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O Caso dos Dez Negrinhos / Agatha Christie
O Caso dos Dez Negrinhos / Agatha Christie

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O Caso dos Dez Negrinhos

 

                       

 

No canto de um vagão de fumar de primeira classe, o Juiz Wargrave, recentemente aposentado, percorria com um olhar interessado as notícias políticas do Times.

Depois de largar o jornal, olhou pela janela. O trem atra­vessava o condado de Somerset. Consultou o relógio: mais duas horas ainda.

Pôs-se a recapitular mentalmente tudo que aparecera nos jornais sobre a Ilha do Negro. Primeiro, a sua compra por um milionário americano apaixonado pelo yachting, e a des­crição da luxuosa e moderna vivenda que construíra nessa pequena ilha ao largo da costa de Devon. Mas, por infelici­dade, a nova e terceira esposa do milionário norte-americano sofria de enjôo do mar, e tanto a casa como a própria ilha foram subseqüentemente postas à venda. Vários anúncios sen­sacionais apareceram na imprensa. Veio, então, a notícia posi­tiva de que a venda fora efetuada a um Sr. Owen — e co­meçaram os boatos dos cronistas sociais. A Ilha do Negro fora de fato comprada por Miss Gabrielle Turl, a estrela de Hollywood, que desejava passar alguns meses naquele retiro, livre de toda publicidade! Busy Bee insinuara delicadamente que a casa se destinava a ser uma residência da Realeza!?? Mr. Merryweather ouvira cochichar que ela fora comprada para uma lua-de-mel... O jovem Lorde L. rendera-se, afinal, às setas de Cupido! Jonas sabia de ciência certa que o adquirente fora o Almirantado, com vistas em realizar ali certas experiências extremamente sigilosas!

Positivamente, a Ilha do Negro "era notícia".

O Juiz Wargrave tirou uma carta do bolso. A letra era quase ilegível, mas aqui e ali se destacavam algumas pala­vras com inesperada clareza: "Querido Lawrence... tantos anos sem que eu nada soubesse de você... deve vir à Ilha do Negro... o lugar mais encantador do mundo... os velhos tempos... comunhão com a Natureza... lagartear ao sol... às 12:40, da estação de Paddington... nos encontraremos em Oakbridge..." E a remetente assinava, com um floreio de pena, "sua amiga de sempre, Constance Culmington".

O Juiz Wargrave procurou relembrar com exatidão quan­do tinha visto Lady Constance Culmington pela última vez. Seria há uns sete... não, oito anos. Estava, então, de partida para a Itália, onde ia lagartear ao sol e viver em comunhão com a Natureza e os contadini. Mais tarde, soubera que ela havia embarcado para a Síria, onde ia aquecer-se a um sol ainda mais forte e viver em comunhão com a Natureza e os beduínos.

Constance Culmington, refletiu o juiz, era precisamente o tipo de mulher capaz de comprar uma ilha para rodear-se de uma atmosfera de mistério! Sacudindo a cabeça numa plácida aprovação à sua própria lógica, o Juiz Wargrave dei­xou-a descair e ferrou no sono...

 

Num vagão de terceira classe, onde viajava em companhia de mais cinco passageiros, Vera Claythorne recostou a ca­beça no espaldar do assento e cerrou os olhos. Que calor fazia naquele trem! Seria esplêndido ir para o mar! Na ver­dade, fora uma grande sorte conseguir semelhante emprego! Quando se procura trabalho no período de férias, isso quase sempre significa tomar conta de um enxame de crianças... Os empregos de secretária durante as férias são muito mais difíceis de obter. Nem sequer a agência havia dado grandes esperanças.

E então chegara aquela carta:

"Recebi da Agência de Empregadas Especializadas a indicação de seu nome, juntamente com as respectivas referências, das quais deduzo que a senhorita é pessoalmente conhecida dessa entidade. Terei prazer em pagar-lhe o salário que pede e espero que comece a trabalhar em 8 de agosto. O trem a tomar é o das 12:40, em Paddington. Será recebida na estação de Oakbridge. In­cluo cinco notas de uma libra para as despesas.

"Sinceramente, Una Nancy Owen."

 

E no alto vinha o endereço impresso: Ilha do Negro, Sticklehaven, Devon...

Ilha do Negro! Ultimamente não se falava de outra coisa nos jornais. Toda sorte de insinuações e de boatos interes­santes, se bem que provavelmente mentirosos na maioria. Mas era verdade que a casa fora construída por um milioná­rio, e dizia-se que representava a última palavra em matéria de luxo.

Fatigada por um atarefadíssimo trimestre escolar, Vera pensava consigo: "Ser mestra de esportes num estabelecimen­to de terceira ordem é uma coisa miserável... Se ao menos pudesse conseguir lugar nalguma escola decente!"

E em seguida, sentindo um frio no coração, pensou: "Mas a verdade é que tive sorte em consegui-lo. Afinal, ninguém gosta de dar emprego a quem andou às voltas com a justiça, mesmo que o Coroner me tenha isentado de toda culpa!"

Lembrou-se de que ele a tinha até cumprimentado pela sua coragem e presença de espírito. Para um inquérito judicial, não poderia ter-se saído melhor. E a Sra. Hamilton fora para ela a bondade em pessoa. Somente Hugo... mas não queria pensar e não pensaria em Hugo!

De súbito, a despeito do calor que fazia no vagão, estre­meceu arrepiada e desejou que não estivesse viajando para o mar. Uma cena configurou-se nitidamente no seu espírito. A cabeça de Cyril erguendo-se e tornando a mergulhar nas ondas em direção ao rochedo... para cima e para baixo, para cima e para baixo... E ela própria a nadar atrás dele com braçadas suaves e experimentadas... abrindo caminho na água, mas sabendo perfeitamente que não chegaria a tempo...

O mar... o seu azul profundo e tépido... as manhãs passadas na areia... Hugo... Hugo, que dissera amá-la...

Não devia pensar em Hugo...

Abriu os olhos e franziu a testa olhando para o homem sentado à sua frente. Um homem alto. de rosto trigueiro, olhos claros e muito unidos, boca arrogante, quase cruel.

"Aposto que ele esteve em lugares interessantes do mundo e que já viu coisas muito interessantes...", pensou Vera consigo.

 

Philip Lombard, avaliando num rápido relance dos seus olhos vivos a moça que tinha na frente, pensava:

"Bem atraente... Um pouco aprofessorada, talvez."

Senhora de seus atos, imaginava ele, dessas que sabem dirigir-se tanto na guerra como no amor. Bem gostaria de tentar alguma coisa com ela...

Franziu o sobrolho. Não, fora com todas essas coisas. Ia a negócios. Devia concentrar-se na sua ocupação.

Qual seria precisamente essa ocupação'' cismava Lombard. Aquele judeuzinho tinha sido misterioso como o diabo.

— É pegar ou largar, Cap. Lombard. E ele respondera pensativamente

— Cem guinéus, nem?

Pronunciara estas palavras com displicência, como se cem guinéus nada significassem para ele Cem guinéus, quando es­tava na última lona! Desconfiava, porém, que o judeuzinho não se deixara enganar. Isso é o que há de pior quando se trata com judeus... Impossível enganá-los em questões de dinheiro: eles sempre sabem.'

No mesmo tom desprendido, Lombard acrescentara:

— Não me pode dar maiores informações?

O Sr. Isaac Morris sacudira, muito positivo, a cabecinha calva.

— Não, Cap. Lombard, isto é tudo que tenho para lhe dizer. O meu cliente conhece a sua reputação como homem prestante em situações perigosas. Estou autorizado a pagar-lhe cem guinéus, em troca dos quais deverá ir a Sticklehaven. no Devon. A estação mais próxima é Oakbridge. Lá estarão à sua espera para levá-lo de automóvel a Sticklehaven, onde uma lancha o transportará à Ilha do Negro. Ali o senhor se colocará à disposição do meu cliente.

— Por quanto tempo? — indagara abruptamente Lom­bard.

— Uma semana, no máximo.   v Cofiando o pequeno bigode, o Cap. Lombard observou:

— O senhor sabe que eu não posso aceitar nada... ilegal? Dardejara um olhar penetrante ao outro enquanto falava.

Nos espessos lábios semíticos do Sr. Morris esboçou-se um ligeiro sorriso ao responder gravemente:

— Se algo de ilegal lhe for proposto, o senhor natural­mente terá plena liberdade de recusar.

Diabos levem aquele tipinho oleoso! Pois ele não sorrira? Era como se soubesse que no passado de Lombard a legali­dade nem sempre fora uma cláusula sine qua non...

Os lábios do próprio Lombard entreabriram-se num sor­riso ao relembrar a cena.

O fato é que, uma ou duas vezes, fora um pouco afoito demais. Mas sempre conseguia safar-se! Na realidade, os seus escrúpulos não iam muito longe...

Não, os seus escrúpulos não iam muito longe. Previa que ia divertir-se bastante na Ilha do Negro...

 

Num carro para não-fumantes Emily Brent ia rigidamente sentada, como era seu costume. Solteirona de sessenta e cinco anos, não aprovava as atitudes relaxadas. Seu pai, um coronel da velha escola, fora muito exigente nesse ponto.

A geração atual era de uma negligência indecorosa... em suas posturas e em tudo mais...

Envolta numa aura de retidão e de princípios irredutíveis, Miss Brent viajava no apinhado vagão de terceira classe e triunfava sobre o desconforto e o calor. Todos, hoje em dia, eram tão cheios de dengues! Queriam injeções para arrancar um dente... tomavam drogas se não podiam dormir... que­riam cadeiras fofas e almofadas, e as moças vestiam-se de qualquer jeito e, no verão, estiravam-se seminuas nas praias.

Os lábios de Miss Brent cerraram-se com força. Gostaria de dar uma lição a certa gente.

Lembrou-se do veraneio anterior. Este ano, porém, seria bem diferente. A Ilha do Negro...

Tornou a ler mentalmente a carta que já havia lido tan­tas vezes:

"Prezada Miss Brent:

"Espero que se recorde de mim. Estivemos juntas na pensão de Belhaven, há alguns anos, em agosto, e pare­cíamos ter muita coisa em comum.

"Estou iniciando, numa ilha da costa de Devon, uma casa de hóspedes de minha propriedade. Creio que há realmente campo para uma casa que forneça alimenta­ção simples e sadia a gente boa e morigerada, à moda antiga. Nada de nudez nem de gramofones até alta noite. Dar-me-á muito prazer se consentir em passar seu vera­neio na Ilha do Negro — inteiramente grátis — como hóspede minha. Serve-lhe nos princípios de agosto, tal­vez dia 8?

"Muito devotamente,

U.N.O...."

 

Como era mesmo o nome? Dava algum trabalho decifrar a assinatura. "Muita gente assina o nome de modo bem ile­gível", refletiu Emily Brent com impaciência.

Procurou lembrar-se de suas companheiras de veraneio em Belhaven. Estivera lá em dois verões. Havia aquela encan­tadora senhora de meia-idade, Miss... Miss... ora, como se chamava ela? Era filha de um cônego anglicano. E tam­bém lá estivera uma Sra. Olten... Ormen... Não, era cer­tamente Oliver! Sim, Oliver.

A Ilha do Negro. Tinham surgido histórias nos jornais sobre a Ilha do Negro... Falava-se numa artista de cine­ma... ou seria um milionário norte-americano?

É certo que muitas vezes esses lugares ficam deveras baratos. Ilhas não servem para toda gente. Acham a idéia muito romântica, mas quando ali vão morar e percebem as desvantagens, dão-se por muito satisfeitas em desfazer-se delas.

"Seja como for, terei um veraneio gratuito", refletiu Emily Brent.

Com a sua renda tão reduzida e tantos dividendos atra­sados, isso era, em verdade, uma coisa a ser tomada em consideração. Se ao menos pudesse lembrar um pouco mais sobre a Sra. (ou seria Srta.) Oliver!

 

O Gen. Macarthur olhou pela janela do vagão. Estavam chegando em Exeter, onde teria de fazer baldeação. Arre com esses trens lerdos de ramal! Afinal, em linha reta essa tal Ilha do Negro ficava logo ali adiante...

Não fazia uma idéia bem clara de quem fosse o tal Owen. Um amigo de Spoof Leggard e de Johnnie Dyer, segundo parecia. "... Também virão um ou dois de seus velhos cama­radas... gostaria de conversar sobre os bons tempos de outrora."

A verdade é que uma charla sobre os velhos tempos lhe daria grande prazer. Ultimamente andava desconfiado de que os amigos o evitavam. Tudo por causa daquele infernal boato! Era duro, por Deus... Uma coisa que acontecera quase trinta anos atrás! Armitage devia ter tagarelado. Mal­dito sujeitinho! Que saberia ele, enfim? Bem, não valia a pena remoer essas desconfianças! Às vezes a gente imagina coisas... imagina que um camarada nos olha de maneira esquisita.

Essa Ilha do Negro, por exemplo, gostaria de vê-la. Muito mexerico a respeito dela. Talvez houvesse algo de verdade no boato de que fora adquirida pelo Almirantado, ou pelo Ministério da Guerra, ou pela Força Aérea...

Quem construíra a casa fora o jovem Elmer Robson, o milionário americano. Dizia-se que gastara milhares de libras. Todo o luxo do mundo...

Exeter! Uma hora de espera! E ele não queria esperar. Queria tocar para diante.

 

O Dr. Armstrong atravessava a Planície de Salsbury no seu carro. Sentia-se bastante cansado. O sucesso tem seus inconvenientes. Tempo houvera em que ele ficava sentado no seu consultório de Harley Street, corretamente trajado, cercado dos mais modernos aparelhos e do mais luxuoso mobiliário, esperando através dos dias vazios pela vitória ou pelo fracasso da sua aventura financeira...

Pois bem, tinha vencido! Tivera sorte. Sorte e compe­tência, está visto. Era um homem que entendia da sua pro­fissão... mas isso não bastava para vencer. Era preciso tam­bém ter sorte. E ele a tivera! Um diagnóstico bem feito, duas ou três clientes agradecidas — mulheres com dinheiro e posição — e a fama começara. "Você deve consultar Armstrong... Bem moço ainda, mas simplesmente brilhante!... Pamela andou nas mãos de tudo que era médico durante anos, mas ele acertou na primeira consulta!" E a bola tinha começado a rolar... ,

Finalmente famoso, o Dr. Armstrong tinha seus dias cheios. Quase não lhe sobravam lazeres. E assim, nessa manhã de agosto, sentia-se satisfeito em sair de Londres para ir passar alguns dias numa ilha ao largo da costa de Devon. Não que se tratasse propriamente de um veraneio. A carta que recebera era escrita em termos um tanto vagos, mas nada havia de vago no cheque incluso. Que magnificência! Esses Owen deviam nadar em dinheiro. Parecia haver uma pequena dificuldade: o marido, aflito com a saúde da esposa, dese­java um exame médico sem que esta se alarmasse. Ela não queria saber de doutores. Os seus nervos

Nervos! O médico arqueou as sobrancelhas. Essas mulhe­res com os seus nervos! Bem, afinal era isso que fazia andar o negócio. Metade das mulheres que o procuravam não sofriam de coisa alguma, mas não lhe ficariam agradecidas se lhes dissesse! E, em geral, sempre se podia encontrar alguma coisa.

— Uma ligeira disfunção do (uma palavra grega bem com­prida). Nada de sério, mas precisa ser controlado. Um trata­mento simples.

Em grande parte, a medicina era simples curandeirismo. Mas ele tinha jeito; sabia inspirar fé e esperança.

Que sorte ter podido recuperar-se a tempo depois daquela história há dez... não, quinze anos! Estava se deixando arrastar, mas o choque o fizera cair em si. Abandonara completamente a bebida. Mas, caramba, por pouco não dera com os burros n'água...

Com uma buzinada ensurdecedora, um enorme Dalmain Super-Sports passou por ele a 130 km por hora. O Dr. Arms­trong quase foi parar na valeta. Um desses jovens cretinos com a mania de correr. Como os detestava! Escapara por pouco. Maldito imbecil!

 

Tony Marston, chispando na direção de Mere, dizia com os seus botões:

— Incrível a quantidade de carros que se arrastam pelas estradas! Sempre há alguma coisa a se atravessar no caminho da gente. E teimam em andar no meio da pista! Já nem se pode dirigir na Inglaterra... Não é como na França; lá, sim, é que vale a pena!

Parava para tomar alguma coisa ou tocava para diante? Tinha tempo de sobra! Apenas umas cento e poucas milhas ainda que andar. Tomaria gim com ginger beer. Um calor de rachar!

A tal casa na ilha devia ser bastante divertida... se o bom tempo durasse. Quem seriam esses Owen? Novos-ricos, com certeza. Badger tinha um faro para essa espécie de gente! Está claro que precisava fazer isso, pobre diabo, pois era um pronto...

Contanto que servissem boas bebidas... Nunca se pode prever, tratando-se dessa gente que ganhou o seu dinheiro e não nasceu com ele. Pena que não fosse verdade aquela história de Gabrielle Turl ter comprado a Ilha do Negro. Gostaria de entrar na roda da estrela de cinema.

Enfim, supunha que houvesse lá algumas garotas...

Ao sair do hotel, espreguiçou-se, bocejou, olhou para o céu azul e saltou no Dalmain. Seu metro e oitenta de altura, seu corpo de atleta, seu cabelo crespo, rosto bronzeado e olhos de um azul intenso valeram-lhe um olhar admirativo de várias moças que se encontravam nas imediações.

Embreou e partiu roncando pela rua estreita. Alguns velhos e meninos de recados saltaram para a segurança da calçada.

Estes últimos acompanharam o Dalmain com um olhar de admiração.

Anthony Marston prosseguiu na sua marcha triunfal.

 

O Sr. Blore viajava no trem ordinário de Plymouth. Havia apenas uma outra pessoa no seu vagão, um idoso cavalheiro de profissão marítima, com olhos sonolentos. Havia adorme­cido naquele instante.

O Sr. Blore tomava apontamentos num caderninho.

— Aí estão todos — murmurou de si para si. — Emily Brent, Vera Claythorne, Dr. Armstrong, Anthony Marston, o velho Juiz Wargrave, Philip Lombard, Gen. Macarthur, e um casal de criados, os Rogers.

Fechou o caderno de notas e tornou a guardá-lo no bolso. Lançou um olhar ao canto onde o outro dormitava.

— Tomou um copo demais — diagnosticou o Sr. Blore com precisão.

Tornou a repassar tudo na mente, com meticuloso cuidado.

— O trabalho deve ser fácil — ruminou ele. — Não vejo nenhuma possibilidade de cometer erros. Espero que minha aparência seja aceitável.

Levantou-se e examinou-se ansiosamente no espelho. O rosto que ali viu refletido possuía um bigode que lhe dava um certo ar militar. Um rosto inexpressivo, de olhos cin­zentos bastante chegados um ao outro.

— Podia passar por um major — disse o Sr. Blore. — Não, ia esquecendo. Lá estará aquele velho general. Ele me descobriria em seguida... A África do Sul: essa é a linha a adotar! De toda essa gente, ninguém tem nada que ver com a África do Sul, e eu estou bem informado graças àquele folheto de viagem que li no outro dia.

Felizmente, havia coloniais de todos os tipos e espécies. Como um sul-africano de recursos, o Sr. Blore achava que podia freqüentar qualquer sociedade sem que ninguém des­confiasse.

Ilha do Negro. Lembrava-se de tê-la visitado em meni­no... Um rochedo malcheiroso, coberto de gaivotas, a cerca de uma milha da costa. Recebera esse nome por causa da semelhança com uma cabeça de homem — um homem de lábios negróides.

Esquisita idéia construir uma casa ali! Era horrível com mau tempo! Mas os milionários têm desses caprichos!

Lá no seu canto, o velho acordou e disse:

— Nunca se pode contar com o mar, nunca mesmo!

O Sr. Blore respondeu com voz macia:

— É verdade. Nunca se pode.

O velho soluçou duas vezes e disse em tom queixoso:

— Aí vem tormenta. O Sr. Blore interpôs:

— Não, não, companheiro, está fazendo um lindo dia. O velho redargüiu, furioso:

— Aí vem uma tormenta. Sinto-lhe o cheiro.

— Talvez tenha razão — assentiu o Sr. Blore pacifica­mente.

O trem parou numa estação e o velho ergueu-se a custo.

É aqui que eu desembarco.

Fez força para abrir a janela. O Sr. Blore ajudou-o. Ao sair, o velho parou na porta e alçou solenemente a mão, piscando os olhos sonolentos.

—Vigiai e orai — disse. — Vigiai e orai. O Dia do Juízo está próximo.

Desabou pelos degraus do vagão abaixo. Em posição supina na plataforma, ergueu os olhos para o Sr. Blore e proclamou com imensa dignidade:

— Estou falando para o senhor, moço. O Dia do Juízo está muito próximo.

Ficando a sós, o Sr. Blore disse consigo:

— Ele está mais próximo do Dia do Juízo do que eu! Mas nisso, consoante veio a suceder, enganava-se...

 

No recinto externo da estação de Oakbridge formara-se um pequeno grupo de pessoas tomadas de momentânea hesitação. Atrás delas, os carregadores esperavam com as malas. Um deles chamou:

— Jim!

O chofer de um dos táxis avançou para o grupo.

— Por acaso vão para a Ilha do Negro? — perguntou com a fala macia dos devonianos. Quatro vozes responderam na afirmativa, e imediatamente os integrantes do grupa lançaram olhares sub-reptícios uns aos outros.

O chofer tornou a falar, dirigindo-se ao Juiz Wargrave como o mais velho de todos:

— Temos dois táxis aqui, senhor. Um deles deve esperar pela chegada do trem ordinário de Exeter. É uma questão de cinco minutos... Vem mais um cavalheiro por esse trem. Talvez um dos senhores não se importe de esperar? Ficariam mais bem acomodados assim.

Vera Claythorne, que não esquecia a sua posição de secre­tária, respondeu em seguida:

— Eu espero, se os senhores quiserem ir.

Sua voz e a expressão do seu rosto tinham esse quê de comando, próprio das pessoas que ocupam uma posição de autoridade. Era como se estivesse determinando em que sets de tênis deviam jogar as meninas.

— Muito obrigada — disse Miss Brent, dura como um pau. E, curvando a cabeça, entrou num dos táxis, cuja porta o

chofer conservava aberta. Depois dela embarcou o Juiz Wargrave.

— Fico esperando com Miss... prontificou-se o Cap. Lombard.

— Claythorne — disse Vera.

— Meu nome é Lombard, Philip Lombard.

Os carregadores empilhavam a bagagem no porta-malas do táxi.

— Que belo tempo está fazendo! — disse no interior o Juiz Wargrave, com a devida cautela judiciária.

— Sim, com efeito — volveu Miss Brent.

Um velho cavalheiro muito distinto, pensava lá consigo. Bem diferente do tipo de homem que a gente costuma encon­trar nas pensões de beira-mar. Evidentemente, a Sra. ou Srta. Oliver tinha boas relações...

— Conhece bem esta região? — perguntou o Juiz War­grave.

— Já estive na Cornualha e em Torquay, mas é a primeira vez que venho a esta parte do Devon.

— Eu também nunca estive por aqui — disse o juiz. O táxi partiu.

O chofer do segundo veículo perguntou:

— Não querem sentar-se para esperar?

— De modo algum — respondeu Vera, decidida. O Cap. Lombard sorriu e observou:

— Aquela parede banhada pelo sol tem um aspecto mais atraente. A não ser que prefira ir para dentro da estação?

— Não mesmo! É uma delícia ver pelas costas esse sufo­cante trem.

— Sim, viajar de trem com este tempo é uma prova para os nervos.

A resposta de Vera foi convencional:

— Espero que dure... o tempo, quero dizer. Os nossos verões da Inglaterra são traiçoeiros.

Lombard perguntou, com uma ligeira falta de originali­dade:

— Conhece bem esta região?

— Não, nunca estive aqui. — E Vera acrescentou, resol­vida a esclarecer imediatamente a sua posição: — Nem sequer ainda encontrei o meu empregador.

— Seu empregador?

— Sim, sou secretária do Sr. Owen.

— Ah! compreendo. — As maneiras do capitão mudaram imperceptivelmente. Tornaram-se um pouco mais seguras e mais desembaraçado o seu tom. — Não acha isso um tanto fora do comum? — perguntou.

Vera riu.

— Oh! não, não me parece. A secretária particular desse senhor adoeceu subitamente. Telegrafou a uma agência pe­dindo uma substituta, e enviaram a mim.

— Ah! então foi isso... Mas suponhamos que o emprego

não lhe agrade quando lá chegar?

Vera tornou a rir.

— Bem, afinal é uma coisa temporária, um trabalho de férias. Tenho meu emprego permanente numa escola de meninas. A verdade é que estou encantada com a idéia de conhecer a Ilha do Negro. Tem-se falado muito dela nos jor­nais. Será mesmo tão fascinante assim?

— Não sei. Nunca a vi.

— Realmente? Os Owen devem ter muito amor a ela. Por favor, diga-me que espécie de gente é essa família.

"A situação é um tanto esquerda...", pensou Lombard. "Qual será o mais certo: devo conhecê-los, ou não?" E apressou-se a dizer:

— Há uma vespa caminhando no seu braço. Não... fique completamente imóvel. — Saltou sobre o fictício inseto com um gesto convincente. — Pronto, lá se foi!

— Oh! muito obrigada. Vêem-se muitas vespas neste verão.

— Sim, creio que seja por causa do calor. Sabe, por acaso, quem é que estamos esperando?

— Não faço a menor idéia.

Ouviu-se o apito agudo e prolongado de um trem que se aproximava e Lombard observou:

— Deve ser este o trem.

Um homem alto, de aspecto militar, apareceu à saída da estação. Tinha o cabelo grisalho cortado à cadete e um bigode branco corretamente aparado.

Seu carregador, que vacilava um pouco sob o peso de uma sólida mala de couro, indicou Vera e Lombard.

Vera adiantou-se com um ar competente e disse:

— Sou a secretária do Sr. Owen. Temos um carro aqui à espera. — E acrescentou: — Este é o Sr. Lombard.

Os desbotados olhos azuis, perspicazes a despeito da idade, avaliaram Lombard. Por um instante, o juízo que fez dele transpareceu no seu olhar... se ali houvesse alguém capaz de lê-lo.

"Um belo rapaz, mas há nele qualquer coisa de falso...”

Subiram os três no táxi. Atravessaram as ruas sonolentas da cidadezinha e rodaram pela distância de uma milha na estrada de Plymouth, mergulhando depois num labirinto de azinhagas verdes, estreitas e íngremes.

— Esta parte do Devon me é completamente desconhe­cida. Moro no leste do condado, sobre a fronteira de Dorset.

— Realmente, é um lugar encantador — disse Vera. — Estas colinas, esta terra vermelha, e tudo de um verde tão luxuriante!

— Um pouco fechado — comentou Lombard. — Quanto a mim, prefiro o campo aberto, onde se possa ver o que se aproxima...

— Tem andado bastante por esse mundo, imagino? — perguntou-lhe o Gen. Macarthur.

Lombard deu de ombros.

— Tenho estado aqui e ali, senhor.

Lá consigo pensava: "Agora vai perguntar se tenho idade suficiente para ter estado na guerra. É a pergunta que sem­pre fazem esses velhos militares".

O Gen. Macarthur, porém, não mencionou a guerra.

 

Subiram uma encosta e desceram por um caminho em ziguezague até Sticklehaven, simples amontoado de casinholas com um ou dois barcos de pesca postos a seco na praia.

Iluminada pelo sol poente, avistaram pela primeira vez a Ilha do Negro, que sobressaía do mar, ao sul.

— Fica bem longe! — disse Vera, surpreendida.

Fizera dela uma idéia diferente, próxima da costa e coroada por uma bela casa branca. Mas não se via casa alguma: apenas a silhueta abrupta do rochedo, que lembrava vagamente uma gigantesca cabeça de negro. Seu aspecto era um tanto sinistro. Vera teve um leve estremecimento.

Diante de uma pequena estalagem, o "Sete-Estrelo", esta­vam sentadas três pessoas: a figura idosa e encurvada do juiz, a forma ereta de Miss Brent, e um terceiro homem — um homenzarrão expansivo que caminhou para eles e apresen­tou-se.

— Decidimos esperar pelos senhores, a fim de fazer uma só viagem. Permitam que me apresente. Meu nome é Davis. Natal, na África do Sul, é minha terra natal, ah! ah!

Riu alegremente.

O Juiz Wargrave olhou para ele com viva malevolência. Parecia lamentar que não pudesse mandar evacuar a sala do tribunal. Miss Brent, visivelmente, não sabia ao certo se gos­tava ou não dos coloniais.

— Alguém aceita um traguinho antes de embarcarmos? — perguntou hospitaleiramente o Sr. Davis.

Como ninguém se mostrasse tentado, ele virou-se e acenou com o dedo.

— Então não convém demorar mais. Os amáveis donos da casa devem estar à nossa espera.

Talvez tivesse notado o estranho constrangimento que se apossou dos outros componentes do grupo. Era como se a menção dos donos da casa tivesse um curioso efeito paralisante sobre os hóspedes.

Respondendo ao aceno de Davis, um homem desgrudou-se do muro próximo a que estivera encostado e caminhou para eles. Seu andar gingado proclamava o homem do mar. Tinha um rosto curtido pelo sol e pelo vento, e uns olhos escuros de expressão ligeiramente evasiva.

— Estão prontos para partir, senhoras e senhores? — per­guntou na sua macia voz do Devon. — O barco está espe­rando. Dois cavalheiros vêm de automóvel, mas o Sr. Owen deu ordem de não esperá-los, pois não se sabe a que hora chegarão.

O grupo levantou-se e o barqueiro conduziu-os ao longo de um pequeno molhe a que estava encostada uma lancha a motor.

— É um barco muito pequeno — disse Emily Brent. O dono da lancha replicou persuasivamente:

— É um belo barco, este, dona. Pode-se ir nele a Ply­mouth enquanto o diabo esfrega um olho.

— Mas nós somos muitos — objetou o Juiz Wargrave.

— A lancha levaria o dobro, senhor.

Philip Lombard falou na sua voz agradável e fluente:

Não há perigo. Um tempo maravilhoso... o mar sem ondas.

Meio hesitante, Miss Brent permitiu que a ajudassem a entrar na embarcação. Os outros seguiram-na. Por ora, ainda não havia confraternização entre o grupo. Era como se cada um dos que o formavam constituísse um enigma para os outros.

Estavam para largar quando o guia estacou com o croque na mão.

Um automóvel vinha chegando pela íngreme estradinha que descia para a aldeia. Um automóvel tão possante, tão superlativamente belo, que tinha todo o aspecto de uma apa­rição. À direção vinha um moço com os cabelos ondulando ao vento. Banhado pelo resplendor purpurino do pôr de sol, não parecia um homem, mas um jovem deus, um deus-herói saído de alguma saga escandinava.

Premiu a buzina, e um potente rugido ecoou nos rochedos da baía.

Foi um momento fantástico. Nesse instante, Anthony pa­recia ser mais do que um mortal. A recordação desse momento ficou impressa na memória de mais de um dos presentes.

 

Sentado junto ao motor, Fred Narracott pensava lá consigo que no seu barco viajava um grupo bem singular. De maneira nenhuma aquelas pessoas combinavam com a idéia de como deviam ser os hóspedes do Sr. Owen. Havia esperado gente mais fina. Senhoras e cavalheiros vestidos com trajes náuticos, todos riquíssimos e de ar muito importante.

Estes em nada se pareciam com os visitantes do Sr. Elmer Robson. Um leve sorriso assomou aos lábios de Fred quan­do se lembrou dos hóspedes do milionário. Aquilo sim era gente... e a quantidade de bebida que consumiam, bom Deus!

O tal Sr. Owen devia ser um cavalheiro de tipo muito dife­rente. Era engraçado, pensou Fred, que ainda não tivesse posto os olhos em Owen... ou em sua senhora, tampouco. O homem ainda não viera nem uma só vez à aldeia. Tudo fora encomendado e pago por aquele Sr. Morris. As instru­ções eram sempre muito claras e o pagamento pronto, mas, assim mesmo, aquilo era esquisito. Os jornais descreviam

Owen como um homem algo misterioso. Narracott concor­dava com os jornais.

Talvez, afinal de contas, fosse realmente Miss Gabrielle Turl quem comprara a ilha. Mas teve de abandonar a hipó­tese ao examinar de novo os seus passageiros. Gente assim... não era possível! Nenhum deles parecia ter qualquer coisa que ver com uma estrela de cinema.

Fred Narracott inventariou-os com isenção de ânimo:

Uma velha solteirona cheia de azedume... conhecia-as de­masiado bem. Na certa seria uma mulher de maus bofes. Um velho militar cheirando a caserna. Uma moça bem simpática, mas da classe comum, sem traço algum de glamour ou de Hollywood. O cavalheiro rude e jovial... esse não era um cavalheiro de verdade. Comerciante aposentado, isso é o que ele é, pensou Fred. O outro cavalheiro, o magro com cara de faminto e olhos vivos, era esquisito, isso era. Talvez, afi­nal de contas, tivesse algo que ver com o cinema.

Não: na lancha só havia um passageiro satisfatório. O últi­mo a chegar, o que viera de automóvel (e que automóvel! Um carro como aquele nunca fora visto em Sticklehaven. Devia custar centenas e centenas de libras, um carro assim)... o moço era perfeito. Nascera rico, isso não tinha dúvida. Se todos fossem como ele... então Fred os entenderia...

Coisa esquisita, pensando bem... Tudo aquilo era singu­lar... muito singular...

 

Tef-tef-tef... a lancha deu volta ao rochedo e finalmente apareceu a casa. O lado sul da ilha era bem diferente. Tinha um suave declive para o mar. Ali se achava a casa com a frente para o sul — baixa e quadrada, de aspecto moderno, com janelas arredondadas que deixavam entrar toda a luz.

Uma bela casa... uma casa que correspondia às expecta­tivas!

Fred Narracott apagou o motor e a embarcação penetrou suavemente num pequeno canal natural que havia entre as rochas.

— Deve ser difícil encostar aqui com mau tempo. — ob­servou Lombard.

E Fred Narracott, em voz alegre:

— Não se pode desembarcar na Ilha do Negro quando o vento sopra de sudeste. Às vezes a ilha fica sem comunica­ção com a terra por uma semana ou mais.

"O abastecimento deve ser difícil", observou Vera Claythorne. "É o que uma ilha tem de pior. Todos os problemas do­mésticos são tão incomodativos!"

A lancha roçou na rocha. Fred Narracott saltou e, junta­mente com Lombard, ajudou os outros a desembarcar. Nar­racott amarrou o barco a uma argola encravada no rochedo, depois ensinou o caminho pelos degraus talhados na pedra.

— Ah! que lugar encantador! — disse o Gen. Macarthur. Mas no íntimo sentia-se inquieto. Raio de lugar esquisito!

Depois de subir os degraus e alcançar um terraço lá em cima, o grupo reanimou-se. Um correto mordomo esperava os visitantes à porta aberta da casa. Seu ar sereno e grave tranqüilizou-os. E, depois, a própria casa era muitíssimo atraente, e magnífica a vista que se descortinava do terraço...

O mordomo avançou, curvando-se levemente. Era um ho­mem alto e esguio, de cabelos grisalhos e muito respeitável.

— Queiram ter a bondade de vir por aqui — disse ele. No vasto hall, as bebidas já estavam à disposição. Filas

de garrafas. Anthony Marston alegrou-se um pouco. Estivera pensando que aquilo era muito estranho. Ninguém da sua igualha. Que teria Badger na cabeça ao misturá-lo com aquela gente? Contudo, não se podia criticar as bebidas. E havia gelo de sobra, também.

Que dizia aquele mordomo?

O Sr. Owen... uma infeliz demora... não podia estar com eles antes do dia seguinte. Instruções... tudo que dese­jassem... não gostariam de ir até os seus quartos?... o jantar seria às oito horas...

 

Vera seguira a esposa do mordomo até o andar superior. A mulher abriu uma porta ao fundo de um corredor e Vera entrou num delicioso quarto de dormir, com uma enorme janela que dava para o mar e uma outra voltada para leste. A moça deixou escapar uma exclamação de prazer.

— Espero que tenha aqui tudo o que deseje, senhorita — dizia a Sra. Rogers.

Vera olhou em redor de si. Suas malas tinham sido trazi­das para cima e abertas. A um lado do quarto havia uma porta que dava para um quarto de banho revestido de azulejos azuis.

— Sim, acho que tenho tudo — apressou-se a responder.

— Quando precisar de alguma coisa é só tocar a campai­nha, senhorita.

A Sra. Rogers tinha uma voz monótona, sem entonação. Vera olhou para ela com curiosidade. Que branco e exangue fantasma de mulher! A aparência era muito respeitável, com o cabelo repuxado para trás e o vestido preto. Estranhos olhos claros, que estavam sempre a bulir de um lado para outro!

"Parece ter medo da própria sombra", pensou Vera.

Sim, era isso: uma criatura assustada.

Parecia uma mulher que vive presa de um medo mortal...

Um pequeno arrepio subiu pela espinha de Vera. De que diabo tinha medo aquela mulher?

— Sou a secretária do Sr. Owen — disse amavelmente. — Sem dúvida já sabe.

— Não, senhorita, não sei de nada — respondeu a Sra. Rogers. — Tenho apenas uma lista das senhoras e cavalhei­ros e dos quartos que devem ocupar.

— A Sra. Owen não lhe falou a meu respeito? A mulher do mordomo bateu as pestanas.

— Ainda não vi a Sra. Owen. Chegamos apenas há dois dias.

"Gente extraordinária, esses Owen", pensou Vera. Depois, em voz alta, perguntou:

— Quantos empregados são aqui?

— Só eu e Rogers, senhorita.

Vera carregou o cenho. Oito pessoas na casa — dez com os donos — e só um casal para atender a todos! A Sra. Rogers disse:

— Sou boa cozinheira e Rogers cuida da casa. Eu não sabia, naturalmente, que iam vir tantas pessoas.

— Mas pode dar conta do serviço?

— Oh! sim, posso muito bem. Se vierem muitos visitantes com freqüência, talvez a Sra. Owen possa arranjar mais algu­mas empregadas.

— Espero que sim — disse Vera.

A Sra. Rogers virou-se para sair. Seus pés moviam-se sem ruído sobre o assoalho. Escoou-se do quarto como uma sombra.

Vera caminhou para a janela e sentou-se no sofá que ali havia. Sentia-se levemente perturbada. Tudo aquilo, de certo modo, era um pouco esquisito. A ausência dos Owen, a páli­da e fantasmal empregada. E os hóspedes! Sim, os hóspedes também eram singulares. Que grupo mais desigual!

"Gostaria de ter visto os Owen...", pensou Vera. "Tinha vontade de saber um pouco como são eles."

Levantou-se e caminhou desassossegadamente pelo quarto. Um perfeito quarto de dormir, todo decorado em estilo moderno. Tapetes cor de marfim no lustroso piso de parque, paredes pintadas em tons suaves, um comprido espelho cer­cado de luzes. O consolo da lareira despido de quaisquer ornamentos a não ser um enorme bloco de mármore branco com a forma de um urso, exemplar de arte moderna em que se inseria um relógio. Por cima dele, numa resplandecente moldura de cromo, havia um grande retângulo de pergaminho — um poema.

Vera postou-se diante da lareira e leu-o. Era a velha histo­rieta infantil em versos, que lhe fez lembrar os seus tempos de criança:

Dez negrinhos vão jantar enquanto não chove;

Um deles se engasgou e então ficaram nove.

Nove negrinhos sem dormir: não é biscoito!

Um deles cai no sono, e então ficaram oito.

Oito negrinhos vão a Devon de charrete;

Um não quis mais voltar, e então ficaram sete.

Sete negrinhos vão rachar lenha, mas eis

Que um deles se corta, e então ficaram seis.

Seis negrinhos de uma colméia fazem brinco;

A um pica uma abelha, e então ficaram cinco.

Cinco negrinhos no foro, a tomar os ares;

Um ali foi julgado, e então ficaram dois pares.

Quatro negrinhos no mar; a um tragou de vez

O arenque defumado, e então ficaram três.

Três negrinhos passeando no Zôo.

E depois? O urso abraçou um, e então ficaram dois.

Dois negrinhos brincando ao sol, sem medo algum;

Um deles se queimou, e então ficou só um.

Um negrinho aqui está a sós, apenas um;

Ele então se enforcou, e não ficou nenhum.

 

Vera sorriu. Claro! Estavam na Ilha do Negro! Foi de novo sentar-se à janela, olhando o mar. Como era grande o mar! Daqui não se via terra em parte alguma — apenas a vastidão do azul das ondas refulgindo

ao sol poente.

O mar... tão pacífico hoje e as vezes tão cruel... O mar que nos arrasta para as profundezas. Afogado... encontrado afogado... afogado no mar... afogado — afogado — afo­gado...

Não, não queria lembrar-se... não queria pensar naquilo!

Tudo isso eram coisas do passado...

 

O Dr. Armstrong chegou à Ilha do Negro no momento em que o sol mergulhava no oceano. Durante o trajeto havia palestrado com o barqueiro, um homem do lugar. Estava ansioso por saber alguma coisa sobre os proprietários da Ilha do Negro, mas o tal Narracott parecia singularmente mal informado, ou talvez não estivesse disposto a falar.

Em face disso, o médico pôs-se a falar do tempo e da pesca.

A longa viagem de automóvel deixara-o cansado. Doíam-lhe os olhos. Quem viaja para oeste tem o sol pela frente.

Sim, estava muito cansado. O mar e a perfeita paz... disso é que precisava. Gostaria, com efeito, de gozar umas longas férias, mas não se podia permitir tal luxo. Financeira­mente, é claro que podia: mas como abandonar a sua clínica? Hoje em dia é-se depressa esquecido. Não, agora que havia triunfado, devia continuar na dobadoura.

"Assim mesmo", pensava ele, "esta noite imaginarei que não vou voltar... que acabei com Londres, com a Harley Street e tudo mais."

Havia qualquer coisa de mágico numa ilha — a simples palavra despertava a fantasia. Perdia-se o contato com o mundo... uma ilha era um mundo à parte. Um mundo do qual nunca se regressará, talvez.

"Estou deixando a minha vida cotidiana para trás", pen­sou ele.

E, sorrindo para si mesmo, começou a fazer planos, fan­tásticos planos de futuro. Ainda estava a sorrir quando subiu os degraus talhados na rocha.

No terraço, um cavalheiro idoso estava sentado numa ca­deira. Ao vê-lo, o Dr. Armstrong teve a impressão de que o seu rosto lhe era vagamente familiar. Onde vira aquela cara de rã, aquele pescoço de tartaruga, aquela postura encurvada, e... sim, aqueles olhinhos pálidos e argutos? Claro, o velho Wargrave! Prestara depoimento uma vez perante ele. Parecia sempre meio adormecido, mas era ladino como nin­guém quando se tratava de uma questão legal. Tinha um grande poder sobre os jurados — dizia-se que podia influir quando e como quisesse na decisão do júri. Por uma ou duas vezes tinha-o levado a condenar o réu contra todas as expec­tativas. Um Juiz-verdugo, era como o chamavam alguns...

Esquisito lugar para encontrá-lo... aqui, fora do mundo!

 

O Juiz Wargrave pensava com os seus botões: "Armstrong? Lembro-me dele no banco das testemunhas. Muito correto e cauteloso. Todos os médicos são uns gran­díssimos tolos. Os de Harley Street são os piores."

E sua memória deteve-se com malevolência num suave indivíduo com quem se tinha avistado recentemente naquela mesma rua.

— As bebidas estão no hall — resmungou para o outro. E o Dr. Armstrong:

— Devo primeiro apresentar meus respeitos aos donos da casa.

O Juiz Wargrave tornou a cerrar os olhos, parecendo-se mais do que nunca com um réptil, e disse:

— Isso o senhor não poderá fazer. O Dr. Armstrong sobressaltou-se.

— Por que não?

— Não há donos da casa. Um curioso estado de coisas.

Não entendo este lugar.

O Dr. Armstrong encarou-o durante um longo momento. Estava já a pensar que o velho caíra no sono quando War­grave disse repentinamente:

— Conhece Constance Culmington?

— Hã... não, receio que não.

— Não tem importância — continuou o juiz. — Uma mulher muito vaga... e com uma letra praticamente ilegível. Estava justamente me perguntando se não errei de casa.

O Dr. Armstrong abanou a cabeça e entrou.

O Juiz Wargrave refletia a respeito de Constance Culming­ton. Uma criatura, em quem a gente não se podia fiar, como todas as mulheres.

Passou então a ocupar-se das mulheres que ali estavam, na casa: a solteirona de lábios comprimidos e a moça. Não dava nada pela moça, uma sujeitinha sem emoções. Não, eram três mulheres, contando-se com a Rogers. Curiosa cria­tura, que parecia andar num susto mortal. Um casal respeitá­vel que conhecia o seu ofício.

Como Rogers aparecesse no terraço nesse instante, o juiz perguntou-lhe:

— Sabe se Lady Constance Culmington está sendo espe­rada?

Rogers olhou admirado para ele.

— Que eu saiba, não senhor.

O juiz alçou as sobrancelhas, mas limitou-se a emitir um grunhido. Lá consigo, pensou:

"Ilha do Negro, hem? Aqui há marosca."

 

Anthony Marston estava no banho. Deliciava-se com a água fumegante. A longa viagem de automóvel deixara-o com câimbras nos braços e nas pernas. Muito poucos pensamen­tos lhe passavam pela cabeça. Anthony era um homem de sensações — e de ação.

"'Agora que estou aqui, acho que devo meter para a fren­te', pensou; e em seguida afastou do espírito qualquer pen­samento.

Água quente e fumegante... membros cansados... da­qui a pouco, fazer a barba... um coquetel... jantar. E depois?...

 

O Sr. Blore estava dando o laço na gravata. Não era muito hábil nessas coisas.

Tinha boa aparência? Supunha que sim.

Ninguém fora muito cordial com ele... Engraçado como se entreolhavam... como se soubessem...

Bem, tudo dependia dele.

Não queria fazer nenhuma asneira.

Ergueu os olhos para os versos infantis acima do consolo da chaminé.

Bela idéia pôr aquilo ali!

"Lembro-me desta ilha quando era garoto", pensou. "Nun­ca me passou pela cabeça que viria a fazer semelhante tra­balho numa casa aqui. Talvez seja muito bom que a gente não possa prever o futuro."

O Gen. Macarthur franzia o sobrolho de si para si.

Com os diabos, aquilo era esquisitíssimo! Não se parecia em absoluto com o que fora levado a esperar...

Por dá cá aquela palha, inventava uma desculpa para ir embora... Largar aquilo de mão...

Mas a lancha havia voltado para a terra firme.

Ele teria de ficar.

O tal Lombard, por exemplo, era um sujeito estranho. Não era honesto. Juraria que o homem não era honesto.

 

Ao som do gongo, Philip Lombard saiu do seu quarto e caminhou para a escada. Movia-se como uma pantera: suave­mente, sem ruído. Demais, havia em toda a sua pessoa qualquer coisa de pantera. Um animal de presa, agradável aos olhos.

Lombard sorria para consigo.

Uma semana, hem?

Ia gozar bem essa semana.

 

No seu quarto, Emily Brent, vestida de seda preta, pronta para o jantar, lia a sua Bíblia.

Movia os lábios, formando as palavras:

 

"Os idolatras mergulham no abismo que eles próprios cavaram; na armadilha que esconderam, o seu próprio pé é apanhado. O Senhor é conhecido pelo julgamento que executa: o mau enreda-se na obra de suas próprias mãos. O mau será lançado no fogo do inferno."

 

Comprimindo com força os lábios, Miss Brent fechou a Bíblia.

Levantou-se, pôs na gola do vestido um broche com pe­dras de quartzo amarelo e desceu para o jantar.

 

O jantar estava no fim.

A comida tinha sido boa e o vinho perfeito. Rogers servia bem à mesa.

Todos mostravam a melhor das disposições. Haviam come­çado a conversar uns com os outros com mais liberdade e intimidade.

O Juiz Wargrave, amolecido pelo excelente vinho do Por­to, dizia coisas espirituosas e causticantes. O Dr. Armstrong e Tony Marston escutavam-no. Miss Brent palestrava com o Gen. Macarthur; haviam descoberto alguns amigos comuns. Vera Claythorne fazia perguntas inteligentes ao Sr. Davis sobre a África do Sul. O Sr. Davis falava do assunto com muita fluência. Lombard escutava a conversa, e por uma ou duas vezes ergueu rapidamente os olhos, estreitando as pálpebras. De quando em quando seus olhos corriam em volta da mesa, estudando os outros.

— Esquisitas estas coisas, não? — disse Marston de repente.

No centro da mesa redonda, sobre um suporte circular de vidro, viam-se algumas figurinhas de porcelana.

— Negros — disse Tony. — A Ilha do Negro. Creio que a idéia é essa.

Vera inclinou o corpo para a frente.

— Vamos ver: quantos são? Dez?

— Sim... são dez. Vera exclamou:

— Que engraçado! Devem ser os dez negrinhos dos ver­sos infantis. No meu quarto, a historieta está numa moldura pendurada sobre a lareira.

— No meu quarto também — disse Lombard.

— E no meu.

— E no meu.

Todos juntaram suas vozes ao coro.

— É uma idéia divertida, não? — disse Vera.

— Uma notável criancice — grunhiu o Juiz Wargrave, servindo-se de mais vinho do Porto.

Emily Brent e Vera Claythorne olharam uma para a outra e levantaram-se.

Na sala, as portas envidraçadas estavam abertas para o terraço, deixando chegar até eles o murmúrio do mar con­tra os rochedos.

— Um som agradável — comentou Emily Brent. E Vera, secamente:

— Tenho-lhe ódio!

Os olhos de Miss Brent fixaram-se nela com surpresa. Vera corou e acrescentou, mais ponderada:

— Não creio que este lugar seja muito agradável quando há tormenta.

Emily Brent concordou.

— Não duvido que a casa fique fechada no inverno. Em primeiro lugar, não seria possível arranjar criados que qui­sessem ficar aqui.

— De qualquer maneira, deve ser difícil arranjar criados — murmurou Vera.

E Miss Brent:

— A Sra. Oliver teve sorte em conseguir esses dois. A mulher é boa cozinheira.

"É engraçado como as pessoas idosas vivem sempre tro­cando os nomes", pensou Vera. E, em voz alta, disse:

— Sim, acho que a Sra. Owen teve na verdade muita sorte. Emily Brent tirara da sua bolsa um pequeno trabalho de

bordado. Ia enfiar a agulha quando estacou, perguntando vivamente:

— Owen? Foi Owen que disse?

— Sim.

— Nunca encontrei ninguém chamado Owen na minha vida! — exclamou Emily Brent.

Vera arregalou os olhos.

— Mas... certamente deve...

Não terminou a frase. A porta abriu-se e os homens en­traram. Atrás deles surgiu Rogers, carregando a bandeja do café.

O juiz sentou-se ao lado de Emily Brent. Armstrong acer­cou-se de Vera. Tony Marston caminhou devagar para a porta aberta do terraço. Blore ficou a estudar com ingênua surpresa uma estatueta de bronze — talvez perguntando con­sigo se aquelas bizarras angularidades eram realmente para ser uma figura feminina. O Gen. Macarthur ficou de costas para a lareira. Cofiava o bigodinho branco. Com a breca, fora um excelente jantar! Começava a animar-se. Lombard folheava as páginas do Punch, que, com os outros jornais e revistas, se encontrava sobre uma mesa junto à parede.

Rogers fazia a volta da sala com a sua bandeja. O café sabia bem. Muito preto e quente.

Todo o grupo havia jantado bem. Estavam satisfeitos con­sigo e com a vida. Os ponteiros do relógio indicavam nove e vinte. Formou-se um silêncio — um silêncio farto e con­fortável.

Dentro desse silêncio ressoou a Voz. Inesperada, inumana, penetrante...

"Senhoras e Senhores! Silêncio, por favor!"

Todos se sobressaltaram. Olharam em torno... uns para os outros, para as paredes. Quem estava falando?

A Voz prosseguiu, alto e bom som:

 

“Sois acusados dos seguintes crimes”:

“Edward George Armstrong, de ter causado, em 14 de março de 1925, a morte de Louisa Mary Clees”.

“Emily Caroline Brent, de ter sido responsável pela morte de Beatrice Taylor, ocorrida em 5 de novembro de 1931”.

“William Henry Blore, de ter provocado a morte de James Stephen Landor, em 10 de outubro de 1928”.

“Vera Elizabeth Claythorne, de ter morto, em 11 de agosto de 1935, a Cyril Ogilvie Hamilton”.

“Philip Lombard, de ter sido culpado, em fevereiro de 1932, pela morte de vinte e um homens, pertencentes a uma tribo da África Oriental”.

“John Gordon Macarthur, de ter, a 14 de janeiro de 1917, enviado deliberadamente para a morte o amante de sua mulher, Arthur Richmond”.

“Anthony James Marston, de ter sido, no dia 14 de novembro último, culpado pela morte de John e Lucy Combes”.

“Thomas Rogers e Ethel Rogers, de terem sido, a 6 de maio de 1929, os causadores da morte de Jennifer Brady”.

“Lawrence John Wargrave, de ter sido, a 10 de junho de 1930, responsável pelo assassínio de Edward Seton”.

"Acusados aqui presentes, tendes alguma coisa a ale­gar em vossa defesa?".

 

Calou-se a Voz.

Houve um momento de silêncio petrificado e, em seguida, um estardalhaço de louças quebradas. Rogers deixara cair a bandeja do café.

No mesmo instante, vindo de fora da sala, ouviu-se um grito e o baque de um corpo.

Lombard foi o primeiro a mover-se. Saltou para a porta e abriu-a. Diante da soleira jazia um corpo dobrado sobre si mesmo, que era a Sra. Rogers.

— Marston! — chamou Lombard.

Anthony correu a ajudá-lo. Juntos, ergueram a mulher e trouxeram-na para a sala.

O Dr. Armstrong aproximou-se, rápido. Ajudou a colo­cá-la no sofá e inclinou-se sobre ela.

— Não é nada — disse logo. — Um simples desmaio. Daqui a pouco voltará a si.

— Arranje um pouco de conhaque — pediu Lombard a Rogers.

Com o rosto branco e as mãos a tremer, o mordomo respondeu:

— Sim, senhor — e saiu rapidamente da sala.

Exclamou Vera:

— Que fala foi essa? Quem era ele? Parecia... parecia...

— Que está se passando aqui? — irrompeu o Gen. Ma­carthur. — Que espécie de brincadeira é essa?

Sua mão tremia. Vergavam-lhe os ombros. De repente, parecia dez anos mais velho.

Blore enxugava o rosto com um lenço.

Só o Juiz Wargrave e Miss Brent conservavam uma apa­rência de relativa calma. Emily Brent continuava tesa na sua cadeira, a cabeça erguida. Em ambas as suas faces havia uma pequena mancha de vermelho vivo. O juiz mantinha a sua postura habitual, com a cabeça afundada nos ombros, cocando suavemente uma orelha. Só os seus olhos estavam ativos, revolvendo a peça em todos os sentidos, intrigados e sagazes.

Mais uma vez, foi Lombard o primeiro a agir. Entregue a mulher desfalecida aos cuidados de Armstrong, ficou livre para tomar a iniciativa.

— Essa voz? — disse ele. — Dava a impressão de que saía daqui mesmo.

— Quem foi? Quem foi? — gritou Vera. — Não foi ne­nhum de nós.

Como os do juiz, os olhos de Lombard percorreram len­tamente toda a sala. Pousaram-se um instante na porta aber­ta para o terraço, mas por fim Lombard sacudiu decidida­mente a cabeça. De súbito os seus olhos iluminaram-se. Caminhou a passos rápidos para uma porta que ficava junto da lareira e comunicava com uma peça contígua.

Com um gesto vivo, apanhou o trinco e abriu a porta de chofre. Entrou, e imediatamente soltou uma exclamação sa­tisfeita:

— Ah! Aqui está.

Os outros precipitaram-se para a peça ao lado. Só Miss Brent ficou onde estava, muito rígida na sua cadeira.

Uma mesa tinha sido colocada junto da parede de sepa­ração com a sala. Sobre essa mesa havia um gramofone de modelo antigo, com uma enorme trombeta, cuja boca estava encostada à parede. Lombard afastou o aparelho e indicou dois ou três pequenos buracos que tinham sido abertos dis­cretamente na parede.

Deu corda ao gramofone, fez voltar a agulha ao começo do disco, e imediatamente tornaram a ouvir: "Sois acusados dos seguintes crimes"

— Desligue isso! — gritou Vera. — Desligue isso! É horrível!

Lombard obedeceu.

Com um suspiro de alívio, o Dr. Armstrong observou:

— Uma brincadeira indecorosa e desalmada, diria eu. A vozinha clara do Juiz Wargrave murmurou:

— Então pensa que se trata de uma brincadeira? O doutor olhou admirado para ele.

— Que mais poderia ser?

O juiz passou um dedo de leve pelo lábio superior.

— De momento, não estou preparado para dar uma opinião.

Anthony Marston interpôs-se, dizendo:

— Mas escutem, parece que estão esquecendo uma coisa. Quem diabo botou esse disco a rodar?

— Sim, acho que devemos investigar isso — murmurou Wargrave.

Voltou à sala, seguido pelos outros. Rogers acabava de entrar com um copo de conhaque. Miss Brent estava curvada sobre a figura gemebunda da Sra. Rogers.

Rogers insinuou-se jeitosamente entre as duas mulheres.

— Permita-me, senhora, eu falarei com ela, Ethel... Ethel... Está tudo bem. Tudo bem, ouviu? Reanime-se.

A Sra. Rogers respirava convulsivamente. Seus olhos, arre­galados e cheios de medo, percorriam e tornavam a per­correr o círculo de rostos que se formara em torno dela. A voz de Rogers era premente.

— Domine-se, Ethel.

O Dr. Armstrong falou-lhe em tom macio:

— Já está ficando boa, Sra. Rogers. Foi o choque, apenas.

— Eu desmaiei, senhor? — perguntou ela.

— Sim.

— Foi a voz... essa voz medonha... como um julga­mento...

O rosto da mulher esverdinhou-se novamente, suas pálpebras caíram.

— Onde está este conhaque? — perguntou rápido o Dr. Armstrong.

Rogers colocara-o em cima de uma mesinha. Alguém pas­sou-o ao médico e este inclinou-se sobre a mulher que arfava.

— Beba isto, Sra. Rogers.

Ela bebeu, engasgando-se um pouco. A aguardente reanimou-a. Voltou-lhe a cor às faces.

— Estou bem agora — disse. — Foi apenas... o susto.

— É muito natural — apressou-se a dizer Rogers. — Eu

também me assustei. Até deixei cair a bandeja. Mentiras per­versas, é o que eram! Eu gostaria de saber...

Rogers foi interrompido: uma simples tosse, uma tossezinha seca, que, no entanto, fê-lo estacar bruscamente no meio da frase. O mordomo olhou para o Juiz Wargrave e este voltou a tossir. Depois disse:

— Quem pôs esse disco no gramofone? Foi você, Rogers?

— Eu não sabia o que era — exclamou o criado. — Juro por Deus que não sabia o que era, senhor. Se soubesse, nun­ca teria feito isso.

O juiz replicou, seco:

— Isso é provavelmente verdade, mas convém explicar, Rogers.

O mordomo enxugou o rosto com um lenço e disse, aflito:

— Eu estava apenas obedecendo ordens, senhor. '

— Ordens de quem?

— Do Sr. Owen.

— Vamos esclarecer isto — disse o Juiz Wargrave. — Quais eram exatamente as ordens do Sr. Owen?

— Eram para eu colocar um disco no gramofone. O disco estava na gaveta, e minha mulher devia fazer funcionar o gramofone quando eu entrasse na sala com a bandeja do café.

— Muito interessante isto — murmurou o juiz.

— É a pura verdade, senhor — exclamou Rogers. — Juro por Deus que é a verdade. Eu não sabia o que era... não fazia a menor idéia. Tinha um nome no disco... Pensei que fosse alguma música.

Wargrave virou-se para Lombard.

— O disco tem um título?

Lombard fez sinal que sim. Sorriu de repente, mostrando os dentes brancos e aguçados.

— Perfeitamente, senhor. O disco chama-se O Canto do Cisne...

 

O General Macarthur irrompeu de súbito:

Isto é intolerável... intolerável! Lançar acusações dessa espécie! Alguma coisa deve ser feita. Esse tal de Owen, seja lá quem for...

Emily Brent interrompeu-o dizendo com força:

— Justamente: quem é ele?

O juiz interpôs-se. Falou com autoridade que lhe dava uma existência passada nos tribunais:

— É isso exatamente o que devemos investigar, e com muito cuidado. Sugiro que, antes de mais nada, você leve sua mulher para a cama, Rogers. Depois volte aqui.

— Muito bem, senhor.

— Eu o ajudarei, Rogers — disse o Dr. Armstrong. Apoiada nos dois homens, a Sra. Rogers saiu tropegamente da sala. Depois que eles desapareceram, Tony Marston disse:

— Quanto ao senhor, não sei, mas a mim não me desa­gradaria tomar um drinque.

— De acordo — disse Lombard.

— Vou ver onde fica o bar — tornou Marston. Saiu da sala e voltou instantes depois.

— Encontrei tudo numa bandeja, pronto para ser servido. O rapaz depositou cuidadosamente a sua carga. Os dois minutos seguintes foram passados em distribuir as bebidas. O Gen. Macarthur serviu-se de uma respeitável dose de uís­que, e o mesmo fez o juiz. Todos sentiam necessidade de um estimulante. Só Emily Brent pediu e obteve um copo d'água. O Dr. Armstrong voltou à sala.

— Está bem — anunciou. — Dei-lhe um sedativo para tomar. Que é isto, drinques? Aceito um.

Alguns dos homens tornaram a encher os seus copos. Mo­mentos depois reapareceu Rogers.

O Juiz Wargrave assumiu a presidência. A sala transfor­mou-se num tribunal improvisado.

— Vejamos, pois, Rogers — disse o magistrado. — Temos de examinar isto a fundo. Quem é esse Sr. Owen?

Rogers olhou-o com espanto.

— É o dono da casa, senhor.

— Disso sei eu. O que desejo ouvir é o que você sabe a respeito desse homem.

Rogers abanou a cabeça.

— Não posso responder-lhe, senhor. Nunca o vi pessoal­mente.

Houve um ligeiro murmúrio na sala.

— Nunca o viu? — interveio o Gen. Macarthur. — Que quer dizer corri isso?

— Não faz ainda uma semana que estamos aqui, senhor,

minha mulher e eu. Fomos contratados por carta, através de uma agência de empregos. A Regina Agency, de Plymouth.

Blore aprovou com a cabeça.

— Firma muito antiga — informou.

— Tem essa carta consigo? — prosseguiu o juiz.

— A carta que nos dá o emprego? Não, senhor, não a guardei.

— Continue a sua história. Dizia, pois, que foi contratado

por carta.

— Sim, senhor. Devíamos chegar aqui num dia determi­nado. Assim fizemos. Tudo estava em ordem aqui. A despensa repleta e tudo muito bem arranjado. Só foi preciso limpar o pó e o mais que segue.

— E depois?

— Depois, nada, senhor. Recebemos ordens — também por carta — de preparar os quartos para uma recepção de hóspedes. E ontem, pelo correio da tarde, recebi outra carta do Sr. Owen. Dizia que ele e a Sra. Owen eram forçados a adiar a vinda e nos mandava fazer o melhor que pudéssemos. Continha também as instruções sobre o jantar, o café e o gramofone.

— Com certeza ainda tem essa carta? — disse vivamente o juiz.

— Tenho, senhor. Está aqui. Tirou-a do bolso e entregou-a ao juiz.

— Hum! — fez este. — Tem o timbre do Ritz Hotel e foi escrita à máquina.

Rápido, Blore foi colocar-se ao seu lado.

— Se o senhor me dá licença, vou dar uma olhada. Arrancou-a das mãos do outro e correu os olhos por ela.

— Máquina Coronation — murmurou. — Completamente nova... sem defeitos. Papel Ensign, o mais usado de todos. Daqui não sairá nada. Pode ser que tenha impressões digitais, mas duvido.

Wargrave olhou para ele com um repentino movimento de atenção.

Anthony Marston postara-se ao lado de Blore e lia por cima do ombro deste.

— Os nomes de batismo são pouco comuns, não? — ob­servou. — Ulick Norman Owen. Como é sonoro!

Com um leve estremeção, disse o velho juiz:

— Estou-lhe agradecido, Sr. Marston. Chamou-me a aten­ção para um ponto curioso e sugestivo.

Olhou para os outros em redor de si e, avançando o pes­coço como uma tartaruga, enraivecido, disse:

— Creio que chegou o momento de repartirmos uns com os outros tudo que sabemos. Seria bom que cada um de nós comunicasse as informações que possa ter com referência ao dono desta casa. — Fez uma pausa e depois acrescentou: — Somos todos seus hóspedes. Penso que lucraríamos bastante se cada um de nós explicasse exatamente como isso veio a acontecer.

Seguiu-se um breve silêncio, e em seguida Emily Brent falou com decisão:

— Há alguma coisa de muito singular em tudo isto. Re­cebi uma carta com uma assinatura pouco legível. Dizia pro­vir de uma senhora que encontrei em certo lugar de veraneio, dois ou três anos atrás. Supus que o nome fosse Ogden ou Oliver. Conheço uma Sra. Oliver, e também uma Srta. Ogden, mas tenho plena certeza de que nunca encontrei ou fiz ami­zade com uma pessoa chamada Owen.

— Tem consigo essa carta, Miss Brent? — perguntou o juiz.

— Sim, tenho. Vou buscá-la para o senhor ver.

Saiu da sala e um minuto mais tarde voltou com a carta. O juiz leu-a e disse:

— Estou começando a compreender... Miss Claythorne? Vera explicou as circunstâncias em que fora contratada

como secretária.

— Marston? — disse o juiz. Anthony respondeu:

— Recebi um telegrama. De um camarada meu, Badger Berkeley. Fiquei um pouco surpreso, pois imaginava que esse cavalão andasse pela Noruega. Dizia-me que desse uma chispada até aqui.

Wargrave anuiu com a cabeça.

— Dr. Armstrong?

— Fui chamado profissionalmente.

— Percebo. Não conhecia anteriormente a família?

— Não. A carta mencionava um colega meu.

— Para dar verossimilhança... — disse o juiz. — Sim; e presumo que esse colega esteja presentemente fora de con­tato com o senhor?

— Bem... hã... é verdade.

Lombard, que tinha os olhos fixos em Blore, disse brusca­mente:

— Escute, acabo de me lembrar que...

O juiz ergueu a mão. — Espere um pouco...

— Mas eu...

— Trataremos de cada coisa por sua vez, Sr. Lombard. Por ora estamos indagando das causas pelas quais nos acha­mos todos reunidos aqui esta noite. Gen. Macarthur?

O general deu um puxão ao bigode e resmungou:

— Recebi uma carta desse tal Owen, mencionando velhos camaradas meus -que se encontrariam aqui... Pedia descul­pas pela forma irregular do convite. Infelizmente não guardei a carta.

— Sr. Lombard? — disse Wargrave.

— A mesma coisa. Convite, referência a amigos comuns... Fui na onda. Rasguei a carta.

O Juiz Wargrave voltou sua atenção para o Sr. Blore. Afagou o lábio superior com o índex e falou num tom peri­gosamente polido:

— Acabamos de passar por uma experiência um tanto perturbadora. Uma voz aparentemente desencarnada dirigiu-se a cada um de nós pelo nome e articulou acusações precisas contra todos nós. Daqui a pouco trataremos dessas acusações. De momento, estou interessado num pequeno detalhe. Entre os nomes enunciados estava o de William Henry Blore. Mas, que saibamos, não há entre nós ninguém chamado Blore. Por outro lado, não se mencionou o nome Davis. Que tem a dizer sobre isto, Sr. Davis?

Blore respondeu, casmurro:

— Pelo jeito, fui desmascarado. Suponho ser melhor ad­mitir que meu nome não é Davis.

— O senhor é William Henry Blore?

— Exatamente.

— Acrescentarei alguma coisa — disse Lombard. — O Sr. Blore não apenas está aqui sob um nome falso, mas conforme notei esta noite, é um mentiroso de primeira. Pretende ter vindo de Natal, na África do Sul. Conheço a África do Sul e Natal, e estou pronto a jurar que nunca em sua vida o senhor pôs os pés naquele país.

Todos os olhos se fixaram em Blore — olhos irados e suspicazes. Anthony Marston avançou um passo na direção dele, cerrando os punhos.

— E agora, seu cafajeste? Tem alguma explicação? Blore atirou a cabeça para trás, levantando o queixo qua­drado.

— Os senhores estão enganados comigo. Tenho aqui as minhas credenciais e posso mostrar-lhas. Sou um ex-funcio­nário da Scotland Yard. Tenho uma agência de investigações em Plymouth e fui contratado para este trabalho.

— Por quem? — perguntou o Juiz Wargrave.

— Por esse tal Owen. Juntou um tentador vale postal e deu-me instruções para fazer o que ele desejava. Eu devia fazer parte do grupo, disfarçado como um dos hóspedes. Re­cebi os nomes de todos os senhores e fui encarregado de vigiar a todos.

— A carta apontava alguma razão para isso? Blore respondeu com amargura:

— As jóias da Sra. Owen! Só mesmo a Sra. Owen... Não acredito que exista tal pessoa.

Novamente o indicador do juiz afagou o lábio, desta vez com certa deferência para com o interrogado.

— Creio que as suas conclusões são justificadas — disse ele. — Ulick Norman Owen! Na carta dirigida a Miss Brent, embora a assinatura do sobrenome seja uma simples garatuja, os nomes de batismo estão razoavelmente claros. Una Nancy. Notem que as iniciais são as mesmas em ambos os casos. Ulick Norman Owen... Una Nancy Owen... Isto é, sempre U. N. Owen. Ora, com um pouco de imaginação, temos: UNKNOWN!

— Desconhecido! — exclamou Vera. — Mas isto é fan­tástico... é doido!

O juiz sacudiu vagarosamente a cabeça e disse:

— Oh! sim. Não abrigo a menor dúvida de que fomos convidados a esta casa por um louco... provavelmente, um perigoso louco homicida.

 

Houve um momento de silêncio — um silêncio de pasmo e consternação. Depois, fez-se ouvir mais uma vez a vozinha clara do magistrado:

— Passaremos agora à fase seguinte da nossa investiga­ção. Mas primeiro quero acrescentar à lista as minhas pró­prias credenciais.

Tirou uma carta do bolso e atirou-a sobre a mesa.

— Isto pretende vir de uma velha amiga minha, Lady Constance Culmington. Faz alguns anos que não a vejo. La­dy Constance tinha ido para o Levante. É uma carta vaga e incoerente, tal qual as que ela costuma escrever, e insta comigo para que venha encontrar-me com ela aqui, referin­do-se nos termos mais vagos ao casal que a hospedava. Ob­servem que se trata da mesma técnica. Só menciono esse fato porque combina com as outras provas e depoimentos — surgindo de umas e de outros um ponto interessante. Quem quer que nos tenha atraído para cá, essa pessoa conhece ou se deu ao trabalho de averiguar bastante coisa a nosso res­peito. Ele, seja quem for, está a par de minha amizade com Lady Constance e conhece-lhe muito bem o estilo epistolar. Sabe alguma coisa sobre os colegas do Dr. Armstrong e seus atuais paradeiros. Conhece o apelido do amigo.do Sr. Mars­ton e o tipo de telegramas que costuma remeter. Sabe exata­mente onde veraneou Miss Brent há dois anos e a classe de pessoas que lá encontrou. Está muito bem informado sobre °s velhos camaradas do Gen. Macarthur.

E, depois de fazer uma pausa, o juiz concluiu:

— Ele sabe, como vêem, bastante coisa. E, baseando-se nesses conhecimentos, fez certas acusações muito definidas.

Imediatamente todos começaram a falar ao mesmo tempo, uma verdadeira babel.

O Gen. Macarthur bradou:

— Um montão de mentiras! Calúnias! Vera gritou, com a respiração arfante:

— E iníquo! Perverso! Rogers disse em voz rouca:

— Uma mentira... uma infame mentira... Nunca fize­mos... nenhum de nós.

Anthony Marston rosnou:

— Não sei o que pretendia esse cretino!

A mão erguida do Juiz Wargrave acalmou o tumulto.

— Desejo esclarecer o seguinte — disse, escolhendo cui­dadosamente as palavras: — O nosso desconhecido amigo acusa-me da morte de um homem chamado Edward Seton. Lembro-me de Seton perfeitamente bem. Presidi ao tribunal que o julgou em junho de 1930. Era acusado de ter assassi­nado uma velha. Tinha um excelente advogado de defesa e causou boa impressão nos jurados ao ser interrogado no banco das testemunhas. Contudo, as provas contra ele eram concludentes. Fiz o sumário de acordo com essas provas, e o conselho de sentença declarou-o culpado. A defesa recor­reu, alegando má orientação no julgamento. O recurso foi negado e o homem devidamente executado. Quero declarar diante de todos os presentes que tenho a consciência absolu­tamente tranqüila no tocante a esse caso. Cumpri o meu de­ver e nada mais. Lavrei sentença contra um homicida legiti­mamente condenado.

Armstrong lembrava, agora. O caso Seton! O veredito fora uma grande surpresa. Certa noite, por ocasião do processo, encontrara Matthews, consultor da Coroa, a jantar num res­taurante. Matthews mostrara-se otimista. "Não há dúvidas quanto ao veredito. A absolvição é praticamente certa". Mais tarde, Armstrong ouvira comentários: "O juiz foi cem por cento contra ele. Virou a cabeça dos jurados e ele foi con­denado. Mas tudo perfeitamente legal. O velho Wargrave conhece a Lei. Deu a impressão de que ele tivesse algum motivo de ódio contra o sujeito".

Todas essas recordações passaram céleres pela mente do doutor. Antes que pudesse considerar o bom senso da inda­gação, perguntou impulsivamente:

— O senhor conhecia Seton? Antes do processo, quero dizer.

Os olhos reptilianos do magistrado, quase encobertos, en­contraram-se com os do médico. Numa voz clara e fria res­pondeu:

— Eu nada sabia de Seton antes do processo.

Armstrong disse de si para si:

"Esse sujeito está mentindo... Sei que ele está men­tindo!".

 

Vera Claythorne falou com voz trêmula:

— Eu gostaria de lhes explicar a respeito dessa criança... Cyril Hamilton. Era a sua governanta. Ele estava proibido de nadar até muito longe. Um dia, quando eu tinha a aten­ção distraída, ele se distanciou. Nadei atrás dele... Não pude chegar a tempo... Foi horrível!... Mas não foi culpa minha. No inquérito judicial, o "Coroner" exonerou-me de toda responsabilidade. E a mãe do menino... Foi tão bon­dosa! Se nem ela me censurou, por que tenho de ouvir agora essas terríveis palavras? Não é justo... não é justo...

A moça não pôde mais continuar. Desatou a chorar amargamente.

O Gen. Macarthur deu-lhe uma palmadinha no ombro, dizendo:

— Vamos, vamos, minha querida. Está claro que não é verdade. O sujeito é um louco. Louco! Tem dez parafusos de menos. Está metendo os pés pelas mãos.

O general empertigou-se, quadrando os ombros, e voci­ferou:

— O melhor seria deixar essa coisa sem resposta nenhu­ma. Contudo, acho que devo dizer: não há nada de verda­de... absolutamente nada de verdadeiro no que ele diz so­bre... hã... sobre o jovem Arthur Richmond. Richmond era um dos meus oficiais. Enviei-o numa missão de reconhe­cimento. Foi morto. Coisa natural na guerra. Desejo dizer que muitíssimo me ofende essa... imputação à honra de minha esposa. A melhor criatura do mundo. Absolutamente. A mulher de César!

Sentou-se e cofiou o bigode com a mão trêmula. O esfor­ço que fizera para falar deixara-o muito abalado.

Lombard tomou a palavra. Seus olhos brilhavam mali­ciosamente.

— A respeito desses nativos...

— Sim, que diz sobre eles? — atalhou Marston. Philip Lombard sorriu.

— A história é perfeitamente verdadeira. Abandonei os pobres diabos. Instinto de conservação. Estávamos perdidos no mato. Eu e mais um par de sujeitos apanhamos todos os alimentos que havia e nos raspamos.

O Gen. Macarthur interpelou-o severamente:

— O senhor abandonou os seus homens?... Deixou-os morrer de fome?

— Receio que não seja um gesto muito nobre — disse Lombard —, mas a autoconservação é o primeiro dever de um homem. E, como sabe, os nativos não se importam de morrer. Eles não pensam como os europeus a esse respeito.

Vera retirou as mãos do rosto e disse, encarando-o:

— O senhor deixou que eles... morressem? Lombard respondeu:

— Deixei que morressem.

Seus olhos irônicos fitavam os olhos horrorizados da moça. Anthony Marston disse numa voz lenta e intrigada:

— Estava pensando agora... John e Lucy Combes. Deve ser um casal de garotos que ficaram embaixo do meu carro, perto de Cambridge. Um azar do diabo.

O Juiz Wargrave observou acidamente:

— Para eles, ou para o senhor?

— Bem, eu estava pensando que para mim... mas o senhor tem razão, é claro, foi um grande azar para eles. Um acidente imprevisível. Saíram correndo de uma casa qualquer... Cassaram-me a licença por um ano. Uma incomodação dos diabos.

O Dr. Armstrong comentou com veemência:

— Essa mania de correr é errada, completamente errada! Os rapazes como o senhor são um perigo para a comunidade.

Anthony deu de ombros e disse:

— Estamos na era da velocidade, não adianta querer

mandar contra. As estradas inglesas são um caso perdido, é claro. Não se pode fazer uma média decente.

Olhou vagamente em redor de si, à procura do seu copo, apanhou-o de sobre uma mesa e concluiu sem se voltar:

— Bem, afinal de contas a culpa não foi minha. Um acidente imprevisível!

 

O criado, Rogers, tinha estado a umedecer os lábios e a torcer as mãos. Aproveitou o silêncio para perguntar, numa voz baixa e respeitosa:

— Posso dizer uma palavra, senhor?

— Fale, Rogers — volveu Lombard.

Rogers pigarreou e passou mais uma vez a língua pelos lábios secos.

— Mencionaram, senhor, a minha pessoa e a da Sra. Ro­gers. E Miss Brady. Não há nisso uma só palavra de verdade, senhor. Minha mulher e eu estivemos com Miss Brady até que ela faleceu. Era uma senhora muito doente, senhor, sem­pre esteve doente desde que começamos a trabalhar em casa dela. Naquela noite havia uma tormenta, senhor... na noite em que ela piorou. O telefone estava desarranjado. Não po­díamos chamar o doutor. Fui buscá-lo, senhor, a pé. Mas quando chegou era tarde. Tínhamos feito tudo que era pos­sível por ela, senhor. Devotados a ela, isso éramos. Qualquer pessoa lhe dirá o mesmo. Ninguém nunca disse uma palavra contra nós. Nenhuma palavra.

Lombard olhou pensativamente para a face do homem, toda repuxada por tiques, para os seus lábios secos, os seus olhos assustados. Lembrou-se da queda da bandeja de café e pensou, mas não disse: "Ah! é?".

Blore falou então, no tom cordial e intimidador do seu

ofício:

— Apesar disso receberam o seu pouquinho com a morte da patroa, hem?

Rogers endireitou o corpo e respondeu rigidamente:

— Miss Brady nos deixou um legado em reconhecimento aos nossos fiéis serviços. E por que não, gostaria de saber?

— E a seu respeito, Sr. Blore? — perguntou Lombard.

— A meu respeito?

— O seu nome estava incluído na lista. Blore corou até a raiz dos cabelos.

— Refere-se a Landor? Isso foi quando assaltaram o ban­co... London and Commercial.

O Juiz Wargrave fez um movimento.

— Lembro-me disso. O caso não foi julgado por mim, mas eu me lembro. Landor foi condenado em virtude do seu de­poimento. O senhor foi o funcionário de polícia encarregado das investigações?

— Fui.

— Landor foi condenado a trabalhos forçados perpétuos e morreu em Dartmoor um ano mais tarde. Era um homem de saúde delicada.

— Era um ladrão — disse Blore. — Foi ele quem atacou o vigia noturno. As provas contra ele eram bem claras.

Wargrave falou pausadamente:

— O senhor foi elogiado, segundo creio, pela competên­cia com que tratou do caso.

— Fui promovido — falou Blore, carrancudo. E acrescentou numa voz indistinta:

— Estava apenas cumprindo o meu dever.

De repente, Lombard soltou uma sonora risada.

— Ao que parece, somos todos uns verdadeiros esteios da Lei! Com exceção da minha pessoa. E quanto ao doutor, com o seu pequeno engano profissional? Operação ilícita, não?

Emily Brent olhou para ele com marcada aversão e afas­tou-se um pouco.

O Dr. Armstrong, muito senhor de si, sacudiu bem-humoradamente a cabeça.

— Não consigo entender isso. O nome nada me disse quando foi mencionado. Como era mesmo... Clee? Close? Realmente não me lembro de ter tido um cliente com esse nome ou mesmo de ter tido um caso fatal na minha clínica.

A acusação é um mistério completo para mim. Mas é ver­dade que já faz muito tempo. Talvez tivesse sido uma de minhas operações no hospital. Grande parte dessa gente só recorre ao cirurgião quando já é demasiado tarde. E depois, quando o paciente morre, lançam a culpa nele.

Suspirou, abanando a cabeça.

Lá consigo, pensava:

 

"Bêbado, isso é que foi... bêbado... E operei nesse estado! Os nervos descontrolados... as mãos a tremer. Matei-a, não há a menor dúvida. Pobre diabo... uma mulher de idade... coisa simples, se eu tivesse domínio de mim mesmo. A minha sorte foi haver lealdade na nossa profissão. A freira sabia, é claro... mas calou a boca. Bom Deus, foi um grande abalo para mim! Cor­rigiu-me. Mas quem poderia ter sabido disso... depois de tantos anos?"

 

Houve um silêncio na sala. Todos olhavam, direta ou discretamente, para Emily Brent. Decorreram um ou dois minutos antes que ela se desse conta dessa expectativa. Suas sobrancelhas subiram pela testa estreita.

— Estão à espera de que eu diga alguma coisa? — per­guntou. — Nada tenho para dizer.

— Nada, Miss Brent? — volveu o juiz.

— Nada.

E comprimiu os lábios com força.

O juiz acariciou o rosto e disse numa voz suave:

— Reserva para mais tarde a sua defesa?

— Não estou cogitando de defender-me — respondeu friamente Miss Brent. — Sempre agi de acordo com os di­tames de minha consciência. Nada tenho a reprovar.

Pairava no ar um sentimento de insatisfação, mas Emily Brent não era pessoa que se deixasse governar pela opinião dos outros. Permaneceu irredutível.

O juiz pigarreou uma ou duas vezes, depois falou:

— Está encerrada a inquirição. Agora, Rogers, diga-me: quem mais se encontra nesta ilha, além de nós, sua esposa e você?

— Ninguém, senhor. Absolutamente ninguém.

— Está certo disso?

— Inteiramente, senhor.

Wargrave prosseguiu:

— Ainda não posso fazer uma idéia clara sobre qual seja o propósito de nosso desconhecido anfitrião em reunir-nos aqui. Mas, a meu ver, essa pessoa, seja ela quem for, não é sã do juízo no sentido comum da expressão. Talvez seja perigosa. Creio que seria bom deixarmos este lugar o mais depressa possível. Sugiro que voltemos nesta mesma noite.

— Desculpe-me, senhor, mas não há nenhum barco na ilha — disse Rogers.

— Nenhum barco?

— Não, senhor.

— Mas como é que se comunica com a terra firme?

— Fred Narracott vem todas as manhãs, senhor. Traz o pão, o leite e a correspondência, e recebe ordens.

O Juiz Wargrave continuou:

— Então, segundo penso, convém que partamos todos pela manhã, assim que chegar a lancha de Narracott.

Houve um coro de vozes favoráveis, apenas com uma discordante. Era Anthony Marston que dissentia dos demais.

— Isso me parece falta de espírito esportivo. Devíamos deslindar o mistério antes de ir embora. É tal qual uma his­tória de detetive. Positivamente sensacional.

O juiz retrucou acidamente:

— Na idade a qual cheguei não tenho o menor interesse por "sensações", como o senhor as chama.

Anthony sorriu.

— A vida legal estreita os horizontes! Sou francamente pelo crime! À saúde do crime!

Apanhou o seu copo e bebeu-o de um gole.

Talvez o tivesse feito demasiado depressa, pois engasgou-se... engasgou-se seriamente. Seu rosto contorceu-se e fi­cou roxo. Fez um esforço convulsivo para respirar, depois rolou da cadeira, deixando cair o copo.

 

Foi uma coisa tão súbita e inesperada que estarreceu a todos. Ficaram olhando apatetados para a figura caída no chão.

Então o Dr. Armstrong levantou-se de um salto e aproxi­mou-se de Marston, ajoelhando ao lado dele. Quando tornou a erguer a cabeça, seus olhos tinham uma expressão atônita.

— Meu Deus! Está morto! — disse um murmúrio ater­rado.

Os outros não compreenderam logo.

Morto? Morto? Aquele jovem deus nórdico, no vigor da saúde e da força... derribado num só instante? Rapazes sau­dáveis não morrem assim, engasgando-se com uma dose de uísque e soda...

Não podiam entender isso, não.

O Dr. Armstrong estudava o rosto do morto. Farejou os lábios roxos e contorcidos, depois apanhou o copo em que Marston bebera.

— Morto? — disse o Gen. Macarthur. — Quer dizer que o camarada simplesmente se engasgou e... morreu?

— Pode chamar isto de engasgamento, se quiser — res­pondeu o médico. — Ele morreu de asfixia, sem a menor duvida.

Estava agora a cheirar o copo. Molhou o dedo na borra do fundo e, com a máxima cautela, tocou levemente no dedo com a ponta da língua.

Demudou-se a expressão do seu rosto.

— Nunca ouvi dizer que um homem morresse desse jei­to... engasgando-se, sem mais nem menos! disse o Gen. Macarthur.

Emily Brent interpôs numa voz clara:

— "Em plena vida nos achamos na morte."

O Dr. Armstrong ergueu-se e falou bruscamente:

— Não, um homem não morre de simples engasgamento. A morte de Marston não foi o que chamamos uma morte na­tural.

— Havia... alguma coisa... no uísque? — perguntou Vera quase num sopro.

Armstrong sacudiu a cabeça.

— Sim. Não posso dizer exatamente o que é. Tudo in­dica um dos cianetos. Não há cheiro característico do ácido prússico. Provavelmente cianeto de potássio. Tem ação mais ou menos instantânea.

— Estava no copo dele? — perguntou vivamente o juiz.

— Estava.

O doutor caminhou até a mesa onde se achavam as bebi­das. Tirou a rolha da garrafa de uísque, cheirou-a e pro­vou-a. Depois provou a água de soda. Abanou a cabeça.

— Não têm nada.

— Quer dizer, então que... ele próprio pôs o veneno no seu copo? — perguntou Lombard.

Armstrong fez um gesto afirmativo, com um ar curio­samente insatisfeito, e disse:

— É o que parece.

— Suicídio, hem? — interveio Blore. — Coisa bem es­quisita.

Vera falou lentamente:

— Ninguém pensaria que ele quisesse matar-se. Tinha tanta vida! Era... oh!... um homem feliz. Quando des­ceu a ladeira no seu carro, esta tarde, parecia... parecia... oh! não posso explicar.

Mas os outros sabiam o que ela queria dizer. Anthony Marston, no vigor da sua juventude e virilidade, parecera um ser imortal. E agora jazia ali no assoalho, derribado e do­brado em dois.

— Há alguma outra possibilidade além do suicídio? — perguntou o Dr. Armstrong.

Lentamente, todos abanaram a cabeça. Não podia haver outra explicação. As bebidas estavam intatas. Todos tinham

visto Anthony Marston caminhar para a mesa e servir-se. Se havia, pois, cianeto na bebida, devia ter sido posto ali pelo próprio Anthony.

E contudo... que motivo podia ter ele para suicidar-se?

— Olhe, doutor, isso não me parece certo — disse Blore, pensativo. — Eu não diria que o Sr. Marston fosse um tipo suicida.

— Concordo — respondeu Armstrong.

 

Tinham deixado as coisas nesse pé. Que mais havia a dizer?

Juntos, Armstrong e Lombard tinham carregado o corpo inerte de Anthony Marston para o seu quarto, deitando-o e cobrindo-o com um lençol.

Quando tornaram a descer, os outros estavam reunidos em grupo, um tanto arrepiados, embora a noite não estivesse fria.

— É melhor irmos para a cama. Já é tarde — disse Emily Brent.

Passava de meia-noite. A sugestão era ajuizada... no entanto, todos hesitaram. Era como se eles se apegassem à companhia uns dos outros, em busca de segurança.

— Sim — disse o juiz — devemos dormir um pouco. Rogers:

— Ainda não tirei a mesa, senhor. Lombard, laconicamente:

— Tire de manhã. Armstrong:

— Sua mulher está bem? Rogers:

— Vou ver, senhor.

O mordomo saiu e voltou um ou dois minutos mais tarde.

— Dorme que é uma beleza.

— Ótimo — disse o doutor. — Não a perturbe.

— Não, senhor. Só vou arrumar as coisas na sala de jantar e ver se tudo está bem fechado, depois me deito.

Rogers atravessou o hall, dirigindo-se para a sala de jantar.

Os outros subiram a escada, numa vagarosa e relutante procissão.

Se aquela fosse uma casa antiga, com o madeirame a estalar, desvãos escuros e paredes revestidas de pesados lambris, talvez se pudesse dizer que o ambiente lúgubre pesava sobre eles. Mas a vivenda era a essência do modernismo. Não havia recantos sombrios, nem a possibilidade de painéis corrediços; era inundada de luz elétrica... tudo novo, limpo e brilhante. Não havia nada escondido ali. A casa não pos­suía atmosfera própria.

De certo modo, isso era o mais assustador de tudo...

Os hóspedes desejaram-se boa noite no patamar. Cada um se dirigiu para o seu quarto e todos, maquinalmente, quase sem ter consciência disso, chavearam as suas portas...

 

No seu aprazível quarto, pintado em tons suaves, o Juiz Wargrave tirou a roupa e preparou-se para deitar.

Pensava em Edward Seton.

Lembrava-se muito bem dele. Louro, olhos azuis, com o hábito de olhar as pessoas de frente com um cativante ar de franqueza. Fora isso que causara tão boa impressão nos jurados.

Llewellyn, o promotor, fizera um mau trabalho. Fora demasiado veemente, tentara provar demais.

Por outro lado, Matthews, o advogado de defesa, condu­zira-se de modo brilhante. Seus argumentos pesaram. Seus interrogatórios tinham sido terríveis. A maneira de inquirir o seu constituinte no banco das testemunhas fora simples­mente magistral.

E Seton portara-se muito bem no interrogatório. Não se exaltara nem fora muito veemente. O júri ficara bem im­pressionado. Talvez parecesse a Matthews que a partida estava ganha.

O juiz deu cuidadosamente corda ao relógio e colocou-o à cabeceira da cama.

Lembrava-se perfeitamente do que sentira na presidência do tribunal: ouvindo, tomando notas, avaliando tudo, coor­denando os menores vestígios de provas contra o réu...

Havia gostado daquele caso! A peroração de Matthews fora de primeira ordem. Llewellyn, falando depois, não conseguira dissipar a boa impressão causada pelo advogado da defesa.

Depois, então, veio o sumário do juiz...

Cuidadosamente, Wargrave retirou a sua dentadura postiça e colocou-a num copo com água. Os lábios enrugados en­traram boca adentro. Era, agora, uma boca cruel — cruel e voraz.

Tinha entornado completamente o caldo de Seton!

Com um ligeiro resmungo reumático, subiu para a cama e apagou a luz elétrica.

 

Lá embaixo, na sala de jantar, Rogers estacou intrigado.

Fitava as figurinhas de porcelana que se achavam no cen­tro da mesa.

— Esquisito! — murmurou de si para si. — Teria jurado que eram dez.

 

O Gen. Macarthur virava-se de um lado para outro na cama.

Não podia conciliar o sono.

Continuava a ver, no escuro, o rosto de Arthur Richmond.

Tinha gostado de Arthur... com a breca, havia estimado muitíssimo o Arthur. E ficara satisfeito por ver que Leslie também simpatizava com ele.

Leslie era tão caprichosa! Quantos bons sujeitos a quem ela torcia o nariz e declarava maçantes! "Maçantes!" Bem assim.

Contudo, não achara Arthur Richmond maçante. Desde o começo se haviam dado muito bem um com o outro. Con­versavam sobre teatro, música e pintura. Leslie troçava dele, fazia-o de bobo, atormentava-o. E ele, Macarthur, sentia-se encantado com a idéia de que a esposa tinha um interesse perfeitamente maternal pelo rapaz.

Maternal, hem! Grande asneira não se ter lembrado de que Richmond tinha vinte e oito anos, e Leslie, vinte e nove.

Amara Leslie. Ainda parecia vê-la. O rosto em forma de coração, os olhos dançantes, dum cinza profundo, os abundantes cabelos crespos e castanhos. Amara Leslie e deposi­tara nela uma confiança absoluta.

Lá na França, em meio a todo aquele inferno, sentava-se a pensar nela, tirando o seu retrato do bolso superior da túnica.

E um dia... tinha descoberto!

Acontecera exatamente como nos livros. A carta no enve­lope errado. Ela escrevera a ambos e colocara a carta de Ri­chmond no envelope do esposo. Até agora, depois de tantos anos, podia sentir ainda o choque... a dor...

Bom Deus, como aquilo lhe doera!

E a ligação datava já de algum tempo. A carta deixava isso bem claro. Fins de semana! A última licença de Rich­mond...

Leslie... Leslie e Arthur!

Maldito sujeito! Para o diabo a sua cara sorridente, o seu solícito "Sim, senhor". Mentiroso e hipócrita! Ladrão da mulher alheia!

Fora-se acumulando lentamente aquela fria raiva assassina.

Conseguira portar-se como sempre, sem nada deixar per­ceber. Procurara mostrar com Richmond a mesma atitude habitual.

Com êxito? Acreditava que sim. Richmond não suspeita­ra de nada. As desigualdades de humor eram facilmente explicadas lá nas trincheiras, onde os nervos dos homens estavam continuamente a explodir sob a tensão permanente.

Apenas o jovem Armitage olhara uma ou duas vezes para ele com uma expressão curiosa. Um menino ainda, mas mui­to perspicaz.

Talvez Armitage tivesse adivinhado... quando chegou a hora.

Ele, Macarthur, enviara Richmond deliberadamente para a morte. Só um milagre poderia tê-lo devolvido ileso. Esse milagre não aconteceu. Sim, enviara Richmond para a morte e não se arrependia disso. Tinha sido bastante fácil. Come­tiam-se enganos a todo o instante, oficiais eram desnecessa­riamente mandados em missões de sacrifício. Tudo era con­fusão, pânico. O que se podia dizer mais tarde era "O velho Macarthur perdeu um pouco a calma, cometeu alguns erros colossais, sacrificou alguns de seus melhores homens". Era o máximo que se poderia dizer.

Mas o jovem Armitage era bem diferente. Havia olhado para o seu comandante de modo bem singular. Sabia, talvez, que Richmond estava sendo mandado deliberadamente para a morte.

(Teria ele falado depois que a guerra terminou?)

Leslie não soubera de nada. Leslie chorara a morte do amante (supunha ele), mas seus prantos estavam acabados quando ele voltou para a Inglaterra. Macarthur nunca lhe disse que tinha descoberto tudo. Continuaram juntos... ape­nas de certo modo, ela já não dava a impressão de ser um vivente. E, três ou quatro anos depois, tivera pneumonia du­pla e morrera.

Isso tinha sido há muito tempo. Quinze... dezesseis anos?

E ele deixara o Exército e viera morar em Devon... Comprara a casinha que sempre desejara ter. Bons vizi­nhos... região agradável. Havia o que caçar e pescar. Ia à igreja nos domingos. (Mas não no dia em que era lido o texto sobre Davi, quando mandou Urias para a frente de batalha. Por isso ou por aquilo, não podia ouvir essa passa­gem. Dava-lhe uma sensação de mal-estar.)

Todos se haviam mostrado muito amigos. Isto é, a prin­cípio. Mais tarde, começou a ter a inquietante suspeita de que falavam dele pelas costas. Olhavam-no de um modo... diferente. Como se tivessem ouvido alguma coisa... algum boato mentiroso...

(Armitage? E se Armitage houvesse falado?)

Passara a evitar as pessoas, vivia metido consigo. É desa­gradável sentir que se está sendo alvo de comentários.

E tudo isso havia acontecido há tanto tempo! Tão... tão fora de propósito agora! Leslie havia desaparecido nos longes do passado, e Richmond também. Nada do que sucedera parecia ter importância agora.

No entanto, isso lhe fazia a vida muito solitária. Dera para fugir ao convívio de seus velhos amigos do Exército.

(Se Armitage falara, eles deviam saber de tudo.)

E agora — esta noite — uma voz misteriosa proclamara o seu segredo tão cuidadosamente escondido.

Teria enfrentado a situação como devia? Mostrara-se firme, revelando os sentimentos que convinha — indignação, asco — porém nada de culpa, nenhum embaraço? Difícil dizer.

Seguramente, ninguém podia ter levado a incriminação a serio. Fora lançado um montão de outras acusações, igualmente malévolas e absurdas. Aquela encantadora moça — a voz a acusara de ter afogado uma criança! Idiotice! Coisa de maluco!

Nem Emily Brent escapara — uma sobrinha do velho Tom Brent, do Regimento. A voz culpara-a de assassínio! Qualquer pessoa podia ver, com um olho fechado, que a mulher era religiosa como ninguém — dessas que são unha e carne com os pastores.

Raio de coisa esquisita! Doida, simplesmente doida!

E desde que havia chegado ali... Quando fora isso? Com o demônio, tinha sido naquela mesma tarde! Parecia ter sido há muito mais tempo.

Quando poderemos ver esta ilha pelas costas? pensou.

Amanhã, naturalmente, quando viesse a lancha.

Engraçado, mas precisamente nesse instante ele não sen­tia grande desejo de sair da ilha... Voltar para a terra fir­me, para a sua casinha, enfrentar novamente todos os incô­modos e ansiedades. Pela janela aberta, podia ouvir as ondas baterem contra os rochedos... agora um pouco mais alto do que ao cair da noite. O vento começava a soprar mais forte, também.

"Som tranqüilo... Lugar tranqüilo...", pensou ele. "O que uma ilha tem de melhor é que quando se chega... não se pode ir mais longe... alcançou-se o fim das coisas."

De súbito, o general compreendeu que não desejava mais sair da ilha.

 

Vera Claythorne jazia acordada na sua cama, a olhar pa­ra o teto.

A luz da cabeceira estava acesa..Vera tinha medo da es­curidão.

"Hugo... Hugo...", pensava. “Por que te sinto tão perto de mim esta noite?... Aqui bem perto...”

"Mas onde estará ele? Não sei. Nunca saberei. Foi sim­plesmente embora... para longe... desapareceu da minha vida."

Não adiantava esforçar-se por esquecer Hugo. Estava ali, junto dela. Tinha de pensar nele... de lembrar-se...

A Cornualha...

Os rochedos escuros, a areia amarela e macia. A Sra. Hamilton, gorducha, bem-humorada. Cyril, sempre a cho­ramingar, a puxar-lhe da mão.

— Eu quero nadar até o penedo, Miss Claythorne. Por que não posso nadar até o penedo?

Alçava os olhos... encontrava os olhos de Hugo a ob­servá-la.

E à noite, depois de pôr Cyril na cama...

— Vamos dar um passeio, Miss Claythorne?

— Acho que sim.

A recatada volta pela praia. O luar... o doce ar do Atlântico. E depois, os braços de Hugo que a cingiam contra si.

— Eu a amo. Eu a amo. Sabe que a amo, Vera? Sim, ela o sabia.

(Ou julgava saber.)

— Não posso pedir-lhe que case comigo. Não tenho um centavo. Mal posso sustentar-me. E engraçado que uma vez, pelo espaço de três meses, tive a perspectiva de me tornar um homem rico. Cyril nasceu três meses depois que Maurice morreu. Se tivesse nascido uma menina...

Se a criança fosse uma menina, Hugo teria herdado tudo. Ficara desapontado, admitia-o.

— Não pusera nisso a minha esperança, naturalmente. Mas me causou um certo abalo. Bem, afinal, sorte é sorte! Cyril é um belo garoto. Gosto imensamente dele.

E gostava mesmo. Sempre pronto a tomar parte em brin­quedos para divertir o seu pequeno sobrinho. Na natureza de Hugo não havia lugar para o rancor.

Cyril não era realmente robusto. Um menino débil, sem vigor constitucional. O tipo de criança que talvez não che­gasse a crescer...

E então?... ,

— Miss Claythorne, por que não posso nadar até o pe­nedo?

Irritante, essa insistência lastimosa.

— Fica muito longe, Cyril.

— Mas, Miss Claythorne...

Vera levantou-se. Foi até a penteadeira e engoliu três aspirinas.

“Gostaria de ter algum bom remédio para dormir”, pen­sou. "Se eu tivesse que acabar com a vida, tomaria uma porção de comprimidos de veronal... ou alguma coisa des­sa espécie... cianeto é que nunca!"

Teve um arrepio ao lembrar-se do rosto arroxeado e convulso de Anthony Marston.

Ao passar diante da lareira olhou para a versalhada na sua moldura.

Dez negrinhos vão jantar enquanto não chove;

Um deles se engasgou, e então ficaram nove.

"É horrível", pensou. "Exatamente como nesta noite.. "

Por que Anthony Marston desejara morrer?

Ela não queria morrer.

Não podia conceber que se desejasse a morte...

A morte era para... os outros...

 

O Dr. Armstrong sonhava...

Fazia muito calor na sala de operações...

Com certeza tinham elevado demais a temperatura. O suor escorria-lhe pelo rosto. Suas mãos estavam pegajosas. Era difícil segurar o bisturi com firmeza...

Que magnífico fio tinha o instrumento...

Fácil cometer um assassinato com uma faca daquelas. E, naturalmente, o que estava fazendo era um assassinato...

O corpo da mulher parecia diferente. Fora um corpo enor­me e pesado. Este era magro, ossudo. E o rosto estava co­berto.

A quem tinha de matar?

Não podia lembrar-se. Mas devia saber! Perguntava à freira?

A Irmã tinha os olhos nele. Não, não podia perguntar-lhe. Sua suspeita era visível. Mas quem estava na mesa de operações? Não deviam ter tapado o rosto daquela maneira... Se ao menos pudesse vê-lo...

Ah! agora melhorou. Um jovem interno estava a puxar o lenço.

Emily Brent, naturalmente. Era a Emily Brent que ele tinha de matar. Que olhos maldosos tinha! Seus lábios mo­viam-se. Que dizia ela?

Em plena vida nos encontramos na morte...

Ela ria agora. Não, enfermeira, não torne a pôr o lenço. Preciso ver. Tenho de aplicar o anestésico. Onde está o éter? Devo ter trazido o éter comigo. Que fez do éter, Irmã? Château Neuf du Pape? Sim, serve perfeitamente.

Retire esse lenço, enfermeira.

Claro! Eu já sabia! É Anthony Marston! Tem o rosto roxo e convulso. Mas não está morto... está rindo. Digo que está rindo! Vejam como sacode a mesa de operação.

Cuidado, homem, cuidado. Enfermeira, segure isso fir­me... segure firme...

O Dr. Armstrong acordou com um sobressalto. Era de manhã. O quarto estava banhado de sol.

Alguém, inclinado sobre ele, sacudia-o. Era Rogers. Rogers com a cara branca, a dizer:

— Doutor... doutor!

O Dr. Armstrong acordou inteiramente. Sentou-se na ca­ma e perguntou em tom áspero:

— Que é?

— É minha mulher, doutor. Não posso acordá-la. Meu Deus! Não posso fazer com que ela acorde. E... não me parece que esteja passando bem.

O Dr. Armstrong foi rápido e eficiente. Enfiou o seu robe de chambre e seguiu Rogers.

Inclinou-se sobre a cama em que a mulher parecia dor­mir tranqüilamente, deitada de lado. Ergueu a mão fria, le­vantou a pálpebra. Passaram-se alguns momentos antes que ele tornasse a endireitar o corpo e se afastasse da cama.

Rogers sussurrou:

— Ela está... ela está?...

O mordomo passou a língua sobre os lábios secos. Armstrong sacudiu afirmativamente a cabeça.

— Sim, está morta.

Seus olhos pousaram-se pensativamente no homem que tinha à sua frente, depois voltaram-se para a mesinha de ca­beceira, o lavatório, e tornaram a fixar-se na mulher ador­mecida.

— Foi... foi... do coração, doutor? — perguntou Ro­gers.

Armstrong só respondeu ao cabo de algum tempo:

— Como andava ela de saúde?

— Era um pouco reumática — respondeu Rogers.

— Foi atendida recentemente por algum médico?

— Médico? — O mordomo encarou-o com ar atoleimado. — Há muitos anos que nenhum de nós dois vê um médico.

— Tinha algum motivo para acreditar que ela sofresse do coração?

— Não, doutor. Nunca soube de nada.

— Ela dormia bem? — perguntou Armstrong.

Rogers desviou os olhos. Juntou as mãos e começou a torcê-las, inquieto.

— Não dormia lá muito bem, não — murmurou.

— Tomava drogas para dormir? — indagou vivamente o doutor.

Rogers olhou surpreendido para ele.

— Drogas? Para dormir? Não que eu saiba. Estou certo que não.

Armstrong dirigiu-se para a pia.

Havia ali um certo número de frascos. Loção para o ca­belo, água de alfazema, cáscara-sagrada, óleo de pepino pa­ra as mãos, um gargarejo, pasta dentifrícia e um pouco de água de Elliman.

Rogers ajudou-o abrindo as gavetas da penteadeira. Pas­saram depois à cômoda. Mas não havia sinal de soporíferos em pílulas ou em solução.

— Ela não tomou nada ontem à noite, doutor, a não ser o que o senhor deu... — disse Rogers.

 

Quando o gongo soou chamando para o breakfast, às no­ve horas, todos já estavam levantados, à espera.

O Gen. Macarthur e o juiz tinham estado a caminhar no terraço, trocando descosidos comentários sobre a situação política.

Vera Claythorne e Philip Lombard foram ao cume da ilha, nos fundos da casa. Ali haviam encontrado William Henry Blore a olhar para a terra firme.

— Ainda não há sinal dessa lancha — disse ele. — Esti­ve cuidando daqui.

Vera respondeu a sorrir:

— O Devon é um condado dorminhoco. Em geral an­dam atrasados.

Philip Lombard olhava na outra direção, para o mar largo.

— Que pensam do tempo? — perguntou bruscamente. Blore observou o céu e opinou:

— A mim me parece bom.

Lombard franziu os lábios como quem assobia.

— Vai começar a ventar antes que escureça.

— Borrasca, hem? — disse Blore. Lá de baixo veio o som do gongo.

— Breakfast? — disse Philip Lombard. — Já não é sem tempo.

Enquanto desciam o declive abrupto, Blore disse a Lom­bard em tom meditativo:

— Sabe que não consigo entender por que esse rapaz quis dar cabo da pele? Passei a noite inteira ruminando essa história.

Vera ia um pouco adiante. Lombard entreparou e disse:

— Tem alguma outra hipótese?

— Gostaria de ter alguma prova. Para começar, um mo­tivo. Eu diria que ele estava muito bem de vida.

Emily Brent saiu pela porta envidraçada da sala e veio ao encontro dos três.

— O barco vem aí? — perguntou vivamente.

— Ainda não — respondeu Vera.

Foram para a mesa. Sobre o aparador havia chá, café e uma imensa travessa com ovos e bacon.

Rogers abriu a porta para que passassem e tornou a fechá-la por fora.

— Esse homem parece doente esta manhã — comen­tou Emily Brent.

O Dr. Armstrong, que estava parado à porta do terraço, consertou a garganta e disse:

— Devem desculpar quaisquer... hã... falhas no ser­viço esta manhã. Rogers teve de preparar o breakfast sozi­nho. A Sra. Rogers não pôde... hã... trabalhar esta ma­nhã.

Emily Brent perguntou, surpreendida:

— Que tem a mulher?

— Vamos começar a nossa refeição — convidou Arms­trong com desembaraço. — Os ovos devem estar frios. De­pois, há vários assuntos que desejo discutir com todos os presentes.

Os outros compreenderam. Serviram-se de ovos e bacon, deitaram chá ou café em suas xícaras. O breakfast começou.

Por acordo tácito e universal, foi banida a discussão dos problemas da ilha. Conversaram, de maneira desconexa, so­bre atualidades: notícias do estrangeiro, acontecimentos des­portivos e o último aparecimento do monstro do Loch Ness.

Depois de retirados os pratos, o Dr. Armstrong afastou um pouco sua cadeira para trás, pigarreou com importância e falou:

— Achei conveniente esperar que todos houvessem ter­minado de comer antes de lhes dar uma triste notícia. A Sra. Rogers morreu durante o sono.

Houve interjeições surpreendidas e atônitas.

— Mas é terrível! — exclamou Vera. — Duas mortes nesta ilha desde que chegamos!

O Juiz Wargrave, com os olhos entrecerrados, disse na sua vozinha clara e precisa:

— Hum... Muito estranho... Qual foi a causa da morte?

Armstrong deu de ombros.

— É impossível dizer assim, sem recursos técnicos.

— É necessário fazer uma autópsia?

— Eu não poderia dar um atestado de óbito. Não tenho o menor conhecimento de qual fosse o estado de saúde dela.

— Parecia ser muito nervosa — disse Vera. — E ontem à noite sofreu um abalo. Talvez tivesse sido do coração, acho eu.

O médico interpôs secamente:

— Sim, é certo que o coração parou de bater... Mas qual foi a causa disso? Eis a questão.

Emily Brent pronunciou uma palavra apenas. Essa pala­vra caiu áspera e clara no meio do grupo que a escutava:

— Consciência. Armstrong virou-se para ela.

— Que quer dizer exatamente com isso, Miss Brent?

— Os senhores todos me ouviram — respondeu a solteirona, no tom rígido que lhe era costumeiro. — Ela foi acu­sada, juntamente com o marido, de terem assassinado deliberadamente a sua patroa... uma senhora idosa.

— E pensa que...

— Penso que a acusação era verdadeira. Todos os senho­res a viram ontem à noite. Ao lhe ser lançado em rosto o seu crime, não pôde resistir ao choque e desmaiou. Morreu literalmente de medo.

O Dr. Armstrong abanou a cabeça em ar de dúvida.

— É uma teoria admissível, mas não se pode adotá-la sem um conhecimento mais exato do seu estado de saúde. Se houvesse deficiência cardíaca...

Emily Brent acrescentou tranqüilamente:

— Chame-o, se preferir, um Ato de Justiça Divina. Todos pareceram chocados. O Sr. Blore falou, inquieto:

— Isso é levar as coisas demasiado longe, Miss Brent.

A solteirona olhou para todos com os olhos lampejantes, alçando o queixo e dizendo:

— Acham impossível que um pecador seja prostrado pe­la cólera divina! Eu não acho!

O juiz afagou o queixo e murmurou numa voz levemen­te irônica:

— Minha cara senhora, a julgar pelo conhecimento que tenho do mal, a Providência deixa a nós, mortais, o trabalho de condenar e punir... uma tarefa, muitas vezes, inçada de dificuldades. Não há nada a facilitá-la.

Emily Brent deu de ombros.

— Que foi que ela comeu e bebeu ontem à noite, antes de ir para a cama? — perguntou Blore vivamente.

— Nada — respondeu Armstrong.

— Não tomou nada? Uma xícara de chá? Um gole d'água? Aposto que tomou chá. Essa classe de gente sempre o faz.

— Rogers garante que ela não tomou absolutamente nada.

— Ah! — fez Blore. — Mas isso é o que ele diz!

O seu tom de voz era tão significativo que o doutor vol­tou rapidamente os olhos para ele.

— Então é essa a sua idéia? — perguntou Philip Lombard.

Agressivamente, Blore respondeu:

— Bem, por que não? Todos nós ouvimos aquela acusa­ção ontem à noite. Podia ser puro disparate... simples lou­cura! Mas, por outro lado, podia não ser. Admitamos, por um momento, que fosse verdade. Rogers e sua mulher aca­baram com a pele da velha senhora. Bem, aonde é que isso nos leva? Eles se sentiam em perfeita segurança e muito tranqüilos...

Vera interrompeu-o, dizendo em voz baixa:

— Não, não creio que a Sra. Rogers jamais se sentisse em segurança.

Blore pareceu levemente agastado com a interrupção. "Mulher é mulher", diziam os seus olhos.

— Bem, fosse lá como fosse — continuou — não havia, que soubessem, nenhum perigo sério para eles. De repente, ontem à noite, algum lunático põe tudo na rua. Lembrem-se de como o marido ficou junto dela quando estava voltando a si. Não era de todo solicitude conjugai! Oh! não. Ele pa­recia um gato pisando em tijolo quente. Estava louco de me­do pelo que ela pudesse dizer.

"E aí têm a situação. Cometeram um assassinato e ficaram impunes. Mas, se toda essa história viesse a ser reme­xida, que poderia acontecer? Havia todas as probabilidades de que a mulher entornasse o caldo. Não tinha fibra para agüentar o tirão. Era um perigo ambulante para o marido, isso é o que era! Ele sabia o que fazia. Mentiria com uma cara impassível até o Dia do Juízo... mas não podia ter confiança nela! E, se ela desse com a língua nos dentes, o pescoço dele corria perigo! Portanto, botou discretamente qualquer coisa numa xícara de chá para ter certeza de que lhe fecharia a boca permanentemente."

Armstrong disse em voz pausada:

— Não havia nenhuma xícara vazia ao lado da cama dela... não havia lá absolutamente nada. Procurei por toda parte.

Blore fez um muxoxo.

— Ora, claro! A primeira coisa que ele faria, depois que ela tivesse bebido, era pegar a xícara e o pires e lavá-los com o maior cuidado.

Houve uma pausa, depois o Gen. Macarthur disse em tom de dúvida:

— Talvez seja assim, mas acho quase impossível que um homem faça tal coisa... à sua esposa.

Blore soltou uma breve risada e disse:

— Quando o pescoço de um homem corre perigo, ele não perde tempo com sentimentos. ^

Houve nova pausa. Antes que alguém pudesse falar, a porta abriu-se e Rogers entrou.

— Desejam mais alguma coisa? — perguntou, olhando-os um a um.

O Juiz Wargrave remexeu-se levemente na cadeira e in­dagou:

— A que horas costuma vir a lancha?

— Entre sete e oito, senhor. Às vezes, um pouco depois das oito. Não sei o que Fred Narracott possa estar fazendo esta manhã. Se estivesse doente, mandaria o irmão.

— E que horas são agora? — perguntou Philip Lombard.

— Dez minutos para as dez, senhor.

Lombard alçou as sobrancelhas e sacudiu vagarosamente a cabeça.

Rogers esperou um ou dois minutos.

De súbito, o gen. Macarthur falou explosivamente:

— Lamento o que houve com sua esposa, Rogers. O dou­tor acaba de nos contar.

Rogers inclinou a cabeça.

— Sim, senhor. Muito obrigado, senhor. Apanhou o prato de presunto vazio e retirou-se. Novamente, fez-se silêncio na sala.

 

No terraço ao lado, Philip Lombard estava a dizer:

— A respeito dessa lancha...

Blore olhou para ele e sacudiu a cabeça.

— Sei em que está pensando, Sr. Lombard. Já me fiz a mesma pergunta. A lancha devia ter chegado há coisa de duas horas. Não veio! Por quê?

— Encontrou a explicação? — perguntou Lombard.

— Não se trata de um acidente... isso é o que eu digo. Faz parte de um plano. Tudo é uma coisa só.

— Acha que ela não vem? — disse Lombard.

Uma voz falou atrás deles — uma voz rabugenta e im­paciente:

— A lancha não vem.

Blore volveu ligeiramente os ombros quadrados e olhou com ar pensativo para quem falara.

— Também é dessa opinião, general?

— Claro que não vem — disse com energia o Gen. Ma­carthur. — Estamos contando com a lancha para sairmos da ilha. É justamente o que significa toda essa história. Nós não vamos sair desta ilha... Nenhum de nós sairá daqui com vida... É o fim, entendem?... O fim de tudo...

Depois de breve hesitação, prosseguiu numa voz baixa e estranha:

— Isto é que é paz... verdadeira paz... Chegar ao fim... não ter de continuar... Sim, a paz...

Voltou abruptamente as costas e afastou-se. Foi até o fim do terraço e começou a descer o declive que conduzia ao mar, estendendo-se obliquamente até a extremidade da ilha, onde rochedos isolados sobressaíam da água.

Seus passos eram um tanto inseguros, como os de um homem meio adormecido.

— Aí vai outro que não está regulando bem! — disse Blore. — Pelo jeito, todos vão acabar assim.

Philip Lombard respondeu:

— Não acredito que isso aconteça com você, Blore. O ex-inspetor riu.

— Não perco a cabeça tão facilmente. — E acrescentou em tom seco: — Não creio, tampouco, que o Sr. Lombard acabe assim.

— Por enquanto acho que estou em perfeito juízo, obri­gado — disse Philip Lombard.

 

O Dr. Armstrong saiu para o terraço e ali ficou, hesi­tante. À sua esquerda estavam Blore e Lombard. À sua di­reita, Wargrave, com a cabeça baixa, caminhava de um lado para outro.

Após um momento de indecisão, Armstrong dirigiu-se pa­ra este último.

Mas no mesmo instante Rogers surgiu rapidamente do interior da casa.

— O senhor, doutor, pode conceder-me uma palavra, por favor?

Armstrong virou-se para trás.

Assombrou-o o aspecto do mordomo. Todo o seu rosto, que assumira uma cor cinza-esverdinhado, contraíra-se espasmodicamente. Tremiam-lhe as mãos.

Era tão violento o contraste com a sua compostura de poucos minutos atrás que Armstrong ficou abismado.

— Por favor, senhor, conceda-me duas palavras. Lá den­tro, senhor.

O doutor voltou a entrar na casa junto com Rogers, que ia num frenesi.

— Que há, homem? Acalme-se — disse ele.

— Aqui, doutor, venha cá.

O mordomo abriu a porta da sala de jantar. O médico entrou. Rogers seguiu-o e cerrou a porta atrás de si.

—- Bem — disse Armstrong. — O que é?

Os músculos da garganta do outro moviam-se. Engolia em seco.

— Estão acontecendo coisas que não entendo, senhor — disse em voz sacudida.

— Coisas? Que coisas? — perguntou vivamente Arms­trong.

— Vai pensar que estou louco, senhor. Dirá que isso não é nada. Mas precisa ser explicado, senhor. Precisa ser ex­plicado! Porque isso não é coisa que aconteça!

— Bem, homem, diga o que é. Não continue a falar por enigmas.

Rogers tornou a engolir em seco e disse:

— São aquelas figurinhas, senhor. No meio da mesa. Os negrinhos de porcelana. Eram dez, juro que eram dez!

— Sim, dez — disse Armstrong. — Nós os contamos ontem à noite.

Rogers chegou-se mais perto dele.

— Exatamente, senhor. Pois ontem à noite, quando vim tirar a mesa, só havia nove, senhor. Reparei nisso e achei esquisito. Mas não pensei mais no caso. E hoje de manhã, senhor... Não notei quando servi o café. Estava muito aba­lado pelo que aconteceu... Mas agora, quando vim tirar no­vamente a mesa... Veja o senhor mesmo, se não me acre­dita. Aí estão só oito, senhor! Só oito! É coisa que se enten­da, é? Só oito...

 

Depois do breakfast, Emily Brent tinha sugerido a Vera Claythorne uma nova caminhada até o cume, a fim de ver se a lancha aparecia. Vera concordara.

O vento havia refrescado. Pequenas cristas brancas sur­giam no mar. Não se viam barcos de pesca... e nenhum sinal da lancha.

A aldeia de Sticklehaven não podia ser avistada —• so­mente o outeiro acima dela. Um penhasco saliente de rocha vermelha ocultava a pequena baía.

— O homem que nos trouxe ontem parecia uma pessoa de confiança — disse Emily Brent. — É verdadeiramente muito esquisito que ele esteja tão atrasado esta manhã.

Vera não respondeu. Estava procurando reprimir um sen­timento de pânico que crescia dentro dela.

"Deves conservar a calma, a serenidade", dizia a si mes­ma, furiosa. "Que foi que te transformou assim? Sempre tiveste nervos excelentes."

Depois de um ou dois minutos, disse em voz alta:

— Tomara que ele viesse de uma vez. Eu... eu quero ir-me embora daqui.

Emily Brent observou secamente:

— Não tenho dúvidas de que todos nós queiramos a mes­ma coisa.

— Tudo isso é tão extraordinário... — disse Vera. — Parece não... não ter sentido algum.

A solteirona falou com vivacidade:

— Estou muito desgostosa comigo por me ter deixado enganar tão facilmente. Refletindo bem, aquela carta é mes­mo absurda. Mas quando a recebi não tive dúvidas... abso­lutamente nenhuma.

— Suponho que não — tornou Vera maquinalmente.

— É essa tendência incorrigível que a gente tem de acei­tar as coisas sem exame — disse Emily Brent.

Vera respirou profundamente, estremecendo.

— Pensa mesmo... aquilo que disse à mesa?

— Seja mais explícita, minha querida. A que se refere em particular?

Vera respondeu numa voz sumida:

— Pensa mesmo que Rogers e sua mulher mataram a velha senhora?

Emily Brent olhou pensativa para o mar alto, depois disse:

— Pessoalmente, tenho absoluta certeza. E você, que pensa?

— Não sei o que pensar. Miss Brent:

— Tudo indica que a idéia é certa. Aquele desmaio da mulher. E lembre-se de que o homem deixou cair a bandeja do café. Depois, o modo como ele falou... Não convencia. Oh! sim, receio que ambos sejam culpados.

Vera:

— A aparência dela... assustada da própria sombra! Nunca vi uma mulher com um ar tão assustado... Devia viver sob a obsessão do crime que cometera...

Miss Brent murmurou:

— Lembro-me de um versículo que havia na parede do meu quarto, quando eu era criança. Fica certo de que o teu pecado te descobrirá. É uma grande verdade, isso. Fica certo de que o teu pecado te descobrirá.

Vera levantou-se da pedra em que estava sentada.

— Mas, Miss Brent... Miss Brent... nesse caso...

— Sim, minha querida?

— Os outros? E a respeito dos outros?

— Não estou compreendendo muito bem.

— Todas as outras acusações... que não eram verda­deiras? Mas, se é verdade no caso dos Rogers...

Calou-se, incapaz de pôr em ordem os seus pensamentos caóticos. A testa de Emily Brent, que estivera franzida numa -expressão de perplexidade, voltou a desanuviar-se.

— Ah! agora entendo. Bem, há esse tal Sr. Lombard. Ele admite que abandonou vinte homens à morte.

— Eram apenas nativos... — disse Vera.

— Brancos ou pretos, ele são nossos irmãos — retrucou duramente Emily Brent.

"Nossos irmãos pretos... nossos irmãos pretos", pensou Vera. "Oh! que vontade de rir! Estou ficando histérica. Não sou mais a mesma..."

Emily Brent continuou com ar pensativo:

— Está claro que algumas das outras acusações eram for­çadas e ridículas. Contra o juiz, por exemplo, que não fez senão cumprir o, dever imposto pelo seu cargo público. E contra o ex-investigador da Scotland Yard. No meu caso, também.

Fez uma pausa e depois continuou:

— Naturalmente, em vista das circunstâncias, eu não po­dia dizer nada ontem à noite. Não era assunto para ser dis­cutido diante de cavalheiros.

— Não?

Vera escutava-a com interesse. Miss Brent prosseguiu se­renamente:

— Beatrice Taylor estava a meu serviço. Não era uma menina direita... conforme verifiquei demasiado tarde. Muito me enganei a respeito dela. Tinha boas maneiras e era muito asseada e bem-mandada. Eu estava muito satisfeita com ela. Sem dúvida, tudo isso não passava da mais pura hipocrisia! Era uma menina perdida e sem moral nenhuma. Repugnante! Passou-se algum tempo antes de eu descobrir que ela estava... "em dificuldades", como costumam dizer essas criaturas. — Miss Brent fez uma pausa, enrugando com nojo o seu delicado nariz. — Foi um grande choque para mim. Seus pais eram gente direita, e tinham-na criado com toda severidade. Alegro-me em dizer que não tiveram indul­gência com ela.

— Que aconteceu então? — perguntou Vera, com os olhos fixos em Miss Brent.

— Naturalmente, não fiquei com ela nem mais uma ho­ra sob o meu teto. Ninguém jamais dirá que pactuei com imoralidades.

— Que aconteceu... a ela?

— A criatura perdida — disse Miss Brent — não con­tente em já ter um pecado na consciência, cometeu um pe­cado ainda mais grave. Pôs fim à sua própria vida.

— Matou-se? — sussurrou Vera, horrorizada.

— Sim, atirou-se no rio. Vera teve um arrepio.

Fitou o perfil calmo e delicado de Miss Brent, e disse:

— Como se sentiu a senhora quando soube que ela ha­via feito isso? Não se arrependeu? Não acusou a si mesma?

Emily Brent empertigou-se.

— Eu? Eu nada tenho que me reprovar.

— Mas se foi a sua... dureza... que a levou a tal?.. , Emily Brent retrucou asperamente:

— Foi a ação dela... o seu próprio pecado que a levou a tal. Se se tivesse portado como uma moça decente e reca­tada, nada disso teria acontecido.

Virou o rosto para Vera. Não havia nenhum remorso, ne­nhuma inquietude nos seus olhos. Eram duros e orgulhosos. Sentada no cume da Ilha do Negro, Emily Brent parecia vestir uma armadura de virtude.

A pequena e idosa solteirona já não parecia ligeiramente ridícula a Vera.

De súbito, tornara-se uma mulher terrível.

 

O Dr. Armstrong deixou a sala de jantar e mais uma vez saiu para o terraço.

Sentado agora numa cadeira, o juiz olhava placidamente para o mar.

Lombard e Blore achavam-se mais longe, para a esquerda, a fumar em silêncio.

Como da primeira vez, o doutor hesitou por um momento. Seu olhar pousou-se meditativamente no Juiz Wargrave. De­sejava consultar alguém. Ali estava um homem com um cé­rebro arguto e lógico de magistrado. No entanto, hesitava. O Juiz Wargrave podia ter excelente cabeça, mas era um homem idoso. Nessa conjuntura, Armstrong sentia a necessidade de um homem de ação. Resolveu-se afinal:

— Lombard, posso falar-lhe um instante?

Philip pôs-se em movimento.

— Pois não.

Os dois homens deixaram o terraço e desceram devagar o declive em direção ao mar. Quando já não podiam ser ouvi­dos, Armstrong falou:

— Quero fazer uma consulta. Lombard alçou as sobrancelhas.

— Meu caro, eu não entendo de medicina.

— Não, não, refiro-me à situação geral.

— Oh! isso é outra coisa.

— Francamente, que pensa da situação? — perguntou Armstrong.

Lombard refletiu um instante, depois disse:

— É bastante sugestiva, não é?

— Quais são as suas idéias a respeito dessa mulher? Aceita a teoria de Blore?

Philip soprou uma baforada de fumaça.

— É perfeitamente plausível... considerada em si mesma.

— Exatamente.

A resposta parecera tranqüilizar Armstrong. Philip Lom­bard não era tolo.

— Isto é — continuou ele — aceitando-se a suposição de que o casal Rogers tenha cometido impunemente um assassi­nato, há dez anos. E não vejo nenhuma impossibilidade nisso. Que lhe parece que eles tenham feito, precisamente? Envene­nado a velha senhora?

Lentamente, Armstrong respondeu:

— Pode ter sido algo bem mais simples. Esta manhã per­guntei a Rogers de que sofria Miss Brady. A resposta foi esclarecedora. Sem entrar em detalhes médicos, basta dizer que em certa forma de perturbação cardíaca emprega-se o nitrito de amila. Quando sobrevém um ataque, quebra-se uma ampola de nitrito de amila e dá-se a inalar. Se essa medicação fosse omitida..,. bem, as conseqüências facilmente poderiam ser fatais.

— Tão simples assim? — disse Philip Lombard, pensativo. — Deve ter sido... bastante tentador.

O doutor assentiu com a cabeça.

— Sim, não era preciso dizer nada... Não havia o traba­lho nem o perigo de adquirir e administrar arsênico... nada definido... Apenas... abster-se! E Rogers saiu noite a fora em busca de um médico, de modo que ambos podiam confiar em que nunca seriam descobertos.

— E, mesmo que alguém soubesse, jamais se poderia pro­var o que quer que fosse contra eles — acrescentou Philip Lombard.

E, franzindo repentinamente o sobrolho:

— Naturalmente... isso explica muita coisa. Intrigado, Armstrong perguntou:

— Como assim?

— Explica a Ilha do Negro, quero dizer — prosseguiu Lombard. — Há crimes que não podem ser imputados aos seus perpetradores. O dos Rogers, por exemplo. Outro caso é o do velho Wargrave, que cometeu o seu assassinato estri­tamente dentro da lei.

— Acredita nessa história? — perguntou Armstrong vi­vamente.

Philip Lombard sorriu.

— Oh! sim, acredito. Wargrave assassinou Edward Seton sem dúvida alguma, assassinou-o tão seguramente como se o tivesse trespassado com um estilete. Mas foi bastante inteli­gente para fazer isso sentado na sua cadeira, de toga e peruca. Dessa maneira, dentro dos processos comuns, não se lhe pode imputar o seu crimezinho.

Um pensamento súbito passou como um relâmpago pelo cérebro de Armstrong:

"Assassinato no Hospital. Assassinato na Mesa de Opera­ção. Seguro... sim, tão seguro como uma fortaleza!"

— Daí o Sr. Owen... — dizia Philip Lombard. — Daí a Ilha do Negro!

Armstrong respirou fundo.

— Agora estamos chegando ao ponto principal: qual é o verdadeiro propósito de nos reunir todos aqui?

— Qual pensa que seja? — perguntou Philip Lombard. Armstrong respondeu abruptamente:

— Quais são as hipóteses possíveis? Que Rogers a tenha matado porque temia que ela desse com a língua nos dentes. Segunda possibilidade: que ela se tenha apavorado e escolhido a saída mais fácil.

— Suicídio, hem? — disse Lombard.

— Que acha?

— Podia ter sido, sim, se não fosse a morte de Marston. Dois suicídios em doze horas é muito suicídio! E, se pretende dizer-me que Anthony Marston, um touro novo, sem nervos e com muito pouco cérebro, se encheu de remorsos por ter atropelado dois garotos e resolveu dar cabo da própria vi­da... direi que tal idéia é simplesmente ridícula! E, por outro lado, como teria se arranjado o veneno? Que eu saiba, o cianeto de potássio não é uma coisa que cada um leve consigo no bolso do colete. Mas, afinal, esse é o seu ramo.

— Ninguém, em seu juízo perfeito, anda com cianeto de potássio no bolso — respondeu Armstrong. — Mas poderia acontecer a quem desejasse destruir um ninho de vespas.

— O zeloso proprietário ou jardineiro, em outras palavras? Não, isso tampouco combina com Anthony Marston. Quer-me parecer que é preciso buscar um pouco mais longe a expli­cação desse cianeto. ,Ou Anthony Marston queria dar cabo da sua vida antes de vir para cá, e, por conseguinte, veio preparado, ou então...

— Ou então? — instigou-o Armstrong. Philip Lombard riu sardonicamente.

— Por que forçar-me a dizê-lo, quando está na ponta da sua língua? Anthony Marston foi assassinado, está claro.

 

O Dr. Armstrong respirou com força.

— E a Sra. Rogers? Lombard disse pausadamente:

— Eu poderia acreditar no suicídio de Anthony (com di­ficuldade) se não fosse a morte da Sra. Rogers. Poderia acre­ditar no suicídio da Sra. Rogers (facilmente) se não fosse a morte de Anthony Marston. E poderia acreditar que Rogers eliminou a mulher, se não fosse a defunção inesperada de Marston. Mas o que nós precisamos é de uma teoria para explicar duas mortes que se seguiram rapidamente uma à outra.

— Talvez eu lhe possa prestar algum auxílio na formação dessa teoria — disse Armstrong.

E repetiu os fatos que Rogers lhe havia comunicado z respeito do desaparecimento das duas figurinhas de porcelana.

— Sim, os negrinhos de porcelana... — disse Lombard. — É certo que ontem à noite estavam lá dez, à hora do jan­tar. E agora são só oito, diz você?

O Dr. Armstrong recitou:

 

Dez negrinhos vão jantar enquanto não chove;

Um deles se engasgou, e então ficaram nove.

Nove negrinhos sem dormir: não é biscoito!

Um deles cai no sono, e então ficaram oito.

 

Os dois homens entreolharam-se. Philip Lombard sorriu e jogou fora o seu cigarro.

— Enquadra-se demasiado bem para ser uma coincidência! Anthony Marston morreu de asfixia ou engasgamento ontem à noite depois do jantar, e Mama Rogers cai no sono... para sempre!

— Donde se conclui? — perguntou Armstrong.

— Donde se conclui que aqui há marosca! Temos outra espécie de negrinho, o Negrinho da Morte! X! O Sr. Owen! U. N. Owen! Um Lunático Desconhecido à Solta!

— Ah! — exclamou Armstrong, com um suspiro de alívio. — Você concorda! Mas sabe no que isso implica? Rogers jurou que não havia ninguém na ilha a não sermos nós, ele e sua mulher.

— Rogers está enganado! Ou talvez Rogers esteja men­tindo!

Armstrong abanou a cabeça.

— Não creio que esteja mentindo. O homem está assus­tado. Assustado quase a ponto de perder o juízo.

Philip Lombard assentiu com a cabeça e disse:

— Hoje não veio a lancha. Isso combina com o resto: sempre os pequenos arranjos do Sr. Owen! A Ilha do Negro deve ficar isolada até que o Sr. Owen acabe a sua tarefa.

Armstrong empalidecera.

— Está vendo?... Esse homem deve ser um doido var­rido!

Philip Lombard respondeu num novo timbre de voz;

— Mas há uma coisa que o Sr. Owen não calculou.

— Que é?

— A ilha é mais ou menos um rochedo nu. Será fácil dar-lhe uma busca. Não tardaremos a descobrir o excelentís­simo senhor U. N. Owen.

— Será perigoso — advertiu Armstrong. Philip Lombard riu-se.

— Perigoso? Quem tem medo do lobo mau? Eu serei perigoso quando o apanhar!

Fez uma pausa e concluiu:

— Convém recrutarmos Blore para nos ajudar. Será um

homem valioso, num aperto. É melhor não dizer nada às mulheres. Quanto aos outros, o general está gagá, penso eu, e o forte do velho Wargrave é a inatividade sentenciosa. Nós três daremos conta do recado.

 

Foi fácil recrutar Blore, que imediatamente se pronunciou de acordo com os argumentos dos dois homens.

— O que o senhor disse a respeito dessas figuras de por­celana muda tudo. Isso é louco, louco! Mas há uma coisa ainda: não acha que a idéia do Sr. Owen é fazer o serviço por procuração, como quem diz?

— Explique-se, homem.

— Bem, o que quero dizer é o seguinte: Depois daquela balbúrdia ontem à noite, o rapaz, Marston, perde a tramontana e se envenena. E então, é Rogers que desatina e manda a mulher para o outro mundo! Tudo de acordo com os planos de U.N.O.

Armstrong abanou a cabeça e chamou a atenção do outro para a questão do cianeto. Blore concordou.

— É verdade, tinha esquecido isso. Não é uma coisa que se costume levar no bolso. Mas, então, como foi parar no copo dele, senhor?

— Estive pensando nisso — respondeu Lombard. — Marston tomou vários drinques ontem à noite. Entre o pe­núltimo e o último, passou-se um bom pedaço. Durante esse tempo o seu copo ficou em cima de uma daquelas mesas. Penso, embora não tenha certeza, que era a mesa próxima da porta do terraço. Essa porta estava aberta. Alguém podia ter deitado a dose de cianeto no copo.

— Sem que nenhum de nós visse, senhor? — disse Blore, incrédulo.

Lombard retrucou secamente:

— Estávamos todos... com a atenção voltada para outra coisa.

— É verdade — observou lentamente Armstrong. — Nós tínhamos sido acusados. Andávamos de um lado para outro na sala, indignados, a discutir, concentrados no que nos dizia respeito. Acho que era possível fazê-lo...

Blore deu de ombros.

— Como quer que seja, é o que deve ter acontecido! Bem, cavalheiros, vamos a isso. Ninguém tem um revólver, por acaso? Creio que seria esperar demais.

— Eu tenho — disse Lombard batendo no bolso.

Blore arregalou os olhos e perguntou num tom excessiva­mente natural:

— Sempre o carrega consigo, senhor?

— Habitualmente — respondeu Lombard. — Tenho es­tado em alguns lugares perigosos, como sabe.

— Oh! — fez Blore; e acrescentou: — Bem, é provável que nunca tenha estado num lugar mais perigoso do que este em que está hoje! Se há um maluco escondido nesta ilha, com certeza carrega consigo um pequeno arsenal... para não falar de uma faca e um ou dois punhais.

Armstrong tossiu.

— Nisso você pode estar enganado, Blore. Muitos psicopatas homicidas são pessoas tranqüilas e sossegadas. Bem simpáticas, até.

— Não creio que o nosso homem pertença a essa classe, Dr. Armstrong — respondeu Blore.

 

Os três homens iniciaram o giro pela ilha.

A busca revelou-se inesperadamente simples. Para o lado de noroeste, na direção da costa, os penedos, de superfície lisa, mergulhavam verticalmente no mar.

No resto da ilha não havia árvores e bem pouco abrigo se encontrava. Os três homens trabalharam cuidadosa e metodicamente, batendo o terreno acima e abaixo, desde o ponto culminante até a beira d'água, examinando detidamente a menor irregularidade da rocha que pudesse indicar a entrada de uma caverna. Mas cavernas não havia.

Acompanhando a beira d'água, chegaram finalmente ao lugar onde o Gen. Macarthur estava sentado a olhar para o mar. O velho mantinha o torso muito ereto, com os olhos fixos no horizonte.

Não prestou atenção aos pesquisadores que se aproxima­vam. Esse descaso fez com que um deles, pelo menos, se sentisse ligeiramente inquieto.

"Isto não é natural...", pensou Blore com os seus botões. "O velho parece hipnotizado ou coisa que o valha."

Pigarreou e disse num tom que pretendia ser de amena palestra:

— Escolheu um lugar muito tranqüilo para estar, Sr. General.

O general franziu o sobrolho, lançou um rápido olhar por cima do ombro e disse:

— Há tão pouco tempo... tão pouco tempo! Devo insistir para que ninguém me perturbe.

— Nós não vamos perturbá-lo — respondeu Blore jovial­mente. — Estamos dando uma voltinha pela ilha, nada mais. Desconfiamos que pudesse haver alguém escondido.

O general tornou a franzir o cenho.

— O senhor não entende... o senhor absolutamente não entende. Retire-se, por favor.

Blore afastou-se e foi dizer aos outros dois:

— Está doido... Não adianta nada falar com ele. Lombard perguntou com certa curiosidade:

— Que foi que ele disse? Blore deu de ombros.

— Disse que não havia tempo e que não queria ser per­turbado.

O rosto de Armstrong anuviou-se.

— Será quê?... — murmurou ele.

 

A busca na ilha estava praticamente terminada.

Os três homens tinham voltado ao ponto mais alto e olha­vam para a terra firme. Não se avistava nenhuma embarcação. O vento continuava a refrescar.

— Os barcos de pesca não saíram hoje — disse Lombard. — Aí vem uma tormenta. É o diabo que daqui não se possa ver a aldeia. Podíamos fazer sinais ou qualquer outra coisa.

— Podemos acender uma fogueira esta noite — sugeriu Blore.

Lombard franziu o sobrolho.

— O diabo é que tudo isso foi provavelmente previsto.

— Como assim, senhor?

— Sei lá! Uma brincadeira, talvez. Nós ficaríamos aqui isolados e não se deveria prestar nenhuma atenção aos sinais etc. Talvez a aldeia tenha sido informada de que se trata de uma aposta. Alguma história idiota, enfim.

— Acha que eles engoliriam isso? — perguntou Blore em tom de dúvida.

Lombard respondeu secamente:

— Isso é mais fácil de acreditar do que a verdade! Se tivessem avisado a aldeia de que a ilha devia ficar isolada até que o Sr. Desconhecido Owen acabasse de assassinar tran­qüilamente todos os seus hóspedes... acha que acreditariam nisso?

— Há momentos — disse Armstrong — em que eu pró­prio não posso acreditar. E contudo...

Com os lábios repuxados, a mostrar os dentes, Philip Lom­bard interpôs:

— E contudo... Aí está. O senhor o disse, doutor! Blore olhava a água lá embaixo.

— Ninguém poderia ter descido por aqui, suponho — disse ele.

Armstrong sacudiu a cabeça.

— Duvido. É muito a pique. E onde se esconderia esse sujeito?

Blore:

— Talvez haja um buraco na rocha. Se tivéssemos um barco, poderíamos dar uma volta em torno da ilha.

Lombard:

— Se tivéssemos um barco, a estas horas estaríamos a ca­minho da terra firme!

Blore:

— É bem verdade, senhor.

— Podemos certificar-nos a respeito deste rochedo — disse subitamente Lombard. — Só existe um ponto em que pode haver alguma reentrância: é um pouco à direita, aqui embaixo.

Se arranjarem uma corda, poderão me fazer descer para ve­rificar.

— É bom verificar — volveu Blore. — Embora, à primeira vista, pareça absurdo! Vou ver se posso conseguir alguma coisa.

O ex-inspetor dirigiu-se a passos lentos para a casa. Lombard olhou para o céu. As nuvens começavam a acumular-se. O vento aumentava.

Philip olhou de soslaio para Armstrong e disse:

— Está muito calado, doutor. Em que pensa? Armstrong respondeu lentamente:

— Estava perguntando a mim mesmo até que ponto, exa­tamente, vai a loucura do velho Macarthur...

 

Vera tinha andado inquieta durante toda a manhã. Evitara Emily Brent com uma espécie de trêmula aversão.

Quanto a Miss Brent levara uma cadeira para o canto da casa, de modo a ficar abrigada contra o vento, e ali se ocupava com o seu tricô.

Cada vez que Vera pensava nela, parecia-lhe ver um rosto pálido de afogada, com algas enredadas no cabelo... Um rosto que tinha sido bonito... despudoradamente bonito, talvez... e que agora se tornara inacessível tanto à lástima como ao terror.

E Emily Brent, virtuosa e plácida, lá estava a tricotar.

No terraço principal, o Juiz Wargrave estava sentado numa cadeira de lona, com a cabeça metida entre os ombros.

Quando Vera olhou para ele, viu um homem na barra do tribunal — um moço louro, de olhos azuis, com uma expres­são atônita e assustada. Edward Seton. E via, com os olhos da imaginação, o juiz pôr o capelo na cabeça e começar a pronunciar a sentença...

Ao cabo de alguns momentos, Vera dirigiu-se vagarosa­mente para o mar. Voltou seus passos na direção da extre­midade da ilha, onde estava sentado um ancião com os olhos fitos no horizonte.

O Gen. Macarthur sentiu-lhe a chegada e voltou a cabeça. Seus olhos refletiam um estranho misto de interrogação e apreensão, que a sobressaltou. Por alguns instantes, o velho encarou-a fixamente.

"Que esquisito!" pensou Vera. "É quase como se ele sou­besse...".

— Ah! é a senhorita — disse ele. — A senhorita veio... Vera sentou-se ao seu lado.

— Gosta de ficar aqui olhando para o mar?

O general sacudiu suavemente a cabeça e respondeu: —- Sim. É um lugar agradável... um bom lugar, acho eu, para esperar.

— Esperar? — disse Vera vivamente. — Que é que está esperando?

— O fim — volveu ele com brandura. —- Mas creio que já sabe disso, não? É verdade, não é? Nós todos estamos esperando o fim.

— Que quer dizer? — perguntou a moça com voz inse­gura.

O Gen. Macarthur respondeu gravemente:

— Nenhum de nós sairá da ilha. Esse é o plano. Sabe per­feitamente disso, é claro. O que talvez não possa compreender é o sentimento de alívio!

— Alívio? — falou Vera, pasmada.

— Sim. Naturalmente, é muito jovem, ainda não chegou a isso. Mas um dia vem! Abençoado alívio, quando a gente sabe que está tudo acabado... que não é mais preciso car­regar o fardo. Há de sentir isso também, algum dia...

— Não compreendo — disse Vera em voz rouca. Seus dedos contraíram-se espasmodicamente. De súbito, sentiu medo desse velho e tranqüilo soldado.

— Veja, eu amava Leslie — disse ele, perdido em suas meditações. — Amava-a muitíssimo...

— Leslie era sua esposa? — perguntou Vera.

— Sim, minha esposa... Eu a amava, e me orgulhava muito dela. Era tão bonita... e tão alegre!

Silenciou por alguns instantes, depois recomeçou:

— Sim, eu amava Leslie. Aí está por que fiz aquilo.

— Refere-se a?... — disse Vera, sem completar a per­gunta.

O Gen. Macarthur sacudiu suavemente a cabeça.

— Agora já não adianta muito estar negando... agora que todos vamos morrer. Eu enviei Richmond para a morte. Suponho que, de certo modo, tenha sido um assassinato. Curioso. Assassinato... e eu que sempre fui um homem tão respeitador da lei! Mas naquela ocasião não me pareceu as­sim. Não tive remorsos. "Ele bem que o merece!" foi o que pensei. Mas depois...

— Sim, depois? — perguntou Vera com voz dura.

O velho abanou vagamente a cabeça. Parecia perplexo e um tanto angustiado.

— Não sei. Não sei... Tudo ficou diferente, compreende? Não sei se Leslie chegou a adivinhar... Acho que não. Mas é que eu já não podia saber o que se passava no seu espírito. Tinha partido para muito longe, onde eu não podia alcançá-la. Depois morreu... e eu fiquei só...

— Só... só... — repetiu Vera, e o eco de sua voz voltou-lhe dos rochedos.

— Vai ficar contente também, quando chegar o fim — disse o Gen. Macarthur.

Vera levantou-se, dizendo asperamente:

— Não entendo o que o senhor quer dizer! E ele:

— Eu sei, minha filha. Eu sei...

— Não sabe, não. Não compreende absolutamente na­da...

O Gen. Macarthur tornou a fixar os olhos no mar. Parecia não sentir a presença da moça às suas costas.

— Leslie... — disse baixinho, num tom muito suave...

 

Quando Blore voltou da casa com uma corda enrolada no braço, achou Armstrong onde o havia deixado, a contemplar as ondas lá embaixo.

— Onde está o Sr. Lombard? — perguntou Blore, quase sem fôlego.

— Foi testar alguma teoria — respondeu negligentemente o médico. — Não tarda a voltar. Escute Blore, estou preo­cupado.

— Acho que nós todos estamos preocupados. Armstrong sacudiu a mão com impaciência.

— Claro... claro! Mas não é a isso que me refiro. Estava pensando no velho Macarthur.

— Que há com ele, senhor?

O doutor disse em tom sombrio:

— Estamos à procura de um louco. Que me diz de Macarthur?

— Acha que ele é um doido homicida? — perguntou Blore, incrédulo.

— Isso eu não diria — respondeu Armstrong em tom de dúvida. — Nem por um instante. Mas está claro que não sou especialista em doenças mentais. Aliás, ainda não tive ensejo de conversar verdadeiramente com ele... não o estudei desse ponto de vista.

Blore parecia cético.

— Gagá, sim! Mas eu não diria que...

Armstrong atalhou-o com um ligeiro esforço, como um homem que cai em si.

— Provavelmente você tem razão. Com o demônio, deve haver alguém escondido nesta ilha! Ah! aí vem Lombard.

A corda foi cuidadosamente amarrada.

— Tratarei de fazer tudo por mim só, na medida do pos­sível — disse Lombard. — Fiquem atentos porque, se houver qualquer coisa, darei um puxão brusco na corda.

Depois de alguns instantes, quando ambos estavam a ob­servar a descida de Lombard, Blore comentou:

— Ele tem a agilidade de um gato, não? Havia algo de estranho na sua voz.

— Penso que deve ter feito um pouco de alpinismo em seus bons tempos — disse o Dr. Armstrong.

— Talvez.

Houve um silêncio, e o ex-inspetor disse:

— Contudo, é um camarada bem esquisito. Sabe o que eu penso?

— Que é?

— Ele não é de confiança!

— Em que sentido? — perguntou Armstrong, perplexo. Blore emitiu um grunhido, depois disse:

— Não sei... precisamente. Mas eu não confiaria nele para nada.

— Suponho que tenha levado uma vida aventurosa — disse o Dr. Armstrong.

— Aposto que algumas de suas aventuras foram dessas que não podem ser sabidas por ninguém. — Blore fez uma pausa, depois continuou: — Por acaso o doutor trouxe um revólver consigo?

Armstrong arregalou os olhos:

— Eu? Bom Deus, não! Por que faria isso?

— Por que o fez o Sr. Lombard? — disse Blore.

— Hábito... suponho — respondeu o médico com ar incerto.

Blore fez um muxoxo insatisfeito.

Um súbito puxão foi dado na corda. Por alguns instantes, estiveram ambos com as mãos ocupadas. Daí a pouco, quando tornaram a descansar, Blore prosseguiu:

— Há hábitos e hábitos! Está certo que o Sr. Lombard leve um revólver consigo para as selvas, juntamente com um fogareiro Primus, um saco de dormir e uma provisão de pó-de-mosquito. Perfeitamente! Mas o hábito não faria com que ele trouxesse tudo isso para cá! É só nos livros que as pessoas andam sempre armadas de revólver como se fosse a coisa mais natural do mundo.

O Dr. Armstrong sacudiu a cabeça, sem saber o que pensar.

Os dois homens inclinaram-se sobre a beira do rochedo para observar os movimentos de Lombard. Sua busca fora total e ambos puderam ver logo que tinha sido inútil. Dentro em pouco Lombard tornou a surgir na borda do penhasco. Enxugou o rosto banhado em suor e disse:

— Bem, desta toca não sai coelho. Ou está na casa, ou não está em parte nenhuma.

 

A casa foi totalmente revistada. Começaram pelas constru­ções exteriores, depois voltaram a atenção para a vivenda propriamente dita. A fita métrica da Sra. Rogers, descoberta no armário da cozinha, prestou-lhes bom auxílio. Mas não havia espaços secretos. Tudo era franco e honesto, uma cons­trução moderna sem esconderijos. Inicialmente examinaram o andar térreo. Ao subirem para os quartos de dormir, viram pela janela do patamar Rogers a levar uma bandeja de co­quetéis para o terraço.

— Admirável animal, o bom criado — comentou Philip Lombard. — Continua a trabalhar impassível.

— Rogers é um mordomo de primeira, é preciso que se diga! — volveu Armstrong, com apreço.

E Blore:

— A mulher dele também era uma ótima cozinheira. Veja-se aquele jantar de ontem à noite...

Entraram no primeiro quarto de dormir. Cinco minutos mais tarde voltavam ao patamar. Ninguém escondido... nenhum esconderijo possível.

— Aqui há uma escadinha — disse Blore.

— Leva ao quarto dos criados — informou o Dr. Armstrong.

Blore:

— Deve haver um espaço embaixo do telhado... para reservatório de água, os fios condutores etc.

Foi então, quando ali se encontravam, que ouviram um ruído lá em cima. Um leve e furtivo som de passos.

Todos ouviram. Armstrong apertou o braço de Blore. Lombard ergueu um dedo admoestador.

— Psiu! Escutem.

Repetiu-se o ruído. Alguém caminhava lá em cima com pés de gato.

— Está no quarto de dormir — cochichou Armstrong. — O quarto em que se encontra o corpo da Sra. Rogers.

Blore respondeu no mesmo tom:

— Está claro! O melhor esconderijo que ele poderia ter escolhido! Ninguém costuma ir lá. Agora, o maior silêncio, hem!

Os três homens subiram a escada de mansinho. Detiveram-se no pequeno patamar, diante da porta do quarto de dormir. Sim, havia alguém ali. Ouviu-se um ligeiro rangido no interior da peça.

— Agora — cochichou Blore.

Abriu a porta de chofre e precipitou-se no quarto, seguido de perto pelos outros dois.

Estacaram todos repentinamente.

Rogers estava ali, com as mãos cheias de roupas.

 

Blore foi o primeiro a recobrar o sangue-frio. — Desculpe, hã... Rogers. Ouvimos alguém caminhando aqui e pensamos que... bem... Não terminou a frase. Então Rogers:

— Peço-lhes que me perdoem, senhores. Estava mudando minhas coisas. Acho que não haverá objeção se eu ficar com um dos quartos de hóspedes que estão vagos aí embaixo. O menor.

O mordomo dirigia-se a Armstrong, e foi este quem res­pondeu:

— Pois não, pois não. Continue a sua mudança.

O médico evitava olhar para o corpo que jazia na cama, coberto com um lençol.

— Muito obrigado, senhor — disse Rogers.

O criado saiu do quarto com os braços carregados de coisas suas e desceu a escada para o andar inferior.

Armstrong caminhou para a cama e> erguendo o lençol, olhou para o rosto tranqüilo da morta. Já não era um rosto amedrontado — vazio, apenas.

— Quem me dera ter os meus instrumentos aqui — disse Armstrong. — Gostaria de saber qual foi o veneno.

E, voltando-se para os outros:

— Completemos a busca. Tenho certeza de que não vamos encontrar coisa alguma.

Blore lutava com os ferrolhos de um alçapão baixo.

— Esse camarada caminha muito silenciosamente — disse ele. — Há poucos minutos nós o vimos no jardim. Ninguém sentiu quando ele subia.

— Suponho que tenha sido por isso que pensamos tratar-se de um estranho a andar por este quarto — disse Lombard.

Blore desapareceu numa escuridão cavernosa. Lombard tirou uma lanterna do bolso e seguiu-o.

Cinco minutos mais tarde, os três homens juntaram-se num patamar superior, a entreolhar-se. Estavam sujos e cheios de teias de aranha, bastante carrancudos os três.

Não havia ninguém na ilha a não ser eles, os oito que restavam.

 

Vagarosamente, Lombard falou:

— De modo que estávamos enganados... enganados em toda a linha! Construímos um pesadelo de superstição e fanta­sia, só porque houve uma coincidência de duas mortes!

Armstrong disse com ar grave:

— No entanto, como sabem, o argumento continua de pé. Que diabo, eu sou médico, sei alguma coisa a respeito de suicidas. Anthony Marston não era um homem desse tipo.

Lombard perguntou em tom de dúvida:

— Não podia ter sido um acidente, suponho? Blore bufou, incrédulo.

— Raio de acidente esquisito! Houve uma pausa.

— Quanto à mulher... — começou Blore, interrompendo-se logo a seguir.

— A Sra. Rogers?

— Sim. No seu caso é possível que se tratasse de um acidente, não?

— Um acidente? De que maneira? — fez Lombard. Blore pareceu ligeiramente embaraçado. Seu rosto cor de

tijolo ficou um pouco mais escuro. Foi quase com brusquidão que disse:

— Enfim, doutor, o senhor deu uma droga para ela tomar, não deu?

Armstrong olhou surpreendido para ele.

— Droga! Que droga?

— Não disse, ontem de noite, que ia dar-lhe alguma coisa para fazê-la dormir?

— Ah! isso? Pois claro! Um sedativo inofensivo.

— Qual, precisamente?

— Dei-lhe uma dose fraca de trional. Um preparado intei­ramente inócuo.

— Escute... — disse Blore, fazendo-se ainda mais ver­melho. — Para não estar com rodeios... o senhor não lhe teria dado uma dose excessiva, por acaso?

O Dr. Armstrong replicou, irado:

— Não sei o que você quer dizer.

— É possível que tenha cometido um engano, não é? — volveu Blore. — Essas coisas acontecem de vez em quando.

— Não fiz semelhante coisa. A sugestão é ridícula — disse o médico asperamente. Fez uma pausa, depois acrescentou num tom frio e cortante: — Ou está insinuando por acaso, que eu lhe dei uma dose excessiva de propósito?

Lombard apressou-se a intervir.

— Escutem, vocês dois, é preciso conservar a calma. Não vamos começar a fazer acusações a torto e a direito.

Blore retrucou de mau humor:

— Apenas sugeri que o doutor podia ter cometido um engano.

O Dr. Armstrong fez um esforço sobre si mesmo e, mos­trando os dentes num sorriso um tanto sem graça, disse:

— Os médicos não podem dar-se ao luxo de cometer enganos dessa espécie, meu amigo.

Blore observou deliberadamente:

— Não seria o primeiro... a acreditar no que disse aquele disco!

Armstrong empalideceu. Philip Lombard virou-se furioso para Blore:

— Que é que se lucra em dizer coisas ofensivas? Nós todos estamos no mesmo barco. Temos de remar juntos. E que me diz daquele seu falso testemunho, então?

Blore deu um passo à frente, cerrando os punhos, e disse numa voz pastosa:

— Falso testemunho, uma ova! Isso é uma mentira infame. Vá, tente fazer-me calar a boca, Sr. Lombard! Há algumas coisas que eu desejo saber... e uma delas diz respeito ao senhor!

— A mim? — fez Lombard erguendo as sobrancelhas.

— Sim. Desejo saber por que foi que trouxe um revólver consigo, quando vinha fazer uma agradável visita social.

— Deseja saber, é? — disse Lombard.

— Desejo, sim, Sr. Lombard. Este observou inesperadamente:

— Sabe, Blore? Você não é a besta que parece ser.

— Talvez. Mas e o negócio do revólver? Lombard sorriu.

— Vim armado porque me levaram a crer que esta ilha era um lugar perigoso.

— O senhor não nos disse isso ontem à noite — retrucou Blore, sempre desconfiado.

O outro confirmou com a cabeça.

— Estava disfarçando? — insistiu Blore.

— De certa maneira, sim.

— Bem, então explique-se agora. Lentamente, Lombard fez-lhe a vontade:

— Deixei que todos pensassem que eu tinha vindo para cá nas mesmas condições que a maioria dos outros. Não era bem verdade. O fato é que fui procurado por um judeuzinho... Morris, é como ele se chama. Ofereceu-me cem guinéus para vir aqui e ficar atento ao que se passasse... Disse que me havia escolhido porque eu tinha fama de ser um homem de préstimo numa situação perigosa.

— E depois? — instou Blore com impaciência. Lombard arreganhou os dentes.

— É só.

— Mas com certeza ele lhe disse mais do que isso? — interveio o Dr. Armstrong.

— Oh! não disse, não. Fechou-se como uma ostra. Era pegar ou largar... estas foram as suas palavras. E eu, como estava mal de dinheiro, aceitei.

Blore ainda não parecia convencido.

— Por que não nos contou isso ontem à noite? — in­dagou.

— Mas, meu caro... — Lombard encolheu eloqüente­mente os ombros. —Como podia eu saber se ontem à noite não se tratava precisamente da eventualidade para a qual fui chamado? Fiquei na moita e inventei uma história que não me comprometesse.

O Dr. Armstrong fez uma pergunta arguta:

— Mas agora... pensa de modo diverso?

O rosto de Lombard mudou de expressão. Fez-se mais duro e sombrio.

— Sim — disse ele. — Acredito agora que estou no mesmo barco com os senhores todos. Aqueles cem guinéus foram apenas a isca que o Sr. Owen usou para me fazer entrar na ratoeira com os outros.

— Porque estamos numa ratoeira...isso, juro-o! A morte da Sra. Rogers! A de Tony Marston! Os negrinhos que desa­parecem da mesa de jantar! Oh! sim, em tudo isso vê-se cla­ramente a mão do Sr. Owen... mas onde diabo está o pró­prio Sr. Owen?

Lá embaixo, uma pancada solene no gongo chamou para o almoço.

 

Rogers achava-se à porta da sala de jantar. Quando os três homens desceram a escada, ele deu um ou dois passos à frente e disse numa voz baixa e ansiosa:

— Espero que o almoço esteja satisfatório. Há língua fria, presunto, e algumas batatas que cozinhei. Também há queijo, biscoitos e compotas enlatadas.

— Isto soa bem — disse Lombard. — Temos mantimentos para algum tempo, então?

— Há bastante comida, senhor... em latas. A despensa está bem provida. Uma necessidade, devo dizê-lo, numa ilha onde se pode ficar isolado da terra firme durante um período considerável.

Lombard aprovou com a cabeça.

Enquanto seguia os três homens para a sala de jantar, Rogers murmurou:

— Preocupa-me o fato de Fred Narracott não ter apare­cido hoje. Pode-se dizer que é uma circunstância singular­mente infortunada.

— Sim — volveu Lombard — singularmente infortunada exprime muito bem a coisa.

Miss Brent entrou na sala. Acabava de derrubar um novelo de lã e estava enrolando cuidadosamente a ponta solta. Ao sentar-se à mesa observou:

— O tempo está mudando. O vento ficou bastante forte e há carneiros no mar.

O Juiz Wargrave entrou a passos lentos e medidos. Dardejando olhares rápidos de sob as bastas sobrancelhas para os outros ocupantes da sala, comentou:

— Os senhores estiveram muito ativos esta manhã. Havia um leve prazer malicioso na sua voz.

Vera entrou apressada, um pouco ofegante.

— Desculpem.se os fiz esperar — disse vivamente. — Estou atrasada?

— Você não é a última — respondeu Emily Brent. — O general ainda não chegou.

Sentaram-se à mesa. Rogers falou a Miss Brent:

— Vai começar, minha senhora, ou prefere esperar?

— O Gen. Macarthur está sentado lá embaixo, à beira do mar — disse Vera. — Não creio que ele tenha ouvido o gongo... — Vera hesitou. — Parece-me que está um pouco aéreo hoje.

Rogers ofereceu-se em seguida:

— Vou descer para avisá-lo de que o almoço está pronto. Armstrong pôs-se em pé de um salto.

— Irei eu. Podem começar.

O médico deixou a sala. Às suas costas, ouviu a voz de Rogers:

— Aceita língua fria ou presunto frio, minha senhora?

 

As cinco pessoas sentadas em torno da mesa pareciam achar a palestra difícil. Lá fora, súbitas rajadas de vento so­pravam intermitentemente.

Vera disse, um pouco arrepiada:

— Aí vem uma tormenta.

Blore contribuiu para a conversa dizendo em tom ameno:

— Ontem, no trem de Plymouth, vinha um velho a insistir que ia haver tormenta. É extraordinário como esses velhos lobos-do-mar conhecem o tempo.

Rogers dava volta à mesa, recolhendo os pratos vazios. De repente estacou, com os pratos ainda nas mãos, e disse numa estranha voz amedrontada:

— Vem alguém a correr...

Com efeito, todos podiam ouvir passos precipitados no terraço.

No mesmo instante, todos adivinharam sem que ninguém lhes tivesse dito...

Como de concerto, todos se puseram em pé e ficaram olhando para a porta.

O Dr. Armstrong apareceu, resfolegando forte.

— O Gen. Macarthur... — começou ele.

— Morto!

Foi Vera quem, explosivamente, pronunciou a palavra.

— Sim, está morto... — disse o médico. Houve um silêncio... um longo silêncio.

Sete pessoas entreolhavam-se sem poderem encontrar pa­lavras que dizer.

 

A tormenta estalou no momento exato em que o corpo do ancião passava pela porta.

Os que não ajudavam a carregá-lo assistiam à cena, no hall.

Ouviu-se um sibilar repentino, e logo depois o bramido da chuva que desabava.

Enquanto Blore e Armstrong subiam a escada com o seu fardo, Vera Claythorne virou-se de repente e entrou na sala de jantar deserta.

Estava como a haviam deixado — as sobremesas no aparador, intatas e prontas para serem servidas.

Vera caminhou para a mesa. Ali continuava um ou dois minutos mais tarde, quando Rogers entrou silenciosamente na sala.

O mordomo sobressaltou-se ao ver a moça, depois seus olhos fizeram uma pergunta.

— Oh! senhorita... Eu... eu só vim para...

Numa voz aguda e áspera que a ela própria surpreendeu, Vera disse:

— Você tem toda a razão, Rogers. Olhe e veja. Só estão sete...

O Gen. Macarthur fora depositado na sua cama.

Depois de fazer um derradeiro exame, Armstrong deixou o quarto e desceu a escada. Encontrou os outros reunidos na sala de estar.

Miss Brent fazia tricô. Vera Claythorne estava junto da porta envidraçada, olhando a chuva que fustigava os vidros. Blore conservava-se teso na sua cadeira, com as mãos pousa­das nos joelhos. Lombard caminhava irrequieto de um lado para outro. E, no fundo da peça, o Juiz Wargrave estava sen­tado numa bergère, com os olhos semicerrados.

Quando o doutor entrou, o juiz abriu os olhos e disse numa voz clara e penetrante:

— Então, doutor? Armstrong estava muito pálido.

— Nada de colapso cardíaco ou coisa parecida — disse ele. — Macarthur foi golpeado na nuca com uma soqueira ou outra arma desse gênero.

Um pequeno murmúrio deu volta à sala, mas a voz clara do juiz impôs-se mais uma vez.

— Achou a arma que foi usada?

— Não.

— Contudo, está seguro do que afirma?

— Seguríssimo.

O Juiz Wargrave falou em tom tranqüilo.

— Agora sabemos exatamente onde estamos.

Já não havia dúvida sobre quem tomara conta da situação. Durante a manhã Wargrave ficara encolhido na sua cadeira, no terraço, abstendo-se de toda atividade exterior. Agora, assumia o comando com a facilidade nascida de um longo hábito de autoridade. Passara a presidir francamente os tra­balhos do tribunal.

O magistrado compôs o peito e tornou a assumir a palavra.

— Esta manhã, cavalheiros, enquanto ficava sentado no terraço, estive observando as suas atividades. Pouca dúvida podia haver quanto ao propósito que os animava. Revistaram a ilha em busca de um assassino desconhecido?

— Exatamente, senhor — disse Philip Lombard. O juiz continuou:

— Os senhores chegaram, sem dúvida, à mesma conclusão que eu. Isto é, que as mortes de Anthony Marston e da Sra. Rogers não foram acidentais, nem foram suicídios. Sem dú­vida também chegaram a uma conclusão positiva quanto ao propósito do Sr. Owen em nos atrair a esta ilha.

Blore exclamou em voz rouca:

— É um louco! Um tarado! O juiz tossiu.

— Isso é quase certo, mas pouco afeta o caso. Nossa maior preocupação é esta: salvar nossas vidas.

Armstrong atalhou em voz trêmula:

— Não há ninguém nesta ilha, afirmo-lhe. Ninguém! Wargrave afagou o queixo e respondeu com brandura:

— No sentido que tem em mente, não. Cheguei a essa conclusão hoje de manhã. Poderia ter dito aos senhores que sua busca seria infrutífera. Não obstante, inclino-me pela opinião de que o "Sr. Owen" (para lhe dar o nome que ele próprio adotou) está efetivamente na ilha. Muito efetivamente. Dado o plano em apreço, e que não é mais nem menos do que a execução da justiça sobre determinados indivíduos por crimes que estão fora da alçada da lei, só havia um meio de pôr esse plano em prática. O Sr. Owen só podia vir à ilha de um modo.

"A coisa está perfeitamente clara. O Sr. Owen é um de nós..."

 

— Oh! não, não, não...

Foi quase um lamento que irrompeu dos lábios de Vera. O juiz voltou para ela o seu olhar penetrante.

— Minha cara jovem — disse ele — este não é o mo­mento para recusar-se a enfrentar os fatos. Todos nós corre­mos grave perigo. Um de nós é U. N. Owen, mas não sabemos qual. Das dez pessoas que vieram para esta ilha, três estão definitivamente fora de qualquer suspeita: Anthony Marston, a Sra. Rogers e o Gen. Macarthur. Restam sete. Dessas sete, um é, se assim me posso expressar, um negrinho fictício. O magistrado fez uma pausa e olhou em torno de si.

— Concordam todos comigo?

— Isso é fantástico — disse Armstrong — mas suponho que o senhor tenha razão.

— Sem a menor dúvida — apoiou Blore. — E, se me perguntarem, desconfio muito...

O juiz deteve-o com um gesto rápido e disse tranqüila­mente:

— Daqui a pouco chegaremos lá. De momento, tudo que desejo estabelecer é que estamos de acordo quanto aos fatos.

Emily Brent, sempre ocupada com o seu tricô, interpôs:

— Seu argumento parece lógico. Concordo em que um de nós está possuído por um demônio.

— Não posso acreditar... não posso... — murmurou Vera.

— Lombard? — perguntou o juiz.

— Concordo em.toda a linha, senhor. Wargrave sacudiu a cabeça com ar satisfeito.

— Agora examinemos os indícios. Para começar: existe alguma razão para que suspeitemos de alguma pessoa em par­ticular? O Sr. Blore tem, segundo creio, algo para dizer.

Blore respirava ruidosamente.

— Lombard tem um revólver — disse o ex-inspetor. — Ele próprio admite que não falou a verdade ontem de noite.

Philip Lombard sorriu desdenhosamente.

— Acho que convém explicar de novo.

E assim o fez, contando de maneira breve e sucinta a sua história.

— Como prova isso? — perguntou Blore asperamente. — Não há nada para corroborar o que o senhor afirma.

O juiz tossiu.

— Infelizmente, estamos todos na mesma situação. Só te­mos nossa palavra em garantia do que afirmamos. — E, inclinando o corpo para a frente: — Nenhum dos senhores percebeu ainda o quanto esta situação é estranha. Na minha opinião, só há uma linha a seguir: com base nos fatos de que temos conhecimento, é possível eliminar absolutamente algum de nós do rol dos suspeitos?

— Eu — acudiu vivamente Armstrong — sou um profis­sional bem conhecido. A simples idéia de que possa ser sus­peito de...

Novamente um gesto do juiz deteve o aparteante sem dei­xá-lo terminar a frase. Wargrave prosseguiu na sua voz clara e fina:

— Eu também sou uma pessoa bem conhecida! Mas isso, meu caro senhor, prova menos do que nada! Médicos já têm endoidecido. E juizes, da mesma forma. Bem assim como policiais — acrescentou o velho, olhando para Blore.

— Pelo menos — disse Lombard — suponho que o senhor não incluirá as mulheres.

O juiz alçou as sobrancelhas e respondeu naquele famoso tom "ácido" tão bem conhecido pelos advogados:

— Pretende afirmar que as mulheres não estão sujeitas à mania homicida?

— Claro que não — volveu Lombard, irritado. — Mas, assim mesmo, dificilmente se pode acreditar que...

Interrompeu-se. Ainda com a mesma vozinha azeda, o Juiz Wargrave voltou-se para Armstrong.

— Posso ter como certo, Dr. Armstrong, que uma mulher seria fisicamente capaz de desferir o golpe que matou o pobre Macarthur?

O médico respondeu em tom calmo:

— Perfeitamente capaz... contanto que dispusesse de uma arma apropriada, como seja um cassetete de borracha ou coisa semelhante.

— Isso não exigiria um grande emprego de força?

— Em absoluto.

O Juiz Wargrave meneou o pescoço de tartaruga e disse:

— As outras duas mortes resultaram da administração de drogas. Isso, ninguém o negará, é facilmente praticado pela pessoa mais débil deste mundo.

Vera gritou furiosa:

— Acho que o senhor está maluco!

Os olhos do velho magistrado voltaram-se lentamente e pousaram-se sobre a moça. Era o olhar desapaixonado de um homem muito habituado a pesar a humanidade numa balança. Vera pensou consigo:

"Está me examinando como um... como um espécime. E... — a idéia foi para ela uma verdadeira surpresa — não gosta muito de mim!"

O juiz falava em tom comedido:

— Minha cara jovem, procure conter suas emoções. Não a estou acusando. — E a seguir, curvando-se para Miss Brent: — Espero, Miss Brent, que não se sinta ofendida pela minha insistência em dizer que todos nós somos igualmente suspeitos.

Emily Brent continuava a tricotar. Foi numa voz fria que respondeu, sem levantar os olhos do seu trabalho:

— A idéia de que eu seja acusada de tirar a vida de um semelhante — para não dizer as vidas de três semelhantes — é, decerto, inteiramente absurda para quem conheça um pouco o meu caráter. Mas reconheço que todos aqui somos estranhos uns aos outros e que, em tais circunstâncias, ninguém pode ser eximido sem uma prova cabal. Há, como já disse, um demô­nio entre nós.

— Então estamos concordes — disse o juiz. — Não pode haver isenção alguma baseada apenas em caráter ou posição.

— E quanto a Rogers? — perguntou Lombard. O juiz olhou para ele sem pestanejar.

— Que há com Rogers?

— Bem, para mim ele parece estar fora de suspeita.

— Sim? Em virtude de quê?

— Primeiro, porque não tem cabeça para isso — respon­deu Lombard. — E, segundo, porque sua mulher foi uma das vítimas.

Mais uma vez se alçaram as espessas sobrancelhas do Juiz Wargrave, que disse:

— Em meus tempos de magistratura, moço, julguei vários homens acusados de terem assassinado as esposas... e, o que mais é, sua culpa foi provada.

— Oh! concordo. O uxoricídio é perfeitamente possível... quase natural, pode-se dizer! Mas não esta espécie de uxo­ricídio! Posso acreditar que Rogers tenha morto a mulher porque temesse ser denunciado por ela, ou porque a detes­tasse, ou porque tivesse em vista algum material mais atraente e menos permanente. Mas não posso imaginá-lo como o lu­nático Sr. Owen, a distribuir uma justiça paranóica e a come­çar pela própria esposa, punindo-a por um crime que ambos cometeram.

— O senhor está tomando testemunho auricular por prova — contrapôs o Juiz Wargrave. — Não sabemos se Rogers e a esposa realmente conspiraram para matar a sua patroa. Isso pode ter sido uma acusação falsa, a fim de que Rogers pa­recesse encontrar-se na mesma posição que nós outros. O ter­ror da Sra. Rogers podia dever-se ao fato de perceber que o marido estava mentalmente transtornado/

— Bem, seja como quer — concluiu Lombard. — U. N. Owen é um de nós. Não se admitem exceções. Todos estamos qualificados.

O juiz voltou à carga:

— Meu ponto de vista é que não pode haver exceções baseadas em caráter, posição ou probabilidade. O que deve­mos examinar agora é a possibilidade de eliminar urna ou mais pessoas em vista dos fatos. Em termos mais precisos: há entre nós uma ou mais pessoas que positivamente não pudessem ter administrado o cianeto a Anthony Marston, nem uma dose excessiva de soporífero à Sra. Rogers, nem tampouco tivessem tido ensejo de vibrar o golpe que matou o Gen. Macarthur?

A fisionomia um tanto espessa de Blore iluminou-se.

— Isso sim é que é falar, senhor! — disse ele inclinando o corpo para a frente. — Agora estamos no caminho certo. Vamos examinar isso melhor. No que toca ao jovem Marston, acho que não se pode concluir nada. Já sugeriram que alguém, pelo lado de fora, podia ter deitado alguma coisa no copo do rapaz antes que ele tornasse a enchê-lo pela última vez. Uma pessoa dentro da sala podia ter feito isso com mais facilidade ainda. Não me lembro se Rogers estava aqui, mas todos os outros tiveram essa oportunidade.

Blore fez uma pausa e continuou:

— Agora vejamos a mulher. No seu caso, os que estão mais em evidência são o marido e o doutor. Qualquer dos dois poderia ter feito a coisa facilmente como piscar os...

Armstrong pôs-se impulsivamente em pé, a tremer.

— Protesto! Isto é o maior dos despropósitos! Juro que a dose que dei à mulher era perfeitamente...

— Dr. Armstrong.

A vozinha azeda do juiz era compulsória. O médico deteve-se de chofre no meio da frase. A vozinha fria prosseguiu:

— Sua indignação é muito natural. Contudo, deve admitir que é preciso fazer frente aos fatos. Tanto o senhor como Rogers podiam ter administrado a dose fatal com a maior facilidade. Consideremos agora a situação das outras pessoas presentes. Que ensejo tivemos eu, o Inspetor Blore, Miss Brent, Miss Claythorne ou o Sr. Lombard de administrar o veneno? Algum de nós pode ser inteira e definitivamente eliminado?

O juiz fez uma pausa e em seguida acrescentou:

— Penso que não. Vera disse furiosa:

— Nem cheguei perto da mulher! Todos podem confir­mar isso.

O velho esperou um momento e depois disse:

— Se não me falha a memória, os fatos são os seguintes (corrijam-me, por favor, se cometer algum engano): a Sra. Rogers foi colocada no sofá por Anthony Marston; e o Sr. Lombard e o Dr. Armstrong aproximaram-se dela. O dou­tor pediu que Rogers trouxesse conhaque. Tratou-se então de averiguar de' onde tinha vindo a voz que acabávamos de ouvir. Todos entramos na peça contígua, com exceção de Miss Brent, que ficou a sós nesta sala com a mulher desacordada.

Uma mancha de cor surgiu nas faces de Emily Brent. Parou de tricotar e disse:

— Isso é revoltante!

A vozinha prosseguiu implacável:

— Quando voltamos a esta sala, a senhora, Miss Brent, estava curvada sobre a mulher reclinada no sofá.

— O sentimento comum de humanidade é crime? — per­guntou Miss Brent.

— Não faço mais do que estabelecer fatos — replicou o juiz. — Rogers entrou então na sala com o conhaque, o qual, já se vê, bem podia ter envenenado de antemão. A bebida foi dada à mulher, e pouco depois seu marido e o Dr. Arms­trong levaram-na para a cama, onde o doutor lhe deu um sedativo.

— Foi isso exatamente o que sucedeu — disse Blore. — E isso exclui o juiz, o Sr. Lombard, eu e Miss Claythorne.

Sua voz era alta e jubilosa. O Juiz Wargrave murmurou, olhando friamente para ele:

— Será mesmo que exclui? Devemos levar em considera­ção toda eventualidade possível.

Blore fitou-o, perplexo.

— Não estou entendendo.

— A Sra. Rogers está lá em cima, deitada na cama. O sedativo que o doutor lhe ministrou começa a produzir efeito. Ela se encontra num estado de sonolência vaga e aquiescente. Suponhamos que nesse momento alguém bate à porta e entra com uma pílula ou uma poção, dizendo: "O doutor manda que a senhora tome isto". Não lhes parece certo que ela teria engolido obedientemente e sem refletir o que lhe apresenta­vam?

Houve um silêncio. Blore mudou de pé e fez uma carranca. Philip Lombard disse:

— Não acredito em absoluto nessa história. Além disso, nenhum de nós, durante horas, saiu desta sala. Estávamos muito ocupados com a morte de Anthony Marston e tudo mais.

— Alguém podia ter saído do seu quarto de dormir... mais tarde — ponderou o juiz.

— Mas então Rogers estaria lá — contrapôs Lombard. O Dr. Armstrong fez um movimento.

— Não. Rogers desceu para arrumar a sala de jantar e a copa. Qualquer pessoa poderia ter subido ao quarto da mu­lher sem ser vista.

— Com certeza, doutor — disse Emily Brent — a mulher já estaria profundamente adormecida sob o efeito da droga que o senhor lhe administrou?

— Sim, com toda a probabilidade. Mas isso não é certo. Enquanto não se receitar mais de uma vez para um paciente, não se pode dizer qual a sua reação a diferentes remédios. Decorre, às vezes, um período considerável antes que um sedativo produza efeito. Depende da idiossincrasia do pa­ciente para com determinada droga.

— Era muito de esperar que o senhor dissesse isso, doutor — comentou Lombard. — Traz água ao seu moinho, hem?

Novamente o rosto de Armstrong escureceu de raiva. Mas a vozinha fria e desapaixonada deteve mais uma vez as palavras nos seus lábios.

— Nada adiantam as recriminações. Temos que tratar é de fatos. Está estabelecido, penso, que uma coisa como a que acabo de delinear poderia ter ocorrido. Reconheço que o seu valor como probabilidade não é grande, embora, por outro lado, isso dependa de quem fosse a pessoa em questão. O aparecimento de Miss Brent ou de Miss Claythorne com tal encargo não teria causado surpresa no espírito da paciente.

Admito que o aparecimento da minha pessoa, do Sr. Blore ou do Sr. Lombard teria sido, para dizer o mínimo, incomum, mas ainda assim penso que a visita não despertaria uma ver­dadeira suspeita.

— E isso nos leva... aonde? — perguntou Blore.

 

Afagando o lábio com o dedo, o Juiz Wargrave continuou no seu tom mais desapaixonado e inumano:

— Terminamos a discussão do segundo assassinato, e dei­xamos assente que nenhum de nós está inteiramente livre de suspeita.

O velho magistrado fez uma pausa e recomeçou:

— Chegamos agora à morte do Gen. Macarthur, ocorrida hoje pela manhã. Pedirei a quem quer que considere ter um álibi, que o declare explicitamente. Quanto a mim, desde já direi que não tenho nenhum álibi válido. Passei a manhã sen­tado no terraço, a meditar sobre a situação singular em que todos nos encontramos.

"Estive sentado naquela cadeira durante toda a manhã até soar o gongo, mas imagino que nesse espaço de tempo tenha havido diversas ocasiões em que não era observado por nin­guém e em que me teria sido possível descer até a beira-mar, matar o general e voltar para a minha cadeira. Afirmo não ter saído do terraço, mas não posso prová-lo. Em face das circunstâncias, isso não é suficiente. Deve haver prova."

— Eu estive toda a manhã com o Sr. Lombard e o Dr. Armstrong — disse Blore. — Eles poderão confirmá-lo.

Armstrong:

— Você veio até aqui para conseguir uma corda. Blore:

— Não o nego. Vim e voltei imediatamente. O senhor sabe que assim foi.

Armstrong:

— Demorou um bom pedaço... Blore ficou vermelho como uma cereja.

— Que diabo quer dizer com isso, Dr. Armstrong? Ó médico repetiu:

— Apenas disse que você tinha demorado um bom pedaço.

— Eu tinha de encontrar uma corda, não tinha? Não se pode achar um rolo de corda num instante.

O juiz interveio:

— Durante a ausência do Inspetor Blore os senhores dois ficaram juntos?

— Certamente — respondeu Armstrong com calor. — Isto é, Lombard afastou-se durante alguns minutos. Eu fiquei onde estava.

Lombard teve um sorriso:

— Queria experimentar as possibilidades de heliografar para a terra firme. Fui procurar o melhor lugar. Estive au­sente apenas por um minuto ou dois.

Armstrong confirmou com a cabeça.

— É verdade. Não demorou o tempo suficiente para co­meter um assassinato, garanto-lhe.

— Algum dos senhores olhou para o relógio? — perguntou o juiz.

— Bem, eu não olhei.

— Eu não tinha relógio — disse Lombard.

— "Um minuto ou dois" é uma expressão vaga — pon­derou tranqüilamente o juiz.

E, voltando-se para a figura ereta, com o tricô no regaço:

— Miss Brent?

— Dei um passeio com Miss Claythorne até o cume da ilha — disse a solteirona. — Depois estive sentada ao sol, no terraço.

— Não me lembro de a ter visto — falou o juiz.

— É que eu estava atrás do canto da casa, no lado do sol. Lá não havia vento.

— E ali ficou até a hora do almoço?

— Sim.    .

— Miss Claythorne?

Vera respondeu com prontidão e clareza:

— Estive com Miss Brent de manhã cedo, depois andei vagueando um pouco por aí. Mais tarde desci e falei com o Gen. Macarthur.

O Juiz Wargrave interrompeu-a, perguntando:

— A que hora foi isso?

Incerta pela primeira vez, Vera respondeu:

— Não sei. Cerca de uma hora antes do almoço, acho eu... talvez menos...

— Foi antes ou depois de termos falado com ele? — per­guntou Blore.

— Não sei — repetiu Vera. — Ele... ele estava muito esquisito.

Vera teve um arrepio.

— Esquisito em que sentido? — quis saber o juiz. A moça respondeu em voz baixa:

— Disse que nós todos íamos morrer... que ele estava à espera do fim... Assustou-me...

O juiz assentiu com a cabeça e perguntou:

— Que fez então a senhorita?

— Voltei para a casa. Depois, logo antes do almoço, tornei a sair para os fundos e a subir a encosta. Estive terrivelmente inquieta durante o dia todo.

O Juiz Wargrave afagou o queixo.

— Resta Rogers, embora eu duvide que o seu depoimento venha acrescentar alguma coisa à soma dos nossos conheci­mentos.

Rogers, intimado a comparecer perante o tribunal, teve muito pouco a dizer. Durante a manhã inteira estivera ocupa­do com o arranjo da casa e o preparo do almoço. Tinha levado coquetéis ao terraço antes do almoço e depois fora mudar suas coisas do sótão para o outro quarto. Não olhara uma só vez pela janela durante a manhã e nada tinha visto que pudesse ter qualquer relação com a morte do Gen. Ma­carthur. Podia jurar positivamente que havia oito figurinhas de porcelana sobre a mesa quando pusera o almoço.

Ao concluir o mordomo o seu depoimento, fez-se um silên­cio na sala.

O Juiz Wargrave consertou a garganta.

— Agora vem o sumário! — murmurou Lombard para Vera Claythorne.

— Temos examinado da melhor maneira que nos foi pos­sível as circunstâncias que cercaram essas três mortes — falou o juiz. — Se bem que em alguns casos sejam muito pequenas as probabilidades de estarem implicadas certas pessoas, não se pode afirmar positivamente que qualquer de nós esteja livre de toda suspeita de cumplicidade. Reitero a minha con­vicção de que, das sete pessoas reunidas nesta sala, uma é um homicida perigoso e provavelmente louco. Não temos nenhum indício de quem possa ser essa pessoa. Tudo que podemos fazer na presente conjuntura é estudar as possíveis medidas para nos comunicarmos com a terra firme pedindo socorro, e, na eventualidade de ser retardado esse socorro (como nos leva a recear o estado do tempo), as medidas que cumpre adotar a fim de garantirmos a nossa segurança.

"Pedirei a todos que reflitam nisso cuidadosamente e me comuniquem quaisquer sugestões que lhes possam ocorrer. Entrementes, aconselho a todos que estejam em guarda. Até agora a tarefa do assassino foi fácil, de vez que suas vítimas não alimentavam suspeitas. Doravante, é nossa obrigação suspeitar uns dos outros. Prevenir-se é armar-se. Não corram riscos e estejam alerta ao perigo. É só."

Philip Lombard murmurou baixinho:

— Está encerrada a sessão...

 

— Acredita nisso? — perguntou Vera.

Estavam sentados, Lombard e a moça, no peitoril da ja­nela da sala de estar. Lá fora chovia copiosamente e o vento uivava, fustigando com força as vidraças.

Philip Lombard inclinou levemente a cabeça para um la­do antes de responder:

— Pergunta se eu acredito que o velho Wargrave tem ra­zão quando diz que o criminoso é um de nós?

— Sim.

Lombard falou vagarosamente:

— É difícil dizer. Pela lógica, está claro que ele tem ra­zão; e contudo...

Vera tirou-lhe as palavras da boca.

— E contudo, parece tão incrível! Lombard fez uma careta.

— Toda essa história parece incrível! Mas, depois da morte de Macarthur, não há mais dúvida a respeito de uma coisa. Já não se cogita de acidentes ou suicídios. É positiva­mente assassinato. Três assassinatos, até agora.

— Parece um horrível pesadelo — disse Vera, arrepia­da. — Continuo a sentir que essas coisas não podem acon­tecer!

Lombard observou compreensivamente:

— Eu sei. Daqui a pouco vão bater à porta e trazer o chá da manhã.

— Oh! quem me dera que isso pudesse acontecer!

— Sim, mas não acontecerá — disse Philip gravemente. — Todos nós estamos vivendo o mesmo pesadelo. E, daqui em diante, precisamos estar sempre acautelados.

— Se... se realmente é um deles... quem você pensa que seja? — perguntou Vera baixando a voz.

Philip Lombard sorriu de súbito e respondeu:

— Segundo vejo, você faz exceção de nós dois? Bem, está certo. Sei perfeitamente que não sou o assassino e não creio que você tenha algo de doida, Vera. Dá-me a impres­são de ser uma das moças mais ajuizadas e de cabeça mais sólida que já encontrei. Aposto a minha reputação na sua sanidade mental.

— Obrigada — disse Vera com um sorriso um tanto oblíquo.

— Então, Miss Vera Claythorne, não vai retribuir o cum­primento?

Vera respondeu depois de breve hesitação:

— Você já admitiu, como sabe, que não considera a vi­da humana particularmente sagrada, mas assim mesmo não posso imaginá-lo como... como o homem que ditou aquela gravação.

— Perfeitamente — disse Lombard. — Se eu fosse co­meter um ou mais assassínios, seria unicamente pelo proveito que isso me pudesse trazer. Esse tipo de execução em mas­sa não é a minha especialidade. Muito bem, então riscamos nossos nomes da lista e concentramo-nos em nossos cinco companheiros de prisão. Qual deles é U. N. Owen? Bem, por simples palpite e sem ter absolutamente nada em que me basear, eu votaria em Wargrave.

— Oh! — fez Vera, surpreendida. Refletiu por alguns instantes e perguntou: — Por quê?

— É difícil dizer exatamente. Mas, para começar, ele é um velho e presidiu tribunais por muitos anos. Em outras palavras, desempenhou o papel de Deus Todo-Poderoso durante uma porção de meses cada ano. Isso deve acabar por transtornar a cabeça de um homem. Ele passa a con­siderar-se como onipotente, como tendo o poder de vida e de morte... é possível que o seu cérebro se desarranje e ele queira avançar mais um passo e ser Juiz e Verdugo Plenipotenciário. Vera disse devagar:

— Sim, suponho que isso seja possível...

— Em quem votaria você? — perguntou Lombard. Sem hesitar, Vera respondeu:

— No Dr. Armstrong. Lombard deu um pequeno assobio.

— O doutor, hem? Olhe, eu o poria como o último de todos.

Vera abanou a cabeça.

— Oh! não. Duas das mortes foram por envenenamento. Isso está mais ou menos a indicar um médico. E depois, não se deve esquecer este fato: a única coisa de que temos certeza absoluta é de a Sra. Rogers ter tomado o soporífero que ele lhe deu.

— Sim, isso é verdade — admitiu Lombard. Vera insistiu:

— Se um médico endoidecesse, passar-se-ia muito tempo antes que alguém suspeitasse. E os médicos trabalham de­mais e vivem numa grande tensão.

— Sim — disse Philip — mas duvido que ele tenha morto Macarthur. Não teria tempo para isso durante o bre­ve intervalo em que o deixei... a não ser que fosse até lá embaixo e tornasse a subir correndo como uma lebre, e não creio que ele tenha o treino necessário para fazer isso sem mostrar sinais de cansaço.

— Não o matou naquela hora — retrucou Vera. — Te­ve um ensejo mais tarde.

— Quando?

— Quando desceu a fim de chamar o general para o almoço.

Philip tornou a assobiar baixinho.

— Então pensa que foi nessa ocasião? É preciso muito sangue frio para fazer isso.

— Que risco havia? — redargüiu Vera com impaciência. — Ele é a única pessoa aqui que entende de medicina. Pode jurar que o velho estava morto pelo menos havia uma hora, e quem é que vai contradizê-lo?

Philip olhou pensativamente para ela.

— Sabe, essa sua idéia é bem inteligente. Será mesmo que...?

 

— Quem é, Sr. Blore? Isso é o que eu quero saber. Quem é?

O rosto de Rogers contraía-se em tiques espasmódicos. Suas mãos apertavam com força a camurça que segurava.

— Ah! meu rapaz, essa é a questão! — disse o ex-Inspe­tor Blore.

— Um de nós, foi o que disse Sua Excelência. Qual? Isso é o que eu quero saber. Quem é esse demônio em for­ma de gente?

— Isso é o que todos nós gostaríamos de saber — disse o outro.

— Mas o Sr. Blore tem uma idéia. O senhor tem uma idéia, não tem? — perguntou astutamente o mordomo.

— Posso ter uma idéia — respondeu Blore devagar —, mas entre ter uma idéia e ter certeza vai uma grande distân­cia. Talvez me engane. Tudo que posso dizer é que, se tenho razão, o sujeito é de uma audácia... uma audácia nunca vista, na verdade.

Rogers enxugou o suor da testa e disse em voz rouca:

— Parece um sonho mau, é o que parece. Blore olhou curiosamente para ele.

— E você tem alguma idéia, Rogers?

O mordomo abanou a cabeça e respondeu na mesma voz rouca:

— Não sei. Não sei absolutamente nada. E isso é o que está me matando de medo. Não fazer nenhuma idéia...

 

O Dr. Armstrong esbravejou:

— Temos que sair daqui... temos que sair! A todo o custo!

O Juiz Wargrave olhava pensativamente pela janela do salão de fumar, brincando com o cordão do seu pincenez.

— Não pretendo ser meteorologista, está claro, mas acho muito improvável que essa lancha possa chegar até aqui — mesmo que soubessem da nossa angustiosa situação — antes de se passarem vinte e quatro horas... e isto se amainar o vento, olhe lá!

O Dr. Armstrong deixou cair a cabeça nas mãos e soltou um gemido.

— E, enquanto isso, poderemos ser todos assassinados em nossas camas?

— Espero que não — disse o juiz. — Pretendo tomar todas as precauções possíveis para que tal coisa não acon­teça.

Pelo cérebro do Dr. Armstrong passou como um relâm­pago a idéia de que um velho como o juiz apegava-se muito mais tenazmente à vida do que o faria um homem de me­nos idade. Muitas vezes, em sua carreira profissional, ma­ravilhara-se diante desse fato. Ali estava ele, mais moço do que o juiz uns bons vinte anos talvez, e todavia com um ins­tinto de conservação grandemente inferior ao do velho.

"Assassinados durante o sono!" dizia lá consigo o Juiz Wargrave. "Esses médicos são todos iguais... só pensam por meio de clichês. Um espírito perfeitamente vulgar."

— Já houve três vítimas, lembre-se — disse o doutor.

— Sem dúvida. Mas não esqueça que elas não estavam preparadas para o ataque. Nós estamos prevenidos.

O Dr. Armstrong respondeu amargamente:

— Que podemos fazer? Mais cedo ou mais tarde... O juiz:

— Acho que está em nós fazermos várias coisas. Armstrong:

— Nem sequer temos uma idéia de quem possa ser... O juiz afagou o queixo e murmurou:

— Oh! eu não diria isso, sabe?

Armstrong olhou perplexo para o seu interlocutor.

— Quer dizer que o senhor sabe?

O Juiz Wargrave respondeu cautelosamente:

— Quanto a provas positivas, tais como são necessárias num tribunal, reconheço que não possuo nenhuma. Mas, encarando o caso em conjunto, quer me parecer que uma pessoa em particular está indicada de modo suficientemente claro. Sim, é o que me parece.

Armstrong olhou pasmado para ele.

— Não compreendo — murmurou.

 

Miss Brent subiu para o seu quarto.

Apanhou a Bíblia e foi sentar-se junto à janela.

Abriu o livro, mas, após um instante de hesitação, pô-lo de lado. Dirigiu-se para o toucador e tirou de uma das ga­vetas um caderninho de notas de capa preta.

Abriu-o e começou a escrever:

 

Aconteceu uma coisa terrível. O Gen. Macarthur mor­reu. (Tem um primo casado com Elsie MacPherson.) Não há dúvida de que ele foi assassinado. Depois do almoço o juiz nos fez uma preleção interessantíssima. Está convencido de que o assassino é um de nós. Isso quer dizer que um de nós está possuído por um demô­nio. Eu já o suspeitava. Qual de nós será? Todos fazem esta pergunta a si mesmos. Só eu sei...

 

Miss Brent ficou algum tempo sem se mover. Seus olhos tornaram-se vagos e enevoados. O lápis cambaleava como bêbado entre os seus dedos. Em maiúsculas tremidas e de­salinhadas, escreveu:

O NOME DO ASSASSINO É BEATRICE TAYLOR...

Seus olhos cerraram-se.

De súbito acordou, num sobressalto, e olhou para o ca­derno de notas. Com uma exclamação raivosa, riscou as garatujas desordenadas que formavam a última frase.

— Fui eu que escrevi isto? — disse em voz baixa. — Fui eu? Devo estar fiando louca...

 

A tormenta crescia de fúria. O vento uivava contra os flancos da casa.

Todos se achavam na sala de estar, inertes, vigiando-se furtivamente uns aos outros.

Quando Rogers trouxe o aparelho de chá, todos se puse­ram em pé de um salto.

— Posso fechar as cortinas? O ambiente ficará mais ale­gre — disse o criado.

Dado o consentimento, as cortinas foram fechadas e a luz acesa. A sala ficou mais alegre. As sombras dissiparam-se em parte. Com certeza, na manhã seguinte a tormenta haveria passado e viria alguém-... chegaria um barco...

— Vai servir o chá, Miss Brent? — perguntou Vera Claythorne.

A mulher mais idosa respondeu:

— Não, faça-o você, minha querida. O bule é muito pe­sado. E eu perdi duas meadas da minha lã cor de cinza. Tão aborrecido...

Vera dirigiu-se para a mesa de chá. Houve um alegre tilintar de porcelanas. A normalidade voltava.

Chá! Bendito chá habitual de todas as tardes! Philip Lombard fez uma observação chistosa. Blore retrucou. O Dr. Armstrong contou uma história engraçada. O Juiz Wargrave, que ordinariamente detestava o chá, bebericava com ar de aprovação.

Foi nessa atmosfera repousada que entrou Rogers.

O mordomo estava aflito. Falou nervosamente, sem se dirigir a ninguém em particular:

— Desculpe-me, senhor, mas alguém sabe que fim levou a cortina do banheiro?

Lombard ergueu subitamente a cabeça.

— A cortina do banheiro? Que diabo quer dizer, Rogers?

— Desapareceu, senhor, não está mais lá. Eu andava pe­la casa fechando todas as cortinas, quando descobri que fal­tava a da pat... do banheiro.

— Isso foi esta manhã? — perguntou o Juiz Wargrave.

— Foi, sim, senhor.

— Que espécie de cortina era? — quis saber Blore.

— De seda oleada escarlate, senhor. Combinava com os azulejos escarlates.

— E desapareceu? — disse Lombard.

— Desapareceu, senhor. Todos se entreolharam.

— Bem, afinal de contas, que tem isso? — falou Blore pesadamente. — É uma coisa maluca, mas tudo o mais é as­sim... De qualquer maneira, não há motivo para nos preo­cuparmos. Não se pode matar ninguém com uma cortina de seda oleada. Não se pensa mais nisso.

— Perfeitamente, muito obrigado, senhor — disse Rogers. O criado retirou-se cerrando a porta atrás de si. Dentro da sala, a mortalha de medo tornara a cair. Mais uma vez, puseram-se a vigiar sub-repticiamente uns aos outros.

 

O jantar foi servido, comido, e tirada a mesa. Uma re­feição simples, consistindo sobretudo em alimentos enlatados.

Mais tarde, na sala de estar, a tensão foi tamanha que quase chegava a ser insuportável.

Às nove horas Emily Brent levantou-se, dizendo:

— Vou deitar-me.

— Eu também vou — secundou Vera.

As duas subiram a escada, escoltadas por Lombard e Blore. Estes detiveram-se no patamar e viram as mulheres entrar nos seus respectivos quartos e fechar a porta. Ouvi­ram o ruído de duas chaves girando nas fechaduras e de dois ferrolhos.

Blore observou arreganhando os dentes:

— Não é preciso avisar para que elas chaveiem as portas!

— Bem — disse Lombard — elas, pelo menos, estão ga­rantidas por esta noite!

Philip desceu, seguido pelo ex-inspetor.

 

Os quatro homens foram para a cama uma hora depois. Subiram juntos a escada. Rogers, da sala de jantar, onde estava preparando a mesa para o café, viu-os subir. Ouviu que se detinham no patamar.

Então a voz do juiz falou:-

— Acho desnecessário recomendar aos senhores que fe­chem suas portas à chave.

— E, o que é mais — acrescentou Blore — que calcem o trinco com uma cadeira. Há meios de abrir fechaduras por fora.

Lombard murmurou:

— Meu caro Blore, seu mal é saber demais!

Rogers saiu da sala de jantar e subiu cautelosamente até o meio da escada. Viu os quatro vultos atravessarem as qua­tro portas e ouviu o ruído de quatro chaves e quatro ferro-lhos. Sacudiu a cabeça em sinal de aprovação.

— Está certo — resmungou.

Voltou à sala de jantar. Sim, tudo estava em ordem para a manhã seguinte. Seus olhos demoraram-se na bandeja cen­tral de espelho com as sete figurinhas de porcelana.

Um súbito sorriso transformou-lhe o rosto.

— Vou tratar de fazer com que esta noite, pelo menos, ninguém pregue peças — murmurou.

Atravessou a sala e chaveou a porta da copa. Depois saiu pela outra porta, que dava para o hall, passou-lhe a chave e meteu esta no bolso.

Apagou então as luzes e subiu apressadamente a escada, dirigindo-se para o seu novo quarto de dormir.

Só havia ali um esconderijo possível: o alto guarda-roupa, que foi imediatamente revistado. Feito isso, Rogers chaveou e trancou a porta e preparou-se para dormir, dizendo com os seus botões:

— Esta noite não haverá brinquedos de negrinho. Já providenciei isso.

 

Philip Lombard tinha o hábito de acordar ao romper do dia. Assim o fez nessa manhã. Ergueu-se sobre o cotovelo e escutou. O vento continuava a soprar, embora tivesse dimi­nuído um pouco. Não ouviu nenhum ruído de chuva...

Às oito horas o vento estava a soprar mais forte, mas Lombard não o ouviu. Dormia novamente.

Às nove e meia, estava sentado na beira da cama, a olhar o seu relógio. Encostou-o no ouvido e seus lábios arrega­çaram-se no curioso sorriso de lobo que lhe era peculiar.

— Acho que chegou o momento de tomar uma iniciativa — disse em voz muito macia.

Faltavam vinte e cinco minutos para as dez quando foi bater na porta chaveada do quarto de Blore.

Este abriu-a cautelosamente. Tinha o cabelo em desalinho e os olhos inchados de sono.

— Ainda a dormir? — disse Lombard afavelmente. — Bem, isso mostra que você tem a consciência tranqüila.

— Que há? — perguntou Blore.

— Alguém já o chamou... ou lhe trouxe chá? Sabe que horas são?

Blore voltou a cabeça e olhou para um pequeno relógio de viagem que estava à cabeceira da sua cama.

— Vinte para as dez. Não sei como fui dormir até esta hora. Onde está Rogers?

— É o caso de responder como o eco: onde? — disse Philip Lombard.

— Que quer dizer com isso? — perguntou o outro seca­mente.

— Quero dizer que Rogers está desaparecido. Não se encontra no quarto dele nem em parte alguma. O fogão não foi aceso na cozinha.

Blore praguejou baixinho e disse:  '

— Onde raios estará ele? Nalgum lugar da ilha? Espere enquanto eu ponho uma roupa. Veja se os outros sabem alguma coisa.

Philip Lombard assentiu. Caminhou ao longo da fila de portas fechadas.

Encontrou Armstrong em pé e quase inteiramente vestido. O Juiz Wargrave, como Blore, teve de ser acordado. Vera Claythorne estava vestida. O quarto de Emily Brent acha­va-se vazio.

O pequeno grupo deu uma volta pela casa. No quarto de Rogers, como já tinha verificado Lombard, não havia ninguém. A cama estava desfeita e sua navalha, pincel e sabão achavam-se úmidos.

— É certo que ele se levantou — disse Lombard. Vera perguntou numa voz baixa que procurava fazer se­gura e firme:

— Não pensam que ele está... escondido nalguma par­te... à nossa espera?

— Minha cara menina — disse Lombard — estou dis­posto a pensar qualquer coisa a respeito de qualquer um! Meu conselho é que continuemos todos juntos até encon­trá-lo.

— Ele deve estar aí fora, nalgum lugar da ilha — opinou Armstrong.

Blore, que se havia juntado a eles, vestido mas ainda não barbeado, perguntou:

— Onde foi meter-se Miss Brent? Esse é outro mistério... Mas, quando chegaram ao hall, Emily Brent vinha entran­do pela porta da frente. Vestia um impermeável.

— O mar está agitado como nunca — disse ela. — Acho que nenhum barco sairá hoje.

— Esteve caminhando sozinha pela ilha, Miss Brent? — perguntou Blore. — Não vê que é uma insensatez fazer isso?

Emily Brent respondeu:

— Garanto-lhe, Sr. Blore, que mantive uma extrema vigilância.

Blore soltou um grunhido e continuou:

— Viu Rogers, por acaso? Miss Brent alçou as sobrancelhas.

— Rogers? Não, ainda não o vi esta manhã. Por quê?

O Juiz Wargrave, barbeado, vestido e com a sua denta­dura postiça em posição, desceu a escada. Dirigiu-se para a porta aberta da sala de jantar.

— Ah! vejo que a mesa foi posta para o café — observou. —: Ele podia ter feito isso ontem de noite — disse Lom­bard.

Todos entraram na sala, olhando para os pratos e talhe­res corretamente dispostos, para as xícaras enfileiradas no aparador, para as esteiras de feltro prontas para receber a cafeteira.

Foi Vera quem viu primeiro. Segurou o braço do juiz, e o apertão dos seus dedos atléticos fez o velho magistrado encolher-se.

— Os negros! Olhe! — gritou a moça.

Havia apenas seis figuras de porcelana no centro da mesa.

 

Encontraram-no pouco depois.

Estava na pequena lavanderia, ao fundo do pátio. Tinha estado a cortar gravetos para acender o fogão. Empunhava ainda a machadinha. Contra a porta achava-se encostado um machado maior, mais pesado, com o ferro manchado de vermelho escuro. Correspondia exatamente ao profundo feri­mento na parte posterior da cabeça de Rogers...

 

— Está perfeitamente claro — disse Armstrong. — O assassino deve ter vindo silenciosamente por trás dele, erguido o machado e descarregado o golpe na sua cabeça quando ele estava curvado.

Blore ocupava-se com o cabo do machado, espalhando farinha sobre ele com o auxílio de uma peneira que trou­xera da cozinha.

— Isso teria exigido grande força, doutor? — perguntou o Juiz Wargrave.

Armstrong respondeu gravemente:

— Uma mulher poderia ter dado o golpe, se é a isso que se refere.

Correu um rápido olhar em volta. Vera Claythorne e Emily Brent tinham-se retirado para a cozinha.

— Para a moça, seria fácil... É um tipo atlético. Miss Brent tem uma aparência de fragilidade, mas esse tipo fran­zino de mulher possui muitas vezes um grande vigor. E convém não esquecer que as pessoas mentalmente transtor­nadas têm uma força de que ninguém suspeita.

O juiz sacudiu pensativamente a cabeça.

Blore ergueu-se sobre os joelhos com um suspiro, dizendo:

— Não tem impressões digitais. O machado foi enxugado depois.

Ouviu-se uma risada. Os homens viraram-se repentina­mente. Era Vera Claythorne, no pátio. Sacudida por vio­lentos acessos de riso, a moça gritou numa voz aguda e estridente:

— Criam abelhas nesta ilha? Digam-me isso. Onde vamos encontrar uma colméia para brincar? Ah! ah!

Os outros fitavam-na sem compreender. Era como se aquela criatura assisada e bem-equilibrada tivesse endoidecido diante deles. Continuou na mesma voz aguda e forçada:

— Não me olhem desse modo! Como se pensassem que enlouqueci... Abelhas, colméias, abelhas! Não compreen­dem? Não leram aqueles versos idiotas? Estão lá em cima em todos os quartos... foram postos ali para que os estu­dem! Se tivéssemos cabeça, teríamos vindo diretamente aqui. Sete negrinhos vão rachar lenha... e o mais que segue. Sei tudo de cor, estou dizendo! Seis negrinhos de uma colméia fazem brinco... É por isso que estou perguntando: criam abelhas nesta ilha? Não é engraçado? Estupidamente engraçado?

A moça começou de novo a rir desenfreadamente. O Dr. Armstrong caminhou para ela, ergueu a mão e sentou-lhe um tapa no rosto.

Ela arquejou, soluçou... e engoliu em seco. Ficou imóvel alguns instantes, depois disse:

— Obrigada... Estou bem agora.

Sua voz voltara a ser calma e controlada — a voz de uma eficiente mestra de esportes.

Vera voltou-se e atravessou o pátio em direção à cozinha, dizendo:

— Miss Brent e eu estamos preparando o café. Podem... trazer alguns gravetos para acender o fogo?

As marcas dos dedos do médico destacavam-se em ver­melho na sua face.

Quando ela entrou na cozinha, Blore observou:

— O senhor agiu com muito acerto, doutor.

— Tinha de fazer assim! — justificou-se Armstrong. — Não podemos enfrentar casos de histeria, além do mais.

— Ela não é um tipo histérico — disse Philip Lombard. Armstrong concordou.

— Oh! não. Uma moça sã e equilibrada. Foi apenas o choque repentino. Isso pode acontecer a qualquer um.

Rogers havia rachado alguma lenha para o fogão antes que o assassinassem. Juntaram-na e levaram-na para a cozi­nha. Vera e Emily Brent estavam atarefadas. Miss Brent limpava o borralho. Vera pelava o presunto.

— Obrigada — disse Emily Brent. — Seremos o mais rápidas que pudermos. Dentro de meia hora ou quarenta e cinco minutos estará pronto. É preciso esperar que a água ferva primeiro.

 

O ex-Inspetor Blore disse em voz baixa e rouca a Philip Lombard:

— Sabe o que eu estou pensando?

— Como você vai dizê-lo agora — respondeu o outro — não vale a pena fazer força para adivinhar.

O ex-inspetor era um homem sério. Qualquer alusão chistosa lhe era incompreensível. Continuou a falar pesadamente:

— Houve um caso na América. Um velho e a mulher... ambos assassinados com um machado. No meio da manhã. Ninguém na casa, a não ser a filha e a criada. A criada, ficou provado, não podia ter sido. A filha era uma respei­tável solteirona de meia-idade. Acharam incrível, tão incrível que a absolveram. Mas nunca encontraram outra explicação.

Blore fez uma pausa.

— Pensei nesse caso quando vi o machado... e depois, quando entrei na cozinha e a vi tão calma e tão correta. Nem um fio de cabelo fora do lugar! Quanto à moça, ficar assim histérica... bem, isso é natural... é o que se podia esperar, não acha?

— Pode ser — respondeu laconicamente Philip Lombard. Blore continuou:

— Mas a outra! Tão limpa e arranjadinha, metida na­quele avental... da Sra. Rogers, suponho... e dizendo: "O café estará pronto daqui a meia hora pouco mais ou menos". Se quer saber, essa mulher está doida varrida! Muitas solteironas velhas ficam assim... não que se ponham a cometer homicídios em massa, mas ficam com a cabeça transtornada. Ela, infelizmente, deu para isso. Mania reli­giosa... pensa que é um instrumento de Deus ou qualquer coisa parecida! Ela fica no quarto a ler a Bíblia, sabe?

Philip Lombard suspirou e disse:

— Isso dificilmente será uma prova de desequilíbrio mental, Blore.

Mas Blore prosseguiu, laborioso e perseverante:

— E, além do mais, andava lá fora, de capa de bor­racha... Diz que tinha descido para olhar o mar.

O outro abanou a cabeça.

— Rogers foi morto quando estava cortando lenha — isto é, quando fazia a primeira coisa depois de se levantar. A Brent não precisava ficar caminhando na ilha durante horas depois. Se você me pergunta, a pessoa que matou Rogers teria todo o cuidado em meter-se de novo na cama e ficar roncando.

— A coisa não é essa, Sr. Lombard — disse Blore. — Se a mulher fosse inocente, estaria muito assustada para andar vagueando sozinha na ilha. só faria isso se soubesse que não tinha nada a temer. Em outras palavras, se ela própria fosse a criminosa.

— É um bom argumento — volveu Lombard. — É, sim, eu não tinha pensado nisso.

E acrescentou com um sorrisinho:

— Ainda bem que você ainda não suspeita de mim. Blore respondeu um tanto envergonhado:

— A princípio desconfiei do senhor. Aquele revólver... e a história esquisita que contou... ou não contou. Mas compreendo agora que aquilo era simples demais. — Fez uma pausa e acrescentou: — Espero que pense o mesmo a meu respeito.

Philip respondeu, pensativo:

— Posso estar enganado, é claro, mas não acho que você tenha suficiente imaginação para planejar uma coisa destas. Tudo quanto posso dizer é que, se você é o criminoso, é um excelente ator e tiro-lhe o meu chapéu.

E, baixando o tom da voz:

— Aqui entre nós, Blore, e levando em conta que sere­mos provavelmente um par de cadáveres antes que se passe outro dia, a história daquele falso testemunho é verdadeira, não é?

Blore mudou de pé, inquieto, e respondeu afinal:

— Parece que agora já não faz muita diferença. Bom, lá vai. Landor estava inocente, de fato. O bando me passou a bola e combinamos encaná-lo por uns tempos. Mas olhe lá, eu não admitiria isso...

—... diante de testemunhas — completou Lombard arreganhando os dentes. — Isso fica entre nós. Bem, espero que lhe tenha rendido uma boa bolada.

— Não fiz tanto como esperava. Gente mesquinha, aquele bando de Purcell. Mas fui promovido.

— E Landor apanhou trabalhos forçados e morreu na cadeia.

— Eu não podia prever que ele ia morrer, podia? — disse Blore.

— Não, isso foi azar seu.

— Meu? Dele, quer dizer.

— Seu, também. Porque, em resultado disso, parece que sua vida vai ser desagradavelmente abreviada.

— Eu? — tornou Blore, encarando-o. — Pensa que vou ter o mesmo fim que Rogers e os outros? Não mesmo! Estou cuidando muito bem da minha pessoa, posso garan­tir-lhe.

— Bem, bem... Não sou amigo de apostas — disse Lombard. — E, de qualquer maneira, estando você morto eu não seria pago.

— Olhe aqui, Sr. Lombard: que quer dizer com isso? Lombard mostrou os dentes e respondeu:

— Quero dizer, meu caro Blore, que na minha opinião você não tem chance de escapar!

— O quê?

— Sua falta de imaginação fará de você a vítima ideal. Um criminoso com a imaginação de U. N. Owen pode dar tantas voltas em torno de você quantas ele — ou ela — quiser.

A cara de Blore ficou escarlate.

— E o senhor? — perguntou, furioso.

A expressão de Philip Lombard fez-se dura e perigosa.

— Eu cá tenho bastante imaginação. Já estive em lugares perigosos antes e consegui me safar! Penso... não direi mais do que isso, mas penso que me safarei deste!

 

Os ovos chiavam na frigideira. Vera pensava consigo enquanto fazia torradas:

"Por que me portei como uma imbecil histérica? Isso foi um erro. Conserva a calma, menina, conserva a calma."

Ela, que sempre se orgulhara da sua fleuma e lucidez!

Miss Claythorne foi maravilhosa... não perdeu a pre­sença de espírito... começou imediatamente a nadar empós de Cyril.

Por que pensar nisso agora? Tudo isso estava acabado, para sempre acabado... Cyril desaparecera muito antes que ela se tivesse aproximado do penedo. Sentira a corrente a puxá-la, a arrastá-la para o mar. Deixara-se levar, nadando tranqüilamente, boiando... até que finalmente chegou o barco...

Haviam elogiado a sua coragem e sangue-frio...

Mas Hugo, não... Hugo apenas olhara para ela...

Deus, como doía, mesmo agora, pensar em Hugo...

Onde estava ele? Que fazia? Estava noivo... casado?

— Vera, esse pão está queimando — preveniu aspera­mente Emily Brent.

— Oh! é verdade, Miss Brent! Sinto muito... Que estu­pidez a minha!

Emily Brent retirou o último ovo da banha que pulava na frigideira.

Vera enfiou um novo pedaço de pão no tostador e disse com curiosidade:

— Miss Brent é de uma calma admirável.

A solteirona comprimiu os lábios e respondeu:

— Fui ensinada a dominar os nervos e nunca perder a cabeça.

Vera pensou maquinalmente:

"Impulsos infantis reprimidos... Isso explica muita coisa..."

— Não tem medo? — perguntou; e acrescentou depois de uma pausa: — Ou não se importa de morrer?

Morrer! Foi como se uma aguçada verrumazinha houvesse perfurado a massa sólida e congelada do cérebro de Emily Brent. Morrer? Mas ela não ia morrer! Os outros morreriam, sim... porém não ela, Emily Brent! Essa menina não com­preendia! Emily não tinha medo, naturalmente — nenhum Brent jamais soube o que fosse medo. Todos os homens da família eram soldados. Enfrentavam a morte sem pestanejar. Viviam honradamente, e ela, Emily Brent, vivera da mesma maneira... Nunca fizera nada de que se enver­gonhar... E. por conseguinte e naturalmente, não ia mor­rer...

"O senhor zela pelos seus." "Não recearás o terror que anda à noite, nem a flecha que voa de dia..." Era dia agora — não havia terror. Nenhum de nós sairá desta ilha. Quem dissera isso? O Gen. Macarthur, evidentemente, cujo primo casara com Elsie MacPherson. Parecia não se impor­tar. Parecia, até, alegrar-se com a idéia! Era perverso, era quase ímpio pensar desse modo. Algumas pessoas davam tão pouco valor à vida que chegavam a matar-se. Beatrice Taylor... Na noite passada sonhara com Beatrice, que ela estava lá fora a apertar o rosto contra a vidraça, gemendo e pedindo que a deixassem entrar. Mas Emily Brent não quisera deixá-la entrar. Porque, se o fizesse, algo terrível aconteceria...

Emily recompôs-se com um sobressalto. A moça olhava para ela com um ar estranho.

— Está tudo pronto, não? — disse vivamente a solteirona. — Vamos levar para a mesa.

 

Curiosa refeição foi o café. Todos se mostravam muito polidos.

— Trago-lhe mais um pouco de café, Miss Brent?

— Miss Claythorne, uma fatia de presunto?

— Outra torrada?

Seis pessoas. Exteriormente, todas normais e senhoras de si.

Por dentro? Pensamentos que corriam em círculo como esquilos numa gaiola.

"Que virá depois? Quem será o próximo?"

"Quem? Qual?"

"Será que dá certo? Será mesmo? Vale a pena expe­rimentar. Se houver tempo... Meu Deus, se houver tempo..."

"Mania religiosa, é o que é... Olhando para ela, contudo, a gente mal pode acreditar... Estarei enga­nado?..."

"Isso é doido... tudo é doido. Estou perdendo o juízo. Lã desaparecendo... cortinas vermelhas de se­da... não tem pé nem cabeça. Não posso atinar com a razão disso..."

"O grandíssimo tolo... Acreditou em todas as patranhas que eu lhe disse. Foi fácil. Mas devo ter cuida­do, muito cuidado."

"Seis figurinhas de porcelana... só seis... Quantas haverá esta noite?..."

— Quem quer o último ovo?

— Marmelada?

— Obrigado, posso cortar-lhe uma fatia de pão?

Seis pessoas, portando-se normalmente à mesa do café...

 

Terminara a refeição.

O Juiz Wargrave consertou a garganta e disse numa vozinha autoritária:

— Seria aconselhável, penso, que nos reuníssemos para discutir a situação. Dentro de meia hora na sala, está bem?

Todos emitiram sons de anuência. Vera começou a empilhar os pratos.

— Vou tirar a mesa e lavar a louça — disse ela.

— Nós levaremos a louça para a copa — ofereceu Philip Lombard.

— Obrigada.

Emily Brent levantou-se e tornou a sentar, dizendo:

— Ora esta!

— Alguma coisa, Miss Brent? — perguntou o juiz.

— Desculpem-me — respondeu ela. — Gostaria de aju­dar Miss Claythorne, mas não sei o que se passa comigo. Estou um pouco tonta.

— Tonta, hem? — O Dr. Armstrong caminhou para ela. — Choque retardado. Eu lhe posso dar alguma coisa para...

— Não!

A palavra saiu-lhe dos lábios como um obus que explode. Todos se sobressaltaram. O Dr. Armstrong corou violenta­mente.

Não havia como enganar-se a respeito do medo e da sus­peita que se pintaram no rosto da mulher.

— Como quiser, Miss Brent — disse o médico, formali­zado.

— Não desejo tomar nada... absolutamente nada. Vou ficar sentada aqui, bem tranqüila, até que passe a tontura.

Acabaram de tirar a mesa.

— Eu lhe darei uma mão, Miss Claythorne — disse Blore. — Sou um homem de hábitos caseiros.

— Muito obrigada.

Emily Brent ficou a sós na sala de jantar.

Durante alguns instantes ouviu um ligeiro murmúrio de vozes, proveniente da cozinha.

A tontura estava passando. Sentia-se sonolenta agora, como se facilmente pudesse cair no sono.

Zumbiam-lhe os ouvidos... ou seria um verdadeiro zum­bido na sala?

"Parece uma abelha... uma mamangava", pensou ela.

Pouco depois avistou a abelha. Estava a subir pela vidraça.

Vera Claythorne tinha falado de abelhas nessa manhã.

Abelhas e colméias...

Ela gostava de mel. Mel no favo, põe-se dentro de um saquinho de musselina e espreme-se. Vai pingando, pingan­do, pingando...

Havia alguém na sala... alguém encharcado e a pin­gar... Beatrice Taylor saída do rio...

Bastava virar a cabeça para vê-la.

Mas não podia virar a cabeça...

Se ela gritasse...

Mas não podia gritar...

Não havia ninguém mais na casa. Estava sozinha...

Ouviu passos... passos macios e arrastados que se apro­ximavam por trás dela. Os passos trôpegos da afogada...

Um cheiro de umidade chegava-lhe às narinas...

Na vidraça, a abelha zumbia... zumbia...

Então sentiu a ferroada.

O ferrão da abelha no lado do pescoço...

 

Na sala, todos esperavam Miss Brent.

— Vou chamá-la? — perguntou Vera Claythorne.

Blore apressou-se a detê-la:

— Um momentinho!

Vera tornou a sentar-se. Todos se voltaram para Blore com uma interrogação nos olhos.

— Escutem, todos — disse ele. — Minha opinião é a seguinte: não precisamos ir além da sala de jantar para encontrar o autor destas mortes. Sou capaz de jurar que essa mulher é a pessoa que procuramos!

— E o motivo? — perguntou Armstrong.

— Mania religiosa. Que diz o doutor?

— É perfeitamente possível. Nada tenho que objetar a isso. Mas não temos provas, como sabe.

— Estava muito esquisita na cozinha, quando aprontá­vamos o café — disse Vera. — Os olhos dela...

A moça teve um arrepio.

— Não se pode julgá-la só por isso — objetou Lombard. — Nós todos estamos um pouco transtornados!

Blore:

— Há outra coisa. Foi ela a única que não deu nenhuma explicação depois que ouvimos aquele disco. Por quê? Sim­plesmente porque não tinha explicação para dar.

Vera mexeu-se na cadeira, dizendo:

— Isso não é bem verdade. Ela me contou... depois.

— Que lhe contou ela, Miss Claythorne? — perguntou Wargrave.

Vera repetiu a história de Beatrice Taylor. O Juiz Wargrave observou:

— Uma história perfeitamente plausível. Pessoalmente, eu não teria dificuldade em aceitá-la. Diga-me, Miss Claythor­ne: ela parecia perturbada por um sentimento de culpa ou de remorso devido à atitude que tomara no caso?

Vera:

— De modo nenhum. Estava completamente tranqüila e impassível.

Blore:

— Têm corações de pedra essas solteironas virtuosas! Em geral é inveja!

O juiz:

— Faltam cinco minutos para as onze. Acho que deve­mos chamar Miss Brent para que se reúna ao nosso conclave.

— Não vai tomar alguma medida? — perguntou Blore.

— Não vejo que medidas se possa tomar agora. Nossas suspeitas são, de momento, apenas suspeitas. Contudo, pedirei ao Dr. Armstrong que observe muito cuidadosamente a conduta de Miss Brent. Vamos à sala de jantar.

Encontraram Emily Brent sentada na mesma cadeira em que a tinham deixado. Por trás dela, nada notaram de anor­mal, a não ser que parecia não os ter sentido entrar.

Viram-lhe então o rosto — congesto de sangue, os lábios violáceos e os olhos a saltar das órbitas.

— Meu Deus — exclamou Blore -- está morta!

 

— Mais um de nós que é absolvido... demasiado tarde! — disse a vozinha tranqüila do Juiz Wargrave.

Armstrong estava curvado sobre a morta. Cheirou-lhe os lábios, abanou a cabeça e examinou-lhe as pálpebras. Lombard perguntou com impaciência:

— De que morreu ela, doutor? Estava bem quando a deixamos aqui!

A atenção de Armstrong fixara-se numa marca do lado direito do pescoço.

— É a marca de uma seringa hipodérmica — disse ele. Ouviu-se um zumbido perto da janela. Vera exclamou:

— Olhem... uma abelha! Lembram-se do que eu disse esta manhã?

— Não foi essa abelha que a ferroou! — disse o médico, de cenho fechado. — Uma mão humana foi que empunhou a seringa.

— Que veneno foi injetado? — perguntou o juiz.

— À primeira vista, um dos cianetos. Provavelmente cianeto de potássio, como no caso de Anthony Marston. Ela deve ter morrido quase imediatamente de asfixia.

— Mas essa abelha? — gritou Vera. — Não pode ser coincidência!

— Oh! não, não é coincidência — volveu Lombard com ar soturno. — É um pequeno toque de cor local dado pelo nosso assassino! Um animal brincalhão. Gosta de seguir o máximo possível aqueles excomungados versos!

Pela primeira vez sua voz parecia ter perdido a firmeza, tornando-se quase estridente. Como se os seus nervos, tem­perados por uma longa carreira de aventuras e empresas perigosas, tivessem afinal cedido.

— Isso é doido! — exclamou com violência. — Absolu­tamente doido! Nós todos estamos doidos!

O juiz contrapôs calmamente:

— Creio que ainda guardamos a capacidade de racio­cinar. Alguém trouxe uma seringa hipodérmica para esta casa?

O Dr. Armstrong endireitou o corpo e respondeu numa voz não muito segura:

— Sim, eu trouxe.

Quatro pares de olhos fixaram-se nele. O médico enristou-se contra a profunda suspeição hostil que havia naque­les olhos.

— Sempre ando com uma — disse. — A maioria dos médicos faz o mesmo.

O Juiz Wargrave disse em tom calmo:

— Perfeitamente. Quer dizer-nos onde está a seringa, doutor?

— Na maleta que tenho no quarto.

— Talvez convenha verificar esse fato — disse Wargrave. Os cinco subiram a escada, numa procissão silenciosa.

O conteúdo da maleta foi despejado no chão. A seringa hipodérmica não se achava ali.

 

— Alguém deve tê-la tirado! — disse Armstrong violen­tamente.

Houve um silêncio no quarto.

Armstrong estava de costas voltadas para a janela. Quatro pares de olhos fixavam-se nele, carregados de suspeita e acusação. O médico olhou de Wargrave para Vera e repetiu desamparadamente, em voz fraca:

— Digo-lhes que alguém deve tê-la tirado.

Blore estava olhando para Lombard, que lhe devolvia a mirada.

— Somos cinco aqui neste quarto — disse o juiz. — Um de nós é um assassino. A situação está repleta de grave pe­rigo. Tudo deve ser feito a fim de salvaguardar os quatro de nós que estão inocentes. Pergunto-lhe agora, Dr. Arms­trong: que drogas tem em seu poder?

Armstrong:

— Tenho aqui um pequeno estojo de urgência. Pode exa­miná-lo. Encontrará alguns soporíferos — comprimidos de trional e sulfonal — uma caixinha de brometo, bicarbonato de sódio, aspirina. Nada mais. Não carrego cianeto comigo.

O juiz:

— Eu também tenho alguns comprimidos de suporífero, creio que sulfonal. Presumo que, ministrados em dose sufi­cientemente grande, seriam fatais. O Sr. Lombard está de posse de um revólver.

— E que tem isso? — replicou Lombard.

— Apenas o seguinte: proponho que o sortimento de drogas do doutor, os meus comprimidos de sulfona, o seu revólver e tudo mais que for droga ou arma de fogo seja reunido e colocado em lugar seguro. E que, feito isso, cada um de nós se submeta a uma busca — tanto em nossas pes­soas como em nossos pertences.

— Raios me partam se eu entregar o meu revólver! — disse Lombard.

Wargrave retrucou com aspereza:

— O Sr. Lombard é um homem moço, forte e vigoroso, mas o ex-Inspetor Blore também é um homem de físico possante. Não sei qual seria o resultado de uma luta cor­poral entre os dois, mas posso dizer-lhe o seguinte: do lado de Blore, secundando-o com todos os meios de que dispo­mos, estaremos eu, o Dr. Armstrong e Miss Claythorne. Há de compreender, por conseguinte, que as probabilidades são bastante grandes contra o senhor, caso optar pela resis­tência.

Lombard atirou a cabeça para trás e mostrou os dentes num ricto de fera acossada.

— Está bem, então, já que tem tudo planejado...

O Juiz Wargrave sacudiu a cabeça em sinal de aprovação.

— O senhor é um moço assisado. Onde está o seu re­vólver?

— Na gaveta da minha mesa de cabeceira.

— Ótimo.

— Vou buscá-lo.

— Acho conveniente irmos todos juntos.

Philip disse com um sorriso que era antes um ranger de dentes:

— Sujeito desconfiado, hem?

Foram pelo corredor até o quarto de Lombard. Este caminhou para a mesinha de cabeceira e abriu a gaveta com um sacalão.

Depois, recuou proferindo uma praga. A gaveta estava vazia.

 

— Satisfeitos? — perguntou Lombard.

Estava nu em pêlo, e tanto ele como o seu quarto tinham sido meticulosamente revistados pelos outros três homens. Vera Claythorne esperava lá fora, no corredor.

A metódica busca prosseguiu. Cada um por sua vez, Arms­trong, o juiz e Blore submeteram-se ao mesmo exame.

Os quatro homens saíram do quarto de Blore e aproxi­maram-se de Vera. Foi o juiz quem falou.

— Espero que compreenda, Miss Claythorne, que não podemos fazer exceções. Esse revólver precisa ser encon­trado. A senhorita trouxe consigo um traje de banho, pre­sumo.

Vera fez que sim com a cabeça.

— Então lhe pedirei que entre no seu quarto, ponha esse traje e volte aqui.

Vera entrou no quarto e fechou a porta. Menos de um minuto depois tornou a aparecer, vestindo uma roupa de banho muito justa, de seda pregueada.

Wargrave fez um sinal de aprovação.

— Obrigado, Miss Claythorne. Agora, se quiser ficar aqui, vamos revistar o seu quarto.

Vera aguardou pacientemente no corredor até que os outros voltassem. Depois entrou, tornou a mudar de roupa e foi ter com os quatro homens, que a esperavam.

— Temos agora certeza de uma coisa — disse o juiz. — Não existem armas ou drogas mortais em poder de nenhum de nós cinco. Isso já é um passo andado. Agora vamos colocar as drogas em lugar seguro. Há, se não me engano, uma caixa de talheres na copa.

— Tudo isso está muito bem — observou Blore — mas quem vai ficar com a chave? O senhor, suponho.

O Juiz Wargrave não deu resposta.

Desceu para a copa, seguido pelos outros. Havia ali uma pequena caixa destinada a guardar louça e prataria. Sob a direção do juiz, as várias drogas foram colocadas nessa caixa e fechadas a chave. Depois, ainda de acordo com as instru­ções de Wargrave, a caixa foi posta numa prateleira do armário, que, por sua vez, foi também chaveado. O juiz deu então a chave da caixa a Philip Lombard e a do armário a Blore, dizendo:

— Os senhores dois são os mais fortes fisicamente. Seria difícil a qualquer um tomar a chave ao outro. Para qualquer dos restantes, isso seria impossível. Arrombar o armário ou quebrar a caixa seria uma coisa complicada e ruidosa, que mal poderia ser posta em prática sem chamar a atenção.

O magistrado fez uma pausa e continuou:

— Resta-nos ainda um grave problema: que fim levou o revólver do Sr. Lombard?

— Parece-me que o dono é a pessoa mais indicada para saber disso — sugeriu Blore.

As narinas de Philip Lombard ficaram brancas.

— Maldito cabeçudo! Já lhe disse que me roubaram!

— Quando foi que o viu pela última vez? — perguntou Wargrave.

— Ontem de noite. Estava na gaveta da mesinha de cabe­ceira quando me deitei... à mão, para qualquer eventuali­dade.

O juiz aprovou com a cabeça e disse:

— Deve ter sido tirado esta manhã, durante a confusão da procura de Rogers, ou depois que se encontrou o corpo.

— Deve estar escondido em algum lugar da casa — dis­se Vera. — Temos que procurá-lo.

Wargrave afagava o queixo.

— Duvido que a busca dê algum resultado. Nosso assas­sino teve tempo de sobra para descobrir um bom esconde­rijo. Não creio que seja fácil achar esse revólver.

Blore interveio, convicto:

— Não sei onde o revólver está, mas aposto que sei onde está outra coisa: aquela seringa hipodérmica. Sigam-me.

O ex-inspetor abriu a porta da frente e contornou a esquina da casa, acompanhado pelos outros.

Um pouco além da janela da sala de jantar, Blore achou a seringa. Ao lado dela via-se uma figura de porcelana esmigalhada — o quinto negrinho.

Blore disse numa voz satisfeita:

— O único lugar onde podia estar. Depois de mata-la, o indivíduo abriu a janela, atirou fora a seringa, apanhou uma figurinha na mesa e atirou-a também.

Não havia impressões digitais na seringa, pois tora cuida­dosamente enxugada.

— Agora vamos procurar o revólver — disse Vera em

tom resoluto.

— Perfeitamente — volveu o juiz. — Mas, ao fazer isso, tenhamos o cuidado de nos conservar juntos. Lembrem-se de que, se nos separarmos, daremos uma oportunidade ao assassino.

A casa foi minuciosamente revistada do sótão ate as adegas, mas em pura perda de tempo. O revólver continuava desaparecido.

 

Um de nós... um de nós... um de nós...

Três palavras, infindavelmente repetidas, ressoando hora após hora nos cérebros excitados.

Cinco pessoas... cinco pessoas atemorizadas. Cinco pes­soas que se entrevigiavam e que agora mal se davam ao tra­balho de esconder o seu estado de tensão nervosa.

Pouco se cuidava agora de manter as aparências ou o ver­niz da conversação polida. Eram cinco inimigos ligados por um instinto comum de conservação.

E, de súbito, todos eles pareceram menos do que seres humanos. Estavam revertendo a tipos mais bestiais. Como uma velha tartaruga precavida, o Juiz Wargrave ficava sen­tado, imóvel, encurvado, os olhos vivos e alertas. O ex-Ins­petor Blore parecia mais grosseiro e desajeitado. Seu andar era o de um vagaroso animal palmípede. Tinha os olhos injetados. A expressão de seu rosto era um misto de fero­cidade e estupidez. Era como um bicho acossado, pronto a arremeter contra os seus perseguidores. A inteligência de Philip Lombard parecia ter-se aguçado ao invés de diminuir. Seus ouvidos registravam o menor som. Seu andar era mais rápido e leve, o corpo mais flexível e gracioso. E sorria com freqüência, arregaçando os lábios e mostrando os dentes com­pridos e brancos.

Vera Claythorne estava muito silenciosa. Ficava a maior parte do tempo encolhida numa cadeira, olhando o vazio diante de si. Parecia aturdida. Dava a impressão de um pássaro que bateu contra a vidraça e é apanhado por uma mão humana. Agacha-se ali, aterrado, incapaz de movimento, es­perando salvar-se pela imobilidade.

Armstrong achava-se num deplorável estado de nervos. Retorcia-se. Tremiam-lhe as mãos. Acendia cigarro após ci­garro e jogava-os fora quase imediatamente. A inação for­çada do grupo parecia oprimi-lo mais do que aos outros. De quando em quando irrompia numa torrente de dissertações nervosas.

— Não... não devíamos ficar aqui sentados sem fazer nada! Deve haver alguma coisa... Seguramente, seguramente há alguma coisa que possamos fazer. Se acendêssemos uma grande fogueira?

— Com este tempo? — fez Blore pesadamente. Recomeçara a chover forte. O vento soprava em rajadas intermitentes. O ruído depressivo do martelar da chuva quase os punha doidos.

De tácito acordo, haviam adotado um plano de campanha. Todos ficaram sentados no vasto salão. Só uma pessoa dei­xava a peça de cada vez. As outras quatro esperavam até que a quinta retornasse.

— É apenas uma questão de tempo — disse Lombard. — A chuva passará. Então poderemos fazer alguma coisa... sinais... acender fogueiras... construir... uma balsa... qualquer coisa!

Com uma súbita gargalhada, Armstrong exclamou:

— Questão de tempo... Tempo? Não dispomos de tem­po! Todos estaremos mortos...

O Juiz Wargrave falou na sua vozinha clara e cheia de ardente resolução:

— Não, se formos vigilantes. Devemos estar sempre alerta...

O almoço foi devidamente comido... mas sem nenhuma formalidade. Todos tinham ido para a cozinha. Na despensa acharam grande quantidade de alimentos em conserva. Abri­ram uma lata de língua e duas de frutas. Comeram em pé, ao redor da mesa da cozinha. Depois, em grupo cerrado, voltaram ao salão... para ali ficarem sentados, vigiando-se mutuamente.

Já agora, os pensamentos que lhes passavam pelo cérebro eram mórbidos, anormais, febris...

"É Armstrong... Naquela hora vi-o olhar de soslaio para mim... seus olhos são de louco... Talvez nem seja médico, afinal de contas... Claro, é isso mesmo!... Um louco fu­gido de algum sanatório, fingindo de doutor... Essa é que é a verdade... Digo a eles?... Grito?... Não, não convém pô-lo em guarda... Além disso, às vezes ele parece tão nor­mal... Que horas são? Apenas três e um quarto... Oh! meu Deus, eu também vou enlouquecer... Sim, é Arms­trong... Está me observando agora..."

"A mim é que eles não apanham! Sei cuidar de mim mes­mo... Já estive em lugares perigosos... Onde diabo está esse revólver?... Quem o tirou?... Quem está com ele?... Ninguém o tem... sabemos disso. Fomos todos revista­dos... Ninguém pode tê-lo consigo... Mas alguém sabe onde ele está..."

"Eles estão ficando doidos... todos vão ficar doidos... Com medo da morte... todos têm medo da morte... eu mesmo tenho medo da morte... Sim, mas isso não impede que a morte venha... 'O féretro está à porta, senhor.' On­de foi que li isso? A moça... vou vigiá-la. Sim, vou vigiar essa moça..."

 "Vinte para as quatro... apenas vinte para as quatro... talvez o relógio tenha parado... Não compreendo... não, não compreendo... Uma coisa dessas não pode aconte­cer... e está acontecendo... Por que não nos acordamos? Acordar... D^a do Juízo... Não, isso não! Se ao menos eu pudesse refletir... Minha cabeça... alguma coisa está acontecendo à minha cabeça... vai estourar... vai rachar-se ao meio... uma coisa dessas não pode acontecer... Que horas são? Oh! meu Deus, apenas um quarto para as qua­tro."

"Devo manter a presença de espírito... devo manter a presença de espírito... contanto que mantenha a presença de espírito... - Tudo está perfeitamente claro... tudo pre­visto. Mas ninguém deve suspeitar. Talvez dê certo! Qual? Eis a questão... qual? Penso... sim, quer me parecer... sim: ele."

Quando o relógio bateu cinco horas, todos estremeceram.

— Alguém... quer chá? — perguntou Vera. Houve um momento de silêncio.

— Eu tomaria uma xícara — disse Blore. Vera levantou-se, dizendo:

— Vou fazê-lo. Podem ficar todos aqui. O Juiz Wargrave ponderou suavemente:

— Acho, minha cara senhorita, que todos nós preferiría­mos ir assistir à preparação desse chá.

Vera encarou-o e soltou uma risada breve, um tanto his­térica.

— Naturalmente! Todos preferem!

Cinco pessoas foram à cozinha. O chá foi feito e tomado por Vera e Blore. Os outros três beberam uísque — abrindo uma garrafa intata e usando um sifão que tiraram da emba­lagem ainda pregada.

O juiz murmurou com um sorriso de réptil:

— Devemos ter muito cuidado...

Voltaram para a sala. Embora fosse verão, a peça estava escura. Lombard acionou o comutador, mas as lâmpadas não acenderam.

— Claro! — disse ele. — O motor não trabalhou hoje, Rogers não estava lá para tratar disso.

Depois de breve hesitação, propôs:

— Acho que podemos fazê-lo funcionar.

— Vi um pacote de velas na despensa — disse o juiz. — É melhor usá-las.

Philip Lombard saiu. Os outros quatro ficaram sentados a vigiar-se.

Philip voltou com um pacote de velas e uma pilha de pires. Cinco velas foram acesas e distribuídas pela sala.

Faltava um quarto para as seis horas.

 

Às seis e vinte, Vera sentiu que não suportaria mais con­tinuar sentada ali. Resolveu ir ao seu quarto e banhar a ca­beça e as têmporas doloridas em água fria.

Levantou-se e caminhou para a porta. Depois, lembrando-se, voltou e tirou uma vela do pacote. Acendeu-a, deixou pingar um pouco de cera num pires e prendeu a vela firme­mente neste. Saiu então da sala, fechando a porta atrás de si e deixando lá dentro os quatro homens. Subiu a escada e caminhou pelo corredor até o seu quarto.

Ao abrir a porta estacou subitamente, petrificada.

Suas narinas fremiram.

O mar... O cheiro do mar em St. Tredennick.

Era isso mesmo. Não podia estar enganada. Naturalmente, numa ilha sente-se o cheiro do mar, mas aquele era diferente. Era o cheiro da praia naquele dia, com a maré baixa e as rochas cobertas de algas secando ao sol.

Posso nadar até a ilha, Miss Claythorne?

Por que não posso nadar até a ilha?...

Pirralho detestável, cheio de vontades, sempre a chora­mingar! Se não fosse ele, Hugo seria rico... poderia casar com a moça a quem amava...

Hugo...

Com toda a certeza... seguramente... Hugo estava ao seu lado? Não, esperando por ela no quarto...

Vera avançou um passo. A chama da vela foi apanhada pela corrente de ar vinda da janela. Vacilou e apagou-se...

No escuro, ela sentiu um medo súbito...

— Não sejas tola — admoestou a si mesma. — Não há nenhum perigo. Eles estão lá embaixo, todos os quatro. Não há ninguém no quarto. Não pode haver. Estás imaginando coisas, minha menina.

Mas aquele cheiro — aquele cheiro da praia de St. Tre­dennick... aquilo não era imaginação. Era real.

E havia mesmo alguém no quarto... Tinha ouvido um le­víssimo ruído — certamente ouvira alguma coisa...

Nesse momento, achando-se ela imóvel no meio do quarto, à escuta — uma mão fria e pegajosa tocou-lhe a garganta... uma mão molhada, cheirando a mar...

 

Vera gritou. Gritava, gritava... lançava uivos de terror indescritível... desesperados e doidos pedidos de socorro.

Não ouviu os ruídos lá embaixo, uma cadeira derribada, uma porta que se abria, os pés dos homens subindo a escada a correr. Só tinha consciência do seu supremo terror.

Depois, devolvendo-lhe a sanidade, luzes bruxulearam no retângulo da porta... velas... homens a entrar precipita­damente no quarto.

— Que diabo de história é esta?

— Que foi que aconteceu?

— Deus do céu, que houve?

Vera tremeu, deu um passo à frente e caiu no chão.

Percebeu, vagamente, que alguém se curvava sobre ela, sentava-a e forçava-a a baixar a cabeça até o nível dos joelhos.

Depois, a uma exclamação súbita — "Meu Deus, olhem isto!" — Vera recobrou os sentidos. Abriu os olhos e er­gueu a cabeça. Viu, então, o que os homens estavam exa­minando à luz das velas.

Do teto pendia uma larga fita de alga molhada. Fora aquilo que, na escuridão, lhe roçara o pescoço. Fora aquilo que ela havia tomado por uma mão pegajosa, uma mão de afogado que voltava do reino dos mortos para tirar-lhe a vida!

Desatou a rir histericamente.

— Era uma alga!... Uma alga, apenas... e daí é que vinha o cheiro...

Foi novamente tomada de vertigem, com sucessivos aces­sos de vômito. Mais uma vez, alguém a forçou a baixar a cabeça até os joelhos.

Pareceram decorrer milênios. Estavam lhe oferecendo al­guma coisa para beber — apertando um copo contra os seus lábios. Sentiu o cheiro do conhaque.

Ia beber, cheia de gratidão, quando, de súbito, ressoou-lhe no cérebro uma nota de advertência, qual um sino de alarma. Sentou o corpo no chão e empurrou o copo para longe de si.

— De onde veio isto? — perguntou bruscamente. Respondeu-lhe a voz de Blore, que a fitou por alguns mo­mentos antes de falar:

— Eu o trouxe lá de baixo.

— Não quero tomar isso... — gritou Vera.

Houve um momento de silêncio, depois Lombard riu e disse:

— Bravos, Vera! Você não perde o tino... mesmo que tenha quase morrido de susto. Vou buscar uma garrafa fe­chada.

Philip saiu rapidamente do quarto. Um tanto incerta, Vera disse: ;

— Estou bem agora. Vou tomar um pouco d'água. Armstrong ajudou-a a levantar-se. Ela se dirigiu para a

pia, vacilando e agarrando-se ao médico. Deixou a torneira de água fria correr, depois encheu o copo.

— Esse conhaque não tem nada — observou Blore, res­sentido.

— Como sabe? — perguntou Armstrong. Blore retrucou furioso:

— Eu não botei nada nele. É isso que está insinuando, suponho.

— Não estou afirmando que você botou alguma coisa — volveu Armstrong. — Mas podia ter feito, ou alguém mais podia ter preparado a garrafa exatamente para uma emer­gência como esta.

Lombard tornou a entrar rapidamente no quarto. Trazia uma garrafa de conhaque fechada e um saca-rolhas. Colocou a garrafa sob o nariz de Vera.

— Está vendo, menina? Nada de logros. — Retirou a cápsula de metal, depois desarrolhou. — Por sorte, há uma boa previsão de bebidas nesta casa. Cuidados de nosso ami­go U. N. Owen.

Vera tremeu violentamente.

Armstrong segurou o copo enquanto Philip deitava o co­nhaque.

— É melhor que beba isto, Miss Claythorne. Sofreu um choque muito grande.

Vera bebeu um pouco. A cor voltou-lhe às faces. —• Bem — disse Philip Lombard, rindo — temos um as­sassinato que não ocorreu de acordo com o plano! Quase num sussurro, Vera perguntou:

— Acha... que a intenção era essa? Lombard fez que sim com a cabeça.

— Esperavam que você morresse de medo! Certas pes­soas teriam morrido, não é verdade, doutor?

Armstrong respondeu em tom de dúvida, sem se com­prometer:

— Hum... impossível dizê-lo. Tipo jovem e sadio... sem fraqueza cardíaca. Improvável. Por outro lado...

O médico apanhou o copo de conhaque que Blore havia trazido, mergulhou nele a ponta do dedo e provou cautelo­samente.

— Hum... o gosto é normal — disse, sempre no mesmo tom de dúvida.

Blore adiantou-se furioso.

— Se está insinuando que eu envenenei essa bebida, que­bro-lhe os ossos agora mesmo!

Vera, com as faculdades reavivadas pelo conhaque, ope­rou uma diversão perguntando:

— Onde está o juiz?

Os três homens entreolharam-se.

— Esquisito... Pensei que ele tivesse subido conosco.

— Eu também... — acrescentou Blore. — Que diz o doutor, que subiu a escada atrás de mim?

— Pensei que ele me seguia... — respondeu Armstrong. — Naturalmente, tinha de ser mais vagaroso do que nós. É um homem de idade.

Todos tornaram a entreolhar-se.

— Isto é muito estranho... — disse Lombard.

— Devemos procurá-lo! — gritou Blore.

O ex-inspetor caminhou para a porta e os outros segui­ram-no, Vera por último.

Enquanto desciam a escada, Armstrong disse por cima do ombro:

— É possível, naturalmente, que tenha ficado na sala de estar.

Atravessaram o hall. Armstrong chamou em voz alta:

— Wargrave, Wargrave, onde está você?

Não houve resposta. Fora o suave ruído da chuva, um silêncio de morte reinava na casa.

Chegando à porta do salão, Armstrong parou petrificado. Os outros amontoaram-se a olhar por cima dos seus ombros.

Alguém soltou um grito.

O Juiz Wargrave estava sentado na sua poltrona de espaldar alto, ao fundo da peça. Duas velas ardiam a cada lado. Mas o que chocou e espavoriu os espectadores foi a circuns­tância de estar ele vestido com uma beca vermelha e uma peruca de juiz na cabeça...

Armstrong fez sinal aos outros para que ficassem onde estavam. Quanto a ele, avançou para a figura silenciosa e de olhos escancarados. Vacilava um pouco ao caminhar, como um bêbado.

Curvou-se para a frente e examinou o rosto imóvel. De­pois, com um movimento rápido, retirou a peruca, que caiu ao chão, descobrindo uma testa alta e escalvada que tinha, bem no centro, uma mancha redonda de onde havia escorrido alguma coisa.

O Dr. Armstrong levantou a mão inerte e procurou o pulso, depois virou-se para os outros.

Sua voz soou inexpressiva, morta, distante:

— Foi baleado...

— Meu Deus... o revólver! — exclamou Blore. Ainda na mesma voz sem vida, o médico articulou:

— Atravessou-lhe a cabeça. Instantâneo. Vera abaixou-se para examinar a peruca.

— A lã cinzenta de que Miss Brent tinha dado falta...

— disse ela numa voz trêmula de horror.

— E a cortina vermelha que havia desaparecido do ba­nheiro... — acrescentou Blore.

Vera sussurrou:

— Então era para isso que as queriam... Subitamente, Philip Lombard riu — um riso agudo e for­çado.

— Cinco negrinhos no foro, a tomar os ares; um ali foi julgado, e então ficam dois pares. Este é o fim do Sr. War­grave, o Juiz-Verdugo. Acabou-se para ele a decretação de sentenças! Acabou-se o tempo de botar capelo! É a última vez que preside a um tribunal! Não fará mais sumários de culpa, nem enviará inocentes para a forca! Como Edward Seton teria rido se estivesse aqui! Meu Deus, como riria ele!

Semelhante explosão, vinda de quem vinha, chocou e sobressaltou os outros.

— Ainda esta manhã você disse que o assassino era ele!

— exclamou Vera.

O rosto de Lombard mudou de expressão — aquietou-se.

— Sim, eu sei... Pois bem, estava enganado. Aí está mais um de nós cuja inocência ficou provada... tarde demais!

 

Tinham levado o Juiz Wargrave para o seu quarto, deitando-o na cama.

Tornaram então a descer e detiveram-se no hall, a entreolhar-se.

— Que fazemos agora? — perguntou Blore pesadamente Lombard respondeu com vivacidade:

— Comer alguma coisa. Precisamos comer, como sabe Mais uma vez voltaram à cozinha. Abriram outra lata de

língua. Comeram maquinalmente, quase sem tomar o gosto à comida.

— Nunca mais vou comer língua — disse Vera. Terminaram a refeição e ficaram sentados em redor da

mesa da cozinha, a olhar uns para os outros.

— Somos só quatro agora... — observou Blore. — Quem será o próximo?

Armstrong encarou-o e disse quase maquinalmente:

— Devemos ter muito cuidado...

De súbito, calou-se. Blore sacudiu afirmativamente a cabeça.

— Era o que ele dizia... e agora está morto!

— Como terá acontecido isso? — falou Armstrong. Lombard soltou uma praga.

— Uma tramóia habilíssima! Aquela coisa foi posta no quarto de Miss Claythorne e deu exatamente o resultado esperado. Todos correram lá em cima, pensando que ela estava sendo assassinada. E assim... na confusão... alguém pôde apanhar o velho desprevenido.

— Como é que ninguém ouviu o tiro? — perguntou Blore. Lombard abanou a cabeça.

— Miss Claythorne estava gritando, o vento uivando, nós a correr de um lado para outro e a gritar também. — Fez uma pausa. — Mas essa esperteza não vai dar resultado outra vez. Agora ele terá que tentar outra coisa.

— Provavelmente tentará — disse Blore.

Sua voz tinha um som desagradável. Os dois homens enca­raram-se.

— Somos quatro, e não sabemos qual... — disse Arms-trong.

Blore:

— Eu sei...

Vera:

— Eu não tenho a menor dúvida...

Armstrong falou devagar:

— Parece-me que efetivamente sei...

E Philip Lombard:

— Creio que agora faço uma idéia mais ou menos exata... Mais uma vez, todos se entreolharam...

Vera levantou-se com um esforço, dizendo:

— Não posso mais comigo. Tenho de ir para a cama... Estou bombardeada.

Lombard:

— Eu também podia ir. Não adianta ficarmos aqui vigiando uns aos outros.

Blore:

— Eu não faço objeção... O doutor murmurou:

— É a melhor coisa a fazer... embora duvide que algum de nós consiga dormir.

Dirigiram-se para a porta. Blore observou:

— Eu gostaria de saber onde está aquele revólver agora...

 

Subiram a escada.

O que fizeram a seguir pareceu-se um pouco com uma cena de comédia.

Cada um dos quatro pousou a mão na maçaneta da porta do seu quarto. Depois, como se obedecessem a um sinal, cada um entrou e cerrou a porta. Ouviram-se os ruídos dos ferrolhos, das fechaduras e de móveis arrastados.

Quatro pessoas amedrontadas barricavam-se para passar a noite.

 

Philip Lombard respirou aliviado quando acabou de calçar a maçaneta da porta com uma cadeira.

Dirigiu-se para a penteadeira e, à luz vacilante da vela, examinou curiosamente o seu rosto.

— Sim, não há dúvida que esse negócio te marcou — disse baixinho, de si para si.

Seus dentes brancos lampejaram naquele sorriso de lobo.

Despiu-se rapidamente.

Caminhou para a cama e pôs o seu relógio de pulso sobre a mesinha de cabeceira.

Depois abriu a gaveta.

Ficou a fitar, atônito, o revólver que ali se achava...

 

Vera Claythorne estava deitada.

A vela ainda ardia ao seu lado.

E contudo, não podia decidir-se a apagá-la.

Tinha medo do escuro...

Dizia e tornava a dizer a si mesma:

 

Estás garantida até amanhã de manhã. Nada aconte­ceu na noite passada. Nada acontecerá esta noite. Não pode acontecer. Estás fechada a chave e trancada. Nin­guém pode aproximar-se de ti...

 

De súbito veio-lhe uma idéia:

"Pois claro! Posso ficar aqui! Ficar fechada aqui! A co­mida não tem nenhuma importância! Posso ficar aqui, em toda segurança, até que venha socorro! Mesmo que demore um dia... ou até dois..."

Ficar aqui. Sim, mas era possível ficar aqui? Hora após hora... sem ter com quem falar, sem outra coisa a fazer senão pensar...

Começaria a pensar na Cornualha... em Hugo... em... no que tinha dito a Cyril.

Pirralho detestável, choramingas, sempre a importuná-la...

— Miss Claythorne, por que não posso nadar até o ro­chedo? Eu posso. Sei que posso.

Fora a sua voz que havia respondido?

— Pois claro, Cyril. Você pode. Sei que você pode.

— Posso ir, então, Miss Claythorne?

— Bem, Cyril, é que sua mãe fica tão nervosa... Escute aqui. Amanhã você poderá nadar até o penedo. Eu ficarei conversando com sua mãe na praia para distrair a atenção dela. Depois, quando sua mãe quiser saber onde você está, você estará no alto do penedo, abanando para ela. Imagine só que surpresa!

— Oh! que idéia bacana, Miss Claythorne! Vai ser o fino! Ela consentira afinal. Amanhã! Hugo ia a Newquay. Quan­do ele voltasse... tudo já teria passado.

Mas se não fosse assim? Se a coisa falhasse? Cyril poderia ser salvo em tempo. E então... ele diria: Miss Claythorne disse que eu podia. Bem, que tinha isso? A gente precisa arriscar alguma coisa! Se acontecesse o pior, ela teria de ser caradura: Como é que você pode pregar tamanha mentira, Cyril? Está claro que eu nunca disse tal coisa! Sem dúvida acreditariam nela. Cyril pregava petas com freqüência. Era uma criança mentirosa. Mas isso não tinha importância... e, de qualquer maneira, a coisa não podia falhar. Vera fin­giria que nadava empós do menino. Mas chegaria tarde de­mais. Ninguém jamais suspeitaria...

Hugo teria suspeitado? Era por isso que ele a olhara com aquele ar estranho e distante?... Porventura Hugo sabia?...

Seria por isso que ele partira com tanta precipitação após o inquérito?

Hugo não tinha respondido à única carta que ela lhe escrevera...

Hugo...

Vera revirava-se na cama, sem descanso. Não, não... não devia pensar em Hugo. Era demasiado doloroso. Aquilo estava acabado, acabado para sempre... Hugo devia ser esquecido.

Por que motivo, esta noite, sentira de súbito a presença de Hugo no seu quarto?

Vera fitava o teto, seus olhos não se despegavam do enor­me gancho preto que havia no centro do quarto.

Não tinha notado antes esse gancho.

Era nele que estava dependurada a alga.

Teve um arrepio ao lembrar-se daquele contato frio e viscoso no seu pescoço.

Não gostava daquele gancho no teto. Prendia o olhar da gente, fascinava... um enorme gancho preto...

 

O ex-Inspetor Blore estava sentado na beira da cama.

Seus olhos pequenos, vermelhos e injetados, boliam na massa sólida do seu rosto, atentos a tudo. Parecia um javali pronto para acometer.

Não sentia nenhuma vontade de dormir.

A ameaça estava muito próxima agora... Seis dentre dez!

Com toda a sua sagacidade, toda a sua cautela e astúcia, o velho juiz tivera o mesmo fim dos outros.

Blore bufou com uma espécie de selvagem satisfação.

Que tinha dito a velha raposa?

"Devemos ter muito cuidado..."

Velho enfatuado e hipócrita! Presidindo um tribunal e jul­gando-se Deus Todo-Poderoso! Tinha recebido o que mere­cia... Acabaram-se as cautelas para ele.

E agora restavam quatro. A moça, Lombard, Armstrong e ele.

Bem depressa chegaria a vez de um outro... Mas esse outro não seria William Henry Blore. Saberia cuidar disso.

(Mas o revólver... Que dizer do revólver? Esse era o fator inquietante... o revólver!)

Sentado na cama, de cenho franzido, os olhinhos aperta­dos e enrugados, Blore considerava o problema do revól­ver...

No silêncio, pôde ouvir o relógio dar a hora lá embaixo.

Meia-noite.

Relaxou um pouco a sua vigilância e chegou mesmo a estender-se na cama. Não tirou a roupa, contudo.

Deitado, continuou a pensar. Repassou toda a história des­de o começo, metódica e laboriosamente, como costumava fazer nos seus tempos de policial. No fim de contas, o que valia mesmo era a meticulosidade.

A vela estava a extinguir-se. Verificou se os fósforos se achavam ao alcance da sua mão e apagou-a.

Surpreendentemente, a escuridão lhe pareceu inquietadora. Era como se medos milenares houvessem despertado e lutas­sem pela supremacia dentro do seu cérebro. Rostos flutua­vam no ar... a cabeça do juiz, coroada com aquela irrisória peruca de lã cinza... a face morta e fria da Sra. Rogers... as feições convulsas e arroxeadas de Anthony Marston.

Outro rosto... pálido, de óculos, com um pequeno bi­gode cor de palha.

Um rosto que ele tinha visto... quando? Não fora na ilha. Não, muitíssimo antes disso.

Engraçado, não lhe poder dar um nome... Uma cara tola, mesmo... o sujeito parecia meio otário.

Ora, quem ele era!

A súbita recordação causou-lhe um verdadeiro choque.

Landor!

Esquisito que tivesse esquecido completamente a fisiono­mia de Landor. Ainda ontem procurara lembrar-se da cara do sujeito e não pudera.

E agora, ali estava ela, com todos os traços nítidos e pre­cisos, como se a tivesse visto no dia anterior.

Landor tinha uma esposa... um fiapo de mulher, com uma cara atormentada. Tinha uma filha também, uma mo­cinha de seus quatorze anos. Pela primeira vez, Blore per­guntou-se que fim teriam levado ambas.

(O revólver. Que fim levara o revólver? Isso era muito mais importante.)

Quanto mais pensava nisso, mais intrigado ficava... Não entendia aquele assunto do revólver.

Alguém, na casa, se apoderara dele...

Lá embaixo, um relógio bateu uma pancada.

Rompeu-se o fio dos pensamentos de Blore, que sentou o corpo na cama, subitamente alerta. Tinha ouvido um ruído, um ruído muito leve, mais ou menos nas proximidades da porta do seu quarto.

Havia alguém a andar na casa às escuras.

O suor começou a porejar-lhe da testa. Quem era aquela criatura que se movia secreta e silenciosamente ao longo dos corredores? Alguém que não ia fazer nada de bom, isso ele podia apostar!

Sem fazer o menor ruído, malgrado todo o peso do seu corpo, levantou-se da cama e em duas passadas estava à porta, escutando.

Mas o ruído não se repetiu. Contudo, Blore estava con­vencido de que não se enganara. Ouvira um som de passos diante da sua porta. Os cabelos arrepiaram-se-lhe de leve. Tornou a conhecer o medo...

Alguém que se esgueirava furtivamente no meio da noite.

Ficou à escuta... mas não tornou a ouvir o ruído.

E agora uma nova tentação o assaltava. Queria, desesperadamente, sair e investigar. Se ao menos pudesse ver quem andava a rondar no escuro!

Mas abrir a porta seria coisa de idiota. Muito provavel­mente, era por isso mesmo que o outro estava esperando. Era bem possível, até, que se tivesse deixado ouvir por Blore, contando que ele saísse a investigar.

Blore escutava, com o corpo rígido... Agora ouvia ruí­dos por toda parte, estalidos, farfalhadas, misteriosos cochichos... mas o seu cérebro realista e pertinaz conhecia esses sons pelo que eram: criações de sua imaginação superexcitada.

Mas, de repente, ouviu qualquer coisa que não era imagi­nação. Passos, muito leves, muito cautelosos, mas claramente perceptíveis para um homem que, como ele, escutava com toda a sua capacidade auditiva.

Os passos avançaram de mansinho pelo corredor (tanto o quarto de Armstrong como o de Lombard estavam mais longe da escada que o seu). Passaram pela sua porta sem hesitação nem tropeço.

Diante disso, Blore resolveu-se.

Pretendia ver o que era! Os passos tinham positivamente deslizado pela sua porta, dirigindo-se para a escada. Aonde ia o sujeito?

Blore agiu com surpreendente rapidez para um homem que parecia tão vagaroso e pesado. Pé ante pé, voltou à cama, enfiou a caixa de fósforos no bolso, desligou o chicote da lâmpada de cabeceira e apanhou o suporte, enrolando o fio em torno dele. Era um braço de cromo com uma pesada base de ebonite — uma arma útil.

Atravessou silenciosamente o quarto, retirou a cadeira que calçava o trinco da porta e abriu com precaução a fecha­dura e os ferrolhos. Saiu para o corredor. Percebeu um leve ruído no hall lá embaixo e, calçado só com meias, correu sobre o tapete até o patamar da escada.

Nesse momento compreendeu por que tinha ouvido com tanta nitidez todos aqueles ruídos. O vento havia parado por completo e o céu devia estar limpo. Um luar esmaecido penetrava pela janela do patamar e iluminava o hall lá em­baixo.

Blore divisou momentaneamente um vulto que saía pela porta da frente.

Ia precipitar-se pela escada quando se deteve.

Novamente estivera a ponto de cometer uma tolice! Aquilo podia ser uma armadilha com o fim de atraí-lo para fora da casa!

Mas o que o outro homem não percebera é que, por sua vez, tinha cometido um engano, entregando-se nas mãos de Blore.

Com efeito, dos três quartos ocupados no primeiro andar, um devia estar agora vazio! Bastava verificar qual!

Blore voltou rapidamente pelo corredor.

Deteve-se primeiro diante do quarto do Dr. Armstrong e bateu à porta. Não houve resposta.

Esperou um pouco e depois foi ao quarto de Philip Lom­bard.

Ali a resposta veio imediatamente:

— Quem é?

— É Blore. Acho que Armstrong não está no quarto. Espere um instante.

Dirigiu-se para a última porta do corredor e bateu.

— Miss Claythorne! Miss Claythorne! Respondeu-lhe a voz sobressaltada de Vera:

— Quem é? Que é que há?

— Não é nada, Miss Claythorne. Espere um instante. Volto em seguida.

Correu de novo até o quarto de Lombard. Nesse momento a porta abria-se. Apareceu Lombard, trazendo na mão esquerda uma vela acesa. Tinha enfiado as calças por cima do pijama e sua mão direita estava metida no bolso deste.

— Que diabo de história é esta? — disse em tom áspero. Blore explicou rapidamente. Os olhos de Lombard ilumi­naram-se.

— Armstrong, hem? Então é ele! — Caminhou para a porta do quarto do médico. — Sinto muito, Blore, mas eu não aceito nada em confiança.

Bateu com força na porta.

— Armstrong! Armstrong! Não houve resposta.

Lombard ajoelhou-se e espiou pelo buraco da fechadura, depois inseriu cautelosamente o dedo mínimo no buraco.

— A chave não está na fechadura.

— Isso significa que ele fechou a porta por fora e levou a chave — disse Blore.

Philip anuiu com a cabeça.

— Uma precaução óbvia. Nós o apanharemos, Blore... Desta vez, nós o apanharemos! Um momentinho.

Lombard correu até a porta de Vera.

— Vera!

— Sim?

— Vamos sair em caça de Armstrong. Ele não está no quarto. Aconteça o que acontecer, não abra a porta! En­tendeu?

— Sim, entendi.

— Se Armstrong aparecer e disser que eu fui morto, ou que Blore foi morto, não preste atenção. Percebe? Só abra a porta se eu e Blore viermos juntos, está ouvindo?

— Sim — disse Vera. — Não sou completamente tola. Lombard foi ter com Blore, dizendo:

— E agora... a ele! A caçada começou!

— Convém ter cuidado — disse Blore. — Lembre-se de que ele tem um revólver.

Philip Lombard, que descia a escada a correr, riu de boca fechada.

— Aí é que você se engana. — Abriu a porta da frente, observando: — O trinco ficou puxado... a fim de que ele pudesse tornar a entrar facilmente.

E prosseguiu:

— O revólver está comigo! — Tirou-o em parte do bolso enquanto falava. — Descobri que tinham tornado a pô-lo na minha gaveta esta noite.

Blore estacou repentinamente no portal. Lombard notou que a expressão do seu rosto se demudara.

— Não seja idiota, Blore. Não vou atirar em você! Volte e torne a barricar-se no seu quarto, se quiser! Eu vou em busca de Armstrong.

Lombard saiu para o luar. Após um instante de hesitação, Blore seguiu-o, dizendo com os seus botões:

— Isto é brincar com fogo, mas afinal de contas... Afinal de contas, não era a primeira vez que lidava com criminosos armados. Fossem quais fossem os seus defeitos, Blore não carecia de coragem. Mostrassem-lhe o perigo, e ele o enfrentaria com denodo. Não temia o perigo a desco­berto — apenas o perigo indefinido e com toques de sobre­natural.

 

Vera, deixada à espera dos resultados, levantou-se e ves­tiu-se.

Uma ou duas vezes relanceou os olhos para a porta. Era uma boa e sólida porta. Estava aferrolhada, chaveada, e tinha uma cadeira de carvalho a calçar-lhe a maçaneta.

Não podia ser arrombada, e ainda menos pelo Dr. Arms­trong, que não era um homem fisicamente possante.

Se ela fosse o Dr. Armstrong resolvido a matar alguém, usaria a astúcia e não a força.

Vera entreteve-se em refletir sobre os meios que ele poderia empregar.

Podia, como Philip havia sugerido, anunciar que um dos outros dois homens fora morto. Ou, possivelmente, fingir que ele próprio estava mortalmente ferido, arrastando-se a gemer até a porta de Vera.

Havia outras possibilidades. Podia avisá-la de que a casa estava em chamas. Mais ainda, ele próprio era capaz de incendiá-la... Sim, era uma possibilidade: atrair os outros dois para fora da casa e depois atear fogo a uma trilha de gasolina previamente preparada. E ela, como uma idiota, continuaria trancada no seu quarto até que fosse tarde demais.

Vera caminhou para a janela. Nada mau. Numa emergência, poderia escapar por ali. Seria uma queda, sem dú­vida, mas havia um canteiro de jardim bem embaixo.

Sentou-se e, apanhando o seu diário, começou a escrever numa letra clara e fluente.

Era preciso passar o tempo.

De súbito, endireitou o corpo e prestou atenção. Tinha ouvido um som. Dir-se-ia o ruído de uma vidraça quebrada. E vinha do andar térreo.

Apurou o ouvido, mas o som não se repetiu.

Ouviu, ou pensou ouvir, passadas furtivas, estalidos na escada e um roçar de roupa... Nada de definido, porém; e ela concluiu, como Blore fizera antes, que esses ruídos provinham unicamente da sua imaginação.

Mas pouco depois ouviu sons de natureza mais concreta. Gente a caminhar lá embaixo, um murmúrio de vozes. A seguir, o som muito nítido de alguém a subir a escada... portas a abrir-se e a fechar-se... pés que subiam até o sótão. E mais ruídos lá em cima.

Finalmente os passos ressoaram ao longo do corredor e a voz de Lombard disse:

— Vera, você está bem?

— Sim. Que foi que aconteceu? Blore falou:

— Deixa-nos entrar?

Vera foi até a porta, retirou a cadeira, torceu a chave e correu o ferrolho. Abriu a porta. Os dois homens estavam ofegantes, com os pés e a parte inferior das calças molhados.

— Que foi que aconteceu? — tornou a perguntar ela. E Lombard:

— Armstrong desapareceu...

 

— Quê? — exclamou Vera.

— Evaporou-se completamente da ilha — disse Lombard. Blore corroborou:

— Evaporou-se... essa é a palavra. Como por um passe de mágica.

— Tolice! — fez Vera, impaciente. — Ele está escondido em alguma parte!

— Não está, não! — retrucou Blore. — Digo-lhe que não há nenhum esconderijo nesta ilha. Ê lisa como a palma da mão. Além disso, faz luar lá fora. Está claro como o dia. E não se pode encontrá-lo...

— Quem sabe ele voltou para casa? — sugeriu Vera.

— Pensamos nisso — volveu Blore. — Demos uma busca na casa também. A senhorita deve ter-nos ouvido. Ele não está aqui, garanto-lhe. Desapareceu... evaporou-se... su­miu-se!...

— Não acredito nisso — disse Vera, incrédula.

— É verdade, minha cara — contrapôs Lombard. E, depois de uma pausa:

— Há outro pequeno detalhe, ainda. Quebraram um vidro da porta da sala de jantar... e só há três negrinhos em cima da mesa.

 

Três pessoas comiam sentadas na cozinha.

Fora, brilhava o sol. O dia estava belíssimo. A tempestade era uma coisa passada.

E, com a mudança do tempo, sobreviera uma mudança na disposição de ânimo dos prisioneiros da ilha.

Sentiam-se agora como pessoas que acabam de acordar de um pesadelo. Havia perigo, sim, mas era um perigo à luz do dia. Tinha desaparecido aquela paralisante atmosfera de medo que os envolvera na véspera como uma mortalha, enquanto o vento uivava lá fora.

— Hoje tentaremos heliografar com um espelho no ponto mais alto da ilha — disse Lombard. — Algum rapaz esperto que ande a passear pelos rochedos da terra firme reconhe­cerá os sinais de SOS quando os vir, pelo menos assim espero. Depois de escurecer, poderíamos tentar uma grande fogueira... mas a lenha é pouca e, por outro lado, talvez pensem que se trata apenas de uma festa com cantos e danças.

Vera:

— Com certeza alguém entenderá os sinais Morse, e virão tirar-nos daqui. Muito antes que seja noite.

Lombard:

— É verdade que o tempo está esplêndido, mas o mar ainda não acalmou. Que ondas tremendas! Ninguém poderá encostar um barco na ilha antes de amanhã.

— Outra noite neste lugar! — exclamou Vera. Lombard deu de ombros.

— O remédio é enfrentar a situação. Vinte e quatro horas mais e isto terá fim, creio eu. Se durarmos até lá, estamos salvos.

Blore pigarreou e disse:

— É melhor tratarmos de entender bem em que pé nos encontramos. Que aconteceu a Armstrong?

— Bem, pelo menos temos um indício — volveu Lombard. — Só restam três negrinhos na mesa da sala de jantar. Pelo visto, Armstrong já não pertence a este mundo.

Vera:

— Então, por que não encontramos o cadáver? Blore:

— Sim, por quê?

Lombard abanou a cabeça e respondeu:

— É esquisitíssimo... não há como entender isso.

— Pode ter sido jogado ao mar — aventou Blore sem muita convicção.

Lombard retrucou vivamente:

— Por quem? Por você? Por mim? Você o viu sair pela porta da frente. Veio bater no meu quarto e encontrou-me lá. Saímos juntos para procurá-lo. Quando é que eu teria tempo para matar o pobre diabo e arrastar o seu corpo até a água?

— Não sei — respondeu Blore. — Mas sei uma coisa.

— Que é?

— O revólver. Ele lhe pertencia. Está em seu poder agora. Nada prova que não tenha estado sempre em seu poder.

— Ora esta, Blore! Nós todos fomos revistados.

— Sim, você o teria escondido antes disso. E depois tornou a apanhá-lo.

— Meu bom cabeça-dura, juro-lhe que ele foi reposto por alguém na minha gaveta. Tive a maior surpresa da minha vida quando o encontrei lá.

— E quer que nós acreditemos numa coisa dessas? — tornou Blore. — Por que diabo haveria Armstrong ou qual­quer outro de devolver esse revólver?

Lombard ergueu os ombros num gesto de impotência.

— Não faço a menor idéia. Isso é pura loucura. A última coisa que se podia esperar. Parece não ter nenhum sentido.

Blore concordou.

— Não, não tem. Você podia ter inventado uma história melhor.

— O que vem a ser uma prova de que estou dizendo a verdade, não é?

Blore:

— Não é assim que eu encaro a coisa. Lombard:

— Sim, isso não me admira de sua parte. Blore:

— Ouça, Sr. Lombard, se é de fato um homem honesto como pretende ser...

Philip murmurou:

— Quando foi que pretendi ser um homem honesto? Não, absolutamente, nunca disse tal coisa.

Blore prosseguiu, imperturbável:

— Se está falando a verdade... só há uma coisa a fazer. Enquanto você tiver o revólver, Miss Claythorne e eu estamos à sua mercê. A única coisa honesta a fazer é colocar o re­vólver junto com as outras coisas que estão fechadas... e nós dois continuaremos com as duas chaves.

Philip Lombard acendeu um cigarro, tirou uma baforada e disse:

— Não seja idiota.

— Não quer concordar com isso?

— De maneira nenhuma. O revólver é meu. Preciso dele para me defender, e vou ficar com ele.

— Nesse caso — disse Blore — somos forçados a uma conclusão.

— Que eu sou U. N. Owen? Pois pense lá o que quiser. Mas vou lhe fazer uma pergunta: se é assim, por que não o derrubei com um tiro ontem à noite? Tive ensejo de fazê-lo umas vinte vezes, pelo menos.

Blore abanou a cabeça.

— Não sei... francamente, não sei. Você devia ter alguma razão para isso.

Vera, que até então se limitara a escutá-los, interveio:

— Acho que estão ambos a portar-se como um par de idiotas.

Lombard virou-se para ela.

— Que história é essa?

— Esqueceram os versos. Não vêem que eles oferecem uma pista?

E recitou numa voz significativa:

— Quatro negrinhos no mar; a um tragou de vez O arenque defumado, então ficaram três.

— O arenque defumado... — continuou ela. — Eis aí a chave do enigma. Arenque defumado é sinônimo de des­piste. Armstrong não morreu... Tirou o negrinho de por­celana para fazê-los pensar que está morto. Digam o que disserem... Armstrong ainda se encontra na ilha. O seu desaparecimento é apenas um arenque defumado que colocou na pista...

Lombard sentou-se.

— Sabe de uma coisa? Você bem que pode ter razão.

— Sim — disse Blore — mas onde está ele? Passamos revista à ilha inteira, por fora e por dentro.

Vera respondeu desdenhosamente:

— Nós todos procuramos o revólver, não foi? e não pu­demos encontrá-lo. Mas durante todo esse tempo ele esteve em alguma parte.

— Há uma pequena diferença de tamanho, minha cara, entre um revólver e um homem — murmurou Lombard.

— Não importa... Tenho certeza de que estou com a razão.

Blore murmurou:

— Isso era, de certo modo, denunciar-se, não? Mencionar um arenque defumado nos versos. Ele podia ter escrito a coisa de maneira diferente.

— Mas não vê que ele é louco? — exclamou Vera. — Tudo isso é loucura! A idéia de se guiar pelos versos é louca! Fantasiar o juiz, matar Rogers quando ele cortava lenha... dar um entorpecente à Sra. Rogers para que ela caísse a dormir e não acordasse mais... arranjar uma abelha quando Miss Brent morreu... É como se uma horrível criança esti­vesse brincando de assassinato. Tudo é feito dentro dos versos.

— Sim, tem razão — disse Blore. E, depois de refletir um instante, acrescentou: — Mas, pelo menos, não há jardim  zoológico na ilha. Ele terá um pouco de trabalho para arran­jar isso.

— Então você não enxerga? — exclamou Vera. — Nós somos o Zôo... Ontem à noite, não nos portávamos mais como seres humanos. Nós somos o Zôo...

 

Passaram a manhã nos rochedos, revezando-se na trans­missão da mensagem heliográfica à terra firme.

Não havia indicação de que alguém os tivesse visto. Os sinais não receberam resposta. Fazia um belo dia, com uma ligeira bruma. Lá embaixo, o mar arfava em gigantescos vagalhões. Nenhum barco se atrevera a sair.

Tinham procedido a outra busca infrutífera na ilha. Não havia traços do médico desaparecido.

Do lugar onde agora se achavam, Vera ergueu os olhos para a casa e disse, com a voz ligeiramente embargada:

— A gente se sente mais segura aqui, ao ar livre... Não vamos mais entrar nessa casa.

— A idéia não é má — disse Lombard. — Estamos bem garantidos aqui. Ninguém pode chegar até nós sem que o vejamos com bastante antecedência.

— Ficaremos aqui — resolveu Vera.

— Temos de dormir em alguma parte — disse Blore. — E então será preciso voltar para casa.

Vera estremeceu.

— Não posso suportar isso! Não posso passar outra noite aí!

— Fechada no seu quarto, você estará em segurança — tornou Philip.

— Suponho que sim — murmurou Vera. Depois, espreguiçando-se, acrescentou: — É maravilhoso sentir o sol outra vez...

Consigo, pensava:

"Que estranho... sinto-me quase feliz. E contudo, suponho que esteja realmente em perigo... De certo modo... ago­ra... nada parece ter importância... pelo menos à luz do dia... Sinto-me cheia de força... sinto que não posso morrer..."

Blore consultou o seu relógio de pulso.

— São duas horas. E se fôssemos almoçar?

— Eu não entro nessa casa — disse Vera obstinadamente. — Vou ficar aqui, ao ar livre.

— Ora, vamos, Miss Claythorne. A gente precisa manter as forças, como sabe.

— Se eu chegar a ver uma lata de língua, vomitarei! — retrucou Vera. — Não quero comida. Há pessoas que passam dias e dias sem comer nada, quando estão de dieta.

Blore:

— Bem, mas eu preciso comer regularmente. Que diz o Sr. Lombard?

Philip:

— Não acho muito apetitosa a língua em conserva, sabe? Vou ficar aqui com Miss Claythorne.

Blore hesitou, e Vera disse:

— Não há nenhum perigo. Não acredito que ele me dê um tiro assim que você vire as costas, se é isso que está receando.

Blore:

— Se acha que não há perigo, não há perigo. Mas nós fizemos o trato de nunca nos separarmos.

Philip:

— Você é que quer ir para a toca do leão. Vou com você, se isso lhe agrada.

Blore:

— Oh! não. Você fica aqui. Philip riu.

— Ainda está com medo de mim, hem? Ora... eu podia descarregar o revólver em vocês dois agora mesmo, se qui­sesse.

— Sim, mas isso não estaria de acordo com o plano — retrucou Blore. — É um de cada vez, e tem que ser feito de determinada maneira.

— Bem — disse Philip — você parece saber tudo na ponta dos dedos.

— Naturalmente — volveu o outro — é um pouco arris­cado ir até essa casa sozinho...

Philip completou em voz macia:

— E por isso eu vou lhe emprestar o meu revólver? A resposta é não, não empresto! Não sou tão simpático assim, obrigado.

Blore deu de ombros e começou a subir o forte aclive em direção à casa.

Lombard comentou tranqüilamente:

— Hora de comer no Zôo! Os animais são muito regulares nos seus hábitos!

— Não é muito arriscado isso que ele está fazendo? — perguntou Vera com ansiedade.

— No sentido em que você o entende... não, não acho que seja! Armstrong não está armado e, de qualquer maneira, Blore é duas vezes mais forte do que ele e está vigilante. Além disso, é absolutamente impossível que Armstrong esteja na casa. Sei que ele não está lá!

— Mas... que outra solução há?

— Blore — disse Philip baixinho.

— Oh! Você pensa mesmo que...

— Escute, menina. Você ouviu o que ele disse. Se acredi­tou nisso, tem de admitir que eu não posso, de modo algum, ter nada que ver com o desaparecimento de Armstrong. A história contada por Blore me inocenta, mas não inocenta a ele! Que prova temos de que ele realmente ouviu passos e viu um homem descer a escada e sair pela porta da frente? Tudo isso pode ser mentira. É muito possível que ele tenha liquidado Armstrong um par de horas antes.

— Como?

Lombard deu de ombros.

— Isso é o que não sabemos. Mas, se quer que lhe diga, só temos um perigo a temer... e esse perigo é Blore! Que sabemos a respeito desse homem? Menos que nada! A tal conversa de ser um ex-policial pode ser pura invencionice! Sei lá quem ele é na realidade... um milionário louco... um negociante tarado... um sentenciado fugido de Bradmoor. Uma coisa é certa. Ele podia ter cometido todos esses crimes.

Vera tinha empalidecido um tanto. Foi numa voz quase sem sopro que perguntou:

— E supondo-se que eles nos... apanhe?

Lombard bateu no revólver que carregava no bolso e res­pondeu tranqüilamente:

— Tratarei de fazer com que isso não aconteça. Depois, olhando com curiosidade para a moça, acrescentou:

— Tem uma tocante fé em mim, não, Vera? Está bem certa de que não vou atirar em você?

— A gente tem de confiar em alguém... — respondeu Vera. — Mas acho que você está enganado a respeito de Blore. Ainda acredito que é Armstrong.

E, virando-se subitamente para ele:

— Você não sente... a toda hora. ,. que há alguém? Alguém a espreitar e a esperar?

Lombard respondeu vagarosamente:

— Isso não passa de nervos.

— Então você sentiu a mesma coisa? — disse Vera sofregamente.

Estremeceu e aproximou-se um pouco mais de Philip.

— Diga-me uma coisa... Não acha que... — interrom­peu-se e depois continuou: — Certa vez li uma história... sobre dois juizes que chegaram a uma cidadezinha america­na... Juizes do Supremo Tribunal. Eles faziam justiça... Justiça Absoluta. Porque... não vinham deste mundo...

Lombard ergueu as sobrancelhas.

— Visitantes celestes, hem? Não, eu não acredito no so­brenatural. Esta história é bem humana.

— Às vezes... não tenho certeza... — disse Vera em voz baixa.

Lombard olhou para ela.

— Isso é a consciência... — Após um momento de si­lêncio, disse num tom muito suave: — Então você afogou mesmo aquele garoto, não foi?

— Eu não! Eu não! — fez Vera com veemência. — Você não tem o direito de dizer isso!

Philip riu placidamente:

— Oh! sim, você o afogou, minha boa menina. Não sei como isso aconteceu. Não posso imaginar. Provavelmente havia um homem metido na história. Foi isso?

Uma repentina sensação de lassitude, de profundo cansaço espalhou-se pelos membros de Vera, que respondeu numa voz sem timbre:

— Sim... havia um homem...

— Obrigado — disse Lombard baixinho. — Era só o que eu desejava saber...

Vera endireitou bruscamente o corpo, exclamando:

— Que foi isso? Não foi um terremoto?

— Não, não. Mas é estranho... pareceu um baque que sacudiu a terra. E pensei... Você não ouviu uma espécie de grito? Eu ouvi.

Ambos olharam para a casa.

— Veio de lá — disse Lombard. — É melhor irmos ver.

— Não, não, eu não vou.

— Como você quiser. Eu vou.

— Está bem, vou com você — fez Vera, desesperada. Subiram a encosta em direção à casa. O terraço, banhado pelo sol, tinha um ar pacífico e inócuo. Hesitaram um mo­mento ali e, em vez de entrar pela porta da frente, descreve­ram um cauteloso círculo em volta da casa.

Encontraram Blore. Estava estatelado no terraço de pedra, na face leste, com a cabeça esmigalhada por um enorme bloco de mármore branco.

Philip olhou para cima e perguntou:

— De quem é essa janela?

— É a do meu quarto — disse Vera em voz baixa e trêmula. — E isso é o relógio da minha lareira. Lembro-me agora. Tinha... a forma de um urso.

Repetiu, transida de horror:

— Tinha a forma de um urso...

 

Philip segurou-lhe o ombro e, numa voz soturna e pre­mente:

— Agora temos a solução. Armstrong está escondido em alguma parte da casa. Vou agarrá-lo.

Vera aferrou-se a ele, gritando:

— Não seja tolo. Agora somos nós! Vai tocar a nossa vez! Ele quer que nós o procuremos! Está contando com isso!

Philip estacou e disse pensativamente:

— Você não deixa de ter sua razão.

— Pelo menos, agora você admite que eu tinha razão! — gritou Vera.

Lombard fez que sim com a cabeça.

— Sim... você ganhou! É Armstrong, sem a menor dúvi­da. Mas onde diabo se escondeu ele? Andamos pela casa inteira como um pente fino.

Vera replicou em tom premente:

— Se não o acharam ontem à noite, agora é que você não vai achá-lo... Isso não é lógico?

— Sim, mas... murmurou Philip, relutante.

— Ele deve ter preparado um esconderijo de antemão, naturalmente... Está claro, era o que tinha de fazer. Algum alçapão, uma dessas portas falsas como as que existem nos velhos castelos.

— Esta não é uma casa antiga desse tipo.

— Ele podia ter mandado fazer.

Philip Lombard abanou a cabeça, dizendo:

— Nós medimos tudo... naquela primeira manhã. Juro que não há nenhum espaço secreto.

— Deve haver...

— Eu gostaria de ver isso...

— Sim, você gostaria de ver! — gritou Vera. — E ele bem o sabe! Ele está lá dentro... à sua espera.

— Eu tenho isto aqui — disse Lombard, entremostrando o revólver que levava no bolso.

— Você disse que nada aconteceria a Blore, que ele era duas vezes mais forte do que Armstrong. Sim, fisicamente era; e além disso, estava vigilante. Mas o que você não parece compreender é que Armstrong está louco! E um louco tem todas as vantagens do seu lado. É duas vezes mais esperto do que qualquer pessoa no seu juízo normal.

Lombard tornou a pôr o revólver no bolso.

— Vamos, então — disse ele.

 

Por fim, Philip Lombard perguntou:

— Que é que você vai fazer quando cair a noite?

Vera não respondeu. O outro continuou em tom acusador:

— Ainda não tinha pensado nisso?

— Que é que nós podemos fazer? — respondeu a moça desamparadamente. — Oh! meu Deus, estou assustada...

Philip Lombard observou, pensativo:

— O tempo está magnífico. Haverá luar. Precisamos en­contrar um lugar... em cima dos rochedos mais altos, talvez. Podemos sentar-nos lá e esperar pela manhã. Não devemos dormir... Temos de ficar sempre vigilantes. E se alguém se aproximar de nós, eu atiro!

Fez uma pausa.

— Você sentirá frio, talvez, com essa roupa fina? Vera respondeu com um riso rouco:

— Frio? Sentiria mais frio se estivesse morta!

— Sim, isso é verdade... — disse Philip Lombard se­renamente.

Vera mexia-se, inquieta.

— Acabo enlouquecendo se continuar sentada aqui. Va­mos caminhar.

— Está bom.

Caminharam lentamente acima e abaixo, ao longo da linha de rochedos sobranceira ao mar. O sol começava a descambar para o poente. A luz era dourada e suave. Envolvia-os num esplendor de ouro.

Vera disse com um brusco risinho nervoso:

— Pena que não possamos tomar banho...

Philip olhava para o mar lá embaixo. Súbito, exclamou:

— Que é aquilo lá? Está vendo... perto do penedo grande? Não... um pouco mais para a direita.

Vera fitou os olhos na direção indicada e disse:

— Parece a roupa de alguém!

— Um banhista, hem? — Lombard riu. — Esquisito. Su­ponho que sejam apenas algas.

— Vamos ver.

— É roupa — disse Lombard quando chegaram mais perto. — Uma trouxa de roupa. Olhe, uma botina! Vamos descer por aqui.

Deixaram-se escorregar pelos rochedos abaixo. Vera deteve-se bruscamente, exclamando:

— Não são roupas... Ê um homem...

O homem boiava entre dois penedos, atirado ali pela maré algumas horas antes.

Lombard e Vera chegaram finalmente ao lugar e inclina­ram-se para ver melhor.

Uma cara roxa e disforme — uma horrenda cara de afo­gado...

— Meu Deus! — disse Lombard. — Ê Armstrong...

 

Passaram séculos... mundos deram volta às suas órbi­tas... O tempo ficou imóvel, parado... enquanto corriam os milênios...

Não, foi apenas um minuto, ou nem tanto...

Duas pessoas, sobre os rochedos, olhavam para um ho­mem morto...

Lenta, muito lentamente, Vera Claythorne e Philip Lombard ergueram a cabeça e olharam-se nos olhos...

 

Lombard riu.

— Então é isso. Vera? Vera respondeu:

— Não há ninguém nesta ilha... absolutamente nin­guém... exceto nós dois...

Sua voz era "um sussurro, nada mais.

— Precisamente — disse Lombard. — Agora sabemos onde estamos, não é verdade?

Vera perguntou:

— Como foi que funcionou... aquele truque do urso de mármore?

O outro deu de ombros.

— Um passe de mágica, minha cara... e muito bem feito...

Os olhos de ambos tornaram a encontrar-se.

Vera pensou:

"Por que nunca olhei bem para o rosto dele antes? Um lobo, é o que é — uma cara de lobo... Esses dentes hor­ríveis..."

Lombard falou — e sua voz era um rosnido perigoso, ameaçador:

— Isto é o fim, você compreende? Chegamos agora à verdade: E é o fim...

— Compreendo... — respondeu Vera serenamente.

A moça fitou o mar. O Gen. Macarthur tinha fitado o mar... Quando?... Apenas ontem? Ou fora no dia ante­rior? Ele também dissera: "Isto é o fim..."

Dissera-o com aquiescência... quase com satisfação.

Mas, em Vera, as palavras — a própria idéia — provo­caram revolta. Não, aquele não seria o fim.

Olhou para o morto, dizendo:

— Pobre Dr. Armstrong... Lombard fez um sorriso escarninho.

— Que é isso? Piedade feminina?

— Por que não? — disse Vera. — Você não tem piedade nenhuma?

— Não tenho piedade de você. Não espere por isso! Vera tornou a olhar para o cadáver.

— Precisamos tirá-lo daí, levá-lo para a casa.

— Para reuni-lo às outras vítimas, suponho? Todos bem arrumadinhos... Pela parte que me toca, ele pode ficar onde está.

— Ao menos, ponhamo-lo fora do alcance do mar — disse Vera.

Lombard riu e respondeu:

— Seja, se assim lhe agrada.

Curvou-se e puxou o cadáver. Vera inclinou-se sobre ele, ajudando-o. Puxava e arrastava com toda a força que tinha. Lombard ofegava.

— Não é um trabalho muito fácil.

Contudo, afinal conseguiram arrastar o corpo para além da linha de preamar.

— Satisfeita? — perguntou Lombard, endireitando o corpo.

— Perfeitamente.

Seu tom de voz advertiu-o. Girou sobre si mesmo. Mesmo ao bater com a mão no bolso, tinha certeza de que o encon­traria vazio.

A moça recuara um ou dois metros e fazia-lhe frente, empunhando o revólver.

— Então era essa a razão de sua solicitude feminina! — disse Lombard. — Queria roubar-me o revólver!

Ela sacudiu afirmativamente a cabeça. Segurava a arma com firmeza, sem trepidar. A morte estava agora muito próxima de Philip Lombard. Nunca, bem o sabia ele, estivera tão próxima. Contudo, ainda não estava derrotado.

— Dê-me esse revólver — disse em tom imperioso. Vera riu.

— Vamos, passe-o para cá — insistiu Lombard.

Seu cérebro trabalhava ativamente. Qual a maneira?... qual o método?... Persuadi-la, embalá-la com boas pala­vras... ou um salto rápido...

Durante toda a sua vida Lombard havia escolhido o pro­cesso mais arriscado. Escolheu-o agora.

Falou vagarosamente, como quem queria argumentar com ela:

— Olhe aqui, minha querida menina, escute o que eu vou dizer...

Então saltou — rápido como uma pantera, ou qualquer outro felino...

Automaticamente, Vera puxou o gatilho...

O corpo de Lombard estacou em pleno salto e caiu pesa­damente no chão.

Vera adiantou-se prudentemente, com o revólver pronto para um novo disparo.

Mas não havia necessidade de cautela.

Philip Lombard estava morto — com o coração varado...

 

Um sentimento de alívio apossou-se de Vera — imenso, delicioso alívio.

Finalmente, estava acabado.

Não havia mais medo, mais necessidade de esforçar-se para dominar os seus nervos...

Estava sozinha na ilha... Sozinha com nove cadáveres... Mas que importava isso? Ela estava viva... Ficou sentada ali... indizivelmente feliz... banhada numa paz inefável...

Acabara-se o medo...

 

O sol estava no ocaso quando Vera afinal se moveu. Fora imobilizada pela simples reação emocional. Não havia lugar nela para outra coisa que não fosse a maravilhosa sensação de segurança.

Percebeu, agora, que estava com fome e com sono. Prin­cipalmente com sono. Queria atirar-se na cama e dormir, dormir, dormir...

Amanhã, talvez, viriam salvá-la... mas isso, na realidade, não tinha importância. Não se importava de ficar aqui, agora que estava sozinha...

Oh! bendita, bendita paz...

Pôs-se em pé e relanceou os olhos para a casa.

Nada mais havia que recear! Acabaram-se os terrores! Apenas uma casa normal, moderna e bem construída. E con­tudo, um pouco antes, não podia olhá-la sem estremecer...

O medo... que coisa estranha era o medo!...

Bem, tudo isso havia passado agora. Ela vencera... triun­fara sobre o mais mortal dos perigos. Graças à sua sagacidade e destreza, invertera as posições e abatera o seu pretenso matador.

Começou a caminhar em direção à casa.

O sol ia mergulhando no mar e o céu, no poente, estava raiado de vermelho e cor de laranja. Era uma cena bela e pacífica...

"É como se tudo isso tivesse sido um sonho...", pen­sou Vera.

Como estava cansada... terrivelmente cansada! Doíam-lhe os membros, caíam-lhe as pálpebras. Não sentir mais medo. Dormir... dormir... dormir...

Dormir em segurança, agora que estava sozinha na ilha. Um negrinho a sós — apenas um...

Vera sorriu para si mesma.

Entrou pela porta da frente. A casa, também, estava es­tranhamente tranqüila.

Vera pensou:

"Em circunstâncias ordinárias, ninguém dormiria numa casa com um cadáver em quase todos os quartos!".

Ia à cozinha arranjar alguma coisa para comer.

Hesitou um momento e decidiu-se pelo contrário. Estava demasiado cansada...

Deteve-se à porta da sala de jantar. Ainda havia três fi­gurinhas de porcelana no centro da mesa.

Vera riu, dizendo:

— Vocês estão atrasados, meus queridos.

Apanhou dois deles e jogou-os pela porta envidraçada. Ouviu-os quebrar-se contra o terraço de pedra. Guardou na mão a terceira e última figurinha.

— Você vem comigo. Nós vencemos, meu querido! Ven­cemos!

O hall estava escuro à luz moribunda do crepúsculo.

Com o negrinho seguro na mão, Vera começou a subir a escada — vagarosamente, porque sentia de súbito um gran­de cansaço nas pernas.

Um negrinho aqui está a sós, apenas um. Como era que terminava? Ah! sim. Ele então se casou, e não ficou ne­nhum.

Casar-se... Engraçado que de repente lhe viesse de novo aquela impressão de que Hugo estava na casa...

Impressão muito nítida. Sim, Hugo estava lá em cima, à sua espera.

— Não sejas tola — disse Vera a si mesma. — Estás tão cansada que te pões a imaginar as coisas mais fantásticas...

Lentamente ia subindo os degraus...

No patamar, alguma coisa caiu da sua mão, quase sem fazer ruído nó espesso tapete. Não percebeu que deixara cair o revólver. Apenas tinha consciência de apertar entre os dedos uma figurinha de porcelana.

Como a casa estava silenciosa! E contudo... não parecia uma casa vazia...

Hugo ali em cima, à espera dela...

Um negrinho aqui, está a sós, apenas um. Como era mes­mo o último verso? Falava de casar-se... ou seria outra coisa?

Tinha chegado à porta do seu quarto. Hugo a esperava lá dentro — tinha plena certeza disso.

Abriu a porta...

Que era aquilo, a pender do gancho no teto? Uma corda com a laçada pronta? E uma cadeira para subir em cima... uma cadeira que podia ser derrubada com um pontapé...

Era aquilo o que Hugo queria...

E era isso, está claro, o que dizia o último verso:

Ele então se enforcou, e não ficou nenhum...

A figurinha de porcelana caiu-lhe da mão. Rolou despre­zada e foi quebrar-se de encontro ao guarda-fogo da lareira.

Como um autômato, Vera avançou. Este era o fim... ali, onde a mão fria e molhada (a mão de Cyril, natural­mente), lhe tocara no pescoço...

Você pode ir até o penedo, Cyril...

Eis o que era assassinar... uma coisa tão fácil!

Mas, depois, a gente não parava de recordar-se...

Subiu na cadeira com os olhos fixos na sua frente, como uma sonâmbula... Ajustou o nó em torno do pescoço.

Hugo estava ali para tratar de que ela fizesse o que tinha de fazer.

Vera deu um pontapé na cadeira...

 

Sir Thomas Legge, Chefe de Investigação Criminal da Scotland Yard, disse com irritação:

— Mas isso tudo é incrível!

O Inspetor Maine acudiu respeitosamente:

— Bem o sei, senhor. O C. I. C. continuou:

— Dez pessoas mortas numa ilha, e não há ali um só vivente. Isso não faz sentido!

— Contudo, aconteceu, senhor — observou o inspetor, imperturbável.

— Com mil diabos, Maine, alguém deve tê-los matado!

— É justamente esse o nosso problema, senhor.

— Nada de esclarecedor no laudo médico?

— Não, senhor. Wargrave e Lombard foram baleados, o primeiro na cabeça, o segundo no coração. Miss Brent e Marston morreram envenenados por cianeto. A Sra. Rogers morreu em conseqüência de uma dose excessiva de cloral. A cabeça de Blore foi esmagada. Armstrong morreu afogado. Macarthur teve o crânio fraturado por um golpe na nuca e Vera Claythorne morreu enforcada.

— Uma coisa medonha — disse o C. I. C, arrepiado. Sir Thomas refletiu um momento e prosseguiu, sempre no mesmo tom de irritação:

— Como é possível que você não tenha conseguido extrair nada de proveitoso dessa gente de Sticklehaven? Que diabo, eles devem saber de alguma coisa! O Inspetor Maine deu de ombros.

— É uma povoação de pescadores, gente comum e ho­nesta. Sabem que a ilha foi comprada por um homem cha­mado Owen... e isso é mais ou menos tudo que sabem.

— Quem abasteceu a ilha e fez todos os arranjos neces­sários?

— Um sujeito chamado Morris. Isaac Morris.

— E que diz ele a respeito de tudo isso?

— Não pode dizer nada, senhor. Morreu. Sir Thomas franziu o sobrolho.

— Sabe-se alguma coisa a respeito desse tal Morris?

— Oh! sim. Sabemos bastante, senhor. Morris não era trigo limpo. Esteve implicado naquela vigarice das ações da Bennito, três anos atrás... temos certeza disso, embora não possamos provar nada. Também andava metido no tráfico de entorpecentes, mas aí tampouco tínhamos provas positivas contra ele. Era um sujeito muito cauteloso, o Morris.

— E foi ele quem se encarregou desse negócio da ilha?

— Sim, senhor. Foi ele quem a comprou, embora dei­xando bem claro que o fazia em nome de um terceiro, não designado.

— Mas certamente se poderá descobrir alguma coisa pelo exame do lado financeiro da transação?

O Inspetor Maine sorriu.

— Bem se vê que o senhor não conheceu Morris! Fazia tais malabarismos com números que o melhor contabilista do país se via em papos de aranha para entender a sua escrita! Tivemos uma amostra disso no caso da Bennito. Não, ele soube cobrir muito bem a pista do seu mandatário.

O C. 1. C. suspirou, e Maine prosseguiu:

— Foi Morris quem fez todos os arranjos lá em Sticklehaven. Apresentou-se como um agente do "Sr. Owen". E foi ele quem explicou ao povo de lá que se pretendia realizar uma certa experiência... uma aposta a respeito de passar uma semana numa "ilha deserta"... e que não deviam dar nenhuma atenção a qualquer pedido de auxílio que viesse da ilha.

Sir Thomas Legge mexeu-se inquieto na cadeira e disse:

— Quer me dizer que essa gente não desconfiou de nada? Nem mesmo assim?

Maine deu de ombros.

— O senhor esquece que a Ilha do Negro pertencera an­teriormente ao jovem Elmer Robson, o americano. Ele dava na ilha as festas mais extraordinárias. Não duvido que a população da aldeia tivesse arregalado os olhos com as tais festas. Mas acabaram se acostumando e começaram a achar tudo que se relacionava com a Ilha do Negro seria neces­sariamente incrível. Pensando bem, senhor, é uma coisa na­tural.

Sir Thomas admitiu, carrancudo, que talvez fosse assim.

Maine continuou a sua exposição:

— Fred Narracott, o homem que transportou os convi­dados para a ilha, disse uma coisa muito esclarecedora. De­clarou ter-se admirado ao ver a espécie de gente que levava na sua lancha. "Nada que se parecesse com os convidados do Sr. Elmer Robson." Acho que foi a circunstância de se­rem os seus passageiros pessoas tão tranqüilas e tão normais que o levou a desobedecer as ordens de Morris e ir até a ilha quando ouviu falar nos sinais de S. O. S.

— Quando foi ele à ilha com os outros homens?

— Os sinais foram vistos por um grupo de escoteiros na manhã do dia 11. Nesse dia não havia possibilidade de che­gar até lá. Os homens saíram na tarde do dia 12, logo que foi possível encostar ali um barco. Todos estão certos de que ninguém podia ter saído da ilha antes de eles lá che­garem. O mar ficou muito agitado depois da tormenta.

— Alguém não poderia ter nadado até a praia?

— A ilha fica mais de uma milha da costa e as ondas quebravam-se na praia com grande violência. Além disso, ha­via lá muita gente, escoteiros e curiosos postados nos penedos a observar a ilha.

O C. I. C. suspirou e disse:

— E quanto a esse disco que você encontrou na casa? Não descobriu nada que nos pudesse ser útil?

— Estive investigando isso. O disco foi fornecido por uma firma que grava coisas para teatro e efeitos sonoros em filmes. Foi remetido ao Sr. U. N. Owen, aos cuidados de Isaac Morris, e passava por destinar-se à representação de uma peça inédita, a ser realizada por um grupo de amadores. O original datilografado foi devolvido juntamente com o disco.

— E quanto ao conteúdo? — perguntou Legge. O Inspetor Maine respondeu gravemente:

— Vou falar disso agora, senhor.

E, depois de consertar a garganta prosseguiu:

— Investiguei essas acusações tão bem quanto me foi possível. Comecei pelos Rogers, que foram os primeiros a chegar na ilha. O casal esteve a serviço de uma certa Miss Brady, que morreu repentinamente. Não consegui nada de positivo com o médico que a assistira. Diz ele que os Ro­gers certamente não a envenenaram, nem qualquer coisa de semelhante, mas pessoalmente acha o caso esquisito... sus­peita que a mulher morreu devido a negligência por parte do casal. Diz que é uma dessas coisas que não se pode provar.

"Vem depois o Juiz Wargrave. Seu caso está perfeitamente esclarecido. Foi ele o magistrado que condenou Seton.

“Seton, diga-se de passagem, era culpado — insofismavelmente culpado. Novos elementos surgidos mais tarde, depois que ele foi enforcado, provam cabalmente a sua culpa. Mas houve muitos comentários na ocasião... Nove pessoas em dez julgavam Seton inocente e achavam que o sumário do juiz tinha sido feroz.”

"Quanto à moça, Claythorne, descobri que foi governanta de uma família onde ocorreu uma morte por afogamento. Contudo, ela não parece ter tido nada que ver com isso, pois até se portou muito bem, nadando para salvar a criança, e ela própria foi arrastada pela correnteza e teve que ser salva por outros quando já não podia mais consigo."

— Adiante — fez o C. I. C. com um suspiro. Maine respirou fundo.

— Agora, o Dr. Armstrong. Homem muito conhecido. Tinha um consultório em Harley Street. Absolutamente ho­nesto e impecável no exercício da sua profissão. Não há ne­nhuma notícia de operações ilícitas ou qualquer coisa desse gênero. É certo que houve uma mulher chamada Clees, que foi operada por ele em 1925, em Leithmore, quando Arms­trong estava adido ao hospital da localidade. Peritonite. Mor­reu na mesa de operação. Talvez ele tenha sido um pouco inábil... Ainda era novato... mas, afinal de contas, inabi­lidade não constitui crime. E, positivamente, não havia mo­tivo para homicídio.

"Depois, temos Miss Emily Brent. A rapariga, Beatrice Taylor, era sua empregada. Ficou grávida, foi posta na rua pela patroa e afogou-se. Não é uma história muito bonita, mas também não se pode qualificar de crime."

— Aí parece estar a chave da coisa — disse Sir Thomas. — U. N. Owen escolheu casos que a lei não podia alcançar.

O Inspetor Maine continuou impassivelmente com a sua lista:

— O Jovem Marston era um motorista com a mania da velocidade. Teve sua licença suspensa por duas vezes e, na minha opinião, deviam tê-la cassado definitivamente. Isso é tudo que há a seu respeito. John e Lucy Combes são os no­mes de um casal de garotos que ele atropelou e matou perto de Cambridge. Alguns amigos depuseram a seu favor e o rapaz foi posto em liberdade mediante o pagamento de uma multa.

"Não pude averiguar nada de definido a respeito do Gen. Macarthur. Boa folha de serviço... esteve na guerra, e o mais que segue. Arthur Richmond servia sob as suas ordens na França, e foi morto em ação. Não houvera qualquer atrito entre ele o general. Eram, aliás, amigos íntimos. Foram come­tidos alguns erros nessa época... oficiais comandantes sacri­ficaram os seus homens sem necessidade... possivelmente tratou-se de um erro dessa natureza."

— Possivelmente — disse o C. I. C.

— Agora vejamos Philip Lombard. Lombard estivera me­tido em coisas muito complicadas no estrangeiro. Por uma ou duas vezes andou muito perto de cair nas malhas da lei. Tinha fama de arrojado e pouco escrupuloso. O tipo do sujeito capaz de cometer várias mortes em algum lugar afastado.

"Chegamos finalmente a Blore. — Maine hesitou. — Ele era um dos nossos, naturalmente." O outro mexeu-se na cadeira.

— Blore não era boa coisa!

— Acha, senhor?

— Sempre achei — respondeu Legge. — Mas era bas­tante esperto para fazer das suas e escapar impune. É minha opinião que, no caso Landor, o seu testemunho foi deliberadamente falso. Isso me causou grande mal-estar na ocasião, mas não pude encontrar provas. Encarreguei Harris de in­vestigar o assunto, e também ele não conseguiu descobrir nada. Mas ainda sou de opinião que havia alguma coisa a descobrir se tivéssemos procedido com acerto. Esse homem não era honesto.

Sir Thomas fez uma pausa, depois perguntou:

— E Isaac Morris, morreu, diz você? Quando foi isso?

— Já esperava por esta pergunta, senhor. Isaac Morris morreu na noite de 8 de agosto. Tomou uma dose excessiva de remédio para dormir — um barbiturato, segundo estou informado. Não foi possível determinar se era caso de sui­cídio ou acidente.

Legge disse devagar:

— Quer saber o que eu penso, Maine?

— Creio que posso adivinhar, senhor.

— A morte de Harris é demasiado oportuna! — declarou Legge pesadamente.

O Inspetor Maine aprovou com a cabeça.

— Esperava que o senhor dissesse isso.

O C. I. C. deu uma punhada na mesa, bradando:

— Toda essa história é fantástica, impossível! Dez pes­soas assassinadas numa ilha que não passa de um rochedo nu... e nós não sabemos por quem, nem por quê, nem como.

Maine tossiu.

— Bem, não é exatamente assim, senhor. Sabemos mais ou menos por quê. Algum fanático com a mania de fazer jus­tiça. Seu plano era justiçar pessoas que houvessem escapado à ação da lei. Escolheu dez indivíduos... se eram ou não eram realmente culpados, isso não interessa...

Sir Thomas agitou-se na cadeira e disse vivamente:

— Não interessa? Parece-me que...

Não terminou a frase. Maine aguardava respeitosamente. Legge suspirou e abanou a cabeça.

— Continue. Por um instante me pareceu que havia per­cebido alguma coisa. Que encontrara, por assim dizer, a chave do enigma. Mas escapou-me. Continue com o que estava di­zendo.

Maine prosseguiu:

— Havia dez pessoas para serem... executadas, digamos. U. N. Owen cumpriu a sua tarefa. Depois, não sei como, de­sapareceu no ar como um fantasma.

— Um incomparável passe de mágica — disse o C. I. C. — Mas, como sabe, Maine, tem de haver uma explicação.

— O senhor está pensando que, se o homem não se acha­va na ilha, não podia ter deixado a ilha; e, de acordo com o relato das partes interessadas, ele nunca esteve na ilha. Bem, então a única explicação é que ele era uma das dez pessoas.

O C. I. C. assentiu com um gesto de cabeça.

— Pensamos nisso, senhor — disse Maine gravemente. — Examinamos essa possibilidade. Para começar, não es­tamos completamente às escuras sobre o que aconteceu na Ilha do Negro. Vera Claythorne escrevia um diário. Emily Brent também. O velho Wargrave tomou algumas notas — em linguagem forense, seca, hermética, mas suficientemente clara. E há também notas de Blore. Todos esses relatos com­binam. As mortes ocorreram na seguinte ordem: Marston, a Sra. Rogers, Macarthur, Rogers, Miss Brent, Wargrave. Depois da morte deste, o diário de Vera Claythorne registra que Armstrong saiu da casa durante a noite e que Lombard e Blore foram atrás dele. Blore fez mais um apontamento no seu livrinho de bolso, apenas duas palavras: "Armstrong de­sapareceu."

"Pois bem, senhor: pareceu-me que, levando-se tudo em conta, podíamos ter aqui uma solução perfeitamente boa. Armstrong morreu afogado, lembre-se. Admitindo-se que Armstrong estava louco, que é que o impedia de matar todos os outros e depois se suicidar atirando-se do alto do rochedo, ou talvez afogar-se enquanto procurava alcançar a costa a nado?

"Essa seria uma boa solução... mas não dá certo. Não, senhor, não dá certo. Em primeiro lugar, há o laudo do mé­dico legista. Chegou à ilha na manhã de 13 de agosto e não pôde dizer muita coisa que nos ajudasse. Tudo que pôde di­zer foi que as dez pessoas tinham morrido havia pelo menos trinta e seis horas, talvez bastante mais. Mas foi muito po­sitivo a respeito de Armstrong. Disse que o corpo do médico devia ter permanecido de oito a dez horas dentro d'água antes de ser lançado à costa da ilha. Daí se deduz que Arms­trong deve ter-se afogado durante a noite de 10 para 11 de agosto, e vou explicar por quê. Localizamos o ponto em que o corpo veio dar à costa: tinha ficado entalado entre duas rochas, nas quais se viam fragmentos de roupa, fios de cabelo etc. O corpo deve ter sido depositado ali durante a maré alta do dia 11 — isto é, mais ou menos pelas onze horas da manhã. Depois disso a tormenta diminuiu, e as posteriores linhas de preamar são consideravelmente mais baixas.

"O senhor poderia dizer, suponho, que Armstrong conse­guiu dar cabo dos outros três antes de nessa noite entrar no mar. Mas há um detalhe que não se pode passar por alto. O corpo de Armstrong foi arrastado acima da linha de preamar. Encontramo-lo fora do alcance de qualquer maré. E estava corretamente estendido no chão, muito bem arranjadinho.”

"Dessa maneira, um ponto fica definitivamente estabele­cido. Alguém estava vivo na ilha depois que Armstrong mor­reu."

O inspetor fez uma pausa e continuou:

— E isso nos deixa com... o quê, exatamente! Eis aqui a situação na ilha pela manhã do dia 11: Armstrong "de­sapareceu" (afogado). Restam-nos três pessoas: Lombard, Blore e Vera Claythorne. Lombard foi morto à bala. Seu corpo estava à beira-mar, próximo ao cadáver de Armstrong. Vera Claythorne foi encontrada enforcada no seu quarto. O corpo de Blore estava no terraço, com a cabeça esmagada por um pesado bloco de mármore que é razoável supor ti­vesse caído da janela que ficava acima.

— Que janela? — perguntou vivamente o C. I. C.

— A do quarto de Vera Claythorne. Agora, senhor, exa­minemos separadamente cada um desses casos. Primeiro, Philip Lombard. Digamos que foi ele quem deixou cair o bloco de mármore na cabeça de Blore, depois deu alguma droga a Vera Claythorne e enforcou-a. Finalmente, desceu até a beira do mar e matou-se com um tiro no coração. Mas, nesse caso, quem levou o revólver dali? Porque o revólver foi encontrado dentro da casa, num quarto do andar superior — o quarto de Wargrave — bem junto da porta.

— Tinha impressões digitais? — perguntou o C. I. C.

— Sim, senhor, as de Vera Claythorne.

— Mas, homem de Deus, então...

— Já sei o que quer dizer: que foi Vera Claythorne. Que ela matou Lombard, levou o revólver consigo para dentro, derrubou o bloco de mármore sobre a cabeça de Blore e de­pois... enforcou-se.

"E isso é muito plausível... até certo ponto. No quarto dela havia uma cadeira em cujo assento, assim como nos sapatos da moça, foram observadas marcas de algas. Parece que ela subiu nessa cadeira, enfiou o laço de corda no pes­coço e depois derrubou a cadeira.

"Mas acontece que a cadeira não foi encontrada caída no chão. Estava, como todas as outras cadeiras, corretamente colocada contra a parede. Isso foi feito depois da morte de Vera Claythorne... por alguma outra pessoa.”

"Resta, pois, Blore; e, se o senhor me disser que, após ter morto Lombard e induzido Vera Claythorne a enforcar-se, ele saiu para o terraço e derrubou sobre si mesmo um pe­sado bloco de mármore atado a uma corda ou coisa pareci­da... bem, eu simplesmente não acreditarei. Ninguém se suicida desse modo... e, o que mais é, Blore não era esse tipo de homem. Nós o conhecíamos bem... não era um ho­mem a quem jamais se pudesse acusar de ter a mania da jus­tiça abstrata.

— De acordo — disse o C. I. C.

— Por conseguinte, senhor, devia haver alguém mais na ilha. Alguém que pôs tudo em ordem depois que o negócio estava terminado. Mas onde estava ele durante todo esse tempo? E para onde foi? Os habitantes de Sticklehaven estão absolutamente certos de que ninguém podia ter deixado a ilha antes da chegada do barco de salvamento. Mas, nesse caso...

Maine deteve-se.

— Nesse caso... — disse Sir Thomas. Suspirou, aba­nou a cabeça e inclinou-se para a frente. — Mas, nesse caso, quem os matou?

 

Documento manuscrito remetido à Scotland Yard pelo mestre da traineira "Emma Jane"

 

Desde verdes anos percebi que minha natureza era um aglomerado de contradições. Tenho, para começar, uma ima­ginação incuravelmente romântica. O costume de jogar ao mar uma garrafa contendo algum documento importante foi dos que nunca deixaram de me fazer vibrar quando, em criança, lia histórias de aventuras. Ainda me faz vibrar — e é por isso que adoto agora esta linha de conduta: escrever minha confissão, encerrá-la numa garrafa, lacrar esta última e lançá-la às ondas. Há, penso eu, uma probabilidade entre cem de que minha confissão seja encontrada — e então (ou estarei a gabar-me?) um mistério até agora sem solução será finalmente esclarecido.

Nasci com outras características além de minha fantasia romântica. Sinto um prazer positivamente sádico em presen­ciar ou em causar a morte. Lembro-me de meus experimentos com besouros — com várias pragas de jardim... Desde pequeno conheci a extraordinária volúpia de matar.

Mas, ao lado desse, há um traço contraditório — um acen­tuado sentimento de justiça. Horroriza-me o fato de que uma pessoa ou um animal inocente possa sofrer ou morrer em conseqüência de um ato meu. Sempre tive a forte convicção de que a justiça deve prevalecer.

Entende-se — creio que um psicólogo entenderá — que com semelhante formação mental eu tenha adotado a profis­são jurídica. Essa profissão satisfazia quase todos os meus instintos.

O crime e o castigo sempre me fascinaram. Deleito-me com a leitura de toda espécie de história detetivesca ou de aventuras. Ideei, para minha satisfação particular, as mais engenhosas maneiras de executar um assassinato.

Quando, no devido tempo, cheguei a presidir um tribu­nal, esse meu outro instinto secreto teve campo para desen­volver-se. Ver um miserável criminoso estorcer-se no banco. dos réus, sofrendo as torturas dos malditos, enquanto a sua hora se aproximava cada vez mais, era para mim um prazer indescritível. Note-se que eu não experimentava prazer em ver ali um homem inocente. Em duas ocasiões, pelo menos, encerrei processos em que a inocência do réu era palpável, fazendo ver ao júri esse fato. Graças, entretanto, à probidade e eficiência de nossa força policial, a maioria dos réus que condenei por homicídio eram realmente culpados.

Direi aqui que esse foi o caso de Edward Seton. Sua ati­tude e maneiras eram enganosas, e ele produziu boa impres­são no júri. Mas não apenas as provas, que eram claras sem serem espetaculares, como também o meu conhecimento dos criminosos em geral, mostraram-me sem qualquer sombra de dúvida que o homem tinha efetivamente cometido o crime que lhe era imputado, o brutal assassínio de uma mulher idosa que depositara confiança nele.

Tenho fama de ser um juiz verdugo, mas isso é injusto. Sempre procedi de modo estritamente justo e escrupuloso ao fazer o sumário de um processo.

Tudo quanto fazia era proteger o conselho de sentença contra o efeito emocional dos apelos comoventes feitos por alguns de nossos advogados mais emotivos. Exortava-os sem­pre a concentrar sua atenção nas provas dos autos.

Desde há alguns anos percebi que uma mudança se ope­rava dentro de mim — um afrouxamento de controle, um desejo de agir em vez de julgar.

O que eu queria, em suma, era cometer eu próprio um as­sassinato. Reconheci nesse fenômeno o desejo de auto-expressão do artista! Eu era, ou podia ser, um artista no crime! Minha imaginação, severamente controlada pelas exigências de minha profissão, ia armazenando secretamente uma força colossal.

Eu precisava... precisava... precisava cometer um cri­me! E, o que é mais, não devia ser um crime comum! Devia ser um crime fantástico — algo de estupendo e sem prece­dentes! A esse respeito, creio que ainda tenho uma imagina­ção de adolescente.

Desejava qualquer coisa de teatral, impossível!

Queria matar... Sim, queria matar...

Mas — por incongruente que isso possa parecer a alguns — era tolhido pelo meu sentimento inato de justiça. Os ino­centes não deviam sofrer.

Então, subitamente, veio-me a idéia — despertada por uma observação fortuita ouvida em palestra. Estava conver­sando com um médico — algum clínico geral, comum e obs­curo — e ele mencionou casualmente que devia ser grande o número de crimes de morte que escapavam à alçada da lei.

E, como exemplo, meu interlocutor citou um caso par­ticular: o de uma velha senhora, sua cliente, falecida há pou­co. Disse estar convencido de que sua morte se devera à su­pressão de uma droga revigorante por certo casal que se achava a serviço da referida senhora e que receberia um legado considerável por sua morte. Era uma coisa, explicou-me ele, que não havia nenhum jeito de provar, e contudo ti­nha plena certeza de que assim fora. E acrescentou que eram comuns os casos desse gênero — casos de homicídio pre­meditado, completamente inacessíveis à lei.

Isso foi o princípio de tudo. De repente, vi com toda a clareza o caminho a seguir. E resolvi cometer, não apenas um assassinato, mas um assassinato em grande escala.

Vieram-me à memória uns versos de minha infância — a conhecida história dos dez negrinhos. Esses versos me ha­viam fascinado quando eu era um pimpolho de dois anos... a inexorável diminuição do número... o sentimento de inevitabilidade.

Comecei, secretamente, a recrutar vítimas.

Não tomarei espaço entrando em pormenores sobre como tal coisa foi posta em prática. Adotei uma certa linha habi­tual de conversação, que empregava com quase todas as pessoas com quem falava — e os resultados que obtive fo­ram em verdade surpreendentes. Durante o tempo que passei numa casa de saúde, inteirei-me do caso do Dr. Armstrong: uma freira apaixonadamente anti-alcoólica que me assistia, ansiosa por provar os males causados pela bebida, contou-me um fato ocorrido num hospital havia muitos anos, quan­do um médico, sob a influência do álcool, matara uma pa­ciente de cirurgia. Uma pergunta descuidada sobre o hospital em que havia trabalhado a irmã em apreço etc., não tardou a fornecer-me os dados necessários. Descobri sem dificulda­des quem era o médico mencionado e quem a paciente.

Uma palestra entre dois velhos militares do meu clube pôs-me no rastro do Gen. Macarthur. Um homem recém-vindo do Amazonas fez-me um resumo devastador das ati­vidades de um certo Philip Lombard. A indignada esposa de um funcionário consular britânico em Maiorca relatou-me a história da puritana Emily Brent e de sua infeliz criada. Anthony Marston foi por mim escolhido entre um grande número de pessoas que haviam cometido crimes semelhan­tes. Seu coração empedernido e sua completa irresponsabili­dade como motorista faziam dele, segundo pensei, um tipo perigoso para a comunidade e indigno de viver. O ex-Ins­petor Blore apresentou-se, por assim dizer, naturalmente. Al­guns colegas meus, discutindo o caso Landor com liberdade e vigor, levaram-me a encarar com seriedade o seu crime. O policial, como servo da lei, deve ser absolutamente íntegro, pois sua palavra é forçosamente acreditada em virtude da sua profissão.

Finalmente, tive conhecimento do caso de Vera Claythorne. Foi quando eu atravessava o Atlântico. Certa noite, a uma hora tardia, os únicos ocupantes do salão de fumar éramos eu e um moço de boa aparência, chamado Hugo Hamilton.

Hugo Hamilton sentia-se muito infeliz e, para aliviar suas mágoas, havia ingerido considerável quantidade de bebida. Estava na fase sentimental das confidencias alcoólicas. Sem grande esperança de alcançar algum resultado, entabulei au­tomaticamente a minha conversa de sempre. A reação foi surpreendente. Ainda hoje guardo a memória exata de suas palavras.

— O senhor tem razão — disse ele. — Um assassinato não é o que muita gente pensa: dar a alguém um punhado de arsênico, empurrá-lo do alto de um rochedo ou coisa parecida. — Inclinou-se para a frente, chegando o rosto ao meu, e continuou: — Conheci uma assassina... sim, senhor, conheci! E, o que é mais, estava apaixonado por ela... Deus me perdoe, às vezes penso que ainda estou... É um infer­no, digo-lhe eu... um inferno! Acontece que ela matou mais ou menos por minha causa... E eu na mais completa igno­rância do que se passava na sua cabeça... As mulheres são demônios... perfeitos demônios... Quem pensaria que uma moça como aquela... uma moça linda, alegre, direita... quem pensaria que ela fosse capaz de tal coisa? O senhor pensaria? Que ela levasse um garoto para o mar e o deixasse afogar-se... O senhor pensaria que uma mulher era capaz de tanto?

— Está certo de que ela fez isso? — perguntei.

O rapaz respondeu — e, enquanto falava, pareceu passar-lhe subitamente a embriaguez:

— Tão certo como de que dois e dois são quatro. Nin­guém jamais desconfiou disso, mas eu adivinhei logo que pus os olhos nela... depois, quando voltei... E ela viu que eu sabia... O que não tinha percebido era que eu queria muito bem àquele garoto...

Não disse mais. Todavia, foi-me bastante fácil encontrar a pista e reconstruir a história.

Eu precisava de uma décima vítima. Encontrei-a num ho­mem chamado Morris. Era um sujeitinho tenebroso. Entre outras coisas, traficava com entorpecentes e era responsável pelo vício da filha de uns amigos meus, que acabou por sui­cidar-se aos vinte e um anos.

Durante todo esse tempo de busca o meu plano viera ama­durecendo gradualmente. Estava agora completo, e o remate foi dado por uma entrevista que tive com um médico de Harley Street. Já mencionei que havia sofrido uma operação. A consulta em Harley Street revelou-me que uma segunda operação seria inútil. O meu médico soube dourar muito bem a pílula, mas estou acostumado a descobrir a verdade que se oculta por baixo de uma declaração.

Não disse ao médico o que havia decidido: que não teria uma morte lenta e arrastada como fazia prever a natureza da enfermidade. Não, minha morte havia de ocorrer em meio a um fulgor de excitação. Eu viveria antes de morrer.

Passemos agora ao mecanismo do crime da Ilha do Ne­gro. Foi-me bastante fácil adquirir a ilha, encobrindo-me sob o nome de Morris. Ele era um técnico nessa espécie de coi­sas. Catalogando as informações que reunira sobre minhas futuras vítimas, pude arranjar uma isca apropriada para ca­da uma delas. Nenhum de meus planos fracassou. Todos os meus convidados chegaram à Ilha do Negro no dia 8 de agos­to. Eu estava entre eles.

Já havia tomado minhas disposições quanto a Morris. O homem sofria de indigestão. Antes de deixar Londres, dei-lhe uma cápsula para tomar ao deitar-se, cápsula essa que, segundo lhe disse, havia produzido efeitos maravilhosos so­bre o meu suco gástrico. Ele aceitou sem hesitar — era um tanto hipocondríaco. Eu não tinha o menor receio de que ele deixasse notas ou documentos comprometedores. Isso não era do seu feitio.

A ordem das mortes na ilha fora objeto de um estudo especialmente cuidadoso. Levei em conta que, entre os meus hóspedes, havia diferentes graus de culpa. Os menos culpa­dos seriam os primeiros a morrer e não sofreriam a prolon­gada tensão mental e o medo reservados aos criminosos mais frios.

Anthony Marston e a Sra. Rogers morreram na mesma noite do dia 8, um instantaneamente, a outra durante um sono tranqüilo. Eu reconhecia que Marston era um indivíduo nascido sem o sentimento de responsabilidade moral que a maioria de nós possui. Era amoral — pagão. Quanto à Sra. Rogers, não tinha dúvida de que procedera em grande parte sob a influência do marido.

Não é preciso descrever em pormenores como morreram esses dois. A polícia não deve ter tido trabalho em averiguá-lo. O cianeto de potássio é facilmente adquirido pelas donas de casa para matar vespas. Eu tinha uma certa quantidade em meu poder, e não tive dificuldade em pô-lo no copo va­zio de Marston, em meio à confusão geral causada pela recitação fonográfica.

Posso dizer que observei atentamente as fisionomias de meus convidados durante a denúncia e que não tive a menor dúvida, graças à minha longa experiência no foro, de que todos eram culpados.

Por ocasião de recentes crises de dores fora-me receitado um soporífero — hidrato de cloral. A cada repetição da re­ceita pusera de parte dois ou três comprimidos, até acumular uma dose mortal. Quando Rogers trouxe um pouco de co­nhaque para a sua mulher, depôs o copo em cima de uma mesa, e ao passar por essa mesa deitei a droga no conhaque. Foi fácil porque, naquela ocasião, ninguém suspeitava ainda de nada.

O Gen. Macarthur teve uma morte indolor. Foi preciso, naturalmente, escolher com muito cuidado o momento de deixar o terraço, mas tudo correu às mil maravilhas.

Conforme eu tinha previsto, deu-se busca à ilha e desco­briu-se que nela não havia ninguém a não sermos nós sete. Isso criou imediatamente uma atmosfera de suspeita. De acordo com o meu plano, eu iria precisar dentro em pouco de um aliado. Escolhi o Dr. Armstrong para esse papel. Era um homem crédulo, conhecia-me de vista e de reputação, e jamais poderia conceber que um homem de minha posição fosse um assassino! Todas as suas suspeitas se concentravam em Lombard, e eu fingia concordar com ele. Dei-lhe a en­tender que tinha um plano graças ao qual seria talvez possí­vel apanhar o assassino, levando-o a incriminar-se por si próprio.

Embora tivessem sido revistados todos os quartos, nenhu­ma busca fora ainda feita em nossas pessoas. Mas isso não tardaria a acontecer.

Matei Rogers na manhã de 10 de agosto. Ele estava ti­rando lascas de lenha para acender o fogo e não ouviu os meus passos. Encontrei a chave da sala de jantar no seu bolso, pois ele a tinha fechado na noite anterior.

Na confusão que se seguiu ao descobrimento do corpo de Rogers, penetrei no quarto de Lombard e apoderei-me do seu revólver. Sabia que ele estaria armado: eu mesmo dera instruções a Morris para que lhe sugerisse essa precaução ao entrevistar-se com ele.

Enquanto tomávamos café, deitei minha última dose de cloral na segunda xícara que servi a Miss Brent. Deixamo-la na sala de jantar. Penetrei ali um pouco mais tarde — en­contrei-a quase inconsciente e foi fácil injetar-lhe uma forte solução de cianeto. A história da abelha foi, realmente, um tanto infantil... Mas, sabem? de certo modo isso me cau­sava prazer. Agradava-me aderir tanto quanto possível ao texto dos versos.

Imediatamente após, aconteceu o que eu já tinha previs­to... creio, mesmo, que a sugestão partiu de mim. Todos nos submetemos a uma busca rigorosa. Já havia escondido o revólver em lugar seguro e não tinha mais cianeto nem cloral em meu poder.

Avisei então a Armstrong que chegara o momento de pôr em prática o nosso plano. Em resumo, tratava-se do seguin­te: eu aparentaria ser a próxima vítima. Isso talvez pusesse o assassino fora dos eixos, levando-o a denunciar-se... mas, de qualquer forma, depois de passar por morto eu poderia andar pela casa e espreitar os passos do assassino desco­nhecido.

Armstrong aceitou pressurosamente a idéia. Executamo-la nessa mesma tarde. Um pequeno emplastro de barro verme­lho na testa, a cortina escarlate e a lã, e estava armada a cena. A luz das velas era muito vacilante e incerta, e a única pessoa que me examinaria de perto seria Armstrong.

O êxito foi completo. Miss Claythorne quase deitou a casa abaixo com os seus gritos quando foi roçada pela alga, que eu previdentemente havia pendurado no seu quarto. Todos se precipitaram escada acima e eu assumi a minha pose de assassinado.

Quando me encontraram, o efeito foi além dos meus de­sejos. Armstrong desempenhou a sua parte como perfeito profissional que era. Levaram-me para cima e deitaram-me na minha cama. Ninguém se preocupou comigo, pois todos estavam apavorados, com medo uns dos outros.

Tinha marcado um encontro com Armstrong fora da casa, às duas menos um quarto. Conduzi-o para a beira do roche­do, nos fundos, dizendo que dali podíamos ver se alguém se aproximava de nós e que não poderíamos ser avistados da casa, porquanto os dormitórios davam para o outro lado. Ele ainda não alimentava a menor suspeita — e contudo de­via estar prevenido, se tivesse presentes as palavras da his­torieta infantil: "a um tragou de vez o arenque defumado..." Armstrong caiu na armadilha como um patinho.

Foi facílimo. Soltei uma exclamação e inclinei-me sobre a beira do rochedo dizendo-lhe que olhasse lá embaixo: aqui­lo não era a entrada de uma caverna? Ele se inclinou para olhar. Um rápido e vigoroso empurrão fê-lo perder o equilí­brio e cair no mar, que estrugia lá embaixo. Voltei para a casa. Deve ter sido dos meus passos o ruído que Blore ou­viu. Poucos minutos depois de ter voltado ao quarto de Arms­trong tornei a sair, desta vez fazendo um pouco de ruído a fim de que alguém me ouvisse. Quando acabei de descer a escada ouvi abrir-se uma porta. Eles devem ter entrevisto o meu vulto quando saía pela porta da frente.

Decorreram alguns momentos antes que viessem no meu encalço. Dobrei simplesmente a esquina da casa e tornei a entrar pela porta envidraçada da sala de jantar, que deixara aberta. Fechei-a e em seguida quebrei o vidro. Subi então a escada e estendi-me de novo na minha cama.

Calculei que eles tornassem a revistar a casa, mas não acreditava que examinassem com atenção qualquer dos ca­dáveres. Quando muito, afastariam o lençol para certificar-se de que não era Armstrong fingindo-se de morto. Foi isso exatamente o que ocorreu.

Esquecia-me de dizer que havia devolvido o revólver ao seu lugar, no quarto de Lombard. Talvez interesse a alguém saber onde escondi a arma durante a busca. Havia uma grande pilha de latas de conserva na despensa. Abri a lata que ficava mais embaixo — continha biscoitos, se não me engano — coloquei nela o revólver e repus a fita adesiva que a fechava.

Calculei, com acerto, que ninguém pensaria em procurar a arma numa pilha de latas aparentemente intatas, mormen­te quando as latas de cima eram todas soldadas.

Quanto à cortina vermelha, eu a escondera no assento de uma das poltronas do salão, embaixo do forro de chintz, e a lã numa almofada, após abrir nesta um pequeno buraco.

Chegou então o momento que eu tinha previsto: três pes­soas tão assustadas umas das outras que tudo podia acontecer — e uma delas tinha um revólver. Fiquei a observá-las das janelas da casa. Quando Blore se aproximou sozinho, já eu estava com o grande bloco de mármore preparado. Fim para Blore...

Da minha janela, vi Vera Claythorne matar Lombard.

Uma moça ousada e expedita. Sempre achei que seria uma adversária digna dele. Assim que a coisa aconteceu, fui pre­parar o palco no seu quarto de dormir.

Era um interessante experimento psicológico. A consciên­cia de sua culpa, o estado de tensão nervosa natural numa moça que acaba de matar um homem, mais a sugestão hip­nótica do ambiente, bastariam para levá-la a suicidar-se? Parecia-me que sim. E tinha razão. Vera Claythorne enfor­cou-se diante de meus olhos, oculto como estava à sombra do guarda-roupa.

E agora chegamos à fase derradeira. Adiantei-me, apa­nhei a cadeira do chão e coloquei-a em pé junto à parede. Procurei o revólver e encontrei-o no alto da escada, onde a moça o deixara cair. Tive o cuidado de conservar na arma as suas impressões digitais.

E agora?

Vou terminar de escrever isto. Introduzirei estas folhas de papel numa garrafa, que vedarei com lacre e lançarei ao mar.

Por quê?

Sim, por quê?

Foi minha ambição inventar um crime misterioso que nin­guém pudesse resolver. Mas nenhum artista, percebo-o ago­ra, pode satisfazer-se apenas com a arte. Há um anseio na­tural e incontestável pela atenção pública.

Tenho — confesso-o com toda a humildade — um la­mentável desejo humano de que alguém venha a saber o quanto fui hábil e inteligente...

Até aqui, presumi que o mistério da Ilha do Negro per­maneceria insolúvel. Pode acontecer, naturalmente, que a polícia seja mais sagaz do que suponho. Existem, em suma, três pistas. Pista número um: a polícia sabe perfeitamente que Edward Seton era culpado. Sabe, por conseguinte, que uma das pessoas na ilha não era um assassino em qualquer acepção da palavra, donde se segue este aparente paradoxo: a pessoa em questão devia logicamente ser o assassino.

A segunda pista está no sétimo dístico da historieta in­fantil. A morte de Armstrong é relacionada com um "arenque defumado", que ele engoliu — ou melhor, que acabou por engoli-lo! Está claramente indicada uma mistificação nes­sa altura dos acontecimentos — e que Armstrong se deixou enganar, morrendo em conseqüência disso. Ter-se-ia aí uma promissora linha de investigação, pois nesse momento res­tam apenas quatro pessoas na ilha, e dessas quatro sou eu, evidentemente, a única em que ele teria depositado confiança.

A terceira pista é simbólica: a maneira de minha morte, a marcar-me na testa. O estigma de Caim.

Pouco mais há que dizer, creio eu.

Depois de confiar a garrafa e sua mensagem ao mar, vol­tarei para o meu quarto e me deitarei na cama. Ao meu pince-nez está preso o que parece ser um cordão de seda preta, mas na realidade é um fio elástico. Descansarei o peso de meu corpo sobre o pince-nez e passarei o cordel em torno da maçaneta da porta ao lado, amarrando-o, não muito solidamente, ao revólver. Eis o que acontecerá, segundo penso:

Minha mão, envolta num lenço, apertará o gatilho. Mi­nha mão cairá para um lado. O revólver, puxado pelo elás­tico, recuará até a porta e, batendo de encontro à maçaneta, desprender-se-á do elástico e cairá. O elástico, solto, voltará ao seu lugar natural e ficará inocentemente pendurado no pince-nez sobre o qual repousa o peso do meu corpo. Um lenço caído no assoalho não provocará nenhum comentário.

Encontrar-me-ão corretamente estendido na minha cama, morto por um tiro na testa segundo foi registrado pelas ou­tras vítimas. Quando nossos corpos forem examinados, já não será possível determinar com exatidão a hora da morte de cada um.

Quando o mar ficar mais calmo, virão barcos e homens da terra firme.

E encontrarão dez cadáveres e um problema sem solução na Ilha do Negro.

Assinado: Lawrence Wargrave

 

                                                                                            Agatha Christie

 

 

                      

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