe uma das mãos finas entre as suas.

Daniel soava sincero. O que mais impressionou Anna foi que a voz dele não carregava o tom arrogante que tantas pessoas usavam quando falavam com doentes ou idosos. Alguma coisa brilhou nos olhos da sra. Higgs. Era tanto gratidão quanto orgulho.

- E importante estar com a melhor aparência quando você recebe a visita de um cavalheiro. Não concorda, Anna?

- Sim, é claro. - Anna andou até o pé da cama e tentou ler o relatório discretamente. -As flores são lindas. Você não mencionou que viria ao hospital, Daniel.

Ele piscou para a sra. Higgs.

- Gosto de surpresas.

- Não foi gentileza de seu jovem homem vir me visitar?

- Ele não é... -Anna parou e suavizou a voz. - Sim, foi.

- Bem, sei que vocês dois querem ir embora, e não vou prendê-los. -A sra. Higgs falou rapidamente, mas era óbvio que estava com pouca energia. - Você vai voltar? - Ela pegou a mão de Daniel. -Adorei conversar com você.

Ele ouviu o apelo que ela tentou desesperadamente esconder.

- Eu voltarei. - Inclinando-se, beijou-lhe o rosto.

Quando Daniel deu um passo atrás, Anna ajeitou os travesseiros da sra. Higgs, e deixou-a mais confortável com alguns movimentos eficientes. Ele viu, então, que as mãos de Anna não eram apenas macias, delicadas e feitas para serem beijadas, mas também eram competentes, fortes e seguras. Aquilo lhe causou um momento de desconforto.

- Agora, tente descansar. A senhora não deve fazer esforço.

- Não se preocupe comigo. - A sra. Higgs suspirou. - Vá se divertir.

Ela estava quase dormindo quando eles saíram do quarto.

- Você acabou aqui por hoje? - perguntou Daniel enquanto seguiam o corredor.

-Sim.

- Eu a levo para casa.

- Não, vou encontrar Myra. - Como sempre, o elevador era lento e temperamental. Anna apertou o botão e esperou.

- Então, levo você até lá. - Ele a queria para si, em casa, longe do hospital onde ela parecia tão eficiente.

- Não é necessário. Vou encontrá-la a poucas quadras daqui. -Anna entrou no elevador, seguida por Daniel.

- Jante comigo esta noite.

- Não posso. Tenho planos. - As mãos dela estavam unidas quando as portas se abriram de novo.

- Amanhã?

- Não sei, eu... - Com as emoções abaladas, ela saiu para o sol e o ar fresco. - Daniel, por que você veio aqui hoje?

- Para ver você, é claro.

- Você foi ver a sra. Higgs. - Ela continuou andando. Apenas mencionara o nome da paciente uma vez. Como ele se lembrara? E por que tinha se importado?

- Eu não deveria? Pareceu-me que ela gosta muito de um pouco de companhia.

Anna meneou a cabeça, lutando para encontrar as palavras certas. Não sabia que ele podia ser gentil, não verdadeiramente gentil quando o gesto não lhe trazia nenhum ganho. Estava na área de negócios, afinal de contas, onde ganhos, perdas e contas deviam ser constantemente balanceados. O preço das rosas não teria significado nada para Daniel, mas o presente significara muito para a sra. Higgs. Imaginou se ele sabia.

- O que você fez significa mais nesse estágio da doença do que qualquer remédio poderia dar a ela. - Anna parou e então virou-se. Daniel pôde ver as emoções nos olhos dela, a intensidade de sentimentos que mexia com ele. - Por que você fez isso? - perguntou ela. - Para me impressionar?

Ninguém podia mentir para olhos como aqueles. Ele fizera aquilo para impressioná-la, e tinha ficado incrivelmente satisfeito com a idéia até que começara a conversar com a sra. Higgs. Vira nela um espelho da beleza de sua mãe desaparecendo, e também dignidade, apesar do cansaço. E voltaria a visitar a mulher, não por Anna, mas por si mesmo. Não havia como explicar-lhe isso, e não tinha nenhuma intenção de expor seus sentimentos, os quais eram só seus havia tanto tempo.

- A idéia principal foi impressioná-la. Eu também queria ver o que havia naquele lugar que faz você voltar todos os dias. Ainda não compreendo completamente, mas entendo parte disso.

Quando ela não respondeu, Daniel enfiou as mãos nos bolsos enquanto eles andavam. Aquela mulher o preocupava mais do que imaginara. Queria agradá-la... surpreendia-se com o quanto queria agradá-la. Queria vê-la sorrir novamente. Estava até mesmo preparado para receber um daqueles olhares frios e régios. Frustrado, fez uma careta, olhando em frente.

- Bem, você ficou impressionada ou não?

Ela parou para encará-lo. Os olhos estavam frios, mas Daniel não podia lê-los. Então, Anna o pegou totalmente de surpresa. Colocou as mãos nas laterais do rosto dele. Sem pressa e com tranqüilidade, desceu-lhe o rosto até que pudesse tocar-lhe os lábios com os seus. Foi apenas um beijo leve, mas foi o suficiente para abalar Daniel. Ela o manteve ali por um momento, prendendo-lhe o olhar. Então, sem dizer uma palavra, liberou-o e partiu.

Pela primeira vez na vida, Daniel se viu sem fala.

 

Daniel estava sentado em seu escritório do Old Line Savings and Loan, fumando um de seus charutos e ouvindo o longo relatório do gerente do banco. O homem conhecia a movimentação bancária, admitiu Daniel, assim como era especialista em cálculos. Mas não conseguia ver mais de um palmo à sua frente.

-Consequentemente, em adição às minhas outras recomendações, sugiro que o banco execute a hipoteca da propriedade Halloran. Leiloar esta propriedade cobriria o montante do capital em questão, além disso, numa estimativa conservadora, renderia 5% de lucro.

Daniel bateu o charuto no cinzeiro.

- Conceda-o.

- Perdão?

- Eu disse para conceder o empréstimo a Halloran, Bombeck.

Bombeck ajeitou os óculos no nariz e mexeu em sua papelada.

- Talvez o senhor não tenha entendido que os Halloran estão seis meses atrasados com os pagamentos da hipoteca. Nos últimos dois meses, eles não conseguiram pagar os juros. Mesmo que Halloran ache um emprego, como diz que vai achar, não podemos esperar que o pagamento seja atualizado dentro deste trimestre. Tenho todos os números aqui.

- Não duvido disso - murmurou Daniel, entediado. O trabalho, pensou, nunca deveria entediar uma pessoa, ou ela perderia o talento.

Tirando papéis da gaveta, Bombeck colocou-os sobre a mesa de Daniel. Eles eram, assim como Bombeck, organizados e assiduamente corretos.

- Se o senhor desejar olhá-los, tenho certeza de que poderemos...

- Dê aos Halloran mais seis meses para atualizar os juros.

Bombeck empalideceu.

- Seis... - Pigarreando, ele mudou de posição na cadeira. As mãos elegantes estavam unidas. - Sr. MacGregor, tenho certeza de que sua compaixão pelos Halloran é admirável, mas deve entender que um banco não pode ser dirigido baseado em sentimentalismo.

Daniel tragou o seu charuto, pausou e soltou a fumaça. Havia um sorriso muito leve na boca, mas os olhos, se Bombeck tivesse ousado encará-los, estavam frios como gelo.

- Verdade, Bombeck? Aprecio que tenha me dito isso.

Bombeck umedeceu os lábios.

- Como gerente do Old Line...

- Que estava prestes a falir um mês atrás, quando eu o comprei...

- Sim. - Bombeck pigarreou de novo. - Realmente, sr. MacGregor, este é precisamente o ponto. Como gerente, sinto que é meu dever dar-lhe o benefício de minha experiência. Trabalho com bancos há 15 anos.

- Quinze? - Daniel disse como se estivesse impressionado. - Catorze anos, oito meses e dez dias. - Daniel tinha os registros de todos os funcionários que trabalhavam com ele, até mesmo das faxineiras. - Isso é ótimo, Bombeck. Talvez se eu lhe explicar em outros termos, você possa entender meu modo de pensar. - Daniel recostou-se em sua cadeira, de modo que o sol que entrava pela janela de trás refletia em seus cabelos, deixando-os com cor de fogo. Apesar de não ter planejado daquela maneira, ficara mais do que satisfeito com o efeito. - Você estima 5% de lucro se nós executarmos a hipoteca e leiloarmos a propriedade Halloran. Entendi corretamente?

Bombeck percebeu o sarcasmo nas palavras.

- Exatamente, sr. MacGregor.

- Ótimo, ótimo. Todavia, nos doze anos restantes da hipoteca Halloran, nós veríamos o lucro a longo prazo, falando de forma conservadora, triplicar.

- A longo prazo, é claro. Eu poderia calcular os números exatos, mas...

- Excelente. Então nós nos entendemos. Conceda o empréstimo. - Porque gostava de fazer isso, Daniel esperou um pouco antes de soltar sua bomba: - Iremos baixar as taxas da hipoteca um quarto por cento, começando no próximo mês.

- Abaixar? Mas sr. MacGregor...

- E aumentar os juros das contas de poupança para a taxa mais alta permitida.

- Sr. MacGregor, isso vai colocar o Old Line no vermelho.

- A curto prazo - concordou Daniel rapidamente. - A longo prazo... Você entendeu a coisa de longo prazo, não entendeu, Bombeck? A longo prazo, vamos compensar isso com volume. Old Line terá as taxas de hipoteca mais baixas do estado.

Bombeck sentiu o estômago revolver-se e engoliu em seco.

- Sim, senhor.

- E as taxas mais altas em contas de poupança.

Ele quase podia ver notas de dólar voando com pequenas asas.

- Vai custar ao banco... - Bombeck nem mesmo podia imaginar. - Eu poderia calcular os valores em alguns dias. Tenho certeza de que entenderá o que estou tentando dizer. Com uma política como essa, em seis meses...

- Old Line será a maior instituição de empréstimo do estado - Daniel terminou suavemente. - Estou feliz por chegarmos a um acordo. Faremos propagandas nos jornais.

- Propagandas - murmurou Bombeck como se estivesse sonhando.

- Alguma coisa grande - Daniel mediu com as mãos, divertindo-se -, porém distinta. Por que você não estuda algumas sugestões e depois me retorna? Vamos dizer, por volta das dez, amanhã?

Levou alguns segundos para que Bombeck percebesse que estava sendo dispensado. Muito atordoado para discutir, organizou seus papéis e se levantou. Assim que ele saiu, Daniel apagou o charuto no cinzeiro.

Um tolo de cérebro fraco, pensou. O que precisava era de alguém jovem, recém-formado e ansioso. Poderia salvar o orgulho de Bombeck inventando um novo cargo para o homem. Daniel possuía fortes sentimentos em relação à lealdade e, tolo ou não, Bombeck trabalhava no Old Line havia quase 15 anos. Era algo que poderia discutir com Ditmeyer. Ali estava um homem em cuja opinião Daniel confiava.

Os banqueiros tinham de se dar conta de que o negócio deles era jogar. Era certamente o de Daniel. Levantando-se, andou até a janela atrás de sua mesa e olhou para Boston. Naquele ponto, toda sua vida era um jogo. O dinheiro que ganhara poderia ser perdido. Ele deu de ombros. Ganharia novamente. O poder que agora exercia poderia desaparecer. Ele o construiria de novo. Mas havia uma coisa que começava a compreender que, se perdesse, jamais poderia ser substituída. Anna.

Quando ela deixara de ser parte de seu plano e se tornara sua vida? Em que momento ele tinha perdido o controle do negócio e se apaixonado? Podia precisar isso ao instante... ao instante que Anna segurara seu rosto nas mãos, fitara-lhe os olhos solenemente e roçara os lábios nos dele. O que Daniel sentira ia além de atração, além de desejo, além de desafio.

Sua corte sistemática fora por água abaixo. O plano traçado tão cuidadosamente estava aos farrapos. Desde aquele momento, ele se tornara apenas um homem totalmente enfeitiçado por uma mulher. O que aconteceria agora? Essa era uma pergunta para a qual não tinha resposta. Quisera uma esposa que ficasse sentada em casa pacientemente, enquanto ele cuidava dos negócios. Essa não era Anna. Quisera uma mulher que não questionasse suas decisões, mas somente as transformasse em fato. Essa não era Anna. Havia uma parte da vida dela que sempre permaneceria separada de Daniel. Se ela tivesse sucesso em sua ambição, e ele estava começando a acreditar que teria, Anna seria médica dentro de um ano. Para Anna, isso não seria somente um título, mas um meio de realização pessoal. Poderia um homem cujos negócios requeriam tanto dele, ocupando-o longas horas por dia, ter uma esposa cuja profissão exigia exatamente a mesma coisa?

Quem cuidaria da casa?, perguntou-se, passando os dedos pelos cabelos. Quem cuidaria das crianças? Era melhor que a esquecesse agora e encontrasse uma outra mulher que ficasse contente em fazer essas coisas e nada mais. Seria melhor aceitar o conselho que Anna lhe dera e escolher uma mulher com a qual não tivesse de lutar contra oposições.

Ele precisava de um lar. Era difícil admitir, até para si mesmo, o quão desesperadamente precisava. Necessitava de família... do aroma de pão assando na cozinha, flores enfeitando a casa. Aquelas eram as coisas com as quais tinha crescido, coisas de que vinha sendo privado havia muito tempo. Não podia ter certeza que as teria com Anna. Entretanto, se encontrasse tais coisas sem ela, não achava que teriam valor.

Que mulher! Daniel consultou o relógio. Ela estaria quase terminando no hospital agora. Ele tinha uma reunião na cidade em uma hora. Determinado a não deixar sua vida ser dirigida pelos horários de outra pessoa, sentou-se atrás da mesa novamente e pegou o relatório de Bombeck. Após um parágrafo, largou-o de novo. Praguejando com mau humor, saiu de sua sala.

Anna tinha passado cinco horas em pé. Sentindo cansaço e satisfação, pensou num longo banho quente e numa noite tranqüila com um livro. Talvez apenas tomasse banho e planejasse como iria decorar seu apartamento. Em duas semanas, teria as chaves na mão e os cômodos para mobiliar. Se seus pés não estivessem tão doloridos, iria até algumas lojas de antigüidade agora. Com prazer, pensou no conversível branco esperando-o estacionamento ao lado do hospital. O carro significava mais do que o fato de não ter de andar até em casa. Significava independência.

Tirando as chaves da bolsa, balançou-as na mão e sentiu-se nas nuvens. Nunca considerara seu ego muito grande, mas quando seu pai tinha quase babado sobre o estofamento, e, então exigido dar uma volta, Anna sentira o ego inchar. Ele a aprovara finalmente. Ela havia usado o próprio dinheiro, o próprio julgamento e não recebera nenhuma crítica. Lembrou-se da forma como arrastara sua mãe para o lado de fora e a colocara no banco traseiro com o marido. Anna tinha passeado por Boston por quase uma hora, com seus pais aconchegados como dois adolescentes no assento de trás.

Entendeu, então, que seus pais começavam a enxergá-la como mais que uma garotinha que precisava de orientação. Se já tivessem percebido isso ou não, agora a aceitavam como adulta. Talvez, pensou, apenas talvez, sentissem orgulho quando ela ganhasse seu diploma.

Feliz, Anna jogou as chaves no ar e as pegou novamente. Esbarrou em Daniel.

- Você não olhou para onde estava indo.

Ela estava feliz antes, mas ficou ainda mais feliz ao vê-lo. Quase admitiu isso.

- Não, eu não olhei.

No caminho, Daniel já tinha decidido como lidar com ela. Do seu jeito.

- Você vai jantar comigo esta noite. - Quando Anna abriu a boca, ele a segurou pelos ombros. A voz era alta o bastante para fazer cabeças se virarem, e os olhos furiosos o suficiente para fazê-las seguir em frente. - Não aceitarei nenhum argumento. Estou cansado deles, e não tenho tempo para isso, de qualquer forma. Você vai jantar comigo esta noite. Esteja pronta às sete horas.

Havia um número de coisas que ela poderia fazer. Em espaço de segundos, Anna pensou em todas elas. Mas decidiu que o melhor caminho era o menos esperado.

- Tudo bem, Daniel - disse ela com discrição.

- Eu não me importo com... O quê?

- Eu disse que estarei pronta. - Ela o fitou, o semblante calmo, o sorriso sereno, tirando-o totalmente do equilíbrio, como Anna sabia que aconteceria.

- Eu... Certo, então. - Com a expressão séria, Daniel enfiou as mãos nos bolsos. - Esteja pronta. - Ele tinha conseguido precisamente o que queria, mas parou no meio do caminho para seu carro e olhou para trás. Anna estava parada no mesmo lugar, iluminada pelo sol. O sorriso permanecia tranqüilo e doce como o beijo de um anjo. - Malditas mulheres - resmungou Daniel quando abriu a porta do carro. Não se podia confiar nelas.

Anna esperou até que ele partisse, então caiu na gargalhada. Vê-lo tropeçando e gaguejando tinha sido melhor do que qualquer discussão. Ainda rindo, foi para seu carro. Uma noite com Daniel, admitiu, certamente seria mais interessante do que um livro. Virando a chave na ignição, sentiu-se poderosa. Tinha controle. E gostava disso.

Ele levou-lhe flores. Não as rosas brancas que ainda insistia em mandar-lhe dia após dia, mas pequenas violetas de seu próprio jardim. Agradou-lhe vê-la arranjando as flores num pequeno vaso de cristal enquanto falava com os pais dela. Daniel parecia grande e ousado na delicada sala de estar de sua mãe. Sentia-se tão nervoso e fraco como um adolescente no seu primeiro encontro. Tenso, sentou-se em uma cadeira que combinaria mais com uma casa de bonecas, e aceitou uma xícara de chá morno da sra. Whitfield.

- Você deve vir jantar conosco em breve - disse-lhe a sra. Whitfield. A chegada constante das rosas a tinha deixado bastante esperançosa. Assim como lhe dera algo para alardear aos quatro cantos. A verdade era que não entendia a filha e nunca entenderia. É claro, podia dizer a si mesma que Anna sempre fora uma criança doce e adorável, mas, exceto por coisas simples como escolher um tecido para um vestido ou a refeição de um cardápio, desconhecia a filha. Anna, com sua teimosia calma e ambições inabaláveis, estava fora de sua compreensão.

Todavia, a sra. Whitfield não era tola. Viu a maneira como Daniel olhava para a sua filha e entendeu muito bem. Com um estranho misto de alívio e tristeza, imaginou Anna casada e criando sua própria família. Se os modos de Daniel eram um pouco rudes, sabia que sua Anna os suavizaria rapidamente. Talvez ela se tornasse avó em um ano ou dois. Era um outro pensamento que trazia emoções conflitantes. Bebendo o chá, a sra. Whitfield observou Daniel.

- Entendo que você e John são parceiros de negócios agora, mas terão de manter isso no escritório. É claro, não sei nada sobre o negócio, de qualquer forma. - Ela inclinou-se para dar um tapinha carinhoso na mão de Daniel. - John não me conta nada, por mais que eu insista.

- E ela insiste - murmurou o sr. Whitfield.

- Ora, John. - Com uma risada leve, ela lhe enviou um olhar furioso. Se aquele homem tivesse sérias intenções com sua filha, e estava certa que sim, pretendia descobrir tudo sobre ele. - Todos têm curiosidade sobre as negociações do sr. MacGregor. Isso é natural. Outro dia mesmo, Pat Donahue me contou que você comprou uma propriedade deles em Hyannis Port. Espero que não esteja pensando em sair de Boston.

Daniel não precisava cheirar o ar para saber em que direção o vento soprava.

- Gosto de Boston.

Decidindo que já o deixara suar tempo demais, Anna entregou o casaco a Daniel. Grato, ele se levantou rapidamente e ajudou-a a vesti-lo.

- Tenham uma excelente noite, crianças. - A sra. Whitfield teria se levantado para acompanhá-los até a porta, mas o marido colocou uma mão em seu ombro.

- Boa noite, mãe. - Anna beijou o rosto da mãe, então sorriu para o pai. Nunca soubera que ele era tão perceptivo. Com um sorriso, beijou-o também.

- Divirtam-se. - Em um velho hábito, ele acariciou-lhe a cabeça.

Assim que saíram, Daniel descobriu que finalmente podia voltar a respirar.

- Sua casa é muito...

- Abarrotada de coisas - terminou Anna, então riu e enlaçou o braço no dele. - Minha mãe gosta de preenchê-la com qualquer coisa que lhe chame a atenção. Não me dei conta, até alguns anos atrás, de como meu pai é tolerante. - Satisfeita que Daniel levara o conversível azul, ela ergueu as saias e acomodou-se no assento. - Aonde nós vamos jantar?

Ele assumiu seu próprio lugar e ligou o motor.

- Vamos jantar em casa. Na minha casa.

Anna sentiu seus nervos ficarem tensos. Usando sua melhor arma, a força de vontade, reprimiu o frio no estômago. Não tinha esquecido da sensação de controle. Lidaria com ele.

- Entendo.

- Estou cansado de restaurantes, de multidões. – A voz dele era tensa. Bem, Daniel está nervoso, pensou ela, e sentiu uma onda de prazer. O homem era enorme. A voz possuía um timbre que podia fazer vidraças baterem, mas estava nervoso com o fato de passar uma noite com ela. Não foi fácil, mas Anna tentou não se sentir convencida demais.

- Oh? Eu tinha a impressão de que você gostava de estar cercado de muitas pessoas - comentou ela calmamente.

- Não quero um bando delas olhando para nós enquanto comemos.

- É incrível como algumas pessoas podem ser rudes, não é?

- E se quero conversar com você, não preciso que metade de Boston me ouça.

- Naturalmente não.

Com um suspiro, Daniel partiu com o carro.

- E se você está preocupada com decência, eu tenho empregados.

Ela lhe lançou um olhar manso.

- Não estou nem um pouco preocupada.

Sem saber como lidar com aquilo, ele estreitou os olhos. Ela estava fazendo alguma espécie de jogo, isso era certo. Daniel apenas não sabia de que tipo nem quais eram as regras.

- Você está muito segura de si mesma de repente, Anna.

- Daniel. - Ela alcançou a maçaneta e desceu. - Sempre fui uma pessoa segura.

Com uma longa olhada, Anna decidiu que gostava da casa dele. Ficava separada da rua por uma cerca viva que chegava à altura de seus ombros. A privacidade que a barreira proporcionava não era fria ou impessoal, como um muro, mas era tão firme quanto. Enquanto olhava para as janelas altas, algumas das quais já estavam suavemente iluminadas atrás das cortinas, pôde sentir a mistura de aromas que vinha do jardim lateral.

Ervilhas-de-cheiro, reconheceu Anna, e sorriu. Tinha uma fraqueza por elas. Daniel escolhera uma casa imponente, grande o bastante para uma família de dez pessoas, mas não esquecera de transformá-la em um lar, com coisas tão simples quanto flores. Ela esperou por ele na entrada no caminho.

- Por que você a escolheu?

Daniel seguiu-lhe o olhar para casa. Viu os tijolos, atraentemente desbotados com a idade, as janelas com suas persianas recém-pintadas. Não havia a sensação de parentesco ou de posse. Afinal de contas, uma outra pessoa a construíra. Quando inalou o ar noturno, não sentiu o cheiro doce das ervilhas, mas o aroma de Anna.

- Porque é grande.

Ela sorriu com aquilo e virou-se para ver um pardal sobre o galho de uma árvore no jardim da frente.

- Suponho que isso tenha lógica. Você pareceu desconfortável na sala de minha mãe, como se, caso se virasse, fosse bater em uma das paredes. Esta casa combina mais com você.

- Por enquanto - murmurou ele. Tinha outros planos. - É possível ver o pôr-do-sol dessas janelas. - Daniel apontou e, então, pegou-lhe o braço para conduzi-la pelo caminho. - Mas não por muito tempo.

- Por quê?

- Progresso. Eles irão construir prédios altos, bloqueando a visão. Não em todos os lugares, mas em muitos. Eu vou começar a trabalhar em um deles no próximo mês. -Abrindo a porta, esperou que ela entrasse no hall.

As espadas sobre a parede à sua esquerda foram a primeira coisa que chamou a atenção de Anna. Não eram ornamentos delicados e quase femininos, usados em duelos entre fanfarrões. Eram espadas de folhas largas, grossas e pesadas, com punhos não decorados e lâminas mortalmente afiadas. Seriam necessárias duas mãos e um homem forte para levantar uma delas. Seriam necessárias muita força e habilidade para usá-las em ataque ou em defesa. Incapaz de resistir, Anna se aproximou. Não tinha problema em imaginar o que uma daquelas espadas poderia fazer com carne e ossos. Todavia, ao mesmo tempo que as considerava letais, não podia negar sua beleza.

- As espadas são de meu clã. Meus ancestrais as usavam. - Havia orgulho na voz dele, e simplicidade. - Os MacGregors sempre foram guerreiros.

Era um desafio o que Anna estava ouvindo? Poderia ser. Ela se aproximou das espadas. As pontas das lâminas não estavam embotadas, mas afiadas como sempre foram.

- A maioria de nós é, não é?

A resposta dela o surpreendeu, mas talvez não devesse. Sabia que Anna não era uma mulher de tremer e desmaiar com a visão de uma arma ou de sangue derramado.

- O rei inglês - começou ele, e recebeu a atenção total de Anna - roubou nosso nome, nossa terra, mas não pôde levar nosso orgulho. Nós cortávamos cabeças quando precisávamos. - Os olhos azuis estavam profundos e brilhantes quando ele a fitou. Ela não tinha dúvida de que Daniel empunharia a espada com a mesma ferocidade de seus ancestrais, caso se sentisse justificado. - Na maior parte, cabeças dos Campbell. - Ele sorriu e pegou-lhe o braço. - Eles queriam nos tirar da Escócia, mas não conseguiram.

Anna pegou-se imaginando como ele ficaria vestido em roupas de seu país, o kilt, a manta escocesa, o punhal. Não ficaria ridículo, mas dramático. Olhou novamente para as espadas.

- Não, tenho certeza de que eles não conseguiriam. Você tem motivos para se sentir orgulhoso.

Ele subiu a mão para o rosto dela e demorou-se ali.

- Anna...

- Sr. MacGregor. - McGee estava parado como uma estátua enquanto Daniel o encarava. Havia uma expressão nos olhos de Daniel que teria feito qualquer homem tremer.

- Sim? - Com uma palavra, Daniel pareceu transportar uma infinidade de pragas.

- Uma ligação de Nova York, senhor. Sr. Liebowitz, disse que é muito importante.

- Leve a srta. Whitfield para a sala, McGee. Desculpe-me, Anna, preciso atender esta ligação. Serei o mais breve possível.

- Está tudo bem. - Aliviada por ter alguns minutos sozinha, Anna o observou sair do hall.

- Por aqui, senhorita.

Ela notou o sotaque irlandês, que era mais acentuado que o de Daniel, e sorriu. Com uma última olhada para as espadas, seguiu McGee para a sala. Uma sala que fez a de sua mãe parecer um closet. Se "grande" era o que Daniel queria, "grande" era o que tinha.

- Gostaria de um drinque, srta. Whitfield?

Distraída, Anna virou-se.

- O que disse?

- Gostaria de um drinque?

- Oh, não, obrigada. Estou bem.

Ele fez uma pequena reverência.

- Por favor, chame se precisar de alguma coisa.

- Obrigada - repetiu Anna, ansiosa para se livrar do homem. No minuto em que ficou sozinha, girou num pequeno círculo. Grande, sim... muito maior do que um cômodo médio. Amenos que estivesse enganada, Daniel tinha mandado derrubar as paredes e transformar duas salas em uma.

O tamanho incomum era preenchido com móveis in-comuns. Havia uma mesa Belker com o dobro do tamanho de uma roda de carro, entalhada com tantos detalhes que as extremidades pareciam feitas de renda. Uma cadeira alta, estofada com um rico tom de vermelho, ficava ao lado da mesa. Ele poderia ser um juiz num tribunal, pensou ela, e riu da idéia. Por que não?

Em vez de se sentar, Anna simplesmente ficou vagando pelo espaço. As cores eram berrantes e ousadas, mas, de alguma maneira, sentiu-se perfeitamente confortável com elas. Talvez tivesse vivido com os tons pastel de sua mãe durante tempo demais. Um sofá ocupava quase uma parede inteira, e teria requerido quatro homens fortes para movê-lo. Com uma risada, decidiu que Daniel o escolhera exatamente por essa razão.

Ao longo da janela oeste, havia uma coleção de cristais Waterford, Baccarat. Um vaso, com meio metro de altura, era lindamente refletido pelos últimos raios do sol. Anna pegou uma taça que cabia na palma de sua mão e perguntou-se o que aquela peça estava fazendo entre as gigantes.

Ele a encontrou assim, parada onde o sol batia, sorrindo para um pequeno pedaço de vidro. A boca de Daniel secou. Apesar de não ter dito nada, de não conseguir dizer nada, ela virou-se na sua direção.

- Que cômodo maravilhoso. - Entusiasmo adicionava cor às faces dela, aprofundava-lhe os olhos. - Imagino no inverno, com a lareira acesa. Deve ficar espetacular. -Como ele não falou nada, o sorriso de Anna desapareceu. Ela aproximou-se. - O telefone. Más notícias?

- O quê?

- O seu telefonema. Aborreceu você?

Ele tinha esquecido sobre o telefonema, assim como esquecera de tudo o mais. Não gostava do fato de que uma olhada para ela podia amarrar-lhe a língua e causar-lhe nós no estômago.

- Não. Terei de ir para Nova York por alguns dias, a fim de endireitar algumas coisas. - Incluindo a si mesmo, pensou com tristeza. - Tenho uma coisa para você.

- Espero que seja o jantar - disse ela, voltando a sorrir.

- Teremos isso, também. - Ocorreu a Daniel que nunca havia se sentido sem graça perto de uma mulher antes. Tirando uma caixinha do bolso, entregou-lhe.

Houve um momento de pânico. Ele não tinha direito de oferecer-lhe um anel. Então, o bom senso afastou o pânico. Não era o tipo de caixa pequena que continha anéis de noivado, mas uma velha caixa de papelão. Curiosa, Anna abriu a tampa.

O camafeu era quase tão longo quanto seu polegar, e talvez com o dobro da largura. Antigo e adorável, estava aninhado entre as dobras de um colchão de papel de seda. O perfil da figura em relevo era gentil e sereno, mas a cabeça estava inclinada com um pequeno toque de orgulho.

- Ela se parece com você - murmurou Daniel. - Eu lhe disse isso uma vez.

- Sua avó - lembrou Anna. Emocionada, ergueu um dedo para traçar o contorno. - É lindo, realmente lindo. - Fechar a tampa da caixa de novo foi mais difícil do que deveria. - Daniel, você sabe que não posso aceitar isso.

- Não, não sei. - Tirando-lhe a caixa da mão, ele a abriu novamente e retirou o camafeu, o qual tinha atado a uma fita de veludo. - Vou colocá-lo para você.

Ela quase podia sentir os dedos dele roçando-lhe a nuca.

- Eu não devo aceitar um presente de você.

Daniel arqueou uma sobrancelha.

- Não me diga que você se preocupa com fofocas, Anna. Se desse importância para o que as pessoas pensam ou falam, não estaria fazendo faculdade em Connecticut.

Ele tinha razão, é claro, mas ela tentou permanecer firme.

- É uma relíquia de família, Daniel. Não seria certo.

- É minha relíquia, e estou cansado de tê-la fechada em uma caixa. Minha avó gostaria que alguém que apreciasse a peça a usasse. - Com modos surpreendentemente suaves, deslizou a fita ao redor do pescoço dela e prendeu-a. O camafeu encaixou na curva do pescoço de Anna como se fosse destinado a estar ali. - Pronto, é aqui o lugar a que ele pertence.

Incapaz de resistir, Anna tocou o camafeu. O bom senso evaporou.

- Obrigada. Vamos dizer que eu o estou guardando para você. Se quiser de volta...

- Não estrague isso - interrompeu ele, e segurou-lhe o queixo na mão. - Eu queria vê-la usando a jóia.

Ela não pôde evitar um sorriso.

- E você sempre consegue o que quer?

- Exatamente. - Satisfeito consigo mesmo, Daniel deslizou o polegar pelo rosto dela antes de baixar a mão. - Quer um drinque? Tenho xerez.

- É melhor não.

- Tomar um drinque?

- Beber xerez. Há uma outra opção?

Ele sentiu o nervosismo esvair-se.

- Tenho um uísque excelente enviado... contrabandeado, se quer a verdade... por um amigo meu de Edimburgo.

Ela torceu o nariz.

- Uísque tem gosto de sabão.

- Sabão? - Daniel pareceu perplexo, depois riu.

- Não leve para o lado pessoal.

- Você vai experimentar - disse ele, indo para o bar. - Sabão. - Enquanto servia, a voz caiu para um murmúrio. - Esta não é a mesma bebida que você toma nas festas de Boston.

Que coisa, quanto mais o conhecia, mais afetuoso ele se tornava. Anna descobriu sua mão tocando o camafeu de novo. Respirou profundamente e lembrou a si mesma da sensação de estar no controle. Quando Daniel lhe entregou um copo, ela estudou o líquido. Era muito escuro e, refletiu, era provável que fosse tão letal quanto as espadas da parede.

- Gelo?

- Não seja tola. - Ele virou o próprio copo e desafiou-a. Anna respirou fundo e deu um gole.

Quente, potente e suave. Franzindo o cenho, deu mais um gole.

- Ainda estou em pé - murmurou ela, mas devolveu-lhe o copo. - Mas, se eu beber tudo isso, não conseguirei parar em pé.

- Então vamos alimentar você. Meneando a cabeça, ela ofereceu-lhe a mão.

- Se esse é seu jeito de dizer que está na hora do jantar, eu aceito.

Daniel pegou-lhe a mão e ergueu-a.

- Você não receberá muitas palavras bonitas de mim, Anna. Não sou um homem polido. E não tenho planos de ser.

Os cabelos ruivos estavam caídos sobre o rosto dele rebeldes e magníficos. A barba lhe dava o aspecto do guerreiro que ambos sabiam que estava no sangue de Daniel.

- Não, não acho que você deveria.

Não, ele não era polido, mas cercava-se de beleza. Não o tipo de beleza tranqüila com a qual Anna estava acostumada, mas uma beleza ousada e estimulante que podia tocá-la no âmago. Havia um escudo e uma lança na parede da sala de jantar e, abaixo, um gabinete Chippendale que qualquer colecionador de antigüidades teria invejado. A mesa era enorme, mas sobre ela estava a porcelana chinesa mais encantadora que Anna já vira. Sentando-se em uma cadeira que ficaria adequada num castelo medieval, descobriu que estava completamente relaxada.

O sol enviava raios dourados através das janelas. Enquanto comiam, a iluminação foi ficando mais fraca. Com eficiência silenciosa, McGee apareceu para acender velas, então os deixou novamente.

- Se eu contasse à minha mãe sobre essa refeição, ela tentaria roubar a sua cozinheira. - Anna deu uma mordida na torta de chocolate e entendeu a expressão pecadoramente rico.

Observá-la apreciar sua comida deu prazer a Daniel, uma vez que ele mesmo tinha escolhido os pratos.

- Você entende por que prefiro isso a um restaurante?

- Com certeza. - Ela deu uma outra mordida, porque algumas coisas eram impossíveis de resistir. - Vou sentir falta de comida caseira quando eu me mudar para meu apartamento.

- E quanto à sua própria?

- Minha própria, o quê?

- Comida.

- Não existe. - Estudando-o, Anna comeu mais um pedaço da torta. - Suas sobrancelhas se juntam quanto você franze o cenho, Daniel, mas não se preocupe. Pretendo aprender a cozinhar. Autopreservação. - Unindo os dedos, descansou o queixo neles. - Suponho que você não cozinha.

Ele começou a rir, então pensou melhor e parou.

- Não. Anna descobriu que gostava de pegá-lo desprevenido daquele jeito.

- Mas, naturalmente, você acha estranho que eu, como mulher, não saiba cozinhar.

Era difícil não admirar-lhe a lógica mesmo quando ele estava do lado errado daquilo.

- Você tem o hábito de colocar um homem contra a parede, Anna.

- Gosto da maneira como luta por uma saída. Sei que isso pode ser uma bênção para seu ego, mas você é um homem interessante.

- Tenho um ego muito grande. São necessárias muitas coisas para preenchê-lo. Por que não me conta de que maneira sou interessante?

Anna sorriu e se levantou.

- Uma outra hora, talvez.

Ele pegou-lhe a mão quando também já estava de pé.

- Haverá uma outra vez.

Ela não acreditava em mentiras, e em respostas evasivas somente quando a verdade não cabia.

- Parece que vai. A sra. Higgs falou de você o tempo inteiro hoje - acrescentou Anna enquanto eles voltavam para a sala.

- Uma mulher adorável.

Anna teve de sorrir. Daniel falou aquilo com tanta satisfação.

- Ela espera que você volte.

- Eu disse que voltaria. - Ele viu a pergunta nos olhos de Anna e parou. - Cumpro minha palavra.

- Sim. -Anna sorriu novamente. - É muita gentileza sua, Daniel. Ela não tem ninguém.

Sentindo-se desconfortável, ele franziu o cenho.

- Não ponha uma auréola na minha cabeça, Anna. Pretendo ganhar a aposta, mas quero fazer isso sem fingimento.

- Não tenho intenção de colocar uma auréola em você. - Ela tirou os cabelos dos ombros. - E não tenho a menor intenção de perder a aposta.

À porta da sala de estar, Anna parou novamente. Havia velas, dúzias delas, brilhando ao redor do ambiente. A luz da lua se infiltrava pela janela para competir. Um blues tocava baixinho, parecendo vir das sombras. Ela sentiu o pulso acelerar, mas continuou entrando na sala.

- Lindo - comentou, notando o bule de prata com café que fora colocado perto do sofá.

Enquanto Daniel ia servir o licor, Anna ficou em pé, parecendo completamente à vontade. Imaginou se os músculos podiam estar mais tensos.

- Gosto do jeito como você fica à luz de velas - murmurou ele, entregando-lhe o copo. - Lembra-me da primeira noite em que a vi, quando você estava parada no terraço perto do jardim. Havia raios do luar em seu rosto, sombras em seus olhos. - Quando pegou a mão de Anna, ... sentiu-a tremer por um momento. Mas os olhos escuros estavam bem firmes. - Assim que eu a olhei, soube que precisava tê-la. Desde então, penso em você todos os dias e todas as noites.

Teria sido fácil, fácil demais entregar-se aos pensamentos que surgiam na cabeça dela. Se o fizesse, poderia sentir a boca de Daniel na sua novamente e ansiar pelo toque daquelas mãos grandes sobre sua pele. Teria sido fácil. Mas a vida que já tinha escolhido, ou que a escolhera, não era fácil.

- Um homem na sua posição devia saber como é perigoso tomar uma decisão por impulso.

- Não. - Ele ergueu-lhe a mão e beijou-lhe os dedos, vagarosamente, um por um. Anna já estava ofegante.

Decidiu falar calmamente e, esperava, com cuidado.

- Daniel, você está tentando me seduzir?

Quando e como algum dia ele iria se acostumar com aquela voz calma e palavras tão francas? Após uma risada, bebeu um pouco do licor.

- Um homem não seduz uma mulher com a qual pretende se casar.

- É claro que seduz - corrigiu Anna e bateu-lhe nas costas quando ele engasgou. - Da mesma forma que um homem seduz mulheres com as quais não pretende se casar. Mas eu não vou me casar com você, Daniel. - Ela virou-se para andar até o bule de café, então olhou por sobre o ombro. - E não vou ser seduzida. Café?

Ele não apenas a amava, percebeu Daniel. Estava muito perto de adorá-la. Havia muitas coisas de que não estava certo no momento, mas sabia sem sombra de dúvida, que não poderia viver sem ela.

- Sim. - Ele se aproximou e pegou a xícara. Talvez estivesse melhor com alguma coisa nas mãos. - Você não pode negar que me quer, Anna.

O corpo dela estava formigando. Ele precisava apenas tocá-la para sentir-lhe o desejo, a fraqueza. Anna forçou-se a encará-lo.

- Não, não posso. Mas isso não muda nada.

Sem provar o café, Daniel o pôs sobre a mesinha. Teria preferido jogá-lo longe.

- É claro que muda. Você veio aqui esta noite.

- Para jantar - Anna o relembrou calmamente. - E porque, por alguma estranha razão, aprecio a sua companhia. Essas são algumas das coisas que tenho de aceitar. Há outras que não posso arriscar.

- Eu posso. - Daniel se aproximou mais e segurou-lhe a nuca gentilmente, embora fosse difícil ser gentil quando a queria com tanto desespero. Sentiu o leve movimento de resistência de Anna, ignorou-o e puxou-a para si. - E vou arriscar.

No momento em que a boca dele estava na sua, Anna aceitou mais uma coisa. Inevitavelmente. Soubera que eles não podiam ficar juntos sem que a paixão surgisse. Todavia, tinha ido a ele livremente e em termos iguais. Entre os dois existia uma paixão tão ardente a qual era difícil resistir. Chegaria uma hora, ela sabia, que nada os impediria de vivenciá-la. Deslizou os braços pelas costas dele e aproximou-se do fogo que a consumia.

Quando Daniel a abaixou para o sofá, Anna não protestou, mas o puxou para mais perto. Prometeu a si mesma, confusa, que apenas por um momento provaria o gosto de como poderia ser. O corpo de Daniel estava tão firme contra o seu. Ela podia sentir o desejo dele, e, apesar de todo seu bom senso, deleitou-se com isso.

Aboca máscula passeava por seu rosto. Seu nome era murmurado repetidamente contra seus lábios, seu pescoço. Anna sentiu o gosto do licor quando as línguas de ambos se entrelaçaram. O aroma das velas a rodeava. Com a música, vinha uma batida baixa que provocava, excitava.

Ele tinha de tocá-la. Daniel pensou que enlouqueceria se não pudesse ter mais. Então, no momento em que deslizou as mãos sobre Anna, sentiu a maciez, as batidas aceleradas do coração, soube que nunca teria o bastante. As mãos tão largas, tão grandes, passavam sobre ela com um carinho que a fez tremer. Quando ele ouviu o próprio nome no sussurro trêmulo de Anna, lutou por controle, para evitar possuir o que tanto desejava. Procurou-lhe a boca novamente, e encontrou-a quente, desejosa e aberta.

Desesperado, lutou com os botões frontais do vestido dela. Suas mãos eram tão grandes, os botões tão pequenos. O sangue começou a pulsar na cabeça. Então descobriu, para seu encanto, que sua digna Anna usava seda e renda sobre a pele.

Anna arqueou-se com as carícias, arqueou-se e tremeu, então pediu por mais. Daniel a estava levando além do esperado, além do previsto, para o mundo dos sonhos. Mãos enormes continuaram deslizando sobre seu corpo com incrível gentileza. Mãos que acariciavam, apalpavam, excitavam. Incapaz de resistir, ela o deixou guiá-la. Controle não parecia mais essencial. Ambições perderam a importância. Desejo. Só existia um. Por um momento de loucura, entregou-se àquilo.

Havia um desespero em Daniel que crescia cada vez que seu coração batia. Sabia o que queria, o que ia querer até o dia de sua morte. Anna. Somente Anna. A boca delicada estava quente na sua, o corpo era pequeno e delgado. As imagens que surgiram na mente dele eram tão escuras e perigosas quanto um terreno desconhecido. Ela agarrava-se a ele e parecia entregar tudo. A cabeça de Daniel girou com isso. Então, Anna enterrou o rosto no seu pescoço e ficou imóvel.

- Anna? - A voz de Daniel era rouca, as mãos ainda gentis.

- Não posso dizer que isso não é o que quero. -A luta acontecendo no seu interior a deixava fraca e assustada. - Mas não posso ter certeza se é. - Ela tremeu uma vez, então, afastou-se. Daniel podia ver-lhe o rosto à luz das velas, a pele alva, os olhos escuros. Sob sua mão, o coração feminino batia descompassado. - Nunca esperei me sentir dessa forma, Daniel. Preciso pensar.

O desejo queimou dentro dele.

- Posso pensar por nós dois.

Ela levou ambas as mãos ao rosto dele antes que Daniel pudesse beijá-la novamente.

- É disso que tenho medo. - Movimentando-se, Anna se sentou. O vestido estava aberto quase até a cintura, com sua pele branca e suave exposta pela primeira vez para um homem. Mas não sentia vergonha. Com firmeza, começou a fechar os botões. - O que está acontecendo entre nós... o que poderia acontecer entre nós... é a decisão mais importante da minha vida. Tenho de tomá-la sozinha.

Daniel a segurou pelos braços.

- A decisão já foi tomada.

Parte dela pensou que ele estava certo. Uma outra parte sentia-se apavorada que assim fosse.

- Você tem certeza do que quer. Eu não tenho. Até que eu tenha, não posso lhe prometer nada. - Os dedos que estiveram firmes tremeram antes que ela pudesse controlá-los. - Talvez eu nunca seja capaz de lhe prometer nada.

- Quando eu a abracei, você soube o quanto era certo. Pode me dizer que não sente isso toda vez que eu a toco?

- Não, não posso. - Quanto mais agitado ele ficava, mais Anna se forçava a permanecer calma. - Não posso, e é por isso que preciso de tempo. Necessito de tempo porque, qualquer decisão que eu tome, tem de ser com a cabeça fria.

- Cabeça fria. - Furioso, dolorido pelo desejo, Daniel se levantou e começou a andar pela sala. - Minha mente não está clara desde a primeira vez que pus os olhos em você.

Ela se levantou, também.

- Então, goste você disso ou não, ambos precisamos de tempo.

Daniel pegou o licor que deixara sem terminar e bebeu-o.

- Tempo é o que você precisa, Anna. - Ele virou-se para ela. Anna nunca o vira parecer mais feroz, mais formidável. Uma mulher sábia guardaria seu coração. Esforçou-se para se lembrar disso. - Estarei em Nova York por três dias. Esse é seu tempo. Assim que voltar vou procurá-la. Quero sua decisão, então.

O queixo de Anna ergueu-se, expondo um pescoço delgado e elegante. A dignidade a cobria numa onda silenciosa.

- Não me dê prazos e ultimatos, Daniel.

- Três dias - repetiu ele, e pôs o copo sobre a mesinha antes de quebrá-lo em dois. - Vou levá-la para casa.

 

Quando três dias viraram uma semana, Anna não sabia se devia se sentir aliviada ou furiosa. Tentar não sentir nenhuma das duas coisas e continuar levando a vida da mesma maneira de sempre não era possível. Ele lhe dera um prazo, então nem se incomodara em aparecer para ouvir sua decisão, a qual, ela tinha de admitir, ainda não tomara.

Invariavelmente, toda vez que Anna colocava a mente em um problema, solucionava-o. Era uma questão de analisar todos os níveis e estabelecer prioridades. Parecia haver muitos níveis em seu relacionamento com Daniel para que lidasse com cada um deles de modo racional. Por um lado, ele era rude, prepotente e irritante. Por outro, era divertido. Podia ser insuportavelmente arrogante... e insuportavelmente doce. O lado rude nunca deixaria de existir por completo. O lado suave era admiravelmente rápido e inteligente. Ele tramava, ria de si mesmo. Era dominador e generoso.

Se não podia analisar Daniel de maneira correta, como podia esperar analisar seus sentimentos por ele? Desejo.

Tinha muito pouca experiência com esse sentimento exceto suas necessidades, mas o reconhecia. Como reconheceria o amor? E mesmo se o reconhecesse, o que faria a esse respeito?

A única coisa de que Anna teve certeza durante a ausência de Daniel, era que sentia sua falta. Sabia disso porque acreditara que não pensaria nele nem por um segundo. No entanto, não pensara em quase mais nada. Mas, se cedesse, se jogasse a cautela pela janela e concordasse em se casar com ele, o que aconteceria com seu sonho?

Poderia se casar, ter filhos, dedicar sua vida a Daniel... e ressentir-se de tudo que haviam construído juntos, porque teria abandonado sua vocação. E tal abandono significava viver meia vida, e Anna não achava que podia fazer isso. Se o rejeitasse e seguisse com os seus planos, isso significaria viver meia vida também?

Estas eram as questões que a atormentavam à noite, que a perseguiam durante o dia. Questões que respondia para, logo depois, rejeitar as respostas. Portanto, não tomou decisão alguma, sabendo que, uma vez que o fizesse, seria definitivo.

Ela forçou-se a continuar sua rotina. Reprimindo especulações e dúvidas, ia ao teatro e a festas com as amigas à noite. Durante o dia, enterrava-se no trabalho do hospital, com a energia nascida da frustração.

Habitualmente, visitava a sra. Higgs primeiro. Anna não precisava de um diploma para saber que a mulher estava morrendo. Então, antes de cumprir suas outras tarefas, passava o maior tempo possível no quarto 521.

Uma semana depois de ter visto Daniel pela última vez, certificando-se de que o sorriso estava no lugar, Anna abriu a porta do quarto da sra. Higgs. Desta vez, as persianas estavam abaixadas e havia mais sombra do que luz. A sra. Higgs estava acordada, olhando com indiferença para as flores murchas sobre a mesa. Os olhos dela se iluminaram quando viu Anna.

- Estou tão feliz que você veio. Eu estava justamente pensando em você.

- É claro que vim. - Anna deixou as revistas sobre a mesa. O instinto lhe disse que aquelas fotos não eram do que a sra. Higgs precisava hoje. - De que outra maneira eu poderia lhe contar todas as fofocas da festa em que fui ontem à noite? - Com o pretexto de arrumar os lençóis, ela examinou o relatório médico. Seu coração disparou. A deterioração dos últimos cinco dias estava aumentando. Mas sorriu quando se sentou ao lado da cama. - Sabe minha amiga, Myra? - Anna sabia o quanto a sra. Higgs adorava as história sobre as travessuras de Myra. - Ontem à noite, ela usou um vestido preto sem alças, curtíssimo. Tão curto que pensei que as mulheres mais velhas desmaiariam.

- E os homens?

- Bem, vamos apenas dizer que Myra dançou a noite inteira.

A sra. Higgs riu, então respirou fundo quando uma dor a atingiu. Anna ficou instantaneamente em pé.

- Fique deitada. Vou chamar o médico.

- Não. - Com força surpreendente, a mão magra segurou a de Anna. - Não, ele apenas vai me dar uma outra injeção.

Tentando acalmá-la, Anna alisou-lhe a mão frágil e tomou-lhe o pulso.

- É para dor. A senhora não precisa sentir dor.

Mais calma, a sra. Higgs recostou-se novamente.

- Prefiro sentir dor a não sentir nada. Estou bem agora. - Ela conseguiu um sorriso. - Conversar com você é muito melhor do que remédios. O seu Daniel já voltou?

Ainda monitorando-lhe o pulso, Anna se sentou novamente. -Não.

- Foi tão gentil da parte dele me visitar antes de partir para Nova York. Imagine! Veio aqui antes de ir para o aeroporto.

O fato de ele ter ido era mais uma das coisas que se adicionavam à confusão de Anna.

- Ele me falou que gosta de visitar a senhora.

- Daniel disse que voltará aqui quando retornar de Nova York. - Ela olhou para as velhas rosas que se recusara a deixar as enfermeiras levarem embora. - É tão especial ser jovem e estar apaixonado.

Anna sentiu uma pontada de dor. Ele a amava? Daniel a tinha escolhido, a desejava, mas amor era algo diferente. Ela gostaria de ter alguém com quem pudesse conversar, mas Myra parecia tão preocupada ultimamente, e ninguém mais entenderia. E não podia descarregar seus problemas sobre a sra. Higgs, uma vez que fora lá para confortar. Em vez disso, sorriu e acariciou-lhe a mão.

- A senhora deve ter se apaixonado dúzias de vezes.

- No mínimo. Apaixonar-se é como uma montanha-russa, os altos e baixos, as emoções. Estar apaixonada é como um carrossel... girando e girando enquanto a música toca. Mas permanecer amando - ela suspirou, recordando-se - é como um labirinto, Anna. Há todas as voltas e giros, e becos sem saída. Você tem de continuar indo, continuar confiando. Tive um tempo tão curto com o me marido, e nunca mais tentei amar.

- Como era o seu marido?

- Oh ele era jovem e ambicioso. Cheio de idéias. O pai dele tinha um mercado alimentício, e Thomas queria expandi-lo. Era um homem inteligente. Se tivesse vivido... Mas não era para ser. Você acredita em destino, Anna?

Ela pensou em sua necessidade de curar, em seus estudos. Tentou não pensar em Daniel.

- Sim, acredito.

- O destino de Thomas era morrer jovem, como uma adorável chama queimando. Entretanto, ele acumulou tantas coisas em sua curta vida. Quanto mais olho para trás, mais o admiro. Seu Daniel me lembra dele.

- Como?

- Aquela energia... o tipo que você pode ver nos rostos deles, dizendo-lhe que farão coisas incríveis. - Ela sorriu de novo, lutando contra uma outra onda de dor. - Há aquele aspecto rude que significa que farão qualquer coisa necessária para conseguirem o que querem, todavia, existe um lado gentil, uma bondade muito básica. Do tipo que fazia Thomas dar um punhado de doces para uma criança pobre. Do tipo que faz o seu Daniel visitar uma velha mulher que não conhece. Mudei meu testamento.

Alarmada, Anna endireitou a coluna.

- Sra. Higgs...

- Oh, não se preocupe. - Ela fechou os olhos por um momento, desejando que seu corpo recuperasse alguma força. - Posso ver no seu rosto que está preocupada, pensando que eu a coloquei no testamento. Thomas me deixou um pé-de-meia e eu investi. O que está me dando uma vida confortável. Não tenho filhos ou netos. É tarde demais para arrependimentos. Preciso dar alguma coisa em retorno. Necessito ser lembrada. - Ela olhou para Anna novamente. - Conversei com Daniel sobre isso.

- Com Daniel? - Perturbada, Anna se inclinou para mais perto.

- Ele é muito esperto, exatamente como Thomas. Eu lhe falei o que queria fazer, e ele me disse como isso pode ser feito. Mandei meu advogado montar um esquema para oferecer bolsas de estudo. Daniel concordou em ser meu executor, de modo que possa cuidar dos detalhes.

Anna abriu a boca para afastar o assunto de morte, mas percebeu que estaria fazendo isso só por si mesma.

- Que tipo de bolsas de estudo?

- Para mulheres jovens que querem estudar medicina. - Satisfeita com o olhar perplexo no rosto de Anna, a sra. Higgs sorriu. - Eu sabia que você gostaria disso. Considerei sobre o que eu podia fazer, então pensei em você e em todas as enfermeiras daqui, que são tão gentis comigo.

- É uma coisa maravilhosa, sra. Higgs.

- Eu poderia ter morrido sozinha, sem ninguém para se sentar e conversar comigo. Tive sorte. - Ela estendeu o braço e curvou os dedos ao redor da mão de Anna. Porque era difícil sentir, os apertou. Anna mal sentiu a pressão. - Anna, não cometa o mesmo erro que eu, pensando que não precisa de ninguém. Aceite o amor quando este é oferecido. Deixe o amor viver com você. Não tenha medo do labirinto.

- Não - murmurou Anna. - Não terei.

Não havia mais dor agora, não havia praticamente nada. A sra. Higgs olhou para o contorno da luz em volta das sombras.

- Sabe o que eu faria se pudesse começar tudo de novo, Anna?

- O que faria?

- Eu teria tudo. -A luz estava fraca, mas ela conseguiu sorrir. - É tanta tolice pensar que você tem de se contentar com pedaços. Thomas sabia que não era assim. - Exausta, ela fechou os olhos novamente. - Fique comigo mais um pouco.

- É claro que vou ficar.

Anna permaneceu sentada no quarto sombreado. Mantendo a mão frágil nas suas, ouviu o som da respiração da sra. Higgs. E esperou. Quando o som parou, lutou contra uma explosão de raiva, contra a negação. Cuidadosamente, levantou-se e pressionou a mão na testa da mulher mais velha.

- Eu não vou esquecer da senhora.

Calma, controlada, foi para o corredor procurar a sra. Kellerman. Atrapalhada com cinco novas admissões, a enfermeira deu-lhe um olhar breve.

- Estamos um pouco ocupadas agora, srta. Whitfield. Anna assumiu uma postura digna. Quando falou, a voz era tanto autoritária quanto paciente:

- Você precisa chamar o médico para a sra. Higgs. Instantaneamente alerta, a sra. Kellerman a olhou.

- Ela está com dor?

- Não. - Anna cruzou os braços. - Não mais.

A compreensão brilhou nos olhos da enfermeira. E tristeza, pensou Anna por um momento.

- Obrigada, srta. Whitfield. Enfermeira Bates, chame o dr. Liederman imediatamente. Quarto 521. - Sem esperar resposta, também desceu o corredor. Anna a seguiu até o quarto da sra. Higgs e, mais uma vez, esperou. Momentos depois, Kellerman olhou para trás.

- Srta. Whitfield, você não precisa ficar aqui agora. Determinada, Anna manteve os braços cruzados e o olhar direto.

- A sra. Higgs não tinha ninguém.

A compaixão aconteceu e, pela primeira vez, o respeito. Afastando-se da cama, Kellerman tocou-lhe o braço.

- Por favor, espere do lado de fora. Direi ao médico que você quer falar com ele.

- Obrigada. -Anna foi para o fundo do corredor em L, onde ficava a sala de espera e se sentou. Conforme os minutos passavam, sentiu-se mais calma. Aquilo era o que enfrentaria, lembrou a si mesma, dia após dia, pelo resto de sua vida. Esta era a primeira vez que sentia o estômago revolver-se com a situação, mas não seria a última. A morte se tornaria uma parte íntima de sua vida, algo para ser combatido, algo para ser enfrentado. Começando por agora, por aquele minuto, teria de aprender a se defender contra isso.

Com uma respiração profunda, fechou os olhos. Quando os reabriu, viu Daniel se aproximando.

Por um momento, sua mente ficou em branco. Então viu as rosas na mão dele. Lágrimas encheram seus olhos e foram controladas. Quando se levantou, as pernas estavam firmes.

- Pensei que a encontraria aqui. - Tudo nele era vigoroso... o andar, o rosto, a voz. Ela pensou brevemente no desejo de se atirar nos braços fortes e chorar.

- Estou aqui todos os dias. - Aquilo não mudaria. Agora, mais do que nunca, Anna sabia que não poderia abandonar seu sonho.

- Levou mais tempo do que eu esperava para resolver as coisas em Nova York. - E ele tinha passado as noites impaciente, acordado e pensando nela. Daniel começou a falar de novo no mesmo tom duro, mas alguma coisa nos olhos de Anna o deteve. - O que aconteceu? - Somente precisou ver o modo como ela olhou para as rosas para saber. - Droga. - Praguejando num sussurro, baixou a mão que segurava as flores. - Ela estava sozinha?

O fato de Daniel perguntar aquilo primeiro, pensar naquilo primeiro, a fez estender a mão para ele.

- Não, eu estava com ela.

- Que bom, então. - A mão de Anna estava gelada na dele. - Deixe-me levá-la para casa.

- Não. - Se ele fosse tão gentil, ela perderia a compostura. - Eu quero falar com o médico.

Ele começou a protestar, então passou um braço ao redor dos ombros de Anna.

- Vou esperar com você.

Em silêncio, eles ficaram sentados juntos. O aroma das rosas preenchia os sentidos de Anna. Eram botões novos, frescos e ainda úmidos. Parte de um ciclo, lembrou a si mesma. Não era possível apreciar a vida, a menos que você entendesse e aceitasse o ciclo.

Anna se levantou bem devagar quando o médico se juntou a eles.

- Srta. Whitfield. A sra. Higgs me falou de você tantas vezes. É estudante de medicina?

- Isso mesmo.

Ele assentiu, o julgamento reservado.

- Você tem ciência de que nós removemos um tumor maligno há algumas semanas. Havia um outro. Se tivéssemos operado novamente, ela morreria. Nossa única escolha era deixá-la o mais confortável possível.

- Eu entendo. - Anna entendia também que um dia teria de tomar tais decisões. - A sra. Higgs não tinha família. Quero fazer os arranjos para o funeral.

A compostura de Anna surpreendeu o médico, tanto quanto a declaração. Estudando-a, decidiu que se ela terminasse a faculdade de medicina, ele a quereria para fazer a residência sob sua orientação.

- Tenho certeza de que isso pode ser facilmente arranjado. Pediremos que o advogado da sra. Higgs a contate.

- Obrigada. - Ela ofereceu-lhe a mão. Liederman achou-a fria, porém firme. Sim, gostaria de vê-la treinar.

- Vamos embora - murmurou Daniel quando eles estavam sozinhos.

- Não terminei o meu turno.

- E não vai terminar hoje. - Segurando-a pelo braço, ele a conduziu para o elevador. - Você pode se permitir respirar. Não discuta - acrescentou, antecipando-se a ela. - Vamos apenas dizer que você está fazendo uma vontade minha. Há uma coisa que quero lhe mostrar.

Ela podia ter discutido. E saber que tinha forças para tal acalmou-a. Iria com ele porque sabia que voltaria no dia seguinte e faria o que precisava ser feito.

- Vou pedir ao meu motorista que nos leve para minha casa - disse ele quando estavam fora do hospital. - Vamos no meu carro.

- Eu tenho o meu.

Daniel apenas arqueou uma sobrancelha e assentiu.

- Espere aí. - Andando para o Rolls, ele dispensou Steven. - Vamos usar o seu carro. Está com vontade de dirigir?

- Sim, claro. - Ela andou para o pequeno conversível branco.

- Muito bonito, Anna, sempre admirei seu gosto.

- Aonde vamos?

- Para o norte. Eu ensino o caminho.

Contente em dirigir, em sentir o vento e desconhecer o destino, ela foi para fora da cidade. Por algum tempo, Daniel a deixou com seus próprios pensamentos.

- Derramar lágrimas não faz de você uma pessoa fraca.

- Não. - Anna suspirou e observou o sol inclinar-se na estrada. - Não posso chorar ainda. Conte-me sobre Nova York.

- Uma loucura de lugar. Gosto de lá. - Ele sorriu e estendeu o braço ao longo do encosto do banco. - Não é um local para morar, não para mim, mas a excitação pode entrar no sangue. Conhece a Editora Dunripple?

- Sim, é claro.

- Agora é Dunripple e MacGregor. - Ficara satisfeito com a negociação, ou, mais precisamente, com o resultado que conseguira.

- Prestigioso.

- Extremamente prestigioso - disse ele. - Eles precisavam de sangue novo e de dinheiro.

- Do que você precisava?

- Diversificar. Não gosto de concentrar meus interesses numa única coisa.

Ela franziu o cenho, pensando.

- Como você sabe o que comprar?

- Velhas companhias em baixa, novas companhias em alta. O primeiro me dá algo para consertar, o segundo alguma coisa para - Daniel hesitou, incerto de que palavra empregar - explorar - murmurou finalmente.

- Mas você não pode ter certeza de que todas as companhias que compra serão bem-sucedidas.

- Nem todas serão. Esse é o jogo.

- Parece um jogo cruel.

- Talvez. É a vida. - Ele a estudou. O rosto de Anna ainda estava um pouco pálido, os olhos um pouco calmos demais. - Um médico sabe que nem todos seus pacientes vão sobreviver. Isso não o impede de pegar um paciente novo.

Ele entendia. Ela devia ter esperado isso.

- Não, não impede.

- Todos nós corremos riscos, Anna, se estamos realmente vivos.

Ela dirigiu em silêncio, seguindo as instruções de Daniel. Pensamentos giravam em sua cabeça, sentimentos corriam livremente em seu interior. Foi uma viagem longa e tranqüila que deveria tê-la acalmado. No momento em que estava dirigindo ao longo da costa, Anna estava tensa e nervosa. Avistando uma pequena loja, Daniel acenou com uma das mãos.

- Pare aqui.

Concordando, ela entrou no estacionamento de cascalho ao lado da loja.

- É isso que você quer me mostrar?

- Não. Mas você vai ficar com fome.

Anna levou a mão ao estômago antes de abrir a porta.

- Acho que já estou. - Pensando que não fariam mais do que comprar um pacote de biscoitos, ela o seguiu.

O local congestionado era uma loja com alimentos enlatados em prateleiras, miudezas acumuladas em gabinetes sem portas. Um piso recém-encerado brilhava. Um ventilador barulhento girando lentamente espantava o calor.

- Sr. MacGregor! - Com óbvio prazer, uma mulher rechonchuda levantou-se de um banco atrás do balcão.

- Ah, sra. Lowe. Bonita como sempre.

Ela possuía um rosto grotesco e sabia disso. Mas aceitou o elogio com uma gargalhada alta.

- O que posso fazer por você hoje? - Ela estudou Anna sem disfarçar e mostrou um dente incisivo faltando.

- A moça e eu precisamos de coisas para um piquenique.

- Ele inclinou-se sobre o balcão. - Diga-me que você tem aquele rosbife maravilhoso que me deu da última vez.

- Nem um grama. - Ela piscou para Daniel. - Mas tenho um presunto que vai fazer você virar os olhos e agradecer ao fabricante.

Cheio de charme, ele pegou-lhe a mão gorducha e a beijou.

- Vou virar os olhos e agradecer a você, sra. Lowe.

- Farei um sanduíche para a moça. E dois para você.

- O olhar que ela lhe deu era tanto perspicaz quanto amigável. - E colocarei uma limonada gelada na garrafa térmica... se você comprar a garrafa.

- Feito.

Com uma gargalhada, ela foi para o cômodo dos fundos.

- Você já esteve aqui antes - comentou Anna secamente.

- De vez em quando. Um bom lugarzinho. - Ele sabia que os Lowe dirigiam a loja e a mantinham estocada e limpa. - Penso que se eles adicionassem mais um cômodo, colocassem um balcão e uma grelha, a sra. Lowe poderia ficar famosa com os seus sanduíches.

Anna viu a expressão nos olhos dele e sorriu.

- Lowe e MacGregor.

Com uma risada, ele inclinou-se sobre o balcão.

- Não, às vezes é melhor ser um sócio silencioso.

Quando a sra. Lowe voltou, carregava uma cesta de vime enorme.

- Faça seu piquenique e traga a cesta de volta. - Ela piscou novamente. - Mas a garrafa térmica é sua.

Daniel pegou a carteira e tirou algumas notas. O bastante para fazer Anna arquear a sobrancelha.

- Dê lembranças a seu marido, sra. Lowe.

As notas desapareceram dentro de um bolso bastante útil.

- Você e a moça divirtam-se.

- Nós nos divertiremos. - Pegando a cesta, Daniel saiu da loja. - Você confia em mim para dirigir?

Anna já estava com as chaves na mão. Não tinha permitido ninguém ao volante de seu carro. Só ela o dirigira. Nem mesmo com as indiretas de seu pai e mesmo Myra tendo implorado ela permitira. Hesitando por um momento, entregou-lhe as chaves.

Momentos depois, estavam na estrada. Ela nunca vira uma estrada tão estreita, tão cheia de curvas. A vista na lateral tirou-lhe o fôlego com seus penhascos escarpados. Havia cor em meio ao cinza infinito: toques de vermelho e de verde. Em alguns lugares, parecia que o rochedo tinha sido talhado com machado, em outros, cortado com uma picareta. Ondas estouravam contra as pedras, então voltavam somente para estourar de novo. Havia violência ali, pensou ela. Uma guerra infinita que era também um ciclo.

Com o aroma do mar ao seu redor, Anna recostou-se.

Eles subiram quilômetro após quilômetro. Árvores que salpicavam as laterais da estrada modificavam-se aos poucos, inclinando-se pelo vento constante. Anna perguntou-se o que Daniel faria se um outro carro descesse a estrada na direção deles. Mas isso não a preocupava.

Observou uma ave voar sobre a superfície da água, e depois subir em direção ao sol.

Quando a estrada nivelou-se novamente, ela ficou quase desapontada. Então viu uma extensão de terra à frente. Coberta de vegetação, rochosa, isolada, espalhava-se até a extremidade do penhasco. Alguma coisa a atingiu, cortante como uma flecha, doce como um beijo. Reconhecimento.

Daniel parou o carro, absorvendo tudo. Como sempre acontecia, aquela área o envolvia. Podia sentir o mar, o vento. Estava em casa.

Sem dizer nada, Anna desceu do carro. Estava abalada pela turbulência, mas também podia sentir a paz. Estivesse no ar ou na terra, sabia que aquele senso de constante movimento e quietude interior sempre permaneceria.

- Esta é sua terra - murmurou ela quando Daniel chegou a seu lado.

-Sim.

O vento jogou os cabelos de Anna no rosto, mas ela os afastou, impaciente. Queria ver com clareza.

- É maravilhosa.

Ela falou aquilo com tanta simplicidade que Daniel ficou sem palavras. Até aquele momento, não tinha se dado conta do quão desesperadamente queria que Anna aceitasse sua terra, que a compreendesse. Mas não soubera o quanto era importante que ela amasse o lugar como ele amara desde o primeiro momento que o vira. O sol iluminou-lhe as feições quando levou a mão de Anna a seus lábios.

- A casa será ali. - Ele apontou, e começou a andar com ela. - Perto do penhasco, então, você vai ouvir o mar, ser quase parte do oceano. Será construída de pedras, muitas delas, de modo que se mantenha firme e imponente. Algumas das janelas chegarão perto do teto, e a porta da frente será tão larga quanto três homens. Aqui - ele parou, avaliando a posição com os olhos - haverá uma torre.

- Torres? - Quase hipnotizada, Anna o fitou. - Você dá a idéia de um castelo.

- Isso mesmo. Um castelo. O brasão dos MacGregors ficará sobre a porta.

Ela tentou imaginar aquilo e meneou a cabeça. Achava tudo excitante e incompreensível ao mesmo tempo.

- Por que tanta coisa?

- Para que dure. Meus tataranetos conhecerão a casa. - Deixando-a, ele voltou para o carro a fim de apanhar a cesta.

Incapaz de julgar o humor de Daniel, Anna o ajudou a estender o cobertor que a sra. Lowe providenciara. Além dos sanduíches, havia uma salada de batatas e duas fatias de bolo. Com a saia até a altura dos joelhos, sentou-se de pernas cruzadas e comeu enquanto observava as nuvens.

Tantas coisas estavam acontecendo tão rapidamente. Contudo, sua vida parecia suspensa em algum tipo de incerteza. Ainda não sabia o que encontraria se virasse para a direita, ou se virasse para a esquerda. O caminho que um dia lhe parecera tão claro, agora era nebuloso, com estranhas curvas. Não podia ver através delas. Porque Daniel estava silencioso, Anna manteve-se calada, ciente de que ele não se sentia muito à vontade.

- Na Escócia - começou ele como se estivesse falando consigo mesmo -, morávamos num pequeno chalé, não maior do que a garagem de sua casa. Eu tinha cinco anos, talvez seis, quando minha mãe adoeceu. Depois que ela deu à luz a meu irmão, nunca mais ficou realmente bem. Minha avó ia para nossa casa cozinhar todos os dias e ajudar com o bebê. Eu me sentava com minha mãe, conversava com ela. E, na época, não percebia o quanto mamãe era jovem.

Anna estava sentada com as mãos no colo e os olhos intensos. Algumas semanas antes, teria ouvido educadamente se ele falasse sobre o passado. Agora, parecia que metade do seu mundo dependia do. que Daniel ia dizer.

- Continue, por favor.

Não era fácil para Daniel, nem tinha planejado falar sobre isso. Mas agora que começara, descobriu que precisava contar-lhe tudo.

- Meu pai chegava em casa das minas com a pele suja, os olhos vermelhos. Deus, como devia ficar exausto, mas sentava-se com minha mãe, brincava com o bebê, me ouvia. Ela continuou lutando, por quase cinco anos e, quando eu tinha dez, minha mãe faleceu. Estava sofrendo o tempo todo, mas nunca reclamava.

Anna pensou na sra. Higgs. Desta vez, deixou as lágrimas caírem. Daniel não disse nada por um momento, mas ouviu o barulho do mar.

- Minha avó foi morar conosco. Uma mulher dura e forte. Ela me fez andar na linha... estudar. Quando completei 12 anos, fui trabalhar nas minas, mas sabia ler e escrever, e trabalhar com os dedos melhor do que outros homens adultos. Já era maior do que alguns deles. - Daniel riu e flexionou a mão, fechando o punho. Mais de uma vez, tinha sido grato àquilo.

- As minas eram o inferno. Poeira nos pulmões, nos olhos. Cada vez que a terra tremia, você esperava morrer e desejava que fosse rápido. Eu estava com aproximadamente 15 anos quando McBride, o dono da mina, me notou. Descobriu que eu era inteligente com números, então costumava me chamar ao escritório para ajudá-lo com as contas. Nesse sentido, era um homem justo e, portanto, eu recebia horas-extras. Em um ano, eu estava fora das minas e fazendo a contabilidade dele. Minhas mãos estavam limpas. Assim que comecei a trabalhar, meu pai me obrigava a pôr metade do meu salário em um pote de lata. Nós podíamos usar o dinheiro no dia-a-dia, mas ele não o gastava. Mesmo depois que passei a ganhar melhor no escritório, papai me fazia colocar metade do dinheiro no pote. Era a mesma coisa com meu irmão, Alan.

- Ele queria que vocês saíssem - murmurou Anna.

- Sim. Meu pai sonhava que eu e Alan pudéssemos sair das minas, afastando-nos de tudo com o que ele tivera de lidar. - Daniel virou-se para ela, a expressão zangada. - Eu tinha 20 anos quando a mina principal desmoronou. Cavamos por três dias e três noites. Vinte homens morreram, entre eles meu pai e meu irmão.

- Oh Daniel. - Anna aproximou-se, descansando a cabeça contra o ombro dele. Era mais do que sofrimento. Podia sentir a fúria, o ressentimento, a culpa. - Sinto muito.

- Quando nós os enterramos, jurei que aquilo não era o fim. Era o começo. Eu ganharia o bastante para abandonar aquele trabalho. Mas no momento em que consegui, era tarde demais para levar a minha avó. Ela teve uma vida longa e só me pediu uma coisa antes de morrer. Que eu me certificasse de continuar a família, e nunca me esquecesse de onde viemos. Estou mantendo essa promessa, Anna. - Ele a virou para fitar-lhe os olhos. - Por ela, por mim, com cada pedra que construirá essa casa.

Anna o entendia agora, talvez até demais para seu próprio bem. Compreendia que lá, no penhasco exposto ao vento, no meio da terra árida que Daniel tinha escolhido, ela finalmente, de maneira irreversível, se apaixonara por ele. Todavia, com a compreensão, vieram ainda mais dúvidas.

Levantando-se, Anna foi em direção ao pedaço de terra onde ele visualizava sua casa. Daniel a construiria, ela sabia. E seria magnífica.

- Eles teriam orgulho de você.

- Voltarei um dia para ver tudo aquilo de novo, para recordar de tudo. Quero que você esteja ao meu lado.

Ela virou-se e, quando o fez, imaginou se estivera esperando tomar aquela atitude por toda sua vida. Talvez fosse o primeiro passo dentro do labirinto.

- Temo nunca ser capaz de lhe dar tudo o que quer, Daniel. Mas temo ainda mais a possibilidade de tentar.

Ele se levantou e se aproximou. Ainda havia muito espaço entre os dois quando Daniel parou.

- Você me disse que precisava de tempo. Pedi que tomasse uma decisão. Agora, estou lhe perguntando o que você decidiu.

 

Ela queria dar tudo o que ele pedisse, dar-lhe coisas com que Daniel nunca nem sonhara. Queria absorver tudo que pudesse e manter para si. Naquele momento, entendeu o que apenas um passo à frente poderia significar para ambos. Imaginou se ele sabia disso. Um passo adiante mudaria a vida deles de maneira irrevogável, mesmo que um passo atrás pudesse, de alguma maneira, ser dado mais tarde. Um passo e não haveria mudança no que fosse dito, no que fosse feito ou no que fosse dado. Anna acreditava em destino, destino encontrado com olhos abertos e mente clara. Embora o bom senso lutasse para permanecer no controle, seu coração, de forma vagarosa e intencional, assumiu o comando. O que era o amor? Naquele momento, entendia apenas que era uma força maior e mais forte do que a lógica com a qual sempre vivera. O amor havia começado guerras, derrubado impérios, enlouquecido homens e transformado as mulheres em tolas. Ela poderia racionalizar por horas, mas nunca seria capaz de diminuir o poder daquela força excepcional que abrangia tudo.

Eles estavam em pé sobre os penhascos, com o vento vibrando contra as pedras, sussurrando através do gramado alto, batendo contra a terra que ele escolhera para realizar um sonho e uma promessa. Se Daniel fosse seu destino, ela o abraçaria.

Ele parecia mais feroz do que nunca, quase assustador, com os olhos queimando nos seus, e o sol batendo-lhe nas costas. Zeus, Thor... Daniel podia ter sido qualquer um dos dois. Mas era de carne e osso, um homem que entendia o destino e moveria montanhas para conseguir a pessoa que tinha escolhido. E a escolhera.

Anna demorou-se, determinada a tomar a decisão com a cabeça clara. Mas as emoções em seu interior não eram calmas. Como podia olhá-lo, ler o desejo nos olhos azuis e permanecer calma? Daniel falava de família, de promessas, de um futuro que ela não estava certa se podia compartilhar a seu lado. Mas havia algo que podia compartilhar agora, alguma coisa que podia dar-lhe apenas uma vez. Deixando-se guiar pelo coração, Anna deu um passo à frente e para os braços dele.

Eles se uniram com urgência, de modo tempestuoso, forte. A boca de Anna encontrou a dele com todo o desejo caótico que vinha contendo. Sentiu o poder surgir, o calor espalhar-se rapidamente, saindo de seu controle. Havia apenas o aqui e o agora.

Mãos grandes estavam em seus cabelos, os dedos entrelaçando neles com tanto desespero, que as fivelas que os prendiam caíram no solo. A boca de Daniel era impaciente, trilhando-lhe o rosto, encontrando seus lábios, então continuando a mover-se, como se fosse vital provar tudo de uma vez. Ela ouviu o seu nome sussurrado de maneira vibrante, então murmurado contra sua boca. Mesmo enquanto pressionava-se contra ele, Anna sentia a entrega de seu próprio corpo, a incrível submissão que só uma mulher podia experimentar. Sua mente foi transportada para o futuro com o prazer de descobrir a magia da submissão quando misturada com a força do querer. Então, os pensamentos desapareceram, restando somente um. Estava onde queria estar.

Juntos, eles se abaixaram para o gramado, abraçados tão fortemente que nem mesmo o vento podia passar entre os dois. Como amantes separados há anos, se exploraram livremente, sem hesitação. Ansiosa para sentir o prazer de pele contra pele, Anna tirou-lhe a camisa. Músculos que ele desenvolvera ainda quando garoto envolviam-lhe os braços, ondulavam-lhe as costas. Excitada pela força de Daniel, ela deu liberdade para que suas mãos brincassem, e descobriu a alegria deliciosa de ter um homem... seu homem... gemendo com os seus toques.

Ele a queria... ali, agora, exclusivamente. Anna podia sentir isso com cada fibra do seu ser. Até aquele momento, não tinha se dado conta de como era importante estar segura do que queria. Qualquer outra coisa que ele quisesse dela ou quaisquer planos que tivesse feito escrupulosamente foram esquecidos por uma força predominante. Desejo. O desejo era puro, desesperado, e era de ambos.

Daniel queria ser cuidadoso, ser gentil, mas ela o estava enlouquecendo, mais do que qualquer coisa que ele já havia experimentado. Fantasias, sonhos eram tolamente fracos comparados com a realidade. Anna era muito mais do que um objetivo para ser vencido ou uma mulher para ser conquistada. As mãos eram delgadas, fortes e curiosas, a boca quente e insistente. O desejo avassalador que o percorria concentrou-se na base do pescoço, de modo que o som do desejo ressoava através do cérebro, deixando-o surdo para o estouro das ondas abaixo. Pôde sentir o cheiro da grama selvagem quando enterrou os lábios no pescoço de Anna, mas o aroma feminino, sutil, doce, era mais penetrante. Ela era tão pequena, tão adoravelmente suave, que Daniel lutou para manter as mãos calmas enquanto a despia, mas Anna arqueava-se com cada toque, devassamente exigindo mais.

Ele não podia resistir a ela, assim como não podia mais resistir à pressão que se formava em seu interior. Enlouquecido de paixão, descartou o restante das roupas de Anna e entregou-se ao desejo. Apele dela era alva sob o sol quente de verão, o corpo tão elegante e atraente quanto a mente. Nenhuma outra mulher, nenhum sonho jamais o excitara daquela maneira. Com um som que saiu do fundo de sua garganta, encontrou-lhe a respiração de puro prazer.

Havia mais? Anna pensou que isso fosse impossível, mas cada lugar que os lábios dele tocavam, vibrava com um deleite indescritível. Deveria saber que um homem e uma mulher poderiam compartilhar algo tão mágico e ardente debaixo de um sol brilhante? Deveria saber que ela, sempre tão autodisciplinada, tão racional, se entregaria a uma paixão num campo gramado sobre o topo de um penhasco? Tudo o que entendia era que, não importava quando, não importava onde, mas era e sempre seria Daniel.

Suas emoções pareciam percorrer um caminho além da razão. Queria saborear cada nova experiência, mas antes que pudesse absorver uma, outra a envolvia, estendendo-se em camadas de sensações impossíveis de separar. Com uma risada sem fôlego, percebeu que não era necessário entender cada uma, mas simplesmente senti-las. Não havia medo em seu interior quando o desejo começou a aumentar, mas uma louca antecipação.

O sangue pulsava em suas veias, girava em sua cabeça, até que pensou que explodiria. O corpo queimava com o mesmo fogo que o dele, enquanto pulsavam no mesmo ritmo. Mas ela era inocente. Mesmo querendo tomá-la com fúria e velocidade, Daniel sabia que o controle era vital. Os braços delicados o apertavam, os quadris se arqueavam numa oferta desinibida. E o medo de machucar alguma coisa tão preciosa o assolou. Esforçou-se para acalmar a respiração.

- Anna...

- Eu quero você. - O murmúrio era como um trovão nos ouvidos dele. - Preciso de você, Daniel. - Ao ouvir isso, uma dor doce o percorreu. Ao dizer isso, ela se sentiu gloriosa.

- Não vou machucar você. - Ele ergueu a cabeça para ver-lhe os lábios curvados num sorriso, os olhos nublados.

- Não, você não vai me machucar.

Daniel reuniu toda sua força de vontade e a penetrou. Ela estava tão quente, tão úmida, que sua cabeça quase explodiu com uma nova onda de emoção. Entregara-se à paixão antes. Mas nunca, jamais dessa forma.

Anna o sentiu penetrar em seu interior, preenchendo-a. Sua inocência desapareceu num instante com um prazer tão imenso que toda a dor foi suavizada. Poder. Um poder que a percorria como o vento, como um trovão, obscurecendo aquela primeira onda de mistério. Mergulhada no poder, abraçou-o mais apertado. Ouviu Daniel murmurar seu nome antes que a boca dele encontrasse a sua. Eles abandonaram o controle e se possuíram com loucura.

Daniel sabia sobre o gato que engolira o canário. Enquanto estava deitado na grama selvagem com Anna ao seu lado, sentia-se como um gato que acabara de se saciar com incríveis guloseimas. O contentamento que, de alguma maneira, sempre tinha escapado de seu alcance, o dominou com um suspiro sonolento.

Havia escolhido uma mulher inteligente e maravilhosa para se casar. Era uma escolha lógica para um homem que pretendia construir um império que durasse por gerações. Não era muita sorte ter se apaixonado e descoberto que ela era também carinhosa, doce e ardente? Sua futura esposa, a mãe de seus filhos que ainda estavam por vir, encaixava-se nele como uma luva. Decidiu que era tão bom ter sorte quanto ser astuto.

Anna estava calma do seu lado, mas ele sabia, pela forma que ela respirava, pelo jeito contente que a mão delicada descansava na sua, que estava perdida em pensamentos, não em arrependimentos. A cabeça de Anna estava aninhada na curva de seu ombro com tanta naturalidade que Daniel podia ter jurado que eles tinham ficado deitados daquela maneira antes, a grama macia sob suas costas, o céu azul e claro acima. Nunca tivera muito tempo para isso quando garoto. Com Anna, poderia fabricar o tempo, e não precisaria procurar por sonhos.

Poderia ficar deitado ali por horas, com o sol e o sopro do vento. Tinha sua mulher, sua terra, e isso era apenas o começo. Mas sabia, é claro, que eles teriam de voltar para a cidade em breve. O que queria com Anna, e de Anna, não podia ser realizado num campo vazio. Mas manteve o braço ao redor dela, enquanto diversos planos se formavam e giravam em sua cabeça.

- Há mais do que espaço suficiente para nós na minha casa - murmurou ele, meio que para si mesmo. Com os olhos quase fechados, e ainda com a sensação de paz após o ato de amor, pôde visualizá-la lá. Ela acrescentaria os detalhes que ele freqüentemente esquecia... vasos de flores, música. - É claro, talvez você queira mudar algumas coisas. Enfeitar outras.

Anna observou o sol brincando através das folhas. Tinha acabado de dar um passo à frente. Já era hora de recuar um passo.

- Sua casa é ótima do jeito que é, Daniel.

- Sim. Bem, é apenas um lar temporário. - Ele entrelaçou os dedos nos cabelos dela enquanto olhava para o ponto onde construiria seu sonho. O sonho deles agora. O sonho era tão mais doce agora que tinha com quem compartilhar. - Quando esta casa estiver pronta, nós venderemos a de Boston. Ou talvez possamos mantê-la para propósito de negócios. Vou cortar minhas viagens assim que tiver uma esposa.

Acima, as nuvens se moviam vagarosamente, muito altas para serem persuadidas pelo vento que agitava a grama.

- Viajar é importante para seus negócios.

- Por enquanto. - Ela sentiu o ombro largo movimentar-se sob sua cabeça num dar de ombros descuidado. - Não vai demorar muito para que eles venham até mim. E virão aqui. Não pretendo me casar e passar o tempo longe de minha esposa.

A mão de Anna descansou levemente sobre o peito dele. Imaginou se Daniel sabia com quanta presunção usava a frase minha esposa. Um homem poderia usar o mesmo tom para descrever seu novo carro brilhante.

- Eu não vou me casar com você, Daniel.

- Ainda terei de voar para Nova York de vez em quando, mas você pode me acompanhar.

- Eu disse que não vou me casar com você.

Com uma risada, Daniel a puxou, até que estivesse com metade do corpo sobre ele. A pele estava quente do sol e adorável.

- Como assim, não vai se casar comigo? É claro que vai.

- Não. - Anna tocou-lhe o rosto. O toque foi suave como os olhos dela. - Não vou.

- Como pode dizer isso agora? - Daniel a segurou pelos ombros. Pânico foi sua primeira reação, quando reconheceu o olhar calmo e paciente. Parte de seu sucesso era a habilidade de transformar pânico em raiva, e raiva em determinação. - Não é hora de jogos.

- Não, não é. - Calma, Anna se movimentou e começou a se vestir.

Dividido entre divertimento e fúria, ele agarrou-lhe os pulsos antes que ela pudesse vestir a blusa.

- Acabamos de fazer amor. Você veio para mim.

- Fui para você espontaneamente - retornou ela. - Precisávamos um do outro.

- E vamos continuar precisando um do outro. E por isso que você vai se casar comigo.

Ela tentou respirar vagarosamente.

- Eu não posso.

- Mas por que não?

Os músculos do estômago de Anna estavam começando a tremer. Sua pele estava fria sob o sol brilhante de verão. Queria que ele a liberasse, mas sabia que Daniel ignoraria qualquer resistência. Subitamente, queria correr, correr e fugir, mais rápido que nunca. Em vez disso, permaneceu imóvel.

- Quer que eu me case com você, comece uma família, e vá para todos os lugares que seus negócios ou seus caprichos exijam. - Ela teve de engolir em seco, porque sabia que falava a verdade. - Para fazer isso, eu teria de desistir de uma coisa que sempre quis desde que posso me lembrar. Não vou fazer isso, Daniel, nem mesmo por você.

- Isso é bobagem. - Para provar, ele a sacudiu de leve. - Se esse maldito diploma é tão importante, vá em frente e consiga-o. Você pode continuar estudando enquanto estiver casada comigo.

- Não. -Afastando-se, Anna ocupou as mãos com suas roupas. Não seria intimidada, e não seria seduzida, embora ele parecesse especialista em ambas as coisas. - Se eu voltasse para a escola como a sra. Daniel MacGregor, eu nunca terminaria. Você me impediria, mesmo que não pretendesse.

- Que coisa, isso é ridículo. - Ele levantou-se em sua gloriosa nudez, com o sol batendo em suas costas. Por um momento, Anna teve vontade de abrir os braços e convidá-lo de novo para si, de concordar com qualquer coisa que ele dissesse. Determinada, não fez isso.

-Não é ridículo. E vou conseguir o meu diploma Daniel. Necessito fazer isso.

- Você está preferindo se dedicar à sua profissão de médica do que a mim. - Magoado, com raiva, ele não se importava se suas palavras fossem injustas. Via a única coisa que tornaria sua vida completa, real, escapando de seus dedos.

- Eu quero as duas coisas. - Ela engoliu em seco. Como podia julgar a reação de Daniel quando ainda não tinha certeza de sua própria? - Não vou me casar com você - repetiu. - Mas vou morar com você.

Daniel estreitou os olhos.

- Você, o quê?

- Vou morar na sua casa em Boston até setembro. Depois disso, podemos alugar um apartamento fora do campus. E então...

- E então, o quê? -As palavras dele revelavam desespero.

Anna ergueu as mãos, e as deixou cair em seguida.

- Então, eu não sei.

Ela jogou a cabeça para trás com orgulho, e o vento bagunçou-lhe os cabelos. Mas o rosto estava muito pálido, os olhos incertos. Daniel a amava ao ponto da loucura, e sua raiva era quase tão grande quanto o amor que sentia.

- Que coisa, Anna, quero você como esposa, não como amante.

As dúvidas desapareceram dos olhos dela, sendo substituídas por uma fúria equivalente à de Daniel. Não mais pálida, o semblante era de pura indignação.

- Não estou me oferecendo para ser sua amante. - Virando-se, Anna começou a andar para o carro. Daniel a segurou pelo braço e virou-a com tanta rapidez que ela quase tropeçou.

- Que diabos está me oferecendo, então?

- Morar com você. - Anna não gritava com freqüência, mas quando o fazia, dava tudo de si. Se ele não estivesse tão zangado, haveria espaço para respeito. - Não ser mantida por você. Não quero seu dinheiro ou sua grande casa ou sua dúzia de rosas por dia. É você que eu quero. Só Deus sabe por quê.

- Então, case-se comigo. - Ainda nu, ainda raivoso, ele a puxou para si.

- Você acha que pode ter tudo que quer apenas gritando, sendo mais forte? - Ela o empurrou e sustentou-se, pequena, delgada e linda. - Vou lhe dar isso e nada mais.

Daniel passou ambas as mãos pelos cabelos. Como um homem lidava com uma mulher assim?

- Se você não pensa em sua reputação, eu tenho de pensar.

Ela arqueou uma sobrancelha.

- Você não tem de fazer nada, exceto pensar em sua própria reputação. - Com uma postura regia, que ela podia assumir tão facilmente, deixou os olhos o percorrerem. - Você não parece muito preocupado com isso agora.

Num movimento furioso, ele vestiu a calça. Um outro homem teria parecido tolo. Daniel parecia magnífico.

- Poucos minutos atrás, eu seduzi você - começou ele.

- Não se iluda. - Fria e confiante, Anna pegou a camisa dele. -Alguns minutos atrás, nós fizemos amor. Não teve nada a ver com sedução.

Ele pegou a camisa da mão dela e vestiu-a.

- Você é mais durona do que parece, Anna Whitfield.

- Tem razão. - Satisfeita consigo mesma, ela começou a guardar as coisas do piquenique. - Você me pediu para aceitá-lo como é. Agora estou lhe pedindo a mesma coisa. Se você me quer, Daniel, tem de ser nos meus termos. Pense sobre isso. - Ela o deixou meio vestido e foi para o carro.

Eles mal falaram durante a viagem de volta. Anna não estava mais zangada, mas sentia-se vazia. Tanta coisa acontecera num espaço de tempo tão curto, e nada daquilo estivera em seus planos cuidadosamente elaborados. Precisava de tempo para refletir, para analisar e recobrar as forças. Daniel estava nervoso. Não precisava falar para que Anna percebesse seu mau humor.

Não me importo com o mau humor, pensou. Ele que ficasse zangado. Era algo que fazia muito bem. Nem todo mundo ficava magnífico num estado raivoso.

Amante. O próprio temperamento de Anna começou a se alterar, mas ela se acalmou. Não seria amante de ninguém, disse a si mesma, recostando-se e cruzando os braços. E esposa de nenhum homem enquanto não estivesse pronta. Iria, embora a idéia ainda fizesse seu coração disparar, ser a mulher de um único homem. De seu próprio jeito antiquado, estava tão determinada quanto Daniel a fazer as coisas de acordo com as suas regras.

Morar com ele. Daniel segurou o volante com força quando fez uma curva com maior velocidade que um homem racional ousaria. Estava lhe oferecendo metade de tudo que possuía, metade de tudo que era. Mais importante, estava lhe oferecendo seu nome. E Anna o estava jogando de volta em sua cara.

Ela achava que ele lhe teria tirado a virgindade se não acreditasse que estavam verdadeiramente comprometidos um com o outro? Que tipo de mulher recusaria uma proposta honesta e optaria por fugir como uma criança renegada, negando o que era apropriado? Ele queria uma esposa, uma família! Anna queria um pedaço de papel que lhe permitisse enfiar agulhas em pessoas.

Ele deveria ter aceitado o conselho dela desde o começo. Anna Whitfield era a última mulher em Boston que seria uma esposa adequada para Daniel. Então, a esqueceria. Ele a levaria em casa, diria um frio adeus e partiria. Mas ainda podia sentir o gosto dela, ainda sentia o modo que a pele sedosa deslizava sob seus dedos, ainda sentia o aroma dos cabelos que flutuavam ao redor do corpo de ambos.

- Não vou aceitar isso.

Com uma freada violenta, Daniel parou diante da casa dela. A poucos metros de distância, a mãe de Anna cortava rosas. Com o barulho, olhou para cima e, nervosamente, recolheu o que tinha podado. O fato de que uma rápida olhada informou-a de que nenhum de seus vizinhos estava por perto a aliviou apenas um pouco quando Daniel desligou o motor do conversível.

- Este - disse Anna com toda calma do mundo - é um direito seu.

- Agora, ouça-me. - Virando-se um pouco, Daniel segurou-lhe os ombros. Não queria discutir, não Queria brigar. Desde o momento em que aqueles pacientes olhos castanhos haviam encontrado os seus, quisera puxá-la para seus braços e amá-la até que ambos estivessem muito exaustos para falar.

Anna arqueou uma sobrancelha.

- Estou ouvindo.

Ele pensou no que precisava ser dito.

- O que acontece entre nós não acontece com todo mundo. Sei disso.

Ela sorriu um pouco.

- Tenho de acreditar na sua palavra quanto a isso. A frustração veio à tona.

- Isso é parte do problema - murmurou ele, ordenando a si mesmo que ficasse tão calmo quanto ela. - Quero me casar com você, Anna. - Entre as roseiras, a sra. Whitfield deixou cair a tesoura com um som oco. - Eu quis me casar com você desde o primeiro minuto que a vi.

- Isso é parte do problema. - Porque a maior parte do coração de Anna já era dele, ela tocou-lhe o rosto com ambas as mãos. - Você queria o que era apropriado e decidiu que era eu. Queria que eu preenchesse uma lacuna na sua vida. Talvez eu pudesse fazer isso, mas não farei.

- É mais do que isso agora... muito mais. - Quando Daniel a puxou para mais perto, Anna viu a chama de desejo nos olhos dele, então, provou-o nos lábios sensuais. Sem hesitação, sem artifícios, cedeu ao próprio desejo e o beijou. Sim, era mais do que isso agora... talvez mais do que qualquer um deles podia lidar. Quando estavam unidos daquela forma, tudo o mais se tornava insignificante. E era isso que a assustava. Era isso o que a regozijava.

Com desespero, ele a afastou de si.

- Você entende o que temos juntos? O que podemos ter juntos?

- Sim. - A voz de Anna não era tão firme agora, mas a determinação permanecia intacta. - E quero isso. Quero você... mas não casamento.

- Quero que você tenha meu nome.

- Eu quero ter seu coração primeiro.

- Você não está raciocinando com clareza. -Nem ele estava. Cautelosamente, tirou as mãos dos ombros de Anna. - Você precisa de um pouco de tempo.

- Não, não preciso. - Antes que Daniel pudesse detê-la, ela desceu do carro. -Mas é óbvio que você necessita. Adeus, Daniel.

A sra. Whitfield observou a filha andar em direção à casa. Momentos depois, viu Daniel partir de maneira afobada. Então, lembrando-se do carro que estava dirigindo, ele deu marcha ré no veículo e parou do mesmo modo afobado com que partira. Batendo a porta, lançou um olhar furioso para a casa e saiu caminhando na direção oposta. Com uma das mãos sobre o coração, Anna foi para a porta da frente.

- Anna! - Movimentando as mãos, a sra. Whitfield chamou a filha na base da escada. - O que está acontecendo?

Anna queria ficar sozinha. Queria ir para o seu quarto, fechar a porta e deitar-se. Havia tanta coisa a absorver, tanto a saborear. Precisava chorar e nem mesmo sabia bem por quê. Paciente, esperou.

- Acontecendo?

- Eu estava podando as roseiras. - Confusa, k sra. Whitfield balançou a cesta cheia apenas pela metade. – E ouvi... Bem, não pude deixar de ouvir... - Ela gaguejou nervosa pelos olhos castanhos calmos de Anna, os quais subitamente pareciam maduros demais. Para dar tempo a si mesma, cuidadosamente tirou as luvas de borracha e colocou-as sobre uma mesa.

- Entendo que você não estava ouvindo às escondidas, mãe.

- É claro que não! Eu não sonharia... - Ela percebeu que estava fugindo da questão e endireitou os ombros. - Anna, você e o sr. MacGregor... Vocês... - Interrompendo a frase, mudou a cesta de mão.

- Sim. - Com um sorriso cheio de segredos, Anna aproximou-se da mãe. - Nós fizemos amor esta tarde.

- Oh. - Era uma resposta fraca, mas o único som que ela conseguiu murmurar.

- Mãe - Anna pegou-lhe a cesta da mão -, não sou mais uma criança.

- Obviamente. - Respirando fundo, a sra. Whitfield enfrentou seu dever. - No entanto, se o sr. MacGregor a seduziu, então...

- Ele não me seduziu.

Confusa, a mãe de Anna pôde apenas piscar com a interrupção.

- Mas você falou...

- Eu disse que nós fizemos amor. Ele não precisou me seduzir. - Anna segurou o braço da mãe. - Talvez seja melhor nos sentarmos.

- Sim. - Tremendo, ela deixou-se conduzir. - Talvez devêssemos.

Na sala de estar, Anna se sentou ao lado da mãe no sofá. Por onde deveria começar? Nem nos seus sonhos mais loucos tinha se imaginado sentada na sala com a mãe, discutindo romance, amor e sexo. Respirando profundamente, começou:

- Mãe, eu nunca estive com um homem antes. Queria estar com Daniel. Não foi algo que fiz impetuosamente, mas alguma coisa sobre a qual refleti muito.

- Eu sempre disse que você pensava demais - murmurou a sra. Whitfield automaticamente.

- Sinto muito. - Acostumada com as críticas dos pais, Anna pôs as mãos sobre o colo. - Sei que não é algo que quer ouvir, mas não posso mentir para você.

Amor, senso de posse e confusão se misturaram. O amor venceu.

- Oh, Anna. - Em um gesto raro, a sra. Whitfield puxou a filha para mais perto. - Você está bem?

- É claro que estou. - Emocionada, Anna descansou a cabeça no ombro da mãe. - Eu me sinto maravilhosa. É como... não sei... ser libertada.

- Sim. - Ela reprimiu as lágrimas. - É assim que deve ser. Sei que nunca conversamos sobre essas coisas. Deveríamos, mas, então, você foi para aquela universidade e aqueles livros... - Lembrou-se do choque quando pegara um dos livros sobre sexo para dar uma olhada casual. - Suponho que tudo isso me fez sentir inadequada.

- Não é nada como nos livros. - Anna descobriu que podia apreciar o assunto, afinal de contas.

- Não, não é. - A sra. Whitfield mudou de posição para segurar ambas as mãos da filha. - Livros podem ser limitados. Anna, eu não quero que você se machuque.

- Daniel não vai me machucar. - Ela ainda estava emocionada, lembrando-se de como ele se esforçara para ser gentil. - Na verdade, ele se preocupa demais em não me machucar. E quer se casar comigo.

A sra. Whitfield deu um suspiro de alívio.

- Achei que o ouvi dizer isso, mas vocês soavam como se estivessem discutindo.

- Não discutindo, discordando. Não vou me casar com ele.

- Anna. - Quando sua mãe afastou-se, o semblante era sério. - Que tipo de bobagem é essa? Admito que nem sempre a entendo, mas conheço-a bem o bastante para saber que nada teria acontecido se você não gostasse muito dele.

- Eu gosto. - Perdendo um pouco de sua compostura, Anna pressionou os dedos nos olhos. - Talvez até demais. É assustador. Ele quer uma esposa, mãe, quase do jeito que um homem quer um sapato que lhe sirva bem.

- Esse é o jeito dos homens. - Com firmeza, a sra. Whitfield recostou-se. - Alguns homens são poetas, alguns são sonhadores, mas a maioria é assim, são apenas homens. Sei que as garotas pensam que deveria haver palavras bonitas e músicas românticas, mas a vida é muito mais básica do que isso.

Curiosa, Anna a estudou. Sua mãe, ela sabia por experiência, nunca tinha sido muito filósofa.

- Você queria palavras bonitas?

- É claro. - Com um sorriso, a sra. Whitfield pensou sobre o passado. - Seu pai é um homem bom, muito bom, mas a maior parte de suas palavras saem dos livros de advocacia. Acho que o sr. MacGregor é um homem bom.

- Ele é. Eu não quero perdê-lo, mas não posso me casar.

- Anna...

- Eu vou viver com ele.

A sra. Whitfield abriu a boca, mas voltou a fechá-la e engoliu em seco.

- Acho que eu gostaria de um drinque. Levantando-se, Anna foi para o gabinete de bebidas.

- Xerez?

- Uísque. Duplo.

A tensão foi dissolvida em divertimento enquanto Anna servia o copo.

- Daniel teve uma reação muito similar. - Ela entregou o copo para a mãe e a viu beber tudo de uma vez. - Nunca escondi nada de você.

O uísque queimou-lhe a garganta.

- Não, não, você sempre foi completamente honesta.

- Gosto muito de Daniel. - Honestidade, Anna lembrou a si mesma e respirou fundo. - Estou apaixonada por ele. Não foi algo que escolhi, então agora sinto necessidade de recuperar um pouco do controle. Se eu me casar com ele, vou perder tudo pelo que tenho lutado.

A sra. Whitfield pôs o copo vazio sobre a mesinha.

- Seu diploma.

- Sei que você não entende isso também. Ninguém parece entender. - Ela passou as mãos pelos cabelos. Caíam soltos em seus ombros, fazendo-a recordar-se que suas fivelas ainda estavam onde tinham caído sobre o gramado. As fivelas não importavam, podiam ser substituídas. Outras coisas haviam sido perdidas naquele penhasco que não poderiam ser repostas. - O que sei, no meu coração, é que se eu me casar com Daniel agora, nunca vou terminar a universidade. E se eu não terminar, nunca poderei perdoar a mim mesma ou a ele. Mãe, tentei explicar para você antes que ser médica não é simplesmente alguma coisa que quero fazer, é o que tenho de fazer.

- Às vezes, temos de colocar na balança duas coisas importantes, Anna, e escolher.

- E, às vezes, não precisamos. - Desesperada por compreensão, ela ajoelhou-se aos pés da mãe. - Sei que é egoísmo querer tudo, mas refleti muito sobre isso. Necessito ser médica, e não quero viver sem Daniel.

- E Daniel?

- Ele quer casamento. Não pode ver além disso, mas verá.

- Sempre tão segura de si, Anna. - Ela reconheceu a expressão nos olhos da filha: calma, transparente e repleta de determinação. Quase suspirou. - Você nunca pedia nada, e eu me enganei em pensar que estivesse completamente feliz. Então, de repente, você exige tudo.

- Não escolhi ser médica mais do que escolhi me apaixonar por Daniel. As duas coisas simplesmente aconteceram.

- Anna, um passo como esse pode trazer muito sofrimento, muita infelicidade. Se você ama Daniel, então casamento...

- Não é o momento certo, e não tenho certeza se um dia será. - Frustrada, ela se levantou e andou pela sala. - Estou apavorada em cometer esse tipo de erro... por ele e por mim também. Tudo que sei é que agora, neste momento, não quero ficar sem ele. Talvez seja errado, mas seria melhor se nós continuássemos a nos amar em segredo? Pode me dizer se seria mais aceitável se roubássemos algumas horas aqui e ali, uma noite, uma tarde?

- Eu nunca poderia lhe dizer nada - murmurou sua mãe.

- Oh, por favor. - Com mais medo do que queria admitir, Anna voltou-se para a mãe. -Agora, mais do que nunca, preciso de sua compreensão. Não é somente desejo, embora seja certamente parte disso. É uma necessidade de estar com ele, de compartilhar alguns de seus sonhos, porque não tenho certeza se poderei compartilhar todos. Amá-lo em segredo seria hipocrisia. Daniel significa muito para isso. Não vou esconder o que sinto. Não vou esconder quem sou.

A sra. Whitfield olhou para sua única filha, para seus olhos escuros e sérios, para a boca suave e esculpida. Gostaria de ter as respostas.

- Você sabe o que estará enfrentando? O que as pessoas vão dizer?

- Isso não me importa.

- Nunca importou - murmurou sua mãe. - Sei como é impossível convencê-la de qualquer coisa quando está decidida, mas, Anna, você não pode me pedir que aprove isso.

- Eu sei. - Por um momento, ela deitou a cabeça no colo da mãe. - Mas, se em algum lugarzinho em seu interior você puder entender, será suficiente.

Suspirando, ela tocou a mão da filha.

- Eu não esqueci como é estar apaixonada. Talvez eu entenda, e talvez seja por isso que temo por você. Anna, você sempre foi uma filha maravilhosa, mas...

Ela teve de sorrir, apenas um pouco.

-Mas?

- Sempre foi muito intrigante, também. Sei que nunca lhe disse que tenho orgulho de você, mas tenho. Admito que sempre desejei que esquecesse a medicina e se estabelecesse num casamento, onde eu poderia vê-la feliz, todavia, uma outra parte minha a observou e torceu.

Anna entrelaçou os dedos nos da mãe.

- Não sei como lhe dizer o quanto isso significa para mim.

- Eu acho que sei. Agora, seu pai... - Ela fechou os olhos, incapaz de imaginar a reação do marido.

- Ele ficará aborrecido. Eu sei. Sinto muito.

- Lidarei com seu pai. - As palavras saíram num impulso, mas ela descobriu que eram verdade. A sra. Whitfield endireitou os ombros.

Com um sorriso, Anna ergueu a cabeça. Por um momento, pela primeira vez, ela e sua mãe se entreolharam de mulher para mulher.

- Eu amo você, mãe.

- E eu amo você. - Ela se levantou do sofá. - Não preciso entendê-la para isso.

Com um suspiro, Anna deitou a cabeça no ombro da mãe.

- É pedir demais que você me deseje sorte?

- Como mãe, sim. - Ela pegou-se sorrindo. - Mas como mulher, não.

 

Conforme os dias passavam, Anna começou a temer que tinha perdido. Não houve telefonemas ou visitas iradas. Nenhum buquê de rosas brancas foi entregue à sua porta. As rosas enfeitando seu quarto e na sala de sua mãe eram um testemunho do que poderia ter sido. E estavam murchando.

Cada vez com mais freqüência, ela se pegava olhando pela janela ao ouvir o som de um carro passando, correndo para o telefone ao primeiro toque. Cada vez que fazia isso, prometia a si mesma não fazer de novo. Mas, é claro, fazia.

Nunca deixava o hospital antes de procurar um carro azul conversível no estacionamento. Toda vez que saía do grande prédio branco, esperava ver um homem de ombros largos e cabelos vermelhos aguardando impacientemente na esquina. Ele nunca estava lá, mas ela jamais deixava de olhar.

Era desconcertante saber que passara a depender de Daniel, mas era ainda mais desconcertante descobrir para o quê tinha passado a depender dele. Para a. felicidade. Podia ficar alegre sem ele. Certamente podia ficar satisfeita com sua vida e sua carreira. Mas Anna não tinha mais certeza de que podia ser feliz a menos que Daniel fizesse parte de seu dia-a-dia.

Um dia, enquanto lia em voz alta para uma jovem paciente de perna quebrada, sua mente vagava. Para sua irritação, pegava-se sonhando acordada diversas vezes durante as horas de trabalho desde que Daniel tinha partido de sua casa. Censurando a si mesma, voltou a atenção à paciente e à história. Como areia, seus pensamentos se espalharam novamente.

O final feliz que contou para a garotinha sonolenta não era realidade. Certamente, a última coisa que Anna queria era ficar sentada passivamente, esperando que um príncipe lhe calçasse um sapatinho de cristal. E, é claro, era muito prática para acreditar em castelos nas nuvens ou magia até a meia-noite. Era bom, talvez em uma história, sonhar com cavalos brancos e heróis, porém, uma mulher queria mais na vida real. Na vida real, uma mulher queria... bem, um companheiro, Anna supunha, não um cavaleiro ou um príncipe que sempre teria de ser admirado. Uma mulher de verdade queria um homem de verdade, e uma mulher inteligente não ia ficar sentada ao redor de uma torre e esperar pelo príncipe encantado. Ela iria viver a própria vida e fazer suas próprias escolhas.

Anna sempre tinha acreditado piamente que uma pessoa criava o próprio destino, lutando... com lógica e paciência... por suas necessidades. Então, por que estava esperando?, perguntou-se abruptamente. Se era tão independente quanto se declarava e como pretendia se comportar, então por que estava sonhando acordada e esperando que o telefone tocasse? Qualquer pessoa que ficava sentada em silêncio, esperando por um telefonema, era uma tola e uma perdedora. Ela não pretendia ser nenhuma das duas coisas.

Decidida, Anna continuou a ler até que os olhos da garotinha se cerraram. Fechando o livro, foi para o corredor. No caminho, passou por um médico residente de olhos cansados e quase sorriu. No momento, tinha certeza de que ele não entenderia sua onda de inveja. Talvez ninguém mais entendesse, exceto um outro estudante de medicina. Todavia, em alguns meses, não lhe seria possível deixar o hospital por seu próprio capricho. Não faria mal algum aproveitar o tempo que lhe restava.

Do lado de fora, o tempo estava ruim. O céu nublado e o clima tão quente que a chuva parecia evaporar assim que atingia o concreto. No momento em que Anna chegou ao carro, estava toda ensopada. Dirigiu para a cidade com o rádio em volume alto.

O edifício que abrigava o Old Line Savings and Loan era digno, formal e confiável. Quando atravessou a pequena entrada gramada, perguntou-se se Daniel tinha feito algumas mudanças. Do lado de dentro, a pintura estava fresca e os tapetes eram novos, mas os negócios ainda eram conduzidos em sussurros calmos. Anna passou uma das mãos pelos cabelos, espalhando a água, então, dirigiu-se para o caixa mais próximo. Cruzou os dedos atrás das costas.

No andar superior, Daniel olhava os anúncios que sairiam no jornal na semana seguinte. Seu gerente tinha ficado nervoso quando levara os arquivos, mas o jovem assistente que Daniel havia contratado se mostrara entusiasmado. Algumas decisões deveriam ser tomadas por instinto. E o instinto dizia a Daniel que os anúncios aumentariam tanto o volume de seus negócios quanto sua reputação. E ambas as coisas eram extremamente importantes. Ele não apenas levantaria o Old Line, como teria uma filial em Salem em dois anos.

Mesmo enquanto a idéia germinava, seus pensamentos se afastaram dos negócios. Lembrou-se do vento em um penhasco e de uma mulher com cabelos e olhos escuros. A excitação que o percorreu era tão intensa quanto tinha sido no momento em que a tivera em seus braços. O gosto dela provocara uma sensação que nada mais tinha sido capaz de substituir. Mesmo ali, na privacidade de seu escritório, podia sentir-lhe o aroma suave e doce.

Com um murmúrio impaciente, empurrou os papéis de lado e foi para a janela. Deveria sair com outras mulheres. Não tinha jurado a si mesmo que faria isso quando partira da vida de Anna? Mas, cada vez que até mesmo tentava pensar em outra mulher, Anna estava lá. Estava plantada tão firmemente em sua cabeça que não havia espaço para mais ninguém. Não iria conseguir esquecê-la.

Daniel olhou para a chuva caindo. Da janela, Boston parecia acinzentada e deprimente. Combinava com seu humor. Assim que terminasse com o trabalho de papelada e as reuniões, iria dar uma volta ao longo do rio, o tempo estivesse bom ou ruim. Precisava ficar sozinho, longe dos empregados, de todos. Mas não longe de Anna. Podia fazer qualquer coisa que nunca conseguiria fugir de Anna. Como você podia escapar de alguma coisa que estava em seu sangue, em sua pele? E Anna estava lá. Não importava o quanto tentasse fingir que possuía uma escolha, Anna estava lá.

Ele queria se casar com ela. Daniel virou-se da janela para andar pela sala com as mãos enfiadas nos bolsos e a cabeça baixa. Tinha escolhido raiva a desespero e fúria a medo. Que mulher!, pensou novamente. Queria se casar com ela. Queria acordar pela manhã e senti-la a seu lado. Queria chegar em casa à noite e ser capaz de tocá-la. Queria ver seus filhos crescendo dentro dela. E queria todas essas coisas com um desespero que lhe era tão estranho como o fracasso.

Fracasso. Apenas a palavra o fez cerrar os dentes. Não estava pronto para admitir fracasso. Para o inferno as outras mulheres!, decidiu abruptamente. Havia apenas uma. Iria procurá-la.

Quando o telefone sobre sua mesa tocou, ele estava a caminho da porta. Praguejando, foi atender.

- MacGregor.

- Sr. MacGregor, aqui é Mary Miles, caixa do banco. Desculpe-me interrompê-lo, mas há uma jovem aqui embaixo que insiste em vê-lo.

- Peça-lhe que marque uma hora com a minha secretária.

- Sim, senhor, eu sugeri isso, mas ela insiste em vê-lo agora. Disse que vai esperar.

- Não tenho tempo de receber ninguém sem hora marcada, sra. Miles. - Daniel consultou o relógio. Anna teria saído do hospital. Precisaria ir à casa dela.

- Sim, senhor. - A mulher sentiu-se pressionada entre duas forças que não cediam. - Expliquei isso, mas ela é muito insistente. É muito educada, sr. MacGregor mas não acho que vá desistir.

Perdendo a paciência, Daniel praguejou.

- Diga-lhe... - Ele parou quando as palavras da sra. Miles formaram uma imagem em sua mente. - Qual é o nome dela?

- Whitfield. Anna Whitfield.

- Por que você a está deixando esperar aí embaixo? - demandou ele. - Mande-a subir.

Mary Miles fez uma careta e lembrou-se do aumento que o sr. MacGregor lhe dera quando tinha comprado o banco.

- Sim, senhor. Imediatamente.

Anna tinha mudado de idéia. A vitória não o fez se sentir calmo, mas radiante. Sua paciência, embora tivesse lhe custado muito, valera a pena. Ela estava pronta para ser sensata. Verdade, ele não imaginava discutir casamento em seu escritório, mas estava disposto a fazer uma concessão. Apura verdade era que estava disposto a fazer muitas concessões. Mas Anna havia ido à sua procura. Ele teria tudo que quisesse, inclusive seu orgulho.

Abatida à porta foi rápida e sistemática, antes que sua secretária a abrisse.

- A srta. Whitfield está aqui para vê-lo, senhor. Daniel assentiu brevemente num gesto que dispensava

a secretária antes que seu olhar e cada pensamento em sua cabeça se focassem em Anna. Ela estava parada sobre o grosso carpete cinza que fora recentemente instalado, pingando da cabeça aos pés. A chuva tinha lavado seu rosto e deixado os cabelos brilhantes e escuros, os cachos caindo sobre os ombros. Anna simplesmente tirou-lhe o fôlego.

- Você está molhada. - As palavras soaram mais como uma acusação do que uma preocupação.

Ela sorriu.

- Está chovendo. - Nossa, como era bom vê-lo. Por um momento, só pôde sorrir tolamente enquanto o observava. Ele estava sem gravata, o colarinho aberto. Os cabelos rebeldes pareciam ter sido penteados impacientemente com os dedos. Ela queria abrir os braços e envolvê-lo com seu corpo, ao qual estava começando a entender que ele pertencia. Em vez disso, continuou sorrindo e pingando no carpete elegante. Enquanto sorria, Daniel a olhava fixamente. Por vários segundos, nenhum dos dois falou.

Então Daniel pigarreou e a olhou com expressão zangada.

- Parece-me que qualquer pessoa que estuda medicina sabe que não é bom ficar andando por aí molhada. - Ele abriu a porta de um gabinete e pegou uma garrafa de uísque. - Você vai acabar passando mais tempo em seu hospital do que gostaria.

- Não acho que uma pequena chuva de verão me fará mal. - Pela primeira vez ocorreu a Anna como devia estar sua aparência, com os cabelos pingando e embaraçados, as roupas coladas no corpo e os sapatos úmidos. Manteve o queixo erguido. Molhada ou não, tinha sua dignidade.

- Beba isso, de qualquer forma. - Ele pôs o copo na mão dela. - Sente-se.

- Não, eu vou arruinar...

- Sente-se - repetiu ele em tom de ordem. Erguendo uma sobrancelha, ela andou para uma cadeira.

- Muito bem.

Anna se sentou, mas ele não. O doce gosto da vitória já tinha passado. Apenas em olhá-la, Daniel sabia que ela não tinha mudado de idéia. Não Anna. A verdade era que nunca se apaixonaria desesperadamente por uma mulher cuja mente pudesse ser influenciada. Ela não fora lá para aceitar sua oferta de casamento, e Daniel estava longe de aceitar a alternativa de Anna.

Daniel deu um pequeno sorriso. Seus olhos assumiram um brilho que aqueles que estavam acostumados a fazer negócios com ele reconheceriam... e se tornariam cautelosos. Recue, disse a si mesmo. Mas, de maneira alguma, deixaria a srta. Whitfield saber de seu estado de nervos. Deixou o olhar percorrê-la mais uma vez, quando ela se sentou, molhando o estofado de sua cadeira.

- Interessada em um empréstimo, Anna?

Ela deu um gole e deixou o uísque acalmar seu súbito nervosismo. O tom calmo e o sorriso suave de Daniel não a enganavam nem por um instante. Então, ele continuava zangado. O que mais deveria ter esperado? Ela se apaixonaria por um homem que pudesse ser facilmente seduzido? Não, tinha se apaixonado por Daniel porque ele era precisamente como era.

- Não no momento. - Para dar-se tempo, ela estudou a sala. - Seu escritório é muito bonito, Daniel. Digno, mas enfadonho. - Havia uma pintura abstrata na parede, feita de diferentes formas e tons de azul. Embora parecesse ser mais do que formas e linhas ao acaso, o senso de sexualidade era perfeitamente claro. - Definitivamente, nem um pouco enfadonho.

Daniel a viu estudar a pintara abstrata e sabia que ela entendia. Pagara um preço caro pelo Picasso, porque o quadro o tinha agradado, e porque seus instintos lhe diziam que o valor aumentaria com as gerações futuras.

- Você é uma mulher difícil de chocar, Anna.

- Isso é verdade. - E porque era, Anna se pegou relaxando. - Sempre achei a vida muito importante para me permitir ser ofendida por ela. Senti falta das rosas.

Ele apoiou um quadril no canto de sua mesa enorme. -Pensei que você não gostasse de recebê-las de mim.

- Eu não gostava. Até que você parou de enviar. - Anna parou aí, decidindo que tinha direito a algumas excentricidades. - Não tive notícias suas por vários dias e pergunto-me se choquei você.

- Chocou-me? - Alguns momentos atrás, seus sentimentos iam de tensão a tédio. Com Anna ali, tudo parecia estar no lugar novamente. - Também não sou uma pessoa que se choca facilmente.

- Ofendido, então? - sugeriu ela. - Porque escolhi morar com você em vez de me casar.

Ele quase sorriu. Uma vez dissera que gostava de mulheres que diziam o que pensavam... até certo ponto. Não parecia nem um pouco estranho que sua opinião sobre isso tivesse mudado radicalmente.

- Aborrecido - corrigiu ele. - Podemos até dizer furioso.

Ela lembrou-se da reação dele.

- Sim, acho que podemos. Você continua zangado.

- Sim. Você continua com a mesma decisão? -Sim.

Pensativamente, Daniel pegou um charuto, alisando-o antes de acendê-lo. Nos negócios, sabia como lidar com um oponente. Forçá-lo a ver o outro lado e vacilar. A fumaça passou por cima de sua cabeça enquanto a observava e esperava.

- Por que você veio aqui, Anna?

Então, ele não pretendia ceder nem um pouco. Ela deu um outro gole do uísque. Certo, também não cederia.

- Porque percebi que eu não queria passar mais nem um dia sem vê-lo. - Anna pôs o copo de lado quando uma nuvem de fumaça passou, então desapareceu. - Você se importa?

Ele bufou de maneira impaciente. Negócios e assuntos pessoais nem sempre tinham as mesmas regras. Ainda assim, o objetivo era vencer.

- É difícil um homem se importar que a mulher com a qual quer se casar deseja estar com ele.

- Ótimo. - Anna se levantou então, e fez uma tentativa, em vão, de arrumar a saia molhada. - Então, você vai jantar comigo esta noite.

Ele estreitou os olhos.

- Um homem geralmente gosta de fazer o convite. Ela suspirou e meneou a cabeça enquanto se aproximava.

-Você está se esquecendo de novo em que século estamos. Eu o apanho às sete horas.

- Você...

- Pego você às sete - terminou ela, então colocou-se na ponta dos pés. Quando tocou os lábios dele com os seus, estavam macios e deliciosos. - Obrigada pelo uísque, Daniel. Não vou mais atrapalhá-lo.

Ele encontrou a voz quando ela já estava à porta.

- Anna.

Ela virou-se com um meio sorriso nos lábios.

- Sim?

Daniel viu naquele sorriso que ela esperava, até mesmo antecipava uma discussão. Mudar de tática e deixá-la confusa, pensou, dando uma tragada no charuto.

- Terá de ser às sete e meia, pois tenho uma reunião até tarde.

Então teve a satisfação de ver um vislumbre de dúvida cruzar o semblante de Anna antes que ela assentisse.

- Certo.

Assim que ela fechou a porta, respirou longamente.

Perto de sua mesa, Daniel sorria e uma risada vibrava em seu interior. Apesar de não ter certeza de quem tirara o melhor de quem, descobriu que isso não importava. Sempre gostara de experimentar um jogo novo, com regras novas. Daria as cartas a Anna. Mas, por Deus, ele ainda venceria.

A chuva tinha diminuído para um chuvisco quando Anna chegou em casa. Descobriu a casa vazia, mas a fragrância do perfume de sua mãe ainda estava no hall. Contente por estar sozinha, subiu para tomar um longo banho quente. Ter tomado a iniciativa lhe trazia uma boa sensação, descobriu. Mais uma vez, estava no controle, embora por dentro estivesse um pouco mais instável do que poderia parecer.

Daniel MacGregor não era um homem que podia ser manipulado. Sabia disso desde o princípio. Mas acreditava que era um homem que responderia à negociação. Seu problema principal seria impedi-lo de ver o quanto ela seria capaz de lhe dar.

Tudo. Anna fechou os olhos enquanto espremia a esponja e pingava água quente sobre o pescoço e os seios.

Se ele descobrisse que, caso a pressionasse contra a parede, ela lhe daria tudo que ele quisesse, Daniel o faria sem hesitação. Um homem como ele não tinha escalado ao topo sendo ingênuo. Mas Anna pretendia chegar ao topo em sua própria profissão também. Portanto, precisava ser igualmente forte, igualmente determinada.

Depois que o pegasse em casa, eles teriam um jantar tranqüilo, conversando calmamente. Durante o café, discutiriam, de forma racional, a situação deles. Antes que terminasse a noite, ele entenderia seus sentimentos e sua posição. Anna afundou na banheira com um suspiro. A quem estava tentando enganar? Aquele não parecia um jantar com Daniel MacGregor nem por um minuto.

Eles brigariam, discutiriam, discordariam e, provavelmente, ririam bastante. Era bem possível que Daniel gritasse. Assim como ela. Quando a noite terminasse, Anna duvidava que ele tivesse entendido alguma coisa, exceto que queria casamento.

O pensamento mexeu com ela. Ele a queria. Anna podia ter passado a vida inteira sem que alguém a olhasse do jeito que Daniel a olhava. Podia ter passado a vida inteira sem que alguém despertasse sua paixão interna. Como seria sua vida, então?

Branda. Ela sorriu da palavra que lhe veio à mente. Certamente não se contentaria com isso agora. Queria Daniel MacGregor. E iria tê-lo.

Manter a autoconfiança era meia batalha ganha, pensou saindo da banheira. Era tão fácil escorregar pouco a pouco enquanto ele a olhava. Não permitiria que isso acontecesse esta noite. Com uma toalha enrolada nos cabelos, vestiu um robe. Ela iria levá-lo para jantar. Por mais que isso a deixasse um pouco nervosa, não perderia tal chance.

Abrindo o armário, franziu o cenho. No geral, sabia precisamente o que vestir em uma noite que tinha planejado. Hoje, tudo que colocava parecia muito escandaloso ou comum demais. Chamando-se de tola, pegou um vestido de seda verde e estendeu-o sobre a cama. Talvez fosse um pouco simples, mas era a melhor idéia para a noite. Se quisesse alguma coisa ousada, pensou, devia ter vasculhado o closet de Myra. Quando o pensamento lhe ocorreu, ouviu a campainha da porta.

Descobriu-se resmungando da interrupção, algo que não era típico de Anna, enquanto descia a escada. Assim que abriu a porta, Myra entrou e segurou-lhe ambas as mãos.

- Oh, Anna, que bom que você está em casa.

- Myra, eu estava justamente pensando em você. -Anna notou que sua amiga estava lhe apertando os dedos. - O que aconteceu?

- Preciso falar com você. - Talvez pela primeira vez na vida, Myra encontrava dificuldade em escolher as palavras. - A sós. Seus pais estão em casa?

- Não.

- Ótimo. Preciso de um drinque antes. Sirva-me um uísque.

- Tudo bem. - Divertida, Anna começou a conduzi-la para a sala. - Lindo chapéu.

- É? - Myra levou uma mão preocupada ao véu do chapéu. - Não é muito escandaloso?

- Escandaloso? - Anna serviu um uísque duplo. - Deixe-me ver se entendi. Você está me perguntando se o que está usando é muito escandaloso?

- Não seja engraçadinha, Anna. - Virando-se para o espelho, Myra brincou com o véu. - Talvez eu deva tirar a pena.

Anna olhou para a pequena pena curvada sobre a orelha de Myra.

- Agora sei que alguma coisa está errada.

- E quanto à roupa? - Myra tirou a capa de chuva vermelha brilhante para revelar um conjunto de seda com renda no decote e punhos.

- É maravilhoso. É novo?

- Tem somente vinte minutos.

Anna sentou-se no braço de uma poltrona enquanto sua amiga bebia o uísque.

- Você não precisava se arrumar tanto para vir me visitar.

Myra suspirou longamente e endireitou os ombros antes de esvaziar o copo de bebida.

- Agora não é hora de brincadeiras.

- Posso ver isso. - Mas ela sorriu, de qualquer forma. - É hora para quê?

- Com que rapidez você pode vestir uma roupa linda e arrumar uma sacola para passar a noite fora?

- Passar a noite fora? -Anna observou-a mexendo no decote da blusa. - Myra, o que está havendo?

- Eu vou me casar. - Ela falou apressada, então respirou com dificuldade. Porque as pernas estavam bambas, sentou-se no sofá.

- Casar? - Perplexa, Anna a olhou. - Myra, sei que você trabalha rapidamente, e que eu não a vejo há algumas semanas, mas casar-se?

- Não machucaria dizer isso algumas vezes, então parei de perder o fôlego cada vez que ouço a palavra. Já tagarelei com a vendedora da loja de roupas e não quero fazer isso de novo. Se há uma coisa que me recuso a fazer é papel de boba.

- Casar - repetiu Anna por ambas. - Com quem? - Enquanto Myra abria e fechava o primeiro botão da blusa, Anna nomeou um candidato: - Peter?

- Quem? Não, é claro que não.

- É claro que não - murmurou Anna. - Já sei, Jack Holmes.

- Não seja ridícula.

- Steven Marlowe.

Myra brincou com a bainha da saia.

- Anna, tenha dó, eu mal conheço o homem.

- Mal o conhece? Bem, seis meses atrás você...

- Aquilo foi seis meses atrás - interrompeu Myra, enrubescendo pela primeira vez desde que Anna a conhecera. - E eu apreciaria se você esquecesse qualquer coisa que já escrevi sobre ele. Melhor ainda, queime aquelas cartas.

- Querida, elas foram destruídas no momento em que as li. Você devia ter usado papel a prova de fogo.

Sem poder evitar, Myra sorriu.

- Você está falando com uma mulher noiva. Deixei todo o passado para trás. Olhe. - Com a respiração acelerada, Myra estendeu a mão direita.

- Oh. - Ela geralmente não ligava muito para jóias, mas o diamante simples de corte quadrado no dedo de sua amiga era magnífico. - É maravilhoso, realmente maravilhoso, Myra. Estou tão feliz por você. - Anna estava em pé, puxando Myra para um abraço, mas então riu. - Como sei que estou feliz por você? Nem sei com quem vai se casar.

- Herbert Ditmeyer. - Myra esperou por um olhar de perplexidade e não ficou desapontada. - Eu sei, também fiquei muito surpresa.

- Mas não pensei nem mesmo que vocês... isto é, você sempre falou que ele era... - Percebendo o que ia dizer, Anna parou e pigarreou.

- Uma pessoa de poucos horizontes - Myra terminou e sorriu lindamente. - E ele é. É limitado, muito sério e frustrantemente apropriado. Mas é também o homem mais doce que já conheci. Durante as últimas semanas... - Ela recostou-se, um pouco sonhadora, um pouco atônita. - Eu nunca soube como era ter um homem que a trata como se você fosse especial. Realmente especial. Saí com ele a primeira vez, porque, depois de tanta insistência, fiquei com pena de Herbert. - E, alegre, admitiu: - Saí a segunda vez porque me diverti muito. Herbert pode ser tão engraçado! É como se ele tivesse entrado em minha pele.

Emocionada, Anna viu amor nos olhos de Myra.

- Eu sei.

- Você sempre foi tão amiga dele. Tenho sorte que não se apaixonou por você. A questão é, Herbert é apaixonado por mim há anos. - Meneando a cabeça de leve, ela pegou um cigarro da bolsa. - Estávamos saindo por algumas semanas quando ele me contou. Fiquei tão perplexa que mal podia falar. Então, tentei parar de resistir. Afinal, ele foi muito doce e eu não queria magoá-lo.

Anna ergueu a mão com o anel novamente.

- Não me parece que você resistiu.

- Não. - Ainda zonza, Myra olhou para o diamante brilhante. - Ocorreu-me de repente que eu não queria resistir, que estava apaixonada por ele. Isso não é loucura?

- Acho maravilhoso.

- Eu também. - Ela apagou o cigarro sem mesmo ter dado a primeira tragada. - E esta noite. Esta noite, ele colocou este anel no meu dedo, disse-me que vamos voar para Maryland às oito horas e nos casar.

- Esta noite. - Anna pegou pegou-lhe a mão novamente. - Esta noite. É tão rápido, Myra.

- Por que esperar?

Por que esperar, realmente? Ela podia pensar em centenas de razões, mas nenhuma delas teria tirado aquela expressão sonhadora dos olhos de Myra.

- Você tem certeza?

- Tenho mais certeza disso do que de qualquer coisa que já tive na vida. Fique feliz por mim, Anna.

- Eu estou. - Lágrimas marejaram-lhe os olhos enquanto abraçava a amiga. - Você sabe que estou.

- Então, vista-se. - Meio rindo, meio chorando, Myra empurrou-a. - Você é a minha madrinha.

- Você quer que eu voe para Maryland esta noite?

- Nós decidimos fugir porque era mais simples do que lidar com a mãe dele. Ela não gosta de mim e provavelmente nunca vai gostar.

- Oh, Myra...

- Não importa. Herbert e eu nos amamos. De qualquer forma, não quero um grande casamento. Demora muito. Mas não quero me casar sem a minha melhor amiga lá. Realmente preciso de você, Anna. Desejo isso mais do que qualquer coisa na vida e estou apavorada.

Quaisquer objeções que Anna pudesse ter, desapareceram.

- Posso ficar pronta em vinte minutos.

Sorrindo, Myra lhe deu um último abraço.

- Porque se trata de você, acredito nisso.

- Deixe-me apenas deixar um bilhete para meus pais. - Ela já estava com a caneta nas mãos.

- Ah, Anna. - Myra mordiscou o lábio. - Sei que seu senso de honestidade não vai deixá-la mentir... exatamente. Pode apenas não mencionar o motivo pelo qual está viajando? Herbert e eu realmente queremos manter isso em segredo até que contemos para a mãe dele.

Anna pensou por um momento, então começou a escrever.

"Vou fazer uma pequena viagem com Myra. Talvez comprar algumas antigüidades". O que poderia fazer, acrescentou para si mesma. "Estarei de volta em um ou dois dias." Ela assinou e olhou para cima, mostrando o bilhete a Myra.

- Vago o bastante?

- Perfeito. Obrigada.

- Vamos, me dê uma mão. - Indo para o corredor, lembrou-se. - Oh, preciso ligar para Daniel e cancelar o jantar.

- Daniel MacGregor? - Myra arqueou as sobrancelhas de um jeito que só ela conseguia.

- Isso mesmo. - Ignorando o olhar, Anna foi para o telefone. - Tenho de avisá-lo que não vou poder esta noite.

- Você pode jantar com ele em Maryland. - Myra pegou o telefone da mão da amiga e pôs no gancho novamente. - Herbert vai convidá-lo para ser o padrinho.

- Entendo. - Anna passou uma das mãos casualmente sobre o robe. - Bem, isso é conveniente, não é?

- Muito. - Com um sorriso, Myra arrastou-a para o andar de cima.

 

Anna nunca havia viajado de avião antes. Aos 20 anos, tinha viajado para a Europa de navio, com luxo e conforto. Viajara centenas de quilômetros em trens, tranqüilizada pelo balanço agradável e observando a paisagem que passava. Mas nunca estivera no ar. Se alguém lhe dissesse que subiria num avião particular, que parecia pequeno o bastante para aterrissar no seu quintal, ela diria que estavam loucos.

Amor, pensou quando cerrou os dentes e deu o último passo para dentro do avião. Se não amasse Myra, se viraria e sairia correndo. Estava certa de que a pequena lata com hélices podia sair do solo. Só gostaria de ter a mesma certeza de que desceria de novo.

- Uma bela máquina, não? - Daniel observou Anna sentar-se antes de se acomodar a seu lado.

- Muito bela - murmurou ela e imaginou se o avião vinha acompanhado de pára-quedas.

- Seu primeiro vôo?

Anna começou a dar uma risada firme e exaltada então viu que ele não estava rindo dela.

- Sim. -A palavra saiu num sussurro.

- Tente pensar nisso como uma aventura - sugeriu Daniel.

Ela olhou para o solo do lado de fora da janela, e desejou que ainda estivesse pisando nele.

- Estou tentando não pensar, em absoluto.

- Você é mais corajosa do que isso, Anna. Eu deveria saber. - Então, ele sorriu-lhe. - A primeira vez deve ser uma aventura. Depois de um tempo, voar se torna rotina e você não pensa realmente sobre isso.

Ela disse a si mesma para relaxar e usou o velho truque de começar a visualizar os pés relaxados e ir subindo pelo corpo. Nunca passou dos joelhos.

- Suponho que você esteja acostumado com isso. É nesse tipo de avião que voa para Nova York?

Com uma risada, Daniel prendeu o cinto de segurança de Anna, depois o seu próprio.

- É neste avião que vou para Nova York. Ele é meu.

- Oh. - Ao ouvir aquelas palavras, Anna descobriu que o fato de o avião ser de Daniel, de alguma maneira, tornava tudo mais seguro. Olhou para onde Myra e Herbert estavam sentados com as cabeças unidas. Uma aventura, decidiu. Apreciaria a novidade.

- Então, quando começamos?

- Esta é minha garota - murmurou ele e sinalizou para o piloto. O motor do avião soou e eles decolaram.

Embora a ansiedade de Anna tivesse passado, havia um ar tanto de celebração quanto de tensão durante todo o vôo. Ela notou o nervosismo de Myra, que torcia um lenço nas mãos enquanto ria e conversava. Herbert parecia um pouco pálido, rígido, e falava quando era questionado. Anna, por sua vez, ouvia vozes ao seu redor, observando a paisagem abaixo com um senso de que aquilo não era real. Tudo estava acontecendo tão rápido. Não fosse pelas constantes brincadeiras e provocações de Daniel, a festa de comemoração do vôo podia ter se transformado em leve histeria. Ele estava se divertindo, percebeu Anna, vendo-o brincar de maneira descontraída com Myra. E, enquanto fazia isso, acalmava a futura noiva. Daniel não era apenas um homem interessante, notou ela. Era também um bom amigo. Reprimindo os pensamentos, Anna fez um esforço para ser uma amiga tão boa quanto.

- Você tem um gosto excelente, Herbert.

- O quê? - Ele engoliu em seco e endireitou a gravata. - Oh, sim, obrigado. - Então olhou para Myra com o coração nos olhos. - Ela é maravilhosa, não é?

- A melhor. Não sei o que eu teria feito sem ela. A vida certamente seria muito mais tediosa.

- Nós, pessoas mais sérias, realmente precisamos de alguém que dê um brilho nas nossas vidas, verdade? - Ele deu um sorriso nervoso a Anna. - Caso contrário, apenas nos rastejamos em nossas carreiras e esquecemos que existem mais coisas lá fora.

Pessoas sérias? Anna refletiu sobre a frase. Sim, supunha que era. Além disso, estava começando a entender que Herbert tinha razão.

- E pessoas com "brilho" - murmurou ela com uma olhada para Myra e Daniel - precisam de pessoas sérias em suas vidas para impedi-las de caírem do penhasco.

- Eu vou fazê-la feliz.

Porque as palavras dele soavam mais como uma pergunta do que como uma afirmação, Anna pegou-lhe as mãos.

- Oh, sim. Você vai fazê-la muito feliz.

O pequeno avião particular tocou o solo do aeroporto rural de Maryland. A garoa insistente tinha ficado para trás. Ali, o céu noturno estava claro e coberto de estrelas. O prateado da lua era como um sorriso. Podia ter sido uma noite escolhida por impulso, mas era perfeita. Segurando Myra pelo braço, Herbert a conduziu ao longo do caminho do pequeno terminal.

- O juiz de paz que me foi recomendado fica apenas a trinta quilômetros daqui. Vou verificar se pegamos um táxi ou alugamos um carro.

- Isso não será necessário. - Quando eles entraram no terminal, Daniel rapidamente olhou ao redor e sinalizou para um chofer uniformizado.

- Sr. MacGregor?

- Sim. Dê as instruções a ele - Daniel disse a Herbert. - Tomei a liberdade de cuidar do transporte.

Sem comentários, o chofer pegou as malas e liderou o caminho para o lado de fora. Na esquina, estava uma limusine prateada.

- Vocês não me deram muito tempo para pensar em um presente de casamento - explicou Daniel. - Isso foi o melhor que pude fazer.

- É perfeito. - Com uma risada, Myra envolveu os braços ao redor dele. -Absolutamente perfeito.

Daniel piscou para Herbert por sobre a cabeça dela.

- A tarefa do padrinho é cuidar dos detalhes.

Anna esperou até que Herbert ajudasse Myra a entrar no carro.

- Isso foi muito doce de sua parte.

- Sou um homem doce - murmurou Daniel. Ela riu e aceitou-lhe a mão.

- Talvez. Eu não apostaria nisso.

Dentro da limusine, Myra já estava de braços dados com Herbert.

- Duas garrafas de champanhe?

- Uma para antes. - Daniel tirou uma garrafa do balde de gelo. - Outra para depois. - Sacou a rolha com um pequeno estouro e serviu quatro taças. A felicidade!

Quatro taças bateram solenemente num brinde, mas no momento em que Daniel bebeu, olhou para Anna. Quando o champanhe deslizou por sua garganta, ela percebeu que a aventura estava longe de terminar.

Assim que chegaram à pequena casa branca, todo o champanhe e a tensão no ar tinham desaparecido. Com sua autoconfiança habitual, Myra prendeu os cabelos e se maquiou num vestiário feminino do salão, enquanto Anna ficava a seu lado, segurando o chapéu da noiva. Notou que as mãos da amiga estavam tremendo.

- Como estou? - perguntou Myra e deu uma voltinha no espaço apertado.

- Linda.

- Nunca fui exatamente linda, mas esta noite acho que quase consegui ficar muito bonita.

Com mãos firmes, Anna virou-a para o espelho novamente.

- Esta noite, você está linda. Dê uma olhada.

Olhando para o reflexo das duas no espelho, Myra sorriu.

- Ele realmente me ama, Anna.

- Eu sei. - Ela passou o braço em volta do ombro de Myra. - Vocês vão formar um time e tanto.

- Sim, vamos. - Erguendo o queixo, ela sorriu. - Não acho que Herbert se dê conta ainda do quanto seremos um time, mas vai perceber. - Com um suspiro, virou-se e segurou os ombros de Anna. - Não gosto de ficar sentimental, mas, uma vez que só pretendo me casar uma vez, este parece o momento adequado. Você é minha melhor amiga e eu a amo. Quero que seja tão feliz quanto me sinto neste minuto.

- Estou trabalhando para isso. Satisfeita, Myra assentiu.

- Certo, então vamos. E ouça - ela pôs a mão na maçaneta e parou -, se eu gaguejar, não conte a ninguém... especialmente para Catherine Donahue.

Com expressão solene, Anna colocou uma das mãos sobre o coração.

- Não direi a nenhuma alma.

No salão, com uma pequena lareira de mármore e flores de verão num vaso de vidro, Anna assistiu à sua melhor amiga prometer amor, honra e fidelidade. Quando seus olhos nublaram, sentiu-se tola e piscou para conter as lágrimas. Era tolice chorar por dois adultos que estavam fazendo um contrato legal. Casamento era, afinal de contas, um contrato. Por esse motivo, deveria ser abordado com muito cuidado e praticidade. Mas a primeira lágrima escapou e escorreu-lhe pela face. Sentiu Daniel colocar um lenço em sua mão, como tinha feito uma vez. Mesmo enquanto usava o lenço, a cerimônia acabou e ela encontrou-se abraçando sua amiga deslumbrada.

- Fiz isso - murmurou Myra, então riu e apertou as costelas de Anna num abraço forte.

- E sem gaguejar uma única vez.

- Fiz isso - repetiu ela e ergueu a mão. Ao lado do anel de diamante, estava uma aliança de ouro. - Noivei e casei em cinco horas.

Daniel pegou a mão que ela estava admirando e beijou-a formalmente.

- Sra. Ditmeyer.

Rindo, Myra entrelaçou os dedos nos dele.

- Certifique-se de me chamar assim diversas vezes durante a noite, de modo que eu aprenda a responder. Oh, Anna, vou chorar e borrar minha maquiagem.

- Está tudo bem. - Anna deu-lhe o lenço já amassado de Daniel. - Herbert está preso a você agora. - Colocando os braços ao redor de Herbert, apertou-o com carinho.

Ele riu, devolvendo o abraço.

- E ela está presa a mim.

- Ela vai complicar a sua vida.

- Eu sei.

- Isso não é maravilhoso? -Anna lhe deu um beijo no rosto. - Não sei quanto a vocês, mas estou faminta. O jantar de casamento é por minha conta.

Seguindo a recomendação do juiz de paz e com a ajuda do chofer, eles encontraram uma pequena hospedaria no pico de um morro reflorestado. Era, segundo as informações que receberam, pequena, pitoresca, e estaria possivelmente fechada. Com alguma persuasão e a troca de algumas notas, eles convenceram o dono a abrir o restaurante e acordar o cozinheiro. Enquanto os outros foram conduza para o salão de jantar, Anna deu uma desculpa que precisava ir ao toalete e se afastou. Momentos depois, surpreendeu o dono da hospedaria novamente.

- Sr. Portersfield, não posso agradecer o bastante por ter nos acomodado.

Apesar de ficar sempre contente em receber clientes que pagavam, o horário tardio o deixara de mau humor. Todavia, achou difícil resistir ao sorriso que Anna lhe dava.

- Minhas portas estão sempre abertas - replicou ele.

- Infelizmente, a cozinha fecha às nove horas, então a refeição pode não corresponder à nossa reputação.

- Tenho certeza de que tudo será maravilhoso. A propósito, posso quase prometer-lhe que meus amigos dirão que é a melhor refeição que já comeram. Sabe - ela enganchou o braço no dele e andou um pouco para se afastar mais dos outros -, eles acabaram de se casar há meia hora. Por isso, o senhor e eu temos de preparar algumas coisas.

- Recém-casados. - O sr. Portersfield não era um homem totalmente desprovido de romance. - Ficamos sempre satisfeitos em receber recém-casados aqui. Se tivéssemos sido avisados com um pouco de antecedência...

- Oh, estou certa de que as poucas coisas de que precisamos não serão problema. Mencionei que o sr. Ditmeyer é promotor público em Boston? Tenho certeza de que quando ele voltar de lua-de-mel com a esposa, vai elogiar sua hospedaria para todos os amigos. E o sr. MacGregor - ela abaixou o tom de voz -, bem, não preciso lhe dizer quem ele é.

Ele não tinha a menor idéia, mas a importância implícita era o bastante.

- Não, é claro que não.

- Um homem na posição dele geralmente não encontra um lugar tranqüilo como este para relaxar. Comida caseira, ar do campo. Posso lhe assegurar que ele está muito impressionado com seu estabelecimento. Diga-me, sr. Portersfield, por acaso tem um toca-discos?

- Um toca-discos? Tenho um em meu quarto, mas...

- Perfeito. -Anna deu-lhe um tapinha na mão e tentou sorrir novamente. - Eu sabia que o senhor seria capaz de me ajudar.

Quinze minutos depois, ela estava de volta ao salão de jantar. Sobre a mesa, havia pães fatiados, um pote de manteiga e pouco mais.

- Onde você se meteu? - Daniel perguntou quando ela se sentou.

- Detalhes. Para os noivos - murmurou Anna e ergueu seu copo de água.

Enquanto brindavam, Myra riu.

- E eu estava justamente dizendo a Herbert que ele pode esperar por refeições como esta - ela indicou o pão e a água -, até que arrumemos uma cozinheira.

Ele pegou-lhe a mão e levou-a aos lábios.

- Não me casei com você por seus dotes culinários.

- Ainda bem - disse Anna, então acrescentou: - Ela não tem nenhum.

Um garoto sonolento de aproximadamente 15 anos entrou no salão com um vaso de flores selvagens. Uma olhada para o orvalho nas pétalas disse a Anna que haviam acabado de ser colhidas. Aparentemente, o sr. Portersfield iria cumprir seu dever.

- Oh, que bonitas. - Myra estendeu o braço para pegar uma enquanto o garoto começava a arrastar mesas ao longo do piso. Fazendo muito barulho. O sr. Portersfield apareceu carregando uma vitrola. Dentro de momentos, havia música.

- A primeira dança para os Herbert Ditmeyer - declarou Anna e gesticulou para o espaço que o garoto tinha aberto. Quando eles estavam sozinhos à mesa, Daniel passou manteiga em uma fatia de pão e estendeu para ela.

- Você conseguiu bastante coisa em tão pouco tempo. Faminta, Anna deu uma mordida no pão.

- É só o começo, sr. MacGregor.

- Sabe, quando você me convidou para jantar esta noite, eu não tinha idéia que seria numa hospedaria no campo, em Maryland.

Anna pegou outra fatia de pão, passou manteiga e deu a ele.

- Eu pretendia jantar um pouco mais perto de casa.

- Eles parecem felizes.

Ela olhou para ver Myra e Herbert sorrindo um para o outro enquanto se moviam em volta no pequeno espaço.

- Sim, eles estão felizes. Engraçado, eu nunca os imaginei juntos. Agora que os vejo, parece tão perfeito.

- Contrastes. - Daniel abriu a palma e pressionou contra a de Anna. A dele era grande e áspera. A dela, pequena e macia. - Eles tornam a vida mais interessante.

- Passei a acreditar nisso. - Ela entrelaçou os dedos nos dele. - Ultimamente.

Com um sorriso que ia de orelha a orelha, o sr. Portersfield trouxe uma bandeja de salada.

- Vocês vão gostar disso - murmurou enquanto servia. - Tudo vem direto de nosso próprio jardim. O molho é uma velha receita familiar. - Depois de colocar os pratos de salada sobre a mesa, ajeitou as flores, mexeu o molho brevemente e partiu mais uma vez.

- Ele certamente parece mais alegre - comentou Daniel.

- E assim deveria se sentir - murmurou Anna, pensando no preço que pagara para colocar um sorriso no rosto do homem. - Daniel. - Pensativa, espetou o garfo na salada. - Sobre aquele empréstimo que você mencionou esta tarde. - Comeu a primeira garfada de salada e descobriu que era tão boa quanto a propaganda dizia. -Talvez eu precise aceitar... somente até voltarmos para Boston.

Daniel olhou a tempo de ver Portersfield indo para a cozinha, então, voltou-se para Anna, que tinha a expressão travessa no rosto. Ele nunca precisara que alguém lhe somasse dois mais dois. Com uma risada escandalosa, segurou-lhe o rosto nas mãos e a beijou.

- Sem juros para você, amor.

Havia champanhe... as únicas duas garrafas disponíveis na hospedaria. Havia um cozido que se derretia no garfo, e um disco arranhado de Billie Holiday. Quando Daniel levou Myra para a pista de dança, ela não perdeu tempo e foi direto ao ponto.

- Você está apaixonado por Anna.

Porque ele não via razão para negar, ignorou a ousadia dela.

- Sim.

- O que pretende fazer sobre isso?

Ele olhou para baixo. No conforto da barba, seus lábios se torceram.

- Eu poderia dizer que não é da sua conta.

- Sim, você poderia- concordou Myra. - Mas pretendo descobrir, de qualquer maneira.

Após um momento de reflexão, Daniel decidiu que era melhor tê-la do seu lado.

- Eu teria me casado com ela esta noite, mas Anna é muito teimosa.

- Ou esperta. - Myra sorriu quando viu o brilho de raiva nos olhos dele. - Oh, eu gosto de você, Daniel. Gostei desde o começo. Mas conheço um temperamento dominador quando vejo um.

- Os iguais se reconhecem.

- Exatamente. - Satisfeita, em vez de insultada, Myra acompanhou-lhe os passos. - Anna vai ser médica, provavelmente a melhor cirurgia do país.

Ele fez uma careta.

- O que você entende sobre médicos?

- Entendo sobre Anna - disse ela com facilidade. - E acho que conheço o bastante sobre os homens para saber que isso não é muito adequado para você.

- Eu quero uma esposa - murmurou ele -, não alguém que manuseie uma faca.

- Imagino que você teria mais respeito por cirurgiões se precisasse cortar seu apêndice.

- Eu não ia querer que minha esposa fizesse a cirurgia.

- Se quer Anna, é melhor se preparar para aceitar a carreira dela. Você a pediu em casamento?

- Você é intrometida.

- É claro. Pediu?

Mulheres americanas, pensou Daniel. Algum dia se acostumaria?

- Sim, pedi.

- E?

- Ela diz que não vai se casar, mas que moraria comigo.

- Isso parece sensato.

Daniel abaixou-lhe a mão, de modo que ambos pudessem ver o anel brilhar no dedo de Myra.

- Oh, isso é completamente diferente. Eu amo muito Herbert, mas não teria me casado, a menos que tivesse certeza que ele me aceita como sou.

- O que é...

- Intrometida, bisbilhoteira, exibicionista e ambiciosa. - Ela olhou em direção à mesa. - Vou ser uma esposa maravilhosa para ele.

Daniel a fitou. Os olhos de Myra podiam brilhar de amor, mas o queixo era determinado.

- Acredito que sim.

Daniel tinha acabado de puxar a cadeira de Myra quando Portersfield apareceu com um carrinho contendo um pequeno bolo coberto de chantili e enfeitado com botões de rosa. Com considerável charme, entregou a Myra uma faca de cabo de prata.

- Com os cumprimentos da hospedaria - disse ele, sabendo que tinha condições de ser generoso. - Nossos melhores desejos para um casamento longo e feliz.

- Obrigada. - Encontrando-se à beira das lágrimas Myra esperou até que Herbert colocasse a mão sobre a sua ao redor do cabo da faca.

Anna aguardou até que as garrafas de champanhe estivessem vazias, e o bolo não passasse de farelos.

- Mais uma coisa. - Ela pegou a chave da bolsa e deu para Herbert. - A suíte nupcial.

Ele a guardou no bolso com um sorriso.

- Não achei que um lugar pequeno como este teria uma suíte nupcial.

- Não tinha, até algumas horas atrás. -Anna aceitou os abraços e observou os recém-casados partirem juntos.

- Gosto de seu estilo, Ana Whitfield.

- Gosta? - Encorajada pelo sucesso e pelo champanhe, ela sorriu-lhe. Olhando-o fixamente, enfiou a mão na bolsa de novo. - Tenho uma outra chave.

Daniel fitou a única chave na pequena palma.

- Você costuma resolver tudo sozinha. Arqueando uma sobrancelha, Anna levantou-se.

- Se assim não estiver bom para você, pode acordar Portersfield novamente. Tenho certeza de que ele poderá lhe providenciar um outro quarto.

Ele se levantou, segurou-lhe o pulso e pegou a chave.

- Este estará bem.

De mãos dadas, eles deixaram as sobras do jantar de casamento para trás.

Não falaram enquanto subiam a escada, a qual fazia um ruído leve sob o peso deles. Havia uma luz acesa no topo para guiá-los, protegida por vidro chanfrado e turvo. Todas as portas pelas quais passaram estavam fechadas. A hospedaria, recentemente perturbada por uma comemoração, estava agora silenciosa. Quando Daniel abriu a porta do quarto, sentiu o perfume das pétalas secas de pot-pourri. Aquilo o fez pensar em sua avó, da Escócia, e em tudo que deixara para trás. Quando Anna entrou e fechou a porta, não pensou em mais nada exceto nela. Eles ainda não falavam.

Ela virou a chave de um pequeno lampião elétrico perto da porta. Uma luz suave espalhou-se pelo quarto, unindo-se aos pés de ambos. As janelas estavam abertas, de modo que o ar quente de verão pudesse entrar. As cortinas balançavam com o vento fraco. E à distância, veio o som melancólico de um pássaro noturno.

Ela esperou. Uma vez, no penhasco, tinha ido até ele. Agora, precisava que ele se aproximasse. Seu coração já era de Daniel, embora temesse lhe dizer isso. Seu corpo jamais pertenceria a uma outra pessoa. Mas esperou, tocada pela luz do lampião, cercada pelo ar de verão.

Daniel pensou que ela nunca parecera tão adorável, embora já possuísse dezenas de memórias de Anna em sua mente. Dezenas de fantasias. Paixão, desejo, amor, sonhos... ela era tudo isso. Seu coração deu o primeiro passo e ele o seguiu.

As mãos grandes seguraram-lhe o rosto gentilmente, tão gentilmente que Anna mal podia sentir a pressão dos dedos sobre sua pele. Todavia, o toque a excitou. Os olhos de Daniel não deixaram os seus quando ele baixou a boca. O beijo foi suave, um mero roçar de lábios, uma mistura, das respirações. De olhos abertos, os corpos unidos, eles exploraram as sensações evocadas pela provocação e roçar de boca contra boca, pela dança erótica das línguas.

Ele tocava-lhe apenas o rosto, enquanto Anna não o tocava em absoluto, entretanto, em segundos, dois corações batiam descompassados.

Quanto tempo ficaram em pé daquele jeito, ela não podia ter certeza. Poderiam ter sido horas ou meros segundos enquanto o desejo aumentava até o ponto de causar dor física. Com um gemido de deleite, Anna deixou a cabeça cair para trás. Seus braços o circularam. Por um instante, o beijo se aprofundou em direção ao delírio. Ela teve a sensação de que seu corpo estava se derretendo dos pés a cabeça. Abandonando-se ao prazer, foi para os braços fortes em total rendição.

Aquilo quase o enlouqueceu. Ter Anna, forte e ávida, fazia seu sangue esquentar e sua paixão decolar. Mas ter Anna, dócil e flexível, era devastadoramente excitante. Deixava-o fraco. Deixava-o forte. Ela parecia penetrá-lo gradualmente até que não havia espaço para nada, exceto para a mulher que amava.

Ele afastou-se, abalado pela intensidade, cauteloso com a fusão impressionante. Mas Anna permaneceu lá, a cabeça para trás, os braços ao seu redor. Daniel viu mais que desejo nos olhos dela, até mais do que conhecimento. Era aceitação. Esperou, o corpo pulsando, até que a mente estava quase clara de novo. Então, a despiu.

O casaco fino, quase transparente, que ela usava sobre o vestido deslizou do corpo como uma ilusão. Ele deixou as mãos passearem pelos braços delicados, sobre os ombros, então descendo novamente, de modo que pudesse sentir-lhe a pele, os músculos, a textura. E enquanto se demorava, enfeitiçado pelo estímulo de sua carne contra a dela, Anna tirou-lhe a gravata e jogou-a de lado. Lentamente, enquanto seu próprio sangue esquentava com os toques dele, ela removeu o paletó pelos ombros.

Ele estava se perdendo em Anna mais uma vez, mas agora isso não parecia importar. Enquanto a brisa de verão entrava pelas janelas atrás deles, Daniel abriu o zíper do vestido, deslizando-o para o chão.

Ela o ouviu prender a respiração e sentiu um orgulho quase devasso em seu próprio corpo. Permaneceu parada ali, enquanto Daniel parecia embriagar-se da visão de sua nudez, centímetro por centímetro. A pele de Anna formigava, como se ele a estivesse acariciando. O camafeu que ele lhe dera estava aninhado no vão do pescoço. Ele podia traçá-lo com o dedo e sentir o perfil de Anna ganhar vida. O lingerie de renda dava forma aos seios e iluminava a parte que cobria o centro da feminilidade. A luz do lampião realçou a linda silhueta feminina e o deixou sedento pelo que já possuía.

Os dedos de Anna não estavam firmes quando ela desabotoou a camisa dele, mas ela não deixou seus olhos. Mais por desejo do que por confiança, acariciou-lhe o peito quando a camisa juntou-se ao vestido no chão.

Em algum lugar da hospedaria, um relógio soou, avisando que era uma hora da manhã, mas há muito eles haviam esquecido coisas como tempo e lugar. Num acordo não falado, deitaram-se sobre a cama.

Sob o peso deles, o colchão rangeu suavemente. Travesseiros soltaram penas. Daniel posicionou-se alguns centímetros acima dela, precisando vê-la, inteirinha. Podia ter ficado daquele jeito por horas, mas Anna o puxou para si.

Beijos, ardor, impaciência. Pele com pele, tremores sensibilidade. A luz do lampião lançou suas sombras sobre a parede. A brisa carregou-lhes os suspiros. O pássaro noturno ainda cantava em tom lastimoso. Eles não mais ouviam. O mundo que ambos conheciam muito bem, o mundo que estavam determinados a descobrir, tinha sido gradualmente reduzido a um cômodo. Ambições diminuíram e morreram em face a desejos mais ardentes. Desejos de dar, receber e experimentar. Possuir e ser possuído.

Daniel enterrou o rosto contra a pele macia e não notou mais o aroma de flores secas no ar. Não havia outra fragrância senão a de Anna, nenhum gosto, exceto o de Anna, nenhuma voz que não fosse a de Anna. Lentamente, mas não com muita gentileza, trilhou com a boca uma jornada que iniciou no pescoço delicado e foi descendo até os seios. Puro desejo pulsou em seu sangue quando ela tencionou contra ele. Com as mãos de ambos unidas, Daniel deslizou a língua ao longo da curva sutil acima da renda do sutiã. Com as pernas de ambos entrelaçadas, usou os dentes para mordiscar-lhe a pele de levinho. Quando Anna chamou seu nome, ele jurou levá-la para a mais deliciosa loucura.

Através do tecido de renda, ele provocou-lhe os mamilos, até que ficassem quentes e rijos em sua boca, e o corpo de Anna tenso como a corda de um arco. Ouviu-lhe a respiração trêmula quando pausou, então, ouvia-a gemer no momento em que passou para o outro seio.

Tão vagarosamente quanto, e do mesmo modo rude e devastador, explorou outras partes do corpo sensual, incendiando pontos que Anna jamais imaginara que poderiam ser incendiados. Com sua língua, boca e mãos,

Daniel conduziu-a para o caminho da liberação. Ela nunca calculara que tortura podia ser uma coisa tão gloriosa, ou que prazer pudesse ser tão doloroso. Sua pele estava = úmida quando ele afastou a última barreira.

Anna foi pega num nevoeiro de deleites... deleites secretos e ardentes. O ar estava pesado e tinha o gosto de Daniel quando ela tentou respirar mais fundo. Todos os lugares que ele tocava, incendiavam-se imediatamente. A barba roçava na pele macia de sua barriga, produzindo uma sensação incrivelmente erótica. As mãos dela encontraram os cabelos ruivos e os acariciaram, enquanto a luz do lampião parecia transformar tudo em fogo.                 

Com a mente girando, Anna passou os braços ao redor da cintura de Daniel. Ainda enlouquecida pelas sensações prazerosas, rolou com ele, as mãos procurando, alcançando, encontrando. Sentiu-o tremer e pressionou a boca na pele de Daniel, provando o gosto do desejo. Antes que ele pudesse antecipar, antes que pudesse se preparar, ela deslizou para baixo e o tomou dentro de si.

Sons explodiram em sua cabeça. Talvez fosse seu nome nos lábios de Daniel. Arrepios lhe percorreram a pele. Podiam ser os dedos dele acariciando-a. Quando Anna jogou a cabeça para trás, abandonada, entregue, viu os olhos dele nos seus. O azul profundamente brilhante continha seu próprio fogo, mais forte do que qualquer outro. Amor. Agarrando-se ao amor, Anna levou ambos para além da razão.

Saciada e sem fôlego, com os olhos fechados, ela ainda absorvia tudo: o aroma de Daniel, a sensação da pele aquecida pela sua, o som da respiração dele, acelerada em seu ouvido, a visão da mão grande fechada fortemente em volta da sua.

Era lá que Anna queria ficar. E se o resto do mundo e todas as outras necessidades pudessem ser ignoradas, ela ignoraria. Se Daniel pedisse alguma coisa agora, até mesmo se exigisse, Anna temia que poderia dar-lhe tudo.

Uma mão se moveu ao longo de suas costas. Possessão. Ela tremeu de leve e sabia que pouco podia fazer para impedir isso. Qualquer outra coisa que quisesse, qualquer outra coisa que fosse, pertencia a Daniel.

O corpo era tão pequeno que parecia quase sem peso enquanto Anna estava deitada sobre ele. Daniel podia sentir os menores tremores, os pequenos choques após a paixão. Não podia viver sem ela. Podia negociar, usar truques e enrolar um concorrente, mas era incapaz de continuar funcionando sem a mulher pequena e séria, cuja mão ainda estava presa na sua.

Que seja do seu jeito, então, droga. Mesmo enquanto praguejava interiormente contra a atitude de Anna, passou um braço ao seu redor.

- Você vai se mudar para minha casa amanhã. -Agarrando um punhado de cabelo, ele puxou-lhe a cabeça para trás. - Vai arrumar as malas quando voltarmos para Boston. Não vou passar nem mais uma noite sem você.

Incapaz de falar, ela o encarou. Os olhos dele revelavam um misto de desejo e fúria. Como lidar com um homem assim? Anna tinha a impressão de que levaria mais do que algumas semanas para aprender.

- Amanhã?

- Isso mesmo. Você se muda para minha casa amanhã. Tem algo a dizer sobre isso?

Ela pensou por um momento, então sorriu.

- E melhor você abrir um espaço no seu closet.

 

Anna fez o primeiro tour em sua nova casa sob a direção do tenso e aprumado McGee. Perguntou-se qual dos dois estava mais desconfortável. Suas malas já tinham sido carregadas para o andar de cima quando Daniel fora chamado ao banco para tratar de negócios urgentes. Ele partira, irritado, com um beijo nela e a ordem para que McGee lhe mostrasse a casa. Então, lá estava Anna, com um mordomo educadamente indignado e uma cozinheira que mais tarde pretendia pôr a cabeça para fora da cozinha.

A primeira reação de Anna foi pensar em uma desculpa e ir para o hospital, aonde pertencia. Tirar a tarde de folga não era algo que tinha mais condições de fazer do que Daniel. Agora ele se fora e ela estava ali. Alguma coisa sobre as costas retas e postura determinada do homem que a conduzia escada acima a fez permanecer onde se encontrava. Para Anna, o orgulho andava de mãos dadas com a dignidade. Tinha tomado uma decisão, e se um mordomo era o primeiro a desaprovar, aceitaria isso. Mais, iria aprender a conviver com aquilo. Começando agora.

- Temos diversos quartos neste andar - McGee falou em tom baixo com seu sotaque irlandês. - O escritório do sr. MacGregor também fica neste andar, uma vez que ele considera isso conveniente.

- Entendo.

McGee passou o dedo sobre uma pequena mesa para checar se havia poeira, enquanto eles seguiam o corredor. Anna pensou que era uma sorte para a pessoa encarregada da limpeza que ele não tenha encontrado nenhum grão de pó.

- O sr. MacGregor recebe parceiros de negócios de fora da cidade de tempos em tempos. Deixamos dois quartos de hóspedes preparados. Esta é a suíte principal. - Dizendo isso, McGee abriu a porta pesada de madeira.

O quarto era grande, como Daniel parecia preferir, mas escassamente decorado, como se passasse pouco tempo lá. Ela imaginava que o escritório dele fosse abarrotado de móveis e empilhado de papéis, revelando mais do interior do homem do que seu quarto de dormir, o qual deveria ser o cômodo mais pessoal. Não havia fotografias nem souvenir. A pintura era nova e as cortinas engomadas. Anna pensou se alguma vez ele as abria para olhar a vista. A cama era suficientemente grande para quatro pessoas, e de uma linda madeira entalhada. As malas de Anna estavam aos pés da cama.

Tinha esperado se sentir estranha, andando dentro do espaço íntimo de Daniel pela primeira vez. No entanto, tudo que sentia era uma vaga curiosidade. Havia mais de Daniel MacGregor num penhasco acima do mar do que no quarto em que passava as noites. Mas aquele não era o momento de tentar montar um quebra-cabeça onde não esperara encontrar um. Ergueu o queixo um pouquinho mais que o usual quando se virou para McGee.

- O sr. MacGregor não foi claro sobre o cuidado de arranjos domésticos. Esta é sua responsabilidade?

Se McGee pudesse ter tencionado mais a postura já rígida, o teria feito.

- Uma faxineira vem três vezes por semana. Eu fiscalizo a limpeza. Todavia, o sr. MacGregor informou a mim e à cozinheira que a senhora poderia desejar mudanças.

Se Daniel entrasse pela porta naquele exato momento, Anna o estrangularia com alegria. Em vez disso, decidida, estudou o quarto mais uma vez.

- Não acho que será necessário, McGee. Você me parece um homem que não somente conhece seu trabalho, mas também o valor do mesmo.

O elogio feito friamente não o tornou mais dócil, nem era a intenção.

- Obrigado, senhora. Gostaria de ver o resto do segundo andar?

- Não no momento. Vou desfazer as malas. - E ficar sozinha, pensou ela com desespero.

- Muito bem, senhora. - Com uma reverência, ele foi para a porta. - Se precisar de alguma coisa, é só chamar.

- Obrigada, McGee. Não vou precisar de nada.

No momento em que Anna fechou a porta, sentou-se na cama enorme. O que tinha feito? Cada dúvida que fora capaz de esconder, colocar de lado ou enterrar até aquele ponto, voltara de repente. Havia saído da casa em que crescera, mudando-se não para seu próprio apartamento pequeno, mas para uma casa muito grande, onde era uma estranha. Uma usurpadora. E, para o sério McGee, obviamente uma Jezebel. Se não tivesse de lidar com seus próprios nervos, esse ponto poderia ser divertido.

Deixara uma mãe nervosa e um pai chocado, indo parar em um enorme quarto meio vazio. Não estava no hospital, onde as dificuldades com as quais tinha de lidar eram, pelo menos, familiares. Nada ali lhe pertencia, exceto o que estava nas malas aos pés da cama.

Lentamente, deslizou a mão pela colcha branca da cama. Agora, noite após noite, pensou, compartilharia aquela cama com Daniel. Dormindo ao seu lado, acordando ao seu lado. Não haveria mais despedidas, boa noite e um retiro para privacidade. Ele estaria lá, ao seu alcance. Assim como ela.

O que tinha feito?, perguntou-se de novo em pânico. Corajosamente, Anna absorveu as redondezas. Sua mão ainda alisava a colcha. Num espelho, no canto da parede, viu seu reflexo... pequena, pálida e com olhos arregalados na cama grande demais. Viu também o reflexo de uma cômoda antiga de madeira, simples e bem masculina. As pernas tremeram um pouco quando se levantou e andou até o móvel. Os dedos pareciam fracos quando tirou a tampa de um vidro de colônia. Então, sentiu o aroma de Daniel... ousado, vivido e másculo. Seu mundo pareceu firmar-se. No momento em que recolocou a tampa, suas mãos eram firmes e competentes novamente.

O que tinha feito, perguntou-se pela última vez. Exatamente o que queria fazer. Com uma pequena risada de alívio, começou a desfazer as malas.

Não levou muito tempo para distribuir as coisas pelo cômodo. Tinha levado pouco mais do que roupas e alguns quadros favoritos de seu quarto. Entretanto, depois de tudo guardado e arrumado, sentiu-se mais à vontade e, de alguma maneira, mais em casa. É claro, eles teriam de providenciar uma cômoda que combinasse com os móveis do século XIX que Daniel escolhera para o quarto. As cortinas teriam de sair, dando lugar a alguma coisa mais suave e mais amigável.

Satisfeita, olhou ao redor mais uma vez. Nunca lhe ocorrera que sentiria tanto prazer em tomar algumas decisões domésticas básicas. Talvez não fosse nada parecido com uma decisão de operar um paciente ou tratá-lo com medicação, mas trazia um senso de satisfação. Talvez ela realmente pudesse ter tudo. No momento, pensou, iria começar procurando McGee e pedir-lhe que arranjasse algumas poltronas confortáveis para a suíte principal. E um bom abajur para leitura, decidiu, indo para o corredor. Se possível, adicionaria uma pequena mesa para si mesma. O quarto era grande o bastante. Certamente, numa casa daquele tamanho, eles poderiam encontrar algumas coisas adequadas. Caso contrário, ela simplesmente faria compras depois de seu turno no hospital no dia seguinte.

Chegando ao andar inferior, Anna ficou tentada a espiar a sala e a biblioteca, e procurar alguns móveis para mudar de lugar. Conteve-se pelo simples motivo de entender o que era orgulho. Se fizesse o projeto sozinha, poderia ofender McGee. Encontraria um jeito de fazer as mudanças que queria, sem ferir o ego do mordomo. McGee era parte da vida de Daniel. Se Anna quisesse transformar sua decisão num sucesso, teria de se certificar que ele seria parte de sua vida também.

Porque não pôde pensar em nenhum outro lugar lógico para encontrá-lo, ela se dirigiu para a cozinha. A alguns passos de distância da porta, ouviu as vozes e parou.

- Se a moça é boa o bastante para MacGregor, é boa o bastante para mim. - Era uma voz feminina, mas com o mesmo sotaque escocês do mordomo. - Não vejo motivo para a sua implicância, McGee.

- Não é implicância. - Mesmo através da madeira, Anna detectou a fria indignação. - A garota não deveria estar aqui sem uma certidão de casamento.

- Bobagem!

Com aquela exclamação seguida por uma risada, Anna decidiu que poderia gostar muito da cozinheira.

- Desde quando você é juiz e confessor, eu gostaria de saber. Os MacGregors sabem o que fazem, e aposto que a moça também, ou ele não lhe daria um minuto de seu tempo. Quero saber como ela é. Bonita?

- Bonita o bastante - murmurou McGee. - Pelo menos ela tem o bom senso de não se exibir.

- Exibir-se - repetiu a cozinheira, enquanto Anna balbuciava a frase com indignidade. - Uma mulher se enfeita para um homem e está se exibindo? Ela não faz isso e tem bom senso? Não sei qual é o maior insulto. Agora, vá cuidar de suas coisas, que vou cuidar das minhas, ou estarei ocupada para dar uma olhada na moça antes do jantar.

Anna estava tentando decidir se devia retirar-se ou entrar quando um grito de dor a fez correr para dentro da cozinha. McGee já estava sobre uma mulher rechonchuda de cabelos brancos. No chão, entre eles, havia uma faca de cabo longo manchada de sangue. Mesmo enquanto Anna se aproximava, mais sangue escorria para os pés deles.

- Deixe-me ver.

- Srta. Whitfield...

- Mova-se! - Abandonando o comportamento adequado, ela empurrou o mordomo de lado. Foi necessária só uma olhada para informá-la que uma escorregada da faca havia atingido o pulso da cozinheira e cortado uma artéria. Em um instante, Anna pressionou seus dedos sobre o corte e deteve o sangramento.

- Não foi nada, senhorita. - Mas lágrimas escorriam pelas faces da mulher. - Eu vou sujar você.

- Quietinha. - Anna pegou um pano de prato seco à vista e jogou-o para McGee. - Rasgue isso em tiras, depois vá buscar o meu carro.

Acostumado a responder a autoridade, ele começou a rasgar o pano. Ainda segurando o pulso da cozinheira, Anna a conduziu para uma cadeira.

- Apenas acalme-se - murmurou com suavidade.

- Sangue - disse a cozinheira e empalideceu completamente.

- Nós vamos cuidar disso. - Anna continuou a falar de maneira calma, sabendo como seria difícil lidar com a grande mulher se ela desmaiasse. - McGee, amarre uma tira no braço dela, bem aqui. - Ela indicou o local enquanto continuava a fechar a artéria com os dedos. - Certo, agora, qual é o seu nome?

- Sally, senhorita.

- Tudo bem, Sally. Quero que você feche os olhos e relaxe. Não aperte muito a tira - avisou para McGee. -Traga o carro rapidamente. Quero que você dirija.

- Sim, senhora. - Sem sua usual postura digna, ele apressou-se para fora da cozinha.

- Agora, Sally, você pode andar?

- Vou tentar. Estou um pouco tonta.

- É claro que está - murmurou Anna. - Apóie-se em mim. - Vamos sair pela porta da cozinha direto para o carro. Chegaremos ao hospital em cinco minutos.

- Hospital? - Sob a mão de Anna, o braço da mulher começou a tremer. - Não gosto de hospitais.

- Não há nada com o que se preocupar. Estarei do seu lado. Eu trabalho lá. Alguns dos médicos são muito bonitos. - Enquanto falava, ela ajudou a cozinheira a se levantar e conduziu-a para a porta. - Tão bonitos que vai se perguntar por que não se cortou antes. - No momento que atravessaram a porta, McGee estava lá para assumir a maior parte do peso da mulher.

- Um bom trabalho de primeiros socorros, srta. Whitfield. - O dr. Liederman lavou as mãos numa pia enquanto falava com Anna. - Sem isso, esta mulher poderia ter sangrado até morrer antes de chegar ao hospital.

Anna tinha dado uma boa olhada no ferimento e estimado a necessidade de dez pontos uma vez que a artéria fosse fechada.

- Um péssimo lugar para uma faca escorregar.

- Temos suicidas que não fazem um trabalho tão bom. Foi sorte dela por você não ter entrado em pânico.

Anna arqueou a sobrancelha, imaginando se ele considerava aquilo um elogio.

- Se sangue me fizesse entrar em pânico, eu daria uma péssima cirurgia.

- Cirurgia, não? - Ela não tinha escolhido um caminho fácil. Ele olhou por sobre o ombro, enquanto terminava de tirar o sangue das mãos. - É preciso mais do que habilidade para usar um bisturi, sabe? É necessário confiança.

- Pensei que fosse arrogância - replicou ela com um pequeno sorriso.

Levou vários segundos antes que ele retornasse o sorriso.

- Um termo mais preciso. Agora, quanto à nossa paciente, ela ficará fraca por uns dois dias, e provavelmente com o curativo por duas ou três semanas.

- Você quer que o curativo seja trocado todos os dias?

- Sim, e mantenha o local seco. Eu a quero de volta em, duas semanas para tirar os pontos. - Ele virou-se então, enxugando as mãos. - Embora eu não ache que você teria nenhum problema em executar o trabalho por si mesma.

Anna sorriu de novo.

- Eu nem pensaria nisso... antes de mais alguns meses.

- Sabe, srta. Whitfield, sua reputação é muito boa neste hospital.

Aquilo a surpreendeu, mas ela não demonstrou o prazer.

- Verdade?

- Sim. E isso vem de fonte segura. - Ele jogou a toalha de lado enquanto Anna apenas o olhava. - Das enfermeiras.

O prazer foi demonstrado agora.

- Fico feliz com isso.

- Você está no seu último ano da faculdade de medicina. Já vi o bastante para julgar sua... confiança. Como são suas notas?

O orgulho fez Anna erguer o queixo.

- Excelentes.

Com uma pequena risada, ele a estudou.

- Fico satisfeito com isso. Onde quer fazer sua residência?

- Aqui.

Ele estendeu-lhe uma mão.

- Procure por mim. Anna aceitou a mão firme.

- Farei isso.

Onde todos haviam se metido? Daniel tinha chegado em casa para encontrá-la vazia. Impaciente para estar com Anna, subiu dois degraus de cada vez, e entrou na suíte principal. Teve de olhar no closet para se certificar de que ela realmente estava lá. Apesar de ter ficado contente em ver as roupas femininas penduradas organizadamente ao lado das suas, aquela não era bem a recepção que tinha em mente. Após uma rápida checagem no segundo piso, desceu a escada de novo.

- McGee! - Amaldiçoando todos os empregados, parou com uma careta. Já era ruim o bastante que sua mulher não estivesse em casa, mas agora seu mordomo havia desaparecido. - McGee!

Abrindo e batendo portas, seguiu o corredor. Não esperara uma banda de música, mas pensou que alguém teria tempo de estar em casa quando ele chegasse. No momento em que entrou na cozinha, seus nervos estavam explodindo.

- Onde estão todos?

- Pode parar de gritar? - soou a voz baixa de Anna, que entrava no cômodo. -Acabei de colocá-la na cama.

- Um homem tem de ter o direito de gritar em sua própria casa - começou Daniel, então sua raiva diminuiu o bastante para que visse sangue manchando a blusa e a saia de Anna. - Santo Deus! - Ele cobriu a distância entre os dois em dois passos e a puxou para si. - O que fez consigo mesma? Onde está machucada? Vou levá-la para o hospital.

- Acabei de vir de lá. - Mas ela não foi rápida o bastante para impedi-lo de pegá-la no colo. - Daniel, esse não é o meu sangue. Não estou machucada, Daniel! - Ele já estava quase fora da cozinha antes que ela pudesse detê-lo. - Sally teve um acidente, não eu.

- Sally?

- Sua cozinheira - começou ela.

- Eu sei quem é Sally - replicou ele, então abraçou-a apertado quando o alívio o percorreu. - Você não está machucada?

- Não. - O tom dela suavizou-se. - Estou bem - conseguiu dizer antes que a boca de Daniel se fechasse sobre a sua. O desejo foi despertado e, através do desejo, Anna sentiu o alívio de Daniel, o qual era quase tão selvagem quanto. Emocionada, deixou-o receber todo o conforto que ele queria. - Daniel, eu não pretendia assustar você.

- Bem, você me assustou. - Ele a beijou de novo, e estava mais firme agora. - O que houve com Sally?

- Aparentemente, as mãos dela estavam molhadas e Sally não estava tão atenta ao que cortava quanto deveria. A faca escorregou e cortou-lhe o pulso, atingindo unia artéria. Por isso houve tanto sangue. É um corte feio, mas McGee e eu a levamos para o hospital. Ela está descansando agora. E vai precisar de alguns dias de folga.

Pela primeira vez, Daniel notou a faca e o sangue no chão perto da pia. Praguejando, abraçou Anna mais forte.

- Eu vou vê-la.

- Não, por favor. - Pela posição nos braços dele, ela conseguiu detê-lo. - Sally está dormindo. É melhor esperar até amanhã.

Sua cozinheira, seu mordomo, assim como todos os seus empregados, eram responsabilidade dele. Daniel olhou para a faca novamente e suspirou.

- Tem certeza de que ela está bem?

- Absoluta. Ela perdeu muito sangue, mas eu estava do lado de fora da porta quando isso aconteceu. Então, assim que McGee percebeu que eu sabia o que estava fazendo, não poderia ter sido mais útil.

- E onde ele está?

- Estacionando meu carro. Aqui está ele, agora - corrigiu Anna quando o mordomo entrou na cozinha.

- Sr. MacGregor - um pouco pálido, mas aprumado como sempre, o mordomo continuou: -, vou limpar essa sujeira imediatamente. Lamento que o jantar vá atrasar.

- Eu já soube. A srta. Whitfield falou que você foi muito útil, McGee.

Alguma coisa... poderia ter sido uma emoção... cruzou o semblante do mordomo.

- Infelizmente, fiz muito pouco, senhor. A srta. Whitfield foi muito eficiente e, se me permite dizer, senhor, corajosa.

Anna teve de reprimir uma risada.

- Obrigada, McGee.

- Não se preocupe com o jantar. Nós cuidaremos disso.

- Está bem, senhor. Boa noite, senhora.

- Boa noite, McGee. - A porta da cozinha se fechou. - Daniel, você pode me pôr no chão agora.

- Não. - Com facilidade, ele foi para a escada. - Essa não era a recepção que eu esperava de você.

Anna não tinha imaginado o quanto era bom ser carregada como se você fosse uma coisa preciosa.

- Eu também não tinha planejado dessa forma.

Ele parou no meio da escada para roçar-lhe o pescoço.

- Sinto muito.

- Não foi culpa de ninguém.

Deus, o gosto de Anna era tão maravilhoso. Toda a fome que sentia podia ser saciada somente com ela.

- Você arruinou a sua blusa.

- Agora você está soando como Sally. Ela falou sobre isso durante todo o caminho para o hospital.

- Eu lhe comprarei uma nova.

- Graças a Deus - brincou Anna e riu. - Daniel, nós não temos nada mais importante para fazer do que nos preocuparmos com minha blusa?

- Sabe no que pensei durante todo o tempo que fiquei naquela reunião maldita?

- Não. Em quê?

- Em fazer amor com você. Na minha cama. Nossa cama.

- Entendo. - Quando Daniel abriu a porta, Anna uniu as mãos atrás do pescoço dele. Sua pulsação já começava a acelerar. Antecipação. Imaginação. - Sabe no que pensei quando estava desfazendo as malas?

- Não. Em quê?

- Em fazer amor com você. Na sua cama. Nossa cama.

Ouvi-la dizer aquilo fez o quarto que ele raramente notava parecer especial.

- Então, devemos fazer algo sobre isso.

Com as mãos de Anna ainda ao redor de seu pescoço, Daniel tombou com ela sobre a colcha branca macia.

Era mais fácil viver com Daniel, acordar e dormir ao seu lado do que Anna poderia ter imaginado. Parecia-lhe que a parte de sua vida sem ele não tinha sido nada além de antecipação. Todavia, as primeiras semanas juntos não foram sem ajustes. Apesar de Anna ter morado a maior parte de sua vida com os pais e o resto no campus universitário, sempre fora capaz de fazer as coisas no seu ritmo e proteger sua privacidade.

Acordar com alguém ao seu lado era uma questão muito diferente. Especialmente quando essa pessoa era um homem que considerava as horas gastas no sono um desperdício de tempo vital. Daniel MacGregor não era alguém que se demorava preguiçosamente na cama ou durante o café. Manhãs eram para os negócios, e começavam no momento em que ele abria os olhos.

Porque seu sistema tinha um ritmo diferente, ela geralmente se encontrava bebericando sua primeira xícara de café, enquanto Daniel estava terminando sua segunda e última. Despedidas eram breves e apressadas, mas sempre românticas. Daniel e sua maleta estavam fora da porta antes que a mente de Anna estivesse completamente pronta para funcionar. Não exatamente uma lua-de-mel, pensou ela mais de uma vez quando se acomodava para um café da manhã solitário, mas era uma rotina com a qual podia conviver.

No momento em que dirigia para o hospital, Daniel já estava negociando. Enquanto dobrava roupas de cama e lia para pacientes, ele comprava ações e planejava fusões. Morando com ele, Anna tinha uma melhor visão do quanto Daniel era poderoso e de quanto potencial tinha para se tornar ainda mais poderoso. Ela mesma havia atendido o telefonema de um senador e transmitido um recado do governador de Nova York.

Política, começava a perceber, era um aspecto da carreira dele que ela nunca considerara. Daniel também tinha contatos e interesses no campo do entretenimento. Um telegrama de um produtor famoso ou de um ator principiante não era incomum. Embora raramente freqüentasse bales ou óperas, Anna descobriu que Daniel fazia enormes contribuições para as artes. Teria sentido mais prazer se não entendesse que as doações eram feitas por propósitos de negócios.

Cultura, política, mercado de ações ou projetos de construção... eram todos negócios para Daniel. E, embora Anna soubesse que negócios consumiam-lhe o tempo e a vida, ele dissimulava as perguntas dela com o equivalente a um carinho na cabeça. Cada vez que isso acontecia, ela tentava ignorar a pequena onda de frustração. Com o tempo, disse a si mesma, ele compartilharia. Com o tempo, lhe daria confiança e respeito.

A vida e o tempo de Anna eram consumidos pelo hospital, por seus estudos e por sua preparação para o último ano da universidade. Daniel raramente lhe perguntava sobre coisas que envolviam medicina. Quando o fazia, Anna percebia isso como apenas um interesse educado e falava pouco.

Eles passavam as noites demorando-se durante uma refeição ou tomando um café na sala. Nenhum dos dois falava sobre ambições, desejos internos ou necessidades profissionais. Enquanto estavam contentes apenas na companhia do outro, parecia como se uma sombra tivesse descido sobre parte da vida de ambos. Nenhum deles queria ser o primeiro a erguer a veneziana.

Haviam abdicado da vida social, passando a maior parte do tempo sozinhos em casa. Quando se socializavam, era com os recém-casados Ditmeyer. De vez em quando, havia um filme, e eles se sentavam numa sala escura de mãos dadas, esquecendo-se das pressões do dia e das incertezas do futuro. Aprenderam um sobre o outro... os hábitos, os caprichos e as contrariedades. O amor era tranqüilo e aprofundava-se. Mas, mesmo enquanto isso acontecia, ambos se afligiam sobre o que estava faltando no relacionamento. Daniel queria casamento. Anna queria parceria. Ainda não haviam descoberto como combinar as duas coisas.

O calor do verão aumentou em agosto. Fervia nas ruas e pairava no ar. Aqueles que podiam, escapavam para a praia. Nos finais de semana, Daniel e Anna saíam da cidade para passear. Por duas vezes, fizeram piquenique na terra de Daniel em Hyannis Port. Podiam fazer amor lá tão livremente e sem restrições quanto haviam feito da primeira vez. Riam ou simplesmente cochilavam sobre o gramado. E foi lá, inesperadamente, que Daniel começou a pressioná-la de novo.

- Eles vão começar a trabalhar aqui na próxima semana - disse ele um dia enquanto compartilhavam o fim de uma garrafa de Chablis.

- Na próxima semana? - Surpresa, Anna acompanhou-lhe o olhar para o espaço vazio onde seria a casa dele. Daniel podia ver a casa, ela sabia, como se já estivesse construída, as pedras brilhando com o sol. - Eu não sabia que seria tão cedo. - Ele não lhe contara. Não lhe mostrara a planta ou comentara nenhum dos planos que eram tão importantes, embora Anna tivesse perguntado.

Ele meramente deu de ombros.

- Teria sido mais rápido, mas tive de cuidar de outras coisas antes.

- Entendo. - E ele não tinha considerado importante mencionar as outras coisas também. Anna reprimiu um suspiro e tentou aceitar aquilo. - Sei que a casa é importante para você e que será linda, mas vou sentir falta disso. - Quando Daniel a olhou, ela sorriu e tocou-lhe o rosto. - E tão pacífico aqui, tão isolado... apenas água, pedras e grama.

- Será todas essas coisas depois que a casa estiver de pé. Depois que estivermos morando nela. - Sentindo a leve tensão de Anna, ele pegou-lhe a mão. -A construção não será rápida... as melhores coisas não são. Levará dois anos antes que a casa esteja pronta para nós. Mas nossos filhos vão crescer aqui.

- Daniel...

- Eles irão. -Ele apertou-lhe os dedos, interrompendo-a. - E toda vez que fizermos amor nessa casa, vou me lembrar da nossa primeira vez. Daqui a cinqüenta anos, ainda vou me lembrar de nossa primeira vez aqui.

Era praticamente impossível resistir a Daniel quando ele se encontrava naquele estado sonhador. Era mais perigoso quando falava calmamente, mas de maneira intensa e profunda. Por um momento, Anna quase acreditou nele. Então pensou na longa distância que teriam de percorrer.

- Você está pedindo por promessas, Daniel.

- Sim. Eu espero promessas.

- Não espere.

- E por que não? Você á a mulher que quero, a mulher que me quer. Está na hora de promessas entre nós. - Segurando-lhe a mão com firmeza, alcançou seu bolso e retirou uma pequena caixa de veludo. - Quero que você use isto, Anna. - Com um movimento do polegar, abriu a caixa para revelar um lindo diamante em formato de pêra.

Um nó formou-se na garganta de Anna. Parte da emoção era a perplexidade diante da beleza pura do anel. O resto era medo do que o símbolo significava: promessas, votos, compromissos. Ela queria, ansiava, temia.

- Eu não posso.

- É claro que pode. - Quando Daniel começou a tirar o anel da caixa, Anna colocou as duas mãos sobre a dele.

- Não, não posso. Não estou pronta para isso, Daniel. Tentei explicar para você.

- E tenho tentado entender. - Mas sua paciência estava no fim. Cada dia que vivia com Anna, tinha de aceitar metade do que necessitava. - Você não quer casamento, pelo menos não agora. Mas um anel não é casamento, é apenas uma promessa.

- Uma promessa que não posso lhe fazer. - Mas ela queria. Cada dia que passava, queria mais aquilo. - Se eu aceitasse seu anel, estaria lhe prometendo algo que talvez eu não possa cumprir. Não posso fazer isso. Você é muito importante.

- Isso não faz sentido. - Daniel tinha esperado sentir frustração. Mesmo quando comprara o anel, sabia que Anna não o usaria. De alguma maneira estranha, sabia até mesmo que ela estaria certa. Mas tal conhecimento não diminuía a dor. - Sou importante para você, mas não pode aceitar meu anel.

- Oh, Daniel, eu o conheço. - A tristeza cobriu o semblante de Anna quando lhe segurou o rosto nas mãos. - Se eu aceitasse este anel, daqui um mês, você estaria me pressionando para aceitar um anel de casamento. Às vezes, acho que você nos vê como uma fusão.

- Talvez eu veja. - Raiva brilhou nos olhos azuis, mas ele a controlou. Tinha descoberto que podia fazer isso quando era com Anna que estava zangado. - Talvez seja a única maneira de ver que conheço.

- Talvez - concordou ela calmamente. - E talvez eu esteja tentando entender isso.

- Você faz parecer que isso é um teste - murmurou ele. Quando ela olhou para cima, atônita, Daniel continuou no mesmo tom: - Não tenho certeza se estou em teste, Anna, ou se você está.

- Não é assim. Você faz isso soar como uma coisa fria e calculada.

- Não mais calculada do que uma fusão.

- Não vejo a nossa relação como um negócio, Daniel.

Ele via? Com uma sensação de desconforto, percebeu que estava vendo o relacionamento exatamente dessa forma, mas agora não tinha mais certeza.

- Talvez seja hora de você me dizer como vê a nossa relação.

- Você me assusta. -As palavras de Anna saíram com tanta rapidez e força, que os dois permaneceram sentados em silêncio por diversos minutos.

- Anna. - Porque aquela tinha sido a última resposta que ele esperara dela, falou em tom baixo e hesitante: - Eu nunca fiz nada para magoá-la.

- Eu sei. - Ela pensou no anel na caixinha, na imagem da casa atrás deles, e levantou-se com os nervos à flor da pele. - Na verdade, você me trata como um cristal precioso, como alguma coisa que precisa ser protegida, cuidada e admirada. De alguma forma, é mais fácil quando você perde a paciência e grita comigo.

Daniel não podia fingir que a compreendia. Mas levantou-se e se colocou atrás dela.

- Então, vou gritar com mais freqüência.

- Tenho certeza que vai - murmurou ela -, quando eu frustrá-lo ou discordar de você. Mas, o que vai acontecer quando eu lhe der tudo que você quer? - Anna virou-se para ele, os olhos marejados de emoção. - O que vai acontecer quando eu disser tudo bem, desisto?

Ele segurou-lhe as mãos, temendo que Anna se virasse de novo.

- Não sei sobre o que você está falando.

- Acho que no fundo, sabe. Acho que sabe que parte de mim quer exatamente o mesmo que você. Mas, algum de nós sabe se quero isso por mim mesma ou somente para agradá-lo? Se eu disser sim e me casar com você amanhã, eu teria de jogar todo o resto fora.

- Não é o que estou lhe pedindo. Eu não faria isso.

- Não faria? - Anna fechou os olhos por um momento, lutando por compostura. - Pode me dizer com certeza se vai aceitar e respeitar a doutora Anna Whitfield da mesma maneira que me aceita e me respeita agora?

Ele começou a falar rapidamente, mas os olhos de Anna estavam muito escuros, muito vulneráveis. Não poderia haver nada com ela, exceto a verdade.

- Eu não sei.

Anna suspirou. Daniel teria mentido se soubesse o quanto ela queria ouvir aquilo? E, se tivesse mentido, ela teria aceitado o anel e feito a promessa?

- Então, dê tempo a nós dois até que tenhamos certeza. - Porque ele soltou-lhe as mãos, os braços de Anna estavam livres para envolvê-lo. - Se eu aceitar o seu anel, vai ser com todo o meu coração, com tudo que sou, e será para sempre. Uma vez que estiver no meu dedo, ficará para sempre. Isso eu posso lhe prometer. Ambos precisamos ter certeza que o anel pertence a meu dedo.

- Isso pode esperar. - O anel foi guardado no bolso de Daniel. Anna estava em seus braços. Eles estavam sozinhos e a brisa de verão era suave. Quando ele ergueu-lhe o rosto, pousou a boca sobre a dela. - Isso não pode - murmurou e levou-a consigo para o gramado.

 

Anna aceitou a notícia de que eles iriam receber o governador com bastante calma. Seus pais e avós haviam recebido dignitários de tempos em tempos. Ela fora treinada a preparar um cardápio impressionante, sabia que vinhos pedir e que uísque servir. Não era fazer aquilo que realmente a estava incomodando. Era o fato de que Daniel simplesmente presumira que ela o faria.

Ela poderia ter lhe dito isso, pensou enquanto dirigia do hospital para casa. Poderia ter relembrado-o que passava o dia entre o hospital e seus estudos, e não tinha tempo ou inclinação para planejar se serviria ostras Rockefeller ou coquilles St. Jacques de entrada. Poderia e teria tido um breve momento de satisfação. Então, passaria o resto do tempo se sentindo culpada por ser mesquinha e egoísta.

Aquela seria, afinal de contas, a primeira vez que eles dariam um jantar como casal. E isso era importante para Daniel. Ele queria, Anna sabia, exibi-la, assim como oferecer um jantar memorável ao governador. O que devia tê-la aborrecido, mas, de alguma maneira, se sentia lisonjeada. Meneando a cabeça, admitiu que Daniel podia fazer coisas estranhas com bom senso. Então, poderia exibi-la, ela não o desapontaria. O tempo que levaria para preparar o jantar seria tão divertido como trabalhar.

Para ser honesta, Anna teve de admitir que preparar um jantar lhe era tão natural quanto recitar os nomes dos ossos do corpo. O que a lembrou de que queria dar uma olhada em Sally assim que chegasse em casa.

Em casa. Aquilo a fez sorrir. Somente três semanas haviam passado desde que desfizera as malas no quarto de Daniel. Era o quarto deles agora. Podia ter dúvidas quanto ao amanhã, à próxima semana, ao próximo ano, mas não possuía nenhuma sobre hoje. Sentia-se feliz. Viver com Daniel tinha acrescentado uma dimensão à sua vida que jamais esperara. Porque isso era verdade, como podia explicar que continuar como estavam era o melhor caminho? A idéia de casamento ainda lhe dava arrepios na coluna. Arrepios que provavam falta de confiança, admitiu. Mas em quem não confiava? Em Daniel ou em si mesma? Não tinha esquecido que ele a acusara de colocar ambos em teste. Talvez ela estivesse em teste, mas somente porque temia magoá-lo, tanto quanto temia ser magoada.

Havia momentos em que tudo parecia tão claro! Eles se casariam, teriam filhos, compartilhariam a vida. Anna seria médica e desenvolveria suas habilidades até o máximo de seu potencial. Daniel ficaria orgulhoso de suas realizações, assim como ela ficava das dele. Ela teria tudo que qualquer mulher pudesse desejar, e muito mais. Isso poderia acontecer. Iria acontecer.

Então, Anna lembrou-se de como Daniel mal se interessava pelo seu trabalho no hospital. Recordou-se de como se fechava em seu escritório, tratando de negócios que nunca discutia com ela. E como nunca perguntava sobre os livros de medicina que agora se acumulavam no quarto. Nem uma vez mencionou o fato de que ela voltaria para Connecticut em questão de semanas... ou se planejava acompanhá-la.

Duas pessoas podiam compartilhar uma vida, compartilhar amor e não dividir o que era mais vital para ambos? Se Anna tivesse a resposta para essa pergunta, poderia parar de questionar todo o resto.

Meneando a cabeça, estacionou o carro na garagem. Recusava-se a ficar triste agora. Estava em casa, e isso era o bastante.

Quando entrou na cozinha, Sally estava abaixada, mexendo alguma coisa no forno.

- Você deveria descansar essa mão.

- Ela já descansou tudo que precisava. - Sem virar-se, Sally pegou uma xícara. - Você está um pouco atrasada hoje.

- Houve um acidente de carro. Muitos feridos na emergência. Fiquei mais tempo para segurar algumas mãos.

Sally serviu café e colocou a xícara sobre a mesa.

- Você preferia estar cortando e costurando.

Com um pequeno suspiro, Anna se sentou diante do café.

- Sim. É tão difícil não poder fazer nem as pequenas coisas de que sou capaz. Não tenho nem permissão para tirar a pressão sangüínea.

- Não vai demorar para que você faça muito mais que isso.

- Vivo repetindo a mim mesma: mais um ano, só mais um ano. Mas sou impaciente, Sally.

- Você e MacGregor têm isso em comum. - Sabendo que seria bem-vinda, Sally levou sua própria xícara de café à mesa e acomodou-se. - Ele telefonou para avisar que vai se atrasar, e disse que você pode jantar antes, se não quiser esperá-lo... mas aposto que ele gostaria que você esperasse.

- Eu posso esperar. Você sente alguma dor nessa mão?

- Fica um pouco rígida quando eu acordo, mas depois não sinto quase nada, mesmo quando a uso muito. - Ela ergueu a mão, admirando a cicatriz que corria pelo pulso. - Foi bem costurada. Não acho que eu poderia ter feito melhor. - Então, com um sorriso, abaixou a mão. - Suponho que costurar pele seja diferente de costurar pano.

- A técnica é bem parecida. - Anna deu um tapinha na mão machucada. - Uma vez que Daniel vai se atrasar, este pode ser um momento para estudarmos o menu da semana que vem. Tenho algumas idéias, mas se você tiver alguma especialidade... - Ela parou e inalou o ar. - Sally, o que você tem no forno?

- Torta de pêssego. - Ela sorriu. - Receita de minha avó.

- Oh. - Anna fechou os olhos e deixou o aroma envolvê-la. - Torta de pêssego numa noite de verão. A que horas Daniel vai chegar?

- Às oito.

Anna olhou para seu relógio.

- Sabe, tenho a impressão de que vou precisar de energia para trabalhar naquele menu. - Ela sorriu quando se levantou para pegar papel e lápis. - Provavelmente necessitarei comer alguma coisinha antes do jantar.

- Um pedaço de torta de pêssego, talvez? 

- Seria ótimo.

Quando Daniel chegou, Anna ainda estava na cozinha. Livros de receitas, listas e pedaços de papel estavam espalhados sobre a mesa onde ela e Sally estavam sentadas. Entre as duas, havia meia torta de pêssego e o restante de uma garrafa de vinho.

- Não me importo o quanto queremos impressionar o governador - disse Anna com a cabeça perto da de Sally. - Não vamos servir miúdos de carneiro. Eu ficaria verde se tivesse de comer alguma coisa com tripas.

- Você vai ser uma boa cirurgia se sentir náuseas.

- Não sinto náuseas sobre o que tenho de ver ou segurar nas mãos. O que vai no meu estômago é uma questão diferente. Voto por coq au vin.

- Boa noite, moças.

Anna ergueu a cabeça, e o sorriso que já tinha no rosto ampliou-se quando o viu.

- Daniel. - Ela estava em pé, segurando-lhe ambas as mãos. - Sally e eu estamos planejando o jantar do governador. Lamento por ter ofendido o prato escocês de miúdos de carneiro, mas acho que nossos convidados se sentirão mais confortáveis com coq au vin.

- Deixarei isso com vocês duas - murmurou ele, e inclinou-se para um beijo. - As coisas demoraram mais do que pensei. Ainda bem que não me esperou para jantar.

- Jantar? - Ela ainda segurava-lhe as mãos, mais por apoio do que por qualquer outra coisa. Até se levantar, não tinha percebido como estava tonta pelo vinho. - Sally e eu só experimentamos a torta de pêssego. Quer um pedaço?

- Mais tarde. Mas eu gostaria de um copo desse vinho, se é que sobrou algum. - Os olhos dele estavam ardendo de ter lido tantas páginas impressas.

- Oh. - Anna olhou para a garrafa, perguntando-se como podia estar quase vazia.

- Vou tomar um banho antes.

- Vou acompanhá-lo até lá em cima. - Ela manuseou a pilha de papéis até encontrar o que queria. - Eu gostaria de ler esta lista de convidados para você, de modo que possa adicionar alguém que eu tenha esquecido antes de enviarmos os convites.

- Tudo bem. Vá para a cama, Sally. Eu me sirvo da torta quando estiver pronto.

- Sim, senhor. Obrigado.

- Você parece cansado, Daniel. Foi um dia difícil?

- Não mais do que a maioria. - Ele passou o braço ao redor dela enquanto subiam a escada. -Alguns problemas com uma negociação que estou fazendo. Acho que resolvemos.

- Você pode falar sobre isso?

- Eu não trago problemas para casa. - Ele apertou-a com carinho. - Passei a tarde com seu pai.

- Verdade? - Anna sentiu uma onda de emoção, mas manteve o tom de voz neutro. - Como ele está?

- Bem, e mantendo os negócios separados de assuntos pessoais.

- Sim. - O sorriso dela era um pouco tenso quando eles alcançaram o topo da escada. - Suponho que seja melhor assim.

- Ele perguntou por você. - A voz de Daniel era mais gentil agora, porque passara a conhecê-la.

- Perguntou?

- Sim.

Anna entrou primeiro, depois que Daniel abriu a porta do quarto. Sentindo calor, foi para a janela inclinar-se sobre o parapeito.

- Talvez, se eu o contratar, ele pare de me evitar - zombou ela.

- Ele está apenas preocupado com a filha.

- Não há nada com que se preocupar.

- Ele verá isso por si mesmo no jantar da próxima sexta-feira.

Anna o fitou, a lista de convidados ainda na mão.

- Ele virá?

- Sim, ele virá.

Anna deu um pequeno suspiro antes de sorrir novamente.

- Suponho que tenho de agradecer a você por isso.

- Talvez, mas acho que sua mãe foi uma influência maior do que eu. - Ele jogou o paletó e a gravata em uma das poltronas que Anna tinha posicionado diante da lareira. Enquanto Daniel desabotoava a camisa, ela sentiu o aroma das ervilhas-de-cheiro que cresciam em um vaso sobre a mesa perto da janela. Pequenas coisas, coisas enormes. Daniel parou de se despir para segurá-la forte em seus braços.

Anna sentiu a abrupta e intensa emoção que o dominava. Circulando-lhe a cintura, deixou o sentimento espalhar-se pelo seu corpo. Daniel beijou-lhe o topo da cabeça antes de afastá-la.

- Para que foi isso?

- Por você estar aqui - disse ele. - Por você existir.

- Com um pequeno suspiro de alívio, tirou os sapatos.

- Eu não vou demorar. Por que não lê os nomes dessa lista para mim? - Em poucos movimentos, acabou de se despir e entrou no banheiro.

Franzindo o cenho, Anna olhou para a pilha de roupas no chão. Imaginou se algum dia se acostumaria com o jeito bagunceiro de Daniel para esse tipo de coisa. Ignorando a óbvia alternativa, pisou sobre as roupas. Uma mulher que recolhesse as roupas de um homem adulto estava procurando por problemas.

- Há o governador e a esposa, é claro - começou ela em voz alta. - E o intendente municipal e a sra. Steers.

Daniel respondeu com uma descrição precisa do intendente municipal. Anna pigarreou e fez uma anotação na lista para sentar aquele casal em particular bem longe dos anfitriões.

- Myra e Herbert. Os Maloney e os Cook. - Ela levantou mais o tom de voz sobre o som da água. Ainda se sentindo quente, abriu os primeiros três botões da blusa. - Os Donahue, com John Fitzsimmons para agüentar Cathleen. - Anna piscou para a lista porque sua visão estava nublada.

- John, o quê?

- Fitzsimmons... simmons. Fitzsimmons - repetiu ela quando conseguiu pronunciar o nome difícil. - E Carl Benson e Judith Mann. Myra disse que eles estão prestes a ficar noivos.

- Ela tem um corpo... - Daniel conteve-se. - É uma mulher muito atraente - corrigiu. - Quem mais?

Anna entrou no banheiro com os olhos estreitos.

- Ela tem um corpo, como?

Atrás da cortina, Daniel apenas sorriu.

- Perdão? - Para a surpresa dele, Anna abriu a cortina. - Mulher, nada é sagrado?

- Como é o corpo de Judith Marm?

- Como vou saber? - Por segurança, ele enfiou a cabeça embaixo do jato de água. - É melhor você fechar a cortina. Vai se molhar.

- E como você saberia? - exigiu ela e entrou, totalmente vestida, dentro do chuveiro.

- Anna! - Rindo, ele viu a blusa dela ensopar-se. - Que diabos está fazendo?

- Tentando receber uma resposta direta. - Ela balançou a lista agora molhada diante dele. - O que você sabe sobre a anatomia de Judith Mann?

- Apenas o que um homem com uma boa visão pode ver. - Daniel segurou-lhe o queixo e deu-lhe uma boa olhada. -Agora que estou pensando sobre isso, acho que vejo uma outra coisa.

Ela pôs uma mão no peito ensaboado dele para equilibrar-se.

- E o que é?

- Você está embriagada, Anna Whitfield. O sentimento de dignidade a dominou.

- Como disse?

A resposta dita de maneira arrogante o encantou. Daniel afastou os cabelos molhados dos olhos dela.

- Você está embriagada - repetiu ele.

- Não seja ridículo.

- É assim que você está. Embriagada como uma construtora de telhado irlandês e duas vezes mais bonita. Eu juro.

- Pode jurar, mas nunca fiquei bêbada um único dia da minha vida. Você só está tentando fugir da pergunta.

- Qual é a pergunta?

Ela abriu a boca, então voltou a fechá-la, depois sorriu.

- Não me lembro. Eu já lhe disse que você tem um corpo magnífico, Daniel?

- Não. - Ele a puxou para si antes de começar a despi-la. - Por que não me diz?

- Músculos peitorais tão bem desenvolvidos. A blusa de Anna caiu com um som abafado.

- E onde estão os músculos?

- Bem aqui - murmurou ela e deslizou a mão pelo peito dele. - Os deltóides são muito firmes. E, é claro, os bíceps são impressionantes, não exageradamente musculosos, mas sólidos. -As mãos delicadas deslizaram pelos ombros fortes enquanto ele lhe tirava a saia. - Eles mostram não apenas força, mas também disciplina... como o abdome... muito liso e firme. - A respiração de Daniel acelerou quando ela explorou ali.

- Diga-me, Anna - ele baixou a boca para a orelha dela e começou a traçá-la com a língua -, quantos músculos têm aí?

Anna jogou a cabeça para trás, e a água caiu sobre ela. Nua, molhada, dócil, sorriu-lhe.

- Há mais de seiscentos músculos no corpo, todos atados a 206 ossos que formam o esqueleto.

- Fascinante. Pergunto-me quantos deles você pode apontar em mim.

- Podemos começar com os músculos de seus membros inferiores. Admiro seu andar.

- Admira?

- Sim, é muito firme e arrogante, mas não exatamente presunçoso. Isso, é claro, tem alguma coisa a ver com a sua personalidade, mas você também precisa de seus músculos antigravidade, tais como os sóleos... - Ela abaixou-se para deslizar um dedo na panturrilha grossa. A água caiu sobre os cabelos de Anna. - O músculo vasto - continuou, correndo um dedo pela coxa dele, e... Com um murmúrio de aprovação, deslizou as mãos ao redor das nádegas de Daniel.

Ele sorriu e permitiu-se aproveitar. Nunca tivera uma mulher que lhe desse uma aula tão interessante.

- Pensei que esse músculo tivesse mais a ver com o ato de se sentar. As coisas que você aprende na aula de anatomia.

Daniel desligou o chuveiro e pegou uma toalha para cobrir os dois.

- O músculo glúteo - com um pequeno gemido, ela apalpou-lhe as nádegas novamente - precisa se estender o bastante, caso contrário você teria uma tendência a inclinar-se para frente quando anda.

- Não posso fazer isso - murmurou ele enquanto a pegava nos braços. - Especialmente quando estou carregando uma carga preciosa.

- E este é um de seus músculos mais atraentes.

- Obrigado. - Jogando a toalha de lado, ele deitou-se com Anna na cama. O ar quente noturno brincou com as peles úmidas.

- Agora, os adutores, os músculos no interior das coxas.

- Mostre-me.

- Bem aqui. - Os dedos de Anna passearam por aquele local enquanto Daniel lhe cobria a boca com a sua.

Com os olhos semicerrados, ela suspirou e roçou o nariz nele.

- Não acho que você esteja prestando atenção.

- Oh, estou sim. Os adutores, bem aqui. - Dedos fortes passaram entre as pernas de Anna. - Bem aqui - repetiu ele. - Onde sua pele é como seda e já está quente para mim. E aqui. - A mão grande traçou a área sensível onde quadril e coxa se juntavam. - Quais são esses músculos aqui?

- Eles são... - Mas ela pôde apenas gemer e arquear-se contra ele.

Daniel mordiscou-lhe o lóbulo da orelha.

- Você esqueceu?

- Apenas me toque - sussurrou ela. - Não importa onde.

Com um som de triunfo, ele a tocou, acariciando-a, explorando-a, provocando-a. Como argila, ela parecia disposta a ser moldada. Como o fogo, tentava e ousava. Como uma mulher, dava e recebia. As mãos de Anna eram tão ávidas quanto as dele, os lábios sedentos da mesma maneira. A pele deles, seca pela brisa de verão, agora estava úmida de excitação.

Cada vez que faziam amor, pensou Anna atordoada de paixão, era mais excitante, mais maravilhoso. Na primeira vez, na centésima vez, o desejo nunca diminuía. Num campo de grama ou em travesseiros de pena, era sempre magia. A luz do dia ou na noite escura e secreta, o ato de amor era sempre frenético. Ela jamais pararia de desejá-lo. De todas as perguntas que fazia a si mesma, tinha certeza de uma resposta. O desejo físico por Daniel nunca morreria.

Eles rolaram sobre a cama grande, os corpos em chamas, perdidos um no outro. Envolvida em prazer, Anna ergueu-se, as costas arqueadas, os olhos fechados, os cabelos selvagens molhados. O feixe de luz do quarto ao lado lançava uma auréola que a envolvia, a qual parecia tremer com seu êxtase. Enlouquecido, Daniel foi para ela, de modo que, ajoelhando-se sobre a cama, eles podiam dar prazer um ao outro. Fracos, vibrando, tombaram na cama novamente e deram o último passo para dentro da pura paixão.

Os membros de Anna estavam em volta do corpo másculo. O rosto enterrado contra o pescoço de Daniel enquanto ofegava fortemente. Seus dedos enterraram-se nas costas largas, sentindo a pele suada. Enquanto Daniel se movia em seu interior, movia-se com ela, Anna viajou no carrossel, voou na montanha russa e perdeu-se no labirinto.

- Você está deslumbrante. - Daniel a olhou enquanto ela se estudava no espelho. -Absolutamente deslumbrante.

Agradava-a ouvir aquilo, embora nunca tivesse se importado muito com elogios. O vestido deixava-lhe os ombros nus, e caía com leveza até a altura dos tornozelos. Pérolas enfeitavam o corpete e dançavam ao longo da saia. Myra a convencera de comprá-lo, embora não tivesse sido necessária muita persuasão. Verdade, ela tinha precisado gastar uma boa parte das economias que estava reservando para viver fora do campus durante o outono, mas confiava que encontraria um meio de equilibrar suas finanças. A expressão no rosto de Daniel e a satisfação que sentia ao ver seu próprio reflexo faziam tudo valer a pena.

- Você gosta?

Como ele podia explicar, apesar de conhecer cada centímetro do corpo de Anna, que apenas olhá-la ainda tinha o poder de tirar-lhe o fôlego? Ela estivera certa quando pensou que Daniel queria exibi-la. Quando um homem possuía uma coisa extraordinária, queria compartilhá-la. Não, não podia explicar.

- Gosto tanto que desejaria que a noite já tivesse acabado.

Ela deu um último giro, tanto para ele quanto para si mesma.

- Você está lindo neste paletó. Um bárbaro elegante. Daniel arqueou uma sobrancelha.

- Bárbaro?

- Nunca mude isso. - Anna estendeu as duas mãos e pegou a dele. - Não importa o que mais tem de mudar, não mude isso.

Ele levou-lhe as mãos aos lábios, beijando dedo por dedo.

- Duvido que eu poderia, da mesma forma que você não poderia deixar de ser uma dama... mesmo depois de muito vinho e torta de pêssego.

Ela tentou permanecer séria, mas riu.

- Você nunca vai me deixar esquecer disso.

- Deus, não. Foi uma das noites mais fascinantes da minha vida. Sou louco por você, Anna.

- Assim você diz. - Ela ergueu as mãos unidas dos dois para o rosto. - Isso é mais uma coisa que não quero que você mude.

- Eu não mudarei. Gosto de vê-la usando o camafeu. -Daniel passou um dedo sobre a jóia, como era seu hábito.

- Ele significa muito para mim.

- Você não aceitou meu anel.

- Daniel...

- Você não aceitou meu anel - continuou ele -, mas aceitou o camafeu. Eu gostaria que aceitasse isso. -Tirando uma caixa do bolso, esperou.

Anna cruzou os braços.

- Daniel, você não precisa me comprar presentes.

- Acho que já entendi isso. - Mas ele ainda não tinha entendido como aceitar o fato. - Talvez por isso eu queira lhe dar presentes. Deboche de mim - acrescentou e a fez sorrir.

- Você já disse isso antes. - Porque ele sorriu de volta, Anna aceitou a caixa. - Obrigada. - Então, abriu o presente e ficou sem fala.

- Há algo errado com eles?

Anna conseguiu menear a cabeça. De pérolas e diamantes, puros em simplicidade, arrogantes em beleza, os brincos estavam aninhados no veludo preto e pareciam quase ter vida. Dos simples globos de pérolas brancas saíam diamantes em formato de lágrimas. Um brilhava, o outro reluzia e, juntos, formavam uma unidade magnífica.

- Daniel, eles são... - Anna meneou a cabeça e o fitou. - São absolutamente maravilhosos. Não sei o que dizer.

- Você acabou de dizer. -Aliviado, ele pegou a caixa e removeu os brincos. - Suponho que deva agradecer a Myra. Pedi um conselho à sua amiga. Ela falou algo sobre classe e brilho formarem uma boa combinação.

- Verdade? - murmurou Anna enquanto Daniel prendia os brincos nas suas orelhas.

- Pronto. - Satisfeito, ele deu um passo atrás para inspecionar. - Sim, são vistosos. Talvez chamem bastante atenção e mantenham os olhos dos homens longe da linda pele que você expôs.

Rindo novamente, Anna levou uma das mãos à orelha.

- Ah, segundas intenções.

- É difícil não me preocupar que você vai dar uma boa olhada em volta e ver alguém que a agrade mais.

- Não seja tolo, - Levando o comentário na brincadeira, Anna enlaçou o braço no dele. -Acho melhor descermos antes que os convidados cheguem. Caso contrário, McGee vai nos criticar pelo atraso e por sermos rudes.

- Ah. - Enquanto se dirigiam para a porta, Daniel pegou-lhe a mão. - Como se você já não o tivesse na palma das mãos.

Anna lançou-lhe um olhar inocente quando eles começaram a descer a escada.

- Não sei do que você está falando.

- Ele faz broinhas para você no meio da semana. Nunca fez isso para mim.

- Ah, a campainha está tocando. - Ela parou ao pé da escada. - Prometa não ser muito ostensivo. Nem mesmo com o intendente Steers.

- Nunca sou ostensivo - mentiu ele facilmente, e conduziu-a para o hall, a fim de cumprimentarem os primeiros convidados.

Menos de vinte minutos depois, a grande sala de estar estava repleta de pessoas conversando alegremente. Embora Anna estivesse ciente que ela e Daniel eram, com freqüência, o tópico do momento, foi calmamente de grupo em grupo. Não tinha precisado do aviso de sua mãe para saber que sua decisão de morar com Daniel a alienaria de algumas pessoas. Porém, nunca fazia escolhas baseadas em opiniões de outras pessoas.

O cumprimento de Louise Ditmeyer foi um pouco frio, mas Anna o ignorou, e alegremente dirigiu-a para um grupo de amigas. Mais de uma vez, viu alguém olhando de maneira especulativa em sua direção. Era bastante fácil lidar com aquilo de maneira tranqüila. Esse era o seu jeito. Anna não tinha idéia que sua confiança fria e graciosidade natural faziam mais para silenciar fofocas do que o poder de Daniel ou o nome da família dela.

Se havia uma sombra na noite, vinha do pedido indiscreto do governador de sua opinião sobre a fábrica têxtil projetada por Daniel. Como ela poderia ter uma opinião ou até mesmo um comentário inteligente? Daniel nunca lhe falara sobre aquilo, e Anna estava diante do orgulho do governador sobre um projeto que empregaria centenas de pessoas e daria bons rendimentos para o estado. O treino a fez manter o sorriso no lugar e dar boas respostas. Não havia tempo para raiva quando apresentou o governador e a esposa para um outro casal. Houve tempo apenas para um momento de inveja ao notar que a esposa do governador aparentemente estava muito envolvida no trabalho do marido. Pressionada pelas tarefas de anfitriã, Anna reprimiu o desapontamento pessoal.

Não sentiu uma verdadeira tensão até que seus pais chegaram. Prendendo a respiração, aproximou-se do pai.

- Estou tão feliz que vocês vieram. - Anna colocou-se na ponta dos pés para beijar-lhe a face, embora ele estivesse inseguro da recepção da filha.

- Você parece bem. - Ele não falou friamente, mas ela sentiu a reserva.

- O senhor também. Olá, mãe. - Ela beijou a mãe no rosto e sorriu com o aperto encorajador que sua mãe lhe deu no braço.

- Você está linda, Anna. - Ela lançou um rápido olhar para o marido. - Feliz.

- Sim, estou feliz. Deixe-me pegar um drinque para vocês.

- Não se preocupe conosco - murmurou sua mãe. -Você tem todos esses convidados. Lá está Pat Donahue. Vá em frente, ficaremos bem.

- Certo, então. - Quando Anna começou a se virar, seu pai segurou-lhe a mão.

- Anna. - Ele hesitou, apertando-lhe a mão. - É bom ver você.

Aquilo era o suficiente. Ela envolveu os braços ao redor do pescoço do pai e ficou ali por um momento.

- Se eu for ao seu escritório um dia, vai largar seus livros e dar uma volta comigo?

- Você vai me deixar dirigir seu carro? Ela sorriu brilhantemente.

- Talvez.

Ele piscou e alisou-lhe a cabeça, como sempre costumava fazer.

- Vá receber seus convidados.

No momento em que Anna se virou, foi para ver Daniel a alguns metros de distância, sorrindo-lhe. Ela se aproximou com o coração nos olhos.

- Agora você está ainda mais bonita - murmurou ele.

- Do que se trata tudo isso? - Myra apareceu e se colocou entre os dois. - Os anfitriões não deveriam ter tempo nem de se falarem numa festa como esta. Daniel, realmente acho que você deveria ir resgatar o governador de nosso estimado intendente municipal antes que ele perca o apetite. O governador, quero dizer. - Quando Daniel sussurrou alguma coisa rude, ela apenas assentiu. - Mesmo assim. Agora, Anna, por que não vamos ver onde Cathleen está aborrecendo os Maloney. Estou louca para vê-la babando por seus brincos.

- Seja sutil, Myra. - Anna aconselhou-a enquanto manobravam através dos grupos. - Lembre-se da beleza da sutileza.

- Querida, é claro. Mas eu realmente apreciaria se você se exibisse um pouco de vez em quando. Cathleen, que vestido bonito.

Cathleen parou seu discurso sobre os horários do verão para estudar Myra. Anna não tinha certeza, mas pensou ter visto os Maloney suspirarem de alívio.

- Obrigada, Myra. Suponho que é o momento de congratulações. Não a vejo desde que fugiu com Herbert.

- Não, é verdade. - Myra deu um gole em seu drinque e ignorou a descrição sarcástica de seu casamento. Inveja era a coisa mais simples de ignorar quando você estava feliz.

- Suponho que exista certo charme em fugir com o noivo, mas, quanto a mim, eu preferia um outro tipo de casamento.

- As pessoas são diferentes - retornou Myra, e tentou lembrar-se de que era o jantar de Anna.

- Oh, verdade. - Cathleen assentiu. - Mas que pena que você e Herbert decidiram ser eremitas mesmo depois de privar todos nós de um grande casamento.

- Lamento que Herbert e eu ainda não começamos uma vida social em grande escala. Queremos acabar de decorar a casa antes de convidarmos os amigos mais íntimos. Você entende.

Vendo a necessidade de intervir, Anna se aproximou mais um pouco.

- Estou certa de que você teve um verão movimentado, Cathleen.

- Oh, bastante movimentado. - Ela deu um sorriso frio a Anna. - Embora outros pareçam realizar mais coisas em um curto período de tempo. Fiz uma breve viagem à praia e, quando retornei a Boston, descobri que Myra e Herbert haviam fugido e que você tinha mudado de endereço. Devo lhe dar os parabéns também?

Anna pôs uma mão no braço de Myra para silenciá-la.

- De maneira alguma. Você voltou com um lindo bronzeado. Pena que não pude ir à praia. Não tive tempo.

- Certamente não teve. - Erguendo o drinque, Cathleen deu um longo gole. Não era fácil aceitar que duas das mulheres com as quais ela debutara haviam conquistado dois dos homens mais influentes da cidade... particularmente quando estivera de olho em Daniel. - Diga-me, Anna, como devo apresentar você e Daniel se surgir a ocasião? Desculpe-me, mas sou ingênua sobre esse tipo de coisa.

Até mesmo a paciência de Anna já tinha durado muito.

- Por quê? Isso importa?

- Oh, é claro que importa. A propósito, estou pensando em dar um jantar também. Não tenho idéia do que escrever no convite de vocês.

- Eu não me preocuparia com isso.

- Oh, mas eu me preocupo. - Os olhos dela se arregalaram. - Detesto cometer gafes.

- Que pena.

Se Cathleen não conseguia uma coisa do jeito que queria, tentaria de outro.

- Bem, afinal de contas, ninguém sabe como se dirigir educadamente à amante de um homem. - Então, ela deu um gritinho quando Myra derrubou o drinque em seu vestido.

- Oh, como sou desajeitada. -Meneando a cabeça, Myra analisou o dano no crepe cor-de-rosa de Cathleen, o qual era quase o bastante para satisfazê-la. - Sinto-me um desastre - acrescentou suavemente. - Vou subir com você, Cathleen. Ficarei mais do que feliz em limpar seu vestido.

- Posso cuidar disso - replicou ela com dentes cerrados. -Apenas fique longe de mim.

Myra acendeu um cigarro e soltou a fumaça para o teto.

- Como você quiser.

Sentindo-se obrigada, Anna começou a segurar-lhe o braço.

- Deixe-me levá-la lá em cima.

- Tire as mãos de mim - protestou Cathleen. - Você e sua amiga imbecil. - Girando as saias, misturou-se com a multidão. 

- Sutileza. -Anna suspirou. - Nós não falamos sobre sutileza?

- Eu não joguei o drinque no rosto dela - disse Myra. - E, para lhe dizer a verdade, venho querendo fazer isso há muito tempo. Essa foi a primeira vez que pude e me senti totalmente justificada. - Ela deu um sorriso amplo a Anna. - Tenho tempo para um outro drinque antes do jantar?

 

Talvez se Daniel não tivesse ouvido o incidente com Cathleen Donahue, teria lidado com as coisas de modo diferente. Mas ouvira. Talvez, se a fúria com o insulto não o tivesse consumido, o relacionamento deles teria continuado bastante tranqüilo. Mas não continuou. Durante o resto da noite, ele conseguiu ser o anfitrião agradável. Os convidados deixaram sua casa bem alimentados e contentes. Mal podia esperar para fechar a porta atrás do último convidado.

- Precisamos conversar - disse a Anna antes que ela pudesse dar seu primeiro suspiro de alívio.

Apesar de sentir-se bastante nervosa, ela assentiu. Outras pessoas podiam ter sido enganadas pela conversa fácil e generosidade de Daniel ao longo da noite, mas Anna tinha sentido a tensão e raiva dele. Num acordo silencioso, eles subiram a escada para a privacidade do quarto.

- Alguma coisa aborreceu você - começou ela, e sentou-se no braço de uma poltrona, embora ansiasse por tirar as roupas e cair na cama. - Sei que tinha negócios com o governador. Alguma coisa saiu errada?

- Meus negócios vão bem. - Ele andou até a janela e acendeu um charuto. - Minha vida pessoal é que está com problemas.

Anna cruzou as mãos no colo, um sinal de irritação ou nervosismo.

- Entendo.

- Não, você não entende. - Ele virou-se para encará-la, pronto para acusar ou cobrar. - Se entendesse, não haveria discussão sobre casamento. Seria simplesmente um fato.

- Simplesmente um fato - repetiu ela, e lutou para lembrar-se de como sentir raiva era improdutivo. - Daniel, nosso maior problema parece derivar de nossos pontos de vista distintos sobre casamento. Não vejo casamento como simplesmente um fato, mas como o maior passo que uma pessoa pode dar com outra. Eu não posso dar esse passo com você até que esteja pronta.

- Como se um dia você fosse estar pronta - devolveu ele.

Anna umedeceu os lábios. Atrás de sua raiva crescente, havia pesar.

- Se eu um dia estiver.

A fúria que ele conteve durante toda a noite explodiu.

- Então, você não vai me fazer promessas, Anna. Não vai me dar nada!

- Eu lhe disse uma vez que não faria uma promessa que posso não ser capaz de cumprir. Eu lhe darei tudo que posso, Daniel.

- Não é o bastante. - Ele tragou o charuto, então soltou a fumaça no ar.

- Sinto muito. Se eu pudesse, lhe daria mais.

- Se pudesse? - Fúria o assolou, cegando-o para a razão. - Se você pudesse? Nada a está impedindo, exceto sua própria teimosia.

- Se isso fosse verdade, eu seria uma tola. - Ela se levantou porque era hora de enfrentá-lo. Hora, na verdade, de enfrentar a si mesma. - E talvez eu seja, porque esperei que você respeitasse tanto minhas necessidades e ambições quanto respeita as suas próprias.

- O que isso tem a ver com casamento?

- Tudo. Em nove meses, terei meu diploma.

- Um pedaço de papel - retrucou ele. Tudo em Anna tornou-se frio: a pele, a voz, os olhos.

- Um pedaço de papel? Pergunto-me se você chamaria suas ações e contratos de pedaços de papel? Pedaços de papel importantes demais para serem discutidos comigo. Ou talvez, como com a fábrica têxtil sobre a qual o governador me perguntou esta noite, você não me considere inteligente o bastante para entender seu trabalho.

- Nunca duvidei de sua inteligência - exclamou ele. - O que ações e contratos têm a ver com isso?

- Eles são parte de você, assim como meu diploma será parte de mim. Devotei anos da minha vida para obtê-lo. Pensei que pudesse compreender isso.

- Vou lhe dizer o que compreendo. - Rígido de raiva, ele apagou o charuto. - Entendo que estou cansado de vir em segundo lugar em relação ao seu precioso diploma.

- Que coisa, Daniel, ninguém pode lhe dizer nada. -Lutando por controle, ela apoiou as duas mãos sobre a cômoda. - Não é uma questão de lugares, isso não é uma competição.

- O que é, então? Que diabos é?

- Uma questão de respeito - murmurou Anna mais calmamente, e virou-se de novo para ele. - É uma questão de respeito.

- E quanto ao amor?

Daniel falava de amor tão raramente que a questão quase a desmoronou. Lágrimas acumularam nos olhos de Anna e a voz enfraqueceu.

- Amor é uma palavra vazia quando não há respeito. Prefiro não ter amor, a tê-lo de um homem que não pode me aceitar pelo que sou. Prefiro não dar amor a um homem que não compartilha seus problemas comigo, nem o seu sucesso.

O orgulho de Daniel era mais forte do que o dela. Mesmo enquanto sentia que estava perdendo Anna, agarrava-se ao orgulho como se fosse a única coisa que lhe restasse.

- Então, talvez, você prefira que eu pare de amá-la. Farei o possível. - Com isso, ele virou-se. Momentos depois, Anna ouviu a porta da frente bater.

Ela podia ter caído da cama e dado vazão às lágrimas. Queria fazer isso... talvez demais. Porque não podia, só lhe restava uma coisa a fazer. Mecanicamente, começou a arrumar as malas.

A viagem para Connecticut foi longa e solitária. Semanas depois, Anna podia recordar-se vividamente. Dirigiu a noite inteira, até que seus olhos estavam ardendo e o sol nasceu. Exausta, parou em um hotel e dormiu até o anoitecer. Quando acordou, tentou esquecer do que tinha deixado para trás. As primeiras semanas foram preenchidas procurando um pequeno apartamento perto do campus. Precisava de privacidade e cedeu ao desejo de ter seu próprio lugar. Seus dias eram cheios de planos, preparações. Era uma pena que suas noites não podiam ser cheias, também.

Anna podia bloquear Daniel de sua mente por longos períodos durante o dia, mas, à noite, deitava na cama e lembrava como tinha sido aninhar-se ao corpo dele. Comia sozinha em sua pequena mesa da cozinha e se recordava de como os dois costumavam prolongar o momento do café na sala de jantar, simplesmente porque era gostoso ficar ali conversando.

Decidida, recusou-se a instalar um telefone. Teria sido muito fácil ligar para ele. Quando as aulas iniciaram, mergulhou nos estudos com um alívio quase desesperado.

Seus colegas notaram sua mudança. A geralmente amigável, apesar de levemente reservada, srta. Whitfield, agora estava fechada em si mesma. Raramente falava, a menos para perguntar ou responder uma questão em aula. Aqueles que por acaso passavam dirigindo na frente de seu apartamento à noite ou tarde no sábado, invariavelmente viam uma luz acesa na janela. Estudos incessantes lhe deram olheiras que até mesmo os professores começaram a notar. Ela bloqueava qualquer comentário ou pergunta com uma retirada educada, porém firme.

Os dias se emendavam uns nos outros como se Anna quisesse que assim fosse. Se estudasse muito, por tempo suficiente, poderia cair no esquecimento seis horas por noite e não pensar em nada.

Connecticut no meio de setembro estava fresco e lindo, mas Anna tinha pouco tempo para notar a folhagem. As cores fortes e aromas ricos do outono foram renegados a favor de livros de medicina e aulas de anatomia. Em anos anteriores, tinha conseguido apreciar as redondezas enquanto se devotava aos estudos. Agora, se parasse um momento para admirar as folhas selvagens, pensaria somente no topo de um penhasco e no barulho de água na pedra. E se perguntaria, antes que pudesse deter-se, se Daniel estava construindo a casa.

Em defesa, vinha evitando contato com Myra, embora sua amiga lhe enviasse longas cartas protestando. Quando o telegrama chegou, Anna percebeu que não podia se esconder para sempre. Dizia simplesmente:

"Se você não me quiser na sua porta em 24 horas, ligue para mim. Myra."

Com o telegrama no meio de suas anotações sobre o sistema circulatório, Anna foi, em seu intervalo, para o telefone no salão de estudantes. Com as moedas preparadas, fez a ligação e esperou.

- Alô.

- Myra, se você aparecer na minha porta, terá de dormir do lado de fora. Não tenho um quarto extra.

- Anna! Meu Deus, eu estava começando a pensar que você tinha se afogado no Atlântico. - Anna ouviu o barulho de um isqueiro se acendendo e o som da amiga inalando. - Era mais fácil acreditar nisso do que no quanto você foi rude em não responder minhas cartas.

- Desculpe-me. Ando muito ocupada.

- Você está se escondendo - corrigiu Myra. - E vou tolerar isso contanto que não seja de mim. Estou preocupada com você.

- Não fique. Estou bem.

- É claro.

- Não, não estou bem - admitiu ela porque era Myra. - Mas estou ocupada, cheia de livros e anotações.

- Você não ligou para Daniel?

- Não, eu não posso. - Anna fechou os olhos e descansou a testa contra o metal frio do telefone. - Como ele está? Você o tem visto?

- Visto Daniel? -Anna quase podia ver Myra rolando os olhos. - Ele enlouqueceu na noite que você partiu. Acordou Herbert e eu de madrugada, exigindo saber se você estava aqui. Herbert o acalmou. Herbert é incrível. Não vimos muito Daniel depois disso, mas ouvi dizer que ele tem passado muito tempo em Hyannis Port, supervisionando a construção da casa.

- Imagino que sim. - E ela podia vê-lo lá, observando as máquinas cavarem e os homens depositando pedras.

- Anna, você sabia que Daniel ouviu aquele pequeno incidente com Cathleen na noite do jantar?

Ela pegou-se sentindo autopiedade e meneou a cabeça.

- Não. Não, ele não me contou. Oh... -Anna lembrou-se da fúria secreta que sentira em Daniel... a mesma fúria que tinha sido voltada contra ela. Aquilo explicava muita coisa.

- Ouvi Daniel dizendo a Herbert que queria torcer o pescoço de Cathleen. Apesar de eu aprovar, Herbert o convenceu a não fazer isso. Mas parece que a história toda o arrasou. O homem acredita que você deve ser protegida de qualquer tipo de insulto. É muito doce realmente, embora, com certeza, podemos cuidar de nós mesmas.

- Não posso me casar com Daniel para não ser insultada - murmurou ela.

- Não. E embora eu ache que ele mereça uma lição, querida, eu juraria que o coração do homem está no lugar certo. Daniel ama você, Anna.

- Apenas uma parte de mim. - Ela fechou os olhos e determinou-se a ser forte. - Sinto muito por termos envolvido vocês.

- Oh, por favor, você sabe que adoro ser envolvida. Anna, quer conversar sobre isso? Gostaria que eu fosse até aí?

- Não, realmente. Pelo menos não ainda. - Mesmo esfregando as têmporas, Anna riu. -Ainda bem que não respondi suas cartas. Falar com você me fez mais bem do que qualquer outra coisa.

- Então, me dê seu telefone. Podemos conversar em vez de escrever.

- Não tenho telefone.

- Não tem telefone? - Houve uma pausa com o choque de Myra. -Anna, querida, como você sobrevive?

Ela parou de esfregar as têmporas e realmente riu.

- Sou muito primitiva aqui. Você ficaria chocada se visse meu apartamento. - E ela imaginou se Myra entenderia seu entusiasmo em passar a maior parte da tarde com uma dúzia de outros alunos e um cadáver. Algumas coisas eram melhor não ser ditas. - Ouça, prometo que vou me sentar e lhe escrever uma longa carta esta noite. Vou até mesmo ligar de novo na próxima semana.

- Tudo bem, então. Mas um conselho antes que você desligue. Daniel é homem, então começa com um ponto contra ele. Apenas tente se lembrar disso.

- Obrigada. Dê um abraço em Herbert por mim.

- Darei. Estou contando com essa carta.

- Hoje à noite - prometeu Anna novamente. - Adeus, Myra.

Quando Anna desligou, sentiu-se estável pela primeira vez em semanas. Verdade, tinha assumido o controle de sua própria vida quando deixara Boston. Havia alugado seu próprio apartamento, iniciado as aulas. Estabeleceu seu próprio horário de estudo e era responsável por seu próprio sucesso ou seu próprio fracasso. Mas não estava feliz. Era responsável por isso, também, lembrou a si mesma enquanto descia o corredor. Era hora de enfrentar o fato de que tinha feito uma escolha. Se ia viver sozinha, como parecia, então precisava fazer o melhor disso.

Uma olhada para o relógio a informou que tinha dez minutos antes da próxima aula. Desta vez, pararia do lado de fora para apreciar o outono, em vez de correr para o prédio ao lado e enterrar o rosto nos livros.

Ao ar livre, viu uma sinfonia de cores que vinha quase deliberadamente ignorando há semanas. Viu outros alunos se apressando para as aulas ou estendidos na grama, lendo ao sol. Viu a pequena ladeira e o velho telhado vermelho do hospital. E viu o conversível azul parado no meio-fio.

Por um instante, Anna não pôde se mover. Semanas atrás, estava saindo do hospital de Boston para encontrar Daniel esperando-a. Seus dedos se apertaram nos livros que carregava. Mas não era Boston, pensou mais calmamente. E Daniel não era o único da costa leste que tinha um conversível azul. Fora simplesmente uma virada do destino que a fizera sair ao ar livre para ver aquilo. Recompondo-se, começou a andar na direção oposta. Segundos depois, virou-se e foi dar uma olhada melhor no carro azul.

- Quer uma carona?

Ao som da voz dele, Anna sentiu o coração disparar violentamente no peito. No momento em que se virou, seu semblante foi preenchido com cautela e prazer.

- Daniel, o que você está fazendo aqui? - E que importância tinha isso? Era o bastante apenas olhar para ele.

- Parece que estou esperando por você. - Ele queria tocá-la, mas se a tocasse, a agarraria com desespero. Deliberadamente, enfiou as mãos nos bolsos. - A que horas termina sua última aula?

- Última aula? - Ela tinha esquecido em que dia estavam. - Ah, em aproximadamente uma hora. Só tenho mais uma aula hoje.

- Tudo bem, então. Eu volto.

Voltar? Atordoada, Anna o observou dar a volta no conversível e abrir a porta do motorista. Antes de perceber que pretendia fazer isso, ela abriu a porta do passageiro.

- O que você está fazendo? 

- Eu vou com você - replicou Anna.

Ele lhe deu um longo olhar frio.

- E quanto a sua aula?

Ela olhou ao redor do campus antes de subir no carro.

- Depois eu copio a matéria perdida de alguém. Posso compensar isso. - Mas não podia compensar mais uma hora longe dele.

- Você não é do tipo que perde aulas.

- Não, não sou. -Abalada, ela colocou os livros sobre o colo. - Meu apartamento não é longe. Podemos tomar um café. Vire à esquerda, passe o hospital, e então...

- Eu sei onde é - interrompeu ele, mas não adicionou que soubera quase antes de ela ter alugado o apartamento.

O trajeto de cinco minutos passou rapidamente enquanto dúzias de pensamentos giravam na cabeça de Anna. Como deveria tratá-lo? Educadamente? Daniel ainda estava zangado? Pela primeira vez desde que o conhecia, não podia definir-lhe o humor. Seus nervos estavam à flor da pele no momento em que ele parou o carro de novo. Daniel parecia perfeitamente calmo.

- Eu não estava esperando ninguém - começou ela quando eles subiram os degraus para seu apartamento no segundo andar.

- Uma pessoa seria capaz de ligar avisando, se você tivesse um telefone.

- Não pensei muito sobre isso - disse ela, então destrancou a porta. - Entre - convidou.

Assim que ele entrou, Anna percebeu o quão absurdamente pequeno era o apartamento. Na sala de estar, Daniel quase podia tocar as paredes se abrisse os braços. Ela tinha um sofá, uma mesinha de centro e um abajur, e não vira necessidade para mais nada.

- Sente-se - ofereceu, descobrindo o quão desesperadamente precisava de um momento sozinha. -Vou fazer um café.

Sem esperar resposta, correu para a cozinha. Quando estava sozinho, Daniel abriu as mãos que estavam cerradas. Não via apenas um cômodo pequeno, mas os toques de charme. Havia almofadas coloridas jogadas no canto do sofá e uma travessa com conchas sobre a mesinha de centro. Mais que isso, a sala ensolarada exalava o aroma de Anna, o mesmo aroma que havia desaparecido do quarto deles. Não podia se sentar, não podia ficar em pé sozinho. Cerrando os punhos novamente, seguiu-a para a cozinha.

Não podia imaginar se ela cozinhava no espaço limitado, mas Anna obviamente estudava ali. Sobre a mesa, perto da janela, havia uma máquina de escrever portátil e pilhas de anotações e livros. Lápis gastos e outros bem apontados ficavam dentro de uma caneca de porcelana chinesa. Ele estava fora de seu meio ambiente. Sentia isso. Lutava contra isso.

- O café está quase pronto - murmurou Anna para preencher o silêncio. Ele estava lá de novo, e ela não tivera tempo suficiente para si mesma. Não podia saber que Daniel estava sentindo precisamente a mesma coisa. -Não tenho mais nada para lhe oferecer. Não fiz compras esta semana.

Ela estava nervosa, Daniel percebeu, ouvindo a tensão na voz geralmente calma. Curioso, observou-a, e viu as pequenas mãos tremerem de leve enquanto Anna pegava as xícaras. Daniel sentiu os nós em seu estômago relaxarem um pouquinho. Como abordá-la? Puxando uma cadeira, sentou-se.

- Você parece pálida, Anna.

- Não tenho pegado muito sol. Os horários são sempre frenéticos nas primeiras semanas.

- E nos fins de semana?

- Há o hospital.

- Humm. Se você fosse médica, poderia diagnosticar excesso de trabalho.

- Não sou médica ainda. - Ela colocou o café sobre a mesa, então hesitou. Após um momento, sentou-se diante dele. O momento parecia tanto com o tempo que haviam convivido. Entretanto, não tinha nada a ver. - Por acaso, falei com Myra hoje. Ela disse que você começou a construir a casa em Hyannis Port.

- Isso mesmo. - Ele tinha visto os homens quebrarem o solo, levantarem a fundação. E não significara nada. Absolutamente nada. - Se mantivermos o prazo agendado, a parte principal deve ficar pronta no próximo verão.

- Você deve estar feliz. - O café de Anna tinha gosto de lama, e ela o empurrou de lado.

- Tenho as plantas no carro. Talvez você queira vê-las. O peito de Anna estava comprimido quando levantou

a cabeça. Daniel viu surpresa nos olhos escuros e amaldiçoou-se por ser tolo.

- É claro que quero.

Por um momento, ele olhou para as próprias mãos. Era um jogador, não era? Estava na hora de correr um outro risco.

- Estou pensando em comprar um escritório no centro da cidade. Para pequenos negócios, com um aluguel baixo, mas acho que o valor da propriedade pode dobrar em cinco ou sete anos. - Ele adicionou uma pedrinha de açúcar no café, mas não mexeu. - Tenho tido alguns problemas com a fábrica têxtil. Seu pai está trabalhando para que possamos começar a produzir na primavera. Anna manteve os olhos fixos nele.

- Por que está me contando isso?

Ele levou um momento para responder. Confissões não lhe eram fáceis. Mas os olhos de Anna estavam escuros, tão pacientes. Difícil como era, Daniel tinha percebido que precisava dela tanto quanto de seu próprio orgulho.

- Um homem não gosta de admitir que estava errado, Anna. Porém, mais do que isso, não gosta de encarar que sua mulher o abandonou porque ele não podia admitir isso.

Nada que ele tivesse dito a faria amá-lo mais.

- Não abandonei você, Daniel.

- Você fugiu.

Ela engoliu em seco.

- Certo, eu fugi. De nós dois. Você se dá conta de que me ofereceu mais de si mesmo nestes últimos cinco minutos do que no tempo inteiro que vivemos juntos?

- Nunca me ocorreu que você quisesse saber sobre fábricas e taxas de juros. - Ele começou a se levantar, então mudou de idéia quando viu a impaciência nos olhos de Anna. - É melhor dizer no que está pensando.

- Na primeira vez que entrei no seu quarto, vi quão pouco de você havia lá. Depois de um tempo, descobri por quê. Estava tão determinado a avançar. Daniel, por mais que você falasse da casa e da família que queria, pretendia fazer tudo sozinho. Eu estava fora dos planos.

- Não haveria família sem você, Anna.

- Mas você queria dar, não compartilhar. Nunca se ofereceu para me mostrar a planta da casa que dizia querer para nós dois. Nunca me pediu uma opinião ou uma sugestão.

- Não. E enquanto eu assistia aos homens construírem a fundação, percebi que eu teria a casa que queria, mas não o lar de que necessitava. - Ele largou a colher num impulso. - Nunca pensei que isso realmente lhe importasse.

- Eu não sabia como lhe mostrar. - Anna deu um pequeno sorriso. - Tolice. - Porque precisava de um pouco de distância, levantou-se para ir até a janela. Estranho, pensou, estudava ali todas as noites e não tinha notado a grande árvore avermelhada no quintal. Era linda. Quanta beleza estava cortando de sua vida? - Parte minha queria compartilhar aquela casa com você. Mais do que qualquer coisa.

- Mas somente uma parte sua.

- Suponho que é a parte que você não pode aceitar que me restringe. Que restringe a nós dois. Sabe, você nunca me perguntou sobre meu trabalho no hospital, sobre os livros ou sobre por que quero ser cirurgia.

Daniel se levantou também. Já tinha enfrentado a si mesmo. Agora tinha de enfrentá-la.

- Um homem não pergunta para a mulher que ama sobre o outro amor da vida dela.

Dividida entre raiva e confusão, ela virou-se.

- Daniel...

- Não me peça para ser lógico - interrompeu ele. - Estou perto de me rastejar se necessário, mas não me peça para ser lógico.

Com um suspiro, Anna meneou a cabeça.

- Certo, não vou pedir. Vamos apenas dizer que algumas mulheres podem ter dois amores e ser felizes, passando a vida tentando dar o que cada um necessita.

- É uma vida difícil.

- Não se a mulher tem dois amores que estão dispostos a lhe dar o que ela precisa.

Não havia lugar para andar na pequena cozinha. Em vez disso, Daniel ficou parado, as mãos ainda enfiadas nos bolsos.

- Sabe, pensei muito sobre sua profissão de médica nessas últimas semanas. Mais, suponho, do que eu queria pensar desde a primeira vez que a vi. Muitas vezes, Anna, pude enxergar que nasceu para alguma coisa a mais, para ser alguém, mas consegui bloquear isso. Quando você partiu e passei minhas noites sozinho, não tive escolha senão refletir. Lembrei-me do jeito como você cuidava da sra. Higgs. E de sua aparência no momento em que saía do hospital no fim da tarde. Recordo-me de quando a vi parada no meio da cozinha com sangue na blusa e explicou, muito calmamente, como havia lidado com o pulso de Sally. Ela me contou que o médico disse que você salvou-lhe a vida. Alguma coisa que aprendeu em um daqueles - disse ele, indicando a pilha de livros. - Não algo tão difícil de aprender, mas certamente não tão fácil de fazer. - Daniel pegou um livro e ergueu-o enquanto a olhava. - Não, não perguntei antes porque você queria ser cirurgia. Estou perguntando agora.

Anna hesitou, com medo de que ele fizesse alguma crítica ou, pior, uma observação arrogante. Daniel a tinha procurado... um jogador. Ela podia jogar também.

- Tenho um sonho - murmurou Anna calmamente. -Quero que minha vida faça alguma diferença no mundo.

Ele a estudou em silêncio, os olhos azuis estreitos e profundamente intensos.

- Tenho um sonho - disse ele, colocando o livro no lugar. Pela primeira vez, deu um passo na direção dela. - É um apartamento pequeno, Anna. Mas acho que há espaço suficiente para dois.

Ele ouviu um grande suspiro antes que Anna abrisse os braços e os envolvesse ao seu redor.

- Vamos precisar de uma cama maior.

- Esta é minha garota. - Com uma risada, ele a tirou do solo e deu a si mesmo o prazer de provar-lhe a boca. Alívio o percorreu como vinho, até que estava embriagado do mesmo. - Senti saudade sua, Anna. Não posso mais viver sem você.

- Não. - Com o rosto enterrado no pescoço dele, Anna inalou o aroma único e deleitou-se nele. - Nunca mais. Daniel, sinto-me apenas meio viva sem você. Tento ocupar meus dias com estudos, trabalhando mais arduamente, passando mais horas no hospital, mas isso não significa nada. Quero estar com você, preciso estar com você.

- Você me terá. Uma cama maior e três telefones devem resolver.

Com uma risada, Anna encontrou-lhe os lábios. Daniel podia ter seus telefones, contanto que ela o tivesse.

- Eu amo você.

- Você nunca me disse isso. - Instável, ele a afastou. - Você nunca falou isso antes.

- Eu tinha medo. Achei que se você soubesse o quanto eu o amava, poderia usar isso para me fazer dar o resto.

Ele começou a negar, então parou porque era verdade.

- E agora?

- O resto não significa muita coisa se você não estiver comigo.

Daniel a afastou ainda mais.

- Uma vez eu lhe disse que você poderia olhar em volta e ver alguém que a agradasse mais. Eu não estava brincando.

Ela o sacudiu de leve.

- Deveria estar.

Ela não percebia o quanto era adorável, o quão regia parecia? Não sabia o que poderia fazer um homem sentir apenas com um sorriso?

- Não acredite que penso que você pode ser só minha ou pensarei um dia. Posso agir dessa forma, Anna, mas não é verdade. Você é a resposta para a minha vida, e quero ser para a sua.

Ela descansou o rosto no ombro dele por um momento. Nunca lhe ocorrera que a confiança de Daniel pudesse ser abalada. Amava-o ainda mais por saber que isso era possível.

- Você é, Daniel. Eu não tinha certeza se podia lhe dar o que você parecia querer.

- Eu queria uma esposa, uma mulher que estivesse lá de noite quando eu chegasse do trabalho. Uma que mantivesse flores nos vasos e rendas nas janelas. Uma que ficasse contente com tudo que eu pudesse lhe dar.

Anna olhou para os livros espalhados sobre a mesa, então para o homem parado à sua frente.

- E agora?

- Estou começando a pensar que uma mulher assim me daria tédio dentro de uma semana.

Ela pressionou os dedos nos olhos para conter as lágrimas.

- Eu gostaria de pensar que sim.

- Não estou voltando atrás. - A voz de Daniel de repente era rouca quando a puxou para seus braços de novo. - Você vai se casar comigo, Anna, no dia seguinte que receber seu diploma. Será a doutora Whitfield por menos de 24 horas.

Ela curvou os dedos na camisa dele.

- Daniel, eu...

- Então você será a doutora MacGregor.

Os dedos de Anna pararam. Ela respirou fundo três vezes antes de ousar falar:

- Você está falando sério?

- Sim. Sempre falo sério. E você terá de me agüentar apresentando-a como a melhor cirurgia do país. Quero compartilhar seu sonho, Anna, tanto quanto você quer compartilhar o meu.

- Não será fácil para você. Enquanto eu estiver fazendo residência, os horários serão detestáveis.

- E daqui a vinte anos, nós vamos olhar para trás e lembrar como passamos por tudo. Gosto de uma visão a longo prazo, Anna. Eu queria que você se casasse comigo porque achei que cumpriria um bom papel de esposa. – Ele segurou-lhe as mãos. - Agora, estou lhe pedindo em casamento porque a amo exatamente como você é.

Anna o estudou por longos momentos. Desta vez, não haveria um passo atrás.

- Você ainda tem o anel?

- Sim. - Daniel enfiou a mão no bolso. - Peguei o hábito de carregá-lo comigo.

Rindo, ela levou ambas as mãos ao rosto dele.

- Vou aceitá-lo agora. - Quando ele começou a deslizar a jóia por seu dedo, Anna fechou a mão sobre a de Daniel.

- Aqui vai uma promessa para você, Daniel. Darei o melhor de mim.

O anel deslizou.

- É o suficiente.

 

Anna tinha apenas cochilado sentada durante a noite, rejeitando a cama de armar que um atendente de plantão havia levado ao quarto, preferindo a cadeira ao lado da cama de Daniel. De vez em quando durante a noite, ele murmurava no sonho. Sempre que Anna ouvia seu nome, tentava acalmá-lo, conversando baixinho até que ele descansasse de novo.

Somente uma vez, ela o deixou para descer e dar uma olhada em Shelby. O resto do tempo ficava olhando-o dormir e ouvindo todos os bipes e sons das máquinas.

As enfermeiras trocaram de turno. Alguém lhe levou café antes de sair do serviço. A lua começou a se pôr. Anna pensou no homem que amava, na vida que eles tinham construído e esperou em silêncio.

Um pouco antes do amanhecer, inclinou-se para descansar a cabeça na cama ao lado da mão dele. Quando Daniel acordou, Anna foi a primeira pessoa que viu. Ela estava dormindo levemente.

Ele ficou desorientado apenas por um momento. Embora as drogas ainda estivessem atuando em seu sistema nervoso, lembrou-se do acidente com perfeita clareza. Pensou brevemente sobre seu carro. Gostava muito daquele brinquedo em particular. Então, sentiu a pressão no peito, viu os tubos atados a seu braço.

Recordou-se mais do que do acidente agora. Lembrou-se de Anna inclinando-se sobre ele, falando, assegurando-o de que tudo ficaria bem, enquanto ele era empurrado numa maça ao longo do corredor do hospital. Recordou-se do medo que vira nos olhos dela, e, antes de perder a consciência, o momento de puro terror ao perceber que estava sendo levado para longe de Anna.

Estranhamente, pensou lembrar-se de olhar para si mesmo, de cima, enquanto médicos e enfermeiras o viravam do avesso. Então, teve a impressão de ser sugado de volta para seu corpo, mas a sensação era muito vaga para ser descrita. Lembrou-se de mais uma coisa. Anna novamente, inclinando-se sobre ele, beijando-lhe a mão. Depois, tinha apenas sonhado.

Ela parecia tão cansada, pensou Daniel. Em seguida, percebeu como seu próprio corpo parecia velho e abalado. Furioso com sua fraqueza, esforçou-se para se sentar e não conseguiu. Porque o esforço o embaraçou, estendeu o braço e tocou o rosto de Anna. Ela estava acordada em um instante.

- Daniel. - Ela entrelaçou os dedos em volta dos seus. Em questão de segundos, ele viu tudo no rosto de sua amada: terror, alívio, sofrimento, cautela e força. Usando toda força de vontade que possuía, Anna controlou a necessidade de baixar a cabeça no peito dele e chorar. - Daniel - a voz era tão calma quanto da primeira vez que ele a ouvira -, você me reconhece?

Apesar de isso ser um esforço, ele arqueou uma sobrancelha.

- Por que diabos eu não reconheceria a mulher com quem vivo há quase quarenta anos?

- Por que diabos não? - concordou ela e deu a si mesma o prazer de pressionar os lábios nos dele.

- Você pode ficar mais confortável se subir aqui na cama comigo.

- Talvez mais tarde - prometeu ela e ergueu-lhe uma das pálpebras para estudar a pupila.

- Não comece a me cutucar e me espetar. Quero um médico de verdade. - Ele conseguiu sorrir-lhe.

Anna pressionou um botão ao lado da cama.

- Sua visão está nublada?

- Posso ver bem o bastante. Você está tão bonita quanto estava na primeira noite em que dançamos.

- Alucinando - brincou ela, então olhou para cima quando a enfermeira entrou. - Por favor, chame o dr. Feinstein. O sr. MacGregor acordou e está requisitando um médico de verdade.

- Sim, dra. MacGregor.

- Adoro quando eles a chamam assim - murmurou Daniel, e fechou os olhos apenas por um minuto. - Quanto dano causei, Anna?

- Você teve uma concussão. Quebrou três costelas e...

- Não a mim mesmo - disse ele impaciente. - Ao carro.

Cerrando os dentes, Anna cruzou os braços.

- Você nunca muda. Não sei por que ainda me preocupo. Sinto muito por ter perturbado as crianças.

- As crianças. - A luz nos olhos dele não estava tão forte quanto deveria, mas estava lá. - Você chamou as crianças?

Ele lhe deu precisamente a reação que Anna precisava para se assegurar de que estava tudo bem. Mas ela fingiu indiferença.

- Sim, devo me desculpar com eles.

- Eles vieram?

Ela conhecia muito bem as táticas de Daniel.

- É claro.

- O que vocês iriam fazer? Um velório? Ela arrumou o lençol de cima.

- Queríamos estar preparados. - Daniel fez uma careta e quase conseguiu gesticular em direção à porta.

- Bem, mande-os entrar.

- Eu não os deixaria passar a noite aqui. Eles estão em casa.

Daniel ficou boquiaberto.

- Em casa? Quer dizer que eles não estão aqui? Deixaram o pai no leito de morte e foram beber uísque?

- Sim. Lamento que nossos filhos são muito irresponsáveis, Daniel. Puxaram o pai. Aí está o dr. Feinstein agora. - Ela apertou a mão do médico rapidamente antes de andar para a porta. - Deixarei vocês dois sozinhos.

- Anna.

Ela parou à porta e sorriu para o marido.

- Sim, Daniel?

- Não fique longe muito tempo.

Anna o via agora como o tinha visto muitos anos antes: indomável, arrogante e forte o bastante para precisar dela.

- Eu alguma vez fico?

Anna saiu do Centro de Terapia Intensiva e foi direto para o seu consultório. Trancando a porta, deu a si mesma o luxo de chorar por vinte minutos. Já havia chorado ali antes, após perder um paciente. Desta vez, chorava de um alívio muito grande para medir e de um amor forte demais para apaziguar. Depois de lavar o rosto várias vezes com água fria, foi para o telefone.

- Alô.

- Caine.

- Mãe, nós já íamos ligar. Ele está...

- Seu pai quer ver vocês - disse ela facilmente. - Está com medo que estejam tomando o uísque dele.

Ele suspirou e Anna o ouviu momentaneamente lutando por controle.

- Diga-lhe que não tocamos no uísque. Você está bem?

- Estou maravilhosa. Peça a Rena para me trazer uma muda de roupas quando vocês vierem.

- Estaremos aí em meia hora.

- É uma vergonha quando um homem precisa quase morrer para receber a visita dos filhos. - Apoiado nos travesseiros, envolvido em bandagens, Daniel recebeu seus admiradores.

- Algumas costelas quebradas - disse Serena e beliscou-lhe o dedão de sua posição aos pés da cama. Tinha passado a noite acordada nos braços de Justin.

- Ah! Diga isso ao médico que pôs este tubo no meu peito. E vocês nem trouxeram meu neto. - Ele olhou brevemente para Serena antes de voltar-se para Caine. - Ou minha neta. Estarão todos na faculdade antes que eu os veja de novo. Nem saberão quem eu sou.

- Nós mostramos sua foto para Laura uma vez por semana - ofereceu Caine. Continuou segurando a mão de Diana, imaginando se teria sobrevivido as últimas 24 horas sem a força incansável dela. - Não mostramos, meu amor?

- Todos os domingos - concordou Diana.

Com um murmúrio irritado, Daniel voltou-se para Grant e Gennie.

- Suponho que sua irmã tenha uma razão para não ter vindo - disse para Grant. - E é correto que Alan esteja com ela, embora ele seja meu primogênito. Afinal, ela está prestes a me dar um outro neto em algumas semanas.

- Boa desculpa - disse Grant suavemente enquanto Caine sorria e examinava as unhas da mão.

- Você está bonita - ele falou para Gennie. - Uma mulher floresce que está carregando uma criança.

- E engorda - retornou Gennie, tocando uma das mãos no estômago redondo. - Mais alguns meses e não vou alcançar meu suporte de pintura.

- Certifique-se de usar um banquinho - ordenou Daniel. - Uma mulher grávida não deve ficar em pé o dia inteiro.

- E certifique-se de estar fora deste lugar e de pé até a primavera. - Grant passou o braço ao redor da esposa. - Você terá de ir a Maine para ser o padrinho do bebê.

- Padrinho. - Ele envaideceu-se. - É uma coisa triste para um MacGregor ser padrinho de um Campbell. - Ignorando o sorriso de Grant, apesar de reprimir o próprio sorriso, olhou para Gennie. - Mas farei isso por você. Tem descansado o bastante?

Anna deslizou uma mão sob o pulso de Daniel para, discretamente, monitorar-lhe a pulsação.

- Ele esquece que eu estava grávida de Alan nos últimos três meses de minha residência. Nunca me senti melhor na vida.

- Eu me senti maravilhosa durante a gravidez, também

- comentou Serena. - Suponho que é por isso que estou fazendo isso de novo.

Daniel só levou um minuto para entender.

- Novamente?

Serena se colocou na ponta dos pés para beijar Justin antes de sorrir para seu pai.

- Novamente. Daqui a sete meses.

- Bem, agora...

- Sem uísque, Daniel - murmurou Anna, antecipando-o.

- Pelo menos não até que você saia do Centro Intensivo.

Ele fez uma careta, resmungou, então abriu os braços o melhor que pôde.

- Venha aqui então, minha garota.

Serena inclinou-se sobre a cama e o abraçou.

- Nunca mais me assuste desse jeito - sussurrou emocionada.

- Agora, não me critique - murmurou ele e acariciou-lhe os cabelos. - Rabugenta como sua mãe. Cuide bem dela - ordenou para Justin. - Não quero meu próximo neto ou neta nascendo diante de uma máquina de caça-níqueis.

- As apostas estão oito a cinco que dessa vez é uma menina - respondeu Justin.

- Vocês estão na frente. - Sorrindo, Daniel virou-se para Diana. - Você precisa alcançá-la.

- Não seja ganancioso - replicou ela e segurou-lhe a mão.

- Um homem tem o direito de ser ganancioso quando chega a certa idade, não é, Anna?

- Uma mulher tem o direito de tomar suas próprias decisões... em qualquer idade.

- Ah! - Verdadeiramente satisfeito consigo mesmo, Daniel olhou ao redor do quarto. - Nunca mencionei que a mãe de vocês lutou por direitos iguais antes que isso fosse moda, mencionei? Morar com ela não foi nada além de um teste. E pare de medir minha pulsação, mulher. Não há remédio melhor para um homem do que a sua família.

- Então, talvez devêssemos lhe dar um pouco mais. - Anna gesticulou para a enfermeira do lado de fora da porta. Com um suspiro, encostou-se contra a cama. Eles já estavam quebrando todas as regras do hospital. Que diferença fazia mais uma violação? Sentiu os dedos de Daniel se apertarem ao redor dos seus quando Alan empurrou a cadeira de rodas na qual Shelby estava sentada para dentro do quarto.

- O que é isso? - ele exigiu saber, e teria tentado se sentar se Anna não o tivesse impedido.

- Este - começou Shelby, descobrindo o pequeno pacotinho em seus braços - é Daniel Campbell MacGregor. Ele tem oito horas e vinte minutos e queria ver o avô.

Alan pegou o filho para colocar nos braços de seu pai. Tinha passado a noite rezando para que fosse capaz de fazer exatamente isso.

- Que visão - murmurou Daniel, sem incomodar-se em reprimir as lágrimas. - Um neto, Anna. Ele tem o meu nariz. Olhe, está sorrindo para mim. - Quando Anna se inclinou, Daniel riu. - E não me fale aquelas bobagens sobre os reflexos. Médicos! Conheço um sorriso quando vejo um. - Olhando para cima, sorriu para o filho. - Bom trabalho, Alan.

- Obrigado. - Ainda maravilhado pelo filho, Alan se sentou na beira da cama. Com uma das mãos, cobriu a do pai sobre o bebê. Por um momento, três gerações de MacGregor do sexo masculino estavam felizes.

- Campbell - Daniel disse abruptamente. - Você falou Campbell? - Seus olhos prenderam os de Shelby.

- Certamente falei. - Ela pegou a mão livre de Alan quando se levantou. Podia ter saído da sala de parto a menos de nove horas, mas se sentia forte como um touro. Com certeza, forte como um MacGregor. - É melhor você aceitar o fato de que ele é meio Campbell, MacGregor. - Com a risada de seu irmão, ela ergueu mais o queixo.

- Possivelmente a melhor metade.

Os olhos de Daniel brilharam. Anna notou-lhe a cor do rosto e aprovou. Ele abriu a boca, então riu até ficar fraco.

- Que língua afiada tem essa garota. Pelo menos você teve o bom senso de dar-lhe o nome de Daniel.

- Nomeei-o em homenagem a alguém que amo e admiro.

- Bajulação. - Ele sinalizou, relutante, para Alan pegar o bebê. Pegando a mão de Shelby, segurou-a entre as duas suas. - Você está maravilhosa.

Ela sorriu, um pouco admirada com as lágrimas que viu nos olhos do sogro.

- Eu me sinto maravilhosa.

- Você devia tê-la ouvido xingar o médico. - Encantado com a esposa, Alan deu-lhe um beijo na testa. -Ameaçou levantar-se e ir para casa ter o bebê sem a interferência dele. E teria feito isso mesmo, se o pequeno Daniel não tivesse idéias diferentes.

- Bom para você - decidiu Daniel, e pensou que seu nome combinava muito com o neto. - Nada pior do que ter um médico revirando você quando quer fazer as coisas do seu jeito. - Após enviar um sorriso amável a Anna, voltou-se para Shelby. - Agora, quero que volte para cama, que é o seu lugar no momento. Não quero me preocupar com você. Deu um presente a todos nós.

Ela inclinou-se para beijar-lhe o rosto.

- Você me deu um presente. Alan. Amo você, seu velho texugo.

- Fala exatamente como uma Campbell. Vá para cama.

- Sinto muito, mas todos precisam sair agora, antes que a diretoria do hospital me chame para reclamar.

-Mas, Anna...

- Se o pai de vocês descansar bastante - ela virou-se para lhe dar um olhar de aviso -, vai sair da UTI pela manhã.

Não foi rápido, não foi sem barulho ou confusão, mas Anna finalmente conseguiu esvaziar o quarto. Fingiu não ouvir Daniel pedindo um jogo de pôquer com Justin mais tarde, ou exigindo que Caine pegasse seus charutos que estavam escondidos no escritório. Se ele não tivesse feito suas exigências, ela ficaria preocupada. Independentemente de quanto Daniel protestasse, Anna sabia que visitas eram uma bênção, mas também muito cansativas. Até que ficasse satisfeita com a condição de seu marido, manteria as visitas futuras mais curtas. O truque era fazê-lo pensar que a idéia era dele. Anna tinha anos de prática.

- Agora - ela aproximou-se da cama e tirou-lhe os cabelos da testa -, tenho de fazer uma dúzia de coisas que deixei de lado enquanto me preocupava desnecessariamente com você. Quero que durma.

Ele podia demonstrar ser mais fraco agora que estava apenas com ela.

- Não quero que você vá ainda, Anna. Sei que está cansada, mas preciso que fique só mais um pouquinho.

- Tudo bem. - Ela sentou-se na cadeira ao seu lado novamente. - Descanse.

- Nós fizemos um bom trabalho, não fizemos? Ela sorriu, sabendo que ele falava dos filhos.

- Sim, fizemos um excelente trabalho.

- Sem arrependimentos? Intrigada, Anna meneou a cabeça.

- Que pergunta tola.

- Não. - Ele pegou-lhe a mão na sua. - Ontem à noite, eu sonhei. Sonhei com você. Começou na noite em que nos conhecemos, naquela primeira valsa.

- O baile de verão - murmurou ela. Tinha apenas de sorrir para ver a luz da lua, sentir o aroma das flores.

Estranho, havia sonhado com aquilo, também. - Foi uma noite linda.

- Você estava linda - corrigiu Daniel. - E eu a quis mais do que qualquer coisa que já desejei na vida.

- Você era arrogante - lembrou ela, sorrindo. - E muito atraente. - Inclinando-se, beijou-o suave e demorada-mente. A mesma paixão que haviam compartilhado no começo pairava sobre os dois. -Você ainda é, Daniel.

- Estou velho, Anna.

- Ambos estamos velhos.

Ele pressionou-lhe a mão nos lábios. O anel que lhe dera tantos anos atrás estava frio contra sua pele.

- E eu ainda a quero mais do que já quis qualquer coisa na vida.

Ignorando regras e procedimentos, Anna deitou-se ao lado dele na cama e descansou a cabeça no ombro forte.

- Vou perder minha reputação por isso. - Ela fechou os olhos. - Vale a pena.

- Olhe quem está falando sobre reputações. - Daniel roçou os lábios nos cabelos de sua amada. O aroma era o mesmo depois de todos aqueles anos. - É estranho, Anna. Continuo sentindo um forte desejo por torta de pêssego.

Ela ficou imóvel por um minuto, sonolenta, então abriu os olhos com uma risada. Eles eram jovens e travessos quando Anna inclinou a cabeça em direção à dele.

- Assim que você estiver num quarto particular.

 

                                                                                            Nora Roberts

 

 

                      

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