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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


Por Que Não Pediram a Evans / Agatha Christie
Por Que Não Pediram a Evans / Agatha Christie

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Por Que Não Pediram a Evans

 

Se pediram ou não a Evans, o leitor vai custar a descobrir. Por momentos, gostaria apenas de ficar jogando golfe como Bobby. Com a atenção toda voltada para a bola, os lances, o campo tranqüilo e verde. Ignoraria, se possível, os penhascos onde a bola, às vezes, se perde. Ou onde a morte, às vezes, se descobre. Agatha Christie é caprichosa e sabe preparar o mistério. Ele adquire total verossimilhança porque os personagens e sua linguagem, seu ambiente e cenário se associam com inteira propriedade. É preciso sentir a ameaça, próxima, do mar. A “atração do abismo”. A fragilidade de todas as aparências da calma, da força ou da beleza. Há sempre una assassino à espreita. Mesmo perto da igreja, sossegada, onde o vigário de Marchbolt só está preocupado com a música de seu culto às seis da tarde.

Há ainda, com freqüência, o enigma dos nomes, das identidades. Não apenas como simples estratagema da trama policial, mas com uma carga de conotações mais sutis, certa ciência dos indícios e despistamentos em que a vida mesma, com ou sem crime, é pródiga e inesgotável.. Assim também, e acima disso, a consciência do que representam as ambições — de dinheiro, sobretudo — na comunidade dos homens. Aqui aparece, como meio, o entorpecente; em outras histórias o leitor encontra heranças, fortunas, pedras preciosas. Ou as frustrações correspondentes. O mal é poderoso e, como Roger, de infatigável persistência. Sabe conviver com o bem e atacá-lo de rijo, pelas costas.

 

                       

 

O ACIDENTE

Bobby Jones colocou a bola de golfe no ponto de par­tida, deu ao taco um pequeno balanço preliminar, ergueu-o lentamente, e rápido como um raio desfechou o golpe.

Acaso a bola elevou-se galhardamente nos ares, e cor­tando o campo na direção certa ultrapassou o buraco de areia, indo cair à distância de uma fácil tacada do décimo quarto “green”?1

 (1) (N. da T.) Terreno em volta de cada buraco, num campo de golfe.

Nada disso. Atingida de mau jeito, deslizou uns poucos metros pela grama e enterrou-se firmemente na areia!

Mas nenhum espectador ansioso deixou escapar uma exclamação de desapontamento, e a única testemunha da tacada não demonstrou surpresa alguma, o que é fácil de explicar, pois o golfista desajeitado não era o campeão americano, mas simplesmente o quarto filho do vigário de Marchbolt, uma cidadezinha na costa de Gales.

Bobby soltou uma exclamação irreverente.

O rapaz de expressão afável, com cerca de vinte e oito anos, não seria considerado bonito pelo melhor amigo, mas seu rosto irradiava muita simpatia, e os honestos olhos cas­tanhos eram cordiais como os de um cão.

— Estou cada dia pior — resmungou com desânimo.

— Não desista — disse o companheiro.

O Dr. Thomas era um homem de meia-idade com cabe­los grisalhos e rosto corado e jovial. Ele próprio não usava tacadas longas, elevando pouco o taco em golpes curtos porém certeiros, e geralmente vencia golfistas de maior brilho, mas inconstantes.

Bobby atingiu a bola com um ferro número oito. Na terceira tentativa conseguiu levá-la a uma pequena distância do “green” que o Dr. Thomas alcançara em duas tacadas exemplares.

— Seu buraco — disse Bobby.

Dirigiram-se para o ponto de partida seguinte.

O doutor deu a primeira tacada, um golpe limpo e na direção certa, mas sem grande alcance.

Bobby suspirou, colocou a bola no suporte, tornou a ajeitá-la, balançou o taco para lá e para cá, fechou os olhos, endireitou a espinha, ergueu a cabeça, abaixou o ombro es­querdo, fez tudo o que não devia fazer, e deu uma tacada de primeiríssima ordem colocando a bola no meio do campo.

Sorriu satisfeito. A típica expressão de desalento do golfista foi logo substituída por um também típico ar exultante.

— Eu sabia o que estava fazendo — afirmou Bobby fal­tando à verdade.

Mais uma tacada perfeita e um pequeno empurrão com um ferro número cinco, e a bola caiu no buraco. Bobby con­seguira a proeza com uma jogada a menos do que a média ne­cessária, e o Dr. Thomas com uma a mais.

Confiante, Bobby dirigiu-se ao décimo sexto buraco. Novamente fez tudo o que não devia fazer, mas desta vez não aconteceu nenhum milagre. Em vez disso num magnífico, estupendo, quase inacreditável golpe enviesado impeliu a bola para fora do alcance da vista.

— Puxa, se aquela bola tivesse ido em linha reta...! exclamou o Dr. Thomas.

— Mas não foi — retorquiu Bobby com azedume. — Ei, parece que ouvi um grito! Espero que a bola não tenha acer­tado ninguém!

Virou-se para a direita. O sol se punha bem à sua frente. A luminosidade feria os olhos, e era difícil enxergar com cla­reza. Uma fina névoa subia do mar, que a poucas centenas de metros vinha lamber os pés do penhasco.

— A trilha vai até a beirada — disse Bobby — mas acho impossível que a bola tenha ido tão longe. Você não ou­viu um grito?

O médico sacudiu a cabeça.

Bobby saiu à procura da bola. Não foi fácil, mas por fim encontrou-a presa entre os galhos de um pé de tojo. Ainda tentou desalojá-la com duas tacadas desajeitadas, mas termi­nou por pegar a bola e gritar ao companheiro que desistia do buraco.

O médico veio em sua direção pois o próximo ponto de partida ficava junto ao penhasco.

O décimo sétimo era o terror de Bobby. Era necessário que a bola vencesse uma profunda fenda. A distância nem era tão grande, mas a atração do abismo lá embaixo era con­siderável.

Cortaram a trilha que acompanhava o precipício. O dou­tor escolheu um ferro e com uma tacada certeira colocou a bola do outro lado.

Bobby inspirou fundo e desceu o taco. A bola deslizou uns poucos metros e desapareceu na fenda.

— Toda a vez acontece a mesma coisa — disse Bobby irritado — sempre repito a mesma besteira!

Andou até a margem do penhasco. Lá embaixo o mar refletia os últimos raios do sol, mas nem todas as bolas eram tragadas por suas águas, pois depois de uma descida abrupta de alguns metros a encosta suavizava-se formando pequenos platôs.

Percorreu alguns metros devagar à procura do ponto por onde os carregadores de tacos costumavam descer agilmente para reaparecer pouco depois, ofegantes porém triunfantes, com a bola perdida.

De repente, estacou com um sobressalto.

— Ei, doutor, venha cá — gritou ao companheiro. — O que será aquilo?

A uns quinze metros abaixo via-se uma forma escura, talvez uma trouxa de roupas velhas.

O doutor prendeu a respiração.

— Meu Deus — murmurou — alguém caiu lá embaixo! Precisamos chegar lá.

Os dois homens desceram pelas rochas, o mais novo e mais vigoroso auxiliando o mais velho, até alcançarem o si­nistro vulto escuro. Era um homem de uns quarenta anos que, embora inconsciente, ainda respirava.

O médico ajoelhou-se e o examinou, tomando-lhe o pul­so. Correu as mãos pelos membros do homem inconsciente, abaixou-lhe as pálpebras e ao terminar ergueu os olhos para Bobby, que em pé ao seu lado sentia-se mal, e sacudiu lenta­mente a cabeça.

— Não há nada a fazer, pobre homem — disse ele. — Quebrou a espinha. Pelo jeito não conhecia esse lugar e com a névoa deu um passo em falso. Mais de uma vez já disse à Câmara que devia haver uma grade ali em cima.

O médico levantou-se.

— Vou buscar ajuda. É preciso tirá-lo daqui, vai escure­cer dentro em pouco. Você fica?

Bobby fez que sim com a cabeça.

— Nada podemos fazer por ele, não é? — perguntou.

— Não, nada — confirmou o doutor. — Não vai viver muito tempo. O pulso está enfraquecendo com rapidez. Tem no máximo uns vinte minutos. Talvez recobre a consciência antes do fim, mas é mais provável que não. De qualquer forma...

— Compreendo — disse Bobby. — Ficarei com ele. Pode ir. Se ele voltar a si, não há algum remédio ou narcó­tico que... ?

O médico sacudiu a cabeça.

— Ele não sentirá nada, dor alguma — disse, e virando-se começou a escalar o penhasco rapidamente.

Bobby acompanhou-o com o olhar até que chegou ao topo e desapareceu com um último aceno. O rapaz deu dois passos na estreita plataforma e sentou-se num ressalto da rocha, acendendo um cigarro. Estava abalado. Nunca estivera em contato com morte ou doenças graves.

Mas que terríveis azares encerrava a vida! Um pouco de nevoeiro num belo entardecer, um passo em falso, e era o fim! E este homem tinha um aspecto tão saudável, provavelmente nunca estivera doente em sua vida. Nem a palidez da agonia apagava o tom bronzeado de sua pele. Devia passar grande parte do tempo ao ar livre, talvez no estrangeiro. Bobby olhou-o com mais atenção. O cabelo era crespo e castanho, com uns fios de prata nas têmporas, o nariz grande, o queixo forte, os dentes muito brancos aparecendo entre os lábios entreabertos. Ombros largos e mãos belas e vigorosas. As pernas esta­vam dobradas num ângulo estranho. Bobby estremeceu e vol­tou os olhos novamente para o rosto, atraente, de homem de­terminado, capaz, com senso de humor. Os olhos provavel­mente eram azuis.

Bobby acabara de formular esse pensamento quando as pálpebras se levantaram. Dois olhos de um azul claro e pro­fundo o encararam. Não havia nada de vago ou incerto na­quele olhar, plenamente consciente, alerta e ao mesmo tempo interrogativo.

Bobby ergueu-se com rapidez e aproximou-se. Antes que se ajoelhasse o homem falou. A voz não saiu fraca, mas clara e ressoante.

— Por que não pediram a Evans? — disse ele.

E então um sinistro estremecimento percorreu-o, as pálpebras desceram, o queixo caiu.

O homem estava morto.

 

A RESPEITO DE PAIS

Bobby ajoelhou-se ao seu lado, mas não havia dúvida alguma. O homem estava morto. Um último instante de consciência, a pergunta repentina, e então — o fim.

Respeitosamente, Bobby retirou um lenço de seda que aparecia no bolso do morto e estendeu-o sobre seu rosto. Não havia mais nada que pudesse fazer.

Viu então que com o seu gesto deslocara um outro objeto, uma fotografia. Apanhou-a para recolocá-la no lugar.

Era um rosto de mulher, estranho e marcante. Uma mu­lher muito clara com olhos separados. Jovem, certamente com menos de trinta anos. Mas foi o fascínio que aquele rosto emanava, mais do que sua beleza, que o impressionou. Um rosto difícil de esquecer, pensou o rapaz.

De forma delicada e reverente recolocou o retrato no bolso do morto e sentou-se para esperar a volta do médico.

O tempo demorava a passar, pensou o rapaz. Acabara de lembrar-se ter prometido ao pai tocar o órgão no serviço reli­gioso das seis horas, é agora faltavam dez minutos para as seis. Naturalmente o pai compreenderia a situação, mas mes­mo assim ele lamentava não se ter lembrado de mandar um recado pelo doutor. O Reverendo Thomas Jones era um ho­mem de temperamento extremamente nervoso. Preocupava-se exageradamente com ninharias, e nestas ocasiões seu apare­lho digestivo rebelava-se e o pobre sentia dores cruciantes. Em­bora considerasse o pai um velho tolo e lastimável, Bobby tinha-lhe enorme afeição. Por outro lado, o Reverendo Tho­mas considerava também seu quarto filho um jovem tolo e lastimável, e com menos tolerância do que Bobby procurava modificá-lo segundo seus padrões.

— Coitado do velho — pensou Bobby. — Deve estar andando de um lado para outro, sem saber se inicia ou não oserviço. Vai ficar tão nervoso que sentirá cólicas, e não con­seguirá cear. Não terá juízo suficiente para compreender que eu não o deixaria na mão se não houvesse um motivo ponde­rável. Ora, de que adianta? Ele nunca irá raciocinar dessa maneira. Ninguém que tenha mais de cinqüenta anos possui bom-senso! Vivem se preocupando com bobagens, com coisas sem a menor importância. Deve ter sido a maneira como fo­ram educados, coitados, não conseguem agir de outra forma. Coitado do velho, tem menos bom-senso do que uma galinha!

Ficou pensando no pai com uma mistura de afeto e exasperação. Sua vida em casa parecia-lhe um longo sacrifício às idéias peculiares do pai. O Reverendo Jones, entretanto, diria que o sacrifício era seu, e que a geração mais nova não o compreendia nem o apreciava. Como podem ser diferentes os pontos de vista sobre um mesmo assunto!

Mas o doutor já se fora há um século! Sem dúvida já poderia ter voltado.

Bobby levantou-se e bateu o pé impaciente. Nesse ins­tante ouviu um barulho e olhou para cima, aliviado porque o auxílio estava chegando e seus préstimos não seriam mais ne­cessários.

Mas não era o médico. Era um homem de traje espor­tivo que Bobby não conhecia.

— O que aconteceu? Foi um acidente? — perguntou o recém-chegado. — Posso ajudá-lo de alguma forma?

O homem era alto, com uma agradável voz de tenor. Bobby não o podia ver com clareza pois escurecia rapidamente.

Explicou o que acontecera e o visitante mostrou-se cho­cado.

— Não há nada que eu possa fazer? — perguntou. — Quer que eu vá buscar auxílio ou coisa semelhante?

Explicando que o doutor já fora tomar providências, Bobby perguntou-lhe se não vira ninguém no caminho.

— Não, não vi ninguém.

— Bem, é que tenho um compromisso para as seis — prosseguiu Bobby.

— E o senhor não gostaria de deixar...

— Não, não gostaria — disse Bobby. — O pobre coi­tado está morto e nada irá modificar o fato, mas mesmo as­sim...

O rapaz calou-se tendo, como sempre, dificuldades em expressar emoções confusas.

O outro, entretanto, pareceu compreender.

— Eu entendo — disse ele. — Escute, posso descer até aí, se conseguir encontrar o caminho. Ficarei até que chegue ajuda.

— O senhor faria isso? Seria formidável — retorquiu Bobby agradeceu. — Sabe, é por causa de meu pai. É ótima pessoa, mas um bocado nervoso. Está vendo bem? Isso, agora coloque o pé mais para a esquerda, agora a direita, aí mes­mo. Não é tão difícil, não é?

Seguindo as instruções encorajadoras de Bobby, o recém-chegado alcançou o platô. Era um homem aparentando uns trinta e cinco anos, de traços pouco marcantes que parecia pedir um monóculo e um pequeno bigode.

— Não sou daqui — explicou ele. — Meu nome é Bassington-ffrench. Vim ver uma casa que está à venda. Mas que coisa terrível, não é? Provavelmente ele não viu o abismo.

Bobby balançou a cabeça concordando.

— É, o nevoeiro estava subindo e este trecho do cami­nho é perigoso — explicou. — Bem, até logo. Preciso me apressar. Muito obrigado. Foi muita bondade sua.

— Ora, qualquer um faria o mesmo — protestou o outro. — Não poderíamos deixar o pobre sozinho. Bem, não seria decente, não é?

Bobby escalou o penhasco agilmente. Em cima, com um aceno de despedida, atravessou o campo correndo. Para economizar tempo, escalou o muro do cemitério pelo vigário que da volta pelo portão, manobra presenciada pelo vigário que da janela da sacristia o observava com profunda desaprovação.

Eram seis horas e cinco minutos, mas o sino ainda tocava.

As explicações e as recriminações foram adiadas para de­pois do serviço religioso. Ofegante, Bobby deixou-se cair no banco e apertou os registros do antigo órgão. Uma associa­ção de idéias guiou seus dedos para a marcha fúnebre de Chopin.

Mais tarde, mais magoado do que colérico (como fez questão de ressalvar), o vigário passou um carão no filho.

— Se não pode fazer uma coisa direita, meu caro Bobby — disse ele — é melhor não fazer nada. Sei que você e seus jovens amigos não têm noção adequada de horário, mas existe alguém a quem não podemos fazer esperar. Foi você quem se ofereceu para tocar o órgão, eu não o obriguei. Mas por fraqueza, você prefere jogar golfe a...

Bobby achou melhor interromper antes que o pai fosse longe demais.

— Desculpe, papai — disse ele no tom jovial e despreocupado que habitualmente assumia qualquer que fosse o as­sunto. — Desta vez a culpa não foi minha. Eu estava guar­dando um cadáver.

— Você estava o quê?

— Guardando um morto. O homem caiu do penhasco, naquela fenda junto ao décimo sétimo buraco. Havia um pou­co de névoa e ele não deve ter visto o abismo.

— Bom Deus! — exclamou o vigário. — Que tragédia! Ele morreu instantaneamente?

— Não, mas ficou inconsciente. Morreu logo depois que o Dr. Thomas foi buscar ajuda. E naturalmente achei que de­via ficar lá, não o podia deixar só. Mas apareceu um outro sujeito e passei-lhe a responsabilidade do velório, e vim cor­rendo com quantas pernas tinha.

O vigário suspirou.

— Oh! Meu querido Bobby! — disse ele. — Será que nada abala sua deplorável insensibilidade? Isto fere-me mais do que sou capaz de expressar Você esteve frente a frente com a morte súbita e é capaz de fazer piadinhas sobre o as­sunto! A tragédia não o tocou! Tudo , mas tudo, por mais sa­grado, por mais sério que seja, é motivo de graça para a sua geração.

Bobby olhou para o lado, constrangido. Por que o pai não compreendia que brincava justamente porque estava emo­cionado? Era o tipo da coisa difícil de explicar, mas quando se tratava de morte e de tragédia era necessário manter a dig­nidade. Mas o que podia esperar? Ninguém com mais de cin­qüenta anos era capaz de compreender coisa alguma. Todos tinham as idéias, as mais esquisitas.

Deve ter sido a guerra, pensou o leal Bobby. Ela os perturbou e nunca mais voltaram a ser os mesmos.

Sentiu-se envergonhado pelo pai e teve pena dele.

— Desculpe-me, papai — ele disse, sentindo claramente que era impossível qualquer explicação.

O vigário compadeceu-se do filho, o rapaz parecia desconcertado, mas também sentiu vergonha por ele. Não tinha noção da seriedade da vida. Até mesmo o seu pedido de des­culpas fora jovial e impenitente.

Os dois tomaram o rumo de casa, cada qual fazendo um enorme esforço para desculpar o outro.

Quando será que Bobby vai encontrar algo para fazer, pensou o vigário.

Por mais quanto tempo conseguirei ficar por aqui, pensou Bobby.

E, no entanto, eram extremamente afeiçoado um ao outro.

 

UMA VIAGEM DE TREM

Bobby não presenciou os acontecimentos que se sucede­ram à sua aventura. Na manhã seguinte foi a Londres encon­trar-se com um amigo que pretendia abrir uma garagem e jul­gava que poderia ser valiosa a cooperação do rapaz.

Após acertar todos os detalhes para satisfação geral, dois dias depois Bobby pegou o trem das onze e trinta para casa. Pegou, sim, mas por um triz. Chegou à estação de Paddington quando o relógio já marcava 11h28min, despencou-se pela passagem subterrânea abaixo, e emergiu na plataforma número três no momento em que o trem dava a partida. Jogou-se no primeiro vagão que estava à sua frente, sem ligar para os protestos indignados dos fiscais e dos carregadores.

A porta do compartimento escancarou-se e ele caiu de joelhos. Levantando os olhos encontrou-se face a face com a única ocupante. O vagão era de primeira classe, e no banco oposto à locomotiva uma moça morena fumava um cigarro. Vestia uma saia vermelha, um casaco curto verde e uma boina de um azul vivo. Apesar de uma certa semelhança com um macaquinho de realejo (tinha grandes e pesarosos olhos es­curos num rosto travesso) era muito atraente.

Bobby ensaiava alguma desculpas quando a reconheceu.

— Ora, é você, Frankie! — disse ele. — Há séculos não a vejo.

— Eu digo o mesmo. Sente-se aí. Vamos conversar.

Bobby sorriu.

— Meu bilhete é da cor errada.

— Não tem importância — disse Frankie gentilmente. — Pagarei a diferença.

— Meu orgulho masculino não o permitiria — disse Bobby. — Não posso deixar uma dama pagar a minha pas­sagem.

— Pois ultimamente parece que não servimos para mais nada — retrucou Frankie.

— Eu mesmo pagarei a diferença — propôs heroicamente Bobby quando um corpulento funcionário da rede apareceu na porta do corredor.

— Deixe comigo — disse Frankie e deu um sorriso mui­to amável ao bilheteiro que levou a mão ao boné ao perfurar o cartão que ela lhe estendeu.

— O Sr. Jones veio conversar um pouco — disse ela. — Não faz mal, não é?

— Não, madame. O cavalheiro não pretende se demorar muito, não é? — disse ele e tossiu diplomaticamente. — Só voltarei aqui ao chegarmos a Bristol — acrescentou.

— O que não consegue um sorriso... — disse Bobby quando o funcionário se retirou.

Lady France Derwent sacudiu a cabeça com um ar cético.

— Não creio que tenha sido o sorriso — disse ela. — Acredito mais que seja devido ao hábito de meu pai de dis­tribuir fartas gorjetas todas as vezes que viajava.

— Pensei que tivesse esquecido Gales de vez, Frankie.

A moça suspirou.

— Meu caro, sabe bem como os pais podem ser abor­recidos. Isto e o mau estado dos banheiros, além de não ha­ver nada para se fazer nem ninguém para ver. Ora, ninguém mais quer vir para o campo atualmente! Falam em economia e dizem não poder ir para tão longe. Bem, o que se há de fazer?

Bobby sacudiu a cabeça reconhecendo o triste problema.

— Mas depois da festa de ontem à noite — acrescentou Frankie — achei que nem em casa podia ser pior.

— O que houve de errado na festa?

— Nada. Foi igual a todas as outras, só que pior. Combinamos um encontro no Savoy às oito e meia. Parte do grupo só apareceu às nove e quinze, e como era de esperar envolvemo-nos com outras pessoas, mas finalmente saímos de lá às dez. Jantamos e fomos ao Marionette — havia um boato que havia uma batida policial — mas nada aconteceu. O am­biente estava fúnebre. Bebemos um pouco e fomos para o Bullring que ainda estava mais tétrico. Então resolvemos ir tomar o café da manhã na casa do tio de Ângela, para ver se ele ficava chocado, mas nem isso. Ele só fez cara de aborre­cido e então cada um foi para o seu lado. Honestamente, Bobby, não vale a pena.

— É, talvez não — disse Bobby com uma pontinha de inveja. Nunca, nem em seus mais arrojados devaneios sonhara ser sócio do Marionette ou do Bullring.

Seu relacionamento com Frankie era bastante peculiar. Na infância, ele e os irmãos costumavam brincar com as crianças do castelo. Agora que eram adultos, os encontros eram raros, mas nessas ocasiões ainda se tratavam pelos nomes de batis­mo. Nas poucas vezes que Frankie ia em casa, Bobby e os irmãos ainda apareciam para jogar tênis, mas Frankie e seus dois irmãos nunca eram convidados para o vicariato. Era um fato tacitamente aceito que não se divertiriam ali, enquanto que parceiros extras para o tênis são sempre bem-vindos. Tal­vez houvesse algum constrangimento, apesar dos nomes de batismo, talvez os Derwents fossem mais amáveis que o neces­sário para mostrar que “não havia diferença”. Os Jones, por seu lado, mostravam-se um tanto formais, como se fizessem questão de não reivindicar mais familiaridade do que a que lhes era oferecida. As duas famílias nada tinham em comum a não ser certas lembranças da infância, mas Bobby gostava muito de Frankie e era sempre com prazer que a via nas raras ocasiões em que o destino os aproximava.

— Eu estou cansada de tudo — disse Frankie com um ar desanimado. — E você, não está?

Bobby refletiu.

— Não, não creio que esteja.

— Que maravilha, meu caro — disse Frankie.

— Não quero dizer com isto que esteja estourando de entusiasmo — ressalvou Bobby não querendo causar má impressão. — Não suporto gente desse tipo.

Frankie estremeceu a tal idéia.

— Também os acho detestáveis.

Entreolharam-se em mútua simpatia.

— Mudando de assunto — disse Frankie de repente — que história é essa de um homem que caiu no penhasco?

— Eu e o Dr. Thomas o encontramos — disse Bobby. — Como soube do caso, Frankie?

— Pelos jornais. Veja aqui — disse ela apontando para um pequeno parágrafo sob o título “Acidente Fatal no Ne­voeiro”.

“A vítima da tragédia de Marchbolt foi identificada na noite de ontem através de um retrato que trazia em seu po­der. O retrato era da Sra. Leo Cayman, que ao receber a no­tícia viajou imediatamente para Marchbolt onde identificou o morto como sendo o seu irmão, Alex Pritchard. O Sr. Pritchard voltara recentemente do Sião. Estava fora do país há dez anos e iniciara há pouco uma excursão. O inquérito terá início amanhã em Marchbolt.”

Bobby recordou-se do estranho fascínio que irradiara o rosto do retrato.

— Acho que terei de testemunhar no inquérito — dis­se ele.

— Que coisa emocionante! Irei até lá para ouvi-lo.

— Não há nada de emocionante no que tenho a dizer — tornou Bobby. — Nós só o encontramos, nada mais.

— Ele já estava morto?

— Não, estava vivo quando o encontramos, mas morreu uns quinze minutos depois. Eu estava sozinho com ele.

Bobby calou-se.

— Deve ter sido horrível — disse Frankie com a instan­tânea compreensão que faltara ao pai do rapaz.

— É verdade que ele não sentiu nada...

— Não?

— Mas mesmo assim... bem... sabe, ele parecia ter tanta vida... Que jeito mais estúpido de morrer, cair num precipício por causa de um pouco de nevoeiro!

— Eu entendo — tornou Frankie novamente exprimindo simpatia e compreensão em duas simples palavras.

— Você viu a irmã dele? — ela perguntou dali a pouco.

— Não, estive em Londres os dois últimos dias. Vim conversar com um amigo a respeito de uma garagem que pretendemos montar. Deve lembrar-se dele. Badger Beadon.

— E o conheço?

— Conhece, sim. Deve estar lembrada do velho Badger. Ele é estrábico.

Frankie enrugou a testa.

— Ele tem o hábito de dar umas risadinhas muito sem graça, assim, ha, ha, ha. Não se lembra? — ajuntou Bobby tentando ajudá-la.

A testa de Frankie continuou franzida.

— Ele caiu de um pônei quando éramos crianças — prosseguiu Bobby. — Ficou com a cabeça enfiada na lama etivemos de puxá-lo pelas pernas.

— Ah! — exclamou Frankie recordando-se afinal. — Agora já sei quem é. Ele gaguejava.

— E ainda gagueja — rematou Bobby orgulhoso.

— Ele não iniciou uma criação de galinhas que foi a falência? — perguntou Frankie.

— Isto mesmo.

— E depois meteu-se a trabalhar no escritório de um corretor sendo despedido no mês seguinte?

— Foi.

— E então a família o mandou para a Austrália, mas acabou voltando?

— É.

— Bobby — ajuntou Frankie — você não pretende in­vestir dinheiro nessa aventura comercial, não é?

— Não tenho dinheiro para investir — disse Bobby.

— Ainda bem.

— Badger tem tentado encontrar alguém que queira in­vestir algum capital — explicou Bobby. — Mas não é tão fácil como se poderia pensar.

— Vejo que ainda existe gente de bom senso por aí.

Subitamente Bobby compreendeu onde Frankie queria chegar.

—- Olhe aqui, Frankie — disse ele. — Badger é um grande sujeito, dos melhores que existem.

— Eles sempre são — disse a moça.

— Eles quem?

— Os que vão para a Austrália mas acabam voltando. Como ele arranjou o dinheiro para iniciar esse negócio?

— Uma tia dele, ou coisa semelhante, morreu e deixou-lhe uma garagem para seis carros com três quartos no andar de cima, e a família arranjou cem libras para que ele pudesse comprar carros usados. Você ficaria surpresa ao ver as pe­chinchas que se pode obter comprando carros de segunda mão.

— Eu comprei um uma vez — disse Frankie — e é um assunto que eu preferia esquecer. Por que deixou a Marinha? Eles não lhe deram o bilhete-azul, deram? Com a sua idade?

Bobby corou.

— Foram os meus olhos — ele atalhou ríspido.

— Seus olhos sempre foram um problema, lembro-me disso.

— Sim, mas consegui passar pelo exame de vista. Entre­tanto o tempo passado no estrangeiro e a luz forte pioraram a situação. Então... eu... bem, tive de sair.

— Uma pena — murmurou Frankie olhando para fora.

Fez-se um silêncio eloqüente.

— Mas meus olhos não estavam tão ruins assim. Nem vão piorar, segundo dizem. Eu poderia perfeitamente ter con­tinuado na Marinha.

— Não se nota nada de errado neles — disse Frankie encarando os honestos olhos castanhos.

— Por isso — concluiu Bobby — vou entrar de socie­dade com Badger.

Frankie balançou a cabeça.

Um cabineiro abriu a porta e anunciou:

— Primeiro almoço.

— Vamos? — convidou Frankie.

Os dois dirigiram-se para o vagão-restaurante.

Bobby fez uma curta retirada estratégica durante o pe­ríodo em que o bilheteiro era esperado.

— Não queremos que ele fique com problemas de consciência, não é? — disse ele.

Mas Frankie retrucou que não acreditava que bilheteiros tivessem consciências delicadas.

Pouco depois das cinco alcançaram Sileham, a estação mais próxima a Marchbolt.

— O carro deve estar à minha espera — disse Frankie. — Posso dar-lhe uma carona.

— Obrigado. Assim não terei de carregar esse trambolho por três quilômetros — respondeu Bobby dando um pon­tapé depreciativo em sua valise.

— São quatro quilômetros e meio, e não três — tornou Frankie.

— Cortando caminho pelo campo de golfe são apenas três.

— Pela picada onde...

— Sim, lá onde aquele camarada caiu.

— Será que ele não foi empurrado, hem? — perguntou Frankie ao entregar a frasqueira à sua criada.

— Empurrado? Deus do céu, não! Por que teve tal idéia?

— Bem, seria muito mais emocionante, não acha? — retrucou Frankie despreocupadamente.

 

O INQUÉRITO

O inquérito sobre a morte de Alex Pritchard teve lugar no dia seguinte. O Dr. Thomas testemunhou a respeito da descoberta do corpo.

— O homem estava morto? — perguntou o magistrado.

— Não, ainda respirava, mas não existiam esperanças de recuperação.

O médico passou nesse ponto a utilizar uma terminolo­gia altamente técnica. O magistrado foi em auxílio do corpo de jurados:

— Em linguagem corriqueira, a sua espinha estava quebrada, não é?

— Se o senhor prefere desta forma... — anuiu o Dr. Thomas sem entusiasmo, passando a contar como fora buscar ajuda e deixara o moribundo aos cuidados de Bobby.

— Em sua opinião, o que provocou essa tragédia, Dr. Thomas?

— Tudo parece indicar, apesar de que não temos indícios sobre o estado de espírito do morto, que este pisou involuntariamente no vazio e caiu no abismo. O nevoeiro estava subin­do do mar, e naquele local o caminho embica em ângulo reto para o interior. O homem pode não ter visto a fenda, devido à névoa, e seguido em frente. Nesse caso bastariam dois pas­sos para que se despencasse no abismo.

— Não havia sinais de violência que pudessem ter sido infligidos por outra pessoa?

— Só o que posso dizer é que todos os ferimentos po­deriam ter sido causados pelo choque contra as rochas após uma queda de uns quinze ou dezoito metros.

— Existe a possibilidade de suicídio?

— É perfeitamente possível, sem dúvida alguma. Não posso dizer se o morto jogou-se ou caiu involuntariamente.

Robert Jones foi a testemunha seguinte.

Bobby explicou que jogava golfe com o doutor quando atirara a bola em direção ao mar. O nevoeiro subia na oca­sião e a visibilidade era pouca. Pensara ter ouvido um grito e por um instante julgara que a sua bola havia atingido al­guém que seguia pelo atalho, chegando depois à conclusão que a bola não poderia ter ido tão longe.

— O senhor encontrou a bola?

— Sim, a uns trinta metros antes da picada — respon­deu Bobby, explicando como deixara a bola cair na fenda ao dar a primeira tacada do décimo quarto buraco.

Nesse ponto o magistrado o interrompeu, pois seu testemunho seria uma repetição das palavras do médico, interrogando-o cuidadosamente, entretanto, sobre o grito que julgara ter ouvido.

— Ah, foi apenas um grito.

— Um grito de socorro?

— Não, só um berro. Na verdade não estou muito certo a respeito do que ouvi.

— Foi um grito de espanto?

— É, creio que sim — concordou Bobby agradecido. — Foi a espécie de som que alguém poderia deixar escapar se uma bola o atingisse inesperadamente.

— Ou se caísse num abismo?

— Sim.

Finalmente, após explicar que o homem morrera cerca de cinco minutos após o médico ter ido à procura de ajuda, a provação de Bobby terminou. O magistrado mostrava-se an­sioso para chegar ao fim do que parecia ser um caso limpo.

A Sra. Leo Cayman foi chamada em seguida.

Bobby soltou uma exclamação de extremo desaponta­mento. Onde estava o rosto do retrato que caíra do bolso do morto? Os fotógrafos eram todos uns mentirosos, pensou o rapaz decepcionado. O retrato obviamente devia ter alguns anos, mas mesmo assim era difícil acreditar que a encantadora beldade de olhos separados se tivesse transformado nessa mulher grosseira, desenvolta, com sobrancelhas feitas a lápis e cabelos com uma tintura barata. O tempo era muito ingrato, pensou Bobby subitamente. Como estaria Frankie dentro de vinte anos? Ele estremeceu.

Enquanto isso, Amélia Cayman, moradora do número 17 dos Jardins São Leonardo, em Paddington, prestava de­clarações.

O morto era seu único irmão, Alexander Pritchard. Ela o vira na véspera da tragédia quando ele contou-lhe que ia fazer uma excursão por Gales. Seu irmão chegara recentemen­te do Oriente.

— Ele parecia alegre e num estado de espírito normal?

— Sim. Alex era sempre bem-humorado.

— Pelo que a senhora sabe, então, ele não estava preocupado?

— Tenho certeza que não. Estava entusiasmado com a perspectiva da excursão.

— Ele não teve problemas monetários ou de alguma outra espécie, recentemente?

— Bem, na verdade não posso saber ao certo — disse a Srª Cayman. — Sabe, ele havia chegado há pouco, e eu não o via há dez anos e ele escrevia muito pouco. Mas convidou-me mais de uma vez para jantar fora e levou-me ao teatro em Londres e não creio que estivesse com pouco dinheiro. Além disso, estava tão bem-humorado que não acredito que houvesse problemas.

— Qual era a profissão de seu irmão, Srª Cayman?

A mulher pareceu ficar ligeiramente embaraçada.

— Bem, não sei com certeza. Ele falou em prospecção. Vinha à Inglaterra muito raramente.

— A senhora então não conhece nenhum motivo que o pudesse levar a suicidar-se?

— Oh, não! E não posso acreditar que tenha feito isso. Deve ter sido um acidente.

— Como a senhora explica o fato de que seu irmão não levava bagagem, nem mesmo uma mochila?

— Ele não gostava de carregar mochilas. Pretendia en­viar a bagagem pelo correio. Na véspera da partida despachou a roupa de dormir e as meias limpas para Derbyshire, em vez de Denbigshire, de modo que só hoje chegaram aqui.

— Ah! Isto esclarece um ponto obscuro.

A Srª Cayman prosseguiu explicando como fora encon­trada através dos fotógrafos cujo endereço constava da foto­grafia levada pelo morto. Ela viera imediatamente para Mar­chbolt e no mesmo instante identificara o corpo como sendo o de seu irmão.

Às últimas palavras ela fungou alto e começou a cho­rar. O magistrado disse-lhe algumas palavras de consolo e deixou-a ir. Em seguida dirigiu-se ao júri: Sua tarefa consis­tia em determinar como morreu este homem. Felizmente, a questão parecia ser bastante simples, pois não havia indícios de que o Sr. Pritchard estivesse preocupado ou deprimido, ou num estado de espírito que o levasse a cometer suicídio. Ao contrário, estava animado, com boa saúde e entusiasmado com a excursão. Infelizmente o nevoeiro subira do mar, e o ata­lho junto ao penhasco era bastante perigoso. Todos certa­mente concordariam com ele que já era tempo de ser tomada uma providência a respeito.

O júri chegou rapidamente a um veredicto.

— Concluímos que o morto perdeu a vida acidentalmen­te e gostaríamos de ajuntar uma moção para que o Conselho Municipal tome imediatas providências para erguer uma cer­ca ou uma grade acompanhando o atalho no trecho em que este margeia a fenda.

O magistrado balançou a cabeça aprovadoramente.

O inquérito estava terminado.

 

O SR. E A SRA. CAYMAN

Ao chegar em casa cerca de meia hora depois, Bobby descobriu que sua ligação com a morte de Alex Pritchard não terminara ainda. Foi informado que o Sr. e a Srª Cayman estavam à sua espera no escritório com o pai. Bobby entrou e encontrou este tentando entreter o casal, mas era óbvio que não encontrava qualquer prazer na tarefa.

— Ah! — exclamou o vigário deixando transparecer um pouco o seu alívio. — Aqui está Bobby.

O Sr. Cayman levantou-se e dirigiu-se ao jovem com a mão estendida. Era um homem grande e corado, cordial e barulhento, mas seu olhar frio e evasivo não coadunava com suas atitudes. Quanto à Srª Cayman, embora seu tipo impru­dente e vulgar pudesse ser considerado atraente por alguns, pouco tinha em comum com sua fotografia anterior, e não conservava vestígio nenhum da antiga expressão sonhadora. Na verdade, refletiu Bobby, se ela não tivesse reconhecido a própria fotografia, era improvável que mais alguém o fizesse.

— Acompanhei minha esposa — disse o Sr. Cayman apertando a mão de Bobby de forma dolorosa e firme. — Precisava dar-lhe apoio. É natural que ela esteja perturbada.

A Srª Cayman fungou.

— Viemos procurá-lo — prosseguiu o Sr. Cayman — pois o meu pobre cunhado morreu praticamente em seus bra­ços. É natural que minha esposa queira saber tudo sobre os seus últimos momentos.

— Certamente — disse Bobby constrangido — ora, certamente.

O rapaz deu um sorriso nervoso e no mesmo momento percebeu que o pai suspirava — um dos seus suspiros de resignação cristã.

— Pobre Alex — disse a Srª Cayman enxugando o ros­to. — Pobre, pobre Alex.

— Eu sei — disse Bobby — Foi terrível — acrescentou contorcendo-se sem jeito.

— O Sr. compreende — prosseguiu a Srª Cayman olhan­do esperançosa para Bobby — gostaria de saber quais foram suas últimas palavras, ou se ele me deixou alguma mensagem.

— É natural, mas para falar a verdade — disse Bobby — ele não deixou nenhuma mensagem.

— Nada mesmo?

A Srª Cayman parecia incrédula e desapontada. Bobby sentiu-se constrangido.

— Não... bem... para falar a verdade, nada mesmo.

— Foi melhor assim — disse em tom solene o Sr. Cay­man. — Morreu inconsciente, sem sentir dor. Ora, você de­veria considerar isso uma graça divina, Amélia.

— Suponho que sim — disse a Srª Cayman. — O se­nhor acha que ele não sentiu dor?

— Estou certo que não — disse Bobby.

A Srª Cayman soltou um profundo suspiro.

— Bem, devemos ser gratos por isso. Eu tinha esperan­ças de que ele tivesse deixado alguma mensagem, mas com­preendo que foi melhor assim. Pobre Alex! Era tão saudável!

— Era mesmo, não? — tornou Bobby lembrando-se do rosto bronzeado de olhos de um azul profundo. Uma perso­nalidade atraente, a de Alex Pritchard, atraente mesmo na agonia. Era estranho que fosse o irmão da Srª Cayman e o cunhado do Sr. Cayman. Merecera coisas melhores, pensou Bobby.

— Bem, somos-lhe muito gratos — disse a Srª Cayman.

— Ah, de nada — retrucou Bobby. — Quero dizer, bem, eu não poderia ter agido de outra forma... eu...

Calou-se atrapalhado.

— Não o esqueceremos — disse o Sr. Cayman.

Bobby teve de suportar mais uma vez o doloroso aperto de mão. Em seguida a Srª Cayman estendeu-lhe uma mão flácida. Seu pai despediu-se do casal e Bobby acompanhou-os até à porta da frente.

— E o que faz por aqui, jovem? — tornou o Sr. Cay­man. — Está de licença ou coisa semelhante?

— A maior parte do tempo estou procurando um em­prego — retrucou Bobby e acrescentou após uma pequena pausa: — Eu era da Marinha.

— Os tempos não estão fáceis agora — disse o Sr. Cay­man sacudindo a cabeça. — Bem, desejo-lhe boa sorte.

— Muito obrigado — retorquiu Bobby polidamente e observou-os descer o caminho invadido pelas ervas daninhas.

Ali, em pé, caiu em profunda meditação. Várias ima­gens cruzaram desordenadamente o seu espírito. Lembranças confusas, o retrato, o rosto de uma jovem de olhos separados e cabelos claros, e a Srª Cayman, quinze anos depois com sua maquilagem pesada e as sobrancelhas desenhadas a lápis, os olhos separados escondidos sob pregas de tecido adiposo, co­mo os olhos de um leitão, e os cabelos oxigenados — todos os indícios de juventude e inocência desaparecidos. Era uma pena. Talvez fosse a conseqüência de um casamento com um homem vulgar. Talvez, se tivesse casado com outra pessoa, envelhecesse com mais graça. Os cabelos com um toque de prata, mas os olhos separados num rosto claro e liso. Mas, talvez, de qualquer forma...

Bobby suspirou e sacudiu a cabeça.

— Este é o lado pior do casamento — disse melancó­lico.

— O que você disse?

Bobby despertou de seu devaneio e viu Frankie cuja aproximação nem percebera.

— Olá — disse ele.

— Olá. De que casamento está falando?

— Estava fazendo uma observação de caráter geral — disse Bobby.

— Sobre o quê?

— Sobre os efeitos devastadores do casamento.

— Quem foi devastado?

Bobby explicou, mas Frankie não lhe deu razão.

— Tolice. A mulher é exatamente igual ao retrato.

— Quando a viu? Você foi ao inquérito?

— Naturalmente. O que você acha? Há muito pouco que fazer por aqui. Um inquérito é um verdadeiro presente dos deuses, e eu nunca assistira a nenhum. Foi emocionante! Na­turalmente teria sido melhor se fosse um misterioso caso de envenenamento, com o depoimento de um médico legista e laudos de laboratório e tudo o mais. Entretanto ninguém deve ser muito exigente quando se trata de prazeres simples... Até o final fiquei com esperanças de que se tratasse de um crime, mas infelizmente parece ter sido um caso limpo.

— Que instintos sanguinários os seus, Frankie!

— Eu sei. Provavelmente é atavismo, não acha? Tenho certeza de que são instintos primitivos. Não é à-toa que o meu apelido no colégio era Mico.

— Será que os macacos gostam de assassinatos? — in­dagou Bobby.

— Você parece um correspondente de um jornal domi­nical — disse Frankie. — “Agora apresentaremos os pontos de vista de nosso entrevistado”...

— Sabe — disse Bobby voltando ao assunto anterior — não concordo com a sua opinião sobre o retrato da Srª Cayman. Era encantador.

— Era só retocado, e nada mais — interrompeu Frankie.

— Bem, então estava tão retocado que era impossível identificá-lo com o original.

— Você está vendo coisas — retrucou Frankie. — O fotógrafo fizera tudo que a arte fotográfica podia fazer, mas ainda assim o retrato era horrível.

— Discordo completamente de você — disse Bobby com frieza. — Mas onde você a viu?

— No nosso jornal O Eco Vespertino.

— Provavelmente a reprodução saiu má.

— Pois acho que você perdeu completamente o juízo — retorquiu Frankie zangada — e tudo por causa de uma prostituta ordinária e oxigenada, é isso mesmo, prostituta, como essa tal de Amélia Cayman.

— Frankie! — exclamou Bobby — Não esperava isso de você, e bem em frente ao vicariato! Num lugar semiconsagrado!

— Ora, você estava se tornando ridículo.

Fez-se silêncio. O mau-humor de Frankie diminuiu.

— O que é mais ridículo é discutirmos por causa da idiota daquela mulher — desculpou-se ela. — Vim convidá-lo para uma partida de golfe. O que acha da idéia?

— Ótima, chefe — anuiu Bobby satisfeito.

Os dois seguiram para o campo de golfe em conversa amigável, trocando idéias sobre golpes enviesados e a melhor maneira de retirar uma bola da areia. Bobby esqueceu a tra­gédia recente até que ao dar uma tacada leve na bola para colocá-la no décimo primeiro buraco, soltou uma exclamação.

— O que foi?

— Acabei de me lembrar de uma coisa.

— O quê?

— Bem, aquele casal, os Cayman, foi à minha casa perguntar se o morto dissera alguma coisa antes de morrer, e eu respondi que não.

— E daí?

— Acabei de me lembrar que ele falou.

— Este não é um de seus dias mais brilhantes, não é?

— Bem, mas o que ele disse não é nada do que eles esperavam. Deve ter sido por isso que me esqueci.

— O que ele disse? — perguntou Frankie curiosa.

— Ele disse: “Por que não pediram a Evans?”

— Que coisa mais engraçada para se dizer. Mais nada?

— Não. Ele apenas abriu os olhos e então, de repente, disse aquela frase. E depois morreu, coitado.

— Hum — fez Frankie com um ar pensativo. — Mas não vejo por que você deva se preocupar. Não era importante.

— Não, naturalmente. Mas gostaria de ter mencionado o fato. Eu disse que ele não falou nada.

— Bem, mas dá no mesmo — retrucou Frankie. — Ele não disse nada parecido com “Diga a Gladys que sempre a amei”, ou “o testamento está na cômoda de cerejeira”, ou uma última frase romântica como as que estão nos livros.

— Não acha que eu devia lhes escrever a respeito?

— Eu não me daria a esse trabalho. Não pode ser importante.

— Talvez você tenha razão — disse Bobby e concen­trou-se novamente no jogo com renovado interesse.

Mas o assunto não lhe saiu da cabeça, incomodando-o como uma pedrinha minúscula dentro do sapato. Sentia que o ponto de vista de Frankie era acertado e razoável: não tem importância, deixe para lá. Mas sua consciência continuava a censurá-lo. Dissera que o morto nada havia falado, e isto não era verdade. Era uma trivialidade, uma tolice, mas ele não conseguia sentir-se completamente tranqüilo.

Por fim, naquela noite, obedecendo a um impulso, escre­veu ao Sr. Cayman.

“Caro Sr. Cayman — Acabei de me lembrar que seu cunhado proferiu algumas palavras antes de morrer. Acredito que a frase exata foi: “Por que não pediram a Evans?”. Pe­ço-lhe desculpas por não a ter mencionado esta manhã, mas como acreditava que não tivesse grande importância, havia-me esquecido dela.

Cordialmente,

Robert Jones.

Dois dias depois Bobby recebeu a resposta:

“Caro Sr. Jones — Tenho em mãos a sua carta do dia 6. Agradeço seu escrúpulo em comunicar-nos as últimas pa­lavras de meu cunhado, embora fossem de tão pouca impor­tância. Minha mulher tinha esperanças de que o irmão hou­vesse lhe deixado alguma mensagem. Mas de qualquer forma, obrigado por ter sido tão consciencioso.

Seu criado,

Leo Cayman.”

Bobby sentiu-se ofendido.

 

O FIM DE UM PIQUENIQUE

No dia seguinte Bobby recebeu uma carta bem diferente numa caligrafia rudimentar que não recomendava o colégio caríssimo em que Badger estudara.

“Está tudo arranjado, meu velho. Consegui cinco carros ontem pagando quinze libras pelo lote: um Austin, dois Morrises e dois Rovers. No momento estão todos enguiçados, mas poderemos facilmente dar um jeito neles. Que diabo, um car­ro é um carro. Se consegue levar o dono até em casa sem ficar pelo caminho, já é o suficiente. Estou com vontade de inaugurar a garagem na próxima segunda-feira e estou contan­do com você. Não vai me deixar na mão, não é, camarada? Devo reconhecer que a minha velha tia foi legal! Uma vez quebrei a janela de um vizinho caturra que criou um caso com ela por causa de seus gatos e a velha nunca mais esqueceu disso. Todo Natal me mandava uma nota de cinco libras e finalmente isso.

Vai dar tudo certo, o negócio não pode furar. Ora, afi­nal das contas um carro é sempre um carro. Basta uma nova camada de tinta e a maioria dos idiotas não repara mais em nada. Iremos de vento em popa. Não se esqueça, segunda-feira estou contando com você.

Seu amigo,Badger.”

Bobby disse ao pai que na segunda-feira seguinte iria para Londres começar a trabalhar. O tipo de trabalho não entusiasmou nem um pouco o reverendo, mas é preciso dizer que ele já conhecia Badger Beadon. Limitou-se, entretanto, a passar em Bobby um longo sermão sobre a conveniência de não assumir a responsabilidade de coisa alguma. Não sendo uma autoridade em assuntos comerciais ou financeiros, seus conselhos foram vagos do ponto de vista técnico, mas inequí­vocos na intenção.

Na quarta-feira Bobby recebeu outra carta. A caligrafia do envelope era inclinada e obviamente estrangeira, mas foi o conteúdo que surpreendeu o jovem.

A carta era da firma Henriquez & Dallo de Buenos Ai­res e oferecia a Bobby um emprego com um salário de mil libras por ano. No primeiro instante ele pensou estar sonhan­do. Mil por ano! Releu o texto com mais cuidado. A firma preferia um oficial de marinha reformado, e o seu nome fora indicado por um certo alguém (de nome não mencionado). Caso Bobby aceitasse, deveria estar preparado para assumir o lugar em Buenos Aires dentro de uma semana.

— Ora, que os diabos me carreguem! — exclamou o rapaz dando expansão a seus sentimentos de uma forma um tanto infeliz.

— Bobby!

— Desculpe, papai. Esqueci que estava aí.

O Sr. Jones pigarreou.

— É meu dever chamar-lhe a...

Bobby viu que o sermão, geralmente longo, deveria ser evitado a todo custo. Efetuou a proeza com uma simples declaração:

— Alguém está me oferecendo mil libras por ano.

O vigário ficou de boca aberta, sem conseguir fazer qual­quer comentário por um momento.

Isto o fez perder o rebolado, pensou Bobby satisfeito.

— Meu caro Bobby, será que entendi bem? Alguém está lhe oferecendo um emprego de mil libras por ano? Mil?

— Nem um tostão a menos, papai — disse Bobby.

— É impossível — retrucou o vigário.

Bobby não se ofendeu diante do seu ceticismo. Sua pró­pria auto-avaliação em termos salariais não diferia muito da do pai.

— Devem ser completamente doidos! — anuiu com ên­fase.

— Quem... quem é essa gente?

Bobby entregou-lhe a carta. Procurando nos bolsos o pince-nez, o vigário olhou-a com desconfiança. Por fim leu-a cuidadosamente duas vezes.

— Espantoso — disse afinal. — Espantoso.

— Doidos — acrescentou Bobby.

— Ah, meu rapaz — disse o vigário — eis a grande vantagem de ser inglês! Nós representamos a honestidade, e a Marinha difundiu esse ideal pelo mundo inteiro. Todos conhe­cem o valor da palavra de um inglês! Essa firma sul-americana tem em alta estima a integridade e sabe que poderá con­tar com sua lealdade inabalável. De um inglês espera-se...

— Que sempre jogue de acordo com as regras — com­pletou Bobby.

O vigário olhou desconfiado para o filho. Aquela máxi­ma, excelente por sinal, estivera na ponta de sua língua, mas certa nuança no tom de Bobby fê-lo duvidar de sua sinceri­dade.

Entretanto o jovem tinha um ar de perfeita seriedade.

— Mas ainda assim, papai, por que logo eu?

— O que quer dizer com isso? Por que logo você?

— Existem muitos ingleses na Inglaterra — disse Bob­by — entusiastas, esportivos, leais. Por que escolher logo a mim?

— Talvez seu antigo oficial-comandante o tenha recomendado.

— Pode ser — retrucou Bobby sem convicção. — Mas de qualquer forma não tem importância, pois não posso acei­tar.

— Não pode aceitar? O que quer dizer com isso, meu rapaz?

— Eu já me comprometi com Badger.

— Badger? Badger Beadon? Que tolice, meu caro Bobby. Isto é sério.

— É uma pena, eu reconheço — anuiu Bobby com um suspiro.

— Qualquer acordo infantil que você possa ter feito com o jovem Beadon não pode ser levado em consideração.

— Para mim não é um acordo infantil.

— O jovem Beadon é completamente irresponsável. Que eu saiba, tem sido uma fonte de preocupações e despesas pa­ra os pais.

— Ele não tem tido muita sorte. Confia em todo o mundo.

— Qual sorte, qual nada! Eu diria que esse jovem nun­ca pegou no pesado em toda a sua vida.

— Que tolice, papai. Ora, ele costumava levantar-se às cinco da manhã para alimentar aquelas galinhas idiotas. Não foi culpa dele se todas apanharam boba ou bouba ou coisa semelhante.

— Eu nunca aprovei esse projeto de montar uma ofici­na. É pura tolice. Você deve desistir de tal idéia.

— Não posso, papai. Eu prometi. Não posso deixar o velho Badger na mão. Ele está contando comigo.

A discussão prosseguiu. O vigário, influenciado pelo con­ceito desfavorável que fazia de Badger, não conseguia enca­rar qualquer promessa feita ao jovem como sendo final. Em sua opinião, o filho era um obstinado que queria levar uma vida mansa na pior das companhias. Bobby, por outro lado, limitava-se a repetir inflexivelmente que não podia deixar o velho Badger na mão. Por fim o vigário deixou furioso o apo­sento, e o filho no mesmo instante sentou-se para declinar da oferta da Henriquez & Dallo.

Suspirou ao assinar a carta. Estava deixando escapar uma chance que provavelmente nunca mais se repetiria, mas não via outra alternativa.

Mais tarde, no campo de golfe, confiou o problema a Frankie. Ela ouviu-o com atenção.

— Você teria de ir para a América do Sul?

— Teria.

— E gostaria disso?

— Sim, por que não?

Frankie suspirou.

— De qualquer forma — ela ajuntou em tom decidido — acho que você procedeu corretamente.

— Acerca de Badger?

— É.

— Eu não podia deixar um velho camarada na mão, podia?

— Não, mas tome cuidado para que o seu velho cama­rada não o meta em confusões.

— Ah, tomarei cuidado. De qualquer forma, não há pe­rigo, pois não tenho nenhum bem.

— Deve ser divertido — disse Frankie.

— Por quê?

— Não sei bem o porquê. Mas não ter bens significa também ser livre, sem responsabilidades. Pensando bem, nada tenho de meu também. Quero dizer, papai me dá uma mesa­da, e tenho várias casas à minha disposição, roupas e empre­gadas e algumas horríveis jóias de família, além de crédito nas lojas. Mas tudo isso é a família, não sou eu.

— Não, mas de qualquer forma... — Bobby calou-se.

— É bem diferente, eu sei.

— É, bem diferente — anuiu Bobby sentindo-se subita­mente muito deprimido.

Em silêncio andaram até o próximo ponto de partida.

— Vou para Londres amanhã — anunciou Frankie quan­do Bobby abaixou-se para colocar a bola no suporte.

— Amanhã? Ora, eu ia convidá-la para um piquenique.

— Eu gostaria de ir, mas já está combinado. Sabe, pa­pai está com outro ataque de gota.

— Você deveria ficar e tomar conta dele — disse Bobby.

— Ele não gostaria disso. Detesta ser amimado, prefere ser servido pelo segundo lacaio que é muito paciente e não se incomoda que papai atire coisas em cima dele nem que o chame de idiota.

Bobby desceu o taco e a bola foi parar no banco de areia.

— Que azar — disse Frankie e deu uma bela tacada que atirou a sua para o outro lado.

— Mudando de assunto — disse ela — podíamos encon­trar-nos em Londres. Você vai logo para lá?

— Na segunda-feira. Ora, mas isso não daria certo, não é?

O que quer dizer com não daria certo?

— Bem, vou trabalhar como mecânico a maior parte do tempo, e...

— Mesmo assim, creio que você é tão capaz de ir a um coquetel e embriagar-se como qualquer um dos meus outros amigos.

Bobby limitou-se a sacudir a cabeça.

— Farei uma reunião à base de cerveja e salsichas, se você preferir — encorajou-o Frankie.

— Oh, escute aqui, Frankie, de que adiantaria? Não é possível misturar a minha turma com a sua. Não dá certo misturar gente diferente.

— Asseguro-lhe que em minha turma há gente de todo o tipo — retrucou Frankie.

— Você está fingindo que não me entende.

— Para provar a minha boa vontade pode até trazer o Badger.

— Você tem implicância com o Badger.

— Deve ser porque ele gagueja. Gente que gagueja sem­pre me faz gaguejar também.

— Olhe aqui, Frankie, não dará certo e você sabe dis­so. Aqui ainda vai, não há muito para se fazer, e acredito que sou melhor do que nada. Você tem sido sempre muito de­cente comigo e tudo o mais, e eu lhe sou grato. Mas sei que não sou ninguém, eu sei.

— Quando tiver acabado de dar vazão ao seu complexo de inferioridade — interrompeu a moça num tom glacial — tente usar um ferro número oito que é mais próprio para tirar a bola da areia.

— Eu estava... Ora! Que diabo! — disse Bobby, e colocando o taco de madeira no saco retirou o taco adequado.

Frankie ficou observando com maciliosa satisfação en­quanto o rapaz dava cinco golpes infrutíferos na bola, levan­tando nuvens de areia.

— O buraco é seu — disse por fim Bobby apanhando a bola.

— Também acho — retrucou Frankie — e com este eu ganho a partida.

— Vamos até o final?

— Não. Tenho muito que fazer.

— Ora, certamente. Você deve ter mesmo.

Em silêncio seguiram para a sede do clube.

— Bem — disse Frankie estendendo a mão — adeus, meu caro. Foi maravilhoso tê-lo tão perto nesses dias que pas­sei aqui. Talvez eu o veja novamente quando não tiver nada melhor para fazer.

— Olhe aqui, Frankie...

— Se quiser dignar-se a comparecer a uma das minhas festas, ouvi falar que no Woolworth’s pode-se comprar bo­tões de pérola bem baratinhos.

— Frankie...

Suas palavras foram abafadas pelo ruído do motor do Bentley. Ela acenou ligeiramente a mão ao dar partida ao carro.

— Diabos! — explodiu Bobby acabrunhado.

O comportamento de Frankie fora injustificável, pensou o rapaz. Talvez ele não tivesse usado de muito tato, mas o que dissera fora a pura verdade. Entretanto, talvez não de­vesse ter posto em palavras os seus sentimentos.

Os três dias que se seguiram pareceram-lhe interminá­veis. O vigário contraiu uma faringite que mal lhe permitia falar em sussurros. Além disso, falava o mínimo possível, ob­viamente suportando a presença do seu quarto filho apenas por caridade cristã. Umas duas vezes citou Shakespeare, re­ferindo-se aos dentes de uma serpente...1

 (1) “Mais aguçada do que os dentes de uma serpente é a ingra­tidão de um filho...” (Rei Lear)

No sábado Bobby sentiu que não podia mais agüentar a tensão que reinava em casa. Pediu à Srª Roberts, que com o auxílio do marido olhava pelo vicariato, para lhe preparar um pacote de sanduíches, e com estes e mais uma garrafa de cerveja que comprou em Marchbolt saiu para um piquenique solitário.

Sentira terrivelmente a falta de Frankie nesses últimos dias. Os mais velhos eram impossíveis. Ficavam o tempo todo repisando o mesmo assunto.

Bobby deitou-se numa encosta sombreada ponderando se deveria comer o lanche primeiro e dormir depois, ou dormir primeiro e comer depois. Antes que pudesse chegar a uma conclusão, o assunto resolveu-se por si mesmo. Sem o perce­ber, o rapaz adormeceu.

Eram três e meia quando acordou. Bobby sorriu ao ima­ginar como o pai desaprovaria uma tal maneira de passar o dia. Um jovem saudável deveria fazer uma caminhada de uns vinte quilômetros pelos campos. Só após tal exercício poderia sentir que realmente “fizera jus” à sua comida.

Que coisa mais idiota, pensou Bobby. Por que “fazer jus” à comida dando uma enorme caminhada sem nenhum prazer especial? Qual o mérito da questão? Se andamos por prazer, trata-se de auto-indulgência, e se andar nos é desagra­dável, é uma total idiotice.

Após tais reflexões, atacou os sanduíches a que não fi­zera jus e comeu-os com apetite. Depois, com um suspiro de satisfação, soltou a tampa da garrafa de cerveja. Um tanto amarga, mas bem refrescante...

Tornou a deitar-se, atirando a garrafa vazia numa moita de urze. Sentia-se como um deus. O mundo estava a seus pés. Era uma frase feita, mas uma bela frase. Poderia fazer qual­quer coisa que desejasse. Projetos esplêndidos e ousados en­cheram sua mente.

Então tornou a sentir-se sonolento. Uma pesada letargia o envolveu. Bobby dormiu...

Um sono pesado, entorpecedor...

 

A MORTE POR UM TRIZ

Frankie estacionou o seu grande Bentley verde junto à calçada em frente de uma enorme e antiquada mansão. Sob o portal lia-se “Santo Asaph”.

Carregando uma grande braçada de lírios, a moça desceu do carro e tocou a campainha. Uma mulher com um uniforme de enfermeira abriu a porta.

— Posso ver o Sr. Jones? — perguntou Frankie.

Os olhos da enfermeira inspecionaram o Bentley, os lí­rios e Frankie com grande interesse.

— A quem devo anunciar?

— Lady Frances Derwent.

A enfermeira ficou impressionada. O paciente cresceu em sua estima.

Ela conduziu Frankie escada acima até um quarto do primeiro andar e abriu a porta.

— Uma visita, Sr. Jones. Vamos ver se adivinha quem é. É uma bela surpresa para o senhor — disse ela no tom jovial que as enfermeiras costumam usar.

— Caramba! — exclamou Bobby muito surpreendido. — Se não é a Frankie!

— Alô, Bobby. Trouxe-lhe as flores de praxe. Cheiram a cemitério, mas não havia muita escolha.

— Oh, Lady Frances, são lindas! — tornou a enfermei­ra. — Vou colocá-las num vaso — acrescentou e pegando o ramo, saiu.

Frankie sentou-se na cadeira obviamente destinada aos visitantes.

— Bem, Bobby — disse ela. — O que aconteceu?

— Você nem imagina — disse Bobby. — Sou a sen­sação do momento. Tomei oito grãos de morfina! Vão escre­ver sobre o meu caso no Lancet e na R.I.M.

— Que R.I.M. é esse? — interrompeu-o Frankie.

— A Revista Inglesa de Medicina.

— Vá em frente. Despeje mais algumas siglas.

— Minha cara, sabia que meio grão pode ser fatal? Eu devia ter morrido umas dezesseis vezes. É verdade que já hou­ve quem se recuperasse após ingerir dezesseis grãos de mor­fina, mas mesmo assim oito é muita coisa, não acha? Eu sou o herói do momento. Nesta casa de saúde nunca tiveram um caso parecido com o meu.

— Ora, que bom para eles.

— Não é? Assim têm assunto para entreter os outros pacientes.

A enfermeira retornou trazendo os lírios num vaso.

— Enfermeira, não é verdade que vocês nunca viram um caso como o meu antes? — perguntou Bobby.

— Ora, o senhor nem devia estar aqui — retrucou ela. — Mas só os bons é que morrem cedo... — e rindo da pró­pria tirada, ela saiu.

— Viu? — disse Bobby. — Vou ficar famoso em toda a Inglaterra, você verá.

Continuou a tagarelar. Todos os sinais do complexo de inferioridade que revelara em sua última conversa com Frankie haviam desaparecido. Contou todos os detalhes do seu caso com óbvio prazer.

— Já chega — interrompeu a moça. — Não acho mui­ta graça em lavagens intestinais. Ouvindo você falar alguém pensaria que foi a primeira pessoa do mundo a ser envene­nada.

— É, mas muito poucos já tomaram oito grãos de mor­fina sem bater as botas — retorquiu Bobby. — Que diabo! Você nem está impressionada!

— Que decepção devem ter tido os que tentaram enve­nená-lo — disse Frankie.

— Não é mesmo? Que desperdício de morfina!

— Estava na cerveja, não é?

— Estava. Alguém me encontrou dormindo profunda­mente, tentou me acordar sem conseguir, e então, alarmado, carregou-me para uma casa de fazenda e mandou chamar o médico.

— Daí em diante já sei o que aconteceu — acudiu rapidamente Frankie.

— A princípio julgaram que eu houvesse tomado a dro­ga deliberadamente, mas quando ouviram a minha história, voltaram e encontraram a garrafa onde eu a jogara. As gotas que restavam no fundo foram o suficiente para uma análise química.

— Não sabem como a morfina foi parar na cerveja?

— Não. Interrogaram o pessoal do bar onde eu a com­prei e abriram outras garrafas. Estava tudo em ordem.

— Então alguém deve ter colocado a morfina na cerve­ja enquanto você dormia...

— Deve ter sido isso Lembro-me que o selo da garrafa não estava bem colado.

Frankie balançou a cabeça com ar pensativo.

— Bem — disse ela — isso mostra que o que eu lhe disse no trem naquele dia estava certo.

— O que você disse?

— Que aquele camarada, o tal Pritchard, fora empur­rado para o abismo.

— Não foi no trem, foi na estação que você disse isso — retrucou Bobby.

— É a mesma coisa.

— Mas por quê...

— Querido, é óbvio! Por que alguém iria querer que você morresse? Você não é herdeiro de nenhuma fortuna ou coisa semelhante!

— Talvez eu seja. Alguma tia-avó da Nova Zelândia, de quem nunca ouvi falar, pode ter me deixado todo o seu di­nheiro.

— Tolice. Assim, sem o conhecer? E se ela não o co­nhecia por que deixaria o seu dinheiro para um quarto filho? Ora, nessa época difícil talvez nem mesmo um clérigo chegasse a ter tantos filhos. Não, para mim está bem claro. Ninguém se beneficia com a sua morte, e portanto essa hipótese está fora de cogitação. Terá sido por vingança? Você por acaso não seduziu a filha de algum farmacêutico?

— Não que eu me lembre — retorquiu Bobby com dig­nidade.

— Suponho que após tantas seduções seja difícil de se lembrar... Mas eu diria que você nunca seduziu ninguém.

— Está me fazendo corar, Frankie. Mas por que logo a filha de um farmacêutico?

— Pela facilidade de conseguir morfina. Não é coisa que se arranje facilmente.

— Bem, eu não seduzi nenhuma filha de farmacêutico.

— E você, que saiba, não tem inimigos?

Bobby sacudiu a cabeça numa negativa.

— Bem, então eu tenho razão — disse Frankie triunfante. — Deve ter sido por causa do homem que caiu no penhas­co. O que acha a polícia?

— Pensam que foi obra de um doido.

— Tolice. Doidos não andam por aí com morfina para colocar na cerveja dos outros. Não, alguém empurrou Pritchard para o abismo. Você chegou um ou dois minutos de­pois, e ele pensa que você o viu e resolveu tirá-lo do seu ca­minho.

— Acho meio furada essa sua hipótese, Frankie.

— Por quê?

— Ora, prá começar, eu não vi nada.

— Mas ele não sabe disso.

— E se eu tivesse visto alguma coisa, teria dito no in­quérito.

— É, talvez — admitiu Frankie de má vontade.

A moça refletiu alguns momentos.

— Talvez ele acredite que você tenha visto alguma coi­sa a que não deu importância, mas que é muito importante. Entende o que quero dizer?

Bobby fez um gesto de assentimento.

— Compreendo, mas não me parece muito provável.

— Estou certa de que o caso do penhasco tem alguma relação com o que lhe aconteceu. Você esteve lá, foi o pri­meiro a chegar...

— Thomas também esteve lá — lembrou Bobby — e ninguém tentou envenená-lo.

— Talvez ainda tentem — disse Frankie jovialmente — ou talvez tenham tentado e falhado.

— Acho que você está imaginando coisas.

— Pois para mim é muito lógico. Aconteceram dois fa­tos estranhos num lugar pacato como Marchbolt... ei, espe­re, há mais uma coisa!

— O quê?

— Aquele emprego que lhe ofereceram. É menos sensa­cional, mas é estranho, você tem de admitir. Nunca ouvi fa­lar em firmas estrangeiras que andassem à procura de pro­saicos oficiais de marinha reformados.

— Você disse prosaico?

— Naquela altura você ainda não tinha saído na R.I.M., não é? Mas está vendo onde quero chegar. Você viu algo que não devia ver, ou pelo menos eles (quem quer que sejam) pensam que você viu. Pois bem, primeiro eles tentam livrar-se de você oferecendo-lhe um emprego no estrangeiro. Quan­do este expediente falha, tentam tirá-lo de vez do caminho.

— Esta não é uma medida muito drástica? Um risco muito grande?

— Ah! Mas os assassinos são sempre extremistas. Quan­to mais gente matam, mais querem matar.

— Como em A Terceira Mancha de Sangue — lembrou Bobby, recordando-se de um de seus livros favoritos.

— Sim, e na vida real, também. Lembre-se de Smith e suas esposas, de Armstrong e suas vítimas.

— Bem, Frankie, mas que diabos pensam que eu vi?

— Aí está o problema, sem dúvida — admitiu a moça. — Concordo que não deve ter sido o próprio crime, pois você já teria falado sobre o assunto. Deve ser algo sobre o morto. Talvez ele tivesse algum sinal de nascença, dedos com junta dupla ou alguma outra peculiaridade.

— Você anda lendo muitos livros do Dr. Thorndyke. Não pode ter sido nada disso, pois tudo o que eu vi, a polícia viu também.

— É verdade, foi uma idéia idiota. Mas não é fácil, não é?

— A sua teoria é interessante — disse Bobby — e me faz sentir importante, mas mesmo assim creio que não passa de uma teoria.

— Tenho certeza de que estou certa — retrucou Frankie levantando-se. — Agora devo ir. Quer que eu venha vê-lo outra vez amanhã?

— Oh! Por favor! As fofocas das enfermeiras já se tor­naram monótonas. Mudando de assunto, você não retornou muito cedo de Londres?

— Meu caro, voltei imediatamente assim que soube do que lhe aconteceu. É emocionante ter um amigo envenenado de forma tão romântica.

— Não creio que a morfina seja assim tão romântica — disse Bobby lembrando-se do que passara.

— Bem, eu virei amanhã. Devo ou não beijá-lo?

— Não há perigo de contágio — disse Bobby encorajando-a.

— Então cumprirei todos os meus deveres de caridade — retorquiu Frankie e deu-lhe um beijo rápido. — Até ama­nhã.

A enfermeira entrava com o chá de Bobby quando ela saiu.

— Já vi vários retratos dela nos jornais, mas não eram muito parecidos. Também já a vi passar no seu carro, mas nunca tinha visto a moça tão de perto. Ela nada tem de arro­gante, não é?

— Não, de forma alguma! — disse Bobby. — Frankie não é nada arrogante.

— Eu disse à Irmã que ela é muito simples, nem um pouquinho orgulhosa. Eu disse à Irmã que ela é igualzinha a qualquer uma de nós.

Discordando violentamente dessa opinião, Bobby não deu resposta. Desapontada pelo seu silêncio, a enfermeira deixou o quarto.

Bobby ficou a sós com seus pensamentos.

Tomou o chá e passou a examinar os vários aspectos da teoria de Frankie, até relutantemente chegar à conclusão de que não tinha fundamentos. Então olhou em volta à procura de outras distrações.

Seus olhos fixaram-se no vaso de lírios. Fora extrema­mente delicado da parte de Frankie trazer-lhe todas aquelas flores, e eram lindas, sem dúvida, mas ele desejaria que ela tivesse preferido alguns livros de mistério. Baixou o olhar para a mesa-de-cabeceira. Ali estavam um romance de Ouida, um exemplar de John Halifax, Cavalheiro e o Semanário Ilus­trado de Marchbolt, da semana anterior. Pegou John Halifax, Cavalheiro.

Cinco minutos mais tarde colocou-o de lado. Para uma mente habituada a A Terceira Mancha de Sangue, O Caso do Arquiduque Assassinado, e A Estranha Aventura da Adaga Florentina, John Halifax, Cavalheiro não tinha muito a ofe­recer.

Com um suspiro Bobby apanhou o Semanário Ilustrado de Marchbolt.

Alguns instantes mais tarde ele apertou a campainha sob o travesseiro com tanto vigor que a enfermeira literalmente despencou-se para o seu quarto.

— O que aconteceu, Sr. Jones? Está passando mal?

— Telefone para o Castelo — berrou Bobby. — Diga a Lady Frances para voltar aqui imediatamente.

— Oh, Sr. Jones! Não pode mandar um recado desses!

— Não posso? — rosnou Bobby. — Se me deixassem levantar dessa maldita cama, a senhora veria logo se eu posso ou não posso. Mas vai ter de fazê-lo por mim.

— Mas ela mal deve ter acabado de chegar...

— A senhora não conhece aquele Bentley.

— E ela não deve ter tomado ainda o seu chá.

— Olhe aqui, moça — disse Bobby — não fique aí dis­cutindo comigo. Vá telefonar para ela. Diga-lhe para vir aqui imediatamente porque tenho algo muito importante para lhe dizer.

Vencida, mas relutante, a enfermeira atendeu-o, mas to­mou algumas liberdades com o recado.

Se não fosse nenhum incômodo para Lady Frances, o Sr. Jones gostaria muito que ela fosse até lá, pois tinha algo muito importante para lhe comunicar. Mas, naturalmente, só se não fosse um transtorno.

Lady Frances respondeu sucintamente que estaria lá num minuto.

— Posso até apostar — disse a enfermeira às colegas — que ela gosta dele. Tenho certeza.

Frankie chegou ansiosa.

— Que significa essa intimação? — perguntou ela.

Bobby estava sentado na cama. Suas bochechas eram duas rodelas vermelhas. Entusiasmado, acenou-lhe com o exemplar do Semanário Ilustrado de Marchbolt.

— Veja isto, Frankie.

Frankie viu.

— E daí? — ela perguntou.

— Este deve ser o retrato que você disse ser muito re­tocado mas bem semelhante à Srª Cayman — retrucou Bobby apontando para a reprodução não muito nítida de uma foto­grafia. Embaixo lia-se: “retrato encontrado em poder do morto que possibilitou as sua identificação pela sra. Leo Cayman, irmã do morto”.

— Foi isso mesmo que eu disse, e é a pura verdade. Na­da vejo de admirável nesse rosto.

— Nem eu.

— Mas você disse...

— Eu sei o que eu disse. Mas Frankie — e a voz de Bobby assumiu um tom sinistro: — não foi esta a fotografia que recoloquei no bolso do morto...

Os dois entreolharam-se.

— Neste caso... — começou Frankie lentamente.

— Ou havia duas fotografias...

— O que não é provável...

— Ou...

Calaram-se.

— Aquele homem! — qual era o nome dele? — per­guntou Frankie.

— Bassington-ffrench — disse Bobby.

— Só pode ter sido ele!

 

O ENIGMA DA FOTOGRAFIA

Ficaram olhando um para o outro enquanto tentavam ajustar-se à nova situação.

— Não pode ter sido mais ninguém — disse Bobby. — Ele foi o único a ter uma oportunidade.

— A menos, como dissemos, que houvesse duas foto­grafias.

— Já concordamos que isto não é provável. Se houvesse duas fotografias teriam tentado identificá-lo através das duas e não de uma só.

— De qualquer forma, isso é fácil de descobrir — disse Frankie. — Podemos perguntar à polícia. Vamos supor por um instante que só existisse uma fotografia, a que você reco­locou no bolso do morto. Ela estava lá quando você o dei­xou, e não estava mais quando a polícia chegou. Portanto, a única pessoa que poderia ter feito a substituição foi esse tal de Bassington-ffrench. Como era ele, Bobby?

O rapaz franziu a testa tentando recordar-se.

— Um camarada sem nada de extraordinário, com uma voz agradável. Parecia ser um cavalheiro. Na verdade, eu não o observei muito bem. Ele disse que viera ver uma casa anun­ciada para vender.

— Isso pode ser verificado — acudiu Frankie. — Wheeler & Owen são os nossos únicos corretores de imóveis.

Subitamente ela estremeceu.

— Bobby, já pensou? — Se Pritchard foi empurrado, deve ter sido por Bassington-ffrench...

— Que pensamento sinistro — disse Bobby. — Pois ele me pareceu um sujeito simpático e agradável. Frankie, não podemos ter certeza de que ele foi empurrado, como você acreditou desde o início.

— Não, eu só torcia por essa hipótese porque tornava o caso mais emocionante. Mas agora está mais ou menos pro­vado, não? Tudo conduz a um assassinato. A sua chegada ines­perada atrapalha os planos do assassino. Você descobre a fo­tografia e conseqüentemente precisa ser eliminado.

— Há uma falha aí — disse Bobby.

— Qual? Você foi a única pessoa a ver a fotografia. As­sim que Bassington-ffrench ficou sozinho com o cadáver ele substituiu a fotografia que você havia visto por outra.

Mas Bobby continuou a sacudir a cabeça.

— Não, essa teoria não serve. Vamos admitir por um momento que aquela fotografia fosse tão importante que eu tivesse de ser “eliminado”, como diz você. Para mim é um absurdo, mas suponho que é possível. Bem, então o que de­veria ter sido feito, deveria ter sido feito imediatamente. O fato de que eu fui a Londres e não vi o Semanário Ilustrado de Marchbolt ou os outros jornais que publicaram a fotogra­fia foi uma pura questão de chance, ninguém podia contar com isso. As probabilidades eram todas de que eu a visse e protestasse: “mas essa não é a fotografia que eu vi”. Por que eu iria esperar até depois do inquérito quando tudo parecia lindamente resolvido?

— É um argumento ponderável — admitiu Frankie.

— E há uma outra coisa: não posso ter certeza absolu­ta, naturalmente, mas quase poderia jurar que quando recolo­quei a fotografia no bolso do morto, Bassington-ffrench não estava me espiando. Ele só chegou uns cinco ou dez minutos depois.

— Ele poderia estar observando o tempo todo — argumentou Frankie.

— Não vejo como — disse Bobby devagar. — Só há um lugar de onde se pode ver o platô em que estávamos. Em volta o penhasco avança antes de formar a reentrância, de modo que não se vê a base. Só éramos visíveis de um único ponto, e quando Bassington-ffrench se aproximou, eu o ouvi na mesma hora. Os passos ecoam lá embaixo. Ele devia estar por perto, mas não podia nos observar, isso eu garanto.

— Então acha que ele não o viu pegar o retrato?

— Não vejo como ele possa ter visto.

— Ele não podia estar com medo de que você tivesse presenciado o assassinato, pois você o teria denunciado. O motivo deve ser outro.

— Não sei qual possa ser.

— É alguma coisa que eles só vieram a saber depois do inquérito. Não sei por que estou falando em “eles”.

— E por que não? Afinal os Cayman devem estar en­volvidos. Provavelmente fazem parte da quadrilha. Gosto da idéia de uma quadrilha.

— Que falta de gosto — retrucou Frankie distraidamente. — Um assassino isolado tem muito mais classe... Bobby!

— O que foi?

— O que Pritchard disse pouco antes de morrer? Sabe, aquilo que você me contou no campo de golfe. Aquela per­gunta engraçada.

— “Por que não pediram a Evans?”

— Isso mesmo. Suponha que este seja o motivo...

— Mas isso é ridículo!

— Pode ser, mas também pode ser muito importante. Oh, Bobby, tenho certeza de que foi por isso! Ora, mas que idiota eu sou! Você nunca disse nada sobre isso aos Cayman, não foi?

— Para falar a verdade, eu contei — respondeu Bobby lentamente.

— Você contou?

— Sim, escrevi-lhes naquela noite, acrescentando, naturalmente, que provavelmente não era importante.

— E o que aconteceu?

— Cayman respondeu-me (de uma forma polida, naturalmente) que considerava sem importância aquelas palavras, mas que agradecia o incômodo a que me dera. Fiquei me sen­tindo ridículo.

— E dois dias mais tarde você recebeu aquela carta de uma firma desconhecida praticamente subornando-o para que fosse para a América do Sul!

— Tem razão.

— Bem — tornou Frankie — não sei o que você pode querer mais. Eles tentam tirá-lo daqui, você recusa a oferta, eles o seguem e aproveitam uma chance para encher de mor­fina sua garrafa de cerveja.

— Então os Cayman estão mesmo metidos nessa histó­ria?

— Naturalmente!

— É — concordou Bobby pensativo — se sua reconstituição está correta, eles devem estar envolvidos. Então nossa teoria por ora é a seguinte: O morto, o Sr. X, foi empurrado deliberadamente para o abismo, provavelmente por BF (des­culpe as iniciais). Era muito importante que X não fosse identificado corretamente, de forma que o retrato da Srª C é colocado em seu bolso no lugar do retrato da bela desco­nhecida... Mas quem seria ela?

— Nada de divagações — admoestou-o Frankie aborre­cida.

— A Srª C espera a fotografia ser publicada e surge em cena como a irmã chorosa, identificando X como o irmão re­cém-chegado do exterior.

— Não acredita então que ela pudesse ser realmente ir­mã dele?

— Nem por um instante! Sabe, este foi um fato que me deixou intrigado o tempo todo. Os Cayman são gente de uma classe completamente diferente. O morto era... bem, talvez lhe pareça um termo pretensioso que um coronel aposentado das Índias empregaria, mas o homem era um “pukkasahib”.

— E os Cayman decididamente não o eram?

— Ponha decididamente nisso.

— E quando tudo parecia ter saído às mil maravilhas para os Cayman — a identificação do cadáver, o veredicto de morte acidental — você aparece para estragar tudo — con­cluiu Frankie.

— “Por que não pediram a Evans?” — repetiu Bobby pensativo. — Sabe, não consigo ver o que, diabos, possa haver nessas palavras para deixá-los tão alarmados.

— Ah! é porque você está no escuro. É como fazer pa­lavras cruzadas. Uma determinada chave pode parecer-lhe tão banal que não consegue entender porque todos não a de­cifram logo. “Por que não pediram a Evans” deve ser uma frase tão significativa para eles, que não lhes passa pela cabe­ça que não significa nada para você.

— Mas que tolos, hem?

— Não é mesmo? Mas também é possível que pensem que se Pritchard disse essas palavras, deve ter dito também mais alguma coisa que você acabará se lembrando. É mais seguro eliminá-lo.

— Mas eles se arriscaram muito. Por que não arquite­taram outro acidente?

— Não, não. Teria sido uma tolice. Dois acidentes com uma semana de intervalo? Talvez alguém estabelecesse uma ligação entre os dois e reabrissem as investigações do primei­ro caso. Não, acho que foram de uma simplicidade tão auda­ciosa que chega até a ser genial.

— Mas você disse há pouco que não era fácil conseguir morfina.

— E não é. É preciso assinar registros de veneno e ou­tras coisas. Ora, aí temos uma pista! O criminoso tinha fácil acesso à droga.

— Um médico, uma enfermeira ou um farmacêutico — sugeriu Bobby.

— Bem, eu estava pensando em contrabando de entorpecentes.

— Mas que salada de crimes você está fazendo — recla­mou Bobby.

— Sabe, a ausência de motivo é o ponto principal. Sua morte não traz benefícios a ninguém. Sendo assim, o que a polícia iria pensar?

— Que o crime fora obra de um lunático. E é exatamen­te isso que eles pensam.

— Está vendo? Na realidade é muito simples.

Subitamente Bobby começou a rir.

— O que é tão divertido?

— Estou pensando como devem ter ficado decepciona­dos! Toda aquela morfina, o bastante para matar umas cinco ou seis pessoas, e aqui estou eu, mais vivo do que nunca!

— Uma das pequenas ironias da vida que ninguém po­de prever — disse Frankie.

— O problema é o que faremos agora — tornou o prá­tico Bobby.

— Ora, uma porção de coisas — retrucou a moça prontamente.

— Assim como...

— Bem, vamos investigar a questão do retrato, se havia um só ou dois, e a tal casa que Bassington-ffrench disse estar à venda.

— Quanto a ele, provavelmente, estará tudo em ordem.

— Por que diz isso?

— Olhe aqui, Frankie, pense um minuto. Bassington-ffrench tem de estar além de qualquer suspeita, tem de estar limpo, nada ter a esconder. Não só nada deve existir que o associe com o morto, como deve haver um motivo plausível que explique sua presença aqui. Ele pode ter inventado a com­pra da casa seguindo uma inspiração de momento, mas apos­to que tomou providências para corroborar as suas palavras. Ninguém deve pensar nele como “o misterioso estranho que surgiu na cena do acidente”. Penso que Bassington-ffrench é o seu nome verdadeiro, e que ele é a espécie de pessoa que está aparentemente acima de qualquer suspeita.

— Sim — disse Frankie pensativa. — É uma bela de­dução. Nada deve haver que ligue Bassington-ffrench a Alex Pritchard. Mas se soubéssemos quem o morto realmente é...

— Então poderia ser diferente.

— De forma que era importantíssimo que o cadáver não fosse reconhecido, daí a encenação dos Cayman. Mas eles correram um grande risco.

— Você se esquece que a Srª Cayman o identificou lo­go que foi humanamente possível. Se depois disso aparecessem fotos do morto nos jornais, que na maioria das vezes são pouco nítidas, alguém talvez se limitaria a pensar: “curioso como esse tal de Pritchard que caiu do penhasco se parece com o Sr. X.”...

— É, mas além disso — acrescentou a moça astutamen­te — X deve ter sido a espécie de pessoa cuja falta não seria notada de imediato. Ele não devia ter parentes próximos que procurassem a polícia, caso ele não aparecesse no dia se­guinte.

— Bela dedução, Frankie. Acredito que ele fosse empreender uma viagem ou então tivesse acabado de chegar do exterior (sua pele tinha um belo tom bronzeado). Talvez fosse um caçador de feras africanas, o papel lhe assentaria bem. Mas na certa não possuía uma família que acompanhas­se todos os seus movimentos.

— Só espero que essas maravilhosas deduções não es­tejam todas erradas.

— O que é bastante provável — disse Bobby. — Mas não vejo nada de insensato no que dissemos até agora, levan­do em consideração que tudo isso é altamente improvável.

Frankie afastou tal idéia com um gesto decidido.

— O problema é o que faremos agora — disse ela. — Parece-me que temos três ângulos de ataque.

— Prossiga, Sherlock.

— O primeiro é você. Eles tentaram contra a sua vida uma vez. Provavelmente tornarão a tentar. E desta vez pode­remos descobrir alguma coisa sobre eles, utilizando-o como isca.

— Não, muito obrigado, Frankie — atalhou Bobby com ênfase. — Tive muita sorte dessa vez, mas posso não ter da próxima se resolverem marretar-me a cabeça. Estava plane­jando tomar muito cuidado comigo mesmo no futuro. Deixe essa idéia de isca de lado.

— Temia que você reagisse dessa forma — tornou Fran­kie com um suspiro. — Infelizmente os jovens de hoje estão degenerando, como diz o papai. Não sentem mais prazer em enfrentar situações desconfortáveis ou em praticar atos herói­cos. É uma pena.

— Uma grande pena — concordou Bobby em tom fir­me. — Qual é o segundo ângulo de ataque?

— Investigarmos o que o morto quis dizer com “Por que não pediram a Evans?” — disse Frankie. — Provavel­mente ele veio até aqui procurar esse tal Evans. Se pudésse­mos encontrá-lo...

— E quantos Evans — interrompeu Bobby — você cal­cula que existam em Marchbolt?

— Por volta de uns setecentos — admitiu Frankie.

— Isso no mínimo! Poderíamos tentar, mas não acredi­to que tivéssemos êxito.

— Que tal fazer uma lista de todos os Evans e visitar os mais prováveis?

— E perguntar-lhes o quê?

— Aí está o problema — retrucou Frankie.

— Precisamos saber um pouco mais, então talvez sua idéia seja útil. Qual é o terceiro ângulo?

— O homem chamado Bassington-ffrench. Temos aí um ponto concreto para investigar. É um nome muito pouco co­mum. Perguntarei a papai. Ele conhece todas as famílias tra­dicionais e seus vários ramos.

— Ótimo —- disse o rapaz. — Talvez cheguemos a al­guma conclusão.

— De qualquer forma nós vamos agir, não é?

— Certamente! Pensa que vou deixar me darem oito grãos de morfina sem fazer nada?

— Assim é que se fala — disse Frankie.

— Preciso vingar-me da indignidade dessas lavagens estomacais a que fui submetido.

— Ei, chega — atalhou a moça. — Não comece com essas coisas mórbidas e indecentes outra vez.

— Você não tem nenhum laivo de compreensão femini­na — lamentou-se Bobby.

 

A RESPEITO DO SR. BASSINGTON-FFRENCH

Frankie não perdeu tempo. Naquela mesma noite dirigiu-se ao pai.

— Conhece os Bassington-ffrench, papai?

Lord Marchington, que estava lendo um artigo sobre po­lítica, só ouviu as últimas palavras.

— A culpa é mais dos americanos do que dos france­ses — disse em tom severo. — Estão desperdiçando o tempo e o dinheiro da nação com toda essa conversa fiada e essas conferências...

Frankie deixou-o falar. — Lord Marchington disparou como uma locomotiva seguindo por um ramal conhecido. Quando estacou, ela repetiu:

— Os Bassington-ffrench, papai.

— O que têm eles? — perguntou Lord Marchington.

Frankie não sabia. Assim resolveu declarar qualquer coi­sa, conhecendo o prazer do pai em contradizê-la.

— São uma família do Yorkshire, não são?

— Tolice, são do Hampshire. Existe também um ramo em Shrospshire, naturalmente, e um ramo irlandês. A qual pertencem os seus amigos?

— Não estou bem certa — disse Frankie aceitando tacitamente aquela amizade com vários desconhecidos.

— Não está bem certa? O que quer dizer com isso? Pois deveria estar.

— As pessoas vivem de um lado para o outro, hoje em dia — disse ela.

—- E é tudo o que fazem. No meu tempo era hábito perguntar. Assim a gente se situava. Se alguém dizia que era do ramo de Hampshire, acabava-se descobrindo que sua avó ti­nha casado com nosso primo em segundo grau. E ficava es­tabelecido um elo.

— Devia ser maravilhoso — disse Frankie. — Mas ho­je em dia não há mais tempo para pesquisas genealógicas e geográficas.

— Não, vocês não têm tempo para mais nada a não ser engolir aqueles horrorosos coquetéis.

Lord Marchington soltou um súbito urro de dor. A sua perna atacada pela gota em nada melhorara com a ingestão de vários cálices do vinho do Porto da adega do Castelo.

— Eles estão bem de vida? — perguntou Frankie.

— Os Bassington-french? Não sei. O ramo de Shropshire estava em dificuldades devido aos impostos sobre heranças e uma coisa e outra. Um membro do ramo de Hampshire ca­sou-se com uma herdeira americana.

— Um deles esteve aqui outro dia — disse Frankie. — Parece que à procura de uma casa.

— Que idéia mais esquisita! Por que alguém haveria de querer uma casa nessa região?

Esta era uma boa pergunta, pensou Frankie.

No dia seguinte a moça dirigiu-se ao escritório de Wheeler & Owen, corretores de imóveis.

O Sr. Owen em pessoa pulou de sua cadeira ao vê-la. Frankie deu-lhe um sorriso amável e sentou-se.

— A que devo o prazer de sua visita, Lady Frances? A senhorita não deseja vender o castelo, espero. Ha! Ha! — riu o Sr. Owen da própria tirada.

— Gostaríamos de poder — retrucou Frankie. — Não, o motivo é outro. Penso que um amigo meu esteve aqui ou­tro dia, o Sr. Bassington-ffrench. Estava procurando uma casa.

— Ah, sim. Lembro-me perfeitamente do nome. É com dois efes minúsculos.

— Isso mesmo — disse Frankie.

— Ele estava interessado em comprar uma propriedade pequena. Como precisou voltar a Londres logo no dia seguin­te, não pode percorrer muitas delas, mas não tinha urgência. Desde que esteve aqui, foram postas à venda umas duas propriedades que se ajustam às suas necessidades. Escrevi-lhe a respeito das condições, mas ainda não obtive resposta.

— O senhor escreveu para o endereço de Londres, ou para... para sua propriedade rural? — perguntou Frankie.

— Vou verificar.

O Sr. Owen chamou um auxiliar.

— Frank, veja o endereço do Sr. Bassington-ffrench.

— Roger Bassington-ffrench, Esq., Merroway Court, Staverley, Hants — recitou prontamente o rapaz.

— Ah! — fez Frankie. — Então não era o meu Sr. Bassington-ffrench. Deve ser o primo dele. Bem que achei esquisito ele ter vindo até aqui e não me ter procurado.

— É verdade. É verdade — disse o Sr. Owen meio confuso.

— Deixe-me ver... Ele deve ter vindo aqui na quarta-feira, não é?

— Isso mesmo. Pouco antes das seis e meia. Essa é a hora que fechamos. Não me esqueci porque foi o dia daquele triste acidente, do homem que caiu do penhasco. Na verdade o Sr. Bassington-ffrench tinha ficado com o cadáver até a che­gada da polícia. Ele parecia muito perturbado ao chegar aqui. Que tragédia, não? Já era tempo de serem tomadas providên­cias a respeito daquele trecho. Tenho ouvido muitas críticas ao Conselho Municipal, Lady Frances. O lugar é muito peri­goso. Não sei como já não tivemos mais acidentes ali.

— Realmente, é extraordinário — disse Frankie.

A moça deixou o escritório muito pensativa. Como Bobby previra, todas as ações do Sr. Bassington-ffrench pareciam inocentes e acima de qualquer suspeita. Pertencia ao ramo dos Hampshire, fornecera o endereço correto e contara ao corre­tor a sua participação na tragédia. Seria possível, afinal, que o Sr. Bassington-ffrench fosse a personagem completamente inocente que aparentava ser?

Frankie teve um instante de dúvida, mas logo afastou-a.

Não, disse para si mesma. Um homem que quisesse com­prar uma casa ou chegaria aqui mais cedo, ou ficaria mais um dia. Não iria procurar um corretor às seis e meia da tarde e partir para Londres na manhã seguinte. Por que então fazer a viagem até aqui? Bastaria escrever.

Não, concluiu ela. Bassington-ffrench era culpado.

Sua próxima visita foi à delegacia de polícia.

O Inspetor Williams era um velho conhecido, tendo descoberto o paradeiro de uma criada com falsas referências que roubara algumas jóias de Frankie.

— Boa tarde, inspetor.

— Boa tarde, milady. Não há nada de errado, eu espero.

— Ainda não, mas estou planejando assaltar o banco pois estou sem dinheiro.

A esta demonstração de espírito o inspetor deu uma gargalhada ruidosa.

— Para ser sincera, vim fazer-lhe algumas perguntas, por pura curiosidade — disse Frankie.

— É mesmo, Lady Frances?

— Agora diga-me, inspetor, aquele homem que caiu do penhasco, Pritchard ou coisa semelhante...

— É Pritchard mesmo.

— Ele só tinha em seu poder uma fotografia, não é? Alguém me disse que ele tinha três.

— Não, uma só — disse o inspetor. — Era a fotogra­fia da irmã que o veio identificar.

— Mas que absurdo falarem em três!

— Ora, isto não é nada, milady. Esses repórteres não tem escrúpulos em exagerar, quando não trocam tudo.

— Eu sei — disse Frankie. — Já ouvi as histórias mais estranhas.

A moça fez uma pausa e resolveu soltar as rédeas de sua imaginação.

— Falaram que seus bolsos estavam cheios de papéis que o implicavam como agente bolchevista, e ouvi outra história de que estariam cheios de narcóticos, e também de notas fal­sas.

O inspetor riu gostosamente.

— Essa é boa.

— Suponho que nada houvesse de extraordinário em seus bolsos.

— Muito pouca coisa: um lenço sem marcas, alguns trocados, um pacote de cigarros e algumas notas soltas, sem carteira. Nenhuma carta. Teríamos tido um trabalhão para identificá-lo se não fosse pela fotografia. Esta foi realmente providencial, sem dúvida.

— Não foi mesmo? — retrucou Frankie.

Em vista do que sabia, a moça julgou “providencial” um adjetivo bem inadequado. Resolveu mudar de assunto.

— Ontem fui visitar o Sr. Jones, o filho do vigário que foi envenenado. Que coisa mais esquisita, não é?

— Ah! — fez o inspetor. — Esquisitíssima, eu diria. Nunca ouvi falar em nada parecido acontecendo por essas bandas. Um jovem simpático, aparentemente sem nenhum ini­migo... Sabe, Lady Frances, há muitos malucos por aí. Mas mesmo assim nunca ouvi falar em nenhum maníaco homicida que agisse dessa forma.

— Existe alguma pista para o criminoso?

Frankie era a própria encarnação da curiosidade.

— Isso tudo é tão interessante — acrescentou ela.

O inspetor suspirou de tanta satisfação. Era muito agra­dável aquela conversa com a filha de um conde. Não havia arrogância nem esnobismo em Lady Frances.

— Foi visto um carro nas redondezas — disse o inspe­tor. — Um sedã Talbot azul escuro. Um guarda em Lock’s Corner anotou a placa de um Talbot azul escuro que ia na direção de St. Botolph. Era GG 8282.

— E o que acha o senhor?

— GG 8282 é o número do carro do bispo de St. Bo­tolph.

Por alguns momentos Frankie aventou a hipótese de um bispo homicida oferecendo em holocausto os filhos de seus clérigos, mas rejeitou-a com um suspiro.

— O senhor não suspeita do bispo, não é? — ela per­guntou.

— Descobrimos que o carro de Sua Excelência não saiu da garagem do palácio naquela tarde.

— Então a chapa era falsa.

— Sim, e é um ponto de partida.

Frankie despediu-se depois de expressar sua admiração. Sem fazer nenhum comentário desanimador, pensou consigo mesma que devia haver uma grande quantidade de Talbots azuis escuros na Inglaterra...

Ao chegar a casa apanhou a lista telefônica da bibliote­ca e levou-a para o quarto. Examinou-a durante algumas ho­ras. O resultado não foi satisfatório.

Existiam 482 Evans em Marchbolt.

— Mas que droga! — exclamou Frankie, e sentando-se começou a fazer outros planos para o futuro.

 

PREPARATIVOS PARA UM ACIDENTE

Uma semana mais tarde Bobby juntou-se a Badger em Londres. Recebera vários comunicados enigmáticos de Fran­kie, a maioria nuns rabiscos tão ilegíveis que o rapaz mal podia adivinhar-lhes o significado. Entretanto, a idéia geral era de que Frankie tinha um plano, e ele (Bobby) não devia fazer coisa alguma até receber notícias dela. O que vinha a calhar, pois Bobby certamente não tinha tempo para nada, já que o azarado Badger conseguira enrolar a si e ao negócio em todas as enrascadas possíveis, e o rapaz estava ocupado desfazendo as incríveis trapalhadas em que o amigo se metera.

Nesse ínterim, o jovem mantinha-se rigidamente em guar­da. Os oito grão de morfina tiveram o poder de torná-lo ex­tremamente desconfiado em relação a qualquer bebida ou ali­mento, impelindo-o a levar para Londres um revólver, cujo porte parecia-lhe uma tremenda maçada.

Estava começando a pensar que tudo aquilo não passara de um incrível pesadelo, quando o possante Bentley de Fran­kie desceu a rua e estacou em frente à oficina. Bobby adian­tou-se para recebê-lo em seu macacão sujo de graxa. Frankie estava sentada na direção tendo ao lado um jovem de aspec­to macambúzio.

— Olá, Bobby — disse a moça. — Este é George Arbuthnot. Ele é médico e vamos precisar dele.

Bobby franziu ligeiramente a testa enquanto os dois ra­pazes tomavam-se conhecimento mútuo com um brevíssimo aceno de cabeça.

— Tem certeza de que vai precisar de um médico? — perguntou Bobby. — Não está sendo muito pessimista?

— Não é desta forma que ele vai ser útil — retrucou Frankie. — Preciso dele para o meu plano. Escute, há algum lugar por aqui em que possamos conversar?

Bobby olhou em volta com um ar de dúvida.

— Bem, há o meu quarto — disse sem convicção.

— Ótimo — retrucou Frankie, e descendo do carro em companhia de George Arbuthnot seguiu Bobby pela escada externa até um quartinho minúsculo.

— Não sei se há lugar para sentar — disse Bobby inde­ciso olhando em volta.

Não havia. A única cadeira estava ocupada com o que era, aparentemente, todo o guarda-roupa do rapaz.

— A cama serve — disse Frankie deixando-se cair so­bre o colchão.

George Arbuthnot seguiu seu exemplo e a cama deu um rangido de protesto.

— Já tenho tudo planejado — disse a moça. — Para começar, precisamos de um carro. Um dos seus servirá.

— Está querendo dizer que quer comprar um dos nossos carros usados?

— Estou.

— É muita delicadeza sua, Frankie — tornou Bobby agradecido. — Mas não precisa fazer um delicadeza. É contra os meus princípios explorar os meus amigos.

— Você não está entendendo — disse Frankie. — Não é nada disso. Pensa que desejo comprar um dos seus carros com quem compra uma roupas horríveis na boutique que uma amiga acabou de montar, mas não se trata disso, preciso mesmo de um carro.

— E o seu Bentley?

— O Bentley não serve.

— Você está louca — tornou Bobby.

— Não, não estou. O Bentley não serve para os meus fins.

— Arrebentar o carro.

Bobby gemeu e levou as mãos à cabeça.

— Não devo estar muito bom hoje.

Pela primeira vez George Arbuthnot abriu a boca. Sua voz era profunda e melancólica.

— Ela quer dizer que o carro vai se acidentar — disse ele.

— E como é que ela sabe? — perguntou Bobby tola­mente.

Frankie deu um suspiro de exasperação.

— De alguma forma não estamos nos entendendo. Agora escute aí quietinho, Bobby, e tente compreender o que vou dizer. Sei que o seu cérebro não é muito brilhante, mas você deve ser capaz de entender se se concentrar bem direitinho.

A moça fez uma pausa e continuou.

— Estou na pista de Bassington-ffrench.

— Estou ouvindo.

— Bassington-ffrench, o nosso Bassington-ffrench, mora em Merroway Court, na aldeia de Staverley em Hampshire. Merroway Court pertence a seu irmão, e o nosso Bassington-ffrench mora ali com o irmão e sua esposa.

— Esposa de quem?

— Esposa do irmão, naturalmente. Mas a questão não é essa. A questão é como eu, você ou nós dois, vamos conse­guir nos infiltrar nessa casa. Já estive lá, fazendo um reco­nhecimento do terreno. Staverley não passa de uma peque­na aldeia. Qualquer estranho que lá se hospede torna-se ime­diatamente conhecido. Portanto essa não é a solução. Eis o plano que arquitetei: Lady Frances Derwent, dirigindo sem cuidado, bate contra o muro junto aos portões de Merroway Court. O carro fica completamente destroçado. Lady Fran­ces, em condições um pouco melhores do que o carro, é car­regada para- dentro da propriedade, em estado de choque e absolutamente não pode ser removida.

— Quem diz que ela não pode ser removida?

— O George. Agora você está vendo onde George entra nessa história. Não podemos nos arriscar que um médico qual­quer venha e diga que não há nada de errado comigo, ou que alguma alma caridosa leve o meu corpo inanimado para o hospital mais próximo. Não, o que vai acontecer é o seguinte: George vai passando de carro (é melhor que nos venda mais um), presencia o acidente, desce do carro e assume o controle da situação. “Eu sou médico. Afastem-se todos” (isto é, se houver alguém para ser afastado), “Vamos levá-la para dentro dessa propriedade aí. Como se chama? Merroway Court? Va­mos, assim mesmo. Preciso fazer um exame completo.” Sou carregada para o melhor quarto desocupado, seguida pelos Bassingtons-ffrench muito solícitos ou muito contrariados. De qualquer forma, George vence-lhes a resistência, me examina e volta com o veredicto. Felizmente não é tão grave quanto ele pensava. Não há ossos quebrados, mas há risco de concussão. De forma alguma devo ser removida nos próximos dois ou três dias. Depois poderei voltar a Londres. George despe­de-se e chega a minha hora de travar relações com as pessoas da casa.

— E onde eu entro?

— Você não entra.

— Escute aqui...

— Meu caro rapaz, lembre-se de que Bassington-ffrench o conhece, enquanto nunca me viu mais gorda. E minha po­sição é solícita, pois possuo um título. Não sou uma mocinha qualquer querendo me introduzir na casa para fins escusos. E o George é médico de verdade, e assim tudo estará acima de qualquer suspeita.

— Suponho que tem razão — disse Bobby desanimado.

— Acho que é um plano muito bem arquitetado — disse Frankie com orgulho.

— Então eu não faço nada?

Ele ainda se sentia magoado, com um cão inesperada­mente privado de um osso. Aquele crime era seu, pensou, sen­tindo-se espoliado.

— Naturalmente que faz, querido. Você deixa o seu bigo­de crescer.

— Ah! Eu deixo crescer o bigode, é?

— Isso mesmo. Quanto tempo isso vai levar?

— Duas ou três semanas, creio.

— Céus! Não tinha idéia que era assim tão demorado. Não há jeito de apresentar esse processo?

— Não. Mas por que não posso usar um bigode falso?

— Porque eles têm uma aparência muito artificial e vi­vem caindo quando menos se espera. Ei, acho que existe um tipo que é colocado fio por fio, e é praticamente impossível de ser descoberto. Um fabricante de perucas para o teatro poderia implantar um em seu rosto.

— Provavelmente ele vai pensar que sou um fugitivo da justiça.

— Não importa o que ele vai pensar.

— O que devo fazer quando estiver de bigode?

— Meta-se num uniforme de chofer e leve o Bentley a Staverley.

— Ah, agora compreendo.

Bobby animou-se.

— Ninguém olha para um chofer da mesma maneira com que olha para uma pessoa. — Disse Frankie. — Além disso Bassington-ffrench só o viu por um ou dois minutos em que estava por demais preocupado em fazer a troca das fotogra­fias para olhá-lo com muita atenção. Para ele, você não pas­sava de um jovem golfista idiota. Não foi como os Cayman que estiveram conversando com você e tentando deliberada­mente avaliá-lo. Sou capaz de apostar que o vendo com um uniforme de chofer Bassington-ffrench não o reconheceria nem mesmo sem bigode. No máximo talvez pensasse que seu rosto lhe fazia lembrar alguém. E com o bigode, então, não deve haver perigo algum. Agora diga-me, o que acha do meu plano?

Bobby refletiu um pouco.

— Para ser franco, acho que é ótimo — disse genero­samente.

—Neste caso — tornou Frankie, — vamos ver os tais carros. Ei, acho que George quebrou sua cama.

— Não importa — tornou o hospitaleiro Bobby. — Ela nunca foi nenhuma maravilha.

Desceram à garagem, onde um jovem sem queixo e de aspecto nervoso os recebeu com um sorriso amável. Sua aparência era ligeiramente prejudicada pelo fato de que seus olhos possuíam uma inegável tendência a olharem em dire­ções opostas.

— Olá, Badger — disse Bobby. — Lembra-se de Fran­kie, não?

Era óbvio que Badger não se lembrava, mas deu uma risadinha amigável.

— Ha, ha, ha!

— A última vez em que o vi — disse Frankie — você estava com a cabeça enterrada na lama e tivemos de puxá-lo pelas pernas.

— Foi mesmo? — tornou Badger. — Ora, isso d-d-deve ter sido em G-g-Gales.

— Lá mesmo — anuiu a moça.

— Sempre fui um p-péssimo c-c-cavalheiro — disse Badger. Não m-m-melhorei nada.

— Frankie quer comprar um carro — acudiu Bobby.

— Dois carros — disse a moça. — George também pre­cisa de um. — Acabou de bater com o dele.

— Podemos alugar-lhe um — disse Bobby.

— Venham ver o que t-t-temos em estoque — sugeriu Badger.

— Mas a aparência deles é ótima! — exclamou Frankie encantada pelos vividos tons rubi e verde-esmeralda.

— A aparência é — retrucou Bobby em tom lúgubre.

— Aquele C-O-Chrysler ali é uma ótima p-p-pedida.

— Não, aquele não — interveio Bobby. — O carro que ela comprar precisa rodar pelo menos uns cem quilô­metros.

Badger lançou ao amigo um olhar de reprovação.

— Aquele Standard já está em seus últimos dias — tornou Bobby. — Mas acho que poderá levá-la onde deseja. O Essex está bom demais para um fim tão inglório. Ainda é capaz de rodar uns quinhentos quilômetros antes de enguiçar.

— Então está resolvido — disse Frankie. — Fico com o Standard.

Badger puxou o amigo para um lado.

— E q-q-quanto ao preço? — ele sussurrou. — Não quero explorar muito uma amiga sua. Que tal d-d-dez li­bras?

— Dez libras está ótimo — disse Frankie metendo-se na conversa. — Vou pagar agora.

— Quem é mesmo ela? — perguntou Badger no que pretendia ser um cochicho.

Bobby cochichou-lhe a resposta.

— É a p-p-primeira vez que vejo alguém com um título pagar a vista — disse Badger com respeito.

Bobby seguiu os outros dois até o Bentley.

— Quando é que vai acontecer esse acidente? — ele perguntou.

— Quanto mais cedo melhor — disse Frankie. — Tí­nhamos pensado em amanhã à tarde.

— Olhe, será que não posso estar presente? Colocarei uma barba se quiserem.

— Não, de forma alguma — disse Frankie. — A barba provavelmente estragaria tudo caindo na hora errada. Mas quem sabe você poderia ir de motociclista com um boné e óculos de proteção? O que acha, George?

George Arbuthnot falou pela segunda vez.

— Está bem — disse ele. — Quanto mais gente, mais divertido.

Sua voz soou ainda mais melancólica do que antes.

 

ACONTECE O ACIDENTE

O encontro para O Grande Acidente do Século devia ocor­rer a dois quilômetros da aldeia de Staverley, no ponto em que a pequena estrada de Staverley junta-se à estrada princi­pal de Andover.

O trio ali chegou em segurança, embora o Standard de Frankie houvesse mostrado inequívoco sinais de decrepitude a cada subida.

A reunião fora marcada para a uma hora da tarde.

— Não queremos ser interrompidos quando estivermos preparando a encenação — dissera Frankie — Aquela es­trada quase não tem movimento, e à hora do almoço não deve passar ninguém por ali.

Seguiram pela estrada secundária há mais de um quilô­metro quando a moça lhe indicou o local que escolhera para o acidente.

— Em minha opinião não podia ser melhor — disse ela. — A estrada desce o morro e ao chegar àquele muro lá em­baixo faz uma curva abrupta. E aquele muro é justamente o muro de Merroway Court. Se engrenarmos o carro e o dei­xarmos descer a ladeira, ele irá bater direto no muro e algo muito drástico deverá acontecer-lhe.

— É bem provável — concordou Bobby. — Mas al­guém deve ficar de atalaia lá na curva para certificar-se de que não vem ninguém em direção contrária.

— Tem razão — disse Frankie. — Não queremos ma­chucar nem aleijar ninguém. George poderá levar o seu carro até lá embaixo e virá-lo como se fosse subir a ladeira. Ele acenará o lenço quando estiver tudo em ordem.

— Você está tão pálida, Frankie! — exclamou Bobby com ansiedade. — Tem certeza de que está bem?

— É maquilagem — explicou a moça. — Não vou fi­car em estado de choque? Não vai querer que eu entre na­quela casa com um rosto corado e saudável, vai?

— As mulheres são formidáveis — tornou Bobby aprovadoramente. — Você está parecendo um mico doente.

— Seja mais cavalheiro — protestou Frankie. — Agora vou descer e esperar lá embaixo. Felizmente a casa do por­teiro não fica na entrada. Quando George e eu acenarmos nossos lenços, pode deixar o carro descer.

— Está certo — disse o rapaz. — Irei no estribo se­gurando a direção enquanto a velocidade do carro o permitir, e então pularei fora.

— Não vá se machucar — disse a moça.

— Tomarei cuidado. As coisas ficariam muito compli­cadas se houvesse um acidente de verdade ao lado do falso.

— Bem, é melhor você ir, George —- disse Frankie.

George fez um gesto de assentimento, entrou em seu carro e desceu o morro devagar. Bobby e Frankie acompanharam-no com o olhar.

— Você... vai tomar muito cuidado, não é, Frankie? — disse Bobby com uma voz subitamente rouca. — Não vai fazer nenhuma tolice, não é?

— Não se preocupe. Vou me comportar muito bem. Mu­dando de assunto, acho melhor não lhe escrever diretamente. Mandarei a carta para George ou qualquer outra pessoa que a entregará a você.

— Será que o George vai obter sucesso em sua profissão?

— E por que não?

— Ele não parece ter muito jeito para aquela conversinha amena com que os médicos tranqüilizam os doentes.

— Talvez isso venha com o tempo — disse Frankie. — Agora é melhor eu ir. Farei sinal quando estiver pronta.

— E eu tratarei do bigode. Até mais ver, Frankie.

Olharam-se nos olhos por um momento, e então Fran­kie começou a descer o morro.

George virara o carro e dera marcha-ré até a curva. Frankie desapareceu por um momento e tornou a aparecer adiante acenando um lenço. Um segundo lenço tremulou na curva logo em seguida.

Bobby engrenou o carro em terceira, e de pé no estribo soltou o freio de mão. De início o carro moveu-se com relu­tância, contido pela engrenagem. A descida no entanto era bem íngreme, e o motor pegou. O carro aumentou sua velo­cidade. Bobby segurou a direção até o último instante e pu­lou.

Com grande ímpeto, o carro desceu o morro e foi espa­tifar-se contra o muro. Estava tudo bem — acontecera o acidente.

Bobby viu Frankie precipitar-se para a cena do crime e estender-se entre os destroços. George deu partida ao seu carro e trouxe-o até junto da moça.

Com um suspiro Bobby ligou a motocicleta e afastou-se em direção a Londres.

A cena do acidente estava movimentada.

— Devo rolar um pouco no chão para sujar de terra o vestido? — perguntou Frankie.

— É uma boa idéia — assentiu George. Dê-me aqui o seu chapéu.

Com um golpe rápido George amassou a copa. Frankie abafou um grito de protesto.

— Eis a sua concussão — explicou George. Agora fi­que aí imóvel. Penso ter ouvido a campainha de uma bici­cleta.

No mesmo instante, um rapazinho de uns dezessete anos apareceu assobiando na curva. Imediatamente estacou, encan­tado com o delicioso espetáculo que se oferecia a seus olhos.

— Opa! — exclamou ele. — Aconteceu um acidente?

— Não — retrucou George com sarcasmo. — Essa jo­vem bateu o carro contra o muro de propósito.

Tomando como ironia a pura verdade contida nessa declaração, o rapazinho comentou com grande animação:

— Ela está com uma cara horrível, não? Será que mor­reu?

— Ainda não — disse George. — Mas é preciso levá-la daqui imediatamente. Eu sou médico. Que propriedade é essa aí?

— É Merroway Court. Pertence ao Sr. Bassington-ffrench. Ele é juiz de paz.

— Ela deve ser tirada logo daqui — declarou George com autoridade. Deixe aí sua bicicleta e venha me ajudar.

De muito boa vontade o rapaz encostou a bicicleta no muro e adiantou-se. Com seu auxílio George carregou. Fran­kie para dentro da propriedade até uma bela e antiga man­são.

Sua aproximação fora percebida, pois um velho mordo­mo veio ao seu encontro.

— Houve um acidente — explicou George sucintamente. — Existe algum quarto para onde possa levar essa senhora? Ela precisa ser examinada imediatamente.

Alvoroçado, o mordomo tornou a entrar no vestíbulo. George e o rapazinho seguiram-no levando o corpo inerte de Frankie. O mordomo entrou num aposento à esquerda, de onde voltou acompanhado por uma mulher alta, de cabelos ruivos, com cerca de trinta anos. Os seus olhos eram de um azul claro e límpido.

Rapidamente ela compreendeu a situação.

— Temos um quarto desocupado aqui no térreo — dis­se ela. — Quer levá-la para lá? Não será bom telefonar para um médico?

— Eu sou médico — declarou George. — Estava pas­sando de carro quando vi o acidente.

— Oh, isso foi uma sorte! Por aqui, sim?

Ela guiou-os até um aprazível quarto de dormir cujas ja­nelas abriam para o jardim.

— A jovem está muito ferida? — ela perguntou.

— Ainda não posso dizer.

A Srª Bassington-ffrench percebeu a insinuação e retirou-se acompanhada pelo rapazinho que com grande animação, descrevia o acidente como se o tivesse testemunhando.

— O carro bateu bem de frente no muro e arrebentou-se todo. A moça foi parar longe! O chapéu dela ficou achatadinho! Aquele senhor ia passando de carro...

Ele continuou descrevendo a cena imaginária até que a senhora livrou-se dele com uma moeda de meia coroa.

Enquanto isso Frankie e George conversavam em sus­surros.

— George, querido, isso não irá atrapalhar a sua car­reira, não é? Não vão expulsá-lo do Conselho de Medicina ou coisa semelhante, vão?

— É provável — disse George em tom soturno. — Isto é, se descobrirem.

— Não descobrirão nada — disse Frankie. — Eu não o deixarei mal — e pensativa acrescentou: — Você repre­sentou muito bem. Nunca o ouvi falar tanto antes...

George deu um suspiro e consultou o relógio.

— Mais três minutos e o exame estará terminado — disse ele.

— E quanto ao carro?

— Passarei por uma oficina e mandarei removê-lo.

— Ótimo.

George continuou a olhar o relógio. Por fim declarou em tom de alívio:

— Está na hora.

— George — disse Frankie, — você foi um anjo. Não sei por que fez isso.

— Nem eu — retrucou George. — Foi mesmo uma insensatez. — E acrescentou inclinando a cabeça numa despedida: — Adeus. Divirta-se.

— Duvido que eu vá me divertir — disse a moça pen­sando na voz fria e impessoal com um leve sotaque americano.

George saiu à procura da dona da voz. Encontrou-a na sala de estar.

— Felizmente não é tão grave como eu temia — disse ele em tom abrupto. — A concussão foi leve, e seus efeitos já estão se desfazendo. Entretanto ela deve ficar em repouso por um ou dois dias — e acrescentou depois de uma pausa: — Parece que a jovem é Lady Frances Derwent.

— Ora, imagine só! — exclamou a Srª Bassington-ffrench. — Conheço muito bem alguns primos dela, os Draycotts.

— Não sei se será inconveniente para si tê-la aqui — disse George — mas se ela pudesse ficar onde está por um ou dois dias.

George fez nova pausa.

— Ora, naturalmente. Não há problema algum, Dr....?

— Arbuthnot. Providenciarei para que removam o carro. Vou passar por uma oficina.

— Muito obrigada, Dr. Arbuthnot. Foi mesmo providen­cial o senhor estar de passagem no momento do acidente. Su­ponho que amanhã ela deva ser examinada por um médico, para certificar-nos de que está tudo bem.

— Não creio que isto seja necessário — disse George. — Ela só precisa de repouso.

— Mas eu me sentiria mais tranqüila. E a família dela deve ser avisada.

— Eu me encarrego disso — acudiu George. — E quan­to ao médico... parece que a jovem é adepta dos Cientistas Cristãos e não acredita na Medicina. Não gostou nem um pouco de acordar sob os meus cuidados.

— Oh, céus! — exclamou a Srª Bassington-ffrench.

— Mas ela está bem — tranqüilizou-a George. — Pode confiar em minha palavra.

— Se o senhor acha, Dr. Arbuthnot... — disse a Srª Bassington-ffrench em tom de dúvida.

— Acho sim — afirmou George. — Até logo. Ora, deixei um dos meus instrumentos no quarto.

O médico voltou rapidamente e dirigiu-se à cabeceira da moça.

— Frankie — disse ele num sussurro — você é uma cientista cristã. Não se esqueça.

— Mas por quê?

— Não havia outro jeito.

— Está bem. Não esquecerei — disse a moça.

 

NO CAMPO INIMIGO

Bem, aqui estou eu, pensou Frankie. Instalada em segurança no campo do inimigo. Agora, só depende de mim.

Ouviu-se uma batida na porta e a Srª Bassington-ffrench entrou. Frankie ergueu ligeiramente a cabeça dos travesseiros.

— Sinto muitíssimo causar-lhe todo esse trabalho — disse ela em voz fraca.

— Tolice — atalhou sua anfitriã.

Ao ouvir novamente a voz pausada e atraente com um leve sotaque americano, Frankie lembrou-se de que Lorde Marchington dissera que um dos Bassingtons-ffrench de Hampshire casara-se com uma herdeira americana.

— O Dr. Arbuthnot disse-me que estará boa em um ou dois dias se permanecer em repouso.

— Ele é simpático — disse Frankie — e foi muito bon­doso.

— Parece ser um bom profissional — tornou a Srª Bassington-ffrench. — Foi mesmo uma sorte que ele estivesse passando no momento do acidente.

— Não foi mesmo? Não que eu realmente precisasse dele...

— Mas não deve se cansar — acrescentou a anfitriã. — Minha criada trar-lhe-á algumas coisas e a ajudará a pôr-se mais à vontade.

— É muita bondade sua.

— De forma alguma.

Frankie sentiu alguns escrúpulos passageiros enquanto a outra mulher retirava-se.

É tão simpática e bondosa, disse para si mesma. E nem desconfia de nada.

Pensou pela primeira vez que não estava sendo correta para com sua anfitriã. Sua mente estivera tão ocupada com visões de um Bassington-ffrench assassino empurrando sua confiante vítima para o abismo que as personagens secundá­rias do drama não lhe haviam passado pela cabeça.

Bem, pensou Frankie, agora preciso levar o plano adian­te. Mas gostaria que ela não se tivesse mostrado tão sim­pática.

A moça passou uma tarde e uma noite enfadonhas dei­tada no quarto em penumbra. Por duas vezes a Srª Bassington-ffrench entrou por um instante para ver como passava, mas não se demorou.

Na manhã seguinte, entretanto, Frankie pediu para deixarem abertas as janelas, e mostrou-se desejosa de compa­nhia. Sua anfitriã veio vê-la por algum tempo. Descobriram muitos amigos e conhecidos comuns, e ao final do dia Fran­kie sentiu, com certo remorso, que se haviam tornado ami­gas.

A Srª Bassington-ffrench referiu-se várias vezes ao ma­rido e ao filho pequeno, Tommy. Parecia ser uma mulher simples, muito afeiçoada ao lar, mas por algum motivo Fran­kie julgou que ela não era de todo feliz. Havia às vezes uma expressão ansiosa em seus olhos que não se coadunavam com um espírito tranqüilo.

No terceiro dia Frankie levantou-se e foi apresentada ao dono da casa. Era um homem graúdo, de queixo forte, com um ar distraído mas bondoso. Passava grande parte do seu tempo fechado em seu gabinete de trabalho, e apareceu a Frankie muito afeiçoado à mulher, embora se imiscuísse mui­to pouco em seus interesses.

O filho Tommy tinha sete anos, e era uma criança traquinas e saudável. Era óbvio que Sylvia Bassington-ffrench o adorava.

— É tão agradável aqui — disse Frankie, com um sus­piro, deitada numa espreguiçadeira no jardim. — Não sei se foi a pancada na cabeça, mas não tenho vontade de me mexer. Gostaria de ficar deitada aqui dias e dias.

— Então fique — disse Sylvia Bassington-ffrench em sua voz tranqüila. — Estou falando sério, não tenha pressa em voltar a Londres. Sabe — acrescentou ela — para mim é um grande prazer tê-la aqui. E tão viva e alegre. Sua presença me anima muito.

Então ela precisa de algo que a anime. O pensamento passou como um raio pela mente de Frankie, que ao mesmo tempo se sentiu envergonhada.

— Sinto que nos tornamos realmente amigas — acres­centou sua companheira.

Frankie ainda se sentiu mais envergonhada. Era despre­zível o que estava fazendo. Iria desistir e voltar para Londres...

Sua anfitriã prosseguiu:

— Não vai se aborrecer aqui. Amanhã chega meu cunha­do. Estou certa de que gostará dele. Todos gostar de Roger.

— Ele mora aqui?

— Passa temporadas. É por demais irrequieto. Conside­ra-se a ovelha negra da família, e de certo modo tem razão. Nunca fica muito tempo num emprego, e na realidade acre­dito que nunca trabalhou de verdade em toda a sua vida. Mas há sempre pessoas desse tipo, especialmente nas velhas famí­lias. Geralmente são pessoas de grande encanto. Roger é ex­tremamente compreensivo. Não sei o que teria feito sem ele nessa primavera quando Tommy esteve acamado.

— O que houve com Tommy?

— Teve uma queda feia de um balanço. Provavelmente o balanço estava amarrado num galho podre que não agüen­tou o seu peso. Roger ficou transtornado porque estava em­purrando o balanço bem alto, como as crianças adoram. A princípio julgamos que a espinha de Tommy fora afetada, mas verificamos depois que o dano fora muito ligeiro, e agora ele já está bem.

— Sua aparência é ótima — disse Frankie sorrindo ao ouvir gritos alegres a distância.

— É, ele parece estar em perfeitas condições. É um alí­vio, sabe, a má sorte parece que o persegue. Quase se afogou no último inverno.

— É mesmo? — perguntou Frankie pensativa.

Já não sentia vontade de voltar a Londres. Seu senti­mento de culpa diminuíra.

Mais acidentes!

Será que Roger Bassington-ffrench era especialista em acidentes?

Em voz alta ela disse:

— Se está mesmo falando sério, gostaria muito de ficar mais alguns dias. Mas seu marido não se importa que eu me intrometa assim em sua casa?

— Henry? — os lábios da Srª Bassington-ffrench fran­ziram-se numa expressão estranha. — Não, Henry não se im­porta. Henry não se importa com mais nada ultimamente.

Frankie olhou-a com curiosidade. Se ela me conhecesse melhor, seria mais franca, pensou consigo mesma. Parece que muita coisa estranha está acontecendo nessa casa.

Henry Bassington-ffrench juntou-se às duas mulheres para o chá e Frankie observou-o com cuidado. Certamente havia algo de esquisito no homem. O tipo era comum, o do cava­lheiro rural jovial e esportivo. Mas tal homem não deveria apresentar tantos tiques nervosos. Era óbvio que estava sob grande tensão, ora tão perdido em seus pensamentos que era impossível motivá-lo com alguma coisa, ora retrucando com comentários amargos e sarcásticos a tudo que lhe era dito. Mas nem sempre mostrava-se assim. Aquela noite, no jantar, revelou uma nova faceta. Brincou, riu e desfiou histórias, mostrando-se mesmo brilhante para um homem de sua habilidades. Bri­lhante demais, pensou Frankie. Sua vivacidade também era anormal e pouco característica.

Os olhos dele são tão estranhos, pensou ela. Assustam-me um pouco. Entretanto, certamente, não suspeitava de Henry Bassington-ffrench, não era? Fora o irmão, e não ele, quem estivera em Marchbolt naquele dia fatal.

Quanto ao irmão, Frankie aguardava a sua chegada em ansiosa expectativa. Para ela e Bobby, o homem era um as­sassino. Ia encontrar-se frente a frente com um assassino.

Sentiu um momento de apreensão.

Mas, afinal, como ele poderia adivinhar? Como iria asso­ciá-la com um crime executado com sucesso?

Você está preocupada com fantasmas, disse ela para si mesma.

Na tarde seguinte, pouco antes do chá, chegou Roger Bassington-ffrench. Frankie, que passava as primeiras horas da tarde repousando em conseqüência do seu “acidente”, só o viu à refeição.

Quando ele surgiu no pátio onde era servido o chá, Sylvia disse com um sorriso:

— Eis a nossa convalescente. Meu cunhado, Lady Fran­ces Derwent.

Frankie olhou para o homem jovem e esbelto de pouco mais de trinta anos. Embora compreendendo porque Bobby achara que ele devia usar um monóculo e um bigodinho, foi o azul intenso de seus olhos sorridentes que lhe chamou a atenção. Apertaram-se as mãos.

— Sylvia estava me contando como a senhorita tentou derrubar os muros da propriedade.

— Admito que sou a pior motorista do mundo, mas es­tava dirigindo um velho calhambeque. Meu carro estava na oficina e eu usava um carro barato, de segunda mão.

— Ela foi retirada dos destroços por um médico jovem e bonito — disse Sylvia.

— Ele foi um anjo — concordou Frankie.

Naquele momento Tommy apareceu e jogou-se para o tio com gritos de alegria.

— Trouxe-me o trem elétrico? Você disse que traria! Você disse que traria!

— Oh, Tommy! Não deve ficar pedindo coisas — pro­testou Sylvia.

— Foi uma promessa minha, Sylvia. Eu trouxe o seu trem, sim, rapaz — disse Roger e perguntou em tom casual para a cunhada: — Henry não vem para o chá?

— Acho que não — havia um certo constrangimento na voz dela. — Não está se sentindo muito bem hoje.

E após um instante ela acrescentou impulsivamente:

— Oh, Roger, estou contente por você estar de volta!

Ele colocou a mão no braço dela por um momento.

— Está tudo bem, Sylvia. Está tudo bem.

Depois do chá, Roger armou o trem com o sobrinho. Frankie os observava com a mente em alvoroço. Certamente este não era o tipo de homem capaz de empurrar alguém para um abismo! Este homem encantador não podia ser um assas­sino impiedoso!

Mas então... Bobby e ela estavam errados o tempo todo. Pelo menos quanto a esse fato. Ela estava certa agora que não fora Roger Bassington-ffrench quem empurrara Pri­tchard no penhasco.

Então quem foi?

Ela continuava convicta de que ele fora empurrado. Mas quem o fizera? E quem colocara morfina na cerveja de Bobby?

À idéia da morfina, acorreu-lhe uma súbita explicação para o estranho olhar de Henry Bassington-ffrench, com suas minúsculas pupilas.

Henry Bassington-ffrench seria um viciado em entorpecentes?

 

ALAN CARSTAIRS

Por estranho que pareça, ela obteve a confirmação dessa hipótese logo no dia seguinte pelo próprio Roger.

Após uma partida de tênis os dois estavam sentados saboreando devagar uma bebida gelada. Falavam sobre uma variedade de assuntos, e mais uma vez Frankie dava-se conta do charme daquele homem que viajara pelo mundo inteiro. Ela não se pode impedir de pensar que a ovelha negra da família contrastava muito favoravelmente com o irmão sisudo e pesadão.

O silêncio que caíra entre os dois enquanto esses pensamentos passavam pela mente de Frankie foi quebrado por Ro­ger, que falou num tom completamente diferente desta vez.

— Lady Frances, vou tomar uma atitude que talvez lhe pareça insólita, pois conheço-a há menos de vinte e quatro horas. Mas instintivamente sinto que é a pessoa adequada para dar-me um conselho.

— Um conselho? — perguntou Frankie surpresa.

— Sim. Não consigo me decidir entre dois caminhos diferentes.

Ele fez uma pausa. Tinha o tronco inclinado para a frente e balançava a raqueta de tênis entre os joelhos. Parecia muito preocupado.

— Trata-se de meu irmão, Lady Frances.

— Sim?

— Estou certo de que está tomando entorpecentes.

— O que o faz pensar assim?

— Tudo. Sua aparência, suas extraordinárias mudanças de humor, seus olhos. Reparou neles? As pupilas estão muito contraídas.

— Já tinha notado isso — admitiu Frankie. — E o que pensa que é?

— Morfina ou alguma forma de ópio.

— Isto começou há muito tempo?

— Para mim foi há uns seis meses atrás. Lembro-me que ele se queixava muito de insônia. Não sei como principiou a tomar a droga, mas deve ter sido logo depois.

— Como ele a consegue? — perguntou a prática Frankie.

— Deve recebê-la pelo correio. Já notou como ele se mostra particularmente nervoso e irritado alguns dias à hora do chá?

— Sim, já notei.

— Suspeito que nesses dias o seu suprimento terminou e ele está à espera de mais. Quando chega o correio das seis ele se tranca em seu gabinete e emerge na hora do jantar num estado de espírito completamente diferente.

Frankie fez um gesto de assentimento. Lembrava-se da vivacidade pouco natural de sua conversação em alguns jantares.

— Mas de onde procede esse entorpecente? — pergun­tou ela.

— Ah, isso eu não sei. Nenhum médico correto o forne­ceria. Acredito que em Londres existam lugares onde podem ser conseguidos a um alto preço.

Pensativa Frankie balançou a cabeça, lembrando-se de ter sugerido a Bobby a existência de traficantes de entorpe­centes e da resposta do rapaz para que não fizesse uma salada de crimes. Era esquisito que logo no início de suas investiga­ções houvesse deparado com indícios de uma tal quadrilha. Ainda mais estranho era ter sido o principal suspeito quem lhe chamara a atenção para o fato. Isto a deixara ainda mais inclinada a absolver Roger Bassington-ffrench da suspeita de assassinato.

Permanecia entretanto inexplicado o problema da troca da fotografia. Os indícios contra ele não haviam sofrido alteração, ela lembrou a si mesma. A seu favor havia somente a sua personalidade. E sempre ouvira dizer que os assassinos eram muitas vezes pessoas encantadoras.

A moça afastou esses pensamentos e voltou-se para o companheiro.

— Por que está me dizendo tudo isso? — ela perguntou francamente.

— Porque não sei o que fazer sobre Sylvia — ele admi­tiu com simplicidade.

— Acha que ela não sabe?

— Naturalmente que ela não sabe. E devo dizer-lhe?

— É difícil...

— É muito difícil. Foi por isso que achei que poderia me ajudar. Sylvia tem-lhe muita simpatia. Ela não tem gran­des afinidades com a sociedade local, mas disse-me que gostou de si à primeira vista. O que devo fazer, Lady Frances? Contando-lhe a verdade colocarei um grande peso em seus ombros.

— Se ela soubesse poderia tentar ajudá-lo — sugeriu Frankie.

— Duvido. Em se tratando de viciados em tóxicos, nin­guém, nem mesmo os mais caros e mais chegados, tem influên­cia alguma.

— Este é um ponto de vista muito negativo, não é?

— É uma verdade. Existem outros meios, sem dúvida. Se Henry consentisse em ser internado... Na verdade existe uma clínica aqui perto, dirigida por um tal Dr. Nicholson.

— Mas ele não consentiria, não é?

— Talvez. Quando numa onda de remorsos, um viciado em morfina é capaz de atos heróicos para curar-se. Acredito que Henry possa ser convencido com mais facilidade se jul­gar que Sylvia de nada sabe, se o ameaçássemos de contar tudo a ela. Caso ele conseguisse curar-se do seu “esgotamento nervoso”, ela nunca precisaria ficar sabendo.

— Seria necessário ele ir para longe para tratar-se?

— Essa clínica de que lhe falei fica a uns cinco quilô­metros daqui, no outro lado da aldeia. É dirigida por um ca­nadense, o Dr. Nicholson. É um homem muito inteligente, e felizmente Henry o aprecia. Olhe, aí vem Sylvia.

A Sra. Bassington-ffrench juntou-se a eles perguntando:

— Jogaram muito?

— Três partidas — disse Frankie. — E perdi todas as três.

— Ela joga muito bem — disse Roger.

— Sou muito preguiçosa para o tênis — disse Sylvia. — Precisamos convidar os Nicholson um dia desses. Ela gosta muito de jogar. Por quê... O que foi? — perguntou perce­bendo os olhares trocados pelos outros dois.

— Nada. Acontece que eu estava justamente falando so­bre os Nicholson a Lady Frances.

— É melhor tratá-la por Frankie, como eu — disse Sylvia.

— Não é mesmo estranho que sempre que se fala de alguma coisa alguém logo a seguir toca no mesmo assunto?

— Eles são canadenses, não são? — perguntou Frankie.

— Ele é, com certeza. Quanto a ela, acredito que seja inglesa, mas não estou certa. Ela é uma coisinha linda, encantadora mesmo, com lindos olhos grandes e sonhadores. Mas por algum motivo não creio que seja muito feliz. A sua vida deve ser muito deprimente.

— Ele dirige uma espécie de sanatório, não é?

— Sim, para casos nervosos e toxicômanos. Ele parece ser muito eficiente. Possui uma personalidade forte.

— Não gosta dele?

— Não — declarou Sylvia em tom abrupto. — Não gosto — e acrescentou com ênfase um instante depois: — Nem um pouco.

Mais tarde ela mostrou a Frankie a fotografia de uma encantadora mulher de olhos grandes que estava em cima do piano.

— É Moira Nicholson. Um rosto atraente, não? Um ho­mem que esteve aqui com uns amigos nossos há algum tempo ficou fascinado pelo retrato. Queria ser apresentado a ela, imagine.

Sylvia riu-se.

— Vou convidá-los para jantar aqui amanhã à noite. Gostaria de saber o que acha dele.

— Dele?

— Sim. Como já lhe disse, não gosto dele, e no entanto é um homem atraente.

O tom de sua voz fez Frankie lançar-lhe um rápido olhar, mas Sylvia Bassington-ffrench dera-lhe as costas e retirava algumas flores mortas de um vaso.

Preciso refletir, pensou Frankie passando o pente pelos bastos cabelos ao arrumar-se à noite para o jantar, já é tem­po de fazer algumas experiências.

Roger Bassington-ffrench seria ou não o vilão que ela e Bobby haviam julgado? Os dois acreditavam que quem tentara matar Bobby devia ter facilidade de conseguir morfina, e isso se aplicava a Roger. Se o irmão recebia o entorpecente pelo correio, ele poderia ter surrupiado uma encomenda e usado-a para seus próprios fins.

Frankie organizou uma lista numa folha de papel:

1 — Descobrir onde estava Roger no dia 16, dia em que Bobby foi envenenado.

Aquela informação deveria ser fácil de conseguir, pensou ela.

2 — Mostrar o retrato do morto e observar as possí­veis reações. Observar também se Roger Bassington-ffrench admite ter estado em Marchbolt na ocasião.

Não se sentia muito tranqüila a respeito da segunda resolução. Significava sair em campo aberto. Por outro lado, sua aldeia fora o cenário de uma tragédia, e seria muito natural que a mencionasse casualmente.

Ela amassou a folha de papel e queimou-a.

Ao jantar conseguiu introduzir o primeiro tópico na conversação de forma bastante natural.

— Sabe — disse francamente a Roger — estou conven­cida de que o vi antes. E não faz muito tempo. Foi no dia 16, por acaso na festa de Lady Shane no Claridge? Foi no dia 16.

— Nesse dia não o pode ter visto — tornou Sylvia rapidamente. — Roger estava aqui. Lembro-me porque demos uma festinha para crianças e não sei o que teria feito sem o Roger.

Ela lançou um olhar agradecido ao cunhado e ele retri­buiu com um sorriso.

— Não creio que já a conhecesse — disse pensativo Roger a Frankie, e acrescentou num tom sincero: — Estou certo de que não a teria esquecido.

Uma questão já estava esclarecida, pensou Frankie. Ro­ger Bassington-ffrench não estava em Gales no dia que Bobby foi envenenado.

O segundo tópico foi abordado mais tarde sem maiores problemas. Frankie dirigiu a conversa para a vida no campo, a questão do tédio, e a excitação provocada por qualquer acontecimento.

— No mês passado um homem caiu de um penhasco perto da minha aldeia — disse ela. — Todos ficaram assanhadíssimos. Fui ver o inquérito muito animada, mas infelizmente foi muito enfadonho.

— Não foi em Marchbolt que isto aconteceu? — per­guntou Sylvia subitamente.

Frankie fez um gesto de assentimento e explicou:

— O Castelo Derwent fica a cerca de doze quilômetros de Marchbolt.

— Roger! Só pode ter sido o seu morto! — exclamou Sylvia.

Frankie olhou para ele com expressão interrogativa.

— Na verdade eu estava presente — disse Roger. — Fiquei com o cadáver até a chegada da polícia.

— Pensei que ele tivesse sido achado por um dos filhos do vigário — tornou Frankie.

— Ele tinha um compromisso para tocar órgão ou coisa semelhante, e eu o substituí.

— Que coincidência extraordinária — disse Frankie. Ou­vira falar também em outra pessoa que ficara com o morto, mas o seu nome não foi mencionado. Então foi você?

Nos momentos seguintes, cheios de exclamações, todos concordaram que o mundo era mesmo pequeno. Frankie, orgulhosa, achou que estava se saindo muito bem.

— Talvez tenha sido lá, em Marchbolt, que você me viu — sugeriu Roger.

— Eu não estava lá no dia do acidente — disse a moça. — Só voltei dois dias depois. Esteve presente no inquérito?

— Não. Retornei a Londres na manhã seguinte à tra­gédia.

— Ele teve a idéia absurda de comprar uma casa por lá — disse Sylvia.

— Uma tremenda tolice — ajuntou Henry Bassington-ffrench.

— Não é, não — retorquiu Roger de bom-humor.

— Roger sabe perfeitamente bem que assim que a com­prasse sentiria novamente vontade de viajar e pegaria o pri­meiro navio.

— Ora, algum dia preciso fixar-me em algum lugar, Sylvia.

— Quando esse dia chegar escolha um local perto daqui — tornou a cunhada — e não lá em Gales.

Roger riu e virou-se para Frankie.

— E não surgiu nenhum fato interessante acerca do acidente? Não chegaram à conclusão que fora um suicídio ou coisa semelhante?

— Não, infelizmente não houve dúvida alguma. Aparece­ram alguns parentes horrorosos e identificaram o morto. Pa­rece que ele estava excursionando. Realmente foi uma pena, pois era um belo homem. Viram seu retrato nos jornais?

— Parece-me que sim, mas não estou bem certa — respondeu Sylvia.

— Esperem aí. Tenho um recorte do nosso jornalzinho lá em cima.

Empolgada como uma adolescente, Frankie subiu cor­rendo as escadas e desceu com o recorte na mão e entregou-o a Sylvia. Roger adiantou-se e olhou sobre o ombro dá cunhada.

— Ele não era mesmo bonito? — perguntou ansiosa Frankie.

— É, bastante — anuiu Sylvia. Não acha que ele parece muito com aquele homem, o Alan Carstairs, Roger? Lembro-me de ter dito isso na ocasião.

— Pelo retrato, realmente há certa semelhança — con­cordou Roger. — Mas na realidade nem tanto assim.

-— Não se pode afirmar nada com base numa fotografia de jornal, não é? — disse Sylvia ao devolver o retrato.

Frankie concordou que era impossível.

A conversação desviou-se para outros assuntos.

Àquela noite Frankie deitou-se sem ter chegado a uma conclusão. Todos pareciam ter reagido com perfeita natura­lidade. Não fora novidade para ninguém a idéia de que Roger pretendia adquirir uma casa.

A única coisa que ela conseguira fora um nome. Alan Carstairs.

 

O DR. NICHOLSON

Na manhã seguinte Frankie perguntou como quem não quer nada a Sylvia:

— Qual era mesmo o nome daquele homem que men­cionou ontem à noite? Alan Carstairs? Estou certa de que já ouvi antes esse nome.

— É bem provável. Ele é uma celebridade em seu cam­po. É um naturalista canadense, grande caçador e explorador. Mal o conhecemos, na realidade. Alguns amigos nossos, os Rivington, trouxeram-no para almoçar aqui um dia. É um homem muito atraente, alto e bronzeado, com belos olhos azuis.

— Tenho certeza de que já ouvi falar nele.

— É a primeira vez que ele vem à Inglaterra. No ano passado fez uma excursão pela África com John Savage, aque­le milionário que pensou estar com câncer e se matou tão tra­gicamente. Carstairs já viajou pelo mundo inteiro, pela África Oriental, pela América do Sul, por toda a parte.

— Deve ser um espírito ousado e aventureiro — disse Frankie.

— Sim, é um homem bastante atraente.

—- Que engraçado ele ser tão parecido com o homem que caiu do penhasco em Marchbolt!

— Talvez todos tenhamos um sósia.

As duas citaram vários exemplos, lembrando Adolf Beck e outros casos célebres. Frankie teve o cuidado de não tocar mais no nome de Alan Carstairs. Um interesse demasiado po­deria ser fatal.

Entretanto, sentia que agora estava progredindo. Estava convencida de que Alan Carstairs fora a vítima da tragédia do penhasco de Marchbolt. O homem preenchia todos os re­quisitos. Não possuía parentes ou amigos íntimos no país e provavelmente o seu desaparecimento passaria despercebido por algum tempo. Não seria notada logo a falta de um ho­mem que passava a vida se deslocando de um lugar para outro. Além do mais, Frankie notara que, embora Sylvia Bassington-ffrench houvesse comentado sobre a sua semelhança com o retrato do jornal, nem por um momento ocorrera-lhe que poderia tratar-se do próprio. O que era um interessante fato psicológico, pensou Frankie.

— Muito bem. Então o morto era Alan Carstairs. O pró­ximo passo seria descobrir mais coisas sobre esse homem. Sua associação com os Bassington-ffrench parecia ter sido muito ligeira. Fora levado ali acidentalmente por alguns amigos. Que ami­gos? Os Rivington, Frankie arquivou o nome na memória para uso futuro.

Certamente aquele era um ponto que merecia ser investigado. Mas seria prudente proceder com. cautela. As indagações sobre Alan Carstairs deveriam ser feitas o mais discreta­mente possível.

Não quero ser envenenada ou levar uma pancada na cabeça, pensou Frankie com uma careta. Eles não hesitaram em atacar Bobby praticamente por nada...

Seus pensamentos voaram para aquela enigmática frase que dera início a todo problema. Evans! Quem era Evans? Onde Evans se ajustava? Tratava-se de uma quadrilha de tra­ficantes, decidiu Frankie. Talvez algum parente de Carstairs houvesse sido vítima dela, e o explorador resolvesse se des­truí-la. Talvez tivesse vindo à Inglaterra com esse fim. Evans poderia ser um membro aposentado da quadrilha que morasse em Gales. Carstairs o subornara para denunciar os compa­nheiros, mas quando fora ao seu encontro alguém o seguira e o liquidara.

Seria esse alguém Roger Bassington-ffrench? Parecia-lhe pouco provável. Já os Cayman ajustavam-se muito melhor à imagem que a moça fazia de traficantes de entorpecentes.

Entretanto... restava a fotografia. Se ao menos houvesse outra explicação para a troca da fotografia...

O Dr. Nicholson e a esposa eram esperados para o jantar daquela noite. Frankie acabara de vestir-se quando ouviu o ruído do carro detendo-se à porta da frente. A moça dirigiu-se à janela que abria naquela direção e olhou para baixo.

Um homem alto acabara de saltar de um Talbot azul-escuro.

Frankie recolheu a cabeça pensativa.

Carstairs fora canadense. O Dr. Nicholson também era do Canadá e possuía um Talbot azul-escuro.

Era um absurdo levantar uma teoria sobre tais fatos, mas sem dúvida alguma eram sugestivos...

O Dr. Nicholson era um homem avantajado com atitu­des que sugeriam grandes reservas de força. Falou pouco e pausadamente, mas de alguma forma fez todas as suas pala­vras parecerem importantes. Usava lentes espessas, e por trás delas os olhos de um azul muito claro observavam e refletiam.

Sua esposa era uma esbelta jovem de uns vinte e sete anos, realmente linda. Parecia ligeiramente nervosa, pensou Frankie, e conversava de forma um tanto compulsiva como se tentasse esconder o fato.

— Soube que sofreu um acidente, Lady Frances — disse o Dr. Nicholson ao sentar-se a seu lado à mesa do jantar.

Frankie relatou a catástrofe, perguntando-se por que se sentia tão nervosa. A atitude do médico era a de um interesse normal. Por que então sentia como se* ensaiasse uma defesa ante uma acusação? Haveria algum motivo plausível para que o médico desconfiasse do acidente?

— Foi mesmo lamentável — disse ele quando a moça terminou, tendo talvez fornecido mais detalhes do que seria necessário. — Mas a senhorita parece ter-se recuperado mui­to bem.

— Ainda a consideramos curada — interveio Sylvia. — Queremos conservá-la conosco.

O olhar do médico fixou-se em Sylvia. Algo semelhante a um leve sorriso surgiu em seus lábios mas desapareceu qua­se imediatamente.

— Eu a conservaria aqui o mais tempo possível — disse ele em sua voz grave.

Frankie encontrava-se sentada entre o anfitrião e o Dr. Nicholson. Henry Bassington-ffrench estava decididamente em um de seus maus dias. As mãos traíam sua inquietação, não comia quase e não tomava parte na conversação.

A Sra. Nicholson, em frente, desistiu de entretê-lo e Vi­rou-se para Roger com evidente alívio. Ela tagarelava apa­rentemente descontraída, mas Frankie observou que seus olhos não se afastavam por muito tempo do rosto do marido.

O Dr. Nicholson falava sobre a vida no campo.

— Sabe o que é uma cultura, Lady Frances?

— Refere-se a uma civilização? — perguntou Frankie meio perplexa.

— Não, refiro-me a germes. Em meios propícios eles proliferam, sabe. O campo, Lady Frances, é um meio muito adequado. Aqui há tempo, espaço e lazer, condições muito favoráveis para o seu desenvolvimento.

— Esses germes seriam as más qualidades? — perguntou a moça intrigada.

— Vai depender da espécie de germes cultivados, Lady Frances.

Que conversa idiota, pensou Frankie. Não sei por que me dá arrepios. Em voz alta retrucou:

— Então devo estar desenvolvendo toda uma série de qualidades sinistras!

Ele a olhou e disse com tranqüilidade:

— Não acredito, Lady Frances. Creio que sempre estará ao lado da lei e da ordem.

Não haveria uma certa ênfase na palavra lei?

Do outro lado da mesa, a Srª Nicholson disse de repente:

O Dr. Nicholson fez um breve gesto de assentimento.

— Tem razão, Moira. As pequenas coisas interessam-me — disse ele, e virando-se para Frankie: — Já ouvi falar no seu acidente, sabe. Fiquei intrigado com um fato.

— O que foi? — perguntou Frankie com o coração pulando no peito.

— O médico que passava no momento, o que a trouxe “aqui para dentro...

— Sim?

— Ele deve ter uma personalidade curiosa para ter manobrado o carro antes de socorrê-la.

— Não entendo.

— Naturalmente. A senhorita estava inconsciente. Mas o jovem Reeves, o mensageiro, vinha de Staverley e nenhum carro ultrapassou-o. Entretanto, quando ele completou a curva e viu o desastre, o carro do médico encontrava-se na mesma direção em que ele ia, ou seja, para Londres. Vê o problema? O médico só pode ter vindo de cima do morro, e neste caso seu carro deveria estar de frente para Staverley. Mas não es­tava. Portanto, ele deve ter dado a volta.

— A menos que tivesse vindo de Staverley há algum tempo — disse Frankie.

— Nesse caso o carro dele já devia estar parado aqui quando a senhorita desceu o morro. Estava?

— Os olhos de um azul pálido observavam-na atenta­mente através das lentes grossas.

— Não me lembro — respondeu Frankie. — Acho que não.

— Você está parecendo um detetive, Jasper — acudiu a Sra. Nicholson. — Tudo isso por uma coisinha à-toa.

— As pequenas coisas interessam-me — tornou Nichol­son, virando-se agora para sua anfitriã.

Frankie respirou aliviada. Por que ele a pressionara assim? Teria descoberto algo a respeito do acidente? “As pequenas coisas interessam-me” dissera ele. Seria este o seu único motivo?

A moça lembrou-se do Talbot azul-escuro e do fato que Carstairs também era canadense. Subitamente o Dr. Nicholson pareceu-lhe sinistro.

Após o jantar ela manteve-se afastada dele, juntando-se à delicada e frágil Sra. Nicholson. Notou que os olhos dela observavam o marido o tempo todo. Seria amor, perguntou-se e despediu-se.

— Bem — disse Roger depois que eles haviam saído — o que achou do nosso Dr. Nicholson? Uma personalidade muito forte, não é?

— Concordo com Sylvia — disse Frankie. — Não creio que goste muito dele. Prefiro a esposa.

— Bonita, mas um tanto tola — disse Roger. — Das duas uma: ela o adora ou nutre por ele um verdadeiro pavor. Não sei qual das duas coisas.

— A mesma idéia ocorreu-me — ajuntou Frankie.

— Não gosto dele — tornou Sylvia — mas devo admi­tir que tem muita... muita força. E tem feito curas maravi­lhosas de viciados cujos parentes já estavam desiludidos. Os toxicômanos procuram a clínica como uma última tentativa e saem de lá completamente curados.

— Sim! — bradou Henry Bassington-ffrench — E acuso sabem o que se passa lá dentro? Têm idéia do sofrimento pavoroso e do tormento mental? Privam um homem da dro­ga a que está habituado até que, enlouquecido, ele tenta arre­bentar a cabeça contra a parede! O seu “eficiente” Doutor Nicholson tortura os seus pacientes leva-os à loucura, ao pior dos infernos!

Exaltado, ele tremia violentamente. De repente virou-se e saiu da sala.

Sylvia Bassington-ffrench parecia perplexa.

— O que há com Henry? — ela perguntou. — Ficou tão transtornado.

Frankie e Roger não ousaram olhar um para o outro.

— Ele não parecia bem esta noite — arriscou Frankie.

— Não, eu também notei. Anda muito deprimido ultimamente. Gostaria que não tivesse abandonado a equitação. Ah, mudando de assunto, o Dr. Nicholson convidou Tommy para passar o dia amanhã com ele, mas não gosto muito que o menino vá à clínica, com todos aqueles viciados e doentes mentais andando por lá.

— Não acredito que o doutor permita que ele entre em contato com os doentes — disse Roger. — Ele parece gostar muito de crianças.

— É verdade. Deve ter ficado desapontado por não ter tido filhos ainda. Provavelmente ela também. Tem o ar tão frágil e melancólico.

— Lembra-me uma Madona triste — ajuntou Frankie.

— É uma boa descrição dela.

— Se o Dr. Nicholson gosta tanto de crianças, deve ter vindo a festa de Tommy, não? — perguntou Frankie em tom casual.

— Infelizmente ele estava fora na ocasião. Parece que foi passar um ou dois dias em Londres devido a uma con­ferência.

— Ah.

Antes de deitar-se naquela noite, Frankie escreveu a Bobby.

 

UMA DESCOBERTA

Bobby passava uns dias maçantes. A inatividade forçada era-lhe em extremo irritante. Estava detestando ficar em Lon­dres sem fazer nada.

George Arbuthnot telefonara-lhe para comunicar de for­ma muito lacônica que tudo correra bem. Dois dias mais tarde a criada de Frankie entregara-lhe uma carta da moça que fora enviada para a casa de Lorde Marchington em Londres.

Desde então não recebera mais notícias.

— Uma carta para você — anunciou Badger.

Bobby acorreu ansioso, mas o envelope com o carimbo de Marchbolt trazia a caligrafia do pai. Entretanto, no mesmo instante, viu a silhueta corretamente vestida de preto da criada de Frankie descendo a rua. Cinco minutos depois ele abria a segunda carta da moça.

“Querido Bobby. — Está na hora de você aparecer. Dei­xei instruções em casa para lhe entregarem o Bentley sempre que o pedir. Arranje um uniforme de motorista. Os nossos são sempre verde-escuro. Debite-o na conta de papai no Harrods. Não se esqueça dos pequenos detalhes, e cuide para que o bigode saia perfeito. Um bigode é capaz de transformar completamente uma fisionomia.

Traga o carro até aqui e peça para me ver, pretextando entregar-me um bilhete de papai. A garagem da propriedade só tem espaço para dois carros, e felizmente está ocupada com o Daimler da família e o conversível de Roger Bassington-ffrench. Assim você terá que ficar em Staverley.

Consiga o maior número possível de informações na hos­pedaria, principalmente acerca de um tal Dr. Nicholson que dirige uma clínica para viciados em entorpecentes. Suspeito dele, possui um sedã Talbot azul-escuro e estava fora no dia em que colocaram morfina em sua cerveja. Também mostrou-se muito interessado em saber detalhes do meu acidente.

Creio ter identificado o morto!!!

Au revoir, camarada detetive.

Muito carinho da sua convalescente Frankie.

P.S. Eu mesma colocarei esta no correio.”

O estado de espírito de Bobby sofreu uma melhora instantânea. Tirou o macacão, e dando a Badger a notícia de sua próxima partida, ia sair quando se lembrou que não abri­ra a carta do pai. Rasgou o envelope com pouco entusiasmo, pois as cartas do vigário eram normalmente ditadas por um espírito de dever e não de prazer, e exalavam uma aura de indulgência cristã altamente deprimente.

O consciencioso vigário relatava os últimos aconteci­mentos de Marchbolt, descrevendo seus problemas com o or­ganista e comentando sobre a falta de espírito cristão dos membros de sua igreja. Mencionava também ter mandado encadernar novamente os livros de hinos e, esperando que Bobby estivesse dedicando-se ao trabalho com perseverança e tentando progredir, enviava-lhe seu afeto de pai.

Havia um pós-escrito:

“Alguém veio procurá-lo e pediu o seu endereço em Lon­dres. Na ocasião eu não estava, e ele não deixou o nome. Segundo a Srª Roberts era um homem alto de ombros curvos e pince-nez. Pareceu muito penalizado por não o encontrar e ansioso para tornar a vê-lo.”

Um homem alto e encurvado com um pince-nez. Bobby repassou na lembrança as silhuetas de seus conhecidos, mas não achou nenhum que se adaptasse àquela descrição.

De repente uma suspeita instalou-se em seu espírito. Seria aquele um indício de que se preparava um novo atentado con­tra sua vida? Estariam seus misteriosos inimigos tentando des­cobrir seu paradeiro?

Sentou-se e tentou refletir seriamente. Quem quer que fosse, acabava de descobrir o seu endereço. A confiante Sra. Roberts colocara-o em perigo. Talvez a garagem já estivesse sendo observada. Se saísse talvez o seguissem, o que no mo­mento seria um desastre.

— Badger — chamou Bobby.

— O que é, camarada?

— Venha cá.

Os cinco minutos seguintes exigiram de Bobby um esforço genuíno, mas ao final de dez minutos Badger podia repetir de cor suas instruções.

Quando ficou certo que Badger compreendera tudo bem, Bobby entrou num Fiat conversível de 1902 e desceu a rua em disparada. Estacionou o carro no Largo de St. James e dirigiu-se para o seu clube. Ali deu alguns telefonemas e duas horas depois recebeu algumas encomendas. Por fim, cerca das três e meia, um chofer de libré verde-escura seguiu até o Largo de St. James e dirigiu-se rapidamente para um grande Bentley que ali estacionara meia hora antes. O fiscal do esta­cionamento não interveio, o cavalheiro que deixara o carro avisara-o, gaguejando um pouco, que seu chofer logo viria buscá-lo.

Bobby pisou na embreagem e arrancou sem pressa. Mais adiante o Fiat abandonado permaneceu obedientemente à es­pera do dono. Bobby, apesar da sensação desconfortável que sentia no lábio superior, começou a divertir-se. Tomou a dire­ção norte, em vez da sul, e logo a possante máquina entrava na grande rodovia do Norte.

Tratava-se somente de uma precaução extra. Tinha quase certeza de que não estava sendo seguido. Dali a pouco tomou um desvio para a esquerda e seguindo por várias estradas secundárias dirigiu-se para Hampshire.

Pouco depois da hora do chá, o Bentley entrou no parque de Merroway Court, dirigido por um motorista correto e formal.

— Parece o meu carro — disse Frankie e sem pressa encaminhou-se para a porta da frente.

Sylvia e Roger acompanharam-na.

— Está tudo em ordem, Hawkins?

O motorista levou a mão ao boné.

— Sim, milady. Fizeram uma revisão completa.

— Ótimo.

— É de Lorde Marchington, milady — tornou o mo­torista entregando-lhe um envelope.

— Tem um lugar reservado na hospedaria de Staverley, Hawkins. Chama-se... como é mesmo?... Ah, o Abrigo do Pescador. Telefonarei pela manhã se quiser o carro.

— Pois não, milady.

Bobby deu marcha-à-ré, fez a curva e tomou a estrada.

— Lamento não termos lugar aqui — disse Sylvia. — É um belo carro.

— Deve correr muito com ele — disse Roger.

— Se corro — admitiu Frankie.

A moça estava certa de que o rosto de Roger não reve­lara o menor traço de haver reconhecido Bobby. E ter-se-ia surpreendido muito se isto acontecesse, pois ela própria teria passado pelo rapaz se o encontrasse casualmente. O pequeno bigode tinha uma aparência perfeitamente natural, que, soma­do à postura rígida tão posta a naturalidade usual de Bobby e ao uniforme de motorista, completava o disfarce do rapaz.

A voz estivera também excelente, bem diferente daquela a que se acostumara. Frankie começou a pensar que Bobby era muito mais talentoso do que julgara.

Nesse ínterim o rapaz reclamara seus aposentos no Abri­go do Pescador com sucesso. Cabia-lhe agora representar o papel de Edward Hawkins, chofer de Lady Frances Derwent.

Quanto ao comportamento dos motoristas particulares em sua vida privada, as noções de Bobby eram muito escas­sas, mas imaginou que uma certa arrogância não seria inopor­tuna. Tentou compenetrar-se que era um ser superior e agir de acordo com essa convicção. A admiração irrestrita de al­gumas jovens empregadas da hospedaria veio encorajá-lo, e logo descobriu que Frankie e seu acidente constituíam o prin­cipal tópico de conversação em Staverley desde que o mesmo acontecera. Bobby puxou conversa com o hoteleiro, um homem gordo e folgazão chamado Tomas Askew e deixou es­corregar algumas informações.

— O jovem Reeves estava no local e viu como tudo aconteceu — declarou o Sr. Askew.

Bobby abençoou a imaginação fértil dos jovens. Agora o famoso acidente era corroborado por uma testemunha ocular.

— Ele pensou que havia chegado o seu último momento — prosseguiu o hoteleiro. — O carro desceu o morro direto para cima dele, só no último instante desviou-se para o muro. Foi um milagre que a jovem Lady não tenha morrido.

— Milady tem fôlego de gato.

— Ela já se acidentou muitas vezes?

— Minha senhora tem tido sorte, Sr. Askew —- disse Bobby. — Mas eu lhe asseguro que toda vez que lhe apetece tomar a direção tenho a impressão que chegou a minha der­radeira hora.

Vários presentes sacudiram a cabeça em desaprovação e demonstraram sua simpatia pelos seus problemas.

— Muito simpático esse hotelzinho que o senhor tem aqui, Sr. Askew — disse Bobby com ares protetores. — É acon­chegante e agradável.

O hoteleiro ficou todo satisfeito com a amabilidade.

— Merroway Court é a única grande propriedade nessa redondeza?

— Bem, há a Granja, mas há muito tempo que não mora lá uma família. Estava vazia há anos quando o médico ame­ricano a alugou.

— Médico americano?

— Isso mesmo. Seu nome é Nicholson. E se quer mes­mo saber, Sr. Hawkins, lá se passam muitas coisas esquisitas.

A garçonete ajuntou que o Dr. Nicholson lhe dava ar­repios.

— Mas que coisas esquisitas são essas, Sr. Askew? —-perguntou Bobby.

O hoteleiro assumiu uma expressão sinistra:

— Lá tem gente presa contra a vontade. São mantidos no sanatório pelos parentes. Olhe, Sr. Hawkins, o senhor nem imagina os gemidos, os gritos e os verdadeiros urros que aque­les infelizes soltam.

— Por que a polícia não interfere?

— Ah, bem, aparentemente tudo isso é normal. Trata-se de doentes nervosos e gente meio pancada. O dono do lugar é um médico e está tudo legal, mas...

Nesse ponto o rosto do hoteleiro ficou escondido por um caneco de cerveja e quando o colocou no balcão foi para sacudir a cabeça com ares de dúvida.

— Ah! Se soubéssemos tudo o que acontece em tais lugares... — insinuou Bobby com uma sombria entonação, e virou também seu caneco de estanho.

Muito animada, a garçonete ajuntou:

— Também penso assim, Sr. Hawkins. O que será que não acontece por lá? Uma noite dessas, uma pobre mocinha, só de camisola, fugiu e o médico e duas enfermeiras saíram atrás dela. A coitadinha gritava: “Não deixem eles me leva­rem!”. Dava até pena na gente. Ela disse que era rica e os parentes a tinham internado por causa do dinheiro dela. Mas eles a levaram de volta e o médico explicou que ela tinha “mania de perseguição” e pensava que todo mundo estava contra ela. Mas eu não fiquei muito convencida. Ah!, isso eu não fiquei não!

— É muito fácil inventar uma coisa dessas... — disse o Sr. Askew.

Um dos presentes declarou que ninguém sabia o que acontecia em lugares como aquele, e o seu companheiro concordou enfaticamente.

Por fim a conversa esfriou e Bobby anunciou sua inten­ção de dar uma voltinha antes de deitar-se.

Fora, tomou a direção oposta a Merroway Court e atra­vessou a aldeia. O que ouvira naquela noite parecia-lhe digno de atenção. Grande parte era certamente exagero, pois os ha­bitantes das cidadezinhas rurais geralmente encaram os foras­teiros com preconceitos, e ainda mais se são estrangeiros. Se Nicholson dirigia uma clínica para toxicômanos, era normal e muito provável que fossem ouvidos gritos e gemidos e outros sons estranhos sem que nada houvesse de sinistro no caso. Mas mesmo assim a história da jovem fugitiva causara má impressão a Bobby.

E se a Granja fosse realmente um local onde as pessoas eram encarceradas contra a vontade? Alguns casos genuínos podiam servir como camuflagem.

A essa altura de seus pensamentos, Bobby chegou diante de um muro alto com um portão de ferro batido. Em silêncio tentou abrir o portão, mas este estava trancado. Ora, e por que não deveria estar?

Apesar desse raciocínio, de alguma forma o portão tran­cado pareceu-lhe estranho. Dava um ar de prisão à proprie­dade. Examinando o muro, o rapaz continuou pela estrada. Procurava um lugar para escalar, mas a parede era alta e lisa e sem buracos que oferecessem apoio a um pé.

Sacudiu a cabeça, mas de repente deparou com uma pequena porta. Sem grandes esperanças experimentou o trinco. Para sua surpresa a porta se abriu, não estava trancada.

Alguém distraiu-se, pensou Bobby com um sorriso. Esgueirou-se pela abertura e fechou a porta silenciosamente. À sua frente estendia-se uma pequena trilha entre arbustos. O caminho era sinuoso e fê-lo lembrar-se de Alice no País do Espelho.

Subitamente, sem qualquer aviso, após uma curva abrup­ta, o caminho tinha fim num gramado junto a casa. Era noite de lua e estava bastante clara. Antes de o perceber, Bobby expusera-se ao luar.

No mesmo instante um vulto feminino surgiu no canto da casa. Caminhava em passos muito leves, voltando a cabeça para os lados parecendo ao rapaz ter todos os instintos alerta como um animal em fuga. Subitamente ela estacou e desequilibrou-se como se fosse cair.

Bobby correu em sua direção e a amparou. Os lábios dela estavam brancos e ele pensou que nunca vira tanto terror num rosto humano.

— Está tudo bem — tranqüilizou-a num sussurro. — Está tudo bem.

A jovem, pouco mais de uma menina, deu um leve ge­mido com as pálpebras semicerradas.

— Estou com tanto medo — disse ela. — Estou com tanto medo!

— O que aconteceu? — perguntou Bobby.

Mas ela limitou-se a sacudir a cabeça e repetir fracamente:

— Estou com medo. Muito medo.

Subitamente ela pareceu perceber algum som. Seu corpo retesou-se e ela se afastou de Bobby.

— Vá embora — implorou. — Vá embora logo.

— Quero ajudá-la — tornou Bobby.

— Quer mesmo?— ela o fitou por um minuto com um olhar profundo e comovente, como se quisesse explorar sua alma.

Então a jovem sacudiu a cabeça.

— Não agora. Oh! Depressa! Eles vêm vindo! Não po­derá ajudar-me a não ser que se vá agora! Logo. Vá logo!

Bobby atendeu ao pedido ansioso.

— Estou no Abrigo do Pescador — sussurrou antes de mergulhar às pressas na trilha entre os arbustos. Na última visão que teve da jovem ela implorava-lhe urgência num gesto ansioso.

Súbito ouviu passos à sua frente. Alguém entrara pela pequena porta e caminhava em sua direção. Bobby atirou-se entre a folhagem ao lado da trilha.

Não se enganara. Um homem passou bem perto dele, mas estava escuro e o rapaz não viu seu rosto.

Depois que ele passou, Bobby retomou sua retirada. Sen­tiu que nada mais podia fazer naquela noite. Sua mente era um torvelinho.

Reconhecera a jovem. Não lhe restava nenhuma dúvida.

Ela era o original da fotografia que tão misteriosamente havia desaparecido.

 

BOBBY TRANSFORMA-SE EM ADVOGADO

— Sr. Hawkins?

— Sim — disse Bobby com a voz meio tolhida por uma grande garfada de ovos com toicinho.

— Telefone para o senhor.

Bobby sorveu um gole apressado de café, limpou a boca e levantou-se. O telefone ficava num corredor estreito e escuro. Ele levou o fone ao ouvido.

— Alô — disse a voz de Frankie.

— Alô, Frankie — respondeu o descuidado rapaz.

— Aqui é Lady Frances Derwent — tornou a voz fria­mente. — É Hawkins quem fala?

— Sim, minha senhora.

— Vou precisar do carro às dez horas para ir a Londres.

— Muito bem, milady.

Bobby desligou o telefone.

Quando devo dizer “minha senhora” e quando devo dizer “Vossa Senhoria”? — perguntou-se o rapaz. Deveria saber, mas não sabia. Por um pequeno detalhe como aquele um mor­domo ou um motorista verdadeiro poderiam desconfiar dele.

Na outra extremidade do fio, Frankie recolocou o apa­relho no gancho e virou-se para Roger Bassington-ffrench.

— É um aborrecimento essa ida a Londres hoje — disse ela jovialmente. — Tudo por causa das preocupações de papai.

— Mas você estará de volta à noite, não? — perguntou Roger.

— Estarei, sim.

— Pensei em pedir-lhe uma carona até a cidade — tor­nou Roger despreocupadamente.

Frankie fez uma pausa de fração de segundo antes de responder com aparente presteza:

— Ora, naturalmente.

— Mas pensando bem, não creio que vá hoje — prosse­guiu Roger. — Henry está com uma aparência ainda mais es­tranha do que a usual. Não gosto muito da idéia de deixar Sylvia a sós com ele.

— Eu sei — disse Frankie.

— Você mesma vai dirigir? — perguntou Roger casual­mente enquanto se afastavam do telefone.

— Vou, mas levarei Hawkins comigo. Preciso fazer algu­mas compras e um motorista facilita as coisas. Sabe como é difícil estacionar.

— Sim, naturalmente.

Roger não disse mais nada, mas quando o carro aproxi­mou-se com Bobby aprumado e muito formal na direção, ele acompanhou-a até a porta para despedir-se.

— Adeus — disse Frankie.

Não pensou em estender-lhe a mão naquelas circunstân­cias, mas Roger tomou-a e a segurou por um minuto.

— Você vai voltar, não? — ele perguntou com curiosa insistência.

Frankie riu.

— Ora, na certa. O adeus é só até à noite.

— Não vá ter mais nenhum acidente.

— Se quiser, deixarei Hawkins dirigir.

Ela sentou-se ao lado de Bobby que levou a mão ao boné. O carro seguiu para o portão. Roger em pé na escada ficou olhando-a afastar-se.

— Bobby — disse Frankie — acha possível que Roger possa interessar-se por mim?

— Ele está interessado? — perguntou Bobby.

— Bem, a idéia já me passou pela cabeça.

— Você deve conhecer bem os sintomas — tornou o rapaz.

Mas falou absorto, distraído. Frankie lançou-lhe um rá­pido olhar.

— Aconteceu alguma coisa? — ela perguntou.

— Aconteceu, sim. Frankie, encontrei o original daque­la fotografia!

— Daquela fotografia? Está falando da fotografia que tanto o impressionou, da fotografia que estava no bolso do morto?

— Estou.

— Bobby! Tenho algumas coisas para lhe contar, mas nada tão sensacional quanto isso! Onde a encontrou?

Com o queixo Bobby indicou a retaguarda.

— No sanatório do Dr. Nicholson.

— Conte-me tudo!

Lenta e meticulosamente Bobby descreveu os acontecimentos da noite anterior. Frankie escutou-o prendendo a res­piração.

— Então estamos na pista certa — disse ela. — E Ni­cholson está envolvido no caso! Bobby, tenho medo daquele homem!

— Como é ele?

— Oh! Grande e vigoroso. Fica o tempo todo observan­do a gente fixamente por trás de umas lentes grossas. Tem-se a impressão que ele sabe tudo a nosso respeito.

— Onde o encontrou?

— Ele foi jantar conosco.

Frankie descreveu a reunião e o modo insistente com que o Dr. Nicholson pedira detalhes do seu “acidente”.

— Senti que ele suspeitava de alguma coisa — ela con­cluiu.

— Certamente é estranho o fato de ele querer examinar todos esses detalhes — anuiu Bobby. — O que acha que está por trás de todo esse negócio, Frankie?

— Bem, estou começando a pensar que aquela sua teo­ria de uma quadrilha de traficantes, que eu esnobei na oca­sião, não é afinal uma idéia tão má.

— E o Dr. Nicholson seria o chefe da quadrilha?

— Sim, o sanatório forneceria uma boa fachada para encobrir seus negócios escusos. Assim ele teria um motivo le­gal para a posse de entorpecentes, e a pretexto de curar toxi­cômanos, na verdade os manteria dependentes da droga.

— Isto parece bastante plausível — concordou Bobby.

— Ainda não lhe falei a respeito de Henry Bassington-ffrench.

Bobby ouviu com atenção a descrição das peculiaridades do anfitrião de Frankie.

— A mulher dele não suspeita de nada?

— Tenho certeza que não.

— Como é ela? Inteligente?

— Nunca pensei no assunto. Não, acho que não é muito inteligente. Mas em certos aspectos parece bastante sagaz. É uma mulher franca e agradável.

— E o nosso Bassington-ffrench?

— Ele me intriga — disse Frankie devagar. — Bobby não acha que é possível que nos tenhamos enganado a res­peito dele?

— Tolice — retrucou Bobby. — Examinamos bem o assunto e chegamos à conclusão que ele deve ser o vilão da história.

— Por causa da fotografia?

— Por causa da fotografia. Ninguém mais poderia ter feito a substituição.

— Eu sei — disse Frankie. — Mas esse acidente é tudo que temos contra ele.

— E é o bastante.

— Suponho que sim. E entretanto...

— Bem?

— Não sei, mas tenho a estranha sensação que ele é inocente e não está envolvido no caso.

Bobby a olhou com frieza.

— Será que ele está caído por você, ou é você que está caída por ele? — perguntou polidamente.

Frankie corou.

— Não diga absurdos, Bobby. Só pensei que talvez pu­desse existir alguma explicação inocente, é tudo.

— Não vejo como possa haver. Especialmente agora que encontramos a jovem nas redondezas. Este fato encerra qual­quer dúvida. Se ao menos tivéssemos alguma idéia da identi­dade do morto.

— Ah, mas eu tenho Eu lhe escrevi a respeito. Tenho quase certeza que o morto chamava-se Alan Carstairs.

E a moça tornou a narrar o que descobrira.

— Parece que estamos mesmo progredindo — disse Bob­by. — Agora devemos tentar reconstruir mais ou menos o cri­me. Vamos examinar os fatos e ver o que podemos tirar deles.

O rapaz fez uma pausa e o carro diminuiu a velocidade como em simpatia. Apertando novamente o acelerador, Bobby prosseguiu:

— Primeiro vamos supor que você está certa quanto a Alan Carstairs. Certamente ele preenche todos os requisitos. Levava uma vida errante, tinha poucos amigos e conhecidos na Inglaterra, e se desaparecesse aqui provavelmente sua falta não seria sentida logo. Até aí, muito bem. Alan Carstairs vai a Staverley com os... como é mesmo o nome deles?

— Rivington. É um ponto de partida para uma investi­gação. Devemos examiná-lo.

— E o faremos. Muito bem, Carstairs vem a Staverley com os Rivington. Haveria algum propósito atrás disso?

— Está querendo dizer que ele pode tê-los induzido a trazê-lo aqui deliberadamente?

— Isso mesmo. Ou teria sido por puro acaso? Teria ele vindo aqui e encontrado acidentalmente a jovem, como eu? Suponho que ele já a conhecesse antes, ou não andaria com o seu retrato.

— A alternativa que você sugere é que ele já estaria atrás de Nicholson e sua quadrilha?

— E utilizou os Rivington para aparecer naturalmente em cena.

— É bem possível — admitiu Frankie. — Ele poderia estar na pista da quadrilha.

— Ou simplesmente à procura da jovem.

— Da jovem?

— Sim, ela pode ter sido raptada. Ele pode ter vindo à Inglaterra para descobri-la.

— Bem, mas se ele a encontrou em Staverley, o que foi fazer em Gales?

— É óbvio que ainda há muita coisa que não sabemos.

— Evans... — murmurou Frankie pensativa. — Não descobrimos nada sobre Evans. Deve ter sido por causa de Evans que ele foi a Gales.

Ambos guardaram silêncio por alguns instantes, até que Frankie se deu conta da paisagem.

— Nossa, já estamos em Putney Hill! Parece que saí­mos há apenas cinco minutos. Onde iremos e o que vamos fazer?

— Você é que resolve. Eu nem sei por que estamos indo para Londres.

— Foi uma desculpa que arranjei para conversarmos. Não podia me arriscar a ser vista nas ruas de Staverley em colóquio íntimo com meu chofer, não é? Assim usei o falso bilhete de papai como pretexto para essa ida à cidade, mas Bassington-ffrench quase estragou tudo na última hora resol­vendo me acompanhar.

— Teria sido um desastre.

— Total não seria, pois poderíamos deixá-lo onde qui­sesse e depois conversarmos na Rua Brook. De qualquer for­ma essa é a melhor opção. Alguém pode estar vigiando sua oficina.

Bobby anuiu e contou-lhe que haviam procurado por ele em Marchbolt.

— Vamos para a residência londrina da minha família — disse Frankie. — Não há lá ninguém a não ser minha criada e dois caseiros.

O carro seguiu para a Rua Brook. Frankie tocou a campainha e entrou enquanto Bobby permaneceu do lado de fora. Dali a pouco Frankie abriu a porta e fez-lhe um sinal. Subi­ram para a grande sala de estar do andar superior onde levan­taram algumas persianas e removeram a capa de um dos sofás.

— Há um fato que esqueci de lhe contar — disse Frankie. — No dia 16 em que você foi envenenado, Bassington-ffrench estava em Staverley, mas Nicholson encontrava-se suposta­mente em Londres assistindo a uma conferência. E o carro dele é um Talbot azul-escuro.

— E ele tem acesso a morfina — ajuntou Bobby.

Eles trocaram olhares significativos.

— Não é uma prova conclusiva — disse Bobby, — mas encaixa-se muito bem na rede dos acontecimentos.

Frankie dirigiu-se a uma mesinha e voltou com a lista telefônica.

— O que vai fazer?

— Procurar as pessoas de sobrenome Rivington.

Rapidamente ela virou as páginas.

— A. Rivington & Filhos, Construtores. B.A.C. Riving­ton, cirurgião dentista. D. Rivington, Shooters Hill, não está com muito jeito. Srta. Florence Rivington. Cel. H. Rivington, D.S.O. — esse pode ser, Rua Tite, Chelsea.

Ela continuou a procurar.

— M. R. Rivington, Praça Onslow, é uma possibilidade. E ainda há um William Rivington em Hampstead. Acho que os da Praça Onslow e da Rua Tite são os mais prováveis. Precisamos procurar esses Rivington sem demora, Bobby.

— Tem razão. Mas a que pretexto? Invente uma boa mentira, Frankie. Não sou muito bom nesse departamento.

Frankie refletiu por uns instantes.

— Você terá que fazê-lo. Acha que pode representar o papel de sócio mais novo de uma firma de advogados?

— Pelo menos é um papel de certa classe. Estava com medo que você inventasse algo muito pior. Mas não acha que isto é muito pouco típico?

— O que quer dizer?

— Bem, advogados não costumam visitar clientes, costumam? Certamente esclarecem suas dúvidas por correspondência ou pedem para os clientes procurá-los no escritório.

— Mas esta é uma firma de advocacia nada convencio­nal — disse Frankie. — Espere aí.

A jovem deixou a sala e voltou com um cartão.

— “Dr. Frederick Spragge” — ela anunciou entregando-o a Bobby. — Você é o sócio mais novo da firma de Spragge, Spragge, Jerkinson & Spragge, de Bloomsbury Square.

— Essa firma é invenção sua, Frankie?

— Não, de forma alguma, São os advogados de papai.

— E suponha que me acusem de impostura?

— Não há perigo. Não há nenhum jovem Spragge. O único Spragge existente tem quase cem anos e posso mano­brá-lo à vontade. É um grande esnobe, adora lordes e du­ques a despeito do pouco ou nenhum lucro que lhe venha deles.

— E quanto a roupas? Devo telefonar a Badger para trazer-me algumas?

Frankie fez um ar de dúvida.

— Não quero fazer pouco de suas roupas, Bobby — dis­se ela — mas será que impressionarão o suficiente? Penso que será melhor recorrermos ao guarda-roupa de papai. Ele é mais ou menos do seu tamanho.

Um quarto de hora mais tarde, Bobby usando um jaquetão e calças listradas de corte impecável que lhe assentavam passavelmente, examinava-se ao espelho de Lorde Marchington.

— As roupas de seu pai são o fino — comentou o rapaz — e com uma etiqueta de Saville Row sinto-me muito mais confiante.

— Parece que terá de conservar o bigode — disse Frankie.

— Não há outro jeito. Essa obra de arte não pode ser refeita às pressas.

— Bem, então vá mesmo com ele. Mas teria um aspecto mais solene com o rosto escanhoado.

— É sempre melhor do que uma barba — tornou Bob­by. — Bem, Frankie, será que seu pai pode me emprestar um chapéu?

 

REVELAÇÕES DA SRA. RIVINGTON

— E se o Sr. M. R. Rivington também for um advogado? Seria um desastre.

— É melhor tentar o coronel da Rua Tite primeiro — disse Frankie. — Ele não deve saber nada dos hábitos dos advogados.

Assim Bobby pegou um táxi para a Rua Tite. O Coronel Rivington saíra, mas a senhora, entretanto, estava em casa. Bobby entregou à irrepreensível criada o cartão onde acres­centara: “De parte dos Srs. Spragge, Spragge, Jerkinson & Spragge. Urgentíssimo”.

O cartão e as roupas de Lorde Marchington produziram seu efeito instantâneo sobre a criada. Nem por um instante ela suspeitou que Bobby fosse um vendedor de seguros ou de quinquilharias. Introduziu-o numa bela e luxuosamente mobiliada sala de estar, e dali a pouco a Sra. Rivington, bonita e dispendiosamente vestida e maquilada, veio recebê-lo.

— Devo-lhe desculpas por incomodá-la, Sra. Rivington — disse o rapaz. — Mas o assunto era urgente e queríamos evitar a demora de recorrer ao correio.

A Bobby era tão evidentemente impossível que solicitadores quisessem evitar delongas que por um ansioso momento temeu que a Sra. Rivington descobrisse logo a farsa.

A Sra. Rivington, entretanto, era obviamente uma mu­lher muito mais bela do que inteligente e aceitava os fatos como eram-lhe apresentados.

— Ah, sente-se por favor! — disse ela. — Acabei de receber um telefonema do seu escritório avisando que o senhor estava a caminho.

Bobby aplaudiu mentalmente essa iniciativa brilhante de Frankie. Sentou-se e tentou assumir um ar doutorai.

— Trata-se de um cliente nosso, o Sr. Alan Carstairs — disse ele.

— Ah, sim?

— Talvez ele lhes tenha dito que somos seus represen­tantes.

— Será? Tenho a impressão que sim — disse a Sra. Rivington, arregalando os seus grandes olhos azuis. Era obviamente de um tipo sugestionável. — Mas naturalmente já ouvi falar nos senhores. Não defenderam Molly Maltravers quando ela atirou naquele horrível costureiro? Devem saber de todos os detalhes, não?

Ela o olhou com franca curiosidade. Bobby pensou que a Sra. Rivington seria uma presa fácil.

— Sabemos de muitas coisas que nunca chegam aos tribunais — disse ele sorrindo.

— Devem mesmo saber — disse a Sra. Rivington olhando-o com inveja. — Diga-me, ela realmente... quero dizer, ela estava mesmo vestida como aquela mulher afirmou?

— Essa versão foi desmentida no tribunal — disse Bob­by em tom solene, mas abaixando ligeiramente o canto de uma pálpebra.

— Ah, compreendo — tornou a Sra. Rivington deliciada.

— Quanto ao Sr. Carstairs — prosseguiu Bobby achando que relações amigáveis já haviam sido estabelecidas e já era tempo de entrar diretamente no assunto — ele precisou deixar a Inglaterra inesperadamente, como talvez a senhora saiba.

A Sra. Rivington sacudiu a cabeça.

— Ele deixou a Inglaterra? Eu não sabia. Não o vemos há algum tempo.

— Ele lhes contou quanto tempo pretendia ficar aqui?

— Disse que tanto poderia ficar uma a duas semanas, como seis meses e até mesmo um ano.

— Onde ele estava hospedado?

— No Savoy.

— E quando o viu pela última vez?

— Ah, cerca de três semanas a um mês atrás. Não estou bem certa.

— Levaram-no a Staverley um dia?

— Naturalmente! Foi a última vez em que o vimos. Ele telefonou para saber quando poderia ver-nos, acabara de che­gar em Londres. Hubert ficou amolado porque na manhã se­guinte íamos para a Escócia e naquele dia tínhamos compro­misso para almoçar em Staverley e um jantar com uma gente maçante de quem não nos podíamos livrar, e ele queria tanto ver Carstairs de quem gosta muito. Foi então que eu disse: “Querido, vamos levá-lo conosco para a casa dos Bassington-ffrench, eles não se importarão”. E foi o que fizemos. E eles não se importaram.

Ela deteve-se Ofegante.

— Os Carstairs contou-lhes os motivos de sua vinda à Inglaterra? — perguntou Bobby.

— Não. Ele tinha motivos? Ah, sim, já sei. Tinha qual­quer coisa a ver com aquele milionário amigo dele que teve morte tão trágica. Um médico qualquer disse-lhe que ele ti­nha câncer e o pobre se matou. É uma maldade um médico fazer uma coisa dessas, não acha? E tantas vezes eles se en­ganam! Outro dia o nosso médico disse que minha filhinha estava com sarampo, e no final das contas era só brotoeja. Eu já disse a Hubert que vou trocar de médico.

Deixando de lado o fato de que a Sra. Rivington tratava os médicos como se fossem livros numa biblioteca, Bobby tornou ao assunto.

— O Sr. Carstairs conhecia os Bassington-ffrench?

— Oh, não! Mas creio que gostou deles, embora na volta se mostrasse esquisito e taciturno. Parece que algum tópico da conversa o perturbou. Ele é canadense, sabe, e mui­tas vezes penso que os canadenses são por demais sensíveis.

— A senhora não sabe o que o perturbou?

— Não tenho a menor idéia. Às vezes as coisas mais to­las são capazes de perturbar uma pessoa, não é?

— Ele deu algum passeio pelas redondezas? — pergun­tou Bobby.

— Oh, não! Que idéia estranha! — Ela o olhou ad­mirada.

Bobby fez nova tentativa.

— Havia uma festa? Ele conheceu algum vizinho?

— Não, éramos só nós e eles. Mas é esquisito que o se­nhor faça essa pergunta...

— Sim? — encorajou-a Bobby ansioso quando ela fez uma pausa.

— Porque ele fez um monte de perguntas sobre um ca­sal que mora perto dos Bassington-ffrench.

— Lembra-se do nome deles?

— Não, não me lembro. Não era ninguém interessante, tratava-se de um médico ou coisa parecida.

— Dr. Nicholson?

— Acho que era este mesmo o nome. Ele quis saber tudo sobre ele e sua esposa, quando tinham vindo para cá, e tudo o mais. Achei muito esquisito, já que ele não os conhecia pessoalmente, e em geral não se mostrava curioso. Mas talvez, naturalmente, tenha falado por falar, por falta de outro assun­to. Isso às vezes acontece, não é?

Bobby concordou que era verdade e perguntou como os Nicholson haviam surgido na conversa, mas a Sra. Rivington não soube responder. Estivera no jardim com Henry Bassington-ffrench e ao entrar encontrara os demais falando sobre os Nicholson.

Até ali a conversação fluíra sem problemas com Bobby interrogando abertamente a dama, mas de repente a curiosi­dade dela despertou.

— Mas o que o senhor está querendo saber sobre o Sr. Carstairs? — ela perguntou.

— Na verdade queremos seu endereço — explicou Bob­by. — Como sabe, somos seus representantes legais e recebemos um telefonema de Nova Iorque. A senhora deve saber que houve uma flutuação no valor do dólar...

A Sra. Rivington assentiu com um ar muito sério.

— E por isso — prosseguiu Bobby com rapidez — que­remos entrar em contato com ele para receber suas instruções. Como ele não deixou endereço e havia se referido ao coronel e à senhora como seus amigos, pensamos que talvez tivessem notícias dele.

— Ah, compreendo — disse a Sra. Rivington totalmente satisfeita com a explicação. — E uma pena, mas creio que ele sempre se mostrou um tanto vago.

— Ah, bastante vago — concordou Bobby. — Bem — disse ele levantando-se — peço-lhe desculpas por tomar o seu tempo.

— De forma alguma — retrucou a dama. — E foi tão interessante saber que Dolly Maltravers realmente estava... como o senhor disse que ela estava.

— Eu não disse nada — ressalvou Bobby.

— Sim, mas os advogados são sempre tão discretos, não? — tornou a Sra. Rivington com uma risadinha.

Parece que acabei de destruir a reputação de Dolly. Qualquer coisa, pensou Bobby ao descer a Rua Tite. Mas na certa ela merecia e aquela tola e encantadora mulher nunca se in­dagará por que eu não telefonei simplesmente se desejava o en­dereço de Carstairs!

De volta à Rua Brook, ele e Frankie discutiram o assunto sob todos os ângulos.

— Parece que foi realmente o acaso que o levou aos Bassington-ffrench — disse Frankie pensativa.

— E é evidente que quando lá estava algum comentário casual atraiu a sua atenção para os Nicholson.

— Dessa forma, na realidade é Nicholson quem está por trás disso tudo e não Bassington-ffrench?

Bobby olhou para ela.

— Ainda resolvida a absolver seu herói? — ele pergun­tou com frieza.

— Meu caro, estou falando das aparências. Foi a men­ção de Nicholson e sua clínica que excitou Carstairs. A ida dele à casa dos Bassington-ffrench foi uma pura questão de chance. Precisa admitir isso.

— Aparentemente é verdade.

— Por que só aparentemente?

— Bem, existe uma outra possibilidade. De alguma for­ma Carstairs pode ter descoberto que os Rivington iam almoçar com os Bassington-ffrench. Pode ter ouvido alguma refe­rência casual ao assunto, no restaurante do Savoy, por exem­plo. Então ele lhes telefona, mostra-se ansioso em vê-los, e o que ele espera acontece. O casal está comprometido e sugere que ele os acompanhe, seus amigos não se importarão. Isso é possível, Frankie.

— Possível é, sem dúvida. Mas parece-me um método por demais tortuoso.

— Não mais tortuoso do que o seu acidente — disse Bobby.

— Meu acidente foi um ato direto e objetivo — retru­cou Frankie com frieza.

Bobby tirou as roupas de Lorde Marchington e recolo­cou-as no lugar. Tornou a vestir a libré de motorista e dali a pouco dirigiam-se mais uma vez a Staverley.

— Se Roger está caído por mim — disse Frankie com malícia, — ficará satisfeito por me ver de volta tão cedo. Jul­gará que não posso ficar muito tempo longe dele.

— Talvez você não possa mesmo suportar a sua falta — retrucou Bobby. — Sempre ouvi dizer que os criminosos realmente perigosos são muito atraentes.

— Por alguma razão não posso acreditar que ele seja um criminoso.

— Você já disse isso antes.

— Bem, é o que eu acho.

— Você não pode ignorar a fotografia!

— Ao diabo com a fotografia! — explodiu Frankie. Bobby dirigiu o resto da viagem em silêncio. Na chegada,

Frankie saltou do carro e entrou na casa sem olhar para trás. O carro fez a curva e afastou-se. .

A casa estava muito silenciosa. Frankie olhou o relógio. Eram duas e meia.

Eles só me esperam lá para o final da tarde, ela pensou. Onde estarão todos?

A jovem abriu a porta da biblioteca e entrou, detendo-se ainda no umbral.

O Dr. Nicholson estava sentado no sofá segurando as duas mãos de Sylvia Bassington-ffrench nas suas.

De um pulo Sylvia levantou-se e dirigiu-se para Frankie.

— Ele estava me contando — ela disse numa voz embar­gada e levou as duas mãos ao rosto como se o quisesse escon­der. — É terrível demais — ela soluçou e passando por Fran­kie saiu correndo da sala.

O Dr. Nicholson levantara-se. Frankie adiantou-se um ou dois passos. Os olhos dele, atentos como sempre, encon­traram os dela.

— Pobre senhora — ele disse com suavidade. — Foi um grande choque para ela.

Os músculos do canto de sua boca tremeram. Por um instante Frankie pensou que ele estava se divertindo. E então, subitamente, compreendeu que se tratava de uma emoção mui­to diferente.

Era raiva. Ele se controlava, escondendo a raiva atrás de uma máscara de calma e suavidade, mas o sentimento es­tava lá. Ele fazia o possível para escondê-lo.

Fez-se um momento de silêncio.

— É melhor que a Sra. Bassington-ffrench conheça a verdade — disse o médico. — Quero que ela convença o marido a entregar-se aos meus cuidados.

— Receio tê-lo interrompido — tornou Frankie gentil­mente, acrescentando depois de uma pausa: — Voltei mais cedo do que pretendia.

 

A JOVEM DA FOTOGRAFIA

Ao chegar à hospedaria, Bobby foi recebido com a informação de que alguém estava à sua espera.

— É uma senhora. Está na saleta do Sr. Askew.

Um pouco perplexo, Bobby caminhou para lá. A menos que possuísse asas, Frankie não poderia ter chegado na sua frente no Abrigo do Pescador, e pela cabeça do rapaz não pas­sou a idéia de que pudesse tratar-se de outra pessoa.

Ele abriu a porta do pequeno aposento que o Sr. Askew reservava para o seu uso próprio. Sentada muito erecta na beira de uma cadeira, a esbelta silhueta num vestido preto, estava a jovem da fotografia.

Bobby ficou tão atônito que não conseguiu falar por al­guns momentos. Então percebeu que a jovem parecia terrivel­mente nervosa. Suas pequeninas mãos tremiam e abriam e fechavam-se nos braços da cadeira. Estava nervosa demais para falar, mas seus grandes olhos transmitiam um apelo co­movente.

— Então é você? — disse Bobby afinal.

Fechou a porta atrás de si e adiantou-se. Mas a jovem ainda permaneceu calada com os olhos grandes e aterrorizados fixos nos dele. Por fim as palavras saíram num sussurro rouco.

— Você disse... disse que me ajudaria. Mas talvez eu não devesse ter vindo.

Bobby interveio, procurando palavras que a pudessem tranqüilizar.

— Não devia ter vindo? Tolice. Fez muito bem em vir. Era o que devia fazer, e eu farei qualquer coisa, qualquer coisa no mundo, para ajudá-la. Não tenha medo. Agora está segura.

A cor voltou um pouco ao rosto da moça. Abruptamente ela disse:

— Quem é você? Você... você não é um simples cho­fer. Pode estar vestido como um chofer, mas não é um chofer.

— Hoje em dia a gente aceita toda a espécie de trabalho. Eu era da Marinha. Para falar a verdade, não sou exatamente um chofer, mas isto agora não tem importância: Asseguro-lhe que pode confiar em mim. Conte-me tudo.

O sangue subiu às faces da jovem.

— Deve julgar-me uma louca — ela murmurou. — Deve julgar-me completamente louca.

— Não, não!

— Sim, por ter vindo aqui. Mas eu estava com medo, estava apavorada... — sua voz falseou e seus olhos arregalaram-se como ante uma visão aterradora.

Bobby segurou suas mãos com firmeza.

— Olhe aqui — disse ele — está tudo bem. Tudo vai ficar bem. Você agora está em segurança com... com um amigo. Nada lhe acontecerá.

Ele sentiu a pressão dos dedos dela em resposta.

— Quando você surgiu ao luar ontem à noite — ela dis­se numa voz baixa e apressada — foi como um sonho, um sonho de libertação. Não sei quem você é, nem de onde veio, mas trouxe-me esperança e resolvi vir procurá-lo e... con­tar-lhe tudo.

— Isso — encorajou-a Bobby. — Isso mesmo, conte-me tudo.

Ela recolheu subitamente a mão.

— Se eu contar, julgará que sou doida, que fiquei ma­luca de tanto conviver com aquela gente.

— Não, não pensarei isso, de forma alguma.

— Vai pensar, sim, porque o que tenho a lhe dizer pa­rece loucura.

— Mas sei que não é. Conte-me. Por favor, conte-me.

Ela afastou-se dele, erguendo a cabeça e olhando fixa­mente para a frente.

— É muito simples. Estou com medo de ser assassinada.

A voz saiu rouca. Ela tentava obviamente controlar-se, mas suas mãos tremiam.

— Assassinar?

— Sim. Parece loucura, não? Parece... como é mes­mo?... mania de perseguição.

— Não — protestou Bobby — você não me parece nem um pouco louca, só amedrontada. Diga-me, quem quer matá-la? E por quê?

Por um minuto ela ficou em silêncio, torcendo as mãos. Por fim disse muito baixo:

— Meu marido.

— Seu marido? — perguntou Bobby com a mente num torvelinho. — Quem é você? — abruptamente ele perguntou.

Foi a vez de ela demonstrar surpresa.

— Você não sabe?

— Não tenho a mínima idéia.

Ela o encarou.

— Sou Moira Nicholson — disse. — Meu marido é o Dr. Nicholson.

— Então não é uma paciente da clínica?

— Uma paciente? Oh, não! — ela retorquiu e seu rosto toldou-se subitamente. — Deve achar que falo como se fosse doente.

— Não, não! Eu não quis dizer nada disso — ele protes­tou ansioso em tranqüilizá-la. — Honestamente, eu não quis dizer isso. Só fiquei surpreso em sabê-la casada... e... tudo mais. Agora continue o que estava dizendo... a respeito do seu marido querer assassiná-la.

— Sei que parece loucura, mas não é, não é! Posso ler em seus olhos quando ele olha para mim. E acidentes estra­nhos têm acontecido.

— Acidentes? — perguntou Bobby em tom brusco.

— Sim. Eu sei que pareço uma histérica inventando isso tudo.

— Nada disso — acudiu o rapaz. — Sua história é perfeitamente plausível. Prossiga. Conte-me a respeito dos acidentes.

— Foram pequenos acidentes, nada mais. Ele deu marcha-à-ré no carro sem olhar para trás, e eu estava lá. Pulei no último instante. Um vidro de remédio com o conteúdo tro­cado... Coisas tolas de quem ninguém desconfiaria, mas eu sei que foram propositais. E isto está me desgastando, ficar sempre em guarda, vigilante, tentando preservar a minha vida.

Ela engoliu um soluço.

— Por que seu marido quer matá-la? — perguntou Bob­by, talvez sem esperar uma resposta definida, mas ela respon­deu prontamente:

— Porque ele quer casar-se com Sylvia Bassington-ffrench.

— O quê? Mas ela já é casada.

— Eu sei. Mas ele dará um jeito nisso.

— O que quer dizer?

— Não sei como agirá, exatamente. Mas sei que ele está tentando levar Henry Bassington-ffrench para a clínica como paciente.

— E daí?

— Não sei, mas algo vai acontecer.

A jovem estremeceu e acrescentou.

— Ele tem algum poder sobre o Sr. Bassington-ffrench. Não sei o que é.

— Bassington-ffrench é viciado em morfina — disse Bobby.

— Então é isso? Deve ser Jasper quem a fornece.

— Ele recebe a droga pelo correio.

— Talvez Jasper não a entregue diretamente, ele é mui­to esperto para tal. O próprio Sr. Bassington-ffrench pode não saber que a recebe de Jasper, mas estou certa disso. E quando Jasper o tiver internado na clínica a pretexto de curá-lo... então...

Ela calou-se e estremeceu.

— Acontece toda a espécie de coisas estranhas na Gran­ja. Os doentes internam-se para curar-se, mas em vez de me­lhorar, ficam pior, pior...

A essas palavras Bobby teve uma breve visão de uma atmosfera estranha e maligna. Parte do terror que há tanto tempo cercava a vida de Moira o envolveu.

Abruptamente ele disse:

— Diz que seu marido deseja casar-se com a Srª Bassington-ffrench?

— Moira fez um gesto de assentimento.

— Está apaixonado por ela.

— E ela?

— Não sei — respondeu Moira lentamente. — Não con­sigo chegar a uma conclusão. Aparentemente ela é afeiçoada ao marido e ao filhinho. Parece ser uma mulher muito simples, satisfeita e em paz. Mas algumas vezes pergunto-me se ela é tão simples assim. Chego a pensar que ela é uma mulher com­pletamente diferente do que nós todos pensamos que ela se­ja... que está desempenhando um papel, e desempenhando-o muito bem... Mas isso tudo é tolice minha, pura imagina­ção da minha parte. Quando se vive num lugar como a Gran­ja nossa mente se distorce, começa-se a imaginar coisas.

— E quanto ao irmão, Roger? — perguntou Bobby.

— Não sei muita coisa sobre ele. É simpático, mas creio que seja uma pessoa fácil de iludir. Sei que Jasper tem uma grande influência sobre ele. Agora o está convencendo a per­suadir o Sr. Bassington-ffrench a internar-se na clínica. Acho que ele pensa que a idéia partiu da sua própria cabeça — disse Moira, e inclinando-se subitamente para a frente segu­rou a manga de Bobby. — Não o deixe ir para a Granja — ela implorou. — Se ele for, sei que vai acontecer algo de horrível.

Bobby ficou em silêncio alguns minutos refletindo sobre aquela espantosa narrativa.

— Há quanto tempo está casada com Nicholson? — disse ele afinal.

— Pouco mais de um ano... — e ela estremeceu.

— Não pensou em abandoná-lo?

— Como poderia? Não tenho para onde ir. Não tenho dinheiro. Se alguém me desse abrigo, o que lhe poderia dizer? Essa história fantástica de que meu marido pretendia me matar? Quem me daria crédito?

— Bem, eu acredito em você — disse Bobby.

O rapaz ficou calado por momentos como resolvendo que linha de ação tomar. Por fim falou:

— Olhe aqui — disse ele sem reticências — vou fazer-lhe uma pergunta. Conhece um homem chamado Alan Carstairs?

Ele viu o sangue subir-lhe às faces.

— Por que me faz essa pergunta?

— Porque é importante que eu saiba a resposta. Penso que conhece Alan Carstairs. Penso que talvez numa ocasião qualquer lhe deu o seu retrato.

Ela ficou em silêncio por alguns momentos com os olhos baixos. Então levantou a cabeça e o encarou.

— É verdade — ela admitiu.

— Conheceu-o antes de casar-se?

— Sim.

— Ele veio vê-la aqui depois do seu casamento?

Ela hesitou e por fim disse:

— Sim, uma vez.

— Foi cerca de um mês atrás, não foi?

— Sim, deve ter sido há cerca de um mês.

— Ele sabia que estava morando aqui?

— Não sei como descobriu. Eu nada lhe havia comuni­cado. Não lhe escrevi depois do meu casamento.

— Mas ele descobriu e veio vê-la. Seu marido soube disso?

— Não.

— Você julga que ele não soube. Mas é possível que te­nha descoberto, não é?

— É possível, mas ele nunca fez qualquer comentário.

— Falou com Carstairs a respeito de seu marido? Contou-lhe que temia por sua segurança?

Ela sacudiu a cabeça.

— Eu ainda não começara a suspeitar.

— Mas sentia-se infeliz?

— Sim.

— Disse isso a ele?

— Não. Tentei não demonstrar que meu casamento era um fracasso.

— Mas assim mesmo ele pode ter adivinhado — tornou Bobby gentilmente.

— Talvez — ela admitiu num murmúrio.

— Você acredita... não sei bem como dizer... você acha que ele sabia de alguma coisa sobre seu marido? Que ele suspeitava, por exemplo, que essa clínica poderia ser algo muito diferente do que aparentava ser?

Ela franziu a testa tentando refletir.

— É possível — disse por fim. — Ele me fez uma ou duas perguntas estranhas... Não, não! Não creio que ele sou­besse de coisa alguma.

Bobby ficou novamente em silêncio por alguns minutos, ao fim dos quais perguntou:

— Você diria que seu marido é um homem ciumento?

A resposta dela o surpreendeu.

— Sim. Muito ciumento.

— Ele sente ciúmes de você, por exemplo?

— Mesmo não gostando de mim? Mas certamente, ele tem ciúmes da mesma forma. Compreenda, eu sou proprieda­de dele. É um homem estranho, um homem muito estranho — disse ela, estremecendo.

Subitamente a jovem perguntou:

— Você não tem ligações com a polícia, tem?

— Eu? Oh, não!

— Pois eu pensei... — a jovem calou-se e olhou para o seu uniforme de motorista.

— É uma história muito comprida — ele disse.

— Você é o chofer de Lady Frances Derwent, não é? Foi o que o hoteleiro me disse. Eu a conheci num jantar há poucos dias.

— Eu sei — retrucou Bobby e fez uma pausa. — Preci­samos falar com ela — ele ajuntou. — E para mim é um pouco difícil. Será que não a poderia chamar e pedir que vies­se encontrá-la em algum lugar da aldeia?

— Creio que sim.

— Sei que isto deve lhe parecer muito esquisito, mas compreenderá quando lhe tiver explicado tudo. Agora é essencial que falemos com Frankie o mais rápido possível.

Moira levantou-se.

— Está bem — disse ela.

Já com a mão no trinco ela hesitou.

— Alan... Alan Carstairs — disse ela. — Você o viu?

— Sim, eu o vi — tornou Bobby lentamente. — Mas já faz algum tempo.

Ora, mas ela não sabe que ele está morto, pensou o ra­paz com um choque. Em voz alta insistiu:

— Telefone para Lady Frances. Então lhe contarei tudo.

 

TRÊS EM CONFERÊNCIA

Alguns minutos depois Moira voltou.

— Falei com ela — declarou. — Pedi que me fosse en­contrar num pequeno quiosque que há perto do rio. Ela deve ter achado muito esquisito, mas disse-me que viria.

— Ótimo — aprovou Bobby. — Agora diga-me onde fica esse tal lugar.

Moira descreveu detalhadamente o caminho a seguir.

— Muito bem — tornou Bobby. — Vá na frente. Eu a seguirei.

Ao sair Bobby fez uma pequena pausa para dar uma palavrinha com o Sr. Askew.

— Mas que coincidência! — disse num tom casual. — Trabalhei muito tempo para um tio daquela senhora, um ca­valheiro canadense.

Achara que a visita de Moira poderia dar origem a mui­to falatório e a última coisa que desejava no momento era que tais mexericos chegassem aos ouvidos do Dr. Nicholson.

— Então é isso? — tornou o Sr. Askew. — Estranhei a visita dela.

— Ela me reconheceu — explicou Bobby — e veio sa­ber o que eu estava fazendo agora. É uma senhora’ muito dis­tinta e simpática.

— É mesmo muito simpática. A vida dela lá na Granja não deve ser muito alegre.

— Não seria do meu paladar — concordou Bobby.

Sentindo que alcançara seu objetivo, o rapaz saiu e co­mo quem anda à-toa encaminhou-se para o rio seguindo as informações de Moira.

Chegou sem tropeços ao seu objetivo e encontrou-a à sua espera. Frankie ainda não aparecera. Moira recebeu-o com um olhar francamente inquiridor e Bobby sentiu que devia empreender a difícil explicação.

— Tenho muita coisa para lhe dizer — principiou o ra­paz e parou sem jeito.

— Sim?

— Em primeiro lugar — começou Bobby — não sou realmente um chofer, embora trabalhe numa oficina em Lon­dres. E meu nome não é Hawkins, é Jones, Bobby Jones. Sou de Marchbolt, Gales.

Moira ouvia com atenção, mas era evidente que o nome de Marchbolt nada significava para ela. Bobby encheu-se de coragem e foi direto ao âmago da questão.

— Escute, receio que vá levar um choque, mas esse seu amigo, Alan Carstairs... Bem, ele... Você precisa saber. Ele está morto.

Sentiu o seu sobressalto e discretamente desviou o olhar. Ela estaria muito acabrunhada? Será que ela estivera — dia­bos! — caída pelo sujeito?

A jovem ficou em silêncio por alguns instantes e então disse numa voz baixa e pausada:

— Então foi por isso que ele não voltou? Eu achei es­tranho...

Bobby arriscou um olhar em sua direção. Seu estado de espírito melhorou. Ela parecia triste e pensativa, mas era só.

— Conte-me como foi — pediu ela.

Bobby a atendeu.

— Ele caiu de um penhasco em Marchbolt, a cidadezi­nha onde eu moro. Acontece que fomos eu e o médico local quem o encontramos — e acrescentou depois de uma pausa: — Ele tinha o seu retrato no bolso.

— É verdade? — ela sorriu, um sorriso doce e triste. — Querido Alan, ele era... muito fiel.

Fez-se silêncio por uns instantes e então ela perguntou:

— Quando isto aconteceu?

— Há cerca de um mês atrás. No dia 3 de outubro para ser exato.

— Logo depois que ele esteve aqui.

— Ele não lhe disse que pretendia ir a Gales?

Ela sacudiu a cabeça numa negativa.

— Você não conhece ninguém chamado Evans, conhe­ce? — disse Bobby.

— Evans? — Moira franziu a testa tentando lembrar-se. — Não, acho que não. É um nome muito comum, mas não consigo lembrar de ninguém. Quem é esse Evans?

— É justamente o que queríamos saber. Oh, aí vem Frankie.

Frankie aproximava-se. Ao ver Bobby e a Srª Nicholson lado a lado conversando, seu rosto tornou-se um mostruário de emoções conflitantes.

— Olá, Frankie — disse Bobby. — Estou contente que tenha vindo. Precisamos muito conferenciar. Tenho uma gran­de novidade: aquele retrato era da Srª Nicholson.

— Oh! — fez Frankie desconcertada.

Ela olhou para Moira e deu uma súbita risada.

— Meu caro — disse ela a Bobby — compreendo agora porque teve um choque ao ver a Srª Cayman no inquérito!

— Ainda bem — tornou Bobby.

Que tolo ele fora. Não poderia ter aceitado, nem por um minuto, que o tempo tivesse transformado uma Moira Nichol­son numa Amélia Cayman.

— Mas, meu Deus, como fui idiota! — ele exclamou.

Moira tinha um ar perplexo.

— Tenho muita coisa para lhe contar — disse Bobby — e nem sei por onde começar.

Ele lhe falou sobre os Cayman e como haviam identifi­cado o cadáver.

— Mas não estou entendendo — disse Moira confusa. — O cadáver era do irmão dela ou de Alan Carstairs?

— É aí que está a sujeira — explicou Bobby.

— E logo depois envenenaram Bobby — prosseguiu Frankie.

— Com oito grãos de morfina — ajuntou o rapaz.

— Não comece a falar nisso — atalhou Frankie. — Vo­cê é capaz de discorrer sobre o assunto durante horas e isso é muito maçante. Deixe-me explicar.

Ela respirou fundo.

— Olhe — começou a jovem — esses tais Cayman foram procurar Bobby depois do inquérito e perguntaram-lhe se o seu (suposto) irmão dissera alguma coisa antes de morrer, e ele respondeu “não”. Mas depois lembrou-se que o morto dissera algo sobre um homem chamado Evans, e escreveu a eles contando, e alguns dias depois recebeu uma oferta de um emprego no Peru, ou coisa parecida, e quando não aceitou, alguém colocou um bocado de morfina...

— Oito grãos — interveio Bobby.

— ... na sua cerveja, mas como Bobby tem um estô­mago de ferro ou um organismo fantástico, não morreu. E foi então que chegamos à conclusão que Pritchard, ou seja Carstairs, deve ter sido empurrado para o abismo.

— Por que necessariamente? — perguntou Moira.

— Não é evidente para você? Para nós é perfeitamente claro. Vai ver que não contei a história direito. Mas de qual­quer forma, concluímos que ele fora assassinado, e o crimi­noso provavelmente era Roger Bassington-ffrench.

— Roger Bassington-ffrench? — repetiu Moira como se achasse a idéia muito engraçada.

— Foi a conclusão a que chegamos. Escute, ele estava no local, e sua fotografia desapareceu, e ele parece ser a úni­ca pessoa que poderia tê-la subtraído.

— Entendo — disse Moira pensativa.

— E depois — prosseguiu Frankie — acontece que me acidentei por aqui. Foi uma coincidência extraordinária, não acha? — disse ela olhando muito firme para Bobby. — Então telefonei para Bobby e sugeri que ele viesse como meu cho­fer para examinarmos o problema.

— Compreende agora o que se passou? — perguntou Bobby corroborando a pequena mentira de Frankie. — E o clímax final foi quando invadi o terreno da Granja e deparei logo com você — a jovem da misteriosa fotografia.

— Você me reconheceu muito depressa — disse Moira com um leve sorriso.

— Sim — admitiu Bobby. — Eu teria reconhecido o mo­delo que pousou para aquela fotografia em qualquer lugar do mundo.

Por um motivo qualquer, Moira corou. Subitamente uma idéia pareceu lhe ocorrer e ela olhou acusadoramente para os dois.

— Vocês estão me contando a verdade? — ela pergun­tou. — Vieram parar aqui mesmo por acidente? Ou vieram porque... porque... — sua voz tremia apesar de seus esfor­ços — suspeitavam de meu marido?

Bobby e Frankie entreolharam-se. Bobby então falou.

— Dou-lhe minha palavra de honra que nunca ouvimos falar em seu marido antes de chegarmos aqui.

— Ah, estou compreendendo — ela disse e virou-se para Frankie. — Sinto muito, Lady Frances, mas lembrei-me da­quela noite em que jantamos juntas. Jasper ficou insistindo em saber todos os detalhes do seu acidente e eu não conse­guia compreender o motivo. Mas agora estou pensando que ele talvez suspeitasse de que o acidente não fora verdadeiro.

— Bem, se quer realmente saber, não foi mesmo — admitiu Frankie. — Ufa! Agora sinto-me bem melhor! Nós encenamos tudo cuidadosamente, mas isto nada teve a ver com seu marido. Queríamos... como posso dizer?... queríamos descobrir provas contra Roger Bassington-ffrench.

— Roger? — Moira franziu a testa e deu um sorriso de perplexidade. — Parece-me tão absurdo — disse ela com franqueza.

— Mesmo assim fatos são fatos — retrucou Bobby.

— Roger? Oh, não — ela sacudiu a cabeça. — Ele pode ser fraco, irresponsável, contrair dívidas ou envolver-se num escândalo... Mas empurrar alguém para um abismo? Não. Eu simplesmente não posso imaginar uma coisa destas.

— Sabe — acudiu Frankie — eu também não posso.

— Mas ele deve ter tirado aquela fotografia — insistiu Bobby obstinadamente. — Escute, Srª Nicholson, vamos exa­minar os fatos.

Lenta e cuidadosamente ele narrou o que vira. Quando terminou ela fez um gesto de assentimento.

— Compreendo, parece mesmo estranho — disse ela, fazendo uma pausa. Então ela propôs inesperadamente:

— Por que não pergunta a ele?

 

DOIS EM CONFERÊNCIA

Por um momento a ousadia e a simplicidade da sugestão cortou-lhes a respiração. No instante seguinte Bobby e Fran­kie começaram a falar.

— Isto não é possível... — principiou Bobby no mes­mo momento em que Frankie protestava com firmeza:

— Não podemos.

Calaram-se então ao começar a perceber as possibilida­des abertas pela idéia.

— Escutem — acudiu Moira ansiosa, — compreendo o seu ponto de vista. Parece mesmo inegável que Roger apanhou o meu retrato, mas não posso acreditar, nem por um instante, que ele tenha empurrado Alan. Por que faria uma coisa des­sas? Ele nem mesmo o conhecia bem. Só estivera com ele uma vez, num almoço aqui. Nunca se tinham encontrado antes. Não existe um motivo.

— Então quem o empurrou? — perguntou abruptamente Frankie.

Uma sombra passou pelo rosto de Moira.

— Eu não sei — ela disse constrangida.

— Olhe aqui — tornou Bobby — incomoda-se se eu contar a Frankie o que me disse? A respeito dos seus temores?

Moira virou o rosto.

— Se quiser. Mas parecerá histerismo e melodrama. No momento nem eu mesma acredito.

E na verdade a afirmação se feita sem emotividade, ao ar livre naquele tranqüilo recanto do campo inglês, pareceria curiosamente irreal.

Moira levantou-se subitamente.

— Sinto-me como uma tola completa — ela disse com os lábios trêmulos. — Por favor, não dê atenção ao que eu disse, Sr. Jones. Foi... puro nervosismo. De qualquer for­ma, agora preciso ir. Adeus.

Ela afastou-se com rapidez. Bobby levantou-se num pulo para a seguir, mas Frankie o deteve com firmeza.

— Fique aqui, seu idiota. Deixa-a comigo — disse ela, correndo atrás de Moira.

Alguns minutos depois voltou.

— Bem? — perguntou Bobby ansioso.

— Está tudo bem. Eu acalmeia-a. Foi penoso para ela ter seus terrores secretos expostos diante de uma terceira pes­soa. Eu a fiz prometer que cedo teríamos nova reunião, os três. E agora que você não está tolhido pela presença dela, desembuche.

Bobby obedeceu. Frankie ouviu com atenção e disse quan­do ele terminou:

— Isso se ajusta a outros dois fatos. O primeiro é que quando entrei há pouco em casa encontrei Nicholson seguran­do as duas mãos de Sylvia Bassington-ffrench, e seus olhos fuzilaram ao me ver! Se olhar matasse, eu já estaria morta.

— E quanto ao segundo fato?

— Oh, é um pequeno detalhe. Sylvia contou-me que um visitante ficara muito impressionado com o retrato de Moira. Sou capaz de apostar que foi Carstairs. Ele deve ter reconhe­cido o retrato, e Sylvia disse-lhe que era a Srª Nicholson, o que explica como ele descobriu seu paradeiro. Mas sabe, Bob­by, ainda não vejo onde Nicholson entrar nessa história. Por que ele havia de querer matar Alan Carstairs?

— Então está pensando que foi ele e não Bassington-ffrench? Seria muita coincidência que Nicholson e Bassington-ffrench estivessem em Marchbolt no mesmo dia.

— Bem, coincidências acontecem. Mas se foi Nicholson ainda não vejo o motivo. Será que Carstairs estaria tentando provar que ele era o chefe de uma quadrilha de entorpecentes? Ou teria sido a sua nova amiguinha o motivo do crime?

— Talvez as duas coisas — sugeriu Bobby. — Ele pode ter descoberto que Carstairs encontrara-se com a esposa, e po­de ter pensado que ela o denunciara de alguma forma.

— Bem, é uma possibilidade — disse Frankie. — Mas a primeira coisa a fazer é nos certificarmos do papel de Ro­ger Bassington-ffrench. O único fato que temos contra ele é o caso do retrato. Se pudermos esclarecer esse ponto satisfa­toriamente...

— Vai falar com ele? Frankie, isso será prudente? Se ele for o vilão da história, como deduzimos, estaremos expon­do nosso jogo.

— Não da forma com que pretendo falar. Afinal, sob todos os outros aspectos ele tem-se mostrado sincero e hones­to. Julgamos que seria uma superastúcia de sua parte, mas suponhamos que seja simplesmente inocência? Se ele puder explicar a questão do retrato — e quando o fizer estarei mui­to atenta e perceberei qualquer hesitação ou indício de culpa, — mas, se ele esclarecer tudo, poderá ser um aliado valioso.

— O que quer dizer, Frankie?

— Meu caro, sua amiguinha talvez seja uma garota emo­tiva e nervosinha que gosta de exagerar as coisas, mas supo­nhamos que não seja, que tudo o que diz é verdade. Então seu marido quer livrar-se dela para casar-se com Sylvia. Não per­cebe que nesse caso Henry Bassington-ffrench também está em perigo mortal? Temos que impedir, custe o que custar, que ele seja internado na Granja. E no momento Roger Bassing­ton-ffrench está do lado de Nicholson.

— Muito bem, Frankie — disse Bobby pausadamente. — Leve avante seus planos.

Frankie levantou-se, mas antes de sair deteve-se por um instante.

— Não é esquisito? — ela comentou. — De alguma for­ma parece que estamos entre as páginas de um livro, e viemos parar dentro da história de outras pessoas. É uma sensação muito estranha.

— Compreendo o que está querendo dizer — tornou Bobby. — É mesmo estranho, só que eu diria que se trata de uma peça teatral e não de um livro. É como se surgíssemos num palco no meio do segundo ato e não soubéssemos nossos papéis, e tivéssemos de improvisar. O que torna tudo ainda mais difícil é que não temos a menor idéia de como foi o primeiro ato.

Frankie fez um gesto de assentimento.

— Não estou nem certa de que é o segundo ato, parece-me mais o terceiro. Bobby, tenho certeza de que temos de retornar ao passado... e temos de ser muito rápidos porque sinto que a peça está assustadoramente perto de terminar.

— Com cadáveres espalhados por todos os lados — con­cluiu Bobby. — E a frase que marcou a nossa entrada, seis pequenas palavras, para nós nada significa.

— Por que não pediram a Evans? Não é estranho, Bob­by, que embora tenhamos descoberto muitas coisas e novos personagens continuem a entrar em cena, ainda não temos nenhuma idéia de quem seja esse misterioso Evans?

— Pois eu tenho. Sinto que na realidade ele não é importante, que embora tenha sido o ponto de partida, em si mesmo ele é um comprimário. E como aquele conto de Wells em que um príncipe construiu um maravilhoso templo em re­dor da tumba de sua amada, e quando a obra ficou termina­da havia um detalhe destoante. Então o príncipe ordenou: “Levem essa coisa embora”. E a coisa era a própria tumba.

— Algumas vezes — disse Frankie — eu nem acredito que exista um Evans.

E dizendo isso ela acenou para Bobby e retomou o ca­minho para casa.

 

ROGER RESPONDE A UMA PERGUNTA

A sorte favoreceu-a, pois encontrou-se com Roger perto da propriedade.

— Olá — disse ele. — Você voltou cedo de Londres.

— Achei Londres muito sem graça hoje.

— Já esteve em casa? — ele perguntou com uma expressão grave. — Parece que Nicholson contou a verdade so­bre o velho Henry a Sylvia. Coitadinha, ela está muito aba­lada. Não suspeitava de nada.

— Eu sei — tornou Frankie. — Eles estavam na biblio­teca quando eu cheguei. Ela me pareceu... transtornada.

— Escute, Frankie — disse Roger — Henry precisa se curar. Não creio que o vício esteja muito enraizado nele. Não faz tanto tempo assim que começou. E tem todos os incenti­vos do mundo para tratar-se — Sylvia, Tommy seu lar. É preciso que ele veja com clareza a situação. O Dr. Nicholson é a pessoa indicada para ajudá-lo. Outro dia ele estava con­versando comigo. Sabe, tem obtido algumas curas maravilho­sas, mesmo de pessoas que há anos eram escravas dessa dro­ga hedionda. Se ao menos Henry concordasse em se inter­nar...

Frankie interrompeu-o.

— Olhe — disse ela — quero fazer-lhe uma pergunta. Uma só. Espero que não me julgue tremendamente imperti­nente.

— O que é? — perguntou Roger com a atenção desper­tada.

— Importa-se em me dizer se tirou uma fotografia do bolso de um homem? Do homem que caiu do penhasco em Marchbolt?

Ela o observava atentamente, vigiando cada traço de seu rosto. O que viu a satisfez.

Uma leve contrariedade, um toque de constrangimento — nenhum indício de culpa ou consternação.

— Ora, como é que adivinhou uma coisa dessas? — ele perguntou. — Ou será que Moira lhe contou?... Mas ela não sabe!

— Você tirou, não foi?

— Tenho de admitir, pelo jeito.

— Por quê?

Novamente Roger pareceu embaraçado.

— Bem, tente ver as coisas pelo meu prisma. Estou ali, velando o cadáver de um estranho. Há alguma coisa aparecen­do em seu bolso. Dou uma olhada. Por uma espantosa coinci­dência é o retrato de uma mulher que eu conheço, uma mu­lher casada, uma mulher que não me parece muito feliz no casamento. O que vai acontecer? Um inquérito, publicidade, talvez o nome da pobre em todos os jornais. Num impulso tirei o retrato e rasguei-o. Talvez tenha agido mal, mas Moira Nicholson é uma criaturinha delicada e não queria que fosse envolvida num escândalo.

Frankie respirou fundo.

— Então foi isso — disse ela. — Se você soubesse...

— Soubesse o quê? — perguntou Roger perplexo.

— Não sei se lhe conto agora. Talvez mais tarde. É tudo muito complicado! Posso compreender porque se apropriou do retrato, mas o que o impediu de identificar o homem? Não era seu dever dizer à polícia quem ele era?

— Identificá-lo? — tornou Roger com um ar atônito. — Como eu o poderia identificar? Eu não o conhecia.

— Como não? Não foi apresentado a ele aqui, uma se­mana antes?

— Minha cara jovem, está maluca?

— Alan Carstairs. Você não foi apresentado a Alan Carstairs?

— Ah, sim! O homem que os Rivington trouxeram, não é? Mas o morto não era Alan Carstairs.

— Era sim!

Entreolharam-se. Frankie sentiu a desconfiança renascer.

— Certamente você o reconheceu!

— Eu não vi o rosto dele — declarou Roger.

— O quê?

— Não vi. O rosto estava coberto por um lenço.

Frankie ficou olhando para ele. Súbito lembrou-se de que a primeira vez que Bobby lhe contara a tragédia dissera que havia colocado um lenço sobre o rosto do morto.

— Não pensou em dar uma olhada? — insistiu Frankie.

— Não. Por que o faria?

Ora, se eu encontrasse o retrato de uma conhecida no bolso de um morto, simplesmente teria de olhar o seu rosto, pensou Frankie. Quão maravilhosamente pouco curiosos são os homens!

— Pobrezinha! — disse Frankie. — Tenho muita pena dela.

— De quem está falando? De Moira Nicholson? Por que essa pena toda?

— Porque ela está com medo — retrucou Frankie deva­gar.

— Ela sempre teve um ar apavorado. De que ela tem medo?

— Do marido.

— Não sei se eu mesmo gostaria de enfrentar Jasper Nicholson — admitiu Roger.

— Ela está certa de que ele a está tentando assassinar — declarou Frankie abruptamente.

— Ora, minha cara! — Roger olhou-a com increduli­dade.

— Sente-se — pediu Frankie. Vou-lhe contar umas coi­sas. Preciso provar-lhe que o Dr. Nicholson é um criminoso perigoso.

— Um criminoso?

O tom de Roger era abertamente incrédulo.

— Espere até ouvir a história toda.

Ela lhe fez um relato claro e detalhado de tudo que ocor­rera desde o dia em que Bobby e o Dr. Thomas haviam en­contrado o corpo. Só não lhe revelou o fato de que o seu acidente fora forjado, mas o deixou perceber que se tinha demorado em Merroway Court devido a um intenso desejo de chegar ao âmago do mistério.

Ela não poderia se queixar de falta de interesse por par­te do interlocutor. Roger parecia fascinado pela história.

— Tudo isso é mesmo verdade? — ele perguntou. — Essa história do envenenamento do seu amigo Jones e tudo o mais?

— A pura verdade, meu caro.

— Desculpe minha incredulidade, mas esses fatos são difíceis de digerir, não são?

Ele ficou em silêncio com a testa franzida.

— Olhe aqui — disse por fim, — apesar de quão fantás­tico tudo isso possa parecer, acho que a sua primeira conclu­são é verdadeira. Este homem, Alex Pritchard ou Alan Carstairs, deve ter sido assassinado. Se não foi um crime, não há explicação para o ataque a Jones. Agora, se essa frase “Por que não pediram a Evans?” é realmente ou não crucial, pare­ce não ser importante no momento, pois vocês não dispõem de nenhuma pista para a identidade desse Evans. Vamos su­por que o assassino ou assassinos julgassem que Jones estava de posse de informações que, soubesse ele ou não, eram pe­rigosas. Assim tentaram eliminá-lo e provavelmente tentarão outra vez se o encontrarem. Tudo isso é plausível — o que não vejo é por que linha de raciocínio deduziram que Nicholson é o criminoso!

— É um homem sinistro, possui um Talbot azul escuro, e estava fora no dia em que envenenaram Bobby.

— Nada disso constitui prova.

— Sem falar no que a Srª. Nicholson contou a Bobby.

Frankie repetiu as suas palavras e novamente elas soa­ram melodramáticas e irreais naquele tranqüilo cenário inglês.

Roger encolheu os ombros.

— Ela acredita que é ele quem fornece a droga a Henry, mas isso é pura conjectura. Ela não tem a mínima prova. Ela acusa o marido de querer levar Henry como paciente para a Granja. Bem, trata-se de um desejo muito natural num médi­co. Todos eles querem o maior número possível de pacientes. Ela acha que ele está apaixonado por Sylvia. Bem, quanto a isso nada posso dizer.

— Se ela acredita nisso, deve ter sua razão — interveio Frankie. — Uma mulher não se enganaria quanto ao próprio marido.

— Mesmo admitindo que seja verdade, isso não implica necessariamente que o homem seja um criminoso perigoso. Muitos cidadãos respeitáveis apaixonam-se pelas esposas de outros indivíduos.

— Mas Moira acha que Nicholson quer matá-la — in­sistiu Frankie.

Roger olhou-a com uma expressão zombeteira.

— Leva isto a sério?

— Pelo menos é o que ela acredita.

Roger fez um gesto de assentimento e acendeu um cigarro.

— A questão é até que ponto devemos dar atenção às impressões dela — disse ele. — A Granja é um lugar meio sinistro, cheio de gente estranha. Viver em tal meio deve per­turbar o equilíbrio de uma mulher, especialmente se for de um tipo tímido e nervoso.

— Não acredita então que seja verdade?

— Não disse isso. Provavelmente ela realmente acredita que o marido a está tentando matar. Mas existirão bases reais para tal crença? Não acredito que existam.

Frankie lembrou-se com curiosa clareza das palavras de Moira: “ê puro nervosismo”. De alguma forma o simples fato de que ela tivesse dito tal coisa fazia-a pensar que era algo mais do que isso, mas a moça achou difícil explicar essa nuan­ça a Roger.

Enquanto isso ele continuava a falar.

— Se ao menos vocês pudessem demonstrar que Nichol­son esteve em Marchbolt no dia da tragédia do penhasco, se­ria muito diferente. Ou se pudéssemos encontrar um motivo bastante forte para que ele matasse Carstairs... Mas a mim parece que vocês estão deixando de lado os verdadeiros sus­peitos.

— Que suspeitos são esses?

— Os... como é mesmo? Os Cayman?

— Cayman.

— Isso mesmo. Agora esses, sem dúvida alguma, estão envolvidos até a raiz dos cabelos. Primeiro, a falsa identifica­ção do cadáver. Depois sua insistência em querer saber se o pobre diabo dissera qualquer coisa antes de morrer. E pare­ce-me lógica a dedução que vocês tiraram, de que a oferta de Buenos Aires partiu deles, ou foi arranjada por eles.

— É enervante — principiou Frankie — que alguém to­me medidas extremas para nos tirar do caminho devido a algo que sabemos, enquanto não temos a mínima idéia de que coi­sa é essa. Diabos, como isso é difícil de explicar!

— E foi um erro da parte deles — acrescentou Roger. — Erro esse que vai custar-lhes toda uma vida para remediar.

— Oh! — exclamou Frankie. — Lembrei-me de uma coisa importante. Pensávamos até agora que a fotografia de Moira Nicholson fora trocada pela da Srª Cayman.

— Posso assegurar-lhe — retorquiu Roger muito sério — que nunca andei com a fotografia da Srª Cayman junto ao meu coração. Ela parece ser uma criatura muito repulsiva.

— Bem, ela é atraente de certa forma — admitiu a moça — num estilo cru, grosseiro e vampiresco. Mas o ponto a que queria chegar é que então Carstairs trazia consigo o retrato de duas mulheres.

Roger fez um gesto de assentimento.

— E você acha... — ele principiou.

— Acho que um era por amor e o outro simples negó­cios. Carstairs levava o retrato de Amélia Cayman por algum motivo, talvez para que alguém a identificasse. E o que acon­teceu? Alguém, talvez Cayman, o estava seguindo, e aprovei­tando uma boa oportunidade, aproxima-se no nevoeiro dá-lhe um empurrão. Carstairs despenca para o abismo com um grito de espanto. Cayman foge correndo, não sabe quem pode estar por perto. Admitamos que ele não sabia que Alan Carstairs tinha o retrato de sua mulher. E o que acontece em seguida? O retrato é publicado...

— Para completa consternação do casal Cayman — su­geriu Roger.

— Exatamente. O que fazem eles? Elegem uma solução ousada. Quem conhece Carstairs nesse país? Muito pouca gen­te. E a Srª Cayman apresenta-se vertendo lágrimas de croco­dilo e identifica o cadáver como sendo de um irmão. E como parte da encenação despacham algumas roupas pelo correio.

— Frankie, essa sua dedução é positivamente brilhante! — acudiu Roger com admiração.

— Também acho — retrucou Frankie. — E você está certo. Devíamos começar a seguir a pista dos Cayman. Não sei por que não pensamos nisso antes.

A última ressalva não era muito verdadeira, pois a moça conhecia bem a razão. Haviam estado muito ocupados seguin­do a pista do próprio Roger, mas Frankie pensou que seria uma falta de tato admitir o fato no momento.

— E o que vamos fazer com relação à Srª Nicholson? — ela perguntou abruptamente.

— O que quer dizer com “vamos fazer”?

— Bem, a coitadinha está mortalmente apavorada. Acho que você está sendo muito duro com ela.

— Nada disso, mas as pessoas que não conseguem di­rigir o próprio destino sempre me irritam.

— Oh! Não seja injusto. O que pode ela fazer? Não tem dinheiro, nem um lugar para onde ir.

A resposta de Roger foi inesperada.

— Se você estivesse no lugar dela, Frankie, encontraria uma solução.

— Oh! — fez Frankie desconcertada.

— Encontraria, sim. Se acreditasse realmente que alguém estava tentando assassiná-la, não ficaria paralisada esperando ser morta. Você fugiria e ganharia sua vida de alguma forma, ou então mataria a outra pessoa primeiro! Você faria alguma coisa!

Frankie tentou pensar no caso.

— Sem dúvida eu faria alguma coisa — ela. murmurou pensativa.

— O xis da questão é que você é corajosa e ela não é — declarou Roger em tom decidido.

Frankie sentiu-se lisonjeada. Moira Nicholson não era o tipo de mulher que ela admirava, e contrariara-se ao perceber que Bobby estava absorvido por ela. Ele gosta do tipo desam­parado, pensou Frankie, lembrando-se do curioso fascínio que a fotografia exercera sobre o rapaz desde o início.

Ora, pensou Frankie, pelo menos com Roger é diferente.

Roger, era claro, não gostava do tipo desamparado. Por seu lado, Moira evidentemente não fazia muito bom juízo de­le. Chamara-o de fraco e ridicularizara a hipótese de ele ter a coragem de matar alguém. Talvez Roger fosse um fraco, mas seu encanto era inegável. Ela o sentira desde o primeiro momento em que ele chegara a Merroway Court.

Numa voz pausada Roger falou.

— Você poderia fazer de um homem o que quisesse, Frankie.

A moça sentiu um frêmito de emoção, ao mesmo tempo que ficava muito embaraçada. Mudou depressa de assunto.

— E quanto ao seu irmão — ela perguntou — ainda acha que ele deve ir para a Granja?

 

OUTRA VÍTIMA

— Não, não acho — redargüiu Roger. — Afinal exis­tem muitos outros lugares onde ele pode ser tratado. — O que realmente importa é obter o consentimento de Henry.

— Pensa que será difícil? — perguntou Frankie.

— Receio que sim. Você ouviu seus protestos naquela noite. Por outro lado, se conseguirmos apanhá-lo num mo­mento de arrependimento, será diferente. Oh, aí vem Sylvia.

A Srª Bassington-ffrench surgira numa das portas da ca­sa e percorria o jardim com o olhar. Ao ver Roger e Frankie atravessou o gramado em direção de ambos. Tinha um ar mui­to tenso e preocupado.

— Roger, estive à sua procura por toda a parte — prin­cipiou ela, e ao ver que Frankie fazia menção de deixá-los acrescentou: — Não, minha querida, não vá. De que adianta esconder a verdade? De qualquer maneira você já sabe de tu­do. Suspeitava do problema há algum tempo, não?

Frankie fez um gesto de assentimento.

— Enquanto eu estive cega... cega... — murmurou Sylvia com amargura. — Ambos viam claramente o que nem de longe passava pela minha cabeça! Só me perguntava por que ele teria se modificado tanto. Sentia-me muito infeliz, mas nunca suspeitei da verdade.

Ela fez uma pausa e continuou num tom ligeiramente diferente.

— Assim que o Dr. Nicholson me contou a verdade, fui falar com Henry — ela calou-se engolindo um soluço. — Oh, Roger, tudo ficará bem! Ele concordou! Amanhã vai internar-se na Granja e entregar-se aos cuidados do Dr. Nicholson.

— Oh, não! — exclamaram simultaneamente Roger e Frankie.

Sylvia os encarou atônita.

Sem jeito, Roger principiou:

— Sabe Sylvia, estive refletindo melhor e não creio que a Granja seja o lugar ideal para ele.

— Acha que ele poderá lutar contra o vício sozinho? — perguntou Sylvia num tom cético.

— Não, não acho. Mas existem outros lugares... luga­res que... bem... mais afastados. Estou convencido de que seria um erro ele permanecer no distrito.

— Também estou certa — acudiu Frankie vindo em au­xílio de Roger.

— Pois eu não concordo — protestou Sylvia. — Não poderia suportar sabê-lo longe daqui. E o Dr. Nicholson tem sido muito bondoso e compreensivo. Ficarei tranqüila sabendo que Henry está sob seus cuidados.

— Pensei que você não gostava de Nicholson, Sylvia — retrucou Roger.

— Mudei de idéia — ela admitiu com simplicidade. — Ninguém teria sido mais gentil ou bondoso do que ele esta tarde. Meus tolos preconceitos contra ele evaporaram-se todos.

Houve um momento de silêncio. A situação era delicada. Nem Roger nem Frankie sabiam o que dizer.

— Pobre Henry — murmurou Sylvia. — Descontrolou-se ao ver que eu sabia de tudo. Ficou transtornado. Admitiu que precisa lutar contra esse vício horrível, mas que eu não tinha idéia do que isso significava. Na verdade, não sei mes­mo, embora o Dr. Nicholson tenha descrito em detalhes o que se passa com um viciado. A droga torna-se uma obsessão, e a pessoa não é mais totalmente responsável por seus atos, disse o doutor. Oh, Roger! É tão pavoroso! Mas o Dr. Nicholson foi muito bondoso, e eu confio nele.

— Mesmo assim acho que seria melhor... — principiou Roger.

Sylvia interrompeu-o.

— Não o entendo, Roger. Por que mudou de idéia? Há meia hora atrás você era plenamente a favor de que Henry se internasse na Granja.

— Bem... eu... eu tive tempo de reconsiderar.

Sylvia tornou a interrompê-lo.

— De qualquer forma já estou decidida. Henry irá para a Granja de qualquer maneira.

Eles fitaram-na em silêncio. Por fim Roger falou.

— Bem, vou telefonar para Nicholson. Ele deve estar em casa agora. Gostaria de dar uma palavrinha com ele a respeito desse assunto.

Sem esperar por uma resposta, virou-se e dirigiu-se para a casa. As duas mulheres seguiram-no com o olhar.

— Não consigo entender Roger — redargüiu Sylvia impaciente. — Há cerca de quinze minutos atrás ele praticamen­te insistia comigo para que convencesse Henry a internar-se na Granja.

A ira em sua voz era patente.

— Mesmo assim eu concordo com ele — insistiu Fran­kie. — Li em algum lugar que é aconselhável que os viciados se afastem o mais possível de casa para tratar-se.

— Pois para mim isso é uma tolice — retrucou Sylvia.

Frankie estava diante de um dilema. A inesperada obstinação de Sylvia complicava tudo. Ela parecia agora tão violentamente a favor de Nicholson quanto se opusera a ele anteriormente. Era difícil achar argumentos. E se contasse tudo a Sylvia? Mas ela dar-lhe-ia crédito? Até mesmo Roger não ficara impressionado pelos indícios da culpa do médico. Syl­via que recém-aderira ao partido do doutor, provavelmente ainda menos atenção lhes concederia. Poderia até contar tu­do a Nicholson. Era um problema difícil, sem dúvida.

Um avião sobrevoou baixo a propriedade perturbando a tranqüilidade do crepúsculo com o ronco de seus motores. As duas mulheres acompanharam-no com o olhar, satisfeitas pela interrupção, pois nenhuma delas sabia o que dizer em segui­da. Frankie teve tempo de refletir, e Sylvia de controlar a ex­plosão de raiva.

Quando o avião desapareceu atrás das árvores e o seu ronco diluiu-se na distância, Sylvia virou-se abruptamente para Frankie.

— Tem sido horrível... — ela murmurou. — E agora parece que vocês querem levar o Henry para bem longe de mim.

— Não, não — protestou Frankie. — Não é nada disso.

Por alguns instantes a jovem procurou ansiosamente por uma justificativa.

— É só que acredito que ele merece ter o melhor trata­mento possível. E o Dr. Nicholson parece-me ser um charlatão.

— Não concordo — retrucou Sylvia. — Ele é muito competente, e é o tipo exato de médico que Henry necessita.

Ela olhou para Frankie com uma expressão de desafio. A moça espantou-se com a forte influência que Nicholson ad­quirira sobre ela num espaço de tempo tão curto. Todas as suas desconfianças anteriores haviam desaparecido completa­mente.

Sem saber mais o que fazer ou o que dizer, Frankie ca­lou-se. Dali a instantes Roger retornou do interior da casa. Ofegava ligeiramente.

— Nicholson ainda não chegou — disse ele. — Deixei um recado.

— Não sei por que tanta urgência em falar com o Dr. Nicholson — redargüiu Sylvia. — Foi você mesmo quem su­geriu tudo e agora Henry já consentiu e está tudo combinado.

— Acho que tenho o direito de dar a minha opinião so­bre o caso — retrucou Roger com suavidade. — Afinal, Hen­ry é meu irmão.

— A internação foi idéia sua — insistiu Sylvia obstinadamente.

— Sim, foi. Mas desde então soube de algumas coisas acerca de Nicholson.

— Coisas? Que coisas? Ora, não acredito nisso.

Sylvia mordeu os lábios, virou-se e correu para a casa.

Roger virou-se para Frankie.

— A situação é muito embaraçosa — disse ele.

— Muito embaraçosa, mesmo.

— Quando Sylvia toma uma decisão, toma-se tão obsti­nada quanto uma mula.

— O que vamos fazer?

Os dois tornaram a sentar-se no banco do jardim e discutiram o assunto detalhadamente. Roger concordou com Fran­kie que seria um erro contar toda a história a Sylvia. Em sua opinião, a melhor alternativa seria falar com o próprio Ni­cholson.

— Mas o que você dirá a ele?

— Nada de concreto, só algumas insinuações. De qual­quer forma, estou de pleno acordo com você. Henry não deve ir para a Granja. Mesmo que para isso seja necessário revelar nossas suspeitas, precisamos impedir a sua ida.

— Abriremos o jogo, se o fizermos — advertiu-o Frankie.

— Eu sei. É por isso que precisamos esgotar todos os outros argumentos, antes. Que diabo, por que é que Sylvia tinha de se mostrar tão obstinada agora?

— É para você ver a influência daquele homem — re­trucou Frankie.

— Não há dúvida. Sabe, isso está-me levando a crer, mesmo na ausência de provas, que talvez você esteja certa a respeito dele. O que foi isso?

Ambos levantaram-se num salto.

— Pareceu-me um tiro — disse a moça. — Dentro da casa.

Trocaram um rápido olhar e saíram correndo em direção às portas de vidro da sala de estar. Ao chegarem ao vestíbulo deram com Sylvia com o rosto branco como cal.

— Ouviram? — perguntou ela. — Foi um tiro e veio do gabinete de Henry.

As suas pernas cederam e Roger precisou ampará-la pa­ra que não caísse. Frankie encaminhou-se para a porta do ga­binete e virou a maçaneta.

— Está trancada — ela disse.

— A janela — lembrou Roger.

Ele conduziu Sylvia, meio desmaiada, a um sofá próximo e tornou a atravessar correndo a sala de estar com Frankie em seus calcanhares. Deram a volta por fora da casa até a janela do gabinete. A vidraça estava fechada. O sol já se pu­nha e a luz era pouca, mas encostando os rostos ao vidro puderam enxergar bastante bem o interior.

Henry Bassington-ffrench tinha a cabeça pousada sobre a escrivaninha. Na fronte direita via-se um buraco de bala e um revólver estava caído no tapete perto de sua mão.

— Suicidou-se! — exclamou Frankie. -— Que horror!

— Afaste-se um pouco — advertiu Roger. — Vou que­brar o vidro.

Enrolando a mão no casaco golpeou com força a vidra­ça que se partiu. Retirando os cacos com cuidado, Roger abriu o trinco por dentro. Entrava com Frankie quando a Srª Bassington-ffrench e o Dr. Nicholson apareceram ofegan­tes no terraço.

— O doutor acaba de chegar — disse Sylvia. — Acon­teceu... aconteceu alguma coisa a Henry?

Então ela viu o vulto caído sobre a mesa e gritou.

Roger pulou rapidamente para fora.

— Leve-a daqui — ordenou sucintamente Nicholson confiando-lhe a cunhada. — Olhe por ela. Dê-lhe um gole de Brandy. Evite ao máximo que ela presencie essa cena.

O médico escalou a janela e juntou-se a Frankie.

— Que tragédia — disse ele sacudindo lentamente a ca­beça. — Pobre homem, não teve coragem de enfrentar as con­seqüências. Foi uma pena... uma pena.

Ele curvou-se sobre o cadáver por um momento e tornou a erguer a cabeça.

— Não há nada a fazer. A morte deve ter sido instantâ­nea. Será que deixou alguma mensagem? Em geral eles deixam.

Frankie deu alguns passos e colocou-se a seu lado. Junto ao cotovelo de Bassington-ffrench. A mensagem era bem clara.

“Esta é a melhor solução”, escrevera Bassington-ffrench, “esse vício fatal tem um poder demasiado grande sobre mim para que o possa combater. Quero fazer o que for melhor para Sylvia, para Sylvia e Tommy. Que Deus os abençoe, meus que­ridos. Perdoem-me...”

Frankie sentiu um nó na garganta.

— Não devemos tocar em coisa alguma — disse o Dr. Nicholson. Sem dúvida haverá um inquérito. Precisamos cha­mar a polícia.

Obedientemente Frankie encaminhou-se para a porta. Ali parou.

— A chave não está na fechadura — disse.

— Talvez esteja no bolso dele — retrucou o Dr. Nichol­son enquanto se ajoelhava tateando com delicadeza os bolsos do morto de onde retirou uma chave.

Na porta experimentou-a na fechadura. Serviu. Juntos passaram ao vestíbulo, o Dr. Nicholson indo direto ao telefone.

Subitamente nauseada, com os joelhos trêmulos, Frankie deixou-se cair numa cadeira.

 

MOIRA DESAPARECE

Cerca de uma hora depois Frankie telefonou a Bobby.

— É Hawkins? Olá, Bobby. Soube do que aconteceu? Ah, já soube. Escute, precisamos nos encontrar. Amanhã bem cedo seria melhor, antes do desjejum. Digamos às oito horas, no mesmo lugar de hoje.

Ela desligou, enquanto Bobby murmurava seu terceiro “Sim, minha senhora” para o caso de ouvidos curiosos esta­rem à escuta.

Bobby chegou primeiro ao ponto de encontro, mas Fran­kie não se fez esperar por muito tempo. Chegou muito pálida e emocionada.

— Olá, Bobby. Foi horrível, não? Não consegui dormir nem um minuto.

— Não conheço detalhes — disse o rapaz. — Só sei que o Sr. Bassington-ffrench se suicidou com um tiro de revólver. Foi isso mesmo?

— Sim. Sylvia estivera conversando com ele, persuadindo-o a submeter-se a um tratamento, e ele havia concordado. Suponho que mais tarde a coragem o abandonou. Trancou-se no gabinete, escreveu umas poucas linhas numa folha de pa­pel e... e matou-se. Bobby, é horrível, é pavoroso!

— Eu sei — anuiu o rapaz em voz baixa.

Ficaram em silêncio algum tempo.

— Terei de ir embora hoje, naturalmente — disse Fran­kie dali a pouco.

— Tem razão. E como está ela, a Sra. Bassington-ffrench?

— Está de cama, pobrezinha. Não a vejo desde que... desde que encontramos o corpo. Ela deve ter sofrido um cho­que pavoroso.

Bobby fez um gesto de assentimento.

— É melhor você trazer o carro por volta das onze — ajuntou Frankie.

Bobby não respondeu. A moça olhou-o impaciente.

— O que há com você, Bobby? Parece estar a mil qui­lômetros daqui.

— Desculpe. Para falar a verdade...

— Sim?

— Bem, estava pensando. Suponho que... que está tudo certo mesmo, não é?

— O que quer dizer com “tudo certo”?

— Quero dizer que não há dúvida alguma que foi mes­mo suicídio?

— Ah! — fez Frankie. — Entendo. — E acrescentou após refletir um minuto: — Sim, foi suicídio mesmo.

— Tem certeza? Escute, Frankie, segundo Moira, Ni­cholson queria afastar duas pessoas de seu caminho. Pois bem, uma delas já se foi!

Frankie tornou a refletir por instantes, mas sacudiu novamente a cabeça.

— Tem de ser suicídio — ela retrucou. — Estava no jardim com Roger quando ouvimos o tiro. Corremos e atraves­samos a sala de estar, mas a porta do gabinete que dá para o vestíbulo estava trancada por dentro. Demos a volta por fora e a janela também estava trancada, foi preciso que Roger arrebentasse o vidro. Foi só então que Nicholson chegou.

De posse desta informação, Bobby pensou um minuto.

— É, tudo parece estar em ordem — concordou ele. — Mas Nicholson entrou em cena muito repentinamente, não é?

— Havia esquecido sua bengala à tarde e viera buscá-la.

Bobby tinha a testa franzida.

— Escute, Frankie. Suponhamos que na realidade foi Nicholson quem matou Bassington-ffrench...

— Tendo-o convencido primeiro a escrever uma carta de despedida?

— Na minha opinião esse é um tipo de carta fácil de falsificar. Qualquer irregularidade na caligrafia seria atribuída à emoção.

— Sim, isto é verdade. Prossiga com a sua teoria.

— Nicholson atira em Bassington-ffrench, deixa a carta de despedida e sai, trancando a porta. Alguns minutos mais tarde reaparece como se estivesse acabando de chegar.

Frankie sacudiu a cabeça numa negativa com uma expressão penalizada.

— A idéia é boa, mas não convence. Para começar, a chave estava no bolso de Henry Bassington-ffrench.

— Quem a encontrou?

— Bem, para falar a verdade, foi Nicholson.

— Ah, aí está. Seria muito fácil para ele fingir tê-la encontrado ali.

— Lembre-se de que eu o estava observando. Tenho cer­teza de que a chave estava mesmo no bolso.

— É o que todos pensam ao observar um mágico em ação. Nós vemos o coelho ser colocado na cartola. Se Nichol­son é um criminoso de alto gabarito, seria uma brincadeira de criança para ele realizar um pequeno truque como este.

— Talvez tenha razão quanto a esse ponto, mas Bobby, honestamente, é impossível. Sylvia Bassington-ffrench estava dentro de casa quando o tiro foi desfechado, e ela correu pa­ra o vestíbulo no mesmo instante. Se Nicholson houvesse ati­rado e saído pela porta do gabinete, ela o teria visto. Além disso, ela contou-nos que o viu encaminhando-se para a casa, e foi ao seu encontro e trouxe-o até à janela do gabinete. Não, Bobby, não. Infelizmente o homem possui um álibi.

— Por princípio desconfio de pessoas com álibis — redargüiu Bobby.

-— Eu também. Mas não vejo como ignorar este.

— É verdade. A palavra de Sylvia Bassington-ffrench deve ser suficiente.

— Também acho.

— Bem — disse Bobby com um suspiro — então pa­rece que foi suicídio mesmo. Pobre diabo. E qual é o nosso próximo ângulo de ataque, Frankie?

— Os Cayman — respondeu a moça. — Não sei como fomos tão omissos a ponto de não os investigarmos antes. Vo­cê guardou o endereço deles?

— Sim, é o mesmo que forneceram no inquérito Jardins São Leonardo, 17, Paddington.

— Não acha também que nos descuidamos desse ângulo?

— Sem dúvida. Mas mesmo assim, Frankie, tenho a in­tuição de que os nossos pássaros já abandonaram o ninho. Os Cayman não nasceram ontem.

— Mesmo se houverem partido, talvez eu descubra algu­ma coisa sobre eles.

— Que história é essa de “eu”?

— É que também agora acho bom você não aparecer, assim como quando viemos para cá pensando que Roger era o vilão do caso. Eles conhecem você, mas não a mim.

— E como planeja travar conhecimento com eles? — perguntou Bobby.

— Inventarei algo relacionado com política. Já sei, vou participar da campanha do Partido Conservador, distribuindo panfletos.

— É uma boa idéia — aprovou Bobby. — Mas torno a repetir que penso que encontrará o ninho vazio. No mo­mento há outro ponto que merece a nossa atenção: Moira.

— Meu Deus! — exclamou Frankie. — Tinha-me es­quecido dela.

— Eu percebi — retrucou Bobby com um toque de frie­za na voz.

— Você tem razão — disse Frankie pensativa. — Deve­mos fazer alguma coisa com relação a ela.

Bobby fez um gesto de assentimento. O estranho e fascinante rosto surgiu ante seus olhos. Nele havia um toque de tragédia. Tivera essa sensação desde aquele primeiro momen­to em que retirara a fotografia do bolso de Alan Carstairs.

— Se você a tivesse visto naquela noite em que a en­contrei na Granja... Ela estava quase morta de medo! Fran­kie, asseguro-lhe que ela está certa. Não se trata de nervosis­mo, nem de excesso de imaginação ou coisa semelhante. E se Nicholson quer se casar com Sylvia Bassington-ffrench, precisava afastar dois obstáculos. Um deles não existe mais. Te­nho o pressentimento de que a vida de Moira está por um fio, e qualquer demora pode ser fatal.

Ante a veemência de Bobby, Frankie ficou séria.

— Você tem razão, meu caro — disse ela. — Devemos agir com rapidez. O que faremos?

— Devemos persuadi-la a abandonar a Granja imediatamente.

Frankie fez um gesto de assentimento.

— Vamos fazer uma coisa — sugeriu a moça. — Vamos levá-la para Gales, para o castelo. Não é possível que ela não esteja segura lá.

— Frankie, se você pudesse arranjar isso, nada poderia ser melhor!

— Bem, não há dificuldade alguma. Papai nem nota quem entra ou sai. Ele gostará de Moira, qualquer homem gostaria, ela é tão feminina... É extraordinário que os ho­mens gostem desse tipo de mulher indefesa.

— Não acho que Moira seja do tipo indefeso — retru­cou Bobby.

— Tolice. Ela parece um passarinho paralisado ante uma serpente prestes a devorá-lo. Ela não faz nada.

— E o que ela poderia fazer?

— Muita coisa — replicou Frankie com ênfase.

— Bem, eu não vejo o quê. Ela não tem amigos, nem dinheiro.

— Meu caro, não precisa defendê-la como se eu fosse alguma Sociedade Beneficente.

— Desculpe-me — disse Bobby.

Fez-se um silêncio ressentido.

— Bem — disse Frankie controlando sua irritação — acho que devemos agir depressa.

— Também acho — retrucou Bobby. — Frankie, sua atitude é mesmo muito decente.

— Está bem — atalhou a moça. — Não me incomodo de auxiliar essa garota se você não ficar falando dela como se ela não tivesse mãos, nem pés, nem língua, nem cérebro.

— Simplesmente não sei o que você quer dizer com isso — retrucou Bobby.

— Deixemos isso para lá — redargüiu Frankie. — Na minha opinião, seja lá qual for o nosso plano, é preciso exe­cutá-lo depressa. Ora, isso parece-me uma citação.

— É uma paráfrase de uma fala de Lady Macbeth. Pros­siga, senhora.

— Sabe, sempre pensei — continuou Frankie numa sú­bita e inesperada digressão — que Lady Macbeth incitou o marido a cometer todos aqueles assassinatos simplesmente por­que estava terrivelmente enfarada de sua vida, inclusive do próprio Macbeth. Estou convencida de que ele era um desses homens dóceis e inofensivos que entediam suas mulheres até à loucura. Só que depois de cometer o primeiro assassinato de sua vida, ele sentiu-se um camarada importantíssimo e tornou-se um ególatra para compensar o seu antigo complexo de in­ferioridade.

— Devia escrever um livro sobre isso, Frankie.

— Minha sintaxe é horrível. Ora, onde estávamos? Já sei, no salvamento de Moira. Ah, traga o carro às dez e meia que irei até a Granja falar com ela. Se Nicholson estiver pre­sente, falarei em sua promessa de passar uns dias comigo e insistirei para que ela venha. Vou levá-la de qualquer maneira.

— Ótimo, Frankie. Alegra-me saber que’ não pretende perder tempo. Temo que aconteça outro acidente.

— Às dez e meia, então — despediu-se Frankie.

Já eram nove e meia quando ela chegou de volta a Merroway Court. O café acabara de ser servido e Roger enchia sua xícara. Tinha um ar preocupado e abatido.

— Bom dia — disse Frankie. — Dormi muito mal. Re­solvi levantar-me às sete e meia e saí para andar um pouco.

— Lamento muito que tenha passado por tudo isso — disse Roger.

— Como está Sylvia?

— Deram-lhe um sedativo ontem à noite. Ela deve estar dormindo ainda. Pobrezinha, tenho muita pena dela. Era mui­to dedicada a Henry.

— Eu sei.

Após uma pequena pausa Frankie expôs seus planos de partida.

— Parece que não há outra alternativa, não é? — la­mentou Roger. — O inquérito será na sexta-feira. Avisarei se a sua presença for necessária. Vai depender do magistrado.

Ele sorveu a xícara de café com uma torrada e saiu para tomar várias providências que se impunham. Frankie sentiu muita pena dele. Podia bem calcular os mexericos e a curio­sidade que aquele suicídio na família iria provocar. Tommy apareceu e a moça dedicou-se a entreter a criança.

Às dez e meia Bobby chegou com o carro. A bagagem de Frankie já estava embaixo à espera. Ela disse adeus a Tommy e deixou um bilhete para Sylvia. O Bentley pôs-se era marcha.

Chegaram à Granja em poucos minutos. Frankie nunca estivera antes no local, e os grandes portões de ferro e o den­so arvoredo a deprimiram.

— É um lugar sinistro — comentou ela. — Não admira que Moira fique nervosa vivendo aqui.

O carro parou em frente à porta de entrada e Bobby sal­tou e tocou a campainha. Não houve resposta por alguns mi­nutos. Afinal, uma mulher com um uniforme de enfermeira entreabriu a porta.

— A Srª Nicholson está? — perguntou Bobby.

A mulher hesitou antes de dar um passo atrás e abrir completamente a porta. Frankie desceu do carro e entrou. A porta fechou-se às suas costas com um estalido desagradável. A moça notou que era reforçada por ferrolhos e barras de ferro. Teve medo e a sensação irracional que era uma prisio­neira naquela casa lúgubre.

Tolice, disse a si mesma. Bobby está lá fora no carro, e eu entrei aqui abertamente. Nada me poderá acontecer.

Tentando abafar a ridícula sensação ela acompanhou a enfermeira ao andar superior. No fim de um corredor a mu­lher abriu uma porta e Frankie entrou numa pequena sala de estar com poltronas de um estampado alegre e vasos floridos. Sentiu-se mais animada. Murmurando alguma coisa, a enfer­meira retirou-se.

Uns cinco minutos depois a porta abriu-se e o Dr. Ni­cholson entrou. Frankie não conseguiu evitar um estremeci­mento nervoso, mas dissimulou-o com um sorriso de boas-vindas enquanto lhe estendia a mão.

— Bom dia — disse ela.

— Bom dia, Lady Frances. Espero que não tenha vindo me trazer más notícias da Srª Bassington-ffrench.

— Ela ainda dormia quando eu saí — continuou Frankie.

— Pobre senhora! Ela está sob os cuidados do seu médi­co particular, não?

— Ah, sim! — tranqüilizou-o Frankie, acrescentando de­pois de uma pausa! — Com certeza o senhor deve estar ocupa­do. Não quero tomar o seu tempo, Dr. Nicholson. Na verdade queria falar com sua esposa.

— Com Moira? É muita bondade sua.

— Se ela ainda estiver dormindo — insistiu a jovem com um sorriso amável — eu esperarei.

— Ah, mas ela já se levantou — replicou o Dr. Nichol­son.

— Ótimo. Queria persuadi-la a vir passar uns dias comi­go. Ela praticamente deu-me a sua palavra — declarou Fran­kie com novo sorriso.

— Ora, é muita delicadeza de sua parte, Lady Frances, muita delicadeza mesmo. Estou certo de que Moira teria gos­tado imensamente de acompanhá-la.

— Teria? — replicou Frankie.

O Dr. Nicholson sorriu, mostrando dentes belos e certos.

— Infelizmente a minha mulher partiu esta manhã.

— Partiu? — repetiu a jovem atordoada. — Para onde?

— Ela quis mudar um pouco de ares. Sabe como são as mulheres, Lady Frances. Este lugar é muito deprimente para uma jovem. Às vezes Moira sente necessidade de um pouco de diversão.

— Não sabe para onde ela foi? — perguntou Frankie.

— Para Londres, creio. — Foi fazer a ronda das lojas e dos teatros, a senhorita sabe como é.

Frankie pensou que o sorriso dele era a coisa mais desagradável que jamais vira.

— Vou para Londres hoje — retrucou ela jovialmente. — Quer dar-me o endereço dela?

— Ela costuma hospedar-se no Savoy — disse o Dr. Nicholson. — De qualquer forma, amanhã terei notícias dela. Receio que Moira não seja muito amiga de cartas, e acredito que deva haver inteira liberdade entre marido e mulher. Mas penso que se deseja encontrá-la, o lugar mais provável é o Sa­voy.

Ela abriu a porta. Frankie surpreendeu-se apertando-lhe a mão e saindo. Ele acompanhou-a até embaixo. A enfermei­ra a esperava à porta. A última coisa que ouviu foi a voz sua­ve do médico em que julgou perceber um toque de ironia.

— O seu convite à minha esposa foi muito amável, Lady Frances.

 

NA PISTA DOS CAYMANS

Bobby precisou fazer um esforço para manter sua impassibilidade de motorista quando Frankie voltou sozinha.

Por causa da enfermeira ela ordenou:

— Vamos voltar a Starveley, Hawkins.

O carro desceu a alameda e atravessou os portões. Quan­do alcançaram um trecho deserto da estrada, Bobby parou e olhou interrogativamente para a companheira. — O que acon­teceu? — ele perguntou.

Um tanto pálida, Frankie respondeu:

— Bobby, não estou gostando. Aparentemente ela foi para fora.

— Para fora? Esta manhã?

— Ou à noite passada.

— Sem nos dizer uma palavra?

— Bobby, não acredito nisso! O homem estava mentin­do, tenho certeza!

O rapaz ficara muito pálido.

— Tarde demais! — ele murmurou. — Como fomos idio­tas! Não devíamos tê-la deixado voltar para casa ontem.

— Você não acha... que ela esteja morta, acha? — murmurou Frankie numa voz trêmula.

— Não! — retrucou Bobby com violência como se qui­sesse tranqüilizar-se.

Ambos ficaram em silêncio por alguns instantes, e então Bobby expôs suas deduções, num tom mais calmo.

— Ela ainda deve estar viva devido ao problema de li­vrar-se do cadáver, e tudo o mais. Sua morte terá de parecer natural ou acidental. Não, ou ela foi afastada contra a sua vontade, ou então — e é nisso que acredito — ela ainda está lá.

— Na Granja?

— Na Granja?

— Na Granja.

— Bem, e o que vamos fazer? — perguntou Frankie.

Bobby refletiu por um minuto.

— Não creio que você possa fazer nada — respondeu afinal. — É melhor voltar para Londres. Não sugeriu que se­guíssemos a pista dos Cayman? Pois concentre-se nisso.

— Oh, Bobby!

— Minha cara, você aqui não pode mais ser de utilida­de alguma. Já a conhecem, até bem demais. Você já se despe­diu, o que pode fazer agora? Não pode ficar em Merroway, nem pode ir hospedar-se no Abrigo do Pescador. Isso daria assunto para muitos mexericos. Não, precisa ir-se. Nicholson pode ter suspeitas, mas não tem certeza de que você sabe de alguma coisa. Você vai voltar para Londres, e eu ficarei aqui.

— No Abrigo do Pescador?

— Não, seu chofer agora vai desaparecer. Vou me ins­talar em Ambledever, a quinze quilômetros daqui, e se Moira ainda estiver naquela maldita clínica, eu vou encontrá-la.

Frankie ainda tentou refugar.

— Bobby, tenha muito cuidado, sim?

— Serei astucioso como uma serpente.

Com o coração oprimido, Frankie cedeu. Os argumentos de Bobby eram bastante sensatos. Ela não seria mais útil ali. Bobby levou-a a Londres, e ao saltar na Rua Brook a moça sentiu Subitamente um grande desânimo.

Entretanto ela não era do tipo que ficasse sentada curtin­do as mágoas, e às três da tarde uma jovem de uma elegância sóbria e com um pince-nez pôde ser vista encaminhando-se para os Jardins São Leonardo com uma pilha de panfletos no braço.

Os Jardins São Leonardo em Paddington não passava de um grupo de casas de aspecto lúgubre, a maioria quase em ruínas. O lugar parecia ter visto dias melhores num passado já remoto.

Frankie desceu a rua olhando os números. Subitamente deteve-se com uma careta de desapontamento. O número dezessete ostentava uma tabuleta. O prédio estava à venda, ou para alugar sem móveis.

A moça guardou o pince-nez e abandonou o ar diligente. Pelo jeito seus serviços de cabo eleitoral não iam ser neces­sários.

A tabuleta incluía uma lista de corretores. Ela anotou o endereço de dois deles, e tendo concebido novo plano de ação tratou de colocá-lo em execução.

Os primeiros corretores eram os Senhores Gordon & Porter da Rua Praed.

— Bom dia — disse Frankie. — Será que me poderiam dar o endereço do Sr. Cayman? Até bem pouco tempo ele morava no número dezessete dos Jardins São Leonardo.

— Tem razão — confirmou o rapaz a quem se dirigira. — Ele morou lá por um período curto, não foi? Nós esta­mos encarregados da locação do imóvel. O Sr. Cayman alu­gou a casa somente por um trimestre, pois esperava ser cha­mado a qualquer momento para assumir um cargo no estran­geiro. Creio que já partiu.

— Então o senhor não tem o seu novo endereço?

— Receio que não. Ele liquidou suas contas conosco, e foi tudo.

— Mas ele deve ter fornecido seu endereço anterior quan­do alugou a casa.

— Morava num hotel, creio que no G.W.R. em Pad­dington Station.

— E quanto a referências? — insistiu Frankie.

— Ele pagou o trimestre adiantado e fez um depósito pa­ra cobrir a luz e o gás.

— Oh! — fez Frankie desanimada.

Ela notou que o jovem a olhava com curiosidade. Os corretores têm muita experiência em avaliar a “classe” de seus clientes. Obviamente aquele estava achando bastante es­tranho o interesse de Frankie nos Cayman.

— Ele deve-me um bom dinheiro — mentiu ela.

O rosto do rapaz demonstrou surpresa e indignação. Sem­pre solidário com uma bela dama em situação aflitiva, ele passou em revista todo o arquivo da correspondência, fazendo todo o possível para ajudá-la, mas não encontrou nenhum in­dício do paradeiro atual ou passado do Sr. Cayman.

Frankie agradeceu e saiu para pegar um táxi para a ou­tra firma de corretores. Sem perder tempo, repetiu ali as perguntas anteriores. Não obteve resultados, mas pediu para ver a casa.

Desta vez para aplacar o ar surpreendido do funcionário, ela explicou que desejava uma casa barata para instalar uma pensão para moças. A expressão de surpresa desapareceu e Frankie saiu do escritório com a chave do número 17 dos Jar­dins São Leonardo, as chaves de mais dois imóveis que não tinha a mínima intenção de ver e uma permissão para visto­riar uma quarta propriedade.

Fora uma sorte que o funcionário não a quisesse acompanhar, pensou Frankie. Mas talvez isso só fosse de praxe no caso de imóveis mobiliados.

Um cheiro de mofo invadiu as narinas de Frankie quando ela abriu a porta da frente do número 17. A casa era pouco atraente, com um acabamento de segunda e paredes sujas e descascadas. Frankie passou-a em revista cuidadosamente, do sótão ao porão. A casa não fora limpa após a saída dos in­quilinos. Encontrou pedaços de barbante, jornais velhos, pre­gos e algumas ferramentas, mas nada de natureza pessoal, nem mesmo uma carta rasgada.

A única coisa que ela julgou significar talvez alguma coi­sa foi um guia de estrada de ferro aberto sobre o peitoril de uma janela. Não havia marca alguma nas folhas abertas, mas Frankie copiou cuidadosamente todos os nomes na sua cadernetinha, como fracos substitutos de tudo que esperara encon­trar.

Quanto a descobrir o paradeiro dos Cayman, ela falhara redondamente. Consolou-se com a idéia de que afinal isso era mesmo de se esperar. Se o casal Cayman estava fora da lei, tomaria todas as precauções para não ser seguido. Ao menos era uma espécie de confirmação negativa.

Mesmo assim foi uma Frankie muito desapontada quem entregou as chaves ao corretor murmurando uma mentira qualquer a respeito de procurá-los dentro de alguns dias.

Sentindo-se deprimida, ela encaminhou-se para o parque perguntando-se o que faria em seguida. Esses pensamentos infrutíferos foram interrompidos por uma súbita e violenta pancada de chuva. Não havia nenhum táxi a vista, e Frankie salvou seu chapéu favorito refugiando-se na estação de metrô mais próxima. Comprou uma passagem para Piccadilly Circus e escolheu dois jornais numa banca.

Ao entrar no trem, quase deserto àquela hora do dia, ela resolutamente afastou todas as idéias desanimadoras e tentou concentrar sua atenção no jornal.

Leu notícias ao acaso, aqui e ali. O número de mortes em acidentes rodoviários. O misterioso desaparecimento de uma estudante. A festa de Lady Peterhampton no Claridge. A convalescença de Sir John Milkington após um acidente em seu iate, a Astradora, o famoso barco que pertencera a John Sa­vage, o falecido milionário. O azar perseguiria o iate? O ho­mem que o projetara tivera morte trágica, o Sr. Savage come­tera suicídio, e agora Sir John Milkington escapara da morte por um milagre.

Frankie ergueu os olhos do jornal num esforço de me­mória.

Ela já ouvira o nome de John Savage duas vezes antes, a primeira quando Sylvia Bassington-ffrench falara de Alan Carstairs, e a segunda quando Bobby relatara sua conversa com a Srª Rivington.

Alan Carstairs fora amigo de John Savage. A Srª Ri­vington tivera uma vaga idéia de que a presença de Alan Cars­tairs na Inglaterra estava de algum modo relacionada com a morte de Savage. O milionário matara-se porque... por que mesmo? Ah, pensando que estava com câncer.

E se Alan Carstairs não tivesse ficado satisfeito com as circunstâncias da morte do amigo, e se tivesse vindo à In­glaterra para investigar o caso... E se a morte de Savage ti­vesse sido o primeiro ato do drama em que ela e Bobby es­tavam envolvidos...

É bem possível, pensou Frankie, é bem possível.

Ficou refletindo sobre o assunto, tentando descobrir a melhor maneira de investigar aquela nova visão do caso. Ela não tinha a menor idéia de quem eram os parentes ou amigos íntimos de John Savage.

Frankie sabia que existia em Londres um lugar onde se podia ler testamentos por um xelim, mas não conseguiu lem­brar-se onde era.

O trem parou numa estação e a moça percebeu que já estava no Museu Britânico. Oxford Circus, onde ela pretende­ra saltar, já ficara para trás. Levantou-se num pulo e saltou. Ao chegar à rua teve uma inspiração. Uma caminhada de cin­co minutos levou-a aos escritórios dos Senhores Spragge, Sprag­ge, Jenkinson & Spragge.

Frankie foi recebida com deferência e conduzida imediatamente à sala particular do Sr. Spragge, o sócio mais velho da firma.

O Sr. Spragge era um homem extremamente cordial. Pos­suía uma voz suave, cheia e persuasiva, que era um verdadei­ro bálsamo tranqüilizante para os seus aristocráticos clientes metidos em enrascadas. Corriam rumores que o Sr. Spragge conhecia mais segredos desabonadores das famílias nobres do que qualquer outro homem em Londres.

— Isto é realmente um prazer, Lady Frances — disse o Sr. Spragge. — Sente-se, por favor. Esta cadeira está sufi­cientemente confortável? O tempo agora está maravilhoso, não? Estamos num veranico de outono. E como está Lorde Mar­chington?

Frankie respondeu adequadamente a essas e outras perguntas.

Em seguida o Sr. Spragge retirou o pince-nez do nariz e assumiu uma expressão grave, mais condizente com a sua posição de guia e conselheiro.

— E agora, Lady Frances — tornou ele — a que devo o prazer a ver nessa sala sombria numa tarde como essa?

Chantagem? Era a pergunta formulada por suas sobrancelhas arqueadas. Indiscrições? Algum relacionamento com um jovem indesejável? Seu costureiro movera-lhe um processo?

Mas todas essas perguntas eram insinuadas de forma mui­to discreta como convinha a um advogado com a renda e a experiência do Sr. Spragge.

— Quero ver um testamento — explicou Frankie. — E não sei aonde ir, ou o que fazer. Existe uma repartição onde tal coisa é possível pelo preço de um xelim, não existe?

— Sim, no foro — respondeu o Sr. Spragge. — Mas que testamento é esse? Posso explicar-lhe tudo o que desejar a respeito dos testamentos de sua família. Há muitos anos que nossa firma tem tido a honra de redigi-los.

— Não se trata de um testamento de minha família — retrucou Frankie.

— Não? — replicou o Sr. Spragge.

Tão forte era o seu poder quase hipnótico de extrair confidências de seus clientes, que apesar de seus propósitos Frankie sucumbiu à persuasão.

— Queria ver o testamento do Sr. Savage, John Savage.

— É mesmo? — perguntou muito espantado o Sr. Spragge que não esperara por isso. — Ora, isto é realmente extraordi­nário, realmente extraordinário.

Havia uma expressão tão fora do comum em sua voz que Frankie o olhou surpresa.

— Na verdade — continuou o Sr. Spragge, — na verdade não sei o que fazer. Talvez, Lady Frances, possa dar-me as suas razões para desejar examinar esse testamento?

— Não — declarou Frankie e acrescentou devagar: — Receio que não possa.

Surpreendeu-a o fato de verificar que, por algum motivo, o Sr. Spragge estava se comportando pouco de acordo com o seu modo afável e onisciente. Na realidade, ele parecia muito preocupado.

— Penso que é meu dever preveni-la.

— Prevenir-me? — retrucou Frankie.

— Sim. Os indícios são ainda muito vagos, muito vagos mesmo, mas não há dúvida que existe algo errado. E não gos­taria, de forma alguma, de vê-la envolvida em negócios escusos.

Se era aquele o problema, Frankie ter-lhe dito que já es­tava mergulhada até o pescoço numa situação que certamente não teria sua aprovação. Mas limitou-se a olhá-lo interrogativamente.

— Isso parece-me uma extraordinária coincidência — prosseguiu o Sr. Spragge, — Alguma coisa está acontecendo, sem dúvida. Mas no momento não tenho permissão para revelar o que é.

Frankie continuou a encará-lo com a mesma expressão.

— Um certo fato acaba de chegar ao meu conhecimento, Lady Frances — acrescentou o Sr. Spragge, agora com uma expressão indignada. — Um impostor usou o meu nome, deliberadamente usou o meu nome! O que me diz a isso?

Por um momento o pânico impediu Frankie de falar.

 

FALA O SR. SPRAGGE

Por fim ela gaguejou:

— Como o senhor descobriu?

Não pretendera dizer aquilo. Um segundo depois teve vontade de cortar a própria língua pela indiscrição, mas não podia mais retirar o que dissera. E o Sr. Spragge não seria um bom advogado se não percebesse que suas palavras con­tinham uma confissão.

— Então sabe algo a respeito, Lady Frances?

— Sim — ela admitiu, e após uma pausa respirou fundo e declarou: — Na realidade a responsabilidade é minha, Sr. Spragge.

— Admira-me muito — retrucou o advogado.

A sua voz revelava o conflito entre a profissional ultra­jado e o paternal advogado de família.

— Como foi isso? — perguntou ele.

— Foi só uma brincadeira — murmurou Frankie sem jeito. — Nós... nós não tínhamos o que fazer.

— E quem teve a idéia de se fazer passar por mim? — inquiriu o indignado Sr. Spragge.

A mente de Frankie estava funcionando agora a todo va­por e ela tomou uma decisão rápida.

— Foi o jovem duque de No... — ela hesitou. — Não devo revelar nomes. Não seria justo.

Mas ela sabia que a maré virara em seu favor. Duvidava muito que o Sr. Spragge perdoasse o atrevimento do filho de um simples pastor, mas sua fraqueza por membros da nobreza o faria olhar com indulgência a impertinência de um duque. Seu rosto readquiriu a expressão cordial.

— Ora, essa mocidade sem juízo, essa mocidade sem juízo — ele murmurou admoestando-a com o indicador em riste, — em que complicações é capaz de se meter! Nem ima­gina, Lady Frances, todos os sarilhos legais que podem resul­tar de uma brincadeira aparentemente inofensiva improvisada num momento de entusiasmo! Essas simples brincadeiras são às vezes dificílimas de solucionar nos tribunais.

— O senhor é maravilhoso, Sr. Spragge — tornou Fran­kie com sinceridade. — Só uma pessoa em mil teria tal ati­tude. Estou muito envergonhada.

— Não, nada disso, Lady Frances — tranqüilizou-a paternalmente o Sr. Spragge.

— Estou, sim. Suponho que foi a Sra. Rivington quem... Mas o que foi que ela lhe contou exatamente?

— Devo ter a sua carta aqui. Li-a há menos de meia hora.

Frankie estendeu a mão para pegar o papel que o Sr. Spragge lhe entregou com uma expressão eloqüente, como se dissesse: “Veja só em que complicação se meteu!”.

“Caro Sr. Spragge” — escrevera a Sra. Rivington — “Desculpe o meu esquecimento, mas só agora me lembrei de uma coisa que lhe poderia ter sido útil no dia em que esteve aqui. Alan Carstairs declarou que iria para um lugar chama­do Chipping Sommerton. Não sei se esta informação terá alguma serventia.

Foi muito interessante o que me contou a respeito do caso Maltravers!

Com os cumprimentos de

Edith Rivington”

— Como vê, o assunto poderia ter tido conseqüências graves — advertiu-a o Sr. Spragge com uma severidade suavi­zada por um ar benevolente. — Deduzi que se está passando algo de natureza muito suspeita, não sei se relacionado com o caso Maltravers ou com o meu cliente, o Sr. Carstairs...

Frankie interrompeu-o com súbita vivacidade.

— Alan Carstairs era seu cliente?

— Sim. Ele consultou-me a última vez que esteve na Inglaterra, no mês passado. Conhece o Sr. Carstairs, Lady Frances?

— Posso dizer que sim — respondeu Frankie.

— É um homem de uma personalidade muito atraente — tornou o Sr. Spragge. — Trouxe um sopro da brisa selva­gem à minha sala.

— Ele estava interessado no testamento do Sr. Savage, não é mesmo? — perguntou a moça.

— Ah! Então foi a senhorita quem o aconselhou a me procurar? Ele não se lembrava ao certo. Lamentei não o po­der auxiliar mais.

— O que foi exatamente que o aconselhou a fazer? — perguntou Frankie. — Ou seria contra a ética dizer-me?

— Neste caso, não — retrucou sorrindo o advogado. — Em minha opinião, não havia nada a fazer, nada, a não ser que os parentes do Sr. Savage estivesse dispostos a gastar mui­to dinheiro para levar o caso aos tribunais, e pelo que deduzi eles não estavam em condições de assumir tal atitude. Não aconselho ninguém a ir aos tribunais a não ser que existam muitas possibilidades de ganho de causa. A lei é muito incerta, Lady Frances, tem reviravoltas que surpreendem o leigo. Meu lema sempre foi o de resolver os problemas fora dos tribunais.

— Esse caso todo é muito curioso — tornou Frankie pensativa, com a sensação de quem andava descalça num chão coalhado de tachinhas. A qualquer momento ela poderia pisar numa delas e a brincadeira chegaria ao fim.

— Casos como esse são muito mais comuns do que a senhorita poderia pensar — disse o Sr. Spragge.

— Que casos? Suicídios? — inquiriu a moça.

— Não, não. Estou falando de influências espúrias. O Sr. Savage era um astuto homem de negócios, e no entanto aquela mulher manejou-o à sua vontade. Sem dúvida ela co­nhecia bem o seu ofício.

— Gostaria muito de ouvir a história de seus lábios, Sr. Spragge — arriscou Frankie audaciosamente. — O Sr. Cars­tairs estava tão indignado que nunca consegui ter uma visão clara do caso.

— O caso é muito simples — redargüiu o Sr. Spragge. — Posso fazer-lhe uma descrição dos fatos. Estão à disposição de todos, e portanto não faço objeção em lhos revelar.

— Conte-me, então — pediu a moça.

— O Sr. Savage viajou de navio dos Estados Unidos para a Inglaterra em novembro do ano passado. Como sabe, ele era um homem riquíssimo e sem parentes próximos. A bordo travou conhecimento com uma tal Sra. Templeton. Pouco se sabe a respeito dela, a não ser que era uma mulher muito bo­nita com o marido convenientemente ausente.

Os Cayman, pensou Frankie.

— Essas travessias oceânicas são muito perigosas — prosseguiu o Sr. Spragge sorrindo e sacudindo a cabeça. — Ele ficou naturalmente fascinado por ela, e aceitou o seu convite para passar uns dias em seu chalé em Chipping Sommerton. Não consegui saber quantas vezes ele ali esteve, mas não há dúvida alguma de que a influência da Sra. Templeton sobre ele foi gradativamente aumentando. Então deu-se a tragédia. Já há algum tempo o Sr. Savage estava preocupado com o seu estado de saúde. Receava estar sofrendo de uma certa doença...

— Câncer? — acudiu Frankie.

— Bem, isso mesmo, câncer. Essa idéia o obcecava. Na ocasião ele estava passando uns dias com os Templeton, e o casal persuadiu-o a ir a Londres consultar um especialista. É nesse ponto, Lady Frances, que surgem as minhas dúvidas. Esse médico, um profissional de ótima reputação e que ocupa há muitos anos uma posição de destaque, jurou no inquérito que o Sr. Savage não sofria de câncer, e que lhe afirmara isso, mas que o mesmo estava tão obcecado pela idéia que não lhe dera crédito. Ora, Lady Frances, deixando de lado qualquer preconceito, mas conhecendo a classe médica como conheço, julgo que as coisas poderiam ter-se passado de forma um pou­co diferente.

O Sr. Spragge fez uma pausa e prosseguiu.

— Se os sintomas do Sr. Savage tivessem deixado dúvidas na mente do médico, talvez ele tivesse assumido uma expressão severa, indicado tratamentos complicados, e mesmo negando a hipótese de um câncer, deixado ao paciente a impressão de que algo de grave estava se passando. O Sr. Savage, sabendo que muitas vezes os médicos ocultam de seus pacientes o seu estado real, pode ter interpretado essas palavras de outra ma­neira, e julgado que as frases tranqüilizadoras não eram ver­dadeiras, e que ele realmente sofria do mal que tanto temia. Assim voltou a Chipping Sommerton num estado de grande depressão, vendo à sua frente uma morte lenta e dolorosa. Parece que alguns membros de sua família haviam morrido de câncer e ele estava determinado a não passar pelos mesmos sofrimentos. Mandou chamar um solicitador, membro muito respeitável de uma firma de ótima reputação, que redigiu o tes­tamento assinado na mesma hora pelo Sr. Savage. Este do­cumento foi entregue à guarda do solicitador. Naquela mesma noite o Sr. Savage tomou uma dose mortal de hidrato de cloral e deixou uma carta na qual explicava preferir uma morte rápi­da e indolor a uma lenta e dolorosa. Pelo testamento, o Sr. Savage deixou a soma de setecentas mil libras livres de impos­tos à Sra. Templeton, e o resto a algumas instituições de ca­ridade.

O Sr. Spragge recostou-se na cadeira. Agora encontrava prazer na sua narrativa.

— O júri chegou ao esperado veredicto compassivo de suicídio por insanidade temporária, mas não podemos devido a esse fato utilizar o argumento de que necessariamente ele estivesse fora de si ao fazer o testamento. E julgo que nenhum júri acreditaria nisso. O testamento foi feito na presença de um advogado que está pronta a afirmar que o morto estava em plena posse de suas faculdades mentais. Também não acre­dito que possamos provar a existência de influências espúrias. O Sr. Savage não deserdou nenhum ente querido ou parente próximo. Seus únicos parentes eram primos distantes que via raramente. Acredito que moram na Austrália.

O Sr. Spragge fez uma pausa.

— O Sr. Carstairs argumentou que as disposições do testamento não se coadunavam com o modo de pensar do Sr. Savage, que nunca tivera simpatia por caridade organizada e sempre defendera a idéia de que o dinheiro deveria passar a parentes consanguíneos. Entretanto o Sr. Carstairs não possuía provas dessas afirmações, e além disso, como observei, os ho­mens mudam de opinião. Para contestar esse testamento, tería­mos de enfrentar, além da Sra. Templeton, a oposição das ins­tituições de caridade. Além do mais, o testamento já fora de­clarado autêntico e executado.

— Na ocasião não houve reclamações?

— Como já disse, os parentes do Sr. Savage não residem nesse país, e quase não tinham noção do que acontecera. Foi o Sr. Carstairs quem desenterrou a questão. Soube dos deta­lhes do caso ao voltar de uma excursão pelo interior da África e veio ao nosso país ver se podia fazer alguma coisa. Mas a Sra. Templeton já tomara posse da herança, o que lhe dava privilégios legais, e além disso deixara o país para ir viver no sul da França. Ela recusou-se a discutir o assunto. Sugeri ao Sr. Carstairs que recorresse à Ordem dos Advogados, mas ele desistiu, aceitando a minha opinião de que não havia mais nada a fazer, que agora era tarde demais para agir e era mes­mo extremamente duvidoso que algum dia houvesse existido alguma possibilidade.

— Compreendo — disse Frankie. — E não se sabe nada acerca dessa Sra. Templeton?

O Sr. Spragge sacudiu a cabeça numa negativa e apertou os lábios.

— Um homem com o conhecimento que o Sr. Savage ti­nha da vida não devia ter-se deixado iludir com tanta facili­dade, mas...

O velho advogado sacudiu tristemente a cabeça ao recor­dar seus inúmeros clientes que tinham sido mais prudentes e cujos problemas ele havia resolvido fora dos tribunais.

Frankie levantou-se.

— Os homens são umas criaturas singulares — comen­tou ela estendendo a mão. — Adeus, Sr. Spragge. O senhor foi maravilhoso, simplesmente maravilhoso. Estou extrema­mente envergonhada.

— Essa juventude de hoje, brilhante e audaciosa, deveria ter um pouco mais de prudência — tornou o Sr. Spragge sacu­dindo a cabeça.

— O senhor é um anjo!

A moça apertou a mão do velho advogado com fervor e despediu-se.

O Sr. Spragge tornou a sentar-se em sua escrivaninha. Refletia.

“O jovem Duque de...”

Só havia dois duques que se ajustavam àquela categoria.

Qual deles teria sido?

O advogado apanhou um nobiliário.

 

AVENTURA NOTURNA

A ausência inexplicável de Moira estava deixando Bobby mais preocupado do que gostaria de admitir. Disse a si mesmo repetidas vezes que era absurdo tirar conclusões apressadas e fantástico supor que Moira pudesse ter sido assassinada numa casa repleta de possíveis testemunhas. Provavelmente existiria alguma explicação muito simples e na pior das hipóteses ela estava sendo mantida prisioneira na clínica.

Nem por um segundo Bobby acreditava que Moira tivesse deixado Staverley de espontânea vontade. Estava convencido de que ela não teria partido sem lhe mandar algum recado. Além disso, ela afirmara enfaticamente não ter para onde ir.

Não, o sinistro Dr. Nicholson estava por trás disso. De alguma forma ele tomara conhecimento das atividades da es­posa e tomara suas providências. Moira estava aprisionada em algum local no interior das paredes sinistras da Granja, e sem possibilidades de comunicar-se com o mundo exterior. Mas era provável que não permanecesse muito tempo nessa condição. Bobby acreditava nas palavras da jovem, seus terrores não eram o resultado de uma imaginação vivida nem de nervos abalados, e sim a expressão da pura verdade.

Nicholson tencionava livrar-se da esposa. Seus planos haviam falhado várias vezes. Agora ela precipitara a situação confiando seus temores a terceiros. O médico teria de agir rápido ou abandonar seus projetos. Teria ele o sangue frio necessário para a primeira solução?

Bobby pensava que sim. O homem devia saber que mes­mo que estranhos dessem ouvidos às queixas de Moira, não te­riam provas. Também julgava ter somente uma adversária, Frankie. Era possível que tivesse suspeitado dela desde o iní­cio, daí o seu interrogatório sobre o acidente, mas provavel­mente não lhe passara pela cabeça que Bobby pudesse ser algo mais do que um simples chofer.

Sim, Nicholson agiria. Possivelmente o cadáver de Moira seria encontrado em algum local longe de Staverley. Talvez fosse jogado ao mar, ou atirado ao pé de um penhasco. Bobby tinha quase certeza de que sua morte teria toda a aparência de um acidente. Mas para planejar e executar esse “acidente” seria necessário algum tempo, não muito, mas sempre algum. Nicholson estava pressionado, precisava agir mais rápido do que esperara. Parecia razoável supor que ao menos vinte e quatro horas decorreriam antes que ele pusesse seu plano em execução.

E antes que esse prazo se houvesse esgotado, Bobby tencionava encontrar Moira, se ela ainda estivesse na Granja.

Após deixar Frankie na Rua Brook, ele entrou em ação. Julgou prudente não passar pelas redondezas da oficina, era possível que o lugar estivesse vigiado. Quanto a Hawkins, em­bora Bobby acreditasse que ainda estivesse livre de suspeitas, chegara sua hora de desaparecer.

À tardinha, um jovem de bigode com um terno barato azul-escuro chegou à movimentada cidadezinha de Ambledever e registrou-se como George Parker num hotel perto da estação. Deixou ali sua mala e tratou de alugar uma moto­cicleta.

Às dez da noite um motociclista de boné e óculos de pro­teção atravessou a aldeia de Staverley indo parar num trecho deserto da estrada não muito longe da Granja. Escondendo apressadamente o veículo atrás de alguns arbustos Bobby cor­reu os olhos pela estrada. Estava deserta.

Ele seguiu ao longo do muro até chegar à portinhola. Co­mo na outra noite, não estava trancada. Assegurando-se que não era observado, entrou furtivamente com a mão no bolso do paletó, onde uma saliência indicava a presença de uma arma.

O contato com o aço frio tranqüilizou-o.

Tudo era silêncio no interior da propriedade. Ele sorriu ao recordar histórias de terror onde a propriedade do vilão era defendida por panteras e outras feras predadoras. O Dr. Ni­cholson contentava-se com ferrolhos e trancas e mesmo aí mostrava-se descuidado. Aquela portinhola não devia ter sido deixada aberta. No papel de vilão, o Dr. Nicholson estava se revelando um tanto relapso. Nada de jibóias treinadas, nem panteras, nem cercas eletrificadas. O homem estava vergonho­samente atrasado para a época.

O rapaz formulava essas idéias mais para animar-se do que para qualquer outra coisa, pois toda vez que pensava em Moira sentia um estranho aperto no coração.

O rosto dela surgira ante seus olhos, com os lábios trê­mulos e os olhos grandes e aterrorizados. Fora bem ali que a vira pela primeira vez. Sentiu um frêmito de emoção ao lem­brar como a envolvera em seus braços para impedi-la de cair.

Moira, onde estaria agora? O que fizera com ela aquele médico sinistro? Se ao menos ainda estivesse viva...

— Tem de estar — disse Bobby ferozmente entre lábios apertados. — Não me permitirei pensar em outra coisa.

Deu a volta à casa, inspecionando-a cuidadosamente. Algumas janelas do andar superior estavam iluminadas e uma única luz brilhava no andar térreo.

Ele dirigiu-se furtivamente para lá. As cortinas estavam corridas e a luz escapava através de uma pequena fresta, Apoiando um joelho no peitoril, ergueu o corpo sem ruído até poder espiar o interior da casa.

Viu o ombro e o braço de um homem movendo-se deva­gar, como se estivesse escrevendo. Dali a pouco o homem virou a cabeça e Bobby divisou seu perfil. Era o Dr. Nicholson.

A situação era curiosa. Sem ter consciência de estar sen­do, observado, o médico escrevia com toda a calma. Bobby foi envolvido por uma estranha fascinação. O homem estava tão perto dele que se não fosse o vidro que os separava, po­deria ter estendido o braço para tocá-lo.

Bobby sentiu que o via realmente pela primeira vez. Era um perfil forte. O nariz era grande e agressivo, o queixo vigo­roso, o maxilar marcante e bem escanhoado. Notou que as orelhas eram pequenas e paralelas ao crânio, e os lóbulos uniam-se ao plano da face sem interrupção. Tinha uma vaga lembrança de ter lido ou ouvido dizer que aquele tipo de ore­lha possuía um significado especial.

O médico continuava a escrever, com calma e sem pressa, fazendo de vez em quando uma pausa como se procurasse a palavra adequada. A pena movia-se sobre o papel com pre­cisão e fluência. Em dado momento ele tirou o pince-nez, lim­pou as lentes e recolocou-o.

Por fim, com um suspiro, Bobby deixou-se escorregar silenciosamente até o chão. Pelo jeito, Nicholson continuaria a escrever por algum tempo. Agora era momento de tentar en­trar na casa. Se conseguisse forçar uma das janelas do andar superior enquanto o médico trabalhava em seu gabinete, po­deria explorar o prédio com vagar quando todos adormecessem.

Tornou a dar a volta à casa e reparou que a parte supe­rior da esquadria de uma janela do andar térreo estava aberta, e a luz apagada, estando provavelmente o quarto desocupado no momento. Além disso, uma árvore próxima oferecia um fácil meio de acesso.

Dali a um segundo ele escalava a árvore. Tudo ia bem e já esticava o braço para agarrar o caixilho da janela quando ouviu um sinistro estalido, e no momento seguinte o galho podre cedeu e Bobby precipitou-se de cabeça numa moita de hortênsias que providencialmente abrandou sua queda.

A janela do gabinete de Nicholson ficava mais adiante na mesma fachada da construção. Atordoado, Bobby ouviu o mé­dico proferir uma exclamação. A sua janela abriu-se abrupta­mente. Recobrando-se do choque, o rapaz levantou, livrou-se das hortências e correu sob a sombra dos arbustos até o cami­nho que levava à portinhola por onde entrara. Seguiu alguns metros e escondeu-se entre a folhagem.

Ouviu o som de vozes e divisou luzes movendo-se junto à moita de hortênsias despedaçadas. Ficou imóvel e prendeu a respiração. Talvez eles viessem na direção da trilha e se encontrassem a porta aberta provavelmente concluiriam que alguém fugira por ali, cessando a busca.

Entretanto, alguns minutos se passaram e ninguém se aproximou dele. Dali a pouco, Bobby ouviu a voz de Nichol­son proferir uma pergunta. Não discerniu suas palavras, mas ouviu distintamente a resposta dada por uma voz rouca e pou­co educada.

— Estão todos presentes e em ordem, senhor. Fiz a ronda completa.

Gradualmente os sons morreram e as luzes se afastaram. Todos pareciam ter entrado.

Com muita cautela, Bobby deixou o seu esconderijo, emergindo dos arbustos com o ouvido atento. O silêncio era total. Ele deu dois passos em direção à casa.

E então nas trevas alguém o golpeou na base do crânio. Ele caiu para a frente... para a escuridão.

 

“MEU IRMÃO FOI ASSASSINADO”

Na sexta-feira de manhã um Bentley verde deteve-se na frente do Hotel da Estação em Ambledever.

Frankie telegrafara a Bobby sob o seu novo pseudônimo, George Parker, contando que fora chamada a prestar depoi­mento no inquérito de Henry Bassington-ffrench e faria uma parada em Ambledever, no caminho para Staverley.

Esperara receber em resposta um telegrama marcando um encontro, e como não obtivera notícia alguma resolveu di­rigir-se ao hotel.

— O Sr. Parker está? — perguntou ao rapaz da por­taria.

— Acho que não há nenhum hóspede com esse nome, mas vou ver.

Alguns minutos depois ele voltou.

— Ele chegou sexta-feira à noitinha, senhorita. Deixou a mala e disse que talvez só voltasse bem tarde. A mala ainda está aqui, mas ele não voltou para apanhá-la.

Frankie sentiu um súbito mal-estar. Apoiou-se no balcão para não cair. O rapaz olhou-a com simpatia.

— Está-se sentindo mal, moça? — perguntou amável.

Frankie sacudiu a cabeça numa negativa.

— Estou bem — conseguiu dizer. — Ele não deixou ne­nhum recado?

Ele afastou-se e voltou logo depois abanando a cabeça.

— Chegou um telegrama para ele. É só — ele informou, e olhando-a com curiosidade perguntou: — Posso fazer algu­ma coisa?

Frankie fez um gesto negativo.

Naquele momento só queria sair dali. Precisava de tempo para decidir o seu próximo passo.

— Está tudo bem — ela afirmou, e voltando ao Bentley deixou o hotel.

O rapaz balançou a cabeça com um ar compreensivo ao vê-la afastar-se.

Ele deu o bolo, foi isso, disse consigo mesmo. Assumiu um compromisso e deu no pé. E ela é uma grã-fina bem apa­nhada! Como será ele?

Foi perguntar à recepcionista, mas a jovem não se lem­brava.

— Eles são grã-finos — disse o rapaz com ar de conhe­cedor. — Iam-se casar às escondidas, mas ele deu no pé.

Enquanto isso, Frankie rumava para Staverley com o espírito repleto de emoções conflitantes.

Por que Bobby não retornara ao Hotel da Estação? Só havia duas possibilidades: ou ele estava seguindo uma pista longe dali, ou... ou algo saíra errado. O Bentley deu uma guinada para fora da estrada. No último instante Frankie con­seguiu controlar a direção.

Ela estava se comportando como uma idiota, imaginando coisas. Naturalmente Bobby estava, bem. Seguia uma pista, era tudo, seguia uma pista.

Mas por que, perguntou outra vez dentro dela, por que ele não enviara um recado para tranqüilizá-la?

Isso era mais difícil de explicar, mas não faltavam moti­vos plausíveis: circunstâncias difíceis, falta de tempo ou de oportunidade. Além disso Bobby saberia que ela, Frankie, não se preocuparia desnecessariamente. Tudo estava bem. Tinha de estar.

O inquérito correu como um sonho. Lá estava Roger e também Sylvia, muito bela em seus véus de viuvez. Todos os olhos voltavam-se para sua figura comovente. Frankie sur­preendeu-se a admirá-la como admiraria uma atriz represen­tando num teatro.

Os interrogatórios foram conduzidos com muito tato. Os Bassingtons-ffrench eram populares na região e tudo foi feito para poupar a viúva e o irmão do morto.

Frankie e Roger prestaram depoimento. O Dr. Nicholson fez o mesmo. Foi apresentada a carta de despedida do morto. O inquérito pareceu concluir-se num minuto, e o veredicto final foi suicídio sob insanidade temporária. O veredicto “compassivo”, como chamara-o o Sr. Spragge.

Na mente de Frankie os dois fatos associaram-se.

Dois suicídios sob insanidade temporária? Poderia haver alguma ligação entre eles?

Ela sabia que este último fora genuíno, estivera presente à cena. A teoria de assassinato formulada por Bobby era insustentável. O álibi do Dr. Nicholson era sólido como aço e corroborado pela própria viúva.

Frankie e o Dr. Nicholson ficaram quando a sala se esva­ziou. O magistrado encarregado do inquérito cumprimentou Sylvia e murmurou-lhe algumas palavras de condolências.

— Julgo que há algumas cartas para você, Frankie que­rida — disse Sylvia. — Se não se importa, vou deitar-me um pouco. Isso tudo foi horrível para mim.

Ela estremeceu e deixou a sala. Nicholson acompanhou-a murmurando algo a respeito de um sedativo.

Frankie virou-se para Roger.

— Roger, Bobby desapareceu!

— Desapareceu?

— Sim.

— Onde e quando?

Frankie explicou em poucas palavras.

— E desde então ninguém o viu? — perguntou Roger.

— Não. O que acha disso?

Frankie sentiu um peso no coração.

— Você não está pensando que...

— Ora, talvez não tenha havido nada, mas... ah, aí vem Nicholson.

O médico aproximava-se com seu andar silencioso, esfregando as mãos e sorrindo.

— Tudo correu muito bem, muito bem mesmo — disse ele. — O Dr. Davidson teve muito tato e foi muito compreen­sivo. Podemos considerar-nos felizes em tê-lo como magistrado desse inquérito.

— Creio que sim — anuiu Frankie mecanicamente.

— Isso fez muita diferença, Lady Frances. O encaminhamento de um inquérito depende inteiramente do magistrado. Seus poderes são amplos. Pode dificultar ou facilitar as coisas à vontade. Nesse caso tudo correu a contento.

— Na verdade foi uma boa encenação — redargüiu Fran­kie com dureza.

Nicholson olhou-a surpreso.

— Sei como Lady Frances se sente — acudiu Roger. — Sinto a mesma coisa. Meu irmão foi assassinado, Dr. Nicholson.

Ele estava por trás do médico e assim não viu, como Frankie, a expressão atônita que os olhos do Dr. Nicholson adquiriram.

— É isso mesmo — insistiu Roger interrompendo a ré­plica do médico. — A lei pode não olhar os fatos desta forma, mas para mim foi um assassinato. Os criminosos insensíveis que induziram meu irmão a se tornar um escravo dos tóxicos assassinaram-no exatamente como se tivessem apertado o ga­tilho daquela arma.

Adiantou-se e o seu olhar enraivecido parecia agora de­safiar o seu interlocutor.

— Pretendo vingar a sua morte — declarou Roger, e suas palavras soaram como uma ameaça.

O médico baixou os olhos de um azul muito claro ante o olhar de Roger, sacudindo tristemente a cabeça.

— Não vou contestar o seu ponto de vista — disse ele. — Conheço bastante o assunto, Sr. Bassington-ffrench. Indu­zir um homem ao uso de entorpecentes é um crime hediondo.

A mente de Frankie era um torvelinho, e uma certa idéia teimava em aparecer diante de seus olhos.

Não pode ser, disse consigo mesma. Seria por demais monstruoso. Entretanto, todo o seu álibi depende da palavra dela. Mas nesse caso...

Ela voltou ao presente ao ouvir a voz de Nicholson.

— Veio de carro, Lady Frances? Nenhum acidente des­ta vez?

Detesto o sorriso dele, pensou Frankie.

— Não — respondeu. — Não vale a pena abusar de acidentes, não acha?

Teriam as pálpebras dele estremecido ou seria pura imaginação sua?

— Então foi o seu motorista quem dirigiu desta vez?

— Meu motorista desapareceu — retrucou Frankie, encarando Nicholson.

— Verdade?

— A última vez em que foi visto ia em direção à Granja.

Nicholson ergueu as sobrancelhas.

— É mesmo? Terei... alguma atração entre a criadagem? — redargüiu parecendo achar graça — É difícil de acre­ditar.

— Mesmo assim foi o último lugar em que o viram — retrucou Frankie.

— A senhorita parece muito preocupada, talvez não deva dar tanta atenção aos mexericos locais. Não merecem crédito. Já ouvi as histórias mais estapafúrdias — e aqui ele fez uma pausa, acrescentando num tom ligeiramente diferente: — Já vieram até me contar que minha esposa foi vista conversando com o seu chofer perto do rio.

E depois de nova pausa ele perguntou:

— O rapaz tem um bom nível de educação, não, Lady Frances?

Será que ele vai inventar que sua mulher fugiu com o meu chofer, pensou Frances. Será esse o seu jogo?

Em voz alta ela disse:

— Hawkins está bem acima da média dos motoristas.

— Assim parece — retrucou Nicholson, e virando-se para Roger ajuntou:

— Devo ir agora. O senhor e a senhora Bassington-ffrench podem contar com toda a minha solidariedade.

Roger acompanhou-o ao vestíbulo. Frankie os seguiu. Na mesa da entrada estavam duas cartas endereçadas a ela. Uma delas era uma conta. A outra...

Seu coração deu um pulo.

A outra estava endereçada na caligrafia de Bobby.

Nicholson despedia-se de Roger na porta.

Ela rasgou o envelope.

“Querida Frankie” — escrevera Bobby — “Finalmente encontrei uma pista. Siga-me o mais cedo possível até Chipping Sommerton. É melhor vir de trem. O Bentley chama muito a atenção. Os trens não são grande coisa, mas você chegará lá. Procure uma casa conhecida como o “Chalé Tudor”. Não pergunte nada a ninguém, eu lhe explico como encontrá-la (aqui seguiam-se instruções minuciosas). Entendeu bem? Não diga nada a ninguém, a ninguém. (Esta frase estava fortemente sublinhada).

Sempre seu, Bobby.”

Excitada, Frankie fez uma bolinha do papel.

Então estava tudo bem.

Nada de horrível acontecera a Bobby — Ele encontra­ra uma pista, por coincidência a mesma que ela des­cobrira. Ela examinara o testamento de John Savage onde Rose Emily Templeton constava como sendo a esposa de Edgar Templeton, ambos residentes no Chalé Tudor, em Chipping Sommerton. Essa informação ajustava-se também à pagina aberta do guia ferroviário encontrado no Jardim São Leonardo. Chipping Sommerton era um dos nomes de sua lis­ta. O casal Cayman havia ido para lá.

Todos os fatos encaixavam-se. Estavam-se aproximando do fim da caçada.

Roger Bassington-ffrench encaminhava-se para ela.

— Alguma notícia interessante? — perguntou ele em tom casual.

Frankie teve um momento de hesitação. Na certa Bobby não tencionara incluir Roger ao intimá-la a não dizer nada a ninguém.

Lembrou-se então como ele sublinhara a última frase e pensou na sua última e monstruosa teoria. Se fosse verdadeira, Roger poderia traí-los inocentemente, pois ela não ousaria nem insinuar-lhe suas suspeitas...

Tomou uma decisão.

— Não — respondeu ela. — Nada de importante.

Antes que decorressem vinte e quatro horas, ela iria arrepender-se amargamente desta resolução.

Mais de uma vez nas horas que se seguiram ela lastimou ter cedido às injunções de Bobby para que não utilizasse o carro. Chipping Sommerton não ficava tão longe assim, mas fo­ram necessárias três baldeações para alcançá-la, com um pe­ríodo longo e tedioso de espera em cada uma delas, e para alguém com o temperamento impaciente de Frankie esse mé­todo lento de locomoção era extremamente difícil de suportar com estoicismo.

Entretanto, ela tinha de admitir que em parte Bobby tinha razão. O Bentley era vistoso demais. Usara um pretexto fraquíssimo para deixá-lo em Merroway, pois não conseguira ter na ocasião nenhuma idéia brilhante.

Escurecia quando o trem de Frankie, uma composição extremamente prudente e vagarosa, entrou na pequenina esta­ção de Chipping Sommerton, Frankie tinha a sensação de que já passava de meia-noite. Para ela o trem parecia estar se arrastando há horas.

Começara a chover, também, o que era mais uma pro­vação.

Frankie abotoou o casaco até o pescoço, leu mais uma vez a carta de Bobby à luz fraca da estação, decorou as ins­truções e saiu.

Não teve dificuldades em seguir as instruções. Com as luzes da aldeia à sua frente, dobrou à esquerda e começou a subir uma colina. Ao chegar ao topo, tomou o caminho da di­reita e logo enxergou lá embaixo o pequeno grupo de casas que formava a aldeia. À sua frente erguia-se um pequeno bos­que de pinheiros. Divisou finalmente um portão de madeira, e acendendo um fósforo leu a inscrição: “Chalé Tudor”.

Não havia ninguém nas redondezas. Levantando o trin­co, Frankie entrou e pôde ver a silhueta da casa meio escon­dida atrás dos pinheiros. Seguiu até às árvores de onde teve uma boa visão da construção. Com o coração acelerado, imi­tou o melhor possível o pio de uma coruja. Alguns minutos se passaram e nada aconteceu. Ela repetiu o pio.

Desta vez a porta do chalé abriu-se e ela viu um vulto com um uniforme de chofer. Bobby! Ele chamou-a com um gesto silencioso e recuou deixando a porta entreaberta.

Abandonando a proteção das árvores ela encaminhou-se para a porta. Não havia luzes nas janelas. O silêncio era com­pleto.

Cautelosamente empurrou a porta e penetrou no vestí­bulo escuro. Ali parou, tentando enxergar.

— Bobby? — sussurrou.

Foi seu olfato que a preveniu. Onde sentira antes aquele cheiro, aquele cheiro doce e penetrante?

No instante exato em que seu cérebro segredou-lhe “clorofórmio” em resposta, braços fortes agarraram-na. Abriu a boca para gritar, mas seu grito foi sufocado por um pano molhado. O cheiro doce e intoxicante encheu suas narinas.

Ela lutou desesperadamente, esperneando e debatendo-se. Mas foi inútil. Apesar de sua reação, sentia-se sucumbir. Seus ouvidos martelavam, reboavam, estava sufocada. E então não viu mais nada.

 

NO ÚLTIMO MOMENTO

As primeiras reações de Frankie ao recuperar os sentidos foram deprimentes. Nada há de romântico nos efeitos secun­dários do clorofórmio. Estava deitada no chão duro com os pés e as mãos amarrados. Com esforço conseguiu virar-se de bruço, mas sua cabeça bateu com violência num velho balde de carvão com conseqüências constrangedoras.

Alguns minutos mais tarde, Frankie sentiu-se capaz não de sentar-se, mas de pelo menos examinar o aposento.

Ouviu um gemido fraco ali perto. Forçou a vista. Pelo que podia perceber, estava num sótão. A única luminosidade provinha de uma clarabóia no teto, e era muito fraca no mo­mento. Seria noite escura dentro de poucos minutos. Viu al­guns quadros velhos encostados a um canto, uma cama de ferro decrépita e um grupo de cadeiras quebradas, fora o bal­de de carvão já mencionado.

O gemido parecia ter vindo de um canto.

As cordas que a amarravam não estavam muito apertadas e permitiam-lhe alguns movimentos. Rastejando como um caranguejo, ela arrastou-se na direção do ruído.

— Bobby! — exclamou.

Era ele, também de pés e mãos amarrados. Além disso, uma mordaça impedia-o de falar.

Desta última ele quase conseguira livrar-se, e Frankie foi em seu auxílio. Apesar de amarradas, suas mãos ainda eram de alguma utilidade, e um último puxão vigoroso com os den­tes terminou o trabalho.

— Frankie! — conseguiu dizer Bobby com dificuldade.

— Ainda bem que estamos juntos — disse ela. — Mas creio que bancamos os bobos.

— É, caímos numa esparrela — concordou Bobby desanimado.

— Como foi que eles o pegaram? — perguntou a moça. — Foi depois que me escreveu aquela carta?

— Que carta? Não escrevi carta alguma.

— Ah, agora entendi — redargüiu Frankie. — Que idio­ta eu fui! Nem suspeitei de toda aquela insistência para que não dissesse nada a ninguém!

— Olhe, vou-lhe contar o que me aconteceu e depois será a sua vez.

Ele descreveu suas aventuras na Granja e seu sinistro arremate.

— Recobrei os sentidos nesse buraco infecto. Havia co­mida e bebida numa bandeja. Estava com uma fome terrível e me servi de parte. Devia haver um narcótico na garrafa pois dormi quase imediatamente. Que dia é hoje?

— Sexta-feira.

— E era a noite de quarta quando me pegaram! Diabos, dormi quase todo esse tempo! Bem, agora conte-me o que lhe aconteceu.

Frankie relatou suas aventuras, começando com a narra­tiva do Sr. Spragge e terminando no ponto em que julgara ter reconhecido o vulto de Bobby na soleira da porta.

— E então fui cloroformizada — acrescentou ela. — Oh, Bobby, e acabei de vomitar dentro de um balde de carvão!

— Ora, você ainda teve bastante presença de espírito — aprovou Bobby. — E com as mãos amarradas e tudo?! O pro­blema agora é o que vamos fazer. Demos as cartas por muito tempo, mas agora a situação mudou.

— Se ao menos tivesse falado a Roger sobre a sua car­ta... — lamentou Frankie. — Bem que tive vontade, mas resolvi seguir suas instruções e desisti.

— E o resultado é que agora ninguém sabe onde estamos — retrucou Bobby com a fisionomia grave. — Frankie, minha querida, receio tê-la metido numa enrascada.

— Nós nos descuidamos — replicou Frankie num tom sombrio.

— A única coisa que não entendo é por que ainda não acabaram conosco de uma vez — murmurou Bobby. — Não acredito que Nicholson ainda tenha escrúpulos.

— Ele deve estar planejando alguma coisa — concluiu Frankie com um leve estremecimento.

— Bem, é melhor nós planejarmos alguma coisa tam­bém. Temos de sair dessa situação, Frankie. Mas como?

— Podemos gritar — sugeriu a moça.

— É, alguém poderia ouvir-nos. Mas como Nicholson não a amordaçou eu diria que as nossas chances nesse setor são quase nulas. Olhe, as cordas de suas mãos estão mais frou­xas do que as minhas. Deixe-me tentar desamarrá-las com os dentes.

Os cinco minutos seguintes comprovaram a competência do dentista de Bobby,

— Nos livros essas coisas parecem muito fáceis — disse o rapaz Ofegante. — Duvido que eu esteja fazendo qualquer progresso!

— Está, sim! — retrucou Frankie. — A corda está afrouxando. Cuidado! Vem alguém aí!

Ela rolou para longe dele. Alguém subia a escada com passos pesados e ressoantes. Uma réstea de luz surgiu sob a porta. Ouviram o som de uma chave na fechadura e a porta abriu-se lentamente.

— Como vão os meus dois amiguinhos? — indagou a voz do Dr. Nicholson.

Ele trazia uma vela, e embora estivesse usando um pesa­do sobretudo com a gola virada para cima e um chapéu caído sobre os olhos, sua voz o teria traído em qualquer lugar. Seus olhos claros brilhavam por trás das lentes grossas.

Com um ar zombeteiro ele sacudiu a cabeça.

— Não faz jus à sua inteligência ter caído em minha armadilha com tanta facilidade, minha querida jovem.

Nem Bobby, nem Frankie deram-lhe qualquer resposta. Os louros da vitória pertenciam tão ostensivamente a Nichol­son que era difícil encontrar o que dizer.

Nicholson colocou a vela sobre uma cadeira.

— Mas deixem-me ver se vocês estão comodamente arranjados.

Ele examinou as cordas de Bobby, balançou a cabeça em aprovação e passou para Frankie. Desta vez seu gesto foi ne­gativo.

— Na minha infância costumava dizer com toda razão que antes dos garfos já existiam os dedos, e antes dos dedos usaram-se os dentes... Posso ver que os dentes do seu ami­go andaram funcionando.

A um canto estava uma pesada cadeira de carvalho com o espaldar quebrado. Nicholson ergueu Frankie, levou-a para a cadeira e amarrou-a fortemente à mesma.

— Espero que a posição não esteja muito desconfortável — disse ele. — Bem, de qualquer forma não será por muito tempo.

Frankie recuperou a voz.

— O que vai fazer conosco? — ela inquiriu.

Nicholson apanhou a vela e encaminhou-se para a porta.

— A senhorita insinuou, Lady Frances, que eu tinha demasiada inclinação por acidentes. Talvez eu tenha mesmo. De qualquer maneira, arriscarei mais um.

— O que quer dizer? — indagou Bobby.

— Quer mesmo saber? Pois vou-lhe contar. Lady Fran­ces Derwent, na direção de seu carro, com o seu motorista ao lado, comete um engano numa encruzilhada e segue por uma estrada interditada que leva a uma pedreira. O carro despenca no abismo, e Lady Frances e o seu chofer têm morte trágica na queda.

Houve uma pequena pausa e então Bobby falou.

— E se sobrevivermos? Os melhores planos às vezes fa­lham. Um dos seus já falhou em Gales.

— Sua tolerância à morfina é realmente excepcional, e lamentável do nosso ponto de vista — retrucou o Dr. Nichol­son. — Mas desta vez não precisa se preocupar, você e Lady Frances estarão bem mortos quando seus corpos forem encon­trados.

Sem querer, Bobby estremeceu. A voz de Nicholson apresentava uma estranha inflexão. Era o tom de um artista diante de sua obra-prima.

Ele está se divertindo, pensou Bobby. Realmente se divertindo.

Se pudesse evitar, não lhe daria mais motivos de satisfa­ção. Num tom casual, Bobby retorquiu:

— Está cometendo um erro, especialmente quanto a Lady Frances.

— É verdade — ajuntou Frankie. — Naquela carta que você falsificou dizia-me para não contar nada a ninguém. Pois eu fiz uma exceção. Contei a Roger Bassington-ffrench, ele sabe tudo a seu respeito. Se algo nos acontecer, ele saberá que você é o responsável. É melhor soltar-nos e deixar o país o mais rápido possível.

Por um momento Nicholson ficou em silêncio.

— Você está blefando — retrucou ele então. — E eu pago para ver.

Ele virou-se em direção à porta.

— E quanto à sua esposa, seu porco? — bradou Bobby revoltado. — Também a matou?

— Moira ainda está viva — replicou Nicholson. — Quan­to tempo permanecerá assim, eu não sei. Depende das circunstâncias.

Ele curvou-se zombeteiramente.

— “Au revoir”. Precisarei de umas duas horas para completar os preparativos. Vocês poderão ter o prazer de discutir o assunto. Não os amordaçarei a não ser que se torne neces­sário. Compreenderam? Se gritarem por socorro voltarei e da­rei fim à brincadeira.

Ele saiu e trancou a porta.

— Isso não é verdade — disse Bobby. — Não pode ser verdade. Essas coisas não acontecem.

Mas não pôde evitar o pensamento do que iria acontecer, a ele e a Frankie.

— Nos livros o socorro chega sempre no último momen­to — disse Frankie tentando mostrar-se esperançosa.

Mas ela não tinha muitas esperanças. Na verdade sua moral estava decididamente baixa.

— Isso tudo é impossível, fantástico demais — protes­tou Bobby como se estivesse discutindo com alguém. — O próprio Nicholson não parecia real Gostaria de poder acredi­tar num socorro de última hora, mas não sei quem nos poderia auxiliar.

— Se ao menos eu tivesse contado a Roger... — lasti­mou-se Frankie.

— Talvez, apesar de tudo, Nicholson acredite que você contou — consolou-a Bobby.

— Não, ele não engoliu a isca. É inteligente demais.

— Mais inteligente do que nós ele é, sem dúvida algu­ma — concordou Bobby taciturno. — Frankie, sabe o que mais me aborrece nessa história?

— Não. O que é?

—- É que até mesmo agora, quando ‘já estamos prestes a deixar esse mundo, não saibamos quem é Evans.

— Vamos perguntar a ele — sugeriu Frankie. — Sabe, como se fosse um último desejo. Ele não pode se recusar a nos contar. Concordo com você que simplesmente não pode­mos morrer sem satisfazer a nossa curiosidade.

Após um minuto de silêncio Bobby perguntou:

— Acha que devemos gritar por socorro? É a única chance que temos.

— Ainda não — replicou Frankie. — Não acredito que alguém nos ouça, do contrário ele não se arriscaria. E em se­gundo lugar, não poderia suportar esperar a morte sem falar, ou sem que você fale comigo. Vamos deixar os gritos para o último momento. É... é tão confortador poder falar com você... — a voz dela falseou levemente ao proferir as últi­mas palavras.

— Eu a meti numa horrível enrascada, Frankie.

— Ora, não faz mal. Você não poderia ter evitado que eu me envolvesse, eu queria me envolver. Bobby, acredita realmente que ele tencione nos liquidar?

— Receio terrivelmente que sim. Ele é por demais eficiente.

— Bobby, acredita agora que ele matou Henry Bassing­ton-ffrench?

— Se fosse possível...

— É possível, com uma condição: que Sylvia Bassington-ffrench esteja envolvida também.

— Frankie!

— Eu sei. Também fiquei horrorizada quando a idéia me ocorreu. Mas ela encaixa-se. Por que Sylvia não percebeu que Henry era um viciado? Por que ela insistiu tão obstinada­mente para que o marido fosse enviado para a Granja e não para outro lugar? E ela estava na casa quando se ouviu o tiro...

— Ela própria pode tê-lo matado.

— Oh, não! Isso não!

— Pode, sim. E depois ter dado a chave do gabinete a Nicholson para que a colocasse no bolso de Henry.

— É uma loucura — retrucou Frankie desalentada. — É como se víssemos as coisas por um espelho deformante. Os que aparentam ser bons são maus, na realidade. Devia haver alguma maneira de distinguir os criminosos, pelas sobrancelhas, pelas orelhas ou coisa semelhante.

— Meu Deus! — exclamou Bobby.

— O que foi?

— Frankie, não foi Nicholson quem esteve aqui há pouco.

— Você ficou maluco? Então quem foi?

— Não sei, mas não foi Nicholson. O tempo todo eu sentia que havia alguma coisa errada, mas não sabia o quê, mas quando você falou em orelhas, eu descobri. Quando ob­servei Nicholson pela janela há duas noites atrás, notei que os lóbulos de suas orelhas são ligados às faces. Mas os lóbulos desse homem não são desse tipo!

— O que isso significa? — perguntou Frankie perplexa.

— Que era um ator muito bom representando o papel de Nicholson!

— Mas por quê? E quem seria?

— Bassington-ffrench — murmurou Bobby. — Roger Bassington-ffrench! Descobrimos o culpado logo de início, mas como dois idiotas, deixamo-nos enganar por pistas falsas.

— Bassington-ffrench — sussurrou Frankie. — Bobby, você está certo. Deve ser ele. Roger era a única pessoa pre­sente quando provoquei Nicholson falando de acidentes.

— Então tudo terminou mesmo — disse Bobby. — Ain­da tinha uma ligeira esperança de que Roger Bassington-ffrench pudesse por um milagre seguir a nossa pista, mas agora tudo acabou. Moira é uma prisioneira, você e eu estamos de mãos e pés amarrados e ninguém tem a mínima idéia de onde nos encontramos. O jogo terminou, Frankie.

Ele acabara de falar quando ouviram um ruído no teto. Um instante depois, com um terrível estrondo, um corpo pe­sado caiu pela clarabóia.

Estava escuro demais para verem alguma coisa.

— Que diabo... — começou Bobby.

No meio dos vidros estilhaçados, ouviu-se uma voz.

— B-b-b-bobby!

— Ora, que os diabos me levem! — exclamou Bobby. — É Badger!

 

A HISTÓRIA DE BADGER

Não havia um minuto a perder. Já se escutavam no andar de baixo.

— Depressa, Badger, seu tolo! — disse Bobby. — Tire uma das minhas botas! Não discuta nem faça perguntas. Puxe-a de qualquer maneira e jogue-a no meio dos vidros! De­pois meta-se debaixo daquela cama. Depressa! Depressa!

Os passos subiam a escada. Uma chave virou na fecha­dura.

Nicholson, o pseudo Nicholson, apareceu na porta segurando uma vela.

Viu Frankie e Bobby como os deixara, mas no meio do sótão viu um monte de vidros quebrados, e no meio dos vi­dros uma bota!

O olhar atônito de Nicholson passou da bota para Bobby. O pé esquerdo do rapaz estava nu.

— É muito hábil, meu amigo — disse ele secamente. — É um acrobata perfeito.

Dirigiu-se para o rapaz, examinou as cordas que o pren­diam e reforçou-as com alguns nós extras. Ao terminar olhou-o com curiosidade.

— Gostaria de saber como conseguiu lançar essa bota até a clarabóia. Parece-me quase inacreditável. Você tem algum parentesco com Houdini, meu amigo.

Olhou para os dois, para a clarabóia quebrada, e saiu encolhendo os ombros.

— Depressa, Badger.

Badger arrastou-se para fora da cama. Tinha um canivete, e com o seu auxílio logo libertou os companheiros.

— Assim está melhor — disse Bobby espreguiçando-se. — Nossa, estou todo duro! Bem, Frankie, e quanto ao nosso amigo Nicholson?

— Você tem razão — retrucou ela. — É mesmo Roger Bassington-ffrench. Agora que sei que é ele representando o papel de Nicholson, percebo as falhas. Mas mesmo assim, a interpretação foi muito boa.

— Com voz, pince-nez e tudo mais — concordou Bobby.

— Fui colega de um B-b-b-bassington-ffrench em Oxford — disse Badger. — Era um ator estupendo. Mas mau-c-c-c-caráter. Falsificou o nome do p-p-pai num cheque, mas o ve­lho a-b-b-bafou o caso.

O mesmo pensamento passou pelas mentes de Frankie e de Bobby. Badger, a quem haviam julgado mais prudente não fazer confidências, poderia ter-lhes dado informações valiosas!

— Falsificação, hem — murmurou Frankie pensativa. — A sua caligrafia naquela carta estava perfeita, Bobby. De onde ele a teria copiado?

— Se os Cayman são seus sócios, ele provavelmente viu a minha carta sobre a última frase de Carstairs.

A voz de Badger interrompeu-os.

— O que f-f-f-faremos agora?

— Vamos ficar confortavelmente de atalaia atrás daquela porta — propôs Bobby — e quando o nosso amigo voltar, o que não deve ser logo, você e eu vamos dar-lhe o maior susto de sua vida! O que acha, Badger? Está disposto?

— Ora, sem dúvida!

— E quanto a você, Frankie, quando ouvir seus passos é melhor voltar para a sua cadeira. Ele a verá quando abrir a porta e entrará sem suspeitar de nada.

— Está certo — concordou Frankie. — Mas quando você e Badger o tiverem agarrado vou entrar na briga e dar-lhe algumas mordidas ou coisa semelhante.

— Isto é que é uma mulher corajosa! — aprovou Bobby. — Agora vamos nos sentar aqui no chão juntos e ouvir a his­tória de Badger. Quero saber que espécie de milagre o trouxe até aquela clarabóia.

— Bem — começou Badger — depois que você p-p-par-tiu, meti-me numa enrascada.

Gradualmente a história veio à tona, uma enfiada de dí­vidas, credores e oficiais de justiça, numa típica catástrofe à la Badger. Bobby partira sem deixar endereço, só dizendo que ia levar o Bentley a Staverley, e Badger assim seguira para lá.

— Pensei que t-t-t-talvez você pudesse me emprestar cin­co libras — ele explicou.

A consciência de Bobby repreendeu-o. Fora a Londres auxiliar Badger em seu novo empreendimento, e desertara logo para ir bancar o detetive com Frankie. E mesmo assim o fiel Badger não proferia nenhuma queixa.

Badger não pretendia pôr em perigo a misteriosa empre­sa de Bobby, e pensara que não seria difícil encontrar um car­ro como o Bentley num lugarejo como Staverley. E, na reali­dade, encontrara o carro antes de chegar à aldeia, em frente a uma hospedaria, vazio.

— P-p-p-pensei em lhe fazer uma pequena s-s-surpresa — prosseguiu Badger. — No banco de trás havia alguns t-t-tapetes, e ninguém por perto. Entrei e me c-c-cobri com eles. Julguei que você teria a maior s-s-surpresa de sua vida.

O que acontecera fora que um chofer de libré verde saíra da hospedaria, e do seu esconderijo Badger percebera, atônito, que não era Bobby. O rosto do homem era-lhe familiar, mas não conseguiu lembrar-se de onde o conhecia. O estranho en­trou no carro e deu a partida.

Badger ficou numa situação embaraçosa, sem saber o que fazer. As desculpas e as explicações são sempre difíceis, ainda mais quando alguém está dirigindo a mais de cem quilômetros por hora. Badger resolveu ficar quieto e esgueirar-se dali quan­do o carro parasse.

Afinal o Bentley chegou a seu destino: o Chalé Tudor. O chofer guardou o carro e saiu fechando a porta da garagem. Badger ficou prisioneiro, mas através de uma janelinha a um canto viu a chegada de Frankie.

Com a ajuda de algumas ferramentas que estavam numa prateleira conseguiu forçar a fechadura da garagem e saiu para inspecionar a casa. As vidraças do andar térreo eram protegidas por venezianas, mas julgou que se conseguisse subir ao telha­do talvez pudesse dar uma olhada nas janelas de cima. Não foi difícil chegar ao telhado. Um encanamento de água pluvial descia pelo canto da garagem, e do telhado desta no telhado do chalé a distância era pequena. Durante a sua exploração, Badger deparara com a clarabóia. A gravidade e o seu peso haviam feito o resto.

Bobby respirou fundo quando a narrativa terminou.

— Mesmo assim — ele retrucou reverentemente — para mim você é um milagre, um maravilhoso milagre. Se não fosse você, Badger, meu querido amigo, daqui a uma hora Frankie e eu seríamos dois belos cadáveres!

Ele fez um resumo das suas atividades e das de Frankie. Perto do final, interrompeu-se.

— Vem alguém aí! Vá para o seu lugar, Frankie. Agora é que o nosso grande ator vai levar o maior susto de sua vida.

Frankie reassumiu rapidamente seu lugar na cadeira de carvalho. Badger e Bobby postaram-se junto à porta, vigilantes.

Os passos aproximaram-se pela escada e uma réstea de Luz de uma vela revelou a silhueta abatida de Frankie na ve­lha cadeira. Seu carcereiro deu um passo para dentro.

Então, alegremente, Bobby e Badger saltaram sobre ele.

A luta foi breve e decisiva. Pego de surpresa, o homem foi ao chão, jogando a vela longe. Frankie apanhou-a e alguns segundos depois os três amigos contemplavam com maliciosa satisfação o vulto bem amarrado que jazia a seus pés.

— Boa-noite, Sr. Bassington-ffrench — disse Bobby, e quem iria censurá-lo pelo tom exultante de sua voz? — Que bela noite para um funeral, não?

 

UMA FUGA

O homem amarrado encarava-os. Perdera o chapéu e o pince-nez. Já era inútil qualquer disfarce. Ligeiros traços de maquilagem eram visíveis em torno de suas sobrancelhas, mas fora isso ali estava o rosto amável e um tanto vago de Roger Bassington-ffrench.

Em sua agradável voz de tenor, ele iniciou o que parecia ser um ameno monólogo:

— Muito interessante... Na verdade eu sabia que um homem amarrado como você estava não poderia ter atirado uma bota até aquela clarabóia. Mas como a bota estava entre os pedaços de vidro, aceitei-os como causa e efeito, e concluí que o impossível acontecera. O que não deixa de ser um exem­plo interessante das limitações do cérebro humano.

Como ninguém o interrompeu, ele prosseguiu no mesmo tom ponderado.

— Assim, afinal, vocês ganharam esta partida, o que para mim é completamente inesperado e extremamente lamentável. Pensei que os tinha enganado lindamente.

— E enganou mesmo — replicou Frankie. — Você fal­sificou a letra de Bobby naquela carta, não foi?

— É um talento que eu tenho — admitiu modestamente Roger.

— E Bobby?’

Deitado de costas, com um sorriso estampado no rosto, Roger parecia sentir um óbvio prazer em esclarecê-los.

— Sabia que ele iria à Granja. Só precisei esperá-lo entre os arbustos junto à entrada. Eu estava atrás dele quando se escondeu após cair desajeitadamente de uma árvore. Esperei até a confusão se acalmar e então golpeei-o na base do crânio com um saco de areia e trouxe-o para cá. Antes do amanhe­cer eu estava em casa de volta.

— E Moira? — inquiriu Bobby. — Atraiu-a a algum lugar?

Roger deu uma risadinha. A pergunta pareceu diverti-lo.

— O meu talento como falsificador me tem sido muito útil, meu caro Jones — replicou ele.

— Seu cretino! — exclamou Bobby.

Frankie interveio. Sua curiosidade ainda não fora saciada e o prisioneiro parecia de boa maré.

— Por que fingiu ser o Dr. Nicholson? — ela perguntou.

— Por que terá sido, hem? — Roger repetiu a pergunta como se a estivesse formulando a si mesmo. — Talvez parte pelo prazer de enganá-los. Vocês estavam tão convencidos de que o pobre era culpado... — ele deu uma risadinha e Fran­kie corou. — Só porque ele insistiu em esclarecer uns deta­lhes do seu acidente. Mas sem dúvida esse hábito de exatidão é muito irritante.

— E na verdade ele é completamente inocente, não? — inquiriu Frankie devagar.

— Tão inocente quanto uma criança recém-nascida — confirmou Roger. — Mas ele fez-me um grande favor. Atraiu a minha atenção para o seu “acidente”. Isto e um outro peque­no fato fizeram-me ver que você não era a jovenzinha inocente que pretendia ser. Estava a seu lado quando telefonou certa manhã e ouvi a voz do seu chofer chamando-a de Frankie. Minha audição é muito apurada, minha cara. Fingi querer acompanhá-la a Londres, e vi seu alívio quando desisti da idéia. Além disso — ele fez uma pausa e na medida do pos­sível encolheu os ombros amarrados, — foi muito divertido vê-los preocupadíssimos com Nicholson. Ele é um velho asno inofensivo, mas tem a aparência exata de um supercriminoso do cinema. Achei melhor continuar a iludi-los. Afinal, nunca se sabe. Os melhores planos estão sujeitos ao fracasso, como demonstra a minha atual situação embaraçosa.

— Há mais uma coisa que preciso saber — tornou Fran­kie. — Estou quase louca de curiosidade. Quem é Evans?

— Ah! — fez Bassington-ffrench. — Então não sabem quem é Evans?

Ele deu uma gostosa gargalhada.

— Isso é muito engraçado — ele disse. — E mostra co­mo podemos ser tolos.

— Refere-se a nós? — perguntou Frankie.

— Não — retrucou Roger. — Refiro-me a mim mesmo. Sabem, já que ignoram quem é Evans, não lhes vou dizer. Isso será meu segredo particular.

A situação era curiosa. Eles haviam virado a mesa, mas de certo modo Bassington-ffrench privara-os do triunfo. Deita­do no chão, prisioneiro, amarrado, era ele quem dominava a situação.

— E quais são os seus planos agora, posso perguntar? — indagou Roger.

Ninguém ainda planejara coisa alguma. Meio incerto. Bob­by murmurou qualquer coisa sobre a polícia.

— É mesmo o melhor que têm a fazer — aprovou Roger alegremente. — Telefonem para eles e entreguem-me. A acusa­ção será rapto, suponho. Não poderei negar, mesmo — e acres­centou olhando para Frankie: — Alegarei uma paixão culposa.

Frankie corou.

— E quanto a assassinato? — ela perguntou.

— Minha querida, vocês não têm prova alguma, absolutamente nenhuma. Reflitam sobre o caso e verão.

— Badger — disse Bobby — fique de olho nele. Vou descer e telefonar para a polícia.

— É melhor ter cuidado — interveio Frankie. — Não sabemos quem mais está na casa.

— Estou só — disse Roger. Estava agindo sozinho.

— Não vou aceitar a sua palavra — retrucou Bobby rispidamente, curvando-se experimentando as cordas. — Ele está bem amarrado. Não há perigo. É melhor descermos juntos e trancar a porta.

— Você é muito desconfiado, meu caro — tornou Roger. — Há uma pistola no meu bolso, pode ficar com ela, se quiser. Talvez ela o faça sentir-se mais feliz, e certamente de nada me adianta na minha atual situação.

Ignorando o tom zombeteiro de Roger, Bobby curvou-se e apanhou a arma.

— Foi muita bondade sua avisar-me — disse ele. — Se quer saber, ela me deixa mesmo mais feliz.

— Ótimo — retrucou Roger. — Está carregada.

Bobby pegou a vela e o trio saiu em fila, deixando Roger no chão. Bobby trancou a porta e guardou a chave no bolso.

— Vou descer na frente — avisou, com a pistola na mão. — Precisamos tomar cuidado e não nos metermos em mais nenhuma enrascada.

— Ele é um c-c-cara esquisito, não é? — comentou Bad­ger indicando o sótão com um movimento de cabeça.

— Ele certamente sabe perder — arrematou Frankie, que ainda se deixava influenciar pelo charme da singular personalidade de Roger Bassington-ffrench.

Uma escadinha de aspecto frágil levava ao segundo andar. O silêncio era completo. Bobby debruçou-se sobre o corrimão e viu um telefone lá embaixo no vestíbulo.

— É melhor examinarmos primeiro os quartos — disse ele. — Não quero ser surpreendido pelas costas.

Badger abriu as portas, uma a uma. Três dos quatro quar­tos estavam vazios. No último um vulto esbelto jazia sobre uma cama.

— É Moira! — exclamou Frankie.

Os outros acorreram. A não ser pelos seios que subiam e desciam lentamente, Moira estava imóvel como uma morta.

— Ela está dormindo? — perguntou Bobby.

— Acho que foi narcotizada — retrucou Frankie, cor­rendo os olhos em torno. Numa pequena bandeja esmaltada sobre uma mesa perto da janela via-se uma seringa hipodérmica, um fogareiro de álcool e uma ampola vazia.

— Acho que ela ficará logo boa — disse Frankie. — Mas devíamos chamar um médico.

— Vamos descer e telefonar — redargüiu Bobby.

Desceram ao vestíbulo. Frankie receava que os fios do telefone estivessem cortados, mas seus temores não tinham fundamento. Conseguiram uma ligação para o distrito policial com facilidade, mas explicar os fatos foi bem mais difícil. A polícia local mostrou-se altamente inclinada a encarar a his­tória como uma brincadeira.

Finalmente deixaram-se convencer e Bobby recolocou o fone no lugar com um suspiro de alívio. Falava da necessida­de de um médico e o guarda prometera levar um consigo.

Dez minutos depois chegou um carro com um inspetor, um guarda e um homem idoso que trazia estampada em toda a sua figura a marca de sua profissão.

Foram recebidos por Bobby e Frankie que lhes explica­ram mais uma vez os fatos de forma sucinta, e conduziram-nos ao sótão. Bobby abriu a porta, e parou atônito. No meio do aposento, apenas um monte de cordas cortadas. Debaixo da clarabóia quebrada estava a cama de ferro e sobre ela, na direção da abertura, uma cadeira.

Não havia sinal de Roger Bassington-ffrench.

Bobby, Badger e Frankie quedaram-se boquiabertos.

— Falando em Houdini — disse o primeiro — Roger deixou-o no chinelo. Mas como é que aquele diabo conseguiu cortar essas cordas?

— Devia ter uma faca no bolso — sugeriu Frankie.

— Mas mesmo assim, como conseguiu pegá-la? Tinha as mãos amarradas nas costas.

O inspetor tossiu. Suas dúvidas anteriores haviam retornado, e estava mais do que nunca inclinado a encarar tudo aquilo como uma brincadeira.

Frankie e Bobby começaram a contar-lhe a longa história, que a cada minuto parecia cada vez menos convincente.

Foi o médico quem os salvou.

Ao ser levado ao quarto onde dormia Moira, declarou logo que ela fora narcotizada com morfina ou alguma forma de ópio, mas não considerou grave o seu estado. Calculou que dentro de quatro ou cinco horas ela recobraria naturalmente a consciência e sugeriu que a transportassem imediatamente para uma casa de saúde das redondezas.

Bobby e Frankie concordaram, sem ver outra solução. Após fornecerem seus nomes e endereços verdadeiros ao ins­petor, que pareceu absolutamente não acreditar no de Fran­kie, receberam permissão para deixar o Chalé Tudor e, com o auxílio do inspetor, foram recebidos como hóspedes na Hos­pedaria Sete Estrelas na aldeia.

Embora sentindo que eram olhados como delinqüentes, foi com imenso alívio que se recolheram a seus aposentos: um quarto de casal para Bobby e Badger e um quartinho minús­culo com uma só cama para Frankie.

Poucos minutos depois que os rapazes se haviam deitado, alguém bateu à sua porta.

Era Frankie.

— Acabei de me lembrar de uma coisa — disse ela. — Se aquele inspetor idiota continuar a achar que inventamos toda essa história, tenho provas de que fui cloroformizada.

— Você tem? Onde?

— No balde de carvão — replicou Frankie com decisão.

 

FRANKIE FAZ UMA PERGUNTA

Exausta de tantas aventuras, Frankie dormiu até tarde na manhã seguinte. Eram dez e meia quando ela desceu até a pequena sala de almoço onde Bobby a esperava.

— Olá, Frankie, finalmente você chegou.

— Você está me parecendo horrivelmente bem disposto — retrucou Frankie deixando-se cair numa cadeira.

— O que vai querer? Eles têm eglefim, ovos, toicinho e presunto frio.

— Só quero uma xícara de chá fraco e uma torrada — retrucou Frankie com uma careta. — O que há com você?

— Deve ter sido a pancada na cabeça — respondeu Bob­by. — Talvez tenha sacudido meus miolos. Sinto-me cheio de vigor, disposição, idéias brilhantes e uma louca vontade de agir.

— E por que não age? — replicou Frankie em tom lânguido.

— Já comecei. Passei a última meia-hora com o Inspetor. Hammond. Frankie, por hora teremos de deixar passar o caso como uma brincadeira.

— Oh! Mas Bobby!

— Eu disse por hora. Nós iremos até ao fim dessa his­tória, Frankie. Não queremos que Roger Bassington-ffrench seja acusado de rapto, queremos prendê-lo por assassinato.

— E vamos conseguir — disse Frankie reanimada.

— Assim é que se fala — aprovou Bobby. — Tome mais um pouco de chá.

— Como está Moira?

— Meio ruinzinha. Ela voltou a si com os nervos em lastimável estado. Está obviamente apavorada. Foi para Lon­dres, para uma clínica em Queen’s Gate. Disse que lá se sen­tirá segura. Estava aterrorizada aqui.

— Ela nunca foi das mais corajosas.

— Bem, qualquer um ficaria apavorado com um assas­sino frio como Roger Bassington-ffrench nas redondezas.

— Não é ela quem ele quer matar e sim nós.

— Provavelmente ele agora está muito ocupado se escondendo para se preocupar conosco — redargüiu Bobby. — Frankie, temos de começar a agir. Tudo deve ter começado com a morte e o testamento de John Savage. Houve alguma irregularidade, ou o testamento foi falsificado ou Savage foi assassinado ou coisa semelhante.

— Se Roger Bassington-ffrench está envolvido nisso, é muito provável que o testamento tenha sido adulterado — redargüiu Frankie pensativa. — Pelo jeito a especialidade dele são as falsificações.

— Talvez tenha havido falsificação e assassinato. Pre­cisamos descobrir.

Frankie fez um gesto de assentimento.

— Tomei algumas anotações quando li o testamento. As testemunhas foram a cozinheira Rose Chudleigh e o jardineiro Albert Mere. Deve ser fácil encontrá-los. E há também os advogados que redigiram o documento, Elford e Leigh, uma firma muito respeitável, segundo o Sr. Spragge.

— Certo. Começaremos daí. Acho melhor você se en­carregar dos advogados. Obterá mais informações deles do que eu conseguiria. Irei atrás de Rose Chudleigh e Albert Mere.

— E quanto a Badger?

— Badger nunca se levanta antes da hora do almoço. Não se preocupe com ele.

— Precisamos dar um jeito em seus negócios — disse Frankie. — Afinal ele salvou a minha vida.

— E ele logo vai se meter em novas enrascadas — re­trucou Bobby. — Ah, mudando de assunto, o que acha disto?

Ele exibiu um papelão sujo no qual estava colado uma fotografia.

— É o Sr. Cayman! — exclamou Frankie no mesmo ins­tante. — Onde a encontrou?

— Foi ontem à noite. Estava caída atrás do telefone.

Uma garçonete vinha chegando com as torradas. Frankie mostrou-lhe a fotografia.

— Conhece esse homem? — ela perguntou.

Inclinando a cabeça para um lado a moça examinou o retrato.

— Ora, já vi esse senhor... Mas não consigo me lem­brar... Ah, já sei, é o homem que morava no Chalé Tudor, o Sr. Templeton. Eles foram embora para o estrangeiro.

— Que espécie de homem ele era? — perguntou Frankie.

— Não sei, eles não vinham aqui com muita freqüência, só em alguns fins de semana. Ninguém o conhecia bem. Já a Sra. Templeton era uma senhora muito distinta. Mas eles só ficaram uns seis meses no Chalé Tudor, pois um milionário morreu e deixou toda a fortuna para a Sra. Templeton e eles foram para o estrangeiro. Mas acho que não venderam o chalé e às vezes o emprestam aos amigos nos fins de semana. Penso que com todo aquele dinheiro eles não voltarão mais para morar lá.

— Eles tinham uma cozinheira chamada Rose Chudleigh, não tinham? — perguntou Frankie.

Mas a jovem não estava interessada em cozinheiras. Fortunas deixadas por milionários, isso sim é que era um assunto excitante. Respondeu a Frankie que não sabia e retirou-se com o prato vazio de torradas.

— Até aqui não há novidade — disse Frankie. — Os Cayman não têm vindo mais aqui, mas conservam o Chalé para uso da quadrilha.

Os dois concordaram em dividir as tarefas, como Bobby sugerira. Muito elegante com o auxílio de algumas compras locais, Frankie saiu no Bentley e Bobby foi à procura de Albert Mere, o jardineiro.

Encontraram-se novamente na hora do almoço.

— E então? — perguntou Bobby.

Frankie sacudiu negativamente a cabeça.

— Não houve falsificação — ela disse com desânimo. — Conversei longamente com o Sr. Elford, ele é um velhinho encantador. Ouvira boatos sobre a nossa aventura da noite passada e estava doido para saber detalhes. Creio que por aqui não deve haver muito movimento! Consegui conquistá-lo logo e puxei o assunto do caso Savage. Fingi conhecer um parente do morto que me insinuara ter havido falsificação no testa­mento. Quando eu disse isso o velhinho ficou danado, afirmou que era impossível! Ele próprio fora ao local, chamado pelo Sr. Savage que insistira para ele redigir o testamento ali, na hora. O Sr. Elford preferia trazê-lo mais tarde, redigido da forma adequada, sabe como é, em folhas e folhas de conversa fiada.

— Não sei, não — retrucou Bobby. — Nunca fiz um testamento.

— Pois eu já fiz dois. O segundo há uma hora atrás. Eu precisava de uma desculpa para procurar um advogado, não é?

— E para quem você deixou o seu dinheiro?

— Para você.

— Mas onde você tem a cabeça? Se Roger conseguisse agarrá-la, provavelmente iriam me enforcar!

— É, nem pensei nisso — replicou Frankie. — Bem, mas como eu estava falando, o Sr. Savage estava tão nervoso e excitado que o Sr. Elford teve de redigir ali mesmo o testa­mento. A empregada e o jardineiro serviram de testemunhas, e o advogado levou consigo o testamento para guardar.

— Pelo jeito, a hipótese de uma falsificação está mesmo eliminada.

— É, se ele viu o homem assinar o documento, não há essa possibilidade. E quanto à outra hipótese, assassinato, vai ser muito difícil provar qualquer coisa agora. O médico que examinou o cadáver já morreu. O que vimos ontem à noite é novo aqui, veio para cá há dois meses.

—- Há um número excessivo de mortes nesse caso — redargüiu Bobby.

— Por que diz isso? Morreu mais alguém?

— Albert Mere.

— Você acha que todos foram assassinados?

— Assim também é exagero, não? Vamos deixar a mor­te de Albert Mere como duvidosa. O pobre já linha setenta e dois anos.

— Está certo, vamos admitir que ele morreu de causas naturais. E quanto a Rose Chudleigh, teve sorte?

— Sim. Depois que deixou os Templeton ela foi traba­lhar no norte da Inglaterra, mas voltou e casou-se com um habitante local, seu namorado há dezessete anos. Infelizmente ela é um tanto abobalhada e não sabe dar informação alguma. Quem sabe se você consegue tirar alguma coisa dela?

— Vou tentar — anuiu Frankie. — Tenho um Jeito es­pecial para lidar com gente assim. Por falar nisso, onde está Badger?

— Meu Deus, tinha-me esquecido dele! — exclamou Bobby, levantando-se e deixando a sala.

Voltou alguns minutos depois.

— Ele ainda estava dormindo, mas agora já se levan­tou — explicou o rapaz. — Imagine uma das arrumadeiras chamou-o quatro vezes sem o menor resultado.

— Bem, é melhor irmos ver a tal cozinheira abobalhada — continuou a moça levantando-se. — Depois preciso com­prar uma escova, uma camisola e outras necessidades básicas de uma existência civilizada. Estava tão exausta ontem à noite que nem senti falta de nada disso.

— Eu também não — disse Bobby,

— Vamos à tal Rose Chudleigh — propôs Frankie.

Rose Chudleigh, agora a Srª Pratt, morava numa casa pequenina entulhada de móveis e cachorrinhos de porcelana. Era uma mulher de amplas proporções e aspecto bovino, com olhos de peixe e todos os indícios de sofrer de adenóides.

— Estou aqui de novo — disse Bobby jovialmente.

A Srª Pratt respirou fundo e encarou-os sem curiosidade.

— Soubemos que a senhora já trabalhou com a Srª Templeton, não é verdade? — começou Frankie.

— Sim, madame — replicou a Srª Pratt.

— Ela agora está morando no estrangeiro, não é? — prosseguiu Frankie, tentando dar a impressão que era íntima da família.

— Eu ouvi falar nisso — concordou a Srª Pratt.

— Trabalhou com ela algum tempo, não foi?

— Ela quem, madame?

— A Srª Templeton. Esteve algum tempo na casa dela, não esteve? — Frankie repetiu a pergunta bem devagar.

— Só dois meses, madame.

— Oh, pensei que tivesse ficado muito mais tempo.

— Quem esteve mais tempo com ela foi a arrumadeira, Gladys. Ela ficou seis meses na casa.

— Então havia duas empregadas?

— Isso mesmo. Ela era copeira-arrumadeira e eu cozi­nhava.

— A senhora estava lá quando o Sr. Savage morreu?

— Que eu saiba, o Sr. Templeton não morreu, não. Ele foi para o estrangeiro.

— Eu disse Sr. Savage e não Sr. Templeton.

A Srª Pratt olhou-a sem compreender.

— O cavalheiro que deixou todo aquele dinheiro para ela — explicou Frankie.

Um lampejo de inteligência passou pelos olhos da Srª Pratt.

— Ah, sim, foi por causa dele que houve aquele inqué­rito...

— Isso mesmo — confirmou Frankie encantada com o seu sucesso. — Ele costumava ir lá com freqüência, não?

— Eu não sei, madame. Só estive dois meses lá. A Gla­dys é que deve saber.

— Mas a senhora serviu de testemunha, não foi?

A cozinheira fitou-a com um olhar inexpressivo.

— A senhora viu-o assinar um papel e assinou também, logo depois?

Um novo lampejo de inteligência.

— Sim, madame, eu e Albert. Eu nunca tinha feito isso antes, e não gostei nada. Disse a Gladys que não gostava de assinar papéis, e ela falou que não tinha problema, porque o Sr. Elford estava lá, e o Sr. Elford além de ser advogado é um homem muito direito.

— O que aconteceu, exatamente — perguntou Bobby.

— O que foi, senhor?

— Quem a chamou para assinar o papel? — perguntou Frankie.

— Foi a patroa. Ela foi na cozinha e disse para eu ir lá fora chamar o Albert, e daí nós fomos ao quarto grande de dormir (ela tinha saído do quarto na noite da véspera para cedê-lo para o sr... para o tal cavalheiro) e encontramos o homem sentado na cama com uma cara de quem estava mui­to doente. Ele tinha chegado de Londres e ido direto para a cama. Eu nunca tinha visto ele antes, e a cara dele estava horrível, e o Sr. Elford estava lá e me falou com muita bon­dade, dizendo para eu não ter medo de nada, era só para eu assinar o meu nome debaixo da assinatura do tal cavalheiro. E foi o que eu fiz, e escrevi “cozinheira” e o meu endereço, e Albert fez a mesma coisa. Daí eu desci tremendo e disse para Gladys que nunca tinha visto ninguém com tanto jeito de quem ia morrer, e ela disse que na noite da véspera ele estava com cara boa e que alguma coisa em Londres de­via ter feito mal pra ele. Ele tinha saído bem cedinho quando todos ainda estavam dormindo. E quando eu disse que não gostava de assinar o meu nome em papel nenhum, Gladys falou que tudo devia estar certo porque o Sr. Elford estava lá.

— E quando foi que o Sr. Savage, o tal cavalheiro, mor­reu?

— Na manhã seguinte, madame. Ele se fechou no quarto de noite e não deixou ninguém entrar, e quando Gladys foi chamar ele de manhã, o coitado estava morto e duro como um pau, e tinha uma carta na mesa de cabeceira. No envelo­pe estava escrito: “Para o magistrado encarregado do inqué­rito”. A Gladys levou um susto daqueles! E teve mesmo um inquérito e tudo mais. Uns dois meses depois a Srª Templeton me disse que ia morar no estrangeiro, mas me arranjou um emprego muito bom no norte, com um bom ordenado, e ainda me deu um presente. A Srª Templeton era muito dis­tinta!

A essa altura, a Srª Pratt já estava contando sua história com prazer.

Frankie levantou-se.

— Bem, gostei muito de ouvi-la — disse ela, tirando uma cédula da bolsa. — Permita-me dar-lhe... um presentinho por ter tomado o seu tempo.

— Oh, muito obrigada, madame. Muitas felicidades pa­ra a senhora e o seu marido.

Frankie corou e rapidamente bateu em retirada. Alguns minutos depois Bobby juntou-se a ela. Parecia preocupado.

— Bem, parece que descobrimos tudo o que ela sabia — disse ele.

— Sim, e tudo se ajusta. Parece não restar nenhuma dúvida que Savage fez mesmo aquele testamento. A sua fobia de câncer devia ser genuína, pois eles não poderiam ter su­bornado um especialista de fama. Devem ter-se aproveitado de ele ter feito o testamento e o assassinado antes que mu­dasse de idéia. Mas não sei como poderemos provar isso.

— É verdade. Podemos suspeitar que a Srª Templeton lhe tenha dado “um remedinho” para dormir, e que Bassing­ton-ffrench falsificou a tal carta para o magistrado encarrega­do do inquérito, mas... e as provas? Provavelmente depois do inquérito a carta foi destruída.

— E assim voltamos ao nosso velho problema: mas o que diabo será que Bassington-ffrench e sua quadrilha têm medo que descubramos?

— Não achou estranho nenhum detalhe?

— Não, nada, a não ser uma única coisa: Por que a Srª Templeton mandou chamar o jardineiro para servir de teste­munha quando a copeira estava em casa? Por que eles não pediram à copeira?

— É estranho que você diga isso, Frankie — retrucou Bobby, num tom de voz tão esquisito que Frankie o olhou surpresa.

— Por quê?

— Porque me demorei para pedir a Srª Pratt o nome e o endereço de Gladys.

— E daí?

— O nome da copeira era Evans!

 

EVANS

Assombrada, Frankie abriu a boca.

— Não está vendo? — disse Bobby elevando a voz em sua excitação. — Você fez a mesma pergunta que Carstairs! “Por que eles não pediram à copeira?” “Por que não pediram a Evans?”

— Oh! Bobby! Finalmente estamos chegando lá!

— Carstairs deve ter ficado intrigado com esse mesmo detalhe, como nós. Provavelmente andou fazendo perguntas, procurando alguma coisa suspeita, e isso chamou-lhe a aten­ção. E o que é mais, deve ter ido a Gales por esse motivo. Gladys Evans é um nome galês. Ele seguiu a sua pista até Marchbolt, mas alguém impediu-o de chegar até ela.

— Por que não pediram a Evans? — repetiu Frankie. — Tem de haver alguma razão! É uma bobagenzinha, mas é mui­to importante. Com duas empregadas dentro de casa, por que chamar o jardineiro?

— Talvez porque tanto Rose Chudleigh como Albert Mere fossem meio broncos ,ao passo que Evans é uma jovem esperta?

— Não deve ser só isso. O Sr. Elford estava presente, e é bem inteligente. Oh. Bobby! Está tudo aí, eu sei que está! Se ao menos pudéssemos compreender a razão... Evans... Por que Chudleigh e Mere, e não Evans?

Súbito ela calou-se e tapou os olhos com as mãos.

— Está chegando! — disse ela. — Já tive um vislumbre. Mais um minuto e vai chegar!

Ficou imóvel por alguns momentos e então retirou as mãos do rosto. Seus olhos brilhavam ao fitar o companheiro.

— Bobby, quando você se hospeda numa casa com duas empregadas, a qual delas dá uma gratificação?

— À copeira-arrumadeira, naturalmente — respondeu Bobby surpreso. — Nunca se dá gorjeta à cozinheira. Para co­meçar, nem a vemos.

— Não, e a cozinheira também não vê os hóspedes. No máximo pode vê-los de relance, se ficam muito tempo. Mas a copeira serve-lhes as refeições, e atende suas necessidades.

— Onde quer chegar, Frankie?

— Evans não poderia servir de testemunha naquele testamento porque ela saberia que não era o Sr. Savage quem o assinara!

— Bom Deus, Frankie, o que está querendo dizer? En­tão quem era?

— Roger Bassington-ffrench, naturalmente! Não está ven­do que ele representou o papel de Savage? Aposto que foi Bassington-ffrench quem foi a Londres e fez toda aquela en­cenação a respeito de ter câncer. Então eles chamam um ad­vogado que não conhece o Sr. Savage, mas que irá jurar que viu assinar o testamento, e será corroborado por duas testemu­nhas, uma das quais nunca viu antes o milionário, e a outra, um velho quase cego que provavelmente também não o co­nhece. Compreende agora?

— Mas onde ficou o verdadeiro Savage esse tempo todo?

— Ora, ele devia estar í mesmo, no sótão, provavelmen­te narcotizado. Ficou lá um dia inteiro enquanto Bassington-ffrench tomava o seu lugar. Depois levaram-no de volta à sua cama, injetando-lhe hidrato de cloral, e Evans encontrou-o morto de manhã.

— Meu Deus, acho que é isso mesmo, Frankie. Mas será que o conseguiremos provar?

— Conseguiremos, sim... não... eu não sei. E se mos­trarmos a Rose Chudleigh, isto é, à Srª Pratt, uma fotografia do verdadeiro Savage? Será que ela diria: “Este não foi o homem quem assinou o testamento”?

— Tenho as minhas dúvidas. Ela é boba demais.

— Deve ter sido por isso mesmo que a escolheram. Mas há um outro ponto: um especialista talvez possa descobrir que a assinatura foi falsificada.

— Eles não descobriram nada antes.

— Por que ninguém pensou nessa hipótese. Uma falsifi­cação parecia impossível. Mas agora as coisas são diferentes.

— Temos de encontrar Evans — retrucou Bobby. — Ela poderá dar-nos muitas informações. Lembre-se de que ela esteve seis meses com os Templeton.

Frankie deu um gemido.

— Aposto que não vai ser nada fácil encontrá-la.

— Ei, que tal perguntar nos Correios? — sugeriu Bobby.

Os dois passavam naquele momento em frente da agência local, que mais parecia um armazém do que outra coisa qual­quer.

No mesmo instante Frankie entrou e iniciou sua campa­nha. Não havia ninguém a não ser uma funcionária com um nariz avantajado.

Frankie pediu um bloco de selos de dois xelins, fez um comentário sobre o tempo e acrescentou;

— Mas o tempo aqui deve ser muito melhor do que o da minha terra. Sou de Gales, de Marchbolt. Não faz idéia de como chove por lá.

A jovem nariguda retrucou que ali também chovia um bocado e no último feriado caíra uma carga d’água.

— Conheço em Marchbolt uma moça que morou aqui. Talvez saiba quem é, o nome dela é Evans, Gladys Evans.

A funcionária de nada desconfiou.

— Ora, naturalmente — respondeu ela. — Ela trabalhou como doméstica no Chalé Tudor, mas acabou voltando para sua terra e casando-se. Seu sobrenome agora é Roberts.

— Isso mesmo — retrucou Frankie. — Será que me po­deria dar o endereço dela? Pedi emprestado a sua capa de chuva e esqueci de devolvê-la. Se tivesse seu endereço pode­ria enviá-la pelo correio.

— Posso, sim. Volta e meia recebo um cartão postal dela. Agora ela e o marido estão empregados como caseiros. Espere um minuto.

Ela dirigiu-se para uma prateleira a um canto. Dali a pouco voltou com um pedaço de papel na mão.

— Aqui está — disse ela colocando-o sobre o balcão.

Bobby e Frankie leram-no ao mesmo tempo. Era a última coisa no mundo que esperavam.

“Srª Roberts

No Vicariato Marchbolt Gales”.

 

SENSAÇÃO NO CAFÉ DO ORIENTE

Nem Bobby nem Frankie jamais souberam como conseguiram sair do correio sem se traírem.

Cá fora, entreolharam-se e caíram na gargalhada.

— No Vicariato, esse tempo todo! — exclamou Bobby atônito.

— E eu que fiz uma lista de quatrocentos e oitenta Evans! — lamentou-se Frankie.

— Agora compreendo por que Bassington-ffrench achou tanta graça quando percebeu que não tínhamos a menor idéia de quem era Evans.

— E para ele certamente a situação era perigosa, já que você e Evans moravam sob o mesmo teto.

— Vamos embora — propôs Bobby. — Vamos para Marchbolt.

— É lá que termina o arco-íris — continuou Frankie. — Voltemos ao lar, doce lar.

— Mas que diabo — tornou Bobby, — precisamos fazer algo a respeito de Badger. Você tem algum dinheiro, Frankie?

A moça tirou um punhado de notas da bolsa.

— Dê-lhe isto e diga-lhe para entrar num acordo com os seus credores. Papai comprará a oficina e Badger ficará co­mo administrador.

— Certo — retrucou Bobby. — Agora o importante é partirmos logo.

— Para que tanta pressa?

— Não sei, mas tenho um pressentimento de que alguma coisa está para acontecer.

— Que horror! Então vamos depressa.

— Eu resolvo o caso com Badger enquanto você liga o carro.

— Vou acabar sem aquela escova de dentes — replicou Frankie.

Cinco minutos depois eles deixavam Chipping Sommerton. Bobby não teve ânimo para exigir mais velocidade. Assim mesmo, subitamente Frankie interveio.

— Bobby, precisamos ir mais depressa.

O rapaz olhou o velocímetro que marcava cento e trinta quilômetros e retrucou:

— Não podemos correr mais.

— Mas podemos pegar um táxi aéreo — redargüiu Fran­kie. — Estamos só a uns dez quilômetros do aeroporto de Medeshot.

— Que ótima idéia! — exclamou Bobby.

— De avião estaremos em casa em duas horas.

— Então vamos lá — anuiu o rapaz.

A aventura ameaçava transformar-se num sonho fantás­tico. Por que aquela pressa alucinada de chegar a Marchbolt?. Bobby não sabia, e provavelmente Frankie também não. Mas o pressentimento persistia.

Em Medeshot Frankie perguntou pelo Sr. Donald King. Logo um jovem com a roupa suja de graxa apareceu e mos­trou-se surpreso ao vê-la.

— Olá, Frankie! Há séculos não a vejo. Quer alguma coisa?

— Quero um táxi aéreo — respondeu a moça. — Você não costumava alugar seu avião?

— Costumo, sim. Onde você quer ir?

— Quero chegar em casa o mais depressa possível — disse Frankie.

O Sr. Donald King ergueu as sobrancelhas.

— Mais alguma coisa?

— No momento é o principal — replicou Frankie.

— Bem, posso dar um jeito.

— Vou-lhe dar um cheque — disse ela.

Cinco minutos depois o avião subia.

— Por que tanta pressa, Frankie? — perguntou Bobby.

— Não tenho a menor idéia, mas sinto que é preciso. Você não sente isso?

— É curioso, mas tenho a mesma sensação. Mas não vejo o porquê. Afinal, a nossa Srª Roberts não vai fugir mon­tada numa vassoura!

— Quem sabe? Lembre-se de que não sabemos o que Bassington-ffrench está tramando.

— É verdade — anuiu Bobby pensativo.

Entardecia quando chegaram a seu destino. O avião dei­xou-os no parque do Castelo e cinco minutos mais tarde Bob­by e Frankie chegavam a Marchbolt no Chrysler de Lorde Marchington.

Pararam em frente ao portão do Vicariato, pois a aléia de acesso não era bastante larga para um carro tão grande.

Os dois jovens saltaram e correram para a casa.

Devo estar sonhando, pensou Bobby. Por que estamos correndo desse jeito?

Uma silhueta esbelta estava em pé na porta da frente. Frankie e Bobby reconheceram-na no mesmo instante.

— Moira! — exclamou Frankie.

A jovem virou-se. Parecia prestes a desmaiar.

— Oh! Estou tão feliz em revê-los! Eu não sabia o que fazer.

— Mas o que a trouxe até aqui?

— O mesmo que os trouxe, espero.

— Então já descobriu quem é Evans? — perguntou Bob­by.

Moira fez um gesto de assentimento.

— Sim, é uma longa história...

— Vamos entrar — propôs Bobby.

Mas Moira recuou.

— Não, não — apressadamente ela protestou. — Vamos conversar em outro lugar. Preciso lhes contar uma coisa antes. Não existe um café, ou algum lugar onde possamos ir nessa cidade?

— Está bem — anuiu Bobby contra a vontade, afastan­do-se da porta. — Mas por quê...

Moira bateu o pé.

— Vocês compreenderão quando eu explicar. Oh! Ve­nham! Não há um minuto a perder.

Eles cederam diante de tal insistência. O Café do Orien­te ficava mais ou menos no meio da rua principal, mas o seu nome pomposo não combinava em nada com a decoração. Eram seis e meia quando os três entraram. A sala estava qua­se vazia. Sentaram-se numa mesinha a um canto e Bobby pe­diu três cafés.

— E então? — perguntou ele.

— Espere até que ela traga o café — retrucou Moira.

A garçonete voltou e apaticamente colocou três xícaras de café morno sobre a mesa.

— E então? — insistiu Bobby.

— Não sei como começar — disse Moira. — Foi na ida de trem para Londres. Foi realmente uma coincidência espan­tosa. Eu ia pelo corredor quando...

Ela calou-se. Sua cadeira ficava em frente à porta, e ela quedou-se boquiaberta com os olhos arregalados.

— Ele deve ter me seguido! — ela exclamou.

— Quem? — perguntaram juntos Bobby e Frankie.

— Bassington-ffrench — murmurou Moira.

— Você o viu?

— Está lá fora com uma mulher de cabelos vermelhos.

— A Srª Cayman! — exclamou Frankie.

Ela e Bobby pularam e correram para a porta. Moira emi­tiu um protesto, mas nenhum dos dois lhe deu atenção. Olha­ram para um lado e para o outro da rua, mas Bassington-ffrench não estava à vista.

Moira juntou-se a eles.

— Ele foi-se? — perguntou ela com a voz trêmula. — Oh! Tenham cuidado com ele! Ele é perigoso, terrivelmente perigoso!

— Ele nada poderá fazer enquanto estivermos juntos — retrucou Bobby.

— Coragem, Moira — tornou Frankie. — Não fique tão assustada.

— Bem, por hora não podemos fazer nada — disse Bob­by conduzindo-as de volta à mesa. — Prossiga com a sua his­tória, Moira.

O rapaz ergueu a sua xícara de café. Nesse momento Frankie perdeu o equilíbrio e apoiou-se nele. O líquido der­ramou-se sobre a mesa.

— Desculpe — disse Frankie, enquanto estendia a mão até a mesa mais próxima e apanhava um galheteiro com vidros para azeite e vinagre.

Seus próximos movimentos foram tão estranhos que chamaram a atenção de Bobby. Ela esvaziou o vidro de vinagre derramando seu conteúdo na bandejinha e começou a enchê-lo som o café da sua própria xícara.

— Ficou maluca, Frankie? — perguntou o rapaz. — Que diabo você está fazendo?

— Colhendo uma amostra desse café para que George Arbuthnot o analise — respondeu Frankie, virando-se para Moira.

— O jogo terminou, Moira! Compreendi tudo num re­lance quando estávamos lá na porta, agora. Eu vi o seu rosto quando bati no cotovelo de Bobby e o fiz derramar o café. Você colocou algo em nossas xícaras quando nos fez sair cor­rendo atrás de Bassington-ffrench! Mas o jogo terminou, Srª Nicholson ou Templeton ou seja lá qual for o seu nome!

— Templeton? — perguntou Bobby.

— Olhe para ela — retrucou Frankie. — E se ela ainda quiser negar, peça-lhe para ir ao Vicariato que a Srª Roberts a identificará.

Bobby olhou para Moira. O seu rosto irreal e fascinante estava transtornado por uma ira demoníaca. A bela boca abriu-se e deu vazão a uma torrente de maldições vis e abomináveis.

Ela enfiou a mão na bolsa.

Apesar de aturdido, Bobby agiu sem perda de tempo, golpeando a mão que empunhava uma pistola.

A bala passou de raspão sobre a cabeça de Frankie e foi cravar-se na parede do Café do Oriente.

Pela primeira vez em sua história, uma das garçonetes perdeu a apatia.

Com um grito de terror, correu para a rua gritando:

— Socorro! Polícia! Assassinos!

 

UMA CARTA DA AMÉRICA DO SUL

Algumas semanas haviam decorrido.

Frankie acabara de receber uma carta com um selo de uma pequena República da América do Sul.

A jovem leu-a e entregou-a a Bobby.

“Querida Frankie — Minhas congratulações! Você e o seu amigo da Marinha conseguiram estragar os planos de toda uma vida. E eu que tinha tudo tão bem arquitetado...

Gostaria de saber a história completa? A minha amigui­nha já me incriminou de tal forma (deve ter sido rancor, as mulheres sempre são rancorosas!) que minhas confissões não poderão aumentar meus problemas. Além disso, estou inician­do uma vida nova. Roger Bassington-ffrench está morto.

Creio que sempre fui o que chamam de mau elemento. Até mesmo em Oxford cometi um deslize, o que foi pura es­tupidez minha, pois era inevitável que eu fosse descoberto. O velho me deu cobertura, mas mandou-me para as colônias.

Logo depois conheci Moira e sua quadrilha. Ela era uma criminosa inata e aos quinze anos já era uma experiente e consumada delinqüente. Quando a encontrei, a sua situação estava começando a ficar preta, a polícia americana descobrira sua pista.

Eu e ela nos entendemos. Resolvemos formar uma dupla, mas antes precisávamos levar a cabo alguns planos.

Para começar, ela casou-se com Nicholson, passando a fazer parte de um outro mundo, e a polícia perdeu-a de vista. Nicholson estava de mudança para a Inglaterra onde preten­dia instalar uma clínica para doentes nervosos. Procurava um local barato e adequado. Moira convenceu-o a alugar a Granja.

Ela ainda trabalhava com sua quadrilha de traficantes de entorpecentes, e sem o saber Nicholson foi-lhe de grande utilidade.

Sempre tive duas ambições: ser o dono de Merroway e ter à minha disposição uma grande soma de dinheiro. Houve um Bassington-ffrench que desempenhou importante papel no reinado de Carlos II, mas desde então a família degenerou, tornando-se medíocre. Eu sentia-me capaz de coisas grandiosas, mas necessitava de dinheiro.

Moira empreendeu várias viagens ao Canadá, para “ver sua gente”. Nicholson adorava-a e acreditava piamente nela, aliás como a maior parte dos homens. Devido às dificuldades do tráfico de entorpecentes, ela costumava viajar sob diversos pseudônimos. Apresentava-se como a Srª Templeton quando conheceu Savage. Sabia de sua imensa fortuna, e fez tudo para seduzi-lo. Ele sentiu-se atraído, mas não o bastante para per­der o bom-senso.

Assim, arquitetamos um plano. O homem que você co­nhece como Cayman representou o papel do marido indife­rente. Moira persuadiu Savage a hospedar-se no Chalé Tudor por mais de uma vez. Na sua terceira visita nossos planos es­tavam concluídos. Não é necessário estender-me sobre o as­sunto, você conhece os detalhes. Tudo saiu como esperávamos. Moira recebeu o dinheiro e partiu ostensivamente para o es­trangeiro. Na realidade ela voltou para a Granja.

Nesse ínterim, eu aperfeiçoava meus próprio projetos. Henry e o pequeno Tommy tinham de ser afastados do meu caminho. Com Tommy tive pouca sorte, dois acidentes bem preparados falharam. Não tencionava arriscar-me com Henry. Ele começou a sofrer de fortes dores reumáticas após uma queda numa caçada. Sugeri que usasse morfina, e ele aceitou a minha idéia de boa fé. Logo tornou-se um viciado. Nosso plano era que ele se internasse na clínica para um tratamento e lá “cometesse suicídio” ou tomasse uma dose mortal de mor­fina. Moira encarregar-se-ia de tudo, e eu não teria nenhuma ligação com a sua morte.

Foi então que aquele idiota do Carstairs resolveu se intrometer. Parece que Savage lhe escrevera de bordo sobre a Srª Templeton e enviara-lhe um retrato dela. Logo depois Carstairs ausentou-se numa expedição de caça e ao voltar sou­be da morte e do testamento de Savage, e ficou desconfiado. Não achou a história plausível. Estava convencido de que o milionário não tinha nenhuma preocupação com a saúde nem sofria de uma fobia por câncer. Os termos do testamento tam­bém pareceram-lhe em desacordo com a personalidade do mor­to. Savage fora um homem de negócios experiente e astuto, e embora sempre estivesse disposto a ter um caso com uma bela mulher, Carstairs não o acreditou capaz de dispor daque­la forma de sua imensa fortuna, inclusive deixando dinheiro para instituições de caridade. Esse último detalhe foi idéia mi­nha para dar um toque de respeitabilidade ao testamento...

Assim Carstairs veio para a Inglaterra com a firme determinação de tirar o caso a limpo. Começou a fazer pergun­tas aqui e ali, e logo de saída tivemos um golpe de azar. Al­guns amigos trouxeram-no para almoçar e ele viu o retrato de Moira, reconhecendo-a como a companheira de viagem de Savage. Ele foi a Chipping Sommerton é começou a investigar.

Moira e eu ficamos apreensivos, penso às vezes que sem razão. Mas Carstairs era um homem sagaz.

Segui-o a Chipping Sommerton. Ele não conseguiu desco­brir o paradeiro da cozinheira, pois Rose Chudleigh fora para o norte, mas encontrou a pista de Evans, descobriu o seu no­me de casada e partiu para Marchbolt.

A coisa estava ficando preta... Se Evans identificasse o retrato da mulher conhecida agora como a Srª Nicholson co­mo sendo a Srª Templeton, o caso iria complicar-se. Além dis­so, ela estivera algum tempo no Chalé e poderia saber de al­guma coisa.

Resolvi que era necessário exterminar Carstairs. Ele esta­va se tornando incômodo, e a sorte veio em meu auxílio. Es­tava a pouca distância dele quando surgiu o nevoeiro. Aproxi­mei-me furtivamente e resolvi o assunto com um simples em­purrão.

Mas eu ainda estava diante de um dilema, pois não sabia se ele tinha em seu poder algum indício incriminador. Porém seu jovem amigo da Marinha prestou-me um serviço. Fiquei a sós com o cadáver por um período curto mais suficiente pa­ra os meus propósitos. Ele levava uma fotografia de Moira, obtida dos fotógrafos, para fins de identificação. Apoderei-me do retrato, de umas cartas e de seus documentos deixando em seu lugar a fotografia de um membro da quadrilha.

Tudo correu bem. Sua pseudo-irmã e seu pseudo-cunhado identificaram-no. Tudo parecia resolvido de forma satisfatória quando seu amigo Bobby resolveu atrapalhar. Pelo jeito Cars­tairs recobrara a consciência antes de morrer e falara. Men­cionara o nome de Evans, e esta trabalhava mesmo ali, na casa do próprio vigário.

Admito que ficamos preocupados e perdemos um pouco a cabeça. Moira insistiu para que afastássemos o seu amigo do nosso caminho. O primeiro plano falhou e Moira ofereceu-se para resolver de vez o problema. Foi a Marchbolt e aproveitou uma bela chance colocando morfina na sua garrafa de cerveja enquanto ele dormia. Mas para nosso azar o idiota não morreu.

Como já lhe contei, foram as perguntas de Nicholson que me fizeram desconfiar de você. Mas imagine o choque de Moi­ra quando saiu furtivamente da clínica certa noite para encon­trar-se comigo e deu de cara Com Bobby! Ela reconheceu-o imediatamente, vira-o bem de perto naquela tarde em que ele dormia. Não é de admirar que ficasse tão aterrorizada a pon­to de quase desmaiar! Só então compreendeu que ele não suspeitava dela e recompondo-se representou o seu papel.

Procurou-o na hospedaria e contou-lhe um monte de mentiras que ele engoliu como um patinho. Inventou que Carstairs era um antigo namorado e que sentia um medo mortal do ma­rido, ao mesmo tempo tentando afastar de mim as suspeitas. Fiz o mesmo, menosprezando-a como uma criatura fraca e indefesa — logo Moira, que era capaz de matar sem nem pis­car os olhos!

A situação era séria. Já tínhamos o dinheiro e meu pla­no com relação a Henry corria bem. Quanto a Tommy, eu não tinha pressa, podia esperar mais um pouco. Também se­ria fácil tirar Nicholson do caminho quando chegasse a hora, mas você e Bobby eram ameaças sérias, embora suas suspeitas estivessem concentradas na Granja.

Talvez interesse-lhe saber que Henry não cometeu suicí­dio. Eu o matei! Quando conversava com você no jardim per­cebi que não havia tempo a perder, e entrei e resolvi de uma vez o problema.

Aquele avião que sobrevoou a propriedade foi a minha chance. Entrei no gabinete, sentei-me ao lado de Henry que escrevia e lhe disse: “Olhe aqui, meu velho”, e atirei. O ronco do avião abafou o tiro. Então escrevi aquela bela e comovente carta, apertei os dedos de Henry contra a coronha da arma, e deixei-a cair ao chão. Coloquei a chave do gabinete no bolso de Henry e saí, trancando a porta pelo lado de fora com a chave da sala de jantar que também abre o gabinete.

Não entrarei em detalhes sobre o estopim que deixei ace­so na lareira para que explodisse quatro minutos depois.

Tudo correu lindamente. Nós estávamos no jardim quan­do ouvimos o “tiro”. Foi um suicídio perfeito. A única pessoa que ficou numa posição suspeita foi o pobre Nicholson. O idiota voltara para buscar uma bengala ou coisa parecida!

Mas a mania de cavaleiro andante de Bobby estava causando problemas a Moira, e ela resolveu ir para o Chalé. Deduzimos que as explicações de Nicholson sobre a ausência da esposa ainda iriam redobrar as suas suspeitas.

Mas onde Moira realmente mostrou sua fibra foi no Cha­lé. Ela compreendeu pelos ruídos no sótão que eu fora apa­nhado, e rapidamente injetou em si mesma uma grande dose de morfina e deitou-se na cama. Quando vocês três desceram para telefonar, ela correu ao sótão e cortou as cordas que me prendiam. Então a morfina fez efeito, e quando o médico che­gou ela estava genuinamente narcotizada.

Mas seus nervos já estavam cedendo. Ela receava que encontrassem Evans e descobrissem a verdade sobre o suicídio e o testamento de Savage e tinha medo também que Carstairs houvesse escrito a Evans. Fingiu ir para uma casa de saúde em Londres e, em vez disso, foi para Marchbolt e encontrou vocês dois na porta do Vicariato! Nessa altura sua idéia fixa era matá-los, e acredito que teria conseguido seus intentos, apesar de seus métodos primitivos. Duvido que aquela garço­nete tivesse sido capaz de descrever a mulher que os acompa­nhara. Moira teria voltado a Londres e se internado numa clínica, e logo o caso seria esquecido.

Mas você desmascarou-a — e ela perdeu a cabeça. E no julgamento ainda teve de me envolver na história!

Talvez eu estivesse ficando um pouco cansado dela...

Mas não tinha idéia de que ela havia percebido.

Compreenda, ela ficara com o dinheiro, com o meu di­nheiro! E depois do nosso casamento, talvez eu me cansasse dela. Gosto de variar.

E aqui estou eu, começando uma vida nova... e tudo por sua causa, e daquele indigestíssimo Bobby Jones...

Mas tenho certeza que chegarei onde quero!

Não me reformei ainda, querida.

Quando a primeira tentativa falha, é preciso tentar novamente, quantas vezes for necessário.

Adeus, ou talvez “au revoir”. Nunca se sabe, não é?

Seu terno e devotado inimigo, o sórdido vilão dessa his­tória,

Roger Bassington-ffrench.

 

NOVIDADES NO VICARIATO

Bobby devolveu a carta a Frankie que a guardou com um suspiro.

— Ele é realmente uma pessoa muito fora do comum — disse.

— Você sempre teve uma queda por ele — retrucou Bobby com frieza.

— Ele tinha seu charme — redargüiu Frankie, e acrescentou: — E Moira também.

Bobby corou.

— O que é mais engraçado é que o tempo todo a chave do problema estava bem aqui no Vicariato — disse ele. Fran­kie, você sabia que Carstairs tinha chegado a escrever a Evans, isto é, à Srª Roberts?

A moça fez um gesto de assentimento.

— Na carta ele dizia que a viria ver e que desejava informações sobre a Srª Templeton, que por motivos ponderá­veis ele acreditava ser uma perigosa escroque internacional pro­curada pela polícia.

— Mas ela não ligou os fatos quando o empurraram do penhasco — ajuntou Bobby com azedume.

— Porque o morto fora identificado como Alex Pritchard -— retrucou Frankie. — Essa manobra foi muito inteligente. Uma pessoa comum não iria perguntar-se se o homem do pe­nhasco não seria Carstairs, se ele fosse identificado como Prit­chard.

— E o mais engraçado ainda é que ela reconheceu Cay­man — prosseguiu Bobby. — Ela viu-o de relance quando Roberts o conduziu ao gabinete e perguntou-lhe quem era. Quando o marido disse que era um tal de Sr. Cayman, ela replicou: “Curioso, ele tem a mesma cara de um senhor para quem já trabalhei!”.

— Imagine só! — exclamou Frankie, acrescentando: — Ora, até mesmo Bassington-ffrench traiu-se uma ou duas ve­zes e eu nem percebi!

— É mesmo?

— É, primeiro quando Sylvia disse que o retrato do jor­nal era muito parecido com Carstairs e ele retrucou que a se­melhança era pouca, demonstrando assim que vira o rosto do morto. E depois ele afirmou que não chegara a ver o rosto de Carstairs.

— Mas não entendo como você desmascarou Moira, Frankie.

— Acho que foi por causa da descrição que me fizeram da Srª Templeton — replicou a jovem com um olhar distan­te. — Todos disseram que ela era uma senhora muito distin­ta, e isso não se aplica em nada à Srª Cayman. Nenhum em­pregado a classificaria como uma “senhora fina”. E quando chegamos ao Vicariato, e eu vi Moira, subitamente pensei: E se ela fosse a Srª Templeton?

— Uma idéia realmente brilhante!

— Tenho pena de Sylvia — tornou Frankie. — As acusações que Moira fez a Roger trouxeram-lhe muita publi­cidade desagradável. Mas o Dr. Nicholson tem-lhe dado apoio, e não me surpreenderia nem um pouco se os dois acabarem se casando.

— Tudo terminou da melhor forma — retrucou Bob­by. — Badger está se saindo muito bem na oficina, graças a seu pai, e também graças a ele arranjei esse emprego mara­vilhoso!

— Acha-o mesmo maravilhoso?

— Sem dúvida. Administrar uma propriedade em Quênia com um salário fabuloso? É o tipo de trabalho com que eu costumava sonhar.

Ele fez uma pausa e acrescentou:

— Muita gente faz excursões por lá.

— E muita gente mora lá — retrucou Frankie com um ar inocente a esta insinuação.

— Oh! Frankie! Você g-g-gostaria? — ele gaguejou, co­tando, e após recuperar-se repetiu: — Você gostaria?

— Gostaria, sim — disse Frankie. — Isto é, vou gostar muito.

— Eu sempre gostei de você — murmurou Bobby com a voz embargada. — Andava muito deprimido pensando que não daria certo.

— Foi por isso que foi tão grosseiro naquele dia lá no campo de golfe?

— Sim, eu estava muito desanimado.

— Hum — fez Frankie. — E Moira, hem?

Bobby ficou sem jeito.

— É, ela tinha um rosto fascinante — admitiu.

— Muito mais bonito do que o meu — concordou Fran­kie generosamente.

— Não, de forma alguma, mas o rosto dela me perseguia. Porém quando estávamos naquele sótão e você se mostrou tão corajosa... Bem eu esqueci completamente Moira e perdi o interesse no que lhe poderia suceder. O que importava era você, só você. Você esteve esplêndida, de uma coragem mara­vilhosa!

— Pois acredite, por dentro eu estava tremendo — con­fessou Frankie. — Mas eu queria que você me admirasse.

— E eu admirei-a, querida. Eu admiro-a. Sempre admi­rei, e sempre admirarei. Tem certeza de que não vai detestar Quênia?

— Vou adorar. Eu já estava cheia da Inglaterra.

— Frankie.

— Bobby.

— Entrem, por favor — disse o vigário abrindo a porta e dirigindo-se a um grupo de senhoras da Sociedade Benefi­cente de Marchbolt.

Ele fechou precipitadamente a porta e pediu desculpas.

— É meu... hum... um dos meus filhos. Ele está... hum... noivo.

Uma componente do grupo comentou maliciosamente que pelo jeito ele estava mesmo.

— Ele é um bom rapaz — disse o vigário. — Durante algum tempo não levou a vida muito a sério, mas ultimamente tem melhorado muito. Vai administrar uma fazenda de café lá no Quênia.

Disse então uma senhora da Sociedade Beneficente a sua companheira:

— Você viu? Não era Lady Frances Derwent quem ele estava beijando?

No fim de uma hora a novidade espalhara-se por toda Marchbolt.

 

                                                                                            Agatha Christie

 

 

                      

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