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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


Lua de Sangue / Nora Roberts
Lua de Sangue / Nora Roberts

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Lua de Sangue

 

    Acordou no corpo de uma amiga morta. Tinha oito anos, era alta para a idade, frágil de ossos, delicada de feições. O cabelo era da cor do milho sedoso, e caía-lhe pelas costas estreitas, embelezando-as. A mãe adorava escová-lo todas as noites, cem vezes, com a escova de prata de cerdas suaves que estava sobre a graciosa cômoda de madeira de cerejeira.

    O corpo da criança recordava-se, sentia cada passagem demorada da escova fazendo-a imaginar-se um gato a ser escovado. Lembrava-se de como a luz incidia obliquamente nas caixinhas e nas garrafas de cristal e cobalto, e batia na escova de prata que reluzia sobre o cabelo.

    Lembrava-se do cheiro do quarto, sentia-o naquele momento. Gardênia. Sempre gardênia para a mamãe.

    E no espelho, à luz da luminária, conseguia ver a palidez oval do seu rosto, tão jovem, tão bonito, com aqueles olhos azuis e profundos e a pele suave. Tão vivo.

    Chamava-se Hope.

    As janelas e as portas de vidro mantinham-se fechadas, pois o verão estava no auge. O calor pressionava os dedos úmidos contra os vidros, mas dentro de casa o ar era fresco e a sua camisola de algodão estava tão seca que parecia estalar quando ela se mexia.

    Era o calor que ela desejava, e a aventura, mas manteve esses pensamentos guardados dentro de si quando deu à mamãe um beijo de boas-noites. Um beijo de leve, delicado, numa face perfumada.

    Em junho, a mamãe mandava tirar as cortinas do hall e levá-las para o sótão. As tábuas do soalho de pinho encerado tinham um toque liso e suave sob os pés descalços da garotinha, que saiu do quarto, atravessou o corredor com os seus painéis de cipreste e os seus quadros de molduras pesadas em ouro mate. Seguiu o serpentear da escada até ao escritório do pai.

    Lá estava o cheiro do pai. Fumo, couro, Old Spice e bourbon.

    Adorava esta divisão da casa, com as suas paredes perfeitas e as suas cadeiras grandes e pesadas, estofadas em couro da cor do vinho do Porto que o papai bebia às vezes, depois do jantar. As estantes em volta estavam apinhadas de livros e tesouros. Amava o homem que se sentava à enorme escrivaninha, com o seu charuto e o seu pequeno copo de uísque e os seus livros de contabilidade.

    O amor era uma dor no coração da mulher dentro da criança, uma lança de saudade e de inveja desse amor simples e completo.

    A voz dele troava, os seus braços eram fortes e o seu estômago suave enquanto a envolvia num abraço tão diferente do beijo de boas-noites delicado e comedido da mamãe.

    Lá vai a minha princesa para o Reino dos sonhos.

    Com que é que vou sonhar, papai?

    Cavaleiros e cavalos brancos e aventuras no mar.

    Ela riu, mas deixou ficar a cabeça no ombro dele um pouco mais do que o habitual, sussurrando qualquer coisa na garganta como um gatinho a ronronar.

    Saberia? Saberia que nunca mais voltaria a sentar-se naquele colo seguro?

    Voltou a descer a escada, passou pelo quarto de Cade. Não estava deitado, ainda não, porque era quatro anos mais velho e rapaz, e podia ficar acordado até mais tarde nas noites de verão, vendo televisão ou lendo livros, desde que se levantasse de manhã pronto para os seus deveres.

    Um dia Cade seria dono de Beaux Revés e sentar-se-ia à grande escrivaninha do escritório com os livros da contabilidade. Contrataria e dispensaria pessoal e supervisionaria as sementeiras e as colheitas e fumaria charutos nas reuniões e queixar-se-ia do governo e do preço do algodão.

    Porque ele era o filho.

    Hope não se importava. Não queria ter de sentar-se a uma escrivaninha a somar números.

    Parou diante da porta do quarto da irmã e hesitou. Faith não estava bem. Faith parecia estar sempre mal. Lilah, a governanta, dizia que Miss Faith discutiria com Deus-Todo-Poderoso só para irritá-Lo.

    Hope achava que isso era verdade, e embora Faith fosse sua irmã gêmea não compreendia o que a fazia estar constantemente irritada. Esta noite tinham-na mandado diretamente para a cama, por ter sido insolente. A porta estava completamente fechada e não se via luz por baixo da porta. Hope imaginou que Faith estaria a olhar fixamente para o teto, com aquele olhar amuado no rosto e os punhos fechados, como que à espera de esmurrar o escuro.

    Hope tocou na maçaneta. Quase sempre conseguia acalmar Faith e tirá-la daquela disposição soturna. Conseguia enrolar-se na cama com ela, às escuras, e inventar histórias até Faith rir e as chispas nos seus olhos desaparecerem.

    Mas esta noite era para outras coisas. Esta noite era para aventuras.

    Estava tudo planejado, mas Hope não deixou que a excitação tomasse conta dela até estar no seu quarto, com a porta fechada. Manteve a luz apagada, movendo-se em silêncio na escuridão prateada pelo luar. Trocou a sua camisa de noite de algodão por uns calções e uma T-shirt. O coração batia-lhe agradavelmente no peito enquanto dispunha as almofadas sobre a cama, numa forma que aos seus olhos ingênuos de criança parecia alguém a dormir.

    Debaixo da cama tirou o seu kit de aventuras. A velha lancheira com tampa arredondada continha uma garrafa de Coca-Cola que entretanto aquecera, um saco de bolachas cuidadosamente surripiadas do pote na cozinha, um pequeno canivete enferrujado, fósforos, uma bússola, uma pistola de água - carregada - e uma lanterna vermelha, de plástico.         

    Ficou sentada no chão por um momento. Sentia o cheiro dos seus lápis de cera e do pó de talco, colado à sua pele desde o banho. Ouvia a música muito tênue vinda da salinha da sua mãe.

    Quando abriu a janela e tirou a rede mosquiteira, sem fazer barulho, estava sorrindo.

    Jovem, ágil, e louca de excitação, passou a perna por cima do parapeito e apoiou o pé na treliça coberta pela glicínia.

    O ar parecia xarope, e o sabor quente e doce encheu-lhe os pulmões, enquanto descia. Uma lasca de madeira espetou um dedo da sua mão, fazendo-a soltar um silvo abafado. Mas continuou, de olhos postos nas janelas iluminadas do primeiro andar. Era uma sombra, pensou, e ninguém conseguia vê-la.

    Era Hope Lavelle, espiã, e tinha um encontro com o seu contacto às dez e meia em ponto.

    Teve de abafar uma gargalhada nervosa e quando chegou ao chão estava arquejante, do riso que queria soltar.

 

    Para acrescentar mais emoção, correu e apressou-se a esconder-se atrás dos troncos grossos das velhas árvores de grande porte que sombreavam a casa, e depois espreitou, de trás delas, a luz azul e fraca que pulsava na janela do quarto onde o seu irmão estava vendo televisão, e o halo amarelo, mais nítido, de onde os seus pais passavam o serão.

    Ser descoberta naquele momento equivaleria a um desastre para a sua missão, pensou, acocorando-se enquanto atravessava os jardins, por entre o aroma doce das rosas e do jasmim. Tinha de evitar ser capturada, a todo o custo, pois o destino do mundo assentava nos seus ombros e nos da sua fiel companheira.

    A mulher dentro da criança gritou. Volta para trás, por favor volta para trás. Mas a criança não ouviu.

    Tirou a sua bicicleta cor-de-rosa de trás das camélias, onde a escondera naquela tarde, meteu o kit no cesto branco e depois empurrou-a por cima da almofada de relva, ao longo do caminho de cascalho, até a nitidez da casa e das luzes se perder na distância.

    Pedalava velozmente, imaginando que a bonita bicicleta era uma moto toda artilhada, equipada com disparador de gás de nervos e óleo escorregadio. As tiras de plástico branco dançavam nas pontas do guidom, batendo umas nas outras alegremente.

    Voava, atravessando o ar espesso, e o coro de chilreios e vozes de cigarras transformou-se no rugido de pantera da sua máquina veloz.

    No sítio onde a estrada se bifurcava, virou à esquerda e depois saltou agilmente da bicicleta, empurrando-a para fora da estrada até a ravina estreita onde iria ficar escondida pelos arbustos. Embora a lua estivesse suficientemente brilhante, tirou a lanterna do kit. A sorridente Princesa Leia do seu relógio disse-lhe que chegara quinze minutos antes da hora. Sem medo e sem pensar, meteu-se pelo caminho estreito que conduzia ao pântano.

    Ao fim do verão, da infância. Da vida.

    Ali, havia um mundo vivo de sons, de água e de insetos e pequenas criaturas noturnas. A luz entrava em fitas estreitas pela abóbada de árvores da borracha e ciprestes, de onde pendia musgo. Aqui, as magnólias eram enormes e delas desprendia-se um perfume penetrante e doce. Conhecia de cor o caminho para a clareira. Este local de encontro, este local secreto, estava bem cuidado, guardado e era muito amado.

    Como fora a primeira a chegar, tirou da pilha de lenha gravetos velhos e ramos curtos e grossos e começou a fazer uma fogueira.

   

    O fumo afastou os mosquitos, mas mesmo assim coçou vagamente as picadelas que já lhe ponteavam as pernas e os braços.

    Preparou-se para esperar, com uma bolacha e a Coca-Cola.

    O tempo foi passando e seus olhos começaram a se fechar, embalados pela música do pântano. O fogo consumiu a lenha magra até não ser mais do que uma réstia de calor. Cambaleante, pousou a cabeça nos joelhos dobrados.

    O restolhar começou por fazer parte do seu sonho, onde se esquivava pelo emaranhado das ruas de Paris para fugir ao malvado espião russo. Mas o estalar de um ramo debaixo de um pé fê-la levantar a cabeça e afastar o sono dos olhos. Sorriu de imediato, mas depressa transformou o sorriso na expressão resoluta e profissional de uma agente secreta.

    A senha!

    Silêncio no pântano, à exceção do zumbido monótono dos insetos e do ligeiro crepitar da fogueira quase extinta.

    Pôs-se de pé e a lanterna acendeu em sua mão como se empunhasse uma arma. A senha!, voltou a gritar, dirigindo o curto feixe de luz para o local de onde viera o ruído.

    Mas agora ouviu o restolhar atrás de si, por isso virou-se, com o coração a bater descompassadamente e a luz da lanterna a dançar em movimentos nervosos. O calor do medo, algo que raramente sentira em oito curtos anos, apoderou-se dela, queimando-lhe a garganta.

    Vá lá, pára com isso. Não me assustas.

    Um som vindo da esquerda, cauteloso, escarninho. Quando uma nova serpente de medo se lhe enrolou nas entranhas, deu um passo atrás.

    E ouviu o riso, leve, ofegante, próximo.

    Ela corria agora, através das sombras espessas e da luz trêmula. O terror cortante na garganta esquarteja os gritos antes de estes conseguirem escapar. Passos ressoam atrás de si. Rápidos, demasiado rápidos, e demasiado próximos. Qualquer coisa atinge-a pelas costas. Uma dor aguda vibra até à sola dos pés. Os ossos e a respiração são sacudidos num espasmo quando ela cai no chão. O ar é empurrado para fora dos pulmões, num soluço, quando o peso dele a prende junto ao solo. Cheira-lhe a suor e a uísque.

    E grita, agora, um longo grito de desespero, e chama pela amiga.

    Tory! Tory, ajuda-me!

    E a mulher prisioneira da criança morta chora.

   

    A sua melhor amiga, a sua irmã do coração. Morrera naquela noite, no pântano, enquanto ela estava trancada no quarto, a soluçar depois da última surra que levara.

    E ela soubera. E vira. E não pudera fazer nada.

    A culpa assolou-a, fresca como dezoito anos antes.

    - Não posso ajudar-te - repetiu. - Mas vou voltar.

    Tínhamos oito anos, naquele verão. Naquele verão distante, em que nos parecia que os dias intensos e abafados iriam durar para sempre. Foi um verão de inocência e de imprudência, e de amizade, o tipo de mistura capaz de formar uma bela redoma de vidro à volta do nosso mundo. Uma noite mudou tudo isso. Desde então, nada voltou a ser o mesmo para mim. Como poderia ser o mesmo!

    Ao longo de quase toda a minha vida tenho evitado falar no assunto. Isso não impediu as recordações, as imagens. Mas durante algum tempo tentei enterrá-lo, tal como Hope estava enterrada. Enfrentá-lo agora, dizer isto em voz alta, ainda que apenas para mim própria, é um alívio. É como arrancar um estilhaço do coração. A dor ainda vai prolongar-se um pouco.

    Ela era a minha melhor amiga. Os laços que nos ligavam tinham a profundidade e a intensidade imediata que apenas as crianças são capazes de tecer. Acho que formávamos uma parelha estranha, a luminosa e privilegiada Hope Lavelle e a sombria e tímida Tory Bodeen. O meu pai cultivava uma pequena parcela de terreno, um cantinho da enorme plantação de que o dela era dono. Às vezes, quando a mãe dela dava um grande jantar ou uma das suas festas exuberantes, a minha ajudava a limpar e a servir.

    Mas essas diferenças de estrato social e de classe nunca beliscaram a amizade. Na verdade, foi questão que nunca nos ocorreu.

    Ela vivia numa casa enorme, que o seu pai, bem conhecido pela sua excentricidade, construíra não ao estilo Georgiano, tão popular na época, mas no intuito de que se assemelhasse a um castelo. Era de pedra, com torres e torreões, e aquilo que se poderia chamar ameias, acho eu. Mas não havia nada de princesa em Hope.

    Vivia para a aventura. E eu também, quando estava com ela. Com ela fugia aos tormentos e à confusão da minha casa, da minha vida, e tornava-me companheira dela. Éramos espiãs, detetives, cavaleiros, piratas, ou salteadores do espaço. Éramos corajosas e autênticas, temerárias e ousadas.

    Na primavera antes desse verão usamos o canivete dela para fazer um pequeno corte nos nossos pulsos. Solenemente, misturamos os nossos sangues. Acho que tivemos sorte em não termos acabado com tétano. Em vez disso, tornamo-nos irmãs de sangue.

   

    Ela tinha uma irmã gêmea. Mas Faith raramente se juntava às nossas brincadeiras. Eram demasiado idiotas para ela, ou demasiado brutas, ou demasiado sujas. Eram sempre demasiado qualquer coisa para Faith. Não sentíamos a falta do mau feitio nem das queixas dela. Naquele verão, eu e Hope éramos as gêmeas.

    Se alguém me tivesse perguntado se eu a amava, teria ficado atrapalhada. Não teria compreendido. Mas todos os dias, desde aquele momento terrível naquele agosto, sinto a falta dela como sinto a falta da parte de mim que morreu com ela.

    Tínhamos combinado encontrar-nos no pântano, no nosso lugar secreto. Acho que não era lá grande segredo, mas era nosso. Brincávamos lá muitas vezes, naquele ar úmido e verde onde tínhamos as nossas aventuras por entre as canções dos pássaros, o musgo e as azáleas selvagens.

    Era contra as regras ir até lá depois do pôr do Sol, mas aos oito anos quebrar regras é uma excitação.

    Comprometi-me a levar marshmallows e limonada. Em parte, por orgulho. Os meus pais eram pobres e eu era ainda mais pobre do que eles, mas precisava de contribuir e contei todo o dinheiro que tinha no frasco que escondia debaixo da mesa. Tinha dois dólares e oitenta e seis cêntimos naquela noite de agosto - depois de ter feito as compras no Hanson 's -, o que restava do meu pecúlio monetário consistia apenas em algumas moedas.

    Jantamos frango com arroz. A casa estava tão quente, mesmo com as ventoinhas ligadas no máximo, que comer era um suplício. Mas mesmo que houvesse um só grão de arroz no prato, o pai esperava que o comêssemos e nos sentíssemos gratos por isso. Dávamos graças antes do jantar.

    Dependendo da disposição do pai, isso demorava entre cinco e vinte minutos, enquanto a comida ficava ali, a esfriar, e a barriga dava voltas e o suor nos escorria pelas costas em rios pegajosos.

    A minha avó costumava dizer que quando Hannibal Bodeen encontrava Deus, até Deus tentava encontrar um lugar para se esconder.

    Era um homem grande, o meu pai, e o peito e os braços tornaram-se-lhe cada vez mais largos. Ouvi dizer que o consideravam bonito, quando era jovem. As marcas que os anos deixam num homem variam, e os anos que passaram pelo meu pai deixaram as marcas do azedume. Azedume e rispidez, com um toque de maldade. Usava o cabelo escuro puxado para trás, e o rosto parecia sair daquela cúpula como rochas de arestas afiadas que saem de uma montanha. Rochas que nos esfolavam até aos ossos se déssemos um passo em falso. Também tinha os olhos escuros, de um escuro que queimava e que reconheço agora nos olhos de alguns pregadores na televisão e de alguns sem-abrigo.

   

    A minha mãe tinha medo dele. Tento perdoar-lhe isso, o ter tanto medo dele que nunca me defendeu quando ele usava o cinto para meter dentro de mim, à chibatada, o deus vingativo dele.

    Naquela noite estive sossegada ao jantar. Era muito possível que ele não desse por mim se eu estivesse sossegada e limpasse o meu prato. Dentro de mim, a excitação antecipada era como uma coisa viva, que me deixava tensa e feliz. Mantive os olhos baixos, tentando comer ao ritmo certo, para ele não me acusar de embromar ou de devorar a comida. Com o pai, era sempre difícil encontrar o ponto de equilíbrio.

    Lembro-me do som das ventoinhas a trabalhar, e dos garfos a tocar nos pratos. Lembro-me do silêncio, do silêncio das almas escondidas, com medo, que viviam na casa do meu pai.

    Quando a minha mãe lhe ofereceu mais frango, ele agradeceu-lhe educadamente e demorou um segundo a servir-se. A sala pareceu respirar melhor. Era bom sinal. A minha mãe, encorajada por isto, fez um comentário qualquer sobre os tomates e o milho estarem a produzir bastante e sobre as conservas que ia fazer durante as próximas semanas. Também andavam a fazer conservas em Beaux Revés, e ela quis saber se ele achava uma boa idéia ela ir ajudar, porque lhe tinham pedido.

    Não falou em quanto iria ganhar. Mesmo quando a disposição do pai não era má de todo, era sensato não mencionar o dinheiro que os Lavelle pagavam por um serviço, em jeito de caridade. Ele era o ganha-pão em sua casa, e não nos era permitido esquecer este ponto tão importante.

    A sala voltou a suster a respiração. Havia alturas em que a simples menção do nome dos Lavelle fazia trovejar o olhar do pai. Mas naquela noite deixou, achando que isso se afigurava uma coisa sensata. Desde que ela não negligenciasse nenhuma das suas tarefas debaixo do teto que ele punha sobre a cabeça dela.

    Esta resposta relativamente agradável fê-la sorrir. Lembro-me de como o rosto dela se suavizou e de como isso quase voltou a fazê-la bonita. De vez em quando, se pensar com muita força, consigo lembrar-me de que a mamãe era bonita.

    Han, chamou-lhe ela enquanto sorria. A Tory e eu vamos manter as coisas a funcionar por aqui, não te preocupes. Vou falar com Miss Lilah, amanhã, e combinar tudo. Com as bagas que estão a ficar prontas para colher também vou fazer doce. Sei que tenho parafina algures, mas não consigo lembrar-me onde.

    E isso, apenas aquela referência casual ao doce e à parafina e a falta de cuidado, mudou tudo. Suponho que o meu pensamento tenha divagado durante a conversa deles, que estivesse a pensar na aventura que estava para breve. Falei sem pensar, sem saber as consequências. E assim disse as palavras que me condenaram.

    A caixa da parafina está na prateleira de cima do armário, por cima do fogão, atrás do melaço e do amido de milho.

    Limitei-me a mencionar o que imaginei, a caixa quadrada de parafina atrás da garrafa escura de mel de cana, e peguei no meu chá frio e doce para me ajudar a engolir os grãos duros de arroz.

    Antes de beber o primeiro gole, ouvi o silêncio regressar, a vaga muda que submergiu tudo, até o zumbido monótono das pás da ventoinha. O meu coração começou a bater com força dentro daquele vácuo, uma pancada forte após a outra, acompanhado de um tinir que estava apenas na minha cabeça e que vinha do pulsar súbito e alterado do sangue. O pulsar do medo.

    Ele falou com suavidade, como fazia, como fazia sempre antes da fúria. Como sabes onde está a parafina, Vitoria? Como sabes que está ali em cima, onde não consegues vê-la? Onde não consegues chegar-lhe?

    Menti. Foi uma tolice, porque já estava condenada, mas a mentira saiu precipitadamente, numa defesa desesperada. Disse-lhe que achava que tinha visto a mamãe pô-la lá. Lembro-me de a ter visto pô-la lá, mais nada.

    Ele reduziu a mentira a pó. Tinha uma maneira de conseguir ver através das mentiras e de rasgá-las em pedaços de todos os tamanhos, pegajosos. Quando tinha eu visto isso? Porque não era melhor na escola, se a minha memória era tão boa que conseguia lembrar-me onde estava a parafina um ano depois da última época das conservas? E como sabia que estava atrás do melaço e do amido de milho e não à frente deles, ou ao lado deles?

    Ah, era um homem esperto, o meu pai, e nunca falhava o mais pequeno pormenor.

    A mãe não disse nada enquanto ele falava naquele tom suave, atirando-me as palavras como murros embrulhados em seda. Entrelaçou as mãos, que tremiam. Tremeria por minha causa? Acho que gosto de pensar que sim. Mas ela não disse nada quando a voz dele subiu de tom, nada quando ele empurrou a cadeira para trás, afastando-a da mesa. Nada quando o copo me escorregou da mão e se partiu no meio do chão. Um dos fragmentos de vidro feriu-me o tornozelo, e senti aquela pequena dor por entre o terror que crescia em mim.

    Primeiro verificou, claro. Terá dito a si próprio que era a coisa mais justa, a coisa certa a fazer. Quando ele abriu o armário, afastou as garrafas e, lentamente, tirou aquela caixa quadrada, azul, com parafina, de trás do melaço escuro, chorei. Nessa altura ainda tinha esperança. Mesmo quando ele me puxou e me obrigou a levantar-me, tive esperança de que o castigo fosse apenas orações, horas de oração até os meus joelhos ficarem entorpecidos. Às vezes, pelo menos às vezes naquele verão, isso era suficiente para ele.

    Não me tinha avisado para não deixar entrar o demônio? Mas, mesmo assim, eu tinha trazido a maldade para aquela casa, tinha-o envergonhado perante Deus. Pedi-lhe desculpa, disse-lhe que não tinha feito de propósito. Por favor, papai, por favor, não volto a fazer. Vou ser boa.

    Implorei-lhe, ele gritou escrituras e com as suas mãos grandes e duras arrastou-me até ao meu quarto, mas eu continuei a implorar-lhe. Foi a última vez que fiz isso.

    Não ofereci resistência. Era pior quando lhe oferecia resistência. O quarto mandamento era uma coisa sagrada, e o pai era para honrar naquela casa, mesmo quando ele nos batia até fazer sangue.

    Tinha o rosto vermelho de integridade, grande e ofuscante como o sol. Deu-me uma bofetada só. Foi o que bastou para calar as minhas súplicas e as minhas desculpas. E para matar a minha esperança.

    Fiquei deitada em cima da cama, de barriga para baixo, passiva como um cordeiro prestes a ser sacrificado. O som do cinto quando ele o fez passar pelas presilhas das calças de trabalho foi o de o silvo de uma cobra e depois um estampido, preciso e hábil, quando ele o fez estalar.

    Fazia-o estalar sempre três vezes. Uma santíssima trindade de crueldade.

    O primeiro golpe é sempre o pior. Seja qual for o número de primeiras vezes, o choque e a dor deixam-nos atordoados e arrancam-nos um grito das entranhas. O corpo contorce-se, em sinal de protesto. Não, em sinal de descrença. Então, somos atingidos pelo segundo golpe e pelo terceiro.

    Em breve os gritos tornam-se mais animais do que humanos. A nossa humanidade foi comprometida, enterrada sob uma avalanche de dor e humilhação.

    Pregava enquanto me batia, e a voz dele troava. E sob esse troar havia uma excitação horrível, uma espécie de prazer que eu não compreendia. Nenhuma criança devia conhecer essa sensação e, durante algum tempo, eu fui poupada.

    A primeira vez que ele me bateu eu tinha cinco anos. A minha mãe tentou impedi-lo, e ele lhe pôs um olho negro. Ela não voltou a tentar. Não sei o que ela fez naquela noite enquanto ele zurzia o demônio que me fazia ter visões. Não consegui ver, nem com os olhos nem com a mente, senão um torpor ensanguentado.

    Ele deixou-me a chorar e fechou a porta à chave, por fora. Algum tempo depois, a dor fez-me adormecer.

    Quando acordei estava escuro e um fogo parecia arder dentro de mim. Não posso dizer que a dor fosse insuportável, porque a suportei. Que escolha tinha? Também rezei, rezei para que o que quer que estivesse dentro de mim tivesse sido finalmente arrancado. Não queria ser má.

    Contudo, enquanto rezava, senti a pressão na barriga e o formigueiro, como pequenos dedos pontiagudos a dançar na parte de trás do pescoço. Foi a primeira vez que me aconteceu desta maneira, e pensei que estava doente, com febre.

    Então vi Hope, tão claramente como se estivesse sentada ao lado dela na nossa clareira, no pântano. Cheirei a noite, a água, ouvi o gemido dos mosquitos, o zumbido dos insetos. E, como Hope, ouvi o restolhar nos arbustos. Como Hope, senti medo. Em jorros vivos, quentes. Quando ela fugiu, eu fugi, a minha respiração soluçante, magoando-me o peito. Vi-a soçobrar sob o peso do que quer que saltou sobre ela. Uma sombra, uma forma que não consegui ver claramente, embora conseguisse ver a ela.

    Ela chamou por mim. Gritou por mim.

    Depois, não vi mais nada senão escuridão. Quando acordei, o Sol ia alto e eu estava no chão. E Hope tinha desaparecido.

   

    Optara por se perder em Charleston, e o conseguira durante quase quatro anos. A cidade fora para ela como uma mulher encantadora e generosa, mais do que disposta a acarinhá-la no seu colo macio e a acalmar os nervos esfrangalhados nas ruas implacáveis de Nova Iorque.

    Em Charleston as vozes eram mais lentas, e ela conseguia misturar-se na sua corrente morna e fluida. Podia esconder-se, como acreditara que poderia esconder-se nas multidões compactas e apressadas do Norte.

    O dinheiro não era problema. Sabia viver com frugalidade e estava disposta a trabalhar. Guardara as suas economias como um falcão, e quando esse ovo começou a crescer no ninho permitiu-se sonhar em ter o seu próprio negócio, em trabalhar por conta própria e em viver a vida calma e sem sobressaltos que sempre lhe escapara.

    Vivia metida consigo mesma. As amizades verdadeiras implicavam relações verdadeiras. Não tivera a vontade ou a força suficientes para voltar a abrir-se a elas. As pessoas faziam perguntas. Queriam saber coisas sobre nós, ou fingiam querer saber.

    Tory não tinha respostas para dar, nem nada para dizer.

    Descobriu a pequena casa - velha, arruinada, perfeita - e negociara ferozmente o preço até conseguir comprá-la.

    As pessoas subestimavam muitas vezes Victoria Bodeen. Viam uma mulher jovem, pequena e franzina. Viam a pele macia e as feições delicadas, uma boca séria e olhos cinzentos e límpidos que eram frequentemente tomados por ingênuos. Um nariz pequeno, apenas ligeiramente curvado, acrescentava um toque de doçura a um rosto emoldurado por cabelo castanho bem alinhado. Viam fragilidade, ouviam-na na musicalidade sulista da sua voz. E nunca viam o aço, por dentro. O aço moldado pelos inúmeros golpes do cinto de Sam Browne.

    Quando queria alguma coisa trabalhava para ela, lutava por ela, com toda a garra e a determinação de um soldado na linha da frente empenhado em chegar à praia. Quisera a velha casa com o seu jardim tomado pelo crescimento excessivo das plantas e com a tinta a soltar-se das paredes, e mexera-se e agira, insistira e persistira, até adquiri-la. Os apartamentos traziam-lhe recordações de Nova Iorque e do desastre que acabara com a sua vida, lá. Não haveria mais apartamentos para Tory.

    Dera também o seu contributo àquele investimento, usando o seu tempo, o seu trabalho e as suas habilidades para reabilitar a casa, uma divisão de cada vez. Demorara três anos inteiros, e agora a venda, a acrescer às suas economias, ia fazer o seu sonho tornar-se realidade.

    Tudo o que tinha a fazer era regressar a Progress.

    À sua mesa da cozinha, Tory leu pela terceira vez o contrato de arrendamento do espaço em Market Street. Perguntou-se se Mr. Harlowe, da agência imobiliária, se lembrava dela.

    Tinha apenas dez anos quando se mudaram de Progress para Raleigh, para os pais dela arranjarem um trabalho fixo. Um trabalho melhor, argumentara o pai, do que escarafunchar num pedaço de terra estafado e alugado pelos todos-poderosos Lavelle.

    Claro que tinham sido tão pobres em Raleigh como em Progress. Tinham ficado apenas com menos espaço.                    

    Não interessava, recordou Tory a si própria. Não ia voltar a ser pobre. Já não era a rapariga assustada e magricela de outrora, mas sim uma mulher de negócios que ia montar uma empresa nova na sua cidade natal.

    Então, perguntaria a sua analista, porque tem as mãos a tremer?

    Expectativa, decidiu Tory. Excitação. E nervos. Pronto, eram nervos. Os nervos eram humanos. Tinha direito a tê-los. Era uma pessoa normal. Era o que quer que desejasse ser.

    - Que se dane!

    De dentes cerrados, pegou na caneta e assinou o contrato.

    Era apenas por um ano. Um ano. Se não desse certo, partiria para outra. Já não seria a primeira vez. Parecia que estava sempre a partir para outra.

    Mas, desta vez, antes de partir para outra havia muito a fazer. O contrato de arrendamento era apenas uma fina camada de uma montanha de papel. As licenças para a loja que tencionava abrir estavam assinadas e seladas. Considerava o estado da Carolina do Sul um autêntico ladrão, mas pagara os impostos. A seguir tinha de instalar-se e tratar dos assuntos com os advogados que, pensava ela, eram piores que os ladrões.

    Mas, no final do dia, teria o cheque na mão e estaria a caminho.

    As malas estavam quase feitas. Não havia muito que emalar, pensou, pois vendera quase tudo o que adquirira desde que se mudara para Charleston. Viajar com pouca bagagem simplificava as coisas, e ela aprendera muito cedo que nunca, nunca devia ligar-se a uma coisa que pudesse ser-lhe retirada.

    Levantou-se, lavou a chávena, secou-a e depois embrulhou-a em jornal para acondicioná-la na pequena caixa de utensílios de cozinha que achou prático levar consigo. Da janela sobre o lava-louça observou o seu pequeno quintal.

    O pequeno pátio estava esfregado e varrido. Deixaria aos novos donos os vasos de barro com verbena e petúnias brancas. Esperava que tratassem do jardim, mas se resolvessem enterrá-lo debaixo de um pavimento, bem, era da conta deles.

    Deixara a sua marca ali. Podiam pintar e forrar as paredes a papel, pôr alcatifa e azulejos, mas o que ela fizera estaria ali primeiro. Estaria sempre primeiro que tudo o resto.

    Não se podia apagar o passado, nem matá-lo, nem desejar que ele deixasse de existir. Nem se podia afastar o presente ou mudar o que estava para vir. Estávamos todos fechados naquele ciclo de tempo, girando em torno de um centro de dias passados. Por vezes, esses dias passados eram suficientemente fortes, suficientemente voluntariosos para nos arrastarem, por mais que lutássemos contra isso.

    Conseguiria ser mais deprimente?, perguntou-se.

    Fechou a caixa, pegou-lhe para levá-la para o carro, e saiu da cozinha sem olhar para trás.

    Três horas mais tarde, o cheque da venda da sua casa foi depositado. Apertou a mão aos novos donos, ouviu com delicadeza o seu entusiasmo estonteante por comprarem a sua primeira casa, e foi abrindo caminho até à saída.

    A casa, e as pessoas que doravante iam viver nela, já não faziam parte do seu mundo.

    - Tory, espere um minuto.

   

    Tory virou-se, com uma mão na porta do carro e o pensamento já na estrada. Mas esperou até a sua advogada acabar de atravessar o parque de estacionamento do banco. Serpentear por ele, diria, corrigiu Tory. Abigail Lawrence nunca apressava nada nem ninguém, especialmente a si própria. O que provavelmente explicava por que motivo parecia sempre acabada de sair graciosamente das páginas da Vogue.

    Para o encontro de hoje escolhera um traje azul-pálido, pérolas que provavelmente devia ter herdado da bisavó, e saltos altos e finos que causavam cãibras nos tornozelos de Tory só de olhar para eles.

    - Uff! - Abigail agitou a mão diante do rosto, como se tivesse acabado de correr três quilometros e não andado dez metros. - Tanto calor, e ainda só estamos em abril. - Desviou o olhar de Tory para o carro e observou as caixas. - Então, vai-se mesmo embora?

    - Parece que sim. Obrigada, Abigail, por ter tratado de tudo.

    - Foi você que tratou da maior parte das coisas. Não me lembro de ter um cliente que compreendesse metade do que eu digo, muito menos de ter um capaz de me dar lições.

    Espreitou para a parte de trás do carro, vagamente surpreendida por a vida de uma mulher ocupar tão pouco espaço.

    - Não pensei que estivesse a falar a sério quando disse que se ia embora diretamente, hoje à tarde. Mas devia ter pensado. - Voltou a pousar o olhar no rosto de Tory. - É uma mulher séria, Victoria.

    - Não tenho motivos para ficar.

    Abigail abriu a boca e depois abanou a cabeça.

    - Ia dizer que a invejo. Fazer as malas, levar o que cabe no porta-bagagens do carro, e partir para um novo lugar, uma nova vida, um novo começo. Mas a verdade é que não a invejo. Nem um pouco. Deus Todo-poderoso, a energia que uma coisa dessas requer, e a coragem! Mas você é suficientemente jovem para ter tanto uma como a outra.

    - Talvez seja um novo começo, mas vou regressar às minhas origens. Ainda tenho família em Progress.

    - Se quer saber a minha opinião, ainda é preciso mais coragem para regressar às origens do que para partir para qualquer outro lugar. Espero que seja feliz, Tory.

    - Fico bem.

    - Bem é uma coisa. - Para surpresa de Tory, Abigail pegou-lhe na mão e depois inclinou-se, depositando-lhe um beijo ao de leve na face. - Feliz é outra. Seja feliz.

    - Tenciono ser. - Tory voltou atrás. Havia qualquer coisa naquele toque das mãos, qualquer coisa nos olhos preocupados de Abigail. - Você sabia - murmurou Tory.

     - Claro que sim. - Abigail apertou ligeiramente os dedos de Tory antes de soltá-los. - As notícias de Nova Iorque voam até aqui, e alguns de nós até lhes prestam atenção de vez em quando. Mudou o cabelo, o nome, mas eua  reconheci. Sou boa em memorizar rostos.

    - Porque não me disse nada? Não me perguntou nada?

    - Contratou-me para tratar dos seus negócios, não para me meter onde não era chamada. Achei que se quisesse que as pessoas soubessem que era a Victoria Mooney das notícias de Nova Iorque de há uns anos atrás, teria dito.

    - Obrigada.

    A formalidade e a cautela fizeram Abigail sorrir.

    - Por amor de Deus, querida, acha que lhe vou perguntar se o meu filho vai casar ou onde diabo perdi o anel de noivado com diamantes da minha mãe? Só estou a dizer que sei que passou por tempos difíceis e que espero que conheça melhores dias. E se tiver problemas em Progress, dê-me uma ligada.

    A bondade simples deixava-a sempre atrapalhada. Tory lutou desajeitadamente com a maçanete da porta.

    - Obrigada. A sério. Acho melhor ir andando. Tenho que fazer várias paradas. - Mas voltou a estender a mão. - Agradeço-lhe tudo o que fez.

    - Conduza com cuidado.

    Tory deslizou para dentro do carro e depois abriu a janela, enquanto punha o motor a trabalhar.

    - Na gaveta do meio, do arquivo do seu escritório, entre os Ds e os Es.

    - O que é isso?

    - O anel da sua mãe. Fica-lhe um bocado grande, caiu e ficou entre os arquivos. Devia mandá-lo ajustar à medida do seu dedo. - Tory apressou-se a fazer marcha atrás e deu a volta ao carro enquanto Abigail a seguia, piscando os olhos.

   

    Saiu de Charlston e rumou a oeste, e depois mergulhou no caminho para sul, para iniciar a planejada volta ao estado antes de aterrar em Progress. A lista de artistas e artesãos que tencionava visitar estava cuidadosamente impressa e guardada na sua mala nova. A lista incluía indicações para chegar a cada um, e isso significava entrar em várias estradas secundárias. Levava tempo, mas era necessário.

    Já tratara das coisas com vários artistas do Sul para exporem e venderem os seus trabalhos na loja que iria abrir em Market Street, mas precisava de mais. Começar uma coisa pequena não significava não começar bem.

    Os custos iniciais, a compra de artigos, encontrar um lugar aceitável para viver iam levar-lhe quase todo o dinheiro que poupara. Tencionava fazer com que o investimento valesse a pena e colher lucros.

    Dali a uma semana, se tudo corresse como planejado, estaria a começar a instalar a loja. No final de maio abriria as portas. Depois, veria.

    Quanto ao resto, lidaria com as coisas à medida que elas fossem surgindo. Na altura certa tomaria o caminho longo e sombrio até Beaux Revés e enfrentaria os Lavelle.

    Enfrentaria Hope.

   

    No final da semana Tory estava exausta, várias centenas de dólares mais pobre, graças a um radiador estragado, e pronta a pôr fim às suas viagens. A substituição do radiador significou o adiamento da sua chegada a Florence até à manhã seguinte e a necessidade de pernoitar no conforto duvidoso de um motel da Route 9, fora de Chester.

    O quarto tresandava a fumo bafiento, e as suas comodidades incluíam uma lasca de sabão e a possibilidade de aluguel de filmes destinados a estimular os apetites sexuais da clientela que pagava os quartos à hora e impedia que o estabelecimento decretasse falência. Havia manchas no carpete, cuja origem Tory decidiu ser melhor não procurar descobrir.

    Pagara o quarto em dinheiro, pois não lhe agradara a idéia de entregar o seu cartão de crédito a um empregado de olhar manhoso, que cheirava ao gin sabiamente disfarçado numa caneca de café.

    O quarto era tão repulsivo como a idéia de ficar atrás do volante durante mais uma hora, mas era o que havia. Tory pegou na cadeira bamba, a única que havia, e usou-a para trancar a porta, prendendo o espaldar sob a maçaneta. Achou que era tão segura como a corrente fina e ferrugenta. Mesmo assim, o uso de ambas deu-lhe a ilusão de segurança..

    Sabia que era um erro permitir a si própria estar tão cansada. A resistência quebrou-se. Mas tudo conspirara contra ela. O oleiro que visitara em Greenville era temperamental e difícil de agarrar. Se não fosse o fato de ser também brilhante, Tory teria saído do estúdio ao fim de vinte minutos, em vez de ter passado duas horas a elogiá-lo, a cair-lhe nas boas graças e a convencê-lo.

    O carro demorara mais quatro horas, entre rebocar, arranjar um radiador num ferro-velho e fazer cara feia para convencer o mecânico a fazer a reparação no local.

    A acrescentar a isso, admitia que fora a sua estupidez que a levara até à By the Way Inn. Se tivesse alugado um quarto num hotel em Greenville, ou parado numa das pensões perfeitamente respeitáveis na estrada nacional, não andaria aos tropeções num quarto malcheiroso.

    Era apenas por uma noite, recordou a si própria, olhando para a colcha verde e suja que cobria a cama. Por uns meros trocos, oferecia os prazeres questionáveis de um sistema Magic Fingers.

    Decidiu aceitar as circunstâncias.

    Umas horas de sono e estaria a caminho de Florence, onde a avó teria pronto o quarto de hóspedes: lençóis lavados, um banho quente. Só tinha de aguentar aquela noite.

    Sem sequer descalçar os sapatos, estendeu-se em cima da colcha e fechou os olhos.

    Corpos em movimento, empapados em suor.

    Querida, sim, querida. Isso. Com mais força!

    Uma mulher a chorar, a dor jorrando através dela como lava.

    Meu Deus, meu Deus, que vou eu fazer? Para onde posso ir? Para qualquer lado, menos para trás. Por favor, fazei com que ele não me encontre.

    Pensamentos dispersos e mãos hesitantes, envoltos em pânico ou devastados pela culpa.

    E se eu engravidar? A minha mãe mata-me. Irá doer? Será que ele me ama realmente?

    Imagens, pensamentos, vozes inundavam-na em vagas de formas e sons.

    Deixem-me em paz, exigiu. Deixem-me em paz! Com os olhos ainda fechados, Tory imaginou um muro, grosso, alto e branco. Construiu-o tijolo a tijolo, até ele se interpor entre ela e todas as memórias que pairavam no quarto como fumo. Atrás do muro tudo era fresco, azul-claro. Havia água para flutuar, para mergulhar. E, finalmente, para dormir.

    E bem acima daquela piscina azul, o Sol erguia-se branco e quente. Ouvia os pássaros a cantar e o movimento da água quando passava as mãos por ela. O seu corpo não tinha peso, a sua mente estava tranquila. À volta da piscina, via os carvalhos com o seu rendilhado de musgo, e um salgueiro curvado como um cortesão, mergulhando a sua fronde na superfície vítrea.

    Sorrindo para si própria, fechou os olhos e deixou-se ir, à deriva.

    O som de risos era audível e claro, a alegria despreocupada de uma rapariga. Preguiçosamente, Tory abriu os olhos.

   

    Ali, junto ao salgueiro, Hope acenava-lhe.

    Olá, Tory! Andava à tua procura!

    A felicidade atingiu-a como uma seta certeira. Virando-se na água, Tory acenou também. Anda. A água está ótima.

    Vamos ser apanhadas a mergulhar sem roupa, vamos ser castigadas. Mas, soltando gargalhadas, Hope descalçou os sapatos, despiu os calções e depois a camisa. Pensei que tinhas ido embora.

    Não sejas tonta. Para onde iria?

    Há muito tempo que ando à tua procura. Lentamente, Hope meteu-se na água. Magra como o salgueiro e branca como o mármore. O cabelo espalhou-se-lhe pela superfície, flutuando. Ouro sobre azul. Para todo o sempre.

    A água escureceu, começou a agitar-se. Os ramos graciosos do salgueiro fustigavam como chicotes. E a água ficou fria, subitamente tão fria que Tory começou a tremer.

    Vem aí uma tempestade. É melhor irmos para casa.

    Está por cima da minha cabeça. Não consigo chegar ao fundo. Tens que me ajudar. Hope emergiu por entre as águas revoltas, batendo os braços jovens e magros, lançando cortinas de água que adquiriam o tom lúgubre de um pântano.

    Tory debateu-se freneticamente, mas cada vez que Hope batia os braços ela era afastada mais e mais do sítio onde a menina lutava. A água queimava-lhe os pulmões, arrastou-a. Sentiu-se afundar, sentiu-se afogar-se com a voz de Hope dentro da sua cabeça.

    Tens que vir. Tens que te apressar.

   

    Acordou no escuro, a boca tomada pelo sabor do pântano. Sem ânimo nem energia para voltar a construir o seu muro, Tory levantou-se. No banheiro, passou água ferrugenta pelo rosto e depois ergueu-o pingando até ficar frente ao espelho.

    Uns olhos toldados e ainda vítreos do sonho olharam para ela. Demasiado tarde para voltar atrás, pensou. Era sempre demasiado tarde.

    Pegou na mala e no estojo de viagem que trouxera consigo.

    A escuridão era agora mais suave, e o chocolate e o refrigerante que comprara lá fora, na máquina ruidosa à entrada do quarto, mantiveram-na desperta. Ligou o rádio para se distrair. Não queria pensar em mais nada senão na estrada.

    Quando chegou ao coração do estado, o Sol ia alto e havia muito trânsito. Parou para reabastecer o carro sedento, antes de rumar para leste. Quando passou a estrada que conduzia ao lugar onde os seus pais se tinham reinstalado, sentiu uma cãibra no estômago, que se manteve apertado durante os próximos cinquenta quilometros.

    Pensou na avó, na bagagem que levava na traseira do carro e na que estava a ser expedida para Progress. Pensou no orçamento que tinha para os seis meses seguintes e no trabalho que havia a fazer para ter a sua loja aberta e a funcionar no Memorial Day.[ Dia no final de maio em que são recordados os que morreram ao serviço da nação. (N.T.)]

    Pensou em tudo exceto no verdadeiro motivo que a levava a regressar a Progress.

    Logo a seguir a Florence, voltou a parar e usou o banheiro de um posto da Shell para escovar o cabelo e aplicar alguma maquiagem. O artifício não enganaria a avó, mas pelo menos teria feito um esforço.

    Num impulso, voltou a parar, desta vez numa florista. Os jardins da avó eram sempre um espetáculo, mas a dúzia de tulipas cor-de-rosa era um outro tipo de esforço. Vivia - vivera, recordou a si própria - a apenas duas horas de caminho da avó e desde o Natal que não se dava ao trabalho de fazer a viagem.

    Quando entrou na bonita rua com os seus cornisos e as suas olaias em flor, perguntou-se porquê. Era um local agradável, o tipo de bairro onde as crianças brincavam nos quintais e os cães dormitavam à sombra. O tipo de lugar onde reinava os mexericos, onde as pessoas observavam os carros estranhos e não tiravam os olhos de casa do vizinho, tanto por consideração como por curiosidade.

    A casa de Íris Mooney ficava no meio do quarteirão, irrepreensivelmente cuidada, com as velhas e enormes azáleas a guardar a casa. As flores estavam já a descair um pouco, mas os rosa e os púrpura desbotados acrescentavam uma cor delicada ao azul forte que a avó escolhera para as paredes. Como seria de esperar, o jardim da frente estava viçoso e encantador, com a relva bem aparada em volta da fonte e a pedra bem esfregada.

    Uma pickup onde se lia encanamentos a qualquer hora estava estacionada no caminho, atrás do pequeno carro da avó. Tory estacionou junto à curva. A tensão que ignorara durante o caminho começou a diminuir à medida que ela caminhava em direção à casa.

    Não bateu. Nunca tinha de bater a esta porta, e sempre soubera que ela estaria sempre aberta para recebê-la. Em certas alturas, essa fora a única coisa que a impedira de soçobrar.

    Ficou surpreendida por não ouvir barulho na casa. Eram quase dez horas, pensou, enquanto entrava. Esperava encontrar a avó no jardim, ou de um lado para o outro dentro de casa.

    A sala estava, como sempre, apinhada de mobília, quinquilharias, livros. E, observou Tory, uma jarra com uma dúzia de rosas vermelhas que faziam das suas túlipas fracas relações públicas. Largou a mala de viagem, a bolsa, e depois chamou, na direção do hall.

    - Vó? Está em casa? - Com as flores na mão, encaminhou-se na direção dos quartos e ergueu as sobrancelhas ao ouvir o movimento atrás da porta fechada do quarto da avó.

    - Tory? Potinho de mel, já vou. Vai indo e... serve-te de um chá gelado.

    Encolhendo os ombros, Tory tomou a direção da cozinha, olhando para trás ao ouvir o que lhe pareceu uma gargalhada abafada.

    Pousou as flores no balcão e abriu a geladeira. O jarro com o chá estava à espera, feito como ela mais gostava, com rodelas de limão e folhas de menta. A avó nunca se esquecia de nada, pensou Tory, sentindo lágrimas de sentimento e fadiga incomodarem-lhe os olhos.

    Piscou-os quando ouviu os passos apressados da avó.

    - Meu Deus, vieste cedo! Só te esperava lá para o meio-dia, ou depois! - Pequena, magra e ágil, Íris Mooney entrou na cozinha e abraçou Tory com força.

    - Parti cedo e não parei em lado nenhum em especial. Acordei-a? Não se sente bem?

    - O quê?                                                                

    - Ainda está de robe.

    - Ah, pois. - Após um último abraço, Íris desprendeu-se de Tory. - Estou fresca como a chuva. Deixa-me olhar para ti. Oh, querida, estás esgotada.

    - Só um bocadinho cansada. Mas a avó... Está com um ar maravilhoso.

    Era inegavelmente verdade. Sessenta e sete anos de vida tinham-lhe marcado o rosto, mas não lhe tinham estragado a pele de magnólia nem ensombrado o cinzento profundo dos olhos. O cabelo, que fora ruivo na sua juventude, mantinha-se dessa cor. Como Íris gostava de dizer, se Deus quisesse que as mulheres ficassem grisalhas, não teria inventado Miss Calirol. Íris cuidava do seu aspecto e mimava-se.

    Coisa que, pensou naquele momento, não podia dizer sobre a neta.

    - Senta-te aqui. Vou arranjar-te o pequeno-almoço.

    - Não se incomode, Vó.

    -Já sabes que não ganhas nada em discutir comigo, não sabes? Senta-te. - Apontou para uma cadeira junto à mesinha de apoio. - Ora vejam, tão bonitas! - Pegou nas tulipas, com a satisfação estampada nos olhos. - Não há ninguém mais doce do que tu, minha Tory.

    - Tive saudades suas, Vó. Desculpe não ter vindo visitá-la.

    - Tens a tua vida, e foi isso que eu sempre quis para ti. Agora, descansa, e quando voltares a te sentir bem podes contar-me tudo sobre a tua viagem.

    - Valeu todos os quilômetros. Encontrei umas peças maravilhosas.

    - És como eu, tens bom olho para as coisas bonitas. - Piscou-lhe o olho, virando-se mesmo a tempo de ver a neta ficar de boca aberta quando viu o homem que acabara de entrar na cozinha.

    Era alto como um carvalho, com um peito largo como um Buick. O emaranhado de cabelo grisalho tinha a cor e a textura de palha de aço. Os olhos eram do castanho polido das bolotas e lânguidos como os de um basset hound. O seu rosto de couro estava bronzeado a condizer. Pigarreou de forma exagerada e depois fez um gesto com a cabeça na direcção de Tory.

    - Bom-dia - começou ele, num tom arrastado, característico do interior. - Ah... Miz Mooney, já lhe consertei aquele cano.

    - Cecil, deixa-te de tolices, nem sequer tens a caixa de ferramentas contigo. - Íris pousou uma caixa com ovos. - Não vale a pena corares - disse-lhe ela. - A minha neta não vai desmaiar por saber que a avó tem um namorado. Tory, este é Cecil Axton, a razão para eu não estar vestida às dez da manhã.

    - Íris. - O rubor assolou-lhe o rosto, como fogo a espalhar-se pelo mato. - Prazer em conhecê-la, Tory. A sua avó tem estado desejosa de vê-la.

    - Muito prazer. - disse Tory, à falta de qualquer coisa mais inteligente. Estendeu a mão, e como ainda estava atordoada e os sentimentos de Cecil estavam tão à superfície, teve um ligeiro vislumbre do que fizera a avó rir atrás da porta do quarto.

    Afastou rapidamente a imagem quando os seus olhos encontraram os de Cecil, num desconforto mútuo.

    - É... É encanador, Mister Axton?

    - Veio consertar-me o aquecedor - interrompeu Íris -, e desde essa altura que me tem mantido quente.

   

    - Íris! - Cecil baixou a cabeça, encolheu os ombros montanhosos, mas não conseguiu esconder o sorriso. - Tenho que ir andando. Espero que goste da visita, Tory.

    - Nem penses que te escapas sem me dares um beijo de até logo. - Para resolver o assunto, Íris aproximou-se dele, pegou com ambas as mãos no rosto marcado pelo tempo para baixá-lo ao nível do dela, e beijou-o firmemente na boca. - Ora aí tens: não houve relâmpagos nem trovões, e esta criança não teve um colapso com o choque. - Voltou a beijá-lo e depois fez-lhe uma festa na bochecha. - Vai lá, lindo, e tem um bom dia.

    - Vou ter. Ahn... Volto logo mais.

    - É bom que voltes. Foi o que decidimos, Cecil. Agora, pira-te. Vou conversar com a Tory.

    - Vou andando. - Com um sorriso hesitante, virou-se para Tory. - Discutir com esta mulher só nos dá dor de cabeça. - Pegou num boné azul desbotado que estava pendurado no cabide da cozinha, pô-lo sobre o seu cabelo de arame e apressou-se a sair.

    - Não é um amor? Tenho aqui um belo bacon. Como queres os teus ovos?

    - Com bolachas de chocolate, Vó. - Tory soltou um suspiro cauteloso e levantou-se. - Não tenho absolutamente nada a ver com isso, mas...

    - Claro que não tens nada a ver com isso, a não ser que eu te convide a ter, coisa que fiz. - Íris pôs o bacon na velha caçarola em cima do tripé, e deixou-o lá ficar até estalar. - Vou ficar muito desapontada contigo, Tory, se estiveres chocada e estarrecida com a idéia de a tua avó ter uma vida sexual.

    Tory estremeceu, mas conseguiu manter a compostura no rosto quando Íris se virou para ela.

    - Não estou chocada, nem estarrecida, mas é claro que estou um pouco desconcertada. A idéia de aparecer aqui esta manhã e quase dar consigo...

    - Bem, chegaste cedo, docinho. Vou fritar estes ovos, e vamos ambas refestelar-nos com um belo pequeno-almoço cheio de gordura, a meio da manhã.

    - Parece que não lhe falta apetite.

    Íris pestanejou e depois virou a cabeça e riu.

    - Ora aí está a minha menina. Quando não sorris, fico preocupada contigo, ameixinha.

    - Que razões tenho eu para sorrir? A avó é que anda a ter sexo.

    Divertida, Íris coçou a cabeça.

    - E de quem é a culpa?

    - Sua. A avó viu o Cecil primeiro. - Tory tirou dois copos do armário e serviu o chá. Quantas mulheres, pensou, podiam gabar-se de ter uma avó que tinha encontros escaldantes com o encanador? Não sabia se havia de sentir-se orgulhosa ou divertida, e decidiu que a combinação de ambas as coisas se adequava à situação. - Parece ser um bom homem.

    - E é. Melhor: é um homem muito bom. - Com o garfo, Íris começou a brincar com o bacon e decidiu pôr tudo em pratos limpos. - Tory, ele vive aqui.

    - Vive? A avó vive com ele?

    - Ele quer casar, mas não sei bem se é isso que quero. Por isso, estou a fazer o que poderia ser chamado um teste.

    - Acho que afinal me vou sentar. Meu Deus, Vó. Disse à mãe?

    - Não, e não tenho intenção de dizer, porque passo bem sem um sermão sobre viver em pecado e perdição e sobre os planos de Deus Todo-Poderoso. A tua mãe é uma seca maior do que as estações de serviço em self-service. Não percebo como uma filha minha conseguiu tornar-se num rato e não numa mulher.

    - Sobrevivência - murmurou Tory, mas Íris limitou-se a dizer em tom ríspido:

    - Teria sobrevivido mais que bem se tivesse deixado o filho da mãe com quem casou, num dia qualquer de há vinte e cinco anos para cá. A escolha foi dela, Tory. Se tivesse iniciativa, a escolha teria sido diferente. A tua foi.      

    - Foi? Não sei que escolhas fiz, nem as que foram feitas por mim. Não sei quais foram certas e quais foram erradas. E aqui estou eu, Vó, de regresso ao ponto de partida. Digo a mim própria que agora quem manda sou eu. Que tudo depende da minha decisão. Mas no fundo sei que não consigo parar.

    - E queres parar?

    - Não sei a resposta.

    - Então, vais continuar à procura dela. Tens uma luz muito forte dentro de ti, Tory. Hás-de encontrar o teu caminho.

    - A avó sempre disse isso. Mas, acima de tudo, aquilo que sempre me assustou foi sentir-me perdida.

    - Devia ter-te ajudado mais. Devia ter estado ao teu lado.

    - Vó. - Tory levantou-se e atravessou a cozinha para lançar os braços à volta da cintura de Íris, para unir o seu rosto ao dela, enquanto o bacon estalava e frigia. - Sempre foi o único alicerce da minha vida. Não estaria aqui se não fosse a avó.

    - Claro que estarias. - Íris fez uma festa na mão de Tory, e depois, bruscamente, tirou o bacon da frigideira e pô-lo a escorrer. - És mais forte do que todos nós juntos. E, se queres saber, acho que era isso que assustava Hannibal Bodeen. Quis quebrar-te porque tinha medo de ti. Filho da mãe ignorante. - Partiu um ovo na borda da frigideira e deixou-o escorregar sobre a gordura borbulhante. - Faz umas torradas para nós, docinho.

    - Ela não é nada como a avó. A mãe - disse Tory, enquanto punha o pão na torradeira. - Não é nada parecida consigo.

    - Não sei com quem se parece a Sarabeth. Perdi-a, há muitos anos. Na mesma altura em que perdi o teu avô, acho eu. Ela tinha apenas doze anos quando ele morreu. Raios, eu própria tinha pouco mais de trinta, e dei por mim viúva, com dois filhos para criar sozinha. Foi o pior ano da minha vida. Nenhum outro se lhe assemelhou, nem de perto nem de longe. Meu Deus, eu amava aquele homem.

    Soltou um suspiro e serviu os ovos nos pratos.

    - Ele era o meu mundo, o meu Jimmy. Num minuto, o mundo estava firme, e no minuto seguinte tinha-se desmoronado. E a Sarabeth com doze anos e o J.R. tinha acabado de fazer dezesseis. Ela despejou a raiva toda em cima de mim. Talvez devesse ter encurtado as rédeas dela. Deus sabe que era o que eu devia ter feito.

    - Não tem por que culpar-se a si própria.

    - Não culpo. Mas quando olhamos para trás vemos certas coisas. Vemos que quando uma coisa é feita de forma diferente é a vida inteira que muda. Se eu tivesse saído de Progress naquela altura, se tivesse usado o dinheiro do seguro do Jimmy em vez de ter arranjado emprego no banco. Se não me tivesse dedicado a poupar todos os tostões para os meus filhos poderem ir para a universidade.

    - Queria o melhor para eles.

    - Queria, sim. - Íris pousou os pratos na mesa e virou-se para tirar doce e manteiga da geladeira. - O J.R. foi para a universidade e soube usar o curso que fez. A Sarabeth arranjou Hannibal Bodeen. Era assim que estava destinado. E é por isso que eu e a minha neta vamos sentar aqui e comer uns ataques de coração.[referência ao excesso de gordura] Se pudesse voltar atrás e mudar alguma coisa, não mudaria. Porque assim não te teria.                                                          

    - Eu vou voltar, Vó, e sei que não posso mudar nada. - Tory pousou a torrada num prato pequeno e levou-o até à mesa. - Assusta-me, precisar tanto assim de voltar. Já não conheço aquelas pessoas. Tenho medo de não conhecer a mim própria quando lá chegar.

    - Não vais descansar enquanto não fizeres isto, Tory. Não vais conseguir libertar-te enquanto não puseres um ponto final no assunto. Tens regressado continuamente a Progress desde que saíste de lá.

    - Eu sei. - E ter alguém que compreendesse isso ajudava. Sorrindo um pouco, Tory serviu-se de uma fatia de bacon. - Fale-me então do seu encanador.

    - Ah, aquela doçura. - Deliciada com o assunto, Íris atirou-se ao pequeno-almoço. - Parece um urso grande e velho, não parece? Olhando para ele nem se percebe como ele é inteligente. Fundou a empresa, que é dele, há mais de quarenta anos. Perdeu a mulher, que conheci vagamente, há cerca de cinco anos. Está quase aposentado. Dois dos filhos praticamente tomam conta de todo o negócio. Tem seis netos.

    - Seis?

    - Sim,  é verdade.  Um até é médico.  Um jovem muito bem-parecido. Estava a pensar...

    - Não diga mais nada. - De olhos semicerrados, Tory espalhou doce na torrada. - Não estou interessada.

    - Como sabes? Nem sequer conheces o rapaz.

    - Não estou interessada em rapazes. Nem em homens.

    - Tory, não te envolveste com um homem desde...

    - O Jack - concluiu Tory. - É isso mesmo, e não tenciono voltar a envolver-me. Uma vez chegou. - Como o assunto ainda lhe deixava um travo amargo na boca, pegou no chá. - Nem toda a gente é feita para viver a dois, Vó. Sou feliz sozinha.

    Perante o erguer de sobrancelhas de Íris, Tory encolheu os ombros.

    - Pronto, está bem, digamos que tenciono ser feliz sozinha. Vou esforçar-me para isso.

   

    Passara demasiado tempo, pensou Tory, desde a última vez que se sentara num balanço, num alpendre, a observar as estrelas e a ouvir o cantar dos grilos. Muito tempo desde que se sentira suficientemente descontraída para não fazer nada senão ficar sentada a cheirar a brisa.

    No momento em que pensou isto apercebeu-se de que era provável que passasse muito tempo até voltar a sentir-se assim.

    Amanhã faria os últimos quilômetros até Progress. Ali, apanharia os cacos da sua vida e, finalmente, deixaria uma amiga morta descansar.

    Mas esta noite era de brisas suaves e pensamentos tranqüilos.

    Olhou para cima, ao ouvír o chiar da porta de tela, e ofereceu um sorriso a Cecil. A avó tinha razão, concluiu. Parecia mesmo um urso velho e grande. E, naquele momento. Muito nervoso também.

    - A Íris pôs-me fora da cozinha. - Tinha uma garrafa de cerveja, castanho-escura, na mão e apoiava-se nervosamente ora num pé ora noutro, dentro das suas botas número 44. - Disse-me para vir até cá fora, sentar-me um bocado e fazer-te companhia.

    - Quer que sejamos amigos. Porque não se senta um bocado? Gostaria da companhia.

    - Parece um bocado esquisito. - Sentou a sua enorme massa corporal no balanço e lançou a Tory um olhar pelo canto do olho. - Sei bem o que vocês, jovens, pensam. Um velho pato-marreco como eu a cortejar uma mulher como Íris.

    Ainda cheirava ao sabonete Lava que usara para se lavar antes do jantar. Sabonete Lava e cerveja Coors. Era uma agradável combinação masculina.

    - A sua família não aprova?

    - Bem, agora já não se importam. A Íris conquistou os meus rapazes. É aquela maneira de ser dela. Um dos filhos, o Jerry, ficou um bocado abespinhado, mas ela deu-lhe a volta. Só que...

    Deteve-se e pigarreou duas vezes. Tory cruzou as mãos e mordeu um sorriso que se preparava para surgir, enquanto ele se lançava naquilo que era, sem dúvida, um discurso preparado.

    - És terrivelmente importante para ela, Tory. Acho que és a coisa mais importante que existe, para a Íris. Tem orgulho em ti e preocupa-se contigo, e fala de ti sempre com muito orgulho. Sei que há uma divergência entre ela e a tua mãe. Acho que pode dizer-se que isso te torna ainda mais especial para ela.

    - O sentimento é mútuo.

    - Eu sei. Pude ver isso ao jantar. Só que... - voltou ele a dizer, e depois pegou na cerveja e bebeu-a em tragos profundos. - Ora, raios! Eu a amo. - Soltou as palavras impulsivamente e o rubor assomou-lhe às faces. - Acho que isto te parece tonto, vindo de um homem que já passa dos sessenta e cinco, mas...

    - E porque haveria de parecer? - Não se sentia confortável a tocar casualmente em quem não conhecia bem, mas ele parecia estar a precisar e ela pousou-lhe a mão no joelho. - E o que tem a idade a ver com isto? A avó gosta de si. Isso me basta.

    O alívio tomou conta dele. Tory conseguiu ouvir isso no suspiro que ele soltou.

    - Nunca pensei voltar a sentir este tipo de coisas. Fui casado durante quarenta e seis anos, com uma mulher maravilhosa. Crescemos juntos,  criamos uma família juntos,  iniciamos um negócio juntos. Quando a perdi, achei que era o fim dessa parte da minha vida. Depois, conheci a Íris e, Jesus Cristo!, ela fez-me voltar a ter vinte anos.

    - A ela, põe-lhe estrelas nos olhos.

    Ele corou mais ao ouvir isso, mas os lábios contorceram-se-lhe num sorriso tímido e deliciado.

    - Verdade? Tenho mãos jeitosas. - Ao ouvir o resfolegar do riso incontrolável de Tory, abriu desmesuradamente os olhos. - Quero dizer, tenho jeito para consertar coisas cá em casa.. Coisas estragadas.

    - Eu sei o que quis dizer.

    - E a Stella, que era a minha mulher, acho que pode se dizer que me treinou bem. Não passo com as botas cheias de lama num chão lavado, nem atiro as toalhas sujas para o chão. Sei cozinhar qualquer coisa, se não se for muito exigente, e tenho uma vida decente.

    A avó tinha razão, pensou Tory. O homem era um doce.

    - Cecil, está pedindo a minha bênção? Ele soltou o ar num sopro.

    - Tenciono casar com ela. Ela não quer ouvir falar nisso agora. É uma mula teimosa, aquela mulher. Mas eu também tenho a cabeça dura. Só queria que soubesses que não quero aproveitar-me dela, que as minhas intenções...

    - São respeitáveis - concluiu Tory, maravilhosamente comovida. - Estou a torcer por si.

    - Verdade? - Voltou a recostar-se, fazendo o balanço gemer. - Isso é um alívio para mim, Tory. É mesmo um alívio. Deus Todo-Poderoso, ainda bem que acabou. - Abanando a cabeça, bebeu mais cerveja. - Fico com a língua toda entaramelada.

    - Saiu-se muito bem. Cecil, faça-a feliz.

    - É essa a minha intenção. - Outra vez à vontade, pousou o braço nas costas do balanço e ficou a observar o jardim de Íris. - Está uma bela noite.

    - Sim, está uma bela noite.

    Dormiu profundamente e sem sonhos, na casa da avó.

   

    - Gostava que ficasses mais um dia ou dois.

    - Tenho de ir-me embora.

    Íris acenou com a cabeça, tentando conter a emoção enquanto Tory levava a mala até ao carro.

    - Telefona, depois de estares instalada.

    - Claro que telefono.

    - E vai logo ter com o J.R., para ele e o Boots poderem ajudar-te.

    - Vou sim, e também vou ver a Tia Boots e o Wade. - Beijou a avó em ambas as faces. - Agora, não te preocupes.

    - Só que já estou com saudades. Dá-me as tuas mãos. - Como Tory hesitasse, Íris pegou simplesmente nelas. - Tem paciência comigo, pote de mel. - Apertou-lhe as mãos firmemente e os olhos enevoaram-se-lhe um pouco quando olhou para ela.

    Ela não tinha o esplendor de luz com que a neta fora dotada. Via cores e formas. O cinzento-fumo da preocupação, o rosa-luminoso do entusiasmo, o azul-baço da dor. Tudo atravessado pelo vermelho-escuro e profundo do amor.

    - Vais ficar bem. - Íris apertou-lhe as mãos uma última vez. - Estarei aqui, se precisares de mim.

    - Sempre soube isso. - Tory meteu-se no carro e respirou fundo. - Não lhes diga onde estou, Vó.

    Íris abanou a cabeça, sabendo que Tory se referia aos pais.

    - Não digo.

    - Adoro-a. - Manteve os olhos fixos em frente, enquanto arrancava.

   

    Os campos começaram a passar pelo carro, ondulando suavemente, cobertos pelo verde suave do que cresce na terra. Reconheceu as culturas. Soja, tabaco, algodão; as hastes delicadas cobriam o solo castanho.

    Tivera saudades dos campos cultivados.

    A terra nunca exercera em relação a ela o apelo que exercia sobre outros. Gostava de fazer umas coisas leves no jardim, de vez em quando, mas não tinha qualquer necessidade imperiosa de sentir a terra nas mãos, de semear e de colher, de armazenar o que colhera.

    Ainda assim, apreciava o ciclo, a continuidade. Gostava do aspecto dos campos. Os campos bem cuidados que os homens lavravam e alimentavam passavam lado a lado com a opulência dos carvalhos misturados com o musgo, o sumagre presente em toda a parte, os veios de água escura que nunca poderiam ser, nunca seriam verdadeiramente domados.

    O cheiro era forte e escuro como eles. Fertilizante e água do pântano. Mais como o perfume do Sul do que o de magnólia, pensou. Afinal, era ali o coração do Sul. Para lá dos jardins formais e dos relvados profusos, o Sul era feito de colheitas e suor e das sombras secretas dos seus rios.

    Tomara estradas secundárias por causa da solidão, e cada quilômetro aproximava-a mais desse coração.

    Na zona a oeste de Progress algumas das fazendas e dos campos tinham dado lugar a casas. Empreendimentos bem acabados, com jardins verdes e rega automática. Havia sedans último modelo e mini-vans nas entradas, e passeios largos e iguais. Aqui estavam os jovens casais, refletiu, na sua maioria com dois ordenados, que queriam uma casa simpática nos subúrbios para criarem uma família.

    Eram estes os seus clientes-alvo e a principal razão para conseguir justificar a sua mudança. Os proprietários de uma casa, com sucesso e rendimentos disponíveis, gostavam de decorar o seu espaço. Com a publicidade adequada e cartazes inteligentes, conseguiria chamá-los à sua loja.

    E eles iriam comprar.                    

   

    Haveria alguém a viver bem naquelas casas tranquilas que ela tivesse conhecido quando era criança? E que se recordasse da rapariguinha magra que chegava à escola cheia de nódoas negras? Recordar-se-iam de que por vezes ela sabia coisas que não era suposto saber?

    A memória era curta, lembrou Tory a si própria. E, mesmo que alguém se recordasse, havia de encontrar uma maneira de usar isso para promover a sua loja.

    As casas acotovelavam-se mais à medida que se aproximava dos limites da cidade, como se ansiassem por companhia. Entrou-lhe pela mente, num flash, uma imagem do extremo oposto, onde o serpentear mais estreito do rio marcava a fronteira de Progress. Na sua juventude, as casas que escorriam suavemente em direção ao vale eram pequenas e escuras, com telhados que deixavam passar a água e carrinhos de mão ferrugentos, quase sempre em cima de blocos de cinza amassada. Um lugar onde os cães rosnavam e puxavam furiosamente pelas suas correntes. Onde as mulheres estendiam roupa encardida, enquanto as crianças se sentavam em tufos de erva, quase sempre suja.

    Alguns dos homens cultivavam a terra para terem que comer, e alguns viviam apenas de cerveja e hidromel. Quando criança estivera a um passo trêmulo desse destino. E quando criança receara perder o equilíbrio e afundar-se no vale onde o pão era servido com o suor da exaustão.

    Começou por avistar o campanário da igreja. A cidade ostentava quatro, ou ostentara. Mesmo assim, quase toda a gente que ela conhecia pertencia à Igreja Batista. Sentara-se, durante horas infindáveis, num dos bancos duros, a ouvir, a ouvir o sermão desesperadamente, porque o pai ia fazer-lhe perguntas sobre ele, à noite, antes do jantar.

    Se ela não respondesse bem, o castigo era duro e rápido.

    Havia oito anos que não entrava em qualquer tipo de igreja.

    Não penses nisso, ordenou a si própria. Pensa no agora. Mas o agora, como o via, parecia-se muito com o dantes. Pareceu-lhe que muito pouco mudara dentro dos limites de Progress.

    Deliberadamente, virou para Lake Oak Drive, para passar pela zona residencial mais antiga da cidade. As casas eram grandes e graciosas, as árvores antigas e de folhagem abundante. O tio mudara-se para aqui alguns anos antes de ela ter saído de Progress. Com o dinheiro da mulher, dissera o pai com azedume.

    Tory não tinha autorização para ir ali de visita, e mesmo agora sentia uma pontada de pânico e de culpa, só de passar pela velha casa de tijolo, branca e encantadora, com os seus arbustos floridos e as suas janelas resplandecentes.

    O tio devia estar a trabalhar, a gerir o banco como fizera praticamente desde sempre, segundo ela se recordava. E embora tivesse um grande afeto pela tia, Tory não estava com disposição para o aperto de mãos sacudido nem para a voz sussurrante de Boots Mooney.

    Serpenteou pelas ruas, passou por casas mais pequenas e por um pequeno complexo de apartamentos que não existia dezesseis anos antes. Ergueu as sobrancelhas ao deparar em uma esquina com uma loja de conveniência, com os seus vermelhos e amarelos brilhantes, que substituíra o velho drive-in de Progress.

    O liceu fora aumentado, e havia um pequeno parque, muito agradável, logo a seguir à praça, no lugar onde outrora existira uma fila de casas geminadas a cair aos pedaços. Havia árvores novas plantadas entre os velhos troncos, e flores graciosas que se entornavam de vasos de cimento.

    Parecia tudo mais bonito, mais limpo, mais fresco do que ela se recordava. Perguntou-se até que ponto estaria tudo na mesma sob aquela nova capa de verniz.

    Quando virou para a Market, ficou ridiculamente satisfeita por ver que o Hanson's ainda estava de pé, ainda ostentava o mesmo letreiro carcomido, e a sua vitrine continuava semeada de folhetos e letreiros.

    O gosto doce da infância de Grape Nehi encheu-lhe de imediato a boca, a garganta, e fê-la sorrir.

    O salão de beleza mudara de proprietários, observou. A Lou's Beauty Shop se chamava agora Hair Today. Mas o restaurante de Market Street permanecia onde sempre estivera, e pareceu-lhe que os mesmos homens velhos, com os mesmos sobretudos, se reuniam à porta para mexericar.

    A meio do quarteirão, metido entre a Rollins Paint and Hardware e a Flower Basket estava a velha loja de tecidos. Aquela, pensou Tory enquanto estacionava junto à curva, ia ser a sua mudança.

    Saiu do carro para o calor espesso do meio-dia. O exterior do edifício estava exatamente como ela se lembrava. Os velhos tijolos cozidos mantinham-se unidos entre si pela argamassa cinzenta como fumo. A vitrine era alta e larga e estava coberta de pó e sujidade da rua. Mas ela iria tratar disso.                    

    A porta também era de vidro, que estava quebrado. O senhorio, decidiu enquanto pegava no seu bloco-notas, trataria disso.

   

    Iria pôr um banco à porta, o banco estreito com as costas em ferro forjado, que despachara. E, ao lado do banco, vasos cheios de petúnias púrpura e brancas. Flores simpáticas.

    Na vitrine, por cima do banco, mandaria gravar o nome da loja. CONFORTO DO SUL

    Seria isso que ofereceria à sua clientela. Ambientes confortáveis, onde os artigos estariam expostos com estilo e com o preço discretamente marcado na etiqueta.

    Em pensamento já estava no interior da loja, a encher prateleiras, a dispor mesas e candeeiros. Só ouviu chamarem-na pelo nome quando alguém a arrebatou do chão.

    O sangue subiu-lhe à cabeça, ressoando nela enquanto a sua pulsação subia até ao nível de pânico.

    - Tory! Vi logo que eras tu! Tenho andado de olho na tua chegada, nestes últimos dias.

    - Wade. - O nome dele saiu numa espécie de silvo.

    - Assustei-te. - Imediatamente constrangido, voltou a pousá-la no chão. - Desculpa. Estou tão contente por ver-te!

    - Deixa-me recuperar o fôlego.

    - Recupera, enquanto eu olho para ti. Raios, passaram mesmo dois anos? Estás com um ar maravilhoso.

    - Estou? - Era agradável ouvir isso, embora não acreditasse nem por um instante no que ouvia. Puxou o cabelo para trás, enquanto a pulsação se recompunha.  

    Embora ele não chegasse a ter um metro e oitenta, ela teve de inclinar a cabeça para trás para lhe observar o rosto. Sempre fora bonito, recordou, mas imaginou que ele estivesse aliviado por o tempo ter passado um pouco pelo rosto angelical da sua juventude. Os olhos dele eram de um chocolate profundo e tranquilo. O rosto tinha agora traços mais acentuados do que na juventude, mas continuava a ter covinhas nas faces. O cabelo, um pouco mais claro do que o dela, estava bem aparado, para contrariar a tendência para encaracolar.

    Trazia vestidas umas calças de brim e uma camisa simples de algodão, de um azul-desbotado. Enquanto ela o estudava, os lábios dele curvaram-se subitamente.

    Tinha um ar jovem, bonito e tranquilamente próspero, decidiu ela.

    - Se eu estou com um ar maravilhoso, não tenho palavras para descrever o teu. Reuniste tudo o que há de bonito na família, primo Wade.

    Ele esboçou um sorriso ao ouvir aquilo, rápido e arrapazado, mas resistiu a voltar a abraçá-la. Sabia que Tory sempre fora avessa a abraços e festas. Limitou-se a passar-lhe brevemente a mão pelo cabelo.

    - Ainda bem que voltaste.

    - Não podia ter arranjado melhor comissão de boas-vindas. - Fez um gesto largo. - A cidade está com bom ar. Igual, em muitos aspectos, mas melhor. Mais alinhada, acho eu.

    - É o progresso em Progress - disse ele. - Devemos muito disto aos Lavelle, à câmara municipal e, em particular, ao presidente dos últimos cinco anos. Lembras-te do Dwight? Dwight Frazier?

    - Dwight, o Marrão, um dos Três Magníficos, formados por ti, por ele e pelo Cade Lavelle.

    - O Marrão saiu-se bem no liceu, tornou-se uma estrela do atletismo, nas corridas, casou com a rainha do curso, meteu-se no negócio de construção do pai e ajudou a transformar Progress. Hoje, somos todos cidadãos de caráter.

    Ao ver-se ali, com o trânsito a passar na rua atrás dele, a ouvir o ritmo familiar da sua voz, ocorreu-lhe por que motivo ele fora sempre objeto do seu afeto.

    - Tens saudades da confusão, não tens, Wade?

    - Um bocado. Ouve, tenho uma consulta a seguir. Tenho de convencer um dinamarquês enorme, chamado Igor, de que precisa de uma vacina contra a raiva.

    - Antes tu do que eu, doutor Mooney.

    - O meu consultório fica do outro lado da rua, no final do quarteirão. Vem comigo e ofereço-te um chá gelado.

    - Gostava muito, mas preciso de passar pela imobiliária, para ver o que têm para mim. - Notou o brilho nos olhos dele e inclinou a cabeça. - Que foi?

    - Não sei o que achas disso, mas a tua antiga casa está vaga.

    - A casa? - Instintivamente, cruzou os braços e agarrou os cotovelos. O destino, pensou, tinha um braço tão comprido e tão traiçoeiro. - Também não sei o que acho disso. Acho que devia descobrir.

    Numa cidade com menos de seis mil habitantes era difícil andar dois quarteirões sem dar com alguém conhecido. Não importava se se tinha estado fora dezesseis anos ou setenta. Quando entrou no escritório da imobiliária viu apenas uma pessoa sentada à escrivaninha.

    A mulher era bonita, pequena e bem tratada. O cabelo comprido e louro estava preso atrás, afastado de um rosto em forma de coração, dominado por olhos grandes, azul-bebê.

    - Tarde. - A mulher pestanejou e largou um romance em edição de bolso, com um pirata de peito nu no meio da capa. - Posso ajudá-la?

    Tory vislumbrou uma imagem rápida do recreio na escola primária de Progress. Um grupo de meninas a gritar, amedrontadas e ofendidas, e a fugir. E o olhar complacente, satisfeito, nos olhos grandes e azuis da líder, que lançava um sorriso de escárnio por cima do ombro, enquanto o seu longo cabelo louro voava atrás dela.

    - Lissy Harlowe.

    Lissy inclinou a cabeça.

    - Conheço-a? Bem, peço desculpa, não... - Os olhos azuis abriram-se mais. - Tory? Tory Bodeen? Por amor de Deus! - Deu um gritinho agudo e pôs-se de pé, de um salto. Parecia estar grávida de uns seis meses, a avaliar pelo volume sob a camisa rosa-pálido. - O pai disse que chegavas esta semana.

    Apesar do passo automático que Tory deu atrás, Lissy apressou-se a dar a volta à escrivaninha para abraçar aquela que parecia ser uma amiga querida, que não via há muito.

    - Isto é tão excitante. - Recuou um pouco, irradiando alegria e boas-vindas. - Tory Bodeen regressa a Progress, passado todo este tempo. E estás muito bonita.

    - Obrigada. - Tory viu os olhos de Lissy avaliarem, medirem e depois luzirem de satisfação. Não havia dúvida sobre quem se tinha saído melhor. - Estás na mesma. Mas sempre foste a rapariga mais bonita de Progress.

    - Ora, que tontice. - Lissy agitou a mão, mas não conseguiu deixar de sentir-se um pouco lisonjeada. - Agora, senta-te e deixa-me ir buscar-te uma bebida fresca.

    - Não, não te incomodes. Eu estou bem. O teu pai conseguiu o contrato de arrendamento?

    - Acho que ele disse que sim. Toda a cidade fala na tua loja. Estou ansiosa pela abertura. Não se encontram coisas bonitas em Progress. - Voltou a sentar-se à escrivaninha, enquanto falava. - E Deus sabe que não se pode ir a Charleston sempre que se quer alguma coisa com um pouco de estilo.

    - É bom saber isso. - Tory sentou-se e encontrou ao nível dos olhos a placa que identificava Lissy Frazier. - Frazier? Dwight? Casaste com o Dwight?

    - Cinco anos felizes. Temos um filho. O meu Luke é uma coisinha fofa. - Pegou numa fotografia emoldurada, para mostrar um garoto de olhos vivos e de cabelos louros esbranquiçados. - E estamos à espera de um irmãozinho ou de uma irmãzinha para o final do Verão.

    Acariciou com satisfação a sua barriga proeminente e mexeu os dedos de modo a que a aliança e o anel de noivado refletissem a luz e os diamantes disparassem fogo.

    - Tu não casaste, querida?

    Havia veneno suficiente na pergunta para Tory saber que Lissy ainda gostava de ser a melhor.

    - Não.

    - Admiro as mulheres que apostam na carreira, tanto que nem tenho palavras. São todas tão corajosas e inteligentes! Deixam envergonhadas a todas nós que não saímos de casa. - Quando Tory ergueu uma sobrancelha, olhando para a escrivaninha e a placa com o nome, Lissy riu e voltou a agitar a mão. - Oh, só venho algumas vezes por semana, para ajudar o papai. Quando o bebé nascer, sei que não vou ter tempo nem energia.

    E iria, pensou Lissy, enlouquecer rápida e não muito calmamente em casa, com dois filhos. Mas lidaria com isso, e com Dwight, quando chegasse a altura.

    - Agora, conta-me tudo o que tens feito.

    - Gostava muito de conversar, Lissy. - Se me puxasses a língua e ma enrolasses à volta do pescoço. - Mas preciso de instalar-me.

    - Oh, que tonta sou. Deves estar exausta e pronta para te deixares cair num sofá. - O sorriso forçado disse a Tory que se não estava com ar disso, Lissy pensava certamente que sim. - Havemos de ter uma bela conversa para pôr a escrita em dia, quando descansares.

    - Mal posso esperar. - Lembra-te, disse Tory a si própria, este é exatamente o tipo de cliente de que precisas. - Encontrei o Wade, há uns minutos. Disse que a casa, a minha antiga casa, deve estar para alugar.

    - É claro que está! Os caseiros dos Lavelle mudaram-se há umas semanas. Mas, querida, não queres viver ali, pois não? Temos uns bons apartamentos aqui, na cidade. River Terrace tem tudo o que uma moça solteira pode desejar, incluindo homens solteiros - acrescentou ela, com uma piscadela de olho matreira. - Equipamentos modernos, alcacarpetados. Temos um com jardim, que é um encanto.

    - Não estou interessada num apartamento. Gostava de ficar no campo. Quanto é o aluguel?

   

    - Vou ver. - Ela sabia, claro. A mente de Lissy era muito mais afiada do que as pessoas pensavam. Mudou a posição da cadeira e brincou um pouco com o teclado do computador. - Juro que nunca hei de entender como estas coisas funcionam. Sabes que são dois quartos e um banheiro.

    - Sim, sei.

    Procurando na tela, Lissy anotou rapidamente o aluguel mensal.

    - Fica a uns bons quinze, vinte minutos da cidade, de carro. Aquele apartamento amoroso de que estava a falar-te não fica a mais de dez minutos a pé, num dia bonito.

    - Fico com a casa.

    Lissy olhou para cima e pestanejou.

    - Ficas? Não queres passar por lá e veres como está, primeiro?

    - Já vi. Vou passar um cheque. O aluguel do primeiro e do último mês?

    - Sim. - Lissy encolheu os ombros. - Vou imprimir o contrato de aluguel.

    Menos de trinta segundos depois de Tory ter assinado o contrato e saído com a chave na mão, já Lissy estava ao telefone, a espalhar a novidade.

    Também isto tinha mudado. A casa estava como sempre estivera, um pouco recuada em relação a um carreiro estreito e lamacento e a pouca distância do pântano. Os campos estendiam-se a oeste, com os tenros rebentos de algodão já a sair da terra, como filas de crianças dóceis. Mas alguém plantara azáleas rosa e brancas e uma jovem magnólia perto da janela do quarto.

    Lembrava-se de os caixilhos terem ficado ferrugentos e a pintura branca se ter tornado cinzenta. Mas alguém cuidara de tudo. As janelas reluziam e a tinta era de um azul fresco e suave. Fora acrescentado um alpendre, suficientemente grande para a cadeira de balanço que estava junto à porta.

    Era quase acolhedora.

    O pulso acelerou-se-lhe enquanto ela se aproximava. Haveria fantasmas, mas fora pelos fantasmas que ela regressara. Não seria melhor enfrentá-los a todos?

    As chaves tiniram-lhe na mão.

    A porta de tela rangeu. Disse a si própria que era um som acolhedor. Uma porta de tela acolhedora devia ranger, e devia bater.

    Mantendo-a aberta com o braço, meteu a chave na fechadura e deu-lhe uma volta. Respirou fundo antes de entrar.

   

    Viu o sofá coçado, com as suas rosas desbotadas, o velho televisor, o tapete carcomido. Paredes amarelas, monótonas, sem quadros a alegrar o espaço. O cheiro a vegetais demasiado cozidos e a Lysol.

    Tory! Vem cá e vai lavar-te imediatamente. Não te disse que queria esta mesa posta para o jantar antes de o teu pai chegar a casa?

    Depois, a imagem desvaneceu-se e ela encontrou-se num quarto vazio. As paredes estavam pintadas de creme, uma cor simples mas prática. O chão estava nu, mas limpo. O ar transportava um vago aroma a tinta e a verniz, mais funcional do que ofensivo.

    Vagueou pela cozinha. As bancadas tinham sido substituídas por umas de pedra cinzenta, neutra, e os armários estavam pintados de branco. O fogão era novo - ou mais novo do que aquele diante do qual a mãe suara. A janela por cima do lava-louça dava para o pântano, como sempre dera. Luxuriante e verde e secreto.

    Ganhando coragem, virou-se e encaminhou-se para o seu antigo quarto.

    Fora assim sempre tão pequeno?, perguntou-se. Quase não dava para albergar um gato, embora tivesse sido suficientemente grande para ela. A cama estava perto da janela. Tinha uma pequena cômoda, cujas gavetas inchavam e ficavam emperradas todos os verões. Escondia livros na de baixo, pois o pai não aprovava que ela lesse alguma coisa que não fosse a Bíblia.

    Havia recordações boas misturadas com más, neste quarto. De ler à noite, no quarto, em segredo, de sonhar sonhos privados, de planejar aventuras com Hope.

    E, claro, das surras.

    Ninguém voltaria a pôr-lhe as mãos em cima, nunca mais.

    Daria um escritório agradável, decidiu. Uma escrivaninha, um arquivo, talvez uma cadeira de leitura e um candeeiro. Servia.

    Dormiria no antigo quarto dos pais. Sim, dormiria ali e o transformaria no seu quarto.

    Fez menção de sair, mas não conseguiu resistir. Mansamente, abriu a porta do armário. Ali, o fantasma de si própria estava enrolado no escuro, o rosto cheio de lágrimas. Chorara as lágrimas de uma vida inteira antes de fazer oito anos.

    Acocorando-se, passou os dedos pelo rodapé, e os dedos tremeram-lhe ao sentir o ligeiro relevo. Com os olhos fechados, leu as cartas com as pontas dos dedos, como um cego que lê Braille.

    SOU A TORY

    - É verdade. É verdade. Sou a Tory. Ninguém pode tirar-me isso, nem à pancada. Sou a Tory. E estou de volta.

   

    Pôs-se de pé, pouco firme. Ar, pensou. Precisava de ar. Nunca havia ar no armário, nem luz. As palmas das mãos começaram a transpirar-lhe, enquanto ela recuava.

    Virou-se, preparando-se para sair do quarto a correr, para fugir da casa. Mas uma sombra furtiva aproximou-se, do lado de lá da porta de tela. O sol da tarde incidia sobre ela, vindo de trás, desenhando a forma de um homem.

    Quando a porta se abriu e rangeu, ela voltou a ter oito anos. Sozinha, indefesa. Aterrorizada.

    A sombra disse o nome dela. Por extenso, Victoria, derramado como um néctar saído de uma garrafa aquecida.

    Apeteceu-lhe fugir, e sentiu-se envergonhada e surpreendida ao descobrir que ainda havia dentro dela muito daquele coelho que procurava desaparecer desastradamente, num buraco qualquer, ao primeiro estalar de um ramo qualquer. Os fantasmas da casa rodeavam-na, murmurando-lhe censuras ao ouvido.

    Já fugira. Mais do que uma vez. Isso nunca a salvara.

    Ficou onde estava, sem se mexer. O pânico subiu-lhe do estômago até à garganta, numa onda de náusea, quando a porta se abriu com um estalido.

    - Assustei-te. Desculpa. - A voz dele era suave, naquele tom que um homem usa para tranquilizar alguém ferido ou para fazer um jogo de sedução. - Vim ver se precisavas de alguma coisa.

    Manteve-se à entrada, em contraluz, o que lhe deixava os traços indefinidos. Os pensamentos giravam em turbilhão na cabeça dela, suavizando-se à medida que caíam uns sobre os outros.

    - Como sabias que eu estava aqui?

    - Estás fora há tanto tempo que já não sabes que em Progress as novidades correm depressa?

    Havia um sorriso na voz dele, na intenção de pô-la à vontade, pensou ela. Isso significava que o seu medo transparecia e fazia dela um alvo fácil. Com isso, pelo menos com isso, ela podia acabar. Entrelaçou as mãos.

    - Com quem estou a falar?

    - O som que estás a ouvir é o meu ego a desfazer-se aos pedaços. Mesmo depois destes anos todos, conseguiria reconhecer-te no meio de uma multidão. Sou o Cade - disse ele, e aproximou-se um pouco. - Kincade Lavelle.

    Saiu da luz forte, que mergulhou atrás dele num jogo de sol e sombra. Todos os vestígios de medo se dissiparam, e ela viu-o claramente.

    Kincade Lavelle, irmão de Hope. Tê-lo-ia reconhecido? Não, achava que não. O rapaz de quem se recordava tinha um corpo magro e um rosto suave. A compleição deste homem era esguia, mas revelava força nos músculos que sobressaíam debaixo das mangas enroladas da camisa. E embora ele sorrisse francamente, não havia qualquer suavidade nos ossos ou nas feições do seu rosto.

    Tinha o cabelo mais escuro, cor de avelã, com as pontas encaracoladas aclaradas pelo sol. Sempre gostara de andar ao ar livre. Recordava-se disso. Recordava-se de o ter visto algumas vezes a passear pelos campos com o pai, com uma espécie de orgulho que advinha de ser dono da terra que pisava.

    Os olhos, pensou ela. Talvez tivesse reconhecido os olhos. Aquele azul profundo de verão, como os de Hope. O sol deixara ali também a sua marca, nas linhas que convergiam nos cantos dos olhos. O tipo de marca que conferia caráter aos homens e desesperava as mulheres.

    Aqueles olhos observavam-na agora, com uma espécie de paciência indolente que a teria embaraçado se a sua pulsação estivesse regular.

    - Passou muito tempo - foi o melhor que conseguiu dizer.

    - Quase metade da minha vida. - Não lhe estendeu a mão. O instinto disse-lhe que ela daria um salto para trás e que ambos ficariam embaraçados. Ela parecia pronta a dar um pulo ou a ter um colapso. Não lhe apetecia nada disso. Assim, enfiou os polegares nos bolsos da frente das calças de brim.

    - Porque não vens até ao alpendre, para te sentares? Parece que a velha cadeira de balanço é a única cadeira que temos, de momento.

    - Estou bem. Eu estou bem.

    Na verdade estava branca como cal, com aqueles olhos cinzentos que sempre o tinham fascinado muito abertos e brilhantes. O fato de ter crescido numa família largamente dominada por mulheres ensinara-lhe a lidar com o orgulho e com os estados de espírito femininos sem grandes complicações e com um mínimo de dispêndio de energia. Limitou-se a virar-se e abrir a porta de tela.

    - Está abafado, aqui dentro - disse ele, saindo para o alpendre e mantendo a porta aberta, num gesto de boas maneiras, fazendo-lhe sinal para que o seguisse.

    Com pouca alternativa, ela atravessou a sala e saiu também para o alpendre. Ele sentiu o perfume dela e pensou no jasmim que preferia florir à noite, quase em segredo, no jardim da sua mãe.

    - Deve ser uma experiência e tanto. - Tocou-a de leve, para guiá-la até à cadeira. - Voltar aqui.

    Ela não saltou, mas afastou a mão dele, num gesto ligeiro mas deliberado.

    - Precisava de um lugar para viver, e queria instalar-me rapidamente. - Os músculos do estômago recusavam-se a relaxar. Não gostava de falar assim com os homens. Nunca se sabia com segurança o que estava por detrás das palavras e dos sorrisos fáceis.

    - Há uns tempos que vives em Charleston. A vida é muito mais calma aqui.

    - Eu quero calma.

    Ele encostou-se ao varandim. Havia ali uma espécie de aresta viva, pensou. Por mais delicada que ela parecesse, havia aquela aresta viva, como um grito pronto a soltar-se. Estranho, apercebeu-se que era exatamente disso que mais se lembrava nela.

    A delicadeza dela, como a parte cortante de um bisturi.

    - Fala-se muito sobre a tua loja.

    - Ainda bem. - Ela sorriu, apenas uma ligeira curva dos lábios, mas os olhos permaneceram sérios e observadores. - Isso significa curiosidade, e a curiosidade vai fazer com que as pessoas apareçam.

    - Tinhas alguma loja em Charleston?

    - Era gerente de uma. Mas ser dona de uma é diferente.

    - Pois é. - Beaux Revés era seu, agora, e ser dono de alguma coisa era, de fato, diferente. Olhou para trás, na direção dos campos onde as plantas jovens e os rebentos procuravam a luz do Sol. - Qual é a sensação, Tory? Depois de todo este tempo e esta distância?

    - A mesma. - Não olhava para os campos, mas sim para ele. - E, ao mesmo tempo, completamente diferente.

    - Estava a pensar nisso sobre ti. Cresceste. - Olhou para ela, e viu-a cravar os dedos nos braços da cadeira, como que para manter o equilíbrio. - Cresceste à medida dos teus olhos. Sempre tiveste olhos de mulher. Quando eu tinha doze anos, metiam-me medo.

    Foi necessária toda a sua força de vontade e o orgulho em que se alicerçara para aguentar o olhar dele.

    - Quando tinhas doze anos estavas demasiado ocupado a correr por aí com o meu primo Wade e com o Dwight Mar..., o Dwight Frazier, para reparares em mim.

    - Aí é que te enganas. Quando eu tinha doze anos - disse ele devagar - houve uma altura em que reparava em tudo o que havia em ti. Ainda tenho essa imagem tua na cabeça. Porque não paramos de fingir que ela não está aqui, neste preciso momento?

    Tory levantou-se de repente, avançou até ao outro extremo do alpendre e ficou ali, de braços cruzados sobre o peito, a observar os campos.

    - Ambos a amávamos - disse Cade. - Ambos a perdemos. E nenhum de nós a esqueceu.

    Sentiu um peso no peito, como se alguém a esmurrasse.

    - Não posso ajudar-te.

    - Não estou a pedir-te ajuda.

    - Estás a pedir o quê, então?

    Confuso, mudou de posição e depois voltou a deter-se, para a estudar de perfil. Ela se fechara, pensou. A pequena fresta que se abrira voltara a se fechar.

    - Não estou a pedir nada, Tory. É isso que esperas de toda a gente?

    Ela sentia-se mais forte, agora, de pé, e virou-se, olhando-o com firmeza:

    - Sim.

    Um pássaro voou como uma seta por detrás dele, um flash cinzento e breve que encontrou poleiro numa das árvores que delimitavam o pântano. E ali, segundo pareceu a Tory, cantou o que lhe ia no coração horas a fio, antes de Cade voltar a falar.

    Tinha esquecido isto?, perguntou-se. As pausas longas e confortáveis, o ritmo paciente das conversas do campo?

    - É pena - disse ele, quando o sangue dela começou a pulsar no silêncio. - Mas não quero nada de ti, exceto talvez uma palavra amiga de vez em quando. A verdade é que a Hope significava muito para nós dois. Perdê-la teve um grande impacto na minha vida. Não quero chamar mentirosa a uma senhora, mas se me olhasses nos olhos e me dissesses que isso não afetou a tua, não poderia deixar de fazê-lo.

    - Que te importa aquilo que sinto? - Apeteceu-lhe esfregar os braços, para aquecê-los, mas resistiu. - Não nos conhecemos. Nunca nos conhecemos realmente.

    - Conhecíamos a ela. Talvez o teu regresso remexa as coisas e as faça voltar à tona, outra vez. A culpa não é tua, as coisas são apenas como são.

    - Isto é uma visita de boas-vindas ou um aviso para me manter à distância?

    Por um momento ele não disse nada, e depois abanou a cabeça. O humor regressou-lhe aos olhos, iluminando-os mais rapidamente do que à sua voz.

    - Não há dúvida de que cresceste e te tornaste irritadiça. Para começar, não tenho por hábito pedir às mulheres bonitas que se mantenham à distância. Eu é que sofreria com isso, não era?

    Ela não sorriu, mas ele sim, e desta vez deu um passo na direcção dela, aproximando-se deliberadamente. Talvez o movimento, ou o som das botas de trabalho na madeira, fez o pássaro embrenhar-se mais no pântano e silenciou a canção.

    - Por tua vez, podes sempre dizer-me que me mantenha à distância, mas é pouco provável que te dê ouvidos. Voltei para te dar as boas-vindas, Tory, e para te ver. Tenho direito à minha curiosidade. E ver-te traz de volta um pouco daquele verão. É uma coisa natural. Vai trazê-lo de volta a outras pessoas, também. Já devias saber isso quando decidiste vir.

    - Vim por minha causa.

    É por isso que tens um ar doente, cansado e assustado?, perguntou-se ele.

    - Então, sê bem-vinda a casa.

    Estendeu-lhe a mão. Ela hesitou, mas ao mesmo tempo que lhe pareceu um desafio, pareceu-lhe também um gesto sincero. Quando a mão dela tocou a dele, sentiu-a mais quente e mais firme do que esperara. Assim como sentiu a ligação, uma espécie de clique interno, suave, inesperado. E indesejado.

    - Desculpa se te pareço desagradável. - Libertou a mão. - Mas tenho muito que fazer. Preciso de começar.

    - Se eu puder fazer alguma coisa, diz-me.

    - Obrigada. Ah... arranjaste bem a casa.

    - É uma boa casa. - Mas ele manteve o olhar fixo nela, quando ela falou. - Fica num bom sítio. Vou deixar-te trabalhar - acrescentou, e começou a descer os degraus. Parou junto a uma pickup com ar maltratado, que precisava desesperadamente de uma lavagem. - Tory? Sabes, aquela imagem tua que fixei na minha cabeça? - Abriu a porta da camioneta e uma ligeira brisa passou-lhe pelos cabelos iluminados pelo sol. - Tenho uma melhor, agora.

    Arrancou, mantendo-a enquadrada no retrovisor até fazer a curva e sair da terra para o asfalto.

    Não pensara em falar em Hope, não para já. Como dono de Beaux Revés, como senhorio dela, como conhecimento de infância, disse a si mesmo que era uma mera visita de cortesia, por dever. Mas não conseguira enganar-se a si próprio, e não conseguira enganar Tory, obviamente.

    A curiosidade fizera-o rumar de imediato ao que toda a gente por ali chamava a Casa do Pântano, quando tinha uma dúzia de assuntos urgentes a tratar. Fora criado para dirigir a fazenda, mas dirigia-a à sua maneira. E essa maneira não agradava a toda a gente.

    Aprendera a ser político e diplomata. Aprendera a desempenhar qualquer papel que lhe fosse pedido, desde que conseguisse o que queria.

    Perguntou-se que papel teria de desempenhar com Tory.

    Quer ela estivesse pronta a admiti-lo, quer não, o seu regresso alterava todos os equilíbrios. Ela era a pedrada no charco, e a agitação formada por essa pedrada ia ser grande.

    Não estava bem certo do que fazer com ela, do que queria fazer com ela. Mas era um homem da terra, e os homens que viviam da terra e das sementeiras e do tempo sabiam esperar.

    Num impulso, estacionou a camioneta junto ao acostamento. Não tinha nada que fazer aquele tipo de desvios, quando todas as suas responsabilidades estavam em Beaux Revés. As novas colheitas estavam a nascer, e quando as plantas cresciam também cresciam as ervas daninhas. Tinha de supervisionar as culturas. Este era um ano decisivo para os planos que fizera. Queria vigiar tudo de perto e em todas as etapas.

    Mesmo assim, saiu, atravessou a pequena ponte de madeira e entrou no pântano.

    Ali o mundo era verde e rico e vivo. Os caminhos tinham sido limpos, e ao longo deles, alinhadas como num parque, cresciam azáleas impressionante e teimosamente floridas. Entre as magnólias e as árvores de borracha havia tufos de flores silvestres, pequenos outeiros e arbustos de folhagem persistente. Já não era o mundo excitante e ligeiramente perigoso da sua juventude.

    Agora era um altar em honra de uma criança perdida.

    Fora o seu pai que fizera aquilo. Movido pela dor, pelo orgulho, talvez mesmo pela raiva que nunca mostrara. Mas Cade sabia que essa raiva vivera dentro dele, como um câncer. Crescendo e espalhando-se em segredo e em silêncio, aqueles tumores de raiva e de desespero.

    A dor fora tratada como uma doença, dentro dos muros de Beaux Revés.

    E aqui, pensou ele, fora transformada em flores.

    Os lírios iriam dançar no verão, num desfile colorido, e os delicados íris amarelos que gostavam de ter os pés molhados, estavam já a florir nas sombras da primavera, como pequenos raios de sol. A erva mantinha-se afastada. Embora voltasse a crescer rapidamente, enquanto o seu pai vivera houvera mãos para voltar a cortá-la. Agora, essa responsabilidade cabia também a Cade.

    Havia um pequeno banco de pedra na clareira onde Hope fizera a fogueira na última noite da sua vida. Havia mais uma ponte sobre a água castanho-tabaco assombrada por ciprestes, bordejada por fetos espessos e encaracolados e rododendros de flores do mais puro branco. Camélias e amores-perfeitos trariam flores e aromas ao inverno, quando desabrochassem.

    E entre o banco e a ponte, no meio de um lago cheio de flores cor-de-rosa e azuis, havia uma estátua de mármore que parecia de uma jovem sorridente, que teria oito anos para sempre.

    Tinham-na enterrado dezoito anos antes, num outeiro ensolarado. Mas era ali, nas sombras verdes e nos aromas selvagens, que vivia o espírito de Hope.

    Cade sentou-se no banco, com as mãos entre os joelhos. Desde a morte do pai, oito anos antes, que ninguém se sentava ali, pelo menos ninguém da família.

    Quanto à mãe, este lugar deixou de existir no momento em que encontraram Hope. Violada, estrangulada, e depois deixada ao abandono como uma boneca velha.

    Cade perguntou-se, como fizera vezes sem conta ao longo daquele comprido mar de anos, se a sua mente retivera tudo o que lhe fora feito.

    Recostou-se e fechou os olhos. Mentira a Tory, admitia agora. Queria, de fato, qualquer coisa dela, Queria respostas. Respostas pelas quais esperara mais de metade da sua vida.

    Demorou cinco minutos preciosos a acalmar-se. Estranho só agora ter reparado o quanto o enervara voltar a vê-la. Ela tinha razão ao dizer que ele mal lhe prestava atenção quando eram crianças. Ela era a garota Bodeen com quem a irmã andava, e um rapaz de doze anos não se dava ao trabalho de lhe prestar atenção.

   

    Até àquela manhã, aquela manhã terrível de agosto, quando ela chegara à sua porta com a cara ferida e cheia de nódoas negras e os olhos aterrorizados. A partir daquele momento, não havia nada nela em que ele não reparasse. Nada que ele tivesse esquecido.

    Empenhara-se em saber tudo o que havia a saber sobre onde ela fora, o que fizera, em quem se tornara muito depois de ter deixado Progress.

    Soubera praticamente o momento exato em que ela começara a fazer planos para regressar.

    E, ainda assim, não estava preparado para vê-la naquela divisão vazia, tão pálida que os seus olhos sobressaíam como lagos de fumo.

    Ambos precisavam de tempo, decidiu Cade enquanto se punha de pé. Depois, tratariam de Hope.

    Voltou à camioneta e arrancou, para passar os olhos pelas suas colheitas e pelos seus trabalhadores.

    Tinha calor, estava transpirado e sujo quando entrou no caminho entre os pilares de pedra que guardavam o caminho comprido e sombreado até Beaux Revés. Vinte carvalhos, dez de cada lado, flanqueavam a estrada e arqueavam-se sobre ela, formando um túnel verde e dourado. Entre os seus troncos grossos podia ver os arbustos em flor, a grande extensão relvada, o serpentear de um caminho de ladrilho que conduzia ao jardim e aos anexos.

    Quando estava cansado, como agora, esta extensão nunca deixava de lhe abrir os braços, aliviando-lhe a fadiga como uma mão apaziguadora. Na seca e na guerra, na destruição de uma parte da sua vida e na construção de outra, Beaux Revés estava ali, firme.

    A terra estava nas mãos dos Lavelle havia mais de duzentos anos. Eles tinham-na preparado, alimentado, abusado dela e amaldiçoado, mas ela sobrevivia. Enterrava-os e dava-lhes vida.

    E agora era dele.

    Talvez a casa fosse uma enorme excentricidade no centro da elegância, mais fortaleza do que casa, mais desafiadora do que graciosa. A pedra refletia a luz fraca do sol. As torres erguiam-se arrogantemente contra um céu que era agora da cor de uma nódoa negra acabada de fazer.

    Havia um enorme canteiro de flores oval, no meio da rotunda que encimava o caminho. Cade sempre pensara que se tratava da tentativa, por parte de algum antepassado distante, de suavizar as linhas arrogantemente masculinas. Em vez disso, o mar de flores e de arbustos fazia um nítido contraste com as portas grandiosas e maciças da entrada, em carvalho trabalhado em relevos, e a rigidez das janelas.

    Deixou a camioneta na curva mais distante do caminho e subiu os seis degraus de pedra. O alpendre fora acrescentado pelo seu bisavô. Um toque de simpatia, pensou Cade, com a sombra lançada pelo telheiro e as clemátides trepando de ambos os lados. Podia sentar-se, se quisesse, como os membros da sua família tinham feito durante gerações, e observar a relva e as árvores e as flores, sem estragar a vista com o trabalho dos campos, árduo e empapado em suor.

    Razão pela qual raramente se sentava ali.

    Raspou a terra das botas. Para lá daquelas portas ficava o domínio da sua mãe e, embora ela não dissesse nada, o seu silêncio de desaprovação, o seu olhar frio ao ver qualquer vestígio dos campos no seu soalho, seriam piores do que uma preleção.

    A primavera fora generosa, por isso as janelas estavam abertas ao entardecer. O aroma dos jardins entrava, misturando-se com os perfumes das flores selecionadas em arranjos dentro de casa.

    O hall era impressionante, o chão de mármore, verde-mar, dava idéia de que os pés iriam simplesmente afundar-se em água fresca.

    Pensou numa ducha, numa cerveja e numa bela refeição quente antes de folhear o jornal da tarde. Movia-se em silêncio, à escuta, sem se sentir culpado por ter esperança de conseguir evitar qualquer contacto com a sua família antes de estar limpo e restabelecido.

    Chegara ao bar na sala principal e acabara de tirar a tampa de uma Beck's, quando ouviu o toque feminino de saltos. Estremeceu, mas o seu rosto estava composto e tranquilo quando Faith entrou de rompante.

    - Serve-me um pouco de vinho branco, querido, tenho umas arestas que precisam de ser limadas.

    Estendeu-se no sofá enquanto falava, com um pequeno suspiro irritado, e afastava uma madeixa do seu cabelo louro. Voltara a ser loura. Havia quem dissesse que Faith Lavelle mudava a cor do cabelo quase tão frequentemente como mudava de homens.

    Havia quem gostasse de dizer isso.

    Divorciara-se pela segunda vez aos vinte e seis anos, e arranjara e deixara mais amantes do que a maioria se dava ao trabalho de contar. Em especial Faith. Contudo, conseguia projetar a imagem da delicada flor do Sul, com a sua pele branca-camélia e os olhos azuis dos Lavelle. Olhos azuis temperamentais que podiam encher-se de lágrimas quando ela quisesse e eram especialistas em fazer promessas que ela podia ou não tencionar cumprir.

    O seu primeiro marido era um rapaz irreverente e bonito, de dezoito anos, com quem ela fugira dois meses antes de acabar o liceu. Amara-o com toda a paixão e com todo o capricho da juventude e ficara devastada quando ele a deixara sem um tostão, menos de um ano depois.

    Não que tivesse permitido que alguém soubesse disso. Para o mundo, ela deixara Bobby Lee Matthews e regressara a Beaux Revés porque se fartara de brincar de casinha.

    Três anos mais tarde, casara com um ambicioso cantor country, que conhecera num bar. Fizera-o por se sentir aborrecida, mas aguentara-o durante dois anos, antes de perceber que Clive aspirava também a viver as letras que falavam de traição e de violência e que escrevia toldado por Budweiser e Marlboro.

    Por isso, uma vez mais, voltou a Beaux Revés, irritadiça, insatisfeita e secretamente descontente consigo própria.

    Lançou a Cade um sorriso doce e derretido quando ele lhe trouxe um copo de vinho.

    - Querido, pareces exausto. Porque não te sentas e levantas os pés por um bocado? - Pegou-lhe na mão e apertou-a um pouco. - Trabalhas de mais.

    - Se quiseres colaborar...

    O sorriso dela acentuou-se, numa lâmina afiada.

    - Beaux Revés é teu. O Papai deixou isso claro ao longo das nossas vidas.

    - O Papai já não está aqui.

    Faith limitou-se a encolher um ombro, descontraidamente.

    - Isso não muda os fatos.

    Ergueu o copo de vinho e bebericou. Era uma mulher bonita, que exagerava na pintura para explorar a sua beleza. Mesmo agora, para um serão em casa, acrescentara alguma cor às faces, pintara a sua boca sensualmente grande de um cor-de-rosa iridescente e vestira uma blusa de seda e calças rosa suave.

    - Pode se mudar tudo aquilo que se queira mudar.

    - Fui criada para ser decorativa e inútil. - Inclinou a cabeça e depois espreguiçou-se como um gato. - E faço isso muitíssimo bem.

    - Irritas-me, Faith.

    - Também faço isso muito bem. - Divertida, tocou-lhe na perna com o pé descalço. - Não sejas irritante, Cade. A discussão vai estragar-me o vinho. Já troquei umas palavras com a Mamãe, hoje.

    - Não passa um só dia em que não troques umas palavras com a Mamãe.

    - Isso não aconteceria, se ela não fosse tão crítica em relação a tudo. Tem estado mal-disposta a maior parte do dia. - Os olhos de Faith faiscaram. - Desde que a Lissy telefonou.

    - Não terá sido por isso. Ela sabia que a Tory tinha intenção de voltar.

    - Ter intenção é diferente de estar aqui. Acho que ela não gosta da idéia de lhe alugar a Casa do Pântano.

    - Se a Tory não viver ali, viverá noutro sítio qualquer. - Como estava cansado, recostou a cabeça e tentou aliviar a tensão do dia, acumulada no pescoço e nos ombros. - Está de volta e parece que veio para ficar.

    - Então, foste vê-la. - Faith tamborilou com os dedos na coxa.- Logo vi que irias. O dever em primeiro lugar, para o nosso Cade. Bem... como é que ela é?

    - Educada, reservada. Nervosa, acho eu, em relação ao regresso.

    - Bebeu um gole de cerveja. - Atraente.

    - Atraente? Lembro-me de um cabelo que parecia a casca de uma árvore e de uns joelhos salientes. Magricela e estranha.

    Ele não disse nada. Faith tinha tendência a amuar quando um homem, mesmo que fosse o irmão, tecia comentários sobre a beleza de outra mulher. E ele não estava com disposição para os amuos dela.

    - Podias fazer um esforço para seres simpática com ela, Faith. A Tory não foi responsável pelo que aconteceu à Hope. De que serve fazê-la sentir como se fosse?

    - E eu disse que não ia ser simpática com ela? - Faith passou os dedos pelo bordo do copo, parecia não conseguir mantê-los quietos.

    - Acho que ela precisa de uma amiga.

    Faith deixou cair a mão, e a sua voz de seda endureceu.

    - Ela era amiga da Hope e não minha.

    - Talvez não, mas a Hope já aqui não está. E tu também precisas de uma amiga.

    - Querido, tenho montes de amigos. Acontece apenas que nenhum é mulher. Para dizer a verdade, as coisas estão tão aborrecidas por aqui que sou capaz de ir até à cidade esta noite, afinal. Ver se consigo estar com um amigo durante umas horas.

    - Como queiras. - Afastou o pé dela e levantou-se. - Preciso de tomar uma ducha.

    - Cade - disse ela antes de ele chegar à porta. Vira o laivo de decepção nos olhos dele e isso magoou-a. - Tenho o direito de viver a minha vida como entender.

    - Tens o direito de desperdiçar a tua vida como entenderes.

    - Sim - disse ela, sem alterar o tom de voz. - E tu também. Mas deixa-me dizer-te que, por uma vez na vida, concordo com a Mamãe numa coisa. Estaríamos todos bem melhor se a Victoria Bodeen voltasse para Charleston e ficasse lá. E tu ficarias bem melhor se te mantivesses afastado de qualquer problema que ela traga com ela.

    - De que tens medo, Faith?

    De tudo, pensou ela, enquanto ele se afastava. De tudo.

    Inquieta agora, endireitou-se e foi até às enormes janelas da frente. A bela sulista lânguida desaparecera. Os seus movimentos eram rápidos, quase agitados por uma energia nervosa.

    Talvez fosse até à cidade, pensou. A qualquer lado. Talvez fosse embora.

    E para onde iria?

    Nada foi o que ela pensava que seria, quando deixou Beaux Revés. Ninguém era como ela pensava que seria. Incluindo ela própria.

    Sempre que ia embora dizia a si mesma que era de vez. Mas voltava sempre. Sempre que ia embora dizia a si própria que seria diferente. Que ela seria diferente.

    Mas nunca era.

    Como podia esperar que alguém compreendesse que tudo o que acontecera antes, tudo o que acontecera desde então, tudo tinha a ver com aquela noite quando ela - quando Hope - tinha oito anos?

    Agora a pessoa que ligava aquela noite a todas as outras estava de volta.                                                                              

    De pé, a olhar para o relvado e os jardins que o crepúsculo prateava, Faith desejou que Tory Bodeen fosse para o inferno.

   

    Eram quase oito horas quando Wade acabou de atender o seu último paciente, um rafeiro velhote com problemas de rins e um sopro cardíaco. A sua dona, igualmente velhota, não podia imaginar-se a mandar abater o pobre cão, por isso, mais uma vez, Wade voltara a tratar o cão e a apaziguar o elemento humano.

    Estava demasiado cansado para jantar e pensou em limitar-se a fazer uma sanduíche simples ou a abrir uma lata.

    O pequeno apartamento por cima do consultório agradava-lhe. Era prático, conveniente e barato. Podia pagar qualquer coisa melhor, como os seus pais estavam constantemente a recordar-lhe, mas preferia viver de forma simples e aplicar os lucros da profissão no consultório.

    De momento, não tinha animais de estimação, embora tivesse tido uma grande coleção quando era criança. Cães e gatos, claro, e com eles os incontornáveis pássaros feridos, as rãs, as tartarugas, os coelhos e, uma vez, um porco anão a que chamara Buster. A sua mãe, paciente, só impusera limites quando ele quisera levar para casa uma cobra preta que encontrara estendida no meio da estrada.

    Estava certo de que conseguiria convencê-la, mas quando apareceu à porta da cozinha com uma súplica nos olhos e um metro e meio de cobra a mexer-lhe nas mãos, a mãe gritou suficientemente alto para fazer o Sr. Pritchett, da casa ao lado, saltar a vedação que separava os dois quintais.

    Pritchett fez uma ruptura de ligamentos, a mãe de Wade deixou cair a sua leiteira adorada nos mosaicos da cozinha e a cobra foi expulsa para o rio, fora da cidade.

    Mas, abençoada, pensou Wade, tolerara tudo o resto que ele arrastara até casa, praticamente sem um queixume.

    Havia de ter uma casa com quintal e tempo para si próprio. Mas até poder pagar a mais pessoal, a maior parte dos seus dias tinha um mínimo de dez horas, sem contar com as urgências. As pessoas que não têm tempo para dedicar a animais de estimação não deviam tê-los. Sentia o mesmo em relação a filhos.

    Primeiro, foi até à cozinha e pegou numa maçã. O jantar, fosse o que fosse, iria esperar até ele tirar o cheiro de cão que trazia consigo.

    Mordendo a maçã, passou os olhos pelo correio que trouxera consigo, enquanto se dirigia para o quarto.

    Sentiu o cheiro dela antes de vê-la. A ondaa quente da mulher atingiu-lhe os sentidos, dispersou-lhe os pensamentos. Ela mexeu-se na cama, num restolhar de seda contra os lençóis.

    Não tinha nada vestido, exceto um sorriso convidativo.

    - Olá, amor. Trabalhaste até tarde.

    - Disseste que ias estar ocupada, esta noite.

    Faith chamou-o com o dedo:

    - E tencionava estar. Porque não vens até aqui ocupar-me?

    Wade largou o correio e a maçã:

    - Porque não?

   

    Wade achava que era deplorável para um homem ligar-se a uma mulher a vida inteira. E era mais do que deplorável quando essa mulher insistia em entrar e sair dessa vida como uma borboleta inconsequente. E o homem deixava.

    Sempre que ela voltava, ele dizia a si próprio que não iria jogar o jogo. E ela conseguia sempre fisgá-lo de tal maneira que ele ficava sem hipótese de fuga.

    Fora o primeiro homem a estar com ela. E não tinha a esperança de ser o último.

    Era tão incapaz de resistir-lhe agora como fora mais de dez anos antes. Naquela bela noite de verão ela subira até à janela dele e metera-se na sua cama enquanto ele dormia. Ainda se lembrava de como fora, acordar com aquele corpo suave e quente a deslizar junto ao dele, aquela boca faminta a asfixiá-lo, a devorá-lo, agarrando-se a ele até ele estar louco de desejo.

    Ela tinha quinze anos, pensou ele, e lidara com ele com a eficácia rápida e desprovida de sentimento de uma prostituta de cinquenta dólares. E era virgem.

    Era precisamente disso que se tratava, dissera-lhe ela. Não queria ser virgem, e decidira ver-se livre do fardo com a menor complicação possível e com alguém que conhecia, de quem gostava e em quem confiava.

    Tão simples quanto isso.

    Para Faith, sempre fora simples. Mas para Wade, aquela noite de verão, semanas antes de ter voltado à faculdade, fora a primeira de muitas voltas complicadas de que era feita a sua relação com Faith Lavelle.

   

    Naquele verão, fizeram sexo sempre que puderam. No banco de trás do carro dele, à noite, quando os pais dele estavam a dormir, durante o dia, enquanto a mãe dele estava sentada no alpendre, a mexericar com as amigas. Faith estava sempre desejosa, ansiosa, pronta. Era o sonho úmido de um homem tornado realidade.

    E tornara-se a obsessão de Wade.

    Tinha a certeza de que ela esperaria por ele.

    Em menos de dois anos, enquanto ele estudava arduamente e fazia planos para o futuro, o futuro deles, ela fugira com Bobby Lee. Wade embebedara-se e ficara bêbado durante uma semana.

    Ela voltara, claro. A Progress, e para ele. Sem qualquer pedido de desculpas e sem rogar qualquer perdão.

    Era assim a relação entre ambos. Ele detestava-a por isso, quase tanto como se detestava a si próprio.

    - Então... - Faith rolou para cima dele e tirou um cigarro do maço que estava na mesa-de-cabeceira e, mantendo-se em cima dele, acendeu-o. - Fala-me da Tory.

    - Quando recomeçaste a fumar?

    - Hoje. - Sorriu, inclinando-se para lhe dar uma pequena mordidela no queixo. - Não me venhas com sermões, Wade. Toda a gente tem direito a ter um vício.

    - E que vício é que tu não tens?

    Ela riu, mas havia uma certa amargura naquele riso, uma certa amargura nos olhos.

    - Se não os experimentarmos a todos, como sabemos de quais gostamos? Agora, vá lá, fofo, fala-me da Tory. Estou morta por saber tudo.

    - Não há nada para saber. Ela voltou.

    Faith soltou um enorme suspiro.

    - Os homens são criaturas tão irritantes. Como é ela? Que atitudes tem? O que tenciona fazer?

    - É adulta e tem atitudes de adulta. Tenciona abrir uma loja em Market Street. - Diante do olhar frio de Faith, encolheu os ombros. - Cansada. Parece cansada, talvez um tanto magra de mais, como alguém que não tem estado muito bem ultimamente. Mas há um certo brilho nela, do tipo que se ganha quando se vive na cidade. Quanto às intenções dela, não sei. Porque não lhe perguntas?

    Ela passou a mão pelo ombro dele. Ele tinha uns ombros maravilhosos.

    - É provável que ela não me diga. Nunca gostou de mim.

    - Isso não é verdade, Faith.

    - Eu é que sei. - Impaciente, saiu de cima dele, levantou-se da cama, graciosa e indomada como um gato, aspirando profundamente o seu cigarro enquanto andava pelo quarto. O luar brilhava sobre a sua pele branca, conferindo-lhe um tom azul pálido e exótico. Ele notou as marcas, as nódoas negras.

    Ela quisera um pouco de violência.

    - Sempre a olhar para mim com aqueles olhos assustadores, quase sem dizer palavra, a não ser à Hope. Tinha sempre muito a dizer à Hope. As duas andavam sempre aos segredinhos. Para que quererá voltar à velha Casa do Pântano? Em que estará a pensar?

    - Imagino que esteja a pensar que seria agradável ter um teto familiar sobre a cabeça. - Levantou-se, fechando as cortinas cuidadosamente, antes que um dos vizinhos a visse.

    - Sabes tão bem como eu o que aconteceu debaixo daquele teto. - Faith virou-se e os seus olhos brilharam quando Wade diminuiu a intensidade da luz da luminária da mesa-de-cabeceira. - Que tipo de pessoa volta a um lugar onde foi prisioneira? Talvez seja tão maluca como as pessoas diziam.

    - Ela não é maluca. - Cansado, Wade vestiu as calças de brim. - Sente-se sozinha. Às vezes, as pessoas que se sentem sozinhas voltam a casa porque não há mais nenhum lugar para ir.

    Aquilo atingiu-a demasiado perto do coração. Desviou os olhos dos dele e bateu o cigarro no maço.

    - Às vezes, a nossa casa é o lugar mais solitário de todos.

    Tocou-lhe no cabelo, apenas e leve. Isso fê-la desejar embrenhar-se nele, agarrar-se a ele. Deliberadamente, levantou a cabeça, ostentando um sorriso radioso.

    - Seja como for, porque estamos a falar da Tory Bodeen? Vamos arranjar o jantar e comer na cama. - Lentamente, com os olhos fixos nos de Wade, puxou o fecho das calças de brim dele. - Tenho sempre tanto apetite quando estou contigo.

    Mais tarde, ele acordou no escuro. Ela desaparecera. Nunca ficava, nunca dormia com ele, simplesmente. Havia alturas em que Wade se perguntava se ela dormiria ou se aquele motor interno dela trabalharia incessantemente, alimentado a nervos e a necessidades que nunca eram totalmente satisfeitas.

    Supunha que era a sua maldição, amar uma mulher que parecia incapaz de retribuir com sentimentos genuínos. Devia pô-la fora da sua vida. Era a coisa mais sensata a fazer. Ela voltaria a feri-lo, e de cada vez que isso acontecia levava mais tempo a sarar. Mais cedo ou mais tarde, não restaria nada do seu coração senão cicatrizes, e ele seria o único culpado.

    Sentiu a fúria crescer dentro de si, um calor negro que lhe borbulhava no sangue. Mantendo as luzes apagadas, vestiu-se às escuras. A sua fúria precisava de um alvo antes que se virasse para dentro e implodisse.

   

    Teria sido mais inteligente, mais confortável, mais sensível, porventura, ter alugado um quarto de hotel. Teria sido mais simples ter aceitado a hospitalidade do tio e dormido num dos quartos cheio de bugigangas, decorado de cima a baixo, que os Boots tinham prontos na casa grande.

    Quando era criança, sonhara muitas vezes em dormir naquela casa perfeita, naquela rua perfeita, onde imaginava que tudo cheirava a perfume e a verniz.

    Em vez disso, Tory estendeu um cobertor no chão nu e ficou acordada, às escuras.

    Orgulho, teimosia, necessidade de provar alguma coisa a si própria? Não estava certa dos motivos que a levavam a passar a sua primeira noite em Progress na casa vazia da sua infância. Mas fizera a sua cama, por assim dizer, e estava decidida a deitar-se nela.

    De manhã, haveria muito a fazer. Naquela tarde verificara a lista e acrescentara mais uma dúzia de coisas. Precisava de comprar uma cama e um telefone. Toalhas novas, uma cortina para o chuveiro. Precisava de um candeeiro e de uma mesa onde pô-lo.

    Acampar já não era a aventura que costumava ser, e ter gostos e necessidades simples não significava que não quisesse ter o conforto básico.

    Deitada no escuro, verificou a sua lista como costumava usar a parede imaculadamente branca. Cada coisa verificada mentalmente era mais um tijolo que bloqueava imagens e a mantinha concentrada no momento presente.

    Iria ao mercado e abasteceria a cozinha. Se deixasse a situação prolongar-se demasiado, voltaria ao hábito de saltar refeições. E quando negligenciava o corpo, era mais difícil controlar a mente.

    Iria ao banco, abrir contas, uma pessoal e outra para os negócios. Estava agendada uma visita ao Progress Weekly. Já fizera o seu anúncio.

   

    Acima de tudo, enquanto montasse a loja nas próximas semanas, precisava de estar visível. Treinaria para conseguir ser simpática, agradável. Normal.

    Levaria algum tempo a conseguir enfrentar os inevitáveis mexericos, as perguntas, os olhares. Estava preparada. Quando abrisse a loja, as pessoas estariam outra vez habituadas à sua presença. Mais, muito mais importante, estariam habituadas a vê-la como ela queria ser vista.

    Pouco a pouco, faria parte da cidade. E depois começaria a explorar. Seria ela a fazer as perguntas. Começaria a procurar as respostas.

    Quando as tivesse, poderia despedir-se de Hope.

    Fechando os olhos, ficou a escutar os sons da noite, o coro de cigarras, tão alegremente monótono, o piar agudo e irritante de uma coruja que caçava, os lamentos suaves da madeira, os movimentos astutos dos ratos a instalarem-se do lado de lá da parede.

    Teria de pôr armadilhas, pensou, ensonada. Lamentava imenso, mas não queria partilhar o espaço com roedores. E colocaria bolas de naftalina sob os alpendres, para desencorajar as cobras.

    Eram bolas de naftalina, não eram? Havia tanto tempo que não vivia no campo. Usava-se bolas de naftalina para as cobras e pendurava-se sabão por causa dos veados, e assim protegia-se aquilo que era nosso, embora tivesse sido deles primeiro.

    E se os coelhos viessem mordiscar a horta, espalhava-se pedaços de mangueira, para eles pensarem que eram as cobras que tínhamos afastado com as bolas de naftalina. Ou o pai chegava a casa e matava-os com a sua 22. E tínhamos de comê-los ao jantar, embora ficássemos doentes depois, porque eles eram muito engraçados, a mexer as orelhas compridas. Tínhamos de comer o que Deus nos dava, ou pagar pelo pecado. E ficar doente sempre era melhor do que levar uma surra.

    Não, não penses nisso, ordenou a si própria, mudando de posição no chão duro. Ninguém ia fazê-la comer o que ela não queria, nunca mais. Ninguém ia erguer o chicote contra ela, nem um punho.

    Agora, era ela quem mandava.

   

    Sonhou que estava sentada no chão macio, junto a uma fogueira que crepitava, fumegante, e queimava o marshmallow que ela segurava sobre a chama, num pau. Gostava dele queimado, com a parte de fora preta e estaladiça sobre o interior macio, pegajoso e branco. Afastou-o do lume, soprando para apagar a chama que ardia nele.

    Queimou o céu da boca, mas isso fazia parte do ritual. A dor rápida e depois o contraste do crocante com o açúcar.

    - Mais valia comeres carvão - disse Hope, virando o seu doce dourado. - Ora aqui tens um marshmallow perfeitamente assado.

    - Gosto deles à minha maneira.

    Para prová-lo, Tory tirou outro do saco e enfiou-o na ponta aguçada do seu pau.

    - Como diz a Lilah, sela-se o burro à vontade do dono. - A sorrir, Hope mordeu delicadamente o seu marshmallow. - Ainda bem que voltaste, Tory.

    - Sempre quis voltar. Acho que talvez tivesse medo. Acho que ainda tenho.

    - Mas estás aqui. Vieste, exatamente como se esperava.

    - Naquela noite, não apareci. - Tory desviou os olhos do fogo e mergulhou-os no olhar da sua infância.

    - Acho que não tinhas que aparecer.

    - Prometi que viria. Às dez e trinta e cinco. Mas não apareci. Nem sequer tentei.

    - Tens que tentar agora. Porque houve mais. E continuará a haver mais até lhes pores fim.

    O peso voltava a aumentar, e o seu peito de oito anos ardia sob ele.

    - Que queres dizer, mais?

    - Mais como eu. Exatamente como eu. - Os olhos solenemente azuis, profundos como lagos, fixaram os de Tory através do fumo. - Tens de fazer o que tens de fazer, Tory. Tens de ter cuidado e tens de ser esperta. Victoria Bodeen, a espiã.

    - Hope, já não sou uma garota.

    - Por isso é que está na hora. - O fogo subiu mais alto e mais brilhante. Os olhos profundamente azuis refletiam as chamas, pedaços de luz selvagem. - Tens que pôr um fim a isto.

    - Como?

    Mas Hope abanou a cabeça e murmurou:

    - Há qualquer coisa no escuro.

    Os olhos de Tory abriram-se de repente. O coração parecia querer saltar-lhe do peito e na boca sentia o sabor do medo e do doce queimado.

    Há qualquer coisa no escuro. Ouviu o eco da voz de Hope e o restolhar, como um sopro de vento por entre as folhas, do lado de fora da janela.

    Viu a ligeira mudança de luz quando alguém passou diante da lua.

    A criança dentro de si quis enrolar-se sobre si mesma, cobrir o rosto com as mãos, tornar-se invisível. Estava sozinha. Indefesa.

    Quem quer que se encontrasse lá fora estava à espreita, à espera. Conseguia sentir isso, mesmo através do medo. Tentou libertar a mente, ser racional. Mas diante de si estava apenas a parede de vidro do terror.

    O terror não era apenas dela.

    Eles também têm medo, pensou. Medo de mim. Porquê? A mão tremia-lhe, enquanto tentava chegar à lanterna, ao lado do cobertor. O peso sólido ajudou-a a afastar grande parte do medo. Não ficaria indefesa. Defender-se-ia, enfrentaria a situação, dominá-la-ia. A criança fora uma vítima. A mulher não o seria. Pôs-se de joelhos, tateou para acender a lanterna e quase gritou quando viu o feixe de luz. Apontou-o para a janela como uma arma. E só havia sombras e lua.

    Respirava de forma irregular, mas pôs-se de pé. Correu para a porta e acendeu as luzes do teto. Quem quer que estivesse lá fora podia vê-la, agora. Deixa-os ver, pensou. Deixa-os ver que ela não se acovarda no escuro.

    O feixe de luz balançava enquanto ela corria do quarto para a cozinha. Uma vez mais, acendeu as luzes do teto. Deixa-os ver, pensou de novo, e tirou uma faca do conjunto preso no bloco de madeira, que desempacotara. Deixa-os ver que não estou indefesa.

    Trancara as portas, um hábito que adquirira na cidade. Mas estava perfeitamente ciente da inutilidade dessa precaução. Um bom pontapé faria saltar as fechaduras.

    Saiu da luz e envolveu-se nas sombras da sala. De costas para a parede, fez um esforço para controlar a respiração, até conseguir que ela fosse lenta e calma. Não conseguia ver se tivesse a cabeça num turbilhão, não conseguia concentrar-se se o seu sangue estivesse aos gritos.

    Pela primeira vez em mais de quatro anos preparou-se para se abrir ao dom com que fora amaldiçoada à nascença.

    Mas as luzes entraram como setas pela janela da frente e varreram a sala. Os seus pensamentos voltearam como pétalas, ao ouvir o som de um carro a subir rapidamente o caminho de acesso à casa.

    Os pneus cuspiram a fina camada de cascalho, num som impaciente e exigente. Voltou a respirar de forma ofegante, forçando-se a aproximar-se da porta. Meteu a lanterna no bolso do traje de treino com que dormira, agarrou a faca com firmeza e destrancou a fechadura.

   

    As luzes do carro apagaram-se e o condutor abriu a porta.

    - O que quer daqui? - Voltando a pegar na lanterna, Tory procurou o botão para acendê-la. - O que está a fazer aqui?

    - Apenas a visitar uma velha amiga.

    Tory apontou a luz para a figura que saiu do carro. Sentiu os joelhos fracos, a pele arrepiada.

    - Hope. - Pronunciou o nome, a meia-voz, enquanto a faca lhe caía dos dedos e tilintava no chão. - Oh, meu Deus!

    Mais um sonho. Mais um episódio. Ou talvez fosse apenas loucura. Talvez sempre tivesse sido.

    Ela subiu os degraus do alpendre. O luar refletia-se-lhe no cabelo, nos olhos. A porta de tela rangeu quando ela a abriu.

    - Parece que viste um fantasma, ou que estavas à espera de algum. - Baixou-se e apanhou a faca. Passou um dedo elegante pela ponta da lâmina.

    - Mas sou real. - Dizendo isto, virou o dedo e mostrou uma gota minúscula de sangue. - Sou a Faith - acrescentou, entrando em casa. - Vi a luz acesa, quando ia a passar.

    - Faith? - Pareceu-lhe que a cabeça era varrida pelo mar. A alegria, aquele arrebatamento esfriou quando ela voltou a pronunciar o nome. - Faith.

    - Isso mesmo. Tens alguma coisa que se beba? - Entrou na cozinha.

    Como se fosse a dona da casa, pensou Tory, e depois lembrou a si própria que os Lavelle eram, de fato, os donos da casa. Passou uma mão pela cara, pelo cabelo. Depois, cruzando os braços, seguiu Faith até à cozinha.

    - Tenho chá gelado.

    - Referia-me a qualquer coisa com mais espírito.

    - Não, desculpa. Não tenho. Não estou propriamente apetrechada para ter companhia, por enquanto.

    - Estou a ver. - Intrigada, Faith deambulou pela cozinha, pousando a faca em cima da bancada, quando passou por ela. - Um pouco mais espartana do que eu esperava. Mesmo para ti.

    Era este o aspecto que Hope teria, se fosse viva. Tory não conseguia tirar aquela idéia da cabeça. Era exatamente o aspecto que ela teria, olhos azuis profundos a contrastar com uma pele muito branca, o cabelo da cor do milho sedoso. Elegante e linda. E viva.

    - Não preciso de muita coisa.

    - Essa foi sempre a diferença entre nós, ou pelo menos uma delas. Tu não precisavas de muito. Eu precisava de tudo.

    - Chegaste a consegui-lo?

    Faith arqueou uma sobrancelha e depois limitou-se a sorrir, encostando-se ao balcão.

    - Oh, ainda estou a juntar coisas. Qual é a sensação de estar de volta?

    - Não estou de volta há tempo suficiente para saber.

    - Há tempo suficiente para vires à porta com uma faca de cozinha na mão quando alguém te faz uma visita.

    - Não estou habituada a visitas às três da manhã.

    - Tive um encontro até tarde. Estou entre casamentos, de momento. Tu nunca casaste, pois não?

    - Não.

    - Juro que ouvi qualquer coisa sobre estares noiva, uma vez. Não deve ter dado certo.

    O sentimento de falha, desespero, traição, começou a querer soltar-se.

    - Não, não deu certo. Presumo que os teus casamentos, dois, não foram?, também não tenham dado certo.

    Faith sorriu, e desta vez o sorriso era genuíno. Preferia um jogo equilibrado.

    - Vejo que estás saída da casca.

    - Não quero espetar-te alfinetadas, Faith. E não vejo qual o teu interesse em me espetar, passado todo este tempo. Eu também a perdi.

    - Ela era minha irmã. Nunca te lembraste disso.

    - Era tua irmã. E era a minha única amiga.

    Qualquer coisa ameaçou remexer-se dentro dela, mas Faith travou-a.

    - Podias ter feito amigos novos.

    - Tens razão. Nada que eu possa dizer conseguirá compensar, alterar as coisas, trazê-la de volta. Nada que eu possa dizer ou fazer.

    - Então, porque voltaste?

    - Nunca me deixaram despedir dela.

    - É demasiado tarde para despedidas. Acreditas em recomeços e segundas oportunidades, Tory?

    - Sim, acredito.

    - Eu não. E vou dizer-te porquê. - Tirou um cigarro da bolsa e acendeu-o. Deu uma tragada e agitou-o. - Ninguém quer recomeçar. Os que dizem que sim são mentirosos ou iludem-se a si próprios, mas são sobretudo mentirosos. As pessoas só querem ir embora a partir do ponto em que as coisas deram erradp, seguir noutra direção e sem bagagem. Aqueles que o conseguem são uns sortudos, porque de alguma forma conseguem livrar-se de todos esses fardos irritantes, como a culpa e as consequências.

    Voltou a saborear o cigarro, lançando a Tory um olhar contemplativo.

    - E não me parece que tenhas tanta sorte.

    - Sabes uma coisa? Tu também não. E isso é surpreendente.

    A boca de Faith entreabriu-se, trêmula, e depois ela voltou a fechá-la e sorriu pensativamente.

    - Ora, viajo sem bagagem e com muita frequência. Pergunta a quem quiseres.

    - Parece que aterramos no mesmo sítio. Porque não tiramos o melhor partido disso?

    - Desde que te lembres de quem chegou cá primeiro, não teremos problemas.

    - Nunca me deixaste esquecer disso. Mas neste momento esta é a minha casa e estou cansada.

    - Então, até depois. - Dirigiu-se à saída, soltando baforadas de fumo. - Dorme bem, Tory. Ah, e se ficar aqui sozinha te dá arrepios, eu cá trocava aquela faca por uma pistola.

    Parou, abriu a bolsa e tirou de lá uma pistola pequena, com coronha de madrepérola.

    - Uma mulher nunca anda suficientemente segura, pois não? - Com uma pequena gargalhada, voltou a meter a pistola na mala, fechou-a e depois fez a porta de tela bater atrás de si.

    Tory deixou-se ficar à porta, mesmo quando os faróis a cegaram. Ficou ali até o carro dar meia volta no caminho, chegar à estrada e afastar-se a toda a velocidade.

    Trancou a porta e depois voltou à cozinha, à procura da lanterna e da faca. Uma parte de si queria meter-se no carro, ir até à cidade e bater à porta do tio. Mas se não conseguisse passar aquela primeira noite na casa, ficaria mais fácil evitar a seguinte e a outra.

    Encostou-se à parede, com os olhos fixos na janela, até a escuridão começar a suavizar-se e os primeiros pássaros da manhã despertarem.

    Tivera medo. Quando se aproximara silenciosamente da janela, sentira o que raramente sentia. O medo a estrangular-lhe a garganta.

    Tory Bodeen, de regresso ao sítio onde tudo começara.

   

    Estava a dormir, enrolada no chão como uma cigana, e ele podia ver a curva da sua face, a forma dos seus lábios, à luz oblíqua do luar.

    Era preciso fazer alguma coisa. Ele sabia isso e começara a fazer planos, ao seu jeito calmo e firme. Mas que impacto vê-la ali, recordar tudo com toda a nitidez só de vê-la ali.

    Ficara surpreendido quando ela acordara, saindo do sono rápida e certeira como uma flecha disparada por um arco. Mesmo no escuro vira visões nos olhos dela. Isso inundara-lhe o rosto de suor, e as palmas das mãos. Mas havia muitas sombras, muitos sítios onde esconder-se. Buracos na parede.

    Enrolara-se num dos buracos e vira Faith chegar. O cabelo claro brilhando ao luar, num contraste interessante com o de Tory, escuro. Tory, que parecia absorver a luz em vez de refleti-la.

    Naquele momento em que elas tinham estado juntas, em que as suas vozes se tinham misturado, soubera onde seria delas. Onde elas seriam dele.

    Seria como da primeira vez, havia tanto tempo. Seria o que tentava reviver havia dezoito longos anos.

    Seria perfeito.

   

    Planejara levantar-se cedo. Quando o bater na porta da frente a acordou, às oito, Tory não sabia bem se estava mais irritada consigo mesma ou com o novo visitante. Esfregando os olhos para afastar o sono, saiu do quarto aos tropeções, semicerrou os olhos ao encarar a luz do sol e debateu-se com a fechadura.

    Lançou a Cade um olhar exausto através da porta de tela.

    - Talvez não deva pagar renda, se os Lavelle decidiram fazer desta a sua casa fora de casa.

    - Desculpa?

    - Nada. - Empurrou a porta de tela com pouca energia, num convite pouco claro, e virou-lhe as costas. - Preciso de café.

    - Acordei-te. - Entrou e seguiu-a até à cozinha. - Os agricultores têm tendência a pensar que toda a gente se levanta de madrugada. Eu... - Parou diante da porta aberta do quarto e soltou uma exclamação. - Por amor de Deus, Tory, nem sequer tens cama!

    - Vou comprar uma, hoje.

    - Porque não ficaste com o J.R. e a Boots?

    - Porque não quis.

    - Preferes dormir no chão? O que é isto? - Entrou no quarto, abusivamente, pensou Tory, tal como a irmã fizera à noite, e depois saiu com a faca na mão.

   

    - É a minha agulha de croché. Ando a fazer um xaile. - Quando ele ficou a olhar para ela, ela soltou um suspiro e voltou a entrar na cozinha, batendo os pés. - Tive uma noite atribulada e estou de mau humor, por isso toma cuidado.

    Sem dizer nada, ele voltou a meter a faca na ranhura que lhe correspondia, no bloco de madeira. Enquanto ela media o café e a água, ele pousou na bancada o prato que tinha na mão.

    - O que é isso?

    - É a Lilah que manda, sabia que eu vinha para estes lados, esta manhã. - Cade levantou uma ponta da folha de alumínio. - Bolo de café. Disse que tinhas uma predileção pelo bolo de café amargo que ela faz.

    Tory ficou a olhar para o bolo, chocando ambos quando os olhos se lhe encheram de lágrimas. Antes que ele pudesse mexer-se, ela levantou a mão e manteve-a assim, como um escudo, enquanto se virava.

    Incapaz de resistir, ele passou-lhe a mão pelo cabelo e não insistiu quando ela se apressou a dar um passo em frente, para ficar fora do alcance dele.

    - Diz-lhe que lhe agradeço muito. Ela está bem, não está?

    - Porque não vens ver por ti própria?

    - Não, pelo menos por enquanto. - Mais calma, abriu um armário e tirou de lá uma chávena.

    - Queres partilhar o teu café?

    Ela olhou para trás, por cima do ombro. Tinha os olhos secos e límpidos. Ele não se parecia nada com o raio de um agricultor, pensou ela. Estava bronzeado e era magro, e tinha o cabelo aclarado pelo sol. Vestia umas calças de brim velhas e a camisa era de um azul desbotado. Tinha os óculos de sol presos por uma das hastes no bolso.

    Parecia antes a imagem dada por algum realizador de Hollywood de um jovem agricultor sulista, próspero, que vertia charme e sex appeal com um simples sorriso.

    Ela não confiava em imagens.

    - Suponho que tenha que ser delicada.

    - Podes ser mal-educada e gananciosa - disse ele -, mas mais tarde vais sentir-te muito mal por isso.

    Ele notou que ela tinha quatro chávenas e quatro pires, tudo num branco sólido e sensível. Tinha uma cafeteira automática e não tinha cama. As estantes, também brancas, estavam já escrupulosamente arrumadas. Não havia uma única cadeira na casa.

    O que diziam aquelas coisas sobre Tory Bodeen?, perguntou-se.

    Ela pegou noutra faca e depois ergueu as sobrancelhas, olhando para ele, enquanto media uma fatia. Ele agitou os dedos até ela a tornar um pouco maior.

    - Estás com apetite, esta manhã? - perguntou ela, enquanto cortava a fatia de bolo.

    - Vim a cheirar o bolo todo o caminho até aqui. - Pegou nos pratos. - Porque não levamos isto lá para fora, para o alpendre? Quero o meu café simples - acrescentou, e depois saiu.

    Tory limitou-se a suspirar e serviu duas chávenas.

    Quando ela chegou, ele estava sentado nos degraus, com as costas apoiadas no degrau de cima. Ela sentou-se ao lado dele, bebericando o café e olhando para os campos dele.

    Sentira a falta disto. Percebeu isso com surpresa, sentindo mais choque do que dor. Sentira a falta das manhãs ali, quando o calor do dia ainda não tinha envolvido o ar, quando os pássaros cantavam como milagres e os campos estavam verdes, a crescer.

    Tivera manhãs preciosas como aquela mesmo quando era criança, quando se sentava no que fora um degrau de cimento rachado, a observar o dia que chegava e a sonhar sonhos tontos.

    - É um bonito sorriso - comentou ele. - Arrancado pelo bolo ou pela companhia?

    O sorriso desapareceu como um fantasma.

    - Porque vinhas para este lado, esta manhã, Cade?

    - Tenho campos para cuidar e trabalhadores para supervisionar.

    - Partiu um pedacinho do bolo de café. - E queria voltar a ver-te.

    - Porquê?

    - Para verificar se eras tão bonita como eu pensei que eras, ontem.

    Ela abanou a cabeça, deu uma dentada no bolo que a levou imediatamente até à bela cozinha de Miss Lilah. Ficou tão animada que voltou a sorrir e deu outra dentada no bolo.

    - Não me digas.

    - Estavas com melhor ar ontem - disse ele, descontraidamente. - Mas tenho de ter em conta que não dormiste grande coisa, naquele chão. E faz um belo café, Miz Bodeen.

    - Não há razão nenhuma para te sentires no dever de verificar se está tudo bem comigo. Eu estou ótima, aqui. Só preciso de uns dias para me instalar. Seja como for, não vou passar aqui nem metade dos dias. Montar a loja vai levar-me o tempo quase todo.

    - Imagino que sim. Janta comigo esta noite.

    - Para quê? - Como ele não respondeu, ela virou a cabeça. O olhar dele era divertido e tinha os lábios ligeiramente curvados. E naquela expressão suave e simpática ela viu qualquer coisa que conseguira evitar com sucesso durante anos. Interesse masculino.

    - Não, não. Oh, não. - Levantou a chávena e bebeu grandes goles de café.

    - Foi bastante peremptório. Fica para amanhã, então.

    - Não, Cade, tenho a certeza de que devo sentir-me lisonjeada, mas não tenho tempo nem disposição para nenhum tipo de... nenhum tipo de coisa.

    Ele esticou as suas pernas compridas e cruzou-as nos tornozelos.

    - Nesta altura, não sabemos que tipo de coisa cada um de nós tem em mente. Quanto a mim, gosto de uma boa refeição de vez em quando e gosto ainda mais quando a companhia é boa.

    - Não saio com ninguém.

    - Isso é uma obrigação religiosa ou uma opção social?

    - É uma escolha pessoal. Agora... - Como ele parecia perfeitamente instalado, demasiado confortável, ela pôs-se de pé. - Desculpa, mas tenho que começar o meu dia. Já estou atrasada.

    Ele levantou-se e viu-a abrir muito os olhos quando ele se aproximou mais.

    - Alguém te fez das boas, não foi?

    - Não continues.

    - É precisamente isso, Tory. - Como não queria que ela fugisse dele, deu um passo atrás. - Eu não faria. Obrigado pelo café.

    Foi até à camioneta e fez uma pausa, virando-se para trás quando abriu a porta. Olhou para ela demoradamente, achando que faria bem a ambos se ela se habituasse àquele olhar.

    - Estava enganado - gritou enquanto se metia na cabina. - Estás igualmente bonita, hoje.

    Ela sorriu antes de conseguir deter-se e viu-o sorrir antes de recuar pelo caminho de acesso à casa. Sozinha, voltou a sentar-se.

    - Raios partam - resmungou, e encheu a boca com mais café.

   

    Os pequenos bancos das pequenas cidades eram uma raça em vias de extinção. Tory sabia isso porque o tio, que geria o Banco e Seguradora de Progress havia doze anos, raramente esquecia de mencioná-lo. Mesmo que não houvesse uma ligação familiar, tê-lo-ia escolhido para o seu negócio. Fazia parte da boa política.

    Ficava no lado este de Market Street, a dois quarteirões da loja dela. Isso tornava-o ainda mais conveniente. O velho edifício de tijolo vermelho fora cuidadosa e maravilhosamente preservado. Isso acrescentava encanto. Os Lavelle tinham-no fundado em 1853 e mantinham-se proprietários.

    Ali, pensou ela enquanto se encaminhava para a porta principal, estava a política. Quem queria fazer negócios bem-sucedidos em Progress, Carolina do Sul, fazia-os com os Lavelle.

    Praticamente não havia torta onde não tivessem metido os dedos.

    O interior do banco mudara. Lembrava-se de visitar a avó e de pensar que os bancários viviam em gaiolas, como animais exóticos no jardim zoológico. Agora a entrada era aberta, quase arejada, e quatro empregados dominavam um balcão comprido e alto.

    Tinham acrescentado um guichet nas traseiras, e atrás de um gradeamento de madeira, à altura da cintura, dois empregados sentavam-se a duas belas escrivaninhas antigas, com computadores de aspecto eficiente. A adornar as paredes, vários quadros muito bem executados que representavam paisagens da terra e do mar da Carolina do Sul.

    Alguém, pensou ela, descobrira como modernizar sem apagar a alma. Interrogou-se sobre se conseguiria convencer o tio a comprar algum dos quadros ou dos enfeites de parede que em breve iria ter à venda.

   

    - Tory Bodeen, és tu?

    Dando um pequeno salto, Tory virou a atenção para a mulher que estava atrás do gradeamento. Conseguiu esboçar um sorriso enquanto tentava reconhecer o rosto, sem sucesso.

    - Sim, olá.

    - Bem, é muito bom voltar a ver-te, ainda por cima assim, crescida. - A mulher era minúscula, mal devia chegar ao metro e meio. Abriu a cancela do gradeamento e estendeu-lhe ambas as mãos. - Sempre soube que te tornarias numa bela jovem. Não te lembras de mim.

    Sentiu que era má educação não se lembrar, perante tanta alegria sincera. Por um momento, Tory esteve tentada a agarrar-se a um nome. Mas não podia quebrar uma promessa por causa de uma coisa tão trivial.

    - Desculpe.

    - Ora, não tens porquê pedir desculpa. A última vez que te vi eras uma amostra de gente. Sou a Betsy Gluck. A tua avó deu-me lições, logo depois de eu sair do liceu. Lembro-me de te ver entrar de vez em quando e de ficares sentada, calada como um rato.

    - Dava-me pirulitos. - Foi um tremendo alívio recordar-se, ter na boca aquele sabor doce e célere a cereja.

    - Ora vejam só, lembrares-te de uma coisa dessas passado todo este tempo. - Os olhos de Betsy brilharam enquanto apertava as mãos de Tory. - Estás então aqui para falares com o J.R.

    - Se ele estiver ocupado, posso...

    - Não sejas tonta. Tenho instruções para te levar imediatamente ao gabinete dele. - Passou um braço pela cintura de Tory e fê-la passar pela cancela.......

    Teria de habituar-se a isto, recordou Tory a si própria. A ser tocada. Não podia ser uma estranha, ali.

    - Deve ser tão emocionante abrir uma loja só nossa. Mal posso esperar por ir às compras. Aposto que a Miss Mooney está tão orgulhosa que podia rebentar. - Betsy bateu a uma porta no fim de um pequeno corredor. - J.R., a sua sobrinha está aqui.

   

    A porta abriu-se de imediato e J. R. Mooney encheu o espaço. O tamanho dele nunca deixava de espantar Tory. Como este homem grande e possante nascera da sua avó era um dos mistérios da vida.

    - Aqui está ela! - A sua voz era quase tão grande como o resto, e troou enquanto ele a abraçava.

    Tory estava preparada para isso, mas ficou sem respiração quando o abraço de urso a levantou no ar. E, como sempre, a surpresa chegou quando os dedos dos pés deixaram de tocar no chão e o abraço que lhe fez estalar as costelas fê-la também rir.

    - Tio Jimmy. - Tory encostou o rosto ao pescoço de touro e finalmente, finalmente sentiu-se em casa.

    -J. R., está a abanar a rapariga como se fosse um ramo.

    - Ela é pequena. - J.R. piscou o olho a Betsy. - Mas é forte. Certifica-te de que vamos conseguir ter uns minutos sossegados aqui, está bem, Betsy?

    - Não se preocupe. Bem-vinda a casa, Tory - acrescentou Betsy, e fechou a porta.

    - Anda cá, senta-te. Queres alguma coisa? Coca-Cola?

    - Não, nada. Estou bem. - Não se sentou, levantou as mãos e depois deixou-as cair. - Devia ter vindo falar consigo ontem.

    - Não te chateies por causa disso. Estás aqui, agora. - Ele encostou-se à escrivaninha, um homem de sessenta e dois anos. Musculado. O seu cabelo cor de gengibre não esmorecera com a idade, mas havia pequenos fios prateados tecidos por entre a massa capilar. O bigode, que conferia um pouco de movimento ao rosto redondo, era de prata pura, tal como as lagartas peludas das sobrancelhas.. Os olhos eram mais azuis do que cinzentos, e sempre pareceram simpáticos a Tory.

    De repente sorriu, grande como a lua.

    - Tens mesmo um ar da cidade, mocinha. Tão bonita e refinada como uma estrela de televisão. A Boots vai adorar mostrar-te a toda a gente.                                                        

    Riu ao ver Tory estremecer automaticamente.

    - Ora, vamos, vais dar-lhe um bocadinho desse prazer, não vais? Ela nunca teve a filha que queria ter tido, e o Wade não colabora e não casa nem lhe dá netinhas para ela vestir e enfeitar.

    - Se ela tentar vestir-me um aventale cheio de rendas, vamos ter sarilho. Eu vou vê-la, Tio Jimmy. Mas primeiro preciso instalar-me, ir até à loja e arregaçar as mangas. Tenho material que vai chegar nos próximos dias.

    - Pronta para trabalhar, não é?

    - Ansiosa. Há muito tempo que queria dar este passo. Espero que o Banco e Seguros de Progress tenha espaço para mais uma cliente.

    - Temos sempre espaço para mais dinheiro. Eu próprio vou tratar disso, já daqui a pouco. Querida, ouvi dizer que alugaste a casa velha.

    - A Lissy Frazier detém o recorde da maior boca de Progress?

    - Está numa luta renhida com umas quantas. Ouve, não quero pressionar-te, nem nada disso, mas o Cade Lavelle não ia obrigar-te a manter o contrato se mudasses de idéias. A Boots e eu gostávamos que ficasses conosco. Sabe Deus que espaço não falta.

    - Agradeço muito, Tio Jimmy...

    - Espera aí. Não digas «mas», ainda. És uma mulher feita. Tenho olhos na cara, consigo ver isso muito bem. Há anos que vives por tua conta. Mas não me agrada a idéia de viveres ali, naquela casa. Acho que não é bom para ti.

    - Bom ou  não,  é  necessário.  Ele batia-me,  naquela casa. - Quando J.R. fechou os olhos, Tory aproximou-se. - Tio Jimmy, não estou a dizer isto para magoá-lo.

    - Eu devia ter feito alguma coisa. Devia ter-te tirado de lá. Ter-te afastado dele. Devia ter-vos tirado de lá a ambas.

    - A mamãe não iria. - Falava agora com simpatia, porque ele parecia precisar. - O tio sabe isso.

    - Naquela altura, desconhecia o ponto a que as coisas tinham chegado. Não me preocupei o suficiente. Mas agora sei, e não me agrada pensar que estás lá, a recordar aquilo tudo.

    - Lembro-me, esteja onde estiver. Ficar ali, bem... prova a mim mesma que consigo encarar isso. Consigo viver com isso. Já não tenho medo dele. Não me vou deixar ter medo dele.

    - Então, porque não vens até lá em casa só por uns dias? ver como te adaptas? - Ele suspirou quando ela abanou a cabeça. - É a minha sina, estar rodeada de mulheres teimosas. Bem, senta-te para eu tratar desta papelada e ficar com o teu dinheiro.

   

    Ao meio-dia, os sinos da igreja batista martelaram as horas. Tory deu uns passos atrás e limpou o suor do rosto. A vitrine da sua loja brilhava como um diamante. Trouxera algumas caixas no carro e levara-as para dentro, para o depósito. Tirara medidas para as prateleiras, os balcões, e fizera uma lista de perguntas e de pedidos que tencionava fazer à imobiliária.

    Estava elaborando a segunda lista, de ferramentas, quando alguém bateu no vidro partido da porta.

    Observou o homem magro e bem constituído, vestido com roupas de trabalho, enquanto se aproximava. Cabelo escuro, bem cortado, rosto brando e bonito, com um sorriso franco. Os óculos escuros escondiam-lhe os olhos.

    - Desculpe, está fechado - disse ela, enquanto abria a porta.

    - Parece que precisas de um carpinteiro. - Passou o dedo pelo vidro rachado. - E de um vidraceiro. Como vai isso, Tory? - Tirou os óculos de sol, revelando uns olhos escuros e intensos e uma pequena cicatriz em forma de gancho logo abaixo do olho direito. - Dwight Frazier.

    - Não te reconheci.

    - Um bocado mais alto e com mais uns quilos desde a última vez que me viste. Pensei que devia vir até cá, dar-te as boas-vindas como presidente da câmara, e ver se há alguma coisa que as Construções Frazier possam fazer por ti. Importas-te que eu entre por um instante?

    - Não, claro. - Afastou-se. - Não há grande coisa para ver, por agora.

    - É um bom espaço.

    Movia-se a vontade, notou ela. Não parecia nada o miúdo estranho e gorducho que já fora. O aparelho dos dentes desaparecera, bem como o corte à escovinha que o pai dele insistia em lhe fazer.

    Parecia em forma e próspero. Não, pensou ela. Não o teria reconhecido.

    - O edifício é sólido - prosseguiu ele -, com boas fundações. E o telhado está firme. - Virou-se, exibindo o sorriso que ajudara o seu ortondontista a comprar um barco de recreio. - Sei do que falo, fomos nós que o pusemos de pé há dois anos.

    - Então já sei a quem dirigir-me quando começar a entrar água. Ele riu e prendeu os óculos de sol na abertura da camisa.

    - Os Frazier constróem para durar. Vais querer balcões, prateleiras e expositores.

    - Bem, estava precisamente a tirar as medidas.

    - Posso mandar-te um carpinteiro, por um bom preço.

    Era inteligente, e, uma vez mais, boa política, usar mão-de-obra local. Se, pensou ela, a mão-de-obra local estivesse dentro do seu orçamento.

    - Bem, a tua idéia de bom preço e a minha podem não coincidir. O sorriso dele era luminoso e cheio de encanto.

    - Vamos fazer o seguinte. Deixa-me pegar umas coisas no meu carro. Dizes-me o que tens em mente e eu te faço um orçamento. E logo vemos se coincidem ou não.

    Ele tinha consciência de que ela estava a medi-lo, enquanto ele media as paredes. Estava habituado a isso. Quando era um garoto, o pai o media e ele estava sempre abaixo do esperado.

   

    Dwight Frazier, ex-fuzileiro, caçador ávido, presidente da câmara da cidade e fundador das Construções Frazier, tinha grandes expectativas em relação ao seu rebento. A sua desilusão, quando verificara que esse rebento ficava muito aquém do esperado, cravara-se como um espinho.

    E nunca fora permitido ao jovem Dwight Júnior esquecer isso.

    A verdade era que, pensou Dwight enquanto rabiscava números no seu bloco, ficara muito aquém do esperado. Baixo, gordo, desajeitado, era candidato constante a brincadeiras e escárnios e ao ar de desapontamento do pai.

    O pior de tudo é que ele tinha cérebro. Quando era garoto, não havia combinação mais fatal do que um corpo gorducho, pés desajeitados e um cérebro esperto. Era o querido dos professores, o que equivalia a ter pintado nas costas um letreiro dizendo «Dêem-me um chute».

    A mãe tentara compensá-lo da melhor forma que sabia. Empanturrando-o de comida. Na idéia da sua querida mãe, não havia nada como uma caixa de Ho Ho's para fazer as pazes com o mundo.

    A sua salvação tinham sido Cade e Wade. O fato de eles terem se tornado seus amigos nunca fizera grande sentido para Dwight. Fora também uma questão de classe. Pertenciam a três das famílias mais proeminentes da cidade. Ficara e continuava a lhes estar grato por isso.

    Talvez existisse ainda uma pequena chispa de ressentimento dentro dele, quanto aos caprichos do destino que tinham feito os outros dois altos, bem-parecidos e ágeis, enquanto ele fora gordo, desinteressante e estranho. Mas ele dera a volta a isso. Sem sombra de dúvida.

    - Comecei a correr aos catorze anos. - Disse como que por acaso, enquanto voltava a usar a sua fita métrica.

    - Desculpa?

    - Estás a ruminar. - Baixou-se e voltou a tomar apontamentos no seu bloco. - Cansei-me de ser o garoto gordo e decidi fazer qualquer coisa. Perdi seis quilos de gordura em apenas alguns meses. Quando comecei a correr, fazia-o à noite, para ninguém poder ver-me. Sentia-me de rastos. Parei de comer os bolos e os doces que a minha mãe me mandava na lancheira, todos os dias. Achei que ia morrer de fome.

    Levantou-se e voltou a exibir o seu sorriso.

    - No primeiro ano do liceu, comecei a ir para a pista à noite, e corria ali. Ainda tinha peso de mais, ainda era lento, mas já não vomitava o jantar. Parece que o treinador Heister costumava ir até lá à noite, também, no seu Chevy sedan, na companhia da mulher de outro homem. Não vou dizer quem, porque a senhora continua casada e é avó orgulhosa de três netos. Segura aqui esta ponta, minha querida.

    Fascinada, Tory pegou na ponta da fita métrica, enquanto Dwight andava para trás, para medir a área do balcão.

    - Ora, aconteceu que numa das minhas visitas à pista da escola secundária de Progress dei com o treinador e a futura avó de três netos. Como podes imaginar, foi um momento bastante estranho para todas as partes envolvidas.

    - É o mínimo que se pode dizer.

    - E quanto menos se disser, melhor, que foi o que o treinador me sugeriu que fizesse, com as mãos à volta do meu pescoço. Tive que concordar. Contudo, como homem justo que era, ou talvez apenas desconfiado, fez-me uma oferta. Se eu continuasse a treinar e perdesse mais cinco quilos, ele arranjava-me lugar na equipe de atletismo, na primavera seguinte. Foi este o nosso acordo tácito, que eu esquecesse o incidente e ele abster-se-ia de matar-me e de enterrar o meu corpo em campa rasa.

    - Parece ter sido um bom acordo para todos.

    - Para mim, foi. Perdi o peso e surpreendi toda a gente, incluindo eu próprio, não só por ter integrado a equipe como por ter ganhado tudo nos cinquenta e nos cem metros. Tornei-me um velocista de primeira. Ganhei o trofeu All Star durante três anos e o amor da bela Lissy Harlowe.

    Ela sentiu empatia em relação a ele, de um excluído para outro.

    - É uma linda história.

    - Com um final feliz. Acho que consigo ajudar-te a ter uma história com final feliz aqui, na tua loja. Porque não me deixas oferecer o almoço enquanto falamos disso?

    - Eu não... - Interrompeu-se quando a porta se abriu atrás de si.

    - Não me digas que estás a contratar este trapalhão de meia-tijela. - Wade entrou com passo decidido e pôs o braço por cima do ombro de Tory. - Graças a Deus cheguei a tempo.

    - Este médico de cachorros não entende nada de construção. Vai fazer um clister a um poodle, Wade. Vou levar a tua bonita prima, e minha potencial cliente, a almoçar.

    - Então, resta-me ir também para proteger os interesses dela.

    - Preciso mais de prateleiras do que de uma sanduíche.

    - Vou arranjar-te as duas coisas. - Dwight piscou-lhe o olho. - Anda, minha querida, e traz esse peso morto contigo.

   

    Fez uma pausa de trinta minutos, e gostou mais do que esperava. Dava gosto ver a amizade adulta entre Dwight e Wade, que tinha raízes nos rapazes de quem se lembrava.

    Fê-la sentir saudades de Hope.

    Era fácil, para uma mulher que raramente se sentia confortável na companhia de homens, sentir-se bem quando um deles era seu primo e o outro perfeitamente casado. Tão perfeitamente que Dwight estava a mostrar fotografias do filho antes dos sanduíches serem servidos. Fosse como fosse, Tory teria soltado as expressões habitualmente esperadas, mas na verdade o rapazinho era realmente adorável, com o bonito rosto de Lissy e os olhos vivos do pai.

    E, enquanto ia a caminho das compras, concluiu que fora construtivo e fácil, ao mesmo tempo. Não só Dwight compreendeu o que ela pretendia, como melhorou as idéias dela, e o orçamento ajustava-se confortavelmente às suas disponibilidades. Ou melhor, ajustou-se depois de ela ter regateado, recusado, questionado e pressionado. E, limpando o suor imaginário da testa, prometeu que o trabalho estaria feito antes de meados de maio.

    Satisfeita, saiu e comprou uma cama.

    O que ela tinha realmente em mente era apenas o colchão e o estrado. Anos de frugalidade nunca lhe tinham permitido comprar nada por impulso. E era raro, muito raro, sentir o desejo forte de ter alguma coisa.

    No momento em que a viu, ficou fascinada.

    Afastou-se duas vezes, e duas vezes voltou. O preço não estava fora de contas, mas não precisava de uma bela cama de ferro clássica, com um enquadramento delicado da cabeceira e dos pés do colchão. Sim, era prática, mas não era necessária.

    Um estrado sólido e um bom colchão era tudo o que precisava. Pelo amor de Deus, era apenas para dormir.

    Debateu-se consigo mesma, mesmo enquanto tirava o cartão de crédito da carteira, enquanto levava o carro até ao armazém, enquanto dirigia em direção a casa. Depois, ficou demasiado ocupada descarregando, praguejando e puxando para perder tempo discutindo.

    Entre filas de algodão recém-cultivado, Cade observou a luta dela durante dez minutos. Depois, praguejou também, marchou até à sua camioneta e meteu-se no caminho para a casa dela.

    Não bateu a porta quando saiu, mas teve vontade de fazê-lo.

    - Esqueceste as pulseiras mágicas.

   

    Ela estava arquejante, algumas madeixas de cabelo tinham escapado do arranjo que ela fizera e estavam coladas ao rosto, mas já conseguira levar a caixa enorme e pesada até o meio dos degraus do alpendre. Endireitou-se, tentando controlar a respiração.

    - O quê?

    - Não podes ser a Supermulher sem as tuas pulseiras mágicas. Eu pego por este lado.

    - Não preciso de ajuda.

    - Deixa de ser casmurra e abre a porta. Ela avançou furiosamente e abriu a porta.

    - Estás sempre por aqui?

    Ele tirou os óculos de sol e atirou-os para o lado. Era um hábito que lhe custava uma média de dois pares por mês.

    - Vês aquele campo, ali? É meu. Agora, afasta-te enquanto eu faço subir isto. Que raio de cama é esta?

    - De ferro - disse ela, com alguma satisfação quando viu que ele tinha de empurrar a caixa com as costas.

    - É o que parece. Precisamos levantá-la para passar pela porta.

    - Isso já eu sabia. - Firmou os pés, acocorou-se e tomou o peso do seu lado da caixa. Houve muito resmungo, muito jeito e um nó de dedo esfolado da parte dela, mas conseguiram. Ela continuou a andar para trás, forçada a confiar nele enquanto ele lhe dava indicações para a direita ou para a esquerda, até conseguirem chegar ao quarto.

    - Obrigada. - Sentia os braços como se fossem de borracha. - Agora já me arranjo.

    - Tens ferramentas?

    - Claro que tenho ferramentas!

    - Muito bem. Vai buscá-las. Evita eu  ir buscar as minhas. É melhor armarmos isto antes de trazermos o resto para dentro.

    Num gesto irritado, ela atirou a cabeça transpirada para trás.

    - Eu consigo fazer isso.

    - E és quase suficientemente teimosa para eu deixar que faças. Mas sou vítima da minha raça superior. - Pegou-lhe na mão, examinou a pele ferida e beijou-a de leve antes de ela conseguir libertá-la. - Podes ir tratar disto enquanto eu faço isto.

    Pensou em insultá-lo, pô-lo fora, ou mesmo corrê-lo a pontapés, e decidiu que qualquer opção era uma perda de tempo. Foi buscar as ferramentas.

   

    Ele admirou a caixa preta das ferramentas, que parecia realmente eficaz:

    - Estarás tu preparada para tudo?

    - Provavelmente não sabes distinguir um alicate de uma chave de fendas.

    Obviamente divertido, pegou num alicate de pontas finas:

    - Tesoura, certo?

    Quando a respiração dela terminou numa gargalhada, ele deu início à pesada tarefa de tirar os grampos cravados na caixa.

    - Vai pôr qualquer coisa nesse dedo.

    - Não é nada.

    Ele não se deu ao trabalho de olhar para ela, nem de mudar o tom de voz, mas fez ouvir a leve dureza de uma ordem.

    - Vai pôr aí qualquer coisa. E depois, porque não vais arranjar-nos uma bebida fria?

    - Ouve, Cade, não sou a tua mulherzinha. Ele ergueu os olhos e observou-a, impassível.

    - És pequenina e és mulher. E sou eu que tenho a tesoura.

    - Suponho que se eu te disser onde podes meter esse alicate isso não tire esse sorriso da tua cara.

    - Suponho que se eu te disser que ficas sexy quando estás cansada isso não te convença a batizar esta cama comigo, depois de montada.

    - Deus meu! - foi tudo o que ela disse enquanto saía do quarto, com passos decididos.                                                              ,

    Deixou-o sozinho. Ouvia o arrastar e o praguejar ocasional, enquanto trazia as mercearias para casa, as arrumava e fazia chá. Ele tinha umas mãos compridas, pensou ela. Dedos elegantes de pianista, que contrastavam com as palmas ásperas e calosas. Tinha a certeza de que ele sabia plantar, tratar e colher. Fora criado para isso. Mas tarefas do dia a dia? Não, isso era uma questão diferente.

    Como achava que ele nunca tinha montado uma cama na sua vida privilegiada, imaginou que quando entrasse no quarto iria deparar com um caos completo. E estava decidida a dar-lhe muito tempo para armar a maior confusão.

    Pendurou o seu novo telefone na cozinha, guardou os seus novos panos da louça e, preguiçosamente, cortou rodelas de limão para o chá. Convencida de que ele tivera tempo suficiente para mortificar-se, deitou o chá em dois copos com gelo e dirigiu-se para o quarto, com eles.

   

    Ele estava a apertar o último parafuso.

    Os olhos dela iluminaram-se e o leve som que soltou foi de absoluta alegria feminina.

    - Oh! Que maravilha! É realmente uma maravilha! Eu sabia que ia ficar linda!

    Sem pensar, meteu-lhe os copos nas mãos, para poder passar as dela pelo ferro.

    A primeira reação dele foi de divertimento, e depois de satisfação. Quando ele começou a beber o chá, ela aproximou-se do centro da cama e passou as pontas dos dedos pelas traves.

    E a reação dele transformou-se em puro desejo, tão básico, tão forte, que ele deu um passo atrás, deliberadamente. Imaginou perfeitamente os dedos dela enrolados à volta daqueles ferros, segurando-se a eles enquanto ele entrava nela. Em impulsos fortes e longos, enquanto aqueles olhos de bruxa com pestanas compridas se esvaíam em fumo.

    - É sólida. - Abanou um pouco a cabeceira e o estômago dele doeu-lhe e apertou.

    - É bom que seja.

    - Fizeste um bom trabalho, e eu fui mal-educada. Obrigada e desculpa.

    - De nada, e esquece isso. - Estendeu-lhe o copo e depois estendeu o braço para puxar a corrente do ventilador de teto. - Está calor, aqui dentro. - Apeteceu-lhe morder aquele bocadinho mesmo por baixo da orelha esquerda dela, onde começava a curva do maxilar.                                                  

    Como a voz dele soou pouco firme, ela sentiu-se outra vez atacada pela culpa.

    - Fui realmente mal-educada, Cade. Não sou muito boa em lidar com as pessoas.

    - Não és boa a lidar com as pessoas? E vais abrir uma loja onde vais lidar com elas todos os dias?

    - Isso são clientes - disse ela. - Sou muito boa em lidar com clientes.

    - Então... - Deu alguns passos até ficar exatamente diante dela, do outro lado da moldura da cama. - Se eu te comprar qualquer coisa, vais ser simpática comigo.

    Não precisava ler os pensamentos dele quando podia ler-lhe os olhos.

    - Tão simpática, não. - Entorpecida, afastou-se dele e saiu do quarto.

    - Eu podia ser um bom cliente.

    - Estás a tentar vencer-me outra vez pela exaustão.

    - Estou a tentar vencer-te outra vez pela exaustão, Tory. - Pousou-lhe uma mão no ombro. - Pára com isso - disse ele suavemente quando ela se contraiu. Pousou o copo no chão e depois fê-la vi-rar-se para ficar frente a frente com ele. - Pronto, não doeu nada, pois não?

    As mãos dele eram suaves. Havia muito tempo, muito tempo que não sentia um toque suave vindo de um homem.

    - Não estou interessada em namoros.

    - Eu estou. Mas, por enquanto, podemos arranjar um compromisso. Vamos tentar ser amigos.

    - Eu não sou uma boa amiga.

    - Eu sou um bom amigo. E agora, porque não vamos buscar o resto da tua cama, para poderes dormir decentemente esta noite?

    Ela deixou-o chegar quase até à porta. Dissera a si própria que não falaria nisso. Nem a ele, nem a ninguém, até estar preparada. Até se sentir forte e segura. Mas estava borbulhando dentro dela.

    - Cade, nunca perguntaste. Nem naquela altura, nem agora. Nem uma única vez perguntaste como eu sabia. - As mãos começaram a transpirar-lhe quando ele se virou, por isso agarrou os cotovelos. - Nunca perguntaste como eu sabia onde ela estava. Como eu sabia o que tinha acontecido.

    - Não foi preciso perguntar.

    As palavras dele fluíam agora em torrente, saltando como água de uma fonte desgovernada.

    - Algumas pessoas acharam que eu estava com ela, apesar de eu dizer que não estava. Que fugi e a deixei sozinha. Que a abandonei...

    - Eu não penso isso.

    - E aquelas que acreditaram em mim, que acreditaram que eu vi da maneira que vi, afastaram-se de mim, afastaram os filhos de mim. Deixaram de olhar-me nos olhos.

    - Eu olhava-te nos olhos. Naquela altura e agora.

    Ela teve de respirar fundo para se acalmar.

    - Porquê? Se acreditas que eu tenho aquilo dentro de mim, porque não te afastaste? Porque estás aqui, agora? Estás à espera que eu te revele o futuro? É que não consigo. Ou que te dê algumas dicas para comprares acções na bolsa? Não faço isso.

    Ele notou que ela tinha o rosto afogueado, os olhos escuros e vivos com emoções à flor da pele. Uma dessas emoções, uma que sobressaía por entre todas as outras, era a raiva.

    Ele não ia jogar aquele jogo, nem reagir como ela esperava que ele reagisse.

    - Gosto de viver um dia de cada vez, mas obrigado na mesma. E tenho um corretor para tratar das minhas ações. Já te ocorreu que estou aqui agora porque gosto de olhar por ti?

    - Não.

    - Então és a primeira e única mulher sem vaidade que tive ocasião de conhecer. Não te fazia mal nenhum arranjares alguma. Agora vejamos... - Inclinou a cabeça. - Queres trazer este colchão cá para dentro ou surpreender-me, contando-me o que almocei hoje?

    A boca dela abriu-se, enquanto ele se aproximava da porta. Estaria ele a fazer uma piada? As pessoas faziam troça dela, ou reviravam os olhos. Ou afastavam-se cautelosamente. Alguns vinham pedir-lhe que resolvesse os seus problemas e infelicidades. Mas ninguém, que fosse do seu conhecimento, dissera uma piada sem má intenção.

    Rodou os ombros, para aliviar a tensão, e depois foi ajudá-lo a trazer o colchão.

    Trabalhavam agora em silêncio, ela amuada e ele com a cabeça noutro lado qualquer. Quando a cama estava no lugar, Cade acabou de beber o chá, levou o copo para a cozinha e depois dirigiu-se para a porta.

    - A partir daqui, já deves dar conta do recado. Já estou um bocado atrasado.

    Ai, isso é que não estás, pensou, e correu atrás dele.

    Fosse por impulso ou por aborrecimento, ela seguiu-o e segurou-lhe o braço até ele parar e olhar para baixo.

    - Agradeço a ajuda. De verdade.

    - Bem, então pensa em mim quando estiveres a entrar na terra dos sonhos, esta noite.

    - Sei que o tempo te faz falta. Falaste em almoço?

    Perplexo, ele abanou a cabeça.

    - Almoço?

    Era de mais.

    - Sim, o teu almoço, hoje. Metade de uma sanduíche de presunto com queijo suíço e mostarda escura. Deste a outra metade àquele cão preto escanzelado que vem pedinchar quando te vê. - Sorrindo, afastou-se. - Deves estar ficando com fome para o jantar.

    Ele refletiu um minuto e depois decidiu seguir o instinto.

    - Tory, porque não voltas aqui e me dizes o que estou a pensar agora?

    Ela sentiu uma espécie de riso a agitar-se no peito.

    - Acho que vou deixar isso só para ti.

    E deixou a porta de tela fechar-se atrás de si.

    

    Eram as flores, Margaret sempre pensara isso, que a mantinham lúcida. Quando tratava das flores, elas nunca respondiam, nunca lhe diziam que ela não compreendia, nunca arrancavam as raízes nem se iam embora, amuadas.

    Ela podia cortar as partes selvagens, aqueles rebentos que cresciam de repente e que pensavam que podiam seguir o seu caminho, até a planta ter a forma que ela entendia que devia ter.

    Imaginou que devia estar muito melhor se tivesse ficado solteira e criado peônias em vez de filhos.

    Os filhos partem corações só por serem filhos.

    Mas o casamento fazia parte do que era esperado da parte dela. E tanto quanto se lembrava sempre fizera o que era esperado da parte dela. De vez em quando fazia um pouco mais, mas raramente, muito raramente, fazia menos.

    E amara o seu marido, pois evidentemente que isso também era esperado da parte dela. Jasper Lavelle era um jovem bem-parecido quando começou a cortejá-la. Bem, e também tinha charme, o mesmo sorriso lento e evasivo que ela via por vezes desenhar-se no rosto do filho que tinham feito juntos. Era temperamental, mas isso era excitante quando ela era suficientemente jovem para achar excitante esse tipo de coisa. Reconhecia esse mesmo temperamento na sua filha. Na filha que estava viva.

    Era grande e forte, um homem dramático com um riso alto e mãos rijas. Talvez por isso ela visse tanto dele e tão pouco de si própria nos filhos que lhes restavam.

    Quando analisava a situação, irritava-a o fato de a sua marca naquelas vidas que ela ajudara a criar ser tão tênue. Em vez disso, optara, estava certa de que sensatamente, por deixar a sua marca em Beaux Revés. Ali, o seu toque, a sua visão eram tão profundas como as raízes dos velhos carvalhos que ladeavam o caminho de acesso à casa.

    E isso, mais do que o filho ou a filha, tornara-se o seu orgulho.

    Se Hope fosse viva, teria sido diferente. Cortou a cabeça murcha de um cravo, sem lamentar a perda daquela flor outrora perfumada. Se Hope fosse viva, refletiria e compreenderia todas as esperanças e sonhos que uma mãe tem para uma filha.Teria dado um novo brilho ao nome dos Lavelle.

    Jasper teria permanecido forte e firme, e nunca se teria desgraçado com mulheres e escândalos. Nunca se teria desviado do caminho que ambos tinham iniciado, nem deixado a sua esposa a esfregar as nódoas do nome que partilhavam.

    Mas no fim Jasper ficara intratável, e quando não estava furioso estava se preparando para ficar. Na vida com ele não tinham faltado acontecientos. O último fora o mau gosto de sofrer um ataque de coração fatal na cama da amante. O fato de a mulher ter tido o bom senso e a dignidade de se manter afastada enquanto o incidente era abafado cravara-se no estômago de Margaret como um osso pontiagudo.

    Ainda assim, feito o balanço, era muito mais fácil ser viúva dele do que sua esposa.

    Não sabia porque estava a lembrar-se tanto dele naquela abençoada manhã fresca, em que o orvalho depositava beijos molhados nas suas flores e o céu se apresentava no azul suave da primavera.

    Fora um bom marido. Na primeira fase do casamento fora um alicerce forte e sólido, um homem que tomava as decisões para ela ter de se preocupar com pormenores. Fora um pai atento, talvez até um pouco permissivo.

    A paixão entre eles já acalmara quando chegaram ao primeiro aniversário da sua noite de casamento. Mas a paixão era um elemento difícil e perturbador na vida de uma pessoa, uma emoção exigente e instável. Não que ela alguma vez lhe tivesse dito que não, claro, nem uma única vez desde a noite do casamento lhe virara as costas na cama.

    Margaret tinha orgulho nisso, orgulho em ter sido uma boa esposa, dedicada. Mesmo quando a idéia de sexo a deixava nauseada, não ficara ao dispor dele, em silêncio, para que ele se aliviasse?

    Cortou mais flores murchas, com um clique afiado da tesoura, e colocou-as no cesto do lixo.

    Fora ele que lhe virara as costas, que mudara. Nada voltara a ser o mesmo no casamento deles, nas suas vidas, na sua casa, desde aquela manhã terrível, aquela manhã quente e pegajosa de agosto, quando encontraram a sua Hope no pântano.

    Doce e boa Hope, pensou, com uma dor que se tornara mais surda e mais pesada com o passar dos anos. Hope, o seu anjo de luz, a única das crianças a quem tinha dado vida que parecia verdadeiramente ligada a si, verdadeiramente sua.

    Havia momentos, passados todos estes anos ainda havia momentos em que se perguntava se aquela perda fora uma espécie de castigo. Ter-lhe sido levada a filha de quem ela gostava mais. Mas que crime, que pecado cometera ela para merecer tal castigo?

    Permissividade, talvez. O ter permitido que a menina se ligasse à miúda Bodeen, quando teria sido mais sensato - era tão fácil ver isso agora, à distância! - contrariar, até mesmo proibir a sua inocente Hope de desenvolver tal ligação. Esse fora o erro, mas não fora verdadeiramente um pecado.

    E se fora um pecado, era mais da responsabilidade de Jasper. Ele minimizava a sua preocupação quando ela a manifestava, chegava mesmo a rir-se dela. A miúda Bodeen era inofensiva, dizia ele. Inofensiva.

    Jasper pagara por aquele juízo errado, aquele erro, aquela pecado, para o resto da sua vida. E, mesmo assim, não era suficiente. Nunca seria suficiente.

    A miúda Bodden matara Hope, exatamente como se lhe tivesse tirado a vida com as suas próprias mãos, pequenas e sujas.

    Agora, estava de volta. De volta a Progress, de volta à Casa do Pântano, de volta às suas vidas. Como se tivesse todo o direito.

    Margaret arrancou um pedaço de trepadeira daninha e atirou-o para o cesto. A avó costumava dizer que as ervas daninhas eram apenas flores silvestres que cresciam no lugar errado. Mas não eram. Eram invasoras e precisavam de ser arrancadas, cortadas, destruídas de qualquer maneira.

    Não podia permitir-se que Victoria Bodeen criasse raízes e florescesse em Progress.

   

    Era tão bonita, pensou Cade. A sua mãe, aquela mulher admirável e distante. Vestia-se para jardinar como se vestia para tudo: com cuidado, precisão e perfeição.

    Usava um chapéu de palha de abas largas, para lhe proteger a cabeça, com uma fita azul clara a condizer com a saia comprida de algodão e a blusa curta, que ela protegia com um avental de jardinagem cinzento.

    Tinha pérolas nas orelhas, luas redondas e brancas, tão luminosas como as gardênias que tanto adorava.

    Usava também o cabelo branco, embora tivesse apenas cinquenta e três anos. Era como se quisesse que ele fosse um símbolo de idade e de dignidade. Tinha a pele suave. As preocupações pareciam nunca se refletir nela. O contraste entre aquele rosto bonito e jovem e o choque causado pelo cabelo branco era marcante.

    Mantinha-se em forma. Esculpia o corpo impiedosamente, com dietas e exercício. Os quilos indesejados não eram mais tolerados do que as ervas daninhas no seu jardim.

    Havia oito anos que era viúva, e assumira tão facilmente essa condição que era difícil recordá-la de outro modo.

    Sabia que ela estava descontente com ele, mas isso não era novidade. O seu descontentamento era quase sempre mostrado da mesma forma que a sua aprovação. Com algumas palavras frias.

    Não se lembrava da última vez que ela lhe tocara com sentimento, ou com calor. Não se lembrava se alguma vez esperara que ela lhe tocasse assim.

    Mas continuava a ser sua mãe, e ele faria tudo o que pudesse para apagar a distância entre eles. Sabia demasiado bem que uma pequena brecha se podia transformar num abismo, através do silêncio.

    Uma pequena borboleta amarela volteava junto à cabeça dela e foi ignorada. Margaret sabia que ela estava ali, tal como sabia que ele caminhava na direção dela, com largas passadas, pelo caminho pavimentado. Mas não reagiu à presença de nenhum dos dois.

    - Está uma bela manhã para andar cá fora - começou Cade. - A primavera está boa para as flores.

    - Era bem-vinda alguma chuva.

    - Anunciaram chuva para esta noite, já não é sem tempo. Abril está muito seco para o meu gosto. - Ele acocorou-se, deixando a distância de um braço entre eles. As abelhas zumbiam loucamente ali perto, nos montes de azáleas. - As primeiras sementeiras estão quase prontas. Tenho que ir dar uma volta para ver como está o gado. Temos uns bezerros prontos a serem desmamados. Tenho umas compras a fazer. Quer que lhe traga alguma coisa?

    - Um herbicida dava-me jeito. - Nessa altura, levantou a cabeça. Os olhos dela eram de um azul mais pálido e mais suave do que os dele. Mas eram igualmente diretos. - A não ser que tenhas alguma objecção moral a que eu use herbicida nos meus jardins.

    - Os jardins são seus, Mãe.

    - E os campos são teus, como me foi lembrado. Tratas deles como entenderes. Exatamente como as propriedades são as tuas propriedades. Arrenda-las a quem te apetecer.

    - Exatamente. - Podia ser tão frio como ela, se quisesse. - E os lucros desses campos e dessas propriedades irão manter Beaux Revés sem dívidas. Enquanto estiverem nas minhas mãos.

    Arrancou um amor-perfeito,  rápida e impiedosamente,  com as pontas dos dedos.

    - Os rendimentos não são os padrões pelos quais regemos as nossas vidas.

    - Mas o que é certo é que as tornam bem mais fáceis.

    - Não há necessidade de falares nesse tom comigo.

    - Peço desculpa. Pensei que havia. - Pousou as mãos nos joelhos, aguardando que eles se acalmassem. - Alterei o funcionamento da fazenda, comecei a mudá-lo há mais de cinco anos. E funciona. No entanto, recusa-se a aceitar ou a reconhecer que fiz com que as coisas funcionassem. Não posso fazer nada quanto a isso. Quanto às propriedades, também trato delas à minha maneira. Que é diferente da do pai.

    - Achas que ele deixaria aquela miúda Bodeen pôr os pés naquilo que era nosso?

    - Não sei.

    - Nem te importa - disse ela, voltando a arrancar ervas daninhas.

    - Talvez não. - Afastou o oíhar. - Não posso viver a minha vida a perguntar-me o que ele faria, ou quereria ou esperaria. O que sei é que a Tory Bodeen não é responsável pelo que aconteceu há dezoito anos.

    - Estás enganado.

    - Bem, um de nós está. - Pôs-se de pé. - Seja como for, ela está cá. Tem direito a estar cá. Não há nada a fazer quanto a isso.

    Era o que iriam ver, pensou Margaret, enquanto o filho se afastava. Iriam ver o que havia a fazer quanto a isso.

   

    O mau humor manteve-se durante o dia. Por mais vezes que tentasse, sem sucesso, aproximar-se da mãe, sentia a dor dessa rejeição como se fosse a primeira.

    Deixara de tentar explicar e justificar as alterações que fizera na fazenda. Ainda se lembrava da noite em que lhe mostrara mapas, gráficos e projeções, ainda se lembrava de como ela olhara para ele, de como o informara, dura como pedra, antes de lhe virar as costas, que Beaux Revés era uma coisa que não podia ser posta no papel e analisada.

    Magoara-o, mais ainda, supunha ele, porque ela tinha razão. Não podia ser posta no papel. Nem a terra, que ele estava tão decidido a proteger, a preservar e a passar à próxima geração de Lavelle.

    O seu orgulho nela, o seu compromisso para com ela, não eram menores do que os da mãe. Mas para Cade era, como sempre fora, uma coisa viva que respirava e crescia e mudava com as estações. E para a mãe era estática, como um monumento cuidadosamente preservado. Ou um túmulo.

    Tolerava a falta de confiança dela, tal como tolerava a troça e o ressentimento dos vizinhos. Passara inúmeras noites sem dormir durante os primeiros três anos em que estivera à frente da fazenda. A preocupação e o medo de estar enganado, de falhar, de que o legado que lhe fora parar às mãos escorregasse por entre elas na sua impaciência e no seu entusiasmo, na teimosia e na insistência em fazer as coisas à sua maneira.

    Mas não estava enganado, pelo menos quanto à fazenda. Sim, requeria mais tempo, esforço e dinheiro fazer a cultura biológica do algodão. Mas a terra... ah!, a terra ficava mais forte. Via-a explodir no verão, descansar no inverno, e surgir na primavera, sedenta de tudo o que ele pusesse nela.

    Recusava-se a envenená-la, por mais que lhe dissessem que com essa recusa estava a condenar a terra e as colheitas. Tinham-lhe chamado obstinado, teimoso, louco, e muito pior.

    E no primeiro ano em que atingira as condições impostas pelo governo para a cultura biológica do algodão, depois de colher e vender, celebrara embebedando-se calmamente, sozinho no escritório que fora do pai.

    Comprou mais gado, porque acreditava na diversificação. Adquiriu mais cavalos, porque os adorava. E porque tanto os cavalos como o gado produziam estrume.

    Acreditava na força e no valor do algodão biológico. Estudou, fez experiências. Aprendeu. Manteve-se suficientemente fiel às suas crenças para arrancar as ervas daninhas à mão quando era necessário e para tratar das bolhas sem se queixar. Observava o céu e ouvia as previsões meteorológicas com igual devoção, e voltava a aplicar os lucros na terra, ciclicamente, tal como lavrava depois da colheita.

    Havia outras áreas a operacionalizar, os contratos, os arrendamentos e as fábricas. Ele usava-os, trabalhava-os, sem nunca os descurar. Mas o seu coração não era deles.

    Era da terra.

    Não conseguia explicar, e nunca tentara. Mas amava Beaux Revés como alguns homens amam uma mulher. Completamente, obsessivamente, com ciúme. Todos os anos o seu sangue fervia de emoção quando ela dava à luz os seus filhos.

    A manhã fresca transformara-se numa tarde abafada quando ele terminou todas as tarefas aborrecidas, incluindo as compras, que tinha para fazer. Tinha a lista na cabeça e ia-as eliminando sistematicamente.

    Passou pela estufa, a dois quarteirões da praça da cidade, para comprar o herbicida para a mãe. As caixas de flores chamaram-lhe a atenção. Impulsivamente, escolheu uma caixa de alegria-da-casa cor-de-rosa e levou-a para dentro.

    Havia dez anos que os Clampett tinham a estufa. Começara por ser uma forma de complementar os seus campos de soja. Com os anos, tinham-se saído melhor com as flores do que com as colheitas.

    - Leva outra com um desconto de vinte por cento. - Billy Clampett fumava um Camel, mesmo por baixo do letreiro NÃO FUMAR que a mãe pusera na parede.

    - Cobra-me duas, então. Levo a outra quando sair. - Cade pousou a caixa no balcão. Andara na escola com Billy, embora nunca tivessem sido propriamente amigos. - Como vão as coisas?

    - Pouco movimentadas, disso não há dúvida. - Billy semicerrou os olhos através do fumo. Tinha os olhos escuros e insatisfeitos. Insistia em usar o cabelo cortado à escovinha, áspero como agulhas, e sem cor definida. Engordara desde o liceu ou, para ser mais exacto, perdera os músculos que o tinham tornado um conhecido defesa no futebol.

    - Vão ser mais umas das tuas plantas de cobertura?

    - Não. - Sem querer entrar em atrito, Cade deu alguns passos pela estufa, observando uns vasos. Pegou em dois com uma patina verde, e pô-los em cima do balcão. - Preciso de Roundup.

    Billy acabou o cigarro e meteu a chepa numa garrafa que guardava por baixo do balcão. Sabia bem que não podia deixar provas à vista, ou a mãe iria desancá-lo.

    - Bem, pensei que não aprovavas essas coisas. Quando deixaste de andar aos abraços com as árvores?

    - E um saco de terra, para plantar as alegrias-da-casa - disse Cade, simplesmente.

    - Também te posso arranjar pesticida; andas à procura de algum insecticida?

    - Não, obrigado.

    - Não, está certo. - Billy soltou uma gargalhada sonora. - Não queres nada com inseticidas, nem pesticidas, nem com os horríveis fertilizantes químicos. As tuas colheitas são puras como virgens. Até te citaram numa revista por causa disso.

    - Quando foi que começaste a ler? - disse Cade em tom agradável. - Ou andavas só a ver as imagens?

    - As revistas e os discursos bonitos não fazem mossa, por aqui. Toda a gente sabe que tu te limitas a ficar sentado e a colher os benefícios das despesas que os vizinhos fazem nos campos deles.           

    - Ai, sim?

    - Sim, pois - atacou Billy. - Tiveste uns anos com sorte. Sorte de mais, acho eu.                                                                                              

    - Não me lembro de te ter perguntado o que achavas, Billy. Não te importas de fazer a conta?

    - Mais cedo ou mais tarde, vais pagar por isto. Estás apenas a  abrir os braços à peste e às doenças.

    O dia fora comprido e aborrecido, e Cade Lavelle era um dos alvos preferidos de Billy. Era manso e nunca respondia.

    - Mas se as tuas colheitas forem infectadas, as outras também vão ser. E nessa altura vai ser o inferno.                            

    - Vou ver se não me esqueço. - Cade tirou algumas notas da carteira e atirou-as para cima do balcão. - Vou levar isto para a camioneta enquanto fazes a conta.

    Manteve as emoções açaimadas, por mais que lhe apetecesse deixá-las rosnar como um cão raivoso. Mas à solta eram selvagens. Billy       Campbell não valia o tempo nem o esforço de refreá-las depois de        deixadas à solta.                                                                                               

    Foi isso que disse a si próprio enquanto punha os vasos e as caixas de flores na camioneta.                                                                  

    Quando voltou a entrar, o Roundup e um saco de dez quilos de terra estavam em cima do balcão.

    - Tens a haver três dólares e seis cêntimos. - Com uma lentidão deliberada, Billy contou o troco. - Vi a tua irmã uma ou duas vezes na cidade. Está com bom aspecto. - Ergueu os olhos e sorriu. - Mesmo bom.

    Cade meteu o troco no bolso e manteve nele o punho fechado, para impedi-lo de ir direito àquela boca trocista.

    - Como está a tua mulher, Billy?

    - A Darlene está bem. Grávida outra vez, a terceira. Espero ter plantado mais um filho forte dentro dela. Quando meto o arado num campo ou numa mulher, faço o serviço bem feito. - Os olhos brilharam-lhe e o sorriso alargou-se. - Pergunta à tua irmã.

    A mão de Cade estava fora do bolso, agarrando Billy pelo colarinho antes de qualquer deles estar preparado para isso.

    - Só uma coisa - disse Cade calmamente. - Não te esqueças quem é o dono daquela casa onde moras. Não te esqueças disso, Billy. E deixa a minha irmã em paz.

    - Tens muita garganta acerca do teu dinheiro, mas não tens bolas para usar os punhos como um homem.

    - Deixa a minha irmã em paz - repetiu Cade -, ou vais descobrir para que tenho bolas.

    Cade soltou-o, pegou no resto das compras e saiu com grandes passadas. Saiu do parque de estacionamento e seguiu até ao primeiro sinal de Pare. Ficou ali, sentado e com os olhos fechados, até a nuvem vermelha de fúria desaparecer.

    Não tinha a certeza do que era pior: andar a murros com Clampett num lugar cheio de ramos de flores, ou não se esquecer da insinuação de que a irmã tinha deixado um lixo como Clampett pôr-lhe as mãos em cima.

    Engatando a primeira, deu meia volta e dirigiu-se a Market Street. Encontrou lugar para estacionar a meio quarteirão da loja de Tory, mesmo atrás do carro do Dwight. Fazendo o melhor possível para acalmar-se, pegou nos vasos e pousou-os à entrada da loja.

    Ouviu o som agudo de uma serra elétrica, antes de entrar.

    A base do balcão já estava no lugar e a primeira fila de prateleiras estava pronta. Mandara-as fazer em pinho e depois as envernizara. Uma escolha inteligente, pensou Cade. Simples e sem artefatos, evidenciariam os artigos que ela exporia nelas em vez de chamar a atenção sobre elas próprias. O chão estava coberto de lona e ferramentas, e o ar cheirava a serragem e a suor.

    - Olá, Cade. - Dwight veio ter com ele, cheio de ferramentas. Cade deu um puxão à gravata azul com riscas que Dwight usava.

    - Que bonito que estás.

    - Tive uma reunião. Uns banqueiros. - Como se se tivesse lembrado apenas naquele momento que a reunião já acabara, Dwight desapertou um pouco o nó da gravata. - Vim verificar se estava tudo bem, antes de ir para o escritório.

    - Estás fazendo progressos.

    - A cliente tem idéias bem definidas sobre o quer e quando quer. - Dwight revirou os olhos. - Estamos aqui para nos entendermos, mas deixa-me que te diga, ela não te dá o mínimo espaço de manobra. Aquela menina gaguejante transformou-se numa mulher de negócios dura de roer.

    

    - Onde está ela?

    - Nas traseiras. - Dwight fez um gesto com a cabeça na direção da porta fechada. - Deixa-me trabalhar à vontade, verdade se diga. Deixa-me trabalhar à vontade desde que eu faça as coisas como ela quer.

    Cade voltou a olhar para o trabalho já feito.

    - As coisas como ela quer parecem-me bem - concluiu.

    - Tenho de admitir que sim. Ouve, Cade... - Dwight mexeu-se um pouco. - A Lissy tem uma amiga.

    - Não.

    - Meu Deus, escuta-me.

    - Não tenho de escutar-te. Ela tem uma amiga, uma amiga que é perfeita para mim. Porque não telefono a esta amiga ou não apareço lá em casa para jantarmos os quatro, ou tomarmos um copo?

    - Bem, porque não? A Lissy não me vai deixar em paz até tu fazeres isso.

    - A mulher é tua, o problema é teu. Diz à Lissy que descobriste que sou gay, ou qualquer coisa assim.

    - Boa, vai dar certo. - A idéia divertiu tanto Dwight que riu com gosto. - Vai mesmo dar resultado. Da maneira que as coisas estão, vai começar a escolher homens para ti.

    - Deus Todo-Poderoso. - Cade percebeu que aquele cenário não estava afastado. - Então diz-lhe que tenho um caso secreto e escaldante com alguém.

    - Quem?

    - Escolhe alguém - disse Cade, pondo fim ao assunto e dirigindo-se para a porta do fundo. - Ou diz-lhe simplesmente que não. - Bateu à porta e depois entrou, sem esperar pela resposta.

    Tory estava em cima de um escadote, a substituir uma lâmpada fluorescente na calha do teto.

    - Deixa que eu faço isso.

    -Já está. Isto é obrigação do arrendatário, não do senhorio. -

    Ainda a irritava, só um pouco, saber que ele era o dono do edifício.

    -Já vi que puseram um vidro novo na porta.

    - Sim, obrigada.

    - Parece que consertaram o ar condicionado.

    - Sim.

    - Se quiseres chatear-te comigo hoje, vais ter que ir para a fila. Há muita gente à espera.

   

    Ele virou-se, de mãos nos bolsos. Ali, optara por prateleiras de metal, observou. Cinzentas, feias, sólidas e práticas. Já estavam atulhadas de caixas de cartão, e as caixas meticulosamente etiquetadas com um número de estoque.

    Comprara uma escrivanuinha, também sólida e prática. Em cima dela já havia um computador e um telefone, bem como uma pilha de papéis cuidadosamente arrumados.

    Em dez dias, era uma organização considerável. Não pedira ou aceitara a ajuda dele uma única vez. Desejou que isso o deixasse indiferente.

    Tinha vestido uns calções pretos, uma T-shirt cinzenta e tênis cinzentos. Desejou não se sentir atraído por eles.

    Virou-se enquanto ela descia do escadote e agarrou-o para dobrá-lo.

    - Eu arrumo isto.

    - Eu faço isso.

    Ele puxou o escadote e ela também.

    - Raios partam, Tory.

    O súbito silvo de fúria, a luz perigosa nos olhos dele, fizeram-na recuar, juntando as mãos. Ele fechou o escadote e meteu-o num pequeno armário.

    Quando ele estava ali, de costas viradas para ela, ela sentiu um toque de culpa e de simpatia. Era estranho aperceber-se de que não sentia medo nem nervosismo, como acontecia habitualmente diante de homens zangados.

    - Senta-te, Cade.

    - Porquê?                         

    - Porque pareces estar precisando. - Foi até ao sítio onde colocara uma minigeladeira, tirou de lá uma garrafa de Coca-Cola e tirou-lhe a tampa. - Toma, estás precisando refrescar.

    - Obrigado. - Deixou-se cair na cadeira de escrivaninha e bebeu um longo gole da garrafa.

    - Mau dia?

    -Já tenho tido melhores.

    Sem dizer nada, ela abriu a sua bolsa e encontrou a caixa de comprimidos com incrustações, onde guardava a aspirina. Quando ela lhe estendeu duas, ele ergueu o sobrolho.

    Ela sentiu o calor assomar-lhe rapidamente às faces.

    - Eu não... É que parece, só isso.

    - Obrigado. - Engoliu a aspirina, suspirou e rodou os ombros. - Suponho que não queiras melhorar as coisas vindo até aqui e sentando-te no meu colo.

    - Não, não quero.

    - Tinha que perguntar. E que tal jantar e ir ao cinema? Não, não digas não sem sequer pensares no assunto - disse ele, antes de ela conseguir falar. - Só jantar e ir ao cinema. Que diabo, uma pizza, um hambúrguer, qualquer coisa simpática. Prometo não te pedir em casamento.

    - É um alívio, mas não é lá grande incentivo.

    - Pensa nisso durante cinco minutos. - Ele largou a garrafa na escrivaninha e levantou-se. - Vem até lá fora. Tenho uma coisa para ti.

    - Ainda não acabei aqui.

    - Terás tu que argumentar a propósito de tudo, mulher? Cansas-me. - Para resolver o problema, pegou-lhe na mão e arrastou-a até à porta.

    Era de esperar que ela resistisse. Mas havia dois carpinteiros na loja, o que significava dois pares de olhos e de ouvidos. Haveria menos razões para falatório se ela saísse calmamente com Cade.

    - Gostei deles - começou Cade, fazendo um gesto na direção dos vasos, enquanto continuava a puxá-la pelo passeio, até à sua camioneta. - Se não gostares, podes trocá-los na loja dos Clampett. E estas também, acho eu.

    Ele parou e tirou uma das plantas da caçamba da camioneta.

    - Mas acho que ficam muito bem.

    - Bem com quê?

    - Contigo. Com a tua loja. Considera-as uma espécie de presente de boa sorte, mesmo que tenhas que ser tu a plantá-las. - Meteu-Ihe a primeira caixa na mão e tirou a segunda e o saco de terra.

    Ela ficou ali, perplexa e comovida. Lembrou-se de que queria flores, flores em vasos, à porta da loja. Pensara em petúnias, mas estas eram mais bonitas e igualmente simpáticas.

    - Foi bonito da tua parte. E atencioso. Obrigada.

    - Podes olhar para mim? - Ele esperou que ela levantasse a cabeça e que os olhos dela encontrassem os seus. - De nada. Onde as queres?

    - Vamos levá-las até à entrada. Vou plantá-las.

    Quando começaram a caminhar pelo passeio, juntos, ela olhou-o demoradamente.

    - Que se dane. Podes aparecer por volta das seis. A pizza parece-me bem. Se correr bem, podemos falar sobre o cinema.

    - Ótimo. - Pousou as flores e a terra diante da vitrine. - Eu volto.

    - Sim, eu sei - murmurou ela, enquanto ele se afastava.

    

    Talvez as pessoas não morressem mesmo de tédio, concluiu Faith, mas também não sabia como raio conseguiam viver com ele.

    Quando era criança e se queixava de que não tinha nada para fazer, as palavras caíam nos ouvidos de adultos pouco condoídos, que lhe distribuíam tarefas aborrecidas. Detestava essas tarefas ainda mais do que detestava o tédio. Mas há lições que se aprendem da forma mais difícil.

    - Não há nada para fazer aqui. - Faith estava confortavelmente sentada à mesa da cozinha, a mordiscar uma bolacha ao pequeno-almoço. Passava das onze, mas não se dera ao trabalho de vestir-se. Usava o robe de seda que comprara numa viagem a Savannah, em Abril.

    E aquilo também começava a entediá-la.

    - As coisas são sempre iguais aqui, dia após dia, mês após mês. Juro que é milagre nenhum de nós sair daqui a correr, aos gritos, durante a noite.

    - Está com problemas de aborrecimento, Miss Faith? - A voz de Lilah, áspera como grés, pairou sobre a pronúncia francesa. Mantinha-a em parte porque a avó era crioula, mas principalmente porque gostava.

    - Nunca acontece nada por aqui. Todas as manhãs são iguais, e os dias vão-se estendendo em longas linhas de mais nada.

    Lilah continuou a esfregar a bancada. A verdade era que tinha a cozinha arrumada havia mais de uma hora, mas sabia que Faith havia de aparecer. Tinha estado à espera.

    - Acho que está precisando de alguma atividade. - Lançou a Faith um olhar suave, com os seus olhos castanhos e cândidos. Como ausência de candura era coisa que Lilah tinha em abundância, aquele olhar requerera alguma prática.

    Mas ela conhecia o seu alvo. Cuidara de Miss Faith desde o dia em que aquela menina nascera. Nascera, recordou Lilah com alguma ternura, a berrar e a ameaçar o mundo com os seus punhos cerrados. A própria Lilah fazia parte do círculo doméstico dos Lavelle desde os seus vinte anos de idade, quando fora contratada para ajudar nas limpezas, quando Mrs. Lavelle estava grávida de Mr. Cade.

    Nessa altura, tinha o cabelo preto e não grisalho, como agora. Tinha as ancas consideravelmente mais estreitas, mas não se desleixara. Amadurecera e tornara-se, como gostava de pensar, uma bela figura de mulher.

    Tinha a pele da cor do caramelo escuro que fazia para envolver as maçãs, no Halloween. Gostava de realçá-la com um batom vermelho forte, e trazia-o no bolso do avental.

    Nunca casara. Não que não tivesse tido oportunidade. Lilah Jackson tivera muitos pretendentes, no seu tempo. E como o seu tempo estava longe de chegar ao fim, ainda gostava de enfeitar-se para correr a cidade na companhia de um homem bem-parecido. Mas casar? Bem, isso era diferente.

    Preferia as coisas como estavam, e isso significava ter um homem que viesse buscá-la à porta e a levasse onde ela queria ir. E se ele quisesse sair com ela outra vez, era melhor lembrar-se de trazer uma bela caixa de chocolates ou umas flores e abrir-lhe as portas, como um cavalheiro.

    Casar com um homem significava passar a vida atrás dele, a vê-lo soltar gases e a coçar-se e sabe Deus mais o quê, enquanto ela se esfalfava para fazer esticar o cheque e conseguir manter a sanidade e comprar umas coisas bonitas para si.

    Não, assim tinha uma bela casa: para dizer a verdade, Beaux Revés era tanto dela como de qualquer pessoa, que diabo! Criara três bebês e ficara com o coração doente por causa da que tinham perdido, e tinha, na sua forma de pensar, todos os benefícios da companhia masculina sem qualquer dos problemas.

    Também gostava de um bom aconchego, de vez em quando. Se o bom Deus não quisesse que os seus filhos se aconchegassem não teria posto neles essa necessidade.

    E Miss Faith, pensou, estava ali cheia de necessidades e tinha de descobrir como preenchê-las sem se magoar a si mesma. Isso significava que a rapariga estava igualmente cheia de problemas. A maioria por culpa própria. Lilah sabia que havia pintos que demoravam mais tempo a encontrar o caminho no pátio em volta do galinheiro.

    - Talvez possa ir dar um belo passeio de carro - sugeriu Lilah.

    - Onde? - Faith bebericou o café, sem mostrar interesse. - É tudo igual, qualquer que seja a direção.

    Lilah tirou o batom do bolso e retocou a pintura aproveitando o reflexo no metal da torradeira.

    - Sei o que me anima quando fico deprimida. Uma belo monte de compras.

    - Vejam só. - Faith suspirou e brincou com a idéia de ir até Charleston. Não há nada melhor para fazer.

    - Muito bem, então. Vá lá fazer as compras e animar-se. Aqui está a lista.

    Faith pestanejou e depois ficou a olhar para a lista de compras que Lilah abanava diante do seu rosto.

    - Mercearias? Não vou comprar mercearias!

    - Não tem nada melhor para fazer, e foi a menina que o disse. Veja lá se esses tomates estão maduros, ouviu? E traga-me o detergente para o chão que escrevi aí. O anúncio na televisão fez-me rir, por isso vale a pena experimentar.

    Virou-se para o lava-louça para enxaguar a esponja da louça e teve de conter uma gargalhada por causa da forma como a sua menina tinha a boca aberta.

    - Depois, passe pela drogaria e traga-me o meu óleo de palma, daquele em frascos, o da garrafa não. E a espuma de banho. De leite e mel. No regresso, passe pela lavandaria e traga tudo o que lá deixei a semana passada, que é quase tudo seu, a propósito. Sabe Deus para que quer meia centena de blusas de seda.

    Faith semicerrou os olhos.

    - Mais alguma coisa? - disse ela, docemente.

    - Está tudo escrito aí, não há como se enganar. Assim, tem alguma coisa para fazer e não se aborrece durante algumas horas. Vá, agora vá vestir qualquer coisa, é quase meio-dia. É pecado, pecado ficar a preguiçar metade do dia, de robe. Vá, mexa-se.

    Lilah fez de conta que estava a enxotar uma galinha e depois levantou da mesa o prato e a chávena de Faith.

    - Não terminei o meu pequeno-almoço.

    - Não a vi comê-lo. Estava a depenicar e a fazer beicinho, foi isso que a vi fazer. Agora, fora da minha cozinha e torne-se útil, para variar.

    Lilah cruzou os braços, inclinou a cabeça e ficou a olhar para ela. Tinha uma maneira de olhar capaz de vergar a alma mais intrépida. Faith levantou-se da mesa, fungou e saiu com passos amuados.

    - Quando voltar, voltei - gritou.

    Abanando a cabeça e soltando uma gargalhada, Lilah acabou de beber o café de Faith.

    - Alguns pintos nunca aprendem quem manda no galinheiro.

   

    Wade levara três anos e dezoito cachorros a convencer Dottie Betrum a esterilizar a sua labrador retriever doida por sexo. A última ninhada de seis acabara de ser desmamada, e enquanto a sua mamã descansava dos efeitos da cirurgia, ele deu a cada um dos alegres e barulhentos cãezinhos a necessária injecção.

    - Não posso ver agulhas, Wade. Fico com a cabeça à roda.

    - Não precisa olhar, Mistress Betrum. Porque não vai esperar lá para fora? Daqui a alguns minutos está tudo terminado.

    - Oh! - As mãos agitavam-se como borboletas em volta das suas faces, e os seus olhos míopes brilhavam, perturbados, atrás das grossas lentes dos óculos. - Acho que devo ficar. Não me parece certo... - Interrompeu-se quando Wade espetou a agulha sob o pêlo.

    - Maxine, leve a Mistress Betrum para a sala de espera. - Deu à sua assistente uma rápida piscadela de olho. - Eu trato disto.

    E trato melhor assim, pensou ele, enquanto Maxine ajudava a chocada senhora a sair da sala, antes que houvesse velhinhas queridas a desmaiar no meio do chão.

    - Pronto, meu lindo. - Wade afagou a barriga do cachorro para lhe dar confiança e fez o resto das inoculações. Pesou, coçou orelhas, viu se havia parasitas e preencheu impressos, enquanto uivos e latidos ecoavam entre as paredes.

    A Sadie de Mrs. Betrum dormia pacificamente, o velho gato de Mr. Klingle, o Silvester, assanhava-se na sua gaiola, e o Speedy Petey, o hamster mascote da turma do terceiro ano da escola primária, corria na sua roda, provando que estava recuperado de uma grave infecção na bexiga.

    Para o Dr. Wade Mooney, aquele era o seu pequeno paraíso.

    Despachou o último cachorro, enquanto os irmãos caíam por cima uns dos outros, lhe puxavam os atacadores dos sapatos ou faziam chi-chi no chão. Mrs. Betrum já lhe assegurara que tinha encontrado bons lares para cinco dos cachorros. Ele, como sempre, declinara a oferta de ficar com um para si próprio.

    Mas tinha uma idéia de onde o último podia ter uma casa.

    - Doutor Wade? - Maxine espreitou pela porta.

    - Está tudo pronto, aqui. Vamos reunir as tropas.

    - São tão engraçados. - Os seus olhos negros dançavam. - Pensei que não ia resistir a ficar com um, desta vez.

    - Se começarmos, é difícil parar. - Mas as covinhas na sua cara tornaram-se mais profundas quando um dos cachorros se aninhou nas suas mãos.

    - Quem me dera poder ficar com um. - Maxine pegou num cachorro, afagando-o enquanto ele lhe lambia a cara com um amor e uma velocidade desesperados.

    Adorava animais, razão pela qual a oportunidade de trabalhar com o Dr. Wade caíra do céu. Já havia dois cães lá em casa, e sabia que não conseguiria convencer os pais a ficar com mais um.

    Nascera no vale, e os pais tinham-se esfalfado para se sustentarem a si próprios, à filha e aos dois filhos mais novos. O dinheiro continuava a ser curto, recordou a si própria enquanto acariciava o cachorro, com vontade de levá-lo para casa.

    E o dinheiro ia continuar a ser curto por mais algum tempo, pensou, soltando um suspiro. Era a primeira da sua família a ir para a universidade, e havia que poupar todos os tostões.

    - São tão doces, doutor Wade. Mas entre o trabalho e a escola, não ia ter tempo para lhe dar atenção suficiente. - Voltou a pousar o cachorro. - Além disso, o meu pai matava-me.

    Wade não pôde deixar de sorrir. O pai de Maxine adorava-a.

    - As aulas vão bem?

    Ela revirou os olhos. Estava no segundo ano da faculdade, e o tempo era tão pouco como o dinheiro. Se não tivesse sido o Dr. Wade a dar-lhe total flexibilidade de horário e a deixá-la estudar quando não havia movimento, nunca teria conseguido chegar ali.

    Era o seu herói, e já tivera uma paixoneta maravilhosamente dolorosa por ele. Agora esperava apenas poder ser um dia uma veterinária tão boa e tão inteligente como ele.

    - Os exames estão aí. Tenho tanta coisa na cabeça que parece que vai explodir. Vou levar estes bebês lá para fora, doutor Wade. - Pegou no cesto cheio de cachorros. - O que digo a Mistress Betrum sobre a Sadie?

    - Ela pode vir buscá-la ao fim da tarde. Diz-lhe que por volta das quatro. Ah, e pede-lhe para não dar o último cachorro. Estou a pensar numa pessoa para ficar com ele.

    - Está certo. Posso ir almoçar, agora? Não temos nada marcado na próxima hora, e pensei que podia ir estudar um bocado no parque.

    - Vai. - Foi até ao lavatório, para lavar as mãos. - Podes demorar a hora toda, Maxine. Vamos lá ver que mais consegues meter nesse teu cérebro.

    - Obrigada.

    Ia ter pena quando ela se fosse embora. Coisa que Wade pensava que iria acontecer assim que ela tivesse o diploma na mão. Não iria ser fácil encontrar alguém tão competente, tão solícito ou tão bom com os animais, e que soubesse também datilografar, lidar com donos de animais à beira de um ataque de nervos e atender o telefone.

    Mas a vida continuava.

    Preparava-se para ver como estava Sadie, quando Faith apareceu à porta de trás.

    - Doutor Mooney. Exatamente quem eu procurava.

    - Sou fácil de encontrar a esta hora do dia.

    - Bem, estou só de passagem. Ele coçou uma sobrancelha.

    - Belo vestido para se estar de passagem.

    - Oh. - Passou um dedo pelo tecido macio, de algodão, justo e curto, vermelho-vivo com riscas finas. - Gostas? Estou virada para o vermelho. - Atirou o cabelo para trás, lançando nuvens de um perfume sedutor. Avançando na direção dele, passou-lhe as mãos pelo peito, pelos ombros. - Adivinha o que tenho vestido por baixo.

    Era sempre assim, pensou ele. Como um estalar de dedos, bastava um olhar dela para deixá-lo pronto a implorar.

    - Porque não me dás uma pista?

    - És um homem tão inteligente. Tens um diploma e aquelas letras antes do teu nome. - Pegou na mão dele e, com a dela por cima, começou a passá-la pela coxa. - Aposto que conseguias descobrir depressa.

    - Meu Deus. - O sangue dele agitou-se violentamente. - Andas pela cidade sem nada por baixo do vestido?

    - E só tu e eu é que sabemos. - Inclinou-se para a frente, com os olhos brilhantes fixos nos dele, e mordeu-lhe o lábio inferior. - O que vais fazer, Wade?

    - Anda lá para cima.

    - É muito longe. - Com uma gargalhada rouca, abriu a porta atrás dele. - Quero-te agora. E quero-te depressa.

    A cadela dormia sossegadamente, respirando de forma regular.

    O espaço cheirava a cão e a anti-séptico. A velha cadeira onde ele passava muitas horas a observar pacientes estava cheia de pêlos de inúmeros cães e gatos.

    - Não tranquei a porta da rua.

    - Vamos viver perigosamente. - Desapertou-lhe o botão das calças de brim e puxou o fecho. - Ora, vejam o que encontrei! - Acariciou-o com a mão, e viu os olhos dele enevoarem-se antes de esmagar a boca contra a dela.

    A enorme excitação que sentira enquanto se vestia, dirigia até à cidade sabendo que ia ter com ele e seduzi-lo, transformou-se num emaranhado de desejos. Era quase doloroso.

    - Leva-me daqui. - Ela arqueou as costas, enquanto a boca dele lhe tomava a garganta. - Leva-me para um sítio doce e escuro e selvagem. Preciso disso. Despacha-te e leva-me daqui.

    O quase limite do desespero dela entrou-lhe no sangue como uma lâmina, deixando-o indefeso. Não havia nada de dócil entre eles quando atingiram o clímax juntos, nada de suave, nada de doce. Quando ela disse o nome dele, com as mãos no sexo dele, arquejante, ele esqueceu-se de que queria suavidade e doçura.

    Tudo o que ele queria era Faith.

    Puxou-lhe a saia vermelha para cima e agarrou-lhe as ancas. Ela estava quente e molhada, e pareceu agarrar-se a ele como uma mandíbula faminta quando ele entrou dentro dela.

    Ela enrolou uma perna à volta da cintura dele e gemeu, longa e profundamente. Ele preenchia o vazio. Não importava se era apenas no momento, se o vazio regressava. Ele preenchia-o, e mais ninguém o preenchera antes.

    Sons selvagens, animalescos, o movimento sólido e rítmico de corpo contra corpo, os corpos contra a madeira, e ele, forte, dentro dela. Ela soltou-se, com um pequeno grito estrangulado na garganta, quando o orgasmo se libertou. Com Wade, o orgasmo era sempre rápido e forte, uma surpresa, um choque maravilhoso para o seu sistema.

    Depois, recomeçava, mais lentamente, mais profundamente, numa insistência gradual que abria qualquer coisa dentro dela para ele.

    E porque era ele, ela podia agarrar-se, render-se. Podia aguentar-se e saber que ele estaria com ela quando caísse.

    O telefone estava a tocar. Pelo menos nos ouvidos dele. A respiração dele estava em sintonia com a dela. Movia-se com ele, a cada impulso, sem nunca parar, sem nunca abrandar. Havia alturas em que ele conseguia pensar nela de forma lúcida e se perguntava por que razão os dois não se devoravam um ao outro até não sobrar nada.

    Ela repetia o nome dele, misturando a palavra com sons arquejantes e gemidos. E mesmo antes de se esvair dentro dela, viu os olhos de Faith fecharem-se, como que em oração.

    - Meu Deus. - Ela estremeceu uma vez e encostou a cabeça à porta, mantendo os olhos fechados. - Meu Deus. Sinto-me maravilhosamente. De ouro por dentro e por fora. - Abriu os olhos, espreguiçando-se. - E tu?

    Ele sabia do que ela estava à espera, por isso resistiu a enterrar a cara no cabelo dela, murmurando palavras em que não acreditava. Palavras que não tinham sido importantes para ela anos antes, quando ele fora suficientemente louco para pronunciá-las.

    - Foi bastante mais apetitoso do que o sanduiche de presunto e alface em que tinha pensado para o almoço.

    Ela riu e enrolou-lhe os braços ao pescoço, de uma forma tão simpática quanto íntima.

    - Ainda há umas partes em mim que não provaste. Por isso...

    - Wade? Wade, querido, estás aí em cima?

    - Credo! - A parte dele que ainda estava aninhada dentro de Faith estremeceu. - A minha mãe.

    - Ora, mas que interessante.

    No momento em que Faith se preparava para soltar uma gargalhada, Wade tapou-lhe a mão com a boca.

    - Chiu. Meu Deus, era mesmo disto que eu estava a precisar. Com os olhos a dançar, Faith produzia sons esquisitos contra a mão dele, enquanto o corpo se lhe agitava de riso.             

    - Não tem graça. - Mas ele próprio teve de controlar as suas próprias gargalhadas. Ouvia a mãe andar de um lado para o outro, chamando-o alegremente no mesmo tom vivo em que costumava chamá-lo para jantar quando ele tinha dez anos.

    - Está calada - sussurrou a Faith. - E fica aqui. Não saias daqui e não faças barulho nenhum.

    Recuou devagar e semicerrou os olhos quando Faith mordeu o lábio e riu devagarinho.

    - Wade, querido - disse ela quando ele chegou à porta, e depois calou a boca com os dedos quando ele se virou e lhe lançou um ar furioso.

    - Nada de barulho - repetiu.

    - Está bem, só pensei que querias guardar isso.

    Ele olhou para baixo, praguejou e apressou-se a meter o sexo dentro das calças e a correr o fecho.

    - Mãe? - Lançou a Faith um último olhar de aviso e depois saiu, fechando a porta com firmeza atrás de si. - Estou cá em baixo. Estava com um paciente.

    Apressou-se a subir as escadas, grato por a mãe ter subido para procurá-lo.

    - Aí estás tu, meu amor. Ia mesmo agora deixar-te um bilhete a dizer que te adoro.

    Boots Mooney era um poço de contradições. Era uma mulher alta, mas toda a gente a considerava baixa. Tinha voz de gato de desenho animado e uma vontade de ferro. Fora a Rainha do Algodão no último ano de liceu e continuara a reinar como Miss Georgetown County.

    Tinha muito a agradecer ao seu ar reto, rosado e de rebuçado. Preservava-o religiosamente, não por vaidade, mas por espírito de obrigação. O marido era um homem importante e ela nunca permitiria que ele fosse visto ao lado de alguém que não o merecesse.

    Boots gostava de coisas bonitas, incluindo ela própria.

    Abriu os braços a Wade, como se não o visse há dois dias e sim há dois anos. Ele aproximou-se dela e deu-lhe um beijo em cada face, e depois apressou-se a recuar.

    - Querido, estás todo corado. Tens febre?

    - Não. - A seu favor teve o fato de não vacilar quando ela lhe encostou as costas da mão à testa. - Não, estou bem. Acabei... uma operação. Está um bocado quente, aqui dentro.

    Era fundamental distraí-la, e ele conhecia a saída de emergência.

    - Olhe para si. - Pegou-lhe nas mãos, fê-la estender os braços e observou-a com ar de aprovação. - Está tão bonita, hoje.

    - Ora, ora. - Ela riu, mas corou de satisfação. - Vim agora do cabeleireiro, é só isso. Devias ter-me visto antes de a Lori me ter posto as mãos em cima. Parecia um sem-abrigo.

    - Impossível.

    - Tu é que és tendencioso. Tinha uma mão-cheia de coisas para fazer, e não podia ir para casa sem ver o meu bebê. - Deu-lhe uma palmadinha na bochecha e depois encaminhou-se imediatamente para a cozinha. - Aposto que não almoçaste. Vou arranjar-te qualquer coisa.

    - Mamã, tenho uma paciente. A Sadie, de Miss Dottie.

    - Oh, céus! O que tem ela? A Dottie não saberia o que fazer sem aquela cadela.

    - Não tem nada. Acabei de tratá-la.

    - Se não tem nada, porque precisou de ser tratada?

    Wade passou a mão pelo cabelo enquanto a mãe espreitava a geladeira.

    - Para deixar de ter cachorros todos os anos.

    - Oh, Wade, não tens comida suficiente nesta casa para tratares de ti como deve ser. Vou comprar-te umas coisas ao mercado.

    - Mãe...

    - Não me venhas com «mãe». Não comes nada de jeito desde que saíste de casa, e não me digas o contrário. Quem me dera que fosses mais vezes lá jantar. Amanhã vou trazer-te uma bela caldeirada de atum. É o teu prato preferido.

    Odiava caldeirada de atum. Detestava-a completamente. Mas nunca conseguira convencer a mãe.

    - Obrigado, gostava muito.

    - Talvez também leve uma à Toryzinha. Passei por lá para a ver. Está tão crescida. - Boots pôs três ovos a cozer. - A loja dela está a avançar tão depressa. Não sei onde aquela rapariga vai buscar a energia. Deus sabe que a mãe dela nunca teve nenhuma, que eu notasse, e o pai, bom... é melhor nem falar.

    Boots apertou os lábios um contra o outro e pegou num frasco de pickles.

    - Sempre tive um fraco por aquela criança, embora por uma razão ou por outra nunca me tivesse aproximado dela. Pobre cordeirinho. Às vezes desejava poder ir lá buscá-la e levá-la comigo para casa.

    O amor, pensou Wade, tornava-nos fracos. Fosse onde fosse ou como fosse. Aproximou-se de Boots, pôs-lhe os braços à volta e pousou a sua face no cabelo dela, que ainda cheirava a laca.   

    - Adoro-a, mãe.

    - Ora, querido, eu também te adoro. É por isso que te vou fazer uma bela salada de ovo, para não ter que ver o meu único filho morrer de fome. Estás ficando muito magro.

    - Não perdi nem um quilo.

    - Então já estavas muito magro. Ele não pôde deixar de rir.

    - O melhor é cozer mais um ovo, mãe, assim chega para nós dois. Eu vou lá abaixo ver a Sadie e depois volto e almoçamos juntos.

    - Isso era agradável. Vai lá, sem pressas.

    Meteu mais um ovo na água e olhou para trás, por cima do ombro, quando ele saiu.

    Boots sabia bem que o filho era um homem feito, mas continuava a ser o seu bebê. E uma mãe nunca deixava de preocupar-se nem de tratar dos filhos.

    Os homens, pensou com um suspiro, eram criaturas tão delicadas, tão esquecidas. E as mulheres, bem, algumas mulheres, podiam aproveitar-se disso.

    As portas do velho edifício não eram tão grossas como o filho pudesse julgar. E uma mulher não chegava aos cinquenta e três anos sem reconhecer certos sons. Tinha quase a certeza de quem estava do outro lado daquela porta, com o seu rapaz. Não faria juízos sobre o assunto, disse a si mesma enquanto cortava pickles.

    Mas vigiava Faith Lavelle como um falcão.

    Fora-se embora. Wade percebeu que era mesmo isso que estava à espera que ela fizesse. Colara um post-it na porta, com um coração desenhado, e pressionara os lábios no centro, deixando-lhe um beijo vermelho e sexy.

    Ele descolou-o, e embora dissesse a si próprio que era um idiota, meteu-o numa gaveta para guardá-lo. Ela voltaria quando lhe apetecesse. E ele deixá-la-ia. Deixá-la-ia até se desprezar a si próprio ou, se tivesse sorte, até voltar a ter domínio sobre o seu coração e ela passasse a ser uma simples diversão.

    Afagou a cabeça de Sadie e depois verificou os sinais vitais, a incisão e os pontos. Como ela estava acordada, com os olhos de um castanho profundo vítreos e confusos, pegou-lhe cuidadosamente. Ia levá-la lá para cima com ele, para não a deixar sozinha.

    

    O sexo dera-lhe sede. Com muito melhor disposição do que antes, Faith decidiu ir até ao Hanson's, comprara uma garrafa de qualquer coisa fresca e doce para saborear a caminho do mercado.

    Lançou mais um olhar ao consultório veterinário e depois ao andar de cima, às janelas do apartamento de Wade. Mentalmente, atirou-lhe um beijo. Pensou que talvez lhe telefonasse mais tarde, para ver se lhe apetecia dar uma volta de carro à noite. Talvez pudessem ir até Georgetown e descobrir um sítio bonito junto à água.

    Era agradável estar com Wade, confortável por um lado, emocionante por outro. Ele era previsível como o nascer do Sol, estava sempre lá quando ela precisava.

    As recordações de um verão já distante em que ele falara de amor e de casamento, de casas e de filhos, tentaram afastar-se do pensamento dela, do coração dela. Ela expulsou-as e concentrou-se na excitação do último encontro sexual secreto.

    Era isso que ela queria e, felizmente, ele também. Arranjaria programa para ambos, mais tarde. Pegaria o conversível de Cade e dariam aquela volta até à costa. Estacionariam algures e dariam largas à sua paixão, dentro do carro, como adolescentes.

    Estacionara o carro várias portas acima da do consultório de Wade. Não valia a pena dar motivos de conversa às más-línguas, embora Deus soubesse que elas falavam a propósito de tudo e de nada. Estava quase a entrar no carro quando viu Tory sair da loja dela, recuar um pouco no passeio e ficar a observar.

    Há um patinho feio que não se transformou, debaixo daquelas penas esquisitas, pensou Faith, mas a curiosidade fê-la atravessar a rua.

    - Estás num dos teus transes?

    Tory deu um salto e depois forçou-se a distender os ombros que tinham ficado tensos.

    - Estava só a ver o aspecto da vitrine. O pintor terminou o letreiro há pouco tempo.

    - Humm. - Faith pôs a mão na anca, observando ela própria o letreiro demoradamente. As letras pretas e arredondadas tinham um ar novo e elegante. - Conforto do Sul. É isso que vendes?

    - Sim. - Como o prazer daquele momento fora interrompido, fez menção de voltar a entrar na loja.

    - Não é uma forma lá muito simpática de tratar uma potencial cliente.

    Tory olhou para trás, com um olhar suave. Faith estava deslumbrante, pensou. Impecável, radiante e satisfeita. E ela não estava com disposição para isso.

    - Ainda não abri.

    Aborrecida, Faith segurou a porta antes de ela se fechar na sua cara e entrou.

    - Cá para mim, nem vais abrir tão depressa - comentou, olhando para as prateleiras quase vazias.

    - Falta menos do que parece. Tenho trabalho para fazer, Faith.

    - Oh, não te importes comigo. Vai lá, e faz o que tiveres a fazer. - Faith levantou a mão e, tanto por teimosia como por interesse, começou a andar de um lado para o outro.

    O local estava meticulosamente limpo, teve de admitir. Os vidros reluziam e nas prateleiras que os homens de Dwight tinham construído a madeira brilhava. Até as caixas de material estavam cuidadosamente alinhadas, e um grande saco de plástico continha os pedaços de esferovite usados no acondicionamento. Havia um computador portátil e um bloco em cima do balcão.

    - Tens coisas que cheguem para encher isto?

    - Vou ter. - Conformando-se com a intrusão, Tory continuou a tirar material das caixas. Se bem conhecia Faith Lavelle, aborrecer-se-ia rapidamente e voltaria a sair. - Se estás interessada, estou a pensar abrir no próximo sábado. Haverá artigos selecionados com dez por cento de desconto, só nesse dia.

    Faith encolheu os ombros.

    - Costumo estar ocupada aos fins-de-semana. - Passou pelo balcão com topo de vidro, à altura da cintura. Lá dentro, sobre um pedaço de cetim branco, estavam algumas jóias feitas à mão: prata e contas e pedras coloridas, artisticamente dispostas, feitas para apelar à vista e à imaginação.

    Deu por si a começar a levantar o topo de vidro, mas estava trancado e ela praguejou. Lançou um olhar discreto a Tory, contente por a outra mulher não ter reparado.

    - Tens aqui uma bijuteria bem bonita. - Queria os brincos de prata com as pequenas bolas de lápis-lazúli, e queria-os imediatamente. - Nunca pensei que te interessasses por bijuteria. Quase nunca usas nada disso.

    - Neste momento, tenho bijuteria de três artistas - acrescentou Tory secamente. - Gosto especialmente da pregadeira que está ao centro. O arame é de prata de lei e as pedras são granadas, citrinas e cornalinas.

    - Estou vendo. As pedras estão todas espalhadas pelo arame como estrelas, como um daqueles foguetes que os garotos lançam no quatro de julho.

    - Sim, muito parecido com isso.

    - É bonito, acho eu, mas não sou muito de alfinetes e pregadeiras. - Mordeu o lábio, mas a ganância venceu o orgulho. - Gosto destes brincos, aqui.

    - Vem cá no sábado.

    - Devo estar ocupada. - E queria-os agora. - Porque não me vendes? Fazias uma venda mais cedo do que o previsto. É para isso que estás a abrir um negócio, não é? Para venderes.

    Tory colocou um candeeiro a petróleo na prateleira. Teve o cuidado de apagar o sorriso do rosto quando se virou.

    - Ainda não abri, mas... - Aproximou-se da vitrina. - Pelos bons velhos tempos.

    - Nunca tivemos bons velhos tempos.

    - Acho que tens razão. - Pegou nas chaves que trazia penduradas no cinto. - O que é que te chamou a atenção?

    - Aquele. Aqueles. - Bateu com o dedo no vidro. - De prata e lápis-lazúli.

    - Sim, são lindos. Condizem contigo. - Tory tirou-os do cetim e admirou-os contra a luz antes de entregá-los a Faith. - Podes usar um dos espelhos, se quiseres experimentá-los. A artista vive à saída de Charleston. Faz um trabalho maravilhoso.

    Enquanto Faith se aproximava de um trio de espelhos emoldurados em bronze e cobre, Tory tirou um longo pendente do estojo. Porquê fazer uma venda quando podia fazer duas?

    - Esta é uma das peças dela que prefiro. Ficava bem com os brincos.

     Tentando não se mostrar abertamente interessada, Faith olhou para baixo. O pendente era uma barra grossa de lápis-lazúli incrustada em prata.

    - Fora do vulgar. - Trocou os brincos que trazia pelos novos e depois cedeu e pegou no colar. - Espero não encontrar ninguém com um igual, no meio da rua.

    - Não. - Tory sorriu. - Tenciono oferecer objetos únicos.

    - Acho que devo levar as duas coisas. Há séculos que não me mimo. Parece que todas as coisas que há em Progress são iguais umas às outras.

    Calmamente, Tory fechou o vidro do expositor.

    - Agora já não.

    Pressionando os lábios um contra o outro, Faith virou o colar para ver o preço.

    - Algumas pessoas vão achar que estás a exceder-te nos preços. - Passou o dedo pela corrente enquanto olhava para Tory. - Mas enganam-se. O preço é justo. Na verdade até podias cobrar mais, se estivesses em Charleston.

    - Mas não estou. Vou buscar as caixas.

    - Não te incomodes, vou usá-los já. - Abriu a carteira e atirou os outros brincos lá para dentro. - Corta apenas as etiquetas e registra.

    - Vou fazer a conta - corrigiu Tory. - Ainda não tenho a caixa registradora pronta a funcionar.

    - Faz como entenderes. - Pegou no colar e nos brincos. - Vou passar-te um cheque. - Faith franziu o sobrolho quando Tory lhe estendeu a mão. - Só posso passá-lo quando me disseres quanto é.

    - Não, dá-me os teus outros brincos. Não é maneira de tratá-los. Vou dar-te uma caixa.

    Com uma breve gargalhada, Faith procurou na carteira e tirou-os de lá.                                 

    - Está bem, mãezinha.

    Sexo e compras, pensou Faith, enquanto dava mais uma volta pela loja. Não podia haver melhor maneira de passar o dia. E pelo que estava a ver, podia passar um tempo muito agradável na loja de Tory.

    Quem haveria de pensar que a pequena Tory Bodeen, com os seus olhos estranhos, desenvolveria um gosto tão requintado? E aprenderia a usá-lo com tanta inteligência?

    Devia ter tido um trabalhão a escolher as coisas certas, a procurar as pessoas que fizessem essas coisas, a calcular o que deveria cobrar por elas, a organizar o espaço e a expô-las.

    Antes isto do que outra coisa, pensou Faith. Livros e esse tipo de coisas aborrecidas.

    Deu por si algo impressionada e com alguma inveja, diante da idéia de Tory possuir o expediente e a habilidade para criar um negócio a partir do nada.

    Não que ela quisesse para si alguma parte daquele esforço ou daquela responsabilidade. Uma loja daquelas agarrava uma pessoa mais do que uma droga. Mas não era bom a loja ser tão perto de Wade? Talvez a vida em Progress estivesse prestes a animar-se.

    - Devias pôr esta taça num encosto, na vertical. - Parou e pegou na grande taça. - Para as pessoas verem o interior, do sítio onde estiverem.

    Era isso que Tory tencionava fazer, depois de desempacotar os encostos. Mal levantou os olhos, enquanto fazia as contas.

    - Queres um emprego? Tenho aqui o teu total, IVA incluído, mas é melhor conferires.

    - Sempre tiveste melhor nota em Matemática do que eu. - Começou a passar o cheque e a porta da loja abriu-se. Faith juraria ter ouvido Tory resmungar qualquer coisa.

   

    Os gritinhos de Lissy eram, na opinião de Tory, apenas um dos seus detestáveis hábitos. Outro deles era a sua tendência para se ensopar daquele cheiro a lírios do vale que entrava sempre antes dela e ficava muito tempo depois de ela se ir embora.

    Quando o cheiro e os gritinhos entraram na loja, Tory rangeu os dentes, esperando que tal fosse tomado por um sorriso.

    - Ora, que engraçado! Acabei de sair do cabeleireiro e ia a caminho do escritório quando vos vi aqui dentro.

    Quando Lissy juntou as mãos e começou a dar uma vista de olhos, Tory lançou a Faith um olhar mortífero. Esta respondeu com um sorriso luminoso que evidenciava a mais perfeita compreensão e com um bater de pestanas provocatório.

    - Passei por aqui quando a Tory estava a pendurar o letreiro.

    - Que também está muito bonito. Está tudo a compor-se, não está? - Com uma mão pousada sobre o peso da barriga, Lissy virou-se para espreitar as prateleiras. - Está tudo tão bonito, Tory. Deves ter trabalhado que nem seis mulas para ter tanta coisa pronta em tão pouco tempo. E o meu Dwight fez um belo trabalho.

    - Sim, não podia estar mais satisfeita com ele.

    - Claro que não. Ele é o melhor. Ai, mas que querido! Pegou avidamente no candeeiro a petróleo que Tory acabara de colocar na prateleira.

    - Adoro bibelots espalhados pela casa. O Dwight diz que só servem para apanhar pó, mas são esses toques que fazem um lar, não são?

    Tory respirou fundo. Outra das características irritantes de Lissy era o seu hábito de transformar todas as frases em exclamações.

    - Sim, acho que sim. Se o pó não tiver onde cair, cai numa simples mesa vazia.

    - É exatamente isso! - Discretamente, Lissy virou a etiqueta com o preço e depois abriu a boca num O surpreendido. - É caro, não é?

    - É feito à mão e está assinado - começou Tory a dizer, mas Faith interrompeu-a.

    - O que é bom custa dinheiro, não custa, Lissy? E o Dwight ganha o suficiente para te pagar estas extravagâncias, especialmente quando estás quase a dar à luz outro bebê. Juro que se alguma vez carregasse um peso desses durante nove meses, o homem que o tivesse plantado dentro de mim teria que comprar-me a Lua e as estrelas.

    Sem saber bem se estava a ser elogiada ou insultada, Lissy franziu o sobrolho.

    - O Dwight estraga-me com mimos.

    - Claro que sim. Eu acabei de comprar estes brincos para mim. - Fez balançar um deles tocando-lhe com a ponta do dedo. - E um colar, também. A Tory deixou-me adiantar um bocadinho em relação à abertura do próximo sábado.

    - Verdade? - Os olhos de Lissy tornaram-se penetrantes: Faith sabia que ela não tolerava que ninguém lhe levasse a melhor. Agarrou o candeeiro avidamente contra os seios.

    - Tory, tens de deixar-me levar isto agora. Estou apaixonada por ele. Não sei se consigo vir aqui no sábado, cedo, e alguém pode chegar antes de mim. Não podias ser uma querida e deixar-me comprar hoje?

    Tory fez um círculo em volta do total de Faith, para poder começar a fazer contas.

    - Vai ter que ser em dinheiro ou cheque, Lissy. Ainda não posso trabalhar com cartões de crédito. Mas não me importo de te guardar se...

    - Não, não, posso passar-te um cheque. Já que aqui estou, talvez possa dar mais uma vista de olhos... É como brincar às lojas.

    - Sim. - Tory pegou no candeeiro e pousou-o em cima do balcão.

    Afinal, parecia que já tinha aberto a loja ao público.

    - Oh! Estes espelhos estão à venda?

    - Tudo está à venda. - Tory tirou uma pequena caixa azul-marinha que tinha debaixo do balcão e pôs lá dentro os brincos de Faith. - Vou também pôr aqui dentro o cartão da artista.

    - Está bem. Não precisas de me agradecer - acrescentou, a meia voz.

    - Estou a pensar se terás feito isto para me ajudares ou para me irritares - disse Tory em igual tom. - Ou para a irritares a ela. Mas... - Anotou o preço do candeeiro. - Negócio é negócio, por isso agradeço-te. Sabias exatamente em que botão carregar.

    - Naquela? - Faith olhou para onde Lissy soltava repetidos ohs e ahs. - É do mais simplório que há.

    - Se ela me comprar um daqueles espelhos passa a ser a minha nova melhor amiga.

    - Bem, maravilhoso. - Divertindo-se mais do que imaginara, Faith pegou no seu talão de cheques. - Já fui posta de lado, mesmo depois de ter sido a tua primeira cliente.

    - Tenho que ter este espelho, Tory. O oval, com os lírios de um lado. Nunca vi nada assim. Vai ficar tão querido na minha salinha!

    Os olhos de Tory encontraram os de Faith, por cima do balcão, e brilharam.

    - Desculpa, ela acabou de comprar mais do que tu. E depois, para Lissy:

    - Vou buscar a caixa, lá atrás.

    - Obrigada. Já há tanta coisa para escolher, e acho que ainda não tens metade das coisas à vista. Uma noite destas estava a dizer ao Dwight que não sei onde vais arranjar tempo para tanta coisa. Entre a mudança para a tua casa, o arranjar das coisas aqui, as entregas de mercadoria e as noites passadas com o Cade, os teus dias devem ter vinte e seis horas.

    - O Cade?

    O nome saiu ao mesmo tempo dos lábios de Tory e de Faith.

    - Aquele homem é mais expedito do que eu pensava. - Lissy deu mais uns passos pela loja. - Devo dizer que nunca imaginei os dois juntos, como casal. Mas sabes o que se diz sobre quem não parte um prato.

    - Sim. Não. - Tory ergueu a mão. - Não sei do que estás a falar. O Cade e eu não estamos juntos.

    - Ora, não vale a pena esconderes, estamos só aqui as três. O Dwight contou-me tudo, e explicou-me que devias querer manter as coisas em segredo por algum tempo. Eu não disse a ninguém, não te preocupes.

    - Não há nada para dizer. Absolutamente nada para dizer. Nós só... - Viu dois pares de olhos penetrantes e sentiu a língua entaramelar-se. - Nada. O Dwight está enganado. Vou buscar a caixa.

    - Não sei porque está tão decidida a fazer segredo disto - comentou Lissy, enquanto Tory se apressava a ir ao armazém. - Afinal, nenhum deles é casado, nem nada disso. Claro - acrescentou com um trejeito de ironia -, acho que a idéia de se rebolar nos lençóis com o Cade depois de estar de volta há menos de um mês não condiz com a atitude de senhora calma e educada que ela pretende dar de si.

    - Não? - Os assuntos do Cade eram os assuntos do Cade, disse Faith a si própria. E diabos a levassem se ia deixar esta gata assanhada arranhá-lo. - E as senhoras calmas e educadas não têm sexo? - Com um sorriso vivo e irónico, bateu com o dedo na barriga de Lissy. - Acho que essa bola que trazes aí não foi de comeres chocolate a mais.

    - Eu sou uma mulher casada.

    - Não eras, quando tu e o Dwight andavam enrolados no assento de trás do Camaro de segunda mão que o pai dele lhe comprou quando ele ganhou as corridas.

    - Oh, por amor de Deus, Faith, tu também te enrolaste bastante nessa altura.

    - Exatamente. Por isso tenho muito cuidado a quem atiro pedras, quando tenho vontade de atirar alguma. - Assinou o cheque com um floreado e depois pegou no par do brinco que tinha posto.

    - Só estou a dizer que para alguém que acabou de regressar a Progress e que tem feito sabe Deus o quê estes anos todos, apanhou um Lavelle bem depressa.

    - Ninguém apanha um Lavelle, se ele não quiser.

    Mas ia pensar no assunto. Ia pensar muito bem no assunto.

    Tory ficou tentada a trancar a porta assim que viu na rua as suas duas clientes inesperadas. Mas isso iria atrasá-la e significaria dar demasiada importância aos mexericos de Lissy.

    Trabalhou na loja durante mais três horas, colocando preços, fazendo registros e dispondo objetos pela loja. O trabalho manual e o tédio da papelada impediram-na de ficar a matutar.

    Mas o regresso a casa deu-lhe bastante oportunidade para isso.

    Não era desta forma que tinha planejado voltar a estabelecer-se em Progress. Não ia tolerar, nem por um momento, ser alvo da bisbilhotice da cidade. A melhor maneira de derrotar essa bisbilhotice era ignorá-la, ser superior a ela.

    E manter-se longe de Cade.

    Nada disso representava para ela qualquer problema.

    Estava acostumada a ignorar línguas viperinas, e sobre assuntos muito mais vitais do que um romance inventado. Era mais do que evidente que não precisava passar tempo com Cade Lavelle. Fosse como fosse, a verdade era que não passara praticamente tempo nenhum com ele. Umas refeições, um filme ou dois, talvez uma carona. Tudo coisas inofensivas e casuais.

    A partir de agora, andaria sozinha.

    E ponto final, pensou.

    Deveria ser ponto final, se não tivesse visto a camioneta dele à beira de um campo.

    Disse a si própria que iria até lá. Na verdade, não valia a pena falar no assunto. Seria muito mais sensato continuar a caminho de casa e deixar aquele assunto idiota morrer de morte natural.

    E continuou a ver o brilho faminto, predatório, nos olhos de Lissy.

    Virou o volante e estacionou à beira da estrada, onde a erva era curta e espessa. Ia apenas mencionar a questão, mais nada. Apenas dizer a Cade que se calasse e parasse de falar dela com os seus amigos idiotas. Já não estavam no liceu, que raios!

    Piney Cobb aspirou contemplativamente o seu último Marlboro. Vira a station wagon encostar no acostamento, observara a mulher - diabos o levassem se não era a garota Bodden, já crescida! - começar a caminhar pelo campo e continuara a observá-la enquanto ela punha os pés entre as filas de pés de algodão e continuava a avançar.

    Ao lado dele, Cade estava de pé a pensar no dia de trabalho e no progresso das colheitas. Quanto a ele, o rapaz tinha idéias esquisitas, mas essas idéias esquisitas estavam a dar resultado. Fosse como fosse, não era da sua conta. Ganhava o mesmo se espalhasse pesticidas nas plantas ou se as apaparicasse com merda de vaca e joaninhas.

    - Vinha a calhar mais uma chuva como a da outra noite - considerou Cade.

    - Pois vinha. - Piney coçou o queixo semeado de pêlos grisalhos e pressionou os lábios um contra o outro. - O que tem aqui está uns bons dez centímetros mais alto do que os campos tradicionais.

    - O algodão orgânico cresce mais depressa - disse Cade, distraidamente. - Os químicos travam o crescimento.

    - Pois, foi o que disse. - E assim, apesar das dúvidas de Piney, viera a provar-se verdade. Fê-lo pensar que, afinal, talvez os cursos universitários não fossem só tretas.

    Não que dissesse uma coisa daquelas em voz alta. Mas era coisa para deixar a fermentar.

    - Patrão? - Piney deu uma última passa no cigarro e depois pisou-o cuidadosamente com o pé. - Tem problemas com mulheres?

    Como tinha a cabeça cheia de trabalho, Cade demorou um minuto a reagir.

    - Como disse?

    - Vá por mim, tenho-me mantido bem longe das mulheres, mas ando neste mundo há tempo suficiente para reconhecer uma mulher a fumegar.

    Virou a cabeça, semicerrando os olhos por causa do sol forte, e apontou-a preguiçosamente na direção onde Tory abria caminho por entre as filas de algodão.

    - E ali vem uma, agora. Ao que parece, é um homem morto.

    - Não tenho problema nenhum.

    - Eu cá acho que está enganado - resmungou Piney, e recuou um pouco para não levar por medida.

    - Cade.

    Era um prazer vê-la, um verdadeiro e puro prazer.

    - Tory, que bela surpresa.

    - Verdade? Isso é o que vamos ver. Preciso de falar contigo.

    - Está bem.

    - A sós.

    - Vamos andar por aí.

    Tory respirou fundo e lembrou-se das suas boas maneiras.

    - Desculpe, Mister Cobb.

    - Não é preciso desculpares-te. Achei que já não te lembravas de mím.

    E não lembrava. Pelo menos conscientemente. Dissera o nome dele sem pensar. Por um instante, a sua irritação misturou-se com a velha imagem de um homem escanzelado, de peito magro e cabelo cor de trigo, que costumava cheirar a álcool e lhe dava balas de hortelã-pimenta sem ninguém ver.

    Continuava escanzelado, notou ela, mas a idade e a bebida estavam-lhe marcadas no rosto. Era vermelho, gasto e descaído, e o cabelo cor de trigo, se ainda o tinha, era suficientemente parco para estar completamente coberto por uma velha boina cinzenta.

    - Lembro-me que costumava dar-me balas e que trabalhava no campo ao lado do do meu pai.

    - Era. - Os lábios estenderam-se-lhe num sorriso,  revelando dentes tão tortos e espaçados entre si como uma velha vedação de madeira. - Agora trabalho aqui para o rapaz da universidade. Paga melhor. Vou andando. Até amanhã, patrão.

    Levou a mão à boina e depois tirou do bolso uma bala de hortelã-pimenta e deu-o a Tory.

    - Se bem me lembro, estas eram as tuas preferidas.

    - Ainda são. Obrigada.

    - Ficou satisfeito por te lembrares - disse Cade, enquanto Piney atravessava o campo, em direção à estrada.

    - O meu pai costumava gritar com ele por causa dos males do uísque, e aí uma vez por mês embebedavam-se juntos. No dia seguinte, Piney estava outra vez no campo, a trabalhar como de costume. E o meu pai voltava a gritar com ele.

    Abanou a cabeça e virou-se para Cade.

    - Não vim aqui para fazer uma viagem ao passado. Em que estavas a pensar quando disseste ao teu amigo Dwight que andamos a sair juntos?

    - Não sei bem se...

    - Nós não andamos a sair juntos.

    Cade ergueu uma sobrancelha, tirou os óculos de sol e prendeu-os na camisa.

    - Então, Tory, andamos sim. Estamos aqui os dois juntos, neste preciso momento.

    - Sabes muito bem o que quero dizer. Não andamos juntos. Ele não sorriu, mas apetecia-lhe fazê-lo. Optou antes por coçar a cabeça e fazer um ar perplexo.

    - A mim parece-me que o que andamos a fazer se parece bastante com isso. Saímos, quê, quatro vezes nos últimos dez dias. E acho que, quando um homem e uma mulher saem para jantar, andam juntos.

    - Pois achas mal. Não andamos juntos, portanto mete bem isso na tua cabeça.

    - Sim, senhora.

    - Não me venhas com os teus sorrisos irônicos. - Um trio de corvos grasnou, com as suas penas alinhadas e brilhantes. - E mesmo que tivesses essa idéia em mente, não era da tua conta, não tinhas o direito de dizer ao Dwight que andamos envolvidos. Ele foi logo contar à Lissy e agora ela meteu naquele cérebro de ervilha que temos um caso, com uma relação sexual tórrida. Não quero, nem tenciono deixar que as pessoas daqui se convençam que eu sou a tua última conquista.

    - A minha última? - Meteu os polegares nos bolsos e rodou nos calcanhares usados das suas botas de trabalho. Achou que, quanto a entretenimento, aquele era o momento alto do dia. - Mas quantas conquistas pensas tu que eu tive?

    - Não estou interessada.

    - Tu é que trouxeste o assunto à baila - salientou ele, apenas pelo prazer de vê-la furiosa.

    - A questão é que disseste ao Dwight que andávamos um com o outro.

    - Não, não disse. Mas não vejo... - Lembrou-se. - Ah, sim. Humm.

    - Ora aí tens. - Com uma espécie de triunfo, espetou um dedo na direcção dele. - És um homem, e podias ter evitado a conversa de vestiário.

    - Foi um mal-entendido. - E um mal-entendido fascinante, em sua opinião. - A Lissy não pára de tentar tramar-me. Parece que não suporta que haja um único homem livre. É uma chata. Da última vez disse ao Dwight que lhe dissesse qualquer coisa para ela me deixar em paz, que lhe dissesse que eu tinha um caso escaldante ou qualquer coisa assim.

    - Comigo? - Admirou-se que não lhe saísse fumo pelos ouvidos. - Porque é que de todas...

    - Eu não disse contigo - interrompeu Cade. - Imagino que o Dwight te tenha escolhido porque estávamos em tua casa na altura da conversa. Se quiseres saltar em cima de alguém, salta em cima de mim. Mas, pessoalmente, não vejo para quê tanta agitação. Somos ambos solteiros, andamos juntos... Andamos, sim, Tory - acrescentou ele, antes de ela poder argumentar. - E se a Lissy quiser pensar que as coisas entre nós progrediram e chegaram ao que é um estágio perfeitamente natural, onde está o problema?

    Ela não estava certa de conseguir falar. Ele estava divertido. Conseguia ver isso nos olhos dele, ouvi-lo na voz dele.

    - Achas que tem graça?

    - Não tem graça, mas é anedótico - concluiu ele. - Parece uma pequena anedota engraçada.

    - Anedótico, o diabo! A Lissy vai espalhar isto pela região toda, se é que já não espalhou.

    Os corvos voltaram, voando em círculo.

    - Ora aí está uma verdadeira tragédia. Se calhar é melhor fazermos um comunicado à imprensa negando tudo.

    Ela soltou um som, algo perigosamente parecido com um grunhido. Quando deu meia volta, ele pegou-lhe no braço e reteve-a.

    - Acalma-te, Victoria.

    - Não me digas para acalmar-me. Estou a tentar estabelecer aqui um negócio, uma casa, e não quero ser alvo dos mexericos dos vizinhos.

    - Os mexericos dos vizinhos são o combustível que faz andar as cidades pequenas. Viveste na cidade grande tanto tempo que te esqueceste disso. E se as pessoas falarem vão aparecer na tua loja para verem. Onde está o mal disso?

    Fez a questão parecer menor e razoável.

    - Não gosto que as pessoas se metam estupidamente na minha vida. Já tenho que chegue disso.

    - Antes de vires para cá, já sabias que isso iria acontecer. E se as pessoas querem mexericar um pouco acerca da mulher que chamou a atenção de Cade Lavelle, basta olhar para ti para perceber porquê.

    - Estás a dar a volta ao assunto. - Não sabia inteiramente porquê, mas sabia que já não estava em terreno firme. - A Faith estava na loja quando a Lissy fez o seu anúncio. - Ele vacilou, o que deu a Tory alguma satisfação. - Agora já não estás tão contente, pois não?

    - Se a Faith me vai chatear por causa disso, e com certeza que não vai conseguir resistir, está na altura de tirar algum proveito disso.

    Apertou-lhe mais o braço e atirou os óculos de sol para o chão. Depois, puxou-a para si.

    Os alarmes soaram e ela empurrou o peito dele com a mão.

    - O que estás a fazer?

    - Não é preciso ficares com espinhos. - Com a mão livre, segurou-lhe a nuca. - Vou só provar-te.

    - Não.

    Mas os lábios dele já se apossavam dos dela.

    - Não vai doer. Prometo.

    Manteve a palavra. Não doeu. Fortaleceu-a e acalmou-a, estimulou-a e despertou aquelas necessidades que ela tinha tão bem fechadas. Mas não doeu.

   

    A boca dele era macia, suave e convidava a dela a saboreá-la. Como ele estava a saborear a dela. O calor alastrou-se-lhe na barriga, enquanto cordas de tensão e de semiconsciência se misturavam. E quando aquela mistura começou a subir-lhe na direção do coração, ele soltou-a.

    - Senti qualquer coisa - murmurou. A mão dele continuou a afagar a nuca dela. - Senti-a da primeira vez que voltei a ver-te.

    Ela tinha a cabeça à roda. Não era uma sensação que apreciasse.

    - Isto é um erro. Eu não... - Recuou, numa tentativa de defesa, e sentiu qualquer coisa estalar debaixo do seu salto.

    - Raios partam, é o segundo par esta semana. - Cade abanou a cabeça, olhando para os óculos partidos. - A vida está cheia de erros - prosseguiu, voltando a beijá-la, de leve. - Isto não parece ser um, mas vamos ter que experimentar para ver.

    - Cade, não tenho jeito para este tipo de coisa.

    - Que tipo de coisa? Beijar?

    - Não. - Foi surpreendida pelo seu próprio riso. Como conseguia ele fazê-la rir quando estava aterrorizada? - Esta coisa do homem-mulher, esta coisa da relação.

    - Então, vais ter que praticar.

    - Não quero praticar. - Não pôde fazer mais nada senão suspirar quando ele pressionou os lábios contra a nuca dela. - Cade, há tantas coisas que não sabes sobre mim.

    - Posso dizer o mesmo. Por isso, vamos descobrir. A noite está bonita. - Fez deslizar a mão até à dela. - Porque não vamos dar uma volta de carro?

    - Não é assim que se resolve o assunto.

    - Podemos parar e comer qualquer coisa, quando nos apetecer.

    - Fê-la voltar-se e, com bastante elegância, baixou-se para apanhar os óculos partidos. Começou a caminhar, com o algodão jovem entre ambos. - Um passo de cada vez, Tory - disse ele com suavidade.

    -  Sou um homem paciente. Se olhares à tua volta e prestares atenção, podes ver como sou paciente. Levei três anos a transformar a fazenda e a fazer dela aquilo que eu queria. Aquilo em que acreditava, e fi-lo contra algumas gerações de tradição. Há pessoas que ainda me apontam o dedo e fazem troça, ou resmungam e praguejam. Tudo porque não segui o caminho com que a maioria se sente confortável, que a maioria compreende. E o que as pessoas não compreendem costuma assustá-las.

    Ela olhou para ele e depois desviou o olhar. O homem encantador e despreocupado que troçara discretamente da fúria dela, era atravessado por uma corda de aço. Não seria sensato da parte dela esquecer isso, refletiu.

    - Eu sei. Vivo com isso.

    - Então porque não nos consideramos dois inadaptados e vemos o que isso nos traz?

    - Não sei do que estás a falar. Nenhum Lavelle é inadaptado em Progress.

    - Pensas isso porque ainda não te chateei até à exaustão com as maravilhas da agricultura orgânica e a beleza do algodão biológico. - Pegou na mão dela e beijou-a. - Mas vou chatear-te, já que há meses que não tenho uma nova vítima. Vamos fazer assim: vai andando para casa. Preciso lavar-me. Eu vou buscar-te daqui a uma hora.

    - Tenho coisas para fazer.

    - Deus sabe que não há dia em que não tenhamos coisas para fazer. - Abriu-lhe a porta do carro. - Apareço daqui a uma hora - disse-lhe, enquanto ela se sentava ao volante. - E, Tory? Para que não haja confusão: andamos juntos.

    Fechou a porta e depois, metendo as mãos nos bolsos, encaminhou-se para a sua camioneta.

    

    - Oh, não sejas mau, Cade. Só estou a pedir-te um favorzinho. - Faith estava estendida na cama do irmão, com o queijo apoiado nas mãos fechadas e o seu olhar mais convincente.

    Adquirira o hábito de vir ao quarto dele para ter companhia, depois de Hope ter morrido e a solidão ser insuportável. Agora, costumava aparecer quando queria alguma coisa.

    Ambos sabiam isso, e ele não parecia importar-se.

    - Estás a perder tempo a lançar-me esse olhar. - Despido até à cintura, com o cabelo ainda molhado, Cade tirou uma camisa lavada do armário. - Vou precisar do carro esta noite.

    - Podes usá-lo sempre que quiseres. - Tentou um amuo.

    - Pois posso. E vou usá-lo esta noite. - Ofereceu-lhe o sorriso de complacência reservado a irmãs irritantes.

    - Fui eu que comprei a comida que meteste na boca. - Levantou-se e ajoelhou-se na cama. - E fui à lavandaria buscar as tuas roupas estúpidas, e tudo o que estou a pedir-te é que me emprestes a porcaria do teu carro por uma noite. Mas és demasiado egoísta.

    Ele vestiu a camisa e começou a abotoá-la, mantendo o sorriso satisfeito no rosto.

    - E com isto tu queres dizer...

    - Odeio-te. - Pegou numa almofada, fez pontaria e falhou por uns bons centímetros. Nunca tivera uma pontaria decente.

    - Espero que te espetes com a porcaria do carro e acabes entalado num monte de ferros retorcidos e a arder. - A almofada que se seguiu passou-lhe por cima da cabeça. Ele nem se deu ao trabalho de se baixar. - Espero que os vidros se espetem nos teus olhos e fiques cego, e se ficares vou fartar-me de rir quando fores contra as paredes.

   

    Ele virou-lhe as costas, num insulto deliberado e calculado.

    - Bem, então acho que não vais querer pedir-me emprestado o que restar do carro amanhã.

    - Eu quero o carro agora!

    - Faith, meu tesouro... - Meteu a camisa para dentro das calças e pegou no relógio que estava em cima da cómoda. - Tu queres tudo agora. - Incapaz de resistir, pegou nas chaves e abanou-as diante dos olhos dela. - Mas não podes tê-lo.

    Ela gritou, um grito de guerra, e atirou-se da cama. Ele poderia ter-se ido embora, mas era mais divertido segurar-lhe os braços antes de ela usar aquelas unhas lindas e letais na cara dele.

    Além disso, se ele saísse do caminho dela, ela teria mergulhado de imediato, cega de fúria, na cómoda dele.

    - Vais magoar-te - avisou ele, dançando com ela enquanto ele lhe mantinha os braços seguros.

    - Não, vou é matar-te. Vou arrancar-te os olhos da cabeça.

    - Tens uma verdadeira obsessão com a minha cegueira esta noite. Se me arrancas os olhos, como vou poder ver como és bonita?

    - Larga-me, seu filho da mãe. Luta como um homem.

    - Se eu lutasse como um homem, dava-te um murro que te deixava estendida e pronto. - Para a enfurecer, inclinou-se e deu-lhe um beijo rápido. - Gastava menos energia.

    Ela deixou-se cair pesadamente, derrotada, com os olhos cheios de lágrimas.

    - Deixa lá. Não quero a porcaria do teu carro velho.

    - Isso também não vai resultar. Choras com demasiada facilidade. - Mas ele beijou-a na face. - Podes levar o carro amanhã, o dia inteiro e metade da noite, se quiseres. - Apertou-lhe os braços com carinho e preparou-se para sair.

    E viu estrelas quando ela lhe deu um pontapé na canela.

    - Raios partam! Deus meu! - Deu-lhe um empurrão, tentando minimizar a dor. - Sua cabra falsa.

    - Dá-te por satisfeito eu não ter seguido o meu primeiro instinto e usado o joelho. Estive quase. - Quando ele se inclinou para esfregar o sítio do pontapé, ela deu um salto, tentando agarrar as chaves que ele ainda tinha na mão. Quase conseguiu, mas ele mexeu-se e o impulso dela para tentar apanhar a chave fez com que fosse projetada para a frente e caísse no chão com uma enorme pancada.

    - Kincade! Faith Ellen! - A voz parecia uma chicotada no cetim. Margaret estava à porta, o corpo rígido, o rosto pálido. Instantaneamente, tudo ficou imóvel.

    - Mãe! - Cade pigarreou.

    - Ouvi os gritos e as pragas no andar de baixo. E o juiz Purcell, que estou a receber esta noite, também. E Lilah, e a criada, e o jovem que veio mesmo agora trazê-la a casa.

    Esperou um pouco, para que o peso da indecência se abatesse sobre os ombros dos filhos.

    - Talvez vocês achem este tipo de comportamento aceitável, mas eu não acho, e não quero que convidados, criados e estranhos acreditem que eu criei duas hienas nesta casa.

    - Peço desculpa.

    - Obriga-o a pedir-me desculpa, a mim - exigiu Faith, soluçando enquanto esfregava o cotovelo magoado. - Ele empurrou-me.

    - Não fiz nada disso. Tropeçaste nos teus próprios pés.

    - Ele estava a ser cruel e nada razoável. - Ainda tinha um cartucho para gastar, pensou Faith, e tencionava gastá-lo. - Tudo o que eu fiz foi pedir, e pedir educadamente, que ele me emprestasse o carro esta noite, e ele começou a chamar-me nomes e a empurrar-me. - Estremeceu, tocando delicadamente no braço. - Estou cheia de nódoas negras.

    - Suspeito que tenha havido mais do que uma pequena provocação, mas não há desculpa para teres posto as mãos na tua irmã.

    - Não, senhora. - Cade reforçou o que disse abanando firmemente a cabeça e lamentou q,ue uma idiotice pudesse ter chegado a contornos tão implacáveis. - Tem razão. Desculpe.

    - Muito bem. - Margaret fixou o olhar de Faith. - O que é do Cade é para ele usar ou emprestar quando e a quem quiser. E vamos pôr um fim a isto.

    - Só quero sair desta casa por umas horas. - Não conseguiu conter a fúria, e as palavras jorraram-lhe da boca. - Ele podia bem usar a camioneta. Só quer ir para qualquer sítio escuro e sossegado e apalpar a Tory Bodeen.

    - Que bela conversa - murmurou Cade. - Muito simpática.

    - Ora, é verdade. Toda a gente na cidade sabe que vocês andam enrolados um com o outro.

    Margaret deu dois passos em frente antes de recuperar o controle.

    - Vais... Pretendes ir ter com a Victoria Bodeen esta noite?

    - Sim.

    - Desconheces os meus sentimentos em relação a ela?

    - Não, mãe. Não desconheço.

   

    - Obviamente, eles não te interessam. O fato de ela ter participado na morte da tua irmã, o fato de ela recordar constantemente essa perda, não significam nada para ti.

    - Não a culpo pela morte da Hope. Lamento que a mãe o faça e lamento ainda mais que a minha amizade com ela lhe cause dor e sofrimento.

    - Guarda as tuas desculpas - disse Margaret friamente. - As desculpas não passam de capas para atitudes pouco próprias. Podes optar por trazer essa mulher para a tua vida, mas mantém-na fora da minha. Entendido?

    - Sim, senhora. - A voz dele era gelada, num reflexo direto da dela. - Está perfeitamente entendido.

    Sem mais uma palavra, ela virou-se e saiu, em passos lentos e calculados.

    Cade ficou a olhar na direcção em que ela saíra, desejando não ter visto aquele último flash de dor nos olhos dela. Desejando não se sentir responsável por ele. Para se distrair da culpa, lançou a Faith um olhar violento.

    - Belo trabalho, como sempre. Tem uma boa noite.

    Ela fechou os olhos enquanto ele saía com passos furiosos. Tinha um buraco no estômago, que ardia devido à sua própria leviandade. Por um momento, ficou com pena de si própria, sentou-se e balançou-se para a frente e para trás. Depois pôs-se de pé, de um salto, e saiu a correr como uma flecha na direção das escadas. E ouviu a porta da frente bater.

    - Desculpa - murmurou, e sentou-se no patamar. - Não pensei. Não queria que acontecesse nada disto. Não me odeies. - Deixou cair a cabeça nos joelhos. - Já me odeio a mim própria.

   

    - Espero que perdoe o comportamento dos meus filhos, Gerald. - Margaret regressou ao salão, onde o seu velho amigo a esperava.

    Não havia tais comportamentos na casa dele quando as filhas viviam debaixo do seu teto. Mas, pensou, as suas filhas tinham sido criadas para se comportarem como senhoras, em qualquer ocasião.

    Ainda assim, ofereceu a Margaret um sorriso compassivo e afetuoso.

    - Não, Margaret, não tem de se desculpar. Animemo-nos. - Pegou no copo de xerez que ela pousara antes de subir e voltou a oferece-lo.

    Havia música a tocar baixinho. Bach. Uma das preferências de ambos. Ele comprara rosas, como fazia sempre, e Lilah já as pusera na jarra Baccarat, sobre a grande cauda do piano.

    A sala, com as suas poltronas em azul profundo e as suas madeiras antigas e polidas, era perfeita, tranquila, e precisamente como Margaret queria. O piano raramente era tocado, mas mantinha-se afinado. Ela gostaria que as filhas se tivessem dedicado àquele instrumento, mas ficara desiludida.

    Não havia fotografias de família, nesta sala. Todas as recordações tinham sido cuidadosamente selecionadas para que as suas heranças se misturassem perfeitamente com as suas próprias aquisições.

    Não era sítio onde um homem pusesse as botas em cima da mesa, nem onde uma criança espalhasse brinquedos no tapete.

    - Animemo-nos - repetiu ela. - É muito simpático da sua parte, dizer isso. - Aproximou-se da janela e viu o carro de Cade a toda a velocidade pelo caminho. A contrariedade picava-lhe a pele como lã áspera. - Receio bem que se trate de muito mais, e de muito menos, do que animação.

    - Os filhos crescem, Margaret.

    - Alguns.

    Ele não disse nada durante algum tempo. Sabia que o assunto de Hope nunca era fácil para ela. E como preferia as coisas fáceis, ia deixar que as palavras se esvaíssem como se nunca tivessem sido ditas.

    Conhecia-a havia trinta e cinco anos, e a dada altura chegara a cortejá-la. Ela escolhera Jasper Lavelle, que era mais rico e tinha sangue mais azul. Isso não fora um espinho no caminho de Gerald, ou pelo menos ele gostava de pensar isso.

    Nessa altura, quando era um jovem advogado, já tinha ambições. Ele também casara bem, criara duas filhas e era confortavelmente viúvo havia cinco anos.

    Tal como a sua velha amiga, preferia a viuvez ao casamento. Exigia muito menos tempo e energias.

    Era um homem alto e bem constituído, de sessenta anos, com os traços dramáticos decorrentes de umas sobrancelhas enormes e pretas, que se erguiam como penas onduladas no rosto quadrado e digno.

    Fizera da lei a sua vida, com os seus altos e baixos, prosperara e conseguira uma posição respeitável na comunidade.

    Gostava da companhia de Margaret, das conversas que tinham sobre arte e literatura, e costumava acompanhá-la em ocasiões sociais. Nunca tinham trocado mais do que um beijo breve e educado na face.

    No sexo, ele gostava dos favores de jovens prostitutas, que trocavam fantasias sexuais por dinheiro e não tinham nome.

    Era um republicano convicto e um batista devoto. Considerava as suas aventuras sexuais uma espécie de passatempo. Afinal, não praticava golfe.

    - Não sei bem se sou boa companhia esta noite, Gerald.

    Era também uma criatura de hábitos. Era a noite em que costumavam jantar calmamente em Beaux Revés, um jantar a que se seguia café e uns agradáveis trinta minutos nos jardins.

    - Sou um amigo demasiado antigo para se preocupar com isso.

    - Acho que preciso mesmo de um amigo. Estou transtornada, Gerald. Victoria Bodeen. Achei que conseguia lidar com o regresso dela a Progress. Mas fiquei agora a saber que o Cade anda saindo com ela.

    - Ele é um homem adulto, Margaret.

    - É meu filho. - Nessa altura virou-se, o rosto duro como pedra. - Não vou tolerar isto.

    Ele quase suspirou.

    - Parece-me que se insistir no assunto vai dar-lhe demasiada importância, e a ela também.

    - Não tenciono insistir. - Não, ela sabia o que precisava de ser feito, e ia tratar disso. - Ele devia ter casado com a sua Deborah, Gerald.

    Era algo que ambos lamentavam, mais moderadamente no caso dele, o que o fez sorrir tristemente.              

    - Podíamos ter netos comuns.                                          

    - Que idéia - murmurou Margaret, e decidiu beber outro xerez.

   

    Tory estava à espera que ele aparecesse. Já tinha percebido tudo. Precisava sempre de um pouco de tempo e de distância para perceber que Cade a manipulara. Fazia isso muito suavemente, muito dissimuladamente e muito habilidosamente. Mas não deixava de manipulá-la.

    Era dona da sua vida há demasiado tempo para permitir que alguém se sentasse ao volante.

    Ele era um homem simpático, e Tory não podia negar que gostava da companhia dele. Ficou orgulhosa por aquilo soar tão calmo e maduro quando ensaiou ao espelho. Tal como ficou satisfeita com o resto do discurso que tencionava fazer.

    Estava demasiado ocupada a instalar o seu negócio, a estabelecer-se na cidade, a voltar a relacionar-se com a zona, para gastar tempo e esforço numa relação com ele ou com qualquer outra pessoa.

    Claro que se sentia lisonjeada por ele estar interessado nela, mas seria melhor para todos se se afastassem agora. Esperava que continuassem a ser amigos, mas não poderiam ser mais do que isso. Nem agora, nem nunca.

    Passou os dentes pelo lábio inferior. Reacendeu o sabor dele. Tinha jeito para reacender sabores, mesmo quando não queria.

    O sabor quente e doce dos pêssegos atirados ao chão pelo vento, debaixo da velha árvore retorcida junto ao rio, à saída da cidade. As abelhas, bêbadas no sumo fermentado, cobriam a fruta caída e zumbiam agradavelmente.

    Ela não esperava que o sabor dele fosse tão quente e doce, e tão forte.

    Não esperava ter ficado tão perfeitamente ligada a ele naquele momento, como se ele fosse um dos pedaços perdidos do puzzle da sua vida.

    Estava a romantizar uma coisa sem importância, disse a si mesma. Era idiota fingir que não tinha imaginado como seria beijá-lo. Afinal, era humana.

    Era normal.

    Mas quando o imaginara, tudo fora bastante suave, agradável e simples. Na realidade não fora um beijo, fora mais uma amostra. E ela supunha que ele fizera isso de propósito, só para intrigá-la.

    Inteligente da parte dele, decidiu. Ele era um homem inteligente. Mas não ia resultar.

    Estava pronta para ele, agora, e estava decidida. Não havia raiva nem embaraço a toldar-lhe os sentidos. Ela sairia assim que ele estacionasse. Dessa forma, impedi-lo-ia de entrar e de ter oportunidade de voltar a confundir tudo. Faria o seu belo discurso, desejar-lhe-ia tudo de bom e depois voltaria para casa e fecharia a porta.

    E ficaria segura.

    O plano voltou a deixá-la à vontade, com uma sensação de controle. Por isso, quando o ouviu chegar deu um pequeno suspiro de alívio. Tudo estava prestes a voltar a entrar em ordem.

    Depois, saiu e viu a cara dele.

    Estava sentado no bonito conversível, com a massa de cabelos já totalmente despenteada, com as mãos pousadas no volante. Lançou-lhe um sorriso agradável, mas por detrás dele ela viu raiva e frustração. Acima de tudo, viu uma infelicidade amarga.

    Nenhuma manobra que ele pudesse ter arquitetado, nenhum plano que ele pudesse ter feito conseguiria atingir a fraqueza dela com maior eficácia.

    - Essa é uma das coisas que mais gosto em ti, Tory. És despachada. - Saiu do carro e começou a dar a volta para abrir a porta do outro lado.

    Ela não lhe tocou. A ligação tendia a tornar-se demasiado próxima com o contacto físico.

    - Diz-me o que se passa.

    - O que se passa? - Ele olhou para baixo e começou a ceder, mas depois ergueu as defesas. Recuou e voltou ao seu lugar enquanto ela entrava no carro. - Abres a cabeça às pessoas e espreitas lá para dentro?

    A cabeça dela balançou para trás, como se tivesse levado uma pancada. Depois, cruzou as mãos no colo. Era melhor assim. De qualquer modo, teria acabado por acontecer, lembrou a si prórpia. Quanto mais cedo e rápido, melhor.

    - Não. Isso seria má educação. Ele riu e sentou-se ao volante.

    - Ah, estou a ver. Há uma ética no que toca à leitura de pensamentos.

    - Eu não leio pensamentos. - Entrelaçou os dedos com força, em grande tensão, brancos nos pontos de pressão. Soltou um suspiro para aliviar a pressão no peito e olhou em frente. - É mais uma leitura de sentimentos. Aprendi a bloquear isso, porque penses o que pensares não é agradável ter as emoções das outras pessoas a cair-nos em cima. É bastante fácil filtrar isso, mas de vez em quando, se não prestar atenção, há qualquer coisa, principalmente emoções fortes, que consegue passar. Desculpa intrometer-me na tua privacidade.

    Por um momento ele não disse nada, limitou-se a ficar sentado com a cabeça para trás e os olhos fechados.

    - Não, eu é que peço desculpa. Foi horrível da minha parte. Sinto-me horrível, como já percebeste. Acho que estava a precisar de descarregar em alguém e tu foste a escolhida.

    - Compreendo que seja desconfortável estar com alguém em quem não se pode confiar. Alguém que se sente que pode tirar e vai tirar vantagem dos nossos pensamentos e sentimentos e usá-los para controlar-nos ou para dominar a nossa vida. Essa foi uma das razões por que tentei explicar-te que não tenho jeito para relações, por que não quero envolver-me numa.  É perfeitamente  compreensível ter questões e dúvidas, e que essas questões e dúvidas conduzam a ressentimentos e a desconfianças.

    Calou-se e usou o silêncio para recuperar forças para o resto.

    - Isso - disse Cade suavemente - é um surpreendente monte de asneiras. Posso perguntar-te de quem são as palavras que acabaste de pôr na minha boca?

    - Foram as tuas palavras. - Mexeu-se um pouco, usando o seu próprio naco de amargura para enfrentá-lo. - Sou o que sou e não posso mudar isso. Sei como hei de lidar com isso. Não quero nem espero que ninguém fique ao meu lado. Não preciso. Aprendi a aceitar a minha vida tal como ela é e não me importo se tu ou qualquer outra pessoa não a aceitam.

    - É melhor teres cuidado com os buracos, Tory. Estás sentada num cavalo muito alto. - Quando ela pôs a mão na maçaneta da porta, ele ergueu o sobrolho. - Covarde.

    Os dedos dela apertaram a maçaneta e depois soltaram-na.

    - Filho da mãe.

    - Tens razão, foi o que eu fui por ter descarregado em ti um bocado do meu mau humor. Esta noite disseram-me que as desculpas são apenas capas para atitudes pouco próprias, mas, seja como for, desculpa. Mas tu estás a atribuir-me opiniões que eu não exprimi e não tenho. E não te posso exprimi-las, porque ainda não acabei de formá-las. Quando uma coisa é importante, gosto de pensar nela com tempo. E tu me pareces importante.

    Ele inclinou-se na direção dela.  Instintivamente,  ela voltou a aconchegar-se no lugar.

    - Sabes, isso é uma coisa que me irrita até à medula. - Calmamente, ele puxou o cinto de segurança dela e prendeu-o. - E, ao mesmo tempo, é um desafio. Sabes, estou decidido a não deixar de tocar-te, de aproximar-me cada vez mais, até tu deixares de empurrar-me.

    Pôs o motor a trabalhar, pôs o braço em cima do assento, deixou o seu olhar pousar no dela antes de fazer marcha atrás no caminho.

    - Podes achar que é tudo orgulho e ego, não me importo. Fez-se à estrada e acelerou.

    - Nunca bati numa mulher. - Disse aquilo no que se esforçou por ser um tom normal, mas ela ouviu a raiva contida. - E não vou começar por ti. Gostava de pôr-te as mãos em cima. Sei que vou acabar por pôr-te as mãos em cima. Mas não vou magoar-te.

    - Não acho que todos os homens batem em mulheres. - Olhou pela janela, tentando manter a compostura da mesma forma que costumava empilhar tijolos para a sua parede. - Trabalhei esse e vários outros assuntos na terapia.

    - Ótimo - limitou-se ele a dizer. - Então não preciso preocupar-me, não vais pensar que cada gesto meu é uma ameaça para ti. Não me importo de te deixar nervosa, mas importo-me se te deixar assustada.

    - Se eu tivesse medo de ti não estaria aqui. - O vento soprava-lhe no rosto, entre os cabelos. - Não sou ingénua, Cade, nem capacho de ninguém. Já não.

    Ele esperou um pouco.

    - Se fosses, não te quereria aqui.

    Ela virou a cabeça, só um pouco, e observou-o longamente, de perfil.

    - Disseste uma coisa muito inteligente. Talvez a melhor coisa que podia ser dita. Melhor ainda: acredito que a disseste a sério.

    - Sou uma dessas criaturas estranhas que tenta dizer as coisas a sério.

    - Também acredito nisso. - Respirou fundo. - Tinha decidido não vir, esta noite. Ia sair de casa, dizer-te que não vinha, explicar-te como as coisas iam passar a ser. E aqui estou eu.

    - Tiveste pena de mim. - Lançou-lhe um olhar. - Foi o teu primeiro erro.

    Ela soltou uma gargalhada curta.

    - Acho que sim. Onde vamos?

    - A nenhum lugar especial.

    - Muito bem. - Recostou-se, surpreendida com a rapidez e a facilidade com que descontraiu. - É um bom lugar.

    Cade foi até mais longe do que tencionava, escolhendo estradas secundárias ao acaso, mas sempre rumo a este. Em direção ao mar. O Sol mergulhava cada vez mais baixo, atrás deles, lançando raios vermelhos pelo céu que pareciam sangrar até aos campos, entornar-se sobre os pequenos bosques, mergulhar nas curvas serpenteantes do rio.

    Ele deixou-a escolher a música, e embora fosse Mozart a ouvir-se bem alto, em vez do rock que ele teria escolhido, parecia condizer com o crepúsculo.

    Descobriu um pequeno restaurante à beira-mar, bem a sul das multidões que acorriam a Myrtle Beach. Estava suficientemente agradável para ficarem sentados cá fora, a uma pequena mesa onde uma vela baixa e grossa, branca, ardia num globo de vidro e a conversa à volta deles era abafada pelo bater ritmado das ondas.

    Na praia, crianças perseguiam caranguejos, fazendo-os esconder nos seus buracos, ou atiravam migalhas de pão para o ar, para as gaivotas que gritavam. Um grupo de jovens chapinhava, emitindo os guinchos e os gritos a meio caminho entre a infância e as tentativas de chamar a atenção do sexo oposto.

    Num céu ainda azul profundo dos últimos bafejos do dia, piscou a primeira estrela, brilhando como um diamante isolado.

    A tensão e os problemas do dia evadiram-se da mente de Tory.

    Não sabia que tinha fome. O seu apetite nunca era particularmente forte. Mas lançou-se à salada, enquanto ele começava a falar-lhe do seu trabalho.

    - Quando sentires que os olhos estão a começar a fechar-se, manda-me calar.

    - Não me aborreço com essa facilidade. E sei umas coisas sobre algodão biológico. A loja onde eu trabalhava, em Charleston, vendia camisas de algodão biológico. Trazíamo-las da Califórnia. Eram caras, mas vendíamo-las bem.

    - Dá-me o nome da loja. A Algodão Lavelle começou a trabalhar com algodão orgânico o ano passado. Posso garantir que o nosso preço será melhor do que o da Califórnia. Isso faz parte do que ainda não consegui fazer tão bem como gostaria. Competir com os métodos químicos com o produto pronto a ser utilizado. E o produto ganhar vantagem no mercado.

    - O que significa mais lucro.

    - Exatamente. - Pôs manteiga num pãozinho e passou-lhe. - As pessoas dão mais ouvidos ao lucro do que às preocupações ambientais. Posso falar nos resíduos dos pesticidas, nos efeitos que têm na vida selvagem e nas espécies de risco...

    - Espécies de risco?

    - Codornizes e outras aves que nidificam na erva ao longo dos campos. Os caçadores matam as codornizes, comem as codornizes e consomem os pesticidas. E há também os inseticidas. É verdade que matam as pragas, mas também matam os insetos bons, infetam aves, reduzem a cadeia alimentar. Um pinto come um inseto morto ou moribundo que foi pulverizado e esse pinto fica infetado. É um ciclo vicioso que só se quebra quando se tenta outro método.

    Estranho, pensou ela, aperceber-se de que tinha dentro de si a visão que o seu pai tinha da agricultura, em que a natureza era o inimigo a combater dia após dia e o governo o inimigo número dois.

    - Adoras isto. A agricultura.

    - Sim. Porque não haveria de adorar?

    Ela abanou a cabeça.

    - Muitas pessoas ganham a vida a fazer coisas de que não gostam e para as quais não têm verdadeiro talento. A mim, estava reservado trabalhar na fábrica de tintas e ferramentas, depois do liceu. Fiz cursos de gestão em segredo, em vez de rebelar-me contra esses planos. Por isso, acho que sei o que é lutar contra a corrente para se conseguir fazer o que se quer fazer.

    - Como sabias o que querias fazer?

    - Só queria ser inteligente. - Para fugir, pensou ela, mas voltou a centrar a conversa nele. - O método biológico é sensível e, sem dúvida, muito avançado, mas se não usas químicos tens ervas daninhas e doenças e pragas. Tens uma colheita doente.

    - O algodão é cultivado há mais de quatro mil anos. O que achas que as pessoas faziam até há sessenta, setenta anos, antes de começarem a usar aldeído, metilo e trifluralina?

    Ver aquela força nele intrigava-a, interessava-a. Sentir a paixão que vibrava nele e transparecia assim.

    - Tinham escravos. E depois disso a mão-de-obra deixou de poder trabalhar um número de horas obsceno por um salário de escravo. Essa foi uma das razões, caso estejas a interrogar-te sobre isso, que levou o Sul a perder a guerra entre os estados.

    - Podemos falar de história noutra altura. - Inclinou-se para a frente, para esclarecer o seu ponto de vista. - O algodão cultivado biologicamente pode usar e usa mais mão-de-obra, mas também faz uso de recursos naturais. Adubo orgânico, composto, em vez de fertilizantes químicos que podem poluir as águas subterrâneas. Culturas de cobertura, para ajudar a controlar as ervas daninhas e as pragas, e a conservação básica do solo através da rotação. Os insetos bons, como as joaninhas, os louva-a-deus, e outros, são usados para acabar com as pragas do algodão, e trabalhadores, vizinhos, crianças, não são expostos aos resíduos dos pesticidas. Deixamos que as plantas morram naturalmente, em vez de as matarmos com produtos químicos.

    Voltou a sentar-se direito quando as entradas foram servidas, serviu mais vinho, mas estava ligado à corrente.

    - Cumprimos as regras durante o processo de descaroçamento. Limpamos as fibras de quaisquer resíduos, segundo o regulamento federal. Por isso, quando é vendido, é puro, livre de químicos. Nem toda a gente considera isso importante numa camisa, ou nuns calções de montar, mas o algodão, para além de fibra é também sementes.

    E as sementes de algodão entram numa grande quantidade de comidas preparadas. Que quantidade de pesticidas achas que ingeres de cada vez que comes um pacote de batatas fritas?

    - Acho que não quero saber. - Mas lembrou-se do pai, a chegar a casa e a amaldiçoar a terra. Lembrou-se de ver as nuvens de pesticidas serem lançadas sobre as plantas e de como uma parte delas era levada pelo ar, na direção da casa.

    Lembrou-se do cheiro. E do calor no ar.

    - Como te interessaste pelo método orgânico?

    - No primeiro ano da universidade. Comecei a ler sobre o assunto e, bem, para dizer a verdade, havia uma certa rapariga.

    - Ah! - Divertida, Tory cortou um pedaço de truta. - Agora já estou a ver.

    - Chamava-se Lorilinda Dorset, de Mill Valley, Califórnia. Fiquei de língua de fora, a primeira vez que a vi. Uma morena alta e esguia, de calças apertadas.

    Soltou um suspiro, diante da recordação adoçada pela distância.

    - Era membro da PETA, do Greenpeace, da Conservação da Natureza, e sabe Deus que mais. Então, claro, para impressioná-la, fartei-me de ler sobre os direitos dos animais e a agricultura biológica e por aí adiante. Não comi carne durante dois meses.

    Tory franziu a testa ao olhar para o bife que ele tinha no prato.

    - Deve ter sido amor.

    - Foi, durante umas semanas radiosas. Deixei que ela me arrastasse até um seminário sobre agricultura biológica, e ela deixou que eu a tirasse daquelas calças de brim apertadas. - Rasgou um sorriso lento e malicioso. - Claro que a minha necessidade desesperada de comer um hambúrguer acabou por suplantar a minha devoção, e a Lorilinda, agastada, afastou-se do carnívoro.

    - Que outra coisa podia ela fazer?

    - Precisamente. Mas continuei a pensar no que tinha ouvido no seminário e no que tinha lido naqueles livros, e as coisas foram fazendo cada vez mais sentido para mim. Vi como podia fazer-se e porque devia fazer-se assim. Por isso, quando fiquei com Beaux Revés, iniciei este processo, longo e não inteiramente desprovido de conflitos.

    - A Lorilinda ficaria orgulhosa.

    - Não, nunca há-de perdoar-me aquele cheeseburger. Foi uma verdadeira machadada na fé. Depois disso, durante meses e meses não consegui engolir outro, tal era a culpa.

    - Os homens são uns filhos da mãe.

    - Eu sei. - Também sabia que ela conseguia comer uma refeição completa, se ele continuasse a manter-lhe o pensamento ocupado. - Mas, se perdoares esse defeito genético, o que achas de seres o ponto de venda exclusivo em Progress dos produtos da Algodão Biológico Lavelle?

    - Queres que eu venda as tuas camisas na minha loja? - perguntou, surpreendida.

    - Não necessariamente camisas, se elas não se adequarem ao ambiente. Mas que tal roupa de casa? Toalhas de mesa, guardanapos, esse tipo de coisa?

    - Bem... - Apanhada de surpresa, pensou em termos do negócio. - Havia de querer ver amostras, obviamente. Mas como o produto seria fabricado aqui, no estado, deve adequar-se à minha loja. Vamos precisar de discutir custos, quantidades e qualidade e estilo, claro. Não quero produtos fabricados em série. Quero dar a conhecer às pessoas peças únicas e representativas da enorme variedade de artistas e de artesãos que temos na Carolina do Sul.

    Fez uma pausa para beber um gole de vinho e pensar um pouco.

    - Atoalhados de algodão biológico - murmurou. - Dos campos à mesa, tudo dentro de Georgetown County. Pode ser muito interessante.

    - Ótimo. - Ergueu o copo e tocou no dela. - Havemos de encontrar uma maneira de fazer com que funcione para nós dois. Para fazer com que tudo funcione - acrescentou.

   

    Sem dúvida, a noite estava a terminar num tom bem mais agradável do que aquele em que começara. Com a lua cheia por cima das suas cabeças e uma adorável neblina causada pelo vinho, dentro delas. Tory não tinha intenção de beber, raramente o fazia, mas era tão agradável estar ali sentada à beira-mar, a saborear o vinho.

    Tão agradável que bebera dois copos em vez de um, e estava agora tomada por uma agradável sonolência. O carro seguia rapidamente e sem sobressaltos, e o vento que soprava sobre a sua cabeça cheirava ao verão que se avizinhava.

    Fê-la pensar em madressilvas e rosas muito abertas, no cheiro do alcatrão a derreter sob o sol e no zumbido preguiçoso das abelhas cortejando as flores de magnólia no pântano.

    Como desejava que refrescasse um pouco agora, que o Sol já se pusera. Se não aparecesse uma carona depressa, podia guardar o polegar e fazer todo o caminho a pé até à porcaria da praia. Claro que a culpa foi da Mareie, aquela cabra, deixá-la para trás para poder enrolar-se com aquele parvalhão do Tini. Bem, estava se lixando para a Mareie, havia de arranjar carona para Myrtle Beach e divertir-se imenso.

    Tudo o que precisava era a porra de uma carona. Vá lá, querido, pára o carro! Aí está. Maldito calor.

    Tory ergueu-se no assento, com os olhos muito abertos, arquejante como alguém que viesse à tona depois de um mergulho longo e profundo.

    - Ela entrou no carro. Atirou a mala para o assento de trás e entrou no carro.

    - Tory? - Cade encostou à beira da estrada e agarrou-a pelos ombros. - Está tudo bem. Adormeceste por um minuto.

    - Não. - Empurrou-o, sentindo-se mal e desesperada e puxou o cinto de segurança. Havia mãos a apertar-lhe o coração, por isso ele doía-lhe a cada batida. - Não! - Abriu a porta, saiu e começou a correr ao longo do acostamento. - Ela está a apanhar carona para a praia. Ele deu-lhe carona lá atrás, algures lá atrás.

    - Espera. Calma! - Ele conseguiu alcançá-la e teve de agarrá-la com firmeza. - Querida, estás a tremer.

    - Ele levou-a. - Estava tudo a entrar na cabeça dela, imagens e formas, sons e cheiros. A garganta ardia-lhe, irritada como a de alguém que fumara demasiados cigarros. - Ele levou-a, saiu da estrada, saiu e meteu-se por entre as árvores. E bateu-lhe com qualquer coisa. Ela não consegue ver o que é, sente apenas a dor e está tonta. O que se passa? O que é isto? Ela está a empurrá-lo, mas ele está a arrastá-la para fora do carro.

    - Quem?

    Ela abanou a cabeça, tentando encontrar-se a si própria no meio da confusão, da dor. Do terror.

    - Naquela direção. Logo ali, naquela direção.

    - Está bem. - Os olhos dela estavam enormes, desfocados, e tinha a pele fria e úmida sob as mãos dele. - Queres ir até ali?

    - Tenho que ir. Deixa-me.

    - Não. - Ele segurou-a com firmeza. - Não deixo. Vamos andar um bocado. Estou aqui. Podes sentir-me: estou aqui, ao teu lado.

    - Eu não quero isto. Não quero! - Mas começou a andar. Conseguiu dominar o seu instinto de autopreservação. Não lutou enquanto as imagens passavam e se solidificavam.

    As estrelas moviam-se lá em cima, tão brilhantes que cegavam. O calor apertava-a como um punho cerrado.

    - Ela queria ir para a praia. Não conseguia arranjar boleia. Estava zangada com a amiga, Mareie. Uma amiga chamada Mareie, tinham combinado viajar juntas para passarem o fim-de-semana. Agora ela tem que apanhar carona porque não quer deixar aquela cabra estúpida estragar-lhe a viagem. Ele vem na direção dela e ela está feliz. Está cansada e com sede, e ele diz que vai para Myrtle. Fica a menos de uma hora, de carro.

    Tory parou e levantou a mão. Deixou pender a cabeça para trás, mas os olhos continuaram abertos. Escancarados.

    - Ele dá-te uma garrafa. Jack Black. Blackjack. Bebes um gole. Bem longo. Para matar a sede e porque é tão fixe pegar carona bebendo uísque. Deve ter sido com a garrafa que ele te bateu. Deve ter sido, porque lha passaste e estavas a rir e depois qualquer coisa te bateu na cabeça. Meu Deus! Dói!

    Tory vacila e leva a mão à cara. O sabor a sangue enche-lhe a boca.

    - Não. Não! - Cade abraçou-a contra si, surpreendido por ela não lhe escorrer por entre os braços como fumo.

    - Não consigo ver. Não consigo! Não há nada nele. Só vazio. Espera. Espera! - Com as mãos fechadas, arquejante, empurrou-o. Sentia-se nauseada, mas libertou-se. E viu.

    - Ele levou-a para ali. - Começou a balançar-se para trás e para a frente. - Não consigo. Não consigo.

    - Não tens que conseguir. Já passou. Volta para o carro.

    - Ele levou-a para ali. - O sofrimento e a dor sobrepunham-se a tudo o resto. - Está a violá-la. - Agora, fechou os olhos, deháando acontecer, deixando arder. - Lutas por um momento. Ele está a magoar-te e tu estás tão assustada, por isso debates-te. Ele bate-te outra vez, duas vezes, com força, na cara. Ai, dói, dói. Não queres estar aqui. Queres a tua mãe. Gritas enquanto ele grunhe e arfa e acaba. Sentes o cheiro do suor e do sexo dele e do teu próprio sangue, e já não consegues debater-te.

    Tory ergueu as mãos e passou-as pelo rosto. Precisava de sentir os traços da sua própria face, o nariz, a boca. Precisava de se lembrar quem era.

    - Não consigo vê-lo. Está escuro e ele é uma mera coisa. Não há nada nele que me faça sentir que ele é real. Ela também não o vê. Nem mesmo quando ele a estrangula com as mãos. Não demora muito, porque ela está meio inconsciente e quase não oferece resistência. Não esteve com ele mais do que meia hora, e está morta. Estendida no chão, nua, à sombra das árvores. É aí que ele a deixa. Ele... ia a assobiar quando voltou para o carro.

   

    Nessa altura afastou-se de Cade, da forma deliberada que era habitual nela. Ele olhou para o rosto dela, pálido como a lua, com aqueles olhos a desfazerem-se em espirais de fumo.

    - Ela só tinha dezasseis anos. Uma rapariga bonita, com cabelo comprido, louro, e pernas compridas. Chamava-se Alice, mas não gostava do nome, por isso toda a gente lhe chamava Ally.

    A exaustão e a dor venceram-na.

    Cade segurou-a, pegou-lhe ao colo. Estava inerte, como se estivesse morta. Abalado pela súbita imobilidade dela e pela história que ela contara, apressou-se a levá-la dali. Pensou que, esperou que, se a levasse daquele sítio, daquele lugar, ela ficaria melhor.

    Quando ele se inclinou para voltar a pô-la no carro, ela mexeu-se. Quando abriu os olhos, estavam escuros e vítreos.

    - Está tudo bem. Tu estás bem. Vou levar-te a casa.

    - Só preciso de um minuto. - A náusea e o frio tinham voltado. Mas iam passar. O horror demoraria mais tempo. - Desculpa. - Encolheu os ombros, sem forças. - Desculpa.

    - Porquê? - Deu a volta pela frente do carro, até junto do volante. Depois sentou-se. - Não sei o que posso fazer por ti. Deve haver qualquer coisa que eu possa fazer. Vou levar-te a casa e depois vou voltar e... vou encontrá-la.

    Confusa, Tory olhou fixamente para ele.

    - Ela não está ali, agora. Aconteceu há muito tempo. Há anos. Ele começou a falar e depois interrompeu-se. Alice, dissera ela.

    Uma rapariga loura chamada Alice. Aquilo despertou-lhe a memória e uma espécie de náusea no estômago. - Acontece-te sempre assim? Vindo do nada?

    - Às vezes.

    - Faz-te sofrer.

    - Não, esgota-me, deixa-me um bocado enjoada, mas não sofro.

    - Faz-te sofrer - repetiu ele e deu a volta à chave.,

    - Cade. - Hesitante, tocou na mão dele. - Foi... Desculpa falar-te nisto, mas tens que saber. Foi como a Hope. Por isso foi tão forte. Foi como a Hope.

    - Eu sei.

    - Não, não compreendes. O homem que matou aquela pobre rapariga e a deixou ali, no meio das árvores, foi o mesmo homem que matou a Hope.

   

     Progress

    Quando compreenderes o que é a Revolução, chama-lhe Progresso; E quando compreenderes o que é o Progresso, chama-lhe

    Amanhã.

    Victor Hugo

    

    Eu não queria acreditar. Havia - hã - dúzias de razões racionais e lógicas pelas quais Tory está enganada. Pequenas coisas e outras maiores que tornam impossível o que ela diz sobre a adolescente morta à beira da estrada. A rapariga não pode ter sido morta pelo mesmo monstro que matou a minha irmã.

    A pequena Hope, com o seu cabelo esvoaçante e os seus olhos cheios de alegria e de segredos.

    Posso fazer uma lista dessas razões imediatamente, apesar de não a ter conseguido apresentar a Tory, a noite passada. Sei que a decepcionei. Sei, pela maneira como ela olhou para mim, pela maneira como se barricou atrás daquele silêncio dela. Sei que a magoei porque não dei a devida importância ao que ela disse, pela forma como sugeri, não, insisti em que ela não pensasse mais nisso.

    Mas o que ela me disse, o que me deixou ver através dos olhos dela, o horror que reviveu à minha frente e do qual falou mais tarde de modo tão contido, trouxe tudo de volta. Fez-me recuar até àquele verão distante, quando tudo mudou no mundo.

    Talvez ajude mais escrever sobre a Hope do que sobre aquela rapariga desgraçada que nunca conheci.

    Aqui, sentado à escrivaninha do meu pai - porque para toda a gente, incluindo para mim próprio, ela será sempre a escrivaninha do meu pai - recuo os dias e meses e anos até voltar a ter doze anos e ser suficientemente inocente para não dar grande atenção às pessoas que amo, e ver os meus amigos como mais importantes do que a família, em todos os aspectos, até voltar ao tempo em que ainda sonhava com o dia em que teria idade para conduzir, ou para beber, ou para fazer qualquer das coisas mágicas que pertencem ao almejado mundo dos adultos.

    Naquela manhã, tinha feito as minhas tarefas como sempre. O meu pai insistia nas responsabilidades e martelava-me constantemente a cabeça com aquilo que era esperado de mim. Pelo menos era assim antes de termos perdido a Hope. Tinha saído com ele, a meio da manhã, para dar uma volta pelos campos. Lembro-me de estar ali, a olhar para aquele oceano de algodão. O meu pai cultivava sobretudo algodão, mesmo quando muitas das fazendas vizinhas se viraram, para a soja ou para o tomate ou o tabaco. Beaux Revés era algodão, e eu nunca deveria esquecer isso.

    Nunca esqueci.

    E naquele dia foi tão simples ver porquê, a olhar para aquele espaço vasto, para a magia das cápsulas que se abriam em fios. A ver as hastes vergadas sob o peso - algumas delas com o que devia ser uma centena de capsulas, todas abertas como ovos. E naquela época do ano, com os campos tão cheios, todo o ar cheirava a algodão. O cheiro quente do fim do verão.

    A colheita ia ser boa, naquele ano. O algodão espalhar-se-ia pelos campos, seria apanhado, ensacado e processado. Beaux Revés ia continuar, mesmo que aqueles que ali viviam fossem pouco mais do que fantasmas.

    Fiquei livre pouco depois do meio-dia. Embora o meu pai esperasse que eu trabalhasse, aprendesse, suasse, esperava também que eu fosse um rapaz. Era um bom homem, um bom pai, e nos primeiros doze anos da minha vida foi tudo de sólido e quente e bom.

    Já tinha saudades dele muito antes de ele morrer.

    Mas naquele dia, quando ele me dispensou, peguei na minha bicicleta, aerodinâmica e com doze velocidades, que me tinha sido oferecida no Natal, e atravessei a parede de ar espesso e quente até à casa do Wade. Tínhamos uma casa na árvore, nas traseiras do quintal do Wade, no alto de um velho sicómoro. O Dwight e o Wade já lá estavam, bebendo limonada e lendo livros de quadradinhos. Estava demasiado calor para fazer o que quer que fosse, mesmo para nós, com os nossos doze anos.

    Mas a mãe do Wade nunca nos deixava sossegados. Estava sempre a vir cá fora e a perguntar se queríamos isto ou aquilo ou porque não íamos para dentro, tomar uma bela bebida fresca e comer um sanduiche de atum. A Mrs. Boots sempre tivera um coração doce, mas foi uma chata para nós, naquele verão. Estávamos no auge da nossa masculinidade, ou pelo menos era o que achávamos, e era mais do que humilhante alguém oferecer-nos atum e Pepsi, sendo esse alguém uma mãe, de avental impermeável e sorriso indulgente, que nos fazia recuar à infância.

    Fugimos, fomos até ao rio, nadar um pouco. Acho que lançamos insultos mal-educados, mas para nós brilhantes, a propósito do rabo branco e gordo do Dwight. Em resposta, ele comparou as nossas partes masculinas a vários vegetais pouco atraentes. Evidentemente, tais atividades mantiveram-nos em histeria durante uma hora.

    Era muito fácil ter doze anos. Discutíamos assuntos importantes: A Aliança Rebelde regressaria e derrotaria Darth Vader e o Império do Mal? Quem era o mais fixe: o Super-Homem ou o Batman? Como havíamos de convencer os nossos pais a levar-nos a ver o último filme, Sexta-feira, 13? Nunca conseguiríamos enfrentar os nossos colegas na escola se não víssemos o louco Jason a matar a sua quota anual de adolescentes.

    Naquele momento, eram essas as questões vitais das nossas vidas.

    Pouco depois das quatro, após termos comido uns pêssegos meio azedos e picados das vespas e umas pêras ainda verdes, o Dwight teve de ir para casa. A sua tia Charlotte vinha a Lexington, de visita, e ele tinha de lavar-se e estar pronto a tempo para o jantar. Os pais do Dwight eram severos e não lhe poderia passar pela cabeça chegar atrasado.

    Sabíamos que ele ia ser obrigado a usar calções bem vincados e laço, e com a generosidade dos amigos esperamos que ele já não pudesse ouvir-nos para gozar à vontade.

    O Wade e eu fomo-nos embora pouco depois, e separámo-nos no meio do caminho. Ele em direção à cidade e eu a Beaux Revés.

   

    No caminho, passei pela Tory. Ela não tinha bicicleta. Ia para casa e cruzou-se comigo. Pensei que devia ter estado a brincar com a Hope. Tinha os pés descalços e cheios de pó e a camisa ficava-lhe demasiado pequena. Naquela altura não notei nada disso, mas agora lembro-me exatamente do aspecto dela, daquele cabelo castanho-escuro apanhado atrás, daqueles olhos grandes e cinzentos que fixaram os meus enquanto eu passava por ela, sem dizer uma palavra. Eu não podia parar para falar com uma rapariga e continuar a manter a minha dignidade masculina. Mas lembro-me de ter olhado para trás e de a ter visto afastar-se, caminhando com as suas pernas fortes e bronzeadas pelo verão.

    Quando voltei a ver as pernas dela estavam cheios de vergões recentes.

    Quando cheguei, a Hope estava no alpendre, a jogar três-marias. Será que as meninas continuam a jogar três-marias, hoje? A Hope era imbatí-vel. Tentou convencer-me a jogar, até prometeu dar-me vantagem. Coisa que, evidentemente, me insultou para além de todos os limites. Acho que lhe disse que jogar três-marias era para bebês e que eu tinha coisas mais importantes para fazer. O riso dela e o som da bola seguiram-me quando entrei em casa.

    Daria um ano da minha vida para voltar àquele momento e sentar-me no alpendre enquanto ela me ganhava jogando três-marias.

    O serão passou como de costume. A Lilah enxotou-me para cima, para eu tomar banho, porque cheirava a zorrilho do rio.

    

    A mãe estava na saleta da frente. Eu soube, porque a música de que ela gostava estava tocando. Não entrei, porque sabia, por experiência, que ela não gostava muito de rapazes malcheirosos e suados na saleta da frente.

    É engraçado, olhando para trás, vejo o quanto eu, o Wade e o Dwight éramos dominados pelas nossas mães. A do Wade, com as suas mãos sempre em movimento e os seus olhos quentes, a do Dwight, com os seus sacos de bolachas e de doces, e a minha, com as suas idéias rígidas sobre o que era tolerável e o que não era.

    Nunca tinha percebido isto antes, e acho que agora já não importa. Podia ter importado naquela altura, se nos tivéssemos apercebido disso.

    Naquela noite, o que importava era evitar a desaprovação da minha mãe, por isso subi diretamente as escadas. A Faith estava no quarto dela, a vestir uma das Barbies com um vestido janota. Sei, porque me dei ao trabalho de parar à porta dela e espreitar.

    Tomei uma ducha, por ter decidido, pouco antes, que os banhos de imersão eram para as raparigas e para os homens velhos e cheios de rugas. Tenho a certeza de que pus as minhas roupas sujas no cesto, porque a Lilah me teria torcido a orelha se eu as tivesse posto noutro lado qualquer. Vesti roupa lavada, penteei-me, e devo ter demorado alguns minutos a treinar os meus bíceps e a observar os resultados no espelho. Depois, fui para baixo.

    Tivemos galinha para o jantar. Galinha assada, com puré de batata e molho, e ervilhas vindas diretamente da horta. A Faith não gostava de ervilhas e recusou-se a comer as dela, o que até podia ter sido tolerado, mas ela resolveu armar uma cena por causa disso, como fazia frequentemente, e acabou por responder mal à mãe, que a mandou sair da mesa, de castigo.

    Acho que o Chauncy, o fiel cão do pai que morreu no verão seguinte, comeu o resto do jantar dela.

    Depois do jantar, fui dar uma vista de olhos lá fora, pensando numa maneira de convencer o pai a deixar-me construir um forte. Até ao momento, os meus esforços nessa área tinham sido um rotundo fracasso, mas pensei que se lhe dissesse exatamente o sítio certo, de onde não se visse a estrutura, que o pai achava que ia ser uma monstruosidade, poderia ser bem-sucedido.

    Foi durante esse reconhecimento que encontrei a bicicleta da Hope, no sítio onde ela a escondera, atrás das camélias.

    Nunca pensei em denunciá-la. Era assim que funcionávamos enquanto irmãos, a não ser que algum interesse particular falasse mais alto do que a lealdade. Nem sequer fiquei curioso, embora imaginasse que ela estivesse a planejar esgueirar-se para se encontrar com a Tory algures, naquela noite, porque andavam coladas uma à outra naquele verão. Sabia que já não era a primeira vez, e não a censurava por isso. A mãe era muito mais rigorosa com as filhas do que era com o filho. Por isso, não disse nada sobre a bicicleta e concentrei-me no forte.

    Uma palavra minha e os planos dela teriam ficado destruídos. Ela ter-me-ia lançado um dos seus olhares furiosos, e provavelmente ter-se-ia recusado a falar comigo durante um dia, dois, se conseguisse aguentar.

    E estaria viva.

    Em vez disso, voltei para casa quando começou a escurecer e plantei-me diante da televisão, como era meu direito numa noite comprida de verão. Como tinha doze anos, tinha um apetite voraz e acabei por levantar-me do sofá para ir arranjar qualquer coisa para comer. Comi batatas fritas e vi A Balada de Hill Street, e pensei em como seria a vida de um polícia.

    Quando me fui deitar, com o estômago cheio e os olhos cansados, a minha irmã já estava morta.

    Pensava que conseguiria escrever mais, mas não foi capaz. Tinha a intenção de escrever o que sabia sobre o homicídio da sua irmã, e sobre o homicídio de uma rapariga chamada Alice, mas os seus pensamentos tinham-se desviado dos fatos e da lógica e tinham-no deixado mergulhado em dor e recordações.

    Não percebera ainda como ela ficava viva, para ele, se ele escrevesse sobre ela. Como as imagens daquela noite, e as horríveis imagens da manhã seguinte, corriam no seu pensamento como um filme.

    Seria assim também com Tory?, pensou. Como um filme projetado na mente e que não podia ser parado?

    Não, era mais. Saberia ela que quando fora apanhada naquela visão, na noite anterior, falara com a rapariga e não sobre ela? Talvez a rapariga Alice tivesse falado através dela.

    Que tipo de força era necessária para enfrentar isso, para sobreviver a isso e construir uma vida?

    Pegou no que escrevera e começou a metê-lo numa gaveta da velha escrivaninha, na intenção de a trancar em seguida. Mas, em vez disso, dobrou as páginas e fechou-as num envelope.

    Precisava de voltar a ver Tory. Precisava de voltar a falar com ela. Tinha toda a razão naquele primeiro dia em que a vira e lhe dissera que o fantasma da irmã estava ali, no meio deles.

    Não conseguiriam avançar nem recuar até cada um deles conseguir lidar com o que perdera.

    Ouviu o velho relógio do avô dar as horas, com o ecoar das suas batidas secas. Apenas duas. Estaria a pé dali a quatro horas, a vestir-se iluminado pela luz pálida, a comer o pequeno-almoço que Lilah insistiria em preparar, e depois a ir de campo em campo, para observar as colheitas com toda a fé e todo o fatalismo com que todos os agricultores nasciam, à procura de pragas, a observar o céu.

    Apesar, ou talvez por causa de toda a ciência que estudara e implementara, a Beaux Revés de Cade era mais uma plantação do que a fazenda que fora do pai. Cade contratava mais trabalhadores, envolvia mais mão-de-obra do que a geração anterior. Investia mais esforços e mais lucro na colheita, na compressão, no armazenamento e no processamento do que o pai e o avô tinham estado dispostos a fazer. Isso fizera de Beaux Revés uma plantação independente, à maneira antiga, e, ao mesmo tempo, uma espécie de fábrica ativa e diversificada.

    E, ainda assim, com os seus gráficos e a sua ciência e os seus planos cuidadosos, observava o céu e esperava que a natureza colaborasse.

    No fim, pensou enquanto pegava no envelope, tudo se resumia ao destino.

    Apagou a luminária da escrivaninha e usou o luar que se entornava pelas janelas para se guiar enquanto descia a escada curvilínea e saía do escritório. Precisava daquelas quatro horas de sono, disse a si próprio, porque depois de fazer as tarefas da manhã tinha reuniões na fábrica, à tarde. Lembrou-se que tinha de arranjar umas amostras para Tory e escrever uma proposta.

    Se conseguisse fazer tudo isso, podia ir ter com ela na noite seguinte. Quando entrou no quarto, sopesou o envelope que tinha na mão e depois acendeu a luz e meteu-o na pasta que estava junto às suas botas de trabalho.

    Estava a desabotoar a camisa quando uma brisa fraca com cheiro a fumo de cigarro o fez olhar na direção da porta que dava para a varanda. Deu um passo, notou que estavam entreabertas, e através do vidro viu o brilho vermelho de um cigarro aceso.

    - Estava pensando que nunca mais descias. - Faith virou-se. Tinha vestido o roupão que era o seu preferido ultimamente, e com os braços apoiados na pedra encontrava-se numa espécie de pose.

    - Porque não vais fumar na tua janela?

    - Não tenho esta varanda bonita, como o dono da casa. - Aquele fora outro pomo de discórdia. E embora ele achasse que ela teria usado melhor a suíte principal do que ele, não valera a pena tentar contrariar a insistência da mãe em que fosse ele a ficar ali após a morte do pai.

    Ela levantou o cigarro e aspirou-o lentamente.

    - Ainda estás zangado comigo. Não te censuro. O que fiz foi indecente. Quando perco a cabeça, não penso.

    - Se isso é um pedido de desculpa, está bem. Agora, vai-te embora e deixa-me deitar.

    - Ando dormindo com o Wade.

    - Meu Deus! - Cade pressionou os dedos contra os olhos e ficou admirado por eles não lhe entrarem pelo cérebro dentro. - E achas que essa é uma coisa que eu preciso de saber?

    - Descobri um dos teus segredos, por isso estou a dizer-te um dos meus. Ficamos quites.

    - Vou ver se não me esqueço de pôr um anúncio no jornal. O Wade. - Deixou-se cair pesadamente na cadeira de ferro que havia na varanda. - Raios partam!

    - Ora, não fiques assim. Estamos a dar-nos muito bem.

    - Até acabares de mastigá-lo e o cuspires.

    - Não tenciono fazer isso. - Depois, soltou uma gargalhada curta e forçada. - Nunca tenciono. Acontece, simplesmente. - Mandou a chepa do cigarro pela grade da  varanda, sem pensar que a mãe ia encontrá-la e ficar aborrecida. - Ele faz-me sentir bem. Porque tem de haver algum mal nisso?

    - Não tem. O assunto só a ti diz respeito.

    - Assim como o teu e da Tory é vosso. - Aproximou-se dele e acocorou-se, para os olhos de ambos ficarem ao mesmo nível. - Desculpa, Cade. Fui má e desprezível por ter dito o que disse, e gostava de poder voltar atrás.

    - Gostavas sempre.

    - Não, posso dizer sim, mas em metade das vezes não quero dizer nada disso. Mas desta vez é verdade, gostava mesmo. - Como havia mais cansaço do que fúria nos olhos dele, ela estendeu a mão para lhe passar os dedos pelo cabelo.

    - Mas não dês ouvidos à mãe. Ela não tem nada que dizer-te o que deves fazer. Mesmo que, provavelmente, tenha razão.

    Ele sentiu o cheiro ao jasmim da mãe, que enfeitava a noite.

    - Ela não tem razão.

    - Bem, eu sou a última pessoa que devia dar conselhos no que toca a relações românticas...

    - Exatamente.

    Ela ergueu o sobrolho.

    - Ai, essa foi certeira. Mas, como eu ia dizer antes de começar a sangrar, esta família já está estragada sem ser preciso acrescentar um elemento estranho como a Tory Bodeen à mistura.

    - Ela faz parte do que aconteceu naquela noite.

    - Por amor de Deus, esta família já era o que era antes de a Hope ter morrido.

    Ele ficou com um ar tão frustrado e tão cansado depois daquela afirmação, que ela quase recuou e quase disse uma patetice qualquer sobre aquilo tudo. Mas tinha pensado muito desde que Tory chegara à cidade. E estava na altura de dizê-lo.

    - Pensa. - A raiva em relação a ele e a si própria tornou a voz dela aguda como pontas afiadas. - Ficamos entalados no momento em que nascemos. Nós três. E a mãe e o pai, antes de nós. Achas que o casamento deles era alguma história de amor? Podes gostar de ver o lado bom das coisas, mas sabes isso perfeitamente.

    - Faith, eles tinham um bom casamento até...

    - Um bom casamento? - Com um som de aversão, pôs-se de pé e tirou os cigarros do bolso do robe. - Que diabo significa isso? Um bom casamento? Que estavam destinados um ao outro, que era inteligente e conveniente para o herdeiro da plantação maior e mais rica da região casar com a debutante bem de vida? Muito bem, foi um bom casamento. Talvez até sentissem alguma coisa um pelo outro, pelo menos por uns tempos. Cumpriram o seu dever - disse ela amargamente, pegando no isqueiro. - Fizeram-nos.

    - Fizeram o melhor que sabiam - disse Cade, exausto. - Tu nunca quiseste ver isso.

    - Talvez o melhor deles nunca fosse suficientemente bom, pelo menos para mim. E não vejo porque o foi para ti. Que escolha te deram, Cade? Durante toda a vida foste educado para ser o senhor de Beaux Revés, e era isso que se esperava de ti. E se tu quisesses ser encanador, por amor de Deus?

    - Essa foi sempre a ambição secreta da minha vida. Costumo consertar torneiras que pingam só pelo entusiasmo da coisa.

    Ela riu, e a aresta mais viva da sua fúria suavizou-se.

    - Sabes muito bem o que quero dizer. Podias ter querido ser engenheiro, ou escritor, ou médico, ou qualquer outra coisa, mas não te foi dada hipótese de escolha. Eras o filho mais velho, o único filho, e o teu caminho estava traçado.

    - Tens razão. E não sei o que podia ter acontecido se eu tivesse querido ser uma dessas coisas. Mas, Faith, a questão é que eu não quis.

    - Bem, como poderias ter querido, a crescer e a ouvir «Quando o Cade estiver à frente de Beaux Revés» e «Quando for o Cade a mandar»? Nunca tiveste hipótese de ser qualquer outra coisa, nunca disseste «Vou tocar guitarra numa banda de rock-and-rolh.

    Desta vez ele riu e ela suspirou e voltou a encostar-se ao gradeamento. Percebeu porque vinha tantas vezes ao quarto dele, porque procurava tantas vezes a sua companhia. A Cade podia dizer aquilo que precisava de dizer. Ele deixava-a. Ele ouvia-a.

    - Cade, não vês? Eles fizeram de nós o que somos, e talvez tu tenhas conseguido ser o que querias, no meio de tudo isto. Ainda bem para ti, e digo isto com sinceridade.

    - Eu sei que sim.

    - Mas isso não significa que as coisas estejam certas. De ti esperava-se que fosses inteligente, soubesses coisas, descobrisses coisas. E enquanto tu andavas a aprender o teu ofício, diziam-me para me comportar bem, para falar em tom baixo e para não correr pela casa.

    - Se te serve de consolo, bem podes dizer que raramente ouviste.

    - Talvez tenha ouvido - murmurou ela. - Talvez tivesse ouvido, se não tivesse percebido que esta casa era o lugar de treino para uma boa esposa, um bom casamento, tal como aconteceu com a mãe antes de mim. Nunca ninguém me perguntou se eu queria mais alguma coisa, outra coisa, e quando eu questionava mandavam-me calar. «Deixa o teu pai preocupar-se com isso, ou o teu irmão. Pratica piano, Faith. Lê um bom livro, para poderes discuti-lo de forma inteligente. Mas não demasiado inteligente. Não vá algum homem pensar que és mais inteligente do que ele. Quando casares, é teu dever construir um lar agradável.»

    Olhou fixamente para a ponta do cigarro.

    - Um lar agradável. Isso era supostamente a soma de todas as minhas ambições, segundo as regras dos Lavelle. Por isso, claro que sendo como sou decidi fazer exatamente o contrário. Não ia me deixar descobrir aos trinta anos que era uma mulher seca e reprimida. Nem pensar! Quis ter a certeza de que isso não ia acontecer. Fugi com o primeiro rapaz de conversa mole e olhos vivos que me pediu, um que era tudo o que eu não devia querer. Casada e divorciada antes dos vinte anos.

    - Isso deu-lhes uma lição, não foi? - murmurou Cade.

    - Sim, deu. Assim como deu a minha investida seguinte no casamento e no divórcio. Afinal, fora exatamente para o casamento que me tinham educado. Não o gênero de casamento da mãe. Recusei-me e paguei bem por isso. E aqui estou eu, vinte e seis anos e dois pontos contra mim. E nenhum outro lugar para ir, senão este.

    - Aqui estás tu - comentou Cade. - Vinte e seis anos, bonita, inteligente e com experiência suficiente para não repetir os mesmos erros. Nunca pediste nada da fazenda, nem da fábrica. Se quiseres aprender, se quiseres trabalhar...

    O olhar que ela lhe lançou deteve as palavras. Era tão disfarçadamente indulgente.

    - És realmente demasiado bom para nós. Sabe Deus como consegues isso. É demasiado tarde, Cade. Sou um produto da minha educação e da minha própria rebeldia contra ela. Sou preguiçosa e gosto. Um dia destes vou encontrar um velho rico e pateta e convencê-lo a casar comigo. Vou tratar bem dele, claro, e gastar-lhe o dinheiro como água. Talvez até lhe seja fiel. Fui fiel aos outros, e vê do que me valeu. Depois, com sorte e com o tempo, vou ser uma viúva rica, o que vai assentar-me que nem uma luva, acho eu.

    Da mesma maneira que assenta à mãe, pensou amargamente. Amargamente.

    - És mais do que achas que és, Faith. Muito mais.

    - Não, doce, parece-me é que sou muito menos. Talvez tivesse sido diferente, apenas um pouco diferente, se a Hope não tivesse morrido. Sabes, ela nem sequer teve oportunidade de viver.

    - Isso não é culpa de ninguém, a não ser do filho da mãe que a matou.

    - Achas que não? - disse Faith calmamente. - Pergunto-me: teria ela saído naquela noite, escapado para ter a sua aventura com a Tory, se não se sentisse tão sufocada aqui dentro como eu? Teria saído por aquela janela se soubesse que era livre de fazer o que entendesse, com quem entendesse, na manhã seguinte? Eu conhecia-a, melhor do que qualquer outra pessoa nesta casa. As gêmeas são assim. Ela teria feito qualquer coisa da vida dela, Cade, porque teria escapado lentamente às grades. Mas não chegou a ter hipótese. E quando morreu, a ilusão de equilíbrio nesta casa foi com ela. Ela era a mais amada, sabes disso.

    Faith pressionou os lábios um contra o outro e atirou o cigarro por cima do gradeamento.

    - Mais do que tu ou eu. Não sei quantas vezes depois, quando um deles olhava para mim, para mim que tenho um rosto igual ao dela, eu vi nos olhos deles o que eles estavam a pensar. Porque não tinha sido eu a ir àquele pântano em vez da Hope.

    - Não. - Ele levantou-se. - Isso não é verdade. Nunca ninguém pensou isso.

    - Eu pensei. E foi isso que senti da parte deles. E eu recordava-Ihes constantemente que ela tinha morrido. E não devia ser perdoada por isso.

    - Não. - Ele tocou-lhe no rosto e viu a mulher e a criança que ela fora. - Que ela era.

    - Mas eu não podia ser ela, Cade. - As lágrimas que lhe enchiam os olhos brilhavam à luz difusa, tornando-as, pensou ele, brutalmente vivas. - Ela era algo que eles partilhavam como não podiam partilhar mais nada nem mais ninguém. Mas não conseguiram partilhar a perda.

    - Não, não conseguiram.

    - Por isso, o pai construiu este altar para ela e encontrou alívio na cama de outra mulher. E a mãe tornou-se mais fria e mais dura. Tu e eu limitamo-nos a seguir os caminhos para os quais já estávamos direcionados. E aqui estamos, a meio da noite, sem ninguém que nos pertença. E ainda não temos ninguém que faça de nós os mais amados.

    Doía ouvir aquilo, e saber que era verdade.

    - Não temos que ficar assim.

    - Cade, nós estamos assim. - Ela encostou-se a ele e pousou a cabeça quando ele a rodeou com os braços. - Nenhum de nós amou ninguém, pelo menos o suficiente para recuperar esse equilíbrio. Talvez amássemos a Hope o suficiente, talvez mesmo nessa altura já soubéssemos que era ela que mantinha a coesão.

    - Não podemos mudar o que aconteceu, nada do que aconteceu. Apenas o que fazemos com isso, agora.

    - É, não é? E eu não quero fazer nada sobre nada. Odeio a Tory Bodeen por ter voltado aqui, por me fazer lembrar da Hope, sentir saudades dela e voltar a sofrer por ela.

    - Ela não tem culpa, Faith.

    - Talvez não. - Fechou os olhos. - Mas eu tenho de culpar alguém.

    

   

    O assunto tinha de ser resolvido, o mais rapidamente e o mais eficazmente possível. O dinheiro, como Margaret sabia, apelava a um certo tipo de pessoas. Comprava o silêncio delas, a sua lealdade e aquilo que passava por ser a sua honra.

    Vestiu-se cuidadosamente para o encontro, mas afinal vestia-se sempre cuidadosamente. Usava um traje azul-marinho, de corte impecável, e ao pescoço o colar de pérolas da avó, de uma única volta. Sentara-se ao seu toucador, como fazia todas as manhãs, não tanto para disfarçar os sinais da idade, pois considerava a idade uma vantagem, mas para usá-los para mostrar o seu caráter e o seu regulamento.

    Caráter e regulamento eram a espada e o escudo.

    Saiu de casa às oito e cinquenta em ponto, dizendo a Lilah que tinha um encontro, cedo, e que depois ia almoçar em Charleston. Estaria de volta às três e meia.

    Chegaria à hora marcada, é claro.

    Margaret calculou que o assunto que tinha que tratar antes de se dirigir para sul não demoraria mais de trinta minutos, mas pensou em quarenta e cinco, o que ainda lhe daria tempo para tratar da sua curta lista de compras antes do almoço.

    Podia ter contratado um motorista, ou até mantido um no pessoal. Podia ter deixado as compras para uma empregada. Eram caprichos e, por conseguinte, fraquezas que não podia permitir.

    Na sua opinião, a dona de Beaux Revés devia ser vista na cidade, fazer as compras em determinadas lojas e manter uma relação adequada com os negociantes e os membros certos do poder local.

    Esta responsabilidade cívica nunca deveria ser descurada por conveniência.

   

    Margaret fazia mais do que passar cheques generosos às suas instituições de caridade selecionadas. Tinha posições em comitês. O instituto de arte local e a sociedade histórica podiam ser interesses pessoais, mas essa tendência não tornava menos válidos o tempo, a energia e os fundos que canalizava para eles.

    Em mais de trinta e dois anos como dona de Beaux Revés, nunca faltara aos seus deveres. E não tencionava faltar hoje.

    Não vacilou quando passou pelas árvores cobertas de musgo que marcavam a entrada do pântano, nem abrandou ou acelerou. Não notou que as tábuas da pequena ponte tinham sido substituídas e que o sumagre estava cortado.

    Passou com firmeza pelo local da morte da filha. Se sentiu alguma coisa, o seu rosto não o revelou.

    Como não revelara no dia em que aquela criança fora sepultada, quando o seu coração estava dilacerado e a sangrar.

    O rosto manteve a compostura enquanto ela virava para o caminho estreito que conduzia à Casa do Pântano. Estacionou ao lado da station wagon de Tory e pegou na carteira. Não deu um último olhar a si própria no retrovisor. Isso teria sido vaidade e teria sido fraqueza. Saiu do carro, fechou a porta e trancou-a.

    Havia dezesseis anos que não ia ao pântano. Sabia que tinham sido feitas mudanças, mudanças que Cade encomendara e pagara, ignorando o seu silêncio de desaprovação. Em sua opinião, tinta fresca e arbustos floridos não mudavam o que estava feito.

    Uma cabana. Um pardieiro. Estaria melhor arrasado por um bulldozer do que habitado. A certa altura, no meio da sua dor, quisera queimá-lo, deitar fogo ao pântano, ver arder tudo num inferno?

    Mas isso, claro, era uma loucura. E ela não era uma mulher dada a loucuras.

    Era propriedade dos Lavelle e, apesar de tudo, devia ser mantido e passado à geração seguinte.

    Subiu os degraus, ignorando o encanto da floreira comprida, de barro, cheia de flores pendentes e de heras, e bateu bruscamente na madeira da porta de tela.

    Lá dentro, Tory interrompeu-se quando se preparava para pegar numa chávena. Estava atrasada, mas não estava muito preocupada com isso. Estava cansada até à medula, adormecera tarde e ainda tinha de se vestir. Estava a tentar compor para si própria um sermão sobre responsabilidade, admoestar-se por ceder a pequenas veleidades. Esperava que o café conseguisse fazê-la regressar à vida, para poder entusiasmar-se para ir à loja e acabar os preparativos para a abertura.

    A interrupção não era apenas mal-vinda, era quase intolerável. Não havia ninguém que quisesse ver, nem quaisquer palavras que quisesse trocar. Queria, acima de tudo, voltar para a cama e conseguir o sono tranquilo e sem sonhos que lhe escapara durante a noite.

    Mas foi atender, porque ignorar que alguém estava batendo à porta seria fraqueza. Pelo menos isso Margaret teria compreendido.

    Diante da mãe de Hope, Tory sentiu-se imediatamente culpada, exausta e embaraçada.

    - Mistress Lavelle.

    - Victoria. - Margaret observou, com o seu olhar gelado, os pés descalços de Tory, o robe enrodilhado e o cabelo em desalinho. Esta preguiçosa, disse a si própria com uma satisfação gélida, não era nem mais nem menos do que ela esperara de uma Bodeen. - Peço desculpa. Pensei que já estaria levantada às nove horas, se preparando para trabalhar.

    - Sim, sim, já devia estar. - Tristemente consciente do estado em que estava, Tory puxou pelo cinto do robe. - Eu estava... Desculpe, mas adormeci.

    - Preciso de uns momentos do seu tempo. Será que posso entrar?

    - Sim. Claro. - Com toda a sua etiqueta, tão cuidadosamente aprendida, absolutamente incapaz, Tory lutou desajeitadamente com a porta de tela. - Desculpe, a casa não está muito mais apresentável do que eu.

    Havia encontrado uma cadeira de que gostara, um cadeirão estofado em azul desbotado. Isso e a mesinha que tinha pensado em restaurar constituíam o total da sua mobília de sala.

    Não havia tapete, nem cortinas, nem luminária. Também não havia sujidade, nem pó, mas Tory recuou como se estivesse a convidar uma rainha para um abrigo.

    A sua voz ecoou, desconfortável, na sala quase vazia, enquanto Margaret permanecia de pé, fazendo uma avaliação silenciosa e arrasadora.

    - Tenho estado concentrada na preparação da minha loja e não...

    Tory deu por si a torcer as mãos e, deliberadamente, desenlaçou os dedos. Raios, já não tinha oito anos, não era uma criança mortificada e assustada diante da desaprovação régia da mãe de uma amiga.

    - Acabei de fazer café - disse ela, rigidamente delicada. - Quer?

    - Há algum lugar onde possa sentar-me?

    - Sim. Parece que vivo sobretudo na cozinha e no quarto, e é assim que vai ser até ter o meu negócio montado e a correr bem. - Estás a dizer tolices, disse Tory a si própria enquanto mostrava o caminho a Margaret. Pára de dizer tolices. Não tens razões para te desculpares.

    Tinha todas as razões para se desculpar.

    - Por favor, sente-se.

    Pelo menos comprara uma mesa e cadeiras sólidas para a cozinha, pensou. E a cozinha estava limpa, quase alegre com as pequenas ervas aromáticas que tinha em vasos no parapeito e, em cima da mesa, a tigela escura e brilhante que trouxera da sua própria loja.

    Sentiu-se melhor servindo o café, tirando o açucareiro do armário, mas quando abriu a geladeira a mortificação fez-lhe subir o rubor às faces.

    - Lamento, mas não tenho nata. Nem leite.

    - Assim serve. - Margaret afastou a chávena uns escassos centímetros. Uma bofetada sutil e intencional. - Não se quer sentar, por favor? - Margaret deixou o silêncio pairar por um momento. Conhecia o valor dos silêncios e do tempo certo.

    Quando Tory se sentou, Margaret cruzou as mãos na beira da mesa e, com um olhar suave e direto, começou.

    - Chegou ao meu conhecimento que te envolveste com o meu filho. - Outro momento de silêncio, enquanto via a surpresa aflorar o rosto de Tory. - Numa cidade pequena, os mexericos são tão indesejáveis como inevitáveis.

    - Mistress Lavelle...                                                     

    - Por favor. - Margaret interrompeu-a, erguendo um dedo. - Estiveste fora durante vários anos. Embora tenhas relações familiares em Progress, és, virtualmente, uma estrangeira. Uma estranha. Virtualmente - repetiu Margaret. - Mas não inteiramente. Seja por que motivo, decidiste voltar, estabelecer aqui um negócio.

    - Está aqui para saber das minhas razões, Mistress Lavelle?

    - Não têm qualquer interesse para mim. Vou ser franca e dizer-te que não concordei com o fato de o meu filho te ter alugado um espaço para o negócio, nem esta casa. No entanto, o Cade é o chefe da família e, como tal, as decisões de negócios cabem-lhe apenas a ele. Quando essas decisões, e os resultados delas, afetam a posição da nossa família, o assunto é diferente.

    Quanto mais Margaret falava naquele tom suave e implacável, mais fácil era para Tory acalmar-se. O seu estômago continuava aos saltos, mas quando falou a sua voz foi igualmente suave e igualmente implacável.

    - E, Mistress Lavelle, será que o meu negócio e o meu local de residência afetam a posição da sua família?

    - Só isso já teria sido difícil de tolerar. As circunstâncias são inconvenientes, como tenho a certeza de que muito bem sabe. Mas este elemento pessoal não é, de forma alguma, aceitável.

    - Portanto, embora tolere, por agora, a minha associação com a sua família em termos de negócio, está a pedir-me que não veja o Cade de uma forma pessoal. Correto?

    - Sim. - Quem era esta mulher de olhos frios, que permanecia tão calma, tão controlada?, perguntou-se Margaret. Onde estava a criança esquelética que aparecia e desaparecia repentinamente nas sombras?

    - Isso é problemático, dado que ele é o senhorio, quer da minha casa, quer da minha loja, e parece levar as suas responsabilidades bastante a sério.

    - Estou preparada para compensar-te pelo tempo e pelo esforço que terás de investir para te mudares. Talvez voltares a Charleston, ou a Florence, onde tens família.

    - Compensar-me? Estou a ver. - Com uma calma de morte, Tory pegou na sua chávena de café. - Seria indelicado da minha parte perguntar-lhe que tipo de compensação tem em mente? - Sorriu um pouco e viu o maxilar de Mafgaret retesar-se como as cordas de um arco. - Afinal, sou uma mulher de negócios.

    - Toda a situação é indelicada, e deplorável para mim. Não vejo alternativa senão descer ao teu nível, para preservar a minha família e a nossa reputação. - Abriu a carteira que tinha no colo. - Estou disposta a passar-te um cheque de cinquenta mil dólares, se concordares em cortar relações com o Cade e com Progress. Dou-te metade dessa quantia hoje, e o resto ser-te-á enviado para o local onde te instalares. Dou-te duas semanas para saíres daqui.

    Tory não disse nada. Também conhecia a arma do silêncio.

    - Essa quantia - continuou Margaret, com uma voz mais cortante - vai permitir-te viver de forma bastante confortável durante a tua transição.

    - Oh, sem dúvida. - Tory bebeu mais um gole de café e depois pousou cuidadosamente a chávena no pires. - Mas tenho uma pergunta. O que a leva a pensar, Mistress Lavelle, que eu possa estar de qualquer forma receptiva ao insulto de um suborno?

    - Não finjas ter uma sensibilidade que não possuis. Eu te conheço - disse Margaret, inclinando-se para a frente. - Sei de onde vens e de quem vens. Podes pensar que consegues esconder-te atrás de uns modos calmos, atrás da máscara de uma falsa respeitabilidade. Mas eu te conheço.

    - Pensa que me conhece. Mas juro-lhe que não me sinto nada calma nem respeitável, neste momento.

    Foi a compostura de Margaret que vacilou, que teve de ser recuperada, enrolada como um novelo de lã.

    - Os teus pais não prestavam, e deixavam-te à solta como um gato, a cirandar na rua para desencaminhares a minha filha. Para a afastares da família dela e, finalmente, para a levares à morte. Custaste-me uma filha e não vais custar-me outro. Aceita o meu dinheiro, Victoria. Tal como fez o teu pai.

    Estava profundamente abalada, até ao coração, mas aguentou-se.

    - Que quer dizer, como fez o meu pai?

    - Para eles, só foram necessários cinco mil. Cinco mil para te levarem da minha vista. O meu marido não quis mandá-los embora, embora eu lhe implorasse que o fizesse.

    Os lábios tremiam-lhe, mas depois recuperaram a firmeza. Fora a primeira e a última vez em que lhe implorara alguma coisa. Em que implorara alguma coisa a alguém.

    - Acabei por ter que ser eu a resolver o assunto. Como agora. Vai-te embora e leva a vida que devias ter perdido naquela noite em vez dela, e vai vivê-la noutro lado qualquer. E afasta-te do meu filho.

    - Pagou-lhe para ele se ir embora. Cinco mil - disse Tory. - Devia ter sido muito dinheiro para nós. Porque será que nunca o vimos? O que terá ele feito com ele? Bem, não interessa. Lamento desapontá-la, Mistress Lavelle, mas não sou o meu pai. Nada do que ele me fez pode fazer-me gostar dele, e o seu dinheiro não vai mudar isso. Vou ficar, porque preciso ficar. Seria mais fácil não ficar. A senhora não compreende, mas seria mais fácil. Quanto a Cade...

    Recordou-se de como ele ficara distante, tão longe, depois do episódio da noite anterior.

    - Não há tanta coisa entre nós como parece pensar. Ele tem sido simpático para mim, nada mais, porque ele é um homem bom. Não tenciono pagar essa simpatia quebrando uma amizade, ou contando-lhe esta conversa.

    - Se fores contra os meus desejos, dou cabo de ti. Vais perder tudo, como já perdeste antes. Quando mataste aquela criança em Nova Iorque.

    Tory ficou branca e, pela primeira vez, as mãos tremeram-lhe.

    - Eu não matei Jonah Mansfield. - Sentiu dificuldade em respirar e soltou uma espécie de suspiro quebrado. - Só não consegui salvá-lo.

    Ali estava o ponto fraco. E Margaret mergulhou os dedos nele.

    - A família achou que eras responsável, e a polícia. E a imprensa. Uma segunda criança morta por tua causa. Se ficares aqui, haverá falatório sobre isso. Sobre o papel que desempenhaste. Não vai ser bom.

    Que louca fora, pensou Tory, ao achar que ninguém a ligaria à mulher que ela fora em Nova Iorque. À vida que ela construíra e destruíra lá.

    Não era possível fazer nada para mudar isso. A única coisa a fazer era enfrentá-lo.

    - Mistress Lavelle, vivi com coisas pouco boas a minha vida inteira. Mas aprendi que não tenho que tolerar o que não quero, na minha própria casa. - Tory pôs-se de pé. - Vai ter que sair agora.

    - Não vou voltar a fazer esta oferta.

    - Não, acho que não. Acompanho-a à porta.

    De lábios apertados, Margaret levantou-se e pegou na carteira.

    - Eu sei o caminho.

    Tory esperou até que a distância da sala as separasse.

    - Mistress Lavelle - disse, calmamente. - O Cade vale muito mais do que a senhora acha. E a Hope também valia.

    Rígida de dor e de fúria, Margaret agarrou a maçaneta da porta.

    - Atreves-te a falar comigo sobre os meus filhos?

    - Sim - murmurou Tory quando a porta bateu e ela ficou sozinha na casa. - Atrevo.

   

    Trancou a porta. O clique funcionou como um símbolo. Nada que ela não quisesse entraria. E nada do que já estava lá dentro a magoaria, decidiu. Foi até ao banheiro e despiu-se, impaciente por ver-se livre das roupas com que dormira. Pôs a água quente a correr, quase demasiado quente para conseguir suportá-la, e meteu-se naquele calor e naquele vapor imensos.

    Ali, permitiu-se chorar. Não era pena de si própria, pensou. Só que enquanto a água lhe batia na pele e a fazia sentir limpa outra vez, as lágrimas lavavam a amargura que tinha dentro de si.

    Recordações de outra criança morta e da sua impotência.

    Gritou até ficar vazia e a água começar a correr fria. Em seguida, virou o rosto para cima, para o chuveiro gelado, e deixou-se acalmar.

    Depois de se ter secado, usou a toalha para limpar o vapor do espelho. Sem compaixão, sem desculpas, observou o seu rosto. Medo, negação, evasão. Estavam todos ali, admitiu. Sempre tinham estado ali. Regressara e depois se enterrara. Escondera-se no trabalho e na rotina e em pormenores.

    Nem uma única vez se abrira a Hope. Nem uma única vez fora para lá das árvores, visitar o lugar que tinham construído ali. Não fora uma única vez ao túmulo da sua única amiga verdadeira.

    Não enfrentara, uma única vez, a verdadeira razão pela qual estava ali.

    Era diferente de uma fuga?, perguntou-se. Era diferente de aceitar o dinheiro que lhe tinha sido oferecido e fugir para qualquer lado que não fosse este?

    Covarde. Cade chamara-lhe covarde. E tinha razão.

    Voltou a vestir o robe e regressou à cozinha para procurar o número. Marcou e esperou.                                       

    - Bom dia. Biddle, Lawrence e Wheeler.

    - Fala Victoria Bodeen. Miss Lawrence está disponível?

    -Um minuto, Miss Bodeen.

    Não foi preciso mais para ouvir Abigail do outro lado da linha.

    - Tory, que bom ouvir-te. Como estás? Está tudo a correr bem?

    - Sim, obrigada. Vou abrir a loja no sábado.

    - Já? Deves ter andado a trabalhar noite e dia. Bem, lá vou ter que ir visitar-te um destes dias.

    - Espero que sim. Abigail, tenho um favor a pedir-te.  

    - Claro. Devo-te um e bem grande, por causa do anel da minha mãe.                                                                                                                          

    - O quê? Ah, já me tinha esquecido.

    - Duvido que tivesse dado com ele. Quase nunca mexo em papeladas antigas. O que posso fazer por ti, Tory?

    - Eu... Estava a pensar que talvez tenhas algum contacto com a polícia. Alguém que pudesse dar-te informação sobre um caso antigo. Eu não... Acho que compreendes que eu não queira contactar a polícia diretamente.

    - Conheço umas pessoas. Vou fazer o que puder.

    - Foi um homicídio sexual. - Inconscientemente, Tory começou a pressionar e a esfregar a têmpora direita. - Uma rapariga. Dezasseis anos. Chamava-se Alice. O apelido... - Pressionou com mais força. - Não tenho bem a certeza. Lowell ou Powell, acho. Estava de carona na... 513, em direção a este, a caminho de Myrtle Beach. Foi desviada da estrada, levada para as árvores, violada e estrangulada. Com as mãos.

    Soltou um suspiro enorme, aliviando a pressão no peito.

    - Não ouvi nada sobre isso nas notícias.

    - Não, não é recente. Não sei exatamente quando aconteceu. Desculpa. Há dez anos, talvez menos, talvez mais. No verão. Foi durante o verão. Estava muito calor. Mesmo à noite, estava muito calor. Não estou a dar-te grande ajuda, eu sei.

    - Não, já é qualquer coisa. Deixa-me ver o que consigo saber.

    - Obrigada. Muito obrigada. Vou estar em casa durante mais um bocado. Vou dar-te o número daqui e o da loja. Tudo o que possas dizer-me, qualquer coisa que seja, ajuda.

    Manteve-se ocupada durante quase cinco horas, ininterruptamente, e Abigail não voltara a telefonar.

    As pessoas paravam junto à vitrine da loja e admiravam o expositor que ela criara com caixas velhas de madeira, panos de limpeza e vistosas peças de cerâmica, vidro feito à mão e ferro. Encheu as prateleiras e os armários, pendurou amuletos e aquarelas.

    Pôs alguns artigos publicitários em cima do balcão, mas depois mudou de idéias e escolheu outros. Desejando que o telefone tocasse, organizou caixas e sacos.

    Quando alguém bateu vigorosamente à porta, quase ficou aliviada. Até ter visto Faith do outro lado do vidro. Será que os Lavelle não podiam deixá-la em paz um único dia?

    - Preciso de um presente - disse Faith, assim que Tory abriu a porta, e teria entrado de imediato se Tory não tivesse bloqueado a entrada.                                                                                 

    - Não está aberta.

    - Ora, que diabo, também não estava aberta ontem, pois não? Só preciso de uma coisa, e de dez minutos. Esqueci-me do aniversário da minha tia Rosie, e ela acabou de telefonar dizendo que vem visitar-nos. Não posso magoá-la, pois não? - Faith tentou um sorriso de súplica. - Ela é meio maluca, e isto pode deixá-la fora de si.

    - Compra qualquer coisa no sábado.

    -Mas ela vem amanhã. E se gostar do presente virá ela própria aqui, no Sábado. A tia Rosie está cheia de dinheiro. Vou comprar uma coisa muito cara.

    - Vê lá se compras mesmo. - Resmungando, Tory deixou-a entrar.               

    - Está bem, dá-me uma ajuda. - Faith entrou de rompante e começou a andar de um lado para o outro.

    - De que é que ela gosta?

    - Ora, gosta de tudo. Eu podia fazer-lhe um chapéu de papel que ela ficava feliz que nem um passarinho. Deus do céu, tens muito mais coisas aqui do que eu imaginava. - Faith estendeu o braço, fazendo tocar um dos amuletos de metal. - Nada prático. Isto é, não quero dar-lhe um conjunto de taças para salada, ou esse tipo de coisa.

    - Tenho umas caixas de jóias que são bonitas.          

    - Caixas de jóias? São um dos apelidos da minha tia.

    - Então, vai gostar da grande. - Interessada em despachar o assunto, Tory escolheu uma grande caixa de vidro biselado. Os painéis estavam cortados em forma de diamante e pintados à mão com pequenas violetas e rosas cor-de-rosa.

    - Toca música, ou qualquer coisa assim?

    - Não.                                                                                                                            

    - Não faz mal. Se tocasse, ela ia pô-la a tocar o dia inteiro e metade da noite, e enlouquecer-nos a todos. Provavelmente, vai enchê-la de botões velhos e parafusos ferrugentos, mas vai adorá-la.

    Faith virou a etiqueta e assobiou.                              

    - Bem, vejo que vou cumprir a minha palavra.

    - Os painéis são cortados e pintados à mão. Não há duas iguais. - Satisfeita, Tory levou a caixa até ao balcão. - Vou embrulhá-la e pôr-lhe um cartão de presente e um laço.

    - Muito generosa. - Faith pegou no talão de cheques. - Parece-me que estás pronta para o negócio. Para quê esperar até sábado?

    - Ainda há uns pormenores a organizar. E sábado já é depois de amanhã.

    - O tempo voa. - Olhou para o total que Tory registrara e passou o chque enquanto ela embrulhava o presente.

    - Escolhe um cartão dali, e escreve o que quiseres. Depois, enfio-o neste cordão.

    - Hummm. - Faith escolheu um com uma pequena rosa no centro, rabiscou uns parabéns e acrescentou beijinhos e abraços a seguir ao nome. - Perfeito. Agora, durante meses, vai me achar a maior.

    Viu Tory atar a caixa com uma fita branca e brilhante, enfiar nela o cartão, depois torcê-la e terminar tudo num elegante laço.

    - Espero que ela goste. - No momento em que lhe entregou a caixa, o telefone tocou. - Dá-me licença.

    - Claro. - Qualquer coisas nos olhos de Tory fez Faith ficar alerta. - Deixa-me só anotar o valor do cheque. Estou sempre a esquecer-me. - O telefone tocou uma segunda vez. - Podes atender. Saio daqui a um segundo.

    Encurralada, Tory pegou no telefone.

    - Boa-tarde, Conforto do Sul.

    - Tory. Desculpa ter demorado tanto tempo a telefonar-te.

    - Não, não faz mal. Obrigada. Conseguiste a informação?

    - Sim, acho que tenho o que procuras.

    - Podes esperar um momento? Acompanho-te à porta, Faith. Com um ligeiro encolher de ombros, Faith pegou na caixa. Mas enquanto saía, perguntou-se quem estaria ao telefone e por que razão o telefonema fizera tremer as mãos ligeiras e habilidosas de Tory.

    - Desculpa, tinha uma pessoa na loja.

    - Não há problema. O nome da vítima é Alice Barbara Powell, sexo feminino, branca. Dezesseis anos. O corpo só foi descoberto cinco dias depois do homicídio. O desaparecimento só foi comunicado ao fim de três dias, porque os pais pensavam que ela estava na praia com amigos. O que restava... bem, Tory, os animais já tinham devorado uma parte. Disseram-me que não foi bonito de se ver.

    - Apanharam-no? - Já sabia a resposta, mas precisava de ouvi-la.

    - Não. O caso continua por resolver, mas não está a ser investigado. Já lá vão dez anos.

    - Foi em que data? A data exata do homicídio.

    - Tenho-a aqui. Só um minuto. Foi em vinte e três de agosto de 1990.

    - Meu Deus! - Um arrepio percorreu-a, até aos ossos, até ao coração.

    - Tory? O que foi? Posso fazer alguma coisa?

    - Neste momento não posso explicar-te. Abigail, preciso perguntar-te se podes voltar a usar o teu contacto. Se há alguma forma de descobrir se houve mais algum crime do gênero nos oito anos anteriores e nos dez anos seguintes. Se consegues saber se houve outras vítimas desse tipo de homicídio nessa data. Ou próximo dessa data, em agosto.                    

    - Está bem, Tory. Vou perguntar. Mas quando eu souber a resposta, vou precisar que me digas porquê.

    - Preciso da resposta primeiro. Desculpa, Abigail, preciso da resposta. Tenho que ir. Desculpa.

    Desligou rapidamente e depois sentou-se no chão. A 23 de agosto de 1990, Hope estava morta havia exatamente oito anos. Teria dezesseis anos naquele verão.

   

    Os vivos traziam flores para os mortos, lírios elegantes ou simples margaridas. Mas as flores morriam rapidamente quando postas sobre a terra. Tory nunca entendera o simbolismo de deixar em cima da campa de alguém que se amava uma coisa que iria murchar e morrer.

    Talvez trouxesse conforto aos que ficavam por cá.

    Não trouxe flores a Hope. Em vez disso, trouxe um dos poucos objectos de valor sentimental que guardava. Dentro do pequeno globo voava um cavalo alado, e quando era agitado brilhavam estrelas prateadas.

    Fora um presente, o último presente de aniversário dado por uma amiga perdida.

    Transportou-o ao longo do campo enorme e irregular onde gerações de Lavelle, gerações de pessoas de Progress, eram deixadas a descansar. Havia lápides, das mais simples, feitas com uma simples pedra, até às elaboradas, como a imagem de um cavalo e do seu cavaleiro em bronze.

    Hope chamava ao cavaleiro Tio Clyde, e era, de fato, a representação de um dos seus antepassados, um oficial de cavalaria que morrera na Guerra Civil, quando o Norte invadiu o Sul.

    Uma vez, Hope desafiara-a a montar atrás do Tio Clyde, no seu belo garanhão. Tory recordava-se de ter subido e de se ter sentado no metal aquecido pelo sol que lhe deixou a pele vermelha, e de se ter perguntado se Deus a fulminaria com um raio para castigá-la por blasfêmia.          

    Não a fulminara e, por um momento, agarrada ao bronze, com o mundo refletido em verdes e castanhos aos seus pés, o sol a bater-lhe na cabeça como um martelo pesado, sentira-se invencível. As torres de Beaux Revés tinham-lhe parecido mais próximas, tangíveis. Gritara a Hope que ela e o cavalo iriam voar até lá e aterrar no torreão mais alto.

    Quase partira o pescoço, ao descer, e tivera sorte por aterrar de bunda e não de cabeça. Mas a nódoa negra com que ficara não fora nada, comparada com aquele momento tão alto em cima do cavalo.

    No seu aniversário seguinte, o oitavo, Hope dera-lhe o globo. Era a única coisa que Tory guardava daquele ano da sua vida.

    Agora, tal como antes, carvalhos vigorosos e magnólias perfumadas guardavam as pedras e os ossos, e ofereciam sombra entrecortada pela luz. Separavam também aquela prova de mortalidade da casa monumental que sobrevivera a tantos donos e ocupantes.

    O caminho desde o cemitério até à casa era agradável. Ela e Hope tinham-no feito vezes sem conta, com bolhas nos pés no verão, e na chuva no inverno. Hope gostava de ver os nomes gravados na pedra, lê-los em voz alta, para dar sorte, dizia.

    Tory aproximou-se da campa e do anjo de mármore que tocava harpa. E disse o nome em voz alta. -Hope Angélica Lavelle. Olá, Hope.

    Ajoelhou-se na erva fofa e apoiou-se nos calcanhares. A brisa era suave e morna, e transportava o perfume doce das pequenas rosas cor-de-rosa que ladeavam o anjo.

    - Desculpa não ter vindo antes. Tenho adiado sempre, mas tenho pensado muito em ti ao longo destes anos. Nunca tive outra amiga como tu, alguém a quem pudesse contar tudo. Tive tanta sorte em ter-te.

   

    Quando fechou os olhos e se abriu às recordações, alguém observava, abrigado pelas árvores. Alguém com os punhos cerrados com força. Alguém que sabia o que era querer dizer o indizível. Viver, ano após ano, com aquele desejo escondido num coração que batia agora, descompassadamente, ao sabor desse desejo e das suas certezas.

    Dezesseis anos e ela estava de volta. Ele esperara e estivera atento, sabendo sempre que havia a hipótese de um dia, e apesar de tudo, ela fechar o círculo e regressar ao sítio onde tudo começara.

    Que belo quadro faziam. Hope e Tory, Tory e Hope. A escuridão e a luz, a estragada com mimos e a vítima de maus tratos. Nada do que ele fizera antes, nada do que fizera depois daquela noite em agosto lhe tinha causado a mesma emoção. Tentara reviver essa emoção; quando a pressão subia demasiado dentro dele, reconstruía essa noite e a sua glória perfeita e inexplicável.

    Nada se lhe assemelhava.

    Agora, era Tory a ameaça. Podia tratar dela rapidamente, facilmente. Mas se o fizesse perderia esta sensação única de viver no limite. Talvez, talvez fosse disto que ele estivera à espera todo este tempo. Que ela regressasse, que ele voltasse a tê-la ali, outra vez.

    Teria de esperar até agosto, se conseguisse. Uma noite quente de agosto, quando tudo estivesse como estava dezoito anos antes.

    Podia ter tratado dela em qualquer altura, em todos estes anos. Acabado com ela. Mas era um homem que acreditava em símbolos, em imagens grandiosas. Tinha que ser aqui. Onde começara, pensou, e observá-la, imaginá-la, levou-o ao clímax, como noutras vezes em que observara Tory secretamente. Hope e Tory. Tory e Hope.

    Onde tudo começara, voltou a pensar. Onde tudo terminaria.

   

    Um arrepio percorreu-a, um dedo gelado desde a nuca até à base da coluna. Olhou nervosamente por cima do ombro, mas achou que era produto da atmosfera e dos seus próprios pensamentos.

    Afinal, estava em propriedade alheia, uma intrusa entre os mortos e amados. A luz estava a desaparecer e grossas nuvens cinzentas rolavam, vindas de este, para cobrir o sol. Para contentamento dos agricultores, ia chover naquela noite.

    E ela não ia ficar ali por muito mais tempo.

    - Desculpa não ter aparecido, naquela noite. Devia ter ido, mesmo depois da surra. Ele nunca teria pensado que eu o desafiaria e sairia de casa. Ninguém teria ido verificar se eu estava no quarto. Nunca consegui explicar-te como era quando ele me batia com o cinto. A forma como cada vergastada me tirava a coragem, me tirava o meu próprio ser, até não restar nada senão medo e humilhação. Se eu tivesse tido coragem e tivesse saído pela janela, naquela noite, talvez nos tivesse salvo às duas. Nunca vou saber.

    Os pássaros cantavam, trinados e coros. Era um som vivo e insistente que se pensaria estar no lugar errado, mas que, em vez disso, era perfeito. Os pássaros, o zumbido das abelhas esvoaçando preguiçosamente sobre as rosas, e o cheiro forte das próprias rosas.

    Lá em cima, o céu estava a preparar-se, túrgido de nuvens tempestuosas empurradas pelo vento que soprava alto, demasiado alto para refrescar o ar onde ela estava ajoelhada.                             

    Quando respirava era como se respirasse água. Parecia estar a afogar-se.

    Voltou a pegar o globo e fez tremeluzir as estrelas prateadas.

    - Mas voltei. Dê no que der, voltei. E vou fazer tudo o que puder para te compensar. Nunca te disse o que significavas para mim, que só por seres minha amiga despertaste qualquer coisa em mim, e que quando te perdi deixei que essa coisa voltasse a fechar-se. Durante demasiado tempo. Vou tentar libertá-la, ser o que era quando estavas aqui.                                               

    Voltou a olhar para trás, na direção das árvores e das torres de Beaux Revés que se erguiam por detrás delas. Poderiam vê-la dali, da torre de pedra? Estaria alguém de pé, atrás do vidro da janela, a observá-la?                              

    Sentia que sim, como se uns olhos e um pensamento e um coração se escondessem atrás de um vidro, à espreita. À espera.

    Deixa-os observar, pensou. Deixa-os esperar. Voltou a olhar para o anjo, e depois para a pedra.

    - Nunca o encontraram. O homem que te fez isto. Eu vou encontrá-lo, se conseguir.

    Virou o globo e depois colocou-o aos pés do anjo, para o cavalo poder voar enquanto as estrelas brilhavam. E, deixando-o ali, afastou-se.

   

    A chuva caía forte e fresca quando Cade saiu da cidade e tomou o caminho para casa. Era boa aquela chuva, que iria ensopar a terra sem estragar as plantas jovens. Com sorte, a chuva cairia durante quase toda a noite e deixaria os campos molhados e satisfeitos.

    Queria recolher amostras do solo de vários dos seus campos e comparar o sucesso das suas várias plantas de cobertura. Semeara favas no ano anterior, pois forneciam o nitrogênio de que o seu algodão estava tão ávido.

    Recolheria as amostras no dia seguinte, após a chuva, e depois faria a comparação e o estudo dos registros dos últimos quatro anos. As favas tinham-se desenvolvido razoavelmente bem, mas não tinham dado um lucro sólido. Se resolvesse tentar outra vez, teria de ser capaz de justificar a escolha.

    A si próprio, pensou Cade. Mais ninguém prestava atenção aos seus registros. Até Piney, que era leal ao ponto de, pelo menos, fingir interesse, olhara para o lado quando lhe tinham sido mostrados os gráficos.                                                                                     

    Não importava, decidiu Cade. Ninguém tinha de entender os gráficos senão ele próprio.

    E, para ser honesto, tinha de admitir que, de momento, nem ele estava muito interessado neles. Estava a usá-los para manter o pensamento longe de Tory e do que acontecera na noite anterior.

    O melhor que tinha a fazer era lidar com ela e com toda a situação. Pôr tudo em pratos limpos antes de ir para casa e tomar um banho para limpar o dia de trabalho que trazia colado ao corpo.

    As sobrancelhas de Cade uniram-se quando o Mustang vermelho conversível que vinha à sua frente virou para o caminho de acesso à casa de Tory. Virou atrás dele e as sobrancelhas arquearam-se-lhe quando viu J.R sair dele.

    - Então, o que achas? - Com um sorriso de orelha a orelha, J.R. passou a mão pelo para-lamas do carro, enquanto Cade se aproximava.                       

    - É seu?

    - Fui buscá-lo esta manhã. A Boots diz que estou na crise da meia-idade. Cá para mim, a mulher vê talk-shows a mais. Acho que se nos dá prazer e podemos pagar, qual é o problema?

    - É uma beleza, não há dúvida. - Com a chuva a cair, ambos os homens se aproximaram do capô e J.R. abriu-o. Ficaram ali, de mãos nos quadris, a admirar o motor.

    - Bem servido. - Cade fez um gesto de admiração com a cabeça. - Dá quanto?

    - Cá entre nós, fui até aos cento e oitenta e ele continuou suave como vidro polido. E faz as curvas como um campeão. Fui ontem ao Broderick's. Estava na altura de trocar o meu sedan. Estava a pensar em comprar outro quando vi esta beleza. - J.R. sorriu e passou os dedos pelo bigode grosso e prateado. - Amor à primeira vista.

    - Quatro velocidades? - Cade deu a volta para espreitar lá para dentro.

    - Claro! Em quarta, piso a fundo. Já não fazia isto desde, bem, desde que era mais novo do que tu. Só quando carreguei no pedal é que percebi o quanto tinha sentido a falta. Não gostei nada de ter que pôr a capota quando começou a chover.

    - Se anda a carregar no acelerador assim, pode preparar-se para colecionar multas.

    - Vai valer a pena. - J.R. voltou a passar a mão afetuosamente pelo carro, e depois olhou na direção da casa. - Vens ver a Tory?

    - Pensei em vir.

    - Muito bem. Tenho umas novidades para contar, de que ela pode não gostar. É bom que ela tenha um amigo junto quando as contar.

    - Que se passa, que aconteceu?   

    - Não é nada de terrível, Cade, mas vai deixá-la perturbada. Vamos lá dizer tudo de uma vez. - Entrou no alpendre e bateu à porta. - É estranho bater à porta quando se trata de família, mas adquiri o hábito com a minha irmã. Não era de deixar a porta aberta, à espera de companhia. Aqui está a minha rapariga! - Soltou a exclamação sem reservas, quando Tory abriu a porta.

    - Tio Jimmy. Cade. - Embora sentisse o estômago embrulhar-se um pouco quando viu os dois no seu alpendre, afastou-se da porta para deixá-los entrar. - Entrem, saiam da chuva.

    - Encontrei-me agora com o Cade, parece que nos lembramos os dois de passar por aqui. Eu só vim mostrar-te o meu carro novo.

    Como seria de esperar, Tory olhou lá para fora.

    - É um belo... - Ia a dizer brinquedo, mas depois pensou que talvez isso magoasse os sentimentos do tio. - Uma bela máquina.

    - Ronrona como um gatarrão. Levo-te a dar uma volta quando o tempo estiver bom.

    - Gostava muito. - Mas de momento tinha dois homens molhados na sala, uma cadeira e uma dor de cabeça persistente. - Porque não vamos todos até à cozinha? Há onde nos sentarmos e acabei de fazer chá quente, para afastar a umidade.

    - Soa bem, mas não quero molhar a casa toda.

    - Não se preocupe. - Guiou-os até à cozinha, esperando que a aspirina que tomara fizesse efeito sem os dez minutos de sono com que planejara acompanhá-la. A casa cheirava a chuva, à umidade e às profundezas do pântano. Noutra altura, teria gostado disso, mas agora fazia-a sentir sufocada.

    - Tenho umas bolachas. São compradas, mas melhores do que se fosse eu a fazê-las.

    - Não tenhas esse trabalho, minha querida. Não posso demorar-me, tenho de ir para casa. - Mas como ela já estava pondo as bolachas num prato, tirou uma. - A Boots não compra coisas doces. Está de dieta e isso quer dizer que eu também estou.

    - A tia Boots está com um ótimo aspecto. - Tory tirou chávenas do armário. - E o tio também.

     -É isso mesmo que eu lhe digo, mas todas as benditas manhãs amaldiçoa a balança. Parece que um quilo a mais aqui ou ali é o fim do mundo. Até ela estar satisfeita, vou passar a comida de coelho. - Serviu-se de outra bolacha. - Até estou admirado por o meu nariz não começar a tremer.

    Esperou até ela servir o chá e sentar-se.      

    - Ouvi dizer que a tua loja está ficando muito bem. Ainda não tive um minuto para passar lá.

    -  Espero que consiga ir no sábado.     

    - Não perdia isso por nada. - Bebeu um pouco de chá, mexeu-se na cadeira e suspirou. - Tory, não queria nada vir até aqui tão tarde, falar numa coisa que deve te chatear, mas parece que deves saber quanto antes.

    - É mais fácil se me disser do que se trata.

    - Não sei bem se sou capaz. Recebi um telefonema da tua mãe, há pouco. Quando a Boots e eu estávamos a acabar de jantar. Está com problemas ou não me teria telefonado, como acho que sabes. Não nos falamos com regularidade.

    - Está doente?

    - Não, não é bem isso. - Soltou um suspiro. - Tem a ver com o teu pai. Parece que se meteu num sarilho qualquer. Raios partam! - J.R. pousou a chávena no pires e depois olhou Tory nos olhos. - Parece que atacou uma mulher.

    Na sua cabeça, Tory ouviu o tilintar de serpente do grosso cinto de cabedal. As três vergastadas, com força. Os dedos estremeceram-lhe e depois recuperaram a firmeza.

    - Atacou?

    - A tua mãe disse que não passou de um engano, e o que consegui arrancar-lhe foi à força. O que ela me disse foi que uma mulher acusou o teu pai de, bem, de a ter agarrado à força. Tentou, bem... molestá-la.                                 

    - Tentou violar uma mulher?

    Infeliz, J.R. voltou a agitar-se na cadeira.

    - Bem, a Sari não tinha grandes pormenores. Mas seja o que for que tenha acontecido, o Han foi preso. Voltou a beber. A Sarabeth não queria dizer-me isso, mas eu obriguei-a. Ficou em liberdade condicional, obrigado a uma reabilitação. Acho que ele não gostou da idéia, mas não teve escolha.

    Pegou no chá para molhar a garganta seca.     

    - Depois, há umas semanas, fugiu.                   

    - Fugiu?                                                                                                                         

    - Não tem estado em casa. A Sarabeth diz que não o vê há mais de duas semanas e que ele violou a liberdade condicional. Quando o apanharem, vai... vão metê-lo na prisão.

    - Sim, suponho que sim. - De certa forma sempre a surpreendera o fato de ele nunca ter estado atrás das grades.

    Deus sabia o que fazia, pensou.

    - A Sarabeth está desesperada. - Sem pensar, J.R. mergulhou a bolacha no chá, um hábito que a sua mulher detestava. - Está ficando sem dinheiro e está muito preocupada. Vou lá vê-la amanhã e tentar entender as coisas com um pouco mais de clareza.

    - Acha que eu devia ir consigo.

    - Não, querida, isso é contigo. Não há motivo nenhum para eu não tratar disto sozinho.

    - E não há nenhuma razão para ter de tratar. Eu vou consigo.

    - Se é isso que queres, fico satisfeito com a companhia. Estava pensando partir logo de manhã cedo. Estás pronta por volta das sete?

    - Sim, claro.

    - Muito bem. Muito bem. Ótimo. - Um tanto embaraçado agora, levantou-se. - Vamos resolver isto tudo, vais ver. Venho buscar-te de manhã. Não, fica aí sentada a beber o teu chá. - Pôs-lhe a mão na cabeça antes de ela conseguir levantar-se. - Eu saio sozinho.

    - Está embaraçado - murmurou Tory quando ouviu a porta da frente abrir-se. - Por ele, por mim, pela minha mãe. Disse-me enquanto estavas aqui porque deve ter ouvido as intrigas que a Lisy Frazier anda a fazer e pensou que eu estaria melhor contigo do que sozinha.

    Cade manteve o olhar fixo no rosto dela. Ela não mostrara qualquer reação. Achou espantoso o controle dela, embora isso o frustrasse.

    - E ele tem razão?

    - Não sei. Estou mais habituada a estar sozinha. Estás pensando porque não estou particularmente preocupada com o meu pai nem com a minha mãe?

    - Não. Estou a pensar no que terá acontecido entre vocês para não estares particularmente preocupada. Ou para estares tão determinada a não estares preocupada ou a não mostrares que estás preocupada pelo que o J.R. te contou.

    - De que vale ficar preocupada? O que está feito está feito. A minha mãe opta por acreditar que o meu pai não fez aquilo que o levou a ser preso. Mas claro que fez. Se tinha andado a beber, não seria tão cuidadoso a manter a violência dentro de portas.

    - Ele maltratava a tua mãe?

    Um canto da boca de Tory retorceu-se num esboço de sorriso.

    - Quando eu estava presente, não. Não era preciso.

    Cade acenou com a cabeça. Ele sabia. Uma parte dele sabia, desde aquela manhã em que viera a casa dele contar-lhe tudo sobre Hope.

    - Porque tu eras o alvo mais fácil.

    - Há muito tempo que não tem podido pôr-me as mãos em cima. Porque eu decidi que seria assim.

    - Porque estás a culpar-te?

    - Não estou. - Como ele não desviou os olhos, ela fechou os dela. - É o hábito. Sei que ele a usa como saco de boxe desde que me fui embora. Nunca tentei fazer nada para mudar isso. Não que algum deles me deixasse fazer fosse o que fosse, mas nunca tentei. Só o vi duas vezes desde que fiz dezoito anos. Uma vez, quando vivia em Nova Iorque, quando era feliz, tive a sensação de que poderíamos consertar as coisas que estavam mal, pelo menos algumas delas. Nessa altura, viviam num trailer, perto da fronteira da Geórgia. Têm mudado muito de sítio desde que saímos de Progress.

    Ficou assim, sentada, com os olhos fechados, em silêncio, enquanto a chuva caía no telhado.                                          

    - O pai não conseguia manter um trabalho por muito tempo. Alguém lhe arranjava sempre uma chatice, pelo menos era o que ele dizia. Ou havia um emprego melhor noutro lugar. Perdi a conta a todos os lugares diferentes por onde passamos, escolas diferentes, quartos diferentes, rostos diferentes. Nunca fiz amigos a sério, por isso não importava. Estava só à espera de poder ir-me embora. Poupei dinheiro às escondidas e esperei que a lei dissesse que podia sair de casa. Se tivesse saído antes, ele tinha-me feito voltar e pagar por isso.

    - Não podias ter pedido ajuda? A tua avó.

    - Ele ter-lhe-ia feito mal. - Tory abriu os olhos e encontrou os de Cade. - Ele tinha medo dela, tal como tinha medo de mim, e ter-lhe-ia feito qualquer coisa. E a minha mãe teria ficado do lado dele. Sempre ficou. Por isso é que não fui ter com a minha avó, quando me fui embora. Se ele descobrisse, não teria descansado. Não consigo explicar-te, nunca consegui explicar a ninguém como é que um medo consegue viver dentro de nós. A forma como nos diz como pensar e como agir, o que dizer, o que não nos atrevemos a dizer.

    - Acabaste de explicar-me.                                      

    Ela abriu a boca e depois voltou a fechá-la, antes que lhe saísse alguma coisa em que não tivesse pensado bem.

    - Queres mais chá?                                       

    - Senta-te. Eu vou buscar. - Levantou-se antes de ela conseguir e voltou a pôr a chaleira ao lume. - Conta-me. Conta-me o resto.

    - Não lhes disse que ia sair de casa, embora tivesse tudo muito bem planejado sobre o que iria fazer e para onde iria. Fiz a mala e fugi no meio da noite, fui até à cidade, à estação de ônibus, e comprei uma passagem para Nova Iorque. Quando o Sol nasceu, estava a quilômetros de distância, sem intenção de voltar. Mas...

    Libertou os dedos enlaçados e depois voltou a enlaçá-los, como se rezasse.                                                       

    - Fui vê-los, daquela vez - disse, cuidadosamente. - Tinha acabado de fazer vinte anos. Estava fora havia dois. Tinha um emprego, trabalhava numa loja, na baixa da cidade. Uma loja com coisas muito bonitas. Tinha um bom salário e tinha a minha casa para morar. Não era muito maior do que um armário, mas era minha. Entrei de férias e apanhei o ônibus até à fronteira da Geórgia para os ver, bem, em parte talvez fosse para lhes mostrar que tinha feito qualquer coisa da minha pessoa. Tinha estado fora dois anos, e em dois minutos parecia que nunca me tinha ido embora.

    Ele acenou com a cabeça. Ele fora para a universidade, e fizera-se homem nesses quatro anos. E quando regressara o ritmo era o mesmo.

    Mas para ele tinha sido o ritmo certo, apenas adiado. - Nada do que eu fazia - prosseguiu ela -, tivesse feito ou pudesse fazer estava certo. Olha a forma provocante como me vestia. Ele bem sabia o tipo de vida que eu levava no Norte. Achou que eu só tinha ido a casa porque estava grávida de um dos homens com quem andava. Eu ainda era virgem, mas para ele era uma devassa. Naqueles dois anos tinha-me fortalecido um pouco, o suficiente para lhe fazer frente. Pela primeira vez na minha vida ousei fazer-lhe frente. 0 resto da minha semana de férias foi para curar as nódoas negras com que fiquei na cara, pelo menos para poder cobri-las com maquiagem e voltar ao trabalho.                                              

    - Meu Deus, Tory.

    - Só me bateu uma vez. Mas tinha as mãos grandes. Mãos grandes e duras, que se transformavam facilmente em punhos. - Distraidamente, levou a mão à cara e passou-a pela linha do nariz, ligeiramente adunco. - Bateu-me e fez-me cair contra o balcão da cozinha minúscula e suja. Não percebi que tinha o nariz partido. É que a dor era-me tão familiar...

    Sob a mesa, as mãos de Cade fecharam-se em punhos, inúteis e extemporâneos.                                     

    - Quando avançou outra vez na minha direção, agarrei a faca que estava no lava-louça. Uma faca de cozinha grande e com o cabo preto. Nem sequer tinha pensado nisso - disse ela numa voz calma e cuidadosa. - Apareceu  na minha mão. Ele deve ter visto na minha cara que eu a usaria. Que teria adorado usá-la. Saiu do trailer, com a minha mãe a correr atrás dele, a implorar-lhe que não fosse. Ele deu-lhe um safanão como se ela fosse um inseto, atirou-a para a lama, mas mesmo assim ela continuou a chamá-lo. Meu Deus, rastejou atrás dele de gatas. Nunca vou me esquecer disso. Nunca!

    Cade aproximou-se do fogão, da chaleira que estava a apitar, para dar tempo a que Tory se acalmasse. Em silêncio, mediu o chá e deitou a água quente. Voltou a sentar-se e esperou.

    - És bom ouvinte.

    - Termina de contar. Livra-te disso.

    - Está bem. - Calma agora, Tory abriu os olhos. Se nos dele houvesse piedade, talvez as palavras não tivessem saído. Mas o que ela viu foi paciência.

    - Senti pena dela. Estava enojada com a atitude dela. E odiei-a. Naquele momento, acho que a odiei mais do que a ele. Pousei a faca e peguei na minha mala. Nem sequer a desfizera, ainda não tinha passado uma hora. Quando saí, ela ainda estava sentada na lama, a chorar. Mas olhou para mim, e havia tanta raiva nos olhos dela! - Porque é que tiveste de o fazer zangar? Só arranjas problemas. - Estava sentada na lama, com o lábio a sangrar, ou de ele lhe ter batido, ou de o ter mordido quando caiu. Continuei a andar, sem lhe dizer uma palavra. A minha própria mãe, e não falo com ela desde os meus vinte anos.

    - A culpa não é tua.

    - Não, a culpa não é minha. Andei anos fazendo terapia para poder dizer isso com segurança. Nada foi culpa minha. Mas eu fui a causa. Acho que ele me castigava por eu ter nascido. Por ter nascido como era. Até à altura em que mostrei que era diferente, ele deixava-me em paz. Eu era problema da minha mãe, e ele raramente tinha tempo para mais do que uma palmada distraída. Depois disso, acho que não houve uma semana em que eu não tivesse sofrido os abusos dele.

    - Não sexualmente - disse ela quando viu a cara de Cade. - Nunca me pôs as mãos em cima dessa forma. Queria fazê-lo. Meu Deus, ele queria, e isso assustava-o ainda mais, por isso batia-me mais. E sentia um prazer doentio com isso. O sexo e a violência estão misturados dentro dele. Seja o que for que digam que ele fez àquela mulher, ele fez. Não foi violação, ou pelo menos isso não pôde ser provado, ou não o teriam deixado sair em liberdade condicional tão facilmente. Mas a violação é apenas uma forma de um homem magoar e humilhar uma mulher.

    - Eu sei. - Pôs-se de pé para ir buscar a chaleira e servir chá a Tory. - Disseste que os tinhas visto duas vezes.

    - A eles não, a ele. Há três anos ele veio a Charleston. Veio a minha casa. Seguiu-me quando saí do trabalho. Tinha descoberto onde eu trabalhava e seguiu-me até casa. Apanhou-me quando eu estava a sair do carro. Fiquei morta de medo. Já não tinha grande coisa daquele aço que tinha conseguido forjar em Nova Iorque. Disse-me que a minha mãe estava doente e que precisavam de dinheiro. Não acreditei. Ele tinha estado a beber. Pude perceber, pelo cheiro.

    Conseguia cheirá-lo agora, se quisesse. O cheiro pestilento e quente, como um mau sabor no ar. Em vez disso, pegou na chávena e cheirou o chá.

    - Agarrou-me o braço com a mão. Percebi o que ele queria fazer. Torcer-me o braço, partir-me o osso, movido pelas imagens que tinha na cabeça. Passei-lhe um cheque de quinhentos dólares, ali mesmo. Não o deixei entrar em casa. Não ia deixá-lo entrar na minha casa. Disse-lhe que se me magoasse, ou tentasse entrar em casa, se fosse ao sítio onde eu trabalhava, se fizesse qualquer dessas coisas, eu cancelava o cheque e nunca mais haveria dinheiro. Mas se ele pegasse no cheque e se fosse embora e nunca mais voltasse, eu mandava-lhe cem dólares por mês.

    Tory soltou uma pequena gargalhada.                            

    - Ficou tão surpreendido com a idéia que me largou. Sempre gostou de dinheiro. De ter dinheiro. Gostava de pregar sermões sobre os homens ricos de olhos aguçados, mas gostava de ter dinheiro. Entrei em casa e fechei a porta à chave. Passei essa noite sentada ao telefone, com o atiçador da lareira no colo. Mas ele não tentou entrar. Nem naquela altura, nem nunca. Cem dólares por mês compraram-me uma espécie de paz de espírito. Não foi um mau preço a pagar.

    Bebeu um longo gole de chá, que estava demasiado quente e demasiado forte e que, apesar de tudo, lhe deu força. Incapaz de ficar sentada, levantou-se para olhar pela janela, para a chuva que continuava a cair.

    - Pois aqui tens alguns dos segredos feios da família Bodeen.

    - Os Lavelle também têm segredos feios. - Levantou-se para ir ter com ela, e passou a mão pela trança cuidadosamente feita, que lhe caía pela costas. - Ainda tinhas a tua força, Tory. Tinhas aquilo de que precisavas. Ele não conseguiu quebrá-la. Nem sequer conseguiu vergá-la.

    Pousou os lábios de leve no alto da cabeça dela, e ficou contente por ela não se ter afastado como de costume.

    - Já comeste?

    - O quê?                                    

    - Provavelmente não. Senta-te. Vou mexer uns ovos.

    - Do que é que estás a falar?

    - Tenho fome, e se tu não tens devias ter. Vamos comer uns ovos.

    Virou-se e estremeceu quando ele a abraçou. Os olhos encheram-se rapidamente de lágrimas, e ela pestanejou para acabar com elas.

    - Cade, isto não vai a lado nenhum. Tu e eu.

    - Tory. - Ele afagou-lhe a nuca até a cabeça dela pousar no seu ombro. - Já foi a algum lado. Porque não ficamos um pouco onde estamos, a ver se nos agrada?

    Era uma sensação tão boa, de segurança, ser abraçada desta maneira, desta forma fácil e familiar.

    - Não tenho ovos. - Recuou e olhou-o nos olhos. - Vou fazer sopa.                                                       

    Às vezes, a comida era apenas um apoio. E ela estava a usá-la agora, pensou Cade. Talvez ambos estivessem a usá-la, enquanto ela mexia a sopa no fogão e ele reunia o necessário para fazer sanduíches de queijo quente. Uma refeição agradável e caseira numa noite de chuva. Idêntica à que um jovem casal pode partilhar acompanhada de uma conversa ligeira e, para animar, de uma boa garrafa de vinho.

    Apetecia-lhe uma noite como essa, pensou. Em vez disso, ali estava a espalhar manteiga no pão, como Lilah lhe ensinara a fazer, e a tentar encontrar a maneira de penetrar no escudo espinhoso de Tory.

    - Podias comer bem mais do que uma sopa e um sanduíche em Beaux Revés.

    - Podia. - Pôs a frigideira ao lume e ficou próximo de Tory. Próximo, mas não o suficiente para tocar-lhe. - Mas gosto da companhia aqui.                      

    - Então passa-se qualquer coisa contigo.

    Ela disse aquilo tão secamente que ele demorou um minuto a reagir. Com uma gargalhada, colocou os dois sanduíches na frigideira quente.

    - Provavelmente tens razão. Afinal de contas, sou um belo partido. Saudável, não demasiado desagradável à vista, tenho uma casa grande, boas terras e dinheiro suficiente para manter os lobos esfaimados à distância. E, a acrescentar a tudo isto e aos meus encantos sutis, sei fazer uns sanduiches de queijo magníficos.

    - Sendo esse caso, porque é que ainda nenhuma mulher espertalhona te fisgou?

    - Milhares já tentaram.

    - Um bocado escorregadio, não és?

    - Ágil. - Virou os sanduíches. - Gosto de pensar nisso como sendo ágil. Estive noivo, uma vez.

    - Estiveste? - Disse-o distraidamente, enquanto tirava as tigelas do armário, mas ficara de repente mais atenta.

    - Hum-hum. - Conhecia a natureza humana suficientemente bem para ter a certeza de que, se deixasse o assunto no ar por um instante, ela iria rebentar de curiosidade ou render-se.

    Ela aguentou até terem posto os pratos e as tigelas na mesa e se terem sentado.

    - Achas-te muito esperto, não achas?      

    - Querida, um homem na minha posição tem que ser. Estamos bem aqui, com a chuva lá fora e tudo isso, não estamos?

    - Está bem, que diabo! O que aconteceu?

    - A quê? - A forma como os olhos dela se semicerraram deliciou-o. - Ah, à Deborah? A mulher a quem estive a ponto de prometer amar, honrar e acarinhar até à morte e por aí adiante? A filha do juiz Purcell. Deves lembrar do juiz, só que acho que ele ainda não era juiz quando foste embora.                                       

    - Não, não me lembro dele. Duvido que os Bodeen se movessem na esfera social dele.

    - Seja como for, ele tem uma filha adorável, e ela amou-me durante uns tempos, mas depois decidiu que afinal não queria ser mulher de um agricultor. Pelo menos não de um agricultor que trabalhasse mesmo na terra.

    - Lamento.

    - Não foi uma tragédia. Eu não a amava. Gostava bastante dela - disse Cade enquanto provava a sopa. - Era muito bonita, interessante, e... digamos que éramos compatíveis em certas áreas vitais. Exceto numa. Não queríamos a mesma coisa. Descobrimos isso, mutuamente embaraçados, poucos meses depois de estarmos noivos. Rompemos o noivado amigavelmente, o que só mostra que houve um alívio considerável de ambos os lados, e ela foi viver em Londres durante uns meses.

    - Como conseguiste... - Interrompeu-se e encheu a boca de sanduíche.

    - Vá lá, podes perguntar.                                                         

    - Estava só a pensar como conseguiste pedir alguém em casamento e depois deixá-la ir sem nenhum remoque.

    Ele refletiu, mastigando o sanduíche como se estivesse a mastigar também os seus pensamentos.

    - Acho que houve alguns pequenos remoques. Mas a verdade é que, visto à distância, eu tinha vinte e cinco anos e havia um pouco de pressão por parte da família. A minha mãe e o juiz são bons amigos, e ele era também amigo do meu pai. A idéia era que estava na altura de eu assentar e arranjar um herdeiro ou dois.

    - É um plano muito frio.

    - Não totalmente. Sentia-me atraído por ela, tínhamos muitos conhecimentos comuns. O pai dela foi advogado do meu durante muitos anos. Foi fácil pensar num acordo que agradasse a ambas as famílias. Depois, à medida que o tempo foi passando, comecei a sentir-me como quando a gravata está demasiado apertada. Não se consegue respirar bem. Por isso, perguntei-me como seria a minha vida sem ela. E como seria com ela, dali a cinco anos.

    Deu mais uma dentada no sanduíche e encolheu os ombros.

    - Acontece que gostei bastante mais da resposta à primeira parte do que à segunda. E, por sorte, ela também. Os únicos que ficaram verdadeiramente aborrecidos foram as nossas famílias. - Fez uma pausa, vendo-a comer. - Mas não podemos viver as nossas vidas de acordo com o que os nossos pais querem ou não querem para nós, não é, Tory?

    - Não. Mas, seja como for, vivemos as nossas vidas carregando conosco esse peso. A minha família nunca me aceitou como eu era. Durante muito tempo tentei ser alguém e alguma coisa diferente. - Levantou o olhar. - Não consigo.

    - Eu gosto de quem tu és.                                 .

    - A noite passada tiveste dificuldade.

    - Alguma - admitiu ele. - Preocupaste-me. Estavas frenética - acrescentou, pousando a mão sobre a dela antes de ela conseguir soltá-la. - E depois frágil. Senti-me desajeitado. Não sabia o que fazer, e estou habituado a saber.

    - Não acreditaste em mim.

    - Não duvido do que viste, ou do que sentiste. Mas não posso deixar de pensar que uma parte pode ter a ver com o teu regresso aqui, com a recordação do que aconteceu à Hope.

    Ela pensou no telefonema de Abigail, nas datas de ambos os homicídios. Mas conteve-se. Já confiara antes, já partilhara antes. E perdera tudo.

    - Tem tudo a ver com o meu regresso aqui. E com a Hope. Se não fosse a Hope, não estavas sentado aqui.

    Voltando a pisar terreno mais seguro, ele recostou-se na cadeira e continuou a comer.

    - Se eu te tivesse visto pela primeira vez há quatro ou cinco semanas, se nunca nos tivéssemos visto antes e não houvesse nada entre nós até então, teria descoberto uma maneira de estar sentado aqui, agora. A verdade é que se tivéssemos começado há semanas e não há anos, acredito piamente que já te teria naquela cama interessante.

    Ele sorriu, calma e afavelmente, quando ela voltou a meter a colher na sopa, com um ligeiro «plop».

    - Acho que está na altura de deixarmos o assunto em aberto, para poderes pensar nele.

   

    A viagem foi bastante agradável e fê-la lembrar-se de tudo o que perdera por não ter ficado com J.R. Havia nele uma tal grandeza, na voz, no riso, nos gestos! Por duas vezes teve de evitar o braço dele quando ele o atirou na sua direção para apontar qualquer coisa que se via da estrada.

    Parecia engolir-nos apenas com a simples alegria de existir.

    Ia sentado no pequeno carro, com os joelhos quase a tocarem-lhe no queixo, a mão grande e larga agarrando a alavanca das mudanças como Tory já vira alguns rapazes manusear um joystick num jogo de vídeo.

    Pelo divertimento e pela competição.

    Pela forma como mergulhava naquele dia, dir-se-ia que o objetivo da corrida era um piquenique louco qualquer e não o cumprimento de um dever junto a uma família em sofrimento.

    Viver o presente, pensou ela, era algo para que J.R. era dotado e uma capacidade que ela sempre lutara por conseguir, ao longo da sua vida.

    Ia satisfeitíssimo no seu carro novo, cruzando a estrada a grande velocidade, com os seus CD de Clint Black e Garth Brooks a tocar bem alto, e um boné de xadrez, de corte impecável, enterrado no tapete de lã de ovelha com que se parecia o seu cabelo cor de gengibre.

    Perdeu o boné depois da saída para Summer, quando um sopro de vento fresco o arrancou, atirando-o para a estrada e para baixo das rodas de uma Dodge. J.R. nem sequer abrandou, e riu como um louco.

    Com a capota puxada para trás e a música altíssima, a conversa decorria aos gritos, mas, mesmo assim, J.R. conseguia mantê-la, com os seus assuntos de interesse a saltitar como uma grande bola de borracha da loja de Tory: política, gelado baixo em calorias e o mercado de ações.

    Quando se aproximaram da saída para Florence, referiu a possibilidade de, se houvesse tempo, passarem pela casa da sua mãe para lhe fazerem uma visita. Era a primeira vez, desde que fora buscá-la, que falava na família.

    Aos gritos, Tory disse que adoraria ver a avó. Depois pensou em Cecil e perguntou-se se J.R. saberia da nova situação. Isso manteve-lhe o espírito ocupado e entretido até passarem Florence e seguirem para nordeste.

    Nunca fora à casa dos pais na saída de Hartsville. Não fazia idéia do que faziam na vida, nem como passavam o tempo juntos ou separados.

    Nunca perguntara à avó e Íris nunca falara no assunto.

    - Estamos quase lá. - J.R. mexeu-se no assento. Tory sentiu que a disposição dele também mudara. - Da última vez que soube alguma coisa, o Han trabalhava numa fábrica. Tinham alugado um pedaço de terra e criavam galinhas.

    - Estou a ver.

    J.R. pigarreou, como se fosse falar outra vez. Mas manteve-se em silêncio até saírem da estrada principal e entrarem num caminho asfaltado e esburacado, sem acostamento.

    - Ainda não consegui ver a casa deles. Ah, a Sarabeth deu-me as direções quando eu lhe disse que vinha.

    - Tudo bem, Tio Jimmy, não se preocupe comigo. Ambos sabemos o que esperar.

    As casas que se avistavam eram pequenas e esqueléticas, ossos amarelados metidos em quintais cobertos de vegetação mal cuidada ou de pó. Uma pickup ferrugenta, com o pára-brisas quebrado como uma casca de ovo, jazia inclinada sobre blocos de construção. Um cão preto, feio, puxava a corrente e ladrava, furioso, enquanto a menos de meio metro uma criança que vestia apenas uma camisola interior de algodão encardido e um emaranhado de cabelo escuro estava sentada numa velha máquina de lavar estragada, abandonada num quintal cheio de erva. Estava a chupar o dedo e olhou, com ar vazio, quando o conversível elegante passou.

    Sim, pensou Tory. Sabiam exatamente o que esperar.

    A estrada virou, subiu um pouco e depois bifurcou-se repentinamente. J.R. desligou a música e abrandou drasticamente para prosseguir pelo caminho de lama e cascalho.

    - Os nossos impostos são bem aplicados - disse ele, tentando fazer uma piada, e depois suspirou e fez avançar o carro pelo caminho de terra batida que conduzia à casa.

    Não, uma casa não, corrigiu Tory. Um barraco. Não se podia chamar àquilo uma casa, e nunca um lar. O telhado estava cedendo e, como o sorriso de um velho, tinha buracos onde as telhas de ardósia tinham sido levadas pelo vento ou tinham caído. O velho tabuado cinzento estava carcomido e em pedaços. Uma das janelas estava tapada com cartão. O quintal, se é que podia chamar-se-lhe assim, estava entupido de ervas. Dentes-de-leão e cardos cresciam em abundância.  Uma velha bacia de ferro forjado estava virada ao contrário, evidenciando um buraco do tamanho de uma mão fechada. Os lados e as traseiras da casa eram um edifício de metal, encardido e com manchas de ferrugem cor de sangue. Uma rede de arame saía de um dos lados, encerrando cerca de uma dúzia de galinhas escanzeladas que debicavam na terra, num permanente queixume. O cheiro delas ardia no ar.

    - Meu Deus - murmurou J.R. - Não pensei que fosse tão mau. Nunca se pensa que pode ser tão mau. Não há necessidade disto. Não havia necessidade de chegar a uma coisa destas.

    - Ela sabe que chegamos - disse Tory sem deixar transparecer emoção, e abriu a porta do carro. - Tem estado à espera.

    J.R. bateu também a sua porta e depois, enquanto se encaminhavam para a casa, pousou a mão no ombro de Tory.

    Ela perguntou-se se ele estaria lhe dando apoio ou pedindo.

    A mulher que apareceu tinha cabeço grisalho. Cor de pedra, impiedosamente repuxado e afastado de um rosto magro. A pele também parecia repuxada, com os ossos salientes como nós. As linhas que lhe delimitavam a boca podiam ter sido gravadas com uma faca, e o seu entalhe profundo puxava-lhe os lábios para baixo, num ar de miséria.

    Usava um vestido de algodão amarrotado, que lhe ficava demasiado grande, e uma pequena cruz de prata entre os seios sem vida.

    Os olhos, aureolados de vermelho como fogo, olharam para Tory e depois desviaram-se rapidamente, como se um olhar pudesse queimar.

    - Não disseste que ela também vinha.

    - Olá, mãe.                                                                         

    - Não disseste que ela também vinha - repetiu Sarabeth e depois abriu bruscamente a porta de tela. - Não tenho já preocupações que cheguem?                        

   

    J.R. apertou o ombro de Tory.

    - Estamos aqui para fazer o que pudermos para ajudar, - mantendo a mão no ombro de Tory, entrou.

    O ar cheirava a lixo antigo e a suor bafiento. A desespero.

    - Não sei o que podem fazer, a não ser que consigam levar aquela mulher, aquela devassa mentirosa, a Hartsville e fazê-la dizer a verdade. - Tirou um lenço esfarrapado do bolso do vestido e assoou-se.

    - Estou a enlouquecer, J.R. Acho que aconteceu qualquer coisa horrível ao meu Han. Ele nunca esteve fora tanto tempo como desta vez.

    - Porque não nos sentamos? - Transferiu para a irmã a mão que tinha pousada em Tory e depois observou o espaço.

    Sentiu uma cãibra no estômago.

    Havia um sofá arruinado, coberto com um pano amarelo sujo e desbotado, e um cadeirão nojento, atado com fita adesiva. As mesas estavam cheias de lixo: pratos de papel, copos de plástico e aquilo que ele supôs serem os restos do jantar da noite anterior. Um fogão a lenha, coberto de fuligem, estava a um canto, amparado em três pernas, com um pedaço de madeira no lugar da quarta.

    Havia uma imagem de um Jesus magoado, exibindo o seu Sagrado Coração, numa moldura barata.

    Como o rosto da irmã continuava enterrado no lenço, J.R. conduziu-a até ao sofá e lançou a Tory um olhar suplicante.

    - E se eu fosse fazer café?

    - Sobrou algum, instantâneo. - Sarabeth tirou o lenço da cara e olhou para a parede, mas não para a filha. - Não me tem apetecido muito ir à loja, não queria afastar-me de casa porque o Han...

    Sem dizer nada, Tory deu meia volta. A casa era desagradável e intimidatória, por isso ela foi direta à cozinha. Havia pratos empilhados no lava-louça, e as manchas no fogão eram velhas e secas, os sapatos pegarem-se ao chão de linóleo carcomido.

    Durante a infância de Tory, Sarabeth limpava como um tornado, acabando com pó e sujidade, girando entre eles como se fossem pecados contra a alma. Enquanto enchia a cafeteira, Tory perguntou-se quando teria a mãe desistido daquele hábito nervoso, quando teriam a pobreza e o desinteresse suplantado a ilusão de que estava construindo um lar ou de que Deus entraria nele quando o chão estivesse varrido.

    Depois, parou de interrogar-se, parou de pensar e bloqueou tudo exceto o gesto mecânico de aquecer água e deitar num pequeno jarro de vidro uma colher de grãos de café transformados em cimento castanho.

    O leite estava azedo e não encontrou açúcar. Levou para a sala duas canecas cheias de um líquido com mau aspecto. O seu estômago rejeitá-lo-ia, desde logo, só pela aparência.

    - Aquela mulher - estava Sarabeth a dizer. - Tentou provocar o meu Han. Atacou-o na sua fraqueza, tentou-o. Mas ele resistiu. Ele contou-me tudo. Não sei onde foi que lhe bateram, provavelmente algum tarado a quem ela se vendeu, mas ela disse que foi o Han, como vingança por ele lhe ter resistido. Foi isso que aconteceu.

    - Pronto, Sari. - J.R. sentou-se no sofá ao lado dela e fez-lhe uma festa na mão. - Não vamos preocupar-nos com essa parte agora, está bem? Tens alguma idéia de onde o Han possa ter ido?

    - Não! - gritou a resposta, levantando-se de um salto e quase derrubando o café que Tory pusera em cima da mesa. - Achas que eu não iria atrás dele, se soubesse? Uma mulher está sempre junto do marido. Disse a mesma coisa aos polícias. Disse-lhes exatamente o que vos estou a dizer. Não espero que um punhado de polícias corruptos e banidos por Deus acreditem na minha palavra, mas espero que quem é da minha carne e do meu sangue acredite.

    - Eu acredito. Claro que sim. - Ele pegou numa caneca de café e colocou-lha suavemente nas mãos. - Só pensei que podia ter-te ocorrido qualquer coisa, que talvez te lembrasses de alguns lugares para onde ele foi quando desapareceu, de outras vezes.

    - Ele não desaparece. - Os lábios de Sarabeth tremiam-lhe, enquanto ela bebia o café. - Só precisa de ir-se embora e pensar, mais nada. Os homens sofrem muita pressão. E às vezes o Han só precisa de estar sozinho, para pensar nas coisas, para rezar. Mas desta vez já está fora há muito tempo. Acho que talvez esteja ferido.

    As lágrimas voltaram a assolar-lhe os olhos.

    - Aquela mulher mentindo, a metê-lo naquela confusão toda, estava se tornando muito pesado para ele. Agora a polícia fala como se ele fosse um fugitivo. Eles não compreendem.

    - Ele ia ao programa de reabilitação, por causa do álcool?

    - Acho que sim. - Fungou. - Ele não precisava de programa nenhum. Não era um bêbado. Só bebia de vez em quando, para acalmar. Jesus bebia vinho, não bebia?

    Jesus, pensou Tory, não tinha por hábito tragar quase uma garrafa de Wild Turkey e espancar mulheres para lhes tirar o diabo do corpo. Mas a mãe era incapaz de ver a diferença.

    - Estão sempre a chateá-lo no trabalho, sabes, porque sabem que ele é mais esperto do que eles. E as galinhas dão mais despesa do que tínhamos pensado. Aquele filho da mãe, da casa de sementes, aumentou os preços para poder dar perfumes caros à amante. O Han contou-me como era.

    - Querida, tens que enfrentar o fato de, ao desaparecer assim, o Han ter violado a liberdade condicional. Ele infringiu a lei.

    - Bem, a lei está errada. O que vou eu fazer, J.R.? Estou à beira de um ataque de nervos. E toda a gente quer dinheiro, e não entra nada exceto o que consigo com os ovos. Fui ao banco, mas aqueles ladrões mentirosos roubaram-nos o que tínhamos lá e disseram que o Han tinha esvaziado a conta. Esvaziado a conta, foi o que disseram, com aqueles sorrisos todos delicados.

    - Eu trato das contas. - Já não era a primeira vez. - Não te preocupes com isso. Ouve o que acho que devíamos fazer. Acho que devias pegar algumas coisas e vir para casa comigo. Podes ficar comigo e com a Boots até as coisas estarem resolvidas.

    - Não posso ir-me embora. O Han pode chegar a qualquer momento.

    - Podes deixar-lhe um recado.

    - Isso ia deixá-lo furioso. - Os olhos dela começaram a olhar em volta, em todas as direções, como pássaros desnorteados procurando um lugar seguro, longe da fúria legítima do marido. - Um homem tem o direito de esperar que a mulher esteja em casa quando ele chega. Que ela esteja à espera, debaixo do telhado que ele pôs sobre as suas cabeças.                                                          

    - O seu telhado tem buracos, mãe - disse Tory calmamente, o que lhe valeu um olhar duro, como um chicote.

    - Nunca nada foi suficientemente bom para ti, pois não? Por mais que o teu pai trabalhasse e eu suasse, nunca era suficiente. Querias sempre mais.

    - Nunca pedi nada.

    - Eras suficientemente esperta para não dizeres nada. Mas eu via isso, via isso nos teus olhos. Eras uma fingida, uma manhosa - disse Sarabeth, retorcendo a boca com violência. - E fugiste na primeira oportunidade e nunca olhaste para trás, nunca honraste o teu pai e a tua mãe. Tinhas a obrigação de retribuir os sacrifícios que fizemos por ti, mas foste demasiado egoísta. Tínhamos uma vida decente em Progress, e ainda teríamos se tu não a tivesses estragado.

    - Sarabeth! - Desamparado, J.R. bateu-lhe ao de leve na mão. - Isso não é justo e não é verdade.

    - Ela trouxe-nos a vergonha. Trouxe-nos a vergonha no minuto em que nasceu. Éramos felizes antes de ela ter aparecido. - Recomeçou a chorar, em soluços violentos que lhe sacudiam os ombros.

    Sem saber o que fazer, J.R. abraçou-a, procurando sossegá-la. Com o rosto e a mente vazios, Tory baixou-se e começou a tirar o lixo da mesa.

    Sarabeth levantou-se, veloz como um raio.     

    - O que pensas que estás a fazer?                                   

    - Como está decidida a ficar, pensei em limpar isto.

    - Não preciso que me critiques. - Atirou os pratos para o chão. - Não preciso que chegues aqui cheia de nove horas e as tuas roupas chiques, a tentar fazer-me parecer má. Há anos que me viraste as costas, e pela parte que me toca podes continuar bem longe.

    - A mãe virou-me as suas a primeira vez que ficou calmamente sentada enquanto ele me espancava.

    - Deus fez o homem dono e senhor da sua casa. Tu nunca te vergaste, não merecias.

    Vergaste, pensou Tory. Palavra feita de terror.                 

    - É assim que consegue dormir à noite?

    - Não sejas insolente comigo. Não desrespeites o teu pai. Diz-me onde ele está, raios te partam! Tu sabes, consegues ver. Diz-me onde ele está para eu poder ir tratar dele.

    - Não vou procurá-lo. Se tropeçasse nele a sangrar, numa vala, deixava-o lá. - A cabeça foi impelida para trás quando Sarabeth lhe deu uma bofetada, e a marca vermelha ficou na face. Mas ela não vacilou.                                         

    - Sarabeth! Deus Todo-Poderoso, Sari! - J.R. agarrou-a, imobilizou-lhe os braços enquanto ela se debatia, soluçava e gritava.

    - Ia dizer que desejava que ele estivesse morto. - Tory falou calmamente. - Mas não desejo. Desejo que volte para si, mãe. Desejo, de todo o coração, que ele volte para si e lhe dê a vida que a mãe merece.

    Abriu a carteira e tirou a nota de cem dólares que lá metera, de manhã.

    - Se ele voltar, quando ele voltar, diga-lhe que este é o último pagamento que terá da minha parte. Diga-lhe que voltei a viver em Progress, que estou lá a construir uma vida para mim. Se ele quiser vir ter comigo e voltar a levantar-me a mão, então é melhor que consiga fazer com que seja a última, é melhor espancar-me até à morte, desta vez. Porque se ele não acabar comigo, acabo eu com ele.

    Fechou a carteira.

    - Espero no carro - disse a J.R. e saiu.

   

    As pernas só começaram a tremer-lhe quando ela se sentou e fechou a porta. Depois, o tremor começou-lhe nos joelhos e foi subindo, fazendo-a cruzar os braços sobre o peito e fazer pressão com força, de olhos fechados, à espera que passasse.

    Ouvia o choro vindo da casa, derramando-se como lava, e o cacarejar monótono das galinhas à procura de comida. Mais perto soou o ladrar feroz de um cão.

    E, contudo, os pássaros ouviam-se acima de tudo aquilo, em notas decididamente alegres.

    Concentrou-se naquele som, e procurou afastar dali o pensamento. Estranha e inesperadamente encontrou-se na sua cozinha, com a cabeça no ombro de Cade, com os lábios dele pousados no seu cabelo.

    A descansar ali, só ouviu o tio quando ele se sentou ao lado dela e fechou a porta.

    Não disse nada enquanto se afastava da casa, nada quando parou uns metros adiante e ficou sentado, com as mãos no volante e os olhos a observar o vazio.

    - Não devia ter-te deixado vir - disse por fim. - Pensei... Não sei o que pensei, mas acho que me ocorreu que talvez ela quisesse ver-te, que as duas pudessem conseguir consertar as coisas, com o Han assim, desaparecido.

    - Só faço parte da vida dela para ser acusada. Ele é a vida dela. É assim que ela quer.

    - Porquê? Por amor de Deus, Tory, porque quereria ela viver assim, viver com um homem que nunca lhe deu alegria?

    - Ela ama-o.

    - Isso não é amor. - Cuspiu as palavras, juntamente com a fúria e a revolta. - Isso é doença. Ouviste-a a desculpá-lo, a culpar toda a gente menos a ele. A mulher que ele atacou, a polícia, até o raio do banco.

    - Ela quer acreditar nisso. Precisa acreditar. - Vendo que ele estava mais perturbado do que ela pensara, Tory pôs-lhe a mão no braço. - O tio fez tudo o que pôde.

    - Tudo o que pude. Dei-lhe dinheiro e deixei-a ali, naquele barraco. E vou dizer-te a verdade, Tory: dou graças a Deus por ela não ter querido vir comigo, por eu não ter que levar aquela doença para minha casa. Tenho vergonha. - A voz quebrou-se-lhe e ele encostou a testa ao volante.                                                        

    Sentindo que ele precisava, Toiy desapertou o cinto de segurança e inclinou-se para ele, pousou-lhe a cabeça no braço, desenhando círculos com a mão nas suas costas enormes.

    - Não há vergonha nenhuma nisso, Tio Jimmy, não há vergonha nenhuma em querer proteger a sua casa e a Tia Boots, em querer manter tudo isto à distância. Eu podia ter feito o que ela me pediu para fazer. Podia ter-lhe dado isso. Mas não dei, nem vou dar. E não vou ficar com vergonha por causa disso.            

    Ele acenou com a cabeça e, tentando recuperar a compostura, voltou a endireitar-se.

    - Somos uma família e tanto, não somos, querida? - Suavemente, muito suavemente, tocou com as pontas dos dedos na marca que ela tinha na face. Depois, engatou a primeira e acelerou. - Tory, se não te importas, não tenho coragem para ir ver a tua avó, agora.

    - Nem eu. Vamos para casa.

    Quando o tio a deixou, Tory não entrou em casa. Dirigiu-se antes ao carro e seguiu diretamente para a loja. Tinha horas de trabalho à sua frente e estava agradecida porque o trabalho e a azáfama manteriam à distância os seus pensamentos sobre aquela manhã.

    O seu primeiro telefonema foi para a florista, a dizer que já podiam entregar o ficus e o arranjo de flores que encomendara na semana anterior. O seguinte foi para a padaria, a confirmar se os bolinhos e os petitsfours que escolhera estariam prontos para ela ir buscar logo de manhãzinha.                            

    Já era tarde quando se deu por satisfeita com a disposição dos vários artigos na loja. Para dar um ar festivo, começou a entrelaçar luzes por entre os ramos graciosos do ficus.

   

    A pequena campainha da porta soou, lembrando-lhe que se esquecera de trancá-la após a última entrega.

    - Ia a passar e vi-te. - Dwight entrou, olhou em volta e depois soltou um ligeiro assobio. - Vinha ver se estava tudo a funcionar ou se precisavas de alguma ajuda de última hora. Mas parece que tens tudo controlado.

    - Acho que sim. - Endireitou-se, com a ponta do fio de luzes na mão. - A tua equipe fez um trabalho maravilhoso, Dwight, não podia ter ficado mais satisfeita com o trabalho.

    - Não te esqueças de falar na Frazier's, se alguém elogiar o trabalho de carpintaria.

    - Podes contar com isso.

    - Olha só, que belo trabalho. - Aproximou-se de uma tábua de cortar, enfeitada por várias tiras de madeira de diferentes tons e maravilhosamente aparada, lisa como vidro. - Belo trabalho. Faço uns trabalhos com madeira, como passatempo, mas nada tão bonito como isto. É quase demasiado bonito para usar.

    - Forma e funcionalidade. É essa a chave, aqui.

    - A Lissy está muito contente com aquela coisa com a vela que comprou aqui, e não perde uma oportunidade de exibir o espelho. Disse-me que não ia ficar nada chateada se eu viesse até cá dar uma olhadela nas jóias e encontrasse alguma coisa que a deixasse bem-disposta.                               

    - Ela não se sente bem?

    - Oh, está ótima. - Dwight acenou com a mão, enquanto se movia pela loja. - Fica um bocado irritada, de vez em quando, por causa do bebê, mais nada. - Meteu os polegares nos bolsos da frente das calças e sorriu mansamente. - Já que aqui estou, acho que devo pedir desculpa.

    - Sim? - Como ele parecia tencionar demorar-se mais um pouco, Tory continuou a entralaçar as luzes nos ramos. - Porquê?

    - Por ter deixado a Lissy pensar que tu e o Cade andavam a apreciar a companhia um do outro.         

    - Gosto da companhia do Cade.

    - Não sei bem se estás a gozar comigo ou a deixar-me pendurado como estás a fazer a essas luzes. O que se passa é que, bem... a Lissy toma o freio nos dentes no que toca a certas coisas. Não desiste de tentar arranjar alguém para o Cade, e quando não é ele, é Wade. Tem uma pancada qualquer em casar os meus amigos. O Cade só queria livrar-se da última tentativa que ela fez e disse-me que lhe dissesse que estava...

    Corou, enquanto Tory o observava em silêncio.        

    - Que estava, digamos, envolvido com alguém. Disse-lhe que eras tu, pensando que, como chegaste à cidade há pouco tempo, ela acreditaria e deixaria as coisas sossegadas por algum tempo.

    - Hã-hã. - Terminada a tarefa, Tory ligou as luzes à tomada e depois recuou um pouco, para avaliar os resultados.

    - Devia ter pensado melhor - continuou Dwight, nervosamente. - Deus sabe que não sou surdo e que sei que a Lissy tem tendência para falar. Quando o Cade chegou ao pé de mim para me esfolar vivo, eu já tinha ouvido de seis pessoas diferentes que vocês dois estavam quase noivos e a pensar ter um rancho de filhos.

    - Devia ter sido mais simples contar-lhe a verdade, que o Cade não estava interessado em ser agarrado.

    - Bem, eu não diria mais simples. - Os bonitos dentes dele voltaram a brilhar num sorriso rápido, encantador e masculino. - Se eu lhe disser isso, ela vai querer saber porquê. E eu digo-lhe que há homens que não andam à procura de casamento. Ela volta ao ataque e diz como tu, não é? Gostavas era de andar à solta como os teus melhores amigos. Eu digo não, queridinha, mas nessa altura já tenho um pé na casota do cão.

    Tentando fazer um ar digno de pena, coçou a cabeça.

    - Digo-te uma coisa, Tory: o casamento é uma caminhada numa corda ensebada, e qualquer homem que te diga que não sacrificaria um amigo para continuar a equilibrar-se é um grande mentiroso. Além disso, ouvi dizer que tu e o Cade têm saído juntos algumas vezes.

    - Estás a afirmar ou a perguntar? Ele abanou a cabeça.

    - Devia ter dito que lidar com uma mulher é como andar na corda bamba. O melhor é desistir enquanto ainda se consegue pôr o pé em terreno firme.

    - Boa idéia.                                                   

    - Bem, a Lissy está a dar uma festa de galinhas, num encontro de mulheres - apressou-se a corrigir, ao ver as sobrancelhas de Tory arquearem-se. - Vou encontrar o Wade, ver se ele quer ir jantar e fazer-me companhia até ser seguro ir para casa. Passo por cá amanhã. Talvez queiras ajudar-me a escolher uns brincos, ou qualquer coisa.

    - Com muito prazer.

    Encaminhou-se para a porta, depois parou.

    - Isto está muito bonito, Tory. Elegante. Este lugar vai fazer bem à cidade.

    Ela assim o esperava, pensou, enquanto o seguia para trancar a porta. Mas, mais ainda, esperava que a cidade lhe fizesse bem.

    Dwight caminhou até à passadeira, para atravessar nos sinais. Como presidente da câmara, era importante dar o exemplo. Deixara de atravessar com o sinal vermelho, de beber mais de duas cervejas num bar e de ultrapassar o limite de velocidade. Pequenos sacrifícios, pensou, mas de vez em quando tinha vontade de quebrar as regras.

    Supôs que devia ser por ter desabrochado tarde, pensou, enquanto respondia com um breve cumprimento à buzina do carro de Betsy Gluck, que ia passando. Só no meio da adolescência começara a abrir caminho, depois ficara tão admirado por as raparigas quererem falar com ele que se enrolara rapidamente com Lissy no assento de trás do seu primeiro carro - bem, com algumas outras e depois com Lissy -, e dera por si a sair com a rapariga mais bonita e mais popular do liceu. Antes de perceber, estava alugando o fraque para o casamento.

    Não que o lamentasse. Nem por um instante. Lissy era exatamente o que ele queria. Continuava tão bonita como no liceu. Talvez se queixasse e amuasse algumas vezes, mas qual a mulher que não o fazia?

    Tinham uma bela casa, um filho lindo e mais um bebê a caminho. Uma boa vida, ele era o presidente da câmara da cidade onde, antes, era alvo de piadas.

    Tinha que apreciar a ironia disso.

    O fato de apreciar, de vez em quando, outras mulheres, era perfeitamente natural. Mas a verdade é que não queria estar casado com alguém que não fosse a sua Lissy, não queria viver senão em Progress e queria que a sua vida continuasse exatamente como era.

    Abriu a porta da sala de espera do consultório de Wade, bem a tempo de ser abalroado por um cão pastor, muito nervoso, que se preparava para a fuga.

    - Desculpa. Oh, Mongo. - A loura que tentava segurar a trela era bonita e desconhecida. Com os seus olhos verdes e suaves lançou a Dwight um olhar de desculpa, enquanto os seus lábios de boneca se abriam num rápido sorriso. - Acabou de tomar as vacinas e sente-se traído.

    - Não posso censurá-lo. - Uma vez que um procedimento diferente comprometeria a sua masculinidade, Dwight estendeu os dedos e afagou o cão através do tufo de pêlo cinzento e branco. - Não me recordo de tê-la visto, nem ao Mongo, na cidade.

    - Só estamos aqui há umas semanas. Mudei-me de Dillon. Sou professora de Inglês no liceu. Bem, estou dando aulas nos cursos de verão e depois vou começar a tempo inteiro no outono. Sentado, Mongo - Atirando o cabelo um pouco para trás das costas, estendeu-lhe a mão. - Sherry Bellows, e pode me culpar por ter as calças cheias de pêlos do cão.

    - Dwight Frazier, prazer em conhecê-la. Sou o presidente da câmara, por isso é a mim que deve procurar se tiver alguma queixa.

    - Oh, está tudo muito bem. Mas não me esqueço. - Virou a cabeça para a sala do consultório. - Todos têm sido muito amáveis e prestáveis. É melhor levar o Mongo para o carro antes que ele parta a trela e tenha que passar-me uma multa.

    - Precisa de ajuda?

    - Não, está seguro. - Riu quando ela e o cão saíram disparados pela porta. - Ou quase. Prazer em conhecê-lo, Presidente Frazier. Tchau, Max.

    - Igualmente - murmurou ele, e depois olhou para Maxine, na recepção. - Não tive professoras de Inglês como esta quando andava no liceu. Teria demorado mais uns anos a formar-me.

    - Homens! - Maxine riu, tirando a mala da última gaveta. - Tão previsíveis. O Mongo foi o nosso último paciente, Senhor Presidente. O doutor Wade está a lavar-se, lá atrás. Importa-se de dizer-lhe que vou correndo para a aula da noite?

    - Vá lá. Tenha uma boa noite.                  

    Entrou e foi encontrar Wade arrumando o armário dos medicamentos.

    - Alguma coisa boa?

    - Tenho aqui uns esteróides que fazem crescer pêlos no peito. Não tens nenhum.

    - Porque os usaste todos no teu rabo - disse Dwight, prontamente. - E então aquela loura?

    - Hã?                                                                                                        .       - Credo, Wade, tens andado a tomar remédios dos cães? A loura, com o cãozarrão que acabou de sair. Professora de Inglês.

    - Ah, o Mongo.

    - Bem, estou vendo que já é tarde demais. - Dwight abanou a cabeça e deu balanço para se sentar na marquesa. - Quando alguém começa a não reparar em louras bonitas, que enchem as calças como aquela, e se lembram de um cão grande e esgrouviado, é um caso perdido que nem a Lissy consegue resolver.

    - Não vou a mais nenhum encontro às cegas. E reparei na loura.

    - Diria que ela também reparou em ti. Lançaste-lhe a escada?

    - Credo, Dwight, ela é uma paciente.

    - O cão é que é o paciente. Estás a perder uma oportunidade de ouro, filho.

    - Esquece a minha vida sexual.

    - Não tens. - Dwight apoiou-se nos cotovelos e sorriu. - Se eu fosse solteiro e semifeio como tu, teria trazido aquela loura para cima desta mesa, e não aquele cão grande e peludo.

    - E quem te disse que não fiz isso?

    - Só em sonhos.

    - Ah, mas os sonhos são meus, não são? Porque não estás em casa a lavar as mãos para o jantar, como um menino bem-comportado?

    - A Lissy tem uma série de mulheres lá em casa, por causa de uns Tupperware, ou qualquer coisa assim. Não posso ir para casa.

    - É maquiagem. - Wade fechou a porta do armário. - A minha mãe também vai.

    - Seja que diabo for. Sabe Deus que aquela mulher não precisa de mais pinturas para a cara nem de mais tigelas de plástico, mas aborrece-se de morte quando está grávida. Por isso, que tal irmos beber uma cerveja e comer qualquer coisa? Como nos velhos tempos.

    - Tenho coisas para fazer aqui. - Faith podia aparecer, pensou.

    - Vá lá, Wade. Só umas horas.

    Começou a recusar outra vez. Que diabo se passava com ele, a fechar-se neste apartamento, à espera que Faith telefonasse? Era tão mau como uma adolescente a suspirar atrás de uma estrela de futebol. Pior.

    - Pagas tu.

    - Merda. - Animado, Dwight saltou da marquesa. - Vamos telefonar ao Cade, a dizer-lhe para ir ter conosco. Depois, fazemo-lo pagar o jantar.

    - É uma idéia.

   

    Não esperava sentir-se nervosa. Estava preparada. Verificara e voltara a verificar todos os pormenores, até a cor e o peso da fita para atar as caixas. Tinha experiência e conhecia cada objeto que tinha na loja quase tão bem como os artistas que os tinham criado.

    Ultrapassara cada passo e cada fase da criação da sua loja com calma e, quase sempre, com olho clínico e mão firme. Não havia erros, falhas ou imperfeições.

    A loja em si tinha um ar perfeito, calorosa, acolhedora e luminosa. Por sua vez, ela tinha um ar profissional e eficiente. Estranho seria se assim não fosse, pois passara a hora entre as três e as quatro da manhã numa agonia, a escolher a roupa, antes de se ter decidido pelas calças azul-marinho e pela camisa branca de linho.

    Agora estava preocupada, porque talvez se parecesse demasiado com um uniforme. Agora estava preocupada com tudo.

    A menos de uma hora da abertura, todos os nervos e dúvidas e medos que conseguira ignorar durante meses caíram-lhe em cima como pedaços de tijolos.

    Ficou sentada no escritório, à escrivaninha, com a cabeça entre os joelhos.

    A sensação de náusea e de fraqueza insultava-a, envergonhava-a. Quando estava prestes a desfalecer, ralhou consigo própria. Era mais forte do que aquilo. Tinha que ser. Não podia ter chegado tão longe, trabalhado tanto, e depois cair a alguns centímetros da meta.

    As pessoas viriam. Não estava preocupada com o número de pessoas. Elas viriam e ficariam de boca aberta, e lançar-lhe-iam olhares rápidos e curiosos, que ela já estava habituada a que lhe lançassem quando andava pela cidade.

    A miúda Bodeen. Lembram-se dela. Uma coisinha pequena e estranha.

    Não podia deixar que isso a afetasse. Mas, oh! Claro que afetava. Fora uma loucura voltar ali, ali onde toda a gente a conhecia, onde nenhum segredo ficava verdadeiramente guardado. Porque não ficara em Charleston, onde era seguro, onde a sua vida era tranquila e a sua privacidade completa?

    Ali sentada, com a pele úmida e o estômago às voltas, sentiu desesperadamente a falta da sua casa bonita e acolhedora, do seu jardim bem cuidado, da rotina do seu trabalho, exigente mas impessoal, na loja de outra pessoa. Ali sentada, teve saudades do anonimato em que conseguira encerrar-se durante quatro anos sem sobressaltos.

    Nunca devia ter voltado. Nunca devia ter-se arriscado a si própria, às suas economias, à sua paz de espírito. O que lhe teria passado pela cabeça?

    Hope, admitiu, e levantou lentamente a cabeça. O que lhe passara pela cabeça fora Hope.

    Louca, inconsequente, pensou. Hope estava morta e partira, e ela não podia fazer nada para alterar isso. Agora, tudo aquilo por que trabalhara estava em risco. E para evitar o descalabro, teria de enfrentar os olhares e os falatórios.

    Quando ouviu bater à porta da loja, o seu primeiro instinto foi gatinhar e esconder-se atrás da escrivaninha, enrolada sobre si mesma, com as mãos nos ouvidos. O fato de quase o ter feito, de conseguir ver-se ali encolhida, obrigou-a a pôr-se de pé.

    Tinha trinta minutos até à hora de abertura, trinta preciosos minutos para se recompor. Quem quer que estivesse a bater à porta teria que ir-se embora.

    Endireitou os ombros, passou a mão pelo cabelo, para alisá-lo, e depois preparou-se para dizer a quem estava à porta e que chegara adiantado que teria que voltar às dez.

    Viu o rosto da avó do outro lado do vidro e correu para a porta. - Avó, oh, avó! - Lançou os braços ao pescoço de Íris e agarrou-se a ela como se estivesse suspensa de um rochedo. - Estou tão contente por vê-la. Não pensei que viesse. Estou tão contente por tê-la aqui!

    - Achaste que eu não vinha? Para a tua grande inauguração? Ora, estava ansiosa por chegar. - Empurrou Tory suavemente para dentro da loja. - Deixei o Cecil doido, a dizer-lhe constantemente que acelerasse mais. Lá está o Cecil, atrás do milho, e a Boots atrás da montanha que é o Cecil.                         

    Tory inspirou pesadamente e depois conseguiu soltar uma gargalhada quando Cecil espreitou por entre as folhas compridas como espadas.

    - É maravilhoso, e a avó também. Vocês todos. Vamos pô-lo... - Olhou em volta, avaliando espaço e impacto. - Ali mesmo, no final daquele armário envidraçado. Era mesmo o que precisava.

    - A mim parece-me que não precisas de nada - comentou Íris.

    - Tory, este lugar está tão perfeito como uma noiva de junho. Tantas coisas bonitas. - Passou o braço pelos ombros de Tory, observando a loja, enquanto Cecil colocava a planta ornamental no seu lugar. - Sempre tiveste bom gosto.

    - Mal posso esperar para comprar alguma coisa. - Boots, resplandecente como uma moeda nova no seu vestido amarelo, bateu palmas como uma garota. - Quero ser a primeira a comprar-te qualquer coisa hoje, e avisei o J.R. de que ia ficar com o cartão de crédito a arder.

    - Tenho um extintor. - Tory riu e virou-se, para abraçá-la.

    - E muitas coisas que se partem. - Acautelando-se, Cecil pôs as mãos nos bolsos. - Faz-me sentir desajeitado.

    - Quem parte, paga - disse Íris com uma piscadela de olho. - Muito bem, pote de mel, o que podemos fazer?

    - Estarem aqui já é suficiente. - Tory soltou um longo suspiro. - Não há mesmo nada para fazer. Mais pronta não podia estar.

    - Nervosa?

    - Aterrorizada. Só preciso de arranjar o chá e as bolachas e manter as mãos ocupadas durante os próximos minutos. Depois... - Virou-se quando ouviu o som metálico vindo da porta.

    - Entrega para si, Srta. Bodeen. - O rapaz da florista trazia uma caixa branca e brilhante.

    - Obrigada.

    - A minha mãe vem até aqui mais tarde. Disse que queria ver como ficavam os arranjos, mas eu espero que ela queira ver o que tem para vender.

    - Fico à espera dela.

    - Coisas aqui não faltam. - Esticou o pescoço para dar uma vista de olhos, enquanto Tory tirava um dólar da gaveta do dinheiro. - Acho que as pessoas devem estar chegando. Não se fala noutra coisa.

    - Espero que sim.

    Meteu no bolso a nota que Tory lhe estendia.

    - Obrigado. 'Té logo.

   

    Tory pousou a caixa em cima do balcão e tirou o cordel. Estava cheia de gerbérias de cores vivas e de girassóis grandes e refrescantes.

    - Que bonitas! - Íris inclinou-se sobre o ombro de Tory, para ver melhor. - E ficam mesmo bem aqui. As rosas não condizem com a tua cerâmica, nem com a madeira. Alguém teve sensibilidade para te mandar flores bonitas e adequadas.

    - Sim. Já abrira o cartão. - Alguém que parece saber sempre qual é a coisa certa a fazer.

    - Ai, são tão queridas, são tão bonitas! - Boots passou as mãos pelas flores. - Tory, querida, vais pôr-me louca se não me disseres quem tas mandou.

    Boots pegou no cartão que Tory lhe estendia.

    - «Boa sorte no teu primeiro dia. Cade.» Uau!

    Inclinando a cabeça, Íris apertou os lábios.

    - Será o Kincade Lavelle?

    - Sim, será.                   .                                                       

    - Hummm.

    - Hummm porquê? Está apenas a ser atencioso.

    - Quando um homem manda flores a uma mulher, as flores certas, é porque tem essa mulher na cabeça. Não é verdade, Cecil?

    - Acho que sim. Quando se quer ser atencioso oferece-se uma planta. As flores significam romance.

    - Ora, aí está. Vêem porque é que eu amo este homem? - Íris puxou-o pela camisa para o fazer baixar e dar-lhe um beijo, deixando Boots com um sorriso radioso.

    - As gerbérias e os girassóis são apenas um gesto de amizade - corrigiu Tory, mas teve de resistir a suspirar por causa delas.

    - Flores são flores - disse Boots com firmeza. - Quando um homem as manda significa que está a pensar numa mulher. - E agradou-lhe sinceramente a idéia de Cade Lavelle estar a pensar na sua sobrinha. - Agora, vai lá arranjá-las, que eu vou pôs as bolachas num prato. Não há nada que me agrade mais do que preparar as coisas para uma festa.

    - Não se importa? Tenho uma das jarras raku no depósito. É perfeita para estas flores, e o conjunto vai acrescentar um belo efeito ao balcão.

    - Vai lá, então. - Íris apressou-a. - E dá-nos instruções para as coisas que precisam de ser feitas. Vamos lá pôr isto em marcha.

    Os primeiros clientes entraram às dez e um quarto, com Lissy à frente. Tory decidiu guardar todos os pensamentos desagradáveis sobre Lissy quando ela começou a guiar as amigas pela loja e a soltar pequenas exclamações de satisfação.

    Por volta das onze, tinha quinze clientes a cirandar pela loja e já fizera quatro vendas.

    À hora do almoço estava demasiado ocupada para estar nervosa. Havia olhares e havia segredinhos. Aos seus olhos e aos seus ouvidos chegou mais do que um, mas ela envolveu em aço a sensação de desconforto e embrulhou os artigos escolhidos pelos curiosos.

    - Era amiga da garotinha Lavelle, não era?

    Tory continuou a embrulhar os candelabros de ferro em papel pardo.

    - Sim.                                                                                                                                         

    - Uma pena terrível o que lhe aconteceu. - A mulher, com os seus olhos afiados de águia fixos no rosto de Tory, inclinou-se para a frente, ficando mais próxima. - Pouco mais do que um bebê. Foi você que a encontrou, não foi?                                             

    - Foi o pai dela que a encontrou. Quer uma caixa ou um saco?

    - Uma caixa. São para a filha da minha irmã. Casa-se no mês que vem. Acho que andou na escola com ela. Kelly Anne Frisk.

    - Não me lembro de muitas das pessoas com quem andei na escola. - Tory mentiu com um sorriso agradável, enquanto metia os artigos na caixa. - Foi há tanto tempo. Quer que embrulhe para presente?

    - Eu faço isso, querida. Tens outros clientes - interrompeu Íris. - Com que então a Kelly Anne vai casar. Acho que me lembro muito bem dela. É a filha mais velha da Marsha, não é? Meu Deus, como o tempo passa!

    - A Kelly Anne teve pesadelos durante um mês depois daquilo da garota Lavelle. - A mulher disse aquilo com uma satisfação tranquila, que ressoou nos ouvidos de Tory quando ela saiu.

    Tory sentiu-se tentada a esgueirar-se até às traseiras, apenas para respirar até conseguir que o coração parasse de bater como louco. Mas optou por virar-se para uma mulher morena que se debatia com a escolha de uma tigela de servir.

    - Posso ajudá-la?

    - É difícil decidir, com tantas opções bonitas. A JoBeth Hardy, a tia da Kelly Anne, ali? É uma mulher muito desagradável. E é difícil responder àquelas observações dela. Você sempre foi uma pessoa cuidadosa e reservada. Não deve lembrar-se de mim.

   

    A mulher morena estendeu-lhe a mão.     

    - Não, desculpe.

    - Bem, naquela altura eu era bastante mais nova, e você não estava na minha turma. Eu era professora, e continuo a ser, do segundo ano da escola primária de Progress. Marietta Singleton.

    - Ah! Miss Singleton! Claro que me lembro. Desculpe. Prazer em voltar a vê-la.

    - Tenho estado ansiosa pela abertura da loja. Pensei várias vezes no que seria feito de si, ao longo destes anos todos. Talvez não saiba que fui amiga da sua mãe. Anos antes do seu nascimento, claro. O mundo é pequeno.

    - Pois é.

    - Às vezes, um pouco pequeno de mais. - Olhou na direção da porta quando Faith entrou. As duas cruzaram olhares e soltaram-se faíscas antes de Marietta lhe virar as costas para voltar a observar as taças. - Mas temos que viver com isso. Acho que vou levar esta aqui, a azul e branca é muito bonita. Não se importa de guardá-la atrás do balcão enquanto dou mais uma olhada?

    - Claro que não. Vou buscar-lhe uma, empacotada, no depósito.

    - Victoria. - Marietta baixou a voz e passou a mão pelas costas de Tory. - Teve muita coragem, para regressar aqui. Sempre teve muita coragem.

    Afastou-se enquanto Tory ficava parada, confusa e surpreendida pela onda de dor que se desprendera da mulher e pairava no ar.

    Foi até ao depósito para deixar assentar idéias e para ir buscar a taça, e ficou aborrecida quando Faith entrou atrás dela.

    - O que é que aquela mulher queria?

    - Desculpa. Mas aqui é só para empregados.

    - O que é que ela queria?

    - A Marietta? - Friamente, Tory tirou a taça da prateleira. - Isto. Algumas pessoas que aqui vêm querem comprar coisas. Por isso é que isto se chama uma loja.             .

    - O que é que ela te disse?

    - E porque é que isso seria da tua conta?

    Faith cerrou os dentes e tirou um maço de cigarros da bolsa.

    - Não se pode fumar aqui.

    - Raios! - Voltou a meter os cigarros na bolsa e começou a andar de um lado para o outro. - Aquela mulher não tem nada que andarilhar pela cidade.    

    - Aquela mulher pareceu-me perfeitamente simpática. E eu não tenho tempo para as tuas irritações nem para as tuas bisbilhotices. - Embora não pudesse negar que a sua curiosidade estava a aumentar. - Agora, a não ser que me queiras ajudar a repor artigos ou voltar a encher o jarro do chá gelado, vais ter de sair.

    - Não a considerarias tão simpática se ela andasse enrolada com o teu pai. - Com aquela explosão de fúria, Faith deu meia volta e preparou-se para abrir a porta. Tory lembrava-se muito bem do gênio de Faith e, colocando-se em antecipação, pousou a tigela e pôs uma mão na porta antes de Faith conseguir abri-la.

    - Não te atrevas a fazer uma cena. Não te atrevas a trazer os teus problemas familiares para a minha loja. Se quiseres armar uma briga de gatos, vai para outro lugar.

    - Não vou fazer uma cena. - Mas estava fora de si. - Não tenho intenção de dar motivos para falatórios às pessoas que aqui estão. E esquece o que eu disse. Não devia tê-lo dito. Tivemos muito trabalho para abafar a relação do meu pai com aquela mulher. Por isso, se eu ouvir alguma coisa, vou saber que foste tu que começaste.

    - Não me ameaces. Os tempos em que me amedrontavas já lá vão, por isso recolhe as garras, se não quiseres que eu te responda.

    Teria deixado as coisas por ali, estava suficientemente zangada para isso, mas viu o lábio de Faith tremer. Num pequeno laivo de emoção, Tory viu Hope.

    - Porque não te sentas e ficas aqui um minuto? Vá lá, senta-te até te acalmares. Se saíres daqui assim não vai ser preciso fazeres uma cena para as pessoas falarem. Além disso, nesta altura estão se divertindo imenso a falar sobre mim.

    Abriu a porta e olhou para trás.

    - Não se pode fumar - repetiu, e fechou a porta atrás de si. Faith deixou-se cair numa cadeira e, olhando para a porta, tirou os cigarros da bolsa. Voltou a guardá-los de imediato, com ar culpado, quando a porta se abriu outra vez.

    Mas, em vez de Tory, foi Boots que entrou no quarto. Lá porque estava a divertir-se imenso às voltas pela loja, não queria dizer que estivesse cega a sutilezas. Vira o fogo da raiva no rosto de Faith, tal como via agora a infelicidade e o embaraço.

    - Aquilo ali fora está de mais. - Falou animadamente, agitando a mão diante do rosto. - Preciso de um minuto longe da multidão. - E pensou que era a oportunidade perfeita para encurralar a mulher que tinha Wade embrulhado em nós.

    - Porque não se senta, Miss Boots? - Faith apressou-se a levantar-se. - Eu estava mesmo de saída.

    - Oh, faz-me companhia por um instante, está bem, querida? Estás tão bonita hoje. Pensando bem, estás sempre.

    - Obrigada. Posso dizer o mesmo de si. - Agora que estava de pé, Faith desejou ter qualquer coisa que fazer com as mãos. - E deve estar muito orgulhosa da Tory, hoje.

    - Sempre estive orgulhosa dela. E como vai a tua mãe?

    - Está bem.

    - Há muito tempo que não está de outra maneira. Não te esqueças de lhe dar os meus cumprimentos. - Sorrindo naturalmente, Boots aproximou-se da caixa da padaria e pegou num bolinho. - Não viste o Wade hoje, pois não? Espero que ele consiga vir até cá.

    - Não, ainda não o vi hoje. - Ainda.

    - Aquele rapaz trabalha tanto. - Suspirou e mordiscou o bolinho coberto de açúcar. - Quem me dera que ele assentasse, encontrasse uma mulher que o ajudasse a construir um lar.

    - Hã-hã.

    - Ora, não vale a pena ficares atrapalhada, querida. - Boots continuou a mordiscar o bolinho, e os seus olhos eram suficientemente perspicazes para apanhar até uma borboleta esperta como Eaith. - Ele é um homem feito e tu és uma mulher bonita. Porque não haviam de sentir-se atraídos um pelo outro? Sei que o meu rapaz tem uma vida sexual.

    Bem, ali estava, pensou Eaith.

    - Mas preferia que não a tivesse comigo.

    - Ora, ora, eu não disse nada disso. - Pegou noutro bolinho e ofereceu-o a Faith. - Estamos as duas sozinhas, Faith, e as duas somos mulheres. Isso quer dizer que ambas sabemos como levar um homem a fazer uma coisa que queremos que ele faça, pelo menos quase sempre. Tu tens uma veia selvagem. Não me importo. Talvez eu tenha pensado noutro tipo de mulher para o meu Wade, mas ele pensa em ti. Adoro-o, por isso quero para ele o que ele quer para si próprio. E parece que és tu.

    - O que há entre nós não é bem isso, Mistress Mooney.

    A formalidade divertiu Boots. Se não estava enganada, isso queria dizer que Eaith se sentia intimidade.

    - Não? Não paras de andar atrás dele, pois não? Alguma vez te perguntaste porquê? Não - disse ela, erguendo um dedo rematado por uma unha envernizada de cor-de-rosa. - Talvez devesses pensar nisso. Quero que saibas que gosto de ti, sempre gostei. Isso te surpreende?

    Estupidificava-a.                 

    - Sim, acho que sim.

    - Pois não devia surpreender. És uma jovem esperta e inteligente, e não tens tido uma vida tão fácil como há quem pense. Gosto bastante de ti, Faith. Mas se voltas a magoar o meu Wade, vou ter que abanar esse teu pescoço lindo, como se fosse um galho.

    - Bem. - Faith deu uma dentada no bolinho e semicerrou os olhos. - Isso deixa tudo claro.

    De súbito, o rosto de Boots voltou a suavizar-se e os seus olhos tornaram-se suaves e sonhadores como sempre. Soltou uma gargalhada leve e musical e, para confusão de Faith, envolveu-a num abraço e beijou-a na face.

    - Gosto mesmo de ti. - Com o polegar, limpou a marca de batom do rosto de Faith. - Agora senta-te e come o teu bolinho, até te sentires um pouco melhor. Como já me sinto bem, acho que vou lá para fora, comprar qualquer coisa. Não há nada melhor do que fazer compras, pois não? - acrescentou, enquanto abria a porta.

    - Credo! - Sem fala, Faith sentou-se. E comeu o bolinho.

    Tory estava ocupada, mas viu Faith sair dez minutos depois. Tal como viu chegar Cade, com a Tia Rosie a reboque, no momento da primeira calmaria da tarde.

    Era impossível não reconhecer Rosie Sikes LaRue Decater Smith. Aos sessenta e quatro anos, a mulher passara tão despercebida como no baile de debutantes, em que chocara a sociedade ao dançar um jitterbug, descalça, no campo de tênis do country club. Casara com Henry LaRue, dos Savannah LaRue, quando tinha dezessete anos, e perdera-o na Coreia, antes do primeiro aniversário de casamento.

    Fizera um luto de seis meses, e depois optara pelo papel de viúva alegre, ostentando um caso tórrido com um artista em ascensão, e suspeito de ser comunista, com quem casara aos vinte anos. Tanto ela como o artista eram partidários do amor livre, e organizavam o que muitos consideravam orgias, na sua propriedade de Jekyll Island.

    Enterrou o segundo marido após dezanove anos tumultuosos, quando ele caiu da janela de um terceiro andar depois de ter passado a noite com uma garrafa de brandy Napoleão e uma modelo de vinte e três anos.

    Houve quem dissesse que a história envolveu crime, mas nunca se provou nada.

   

    Com a bela idade de cinquenta e oito anos, casou com um admirador de longa data, mais por pena do que por amor. Ele morreu dois anos depois, no segundo aniversário de casamento, após ter sido despedaçado e meio devorado por um leão, durante a viagem que fizeram a África, em segunda lua-de-mel.

    O fato de ter enterrado três maridos e um número indizível de amantes não ensombrara o estilo de Rosie. Usava uma peruca, pelo menos Tory achou que era uma peruca, de um louro-platinado, um vestido vaporoso, até aos pés, de riscas vermelhas e brancas como um toldo, e jóias suficientes para fazer cair uma mulher menos bem constituída. Tory viu o brilho dos diamantes por entre as contas de plástico. - Brinquedos. - disse ela, numa espécie de guincho enferrujado, e esfregou as mãos. - Afasta-te, rapaz, estou com vontade de fazer compras.

    Ziguezagueou até ao armário envidraçado onde estavam os pesos-de-papéis de vidro soprado, e começou a empilhá-los na dobra do cotovelo. Meio divertida, meio alarmada, Tory apressou-se a ir ter com ela.

    - Posso ajudá-la, Miss Rosie?                                  

    - Preciso de seis. Os seis mais bonitos.

    - Sim, claro. São presentes?

    - Presentes, uma ova. São para mim. - Sem qualquer cuidado, fez os objetos de vidro tilintar uns contra os outros e fez o coração de Tory parar.

    - Talvez seja melhor eu pôr estes em cima do balcão.

    - Muito bem, são pesados. - Os olhos de Rosie, sob o peso de umas pestanas postiças que se assemelhavam desconcertantemente a aranhas, fixaram-se no rosto de Tory. - És a rapariga que costumava brincar com a pequena Hope.

    - Sim, minha senhora.

    - Lembro-me que gostava de ti. Uma vez, uma cigana leu-me a palma da mão, na Transilvânia. Disse que eu teria quatro maridos, mas diabos me levem se quero outro. - Rosie estendeu uma mão, coberta de anéis e pulseiras. - Que me dizes?

    - Desculpe. - Em vez de se sentir perturbada, Tory estava maravilhosamente divertida. - Não leio a palma da mão.

    - Então, folhas de chá, ou qualquer coisa assim. Um dos meus amantes, um jovem de Boston, dizia que era a reencarnação de Lorde Byron. Não é coisa que se espere ouvir da boca de um ianque, pois não? Cade, vem cá e pega nestas coisas de vidro. De que serve ter um homem conosco se não pudermos usá-lo como burro de carga? - disse ela a Tory, piscando o olho.

    - Não faço idéia. Quer chá gelado, Miss Rosie? Bolinhos?

    - Primeiro, vou ganhar apetite. Vejamos, que raio é esta coisa? - Pegou numa tábua de madeira polida, com um buraco.

    - É para segurar uma garrafa de vinho, deixá-la repousar.

    - Não é o máximo? O que levará alguém a deixar uma garrafa de vinho repousar transcende-me. Embrulhe-me dois. Lucy Talbott! - Lançou um grito a outra cliente, do outro lado da loja. E partiu na direção dela como um foguete, com as riscas vermelhas e brancas a flutuar.

    - Não se consegue mudar a Tia Rosie - disse Cade, com um sorriso. - E o teu dia, como está correndo?

    - Muito bem. Obrigada pelas flores. São lindas.

    - Ainda bem que gostaste. Espero que me deixes levar-te jantar fora, esta noite, para comemorar o teu primeiro dia.

    - Eu... - Já tinha pedido para ser dispensada da noite em casa do tio, prometendo estar presente no almoço de família de domingo, o dia seguinte. Ia estar cansada e cheia de adrenalina. Não ia ser uma boa companhia. - Gostaria muito.

    - Passo pela tua casa por volta das sete e meia. Está bom?

    - Sim, perfeito. Cade, a tua tia quer mesmo estas coisas todas? Não sei o que pode alguém querer fazer com seis pesos-de-papéis de vidro.

    - Vai gostar deles e depois vai esquecer-se de onde os comprou e inventar uma história qualquer sobre tê-los encontrado numa loja cheia de pó em Beirute. Ou dizqr que os roubou ao amante, o conde bretão, quando o deixou. E depois vai dá-los ao rapaz que distribui o jornal ou às próximas Testemunhas de Jeová que lhe baterem à porta.

    - Ah, bem...

    - Não a percas de vista. Tem tendência a meter coisas nos bolsos. Sem dar por isso - acrescentou, quando Tory abriu muito os olhos. - Vê bem o que ela mete ao bolso e depois põe na conta, no final.

    - Mas... - No preciso momento em que olhou para Rosie, viu-a meter um encosto para colher no bolso lateral do vestido. - Oh, por amor de Deus! - Tory apressou-se a ir ter com Rosie, deixando Cade a rir.

    - A Rosie não mudou nada - comentou Íris.            

    - Não senhora, nem um bocadinho. Abençoada. Como está, Miz Mooney?

    - Bastante bem. Tu também não pareces nada mal. Estás urn homem. Como está a tua família?

    - Está bem, obrigado.

    - Lamento, o teu pai. Era um bom homem, e interessante também. Nem sempre se consegue reunir ambas as características.

    - Suponho que não. Ele falava sempre muito bem da senhora.

    - Deu-me a oportunidade de ganhar a minha vida de forma decente depois de ter perdido o meu marido, a oportunidade de pôr comida na mesa para os meus filhos. Não me esqueço disso. Tens qualquer coisa dele nos olhos. És um homem justo como ele era, agora que cresceste, Kincade?

    - Tento ser. - Quando Rosie soltou um cacarejo e bateu nos amuletos para fazê-los cantar, Cade olhou e viu os olhos desesperados de Tory. - A Tory não tem mãos a medir.

    - Ela dá conta do recado. É boa para dar conta do recado. Às vezes, até um bocado boa de mais.

    - Vira-nos as costas quando queremos ajudar.

    - É verdade - concordou Íris. - Mas quer-me parecer que queres mais da Tory do que ajudá-la. Diria que há qualquer coisa mais básica na tua idéia, e tal como espero ter razão nesta suposição gostaria de dar-te uma coisa que toda a gente precisa de tempos a tempos e que ninguém gosta de receber.

    Ele ajustou o peso dos pesos-de-papéis que continuava a carregar.

    - Um conselho?

    Ela olhou para ele, com um grande sorriso.

    - És um rapaz esperto. Sempre achei isso. Pois é, um conselho. Um pequenino. Não arrastes os pés. Se há coisa que uma mulher merece, pelo menos uma vez na vida, é ser arrebatada e sentir os seus pés no ar. Agora, dá cá uma dessas coisas antes que se partam.

    - Ela ainda não tem a certeza. - Cade entregou a Íris dois dos pesos-de-papéis e levou os outros dois para o balcão. - Precisa de tempo.

    - Ela te disse isso?

    - Mais ou menos.

    Íris revirou os olhos.

    - Homens. Sabes? Uma mulher só diz isso por uma de três coisas. Ou não está verdadeiramente interessada, ou é tímida, ou alguém a magoou antes. A Tory dir-te-ia logo se não estivesse interessada, não tem um único osso tímido no corpo, o que nos deixa a hipótese número três. Vês aquele homem ali?

    Perplexo, Cade olhou para o sítio onde Cecil dispunha bolinhos num prato, com as suas mãos do tamanho de presuntos.

    - Sim, senhora.

    - Se fizeres mal à minha menina, mando aquele urso velho atrás de ti com uma chave-inglesa. Mas como acho que não vais fazer isso, sugiro que mostres à Tory que há homens em quem se pode confiar.

    - Estou tentando.

    - Como a minha menina está tentando convencer-se de que vocês dois não são mais do que amigos, aconselhava-te a trabalhar mais depressa.

    Ora fica lá a remoer isso, pensou Íris, e depois afastou-se para tentar vender mais alguma coisa.

    - Meteu cinco argolas para guardanapos no bolso. - Às seis e dez, com a porta trancada e Cecil a dormitar no armazém, Tory deixou-se cair na cadeira, atrás do balcão, e deitou as mãos à cabeça. - Cinco. Se fossem quatro ou seis, eu ainda podia tentar entender. Mas que tipo de pessoa leva cinco argolas para guardanapos?

    - Não penses que ela estava a formar um conjunto.

    - Acrescenta dois encostos para colheres, três tampas de garrafa e um par de talheres de salada. Meteu-os no bolso enquanto eu estava mesmo ali, a falar com ela. Meteu-os no bolso, sorriu, e depois tirou o colar de contas de plástico e deu-mo.

    Ainda divertida, Tory tocou no colar que tinha ao pescoço.

    - Ela gosta de ti. A Rosie está sempre a dar coisas às pessoas de quem gosta.                         

    - Não acho certo cobrar-lhe aquelas coisas. Se calhar, ela nem as queria. Meu Deus, avó, ela gastou mais de mil dólares! Mil - repetiu, levando a mão ao estômago. - Acho que vou vomitar.

    - Não vais nada. Vais ficar toda contente assim que te acalmares. Agora, vou abanar o Cecil e levá-lo daqui, para poderes recuperar o fôlego. Aparece em casa do J.R. amanhã, por volta da uma. Há muito tempo que não temos a família reunida.

    - Lá estarei. Vó, não sei como lhe agradecer por ter ficado o dia todo. Deve estar cansada.

    - Os meus pés estão a começar a reclamar, e eu estou pronta a pô-los em cima de uma almofada e deixar a Boots dar-me um copo de vinho. - Inclinou-se para beijar Tory na face. - Vai festejar, ouviste?

    Festejar, pensou Tory, depois de ter anotado e limpado tudo, e fechado a loja. Mal conseguia pensar, quanto mais festejar. Conseguira ultrapassar aquele dia. Mais, disse a si própria, entorpecida, a caminho de casa. Provara que estava de volta, para ficar, para deixar uma marca.

    Desta vez não se tratava apenas de sobrevivência, mas de sucesso. Alguns podiam olhar para ela e ver a rapariga franzina de olhos vazios e roupas em segunda mão. Mas não importava. Mais iriam olhar e ver apenas o que ela fizera de si própria. O que queria ser.

    E ela faria com que o importante fosse isso.

    Não ia falhar e não ia fugir. Desta vez, ia finalmente vencer.

    Aquela sensação boa começou a instalar-se quando ela entrou no caminho de acesso à casa, quando viu a casa como fora e como era. Quando se viu a si própria, como fora e como era.

    Incapaz de continuar a conter-se, encostou a cabeça ao volante e deixou que as lágrimas rolassem.

   

    Estava sentada no chão, tentando não chorar. Só os bebês choravam. E ela não era um bebê chorão. Mas as lágrimas corriam, sem que ela conseguisse contê-las.

    Esfolara os joelhos e o cotovelo e a palma da mão, quando caíra da bicicleta. A pele arranhada ardia e sangrava. Quis ir ter com Lilah e ser abraçada e mimada e acalmada. Lilah dar-lhe-ia uma bolacha e fá-la-ia sentir-se melhor.

    Fosse como fosse, também não queria aprender a andar na estúpida da bicicleta. Odiava aquela bicicleta estúpida.

    Estava ao lado dela, um soldado derrubado, com uma roda ainda girando, troçando dela, enquanto ela tinha a cabeça apoiada nos braços e fungava.

    Tinha apenas seis anos.

    - Hope! Que diabo estás fazendo? - Cade correu pelo carreiro, com os tênis Nike a evidenciar-se no cascalho. O pai deixara-o à porta de Beaux Revés, dando-lhe liberdade para fazer o que quisesse durante o resto do dia. Todo o seu mundo parecia depender da rapidez com que ele conseguisse pegar na sua bicicleta e pedalar até ao pântano para se encontrar com Wade e com Dwight.

    E ali estava a sua linda e amada três velocidades toda amassada, com a sua irmãzinha estatelada ao lado dela.

    Não estava certo do que queria mais: gritar com ela ou acalmar a sua bicicleta ferida.

    - Bolas, olha para isto! Estragaste a pintura! Raios partam! - Disse a última frase entre dentes. Estava começando a experimentar praguejar, em segredo. - Não tinhas nada que ir pegar a minha bicicleta. Tens a tua.

    - É de bebê. - Ergueu o rosto e as lágrimas escorreram pela fina camada de sujeira que lhe cobria o rosto. - A mamãe não deixa o papai tirar as rodinhas.

    - Ora vê lá se sabes porquê. - Aborrecido, endireitou a bicicleta e lançou a Hope um ar superior. - Vai para dentro e diz à Lilah que te lave. E mantém os teus dedos pegajosos longe das minhas coisas.

    - Só quero aprender. - Passou a mão pelo nariz e através das lágrimas brilhou uma luz de desafio. - Podia andar tão bem como tu, se alguém me ensinasse.

    - Pois, pois. - Riu com ar de troça e montou a bicicleta. - Não passas de uma garotinha.                                                                :

    Nessa altura, ela pôs-se de pé de um salto, com o peito magro a arquejar de insulto.

    - Vou crescer - disse entre dentes. - Vou crescer e vou andar mais depressa do que tu e toda a gente. Depois, vais me pedir desculpas.

    - Oh, estou a tremer. - O divertimento voltou a surgir nos seus olhos azuis, enrugados nos cantos. Se um tipo tinha de aturar duas irmãs pequenas, o mínimo que podia fazer era arreliá-las. - Vou ser sempre maior, vou ser sempre mais velho, vou ser sempre mais rápido.

    O lábio de baixo tremeu-lhe, num sinal inequívoco de que mais lágrimas queriam correr. Ele lançou-lhe um olhar trocista, encolheu os ombros e começou a pedalar pelo carreiro acima, equilibrando-se momentaneamente numa só roda para provar os seus talentos superiores.                                                    Quando olhou para trás, de sorriso trocista, para ter a certeza de que ela vira as suas habilidades, viu que ela tinha a cabeça caída, com o cabelo pendurado para a frente, como uma cortina. Um fio fino de sangue escorria pelo seu tornozelo.

    Parou, revirou os olhos e abanou a cabeça. Os amigos estavam à espera. Havia um zilião de coisas para fazer. Metade do sábado já tinha ido ao ar. Não tinha tempo para gastar com raparigas. Especialmente com irmãs.

    Mas soltou um suspiro pesado e voltou para trás. Tão chateado com ela como consigo próprio, desmontou.

    - Anda lá. Raios partam!        

    Ela voltou a fungar, esfregou os olhos e olhou para ele.

    - Verdade?

    - Sim, sim, anda lá. Não tenho o dia todo.

    A alegria tomou conta dela, fazendo o coração bater mais depressa enquanto ela se sentava na bicicleta. Enquanto as suas mãos agarravam as pegas de plástico e ela ria nervosamente.

    - Presta atenção. Isto é um assunto sério. - Olhou para trás, na direção da casa, esperando que a mãe não pudesse vê-lo. Ia esfolar os dois no jantar.

    - Não, tens que... bem, centrar o corpo. - Ficou embaraçado ao dizer corpo, embora não soubesse bem porquê. - E olha sempre em frente.

    Ela olhou para ele, confiante, com um sorriso radioso como o sol que escorria por entre as folhas novas de primavera,    

    - Está bem.

    Ele lembrou-se de como o pai o ensinara a andar de bicicleta, e manteve a mão na parte de trás do assento, correndo um pouco quando ela começou a pedalar.

    A bicicleta balançava de forma cômica. Conseguiram andar três  metros antes de ela cair.

    Não chorou, nem hesitou em levantar-se e em voltar a montar. Ele teve de reconhecer que ela tinha coragem. Pedalaram e correram juntos, carreiro acima e carreiro abaixo, passando pelos velhos carvalhos, pelos narcisos com cara de sol, pelas tulipas jovens, enquanto a manhã dava lugar à tarde.

    A pele dela estava agora transpirada, e o coração continuava a bater, a bater, a bater. Mais de uma vez, mordeu o lábio inferior para não guinchar quando a bicicleta se inclinava. Ouvia a respiração dele perto do ouvido dela, sentia a mão dele segurá-la. E sentiu-se cheia de amor por ele.

    Mais do que por ela, era agora por ele que estava decidida a conseguir.

    - Eu consigo. Eu consigo - murmurava para si própria, enquanto a bicicleta se inclinava e era endireitada. Os olhos semicerravamm, na concentração feroz de uma criança que tinha apenas um objetivo, um mundo, um caminho. As pernas tremiam-lhe e os músculos dos  braços estavam tensos como tambores.

    A bicicleta inclinava-se debaixo dela, mas não caía. E, de repente, Cade estava a correr ao lado dela, com um sorriso radioso na cara.

    - Estás conseguindo! Continua, estás conseguindo!

    - Estou andando! - Debaixo de si, a bicicleta transformou-se num cavalo majestoso. Com a cara levantada, pedalou veloz como o vento.

    Tory acordou no chão, ao lado do carro, com os músculos a tremer, a pulsação descompassada, com uma dor feita de alegria e perda no coração.

    

    Só se lembrou do jantar alguns minutos antes de Cade bater à porta. Mal tivera tempo de lavar a cara e de disfarçar os vestígios do choro e do que se lhe seguira, e não tivera tempo de pensar numa desculpa aceitável para mandá-lo embora.

    Não conseguia deixar de pensar no assunto. As lágrimas tinham-na deixado vazia, a mente e o corpo. O regresso ao passado de Hope trouxera-lhe desconforto e dor.

    E emoção. Essa era a parte mais estranha, admitiu. A emoção da primeira vez em que andara de bicicleta, a felicidade pura de deslizar por aquele carreiro sombreado, com Cade a correr ao seu lado.

    A forma como os olhos dele, tão azuis, riam nos dela.

    O amor que sentira por ele, o amor inocente de uma irmã, ainda luzia dentro de si e misturava-se, perigosamente, como sabia, com as suas próprias emoções, que eram muito adultas e nada tinham a ver com laços de família.

    A mistura tornou-a vulnerável, a si própria e a ele. Era melhor, mais sensato, estar sozinha até aquilo passar.

    Ia dizer-lhe que estava exausta, demasiado cansada para comer. Isso, pelo menos, seria verdade.

    Ele era um homem razoável. Quase demasiado razoável, disse a si própria. Iria compreender e deixá-la sossegada.

    Quando abriu a porta, ele estava ali, de caçarola na mão. Os vizinhos, pensou ela, traziam comida quando alguém morria. Bem, os seus pés estavam mortos, por isso pareceu-lhe razoável.

    - A Lilah mandou isto. - Entrou e entregou-lhe a caçarola. - Disse que quem trabalha como tu trabalhaste não devia ter que fazer o jantar, ainda por cima. Tens instruções para pores isto no congelador e prepará-lo da próxima vez que chegares a casa e precisares de sentar-te com os pés numa almofada. O que - acrescentou ele, continuando a observar-lhe o rosto - parece ser esta noite. Sim, pensou ela, quase demasiado razoável.

    - Ainda não tinha percebido como estava cansada. Agora que acabou tudo, estou de rastros.

    - Estiveste chorando.

    - Reação a posteriori. Alívio. - Levou a caçarola para a cozinha, para guardá-la, e depois pensou no que iria fazer a seguir. - Sobre esta noite, desculpa. Foi uma boa idéia, sair para festejar. Talvez daqui a uns dias possamos... - Virou-se e chocou contra ele, ficando encostada à bancada.

    Houve uma explosão de desejo. Dela, dele, não teve a certeza.

    - Tiveste muito que fazer, hoje. - Não lhe deu espaço. Achou que já lhe tinha dado o suficiente. Pousou as palmas das mãos na bancada, uma de cada lado de Tory. Prendeu-a ali. Viu-lhe nos olhos que ela percebeu o movimento. Viu que ela ficou alerta. - Muitas pessoas, e as recordações que trazem com elas.

    - Sim. - Começou a mexer-se e percebeu que não podia ir para lado nenhum. O seu sangue estava quente, pensou com algum embaraço. Quente, rápido e ávido. - As recordações pareciam seixos atirados com uma fisga.

    Que tinham acabado por derrubá-la.

    - Todas dolorosas.

    - Não. - Meu Deus, não me toques. Mas no momento em que ela pensou isto, as mãos dele pousaram nos ombros dela e começaram a descer-lhe pelos braços. Tudo dentro dela começou a pulsar. - Foi maravilhoso ver a Lilah... e o Will Hanson. Está muito parecido com o pai. Quando era pequena, Mister Hanson, o velho Mister Hanson, costumava fiar-me Grape Nehi quando eu não tinha dinheiro. Coisa que acontecia muitas vezes. Cade...

    O nome dele soou quase como uma súplica. Não saberia dizer porquê.

    Estava tremendo. Os pequenos calos que ele tinha nas palmas das mãos eram maravilhosamente estimulantes.

    - Gostei de te ver, hoje. Toda arranjada. Calma e fresca. Fico sempre pensando no que se passa debaixo dessa capa.

    - Estava nervosa.

    - Não se notava. Pelo menos da maneira como se nota agora. Baixa as defesas, Tory. Quero que baixes as defesas. Vou aproveitar-me disso.

    - Cade, não tenho nada para dar-te.    

    - Então, porque estás a tremer? - Tirou-lhe a fita do cabelo e ouviu a ligeira alteração da respiração dela. Fixou os olhos nos dela, vendo as íris escurecerem enquanto ele lhe penteava o cabelo com os dedos e desfazia o apanhado. - Porque não me mandas parar?

    - Eu... - Estaria sentindo os joelhos fraquejarem? Esquecera-se de que isso podia ser uma sensação maravilhosa. Rendição nem sempre significava fraqueza. - Estou pensando nisso.

    Ele sorriu, um sorriso divertido e com um prenúncio de força.

    - Então, vai pensando. Eu vou-me aproveitando. - Desapertou-lhe o primeiro botão da camisa, depois o segundo.

    Ele ensinara Hope a andar de bicicleta, pensou Tory. Tinha apenas dez anos e fora homem suficiente para se preocupar.

    Hoje tinha-lhe mandado flores. As flores certas, porque sabia que iriam agradar-lhe.

    Agora estava a tocar-lhe como ninguém lhe tocava havia muito tempo.

    - Estou destreinada.              

    Ele desapertou o terceiro botão.                                

    - De pensar?

    - Não. - A respiração dela soltou-se num riso trémulo. - Penso quase sempre muito bem.                                  

    - Então, pensa nisto. - Deu um pequeno puxão na camisa, para desprendê-la do cinto das calças. - Quero tocar-te. Quero sentir a tua pele com as minhas mãos. Assim. - Passou as mãos nas costas dela, para cima e para baixo. O estômago dela tremeu quando ele lhe desapertou as calças. - Não, fica com os olhos abertos.

    Curvou-se sobre ela e mordeu-lhe o queixo. Uma pequena mordidela que lhe enviou uma dor ao centro do corpo.

    - Como estás destreinada, vou guiar-te. E quero que olhes para mim enquanto estou a tocar-te.

    Olha sempre em frente, dissera ele a Hope. E segurara-a.

    - Quero olhar para ti - disse-lhe ela.

    Ele abriu o fecho, lentamente, com os nós dos dedos a roçarem a pele dela. O leve gemido que ela soltou troou-lhe nos ouvidos.

    Passara tanto tempo desde a última vez que um homem a desejara. Desde que um homem a fizera desejar. Quis ficar tensa, rígida, à idéia de invasão da privacidade, de invasão do seu ser. Mas o corpo dela o desejava.

    - Tira os pés - murmurou ele, quando as calças dela lhe caíram aos pés. Quando ela pestanejou e abriu a boca para falar, ele cobriu-a com a dele. Suave e quente, tranquilizadora até, mesmo deixando transparecer a impaciência.

    Depois, os braços dele envolveram-na, deslizando-lhe pelas costas, enquanto ele a levava, numa valsa de sedução, até à porta. Os nervos seguiram o calor que lhe subiu à pele.

    - Cade.

    - Quero levar-te para a luz. - Ela já era dele. Nenhuma barreira, nenhuma dúvida o deteria. - Para poder ver-te quando estiveres debaixo de mim. Quando estiver dentro de ti.

    À porta do quarto, pegou-a no colo.

    - Há uma série de coisas que imaginei fazer-te nesta cama. Deixa-me experimentar.

    O sol brilhava, rico e dourado, na tarde de primavera. Derramava -se sobre a cama, derramou-se sobre o rosto dela quando ele a deitou. O colchão cedeu sob o peso dele, e ele entrelaçou os dedos nos dela. E a olhar para ela, sempre a olhar para ela, tomou-lhe a boca.

    Lentamente, primeiro, e docemente, até as mãos dela cederem sob as dele, até os lábios dela se tornarem suaves e se entreabrirem num convite. Ele sentiu o coração dela começar a bater mais devagar e de forma mais densa. E quando ela se abriu a ele, ele mudou de registro e deu início ao ataque.

    A urgência súbita apunhalou-a, chocando os sentidos, cortando os nervos. Ela arqueou o corpo quando o calor se enovelou no estômago e o gemido se estrangulou na sua garganta. Ele fê-la tremer convulsivamente com a boca.

    Não queria que ela se antecipasse. Queria todos os seus sentidos entorpecidos e a sua mente vazia de tudo, exceto de prazer. Pensaria nele, apenas nele. Ele faria com que assim fosse. Quando ela mergulhasse nele, ele tê-la-ia, finalmente.

    O corpo dela era leve, os músculos surpreendentemente firmes, quase rijos, num contraste delicioso com a pele delicada. Ele saboreou-a, enquanto uma parte dele pensava em como afastar aqueles nervos e destruir todas as barreiras.

    Puxou-a para cima, com rudeza, à beira de lhe deixar nódoas negras, arrancando-lhe outro gemido enquanto a cabeça lhe tombava para trás, com o cabelo solto. Depois, com as pontas dos dedos, fez passar as alças do sutiã pelos ombros. Os dedos dele dançaram levemente sobre os seios, e com o polegar circundou-lhe os mamilos, sobre o algodão.

    -Já te lembras agora?

    Ela sentia a cabeça tão pesada, a pele tão quente.

    - O quê?

    - Muito bem.              

    Ele desapertou-lhe o sutiã e atirou-o para o lado. Mas quando ela quis tocá-lo, ele segurou-lhe as mãos à cama, empurrando-as para trás até ela ficar com os braços esticados.

    - Quero que aproveites. Que aproveites até não poderes mais. Depois, podes soltar-te e dar. Tudo.

    A boca dele apossou-se da dela, movendo-se violentamente, arrebatando-a.

    Ela quis resistir, empurrá-lo antes que ele a arrastasse para lá de uma linha que ela jurara não voltar a atravessar. Mas a boca dele já voltava a tomar conta da boca dela, arranhando-a com os dentes, despertando com a língua pontos de prazer dentro dela. As costas dela arquearam-se, num convite, e os lábios dela começaram a sugá-lo. Pequenos gritos e gemidos, ela já não conseguia contê-los. Os braços tremiam-lhe de esforço, enquanto o seu corpo rejubilava. Uma agitação descontrolada tomava conta dela, querendo libertar-se.

    Um orgasmo intenso e rápido fê-la abrir muito os olhos, deixando-a entorpecida e embaraçada. Depois, ele puxou-a para si, agarrando-a com força. - Solta-te.

    Deitou-a de costas na cama, arrancando a camisa. Ela tinha o olhar enevoado, agora, a respiração tão ofegante como a dele. Desta vez, quando ela quis tocar-lhe, ele entrou no abraço dela.

    A boca dele tinha pressa, as mãos moviam-se com impaciência. Ela puxou-lhe as calças, desesperada, agora que os nervos tinham sido tragados pelo desejo. Ele atirou-as para o lado e depois fê-la voar quando a puxou subitamente pelas ancas e a tomou com a boca.

    As mãos dela agarraram com firmeza os ferros da cama, como ele imaginara. A cabeça dela descaiu-lhe para o lado, enquanto as sensações mais secretas a invadiam. O sabor dele, o cheiro dele inundavam-lhe os sentidos, extravasando-os até não existir mais nada. A respiração dela soltou-se, numa convulsão momentânea, antes do seu grito longo e inesperado de libertação.

    Ela sentiu as mãos liquefazerem-se e ele prendeu-as com as suas. Tinha o coração a bater descompassadamente, numa fúria de sangue. A derradeira luz do dia e a brisa da noite roçavam o rosto dela. O cabelo dela era uma massa solta sobre as almofadas, emoldurando-lhe o rosto afogueado.

   

    Ele nunca se esqueceria disto. E ela também não, prometeu a si próprio.

    - Abre os olhos. Tory, olha para mim. - Quando as pálpebras dela se abriram rapidamente, ele agarrou-se à última réstia de controle, inclinou a cabeça e beijou-a longamente, profundamente. - Diz o meu nome.

    A pressão voltara, o calor terrível e glorioso da pressão.

    - Cade.

    - Diz outra vez.

    Os dedos dela dobraram-se sob os dele. Teve vontade de chorar. Ou de gritar.                                                                     

    - Cade.       

    - Outra vez. - E mergulhou nela.

    A mente dela iluminou-se. Moveu-se com ele, ao encontro de cada impulso lento e suave. Absorvendo-o, alimentando-se de cada sensação, até ambos se transformarem numa celebração gloriosa.

    Cade, quente e firme dentro dela, o seu peso sólido, forte. A colcha macia nas costas dela, a barra de ferro contra as suas mãos. E os últimos raios de luz, acinzentando-se com o crepúsculo.

    Quando o ritmo aumentou, ela estava pronta, ansiosa e enlevada pela forma como os olhos dele, o seu azul espantoso, se mantinham fixos nos dela.

    - Fica comigo. - Ele estava perdido dentro dela, agora. A afogar-se nela, agora. O coração dele batia brutalmente contra o de Tory quando ele enterrou a cara nos cabelos dela.

    Com as mãos ainda entrelaçadas, deixaram-se ir.       

    Nunca tinha sido tomada tão completamente. Por ninguém. Nem pelo homem que amara. Tory achou que devia estar preocupada com isso, mas naquele momento não conseguia reunir energia para preocupações e análises.

    Ficou deitada debaixo dele enquanto o ar no quarto adquiria a suavidade do crepúsculo. Pela primeira vez em muito, muito tempo, sentia-se completamente descontraída, corpo e espírito.

    Tinha uma mão emaranhada no cabelo dele. Parecia certo deixá-la ali.

    Quando ele virou a cabeça e os seus lábios lhe roçaram o seio, sorriu, sentindo o prazer lânguido do gesto.

    - Parece que, afinal, comemoramos - murmurou ela, e pensou se seria má educação deixar-se adormecer, assim mesmo.

    - Vamos ter muito mais ocasiões para celebrar, daqui em diante. Desde que te ajudei a carregar esta cama até aqui que queria meter-te nela.

    - Eu sei. - Tinha os olhos quase fechados, mas sentiu-o mexer a cabeça outra vez, sentiu-o a olhar para ela. - Não foste muito sutil sobre o assunto.

    - Fui bem mais sutil do que queria. - Pensou em como pensara em ornamentar a primeira vez com música e luz de velas.

    - Saímo-nos bem sem elas - disse ela, sonolenta.

    - Sem o quê?

    - Sem a música e... - Abriu os olhos de repente, horrorizada, e fixou os dele, que a observavam. - Desculpa. Desculpa. - Tentou empurrá-lo. Libertar-se, mas o peso dele reteve-a.

    - Desculpa, porquê?

    - Eu não queria. - Pressionou as mãos contra a cama, agarrou a colcha, quase começando a tremer. - Não vai acontecer outra vez. Desculpa. Eu não queria.                                                 

    - Ler-me o pensamento? - Ele mexeu-se, de modo a poder apoiar-se nos cotovelos e pegar-lhe no rosto com as mãos. - Pára com isso.

    - Vou parar. Desculpa. Lamento imenso.              

    - Não, raios. Pára de desculpar-te. Pára de antecipar as minhas reações. E, raios partam, pára de pensar se e quando irei chatear-me contigo.

    Sentou-se e puxou-a para cima, para que ela pudesse olhar de frente para ele. O rosto dela perdera aquele brilho de cor e de felicidade e estava pálido, os olhos estavam aflitos, quase aterrorizados.

    Ele detestou isso.

    - Alguma vez te ocorreu que talvez haja alturas em que um homem não se importa que uma mulher lhe leia o pensamento?

    - É uma invasão de privacidade indesculpável.

    - Pois sim. - Para surpresa dela, ele rolou para o outro lado e fê-la rolar com ele, pelo que ela ficou deitada em cima do seu peito. - Parece-me que há uns minutos atrás invadimos a privacidade um do outro de uma forma bastante eficaz. Vai-me roubando um pensamento ou outro, que eu logo te digo se ficar chateado.

    - Não te entendo.

    - Devias ter uma boa pista, já que estou aqui deitado, nu, na tua cama. - Manteve um tom de voz propositadamente despreocupado.

    - Se isso não te serve, volta a observar bem e logo vês o que encontras.

    Ela não sabia se havia de sentir-se insultada ou horrorizada.

    - Não é assim.

    - Não? Então diz-me como é. - Quando ela abanou a cabeça, ele segurou-a pela nuca e começou a afagá-la. - Diz-me como é.

    - Eu não leio pensamentos. Não acontece por acaso, pelo menos quase nunca acontece. Só que estávamos muito próximos fisicamente.

    - Não consigo contra-argumentar.

    - E eu estava quase a dormir. Às vezes, pode aparecer quando me deixo ir, assim. Tu tinhas uma imagem na cabeça. Era uma idéia muito clara, muito distinta, e aconteceu. Luz de velas, a música a tocar, nós dois de pé, junto à cama. Vi-a na minha cabeça.

    - E o que tinhas vestido? - Quando ela abanou a cabeça, ele encolheu os ombros. - Deixa lá. Posso guardar esse para mim. Tu recebes imagens, imagens de pensamentos.

    - Às vezes. - Ele parecia tão descontraído, tão a vontade. Onde estava a fúria dele? - Meu Deus, tu me confundes.

    - Ainda bem, assim vais querer saber mais sobre mim. E isso funciona sempre assim?

    - Não, não. Porque quando se tem alguma decência, não se anda a espreitar os pensamentos privados dos outros. Consigo bloqueá-los. É simples, porque de qualquer forma eles só vêm ter comigo com esforço, ou se houver muita emoção de ambos os lados. Ou se eu estiver muito cansada.

    - Está bem. Então, da próxima vez que fizermos amor e tu estiveres a deixar-te dormir, o melhor é eu tirar da cabeça as mjnhas fantasias sobre a Meg Ryan.

    - Meg... - Perplexa, Tory voltou a sentar-se, cruzando automaticamente um braço sobre os seios. - Meg Ryan.

    - Perfeita, atraente, inteligente. - Cade abriu os olhos. - Parece ser o meu tipo. - Inclinou a cabeça e observou-a. - Estou tentando imaginar-te loura. Podia dar certo.

    - Não vou fazer parte de uma fantasia doentia que cozinhaste sobre uma atriz de Hollywood. - Impaciente, fez menção de sair da cama e voltou a achar-se deitada de costas, debaixo dele.

    - Vá lá, querida, só desta vez.                 

    - Não.

    - Meu Deus, tu riste. A Meg tem um riso sensual, assim. - Mordeu o ombro de Tory. - Agora estou excitado.           

    - Larga-me, seu idiota.

    - Não posso. - Cobriu-lhe o rosto de beijos, loucos e doces como os de um cachorro. - Sou vítima das minhas fantasias, não posso fazer nada. Ri outra vez. Estou a implorar-te.

    - Não! - Mas riu. - Não! Nem sequer penses em... Credo! - As gargalhadas e as tentativas de libertação pararam quando ele deslizou suavemente para dentro dela. Os lábios entreabriram-se-lhe e as mãos dela agarraram os quadris dele. - Não te atrevas a chamar-me Meg.

    Ele baixou a cabeça, contendo o riso enquanto voltava a fazê-la sua.

    Comeram a refeição que Lilah mandara e acompanharam-na com vinho. E voltaram para a cama, com a avidez e a energia que alimenta os novos amantes. Fizeram amor ao luar, com os raios prateados sobre os seus corpos juntos. Depois, dormiram com as janelas abertas para deixar entrar a brisa suave e os cheiros verdes do pântano.

   

    - Ele vem aí outra vez.

    Hope estava sentada, de pernas cruzadas, no alpendre da Casa do Pântano. O alpendre que não existia quando ela estava viva. Tinha a mão cheia de peças de metal do jogo das três-marias e começou a jogar.

    - Ele está vendo.

    - Quem? Quem está ele vendo? - Tory voltara a ter oito anos, o rosto magro desconfiado, as pernas cheias de nódoas negras.

    - Gosta de fazer mal às meninas. - Lançou a última peça e voltou a apanhá-la. - Sente-se grande, importante. Dois a dois. - Mantendo o ritmo, começou a fazer pares.

    - Ele também fez mal a outras meninas. Não foi só a ti.

    - Não foi só a mim - concordou Hope. - Tu já sabes. Três a três. - As peças batiam umas nas outras e a bola batia metodicamente na madeira. Uma ligeira brisa volteava, misturada com o aroma das rosas e das madressilvas. - Tu já sabes, como quando viste a fotografia do rapazinho, daquela vez. Tu soubeste.

    -Já não consigo fazer isso. - Dentro do peito da criança, o coração de Tory começou a aumentar de tamanho e a bater com força. - Já não quero fazer isso.

    - Vieste - disse Hope, simplesmente, e começou a apanhar as peças quatro a quatro. - Tens de ter cuidado para não ires demasiado depressa, nem demasiado devagar - prosseguiu ela, continuando a jogar. - Ou perdes a vez.

    - Diz-me quem ele é, Hope. Diz-me onde ele está.

    - Não posso. - Apanhou outro conjunto, mas depois uma das peças escapou-lhe. - Ups. - Olhou para Tory, com olhos límpidos. - É a tua vez, agora. Tem cuidado.

   

    Tory abriu os olhos de repente. Tinha o coração a bater contra as costelas e a mão fechada num punho apertado. Tão apertado que quase ficou surpreendida por não rolar lá de dentro uma pequena bola vermelha quando abriu os dedos doridos.

    Estava completamente escuro. A lua desaparecera e deixara o mundo na perfeita escuridão. A brisa suave desaparecera com ela, por isso o ar estava quieto. Silencioso.

    Ouviu um mocho e o som estridente das rãs. Ouviu a respiração regular de Cade, a seu lado, no escuro, e percebeu que se chegara para a beira da cama, afastando-se dele o mais possível.

    Nenhum contacto durante o sono. A mente estava demasiado vulnerável para dar-se ao luxo de um abraço casual.

    Esgueirou-se da cama e foi até à cozinha, em bicos de pés. No lava-louça, abriu a torneira e deixou correr a água até esfriar, e depois encheu um copo.

    O sonho dera-lhe uma sede desesperada, e recordara-lhe porque não devia estar a dormir com Kincade Lavelle.

    A irmã dele estava morta, e se ela não era a responsável sentia-se como tal. Já se sentira assim antes e avançara. O caminho que tomara trouxera-lhe grandes alegrias e uma dor enorme. Nessa altura, dormira com outro homem e entregara-se sem reservas e com um amor inocente.

    Quando o perdera, perdera tudo, e prometera a si própria nunca mais voltar a fazer aquele tipo de escolha, a cometer aquele tipo de erro.

    No entanto, ali estava ela, aberta a toda aquela dor pela segunda vez.

    Cade era o tipo de homem por quem as mulheres se apaixonavam. O tipo de homem por quem ela podia apaixonar-se. Depois de dado esse passo, coloria todos os pensamentos, todas as ações e sentimentos. No espectro da felicidade. No cinzento profundo do desespero.

    Por isso, não podia dar este passo. Outra vez, não. Teria de ser suficientemente sensível para aceitar a atração física, apreciar os resultados dessa atração e manter as emoções à parte e controladas. Que outra coisa tinha ela feito ao longo de quase toda a sua vida?                                                                                                       

    O amor era uma coisa temerária e perigosa. Havia sempre qualquer coisa à espreita na sombra, ávida e maliciosa, à espera.

    Levou o copo aos lábios e viu. Do outro lado da janela, do outro lado do escuro. Nas sombras, pensou, lentamente. À espera. E o copo escorregou-lhe das mãos e espatifou-se no lava-louça.

    - Tory? - Cade acordou de repente e chamou-a, saltou da cama e caminhou na escuridão, aos tropeções. Praguejando, correu na direção da cozinha.

    Ela estava ali, sob a luz, com as mãos no pescoço, a olhar fixamente para a janela.

    - Está alguém no escuro.                          

    - Tory. - Viu o brilho do pedaço de vidro que saltara do lava-louça para o chão. Pegou-lhe nas mãos. - Estás ferida?

    - Está alguém no escuro - repetiu ela, numa voz muito parecida com a de uma criança. - À espreita. No escuro. Já esteve aqui antes. E vai voltar. - Os olhos dela fixaram os de Cade, viram através deles, e tudo o que ela viu foi sombras, silhuetas. E sentiu frio. Muito frio.

    - Ele vai ter de matar-me. Não sou eu, mas ele vai ter de matar-me, porque eu estou aqui. A culpa é minha. Toda a gente consegue ver isso. Se eu tivesse ido com ela naquela noite, ele só teria ficado à espreita. Como já tinha feito. Só teria ficado à espreita, a imaginar-se a fazer aquilo. A imaginar e a usar a mão, para poder sentir-se um homem.

    Os joelhos vacilaram-lhe, mas protestou quando Cade a agarrou.

    - Estou bem. Só preciso de me sentar.

    - Deitar - corrigiu ele. Quando voltou a levá-la para a cama, vestiu as calças. - Não saias daqui.

    - Onde vais? - O terror súbito de ficar sozinha devolveu-lhe a força nos joelhos. Pôs-se de pé de um salto.

    - Disseste que estava qualquer coisa lá fora. Vou ver.

    - Não. - Agora, todo o medo era por ele. - Não é a tua vez.

    - O quê?

    Ela juntou as duas mãos e afundou-se no colchão.

    - Desculpa. A minha cabeça está confusa. Ele foi-se embora, Cade. Não está lá fora agora. Esteve a espreitar, antes, acho que era antes. Quando nós... - Sentiu-se enjoada. - Quando estivemos a fazer amor, ele esteve a espreitar.

    Com um sorriso estranho, Cade acenou com a cabeça.

    - Seja como for, vou ver.

    - Não vais encontrá-lo - murmurou ela, enquanto Cade saía.

   

    Mas ele queria encontrá-lo. Queria encontrar alguém e usar os seus punhos, usar a sua fúria. Acendeu as luzes do exterior e observou a área varrida pela luz amarela e pálida. Foi até à sua camioneta, tirou uma lanterna da caixa de ferramentas e a faca que guardava ali.

    Armado, deu a volta à casa, apontando a luz para o chão e para as sombras. Perto da janela do quarto, onde a erva precisava de ser aparada, acocorou-se junto a uma área pisada, onde podia ter estado um homem.

    - Filho da mãe. - Soltou a frase entre dentes e a mão apertou mais o cabo da faca. Endireitou-se e virou-se, pronto a encaminhar-se na direção do pântano.

    Ficou ali, a lutar contra a impotência. Podia ir, dar uma vista de olhos, despejar alguma da sua ira. E deixar Tory sozinha.

    Optou por voltar para dentro e deixou a faca e a lanterna em cima da mesa da cozinha.

    Ela continuava ali sentada, com as mãos fechadas sobre os joelhos. Levantou a cabeça quando ele entrou, mas não disse nada. Não foi preciso.

    - O que fizemos juntos ali dentro foi nosso - disse Cade. - Ele não muda isso. - Sentou-se ao lado dela e pegou-lhe na mão. - Não consegue, se não o deixarmos.               

    - Ele tornou tudo uma coisa suja.

    - Para ele, para nós não. Para nós não, Tory - murmurou, virando o rosto dela para si.

    Ela suspirou e tocou-lhe com os dedos nas costas da mão.

    - Estás tão zangado. Como consegues controlar-te assim?

    - Dei uns pontapés na minha camioneta. - Deu-lhe um beijo no cabelo. - Queres dizer-me o que viste?

    - A raiva dele. Mais negra do que a tua poderia ser alguma vez, mas não... Não sei como explicar, não era substancial, não era real. E uma espécie de orgulho. Não sei. Talvez seja mais uma satisfação. Não consigo ver isso, ver a ele. Não sou eu quem ele quer, mas ele não pode deixar-me ficar, não pode confiar em mim por eu ser tão próxima de Hope.

    - Não sei se são os meus pensamentos ou os dele. - Ela fechou os olhos, com força, e abanou a cabeça. - Não consigo vê-lo claramente. É como se faltasse alguma coisa. Nele ou em mim, não sei. Mas não consigo vê-lo.                                                       

    - Não foi um estranho que a matou. Como pensamos todos estes anos.

    - Não. - Ela voltou a abrir os olhos e afastou-se do seu sofrimento, concentrando-se no dele. - Foi alguém que a conhecia, que a observava. Que nos observava. Acho que eu sempre soube disso, mesmo naquela altura, mas tinha tanto medo que não disse. Se tivesse voltado lá naquela manhã, se tivesse tido coragem de ir lá contigo e com o teu pai em vez de vos ter dito onde ela estava, talvez tivesse visto. Não tenho a certeza, mas talvez tivesse. E teria acabado tudo.

    - Não sabemos. Mas podemos começar a pôr um fim a tudo, agora. Vamos chamar a polícia.

    - Cade, a polícia... - Sentiu sua garganta se fechar. - É muito raro que a polícia me ouça, mesmo os polícias de mente mais aberta. Não espero encontrar alguém dessa raça aqui, em Progress.

    - O chefe Russ pode levar algum tempo a se convencer, mas vai ouvir-te. - Cade assegurar-se-ia disso. - Porque não vais vestir-te?

    - Vais telefonar-lhe agora? Às quatro da manhã?

    - Sim. - Cade pegou no telefone que estava em cima da mesa-de-cabeceira. - É para isso que lhe pagam.

    

    O chefe da polícia, Cari D. Russ, não era um homem grande. Aos dezesseis anos atingira a altura de um metro e sessenta e cinco e por aí ficara.               

    Não era um homem bonito. Tinha o rosto largo e picado de bexigas, com as orelhas presas de cada lado como asas de chávena gigantes. O cabelo era grisalho como uma almofada gasta.

    Tinha uma constituição bastante magra. Bem vestido e ensopado até aos ossos.

    Os seus antepassados tinham sido escravos, trabalhado nos campos. Mais tarde, tinham sido rendeiros nuns parcos metros de terra, de onde retiravam apenas o suficiente para o sustento familiar.

    A mãe ambicionara mais para ele, e forçara, insistira, dera sermões e ameaçara até que, sobretudo por autodefesa, ele se dispusera a querer mais.

    A mãe de Cari D. gostava do fato de o seu rapaz ser chefe da polícia, quase tanto como ele próprio.

    Não era um homem brilhante. A informação se cruzava no seu cérebro, percorria os seus meandros, enveredava por caminhos e desvios até assentar em pensamentos. Tinha tendência para trabalhar muito e ser muito lento.

    Tinha também tendência para ser exaustivo.

    Mas, acima de tudo, Cari D. era afável.

    Não praguejou nem resmungou por ser acordado às quatro da manhã. Limitou-se a vestir, às escuras para não incomodar a mulher. Deixou-lhe um bilhete na cozinha e meteu no bolso a última lista de coisas que ela anotara para ele fazer.

   

    -Isso foi a pior coisa que aconteceu por estes lados. O chefe Tate achou que tinha sido um vagabundo a fazer aquilo à menina. Nunca encontrou qualquer prova em contrário.

    - Nunca encontrou nada - corrigiu Tory. - Quem a matou conhecia-a. Tal como me conhece, e a si, e ao Cade. Conhece Progress. Conhece o pântano. E esta noite veio à janela da minha casa.

    - Mas não o viu?

    - Não da maneira que está a dizer.

    Cari D. recostou-se na cadeira e franziu os lábios. Pensou um pouco.

    - A avó da minha mulher, do lado da mãe, tem longas conversas com parentes que já morreram. Não vou dizer que isso é verdade ou que não é, porque não sou eu que tenho essas conversas. Mas no meu trabalho, Miz Bodeen, tudo se resume a fatos.

    - O fato é que eu soube o que tinha acontecido à Hope, e onde ela estava. O homem que a matou sabe isso. O chefe Tate não acreditou em mim. Concluiu que eu tinha estado ali, com ela, e que tinha fugido com medo. Que a tinha deixado ali. Ou que a tinha encontrado depois de ela estar morta e tinha ido para casa, esconder-me até de manhã.

    Havia bondade nos olhos de Cari D. Criara duas filhas.

    - A menina pouco mais era do que um bebê.

    - Mas agora sou adulta, e estou lhe dizendo que o homem que matou a Hope esteve ali fora, esta noite. Já matou outras moças, pelo menos mais uma. Uma moça a quem deu carona na estrada para Myrtle Beach. E já tem mais alguém em mira. Mas não sou eu. Não é a mim que ele quer.

    - Consegue  dizer-me  tudo  isto,  mas  não  consegue  dizer-me quem ele é.

    - Não, não consigo. Mas posso dizer-lhe o que ele é. Um psicopata, que acha que tem o direito de fazer o que faz. Porque ele precisa disso. Precisa da excitação e do poder que isso lhe dá. Um misógino, que acredita que as mulheres existem para serem usadas pelos homens. Um assassino em série, que não tem qualquer intenção de parar ou de ser parado. Tem dezoito anos disto - disse ela, calmamente. - Porque haveria de parar?

    - Não lidei muito bem com o assunto.

    Cade fechou a porta de trás e voltou a sentar-se à mesa. Ele e Cari D. tinham percorrido a propriedade e vasculhado as orlas do pântano. Não tinham encontrado nada, nenhuma pegada, nenhum pedaço de tecido preso num ramo.

    - Disseste-lhe o que sabes.                                

    - Ele não acredita em mim.                                                     

    - Quer acredite, quer não, vai fazer o que tem a fazer.

    - Pois, como fizeram há dezoito anos.

    Por um momento ele não disse nada. A recordação daquela manhã significava sempre um murro súbito e forte no estômago.

    - Quem estás a culpar, Tory? A polícia ou tu própria?

    - Ambas. Ninguém acreditou em mim e eu não consegui explicar-me. Sabia que ia ser castigada, e que quanto mais dissesse pior seria o castigo. Acabei por fazer o que pude para me preservar.

    - Não foi o que fizemos todos? - Ele afastou-se da mesa e aproximou-se do fogão para servir-se de uma chávena de café que não queria. - Eu sabia que ela tinha saído de casa naquela noite. Sabia que ela estava planejando esgueirar-se. Não disse nada, nem naquela altura, nem no dia seguinte, nem nunca, sobre ter visto a bicicleta dela escondida. Naquela noite considerei isso uma espécie de código de honra. Não se faz uma denúncia, a não ser que se consiga alguma coisa em troca. Que mal tinha ela querer pegar a bicicleta e ficar fora de casa algumas horas?                                                  

    Virou-se, e viu Tory a olhar para ele.

    - No dia seguinte, quando a encontramos, não disse nada. Isso também foi autopreservação. Haviam de culpar-me, tanto como eu me culpava a mim próprio. E passado algum tempo, parecia já não valer a pena. Faltava-nos um pedaço a todos, e nunca poderíamos recuperá-lo. Mas consigo voltar àquela noite, revê-la na minha cabeça. Só que desta vez conto ao meu pai que ela tem a bicicleta escondida, e ele vai buscá-la e dá um grande sermão à Hope. Na manhã seguinte, ela acorda na cama dela, sem lhe ter acontecido nada.

    -  Lamento.                                                                                                                            

    - Oh, Tory. Também eu. Há dezoito anos que lamento. E durante esse tempo tenho visto a irmã que me resta fazer tudo o que pode para estragar a vida. Vi o meu pai afastar-se de todos nós, como se estar conosco o magoasse mais do que ele podia suportar. E a minha mãe fechar-se atrás de camadas e camadas de amargura e de modos requintados. Tudo porque eu estava mais interessado nas minhas coisas do que em saber se a Hope estava deitada na cama dela, onde devia estar.

    - Cade. teria acontecido noutra noite.

   

    - Negócios?

    - Tenho as tais amostras lá fora, na camioneta. Vou buscá-las e depois fazemos negócio.

    Tory olhou para o relógio. Ainda mal eram sete horas.

    - Porque não? Desta vez, fazes tu o café.

    Faith esperou até às dez e meia, quando teve a certeza de que a mãe e Lilah tinham saído para a missa. Há muito que a mãe deixara de esperar que Faith fosse à missa ao domingo, mas Lilah tinha a cabeça dura quanto a estas questões de Deus, e considerava-se muitas vezes o Seu sargento mandatário, arrancando as tropas da cama e mandando-as para a igreja sob ameaças de condenação eterna.

    Sempre que ela estava em casa, Faith tinha o cuidado de se esconder e de se esconder bem, aos domingos de manhã. Compensava-a ocasionalmente, usando um vestido modesto e apresentando-se na cozinha para que Lilah pudesse arrastá-la em direção à redenção.

    Mas naquele domingo não estava com disposição para fazer favores a ninguém, nem para se sentar num banco duro, a ouvir um sermão. Só queria afogar as mágoas numa tigela de sorvete de chocolate ao pequeno-almoço, e não se esquecer de que os homens eram uns grandes filhos da mãe.                                         

    Quando pensava em todo o trabalho a que se dera por causa de Wade Mooney, tinha vontade de vomitar. Tinha espalhado creme perfumado por todo o corpo, vestido a lingerie mais sexy que o dinheiro podia comprar, e estava disposta a deixá-lo arrancar aqueles pedaços de cetim e de renda. Calçara uns sapatos com um salto de dez centímetros e metera-se num vestido preto e minúsculo que gritava «Quero pecar».

    Vasculhara a adega, à procura de duas garrafas que custavam mais do que um curso universitário e que iam fazer com que o Cade a esfolasse viva, se descobrisse.

    E quando chegara a casa de Wade, toda aprumada, resplandecente e perfumada, ele não tivera a decência de estar em casa.

    Filho da mãe.

    Pior, esperara por ele. Arrumara-lhe o quarto como uma empregada, acendera velas, pusera música. Depois, quase adormecera durante a espera.

    Esperara mais uma hora, até quase à uma da manhã, já movida por um objectivo diferente. Como desejara que ele entrasse por aquela porta para ela poder dar-lhe uns bons pontapés no rabo e atirá-lo das escadas abaixo.

    Por culpa dele ficara meia bêbeda com o vinho, e por culpa dele, devido ao álcool que tinha no sangue, calculara mal a distância entre os portões e riscara o carro.

    Por isso, era dele a culpa por ela estar ali sentada num domingo de manhã, com uma ressaca miserável, a empanturrar-se de sorvete.

    Nunca mais queria vê-lo.

    Na verdade, pensou em desistir dos homens definitivamente. Não valiam o tempo nem o trabalho a que se dava uma mulher. Ia expulsá-los da vida dela e encontrar outras áreas de interesse.

    Cade entrou no momento em que Faith voltava a meter a colher na embalagem de quase dois litros de sorvete, e como sabia o tipo de disposição que conduzia àquele tipo de comportamento tentou esgueirar-se.

    Mas não foi suficientemente rápido.

    - Senta-te. Não vou morder-te. - Acendeu um cigarro e depois continuou, fumando com uma mão enquanto comia com a outra. - Foram todos à igreja, salvar as suas almas imortais. A Tia Rosie foi com a Lilah, acho eu. Gosta mais de ir à igreja da Lilah do que à da mãe. Vi-as sair. A Tia Rosie tinha um chapéu grande como um prato para servir um peru e uns tênis verde-lima, por isso não pode ter ido com a mãe.

    - Foi uma pena eu ter perdido isso. - Pegou numa colher, sentou-se e tirou um pouco de sorvete. - Então, que se passa?

    - Porque havia de passar-se alguma coisa? Estou contente como um ganso com um ninho de ovos de ouro. - Soprou o fumo, semi-cerrou os olhos e olhou-o fixamente.                              

    Tinha o cabelo um pouco úmido, por isso as pontas douradas estavam viradas para fora. Isso significava uma ducha tomada há pouco tempo, já que Cade nunca se dava ao trabalho de fazer mais do que esfregá-lo numa toalha para secá-lo.

    Os olhos, azuis como os dela, estavam preguiçosamente satisfeitos, e os lábios se curvavam num sorriso meio trocista.

    Ela conhecia o tipo de atividade que punha aquele olhar no rosto de um homem.

    - Trazes a mesma roupa de ontem. Não vieste a casa, pois não? Ora, ora, ora. Acho que alguém teve sorte, ontem à noite.

    Cade lambeu a colher e observou-a.

    - E eu acho que alguém não teve. Não vou ficar aqui a discutir a minha vida sexual enquanto comes o teu sorvete ao pequeno-almoço.

    - Tu e a Tory Bodeen. Não é uma perfeição?   

    - Eu gosto. - Cade tirou mais uma colher de sorvete. - Não te metas, Faith.

    - Porque havia de meter-me? Que me importa isso? Só não entendo o que vês nela, só isso. É bonita, mas há uma espécie de frieza à volta dela. Mais cedo ou mais tarde, vai congelar-te. Ela não é como nós.

    - Terias uma opinião diferente, se te desses ao trabalho de conhecê-la. Ela precisa de uma amiga, Faith.

    - Bem, não olhes para mim. Sou uma amiga reles. Podes pedir a outra pessoa. E nem sequer gosto muito dela. Se queres enrolar-te com ela umas quantas vezes, o problema é teu. - Ei! - Olhou para cima, insultada e surpreendida quando ele lhe agarrou o pulso e lhe prendeu bruscamente ambas as mãos à mesa.

    - Não é nada disso. - A voz dele era suave como seda, e nos seus olhos havia uma luz ameaçadora. - O sexo não é um passatempo para toda a gente.

    - Estás me magoando.

    - Não, tu é que estás te magoar. - Soltou-a e depois levantou-se e atirou a colher para o lava-louça.

    Faith esfregou o pulso cuidadosamente.

    - O que estou a fazer é a certificar-me de que não sou magoada. Se tu queres entregar o teu coração para alguém poder pisá-lo, é contigo. Mas de uma coisa eu tenho a certeza: não queres apaixonar-te pela Tory. É uma coisa que nunca vai dar certo.

    - Não sei se quero ou não. Não sei se vai dar certo ou não. - Virou-se. - O que pareces não saber, Faith, é como és parecida com ela. As duas empenhadas em conter os vossos sentimentos, para não correrem o risco de qualquer coisa poder magoar-vos. Ela faz isso fechando-se nela própria, e tu fazendo um espalhafato. Mas no fundo é a mesma coisa!

    - Eu não sou como ela! - Faith gritou a frase enquanto ele saía da cozinha. - Não sou como ninguém, sou como eu e mais nada!

    Furiosa, atirou a colher para o chão, e deixando o sorvete derreter em cima da mesa subiu as escadas, pisando os degraus com força, para ir vestir-se.                                

    Tinha de descarregar em alguém, e por isso, apesar de o pensamento dela continuar fixo em Wade, ele foi o eleito. Vestiu-se também para esta ocasião. Tinha o seu orgulho, e queria ter um ar deslumbrante quando lhe trespassasse o coração, o rasgasse em mil pedaços e depois o deitasse para o lixo e se afastasse, a dançar e a cantar de felicidade.

    Vestiu-se de seda azul-profundo, para realçar os olhos e fazê-lo lembrar-se deles. Preparou-se para abrir de par em par a porta do apartamento dele, mas deteve-se e bateu formalmente.

    Ouviu uivos e latidos do outro lado e revirou os olhos. Levara um dos seus rafeiros nojentos lá para cima. Como se tinha deixado chegar a este ponto com um homem que pensava mais num cão vadio do que numa mulher que queria saltar-lhe para os ossos?

    Graças a Deus que ela tivera juízo.

    Ele abriu a porta, em desalinho, com olhos sonolentos, usando apenas um par de calças de brim cujo botão não se dera ao trabalho de apertar. E ela lembrou-se como chegara àquele ponto com aquele homem.

    Sentiu-se agitada mas ignorou a sensação e meteu-lhe a chave na mão.                                                                       

    - Que foi?

    - Isto é só para começar. Tenho umas coisas para te dizer e depois vou-me embora. - Deu-lhe um empurrão e entrou. Usava saltos altos, o que lhe realçava as pernas sob o vestido curto. Apenas para atormentá-lo.                     

    - Que horas são?

    Cerrou os dentes. Ele estava a destruir o timing que ela programara.                                                                             

    - É quase meio-dia.                                                                      

    - Meu Deus, não pode ser. Tenho que estar em casa da minha mãe daqui a uma hora. - Deixou-se cair numa cadeira e enterrou a cabeça nas mãos. - Devo estar morto daqui a uma hora.

    - Vais estar, se eu tiver uma palavra a dizer sobre o assunto. - Baixou-se, cheirou e recuou. - Cheiras ao fundo de uma garrafa de bourbon barato.

    - Foi uma garrafa cara, e eu não estou dentro dela. Ela é que está dentro de mim. - Sentiu o estômago perigosamente revolto. - Por enquanto.

    - Muito bem. - Pôs as mãos nas ancas. - Andaste metade da noite às gatas e a beber. Espero que te tenhas divertido.

    - Não tenho bem a certeza. Acho que quando comecei diverti-me.

    - Porque - continuou ela, furiosa com a interrupção -, daqui em diante, por mim podes passar todas as noites de sábado assim.

    O ciúme atacou subitamente, cortando o orgulho à sua passagem.

    - Quem diabo foi ela?

    - Quem? - Decidiu arriscar e deixou de apoiar a cabeça. Ficou vagamente desiludido por ela não lhe ter rolado dos ombros. - Quem foi quem?

    - A pegazita com quem pensas que podes andar a trair-me. - Pegou na coisa que tinha mais à mão, uma pequena luminária, puxou o fio que a ligava à corrente e arrancou-o. O resultado despoletou latidos no quarto e levou Wade a pôr-se de pé, ainda que pouco firme.

    -  Seu filho da mãe. Ela ainda está aqui?

    - Quem? Que diabo se passa contigo? Partiste a minha luminária.

    - E vou partir-te o pescoço. - Redemoinhou e correu para o quarto, tencionando arrancar os olhos à mulher que lhe usurpara o lugar.                                   

    Na cama estava um cachorro pequeno e preto, que ladrava furiosamente, tentando proteger-se contra as almofadas.

    - Onde está ela?

    - Quem? - Wade lançou as mãos à cabeça. Tinha o cabelo espetado e parecia ter sido esmurrado em ambos os olhos. - Onde está quem? De que raio estás tu a falar, Faith?

    - Da devassa com quem andas a dormir.

    - A única devassa com quem tenho andado a dormir, além de ti, é aquela. - Apontou para a cama. - E ela só está aqui há umas horas. É verdade, não significa nada para mim.

    - Pensas que podes fazer piadas acerca disto? Onde estiveste, a noite passada?                         

    - Saí. Raios partam! - Entrou no banheiro, revolvendo frascos e caixas enquanto procurava uma aspirina no armário dos medicamentos.

    - Saíste, muito bem. Cheguei aqui às nove e fiquei até quase à uma... - Bolas, não queria dizer-lhe que tinha esperado tanto tempo.

    -  E tu não apareceste.

    À beira do descontrole, engoliu quatro comprimidos com água morna, diretamente da torneira.

    - Não me lembro de termos combinado nada para a noite passada. Tu não gostas de fazer planos. Amarra-te, tira a animação às coisas. - Encostou-se ao lavatório e olhou para ela de uma forma ameaçadora. - Pois bem, isto é animado.                            

    - Era sábado à noite. Devias saber que eu vinha.

    - Não, Faith, eu não tenho de saber nada. Tu não queres que eu saiba nada!

    Ela inclinou a cabeça. Estavam a desviar-se do assunto.

    - Quero saber onde estiveste e com quem estiveste.

    - São muitas exigências por parte de alguém que não quer amarras. - Os olhos dele pareciam pulsar como tambores, mas podiam ficar ainda pior. - Sexo hetero, divertimento e jogos. Não são estas as regras básicas?

    - Eu não engano ninguém - disse ela, com alguma dignidade. - Quando estou com um homem, não ando a sair com outro. E espero o mesmo tipo de consideração.

    - Eu não estive com outra mulher. Estive com o Dwight.

    - Ora, isso é uma mentira da treta. O Dwight Frazier é um homem casado e não passou metade da noite a beber e na orgia contigo.

    - Não sei onde ele esteve depois das dez. Metido com a Lissy, em casa, acho eu. Foram ao cinema e eu também fui. - A voz tornara-se inexpressiva, os olhos frios e baços. - Eles foram para casa. Eu comprei uma garrafa e fui dar uma volta de carro. Embebedei-me e voltei para casa. E se tivesse feito qualquer outra coisa com qualquer outra pessoa, seria livre de o fazer. Tal como tu és. Foste tu que quiseste assim.                              - Eu nunca disse isso.                   

    - Nunca disseste outra coisa.     

    - Estou a dizer outra coisa agora.

    - Não pode ser tudo como tu queres, Faith. Se quiseres mudar as coisas, se quiseres que sejamos tu e eu, então vamos começar a juntar algumas das minhas regras.

    - Eu não disse nada sobre regras. - Ele estava a retorcer as coisas. Exatamente como os homens costumavam fazer. - Estou a falar de respeito mútuo.

    - E isso significa que tenho que ficar aqui sentado à espera que te apeteça companhia? Não acho. Cada um de nós anda por onde quer quando não queremos estar juntos. Ou então fazemos disto uma relação. Nada de escapadelas até aqui ou até algum hotel de estrada. Vamos deixar de fingir que não estamos envolvidos. Ou somos um casal ou não somos.

    - Estás a fazer ultimatos? - A voz adquiriu um tom brusco, vergastada pelo choque. - Estás a fazer-me ultimatos depois de me teres deixado aqui uma série de horas à espera?

    - Frustrante, não é? A espera. Faz-te sentir chateada. - Desencostou-se do lavatório e aproximou-se dela. - Faz-te sentir usada e arrependida e magoada. Eu sei.

    Encurralada, passou a mão pelo cabelo.                  

    - Nunca disseste nada sobre isso.

    - Terias saído disparada como um raio. É esse o teu estilo, Faith. Esta noite, quando estava sentado junto ao rio, com uma garrafa por companhia, ocorreu-me que não gostava disso em ti, como também não gostava de te deixar ser assim comigo. Por isso, estou a dizer-te. Ou tentamos que isto dê certo, como duas pessoas que se importam uma com a outra, ou vai cada um para seu lado.

    - Sabes que gosto de ti, Wade. O que achas tu que eu sou? Era mais do que isso, pensou ele, tratava-se do que ela achava que ela própria era.

    - Houve uma altura em que teria ficado contigo a qualquer preço. Esse tempo já lá vai. Agora quero mais, Faith. Se não me podes ou não me queres dar mais, vou  viver com isso. Mas não quero continuar a aceitar migalhas.                                          

    - Não compreendo isto. - A tremer, sentou-se na beira da cama. O cachorro rastejou até junto dela, para cheirá-la. - Não percebo como podes fazer-me isto.

    - A ti não, Faith. A nós. Quero que seja a nós, Faith. Estou apaixonado por ti.

    - O quê? Estás doido? - Voltou a levantar-se, com o pânico a sair-lhe por todos os poros. - Não digas isso.

    -Já o disse antes, mas tu nunca ouviste. Não era suficientemente importante. Desta vez vai ter de ser, ou não vou voltar a dizê-lo. Estou apaixonado por ti. - Agarrou-a pelos ombros. - É assim, faças o que fizeres.        

    - E o que queres tu que eu faça? - Sentiu o coração a pulsar-lhe no estômago, reconhecendo nisso uma sensação de puro pânico. - Ai, isto é uma trapalhada.

    - A resposta que costumas dar-me quando te digo que te amo é fugir e casar com outra pessoa. - Ele ergueu o sobrolho, enquanto ela ficava de boca aberta.

    - Isso não... Eu não... - Santo Deus, ele tinha razão. Era essa a resposta que costumava dar-lhe.             

    - Desta vez podíamos tentar outra coisa. Podíamos tentar lidar com isto como pessoas normais, e ver no que dá. Podíamos passar tempo um com o outro e fazer mais coisas juntos do que saltar para a cama. Há mais entre nós do que sexo.                                           

    Ela fungou.

    Ele soltou um pequeno riso e fez-lhe uma festa no cabelo.

    - Está bem, digamos que quero descobrir se há mais entre nós, além do sexo.

    - E se não houver?

    - E se houver?

    - E se não houver? Ele suspirou.

    - Então, acho que vamos acabar por passar muito tempo na cama. Se sobrar alguma coisa - acrescentou, e deu um passo em frente para afastar a almofada que o cachorro estava a tentar desfazer.

    Ele era sólido, tão inteligente e amável e bonito. E amava-a. Mas nunca ninguém a amara por muito tempo. Tem calma, ordenou Faith a si própria, pelo menos até o coração deixar de saltar.

    - Tenho dúvidas sobre uma relação em que um homem dorme com cachorros rafeiros.

    - É da Miss Dottie. Deixou-a aqui esta manhã, antes de ir para a igreja. Eu estava demasiado ressacado para fazer qualquer coisa, exceto enfiar-me na cama com ela.

    - O que se passa com ela?

    - Com quem? Ah, a cadela. Nada. - Inclinou-se, esfregou-lhe o pêlo e coçou-lhe as orelhas. - Tem os olhos brilhantes e é saudável. Tem as vacinas em dia e quando as levou portou-se como uma campeã.

    - E o que vais fazer com ela?

    - Dar-te.

    - A mim? - Faith deu um passo atrás. - Eu não quero um cão.

    - Claro que queres. - Tirou a cadela da cama e depositou-a nos braços de Faith. - Olha, ela gosta de ti.

    - Os cachorros gostam de toda a gente - protestou Faith, enquanto torcia a cabeça para tentar evitar a língua animada do cão.

    - Precisamente. - Com as covinhas marcadas nas bochechas, Wade passou os braços pela cintura de Faith, ensanduichando o cachorro entre ambos. - E toda a gente gosta de cachorros. Ela vai depender de ti, animar-te, fazer-te companhia, e amar-te incondicionalmente.

    - Vai fazer xixi no tapete. Vai roer os meus sapatos.

    - Alguns. Precisa de disciplina e de treino e paciência. Precisa de ti.                                                                                                               

    Conheciam-se quase desde sempre. O fato de, quando estavam juntos, passarem praticamente o tempo todo entre os lençóis não significava que ela não tivesse uma idéia de como funcionava a mente dele.

    - Estás a dar-me um cão ou uma lição de vida?

    - As duas coisas. - Inclinou-se para beijar Faith na face. - Experimenta. Se não der certo, aceito-a de volta.

    O cachorro estava quente e tentava desesperadamente enrolar-se na curva do pescoço e do ombro de Faith. O que se passava? Parecia que toda a gente estava a pressioná-la ao mesmo tempo. Primeiro Boots, depois Cade e agora Wade.

    - Puseste-me a cabeça à roda. Hoje não se pode falar contigo, e essa é a única razão para eu concordar com isto.

    - Referes-te a nós ou ao cachorro?

    - A um bocadinho de ambas as coisas.

    - Para mim, é um bom começo. Há comida de cachorro na cozinha. Porque não vais dar-lhe de comer enquanto eu tomo uma ducha? Vou chegar atrasado a casa dos meus pais. Porque não vens comigo?

    - Obrigada, mas ainda não estou preparada para almoços de família. - Ainda se lembrava, demasiado bem, do reflexo frio e transparente nos olhos da mãe dele. - Vai lá tomar ducha. Cheiras pior do que uma ninhada de cachorros. - Franziu as sobrancelhas enquanto levava o cão para a cozinha. Não tinha a certeza se estava preparada para aquele tipo de coisas. Para qualquer das duas.

    

    Tory acabara de destrancar a porta, na segunda-feira de manhã, quando a pequena campainha tocou, sinal de que alguém a abria.

    - Bom-dia. O meu nome é Sherry Bellows. Atei o meu cão ao seu banco, lá fora. Espero que não haja problema.

    Tory olhou para a entrada e viu uma montanha de pêlo docilmente sentada no passeio.

    - Tudo bem. É grande, não é? E lindo.

    - É um amor. Estamos de regresso de uma corrida matinal no parque e pensei em passar por aqui. Estive cá no sábado, só um bocadinho. Tinha aqui uma multidão.

    - Sim, estive ocupada. Há alguma coisa que possa mostrar-lhe, ou gostaria apenas de dar uma vista de olhos?

    - Para dizer a verdade, pensei se teria pensado na hipótese de contratar alguém para ajudá-la. - Sherry levantou os braços para ajeitar o rabo-de-cavalo. - Não estou propriamente vestida para andar à procura de emprego - disse ela com um sorriso, puxando a T-shirt úmida para baixo, cobrindo mais os calções. - Mas foi um impulso. Sou professora no liceu. Vou ser. Os cursos de verão começam a meio de junho e as aulas a tempo inteiro só no outono.

    - Não me parece que precise de um emprego.

    - Tenho as próximas semanas, e depois os sábados e metade dos dias durante o mês de setembro. Gostaria de trabalhar numa loja como a sua, e o dinheiro extra me faria bem. Sou professora contratada, por isso não é fácil. Posso dar-lhe referências, e não tenho qualquer problema em aceitar o salário mínimo.

    - Para lhe dizer a verdade, Sherry, não tinha pensado em contratar ninguém, pelo menos até ver como corre o negócio nas primeiras semanas.

    - Gerir um sítio destes sozinha não pode ser fácil. - Se havia alguma coisa que Sherry aprendera como professora fora a usar a persistência. - Não há tempo para pausas, nem para despachar papelada ou para fazer inventários, nem para encomendas. Como está aberta seis dias por semana, isso não lhe deixa muito tempo para tratar dos seus afazeres. Ir ao banco, fazer as suas compras. Suponho que faz encomendas por correio, não faz?

    - Bem, sim?..

    - Tem de fechar a loja sempre que precisa de ir a correr ao posto de correios, ou esperar pela manhã seguinte, antes de abrir a loja. Isso significa horas extras para si. E toda a gente que consegue organizar um negócio como este, sabe que tempo é dinheiro.

    Tory observou melhor. Sherry era jovem, bonita, e estava toda transpirada por causa do jogging. E era muito direta. E tinha razão. Tory estava na loja desde as oito horas, a preparar encomendas, a despachar papelada, a correr para o banco e para os correios.

    Não que não gostasse. Ficava agradavelmente corada de satisfação. Mas as coisas tornar-se-iam cada vez mais exigentes.

    Ao mesmo tempo, não tinha a certeza se queria partilhar a sua loja com alguém, mesmo a tempo parcial. Sentia um profundo prazer em tê-la toda só para si. E isso, admitiu, era muito agradável e impossível de manter.

    - Apanhou-me desprevenida. Porque não me deixa a sua morada e o seu número de telefone, e as tais referências? - Tory foi atrás do balcão buscar o seu bloco. - Dê-me algum tempo para pensar no assunto.

    - Ótimo. - Sherry pegou na caneta que Tory lhe oferecia e escreveu as informações no bloco. - E trago uma ajuda, é um dois pelo preço de um. - Fez um gesto na direção da janela, ao ver duas mulheres que tinham parado para admirar Mongo. - Ele é tão bonito que as pessoas não conseguem resistir a fazer-lhe festas. E já que estão ali, não vão deixar de olhar para a sua vitrine. Aposto que vão entrar.

    - Inteligente. - Tory ergueu uma sobrancelha. - Talvez eu deva simplesmente comprar um cão.         

    Sherry riu e começou a escrever.

    - Ora, nunca encontrará nenhum como o meu Mongo. E por melhor que ele seja, não consegue mexer na máquina registradora.

    - Bem visto. E bom palpite - acrescentou, em voz baixa, quando as duas mulheres entraram na loja

    - O cão é seu?                                                                        

    - É meu. - Sherry virou-se, orgulhosa. - Espero que não vos tenha incomodado.

    - Não, é um amor. É uma grande bola de pêlo.    

    - Manso como um cordeiro - assegurou-lhes Sherry. - Mas não resistimos a entrar para ver todas as coisas bonitas que há aqui. Mas que lugar agradável, não é?

    - Muito agradável. Não tinha dado por ele.

    - Só abrimos no sábado - disse-lhe Tory.

    - Há muito tempo que não venho para esta zona da cidade. - A mulher olhou em volta. A amiga dela já estava a ver alguns objetos. - Gosto muito daqueles candelabros que estão na vitrine. Mudei de casa há pouco tempo e estou fazendo a decoração.

    - Vou buscá-los. - Tory olhou para Sherry. - Com licença.

    - Não há problema, esteja à vontade.

    Sherry observou a forma como Tory atendia as clientes. Sutilmente. Bem, ela também conseguiria fazer isso, deixar que o artigo se vendesse por si próprio. Mas achou que não faria mal se conversasse um pouco. Era-lhe difícil estar calada e pensou que seria uma forma de contrabalançar a classe e o silêncio de Tory.

    Ia conseguir aquele emprego, decidiu Sherry enquanto continuava a escrever e a manter-se atenta à forma como Tory agia. Tinha jeito para convencer as pessoas e o dinheiro extra realmente lhe fazia falta.

    Para adornar mais o ramalhete, elogiou as escolhas das clientes e envolveu-as numa conversa agradável, enquanto Tory metia as peças em caixas e as embrulhava. Saíram felizes e carregadas.

    - Foi bom. Mas acho que podia ter convencido a Sally a comprar aquelas placas decorativas para jardim.

    - Se ela as quiser, vai voltar. - Divertida, Tory juntou os recibos de cartão de crédito. - E aposto que a amiga vai convencê-la à hora do almoço. Tem jeito para lidar com as pessoas. Sabe alguma coisa sobre artes e ofícios?

    - Aprendo depressa. E como admiro o seu gosto no que toca a estes artigos a lição vai ser fácil. Posso começar imediatamente.

    Tory estava quase a concordar. Sherry causava-lhe boa impressão.

   

    Nesse momento a porta abriu-se e tudo se esvaiu da sua mente, exceto o choque e o terror.

    - Ora viva, Tory. - Hannibal abria os lábios num enorme sorriso. - Já lá vai um tempo. - Depois, olhou para Sherry com o mesmo ar radiante. - Aquele cão lá fora é seu, miss.

    - Sim, é o Mongo. Espero que não o tenha importunado.

    - Oh, não, nada. Parece tão pacato como um convívio de domingo. É um grande cão para alguém tão pequeno como você. Vi-a a correr com ele, no parque, ainda há pouco. Não se sabia bem quem ia puxando quem.

    Sherry teve uma sensação de desconforto, mas conseguiu soltar uma gargalhada.

    - Bem, ele me deixa pensar que sou eu que mando.

    - Um bom cão é um amigo fiel. Mais do que a maioria das pessoas. Tory, não vais apresentar-me aqui à tua amiga? - disse ele antes de Tory conseguir falar, e estendeu a grande mão que tantas vezes usara para calá-la. - Sou o pai da Victoria.

    - Prazer em conhecê-lo. - Outra vez à vontade, Sherry apertou-lhe calorosamente a mão. - Deve estar muito orgulhoso da sua filha e do que ela fez aqui.

    - Não passa um só dia sem que eu pense nisso. - Os olhos dele voltaram a fixar Tory. - E nela.

    Tory tentou controlar a sensação de choque. Se ele estava ali, ela tinha de lidar com ele. E tinha de lidar com ele sozinha.

    - Sherry, obrigada por ter vindo. Vou estudar isto e depois telefono-lhe.

    - Está bem, agradeço. Estou tentando convencer a sua filha a contratar-me. Talvez possa interceder por mim. Gostei de conhecê-lo, Mister Bodeen. Fico à espera de notícias, Tory.

    Saiu e acocorou-se junto do cão. Pela porta fechada, Tory ouviu o riso encantado em resposta aos latidos de satisfação do cio.

    - Ora muito bem. - Apoiou as mãos nos quadris e virou-se, para observar a loja. - Mas que belo lugar tens aqui. Parece que estás te saindo muito bem.

    Ele não mudara. Porque não mudara? Tinha um ar mais velho? Não parecia. Não engordara, não perdera cabelo nem o brilho escuro dos olhos. O tempo não parecia afetá-lo. E quando ele se virou para ela outra vez, ela sentiu-se encolher, sentiu que lhe fugiam os anos e todo o esforço que pusera na reconstrução de si própria.

    - O que quer?

    - Muito bem, até. - Aproximou-se do balcão, diminuindo a distância entre eles. E ela viu que estava enganada, pelo menos parcialmente. O rosto estava mais envelhecido, marcado por linhas profundas junto à boca, pela magreza, pelos sulcos na testa, que faziam lembrar marcas de vergastadas. - Voltaste aqui para te exibires na tua velha terra natal. O orgulho é o caminho para a perdição, Victoria.

    - Como soube que eu estava aqui? A mãe contou-lhe?

    - Pai é pai para toda a vida. Tenho andado de olho em ti. Voltaste aqui para te gabares e para me envergonhares?

    - Voltei aqui por mim. Não tem nada a ver consigo. - Mentiras, mentiras, mentiras.

    - Foi aqui que deste azo a falatórios, que puseste as pessoas a apontarem dedos. Foi aqui que me desafiaste e ao Senhor, pela primeira vez. A vergonha pelo que fizeste e pelo que eras fez-me ir embora daqui.

    - O dinheiro da Margaret Lavelle no seu bolso é que o fez ir embora daqui.

    Um músculo tremeu-lhe na face. Um aviso.

    - Com que então as pessoas já andam a falar. Não me importo. Os mentirosos só dão ouvidos aos da sua laia.               

    - E vão falar mais, se ficar por aqui. E quem anda à sua procura está decidido a encontrá-lo. Fui ver a mãe. Está preocupada consigo.

    - Não tem razões para isso. Na minha casa quem manda sou eu. Um homem entra e sai quando lhe apetece.

    - Foge. Fugiu depois de ter sido apanhado, preso e condenado por atacar aquela mulher. Pôs-se ao fresco e deixou a mãe sozinha. E desta vez, quando o apanharem, não vão deixá-lo em liberdade condicional. Vão pô-lo atrás das grades.

    - Cuidado com a língua. - A mão dele avançou, disparada. Ela estava preparada para uma bofetada, preparada para apará-la, mas ele agarrou-a pela camisa e puxou-a sobre o balcão. - Vê lá se mostras algum respeito. Deves-me a tua vida. Foi a minha semente que te trouxe a este mundo.

    - Para minha mágoa eterna. - Pensou na tesoura que tinha no interior do balcão. Imaginou-a na sua mão, se ele a arrastasse mais um centímetro. E, enquanto olhava para a ira terrível e tão familiar no rosto dele, perguntou-se se seria capaz de usá-la. - Se me puser a mão em cima, juro que vou diretamente à polícia. Se me bater, eu conto-lhes todas as vezes que me espancou e me deixou cheia de nódoas negras. E depois...

    Faltou-lhe o ar e tentou não gritar quando ele lhe puxou o cabelo para trás, com a mão que tinha livre, e a ponta áspera dos seus dedos lhe roçou a garganta, queimando-a como fogo. Lágrimas de dor saltaram-lhe dos olhos e tornaram-lhe a voz áspera.

    - Depois, vão pôr mais grades à sua volta. Juro. Agora, solte-me e vá-se embora daqui. E eu esqueço-me de que o vi

    - Atreves a ameaçar-me?                                           

    - Não é uma ameaça. É um fato. - A fúria e o ódio que transbordavam dele quase a asfixiavam. Sentia a garganta a fechar-se, a pressão no peito. Não iria ser capaz de aguentar muito mais tempo.

    - Solte-me. - Manteve os olhos fixos nos dele enquanto tateava o interior do balcão, procurando a tesoura. - Solte-me antes que alguém entre e o veja.                    

    As emoções incendiavam-lhe o rosto. O medo misturou-se com a violência que emanava dele. Os dedos dela roçaram as pegas de metal, e ele atirou-a para o lado, fazendo-a cair sobre a caixa registradora.

    - Preciso de dinheiro. Dá-me o que tens aí. Estás em dívida para comigo por cada milímetro de ar que respiras.

    - Não é muito. Não vai longe. - Abriu a gaveta da caixa registradora e tirou o dinheiro com ambas as mãos. Tudo para fazê-lo sair dali para fora, tudo para fazê-lo ir-se embora.

    - Aquela devassa que está em Hartsville vai arder no inferno. - Manteve a mão no cabelo dela, enquanto metia o dinheiro no bolso. -  E tu também.

    - Nessa altura, você já estará lá. - Não saberia explicar porque o fez. Não conseguia prever acontecimentos futuros. Pelo menos fora-lhe concedida essa bênção. Mas manteve os olhos fixos nos dele e falou como se estivesse tomada por visões. - Vai morrer antes do fim do ano, e vai morrer na dor, no medo e pelo fogo. Vai morrer a gritar por misericórdia. A misericórdia que nunca me deu.

    Ele ficou branco e empurrou-a para afastá-la, fazendo tremer os artigos que estavam sobre a prateleira. Levantou o braço, apontando para ela.

    - «Não permitirás que uma bruxa viva.» Lembra-te disso. Se dizes a alguém que me viste aqui hoje, virei à tua procura para fazer o que devia ter feito assim que nasceste. Nasceste com um saco enfiado na cabeça. A marca do demônio. Já estavas condenada.

    Abriu a porta de rompante, baixou a cabeça e saiu. Tory deixou-se escorregar até ao chão. Já condenada? Olhou para a tesoura, com ar vazio, balançando-se. Quase a tivera na mão, quase...

    Um deles estaria no inferno, se ela a tivesse agarrado. Não tinha a certeza se era importante qual deles. Pelo menos, teria acabado.

    Juntou os joelhos e encostou a cara, enrolando-se sobre si própria como fizera tantas vezes quando era criança.

   

    Foi assim que Faith a encontrou quando entrou, com um cachorro se contorcendo debaixo do braço

    - Meu Deus, Tory! - Um olhar rápido foi suficiente para ver a caixa registradora aberta e vazia, os artigos espalhados, e a mulher que tremia no chão. - Meu Deus, estás ferida?

    Pousou o cachorro, e enquanto ele se afastava rápida e alegremente, acorreu à zona interior do balcão.

    - Deixa-me ver, deixa-me olhar para ti.      

    - Eu estou bem. Não é nada.

    - Ser assaltada em plena luz do dia nesta cidade é qualquer coisa. Estás toda a tremer. Tinham alguma arma, uma faca?

    - Não, não. Está tudo bem.

    - Não vejo sangue. Bem, estás um pouco magoada aqui atrás, no pescoço. Vou chamar a polícia. Queres um médico?

    - Não! Nada de polícia, nem de médico.

    - Nada de polícia? Acabo de ver um brutamontes a sair daqui, entro e vejo a tua caixa registradora aberta, vazia, e tu no meio do chão atrás do balcão, e nada de polícia? O que se faz nas cidades grandes quando se é roubado? Bolinhos?

    - Não fui roubada. - Exausta, deixou que a cabeça pendesse para trás e se encostasse à parede. - Eu dei-lhe o dinheiro. Menos de cem dólares. O dinheiro não importa.

    - Então o melhor é dares-me algum enquanto tens, porque se é assim que planejas gerir o negócio, não vais estar aqui muito tempo.

    - Vou estar aqui. Vou ficar aqui. Nada vai fazer-me voltar a fugir. Nada! Ninguém! Nunca mais!

    Faith não tinha muita experiência em histeria, a não ser a própria, mas pensou reconhecê-la no aumento do tom de voz de Tory e nos seus olhos subitamente muito abertos.

    - Assim é que é. Porque não nos levantamos do chão e vamos lá para trás um minuto?                                            

    - Já disse que estou bem.

    - Então, ou és estúpida ou mentirosa. Seja como for, vamos lá.

    Tory tentou empurrá-la, tentou pôr-se de pé sozinha, mas as pernas não lhe obedeceram. Dobraram-se quando Faith a puxou para cima e não lhe deixou alternativa senão encostar-se a ela.

    - Vamos lá para trás. Vou deixar a cadelinha aqui.

    - O quê?

    - Não te preocupes com ela. Já está meio treinada. Tens alguma coisa que possas beber e te ajude a retemperar forças?

    - Não

    - Era de esperar. A irrepreensível Tory. Não iria ter uma garrafa de Jim Beam na gaveta. Agora senta-te, recupera o fôlego e diz-me porque não queres que chame a polícia.

    - Só iria piorar as coisas.

    - Porque...

    - Porque foi o meu pai que viste a sair da loja. Dei-lhe o dinheiro para ele se ir embora.

    - Foi ele que te fez isso. - Tory manteve o olhar fixo, enquanto Faith inspirava e expirava profundamente. - E acho que não foi a primeira vez. A Hope não me disse. Imagino que a tenhas obrigado a prometer guardar segredo, mas eu tinha olhos para ver. E vi-te com nódoas negras e vergões, muitas vezes. Tinhas sempre uma história sobre teres caído ou ido contra alguma coisa, mas o engraçado é que nunca achei que fosses desastrada. Lembro-me que tinhas muitas dessas nódoas negras e vergões na manhã em que vieste nos contar sobre a Hope.

    Faith aproximou-se da pequena geladeira, encontrou uma garrafa de água e abriu-a.

    - Foi por isso que não foste ter com ela naquela noite? Porque ele te deu uma surra? - Ofereceu a água a Tory, enquanto media o seu silêncio. - Acho que tenho andado a botar culpa pelo que aconteceu naquela noite na pessoa errada.

    Tory pegou na água e acalmou a garganta.

    - A pessoa que tem a culpa é a pessoa que a matou.

    - Não sabemos quem foi. É mais reconfortante culpar um rosto e um nome. Podes pegar nesse telefone, chamar a polícia e apresentar queixa. O chefe Russ vai atrás dele.                                     

    - Só o quero longe daqui. Não espero que compreendas.

    - As pessoas nunca esperam que eu as compreenda. Mas pode haver surpresas. - Observando Tory, Faith sentou-se na borda da escrivaninha. - O meu pai raramente me levantou a mão. Acho que apanhei uma palmada na bunda muito de vez em quando e, valha a verdade, mais raramente do que merecia. Mas ele sabia gritar e aterrorizar o coração de uma menininha.

    Céus, como sentia a falta dele. Foi assolada repentinamente por aquele sentimento. Saudades do pai.

    - Não porque eu achasse que ele fosse bater-me - disse ela, com suavidade. - Mas porque ele me fazia sentir se eu o desapontava. E eu tinha medo de desapontá-lo. Não é a mesma coisa do que isto, eu sei. Mas pergunto a mim própria, se ele tivesse sido um pai diferente, um homem diferente, e eu passasse a minha vida a ter medo, o que eu faria?

    - Chamavas a polícia e fazias com que ele fosse para a cadeia.

    - Podes ter a certeza. Mas isso não significa que não compreenda porque não o fazes. Quando o pai andava com aquela mulher, eu nunca disse à minha mãe. Durante algum tempo, cheguei mesmo a acreditar que ela não sabia, mas não lhe disse. Pensei que talvez tudo desaparecesse. Estava enganada, mas pensar aquilo deu-me alguma paz de espírito.

    Mais firme, Tory pousou a garrafa de água na escrivaninha.

    - Porque estás a ser simpática comigo?

    - Não faço idéia. Na verdade, nunca gostei muito de ti, mas isso era sobretudo porque a Hope gostava de ti e eu não queria. Neste momento, andas a dormir com o meu irmão e eu percebo que ele significa mais para mim do que eu pensava. Faz sentido querer conhecer-te para ver como me sinto em relação a tudo isso.

    - Então estás sendo simpática comigo porque eu ando dormindo com o Cade.

    A forma seca como a frase foi dita mexeu com Faith.

    - De uma forma indireta. E vou dizer-te uma coisa porque sei que vai chatear-te. Tenho pena de ti.

    - Tens razão. - Tory pôs-se de pé, grata por os tremores terem parado. - Chateou-me.

    - Achei que sim. Não gostas de comiseração. Mas a verdade é que ninguém devia ter medo do próprio pai. E, com laços de sangue ou não, homem nenhum tem o direito de deixar nódoas negras e cicatrizes numa criança. Agora, é melhor ir ver as confusões em que aquela cadelinha se meteu ali fora.

    - Cadelinha? - Tory abriu muito os olhos. - Que cadelinha?

    - A minha cadelinha. Ainda não lhe dei um nome. - Faith saiu e soltou uma gargalhada sonora. - Não é uma coisa fofa? É mesmo querida.

    A querida tinha encontrado o papel de seda e estava naquele momento em guerra com ele. As baixas eram muitas e estavam espalhadas pelo chão como flocos de neve. Conseguira também encontrar um rolo de fita, que estava quase toda enrolada à volta do seu tronco roliço.

    - Oh, por amor de Deus!

    - Não fiques tão chateada. Não é nada que cinco dólares não possam pagar. Eu pago. Aqui está a minha bebê.

    A cadelinha ladrou alegremente, tropeçou num pedaço da fita e deitou-se aos pés de Faith, com ar de adoração.

    -Juro, nunca pensei que uma coisinha como esta conseguisse fazer-me rir tanto. Olha para ti, bonequinha da mamãe, toda embrulhada como um presente de Natal.

    Pegou na cadelinha e fez uns ruídos infantis, como se falasse com um bebê.

    - Estás a agir como uma idiota.

    - Eu sei. Mas não é querida? E também me adora completamente. Agora, a mamã vai limpar esta porcaria toda, senão a senhora mázona castiga o meu bebé.

    Já de gatas, Tory olhou para cima.

    - Se voltas a trazer aqui esse destruidor de lojas, mordo-te o tornozelo.

    - Tenho andado ensinando-a a sentar-se. É esperta como tudo. Ora vê. - Apesar da ameaça, Faith pôs a cadelinha no chão, mantendo uma mão sobre ela. - Sentada. Vá, sê uma boa menina, faz o que a mamãe te diz. Senta.

    A cadelinha deu um salto em frente, lambeu o rosto de Tory e depois pôs-se a correr à volta, tentando apanhar a sua própria cauda.

    - Mais um disparate.

    - Não é uma querida?

    - Perfeitamente adorável. Mas não pertence aqui. - Pegando no monte de papel e de fita estragados, Tory levantou-se. - Vai levá-la a dar um passeio, ou qualquer coisa assim.

    - Vamos comprar um belo conjunto de taças para a comida e a água dela.

    - As minhas taças não. Não vais comprar taças de cerâmica feita à mão, concebidas por artesãos, para o cão comer nelas.

    - Que te importa o uso que lhes dou, desde que pague o preço que pedes? - Mais determinada ainda, Faith foi buscar a cadelinha, pegou nela e em duas taças azuis com espirais em esmeralda. - Gostamos destas. Não gostamos, querida? Não gostamos, docinho?

    - Esta é a coisa mais ridícula que eu já ouvi.

    - Uma venda é uma venda, não é? - Faith aproximou-se do balcão e pousou as taças. - Faz a conta e não te esqueças de juntar o custo do papel e da fita que ela estragou.

    - Esquece isso. - Atrás do balcão, Tory meteu o papel estragado no caixote do lixo, e depois tratou da venda. - São cinquenta e três dólares e vinte e seis cêntimos. Por taças para cachorros.

    - Muito bem. Pago em dinheiro. Toma, segura-a um bocadinho.

    Faith entregou a cadelinha a Tory, para tirar a carteira da mala. Encantada, apesar de não querer demonstrá-lo, Tory encostou o nariz ao da cadelinha.

    - Vais comer como uma rainha, não vais? Uma abelha rainha.

    - Abelha rainha. É perfeito! - Faith pôs o dinheiro em cima do balcão e voltou a pegar na cadela. - É isso que tu és, «Abelha Rainha». Vou comprar-te uma coleira que brilhe.

    Tory abanou a cabeça enquanto fazia o troco.                        

    - Estou a descobrir uma nova faceta tua, Faith.

    - Eu também. E acho que gosto. Vamos, Abelha, temos sítios onde ir e pessoas para visitar. - Pegou no saco com as compras. - Acho que não consigo abrir a porta.      

    - Eu abro. - Tory abriu a porta e, depois de hesitar um momento, tocou no braço de Faith. - Faith, obrigada.

    - De nada. A tua maquiagem está precisando ser retocada - acrescentou, e saiu.                                                        

    Não tencionara envolver-se. Faith achava que a vida pessoal de cada um era fascinante como motivo de especulação, de mexerico, mas tudo a uma distância segura e satisfatória.

    Mas não conseguia esquecer a imagem de Tory enrolada sobre si própria atrás do balcão, com laços e fita-cola e cordões prateados espalhados à sua volta.

    Não conseguia deixar de ver aquela marca feia e vermelha no pescoço de Tory.

    Hope também tinha marcas no corpo. Ela não as vira, ninguém a tinha deixado vê-las. Mas ela sabia.

    E não tolerava que um homem batesse numa mulher, ponto final. Se fosse um familiar, não se ia correndo fazer queixa na polícia. Mas havia outras maneiras de endireitar as coisas.

    Inclinou-se e beijou a Abelha na cabeça, e depois dirigiu-se ao banco, para contar a J.R. o que acontecera à sobrinha.

    Ele não perdeu tempo. J.R. cancelou a reunião que tinha a seguir, disse à secretária que tinha de sair para tratar de um assunto pessoal, e encaminhou-se para a loja de Tory com um passo tão apressado que, quando lá chegou, tinha a camisa transpirada.

    Ela tinha clientes, um casal jovem que conversava sobre a hipótese de comprar um prato de serviço azul e branco. Tory os estava deixando à vontade, mantendo-se do outro lado da loja, substituindo as velas que vendera naquela manhã.

    - Tio Jimmy. Está calor lá fora? Está afogueado. Quer beber alguma coisa fresca?

    - Não... sim - decidiu. Isso iria dar-lhe tempo para se recompor. - O que tiveres à mão, querida.

    

    Acreditou que sim ao longo do resto do dia. Durante toda a tarde protegeu-se com a armadura frágil e maltratada daquela convicção. E embora soubesse que era uma tolice, abriu uma das velas embrulhadas e atadas com um laço que tinha na vitrine e colocou-a em cima do balcão.

    Esperava que a luz e o aroma ajudassem a dispersar aquela espécie de película horrível que a visita do pai deixara no ar.

    Às seis fechou a loja, e deu por si a observar a rua, à procura, como fizera semanas a fio quando fugira para Nova Iorque. Sentia-se furiosa por ele conseguir voltar a pôr aquela ansiedade cautelosa no seu caminho, aquela inquietação no seu coração.     

    Teria estado realmente na casa miserável da sua mãe, a afirmar que conseguiria e iria enfrentar o pai e todo aquele medo, se ele se atrevesse a invadir a sua vida outra vez?

    Onde estava a sua coragem, agora?

    Tudo o que conseguiu foi prometer a si própria que voltaria a encontrá-la.

    Mas trancou as portas assim que entrou no carro, e sentia o coração bater acelerado enquanto olhava constantemente para a estrada à sua frente e para o espelho retrovisor, no caminho de regresso a casa.

    Cruzou-se com carros, até acenou a Piney quando a pickup dele passou por ela e a cumprimentou com um breve toque da buzina. O trabalho nos campos tinha terminado. Os peões iam agora para casa. E o patrão também.

    Por isso, foi com um baque irritante de decepção que entrou no caminho de acesso à sua casa e o encontrou vazio. Não se apercebera que tinha estado à espera que Cade estivesse ali. Era verdade que  não aceitara com grande entusiasmo a intenção dele de mudar-se para ali. Mas quanto mais pensara nisso, mais fácil fora aceitá-lo. E, depois de tê-la aceitado, passara a gostar da idéia.

    Havia tanto tempo que queria companhia. Alguém com quem partilhar o dia, com quem falar de coisas triviais, com quem rir a propósito de pequenas coisas, com quem desabafar.

    Ter alguém quando a noite parecia demasiado cheia de ruído, de movimento e de memórias.

    E o que dava ela em troca? Resistência, discussão, aceitação irritada e apenas implícita.

    - Pura maldade, apenas - murmurou, enquanto saía do carro. Pelo menos a isso ela podia pôr fim. Podia fazer o que as mulheres faziam tradicionalmente para resolver crimes menores. Podia fazer-lhe um belo jantar e seduzi-lo.

    A idéia deixou-a com melhor disposição. Iria ele ficar surpreendido se fosse ela a tomar a iniciativa, para variar? Esperou lembrar-se de como se fazia, porque estava na hora de voltar a controlar este tipo de coisas. E assim tiraria dos ombros dele alguma da responsabilidade pelo que se passava entre eles, fosse o que fosse. Tentara agradar a Jack dessa forma e depois... Não. Afastou com firmeza a seqüência de pensamentos, enquanto destrancava a porta de casa. Cade não era Jack e ela não era a mesma mulher que fora em Nova Iorque. O passado e o presente não tinham de se tocar.

    Quando entrou, soube que isso era apenas mais uma ilusão. Soube que ele tinha estado ali, dentro daquilo que tentara transformar na sua casa. Ele, o seu pai.

    Havia pouca coisa para ele destruir, e ela não pensara que ele se desse a tanto trabalho. Não entrara para lhe partir o pouco mobiliário que tinha, ou para fazer buracos nas paredes. Embora tivesse feito ambas as coisas.

    A cadeira estava virada de pernas para o ar, e ele espetara no fundo qualquer coisa aguçada. A luminária que ela comprara apenas alguns dias antes estava partida, a mesa que queria restaurar estava atirada para um canto, com uma das pernas partidas como se fosse um ramo.

    Reconheceu o tamanho e a forma das marcas deixadas no estuque. Era a assinatura que deixava quando, por qualquer motivo, optava por usar os punhos em objectos inanimados e não na sua filha. Deixou a porta aberta, um caminho de fuga para o caso de os seus instintos não estarem alerta e ele se encontrar ainda dentro de casa.

   

    Mas o quarto estava vazio. Ele arrancara a roupa da cama e rasgara o colchão. Supôs que a estrutura da cama de ferro lhe dera demasiado trabalho, já que a deixara intacta.

    As gavetas estavam tiradas, as roupas amontoadas. Não, ele não quisera realmente destruir as coisas dela, pensou, ou teria usado o mesmo instrumento afiado também nas roupas. Já o fizera antes, para lhe ensinar uma lição quanto a vestir-se de forma decente.

    Andara à procura de dinheiro ou de coisas que pudesse vender facilmente para obter dinheiro. Se tivesse estado bebendo, teria sido pior. Se tivesse estado bebendo, teria esperado por ela. Assim... Baixou-se para apanhar uma blusa amarrotada e soltou um grito de desespero ao ver a caixinha de madeira gravada que usava para guardar as jóias.

    Pegou nela precipitadamente e o coração afundou-se-lhe quando viu que estava vazia. Na verdade, a maioria das coisas que tinha eram bijuterias. Boas, cuidadosamente selecionadas, mas facilmente substituíveis.

    Mas entre elas estavam a granada e os brincos de ouro que a avó lhe dera quando ela fizera vinte e um anos. Os brincos tinham pertencido à bisavó. A sua única herança. Sem preço. Insubstituível. Perdida.

    -  Tory!                                                 

    O alarme na voz de Cade e os passos apressados fizeram-na levantar rapidamente.

    - Estou bem. Estou aqui.,

    Ele entrou no quarto, de rompante, e apertou-a contra si antes de ela conseguir dizer mais alguma coisa. Ondas de medo confundidas com ondas de alívio emanavam dele para ela, envolvendo-a, entrando nela.

    - Estou bem - repetiu. - Acabei de chegar. Há minutos. Ele já se tinha ido embora.

    - Vi o teu carro, a sala. Pensei... - Apertou mais o abraço e encostou o rosto ao cabelo dela. - Espera um segundo.

    Sabia o que era sentir o terror cravar-lhe as garras na garganta. Nunca pensara voltar a senti-lo.

    - Graças a Deus estás bem. Tencionava chegar aqui antes de ti, mas atrasei-me. Vamos chamar a polícia e depois vais para Beaux Revés. Devia ter-te levado para lá esta manhã.

    - Cade, não vale a pena tudo isso. Foi o meu pai. - Afastou-se e pousou a caixa sobre a cómoda. - Foi à loja, esta manhã. Tivemos uma discussão. Isto é apenas a maneira de ele me dizer que ainda pode castigar-me.

    - Mogoou-te?                                                        

    - Não. - A negação foi rápida e automática, mas o olhar dele já pousara no pescoço dela.

    Cade não disse nada. Não foi preciso. Os seus olhos escureceram, semicerraram-se até se transformarem em duas fendas, à medida que a violência - e ela sabia como reconhecer a violência - se apoderava deles. Depois, virou-se e pegou no telefone.

    - Cade, espera. Por favor. Não quero chamar a polícia.

    Ele levantou a cabeça abruptamente, e a raiva semicerrada atingiu-a também a ela.

    - Nem sempre se tem o que se quer.

   

    Sherry Bellows decidiu festejar o seu emprego potencial abrindo uma garrafa de vinho, pondo um CD da Sheryl Crow a tocar o mais alto que os vizinhos poderiam tolerar, e dançando pelo apartamento. Tudo estava a correr na perfeição.

    Adorava Progress. Era exatamente o tipo de cidadezinha de que queria fazer parte: pequena e onde toda a gente se conhecia. As estrelas estavam na posição certa quando seguira o seu instinto e se candidatara ao lugar no liceu de Progress, pensou.

    Gostava dos outros professores. Embora Sherry ainda não conhecesse bem todos os seus colegas, tudo isso mudaria no outono, quando tivesse um horário de tempo integral.

    Ia ser uma professora maravilhosa, alguém a quem os alunos pudessem falar dos seus problemas e das suas dúvidas. As suas aulas iam ser divertidas, e ela motivaria os alunos para a leitura, para o gosto pelas coisas, para o contacto com os livros por puro prazer, lançaria as sementes para um amor eterno pela literatura.

    Claro que iria fazê-los trabalhar, e muito, mas tinha tantas idéias, tantas estratégias novas e maravilhosas para tomar o trabalho interessante e divertido.

    Dali a uns anos, quando os seus alunos olhassem para trás, haviam de recordá-la com carinho. Miss Bellows, diriam, foi importante nas nossas vidas.                                               

    Fora isso que sempre quisera.

    O suficiente para estudar diabolicamente, pensava agora, para trabalhar arduamente e durante muitas horas para poder pagar os estudos. E o esforço valera a pena, até ao último cêntimo.  

    Tinha as contas para prová-lo.      

    Mas isso era apenas dinheiro, e ela encontrara uma maneira de fazer face a isso.

    Trabalhar na Conforto do Sul ia ser um encanto. Ajudá-la-ia a aliviar o fardo dos empréstimos que contraíra para pagar os estudos, trazer-lhe uma lufada de ar fresco em termos financeiros. Mais: abrir-lhe-ia mais uma porta de acesso à comunidade. Conheceria pessoas, faria amigos, e em breve seria um rosto familiar em Progress.

    Já estava a alargar o seu círculo de conhecimentos. Os vizinhos no prédio, Maxine no veterinário. E tinha a intenção de cimentar esses conhecimentos dando uma festa, uma reunião animada, em junho, em que cada pessoa traria qualquer coisa para comer ou para beber. Um pontapé de saída para o verão, pensou, que não colidiria com os planos de ninguém.

    Convidaria também Tory, claro. E o Dr. Hunk, o veterinário de covinhas no rosto e ar sonhador. Decididamente, gostaria de conhecê-lo melhor, pensou, enquanto se servia de um segundo copo de vinho.

    Convidaria os Mooney. Mister Mooney, do banco, fora muito prestativo quando ela abrira as novas contas. E depois havia Lissy, da agência imobiliária. Uma língua viperina, admitiu Sherry, mas era sempre bom ter a mexeriqueira da cidade do nosso lado. Descobriam-se coisas tão interessantes. E era casada com o presidente da câmara.                                     

    Outra pessoa interessante, lembrou-se Sherry, com um grande sorriso e um trejeito superior. Uns certos olhares. Ainda bem que descobrira que ele era casado.

    Pensou se seria presunção da sua parte convidar os Lavelle. Afinal, eram os VIP de Progress. E Kíncade Lavelle era muito simpático, muito agradável quando esbarravam um com o outro pela cidade. Já para não dizer que era lindo.

    Podia fazer o convite, de uma forma muito simples. Não havia mal nenhum. Queria muita gente na festa. Deixaria abertas as portas para o terraço, como estavam sempre, para que os convidados pudessem ir até lá fora.                                

    Adorava o seu pequeno apartamento com jardim, e ia comprar outra espreguiçadeira para pôr lá fora. Só tinha uma, com um ar muito sozinho, e ela não tencionava ficar sozinha.

    Um dia encontraria o homem certo, e a sua paixão cresceria com as noites quentes e casariam na primavera. Começariam uma vida juntos.

    Não fora feita para ficar solteira. Queria uma família. Não que estivesse nos seus planos desistir de ensinar, claro. Era professora, mas não havia motivo para não poder ser também esposa e mãe.

    Queria tudo isso, e quanto mais depressa melhor.

    Trauteando a música que tinha a tocar, saiu para o terraço, onde Mongo estava a dormitar. Bateu com a cauda no chão e rebolou, para o caso de a dona querer esfregar-lhe a barriga.

    Correspondendo às expectativas de Mongo, Sherry baixou-se e fez-lhe festas enquanto bebia o vinho e olhava descontraidamente em volta. O terraço dava para uma bonita zona verde, bordejada pelas árvores do parque, de um lado, e por uma sossegada avenida residencial, do outro.

    Escolhera o apartamento sobretudo porque permitiam a presença de animais domésticos. Onde ela ia, Mongo ia também. E, além disso, tinha a vantagem de ser conveniente para as corridas matinais no parque.

    O apartamento era pequeno, mas ela não precisava de muito espaço, desde que Mongo tivesse um sítio para fazer exercício. E numa cidadezinha como Progress, uma casa não custava um braço e as duas pernas como em Charleston ou em Columbia.

    - Este é o lugar certo para nós, Mongo. Esta é a nossa casa.

    Endireitou-se e voltou a entrar em casa, na pequena kitchenette, enquanto cantava com Sheryl sobre o seu erro favorito. Ia continuar a festejar preparando uma enorme salada para o jantar.

    A vida, pensou enquanto cortava os ingredientes, era bela.

    Quando terminou, o crepúsculo instalava-se. Fiz outra vez demasiada salada, pensou. Era um dos problemas de viver sozinha. Mas Mongo gostava das cenouras, e do aipo também, por isso ela os juntara à refeição que lhe preparara. Iam comer no terraço, e ela ia beber mais um copo de vinho e ficar um pouco tonta. Depois, iam dar um belo passeio, decidiu ela enquanto se acocorava para tirar o granulado de Mongo do saco de plástico. Talvez comer um sorvete.

    Pegou na tigela. Um movimento pelo canto do olho fez o coração pular-lhe na garganta. A tigela voou-lhe das mãos e ela conseguiu soltar um pequeno grito.

    Nessa altura, uma mão tapou-lhe a boca com força. A faca que usara para fazer o jantar roçava-lhe agora a garganta.

    - Calada. Muito, muito calada, e eu não te corto. Entendido? Os olhos dela, muito abertos, giravam-lhe nas órbitas. Ondas de pavor revolviam-lhe o estômago e tornavam-lhe a pele quente e úmida. Mas estava confusa. Não conseguia ver-lhe o rosto, mas pensou reconhecer a voz. Não fazia sentido. Não fazia sentido nenhum.

    A mão dele soltou-lhe lentamente a boca e agarrou-lhe o queixo.

    - Não me faça mal, por favor, não me faça mal.

    - Ora, porque havia eu de fazer-te mal? - O cabelo dela tinha um cheiro doce. O cabelo louro de uma puta. - Vamos para o quarto, onde podemos ficar confortáveis.

    - Não. - Parou, ao sentir o gume da faca na garganta, até ao queixo. O grito estava dentro dela, desesperado por soltar-se, mas a faca transformou-o em lágrimas silenciosas enquanto ele a arrastava para fora da cozinha.

    As portas que davam para o terraço estavam fechadas agora, as persianas corridas.                                                                          

    - Mongo. O que fez ao Mongo?

    - Não achas que eu ia fazer mal a um cão tão bonito e tão meigo como o Mongo, pois não? - O poder que tinha naquele momento tomou conta dele, alastrou-se por ele, tornando-o duro, quente e invencível. - Está só a dormir uma soneca. Não te preocupes com o teu cão, querida. Não te preocupes com nada. Vai ser bom. Vai ser exatamente o que tu queres.                                                     

    Empurrou-a para cima da cama, de barriga para baixo, e pôs o joelho sobre as costas dela, mantendo-a presa sob o seu peso. Trouxera precauções. Um homem tinha de estar preparado, mesmo para uma puta. Especialmente para uma puta.

    Costumavam gritar. E ele não queria usar a faca. Tinha mãos tão jeitosas. Tirou o lenço do bolso e amordaçou-a.

    Quando ela começou a mexer-se, quando ela começou a debater-se, ele sentiu-se no céu.                                                               

    Não era fraca. Mantinha em boa forma o corpo com que gostava de provocar e de seduzir os homens. O fato de ela se debater excitava-o. A primeira vez que lhe bateu, a excitação atingiu-o como se fosse sexo. Voltou a bater-lhe para que ambos percebessem quem mandava ali.

    Atou-lhe as mãos atrás das costas. Não podia correr o risco de aquelas unhas com o seu verniz cor-de-rosa, de ordinária, arranharem a sua pele.

    Calmamente, foi até à janela correr a cortina e encerrá-los no escuro.                                                                                                          

    Ela gemia através da mordaça, entontecida pelos golpes. O som fê-lo tremer e cortar-lhe ligeiramente a pele com a faca que estava a usar para lhe cortar as roupas. Ela tentou rebolar, tentou resistir, mas quando ele lhe pôs a ponta da lâmina sob o olho, exercendo alguma pressão, ficou muito quieta.                                                   

    - É isto que tu queres. - Abriu o fecho das calças e depois caiu sobre as costas dela e abriu-lhe as pernas. - É isto que andas a pedir. Que todas vocês andam a pedir.

    Quando acabou, chorou. Lágrimas de autocomiseração correram-lhe pelo rosto. Não era aquela, mas que podia ele fazer? Ela metera-se no seu caminho, não lhe deixara alternativa.

    Não era perfeito! Fizera tudo o que quisera e, ainda assim, não era perfeito.

    Os olhos dela estavam fixos e vazios quando ele lhe tirou a mordaça e a beijou na face. Cortou a corda que lhe prendia os pulsos e voltou a metê-la no bolso. Desligou a música e saiu por onde entrara.

    - Não posso ir para Beaux Revés.

    Tory estava sentada no alpendre da entrada, a apanhar o ar suave da noite. Ainda não conseguia voltar a entrar, ainda não estava preparada para lidar com a confusão deixada pelo pai e aumentada pela polícia.

    Cade contemplava o cigarro que acendera para acalmar os nervos, desejando, por um breve segundo, ter um uísque para acompanhá-lo.

    - Vais ter de dizer-me porquê. Ficar aqui, como as coisas estão, não faz sentido, e tu és uma mulher sensata.

    - Quase sempre - concordou ela. - Ser sensata diminui as complicações e poupa energia. Percebo agora que tinhas razão quanto a chamar a polícia. Eu não estava sendo sensata. Agi levada simplesmente pela emoção. Ele me assusta e me envergonha. Ao tentar manter o assunto em segredo, como sempre, pensei que limitaria o medo e a humilhação. É horrível ser vítima, Cade. Sinto-me exposta e zangada, e de certa forma culpada também.

    - Não vou discutir isso, embora sejas suficientemente inteligente para saberes que não tem sentido a culpa fazer parte do que estás a sentir.

    - Suficientemente inteligente para saber isso, mas não suficientemente inteligente para descobrir como não sentir. Vai ser mais fácil depois de voltar a pôr a casa em ordem e de me livrar daquilo que ele deixou nela. Mas vou continuar a lembrar-me da forma como o chefe Russ se sentou e escreveu no livrinho dele, a olhar para a minha cara, de como meu pai me intimidou, hoje, de como tem feito toda a minha vida.

    - Não há razão para o teu orgulho ficar ferido com isto, Tory.

    - «O orgulho é o caminho para a perdição». O meu pai recordou-me isso, esta manhã. Não há dúvida de que adora usar a Bíblia para levar a água ao seu moinho.                             

    - Vão encontrá-lo. A polícia anda à procura dele em duas regiões.

    - O mundo é muito maior do que duas regiões. E, que diabo, a Carolina do Sul é muito maior do que duas regiões. Pântanos e montanhas e clareiras. Tantos sítios para ele se esconder. - Balançava-se incansavelmente para a frente e para trás, numa urgência de movimento. - Se encontrar uma maneira de contactar a minha mãe, ela vai ajudá-lo. Por amor e por dever.

    - Sendo assim, isso só vem dar-me razão quanto à tua ida para Beaux Revés.

    - Não posso fazer isso.

    - Porquê?

    - Por muitas razões. Em primeiro lugar, a tua mãe opor-se-ia.

    - A minha mãe não tem nada a ver com o assunto.

    - Ora, não digas isso, Cade. - Lavantou-se abruptamente e foi até ao outro extremo do alpendre. Estaria ali?, perguntou-se. À espreita? À espera? - Não queres dizer isso, ou não devias dizer. A casa é dela, e ela tem o direito de dizer quem pode entrar nela e quem não pode.                                     

    - Porque haveria ela de se opor? Especialmente depois de eu lhe explicar o que aconteceu.

    - Explicar o quê? - Virou-se. - Que vais instalar a tua amante em casa dela, porque o pai da tua amante é louco?

    Ele aspirou o cigarro e deteve-se longamente.

    - Não escolheria essas palavras, mas sim, é mais ou menos isso.

    - E eu tenho a certeza de que ela vai receber-me com flores e uma caixa do melhor chocolate. Ora, não sejas tão homem nestas coisas - disse ela, erguendo a mão antes de ele poder falar. - Seja o que for que diga a porcaria da escritura, a casa pertence à mulher que mora nela, e eu não vou intrometer-me na casa da tua mãe.

    - Ela é uma mulher difícil, às vezes... quase sempre - admitiu ele. - Mas tem coração.

    - Não, e o coração dela não vai aceitar a mulher que ela considera responsável pela morte da sua filha querida. Não discutas comigo sobre isso. - A voz de Tory tremeu, quase falhou. - Magoa-me.

    - Está bem. - Deitou fora o cigarro, com um gesto violento, mas as suas mãos eram meigas quando as pousou nos ombros de Tory. - Se não queres ou não podes vir comigo, então vou levar-te a casa do teu tio.

    - E assim chegamos à segunda parte do problema. - As mãos dela foram ao encontro das dele. - Irracional, cabeça dura, ilógica. Admito isso tudo desde já, para não te sentires obrigado a dizer-mo. Tenho de construir aqui a minha defesa, Cade.

    - Isto não é um ponto estratégico num campo de batalha.

    - Para mim, parece-se muito com isso. Nunca pensei muito nisto dessa maneira - disse ela, com uma ligeira gargalhada. - Mas sim, isto parece-se muito com o meu ponto estratégico no meu campo de batalha pessoal. Recuei tantas vezes. Uma vez, chamaste-me covarde para me fazeres reagir, mas a verdade é que, ao longo da minha vida, tenho sido quase sempre covarde. Tenho tido pequenos rasgos de coragem, e isso só piora as coisas quando me vejo voltar a cair. Desta vez, não posso deixar que isso aconteça.

    - E como é que ficar aqui te torna corajosa em vez de estúpida?

    - Não me torna corajosa, e sim, talvez me torne estúpida. Mas torna-me inteira. E quero tanto voltar a sentir-me inteira. Acho que arriscaria qualquer coisa para não ter este lugar vazio dentro de mim. Não posso deixar que ele me expulse.

    Observou o pântano que se tornava mais frondoso, mais profundo, mais verde, com o avanço do verão. Os mosquitos zumbiam, alimentando-se na água escura. Os aligátores deslizavam nela, a morte silenciosa. Era um lugar onde as cobras podiam surgir inadvertidamente e as areias movediças podiam sugar-nos os sapatos dos pés. E era um lugar, pensou ela, que se tornava luminoso e lindo com o reluzir dos pirilampos, onde as flores silvestres cresciam na sombra e na escassez de luz. Onde uma águia podia voar como um rei. Não havia beleza sem risco. Vida sem risco. - Quando era criança, vivi amedrontada nesta casa. Era uma forma de vida - disse ela -, e habituei-me a ela como as pessoas se habituam a certos cheiros, acho eu. Quando voltei, fiz dela a minha casa, sacudindo todas essas más recordações como pó de um tapete. Arejando esse cheiro, Cade. Agora, ele está a tentar trazer o medo de volta. Não posso deixar. Não vou deixar - acrescentou, virando-se até os seus olhos voltarem a encontrar os dele. - Foi isso que fiz esta manhã. Não dizer a ninguém, manter o assunto em segredo. Mais um segredo, pequeno e sujo. Se não me tivesses obrigado, era isso que eu tinha feito aqui também. Vou ficar. Vou limpá-lo deste lugar e vou ficar. Espero que ele saiba isso.

    - Quem me dera não te admirar por fazeres isto. - Passou a mão pela parte solta do cabelo dela. - Era mais fácil obrigar-te a fazer as coisas à minha maneira.

    - Não costumas obrigar as pessoas a fazer as coisas. - Talvez por alívio, talvez por outra coisa, passou-lhe a mão pelo rosto. - Tu manobras, não obrigas.

    - Bem, é um ponto a favor do futuro da nossa relação, teres percebido isso e conseguires viver com isso. - Abraçou-a e pousou os lábios na cabeça dela. - És importante para mim. Não, não comeces a defender-te. Depois, vou ter de manobrar-te. És importante para mim, Tory, mais do que eu tencionava que fosses.

    Ela manteve o silêncio e ele deixou-se dominar pela frustração. Às vezes, era o mais honesto.

    - Dá-me qualquer coisa como resposta, raios partam! Ele empurrou-a para trás, depois puxou-a para cima e esmagou a boca contra a dela.

    Ela sentiu o sabor da urgência, o calor, os pequenos laivos de raiva que ele escondia tão bem. E foi aquela dose de emoção pura, não filtrada, vinda dele que fez disparar mais um raio dentro dela.

    Céus, ela não queria ser amada, nem que alguém precisasse dela, não queria que aqueles sentimentos voltassem à vida dentro de si, outra vez.

    - Já te dei mais do que pensei que tinha. Não sei o que tenho mais. - Agarrou-se a ele, enterrou-se nele. - Há tanta coisa a acontecer dentro de mim, que eu não consigo lidar com isso. Anda tudo em círculos. Não chega?

    - Sim. - Ele afastou-a um pouco para voltar a beijá-la, desta vez suavemente. - Sim, por agora chega. Desde que abras espaço para mais. - Passou os polegares pelas faces dela. - Tiveste um dia dos demônios, não foi?

    - Não posso dizer que tenha sido um dos melhores.

    - Então, vamos acabá-lo bem. Vamos começar.

    - A quê?                                                     

     Ele abriu a porta de tela.

    - Querias limpá-lo daqui. Vamos a isso.

    Trabalharam juntos durante duas horas. Ele pôs música. Ela não teria pensado nisso, ter-se-ia concentrado nos pormenores, mantido a mente rigorosamente canalizada para as tarefas. Mas a música percorria a casa, a cabeça dela, distraindo-a o suficiente para impedi-la de ficar a matutar no mesmo.

    Apetecia-lhe queimar as roupas em que ele tocara, viu-se a levá-las lá para fora, a dispô-las numa pilha e a acender um fósforo. Mas não podia dar-se a esse luxo. Por isso, lavou-as, dobrou-as e guardou-as.

    Viraram o colchão cortado. Teria de ser substituído, mas por agora ficava assim. E com lençóis lavados, mal se dava por isso.

    Cade falou do seu trabalho, e a sua voz invadiu agradavelmente a mente de Tory, em harmonia com a música. Limparam a cozinha, comeram sanduíches e ela disse-lhe que estava pensando em contratar alguém para ajudá-la na loja.                                       

    - É uma boa idéia. - Ele serviu-se de uma cerveja, satisfeito por ela ter pensado em ter cerveja para ele. - Vais apreciar melhor o teu negócio se não te sentires estrangulada por ele. Sherry Bellows, é a nova professora do liceu, não é? Vi-a e ao cão, há umas semanas, no minimercado. Parece um feixe de energia.

    - Foi essa a minha impressão.                                   

    - Numa embalagem muito atraente. - Ele sorriu e bebeu um pouco mais da cerveja quando Tory ergueu as sobrancelhas. - Estava a pensar em ti, querida. Uma empregada atraente é uma mais-valia para o negócio. Achas que ela irá trabalhar com aqueles calções curtos?

    - Não - disse Tory com firmeza. - Não acho.

    - Aposto que atrai uma série de clientes masculinos se deixares que os calções façam parte da indumentária dela. Aquela rapariga tem uns belos postes.

    - Postes. Hummm. Bem, ela e os postes dependem das referências que me derem sobre ela. Mas acho que vão ser boas. - Tory varreu o último lixo e despejou-o no caixote. - Parece ser o melhor que pode ser feito.

    - Sentes-te melhor?

    - Sim. - Atravessou a cozinha para guardar a vassoura e o pano do pó. - Consideravelmente. E estou muito agradecida pela ajuda.

    - Estou sempre aberto à gratidão.

    Ela tirou o jarro da geladeira e serviu-se de um copo de chá gelado.

    - O roupeiro do quarto não é muito grande, mas arranjei espaço. E há uma gaveta vazia na cómoda.    .

    Ele não disse nada, limitando-se a beber a cerveja. Ficou à espera.

    - Querias trazer para cá algumas das tuas coisas, não querias?

    - Sim.

    - Então...   

    - Então?                      

    - Não vamos viver juntos. - Ela pousou o copo. - Nunca vivi com ninguém, e isto também não é viver contigo.

    - Está bem.

    - Mas se vais passar tanto tempo aqui, deves querer ter um espaço para guardares as tuas coisas.                                           

    - Muito prático.

    - Olha, vai para o inferno! - Mas não havia qualquer raiva na resposta.

    - Não é hábito dizer essas coisas a rir. - Ele pousou a cerveja e pôs os braços à volta dela.

    - Que pensas tu que estás fazendo?      

    - Dançar. Nunca te levei a dançar. É uma coisa que as pessoas que não vivem juntas devem fazer de vez em quando.

    Era a velha imagem, de um rapaz a pedir a uma moça que ficasse com ele depois de escurecer.        

    - Estás tentando ser simpático?

    - Não tenho de tentar. Faz parte da minha maquiagem. - Ele fê-la dobrar-se para trás e ela riu.

    - Muito leve e habilidoso.

    - Todas aquelas miseráveis horas de danças de salão haviam de dar algum resultado.

    - Pobre rapazinho rico. - Pousou a cabeça no ombro dele e deixou-se ir, desfrutando a dança, o corpo dele junto ao dela, o cheiro dele. - Obrigada.

    - De nada.

    - Quando vinha para casa, esta noite, vinha pensando em ti.

    - Soa bem.

    - E vinha a pensar: até agora ele tem tomado todas as iniciativas. E eu deixei, porque não tinha a certeza se eu queria tomar alguma ou contrariar alguma das dele. Era como se fosse fácil ser...

    - Manobrada?

    - Acho que sim. E vinha a pensar: como reagiria o Kincade La-velle se eu chegasse a casa e fizesse um belo jantar para nós dois.

    - Acho que ele gostava muito.

    - Sim, bem, fica para outra vez. Essa parte do plano não deu em nada. Mas havia uma segunda parte.

    - Que era...               

    Ela levantou a cabeça do ombro dele e olhou-o nos olhos.

    - Como reagiria o Kincade Lavelle se depois disso, quando estivéssemos calmos e descontraídos... o que faria ele se eu o seduzisse?

    - Bem... - Foi tudo o que conseguiu dizer quando ela pressionou o corpo contra o dele e começou a passar-lhe as mãos pelos quadris. O sangue ferveu-lhe deliciosamente. - Acho que o mínimo que posso fazer, como cavalheiro, é deixar-te descobrir.

    Desta vez foi ela que desapertou os botões, a camisa dele e depois a dela. Pousou os lábios no coração dele, na pele quente e vibrante.

    - Tenho o teu sabor em mim desde a primeira vez que me beijaste. - Percorrendo-o com os lábios, despiu-lhe a camisa. - Consigo reviver os sabores, e fiz isso com o teu, muitas vezes.

    Passou as mãos pelo peito dele, pela barriga - ele estremeceu -, e depois até aos ombros. Ombros largos e fortes.

    - Gosto de sentir-te. Músculos longos e fortes. Excitam-me. E as tuas mãos, ásperas do trabalho, a percorrer-me. - Abriu a blusa e deixou-a escorregar até ao chão, onde foi juntar-se à dele. Sem deixar de olhar para ele, desapertou o sutiã e deixou-o cair.

    - Toca-me.

    Ele tomou-lhe os seios nas mãos, o seu peso quente e suave, e tateou-lhe os mamilos com as pontas dos polegares.

    - Sim, gosto disso. - Deixou cair a cabeça para trás, enquanto o calor lhe girava na barriga. - Assim mesmo. Derreto por dentro quando me tocas. Vês? - Os olhos dela, lânguidos e escuros, fixaram os dele. - Quero...

    - Diz-me.

    Umedeceu os lábios e desapertou-lhe o botão das calças. As mãos dele percorriam-na, numa carícia forte.

    - Quero sentir o que sentes. Quero o que tens dentro de ti dentro de mim. Nunca experimentei isso com ninguém. Nunca quis. Deixas-me?

    Ele inclinou a cabeça e roçou os lábios nos dela.

    - Leva o que quiseres.

    Era um risco. Ela estaria aberta, exposta, muito mais indefesa do que ele. Mas ela queria isso, tudo isso, e aquele laço intenso de confiança.

    Ela voltou a pousar os lábios nele e abriu-lhe a mente, o coração, o corpo

    Foi como um raio, um relâmpago, a força daqueles desejos, daquelas imagens entrelaçadas. O desejo dele, misturado com o dela, dentro dela. Invadia-a, profundo, luminoso, uma massa de energia. Era tão forte que a cabeça lhe pendeu para trás e ela atingiu o clímax num longo jorro erótico.

    - Céus, céus. Espera.

    - Não. - Ele nunca sentira nada assim. Os laços daquela união apertaram-se mais, numa maravilhosa mistura. - Mais. - Cravou-lhe os dentes no ombro, saboreando a carne. - Outra vez. Agora.

    Ela não conseguiu parar, varrida como que por uma tempestade cheia de fúria e esplendor. Foi ela que o arrastou para o chão, ela que, com a respiração entrecortada, implorou, exigiu, ameaçou, enquanto rasgavam as roupas um ao outro.

    Unida a ele, como se tivesse garras, beliscou-o enquanto rolavam pelo chão. O bater do coração dele estava dentro dela, selvagem, esmagando-se contra o dela. O sabor dele, o sabor dela própria, misturados, a saturá-la.

    Quando ele mergulhou dentro dela, ela sentiu o latejar urgente do sangue dele, o labirinto desesperado dos pensamentos dele. Perdidos. Ela gritou, uma, duas vezes. Estavam ambos perdidos.

    Ela ouviu o nome dela, a voz dele a chamá-lo dentro da mente dela, segundos antes de os lábios dele o pronunciarem. Quando ele se esvaiu dentro dela e a arrastou com ele, todo aquele esplendor fê-la chorar.

   

    Wade não tinha mãos a medir, ou pelo menos o que restava delas, depois de uma caprichosa gata, ironicamente chamada Fofinha, as ter maltratado bastante enquanto levava as vacinas. Maxine estava atulhada em exames finais e ele dera-lhe o dia de folga, o que significava que tinha apenas duas mãos para lutar contra quatro garras e alguns dentes bem afiados.

    Havia uma hora que concluíra que cometera um erro de terríveis proporções ao dispensar Maxine. Começara o dia com uma emergência que exigiu um telefonema e o atrasou consideravelmente. Se acrescentasse a guerra na sala de espera, motivada por um choque de personalidade entre um setter e um bichon, a cabra bebê dos Olson, que conseguira comer a maior parte da Barbie Malibu até ficar com o braço atravessado na garganta, e o temperamento da Fofinha, diria que tivera uma manhã para esquecer.

    Estava a praguejar, a transpirar e a sangrar quando Faith entrou apressadamente por trás.

    - Wade, querido, podes ver a Abelha? Acho que ela não se sente bem.

    - Tira uma senha.

    - Só demora um minuto.

    - Eu não tenho um minuto.

    - Ora... Meu Deus, o que te aconteceu às mãos? - Faith observou Wade enquanto ele evitava por pouco nova arranhadela e segurava firmemente o gato debaixo do braço. - A gatinha arranhou-te, querido?                        

    - Vai catar pulgas - foi a melhor resposta que lhe ocorreu.

    - Porquê? Ela também tem disso? - gritou Faith enquanto se dirigia para a sala de espera. - Está tudo bem, bebê. - Tocou com o nariz no da cadelinha. - O papai vai já tratar de ti.

    Wade voltou a entrar para lavar as mãos e pôr anti-séptico.

    - Ela tem estado a uivar e a soltar uma espécie de gemidos toda a manhã. E tem o nariz um bocadinho quente. Não quer brincar. Só quer estar deitada. Vês?

    Faith pousou a Abelha e a cadelinha sentou-se aos pés de Wade, olhou para ele com ar infeliz e depois vomitou-lhe em cima dos sapatos.

    - Oh, meu Deus. Deve ter sido qualquer coisa que comeu. A Lilah disse que eu não devia dar-lhe aqueles bolos todos. - Faith mordeu o lábio mas não conseguiu evitar uma gargalhada nervosa. Wade estava ali, a olhar para ela, com o anti-séptico numa mão, um fio de sangue a escorrer da outra e vomitado de cão nos sapatos. - Pedimos muita desculpa. Abelha, não comas isso. É porcaria. - Pegou na cadelinha. - Aposto que te sentes muito melhor agora, não sentes, docinha? Vês, Wade? Já voltou a abanar a cauda. Eu sabia que se a trouxesse cá, ficaria tudo bem.

    - É isso que te parece? Que está tudo bem?

    - Ora, a Abelha já se livrou do que a preocupava e acho que não deve ser a primeira vez que ficas com um bocadinho de vômito de cão nos sapatos.

    - Tenho uma sala de espera cheia, as minhas mãos estão arranhadas e doem que se farta, e agora os meus sapatos vão deitar um fedor durante o resto do dia.                                             

    - Vai lá acima e muda de sapatos. - Ela recuou quando ele transformou uma das mãos numa garra. Faith adorava a luz que assomava aos olhos dele quando ficava furioso. - Vai lá, Wade.

    A garra transformou-se num punho que a atingiu de leve, entre os olhos.                                                                  

    - Vou descalçar estes sapatos, metê-los no lixo, e quando voltar quero que tenhas isto tudo limpo.

    - Limpar isto? Eu?

    - Sim. Põe o cão no consultório, pega um balde e um esfregão, e trata do assunto. Não tenho tempo para isto. - Descalçou os sapatos,  pegando-os pelos calcanhares. - E despacha-te. Estou atrasado.

    - O papai está um bocadinho atravessado, esta manhã - murmurou para a Abelha, enquanto Wade se afastava em direção ao caixote do lixo. Olhou para o chão e sorriu. - Bem, pelo menos vomitaste a maior parte nos sapatos. Não foi mau.

   

    Quando ele voltou ela estava a limpar o chão com a esfregona, afanosamente, embora sem experiência. Havia restos a deslizar pelo linóleo, em pequenas ondas de água. Quase lhe pareceu que iam na corrente. Mas não teve coragem para queixar-se.

    - Estou quase acabando. A Abelha está lá atrás, brincando com o osso que chia. Tem outra vez os olhos brilhantes e vivos. - Faith meteu o esfregão no balde, espalhando mais água. - Acho que isto agora precisa secar.

    Em alternativa aos gritos que lhe apetecia dar, Wade passou as mãos pelo rosto e riu.

    - Faith, não há ninguém como tu.

    - Claro que não.

    Ela afastou-se um pouco enquanto ele pegava no balde, o despejava, lavava o esfregão e depois começava a apanhar os restos espalhados e a água.

    - Bem, acho que assim também dá. 

    - Faz-me um favor. Vai lá fora e diz a Mister Jenkins que traga o Mitch. É o beagle que está a uivar há meia hora. E, se puderes, encontra maneira de manter alguma ordem lá fora durante os próximos vinte minutos. Pago-te um belo jantar e quem escolhe o restaurante és tu.

    - Champanhe?

    - Uma garrafa grande.

    - Vamos lá ver o que consigo fazer.

    Ainda não usufruíra os seus vinte minutos quando ouviu o grito urgente.

    - Wade! Wade, vem cá depressa!                     

    Wade precipitou-se para a saída e viu Piney Cob a vacilar sob o peso de Mongo.

    - Meteu-se à estrada, a correr, mesmo à minha frente. Deus todo-poderoso. Está sangrando muito.                                         

    - Trá-lo cá.

    Moveu-se rapidamente. O cão respirava com dificuldade, tinha as pupilas fixas e dilatadas. O pêlo espesso estava manchado de sangue, que pingava também no chão.                        

    - Aqui, em cima da marquesa.

    - Eu freei - murmurou Piney, afastando-se. - Freei, mas apanhei-o do mesmo modo. Ia ao armazém comprar umas coisas, e ele apareceu correndo, vindo do parque.

    - Sabes se lhe passaste com a roda por cima?

    - Acho que não. - Com as mãos tremendo, tirou do bolso um lenço vermelho, desbotado, e limpou o rosto transpirado. - Acho que só lhe bati, mas foi tudo muito rápido.

    - Muito bem. - Wade pegou em toalhas, e como Faith estava ao seu lado, pegou-lhe as mãos e pousou-as sobre as toalhas. - Faz pressão, com força. Quero essa hemorragia controlada. Ele está em estado de choque.

    Abriu o armário dos medicamentos e pegou num frasco para preparar uma injeção.

    - Aguenta-te, rapaz, aguenta-te - murmurou, quando o cão começou a mexer-se e a gemer. - Mantém a pressão - ordenou a Faith. - Estou a dar-lhe um sedativo. Preciso de ver se há ferimentos internos.

    As mãos dela tremeram quando ele as pressionou contra a ferida. Pensou ter visto o osso exposto, a espreitar na pata de trás do cão. E sentiu o estômago às voltas.

    Queria tirar as mãos de todo aquele sangue, correr para fora da sala. Porque não era Piney a fazer aquilo? Porque não estava mais ninguém ali? Começou a dizer isso mesmo, com as palavras a saltar-lhe na garganta. Sentia o cheiro a sangue, a anti-séptico, e o odor acre do suor de Piney, em pânico.

    Mas o seu olhar pousou no rosto de Wade.

    Firme, concentrado, forte. Tinha os olhos fixos e concentrados, a boca firme, numa linha determinada. Observou-o, respirando por entre os dentes cerrados. Vê-lo trabalhar, com rapidez, eficácia e concentração, acalmou-a, no preciso momento em que o cão se aquietava sob as suas mãos.

    - Não tem costelas partidas. Acho que a roda não lhe passou por cima. Talvez tenha um rim magoado. Tratamos disso mais tarde. A ferida na cabeça é superficial. Não tem sangue nos ouvidos. O pior de tudo é a pata.

    O que já era suficientemente mau, pensou ele. Salvá-la, e ao cão, ia ser complicado.

    - Preciso levá-lo para a cirurgia. - Olhou para trás e viu que Piney se deixara cair numa cadeira e tinha a cabeça entre os joelhos. - Preciso das tuas mãos, Faith. Vou pegar nele e levá-lo, tens que ficar comigo. Mantém a pressão, com força. Ele já perdeu muito sangue. Pronta?

    - Mas Wade, eu...                                                           

    - Vamos.

    Ela fez o que ele lhe disse, porque ele não lhe deixou alternativa. Correu ao lado dele, abrindo a porta com a mão que tinha livre. A Abelha soltou um latido de alegria e correu entre os pés de Faith.

    - Sentada! - disse Wade com tanta veemência que o rabo da cadelinha se sentou obedientemente no chão. Assim que pousou o cão, que estava sob o efeito de sedativos, pegou num avental grosso e atirou-o a Faith. - Põe isso. Tenho que tirar fotografias.

    - Fotografias?

    - Raios X. Vem para este lado. Segura-o o melhor que puderes. O avental pesava como chumbo, mas ela o pôs, fez o que ele lhe mandou. Mongo tinha os olhos semicerrados, mas pareceu-lhe que ele estava a observá-la, a implorar-lhe ajuda.

    - Vai tudo correr bem, meu querido. O Wade vai pôr-te bom. Vais ver.

    O som da voz de Faith fez a cadelinha latir e vir deitar-se aos pés dela.

    - Livra-te do avental agora. - Enquanto esperava pelas imagens, Wade ia gritando ordens. - Anda aqui e volta a pressionar. Continua a falar com ele. Deixa que ele ouça a tua voz.

    - Está bem. Hummm... - Engolindo o que lhe soube a bílis, pressionou o volume de toalhas sobre o ferimento. - O Wade vai tratar de ti e vais ficar bom. Tens... Tens de olhar para os dois lados antes de atravessares a rua. Da próxima vez não te esqueças disto. Oh, Wade, ele vai morrer?

    - Não, se eu puder evitá-lo. - Pôs as imagens de raios X num painel iluminado e acenou com a cabeça. - Não, se eu puder evitá-lo - repetiu, e começou a reunir instrumentos.

    Os instrumentos afiados e prateados brilhavam sob a luz forte que tinham por cima das cabeças. A cabeça dela parecia rodopiar em sincronia com o estômago.

    - Vais operar? Agora? Assim?

    - Tenho de tentar salvar a pata.

    - Salvar? Queres dizer...

    Quando ele afastou a compressa, o estômago dela deu uma volta súbita, mas ele não lhe deu tempo para ficar enjoada.

    - Segura nisto e aperta este botão quando eu disser que preciso de sucção. Podes fazer isso com uma mão. Quando precisar de um instrumento, descrevo-o. Entrega-me, com a pega virada para mim. Agora, vou anestesiá-lo.

   

    Baixou a luz e limpou a ferida. Tudo o que Faith ouvia agora eram os ruídos do tubo, quando ele pedia sucção, e o tilintar dos instrumentos. Desviou os olhos, e queria deixá-los assim, mas ele continuava a dar-lhe ordens que faziam com que ela precisasse olhar.

    Dali a pouco parecia um filme.

    Â cabeça de Wade estava inclinada, os olhos frios e calmos, embora ela visse gotas de suor a pingar-lhe da testa. Parecia-lhe que as mãos dele eram mágicas, movendo-se delicadamente entre sangue, carne e osso.

    Ela nem pestanejou quando ele recolocou o osso partido no lugar. Nada daquilo era real.

    Viu-o suturar com pontos impossivelmente pequenos dentro do ferimento. O amarelo do líquido desinfetante que ele usara manchava-lhe as mãos, misturado com o sangue, até tudo ter a cor de uma nódoa negra antiga.

    - Preciso que verifiques os batimentos cardíacos dele, manualmente. Usa a tua mão e sente o coração dele.

    - Está um bocado lento - disse ela, quando fez pressão com a mão. - Mas parece regular. Assim bum, bum, bum.

    - Muito bem, vê-lhe os olhos.

    - As pupilas estão enormes.

    - Há sangue na parte branca?     

    - Não, acho que não.

    - Está bem, ele precisa de uns parafusos nesta pata. O osso estilhaçou um bocado. Depois disso, vou fechá-lo. Em seguida, engessamos a pata.

    - Ele vai ficar bem?

    - É saudável. - Wade limpou a testa ao braço. - E é novo. Tem boas chances de ficar com a pata.

    Estava preocupado com os fragmentos do osso. Tê-los-ia tirado a todos? O músculo estava danificado. Havia uns tendões rasgados, mas estava confiante em ter reparado o pior.

    Tudo isto percorria uma parte da sua mente, enquanto a outra parte estava concentrada em segurar osso e aço.

    - Daqui a um dia ou dois já sei. Preciso de gaze e fita. Aquele armário, ali.

    Depois de ter fechado a ferida, Wade envolveu a pata com gaze, engessou-a, e depois verificou os sinais vitais do cão. Tratou o arranhão na cabeça, atrás da orelha esquerda.

    - Aguentou-se - murmurou Wade, e depois, pela primeira vez em mais de uma hora, olhou diretamente para Faith. - E tu também.

    - Sim, bem, a princípio estava um bocado atrapalhada com as mãos, mas depois... - Levantou as mãos e começou a gesticular. Estavam manchadas de sangue, e a blusa também. - Oh, meu Deus, meu Deus... - Foi tudo o que conseguiu dizer antes de revirar os olhos.                                               

   

    Ele apanhou-a e deitou-a no chão. Ela já estava a recuperar a consciência quando ele lhe levantou a cabeça e lhe levou aos lábios um copo de papel com água.

    - Que aconteceu?                                                   

    - Desmaiaste, com graciosidade e num momento conveniente. - Pousou-lhe os lábios na face. - Vou levar-te lá para cima. Podes limpar-te e ficar deitada por um bocado.

    - Eu estou bem. - Mas quando ele a ajudou a pôr-se de pé, as pernas fraquejaram-lhe. - Pronto, talvez não esteja. É melhor ficar um bocadinho deitada.

    Deitou a cabeça no ombro dele, sentindo-se meio a flutuar quando ele a levou para o andar de cima.                                

    - Acho que não fui feita para ser enfermeira.

    - Portaste-te muito bem.

    - Não, tu é que te portaste bem. Nunca pensei, nunca entendi porque fazes o que fazes. Sempre pensei que isto fosse dar vacinas e limpar caca de cão.

    - É muito isso.

    Levou-a para a casa de banho, onde a apoiou no lavatório e pôs a água quente a correr.               

    - Põe as mãos aqui. Vais sentir-te melhor quando estiverem limpas.

    - Há muito mais naquilo que fazes, Wade. E há muito mais em ti.

    - Os olhos dela encontraram os dele no espelho. - Não tenho prestado atenção, não me dei ao trabalho de ver de perto. Hoje, salvaste uma vida. És um herói.

    - Fiz aquilo que me ensinaram a fazer.

    - Eu sei o que vi, e o que vi foi heróico. - Virou-se e beijou-o.

    - Agora, se não te importas, vou despir-me toda e meter-me na ducha.                            - Estás suficientemente firme?                                                

    - Sim, estou bem. Vai ver o teu doente.

    - Amo-te, Faith.

    - Acho que amas mesmo - disse ela, suavemente. - E é mais agradável do que eu esperava. Vai lá, a minha cabeça ainda está suficientemente tonta para eu dizer alguma coisa de que virei a arrepender-me depois.

    - Venho cá acima quando puder.

    Primeiro, foi ver Mongo, e depois lavou-se antes de voltar à sala de observação. Piney continuava na cadeira, e tinha agora a cadelinha enrolada no colo, a dormir.

    Wade esquecera-se completamente de ambos.

    - O cão vai safar-se?

    - Parece que sirn.                                              

    - Jesus Cristo, Wade. Até me sinto doente. Tenho estado a dar voltas à cabeça, e se eu tivesse prestado mais atenção... Ia dirigindo, sem pensar em nada de especial, e de repente vi o cão saltar para a estrada. Podia ter sido um garoto.

    -A culpa não foi tua.

    -Já bati num veado, uma vez ou duas. Não sei porque não me afetou como isto. Com os veados, fiquei chateado. Os veados podem causar grandes estragos num carro. Um garoto vai chegar em casa e andar à procura desse cão.

    - Conheço a dona. Vou telefonar-lhe. Foi muito importante que o tivesses trazido para aqui rapidamente. É só disso que deves lembrar-

    - Bem, sim. - Soltou um enorme suspiro. - Esta pequena é muito gira - disse ele, afagando a cabeça da cadelinha. - Veio aqui armar confusão, roeu meus atacadores das botas durante um bocado e depois aconchegou-se.

    - Obrigado por teres tomado conta dela. - Wade baixou-se e pegou na cadelinha. A Abelha bocejou e depois lambeu os arranhados de gato que ele tinha na mão. - Vais ficar bem?

    - Sim, para dizer a verdade, vou beber qualquer coisa. Provavelmente, o Cade já pôs a tropa à minha procura, mas isso vai ter de esperar. - Pôs-se de pé. - Não te esqueças de me dar notícias desse cão, estás ouvindo?

    - Claro. - Deu uma palmada no ombro de Piney, antes de ele sair.                                                               

    A sala de espera estava vazia. Wade imaginou que a maioria dos seus pacientes se tivesse cansado de esperar. Estava grato pelo sossego.

    Deu à cadelinha um dos mimos para cão que Maxine tinha na gaveta da escrivaninha, e depois procurou nas fichas o número de Sherry Bellow.

    Respondeu o atendedor de chamadas, por isso deixou mensagem. Devia andar à procura do cão, pensou. O mais provável era dar com alguém que tivesse visto o acidente.

    Deixou o assunto e voltou lá para dentro, para ver Mongo.    

    Minutos depois de Wade ter falado com o atendedor de chamadas de Sherry, Tory ouviu a mesma voz animada anunciar que ela não podia atender.

    - Sherry, fala Tory Bodeen, da Conforto do Sul. Gostaria que me telefonasse ou que aparecesse na loja, quando puder. Se ainda estiver interessada, o emprego é seu.

    Tory sentiu-se bem com a decisão, enquanto pousava o auscultador. Não era apenas por as referências de Sherry serem espetaculares; podia ser divertido ter um rosto alegre e mãos dispostas trabalhando na loja durante umas horas por semana.

    O negócio estava um tanto parado, hoje, mas ela não se sentiu desanimada. Ia levar algum tempo a tornar-se parte da rotina das pessoas. E tinha um monte de afazeres naquela manhã.

    Usou o intervalo do almoço para fazer um horário para a nova empregada. Pegou nos formulários que iria precisar preencher para os impostos e acrescentou a lista de regras que definiam a política da loja e que acabara de escrever no computador.

    Brincou com as palavras, tentando criar um anúncio para sair no jornal de domingo, que incluiria a roupa de cama e atoalhados com que iria começar a trabalhar.

    Quando a sineta da porta tocou, levantou apressadamente os olhos do papel, com o mesmo baque no coração que sentira durante todo o dia, sempre que a sineta tocava.

    Mas ao ver Abigail Lawrence acalmou-se, pousou a caneta e sorriu.

    - Mas que bela surpresa.

    - Disse-te que havia de vir até aqui. Tory, isto está mesmo bonito. Tens aqui coisas lindas.

    - Temos artistas muito talentosos.

    - E tu sabes bem como mostrar o trabalho deles. - Abigail estendeu a mão quando Tory saiu de trás do balcão. - Vou divertir-me imenso a gastar dinheiro aqui.

    - Não serei eu a impedir-te. Posso oferecer-te alguma coisa? Uma bebida fresca, um chá?

    -  Não, não, obrigada. Isto é batik.

    Abigail admirou o retraio emoldurado de uma jovem de pé, num caminho de jardim.

    - Ela faz um belo trabalho. Tenho em estoque mais lenços feitos por ela.

    - Tenho de vê-los. Quero ver tudo. Mas digo-te já que quero este batik. É perfeito para o meu marido me dar no nosso aniversário de    casamento.                                                                                            

    Divertida, Tory virou-se para tirá-lo da parede.

    - E ele quer o lenço embrulhado para presente?

    - Claro.

    - Há quanto tempo estão casados?

    Abigail inclinou a cabeça enquanto Tory levava o batik até ao balcão. Em todos os anos em que fora advogada de Tory não se recordava de ela lhe ter feito uma pergunta pessoal.

    - Há vinte e seis.

    - Então, casou aos dez?

    Abigail sorriu e examinou uma caixa de madeira polida.

    - Este tipo de atividade condiz contigo. - Pegou a caixa e pousou-a em cima do balcão. - E acho que esta cidade também. Aqui estás em casa.

    - Sim. Esta é a minha casa. Abigail, vieste realmente de Charleston até aqui para fazeres compras?

    - Para isso e para te ver. E para falar contigo.

    Tory acenou com a cabeça.

    - Se descobriste mais alguma coisa sobre a rapariga que foi assassinada, não precisas de estar com rodeios.

    - Não descobri mais nada sobre ela. Mas pedi ao meu amigo que verificasse a existência de crimes parecidos, crimes que tivessem tido lugar durante as duas últimas semanas de agosto.

    - Há mais.

    - Tu já sabias.

    - Não, sentia. Temia. Quantos mais?

    - Três que encaixam no perfil e no tempo. Uma rapariga de doze anos, que desapareceu durante uma viagem com a família a Hilton Head, em agosto de 1986. Uma estudante de dezenove anos, que estava fazendo um curso de verão na Universidade de Charleston, em Agosto de 1993, e uma mulher de vinte e cinco anos, que foi acampar com amigos na Floresta Nacional de Sumter. Em agosto de 1999-

    - Tantas - murmurou Tory.

    - Tratou-se sempre de homicídios de caráter sexual. Violadas e estranguladas. Não havia semen. Havia sinais de alguma violência física, em especial na zona do rosto. Esta violência vai aumentando a cada vítima.

    - Porque elas não têm o rosto que deviam ter. O rosto delas não é o dela. O de Hope.

    - Não compreendo.

    Tory desejou não compreender também. Desejou que a morbidez de tudo aquilo não fosse tão terrivelmente clara.

    - Eram todas louras, não eram? Bonitas e elegantes?

    - Sim.

    - Ele continua a matá-la. Uma vez não foi suficiente.

    Abigail abanou a cabeça, um pouco preocupada pela forma como os olhos de Tory estavam a tornar-se vagos e escuros.

    - É possível que tenham sido mortas pelo mesmo homem, mas...

    - Foram mortas pelo mesmo homem.

    - O tempo decorrido entre os homicídios desvia-se do perfil de um serial-killer típico. Tantos anos de intervalo. Não sou especialista em assuntos criminais, e não sou psicóloga, mas andei a estudar umas coisas sobre este assunto nas últimas duas semanas. As idades das vítimas não encaixam no perfil standard.

    - Isto não é standard, Abigail. - Tory abriu a caixa de madeira e voltou a fechá-la. - Não é típico.

    - Tem de haver uma base. A tua amiga e a rapariga de doze anos apontam para um pedófilo. Parece-me que um homem que escolhe crianças como vítimas não muda de repente para mulheres jovens.

    - Mas ele não está a mudar nada. As idades têm tudo a ver. Todas tinham a idade que a Hope teria nessa altura, se fosse viva. É este o padrão.

    - Sim, concordo contigo, embora nenhuma de nós seja especialista nesta área. Acho que me senti no dever de salientar possíveis incongruências.

    - Pode haver mais.

    - Isso está também a ser investigado, embora até agora, segundo o que me foi assegurado pelo meu contacto, não se tenha descoberto nada. O FBI está investigando. - A boca bonita de Abigail endureceu. - Tory, o meu contacto quis saber a razão do meu interesse e como eu tinha ficado ao corrente do que se passou com a moça da carona. Eu não lhe disse.

    - Obrigada.

    - Podias ajudar.                                         

    - Não sei se posso. Mesmo que me deixassem, não sei se sou capaz. Fico gelada por dentro. Nunca foi fácil. Foi sempre devastador. E agora não quero voltar a enfrentar isso, voltar a sujeitar-me a isso. Não posso ajudá-los. Isso é assunto para a polícia.

    - Se é isso mesmo que sentes, porque me pediste que descobrisse o que pudesse?

    - Eu tinha de saber.         

    - Tory...

    - Por favor, não. Não quero voltar lá. Não tenho a certeza se sairia de lá inteira, desta vez. - Para manter as mãos ocupadas, começou a reorganizar coisas numa prateleira. - A polícia, o FBI, são eles os especialistas. Isto é trabalho para eles, não para mim. Não quero os rostos de todas aquelas pessoas na minha cabeça, o que lhes aconteceu, dentro da minha cabeça. Já tenho a Hope.

    Covarde. A voz murmurou-lhe a acusação ao ouvido durante o resto do dia. Não a ignorou, aceitou-a. E iria aprender a viver com ela.

    Sabia o que queria saber. Quem quer que tivesse morto Hope continuava a matar, de forma seletiva. De forma eficaz. E cabia à polícia, ou ao FBI, ou a uma qualquer força especial, persegui-lo e detê-lo.                                                                                   

    Não era trabalho dela. E se os seus receios pessoais mais profundos viessem a revelar-se verdade e aquele assassino tivesse o rosto do seu pai, conseguiria ela viver com isso?

    Não demoraria muito até encontrarem Hannibal Bodaen. Nessa altura, ela decidiria.

    Quando fechou a loja, ao fim do dia, pensou que talvez lhe fizesse bem dar uma volta a pé pela cidade, pelo parque. Podia passar pela casa de Sherry e falar com ela, em vez de com o atendedor de chamadas. Cuidar do negócio, lembrou a si própria. Cuidar de si.

    Não havia muito trânsito. A maioria das pessoas já devia estar em casa, depois do dia de trabalho, sentada à mesa, jantando. As criança já tinham sido chamadas para lavar as mãos, e o serão, longo e bem-disposto, decorreria frente à televisão ou no alpendre, entre trabalhos de casa e pratos sujos.

    Normal. Todos os dias. Maravilhoso pela sua monotonia simples. E era isso que ela queria para si, num desespero mudo.

    Atravessou o parque. As rosas estavam em flor e manchas de begônias enceradas, carmim e brancas, espalhavam-se por toda a parte. As árvores estendiam sombras compridas e acolhedoras e algumas pessoas estavam sentadas ou deitadas debaixo delas. Jovens, notou Tory, ainda não empedernidas na tradição do jantar às cinco e meia. Iriam comer uma pizza, mais tarde, ou um hambúrguer, e depois juntar-se a outras como elas, para ouvir música ou as suas próprias vozes.

    Ela também fizera isso, uma vez, por pouco tempo. Mas pareciam ter passado décadas. Parecia uma mulher completamente diferente, aquela que abrira caminho num clube apinhado de gente, para dançar, para rir. Para ser jovem.

    Já perdera tudo isso uma vez. Não ia perder a nova vida que começara a construir.

    Absorta nos seus pensamentos, saiu da linha de árvores e começou a atravessar a pequena elevação verde que ia ter ao bloco de apartamentos.

    A Abelha correu disparada pelo relvado como uma bala, aos saltos como se tivesse enlouquecido.

    - Gostas mesmo de andar aqui fora, não gostas? - Encantada, Tory acocorou-se e deixou-se atacar pela cadelinha.

    - Passou praticamente o dia todo dentro de casa. - Faith aproximou-se, satisfeita quando a sua cadelinha abandonou Tory para saltar na direção dela. - Tem uma energia incrível.

    - Estou vendo. - Tory o|hou para cima e franziu os lábios enquanto se endireitava. - Esse não é o teu look habitual - comentou, observando a T-shirt muito larga que Faith trazia por cima das calças de linho.

    - Fica-me bem, não fica? Entornei uma coisa na minha blusa. Isto é do Wade.        

    - Estou vendo.                                                              

    - Sim, acho que estás. Tens algum problema com isso?

    - Porque haveria de ter? O Wade é um rapaz crescido.

    - Podia dar-te uma resposta torta, mas fica para outra vez. - Faith prendeu o cabelo solto atrás da orelha e sorriu abertamente. - Cansada da solidão do pântano? Andas à procura de apartamento?

    - Não. Gosto da minha casa. Só vim aqui visitar uma potencial empregada. Sherry Bellows.

    - Ora, mas que coincidência. Eu também vim vê-la. O Wade ainda está preso no consultório, e não tem conseguido contactá-la durante todo o dia. O cão dela foi atropelado ao fim da manhã.

    - Oh, não! - A reserva desapareceu instantaneamente. - Ela vai ficar destroçada.

    - Ele está a recuperar. O Wade tratou-o imediatamente. Salvou-lhe a vida. - Faith disse aquilo com um orgulho tal que Tory não conseguiu deixar de olhar para ela. - Não sabe bem se a pata do cão vai ficar boa, mas eu aposto que vai ficar como nova.

    - Fico contente por ouvir isso. É um cão lindo, e ela parece gostar tanto dele. Nem posso acreditar que ela tenha saído e o tenha deixado sozinho e à solta.

    - Nunca se conhece bem as pessoas. O apartamento dela é ali. - Faith apontou. - Fui tocar na porta da frente, mas ela não respondeu, por isso achei melhor vir dar uma espreitadela aqui atrás. O vizinho disse que ela usa mais esta porta do que a da frente.

    - Os estores estão corridos.

    - Talvez a porta esteja aberta. Podemos entrar e deixar-lhe um bilhete. O Wade quer mesmo contactar com ela. - Atravessou o terraço e preparou-se para abrir a porta de correr.

    - Não! - Tory segurou-a pelo ombro e puxou-a para trás.

    - Que diabo se passa contigo? Não estou a arrombar a casa de ninguém, por amor de Deus. Só vou espreitar.

    - Não entres ali. Não entres. - Os dedos de Tory cravaram-se no ombro de Faith.

    Ela já vira. Surgira-lhe diante do rosto, saltara diante dela quase animadamente, e o sabor metálico do sangue e do medo instalara-se-lhe na boca.

     -É demasiado tarde. Ele esteve aqui.    

    - De que estás falando? - Faith sacudiu o braço com impaciência. - Importas-te de me largar?

    - Ela está morta - disse Tory, inexpressivamente. - Temos de chamar a polícia.

   

    Não conseguiu entrar. Nem conseguia sair dali.

    O guarda que atendera o telefonema mostrara-se céptico e aborrecido, mas não conseguira calar o que considerou serem duas mulheres descontroladas.

    Apertara o cinto, pusera o boné e depois batera com força no painel de vidro da porta. Tory podia ter-lhe dito que Sherry não conseguia responder-lhe, mas ele não teria ouvido nem compreendido.

    Mas apenas dois minutos depois de ter entrado voltou a sair. E o trejeito de irritação desaparecera-lhe do rosto.

    Não foi preciso muito tempo para pôr o processo em marcha. Quando o chefe Russ chegou, a cena do crime estava fechada, delimitada pela fita amarela da polida, e as pessoas que entravam e saíam levavam as ferramentas do respectivo ofício e estavam devidamente identificadas.

    Tory sentou-se no chão e esperou.

    - Telefonei ao Wade. - Como não havia mais nada para fazer, Faith sentou-se ao lado de Tory. - Disse que ia esperar até a Maxine chegar para tomar conta do Mongo, mas vem para cá.

    - Ele não pode fazer nada.

    - Nenhum de nós pode fazer nada. - Faith observou a fita, a porta, as sombras dos homens que se movimentavam para lá dos estores. - Como soubeste que ela estava morta?               

    - A Sherry? Ou a Hope?

    Faith apertou a cadelinha contra o peito e encostou a cara ao pêlo dela, em busca de conforto.

    - Nunca vi nada assim. Não me deixaram aproximar do sítio onde estava a Hope. Era demasiado nova. Mas tu viste.

    - Sim.

    - Viste tudo.

    - Tudo, não. - Juntou as palmas das mãos e apertou-as entre os joelhos, como se estivessem geladas. - Soube quando chegamos à porta. Há uma escuridão na morte. Em especial numa morte violenta. E ele deixou ficar uma parte dele. Talvez apenas a loucura. É o mesmo que já aconteceu antes. Ele é o mesmo. - Fechou os olhos. - Pensei que ele viria à minha procura. Nunca pensei... nunca imaginei isto.

    E ali estava a culpa com que ela iria viver agora.

    - Estás a dizer que quem quer que fez isto à Sherry matou a Hope? Depois de todos estes anos?

    Tory começou a falar, e depois abanou a cabeça.

    - Não posso ter a certeza. Há muito tempo que não tenho a certeza de nada. - Olhou para cima quando ouviu alguém chamar Faith pelo nome. Wade vinha a correr pelo relvado, na direção delas.

    Ficou surpreendida quando Faith se pôs de pé, de um salto. Era raro ver Faith dar-se ao trabalho de se mexer rapidamente. Depois, viu-os caírem nos braços um do outro. Um abraço longo e apertado.

    Ele ama-a, percebeu Tory. É o centro de tudo para ele. Que estranho.

    - Estás bem? - Pôs as mãos no rosto de Faith e manteve-o assim, aninhado.

    - Não sei como estou. - Estivera bem, até ali. Tudo lhe parecia distante, o suficiente para não lhe tocar. Agora, as mãos tremiam-lhe e sentia o estômago às voltas. Acontecera-lhe o mesmo depois da cirurgia, quando vira o sangue nas mãos. - Acho que preciso voltar a sentar-me.

    - Venha aqui. - Quando ela se sentou na erva, ele ajoelhou-se, com a mão ainda no rosto de Faith, enquanto observava o de Tory. Demasiado calma, concluiu. Demasiado controlada. Isso significava que quando perdesse o controlo iria desfazer-se em pedaços. - E se vocês viessem comigo? Precisam de sair daqui.

    - Eu não posso, mas devias levar a Faith.            

    - Para poderes ver tudo e eu não? Nem pensar - disse Faith.

    - Isto não é uma competição.

    - Entre nós as duas? Sempre foi. Lá está o Dwight.

    As pessoas tinham começado a juntar-se em pequenos grupos de murmúrios e curiosidade. As notícias corriam à velocidade da luz em Progress, pensou Tory com ar apático. Viu Dwight abrir caminho por entre as pessoas reunidas e dirigir-se para a porta de Sherry.

    - Talvez consigas falar com ele, Wade. - Faith fez um gesto na direção de Dwight. - Talvez ele possa dizer-nos alguma coisa.

    - Vou ver. - Tocou no joelho de Tory antes de levantar-se. - O Cade vem a caminho.                                      

    - Porquê?                                                     

    - Porque eu lhe telefonei. Espera aqui.

    - Não era preciso - disse Tory, franzindo o sobrolho nas costas de Wade, enquanto este abria passagem por entre a pequena multidão de curiosos.

    - Fica calada. - Aborrecida, Faith procurou na mala um osso para a Abelha roer e ficar ocupada. - Não és nenhuma mulher de ferro, e eu também não. Não somos menos mulheres por nos apoiarmos num homem.

    - Não tenciono apoiar-me no Cade.

    - Pelo amor de Deus, se é suficientemente bom para dormires com ele, é suficientemente bom para te amparar numa altura como esta. Acho que não vale a pena armares uma confusão por causa disso.                             

    - Porque não vamos sair os quatro logo? Podemos ir dançar.

    O sorriso de Faith era afiado como uma lâmina.

    - És uma chata, Tory. E estou começando a gostar disso em ti. Merda, está ali o Billy Clampett e já me viu. Era mesmo disso que eu estava a precisar. Há uns mil anos chateei-me o suficiente e bebi o suficiente para ir para a cama com ele. Felizmente, recuperei o juízo a tempo, mas ele nunca deixou de tentar levar-me à certa.

    Tory observou Billy, que caminhava na direcção dela, com os polegares metidos nos bolsos da frente e os restantes dedos a tamborilar no fecho.

    - Nem com todo o álcool que há na região.

    - Finalmente estamos de acordo. Billy.

    - Minhas senhoras. - Acocorou-se. - Ouvi dizer que havia animação por aqui. Uma moça qualquer foi morta.

    - Vê lá, que descuidada. - Faith não se afastou, não ia dar-lhe essa satisfação, embora conseguisse cheirar no hálito dele a cerveja da noite anterior.

    - Ouvi dizer que foi a Sherry Bellows. É aquela que corre pela cidade com um cão grande e peludo. Usa calções curtos e tops reduzidos. Fazendo publicidade da mercadoria.

    Tirou um cigarro do maço que tinha entalado na manga enrolada da T-shirt. Pensava que isso o fazia parecer com o James Dean.

    - Vendi-lhe umas plantas há umas semanas. Foi muito simpática, se estão me entendendo.                         

    - Ouve lá, Billy, treinas muito ou és nojento por natureza?

    Levou um minuto a reagir, mas o seu sorriso tornou-se azedo como leite estragado enquanto acendia um fósforo e dava vida ao cigarro.

    - De repente tornaste-te a Dona Forte e Poderosa?

    - Não foi de repente. Sempre fui forte e poderosa. Não é verdade, Tory?

    - Nunca te conheci de outra maneira. É como se fosse uma marca de nascença.

    - Exatamente. - Divertida, Faith bateu com a mão na coxa de Tory. Pegou num cigarro. - Nós, os Lavelle - começou ela, acendendo-o e soprando o fumo, calmamente, para a cara de Billy -, estamos destinados a ser superiores. Está no nosso ADN.

    - Não foste tão superior naquela noite, atrás do Grogan's, quando te apalpei as mamas.

    - Ah. - Faith sorriu e soprou mais fumo. - Foste tu?

    - Desde que tens mamas que és uma devassa. É melhor teres cuidado. - Olhou deliberadamente para a porta de Sherry. - As devassas acabam por ter aquilo que andam a pedir.

    - Agora já me lembro de ti - disse Tory, calmamente. - Costumavas atar foguetes aos rabos dos gatos e acendê-los e depois ias para casa masturbar-te. É assim que continuas a passar os tempos livres?

    Ele deu um passo atrás. Não havia qualquer sorriso no rosto dele, agora, e o medo substituíra o desprezo nos olhos.

    - Não precisamos de ti aqui. Não precisamos de gente da tua laia.

    Podia ter-se ficado por ali, estava suficientemente assustado para isso, mas a Abelha decidiu que a perna das calças dele era mais interessante do que o osso. Billy fê-la voar com o safanão que lhe deu com as costas da mão.

    Com um grito de raiva, Faith pôs-se de pé e pegou na cadelinha, que gania.

    - Seu filho da mãe barrigudo, ensopado em cerveja, minipênis. Não admira que a tua mulher ande à procura de outro homem. Não consegues pô-lo de pé.

    Ele avançou ameaçadoramente para Faith. Tory não soube como aconteceu, e parecia estar acontecendo a outra pessoa. Mas o seu punho cerrado saltou-lhe do colo e atingiu-o em cheio no olho. A força e o choque do golpe fizeram-no cair no chão. Com a cabeça um tanto enevoada, ouviu gritos e guinchos e passos a correr, mas quando Billy se pôs de pé, ela também o fez.

    Toda a sua raiva formou uma bola quente dentro de si. Sentia já o sabor a sangue.

    - Devassa de merda!

    Quando ele investiu, ela fincou os pés no chão. Queria violência. Era bem-vinda. Mas o corpo de Billy arqueou-se-lhe para trás e ele deu por si estatelado no chão.

    - Venha cá - sugeriu Cade, puxando-o para cima e forçando-o a pôr-se de pé. - Não se metam - disse ele, abruptamente, quando as pessoas acorreram para interferir. - Vá lá, Billy. Vamos ver como lidas comigo em vez de com uma mulher que tem metade do teu tamanho.                                                                                                                                   

    - Há anos que andas a pedir isto. - O esgar regressou. Acocorou-se, ardendo na necessidade de restaurar a sua imagem perante a cidade, desesperado por descarregar os punhos no rosto arrogante de um dos Lavelle. - Quando acabar contigo, vou divertir-me com a puta da tua irmã e com a devassa da tua amante.

    Investiu com força. Cade desviou-se. Foram apenas necessários dois golpes, um gancho impeliu a cabeça de Billy para trás e um murro rápido e certeiro no estômago.

    Cade baixou-se e, fazendo pressão com o polegar na traqueia de Billy, segredou-lhe ao ouvido?

    - Se tocares na minha irmã ou na minha mulher, se falares com elas, se olhares para elas, enrolo-te as bolas à garganta e esgano-te com elas.

    Deixou cair a cabeça de Billy no chão e aproximou-se de Tory sem olhar para trás.

    - Isto não é lugar para estares neste momento.

    Tory estava sem palavras. Nunca vira tamanha fúria explodir e depois desvanecer-se tão rapidamente. Quase com elegância, pensou. Deitara um homem ao chão sem apelo nem agravo e agora falava suavemente com ela. E tinha os olhos frios como um dia de inverno.

    - Anda, vem comigo.                

    - Tenho de ficar.

    - Não, não tens.

    - Lamento, mas tem. - Cari D. aproximou-se e ao ver Billy no chão coçou o queixo, pensativamente. - Há problemas por aqui?

    - O Billy Clampett fez observações insultuosas. - As lágrimas inundaram suavemente os olhos de Faith, conferindo-lhes a cor de campainhas azuis orvalhadas. - Ele foi... bem, nem sei como começar, mas ofendeu-me, a mim e à Tory, e depois... - Fungou delicadamente. - Depois, bateu aqui na minha pobre cadelinha, e quando a Tory tentou detê-lo ele... Se não fosse o Cade, não sei o que poderia ter acontecido.

    Virou-se para Tory, soluçando baixinho.

    - Ainda lhe davas uma surra - murmurou. - Cara de cu. Cari D. entalou a língua na bochecha. Depois do que vira lá dentro, esta pequena comédia era um alívio.

    - Foi assim que aconteceu? - perguntou a Cade.

    - Mais ou menos.

    - Vou deixá-lo atrás das grades para ver se ele acalma. - Olhou em volta, fixando os olhos nos rostos da multidão, enquanto mascava calmamente a sua pastilha elástica. - Acho que ninguém vai querer apresentar queixa.

    - Não, vamos deixar as coisas como estão.

    - Muito bem. Vou precisar de falar aqui com a Tory, e com a Faith também. Temos um pouco mais de privacidade na delegacia.

    - Chefe. - Wade juntou-se-lhes, passando tão naturalmente por cima de Billy, semiconsciente, que Faith teve de disfarçar uma gargalhada com uma fungadela. - A minha casa fica mais perto. Acho que seria mais confortável para as senhoras.

    - Podemos fazer isso, pelo menos para já. Vou mandar um dos meus guardas levar-vos. Eu vou lá ter.

    - Eu as levo - disse "Wade.                                       

    - Tu e o Cade conhecem quase todas estas pessoas. Ficava-vos agradecido se me ajudassem a convencê-las a voltar para casa. Um dos meus homens trata das senhoras. Preciso dos depoimentos delas - disse ele, antes de Cade conseguir objetar. - E isso é assunto para a polícia.

    - Podemos ir pelos nossos próprios meios.

    - Ouça, Miss Faith, vou mandar um dos meus homens acompanhar-vos. Faz parte dos procedimentos. - A um sinal dele, o processo foi posto em movimento.

   

    - Meu Deus, como é que uma coisa destas acontece no meio da cidade? - Dwight esfregou a nuca para aliviar a tensão.

    Tinham conseguido afastar do edifício a maioria dos curiosos. O que se abatia agora era a escuridão, sobre ele e os seus dois amigos mais antigos, sentados no relvado junto ao apartamento onde a morte usava como símbolo a fita amarela da polícia.

    - O que sabes sobre o assunto? - perguntou-lhe Wade. 

    - Acho que o mesmo que toda a gente. O Cari D. não me deixou passar, e mesmo assim só cheguei onde cheguei por ser o Presidente da Câmara. Parece que alguém entrou em casa dela ontem. Talvez fosse um assalto. - Beliscou a cana do nariz e abanou a cabeça. - É pouco provável. Não me parece que ela tivesse muito dinheiro.

    - Como terão passado pelo cão? - inquiriu Wade.

    - Cão? - Dwight ficou um momento sem perceber e depois acenou com a cabeça. - Ah, sim. Não sei. Talvez fosse alguém conhecido. Faz mais sentido, não faz? Talvez fosse alguém conhecido e tenham discutido e a coisa tenha saído do controle. Ela estava no quarto - acrescentou ele, com um suspiro. - É tudo o que sei. Bem, pelo que ouvi aqui e ali, foi violada.                    

    - Como foi morta? - perguntou-lhe Cade.

    - Não sei. O Cari D. deixou passar pouca informação. Credo, Wade, ainda uma noite destas estivemos a falar dela, lembras-te? Choquei com ela quando ela vinha saindo do teu consultório.

    - Sim, lembro. - Recordou a imagem dela, a tagarelar, a namoriscá-lo enquanto ele examinava Mongo.

    - Ouvi umas coisas ali dentro. - Dwight indicou, com um movimento da cabeça, a porta selada. - Sobre a Tory Bodeen. Uma conversa tensa - acrescentou. - Acho que gostavam de saber. - Voltou a suspirar. - Uma coisa destas não devia acontecer no meio do raio da cidade. As pessoas deviam estar seguras nas suas casas. Isto vai deixar a Lissy doente.     

    - Amanhã vai haver uma corrida ao armazém de ferramentas e à loja de armas - previu Cade. - Fechaduras e munições.

    - Meu Deus! É melhor eu convocar uma sessão pública da Câmara, para ver se consigo acalmar as pessoas. Espero que o Cari D. tenha alguma coisa sobre o assunto amanhã. Tenho de ir ter com a Lissy. Deve estar preocupada. - Lançou um último olhar à porta. - Isto não devia ter acontecido aqui - repetiu, afastando-se.

   

    - Só me encontrei com ela uma vez. Ontem.          

    Tory estava sentada no sofá de Wade, com as mãos cuidadosamente cruzadas no colo. Sabia que era importante estar calma e com as idéias no lugar quando falasse com a polícia. A polícia apontava às emoções, usava as fraquezas como alavancas para extrair mais do que queríamos dizer.                                     

    Depois ridicularizava-nos.

    Depois traía-nos.

    - Só esteve com ela dessa vez. - Cari D. acenou com a cabeça e tomou notas. Pedira a Faith que esperasse lá em baixo. Queria as conversas, e os fatos que obtivesse com elas, registrados em separado. - Porque decidiu passar por casa dela, hoje?

    - Ela foi à loja pedir-me emprego.                              

    - Ah sim? - Ergueu uma sobrancelha. - Pensei que ela tinha emprego. Era professora no liceu.

    - Sim, ela disse-me. - Responde às perguntas com precisão, recordou a si própria. Não acrescentes nada nem dês respostas muito elaboradas. - Mas só ia começar a ter um horário a tempo integral a partir do outono, e queria arranjar qualquer coisa temporária que a ajudasse nas despesas. E para se manter ocupada, acho eu. Pareceu-me uma pessoa cheia de energia.

    - Hã-hã. Por isso, contratou-a.

    - Não. Pelo menos não imediatamente. Ela deu-me referências. - Deixou-as escritas numa folha de papel, lembrou-se ela, juntamente com a morada. A folha que ela deixara em cima do balcão quando o seu pai entrara. Meu Deus, meu Deus!

    - Foi uma coisa sensata. Não sabia que andava pensando em contratar alguém.

    - Na verdade, não tinha pensado nisso até ela entrar. Foi convincente. Fiz as minhas contas e decidi que podia pagar a alguém que me ajudasse a tempo parcial. Verifiquei as referências dela, esta manhã, e depois telefonei-lhe. Respondeu o atendedor e deixei mensagem,                                                                                

    - Hã-hã. - Já ouvira a mensagem dela e as que Wade deixara quando lhe telefonara do consultório. E a da vizinha do andar de cima, e a de Lissy Frazier. Sherry Bellows era popular. - E então decidiu ir ter com ela pessoalmente.

    - Depois de fechar a loja, apeteceu-me dar um passeio. Decidi ir até ao parque e passar pelo apartamento dela. Se ela estivesse em casa, podia falar com ela sobre o emprego.

    - Foi até lá com Faith Lavelle?

    - Não, fui sozinha. Dei com a Faith na zona junto ao edifício, nas traseiras. Disse que o cão da Sherry tinha sido ferido de manhã. Tinha sido atropelado por um carro e o Wade tinha tratado dele. E ela tinha vindo até ali para fazer um favor ao Wade, porque ele não conseguia contactar com ela telefonicamente.

    - Portanto, chegaram ao mesmo tempo.       

    - Sim, mais ou menos. Deviam ser cerca de seis e meia, porque fechei a loja por volta das seis e dez, seis e um quarto.

    - E quando Miss Bellow não respondeu, entraram para procurá-la.

    - Não. Nenhuma de nós entrou em casa.

    - Mas viram qualquer coisa que vos preocupou. - Levantou os olhos do bloco de apontamentos. Ela deixou-se ficar sentada, perfeitamente imóvel, com os olhos fixos nos dele, e não disse nada. - Ficaram suficientemente preocupadas para chamar a polícia.

    - Ela não respondeu ao meu telefonema, embora parecesse muito ansiosa por conseguir o emprego. Não respondeu aos telefonemas do Wade, embora tivesse ficado perfeitamente claro e evidente, pelo único encontro que tive com ela, que adorava o cão. Os estores estavam corridos, a porta estava fechada. Chamei a polícia. Nem eu nem a Faith entramos. Nenhuma de nós viu nada. Por isso, não tenho nada para lhe dizer.

    Ele recostou-se e mordiscou o lápis.

    - Tentou abrir a porta?

    - Não.

    - Não estava fechada. - Deixou que o silêncio ficasse no ar, e preencheu o tempo tirando do bolso a caixa de pastilhas, que ofereceu a Tory. Quando ela abanou a cabeça, tirou uma pastilha da caixa, desembrulhou-a e dobrou meticulosamente o papel.

    O coração de Tory começou a dançar-lhe no peito.

    - Ora, muito bem... - Cari D. dobrou a pastilha tão cuidadosamente como fizera ao papel e meteu-a na boca. - Chegaram as duas à porta. Conhecendo a Faith Lavelle, diria que ela não resistiu a espreitar. Por curiosidade, pelo menos. Para saber o que esta nova professora tinha em casa, esse tipo de coisa.

    - Mas não espreitou.

    - Bateram à porta? Chamaram-na?

    - Não, nós... - Interrompeu-se, ficando em silêncio.

    - Portanto chegaram à porta e decidiram chamar a polícia. - Soltou um suspiro. - Não me parece que esteja a haver aqui grande cooperação. Sou um homem simples, de modos simples. E sou polícia há mais de vinte anos. Os polícias têm instintos, impressões no estômago. Nem sempre conseguem explicá-las. Existem apenas. Talvez a Miss tenha tido uma impressão qualquer à porta do apartamento da Sherry Bellow, hoje.                                              

    - É possível.

    - Há pessoas que têm tendência para sentir impressões. Pode dizer que teve uma há dezoito anos, quando nos levou até ao sítio onde estava a Hope Lavelle. E teve mais, em Nova Iorque. Muitas pessoas ficaram gratas por tê-las tido.

    A voz dele era simpática, um desenrolar de palavras suaves, mas os olhos não paravam de observá-la.

    - O que aconteceu em Nova Iorque não tem nada que ver com isto.

    - Tem a ver consigo. Seis garotos voltaram para casa porque a Miss teve umas impressões.

    - E um não voltou.                      

    - Seis voltaram - repetiu Cari D.

    - Não tenho mais nada a acrescentar para além do que já lhe disse.

    - Talvez não tenha. A mim parece-me mais que não quer ter. Eu estive lá, há dezoito anos, quando nos levou até àquela menina. Sou um homem simples, de modos simples, mas estive lá. E estive lá hoje, a olhar para aquela jovem e para o que lhe fizeram. Fui transportado ao cenário de há dezoito anos. Estive nos dois locais, vi as duas coisas. E a Miss também.      

    - Não entrei.                                                                      :

    - Mas viu.

    - Não! - Pôs-se de pé, de um salto. - Não vi. Senti. Não vi, nem espreitei. Não havia nada que eu pudesse fazer. Ela estava morta, e eu não podia fazer nada por ela. Nem pela Hope. Nem por nenhuma das outras. Não quero isso dentro de mim outra vez. Já lhe disse tudo o que sei, exatamente como aconteceu. Porque é que isso não chega?

    - Está bem. Pronto, está bem, Miss Tory. Porque não se senta ali e tenta acalmar-se, enquanto eu vou lá abaixo falar com a Faith?

    - Gostaria de ir para casa.

    - Sente-se e recupere o fôlego. Vou mandar alguém levá-la a casa.

    Remoeu os pensamentos sobre ela e a reação dela às suas perguntas, enquanto descia as escadas. Aquela rapariga, concluiu, era um cesto de problemas. Podia lamentá-lo, mas isso não iria impedi-lo de usá-la se isso servisse os seus propósitos. Tinha um homicídio na sua cidade. Não era o primeiro, mas era o pior em muitos, muitos anos.

    E ele era um homem que tinha impressões, palpites. E eles diziam-lhe que Tory Bodeen era a chave.

   

    Encontrou Cade a andar de cá para lá, ao fundo das escadas.

    - Podes subir e ir ter com ela. Acho que ela precisa de um ombro amigo. A tua irmã está por aqui?

    - Está lá atrás, com o Wade. Ele está vendo o cão.

    - É uma pena o cão não poder falar. Foi o Piney que o apanhou, não foi?                                     

    - Disseram-me que sim.

    - Pois, pena o cão não poder falar. - Meteu o bloco no bolso e dirigiu-se à sala do fundo.

    Cade encontrou Tory ainda sentada no sofá.

    - Devia ter-me ido embora e pronto. Ou melhor, devia ter sido mais esperta e ter deixado a Faith entrar, como ela queria. A Faith tê-la-ia encontrado, teríamos chamado a polícia e não haveria perguntas.                                                                                                 

    Ele aproximou-se e sentou-se ao lado dela.

    - E porque não fizeste isso?

    - Não quis que ela visse o que estava lá dentro. E eu também não quis ver. E agora o chefe Russ espera que eu entre em transe e lhe dê o nome do assassino. Foi o professor Plum, na estufa, com um candelabro. Não sou um tabuleiro de jogo, raios partam!

    Ele pegou-lhe na mão.

    - Tens todo o direito a sentir-te zangada. Com ele, com a situação. Mas porque estás zangada contigo própria?

    - Não estou. Porque estaria? - Olhou para as mãos de ambos, enlaçadas. - Magoaste os nós dos dedos.

    - Dói como o raio.

    - Verdade? Não pareceu nada, quando lhe deste. Parecia que não estavas a sentir nada, exceto uma ira controlada. Como se pensasses: tenho de livrar-me desta mosca irritante e depois voltar ao meu livro.

    Ele sorriu e levou a mão dela aos lábios.

    - Um Lavelle tem de manter a dignidade.

    - Tretas. Eu disse que parecia, mas a realidade foi diferente. A raiva e a revolta foram a realidade, e eu sei bem que gostaste de deixá-lo estendido no meio do chão - disse ela com um suspiro. - Porque foi isso que senti. Ele é um homem horrível e agora vai tentar encontrar outra maneira de te magoar. Mas vai atacar-te pelas costas, porque tem medo de ti. E isto é apenas bom senso e uma compreensão razoável da natureza humana, não tem nada que ver com os meus fabulosos poderes psíquicos.

    - O Clampett não me preocupa. - Passou os nós dos dedos magoados pelo rosto dela. - Não deixes que te preocupe.

    - Quem me dera conseguir. - Pôs-se de pé. - Quem me dera conseguir preocupar-me com ele, para que ele me ocupasse o pensamento. Porque hei-de sentir-me culpada?

    - Não sei, Tory. Porquê?

    - Mal conhecia a Sherry Bellows. Passei menos de uma hora com ela, apenas aflorou a minha vida. Lamento o que lhe aconteceu, mas isso significa que tenho de envolver-me?

    - Não.

    - Não vai mudar o que lhe aconteceu. Nada que eu faça pode mudar o que aconteceu. Por isso, para quê? Mesmo que o chefe Russ pareça aberto ao que eu eventualmente possa fazer, vai acabar por ser como todos os outros. Porque hei-de meter-me no meio, apenas para se rirem à minha custa e me mandarem embora?

    Deu alguns passos à volta dele.

    - Não tens nada para dizer?     

    - Estou à espera que mudes de opinião.

    - Achas-te muito esperto, não achas? Achas que me conheces tão bem. Mas não conheces de todo. Não voltei aqui para consertar nada, nem para vingar nenhuma amiga morta. Voltei aqui para viver a minha vida e tratar do meu negócio.

    - Está bem.

    - Não me digas «Está bem» nesse tom paciente, quando os teus olhos me dizem que sou uma mentirosa.

    Como a respiração dela estava a começar a tornar-se ofegante, ele levantou-se e aproximou-se dela.

    - Eu vou contigo.

    Ela olhou para ele por mais um instante e depois caiu nos braços dele.

    - Meu Deus, meu Deus!

    - Vamos lá abaixo dizer ao chefe. Eu fico contigo.

    Ela acenou com a cabeça e manteve o abraço dele durante mais um minuto. E aceitou que depois de terminar o que ia fazer no apartamento de Sherry talvez ele não quisesse voltar a abraçá-la, nunca mais.

    - Precisa de alguma coisa antes de entrarmos?

    Tory continuava a tentar acalmar-se, mas enfrentou o olhar de Cari D.                                                                        

    - O quê? Uma bola de cristal? Um tarô?

    Ele foi à frente, como ela pedira, e destrancou a porta que dava para o terraço, a partir do interior, cortou o selo e saiu ao encontro dela e de Cade.              

    Havia menos hipóteses de ser vista se entrasse pelas traseiras. O assassino também sabia isso.

    Cari D. empurrou o boné para trás, para coçar a sua ampla testa.

    - Acho que está um bocado zangada comigo.

    - O senhor pressionou-me até onde não gosto de ser pressionada. Isto não vai ser agradável para mim e pode ser perfeitamente inútil para si.

    - Miss Tory, tenho uma jovem mais ou menos da sua idade deitada numa mesa, à espera do funeral. O médico legista está fazendo a autópsia. A família chega amanhã de manhã. Não consideraria isto agradável para ninguém.

    Queria que ela entendesse isso. Tory concordou, com um aceno de cabeça.                                                                                

    - O senhor é um homem mais duro do que eu pensava.

    - E você é uma mulher mais dura. Acho que ambos temos as nossas razões.

    - Não fale comigo. - Foi ela própria que abriu a porta, entrando em seguida.

    Cruzou os braços sobre si própria e começou por concentrar-se na luz. Na luz que invadiu o quarto quando ele apertou o interruptor. A luz que Sherry atravessara.

    Passou muito tempo até ela falar. Muito tempo, enquanto aquilo que ficara no quarto deslizava para dentro dela.

    - Ela gostava de música. Gostava de barulho. Estar sozinha não era uma coisa natural para ela. Gostava de ter pessoas à volta. Vozes, movimento. São tão fascinantes para ela. Adorava conversar.

    Havia pó no telefone, usado para tirar impressões digitais. Não notou que o pó lhe manchou os dedos quando ela os passou por cima dele.

    Quem era Sherry Bellows? Era por aí que tinha de começar.

    - As conversas eram como um alimento para ela. Sem elas, morreria à fome. Gostava de saber coisas sobre as pessoas, de ouvi-las falar sobre elas próprias. Era muito feliz aqui.

    Fez uma pausa, deixando que os seus dedos deslizassem por molduras, pelo braço de uma cadeira.

    - A maioria das pessoas não quer realmente ouvir o que os outros dizem, mas ela queria. As perguntas dela não eram um pretexto para falar de si própria. Tinha tantos planos. Ensinar era uma aventura para ela. Tantos espíritos para alimentar.

    Passou por Cade e por Cari D. Embora tivesse consciência da presença deles, estavam se tornando menos importantes para ela, a sua presença era cada vez menos real.

    - Adorava ler. - Tory falou calmamente enquanto se aproximava de uma estante barata, com prateleiras de metal, cheias de livros.

    Na sua cabeça flutuaram imagens de uma mulher bonita a arrumar livros na estante, a tirá-los, enrolada com eles na cadeira do terraço, com um cão grande e peludo a ressonar aos seus pés.       

    Era fácil misturar-se com estas imagens, abrir-se a elas, tornar-se parte delas. Sentiu o sabor do sal - batatas fritas - na língua, e sentiu uma agradável onda de contentamento.

    - Mas essa é apenas outra forma de estar com as pessoas. Metes-te no livro. Tornas-te uma personagem, a tua personagem favorita. Vives experiências.

    «O cão deita-se contigo no sofá, ou na cama. Deixa pêlo por toda a parte. Juras que podias fazer um casaco com o pêlo que ele larga, mas é tão amoroso. Por isso, usas o aspirador quase todos os dias. Pões a música mais alta para não ser abafada pelo ruído do motor.

    A música vibrou dentro da cabeça dela. Alta, animadamente alta. Bateu o pé seguindo o ritmo.

    - Mister Rice, o vizinho, queixou-se por causa disso. Mas tu fazes-lhe uns bolinhos e tudo fica bem. As pessoas são tão simpáticas nesta cidade. É exatamente neste lugar que gostas de estar.

    Virou-se. Tinha os olhos desfocados, vazios, mas estava a sorrir. O  coração  de  Cade  parou  momentaneamente  quando  aquele olhar esfumado o fixou. O atravessou.

    - O Jerry, o rapazinho que vive aqui por cima, é louco pelo Mongo. O Jerry é tão engraçado como um inseto e duas vezes mais incomodativo. Um dia, vais querer um rapazinho exatamente como ele, com aqueles olhos, aqueles sorrisos e aqueles dedos pegajosos.

    Descreveu um círculo, os lábios curvados, os olhos vazios.

    - Às vezes, à tarde, depois da escola, saem e vão correr juntos, ou ele atira bolas de ténis ao Mongo. Bolas amarelas, que ficam todas molhadas e estragadas. É engraçado ficar sentada no terraço, a vê-los. O Jerry tem de ir para dentro, a mãe chamou-o para fazer os trabalhos antes do jantar. O Mongo está completamente estafado, por isso adormece no terraço. Queres a música alta, o mais alto que puderes sem aborreceres Mister Rice, porque te sentes muito feliz. Tão cheia de planos e de esperança. Um copo de vinho. Vinho branco. Não é um vinho muito bom, mas não podes comprar um melhor. Mas é agradável e vais bebendo pequenos goles enquanto ouves a música e fazes planos.

    Aproximou-se das portas que davam para o terraço e espreitou lá para fora. Em vez da escuridão, viu o crepúsculo. O cão grande estava estendido no cimento como um tapete felpudo e ressonava ligeiramente.

    - Tanto em que pensar, tantos planos. Tanto para fazer. Sentes-te tão bem e mal podes esperar por começar. Queres dar uma festa, ter a casa cheia de gente e namorar aquele veterinário lindo, e aquele Cade Lavelle, que tem um ar tão refinado. Ai, não há dúvida de que os homens são lindos em Progress. Mas agora tens de preparar uma refeição. Tens de dar comida ao cão. Talvez mais um copo de vinho enquanto preparas tudo.

    Foi até à cozinha, com passo decidido, trauteando a música que ouvia na cabeça. Sheryl Crow.

    - Uma salada. Uma bela salada, com muitas cenouras, porque o Mongo gosta. Vais misturá-las com o granulado. - Baixou-se e passou os dedos pela pega da porta do armário, e depois soltou uma exclamação e recuou.

    Instintivamente, Cade deu um passo na direção dela, mas Cari D. segurou-o pelo braço.

    - Não. - Falou num murmúrio, como se estivesse na igreja. - Deixa-a.

    - Ele estava ali. Ali mesmo. - A respiração de Tory era agora entrecortada, ofegante. Tinha ambas as mãos a apertar o pescoço. - Não o ouviste. Não consegues vê-lo. Há uma faca. Ele tem uma faca. Meu Deus, meu Deus, meu Deus. Ele tapou-te a boca com as mãos, com força. A faca está na tua garganta. Tens tanto medo. Tanto medo. Não vais gritar. Não vais. Fazes tudo para ele não te magoar. A voz dele está no teu ouvido, suave, calma. Que fez ele ao Mongo. Fez-lhe mal? Está tudo confuso na tua cabeça. Não é real. Não pode ser real. Mas a faca é tão afiada. Ele empurra-te e tens medo de cair e de a faca...

    Saiu a correr da cozinha e apoiou uma mão na parede quando se sentiu desequilibrar.

    - Os estores estão corridos. Ninguém consegue ver. Ninguém pode ajudar. Ele quer-te no quarto, e tu sabes o que ele vai fazer. Se ao menos conseguisses fugir, ficar longe da faca.

    Tory estacou à porta do quarto. A náusea tomou conta dela, em ondas pequenas e encrespadas.

    - Não consigo. Não consigo. - Virou a cara para a parede, tentando encontrar-se a si própria no meio do medo e da violência. - Não quero ver isto. Ele matou-a aqui, porque tenho de ver?

    - Já chega. - Cade empurrou a mão de Cari D., que lhe barrava o caminho. - Já chega, raios!

    Mas quando se aproximou de Tory, ela afastou-se, bamboleante.

    - Está na minha cabeça. Nunca hei-de conseguir tirar isto da minha cabeça. Não fales comigo. Não me toques.

    Pressionou as mãos contra o rosto, aprisionando a sua própria respiração e fazendo-a voltar a entrar dentro dela.

    - Ele empurra-te para cima da cama,  de barriga para baixo. E põe-se em cima de ti. Já está pronto e quando o sentes, quando sentes a pressão dele em ti, debates-te. O medo toma conta de ti. É enorme, sufoca-te. Sentes calor. O medo queima.

    Gemeu e caiu de joelhos junto da cama.

    - Ele bate-te. Com força. A nuca. A dor é tão forte, percorre-te toda, entontece-te. Ele volta a bater-te e a tua face explode. Sentes o sabor do sangue. Do teu sangue. O sangue tem o mesmo sabor que o terror. O mesmo. Ele ata-te os braços atrás das costas, e esta dor junta-se à outra.                                     

    Os tentáculos daquela dor trepavam por ela, às cegas, dentro dela, com um horror tamanho que parecia querer fazer-lhe explodir o cérebro. Pressionou a cara contra o colchão e cravou os dedos nele.

    - Está escuro. O quarto está escuro e a música está a tocar e tu não consegues deixar de sentir a dor. Estás a chorar. Tentas implorar, mas ele amordaçou-te com um pano. Volta a bater-te e tu começas a esvair-te. Semiconsciente, mal sentes quando ele te corta as roupas. A faca corta-te também a pele, mas é pior, muito pior quando ele usa as mãos.

    Tory dobrou-se para a frente, com os braços em volta da barriga, e começou a balançar-se.    

    - Dói. Dói. Nem sequer podes gritar quando ele está a violar-te. Queres que acabe, mas ele continua, continua, e tu tens de partir. Tens de ir para outro lado. Tens de ir-te embora.

    Exausta, Tory encostou a cabeça à cama e fechou os olhos. Era como ser asfixiada, pensou vagamente. Como ser enterrada viva, e o sangue tilinta-te nos ouvidos como mil sinos e o suor que cobre o teu corpo está frio. Tão desagradavelmente frio.

    Teve de fazer um esforço para voltar a respirar.

    Para voltar a si.

    - Quando terminou, estrangulou-a com as mãos. Ela já não conseguia lutar. Chorou. Ou foi ele que chorou. Não sei bem. Mas cortou a corda que lhe prendia os pulsos. Levou-a com ele. Não queria deixar nada de seu para trás, mas deixou. Como cristais de gelo no vidro. Não consigo ficar aqui. Por favor, levem-me daqui. Por favor, tirem-me daqui.

    - Está tudo bem. - Cade baixou-se para abraçá-la. A pele dela estava fria, molhada de suor. - Está tudo bem, querida.

    - Sinto-me mal. Não consigo respirar aqui dentro. - Encostou a cabeça ao ombro dele e deixou-se levar dali.

    Ele levou-a a casa. Ela não falou nem se mexeu durante toda a viagem. Ficou sentada como um fantasma, pálida e silenciosa, enquanto o vento que entrava pelas janelas abertas da camioneta lhe soprava na cara e no cabelo.

    Cade sentia uma fúria, que disparara contra Cari D. quando o chefe dissera que ia segui-los até casa. Mas ela disse-lhe que o deixasse vir. Foi a última coisa que ela disse. Por isso, a fúria que ele sentia ficou sem alvo e não pôde ser descarregada, e foi-se acumulando, profunda e cheia de violência.

    Estacionou junto à Casa do Pântano e ela saiu da camioneta antes de ele conseguir chegar junto dela para ajudá-la.

    - Não és obrigada a falar com ele. - Falou em tom seco, os olhos brutalmente frios.

    - Sou, sim. Tu não consegues ver o que eu vejo, por isso não podes ajudar-me. - Volveu os olhos exaustos na direção do carro da polícia. - Ele sabia isso, e usou-o. Não precisas de ficar.

    - Não sejas estúpida - deixou Cade escapar, e virou-se para esperar por Cari D. enquanto ela se encaminhava na direção da porta.

    - Veja lá o que faz. - Cade enfrentou o chefe assim que este saiu do carro da polícia. - Tenha muito, muito cuidado com ela, ou vou usar o que tiver à mão para fazê-lo pagar por isso.

    - Espero que estejas transtornado.

    - Transtornado? - Cade agarrou a camisa de Cari D. Sentia-se capaz de rachar o homem ao meio. De um só golpe. - Sujeitou-a àquilo. E eu também - disse ele, soltando a camisa, revoltado. - E para quê?

    - Não sei. Ainda não sei. A verdade é que estou um pouco abalado com isto. Mas também tenho que usar aquilo que tenho à mão. E neste momento, o que tenho à mão é a Tory. Estou a tentar avançar, Cade.

    Havia uma certa tristeza na voz dele, nos olhos, que se sobrepunha ao dever.

    - Não quero fazer mal àquela rapariga. Se isso te faz sentir melhor, vou ter muito cuidado. O máximo que conseguir. E vou recordar-me, provavelmente para o resto da minha vida, do que ela passou naquela casa.

    - Também eu - disse Cade, dando meia volta.

    Ela estava a preparar um chá, uma mistura de ervas que esperava que conseguisse acalmar-lhe o estômago e fazer com que as mãos deixassem de tremer-lhe. Não disse nada quando os dois homens entraram, mas tirou do armário uma garrafa de uísque e colocou-a em cima da bancada e sentou-se.

    - Acho que preciso de um copo disso. Não devia beber enquanto estou de serviço, mas vamos atender às circunstâncias.

    Cade tirou dois copos do armário e serviu dois uísques duplos.

    - Ele entrou pelas traseiras - começou Tory. - Sabem isso. Já sabem muitas das coisas que tenho para vos dizer.

    - Agradeço a sua disponibilidade. - Cari D. puxou uma cadeira, fazendo-a arrastar no chão. - Diga-me como entender, e não tenha pressa.

    - Ela estava sozinha no apartamento. Bebeu um ou dois copos de vinho. Sentia-se bem, animada, cheia de esperança. Tinha a música a tocar. Estava na cozinha quando ele entrou. A preparar uma salada para o jantar, a preparar a comida para dar ao cão. Ele atacou-a pelas costas e usou a faca que ela tinha pousado em cima do balcão enquanto tirava a comida do cão do armário.

    A voz de Tory era monocórdica, sem vida, o rosto inexpressivo. Pegou no chá, bebeu um pouco e pousou-o.

    - Ela não o viu. Ele manteve-se atrás dela, e encostou-lhe a faca à garganta. Fechou os estores das janelas que davam para o terraço. Acho que fechou a porta à chave, mas não importa. Ela não tentou fugir, tinha demasiado medo da faca.

    Distraidamente, levou a mão ao pescoço e passou os dedos pela traqueia, como se tivesse sentido uma picada de inseto.

    - Não sei o que ele lhe disse. Tudo o que ela sentiu foi muito mais forte do que o que ele sentiu. Ele não a desejava particularmente. Naquilo que deixou na casa havia raiva e confusão e uma espécie de orgulho horrível. Ela foi uma substituta, alguém que estava à mão para... satisfazer uma necessidade que nem ele próprio compreende. Levou-a para o quarto e atirou-a para cima da cama, com a cara para baixo. Bateu-lhe várias vezes, na nuca, na cara. Atou-lhe as mãos atrás das costas, com uma corda forte. Correu as cortinas, para ninguém poder vê-lo, para estar escuro. Não queria que ela lhe visse a cara mas, mais do que isso, acho que, mais do que isso, não queria ver a dela. Ele vê outro rosto enquanto a viola. Usa a faca para cortar as roupas, tem muito cuidado mas acaba por cortar-lhe ligeiramente a pele, nas costas e junto ao ombro.

    Cari D. acenou com a cabeça e tomou um longo trago da sua bebida.

    - É verdade. Ela tinha dois cortes superficiais, e tinha marcas nos pulsos, mas não encontramos corda nenhuma.

    - Ele levou-a. Nunca tinha feito isto num espaço fechado. Sempre o fez em campo aberto, e há qualquer coisa de excitante em fazer-lhe este tipo de coisas na cama. Quando lhe bate, sente prazer. Gosta de magoar mulheres. Mas, mais do que dar-lhe prazer, proporciona-lhe uma espécie de alívio para esta voracidade que tem dentro dele. Esta necessidade de provar a ele próprio que é homem. É homem quando faz uma mulher vergar-se à sua vontade. Enquanto a viola sente-se mais feliz, mais forte dentro dele mesmo, do que em qualquer outro momento. É assim que celebra a sua masculinidade, e não consegue fazê-lo de nenhum outro modo.                

    A tentativa de vê-lo, de entrar nele, fazia-lhe doer a cabeça. Esfregou a têmpora e esforçou-se mais.

    - Para ele, é uma questão sexual, e acredita que ela estava a pedir para ser dominada. Convenceu-se disso e, no entanto, tem cuidado. Usa um preservativo. Sabe lá com quem ela tem andado. É uma puta, como todas as outras. E um homem tem de cuidar de si próprio.

    - Disse que ele não queria deixar nada seu para trás.

    - Sim. Não deixa o seu semen dentro dela. Ela não merece. Eu... isto não é o que eu sinto dele, não sinto quase nada dele. - Tamborilou de leve com os dedos na têmpora, que latejava. - Há vazios e becos sem saída. Ele não é sempre a mesma coisa. Não sei como hei-de explicar-lhe.

    - Não faz mal - disse-lhe Cari D. - Continue.

    - Isto não é um acto de procriação, mas sim de castigo, para ela, e de exaltação do ego, para ele. Durante o processo, ela deixa de existir para ele. Ela não é nada, por isso é fácil matá-la. Quando termina, fica orgulhoso, mas também fica zangado. Nunca é exatamente o que ele esperava, nunca o purifica completamente. A culpa é dela, claro. Da próxima vez será melhor. Corta a corda, apaga a música e deixa-a na escuridão.

    - Quem é ele?                                                                         

    - Não lhe vejo o rosto. Consigo ver alguns dos pensamentos dele, algumas das suas emoções mais desesperadas, mas não o vejo.

    - Ele conhecia-a.

    -Já a tinha visto, acho que tinha falado com ela. Conhecia-a o suficiente para saber da existência do cão. - Tory fechou os olhos por um momento, tentou concentrar-se. - Drogou o cão. Acho que ele drogou o cão. Um hambúrguer misturado com qualquer coisa. Foi arriscado. Tudo isto foi muito arriscado, o que veio aumentar a excitação. Alguém podia tê-lo visto. Das outras vezes, não havia ninguém para ver.

    - Que outras vezes?                                            

    - A primeira foi Hope. - A voz quebrou-se-lhe. Voltou a pegar no chá, acalmou-se. - Há mais quatro, que eu saiba. Pedi a uma amiga que investigasse. Ela descobriu que houve cinco nos últimos dezoito anos. Todas mortas no final de agosto, todas jovens e louras. Cada uma delas tinha a idade que a Hope teria, se estivesse viva. Acho que a Sherry era mais nova, mas não era a ela que ele queria.

    - Um serial killer. Durante mais de dezoito anos.

    - Pode confirmar o que eu lhe disse, com o FBI. - Nessa altura olhou para Cade, pela primeira vez desde que se tinham sentado. - Ele continua a matar a Hope. Lamento. Lamento tanto.

    Levantou-se, e a chávena tremeu sobre o pires quando ela os levou até à bancada.

    - Acho que pode ser o meu pai.

    - Porquê? - Cade manteve os olhos fixos no rosto dela. - Porque hás-de pensar uma coisa dessas?

    - Ele... quando me batia ficava excitado. - A vergonha trespassou-a, estilhaços de vidro cortaram-na com um calor amargo. - Nunca me tocou sexualmente, mas ficava excitado quando me batia. Olhando para trás, não posso ter a certeza que ele não soubesse dos meus planos para encontrar-me com a Hope naquela noite. Quando chegou para jantar estava bem-disposto, o que raramente acontecia. Foi como se estivesse à espera que eu cometesse um erro, que lhe abrisse a porta para ele investir. E quando abri essa porta, quando disse à minha mãe que o frasco da cera estava no armário, um erro tão estúpido, ele apanhou-me. Nem sempre me batia tanto, mas naquela noite... Quando acabou, teve a certeza de que eu não iria a lugar nenhum.

    Voltou a aproximar-se da mesa.         

    - A Sherry estava na loja quando ele apareceu, ontem. Fez-lhe perguntas sobre o cão, e ela tinha acabado de preencher um formulário, para um emprego. Tinha o papel em cima do balcão. O nome, a morada, o número de telefone. Ele estava seguro quanto a mim, seguro de que eu tinha demasiado medo para contar a alguém que o tinha visto. Ele nunca esperaria que eu fosse à polícia. Mas não podia ter a certeza quanto a ela.

    - Acha que Hannibal Bodeen matou Sherry Bellows porque ela o viu?

    - Pode ter sido a desculpa dele, a justificação para o que queria fazer. Só sei que ele é capaz disso. Não posso dizer-lhe mais nada. Desculpe. Não estou me sentindo bem.

    Afastou-se da mesa e fechou-se no banheiro.

    Já não conseguia combater a sensação de náusea, por isso deixou que ela a dominasse. A esvaziasse. Depois, deitou-se no chão, nos mosaicos frios, e esperou que a fraqueza se abatesse sobre si. O silêncio parecia ecoar-lhe nos ouvidos, juntamente com o bater do seu coração.

    Quando conseguiu, pôs-se de pé e abriu a torneira, deixando correr a água muito quente, quase a ferver. Estava gelada até aos ossos. Parecia que nada conseguia aquecê-la, mas a água fê-la imaginar que todo o horror era lavado da sua pele, senão mesmo da sua mente.

    Mais firme, embrulhou-se numa toalha, tomou três aspirinas e saiu da casa de banho, preparada para enrolar-se na cama e abandonar-se ao sono.                                           

   

    Cade estava junto à janela, a olhar para a escuridão lavada pela lua. Apagara as luzes, por isso aquele brilho prateado recortava-lhe a silhueta. Tory ouviu o ritmo da noite, do outro lado da porta, as asas e os lamentos que compunham a música do pântano.

    O coração doía-lhe por tudo o que não conseguia deixar de amar.

    - Pensei que te tinhas ido embora. - Foi ao armário buscar o roupão.

    Ele não se virou.

    - Sentes-te melhor?

    - Sim, estou bem.

    - Não é isso. Só quero saber se te sentes melhor.

    - Sim. - Determinada, atou o cinto do roupão. - Sinto-me melhor, obrigada. Não tens qualquer obrigação de ficar aqui, Cade. Sei o que posso fazer por mim.

    - Ainda bem. - Virou-se, mas o rosto continuou envolto pelas sombras. Ela não conseguia vê-lo, recusava-se a ver o que quer que fosse. - Diz-me o que posso fazer por ti.

    - Nada. Estou agradecida por teres ido comigo, e por me teres trazido a casa. Fizeste mais do que tinhas de fazer, mais do que seria de esperar que alguém fizesse.

    - Agora vai-te embora? Ou é disso mesmo que estás à espera? Que eu me vá embora, que te deixe sozinha, que me mantenha a uma distância confortável. Confortável para quem? Para ti, ou para mim?

    - Para ambos, imagino.

    - É isso que pensas de mim? De nós?

    - Estou terrivelmente cansada. - A voz tremeu-lhe, envergonhando-a. - Tenho a certeza de que também estás. Não deve ter sido nada agradável para ti.

    Ele avançou na direção dela e ela viu o que sabia que ia ver. Raiva, em ondas negras. Por isso, fechou os olhos.

    - Por amor de Deus, Tory. - A mão dele tocou-lhe na face e no cabelo molhado. - Toda a gente te desiludiu?

    Ela não falou. Não conseguiu falar. Uma lágrima correu-lhe pelo rosto e ficou a brilhar no polegar dele. Deixou-se ir, dócil como uma criança, quando ele a levou até à cama e lhe pegou ao colo.

    - Descansa - murmurou. - Eu não vou a lado nenhum.

    Ela pressionou o rosto no ombro dele. Sentiu o conforto, a força e, acima de tudo, a solidez que nunca ninguém lhe oferecera. Ele não fez perguntas, por isso ela também não. Em vez disso, aninhou-se nele e ofereceu-lhe a sua boca.

    - Toca-me. Por favor, preciso sentir.

    Suavemente, tão suavemente, ele passou as mãos pelo corpo dela. Podia dar-lhe o conforto do seu corpo, prendê-lo no dela. A tremer, puxou-o para si e os seus lábios abriram-se aos dele, quentes.

    Devagar, tão devagar, ele desatou-lhe o laço do roupão e despiu-a. Pôs-lhe a mão no coração. Batia freneticamente, e a respiração dela continuava a ser entrecortada por soluços, que ela procurava controlar.

    - Pensa em mim - murmurou ele, e deitou-a na cama. - Olha para mim.

    Ele tocou-lhe com os lábios na garganta, nos ombros, passou-lhe as mãos pelos cabelos, enquanto ela se erguia um pouco para lhe desabotoar a camisa.

    - Preciso sentir - repetiu ela. - Preciso sentir-te. - Apoiou as palmas das mãos no peito dele. - Tu és quente. És real. Torna-me real, Cade.

    Afundou-se nele quando a boca dele voltou a tomar a dela, mergulhou profundamente na ternura, na suavidade que apagava o horror que ela vira. A calma instalou-se, compreendeu que este roçar de pele, este encontro dos corpos, nada tinha que ver com dor ou medo.

    A boca dele nos seios dela, alimentando-a, excitando-a, aceleraram-lhe o bater do coração. As mãos, fortes, pacientes, esvaziaram-lhe o pensamento de tudo, exceto daquela necessidade de união.

    Ela suspirou o nome dele, quando ele tocou no sexo dela.

    Ela tornou-se fluida, abrindo-se a ele, procurando-o, deslizando contra ele. Quando ela rolou para cima dele, ele voltou a encontrar-lhe a boca, e depois deixou que fosse ela a liderar. Ergueu-se em cima dele, com o cabelo como cordas molhadas a brilhar sobre os ombros. Tinha o rosto afogueado de vida e molhado pelas lágrimas.

    Guiou-o até dentro dela, arqueando as costas para trás, respirando fundo, libertando-se, fechando os dedos nos dele enquanto começava a mexer-se.

    Naquele momento, não havia mais nada no mundo senão ela, o calor dela a envolvê-lo, o movimento firme das suas ancas para cima e para baixo. O fumo escuro dos olhos dela manteve-se fixo nos dele quando a respiração se tornou arquejante.

    Ele viu-a atingir o clímax, viu a força desse clímax percorrê-la.

    - Meu Deus. - Levou aos seios as mãos de ambos, entrelaçadas. - Mais. Outra vez. Toca-me, toca-me, toca-me.

    Ele tomou-lhe os seios nas mãos, ergueu-se e apoderou-se deles com a boca, para que ela arqueasse o corpo para trás. Quando ela lhe agarrou o cabelo, ele entrou mais fundo nela. Enchendo-a, arrebatando-a. E a si próprio.

    Deixaram-se ficar assim, abraçados. Mesmo quando ele mudou de posição e se deitou ao lado dela, continuaram misturados um no outro. Como se ela o respirasse.

    - Agora, devias dormir - murmurou ele.

    - Tenho medo de dormir.

    - Eu estou aqui.

    - Pensei que te ias embora.

    - Eu sei.

    - Estavas tão zangado. Pensei... - Não, precisava de mais um minuto, a coragem requeria esforço. - Trazes-me água?

    - Está bem. - Levantou-se e vestiu as calças de brim antes de ir à cozinha.

    Ela ouviu-o abrir um armário para tirar um copo, e voltar a fechá-lo. E quando ele regressou ao quarto, ela estava sentada na borda da cama, com o roupão vestido.

    - Obrigada.                                                             

    - Tory, ficas sempre com náuseas, a seguir?

    - Não. - Apertou o copo com força. - Nunca fiz nada como... Ainda não consigo falar disso. Mas preciso falar. Preciso falar contigo sobre outra coisa. Sobre quando estive em Nova Iorque.

    - Sei o que aconteceu. A culpa não foi tua.             

    - Só conheces partes, pedaços. O que ouviste nas notícias. Preciso explicar-te.                                                                

    Como ela voltara a ficar tensa, ele penteou-lhe o cabelo com os dedos.

    - Usavas o cabelo diferente, quando estavas lá. Era mais claro e mais curto.

    Ela conseguiu soltar uma gargalhada.

    - A minha tentativa de conseguir um novo eu.

    - Gosto mais assim.

    - Mudei muito mais do que o meu cabelo, quando fui para lá. Quando fugi para lá. Só tinha dezoito anos. Aterrorizada mas feliz. Não podiam obrigar-me a voltar, e mesmo que ele viesse atrás de mim, não podia obrigar-me a voltar. Eu era livre. Tinha poupado algum dinheiro. Sempre poupei dinheiro, e a avó deu-me dois mil dólares. Acho que isso me salvou a vida. Consegui arranjar um pequeno apartamento. Bem, um quarto. Ficava no West Side, aquele espaço bem apertado. Eu adorava-o. Era só meu.

    Conseguia lembrar-se, conseguia revivê-lo dentro de si, a alegria pura e simples de ficar naquele quarto parecido com uma caixa vazia, de apertar os braços à volta de si própria quando olhava pela janela e observava a impressionante fachada de tijolo do prédio do lado. Conseguia ouvir o barulho vindo da rua, lá em baixo, onde Nova Iorque abria caminho em direcção às tarefas do quotidiano.

    Conseguia lembrar-se da bênção absoluta que era ser livre.

    - Trabalhava numa loja de souvenirs, vendia muitos pesos-de-papéis e muitas T-shirts do Empire State Building. Uns meses depois, encontrei um emprego melhor, numa loja de artigos para presentes e decoração, que tinha um certo requinte. Ficava mais longe de casa, mas o salário era um pouco melhor e era tão bom estar no meio de todas aquelas coisas bonitas. E eu tinha jeito.

    - Não duvido.

    - No primeiro ano senti-me tão feliz. Fui promovida a assistente de vendas e fiz alguns amigos. Namorei. Era tão abençoadamente normal. Vivia longos períodos sem me lembrar de que nem sempre tinha morado ali, até que alguém fazia uma observação qualquer sobre o meu sotaque e me fazia voltar aqui. Mas não fazia mal. Eu já não estava aqui. Estava exatamente onde queria estar, era exatamente quem queria ser.                     

    Olhou para ele.                       

    - Não pensava na Hope. Não permitia a mim própria pensar nela.

    - Tinhas direito à tua própria vida, Tory.

    - Era isso que dizia a mim mesma. Deus sabe que era isso que eu queria, mais do que qualquer outra coisa no mundo. Algo de meu. Durante esse período fui visitar os meus pais, em parte por obrigação, em parte também porque as coisas nunca parecem tão más quando se está longe delas. Acho que comecei a pensar que, como me sentia tão... normal, conseguia ter uma relação normal com eles.

    Fez uma pausa, fechou os olhos.

    - Mas fui sobretudo porque queria mostrar-lhes o que tinha conseguido para mim, apesar do que eles me tinham feito. Olhem para mim: tenho roupas bonitas, um bom emprego, uma vida feliz. Aí têm. - Soltou uma gargalhada fraca. - Falhei, a qualquer dos três níveis.

    - Não, eles é que falharam.

    - Não importa. Acho que perdi um pouco o equilíbrio por causa da visita, mesmo depois de ter regressado a Nova Iorque. Então, um dia, depois do trabalho, pouco depois de ter ido visitá-los, fui ao mercado. Comprei umas coisas. Já nem me lembro bem o quê. Mas levei o meu saco para casa e comecei a arrumar tudo.

    Olhou para a água, água limpa num copo limpo.

    - E ali estava eu, naquela cozinha minúscula, com o frigorífico aberto e um pacote de leite na mão. Um pacote de leite - repetiu, num tom que pouco mais era do que um murmúrio. - Com a fotografia de uma menina, num dos lados. Karen Anne Wilcox, quatro anos. Desaparecida. Mas eu não estava a ver a fotografia, estava vendo a ela. A pequena Karen, só que não tinha cabelo louro, como na fotografia. Era castanho, e quase tão curto como o de um rapaz. Estava sentada num quarto, sozinha, a brincar com bonecas. Era fevereiro, mas eu conseguia ver o céu pela janela dela. Um céu azul, bonito, e conseguia ouvir a água. O mar. A Karen Ann está na Florida, pensei. Está na praia. E quando voltei a mim, o pacote de leite estava no chão e o leite todo entornado.

    Bebeu mais água e depois pousou o copo.       

    - Fiquei tão zangada. Que tinha eu a ver com aquilo? Não conhecia a menina, nem os pais. Não queria conhecê-los. Como se atreviam a interferir na minha vida? Porque havia de envolver-me? Nessa altura, pensei na Hope.                                                

    Levantou-se e foi até à janela.

    - Não conseguia deixar de pensar nela, na menina. Fui à polícia. Pensaram que eu era apenas mais uma louca, ignoraram-me, reviraram os olhos enquanto falavam muito devagar, como se eu fosse estúpida, além de maluca. Fiquei envergonhada e zangada, mas não conseguia tirar a criança da cabeça. Enquanto dois dos detetives estavam a interrogar-me, perdi a paciência. Disse qualquer coisa a um deles, como: se ele não fosse tão tacanho, dava-me ouvidos em vez de se preocupar com o que o mecânico ia cobrar-lhe por causa da transmissão. Isso foi o suficiente para me dar atenção. Acontece que o mais velho, o detetive Michaels, tinha o carro na oficina. Continuavam a não acreditar em mim, mas começaram a ficar preocupados. A conversa transformou-se mais num interrogatório. Não paravam de pressionar-me, e os meus nervos começaram a acusar isso. O mais novo, acho que estava a fazer o papel de bonzinho, saiu e foi buscar-me uma Coca-Cola. E regressou com um saco de plástico. Com uma prova lá dentro. Luvas. Luvas vefmelho-vivas. Tinham-nas encontrado no chão do Macy's, onde ela tinha sido raptada enquanto a mãe fazia compras. No Natal. Estava desaparecida desde dezembro. Atirou-as para cima da mesa, como se me desafiasse.

    Lembrava-se dos olhos dele. Dos olhos de Jack. Da dureza no lindo brilho verde dos olhos de Jack.

    - Decidi que não ia tocar-lhes. Estava tão zangada e envergonhada. Mas não consegui evitar. Peguei no saco e vi-a claramente, com o seu casaquinho vermelho. Todas aquelas pessoas que tentavam comprar presentes. O barulho. A mãe dela estava junto ao balcão, a escolher uma camisola. Mas não prestou atenção e a menina afastou-se. Não muito. E a mulher veio e levou-a. Agarrou-a com força e levou-a assim, bem segura, enquanto abria caminho por entre as pessoas e saía da loja. Ninguém prestou atenção. Disse à Karen que ficasse muito caladinha, porque ela ia levá-la ao Pai Natal, e caminhou pela avenida muito depressa, tão depressa, e havia um carro à espera. Um Chevrolet branco, com o guarda-lama direito amolgado e matrícula de Nova Iorque.

    Soltou um suspiro e abanou a cabeça.

    - Até soube o número da matrícula. Meu Deus, estava tudo tão claro. Conseguia sentir o vento agreste que soprava na rua. Disse-lhes isso tudo, disse-lhe como era a mulher sem a peruca preta. Tinha cabelo castanho-claro e olhos azul-pálidos, e era magra. Usava um casaco grande, acolchoado, com um forro quente.

    Tory olhou para trás, por cima do ombro. Cade estava sentado na cama, a observar, a ouvir.

    - Planejou o rapto durante semanas. Queria uma menina, uma menina bonita, e escolheu a Karen quando viu a mãe levá-la para o infantário. E depois roubou-a, pronto. E ela e o marido partiram imediatamente para a Florida. Cortaram o cabelo da menina e pintaram-no, e não a deixavam sair de casa. Disseram que ela era um menino chamado Robbie.

    Pestanejou e virou-se. Hope                                                

    - Encontraram-na. Demorou algum tempo, porque eu não conseguia ver exatamente o local onde ela estava. Mas trabalharam com a polícia da Florida, e dali a umas semanas encontraram-na num parque para trailers, em Fort Lauderdale. As pessoas com quem estava não lhe tinham feito mal. Tinham-lhe comprado brinquedos e tinham-na alimentado. Estavam certos de que ela acabaria por esquecer. As pessoas pensam que as crianças se esquecem, mas não esquecem.

    Soltou um suspiro. Lá fora, um mocho começou a piar, soltando notas longas e graves que ecoaram pelo pântano e entraram no quarto onde ela estava.

    - E assim a Karen foi a primeira. Os pais dela vieram ter comigo, para me agradecerem. Choraram. Os dois. Pensei: talvez isto seja um dom. Talvez eu esteja destinada a ajudar pessoas assim. Comecei a disponibilizar-me para isso, a explorar isso, até a ficar contente com isso. Li tudo o que consegui, submeti-me a testes. E comecei a sair com o Jack, o detective Jack Krentz, o mais novo dos dois detetives que investigaram o rapto. Apaixonei-me por ele.

    Voltou a pegar no copo de água e esvaziou-o.

    - Houve outras crianças, depois da Karen. Pensei que tinha encontrado a razão de ser o que era. Pensei que tinha tudo. Estava loucamente apaixonada por um homem que eu achava que me amava e me considerava uma espécie de parceira. De vez em quando, ele trazia qualquer coisa para casa e pedia-me para lhe pegar. E eu estava encantada por poder ajudá-lo neste tipo de trabalho. Fazíamos as coisas discretamente. Eu não queria reconhecimento nem notoriedade. Mas alguém acabou por falar do meu trabalho com crianças desaparecidas, por isso comecei a ter ambas as coisas. E, com elas, as cartas, os telefonemas, os pedidos que me atormentavam noite e dia. Mas eu queria tanto ajudar.

    Pousou o copo vazio e voltou a aproximar-se da janela.

    - Não reparei na maneira como o Jack começou a olhar para mim. Naquele olhar fixo e frio. Pensei que ele era assim e pronto. Foi o primeiro homem com quem estive, e ficamos juntos, fomos amantes, durante mais de um ano, até que tudo começou a desmoronar-se. Ele andava com outra pessoa. Ela estava na cabeça dele, e o cheiro dela dominava-lhe os sentidos quando ele me procurava. Senti-me traída e furiosa, e confrontei-o com a situação. Bem, ele sentiu-se mais traído e mais furioso ainda. Tinha andado a espiar-lhe os pensamentos. Era pior do que uma tarada. Como podia ter uma relação com uma mulher que não respeitava a privacidade dele, que lhe invadia o pensamento?

    - Conseguiu virar a situação contra ti. Ele engana-te e tu é que estás errada. - Cade abanou a cabeça. - Não foste nessa, pois não?

    - Ainda nem tinha vinte e dois anos. Ele era o meu primeiro e único amante. Mais: eu amava-o. E tinha, ainda que sem intenção, espiado os pensamentos dele. Por isso, assumi a culpa, mas isso não foi suficiente. Começou a censurar-me, a acusar-me de tentar ficar com os louros que lhe pertenciam, pelo trabalho todo que tinha a resolver os casos. Fosse o que fosse que ele tivesse sentido por mim, a princípio, tinha-se transformado numa coisa diferente e estava a magoar-nos aos dois. E quando as coisas estavam a acabar entre nós, apareceu o Jonah. Jonah Mansfield.

    Levou a mão ao peito e fechou os olhos, com força, por um minuto.

    - Ai, continua a doer-me tanto. Tinha oito anos e foi raptado pela antiga governanta dos pais. A polícia sabia isso, havia um pedido de resgate de dois milhões de dólares. O Jack foi designado para fazer parte da equipe a quem foi entregue o caso. Não me disse nada. Os Mansfield é que foram ter comigo. Pediram-me ajuda e eu disse-lhes o que pude. O menino estava preso numa espécie de cave. Não sabia se era uma vivenda ou um prédio, mas era do outro lado do rio. O Jack ficou furioso por eu o ter ultrapassado, por ter agido nas costas dele. Não quis ouvir-me. Os raptores não tinham feito mal ao menino, e estavam prontos a devolvê-lo se o resgate fosse pago e entregue exatamente como eles pediam. E eu estava a querer arriscar a vida de uma criança só para poder provar a maravilha que era? Foi isso que ele me perguntou, e já tinha minado a minha confiança de tal maneira que eu não tive a certeza.

    A respiração de Tory era agora trêmula.

    - Ainda hoje não tenho bem a certeza de qual é a resposta a esta pergunta. Mas conseguia ver o menino e conseguia ver a mulher. Ela ia libertá-lo. Para ela, era só uma questão de dinheiro e de vingança contra os Mansfield, por a terem despedido. Eu disse-lhes que ele estava a ser bem tratado. Estava assustado, mas estava bem. Disse-lhes para pagarem o resgate, para fazerem o que ela dizia, e teriam o filho de volta. Juro: nem mais nem menos do que a polícia lhe disse que fizessem. Mas o que eu não vi, o que eu não vi, porque estava tão devastada pelo Jack, foi que os homens que estavam com ela não tinham a cabeça tão fria.

    A voz quebrou-se-lhe. Sim, continua a doer, pensou.

    - Disse ao Jack que havia dois homens, mas a investigação indicava apenas um. A mulher e um cúmplice. Eu estava a enlamear as águas, a meter-me no caminho. Quando o dinheiro foi pago, eles fizeram exatamente o que tinham planejado fazer, o que eu não vi, durante todo aquele tempo. Mataram o Jonah e a mulher.

    Respirou fundo.

    - Só soube quando ouvi nas notícias, quando os repórteres começaram a telefonar-me. Eu tinha-me distraído, metida no meu pequeno casulo de infelicidade porque o Jack já não me queria. Não sei como planejavam fugir. Tinham um carro, e parece que tinham pensado em usá-lo. Mas não tinham realmente delineado um plano. Era a mulher que decidia tudo, que calculava os passos. Mas eles acabaram por não querer dividir o dinheiro com ela. Decidiram seguir para oeste, mas a polícia seguiu o rasto do dinheiro e apanhou-os. Morreram dois agentes da polícia e um dos raptores foi ferido e acabou por morrer também. E eu não vi nada. E o que disse aos pais que fizessem resultou na morte do seu filho.

    - Não, o rapto é que resultou na morte do filho deles. As circunstâncias, a ganância, o medo.

    - Eu não podia tê-lo salvo. Aprendi a viver com isso. Da mesma maneira que me habituei a viver com o fato de não ter salvo a Hope. Mas fiquei arrasada. Passei semanas no hospital, anos em terapia, mas nunca consegui recuperar completamente. Parte da culpa foi minha, Cade, porque eu estava tão distraída, tão agitada por causa do Jack que não me concentrei, não prestei atenção suficiente. A minha vida estava a desfazer-se e eu estava desesperada, a tentar que ele continuasse a fazer parte dela. Parte de mim. Mesmo quando ele me denunciou, ajudou a manchar o meu nome na imprensa, não o culpei. Durante muito, muito tempo, não o culpei. Uma parte de mim continua a não o culpar.

    - Ele estava mais preocupado com o ego dele do que contigo. Mais preocupado com o ego dele do que com aquela criança.

    - Não sei. Foi uma altura difícil. Ele estava infeliz na nossa relação e farto de mim.

    - E por isso deixou-te a balançar na ponta de uma corda que ele ajudou a tecer. É isso que esperas que eu faça, Tory?

    - Foi isso que esperei que fizesses - disse ela, calmamente. - Neste momento, não sei o que hei-de esperar de ti. Só quero que saibas que compreendo o que isto te faz.

    - Não, acho que não compreendes nada. Ele não te amava. Eu amo-te.

    Ela soltou um som, parte respiração, parte soluço, mas ficou exatamente onde estava.

    - Portanto... - Pôs-se de pé. - O que vais fazer sobre isto?

    - Eu... - A garganta fechou-se-lhe. Não era medo, como compreendeu ao olhar para ele. Não era medo o que a enchia. Era esperança. E foi levada pelas asas dessa esperança que se lançou nos braços dele.

   

    Por muito horrível que fosse um homicídio, era também interessante. À distância de uma noite parecia mais um filme do que realidade. Faith não ia ficar enclausurada em Beaux Revés, quando podia cirandar pela cidade e estar no centro da acção.

    Lilah adivinhara, claro, e encheu-a de coisas para tratar. Se ia bisbilhotar, disse-lhe Lilah quando lhe entregou a lista, ao mesmo tempo podia ser produtiva.                                           

    E não devia esquecer-se de contar todos os pormenores quando chegasse a casa.

    Bisbilhotice era o que não faltava.                  

    Na drogaria, apostava-se num antigo namorado que viera à cidade para convencer Sherry a compor as coisas, e que enlouquecera quando ela recusara. Bem vistas as coisas, ela estava na cidade havia apenas algumas semanas. Uma rapariga jovem e bonita como aquela tinha de ter deixado um ou dois namorados no sítio de onde viera.

    Nos correios havia poucas dúvidas de que o assassino era o amante secreto de Sherry, e que o sexo saíra do controle. Ninguém adiantou nomes de candidatos prováveis ao lugar de amante secreto, mas entre a compra de selos e o envio de cartas registadas havia o consenso de que ela tinha um. Uma mulher com aquele aspecto havia de ter um amante. E de certeza que ele era casado, senão porque é que ninguém ouvira falar dele?

    Isto levou à teoria de que Sherry ameaçara contar à mulher dele e que a discussão que se seguira terminara em violência.

    No banco, pegou-se nesta teoria e foi-se mais longe, colocando na lista de suspeitos todos os homens casados da zona, com idades entre os vinte e os sessenta anos, sendo a grande aposta um professor ou um diretor do liceu de Progress.             

    

    Mas Faith lembrou-se do que Tory dissera quando estavam sentadas na erva, à porta do apartamento de Sherry. E lembrou-se de Hope.

    Não faria mal passar pela Conforto do Sul, para ver o que tinha Tory a dizer sobre as coisas, hoje.

    Primeiro passou pelo supermercado e, com ar sério, contemplou as bananas. A curta distância, Maxine enchia um saco de maçãs e fungava. Faith aproximou-se um pouco mais e pegou num cacho de bananas, ao acaso.

    - Olã, Maxine, por aqui? Estás bem, querida?

    Maxine abanou a cabeça, tentando conter as lágrimas que lhe inundavam os olhos.

    - Parece que não consigo funcionar. O Wade deu-me o dia de folga por eu estar a sentir-me tão triste, mas não consegui ficar em casa.                                                                                                                              

    - Maxine, minha querida.

    Faith amaldiçoou o seu radar interno defeituoso quando viu Boots Mooney empurrar o carrinho das compras até à zona da fruta e dos vegetais. Não estava com disposição para voltar a conversar com a mãe de Wade.

    Os três carrinhos ficaram frente a frente. Boots soltou uns sons arrulhantes e ofereceu um lenço a Maxine.

    - Não consigo esquecer-me. - Maxine limpou os olhos. - Disse à minha mãe que fazia as compras, mas não consigo pensar.

    Boots concordou, com um aceno de cabeça.

    - Acho que estamos todos transtornados por causa da pobre Sherry Bellows.

    - Não sei como pôde acontecer uma coisa destas. Não compreendo. Não é coisa que devesse acontecer aqui.

    - Eu sei. Não devíamos ter medo. - Com simpatia, Faith passou a mão pelo ombro de Maxine. - A maioria das pessoas acha que foi um namorado que enlouqueceu.

    - Ela não tinha namorado. - Maxine remexeu no bolso e tirou de lá um lenço amarrotado. - Não andava com ninguém, mas tinha um fraco pelo Wade.

    - Pelo Wade? - A mão de Faith gelou, tal como a expressão de simpatia que tinha no rosto. Sobre a cabeça dobrada de Maxine, os seus olhos encontraram os de Boots.

    - Gostava de ir até lá namoriscá-lo. Começou a fazer-me perguntas sobre ele. Não eram perguntas reprováveis - acrescentou Maxine, com outra fungadela. - Eram feitas de forma simpática. Interessada. Sabes, se ele era casado, se andava com alguém, coisas desse gênero. Faith afastou a mão que reconfortara Maxine.

    - É que ele é tão bonito. Eu própria tive um fraquinho por ele, aqui há uns tempos, por isso não a censuro. - Subitamente Maxine corou e espreitou por cima do lenço, na direcção de Boots. - Desculpe, Miss Boots. O Wade nunca...

    - Claro que não. - Boots tocou suavemente em Maxine. - E, na minha opinião, mulher jovem que não sinta um fraco pelo meu Wade tem um problema qualquer. - O olhar de Boots voltou a dirigir-se para Faith, intencionalmente. - Ele é um homem maravilhoso.

    - É sim, senhora, por isso não podemos culpar a Sherry por andar de olho nele.

    Ai não? Francamente, pensou Faith.

    - E tornamo-nos amigas, eu e a Sherry - continuou Maxine, reconfortada pelos dois pares de ouvidos, tão simpáticos, que a escutavam. - Ajudou-me a estudar, algumas vezes, e tínhamos combinado sair para comemorar quando o meu semestre terminasse. Pensamos ir até Charleston, a uns clubes. Disse-me que não andava com ninguém. Não se tinha importado muito durante a licenciatura e o início da carreira, mas agora andava outra vez à procura de alguém. - Maxine voltou a limpar os olhos. - Queria casar e ter uma família. Falamos sobre isso.

    - Lamento - respondeu Boots. - Não sabia que vocês eram chegadas.

    - Ela era tão simpática. E era inteligente e tínhamos muitas coisas em comum. Tinha andado na faculdade, como eu ando agora. Falávamos sobre roupas e rapazes, sobre tudo. Ambas adorávamos cães. Não sei o que vai acontecer ao pobre cão dela. Eu ficaria com ele, mas não posso.

    Nessa altura começou a chorar, não só pelo cão, mas também pela amiga que perdera.

    - Não fiques assim, Maxine. - O radar de Faith estava a trabalhar suficientemente bem para sentir que os outros clientes se aproximavam cada vez mais, na tentativa de conseguirem ouvir alguma coisa da conversa. - Vamos encontrar-lhe uma boa casa. E o chefe da polícia vai descobrir tudo.

    - Sinto-me tão mal por dentro. Ainda ontem estava a rir, e toda animada. Almoçamos juntas no parque. A trabalhar para a Tory Bodeen, na loja dela. Pelo menos, tinha esperança disso. Estava fazendo tantos planos. É que estava tão viva e de repente... Estou tão triste e tão confusa com isto tudo.

    - Compreendo. - Faith sabia muito bem o que era ficar sozinha, depois da morte. - Querida, devias ir para casa. Queres que te leve?

    - Não, obrigada, não. Acho que vou a pé. Estou sempre à espera de vê-la, a descer a rua com o Mongo. Estou sempre à espera disso - murmurou Maxine e, limpando as lágrimas, encaminhou-se para a saída.

    - Toma. - Boots tirou um segundo lenço.

    - Vem preparada. - Aborrecida consigo própria, Faith usou o lenço demoradamente, para impedir qualquer estrago da maquiagem.

    - Estou destroçada por causa daquela rapariga, e mal a conheci. - Para dar a Faith um momento para se recompor, Boots começou a escolher maçãs. - Eu própria saí de casa porque não conseguia pensar noutra coisa. Pobre Maxine. Ainda deve ser mais difícil para ela. Foi simpático da tua parte teres-te oferecido para levá-la a casa.

    - É que se a levasse para casa livrava-me das compras.

    Boots pousou a mão no braço de Faith, e deixou-a lá até Faith olhar para ela.

    - Foi simpático da tua parte - repetiu. - É reconfortante para mim ver bondade na mulher que o meu filho ama. Tal como foi reconfortante ver esse pequeno laivo de ciúme. Afinal, ainda bem que decidi fazer uma pausa na minha dieta e na do J.R. e fiz uma sobremesa de maçã para logo à noite. Dá os meus cumprimentos à tua mãe e à Lilah, está bem?

    Boots afastou-se, com as suas maçãs, deixando Faith a olhar para ela, de sobrolho franzido.

    - Muito perspicaz para quem parece andar sempre a esvoaçar, não é, Miss Boots? - resmungou Faith. - Muito perspicaz, raios a partam.

    Irritada, Faith continuou a empurrar o carrinho, tirando das prateleiras as coisas que Lilah lhe pedira para comprar e desejando sair da porcaria do supermercado.

    Tivera ciúmes. Bolas. Teria Wade correspondido ao namorico? Olhou com desagrado para os pacotes de manteiga, na seção de refrigeração. Claro que tinha correspondido. Era homem. Muito provavelmente, devia ter pensado em mais do que namoriscar. O estupor. Quantas vezes teria imaginado Sherry nua, fantasiado sobre ela, e depois...

    Cristo, que estava a fazer? A enfurecer-se com Wade por causa de uma mulher que estava morta? Até que ponto conseguia ser mesquinha, superficial, horrível?

    - Faith?

    - O que foi? - Deixou escapar as palavras e virou-se, com um pacote de Land O Lakes na mão e um olhar mortífero no rosto.

    Dwight levantou a mão, como que a pedir paz.

    - Uau! Desculpa.

    - Não, eu é que peço desculpa. Estava a pensar noutra coisa. - Fez um esforço, pôs um sorriso luminoso na cara e baixou-se para falar com o pequeno que ia no assento do carrinho. - Mas que lindo que és. Andas às compras com o papai, hoje?

    Luke mostrou-lhe uma caixa de Oreos, aberta.

    - Comprei bolachas - anunciou, e como a cara do filho já estava toda suja de chocolate, era evidente que tinha estado a apreciá-los.

    - Estou vendo.

    - A mãe vai esfolar-me vivo, se eu não o limpar antes de ela o ver.

    - As caras lavam-se. - Mas Faith afastou-se estrategicamente do alcance dos dedos cheios de chocolate. - A Lissy mandou-te às compras, hoje?

    - Não está a sentir-se bem. Ficou muito transtornada por causa do que aconteceu ontem. Diz que tem medo de pôr o pé fora de casa, e a noite passada fez-me verificar as fechaduras seis vezes.

    Era mesmo da Lissy Frazler, centrar as coisas em si própria, pensou Faith, mas abanou a cabeça com simpatia.

    - Acho que ficamos todos um bocado suscetíveis.

    - Está uma pilha de nervos. Estou tão preocupado com ela, Faith, ainda falta um mês para o bebê nascer. A mãe está cá, para ficar com ela durante algum tempo. Acho que aqui o Campeão e eu... - Fez uma pausa para despentear o cabelo de Luke. - Resolvemos sair um bocado. Para a deixarmos sossegada.

    - Isso é que é um pai. Soubeste mais sobre o pé em que as coisas estão?

    - O Cari D. está a investigar, e não quer dizer grande coisa. Acho que é demasiado cedo. Já não deve faltar muito para terem os resultados da autópsia. O Cari D. é um bom homem, não quero dizer outra coisa. Mas este tipo de coisa... - Interrompeu-se, abanando a cabeça. - Não é com isto que ele está habituado a lidar. Nenhum de nós está.                                                             

   

    - Não foi a primeira vez que aconteceu.

    Ele olhou para trás, sem perceber, mas passado um momento os olhos ensombraram-se-lhe.

    - Desculpa, Faith, foi sem intenção. Isto deve trazer-te recordações desagradáveis.

    - As recordações estão sempre presentes. Só espero que desta vez apanhem quem fez isto, que o apanhem e o pendurem pelos pés e lhe cortem o...

    - Atenção... - Com os lábios contorcidos num sorriso forçado, Dwight apertou-lhe o braço e olhou de soslaio na direção do filho. - Há aqui ouvidos pequeninos.                          

    - Desculpa - disse ela, enquanto Luke decorava o seu tufo de cabelo com a melhor parte de uma Oreo. - Meu caro, a Lissy vai espezinhar-te até sangrares das orelhas se apareceres lá em casa com o pequeno assim.                                                                   

    - Talvez não seja tão mau, se eu fizer as compras.

    - Também não deve ser muito bom. Tenta outro tipo de coisa. Jóias.

    - Bem, se tu achas... - Dwight coçou a cabeça. - Na verdade estava a pensar comprar-lhe um presente, para distraí-la das preocupações. Tinha pensado em passar pela perfumaria e comprar-lhe um perfume.                                                       

    - Lá não há nada de especial. Só perfumes para velhotas. Passa pela loja da Tory e vais achar aquilo que procuras. A Lissy vai voltar a sorrir.

    Dwight olhou para Luke, que estava agora a cobrir a pega de plástico vermelho do carrinho do supermercado com uma papa escura de Oreos.

    - Achas que eu vou levar este vitelo para uma loja de louças?

    - Aí, tens razão. - O plano que se gizou na mente dela deixou-a satisfeita. - Já sei o que vamos fazer, Dwight. Dás-me o dinheiro e eu vou lá e compro qualquer coisa que faça de ti um herói. Quando acabares as compras e raspares umas camadas de bolacha de cima do teu Luke, passas por lá e eu passo-te o que tiver comprado.

    - A sério? Não te importas?

    - Eu ia até lá, de qualquer forma. Além disso, para que servem os amigos? - Estendeu a mão, com a palma para cima.

    - Ainda bem que acabei de ir ao banco. Tenho dinheiro. - Encantado, tirou a carteira do bolso e foi-lhe pondo algumas notas na mão. Quando parou, ela olhou-o com ar incrédulo.

    - Vá lá, Dwight. Não podes ser um herói por menos de duzentos.

    - Duzentos? Credo, Faith, levas tudo o que tenho aqui, só fico com um dólar.

    - Parece que vais ter que passar pelo banco outra vez. - Arrancou-lhe as notas da carteira, enquanto ele dava um passo atrás, com uma expressão de desagrado no rosto. - Isso vai dar-me mais tempo para fazer uma escolha acertada.

    - E as tuas compras aqui? - perguntou-lhe ele.

    - Deixa. - Acenou com a mão, como se o assunto não tivesse qualquer importância. - Faço-as mais logo.

    Dwight soltou um suspiro e voltou a meter no bolso a carteira quase vazia.

    - Acho que fomos levados - disse ele ao filho.                   

    Era perfeito, decidiu Faith. Podia entrar, sondar Tory e fazer uma boa ação. Depois, era apenas um pulinho até ao consultório de Wade. Teria tempo de decidir se o castigaria por ele a ter feito imaginá-lo a imaginar uma cena de sexo com Sherry Bellows.

    Não podia ter corrido melhor.                                   

    Desta vez, tirou a sua Abelha do carro, abraçando-a e falando meigamente com ela.

    - Agora, vais ser uma linda menina, não vais? Para a mázona da Tory não se queixar. Vais sentar-te como uma querida e eu dou-te um belo osso suculento. Não é, bebê da mamã?

    - Não voltes a trazer esse cão aqui para dentro. - Tory saiu abruptamente de trás do balcão, pronta a barrar o caminho a Faith quando ela entrou.

    - Ora, pára de ser chata. Ela vai ficar aqui sentada como uma bonequinha, não vais, Abelhinha querida? - Levantou uma das patas da cadelinha e acenou com ela, enquanto ambas olhavam para Tory com expressões igualmente inocentes.                                                          

    - Raios partam, Faith.

    - Ela vai portar-se impecavelmente. Ora vê. - Pegou no osso e depois fez a cadelinha sentar-se, fazendo uma ligeira pressão nas patas traseiras. - Além disso, que tipo de boas-vindas são estas, quando eu tenho uma missão e dinheiro? - disse ela, puxando do maço de notas.

    - Se aquele cão faz xixi no meu chão...

    - Ela tem demasiada dignidade para isso. Estou a fazer um pequeno favor ao Dwight. A Lissy não se sente bem e ele quer animá-la com um bonito presente.

    

    Tory suspirou, mas calculou o número de notas que Faith agitava alegremente.

    - Decoração para a casa ou ornamentos para o corpo?

    - Corpo.

    - Vamos dar uma vista de olhos.                                     

    - Ainda bem que o Dwight me encontrou. Os homens raramente têm boas idéias neste campo e o sentido do gosto da Lissy é apenas o que tem na boca. E, mesmo assim... - Faith calou-se, observou o expositor e franziu o sobrolho.

    - Estás a gozar comigo?       

    - Tenho demasiada dignidade para isso.

    - Se queres saber, acho que tens demasiada dignidade para o teu próprio bem. Vamos ver aquele colar ali, aquele que tem o topázio cor-de-rosa e os feldspatos.

    - Conheces bem as pedras.                                          .

    - Podes apostar. Uma mulher tem de saber se um homem está a fazer passar um peridoto por uma esmeralda. Este é bonito. - Levantou-o e deixou que a luz brincasse com as pedras. - Mas acho que tem muito metal para ela. Faz mais o meu estilo.

    - É assim que cumpres uma missão?

    - Posso fazer mais do que uma coisa ao mesmo tempo. Vamos deixar este aqui de lado, para eu pensar. - Remexeu no estojo. - E tu, estás bem?                                                              

    - Sim.

    -Bem, escusas de tentar ter uma conversa, não te maces.

    Tory abriu a boca, mas voltou a fechá-la e soltou um suspiro.

    - Estou bem, um pouco abalada, acho, mas estou bem. E tu?

    Faith olhou para cima e sorriu um pouco.

    - Vês? A tua língua não ficou preta, nem caiu, nem nada disso. Estou bem. Andei pela cidade, a ouvir as bisbilhotces. E escusas de empinar o nariz. Estás tão interessada no que as pessoas andam a dizer como eu.

    - Já sei o que andam a dizer. Tive um movimento considerável aqui na loja, hoje. As pessoas adoram entrar e olhar para mim, e depois cirandar de um lado para o outro. Para ti é diferente, Faith, tu pertences aqui. Eu não. Não sei porque pensei que alguma vez pertenceria.

    - Não consigo compreender porque queres isso, mas se queres mesmo não podes desistir. As pessoas vão habituar-se a ti. Até se habituavam a um anão coxo e só com um olho, se ele ficasse por cá durante algum tempo.

    - Isso é tranquilizador.

    - Vamos ver esta pulseira. O Cade parece ter-se habituado a ti bastante depressa.

    - Topázio rosa e azul, incrustado em prata. Fecho de pinça.

    - Muito bonita, muito Lissy. E aqueles brincos, ali. Ela havia de gostar deles, combinam com a pulseira. Não tem imaginação para mais.                                                                             

    - É estranho que percas tempo a escolher presentes para ela, quando parece que nem gostas dela.

    - Ora, não desgosto. - Faith franziu os lábios e observou os brincos. - É demasiado tonta para me fazer gastar a energia suficiente para não gostar dela. Sempre foi. Faz o Dwight feliz, e eu gosto dele. Mete estes numa caixa e faz um embrulho bonito. O Dwight vai ficar-me agradecido. Acho que vou levar este colar para mim. Para ficar mais animada.                                                                                                                                  

    - Estás a tornar-te a minha melhor cliente. - Tory levou as jóias até ao balcão. - Quem diria.

    - Tens aqui coisas de que eu gosto muito. - A cadelinha adormecera com o osso na boca. Faith ficou largos minutos a olhar para ela, em adoração. - Além disso, pareces fazer o Cade feliz e eu gosto ainda mais dele do que do Dwight. - Ficou encostada ao balcão enquanto Tory embrulhava os presentes de Líssy. - A verdade é que andas a dormir com o meu irmão. E eu ando a dormir com o teu primo.                                       

    - Isso torna-nos praticamente amantes.        

     Faith pestanejou, soltou um som de descontentamento e depois atirou a cabeça para trás e riu.

    - Credo, é uma idéia assustadora. E eu que estava para aqui a pensar se devia considerar-nos amigas.

    - Mais uma idéia assustadora.

    - É, não é? No entanto, - ontem, quando estávamos sentadas à porta do apartamento da Sherry, ocorreu-me que provavelmente estávamos a sentir a mesma coisa. A recordar a mesma coisa. E essa é uma ligação forte.

    Tory atou o cordão com muito cuidado, com muita precisão.

    - Foste muito amável em teres ficado comigo. Digo a mim própria, muitas vezes, que é melhor estar sozinha. Mas é difícil. Às vezes, é muito difícil.

    - Detesto estar sozinha. Mais do que tudo neste mundo. E fico muitas vezes irritada com a minha própria companhia. - Interrompeu-se e riu. - Olha para nós, a ter uma conversa quase íntima. Vou dar-te o dinheiro fresquinho do Dwight para pagar o presente da Lissy, mas vou pagar o meu, do meu bolso.

    Antes de ela ter tempo de pegar na carteira, Tory estendeu o braço e pousou a mão na dela. Estranho como se tornara mais fácil tocar, ser tocada, desde que voltara a Progress.

    - Em toda a minha vida, nunca tive outra amiga como a Hope. Não sei se alguém consegue ter amigos como os que temos quando somos crianças. Mas eu gostava de ter uma amiga.

    Confusa, Faith olhou para ela:

    - Não sei se serei uma boa amiga.     

    - Eu sei que não tenho sido uma boa amiga, desde que a Hope partiu, portanto isso coloca-nos no mesmo ponto de partida. Acho que estou apaixonada pelo teu irmão. - Soltou um suspiro longo e trêmulo, e mexeu a mão, para mantê-la ocupada. - Se estiver mesmo, acho que seria bom, para todos, que eu e tu conseguíssemos ser amigas.

    - Sei que adoro o meu irmão, embora ele seja um chato. A vida tem umas arestas bem difíceis de limar. - Faith pousou o dinheiro de Dwight no balcão e pegou no cartão de crédito. - Fechas às seis, não fechas?

    - Sim.

    - Porque não nos encontramos a seguir? Podemos tomar qualquer coisa.

    - Está bem. Onde?                       

    Os olhos de Faith brilharam.                                      

    - Acho que o monumento funerário da Hope é um local adequado.

    - O quê?

    - No pântano, tu sabes.

    - Por amor de Deus, Faith.

    - Ainda lá não foste, pois não? Pois bem, acho que está na hora, e parece-me um bom lugar para vermos se eu e tu conseguimos ultrapassar algumas questões. Tens estômago para isso?

    Tory pegou no cartão de crédito.

    - Se tu tens, eu também tenho.

 

    Levou as compras para casa e enfrentou as queixas de Lilah por ter chegado tarde com atrevimento suficiente para lhe dizer que a sua ida à cidade fora conveniente para ambas.          

    - E não comeces a gritar que os tomates estão muito moles ou que as bananas estão muito verdes, senão na próxima não faço de moça de recados.

    - A Miss come, não come? Não faz mais nada que se veja, por isso pode trazer comida para casa uma vez quando o rei faz anos.

    - O rei está a fazer anos mais vezes do que dantes. - Faith pegou no chá gelado, em dois copos, e depois sentou-se e preparou-se para partilhar as bisbilhotices.

    - E então? - Lilah sentou-se e instalou-se confortavelmente. - O que dizem as pessoas?

    - Todo o tipo de coisas, a maioria das quais tão inverosímil como um republicano liberal. Muitas pessoas dizem que deve ter sido um antigo namorado ou amante. Um amante novo e casado. Mas encontrei a Maxine no supermercado, e acontece que ela era amiga da Sherry e diz que a Sherry não tinha namorado, neste momento.

    - O que não significa que algum idiota não pensasse que devia ser ele o candidato. - Lilah pegou no baton e rodou-o para cima e para baixo. - Ouvi dizer que ela o deixou entrar, porque o cão não fez barulho e não havia sinais de arrombamento, como se pensou a princípio.

    - Deixar um homem entrar em casa não significa querer que ele nos viole.

    - Eu não disse isso. - Lilah pintou os lábios e pressionou-os um contra o outro. - Estou apenas a dizer que uma mulher tem de ter cuidado. Quando abre a porta a um homem é melhor estar preparada para o correr a pontapé.                  

    - És tão romântica, Lilah.

    - Tenho muito romance dentro de mim, Miss Faith. Mas o equilibro com bom senso. Uma coisa que lhe falta quando se trata de homens. Talvez faltasse também àquela pobre rapariga.

    - Tenho tido bom senso suficiente para correr muitos homens a pontapé.

    - Mas primeiro teve de casar com dois, não foi?

    Faith tirou um cigarro do maço e desenhou um sorriso forçado.

    - Podia ter casado com mais de dois. Pelo menos não fiquei para tia.

    Lilah devolveu-lhe o sorriso.

    - Se o casamento fosse tudo o que é suposto ser, durava mais. Aquela moça não tinha um ex-marido, tinha?

    - Não, acho que não.

    - Faith? - Margaret estava à entrada da cozinha, o rosto rígido. - Preciso de falar contigo. Na saleta.

    - Está bem. - Faith olhou para Lilah e revirou os olhos, e depois apagou o cigarro. - Devia ter tido mais coisas para fazer na cidade.

    - Mostre algum respeito para com a sua mãe.

    - E certamente seria um choque para o sistema se ela fizesse o mesmo em relação a mim.

 

    Encaminhou-se para a saleta, sem pressas. Parou para verificar a maquiagem, e outra vez para ajeitar o cabelo, ao espelho do hall. Quando entrou, a mãe estava sentada, rígida como estuque seco.

    - Não aprovo a tua bisbilhotice com os criados.

    - Não estava a fazer isso. Estava a conversar com a Lilah.

    - Não fales nesse tom comigo. A Lilah pode ser um membro valioso desta casa, mas não é próprio sentares na cozinha a bisbilhotar.

    - E é próprio a mãe escutar às portas? - Faith deixou-se cair numa cadeira. - Tenho vinte e seis anos, mãe. Há muito tempo que as suas preleções sobre bom comportamento deixaram de fazer efeito.

    - Nunca serviram de nada. Disseram-me que estiveste com a Victoria Bodeen, ontem. Que estiveram juntas e que foram responsáveis pelo contacto estabelecido com a polícia.

    - É verdade.                                                               

    - É suficientemente desagradável que tenhas qualquer ligação com uma situação tão inacreditável como esta, mas é intolerável que agora te tenhas ligado a essa mulher.                                

    - Refere-se à Tory ou à mulher que foi violada e assassinada? - Faith endureceu o tom, embora continuasse preguiçosamente refastelada na cadeira.

    - Não vou tolerar uma coisa destas. Não vou tolerar que te associes à Victoria Bodeen.

    - Senão...? - Faith esperou um momento. - Está a ver, nesta altura das nossas vidas não há senão, mãe. Entro e saio quando quero e com quem quero. Sempre fiz isso, mas agora não tem realmente nada que dizer sobre isso.                                       

    - Pensei que, por respeito à tua irmã, estaria fora de causa qualquer ligação, por mais tênue que fosse, com a pessoa que considero responsável pela morte dela.

    - Talvez seja por respeito à minha irmã que estabeleci esta ligação. A mãe nunca a suportou - disse Faith. - E acho que aí lhe tomei a dianteira. Teria proibido a Hope de se dar com ela, mas nunca conseguiu proibir realmente a Hope de fazer o que quer que fosse. E quando conseguia, ela dava-lhe a volta. Nesse aspecto, era muito mais esperta do que eu.                  

    - Não fales da minha filha dessa maneira.

    - Sim, da sua filha. - Agora o tom áspero refletia-se-lhe nos olhos. - Coisa que eu nunca consegui ser. E há uma coisa em que a mãe talvez nunca tenha pensado: a Tory não é responsável pelo que aconteceu à Hope, mas pode muito bem ser a chave para descobrir quem é. Talvez lhe traga conforto recordar a Hope como uma luz brilhante, como uma vida decepada antes de ter realmente vivido. A mim, trar-me-ia mais conforto saber finalmente porquê. E saber quem.

    - Não vais encontrar o teu conforto nem as tuas respostas com essa mulher. Vais apenas encontrar mentiras. Toda a vida dela é uma mentira.                                                   

    - Ora aí está. - Com um grande sorriso, Faith pôs-se de pé. - Isso é só mais uma coisa que eu e ela temos em comum, não é?

    Saiu da saleta, caminhando com arrogância.

 

    Margaret levantou-se de imediato, apressou-se a sair da saleta e a entrar na biblioteca, com as suas torres de livros e o seu teto com adornos de estuque. Começou por dar um telefonema, puxando os cordéis da amizade para pedir a Gerald Purcell que fosse a casa dela o mais rapidamente possível.

    Certa de que ele chegaria em menos de uma hora, dirigiu-se ao cofre escondido atrás de um quadro a óleo que representava Beaux Revés, e tirou de lá duas pastas.

    Iria aproveitar aquela hora para estudar os papéis e para se preparar.

    Pediu que o chá fosse servido no terraço do lado sul, com scones e com os bolos cobertos que sabia que Gerald apreciava particularmente. Gostava daquele ritual à tarde, quando estava em casa, a porcelana, a prata, as rodelas de limão irrepreensivelmente cortadas, a mistura de cubos de açúcar escuro e branco no açucareiro.

    Enquanto fosse a dona daquela casa, pensou, aquele era um ritual que seria preservado. Beaux Revés, e tudo o que representava, seria preservado.

    Estava calor para um chá ao ar livre, mas o chapéu de sol branco oferecia sombra e os jardins proporcionavam o que Margaret considerava o cenário adequado. As roseiras que ladeavam o tijolo, dentro dos seus vasos gigantes, estavam abundantemente floridas, e os hibiscos acrescentavam um toque exótico, com as suas trombetas carmim.   

    Sentou-se à mesa de vidro irregular, com as mãos cruzadas, a observar a propriedade que era dela. Trabalhara para ela, alimentara-a, e agora, como sempre, iria protegê-la.

    Olhou para cima quando Gerald assomou às portas do terraço. Iria assar de terno e gravata, pensou ela, enquanto lhe estendia a mão.

    - Agradeço-lhe ter vindo tão depressa. Quer chá?

    - Sim, obrigado. Pareceu-me preocupada, Margaret.

    - Estou preocupada. - Mas a mão manteve-se firme quando levantou o bule Wedgwood e serviu o chá. - Diz respeito aos meus filhos e a Beaux Revés. O Gerald era advogado do Jasper, por isso conhece as características da fazenda, as propriedades, os interesses desta família, tão bem como qualquer de nós. Talvez até melhor.

    - Claro. - Sentou-se ao lado dela, satisfeito por ela se lembrar que ele preferia limão a leite.

    - O controle dos interesses da fazenda passou para o Kincade. Setenta por cento. Isso é válido também para as fábricas e o moinho. Eu tenho vinte por cento e a Faith dez.

    - Correto. Os lucros são divididos e distribuídos anualmente.

    - Sei disso. As propriedades, bem como os edifícios de apartamentos, as casas que estão arrendadas, incluindo a Casa do Pântano, estão também todos nos nomes deles, não é assim?

    - É.

    - E, na sua opinião, qual seria o impacto nas mudanças que o Cade introduziu na fazenda, no seu novo sistema de funcionamento, se eu retirasse o meu apoio e usasse os vinte por cento e a minha influência junto do conselho de administração para serem usados métodos mais tradicionais?

    - Causar-lhe-ia dificuldades consideráveis, Margaret. Mas o peso dele é maior do que o seu, e os lucros pesam mais no prato da balança que é dele. E, seja como for, o conselho de administração não tem competência para interferir na fazenda, só no moinho e nas fábricas.

    Ela acenou com a cabeça.

    - E o moinho e as fábricas ajudam-no a manter a fazenda. E se eu conseguir convencer a Faith a juntar a parte dela à minha?

    - Isso dar-lhe-ia mais munições, claro. - Bebeu pequenos goles de chá, refletindo. - Posso perguntar-lhe, como seu amigo e seu advogado, se está descontente com o que Cade tem feito em Beaux Revés?

    - Estou descontente com o meu filho, e acho que ele precisa de voltar a investir as idéias e as energias na herança que recebeu, sem se dispersar por outros caminhos. Tudo o que quero - disse ela, pondo manteiga num scone - é a Victoria Bodeen fora da Casa do Pântano, fora de Progress. Neste momento, a Faith está a levantar-me dificuldades, mas vai concordar com o que eu digo. Sempre foi uma criatura que vive ao sabor do momento. Acho que consigo convencê-la a vender-me a parte que tem nas propriedades. Isso dar-me-ia um controle de dois terços. Presumo que a rapariga Bodeen tenha um contrato de arrendamento de um ano para a casa e para a loja. Quero esses contratos denunciados.

    - Margaret. - Ele pôs a mão sobre a dela. - Seria mais sensato deixar as coisas como estão.

    - Não vou tolerar a ligação dela com o meu filho. E vou fazer tudo o que for necessário para acabar com ela. Quero que me redija um novo testamento e que deixe o Cade e a Faith fora dele.

    Ele pensou no escândalo, na confusão legal, na imensa quantidade de trabalho.

    - Margaret, por favor não aja precipitadamente.

    - Só validarei o testamento se não tiver outra opção, mas vou usá-lo para mostrar à Faith que estou a falar a sério. - A boca de Margaret tornou-se mais fina. - Não tenho qualquer dúvida de que, quando ela perceber que vai perder uma quantia tão grande, vai se tornar muito cooperante. Quero repor a ordem na minha casa, Gerald. Far-me-ia um grande favor se pegasse nestes contratos de arrendamento e encontrasse a melhor maneira de denunciá-los.

    - Arrisca-se a virar o seu filho contra si.

    - É melhor do que vê-lo arrastar o nome de toda a família pela lama.

 

    Desde a minha infância que não tenho um diário nem registro os meus pensamentos secretos. Já que a minha infância está na minha cabeça, parece fazer sentido fazer isso agora. E fazer isso aqui, onde Hope perdeu a vida. A infância.

    O meu pai, o nosso pai, construiu este lugar para ela, com esta pequena estátua e as suas flores de aroma doce. É mais dela do que o túmulo onde a enterrou, naquela manhã quente e úmida de verão. Nunca partilhei este lugar com ela. Escolhi não o fazer, por maldade, certamente, mas na altura essa escolha deu-me uma enorme satisfação.

    Para que queria eu os jogos idiotas dela e a amiga estranha e desgrenhada que ela tinha?                                                    

    Queria-os tão desesperadamente que os recusava quando me eram oferecidos. Sou uma pessoa difícil. Às vezes gosto de mim assim. Seja como for, contrariar faz parte da minha natureza, por isso tenho de viver com isso.

    Podia ter sido diferente para mim, para todos nós, se aquela noite nunca tivesse acontecido. Se quando acordei, na manhã seguinte, a Hope estivesse no quarto ao lado. Eu ainda estaria amuada por causa da desgraça da noite anterior. A discussão tivera como tema as ervilhas, que eu detestava naquela altura e continuo a detestar agora.

    Tinha feito uma birra, porque retirava algum prazer dessa atividade, em especial quando alguém se dava ao trabalho de tentar me tirar do amuo. Gostava que me dessem atenção. Toda a atenção que eu conseguisse que me dessem.                               

    Sabia, já nessa altura, que na hierarquia de 3 irmãos, eu vinha em terceiro lugar. O Cade era visto como o herdeiro. Afinal, ele tinha um pênis e eu não. Suponho que a culpa não fosse dele, mas o fato é que lhe invejei aquele membro durante algum tempo, na minha juventude. Até ter aprendido que era mais do que possível a uma mulher possuir todos os apêndices interessantes que quisesse, e de diversas formas agradáveis.

    Descobri o sexo muito cedo, e desde aí tenho-o gozado sem qualquer sentimento de culpa.

    Fosse como fosse, aos oito anos as conotações sexuais dos homens e das mulheres eram ainda uma área nublada para mim. Sabia apenas que o Cade era o futuro senhor de Beaux Revés porque era rapaz, coisa que não me aparecia aceitável. Eram-lhe concedidos privilégios que me eram negados, mais uma vez porque ele era homem. E, para ser justa, suponho que fosse também devido à diferença de quatro anos entre as nossas idades.

    O meu pai olhava para ele com tanto orgulho. Era certo que exigia bastante do Cade, mas o olhar do papai, o tom da sua voz, a própria postura do seu corpo, traduziam orgulho. Pai e filho. Eu nunca poderia ser o seu filho. Nem podia ser, como a Hope era, o seu anjo. Ele adorava-a. Sentia amor por mim e era um homem justo. Mas era dolorosamente óbvio que a Hope era a dona do seu coração, como o Cade era o dono das suas esperanças. Acho que fui uma espécie de bônus, a gêmea que veio acompanhando o seu anjo.                               

    Para a minha mãe, o Cade era também, penso eu, uma fonte de orgulho. Gerara o filho, como era esperado que fizesse. O nome dos Lavelle seria preservado, porque ela concebera e dera à luz um rapaz. Ficou bastante satisfeita por entregar ao meu pai a educação dele, na quase totalidade. Afinal, que sabia ela sobre rapazes? Pergunto-me se o Cade terá sentido esta distância natural e discreta. Suponho que sim, mas tornou-se um homem inteiro e admirável, apesar dela.

    Por causa dela?                                                                

    Claro que a mamãe lhe ensinou maneiras, zelou pela sua higiene, mas a sua educação, o seu tempo, a sua condição de vida eram do pelouro do meu pai. Não me lembro de tê-la ouvido perguntar ao papai o que quer que fosse sobre o Cade.

    A Hope foi a recompensa dela por um trabalho bem feito. A filha que ela podia refinar e moldar, a criança que ela acompanharia desde a infância até um casamento adequado. Adorava a Hope pela sua doçura e por aceitar tudo sem protestar. Mas se a Hope tivesse vivido, acredito que teria feito exatamente o que lhe apetecesse e convencido a mamãe de que a idéia fora dela.

    Deu-lhe a volta com a Tory. Dava-lhe a volta com tudo. Meu Deus, como sinto a falta dela! Sinto a falta da metade de mim que era alegre e divertida e entusiasmada. Sinto a falta dela de uma forma inominável.

    Quanto a mim, fui uma provação para a mamãe. Quantas vezes a ouvi dizer isso! Portanto deve ser verdade. Não tinha a doçura da Hope, nem aceitava tudo sem protestos, como ela. Fazia perguntas e questionava amargamente coisas com as quais nem sequer me importava.

    Olhem para mim. Raios partam, todos! Olhem para mim! Tão triste e digna de pena.                                      

    A Hope tomou-se amiga da Tory um ano antes desse verão. Sentiram-se impelidas uma para a outra, como acontece a algumas almas. Até eu conseguia ver o entendimento que havia entre elas, aquele dique especial. E tornaram-se, quase desde o primeiro instante, inseparáveis. Mais gêmeas do que eu e a minha irmã alguma vez tínhamos sido.

    Por esse motivo, e só por esse, eu detestava a Victoria Bodeen. Olhava de lado para ela e para os seus pés sujos e os seus erros gramaticais, para os seus olhos enormes e observadores e para o lixo que eram os seus pais. Mas era a sua proximidade em relação a Hope que estava na raiz de tudo.

    Fazia troça dela sempre que possível e quando não estava a troçar dela ignorava-a. Fingia ignorá-la. Na verdade, observava-a e à Hope com uma concentração de falcão. À procura de uma brecha, de uma quebra nos laços entre elas, que eu pudesse alargar para que o afeto que sentiam uma pela outra desaparecesse.

    Brincaram juntas no dia em que ela morreu. Em nossa casa, porque a Hope estava rigorosamente proibida de ir a casa da Tory. É claro que ia lá, em segredo, mas passavam a maior parte do tempo juntas em Beaux Revés e à volta de Beaux Revés, ou no pântano.

    A mamãe não sabia de nada sobre o pântano. Não teria permitido. Mas todos nós íamos lá, andávamos por lá. O papai sabia, e só nos pedia que não fôssemos lá depois de escurecer.

    Antes do jantar, a Hope jogou as três-marias, na varanda. Castiguei-a e não joguei com ela. Como isto pareceu não lhe estragar o prazer do jogo, fui amuar no meu quarto e só desci quando me chamaram para jantar. Não tinha fome e continuava maldisposta por a Hope ter aceitado tão facilmente o fato de eu estar zangada com ela. Desviei a atenção para mim, arranjando uma questão por causa das ervilhas - embora continue a afirmar que tinha todo o direito de não gostar de ervilhas -, e acabei por ser mal-educada com a minha mãe, pelo que me mandaram sair da mesa. Detestava que me mandassem sair da mesa. Não que me importasse muito com a comida, mas aquilo significava ser banida. Acho que um psicólogo diria que esta tática provava que eu não fazia parte da família, ao contrário do meu irmão e da minha irmã. Eu era a estranha que, por um lado, gostava da independência em relação a eles e, por outro, queria desesperadamente fazer parte do conjunto.

    Fui para o meu quarto, como se isso fosse exatamente o que eu queria. Estava decidida a deixá-los pensar isso mesmo, sem que suspeitassem que eu sentia o meu orgulho ferido e estava zangada.

    Um pequeno monte de ervilhas era mais importante do que eu. Deitei-me na cama, a olhar para o teto, e rodeei-me de ressentimento. Um dia, pensei, um dia seria livre de fazer o que quisesse, quando quisesse. Ninguém me impediria, muito menos a família, que me punha de lado tão facilmente. Seria rica e famosa e linda. Não tinha uma idéia clara de como iria conseguir estas coisas, mas elas eram o meu objetivo. Via o dinheiro e a glória e a beleza como uma espécie de prêmio que eu ganharia enquanto eles ficariam mergulhados nas tradições e nas restrições de Beaux Revés. Pensei em fugir, talvez em aterrar à porta da minha tia Rosie. Sabia que isso atingiria a minha mãe, que via na sua irmã Rosie um motivo de vergonha. Mais ou menos como eu.

    Mas eu não queria ir embora. Queria que eles me amassem, e esse desejo urgente e frustrado era a minha prisão.

    Mais tarde, ouvi a música da minha mãe. Devia estar na salinha dela, a escrever cartas, a responder a convites, a planejar a ementa para o dia seguinte, horários e tudo o mais que fazia como dona da casa. O meu pai devia estar no escritório, a analisar o negócio da fazenda e a beber um uísque tranquilo.

    A Lilah trouxe-me qualquer coisa para comer, às escondidas, sem ervilhas. Não me acarinhou nem me fez festas, mas aquele pequeno gesto comoveu-me. Abençoada, sempre esteve presente, firme como uma rocha e quente como uma torrada.

    Comi, por ter sido ela a levar-me a comida e porque se tratava de uma rebelião que ambas partilhávamos, em segredo. Depois continuei no quarto, até que ficou escuro. Imaginei a mamãe a escovar o cabelo da Hope, como fazia todas as noites depois do banho. Para dizer a verdade, ela também queria escovar o meu, mas eu não parava quieta um só instante. Em seguida, a Hope iria dar as boas-noites ao papai. E enquanto fazia tudo o que lhe mandavam, planejava a sua própria revolta secreta.

    Ouvi-a caminhar pelo hall e parar a porta do meu quarto. Quem me dera... Não adianta nada, mas quem me dera ter-me levantado, aberto a porta e ter-lhe pedido que entrasse e me fizesse companhia. Podia ter mudado tudo. Ela teria sentido pena de mim e talvez me tivesse contado o que ia fazer. Dado o meu estado de espírito, talvez tivesse ido com ela, só para fazer frente à mamãe. E ela não estaria sozinha.

    Mas, na minha teimosia soturna, deixei-me ficar na cama e ouvi os passos dela se afastarem.

 

    Não a ouvi sair de casa. Podia ter olhado pela janela e tê-la visto. Mas não. Fiquei enrolada no escuro, até que adormeci.

    E enquanto eu dormia ela morreu.                                  

    Ao contrário do que se diz dos gêmeos, não senti quebrar-se nenhum elo entre nós. Não tive qualquer premonição ou sonho sobre qualquer coisa má que fosse acontecer. Não senti a dor nem o medo dela. Dormi simplesmente, como acho que a maioria das crianças dorme, profunda e descansadamente, enquanto a pessoa que compartilhou comigo o útero e o nascimento morria, sozinha.

    Foi a Tory que sentiu essa quebra, essa dor e esse medo. Naquela altura não acreditei, optei por não acreditar. A Hope era minha irmã e não dela, e como se atrevia ela a ser uma parte tão íntima do que era meu? Como muitos outros, preferi acreditar que a Tory tinha estado no pântano, naquela noite, e que tinha fugido e deixado a Hope enfrentar o terror sozinha.

    Foi nisto que acreditei, apesar de tê-la visto na manhã seguinte. Veio a coxear pelo caminho até à nossa casa, bem cedo. Caminhava como uma velha, como se cada passo representasse um esforço de coragem. Foi o Cade que lhe abriu a porta da frente, mas eu estava no alto das escadas. O rosto dela estava pálido como a própria morte, e tinha os olhos enormes.

    Disse: a Hope está no pântano. Não conseguiu fugir e ele fez-lhe mal. Tens de ajudá-la.

    Acho que ele a convidou a entrar, educadamente, mas ela não quis passar da soleira da porta. Por isso ele deixou-a ali, e enquanto eu corria para o meu quarto ele foi ver o de Hope. Depois, aconteceu tudo muito depressa. O Cade descendo a escada a correr, à procura do papai. A mamãe também. Toda a gente falava ao mesmo tempo e ninguém me prestava atenção. A mamã agarrou a Tory pelo ombro e sacudiu-a, gritou com ela. A Tory não reagiu, deixou-se ficar como um capacho habituado a levar pontapés.

    Foi o papai que segurou a mamãe e lhe disse para ir chamar a polícia imediatamente. Foi ele que fez perguntas à Tory, numa voz que não estava completamente firme. Ela contou-lhe os planos para a noite anterior, e disse que não tinha saído porque tinha caído e ficado magoada. Mas a Hope tinha ido até ao pântano e alguém tinha ido atrás dela. Disse isto tudo numa voz calma e inexpressiva, uma voz de adulto. E manteve sempre os olhos fixos no rosto do papai, e disse-lhe que podia levá-lo até ao lugar onde estava a Hope.

    Soube, mais tarde, que foi exatamente o que fez, guiou o papai e o Cade, e depois a polícia, pelo pântano, até ao lugar onde estava a Hope.

    A vida alterou-se para sempre, para todos nós.

   

    Faith pousou o bloco e recostou-se no banco. Ouvia agora o trinado dos pássaros e cheirava o perfume da terra escura e das flores abertas. Magros raios de sol tremeluziam por entre a abóbada de ramos entrelaçados e de musgo, colorindo o chão com bonitos padrões e transformando a luz verde numa espécie de dourado.

    A estátua de mármore permanecia silenciosa, a sorrir para sempre, jovem para sempre.

    Era mesmo do papai, pensou ela, cobrir o horrível com o belo. Uma imagem falsa, talvez, mas era também uma mensagem. Hope vivera, teria sido o pensamento do seu pai. E era minha.

    Teria trazido a sua amante aqui?, perguntou-se. A mulher de quem ele se aproximara quando se afastara da sua família ter-se-ia sentado ali com ele, enquanto ele recordava o passado e sofria? Porquê ela, e não eu? Porque nunca fui eu? Faith pousou o bloco e tirou um cigarro.

    As lágrimas surpreenderam-na por completo. Não fazia idéia de que elas estavam ali, à espera de serem choradas. Choradas por Hope, pelo seu pai, por ela própria. Pelo desperdício de vidas e sonhos. Pelo desperdício do amor.

 

    Tory parou junto de um canteiro de impatiens. O parque tranquilo, semeado de flores, era chocante. A sua memória trouxe-lhe a imagem de como aquele lugar era antes, verde e selvagem e escuro, e sobrepô-la à que tinha diante dos olhos. Sobrepuseram-se, mas não se misturaram, por isso ela pestanejou e afastou a imagem que surgira. Ali estava Hope, aprisionada na pedra para sempre. E ali estava Faith, a chorar.

    Os músculos do estômago de Tory dançaram, inquietos, mas ela forçou-se a avançar, estremecendo enquanto as imagens do que acontecera ali dezoito anos antes tentavam apoderar-se dela. Sentou-se e esperou.

    - Nunca venho aqui. - Faith tirou um lenço da mala e assoou o nariz. - Acho que é por isto. Não sei se este lugar é horrível ou belo. Nunca consigo decidir-me.

    - É preciso coragem para pegar numa coisa feia e trazer-lhe paz.

    - Coragem? - Faith voltou a meter o lenço na mala e depois acendeu o cigarro, num movimento preciso. - Achas que isto foi um ato de coragem?

    - Acho. De uma coragem que eu não conseguiria ter. Ele foi sempre muito simpático para mim. Mesmo depois... - Pressionou os lábios um contra o outro. - Mesmo depois, nunca deixou de ser simpático para mim. E não deve ter sido fácil para ele, ser simpático para mim.                                                                       - Ele abandonou-nos, emocionalmente, como diriam os psicólogos. Abandonou-nos pela filha morta.

    - Não sei o que vou dizer-te. Nenhuma de nós teve de lidar com a perda de um filho. Não podemos saber como reagiríamos, nem o que faríamos para sobreviver a essa perda.

    - Eu perdi uma irmã.                                           

    - Eu também - disse Tory, calmamente.       

    - Lamento que digas isso. E lamento ainda mais por saber que é verdade.

    - Esperas que te censure por isso?

    - Não sei o que espero de ti. - Suspirando, pegou na térmica que pousara ao lado do banco. - O que aqui tenho é um belo jarro de margaritas. Uma bela bebida para uma noite quente.

    Serviu o líquido verde-lima em dois copos de plástico e ofereceu um a Tory.

    - Disse-te que íamos beber qualquer coisa.

    - Pois disseste.

    - À Hope, então. - Faith tocou com o seu copo no de Tory. - Parece apropriado.                                

    - É mais forte do que a limonada que costumávamos beber aqui. Ela gostava da limonada que trazia.

    - Era a Lilah que a fazia para ela. Com muita polpa e açúcar.

    - Naquela noite, trouxe uma garrafa de Coca-Cola, que entretanto aqueceu dentro do seu kit de aventuras, e... - Tory calou-se e voltou a estremecer.

    - Ainda vês o que aconteceu?

    - Sim. Agradecia que não me perguntasses. Já estou aqui há várias semanas e ainda não tinha vindo aqui. Não tenho tido coragem para isso. Por muito que não goste de ser covarde, também tenho de sobreviver.

    - As pessoas dão demasiada ênfase à coragem, exigem demasiado dela, e todas a colocam entre os seus padrões mais elevados. Não te chamaria covarde, mas neste capítulo os meus padrões são muito baixos.

    Tory quase riu, e bebeu mais um pouco.

    - Porquê?

    - Bem, assim posso atingi-los, sem grande esforço. Olha os meus casamentos, por exemplo, ainda que Deus saiba que se pudesse voltar atrás não teria casado. - Fez um gesto largo com o copo. - Haverá quem diga que eu falhei, mas eu acho que triunfei, porque saí deles sem uma beliscadura, tal como entrei.

    - Estavas apaixonada?

    - Em qual das vezes?

    - Em qualquer uma delas. Em ambas.

    - Em nenhuma. Da primeira vez, foi uma questão de luxúria. Deus Todo-Poderoso, aquele rapaz fodia como um coelho. Como o sexo foi, durante algum tempo, um prazer prioritário para mim, não há dúvida de que cumpriu essa parte do acordo. Era perigosamente bonito, cheio de charme e de falinhas mansas. E um idiota chapado. - Fez-lhe um brinde distraidamente, quase afetuosamente. - Mas tinha o condão de ser exatamente o que a minha mãe desprezava. Como podia eu não casar com ele?

    - Podias ter ficado no sexo.

    - E fiquei, mas o casamento foi um grande estalo na cara da minha mãe. Toma lá, mamãe. - Faith atirou a cabeça para trás e riu. - Jesus Cristo, mas que idiota. A segunda vez foi mais impulsiva. Bem, e houve outra vez a questão do sexo. Continuava a ser perfeitamente desadequado, porque era muito mais velho do que eu e era casado, quando começamos a andar um com o outro. Acho que este foi antes um pequeno tiro disparado contra o meu pai. Gostaste do adultério? Pois bem, eu também posso gostar. Ora, uma relação ilícita é uma coisa, mas casar com um mulherengo é outra. Acredito que ele tenha sido fiel durante um curto começo, mas, meu Deus, que tédio! E acho que ele se sentia tão entediado como eu e pensou em fazer o que diziam as letras das canções que compunha: enganou-me e bebia até ficar cego. Fez algum furor na cena musical. A primeira vez que decidiu meter-se com outra, desforrei-me bem e depois fui-me embora. O divórcio rendeu-me uma bela quantia, merecida até ao último cêntimo.

    Ela e Hope tinham-se sentado ali, pensou Tory, a falar de coisas que tinham feito e que queriam fazer. Coisas simples, coisas de infância. Mas não menos vitais nem menos íntimas do que aquela de que Faith falava agora.                                        

    - Porquê o Wade?

    - Não sei. - Faith soltou um suspiro e bebeu mais um pouco, pelo seu copo de plástico. - Isso é um mistério e uma preocupação. Não é por dinheiro, nem por ódio. Ele é lindo e o sexo entre nós é maravilhoso. Mas, o veterinário da cidade? Aí está uma coisa que nunca esteve nos meus planos. E agora ele tinha de vir complicar tudo e apaixonar-se por mim. Vou estragar-lhe a vida. - Sorveu o resto da margarita e serviu-se de outra. - É isso que vai acontecer.

    - Isso é problema dele.

    Surpreendida, Faith virou a cabeça e olhou para Tory.

    - Ora aí está a última coisa que esperava ouvir da tua boca.

    - Ele é um homem feito, que conhece a sua mente e o seu coração. Parece-me que sempre fez e conseguiu o que quis. Pode ser que te conheça melhor do que pensas. Mas isso só vem reforçar o fato de eu não entender os homens.

    - Ora, é fácil. - Voltou a encher o copo de Tory. - Em metade das vezes pensam com o que têm entre as pernas, e na outra metade pensam nos seus brinquedos.

    - Não é uma coisa muito simpática, vinda de uma mulher que tem um irmão e um amante.

    - Não tem nada de antipático. Adoro homens. Há quem diga que amei demasiados. - Houve um brilho de desafio e humor nos olhos dela, mas nenhuma desculpa. Tory deu por si a apreciá-lo, a invejá-lo.

    - Sempre preferi a companhia dos homens - acrescentou Faith. - As mulheres são muito mais sacanas do que os homens e têm tendência a encarar as outras mulheres como rivais. Os homens olham para outros homens como concorrentes, o que é completamente diferente. Mas tu não és sacana. Admito que foi preciso muito esforço para não gostar de ti e para te desejar mal.

    - E essa é a base para esta moratória?

    - Tens uma melhor? - Faith sacudiu um ombro e depois pegou no bloco onde tinha estado a escrever. - Senti necessidade de escrever umas coisas, e normalmente não ignoro as minhas necessidades. Queres ler isto?

    - Está bem.

    Faith pôs-se de pé e começou a andar de cá para lá, com a bebida e o cigarro na mão. Achou que refletira mais naquele dia do que se habituara a fazer ultimamente. Refletira de forma honesta e séria. Não resolvera nada, mas sentia-se mais forte.

    Não seria estranho se o regresso de Tory a Progress a tivesse encaminhado para o encontro com o bem-estar na sua vida? Parou junto da estátua da irmã e olhou para o rosto que tinham partilhado. Não seria a mais perfeita das ironias, pensou, se se encontrasse a si própria precisamente agora, quando se apercebia de há quanto tempo andava à procura? 

    Voltou a cabeça para olhar para Tory. Tão calma, pensou. Tão tranquila à superfície, com todos aqueles redemoinhos e movimentos abruptos nas profundezas. Era verdadeiramente admirável a forma como Tory mantinha aquele escudo e não gelava por detrás dele. Misteriosa, pensou Faith com um sorriso, mas não gelada. Gelada era aquilo que a sua mãe se tornara. E gelada fora aquilo que ela própria estivera à beira de tornar-se. Que estranho, e ao mesmo tempo que apropriado, ter sido Tory a dar-lhe ânimo suficiente para parar antes de ter avançado demasiado no caminho que a levaria a ser aquilo que sempre combatera ao longo da sua vida: o espelho distorcido da sua mãe.

    Apagou o cigarro e meteu o que restava dele debaixo de umas agulhas de pinheiro.

    - Talvez eu deva enveredar pela escrita - disse Faith alegremente, voltando a aproximar-se de Tory. - Pareces absorta.

    Estava embrenhada no que lia, deixara-se levar pelo ritmo das palavras de Faith e pelas imagens que elas tinham despoletado na sua mente. Sentira-se divertida e triste, ao mesmo tempo. E depois sentira a pressão, o peso no peito que fizera o seu coração bater demasiado depressa e com demasiada força.

    Aquele lugar, pensou, as recordações como punhos que tentavam penetrar no muro branco da sua defesa. Não ia responder-lhes. Não ia prestar-lhes atenção. Iria permanecer no aqui e agora.

    Mas o frio arrepiava-lhe a pele, e a escuridão foi-se apoderando dela, até ao olhar.                                                                

    O bloco escorregou-lhe dos dedos e caiu no chão, aos pés dela, onde uma fina brisa ficou a brincar com as páginas. Estava a afundar-se, a ser arrastada para o fundo.

    - Alguém está olhando.

    - Hã? Querida, só bebeste dois copos disto, não foi? É pouco para ficares bêbada.

    - Alguém está à espreita. - Pegou na mão de Faith, com uma força de ferro. - Foge. Tens de fugir.

    - Oh, merda. - Reunindo forças, Faith inclinou-se para ela e deu umas palmadas suaves na cara de Tory. - Vá lá, controla-te.

    - Ele está espreitando. Nas árvores. Está à tua espera. Tens de fugir.

    - Não há aqui ninguém senão nós. - Mas sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha. - Sou a Faith. Não sou a Hope.

    - Faith. - Tory fez um esforço para manter as imagens claras, para manter o ontem e o hoje separados. - Ele está outra vez nas árvores. Consigo senti-lo. Está à espreita. Foge.

    O medo assolou-lhe aos olhos, tornando-os grandes e brilhantes. Conseguia ouvi-lo agora, apenas um ligeiro restolhar vindo dos arbustos do outro lado da clareira. O pânico queria tomar conta dela, sentia os seus dedos frios percorrerem-lhe a pele.

    - Somos duas, que diabo! - Soltou a exclamação enquanto remexia na bolsa. - E não temos oito anos indefesos. Uma ova!

    Tirou da bolsa a sua bonita pistola de calibre 22, com coronha de madre-pérola, e puxou Tory, obrigando-a a pôr-se de pé.

    - Oh, meu Deus!

    - Controla-te - ordenou Faith. - Vamos atrás dele.

    - Estás doida?

    - Pergunta o roto ao nu. Anda cá, meu grande filho da mãe. Ouviu o estalar de um ramo, um sussurro de folhas e avançou.

    - Está fugindo. Cabrão.

    - Faith. Não! - Mas ela já se metera por entre as árvores. Sem alternativa, Tory correu atrás dela.

    O caminho tornou-se mais estreito, terminando num emaranhado de arbustos. Os pássaros voaram subitamente, como balas disparadas contra o céu, gritando em protesto. O musgo que pendia das árvores tocou no cabelo de Tory. Afastou-o com brusquidão, enquanto continuava a correr, para apanhar Faith.

    - Acho que ele foi na direção do rio. Podemos não o apanhar, mas vamos assustá-lo. - Apontou a arma para o céu e puxou o gatilho.

    Os tiros explodiram, ecoaram, parecendo vibrar através de Tory, da cabeça aos pés. Os pássaros saíram das árvores, voando em direção às nuvens. Ao ouvir o som da água, Faith sorriu como louca.

    - Talvez ele ainda acabe comido pelos jacarés. Anda.

    Tory sentia o cheiro do rio, forte e cheio. O terreno tornou-se enlameado debaixo dos pés, fazendo Faith deslizar como se andasse de skate.

    - Por amor de Deus, tem cuidado. Ainda te matas.         

    - Sei usar perfeitamente uma armazinha esperta como esta. - Mas a respiração dela estava se tornando mais pesada, devido à emoção e ao vigor da corrida. - Conheces o pântano melhor do que eu. Vai tu à frente.            

    - Desengatilha essa coisa. Não quero levar um tiro nas costas. - Tory tentou recuperar o fôlego e afastou o cabelo da cara. - Podemos ir por este atalho até ao rio, poupamos tempo. Cuidado com as cobras.

    - Meu Deus, eu sabia que havia uma razão para eu detestar este sítio. - A primeira torrente de adrenalina desaparecera e dera lugar à repulsa inata por tudo o que rastejasse ou deslizasse. Mas Tory já ia correndo à frente, e o orgulho não lhe deixou alternativa senão segui-la.

    - O que é que havia neste lugar que vos atraía tanto, a ti e à Hope?

    - É lindo. E selvagem. - Ouviu passos, pesados, decididos, e parou, erguendo uma mão. - Vem alguém nesta direção. Vindo do rio.

    - Voltou ao ataque, eh? - Faith cravou os pés no chão e apontou a arma. - Estou pronta para recebê-lo. Mostra-te, seu grande filho da mãe. Tenho uma arma e vou usá-la.

    Ouviu-se um baque, como se algo tivesse caído ou atirado para o chão.

    - Cristo Santíssimo, não dispare!

    - Sai daí e mostra-te. Agora!

    - Não quero levar um tiro. Meu Deus, Miss Faith? Miss Faith, sou eu, o Piney. Piney Cobb.

    Saiu das árvores, de costas para a curva do rio onde os ramos dos ciprestes tocavam a superfície. Pôs as mãos no ar, a tremer.

    - Que diabo andavas aqui a fazer, a espiar-nos?

    - Não andava. Juro por Deus. Nem sabia que alguém andava aqui até ouvir os tiros. Fiquei morto de medo. Não sabia se fugia ou me escondia. Tenho andado por aí atrás de rãs. Há uma hora que ando atrás das rãs. O patrão não se importa que eu venha para aqui apanhar rãs.

    - E onde estão elas?

    - Tenho ali o saco. Deixei-o cair quando a Miss falou. Pregou-me um susto de morte, Miss Faith.

    Tory viu apenas medo no rosto dele, sentiu apenas pânico vindo dele. Cheirava a suor e a uísque.

    - Vamos lá ver o saco.         

    - Está bem, está bem. Está logo ali. - Umedeceu os lábios com a língua e apontou.

    - Tem muito cuidado com os passos que dás, Piney. Estou muito nervosa neste momento, e o meu dedo pode tremer.

    Manteve a arma apontada enquanto Tory começava a avançar.

    - Vê? Está aqui. Vê? Andava às rãs, com este saco velho de lona.

    Tory acocorou-se e espreitou para dentro do saco. Uma meia dúzia de rãs infelizes olharam para ela.

    - Caçada fraca para uma hora de trabalho.

    - Perdi quase todas quando deixei cair o saco. Deixei-o cair duas vezes - acrescentou, enquanto um rubor lhe subia pelo pescoço. - Para dizer a verdade, quase me borrei todo quando essa arma disparou. Ouvi alguém correndo naquela direção, mas nem sequer tive tempo para pensar nisso quando comecei a ouvir os tiros. Achei que o melhor era esconder-me e ficar quieto e sossegado. Talvez alguém andasse a fazer tiro ao alvo, como Mister Cade e os amigos costumavam fazer, e eu podia apanhar uma bala perdida, se não tivesse cuidado. Venho aqui atrás das rãs quase todas as semanas. Pode perguntar a Mister Cade.

    - O que achas? - perguntou Faith a Tory.

    - Não sei. Aqui tem rãs, é verdade.

    Já não era jovem, pensou, mas conhecia o pântano e tinha músculos fortes, devido ao trabalho no campo. Mas isso não provava nada.

    - Desculpe termo-lo assustado, mas alguém estava nos espiando, perto da clareira.

    - Não era eu. - Os olhos dele saltavam continuamente de Tory para a arma. - Ouvi alguém correndo, como já disse. Há muitas entradas e saídas daqui.

    Ela concordou, acenando com a cabeça, e recuou. Piney pigarreou e baixou-se para apanhar o saco.

    - Então, acho que vou andando.

    - Sim, vai lá - disse-lhe Faith. - E, se fosse tu, na próxima certificava-me de que o Cade fica sabendo quando vais apanhar rãs.

    - Não me esqueço, de certeza. Pode apostar a sua vida. Bem, agora vou andando. - Recuou, sem deixar de olhar para o rosto de Faith, até conseguir embrenhar-se nas sombras das árvores.

    

    Durante quase trinta e cinco anos, J.R. e Cari D. iam pescar juntos, no domingo à tarde. Não nascera como tradição, e mesmo agora ambos ficariam aborrecidos e embaraçados se alguém lhe chamasse isso. Era apenas uma maneira de descontrair e passar o tempo.

    Depois de o pai de J.R. ter morrido e a sua mãe ter começado a trabalhar, Íris pagava à mãe de Cari D. para vigiar Sarabeth depois das aulas e aos sábados. E entre as duas mulheres estabelecera-se o contrato tácito de que ela tomaria também conta de J.R.

    Fanny Russ cozinhava como um anjo e tinha uma vontade de aço. E ambas as coisas constituíam motivo de orgulho. Rapidamente, J.R. aprendeu a chamar-lhe ma'am. E durante os anos que se seguiram, nos anos cinquenta, quando o Klan ainda incendiava o seu ódio, espalhando-o pelo Sul em forma de cruz, quando os negros não podiam sentar-se no restaurante de Market Street, o rapazinho branco e o rapazinho negro tornaram-se amigos, sem sobressaltos.

    Sem nunca terem discutido o assunto, domingo após domingo, com as raras exceções das férias e de alguma doença, os dois homens continuaram a sentar-se lado a lado na margem do rio, com as varas e os carretéiss, tal como faziam quando eram garotos. Ambos tinham menos cabelo e mais barriga do que no princípio da sua amizade, mas o ritmo da tarde permaneceu verdadeiro na sua essência.

    Durante algum tempo, enquanto J.R. cortejava Boots e nos primeiros meses de casamento, ela lhes preparava uns almoços apetitosos, num cesto de vime. J.R. tivera algum trabalho para desencorajá-la sem magoar os seus sentimentos. Cestos de piquenique cheios de sanduíches de salada de frango e vegetais cuidadosamente cortados eram demasiado femininos. Os homens precisavam apenas de uma geleira com cerveja e uma mão-cheia de minhocas.

   

    E se tivessem sorte, alguns pedaços de batata-doce ou de torta de nozes, feitas pela Mãe Russ.

    Tudo isso permanecera constante ao longo dos anos. As mudanças junto ao rio eram poucas. O velho pessegueiro morrera havia três invernos, mas deixara meia-dúzia de rebentos que cresceram selvagens até que a câmara decidiu manter os dois melhores e cortar o resto.

    Os frutos, ainda verdes, estavam pendurados nos ramos à espera que as crianças aparecessem e os devorassem e apanhassem dores de barriga.

    A água corria lenta e tranquila, como sempre, com o velho e enorme salgueiro curvado sobre ela, a banhar o rendilhado dos seus ramos verdes.

    E, de vez em quando, se a paciência fosse suficiente, os peixes mordiam a isca.

    Se não mordessem, nenhum dos homens ficava pior do que estava antes de ter deitado a linha.

    Os anos tinham transformado os homens em cidadãos sólidos, pilares de responsabilidade. Homens de família, com hipotecas e papelada. As poucas horas por semana que passavam a afogar minhocas eram a afirmação de que cada um deles continuava a ser tão senhor de si próprio como até ali.      

    Às vezes, discutiam política, e como J.R. era um republicano convicto e Cari D. um democrata igualmente inabalável, estes debates tendiam para o explosivo e o efusivo. Ambos gostavam imenso do conflito. Noutros domingos, dependendo da época, o assunto era o desporto. Um jogo de futebol dos garotos do liceu podia mantê-los entretidos e apaixonados durante duas horas.

    Mas cada vez mais eram a família, os amigos e a própria cidade que dominavam as suas discussões sinuosas, enquanto a água lambia a margem e o sol era filtrado pelas árvores.

    O que cada um deles sabia era que podia confiar no outro para o que desse e viesse, e que o que conversavam junto ao rio ficava junto ao rio. Ainda assim, havia alturas em que a lealdade era posta à prova. Sabendo isso, Cari D. escolheu as palavras e abordou o assunto cuidadosamente.

    - O aniversário da Ida-Mae é já daqui a pouco tempo. - Cari D. falava da sua mulher enquanto fazia saltar a tampa da sua segunda cerveja e observava a superfície calma da água. - Aquela fritadeira elétrica que lhe comprei o ano passado continua a ser um pomo de discórdia entre nós.

    - Eu te avisei. - J.R. tirou uma mão-cheia de batatas do pacote aberto, colocado entre ambos.

    - Sim.

    - Quando oferecemos a uma mulher qualquer coisa para ligar na eletricidade, estamos a pedir confusão.  

    - Ela queria uma nova. Estava sempre a queixar-se de que a velha já não estava em condições.

    - Não interessa. Uma mulher não quer um eletrodoméstico embrulhado e com um laço. Quer antes uma coisa inútil.

    - Tenho andado com a cabeça às voltas, a pensar no que será suficientemente inútil para lhe agradar. Pensei em ir até à loja da tua sobrinha e pedir-lhe ajuda...

    - Com certeza não vais te arrepender. A Tory tem bom gosto.

    - Conseguiu ali uma bela loja. Fartou-se de trabalhar.

    - Sempre gostou de trabalhar. É uma moça séria, com uma boa cabeça em cima dos ombros. É difícil acreditar que veio de onde veio.

    Era a deixa de que Cari D. precisava, mas continuou a avançar com cuidado. Pegou numa nova tira de pastilha e cumpriu o seu pequeno ritual, desembrulhando e dobrando.

    - Teve uma infância difícil. Lembro-me de que quase nunca dizia nada. Ficava a olhar, a observar as coisas com aqueles olhos grandes. O teu cunhado tinha a mão pesada.                           

    - Eu sei. - A boca de J.R. comprimiu-se. - Quem me dera ter sabido antes. Não sei se teria feito grande diferença, mas gostaria de ter sabido.

    - Agora já sabes. Andamos à procura dele, J.R., por causa daquela situação em Hartsville.

    - Também gostaria que o encontrassem e lhe dessem o que ele está pedindo. A minha irmã, bem, a vida dela é um inferno, seja de que maneira for. Mas pô-lo atrás das grades talvez dê à Tory umas noites mais descansadas.

    - Fico aliviado ao ouvir-te dizer isso, J.R. E para te dizer a verdade, tenho pior do que isso por aqui. Uma coisa tão má que até nos deixa atordoados.

    - De que é que estás a falar?                     

    - Do que aconteceu à Sherry Bellows.

    - Meu Deus, isso foi mau, muito mau - repetiu J.R., abanando a cabeça com ar sério. - É uma coisa de cidade grande e não de uma cidadezinha como a nossa. Uma mulher bonita como aquela... - Calou-se, endireitou os ombros e ficou hirto enquanto virava a cabeça e ficava a olhar fixamente para Cari D. - Deus Todo-Poderoso, não me digas que achas que o Hannibal teve alguma coisa a ver com isso.

    - Não devia estar a falar contigo sobre o caso. A verdade é que passei quase toda a noite com isto às voltas na cabeça. Oficialmente, não devia tocar no assunto, mas não vou fazer isso. Não posso. Neste momento, J.R., o teu cunhado não está apenas no topo da lista de suspeitos. É o único suspeito.

    J.R. pôs-se de pé. Deu alguns passos junto ao rio, observando o seu curso estreito. Estava calmo, excetuando o chilrear de alguns pássaros agitados. O murmúrio do trânsito da cidade mal se ouvia. E era preciso querer ouvi-lo para estabelecer ligação entre este local solitário, com a sua erva alta e úmida e as suas águas preguiçosas, e as vidas e o bulício de Progress.

    - Isso não me entra na cabeça, Cari D. O Hannibal é um bruto e um grande filho da mãe. Não consigo pensar em nada de bom que possa dizer sobre ele, mas matar aquela moça... Por amor de Deus, matá-la... Não, isso não me entra na cabeça.

    - Tem uma longa história de maus tratos a mulheres.

    - Eu sei. Eu sei. Não estou a arranjar desculpas. Mas vai uma distância muito grande entre maltratar e assassinar.

    - A distância torna-se mais curta com o tempo, especialmente se houver um motivo.

    - E que motivo podia ele ter tido? - J.R. voltou para trás e acocorou-se junto de Cari D., até os olhos de ambos estarem ao mesmo nível. - Ele nem sequer conhecia aquela moça.

    - Conheceu-a na loja da tua sobrinha, no dia em que foi morta. Conheceu-a, falou com ela e, tanto quanto sei, ela e a Tory eram as únicas pessoas que sabiam que ele andava por aqui. E há mais - disse ele, quando J.R. abanou a cabeça. - Não vais gostar de ouvir. Nem imaginas como lamento ver a tua família envolvida nisto, mas tenho um trabalho a fazer e não posso deixar que isso me impeça de fazê-lo.

    - Nem eu te pediria uma coisa dessas. Mas acho que estás a olhar na direção errada, é tudo. - Voltou a sentar-se. - Não posso deixar de pensar isso.

    - Não digo que estivesse a olhar nessa direção, a princípio, mas foi a Tory que me virou para ela.

    - A Tory?

    - Levei-a comigo até à cena do crime.

    - A cena do crime? - Os olhos de J.R. tornaram-se momentaneamente inexpressivos e depois foram tomados pelo choque. - A cena do crime. Meu Deus, Cari D., meu Deus, porque fizeste isso? Porque a sujeitaste a uma coisa dessas?

    - Tenho à minha frente uma moça da mesma idade da minha Ella, que passou por uma coisa terrível. Tenho um dever a cumprir, e vou usar tudo o que puder para cumpri-lo.

    - A Tory não tem nada a ver com isto.

    - Estás enganado. Está profundamente ligada a isto. Agora ouve-me durante o raio de um minuto, antes de começares a dar-me pontapés. Levei-a lá, e lamento que tenha sido tão difícil para ela, mas voltaria a fazer o mesmo. Ela sabia coisas que não poderia saber. Viu como tudo aconteceu, como se tivesse lá estado enquanto aconteceu. Já tinha ouvido falar em coisas destas, pensado nelas, mas nunca tinha visto. É uma coisa que nunca mais vou esquecer.

    - Devias tê-la deixado em paz. Não tinhas o direito de usá-la dessa maneira.

    - Tu não viste aquela moça, J.R. Deus queira que nunca vejas nada como aquilo que lhe fizeram. Mas se visses, não me dirias que não tenho o direito de usar o que quer que seja para resolver o caso. Foi a segunda vez que vi uma coisa destas. Se tivéssemos prestado atenção à Tory, da primeira vez, talvez a segunda não tivesse acontecido.

    - De que diabo tu estás falando? Nunca tivemos uma mulher violada e assassinada em Progress.

    - Não, da primeira vez foi uma criança. - Viu os olhos de J.R. abrirem-se muito e o rosto empalidecer. - Da primeira vez não foi na cidade. Mas a Tory estava lá. Tal como estava aqui, agora. E quando ela me diz que a pessoa que matou a Sherry Bellows é a mesma que matou a Hope Lavelle, eu acredito nela.

    J.R. sentiu a boca seca.

    - Foi um vagabundo qualquer que matou a Hope Lavelle.

    - Isso é o que diz o relatório. Foi nisso que todos quiseram acreditar. Foi nisso que o chefe Tate acreditou, e não posso dizer que não tenha tido razões para acreditar. Mas eu não vou dizer o mesmo, e já não consigo acreditar no mesmo. Não vou tentar atribuir este crime a um estranho qualquer. E houve mais. A Tory sabe. O FBI sabe, e vem para cá. Vão atrás dele, J.R., e vão falar com a Tory, com a mãe dela, com a tua irmã. E contigo.

    - Hannibal Bodeen. - J.R. pôs a cabeça entre as mãos. - Isto vai matar a Sarabeth. Vai matá-la. - Deixou cair as mãos. - Ele vai voltar para lá. Vai voltar para lá. Deus Santíssimo, Cari D., ele vai ter com a Sari e...

    - Já falei com o xerife de lá. Tem um homem a vigiar o local, de olho na tua irmã.

    - Tenho de ir até lá. Obrigá-la a vir para cá.

    - Acho que se fosse a minha irmã eu faria o mesmo. Vou contigo, para te tornar as coisas mais fáceis com a polícia de lá.

    - Eu trato disso.

    - Eu sei que tratas. - Cari D. acenou com a cabeça, e começou a arrumar as suas coisas. Ouvia a raiva, o ressentimento. Estava à espera de ambos. Exatamente como estava preparado para que, o que fizera e o que iria fazer, pudessem causar estragos na amizade de uma vida inteira.

    Não havia nada a fazer senão esperar e ver se os estragos poderiam vir a ser consertados.

    - Eu sei que tratas, J.R. - repetiu. - Mas vou contigo. Preciso falar com a tua irmã e gostaria de fazer isso antes de os agentes federais chegarem lá e me tirarem o caso.

    - Vais como polícia ou como amigo?

    - Sou ambas as coisas. Sou teu amigo há muito mais tempo, mas sou ambas as coisas. - Pôs a vara ao ombro e olhou J.R. nos olhos. - E quero continuar a ser ambas as coisas. Se não te importas, vamos no meu carro. É mais rápido.

    Foi difícil, mas J.R. conteve palavras que sabia que ficariam a pairar sobre ambos como nuvens terríveis. Conseguiu esboçar um sorriso leve e forçado.

    - E ainda será mais rápido se ligares a sirene e conduzires como um homem e não como uma velhinha.

    O alívio retirou algum peso do coração de Cari D.

    - Talvez faça isso, durante uma parte do caminho.

 

    Cade tentava controlar a ira, ter cuidado com as palavras. Sempre que pensava no risco louco e inútil que a sua irmã e Tory tinham corrido na noite anterior, sentia a fúria trovejar dentro de si.

    Sermões, ameaças, recriminações teriam aliviado alguma da tensão que sentia, e tê-lo-iam levado a lado nenhum. E ele não era homem para seguir caminhos inúteis. Sabia exatamente aonde queria ir e tinha de escolher o melhor caminho para lá chegar.

    A pressa não era uma prioridade, por isso não se apressou.

    Havia muito tempo que não se dava ao luxo de passar uma manhã de domingo a preguiçar. Na sua opinião, a melhor maneira de consegui-lo era manter Tory na cama o mais tempo possível. Era apenas uma questão de prendê-la lá e de mordê-la como e onde quisesse, até ela entrar no espírito da coisa. E tinha ainda o benefício de limar algumas das suas próprias arestas.

    Arranjou o pequeno-almoço, porque tinha fome e porque chegara à conclusão de que Tory considerava que a refeição da manhã podia resumir-se a duas chávenas de café. Levou a conversa para assuntos triviais. Livros, filmes, arte. Tinham a sorte de ter gostos comuns. Era algo que Cade não considerava essencial, mas sim um bônus agradável e confortável.

    Imaginou que ela não tivesse reparado que ele a vira olhar inúmeras vezes para a janela, como se procurasse alguém.

    Mas não havia nada em que ele não reparasse. Nas mãos nervosas que ela tentava manter ocupadas, na forma como parava de repente e ficava muito quieta, como se tentasse ouvir qualquer mudança no ritmo dos sons lá fora. Na maneira como ela saltava se ele deixava a porta de tela bater, quando saía para juntar-se a ela enquanto ela tratava das flores.

    Quantas vezes fora ter com a sua mãe enquanto ela trabalhava no jardim?, pensou. E era igualmente incapaz de adivinhar a direção dos seus pensamentos enquanto ela arrancava ervas daninhas e colhia ramos.

    Como eram ambas meticulosas e precisas naquela tarefa! Ajoelhadas, de chapéu e de luvas enquanto preparavam a terra e enchiam um cesto de ervas daninhas e flores murchas.

    E como ficariam ambas furiosas se ele fizesse a comparação em voz alta.

    Ao longo da manhã, a voz de Tory, o seu rosto, mantiveram-se perfeitamente calmos. E isso enfureceu-o. Ela não queria partilhar o seu nervosismo com ele. Continuava a manter uma parte de si própria fechada e inacessível.

    A mãe dele, voltou a pensar, sentado no alpendre, a observar a cabeça curvada de Tory, mantivera uma parte de si própria fechada e inacessível. E ele não podia fazer nada, nunca conseguira fazer nada para chegar até à sua mãe.

 

    Mas iria chegar até Tory.

    - Anda, vem dar uma volta comigo.

    - Uma volta?

    Ele puxou-a, para fazê-la pôr-se de pé.  

    - Preciso ir tratar de umas coisas. Vem comigo.

    A primeira reação dela foi de alívio. Ia ficar sozinha. Podia deitar-se, fechar os olhos e tentar acalmar o turbilhão que tinha dentro da cabeça. Algumas horas de solidão para se endireitar e afastar os tremores.

    - Também tenho muito que fazer. Vai tu.                   

    - É domingo.                                                    

    - Sei muito bem qual é o dia da semana. E amanhã, estranhamente, é segunda-feira. Estou à espera de umas encomendas, incluindo uma da Algodões Lavelle. Tenho papelada...

    - Que pode esperar até segunda-feira. - Descalçou-lhe as luvas. - Quero mostrar-te uma coisa.

    - Cade, não estou em condições de ir a lado nenhum. Nem tenho aqui a minha bolsa.                                          

    - Não vais precisar - disse ele, enquanto a puxava até ao carro.

    - Ora aí está uma afirmação que só podia vir de um homem. - Resmungou quando ele a atirou para dentro do carro. - Pelo menos, deixa-me ir passar uma escova no cabelo.         

    Ele tirou-lhe o chapéu e atirou-o para o assento de atrás.

    - Está muito bem assim. - Sentou-se ao volante antes de ela ter tempo de arranjar outra desculpa. - O vento vai despenteá-lo um bocadinho, e vai ficar mais sensual.

    Tirou os óculos de sol do porta-luvas, pô-los e depois engatou a marcha ré.                                                                        

    - E aqui está outra afirmação que só podia vir de um homem. Ficas bonita quando estás zangada. - Ele entrou na estrada e acelerou.

    - Então neste momento devo estar linda.

    - E estás, querida. Mas eu gosto do teu ar qualquer que seja a tua disposição. Dá muito jeito, não dá? Há quanto tempo nos conhecemos, Tory?

    Ela segurava o cabelo com uma mão.

    - Ao todo? Há uns vinte anos, acho eu.

    - Não. Conhecemo-nos há mais ou menos dois meses e meio. Antes disso, sabíamos da existência um do outro, andávamos à volta um do outro. Talvez tenhamos pensado ocasionalmente um no outro. Mas há cerca de dois meses que nos conhecemos. Queres saber o que aprendi sobre ti durante este tempo?

    Tory não conseguia perceber muito bem a disposição dele. O tom de voz era ligeiro, o rosto estava calmo, mas havia qualquer coisa.

   

    - Não sei bem se quero.

    - Essa foi uma das primeiras coisas que aprendi. A Victoria Bodeen é uma mulher cautelosa. Raramente dá um passo antes de olhar, e depois ainda faz um estudo exaustivo. Não confia facilmente. Nem sequer nela própria.

    - Se dermos um passo antes de olharmos, temos menos hipóteses de chegarmos inteiros ao outro lado.

    - Aí está outra coisa. Lógica. Uma mulher cautelosa e lógica. Ora, esta combinação pode parecer bastante comum, até desinteressante, a algumas pessoas. Mas essas pessoas não levariam em conta o conjunto completo. Não estariam a pensar na determinação, na inteligência, na perspicácia ou na bondade. Acima de tudo, ignorariam o calor, que é de tudo o mais precioso por ser tão raramente partilhado. E tudo isto envolto num embrulho muito atraente, embora às vezes muito rígido.

    Entrou por um caminho estreito e enlameado e diminuiu a velocidade.

    - Mas que grande análise.

    - Meramente superficial. És uma mulher complexa e fascinante. Complicada e difícil. Exigente, simplesmente porque te recusas a exigir. Difícil para o ego de um homem, porque nunca pedes coisa nenhuma.

    Ela não disse nada, mas as mãos tinham-se entrelaçado, num sinal inequívoco de tensão. Ouvia agora a fúria na voz dele.

    - A partir daqui, vamos a pé.                                          

     Parou o carro e saiu. De ambos os lados, os campos estendiam-se em filas contínuas de algodão, que marchavam como soldados. Tory sentiu o cheiro a terra, a estrume e a calor, doce, maduro e forte. Deviam ter feito o cultivo recentemente, pensou, deitado as sementes à terra.

    Confusa, sem saber o que tinham a fazer ali ou porque tinham vindo ali, seguiu-o por entre as filas de plantas jovens, arranhando as pernas e lembrando-se da sua infância.

    - Não tem chovido muito - disse Cade. - O suficiente, mas não muito. Não precisamos de tanta água como as outras fazendas. O solo retém mais água quando não está cheio de químicos. Se o tratarmos como uma coisa natural, cresce naturalmente saudável. Se insistirmos em mudá-lo, em forçá-lo a viver segundo as nossas expectativas, precisa de mais e mais para se aguentar. Daqui a uns meses, as cápsulas vão abrir.                                                                                   

    Acocorou-se, tirando os óculos e prendendo-os na camisa antes de tocar com a ponta de um dedo numa cápsula fechada.

    

    - O meu pai teria usado um regulador de crescimento e um produto para queimar as folhas. Era isso que sabia fazer. Era assim que se fazia. As pessoas não gostam muito quando alguém faz as coisas de maneira diferente. Temos de provar-lhes o nosso valor. Temos de querer provar-lhes o nosso valor. - Endireitou-se e olhou-a nos olhos. - Que mais tenho de provar-te, Tory?

    - Não sei o que queres dizer?

    - Acho que as pessoas te trataram de uma certa e determinada maneira. Foi isso que conheceste. Foi assim que foi feito. E eu diria que tenho feito as coisas de maneira diferente.

    - Estás zangado comigo.

    - Pois estou. Estou zangado contigo. Já lá iremos. Mas neste momento estou a perguntar-te o que queres de mim. Exatamente o que queres de mim.

    - Não quero nada, Cade.

    - Raios partam! Essa resposta está errada. - Quando ele se virou e começou a afastar-se, ela correu atrás dele.

    - O que há de errado na resposta? Porque haveria eu de querer alguma coisa de ti, ou que fosses alguma coisa, ou fizesses alguma coisa, quando tenho sido mais feliz contigo, tal como és, do que fui em toda a minha vida?

    Ele parou e virou-se para ela. O sol fustigava impiedosamente os campos. Cade sentiu o calor sobre ele, dentro dele.

    - Já é um começo. Estás a dizer que te faço feliz. Mas eu vou dizer-te o que há de errado nisso. Eu quero coisas de ti, e isto não vai funcionar entre nós se for apenas um a querer. Nenhum de nós vai ficar feliz assim, por muito tempo.

    A dor esmurrou-a no estômago e subiu-lhe até à garganta.

    - Queres acabar tudo. Eu não... - O ar faltou-lhe e quebrou-lhe a voz. As lágrimas alagaram-lhe os olhos, queimando-os. - Não podes... - Virou-se, sem saber o que dizer. - Desculpa.

    - É o que deves pedir, por pensares o que estás a pensar. - Não se deixou perturbar pelas lágrimas dela e semicerrou os olhos, pensativo. - Disse-te que te amava. Achas que consigo deixar de sentir isso, só porque dás muito trabalho? Trouxe-te aqui para te mostrar que acabo o que começo, que me dou inteiro ao que me pertence. E tu me pertences. - Agarrou-a pelos braços e puxou-a para si. - Estou ficando farto de esperar que compreendas isso. Cuido do que é meu, Tory, mas espero algo em troca. Disse-te que te amo. Dá-me algo em troca.

   

    - Tenho medo do que sinto por ti. Consegues compreender?

    - Talvez, se me disseres o que sentes por mim.

    - Demasiado. - Fechou os olhos. - Tanto, que não consigo imaginar a minha vida sem ti. Não quero precisar de ti.

    - E claro que para os outros é fácil precisar. Claro que é fácil para mim precisar de ti. - Ele sacudiu-a um pouco, o que a fez abrir os olhos. - Amo-te, Victoria, e isso tem-me feito passar alguns momentos muito maus. - Pousou os lábios na testa dela. - Mas não mudaria isso, mesmo que pudesse.

    - Quero sentir isto com calma. - Ela apoiou a face no peito dele, sorrindo um pouco quando ele tirou os óculos e os atirou para o chão. - Só quero sentir isto de uma forma normal.

    - E porque haverias de pensar que é normal alguém sentir-se calmo em termos de amor? Eu não me sinto calmo. - Passou a mão pelo cabelo dela. - Me amas, Tory?

    Ela agarrou-se mais a ele, como se ele fosse uma âncora.

    - Sim. Acho...

    - Sim chega. - Puxou-lhe o cabelo até ela levantar a cara. - Vamos ficar-nos pelo sim - murmurou, cobrindo-lhe a boca com a sua. - Diz umas quantas vezes para nos habituarmos, ambos. - Amas-me?

    - Sim. - Soltou um suspiro trémulo e lançou-lhe os braços ao pescoço.

    - Já está melhor. Amas-me, Tory?

    Desta vez, ela riu. - Sim.                   

    - Quase perfeito. - Roçou os seus lábios nos dela e sentiu os dela suavizarem-se. - Queres casar comigo, Tory?

    - Sim. - Abriu muito os olhos e deu um salto para trás. - O quê?

    - Aceito a primeira resposta. - Pegou-lhe ao colo e manteve a boca na dela até ela perder o fôlego e ficar tonta.

    - Não. Põe-me no chão. Deixa-me pensar.                             

    - Desculpa, acho que deste um passo antes de olhares. Agora, vais ter de viver com isso.                                                        .

    - Sabes muito bem que me enganaste.

    - Manobrei-te - corrigiu ele, enquanto a levava para o carro. - E bem, se me é permitida a imodéstia.

    - Cade, o casamento não é nenhuma brincadeira, e é uma coisa em que nem sequer comecei a pensar.

   

    - Então, vais ter de pensar depressa. Se quiseres um casamento com uma festa grande podemos esperar até o outono, depois da colheita. - Deixou-a cair no assento do carro. - Mas se quiseres uma cerimônia pequena e íntima, que é o que eu prefiro, o próximo fim-de-semana está bem para mim.              

    - Pára com isso. Pára! Não concordei com casamento nenhum.

    - Concordaste, sim. - Saltou para o assento ao lado dela. - Podes dar o dito por não dito, barafustar, andar em círculos, mas a verdade é que te amo. E tu me amas. O caminho é o casamento. É esse o tipo de pessoas que somos, Tory. Quero viver a minha vida contigo. Quero construir uma família contigo.

    - Família. - A idéia fez gelar-lhe o sangue. - Não vês que é por isso... Meu Deus, Cade.                 

    Ele tomou-lhe o rosto entre as mãos.

    - A nossa família, Tory. A família que construirmos juntos será a nossa família.

    - Sabes que não é tão simples assim.

    - Não tem nada de simples. O fato de estar certo não quer dizer que seja simples.

    - Não é a melhor altura, Cade. Há demasiadas coisas a acontecer à nossa volta.

    - Por isso é que a altura é perfeita.                            

    - Vamos falar disto de forma razoável - disse-lhe ela, enquanto ele fazia avançar o carro pela estrada de lama. - Quando a minha cabeça não estiver à roda.                                                  

    - Está bem. Falamos de tudo o que quiseres. - Quando o caminho se bifurcou, ele tomou a esquerda. Instantaneamente, Tory afundou-se no assento, com o estômago a doer-lhe.

    - Onde vais?

    - A Beaux Revés. Preciso ir buscar uma coisa.

    - Eu não vou. Não posso ir.        

    - Claro que podes. - Pousou a mão na dela. - É uma casa, Tory. Apenas uma casa. E é minha.

    Doía-lhe o peito e as palmas das mãos dela começaram a transpirar.                                                      

    - Não estou preparada. E a tua mãe não vai gostar. É a casa da tua mãe, Cade.

    - É a minha casa - corrigiu ele, friamente. - E vai ser a nossa casa. A minha mãe vai ter que aprender a viver com isso.

    E Tory também, pensou.      

    Era uma casa maravilhosa, pensou Tory. Não era grandiosa e elegante, como as casas antigas de Charleston, com a sua fluidez e graça feminina. Mas era vibrante, única e poderosa. Quando era criança, via-a como um castelo. Um lugar de sonhos e de beleza, e de grande força. 

    Nas poucas ocasiões em que se atrevera a entrar, gaguejara e falara em sussurro, como um pagão que entra numa catedral.

    Raramente entrara, demasiado tímida e receosa para arriscar incorrer na desaprovação da boca comprimida de Margaret Lavelle. E demasiado nova para se proteger das setas afiadas que eram os pensamentos de Margaret.

    Mas vira e cheirara e tocara todas as divisões, através de Hope.

    Conhecia a vista de cada janela, a superfície do chão de mosaicos e de madeira. Sob os seus pés cheirou o aroma que pairava no escritório da torre, a mistura de couro e uísque que indicava a presença de um homem.

    Papai.

    Não podia permitir-se vê-la através dos olhos de Hope, agora, ser arrastada para isso. Tinha de vê-la através dos seus próprios olhos. Agora.

    Era tão desconcertante como fora da primeira vez que a vira. Desconcertante e orgulhosamente erguida contra o céu, com as suas torres em desafio. Beaux Revés. Sim, era exatamente isso. Belos sonhos e flores estendiam-se aos seus pés como uma oferenda, e árvores enormes guardavam-na de ambos os lados.

    Por alguns preciosos momentos, Tory esqueceu-se de que da última vez que a vira coxeara pelo caminho com o horror estampado nos olhos e a morte no coração.                      

   

    - Não muda - murmurou.

    - Hã?

    - Aconteça o que acontecer à volta dela, ou mesmo dentro dela, continua igual. É um mistério.

    Era importante para Cade ouvir a satisfação na voz dela quando falava da sua casa.

    - Os meus antepassados tinham ego e humor. Ambos são características importantes para a construção. - Parou o carro e desligou o motor. - Entra, Victoria.

    O sorriso que lhe moldara os lábios sem ela dar por isso desapareceu.

    - Estás a pedir confusão.

    Ele saiu do carro e deu a volta para lhe abrir a porta.

    - Estou a convidar a mulher que amo para entrar em minha casa. - Pegou-lhe na mão e ajudou-a a sair. Ela recordou-se de que, por mais gentil que fosse, ele era também muito teimoso. - Se houver confusão, logo se vê.

    - É mais fácil para ti. Sempre estiveste sobre uma fundação sólida, esta casa. Eu sempre pisei terreno movediço, por isso tenho de ver onde ponho os pés. - Olhou para ele. - É tão importante para ti que eu dê este passo?

    - Bem, lembra-te disso se eu me afundar.

    Subiram os degraus até ao alpendre. Ela recordou-se de estar ali sentada com Hope, a jogar às três marias ou a estudar um dos mapas de piratas que tinham. Copos altos, cheios de limonada e de gotas de frescura. Bolachas com cobertura. O aroma das rosas e da lavanda.

    Aquela imagem entrou e saiu da sua mente. Duas meninasas, de braços e pernas bronzeados pelo sol, as cabeças muito juntas. A murmurar segredos, embora não houvesse ninguém para ouvi-los.

    - Aventura - disse Tory, calmamente. - Era a nossa palavra-passe. Nós íamos ter tantas aventuras.

    - Agora, vamos ser nós a tê-las. - Pegou-lhe na mão e beijou-a. - Ela havia de gostar, não achas?

    - Sim, acho que sim. Embora não gostasse muito de rapazes. - Tory conseguiu esboçar um sorriso quando ele abriu a porta. - São tão chatos e tão palermas. - O coração dela batia depressa, e o grande hall com os seus lindos mosaicos verdes estendeu-se à sua frente como uma armadilha. - Cade.

    - Confia em mim - disse ele, e fê-la entrar.      

    O ar estava fresco. Estava sempre fresco e cheirava sempre bem. Tory recordou a magia disso, do contraste que fazia com o calor abafado da sua casa, de como os cheiros do jantar da noite anterior nunca sujavam o ar aqui.                                                   

    E lembrou-se de já ter estado ali com Cade.

    - Eras alto. - Fez um esforço para manter a voz firme. - Achava-te tão alto e tão bonito. O príncipe do castelo. Continuas a sê-lo. Mudou tão pouco aqui.

    - A tradição é uma religião para os Lavelle. Somos criados nela desde que nascemos. É simultaneamente um conforto e uma armadilha. Vamos para a sala. Vou buscar-te qualquer coisa fresca para beberes.

    Não a deixavam ir para a sala. Quase disse isso sem pensar. Podia sentar-se na cozinha, se fosse para as traseiras. Lilah dava-lhe chá gelado ou Coca-Cola, uma bolacha ou um doce. E se ela ajudasse a varrer, um quarto de dólar para meter no frasco que guardava debaixo da cama.                                                                                                                            

    Mas não podia ir para as divisões reservadas à família.

    Com esforço, bloqueou as imagens antigas que queriam intrometer-se e concentrou-se no presente. As primeiras coroas imperiais estavam em flor e havia uma jarra cheia delas sobre uma mesa espantosa, que se estendia por baixo da curva das escadas.

    O cheiro que exalavam era inequivocamente feminino. Ao lado deles havia velas brancas em castiçais azuis. Ninguém as acendera, por isso continuavam puras, intocadas e perfeitas.

    Como uma fotografia, pensou. Cada peça mantida no mesmo lugar absoluto, como se assim tivesse permanecido durante décadas.

    E agora ela estava a entrar na fotografia.

    No momento em que ela se encaminhava para a porta, Margaret apareceu ao cimo das escadas.

    - Kincade. - A voz soou agreste, pungente. A mão ia começar a tremer-lhe quando agarrou o corrimão, mas ela não o permitiria. De cabeça levantada, desceu alguns degraus. - Gostaria de falar contigo.

    - Claro. - Cade conhecia o tom, a atitude, e não se deu ao trabalho de mascarar a sua resposta com um sorriso educado. - Vou levar a Tory para a sala. Porque não se senta conosco?

    - Preferia falar contigo em privado. Por favor, vem cá acima. - Começou a virar-se, segura de que ele a seguiria.

    - Receio que tenha de esperar - disse ele, alegremente. - Tenho uma convidada.                                                                                   

   

    Ela estacou e virou a cabeça no momento em que Cade fazia entrar Tory para a sala.                            

    - Cade, não faças isto. - A tensão, as pontadas de animosidade estavam a atingi-la. - Não vale a pena.

    - Claro que vale a pena. O que queres beber? Tenho a certeza de que a Lilah tem chá gelado na cozinha, e há água com gás no bar.

    - Não preciso de nada. Não me uses como arma. Não é justo.

    - Querida. - Ele baixou-se para lhe beijar a testa. - Não estou a usar-te.

    - Como te atreves? - Margaret estava à porta, o rosto pálido e sério, os olhos tomados pela fúria. - Como te atreves a desafiar-me desta maneira, e com esta mulher? Deixei os meus desejos perfeitamente claros. Não a quero nesta casa.

    - Talvez eu não tenha deixado os meus desejos suficientemente claros. - Cade mexeu-se e pôs a mão no ombro de Tory. - A Tory está comigo e é bem-vinda. E eu espero que qualquer pessoa que eu traga a minha casa seja tratada com cortesia.

    -Já que insistes em ter esta conversa na presença dela, não vejo motivo para preocupar-me com questões de cortesia ou boas maneiras.

    A imagem voltou a mudar com a entrada de Margaret. O cenário, pensou Tory, era perfeito e estático. Apenas as personagens se moviam.

    - És livre de dormir com quem quiseres. Não posso impedir que passes o teu tempo com essa mulher ou que dês azo a mexericos sobre ti e sobre esta família. Mas não vais trazer a devassa com quem andas para debaixo do meu teto.

    - Tenha cuidado, mãe. - A voz de Cade era agora suave, perigosamente suave. - Está a falar da mulher com quem vou casar.

    Como se ele lhe tivesse batido, Margaret vacilou e deu um passo atrás. A cor assomou-lhe ao rosto, manchando-lhe as faces.

    - Perdeste o juízo?

    Onde está a minha deixa?, perguntou-se Tory. Devo ter alguma nesta peça estranha. Porque não consigo lembrar-me dela?

    - Não estou a pedir-lhe que aprove. Embora lamente que isto a deixe transtornada, vai ter de adaptar-se.

    - Cade. - Tory encontrou a voz, já enferrujada devido à falta de uso. - Estou certa de que a tua mãe preferia falar contigo em particular.  

   

    - Não ponhas palavras na minha boca - lançou-lhe Margaret. - Vejo que talvez tenha esperado demasiado tempo. Se insistires neste caminho, com esta mulher, estás a arriscar Beaux Revés. Vou usar a minha influência para convencer a administração da Algodões Lavelle a demitir-te de presidente.

    - Pode tentar - respondeu ele. - Não vai conseguir. Vou enfrentá-la, e estou em vantagem. E mesmo que consiga minar a minha posição na fábrica, nunca tocará na fazenda.

    - É esta a tua gratidão? A culpa é dela. - Os saltos de Margaret soaram nas tábuas do chão quando ela correu na direção de Tory. Cade deu um passo para o lado, interpondo-se entre Tory e a mãe.

    - Não, a culpa é minha. É comigo que tem de lidar.

    - Mas que bela festa. - Com a cadelinha a correr junto aos calcanhares, Faith entrou. Tinha os olhos brilhantes e um sorriso algo diabólico. - Olá, Tory, estás bonita. Queres um pouco de vinho?

    - É uma excelente idéia, Tory. Serve um pouco de vinho à Tory. É comigo que tem de lidar - repetiu para Margaret.

    - Estás a desgraçar a tua família e a memória da tua irmã.

    - Não, a mãe é que está a fazer isso. É uma vergonha culpar um filho pela morte de outro. Uma vergonha tratar uma mulher sem culpa com desrespeito e maldade tendo apenas como motivo a sua própria culpa e a sua própria dor. Lamento que tenha deixado que elas a impedissem de olhar para os filhos que lhe restavam, para a vida que podia ter construído fora dessa bolha onde se fechou.

    - Atreves-te a falar comigo desta maneira?

    - Tentei de outra. Se fez o que fez por si própria, não a censuro por isso. Se continuar a viver como tem vivido ao longo destes últimos dezoito anos, a escolha é sua. Mas a Faith e eu temos vida própria. E a minha vida vai ser vivida ao lado da Tory.

    - Bem, parabéns. - Faith ergueu o copo de vinho que acabara de servir e bebeu-o. - Acho que isto pede champanhe. Tory, deixa-me ser a primeira a dar-te as boas-vindas à nossa família feliz.

    - Fica calada - silvou Margaret, ao que a filha respondeu com um mero encolher de ombros. - Achas que não sei porque estás fazendo isto? - disse ela a Cade. - Para me magoares. Para me castigares por erros imaginados. Sou tua mãe e como tal fiz o melhor por ti desde o dia em que nasceste.                                               

    - Eu sei.

    - Deprimente, não é? - murmurou Faith. Cade olhou para ela e abanou a cabeça.

    - Não tenho por que magoá-la, ou castigá-la. Não estou a fazer isto para atingi-la, mãe. Estou a fazer isto por mim. Tive um milagre na minha vida. A Tory entrou nela.

    Voltou a pegar-lhe na mão e encontrou-a gelada. Manteve-a junto a si.                                                                       

    - E descobri que sou capaz de mais do que imaginava ser. Sou capaz de amar alguém e de querer fazer o melhor por ela. Sou eu quem fica a ganhar. Ela não pensa assim, nem vai pensar mesmo depois disto. Mas eu sei. E tenciono preservar isso.

    - Amanhã, o juiz Purcell já terá o meu novo testamento redigido. Vou deixar-vos a ambos fora dele, sem um tostão. - Apontou o seu olhar furioso a Faith. - Nem um cêntimo, estás a entender? A não ser que fiques ao meu lado agora. Não tens nenhum interesse pessoal nesta mulher - disse ela a Faith. - Vou dar-te a tua parte e a do Cade, a começar pelo valor patrimonial da Casa do Pântano e da propriedade de Market Street.                       

    Faith contemplou o vinho.

    - Hummm. E qual será esse valor patrimonial?

    - Perto de cem mil - disse-lhe Cade. - Não sei bem qual seria a minha parte da herança da nossa mãe, mas acho que deve estar bem perto de alguma coisa com sete dígitos.

    - Oh! - Faith arredondou os lábios. - Imagina só. E tudo isso vai ser meu se eu lançar o Cade aos lobos, por assim dizer, e fizer o que quer que eu faça. - Fez uma pausa. - Vejamos, alguma vez fiz o que a mãe queria?

    - Serias sensata, se pensasses na proposta.                  

    - Segunda pergunta: alguma vez fui sensata? Queres vinho, Cade, ou preferes cerveja?

    - Não vou voltar a fazer esta oferta - disse Margaret, friamente. - Se insistires em levar esta farsa por diante, deixarei esta casa e tu e eu não teremos mais nada a dizer um ao outro.

    - Vou ter muita pena. - A voz de Cade manteve-se calma. - Espero que mude a sua maneira de pensar, com o tempo.

    - Escolhes a ela em vez da tua família? De quem tem o teu sangue?

    - Sem hesitar um só minuto. Tenho pena de que nunca tenha sentido isso por ninguém. Se tivesse, não levantaria essa questão.

    - Ela vai arruinar-te. - Controlando-se, Margaret olhou para Tory. - Achas que foste esperta em teres esperado e insistido. Achas que ganhaste. Mas estás enganada. Ele vai acabar por ver quem tu és e vais ficar sem nada.                                               

    De súbito, ali estavam as palavras, e ela compreendeu que estivera à espera do momento certo para dizê-las.

    - Ele vê quem eu sou. Esse é o meu milagre, Mistress Lavelle. Por favor, não o obrigue a escolher entre nós. Não nos faça viver a todos com isso.

    - Tive outra filha que te escolheu, e pagou um preço elevado por isso. Agora, vais levar-me o meu filho. Vou preparar as coisas para sair desta casa imediatamente - disse ela a Cade. - Tem a decência de mantê-la longe de mim até eu me ir embora.

    - Muito bem. - Faith voltou a encher o copo enquanto a mãe se afastava. - Foi agradável.

    - Faith.

    - Ora, não olhes assim para mim - disse ela, abruptamente. - Imagino que nenhum de vocês estivesse a divertir-se particularmente, mas eu estava. E muito. Deus sabe que ela estava a pedi-las. Toma. - Meteu o vinho na mão de Tory. - Estás com ar de quem precisa disto.

    - Vai falar com ela, Cade. Não podes deixar isto assim.

    - Se ele tentar fazer isso, perco todo este novo respeito e esta admiração que tenho por ele. - Pondo-se em bicos de pés, Faith beijou-lhe a face. - Parece que afinal não nos deixou na ruína.

    Ele pegou-lhe na mão e segurou-a nas suas.

    - Obrigado.

    - Ora, querido, o prazer foi meu. - Erguendo o copo, deixou-se cair numa cadeira, sorrindo quando a Abelha lhe saltou para o colo. - E tenciono festejar.                                                                           

    - O quê? O fato de o Cade ter anunciado que tenciona casar comigo ou a infelicidade da tua mãe?

    Faith inclinou a cabeça enquanto observava Tory.

    - Posso fazer as duas coisas, mas parece que tu não. Tens demasiada sensibilidade. E bondade. Ai, ela detestaria isso. Mais uma coisa para festejar - decidiu, bebendo o vinho.

    - É de mau gosto, Faith - murmurou Cade.

    - Ora, deixa-me dar largas à satisfação por um minuto, está bem? Nem toda a gente tem um espírito tão elevado como o vosso. Meu Deus, estão mesmo bem um para o outro. Quem haveria de pensar? Estou feliz por vocês. Imaginem! Estou sinceramente feliz por vocês. Acho que me sinto um bocadinho emocionada.

    - Tenta controlar esta explosão de sentimento embaraçosa. - Impaciente, Cade voltou-se para Tory e passou-lhe as mãos pelos braços, primeiro subindo até aos ombros e depois descendo até aos pulsos. - Preciso ir buscar uma coisa no escritório, e depois vamos embora. Ficas bem?                              

    - Cade, fala com a tua mãe.

    - Não. - Deu-lhe um beijo ao de leve. - Não me demoro.

    - Bebe o teu vinho - sugeriu Faith, quando ficaram sozinhas. - Vai trazer-te alguma cor de volta à cara.                         

    - Não quero vinho. - Tory pousou o copo e depois foi até à janela. Queria ir lá para fora, para onde pudesse respirar.

    - Se insistires nesse ar infeliz, só vais estragar este momento ao Cade. Ele fez isto porque te ama.

    - E tu, porque fizeste isto?

    - Pergunta interessante. Há um ano... que diabo, se calhar há um mês!, eu teria ficado ao lado dela. É um monte de dinheiro e eu gosto mesmo do que o dinheiro pode comprar.

    - Não, nunca o terias feito, nunca, e vou dizer-te porquê. - Tory olhou para trás. - Primeiro, para lhe atirares o dinheiro à cara, e segundo, e mais importante do que o primeiro, por causa de Cade. Porque o amas.

    - Sim, e o amor não é fácil para nenhum de nós. A minha mãe encarregou-se de fazer com que assim fosse.

    - Vais culpá-la de tudo?

    - Não, apenas por aquilo a que tem direito. Dei cabo da minha vida sozinha. Mas ele não. Ele nunca fez mal a ele próprio, nem a ninguém. Amo-o tremendamente.

    Surpreendida, Tory olhou para cima. Os olhos de Faith continuavam brilhantes, mas havia lágrimas neles.     

    - Ele não disse o que disse para magoar a mãe, disse-o porque é verdade. Eu tê-lo-ia dito para magoá-la. Sente pena dela, se achares que deves ter, mas não esperes que eu sinta o mesmo. Ele tem a oportunidade de ser feliz contigo e quero vê-lo aproveitá-la.

    - Porque não lhe disseste isso?

    - Estou a dizer-te. Vejo o que ele sente por ti, e gostaria de conseguir sentir o mesmo por alguém. Não para me tornar uma pessoa melhor. Gosto de mim como sou. Mas se alguém é tão importante... - Contemplativamente, observou o vinho no copo, a luz que brilhava através dele, vinda da janela. - Se alguém é tão importante, tem de vir roubar-te uma parte de ti. - Olhou para Tory. - Não é assim?

    - Sim. Mas estou a começar a pensar que é uma parte de que já não precisamos. Não precisamos dela porque há alguém que nos ama.

    - Interessante. É idéia para ficar a remoer. - Olhou para a porta quando Cade entrou. - Suponho que queiram ficar sozinhos agora.

    - Sim.

    - Então, a Abelha e eu vamos retirar-nos, não vamos?

    Esfregou o nariz na cadelinha e pousou-a no chão.

    - Para dizer a verdade, acho que vamos lá para fora até o ar desanuviar. - Tocou na face de Cade quando passou por ele. - E sugiro que faças o mesmo.

    - Ainda não. - Esperou até ouvir a porta fechar-se atrás da irmã, e depois estendeu a mão a Tory. - Quero fazer isto aqui. Podemos considerá-lo o fechar de um círculo.

    - Cade, isto foi difícil para ti, para todos vós. Eu...

    - Não, não foi. E está feito. Tu e eu estamos apenas começando. - Tirou uma caixa do bolso e abriu-a. O diamante refletiu a luz do Sol e explodiu. - Era da minha avó e eu herdei-o.

    O pânico ameaçou sufocá-la.

    - Não. - Puxou a mão, mas ele manteve-lhe os dedos firmemente agarrados.

    - Herdei-o - repetiu -, na esperança de que um dia o desse à mulher com quem quisesse casar. Não o dei à Deborah, nunca me ocorreu dá-lo. Acho que sabia que estava a guardá-lo para outra pessoa. Que estava à espera de outra pessoa. Olha para mim, Tory.

    - Está a ser tudo tão rápido. Devias esperar mais tempo.

    - Vinte anos ou dois meses. O tempo nunca foi problema para nós. Se não consegues acreditar e confiar no que digo, se isso não é suficiente para te tranquilizar, olha para o que sinto. - Levou a mão dela ao seu coração. - Olha para dentro de mim, Tory.

    Ela não conseguiu recusar nem resistir. E o calor entrou nela. Calor e força. E esperança. O coração dele batia com firmeza sob a palma da sua mão, os olhos dele mantinham-se fixos nos dela. Confiança, pensou. Ele estava a confiar nela com todo o seu ser. O próximo passo era dela.

    - Quem me dera que pudesses olhar para dentro de mim, porque não sei como diabo vou te dizer o que sinto. Assustada, porque é tanto o que está envolvido. Nunca quis voltar a apaixonar-me. Mas não sabia que podia ser diferente. Não sabia que podias ser tu. És tão tranquilo, Cade. - Sorrindo agora, estendeu uma mão para brincar com o cabelo dele. - Me dás tranquilidade.

    - Casa comigo.

    - Oh, meu Deus. - Respirou bem fundo e precisou de um momento. - Sim. - Olhou para baixo enquanto ele lhe metia o anel no dedo. - É lindo. Fico tonta, só de olhar para ele.

    - Está um bocadinho grande. - Passou o polegar pelo aro de ouro. - Tens umas mãos delicadas. Vamos mandar cortá-lo à medida.

    - Ainda não. Quero me habituar a usá-lo, primeiro. - Fechou a mão e depois soltou um suspiro. - Ela o amava. - Tinha os olhos líquidos quando voltou a erguê-los. - A tua avó. Amava-o. Chamava-se Laura e foi feliz.

    - E nós também seremos - prometeu ele. E ela acreditou.

 

    Cari D. manteve a sirene ligada e o velocímetro nos cento e trinta, seguindo pela 195. Claro que não era preciso, mas dava-lhe algum gozo. E divertia J.R.

    Desligou-a quando se aproximaram da saída.

    - Talvez devêssemos passar a fazer isto aos domingos, em vez de irmos pescar.

    - Mantém o sangue em movimento - concordou J.R. - É difícil sentirmo-nos um trapo velho quando estamos a rolar assim pela estrada.

    - A quem estás a chamar trapo velho? Vamos fazer o seguinte, J.R., se achares que é mais fácil para ti: deixo-te em casa da tua irmã e depois vou falar com o xerife e acertar tudo com ele. Isso te dá tempo para lhe falares e para ela emalar algumas coisas.

    - Obrigado. - J.R. sentia alma pesada, mas fez o possível para não mostrar. - Ela não vai querer sair daqui, por isso vai demorar um pouco. Acho que vou dizer-lhe que temos quase a certeza de que o Hannibal ainda está nos arredores de Progress, por isso ela vai ficar mais perto dele se vier comigo.                           

    - Pode mesmo ser verdade. E, se for esse o caso, vou pôr mais patrulhas na tua rua. Quero que ligues o sistema de alarme que a Boots te convenceu a instalar, há uns anos atrás.

    - Está ligado desde que a Sherry Bellows foi descoberta. A Boots diz que só consegue descansar se o tivermos ligado. - Pensou na sua cidade, nas ruas onde poderia caminhar de olhos fechados, nas pessoas que conhecia pelo nome. E em todas as que o conheciam. - Não devia ser assim.  

    - Pois não, mas às vezes é. Tu e eu, J.R., crescemos juntos. Vimos a mudança chegar a Progress, e essa mudança foi quase sempre boa. Habituamo-nos a ela, e talvez percamos alguma coisa quando plantam casas num campo onde costumávamos jogar à bola, ou põem de pé mais um Jiffy Mart e falam na porcaria de uns à saída da cidade. Mas habituamo-nos. E há outro tipo de mudança a que temos de habituar-nos também.

    J.R. sorriu um pouco.                                                             

    - Que diabo quer isso dizer?

    - Diabos me levem se sei. É este o caminho que vai dar a casa dela?

    - Sim. A estrada está má. Vais ter pena do teu motor. Tenho vergonha que vejas como ela vive, Cari D.

    - Não te preocupes com isso. Somos amigos há demasiado tempo para ligarmos a merdas dessas. - O carro bateu por baixo e raspou. Estremecendo, Cari D. desacelerou e começou a avançar a passo de caracol. Depois, olhando para o que tinha à sua frente, semicerrou os olhos. - Que diabo é isto? Raios partam. Há confusão. Raios partam - repetiu, e acelerou, pelo que fizeram o resto do caminho aos solavancos.

    Havia dois carros da polícia estacionados frente a frente, diante da casa. A fita amarela da polícia delimitava o quintal em desalinho. Mal freiara e o guarda que se encontrava no alpendre em ruínas já vinha ao seu encontro.

    - Chefe Russ, de Progress. - Tirou a identificação do bolso e mostrou-a ao guarda. - O que aconteceu aqui?

    - Tivemos um incidente, chefe Russ. - O rosto do agente estava pálido e sério, os olhos escondidos atrás de óculos escuros. - Vou ter de pedir-vos que fiquem aqui. O xerife está lá dentro. Precisam da autorização dele para entrarem.

    - Esta é a casa da minha irmã. - J.R. puxou pela manga do polícia. - A minha irmã vive aqui. Onde está a minha irmã?

    - Vai ter de falar com o xerife. Por favor, mantenha-se atrás da fita - ordenou, avançando na direção da casa.

    - Aconteceu alguma coisa à Sarabeth. Tenho de...

    - Espera. - Cari D. agarrou-o pelo braço antes de J.R. conseguir dar um passo. - Espera. Não podes fazer nada. Vamos esperar.

    Já reparara na mancha escura na lama, diante do galinheiro, e numa segunda, que cobria uma parte do terreno junto à erva crescida.

    O xerife Bridger era um homem enorme e possante, com um rosto onde as marcas dos anos e do sol eram visíveis. Os olhos eram de um azul mortiço, enquadrados por linhas que pareciam ter sido queimadas na pele pelo sol. Quando saiu olhou em volta, parou um momento para limpar as gotas de suor da testa, e depois caminhou na direção dos homens que se encontravam à espera.

    - Chefe Russ.

    - Sim. Xerife, trouxe Mister Mooney, que vinha buscar a irmã. Sarabeth Bodeen. Que aconteceu aqui?

    Bridger volveu os olhos pálidos para J.R.

    - É irmão de Sarabeth Bodeen?

    - Sim. Onde está a minha irmã?

    - Lamento dizer-lhe, Mister Mooney. Houve problemas aqui, hoje de manhã cedo. A sua irmã está morta.

    - Morta? De que é que está falando? Não pode ser. Ainda não há dois dias falei com ela. Ainda não há dois dias. Cari D., disseste que a polícia estava aqui, a tomar conta dela.

    - É verdade, estávamos. E também perdi um homem, esta manhã. Um bom homem, que tinha família. Lamento a sua perda, Mister Mooney, e lamento a deles.

    - J.R., vem sentar-te. Quero que te sentes até sentires as pernas. - Cari D. abriu a porta do carro, baixou a cabeça do amigo e fê-lo sentar-se. O rosto de J.R. estava assustadoramente vermelho, e a sua enorme figura começara a tremer.

    - Xerife, importa-se de pedir a alguém que lhe traga água?

    Com um aceno de cabeça, Bridger virou-se e fez sinal ao guarda.

    - Purty, traz um copo de água a Mister Mooney.           

    - Deixa-te estar aqui sentado. - Os joelhos de Cari D. estalaram como foguetes, quando ele se sentou. - Senta-te aqui e recupera o fôlego. Eu vou fazer o que puder.

    - Falei com ela - repetiu J.R. - Na sexta-feira à noite. Falei com ela.

    - Eu sei. Fica aqui sentado até eu voltar. - Afastou-se do carro, até J.R. não conseguir ouvi-lo. - Pode dizer-me o que aconteceu aqui?

    - Há umas horas que andamos a tentar descobrir. O Flint ficou com o turno das duas às dez. Só soubemos que havia confusão quando o agente que o vinha render o encontrou. Ali. - Bridger apontou para o galinheiro.

    Tinham levado o seu homem para a morgue, metido num saco de plástico. Nunca mais iria esquecer isso.               

   

    - Levou um tiro nas costas. Caiu. Ele era jovem e forte. Tentou chegar ao equipamento, aqui, rastejou mais de cinco metros depois de ter levado o tiro. Tinha a pistola na mão. Alguém lhe pôs a pistola na mão, apontada ao ouvido, e puxou o gatilho.

    - Tinha trinta e três anos, chefe Russ. Tem um filho de dez anos e uma menina de oito. A responsabilidade de já não terem pai é minha. Fui eu que o mandei para aqui. Sabíamos que o Bodeen era perigoso, mas não sabíamos que ele estava armado. Nunca usou armas de fogo nos outros crimes que cometeu. O filho da mãe matou o meu homem pelas costas.

    Cari D. passou com as costas da mão pela boca.

    - E Miz Bodeen?

    Sarabeth. Sari Mooney, que se sentara no alpendre da sua mãe, comera com ela à mesa.

    - Acho que ela sabia que ele vinha. Tinha a mala feita. Há uma lata de café vazia no quarto, e parece-me que seria ali que ela guardava o dinheiro que tinha em casa. Desapareceu. A porta estava aberta, sem sinais de arrombamento. Ou ela o deixou entrar, ou ele entrou, simplesmente. Deu-lhe dois tiros. Um no peito, outro na nuca.

    Cari D. deixou de lado a dor e olhou para a casa, para a terra. - Já fizeram o reconhecimento, não?

    - Sim. Falei com os vizinhos. Houve um que acabou por dizer que ouviu o que podiam ser tiros, por volta das cinco, cinco e meia da manhã. As pessoas não querem saber da vida dos outros, aqui. Ninguém prestou atenção.      

    O calor era impiedoso. Cari D. tirou um lenço do bolso e passou-o pelo rosto. O suor ensopava-lhe também a sua camisa da pesca.

    - Como diabo chegou ele aqui?

    - Não se sabe. Talvez tenha apanhado uma carona. Roubado um carro. Estamos investigando.

    - Pelo dinheiro que estava na lata de café? Não faz sentido. Ela tinha a mala feita?

    - Sim. Com as roupas dela e algumas dele. Sabia que ele vinha. Estamos verificando os telefonemas. Ele deve ter-lhe telefonado e ela disse-lhe o que se passava. Não pode dizer-se que se tenha mostrado muito disposta a cooperar com a polícia.

    E, embora estivesse morta como Eva, ele a culpava pela morte do homem que perdera.                   

    - Mister Mooney vai estar em condições de identificá-la?

    - Sim. - Cari D. voltou a passar a mão pela boca. - Ele vai fazer isso. Já informaram a mãe da falecida?

    - Não. Ia agora tratar disso.                                   

    - Gostaria que me deixasse fazê-lo, xerife Bridger. Não quero intrometer-me no vosso trabalho, mas ela me conhece.

    - Até agradeço que o faça. É algo que dispenso.

    - Muito bem. Vou levar o J.R. para a casa da mãe. Será mais fácil para eles.                                         

    - Está certo. Ele matou um polícia, chefe Russ. Se isso dá algum conforto ao seu amigo, diga-lhe que aquele filho da mãe não vai conseguir escapar.                                                                     

    - Mantenha-me informado, xerife, que eu farei o mesmo. Os agentes federais chegam amanhã ou depois de amanhã. Vão querer lhe telefonar.

    - Fico à espera. Mas esta terra é minha e foi o meu homem que levaram num saco, esta manhã. - Bridger cuspiu no chão. - É melhor o Bodeen rezar a Deus Todo-Poderoso para que os agentes federais o encontrem antes de mim.

    A quilômetros dali, Hannibal Bodeen atirava-se a uma costeleta de porco. Tirara-a, juntamente com algum pão e queijo e uma garrafa de Jim Beam, de uma casa que assaltara. Fora muito simples, enquanto a família estava na igreja. Vira-os sair de casa, todos elegantes nas suas roupas de domingo, e apinharam-se numa minivan reluzente. Hipócritas. Iam à igreja para mostrarem os seus bens materiais. À casa de Deus para ostentarem o que tinham.

    Deus ia castigá-los, como castigava todos os orgulhosos e presunçosos. E Deus não o abandonava, pensou, enquanto limpava o osso de porco.

    Encontrara muita comida naquela casa grande. Carne que sobrara do jantar de ontem. Suficiente para voltar a dar-lhe forças. E bebida para matar a sede, nesta hora de necessidade. Este era o seu teste, a sua travessia do deserto.

    Atirou o osso para o lado e bebeu um longo trago da garrafa.

    Por momentos, desesperou. Porque estava a ser castigado, um homem que se regia pela moral e pela justiça? Depois, tudo se tornou claro. Estava a ser testado, para provar o seu valor. Deus o pusera diante da tentação, uma e outra vez. Algumas vezes fora fraco, algumas vezes sucumbira. Mas agora lhe era dada esta oportunidade.

    Satanás vivera em sua casa, debaixo do seu teto, durante dezoito anos. Ele fizera tudo o que pudera para expulsar o demônio, mas falhara. Desta vez, não falharia.

    Pegou na garrafa e deixou que o calor do uísque lhe desse força. Em breve, muito em breve, completaria a tarefa que lhe fora dada. Descansaria, rezaria. Depois, o caminho ser-lhe-ia revelado.

    Fechou os olhos e enrolou-se para dormir. Deus não o abandonava, pensou, e pôs a mão sobre a arma que tinha a seu lado.

    

    Tory viu o carro do chefe Russ rolar devagar pelo caminho de acesso à sua casa, afastar-se e tomar a estrada na direção de Progress. Estava sentada no mesmo lugar desde que o tio lhe contara o que acontecera à sua mãe, no velho balanço do alpendre da frente.

    Era a sua imobilidade que preocupava Cade. A sua imobilidade e o seu silêncio.

    - Tory, vem para dentro e deita-te um bocadinho.

    - Não quero deitar-me. Estou bem. Gostava de sentir mais do que sinto. Há um nada dentro de mim, onde deveria haver dor. Estou a tentar inscrever lá qualquer coisa, e não consigo. Que tipo de pessoa sou eu, que não consigo sofrer por ter perdido a minha mãe?

    - Não te martirizes.

    - Senti mais dor e mais pena pela Sherry Bellows. Uma mulher com quem estive uma vez. Senti mais horror e mais choque por uma estranha do que por alguém que é do meu próprio sangue. Olhei para os olhos do meu tio e vi a dor, a tristeza. Mas não nos meus. Não tenho lágrimas para chorar por ela.

    - Talvez já tenhas chorado as suficientes.

    - Falta qualquer coisa dentro de mim.                        

    - Não, não falta. - Deu a volta e se ajoelhou diante dela. - Ela deixou de fazer parte da tua vida. É mais fácil lamentar a morte de um estranho do que a de alguém que devia ter feito parte de ti e não fez.                                                                                                                                                                               

    - A minha mãe está morta. Acham que foi o meu pai que a matou. E a pergunta que está na minha cabeça, que ocupa o meu pensamento neste momento, é por que razão queres ficar com alguém que vem de uma coisa destas?

   

    - Tu sabes a resposta. E se o amor não for suficiente, acrescentemos o bom senso. Tu não és os teus pais, assim como eu não sou os meus. A vida que começarmos e construirmos juntos é nossa.

    - Eu devia ir-me embora. Mas não vou. Preciso de ti. Quero tanto ter o que podemos conseguir juntos. Por isso, não vou encher-me de coragem para ir-me embora.

    - Minha querida, não conseguirias dar dois passos. Soltou o ar numa gargalhada trêmula.

    - Talvez eu saiba isso, Cade. - Era tão fácil tocar-lhe, passar as pontas dos dedos pelas pontas douradas do cabelo dele. - Achas que estaríamos juntos, se a Hope estivesse viva? Se nada do que aconteceu tivesse acontecido e tivéssemos crescido aqui como pessoas normais?

    - Sim.                                                                                                                                      

    - Às vezes a tua confiança é um conforto. - Foi até ao outro extremo do alpendre, para olhar para as árvores que mergulhavam o pântano em sombras. - Esta é a segunda morte, desde que voltei a casa. Achei que a segunda ia ser eu. Mas ele virá à minha procura.                                                                                  

    - Não vai conseguir aproximar-se de ti.

    Sim, pensou ela, a confiança dele podia ser reconfortante.

    - Ele virá. Tem de tentar. - Endireitou-se e virou-se para trás. - Podes arranjar-me uma arma?

    - Tory...

    - Não digas que vais me proteger, ou que a polícia vai encontrá-lo e impedi-lo. Acredito nisso tudo. Mas ele virá tentar apanhar-me, Cade. Sei isso com toda a certeza. Tenho de ser capaz de me defender, se for obrigada a isso. E vou defender-me. Não vou hesitar em acabar com a vida dele para salvar a minha. Já fiz isso uma vez. Mas agora há demasiado em jogo. Agora, tenho-te a ti.

    Cade teve uma sensação de náusea no estômago, mas acenou com a cabeça. Sem dizer nada, foi até ao carro e abriu o porta-luvas. Começara a trazer aquele revólver consigo desde o homicídio de Sherry Bellow.

    Levou-o a Tory.                                                                     

    - Isto é um revólver, um trinta e oito.

    - É menor do que eu imaginava.                       

    - Era do meu pai. - Cade virou o velho Smith & Wesson na mão.

    - É aquilo a que poderia chamar-se um revólver discreto, porque é compacto. Sabes dispará-la?

    Ela pressionou os lábios um contra o outro. Parecia sinistro e eficaz na mão dele. Na sua mão elegante de agricultor.

    - Puxo o gatilho?

    - Bem, há mais umas coisas a saber. Tens a certeza de que é isto mesmo que queres, Tory?

    - Sim. - Suspirou. - Sim, tenho a certeza.

    - Então, anda lá. Vamos lá para fora para eu te dar umas lições.

 

    Faith cantava numa voz surpreendentemente leve e doce enquanto levava as compras, escada acima, até ao apartamento de Wade. A Abelha saltitava atrás dela, cheirando o ar que guardava inúmeras recordações de cães, gatos e ratinhos de estimação. Encantada consigo própria, Faith mudou os sacos para a outra mão, pegou na maçaneta e abriu a porta com a anca.

    No meio da sala, deitado num tapete velho, estava Mongo, com a cabeça entre as patas. Bateu com a cauda no chão e levantou a cabeça quando Faith entrou.

    - Olá, olá. Estás com muito melhor ar, sua coisa grande. Abelha, o Mongo está a recuperar. Não lhe mordas as orelhas. Ele vai engolir-te num instante. - Mas a Abelha já estava a cheirar, a mordiscar e a empurrar.

    - Bem, acho que é melhor conhecerem-se, afinal. Onde está o doutor?

    Encontrou-o na cozinha, a olhar para uma chávena de café.

    - Aqui está ele. - Deixou cair os sacos em cima da bancada e depois virou-se para lhe lançar os braços à volta do pescoço e beijá-lo no alto da cabeça. - Tenho uma grande surpresa para si, doutor Wade. Hoje vai jantar comida caseira. E, se se portar bem, um interlúdio romântico seguir-se-á à sobremesa.

    Uma metralhadora de latidos vinda da sala fê-la sair da cozinha a correr.

    - Oh, mas que amores! Wade, anda cá ver isto. Estão a brincar. Bem, o cãozarrão está quase a esmagar a Abelha com uma pata, mas estão a divertir-se muito.

    Ainda estava a rir quando voltou à cozinha, mas parou ao ver a cara de WAde.

    - Querido, o que se passa? Correu alguma coisa mal com o cavalo, ontem à noite?

    - Não, não. A égua está bem. A minha tia, a irmã do meu pai, morreu. Foi assassinada hoje de manhã.

    - Oh, meu Deus! Oh, Wade, isso é horrível. Mas o que é que se passa aqui? - Sentou-se diante dele, desejando saber o que fazer. - A irmã do teu pai? A mãe da Tory?

    - Sim. Nunca mais fui visitá-la. Meu Deus, já nem me lembro da última vez que a vi. Nem sequer me consigo recordar da cara dela.

    - Está tudo bem.

    - Não está nada tudo bem. A minha família está a desfazer-se. Por amor de Deus, Faith, pensam que foi o meu tio que a matou.

    Foi o horror nos olhos dele que a fez controlar o seu.

    - Ele é um homem mau, Wade. Um homem mau e perigoso, e não tem nada que ver contigo. Lamento pela Tory, juro que sim. E pela tua tia e pela tua família. Mas... bem, vou dizer o que penso, mesmo que fiques zangado comigo. Ela escolheu-o, Wade, e ficou com ele. Talvez isso seja um tipo de amor, mas é um mau tipo. É um tipo lamentável.

    - Não sabemos o que vai nas vidas das outras pessoas.

    - Ora, o raio é que não sabemos. Estamos sempre a dizer isso, mas sabemos. Eu sei o que se passava nas vidas dos meus pais. Sei que se tivessem tido coragem e determinação, teriam feito o casamento deles dar certo, ou então ter-lhe-iam posto fim. Em vez disso, a minha mãe agarrou-se ao nome Lavelle como se fosse uma espécie de troféu, e o meu pai meteu-se com outra mulher. E de quem foi a culpa? Passei muito tempo a acreditar que a culpa foi da outra mulher, mas não foi. Foi do papai, por não ter respeitado os votos do casamento, e da mãe, por ter permitido isso. Talvez seja mais fácil dizer que a culpa de tudo isto é do Hannibal Bodeen. Mas não é. Mas também não é tua, nem da Tory, nem do teu pai.

    Afastou-se da mesa.

    - Gostava de ter qualquer coisa agradável para dizer. Ter coisas doces e agradáveis para dizer, mas não tenho jeito para isso. Acho que deves querer ir ter com o teu pai, agora.

    - Não. - Manteve os olhos fixos no rosto dela desde que ela começara a falar. - Ele está melhor com a minha mãe. Ela sabe confortá-lo. Quem diabo teria pensado que tu sabes confortar-me? - Estendeu a mão. Quando ela a agarrou, ele puxou-a para si e ficou com a cara junto da barriga dela. - Fica comigo, ficas?

    - Claro que sim. - Passou-lhe a mão pelo cabelo. Sentia-se a tremer por dentro, uma sensação estranha. - Vamos ficar aqui sossegados, durante um bocado.

    Ele abraçou-a, surpreendido com o fato de ela ser uma âncora para ele.

    - Estou aqui sentado desde que o meu pai telefonou. Não sei há quanto tempo. Meia hora, uma hora. Gelado por dentro. Não sei o que vou fazer pela minha família.

    - Vais saber, quando chegar a hora. Sabes sempre. Queres que te faça café?                                            

    - Não, obrigado. Não. Tenho de telefonar à minha avó e à Tory. Mas primeiro tenho de pensar no que vou dizer. - Com os olhos fechados e o rosto pressionado contra ela, ouviu os cães a ladrar na sala. - Vou ficar com o Mongo.              

    - Eu sei, querido.

    - A pata dele está ficando boa. Vai demorar algum tempo para sarar completamente, mas ele vai ficar bem. Talvez um pouco coxo. Pensei em encontrar uma boa casa para ele ficar, mas... não consigo. - Olhou para cima, confuso. - Porque é que disseste «eu sei»? Eu nunca fico com cão nenhum.

    - Ainda não tinhas encontrado o cão certo, pronto.       

    Olhou para ela com os olhos semicerrados, mas as covinhas da sua cara tornaram-se mais profundas, como acontecia quando estava divertido.

    - Estás ficando demasiado esperta e sensata.                            

    - É o meu novo eu. Pela parte que me toca, estou satisfeita.

    - E este teu novo eu faz o jantar?

    - Em ocasiões raras. Comprei uns bifes e uns acompanhamentos.

    Foi até à bancada, remexeu no saco e tirou de lá duas velas brancas. - Lá no mercado, a Lucy perguntou-me que tipo de serão estava eu a planejar, para comprar carne de vaca e velas brancas e um apetitoso cheesecake que estava numa caixa.

    Ele sorriu um pouco e levantou-se da cadeira.

    - E que disseste tu à Lucy, lá no mercado?

    - Disse-lhe que ia preparar um jantar romântico para dois, eu e o doutor Wade Mooney. Alguns ouvidos interessados ficaram radiantes com este pedacinho de informação. - Pousou as velas. - Espero que não te importes com a minha indiscrição e que passemos a ser assunto de conversa e especulação consideráveis.

    - Não. - Abraçou-a e pousou o rosto no cabelo dela. - Não me importo.

 

    - Lissy, querida, não acho isto bem.

    - Ora, Dwight, vamos dar os sentimentos a amigos e a vizinhos.

    - Tentando encontrar uma posição confortável, Lissy mexeu-se no assento do carro, apoiando a barriga num braço. - A Tory acabou de perder a mãe e vai saber-lhe bem algum carinho.

    - Talvez amanhã. - Dwight lançou um olhar aborrecido à estrada que tinha à sua frente. - Depois de amanhã.

    - Ora, nesta altura é que não deve estar em condições de cozinhar uma refeição decente. Por isso, vou levar-lhe este guisado de frango. Vai ajudá-la a manter as forças. Meus Deus, deve ser uma provação difícil para ela.

    Apesar do seu suspiro piedoso, um fascínio irreprimível dançava dentro dela. A mãe de Tory morta pelo pai. Parecia mesmo uma coisa tirada dos tablóides ou de Hollywood. E como arrancara Dwight de casa apenas uma hora depois de a notícia ter chegado, devia ser a primeira a ver Tory.

    Não que não sentisse pena de Tory. Claro que sentia. Não levava ali a comida que a sua mãe lhe preparara para ela aquecer depois do nascimento do bebé? A comida era para a morte, toda a gente sabia.

    - Não deve estar a apetecer-lhe companhia - insistiu Dwight.

    - Nós não somos companhia. Ora, eu andei com a Tory na escola. Conhecemo-nos desde crianças. Não suporto a idéia de vê-la sozinha numa altura destas. - Nem que alguém chegasse lá primeiro. - Além disso, Dwight Frazier, tu és o presidente da câmara. É teu dever consolar os infelizes. Meu Deus, cuidado com os solavancos, querido. Tenho de fazer xixi outra vez.

    - Não quero que te emociones demasiado. - Estendeu o braço para lhe fazer uma festa na mão. - Não quero que entres em trabalho de parto aqui, Lissy.

    - Não te preocupes. - Mas ficou satisfeita por ele se preocupar. - Ainda faltam três semanas, pelo menos. Meu Deus, estou bem? - Ansiosa, puxou o espelhinho do carro. - Devo estar um susto, depois de ter saído às pressas como saí. Uma vaca grande, gorda e horrível.                                                             

    - Estás linda. Continuas a ser a moça mais bonita de Progress. E és toda minha.

    - Oh, Dwight. - Ela corou e ajeitou o cabelo. - És tão doce. É que me sinto tão gorda e feia, ultimamente. E a Tory está tão elegante.

    - Pele e osso. A minha mulher tem curvas. - Estendeu a mão e passou-a pelo peito dela, fazendo-a soltar um gritinho.

    - Pára com isso. - A rir, deu-lhe uma palmada na mão. - Que vergonha. Estamos quase chegando e agora estou toda agitada. - Meteu a mão entre as pernas dele. - E parece que tu também estás. Lembras-te de como costumávamos estacionar para estes lados, quando éramos jovens e loucos?                                                   

    - E eu convenci-te a ir para o assento de trás do carro do meu pai.

    - Não foi preciso muito esforço para me convenceres. Eu estava doida por ti. A primeira vez que fizemos amor foi aqui. Estava tão escuro, um ambiente tão sensual. Dwight - Passou os dedos pela perna dele. - Depois de o bebê nascer e eu recuperar a minha figura, vamos pedir à mamãe que venha ficar com o bebê. E tu trazes-me para aqui e vês se ainda consegues convencer-me a ir para o assento de trás.                                                                                 

    Ele soltou um sopro.

    - Se continuas a falar assim, Lissy, quando eu sair deste carro vou apanhar uma vergonha.

    - Vai um bocadinho mais devagar. Quero pôr batom. - Tirou-o da mala. - A mamãe disse que ficava com o Luke durante a noite. Devíamos ir ver a Boots e o J.R. depois de sairmos de casa da Tory. Acho que vão fazer o funeral em Florence. Nós vamos ter de ir, claro, em representação da cidade e essas coisas. Não tenho nenhum vestido preto que me sirva. Acho que vou ter de me arranjar com o azul-escuro, embora tenha aquela gola bonita, branca. Mas as pessoas vão compreender se eu usar o azul-escuro, não achas? E vamos ter de mandar flores.

    Continuou a falar até entrarem no caminho de acesso à casa de Tory. Dwight já não estava excitado, mas estava ficando com uma leve dor de cabeça.

    Quinze minutos, prometeu a si próprio. Iria dar a Lissy quinze minutos para tratar de Tory, e depois iria levá-la para casa e fazê-la deitar-se com os pés um pouco elevados. Assim, ele podia beber uma cerveja, estender-se e ver o que estivesse a dar na ESPN.

    Ninguém em Progress ia chorar a morte de Sarabeth Bodeen exceto a família mais chegada. Não via porque é que uma morte tão distante dele e da sua cidade haveria de ocupar-lhe mais do que o tempo estritamente necessário, fosse pessoal ou oficial. Ia cumprir o seu dever e depois esquecer o assunto. - Não sei porque alguém iria querer viver neste ermo, sem uma única alma por companhia - disse Lissy, enquanto Dwight a ajudava a sair do carro. - Mas a Tory sempre foi estanha. Estranha como um pato com duas cabeças, costumava dizer a minha mãe. Mas afinal... - Começou a andar na direcção da casa e lançou um olhar significativo ao carro de Cade. - Acho que não tem falta de companhia. Juro que não consigo imaginar aqueles dois juntos, Dwight, nem por um só minuto. Não consigo ver que tenham alguma coisa em comum, e tanto quanto sei a Tory não é do tipo de aquecer um homem, se é que me entendes. Pode dizer-se que é bonita, para quem gosta daquele tipo, mas não é nada, comparada com a Deborah Purcell. Juro pela minha vida que não consigo entender o que é que o Cade vê nela. Um homem na situação dele podia ter escolhido bem melhor. Deus sabe que eu tentei que ele fosse por melhores caminhos.

    Dwight disse «hummm» e «hã-hã» e «sim, querida» algumas vezes, enquanto tirava a comida do carro. Não era realmente necessário ouvir o que dizia a sua mulher, quando começava com as suas divagações. Após vários anos de casamento conhecia de cor aquele ritmo, por isso conseguia pontuar as suas afirmações nos momentos exatos, sem fazer a mínima idéia do que ela estava a dizer.

    Era um bom sistema para ambos.

    - Acho que não vai demorar muito até ele se cansar dela e ir cada um para seu lado, como acontece às pessoas que não têm um laço forte entre elas, como nós temos.

    Piscou-lhe o olho, deu-lhe uma pequena palmada no braço, e ele leu o sinal corretamente. Ofereceu-lhe um olhar quente e apaixonado.                                                                                                     

    - Depois de ele estar livre outra vez, convidamo-lo para jantar com... bem, talvez a Crystal Bean. Talvez também consiga encontrar um homem para a Tory, que faça mais o gênero dela. Isso vai dar-me bastante trabalho, porque acho que não há muitos homens dispostos a ficar com uma mulher tão estranha. Juro que às vezes quando ela olha para mim fico cheia de arrepios. Tory!

    Soltou a exclamação assim que Tory abriu a porta, e abriu imediatamente os braços.

    - Oh, querida, lamento tanto o que aconteceu à tua mãe. O Dwight e eu viemos assim que soubemos. Pobrezinha. Porque não estás a descansar? Pensei que o Cade te convencesse a deitar, numa altura como esta.

    O abraço foi apertado e quente.

    - Eu estou bem.

    - Claro que não estás bem, e conosco não tens de fingir. Somos velhos amigos. - Deu uma pequena palmada nas costas de Tory. - Agora senta-te, que eu vou fazer-te um belo chá. Trouxe-te qualquer coisa para comeres. Quero que comas uma refeição quente, para conservares as forças neste período difícil. Cade.

    Soltou Tory para virar a atenção para Cade, quando este saiu da cozinha.

    - Ainda bem que estás aqui, a tratar da Tory. Numa altura como esta, ela precisa de todos os amigos. Agora vem comigo, querida. - Pôs o braço à volta da cintura de Tory, como se fosse ampará-la. - Dwight, traz esse prato para a cozinha para eu poder aquecê-lo para a Tory.

    - Lissy, é muito simpático da tua parte - começou Tory.

    - Não há nada de simpático nisto, somos amigas. Sei que deves estar meio fora de ti, mas estamos aqui contigo. Dê por onde der, podes contar connosco, não é, Dwight querido?

    - Claro que sim. - Lançou a Cade um olhar aborrecido enquanto Lissy empurrava Tory para a cozinha. - Não consegui impedi-la - murmurou. - A intenção dela é boa.

    - Tenho a certeza que sim.

    - É uma coisa terrível. Terrível. Como está a Tory a aguentar-se?

    - Bem. - Cade olhou na direção da cozinha onde soava a voz de Lissy. - Estou preocupado com ela, mas está bem.

    - Diz-se que foi o Hannibal Bodeen que fez isto. As notícias espalham-se depressa. Achei que gostarias de saber que é o que se diz por aí. Acho que vai ser pior ainda, mas depois as coisas vão acalmar.

    - Acho que já não pode ser pior. O chefe Russ deu-te alguma informação sobre a caça ao homem?

    - Está a fazer o melhor que pode. Não houve uma coisa como esta por aqui desde que perdeste a tua irmã, Cade. - Hesitou, e depois mexeu-se um pouco, ainda com o prato na mão. - Também não deve ser fácil para ti, recordar tudo aquilo outra vez.

    - Não, não é. Mas vou dizer-te quais são as últimas suspeitas, e se for assim o assunto pode ficar encerrado de uma vez por todas. Começa a suspeitar-se de que pode ter sido o Bodeen a matar a Hope.

    - Matar... - Respirou bem fundo, soltou o ar num sopro e depois olhou na direção da cozinha. - Deus Todo-Poderoso, Cade. Não sei o que dizer. Nem o que pensar.

    - Nem eu. Ainda.                                                                                       

    - Dwight, traz lá esse prato, se faz favor.

    - Vou a caminho - respondeu ele. - Vou levar a Lissy assim que puder. Sei que não querem companhia.

    - Ficava-te agradecido. E ficava-te agradecido se não falasses na ligação do pai da Tory com a Hope. Nem à Lissy, nem a ninguém, por enquanto. As coisas já são suficientemente difíceis para a Tory, tal como estão.                                                                   

    - Podes contar comigo. A sério, Cade. Diz-me se precisares de alguma coisa, que eu trato disso. - Conseguiu esboçar um sorriso. - Tu, eu e o Wade somos amigos há muito tempo. Há muito tempo.

    - Conto contigo. Conto mesmo. Eu...

    - Ouviu-se um guincho súbito na cozinha, que fez Dwight correr como um raio, muito assustado. Quando entrou de rompante, viu Lissy, com os olhos e a boca muito abertos, com a mão de Tory presa nas dela.

    - Noiva! Não posso acreditar! Dwight, olha para o que a Tory tem no dedo. E nenhum deles dizia uma palavra sobre o assunto. - Puxou a mão de Tory para a frente, com o rosto animado pela convicção de que era a primeira a saber. - Não é uma maravilha?

    Dwight observou o anel e depois olhou Tory nos olhos. Viu o cansaço, o embaraço, a leve irritação.

    - Claro que sim. Espero que sejas muito feliz.

    - Claro que ela vai ser feliz. - Lissy largou a mão de Tory, para poder dar a volta à mesa e abraçar Cade. - Mas que grande malandro. Sem nunca te quereres prender e depois agarras a Tory tão depressa. Bem, ela ainda deve ter a cabeça à roda. Temos de celebrar, fazer um brinde ao feliz casal. Oh!                                                   

    Calou-se e corou, embora os seus olhos continuassem a dançar.

    - Onde é que eu tenho a cabeça? Sou mesmo tonta. Oh, querida, deves estar desfeita. - Voltou a correr para junto de Tory, o mais depressa que conseguiu. - Ficaste noiva e perdeste a tua mãezinha, tudo ao mesmo tempo. A vida continua, não te esqueças. A vida continua.

    Tory não se deu ao trabalho de suspirar, mas conseguiu pôr a mão no colo antes de Lissy conseguir voltar a agarrar-lha.

    - Obrigada, Lissy. Desculpa, espero que compreendas, mas preciso de telefonar à minha avó. Temos coisas a combinar.

    - Claro que compreendemos. Mas diz-me, se eu puder fazer alguma coisa. Qualquer coisa que seja. Nada é demasiado grande nem demasiado pequeno. O Dwight e eu ficaremos muito satisfeitos se pudermos ajudar. Não é verdade, Dwight.

    - Sim, sim. - Pôs o braço sobre os ombros de Lissy, com firmeza. - Agora, vamos andando, mas telefonem-nos se precisarem de alguma coisa. Não se levantem. - Encaminhou Lissy para a porta. - Saimos sozinhos. Telefonem, ouviram?                                        

    - Obrigada.

    - Imagina só! Imagina! - Lissy mal conseguiu esperar até chegarem à porta. - A usar um diamante suficientemente grande para cegar uma pesoa, e no mesmo dia em que descobre que o pai matou a mãe. Juro, Dwight, não sei o que pensar. Está fazendo planos para um casamento e um funeral, ao mesmo tempo. Eu te disse que ela era estranha, não disse?                                                                   

    - Disseste, querida. - Fê-la entrar no carro e fechou a porta. - Claro que me disseste - murmurou.

 

    Lá dentro, Cade sentou-se à mesa. Por um momento, ele e Tory observaram-se um ao outro, em silêncio.

    - Desculpa - disse ele, por fim.           

    - Porquê?                                                                                                                       

    - O Dwight é meu amigo e ela vem com ele.

    - Ela é uma tonta. Não é particularmente ardilosa, nem particularmente má. Alimenta-se dos assuntos das outras pessoas, bons e maus. Neste momento, não sabe a qual há-de atender primeiro. Aqui está Victoria Bodeen, no meio de uma tragédia e de um escândalo. E cá está ela outra vez, noiva de um dos homens mais proeminentes da região.

    Tory fez uma pausa e olhou para o anel que tinha no dedo. Sentiu-se sobressaltada por vê-lo ali, pensou. Não era uma sensação má, apenas estranha.

    - Tantas novidades para espalhar - prosseguiu ela. - Deve estar tudo a chocalhar na cabeça dela como berlindes. Devem andar a rolar de um lado para o outro, porque não há com certeza muito que os trave, lá dentro.

    A boca dele contorceu-se um pouco.   

    - Estás a especular ou deste uma espreitadela?

    - Não é preciso. Não vou fazer isso quando tudo o que ela está a pensar se mistura na cara dela. O Dwight nunca conseguiria tirá-la daqui tão depressa, se ela não estivesse em pulgas para pegar num telefone e começar a espalhar a novidade.                       

    - E isso te incomoda.

    - Sim. - Afastou-se da mesa e foi até à janela. Estranho, como era reconfortante olhar para as sombras do pântano. - Quando voltei aqui, sabia que ia estar sob observação microscópica. Sabia isso. E vou superar isso. A minha mãe... Vou superar isso, também. Não posso fazer mais nada.

    - Não tens que superar isso sozinha.

    - Eu sei. Acho que voltei aqui para me enfrentar a mim própria. Para resolver, ou pelo menos aceitar, o que aconteceu à Hope e o papel que tive nisso. Já contava com as conversas, os olhares, a especulação e a curiosidade. Pensei em usá-las para fazer progredir o negócio. É o que tenho feito e o que vou continuar a fazer. Uma atitude calculista.

    - Não, de bom senso. Dura, talvez, mas não calculista.

    - Voltei por mim própria - disse ela, calmamente. - Para provar que era capaz. Esperava pagar por isso. Acalmar a inquietação dentro de mim, mas pagar por isso. Nunca esperei encontrar-te.

    Virou-se.                                                                                                           

    - Nunca esperei encontrar-te, Cade. E ainda não sei bem o que fazer a tudo isto que sinto por ti.

    Ele pôs-se de pé e foi ter com ela, para lhe afastar o cabelo do rosto.

    - Vais descobrir.

    - Isto é tão fácil para ti.

    - Acho que tenho estado à tua espera.

    - Cade, o meu pai... O que ele é. Uma parte disso está em mim. Tens de pensar nisso. Tens de ter isso em conta.

    - Tenho? - Observou-a com atenção, enquanto a virava e a fazia encaminhar-se para o quarto. - Se calhar, tens razão. Suponho que deva dar-te a mesma oportunidade de teres em conta o meu avô Horace, que teve um longo caso libidinoso com o irmão da mulher dele. Quando ela descobriu, no meio de todo o choque e de toda a tristeza, como podes imaginar, ameaçou denunciá-lo. O meu avô Horace, com o seu amante, descontentes com esta reação, cortaram-na aos pedaços e mantiveram os aligátores gordos e felizes durante vários dias.

    - Estás a inventar isso.

    - Não estou nada. - Fê-la deitar-se na cama. - Bem, a história dos aligátores é uma lenda de família. Há quem diga que ele se limitou a fugir para Savanah e que viveu até aos noventa e seis anos, na vergonha e na solidão. Seja como for, não é uma nota de rodapé digna na história da família Lavelle.

    Ela virou-se para ele, encontrou a curva do seu ombro e pousou a cabeça ali.                                                      

    - Acho que posso dizer que ainda bem que não tenho irmãos.

    - Lá estás tu. Dorme um pouco, Tory. Só estamos aqui os dois. E é isso que importa agora.

    Enquanto ela dormia, ele ficou acordado, a escutar os sons da noite.

    - Estou a pedir-te que compreendas. - Tory observou os recortes de Beaux Revés. - Estás a pôr-me entre ti e a tua mãe outra vez, Cade. Isso não é justo para nenhum de nós.

    - Não. Mas preciso de falar com ela e não quero que vás à cidade sozinha. Não quero que andes sozinha até isto estar acabado, Tory.

    - Bem, já somos dois, portanto quanto a isso podes estar descansado. Mas eu espero no carro enquanto tu fazes o que tens a fazer.

    - Vamos chegar a um compromisso.

    - Ora, ora, quando é que essa palavra entrou no teu vocabulário? Ofereceu-lhe um sorriso lento e muito suave.

    - Vamos por trás. Podes esperar na cozinha. A minha mãe não passa lá praticamente tempo nenhum.

    Ela ia voltar a argumentar, mas desistiu. Sabia que ele iria sempre contornar as desculpas dela e estava demasiado cansada para discutir sobre isso. Demasiados sonhos durante a noite, demasiadas imagens que deslizavam na sua cabeça durante o dia.

    Quando isto tiver acabado, disse ele. Como se alguma vez acabasse. Como se pudesse acabar.

    Saiu do carro, acompanhou-o pelo caminho do jardim, por entre os rosais abundantemente floridos, a camélia de folhagem lustrosa onde, certa vez, uma menina escondera a sua bicicleta cor-de-rosa, os montes de azáleas, com as suas flores já murchas, e aromáticas espirais de lavanda, que iriam perfumar o ar até ao Inverno.

    Aqui, o mundo era de abundância, cheio de cor, de formas e de perfume. Um lugar elegante e tranquilo, cheio de caminhos pavimentados e bonitos bancos estrategicamente colocados por entre os canteiros e os arbustos, com vasos a transbordar das mais diversas flores artisticamente dispostos. O resultado era semelhante a um quadro meticulosamente executado.

    Mais uma vez, o mundo de Margaret, pensou Tory, com a mesma perfeição existente nas divisões da casa. Nada podia destruí-la, nada podia mudá-la. Que devastador seria ter alguém a invadir a casa e a estragar o equilíbrio de tudo.

    - Tu não a compreendes.

    - Desculpa?

    - A tua mãe. Não a compreendes.

    Intrigado, Cade enlaçou os seus dedos nos de Tory.

    - Fiz-te crer que a compreendia?

    - Este é o mundo dela, Cade. É a vida dela. A casa, os jardins, a vista que vê das janelas. Mesmo antes de a Hope ter morrido, este era o centro para ela. Aquilo de que cuidava e que preservava. E continuou a fazê-lo depois de ter perdido a filha. Pelo menos podia ficar com isto - disse ela, virando-se para ele. - Tocá-lo, vê-lo, zelar para que não mudasse. Não lhe tires isto.

    - Não vou tirar. - Segurou o rosto de Tory entre as mãos, aproximando-o do seu. - Mas também não vou tolerar que ela use a casa, ou a fazenda, como ameaça para me manter o pé em cima. Não posso dar-lhe mais do que já lhe ofereci, nem mesmo por ti.

    - Tem de haver um compromisso. Como tu próprio disseste.

    - Seria de pensar que sim. - Pousou os lábios na testa dela. - Mas às vezes, com algumas pessoas, há apenas sim ou não. Não insistas. - Ele afastou-a um pouco e ela viu que os olhos dele estavam perturbados. - Não me peças isto, Victoria. - Emitiu um som que parecia um suspiro, mas era mais como se lhe tivesse faltado o ar. - Não me peças que troque a nossa felicidade pela aprovação dela. Para começar, a aprovação dela foi coisa que nunca tive.

    Era tão estranho perceber aquilo assim, de repente. Ele crescera num castelo e tivera tanta fome de palavras amáveis como ela.

    - Este assunto magoa-te. Desculpa, não vi o quanto te magoa.

    - Feridas antigas. - Passou as mãos pelos braços dela e voltou a entrelaçar os dedos nos dela. - Já deixaram de sangrar.

    Mas, de tempos a tempos, abriam e voltavam a doer, pensou, enquanto retomavam o caminho. Nunca ninguém lhe batera com os punhos fechados, nem com um cinto. Mas havia outras formas de bater numa criança.

    Mesmo ali, em toda aquela beleza, tão distante das divisões inóspitas e sufocantes da sua infância. Belo, sim, pensou Tory enquanto passavam sob uma pérgula coberta de campainhas roxas, mas solitário. Era apenas outra forma de dizer inóspito.

    Devia haver alguém sentado no banco ou a cortar gerberas para dentro de um cesto. Uma criança estendida de barriga para baixo no caminho, a observar um lagarto ou um sapo.

    O quadro precisava de vida, de som, de movimento.

    - Quero filhos.

    Cade deteve-se. - Desculpa?

    De onde viera aquilo, e como lhe saíra do pensamento como se sempre ali tivesse estado?

    - Quero filhos - repetiu. - Estou farta de pátios vazios e jardins silenciosos e casas arrumadas. Se vivermos aqui, quero barulho e migalhas no chão e pratos no lava-louça. Não conseguiria sobreviver em todas estas divisões perfeitas, intocadas, e esta é uma coisa que não podes pedir-me que faça. Não quero esta casa sem vida dentro dela.

    As palavras saíram da boca dela, e o pânico que as acompanhava fê-lo sorrir. Lembrou-se de um menino que queria construir um forte. De madeira velha e tela.

    - Mas que coincidência interessante. Eu tinha pensado em dois filhos, ou três.

    - Está bem. - Soltou um suspiro de alívio. - Está bem. Devia ter percebido que já tinhas pensado nisso.

    - Sou agricultor. Os agricultores fazem planos. Depois, esperam que o destino ajude. - Baixou-se para colher uma haste de rosmaninho, no jardim de ervas aromáticas. - Para te recordares - disse ele, oferecendo-lho. - Enquanto estiveres à minha espera, lembra-te que temos uma vida para planejar, com a confusão e o barulho que nos apetecer.

    Ela entrou com ele e lá estava Lilah, como tantas vezes, junto ao lava-louça. O ar cheirava a café e a bolachas e ao aroma suave a rosas que Lilah espalhava pela casa todas as manhãs.

    - Vêm atrasados para o pequeno-almoço - disse ela. - Têm sorte porque eu estou bem-disposta. - Estivera a observá-los nos últimos minutos, com uma sensação de leveza no coração. Ficavam bem, juntos. E há algum tempo que desejava ver o seu rapaz ficar bem com alguém.

    - Bem, sentem-se. O café foi feito há pouco tempo. Fiz um bolo na chapa, que ninguém se deu ao trabalho de comer.

    - A minha mãe está lá em cima?

    - Está, e o juiz está à espera na sala da frente. - Lilah estava já a pegar nas canecas. - Ainda não teve grande coisa para me dizer, hoje. Tem estado quase sempre ao telefone, e com a porta fechada. E a sua irmã nem sequer se deu ao trabalho de vir para casa, está noite.

    O estômago de Cade apertou-se-lhe.                              

    - A Faith não está em casa?

    - Não se preocupe. Está com o Doutor Wade. Saiu daqui ontem e disse-me para onde ia e que voltaria quando voltasse. Parece que nos últimos tempos ninguém dorme na sua cama senão eu. Está demasiado calor para tanta azáfama. Sente-se e coma.

    - Preciso de falar com a minha mãe. Dá-lhe de comer a ela - ordenou Cade, apontando para Tory.

    - Não sou nenhum cão - resmungou Tory, enquanto ele se afastava. - Não vale a pensa estar com trabalho, Lilah.

    - Senta-te e tira esse ar de mártir da cara. Ele é que tem de resolver as coisas com a mãe, não és tu. - Tirou o bolo para aquecê-lo. - E tu vais comer o que eu te puser à frente.

    - Estou a começar a pensar que ele saiu a si.

    - Porque não haveria de sair? Fui eu que praticamente o criei. Não estou a falar contra Miss Margaret. Algumas mulheres não são feitas para mães e pronto. Não são menos por isso, são assim e mais nada.

    Tirou uma tigela da geladeira e destapou-a.

    - Sinto muito o que aconteceu à tua mãe.                         

    - Obrigada.

    Lilah ficou parada um instante, com a tigela segura pelo braço dobrado, os olhos escuros e quentes fixos no rosto de Tory.

    - Há mulheres - voltou a dizer - que não são feitas para mães. É por isso que, como diz a canção, Deus abençoa as crianças que têm força dentro de si. Tu tens, querida. Sempre tiveste.

    Pela primeira vez desde que soubera da morte da mãe, Tory chorou.

    Cade passou primeiro pela sala. As boas maneiras nunca permitiriam que ele passasse por um amigo da família sem lhe falar.

    - Juiz.

    Gerald virou-se, e as linhas severas e pensativas do seu rosto suavizaram-se um pouco quando viu Cade.

    - Tinha esperança em conseguir falar contigo, esta manhã. Espero que possas dar-me um minuto.    

    - Claro. - Cade entrou e pegou numa cadeira. - Espero que esteja bem.

    - Um pouco de artrite, mas são achaques que vão e voltam. É da idade. - Gerald virou-se para Cade, quando ele se sentou. - Nunca pensamos que vai acontecer-nos, e um dia acordamos e perguntamo-nos quem diabo é o velho que estamos a ver ao espelho quando nos barbeamos. Bem... - Gerald pousou as palmas das mãos nos joelhos das calças. - Conheço-te desde que nasceste.

    - Por isso, não há necessidade de ter cuidado com as palavras - concluiu Cade. - Sei que a minha mãe falou consigo sobre umas legalidades e algumas coisas que quer mudar no testamento.

    - É uma mulher orgulhosa e está preocupada contigo.

    - Está? - Cade ergueu as sobrancelhas como se tivesse ficado fascinado pela informação. - Não precisa estar. Eu estou bem. Mais do que bem. Se a preocupação dela é com Beaux Revés - prosseguiu -, também não é necessária. Estamos a ter um bom ano. Acho que melhor do que o ano passado.

    Gerald pigarreou.

    - Cade, conheci o teu pai desde muito jovem, era amigo dele. Espero que entendas o que tenho para dizer à luz dessa amizade. Podias adiar os teus planos pessoais, refletir mais um pouco. Estou perfeitamente consciente das necessidades e dos desejos de um homem, mas quando esses desejos são postos à frente do dever, do aspecto prático e, acima de tudo, à frente da família, o resultado nunca pode ser bom.                              

    - Pedi a Tory em casamento. Não preciso do consentimento da minha mãe, nem da sua. Mas lamento não o ter.

    - Cade, és jovem, tens a vida toda à tua frente. Estou apenas a pedir, como amigo dos teus pais, que reflitas mais um pouco. Na tua idade, o tempo não foge. Pensa em todos os aspectos. Principalmente agora que esta tragédia se abateu sobre a vida de Tory Bodeen. Uma tragédia - acrescentou Gerald - que diz bem de onde e de quem ela vem. Quando ela vivia aqui não passavas de um rapaz, poupado aos fatos mais duros da vida.

    - E que fatos seriam esses? Gerald suspirou.

    - O Hannibal Bodeen é um homem perigoso, inequivocamente louco. Essas coisas vêm no sangue. Eu até tenho simpatia pela moça, não se trata disso, mas não se pode mudar aquilo que é como é.

    - Está a dizer «Quem sai aos seus não degenera»? Ou «De pequenino se torce o pepino»?

    A irritação perpassou o rosto de Gerald.

    - Qualquer deles serve. A Victoria Bodeen viveu naquela casa, debaixo da mão dele, durante demasiado tempo para não ter sido modelada por isso.

    - Debaixo da mão dele - disse Cade, cuidadosamente.

    - Em sentido figurado e receio que literalmente também. Há muitos anos, Íris Mooney, a avó materna de Victoria, veio falar comigo. Queria processar os Bodeen e ficar com a custódia da rapariga. Disse que o Bodeen batia na filha.

    - Quis contratá-lo?

    - Sim. Mas não tinha qualquer prova deste abuso, não havia substância. Não tenho dúvida, nem a tinha na altura, de que ela estava a dizer a verdade, mas...               

    - O senhor sabia - disse Cade muito calmamente. - Sabia que ele lhe batia, a deixava cheia de vergastadas e nódoas negras, e não fez nada?

    - A lei...                                     

    - Que se foda a lei. - Disse isto no mesmo tom mortalmente tranquilo, enquanto se levantava. - Ela foi pedir-lhe ajuda, porque queria tirar uma criança de um pesadelo. E o senhor não fez nada.

    - Não era da minha competência interferir na família biológica. Ela não tinha provas. O caso era fraco. - Agitado, Gerald também se levantou. Não estava habituado a ser questionado nem olhado com aquela aversão. - Não havia relatórios da polícia, nem dos serviços sociais. Apenas a palavra de uma avó. Se eu tivesse aceitado o caso, não teria dado em nada.

    - Nunca o saberemos, pois não? Porque não aceitou o caso. Não tentou ajudar.

    - Não era da minha competência - repetiu Gerald.

    - Era da sua competência. É da competência de toda a gente. Mas ela ultrapassou isso sem a sua ajuda, sem a ajuda de ninguém. Agora, se me dá licença, tenho coisas a tratar.

    Saiu da sala apressadamente. No andar de cima, Cade bateu à porta do quarto da mãe. Ocorreu-lhe que sempre houvera portas fechadas naquela casa, barreiras que exigiam um pedido de autorização antes de serem removidas. Aqui, as boas maneiras sempre tinham precedido a intimidade.

    Isso iria mudar. Prometeu isso a si próprio. As portas de Beaux Revés abrir-se-iam. Os seus filhos não teriam de esperar para entrar, como se fossem convidados na sua própria casa.

    - Entre. - Margaret continuou a fazer as malas. Vira Cade chegar com aquela mulher e estava à espera que ele batesse à porta. Achou que ele viria pedir-lhe que mudasse de idéias sobre a sua saída daquela casa, que tentaria chegar a um acordo. Era um negociador nato, pensou ela, enquanto colocava papel de seda entre as blusas cuidadosamente dobradas, exatamente como o pai.

    Dar-lhe-ia uma enorme satisfação ouvir todos os seus pedidos e ofertas. E recusá-los a todos.

    - Desculpe incomodá-la. - O prólogo saiu automaticamente. Dissera a mesma coisa vezes sem conta quando entrara nas divisões da casa onde ela estava. - E lamento que estejamos em desacordo.

    Ela não se deu ao trabalho de olhar para ele.

    - Já tratei de tudo, para virem buscar a minha bagagem esta tarde. Naturalmente, espero que o resto dos meus pertences me sejam enviados. Tenho uma lista do que é meu. Ainda não está terminada. Adquiri vários haveres nos anos que passei nesta casa.

    - Claro. Já decidiu onde vai ficar?

    O tom cortês da pergunta fez com que as mãos lhe tremessem. Olhou subitamente para ele.

    - Não tratei de nada permanente. Estas coisas requerem uma reflexão cuidadosa.

    - Sim. Acho que ficaria mais confortável numa casa sua, aqui perto, porque tem laços com a comunidade. A propriedade entre a Magnolia e a Main é nossa. É uma bonita casa de tijolo, com dois andares e um belo pátio com jardim. Neste momento, está alugada, mas o contrato termina daqui a dois meses. Se estiver interessada, eu aviso os inquilinos.

    Olhou para ele, verdadeiramente surpreendida.                        

    - A facilidade com que me pões fora.                                     

    - Não estou a pô-la fora. A escolha é sua. É bem-vinda, se quiser ficar. A casa é sua e pode continuar a ser. Mas também vai ser a casa da Tory.

    - Vais acabar por perceber o que ela é, mas nessa altura já te terá arruinado. A mãe dela não prestava. O pai é um assassino. E ela não passa de uma oportunista, uma dissimulada calculista, que nunca soube qual era o seu lugar.

    - O lugar dela é aqui, comigo. Se não consegue aceitar isso, nem a ela, terá de arranjar casa noutro lado.

    Às vezes, para algumas pessoas, a resposta era sim ou não. Ocorreu-lhe que, desta vez, isso se aplicava tanto a ele como à mãe.   

    - A casa da Magnolia é sua, se a quiser. No entanto, se preferir ir para outro lugar, Beaux Revés pode adquirir a propriedade da sua escolha.

    - Por culpa?

    - Não, mãe. Não sinto qualquer culpa por querer a minha felicidade, nem por amar uma mulher que também admiro e respeito.

    - Respeitas? - rugiu Margaret. - Como podes falar de respeito?

    - Posso. Nunca conheci ninguém que respeitasse mais. Por isso, a culpa não tem lugar aqui. Mas vou zelar para que tenha uma casa confortável.

    - Não preciso de nada vindo de ti. Tenho dinheiro meu.

    - Eu sei. Demore o tempo que precisar para decidir. Qualquer que seja a sua decisão, espero que se sinta feliz com ela. Ou, pelo menos, satisfeita. Gostaria... - Fechou os olhos por um instante, cansado de manter a fachada das boas maneiras. - Gostaria que houvesse mais do que isto entre nós. Gostaria de saber porque não pode haver. Desiludimo-nos um ao outro, mãe. Lamento muito.

    Ela teve de pressionar os lábios um contra o outro para impedir que tremessem.                                                                                     

    - Quando eu sair desta casa, morreste para mim.

    A dor assomou-lhe aos olhos, redemoinhou neles e depois desvaneceu-se.

    - Sim, eu sei.

    Recuou e depois fechou suavemente a porta entre ambos. Sozinha, Margaret deixou-se cair na cama, a escutar o silêncio.

    Cade reuniu todos os papéis que achou que iria precisar nos próximos dois dias, e ouviu as mensagens que tinha no atendedor, enquanto os metia na pasta. Precisava falar com Piney, responder aos telefonemas da fábrica e passar por algumas das propriedades arrendadas. Havia uma reunião da administração no dia seguinte, mas podia ser adiada.

    A reunião periódica com o seu contabilista não. Tinha de arranjar um lugar seguro para deixar Tory por umas horas.      

    Olhou para o relógio e pegou no telefone. Faith atendeu, com a voz entaramelada pelo sono.

    - Onde está o Wade?                                                               

    - Hã? Lá em baixo, com um cocker spaniel, ou algo do gênero. Que horas são?                                                              

    - Passa das nove.         

    - Vai-te embora. Estou a dormir.

    - Vou à cidade. A Tory está comigo. Está com idéia de ir para a loja. Não quer abrir hoje, mas acho que o objetivo dela é ter qualquer coisa que a mantenha ocupada. Quero que abras os olhos e depois vás lá ter e fiques com ela.

    - Talvez não me tenhas ouvido. Estou a dormir.

    - Levanta-te. Daqui a meia hora estamos lá.

    - Estás horrivelmente mandão, esta manhã.

    - Não quero nenhuma de vocês duas sozinhas até o Bodeen estar preso. Fica com ela, estás ouvindo? Volto assim que puder.

    - Que raio vou eu fazer com ela?

    - Vais pensar em alguma coisa. Levanta-te - repetiu, e depois desligou. Satisfeito, levou a pasta para o andar de baixo.

    A primeira coisa em que reparou foi que o prato de Tory estava quase vazio. A segunda foi que ela estivera a chorar.

    - Que se passa? O que foi que lhe disseste?

    - Ora, deixa-te de bisbilhotices. - Lilah sacudiu-o como a uma mosca. - Ela esteve a chorar e agora sente-se bem melhor. Não é, minha menina?

    - Sim, obrigada. Não consigo comer mais, Lilah. A sério que não consigo.

    De lábios franzidos, Lilah observou o prato e depois acenou com a cabeça.

    - Portaste-te muito bem. - Olhou para Cade. - Miss Margaret ou o juiz vão querer tomar o pequeno-almoço?

    - Acho que não. A minha mãe tem tudo preparado para sair esta tarde.

    - Vai avante com isto?

    - Parece que sim. Não quero que fiques aqui sozinha, Lilah. Pensei que talvez quisesses ir visitar a tua irmã e ficar lá por uns dias.

    - Talvez. - Pegou no prato de Tory e levou-o para o lava-louça. - Logo vejo, se não se importar, Menino Cade.          

    - Depois confirmo contigo.

    - É melhor ela ir-se embora. Liberta-se desta casa e daqui a algum tempo será mais feliz.

    - Oxalá tenhas razão. Telefona à tua irmã - disse ele, estendendo a mão a Tory.

    Tory pôs-se de pé, e após um momento de hesitação aproximou-se de Lilah e encostou o rosto ao dela.      

    - Obrigada.

    - És uma boa rapariga. E lembra-te da força que tens.

    - Vou lembrar-me.

    Esperou até estarem lá fora, no carro e a rolar pelo caminho ladeado por árvores até à saída da propriedade.

    - Não quero um casamento grande. Cade franziu a testa.

    - Está bem.

    - Gostaria que fosse o mais discreto possível e...

    - E...?                         

    Virou para a estrada principal. Tory olhou pela janela, para os campos e o pântano.

    - O mais depressa possível.       

    - Porquê?

    Era mesmo dele, perguntar, pensou, e virou-se para ele.

    - Porque quero começar a nossa vida. Quero começar.

    - Vamos tratar da licença amanhã. Achas bem?

    - Sim. - Pôs a mão sobre a dele. - Acho muito bem. Sorrindo para ele, Tory não viu nada, não sentiu nada vindo do pântano. Nem do que estava nele, à espera.                

    Faith estava a chegar à Conforto do Sul quando viu Cade estacionar o carro. Abriu um grande sorriso e enganchou o braço no de Cade, satisfeita.                                                   

    - Aqui estás tu. Pensei que te tivesses esquecido.

    - Esquecido?                                                                   

    - Querido, lembra-te que disseste que me emprestavas o teu carro hoje. Toma. - Deixou cair as chaves do seu carro na mão dele e bateu as pestanas. - É mesmo querido da tua parte. Ele não é o melhor irmão do mundo, Tory? Sabe que eu tenho um fraquinho por este conversível, e está sempre a emprestar-mo.

    Arrancou a chave dos dedos de Cade e depois deu-lhe um beijo grande e ruidoso.

    - Tory, estou tão aborrecida hoje. O Wade está cheio de trabalho. Vou ficar a fazer-te companhia um bocadinho, está bem? Estou pensando em comprar para o Wade um desses castiçais gordos que tens aí dentro.

    Com naturalidade, largou o braço de Cade e pegou no de Tory.

    - A casa dele está mesmo a precisar de uns arranjos. Bem, já viste por ti própria, por isso sabes. Parece que vou começar a passar mais tempo lá, e não suporto aquela decoração primitiva de homem que ele tem. O carro está atrás da casa do Wade - disse ela a Cade, puxando Tory na direção da porta. - Está quase sem gasolina.

    Lançando um último olhar ao rosto aborrecido de Cade, Tory abriu a loja.

    - O carro foi um suborno?

    - Não, ele não se deu ao trabalho de me oferecer subornos. Acordou-me esta manhã, por isso tem de pagar um preço alto. Quer que tomemos conta uma da outra.                       

    - Onde está a tua cadela?

    - Oh, está a divertir-se imenso em casa do Wade. - Faith virou-se na direção da janela e acenou alegremente a Cade. - Está fumegando. Detesta que eu conduza o brinquedo dele.

    - É claro que por isso o conduzes o maior número de vezes possível.

    - Naturalmente. Tens alguma coisa fresca que se beba? Está um calor sufocante.                                                

    - Lá atrás. Serve-te.             

    - Vais abrir a loja hoje?

    - Não. Não quero estar com ninguém, hoje. Por isso, não te ofendas se eu te ignorar.

    - Digo o mesmo.

    Faith foi até às traseiras e voltou com duas garrafas de Coca-Cola. Tory tinha posto música a tocar baixinho e estava ocupada usando um limpa-vidros e um pano.       

    - Podes dar-me qualquer coisa para fazer, antes que eu morra de tédio.

    Tory estendeu-lhe o pano.

    - Deves conseguir fazer isto. Tenho muito trabalho lá atrás. Por favor, não deixes entrar ninguém. Se alguém aparecer à porta, diz-lhe que estamos fechadas hoje.

    - Tudo bem.

    Encolheu os ombros enquanto Tory se dirigia para o escritório, e depois entreteve-se a reorganizar a seu gosto os objetos expostos, imaginando como seria ter uma loja.

    Demasiado trabalho, concluiu, demasiadas preocupações. Embora fosse divertido estar perto de tantas coisas bonitas e especular sobre quem iria comprá-las.

    Encontrou as chaves da caixa das jóias atrás do balcão, e experimentou vários pares de brincos, admirou uma pulseira feita com uma serpentina de prata e experimentou-a também.        

   

    Quando alguém bateu à porta, deu um salto com ar culpado e fechou o expositor.

    Não reconheceu os rostos. O homem e a mulher ficaram do lado de fora a observá-la, enquanto ela os observava também. Era uma pena Tory não ter a loja aberta, pensou Faith. Pelo menos os clientes trariam alguma animação.

    Faith sorriu abertamente e apontou para o letreiro que dizia que a loja estava fechada. A mulher mostrou um distintivo.

    - Ups. - O FBI, pensou. Uma animação ainda maior. Destrancou a porta.                                                     

    - Miss Bodeen?

    - Não, está lá atrás. - Faith deteve-se um instante, para medi-los. A mulher era alta e forte, tinha o cabelo curto e preto e olhos escuros e inexpressivos. Usava aquilo que Faith considerou um traje cinzento muito desinteressante e uns sapatos feios de morrer.

    O homem tinha mais potencial, com o cabelo castanho encaracolado e um maxilar quadrado com uma cicatriz pequena e sensual. Tentou sorrir para ele e obteve como resposta um ligeiríssimo esgar.

    - É a primeira vez que conheço um agente do FBI, por isso estou um bocadinho atrapalhada.

    - Não se importa de pedir a Miss Bodeen que venha até aqui? - pediu a mulher.

    - Claro que não. Dêem-me licença um minuto. Esperem aqui. - Apressou-se a ir até ao escritório e fechou a porta atrás de si. - É o FBI.                                                                  

    Tory levantou a cabeça bruscamente.

    - Aqui?

    - Aqui mesmo. Um homem e uma mulher, e não são nada como os da televisão. Ele não é mau de todo, mas ela traz um traje que eu não queria nem para ser enterrada. E também é ianque. Quanto a ele, não sei. Não abriu a boca. Cá para mim, ela é que é a manda-chuva.

    - Por amor de Deus, Faith, o que é que isso me importa? - Tory pôs-se de pé, mas tinha os joelhos a tremer.

    Antes de conseguir acalmar-se, ouviu-se um bater repentino na porta, que se abriu.

    - Miss Bodeen?

    - Sim, eu... sim.

    - Sou a agente especial Tatia Lynn Williams. - A mulher voltou a mostrar o distintivo. - E este é o agente especial Marks. Precisamos falar consigo.            

    - Encontraram o meu pai?      

    - Até agora, não. Ele contactou-a?

    - Não. Não o vi, nem ouvi nada sobre ele. Ele sabe que eu não o ajudaria.

    - Gostaríamos de fazer-lhe algumas perguntas. - Williams lançou a Faith um olhar desagradável.

    Nesse preciso momento, Faith correu para trás da escrivaninha e pôs o braço sobre o ombro de Tory.

    - Esta é a noiva do meu irmão. Prometi-lhe que não a deixava ficar sozinha. Não vou quebrar a minha palavra.

    Marks pegou no seu bloco-notas e folheou algumas páginas.

    - E a senhora é...?

    - Faith Lavelle. A Tory está a passar por um momento muito difícil. Eu vou ficar com ela.

    - Conhece Hannibal Bodeen?

    - Conheço. E acredito que ele matou a minha irmã, há dezoito anos.

    - Não temos qualquer prova disso - disse Williams, sem mostrar qualquer emoção. - Miss Bodeen, quando foi a última vez que viu a sua mãe?

    - Em abril. O meu tio e eu fomos vê-la. Há alguns anos que estou afastada dos meus pais. Não a via desde os meus vinte anos, nem ao meu pai. Até ele ter vindo aqui, à minha loja.

    - E nessa altura sabia que ele era um fugitivo.

    - Sim.                             

    - No entanto, deu-lhe dinheiro.

    - Ele levou o dinheiro - corrigiu Tory. - Mas eu ter-lho-ia dado, para mantê-lo longe de mim.                                   

    - O seu pai foi fisicamente violento consigo.

    - Durante toda a minha vida. - Tory não aguentou e sentou-se.

    - E com a sua mãe?

    - Não, nem por isso. Não era preciso. Acho que lhe bateu mais nestes últimos anos, quando eu já não estava lá. Mas isso é apenas especulação.

    - Disseram-me que não precisa de especular. - Williams fixou os olhos no rosto de Tory. - Afirma possuir poderes psíquicos.

    - Não afirmo nada.

    - Esteve envolvida em vários casos de crianças raptadas, há alguns anos.                                  

    - E o que pode ter isso a ver com o assassínio da minha mãe?

    - Era amiga de Hope Lavelle. - Marks abordou o assunto tranquilamente e sentou-se numa cadeira, enquanto a sua colega permanecia de pé.

    - Sim, éramos muito amigas.                                       

    - E levou a família dela e as autoridades até ao local onde estava o corpo dela?

    - Sim. Tenho a certeza de que têm os relatórios. Não tenho nada a acrescentar-lhes.                                                                 

    - Afirma ter visto o homicídio dela.

    Quando Tory não respondeu, Marks inclinou-se para a frente. - Recentemente, pediu ajuda a Abigail Lawrence, uma advogada de Charleston. Estava interessada numa série de homicídios sexuais. Porquê?

    - Porque elas foram todas mortas pela mesma pessoa, a mesma pessoa que assassinou a Hope. Porque todas elas eram a Hope, para ele, com uma idade diferente.

    - Você... sente isto - comentou Williams e estudou o olhar de Tory.

    - Eu sei isto. Não estou à espera que acredite em mim.

    - Se sabe isto - continuou Williams -, porque não disse nada?

    - Para quê? Para divertir alguém como a senhora? Para ver o que aconteceu ao Jonah Mansfield voltar à tona e ver atirarem-me à cara o papel que tive? A senhora já sabe tudo o que há para saber sobre mim, agente Williams.

    Marks tirou um saco de plástico do bolso e atirou-o para cima da escrivaninha. Lá dentro estava um brinco, uma argola simples, de ouro.

    - O que pode dizer-nos sobre isto? Tory manteve as mãos no colo.

    - É um brinco.

    - Uma das coisas que sabemos é que consegue manter a calma debaixo de fogo. - Williams deu um passo em frente. - Estava suficientemente interessada nos homicídios para recolher informações sobre eles. Não está suficientemente interessada para ver o que consegue ficar sabendo, digamos, a partir disto?

    - Já lhe disse tudo o que sei sobre o meu pai. Falo tudo o que puder para vos ajudar a encontrá-lo.

    Marks pegou no saco.                               

    - Comece por aqui.

    - Era da minha mãe? - Sem pensar, Tory tirou-lhe o saco da mão, quebrou o selo e depois fechou os dedos sobre o brinco.

    Abriu-se, desejando esta última ligação mais do que pensara. Estremeceu uma vez e depois deixou cair o brinco em cima da escrivaninha.

    - O par está no seu bolso - disse ela a Williams. - Tirou-os quando vinha a caminho da cidade e pôs este aqui dentro. - Os olhos dela mantiveram-se fixos nos de Williams. - E eu não tenho de me sujeitar a isto.                                                             

    - Desculpe. - Williams deu um passo em frente para pegar no brinco. - Sei realmente muitas coisas a seu respeito, Miss Bodeen. Fiquei interessada no trabalho que fez em Nova Iorque. Estudei o caso Mansfield. - Voltou a meter o brinco no bolso. - Eles deviam ter-lhe dado ouvidos. - Trocou um olhar tranquilo com o colega. - É isso que tenciono fazer.

    - Não posso dizer-lhe mais nada. - Pôs-se de pé. - Faith, importas-te de acompanhar os senhores à porta?

    - Claro que não.

    Williams tirou um cartão do bolso, deixou-o em cima da escrivaninha e depois seguiu Faith. Alguns minutos depois, Faith voltou a entrar, pegou numa Coca-Cola fresca e instalou-se na cadeira que Marks deixara vaga.

    - Conseguiste dizer aquilo só por tocares naquele brinco. Soubeste que era dela só por lhe tocares?

    - Tenho trabalho para fazer.

    - Ora, deixa-te disso. - Faith bebeu um longo trago pela garrafa. - Juro que nunca vi ninguém levar as coisas tão a sério. Devíamos era ir comprar uns bilhetes de lotaria ou ir até às corridas de cavalos. Consegues adivinhar quem ganha nas corridas de cavalos? Não vejo porque não.

    - Por amor de Deus!

    - Bem, porque não? Porque não podes divertir-te com isso? Não tem de ser um peso deprimente. Não, já sei! Melhor do que cavalos. Vamos a Las Vegas, jogar blackjack. Meu Deus, Tory, vamos levar a banca à falência em todos os casinos.

    - Não é coisa para ser usada em benefício próprio.

    - Porque não? Ah, claro, já me esquecia. Tu és assim. Gostas da autocomiseração. Coitadinha de mim. - Faith usou um lenço invisível para secar os olhos. - Tenho poderes paranormais, por isso tenho de sofrer.

    O insulto foi tão grande que Tory não conseguiu imaginar por que motivo os lábios dela se contorceram num sorriso ridículo.

    - Não estou com pena de mim.                                 

    - Mas estarias, se tivesses oportunidade. Eu sou especialista nisso. - Sentou-se na escrivaninha. - Vem comigo até à casa do Wade. Podes procurar na mente dele, ou seja lá o que for, e descobrir o que ele tem na cabeça sobre mim.

    - Nem pensar!

    - Oh, vá lá, sê boazinha.

    - Não.      

    - És mesmo devassa.

    - É verdade. Agora, vai-te embora. E põe essa pulseira no sítio de onde a tiraste.

    - Muito bem. Seja como for, não faz o meu estilo. - Inclinou-se sobre a escrivaninha. - O que estou eu a pensar neste preciso momento?                                                     

   

    Tory olhou para cima e a boca dela estremeceu.

    - É inventivo, mas anatomicamente impossível. - Voltou a concentrar-se no teclado. - Faith, obrigada.

    Faith abriu a porta.

    - De quê?

    - Por me aborreceres deliberadamente, para eu não sentir auto-comiseração.

    - Ah, isso. Foi um prazer. Afinal, é fácil.

    - Wade, querido? - Faith segurou o telefone com o ombro e espreitou por cima do balcão, para ver o escritório da loja onde lhe parecia que Tory estava metida havia mais de dez dias. - Estás ocupado?

    - Eu? Claro que não. Acabei de esterilizar um dachshund. Mais um dia no paraíso.                                                  

    - Ah. - O que é que fazes exatamente... não, deixa lá, acho que não quero saber. Como está o meu amor?                      

    - Estou bem, e tu?

    - Referia-me à Abelha. Ela está bem?

    - Sem fôlego. - Soltou um suspiro pesado. - Está a divertir-se. Tenho a certeza de que logo vai contar-te tudo sobre o primeiro dia de trabalho.

    - Eu também estou no meu primeiro dia de trabalho. Mais ou menos. - Faith observou, com uma sensação de satisfação que a surpreendeu, os expositores de vidro que limpara até ficarem brilhando. - A que horas achas que vais ficar despachado, aí?

    - Devo estar pronto às cinco e meia. Em que estás pensando?

    - Tenho o conversível do Cade, e estava pensando que podíamos ir dar uma volta bem grande. Está tanto calor! Estou toda transpirada. E só tenho o vestido vermelho em cima do corpo. - Com um sorriso atrevido na cara, enrolou uma madeixa de cabelo em volta do dedo. - Lembras-te do meu vestido vermelho, não lembras, querido?

    Seguiu-se uma pausa muito, muito longa.

    - Estás tentando matar-me.                       

    Ela riu baixinho e com satisfação.           

    

    - Só estou tentando certificar-me, já que ultimamente temos passado muito tempo a conversar, de que uma certa parte da nossa relação não está esquecida.

    - Eu até gosto dessa parte.

    - Então, porque não vamos dar a tal volta? Podíamos alugar um quarto num hotel oedinário, à beira da estrada, e brincar de caixeiros-viajantes.

    - E o que é que tu vendes?

    Desta vez a gargalhada que ela soltou foi forte e sonante.

    - Ora, querido, confia em mim. Vais pagar um bom preço.

    - Então compro. Mas temos de regressar ainda esta noite, ou amanhã de manhã cedo. Tenho consultas marcadas.

    - Não há problema. - Estava a habituar-se ao fato de ele ter sempre planos agendados. - Wade?

    - Sim?

    - Lembras-te de teres dito que estavas apaixonado por mim?

    - Parece que me lembro de ter dito qualquer coisa do gênero.

    - Bem, acho que também te amo. E sabes uma coisa? Não é uma sensação muito má.

    Seguiu-se mais uma longa pausa.

    - Acho que consigo sair daqui às cinco e um quarto.

    - Eu vou buscar-te. - Desligou e dançou à volta do balcão. - Tory, sai daí. Parece que estás na prisão - disse ela, abrindo a porta.

    Tory levantou os olhos da sua lista de inventário.

    - Nunca tiveste um emprego, pois não?                               

    - Para que haveria eu de querer ter um emprego? Tenho uma herança.

    - Realização pessoal, auto-satisfação, o prazer de fazer uma tarefa.

    - Está bem, venho trabalhar contigo.

    - Há algum teleférico para o inferno?

    - Não, a sério, pode ser divertido. Mas falamos nisso depois. Agora, tens de vir comigo. Tenho de ir em casa depressa, buscar umas coisas.                                                     

    - Vai.

    - Para onde eu for, tu também vais. Prometi ao Cade. E estamos aqui, a fazer-te a vontade há... - Olhou para o relógio e revirou os olhos. - Quase quatro horas.

    - Ainda não terminei.

    - Pois bem, eu já. E se ficarmos aqui o resto do dia, aquela gente do FBI pode voltar.                    

    - Está bem. - Tory pousou o lápis. - Mas prometi à minha avó que estaria em casa do meu tio às cinco.

    - Perfeito. Deixo-te lá antes de ir buscar o Cade. Traz umas Coca-Colas, querida. Estou seca. - Faith saiu para retocar o batom, com a ajuda de um dos espelhos decorativos de Tory.

    - Desde quando tens reflexo? - perguntou Tory com voz doce, com as garrafas na mão.

    Sem se ofender, Faith pôs a tampa no batom e meteu-o na bolsa.

    - Estás atravessada porque estiveste metida na tua caverna durante todo o dia. Vais agradecer-me quando nos fizermos à estrada e eu acelerar aquela beleza do Cade. Apanha um bocado de vento no cabelo, até te vai dar estilo.

    - Não há nada de errado com o meu cabelo.         

    - Nada de nada. Se quiseres parecer uma solteirona bibliotecária.

    - Isso é um clichê ridículo e um insulto a toda uma profissão.

    Faith deteve-se mais um pouco diante do espelho e ajeitou o seu cabelo louro e macio.

    - Tens visto Miss Matilda, da Biblioteca de Progress, ultimamente?

    Apesar das suas boas intenções, os lábios de Tory tremeram.

    - Ora, fica calada - sugeriu, metendo a garrafa de Coca-Cola nas mãos de Faith.

    - É disso que gosto em ti. Tens sempre a resposta pronta. - Deu um jeito ao cabelo e preparou-se para sair. - Bem, anda lá.

    - Mudaste as coisas. - Tory olhou para as prateleiras, os expositores e notou as pequenas mudanças na distribuição das peças.

    Resposta pronta, pensou Faith, e olho de falcão.

    - E então?

    Apeteceu-lhe barafustar, quase começou a fazê-lo. Mas a honestidade impôs-se.

    - Não está mal.

    - Desculpa, estou tão emocionada com o elogio que acho que me sinto tonta.

    - Nesse caso, dirijo eu.

    - O diabo é que diriges. - A rir, Faith saiu a dançar. Enquanto a seguia e trancava a loja, Tory deu conta de que estava se divertindo. Com Faith era impossível ficar amuada ou deprimida durante muito tempo. A idéia de uma volta a alta velocidade num conversível era bastante sedutora. Ia concentrar-se nisso, apenas nisso, e preocupar-se com o resto mais tarde.

    - Põe o cinto - disse ela, quando Tory se sentou.

    - Ah, está bem. O ar está tão denso que quase podemos mastigá-lo.                                                                                                                                                                                                          

    Faith também pôs o cinto de segurança, pegou nos óculos e depois ligou a ignição. Fazendo roncar o motor, lançou a Tory um sorriso atrevido.                                                                           

    - Agora, um pouco de música para dar ambiente. - Apertou o botão do CD e fez busca até Pete Seeger começar a produzir rock-and-roll. - Ah, clássico. Perfeito. Vamos ver de que têmpera és feita, Victoria.

    Tory pegou nos óculos de sol e pô-los.

    - De fibra.

    - Muito bem. - Faith esperou por uma pausa no trânsito e depois saiu da linha de estacionamento, fazendo uma ruidosa inversão de marcha. Passou o semáforo da praça segundos antes de ficar vermelho.

    - Vais arranjar uma multa ainda antes de saíres da cidade.

    - Ora, acho que o FBI deve estar a manter a polícia local bastante ocupada. Cristo! Não adoras este carro?

    - Porque não compras um para ti?

    - Assim perdia o divertimento que é chatear o Cade até à medula para ele me emprestar.

    Saiu dos limites da cidade e acelerou.

    O vento batia na cara de Tory, embaraçava-lhe o cabelo e fazia-lhe vibrar o sangue. Uma aventura, pensou, enquanto serpenteavam pela estrada. Uma idiotice. Havia muito, muito tempo que não permitia a si própria esta entrega à loucura.

    Velocidade. Hope gostava de andar depressa, de andar de bicicleta como se fosse um cavalo de corrida ou um foguetão. Desafiava o destino quando punha os braços no ar e se entregava ao momento.

    Agora, Tory fazia o mesmo, atirando a cabeça para trás e deixando que a velocidade e a música a arrebatassem.

    Cheirava a verão e o verão era a infância. O alcatrão quente a derreter sob o sol escaldante, a água a modorrar ao sabor do calor.

    Podia correr pelos campos, quando o algodão explodira já nas suas cápsulas, e fingir que era um explorador num planeta qualquer. Fazer a roda na estrada e sentir o alcatrão amolecido sob as palmas das mãos. Embrenhar-se no pântano, que era o mundo onde queria estar. A correr, a correr, com o solo esponjoso debaixo dos pés, com o musgo a pender das árvores e com a música dos mosquitos sedentos de sangue.    

    A correr. A correr, com o coração a bater descompassadamente e um grito preso na garganta. A correr...

    - Está ali o Cade. - Tory voltou à terra, semiconsciente, fria e transpirada, com os olhos muito abertos e quase cegos, enquanto virava a cabeça.

    - Ali. - Faith fez um gesto na direcção do campo onde dois homens estavam numa zona de algodão verde. Buzinou alegremente, acenou e riu. - A esta hora está a amaldiçoar-nos, a encher os ouvidos do Piney sobre a irmã louca e irresponsável que tem. Não te preocupes - acrescentou com complacência. - Vai achar que estou a tentar corromper-te.

    - Eu estou bem. - Tory obrigou-se a inspirar e a expirar. - Estou bem.

    Faith observou-a mais demorada e atentamente.

    - Claro que estás. Mas também estás pálida. Porque é que não... oh, merda!

    O coelho atravessou a estrada como uma seta, um flash castanho de confusão. Instintivamente, Faith acionou os freios e o carro guinou, chiou e voltou a encontrar o equilíbrio sob a firmeza das mãos dela.

    - Não posso pensar na idéia de atropelar o que quer que seja. Embora Deus saiba que eles aparecem assim, de repente. Até parece que estão à espera que venha um carro e... - Interrompeu-se quando voltou a olhar para Tory. A gargalhada soltou-se antes de ela pigarrear para tentar controlá-la, enquanto abrandava. - Ui!

    Sem dizer nada, Tory olhou para baixo. Quase toda a Coca-Cola que estava na garrafa encontrava-se derramada na sua camisa. Com dois dedos, afastou-a da pele e olhou fixamente para Faith.

    - Ora, não querias que eu atropelasse o coelhinho, pois não?

    - Faz-me um favor e leva-me a casa, para eu mudar de roupa, está bem?

    Com os dedos bem firmes no volante, Faith entrouu pelo caminho que ia dar a casa de Tory, cuspindo pó e gravilha quando freiou. A rir, mas cautelosa, Faith saltou do carro.

    - Vou pôr a camisa em água fria enquanto tu te limpas. É uma pena deixá-la estragar, ainda que seja perfeitamente banal.

    - Clássica.

    - Acredita no que quiseres. - Satisfeita com a diversão, Faith subiu os degraus. - Demora o tempo que quiseres a pôr-te em ordem - disse ela, quando Tory abriu a porta. - Precisas mais do que eu.

    - Acho que não é preciso muito para ficar com ar de quem está pronta a saltar para a cama mais próxima.

    Sorrindo, Faith seguiu-a até ao quarto e depois, muito à-vontade, abriu o armário de Tory e espreitou.

    - Hei, algumas destas coisas não estão mal de todo.

    - Tira os teus dedos das minhas roupas.

    - Esta cor fica-me bem. - Tirou uma blusa de seda, de um azul-escuro e luminoso, e depois virou-se para o espelho. - Realça-me os olhos.

    De sutiã, Tory arrancou-lhe a blusa das mãos e atirou-lhe a que estava molhada.

    - Vai fazer alguma coisa de útil.

    Faith revirou os olhos, mas encaminhou-se para o banheiro, para passar água na blusa no lavatório.

    - Se não vais usá-la nos próximos dias, podias emprestar-me. Estava pensando que o Wade e eu podíamos passar o serão em casa, amanhã. E se as coisas correrem como é suposto, nem sequer vou tê-la muito tempo vestida.

    - Então, o que vestires também não é importante.

    - Uma afirmação dessas só prova que precisas de mim. - Faith meteu a camisa na água. - Aquilo que uma mulher veste está diretamente relacionado com o que pretende de um homem.

    Tory procurou no armário uma camisa branca, franziu o sobrolho e olhou para a blusa de seda. Bem, porque não?

    Tory abotoou a blusa e aproximou-se do espelho para escovar o cabelo. Precisava de domá-lo e apanhá-lo atrás, disse a si própria. Ia consolar a avó, fazer o que pudesse para manter unido o que restava da sua família. Não era altura para frivolidades nem para egoísmos. Embora, como Deus sabia, estivesse a precisar mesmo daquilo e não esqueceria que Faith lhe proporcionara.                              

    Levantando os braços, começou a prender o cabelo num rolinho. O movimento repetitivo, o zumbido do ventilador de teto embalaram-na até ficar com os olhos meio fechados, a sorrir sonhadoramente diante do espelho.                                                 

    Viu o coelho atravessar a estrada como uma seta. Um flash castanho de pânico. A fugir. A fugir do cheiro do homem.

    Vinha aí alguém. Alguém estava a espiar.

    Os braços ficaram imóveis sobre a cabeça dela, e o pânico atravessou-a até ao coração. O ar tornou-se denso, pesado, transportando um vago cheiro a uísque.      

    Ela sentiu o cheiro, como uma presa sente o cheiro do caçador.

    Num salto, estava junto da mesa-de-cabeceira, segurando na mão o revólver que Cade lhe dera. Sentiu um grito no fundo da garganta, mas reteve-o. Tudo o que soltou foi a convulsão do medo. Saiu do quarto, no momento exato em que Faith saía do banheiro.

    - Deixei-a de molho. Podes tirá-la quando... - Primeiro viu a arma e depois o rosto de Tory. - Oh, meu Deus - foi tudo o que conseguiu dizer antes de Tory lhe agarrar o braço.                     

    - Ouve-me e não faças perguntas. Não temos muito tempo. Sai pela porta da frente, depressa. Mete-te no carro e vai buscar ajuda. Vai buscar ajuda. Eu detenho-o, se conseguir.

    - Vem comigo. Anda, agora.

    - Não. - Tory afastou-se e correu para a cozinha. - Ele vem aí. Vai!

    Correu para as traseiras da casa para dar a Faith tempo de fugir. E para enfrentar o pai.

    Ele abriu a porta de trás, a pontapé, e entrou abruptamente. Tinha as roupas sujas, o rosto e os braços cheios de arranhões e de marcas de picadas de mosquitos. Bamboleou um pouco, mas os seus olhos mantiveram-se fixos no rosto da filha. Tinha uma garrafa vazia numa mão e uma arma na outra.

    - Tenho estado à tua espera. Tory apertou mais o revólver.

    - Eu sei.                           

    - Onde está aquela devassa Lavelle? Longe. Salva.

    - Só estou eu aqui.

    - Puta mentirosa. Não dás dois passos sem a fedelha daquele homem rico. Quero falar com ela. - Sorriu. - Quero falar com as duas.

    - A Hope está morta. Agora, sou só eu.

    - Pois é, pois é. - Levantou a garrafa e depois, apercebendo-se de que estava vazia, atirou-a contra a parede, fazendo-a estilhaçar-se. - Morreu. Estava a pedir isso. As duas mereceram tudo o que vos aconteceu. A mentir e a esconder coisas. A tocarem-se uma à outra como umas porcas.

    - Entre mim e a Hope só havia inocência. - Tory apurou os ouvidos para tentar escutar o rugido do motor do carro de Cade, mas não ouviu nada.                                                               

    - Pensavas que eu não sabia? - Fez um gesto furioso com a arma na mão, mas ela não vacilou. - Pensas que não as vi, a nadarem nuas, a flutuar na água, a salpicarem-se nela e a deixarem que ela escorresse pelos vossos corpos?

    Sentiu náuseas por ele profanar aquela recordação de infância.

    - Tínhamos oito anos. Mas o pai não. O pecado estava dentro de si. Sempre esteve. Não, para trás. - Apontou a arma, e o tremor percorreu-lhe o braço, do ombro até às pontas dos dedos. - Nunca mais vai voltar a pôr-me as mãos em cima. Nem a mim, nem a ninguém. A mãe não lhe deu dinheiro suficiente desta vez? Não se mexeu suficientemente depressa? Foi por isso que fez aquilo?      

    - Só levantei a mão à tua mãe quando foi preciso. Deus fez o homem senhor da sua casa. Pousa essa coisa e vai buscar-me de beber.

    - A polícia vem a caminho. Andam à sua procura. Pela Hope, pela mãe, por todas as outras. - A arma tremeu-lhe incontrolavelmente na mão quando ele avançou para ela. Ouviu o assobiar e o bater de um cinto Sam Browne. - Se se aproximar de mim, não vamos esperar por eles. Acabo com isto agora.

    - Pensas que me assustas? Nunca tiveste discernimento nenhum.

    - O mesmo não pode dizer de mim. - Faith apareceu atrás de Tory. A pistola brilhava-lhe na mão. - Se ela não lhe der um tiro, juro que eu dou.

    - Disseste que ela estava morta. Disseste que ela estava morta. - Era um homem grande, com braços compridos. Movido pelo pânico e pela fúria, avançou para Tory e atirou-a com força contra a parede. Ouviu-se um tiro e o cheiro a sangue encheu-lhe os sentidos.

    Tory caiu sobre Faith, enquanto o pai soltava um uivo de dor e saía por onde entrara.

    - Mandei-te embora. - Batendo os dentes, Tory caiu de joelhos.

    - E eu não ouvi, pois não? - Sentindo a visão turvar-se-lhe, Faith apoiou-se contra a parede e abanou a cabeça com força. - Usei o telefone do carro do Cade e chamei a polícia.

    - E voltaste aqui.

    - Claro. - Soltando a respiração numa espécie de pequenos sopros, Faith curvou-se para a frente, dobrada pela cintura, tentando fazer com que o sangue voltasse a chegar-lhe à cabeça. - Tu também não me terias deixado.

    - Havia sangue. Cheirou-me a sangue. - Subitamente Tory pôs-se de pé, puxando Faith. - Estás ferida? Ele disparou contra ti?

    - Não. Foste tu. Deste-lhe um tiro, Tory, escapou-se da tua pistola.       

    Tory olhou para a mão. Continuava a segurar a pistola, que tremia como se estivesse viva. Deixou-a cair no chão, ligeiramente arquejante, em choque.

    - Dei-lhe um tiro?       

    - A tua arma disparou-se quando ele te empurrou. Acho eu. Meu Deus, aconteceu tudo tão depressa. Ele tinha sangue na camisa, disso tenho a certeza, e eu não disparei. Acho que vou vomitar. Detesto vomitar. Sirenes! - Ao ouvi-las, Faith encostou-se à parede. - Graças a Deus!

    Depois, ouviu o rugido de um motor e afastou-se da parede.

    - Oh, não! Meu Deus! O carro do Cade! Deixei as chaves no carro.

    Antes de Tory conseguir impedi-la, já Faith corria para a porta da frente. Saíram ambas a tempo de ver o carro chiar na estrada.

    - O Cade vai matar-me.

    Tory soltou um suspiro semelhante a um soluço, mas que acabou por transformar-se numa gargalhada. À beira da histeria, mas era uma gargalhada.

    - Acabamos de livrar-nos de um louco e tu estás preocupada com o teu irmão. Só tu.

    - Bem, o Cade pode ser uma fera. - Para lhe dar conforto e para se apoiar a si própria, Faith pôs o braço sobre os ombros de Tory. Tory pousou a cabeça nele e fechou os olhos.

    O grito das sirenes ecoou-lhe nos ouvidos. Viu mãos no volante do carro. As mãos do seu pai, cheias de arranhões profundos. Sentiu a velocidade, a dança dos pneus, enquanto ele acelerava o carro.

    A velocidade aumentava cada vez mais. O rádio deitava rock enfurecido. As luzes em espiral. Consegue vê-las pelo retrovisor, com os olhos apontados à estrada. Pânico, revolta, ódio. Eles estão cada vez mais perto.

    Os braços ardem-lhe da bala e das gotas de sangue.

    Mas vai escapar. Deus está ao seu lado. Deixou-lhe o carro. Depressa. Mais depressa.

    Um teste. É apenas mais um teste. Vai escapar. Tem de escapar. Mas vai voltar para apanhá-la. Oh, sim, vai voltar e fazê-la pagar.

    As mãos estão escorregadias por causa do sangue. O volante escapa-lhe da mão. O mundo abalroa-o, as formas rodopiam.

    Um grito. És tu que estás a gritar?                                              

    - Tory! Por amor de Deus, Tory. Pára com isso. Acorda. Acordou na beira da estrada, de cara para baixo, com o corpo a tremer e os gritos a dilacerarem-lhe a mente.

    - Não faças isto. Não sei o que hei-de fazer.

    - Eu estou bem. - A custo, Tory virou-se e protegeu os olhos com o braço. - Dá-me só um minuto.

    - Estás bem? Quando eles chegaram, foste a correr para a estrada. Tive medo que fosses a correr direto a eles e te atropelassem. Depois, os teus olhos reviraram-se e tu apagaste-te. - Faith deixou cair a cabeça entre as mãos. - Isto é de mais para mim. É de mais.

    - Está tudo bem. Acabou. Ele está morto.

    - Acho que percebi essa parte. Olha. - Apontou para a estrada, mais adiante. As chamas e o fumo erguiam-se em espiral e o sol refletia-se nos cromados e nos vidros dos carros da polícia estacionados em círculo.

    - Ouvi o choque e depois uma espécie de explosão.

    - Uma morte pelo fogo - murmurou Tory. - Foi a morte que pedi para ele.

    - Ele é que a pediu. Quero o Wade. Oh, meu Deus, quero o Wade.

    - Vamos mandar alguém chamá-lo. - Mais firme, Tory pôs-se de pé e estendeu a mão a Faith. - Vamos lá abaixo e pedimos a alguém que lhe telefone.

    - Está bem. Sinto-me um bocado bêbada.  

    - Eu também. Vamos amparar-nos uma à outra.

    Com os braços enlaçados à volta da cintura uma da outra, começaram a percorrer a estrada. O calor incidia no asfalto, lançando um reflexo trémulo no ar. Através das ondas desse reflexo, Tory viu o fogo, o rodopio de luzes, o bege-claro do carro do governo, com os agentes do FBI ao lado.

    - Consegues ver onde está? - murmurou Tory. - Exatamente à frente do sítio onde a Hope... precisamente na curva da estrada, diante do sítio onde ela estava.

    Ouviu o carro aproximar-se, parar e virar. Cade saiu e correu para elas, abraçando-as.

    - Vocês estão bem. Vocês estão bem. Ouvi as sirenes e depois vi o fogo. Oh, meu Deus, pensei...

    - Ele não nos fez mal. - O cheiro de Cade estava ali, doce, de homem. Do seu homem. Tory deixou-se invadir por ele. - Está morto. Senti-o morrer.

    - Chiu. Não digas nada. Vou levar-vos para casa.

    - Quero o Wade.

    Cade pousou os lábios no alto da cabeça de Faith.        

    - Vamos buscá-lo, querida. Vem comigo. Apoia-te em mim.

    - Cade, ele levou o teu carro. - Faith manteve os olhos fechados, o rosto contra o peito do irmão. - Desculpa.

    Cade abanou a cabeça e abraçou-a com mais força.

    - Não penses nisso. Vai tudo correr bem.

    À beira do descontrole, ajudou-as a entrar no carro. Quando arrancou, a agente Williams saiu para a estrada e fez-lhe sinal.

    - Miss Bodeen, pode confirmar que se trata do seu pai? - Fez um gesto na direção dos destroços. - Que era Hannibal Bodeen que ia a conduzir aquele veículo?

    - Sim. Está morto.          

    - Preciso lhe fazer umas perguntas.

    - Não neste local nem neste momento. - Cade voltou a engatar a primeira. - Passe por Beaux Revés, quando terminar aqui. Vou levá-las para casa.

    - Está bem. - Williams olhou para Tory. - Está ferida?

    - Já não.

    Por um momento, sentiu a mente em branco. Sentiu vagamente Cade a levá-la para casa e a ajudá-la a subir as escadas. Afastou-se ainda mais quando ele a deitou numa cama.

    Passado pouco tempo, sentiu qualquer coisa fresca no rosto. Abriu os olhos e viu os dele.

    - Estou bem. Só um bocadinho cansada.

    - Fui buscar uma das camisolas da Faith. Vais sentir-te melhor depois de a vestires.

    - Não. - Ela sentou-se e abraçou-o. - Já me sinto melhor. Ele acariciou-lhe o cabelo, suavemente. Depois agarrou-a com força e enterrou a cara no cabelo dela.

    - Preciso de um minuto.

    - Eu também. De muitos minutos, provavelmente. Não me deixes.

    - Não deixo. Não posso. Vi-vos passar. A Faith ia a conduzir como uma louca. Preparei logo o sermão.

    - Ela fez de propósito. Adora fazer-te zangar.

    - E é o que está sempre a fazer. Andei pelo campo a vociferar que ela havia de pagar-mas, e o Piney atrás de mim, a rir como um idiota. Foi nessa altura que ouvi o tiro. Foi como se me tivesse parado o coração. Comecei a correr, mas ainda estava a uma boa distância da estrada e do carro quando a polícia chegou. Vi a explosão. Pensei que te tinha perdido. - Começou a embalá-la. - Pensei que te tinha perdido, Tory.

    - Estive no carro com ele, no meu pensamento. Acho que quis estar, para saber o momento exato em que tudo acabasse.     

    - Ele não pode voltar a tocar-te.

    - Não. Não pode voltar a tocar em nenhum de nós. - Pousou a cabeça na curva forte do ombro dele. - Onde está a Faith?

    - Lá em baixo. O Wade está cá. Ela não consegue parar sossegada. - Afastou-se um pouco dela e o seu olhar percorreu-lhe o rosto. - Vai estar assim até cair, e nessa altura ele estará cá para agarrá-la.

    - Ela ficou comigo. Exatamente como tu lhe pediste. - Soltou um suspiro. - Tenho de ir a casa da minha avó.

    - Ela vem para cá. Telefonei-lhe. Esta é a tua casa agora, Tory. Depois vamos buscar as tuas coisas à Casa do Pântano.

    - Parece-me uma bela idéia.

    O crepúsculo chegou enquanto ela percorria os jardins com a avó.

    - Quem me dera que ficasse aqui conosco, avó. A avó e o Cecil.

    - O J.R. precisa de mim. Perdeu a irmã, uma irmã que ele não foi capaz de salvar de si própria. E eu perdi uma filha. - A voz quebrou-se-lhe. - Já a tinha perdido há muito tempo. Mas, por mais que se negue, há sempre aquela esperança que teima em dizer que tudo vai ficar bem, tudo se há-de compor. Agora, acabou-se.

    - Não sei o que posso fazer por si.

    - Já estás fazendo. Estás viva e estás feliz. - Apertou a mão de Tory. Parecia que não conseguia deixar de abraçá-la, deixar de tocar-lhe.

    - Todos temos de encontrar paz em relação a isto, cada um à sua maneira. - Íris respirou fundo, tentando recuperar a firmeza. - Vou enterrá-la aqui, em Progress. Acho que é assim que deve ser. Passou aqui alguns anos felizes e, bem, o J.R. quer assim. Não quero serviço religioso. Nesse ponto, estou em desacordo com ele. O funeral é depois de amanhã, ao princípio do dia. Se o J.R. quiser, o sacerdote da igreja dele pode dizer umas palavras junto à sepultura. Tory, não te censuro se não quiseres ir.                                      

    - Claro que vou.

    - Fico contente. - Íris sentou-se num banco. Os pirilampos já andavam cá fora, iluminando a escuridão com as suas luzes. - Os funerais são para os vivos, servem para ajudar a fechar um vazio. É melhor ires-te preparando. - Puxou Tory para baixo, fazendo-a sentar-se junto de si. - Já sinto os anos, pote de mel.

    - Não diga isso.

    - Ora, isto passa-me. Nem eu permitiria que não passasse. Mas esta noite sinto-me velha e cansada. Diz-se que os pais nunca deviam enterrar um filho, mas a natureza e o destino é que sabem. Temos que viver com isso. Vamos todos viver com isto, Tory. Quero que me digas que vais agarrar o que tens à tua frente com ambas as mãos e com muita força.

    - Vou, sim. A irmã da Hope sabe fazer isso. Estou aprendendo com ela.

    - Sempre gostei daquela moça. Ela tem intenção de casar com o meu Wade?

    - Acho que ele tem intenção de casar com ela e vai deixá-la pensar que a idéia foi dela.

    - É um rapaz esperto. E forte. Vai mantê-la na linha sem lhe cortar as asas. Vou ver os meus dois netos felizes. É a isso que vou agarrar-me, Tory.

 

    Wade lutava com o nó da gravata. Detestava aquelas malditas coisas. Sempre que usava uma, lembrava-se da sua mãe, com um chapéu de primavera que parecia uma taça de flores virada ao contrário, a estrangulá-lo com uma gravata azul-viva, a condizer com o detestável terno azul-vivo.

    Tinha seis anos, e achava que aquilo o tinha traumatizado para o resto da vida.

    Usava-se gravatas nos casamentos e usava-se gravatas nos funerais. Não havia forma de contornar a questão, mesmo para quem tinha a sorte de ter uma profissão que não exigia a porcaria de uma corda ao pescoço todos os dias da semana.

    Iam enterrar a sua tia dali a uma hora. Também não havia forma de mudar isso.

    Estava a chover, com direito a trovoada. Os funerais exigiam mau tempo, pensou, tal como exigiam gravatas e crepe preta e flores com um perfume exageradamente doce.

    Teria dado um ano da sua vida para poder voltar a meter-se na cama, puxar os cobertores até à cabeça e deixar que tudo acontecesse sem a sua presença.

    - A Maxine disse que não se importa de tratar dos cães - anunciou Faith. Entrou, dentro de um vestido preto perfeitamente digno que encontrara no armário. - Wade, que fizeste a essa gravata?

    - Dei-lhe um nó. É isso que se costuma fazer às gravatas.

    - Parece mais que andaste a brigar com ela. Anda cá, deixa-me ver o que consigo fazer.

    Puxou ligeiramente, depois com mais força e torceu.         

    - Deixa lá. Não importa.

    - Desde que queiras sair com o aspecto de quem tem bócio preto debaixo do queixo. A minha tia-avó Harriet tinha bócio, e não era bonito de se ver. Fica quieto um minuto, estou quase conseguindo.

    - Deixa, Faith. - Afastou-se para pegar no casaco do terno. - Quero que fiques aqui. Não vale a pena saíres por causa disto, não vale a pena ficarmos os dois molhados e infelizes durante as próximas horas. Já chega aquilo por que passamos.

    Ela pousou a bolsa em que acabara de pegar.

    - Não me queres contigo?

    - Devias ir para casa.

    Ela olhou para ele e depois em volta. O perfume dela estava em cima da cômoda dele, o roupão pendurado no cabide, atrás da porta.

    - Engraçado, e eu aqui a pensar que era aí que estava. Enganei-me, afinal?

    Ele tirou a carteira da gaveta e meteu-a no bolso de trás, depois de tê-la esvaziado dos trocos.

    - O funeral da minha tia é o último sítio onde devias estar.

    - Isso não responde à minha pergunta, mas vou fazer outra. Porque é que o funeral da tua tia é o último sítio onde eu devia estar?

    - Por amor de Deus, Faith, pensa. A minha tia foi casada com o homem que matou a tua irmã e que podia ter-te morto há dois dias. Se já te esqueceste disso, eu não.              

    - Não, não me esqueci disso. - Virou-se para o espelho e, para manter as mãos ocupadas, pegou na escova. Com uma calma aparente, passou-a pelo cabelo. - Sabes, muitas pessoas, provavelmente a maioria delas, acham que eu não tenho muito mais bom senso do que uma rama de nabo. Que sou frívola e tonta e demasiado leviana para me prender a qualquer coisa durante mais tempo do que aquele que levo a limar as unhas. Não faz mal.                           

    Pousou a escova, pegou no frasco de perfume e pôs um pouco no pescoço.

    - Não faz mal - repetiu. - Para a maioria das pessoas. Mas o engraçado é que achei que tu pensavas melhor de mim. Achei que pensavas melhor de mim do que eu própria.

    - Penso bem de ti.                                                       

    - Pensas, Wade? - Os olhos dela mexeram-se e encontraram os dele, no espelho. - Pensas mesmo? E ao mesmo tempo achas que podes ter essa atitude irritante e enxotar-me hoje. Talvez eu devesse ir ao cabeleireiro enquanto tu vais ao funeral da tua tia. E da próxima vez que tiveres de lidar com alguma coisa difícil ou desconfortável vou às compras. E depois dessa - continuou ela, num tom de voz cada vez mais alto e mais duro -, já não estarei aqui, portanto nem se levantará a questão.                                                   

    - Isto é diferente, Faith.

    - Pensei que fosse. - Pousou o frasco de perfume e virou-se. - Esperava que fosse. Mas se não me queres contigo hoje, se achas que não quero estar contigo hoje, ou não tenho coragem para isso, não é diferente do que já vivi antes. E não estou interessada em repetir-me.

    A emoção assolou-lhe os olhos, enraiveceu-o até as suas mãos se transformarem em punhos.

    - Odeio isto. Odeio ver o meu pai assim, desfeito. Odeio saber que a tua família voltou a ser violentada, e que a minha teve um papel nisso. Odeio saber que estiveste no mesmo quarto que o Bodeen, imaginando o que podia ter acontecido.

    - Ainda bem, porque eu também odeio essas coisas todas. E vou dizer-te uma coisa que talvez não saibas. Há dois dias, quando acabou tudo, assim que consegui voltar a pensar, quis ter-te ao pé de mim. Eras a única pessoa que eu queria comigo. Sabia que irias cuidar de mim e abraçar-me e dizer-me que ia ficar tudo bem. Se não precisas do mesmo da minha parte, então eu também não vou permitir a mim própria precisar de ti. Sou suficientemente egoísta para isso. Vou contigo hoje, e fico ao teu lado e tento dar-te algum conforto. Ou então volto para Beaux Revés e começo a esquecer-te.

    - Sei que farias isso - disse ele, calmamente. - Porque será que admiro isso em ti? Irresponsabilidade? Loucura? - Abanou a cabeça enquanto se aproximava dela. - És a mulher mais forte que conheço. Fica comigo. - Encostou a testa à dela. - Fica comigo.

    - A minha intenção é essa. - Lançou os braços à volta dele e passou-lhe as mãos pelas costas. - Quero poder estar ao teu lado. Isto é novo para mim. E a culpa é tua. Não me largaste até eu me apaixonar por ti. Foi a primeira vez em que não disparei sem olhar. E acho que gosto.

    Abraçou-o e sentiu-o apoiar-se nela. Gostou disso também. Ninguém se apoiara nela antes.

    - Agora, vamos. - Falou energicamente e beijou-o na face. - Vamos chegar atrasados, e um funeral não é ocasião para se fazer uma entrada em grande estilo.

    Ele não conseguiu deixar de rir.

    - Está bem. Tens guarda-chuva?

    - Claro que não.

    - Claro que não. Vou buscar um.

    Enquanto ele remexia no armário, tentando desencantar um guarda-chuva, ela inclinou a cabeça e observou-o com um ligeiro sorriso.

    - Wade, quando ficarmos noivos, compras-me uma safira em vez de um diamante?

    A mão dele fechou-se sobre a pega do guarda-chuva e permaneceu ali.

    - Vamos ficar noivos?      

    - Uma bonita, não muito grande, para não dar muito nas vistas. Quadrada. O primeiro atrasado mental com quem casei nem sequer me deu um anel, e o segundo comprou-me o diamante mais ordinário que conseguiu encontrar.                                             

    Pegou no chapéu preto que atirara para cima da cama e foi até ao espelho para o colocar na cabeça num ângulo adequado.

    - Pelo aspecto que tinha, se calhar era só um bocado de vidro. Vendi-o depois do divórcio, e com o dinheiro passei duas belas semanas num spa de luxo. E gostava de uma safira quadrada.

    Ele tirou o chapéu-de-chuva e afastou-se do armário.

    - Estás a pedir-me em casamento, Faith?

    - Claro que não. - Endireitou a cabeça, para ver se estava bem. - E não penses que, lá porque estou a dar-te umas pistas sobre qual seria a minha resposta, ficas dispensado de fazer o pedido. Espero que sigas a tradição, de joelho no chão e tudo. E - acrescentou -, com uma safira quadrada na mão.

    - Vou tomar nota.                                                               

    - Muito bem, faz lá isso, então. - Estendeu-lhe a mão. - Preparado?

    - Achei que estava. - Pegou-lhe na mão e enlaçou os dedos nos dela, com força. - Mas nunca se está preparado para ti.

 

    Enterraram a mãe dela debaixo de uma chuva que bombardeava o chão como balas, enquanto os relâmpagos dilaceravam o céu, a este. Violência, pensou Tory. A mãe vivera com ela, morrera com ela e, mesmo agora, parecia atraí-la.

    Não ouviu o sacerdote, embora estivesse certa de que as suas palavras procuravam trazer conforto. Sentiu-se demasiado desprendida para precisar dele, e não conseguia sentir-se mal por isso. Nunca conhecera a mulher que estava no caixão coberto de flores. Nunca a compreendera, nunca dependera dela. Se Tory sofria, era pela ausência com que vivera a vida inteira.

    Observou a chuva bater no caixão, a martelar nos guarda-chuvas. E esperou que terminasse.

    Viera mais gente do que ela esperara, formando um pequeno círculo escuro e melancólico. Ela e o tio ladeavam a avó, com o enorme Cecil logo atrás. E Cade estava ao lado dela.

    Boots, abençoada, chorava baixinho entre o marido e o filho.

    As cabeças mantiveram-se curvadas enquanto as orações eram lidas, mas Faith levantou a dela e encontrou os olhos de Tory. E sentiu o conforto inesperado de alguém que compreendia.

    Dwight viera, por ser presidente da câmara, supôs Tory. E por ser amigo de Wade. Manteve-se um pouco afastado, com ar solene e respeitoso. Imaginou que ele estaria desejoso que aquilo acabasse, para poder voltar para Lissy.

    Ali estava Lilah, firme como uma rocha, os olhos secos enquanto acompanhava silenciosamente o sacerdote nas orações.

    E, estranhamente, a tia Rosie, toda vestida de preto, incluindo chapéu e véu. Apanhara toda a gente de surpresa quando chegara, com uma mala enorme, na noite anterior.

    Margaret estava temporariamente em casa dela, anunciara. O que significava que Rosie fizera imediatamente as malas para ficar temporariamente noutro lado.

    Oferecera a Tory o vestido de casamento da mãe, que amarelecera como manteiga, com o passar do tempo, e deitava um cheiro forte a bolas de naftalina. Depois, vestira-o e usara-o durante o resto da noite.

    Quando o caixão baixou à terra molhada, e o sacerdote fechou o livro, J.R. deu um passo em frente.

    - Ela teve uma vida mais difícil do que precisava. - Pigarreou. - E uma morte mais dura do que merecia. Agora, está em paz. Quando era menina, os malmequeres amarelos eram as suas flores preferidas. - Beijou o malmequer que tinha na mão e atirou-o para a sepultura. Depois virou-se para a mulher.

    - Ele teria feito mais por ela - disse Íris - se ela o tivesse deixado. Vou visitar o Jimmy, daqui a pouco - disse ela a Tory. - Depois, vamos para casa. - Agarrou Tory pelos ombros e beijou-a em ambas as faces. - Estou feliz por ti, Tory. E orgulhosa. Kincade, toma conta da minha menina.

    - Sim, minha senhora. Espero que venham passar uns dias conosco quando voltarem a Progress.

    Cecil baixou-se para tocar com os lábios na face de Tory.   

    - Eu tomo conta dela - sussurrou. - Não te preocupes.

    - Não me preocupo. - Virou-se, sabendo que as pessoas estavam à espera que ela começasse a receber condolências. Rosie já ali estava, com os olhos brilhantes como os de um pássaro, atrás do véu. - Foi um belo serviço religioso. Digno e breve. Condiz contigo.

    - Obrigada, Miss Rosie.                                        

    - Não podemos escolher a nossa família, mas podemos escolher o que fazer com ela. - Tocou no rosto de Tory e olhou para o sobrinho. - Escolheste bem. A Margaret vai entender, ou talvez não, mas não te preocupes com isso. Vou falar com a Íris, e saber quem é aquele homem grande e musculado que está com ela.

    Avançou pela lama, com um traje Chanel de dois mil dólares e sapatos Birkenstock.                                                                 

    Tentando não ceder à vontade de rir, nem à de chorar, Tory pôs a mão no braço de Cade.

    - Vai levar-lhe o teu guarda-chuva. Eu fico bem.

    - Volto já.                                                      

    - Tory, lamento imenso. - Dwight estendeu-lhe a mão e, agarrando a dela, beijou-a na face enquanto mudava a posição do guarda-chuva para protegê-la. - A Lissy queria vir, mas eu obriguei-a a ficar em casa.

    - Ainda bem. Não seria bom para ela sair com este tempo. Foi simpático da tua parte estares presente, Dwight.

    - Conhecemo-nos há muito tempo. E o Wade é um dos meus dois melhores amigos. Tory, há alguma coisa que eu possa fazer por ti?

    - Não, mas obrigada. Vou dar uma volta e visitar o túmulo da Hope, antes de ir-me embora. Devias ir para casa, ter com a Lissy.

    - E vou. Fica com isto. - Colocou a mão dela no guarda-chuva.

    - Não, eu estou bem.

    - Fica com ele - insistiu. - E não fiques na chuva durante muito tempo.

    Deixou-a e voltou a aproximar-se de Wade.

    Grata pelo abrigo, Tory desviou o olhar do túmulo da sua mãe e começou a caminhar por entre a erva e as pedras, até ao túmulo de Hope.                                                                                                                                                 

    A chuva caía pelo rosto do anjo como lágrimas, e batia nas rosas mágicas. Dentro do globo, o cavalo alado voava.

    - Acabou tudo. Ainda não sinto paz - disse Tory, com um suspiro. - Tenho este peso dentro de mim. Bem, são demasiadas coisas para digerir ao mesmo tempo. Quem me dera... há tantas coisas a desejar.

    - Nunca venho pôr flores aqui - disse Faith, atrás dela. - Não sei porquê.

    - Ela tem as rosas.

    - Não é isso. Não são as minhas rosas, rosas que eu lhe venha trazer.

    Tory olhou para trás e deu alguns passos para ficarem ao lado uma da outra.

    - Não consigo senti-la aqui. Talvez tu também não consigas.

    - Quando chegar a minha vez, não quero ser enterrada. Quero as minhas cinzas espalhadas algures. No mar, acho eu, porque é lá que estou planejando fazer com que o Wade me peça em casamento. Junto ao mar. Talvez ela sentisse o mesmo, só que as dela teriam sido espalhadas no rio, ou próximo do rio, no pântano. Ali era o lugar dela.

    - Pois era. Ainda é. - Pareceu-lhe importante e natural dar a mão a Faith. - Há flores em Beaux Revés, que foi também o lugar dela. Acho que vou cortar algumas, quando a tempestade passar, e levá-las até ao pântano. Até ao rio. Deixá-las lá para a Hope. Talvez essa seja a coisa certa a fazer, pôr flores na água em vez de deixá-las morrer no chão. Queres fazer isso comigo?

    - Odiei partilhá-la contigo. - Faith fez uma pausa e fechou os olhos. - Agora já não. O tempo vai melhorar da parte da tarde. Vou dizer ao Wade. - Começou a afastar-se, mas deteve-se. - Tory, se fores a primeira a chegar...

    - Espero por ti.

    Tory viu-a afastar-se e olhou para trás, para o pequeno outeiro, a cortina de chuva, a umidade que começava a condensar-se junto à terra. Ali estavam a avó e Cecil, forte, a apoiá-la, Rosie com o seu véu e Lilah, com um chapéu-de-chuva.

    J.R. e Boots continuavam junto à sepultura da irmã que ele amara mais do que pensava.

    E ali estava Cade, com os seus amigos, à espera.

    À medida que se foi aproximando dele, a chuva começou a escassear e o primeiro raio de sol lançou a sua luz líquida e rompeu a escuridão.

    - Compreendes porque quero fazer isto?

    - Compreendo que queiras.                                             

    - Tory sorriu um pouco, enquanto sacudia a chuva das hastes de alfazema que acabara de colher.

    - E estás aborrecido, só um bocadinho, por eu não te pedir que venhas comigo.

    - Um bocadinho. Mas isso é contrabalançado pelo fato de tu e a Faith estarem a tornar-se amigas. E tudo isso é suplantado pelo terror de saber que vou ficar à mercê da Tia Rosie até regressares. Tem um presente para mim, já o vi. É um chapéu alto, a cheirar a mofo, que ela espera que eu use no nosso casamento.

    - Fica bem com o vestido roído pelas traças que ela me vai dar. Vamos fazer uma coisa: tu usas o chapéu, eu uso o vestido, e pedimos à Lilah que nos tire uma fotografia. Pomo-la numa moldura bonita para a Tia Rosie, e depois metemo-los num sítio escuro e seguro antes do casamento.

    - Brilhante. Vou casar com uma mulher inteligente. Mas temos de tirar a fotografia esta noite. Casamos amanhã.

    - Amanhã? Mas...

    - Aqui - disse ele, abraçando-a. - Tranquilamente, no jardim. Já tratei de quase todos os pormenores, e vou tratar do resto hoje à tarde.                                                                                      

    - Mas, a minha avó...

    - Já falei com ela. Ela e o Cecil vão ficar mais uma noite. Vão assistir ao casamento.

    - Não tive tempo de comprar um vestido, nem...

    - A tua avó falou nisso, e espera que estejas disposta a usar o que ela vestiu quando casou com o teu avô. Vai num instante a Florence buscá-lo, esta tarde. Disse que significaria muito para ela;

    - Pensaste em tudo, não foi?

    - Sim. Tens algum problema com isso?

    - Vamos ter muitos problemas com isso, nos próximos cinquenta ou sessenta anos. Mas para já? Não.                                         

    - Muito bem. A Lilah está a fazer um bolo. O J.R. vai trazer uma caixa de champanhe. A idéia animou-o consideravelmente.

    - Obrigada.

    - Já que estás tão grata, deixa-me acrescentar que a minha tia Rosie está pensando em cantar.

    - Não acrescentes. - Recuou um pouco. - Não vamos estragar este momento. Bem, já que toda a gente aprovou o horário e os detalhes, quem sou eu para me opor? Também já trataste da lua-de-mel? - Viu-o hesitar e revirou os olhos. - Cade, francamente.

    - Não vais discutir por causa de uma viagem a Paris, pois não? Claro que não. - Deu-lhe um beijo rápido antes de ela poder responder. - Talvez queiras fechar a loja durante uns dias, mas a Boots gostou da idéia de tomar conta dela e a Faith andava com umas idéias.

    - Meu Deus.

    - Mas isso é contigo.

    - Muito obrigada. - Passou a mão pelo cabelo. - Tenho a cabeça à roda. Falamos sobre isto tudo quando eu voltar.

    - Claro. Sou flexível.

    - O diabo é que és - resmungou ela. - Finges ser. - Pegou no cesto com as flores e entregou-lhe a tesoura de corte. - Não comeces a dar nomes às crianças enquanto eu estiver fora.

    Homem exasperante, pensou ela, enquanto se metia no carro e colocava o cesto com as flores no assento ao lado. A planejar o casamento nas costas dela. E a planejar exatamente o tipo de casamento que ela queria. Que irritante, e que maravilhoso, alguém conhecer-nos tão bem.

    Então, porque não estava tranquila? Quando entrou na estrada, rodou os ombros. Não conseguia acabar com a tensão. Era compreensível, disse a si própria. Passara por uma provação terrível. Não conseguia imaginar-se a casar dali a vinte e quatro horas, com tantas coisas presas dentro de si.

    Mas queria começar uma vida nova. Queria fechar esta porta e abrir a próxima. Olhou para as flores que levava ao seu lado. Talvez fosse isso que estava prestes a fazer.

    Estacionou na beira da estrada, onde Hope deixara a bicicleta. Depois de sair, atravessou a pequena ponte onde as coroas imperiais floriam como num livro de contos, e seguiu pelo caminho que sabia que a sua amiga tomara naquela noite.

    Hope Lavelle, a espiã.

    A chuva transformara-se numa espécie de vapor, que se elevava do chão como dedos curvados que se separavam e depois se voltavam a unir, à volta dos tornozelos dela. O ar estava cheio de umidade, de verde, de fungos. De mistérios por resolver.

    Quando se aproximou da clareira, desejou ter-se lembrado de trazer alguma madeira. Ali estaria tudo demasiado úmido para fazer uma fogueira, e talvez fosse uma tolice querer fazer uma, com aquele calor. Mas lamentou não ter pensado nisso, porque assim poderia acender uma, como fizera Hope.

    A pensar nisso, a recordar-se disso, cheirou-lhe a fumo.

    Ali estava a fogueira, pequena e cuidadosamente preparada para não lançar chamas altas, um pequeno círculo de chamas, com uma série de paus compridos e afiados, ao lado, à espera de marshmallows.

    Pestanejou uma vez, para perceber se era verdade. Mas a fogueira ardia devagar e o fumo esvanecia-se lentamente na neblina. Intrigada, Tory entrou na clareira, com o cesto prestes a entornar-lhe as flores aos pés.

    - Hope? - Levou uma mão ao coração, como que a certificar-se de que ele continuava a bater. Mas a criança de mármore que fora sua amiga permaneceu no seu mar de flores e não disse nada.

    Com a mão a tremer, pegou num dos paus e viu que os cortes feitos para o afiar eram recentes.

    Não era um sonho, não era um flashback. Estava a acontecer ali e naquele momento. Era real.

    Não era Hope. Nunca mais seria Hope.

    A pressão cresceu dentro dela, num assomo quente de medo e de entendimento.

    Dos arbustos veio um restolhar, úmido e dissimulado.

    Ela virou-se na direção dele. A senha. Pensou isso, ouvi-o na sua cabeça. Mas não era Hope. Não tinha oito anos. E, Deus!, afinal não tinha acabado.

 

    Cade estava no jardim, a decidir onde deviam pôr as mesas para o copo-d'água, quando o chefe Russ apareceu.

    - Ainda bem que está aqui. Acabei de receber novidades que achei que devia saber.                                                        

    - Entre, lá dentro está fresco.

    - Não, não posso demorar-me, mas quis dizer-lhe pessoalmente. Temos o relatório da balística sobre Sarabeth Bodeen. A arma com que ela foi morta não foi a mesma que o Bodeen tinha com ele. Nem sequer são do mesmo calibre.

    Cade sentiu-se levemente tocado pelo medo.

    - Não sei bem se estou compreendendo.

    - Acontece que a arma que o Bodeen tinha quando entrou na casa onde estavam a Tory e a sua irmã foi roubada de uma casa a cerca de vinte e cinco quilômetros daqui, na manhã em que a mãe da Tory foi morta. A casa foi assaltada entre as nove e as dez da manhã desse dia.

    - Como pode isso ser?

    - A única maneira é o Bodeen ter aberto as asas e voado até aqui desde Darlington County. Ou então, foi outra pessoa que meteu aquelas balas na Miss Bodeen.

    Cari D. cobriu o queixo com a mão e esfregou-o com força. Os olhos ardiam-lhe de cansaço.

    - Tenho estado em contacto com os agentes federais, e estou encaixando as peças. Miss Bodeen recebeu um telefonema logo depois das duas da manhã, da cabine que fica à saída de Winn-Dixie, a norte daqui. Ora, seria de pensar que foi o Bodeen que lhe telefonou daqui, dizendo-lhe que ia buscá-la. Até aqui, tudo bem. Mas as coisas não encaixam, quando se acrescenta o resto.                       

    - Foi o Bodeen que lhe telefonou, de certeza. Senão, porque teria ela feito as malas?

    - Não sei. Mas imaginemos que ele telefonou daqui, por volta das duas da manhã, foi até lá, disparou os tiros entre as cinco e as cinco e meia, e depois voltou para aqui e foi mais vinte e cinco quilômetros para sul, assaltou uma casa e roubou uma arma, uma garrafa e uns restos do jantar. Ora, porque andaria o homem a ziguezaguear para trás e para a frente?

    - Era louco.

    - Não vou dizer o contrário, mas o fato de ser louco não faz com que seja capaz de andar a bater recordes de velocidade numa manhã. Principalmente porque parece que não tinha nenhuma espécie de veículo. Ora, não estou a dizer que não pudesse ser feito. Estou a dizer que não faz sentido.

    - E que tipo de sentido pode fazer de outra maneira? Quem mais poderia ter morto a mãe de Tory?

    - Não posso responder a isso. Tenho que trabalhar com fatos. Ele tinha a arma errada, e nós não temos nada que prove que o homem tinha carro. Mas pode ser que ainda venhamos a encontrá-lo, ou à arma que ele usou para matar a mulher. Pode ser.

    Tirou o lenço do bolso e limpou a parte de trás do pescoço.

    - Mas parece-me que se o Bodeen não cometeu aqueles crimes em Darlington County, talvez não tenha morto ninguém. Isso significa que quem quer que os tenha cometido ainda anda à solta. Vinha à espera de conseguir conversar com a Tory.

    - Ela não está aqui. Ela... - Um medo branco e quente atravessou-o por dentro. - Foi ter com a Hope.

 

    Tory abriu a mente, tentou senti-lo, medi-lo. Mas tudo o que viu foi escuridão. Um escuro frio e vazio. O restolhar movia-se num círculo, persistente. Ela movia-se com ele, e mesmo quando a saliva lhe secou na boca virou-se para enfrentá-lo.

    - Qual de nós duas querias naquela noite? Ou será que isso não interessava?

    - Nunca foste tu. Porque havia eu de querer-te? Ela era linda.

    - Era uma criança.

    - Verdade. - Dwight entrou na clareira. - Mas eu também.

    Ela sentiu o coração despadaçar-se. De uma só vez.

    - Eras amigo do Cade.

    - Claro. Cade e Wade, como se fossem, eles próprios, gêmeos. Ricos e privilegiados e bonitos. E eu era o seu gorducho de estimação. Dwight, o Marrão. Pois bem, enganei-os a todos, não foi?

    Ele devia ter doze anos, pensou Tory, observando o sorriso fácil no rosto dele. Não teria mais de doze anos.           

    - Porquê?

    - Chama-lhe um rito de passagem. Eles eram sempre os primeiros. Um ou o outro, eram sempre primeiros em tudo. Eu ia ser o primeiro a ter uma moça.

    Uma espécie de divertimento (só podia ser isso) bailou-lhe nos olhos.

    - Não era coisa de que pudesse gabar-me. Era mais ou menos como ser o Batman.

    - Meu Deus, Dwight.

    - É difícil perceberes, porque és mulher. Vamos chamar-lhe uma coisa de homens. Tinha uma comichão. Porque não havia de ter usado a irmã do meu bom amigo Cade para coçá-la?

    Falava tão calmamente, com tanta naturalidade, que os pássaros continuavam a cantar, notas líquidas em vez de lágrimas.       

    - Não sabia que ia matá-la. Aquilo... aconteceu. Tinha bebido uísque do meu pai, às escondidas. Beber como um homem, sabes? Tinha a cabeça um bocado tonta.

    - Tinhas apenas doze anos. Como pudeste querer uma coisa dessas?

    Ele percorreu o círculo da clareira, não se aproximando exatamente, jogando apenas o paciente jogo do gato e do rato.

    - Costumava observar-vos, às duas, enquanto nadavam nuas ou se estendiam aqui, de barriga para baixo, a contar segredos. E o teu velhote também - disse ele, com um esgar. - Pode dizer-se que fui inspirado por ele. Ele desejava-te. O teu velho queria foder-te, mas não tinha bolas para isso. Eu fui melhor do que ele, melhor do que qualquer deles. Naquela noite, fui um homem.

    Presidente da câmara, pai orgulhoso, marido dedicado, amigo leal. Que espécie de loucura podia esconder-se tão bem?

    - Violaste e assassinaste uma criança. Isso fez de ti um homem?

    - Toda a minha vida ouvi «Sê um homem, Dwight...» - O divertimento esmoreceu nos olhos dele, que se tornaram frios e vazios. - Por amor de Deus, sê um homem. Não se pode ser homem sendo virgem, pois não? E nenhuma moça olharia para mim duas vezes. Eu tratei disso. Aquela noite mudou a minha vida. Olha para mim agora.

    Abriu os braços e aproximou-se, observando-a.

    - Tenho confiança, estou em forma, e não é que acabei por ficar com a moça mais bonita de Progress? Tenho respeito. Uma mulher linda, um filho. Tenho posição. E tudo começou naquela noite.

    - Todas as outras moças...

    - Porque não? Não podes imaginar o que é. Ou talvez consigas. Sim, talvez consigas. Enquanto está a acontecer, sou a pessoa mais importante do mundo para elas. Sou o mundo para elas. Isso dá um prazer inimaginável.

    Tory pensou em fugir. A idéia entrava-lhe e saía-lhe da cabeça a cada segundo. Até que viu o brilho nos olhos dele, viu que era exatamente disso que ele estava à espera: que ela tentasse fugir. Delibe-radamente, Tory começou a respirar mais devagar e abriu a mente. Outra vez o vazio, como um buraco, mas à volta havia uma espécie de fome.                                                         

    Reconhecê-la, antecipá-la, era a única arma que Tory possuía.

    - Nem sequer as conhecias. Eram estranhas para ti, Dwight.

    - Limito-me a imaginar que elas são a Hope, e é aquela primeira noite que se repete. Não passam de vagabundas e falhadas, até que eu as transformo nela.

    - Não foi o mesmo com a Sherry.

    - Não quis esperar. - Encolheu os ombros. - A Lissy não anda muito virada para o sexo, ultimamente. E aquela professorazinha sexy queria. Mas queria que fosse o Wade, devassa estúpida. Pois bem, fui eu que lhe dei o que ela queria. Mas não foi bem o que eu achava que ia ser. Não foi bem. A Faith é perfeita.   

    Dwight viu Tory sobressaltar-se.

    - Pois, andas muito juntinha à Faith, não andas? Eu também tenciono ficar muito juntinho a ela. Ia esperar por ela até agosto, tenho o meu pequeno ritual, como sabes. Mas vou ter de apressar as coisas. Ah, a propósito: ela vai atrasar-se. Convenci a Lissy a ir visitá-la, e tu conheces a minha mulher. Vai manter a Faith ocupada o tempo suficiente.

    - Desta vez vão ficar a saber, Dwight. Não vais conseguir culpar mais ninguém.

    - O teu pai colaborou muito, não colaborou? Já te disse que fui eu quem matou a tua mãe? Fiz-lhe um telefonema, disse-lhe que era um amigo e que o seu adorado marido estava a caminho da casa, para ir buscá-la. Pareceu-me uma boa tática para deixar os polícias às aranhas e para me deixar em situação de observador, na minha qualidade de presidente da câmara preocupado.

    - Ela não significava nada para ti.

    - Nenhuma delas significava. Excepto a Hope. E não te preocupes comigo. Ninguém vai desconfiar de mim. Sou um cidadão exemplar, e neste momento estou no centro comercial a comprar um ursinho para o meu filho que vai nascer. Um grande urso amarelo. A Lissy vai adorá-lo.

    - Nunca consegui sentir-te - murmurou. - Porque não há nada para sentir. És praticamente vazio por dentro.

    - Cheguei a pensar nisso. Passei uns maus momentos por causa disso. Hoje peguei-te na mão, uma espécie de teste, só para ver. Não sentiste nada. Mas agora vais sentir, antes de terminarmos. Porque não foges, como ela fez? Sabes que ela fugiu e gritou. Vou dar-te uma oportunidade.

    - Não. Eu é que vou dar uma oportunidade a mim própria.

    Sem um instante de hesitação, investiu com o pau afiado na mão, apontando aos olhos de Dwight.                                         

    Quando ele gritou, ela correu, como Hope fizera. O musgo emaranhava-se-lhe no cabelo, roçava-lhe nas pernas como aranhas, e o chão sugava-lhe os pés avidamente. Os sapatos escorregavam por entre os fetos ensopados, enquanto ela embatia dolorosamente nos ramos.

    Viu o que Hope vira, as duas imagens sobrepostas numa só. A noite quente de verão fundida com a tarde chuvosa. E sentiu o que Hope sentira, com o seu próprio medo e a sua própria raiva a correrem logo à frente do terror da criança.

    Ouviu o que Hope ouvira, os passos a ressoarem atrás dela, o restolhar entre os arbustos.

    Foi a raiva que a fez parar e que a fez virar-se para trás, antes de a intenção estar perfeitamente definida na sua cabeça. Queimou-a por dentro, negra como alcatrão, quando investiu sobre ele com os dentes e as unhas.

    Surpreendido pelo ataque, meio cego devido ao sangue, caiu aos pés dela, uivando de dor quando ela lhe cravou os dentes no ombro. Ele debateu-se, mas ela agarrou-se a ele como um gancho, cravando-lhe as unhas na cara.

    Nenhuma das outras conseguira lutar contra ele, mas ela lutaria. Por Deus, lutaria!

    Eu sou a Tory. As palavras eram um grito de batalha a tinir-lhe nos ouvidos. Ela era Tory e lutaria.

    Mesmo quando as mãos dele lhe apertaram a garganta, ela continuou a investir. Quando a visão se lhe nublou, quando o ar começou a faltar-lhe, usou os punhos.  

    Alguém gritava o nome dela, num desespero que ecoava por entre o tumulto do sangue que tinha dentro da sua cabeça. Cravou dedos e unhas nas mãos que lhe apertavam a garganta, quase sufocada quando elas a soltaram.

    - Agora estou a sentir-te. Medo e dor. Agora sabes. Agora sabes, filho da mãe.

    Sentiu-se agarrada e lutou desesperadamente, o olhar fixo no rosto de Dwight. O sangue escorria-lhe do olho e tinha a cara rasgada pelas unhas dela.

    - Agora já sabes. Agora já sabes.

    - Tory. Pára, pára! Olha para mim.

    Com o rosto pálido e empapado em suor, Cade segurou-lhe o rosto até ela voltar a ver claramente.

    - Ele matou-a. Foi sempre ele. E eu nunca vi. Detestou-te durante toda a tua vida. Detesta-vos a todos.

    - Estás ferida.

    - Não, não estou. É sangue dele.

    - Cade, meu Deus. Ela enlouqueceu. - A tossir, Dwight rolou até ficar de lado, e tentou pôr-se de pé com a ajuda das mãos e dos joelhos. Sentia-se como se estivesse a sangrar de mil feridas. O seu olho direito parecia carvão em brasa. Mas tinha a cabeça a funcionar, e a funcionar bem e depressa. - Ela pensou que eu era o pai dela.

    - Mentiroso! - A raiva renasceu e fê-la debater-se violentamente para se libertar de Cade. - Ele matou a Hope. E estava aqui à minha espera.

    - Matei a Hope? - O sangue escorria-lhe da boca rasgada quando Dwight caiu de joelhos. - Isso foi há quase vinte anos. Ela está doente, Cade. Toda a gente pode ver que ela está doente. Meu Deus, o meu olho. Tens de ajudar-me.

    Tentou pôr-se de pé e ficou genuinamente chocado quando as pernas não lhe obedeceram.

    - Por amor de Deus, Cade, chama uma ambulância. Vou perder a porra do olho.

    - Sabias que elas vinham aqui. - Cade manteve os braços de Tory firmemente agarrados enquanto observava o rosto maltratado do seu velho amigo. - Sabias que elas se esgueiravam à noite para virem para aqui. Fui eu que te disse. Até rimos por causa disso.

    - O que é que isso tem a ver com o que quer que seja? - O olho são de Dwight mexeu-se quando ele ouviu o fustigar dos ramos molhados. Cari D., arquejante devido ao esforço, surgiu entre os arbustos. - Graças a Deus. Chefe, chame uma ambulância. A Tory teve uma espécie de ataque nervoso. Veja o que ela me fez.

    - Meu bom Jesus Cristo! - murmurou Cari D., enquanto se apressava a chegar junto de Dwight.

    - Ele queria que eu fugisse. Mas eu parei de correr. - Tory deixou de se debater e pôs a mão sobre a de Cade quando Cari D. se baixou para pôr o seu lenço sobre o olho devastado de Dwight. - Ele matou a Hope, e as outras. Matou a minha mãe.

    - Já vos disse, ela é maluca - gritou Dwight. Não conseguia ver. Merda, não conseguia ver. Começou a bater os dentes. - Ela não consegue enfrentar o que o pai dela fez.

    - Vamos levar-te para o hospital, Dwight, e depois vamos resolver isto tudo. - Cari D. olhou para Tory. - Está ferida?

    - Não, não estou ferida. Não quer acreditar em mim. Não quer acreditar que o que ele é tem vivido lado a lado consigo, durante todos estes anos. Mas tem. Encontrou uma maneira de viver.

    Virou-se e fixou os olhos de Cade.

    - Lamento.                                                                            

    - Eu também não quero acreditar em ti. Mas acredito.

    - Eu sei. - Agarrando-se a isso, pôs-se de pé. - A arma que ele usou para matar a minha mãe está no sótão da casa dele, por cima das vigas, do lado sul. - Suavemente, passou a mão pela garganta, no sítio onde a violência dos dedos dele deixara marca. - Cometeste um erro, Dwight, ao deixares-me chegar tão longe, ao deixares-me aproximar tanto. Devias ser mais cuidadoso com o que pensas.

    - Ela está a mentir. Foi ela que lá pôs a arma. Ela é maluca. - Cambaleou quando Cari D. o puxou, fazendo-o levantar-se.

    - Cade, fomos amigos durante toda a vida. Tens de acreditar em mim.

    - Tu é que tens de acreditar numa coisa - disse-lhe Cade. - Se eu tivesse chegado aqui mais cedo, a esta hora estarias morto. Podes acreditar nisso. E nunca o esquecer.

    - Agora tens de vir comigo, Dwight. - Cari D. pôs as algemas nos pulsos de Dwight.

    - O que está a fazer? Que diabo está a fazer? Está a dar mais importância à palavra de uma mulher maluca do que à minha?

    - Se aquela pistola não estiver onde ela disse, ou caso não condiga com a que foi usada para matar um polícia jovem e uma mulher indefesa, vou apresentar-te um enorme pedido de desculpas. Vem comigo. Miss Tory, é melhor ir ao hospital também.

    - Não. - Limpou o sangue da boca com as costas da mão. - Ainda não fiz o que vim aqui fazer.

    - Vão lá - disse-lhes Cari D. - Eu trato disto. Miss Tory, passo por sua casa mais tarde, para falar consigo.

    - Ela é maluca. - Dwight continuou a gritar a frase repetidamente enquanto Cari D. o levava.

    - Sente-se insultado. - Com uma gargalhada nervosa, Tory pressionou os dedos contra os olhos. - É essa a emoção primária que o percorre neste momento. Insultado por ser tratado como um criminoso. É ainda maior do que o ódio e do que a demência.

    - Afasta-te dele - pediu Cade. - Não olhes para ele.

    - Tens razão, Cade. Tens razão.

    - É a segunda vez que quase te perco. Diabos me levem se vai voltar a acontecer.

    - Acreditaste em mim - murmurou Tory. - Senti como isso te magoava, mas acreditaste em mim. Não tenho palavras para te dizer o que isso significa para mim. - Apertou-o num abraço forte. - Tu gostavas dele. Lamento muito.

    - Nem sequer o conhecia. - E, ainda assim, Cade estava a sofrer. - Se eu pudesse voltar atrás...

    - Não podemos. Demorei muito tempo a aprender isso.

    - Tens a cara ferida. - Beijou-a.

    - A dele está pior. - Encostou a cabeça ao ombro dele quando começaram a andar. - Eu estava a fugir, e ia continuar a fugir, mas de repente ali estava esta vida dentro de mim. Esta raiva viva. Ele não ia ganhar, não ia perseguir-me como uma raposa atrás de um coelho. Por uma vez, ele iria saber como era. Ia ficar sabendo.

    Cade sabia que nunca tiraria completamente aquela imagem da sua cabeça. A imagem de Tory, de rosto ferido e ensanguentado, a atacar Dwight como um gato. E as mãos dele à volta do pescoço dela.

    - Ele vai continuar a negar - disse Cade. - Vai contratar advogados. Mas não importa. O que ele vier a fazer não interessa.

    - Não. Acho que podes confiar na agente Williams para resolver o assunto. Pobre Lissy. - Suspirou. - Que irá ela fazer?

   

    Tory parou na clareira para apanhar as flores que tinham caído. A fogueira estava agora em cinzas, e a luz penetrava por entre as árvores em raios oblíquos e líquidos.

    - Vou voltar aqui e fazer isto com a Faith noutra ocasião. Esta é para mim e para ti.                                                               

    Juntos, caminharam até à margem do rio.

    - Nós amávamo-la e havemos de recordá-la sempre. - Tory lançou flores à água. - Mas agora acabou. Finalmente. Esperei tanto tempo para dizer adeus.

    Tory ainda tinha lágrimas dentro de si, mas eram lágrimas tranquilas e apaziguadoras. Brilhavam-lhe no rosto quando se voltou para Cade.

    - Gostaria de casar contigo no jardim, amanhã, e usar o vestido da minha avó.

    Ele pegou-lhe na mão e beijou-a.

    - Gostarias?

    - Sim, gostaria. Sim, gostaria muito. E gostaria de ir a Paris contigo, e sentar-me a uma mesa bem iluminada, e beber vinho e fazer amor contigo ao nascer do Sol. Depois, gostaria de voltar aqui e construir uma vida contigo.                                                                

    -Já estamos a construí-la.

    Cade puxou-a mais para si. O sol brilhava em raios finos e do musgo pingava água.

    As flores, de pétalas vivas, flutuavam silenciosamente, levadas pelo rio.

 

                                                                                            Nora Roberts

 

 

                      

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