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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ÍCONE / Frederick Forsyth
ÍCONE / Frederick Forsyth

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

ÍCONE

 

ERA o Verão em que o preço de uma pequena carcaça atingiu o milhão de rublos.

Era o Verão do terceiro ano consecutivo de colheitas calamitosas e o segundo da hiperinflação.

Era o Verão em que os primeiros russos começaram a morrer de subalimentação, nas vielas de distantes vilas da província.

Era o Verão em que o Presidente teve um colapso na sua limtisina, demasiado longe de qualquer possibilidade de socorro para poder ser salvo, e um velho empregado da brigada de limpeza roubou um documento.

Depois disto, nada voltaria a ser o mesmo.

Era o Verão de 1999.

 

            Fazia calor, naquela tarde, um calor opressivo, e foram necessárias várias buzinadelas antes que o porteiro emergisse apressadamente da guarita para abrir as duas pesadas portas de madeira do edifício do gabinete.

            O guarda-costas presidencial baixou a janela para lhe indicar que se perfilasse, enquanto o longo Mercedes 600 deslizava sob o arco, em direção à Staraya Ploshchad. O embaraçado interpelado tratou de erguer a mão naquilo que esperava passasse por uma saudação formal, enquanto o segundo veículo,  um Chalka russo, com mais quatro guarda-costas, seguia a limusine.

            O presidente Cherkassov, imerso em reflexões, era o único ocupante do banco de trás do Mercedes. No da frente, sentavam-se  o seu condutor da Polícia e o guarda-costas pessoal atribuído pelo Grupo Alfa.

            Enquanto aos pouco atraentes subúrbios se sucediam os campos e árvores, o estado de espírito do presidente da Rússia era de profunda amargura, aliás muito justificada. Havia três anos que exercia o cargo que conquistara depois de substituir o enfermo Boris Ieltsin, durante os quais assistira ao afundamento do seu país na pobreza, sem dúvida o período mais miseravel da sua vida.

            No Inverno de 1995, quando era primeiro-ministro, nomeado pelo próprio Ieltsin como um premier “tecnocrata” para reorganizar  e conseguir a retomada da economia, o povo russo fora às urnas para eleger um novo parlamento, ou Duma.

            Essas eleições eram importantes, mas não vitais. Nos anos precedentes, passara cada vez mais poder do Parlamento para a presidência, num processo cuja autoria se devia, na sua maior parte, a Boris Ieltsin. No Inverno de 1955, o possante siberiano, que, quatro anos atrás, montara um tanque durante a tentativa de golpe de Agosto de 1991, conquistara a admiração não só da Rússia, mas também do Ocidente como grande lutador em prol da democracia e assumira a presidência, convertera-se em um ser alquebrado.

            Convalescente de um segundo ataque cardíaco em três meses, corado e inchado pelos medicamentos, observou as eleições parlamentares de uma clínica nas Colinas dos Fardais, antigas Colinas de Lenin, a nordeste de Moscou, e viu os seus próprios protegidos políticos serem relegados para o terceiro lugar entre os deputados. Isto não se revelou tão crucial como teria acontecido numa democracia ocidental, devido largamente ao fato de que, graças a Ieltsin, a grande maioria do atual poder permanecia nas mãos do próprio presidente. A semelhança dos Estados Unidos, a Rússia tinha uma presidência executiva, mas, ao contrário daqueles, a teia de contenções e equilíbrios que o Congresso pode impor à Casa Branca não existia, Ieltsin podia governar com eficiência por decreto, e fazia-o.

            No entanto, as eleições parlamentares mostraram pelo menos de que lado soprava o vento e forneceram uma indicação da tendência para as eleições presidenciais, muito mais importantes, marcadas para Junho de 1996.

            A nova força no horizonte político do Inverno de 1995 eram, ironicamente, os comunistas. Após setenta anos de tirania destes últimos, cinco de reformas de Gorbachev e outros tantos de Ieltsin, o povo russo começava a recordar os velhos tempos com nostalgia.

            Os comunistas, sob a égide die Gennady Zyuganov, pintavam um quadro cor-de-rosa de como as coisas tinham sido: garantia de emprego, salário assegurado, alimentação acessível a todas as bolsas e lei e ordem. Não faziam, porém, qualquer alusão ao despotismo do KGB, ao arquipélago de Gulag dos campos de trabalhos forçados ou à supressão de toda a liberdade de movimentos e expressão.

            Os eleitores russos já estavam numa condição de profunda desilusão com os dois outros outrora proclamados salvadores: capitalismo e democracia. O segundo termo era pronunciado com desdém. Para muitos, ao olharem em volta para a corrupção  e crime pandêmico que grassavam, tudo não passara de uma mentira gigantesca. Quando foram contados os votos parlamentares, os criptocomunistas dispunham do maior bloco único de deputados na Duma e o direito de nomear o seu presidente.

            No outro extremo, encontravam-se os seus opositores aparentemente diametrais  os neofascistas de Vladimir Zhirnovsky, dirigente do ironicamente chamado Partido Democrático Liberal. Nas eleições de 1991, esse rude demagogo, com o seu gosto pelo comportamento bizarro e expressões escatológicas, obtivera um resultado satisfatório, mas a sua estrela achava-se em declínio. Não caíra, todavia, o suficiente para lhe arrebatar o segundo maior bloco de deputados.

No meio, situavam-se os partidos do centro político, apegados

 às reformas econômicas e sociais que haviam introduzido.

Figuravam em terceiro lugar.

            Mas o verdadeiro efeito dessas eleições consistiu em preparar o terreno para a corrida presidencial de 1996. Houvera quarenta e três partidos separados contestatários das eleições da Duma, e a maioria dos dirigentes dos principais partidos reconhecia que seriam mais bem servidos por meio de um programa de coalescência.

            Antes do Verão, os criptocomunistas aliaram-se aos seus amigos naturais, o Partido Agrário, ou dos Camponeses, para formar a União Socialista, um título inteligente, porque incluía duas das iniciais da velha URSS, o líder continuava a ser Zyuganov. Na ala ultra-direita, também se achavam em atividade movimentos para a unificação, aos quais, porém. Zhirinpvsky resistia tenazmente. Vlad, o Louco, considerava que podia chegar à presidência sem a ajuda das outras fações daquele quadrante.

            As eleições presidenciais russas, à semelhança das francesas, realizam-se em dois turnos. Na primeira, todos os candidatos competem entre si. Somente os que ficam nos dois primeiros lugares concorrem à segunda. A terceira posição não serve para nada. Ora, Zhirinovsky foi o terceiro, e os políticos mais atilados da extrema-direita furiosos com ele.

            Os doze partidos do centro uniram-se, mais ou menos, na Aliança Democrática, com a dúvida fundamental ao longo da Primavera de 1996 sobre se Boris Ieltsin estaria com saúde suficiente para se candidatar e vencer, à presidência mais uma vez.

            A sua queda seria mais tarde atribuída pelos historiadores a uma única palavra  Chechenia.

            Exasperado ao ponto da ruptura doze meses antes, Ieltsin lançara todo o poder do exército e força aérea russos contra uma pequena tribo montanhesa guerreira, cujo autonomeado chefe insistia na independência total de Moscou. As perturbações causadas pelos chechenos não tinham nada de novo, pois a sua resistência remontava aos tempos dos czares e até antes.

            No entanto, tinham conseguido sobreviver aos pogroms (1) desencadeados por vários soberanos e pelo tirano mais cruel de sempre, José Stalin , resistir à repetida devastação da sua minúscula pátria, deportações e genocídio e continuado a lutar.

            O envio de todo o poderio das forças armadas contra os chechenos constituiu uma decisão impetuosa que não conduziu a uma vitória rápida e gloriosa, mas à destruição total – tudo na pequena tela e em maravilhoso tecnicolor  da capital da Chechenia, Grozny, e ao cortejo interminável de soldados russos,  que regressavam da campanha encerrados em sacos de plástico.

            Com a sua capital reduzida a escombros, mas continuando armados até aos dentes com material vendido por generais russos corruptos, os chechenos refugiaram-se nos montes que tão bem conheciam e recusaram-se a ser varridos de lá. O mesmo exército da Rússia que enfrentara o seu inglório Vietnã na tentativa para invadir e ocupar o Afeganistão criara assim um segundo nas faldas silvestres da Cordilheira do Cáucaso.

            Se Boris Ieltsin desencadeara a sua campanha na Chechenia  para provar que era um homem forte segundo o molde russo tradicional, tornou-se num gesto malogrado. Durante todo o ano de 1995, ansiou pela sua vitória final, que sempre lhe escapou. À medida que via os seus jovens filhos regressar do Cáucaso sem vida, a indignação do povo concentrou-se nos chechenos, mas também contra o homem que não conseguia oferecer-lhes a vitória.

            Após um esforço pessoal esgotante, Ieltsin reconquistou a presidência por uma unha negra e na sequência de uma ponta final extremamente difícil. No entanto, um ano mais tarde extinguiu-se. O cargo passou para o tecnocrata Josep Cherkassov, líder do Partido Patriótico Russo, então incorporado na mais numerosa Aliança Democrática.

Nome dado na Rússia à perseguição organizada contra uma classe ou raça. (N. do T.)

            Cherkassov pareceu começar bem. Conservou a aprovação benigna do Ocidente e, mais importante, os seus créditos financeiros para manter a economia do país dentro de um certo equilíbrio. E, atendendo a conselhos dos ocidentais, negociou finalmente uma trégua com a Chechenia, e o fato de  mau grado os vingativos russos abominarem a idéia de os chechenos saírem airosos da sua rebelião  fazer os soldados regressar a casa resultou popular.

            As coisas começaram, todavia, a correr mal passados dezoito meses. As causas eram duas Em primeiro lugar, as depredações da Mafia russa tornaram-se finalmente muito opressivas para que a economia nacional as pudesse suportar e, em segundo, registrou-se outra alucinada aventura militar. Em fins de 1997, a Sibéria, fonte de noventa por cento da riqueza da Rússia, ameaçou separar-se do resto do país.

            Na verdade, tratava-se da menos submissa das províncias russas. No entanto, sob os seus gelos permanentes, explorados muito pela rama, encontravam se depósitos de petróleo e de gás natural que faziam a própria Arábia Saudita parecer carente neste capítulo. Além disso, havia ouro, diamantes, bauxite, manganésio, tungsténio, níquel e platina. No final dos anos noventa, a Sibéria continuava a ser a última fronteira do planeta.

            Começaram a chegar a Moscou informações de que emissários  japoneses e, em particular, sul-coreanos circulavam naquela região incitando à secessão. O presidente Cherkasov, mal aconselhado pelo seu círculo de sicofantas e aparentemente esquecido dos erros do seu predecessor na Chechenia, enviou o exército para o leste, decisão que provocou uma dupla catástrofe.

            Depois de doze meses sem uma solução militar, tinha de negociar um acordo que concedia aos siberianos mais autonomia  e controle sobre os destinos da sua própria riqueza do que jamais acontecera. Além disso, a aventura acelerou a hiperinflação.

            O governo tentou abrir um caminho para se livrar de apuros. No Verão de 1999, os dias dos cinco mil rubles por cada dólar de meados dos anos noventa não passavam de uma recordação. A colheita do trigo da região da terra negra do Kuban resultara ruinosa em 1997 e 1998 e a da Sibéria atrasou-se até apodrecer, porque os rebeldes destruíram a via férrea. O presidente Cherkassov mantinha-se no seu cargo, mas era óbvio que já não detinha o poder.

            Nos campos, onde deveria crescer alimentação pelo menos suficiente para satisfazer as suas necessidades, as condições tinham atingido o ponto mais crítico. Sem fundos, com insuficiência de mão-de-obra e as infra-estruturas a desmoronarem-se, as fazendas permaneciam inativas e as duas ricas terras limitavam-se a produzir ervas daninhas. Os comboios que paravam em apeadeiros eram assaltados por camponeses, na sua maioria idosos, que ofereciam mobília, vestuário e bricabraque em troca de dinheiro ou, de preferência, comida. A aceitação era, porém, escassa.

            Em Moscou, capital e mostruário da nação, os indigentes dormiam nos cais ao longo do Moskva e nos becos. A Polícia chamada Polícia, na Rússia, que abandonara virtualmente a luta contra o crime, tentava encafuá-los em comboios de mercadorias  em direção aos lugares de que provinham. Mas chegavam cada vez mais, à procura de trabalho, alimentação e/ou auxílio de qualquer natureza. Muitos deles viam-se reduzidos à mendicidade e morriam nas ruas.

            No dealbar da Primavera de 1999, o Ocidente parou finalmente de verter subsídios no poço sem fundo, e os investigadores estrangeiros, mesmo os que mantinham ligações com a Mafia, retiraram-se. A economia russa, como um refugiado de guerra espoliado vezes demais, estendeu-se na beira da estrada e morreu de desespero.

            Era este o tenebroso cenário que o presidente Cherkassov enfrentava, enquanto abandonava a cidade, naquele dia quente de Verão, a caminho da sua residência de Verão.

            O motorista conhecia bem o percurso para a dacha no campo, para além de Usovo, nas margens do rio Moskva, onde o ar era mais fresco, debaixo das árvores. Anos atrás, os adiposos gatos do Politburo soviético tinham mandado construir  as suas casas estivais entre o arvoredo ao longo daquela curva do curso de água. Muitas coisas tinham entretanto mudado na Rússia, mas não a esse extremo.

            O tráfego era escasso devido ao preço elevado da gasolina, e os caminhões com que a limusine se cruzava expeliam densas colunas de fumo negro. Depois de Arkchangelskoye, atravessou a ponte e enveredou pela estrada paralela ao rio, cuja corrente deslizava suavemente sob a bruma de Verão, rumo à cidade.

            Cinco minutos mais tarde, o presidente Cherkassov começou a ter dificuldade em respirar. Embora o sistema de ar condicionado estivesse regulado para o máximo, apertou o botão para abrir a janela e permitir que o ar da Natureza lhe incidisse no rosto. Era quente e pouco ou nada lhe facilitou a respiração. Do outro lado da divisória, tanto o motorista como o guarda-costas não haviam percebido nada.

            O desvio para Peredelkino encontrava-se um pouco adiante, à direita. Quando entraram nele, o presidente da Rússia inclinou-se  para a esquerda e tombou no assento.

            A primeira coisa que o motorista se deu conta foi que a cabeça do Presidente desaparecera do espelho retrovisor e murmurou algo ao companheiro, que se voltou para trás. No instante imediato, o Mercedes imobilizava-se na beira da estrada.  O Chalka, que o seguia de perto, parou igualmente, e o chefe do grupo da segurança, antigo coronel de Spetsnaz, saltou do lugar do passageiro ao lado do motorista e precipitou-se para lá. Entretanto, os outros abandonavam também os seus lugares, de armas em punho, e formavam um círculo de proteção Não faziam a menor idéia do que acontecera.

            O coronel alcançou o Mercedes, onde o guarda costas abrira a porta e se debruçava para dentro, e afastou-o para ver melhor. O Presidente inclinava-se para o lado, com ambas as mãos pousadas no peito, olhos fechados e respiração difícil.

            O hospital mais próximo com uma unidade de cuidados intensivos de alta qualidade era a Clínica Estatal Número Um, a quilômetros dali, nas Colinas dos Pardais. O coronel sentou-se no banco de tras, ao lado do angustiado Cherkassov e ordenou ao motorista que invertesse a direção e seguisse para a cintura orbital. O homem, de faces lívidas, apressou-se a obedecer. Depois, servindo-se do seu telefone portátil, o oficial entrou em contacto com a clínica e pediu uma ambulância.

            O encontro ocorreu meia hora mais tarde, no meio da auto-estrada dividida. Paramédicos transferiram o homem inconsciente da limusine para a ambulância e iniciaram os trabalhos, enquanto o comboio de três veículos seguia velozmente em direção à clínica.

            Uma vez chegados, o Presidente foi confiado aos cuidados do cardiologista de serviço, cuja equipe utilizou todos os meios à sua disposição, os mais recentes e melhores, mas era muito tarde. A linha que cruzava a tela do monitor recusava-se a indicar a mínima reação, mantendo-se uniforme, juntamente com o sinal acústico agudo. Às quatro e dez, o cardiologista endireitou-se e meneou a cabeça. O homem que utilizava o desfibrilador afastou-se da mesa.

            O coronel marcou um número no telefone portátil e, quando alguém respondeu, ao terceiro toque, indicou:

            - Ligue-me ao gabinete do Primeiro-Ministro.

           

            Seis horas mais tarde, no mar ondulante ao largo das Antilhas, o Foxy Lady alterou a rota para regressar à procedência. Na coberta da popa, o barqueiro, Julius, recolheu as linhas e arrumou as canas de pesca. Fora um longo dia de fretamentos, o casal americano abriu duas latas de cerveja e sentou-se confortavelmente sob o toldo para saciar a sede.

            No compartimento do peixe, havia dois pesados wahoo com cerca de vinte quilogramas cada um e meia dúzia de douradas grandes que, poucas horas antes nadavam calmamente a umas dez milhas dali.

            O patrão, na coberta superior, corrigiu o rumo em direção às ilhas e acelerou, convencido de que chegariam à Baía da Tartaruga dentro de menos de uma hora.

            O Foxy Lady parecia ciente de que o trabalho do dia estava quase terminado e o ancoradouro o aguardava para um período de repouso. Julius encheu um balde no oceano e alagou a coberta da popa mais uma vez.

            Quando Zhirinovsky fora líder dos democratas-liberais, a sede do partido situava-se num decrépito edifício da Travessa do Peixe, perto da Rua Stretenka. Os visitantes desconhecedores  das estranhas maneiras de proceder de Vlad, o Louco, tinham-se surpreendido ao descobrir as suas indesejáveis condições, com o estuque em avançado estado de escamação e as janelas exibindo dois cartazes do demagogo conspurcado pelas moscas, havia mais de dez anos que o interior não contactava com um pano molhado. Transposta a porta preta rachada em vários pontos, descobriram um átrio mal iluminado com uma barraca de venda de camisetas que exibiam a efígie do líder no peito e os blusões negros de couro que os seus apoiantes usavam.

            No topo da escada sem passadeira, encontrava-se o primeiro patamar, com um guiche gradeado, atrás do qual um puarda inquiria a natureza da visita. Só se a explicação era satisfatória o interpelado podia subir aos inclassificáveis aposentos onde Zhirinovsky celebrava corte, quando estava na cidade Rock, ao pesado, ecoava ruidosamente no edifício. Era assim que o excêntrico fascista preferira manter o quartel-general do partido,  baseado no princípio de que a imagem exteriorizava um homem do povo e não um ricaço corrupto. No entanto, há muito que ele desaparecera da circulação, e o Partido Democrático Liberal fundira-se com as outras organizações ultradireitistas e neofascistas naquilo que dava pelo nome de União das Forças Patrióticas.

            O seu líder indiscutido era Igor Komarov, um homem de personalidade completamente diferente. No entanto, em obediência à lógica fundamental de mostrar aos pobres e espoliados, cujos votos procurava, que a União das Forças Patrióticas não se permitia confortos dispendiosos, conservava o edifício na Travessa do Peixe, embora tivesse o seu escritório privado em outro lugar.

            Formado em engenharia, Komarov trabalhara sob a égide do comunismo, mas não para o partido, até que, a meio do período de Ieltsin , decidira dedicar-se à política. Escolhera o Partido Democrático Liberal e, apesar de detestar intimamente Zmnnovsky pelos seus excessos alcoólicos e constantes observações de natureza sexual de mau gosto, a sua ação discreta em segundo plano conduzira-o ao politburo, conselho interno do partido. Daí, graças a uma série de reuniões secretas com líderes de outras organizações de ultradireita, alinhavara a aliança de todos os elementos de direita da Rússia na UFP.

            Ao ver-se perante um fato consumado, Zhirinovsky aceitou, não sem relutância, a sua existência e caiu na armadilha de presidir à primeira reunião plenária.

            Ora, esta aprovou uma resolução em que exigia a sua demissão e expulsou-o. Komarov recusou assumir a liderança, mas providenciou para que fosse confiada a uma entidade de relevo secundário, um homem sem carisma e pouco talento organizador.

            Um ano mais tarde, foi fácil explorar e aproveitar a sensação de desapontamento no conselho dirigente da União, afastar o substituto e ocupar ele próprio o lugar. Os atrativos e carreira de Vladimir Zhirinovsky tinham chegado ao fim.

            Dois anos após as eleições de 1996, os criptocomunistas começaram a desaparecer. Os seus apoiantes tinham sido sempre predominantemente de meia-idade e idosos e houvera dificuldade em angariar fundos. Sem a contribuição dos grandes banqueiros, o produto das quotizações já não bastava. O dinheiro e atrativo da União Socialista atenuaram-se gradualmente.

            Em 1998, Komarov era o líder incontestada da ultra-direita e achava-se na posição ideal para explorar o desespero crescente do povo russo, sem dúvida em quantidade elevada. Contudo, entre toda aquela pobreza e indigência, também se registrava uma riqueza ostensiva que obrigava as pessoas a pestanejar de assombro. Os que possuíam dinheiro tinham-no às montanhas, na sua maioria em moeda estrangeira, e pavoneavam-se nas ruas em longas e elegantes limusines, americanas ou alemãs pois a fábrica Zil suspendera a produção, acompanhadas com frequência de motocicletas que abriam caminho e, em regra, um segundo carro com guarda-costas.

            No átrio do Teatro Bolshoi e nos bares e salas de banquetes do Metropol e do National, podiam ver-se todas as noites, ao lado das respectivas prostitutas com dispendiosos casacos de peles, os perfumes mais recentes de Paris e reluzentes diamantes. Eram os gatos nutridos, mais adiposos que nunca.

            Na Duma, os delegados gritavam e aprovavam resoluções “Isto faz-me pensar no que li sobre os últimos dias da República de Weimar”, observou um correspondente britânico.

            O único homem que parecia oferecer um possível raio de esperança era Igor Komarov.

            Durante os dois anos que havia desde que pegara nas rédeas do poder do partido de direita, surpreendera a maioria dos observadores, tanto da Rússia como do estrangeiro. Se se contentasse com permanecer simplesmente um excelente organizador político, não teria passado de mais um apparatchik. Ao invés, mudou. Ou, pelo menos, assim pensavam os observadores. O mais provável era que dispunha de um talento que tivera o cuidado de conservar oculto.

            Salientou-se como orador popular apaixonado e carismático. Quando subiu ao pódio, aqueles que se recordavam do homem recatado, de falas mansas e enfadonho ficavam surpresos. Com efeito, parecia transformado. A sua voz aumentava de tom e adquiria inflexões de barítono, aproveitando todas as numerosas expressões e cambiantes do idioma para obter as reações mais convenientes. Podia baixá-la até quase um murmúrio, pelo que, mesmo com os microfones, a audiência experimentava dificuldades em captar as palavras, e em seguida elevá-la numa peroração retumbante que punha as multidões de pé, e até os céticos o aclamavam.

            Não tardou a dominar a área da sua própria especialidade a multidão ao vivo. Evitava a conversa de lareira ou entrevistas na televisão, consciente de que, embora o processo funcionasse no Ocidente, não convinha para a Rússia. Na verdade, os russos raramente convidavam pessoas a visitá-los em suas casas. E também não estava interessado em ser encostado à parede com perguntas hostis. Todos os discursos que pronunciava eram estudados como uma peça teatral, mas obtinham o resultado pretendido. Só se dirigia aos fiéis do partido, com as câmaras nas mãos da sua equipe de realizadores de filmes, chefiada pelo jovem Litvinov. Após a montagem apropriada, essas produções eram colocadas à disposição da televisão em escala nacional, segundo as condições que ele próprio impunha.

            Lograva assim comprar tempo de antena na TV, em vez de se conformar com os caprichos imprevisíveis dos jornalistas.

            O tema era sempre o mesmo e invariavelmente popular: a Rússia, a Rússia e ainda a Rússia. Invectivava os estrangeiros, cuja conspiração internacional colocara a nação de rastos. Propugnava a expulsão de todos os “negros”, maneira popular russa de aludir aos armênios, georgianos e outros povos do sul, muitos dos quais se sabia figurarem entre os mais abastados dos beneficiados com o produto de crimes. Clamava justiça para os pobres e maltratados habitantes que um dia se ergueriam com ele para restaurar as glórias do passado e varrer a imundície  que conspurcava as ruas da pátria.

            Prometia tudo a todos. Haveria emprego para os sem trabalho, com um salário correspondente à atividade executada, comida na mesa e recuperação da dignidade. Para os privados das parcas poupanças, reapareceria o metal sonante para as despesas quotidianas e algo para pôr de parte, com vista à velhice. Para quem usava o uniforme da rotina  a pátria de outrora, ressurgiria o amor-próprio para eliminar as humilhações provocadas pelos gananciosos elevados a cargos públicos cimeiros pelo capital estrangeiro.

            E escutavam-no com atenção. A sua voz chegava às vastas estepes, através da rádio e televisão. Os soldados do grandioso exército russo de outros tempos ouviam-no com concentração, encolhidos em tendas de lona, expulsos do Afeganistão, Alemanha Oriental, Checoslováquia, Hungria, Polonia, Letonia, Lituânia e Estonia, numa série interminável de retiradas do império.

            Os camponeses escutavam-no nas suas pequenas vivendas E izbas, dispersos pela ampla paisagem. Assim como as classes médias, entre as peças de mobiliário que não tinham empenhado para se alimentar e dispor de carvão para o lume. Até os patrões industriais o ouviam e sonhavam que as fábricas recomeçavam a trabalhar. E quando ele prometia que o anjo da morte caminharia entre os escroques e gangsters que haviam saqueado a sua querida Rússia, adoravam-no virtualmente.

            Na Primavera de 1999, por sugestão do seu conselheiro de relações públicas, um jovem particularmente sagaz que frequentara uma universidade americana, Igor Komarov concedeu uma série de entrevistas. Boris Kuznetsov, o responsável das RP, escolheu bem os candidatos, na sua maioria legisladores e jornalistas da ala conservadora da América e Europa Ocidental.

            O objetivo em vista consistia em serenar-lhes receios.

            Como campanha, funcionou de forma brilhante. Muitos esperavam que se lhes deparasse aquilo que tinham ouvido dizer: um demagogo fanático da ultradireita, considerado racista ou neofascista, quando não ambas as coisas.

            Pelo contrário, viram-se perante um homem de traje sóbrio e maneiras comedidas. Como não falava inglês, o conselheiro de RP sentava-se a seu lado, ora para orientar a entrevista, ora para servir de intérprete. Sempre que o seu venerável líder dizia algo que decerto seria mal interpretado no Ocidente, Kuznetsov  tratava de o converter em palavras mais aceitáveis em inglês. Ninguém se dava conta, pois tomara a precaução prévia de só aceitar entrevistadores que não entendiam russo.

            Assim, Komarov pôde explicar que, como políticos ativos, todos temos um eleitorado próprio que não convém melindrar desnecessariamente, se desejamos ser eleitos. Por conseguinte, por vezes precisamos ocasionalmente dizer aquilo que lhes interessa ouvir, embora a concretização das promessas possa resultar mais difícil do que supúnhamos, e os senadores inclinavam a cabeça em sinal de compreensão.

            Explicou que, nas antigas democracias ocidentais, se entendia, de um modo geral, que a disciplina social principiava na própria pessoa, e a imposta exteriormente, pelo Estado, poderia ser mais leve. Mas em todos os casos em que a autodisciplina fraquejava, o Estado necessitava ser mais firme do que o aceitável no Ocidente. E os membros do parlamento voltavam a acenar compreensivamente.

            Revelou aos jornalistas conservadores que a restauração de uma moeda sólida não seria possível sem medidas draconianas contra o crime e a corrupção a curto prazo. Os representantes da Imprensa ocidental escreveram que Igor Komarov era um homem que escutaria a voz da razão em questões econômicas e políticas, como a cooperação com o Ocidente. Talvez fosse muito rigoroso para ter aceitação numa democracia européia ou americana, e a sua vincada demagogia excessivamente assustadora para os paladares ocidentais, mas podia muito bem tratar-se do homem que a Rússia precisava na atual situação. De qualquer modo, a sua vitória nas eleições presidenciais do ano 2000 era quase certa, como as sondagens confirmavam. Portanto, as pessoas de vistas mais largas deviam apoiá-lo.

            Nas chancelarias, embaixadas, ministérios e gabinetes dos principais dirigentes políticos do Ocidente, o fumo de charutos erguia-se ao teto e as cabeças inclinavam-se afirmativamente.

           

            No setor norte da área central de Moscou, já na estrada circular e a meio caminho do Bulevar Kiselny, há uma rua transversal. Um pouco adiante, no setor ocidental da artéria, encontra-se um pequeno parque, com cerca de cinquenta metros quadrados, rodeado em três lados por edifícios sem janelas e fachadas protegidas por sebes verdejantes de três metros de altura, acima das quais se descortinava o topo de uma série de coníferas. Embutido na parede de aço, há um portão do mesmo metal.

           O pequeno parque é na realidade o jardim de uma soberba vivenda ou mansão pré-revolucionária, admiravelmente restaurada em meados dos anos oitenta. Embora o interior seja moderno e funcional, a fachada clássica foi pintada em tonalidades pastel e o estuque acima das portas e janelas de branco. Era aí que funcionava o verdadeiro quartel-general de Igor Komarov.

            Um visitante que se aproximasse do portão da frente era abarcado perfeitamente pela câmara no topo do muro e anunciava-se através de um intercomunicador. Falava com um guarda numa guarita do outro lado do portão, que consultava o gabinete da segurança no interior da casa.

            Se o portão se abrisse, um carro rolaria durante dez metros e se imobilizaria junto de uma série de espigões, enquanto aquele voltava a fechar-se automaticamente, o guarda surgiria então para inspecionar os documentos de identificação. Se estivessem em ordem, entraria na guarita e acionaria um controle automático. Ato contínuo, os espigões se afastariam e o veículo seguiria em frente até o pátio, onde haveria mais guardas à sua espera.

            De cada lado da casa, estendia-se uma vedação até aos limites da propriedade. No interior, havia os cães. Eram dois grupos, cada um dos quais sob as ordens de um único tratador, os quais trabalhavam em noites alternadas. Após anoitecer, as cancelas da vedação eram abertas e a propriedade ficava totalmente à disposição dos animais. A partir de então, o guarda do portão permanecia na guarita e, na eventualidade de aparecer um visitante retardatário, ele teria de contactar com o tratador para chamar os cães.

            Para evitar perder muitos membros do pessoal graças aos dentes dos animais, havia uma passagem subterrânea nos fundos do edifício que conduzia a um beco estreito que comunicava com o Bulevar Kiselny. Tinha três portas  uma dentro da casa, outra na rua e a terceira a meio caminho. Tratava-se da via de acesso e saída dos fornecedores e pessoal em geral.

            À noite, quando o último membro dos quadros políticos se retirara e os cães patrulhavam a propriedade, dois seguranças mantinham-se de serviço no interior do edifício. Dispunham de um quarto, com televisão e apetrechos para preparar refeições leves e rápidas, mas sem qualquer cama ou divã, porque não estavam autorizados a dormir. Inspecionavam alternadamente os três pisos da casa, até serem rendidos pelos colegas que chegavam à hora do café da manhã. Komarov fazia a sua aparição mais tarde.

            Mas o pó e teias de aranha não manifestam o mínimo respeito por semelhantes precauções, pelo que, todas as noites, à exceção do domingo, quando soava o alarme da entrada dos fundos, um dos guardas admitia o empregado da limpeza.

            Em Moscou, essas funções costumam ser exercidas por mulheres, mas Komarov preferia ver-se rodeado de pessoal totalmente masculino, incluindo o da limpeza, um velho soldado inofensivo chamado Leónidas Zaitsev. O apelido significa lebre ou coelho em russo e, devido ao seu aspecto insignificante e retraído, capote da tropa no fio, usado indistintamente no Inverno e no Verão e três dentes de aço que brilhavam na parte da frente da boca  os dentistas do Exército Vermelho costumavam ser muito básicos, os guardas da casa tratavam-no simplesmente por Coelho. Na noite em que o Presidente morreu, deixaram-no entrar às dez horas, como sempre.

            Era uma da madrugada, quando, munido de um balde e pano numa das mãos e arrastando o aspirador com a outra, chegou ao gabinete de N. I. Akopov, secretário pessoal de Komarov.

            O Coelho só vira o homem uma vez, um ano atrás, quando se apresentara ao trabalho e encontrara o pessoal superior fazendo horas extras. O secretário tratara-o com aspereza e mandara-o sair através de uma série de insultos. Depois disso, ele retaliara diversas vezes, sentando-se na confortável cadeira rotativa de Akopov. Como sabia que os guardas se encontravam no piso inferior, o Coelho fazia-o com satisfação e tranquilidade, consciente de que nunca tivera nem teria  uma cadeira como aquela. Havia um documento em cima da mesa, que se compunha de cerca de quarenta páginas datilografadas.

            Perguntou-se por que o teriam deixado à vista. Normalmente, Akopov guardava tudo no cofre embutido na parede. Pelo menos, devia fazê-lo, porque o Coelho nunca vira nenhum, e todas as gavetas da mesa estavam sempre fechadas à chave. Após breve hesitação, levantou a capa de cartolina preta e leu o título. Depois, abriu o documento ao acaso.

            Embora não soubesse ler com desembaraço, fazia-o de modo minimamente satisfatório. A mãe adotiva ensinara-lhe o suficiente para não ser considerado analfabeto, noções ampliadas mais tarde pelos professores da escola pública e, finalmente, um oficial do exército atencioso.

            O que viu inquietou-o. Leu uma página várias vezes. Embora algumas palavras fossem muito longas e complexas, compreendia o significado. As suas mãos artríticas tremiam, enquanto voltava as páginas. Por que diria Komarov aquelas coisas? E acerca de pessoas como a sua mãe adotiva, que amara. Apesar de não compreender totalmente, sentia-se cada vez mais preocupado. Talvez devesse ir lá abaixo consultar os guardas. No entanto, se limitariam a aplicar-lhe alguns sopapos e ordenar que se concentrasse apenas no trabalho.

            Passou uma hora. Eles já deviam ter aparecido para uma das rondas habituais, mas conservavam-se diante do televisor, cujo noticiário informara a nação de que o Primeiro-Ministro, de acordo com o estipulado no Artigo 59 da Constituição russa, assumira as funções de Presidente Interino durante os três meses prescritos.

            O Coelho releu as mesmas passagens diversas vezes, até que compreendeu o significado. No entanto, não conseguia abarcar o verdadeiro sentido. Komarov era um grande homem. Agora, tudo indicava que seria o próximo Presidente da nação. Nessa conformidade, por que dizia aquelas coisas sobre a sua mãe adotiva e as pessoas como ela, pois havia muito tempo que morrera?

            Às duas da madrugada, ocultou a pasta de cartolina dentro da camisa, terminou o trabalho e pediu para o deixarem sair. Os guardas afastaram-se do televisor com relutância para abrir as portas, e o Coelho embrenhou-se na noite. Era um pouco mais cedo do que habitualmente, mas eles não objetaram.

            Zaitsev pensou em seguir para casa, mas decidiu que era preferível não o fazer. Era muito cedo. Os autocarros, “elétricos” e metropolitano já não funcionavam, como habitualmente. Ele tinha sempre de efetuar o percurso a pé, às vezes debaixo de chuva, mas precisava conservar o emprego. O trajeto demorava uma hora. Se entrasse em casa agora, acordaria a filha e o neto, e ela não ficaria contente. Por conseguinte, decidiu vaguear pelas ruas, enquanto tentava decidir o que faria.

            Às três e meia da madrugada, encontrava-se no Cais Kremlevskaya, abaixo do muro sul do Kremlin. Havia mendigos e vagabundos dormindo ao longo do molhe, mas ele descobriu um banco com espaço suficiente para se sentar e contemplar o rio.

            O mar acalmara quando se aproximavam da ilha, como costumava acontecer à tarde, parecendo informar os pescadores e os marinheiros de que a competição quotidiana terminara e o oceano propunha uma trégua até ao dia seguinte.

 

            À direita e à esquerda, o patrão via várias outras embarcações que rumavam à Passagem Wheeland, uma abertura no recife a noroeste que permitia o acesso do mar à lagoa de águas serenas.

            Arthur Dean, no seu Silver Deep aberto, passou velozmente a estibordo, conseguindo mais oito nós que o Foxy Lady. O ilhéu acenou com o braço e o patrão americano retribuiu a saudação. Ao ver os dois mergulhadores na coberta do Silver Deep, supôs que tinha estado explorando o coral ao largo do Cabo Noroeste. Haveria lagosta para o jantar em casa de Dean.

            Reduziu a velocidade do Foxy Lady para enveredar pela passagem, pois em cada lado o coral aguçado como uma navalha distava escassos centímetros da superfície e, uma vez , transposta, descontraiu-se para o tranquilo percurso de dez minutos ao longo da costa da Baía da Tartaruga.

            O patrão adorava o seu barco, o modo de vida a que se dedicava e a amante que escolhera todos em doses iguais. A embarcação era um Bertram Moppie de doze metros de comprimento e dez anos de idade assim batizado em homenagem à esposa do designer Dick Bertram e, embora não fosse o charter de pesca mais luxuoso da Baía da Tartaruga, o seu proprietário e patrão não hesitaria em o fazer enfrentar qualquer tipo de mar e de peixe. Comprara-o cinco anos atrás, quando se mudara para as ilhas, em segunda mão, na Florida do Sul, graças a um anúncio publicado no Boat Trader, e passara dias e noites a introduzir-lhe melhoramentos até o converter numa das embarcações mais vistosas da área. E não se arrependera de um único dólar que despendera com ele, embora ainda não tivesse terminado de pagar à companhia que lhe adiantara o dinheiro.

            Uma vez no ancoradouro, fixou a amarra no espaço que lhe competia junto do pertencente ao seu compatriota Bob Colins, dono do Sakitumi, desligou o motor e dirigiu-se à popa, a fim de perguntar aos clientes se tinham passado um dia satisfatório. Eles asseguraram-lhe que sim, pagaram a quantia estabelecida e juntaram-lhe uma gratificação generosa para ele e Julius. Quando se afastaram, piscou o olho a este último, entregou-lhe todo e o peixe capturado, tirou o boné e fez deslizar os dedos entre os cabelos louros desgrenhados.

            Por último, deixou o sorridente ilhéu concluir a lavagem do barco e embeber os apetrechos de pesca em água doce, para que o Foxy Lady apresentasse o aspecto impecável habitual, na manhã seguinte. Ele voltaria para fechar tudo, antes de recolher a casa. Entretanto, queria um daiquiri* , pelo que percorreu a plataforma de madeira em direção ao Banane Boat, trocando saudações com todas as pessoas com as quais se cruzava.

 

            DUAS horas depois de se sentar no banco à beira do rio, Leónidas Zaitsev ainda não resolvera o seu problema. Agora, lamentava ter se apoderado do documento, e não compreendia por que o fizera. Se o descobrissem, sofreria as consequências. No entanto, a vida parecia tê-lo sempre castigado, sem que lograsse compreender o motivo.

            O Coelho nascera numa pequena e miserável aldeia a oeste de Smoilenks, em 1936. Não era um lugar de modo algum notável, mas igual a dezenas de milhares de outros dispersos pelo território: uma única rua, poeirenta no Verão, um rio de lama no Outono e dura como uma rocha devido à geada do Inverno. De piso de terra batida, naturalmente. Cerca de trinta casais, alguns celeiros e os antigos camponeses reunidos numa fazenda coletiva estalinista. O pai era um trabalhador rural e viviam num casebre perto da estrada.

            Na rua principal e única, com uma pequena loja e um apartamento por cima, morava o padeiro da aldeia. O pai do Coelho advertira-o de que não devia falar com o homem, o que o intrigara, pois este mostrava-se sempre cordial e costumava atirar-lhe um bulochka acabado, de sair do forno, que Zaitsev ia comer para os fundos dos estábulos, em virtude da recomendação. O padeiro vivia com a esposa e duas filhas, as quais ele via por vezes espreitar à porta, embora nunca saíssem para brincar.

            Certo dia de Julho de 1941, a morte visitou a aldeia. Na altura, o garoto não sabia o que era. Ouviu o tumulto e saiu do celeiro para se inteirar da causa. Havia enormes monstros de ferro que se aproximavam pela estrada principal. O primeiro deteve-se no meio das casas e Leónidas aproximou-se para o ver melhor.

            Parecia gigantesco, grande como um prédio, mas rolava numa cremalheira e tinha um cano alongado que emergia da parte da frente. No topo, acima da peça, encontrava-se um homem visível da cintura para cima, que retirou o capacete almofadado e pousou-o a seu lado.  Fazia  muito  calor,  nesse  dia.   De súbito, voltou-se e fixou os olhos em Leónidas.

            O garoto viu que ele tinha cabelo platinado e olhos de um azul tão aguado como se o céu estival brilhasse dliretamente através da nuca. O olhar carecia de expressão  sem afeto, nem animosidade, além de uma espécie de vago tédio. Movendo a mão devagar, introduziu-a numa algibeira lateral e puxou de uma pistola.

            O instinto indicou a Leónidas que havia algo de indesejável na situação. Ouviu o estampido de granadas lançadas através de janelas e gritos. Aterrorizado, deu meia volta e pôs-se a correr. Registrou-se uma detonação, e um objeto abriu caminho por entre o seu cabelo. Alcançou os fundos dos estábulos, começou a chorar e continuou a correr. Havia um crepitar crescente atrás dele e o cheiro de madeira queimada, proveniente das casais em chamas. Avistou o bosque à sua frente e correu ainda mais velozmente.

            Uma vez entre o arvoredo, ficou sem saber o que fazer. Continuava a chorar pelos pais. Mas não lhe podiam acudir. Jamais os tornaria a ver.

            Percebeu uma mulher que gritava pelo marido e filhas e reconheceu a senhora Davidova, esposa do padeiro. Abraçou-o e apertou-o ao peito, sem que ele compreendesse por que procedia assim a pensar no que o pai diria, pois tratava-se de uma yevreycka.

            A aldeia deixara de existir e a unidade de panzers das SS nazis prosseguira o seu caminho, depois de completada a destruição. Havia mais uns  poucos  sobreviventes no bosque. Mais tarde, encontraram alguns guerrilheiros, homens de expressões duras, barbudos, armados, que viviam aí. Uma coluna formada pelos aldeões partiu para leste, sempre para leste, guiada por um dos guerrilheiros.

            Quando Leónidas se cansava, a senhora Davidova levava-o no colo, até que, por fim, chegaram a Moscou, onde ela conhecia umas pessoas, que lhes concederam abrigo, alimentação e conforto. Trataram-no com ternura e pareciam-se com a senhora Davidova, com aros das têmporas até ao queixo e chapéus de abas largas. Embora ele não fosse yevrey, ela insistiu e cuidou dele durante anos.

            No final da guerra, as autoridades descobriram que não era seu filho verdadeiro e separaram-nos, enviando-o para um orfanato. Leónidas chorou muito quando se despediram, assim como ela, mas não tornou a vê-la. No orfanato, ensinaram-lhe que yevrey significava “judeu”.

            O Coelho mantinha-se sentado no banco e entregava-se a reflexões sobre o documento que tinha no interior da camisa. Não compreendia bem o significado de expressões como “extermínio  total” ou “aniquilação absoluta”. As palavras eram muito longas para ele, mas achava que não tinha nada de agradável. Não compreendia a razão pela qual Komarov desejaria fazer aquilo a pessoas como a senhora Davidova.

 

            O céu começava a assumir uma tonalidade rosada, a Nascente. Numa mansão da outra margem do rio, no Cais Sofiskaya, um fuzileiro real pegou uma bandeira e começou a subir a escada de acesso ao terraço.

            O patrão pegou o daiquiri, levantou-se da mesa e aproximou-se do parapeito de madeira, de onde contemplou a água e depois o ancoradouro que a escuridão começava a envolver.

            “Quarenta e nove”, refletiu. “Quarenta e nove, e ainda empenhado no depósito da companhia. Está ficando velho e ultrapassado, Jason Monk”. Ingeriu um sorvo e sentiu o suco de lima e o rum exercerem o efeito desejado. “De qualquer modo, tem sido uma vida muito satisfatória. Pelo menos, acidentada”.

            Não começara assim, mas numa humilde cabana de madeira na povoação de Crozet, na Virgínia do Sul, a leste do Shenandoah e oito quilômetros da auto-estrada de Waynesboro para Charlottesville.

            O condado de Albemarle é uma região agrícola, impregnada de monumentos comemorativos da Guerra Civil, pois 80 por cento dela foi travada na Virgínia, e nenhum virginiano o esquecerá jamais.

            O pai de Jason Monk, em contraste com a maioria dos outros, que cultivavam tabaco, soja ou porcos, ou tudo junto, era guarda florestal e trabalhava no Parque Nacional de Shenandoah. Não há memória de alguém se ter tornado milionário nos Serviços Florestais, mas tratava-se de uma boa vida para um jovem, embora a remuneração não se pudesse considerar avultada. As férias não se destinavam à ociosidade, mas a procurar oportunidades para atividades suplementares susceptíveis de proporcionar mais algum dinheiro e reforçar o orçamento doméstico.

            Recordava-se de, quando era um mero garoto, o pai o levar ao parque, que abarcava as Montanhas da Crista Azul, e mostrar-lhe a diferença entre diversas espécies de árvores. Às vezes, cruzavam-se com fiscais da caça, e ele escutava de olhos arregalados as suas histórias que envolviam ursos pardos e veados, além de faisões e galos silvestres.

            Mais tarde, aprendeu a utilizar uma arma de fogo com pontaria infalível, detectar pistas para localizar indivíduos à margem da lei, montar um acampamento e eliminar todos os vestígios na manhã seguinte, e, quando tinha idade e corpulência suficientes, obteve uma ocupação de férias num acampamento de rachadores de madeira.

            Frequentou a escola primária do condado, dos cinco aos doze anos e, pouco após o décimo terceiro aniversário, matriculou-se no Liceu Estadual, em Charlottesville, levantando-se todas as manhãs antes da alvorada, a fim de seguir num dos primeiros transportes de Crozet para a cidade.

            Em 1944, um certo sargento do Exército partira, com milhares de outros militares, de Omaha Beach e fora parar ao interior da Normandia. El algum lugar nas cercanias de Saint-Lô, separado  da sua unidade, surgira na mira de um atirador furtivo alemão, mas teve sorte, porque a bala se limitou a roçar-lhe o braço. O americano de vinte e três anos rastejou até uma casa de campo das proximidades, onde a família que lá residia tratou o ferimento e concedeu-lhe abrigo. No momento em que a filha de dezesseis anos lhe aplicou a compressa e o fitou nos olhos, ele compreendeu que fora atingido mais gravemente do que qualquer projétil alemão jamais conseguiria.

            Um ano mais tarde, regressou de Berlim à Normandia, revelou-lhe o seu afeto e intenções e casaram, no pomar da fazenda do pai dela, com um capelão das Forças Armadas dos Estados Unidos presidindo à cerimônia. Posteriormente, porque os franceses não costumam contrair matrimônio em pomares, o sacerdote católico local reiterou a união na igreja da aldeia. Por último, ele levou a noiva para a Virgínia.

            Vinte anos mais tarde, ocupava um cargo importante no Liceu Estadual de Charlottesville e a esposa, com os filhos fora das suas mãos, sugeriu que podia inscrever-se na faculdade como professora de francês. Embora o idioma já figurasse no currículo do estabelecimento, Mrs. Brady não só era natural daquele país, mas também bonita e insinuante. Assim, as suas aulas não tardaram a ser muito frequentadas.

            No Outono de 1965, surgiu um novo aluno, um jovem assaz tímido de cabelo louro desgrenhado e sorriso atraente, chamado Jason Monk. Passado um ano, ela garantia que nunca ouvira um estrangeiro falar francês assim. O talento tinha de ser natural, impossível de ter sido herdado. Mas existia, não só no domínio da gramática em geral e da sintaxe em particular, como igualmente na habilidade para copiar com perfeição.

            No seu último ano no liceu, visitava a casa dela e liam juntos Malraux, Proust, Gide e Sartre (incrivelmente erótico para aqueles tempos), porém os seus favoritos comuns eram os velhos poetas românticos: Rimbaud, Mallarmé, Verlaine e De Vigny. Embora não estivesse previsto que acontecesse, foi-lhes impossível evitá-lo. A culpa talvez pertencesse aos poetas, mas, apesar da diferença de idades, que não os preocupava, tiveram uma breve aventura.

            Quando atingiu os dezoito anos, Jason Monk conseguia duas coisas invulgares em adolescentes da Virgínia do Sul falava francês e fazia amor com considerável perícia. Foi com essa idade que se alistou no Exército.

            Em 1968, a Guerra do Vietnã encontrava-se no auge e muitos jovens americanos tentavam esquivar-se ao serviço militar. Por conseguinte, os que se apresentavam como voluntários e assinavam um contrato por três anos, eram recebidos de braços abertos.

            Momk submeteu-se ao treino básico e, em dada altura, teve de preencher um questionário. Na alínea destinada a “idiiomas estrangeiros”, escreveu “francês”. Ato contínuo, foi convocado ao gabinete do ajudante de campo.

            - Você fala mesmo francês?

            Monk explicou a situação, e o oficial entrou em contato com o Liceu Estadual de Charlottesville e falou com a secretária do estabelecimento, a qual prometeu consultar Mrs. Brady e telefonou mais tarde. Tudo isto ocupou um dia inteiro, após o que Monk foi de novo chamado. Desta vez, achava-se presente  um major do G2, Serviço Secreto do Exército.

            Além do idioma local, a maioria dos habitantes do Vietnã de uma certa idade falava francês, e Monk foi enviado para Saigon, onde cumpriu duas missões de serviço, com um período nos Estados Unidos entre ambas.

            No dia da desmobilização, o comandante chamou-o ao seu gabinete, onde já se encontravam dois homens em traje civil, e deixou-os a sós.

            - Sente-se, por favor, sargento  indicou o mais velho e cordial dos dois.

            Em seguida, moveu os dedos em torno de um cachimbo apagado, enquanto o outro, de expressão circunspecta, irrompia numa torrente de francês, à qual Monk replicava sem hesitar.

            Após cerca de dez minutos de vaivém de palavras, exibiu um sorriso e voltou-se para o colega.

            - Ele é bom, Carey. Muito bom, mesmo. 

            E retirou-se.

            - Que pensa do Vietnã?  - perguntou o outro, que aparentava cerca de quarenta anos e tinha o rosto algo enrugado, embora o ar jovial predominasse.

            A cena desenrolava-se em 1971.

            - É  um  castelo de  cartas  - declarou  Monk. - E está desmoronando-se. Mais dois anos e teremos de abandoná-lo.

            Carey pareceu ser da mesma opinião e inclinou a cabeça várias vezes.

            - Tem razão, mas não diga nada ao Exército. Que pensa fazer, agora?

            - Ainda não decidi.

           - Bem, não posso fazê-lo por você. No entanto, possui um dom especial, que nem eu próprio tenho. O meu amigo que acaba de sair é tão americano como nós, mas viveu em França durante vinte anos. E se ele o considera bom, não preciso de uma segunda opinião. Portanto, por que não continua?

            - Refere-se aos estudos?

            - Exato. O Fundo dos Combatentes encarrega-se da maior parte das despesas. O Tio Sam acha que o merece. Aproveite.

            Durante os seus anos na tropa, Monk enviara quase todo o dinheiro que lhe sobrava à mãe, para a ajudar a criar os outros filhos.

            - Mesmo que ascendam a um milhar de dólares?

            Carey encolheu os ombros.

            - Creio que o Fundo não declarará a bancarrota por essa quantia. Se você se formar em russo.

            - E se o conseguir?

            - Dê-me uma apitadela. A organização para a qual trabalho talvez lhe arranje uma ocupação.

            - Pode demorar quatro anos.

            - Somos muito pacientes.

            - Como se lembrou de mim?

            - No Vietnã, uns funcionários do Programa Fênix inteiraram-se da sua  existência e respectiva  folha  de  serviços.

            - Suponho que se refere ao pessoal de Langley? À CIA.

            - De modo algum. Apenas a um pequeno dente da engrenagem.

            Na realidade, Carey Jordan era muito mais do que um pequeno dente. Com efeito, se tornaria subdiretor (Operações), ou seja, chefe de todo o braço da espionagem.

            Monk aceitou o conselho e matriculou-se na Universidade de Virgínia, em Charlottesville. Voltou a tomar chá com Mrs. Brady, mas apenas como amigos. Estudou línguas eslavas e completou o curso de russo a um nível que o professor, natural daquele país, qualificou de “bilingue”. Formou-se aos vinte e cinco anos, em 1975 e, logo após o aniversário seguinte, foi admitido na CIA. Depois do treino básico habitual em Fort Peary, conhecido na agência simplesmente por “a Fazenda”, colocaram-no em Langley, a seguir em Nova Iorque e novamente em Langley.

            Seriam cinco anos e numerosos cursos mais tarde que obteria a primeira nomeação no estrangeiro, e mesmo assim apenas em Nairobi, Quênia.

 

            O cabo Meadows, dos Royal Marines, cumpriu o seu dever, naquela radiosa manhã de 16 de Julho. Prendeu a bandeira à corda e içou-a ao topo do mastro, onde começou a ondular à brisa da alvorada para comunicar ao mundo quem ocupava aquela área.

            O governo britânico comprara a atraente mansão do Cais Sofiskaya do anterior proprietário, um magnata do açúcar, pouco antes da revolução, converteram na embaixada e mantivera-se lá desde então, apesar das convulsões registradas à sua volta.

            José Stalin , último ditador que vivera nos apartamentos do Estado do Kremlin, costumava, assim que se levantava, todas as manhãs, afastar as cortinas e observar o pavilhão britânico ondulando do outro lado do rio, o que o irritava profundamente. Apesar de insistentes pressões para convencer os ingleses a mudar de pouso, a reação traduziu-se sempre por uma firme recusa.

            Ao longo dos anos, a mansão tornou-se pequena para alojar todos os departamentos exigidos pela missão em Moscou, pelo que houve necessidade de disseminar seções pela cidade. Mas, mau grado as repetidas ofertas para alojar todos num único recinto, Londres replicava polidamente que preferia permanecer no Cais Sofiskaya. E, como o edifício constituía território britânico soberano, permaneceu mesmo.

            Leónidas Zatsev continuava sentado na outra margem do rio, de onde viu desfraldar a bandeira aos primeiros clarões da alvorada que assomava  no topo das colinas a leste. O cenário evocou-lhe uma ocorrência distante.

            Quando tinha dezoito anos, fora recrutado pelo Exército Vermelho e, na sequência do usual treino básico mínimo, colocado na seção de tanques da Alemanha Oriental. Não passava de soldado raso, considerado incapaz de exercer sequer as funções de cabo pelos instrutores.

            Certo dia de 1955, numa marcha por estrada nas proximidades de Potsdam, vira-se separado da sua companhia numa densa floresta. Desorientado e amedrontado, vagueou por entre o arvoredo, até que se lhe deparou um carreiro arenoso, onde se deteve, colado ao chão, paralisado pelo medo. A uma dezena de metros do ponto em que se encontrava, havia um jipe aberto com quatro soldados, os quais tinham obviamente decidido fazer uma pausa, quando patrulhavam a área.

            Dois ainda se achavam no veículo, enquanto os outros, fora, de pé, fumavam cigarros, com uma cerveja na mão. Leónidas verificou que não eram russos. Tratava-se de estrangeiros, ocidentais, da Missão dos Aliados em Potsdam, constituída ao abrigo do Acordo das Quatro Potências de 1945, acerca do qual ele nada sabia. Só tinha a noção de que, porque lhe haviam dito, eram inimigos, empenhados em destruir o socialismo e, se pudessem, matá-lo.

            Quando o viram, pararam de conversar e arregalaram os olhos. Por fim, um deles proferiu:

            - Ena, pai! Que temos aqui? Um raio de um russo. Olá, Ivan!

            O Coelho não compreendeu uma única palavra. Tinha a espingarda-metralhadora a tiracolo, mas eles não pareciam intimidados. Era precisamente o contrário. Dois usavam boinas pretas, com distintivos metálicos reluzentes, e, em volta, algumas penas brancas e vermelhas. Embora não o soubesse, tinha na sua frente membros dos Royal Fusiliers.

            Um dos soldados de pé fora do jipe começou a aproximar-se lentamente, e Leonidas receou urinar-se. O homem também era jovem, de cabelo ruivo e faces sardentas. De súbito, sorriu-lhe e ofereceu uma garrafa.

            - Aqui tem uma cerveja, amigo.

            Leómidas sentiu o contato frio do vidro na mão, enquanto o soldado estrangeiro acenava encorajadoramente. O conteúdo devia estar envenenado, claro. Levou o gargalo da garrafa à boca e inclinou a cabeça para trás. O líquido quase glacial atingiu-lhe o fundo da garganta. A cerveja era forte, mais do que a russa, e saborosa, mas provocou-lhe tosse, o que fez o ruivo soltar uma risada.

            - Vá lá - urgiu. - Beba.

            Para Zaitsev, não passava de uma voz a produzir sons. Ante o seu assombro, o soldado estrangeiro deu meia volta e encaminhou-se devagar para o veículo. Nem sequer tinha medo dele. O Coelho estava armado, pertencia ao Exército Vermelho, e eles sorriam e trocavam comentários, aparentemente  divertidos.

            Conservava-se junto das árvores e, enquanto ingeria a cerveja perguntava-se o que pensaria o coronel Nikolayev, comandante da sua unidade, herói da guerra condecorado, apesar de ter somente trinta anos. Uma ocasião, detivera-se diante de Zaitsev na formatura e perguntara-lhe de onde era e o que fazia na vida civil. Ele não hesitara em lhe revelar a origem: um orfanato. O oficial dera-lhe uma palmada cordial nas costas e salientara que agora passara a ter um lar. Sim, ele adorava o coronel Nikolayev.

            Estava demasiado assustado para lhes atirar a garrafa da cerveja, além de que era muito saborosa, apesar de envenenada. Por conseguinte, terminou de a beber. Passados dez minutos, os dois soldados que se haviam apeado regressaram ao jipe, que, em seguida, se pôs em marcha, Tudo sem pressa, nem o menor receio dele. O ruivo voltou-se e acenou-lhe. Eram o inimigo e preparavam-se para invadir a Rússia, mas tratavam-no com cordialidade.

            Quando desapareceram, Leóniidas arremessou a garrafa vazia para longe e correu por entre o arvoredo, até que avistou um caminhão russo, que o conduziu ao aquartelamento, O sargento puniu-o com uma semana de serviço de faxina por ter se perdido, porém ele nunca falou a ninguém dos estrangeiros ou da cerveja.

            Antes do veículo deles desaparecer, conseguira ver que tinha uma espécie de insígnia regimental no lado direito e uma antena de rádio na retaguarda do tejadilho. Neste último, havia uma bandeira com cerca de trinta centímetros de lado, em que se achavam desenhadas três cruzes  uma vertical, vermelha e duas em diagonal, vermelhas e brancas. Tudo isto num fundo azul. Portanto, uma bandeira estranha, vermelha, branca e azul.

            Quarenta e quatro anos depois, ei-la de novo, ondulando sobre um edifício no outro lado do rio. O Coelho resolvera o seu problema. Reconhecia que não devia ter roubado o documento de Akopov, mas já não podia devolvê-lo. Talvez não dessem pela falta. Por conseguinte, o enrtregaria às pessoas da bandeira estranha que lhe haviam oferecido uma cerveja. Eles decerto saberiam que destino conviria dar-lhe.

            Levantou-se do banco e começou a seguir ao longo da margem do rio em direção à ponte de pedra, que atravessava o Moskva e comunicava com o cais Sofiskaya.

 

Nairobi,  1983

            Quando o garoto principiou a queixar-se de dor de cabeça e a ter alguma febre, a mãe supôs que se tratava de um mero resfriado de Verão. No entanto, ao anoitecer, passou a gemer que o desconforto aumentara e manteve os pais sem dormir até a manhã seguinte. Nessa altura, os vizinhos do recinto diplomático soviético, que também não tinham passado uma noite sossegada, porque as paredes eram pouco espessas e as janelas haviam ficado abertas devido ao calor, perguntarem o que se passava.

            Naquela manhã, a mãe levou o garoto de cinco anos ao médico. Nenhuma embaixada do bloco soviético tinha direito a um só para si, pelo que o partilhavam. Assim. O Dr. Svoboda pertencia à da Checoslováquia, mas cuidava de toda a comunidade comunista. Era profissional competente e consciencioso e bastaram-lhe alguns minutos para poder assegurar à mãe do garoto que este estava tendo um acesso de malária. Em seguida, administrou a dose apropriada de uma das variantes de Niviquine/Paludrine utilizada pela medicina russa naquela época e deixou vários comprimidos para serem tomados diariamente.

            Não se verificou a menor reação. A condição agravou-se nas quarenta e oito horas imediatas. A temperatura e os tremores aumentaram, e a criança gritava que a cabeça lhe estourava.

             O embaixador não hesitou em autorizar a visita ao Hospital-Geral de Nairobi e, como a mãe não falava inglês, o marido, subsecretário do Comércio, Nikolai llyich Turkin, acompanhou-a.

            O Dr. Winston Mói também era um médico excelente e provavelmente mais experiente do que o colega checo em doenças tropicais. Procedeu a um exame minucioso ao garoto e, por fim, endireitou-se com um sorriso e anunciou:

            - Plasmodium falciparum.

            O pai do enfermo enrugou a fronte, perplexo. O seu inglês era satisfatório, mas não àquele ponto.

            - Trata-se  de uma variante da malária acrescentou o médico, mas,   infelizmente, resistente a todas as drogas baseadas na cloroquina, como as prescritas pelo meu prezado colega, Dr. Svobodte.

            E tratou de administrar uma injeção intravenosa de um antibiótico de espectro largo, que pareceu atuar. A princípio. Uma semana mais tarde, quando o seu efeito cessou, a condição reapareceu. Entretanto, a mãe tornou-se virtualmente histérica e, denunciando todas as formas da medicina estrangeira, insistiu em regressar a Moscou com o filho, e o embaixador concordou.

            Uma vez chegados, o garoto deu entrada numa das clínicas exclusivas do KGB, o que se tornou possível porque o subsecretário do Comércio, Nikolai Turkin, era na realidade o major Turkin do Primeiro Diretorado Principal da famigerada organização.

            A clínica era excelente e dispunha de um bom departamento de medicina tropical, porque os agentes do KGB podem ser colocados em qualquer parte do mundo. Em virtude da natureza intratável do caso da criança, esta seguiu diretamente para os domínios do chefe, professor Glazunov, o qual leu atentamente os relatórios de Nairobi e determinou uma série de análises e rastreios de ultra-sons, então a última palavra da tecnologia, inacessível em quase todo o resto do país.

            Os resultados preocuparam-no profundamente, pois revelavam o desenvolvimento de vários abcessos internos, e, quando recebeu Mrs. Turkin no seu gabinete, exibia uma expressão grave.

            - Sei o que é... ou, pelo menos, julgo que sei... mas não se pode tratar com doses intensas de antibióticos, o seu garoto pode sobreviver um mês. Talvez um pouco mais. Lamento profundamente.

            A desolada mãe, lavada em lágrimas, foi acompanhada à saída, e um colaborador do médico explicou-lhe o que tinha sido apurado. Tratava-se de uma doença rara denominada melioidosis,  pouco vulgar na África, mas mais corrente no sueste asiático, identificada pelos americanos durante a guerra do Vietnã.

            Alguns pilotos de helicópteros dos Estados Unidos foram os primeiros a exibir sintomas de uma enfermidade nova e usualmente fatal. As investigações apuraram que as pás dos rotores, ao sobrevoarem arrozais, aspiravam, por assim dizer, uma espécie de vapor da água estagnada, que vários pilotos haviam inalado. O bacilo, resistente a todos os antibióticos conhecidos, encontrava-se na água. Os russos estavam a par disso, embora não divulgassem as suas descobertas na altura, ao passo que se comportavam como esponjas, quando se tratava de absorver conhecimento ocidental. O professor Glaznov recebia automaticamente todas as publicações da sua especialidade daquela proveniência.

            Numa longa conversa telefônica pontuada por soluços, Mr. Turkin comunicou ao marido que o filho não tardaria a morrer. De melioidosjs, designação de que ele tomou nota. Em seguida, procurou o seu superior hierárquico, o chefe de posto de KGB, coronel Kuliev, o qual se mostrou inabalável.

            - Recorrer aos americanos? Enlouqueceu, porventura?

            - Se os ianques identificaram o vírus, e há nada menos que sete anos, talvez descobrissem um antídoto.

            - Mas  não  lhes  podemos  perguntar  isso  protestou. Há a questão do prestígio nacional.

            - Há a questão é da vida do meu filho! - bradou o major.

            - Basta! Pode retirar-se.

            Consciente de que tinha a carreira em equilíbrio periclitante, decidiu procurar o embaixador. O diplomata não era um homem cruel, mas também não se deixou comover.

            - As intervenções entre o nosso Ministério dos Assuntos Estrangeiros   oficiais - lembrou ao  jovem  oficial. - A  propósito, o coronel Kuliev sabe que se encontra aqui?

            - Não, camarada embaixador.

            - Nesse caso, no interesse do meu futuro, não o informarei.  E você tão-pouco. Mas a resposta é negativa.

            - Se eu fizesse parte do Politburo...

            - Mas  não faz. É  um  oficial  recentemente  promovido  a major de trinta e dois anos, em serviço à pátria no meio do Quênia. Lastimo a situação do seu filho, mas não posso fazer nada.

            Enquanto descia a escada da embaixada, Nikolai Turkin refletia amargamente que o primeiro-secretário, Yuri Andropov, era mantido vivo diariamente graças a medicamentos vindos de Londres de avião. Por fim, foi embriagar-se.

 

            Não era fácil entrar na embaixada britânica. Imobilizado no passeio em frente, Zaisev contemplava a mansão de cor ocre e, o topo das colunas do pórtico que protegiam as gigantescas portas de madeira lavrada. Mas não descortinava qualquer maneira  de transpor a entrada.

            Ao longo da fachada, erguia-se uma parede de aço penetrada por duas portas laterais destinadas aos veículos  uma para entrar e a outra para sair. Também daquele metal, funcionavam eletricamente e achavam-se fechadas de modo eficiente.

            A direita, havia uma entrada para peões, com dois guichês gradeados. Ao nível do pavimento, dois russos da Polícia investigavam a identidade de quem pretendia entrar. O Coelho não fazia a menor tenção de se apresentar a esses. Mesmo depois daquele obstáculo, existia uma passagem e uma segunda porta gradeada. Entre ambas, situava-se a guarita da segurança da embaixada, municiada com dois guardas russos contratados pelos ingleses, cujas funções consistiam em perguntar a quem entrava o que pretendia e depois confirmar a natureza da pretensão no interior do edifício, com efeito, muitas pessoas ansiosas  por obter vistos de entrada na Grã-Bretanha tinham tentado introduzir-se no edifício por aí.

            Zaitsev encaminhou-se para os fundos, onde se situava a entrada para a seção dos vistos, numa rua estreita. Às sete da manhã, ainda faltavam três horas para abrir, mas já havia uma fila com uma centena de metros de comprimento. Era quase óbvio que a maioria permanecera ali toda a noite. Se se incorporasse  nela agora, isso representaria quase dois dias de espera, pelo que regressou ao lado da fachada. Desta vez, os homens da Polícia dirigiram-lhe um demorado olhar de desconfiança. Assustado, Leónidas afastou-se para uma distância prudente, resignado a aguardar que a embaixada iniciasse a atividade quotidiana e os diplomatas começassem a chegar.

            Os primeiros surgiram um pouco antes das dez horas. Faziam-se transportar em carros, que se detinham diante do portão de entrada, mas tudo indicava que eram esperados, pois abria-se quase imediatamente. Leónidas tentou aproximar-se de um, mas desistiu ao ver que todos tinham as janelas fechadas e os homens da Polícia conservavam os olhos bem abertos.

            Os passageiros dos veículos o julgariam um mero pedinte e não se preocupariam em abri-las. Em seguida, seria preso, a Polícia descobriria o que fizera e entraria em contato com Akopov.

            O Coelho não estava habituado a enfrentar problemas complexos. Achava-se intrigado, mas não abandonava a idéia que se lhe inculcara na mente. Queria apenas entregar o documento às pessoas da bandeira bizarra. Por conseguinte, continuou na expectativa ao longo da manhã quente.

 

Nairobi, 1983

            À semelhança de todos os diplomatas soviéticos, Nikolai Turkin tinha uma quantia limitada em moeda estrangeira, o que incluía a quenjana. O Ibis Grill, o Alan Bobbe’s Bistro e o Carnivore eram muito dispendiosos para a sua bolsa. Dirigiu-se, portanto, ao Thorn Tree Café ao ar livre, à entrada do New Stanley Hotel, na Kimathi Street, sentou-se a uma mesa no jardim perto da velha e frondosa acácia, pediu um vodka e uma cerveja para atenuar os efeitos da bebida alcoólica e imergiu em reflexões amarguradas.

            Trinta minutos mais tarde, um homem de idade aproximada à sua, que ingerira meia cerveja no bar, deslizou do banco alto e aproximou-se. Turkin ouviu uma voz proferir em inglês:

            - Anime-se, amigo. Talvez não chegue a acontecer.

            Ergueu os olhos e reconheceu vagamente o americano na sua frente. Era alguém da embaixada. Turkin trabalhava no Diretorado K do Primeiro Diretorado Principal, seção de contra-espionagem.

            As suas funções consistiam não só em vigiar todos os diplomatas soviéticos e proteger a seção local do KGB de qualquer penetração, mas também conservar os olhos bem abertos para a eventualidade de surgir um ocidental vulnerável susceptível de ser recrutado. Nessa qualidade, tinha plena liberdade para conviver com outros diplomatas, entre os quais ocidentais, prerrogativa negada a um russo “vulgar” seu colega.

            A CIA suspeitava das suas atividades, precisamente devido à sua liberdade de movimentos e de contatos, e abrira um processo com o seu nome. Mas não havia qualquer ponta suficientemente saliente para lhe pegar. O homem era um funcionário fiel do regime soviético.

            Por seu turno, Turkin desconfiava de que o americano devia pertencer à Central Intelligence Agency, mas tinham-lhe ensinado que todos os diplomatas daquele país faziam parte dela, uma ilusão agradável, mas um erro à luz da prudência.

            O americano sentou-se e estendeu a mão.

            - Jason Monk. É Nik Turkin, salvo erro? Vi-o no garden party dos britânicos da semana passada. Tem cara de quem acabam de nomear para um lugar na Gronelândia.

            O russo olhou-o em silêncio. Tinha uma guedelha de cabelo cor de trigo caída sobre a fronte e um sorriso cativante. O rosto não deixava transparecer a menor astúcia, pelo que talvez não pertencesse à CIA. Parecia o gênero de pessoa com quem se podia conversar e, em outra ocasião, Nikolai Turkin recordaria todos os anos de treino e se mostraria delicado, mas reservado. No entanto, aquele dia era diferente. Precisava se abrir com alguém. Assim, começou a falar e descreveu a situação em que a sua família se encontrava. Entretanto, o americano revelava-se interessado e compreensivo, e anotou o termo melioidosis num guardanapo de papel. Há muito que anoitecera, quando se separaram. O russo regressou ao recinto da embaixada e Monk ao seu apartamento, nas cercanias da Rua Harry Thoku.

           

            Célia Stone tinha vinte e seis anos e era esbelta, morena e atraente. Era igualmente ajudante do Adido de Imprensa na embaixada britânica em Moscou, sua primeira nomeação no estrangeiro desde que ingressara no ministério, dois anos atrás, depois de se formar em russo no Girton College de Cambridge.

            Naquele dia 16 de Julho, transpôs a larga porta da embaixada e voltou o olhar para o parque de estacionamento, onde deixara o seu pequeno, porém funcional Rover.

            Do interior do recinto da embaixada, podia ver o que estava vedado a Zaitsev, devido ao muro de aço. Deteve-se no topo dos cinco degraus que conduziam à área de estacionamento arborizada, em que havia também numerosos canteiros floridos. Olhando por cima do muro, avistava o imponente Kremlin, na outra margem do rio, com as cúpulas em forma de cebola das várias catedrais sobranceiras à parede de pedra vermelha que circundava a fortaleza. Sim, era uma vista admirável.

            De cada lado dela, a entrada elevada era precedida de duas rampas, que só o embaixador estava autorizado a utilizar com a sua viatura. Os mortais menos importantes arrumavam as suas em baixo e transpunham o resto da distância a pé. Uma ocasião, um jovem diplomata comprometera seriamente a sua carreira ao enveredar por uma delas no seu VW Beetle, num dia de chuva intensa, para o estacionar debaixo do pórtico. Minutos depois, chegava o embaixador, que encontrou o acesso bloqueado e teve de descer do Rolls-Royce e caminhar até à porta. No final, estava encharcado e de modo algum divertido.

            Por fim, ela desceu os degraus, acenou ao porteiro, subiu para o Rover vermelho e ligou o motor. Depois de transpor o portão de saída, rolou alguns metros no Cais Sofiskaya e cortou à esquerda, na direção da Ponte de Pedra, rumo ao encontro para almoçar com um repórter do Sevodnya. Não percebeu o homem idoso trajado modestamente que se arrastava freneticamente no seu encalço. Também não se dera conta de que o seu carro tinha sido o primeiro a abandonar a embaixada, naquela manhã.

            A Kammeny Host, ou Ponte de Pedra, é a mais antiga permanente que atravessa o rio. Em outros tempos, utilizavam-se pontões de barcaças, construídas na Primavera e desmontadas no Inverno, quando o gelo endurecia o suficiente para efetuar a travessia a pé.

            Devido à sua envergadura, não só abarca o rio como se prolonga sobre o Cais Sofiskaya. Para ter acesso a ela pela estrada, os condutores têm de virar de novo à esquerda durante trezentos metros, até que a ponte regressa ao nível do solo, proceder a uma mudança de direção de cento e oitenta graus e enveredar pelo declive. Um peão, porém, pode transpor os degraus diretamente do Cais para a plataforma superior. E foi o que o Coelho fez.

            Encontrava-se no pavimento da Ponte de Pedra, quando o Rover vermelho fez a sua aparição. Ato contínuo, agitou os braços, mas a mulher que o conduzia mostrou-se perplexa e prosseguiu em frente. Sem desanimar, Zaitsev reatou a correria, cada vez mais penosa. No entanto, tinha tomado nota da chapa de matrícula russa e viu que o veículo, no lado norte da ponte, se incorporava no pandemônio do tráfego da Praça Borovitsky.

            O destino de Célia Stone era o bar Rosy O’Grady, na Rua Znamenka. Este deslocado estabelecimento moscovita é na realidade irlandês e o oásis onde o embaixador da Irlanda pode se encontrar na Passagem do Ano, se consegue esquivar-se às enfadonhas comemorações do circuito diplomático. Como também serve almoços, Célia Stone escolhera-o para o encontro com o repórter russo.

            Descobriu um espaço para estacionar sem dificuldade, porque cada vez havia menos moscovitas que podiam conservar um carro ou comprar gasolina para o manter em atividade. Como sempre que um estrangeiro óbvio se aproximava do restaurante, os indigentes apressaram-se a interceptá-la para pedir dinheiro para comer.

            Na sua qualidade de diplomata ela fora elucidada no Ministério dos Assuntos Estrangeiros, em Londres, do que se lhe depararia, mas, apesar disso, o espectáculo nunca deixava de impressioná-la. Vira mendigos no metropolitano londrino e nos becos de Nova Iorque, pessoas que tinham descido gradualmente a escada da sociedade para se fixarem no degrau inferior. Mas preferiam essa situação, em vez de recorrerem às instituições de caridade, sempre prontas a ajudá-los.

            Em Moscou, porém, capital de um país que experimentava o início da verdadeira fome, os miseráveis que estendiam a mão para obter qualquer óbolo, tinham sido, não muito tempo atrás, agricultores, soldados, amanuenses e empregados de balcão. O fato recordava-lhe alguns documentários sobre o Terceiro Mundo.

            Vadirn, gigantesco porteiro do fíosy O’Grady, avistou-a a quase vinte metros de distância e acudiu pressuroso, ao mesmo tempo que afastava quase brutalmente vários russos como ele, para que não a incomodassem com pedidos de dinheiro e facilitar a entrada a alguém que contribuía para os lucros do restaurante onde trabalhava.

            Chocada com o espectáculo da humilhação dos pedintes provocada por um compatriota, Célia protestou vagamente, mas Vadirn limitou-se a estender o musculoso braço entre ela e as numerosas mãos ávidas, antes de impelir a porta de vaivém e facultar-lhe a entrada.

            O contraste era imediato, da rua poeirenta e famintos que a frequentavam com as conversas cordiais de cinquenta pessoas que se podiam permitir o luxo de carne ou peixe para o almoço. Como era uma jovem de coração terno, tinha sempre dificuldade em harmonizar a comida no seu prato com a fome que grassava lá fora, quando não almoçava ou jantava no apartamento. No entanto, o repórter russo que lhe acenava de uma mesa do canto não conhecia semelhantes problemas e acabou por escolher lagostins à Archangel.

            Zaitsev, que persistia nas suas intenções, esquadrinhou a Praça Borovitsky em busca do Rover vermelho, mas desaparecera. Espreitou em todas as ruas que partiam dela, à direita e à esquerda, sem resultado. Por fim, optou pelo bulevar principal no outro extremo da praça. Foi com surpresa e alegria que o descortinou a duzentos metros dali, perto do botequim.

            Indistinguível dos outros que aguardavam com a paciência resignada dos carenciados, Leónidas tomou posição perto do Rover, preparado para mais um período de espera.

 

Nairobi, 1983

            Havia dez anos que Jason Monk fora calouro na Universidade de Virgínia, e perdera o contato com muitos estudantes do seu convívio mais íntimo. Mas ainda se recordava bem de Norman Stein. A sua amizade fora particularmente sólida o jogador de rugbi de estatura mediana, porém possuidor de músculos rijos, provemiente da região das fazendas, e o filho sem características atléticas de um médico judeu de Fredericksburg. Foi um sentido de humor compartilhado e divertido que os tornou amigos. Se Monk possuía o talento dos idiomas, Stein era quase um gênio na faculdade de biologia.

            Formaram-se com classificação elevada um ano antes de Monk e ingressara diretamente na escola médica, mantendo-se em contato da maneira habitual, através de postais pelo Natal. Dois anos atrás, pouco antes da transferência para o Quênia, quando cruzava a sala de um restaurante em Washington, Monk vira o amigo dos tempos de estudante almoçar só e tinham podido conversar durante cerca de meia hora, até que o convidado do Dr. Stein aparecera, o que lhes permitiu evocar períodos agradáveis passados juntos, embora Monk fosse obrigado a mentir e explicar que trabalhava no Departamento de Estado.

            O amigo especializara-se em medicina tropical e mostrava-se encantado com a recente nomeação para a unidade de pesquisas do Hospital Militar Walter Reed. Uma vez no seu apartamento em Nairobi, Monk consultou a agenda de endereços e efetuou um telefonema. Uma voz rouca atendeu ao décimo toque da campainha.

            - Alô?...

            - Olá, Norman. É o Jason Monk.

            Uma pausa.

            - Estupendo! Onde está?

            - Em Nairobi.

            - Formidável. Nairobi. Claro. E que horas são aí?

            Monk elucidou-o:

            - Meio-dia.

            - Pois aqui são cinco do raio de uma manhã e acertei o alarme do despertador para as sete. Passei metade da noite de pé com o bebê. Estão  nascendo-lhe os dentes, imagine. Obrigado por não me deixar dormir, amigo.

            - Calma,  Norm. Gostaria que me dissesse uma coisa. Alguma vez ouviu falar de uma doença chamada melioidosis?

            Seguiu-se nova pausa, e a voz que reapareceu na linha perdera todos os vestígios de sons.

            - Por que pergunta?

            Monk expôs a situação, embora não aludisse a um diplomata russo. Referiu que o filho de cinco anos de um conhecido parecia condenado e, como ele ouvira falar vagamente que o Tio Sam tinha alguma experiência daquela enfermidade...

            - Me dê o seu número interrompeu Stein. Preciso fazer umas chamadas. Depois, torno a contactar contigo.

            Eram cinco horas da tarde, quando o telefone de Monk tocou.

            - Talvez haja uma remota esperança informou o epidemiologista. Trata-se  de  uma  fase  ainda  experimental, mas completamente revolucionária. Os testes efetuados até agora têm-se revelado satisfatórios. No entanto, os resultados ainda não foram apresentados à FDA* e muito menos aprovados. Aliás, as pesquisas estão longe de terminadas. Pode ter efeitos colaterais - advertiu. - Ainda não sabemos nada a esse respeito.

            - Quanto tempo podem tardar a declarar-se?

            - Não faço a menor idéia.

            - Enfim, se o menino morrer dentro de três semanas, não há nada a perder.

            Soltou um longo suspiro.

            - Não sei - proferiu, hesitante. - É contra todos os regulamentos.

            - Juro que ninguém saberá. Vá, Norm, em memória de todas as moças que te arranjei.

            Monk ouviu uma estrondosa gargalhada proveniente de Ohevy Chase, Maryland.

            - Se  alguma  vez  falar disso à Becky, eu o mato - prometeu o outro, e a ligação foi cortada.

            Quarenta e oito horas mais tarde, chegava à embaixada uma encomenda para Monk, através de uma empresa da especialidade internacional!. Continha uma espécie de garrafa-termica com gelo seco. A breve nota sem assinatura que a acompanhava explicava que, entre o gelo, havia dois frascos. Ele ligou à embaixada soviética e deixou um recado para o subsecretário Turkirt, na seção comercial: “Não se esqueça da cerveja que combinamos tomar juntos esta tarde, às seis horas”. Quando se inteirou, o coronel Kuliev perguntou ao destinatário:

            - Quem é esse Monk?

            - Um diplomata americano. Parece decepcionado com a política estrangeira dos Estados Unidos na África e eu procuro valer-me disso para torná-lo uma fonte de informação para nós.

            O oficial inclinou a cabeça num gesto de aprovação. Era uma maneira de proceder sempre útil, que rechearia favoravelmente o seu relatório periódico para Yazenevo.

            No Thorn Tree Café, Monk entregou a encomenda ao russo, o qual não conseguia dissimular a apreensão, na eventualidade de um colega ou simples conhecido assistir, pois o embrulho podia conter dinheiro.

            - Que é? - perguntou a meia-voz. Monk elucidou-o e acrescentou:

            - Talvez não de resultado, mas não se perde nada em tentar. É a única coisa de que dispomos para a doença.

            O russo estremeceu e o olhar adquiriu uma expressão glacial.

            - E que pretende em troca desta... oferta?  - inquiriu, afigurando-se óbvio que tinha de haver uma contrapartida.

*   Administração da Alimentação e Drogas. (N. do T.)

Nos Estados Unidos, a Food and Drug Administration tem de aprovar todos os novos medicamentos antes de serem liberados ao público. O que o Dr. Stein descrevia era um antibiótico cefalosporino muito prematuro ainda ignorado em 1983, que seria mais tarde comercializado com a designação de Ceftazidime. No momento, chamavam-lhe apenas CZ-1. Atualmente é o tratamento corrente da meliodosis.

            - Não há encenação alguma. Desta vez, pelo menos. As pessoas como você e eu passam a vida representando. Mas agora não.

            Na realidade, Monk já tinha se certificado junto do Hospital-Geral de Nairobi, e o Dr. Winston Mói confirmara os fatos básicos. “É duro, mas vivemos num mundo cruel”, refletiu, depois de se explicar.

            Levantou-se da mesa. Segundo o regulamento, devia pressionar aquele homem para que lhe revelasse alguma coisa, algo de secreto. Sabia, porém, que a doença da criança não era mentira. Se tivesse de se comportar assim, mais valeria que fosse varredor de ruas no Bronx.

            - Leve isso, amigo. Oxalá produza o efeito desejado. É grátis.

            Começou a afastar-se, mas, a meio caminho da porta, uma voz chamou-o.

            - Fala russo, Mr. Monk?

            Este assentiu, com uma inclinação de cabeça.

            - Um pouco.

            - Bem me parecia. Então, compreende o spasibo.

           

            Célia Stone abandonou o Rosy O’Grady pouco depois das duas da tarde e aproximou-se do lado do volante do Rover, que dispunha de um sistema de fecho central. Assim, quando abriu a porta do condutor, aconteceu o mesmo à do passageiro. Acabava de colocar o cinto de segurança e ligar o motor, quando a segunda foi puxada para fora. Voltou-se, surpreendida, e deparou-se com um indivíduo de capote militar coçado, do peito do qual pendiam quatro medalhas, e barba por fazer. No momento em que abriu a boca, expôs três dentes de aço. Em seguida, largou uma pasta de cartolina no colo dela, que sabia o suficiente do idioma russo para mais tarde poder repetir o que o homem disse:

            - Entregue isto ao senhor embaixador, por favor. Pela cerveja.

            A visão do velho aterrorizou-a. Tratava-se claramente de um louco, porventura esquizofrênico. E essas pessoas costumavam ser perigosas. Lívida, conduziu o carro para a faixa de rodagem o mais velozmente possível, enquanto a porta se fechava devido à aceleração adquirida. A seguir, atirou a ridícula petição, ou o que quer que fosse, ao porta objetos do lado do lugar do passageiro e rolou em direção à embaixada.

 

            Foi pouco depois do meio-dia da mesma data, 16 de Julho, que Igor  Komarov,  sentado atrás  da  mesa do seu gabinete no primeiro piso perto do Bulevar Kiselny, entrou em contato com o seu principal adjunto pessoal através do intercomunicador.

            - Já teve oportunidade de ler o documento que lhe emprestei ontem?

            - Com certeza, Senhor Presidente. E achei-o particularmente brilhante, se me permite a expressão - replicou Akopov.

            Todo o pessoal empregava aquela fórmula de tratamento, por ser o presidente do comitê executivo da União das Forças Patrióticas. De qualquer modo, ninguém duvidava de que dentro de doze meses, continuariam a tratá-lo assim, mas por um motivo diferente.

            - Obrigado. Nesse caso, queira devolvê-lo.

            E a ligação foi cortada. Akopov levantou-se e aproximou-se do cofre embutido na parede. Conhecia o segredo de cor, pelo que fez rodar o botão as seis vezes necessárias. Quando a porta se abriu, espreitou para dentro, à procura da pasta de cartolina preta, e não a viu.

            Intrigado, esvaziou o cofre meticulosamente, ao mesmo tempo que sentia dominá-lo um misto crescente de pânico e incredulidade. Por fim, tentou acalmar-se e recomeçou a busca. Os processos que se amontoavam em torno dos seus joelhos foram examinados um a um e folha a folha. Todavia, o de capa preta não aparecia. A fronte principiou a cobrir-se de gotas de transpiração. Trabalhara ininterruptamente toda a manhã, convencido de que, antes de sair, na tarde anterior, guardara todos os documentos confidenciais, como fazia sempre, pois era uma criatura de hábitos.

            Depois do cofre, começou a esquadrinhar as gavetas da mesa. Nada. Inspeccionou o chão debaixo do móvel e a seguir todos os armários. Cerca da uma hora da tarde, bateu à porta do gabinete de Igor Komarov, foi admitido e confessou que não conseguia encontrá-lo.

            O candidato presidencial fitou-o, de olhos arregalados, durante um momento.

            O homem que a maior parte do mundo supunha que seria o próximo presidente da Rússia era uma personalidade altamente complexa, que, por trás da sua imagem pública, preferia manter a maioria do seu ego intensamente privado. Não podia constituir um contraste mais nítido com o seu predecessor, o destituído Zhirinovsky, ao qual agora chamava abertamente um mero palhaço.

            Komarov era um indivíduo alto e possante, de cabelo cinzento-aço cortado curto e rosto sempre perfeitamente escanhoado. Entre as suas características mais evidentes figuravam uma autêntica absorção pela limpeza pessoal e profunda aversão ao contacto físico. Ao contrário de grande parte dos políticos russos, de palmadas nas costas, um copo de vodka na mão e bonomia do gênero braço-em-torno-dos-ombros, insistia na indumentária formal e linguagem esmerada da sua entourage pessoal. Quase nunca vestia o uniforme dos Guardas Negros e envergava usualmente terno cinzento conservador e gravata.

            Após anos na política, só um número muito reduzido de pessoas podia se vangloriar de manter um contato mais próximo com ele, e ninguém se atrevia a considerar-se íntimo. Nikita Ivanovich Akopov havia dez anos que era seu secretário particular, porém as suas relações mantinham-se como as de um chefe e o seu servo incondicional.

            Ao invés de Yeltsin, que incluía os membros do seu pessoal na roda de amigos com os quais bebia e jogava tênis, Komarov permitia apenas a um homem  o coronel Anatoli Grishin, chefe da Segurança  que se lhe dirigisse pelo nome de batismo.

            Mas, à semelhança de todos os políticos bem sucedidos, podia assumir características camaleônicas, em caso de necessidade. Para a mídia, nas raras ocasiões em que se dignava recebê-los pessoalmente, mostrava-se um estadista de ar grave. Por outro lado, perante os seus partidários, transformava-se de uma maneira que provocava sempre a profunda admiração de Akopov. Surgia no estrado o orador, que enunciava todas as esperanças, temores e desejos, a par da revolta e intolerância dos seus apaniguados com um rigor inabalável. Diante deles, e só deles, interpretava o papel da jovialidade e convívio humano.

            Sob as duas personalidades, havia uma terceira, e essa intimidava Akopov. O próprio rumor da existência do terceiro homem debaixo do verniz bastava para manter todo o pessoal que o circundava em estado de alerta permanente.

            Somente duas vezes em dez anos, Nikita Akopov tivera ensejo de presenciar a fúria demoníaca que grassava no interior do homem descontrolado. Em outras dezenas de ocasiões, assistira à luta para abafar esse estado, como também acabara por acontecer nas duas excepções. Vira o indivíduo que o dominava e fascinava e ele venerava cegamente transformar-se num demônio furibundo

            Arremessara telefones, vasos e tinteiros ao trêmulo subordinado que o irritara e reduzira um oficial superior dos Guardas Negros a um autêntico farrapo Ao mesmo tempo, empregara a linguagem mais execrável que Akopov jamais escutara, destruíra mobiliário e tivera de ser dominado, não sem notável dificuldade, antes que abrisse a cabeça de uma trêmula vítima com uma régua de aço. Por conseguinte, sabia determinar os sinais de alerta que precediam essas situações. O rosto de Komarov tornou-se mortalmente pálido e as maneiras mais formais e corteses, porém despontou um pequeno círculo vermelho em cada malar.

            - Está me dizendo que perdeu o documento, Nikita Ivanovich?

            - Não o perdi propriamente, Senhor Presidente. Parece que se extraviou.

            - O  conteúdo é de uma natureza mais confidencial do que todo o resto que lhe passou pelas mãos até hoje. Você, que o leu, decerto compreende perfeitamente porquê.

            - Com certeza, Senhor Presidente.

            - Existem apenas três exemplares, Nikita, dois dos quais se encontram no   meu cofre. Somente um pequeno grupo daqueles que me são mais íntimos terá   ensejo de ver o documento. Fui eu próprio que o redigi e bati à máquina. Eu, Igor Komarov, datilografei todas as páginas, para não ter de confiá-las a um secretário. O assunto é confidencial a esse ponto.

            - Uma medida muito prudente, Senhor Presidente.

            - Porque o incluo...  incluía nesse grupo restrito, permiti que o lesse. E agora vem comunicar-me que o perdeu!

            - Garanto-lhe que se extraviou... temporariamente, Senhor Presidente.

            Komarov fitava o interlocutor com os olhos mesméricos capazes de obrigar céticos a colaborar com ele ou aterrorizar os hesitantes. Os círculos vermelhos nos malares aumentavam de intensidade no rosto pálido.

            - Quando o viu pela última vez?

            - Ontem à noite, Senhor Presidente. Fiquei no gabinete até mais tarde para poder ler sem interrupções. Retirei-me às oito.

            Inclinou a cabeça em silêncio. O relatório dos guardas da noite confirmaria ou desmentiria essas palavras.

            - Levou-o  consigo? Apesar das  minhas ordens, permitiu que o documento saísse do edifício?

            - Juro  que   não,  Senhor  Presidente.  Guardei-o  no cofre. Nunca deixaria material tão importante exposto à curiosidade de alguém, nem o levaria.

            - Não se encontra no cofre?

            Akopov tentou engolir, mas descobriu que não tinha saliva.

            - Quantas vezes teve de abri-lo, antes da minha chamada?

            - Nenhuma, Senhor Presidente.

            - Foi então a primeira. Estava trancado?

            - Sim, como sempre.

            - Tinha sido forçado?

            - Aparentemente não, Senhor Presidente.

            - Revistou o aposento?

            - De uma ponta à outra. Confesso que não compreendo o que pode ter acontecido.

            Komarov refletiu durante alguns minutos. Por trás da máscara inexpressiva, sentia um pânico crescente. Por último, ligou ao gabinete da segurança no piso térreo.

            - Sele o edifício. Não entra nem sai ninguém. Localize o coronel Grishin e diga-lhe que se apresente no meu gabinete. Imediatamente. Onde quer que se encontre e seja o que for que estiver fazendo. Quero-o aqui dentro do máximo de uma hora.

            Levantou o dedo da tecla do intercomunicador e concentrou-se de novo no apavorado secretário.

            - Volte para o seu  gabinete e não fale com ninguém. Aguarde lá até que contacte consigo.

           

            Como jovem moderna, inteligente e solteira que se considerava, Célia Stone decidira há muito que lhe assistia o direito de satisfazer os seus prazeres onde e com quem lhe agradasse. No momento, preferia os duros músculos juvenis de Hugo Gray, chegado de Londres cerca de dois meses atrás e seis depois dela. Era ajudante do Adido Cultural, posição hierárquica igual à de Célia, embora dois anos mais velho e também solteiro.

            Ambos possuíam pequenos, porém funcionais apartamentos, num bloco residencial atribuído ao pessoal da embaixada britânica nas imediações do Kutuzovsky Prospekt, um edifício em torno de um pátio útil para estacionar e com membros das Polícias russas junto da barreira à entrada. Mesmo na Rússia moderna, todos supunham que as entradas e saídas eram anotadas, mas pelo menos as viaturas estavam protegidas dos caprichos dos vândalos.

            Depois do almoço, ela regressou à embaixada do cais Safiskaya e redigiu o relatório sobre o encontro com o jornalista. A maior parte da conversa abordara a morte do presidente Cherkassov, no dia anterior, e o que poderia acontecer a seguir. Célia garantira-lhe que o povo inglês se interessava profundamente pelos eventos na Rússia, esperançosa em que ele acreditasse. Saberia, quando o artigo fosse publicado.

            Às cinco da tarde, dirigiu-se para o seu apartamento, para tomar banho e dedicar-se a um pouco de repouso, combinara jantar com Hugo Gray, às oito, após o que insistiria em que a acompanhasse a casa, e não esperava ter muitas oportunidades de dormir, durante o resto da noite.

           

            Às quatro da tarde, o coronel Anatoli Grishin convencera-se de que o documento não se encontrava no edifício, como comunicou a Igor Komarov, sentado no gabinete deste.

            Em quatro anos, os dois homens tinham-se tornado interdependentes. Em 1994, Grishin dera por concluída a sua carreira no Segundo Diretorado Principal do KGB, com a patente de coronel e profundamente desiludido. Após o termo formal do domínio comunista, em 1991, o antigo KGB convertera-se, na sua opinião, num sepulcro incaracterístico. Já antes disso, em Setembro do mesmo ano, Mikhail Gorbachev abalara o maior aparelho do mundo e distribuíra os seus vários ramos por diferentes comandos.

            O da contra-espionagem no exterior, Primeiro Diretorado Principal, permanecera no antigo quartel-general em Yazenevo, para além da estrada circular, mas com a nova designação de Serviço de Contra-Espionagem no Estrangeiro, ou SVR, o que, mesmo assim, já não era nada de satisfatório.

            Mas, ainda pior, a divisão de Grishin, Segundo Diretorado Principal, até aí responsável por toda a segurança interna, denúncia de espiões e supressão dos dissidentes, fora castrada, batizada FSB e obrigada a reduzir os seus poderes a uma paródia do que outrora tinha sido.

            Grishin encarara tudo isto com desdém. O povo russo necessitava de disciplina firme e ocasionalmente brutal e era o Segundo DP que a proporcionava. Suportou as reformas durante três anos, esperançoso em chegar a major-general, e acabou por apresentar a demissão. Um ano mais tarde, foi contratado como chefe da segurança pessoal por Igor Komarov, então apenas um membro do Politburo do antigo Partido Democrático Liberal.

            Os dois homens haviam atingido a proeminência e poder juntos, e ainda havia mais, muito mais, para conquistar, no seu horizonte. Ao longo dos anos, Grishin criara para Komarov a sua totalmente leal brigada de proteção próxima, denominada Guardas Negros, atualmente composta de seis mil jovens treinados com eficiência que ele comandava.

            Em seu apoio, havia a Liga dos Jovens Combatentes  vinte mil, ao todo, ala de adolescentes da UFP, imbuídos da ideologia apropriada e fanaticamente leais, também sob as suas ordens.

            O mais humilde indivíduo da rua podia dirigir-se a Komarov de uma maneira familiar, mas isso faziia parte da camaradagem do “homem do povo” esperada na Rússia. À sua entourage privada, ele exigia formalidade, de que apenas um pequeno punhado de íntimos se achava excluído.

            - Tem certeza de que o documento já não se encontra no edifício?  perguntou Komarov.

            - Não me ocorre outra explicação para o seu desaparecimento, Igor Viktorovich. Em duas horas, revistamos todos os recantos. Não ficou um único centímetro quadrado por explorar. O exame às portas, janelas e terreno em volta revelou que não houve qualquer entrada forçada. Por outro lado, o perito dos fabricantes  de  cofres  acaba  de  concluir a  inspeção ao do gabinete de Akopov. Ou o abriu alguém conhecedor do segredo ou o documento nunca esteve lá dentro. O lixo de ontem foi passado a pente fino com idêntico resultado negativo. Os cães foram soltos às sete da tarde, como habitualmente. Ninguém entrou no edifício desde essa hora. Os guardas da noite renderam os colegas do turno de dia, às seis horas, e estes partiram dez minutos mais tarde. Akopov esteve no seu gabinete até às oito. Interrogado, o tratador dos cães jura que teve de lhes conter os ímpetos três vezes, ontem à noite, para permitir que sete funcionários retardatários pudessem partir nos seus carros, e Akopov foi o último. O livro de ocorrências confirma-o.

            - Por conseguinte?...  urgiu  Komarov.

            - Erro humano ou malícia. Os dois guardas da noite foram chamados do aquartelamento e espero-os a todo o momento Ficaram com o edifício por sua conta desde a saída de Akopov, às oito, até à chegada dos colegas do turno de dia, às seis da manhã. Depois, estes últimos conservaram-se sós até que apareceu o pessoal, por volta das oito. Um intervalo de duas horas. No entanto os guardas de dia garantem que, na sua primeira ronda, as portas dos gabinetes deste piso estavam trancadas. E todas as pessoas que trabalham neles confirmam-no, incluindo Akopov.

            - Qual é a sua teoria, Anatoli?

            - Ou Akopov levou o documento consigo, por mera casualidade ou intenção preconcebida, ou não o guardou no cofre e alguém se apoderou dele durante a noite. Não esqueçamos que o pessoal  noturno tem chaves mestras das portas dos gabinetes.

            - Nesse caso, concentramo-nos em Akopov?

            - É o primeiro suspeito, sem dúvida. O apartamento em que vive foi revistado Na sua presença. Nada. Admiti que o levara na pasta, que depois perdera. O caso aconteceu uma vez, no Ministério da Defesa, e fui incumbido das investigações. Apurou-se que não se tratava de espionagem, mas de negligência  criminosa  e  o  responsável  foi  enviado  para  um campo de trabalhos forçados. Ora, a pasta de Akopov é a que ele utiliza sempre, identificada por três pessoas.

            - Fez, portanto, deliberadamente?

            - É uma  possibilidade. Mas surge um  problema a esse respeito. Por que voltou, esta manhã, para ficar à espera que o descobrissem? Dispôs de doze horas para desaparecer da circulação. Talvez seja necessário... interrogá-lo mais profundamente. A fim de poder estabelecer a eliminação ou a confissão.

            - Está desde já autorizado a fazê-lo.

            - E depois disso?

            Igor Komarov moveu a cadeira rotativa para ficar voltado para a janela e entregou-se a cogitações por um momento, antes de declarar:

            - Era um excelente secretário pessoal. No entanto, depois disto, terei  de substitui-lo. O óbice consiste em que leu o documento, cujo conteúdo é   extremamente confidencial. Se continuar ao serviço num cargo menos importante, ou for afastado totalmente, talvez guarde ressentimento e até se sinta tentado a divulgar o que sabe. O que seria a todos os títulos lamentável. Extremamente lamentável...

            - Compreendo perfeitamente - assentiu o coronel Grishin. Naquele momento, chegaram os guardas do turno da noite e ele afastou-se para  interrogá-los.

            Às nove horas da noite, as suas instalações no quartel dos Guardas Negros, nos arrabaldes da cidade, tinham sido minuciosamente revistadas. Continham os artigos habituais, juntamente com algumas revistas pornográficas.

            Os dois homens foram interrogados separadamente em salas diferentes pelo próprio Grishin, cuja presença os impressionou, pois conheciam bem a sua reputação de torcionário.

            De vez em quando, dirigia-lhes obscenidades em tom ríspido, mas, para os dois apavorados homens, o pior aconteceu quando se sentou a curta distância e sussurrou os pormenores do que aguardava de quem lhe mentia. Cerca das oito horas, possuía uma imagem muito concreta do que sucedera durante o seu turno de serviço, na véspera. Soube assim que as rondas se tinham desenrolado a intervalos irregulares e de um modo assaz superficial e a maior parte do tempo fora passada diante do televisor, a fim de se inteirarem de detalhes sobre a morte do Presidente. E tomou conhecimento pela primeira vez da presença do empregado da limpeza.

            O homem tinha sido admitido às dez horas. Como habitualmente. Através da passagem subterrânea. Vinha só. Fora necessária a intervenção dos dois guardas para abrir as três portas, porque um conhecia o segredo da rua, o outro da interior e ambos da intermédia.

            Grishin inteirou-se de que eles o tinham visto começar a trabalhar no piso do topo. Como sempre. E de que se haviam afastado do televisor para abrir os gabinetes do piso intermédio, a vital suite executiva. Assim como de que um se mantivera à entrada, enquanto o homem procedia à limpeza do gabinete pessoal de Komarov, após o que voltara a trancar a porta, mas encontravam-se ambos em baixo na altura em que se ocupara do resto desse andar. Como sempre. Por conseguinte... o empregado de limpeza permanecera só, no gabinete de Akopov. E retirara-se mais cedo do que habitualmente, no meio da noite.

            Às nove, Akopov, extremamente pálido, era escoltado para o seu próprio carro, mas foi um dos Guardas Negros que se sentou ao volante, enquanto outro se instalava ao lado do acabrunhado secretário, no banco de trás. O veículo não seguiu, porém, para o apartamento deste último. Ao invés, rolou na direção de uma das saídas da cidade, rumo a um dos campos em que se alojavam os Jovens Combatentes.

            Àquela hora, o coronel Grishin terminara de ler o processo que continha os elementos sobre as circunstâncias da admissão de um certo Leónidas Zaitsev, de sessenta e três anos, empregado da limpeza. Havia um endereço particular, mas o homem decerto não voltaria lá. Devia apresentar-se ao serviço às dez.

            Não compareceu e, à meia-noite, Grishin e três Guardas Negros foram visitar a residência do velho.

 

            A essa hora, Célia Stone desprendeu-se dos braços do jovem amante com um sorriso de satisfação e estendeu a mão para o maço de cigarro. Fumava pouco, mas era um daqueles momentos em que lhe agradava. Entretanto, Hugo Gray, deitado de costas na cama dela, continuava a arquejar. Era um homem saudável que mantinha a forma física graças à prática de natação e squash, mas as duas últimas horas tinham-lhe absorvido uma percentagem elevada de energias.

            Não pela primeira vez perguntou-se por que razão Deus providenciara para que os apetites de uma mulher sexualmente faminta excedessem sempre as capacidades do parceiro. Afigurava-se lhe extremamente injusto.

            Na penumbra, Célia Stone chupou o cigarro demoradamente, sentiu a nicotina penetrar, debruçou-se sobre o amante e começou a desgrenhar-lhe os caracóis castanhos.

            - Por que cargas de água decidiu se tornar adido cultural? - perguntou, com uma ponta de sarcasmo. - Não distingue Turgenev de Lermontov.

            - Não é para isso que me pagam - grunhiu ele. - compete-me informar os russos da nossa cultura: Shakespeare, as irmãs Bronte e quejandos.

            - É por este motivo que está constantemente reunido com o chefe de posto?

            Soergueu-se com prontidão, puxou-a pelo braço e murmurou-lhe ao ouvido:

            - Cuidado com a língua. Pode haver microfones ocultos.

            Ela soltou uma exclamação abafada e foi fazer café, sem compreender a razão pela qual ele se mostrava tão alarmado com um comentário inofensivo. De qualquer modo, as suas atividades na embaixada não constituíam segredo para ninguém.

            De resto, Célia não se equivocava. No mês anterior, Hugo Gray fora o terceiro membro e o mais jovem, do posto de Moscou do Secret Intelligence Service. Outrora, a sua importância tinha sido muito maior, no auge da Guerra Fria. No entanto, os tempos mudam e as verbas diminuem. No seu atual estado de derrocada, a Rússia era considerada uma ameaça insignificante.

            E, detalhe mais relevante, noventa por cento das coisas que haviam sido secretas achavam-se agora abertamente disponíveis ou revestiam-se de um interesse mínimo. O próprio KGB tinha um gabinete de Imprensa e, do outro lado da cidade, na embaixada dos Estados Unidos, o pessoal da CIA não excedia o número dos componentes de uma equipe  de futebol.

            No entanto, Hugo Gray era jovem e ativo, convencido de que a maioria dos apartamentos dos diplomatas se encontrava sob escuta. O comunismo podia estar em situação periclitante, mas a paranóia sobre os russos continuava bem viva. No fundo, ele tinha razão, porém os agentes do campo oposto já se tinham inteirado das suas verdadeiras funções e encaravam-no sem preocupações.

           

            O bizarramente denominado Bulevar dos Entusiastas é sem dúvida a área mais decrépita, miserável e perigosa da cidade de Moscou. Num triunfo do planejamento comunista, situava-se a sotavento da fábrica de produtos químicos, possuidora de filtros como redes de ténis. O único entusiasmo jamais notado nos seus habitantes provinha daqueles que eram autorizados a mudar-se.

            Segundo os registros, Leónidas Zaitsev vivia com a filha, o motorista de pesados, marido desta e o respectivo filho num apartamento perto da artéria principal. Passavam trinta minutos da meia-noite, com a temperatura ainda notavelmente elevada, quando o Chalka preto, cujo condutor assomava à janela para ler os nomes nas enegrecidas placas, se imobilizou.

            O nome do genro era diferente, claro, e eles tiveram de interrogar o ensonado vizinho do térreo para se certificarem de que a família que procuravam vivia no quarto andar. Como não havia elevador, os quatro homens utilizaram a escada e bateram com insistência à porta necessitada urgentemente de pintura.

            A mulher que acudiu, também ensonada e de olhar congestionado, devia ter cerca de trinta e cinco anos, mas parecia uns dez anos mais velha. Grishin mostrou-se atenciosa, embora insistente. Os seus homens entraram sem vacilar e distribuíram-se para revistar o apartamento. Na realidade, não havia muito para revistar, pois era pequeno. Compunha-se apenas de dois quartos, com uma espécie de banheiro fétido e um canto separado por meio de uma cortina, onde funcionava a cozinha.

            A mulher estivera dormindo com o filho de seis anos na larga cama de um dos quartos. A criança acordara e principiou a choramingar, acabando por verter lágrimas abertamente e protestar, quando os homens a revolveram e espreitaram debaixo. Em seguida, os dois miseráveis armários de contraplacado foram devassados sem contemplações.

            No outro quarto, a filha de Zaitsev apontou desesperadamente para a cama de beliche junto de uma das paredes, em que o pai costumava dormir, e explicou que o marido se deslocara a Minsk, onde ainda se encontrava, dois dias atrás. E, chorando igualmente, referiu que o progenitor não regressara na manhã anterior. Estava preocupada, mas não comunicara o desaparecimento às autoridades, persuadida de que adormecera no banco de um jardim.

            Em dez minutos, os Guardas Negros estabeleceram que não havia ninguém escondido no apartamento, enquanto Grishin se convencia de que a mulher estava muito aterrorizada para mentir. Retiraram-se meia hora mais tarde.

            O coronel mandou o Chaika seguir para o campo onde Akopov se conservava detido e passou o resto da noite a interrogá-lo. Cerca da alvorada, o infortunado e soluçante homem admitiu que devia ter deixado o documento em cima da sua mesa. Nunca lhe ocorrera nada do gênero e não compreendia como pudera esquecer-se de guardá-lo no cofre. Por fim, suplicou clemência, e Grishin inclinou a cabeça e deu-lhe uma palmada tranquilizadora nas costas.

            Quando se retirou, comunicou a um colaborador:

            - Vai ser um dia de calor tórrido. O nosso amigo está aflito. Creio que um bom banho antes de amanhecer lhe fará bem...

            E regressou à cidade. Entretanto, ponderava que, se o importante documento ficara em cima da mesa, fora jogado fora inadvertidamente ou o empregado da limpeza levara-o. A primeira alternativa não se adaptava às circunstâncias, pois o material considerado inútil permanecia intacto durante vários dias, antes de ser incinerado. Ora, os papéis da véspera nessas condições haviam sido examinados, folha a folha, sem resultado. Portanto, tudo apontava para o homem. Mas para que quereria um indivíduo quase analfabeto o importante documento e que destino lhe dera? Só o próprio poderia explicar. E não deixaria de o fazer.

            Antes da hora normal do café da manhã dispusera dois mil dos seus homens, todos em traje civil, nas ruas de Moscou à procura de um velho de uniforme militar coçado. Não havia qualquer fotografia, mas a descrição era rigorosa, até ao detalhe dos dentes de aço.

            A tarefa, porém, não tinha nada de fácil, apesar do número elevado de agentes envolvidos na operação, pois abundavam os indivíduos em semelhantes condições dispersos pelas vielas e parques da cidade. Por conseguinte, percorriam a cidade, em mangas de camisa, devido ao calor, conscientes de que seria pouco saudável apresentarem-se ao coronel de mãos abanando.

 

Langley, Dezembro de 1983

            Jason Monk levantou-se da mesa, espreguiçou-se e decidiu dirigir-se ao refeitório. Regressado de Nairobi havia uma semana, tinham-lhe comunicado que a sua folha de serviços era satisfatória e, em alguns casos, excelente. A promoção começava a despontar no seu horizonte, e o chefe da Divisão de África estava encantado, mas custar-ia perdê-lo.

            Quando regressara à base, Monk vira-se inscrito no curso de língua espanhola, que começaria a frequentar após a pausa do Natal e Ano Novo. Seria o terceiro idioma estrangeiro em que se especializaria, o que lhe abriria o acesso à Divisão da América Latina.

            A América do Sul era um território enorme e importante, porque não só se situava dentro do “quintal” americano, segundo prescrevia a Doutrina Monroe, como constituía o alvo de eleição do bloco soviético para a insurreição, subversão e revolução comunista. Como resultado disso, o KGB desenvolvia uma larga operação a sul do Rio Grande, a qual a CIA estava decidida a decapitar. Nessa conformidade, para Monk, aos trinta e três anos, a América do Sul constituía um ambiente favorável à sua carreira.

            Movia a colher na xícara de café, quando percebeu alguém de pé junto da sua mesa.

            - Que estupendo bronzeado! - observou uma voz. Ergueu os olhos e reconheceu o homem que lhe sorria.

            Fez menção de se levantar, porém o outro indicou que se mantivesse sentado com um gesto, mais ou menos no estilo de um aristocrata condescendente perante um plebeu.

            Monk estava surpreso. Sabia que o homem era um dos membros-chave do Diretorado das Operações, pois alguém o apontara nos corredores, recentemente nomeado chefe do Ramo Soviético do Grupo de Contra-Espionagem da Divisão SE.

            O que o intrigava era o seu aspecto estranho. Apesar de serem ambos mais ou menos da mesma estatura  um metro e setenta e cinco, o outro, embora nove anos mais velho, parecia muito mais abalado. Monk reparou no cabelo gorduroso penteado para trás, o espesso bigode que cobria a seção superior da boca flácida e os olhos de míope.

            - Estive três anos no Quênia - esclareceu, para explicar o bronzeado.

            - E agora de regresso à invernosa Washington, hem?

            Entretanto, as suas antenas captavam vibrações pouco tranquilizadoras. Por trás dos olhos míopes, havia uma expressão divertida. “Sou mais esperto que você”, pareciam dizer. “Muito mais esperto”.

            - Sim, senhor.

            Monk viu estendida na sua direção uma mão enegrecida pela nicotina e ligeiramente trêmula, pormenor próprio de quem manifestava particular inclinação para as bebidas alcoólicas. Levantou-se e exibiu um sorriso que as moças do departamento de datilografia apelidavam de “Especial do Ruivo”.

            - E você deve ser?...respondeu o homem.

            - Monk. Jason  Monk.

            - Tenho muito prazer em conhecê-lo, Jason. Sou Aldrich Ames.

           

            Se o motor do carro de Hugo Gray tivesse pegado, naquela manhã, muitos homens que morreram posteriormente continuariam vivos e o mundo seguiria um curso diferente. Mas os solenóides do motor de arranque obedecem a uma lei própria. Depois de tentar freneticamente obter uma reação, ele correu atrás do Rover vermelho quando já se aproximava da barreira do enclave e bateu à janela, para que Célia Stone lhe desse carona.

            Normalmente, o pessoal da embaixada não trabalhava ao sábado e muito menos num tão quente que podia passar todo o fim-de-semana num lugar mais fresco do campo, mas a morte do Presidente produzira um súbito rebuliço de trabalho extraordinário, pelo que a sua presença era exigida.

            Hugo sentava-se ao lado dela, que imergiu no Kutuzovsky Prospekt e passou diante do Hotel Ucrânia, em direção ao Kremlin. Ele notou algo em contacto com os pés e inclinou-se para a frente, a fim de o recolher.

            - É o seu lance de oferta para o Izvestia, - perguntou.

            Célia olhou de través e reconheceu a pasta de cartolina.

            - Tencionava jogar isso fora, mas me esqueci. Um velho lunático  qualquer  atirou-o para  dentro. Confesso que me pregou um susto de respeito.

            - Mais uma petição, sem dúvida. Nunca param. Em geral, destinam-se a obter um visto, claro. - Levantou a capa e leu o título da primeira página. - Não, afinal é de político!

            - Ótimo. Sou uma criatura privilegiada e oferecem-me um plano magistral para salvar o mundo. Basta entregá-lo ao embaixador.

            - Foi o que o homem disse?

            - Foi. Isso, e obrigado pela cerveja.

            - Qual cerveja?

            - Sei lá! O cara não regulava bem, com certeza.

            Depois de ler o título, voltou mais algumas páginas e assumiu uma expressão grave.

            - É, de fato, político. Uma espécie de manifesto.

            - Se te interessa, pode ficar com ele.

            Deixaram os jardins Alexandrovsky para trás e cortaram à direita, no sentido da Ponte de Pedra.

           Gray tencionava ler mais algumas passagens do documento e a seguir largá-lo no cesto de papéis. No entanto, depois de se instalar atrás da mesa do seu gabinete, leu uma dezena, levantou-se e pediu ao chefe de posto um arguto escocês de sentido de humor cáustico  que o recebesse.

            Embora o gabinete deste último fosse inspecionado diariamente para tentar detectar algum dispositivo de escuta, as reuniões secretas desenrolavam-se sempre dentro da “ampola”, um compartimento especial circundado por uma coluna de ar entre duas paredes, que o tornava a prova de som. “Varrida” com regularidade por dentro e por fora, a ampola era considerada impossível de penetrar por quaisquer serviços secretos hostis. No entanto, Gray não estava suficientemente confiante da importância de que tinha nas mãos para sugerir que conversassem naquele lugar.

            - Que há de novo, rapaz?  perguntou o chefe.

            - Não sei se venho fazer-lhe perder tempo, Jock. É o mais certo e peço desde já que me perdoe. Mas aconteceu uma coisa estranha, ontem. Um velho atirou isto para dentro do carro da Célia Stone. Refiro-me àquela moça pertencente ao gabinete do adido de Imprensa. Talvez não seja nada de incomum...

            Gray interrompeu-se, enquanto o outro o olhava por cima dos óculos sem aros.

            - Atirou-o para dentro do carro? - repetiu, com brandura.

            - Pelo menos, foi o que ela disse. Abriu a porta, largou-o em cima do banco do passageiro, com o pedido de que o entregasse ao embaixador, e afastou-se.

            O chefe de posto estendeu a mão para a pasta de cartolina preta em cuja capa se viam duas dedadas de Gray.

            - Que tipo de homem?

            - Bem, trajado modestamente, com a barba por fazer. Parecia pouco mais que um vagabundo. Pregou-lhe um grande susto.

            - Uma petição, porventura?

            - Foi o que ela pensou, e tencionava jogá-lo fora. Mas deu-me carona, esta manhã, e tive oportunidade de ler parte durante o percurso. Parece um  documento mais político que outra coisa. A página do título tem o carimbo do logotipo da UFP e parece que foi redigido por Igor Komarov.

            - O futuro presidente... Curioso. Muito bem, deixe o resto a meu cargo.

            - Obrigado, Jock - agradeceu Gray, e levantou-se.

            O carácter íntimo dos nomes de batismo, mesmo entre funcionários de categorias distintas, é encorajado no seio do SIS britânico, com o intuito de incrementar a noção de camaradagem e reforçar a psicologia de nós-e-eles comum a todos os serviços dessa singular atividade. Somente o dirigente supremo merece o tratamento de “chefe” ou “senhor”.

            Gray preparava-se para abrir a porta, em cujo puxador já pousara a mão, quando o superior hierárquico o chamou.

            - Mais uma coisa, rapaz. Os apartamentos da era soviética tinham as paredes muito finas e não mudaram. O nosso terceiro secretário do Comércio apresenta os olhos vermelhos de falta de sono, esta manhã. Por sorte, a esposa encontra-se na Inglaterra. Na próxima vez, talvez você e a atraente Miss Stone não se importem de ser um pouco mais discretos.

            Hugo Gray tornou-se tão vermelho como os muros do Kremlin e retirou-se. O chefe de posto pousou o documento a um lado da mesa. Tinha a agenda particularmente sobrecarregada, e o embaixador queria falar-lhe às onze. Ora, sua excelência era um homem muito atarefado e decerto não desejava que o importunassem com objetos atirados para o interior dos carros do seu pessoal por vagabundos. Só naquela noite, em que ficou até mais tarde no seu gabinete, o mestre-espião leu aquilo a que mais tarde se chamou o Manifesto Negro.

 

Madrid, Agosto de 1984

            Antes de se transferir para um novo endereço, em Novembro de 1986, a embaixada da índia em Madrid situava-se no ornamental edifício do virar do século na Calle Velasquez, 93. No dia da Independência de 1984, o embaixador indiano promoveu, como era hábito, uma suntuosa recepção destinada aos principais membros do governo espanhol e ao corpo diplomático. A 15 de Agosto, como sempre.

            Devido ao calor intenso daquele mês e ao fato das entidades oficiais o escolherem normalmente para as suas férias, muitas figuras importantes achavam-se ausentes da capital e faziam-se representar por funcionários secundários.

            Do ponto de vista do embaixador, era lamentável, porém ninguém podia exigir que os indianos reescrevessem a História e alternassem a data da Independência. Os americanos fizeram-se representar pelo encarregado de negócios, acompanhado pelo subsecretário do Comércio, um certo Jason Monk. O chefe de posto da CIA na embaixada também se ausentara, pelo que este último, elevado ao segundo degrau de importância, o substituía. Fora um ano excelente para Monk. Completara o curso de seis meses de espanhol com uma ótima classificação e obtivera a promoção de GS-12 para GS-13.

            O rótulo de Government Schedule (GS)* poderia significar pouco ou nada para o pessoal do setor privado, porque constitui a escala de pagamento dos funcionários públicos do governo federal, mas no seio da CIA, indicava não só o salário, mas também a categoria, prestígio e progresso de uma carreira. Mais concretamente, numa movimentação de oficiais superiores, o diretor da CIA, William Casey, acabava de nomear um novo subdiretor (Operações) para substituir John Stein. O DDO** é o chefe de todo o braço da atividade secreta da agência e, por conseguinte, tem a seu cargo todos os agentes em campanha. O novo homem era o antigo recrutador de Monk, Carey Jordan.

            Finalmente, depois de concluir o curso de espanhol, Monk fora colocado, não na Divisão da América Latina, mas na da Europa Ocidental, onde só havia um país em que se falava aquele idioma  a própria Espanha. Isto não significava que fosse um território hostil, muito pelo contrário. No entanto, para um agente da CIA de trinta e quatro anos, solteiro, a trepidante capital espanhola batia, de longe, aos pontos, Tegucigalpa.

            Devido às boas relações existentes entre os Estados Unidos e o seu aliado espanhol, a maior parte da atividade da CIA não consistia em espiar o país, mas em colaborar com o órgão da contra-espionagem local e observar atentamente a vasta comunidade soviética e da Europa Oriental, infestadas de agentes hostis. Em apenas dois meses, Monk criara algumas boas amizades com a agência doméstica espanhola, muitos de cujos funcionários superiores datavam dos tempos de Franco e não morriam de amores pelo comunismo. Como tinham alguma dificuldade em pronunciar “Jason”, que, em castelhano, se converte em algo como “Xhasson”, haviam-no cognominado de “El Rúbio” e simpatizavam com ele. Na verdade, Monk exercia esse efeito nas pessoas.

*  Quadro do Governo. (N. do T.)

** Deputy Diretor Operation. (N. do T.)

 

            A recepção era acalorada e típica  grupos de pessoas circulavam com lentidão, ingerindo o champanhe do governo indiano, que aquecia segundos depois de se encontrar na taça, e conversando de pouco mais que banalidades. Monk, que considerava cumprida a sua missão no local como representante do Tio Sam, preparava-se para efetuar uma retirada estratégica, quando descortinou um rosto conhecido.

            Deslizando discretamente por entre a multidão, postou-se atrás do homem e aguardou que terminasse o diálogo com uma dama de sari.

            - Que aconteceu ao seu filho, meu amigo? - perguntou em russo.

            O outro estremeceu e voltou-se. Em seguida, exibiu um sorriso.

            - Restabeleceu-se - informou Nikolai Turkin. Atualmente, goza de perfeita saúde.

            - Ainda bem, e tudo  indica que a sua carreira também sobreviveu.

            Assentiu, com uma inclinação de cabeça. Aceitar um favor do inimigo constitui um delito grave e, se o fato fosse conhecido, ele não teria voltado a sair da URSS. No entanto, vira-se compelido a colocar-se à mercê do professor Glazunov. O velho cirurgião também tinha um filho e acreditava intimamente que o seu país devia colaborar com os melhores estabelecimentos de investigação do mundo em questões de natureza médica. Por conseguinte, decidiu não denunciar o jovem oficial e aceitou modestamente os elogios dos colegas pela notável descoberta.

            - Mas foi por pouco - acrescentou Turkin.

            - E se fôssemos jantar? - propôs Monk. Percebendo a hesitação do soviético, apressou-se a erguer as mãos e acrescentar: - Sem idéias preconcebidas. Prometo que não haverá engodo.

            O outro descontraiu-se. Ambos sabiam ao que o interlocutor se dedicava. O fato de Monk falar um russo tão perfeito indicava que não devia pertencer à seção comercial da embaixada dos Estados Unidos. Por seu turno, o americano sabia que Turkin ingressara no KGB, provavelmente na Linha KR, ramo da contra-espionagem, em virtude da liberdade em ser visto conversando com ocidentais.

            O termo “engodo” denunciava a situação, e a circunstância dos americanos poderem empregá-lo em tom jocoso revelava que era sugerida uma breve trégua na Guerra Fria. com efeito, um agente dos serviços secretos mencionava “engodo” ou “engodo frio”, quando propunha a alguém do campo contrário a troca de equipes.

            Três noites mais tarde, os dois homens dirigiram-se separadamente a uma pequena rua transversal na parte antiga de Madrid, chamada Calle de los Cuchilleros dos amoladores de facas. Mais ou menos a meio, havia uma porta pesada de madeira de acesso a degraus que conduziam a uma adega de arcadas de tijolos, antigo armazém de vinho que datava da Idade Média, onde agora, desde longa data se serviam iguarias tradicionais espanholas sob a designação de Sobrinos de Botin. As velhas arcadas formavam compartimentos, com uma mesa no centro, e Monk e o seu convidado tinham um por sua conta.

            A refeição foi excelente, e Monk pediu uma garrafa de Marquês de Riscai tinto. Evitaram propositadamente os assuntos profissionais e trocaram impressões sobre esposas e filhos, e o americano admitiu que ainda os não tinha e continuava solteiro. O pequeno Yuri frequentava o colégio, mas passava as férias grandes com os avós. Entretanto, o vinho esgotou-se e mandaram vir nova garrafa.

            A princípio, Monk não se deu conta de que, por trás da fachada de afabilidade, Turkin nutria uma revolta surda, não contra os Estados Unidos, mas contra o sistema que quase lhe matara o filho. A segunda garrafa de Marquês de Riscai estava quase vazia, quando perguntou subitamente:

            - Gosta de trabalhar para a CIA?

            “Trata-se de um engodo?”, refletiu Monk. “O cara pretende me recrutar?”

            - Não tenho razões de queixa - declarou com desprendimento, enquanto voltava a encher os copos, olhando a garrafa e não o russo.

            - Se tem problemas, eles o apoiam?

            - Com  certeza.  A mão que segurava a garrafa  mantinha-se  firme. - Os   meus superiores acodem sempre que o pessoal precisa de ajuda. Faz parte do código.

            - Deve ser estupendo trabalhar para pessoas que desfrutam de tanta liberdade.

            Por fim, pousou a garrafa e olhou o interlocutor. Prometera abster-se de lançar qualquer engodo, mas fora Turkin que o fizera... a si próprio.

            - Escute,  amigo.  O  sistema a  que  pertence vai  mudar. Muito em breve. Nós podíamos contribuir para acelerar a transição. Yuri será um homem livre.

            Andropov morrera, apesar dos medicamentos provenientes de Londres, e sucedera-lhe outro geriátrico, Konstantin Chernenko, que tinha de ser amparado para se deslocar de um lado para o outro. Falava-se, porém, de ventos novos que sopravam no Kremlin  um homem mais jovem chamado Gorbachev.

            Quando tomavam café, Turkin foi recrutado. Daí em diante, permaneceria colocado no coração do KGB, mas trabalharia para a CIA.

            Monk estava em maré de sorte, porque o seu superior, o chefe de posto, se ausentara de férias. Do contrário, teria de entregar Turkin a outros para que o industriassem. Assim, coube-lhe a tarefa de codificar a mensagem telegráfica ultra-secreta destinada a Langley para descrever o recrutamento.

 

            Houve, naturalmente, ceticismo geral. Um major da Linha KR pertencente ao setor mais confidencial do KGB representava uma presa especial. E, numa série de reuniões secretas em diferentes pontos de Madrid durante o resto do Verão, Monk inteirou-se de mais detalhes sobre o seu contemporâneo soviético.

            Nascido em Omsk, Sibéria Ocidental, em 1951, filho de um engenheiro da indústria militar, Turkin não pudera ingressar na universidade, como pretendia, aos dezoito anos, e alistara-se no exército, sendo colocado nos Guardas Fronteiriços, nominalmente sob o controle do KGB. Aí, foi “detectado” e enviado para o departamento de contra-espionagem no Liceu Dzerzhinsky, onde aprendeu inglês.

            Depois, juntamente com um pequeno grupo, foi transferido para o centro de espionagem no estrangeiro, o prestigioso Instituto Andropov. À semelhança de Monk, do outro lado do mundo, fora considerado apto para grandes vôos. Para quem não tinha experiência do KGB, nem dominava idiomas estrangeiros, havia cursos de dois e três anos, naquele estabelecimento. Turkin, que reunia ambas as condições, frequentou um curso de um ano. Quando o completou com distinção, foi autorizado a entrar para o Diretorado K do Primeiro Diretorado Principal  contra-espionagem no seio do braço da espionagem em geral. O chefe do “K” naqueles dias era o general mais jovem do KGB, Oieg Kalugin.

            Ainda apenas com vinte e sete anos, Turkin casou em 1978 e teve um filho no mesmo ano, Yuri. Em 1982, atribuíram-lhe a primeira colocação no estrangeiro, em Nairobi, e a tarefa inicial de penetrar o posto da CIA no Quênia e recrutar agentes aí ou em qualquer outro lugar do território queniano. A comissão de serviço foi interrompida prematuramente pela doença do filho.

            Entregou a sua primeira encomenda à CIA, em Outubro. Ciente de que fora instalado um sistema completo de comunicações secretas, Monk levou-a pessoalmente para Langley. Tratava-se de autêntica dinamite. Turkin destruiu quase toda a operação do KGB na Espanha. Para proteger a sua fonte, os americanos transmitiram aos espanhóis o que sabiam pouco a pouco, certificando-se de que os resultados por eles conseguidos nas diligências confidenciais contra os soviéticos parecessem fruto da sua própria iniciativa. Em cada caso, foi permitido ao KGB tomar conhecimento (através de Turkin) que o agente cometera um lapso inconcebível que conduzira à sua própria captura. Sem que suspeitasse de nada, Moscou perdeu toda a sua operação ibérica.

            Nos seus três anos em Madrid, Turkin ascendeu à categoria de sub residente, o que lhe facultava o acesso a quase tudo. Em 1987, foi mandado de volta a Moscou e, um ano mais tarde, tornava-se chefe de todo o Ramo K do Diretorado, mo seio do vasto apparat da Alemanha Oriental, até à retirada final após o colapso do Muro de Berlim e depois do comunismo e a reunificação com a Alemanha Federal, em 1990. Durante todo esse tempo, embora fornecesse centenas de mensagens e encomendas secretas através de receptáculos de cartas mortas*, espiões tem vários “contactos”, ou “controladores”, numa carreira de seis anos, porém o russo fez sempre finca-pé nisso, e Langley teve de ceder.

            Quando regressou a Langley, no Outono de 1986, Monk foi chamado ao gabinete de Gary Jordan.

            - Estive examinando o material e considero-o bom - disse o DDO.  Chegamos a admitir a possibilidade de se tratar de um duplo, mas os agentes espanhóis que ele aniquilou são de primeira linha. O seu homem merece inteira confiança. bom trabalho.

            Monk inclinou a cabeça em silêncio, satisfeito com o que ouvia.

            - Há só uma coisa prosseguiu o outro. Não estou metido nisto há meia dúzia de dias. O meu relatório sobre a estratégia de recrutamento é adequado, mas falta o esclarecimento de um detalhe. Por que concordou em trabalhar para nós?

            Monk revelou o que omitira no relatório: a doença do filho em Nairobi e o medicamento do Walter Reed.

            - Eu devia cortar antes - acabou Jordan por declarar, levantando-se e aproximando-se  da janela. A floresta de vidoeiros e faias que se estendia até o rio Potomac constituía uma massa compacta vermelha e dourada, com a folhagem na iminência de começar a cair. - Não conheço ninguém  na agência que o deixasse safar-se sem um favor em troca de remédio. Você se arriscou a não voltar a vê-lo. Teve muita sorte. Sabe o que Napoleão disse sobre os generais?

            - Não, senhor.

            - “É-me indiferente se são bons. Interessa-me mais que tenham sorte”. Você é algo bizarro, mas dispõe de uma dose satisfatória desse ingrediente. Sabe que vamos ter de transferir o seu homem para a Divisão SE?

            No topo final da CIA, havia sempre o Diretor. Logo abaixo dele, figuravam os dois diiretorados principais: Espionagem e Operações. O primeiro, chefiado pelo Subdiretor (Espionagem), ou DDI*, tinha a seu cargo a tarefa de coordenar e analisar a enorme massa de informação “em bruto” que chegava incessantemente, para extrair dela a polpa de espionagem que seguiria para a Casa Branca, Conselho de Segurança Nacional, Departamento de Estado, Pentágono etc.

            A compilação atual era efetuada pelas Operações, chefiadas pelo DOO. O respectivo Diretorado subdividia-se em divisões, em conformidade com um mapa global: América Latina, Médio Oriente, Sueste Asiático, e assim sucessivamente. Mas nos quarenta anos de Guerra Fria, de 1950 a 1990 e colapso do comunismo, a divisão-chave era a Européia do Leste Soviético, conhecida por Divisão SE.

            Os membros de outras divisões irritavam-se com frequência pelo fato de, mesmo que fossem eles que cultivassem e recrutassem um «bem» soviético valioso em Bogotá ou Djacarta, ser este transferido para o controle da Divisão SE, que passava a «manipulá-lo». Em obediência à lógica, um d’ia seria transferido de Bogotá ou Djacarta provavelmente de regresso à URSS.

            Como o principal inimigo era a União Soviética, a Divisão SE tornou-se a unidade principal do Diretorado das Operações. Embora Monk se tivesse formado em russo na faculdade e passado anos a consultar publicações soviéticas num recanto do arquivo, teve de prestar serviço na Divisão de África e sujeitar-se a uma comissão na Europa.

            - Sim, senhor - respondeu à pergunta do superior.

            - Quer acompanhá-lo?

            - Sem dúvida - assentiu, sem hesitar.

            - Muito bem. Já que foi você que o recrutou, passará a orientá-lo.

            Foi transferido para a Divisão SE passados menos de oito dias, com a incumbência de “dirigir” o major Nikolai llyioh Turkin, do KGB. Não voltou a Madrid para residir, mas visitou-a, encontrando-se com o russo discretamente em lugares próprios para piqueniques na Serra do Guadarrama, onde conversavam de milhares de coisas, enquanto Gorbachev assumia o poder e os programas simultâneos da perestroíka e glasnost começavam a atenuar o rigor das leis. Monk alegrava-se com a situação, porque, além de um “bem”, considerava Turkin um amigo.

            Já em 1984, a CIA começava a tornar-se, alguns diriam que já se tornara,  numa vasta e ruidosa burocracia, mais dedicada ao trabalho de expediente do que à recolha de elementos propriamente de espionagem. Monk odiava a burocracia e detestava o trabalho de  mesa,  convencido  de  que  aquilo  que  era escrito podia ser roubado ou copiado. No ultra-secreto coração da Divisão SE, encontravam-se os 301 processos que enumeravam os detalhes de todos os agentes soviéticos recrutados pelo Tio Sam. Naquele Outono, ele “se esqueceu” de anotar os elementos sobre o major Turkin, cujo nome de código era GT Lisandro.

 

            Jock MacDonald, chefe de posto do SIS britânico em Moscou, teve um jantar que não podia evitar, na noite de 17 de Julho. Regressou por momentos ao seu gabinete para depositar algumas notas que escrevera durante a refeição não considerava o apartamento em que vivia à prova de assaltos e a vista pousou por acaso numa pasta de cartolina preta. Abriu-a quase distraidamente e começou a ler. O texto estava escrito em russo, naturalmente, porém ele era bilíngue.

            Acabou por não ir para casa. Pouco depois da meia noite, telefonou à esposa para a tranquilizar e tornou a concentrar-se no conteúdo da pasta de cartolina preta. Eram cerca de quarenta páginas, divididas em vinte capítulos.

            Leu com particular atenção as passagens relativas ao restabelecimento do partido único e reativação da rede de campos de trabalhos forçados para os dissidentes e outros indesejáveis.

            Inteirou-se, com assombro crescente, da descrição da solução final para a comunidade judaica e, em particular, do tratamento destinado aos chechenos, sem esquecer todas as outras minorias raciais.

            Estudou a seção respeitante ao pacto de não-agressão com a Polónia para eliminar a fronteira ocidental e a reconquista de Belarus, os Estados do Báltico e as repúblicas da URSS a sul: Ucrânia, Georgia, Armênia e Modlova.

            Ingeriu os parágrafos concernentes ao restabelecimento do arsenal nuclear e vigilância atenta aos inimigos circundantes e assimilou com incredulidade as páginas que descreviam o destino da Igreja Ortodoxa Russa e todas as outras confissões religiosas.

            Segundo o manifesto, as ridicularizadas e humilhadas forças militares, agora recolhidas nos quartéis, seriam rearmadas e reequipadas, não como unidades de defesa, mas de reconquista. Os habitantes dos territórios recuperados trabalhariam como escravos para produzirem alimentação destinada aos amos russos. O controle sobre elas competiria às populações étnicas dos territórios exteriores, sob a égide de um governador imperial de Moscou. A disciplina nacional seria assegurada pelos Guardas Negros, cujos efetivos aumentariam para duzentos mil homens, os quais se ocupariam igualmente do tratamento especial dos indivíduos anti-sociais: liberais, jornalistas, sacerdotes, homossexuais e judeus.

            O documento também se propunha revelar a resposta a um enigma que já intrigava MacDonald e outros: a fonte dos fundos ilimitados da campanha da União das Forças Patrióticas.

            Na sequência de 1990, o mundo do crime da Rússia constituíra uma vasta manta de retalhos de bandos, que, nos primeiros tempos, se entregavam a implacáveis guerras entre si e deixavam dezenas de mortos abandonados nas ruas. A partir de 1995, fora iniciada uma política de unificação e, em 1999, todo o país, da fronteira ocidental até aos Montes Urais, constituía o feudo de quatro grandes organizações de criminosos, com realce para os do Dolgoruki, com base na capital. Se o documento descrevia a realidade, eram eles que financiavam a UFP, para obterem a devida compensação no futuro a eliminação de todos os bandos e supremacia do seu.

            Eram cinco horas da madrugada, quando, após a leitura pela quinta vez, Jock MacDonald fechou o Manifesto Negro. Em seguida, reclinou-se na cadeira e fixou o olhar no teto. Havia muito que deixara de fumar, mas agora tinha vontade de um cigarro. Por fim, levantou-se, guardou a pasta de cartolina preta no cofre e abandonou a embaixada. No passeio, aos primeiros clarões do dia, fixou o olhar no muro do Kremlin, do outro lado do rio, a cuja sombra um homem idoso de capote quase no fio se sentara, quarenta e oito horas antes, para contemplar a embaixada.

            Os mestres-espiões não costumam conceber-se para serem membros da Igreja, mas as aparências e as profissões podem revelar-se enganadoras. Nas Terras Altas da Escócia, existe uma longa tradição entre a aristocracia de aderência de devotos à fé católica romana. Foram os condes e barões que se juntaram aos homens do seu clã sob a bandeira do católico príncipe Carlos, em 1745, para serem varridos, um ano mais tarde, no campo de Culloden, pelo protestante hanoveriano d’uque da Cumberlândia, terceiro filho de Jorge II.

            O chefe de posto provinha do coração dessa tradição. O pai era um MacDonald de Fassifern, porém a mãe descendia da casa de Fraser de Lovat e educara-o em obediência à fé. Jock começou a caminhar. Nas proximidades da ponte seguinte, erguia-se o Bolshoi e, mais adiante, a Catedral de São Basílio Contornou o edifício de cúpula em forma de cebola, continuou em direção ao centro da cidade e, na Praça Nova, cortou à esquerda.

            Pouco depois, avistava as primeiras filas matinais de indivíduos andrajosos à entrada de uma cozinha econômica. Existia apenas uma a seguir ao largo onde outrora funcionara o Comitê Central do Partido Comunista da URSS.

            Havia várias organizações de caridade envolvidas no auxílio à Rússia, do mesmo modo que as Nações Unidas, a um nível mais oficial, e o Ocidente contribuíra generosamente, como no passado em relação aos orfanatos romenos e refugiados da Bosnia. Mas tratava-se de uma tarefa gigantesca, pois os necessitados não paravam de se transferir do campo para a capital, apesar de serem expulsos pelos homens das Polícias e não tardavam a reaparecer em outras áreas da cidade.

            Conservavam-se estoicamente na fila de espera, idosos e andrajosos, mulheres com bebês nos braços a classe dos camponeses imutável desde Potemkin, com a passividade e paciência habituaiis. Em fins de Julho, a temperatura era suficientemente elevada para que se mantivessem vivos. Mas quando chegasse o frio cortante da Rússia... o mês de Janeiro anterior fora mau, porém o próximo... John MacDonald meneou a cabeça ao considerar a perspectiva e prosseguiu em frente. O percurso conduziu-o à Praça Lubyanka, conhecida anteriormente por Praça Dzerzhinsky, onde, durante décadas se erguera a estátua de Iron Feliks, fundador da máquina de terror de Lenin, a Cheka. Ao fundo, situava-se o enorme bloco cinzento denominado simplesmente Centro de Moscou, quartel-general do KGB.

            Para além do velho edifício deste último, encontrava-se a famigerada prisão de Lubyanka, onde fora extraído um sem número de confissões e respectivas execuções. Logo a seguir, há duas ruas: Pequena Lubyanka e Grande Lubyanka. MacDonald optou pela primeira, onde, mais ou menos a meio, se localiza a igreja de São Luís, frequentada por grande parte da comunidade diplomática e alguns dos poucos católicos russos.

            Duzentos metros atrás dele e fora do seu campo visual devido à interposição do bloco do KGB, numerosos vagabundos dormiam à entrada da gigantesca loja de brinquedos Detkymir, ou Mundo das Crianças.

            Dois homens corpulentos, de calças de ganga e blusões de couro pretos, aproximaram-se e começaram a voltar os corpos adormecidos. Um destes usava o velho capote do Exército, com algumas medalhas obscuras suspensas do peito. Eles estremeceram e debruçaram-se sobre o vulto imóvel para acordá-lo.

            - Chama-se Zaitsev?  inquiriu um dos homens.

            O interpelado assentiu, com um movimento de cabeça. Ato contínuo o outro puxou um celular do bolso do blusão, apertou algumas teclas e falou. Cinco minutos mais tarde, um Moskvitch encostava ao passeio e os dois homens ergueram o vulto do chão e transferiram-no para a traseira do veículo, subindo também em seguida. O velho tentou dizer algo antes de entrar, mas surgiu o brilho de aço inoxidável diante da sua boca.

            O Moskvitch contornou a praça e enveredou pela rua da Pequena Lubyanka, passando diante do diplomata britânico que percorria o passeio.

            Este último entrou na igreja, seguiu até ao final da nave lateral e ajoelhou-se diante do altar. A seguir, ergueu os olhos para a figura do Cristo crucificado e rezou. As orações de uma pessoa são de uma natureza extremamente privada, mas as dele diziam: “Suplico-te que seja um documento falsificado, meu Deus. Do contrário, aguarda-nos uma calamidade indescritível”.

 

            Jock MacDonald regressou ao local de trabalho antes da chegada do pessoal. Não conseguira dormir, mas ninguém saberia. Como meticuloso que era em tudo, lavara-se e barbeara-se no banheiro do térreo e vestira a camisa de reserva que costumava conservar numa gaveta da mesa.

            O seu adjunto, Bruce “Gracie” Fields, fora acordado no seu apartamento, com a recomendação de que se apresentasse às nove horas. Hugo Gray, que desta vez dormira na sua própria cama, recebeu uma convocação similar. Às oito, MacDonald indicou aos homens da segurança ambos antigos NCO* do Exército  que preparassem a “ampola” para uma reunião às nove e quinze.

            - Ontem, veio parar em minhas mãos determinado documento - anunciou aos dois colegas, poucos minutos mais tarde. - Não há necessidade de lhes revelar a natureza do conteúdo. Basta mencionar que, se for uma falsificação ou mistificação, estamos perdendo tempo. Se for autêntico... o que ainda não sei...  pode tratar-se de  material  de gravidade transcendente. Importa-se de explicar os antecedentes ao Gracie, Hugo?

            Este último explicou o que sabia e Celia Stone lhe comunicara.

            - Num  mundo perfeito – respondeu MacDonald, empregando uma das suas expressões favoritas, que levaram os dois jovens a dissimular sorrisos, - eu gostaria de saber quem o velho era, as circunstâncias em que o material lhe foi parar às mãos e a razão pela qual escolheu esse carro para se desfazer dele. Conheceria Celia Stone? Saberia que se tratava de uma viatura da embaixada? Em caso afirmativo, por que nos preferiu? Para já, temos alguém que saiba desenhar?

            - Desenhar?  repetiu Fields.

            - Para criar uma imagem, um retrato.

            - Creio que uma das esposas dirige um curso de arte. Era ilustradora de livros para crianças, em Londres. Casou com um cara qualquer do Supremo Tribunal.

            - Certifique-se. Se for assim, ponha-se em contato com Celia Stone.  Entretanto, vou  conversar com ela. Mais duas coisas. O fulano pode tentar nos abordar de novo ou pairar nas redondezas do edifício. Vou pedir ao cabo Meadows e ao sargento Reynolds que vigiem a entrada principal. Se o avistarem, informarão um de vocês. Procurem convencê-lo a entrar, para tomar chá. Em  segundo lugar, talvez tente algum truque do gênero em outro lugar e seja preso.  Não conhecia  alguém na Polícia, Gracie?

            O interpelado assentiu, com um movimento de cabeça. Era o mais antigo dos três em Moscou e, quando chegara, herdara uma gama de fontes de baixo nível na cidade, a que depois acrescentara algumas de sua própria criação.

            - O inspetor Novikov. Trabalha na Brigada de Homicídios, na sede de Petrovka. Tem sido útil, ocasionalmente.

            - Dê-lhe um toque - recomendou MacDonald. Nada de alusões a documentos largados dentro de carros. Diga apenas que há um impertinente que aborda o nosso pessoal na rua para exigir uma entrevista com o embaixador, e gostaríamos que parasse de nos incomodar. Mostre-lhe o retrato, se o conseguirmos, mas volte a trazê-lo. Quando é o próximo encontro?

            - Não há nenhum marcado. Costumo telefonar-lhe de uma cabina.

            - Muito bem. Veja se nos pode ser útil. Tenho de me deslocar a Londres por alguns dias. Fique a olhar pela loja, Gracie.

           

            Celia Stone foi interceptada no átrio ao chegar e ficou algo surpreendida, quando lhe foi pedido que procurasse MacDonald, não no gabinete mas na sala de reuniões A, ignorava que era à prova de dispositivos de escuta.

            O chefe de posto mostrou-se muito atencioso e conversou com ela durante cerca de uma hora. Tomou nota de todos os pormenores e Célia aceitou a versão de que o velho assediara outros membros do pessoal com pedidos para que o embaixador o recebesse. Estava disposta a fornecer os elementos necessários para elaborar um retrato do homem? com certeza, tudo o que fosse necessário.

            Com a assistência de Hugo Gray, Celia passou o período do almoço com a esposa do funcionário superior do Supremo Tribunal, a qual, com os elementos fornecidos, efetuou uma reprodução a lápis e carvão do suposto vagabundo, com realce para os três dentes de aço. No final, Célia inclinou a cabeça e declarou:

            - É exatamente assim.

* Noncommissioned Officer, equivalente a cabo ou sargento. (N. do T.)

           

            À tarde, MacDonald indicou ao cabo Meadows que se munisse de uma arma de fogo e o conduzisse ao aeroporto Sheremetyevo. Embora duvidasse de que pretendessem interrogá-lo, não sabia se o legítimo proprietário do documento que levava na pasta tentaria recuperá-lo. Como precaução adicional, prendeu esta ao pulso com uma corrente metálica, que encobriu dentro da manga de um impermeável leve de Verão.

            De qualquer modo, quando o Jaguar abandonou o recinto da embaixada, tudo aquilo permanecia invisível. Reparou num Chaika estacionado na área do Cais Sofiskaya, mas não se pôs em marcha para segui-lo, pelo que não pensou mais nele. Na verdade, esse veículo aguardava que emergisse um pequeno Rover vermelho.

            No aeroporto, Meadows escoltou MacDonald até à barreira, onde o passaporte diplomático impedia todas as inspeções habituais. Depois de breve permanência na sala de embarque, embarcou no avião da British Airways com destino a Heathrow e, após uma descolagem, soltou um leve suspiro de alívio e pediu um gim com água tônica.

 

Washington, Abril de 1985

            Se o arcanjo Gabriel tivesse descido dos céus para perguntar ao presidente da equipe  do KGB na embaixada soviética qual dos membros da CIA gostaria de se converter em traidor e espião em favor da Rússia, o coronel Stanislav Androsov não hesitaria muito tempo. Responderia:

            - “Escolho o chefe do grupo de contra-espionagem colocado na Divisão Soviética do Diretorado de Operações”.

            Todas as agências de serviços secretos têm um ramo de contra-espionagem trabalhando com elas no seio do aparelho. A missão desses funcionários, que nem sempre os torna populares entre os colegas, consiste em investigar todos os outros. Trata-se de uma função que se divide em três alíneas.

            A Cl desempenha um papel fundamental no interrogatório dos desertores do “outro lado”, tentando simplesmente descobrir se é sincero ou uma implantação. Um falso desertor pode apresentar-se portador de material importamte, porém a sua tarefa primordial consiste em difundir desinformação  quer para convencer os novos chefes de que não têm um traidor no seu seio  quando têm mesmo ou de qualquer outro modo destinado a conduzi-los ao longo de um labirinto de becos sem saída. De uma “implantação” bem concebida, podem resultar anos de tempo e esforços perdidos.

            A contra-espionagem também investiga os elementos da oposição, os quais, embora não se transfiram pessoalmente, permitem que os contratem como espiões e são na realidade agentes-duplos. Agente duplo é aquele que se finge recrutados, apesar de continuar leal à sua equipe  de origem e a atuar sob as suas ordens. Fornece alguns grãos de informação autêntica para estabelecer a sua autenticidade, até que crava o verdadeiro «ferrão», que é inteiramente falso e pode provocar o caos entre as pessoas para as quais se supõe que trabalha.

            Finalmente, a Cl tem de providenciar para que o seu próprio lado não seja penetrado e albergue um traidor no seu regaço.

            Para conseguir estes objetivos, precisa de ter acesso total. Pode consultar os processos de todos os desertores e respectivos interrogatórios, que abarcam vários anos. Ou examinar as carreiras e recrutamento de todos os «bens» correntes ao serviço de uma agência instalada profundamente no coração do território do oponente e expostos a todos os perigos concebíveis de traição. E a Cl também pode exigir o processo pessoal de qualquer funcionário do seu próprio lado. Tudo em nome da verificação da lealdade e autenticidade.

            Devido à rigorosa compartimentação e ao princípio da «necessidade de saber», um funcionário dos serviços secretos que exerça o controle de uma ou duas operações pode trair operadores, mas, normalmente, nunca saberá em que trabalham os seus colegas. Somente a Cl tem acesso a todos. Era por essa razão que, se o arcanjo lhe tivesse feito a pergunta, o coronel Androsov teria escolhido o chefe da Cl da Divisão Soviética. com efeito, os funcionários da contra-espionagem têm de ser os mais leais dos leais.

            Em Julho de 1983, Aldrich Hazen Ames foi nomeado para dirigir o grupo da Cl relativo aos soviéticos da Divisão SE. Nessa qualidade, tinha acesso total aos seus dois sub-ramos: A Seção da URSS, responsável de todos os “bens” soviéticos ao serviço dos Estados Unidos, mas colocados no interior daquele país, e a Seção de Operações Externas, respeitante aos que atuavam fora dele.

            Em Abril de 1985, com dificuldades financeiras, entrou na embaixada soviética na 16th Street de Washington, pediu para ser recebido pelo coronel Androsov e ofereceu-se para espiar por conta da Rússia. Em troca de cinquenta mil dólares.

            Acompanhavam-no alguns elementos de peso. Revelou os nomes dos três russos que haviam abordado a CIA com propostas para trabalhar para ela. Alegaria mais tarde que os julgava agentes duplos e, por conseguinte, não mereciam confiança. Como quer que fosse, não se tornou a ouvir falar dos indivíduos em causa. Entregou igualmente uma lista do pessoal interno da CIA, com o seu próprio nome em realce, para provar que era quem afirmava. Por fim, retirou-se e passou pela segunda vez no espaço abarcado pelas duas câmaras do FBI que filmavam a entrada. As gravações nunca foram reproduzidas.

            Dois dias mais tarde, recebeu os cinquenta mil dólares. Foi apenas o começo. O traidor mais pernicioso da história da América, desde Benedict Arnold, inclusive, começara a trabalhar.

            Analistas posteriores se sentiriam intrigados com dois enigmas. O primeiro consistia em como semelhante incompetente e alcoólico funcionário podia ter ascendido àquela elevada posição de confiança. O segundo dizia respeito à circunstância de, depois de as hierarquias superiores saberem, já em Dezembro, que havia um traidor no seu seio, só ter sido desmascarado passados oito anos, período em que causou numerosos e profundos dissabores à CIA.

            A explicação deste último tem várias facetas. Incompetência, letargia e complacência no interior da agência, sorte do traidor, uma hábil campanha de desinformação promovida pelo GB para proteger a sua toupeira, mais letargia, excesso de escrúpulos e indolência em Langley, pistas falsas, mais sorte do traidor e, finalmente, a recordação de James Angleton.

            Este fora chefe da Cl na agência que acabara por se converter numa lenda e terminara dominado pela paranóia. Esse estranho homem, sem vida privada nem sentido de humor, persuadiu-se de que havia uma toupeira do KGB, com o nome de código de Sasha, no interior de Langley. Na perseguição fanática movida ao inexistente traidor, destruiu a carreira de agentes leais sucessivos, até que, por fim, colocou o Diretorado das Operações de rastos. Os que lhe sobreviveram, promovidos a cargos elevados em 1985, estavam desolados com a perspectiva de executar o que era inevitável: procurar a verdadeira toupeira com o maior rigor.

            Quanto ao primeiro enigma, a resposta pode dar-se em duas palavras: Ken Mulgrew.

            Nos vinte anos na agência antes de se tornar traidor, Ames exercera três comissões de serviço fora de Langley. Na Turquia, o seu chefe de posto considerou-o um desperdício absoluto de espaço o veterano Dewey Claridge detestou-o e odiou-o, desde o primeiro momento.

            Na delegação de Nova Iorque, teve uma aragem de sorte que lhe proporcionou dividendos. Embora o subsecretário-geral das Nações Unidas, Arkady Shevchenko, tivesse trabalhado para a CIA antes da chegada de Ames e a sua deserção final para os Estados Unidos, em Abril de 1978, fosse orientada por outro funcionário, ele “manipulou” o ucraniano no lapso de tempo intermédio. Entretanto, já era um alcoólico inveterado.

            A sua terceira comissão, no México, foi um fiasco. Estava permanentemente embriagado, insultava colegas e estrangeiros, caiu e foi ajudado pela Polícia local a regressar para casa, infringiu todas as normas operacionais imagináveis e não recrutou ninguém. Passava a maior parte do tempo bebendo com um russo, Igor Shurygin, chefe da contra-espionagem do KGB na embaixada soviética. Talvez fosse ele quem indicou o constantemente toldado americano como um “possível”.

            Em ambas as comissões no estrangeiro, os relatórios de serviço de Ames eram pavorosos. Num espectro de eficiência de 200 funcionários, ele figurava em 198. Normalmente, uma carreira de semelhante natureza nunca se aproximaria do topo da escala. No princípio dos anos oitenta, todos os hierarcas superiores  Carey Jordan, Dewey Claridge, Milton Bearden, Gus Hathaway e Paul Redmondo julgavam um artigo inútil. Mas não Ken Mulgrew, que se tornou seu amigo e protetor.

            Foi ele quem purificou os horríveis relatórios sobre as suas atividades, preparou o caminho e provocou as promoções. Como superior hierárquico de Ames, rejeitava as objeções e introduziu-o no grupo da Cl. Basicamente, eram companheiros de libações e, com a autocomiseração própria dos alcoólicos, concordavam que a agência era a todos os títulos injusta para ambos. Tratava-se de um erro de julgamento que em breve custaria muitas vidas.

           

            Leonidas Zaitsev, o Coelho, estava moribundo, embora não o soubesse. Tinha dores intensas, e isto não o ignorava.

            O coronel Grishin acreditava na dor. Tinha fé nela como meio de persuasão, exemplo para as testemunhas e forma de castigo. Zaitsev pecara, e as ordens de Grishin consistiam em que ele devia compreender perfeitamente o seu significado antes de morrer.

            O interrogatório prolongara-se por todo o dia e não houvera motivo para empregar a violência, porque o Coelho revelara tudo o que lhe fora perguntado. O coronel permanecera só com ele a maior parte do tempo, porque não queria que os guardas se inteirassem do que tinha sido roubado.

            Indicara-lhe, com notável afabilidade, que começasse pelo princípio, e ele obedecera. Tivera de repetir tudo várias vezes, até Grishin se convencer de que não fora omitido um único pormenor. Na realidade, não havia muito para revelar. Somente quando explicou por que o fizera, o coronel dominou a expressão de incredulidade com dificuldade.

            - Uma cerveja? A inglesa ofereceu-te uma cerveja?

            Por volta do meio dia, convenceu-se de que estava a par de tudo. Admitia que havia fortes possibilidades de que ao ver-se perante aquele espantalho, a jovem inglesa tratasse de se desfazer do documento, mas não podia ter certeza. Despachou uma viatura com quatro homens de confiança para vigiarem a embaixada e aguardarem que aparecesse o pequeno carro vermelho. Depois, o seguiriam e anotariam o endereço do seu destino.

            Pouco depois das três horas da tarde, Grishin transmitiu as últimas ordens aos guardas e retirou-se. Quando abandonava o recinto no seu veículo oficial, um minibus A-300 com o logotipo da British Airways na retaguarda rolava para o norte de Moscou, porém ele não se deu conta e ordenou ao motorista que o conduzisse à casa no Bulevar Kiselny.

            Eles eram quatro. Os joelhos do Coelho teriam se dobrado, mas dois seguravam-no com firmeza, cravando-lhe os dedos nos ombros. Quanto aos outros, um postou-se à frente e o colega atrás do prisioneiro. Atuavam com lentidão e socavam-no com eficiência.

            Os possantes punhos estavam munidos de pesadas soqueiras de aço. Os impactos esmagaram-lhe os rins, rasgaram o fígado e perfuraram o baço. Um pontapé inutilizou-lhe os testículos. O homem da frente “trabalhou” o abdomen meticulosamente e passou ao peito. Leonidas desmaiou duas vezes, mas a água fria de um balde fez-lhe recuperar os sentidos, e a dor reapareceu. As pernas deixaram de funcionar, pelo que os verdugos mantiveram o frágil corpo pousado nas pontas dos pés.

            Perto do fim, as costelas e o peito esquelético cederam e vergaram-se para dentro e duas cravaram-se profundamente nos pulmões. Uma substância morna, levemente salgada e viscosa, acudiu à garganta e impediu-o de respirar. O seu campo visual reduziu-se a um túnel e ele divisou uma estrada arborizada banhada pelo sol, em vez das paredes cinzentas que o rodeavam. Não conseguia ver quem falava, mas uma voz proferia em inflexão átona:

            - Vá, amigo, toma uma cerveja...

            Por último, a luz apagou-se para sempre.

 

Washington, Junho de 1985

            Quase dois meses exatos depois de receber o primeiro pagamento de cinquenta mil dólares, Aldrich Ames, numa única tarde, destruiu uma parte substancial da Divisão SE do Diretorado de Operações da CIA.

            Pouco antes da hora do almoço, depois de esquadrinhar os 301 processos de material ultra-secreto, transferiu três quilogramas e meio de documentos confidenciais e telegramas correntes para dois sacos de plástico de compras. com eles nas mãos, atravessou os labirínticos corredores em direção ao bloco de elevadores, desceu ao térreo e abriu a porta com seu cartão de identificação para abandonar o edifício, sem que qualquer guarda o interceptasse para perguntar o que continham os sacos. Em seguida, subiu para o seu carro, que se encontrava no vasto parque de estacionamento, e conduziu-o durante os vinte minutos que o separavam de Georgetown, elegante subúrbio de Washington, famoso pelos restaurantes de estilo europeu.

            Entrou no Chadwick’s, bar-restaurante na K Street, quase à beira da água, e encontrou-se com o contacto escolhido para ele pelo coronel Androsov, o qual, na sua qualidade de Residente do KGB, sabia que os olhos vigilantes do FBI não deixariam de vigiá-lo, se comparecesse pessoalmente. O contacto era um diplomata soviético “vulgar” chamado Chuvakhin.

            Ames entregou-lhe o que trouxera, sem sugerir sequer qualquer preço. Quando o recebesse, seria enorme, primeiro de muitos que o tornariam milionário. Os russos, normalmente forretas quando se tratava de dólares correntes, não voltaram a discutir preços daí em diante. Compreenderam que tinham descoberto um filão de ouro.

            Do Chadwick’s, os sacos de plástico seguiram para a embaixada e depois para a sede do Primeiro Diretorado Principal de Yasenevo, onde os analistas esfregaram os olhos de incredulidade.

            A proeza tornou Androsov uma estrela imediata e Ames o “bem” mais vital no firmamento. O comandante-geral do Primeiro Diretorado Principal, Vladimir Kryuchkov, inicialmente um bisbilhoteiro colocado no PDP pelo sempre desconfiado Andropov, mas depois transferido para vôos mais altos, ordenou sem demora a formação de um grupo ultra-secreto para se ocupar exclusivamente do material fornecido por Ames. Este foi batizado com o nome de código Kolokol, que significa Sino, e o pessoal passou a pertencer ao grupo Yolokol.

            Um oficial superior da CIA calculou posteriormente que quarenta e cinco operações anti-KGB, quase todo o menu da CIA, ruíram depois do Verão de 1985. Nenhum agente que figurava nos 301 processos roubados continuou a funcionar, após a Primavera de 1986.

            Nos sacos de compras, havia descrições de catorze, quase todo o conjunto de “bens” da Divisão SE na URSS. Os nomes verdadeiros não estavam incluídos, mas não era necessário. Qualquer detetive da Cl, informado da existência de uma toupeira no interior da sua própria rede de trabalho e de que o homem fora recrutado em Bogotá e depois industriado em Moscou, vislumbraria a situação sem dificuldade. Somente uma carreira se adaptava a essas colocações. O exame dos registros costumava bastar.

            Um dos catorze era na realidade um agente de longa data dos britânicos. Os americanos nunca souberam o seu nome, mas como Londres fornecera o seu material a Langley, a CIA conhecia a sua existência e pôde deduzir mais alguns pormenores. Tratava-se de um coronel do KGB recrutado na Dinamarca no princípio dos anos setenta e fora um “bem” dos ingleses durante doze. Apesar de já se achar sob suspeita, regressara a Moscou do seu posto de Residente na embaixada soviética em Londres para uma última visita. A traição de Ames limitou-se a confirmar as suspeitas russas do coronel Oleg Gordievsky.

            Outro dos catorze teve sorte ou foi esperto. Sergei Bohkan era agente dos serviços secretos militares soviéticos em Atenas e recebeu ordem inesperada para regressar a Moscou, sob o pretexto de que o filho tinha problemas nos exames da Academia Militar. Ora, ele sabia que o rapaz obtinha excelentes resultados nos estudos. Por conseguinte, “perdeu” o avião com destino ao seu país, entrou em contato com o posto da CIA na capital grega e foi levado de lá apressadamente.

            Os outros doze foram todos capturados, na própria URSS ou no estrangeiro. Estes últimos receberam convocações de diversas naturezas, todas falsas, e detidos à chegada. Interrogados intensamente, confessaram, sem uma única exceção. A alternativa consistia num interrogatório ainda mais “intenso”. Dois safaram-se com alguns anos de trabalhos forçados e residem atualmente na América. Os dez restantes foram torturados e executados.

           

            O primeiro ponto da escala de Jack MacDonald, quando desembarcou, no fim da tarde, em Heathrow, foi a sede do SIS, em Vauxhall Cross. Estava cansado, embora tivesse conseguido passar pelas brasas no avião, e a idéia de ir primeiro ao seu clube, a fim de tomar banho e mergulhar num sono reparador era tentadora. O apartamento que ocupava em Londres com a esposa, ainda em Moscou, não se achava disponível, porque fora alugado.

            Ansiava, porém, por guardar a pasta de cartolina preta em lugar seguro, antes de pensar em repousar. O carro oficial que o aguardava no aeroporto deixou-o à entrada do monstro de vidro verde na margem sul do Tamisa, onde o SIS se alojava desde que se mudara da velha e obscura Century House, sete anos atrás.

            Transpôs os sistemas de segurança, acompanhado do novato que fora buscá-lo em Heathrow e, por último, depositou o documento no cofre do chefe da Divisão da Rússia, que o acolheu com cordialidade, mas também alguma curiosidade.

            Uma  bebida,  sugeriu  Jeffrey  Marchbanks,  apontando para aquilo que parecia um arquivo, mas ambos sabiam que continha um bar portátil.

            - Boa idéia. Foi um dia longo e duro. Scotch.

            Abriu o móvel e contemplou o alcoólico repertório, MacDonald era escocês e preferia a mistela dos seus antepassados. Por conseguinte, verteu uma dose dupla de Macallan, sem gelo, e estendeu-a.

            - Sabia que você vinha, evidentemente, mas não o motivo. Conte lá.

            O outro descreveu a história desde o princípio. No final, Marchbanks observou:

            - Deve tratar-se de uma mistificação, sem dúvida. Em todo o caso, é das mais bizarras que ouvi até hoje. De quem?

            - Dos inimigos políticos de Komarov, certamente.

            - E não são poucos. Mas que maneira tão invulgar de apresentá-la!    Quase como se pedissem que jogassem o documento no lixo sem. Foi  por mero acaso que Hugo Gray o descobriu.

            - Bem, o passo seguinte consiste em ler. Já o fez, claro?

            - De ponta a ponta, ontem à noite. Como manifesto político, é...  desagradável.

            - Está em russo, certamente?

            - Exato.

            - Hum... Receio que as minhas noções do idioma não bastem. Precisamos da tradução.

            - Prefiro ser eu próprio a fazê-la - disse MacDonald. - Para o caso de não se tratar de uma mistificação. Compreenderá porquê, quando ler.

            - Muito bem, Jock. Sou todo ouvidos. Que pretende fazer?

            - Primeiro, ir ao clube, para tomar banho, barbear-me, jantar e dormir.  Voltarei lá pela meia-noite e trabalharei no assunto até à hora de abrir a loja. O procurarei então.

            Marctibanks assentiu, com uma inclinação de cabeça.

            - É conveniente que se sirva deste gabinete. Informarei a Segurança.

            Quando regressou, pouco antes das dez horas da manhã seguinte, encontrou MacDonald deitado no sofá, descalço, em mangas de camisa e nó da gravata desatado. A pasta de cartolina preta achava-se em cima da mesa, com um maço de folhas de papel de máquina ao lado.

            - Está tudo aí - informou, endireitando-se. - No idioma de Shakespeare. A propósito, o disquete continua na máquina, mas deve ser retirado e guardado em lugar seguro.

            Marchbank aquiesceu com um gesto, mandou vir café, pôs os óculos e iniciou a leitura. Uma loura esbelta e atraente, cujos pais decerto caçavam raposas, entrou com o café, sorriu e retirou-se.

            De súbito, Marchbanks parou de ler para exclamar:

            - O homem enlouqueceu, sem dúvida!

            - Concordo, se foi Komarov que escreveu isso. É potencialmente perigoso. Mas continue.

            Obedeceu. Quando terminou, encheu os pulmões de ar e expeliu-o com lentidão.

            - Tem de ser uma mistificação. Ninguém que pensasse isso com sinceridade o escreveria.

            - A menos que julgasse que só chegaria ao conhecimento de um número restrito de pessoas de extrema confiança.

            - Acha que foi roubado?

            - É uma possibilidade. Ou forjaram-no. Mas quem era o vagabundo e como se apoderou dele?

            Embrenhou-se em reflexões. Sabia que, se o Manifesto Negro tivesse sido forjado e constituísse uma mistificação, só provocaria dores de cabeça aos serviços, se o encarassem a sério. Por outro lado, se fosse autêntico, as dores de cabeça se intensificariam, se lhe minimizassem a importância.

            - Acho que vou informar disto o controlador e talvez o próprio chefe - acabou por declarar.

            O controlador do Hemisfério Oriental, David Brownlow, recebe-os ao meio-dia e o chefe convidou os três para almoçar na sua sala de jantar do último piso, com vista panorâmica do Tamisa e Ponte Vauxhall, à uma e quinze.

            Sir Henry Combs era quase sexagenário e cumpria o seu último ano como dirigente supremo do SIS. À semelhança dos seus predecessores desde Maurice Oldfield, ascendera ao cargo com períodos de serviço em todas as posições intermédias e aperfeiçoara a perícia e experiência durante a Guerra Fria, que terminara uma década atrás. Ao contrário da CIA, cujos diretores constituíam sempre nomeações políticas e nem sempre indivíduos talhados para essas funções, o SIS conseguira persuadir primeiros-ministros ao longo de trinta anos para escolher um dirigente experiente na matéria.

            E o sistema funcionara satisfatoriamente. Depois de 1985, três diretores sucessivos da Central Intelligence Agency admitiram que pouco lhes tinham revelado da gravidade do caso Ames, da qual se haviam inteirado em larga medida através dos jornais. Ora, Harry Combs contava com a confiança dos subordinados e conhecia todos os detalhes que necessitava saber. E eles estavam cientes da extensão dos seus conhecimentos.

            Leu o documento, enquanto saboreava o licor. Fê-lo rapidamente, mas abarcou todas as implicações.

            - Já deve estar farto de repetir as circunstâncias em que isto lhe foi parar às mãos, Jock, mas só mais uma vez.

            Escutou atentamente as palavras de MacDonald, fez-lhe duas ou três perguntas e inclinou a cabeça.

            - Qual é a sua opinião, Jeffrey?

            Em seguida, voltou-se para Brownlow, e ambos disseram mais ou menos a mesma coisa. Precisavam se inteirar da veracidade daquilo.

            - O que me intriga é o seguinte observou o controlador do Hemisfério Oriental. Se isto faz parte da verdadeira agenda política de Komarov, por que a reduziu a escrito? Todos sabemos  que  até  os  documentos  mais  ultra-secretos   podem ser roubados.

            Os olhos de expressão enganadoramente desinteressada de Sir Henry Coombs voltaram-se de novo para o chefe de posto de Moscou.

            - Ocorre-lhe alguma idéia, Jock? O interpelado encolheu os ombros.

            - Que motivo leva uma pessoa a escrever os seus pensamentos e planos  mais íntimos? Por que confessa o inconfessável às páginas do seu diário? Por que razão as corporações ou serviços importantes como os nossos armazenam material hipersensível? Talvez se destinasse a não passar de um memorando  muito confidencial  para o seu círculo íntimo, ou uma mera terapia para si próprio. Ou uma falsidade destinada a prejudicá-lo. Confesso que não sei.

            - Aí é que bate o ponto - volveu Sir Henry. - Não sabemos. No entanto, creio que, depois de o lermos, estamos de acordo em que precisamos saber. Há  inúmeras  interrogações. Por que cargas d’água o escreveram? Será realmente da autoria de Igor Komarov? É esta assustadora torrente de loucura que tenciona  pôr em prática se, como tudo indica, vier a pegar nas rédeas do poder? Em caso afirmativo, como foi roubado, por quem e por que o lançaram ao regaço, por assim dizer. Ou não passa de um monte de mentiras?

            Fez uma pausa, para mexer o açúcar no café com a colher, ao mesmo tempo que olhava o documento e a tradução com visível desagrado.

            - Lamento, Jock, mas temos de encontrar as respectivas respostas. Até lá, não posso informar as instâncias superiores. Volte para Moscou e sirva-se dos   meios habituais nestes casos. Desconheço quais são, mas sei que você não necessita de lições nesse capítulo.

            O chefe do SIS, como todos os seus predecessores, tinha duas tarefas. Uma era de natureza profissional: dirigir os melhores serviços secretos no interesse da nação da melhor maneira que pudesse. A outra política: manter boas relações com o Comitê dos Serviços Secretos Reunidos, os mandarins dos seus principais clientes, o Ministério dos Assuntos Estrangeiros, nem sempre fáceis de enfrentar, lutar pela obtenção de um orçamento suficiente e cultivar amizades entre os políticos que constituíam o governo. No fundo, tratava-se de uma tarefa multifacetada, imprópria para os espíritos fracos ou insensatos.

            A última coisa que lhe convinha era apresentar uma história rocambolesca de um vagabundo atirando para dentro do carro de uma jovem e inexperiente diplomata um documento agora cheio de impressões digitais que descrevia um programa de crueldade paranóica que podia ou não ser autêntico. Sabia perfeitamente que o queimariam vivo.

            - Regressarei esta tarde, chefe.

            - Também, não há assim tanta pressa, Jock. Vá a um espectáculo noturno e mantenha-se oito horas na cama. Siga para a terra dos cossacos no primeiro avião da manhã. - Consultou o relógio. - Vão desculpar-me, mas...

            Os três homens desfilaram em direção à saída. MacDonald não chegou a ir ao cinema, nem dormir oito horas. Havia uma mensagem no gabinete de Marchbanks, recém-chegada da seção de decodificação. O apartamento de Célia Stone fora virado do avesso. Quando chegara, depois de jantar, interrompera a sinistra tarefa de dois homens mascarados, que a atingiram com o pé de uma cadeira. Encontrava-se hospitalizada, mas livre de perigo.

            Marchands estendeu a tira de papel a MacDonald, que a leu.

            - Merda...  grunhiu.

 

Washington, Julho de 1985

            A informação, quando chegou, era oblíqua, como costuma acontecer no mundo da espionagem, em terceira mão e possivelmente uma fonte total de perda de tempo.

            Um voluntário americano, que trabalhava num programa de auxílio da UNICEF na pouco convidativa república marxista-leninista do Iémen do Sul, regressou a Nova Iorque em gozo de férias e jantou com um antigo companheiro de estudos que prestava serviço no FBI.

            Referindo-se ao enorme programa de auxílio soviético oferecido àquela república por Moscou, o funcionário das Nações Unidas descreveu um serão no bar do Rock Hotel de Adem, em que entabulara conversa com um major do exército russo.

            À semelhança de muitos compatriotas aí colocados, este último não falava virtualmente árabe, mas comunicava com os habitantes locais, cidadãos de uma antiga colônia britânica, em inglês. O americano, ciente da impopularidade dos Estados Unidos no Iémen do Sul, costumava intitular-se suíço. E procedeu do mesmo modo com o soviético.

            O homem, cada vez mais etilizado e fora do campo auditivo de qualquer compatriota, enveredou por uma violenta denúncia do governo do seu país, acusando-o de corrupção maciça, esbanjamento criminoso dos recursos e indiferente às necessidades do seu povo, nos esforços para ajudar o Terceiro Mundo. Uma vez liberto da revelação à mesa do jantar, o funcionário da UNICEF teria esquecido o que dissera, se o agente do FBI não mencionasse o assunto a um amigo da delegação da CIA em Nova Iorque.

            Depois de trocar impressões com o chefe, o membro da agência combinou um segundo jantar com o funcionário das Nações Unidas, durante o qual o vinho jorrou copiosamente. Para se tornar provocatório, o homem da CIA lamentou que os russos desenvolvessem esforços extraordinários para cimentar amizades com as nações do Terceiro Mundo, sobretudo do Oriente Medio.

            Ansioso por demonstrar os seus conhecimentos superiores na matéria, o outro alegou que não era bem assim, pois tinha motivos para afirmar que os soviéticos detestavam os árabes e se exasperavam com a sua incapacidade para dominar a tecnologia mais simples e tendência para danificar ou destruir tudo o que lhes entregavam para brincar.

            - O país de onde venho, por exemplo...exemplificou. No final do jantar, o agente da CIA tinha a imagem de um numeroso grupo de conselheiros militares, cujos membros estavam à beira do auge da frustração e não descortinavam o menor motivo para a sua presença na República do Iémen do Sul. E também recolheu a descrição de um major seriamente revoltado: alto, musculoso, de traços fisionômicos algo orientais. E um nome: Salomin.

            O relatório regressou a Langley e foi depositado em cima da mesa do chefe da Divisão SE, que discutiu o conteúdo com Carey Jordan.

            - Tanto pode não ser nada como uma coisa perigosa - disse o DDO a Jason Monk, três dias mais tarde. - Acha que pode dar um pulo ao Iémen do Sul para ter uma conversa com o major Salomin?

            Monk consultou demoradamente os peritos sobre o Médio Oriente e não tardou a compreender que o Iémen do Sul era um osso duro de roer. O governo local, (enamorado ardentemente por Moscou) detestava profundamente os Estados Unidos. Apesar disso, havia uma comunidade estrangeira surpreendentemente numerosa, além da russa.

            Embora tivessem abandonado o país na sua quase totalidade, em 1976, haviam regressado em força. Os agentes da Corça colaboravam na angariação de auxílio estrangeiro. De La Rue imprimia notas de banco e a Tootal construía uma fábrica têxtil. Por seu turno, a Massey Ferguson dirigia uma operação de tratores e a Costain uma fábrica de bolachas no subúrbio de Shaykh “Uthmán”, onde outrora os pára-quedistas britânicos estavam envolvidos numa nova fonte de abastecimento de água potável, enquanto a organização de caridade da mesma origem, “Salvemos as Crianças”, fornecia medicamentos, juntamente com a francesa denominada Médecins sans Frontières.

            Tudo isto fazia com que as Nações Unidas tivessem a seu cargo as operações: a FAO ajudava a agricultura, a UNICEF as crianças da rua e a WHO ocupava-se de projetos de saúde.

            Por muito bem que uma pessoa fale um idioma estrangeiro, é difícil fazer-se passar por súdito dessa nação e, inesperadamente, ter de enfrentar um cidadão autêntico de lá. Monk decidiu evitar fingir-se inglês, porque qualquer pessoa natural da Grã-Bretanha notaria a diferença em dois minutos. E o mesmo se aplicava à nacionalidade francesa.

            Mas os Estados Unidos eram o principal contribuinte financeiro das Nações Unidas e tinham influência, aberta e encoberta, em numerosas agências. Uma investigação rápida revelou-lhe que não havia qualquer espanhol na missão da Alimentação e Agricultura em Adem. Foi criada uma nova personagem e ficou discretamente assente que Monk seguiria para o Iémen do Sul em Outubro, munido de um visto para um mês, como inspetor visitante da sede da FAO em Roma, a fim de se inteirar dos progressos realizados. Segundo a documentação, se chamaria Estéban Martinez. Em Madrid, o ainda grato governo espanhol forneceu os elementos autenticados necessários.

           

            Jock MacDonald chegou muito tarde para visitar Célia Stone no hospital, mas compareceu lá na manhã seguinte, 20 de Julho. Ela estava coberta de ligaduras e ainda aturdida, mas em condições de falar. Regressara a casa à hora habitual e não percebera que alguém a seguisse, mas não possuía treino de poder elucidar a esse respeito.

            Depois de permanecer três horas no apartamento, saíra para jantar com uma amiga da embaixada canadense e voltara por volta das onze e meia. Os intrusos decerto a ouviram introduzir a chave na fechadura, porque imperava silêncio absoluto quando entrou. Acendeu a luz do vestíbulo e reparou que a porta da sala se encontrava aberta e o aposento às escuras, o que lhe pareceu estranho, pois deixara a luminária acesa. As janelas davam para o pátio central, e o clarão atrás dos cortinados indicaria que havia alguém em casa. Supôs, portanto, que a lâmpada se fundira.

            Quando assomou à entrada da sala, dois vultos emergiram da escuridão e caíram-lhe virtualmente em cima. Um brandiu um objeto impossível de identificar e atingiu-a na cabeça. Célia caiu desamparada, mas percebeu que eles saltavam por cima do seu corpo e corriam para a saída do apartamento. No momento imediato, perdeu os sentidos. Quando regressou ao mundo não sabia quanto tempo depois, arrastou-se até ao telefone e ligou a uma vizinha. A isto se resumia o que podia revelar.

            MacDonald visitou em seguida o apartamento. O embaixador protestara junto do Ministério dos Assuntos Estrangeiros, que se insurgira e queixara ao do Interior, após o que foi decidido ordenar ao gabinete da Promotoria de Moscou que enviasse ao local o seu melhor investigador. Seria apresentado um relatório circunstanciado o mais depressa possível. Na capital russa, isso equivalia a recomendar que não contivessem a respiração até que tal acontecesse.

            A mensagem que seguira para Londres continha uma imprecisão. Célia Stone não fora atingida com o pé de uma cadeira, mas com uma pequena estatueta de porcelana, que se fragmentara. Se fosse um objeto metálico, talvez não tivesse sobrevivido.

            Ainda havia detetives russos no apartamento, os quais não manifestaram a menor relutância em responder às perguntas do diplomata britânico. Os dois milicianos de guarda à barreira de acesso ao pátio não tinham admitido qualquer veículo com matrícula do país, pelo que os intrusos deviam ter chegado a pé. No entanto, eles juraram que ninguém passara por ali, e MacDonald refletiu que, de qualquer modo, não diriam outra coisa.

            Como a porta não fora forçada, decerto tinham recorrido a algum instrumento para manipular a fechadura, a menos que dispusessem de uma chave, o que parecia pouco provável. Decerto procuravam dinheiro, naqueles tempos difíceis. No entanto, ele admitia intimamente a possibilidade de ter sido obra dos Guardas Negros, mas achava mais provável que se tratava de um trabalho contratado relacionado com o submundo do crime.

            De volta à embaixada, acudiu-lhe uma idéia e telefonou ao gabinete da Promotoria, para solicitar que o detetive incumbido do caso se pusesse em contacto com ele. O inspetor Chernov procurou-o às três da tarde.

            - Talvez possa ajudar - disse MacDonald. O homem ergueu uma sobrancelha.

            - Ficaria muito grato.

            - Miss Stone, a vítima do assalto, sentia-se muito melhor, esta manhã.

            - Excelente.

            - A ponto que pôde fornecer uma descrição razoável de um dos agressores. Viu-o à luz do vestíbulo pouco antes de a atingir.

            - Segundo as declarações que prestou, não conseguiu ver qualquer dos dois - recordou Chernov.

            - A memória às vezes regressa gradualmente, em casos destes. Falou com ela ontem à tarde, inspetor?

            - Sim, por volta das quatro. Estava consciente.

            - Mas ainda aturdida, suponho. Esta manhã, tinha as idéias muito mais  claras. Ora, uma das nossas funcionárias pode considerar-se uma artista e, com a ajuda de Miss Stone, conseguiu criar uma espécie de retrato.

            MacDonald pousou na mesa, diante de Chernov, uma folha de papel com um rosto a lápis e carvão, e a expressão deste último iluminou-se.

            Isso nos será  extremamente útil. Vou pô-lo a circular na  Brigada  de  Anti-roubo. Um homem desta idade deve ter cadastro. E levantou-se para sair.

            MacDonald imitou-o.

            - Tive muito prazer em lhe ser útil.

            Os dois homens apertaram a mão e o detetive retirou-se.

            Durante o período do almoço, Célia Stone e a desenhista haviam sido informadas da nova versão e, embora não compreendessem o motivo, concordaram em confirmá-la, se o inspetor Chernov as procurasse. No entanto, não o fez.

            E as equipes da Brigada Anti-roubo, também não conseguiram identificar o rosto desenhado. Não obstante, afixaram o desenho nos quadros das diferentes esquadras.

 

Moscou, Julho de 1985

            Na sequência do excelente material fornecido por Aldrieh Ames, o KGB fez algo de muito extraordinário.

            Segundo uma regra inviolável existente no Grande Jogo, se uma agência adquire subitamente um “bem” inestimável alojado no coração do inimigo, deve ser protegido. Assim, quando esse “bem” denuncia uma horda de vira-casacas, a recém-elucidada agência trata de capturá-los, lenta e cautelosamente, criando um motivo aparentemente diferente em cada caso.

            Somente quando o “bem” se afastou do perigo e se encontra atrás das linhas de fogo, os agentes que traiu podem ser neutralizados imediatamente. Proceder de outro modo equivaleria a mandar publicar na primeira página do New York Times um anúncio do seguinte teor: “Prestem atenção! Acabamos de recrutar uma importante toupeira no seio da sua organização, e vejam o que nos ofereceu!”

            Como Ames ainda se encontrava bem no íntimo da CIA e poderia continuar a fornecer informações valiosas durante muitos anos, o Primeiro Diretorado Principal teria gostado de obedecer a essa regra e capturar os catorze vira-casacas lenta e meticulosamente. No entanto, foi obrigado a renunciar a semelhante intenção, apesar dos seus protestos quase lacrimosos, por Mikhail Gorbachev.

            Ao analisar o material proveniente de Washington, o Grupo Kolokol reconheceu que algumas das descrições eram imediatamente identificáveis, enquanto outras exigiriam esforços mais profundos para serem isoladas. Dos “imediatos”, alguns ainda estavam colocados no estrangeiro e necessitariam ser atraídos à base com a maior cautela, para que não transpirasse a mínima suspeita da convocação. O que poderia demorar meses.

            A segunda decisão tomada consistia em não envolver os seus rivais  os membros do Segundo Diretorado Principal. Acostumados a atuar no estrangeiro, não perceberam que estariam seriamente deslocados nas ruas de Moscou.

            Por fim, foi decidido que principiariam pelo agente “britânico”, coronel Oleg Gordievsky. Atualmente, estava sob suspeita, como resultado de anos de paciente trabalho detetivesco. A descrição de Ames de um oficial do KGB com a patente de coronel acabado de regressar a Moscou ajustava-se como uma luva e confirmava a sua culpabilidade, e o Primeiro Diretorado Principal mandou vigiá-lo, em regra uma especialidade do Segundo Diretorado. O resultado cifrou-se num fiasco.

            Gordievsky não era um imbecil e sabia que tinha os dias contados. Compreendia que não devia ter regressado à pátria, mas, ao invés, aceitado as ofertas urgentes dos seus amigos em Londres para ficar lá e desertar de fato como, doze anos atrás, o fizera em espírito.

            Havia uma forma de proceder que os britânicos lhe tinham indicado, uma maneira de dizer, mesmo sob vigilância: “Estou em apuros. Preciso de ajuda.” Utilizou-a, e a mensagem chegou ao seu destino. O SIS concebeu um plano para lhe acudir, mas precisava da colaboração da embaixada. Todavia, o embaixador britânico apoiado pelo Ministério dos Assuntos Estrangeiros, nem quis ouvir falar no assunto.

            O então chefe do SIS empregou a sua prerrogativa para solicitar e obter uma reunião secreta com a Primeira-Ministra, à qual expôs o problema.

            Curiosamente, Mrs. Thatcher recordava-se de Gordievsky. No ano anterior, Mikhail Gorbachev, antes de ser nomeado para a presidência, visitara Londres e impressionaram favoravelmente. Sentado ao lado dele como intérprete, encontrava-se um diplomata da embaixada soviética: Oleg Gordievsky. Embora então ela não fizesse a menor idéia que o coronel trabalhava para o Governo britânico, surpreendeu-a que a reprodução dos pensamentos privados de Gorbachev fosse tão rigorosamente exata, Gordievsky transmitira-os durante a noite.

            Agora, levantou-se da mesa, com um clarão intenso nos olhos azuis por vezes de uma candura infantil.

            - Com certeza que temos de livrá-lo de apuros - decidiu. - É um homem corajoso e dos nossos.

            Em menos de uma hora, o secretário dos Assuntos Estrangeiros e o embaixador foram ignorados. Na manhã de 19 de Julho, o portão da embaixada abriu-se, para dar passagem a vários carros, um após outro. Os vigilantes do KGB ficaram abismados e apressaram-se a segui-los, mas descobriram que tomavam rumos diferentes. Quando a área ficou desimpedida, emergiram dois Ford Transit idênticos, que ninguém seguiu. Um diminuiu a velocidade junto de Gordievsky, que se dedicava ao habitual jogging matinal, e uma voz indicou: “Suba, Oleg.” O coronel não hesitou em transpor a porta aberta convidativamente.

            Atrás dele, as duas “sombras” do Primeiro Diretorado Principal chamaram o motorista do seu carro de apoio, que os recolheu com prontidão.

            O “rapto” fora executado propositadamente perto de uma esquina, do outro lado da qual o furgão desapareceu. A seguir, entrou velozmente numa artéria transversal. O duplicado afastou-se do passeio e, quando os russos surgiram trataram de o seguir, convencidos que era o mesmo veículo. A perseguição prolongou-se por vários quilômetros. Por fim, foi alcançado e detido, mas só continha legumes para a embaixada. A Ford Transit que transportava Gordievsky encontrava-se em segurança.

            Aí, uma equipe  de mecânicos do Exército estivera trabalhando num longo Land Rover, para criar um estreito compartimento sob o eixo de transmissão. O russo foi acomodado o melhor possível no exíguo espaço e, dois dias depois, o veículo partia para a Finlândia. Foi interceptado e revistado no lado soviético da fronteira finlandesa, apesar do protocolo diplomático, sem que descobrissem nada de suspeito. Uma hora mais tarde, nas entranhas das florestas do país, o combalido e quase inteiriçado coronel russo era retirado da prisão temporária e conduzido a Helsínquia.

            A notícia transpirou alguns dias depois. O Ministro dos Assuntos Estrangeiros soviético protestou junto do embaixador britânico, o qual conservou a calma e replicou que não fazia a menor idéia do que referia.

            Transcorridos poucos meses, Gordievsky encontrava-se em Washington e revelava o que sabia à CIA. Entre os agentes que o interrogaram, sorrindo intimamente, achava-se Aldrich Ames. Que sabiam os russos sobre um traidor americano? Afortunadamente para ele, a resposta do coronel resumiu-se a “Nada”. Na realidade, ninguém sabia coisa alguma a esse respeito.

           

            Jeffrey Marchbanks julgava que talvez houvesse uma maneira de poder ajudar o seu colega em Moscou nas pesquisas para determinar a autenticidade  ou ausência dela  do Manifesto Negro.

            Um dos problemas de MacDonald consistia em que não dispunha de qualquer meio razoável de acesso a Igor Komarov, Assim, Marchbanks calculava que uma entrevista pessoal com o líder da União das Forças Patrióticas poderia fornecer-lhe algum indício sobre se o homem que se intitulava de direita conservadora e nacionalista ocultava sob esse verniz as ambições de um nazi implacável.

            E acreditava que conhecia alguém capaz de lhe conseguir a entrevista. No Inverno anterior, participava numa caçada aos faisões e, entre os convidados, encontrava-se o recentemente nomeado editor do principal jornal diário conservador da Grã-Bretanha. A 21 de Julho, Marchbanks telefonou-lhe, aludiu ao local em que se haviam conhecido e combinaram almoçar juntos no dia seguinte no seu clube, em St. James’s.

 

Moscou, Julho de 1985

            A fuga de Gordievsky suscitou profunda agitação em Moscou, que se concentrou, no último dia do mês, no gabinete do terceiro piso da sede do KGB, na Praça Dzerzhinsky, do presidente daquela organização.

            Era uma sala algo sombria que outrora servira de covil de alguns dos monstros mais sanguinários que o planeta jamais conheceu. Ocupara-o Yagoda, assim como Yezhov, para, em cumprimento de ordens de Stalin, inundar o solo da Rússia com o sangue de milhões de pessoas. Seguira-se Beria, o pedófilo psicopático, com Serov, Semichastny e o recentemente falecido Yuri Andropov, que se aguentou no cargo muito mais tempo que os restantes  quinze anos, de 1963 a 1978.

            Haviam sido assinadas ordens na secretária em forma de “T” que obrigaram homens a uivar sob o efeito de torturas, morrer de hipotermia nas regiões desérticas da Sibéria ou tombar num sombrio pátio, com balas de pistola alojadas no cérebro.

            O general Viktor Chebrikov já não dispunha de poderes dessa natureza. As coisas estavam mudando e as ordens de execução tinham de ser aprovadas pelo próprio presidente. Todavia, no caso dos traidores, ainda eram homologadas, e a reunião daquele dia tinha como objetivo a assinatura de outras.

            Imerso numa atitude defensiva perante a mesa do superior, encontrava-se o chefe do Primeiro Diretorado Principal, Vladimir Krychkov, cujos homens eram responsáveis de erros imperdoáveis. Em posição ofensiva, achava-se o dirigente do Segundo Diretorado Principal, o atarracado e largo de ombros, quase taurinos, general Vitali Boyarov, no momento enfurecido.

            - Foi tudo um desastre... razebaistvo! -  vociferou. Mesmo entre generais, a linguagem de caserna era muito corrente, prova de grosseria soldadesca e origens proletárias. O termo significa “fodido”.

            - Não voltará acontecendo - prometeu vagamente Kryuchkov.

            - Assentemos numa estrutura da qual não devemos nos desviar - sugeriu o superior. - No território soberano da URSS, os traidores serão presos e interrogados pelo Segundo Diretorado Principal. Se tornar a haver traidores identificados, é o que acontecerá. Entendido?

            - Haverá mais - murmurou Kryuchkov. - Treze.

            Seguiu-se um silêncio de vários segundos.

            - Pretende revelar-nos alguma coisa, Vladimir Aleksandrovicht? - perguntou   o  superior, com uma brandura pouco tranquilizadora.

            Foi então que o interpelado explicou o que tinha acontecido no Chadwick’s, em Washington, seis semanas atrás, e Boyarov assobiou em surdina.

            - Que está fazendo a esse respeito? - inquiriu Chebrikov.

            - Incumbi uma força especial de manipular o produto. Um a um, os seus membros estão apresentando as identidades de catorze  homens...  bem, agora  treze... que trabalham para a CIA. Todos russos. Alguns talvez tardem mais  tempo a ser identificados que outros.

            O general Chebrikov tomou as medidas necessárias naquele mesmo dia. O Grupo Kolokol de Yazenevo analisaria o produto. Era assunto para os serviços secretos do estrangeiro. Mas assim que um traidor fosse identificado, o nome seria comunicado à comissão Krysolov (caça-ratos), para detenção e interrogatório. O Segundo Diretorado Principal procederia à detenção e os agentes do Primeiro teriam de assistir às sessões de interrogatório, para indicarem o tipo de perguntas a fazer e as respostas que necessitavam.

            A detenção e alojamento seriam decididos pelo Segundo Diretorado Principal, e qualquer relutância em responder às perguntas ou confessar receberia o tratamento habitual.

            Em menos de uma semana, o general Chebrikov, impressionado com o êxito da sua agência, revelou tudo a Mikhail Gorbachev. A reação produzida surpreendeu-o. Longe de se mostrar encantado com o bom resultado de um dos maiores coup de espionagem contra os americanos, o novo presidente, nomeado em Março último, estava horrorizado com a extensão e nível da penetração da CIA, na sociedade soviética e, sobretudo, com os dois ramos dos serviços secretos: o KGB e a agência militar, ou GRU.

            Ignorando as súplicas do KGB para recorrer a medidas prudentes, ordenou que todos os agentes denunciados por Aldrich Ames fossem detidos imediatamente, ou o mais depressa possível.

            Em Yazenevo, o idoso general que dirigiu o Grupo Kolokol, antigo chefe do Diretorado de Ilegais, Yuri Drozdov, depreendeu que isso significava que Ames estava arrumado. com uma revoada de detenções tão numerosa dos seus agentes, Langley decerto concluiria que eles dispunham de uma toupeira, investigariam e a descobririam. Contudo, ante o seu profundo assombro, tal não aconteceu.

            Entretanto, o general Boyarov preparava a sua comissão caçadora de ratos, que interrogaria os traidores à medida que fossem identificados e presos. Para dirigir a equipe, queria alguém muito especial. O processo do indivíduo em causa achava-se em cima da sua mesa: um coronel de apenas quarenta anos, mas experiente, um interrogador que nunca falhava. Consultou as páginas mais uma vez.

            Nascido em 1945 em Molotov, anteriormente chamada Perm e agora de novo, desde que o sicário de Estalirve, Molotov, caíra em desgraça, em 1957, era filho de um militar condecorado que sobrevivera à guerra e regressara a casa para conceber um descendente.

            O pequeno Toyla cresceu sob rigorosa doutrinação oficial, na cinzenta cidade do norte. Os elementos compilados recordavam que o seu fanático pai detestava Khrushchev por criticar o herói Stalin, e o rapaz herdara e ampliara todas as atitudes do progenitor.

            Em 1963, fora recrutado aos dezoito anos e colocado nas tropas do Ministério do Interior, MVD, destinadas a proteger as prisões, campos de trabalho e centros de detenção e utilizadas como forças antimotim. O jovem soldado afeiçoara-se às suas funções como peixe na água.

            Nessas unidades, prevalecia o espírito da repressão e controle de massas. Toyla comportou-se tão satisfatoriamente que recebeu uma recompensa rara  transferência para o Instituto de Línguas Estrangeiras de Leningrado. Tratava-se da capa da academia de treino do KGB, conhecida na agência por Kormushka (manjedoura), porque fornecia constantemente carne para canhão às fileiras do exército. Os seus graduados distinguiam-se pela crueldade, dedicação e lealdade. O jovem tornou a salientar-se e foi de novo recompensado.

            Desta vez, foi a colocação no ramo do Moska Oblast (cidade e região) do Segundo Diretorado Principal, onde passou quatro anos e conquistou excelente reputação como investigador e interrogador implacável. Na verdade, de tal modo se especializou em interrogar, que escreveu um importante ensaio sobre a matéria, o qual lhe proporcionou a transferência para a sede nacional do Segundo Diretorado Principal.

            Desde então, não voltara a sair de Moscou, trabalhando sobretudo contra os odiados americanos e mandando vigiar a sua embaixada e seguir o pessoal diplomático. Nesse lapso de tempo, passou um ano no serviço de investigação, antes de regressar ao Segundo DP. Os seus superiores e instrutores não tinham perdido a oportunidade para anotar no seu processo o ódio apaixonado aos anglo-americanos, judeus, espiões e traidores, além de um inexplicável, embora aceitável, nível de sadismo nos interrogatórios a que procedia.

            O general Boyairok fechou a pasta de cartolina na sua frente e esboçou um sorriso. Era aquele o seu homem. Se queriam resultados rápidos, o coronel Anatoli Grishin reunia todos os requisitos necessários.

 

            Mais ou menos a meio da St. James Street, há um edifício cinzento anônimo, com uma porta azul e algumas plantas envasadas à entrada. Não exibe qualquer nome. Quem sabe o que é e onde se situa não tem dificuldade em o localizar; os outros são aqueles que não têm convite para entrar e passam ao largo. O Brook’s Club não faz propaganda da sua existência.

            Constitui, porém, o refúgio favorito dos funcionários de Whitehall, não longe dali. Foi naquele local que Jeffrey Marchbanks se encontrou com o editor do Daily Telegraph para almoçar, a 22 de Julho.

            Brian Worthing tinha quarenta e oito anos e havia vinte que exercia as funções de jornalista, quando, dois anos atrás, o proprietário canadense, Conrad Black, o arrancara do Times para preencher a vaga de editor. Os antecedentes profissionais de Worthing consistiam primordialmente em correspondente no estrangeiro e de guerra. Assim, cobrira a Guerra das Malvinas, a primeira a sério em que trabalhara, e, mais tarde, a do Golfo.

            Marchbanks reservara uma mesa pequena a um canto, suficientemente afastada das outras para eles poderem conversar sem serem escutados.

            - Julgo que referi, em Spurnal, que trabalhava no Ministério dos Assuntos Estrangeiros - começou ele, enquanto saboreavam o cocktail de camarão.

            - Acho que sim - admitiu Worthing.

            Na realidade, hesitara antes de aceitar o convite. O seu dia de trabalho prolongava-se sempre das dez da manhã até depois do pôr-do-Sol e, se consagrava duas horas ao almoço três, se contasse a viagem de ida e volta de Canary Wharf ao West End nos dois sentidos, esperava que valesse a pena.

            - Na verdade, trabalho em outro edifício mais abaixo no rio e na margem oposta - acrescentou Marchbanks.

            - Ah... - limitou-se o editor a articular, pois sabia tudo o que se passava em Vauxhall Cross, embora nunca tivesse entrado. Afinal, o almoço talvez produzisse alguns frutos.

            - A minha principal preocupação é a Rússia.

            - Não o invejo - declarou, levando o copo aos lábios. - Parece-me uma   espécie de visita ao inferno num cesto de mão.

            - Mais ou menos. Desde a morte de Cherkassov, a perspectiva imediata parece ser as próximas eleições presidenciais.

            Os dois homens conservaram-se silenciosos, enquanto a jovem empregada de mesa servia as costeletas de cordeiro e legumes, com uma garrafa de clarete da casa, na qual Marchbanks se apressou a pegar para encher os copos.

            - Uma conclusão indiscutível - observou Worthing.

            - É precisamente a nossa opinião. O recrudescimento do comunismo acentuou-se ao longo dos anos, e os  reformistas estão fulos. Parece  não  haver  nada que possa impedir Igor Komarov de assumir a presidência.

            - Isso será mau? No último artigo que li a seu respeito, pareceu-me que se   exprimia com alguma sensatez. Recuperação do valor da moeda, interromper a tendência para o caos, fazer a vida negra aos mafiosos... Coisas do gênero.

            Orgulhava-se de ser uma pessoa de linguagem direta e costumava exprimir-se em frases diretas, sem floreados.

            - Pois, parece uma perspectiva maravilhosa. Mas continua a ser um homem enigmático. Que pensa realmente fazer? Como, especificamente,  tenciona pô-lo em prática? Diz que detesta os créditos estrangeiros, mas como espera poder prescindir deles? E, mais importante, tentará pôr termo às dívidas do país pagando com rublos sem valor?

            - Não se atreveria. - Sabia que o Telegraph tinha um correspondente residente em Moscou, mas havia algum tempo que não lhe passava pelas mãos qualquer peça sobre Komarov.

            - Parece-lhe? - replicou MarChbanks. - Não sabemos. Alguns dos seus discursos são muito extremistas, embora nas conversas informais convença os interlocutores que não é um papão. Qual será a sua verdadeira personalidade?

            - Posso incumbir nosso enviado em Moscou de lhe solicitar uma entrevista.

            - Duvido que a concedesse. Creio que todos os correspondentes  residentes efetuam a mesma tentativa com regularidade. Ele só as dá muito raramente e manifesta aversão à Imprensa estrangeira.

            - Então, como consegue uma pessoa aproximar-se dele?

            - Tem um jovem conselheiro de publicidade cujas indicações escuta atentamente. Boris Kuznetsov. Um rapaz inteligente, educado numa importante   universidade dos Estados Unidos. Se existe um caminho de acesso, é ele. Sabemos que lê a Imprensa ocidental todos os dias e gosta em particular dos artigos do seu Jefferson.

            Mark Jefferson era um colaborador regular do Telegraph, com artigos de análise política, doméstica e estrangeira, excelente polemista e conservador ferrenho.

            - É uma idéia - concordou Worthing, após uma pausa.

            - Os correspondentes residentes em Moscou são aos montes - prosseguiu Marchbanks, entusiasmando-se. - Mas um articulista famoso interessado em traçar um retrato minucioso do futuro dirigente da nação talvez constitua o engodo ideal.

            O editor refletiu por um momento.

            - Ou publicar peças dessa natureza sobre os três candidatos acabou por  sugerir. Para manter uma espécie de equilíbrio.

            - Não  está  mal  pensado - concedeu  o outro, que intimamente discordava. - No entanto, Komarov é quem fascina o povo, de uma maneira ou de outra. Os rivais são zeros à esquerda. Vamos tomar o café lá em cima?

            - A idéia não é má - reconheceu Worthing, depois de se sentarem na sala do primeiro piso, diante do retrato dos Diletantes. - Devidamente impressionado com a sua preocupação acerca da nossa capacidade de circulação, que pretende que lhe pergunte?

            Marchbanks sorriu ante a franqueza do interlocutor.

            - De fato, gostaríamos de nos inteirar de algumas coisas para satisfazer o apetite dos nossos superiores. De preferência, que não figurassem no artigo. Eles sabem ler o Telegraph e fazem-no. Quais são as verdadeiras intenções do   homem? E quanto aos grupos étnicos minoritários? São dez milhões, e Komarov um russo supremacista. Como pretende levar a cabo o renascimento da glória da nação? Numa palavra, ele é uma máscara. Que há por trás dela? Existe uma agenda secreta?

            - Se existe, por que o revelaria a Jefferson? - argumentou Worthing.

            - Nunca se sabe. Há homens que se deixam arrastar pelo entusiasmo.

            - Como se contacta com esse Kuznetsov?

            - O  seu homem em Moscou deve sabê-lo. Suponho que uma carta  pessoal de Jefferson terá bom acolhimento.

            - Muito bem - acedeu, enquanto desciam a ampla escadaria em direção ao átrio. - Estou vislumbrando as manchetes de primeira página. É uma perspectiva aliciante. Se o homem tiver alguma coisa de importância para dizer. Tratarei de contactar com a nossa delegação em Moscou.

            - Se Jefferson obtiver a entrevista, gostaria de falar com ele depois.

            - Olhe que não se deixa levar com duas cantigas.

            - Serei suave como o azeite - prometeu Marchbanks.

            Separaram-se no passeio. O motorista de Worthing avistou-o e abandonou o espaço de estacionamento ilegal para o recolher. Quanto a Marchbanks, decidiu seguir a pé para digerir o excelente almoço.

 

Washington, Setembro de 1985

            Antes de começar a espiar, em 1984, Ames concorrera ao cargo de chefe do Ramo Soviético no importante posto da CIA em Roma. Em Setembro do ano seguinte, inteirou-se que o conseguira.

            O que o colocava perante um dilema. Ignorava então que o KGB o faria correr grande perigo, ainda que involuntariamente, ao mandar regressar à base com prontidão todos os homens que ele denunciara.

            O novo cargo em Roma o afastaria de Langley e do acesso aos 301 processos e do Ramo Soviético do grupo de contra-espionagem adstrito à Divisão SE. Por outro lado, a capital italiana era um lugar atraente para viver. Por fim, consultou os russos.

            A sua atitude foi de aprovação. De qualquer modo, tinham meses de investigações, detenções e interrogatórios à sua frente. Era tão abundante a colheita que Ames lhes facultara e, por razões de segurança, tão reduzido o Grupo Kolokol incumbido da análise desse material em Moscou, que a tarefa poderia durar anos.

            Para o lapso de tempo intermédio, ele proporcionara muito mais. Entre as suas remessas secundárias e terciárias ao diplomata soviético Chuvakhin, havia material sobre quase todos os agentes de relevo em Langley, o que permitia ao KGB identificá-los onde quer que se apresentassem.

            Além disso, os russos calculavam que, em Roma, um dos lugares-chaves da Divisão Européia, Ames teria acesso a todas as operações da CIA e colaborações com os seus aliados ao longo do Mediterrâneo, de Espanha à Grécia, área de interesse vital para Moscou.

            Finalmente, sabiam que podiam ter acesso muito mais fácil ao seu homem naquela cidade italiana do que em Washington, onde havia sempre o perigo de o FBI surpreender um dos seus encontros. Por conseguinte, incitaram-no a aceitar a nomeação.

            Assim, naquele mesmo Setembro, Ames matriculou-se num colégio de línguas para aprender italiano.

            Em Langley, o verdadeiro impacto da catástrofe na iminência de eclodir ainda não começara a desenhar-se. Dois ou três dos seus melhores agentes na Rússia tinham deixado de estabelecer contato, fato na verdade preocupante, porém não calamitoso.

            Entre os processos pessoais que Ames fornecera ao KGB, figurava o de um jovem acabado de transferir para a Divisão SE, para o qual ele chamava a atenção, por ser considerado uma estrela em rápida ascensão. Chamava-se Jason Monk.

            Havia anos que o velho Gennady ia apanhar cogumelos naquele bosque. Na aposentadoria, utilizava esse produto gratuito da Natureza como suplemento da sua pensão, quer vendendo-os crus aos melhores restaurantes de Moscou, quer secando-os para as poucas charcuterias que restavam.

           Há, todavia, a necessidade de quem os apanha se levantar cedo, de preferência antes da alvorada. Desenvolvem-se durante a noite e, quando surgem os primeiros clarões do dia, as ratazanas ou os esquilos devoram-nos ou, ainda pior, desaparecem nas sacolas de outros apanhadores de cogumelos.

            Na madrugada de 24 de Julho, Gennady, pegou a bicicleta e, com o seu cão, pedalou da pequena localidade em que vivia na direção de um bosque onde sabia que abundavam, com a esperança de encher a sacola antes do orvalho se evaporar.

            O bosque situava-se ao longo da auto-estrada de Mins, na qual rolavam os pesados caminhões, rumo à capital de Belarus. Em seguida, apoiou a bicicleta em uma árvore, com a sacola quase cheia e o Sol a despontar no horizonte, o cão começou a ganir em surdina e aproximou-se de um grupo de arbustos. Como o treinara para farejar cogumelos, Gennady depreendeu que localizara mais algum.

            À medida que se aproximava, acudiu-lhe às narinas um odor nauseabundo, que identificou sem hesitar. Notara-o numerosas vezes, anos atrás, na adolescência, do Vistula até Berlim, quando era militar.

            O corpo fora largado ali ou rastejara até ao local e morrera. Era de um homem quase esquelético, visivelmente maltratado. Os olhos tinham sido devorados pelas aves e gotas de orvalho acentuavam o brilho de três dentes de aço. Achava-se de tronco nu, mas havia um capote andrajoso amontoado nas cercanias. Gennady encheu os pulmões de ar e calculou que, pelo calor que fazia, devia haver vários dias que se encontrava ali.

            Ponderou a situação durante alguns momentos. Pertencia à geração dos que não ignoravam o dever cívico, mas tinha de se preocupar com os cogumelos, e ninguém podia fazer nada pelo pobre homem. A uma centena de metros de distância, rolavam os caminhões de Moscou para Minsk.

            Acabou de encher a sacola e regressou à aldeia na bicicleta. Uma vez chegado, colocou os cogumelos para secar ao sol e dirigiu-se ao pequeno e decrépito se/soviet  paços do concelho da localidade, onde havia um telefone.

            Marcou o 02 e atenderam do gabinete de controle central da Polícia.

            - Encontrei um corpo.

            - Nome? - inquiriu a voz.

            - Sei lá como o homem se chama!

            - Não é o dele, imbecil! O seu.

            - Quer que desligue? - retorquiu Gennady. Soou um suspiro de resignação na linha.

            - Não, não desligue. Diga-me o seu nome e de onde está falando.

            Obedeceu e o outro apressou-se a determinar o lugar no mapa. Situava-se no interior da Região da Cidade de Moscou (Oblast), no extremo ocidental, mas ainda dentro da jurisdição da capital.

            - Aguarde no selsoviet. Um agente irá procurá-lo. Gennady aguardou. Teve de se resignar a fazê-lo durante meia hora. Afinal, era um jovem inspetor uniformizado. Acompanhavam-no dois outros milicianos e faziam-se transportar no habitual veículo tipo jipe amarelo e azul Uzhgorod.

            - Foi você que encontrou o corpo? - perguntou o primeiro.

            - Fui - assentiu Gennady.

            - Bem, vamos vê-lo. Onde está?

            - No bosque.

            Sentia-se particularmente importante por viajar numa viatura da Polícia. Apearam-se onde ele indicou e avançaram em fila indiana por entre o arvoredo. O apanhador de cogumelos reconheceu o pinheiro ao qual apoiara a bicicleta e identificou as suas pegadas a partir daí. Não tardaram a notar o odor.

            - Está ali - indicou Gennady, apontando para o grupo de arbustos. Ocheiro é insuportável. Deve ter morrido há vários dias.

            Os três polícias aproximaram-se do corpo e examinaram-no visualmente.

            - Veja se há alguma coisa nos bolsos - ordenou o inspetor a um dos subordinados. Voltou-se para o outro. - E você, reviste o capote.

            Aquele a quem competia a tarefa menos agradável, apertou as narinas entre o polegar e o indicador e utilizou a mão livre para cumprir a ordem. Nada. Em seguida, servindo-se da pala do boné, voltou o corpo. Havia numerosas minhocas por baixo. Por fim, inspecionou os bolsos de trás e retrocedeu, meneando a cabeça, enquanto o colega largava o capote e fazia o mesmo.

            - Nada? - estranhou  o  inspetor. - Nem  a  cédula  de identidade?

            - Absolutamente  nada. Trocos, lenço, chaves, documentos...

            - Atropelamento, com fuga do condutor? - aventurou um dos polícias.

            Durante um momento, escutaram o ruído produzido pelos veículos na estrada.

            - A que distância estamos de lá? - perguntou o inspetor.

            - Uns cem metros - disse Gennady.

            - Os condutores que atropelam uma pessoa e fogem não a escondem a essa distância da estrada. De resto, bastariam dez metros, com tantas árvores. - O inspetor dirigiu-se a um dos seus homens. - Examine a faixa de rodagem em busca de uma bicicleta esmagada ou um carro sinistrado. O homem pode ter se arrastado até aqui. Depois, aguarde lá para indicar o local à ambulância.

            A seguir, serviu-se do telefone portátil para pedir um investigador, um fotógrafo e um médico. O que via não podia ser “causa natural”. Também solicitou uma ambulância, mas confirmou que a vida se extinguira. Um dos polícias afastou-se por entre as árvores em direção à estrada e os outros aguardaram, depois de se distanciarem suficientemente do foco do odor insuportável.

           

            O trio à paisana apresentou-se em primeiro lugar, num Uzhgorod sem qualquer insígnia. Os ocupantes estacionaram o veículo na beira da estrada e transpuseram o resto da distância a pé. O investigador saudou o inspetor com um movimento de cabeça e perguntou:

            - Que  temos?

            - Está ali. Chamei-os, porque não acredito que morreu de causas naturais.   Encontra-se muito maltratado e a cem metros da estrada.

            - Quem o descobriu?

            - Aquele apanhador de cogumelos.

            O detetive aproximou-se de Gennady.

            - Conte-me tudo. Desde o princípio.

            O fotógrafo “bateu” algumas chapas, após o que o médico aplicou uma máscara de gaze no rosto e procedeu a um exame rápido. Por último, endireitou-se e descalçou as luvas de borracha.

            - Aposto dez copeques contra uma garrafa de Moskovskaya como se trata de homicídio. O laboratório revelará mais detalhes, mas posso desde já adiantar que o espancaram brutalmente antes de morrer. Provavelmente, não foi aqui Parabéns, Volodya: tem o seu primeiro zhmunk do dia.

            Empregou o calão da Polícia e submundo do crime russos para cadáveres. Dois homens de bata branca, da ambulância, aproxiram-se com uma maca, na qual depositaram o corpo, depois de introduzi-lo num saco de plástico com fecho de correr.

            - Precisam mais de mim? - perguntou Geronady.

            - Receio que sim - declarou o detetive. - Tenho de mandar registrar as suas declarações, na esquadra.

            Os polícias conduziram o apanhador de cogumelos às suas instalações, a cinco quilômetros dali, na direção de Moscou. No entanto, o percurso do cadáver prosseguiu até ao centro da cidade, onde se encontrava o necrotério do Segundo Instituto Médico. Uma vez aí, introduziram-no num compartimento frigorífico. Os patologistas de medicina legal escasseavam e a quantidade de trabalho era excessiva para a sua capacidade de resposta.

 

Iémen, Outubro de 1985

            Jason Monk infiltrou-se no Iémen do Sul em meados de Outubro. Apesar de pequena e pobre, a República Popular tinha um aeroporto de primeira classe, antigamente base militar da Royal Air Force. Os grandes jatos podiam aterrar nas suas pistas e faziam-no com regularidade.

            O passaporte espanhol do agente americano, acompanhado dos documentos de viagem das Nações Unidas, despertou a curiosidade usual, embora desprovida de suspeitas, na Imigração, e, meia hora mais tarde, ele podia pegar o saco de lona e abandonar o edifício.

            Roma informara realmente o chefe do programa de Food and Agriculture Organization da chegada do senhor Martinez Llorca, mas indicara uma data de uma semana mais tarde. Como as autoridades iemenitas do aeroporto ignoravam o fato, não havia qualquer transporte à sua espera, pelo que ele subiu para um táxi e instalou-se no novo hotel francês, o Frontel, na língua de terra que liga o rochedo de Adem ao continente.

            Embora os documentos fossem perfeitos e não esperasse enfrentar qualquer espanhol autêntico, Monk sabia que a missão se revestia de perigo.

            A maior parte da espionagem é levada a cabo por agentes no seio de uma embaixada supostamente pertencentes ao pessoal diplomático. Assim, beneficiam da respectiva imunidade, se alguma coisa corre mal.

            Alguns são agentes “declarados”, o que significa que não ocultam a natureza das suas atividades, e a contra espionagem conhece e aceita a situação, embora a verdadeira missão seja tacitamente omitida. Um posto importante em território hostil tenta sempre manter alguns agentes “não declarados”, cujas funções de cobertura nas seções do Comércio, Cultura ou Imprensa permanecem inatacáveis. A razão é simples. Os agentes não declarados têm menos possibilidades de ser seguidos nas ruas e, por conseguinte, maior facilidade em dispor de liberdade de movimentos para recorrer aos receptáculos de cartas mortas ou comparecer a encontros secretos do que aqueles que estão sob vigilância constante.

            No entanto, um espião que atua fora da cobertura diplomática não pode beneficiar dos Acordos de Viena. Se um diplomata é denunciado, pode ser considerado persona non grata e expulso. O país a que pertence protesta a sua inocência e expulsa por seu turno diplomatas da outra nação. Terminada a dança do olho-por-olho, o jogo é reatado como anteriormente.

            Mas um espião desmascarado é um ilegal. Para ele, consoante a natureza do lugar onde foi surpreendido, a descoberta pode representar tortura implacável, um longo período num campo de trabalho ou uma morte solitária. As próprias pessoas que o enviaram para lá raramente podem lhe ajudar.

            Nas democracias, há um julgamento imparcial e prisão humanitária. Nas ditaduras, os direitos cívicos não existem. Algumas nem sequer sabem o que isso é. O Iémen do Sul era uma delas, e os Estados Unidos não tinham sequer uma embaixada no país, em 1985.

            Em Outubro, o calor ainda é intenso e sexta-feira o dia de descanso em que se não executa trabalho algum. “Que fará um agente russo saudável debaixo de uma torreira destas?”, perguntava-se Monk. Nadar era uma sugestão razoável.

            Por razões de segurança, a fonte original que jantara em Nova Iorque com o antigo companheiro de estudos do FBI não voltara a ser abordada. Na realidade, poderia ter fornecido uma melhor descrição do major Solomin e até ajudado a compor um retrato. Talvez pudesse mesmo ter regressado ao Iémen, numa posição para indicar o homem. Mas constava que era também um enfatuado e fanfarrão.

            A localização do russo não oferecia qualquer dificuldade. Havia-os por todos os lados e era-lhes evidentemente permitido que convivessem livremente com a comunidade da Europa Ocidental, ocorrência inaudita na sua própria pátria. Talvez fosse do calor ou da impossibilidade de manter o grupo de conselheiros militares soviéticos encerrado no seu recinto dia e noite.

            Dois hotéis o Rock e o novo Frontel dispunham de convidativas piscinas. Havia igualmente a extensa praia, com a rebentação espumante dava pelo nome de Abyan e era frequentada pelos expatriados de todas as nacionalidades que gostavam de efetuar algumas braçadas após o trabalho ou no seu dia de folga. Finalmente, funcionavam uns armazéns de artigos gerais estilo PX russo na cidade, onde as pessoas das outras nacionalidades estavam autorizadas a efetuar compras, pois a URSS precisava de moeda estrangeira.

            Tornou-se prontamente óbvio a Monk que quase todos os russos que via eram oficiais. Poucos falavam uma única palavra de árabe, e o número dos que dominavam o idioma inglês também não se podia considerar elevado. Os que tinham conhecimentos de qualquer dessas línguas decerto haviam frequentado uma escola especial, pelo que deviam ser oficiais ou desse nível. Os soldados rasos, ou mesmo cabos e sargentos, não possuíam semelhantes conhecimentos e, por conseguinte, achavam-se impossibilitados de comunicar com os iemenitas. Assim, exerciam apenas as funções de mecânicos ou cozinheiros. Os impedidos ou ordenanças eram, sem dúvida, recrutados localmente.

            Outra possibilidade consistia em que o americano das Nações Unidas encontrara o russo a beber sem companhia no bar do Rock. Os russos gostam de o fazer, mas, de modo geral, acompanhados, e aqueles que rodeavam a piscina do Frontel formavam sem dúvida um grupo impenetrável. Que motivo levaria Solomin a fazê-lo só? Um mero capricho, naquela noite, ou se trataria de um solitário que preferia a sua própria companhia?

            Havia aí uma possível pista. O americano dissera que se tratava de um homem alto e possante, de cabelo preto e olhos rasgados. Como um oriental, mas sem o nariz abaulado. Os peritos de línguas de Langley situavam o nome em algum lugar no extremo oriente soviético. Monk sabia que os russos eram irredutivelmente racistas, com aberta animosidade aos chomi, os “pretos”, qualquer pessoa que não fosse puramente russa. Talvez Solomin estivesse farto de ouvir comentários jocosos aos seus traços fisionômicos asiáticos.

            Decidiu visitar o armazém de artigos gerais, os oficiais russos viviam todos como solteiros, nas piscinas e nos bares depois de anoitecer. Foi no terceiro dia, quando passeava na praia Abyan de calção de banho e camisa, com uma toalha sobre os ombros, que avistou determinado homem que saía da água.

            Tinha perto de um metro e oitenta de altura, porte atlético e aparentava cerca de quarenta anos. O cabelo era preto como a asa de um corvo, mas não havia regiões particularmente peludas no corpo, exceto nas axilas, como revelou ao erguer o braço para sacudir a água da cabeça. Em seguida, percorreu parte do areal até onde deixara a toalha, sentou-se, voltado para o mar, pôs uns óculos escuros e pareceu imergir em reflexões.

            Monk despiu a camisa e dirigiu-se para a água como um banhista que se prepara para o primeiro contato da época com aquele elemento. Como havia muita gente, era natural que escolhesse um lugar a pouco mais de um metro do russo, depois de simular que decidira protelar o banho para mais tarde. Extraiu a carteira do bolso do calção e enrolou a camisa em volta. Depois, fez o mesmo com a toalha. Por fim, sacudiu os pés para descalçar as sandálias, e juntou tudo num monte e olhou em volta, apreensivo, até que se voltou para o russo

            - Desculpe. - Fez uma breve pausa, enquanto o outro o olhava. - Ainda fica mais um pouco? O interpelado assentiu, com uma inclinação de cabeça. - Importa-se de vigiar as minhas coisas?

            Novo movimento de cabeça, e o russo tornou a virar-se para o mar. Monk encaminhou-se para a água, na qual se manteve durante dez minutos. Quando regressou, gotejante, sorriu ao homem de cabelo preto.

            - Obrigado.

            O outro inclinou a cabeça pela terceira vez, enquanto ele começava a secar-se com a toalha e se sentava na areia.

            - A água está ótima. E é uma praia estupenda. Infelizmente, pertence àquela gente.

            O russo falou pela primeira vez, e em inglês.

            - Que gente?

            - Os árabes. Os iemenitas. Apesar de ter chegado há pouco tempo, já não posso com eles. É uma cambada de inúteis.

            O homem observava-o por trás dos óculos escuros, todavia Monk não conseguia detectar qualquer expressão através dos vidros. Deixou transcorrer dois minutos e continuou:

            - Tento ensiná-los a utilizar as ferramentas básicas e os tratores. Para   aumentarem a produção de alimentos. Mas receio que esteja perdendo meu tempo. Dão cabo de tudo o que lhes passa pelas mãos. Sim, desperdiço o meu tempo e o dinheiro das Nações Unidas.

            Entretanto, exprimia-se em inglês, mas com sotaque castelhano.

            - É inglês? - perguntou o russo.

            - Não, espanhol. Trabalho no programa da FAO. E você? Também está à serviço das Nações Unidas?

            - Não, sou da URSS.

            - Para você, isto deve ser muito mais quente que no seu país. No meu caso, é quase a mesma coisa. Estou ansioso por regressar para casa.

            - Eu também. Prefiro o frio.

            - Está aqui há muito tempo?

            - Dois anos. E ainda me falta um.

            Monk sorriu.

            - Espero raspar-me antes disso. É uma tarefa inglória. Bem, vou andando.  Diga-me uma coisa. Depois de dois anos disto, deve saber. Há algum lugar satisfatório onde se possa tomar uma bebida, depois do jantar. Um clube noturno, por exemplo?

            O russo soltou uma risada sardônica.

            - Não, nada de diskoteki. Em todo o caso, o bar do Rock Hotel é sossegado.

            - Obrigado. Me chamo Estéban. Estéban Martinez Llorca.

            Monk estendeu a mão e o outro hesitou antes de a apertar.

            - Pyotr - informou. - Ou Peter. Peter Solomin.

            Duas noites mais tarde, o major russo apareceu no bar do Rock Hotel. A antiga unidade hoteleira colonial acha-se virtualmente incrustada num rochedo, com degraus da rua até à pequena área da Recepção, no piso superior, e um bar com vista panorâmica do porto. Monk instalara-se numa mesa da janela e olhava o cenário distraidamente. Viu Solomin entrar pelo reflexo no vidro, mas aguardou que lhe servissem a bebida para se voltar.

            - Ah, tornamos a nos encontrar Peter! Quer me fazer companhia?

            E indicou o lugar à sua frente. O russo deixou transparecer uma leve hesitação antes de se sentar, após o que ergueu a cerveja.

            - Za vashe zdorovye.

            Monk imitou-o.

            - Pesetas, faena y amor. - Vendo Solomin enrugar a fronte, sorriu. - Dinheiro, trabalho e amor...  pela ordem que preferir.

            O outro sorriu pela primeira vez. Era um sorriso agradável.

            Conversaram de vários assuntos mais ou menos banais Entre outros, da impossibilidade de trabalhar com os iemenitas, da frustração de os ver destruir a maquinaria e executar uma tarefa em que não depositavam a menor fé. E, como costumam fazer as pessoas radicadas no estrangeiro por um período mais ou menos prolongado, referiram-se aos países de origem.

            Monk falou da sua Andaluzia, onde se podia praticar esqui na Sierra Nevada e nadar nas águas cálidas ao largo de Sotogrande no mesmo dia. Por seu turno, Solomin aludiu às densas florestas nevadas, onde ainda havia tigres siberianos e os caçadores podiam abater raposas, lobos e veados.

            Encontraram-se em quatro noites consecutivas e trocaram impressões com profunda cordialidade. No terceiro dia, Monk teve de se apresentar ao holandês que chefiava o programa da FAO e deixar-se conduzir numa digressão de inspeção. O posto de Roma da CIA obtivera a descrição pormenorizada desse programa na delegação daquela organização e Monk memorizara-a, o que impressionou favoravelmente o homem.

            Durante os serões e mais tarde, já à noite, elucidou-se mais pormenorizadamente sobre o major Pyotr Vasilyevich Solomin, e o que ouviu agradou-lhe.          Nascera em 1945 na língua do território soviético entre o noroeste da Manchuria e o mar, com a fronteira na Coreia do Norte a sul. Chamava-se Primorski Krai e a vila em que viera ao mundo Ussuriysk.

            O pai transferira-se do campo para a cidade, à procura de trabalho, mas criou o filho falando o idioma da sua tribo, o povo do Udegey. Como o levava consigo para as florestas, sempre que podia, o rapaz habituou-se a sentir uma profunda afinidade com os elementos da sua terra: arvoredo, montanhas, água e animais.

            No século XIX, antes da conquista final do Ugedey pelos russos, o escritor Arsenyev visitara o enclave e publicara um livro, ainda hoje famoso no país, sobre aquele povo, intitulado Tigres do Extremo Oriente.

            Ao contrário dos asiáticos baixos e atarracados do oeste e sul, os naturais do Edegey são altos e de feições aquilinas. Muitos séculos atrás, alguns dos seus antepassados mudaram-se para o norte, cruzaram o Estreito de Bering em direção ao Alasca de hoje e depois seguiram para sul, difundindo-se através do Canadá para se converterem nos Sioux e Cheyenne.

            Enquanto olhava o possante soldado siberiano na sua frente. Monk não tinha dificuldade em imaginar as expressões dos caçadores de búfalos mortos desde longa data dos rios Platte e Powder.

            Para o jovem Solomin, a alternativa consistia na fábrica ou o exército. Meteu-se no trem, rumo ao norte, e assentou praça em Khabarovsk. Todos os rapazes tinham de cumprir três anos de serviço militar e, no final do segundo, os melhores eram escolhidos para a promoção a sargento. Devido à perícia que revelou nas manobras, candidatou-se à escola de oficiais, pelo que, dois anos mais tarde, adquiria a patente de tenente.

            Aos trinta e três anos, tornava-se finalmente major. Entretanto, casara e tivera dois filhos. Singrou na vida sem proteção nem o recurso a influências, sobrevivendo às provocações racistas de churka, insulto que significa “toro” ou “duro como uma prancha”. Vira-se forçado várias vezes a utilizar os punhos para resolver situações mais dificeis.

            A missão no Iémen em 1983 constituiu o seu primeiro trabalho no estrangeiro. Sabia que quase todos os seus colegas gostavam dessa ocupação. Apesar das condições pouco atraentes do clima, as instalações eram espaçosas, muito diferentes das do seu país, pois a maioria alojava-se em antigos aquartelamentos britânicos, com alimentação abundante e excelente.

            Pyotr apreciava tudo isso, em particular os novos prazeres da cultura consumista do Ocidente. Havia, porém, algo que o amargurava e decepcionava quanto ao regime que servia. Monk pressentia-o, mas receava aventurar-se demais.

            Para que se achasse na atual posição, o russo devia ter percorrido o movimento da Juventude Comunista, o Komsomol, antes de se incorporar no Partido. Pior, se prestava serviço no estrangeiro com a patente de major, decerto fora introduzido no braço dos serviços secretos militares denominado GRU. Que havia, pois, de errado? Tornou-se óbvio na quinta noite de bebida e conversa juntos. A revolta íntima acudiu à superfície.

            Em 1982, um ano antes da nomeação no Iémen e com Andropov ainda na presidência, Solomin fora colocado no departamento da administração, Ministério da Defesa, em Moscou. Aí, despertara a atenção de um subsecretário, que lhe atribuíra uma tarefa confidencial. Utilizando dinheiro retirado da verba da defesa, construía uma sumtuosa dacha para seu próprio usufruto, perto do rio, em Peredelkino.

            Em desafio secreto às regras do Partido, lei soviética e moralidade básica, o subsecretário disponibilizou mais de uma centena de soldados para a obra, cuja vigilância se achava a cargo de Solomin. Assim, viu as unidades de cozinha pelas quais qualquer esposa de um militar daria o braço esquerdo para possuir, adquiridas na Finlândia com o dinheiro dos contribuintes, sistemas de alta-fidelidade japoneses instalados em todos os aposentos, um banheiro de sonho e um bar particularmente acolhedor. O fato levou-o a revoltar-se intimamente contra o Partido e o regime, e não era, nem pouco mais ou menos, o primeiro oficial soviético leal a insurgir-se com a corrupção que grassava na ditadura do seu país.

            Aprendeu inglês à noite e passou a escutar os serviços noticiosos da BBC e da Voz da América. Ambas as estações de rádio tinham programas em russo, mas ele queria inteirar-se de tudo diretamente. Soube assim que, ao contrário do que sempre lhe fora ensinado, o Ocidente não pretendia a guerra com a Rússia. E, se existia alguma coisa mais para o levar a transpor a barreira que ainda subsistia, foi o Iémen.

            - No meu país, as pessoas comprimem-se em minúsculos apartamentos, mas os nachalstvo vivem em mansões. Tratam-se como  príncipes  com o  nosso  dinheiro. A minha  mulher não consegue comprar um secador de cabelo ou um par de sapatos que dure mais de dois meses, enquanto se gastam milhares de milhões de rublos em missões no estrangeiro para impressionar... quem? Esta gente?

            - As coisas estão mudando - observou Monk, porém o siberiano abanou a cabeça.

            Gorbachev encontrava-se no poder desde Março, mas as reformas que involuntariamente e, em muitos casos, imprudentemente introduziu só começaram a fazer-se sentir em 1987. Além disso, havia dois anos que Solomin não visitava a pátria.

            - Parece apenas. Os merdas que detêm o poder... Garanto-lhe o seguinte, Estéban. Desde que me mudei para Moscou, assisti a esbanjamentos incríveis.

            - Mas talvez Gorbachev dê uma volta à situação. Não sou tão pessimista. O povo russo acabará por se libertar desta ditadura. Haverá eleições autênticas e não forjadas como as atuais. Já não falta muito...

            - Isso ainda vem longe. Aproxima-se muito devagar.

            Monk encheu os pulmões de ar. Um “engodo” a frio constitui uma manobra perigosa. Numa democracia ocidental, um funcionário soviético abordado com essas intenções pode queixar-se ao seu embaixador e originar um incidente diplomático. E, numa tirania obscura, conduzir a uma morte prolongada e solitária. De súbito, passou a exprimir-se em russo.

            - Você podia contribuir para a mudança, meu amigo. Juntos, trabalharíamos com eficiência nesse sentido. Da maneira que é da sua preferência.

            Solomin encarou-o de olhos arregalados durante uns trinta segundos, porém Monk sustentou o olhar sem pestanejar.

            Por fim, o russo, no seu próprio idioma, perguntou:

            - Quem diabo é você?

            - Creio que já sabe, Pyotr Vasilyevich. A questão consiste agora em saber se você me trairá, consciente do que me farão antes de morrer. E depois viver com esse peso na consciência.

            Continuou a fitar intensamente o interlocutor e acabou por declarar:

            - Não denunciaria nem o meu maior inimigo àquela gente. Mas você tem um arrojo incrível. O que propõe é uma loucura. Eu devia mandá-lo embora.

            - Talvez. E eu iria. Depressa, no meu interesse. No entanto, assistir a tudo sem mover uma palha não lhe parece também uma loucura?

            - Preciso de refletir - anunciou, levantando-se sem ter tocado na cerveja.

            - Amanhã à noite - indicou Monk, ainda em russo. - Aqui. Se vier só, conversaremos. Se o acompanharem guardas, serei um homem morto. Se não aparecer, partirei no primeiro avião.

            O major Solomin retirou-se sem mais uma palavra.

            Todas as normas de segurança, SOP*, aconselhavam Monk a abandonar o Iémen o mais rapidamente possível. Embora não tivesse sido rejeitado abertamente, também não triunfara nas suas intenções. Um homem com o espírito confuso pode mudar de idéia, e as celas da Polícia Secreta do Iémen eram pouco acolhedoras.

            Decorreram vinte e quatro horas e Solomin apareceu... só. Escoaram-se mais dois dias. Ocultos entre os seus artigos de uso essencial, Monk trouxera o material básico para uma embalagem de comunicações: tintas secretas, endereços seguros, frases inofensivas que continham significados codificados, etc.

            Quando os dois homens se separaram, o aperto de mão prolongou-se por vários segundos.

            - Felicidades, meu amigo - disse Monk.

            - Boa caçada, como se diz na minha terra - replicou o siberiano.

            No entanto, o americano continuou sentado, para não serem vistos saindo juntos do Rock Hotel. O seu novo recruta precisaria de um nome de código. No firmamento, as estrelas brilhavam com a intensidade surpreendente só vista nos trópicos.

            Entre elas, Monk localizou a constelação de Orion. Acabava de nascer o agente Orion.

 

            A 2 de Agosto, August Boris Kuzrtetsov recebeu uma carta pessoal do jornalista britânico Mark Jefferson. Exibia o timbre do Daily Telegraph de Londres e, embora chegasse por fax à delegação de Moscou, fora entregue por mão própria na sede do Partido da UFP.

            Jefferson realçava a sua admiração pela posição assumida por Igor Komarov contra o caos, corrupção e crime e a análise dos discursos do dirigente do Partido nos últimos meses. E acrescentava que, em virtude da morte do Presidente russo, a questão do futuro do maior país do mundo voltava a assumir particular importância. Tencionava visitar Moscou na primeira quinzena de Agosto e, naturalmente, decerto entrevistaria os candidatos à presidência do Centro e da Esquerda. Tratava-se, contudo, de uma mera formalidade.

            Era óbvio que o verdadeiro interesse do resto do mundo se focaria no vencedor antecipado da luta eleitoral, Igor Komarov. Por conseguinte, ele, Jefferson, ficaria extremamente grato a Kuznetsov se lhe recomendasse que o recebesse. Podia desde já prometer várias colunas da primeira página do Daily Telegraph, com difusão assegurada através da Europa e América do Norte.

            Embora Kuznetsov, cujo pai fora diplomata junto das Nações Unidas durante anos e aproveitara essa posição para que o filho se formasse em Cornwell, conhecesse os Estados Unidos melhor do que a Europa, já visitara Londres.

            Também não ignorava que a Imprensa americana se inclinava para a tendência liberal e se mostrara deliberadamente hostil para com o seu chefe nas ocasiões em que haviam sido concedidas entrevistas. A última ocorrera um ano atrás e as perguntas tinham-se revelado impertinentes, pelo que Komarov proibira ulteriores concessões do gênero aos órgãos da Informação dos Estados Unidos.

            Mas Londres era diferente. Dois dos jornais de maior circulação e as duas revistas nacionais revelavam-se indiscutivelmente conservadores, embora não tão entranhados na Direita como Igor Komarov, nas suas alocuções públicas.

            - Recomendo que se abra uma exceção no caso de Mark Jefferson, senhor presidente - sugeriu no dia seguinte, durante a sua reunião semanal.

            - Quem   é   esse   homem? - Quis   saber   Komarov,   que detestava todos os jornalistas, pois só faziam perguntas a que nem sempre estava disposto a responder.

            - Preparei um memorando a seu respeito - informou Kuznetsov, entregando-lhe  um pequeno maço de folhas. - Como verá, apoia a restauração da pena de morte por homicídio, no seu país, e manifesta vigorosa oposição à adesão da Grã-Bretanha à decadente União Européia. Além disso, é um conservador ferrenho. Na última vez que se referiu ao senhor, presidente afirmou que era o tipo de dirigente russo que Londres devia apoiar.

            O outro emitiu um grunhido e acabou por concordar. A sua resposta seguiu para a delegação de Moscou do Daily Telegraph por mensageiro especial, no mesmo dia. Indicava que Mr. Jefferson deveria apresentar-se para a entrevista a 9 de Agosto.

* Standart Operating Procedures.  (N.  do  T)

 

Iémen. Janeiro de 1986

            Solomin e Monk não podiam prever que a comissão de serviço do primeiro em Adem terminaria nove meses prematuramente. Mas, a 13 de Janeiro, eclodiu uma violenta guerra civil entre duas fações rivais no seio do Partido do Governo. E a luta atingiu uma tal intensidade que foi tomada a decisão de evacuar todos os súditos estrangeiros, incluindo os russos. A operação desenrolou-se durante seis dias, com início a 15 daquele mês. Assim, Pyotr Solomin encontrava-se entre aqueles que embarcaram.

            Como o aeroporto se achava sob fogo constante, o mar era a única via de evasão. Graças a uma casualidade afortunada, o iate real britânico Britannia acabava de surgir da parte sul do Mar Vermelho, com destino à Austrália, a fim de se ocupar dos preparativos para a visita da rainha Isabel.

            Na sequência de uma mensagem da embaixada britânica em Adem, o Almirantado, em Londres, foi alertado e consultou o secretário particular da soberana, o qual se apressou a procurá-la e ficou assente que o Britannia faria tudo ao seu alcance para facilitar a retirada.

            Dois dias mais tarde, o major Solomin, com um grupo de outros oficiais russos, abandonou o refúgio em direção à praia de Abyan, onde as lanchas do Britannia permaneciam vigilantes. Alguns marinheiros ajudaram-nos a embarcar e os fugitivos puderam instalar-se na sala de estar do iate britânico, entretanto preparada para acomodar os evacuados.

           Na sua primeira missão, o Britannia transportou 431 refugiados e, em subsequentes visitas à praia, recolheu um total de 1068 pessoas de cinquenta e cinco nações. Entre evacuações, rumava a Jibuti, no Corno de África, para desembarcar a carga humana por turnos. Solomin e os colegas seguiram de avião para Moscou, via Damasco.

            Ninguém sabia, porém, que se ele ainda acalentava alguma dúvida sobre a decisão que tomaria, o equilíbrio da balança foi alterado pelo contraste entre a camaradagem sincera dos ingleses, franceses e italianos com os marinheiros da Royal Navy e a tenebrosa paranóia da reserva absoluta imposta por Moscou.

            Toda a CIA sabia que um homem recrutado por um dos seus, três meses atrás, desaparecera nos confins da URSS. Agora, daria sinais de vida ou não. O futuro o revelaria.

            Ao longo daquele Inverno, o braço operacional da Divisão Soviética desintegrou-se literalmente peça a peça. Um a um, os “bens” russos que trabalhavam para a CIA no estrangeiro foram chamados sob uma variedade de pretextos plausíveis: a sua mãe adoeceu gravemente, os resultados do seu filho na faculdade são péssimos e precisa de “conselhos” do pai, vai reunir-se uma comissão de promoções, e assim sucessivamente. Pouco a pouco, todos tombaram na armadilha. À chegada, eram presos sem demora e conduzidos à nova base do coronel Grishin  uma ala inteira isolada do resto da sinistra fortaleza de Letortovo. Langley ignorava as detenções e apenas sabia que eles desapareciam gradualmente. Quanto aos colocados no interior da URSS, deixaram simplesmente de dar “sinais de vida” de rotina.

            Na União Soviética, não se podia pensar em telefonar a um homem no seu gabinete e convidá-lo para tomar café. Todas as linhas estavam sob escuta e todos os diplomatas eram vigiados. Os estrangeiros notavam-se à distância, apenas pela maneira de vestir. Nessa conformidade, os contatos eram extremamente delicados e, de um modo geral, raros.

            Quando se efetuavam, utilizavam-se os receptáculos de cartas mortas, ou “depósitos”. Aldrich Ames serviu-se deles até ao fim. O refúgio consiste simplesmente num pequeno receptáculo ou esconderijo em algum lugar, uma cadeira fora de uso, uma abertura dissimulada numa árvore, etc.

            O agente deposita uma carta ou pacote com um microfilme no local e alerta os patrões que o fez por meio de uma marca de giz numa parede ou poste de iluminação. A posição desse sinal significa: o depósito de tal lugar contém uma coisa para si. O condutor de um veículo de embaixada que circule na área, mesmo com um carro da contra-espionagem no seu encalço, pode descortinar o sinal sem parar.

            Mais tarde, um funcionário obscuro tenta libertar-se da vigilância e recolher a carta ou pacote, deixando possivelmente dinheiro no seu lugar, após o que inscreve por seu turno uma marca de aviso. O “bem” passa mais tarde por ali, verifica que o seu material foi recolhido e o aguarda algo em troca. Que irá buscar pela calada da noite.

            Um espião pode assim permanecer em contato com o chefe clandestino durante meses, ou mesmo anos, sem um encontro frente a frente.

            Se ele está fora da capital, onde os diplomatas não podem ir, ou mesmo na cidade, mas não existe qualquer lugar para depositar, o regulamento tácito indica que dará “sinais de vida” a intervalos regulares. Na capital, onde se deslocam sem restrições, podem ser mais marcas de giz, as quais, consoante a configuração e localização, significam; estou bem de saúde, mas não tenho nada para si. Ou: estou preocupado, porque creio que me vigiam.

            Quando a distância impede essas mensagens secretas, e, na URSS, as províncias sempre estiveram fora dos limites para os diplomatas dos Estados Unidos, pequenos anúncios nos principais jornais constituem o meio favorito para dar sinais de vida. “Boris tem um belo Labrador para vender. Telefonar para...” pode figurar inocentemente entre os outros. O essencial é o texto. Labrador pode significar “Estou bem”, enquanto “Cão-de-água” se refere, por exemplo, a “Estou em apuros”, “belo” a “Estarei em Moscou na próxima semana e abastecerei o refúgio habitual.”

            O essencial é que as mensagens de sinais de vida têm de acontecer. Quando se interrompem, pode haver algum problema grave. Talvez um ataque cardíaco ou um acidente na estrada, e o “bem” encontra-se hospitalizado. Se param definitivamente, o problema é de grande envergadura.

            Foi o que aconteceu durante o Outono e Inverno de 1985 para 1986. Pararam todas. Gordievsky transmitiu a sua comunicação desesperada “Estou em sérios apuros” e foi retirado da circulação pelos ingleses. Cheirou a esturro ao major Bokhan, em Atenas e recorreu aos Estados Unidos para o protegerem. Os outros doze vaporizaram-se, pura e simplesmente.

            Qualquer funcionário de controle individual de Langley ou no estrangeiro a contas com o desaparecimento do seu “bem” informa a base. Mas Carey Jordan e o chefe da Divisão SE tinham uma visão global da situação, conscientes que havia algo de gravemente errado.

            Ironicamente, foi o caráter estranho do que o KGB estava fazendo que salvou Ames. A CIA calculava que ninguém sonharia proceder a uma limpeza tão numerosa de agentes com semelhante rapidez, se o traidor ainda se encontrasse no coração de Langley. Assim, as altas esferas convenceram-se daquilo que queriam acreditar: eles, a elite das elites, não podiam albergar um traidor no seu seio. Não obstante, havia necessidade de proceder a uma vistoria, como aconteceu, mas em outro lugar.

            O primeiro suspeito foi Edward Lee Howard, herói de um antigo fiasco, agora instalado com segurança em Moscou. Fora um agente da CIA colocado na Divisão SE, que recebera instruções minuciosas para trabalhar na embaixada na capital russa, incluindo pormenores operacionais. Pouco antes de partir para lá, descobriu-se que tinha as finanças arruinadas e consumia drogas.

            Ignorando a regra de ouro de Maquiavel, a CIA despediu-o, mas deixou-o em liberdade. Durante dois anos. E não disse nada a ninguém. Entretanto, Howard sentava-se em bancos de jardins e pensava em partir para a Rússia. Por fim, a agência informou o FBI, que se enfureceu e passou a vigiar os movimentos do homem. Depois, foi a vez deste meter a pata na poça. Perdeu-o de vista, porém ele percebera que o seguiam. Em pouco mais de dois dias, Setembro de 1985, encontrava-se na embaixada soviética da Cidade do México, que o despachou para Moscou, através de Havana.

            As investigações revelaram que ele podia ter traído três dos agentes desaparecidos e talvez até seis. Na realidade, denunciou os três únicos cuja existência conhecia, mas já haviam sido desmascarados por Ames, em Junho anterior. O trio foi, portanto, traído duplamente.

            Outro indício proveio dos próprios russos. Desesperado por proteger a sua toupeira, o KGB montou uma vasta campanha de diversão e desinformação para fazer a CIA enveredar pelo caminho errado. E conseguiu-o. Uma fuga de informações aparentemente autêntica em Berlim Oriental “revelou” que alguns códigos tinham sido decifrados, com a intercepção de mensagens.

            Os códigos em causa eram utilizados por um importante transmissor secreto da CIA em Warrenton, Virgínia. Ato contínuo, esta localidade e o pessoal nela colocado foram passados a pente fino durante um ano. Sem o menor resultado ou a simples sugestão de uma penetração de código. Se tal tivesse acontecido, o KGB se inteiraria claramente de mais coisas, não tomara qualquer medida nesse sentido. Por conseguinte, os códigos permaneciam intactos.

            A terceira semente que o KGB plantou diligentemente consistiu em que se dedicara a uma brilhante ação detetivesca. O fato foi recebido com surpreendente complacência em Langley, onde um relatório sugeria que “todas as operações têm, no seu seio, as sementes da sua própria destruição”. Por outras palavras, catorze agentes tinham decidido subitamente comportar-se como imbecis.

            Alguns, em Langley, não se deixaram contagiar pela complacência. Um foi Carey Jordan e o outro Gus Hathway. A um nível inferior, foi Jason Monk, que se inteirou através do jornal de caserna dos problemas que flagelavam a sua divisão.

            Procedeu-se a uma inspeção dos 301 processos, onde se achavam armazenados todos os detalhes. O que se apurou era simplesmente horrível. Um total de 198 pessoas tinham acesso àquele material. Tratava-se de um número espantoso. Quem se encontrava no interior da URSS, com a vida em jogo, a última coisa que necessitava era saber que 198 desconhecidos absolutos podiam consultar o seu processo.

 

            O professor Kuzmin desinfetava-se na sala de autópsias do necrotério por baixo do Segundo Instituto de Medicina, enquanto se preparava com reduzido prazer, para proceder ao terceiro exame do gênero naquele dia.

            - Quem é o próximo? - perguntou ao ajudante,  enquanto secava as mãos e antebraços.

            - O número dezoito.

            - Pormenores?

            - Sexo masculino, branco, de meia-idade, perto da velhice. Causas da morte e identidade desconhecidas.

            Wuzmin emitiu um grunhido. “Para quê perder tempo?”, refletiu. Mais um farroupilha, um vagabundo, um frequentador de albergues noturnos, cujos fragmentos, quando ele terminasse o exame, talvez ajudassem os estudantes de Medicina da academia, três pisos acima, a compreender o que os maus-tratos prolongados conseguiam fazer aos órgãos humanos, e o esqueleto poderia ir parar a uma aula de anatomia.

            Moscou, como qualquer grande cidade, produzia a sua safra noturna, semanal e mensal de cadáveres, mas por sorte apenas uma minoria exigia a autópsia, caso contrário o professor e todos os colegas do setor de patologia legal não conseguiriam dar-lhes vasão.

            A maioria eram as causas naturais, aqueles que morriam em casa ou num hospital de velhice ou de qualquer de uma das centenas de causas terminais previsíveis. As enfermarias e os médicos podiam assinar as respectivas certidões de óbito.

            Seguiam-se as causas naturais imprevistas, usualmente ataques cardíacos fatais e, nessas circunstâncias, os hospitais aos quais os infortunados eram conduzidos podiam ocupar-se das formalidades burocráticas básicas e, em regra, extremamente básicas.

            Depois dessas, havia os acidentes domésticos, industriais e de viação. Moscou tinha mais duas categorias que haviam aumentado maciçamente ao longo dos anos: morrer congelado (no Inverno) e suicídios. Os números atingiam os milhares.

            Os corpos recuperados do rio, identificados ou não, dividiam-se em três categorias. Totalmente vestidos, sem álcool no organismo, suicídio; vestidos, profundamente ébrios, acidente; de calção de banho, afogados acidentalmente enquanto nadavam.

            Vinham a seguir os homicídios. Destinavam-se à Polícia, departamento de detetives, e finalmente ao professor Kuzmin. Até esses costumavam não passar de uma formalidade. A grande maioria, como em todas as cidades, eram os “domésticos”. Oitenta por cento aconteciam dentro de casa ou o autor era um membro da família. A Polícia costumava capturá-lo em poucas horas, e a autópsia limitava-se a confirmar o que já se sabia  Ivan esfaqueara a esposa  e ajudava os tribunais a chegar a um veredito rápido.

            Na alínea seguinte, figuravam as rixas em bares e as mortes provocadas entre membros de bandos  neste último caso, o grau de condenações obtidas pela Polícia não passava de uns modestos três por cento. No entanto, a causa não constituía problema uma bala no cérebro é uma bala no cérebro. Se os investigadores descobriam ou não o autor a negativa era o mais provável, não interessava minimamente ao professor.

            Em todos os exemplos referidos, vários milhares por ano, uma coisa era certa. As autoridades sabiam quem era o morto. Ocasionalmente, aparecia-lhes um João-Ninguém, como o cadáver número 158. Kuzmin colocou a máscara de gaze, flectiu os dedos dentro das luvas de borracha e aproximou-se com uma ponta de interesse, enquanto o ajudante afastava o lençol.

            “Curioso”, ponderou. “Interessante, mesmo”. O fedor que obrigaria um leigo a tentar dominar os vômitos deixou-o indiferente. Habituara-se desde longa data. De bisturi na mão, contornou a longa mesa, ao mesmo tempo que observava o corpo maltratado. Sim, muito curioso.

            A cabeça parecia intacta, à parte as órbitas vazias, mas era óbvio que se tratava de obra de pássaros. O homem permanecera abandonado no bosque junto da auto-estrada de Minsk cerca de seis dias. Abaixo da região pélvica, as pernas pareciam descoloradas, decerto devido à idade e putrefação, mas intactas.            Entre o tórax e os órgãos genitais, não havia praticamente um centímetro quadrado sem profundas escoriações.

            O professor pousou o bisturi e voltou o corpo sem vida. Nas costas, era a mesma coisa. Restituiu-o à posição anterior, tornou a pegar no bisturi e começou a cortar, ao mesmo tempo que proferia os habituais comentários para o gravador previamente ligado. Mais tarde, as palavras registradas o ajudariam a redigir o relatório destinado aos obtusos da Brigada de Homicídios, em Petrovska. Principiou com a data: 2 de agosto de 1999.

 

Washington, Fevereiro de 1986

            A meio do mês, ante a alegria de Jason Monk e a surpresa considerável dos seus superiores da Divisão SE, o major Pyotr Solomin estabeleceu contato. Escreveu uma carta.

            Sensatamente, não tentou contactar com qualquer ocidental em Moscou e muito menos da embaixada americana. Recorreu ao endereço que Monk lhe fornecera em Berlim Oriental.

            A divulgação desse endereço constituía, em si, um risco, mas calculado. Se se dirigisse ao KGB para trair a casa segura, teria de responder a algumas perguntas impossíveis. Os irrterrogadores compreenderiam que nunca o teriam indicado se ele não se tivesse prontificado a trabalhar para a CIA, o que ainda seria pior.

            Perguntariam por que não comunicara a abordagem imediatamente, logo após o primeiro contato, ao coronel que chefiava a delegação do GRU em Adem e permitira que o americano em causa desaparecesse. Ora, as interrogações de semelhante natureza eram irrespondíveis.

            Por conseguinte, Solomin ou guardava silêncio sobre todo o assunto ou se incorporava “na equipe”. A carta indicava a segunda alternativa.

            Na URSS, toda a correspondência endereçada ao estrangeiro ou proveniente de lá era interceptada e lida, o que também se aplicava às chamadas telefônicas, telegramas, fax e telex. No entanto, não se podia fazer o mesmo à interna, devido ao seu enorme volume, a menos que o remetente ou o destinatário estivesse sob suspeita. Isto era extensivo a todo o bloco soviético, o que incluía a Alemanha Oriental.

            O endereço em Berlim Oriental pertencia a um condutor do metropolitano que exercia as funções de carteiro para a CIA, o que lhe proporcionava uma remuneração substancial. As cartas que chegavam ao seu apartamento, num bloco pouco atraente do bairro Friedrichshain, eram sempre endereçadas a Franz Weber.

            Este último fora na verdade o antigo inquilino do local, mas já não pertencia ao número dos vivos. Se o condutor do metropolitano fosse interrogado, poderia jurar plausívelmente que já houvera duas cartas, não entendia uma única palavra do idioma russo e eram dirigidas a Weber. E como este morrera, ele as jogara fora. Estava, pois, inocente de qualquer suspeita.

            As cartas nunca tinham qualquer indicação do remetente e o texto podia considerar-se banal e fastidioso: “-Oxalá estas linhas o encontrem em boa saúde. As coisas aqui continuam correndo bem. Como vão os seus estudos na Rússia? Espero que voltemos a nos ver um dia. Saudades do amigo Ivan”.

            A própria Polícia secreta da Alemanha Oriental  Estase só poderia deduzir que Weber conhecera um russo numa reunião cultural qualquer e haviam travado relações amistosas. Tratava-se, aliás, de algo que o Governo encorajava.

            Mesmo que a Estase decifrasse a mensagem secreta traçada com tinta invisível nos intervalos das linhas, indicaria apenas que o extinto Weber fora na verdade um indivíduo suspeito, mas já não podia prestar contas a este mundo.

            Do lado de Moscou, a partir do momento em que a carta fora depositada num receptáculo, o remetente tornava-se impossível de determinar.

            Logo que recebia uma da Rússia, o condutor do metropolitano, Heinrich, fazia-a seguir para o Ocidente. A maneira como procedia poderá parecer insólita, porém, aconteciam coisas muito mais estranhas na dividida cidade de Berlim, durante a Guerra Fria. Na verdade, o método era tão simples, que ele nunca foi apanhado. A Guerra Fria terminou, a Alemanha foi reunificada e Heinrich aposentou-se para desfrutar uma velhice particularmente confortável.

            Antes de ser dividida pelo Muro, em 1961, para evitar que os alemães do setor oriental fugissem, Berlim dispunha de uma rede de metropolitano geral. Depois, foi dividida em duas, com a obstrução de muitos túneis entre o Leste e o Ocidente. Havia, contudo, um trecho em que a seção da Alemanha Oriental do sistema se convertia numa linha elevada e percorria uma pequena área do setor ocidental.

            Durante esse desvio para fora da parte oriental e regresso a ela, as portas e janelas tinham de permanecer seladas. Os passageiros podiam contemplar uma zona de Berlim Ocidental, mas não descer.

            Na cabina de condução, sem testemunhas, Heinrich baixava a janela e, em determinado momento, servindo-se de uma catapulta, disparava um projétil como uma pequena bola de golfe para uma antiga cratera de bomba. Conhecedor da situação, um homem de meia-idade passeava o seu cão no local e, quando o trem desaparecia ao longe, recolhia a bola e levava-a aos colegas do enorme posto da CIA em Berlim Ocidental. Desenroscadas as duas metades, surgia a carta em papel de correio aéreo que continha.

            Solomin tinha novidades para transmitir e eram todas boas. Após a repatriação, houvera um interrogatório intensivo e depois uma semana de licença, na sequência da qual ele se apresentara no Ministério da Defesa para nova nomeação. Enquanto aguardava, no átrio, fora reconhecido pelo subsecretário da Defesa para o qual construíra a dacha, três anos atrás. O homem dispunha agora de mais poderes e constituía um sério candidato ao cargo de ministro.

            Embora usasse o uniforme de coronel-general, com medalhas em quantidade e peso suficientes para afundar uma canhoneira, pertencia inteiramente ao apparat e ascendera através da escada política. Agradava-lhe ter um militar de combate austero da Sibéria na sua entourage. Estava encantado com a dacha, completada dentro do prazo estabelecido e o seu ajudante-de-campo acabava de se aposentar por motivos de saúde (consumo exagerado de vodka). Assim, promoveu Solomin a tenente-coronel e concedeu-lhe o lugar vago. Finalmente, este último não sem risco considerável, dava o seu endereço particular em Moscou e solicitava instruções. Se o KGB interceptasse e decifrasse a carta, tudo teria terminado para ele. Mas como não se podia aproximar da embaixada dos Estados Unidos, Langley precisava ser informado da maneira de o abordar. Se não eclodisse a guerra civil no Iémen, teria havido oportunidade e tempo de lhe fornecer um sistema de comunicação muito mais sofisticado.

            Dez dias mais tarde, recebeu o “último aviso” devido a uma violação das regras de trânsito. Remetiam a Divisão Central de Viação de Moscou e ninguém o interceptou. O aspecto do envelope e do impresso que continha estava tão bem falsificado, que Solomin quase pegou no telefone para protestar que não cometera qualquer infração. De súbito, porém, viu a areia que deslizava do interior da carta.

            Beijou a esposa quando saiu com os filhos para os levar ao colégio e, ao encontrar-se só, aplicou ao impresso o líquido contido num pequeno frasco que trouxera dissimuladamente de Adem. A mensagem era simples. No domingo seguinte, a meio da manhã, num café do Leninsky Prospekt.

            Iniciara a segunda xícara, quando viu passar perto uma figura anônima que vestia um pesado sobretudo para sair. Da manga ainda vazia, tombou um maço de cigarros russos, que Solomin cobriu prontamente com o seu jornal, enquanto o homem abandonava o café sem olhar para trás.

            O maço parecia cheio de cigarros, mas os vinte filtros eram um bloco, colados uns aos outros, sem nada para fumar por baixo. Na cavidade encontravam-se uma minúscula máquina fotográfica, dez rolos de películas para as primeiras impressões, uma folha de papel-arroz que referia três tipos de receptáculos de cartas mortas, com instruções para as descobrir e seis marcas de giz diferentes, com a sua localização, a fim de indicar quando os “depósitos” estavam vazios ou necessitavam ser utilizados. Assim como uma calorosa carta pessoal de Monk, que principiava: “Parece, pois, meu amigo caçador, que sempre vamos mudar o mundo”!...

            Um mês mais tarde, Orion procedeu à sua primeira remessa e recolheu mais rolos de películas. A sua informação provinha das profundezas do coração do complexo industrial de armamento soviético e podiia considerar-se inapreciável.

            O Professor Kuzmin reviu a transcrição das suas impressões sobre a autópsia do Cadáver 158 e acrescentou algumas anotações. Nem sequer pediria à sua sobrecarregada secretária que passasse o texto a limpo. Os cabeçudos da Brigada de Homicídios que o fizessem, se quisessem.

            Não tinha a menor dúvida que era para lá que o processo devia seguir. Tentava ser misericordioso com os detetives e, quando surgia alguma dúvida, recorria ao veredito de “morte acidental” ou “causas naturais” sempre que possível. Depois, os familiares podiam reclamar o corpo e, no caso de não se poder identificar, permanecia no necrotério durante o tempo estipulado pela lei. Ele alertava então o departamento de “pessoas desaparecidas”, e, se este não conseguia chegar a qualquer conclusão nesse sentido, era sepultado na vala comum, por cortesia do presidente da Câmara de Moscou, ou seguia para as aulas de anatomia.

            Mas o Cadáver 158 fora vítima de homicídio, e era impossível ignorar o fato. À parte nas ocasiões em que um transeunte era atropelado por um caminhão desenfreado, raramente se deparava uma destruição interna tão completa. Um único impacto, mesmo por um veículo pesado, não produziria efeitos tão devastadores. Talvez acontecesse, se fosse espezinhado por uma manada de búfalos, mas esses animais não abundavam nas ruas de Moscou e, de qualquer modo, também o atingiriam na cabeça e nas pernas. Ora, o Cadáver 158 fora agredido numerosas vezes com instrumentos metálicos no espaço entre o pescoço e os quadris, em ambos os lados.

            Quando terminou de redigir o relatório, o professor assinou-o, apôs a data  3 de Agosto e depositou-o na cesta do material a expedir.

            - Homicídio? - perguntou a secretária, com um sorriso.

            - Homicídio de um ser anônimo - confirmou Kuzmin. Ela endereçou o  envelope amarelado, introduziu-lhe o relatório e pousou-o a um lado. Quando saísse, ao fim da tarde, o entregaria ao porteiro que vivia num cubículo do térreo e, por seu turno, o confiaria ao condutor do furgão incumbido de distribuir os documentos aos seus diferentes destinos em Moscou.

            Entretanto, o Cadáver 158 jazia na escuridão gelada, sem os olhos e a maioria das entranhas.

 

Langley, Março de 1986

            Carey Jordan conservava-se de pé atrás da janela em contemplação da sua vista favorita. Aproximava-se o fim do mês e surgiam os primeiros sinais de verdura no bosque entre o edifício principal da CIA e o Rio Potomac. O brilho da água, sempre visível por entre os ramos sem folhas ao longo do Inverno, não tardaria a desaparecer. Ele adorava Washington, onde havia mais árvores, parques e jardins do que em qualquer outra das cidades dos Estados Un’idos que conhecia, e a Primavera era a sua estação do ano preferida.

            Pelo menos, tinha sido, porque a de 1986 se revelava um pesadelo. Sergei Bokhan, agente do GRU que a CIA controlava em Atenas, declarara durante os repetidos interrogatórios na América que estava convencido de que, se regressasse a Moscou, o aguardaria um pelotão de fuzilamento. Embora não tivesse provas disso, o pretexto que o seu superior hierárquico invocara para o mandar regressar à base, as notas baixas obtidas pelo filho na academia militar  não correspondiam à verdade. Por conseguinte, fora “queimado”. E como não cometera qualquer imprudência, acreditava que havia sido traído.

            Como Bokhan figurara entre os três primeiros que haviam experimentado problemas, a agência mostrara-se cética. Agora, dúvidas eram mais tênues. Cinco outros agentes dispersos pelo mundo tinham sido chamados misteriosamente a Moscou a meio da respectiva comissão, para se vaporizarem. E já eram seis. Sete, com o homem a cargo dos ingleses, Gordievsky. Mais cinco, colocados em território russo, também tinham desaparecido. Não existia uma única fonte importante, representativa de anos de trabalho árduo, paciência e astúcia, além de um avultado investimento de dólares dos contribuintes, ainda em atividade. Salvo duas exceções.

            Atrás de Jordan, Harry Gaunt, chefe da Divisão SE, principal melhor (ou pior) de momento a única vítima do vírus, permanecia sentado e imerso em reflexões. Era da mesma idade do DDO e haviam transposto os degraus da escala de promoções juntos, através de desgastantes anos em postos no estrangeiro, recrutando as suas fontes e participando no Grande Jogo contra o inimigo chamado KGB, e confiavam um no outro como irmãos.

            Residia aí o problema no seio da Divisão SE, todos confiavam nos colegas. Que remédio. Constituíam o núcleo íntimo, o clube mais exclusivo, a cunha cortante da guerra oculta. Não obstante, cada um albergava uma suspeita terrível. Howard, decifrador de códigos e hábil investigador do que se passava na Linha KR do KGB poderia explicar cinco, seis ou mesmo sete agentes desmascarados. Mas catorze? Todo o grupo? Apesar disso, não podia haver um traidor. Não devia haver. Na Divisão Européia do Leste Soviético, nunca.

            Soou uma pancada na porta e a atmosfera desanuviou-se particularmente. A história do último sucesso que restava preparava-se para entrar.

            - Sente-se, Jason - indicou o DDO. - Harry e eu queríamos apenas dizer-lhe “bom trabalho”. O seu homem, Orion, forneceu elementos realmente valiosos. Os rapazes da Análise têm um dia cheio. Achamos, pois, que o agente que o recrutou merece a classificação de GS-15.

            - Promoção, de GS-14 para 15, - e Monk mostrou-se devidamente grato.

            - Como vai o seu homem em Madrid, Lisandro?

            - Bem, senhor. Estabelece contato com regularidade. Não fornece material cósmico, mas é útil. A sua comissão de serviço está prestes a terminar. Regressa a Moscou em breve.

            - Não foi chamado prematuramente?

            - Não, senhor. Devia ter sido?

            - Não, de modo algum.

            - Posso falar francamente?

            - Com certeza.

            - Consta na Divisão que as coisas não nos têm corridobem, nos últimos seis meses.

            - Sim? - grunhiu Gaunt. - Bem, circulam sempre boatos.

            Até então, o maior impacto da catástrofe cingira-se aos dez homens da hierarquia superior da agência. Mas, embora as Operações dispusessem de seis mil funcionários, com cerca de um milhar na Divisão SE e apenas uma centena do nível de Monk, formavam uma aldeia e, nas aldeias os rumores circulam rapidamente. Este último encheu os pulmões de ar e declarou:

            - Fala-se   da   perda  de  agentes.  Ouvi   mencionar  o  seu número, que pode chegar a dez.

            - Você conhece as regras da necessidade-de-saber.

            - Sim, senhor.

            - Bom, talvez se nos tenham levantado alguns problemas.

- Acontece em todas as agências. Períodos de sorte e outros de azar. Que pretende dizer-nos?

            - Mesmo que o número chegue a dez, só há um lugar onde essa informação se reúne. Nos 301 processos.

            - Creio que sabemos como a agência funciona, amigo - advertiu Gaunt.

            - Então, como se explica que Orion e Lisandro continuem em liberdade?

            - Escute, Jason - proferiu o DDO, pacientemente. - Eu lhe disse em uma ocasião que o achava bizarro. Referia-me a irreverente, infrator de regulamentos. Mas com sorte. Sim, sofremos algumas baixas, mas não se esqueça que os seus dois “bens” também se encontravam entre os trezentos e um processos.

            - De modo algum.

            Um observador teria ouvido um amendoim cair no chão. Harry Gaunt parou de mover os dedos que seguravam o cachimbo, que nunca acendia dentro de casa e utilizava como um adereço de ator.

            - Não cheguei a arquivar os seus dados no Registro Central. Foi descuido de minha parte. Lamento.

            - Onde  estão  os  originais  dos  relatórios? - perguntou Gaunt. - Os que você redigiu e tratam sobre o recrutamento, lugares e datas dos encontros, etc.?

            - No meu cofre. De onde nunca saíram.

            - E o registro de todas as operações pendentes?

            - Na minha cabeça.

            Verificou-se nova pausa, ainda mais prolongada.

            - Obrigado, Jason - agradeceu o DDO, finalmente. - Voltaremos a falar com você.

            Duas semanas mais tarde, houve uma importante campanha de estratégia na cúpula do diretorado das Operações. Atuando apenas com dois analistas, Carey Jordan investigara a pente fino os 198 que, em teoria, haviam tido acesso aos 301 processos, quarenta e uma pessoas nos últimos doze meses. O nome de Aldrich Ames, na altura ainda no seu curso de italiano, figurava na pequena lista.

            Jordan, Gaunt, Gus Hathway e dois outros propuseram que, para eliminar todas as dúvidas, os quarenta e um fossem submetidos a uma profunda, ainda que penosa, investigação. O que implicaria um teste poligráfico “hostil” e o exame às finanças pessoais.

            O polígrafo era uma invenção americana, que suscitou animada controvérsia. Somente as investigações efetuadas no final dos anos oitenta e princípio dos noventa revelaram a escassa confiança que os seus resultados mereciam. Um mentiroso experiente podia ludibriá-lo, e a espionagem baseia-se no logro do inimigo.

            Por outro lado, os interrogadores precisavam ser instruídos minuciosamente, para fazerem as perguntas apropriadas, o que só podia acontecer se o interrogado tivesse sido investigado previamente. Ou seja, para determinar o mentiroso, necessitavam induzi-lo a pensar “Eles sabem tudo, meu Deus!” e fazer-lhes, portanto, acelerar as pulsações. Mas se esse mentiroso depreendia da natureza das perguntas que não sabiam nada, acalmava-se e não corria o risco de se denunciar. Era esta a diferença entre um teste amigável ou hostil com o polígrafo. A primeira versão constituía uma mera perda de papel de registro, se o interrogado possuía experiência na matéria.

            O DDO acreditava que a chave do inquérito residiria no exame das finanças. Mal sabia ele que Aldrich Ames, arruinado e desesperado após um divórcio agitado e novo casamento doze meses atrás, nadava atualmente em dinheiro, todo depositado desde Abril de 1985.

            À cabeça do grupo que se opunha, encontrava-se Ken Mulgrew, que evocou os estragos incríveis que James Angleton produzira com a investigação constante a agentes leais e salientou que a violação do sigilo bancário constituía uma invasão maciça à privacidade e uma negação dos direitos cívicos.

            Gaunt contra-atacou que, na época de Angleton nunca houvera uma perda súbita de uma dúzia de agentes no breve espaço de seis meses. A sua investigação baseara-se na paranóia em 1986. A CIA achava-se perante provas palpáveis que algo correra gravemente mal.

            Os falcões perderam a partida. Os direitos cívicos alcançaram a vitória. A investigação “dura” aos quarenta e um agentes foi vetada.

           

            O inspetor Pavel Volsky emitiu um suspiro de resignação ao ver depositar mais um processo em cima da mesa.

            - Um ano atrás, estava perfeitamente satisfeito com as funções de sargento na seção do Crime Organizado. Aí, ao menos, havia oportunidade de revistar os armazéns do submundo e confessar os lucros ilícitos, e um sargento esperto podia viver bem, quando alguns artigos de luxo apreendidos sofriam uma leve triagem antes de serem entregues ao Estado. Mas a esposa insistira em ter como companheiro legal um inspetor-detetive, pelo que, quando surgira o momento adequado, Volsky frequentou o respectivo curso e conquistou a promoção e a transferência para a Brigada de Homicídios.

            Não podia prever que lhe atribuiriam um cargo tão trabalhoso. Quando dirigia o olhar para a torrente de processos que abarcavam o seu campo visual, chegava a desejar encontrar-se de novo nas suas antigas instalações na Rua Shabolovka.

            O caso vertente, ocorrido a 4 de Agosto, era singular. O motivo não podia ser roubo. Um simples relance ao relatório sobre o Cenário da Descoberta da divisão ocidental indicou-lhe que o cadáver tinha sido encontrado por um apanhador de cogumelos no bosque que ladeava a auto-estrada de Minsk, pouco após os limites da cidade. A uma centena de metros da estrada, assim a hipótese de atropelamento e fuga devia ser posta de parte.

            A relação dos objetos pessoais encontrados era pouco animadora. A vítima usava sapatos de plástico, baratos, com vários cortes e saltos desgastados, luvas também pouco dispendiosas e sujas de terra, cuecas de qualidade e estado similares, calças pretas lustrosas e cinto de plástico também consumido pelo longo uso. E nada mais. Não havia qualquer indicação de uma camisa, gravata ou casaco. Apenas de um capote, que se achava nas proximidades, descrito como sendo do Exército, dos anos cinquenta e praticamente no fio.

            Havia um breve parágrafo ao fundo da página. Os bolsos estavam totalmente vazios. Tampouco existia qualquer relógio, anel ou outro artigo do gênero.

            Volsky observou a fotografia tirada no local. Alguém fechara piedosamente os olhos do homem. Rosto magro, por barbear, de cerca de sessenta e cinco anos, embora parecesse ter uma dezena mais. Macilento era o termo apropriado da expressão.

            “Pobre diabo”, refletiu. “Aposto que não foi liquidado por causa da sua conta bancária na Suíça”. Concentrou-se no relatório da autópsia, após vários parágrafos, apagou o cigarro no cinzeiro e mastigou uma imprecação.

            - Por que será que estes fulanos não escrevem em russo acessível a todos os intelectos? - perguntou à parede, não pela primeira vez.

            O texto só falava de “lacerações” e “contusões”. Se o patologista se referia a cortes e escoriações, por que não o diria abertamente?

            Intrigavam-no numerosos aspectos, depois de abrir mentalmente caminho por entre a terminologia técnica. Consultou o carimbo oficial do necrotério e marcou o número. Teve sorte, pois o professor Kuzmin encontrava-se no seu gabinete.

            - É o professor Kuzmin? - perguntou o inspetor.

            - O próprio. Quem fala?

            - Inspetor Volsky, da Brigada de Homicídios. Tenho o seu relatório na minha frente.

            - Parabéns.

            - Posso ser franco, professor?

            - Nos tempos que correm, é um privilégio.

            - Parte da linguagem  é um  pouco complexa para mim. Refere-se a fortes escoriações em cada antebraço. Pode determinar o que as provocou?

            - Como patologista, não, trata-se apenas de contusões graves. Mas, aqui  para nós, essas marcas foram produzidas por dedos humanos.

            - Alguém o terá segurado com violência?

            - Agarrado, meu caro inspetor. Foi agarrado por dois indivíduos vigorosos, enquanto o espancavam.

            - É, pois, tudo obra de seres humanos? Não intervieram máquinas?

            - Se a cabeça e pernas estivessem na mesma condição, eu diria que o tinham jogado de um helicóptero. E não de baixa altitude. Mas não foi o que aconteceu, porque qualquer impacto com o chão ou com um caminhão também afetaria a cabeça e as pernas. Em vez disso, foi espancado repetidamente entre o pescoço e os quadris, à frente e atrás, com objetos duros e pesados.

            - A causa da morte foi... asfixia?

            - Exato.

            - Desculpe: foi espancado barbaramente e morreu de asfixia?

            Kuzmin suspirou.

            - Todas as costelas foram fraturadas, sem uma única exceção. Algumas  em vários  pontos. Duas cravaram-se nos pulmões. Como resultado, o sangue pulmonar penetrou na traquéia e causou a asfixiia.

            - Está me dizendo que foi sufocado pelo sangue que afluiu à garganta?

            - É, de fato, o que tenho tentado fazê-lo compreender.

            - Desculpe, mas sou novo aqui.

            - E eu morro de fome aqui. É a hora do almoço. Passe muito bem, inspetor.

            Volsky tornou a ler o relatório. Portanto, o velhote fora espancado. Tudo apontava para ajuste de contas de bandos rivais. Mas os gangsters costumavam ser mais jovens. O homem decerto ofendera alguém do mundo dos mafiosos. Se não morresse de asfixia, decerto sucumbiria ao trauma.

            Que pretenderiam os assassinos? Informação? Ele decerto lhes revelaria tudo o que quisessem sem necessidade de levar as coisas tão longe. Castigo? Exemplo? Sadismo? Talvez uma mistura destes três ingredientes. Mas que teria na sua posse um velho que parecia um vagabundo tão cobiçado pelo chefe de uma quadrilha ou que fizera justificativo de semelhante punição?

            O inspetor reparou em mais uma coisa no capítulo de “Sinais Identificativos”, em que o professor escrevera: “Nenhum no corpo, mas dois incisivos e um canino frontais de aço inoxidável, aparentemente uma herança de um dentista militar inexperiente”. O que significava que o homem tinha três dentes de aço na parte da frente.

            A última observação do patologista recordou-lhe uma coisa. Era de fato a hora do almoço e ele combinara encontrar-se com um amigo, também pertencente à Brigada de Homicídios. Assim, levantou-se, transpôs a porta do gabinete, que trancou atrás de si, e abandonou o edifício.

 

Langley, Julho de 1986

            A carta do coronel Solomin suscitou um problema complexo. Procedera a três entregas em receptáculos de cartas mortas de Moscou, porém agora pretendia encontrar-se com o seu controlador, Jason Monk. E como não tinha possibilidade de se ausentar da URSS, teria de ser em território soviético.

            A primeira reação de qualquer agência que recebesse semelhante sugestão consentiria em suspeitar que o homem tinha sido apanhado e escrevia sob pressão. No entanto, Monk estava convencido que Solomin não era imprudente nem covarde. Havia uma palavra que, se ele estivesse sendo pressionado, evitaria empregar a todo o custo e outra que tentaria inserir na mensagem. Mesmo em situação difícil, provavelmente conseguiria satisfazer uma ou outra das condições. Ora, a carta de Moscou continha a que devia figurar nela e não a que seria insólita. Em suma, parecia autêntica.

            Há muito que Harry Gaunt concordara com Monk que Moscou, infestada de agentes e vigilantes do KGB, se tornara muito arriscada. com uma missão diplomática a curto prazo, o Ministério dos Assuntos Estrangeiros soviético desejaria que lhe fornecessem detalhes completos, que transmitiria ao Segundo Diretorado Principal. Mesmo disfarçado, Monk estaria sob vigilância durante todo o período em que permanecesse na cidade, pelo que um encontro com o ajudante-de-campo do subsecretário da Defesa resultaria impossível. De qualquer modo, Solomin não propunha isso.

            Comunicava que entraria de férias em fins de Setembro e obtivera uma concessão especial  um apartamento de vilegiaturas na estância de Gurzuf, no Mar Negro.

            Monk inteirou-se de pormenores sobre o local. Era uma aldeia na costa da Península da Criméia frequentada pelos militares, com um importante hospital do Ministério da Defesa, onde os oficiais feridos ou convalescentes se podiam recompor ao sol.

            Foram consultados dois antigos oficiais soviéticos residentes nos Estados Unidos, os quais declararam que, embora nunca tivessem estado em Gurzuf, conheciam a sua existência uma antiga e linda aldeia de pescadores onde Chekhov vivera e morrera, na sua moradia junto do mar, a cinquenta minutos de autocarro ou vinte e cinco de táxi de Ialta.

            Monk concentrou as pesquisas naquela cidade da Criméia. A URSS ainda era um país fechado em muitos aspectos, pelo que voar para a área numa viagem regular estava fora de questão. A via aérea consistiria um rumar a Moscou, fazer transbordo para Kiev e de novo para Odessa e alcançar finalmente Ialta. Não havia a menor chance de um turista estrangeiro efetuar o percurso, nem qualquer razão especial para que tivesse essa idéia em mente. Talvez fosse uma estância de veraneio soviética, mas um forasteiro solitário despertaria tanta atenção como um nariz inflamado. Por fim, examinou os trajetos por mar e acudiu-lhe uma possível solução.

            Sempre faminto de divisas estrangeiras, o governo soviético permitia que a Companhia de Navegação do Mar Negro promovesse cruzeiros no Mediterrâneo. Embora todas as tripulações fossem russas, com uns borrifos de agentes do KGB subentendia-se, de resto, os passageiros eram geralmente do Ocidente.

            Em virtude dos preços praticados para estes últimos, tratava-se, em superioridade esmagadora, de estudantes, acadêmicos e cidadãos de meia-idade. Havia três paquetes que efetuavam essas carreiras no Verão de 1986  o Litva, o Latvia e o Armênia. Era este que se ocupava dos cruzeiros em Setembro.

            Segundo o agente em Londres da Companhia de Navegação do Mar Negro, aquele navio partiria de Odessa, com destino ao porto grego de Pireu, quase vazio. Da Grécia, seguiria para oeste em direção a Barcelona e retrocederia por Marselha, Nápoles, Malta e Istambul, antes de rumar ao Mar Negro e Varna, na costa da Bulgária, para depois escalar Ialta e finalmente Odessa. O grosso dos passageiros ocidentais embarcaria em Barcelona, Marselha ou Nápoles.

            Em fins de Julho, com a colaboração dos Serviços de Segurança britânicos, foi efetuado um assalto muito hábil aos escritórios da companhia de navegação, sem que ficasse o menor indício da entrada ou da saída, para fotografar as reservas para o Armênia em Londres.

            O seu estudo revelou a marcação respeitante a um grupo de seis membros da Sociedade de Amizade Americana-Soviética, a qual foi investigada nos Estados Unidos. Parecia tratar-se de indivíduos de meia-idade, sinceros, ingênuos e dedicados à melhoria das relações entre os dois países. Além disso, viviam na região nordeste dos EUA ou nas suas proximidades.

            Em princípios de Agosto, o professor Normam Kelson, de Santo Antonio, Texas, ingressou na sociedade e requisitou literatura sobre ela. Através da sua leitura, “tomou conhecimento” da próxima expedição no Armênia, com embarque em Marselha, e solicitou que o admitissem como sétimo membro do grupo. A organização soviética Intourist não viu qualquer impedimento e a nova marcação foi confirmada.

            O verdadeiro Norman Kelson era um antigo arquivista da CIA que se aposentara e fixara em Santo Antonio, razoavelmente parecido com Jason Monk, apesar de quinze anos mais velho, diferença que seria corrigida com o cabelo pintado de grisalho e óculos escuros.

            Em meados de Agosto, Monk respondeu à carta de Solomin, para lhe anunciar que se encontraria à entrada do jardim botânico de Ialta. O local constitui um ponto de referência famoso, situado nos arredores da cidade, a um terço do caminho costeiro em direção a Gurzuf. Estaria lá ao meio-dia de 27 e 28 de Setembro.

           

            O inspetor Volsky chegou atrasado ao encontro para almoçar, por isso atravessou rapidamente os corredores do imponente edifício cinzento em Petrovka onde funcionava a sede da Polícia de Moscou. Como o amigo não se encontrava no seu gabinete, procurou-o na sala comum e avistou-o a conversar com um grupo de colegas.

            - Desculpe o atraso.

            - Não tem importância. Vamos.

            O salário não lhes permitia que comessem fora, porém a Polícia dispunha de uma cantina que praticava preços razoáveis através do sistema de senhas para refeições e a ementa costumava ser satisfatória.

            - Tomara que ainda encontremos uma mesa livre - acrescentou o amigo.

            - Diga-me uma coisa - solicitou Volsky, depois de se sentarem, cada um com uma dose de carne estufada e meio litro de cerveja na sua frente. - Na sala comum...

            - Que tem de especial?

            - Refiro-me  ao quadro de  notícias. Tem uma fotografia. Uma  espécie de  retrato a lápis de um cara de dentes estranhos. Qual é a história?

            - Ah, isso? - proferiu o inspetor Novikov. - Trata-se do nosso homem misterioso. Ao que parece, assaltaram o apartamento de uma funcionária da embaixada britânica. Dois caras. Não roubaram nada, mas revolveram tudo. Como os interrompeu, agrediram-na. Mas ficou com uma vaga idéia de um deles.

            - Quando foi?

            - Há cerca de duas semanas, talvez três. A embaixada queixou-se ao  Ministério dos Assuntos Estrangeiros, o qual pintou o diabo e se insurgiu perante o nosso Ministério do Interior, que incumbiu a Divisão Anti-roubo de encontrar o homem parcialmente identificado. Alguém traçou o retrato e... Conhece Chernov, Não? É o grande investigador daquele departamento, mas está numa situação crítica, porque ainda não conseguiu descobrir qualquer pista animadora. O desespero levou-o a visitar-nos e afixar um dos seus desenhos no quadro.

            - Não há mesmo nenhum indício?

            - Absolutamente nada. Chernov não faz a menor idéia da sua identidade ou paradeiro. Este estufado tem cada vez mais gordura e menos carne.

            - Não sei quem ele é, mas posso indicar onde se encontra - disse Volsky, calmamente.

            O outro imobilizou a mão que segurava o copo de cerveja a meio caminho dos lábios.

            - Sério?

            - Está numa gaveta frigorífica do necrotério da Segunda Escola Médica. O  seu processo chegou esta manhã. É um anônimo. Foi encontrado num bosque da estrada de Minsk, há cerca de uma semana. Espancado mortalmente. Sem qualquer elemento identificativo.

            - É melhor contatar com Chernov, que não te desamparará a loja tão cedo.

            Enquanto tragava o estufado que restava no prato, o inspetor Novikov entregava-se a profundas reflexões.

 

Roma, Agosto de 1986

            Aldrich Ames chegara à Cidade Eterna com a esposa para ocupar o novo cargo a 22 de Julho. Apesar dos oito meses na escola de línguas o seu italiano era aceitável, mas não bom. Ao contrário de Monk, não tinha ouvido para idiomas estrangeiros. Com a fortuna recuperada, podia viver a um nível muito mais elevado que anteriormente, mas ninguém no posto de Roma percebia a diferença, porque não lhe conhecera antes de Abril do ano precedente.

            O chefe do posto, Alan Wolfe, veterano da CIA, que prestara serviço no Paquistão, Jordânia, Iraque, Afeganistão e Londres, depressa chegou à conclusão, à semelhança de outros antes dele, que Ames constituía um desperdício de espaço. Se tivesse ciente das suas atividades arquivadas por chefes de estação na Turquia e México antes de serem “corrigidas” por Ken Mulgrew, se apressaria a protestar contra a nomeação do novo responsável da Seção Soviética.

            Não tardou a ser óbvio para todos que o homem era um alcoólatra e um funcionário improdutivo. Os russos não se preocuparam, porém, com isso. Apressaram-se a nomear um elo de ligação, um agente de baixo nível chamado Khrenkov, com o qual Ames poderia se encontrar sem despertar suspeitas, explicando aos colegas que procurava “desenvolver” o soviético como possível recruta. Assim, o fato justificava uma série de almoços extremamente prolongados e muito líquidos, após os quais o americano tinha dificuldade em localizar o local de trabalho.

            Como em Langley, começou a transferir montes de material confidencial para sacos de compras, com os quais abandonava a embaixada, para entregar a Khrenkov.

            Em Agosto, o seu verdadeiro controlador chegou de Moscou para conhecê-lo. No entanto, ao contrário de Androsov, em Washington, não se instalou em Roma, pois deslocava-se da URSS cada vez que havia necessidade de se encontrarem. Na capital italiana, havia muito menos problemas que nos Estados Unidos.

            Ames limitava-se a sair do local de trabalho para ir almoçar, em determinado café, na companhia de Khrenkov, sem tomar a mínima precaução. No entanto, menos abertamente, subiam depois para um furgão fechado que o russo conduzia à Villa Abamelek, residência do embaixador soviético. Aí. o controlador de Ames, Vlad, aguardava-o para conversar, o que faziam descontraidamente durante horas. Vlad era na realidade o coronel Vladimir Mechulayev, do Diretorado K, do Primeiro Diretorado Principal.

            - No primeiro encontro, Ames tencionava protestar contra a rapidez invulgar com que o KGB capturara os homens que ele denunciara, o que o colocava numa situação perigosa. Todavia, Vlad antecipou-se, pedindo desculpa pelo fato e explicando que Mikhail Gorbachev decidira que agissem assim. Em seguida, passou ao assunto que o levara a Roma.

            - Temos um problema, meu caro Rick - salientou. - O volume do material que nos fornece é enorme e de valor inestimável, com particular realce para as descrições e fotografias dos espiões que atuam no território da URSS.

            - Mas que há de errado nisso? - perguntou Ames, tentando abarcar a situação através dos vapores do álcool.

            - Não propriamente errado, mas intrigante - volveu Mechutayev, puxando uma fotografia, que pousou na mesinha de café. - Isto. Um tal Jason Monk. É ele, suponho?

            - Sem dúvida.

            - Nos relatórios, você qualifica a sua reputação da Divisão SE como de “uma estrela ascendente”. O que, segundo imaginamos, significa que controla   um, ou porventura dois “bens” dentro da União Soviética.

            - É o que consta na sede... ou constava, a última vez que me debrucei   sobre o assunto. Mas vocês decerto sabem quem são.

            - Reside aí precisamente o problema, prezado Rick. Todos os traidores que teve a gentileza de nos revelar foram identificados, presos e... interrogados. E   cada um foi... como direi?...

            O russo recordou-se dos homens trêmulos que enfrentara na sala de interrogatórios, depois de Grishin os ter “preparado”, psicológica e fisicamente, para colaborar.

            - Enfim, foram todos muito francos e cooperativos. Explicaram-nos quem eram os seus controladores, em alguns casos vários. Mas não havia qualquer Jason Monk entre eles. Nem um único. É claro que podem usar nomes falsos, como acontece com relativa frequência. Mas a fotografia, Rick, ninguém a reconheceu. Compreende agora o meu problema? Que agentes nossos controla esse Monk e onde estão?

            - Não sei. Confesso que não compreendo. Deviam figurar entre os 301  processos.

            - Nós tão pouco, porque não figuram.

            Antes da reunião terminar, Ames recebeu uma quantia avultada e uma lista de tarefas. Continuou em Roma durante três anos e traiu tudo o que pôde uma quantidade enorme de documentos secretos e ultra-secretos. Entre eles, figuravam mais quatro agentes, mas todos não-russos, súditos de países do bloco da Europa do Leste. No entanto, a missão primordial era clara e simples: no regresso a Washington, ou, na melhor das hipóteses, antes, averiguar quem Monk controlava na URSS

           

            Enquanto os inspetores-detetives Novikok e Volsky almoçavam tranquilamente na cantina do quartel-general da Polícia, a Duma celebrava uma sessão plenária.

            Fora necessário algum tempo para arrancar os deputados russos dos seus locais de veraneio, pois, devido à larga extensão do território, muitos necessitaram percorrer milhares de quilômetros para participar no debate constitucional. Não obstante, este prometia revestir-se de uma importância extraorninária, porque o tema a discutir era a alteração da Constituição.

 

            Após a morte prematura do presidente Cherkassov, o primeiro-ministro devia exercer essas funções interinamente, segundo o Artigo 59, e estipulou-se que o período de interregno duraria três meses.

            Com efeito, o primeiro-ministro Ivan Markov assumiu a presidência, mas, na sequência da consulta a vários peritos, ficara estabelecido que, como a Rússia tinha as novas eleições presidenciais marcadas para Junho do ano 2000, a celebração de outras em Outubro de 1999 poderia causar alguma confusão e mesmo o caos. Por conseguinte, a moção cingia-se a uma emenda que alongava a presidência interina mais três meses e antecipava as eleições do ano 2000 de Junho para Janeiro.

            O termo Duma deriva do verbo dumat, que significa pensar ou meditar; é, portanto, “um lugar para pensar”. Muitos observadores achavam-no mais um lugar para gritar do que para meditar com ponderação, e, naquele quente dia de Verão, justificava esta última descrição.

            O debate prolongou-se por todo o dia, elevando-se a tais níveis de paixão que o presidente passou grande parte do tempo tentando impor a ordem e, a certa altura, ameaçou suspender os trabalhos indefinidamente.

            Dois delegados mostravam-se tão agressivos que foram expulsos da sala, acompanhados de vigorosos impropérios, tudo captado pelas câmaras da televisão, até que se encontraram na rua. Uma vez aí, celebraram conferências de Imprensa improvisadas, que degeneraram em azeda troca de insultos e alguns confrontos físicos  pois acalentavam posições diametralmente opostas, finalmente interrompidos pela Polícia.

            Entretanto, na sala, cujo sistema de ar condicionado se avariou devido ao funcionamento intenso e prolongado exagerado e os delegados, empapados em transpiração, não paravam de praguejar e increpar-se, as posições definiam-se com clareza.

            A fascista União das Forças Patrióticas, em obediência às ordens de Igor Komarov, insistia em que as eleições presidenciais deviam se realizar em Outubro, três meses após a morte de Cherkassov, em conformidade com o Artigo 59. A sua tática era óbvia. A UFP desfrutava de tanta vantagem nas sondagens, que desejava ver o seu acesso ao poder supremo antecipado nove meses.

            Os neocomunistas da União Soviética e os reformistas da Aliança Democrática estavam, por uma vez, de acordo. Adiavam-se em situação trêmula nas sondagens e careciam de todo o tempo possível para se recompor e conquistar as boas graças dos eleitores. Por outras palavras, não estavam preparados para eleições antecipadas.

            O acutilante vaivém de intervenções arrastou-se até ao pôr-do-Sol, quando o presidente da assembléia, exausto e rouco, anunciou que já tinham sido ouvidas opiniões em número mais do que suficiente para se proceder à votação. A ala esquerda e os centristas pronunciaram-se em concordância para derrotar a ultra-direita, pelo que a moção foi aprovada. As eleições presidenciais do ano 2000 se realizariam a 16 de Janeiro e não em Junho.

            Em menos de uma hora, o resultado da votação foi transmitido a toda a nação pelo noticiário oficial da televisão. As embaixadas dispersas pela capital mantiveram intensa azáfama até muito mais tarde do que o habitual, e os telegramas codificados de embaixadores aos respectivos governos circularam até altas horas.

            Era pelo fato da embaixada britânica também acompanhar a movimentação geral que “Gracie” Fields continuava sentado à sua mesa, quando surgiu o telefonema do inspetor Novikov.

 

Ialta, Setembro de 1986

            Era um dia quente e não havia ar condicionado no táxi que deslizava ruidosamente na estrada marginal procedente de Ialta. O americano baixou o vidro da janela para que penetrasse o ar relativamente fresco que soprava do Mar Negro. Um pouco inclinado para o lado conseguia ver pelo espelho retrovisor acima da cabeça do motorista. Tudo indicava que não os seguia qualquer viatura do KGB.

            A longa viagem desde Marselha, via Nápoles, Malta e Istambul, fora cansativa, mas tolerável. Monk desempenhara o seu papel de uma maneira que não despertara a menor suspeita. De cabelo grisalho, óculos escuros e modos elaborados, não passava de mais um acadêmico incorporado num cruzeiro de férias.

            Os seus compatriotas a bordo tinham aceitado que partilhasse da sua sincera convicção que a única esperança de paz consistia em os povos dos Estados Unidos e da União Soviética passarem a conhecer-se melhor. Uma componente do grupo, professora solteirona de Connecticut, mostrava-se favoravelmente impressionada com o atencioso texano que lhe ajeitava a cadeira para se sentar e levava a mão ao chapéu de abas largas sempre que se cruzavam na coberta.

            Em Varna, Bulgaria, ele não desembarcara, alegando uma ligeira indisposição provocada pelo sol ardente. No entanto, em todos os outros portos de escala acompanhara os turistas de cinco nacionalidades ocidentais em visitas a ruínas, ruínas e mais ruínas.

            Em Ialta, pousou pela primeira vez os pés em solo russo. Preparado exaustivamente, tudo se desenrolou com maior facilidade do que imaginara. Antes de mais, se o Armênia era o único paquete de cruzeiros fundeado no porto, havia dezenas de cargueiros da URSS, cujas tripulações não tinham qualquer problema de deslocamento a terra.

            Encerrados a bordo desde Varna, os turistas desceram o portaló como um bando de aves, e os dois funcionários russos da imigração postados em baixo limitaram-se a examinar os passaportes superficialmente e inclinar a cabeça para que passassem. O professor Kelson atraiu a curiosidade devido à sua indumentária, mas tratava-se de olhares de aprovação e cordialidade.

            Em vez de tentar passar despercebido, Monk agiu de modo inverso. Usava camisa creme, com gravata tipo cordão em que se via um alfinete de prata, terno castanho-claro, chapéu de abas largas e botas de vaqueiro.

            - Está muito elegante - observou a professora. - Vem conosco ao topo da montanha, no funicular?

            - Não, minha senhora. Vou limitar-me a dar uma volta pela área do cais, e talvez me sente em algum lugar para tomar um café.

            Os guias da Intourist partiram em direções diferentes com os respectivos grupos e deixaram-no só. Ao invés do que dissera, ele abandonou o porto, passou diante do edifício do Terminal e imergiu na cidade. Algumas pessoas olhavam-no, mas a maioria sorria. Um garoto deteve-se, levou as mãos aos lados do corpo e simulou puxar repentinamente de dois revólveres. Monk exibiu uma expressão divertida e desgrenhou-lhe o cabelo.

            Inteirara-se que as distrações na Criméia variavam pouco. Os programas da televisão eram incaracterísticos como água de lavar a louça, pelo que o atrativo proeminente se limitava ao cinema. Os filmes favoritos, de longe, eram os westerns, permitidos pelo regime, e eis que surgia um vaqueiro de carne e osso. Até um agente da Polícia, ensonado devido ao calor, arregalou os olhos quando o americano levou dois dedos ao chapéu e sorriu, numa saudação. Após uma hora e um café numa esplanada, convenceu-se que não o seguiam, subiu para um táxi de uma fila de vários estacionados e indicou, o endereço do jardim botânico. Com o seu guia, mapa da cidade e russo hesitante, era tão obviamente um turista de um dos navios ancorados no porto, que o motorista inclinou a cabeça sem hesitar e pôs o veículo em marcha. De qualquer modo, milhares de estrangeiros visitavam os famosos jardins de Ialta.

            Monk desceu diante da entrada principal e pagou a corrida em rubles, a que juntou uma gorjeta de cinco dólares e um piscar de olho. O homem sorriu, inclinou a cabeça e partiu.

            Havia muita gente diante do torniquete, a maior parte crianças russas com os professores, em excursão de estudo. Monk incorporou-se na fila de espera e prestou atenção à aparição de homens de ternos lustrosos, mas não avistou nenhum. Por fim, pagou a entrada, transpôs a barreira e avistou uma barraca de sorvetes. Depois de comprar um enorme cone de baunilha, procurou um banco isolado vago, sentou-se e começou a lamber.

            Transcorridos alguns minutos, um homem sentou-se na extremidade oposta do banco e pôs-se a estudar um mapa dos vastos jardins. Devido a essa proteção, ninguém poderia ver os lábios moverem-se. Os de Monk também se movimentavam, mas não despertaria suspeitas a um eventual observador, porque lambia o sorvete.

            - Como está, meu amigo? - perguntou Pyotr Solomin.

            - O melhor possível, obrigado. Sobretudo agora que volto a vê-lo -  murmurou Monk. - Crê que o vigiam?

            - Não. Cheguei há mais de uma hora. A você tão-pouco.

            - A minha gente está muito satisfeita com você, Peter. Os detalhes que nos tem fornecido ajudarão a abreviar a Guerra Fria.

            - O que me interessa é derrubar os filhos da mãe. O gelado está derretendo. Jogue-o fora, que vou comprar dois.

            Lançou-o no cesto do lixo mais próximo, enquanto o siberiano se dirigia à barraca para adquirir dois. Quando regressou, sentou-se naturalmente mais perto do americano.

            - Tenho uma coisa para você. Filme. No meio da dobra do meu mapa, que vou deixar no banco.

            - Obrigado. Mas por que não transmite em Moscou? A minha gente estranha o fato.

            - Porque há mais, mas tem de ser de viva voz.

            Solomin começou a descrever o que estava a acontecer, naquele Verão de 1986, no seio do Politburo e do Ministério da Defesa, em Moscou. Ao mesmo tempo, Monk esforçava-se por manter uma expressão impassível, para não emitir um longo silvo de admiração. O russo falou durante cerca de meia hora.

            - Isso é exato, Peter? Está finalmente acontecendo?

            - Tão exato como estarmos aqui sentados. Ouvi o próprio ministro da Defesa confirmá-lo.

            - Muitas coisas se modificarão. Obrigado, velho caçador. Agora, temos de nos separar.

            Como se fossem simples desconhecidos que tinham trocado algumas palavras num local público, Monk estendeu a mão e Solomin arregalou os olhos de perplexidade.

            - Que é isso?

            - Tratava-se de um anel. O americano não costumava usá-los, mas condizia com a personalidade de um texano. Era de turquesa e prata, do gênero largamente divulgado no Texas e no Novo México. Num gesto quase dissimulado, Monk retirou-o do dedo e entregou-o ao siberiano.

            - Para mim? - estranhou este último.

            - Nunca pedira dinheiro, e Monk receava que se ofendesse se oferecesse. A avaliar pela expressão do interlocutor, o anel era algo mais do que uma recompensa  turquesa e prata no valor de cem dólares, extraídos dos montes do Novo México e manipulados por ourives Navajos*.

            Consciente que seria imprudente abraçarem-se em público, o americano começou a afastar-se. No entanto, após alguns passos, voltou-se. Pyotr Solomin introduzira o anel no dedo da mão esquerda e admirava-o. Foi a última imagem com que ficou do caçador do Leste.

            O Armênia fez escala por Odessa, onde largou a sua carga humana. Os funcionários da Alfândega examinaram todas as malas, mas apenas procuravam material impresso anti-soviético. Monk fora informado que nunca revistavam um turista estrangeiro, a menos que se achassem presentes agentes do KGB, e tinha de ser por um motivo muito especial.

            Ocultara o conjunto de minúsculas transparências entre duas camadas de fita adesiva coladas a uma nádega. Juntamente com os outros americanos, fechou a mala e foram todos canalizados pelo guia da Intourist através das formalidades em direção ao comboio para Moscou.

            No dia seguinte, na capital, Monk entregou a “encomenda” na embaixada, de onde seguiria para Langley na mala diplomática, e regressou de avião aos Estados Unidos, onde tinha de redigir um longo relatório.

 

            - Boa noite, embaixada britânica - proferiu a telefonista no Cais Sofiskaya.

            - És to? perguntou uma voz excitada, do outro lado do fio.

            - Dobriy vecher, angliyskoye posolvstvo-  repetiu a telefonista, em russo.

            - Queria falar para a bilheteira do Teatro Bolshoi.

            - Lamento, mas enganou-se no número - replicou, e cortou a ligação.

            Os funcionários de serviço no banco de monitores da central da FAPSI, agência de escuta eletrônica russa, ouviram o breve diálogo e registraram a hora do telefonema, sem, todavia, lhe prestarem atenção especial, pois as chamadas erradas eram frequentes.

            Na embaixada, a telefonista ignorou as luzes vermelhas intermitentes de duas outras recebidas naquele momento, consultou uma pequena agenda e marcou um número interno.

            - Mr. Fields?

            - O próprio.

            - É do PBX. Acabam de telefonar a perguntar se era da bilheteira do Teatro Bolshoi.

            - Está bem, obrigado.

            “Gracie” Fields ligou a Jock MacDonald. As extensões internas eram “varridas” com regularidade pelo homem do serviço de segurança e consideradas à prova de qualquer escuta indesejável.

            - O meu amigo do Finest de Moscou acaba de telefonar. Utilizou o código de emergência, e preciso lhe retribuir a chamada.

            - Entendido - disse o chefe de estação.

            - Informe-me do que houver.

            Fields consultou o relógio. Uma hora entre duas chamadas, e tinham-se escoado cinco minutos. Num telefone público, à entrada de um banco a dois quarteirões do edifício da Polícia, o inspetor Noikov também viu as horas e dicidiu tomar um café para preencher o lapso de tempo de cinquenta e cinco minutos. Depois, seguiria para outra cabina, situada a um quarteirão dali, e aguardaria.

            Fields abandonou a embaixada dez minutos mais tarde e conduziu o carro lentamente em direção ao Hotel Kosmos, no Prospekt Mira. Construído em 1979 e moderno segundo os padrões moscovitas, dispunha de uma fiada de cabinas públicas junto do átrio.

            Uma hora após a recepção do telefonema na embaixada, consultou uma agenda que extraiu do bolso do casaco e marcou um número. As chamadas entre cabinas públicas constituem um pesadelo para as organizações de contra-espionagem e são virtualmente impossíveis de localizar devido ao seu elevado número.

            - Bons?

            Novikov não se chamava Bons, mas Yevgeni, e, ao ouvir aquele nome, compreendeu que era Fields que falava.

            - Sim. Trata-se do desenho que me deu. Acho que devemos nos encontrar.

            - Muito bem. Podemos jantar juntos no Rossiya. Nenhum dos dois tencionava ir ao vasto Hotel Rossiya.

           A referência dizia respeito a um bar chamado Carrossel, mais ou menos a meio da Rua Tverskaya, suficientemente fresco e obscuro para ser discreto. O lapso de tempo era, mais uma vez, de uma hora.

            À semelhança de muitas embaixadas britânicas de maior âmbito, a legação de Moscou continha no seu pessoal um membro do serviço de segurança interno conhecido por MI5, organização irmã do SIS, denominado errada e popularmente, MI6. A missão do agente do MI5 não consistia em reunir informação sobre o país anfitrião, mas garantir a segurança da embaixada, das várias estações externas e do seu pessoal.

            Este último não se considerava prisioneiro e, em Moscou, durante o Verão, frequentava um atraente local de banhos nos arrabaldes da cidade, onde o rio Moskva descreve uma curva de um modo que expõe uma pequena praia arenosa, considerada pelo serviço diplomático um reduto favorito para piqueniques e nadar.

            Antes de ser promovido a inspetor e transferido para a Brigada de Homicídios, Yevgeni Novikov fora o responsável da segurança dessa região, inclusive da área de veraneio conhecida por Serebryaniy Bor, ou Bosque de Prata. Fora aí que conhecera o então agente do serviço de segurança britânico, o qual o apresentara ao recém-chegado “Gracíe” Fields, que cultivou o convívio com o jovem policial e acabou por sugerir que uma pequena quantia em moeda forte podia tornar a vida mais desafogada a um homem que apenas contava com o salário fixo numa época inflacionária. O inspetor Novikov tornou-se assim  uma fonte, de baixo nível, sem dúvida, mas ocasionalmente útil. Durante aquela   semana, o detetive do Departamento de Homicídios compensara todo o esforço.

            - Temos um cadáver - anunciou a Fields, depois de se sentarem na penumbra do Carrossel, diante de cervejas geladas. - Estou convencido que é o homem do desenho que me confiou. Velho, dentes de aço, etc... - E descreveu os eventos como os obtivera do colega Volsky sobre o João Ninguém.

            - Quase três semanas é muito tempo para estar morto, com este calor - observou o diplomata inglês. - A cara deve ter um aspecto horrível. Pode não ser o mesmo homem.

            - Havia apenas oito dias que se encontrava no bosque. Depois, foi encerrado numa câmara frigorífica. Deve estar reconhecível.

            - Preciso de uma fotografia, Boris. Pode obtê-la?

            - Não sei... Estão todas em poder de Volsky. Conhece um investigador chamado Chernov?

            - Sim, visitou a embaixada. Também lhe entreguei um dos desenhos.

            - Eu sei. Agora, circulam por toda a parte. De qualquer modo, ele vai voltar. Volsky deve tê-lo  informado. Disporá de uma fotografia do rosto do cadáver.

            - Mas para ele e não para nós. Pode ser difícil...

            - Tente, em todo o caso. - Fields fez uma breve pausa e acrescentou: - Como funcionário da Brigada de Homicídios, pode alegar que pretende mostrá-la   a alguns contatos de bandos. Arranje um pretexto plausível. Agora, trata-se de um assassinato. Aliás, é a sua missão: desvendar crimes de morte.

            - Decerto - admitiu o russo, com ar compungido, ao mesmo tempo que se perguntava se o interlocutor sabia que a taxa de homicídios esclarecidos se limitava a três por cento.

 

            - Conte com uma gratificação - informou Fields. - Quando o nosso pessoal é atacado, mostramo-nos generosos.

            - Está bem. Tentarei obter uma foto.

            Afinal, Nevikov não necessitou desenvolver esforços especiais. O processo do homem misterioso foi enviado ao Departamento de Homicídios sem que o solicitasse e, dois dias mais tarde, ele pôde apoderar-se de uma das várias fotografias do rosto tiradas no bosque junto da estrada de Minsk.

 

Langley, Novembro de 1986

            Carey Jordan estava excepcionalmente bem disposto. Esses estados de espírito eram de breve duração em fins de 1986, porque o escândalo dos contras iranianos ecoava nos corredores da diplomacia de Washington, e ele, mais do que qualquer outro, sabia até que ponto a CIA se envolvera no assunto.

            Mas acabava de ser chamado ao gabinete do diretor, William Casey, para receber os mais calorosos elogios. A causa da pouco vulgar benignidade do superior consistia na recepção que obtivera nas altas esferas a notícia trazida de Ialta por Jason Monk.

            No início dos anos oitenta, quando Yuri Andropov era presidente da URSS, o antigo chefe do KGB instituíra pessoalmente uma série de medidas altamente agressivas contra o Ocidente. Era a última tentativa desesperada do moribundo dirigente para fazer oscilar o poder da aliança da NATO por meio de intimidação.

            O âmago da questão consistia na disseminação, através dos países satélites soviéticos da Europa Oriental, de novos mísseis de médio alcance. com três bombas nucleares de alvos independentes em cada um, os SS-20 estavam apontados a todas as vilas e cidades da Europa do norte da Noruega até à Sicília.

            Na altura, Donald Reagan ocupava a Casa Branca e Margaret Thatcher o gabinete de Downing Street. Os dois líderes ocidentais decidiram que não se deixariam impressionar com ameaças e, por cada míssil apontado ao Ocidente, responderiam com outro.

            Os Pershing II e os Cruzeiros achavam-se presentes em toda a Grã-Bretanha e Europa Ocidental, apesar das constantes e ruidosas manifestações da Esquerda Européia, e Reagan e Thatcher mantinham as suas posições com firmeza. O programa americano da Guerra das Estrelas obrigou a URSS a recorrer a um sistema próprio antimísseis. Andropov morreu, Chernenko surgiu e afastou-se da cena e Gorbachev assumiu o poder, mas a colisão de vontades e do poder industrial prosseguiu.

            Mikhail Gorbachev tornara-se secretário-geral do partido em Março de 1985. Tratava-se de um dedicado comunista nascido e criado segundo essa linha. A diferença residia em que, ao contrário dos seus predecessores, era um pragmático e recusava aceitar as mentiras que eles haviam tragado. Insistiu em conhecer os fatos e números reais da indústria e economia soviéticas e, quando os assimilou, ficou traumatizado.

            Continuava convencido que a ruidosa carroça da economia comunista podia ser transformada num eficiente veículo de corrida com um pouco de apuramento de certos detalhes. Daí a perestroika, ou reestruturação.

            No Verão de 1986, nas entranhas do Kremlin e do Ministério da Defesa, começou a tornar-se claro que não funcionaria. O complexo industrial de armamento e o programa da sua aquisição absorviam sessenta por cento do programa doméstico bruto soviético, um número sem dúvida insuportável. O povo começava finalmente a insurgir-se com as dificuldades que passava.

            Nessa altura, procedeu-se a um exame profundo da situação para apurar durante quanto tempo a União Soviética conseguiria manter aquele ritmo. A imagem que o relatório apresentava não podia ser mais tenebrosa. Industrialmente, o Ocidente capitalista ultrapassava o dinossauro russo em todos os níveis. Fora esse documento que Solomin entregara, reproduzido em microfilme, num banco dos jardins de Ialta.

            A informação seguiu diretamente para a Casa Branca e cruzou o Atlântico para conhecimento de Mrs. Thatcher, que ficaram devidamente impressionadas. Bill Casey foi felicitado pelo Gabinete Oval e transmitiu os elogios a Carey Jordan, o qual mandou chamar Jason Monk, para que recebesse a merecida parte. No final da troca de impressões, abordou o tópico que mencionara em outra ocasião.

            - Tenho um problema bicudo com o raio dos seus processos, Jason. Não pode conservá-los no seu cofre. Se lhe acontecesse alguma coisa, não saberíamos como lidar com esses dois “bens”, Lisandro e Orion. Devem ser arquivados com os outros.

            Passara mais de um ano desde a primeira traição de Aldrich Ames e seis meses desde que o desastre dos agentes desaparecidos se tornara aparente. O culpado continuava em Roma. Tecnicamente, a caça às toupeiras continuava, mas a urgência extinguira-se.

            - Se não se partiu,  não se conserta - alegou  Monk. - Esses caras arriscam a vida. Conhecem-me e eu a eles. Confiamos uns nos outros. Deixemos as coisas assim.

            Jordan estava ciente do laço estreito que se podia forjar entre o “bem” e o respectivo manipulador. Tratava-se de uma relação ante a qual a agência franzia o sobrolho por duas razões. O segundo podia ser transferido para um posto diferente, ou aposentar-se ou morrer. Uma relação muito pessoal poderia significar que o “bem” situado em pleno coração da Rússia decidisse não trabalhar para um novo manipulador. Por outro lado, se lhe acontecesse alguma coisa, o representante da agência talvez ficasse muito deprimido para manter a sua utilidade. Numa carreira longa, um “bem” podia ter vários manipuladores. Por conseguinte, o elo de um para um de Monk com os seus dois agentes preocupava Jordan. Era... irregular.

            Além disso, Monk providenciava para que cada um dos seus “bens” no seio de Moscou (Turpin abandonara Madrid e regressara à procedência, produzindo material surpreendente do próprio coração do Diretor K do Primeiro DP) recebesse longas cartas pessoais dele, juntamente com as habituais listas de tarefas.

            Jordan acabou por aceitar uma solução de compromisso. Os processos que continham detalhes dos homens, onde e como haviam sido recrutados, como eram “municiados”, os seus diferentes locais de serviço tudo menos os seus nomes, mas suficiente para os identificar seriam transferidos para o cofre pessoal do DDO. Se alguém pretendesse consultá-los, teria de explicar o motivo a este último. Monk concordou, e a transferência foi efetuada.

 

            O inspetor Novikov tinha razão numa coisa. O investigador Chernov voltou de fato a visitar a embaixada. O fez na manhã seguinte de 5 de Agosto. Jock MacDonald pediu-lhe que fosse escoltado ao seu gabinete, onde se fez passar por adido da seção de Chancelaria.

            - Cremos que descobrimos o homem que assaltou o apartamento da sua colega.

            - Os meus parabéns, investigador.

            - Infelizmente, morreu.

            - Mas decerto tem uma fotografia?

            - Sim. Do corpo. Do rosto. E... - Chernov indicou um saco de lona que pousara a seu lado - ...o capote que ele provavelmente vestia.

            Depositou uma fotografia sobre a mesa do interlocutor. Apesar de algo sinistro, o semblante parecia-se muito com o do desenho a lápis.

            - Vou chamar Miss Stone, para que identifique o infortunado homem.

            Célia Stone fazia-se acompanhar de Fields, que se conservou presente. MacDonald preveniu-a da natureza do que veria, mas ficaria grato se exprimisse a sua opinião. Ela dirigiu um breve olhar à foto e pousou a mão na boca, horrorizada. Em seguida, Chernov extraiu o velho capote militar do saco e desdobrou-o. Célia olhou desesperadamente para MacDonald e assentiu com uma breve inclinação de cabeça.

            - É ele. É o homem que...

            - ...viu fugir do seu apartamento. Parece não restar qualquer dúvida a   esse respeito, investigador. - MacDonald fez uma  pausa, enquanto Célia Stone  se retirava, escoltada por Fields. - Permita-me que lhe diga, em nome do governo britânico, que executou um excelente trabalho. Talvez nunca venhamos a saber o nome do homem, mas agora já não interessa muito. O pobre diabo morreu. - Com um largo sorriso, acrescentou: - Garanto-lhe que o comando-geral da Polícia de Moscou receberá um relatório muito favorável a seu respeito.

            Chernov retirou-se visivelmente satisfeito e, quando regressou a Petrovska, transferiu o processo da seção de assaltos para a de homicídios. O fato de parecer haver um segundo assaltante envolvido era irrelevante. Sem uma descrição ou o testemunho do morto, a sua localização e identificação seriam mais improváveis que a aparição da agulha no proverbial palheiro.

            Pouco depois, MacDonald reuniu-se com Fields. O chefe da estação serviu-se de um café e perguntou:

            - Que pensa de tudo isto?

            - Segundo a minha fonte, o homem foi espancado até à morte. Ele tem um amigo na seção dos João Ninguém, que reparou no desenho afixado no quadro e estabeleceu a ligação. O relatório da autópsia refere que havia cerca de uma semana que o corpo se encontrava no bosque, quando foi descoberto.

            - Que foi?...

            Fields consultou as notas que escrevera imediatamente após a conversa no Bar Carrossel.

            - A 24 de Julho.

            - Por conseguinte, teria morrido a 17 ou 18. No dia seguinte àquele  em que arremessou o relatório para dentro do carro da Célia. O mesmo em que voei para Londres. Os rapazes não perdem tempo.

            - Quais rapazes?

            - Bem, tudo parece indicar que foi obra dos torcionários comandados pelo sanguinário Grishin.

            - O chefe da segurança pessoal de Komarov?

            - É uma das suas designações. Alguma vez consultou a sua ficha?

            - Não.

            - Faça-o, na primeira oportunidade. É um ex-interrogador do Segundo Diretorado Principal. Mau como as cobras.

            - Se foi espancamento e morte punitivos, quem seria o velho? ponderou Fields.

            - Provavelmente, o autor do roubo do relatório.

            - Como se explica que fosse parar às mãos de um velho andrajoso?

            - Só me ocorre a explicação de que era um obscuro empregado ao qual se deparou  uma oportunidade afortunada. Na realidade, azarenta. Palpita-me que o seu amigo policial vai ter de ganhar uma gratificação bem gorda...

 

Buenos Aires, Junho de 1987

            Foi um atilado agente da estação da CIA na capital argentina o primeiro a suspeitar que Valeri Yurievich Kruglov, da embaixada soviética, talvez tivesse um ponto vulnerável, e o chefe da estação americano consultou Langley.

            A Divisão da América Latina já dispunha de um processo a seu respeito que datava de uma anterior comissão de serviço de Kruglov, em meados dos anos setenta, na cidade do México. Sabia-se que era perito em assuntos relacionados com aquela região, com três dessas missões no seu passado de uma carreira de vinte anos ao serviço dos assuntos estrangeiros soviéticos. E, como se mostrava cordial e competente, o processo incluía detalhes minuciosos da sua carreira.

           Nascido em 1944, era filho de um diplomata, também especialista em assuntos da América Latina. Deveu-se à influência do pai o ingresso do rapaz no prestigioso Instituto de Relações Internacionais, MGIMO, onde aprendeu espanhol e inglês e permaneceu entre 1961 e 1966. A seguir, cumpriu duas comissões de serviço na Colômbia, ainda muito jovem, e no México, uma década mais tarde, antes de reaparecer como primeiro secretário, em Buenos Aires.

            A CIA estava convencida que não pertencia ao KGB e era um diplomata vulgar. Segundo os elementos apurados, tratava-se de um russo razoavelmente liberal, porventura pró-ocidental, e não do habitual Homo sovieticus da linha dura. O motivo do alerta no Verão de 1987 fora uma conversa com um funcionário oficial argentino, transmitida aos americanos, durante a qual Kruglov revelou que em breve regressaria a Moscou, para não voltar a deslocar-se ao estrangeiro, e o seu estilo de vida sofreria uma quebra pronunciada.

            Como o assunto dizia respeito a um russo, o alerta envolveu também a Divisão SE, e Harry Gaunt sugeriu que se lhe colocasse na frente um novo rosto. E propôs Jason Monk, que falava espanhol e russo, o que mereceu a concordância de Jordan.

            A tarefa revestia-se de grande simplicidade. A estada de Kruglov no estrangeiro terminaria dentro de um mês. Segundo as palavras de uma canção popular, tinha de ser agora ou nunca.

            Cinco anos após a Guerra das Malvinas, com a democracia restaurada na Argentina, Buenos Aires podia considerar-se uma capital tranquila, sendo fácil ao homem de negócios americano, acompanhado de uma jovem da embaixada dos Estados Unidos, entabular conversa com Kruglov numa recepção. Monk providenciou para que as relações se desenrolassem em clima cordial e sugeriu que jantassem juntos.

            O russo, que, como primeiro-secretário, dispunha de considerável liberdade de movimentos por parte do seu embaixador e do KGB, considerou interessante a idéia de uma refeição com alguém alheio ao circuito diplomático. Durante o jantar, Monk inspirou-se na história da vida da sua antiga professora de francês, Mrs. Brady. Assim, referiu que a mãe fora intérprete para o Exército Vermelho e, na sequência da queda de Berlim, conhecera e apaixonara-se por um jovem oficial soviético, com o qual, em desafio aberto a todos os regulamentos, se transferira para o Ocidente, onde haviam casado. Por conseguinte, no lar paterno, Monk habituara-se a falar inglês e russo com análoga fluência. A partir daquele momento, os dois homens passaram a conversar no segundo daqueles idiomas, ante o alívio de Kruglov, pois, embora o seu castelhano fosse excelente, exprimia-se em inglês com frequentes hesitações.

            O seu verdadeiro problema veio à baila transcorridos menos de duas semanas. com quarenta e três anos, divorciado, embora com dois filhos adolescentes, continuava a partilhar um apartamento com os pais. Se dispusesse de uma quantia próxima dos vinte mil dólares, poderia comprar uma pequena casa própria em Moscou. Ora Monk, que se deslocara à Argentina supostamente para adquirir mais alguns pôneis, teria o maior gosto em emprestar dinheiro ao seu novo amigo.

           O chefe de estação sugeriu que a entrega do empréstimo fosse fotografada, todavia Monk objectou.

            - A chantagem não daria certo. Ele aceitará a nossa proposta voluntariamente ou por nenhum outro método.

            Embora fosse menos graduado, verificou com satisfação que o COS* concordava em lhe conceder carta branca O “engodo” que Monk utilizou foi o da desaprovação dos belicistas espalhados pelo mundo. Salientou que Mikhail Gorbachev era muito popular nos Estados Unidos, revelação que agradou a Kruglov, embora não constituísse uma novidade para ele. com efeito, sentia particular inclinação para o presidente russo.

            Monk observou que Gorby procurava desmantelar a máquina de guerra e instaurar a paz e confiança entre os dois povos. O pior era que ainda havia partidários da Guerra Fria em ambos os lados, inclusive no coração do Ministério dos Assuntos Estrangeiros soviético, os quais se esforçavam por sabotar o processo. Seria, portanto, extremamente útil, se Kruglov pudesse informar o seu novo amigo o que na realidade se passava no setor dos serviços diplomáticos.

* Chief of station. (N. do T.)

            Para Monk, que desenvolvera uma paixão por aquele tipo de pesca, a operação assemelhava-se a puxar pelo anzol um atum que se resignara ao inevitável. Por fim, o russo recebeu os dólares que pretendia e uma embalagem de comunicações: pormenores de planos pessoais, a posição e o acesso deviam ser enviados em tinta secreta numa carta de aspecto inofensivo para uma caixa de correspondência “viva” em Berlim Oriental. O material de espionagem (documentos) seria fotografado e expedido para a CIA em Moscou, através de um dos dois “depósitos” existentes na cidade.

            Quando se separaram, abraçaram-se segundo o estilo russo.

            - Não se esqueça, Valeri - disse Monk. - Nós... os bons da fita...  estamos ganhando. Em breve, tudo isto terminará e teremos contribuído para a sua consumação. Se alguma vez precisar de mim, chame-me, que comparecerei imediatamente.

            Por último, Kruglov regressou a Moscou e o americano a Lang ley.

           

            - Fala Boris. Já a tenho.

            - O quê?

            - A fotografia que queria. O processo regressou à Brigada de Homicídios. A seção de Chernov foi desligada do assunto. Surripiei uma das melhores fotos do conjunto. Como os olhos estão fechados, o aspecto não se pode considerar muito repulsivo.

            - Ótimo, Boris. Dá-se a casualidade de eu ter um envelope com notas de quinhentas libras no bolso do casaco. No entanto, preciso que faça mais uma coisa. Depois, o envelope ficará volumoso. Conterá então mil libras inglesas.

            O inspetor Novikov respirou fundo, na cabina telefônica em que se encontrava. Não conseguia sequer fazer uma idéia aproximada de quantas centenas de milhões de rublos poderia adquirir com o conteúdo do envelope mencionado. De qualquer modo, muitos mais do que os correspondentes ao salário de um ano.

            - Continue.

            - Procure o responsável do pessoal da sede do Partido UFP e mostre-lhe a fotografia.

            - A sede do Partido quê?

            - Da União das Forças Patrióticas.

            - Que raio têm eles a ver com isto?

            - Não sei. É apenas uma idéia. Talvez alguém se recorde de ter visto o homem.

            - Porquê?

            - Não faço a menor idéia. Trata-se de uma mera possibilidade.

            - Que pretexto invoco?

            - É um detetive da Brigada de Homicídios que investiga um caso. De momento, segue uma pista. O homem pode ter sido visto rondando o local. Talvez tentasse forçar a entrada. Algum dos guardas o viu nas imediações? Coisas desse gênero.

            - Muito bem. Mas trata-se de gente importante. Se descobrirem as minhas verdadeiras intenções, a culpa é sua.

           - Por que haveriam de descobrir? Não passa de um modesto policial no exercício da sua profissão. O desesperado em causa foi visto nas proximidades   da casa de Komarov, perto do Bulevar Kiselny. Compete-lhe chamar-lhes a  atenção para o fato, apesar de ele ter morrido, pois podia fazer parte de um bando. Tranquilize-se,  que não corre qualquer perigo. Faça o que lhe indico e as mil libras serão suas.

            Yevgeni Novikov emitiu alguns breves grunhidos e cortou a ligação, refletindo que aqueles anglichanye eram loucos. No fundo, o homem limitara-se a assaltar um dos seus apartamentos. Mas as mil libras justificavam que se expusesse a alguns riscos.

 

Moscou, Outubro de 1987

            O coronel Anatoli Grishin sentia-se frustrado, no sentido que atingira o auge das suas possibilidades e não lhe restava mais nada para fazer.

            O interrogatório do último agente dos vários denunciados por Ames há muito que terminara, com as respectivas confissões espremidas até à última gota. Tinham sido doze os ocupantes das úmidas celas de Lefortovo, presentes sucessiva e individualmente aos interrogadores do Primeiro e Segundo Diretorados Principais ou conduzidos por ordem especial de Grishin, na eventualidade de surgir algum recalcitrante ou desmemoriado.

            Dois, contra a vontade do chefe dos torcionários, haviam sido condenados a longas penas de trabalhos forçados, em vez da morte, porque tinham trabalhado muito tempo para a CIA ou a sua informação produzira estragos relativamente modestos. Os restantes não conseguiram evitar a execução, com a clássica bala na nuca. Somente um conservou a vida, por insistência de Grishin o mais idoso de todos. O general Dmitri Polyakov trabalhara para a América durante vinte anos, antes de ser denunciado. Aposentara-se depois de regressar a Moscou, em 1980, pela última vez.

            Nunca aceitara dinheiro fizera-o por estar desgostoso com o regime soviético e coisas que fazia. E disse-o aos interrogadores. Empertigado na cadeira, revelou o que pensava deles e fizera ao longo de vinte anos, manifestando mais dignidade e coragem que todos os outros. Nunca suplicou. De resto, devido à idade avançada, nada do que tinha para dizer se revestia de valor corrente. Não conhecia quaisquer operações atuais e os nomes que conhecia resumiam-se aos dos manipuladores da CIA com os quais contactara, agora igualmente aposentados.

            No final, Grishin ficou odiando o velho general a tal ponto, que o manteve vivo para tratamento especial. Agora, o prisioneiro jazia sobre os seus próprios excrementos numa placa de ferro e chorava. De vez em quando, o interrogador espreitava para se certificar que se achava imerso no máximo desconforto. Seria apenas a 15 de Março de 1988 que, por insistência do próprio general Boyarov, abandonaria o mundo dos vivos.

            - A  questão  é  que,  meu  caro  colega - observou  este último a Grishin,   naquele mês, - não há nada para  fazer. A comissão de caça-ratos deve ser dissolvida.

            - Falta o outro homem, aquele que se fala no Primeiro Diretorado Principal, que se ocupa dos traidores daqui, mas não foi capturado.

            - Sim, o que ninguém consegue encontrar. Há muitas referências, mas nenhum dos traidores ouviu jamais mencionar o nome.

            - E se apanhamos os seus informantes?

            - Obrigamo-los  a expiar as suas faltas - disse Boyarov. - E se tal acontecer, se o homem de Yazenevo em Washington conseguir entregar-nos, você poderá  reunir de novo o seu pessoal e recomeçar tudo. E porventura mudarem de  nome, intitulando-se a comissão Minakh.

            Grishin não compreendeu a alusão, ao contrário do general, que soltou uma gargalhada estentórica. Manakh significa monge (monk), em russo.

           

            Se Pavel Volsky pensava que não voltaria a ser procurado pelo patologista do necrotério, enganava-se redondamente. O telefone tocou na mesma manhã em que o seu amigo Novikov conversava discretamente com um funcionário dos Serviços Secretos britânicos, a 7 de Agosto.

            - Fala Kuzmin - anunciou uma voz masculina, ante a perplexidade de Volsky. - O professor Kusmin, do Segundo Instituto de Medicina. Conversamos há dias sobre a minha autópsia de um João-Ninguém.

            - Ah, com certeza, professor! Em que posso servi-lo?

            - Eu é que talvez possa ser útil. Creio que tenho uma informação para você.

            - Agradeço antecipadamente, de que se trata?

            - A semana passada, foi pescado um corpo humano do Moskva, em Lytkarino.

            - Mas isso é da competência das autoridades locais e não nossa.

            - Seria, de fato, se um abelhudo qualquer de  lá  não chegasse à conclusão que o corpo em causa tinha estado imerso na água durante cerca de duas semanas... na verdade, não se equivocava... e, ao longo desse lapso de tempo,  a corrente arrastara-o desde Moscou. Por conseguinte, os filhos da mãe despacharam-no para cá, e acabo de proceder ao seu exame.

            Volsky refletiu por um breve momento. Duas semanas imerso na água, nos píncaros do Verão. O professor devia possuir um estômago resistente como uma betoneira.

            - Assassinado? - perguntou, por fim.

            - Pelo contrário. Vestia apenas cuecas. Tudo indica que quis tomar banho  devido ao calor, sofreu algum colapso e afogou-se.

            - Nesse caso, tratou-se de um acidente, o que é da alçada da Autoridade  Civil  protestou.  Eu  pertenço à  Brigada de Homicídios.

            - Escute, meu rapaz. Preste bem atenção. Em circunstâncias normais, não haveria qualquer identificação, mas aqueles idiotas de Lytkarino não repararam numa coisa, devido ao inchaço dos dedos. Uma aliança de casamento. De ouro maciço. Tirei-a, para o que tive de cortar o anelar. Na parte de dentro, há a seguinte inscrição: “N. I. Akopov, da Lídia.” Admirável, hem?

            - Muito, professor. Mas se não foi  homicídio...

            - Alguma vez teve de contactar com o Departamento de Desaparecidos?

            - Com certeza. Envia-me todas as semanas um conjunto de fotografias, para ver se consigo localizar alguém.

            - Um homem possuidor de uma pesada aliança de casamento devia ter família, que decerto participou o seu desaparecimento, se ausentara há três semanas. Lembrei-me que talvez beneficiasse com o seu gênio detetivesco marcando alguns pontos junto dos seus colegas do Departamento de Desaparecidos. Como não conheço lá ninguém, resolvi telefonar para você.

            O inspetor experimentou um estremecimento de satisfação. Estava sempre pedindo favores àquele departamento e chegara a vez de lhe fornecer informações valiosas e conquistar alguns louros. Assim, tomou nota dos pormenores e agradeceu ao professor e desligou.

            O seu contacto habitual no Departamento de Desaparecidos surgiu na linha passados dez minutos.

            - Vocês têm uma PD* chamada N. I. Akopov?

            O outro consultou os registros e informou:

            - Temos. Porquê?

            - Forneça-me os detalhes.

            - Dado como desaparecido a 17 de Julho. Não regressou do trabalho na noite anterior, nem em qualquer outro momento. A comunicação foi efetuada pela parenta mais próxima, Mrs. Akopov .

            - Mrs. Lídia Akopov?

            - Como diabo o sabe? Esteve aqui quatro vezes para pedir notícias. Onde ele está?

            - Numa gaveta frigorífica do necrotério da Segunda Escola de Medicina. Foi tomar banho e afogou-se. Pescaram-no do rio em Lytkarino, a semana passada

            - Caramba.  A velhota vai delirar de alegria. Por ver o mistério da sua  ausência  esclarecido, claro. Sabe quem ele é... era?

            - Não faço a menor idéia - garantiu Volsky.

            - Nada menos do que o secretário particular de Igor Komarov.

            - O político?

            - O nosso próximo presidente. Obrigado, Pavel. Fico devendo um favor.

            “Pode repeti-lo”, reflectiu, enquanto pousava o auscultador.

 

Ornara, Novembro de 1987

            Carey Jordan foi obrigado a apresentar a demissão naquele mês. Não por causa da fuga de Edward Lee Howard, nem ainda do assunto dos agentes desaparecidos, mas dos contras iranianos. Anos atrás, a ordem para ajudar os contras da Nicarágua nas suas tentativas para derrubar os Sandinistas marxistas proviera do topo do Gabinete Oval. O Diretor da CIA, Bill Casey, concordara em executá-la. No entanto, o Congresso opusera-se e votara desfavoravelmente a disponibilização da respectiva verba. Furiosos por terem sido contrariados, Casey e outros tentaram reunir a quantia necessária com a venda de armamento, sem aprovação superior, a Teeran.

* Pessoa Desaparecida. (N. do T)

            Quando tudo se tornou conhecido, ele sofreu um grave, embora oportuno enfarte, no seu gabinete em Langley, em Dezembro de 1986, jamais regressando ao trabalho e expirando em Maio do ano seguinte. O presidente Reagan nomeou para substitui-lo o politicamente correto William Webster, Diretor do FBI. Carey Jordan executara as ordens do seu presidente e do seu diretor e agora um sofria de amnésia e o outro morrera.

            Webster escolheu para novo subdiretor (OPS) um veterano aposentado, Richard Stolz, que abandonara a atividade seis anos atrás, pelo que estava limpo de qualquer envolvimento no assunto dos contras iranianos. E também desconhecia por completo a devastação ocorrida na Divisão SE, dois anos antes. E, enquanto procurava adaptar-se, os burocratas assumiram o poder a força. Três processos foram retirados do cofre do DDO e incorporados no material, ou no que restava dele, nos 301 ficheiros. Continham detalhes de agentes com os nomes de código de Lisandro, Orion e um mais recente, Delfos.

            Jason Monk ignorava tudo isto, pois encontrava-se de férias em Omana. Sempre em busca de novos locais para pescar, inteirara-se da existência de grandes cardumes de atum que frequentavam as proximidades da costa de Omana, ao largo da capital, Mascate, em Novembro e Dezembro.

            Por uma questão de cortesia, apresentara-se na minúscula estação da CIA de um único funcionário, no coração da Mascate Antiga, perto do palácio do sultão, sem esperar tornar a ver o colega depois da bebida que tomaram juntos.

            No terceiro dia, por ter se exposto muito tempo ao sol no mar, decidiu permanecer em terra e efetuar algumas compras. Costumava sair à noite com uma flamejante loura do Departamento de Estado, pelo que se dirigiu de táxi ao souk em Mina Qaboos para ver se encontrava algo para lhe oferecer entre os expositores de incenso, especiarias, tecidos, prata e antiguidades.

            Por fim, optou por uma cafeteira de prata antiga, que o dono da loja embrulhou e introduziu num saco de plástico.

            Em seguida, perdeu-se totalmente no labirinto de ruelas e pátios e acabou por emergir, não diante do mar, mas em algum lugar nas artérias do interior. Quando saía de um beco pouco mais largo que os seus ombros, viu-se num pequeno pátio com uma entrada estreita num dos lados e uma saída no outro. Naquele momento, cruzava-o um homem que parecia europeu.

            Atrás dele, moviam-se dois árabes, que, no momento em que desembocaram no pátio, puxaram de punhais curvos e, empunhando-os, ultrapassaram Monk e correram em direção ao seu alvo.

            O americano reagiu sem refletir. Servindo-se do saco de plástico que continha a cafeteira, atingiu um dos agressores na cabeça e o fez tombar pesadamente. O outro navalhista deteve-se, apanhado entre dois fogos, e avançou para Monk. Este viu a lâmina brilhar no espaço, colocou-se no interior do braço, desviou-se sob a arma, bloqueou-o e desferiu um violento soco no queixo do árabe.

            No entanto, este era rijo. Emitiu um grunhido e conservou o punhal na mão, mas optou pela fuga, enquanto o companheiro se levantava e o seguia, deixando o seu no chão.

            Entretanto, o europeu voltara-se e abarcara a situação sem pronunciar uma única palavra. Era óbvio que compreendia que teria sido morto, sem a intervenção do homem louro que se achava a três metros de distância. Monk viu um jovem magro de pele cor de azeitona e olhos negros, mas não um árabe local, além que usava camisa branca e terno escuro. Preparava-se para dizer algo, quando o outro inclinou levemente a cabeça num gesto de agradecimento e se afastou.

            Por fim, Monk agachou-se para recolher o punhal. Não se tratava de um kunja, além que não havia memória de assaltos ou agressões na via pública praticados por habitantes locais, mas de um gambiah iemenita. Ele julgou conhecer a origem dos navalhistas. Pertenciam à tribo Áudhali ou Aulaqui do interior do Iémen. Que fariam tão longe da costa de Omana e por que pretenderiam matar o jovem ocidental?

            Obedecendo a um palpite, dirigiu-se à embaixada e procurou o homem da CIA aí estacionado.

            - Tem, por acaso, uma galeria de criminosos célebres dos nossos amigos da embaixada soviética?

            Era do conhecimento geral que, desde o fiasco da guerra civil no Iémen, em Janeiro de 1986, a URSS se retirara totalmente, deixando o governo local pró-Moscou empobrecido e amargurado. Consumida pela cólera resultante da humilhação sofrida, Adem teve de recorrer ao Ocidente para obter créditos que lhe permitissem a sobrevivência. A partir de então, a vida de um russo no Iémen permanecia suspensa por um fio. No final de 1987, a URSS abrira uma embaixada no firmemente anticomunista Omana e namorava o sultão pró-britânico.

            - Não - respondeu o colega, - mas aposto que os ingleses têm.

            Os dois homens seguiram para o edifício da embaixada britânica, a poucas dezenas de metros de distância, após um telefonema prévio, e foram recebidos por um membro do SIS, que lhes estendeu a mão cordialmente.

            - Qual é o problema, amigo? - perguntou com curiosidade.

            - O problema - replicou Monk - consiste em que acabo de ver um homem no souk que julgo ser russo. Tratava-se de um mero detalhe, mas o indivíduo em causa usava o colarinho da camisa por cima da gola do casaco, como os russos costumavam fazer e os ocidentais evitavam.

            - Bem, lancemos uma olhada às fotos dos cadastrados - propôs o britânico.

            Conduziu os visitantes ao piso superior. A unidade do SIS funcionava no topo do edifício, em cuja sala ele abriu um cofre, do qual extraiu uma espécie de álbum, que começaram a folhear.

            O pessoal soviético recém-chegado achava-se representado por meio de instantâneos tirados no aeroporto, atravessando a rua ou na esplanada de um café. O jovem de olhos negros era o que figurava em último lugar, fotografado a dirigindo-se do avião para o terminal do aeroporto.

            - Os fulanos locais são muito úteis nestas coisas - explicou o agente do SIS. - Os russos têm de se anunciar previamente ao Ministério dos Assuntos Estrangeiros daqui, para serem acreditados, e nós obtemos os pormenores. Depois, quando chegam, somos informados e encontramo-nos preparados com uma teleobjetiva. É este?

            - É. Dispõe de detalhes?

            Consultou um maço de retângulos de cartolina.

            - Aqui está. A menos que se trate de um estendal de mentiras, é terceiro secretário, de vinte e oito anos de idade. Chama-se Umar Gumayev, nome que soa a tártaro.

            - Não - discordou Monk, pensativamente. - É checheno. E muçulmano.

            - Acha que pertence ao KGB?

            - Não tenho a menor dúvida a esse respeito.

            - Obrigado pela informação. Quer que se faça alguma coisa a seu respeito? Informar o governo, por exemplo?

            - Não. Todos precisamos ganhar a vida. É preferível saber de quem se trata. Se fosse expulso, enviariam um substituto.

            Quando abandonavam a embaixada britânica, o homem da CIA perguntou:

            - Como o descobriu?

            - Mero palpite - admitiu Monk.

            Mas não fora apenas isso. Gunayev tomava um suco de laranja no bar do Frontel, em Adem, um ano atrás, e ele não fora o único a reconhecê-lo, nesse dia. Os dois árabes haviam-no descoberto e decidido vingar-se do insulto ao seu país.

 

            Mark Jefferson chegou ao aeroporto de Sheremetyevo de Moscou no vôo da tarde de 8 de Agosto e era esperado pelo chefe da delegação do Daily Telegraph. O célebre articulista era baixo e elegante, de cabelo ruivo ralo e pequena barba pontiaguda. Segundo constava, a sua paciência tinha a mesma extensão do corpo e da barba.

            Apressou-se a declinar o convite para jantar com o colega e respectiva esposa e pediu que o conduzissem ao prestigioso Hotel Nacional, na Praça Manege. Uma vez aí, revelou ao colega que preferia entrevistar Komarov sem companhia e, se houvesse necessidade, alugaria uma limusine com motorista através dos bons ofícios da gerência do hotel.

            Em seguida, apresentou-se na recepção, e os detalhes foram registrados pelo próprio gerente, um sueco alto e atencioso, o qual lhe solicitou o passaporte, a fim de serem copiados os elementos indispensáveis para enviar ao Ministério do Turismo. Antes de partir de Londres, Jefferson instruíra a sua secretária para informar o Nacional sobre a sua identidade e grau de importância que merecia. Por fim, subiu ao quarto e marcou o número de telefone que Boris Kuznetsov lhe dera, na troca de faxes.

            - Seja bem-vindo a Moscou, Mr. Jefferson - proferiu o o russo em inglês impecável, com leve sotaque americano. - Mr. Komarov aguarda com ansiedade o momento da entrevista.

            Não era verdade, mas o jornalista acreditava. O encontro ficou marcado para as sete da tarde seguinte, porque o político russo estaria ausente da cidade todo o dia. Seria enviado um carro com motorista ao Nacional para o levar. Satisfeito com a natureza dos preparativos, Mark Jefferson jantou só no hotel e deitou-se.

            Na manhã seguinte, após um café da manhã de bacon e ovos, decidiu dar uma volta para desentorpecer as pernas e desanuviar o espírito.

            - Uma volta? - estranhou o gerente, com uma carranca de perplexidade.  - Onde tenciona ir?

            - A qualquer parte. Para respirar ar puro. Desenferrujar os músculos das pernas. Talvez vá até ao Kremlin.

            - Podemos ceder-lhe a nossa limusine - observou, com ansiedade crescente. - Sempre é mais confortável. E seguro.

            No entanto, Jefferson rejeitou a oferta. Desejava passear a pé, e era isso que faria. Por último, o gerente conseguiu convencê-lo a deixar no hotel o relógio e todo o dinheiro estrangeiro, levando, ao invés, um maço de notas de um milhão de rublos para os pedintes. Suficientes para satisfazer os mendigos, mas não para provocar um assalto. Com uma ponta de sorte.

            Quando regressou ao hotel, cerca de duas horas mais tarde, o jornalista britânico parecia algo intrigado.

            Visitara anteriormente Moscou por duas vezes uma durante o regime comunista e a segunda, oito anos atrás, quando Yeltsin se encontrava no poder  e em cada uma limitara as suas experiências ao táxi proveniente do aeroporto, um hotel de categoria e o circuito diplomático britânico. Assim, considerara Moscou uma cidade quase miserável e suja, mas não contara com o que observara naquela manhã.

            O seu aspecto era tão obviamente de forasteiro que, mesmo nos cais ribeirinhos e em torno dos jardins Alexandrovsky, fora assediado por indivíduos andrajosos que pareciam acampar em toda a parte. Em duas ocasiões, julgou ver bandos de jovens no seu encalço. Os únicos veículos que circulavam pareciam ser os militares, da Polícia ou limusines de pessoas ricas e privilegiadas.

            Quando saboreava uma bebida antes do almoço  decidira permanecer no hotel até que Kuznetsov fosse buscá-lo, encontrou-se só no bar, à exceção de um homem de negócios canadense, e acabaram por entabular conversa.

            - Há quanto tempo está na cidade? - perguntou o oriundo de Toronto.

            - Cheguei ontem à noite.

            - Vai  ficar muito tempo?

            - Regresso a Londres amanhã.

            - Que sorte a sua! Estou aqui há três semanas, tentando fazer negócio.   Posso  garantir-lhe que se trata de um meio sinistro.

            - Não conseguiu nada, - perguntou Jefferson.

            - Bem, tenho vários contratos assinados, instalei um escritório e disponho de sócios. Mas sabe o que aconteceu?

            O canadense procurou uma posição mais confortável no banco do balcão e explicou:

            - Cheguei aqui com todas as apresentações para os negociantes de  madeira que precisava... ou julgava precisar. Aluguei um escritório num novo  bloco de torres. Dois dias depois, bateram à porta e surgiu um cara janota de modos untuosos. “Bom dia, Mr. Wyatt. Sou o seu novo sócio”, anunciou.

            - Conhecia-o?

            - Via-o pela primeira vez. Intitulou-se representante da Mafia local. O negócio era muito simples. Ele e os seus acólitos absorviam cinquenta por cento de todas as operações. Em troca, adquiriam ou forjavam as licenças e documentos que eu necessitasse. Eliminavam a burocracia com um simples telefonema, providenciavam para que as entregas se efetuassem com pontualidade e resolviam todos os problemas laborais Tudo em troca de cinquenta por cento.

            - Mandou-o dar uma volta, claro.

            - Nem pensar. Aprendi a lição depressa. Chamam-lhe dispor de um teto. O que significa proteção. Sem um teto, uma pessoa não vai a parte alguma, a toda a velocidade. Sobretudo porque quem rejeita a proposta perde as pernas. Eles suprimem-nas.

            Jefferson fitou o interlocutor de olhos arregalados.

            - Tinha ouvido dizer que o crime campeava aqui, mas não a esse extremo.

            - Asseguro-lhe que excede as suas mais tenebrosas expectativas.

            Um dos fenômenos que mais surpreendera os observadores ocidentais da Rússia após a queda do comunismo fora a veloz propagação do submundo do crime, denominado, à falta de melhor expressão, Mafia russa. Os próprios nativos começavam a aludir à mafiya. Alguns estrangeiros pensavam que se tratava de uma nova entidade, nascida após a morte do comunismo, o que não passava de uma insensatez.

            Na realidade, existira um vasto submundo criminal na Rússia desde séculos. Ao contrário da Mafia siciliana, não dispunha de uma hierarquia unificada e nunca se exportara para o estrangeiro. Mas grassava sob a forma de uma irmandade crescente, com chefes de bandos regionais, membros leais até à morte e as tatuagens apropriadas para o provar.

            Stalin tentara destruí-la com o envio de milhares de participantes para os campos de escravidão. No entanto, o único resultado consistiu em que os zeki acabaram por dirigir virtualmente esses recintos, com a conivência dos guardas, que preferiam uma vida tranquila a terem as famílias localizadas e maltratadas. Em muitos casos, os vory v zakone  “ladrões por estatuto” ou equivalentes dos padrinhos da Mafia dirigiam as suas empresas no exterior das cabinas que ocupavam nos campos.

            Uma das ironias da Guerra Fria reside em que o comunismo talvez se tivesse desmoronado dez anos mais cedo, sem a existência do submundo do crime. Até os patrões do Partido acabaram por ter de celebrar pactos secretos com ele. O motivo era simples: tratava-se da única coisa na URSS que funcionava com algum grau de eficiência. Um gerente de fábrica, que produzisse uma mercadoria vital, podia ver a sua principal máquina-ferramenta imobilizar-se devido à avaria de uma única válvula. Se costumava proceder através dos canais burocráticos, tinha de aguardar seis a doze meses pela substituta, enquanto todo o material de laboratório permanecia imobilizado.

            Ou podia trocar duas palavras com o cunhado, o qual conhecia um homem que tinha determinados contactos. A válvula aparecia dentro de menos de uma semana. Mais tarde, o gerente da fábrica fechava os olhos ao desaparecimento de uma encomenda de chapa de aço, a qual seguia para outra unidade fabril cujo material ainda não chegara. Depois, os gerentes de ambas adulteravam os livros para provar que tinham cumprido as “normas”.

            Em qualquer sociedade onde uma combinação de burocracia esclerótica e incompetência levou à imobilização de todas as engrenagens, o mercado negro constitui o úmico lubrificante. A URSS funcionara com esse lubrificante ao longo da sua vida e dependia inteiramente dele nos últimos dez anos.

            A Mafia limitava-se a controlar o mercado negro. A única coisa que fez a partir de 1991 foi emergir do anonimato para prosperar e expandir-se. E expandiu-se, sem margem para dúvidas, movendo-se das áreas de escroqueria habituais  álcool, drogas, proteção e prostituição  para todas as facetas da vida.

            O que realmente impressionava era a rapidez e desumanidade com que a virtual tomada da economia se consumou. Três fatores permitiram que tal acontecesse. O primeiro foi a capacidade para a violência maciça e imediata que a Mafia russa demonstrava se a frustravam de algum modo; violência essa que faria a própria Cosa Nostra americana parecer insignificante. Qualquer pessoa, russa ou estrangeira, que se opusesse ao envolvimento mafioso na sua empresa recebia um aviso em geral, de espancamento, explosão ou fogo posto, pouco depois executado, medida que se tornava extensiva aos dirigentes de bancos importantes.

            O segundo fator consistia na incapacidade da Polícia, a qual, com escassez de fundos e de pessoal e desprovida de toda e qualquer experiência do crime organizado e violência que imperavam, não se mantinha à altura das circunstâncias. Quanto ao terceiro, residia na tradição pandêmica da corrupção russa. A inflação maciça subsequente a 1991, até que estabilizou por volta de 1995, contribuía para a gravidade da situação.

            Durante o comunismo, a taxa cambial mantinha-se em dois dólares americanos por cada rublo, um número ridículo e artificial em termos de valor e poder de compra, mas imposto no seio do país, cujo problema se cifrava não na falta de dinheiro, mas de produtos para comprar. A inflação sugava as economias e reduzia os empregados assalariados à pobreza.

            Quando o vencimento de um policial de rua vale menos do que as luvas que calça, torna-se difícil convencê-lo a não aceitar uma nota de banco em torno de uma carta de condução visivelmente falsa.

            Mas isso não passava de insignificâncias. A Mafia russa orientava o sistema até aos funcionários públicos superiores, recrutando quase toda a burocracia como sua aliada. E a burocracia domina tudo no país, Assim, as licenças, propriedades, concessões, privilégios, etc., podiam ser comprados do funcionário público responsável pela sua autorização, o que permitia que a Mafia criasse lucros astronômicos.

            Outra habilidade que impressionava os observadores era a rapidez com que passava da escroqueria convencional (cujo domínio nunca descurava) aos negócios legítimos. A Cosa Nostra americana necessitou de uma geração para compreender que as atividades legítimas, adquiridas com lucros de negócios escuros, serviam para aumentar os proventos e lavar dinheiro ilícito. Os russos conseguiram-no em cinco anos e, em 1995, possuíam ou controlavam quarenta por cento da economia nacional. Entretanto, haviam-se internacionalizado, com realce para as suas três especialidades de armas, drogas e desvio de fundos, apoiadas pela violência instantânea, com alvos em toda a Europa Ocidental e América do Norte.

            O pior foi que, por volta de 1998, exageraram. A avidez fez com que a economia da qual viviam ruísse. Em 1996, cinquenta mil milhões de riqueza, na sua maioria ouro, diamantes, metais preciosos, petróleo, gás natural e madeira, estavam sendo roubados e exportados ilegalmente. Os bens eram adquiridos com rublos quase sem valor, e mesmo assim a preços de saldos, aos burocratas que dirigiam os órgãos do Estado, e vendidos por dólares ao estrangeiro. Alguns destes eram reconvertidos numa chuva de rublos e recuperados para financiar mais subornos e crime. Os restantes destinavam-se a colocação fora do país.

            - O pior de tudo - disse Wyatt, com uma expressão sombria, depois de esvaziar o copo - é que a hemorragia se tornou excessiva. Entre si, os políticos corruptos, os ainda mais corruptos burocratas e os gangsters mataram a galinha dos ovos de ouro que os enriquecia. Leu a história da ascensão do Terceiro Reich?

            - Li, há muito tempo. Porquê?

            - Lembra-se da descrição dos últimos dias da República de Weimar? As filas de desempregados, o crime nas ruas, as poupanças de vidas inteiras reduzidas a zero, a afluência de pessoas à sopa dos pobres, as discussões acesas no Reichstag, enquanto o país mergulhava na bancarrota?...  Pois bem, é o que está acontecendo aqui. Bem, tenho de almoçar com uns “sócios”. Gostei de conversar consigo, Mr...

            - Jefferson.

            No entanto, o nome não pareceu ser do conhecimento do canadense. Tudo indicava que não lia o Daily Telegraph de Londres.

            “Interessante”, refletiu o jornalista britânico, quando ficou só. Segundo todos os elementos que recolhera nos arquivos do seu jornal, o homem que entrevistaria naquela tarde talvez fosse o apropriado para salvar a nação.

            O Chalks preto alongado apareceu no hotel às seis e meia, quando Jefferson já aguardava à entrada. Era invariavelmente pontual e esperava que os outros procedessem do mesmo modo para consigo. O veículo enveredou pelo Bulevar Kiselney, assaz movimentado, e cortou por uma artéria transversal um pouco antes da Estrada Circular do jardim. Quando se aproximava do portão de aço verde, o motorista ativou um botão de alerta num comunicador que extraiu do bolso do casaco.

            As objetivas no topo do muro captaram o carro que se aproximava e o guarda fixou o olhar no monitor em que se via o Chalks e a chapa de matrícula, cujo número correspondia ao que esperava, após o que o portão foi aberto. Em seguida, fechou-se atrás do veículo e o homem aproximou-se da janela, onde examinou o bilhete de identidade do motorista, desviou o olhar para o banco de trás e inclinou a cabeça.

            Boris Kuznetsov, alertado pelo ruído do portão, encontrava-se à entrada da casa para saudar o visitante, que conduziu a uma área de recepção no primeiro andar, uma sala adjacente ao gabinete de Komarov e do lado oposto ao outrora ocupado pelo extinto N. I. Akopov.

            Igor Komarov não permitia que se bebesse ou fumasse na sua presença, pormenor que Jefferson desconhecia e nunca saberia, porque não foi mencionado. Um russo abstemio constitui uma raridade num país em que a bebida representa quase uma indicação de virilidade.

            Decorridos cinco minutos, Komarov fez a sua aparição uma figura imponente de cerca de cinquenta anos, cabelo grisalho, perto de um metro e oitenta de altura e olhos cor-de-avelã, que os seus admiradores consideravam mesméricos.

            Kruznetsov, que se sentara, juntamente com Jefferson, levantou-se com prontidão, imitado pelo jornalista, embora um pouco mais devagar. O primeiro procedeu às apresentações e os dois homens apertaram a mão. Komarov sentou-se antes dos outros numa poltrona estofada ligeiramente mais alta.

            Do bolso interior do casaco, Jefferson extraiu um minúsculo gravador e perguntou se podia utilizá-lo. Komarov assentiu com um movimento de cabeça, simultaneamente indicativo que se achava familiarizado com a incapacidade da maioria dos jornalistas ocidentais para recorrer à estenografia. Em seguida, Kuznetsov fez sinal a Jefferson para que iniciasse as perguntas.

            - Senhor presidente: a notícia mais palpitante do momento é a recente decisão da Duma de prolongar a presidência interina por três meses, mas antecipar as eleições do próximo ano para Janeiro. Como a encara, isso.

            O responsável das relações públicas procedeu à rápida tradução e escutou, enquanto o interpelado respondia em voz firme. Quando terminou, o intérprete voltou-se para Jefferson.

            - É óbvio que eu e a União das Forças Patrióticas ficamos desapontados  com a resolução, mas, como democratas, aceitamo-la. Decerto não constitui segredo para si que as coisas neste país, que adoro com fervor, não correm da melhor maneira. Durante muito tempo, um governo incompetente tolerou um alto nível de desregramento econômico, corrupção e crime. O povo sofre a um ritmo crescente. Quanto mais tempo esta situação se prolongar pior se tornará. Por conseguinte, a demora é de lamentar. Estou convencido que conquistaríamos a presidência em Outubro, mas o resultado não será diferente em Janeiro.

            Mark Jefferson era um entrevistador demasiado experiente para não perceber que a resposta tinha sido ensaiada, como que proferida por um político habituado a ouvir a mesma pergunta com insistência. Na Grã-Bretanha e na América, era costume os seus homólogos mostrarem-se mais descontraídos perante os representantes da Imprensa, alguns dos quais tratavam pelo nome de batismo. O jornalista londrino orgulhava-se de saber utilizar as palavras de um entrevistado e as suas próprias impressões para criar um artigo revestido de interesse, em vez de um estendal de lugares-comuns políticos. No entanto, o homem na sua frente parecia um autômato.

            A experiência ensinara-lhe que os políticos da Europa do Leste estavam acostumados a um maior grau de deferência da parte dos repórteres do que os britânicos ou americanos, mas a atual situação era diferente. O russo permanecia rígido e formal como um manequim de alfaiate.

            No momento da terceira pergunta, Jefferson compreendeu porquê: era inegável que Komarov detestava a mídia e todo o processo de uma entrevista. O londrino tentou uma abordagem informal, mas não se registrou o menor sinal de descontração no interlocutor. Um político que encarava a sua posição a sério não constituía um fato inédito, porém aquele homem podia considerar-se um fanático de auto-estima. As respostas continuavam a brotar como se correspondessem a deixas previamente estudadas.

            Jefferson dirigiu um olhar de perplexidade a Kuznetsov. O jovem responsável de relações públicas fora claramente educado na América, num meio sofisticado e descontraído, mas tratava Igor Komarov com devoção canina.

            Por fim, o jornalista efetuou uma nova tentativa.

            - Como sabe, na Rússia, a maior parte do poder real concentra-se no cargo da presidência, muito mais do que do presidente dos Estados Unidos ou do primeiro-ministro da Grã-Bretanha. Se quisesse encarar os primeiros seis meses desse poder nas suas mãos, a que mudanças assistiria um observador objetivo? Por outras palavras, a que prioridades?

            A resposta surgiu mais uma vez através do canal político. Registrou-se a alusão de rotina para desmantelar o crime organizado, reformar uma pesada burocracia e restaurar a produção agrícola e a moeda. Ulteriores perguntas no sentido de precisar como essas intenções seriam levadas acabo, obtiveram lugares-comuns incaracterísticos. Nenhum político do Ocidente se esquivaria desse modo, mas era indiscutível que Kuznetsov esperava que Jefferson ficasse completamente satisfeito.

            Recordando-se das indicações que recebera do editor do jornal, este último perguntou a Komarov como pretendia levar a efeito o renascimento da grandeza da nação russa, e, pela primeira vez, obteve uma reação.

            Algo do que disse pareceu agitá-lo, como se acabasse de sofrer uma descarga elétrica. O homem fitou-o com intensidade, ao ponto de obrigá-lo a desviar a vista. Tanto ele como Kuznetsov não perceberam que o presidente da UFP empalidecera profundamente e tinha surgido um pequeno círculo vermelho em cada face. De súbito, sem mais uma palavra, levantou-se e abandonou a sala, transferindo-se para o seu gabinete, cuja porta fechou atrás de si. Jefferson olhou Kuznetsov com uma expressão interrogativa, e este último parecia igualmente intrigado, mas a presença de espírito acabou por prevalecer.

            - Creio que o presidente não demora. Deve ter lembrado de algum assunto urgente.

            Jefferson estendeu o braço e desligou o gravador que pousara numa cadeira a seu lado. Transcorridos três minutos e um breve telefonema, Komarov reapareceu, voltou a sentar-se e respondeu à pergunta num tom pausado, enquanto o jornalista tornava a proceder à ligação.

            Uma hora mais tarde, o russo indicou que a entrevista chegara ao fim. Pôs-se novamente de pé, inclinou a cabeça rigidamente e recolheu ao gabinete. Antes de transpor a porta, fez sinal a Kuznetsov para que o seguisse.

            Este reapareceu passados dois minutos, claramente embaraçado.

            - Temos um problema com o transporte - anunciou, enquanto escoltava Jefferson em direção ao átrio. - O carro que o trouxe foi requisitado com urgência, e todos os outros pertencem a membros do pessoal que trabalham até mais tarde. Importa-se de regressar ao hotel num táxi?

            - De modo algum - aquiesceu o jornalista, arrependido de não haver utilizado um meio de transporte próprio, que teria mandado esperar. - Se quiser ter a bondade de chamá-lo...

            - Infelizmente, os taxistas deixaram de atender a chamados pelo telefone - explicou o outro. - Mas vou indicar-lhe onde pode obter um.

            Acompanhou o cada vez mais perplexo Jefferson até ao portão, que foi aberto para que passassem. Uma vez na rua estreita, apontou para o Bulevar Kiselny, a uma centena de metros de distância.

            - Ali, consegue um livre rapidamente e, a esta hora, estará no hotel em menos de quinze minutos. Espero que compreenda a dificuldade em lhe poder ser útil. Tive muito prazer em conhecê-lo. Boa noite.

            E recolheu ao edifício de onde saíra. O britânico olhou em volta por um instante e começou a percorrer a artéria estreita em direção ao Bulevar, ao mesmo tempo que movia os dedos em torno do minúsculo gravador. Por fim, guardou-o no bolso interior do casaco, quando alcançava a entrada do Bulevar Kiselny, onde olhou para ambos os lados, à procura de um táxi inexistente, como previra. Por último, mastigando uma imprecação, voltou-se para a esquerda, na direção do centro de Moscou, e começou a caminhar, olhando de vez em quando por cima do ombro.

            Os dois homens de blusão de couro preto viram-no emergir da rua estreita e avançar para eles, um dos quais abriu a porta de trás do seu carro e saiu. Quando o inglês se encontrava a dez metros de distância, ambos levaram uma das mãos ao bolso interior e puxaram uma automática munida de silenciador. Não foi pronunciada uma única palavra e dispararam apenas duas balas, que atingiram Jefferson no peito.

            O impacto obrigou-o a deter-se e em seguida sentou-se simplesmente, no momento em que os joelhos cederam. A seguir, o tronco começou a inclinar-se, mas entretanto os dois assassinos tinham transposto o espaço que os separava. Um segurou-o para que não caísse por completo, enquanto o outro revistava rapidamente o casaco e retirava o gravador de um dos bolsos interiores e a carteira do outro.

            O carro rolou até junto deles, que subiram no momento em que se imobilizou. Depois de se afastar, uma transeunte aproximou-se, contemplou o corpo, supôs que se tratava de mais um ébrio antes de ver o sangue e começou a gritar. Ninguém se lembrou de anotar o número de matrícula do veículo. De qualquer modo, era falso.

 

            Alguém num restaurante, um pouco adiante na rua do homicídio, ouviu os gritos da mulher, espiou pela porta e apressou-se a marcar o 03 no telefone do estabelecimento para chamar uma ambulância.

            Os enfermeiros supuseram que se achavam fosse uma parada cardíaca, até que avistaram os orifícios das balas no peito do casaco e a larga mancha de sangue por baixo e telefonaram à Polícia, enquanto o veículo rolava velozmente a caminho do hospital mais próximo.

            Uma hora mais tarde, o inspetor Vasili Lopatin, da Brigada de Homicídios, contemplava pensativamente o corpo na mesa rolante da unidade de trauma do Hospital Botkin, enquanto o cirurgião de serviço descalçava as luvas de borracha.

            - Não tem a mínima chance - declarou este último. - Uma única bala, disparada à queima-roupa, atravessou-lhe o coração. Ainda está lá dentro, em algum lugar. Será recuperada durante a autópsia.

            Lopatin inclinou a cabeça distraidamente. Havia de lucrar muito com isso. Circulavam armas de fogo portáteis em Moscou em número suficiente para reequipar um exército, e as possibilidades de encontrar a que disparara aquela bala, para não falar do dono da mão que a empunhara, estavam virtualmente reduzidas a zero, como ele sabia, sem margem para qualquer dúvida. No Bulevar Kiselny, verificara que a mulher que aparentemente assistira ao crime desaparecera. Constara-lhe que vira dois assassinos e um carro. Sem qualquer descrição aproveitável.

            Na mesa rolante, a barba ruiva projectava-se agressivamente para cima, no corpo pálido coberto de sardas. A expressão do rosto era de vaga surpresa. Um ajudante cobria o cadáver com um lençol verde para evitar o clarão dos projetores nos olhos que, de resto, não podiam ver nada.

            O corpo estava agora totalmente despido. Em cima de uma mesa ao lado, achava-se depositado o vestuário e, numa espécie de prato em forma de rim, alguns objetos de natureza pessoal. O detetive aproximou-se, pegou o casaco e examinou a etiqueta no interior da gola, mas experimentou uma sensação de desalento ao verificar que era estrangeira.

            - Consegue ler isto? - perguntou ao cirurgião.

            Este aproximou-se por sua vez e observou os dizeres bordados no forro.

            - L-A-N-D-A-U - soletrou pausadamente e, - abaixo do nome do alfaiate  Bond Street.

            - E isto? - O inspetor indicou a camisa.

            - Marks   &  Spencer - leu o outro.  - É em Londres - acrescentou. - Creio que Bond Street também.

            Há mais de vinte vocábulos em russo para excrementos humanos, além de partes dos órgãos genitais masculinos e femininos, e Lopatin recapitulou-os todos mentalmente. Só lhe faltava aquilo: um turista britânico! Um assalto na via pública que dera errado, e tinha de ser a um turista britânico!

            Examinou os objetos pessoais, que eram poucos. Nenhuma moeda, claro, pois as russas há muito que tinham perdido o valor. Um lenço dobrado meticulosamente, uma pequena bolsa, um anel de sinete e um relógio. Depreendeu que os gritos da mulher tinham impedido os assaltantes de se apoderar dos dois últimos.

            Mas nada continha qualquer identificação. E, ainda pior, a carteira brilhava pela sua ausência. Tornou a concentrar-se no vestuário. Os sapatos tinham a palavra Church no interior e eram pretos e de cordões. As luvas, cinzentas, não continham qualquer marca, enquanto os dizeres Marks & Spencer estavam repetidos nas cuecas. A gravata, segundo o cirurgião, provinha de uma loja denominada Turnbull & Asser, na Jermyn Street, também em Londres, sem dúvida.

            Movido mais pelo desespero do que pela esperança, Lopatin tornou a pegar no casaco. Havia um pormenor que escapara ao ajudante. Um objecto rijo no bolso superior onde os homens costumam guardar os óculos. Extraiu-o e deparou-se com um retângulo de plástico perfurado.

            Era uma chave de quarto de hotel, do tipo utilizado em sistemas computadorizados. Como medida de segurança, não continha qualquer número  a fim de desencorajar eventuais ladrões de hotéis, mas exibia o logotipo do Nacional.

            - Onde há um telefone? - perguntou ao cirurgião.

            Se não fosse o mês de Agosto, Benny Svenson, gerente daquele hotel, se encontraria em casa. Mas os turistas abundavam e dois membros do pessoal estavam ausentes com resfriados de Verão. Assim, fazia horas extras, quando a telefonista ligou ao seu gabinete.

            - É a Polícia, Mr. Svenson.

            Ele apertou a tecla para estabelecer ligação à rede, e a voz de Lopatin surgiu na linha.

            - É o gerente?

            - O próprio, Svenson. Quem fala?

            - Inspetor Lopatin, da Brigada de Homicídios da Polícia de Moscou.

            O gerente estremeceu involuntariamente. O homem acabava de mencionar a Brigada de Homicídios!

            - Têm um turista britânico alojado aí? - acrescentou o inspetor.

            - Decerto. Vários, mesmo. Uma dúzia, pelo menos. Porquê?

            - Veja se reconhece esta descrição. Um metro e setenta de altura, baixo, cabelo e barba pontiaguda ruivos, terno escuro e gravata de listras horríveis.

            Svenson fechou os olhos e engoliu em seco. Só podia tratar-se de Mr. Jefferson! Vira-o poucas horas antes no átrio, à espera de um carro.

            - Por que pergunta?

            - Foi assaltado. Encontra-se no hospital de Botkin. Sabe onde é? Perto do Hipódromo.

            - Sim, com certeza. Mas mencionou a Brigada de Homicídios.

            - Lamento, mas morreu. Roubaram-lhe a carteira e todos os documentos de identificação. Apenas deixaram uma chave do quarto de plástico com o seu logotipo.

            - Sigo já para aí, inspetor.

            Benny Svenson continuou sentado à mesa durante alguns minutos, dominado por uma sensação de horror. Exercia aquela atividade havia mais de vinte anos e não tinha memória de um hóspede ser assassinado.

            O seu único passatempo era o bridge, e recordou-se que um dos parceiros habituais pertencia ao pessoal da embaixada britânica. Apressou-se a procurar o número de telefone da residência e marcou-o. Faltavam dez minutos para a meia-noite e o homem já se deitara, mas acordou por completo quando se inteirou da tenebrosa nova.

            - Valha-nos Deus, Benny! O célebre jornalista do Telegraph? Nem sabia que se encontrava em Moscou. Obrigado pela informação, em todo o caso.

            “Isto vai causar profunda agitação”, - reflectiu o diplomata, enquanto pousava o auscultador. Os súditos britânicos em apuros, vivos ou mortos, em território estrangeiro, diziam naturalmente respeito à seção consular, mas ele achava que devia comunicar o fato a alguém antes do dia seguinte. Por conseguinte, telefonou a Jock MacDonald.

 

Moscou, Junho de 1988

            Havia dez meses que Valeri Kruglov regressara a casa. Existia sempre o risco, no caso de um “bem” recrutado no estrangeiro, de ele mudar de idéias ao ver-se de novo no seu país e abster-se de efetuar qualquer contato, destruindo os códigos, tintas e documentos que lhe tinham sido fornecidos.

            A agência recrutadora nada podia fazer nesse sentido, à parte denunciar o indivíduo em causa, mas constituiria uma medida destituída de significado e cruel. Era necessário coragem para atuar contra uma tirania no seu seio, e alguns homens não a possuíam.

            À semelhança de todos em Langley, Monk nunca estabelecia comparações entre aqueles que trabalhavam contra o regime de Moscou e um traidor americano. Este último traía todo o povo seu compatriota e o governo eleito democraticamente. Se fosse desmascarado, receberia tratamento humano, um julgamento imparcial e o melhor advogado que pudesse obter.

            Ao contrário, um russo atuava contra um despotismo brutal que representava apenas dez por cento da nação e mantinha os restantes noventa por cento subjugados. Se fosse descoberto, sofreria torturas e, por fim, a morte sem julgamento, ou ingressaria num campo de trabalhos forçados.

            Mas Kruglov cumprira o prometido. Comunicara três vezes através dos esconderijos usuais, com documentos interessantes e de política de alto nível do seio do Ministério dos Assuntos Estrangeiros soviético. Editados apropriadamente para dissimular a fonte, permitiam que o Departamento de Estado conhecesse a posição negociadora da URSS ainda antes dos interessados se sentarem à mesa. Ao longo de 1987 e 1988, os países satélites da Europa Oriental caminhavam para a revolta aberta a Polônia tomara a iniciativa e a Roménia, Hungria e Checoslováquia seguiam-lhe as pisadas, pelo que se tornava vital saber como Moscou tencionava enfrentar o problema. O conhecimento do grau de fraqueza e desmoralização da União Soviética revestia-se de importância vital. Kruglov revelou-o.

            Mas, em Maio, o agente Delfos indicou que necessitava de um encontro. Tinha algo de valioso para transmitir e queria avistar-se com o seu amigo Jason. Harry Gaunt ficou apreensivo.

            - Aquilo em Ialta foi grave. Ninguém daqui conseguia dormir descansado. Você safou-se ileso, mas podia ter sido uma armadilha. Tal como agora. De acordo, os códigos indicam que ele faz jogo limpo. No entanto, pode ter sido descoberto, e dado com a língua nos dentes. E você sabe demais.

            - Há centenas de milhares de turistas dos Estados Unidos que visitam   Moscou.  Já não é como nos velhos  tempos. O KGB não pode vigiar todos. Se o disfarce é perfeito, trata-se de um homem entre cem mil. Só se fosse surpreendido em flagrante. De qualquer modo, o disfarce que utilizarei será excelente. Nunca deixo de ter  a  máxima  prudência.  Falo russo, mas finjo o contrário. Não passo de um atrapalhado e inofensivo americano munido de um guia turístico. Só largo esse disfarce se tenho certeza que não me vigiam. Confie em mim.

            A América possui uma vasta rede de fundações interessadas em arte de todo o tipo e descrição. Uma delas preparava um grupo de estudantes que visitaria Moscou para estudar, vários tendo como ponto culminante a escala pelo famoso Museu de Arte Oriental, na Rua Obukha, e Monk inscreveu-se como estudioso adulto.

            Todos os elementos e documentos do Dr. Philip Peters não só eram perfeitos como autênticos, quando o grupo de estudantes aterrou no aeroporto de Moscou, em meados de Junho. Entretanto, Kruglov fora devidamente prevenido.

            Esperava-os o obrigatório guia da Intourist, que os conduziu ao Hotel Rossiya, tão grande como Alcatraz, embora sem os seus confrontos. No terceiro dia, visitaram o Museu de Arte Oriental. Monk estudara os seus pormenores nos Estados Unidos. Entre os expositores, havia largos espaços abertos, onde ele julgava poder detectar um “bando da pesada” que seguisse Kruglov.

            Avistou o seu homem transcorridos vinte minutos. Continuou a seguir o guia e o russo passou a mover-se atrás dele. Monk convenceu-se que não havia qualquer “cauda”, quando começou a encaminhar-se para a cafeteria.

            O Museu de Arte Oriental dispunha de um desses estabelecimentos, que possuem inevitavelmente instalações sanitárias. Eles tomaram café separadamente, mas o americano piscou dissimuladamente o olho a Kruglov. Se este tivesse sido detido pelo KGB e torturado, haveria uma expressão peculiar no seu rosto. Medo. Desespero. Advertência. Em vez disso, os olhos do homem brilhavam de satisfação. Ou se tratava do maior agente duplo que o mundo jamais conhecera ou estava perfeitamente “limpo”. Por fim, Monk levantou-se e passou às instalações sanitárias. Após um compasso de espera, Kruglov seguiu-o, e aguardaram que o único ocupante lavasse as mãos e saísse para se abraçarem.

            - Como está, meu amigo?

            - Ótimo. Já tenho um apartamento próprio. É maravilhoso dispor de   privacidade. Os meus filhos podem me visitar e pernoitar comigo

            - Ninguém suspeitou de nada? Refiro-me ao dinheiro.

            - Não, porque permaneci muito tempo no estrangeiro. Hoje em dia, todos procuram tirar o melhor partido financeiro das  ausências  do  país. Os  diplomatas superiores  regressam com muitas coisas valiosas. Eu fui muito ingênuo.

            - Então, a situação está se modificando, e nós contribuímos para isso. A ditadura em breve ruirá e todos viverão em liberdade. Já não falta muito.

            Entraram alguns rapazes, que urinaram ruidosamente e saíram em seguida. Os dois homens lavaram as mãos até que se retiraram. De qualquer modo, Monk mantivera a água correndo. Tratava-se de um velho truque, mas, a menos que o microfone se encontrasse muito perto ou eles falassem muito alto, aquele ruído bastava para abafar a voz.

            Conversaram durante mais dez minutos, e Kruglov entregou o embrulho que trouxera. Documentos autênticos, cópias obtidas do gabinete do Ministro dos Assuntos Estrangeiros, Eduard Shevardnadze.

            Voltaram a abraçar-se e saíram separadamente. Monk tornou a incorporar-se no grupo, com o qual regressou de avião, dois dias mais tarde. Antes de partir, deixou o embrulho na estação da CIA na embaixada.

            Nos Estados Unidos, os documentos revelaram que a URSS reduzia quase todos os programas de auxílio aos países do Terceiro Mundo, entre os quais Cuba. A economia desmoronava-se e o fim estava à vista. O Terceiro Mundo não voltaria a ser utilizado como alavanca para fazer chantagem ao Ocidente. O Departamento de Estado adorou o que leu.

            Era a segunda visita de Monk à URSS numa missão “negra”. Quando regressou, inteirou-se que conquistara mais uma promoção. E também que Nikolai Turkin, agente Lisandro, fora transferido para Berlim Oriental como comandante da operação do Diretorado K no seio do complexo do KGB local. Tratava-se de uma posição de particular importância, a única que permitia o acesso a todos os agentes soviéticos colocados na Alemanha Oriental.

           

            O gerente do hotel e o chefe de estação britânico chegaram ao Hospital Botkin com um intervalo de escassos segundos e foram conduzidos a uma pequena enfermaria onde os aguardava o corpo do jornalista britânico e a presença do inspetor Lopatin. No momento das apresentações, MacDonald limitou-se a dizer:

            - Da embaixada.

            A primeira preocupação do inspetor consistia numa identificação positiva, o que não constituía problema, pois Svenson fizera-se acompanhar do passaporte de Jefferson, cuja fotografia se parecia perfeitamente com o titular. O gerente do hotel completou a formalidade com um relance ao rosto do cadáver.

            - Qual foi a causa da morte? - quis saber MacDonald.

            - Uma bala que lhe atravessou o coração - informou Lopatin.

            O diplomata examinou o casaco da vítima e referiu inocentemente:

            - Mas há aqui dois orifícios.

            Os três homens voltaram a inspeccioná-lo. com efeito, havia dois furos de balas. Lopatin dirigiu uma nova olhadela ao corpo, que só apresentava um no peito.

            - A outra bala deve ter parado na carteira - opinou, com um leve sorriso.  - Ao menos, os assaltantes não poderão utilizar os cartões de crédito.

            - Bem, tenho de voltar ao hotel - declarou Svenson, visivelmente abalado. -Se, ao menos, o homem tivesse aceitado a oferta da limusine...

            MacDonald acompanhou-o à saída, ao mesmo tempo que reconhecia:

            - Isto deve ser horrível para vocês. - Fez uma pausa, enquanto o sueco assentia, com uma leve inclinação de cabeça. - Tratemos, pois, de esclarecer tudo o mais rapidamente possível. Suponho que há uma esposa, em Londres. Para enviar-lhe os objetos de uso pessoal de Jefferson. Vocês talvez não se importem de os reunir e fazer a mala? Enviarei um carro, de manhã. Obrigado antecipadamente.

            Regressou à enfermaria e trocou algumas palavras com Lapotin.

            - Temos um pequeno problema, inspetor. A situação é pouco agradável. O homem era um jornalista famoso, pelo que haverá alguma publicidade em torno do assunto. O Telegraph tem uma delegação nesta cidade, que conferirá a devida publicidade à ocorrência. E a Imprensa estrangeira fará o mesmo. Por que  não  deixa  a  embaixada  ocupar-se  dessa  faceta  da questão? Suponho que os fatos são bem claros? Um assalto na via pública que deu errado. Os marginais decerto se dirigiram em russo e ele não os compreendeu. Julgando que pretendia resistir, balearam-mo. Sim, uma verdadeira tragédia.

            - De fato, sou da mesma opinião.

            - Tentará, pois, descobrir os assassinos, embora eu não lhe inveje a tarefa. Deixe a parte da repatriação do corpo ao cuidado dos meus colegas do consulado. Assim como a Imprensa britânica. De acordo?

            - Sim, parece-me o mais sensato.

            - Preciso apenas dos objetos pessoais. De qualquer modo, não têm a menor relação direta com o caso. A chave de tudo será a carteira, se porventura vier a aparecer. E os cartões de crédito, se alguém tentar utilizá-los, do que duvido muito.

            Lopatin fixou o olhar no prato em forma de rim, com o modesto conteúdo.

            - Tem de assinar um recibo - advertiu.

            - Com certeza. Prepare o impresso.

            O hospital forneceu um envelope, em que foram depositados um anel de sinete, um relógio de pulso de ouro, com correia de pele de crocodilo, um lenço meticulosamente dobrado e uma pequena bolsa. MacDonald assinou o recibo e levou os objetos para a embaixada.

            Nenhum dos dois homens sabia que os assassinos tinham cumprido as instruções, mas cometido dois erros inadvertidos. Fora-lhes recomendado que se apoderassem da carteira que continha todos os documentos de identificação, entre os quais o respectivo bilhete, e, sobretudo, do minúsculo gravador.

            Ignoravam que os ingleses não necessitam ser portadores do BI dentro da Grã-Bretanha e, nos deslocamentos ao estrangeiro, apenas se fazem acompanhar do passaporte, que muitas vezes deixam no hotel. Por outro lado, escapou-lhes a chave de plástico do quarto no bolso do peito do casaco. Os dois detalhes permitiram a identificação completa, duas horas após o crime.

            Quanto ao segundo acidente, não lhes competia a responsabilidade. Uma das duas balas não atingira de modo algum a carteira batera no gravador sobre o peito, no interior do casaco. Destruíra o sensível mecanismo e fragmentara a pequena cassette, que ficara impossibilitada de ser reproduzida.

           

            O inspetor Novikov marcara a entrevista com o diretor do pessoal na sede do partido UFP para as dez horas da manhã de 10 de Agosto. Estava um pouco nervoso e esperava ser tratado com altivez ou mesmo indiferença. Mr. Zhilin vestia um terno cinzento-escuro e exibia maneiras firmes, pontuadas por um bigode tipo escova de dentes e óculos sem aros. Infundia a impressão de um burocrata de uma época passada, como na realidade era.

            - O meu tempo é curto, inspetor. Queira, pois, expor sem delongas o motivo da sua presença aqui.

            - Com certeza. Investigo a morte de um homem que supomos ser um criminoso. Um ladrão. Uma das nossas testemunhas crê tê-lo visto rondando seu domicílio. Estou, naturalmente, receoso que tentasse introduzir-se no apartamento durante a noite.

            - Custa-me acreditar. - Zhilin exibiu um sorriso mordaz. - Vivemos tempos inseguros, pelo que as medidas de acesso ao edifício têm de ser muito rigorosas.

            - Alegra-me ouvi-lo. Alguma vez viu este homem? - Baixou os olhos para a fotografia que Novikov lhe mostrava e exclamou:

            - Mas é Zaitsev!

            - Quem?

            - Zaitsev, o velho empregado da limpeza. Chama-o de ladrão? Impossível.

            - Importa-se de me falar dele?

            - Não há nada de especial para dizer. Nós o admitimos há cerca de um  ano. Esteve na tropa até pouco antes. Parecia merecedor de confiança. Vinha todas as noites, de segunda a sábado, para limpar os gabinetes.

            - Mas não recentemente?

            - Não, deixou de aparecer repentinamente. Passadas duas noites, tive de admitir alguém para substitui-lo. Uma viúva de guerra. Uma mulher muito meticulosa, diga-se de passagem.

            - Quando foi que deixou de aparecer?

            Zhilin dirigiu-se a um armário e pegou uma ficha, em gestos destinados a infundir a impressão que as havia para tudo.

            - Vejamos... Veio como habitualmente na noite de 15 de Julho e fez a limpeza da forma usual, retirando-se perto da alvorada. Faltou na seguinte e não voltou a ser visto. A sua testemunha decerto o avistou saindo a horas mortas. Nada de anormal nisso. Não veio para assaltar as instalações, mas para as limpar.

            - Bem, isso explica tudo - assentiu Novikov.

            - Não é bem assim - retorquiu o outro. - Chamou-lhe de ladrão.

            - Duas noites depois de vir aqui pela última vez, esteve aparentemente envolvido na invasão de um apartamento do Prospekt  Kutuzovsky. A locatária   identificou-o. Uma semana mais tarde, foi encontrado morto.

            - Deplorável. Esta vaga crescente de crimes é uma autêntica vergonha. Vocês deviam tomar providências radicais para acabar com isso.

            O inspetor encolheu os ombros.

            - Fazemos o que podemos, mas eles são muitos e nós pouquíssimos. Embora desejemos cumprir a nossa missão, não recebemos o menor apoio das altas esferas.

            - Isso há de mudar, garanto-lhe. - Zhilm exibia um clarão messiânico no olhar. - Dentro de seis meses, Igor Komarov será o nosso presidente. Haverá,  então, reformas decisivas. Tem ouvido ou lido os seus discursos? A redução substancial da criminalidade constitui um dos seus alvos prioritários. Sim, é um grande homem. Espero podermos contar com o seu voto.

            - Certamente. Desculpe, mas tem por acaso o endereço do empregado da limpeza?

            Rabiscou-o num pedaço de papel, que entregou a Novikov.

            A filha de Zaitsev mostrava-se amargurada, porém resignada e, depois de contemplar a fotografia, inclinou a cabeça. Em seguida, olhou o pequeno divã ao longo da parede da saleta. Ao menos, haveria um pouco mais de espaço. O inspetor retirou-se, sem mais perguntas. Informaria Volsky do resultado das diligências, mas era evidente que não havia dinheiro para o funeral, naquela casa. Mais valia que a cidade de Moscou se ocupasse disso. Como naquele pequeno apartamento, o problema no necrotério consistia na falta de espaço.

            Assim, o colega podia arquivar o processo. Quanto ao Departamento de Homicídios, o assassínio de Zatsev iria fazer companhia aos outros 97 por cento insolúveis.

 

Langley, Setembro de 1988

            A lista dos membros da delegação soviética foi enviada à CIA pelo Departamento de Estado por mera rotina. Quando a conferência de Silicon Valley sobre física teórica foi promovida e mencionada a intenção de convidar a URSS para enviar uma delegação, encararam-se poucas hipóteses de aceitação.

            Mas, em fins de 1987, as reformas de Gorbachev começavam a surtir efeito e era discernível uma clara descontração na atitude oficial em Moscou. Por conseguinte, ante a surpresa dos organizadores do seminário, os russos concordaram em enviar um pequeno grupo de participantes.

            Os nomes e pormenores tinham de passar pela Imigração, a qual pediu ao Departamento de Estado que os investigasse. A URSS mostrara-se até então reservada sobre questões científicas, pelo que só era conhecido no Ocidente um pequeno punhado de nomes de estrelas soviéticas na matéria.

            Quando a relação chegou a Langley, seguiu para a Divisão SE e foi confiada a Monk, que estava afortunadamente disponível. Os seus dois agentes em Moscou contribuíam de modo satisfatório e o coronel Turkin encontrava-se em Berlim Oriental colaborando no desmantelamento das atividades do KGB na Alemanha Federal.

            Monk examinou a lista de nomes dos oito cientistas soviéticos que participariam na Conferência de Novembro na Califórnia e não descobriu qualquer elemento suspeito ou sequer duvidoso. Nenhum era do conhecimento da CIA e ainda menos tinha sido abordado ou recrutado.

            Devido aos seus instintos de perdigueiro no tocante a um problema, efetuou uma última tentativa. Embora as relações entre a CIA e a sua homóloga doméstica, a ala da contra-espionagem do FBI, tivessem sido sempre tensas e, por vezes, venenosas, sobretudo desde o caso Howard mais recente, decidiu consultá-la.

            Tratava-se de um tiro no escuro, por assim dizer, porém ele sabia que o Bureau dispunha de uma lista de súditos soviéticos muito mais completa, sobretudo daqueles a quem fora concedido asilo nos Estados Unidos. O tiro não dizia respeito à eventualidade de o FBI desejar colaborar, mas a saber se os russos permitiriam que um cientista com algum familiar na América abandonasse o país. Tudo se inclinava para a negativa, porque o KGB considerava os membros de família radicados nos Estados Unidos um importante ponto fraco na segurança.

            De entre os oito nomes da lista, dois figuravam igualmente nos registros de pretendentes de asilo do FBI. Um exame mais aprofundado indicou que um não passava de mera coincidência a família que residia em Baltimore não tinha absolutamente nada de comum com o cientista russo prestes a chegar.

            O outro podia considerar-se estranho. Uma judia russa que procurava asilo através da embaixada americana em Viena, quando se encontrava num campo de trânsito da Áustria dera à luz um rapaz, que registrara depois de novo, com um nome diferente, nos Estados Unidos.

            Yevgenia Rozina, agora de Nova Iorque, inscrevera o filho como sendo Ivanovich Blinov. Monk sabia que isso significava Ivan-Filho-de-Ivan. Tudo indicava que fora um produto fora do casamento. Resultante de uma união em território dos Estados Unidos, no campo de trânsito da Áustria, ou anteriormente? Um dos nomes da lista de cientistas soviéticos era o professor Dr. Ivan Yedokimovich Blinov. Um nome invulgar, que Monk nunca ouvira. Decidiu pois deslocar-se a Nova Iorque e procurar Mrs. Rozina.

           

            O inspetor Novikov resolveu transmitir a boa notícia ao colega Volsky diante de cervejas, depois do turno de serviço. A cantina foi de novo o local escolhido, pois a cerveja era aí mais barata.

            - Adivinha onde passei a manhã.

            - Na cama, com uma bailarina ninfomaníaca.

            - Isso também eu queria. Na sede da UFP.

            - Refere-se ao monte de estrume que eles têm na travessa do peixe?

            - Não, isso é só para vista. Komarov tem as suas verdadeiras instalações numa casa muito elegante perto do bulevar circular. Antes que me esqueça: as cervejas são por tua conta. Solucionei o seu caso, hoje.

            - Qual deles?

            - O do velhote encontrado no bosque junto da estrada de Minsk. Era o empregado da limpeza da sede da UFP, até que passou a dedicar-se ao roubo para ganhar mais uns cobres. Aqui estão os detalhes.

            Volsky passou os olhos pela folha datilografada que Novikov lhe estendeu e observou:

            - Têm havido uma maré de azar, na UFP.

            - Porquê?

            - O  secretário particular de Komarov afogou-se mês passado.

            - Suicídio?

            - Não, nada do gênero. Foi tomar banho no rio e não voltou à superfície.  Pescaram-no a semana  passada. Temos  um patologista muito arguto. Descobriu uma aliança de casamento com o nome no interior.

            - Quando acha esse patologista arguto que mergulhou na água?

            - Por volta de meados de Julho.

            Novikov refletiu por um momento. Quem devia pagar as cervejas era ele, pois recebera mil libras esterlinas do inglês.

 

Nova Iorque, Setembro de 1988

            Ela tinha cerca de quarenta anos, morena, cheia de energia e atraente. Ele aguardava no átrio do bloco de apartamentos, quando chegou com o filho que acabava de ir recolher à escola, um robusto garoto de oito anos.

            A expressão sorridente do rosto dela extinguiu-se, quando Monk se apresentou como sendo funcionário do Serviço de imigração. Para qualquer imigrante, mesmo com os documentos em perfeita ordem, o cargo basta para inspirar apreensão, se não medo. Por conseguinte, viu-se obrigada a deixá-lo entrar.

            Depois do filho se absorver nos trabalhos de casa, sentado à mesa da cozinha do pequeno, mas extremamente arrumado apartamento, conversaram na sala de estar, enquanto ela se colocava na defensiva e em guarda.

            No entanto, Monk não se parecia com os indivíduos bruscos e formais que enfrentara durante a luta para ser aceita nos Estados Unidos, cinco anos atrás. Tinha maneiras cativantes e um sorriso comunicativo, pelo que ela começou a descontrair-se.

            - Sabe o que acontece conosco, funcionários públicos, Mrs. Rozina. Processos, processos e mais processos. Quando se completam e encerram, o chefe fica satisfeito. Depois, que acontece?  Enchem-se de pó num arquivo. Por outro lado, se ficam pendentes, ele fica impaciente e envia um pequeno elo da engrenagem como eu para reunir os elementos que faltam.

            - Que deseja saber? Tenho os documentos em ordem. Exerço as funções de economista e tradutora. Pago impostos. Não custo nada aos Estados Unidos.

            - Sabemos de tudo isso, minha senhora. Não se suspeita da menor irregularidade nos seus documentos. É cidadã americana naturalizada. Tem tudo em conformidade com a lei. Acontece apenas que registrou o pequeno Ivan com um nome diferente. Porquê?

            - Dei-lhe o nome do pai.

            - Sem dúvida. Repare, estamos em 1988. O filho de um casal que não contraiu matrimônio não constitui qualquer problema para nós. Mas os processos têm de se completar. Pode revelar-me o nome do pai, por favor?

            - Ivan Yedokimovich Blinov.

            Bingo. O nome que figurava na lista. Dificilmente haveria dois iguais em toda a Rússia.

            - Amava-o muito, não é verdade?

            Assumiu uma expressão de nostalgia aos olhos dela, como quem contempla uma recordação remota.

            - Sim, muito - murmurou.

            - Fale-me dele.

            Entre os vários talentos de Jason Monk, contava-se a habilidade peculiar de persuadir as pessoas a confiar nele. Ao longo de duas horas, até que o garoto reapareceu com os trabalhos terminados, ela falou do pai do pequeno Ivan.

            Nascido em Leningrado em 1938, o seu pai era professor universitário de física e a mãe professora de matemática. Por verdadeiro milagre, ele sobreviveu às vagas de depurações estalinistas anteriores à guerra, mas morreu durante o bloqueio alemão, em 1942. A esposa, com Vanya, de cinco anos, nos braços, foi salva e abandonou a cidade dominada pela fome num comboio de caminhões que cruzou o gelo do Lago Ladoga, no Inverno daquele ano. Os fugitivos foram instalados numa pequena localidade nos Montes Urais, onde o rapaz cresceu, com a mãe devotada à idéia de que, um dia, seria tão brilhante como o pai.

            Aos dezoito anos, ele transferiu-se para Moscou, para procurar ingressar no estabelecimento técnico de ensino superior mais prestigioso da URSS - o Instituto Tecnológico de Física  e verificou com admiração que era admitido. Mau grado as suas circunstâncias humildes, o nome do pai, a dedicação da mãe, porventura o gene e sem dúvida os seus esforços pessoais fizeram o prato da balança inclinar-se para o lado que desejava. Por trás do seu modesto nome, o instituto era a forja dos mais sofisticados designers de armas nucleares.

            Seis anos mais tarde, ainda jovem, Blinov recebeu a oferta de um lugar numa cidade científica tão secreta, que o Ocidente só se inteirou da sua existência muito mais tarde. Arzamas-16 tornou-se, para o jovem prodígio, um lar privilegiado e uma prisão.

            As condições eram luxuosas, segundo os padrões soviéticos. Um pequeno apartamento, mas só para ele, melhores lojas que em qualquer outra parte do país, um salário elevado e facilidades de investigação ilimitadas achava-se tudo ao seu alcance. A única coisa que lhe faltava era o direito de partir.

            Uma vez por ano, havia a oportunidade de um período de férias num local aprovado, por uma fração do preço normal. Em seguida, tinha de voltar para o interior do recinto rodeado por arame farpado, com a correspondência interceptada, telefonemas escutados e amizades vigiadas.

            Antes de completar trinta anos de idade, conheceu Valya, jovem bibliotecária e professora de inglês com a qual casou, e que lhe ensinou o idioma, para que pudesse ler a data das publicações técnicas provenientes do estrangeiro nas versões originais. A princípio, foram felizes, mas, gradualmente, a união foi ensombrada por um óbice, desejavam desesperadamente um filho e não o podiam ter.

            No Outono de 1977, Ivan Blinov passava férias nas termas de Kislovodsk, no norte do Cáucaso, quando conheceu Zhenya Rozina. Como acontecia com frequência numa gaiola dourada, a esposa tivera de gozar as vilegiaturas num período diferente.

            Zhenya tinha vinte e nove anos, dez mais jovem do que ele, divorciada, natural de Minsk, também sem filhos, enérgica, irreverente, ouvinte constante das “vozes” (da América e da BBC) e leitora de revistas arrojadas como a Poland, impressa em Varsóvia e muito mais liberal e versátil do que as temíveis e dogmáticas publicações soviéticas.

            Concordaram em se corresponder, embora Blinov soubesse que as suas cartas seriam interceptadas, o que o levou a sugerir que escrevesse a um amigo em Arzamas-16, cujo correio não seria violado.

            Voltaram a encontrar-se de novo em 1978, por acordo mútuo, desta vez na estância de veraneio de Sochi, no Mar Negro. Entretanto, o matrimônio dele apenas persistia no nome. A amizade com Zhenya converteu-se num romance tórrido. Encontraram-se pela terceira e última vez em 1979, em Ialta, e reconheceram que continuavam apaixonados, não era um amor sem esperança.

            Blinov sentia que não podia pedir o divórcio. Se houvesse outro homem que a requestasse, a situação seria diferente. Mas tal não acontecia, e ela não era atraente. Todavia, fora uma esposa leal durante quinze anos e, se o amor morrera, devia-se a um dos imponderáveis da vida. Continuavam amigos e ele não a envergonharia com a separação oficial, sobretudo na pequena comunidade em que viviam.

            Zhenya não discordava, mas por outra razão. Revelou-lhe algo que até então guardara para si. Se casassem, comprometeria a carreira, pois era judia e já apresentara um requerimento no OVIR Departamento de Vistos e Autorizações, para emigrar para Israel. Beijaram-se, fizeram amor, separaram-se e nunca mais se tornaram a ver.

            - O resto é do seu conhecimento - concluiu ela.

            - O campo de trânsito na Áustria e o recurso à nossa enbaixada?

            - Exato.

            - E Ivan Ivanovich?

            - Seis  semanas  após  as  férias  em  Ialta,  descobri  que transportava o filho dele no ventre. Nasceu aqui e é cidadão dos Estados Unidos. Ao menos ele crescerá em liberdade.

            - Alguma vez se correspondeu com Blinov para lhe informar?

            - Para quê? - proferiu com amargura. - Continua casado. Vive numa prisão dourada, tão prisioneiro como qualquer zek nos campos. Que lucraria com isso? Recordaria-se  do passado. Obrigaria-o a ansiar pelo que não pode ter.

            - Falou a Ivan sobre o pai?

            - Sim. Disse-lhe que é um homem importante. E bondoso. Mas vive longe.

            - As coisas estão mudando - observou Monk, suavemente. - Hoje, não lhe seria difícil ir até Moscou. Tenho um amigo que se desloca à União Soviética com frequência. Um homem de negócios. Escreva a essa pessoa de Arzamas-16 cuja correspondência não é interceptada. Peça ao pai que se desloque a Moscou.

            - Para quê? Que lhe diria?

            - Ele deve saber da existência do filho. Deixe o garoto escrever-lhe. Providenciarei para que a carta chegue às mãos do destinatário.

            Antes de se deitar, o garoto escreveu em russo uma carta simples, porém enternecedora, que começava: “Querido papai...”

           

            “Gracie” Fields regressou à embaixada pouco antes do meio-dia, no dia 11, bateu à porta do gabinete de MacDonald e foi encontrá-lo imerso em sombrias cogitações.

            - Vamos para a ampola? - sugeriu este último, e o outro assentiu com um movimento de cabeça.

            Quando se achavam encerrados na sala de conferências “A”, Fields pousou na mesa a fotografia do rosto sem vida de um ancião.

            - Fazia parte do conjunto das tiradas no bosque, similar à levada à embaixada pelo investigador Chernov.

            - Avistou-se com o seu homem? - perguntou MacDonald.

            - Sim. Trata-se de material muito traumático. Era o empregado da limpeza da sede da UFP.

            - Empregado da limpeza?

            - Precisamente. Dos gabinetes. Como o Homem invisível de Chesterton*. Ia lá todas as noites, mas ninguém reparava nele. Chegava cerca das dez, de segunda a sábado, executava o seu trabalho e se retirava pouco antes da alvorada. Ganhava miseravelmente e vivia num bairro de lata. Mas há mais.

            Fields descreveu a história de N. l. Akopov, falecido secretário pessoal de Igor Komarov, que decidira tomar um desaconselhável e fatal banho no rio, a meio de Julho.           Por fim, MacDonald levantou-se e começou a percorrer o aposento em cadenciado vaivém.

            - Na nossa profissão, temos de confiar em fatos, fatos e apenas fatos  declarou.  Mas permitamo-nos uma pequena suposição. Akopov esqueceu-se do raio do documento em cima da mesa. O empregado da  limpeza viu-o, folheou-o,  não gostou do que leu e roubou-o. Acha que isto faz sentido?

            - Em  absoluto, Jock. O seu desaparecimento foi notado no dia seguinte e Akopov foi despedido, mas como o leu não podia continuar entre os vivos. Assim, foi tomar banho no rio, com dois rapazes robustos segurando-no para não voltar à superfície.

            - Operação provavelmente efetuada numa tina cheia de água, sendo lançado ao rio mais tarde. O empregado da limpeza não compareceu ao serviço e fez-se luz no espírito dos responsáveis. Ato contínuo, trataram de procurá-lo. Mas, entretanto, ele já largara o documento no carro de Célia Stone.

            - Porquê? Por que a escolheu para depositária?

            - Nunca descobriremos. Devia saber que ela trabalhava na embaixada. Disse qualquer coisa acerca de o entregar ao embaixador em troca da cerveja. Qual cerveja?

            - Acabaram por localizá-lo, torturaram-no e revelou tudo. Depois,  liquidaram-no e largaram-no no bosque. Como descobririam o apartamento da Célia?

            - Seguiram-lhe o carro, sem dúvida. Desde aqui. Ela não daria por nada. Inteiraram-se de onde vivia, subornaram os guardas do portão e revistaram-lhe o carro. Como não encontraram lá o documento, invadiram o apartamento. Até que Célia chegou e os surpreendeu.

            - Portanto,   Komarov  sabe  que o seu  precioso  relatório desapareceu  murmurou Fields. Assim como quem o roubou e onde o deixou. Mas desconhece se alguém lhe prestou atenção. Célia podia tê-lo jogado fora. Todos os maníacos da Rússia enviam petições aos altos e poderosos. Somos como folhas de Outono. Talvez ele ignore o efeito que produziu.

            - Agora, já deve saber - considerou MacDonald. Extraiu do bolso um   pequeno leitor de cassettes emprestado por uma das secretárias que gostava de ouvir música em surdina durante as horas de serviço. Em seguida, introduziu-lhe uma minúscula cassette.

            - Que é isso? - perguntou Fields.

            - A gravação da entrevista com Igor Komarov. Uma hora de cada lado.

            - Mas eu  supunha que os assassinos tinham se apoderado do gravador.

            - E fizeram-no. Conseguiram também atingi-lo com uma bala. Encontrei  fragmentos de plástico e metal no  fundo  do  bolso  interior  direito  do  casaco  de

* G. K Chesterton, poeta, crítico e romancista inglês, autor de vários livros, entre os quais O Homem que Era Quinta-Feira. (N. do T.)

Jefferson. Não foi a carteira que  atingiram,  mas  o gravador.  Por conseguinte,  a  cassette não se poderia reproduzir.

            - Nesse caso...

            - O  previdente  do jornalista  decerto  se  deteve  na   rua para extrair a valiosa entrevista e substituí-la por uma cassette virgem. Encontrava-se dentro de uma pequena bolsa, no bolso das calças. Creio que contém o motivo da sua morte. Escute.

            MacDonald ligou o gravador, e a voz de Jefferson inundou a sala.

            - Senhor presidente, em questões de política externa, particularmente as   respeitantes às relações com as outras repúblicas da URSS, como tenciona assegurar o renascimento da glória da nação russa?

            Registrou-se uma breve pausa, e Kuznetsov iniciou a tradução. No final, houve um silêncio ainda mais prolongado e o som de passos no chão. Verificou-se um estalido, e o gravador foi desligado.

            - Alguém se levantou e saiu  disse MacDonald.

            A máquina voltou a funcionar e reproduziu a voz de Komarov respondendo. Era impossível determinar o tempo que permanecera desligada. No entanto, pouco antes do estalido, ouviu-se Kuznetsov começar a dizer: “Estou certo que o senhor presidente não...”

            - Não estou compreendendo - confessou Fields.

            - É terrivelmente simples. Eu próprio traduzi o Manifesto Negro. Levou-me quase toda a noite. Fui eu que interpretei a passagem vozrozhdeniye vo slavu russkogo naroda por “renascimento da glória da nação russa”. Porque é esse o seu verdadeiro significado. Marchbanks leu-a e deve tê-la mencionado ao editor do Daily Telegraph, que a empregou diante de Jefferson. Este gostou da imagem e utilizou-a durante a entrevista com Komarov. O filho da mãe encontrou-se a escutar a sua própria expressão. E eu nunca a tinha ouvido referir antes.

            Ligou de novo o leitor de cassettes para tornar a reproduzir a passagem. Quando Jefferson terminou de falar, Kuznetsov traduziu em russo. Para “renascimento da glória”, empregou as palavras vozrozhdeniye vo slavu.

            - Santo  Deus!... - balbuciou. Komarov - decerto  supôs que Jefferson tinha lido todo o documento, e em russo, e concluiu que era um dos nossos empenhado em testá-lo. Terão sido eles que o mataram?

            - Não creio - disse MacDonald. - Inclino-me mais para a possibilidade que Grishin encomendou o crime aos seus contatos no submundo. Foi um trabalho muito rápido. Se dispusessem de mais tempo, o levariam para um lugar seguro e interrogavam-no a seu bel-prazer. Receberam ordens para o reduzir ao silêncio e apoderar-se da gravação.

            - Que você pretende fazer, depois disto?

            - Voltar a Londres. As luvas foram descalçadas. Sabemos tudo, e Komarov sabe que sabemos. O chefe disse que queria provas que não se tratava de uma falsificação. Já morreram três homens por causa do satânico documento. Não sei que outras provas precisa.

 

San José, Novembro de 1988

            Silicon Valley é realmente um vale, que se estende ao longo de uma linha entre as montanhas de Santa Cruz, a oeste, e a cordilheira Hamilton, a leste. Prolonga-se de Santa Clara a Menlo Park, que constituíam os seus limites, em 1988. A designação deve-se a uma surpreendente concentração de entre mil e duas mil indústrias e fundações de investigação, todas dedicadas à alta tecnologia.

            A conferência científica internacional de Novembro daquele ano realizava-se na principal cidade do vale, San José, outrora uma pequena vila de missionários e atualmente um vasto aglomerado de torres imponentes. Os oito membros da delegação soviética estavam alojados no San José Fairmont, e Jason Monk encontrava-se no átrio do hotel, quando eles chegaram.

            Os oito básicos eram escoltados por uma falange muito mais numerosa de vigilantes, alguns da embaixada soviética de Nova Iorque, um do consulado de São Francisco e quatro provenientes de Moscou. Monk sentava-se diante de uma xícara de chá gelado, com um exemplar do New Scientist a seu lado, procurava localizar as figuras relevantes, do ponto de vista dos serviços secretos. Eram cinco, ao todo, claramente protetores do KG B.

            Ele tivera previamente uma longa sessão com um importante físico nuclear do Laboratório Lawrence Livermore, o qual se mostrara extasiado com a oportunidade de conhecer finalmente o colega soviético, professor Blinov.

            - Convém não esquecer que o homem é um enigma - explicou. - Atingiu a proeminência nos últimos dez anos. Começamos a ouvir rumores a seu respeito no circuito científico mais ou menos nessa altura. Foi primeiramente uma estrela no interior da URSS, mas não o deixavam divulgar no estrangeiro nada do que escrevia. Sabemos que lhe concederam o Prêmio Lenin, além de uma série de outros galardões. Decerto recebeu numerosos, para falar no estrangeiro... só nós enviamos-lhe dois... mas tivemos de nos dirigir ao presídio da Academia das Ciências, o qual sempre nos desencorajou. Agora, porém, vamos tê-lo entre nós. Pronunciará conferências sobre a física de partículas avançadas, e não faltarei entre o público.

            “Nem eu”, refletiu Monk.

            Aguardou que o cientista terminasse a alocução. A assistência não lhe regateou aplausos. No auditório, Monk escutou outras intervenções, circulou durante os intervalos e chegou à conclusão que não ficaria menos elucidado se falassem todos em marciano, pois não entendia uma única palavra.

            No átrio do hotel, tornou-se uma presença familiar, com o eterno casaco de tweed, óculos suspensos de um cordão ao pescoço e maço de revistas hipertécnicas. Os próprios quatro agentes do KGB e um do GRU haviam renunciado a observá-lo.

            Na última noite antes da delegação soviética regressar ao seu país, Motik esperou que o professor Blinov recolhesse ao quarto para bater à porta.

            - Sim? - proferiu uma voz em inglês.

            - Serviço de quartos - replicou ele.

            A porta entreabriu-se até onde a corrente de segurança permitira e o professor Blinov espiou e viu um homem que segurava um recipiente oval cheio de fruta, encimada por uma fita cor-de-rosa.

            - Não pedi nada.

            - Eu sei. Sou o gerente da noite. Trago isto, com os cumprimentos da gerência.

            Apesar dos cinco dias de permanência nos Estados Unidos, o cientista ainda se surpreendia com a curiosa sociedade de consumo material ilimitado. As únicas coisas que reconhecia eram as conversas científicas e a apertada segurança. Mas uma oferta de fruta constituía uma novidade. No entanto, como não queria parecer descortês, soltou a corrente, gesto que o KGB lhe recomendara encarecida e ameaçadoramente que nunca fizesse. Aquela organização, melhor do que ninguém, estava familiarizada com o bater à porta à meia-noite.

            Monk entrou, depositou a fruta em cima de uma pequena mesa, voltou-se e fechou a porta. Ato contínuo, surgiu uma expressão de alarme nos olhos do professor Blinov.

            - Sei quem é. Saia já, ou chamo os meus compatriotas. - Monk sorriu e passou a exprimir-se em russo.

            - Faça-o quando quiser, professor. Mas primeiro quero mostrar-lhe uma coisa. Leia isto e depois toque à campainha

            Intrigado, o cientista pegou na carta do garoto e fixou o olhar na primeira linha.

            - Que estupidez é esta? - protestou. - Forçou a entrada e...

            - Conversemos durante cinco minutos. Em seguida, sairei. Discretamente. Sem espalhafato. Mas primeiro, escute-me, por favor.

            - Não pode dizer nada que me interesse escutar. Avisaram-me contra vocês e ..

            - Zhenya encontra-se em Nova Iorque.

            Interrompeu-se e conservou a boca aberta. com cinquenta anos, tinha cabelos grisalhos e parecia mais velho. Encurvava-se, precisava de óculos para ler e observava Monk por cima deles, até que se sentou lentamente na cama.

            - Zhenya. Aqui? Na América?

            - Depois das suas últimas férias juntos em Ialta, foi autorizada a partir para   Israel. Num campo de trânsito na Áustria, entrou em contato com a nossa embaixada, que lhe concedeu o visto para, em vez disso, vir para os Estados Unidos. Cerca de dois meses após a separação, descobriu que engravidara. E agora, leia a carta, por favor.

            O professor obedeceu e o fez devagar, com perplexidade crescente. Quando terminou, conservou as duas folhas de papel creme na mão e olhou a parede em frente pensativamente. Por fim, tirou os óculos e esfregou os olhos, nos quais despontaram duas lágrimas, que deslizaram pelas faces.

            - Tenho um filho - murmurou. - Tenho um filho, meu Deus...

            Monk extraiu uma fotografia do bolso e estendeu-lha. O garoto usava um boné de basebol no topo da cabeça e exibia um largo sorriso. Tinha o rosto sardento e um dente da frente partido.

            - Ivan! Ivanovich Blinov - explicou. - Nunca o viu, exceto numa velha fotografia, mas ama-o.

            - Tenho um filho - tornou a repetir o homem que podia fabricar bombas de hidrogênio.

            - Também tem uma esposa.

            Abanou a cabeça.

            - Valya morreu de cancro, o ano passado.

            Monk experimentou uma sensação de desalento. O homem era livre. Agora, quereria ficar nos Estados Unidos, o que não figurava nos planos.

            - Que pretende? perguntou o professor.

            - Queremos que, dentro de dois anos, aceite um convite para uma série de conferências no Ocidente, onde ficará. Nós o transportaremos para os Estados Unidos de avião, onde quer que se encontre. Terá uma existência regalada, por assim dizer. O cargo de docente superior numa universidade, uma casa espaçosa e confortável no bosque, dois carros... E Zhenya e Ivan a seu lado. Para sempre. Ambos o amam profundamente, e julgo que o afeto é retribuído.

            - Dois anos?

            - Sim, mais esse lapso de tempo em Arzamas-16. Mas precisamos saber tudo. Compreende?

            Assentiu com uma inclinação de cabeça. Antes de amanhecer, Monk obrigou-o a memorizar o endereço em Berlim Oriental e aceitar a lata de espuma de barbear, com algumas coisas no meio do conteúdo, o pequeno frasco de tinta invisível para a sua única carta. Não havia a menor possibilidade de penetrar Arzamas-16. Teria de realizar um encontro para a entrega e, um ano mais tarde, ocorreria a fuga, com tudo o que ele pudesse levar consigo.

            Enquanto descia ao átrio, Monk julgava ouvir uma voz tênue que lhe segredava: “ Você é um patife de marca maior. Devia tê-lo deixado ficar já”. E outra acusava-o: “Lembre-se que não é um agente de reunificação de famílias, mas um mero espião. É a única coisa que deve e sabe fazer”. Ao mesmo tempo, o verdadeiro Jason Monk jurava que, um dia, Ivan Yevdokimovich Blinov viveria nos Estados Unidos com a esposa e o filho e o Tio Sam o compensaria daqueles dois anos suplementares em que teria de suportar o cativeiro.

 

            A reunião efetuou-se, dois dias mais tarde, no gabinete de Sir Henry Coombs no último piso de Vauxhall Cross, denominado ironicamente Palácio da Luz e da Cultura. O nome tivera origem num antigo guerreiro há muito falecido Ronnie Bloom, um orientalista que, uma ocasião, descobrira um edifício assim designado em Beijing, o qual parecia conter muito pouca luz e escassa cultura e lhe recordara as suas próprias instalações na Century House.

            Estavam igualmente presentes os dois controladores dos hemisférios oriental e ocidental, Marchbanke, chefe da seção da Rússia, e MacDonald. Foi este último que começou por falar durante cerca de uma hora, interrompido frequentemente com perguntas pelos superiores.

            - Então, meus senhores? - perguntou finalmente o chefe. Cada um expôs as suas reações. A posição era unânime.

            Tinham de aceitar a presunção que o Manifesto Negro fora na verdade roubado e constituía o diagrama exato do que Komarov tencionava fazer quando subisse ao poder criar uma tirania de partido único para promover a agressão externa e o genocídio interno.

            - Registre por escrito tudo o que nos revelou, por favor, Jock. Até ao anoitecer, de preferência. O apresentarei depois às instâncias mais elevadas. E acho que devemos informar os nossos colegas em Langley. Ocupa-se disso, Sean?

            O controlador do Hemisfério Ocidental aquiesceu, com um movimento de cabeça, e o chefe levantou se.

            - Um assunto horrível a que se tem de ficar atento, naturalmente. Os políticos precisam nos dar luz verde para cortar as pernas desse homem.

            Mas não foi o que aconteceu. Ao invés, pouco antes do final de Agosto, Sir Henry Coombs foi convidado a visitar o funcionário público mais graduado do Ministério dos Assuntos Estrangeiros, na King Charles Street.

            Na sua qualidade de subsecretário permanente, Sir Reginald Parfitt, não só era colega do chefe do SIS, mas também um dos chamados Cinco Homens Judiciosos, o qual, com as suas figuras correspondentes no Tesouro, Defesa, gabinete do primeiro-minístro e Interior, oferecia o seu parecer ao chefe do governo em questões de importância capital.

            - A respeito do raio do documento que os seus rapazes trouxeram da Rússia, o mês passado... - começou Parfitt.

            - O Manifesto Negro.

            - Sim. Um título apropriado. A idéia foi sua, Henry?

            - Do meu chefe de estação em Moscou. Pareceu-me muito apropriado.

            - Sem dúvida. Negro não é o nome mais correto. Enfim, nós o partilhamos com os americanos, mas com mais ninguém. E foi mostrado ao nível mais elevado possível. O nosso amo e senhor referia-se ao secretário dos Assuntos   Estrangeiros britânico leu-o, antes de partir para os prazeres da Toscana, em férias. Assim como o secretário de Estado americano, desnecessário salientar que a indignação foi universal.

            - Vamos reagir, Reggie?

            - Reagir...  Bem, há um problema. Os governos reagem oficialmente aos seus homólogos e não a políticos da oposição estrangeiros. Do ponto de vista oficial, este documento - Parfitt tamborilou com o indicador na cópia do Ministério dos Assuntos Estrangeiros - do  manifesto  em  cima da  mesa  é  quase certo que não existe, apesar de ambos estarmos seguros do contrário. Oficialmente, não se encontra em nosso poder, uma vez que foi indubitavelmente roubado. Receio que, do ponto de vista oficial, repito, não haja nada que qualquer dos governos possa fazer.

            - Isso é oficialmente - murmurou Harry Coombs. - Mas o nosso governo, na sua sem dúvida infinita sabedoria, utiliza o meu serviço precisamente para poder atuar, se a oportunidade se apresenta, oficiosamente.

            - Sem dúvida, Henry, sem dúvida.

            - E decerto se refere a alguma forma de ação encoberta.

            Ante a alusão às duas últimas palavras, a expressão de Sir Reginald indicou que algum insensato abrira uma janela para permitir a entrada de um odor pestilento.

            - Não seria a primeira vez que se verificaria a desestabilização de um maníaco, Reggie. Com a maior discrição. É essa a  nossa maneira de  proceder, como sabe.

            - Mas raramente com êxito, Henry. E é aí que reside o problema. Todos os nossos mestres políticos de ambos os lados do Atlântico parecem dominados pela convicção de que, por encoberto que algo pareça estar agora, acaba por transpirar, mais tarde. Ante o seu profundo desconforto.

            - Os nossos amigos americanos têm a sua sucessão interminável de gates para lhes provocar insônia: Watergate, Irangate, Contragate... E os nossos conterrâneos recordam-se bem de todas aquelas inconfidências, seguidas  de comissões de inquéritos contundentes: acusações no Parlamento, armamento destinado ao Iraque, etc. Está acompanhando o meu raciocínio, Henry?

            - Quer dizer que não têm colhões?

            - Uma maneira rude, mas exata de caracterizar a situação. Você sempre teve um talento especial para colorir uma frase delicada. Não acredito que qualquer dos dois governos sonhe sequer em conceder auxílio econômico ou de qualquer outra natureza a esse homem, se ou quando tomar o poder. Quanto a uma medida ativa, a resposta é um rotundo “não”.

            O subsecretário permanente acompanhou o chefe à porta, e os seus olhos azuis brilhantes enfrentaram os do responsável pelos espiões sem o menor indício de humorismo.

            - E trata-se de um “NÃO” com maiúsculas, Henry.

            Enquanto a limusine o conduzia ao longo dos cais do sonolento rio Tamisa em direção a Vaxhall Cross, Sir Henry Coombs via-se forçado a aceitar a realidade da decisão intergovernamental. Outrora, um aperto de mão bastava, e a discrição era implícita e mantida. Na última década, com as inconfidências oficiais como uma das poucas indústrias em desenvolvimento, somente as assinaturas se consideravam garantias suficientes. E mesmo estas tinham o persistente hábito de reaparecer para martirizar os signatários. Ninguém, em Londres ou Washington, estava disposto a por o seu nome atribuivelmente a uma ordem aos seus serviços secretos, para tomar uma “medida ativa” destinada a impedir o percurso ascendente de Igor Viktorovich Komarov.

 

Vladimir, Julho de 1989

            O acadêmico americano Dr. Philip Peters já entrara na URSS uma vez, aparentemente para satisfazer a paixão inofensiva pelo estudo da arte oriental e antiguidades da Rússia antiga. Não acontecera nada, não fora arqueada uma única sobrancelha com desconfiança.

            Doze meses mais tarde, ainda afluíam mais turistas a Moscou, e o controle revelava-se cada vez mais superficial. A dúvida de Monk consistia em decidir se devia voltar a utilizar a capa do Dr. Peters. Por fim, resolveu fazê-lo.

            A carta do professor Blinov era bem clara. Reunira uma valiosa colheita que abarcava todas as perguntas científicas para as quais os Estados Unidos desejavam obter respostas, numa lista que fora preparada após longas e acaloradas discussões com os níveis mais elevados da academia americana ainda antes de Monk haver procurado o professor no seu quarto em Fairmont, e este levara-a consigo. Agora, achava-se preparado para a satisfazer. O problema consistia em que não lhe seria fácil alcançar Moscou. E despertaria suspeitas.

            Mas como Gorky era outra cidade repleta de instituições científicas e apenas a noventa minutos de trem de Arzamas-16, poderia dirigir-se para lá. Depois de alguns protestos pessoais, o KGB suprimiu a habitual “cauda” para o seguir sempre que abandonava a zona de pesquisas nucleares. De resto, estivera na Califórnia. Por que não em Gorky? Nesse aspecto, recebeu o apoio do comissário político. Sem vigilância, poderia tomar outro trem em direção à cidade das catedrais, Vladimir. Mas nada mais. Teria de estar em casa ao anoitecer. Escolheu o dia 19 de Julho e a galeria ocidental da catedral da Assunção, às doze horas como ponto de encontro.

            Monk estudou a cidade durante duas semanas. Era de origem medieval, famosa por duas magníficas catedrais. A Assunção, a maior, rica em trabalhos de Andrei Rublev, pintor do século XV, e a de São Dimitri, menor.

            O departamento de pesquisas de Langley não conseguiu descobrir qualquer grupo de turistas que visitasse sequer as proximidades de Vladimir na data conveniente. Fazê-lo isoladamente seria arriscado. Finalmente, deparou-se com um grupo de entusiastas da arquitetura eclesiástica da Rússia antiga que se dirigiria a Moscou em meados de Julho, com um deslocamento de trem ao fabuloso Mosteiro da Trindade-São Sérgio, em Zsgorsk, no dia 19. O Dr. Peters passou a ser mais um membro desses turistas.

            Com o cabelo grisalho desgrenhado e o guia colado ao nariz, visitou as admiráveis catedrais do Kremlin durante três dias. No final do terceiro, o cicerone da Intourist mandou-os estar no átrio do hotel às sete e meia da manhã seguinte, a fim de seguirem para Zagorsk.

            Às sete e quinze, o Dr. Peters enviou um bilhete comunicando que sofrera um violento desarranjo gástrico e preferia ficar de cama recompondo-se. Às oito, abandonou discretamente o Metropol, dirigiu-se à estação de Kazan e tomou o trem para Vladimir, onde desceu pouco antes das onze.

            Como esperava, em resultado das investigações a que procedera, lá havia muitos grupos de turistas, pois a cidade das catedrais não continha segredos de Estado e a vigilância aos forasteiros era quase inexistente. Monk comprou um guia e percorreu a catedral de São Dmitri. Às onze e cinquenta, transpôs os trezentos metros que o separavam da Assunção e, sem que o interceptassem, foi admirar as pinturas murais de Rublev, junto da galeria ocidental. De súbito, ouviu tossir discretamente atrás de si. “Se me seguiram, estou perdido”, reflectiu.

            - Olá,  professor. Como está? - murmurou calmamente, sem desviar os olhos das pinturas.

            - Estou bem, mas nervoso - respondeu Blinov. - A quem o diz!

            - Tenho uma coisa para você.

            - E eu uma para você. Uma longa carta de Zhenya. E outra de Ivan, com alguns desenhos que fez na escola. A propósito, parece que herdou os miolos do pai. O professor de matemática diz que está adiantado para a idade.

            Apesar de apreensivo, com a fronte perlada de gotas de transpiração, o professor sorriu de prazer.

            - Siga-me devagar - indicou Monk - e continue admirando as pinturas.

            Um grupo de turistas franceses afastou-se e eles ficaram sós. O americano entregou ao cientista várias cartas que trouxera da América e uma segunda lista preparada pelos físicos nucleares daí, que ele guardou no bolso do casaco. O que tinha para Monk era muito mais volumoso  um maço de documentos com mais de dois centímetros de espessura que copiara em Arzamas-16.

            Este último não ficou satisfeito com a idéia, mas não havia qualquer alternativa e dissimulou o material dentro da camisa. Em seguida, estendeu a mão ao russo e sorriu.

            - Coragem, Ivan Yevdokimovich, que falta pouco. Só mais um ano.

           Os dois homens separaram-se. Blinov regressou a Gorky e daí à gaiola dourada e Monk à estação, para tomar o trem para Moscou. Voltara a deitar-se, depois de depositar a encomenda na embaixada dos Estados Unidos, antes dos companheiros da excursão voltarem de Zagorsk. Todos se mostraram curiosos com o estado da indisposição que o afetara e garantiram-lhe que perdera um passeio excelente.

            A 20 de Julho, o grupo vôou de regresso a Nova Iorque, passando sobre o Pólo Norte. Na mesma noite, outro “jato” aterrou no aeroporto Kennedy, mas procedente de Roma. Transportava Aldrich Ames, que regressava após uma estada de três anos na Itália, para reatar a espionagem para o KGB em Langley. Entretanto, enriquecera com mais dois milhões de dólares.

            Antes de abandonar a capital italiana, memorizara e queimara uma lista de tarefas procedente de Moscou. Uma das principais consistia em descobrir mais agentes controlados pela CIA no interior da URSS, com particular incidência nos funcionários ou cientistas. A carta continha um pós-escrito: “Concentre-se no homem chamado Jason Monk”.

 

            Agosto não é um bom mês para os clubes de gentlemen de St Jame’s, Piccadilly e Pall Mall. É o mês das férias, em que a maioria do pessoal deseja ausentar-se com a família e grande parte dos sócios seguiu para a sua propriedade ou para o estrangeiro.

            Muitos fecham, e os seus membros que permanecem na capital por uma ou outra razão verificam que têm de se contentar com frequentar restaurantes a que não estão habituados. Todavia, no último dia de Agosto, o White’s reabria, e foi aí que Sir Henry Coombs decidiu almoçar com um homem quinze anos mais velho e um dos seus predecessores no cargo de chefe do Secret Intelligente Service.

            Com setenta e quatro anos de idade, havia quinze que Sir Nigel Irvine abandonara a atividade. Os primeiros dez desse período passara-os em “algo na City”, o que equivalia a dizer que, à semelhança de outros antes e depois, investira a sua experiência do mundo, os conhecimentos dos corredores do poder e a sua astúcia natural numa série de diretorias que lhe haviam permitido economizar algo para a velhice.

            Quatro anos antes daquele almoço, recolhera finalmente à sua residência perto de Swanage, na ilha de Purbeck, condado de Dorset, onde escrevia, lia e passeava na costa silvestre sobranceira ao Canal da Mancha e, de vez em quando, deslocava-se a Londres de trem para visitar velhos amigos. Esses mesmos amigos, e alguns muito mais jovens, reconheciam que ainda era enérgico e ativo, e os olhos azuis aguados encobriam um espírito aguçado como uma lâmina de barbear.

            Aqueles que o conheciam melhor sabiam que a cortesia antiquada que demonstrava para todos aqueles que encontrava dissimulava uma vontade de ferro que, em certos casos, podia se converter em crueldade total. Henry Coombs, apesar da diferença de idades, conhecia-o muito bem.

            Provinham ambos da tradição de especialistas da Rússia. Após a aposentadoria de Irvine, a chefia do SIS recaíra em dois orientalistas e um arabista sucessivamente antes de Henry Coombs assinalar o regresso a um dos que desgastaram os dentes na luta contra a Uniião Soviética. Quando a chefia coubera a Nigel Irvine, Coombs revelara-se um operador brilhante em Berlim, medindo forças com a rede do KGB na Alemanha Oriental e o próprio mestre-espião germânico Marcus Wolf.

            Irvin deixou a conversa permanecer no nível das banalidades, enquanto se encontravam no concorrido e ruidoso bar do piso térreo, mas não seria humano se não se perguntasse a razão pela qual o seu antigo protegido lhe pedira que efetuasse a viagem de trem desde Dorset, para suportar o calor sufocante de Londres num simples almoço. Somente quando se encontraram no primeiro piso, sentados a uma mesa junto de uma janela sobranceira a St Jame’s Street, Coombs resolveu mencionar o objetivo do convite.

            - Está acontecendo uma coisa na Rússia.

            - Várias, mesmo, e nenhuma delas boa, segundo o que os jornais revelam.

            Esboçou um sorriso, pois sabia que o seu antigo chefe dispunha de fontes de informação muito melhores que as da Imprensa.

            - Não aprofundarei o assunto - respondeu. - Pelo menos, aqui e agora. Apenas os contornos.

            - Com certeza - assentiu Irvine.

            Coombs forneceu-lhe uma resenha dos eventos nos últimos seis meses, em Moscou e Londres. Sobretudo em Londres.

            - Eles não tencionam tomar qualquer medida, e trata-se de uma decisão final acrescentou. Os acontecimentos seguirão o seu curso, por lamentáveis que venham a apresentar-se. Pelo  menos,  foi  assim  que o nosso prezado secretário dos Assuntos Estrangeiros me expôs a situação, há um par de dias.

            - Está exagerando os meus méritos e influência se pensa que posso fazer alguma coisa para incutir um pouco de dinamismo nos mandarins de King Charles Street. Estou velho e aposentado. Como diz o poeta, participei em todas as corridas e consumi todas as paixões.

            - Tenho dois documentos que gostaria que visse - insistiu Coombs. - Um é o relatório completo de tudo o que aconteceu, até onde pudemos discernir, desde o momento em que um velho estúpido se apoderou de um processo do gabinete do secretário particular de Komarov. Poderá verificar por si mesmo se concorda com a nossa decisão que o Manifesto Negro é autêntico.

            - E o outro?

            - O próprio manifesto.

            - Obrigado pela confiança. Que quer que faça com eles?

            - Leve-os para casa, leia-os e trace conclusões.

            Depois de consumirem o pudim de arroz com cobertura de geleia, Sir Henry Coombs pediu café e dois cálices de Porto.

            - Mesmo que concorde com tudo o que acaba de me dizer, que espera de mim?

            - Estava pensando... Bem, aquelas pessoas com as quais creio que se encontrará nos Estados Unidos na próxima semana...

            - Droga, Henry! Nem você devia saber disso.

            Encolheu os ombros com simulada indiferença, embora se congratulasse intimamente pelo fato de seu palpite haver funcionado. O Conselho se reuniria na verdade, e Irvine participaria nele.

            - Para recorrer a uma expressão comum, tenho espiões em toda a parte.

            - Nesse caso, alegra-me verificar que as coisas não mudaram muito desde os meus tempos - redarguiu Irvine. - Bem, suponhamos que me vou encontrar com alguém nos Estados Unidos. E daí?

            - Deixo a resposta a essa pergunta ao seu critério. Se achar que os documentos devem ser ignorados, queime-os. Por outro lado, se decidir que merecem a travessia do Atlântico, não hesite em levá-los. A escolha é sua.

            - Que intrigante, meu Deus!

           Coombs extraiu um envelope fechado da pasta e entregou-o ao interlocutor, que o guardou na sua. Mais tarde, separaram-se no átrio e Sir Nigel Irvine meteu-se num táxi em direção à estação, para tomar o trem de volta a Dorset.

 

Langley, Setembro de 1989

            Quando Aldrich Ames voltou para Washington, a sua carreira de nove anos de espionagem para o KGB ainda dispunha de quatro e meio para chegar ao fim.

            Forrado de dinheiro, iniciou a nova vida com a aquisição de uma casa de meio milhão de dólares e um Jaguar. Isto com um salário anual de cinquenta mil. Mas ninguém percebeu nada de estranho.

            Como dirigira a seção soviética na missão de Roma, e não obstante o fato da capital italiana estar englobada na Europa Ocidental, ele continuara a fazer parte da Divisão SE. Do ponto de vista do KGB, revestia-se de importância vital que permanecesse onde, com o acesso apropriado, pudesse voltar a consultar os 301 processos.

            Nesse aspecto, deparou-se com um problema importante. Milton Bearden também acabava de regressar a Langley, depois de orientar a guerra encoberta contra os soviéticos no Afeganistão.

            A primeira coisa que fez como novo chefe da Divisão SE foi tentar livrar-se de Ames, empreendimento em que, à semelhança de outros antes dele, viu os esforços frustrados.

            Ken Mulgrew, burocrata quintessencial, ascendera a um cargo que o colocava à testa do departamento do pessoal. Como tal, exercia particular influência nas colocações dos funcionários. Ele e Ames não tardaram a reatar a amizade alcoólica, com o segundo a poder permitir-se agora libações alimentadas pelo melhor no campo das bebidas. Foi Mulgrew que frustrou Bearden, mantendo o amigo na Divisão SE.

            Entretanto, a CIA computadorizada massas das suas fichas mais secretas, com o que confiara os segredos mais íntimos à ferramenta mais insegura jamais inventada. Em Roma, Ames empenhara-se em se educar ao ponto de não ser analfabeto em assuntos de computadores. Bastava-lhe ter acesso aos códigos para extrair elementos dos 301 processos sem se levantar da mesa. Não voltariam a ser necessários sacos de plástico cheios de material. E tão pouco tornaria a ter de preencher impressos e assiná-los para requisitar as fichas mais confidenciais.

            O primeiro cargo que Mulgrew conseguiu obter para o amigo foi o de chefe europeu do grupo de operações externas da Divisão Soviética. Estas, porém, só diziam respeito aos “bens” da URSS no exterior do país ou do bloco soviético, pelo que não incluíam Lisandro, o lutador, espartano, que se encontrava em Berlim Oriental à testa do Diretorado K do KGB, ou Orion, o caçador, no seio do Ministério da Defesa Soviético em Moscou. Delfos, o oráculo, achava-se nas esferas mais altas do Ministério dos Assuntos Estrangeiros russo, e o quarto, aquele que queria sobrevoar o Atlântico e tinha o nome de código Pégaso, permanecia numa unidade de investigação nuclear selada entre Moscou e os Montes Urais.

            Quando Ames se serviu prontamente da sua posição para proceder a investigações sobre Jason Monk, agora seu superior como GS-15, enquanto ele continuava em GS-14, não apurou nada de concludente. Não obstante, a ausência de referências ao colega em operações externas indicou-lhe uma coisa: quem Monk controlava encontrava-se no interior da URSS. Scuttlebutt e Mulgrew revelaram-lhe o resto.

            Circulava a convicção geral que Jason Monk era a melhor e última esperança da divisão. Constava igualmente que se tratava de um lobo solitário, que trabalhava à sua maneira, corria os riscos inevitáveis e há muito que teria sido relegado para segundo plano, se não se verificasse um pequeno detalhe: obtinha resultados numa organização que cada vez os conseguia em números menores.

            Por seu turno, Mulgrew não o via com bons olhos. Irritava-o a sua independência, a recusa de preencher impressos em triplicado e, sobretudo, a aparente imunidade às queixas de pessoas como ele próprio.

            Ames explorava esse ressentimento. Dos dois, era ele que aguentava melhor a bebida. Conseguia continuar a raciocinar com lucidez, apesar dos vapores do álcool, enquanto Mulgrew se tornava falador.

            Assim, a altas horas de uma noite de Setembro de 1989, quando o assunto acudiu mais uma vez ao espírito do solitário virginiano, Mulgrew proclamou que ouvira dizer que Monk controlava um agente que era “uma figura importante recrutada um par de anos atrás na Argentina”.

            Não havia qualquer identidade nem nome de código. No entanto, o KGB podia inteirar-se do resto. A figura em causa devia corresponder a um homem de nível de segundo secretário ou mais elevado. Para “um par de anos atrás”, estipularam um período entre dezoito meses a três anos.

            As diligências promovidas entre os diplomatas colocados em Buenos Aires proporcionaram uma lista de dezessete possibilidades. A informação de Ames que o homem não fora reconduzido no estrangeiro reduziu-a a zero.

            Ao contrário da CIA, a contra-espionagem do KGB não se prendia com escrúpulos excessivos e começou a procurar indícios de acesso repentino a dinheiro, um estilo de vida melhorado e até a compra de um pequeno apartamento...

           

            Fazia um tempo estupendo, naquele primeiro dia de Setembro, com uma brisa proveniente do Canal e nada entre os penhascos e a distante costa da Normandia, além das cristas das ondas.

            Sir Nigel percorria a passagem no topo entre Durlston Head e St Alban’s Head e absorvia o ar carregado de maresia. Era o seu passeio favorito desde longa data e constituía um tônico após os gabinetes saturados de fumo de tabaco ou uma noite examinando documentos confidenciais.

            Verificava que lhe desanuviava as idéias, concentrava o pensamento, varria o irrelevante e o deliberadamente enganador e realçava os contornos do núcleo essencial do problema.

            Passara a noite debruçado sobre os dois documentos recebidos de Henry Coombs e ficara chocado com o seu conteúdo. O trabalho desenvolvido desde que Célia Stone vira um indivíduo andrajoso atirar algo para dentro do seu carro merecia-lhe inteira aprovação. Ele próprio não teria procedido de outro modo.

            Recordava-se vagamente de Jock MacDonald, um jovem promissor que fazia recados na Century House. Tudo indicava que singrara pelo bom caminho. E Sir Nigel aceitava a sua conclusão: o Manifesto Negro não era falso nem o produto de uma brincadeira de mau gosto.

            Concentrou as reflexões no documento propriamente dito. Se o demagogo russo tencionava realmente executar aquele programa, aconteceria algo que o faria regressar a uma hedionda recordação da sua juventude.

            Tinha dezoito anos, em 1943, quando finalmente fora admitido no Exército Britânico e enviado para Itália. Ferido no assalto ao Monte Cassino, regressara à pátria inválido e, apesar dos seus esforços para reintegrar uma unidade de combate, tinha sido transferido para os serviços secretos militares.

            Fora com a patente de tenente, pouco depois de completar vinte anos, que cruzara o Reno com o Oitavo Exército e se deparara aquilo que ninguém da sua idade ou de qualquer outra devia jamais ver-se forçado a contemplar. Foi chamado por um abalado major de infantaria para observar algo que os seus homens haviam encontrado pelo caminho. O campo de concentração de Bergen-Belsen deixara pessoas mais velhas do que ele a contas com pesadelos que nunca se libertariam.

            Começou a percorrer a passagem para o interior em direção à aldeia de Acton, de onde seguiria para Langton Madravors. Que se deveria fazer? E com que esperanças de exercer algum efeito positivo? Queimar os documentos e ignorar o assunto por completo? Era uma solução tentadora, muito tentadora, mesmo. Ou levá-los consigo aos Estados Unidos e expor-se porventura ao ridículo dos patriarcas com os quais passaria uma semana? Uma opção intimidativa.

            Abriu o portão do jardim e atravessou a pequena área onde Penny cultivava frutas e vegetais no Verão. Ele sabia que Henry Coombs não voltaria a mencionar o assunto, não lhe perguntaria o que fizera, nem procuraria inteirar-se do eventual desenvolvimento do assunto. Na verdade, ninguém conheceria jamais a proveniência dos documentos. Com efeito, ninguém aludiria ao caso. Era uma atitude que fazia parte do código.

            A esposa chamou-o da janela da cozinha.

            - Até que enfim! O chá está na sala. Fui à aldeia e trouxe sonhos e geléia.

            - Ótimo. Adoro os sonhos.

            - Tenho obrigação de o saber.

            Cinco anos mais jovem, Penelope Irvine fora uma beldade deslumbrante, requestada por uma dezena de homens abastados. No entanto, por razões só dela conhecidas, escolhera o impecunioso funcionário dos serviços secretos que lhe lia poesia e ocultava por trás de uma fachada de modéstia um cérebro de computador.

            Houvera apenas um filho, há muito falecido nas Malvinas, em 1982, e eles esforçavam-se por recordá-lo o mínimo possível, exceto no aniversário e na data da morte.

            Ao longo de trinta anos no serviço secreto, ela esperara pacientemente pelo marido, enquanto ele dirigia os movimentos dos seus agentes no interior da URSS ou aguardava ao frio nas sombras do Muro de Berlim, que algum homem corajoso, embora assustado, acudisse ao posto de fiscalização para ingressar em Berlim Ocidental. Quando regressava para casa, o fogo estava sempre aceso e havia sonhos para o chá. Aos setenta e quatro anos, Sir Nigel ainda a achava linda e amava-a profundamente.

            - Vai  partir de novo - aventurou ela, vendo-o levar a xícara aos lábios pensativamente, com o olhar fixo nas chamas.

            - Penso que o devo fazer.

            - Por quanto tempo?

            - Bem, um par de dias em Londres para os preparativos e depois uma semana na América. A partir daí, não sei. Talvez não tenha de voltar a ausentar-me.

            - Entretanto, ficarei aqui. Há muito que fazer, no jardim. Telefona, quando puder?

            - Com   certeza. - Ele fez uma pausa e murmurou: - Aquilo não pode voltar a acontecer.

            - É claro que não. E agora, tomemos o chá sossegados.

 

Langley, Março de 1990

            Foi a estação da CIA em Moscou que deu o alarme em primeiro lugar. O agente Delfos cortara o contato. Desde Dezembro anterior, Jason Monk, sentado à mesa, lia os telegramas decodificados que não paravam de chegar. Primeiro, ficou preocupado, mas depois agitado.

            Se Kruglov se encontrava bem, estava infringindo todas as regras. Porquê, por duas vezes, a CIA radicada em Moscou fizera as marcas apropriadas para indicar que enchera um “depósito” com algo para Delfos, porém o alerta fora ignorado em ambas as ocasiões. Teria abandonado a cidade e sido transferido para o estrangeiro?

            Nessa eventualidade, devia ter enviado o necessário indício tranquilizador correspondente a “Estou bem”. As consultas às páginas de anúncios das habituais publicações resultaram infrutíferas.

            Em Março parecia que Delfos se encontrava completamente incapacitado por um ataque cardíaco, outra enfermidade qualquer ou um acidente. Ou pela morte. A menos que tivesse sido “apanhado”.

            Para Monk, com a sua mente desconfiada, havia uma dúvida sem resposta. Se o homem fora preso e interrogado, revelaria tudo. A resistência seria fútil e se limitaria a prolongar a tortura.

            Por conseguinte, indicaria os lugares dos receptáculos de cartas mortas e as marcas de giz que alertavam a CIA para a necessidade de ir recolher uma encomenda de informação.

            Nesse caso, como se explicava que o KGB não utilizasse essas marcas para surpreender um diplomata americano em flagrante? Seria a medida óbvia a tomar. Um trunfo para Moscou numa altura em que tanta falta lhe fazia, pois tudo o resto corria bem para os Estados Unidos.

            O império soviético na Europa Oriental desmoronava-se. A Romênia assassinara o ditador Ceaucescu, a Polônia libertara-se, a Checoslováquia e a Hungria achavam-se em revolta e o Muro de Berlim fora derrubado em Novembro. Surpreender um americano em flagrante delito de espionagem em Moscou contribuiria para atenuar a sequência de humilhações que o KGB estava sofrendo. Não obstante, não acontecia nada nesse sentido.

            Para Monk, isso significava uma de duas coisas. Ou o desaparecimento total de Kruglov era um acidente, que se explicaria mais tarde, ou o KGB estava protegendo uma fonte.

           

            Os Estados Unidos são um país rico em muitas coisas, não sendo das menos importantes as organizações não-governamentais, mais conhecidas pela sigla NGO*. São aos milhares e variam das destinadas a conceder subsídios para investigação em inúmeros tópicos às de financiamento de empresas. Existem também as que se consagram à caridade ou a mera propaganda de uma variedade de tendências ou à corrosão de outras.

            Só em Washington, existem 1200 NGO, enquanto Nova Iorque alberga mais um milhar. E todas dispõem de fundos abundantes e dois fatores comuns: admitem a sua existência e possuem uma sede em algum lugar. com uma excepção.

            Talvez devido ao seu reduzido e seleto grupo de sócios e invisibilidade total, o Conselho de Lincoln era, no Verão de 1999, provavelmente a mais influente de todas.

            Numa democracia, o poder equivale a influência. Somente numa ditadura o poder puro e simples para prender, sequestrar, torturar, julgar e condenar em segredo existe dentro da lei. Por conseguinte, o poder não eleito numa democracia pode influir no funcionamento da máquina eleita, o que se faz através da mobilização da opinião pública, campanhas na mídia, pressão nos corredores ou contribuições financeiras regulares. Todavia, na sua forma mais pura, essa influência pode consistir simplesmente em recomendações discretas aos que exercem cargos eleitos de uma fonte de experiência, integridade e sabedoria indiscutíveis. Dá-se-lhe o nome de “a palavra discreta”.

            O invisível Conselho de Lincoln, numa negação à sua própria existência, era um grupo auto-suficiente dedicado à contemplação de assuntos do momento, análise e discussão e um acordo final sobre uma resolução. Baseado na qualidade dos seus componentes e capacidade para obter acesso aos próprios pináculos do governo eleito, tinha porventura mais influência real do que qualquer outra NGO ou um punhado delas juntas.

            O seu carácter era anglo-americano e as origens radicavam-se no profundo sentido de aliança na adversidade que remonta à Primeira Guerra Mundial, embora o Conselho só iniciasse a sua existência no princípio dos anos oitenta, em resultado de um jantar num restrito clube de Washington, logo após a Guerra das Malvinas.

            A admissão de sócios só se efetuava por convite e era limitada àqueles que os outros membros consideravam possuidores de determinadas qualidades. Entre estas, figuravam uma longa experiência, probidade absoluta, sagacidade, discrição total e patriotismo comprovado. Além disto, os que exerciam um cargo público tinham de o abandonar, para que não pudesse surgir a questão de uma intercedência especial, enquanto os que pertenciam ao setor privado podiam permanecer ao leme das respectivas empresas. Embora nem todos eles fossem espectacularmente ricos, havia pelo menos dois destes últimos cujas fortunas pessoais se consideravam da ordem dos mil milhões de dólares.

            O setor privado abarcava a experiência no comércio, indústria, banca, finança e ciência, enquanto o público incluía competência política, diplomacia e funcionalismo público.

            No verão de 1999, havia seis membros britânicos, entre os quais uma mulher, e trinta e quatro americanos  cinco do sexo feminino.

            Em virtude da experiência do mundo que se esperava que incutissem nas discussões colegiais, tendiam a ser entre de meia-idade e idosos. Poucos tinham menos de sessenta anos de experiência da vida e o mais velho já atingira os oitenta e um.

            O nome do Conselho não fora inspirado no daquela cidade britânica, mas do maior presidente dos Estados Unidos, e o etos da organização podia encontrar-se nas suas palavras que “um governo do povo, pelo povo e para o povo não se varrerá da Terra”.

            Reunia-se uma vez por ano, por acordo alcançado através de conversas telefônicas de natureza inocente e num lugar de particular privacidade. Em cada caso, o anfitrião era um dos membros mais abastados, que nunca declinava a honra.

            No recanto a noroeste do Estado de Wyoming, há um vale conhecido simplesmente por Jackson Hole, em homenagem ao primeiro caçador furtivo que conseguiu sobreviver a um Inverno, naquela área. A norte da pequena estância de esqui de Jackson, a Rodovia 191 segue quase em linha reta até Moran Junction, passa diante do aeroporto e continua em direção a Yellowstone. Um pouco além do aeroporto, situa-se a aldeia de Moose, onde uma estrada secundária se desvia, a fim de permitir o acesso a Jenny Lake.

            A oeste deste último, nos contrafortes dos montes Tetons, há dois lagos: o Bradley, alimentado pela torrente do Garnet Canyon, e o Taggart, pelo Avalanche Canyon, os quais só são acessíveis aos montanhistas. Nas terras entre ambos, um financeiro radicado em Washington e chamado Saul Nathanson construíra um espaçoso rancho de férias.

            A sua localização garantia privacidade absoluta ao proprietário e respectivos convidados. com efeito, estendia-se de lago a lago em cada lado, com a montanha escarpada ao fundo.

            A 7 de Setembro, os primeiros convivas chegaram a Denver, Colorado, onde foram recebidos pelo Grumman particular de Nathanson e transportados ao aeroporto de Jackson. Longe do terminal, transferiram-se para o seu helicóptero, para cobrirem o trajecto de cinco minutos até ao rancho. Como o contingente britânico se sujeitara aos preceitos de entrada no país na Costa Oriental, não necessitou fazer escala por Denver e mudou de avião longe de olhares indiscretos.

            O rancho dispunha de vinte cabinas, cada uma com dois quartos e uma sala comum. As excelentes refeições eram servidas no largo pavilhão que constituía o ponto focal do complexo. A seguir, as mesas eram levantadas e preparadas para permitirem a realização de reuniões plenárias.

            O pessoal pertencia a Nathanson e era irrepreensivelmente discreto e preparado para o efeito. Como medida de precaução adicional, seguranças particulares que se faziam passar por campistas rodeavam o rancho no lado oposto à montanha para desencorajar algum eventual curioso.

            A conferência de 1999 do Conselho de Lincoln durou cinco dias e, no final, ninguém se inteirou que os convidados tinham chegado e, mais tarde, partido.

            Na primeira tarde, Sir Nigel Irvine desfez a mala, tomou banho de chuveiro, vestiu roupa mais informal e foi sentar-se no terraço da cabina que partilharia com um antigo secretário de Estado americano. Daquele posto de observação, avistava alguns dos outros convidados que desentorpeciam as pernas. Havia caminhos aprazíveis para passear entre renques de abetos, faiais e pinheiros, ou à beira dos lagos.

           Descortinou o antigo secretário dos Assuntos Estrangeiros britânico e ex-secretário-geral da NATO, Lorde Carrigton, que caminhava ao lado do banqueiro Charles Price, um dos embaixadores americanos mais populares e bem sucedidos jamais enviados ao Tribunal de St James. Irvine fora chefe do Serviço Secreto quando Peter Carrington se encontrava no Ministério dos Assuntos Estrangeiros e era, por conseguinte, seu superior hierárquico. Um pouco mais longe, o anfitrião, Saul Nathanson, sentava-se num banco ao sol com o banqueiro de investimentos americano e antigo procurador-geral, Elliot Richardson.

            A um lado, Lorde Armstong, outrora secretário do primeiro-ministro e chefe do Funcionalismo Público, batia à porta da cabina onde Lady Thatcher ainda desfazia as malas.

            Imobilizou-se mais um helicóptero na faixa de aterragem, para depositar o antigo presidente George Bush, esperado pelo ex-secretário de Estado, Henry Kissinger. Junto de uma das mesas perto do pavilhão central, uma jovem uniformizada pousava uma chaleira diante de mais um antigo embaixador, o britânico Sir Nicholas Henderson, ladeado pelo financeiro e banqueiro britânico Sir Evelyn de Rothschild.

            Nigel Irvine consultou o calendário para os cinco dias da conferência. Não estava agendado nada para aquela noite. Na manhã seguinte, o grupo se dividiria, como de costume, em três comissões: geopolítica, estratégica e econômica  que se reuniriam separadamente durante dois dias. O terceiro seria dedicado à divulgação dos resultados das suas deliberações e respectiva discussão. O quarto se destinaria a sessões plenárias. E, no quinto e último, os trabalhos obedeceriam ao tema de Medidas Futuras e Recomendações.

 

Viena, Junho de 1990

            Em Dezembro anterior, as funções de Ames nas operações externas da Divisão Soviética tinham sofrido novo abalo.

            Em seguida, recebeu a terceira incumbência desde que regressara de Roma, como chefe de seção das operações checas. Mas isso não lhe permitia o acesso aos códigos do computador para invadir o coração secreto dos 301 processos o que continha as descrições dos “bens” da CIA que atuavam no seio do bloco soviético.

            Decidiu protestar junto de Mulgrew, alegando que achava a medida injusta, pois dirigira outrora todo o departamento da contra-espionagem daquele setor. Além de mais, necessitava obter confirmação dos “bens” da CIA, que, embora russos, haviam trabalhado na Checoslováquia. Por fim, Mulgrew prometeu que tentaria ajudá-lo.

            Em Maio, forneceu ao amigo o código de acesso. A partir de então, da sua mesa na Seção Checa, Ames pôde devassar os arquivos até que chegou ao intitulado ”Bens” de Monk.

            Em Junho de 1990, deslocou-se de avião a Viena para mais um encontro com “Vlad”, aliás coronel Vladimir Mechulayev. Desde o seu regresso a Washington, fora considerado inseguro que se encontrasse com mais diplomatas soviéticos, devido ao perigo da vigilância do FBI. Daí a escolha de Viena para a reunião.

            Durante esta, embriagou-se a tal ponto que, embora combinassem novo encontro para Outubro, também em Viena, estabeleceu-se-lhe confusão no espírito e acudiu a Zurique.

            Em Junho, porém, manteve-se suficientemente sóbrio para arrecadar um maço substancial de notas de banco e deslumbrar Mechulayev, ao fornecer-lhe três descrições.

            Uma referia-se a um coronel do exército, provavelmente do GRU, agora colocado no Ministério da Defesa em Moscou, mas recrutado no Oriente Médio em fins de 1985. A segunda dizia respeito a um cientista que vivia numa cidade isolada de segurança máxima e iniciara o recrutamento na Califórnia. No terceiro caso, tratava-se de um coronel do KGB, recrutado fora da URSS, que figurava nos livros nos últimos seis anos, no momento no interior do bloco soviético, mas não em território nacional, e falava espanhol.

            Três dias mais tarde, de volta à sede do Primeiro Diretorado Principal, em Yaizenevo, Mechulayev iniciava a caçada.

           

            “Não ouvem a voz dela transportada pelo vento da noite, meus irmãos e irmãs? Não percebem a sua chamada? Porventura vocês, seus filhos, não ouvem a voz da nossa amada Mãe Rússia? Mas eu a escuto perfeitamente, meus amigos. Os seus suspiros chegam até mim através das florestas, os seus soluços ao longo das neves. ”Por que me fazem isto?”, pergunta. ”Será que ainda não fui traída suficientemente? Não sangrei bastante por vocês? O meu sofrimento não chega, para que procedam assim comigo? Por que me vendem como uma prostituta nas mãos de estrangeiros e desconhecidos, que me debicam o corpo flagelado como aves de rapina?”...

 

            A tela erguida ao fundo do vasto pavilhão que formava o principal centro de reuniões do rancho era o maior disponível. O projetor situava-se no lado oposto da sala.

            Quarenta pares de olhos estavam cravados na imagem do homem que se dirigia a um comício em Tkhovo, no início daquele Verão, enquanto a estentórica oratória russa se elevava e baixava, a voz do intérprete sobreposta na banda sonora em abafado contraponto.

            “Sim, meus irmãos, sim, minhas irmãs, nós a ouvimos. Os homens de Moscou, com os seus espessos casacos de peles e gorros, não se dão conta. Os estrangeiros e a escória de criminosos que lhe devoram o corpo tão pouco. Mas nós ouvimos bem a nossa mãe que nos chama no meio da sua dor, porque somos o povo da Terra Grandiosa”.

            O jovem realizador cinematográfico, Litvinov, executara um trabalho brilhante. Inserira no filme passagens de uma natureza patética comovente: uma jovem mãe loura, com o seu bebê nos braços, contemplando o pódio com uma expressão extática, um soldado desesperadamente bonito de rosto lacrimejante, um amargurado trabalhador da terra, com a foice pousada no ombro e o preço de labuta árdua de longos anos gravado nas faces.

            Ninguém podia saber que as cenas intermitentes tinham sido filmadas independentemente, com verdadeiros atores.

            Igor Komarov alterou a voz de quase um rugido para pouco mais que um murmúrio, mas os microfones captaram-no e fizeram-no ecoar por todo o estádio. “Não surgirá ninguém? Ninguém avançará para proclamar: Basta! não acontecerá! Um pouco mais de paciência, meus irmãos da Rússia, aguardem mais um pouco, filhas da rodina”…

            O tom voltou a aumentar de volume, percorrendo todas as escalas, de um sussurro até quase um grito.

            “Surjo eu, querida mãe! Sim, eu, Igor, teu filho, avanço para”...

            As palavras finais quase se perderam, pois a multidão irrompeu em uníssono na aclamação.

            “KOMAROV!  KOMAROV!”

            O projetor foi desligado e a imagem extinguiu-se. Seguiu-se uma pausa e um suspiro coletivo no instante imediato. Às luzes da sala acenderam-se e Nigel Irvine aproximou-se da cabeceira da longa mesa retangular de refeitório de pinho do Wyoming.

            - Julgo que todos compreenderam o que acabam de ver - proferiu em tom pausado. - Era Igor Viktorovich Komarov, líder da União das Forças Patrióticas, o partido que provavelmente ganhará as eleições de Janeiro e o colocará na presidência. Como observaram, é um orador de poder de persuasão excepcional  e possui indiscutivelmente um enorme carisma. Também não devem ignorar que, na Rússia, oitenta por cento do poder real está concentrado nas mãos do presidente. Desde a  época de Ieltsin, as suas limitações, como acontece nas nossas sociedades, foram abolidas. O presidente russo dos tempos atuais pode governar mais ou menos como lhe agrada e promulgar, por decreto, todas  as  leis que  desejar. O que pode incluir a restauração do Estado de partido único.

            - Atendendo à situação em que o país se encontra, seria uma  idéia assim tão má? - argumentou uma antiga embaixadora dos Estados Unidos junto das Nações Unidas.

            - Talvez não, minha senhora - concedeu Irvine. - Mas não convoquei a presente sessão para discutir o possível curso de eventos depois da eleição de Igor Komarov. Pretendo, ao invés, expor ao Conselho aquilo que penso ser a prova insofismável do rumo que os eventos tomarão. Trouxe de Inglaterra dois relatórios de que, aqui, no Wyoming, mandei tirar trinta e nove cópias.

            - De fato, estranhei que tivesse requisitado tanto papel - declarou Saul  Nathanson, com um sorriso malicioso.

            - Desculpe ter produzido um grande desgaste da sua fotocopiadora, Saul, mas não quis trazer quarenta reproduções de cada documento através do Atlântico. Não lhes peço que as leiam agora, mas que o façam mais tarde, a sós. Comecem pelo intitulado “Verificação” e depois debrucem-se sobre o Manifesto Negro. Finalmente, devo esclarecer que já morreram três homens por causa desse texto. Os dois documentos são tão ultraconfidenciais, que me vejo obrigado a pedir-lhes que os restituam para serem destruídos pelo fogo antes de eu abandonar este recinto.

            Toda a vontade de ironizar desaparecera, quando os membros do Conselho de Lincoln receberam as respectivas cópias e recolheram aos seus aposentos. Ante a perplexidade do pessoal incumbido de servir as refeições, não apareceu ninguém para jantar. Todos pediram que o levassem aos quartos.

 

Langley, Agosto de 1990

            As notícias provenientes das estações da CIA no interior do bloco soviético eram más, com tendência para se agravarem. Em Julho, tornara-se óbvio que acontecera alguma coisa a Orion, o caçador.

            Na semana anterior, não comparecera ao “roçar” de rotina, fato que acontecia pela primeira vez.

            Chama-se “roçar” a uma situação que em geral não compromete ninguém. Num momento dado, por acordo mútuo, um dos dois percorre uma rua, podendo ou não ser seguido. De repente, salta para fora do passeio e entra na porta de um café ou restaurante. Qualquer lugar concorrido serve. No instante anterior à entrada, o outro homem paga a conta, levanta-se e encaminha-se para a porta e, sem qualquer contato visual, roçam-se entre si. Uma mão introduz um embrulho de dimensões superiores a uma caixa de fósforos no bolso lateral do casaco do outro. Ambos prosseguem o seu caminho em sentidos opostos. Se existe uma “cauda”, quando os seguidores transpõem a porta não há nada para ver.

            À parte isto, o coronel Solomin deixara de visitar dois receptáculos de cartas mortas, apesar dos avisos das marcas de giz que havia lá algo para ele.

            A única inferência era que Orion se apagara ou fora apagado por alguém Por outro lado, o sinal vital de emergência não tinha sido ativado. O que quer que tivesse acontecido fora repentino, sem indicação prévia. Um ataque cardíaco, atropelamento ou prisão.

            De Berlim Ocidental proveio a informação que a carta mensal habitual destinada à casa segura na Alemanha Oriental não fora recebida por Pégaso. E também não aparecera nada na seção de anúncios da publicação russa.

            Devido à facilidade crescente do professor Blinov para viajar localmente dentro do território russo, Monk sugerira que enviasse todos os meses uma carta completamente inofensiva para um endereço postal seguro, em Berlim Oriental. Não necessitava sequer de conter mensagens secretas apenas a assinatura, Yuri. Podia depositá-la em qualquer receptáculo fora do recinto vedado a estranhos e nunca se poderia determinar a proveniência, se porventura fosse interceptada.

            Quando o Muro de Berlim ruiu, o velho ardil de “contrabandear” a carta para o Ocidente deixou de ser necessário. Além disso, Blinov fora aconselhado a comprar um par de terriers malhados, atitude que merecera a aprovação geral em Arzamas-16, pois que poderia haver de mais inofensivo para o acadêmico viúvo do que a criação de cães? Todos os meses podia, com perfeita justificativa, enviar um pequeno anúncio para publicação num semanário de Moscou, para informar que dispunha de cachorros para venda, recém-nascidos ou esperados em breve. Ora, esse anúncio deixara de aparecer.

            Entretanto, Monk achava-se dominado por apreensão crescente. Queixou-se aos altos níveis que algo estava errado, mas disseram-lhe que devia aguardar mais algum tempo antes de se alarmar. Tinha de ser paciente, pois o contato decerto acabaria por se restabelecer. Mas a paciência não constituía uma das suas virtudes, nessa situação. Começou a emitir memorandos no sentido que estava convencido da existência de uma fuga de informação em Langley.

            Os dois homens que teriam encarado a sério as suas preocupações haviam se aposentado: Carey Jordan e Gus Hathway. O novo regime, na sua maioria importado desde o Inverno de 1985, mostrava-se simplesmente enfastiado. Entretanto, outra parte da estrutura, a caçada oficial à toupeira, que datava da Primavera de 1986, prosseguia.

           

            - Custa-me acreditar - disse um antigo procurador-geral, quando a discussão plenária principiou, a seguir ao café da manhã.

            - O meu problema é que custa não acreditar - replicou o secretário de Estado, James Baker. - Isto é do conhecimento dos nossos governos, Nigel?

            - Exato.

            - E não pretendem fazer nada?

            Os restantes trinta e nove membros sentados em torno da mesa de reuniões fitavam de olhos arregalados o antigo mestre-espião, como se esperassem que lhes assegurasse que tudo aquilo não passava de um pesadelo que se dissiparia, de uma maneira ou de outra.

            - Segundo o parecer dos altos escalões, não há nada a fazer - explicou Irvine. - Metade do que se encontra no Manifesto Negro podia perfeitamente ter a aprovação de uma boa percentagem do povo russo. Não se supõe que o Ocidente o conhece. Komarov trataria de denunciá-lo como uma falsificação. O efeito poderia consistir em lhe reforçar a posição, - seguiu-se um pesado e ominoso silêncio.

            - Posso dizer uma coisa? - interpôs Saul Nathamson. - Não como anfitrião, mas como um membro vulgar do Conselho. - Fez uma breve pausa. - Há oito anos, eu tinha um filho, que morreu na Guerra do Golfo.

            Registrou-se uma série de inclinações de cabeça de sombria compreensão. Doze dos presentes tinham desempenhado papéis importantes na criação da coligação multinacional que participara na Guerra do Golfo. Na extremidade oposta da mesa, o general Colin Powell fitava o financeiro com intensidade. Em virtude da eminência do pai, ele recebera pessoalmente a notícia que o tenente Tim Nathanson, das Forças Aliadas, tombara durante as horas finais do combate.

            - Se houve algum conforto nessa perda - concedeu Nathanson, foi o de saber que ele morreu lutando contra algo de  horrivelmente  maligno. - Fez nova  pausa, em busca das palavras apropriadas. - Sou suficientemente idoso para acreditar no conceito do mal. E na noção que às vezes pode estar  personificado  em alguém. Ainda não tinha idade para combater na Segunda Guerra Mundial, pois completara oito anos quando terminou. Sei que alguns de vocês   participaram nela. Mas, evidentemente, elucidei-me de tudo mais tarde. Creio que Adolf Hitler era um indivíduo maligno, assim como aquilo que fez.

            Imperava um silêncio total. Os estadistas, políticos, industriais, banqueiros, financeiros, diplomatas e administradores estão habituados a enfrentar os aspectos práticos da vida e compreendiam que escutavam uma declaração profundamente pessoal. Saul Nathanson inclinou-se para a frente e pousou o indicador no Manifesto Negro.

            - Este documento é maligno, assim como o homem que o escreveu. Não estou nos vendo voltar-lhe as costas e permitir que tudo aquilo torne a acontecer.

            Nada alterou a quietude que imperava. Todos sabiam que “aquilo” significava um segundo Holocausto, não simplesmente contra os judeus da Rússia, mas também contra outras minorias étnicas Por fim, o silêncio foi cortado pela antiga primeira-ministra britânica.

            - Concordo. Não há tempo para hesitações.

            Três membros presentes levaram a mão à boca. A última vez que ela empregara aquela frase fora num apartamento em Aspen, Colorado, no dia subsequente ao da invasão do Kuwait por Sadam Hussein. George Bush, James Baker e Colin Powel também se encontravam lá. Aos setenta e três anos, Mrs. Thatcher ainda conseguia tornar as suas intenções perfeitamente claras.

            Ralph Brooke, diretor da gigantesca Intercontinental Telecommunications Corporation, conhecida em todos os mercados de câmbios do mundo por InTelCor, inclinou-se para a frente.

            - Muito bem. Que nós podemos fazer?

            - Diplomaticamente... informar todos os governos da NATO e incitá-los a protestar - sugeriu um antigo diplomata.

            - Nessa eventualidade, Komarov denunciaria o manifesto como uma grosseira falsificação e a maior parte da Rússia acreditaria - objetou outro. - Não existe nada de novo na xenofobia dos russos.

            James Baker inclinou-se igualmente para diante e voltou-se para o lado, para se dirigir a Nigel Irvine.

            - Foi você o portador do assustador documento. Que propõe?

            - Nada de radical. No entanto, ofereço uma variante, por assim dizer. Se o Conselho tiver de sancionar... não empreender, mas sancionar... uma iniciativa, deverá ser tão encoberta que, aconteça o que acontecer, nada poderá afetar qualquer das reputações presentes nesta sala.

            Trinta e nove membros do Conselho sabiam ao que se referia. Todos haviam participado ou assistido ao malogro de operações governamentais supostamente encobertas. Uma voz com sotaque alemão irrompeu de outro ponto da mesa, proferida por um antigo secretário de Estado americano.

            - Nigel pode empreender uma operação tão secreta?

            Duas outras vozes disseram “Sim” em uníssono.

            Quando fora chefe dos serviços secretos britânicos, ele servira sob as ordens de Margaret Thatcher e do seu secretário dos Assuntos Estrangeiros, Lorde Carrington.

            O Conselho de Lincoln nunca emitia resoluções formais escritas. Chegava a acordos, com base nos quais cada membro recorria à sua influência para levar à aplicação nos corredores do poder dos respectivos países.

            No caso do Manifesto Negro, o acordo consistiu simplesmente em delegar numa comissão menos numerosa o desejo dos membros que a comissão considerasse o que poderia ser mais aconselhável. O Conselho plenário não decidia sancionar nem condenar ou sequer tomar conhecimento do que se seguisse.

 

Moscou, Setembro de 1990

            O coronel Anatole Grishin sentava-se à sua mesa no gabinete da prisão de Lefortovo e contemplava os três documentos que acabava de receber. O seu espírito constituía uma torrente de emoções mistas. Acima de todas as outras, figurava o triunfo. Ao longo do Verão, o pessoal da contra-espionagem do Primeiro e Segundo Diretorados Principais entregara-lhe os três traidores em rápida sucessão.

            Primeiro, fora o diplomata Kruglow, descoberto graças a uma combinação do seu primeiro-secretário na embaixada de Buenos Aires e a aquisição de um apartamento no valor de vinte mil rublos, pouco após o seu regresso.

            Confessara tudo sem hesitações. Depois de seis semanas de interrogatórios, esgotara a reserva de revelações e tinha sido encerrado numa das celas dos subterrâneos, cuja temperatura, mesmo em pleno verão, raramente superava os zero graus. Agora, permanecia ali tremendo incessantemente, à espera do seu destino. Esse destino achava-se contido numa das folhas em cima da mesa do coronel.

            O professor de física nuclear fora detido em Julho. Havia poucos cientistas do seu gabarito que tivessem dado aulas na Califórnia. Na realidade, apenas quatro. A busca repentina ao apartamento de Blinov, em Arzamas-16, revelara um pequeno frasco de tinta invisível, dentro de um par de luvas enroladas na gaveta da cômoda. Também confessara tudo rapidamente, pois a simples presença de Grishin e respectivos verdugos bastara para lhe soltar a língua. Até indicara o endereço em Berlim Oriental para onde enviava as suas cartas secretas.

           O assalto a essa residência fora atribuído a um coronel do Diretorado do K, mas, lamentavelmente, o ocupante desaparecera, transferindo-se para o Setor Ocidental da cidade uma hora antes da indesejável visita.

            Por último, em fins de Julho, fora a vez do soldado siberiano, na sequência de vigilância intensa, que culminara com a invasão inesperada do seu domicílio.

            Pyotr Solomin comportara-se de forma diferente, resistindo à dor e exibindo esgares de desafio no meio da agonia atroz. Não obstante, Grishin não deixara de lhe quebrar a firmeza, como sempre acabava por acontecer. Conseguiu-o graças à ameaça de enviar a esposa e filhos para um dos campos do internamento mais rigorosos.

            Todos descreveram como haviam sido abordados pelo americano sorridente, ansioso por lhes escutar os problemas pessoais e apresentar propostas razoáveis, o que intensificou a fúria do coronel contra o indivíduo que agora sabia chamar-se Jason Monk.

            Nada menos que três vezes, não uma, mas três! O ousado filho da mãe introduzira-se calmamente na URSS, encontrara-se com os seus espiões e partira sem ser interceptado. Nas barbas do KGB!

            Quando os três traidores confessaram à equipe de interrogadores o volume total do que o sinistro americano os obrigara a revelar, os funcionários superiores do KGB empalideceram de chocada incredulidade.

            Grishin reuniu os três relatórios e pegou o telefone. O castigo final sempre lhe proporcionara um prazer especial.

            O general Vladimir Kryuchkov fora promovido de chefe do Primeiro Diretorado Principal a diretor-geral do KGB. Provinham dele as três sentenças de morte na mesa de Mikhail Gorbachev, para a assinatura final, após o que seguiram para a prisão de Lefortovo, com a indicação “cumprimento imediato”.

            O coronel concedeu aos condenados trinta minutos no pátio dos fundos, para que pudessem avaliar o que ia acontecer. Quando entrou, encontravam-se de joelhos na relva do recinto circundado por um muro elevado, onde o sol nunca chegava.

            O diplomata foi o primeiro. Parecia traumatizado e murmurava nyet, nyet, enquanto o primeiro-sargento lhe pousava o cano da Makarov de nove milímetros na nuca. A uma leve inclinação de cabeça de Grishin, apertou o gatilho. Registrou-se um clarão, um borrifo de sangue e fragmentos de osso, e Valeri Kruglov tombou pesadamente de bruços.

            O cientista, considerado ateu irredutível, rezava, pedindo ao Todo-Poderoso que lhe preservasse a alma. Parecia não se dar conta do que acabava de acontecer a dois metros dele, e caiu de bruços como o diplomata.

            Foi, por fim, a vez do coronel Pyotr Solomin, que fixava o olhar no céu, talvez revendo mentalmente e pela última vez, as florestas e cursos de água, ricos de caça e peixe, da sua terra-natal. Quando sentiu o contato frio do aço na nuca, ergueu a mão esquerda e apontou o dedo ao coronel Grishin.

            - Fogo! - ordenou este, e tudo terminou.

            Os corpos foram sepultados em sepulturas anônimas, naquela noite, nos bosques dos arrabaldes de Moscou. Mesmo na morte, não podia haver a mínima consideração. As famílias dos executados nunca disporiam de um local para depositar as suas flores.

            Quando regressou ao seu gabinete, Grishin viu que a luz vermelha do telefone piscava. Tratava-se de um colega que conhecia do grupo de investigação do Segundo Diretorado Principal.

            - Cremos que estamos prestes a localizar e deter o quarto - anunciou. - Faltam apenas dois, ambos da contra-espionagem e de Berlim Oriental. Nós os mantemos sob vigilância apertada. A oportunidade de apanhá-los na rede surgirá, mais cedo ou mais tarde. Quando tal acontecer, quer assistir?

            - Sem a menor dúvida - assentiu o coronel.

            O investigador e o interrogador sabiam que um membro empedernido da contra-espionagem seria o mais difícil de ceder. Depois de longos anos na Linha K, pressentiria a aproximação do perigo. Decerto não deixaria no seu apartamento indícios comprometedores do gênero de um frasco de tinta invisível.

            Outrora, era fácil. Um suspeito recebia prontamente voz de prisão e, após persistente e implacável interrogatório, confessava tudo ou conseguia convencer os algozes que estava completamente inocente. Em 1990, as autoridades insistiam em provas irrefutáveis, antes de o submeterem a torturas. Lisandro não deixaria vestígios inexplicáveis. Ao invés, teria de ser surpreendido em flagrante. A operação exigia sutileza e tempo.

            Além de mais, Berlim era uma cidade aberta. O setor oriental continuava a ser tecnicamente território soviético, mas o Muro desaparecera. Se fosse assustado, o culpado poderia abandonar a capoeira com a maior facilidade, em direção à segurança da zona ocidental. Depois, não haveria mais nada a fazer.

 

            A comissão do projeto limitava-se a cinco elementos. Havia o presidente do grupo geopolítico, o seu homólogo da comissão estratégica e o presidente do corpo econômico. Além de Saul Nathanson, a seu próprio pedido, e Nigel Irvine.

            - Antes de qualquer coisa, assentemos numa coisa - começou Ralph Brooke, da Comissão Econômica. - Há a intenção de assassinar esse Komarov?

            - Não.

            - Porquê?

            - Porque é uma coisa raramente conseguida e, de qualquer modo, a sua morte não resolveria o problema.

            Irvine, melhor do que qualquer outro dos presentes, recordava-se das várias tentativas da CIA, com todos os seus fundos e tecnologia, para “terminar” Fidel Castro. com charutos explosivos que ele recusava fumar, um terno de borracha de mergulhador impregnado de veneno que declinara usar e graxa para o calçado cujos vapores lhe corroeriam a barba, entre outros estratagemas gorados. A Central Intelligence Agency acabara por confiar a missão à Mafia, cujos esforços foram ainda mais cômicos. O carrasco especial da Cosa Nostra, John Roselli, concluiu a sua permanência entre os vivos com um par de botas de cimento, no fundo da baía da Florida, e Castro continuou a pronunciar discursos de sete horas, aliás também uma razão de peso para o eliminar.

            Charles de Gaulle sobrevivera a seis tentativas da OAS, a nata das unidades de combate francesas, o rei Hussein da Jordânia a muitas mais, e perdia-se a conta das que tinham visado Saddam Hussein e sido infrutíferas.

            - Por que não é possível, Nigel?

            - Eu não disse isso. Apenas extremamente difícil. O homem está muito  bem protegido. O comandante da sua guarda de proteção e da brigada de proteção não é tolo.

            - Mas, mesmo que desse certo, não daria certo, hem?

            - Exato. O homem se tornaria um mártir. Surgiria outro para substituí-lo e galvanizar o país. Provavelmente obedeceria ao mesmo programa, aceitaria a  herança do líder desaparecido.

            - Então, que propõe?

            - Todos os políticos estão sujeitos à desestabilização.

            Surgiram alguns breves sorrisos. Nos seus dias, o Departamento de Estado e a CIA tinham tentado desestabilizar vários dirigentes de esquerda estrangeiros.

            - Que seria necessário?

            - Uma verba.

            - Isso é o de menos - disse Saul Nathanson. - Indique um número.

            - Obrigado. Mais tarde.

            - E?...

            - Algum apoio técnico. Sobretudo comparável. E um homem.

            - Um homem que espécie?

            - Capaz de entrar na Rússia e fazer certas coisas. Um homem muito bom.

            - Isso é do seu departamento. Se... e digo “se” propositadamente... ele puder ser desacreditado, que acontece, Nigel?

            - Reside aí o principal problema. Komarov não é somente um charlatão, mas um indivíduo hábil, arrebatado e carismático. Compreende e corresponde aos instintos do povo russo. Trata-se de um ícone.

            - Um quê?

            - Ícone. Não uma pintura religiosa, mas um símbolo. Representa alguma coisa. Todas as nações precisam de uma pessoa ou símbolo que possam venerar, capaz de proporcionar a uma massa de indivíduos variados uma noção de identidade e, portanto, de unidade. Sem um símbolo unificador, os povos descambam  em ódios mortíferos, destruidores. A Rússia é vasta, com muitos grupos étnicos diferentes. O comunismo era brutal, mas permitia a unidade. Unidade por coerção. Acontecia o mesmo na Iugoslávia, e vimos o que aconteceu quando o baniram. Para alcançar a unidade de livre vontade, tem de haver um símbolo. Vocês têm a Velha Glória e nós a Coroa. No momento, Igor Komarov é o ícone deles, e só nós conhecemos as suas intenções.

            - Qual é então o plano do jogo?

            - À semelhança de todos os demagogos, explorará as suas esperanças, desejos, amores e ódios, mas, sobretudo, os seus temores. Só assim lhes conquistará o coração, com esses, conseguirá os votos e, graças a eles, o poder. Poderá então utilizá-lo para construir a máquina que concretizará os objetivos do Manifesto Negro.

            - Mas se for destruído regressará o caos. Talvez mesmo a guerra civil.

            - Provavelmente. A menos que possamos introduzir na equação um ícone melhor. Um que mereça a lealdade do povo russo.

            - Um  homem  dessa  natureza não existe. Nunca existiu.

            - Engana-se - contrapôs Nigel Irvine. - Uma ocasião, há muito tempo. Chamava-se Czar de Todas as Rússias.

 

Langley, Setembro de 1990

            O coronel Turkin, ou agente Lisandro, enviou uma mensagem urgente e pessoal a Jason Monk. Figurava num postal ilustrado que mostrava a esplanada do Café da Ópera, em Berlim Oriental. O texto era simples e inocente: “Espero tornar a vê-lo em breve. Saudades do José Maria”. Fora endereçada a uma caixa postal segura da CIA em Bona e o carimbo indicava que provinha de um receptáculo público em Berlim Ocidental.

            O pessoal da CIA em Bona não sabia quem o expedira apenas que se destinava a Jason Monk, o qual se encontrava em Langley, pelo que o fez seguir para lá. O fato de ter sido expedido de Berlim Ocidental não significava nada. Turkin limitara-se a introduzi-lo no receptáculo através da janela aberta de um carro com matrícula daquele setor, murmurara Bitte e afastara-se com prontidão. Quando a sua “cauda” dobrou a esquina, a manobra já se efetuara. O prestável berlinense tratara de dar o devido seguimento ao postal.

            As medidas arriscadas dessa natureza não são recomendadas, nas atividades da espionagem, mas já se viram coisas mais estranhas.

            O detalhe intrigante consistia na data inscrita na parte superior. Estava errada. Dizia “8 de Setembro”, e um alemão ou espanhol escreveria “8/9/90”, com o dia antecedendo o mês e depois o ano. Ora a que figurava no postal parecia apresentar-se segundo o estilo americano: “9/23/90”. Para Jason Monk, significava: “Temos de nos encontrar às nove da noite de 23 deste mês”. Devia ler-se da frente para trás. E a assinatura com um nome espanhol queria dizer: “É grave e urgente”.

            O lugar era óbvio: a esplanada do Café da Ópera, em Berlim Oriental.

            A reunificação final da cidade devia realizar-se a 3 de Outubro, juntamente com o da Alemanha. O mandato da URSS no Leste terminaria naquela data. A Polícia de Berlim Ocidental assumiria a vigilância geral. A operação do KGB teria de se reduzir a uma unidade muito menor no interior da embaixada soviética situada em Unter den Linden e a maior parte dos efetivos regressaria a Moscou. Existia a possibilidade de Turkin os acompanhar. Por conseguinte, se queria fugir, era o momento oportuno, mas tinha esposa e o filho naquela cidade, e o período escolar de Outono acabara de iniciar. Havia algo que pretendia dizer e queria fazê-lo pessoalmente, ao seu amigo, com urgência. No entanto, ao contrário dele, Monk estava ciente do desaparecimento de Delfos, Orionte e Pégaso. Assim, à medida que os dias se sucediam, a sua apreensão aguçava-se.

 

            Quando o penúltimo convidado se retirou, as cópias dos documentos, salvo as pessoais de Sir Nigel, foram queimadas, até que só restavam cinzas, prontamente dispersas ao vento.

            Irvine partiu com o anfitrião, ao qual ficou grato pela carona no Grumman de regresso a Washington. Do telefone seguro do avião, ligou para a área da capital e combinou almoçar com um velho amigo. Em seguida, descontraiu-se no confortável assento diante de Nathanson.

            - Bem sei que combinamos não fazer mais perguntas - disse este último, servindo dois cálices de Chardonnay, - mas posso aventurar uma de natureza pessoal?

            - Claro. Em todo o caso, não prometo responder.

            - Vou tentar, de qualquer modo. Você veio ao Wyoming esperando que o Conselho sancionasse algum tipo de ação?

            - Suponho que sim. Mas acho que todos exprimiram a situação melhor do que eu.

            - Estávamos chocados. Sinceramente. No entanto, havia sete judeus em redor da mesa. Porquê você?

            Nigel Irvine fixou o olhar pensativo nas nuvens que desfilavam abaixo do aparelho. Em algum lugar a seus pés, encontravam-se as vastas planícies de trigo, em pleno período da safra. Uma imensidão de alimento. Tornou a ver outro lugar distante e remoto no passado. Soldados de infantaria britânicos vomitando ao sol, os condutores de tratores com máscaras nos rostos para se protegerem do fedor, enquanto impeliam montes de cadáveres para covas enormes.

            - Não sei, ao certo. Passei por isso uma vez e não quero que se repita. Chame-me antiquado, se quiser.

            Nathanson soltou uma gargalhada.

            - Antiquado!  Muito bem, brindo a isso. Você mesmo irá à Rússia?

            - Não vejo como se pode evitá-lo.

            - Tenha cuidado, meu amigo.

            - Havia um ditado na tropa. Há agentes arrojados e agentes idosos, mas não agentes arrojados idosos. Sim, terei cuidado.

            Como ficava em Georgetown, o amigo propusera um pequeno e agradável restaurante de ambiente francês denominado La Chautnièeo, a pouco mais de uma centena de metros de As Quatro Estações.

            Irvine foi o primeiro a chegar e sentou-se num banco longo perto da entrada. O chefe do SIS fora durante mais tempo um executivo mais ativo do que o diretor da CIA e, quando se deslocava a Langley, costumavam acompanhá-lo os profissionais da contra-espionagem e os subdiretores das operações, com os quais sentia profunda empatia. Partilhavam um laço comum nem sempre possível com o representante político da Casa Branca.

            O táxi imobilizou-se, e um americano de cabelos brancos e idade similar desceu e pagou ao motorista. Irvine cruzou a estrada e tocou-lhe no ombro.

            - Há que tempos! Como está, Carey?

            O rosto de Carey Jordan alargou-se num sorriso.

            - Que diabo faz aqui, Nigel? E porquê o almoço?

            - Protesta?

            - De modo algum. Tenho muito prazer em voltar a vê-lo.

            - Então, explico-lhe lá dentro.

            Chegaram um pouco cedo, já que a multidão do almoço ainda não aparecera. O empregado perguntou se queriam ficar numa sala de fumantes ou não fumantes, e Jordan indicou a primeira alternativa. Irvine arqueou uma sobrancelha, porque nenhum dos dois fumava.

            Todavia, o companheiro sabia o que fazia. Na politicamente correta Georgetown, foram conduzidos a um reservado nos fundos, onde poderiam conversar sem ser ouvidos.

            O empregado apresentou-lhes os menus e uma lista de vinhos. Eles escolheram uma entrada e a seguir carne. Irvine lançou uma olhadela à relação das bebidas e descortinou um Bordeaux Beychevelle excelente. O homem esboçou um sorriso não era barato e havia muito tempo que se encontrava na casa. Reapareceu passados poucos minutos, mostrou o rótulo, obteve uma inclinação de cabeça de aprovação, extraiu a rolha e decantou.

            - Vamos lá então saber - disse Carey Jordan, quando ficaram a sós. - Que o traz a esta clareira da floresta? Saudades?

            - Não exatamente. Digamos antes um problema.

            - Tem alguma relação com os altos e poderosos que estiveram conferenciando no Wyoming?

            - Não deviam ter lhe concedido a aposentadoria.

            - Pois não. Qual é o problema?

            - Está acontecendo algo grave e perigoso na Rússia.

            - Olha que novidade!

            - Esta é diferente. E pior do que habitualmente. As agências oficiais dos nossos países foram prevenidas para não se intrometerem.

            - Porquê?

            - Timidez oficial, suponho.

            Carey fungou com simulado desdém.

            - Repito: Olha que novidade!

            - A semana passada chegou-se à conclusão que alguém devia ir lá espiar.

            - Alguém? Apesar da advertência?

            - É essa a idéia geral.

            - Então, por que me procurou? Desliguei-me disso. Já fazem doze anos.

            - Ainda fala com Langley?

            - Ninguém o faz.

            - Então, aí tem o motivo da sua escolha. Na verdade, preciso de um homem. Capaz de visitar a Rússia. Sem despertar a atenção.

            - Às ocultas?

            - Receio que sim.

            - Contra o FSB?

            Quando Gorbachev, pouco antes do seu afastamento, desmantelou o KGB, o Primeiro Diretorado Principal passou a chamar-se SVR, embora continuasse a funcionar na velha sede em Yazenevo, e o Segundo Diretorado Principal, que abarcava a segurança interna, adquiriu a designação de FSB.

            - Provavelmente ainda mais perigoso do que isso.

            Carey mordiscou o lábio inferior durante um momento, refletiu e abanou a cabeça.

            - Não, ele não iria. Nunca mais.

            - Quem?

            - O cara em que estava pensando. Já abandonou a dança, como eu. Era bom. Nervos de aço, muito esperto, movia-se como um peixe na água. Dispensaram-no há cinco anos.

            - Ainda está vivo?

            - Tanto quanto sei... Este vinho é estupendo. Não bebo desta qualidade com frequência.

            Irvine voltou a encher o copo do amigo.

            - Como se chama esse homem que não iria?

            - Monk. Jason Monk. Dominava o russo como um nativo. O melhor controlador de agentes que me passou pelas mãos.

            - Mesmo que não queira ir, fale-me dele.

            O antigo DOO atendeu ao pedido.

 

Berlim Oriental, Setembro de 1990

            Era um entardecer cálido de Outono e a esplanada estava superlotada. O coronel Turkin, de terno leve de tecido e corte alemães, não despertou a atenção, quando se sentou em uma pequena mesa junto do passeio, no momento exato em que um par de namorados adolescentes a abandonava.

            Quando o garçon acudiu para levar os copos usados, ele pediu um café, abriu um jornal alemão e começou a ler.

            Precisamente porque passara a sua carreira na contra-espionagem, com o seu ônus na vigilância, estava destinado a ser um perito na contra-vigilância. Por conseguinte, os agentes do KGB mantinham-se a uma distância prudente. Mas achavam-se presentes, um homem e uma mulher do outro lado da praça da Ópera, sentados num banco, jovens, despreocupados e cada um com auscultadores de um Walkman nos ouvidos.

            Ambos podiam se comunicar com dois carros estacionados perto da esquina, para transmitir as suas observações e receber instruções. Nesses veículos, encontrava-se a brigada de captura, pois a ordem de detenção fora finalmente promulgada.

            Dois últimos fragmentos de informação tinham feito desequilibrar os pratos da balança contra Turkin. Na sua descrição, Ames revelara que Lisandro fora recrutado no exterior da URSS e falava espanhol. Somente o idioma forneceu à Divisão de Investigação todo o material sobre a América Latina e a Espanha na sua pesquisa dos registros. O candidato alternativo, como fora provado recentemente, chegara, na sua primeira missão sul-americana no Equador, cinco anos antes. No entanto, Ames dissera que o recrutamento de Lisandro ocorrera seis anos atrás.

            A segunda pista, e decisiva, emergiu da idéia brilhante de examinar todos os telefonemas efetuados da sede do KGB em Berlim Oriental, na noite da visita frustrada ao apartamento da caixa postal da CIA, aquela em que o seu ocupante se ausentara uma hora antes.

            Os registros indicavam uma chamada efetuada de um telefone público do átrio para o número do apartamento em causa. O outro suspeito encontrava-se em Potsdam, naquela noite, e o chefe da batida abortada era o coronel Turkin.

            A detenção formal teria se consumado mais cedo, se não se verificasse a circunstância de se esperar um oficial de patente elevada proveniente de Moscou, o qual insistira em estar presente e escoltar pessoalmente o suspeito no regresso à URSS. No entanto, este último partira inesperadamente, a pé, e os vigilantes viram-se na contingência de o seguir.

            Um engraxate hispano-marroquino percorria o passeio e perguntava aos homens sentados na esplanada se necessitavam dos seus préstimos, mas recebia meneios de cabeça como resposta. Os habitantes de Berlim-Oriental não estavam habituados a ver engraxates itinerantes nos seus cafés e os do outro setor berlinense que se encontravam entre eles consideravam que muitos imigrantes do Terceiro Mundo infestavam a sua rica cidade.

            Por fim, o engraxate obteve uma resposta afirmativa, postou-se diante do cliente e começou a aplicar graxa num dos sapatos. Quando um empregado se aproximou para afastá-lo, o cliente, com notável sotaque alemão, observou:

            - Já que começou, deixe-o terminar.

            O outro encolheu os ombros e afastou-se.

            - Passou muito tempo, Kolya - murmurou o engraxate, em espanhol. - Como está?

            O russo inclinou-se para frente, para indicar onde queria uma camada de graxa mais espessa.

            - Não muito bem. Creio que há problemas.

            - Conte lá.

            - Há dois meses, tive de invadir um apartamento denunciado como sendo uma caixa postal  da CIA.  Consegui  fazer um telefonema antes e o homem pôde escapar. Como descobriram? Alguém terá dado com a língua nos dentes?

            - Possivelmente. Por que acha isso?

            - Há mais, e pior. Duas semanas atrás, pouco antes do meu postal, chegou um funcionário de Moscou pertencente à Análise. A esposa é da Alemanha  Oriental  e vieram visitar familiares  dela.  Houve  uma  festa,  ele  embebedou-se  e disse que tinha havido prisões em Moscou. Alguém do Ministério da Defesa e dos Assuntos Estrangeiros.

            Para Monk, a revelação equivaleu a um pontapé no rosto aplicado pelos sapatos que engraxava.

            - Alguém sentado à mesa com ele disse qualquer coisa parecida com “Vocês devem ter uma fonte excelente no campo inimigo”, o que o levou a piscar o olho, com uma expressão maliciosa.

            - Tem de sair daqui,  Kolya. Já, esta noite. Venha para o outro lado.

            - Não posso abandonar Ludmila e Yuri, que se encontram em Moscou.

            - Mande-os vir. Invente qualquer pretexto. Isto será território soviético durante mais dez dias. Depois, torna-se parte integrante da Alemanha Federal. A partir de então, eles não poderão deslocar-se aqui.

            - Tem razão. Dentro de dez dias, passaremos para o outro lado como uma família. Vocês cuidarão de nós.

            - Eu próprio me ocuparei do assunto. Não perca tempo. O russo entregou  um punhado de marcos da Alemanha Oriental ao hispano-marroquino, os quais podiam ser conservados durante dez dias e depois trocados por valiosos deutschmarks, o engraxate endireitou-se, agradeceu e afastou-se.

            Os dois vigilantes no outro lado da praça ouviram uma voz nos auscultadores:

            - Está tudo completo. Procedam à detenção.

            Os dois Tatras cinzentos checos dobraram a esquina de acesso à Praça da Ópera e rolaram ao longo do passeio em que se situava o café. Do primeiro, irromperam três homens, que afastaram dois transeuntes do seu caminho e agarraram um dos clientes sentados na esplanada. O segundo carro ejetou mais dois, que conservaram a porta de tras aberta e permaneceram de guarda.

            Soaram vários gritos de alarme dos clientes, no momento em que o homem de terno cinzento foi imobilizado e arrastado para o interior do segundo veículo, que se pôs em marcha, depois da porta se fechar ruidosamente. A brigada de assalto regressou ao primeiro Tatra, que seguiu no seu encalço. A operação durou apenas sete segundos.

            Na extremidade do quarteirão, Jason Monk, a uma centena de metros do local, assistiu a tudo com uma penosa sensação de impotência.

 

            - Que aconteceu depois de Berlim? - perguntou Sir Nigel Irvine.

            Vários comensais guardavam os cartões de crédito e abandonavam o restaurante para regressar ao trabalho ou a algum local de lazer. O inglês pegou a garrafa de Beychevelle, viu que estava vazia e fez sinal ao empregado para que a renovasse.

            - Pretende embriagar-me? - inquiriu Jordan, com um sorriso malicioso.

            - Que história! Receio que sejamos muito velhos e hediondos para beber como cavalheiros.

            - Também acho. De qualquer modo, raramente tenho oportunidade de saborear um Chateau Beychevelte, nos tempos que correm.

            O garçon apresentou a nova garrafa, obteve um gesto de assentimento de Sir Nigel, desrolhou-a e decantou.

            - A que vamos brindar? - perguntou Jordan. - Ao Grande Jogo? Ou talvez à Grande Confusão? - acrescentou, com amargura.

            - Não, aos bons velhos tempos. E à clareza. Creio que é aquilo que sinto mais falta e os jovens não têm. A clareza moral absoluta.

            - Sim, brindo a isso. Mas voltemos a Berlim. Monk regressou mais furioso do que um leão da montanha com o rabo em chamas. Eu já não estava presente, claro, mas continuava a me encontrar com caras como Milt Bearden. Por isso, inteirei-me do aspecto geral da situação. Monk percorria o edifício comunicando a todos os que o queriam ouvir que a Divisão Soviética albergava uma toupeira  numa posição elevada. O que, naturalmente, não correspondia ao que eles queriam escutar. “Ponha isso por escrito”, aconselharam-no, e foi o que fez. Redigiu um documento de arrepiar os cabelos em que acusava praticamente todos de incompetência inconsciente. Milt Bearden conseguiu finalmente correr com Ames da sua Divisão Soviética, mas o cara era como uma sanguessuga. Entretanto, o Diretor formara um novo centro de contra-espionagem, que continha o Grupo de Análise e, dentro deste, a seção da URSS. Esta última precisava de um antigo dirigente de diretorado de operações e, acredite ou não, Ames obteve o cargo, proposto por Mulgrew. Adivinhe a quem Monk teve de se dirigir com as suas reclamações. Ao próprio Aldrich Ames”.

            - Deve ter constituído um abalo para o sistema – admitiu Irvine, a meia-voz.

            - Dizem que o Diabo protege os seus. Do ponto de vista de Ames, era preferível que fosse ele a ocupar-se de Monk. Podia escamotear o relatório, e o fez. Foi mesmo mais longe. Contra-acusou-o  de levantar  suspeitas  destituídas  de bases. Onde estavam as provas do que afirmava? Acabou por se realizar um inquérito interno. Não para apurar a veracidade ou não da existência de uma toupeira, mas ao próprio Monk.

            - Uma espécie de conselho de guerra?

            - Mais ou menos. Eu teria intercedido em favor dele, mas não gozava de reputação boa, na ocasião. De qualquer modo, a batuta encontrava-se nas mãos   de Ken Mulgrew. A decisão final consistiu em que Monk tinha inventado o encontro em Berlim para reanimar uma carreira em declínio.

            - Muito conveniente.

            - Sim, muito. Mas entretanto o diretorado das operações estava cheio de  burocratas, além  de um punhado de velhos guerreiros que prestavam serviço já fora do prazo de validade, por assim dizer. No final de quarenta anos, tínhamos acabado por ganhar a Guerra Fria, e o império soviético desmoronava-se.

            - Que aconteceu a Monk?

            - Estiveram prestes a despedi-lo. Ao invés, humilharam-no, sepultando-o  num recanto obscuro dos arquivos ou algo do gênero.  Ele devia ter apresentado a demissão e  passado a gozar a aposentadoria. Mas foi sempre um filho da mãe tenaz. Aguentou a adversidade com pé firme, convencido de que, um dia, provaria que não se enganara. Apodreceu na nova ocupação durante três longos anos. E, por último, conseguiu.

            - Provar que tinha razão?

            - Com certeza. Mas era muito tarde.

 

Moscou, Janeiro de 1991

            O coronel Anatoli Grishin abandonou a sala de interrogatórios e recolheu ao seu gabinete dominado por fúria intensa.

            O grupo de oficiais que se ocupara de fazer perguntas estava convencido que fora obtido todo o necessário. Não haveria mais sessões da Comissão Monakh. Estava tudo gravado a história completa desde um garoto que adoecera em Nairobi, em 1983, para terminar no rapto na esplanada do Café Ópera, em Setembro passado.

            Os homens do Primeiro Diretorado Principal sabiam que Monk caíra em desgraça entre os seus e tinha a carreira destruída. Isso só podia significar que não havia em atividade outros agentes por ele recrutados. Tinham sido apenas quatro, e que quatro! Restava um vivo, mas por pouco tempo, segundo a convicção de Grishin.

            Por conseguinte, a Comissão Monakh concluíra os trabalhos e fora dissolvida. A situação devia considerar-se triunfal, porém a cólera do coronel devia-se a algo que surgira na última sessão.

            Cem metros. Cem miseráveis metros... O relatório da equipe de vigilância era bem claro. No seu último dia em liberdade, Nikolai Turkin não estabelecera qualquer contato com agentes inimigos. Passara na sede, jantara no refeitório, depois saíra inesperadamente e fora seguido até uma esplanada, onde tomara café e mandara engraxar os sapatos.

            Os dois vigilantes no outro lado da praça tinham visto o engraxate executar a sua tarefa e afastar-se. Segundos mais tarde, os veículos do KGB, com Grishin sentado ao lado do condutor do primeiro, dobrava a esquina. Naquele momento, ele encontrava-se apenas a uma centena de metros de Jason Monk em território de jurisdição soviética.

            Na sala de interrogatórios, os olhos de todos os membros da Comissão Monakh desviaram-se do detido para o coronel. Pareciam acusá-lo de ter deixado escapar a presa mais valiosa de todas.

            Haveria dor, naturalmente. Não para persuasão, mas para castigo, isso podia ele prometer. Em seguida, porém, fora desautorizado. O general Boyarov comunicara-lhe que o diretor do KGB queria uma execução rápida, receoso de que, numa época de mudanças constantes e rápidas, esse tipo de sentença fosse indeferido. Apresentaria a ordem ao presidente nesse mesmo dia e deveria ser cumprida na manhã seguinte.

            E os tempos estavam de fato mudando com rapidez impressionante. O seu serviço era acusado pela escória da Imprensa recentemente libertada de coação, mas ele sabia como enfrentá-la e vencê-la.

           O que, porém, ignorava era que, em Agosto, o seu próprio superior hierárquico, general Kryuchkov, chefiaria um golpe de Estado contra Gorbachev, o qual abortaria. Como represália, este último dividiria o KGB em vários fragmentos e a União Soviética ruiria em Dezembro.

            Enquanto Grishin se entregava a amargas reflexões no seu gabinete, naquele dia de Janeiro, o general Kryuchkov pousava a ordem de execução do antigo coronel Turkin, do KGB, na secretária do presidente. Gorbachev pegou a caneta, hesitou e voltou a colocá-la a um lado.

            Em Agosto anterior, Saddam Hussein invadira o Kuwait. Agora, jatos americanos destruíam a vida à superfície do Iraque. A invasão por terra estava iminente. Vários estadistas mundiais tentavam interceder, propondo-se como autores de paz internacionais. Era um papel tentador. Entre eles, figurava Mikhail Gorbachev.

            - Aceito o que este homem fez e que merece morrer - declarou.

            - É a lei - salientou Kryuchkov.

            - Sim, mas neste momento... creio que seria desaconselhável. - O  presidente tomou uma decisão e devolveu a ordem, sem a assinar. - Assiste-me o direito de exercer clemência, e faço-o. Sete anos de trabalhos forçados.

            O general retirou-se furioso. Aquele tipo de degeneração não podia continuar. Mais cedo ou mais tarde, ele e outros que pensavam do mesmo modo teriam de atuar.

            Para Grishin, a notícia constituiu o golpe de misericórdia de um dia para esquecer. A única coisa que podia fazer era providenciar que o campo de trabalho em que Turkin ingressasse fosse de uma natureza tão agreste que não conseguisse sobreviver.

            No princípio dos anos oitenta, os campos de presos políticos tinham sido transferidos da excessivamente acessível Moldávia mais para o norte, na região em torno de Perm, terra-natal de Grishin. Uma dezena deles achava-se dispersa em redor da vila die Vsesvyatskoye. Os mais conhecidos eram os infernos de Perm-35, Perm-36 e Perm-37.

            Mas havia um muito especial, reservado aos traidores. Os próprios funcionários do KGB tremiam à menção de Nizhni Tagil.

            Por duros que fossem, os guardas viviam fora do campo. As suas brutalidades só podiam ser esporádicas e institucionais redução das rações ou agravamento da natureza do trabalho. Para haver certeza que os criminosos “educados” viviam constantemente perante os verdadeiros fatos da vida, misturavam-nos com os mais empedernidos e violentos zeki de todos os campos.

            Grishin tomou as providências necessárias para que Nikolai Turkin ingressasse aí, e, por baixo da epígrafe “regime”, no impresso da sentença, escreveu: especial, ultra-rigoroso.

 

            - Creio que você se recorda do final dessa desagradável saga - disse Carey Jordan, com um suspiro.

            - Em parte. Reavive-me a memória. - Irvine fez um sinal ao garçon. - Dois expressos, por favor.

            - Bem, no último ano, 1993, o FBI ocupou-se finalmente da caçada de oito anos à toupeira. Vangloriou-se mais tarde de ter esclarecido tudo em dezoito meses, mas grande parte do trabalho de eliminação já fora efetuado, embora muito devagar. Para lhes conceder o devido crédito, os Feds executaram aquilo que nós devíamos ter terminado. Não se importaram com os direitos civis e obtiveram autorizações confidenciais dos tribunais para examinar as contas bancárias dos poucos suspeitos  que  restavam.  Obrigaram os bancos a abrir-lhes as portas. E a medida deu resultado. Apuraram que Aldrich Ames era milionário, sem contar com os depósitos na Suíça descobertos mais tarde. A explicação que a esposa era abastada na Colômbia revelou-se falsa, pelo que foi colocado sob vigilância total. Invadiram-lhe o domicílio na sua ausência e concentraram-se no computador. Achava-se tudo armazenado ali, suficiente para lhe dar voz de prisão. Cartas para e do KGB, registros de pagamentos avultados e pormenores sobre receptáculos de cartas mortas na área de Washington, a 21 de Fevereiro de 1994... uma data inesquecível... detiveram-no a poucos quarteirões da sua mansão, em Arlington. A partir de então, descobriu-se tudo.

            - Você soube com antecedência?

            - Não. Acho que o Bureau foi suficientemente sensato para não me informar. Se conhecesse então todos os detalhes que obtive mais tarde, era muito capaz de chegar lá primeiro e matá-lo. Me sentaria na cadeira elétrica com a convicção que praticara a melhor ação da minha vida.

            O antigo DDO passeou o olhar pela sala do restaurante, mas na realidade revia uma lista de nomes e rostos, todos desaparecidos.

            - Quarenta e cinco operações destruídas e vinte e dois homens traídos, dezoito russos e quatro dos países satélites acrescentou. Catorze executados. E tudo porque aquele tarado serial killer por procuração desejava uma casa grande e um Jaguar.

            Nigel Irvine não queria se intrometer na mágoa íntima do interlocutor, mas não se conteve de murmurar:

            - Vocês deviam tê-lo feito, através de uma investigação interna.

            - Sim, todos reconhecemos agora. Devíamos ter-lhe investigado as finanças, e ao diabo com os direitos civis. Na Primavera de 1986, Ames já embolsara mais de um quarto de milhão de dólares, depositados num banco local.

            - E Monk?

            Carey Jordan soltou uma risada seca. O garçon, desejoso de levantar a última mesa ocupada na sala agora vazia de clientes, aproximou-se com a conta e Irvine gesticulou para que a entregasse. O homem aguardou que se reunisse um cartão de crédito e afastou-se.

            - Monk? Também  não sabia.  Era o Dia do Presidente, feriado público federal. Julgo, portanto, que ficou em casa. Os noticiários só mencionaram o assunto na manhã seguinte. Precisamente quando chegou o raio da carta.

 

Washington, Fevereiro de 1994

            A carta chegou a 22, data após o Dia do Presidente, com o reatamento da distribuição da correspondência, logo de manhã.

            Era um envelope branco quase rígido, cujo carimbo indicou a Monk que provinha de Langley.

            Continha outro com o sinete da embaixada dos Estados Unidos. Alguém datilografara nele “Mr. Jason Monk, a/c da Sala de Correspondência Central, Edifício da Sede da CIA, Langley, Virgínia”. E outra pessoa ou a mesma?  rabiscara “PTO”. Ele voltou-o e viu que o mesmo punho escrevera: “Entregue em mãos na nossa embaixada em Vilnius, Lituânia. Suponho que conhece o homem”? Como não exibia qualquer estampilha, o envelope interior chegara certamente aos Estados Unidos na mala diplomática.

            Havia ainda um terceiro, de qualidade muito inferior, com fragmentos de polpa de madeira visíveis na textura. Achava-se endereçado num inglês singular: “Favor (sublinhado três vezes) fazer chegar às mãos de Mr. Jason Monk, na CIA. De um amigo”.

            A carta propriamente dita encontrava-se dentro deste último envelope, escrita em papel tão frágil que as folhas quase se desintegraram ao contato dos dedos. Papel higiênico? Arrancadas de um velho e barato bloco de notas? Podia ser.

            O texto era russo, em letra trêmula e tinta preta. No topo, lia-se: Nizhni, Tagil, Setembro de 1994.

 

Seguia-se:

            Caro amigo Jason: Se alguma vez receber estas linhas e no momento em que acontecer, terei morrido. A febre tifóide não perdoa. É propagada pelas pulgas e percevejos. Vão fechar este campo e desmantelá-lo, para varre-lo da face da Terra como se nunca tivesse existido, e na realidade não devia.

            Uma dezena de políticos aqui internados obteve a concessão de uma anistia, graças a alguém chamado Ieltsin, agora na cadeira do poder, em Moscou. Um deles é meu amigo, um lituano escritor e intelectual, no qual creio poder confiar. Prometeu ocultar a carta e enviá-la, quando estiver em casa. Quanto a mim, terei de viajar em mais um trem ou caminhão de transporte de gado para outro local, que no entanto nunca verei. Por conseguinte, transmito-lhe as minhas despedidas e algumas novidades.

            A carta descrevia o que acontecera após a detenção em Berlim Oriental, três anos e meio atrás. Nikolai Turkin referia os espancamentos na cela do subterrâneo de Lefortovo e que não vira qualquer vantagem em ocultar tudo o que sabia. Aludia às condições infra-humanas em que se encontrava encerrado e brutalidades impiedosas que caracterizavam as sessões de interrogatório.

            Mencionava igualmente Anatoli Grishin. O coronel convencera-se que ele morreria, pelo que não manifestara a menor relutância, muito pelo contrário, experimentara profundo prazer  em se vangloriar dos seus triunfos anteriores. Assim, alongara-se em detalhes acerca de homens de quem Turkin nunca ouvira falar: Kruglov, Elinov e Solomin. E referira o que fizera ao militar siberiano para obrigá-lo a confessar.

            Quando tudo terminou, rezei para que a morte me levasse. Tem havido muitos suicídios neste campo, mas sempre acalentei a esperança de que, se resistisse a seguir o mesmo caminho, acabaria por ser libertado, embora ninguém me reconhecesse. Perdi o cabelo e os dentes, e o corpo mirrado está coberto de chagas e dominado pela febre.

            Descrevia a longa viagem num transporte de gado de Moscou para o campo, juntamente com criminosos comuns, que o agrediam e lhe cuspiam no rosto, para contaminar com a sua tuberculose. Mencionava minuciosamente o campo, onde lhe distribuíam rações exíguas e tarefas esgotantes. Seis meses mais tarde, fraturara uma clavícula ao carregar toros, mas não havia médicos para tratá-lo, e os guardas insistiram em que prosseguisse naquele trabalho, após breves dias para tentar recompor-se. E a carta concluía com as palavras:

            Não me arrependo do que fiz, porque vivia num regime condenável. Talvez agora haja liberdade para o meu povo. Espero que a minha mulher seja feliz, onde quer que se encontre. Assim como o meu filho Yuri, que lhe deve a vida, meu amigo. Adeus para sempre, Nikolai llyich.

            James Monk dobrou a carta, pousou-a numa mesinha, apertou a cabeça entre as mãos e chorou como uma criança. Naquele dia, não foi trabalhar, sem telefonar para explicar porquê. Às seis da tarde, quando já anoitecera, consultou a lista telefônica, meteu-se no carro e seguiu para Arlington.

            Bateu polidamente à porta da casa que procurava e, quando se abriu, saudou a mulher com uma inclinação de cabeça e proferiu:

            - Boa noite, Mrs. Mulgrew.

            E entrou sem-cerimônia.

            Ken Mulgrew encontrava-se na sala, em mangas de camisa, com uma dose substancial de uísque na mão. Ao ouvir ruído, voltou-se e exclamou:

            - Como se atreve a interromper?...

            Foi a última coisa que disse sem silvar desconfortavelmente, durante várias semanas. Monk atingiu-o com um soco no queixo e o fez com todo o ímpeto que conseguiu reunir.

            Mulgrew era mais forte e corpulento, mas não se achava em forma e ainda estava sob os efeitos de um almoço particularmnente líquido. Fora trabalhar, naquele dia, mas ninguém fizera nada de especial além de discutir em murmúrios traumáticos a notícia que grassava no edifício como um incêndio na floresta.

            Monk atingiu-o num total quatro vezes, uma por cada agente perdido. Além de fraturar o queixo, enegreceu-lhe ambos os olhos e quebrou-lhe o nariz. Por fim, retirou-se sem pronunciar nem mais uma palavra.

            - Cheira a uma medida ativa - comentou Nigel Irvine.

            - Tão ativa quanto possível - concordou Jordan.

            - Que aconteceu a seguir?

            - Por sorte, Mrs. Mulgrew telefonou à agência e não à Polícia. Langley enviou alguns agentes, os quais chegaram a tempo de ver Mulgrew transportado para uma ambulância, que seguiu para a seção de emergências do hospital mais próximo. Trataram de acalmar a mulher, que identificou Monk, e eles procuraram-no. Quando lhe perguntaram que idéia lhe metera na cabeça, ele apontou para a carta em cima da mesa. Os colegas não conseguiram traduzi-la, naturalmente,  mas levaram-na.

            - E foi despedido?

            - Exato. Dessa vez, definitivamente. Registraram-se várias manifestações   de pesar, claro, quando a tradução foi lida durante o inquérito. Até me deixaram prestar declarações a favor dele. Mas o veredito estava traçado de antemão. A dispensa foi  irrevogável.

            O garçon reapareceu, com uma expressão compungida, e os dois homens levantaram-se e encaminharam-se para a porta.

            - E quanto a Mulgrew?

            - Ironicamente, foi dispensado em desgraça, um ano mais tarde, quando todo o alcance dos atos de Ames se tornou mais óbvio.

            - Monk?

            - Abandonou a cidade. Vivia com uma jovem, mas ausentara-se para participar de um seminário e quando regressou separaram-se. Constou-me que lhe foi atribuída uma pensão elevada, e não quis ficar em Washington.

            - Faz alguma idéia do rumo que tomou?

            - A última vez que soube dele, encontrava-se nos seus domínios, Henry.

            - Na Grã-Bretanha? Em Londres?

            - Não, em uma das colônias de Sua Majestade.

            - Território dependente. Já não são chamadas de colônias. Qual?

            - As ilhas Turke e Calcos. Sempre adorou a pesca submarina. Segundo  me constou,  possui  um  barco, que aluga aos turistas.

            Era um dia radioso de Outono e Georgetown apresentava um aspecto deslumbrante, enquanto eles permaneciam no passeio à entrada de La Chaumière, à espera que passasse um táxi livre para Carey Jordan.

            - Quer realmente que ele volte à Rússia, Nigel?

            - É a idéia geral.

            - Não vai aceitar. Jurou que não voltaria a pôr os pés ali. Gostei do almoço e da companhia, mas foi mera perda de tempo. Garanto-lhe que não aceitará a missão. Seja por dinheiro, ameaças ou coisa alguma.

            Surgiu finalmente um táxi. Eles apertaram a mão, Jordan entrou e o veículo pôs-se em marcha. Sir Nigel Irvine cruzou a rua em direção às Quatro Estações. Precisava fazer alguns telefonemas.

 

            O Foxy Lady estava acostado e fechado até o dia seguinte. Jason Monk despedira-se dos três clientes italianos, os quais, embora não tivessem efetuado uma pescaria  espetacular,  pareciam  ter desfrutado tanto com  o passeio como com o vinho que se haviam feito acompanhar. Julius encontrava-se junto da  mesa de limpar peixe, entretido em cortar as cabeças e extrair as entranhas de dois dourados de dimensões regulares. A sua carteira continha a remuneração do dia e a sua parte da gratificação deixada pelos italianos.

            Monk encaminhou-se para o Banana Boat, cuja sala estava apinhada de bebedores, aproximou-se do balcão e fez sinal com a cabeça a Rocky.

            - O de sempre?  perguntou o barman, sorrindo.

            - Por que não? Sou uma criatura de hábitos.

            Havia anos que era frequentador da casa e ficara combinado que o Banana Boat receberia os telefonemas que se destinassem a ele, durante a sua ausência no mar. Com efeito, o número do restaurante/bar figurava nos cartões de visita que distribuíra por todos os hotéis da ilha de Providenciales, destinados a atrair clientes para aluguel do barco.

            Mabel, esposa de Rocky, informou-o:

            - Telefonaram do Grace Bay Club.

            - Algum recado?

            - Não, pediram apenas que ligasse para lá.

            E impeliu para ele o telefone que conservava atrás da mesa da Recepção. Monk marcou o número e soou a voz da recepcionista, no outro extremo do fio.

            - Olá, Jason! Como foi seu dia?

            - Nada mal, Lucy. Perguntou por mim?

            - Perguntei. Que faz amanhã?

            - Que tem em mente, sua atrevida?

            Soou uma gargalhada divertida de entre os lábios da mulher possante que trabalhava na Recepção do hotel a cinco quilômetros do Banana Boat.

            Os residentes permanentes da ilha de Provo não constituíam um grupo enorme e, no seio da comunidade que prestava assistência aos turistas que apareciam, praticamente todos se conheciam. As ilhas de Turks e Caicos ainda representavam as Caraíbas como no passado imperava a cordialidade, descontração e ritmo compassado, sem pressas.

            - Não comece com isso, Jason. Está livre para cuidar de um cliente, amanhã?

            Ele refletiu por um momento. Pretendia passar o dia prestando assistência ao barco, mas não podia esquecer que necessitava trabalhar e a empresa de Miami a quem o Fox Lady ainda pertencia nunca lhe perdoava o pagamento de uma das prestações do empréstimo.

            - Acho que sim. Todo o dia ou só meio?

            - Meio. Da parte da manhã. Por volta das nove, está bem?

            - Ótimo. Explique ao grupo onde me encontrará.

            - É apenas uma pessoa, um tal Mr. Irvine. Muito bem, eu o aviso. Adeusinho.

            Jason pousou o auscultador. Os clientes isolados eram pouco frequentes, pois normalmente apareciam aos pares ou em maior número. Provavelmente, tratava-se de alguém cuja esposa não apreciava o passeio no mar, ocorrência também comum. Por fim, terminou a bebida e voltou ao barco, para comunicar a Julius que teria de comparecer às sete da manhã para atestar o depósito de combustível e levar engodo para bordo.

            O cliente que se apresentou às oito e quarenta e cinco da manhã seguinte era mais idoso do que o pescador usual, de calça bege, camisa de algodão verde e panamá branco. Deteve-se no molhe e perguntou:

            - Comandante Monk?

            Jason desceu da ponte e foi recebê-lo. Pela pronúncia, devia ser na verdade inglês, e Julius ajudou-o a subir para bordo.

            - Tem experiência disto, Mr. Irvine?  julgou Monk conveniente indagar.

            - Para ser franco, não. É a primeira vez. Pode considerar-me totalmente inexperiente.

            - Não se preocupe. Havemos de superar as eventuais dificuldades. O mar está calmo hoje, mas se achar a ondulação excessiva, diga.

            Nunca parava de se surpreender com o número de turistas que se aventuravam no mar convencidos que o encontrariam tão sereno como a água no interior do recife. As brochuras sobre a matéria nunca mostravam a crista de uma onda em torno das Caraíbas, mas podia registrar-se ondulação alterosa.

            Conduziu o Foxy Lady para fora da enseada e apontou-o ao largo. A seguir à Ponta Noroeste, haveria alguma agitação, talvez excessiva para o ancião, todavia Monk conhecia um local na área de Pine Key, na direção contrária, onde o oceano se apresentava sempre mais sereno e havia abundância de dourados.

            Prosseguiram durante quarenta minutos, até que ele avistou um largo tapete de algas marinhas, indicativo que o peixe não se encontrava longe, um pouco abaixo da superfície, para se proteger do sol.

            Julius dispôs quatro varas de pesca na amurada, depois de diminuir a velocidade, e a embarcação começou a descrever largos círculos. Durante o terceiro, uma das linhas sofreu um puxão violento, e o inglês levantou-se de baixo do toldo e instalou-se na cadeira apropriada. Julius passou-lhe a vara, enfiou a extremidade na abertura entre as pernas do cliente e começou a puxar as outras três linhas.

            Jason Monk apontou a proa do Foxy Lady no sentido contrário ao do tapete de algas e desceu à coberta. O peixe parara de puxar a linha, mas a vara achava-se encurvada.

            - Continue a puxar - recomendou. - Puxe até a vara ficar reta e depois vá dando folga para frente e enrolando a linha.

            O inglês tentou seguir o conselho. Todavia, passados dez minutos, declarou:

            - Receio que isto seja demais para mim. O peixe tem mais força do que eu supunha.

            - Está bem. Eu o puxo, se quiser.

            - Ficaria profundamente grato.

            Monk sentou-se na cadeira que o cliente desocupou, após o que regressou à sombra do toldo. Eram dez e meia e fazia calor intenso.

            Foram necessários dez minutos de luta renhida para aproximar o peixe da amurada, onde a resistência recrudesceu.

            - Que é? - quis saber o cliente.

            - Um golfinho.

            - Que aborrecimento! Eu gosto dos golfinhos.

            - Não é bem dos que pensa. Estes são comestíveis e são muito saborosos.

            Entretanto, Julius munira-se de um arpão, com o qual puxou o peixe para bordo.

            - Tem aqui um belo exemplar - disse ao inglês.

            - É de Mr. Monk e não meu.

            Este último abandonou a cadeira, soltou o anzol da boca do peixe e indicou a Julius:

            - Tome conta do leme e rume para o porto.

            O homem inclinou a cabeça sem compreender e subiu a escada, para tomar conta dos comandos. Monk abriu a caixa frigorífica, extraiu duas cervejas, abriu-as e entregou uma das latas ao cliente.

            - Não é a pesca que lhe interessa, hem, Mr. Irvine?

            - De fato, não é a minha paixão.

            - Claro, e também não é Mr. Irvine, creio. Há qualquer coisa que me intriga, no meio disto. A visita de um VIP a Langley, enviado pelo British Intelligence Service.

             - Que memória a sua!

            - O  nome “Sir Nigel” não me é estranho. Muito bem, Sir Nigel Irvine, deixemos de rodeios. De que se trata?

            - Desculpe o ardil a que recorri. Queria apenas conversar. A sós. Há poucos lugares mais isolados que o alto-mar.

            - É verdade, conversemos. De quê?

            - Receio que seja da Rússia.

            - É um país enorme. De modo algum o meu favorito, diga-se de passagem. Quem o enviou?

            - Ninguém. Carey Jordan falou-me de você. Almoçamos juntos em Georgetown, há dias. Manda-lhe cumprimentos.

            - Retribua-os, se voltar a vê-lo. Mas decerto sabe que ele já abandonou aquilo. Compreende ao que me refiro por “aquilo”? Retirou-se do jogo. E eu também. Desconheço o motivo da sua vinda, mas foi uma viagem inútil.

            - Sim, foi o que ele disse. Mas efetuei-a, mesmo assim. Importa-se que lhe apresente a proposta?

            - Bem, restam-lhe duas horas do período que vai pagar. Fale à vontade, se desejar, mas a resposta será sempre negativa.

            - Ouviu falar de um homem chamado Komarov?

            - Os jornais chegam com dois dias de atraso, mas nunca faltam. E ouvimos as notícias da rádio. Como disponho de antena parabólica, não vejo TV. Sim, sei de quem se trata. O futuro homem forte, suponho.

            - É o que todos dizem. Que lhe constou a seu respeito?

            - Dirige a ala direita. Nacionalista, apela com frequência ao patriotismo, etc. Reúne todos os requisitos para atrair as massas.

            - Até que ponto o julga direitista?

            Momk encolheu os ombros.

            - Não sei... substancialmente, sem dúvida. Tanto  como alguns dos nossos senadores ultraconservadores dos confins do Sul.

            - Um pouco mais do que isso, infelizmente. Situa-se tão à direita, que fica fora do mapa.

            - É uma afirmação terrivelmente trágica, Sir Nigel. No entanto, no momento, a minha preocupação fundamental consiste em obter clientes e poder proporcionar-lhes pescarias abundantes. As inclinações políticas do austero Mr. Komarov não me dizem respeito.

            - Mas receio que venham a dizer. Um dia. Eu... nós... alguns amigos e antigos colegas pensamos que se lhe deve travar o  ímpeto de forma radical. Precisamos de um homem que vá à Rússia. Carey garantiu-me que você foi bom… outrora. Disse que era o melhor... outrora.

            - Sim, isso foi outrora. - Fitou o interlocutor em silêncio durante vários segundos. - Julgo que esta sua diligência não é oficial. Não se trata de política do governo, do seu ou do meu.

            - Bem metida. Os nossos governos assumem a posição que não se pode fazer nada. Oficialmente.

            - E o  senhor pensa que ancorarei  o barco, viajarei  ao outro extremo do mundo e entrarei na Rússia para medir forças com esse lunático ao serviço de um grupo de indivíduos quixotescos que nem sequer contam com apoio governamental? - Levantou-se, amassou a lata de cerveja vazia entre os dedos e atirou-a ao receptáculo do lixo. - Lamento, Sir Nigel, mas perdeu tempo e o dinheiro da passagem de avião. Voltemos para terra. O passeio é grátis.

            Regressou à ponte de comando, tomou conta do leme e apontou o Foxy Lady ao porto, onde chegaram quinze minutos mais tarde.

            - Engana-se acerca da despesa - disse o inglês. - Contratei os seus préstimos de má fé, mas você aceitou o serviço de boa fé. Quanto é meio dia de trabalho?

            - Trezentos e cinquenta dólares.

            - Com uma gratificação para o seu jovem amigo. - Separou quatro notas de cem dólares de um maço. - A propósito, tem algum serviço previsto para a tarde?

            - Não.

            - Vai, portanto, para casa?

            - Assim espero.

            - Eu também. Receio que, na minha idade, convenha passar pelas brasas, com este calor. Mas enquanto descansa à sombra, à espera que as horas mais quentes passem, importa-se de fazer uma coisa?

            - Terminou a pesca por hoje - advertiu Monk.

            - Que idéia! - Sir Nigel introduziu a mão no bornal suspenso do ombro e extraiu um envelope castanho, que conservou na mão por um momento. - Contém  um relatório. Leia-o. Mais ninguém deve vê-lo, pelo que convém mantê-lo sempre ao seu alcance. É mais ultra-secreto do que o material que Orion, Delfos ou Pégaso alguma vez lhe forneceram.

            Estas palavras tiveram quase o efeito de um soco no plexo solar de Monk. Enquanto o inglês se afastava em direção ao carro que alugara, ele permanecia imóvel, boquiaberto. Por último, abanou a cabeça, enfiou o envelope dentro da camisa e dirigiu-se ao Tiki Hut para comer um hamburger.

            Quando chegara às ilhas que constituem o Caicos  Oeste, Provo, Central, Norte, Leste e Sul; o dinheiro escasseava e os preços na parte norte, onde os turistas afluíam e se erguiam os hotéis, eram elevados. Por conseguinte, as despesas que se vira obrigado a fazer para se instalar devidamente haviam-no deixado com um pecúlio reduzido. Por uma renda modesta, alugara um bangalô na seleta baía Sapodiilla, a sul do aeroporto e voltado para o setor da costa de mar mais perigoso, onde somente os barcos de pequeno calado se aventuravam. A embarcação e um maltratad furgão Chevrolet constituíam todos os seus bens.

            Encontrava-se sentado à sombra, em contemplação do pôr-do-Sol, quando o motor de um veículo “tossiu” antes de se imobilizar no caminho arenoso nos fundos da casa. Em seguida, o corpo esguio do inglês surgiu da esquina. Desta vez, a indumentária anterior era completada com um enrugado casaco tropical de alpaca.

            - Disseram-me que o encontraria aqui - anunciou jovialmente.

            - Quem?

            - A atenciosa jovem do Banana Boat.

            Mabel há muito que deixara os quarenta anos para trás. Irvine transpôs os degraus de acesso ao pequeno terraço e gesticulou na direção da cadeira de balanço vaga.

            - Posso?

            - À vontade. - Monk sorriu. - Vai uma cerveja?

            - No momento não, obrigado.

            - Posso preparar um detestável daiquiri. A lima é a única fruta que tenho.

            - Prefiro-o.

            Ocupou-se das bebidas e conservaram-se sentados em silêncio por uns momentos, enquanto as saboreavam.

            - Já o leu?

            - Já.

            - E?...

            - É pavoroso. Provavelmente, trata-se de uma  invenção. - Irvine inclinou a cabeça, num gesto de compreensão.

            - Foi o que pensamos, a princípio. Era a dedução óbvia. Mas merecia a pena certificarmo-nos. O nosso pessoal em Moscou incumbiu-se disso.

            - Não apresentou o resultado das diligências na capital da URSS.

            Descreveu-as, passo a passo, e Monk não pôde dominar o interesse crescente.

            - Três, e morreram todos? - acabou por articular.

            - Receio que sim. Tudo indica que Komarov decidiu tomar todas as precauções. Ele não conheceria o conteúdo, se tivesse sido escrito por outro. Corresponde na verdade, ao que tenciona fazer.

            - E acha que pode ser “terminado”? Eliminado?

            - Não. Eu disse “neutralizado”. Não é a mesma coisa. A “terminação”, para empregar a curiosa fraseologia da CIA, não resolveria nada. - E o inglês explicou porquê.

            - Mas pensa que pode ser neutralizado, desacreditado, extinto como uma força?

            - É essa a minha opinião.

            Após um longo silêncio, Monk levantou-se e renovou as bebidas.

            - Foi uma tentativa respeitável, Sir Nigel. Talvez tenha razão. É possível que se consiga neutralizar o homem. Mas não pela minha intervenção. Terá de procurar outro mensageiro.

            - Os meus... associados são pessoas generosas. Haveria uma remuneração, claro. Meio milhão de dólares. Uma quantia considerável, mesmo nos tempos que correm.

            Imaginou a soma acabada de mencionar. Daria para liquidar as prestações do Foxy Lady que restavam, comprar o bangalô e um furgão decente. E sobraria o suficiente para investir a dez por cento ao ano. Acabou, porém, por abanar a cabeça.

            - Safei-me daquele famigerado país por uma unha negra. E jurei que não tornaria a pôr os pés ali. É uma oferta tentadora, mas recuso-a.

            - Bem, lamento, mas a necessidade obriga-me a recorrer a este meio. Isto foi-me entregue hoje, chegado no correio da manhã.

            Irvine levou a mão ao bolso interior do casaco, extraiu dois envelopes e estendeu-os a Monk, que puxou de cada um deles uma folha de papel timbrado.

            Uma provinha da companhia financeira da Florida e explicava que, devido a alterações introduzidas nos regulamentos, a concessão de facilidades de empréstimo em determinados territórios deixava de constituir um risco aceitável. Assim, o pagamento integral do Foxy Lady devia consumar-se dentro de um mês, sob pena da companhia proceder ao confisco do bem em causa.

            A outra folha exibia o emblema do governador das ilhas Turks e Caicos e deplorava ter de comunicar que Sua Excelência, que não necessitava de invocar motivos, tencionava cancelar a autorização de residência e exercício de toda e qualquer atividade comercial de um certo Jason Monk a partir da data referida no documento. A anteceder o nome ilegível do signatário, figurava a habitual fórmula: “Obediente e prestável servidor”.

            Monk dobrou ambas as cartas e pousou-as na mesa entre as duas cadeiras de balouço.

            - É um golpe sujo.

            - Vejo-me obrigado a concordar - admitiu Sir Nigel, olhando o mar pensativamente. - Mas é essa a alternativa.

            - Não pode encontrar outra pessoa?

            - Não quero outra pessoa. Só você me interessa.

            - Está bem, arrebente comigo. Já tentaram fazê-lo no passado e sobrevivi. Sobreviverei, mais uma vez. Mas não volto à Rússia.

            Irvine suspirou e pegou o Manifesto Negro.

            - Foi mais ou menos o que Carey disse. Garantiu-me que você não o faria por dinheiro, nem cederia a ameaças.

            - Bem, ao menos a velhice não lhe afetou a sensatez. - Monk levantou-se.  - Afinal, não foi um prazer conhecê-lo. Creio que nada mais temos a dizer um ao outro.

            Sir Nigel pôs-se igualmente de pé, com uma expressão pesarosa.

            - É pena. Quando ascender ao poder, Komarov não estará só. Terá a seu lado, a guarda pessoal e o respectivo comandante, que, no momento em que o genocídio começar, exercerá as funções de verdugo da nação.

            E mostrou uma fotografia. Monk viu-se perante o rosto frio de um homem mais ou menos cinco anos mais velho do que ele. Entretanto, o inglês encaminhava-se para os fundos do bangalô, onde deixara o carro.

            - Quem diabo é? - bradou o americano.

            A voz do antigo mestre-espião chegou até ele através da escuridão que se acentuava.

            - O coronel Anatoli Grishin.

 

            O aeroporto de Providenciales não é o maior terminal de aviação do mundo, mas suficientemente agradável para as chegadas e partidas, pois despacha os passageiros com razoável rapidez. No dia seguinte, Sir Nigel Irvine entregou a sua única mala, transferiu-se para o balcão de verificação dos passageiros e daí para a área de embarque. O aparelho da American Airlines com destino a Miami aguardava ao sol.

            Devido ao calor, a maior parte das construções é aberta dos lados, e somente uma corrente metálica separa esse espaço do início das pistas. Alguém contornara o terminal e espreitava para dentro. Naquele momento, os altofalantes indicaram aos lados, e somente uma corrente metálica separa esse espaço filar em direção ao avião.

            - Muito bem - disse Jason Monk, do outro lado da corrente. - Onde e quando?

            Irvine extraiu uma passagem do bolso do peito do casaco e entregou-lhe.

            - Providenciales-Miami-Londres. Primeira classe, claro. Dentro de cinco dias. Dispõe de tempo suficiente para arrumar as suas coisas. Estará ausente cerca de três meses. Se as eleições se realizarem em Janeiro, não poderemos fazer nada. Se descer do avião em Heathrow, haverá alguém à sua espera.

            - O senhor?

            - Duvido. Alguém.

            - Como se conhecerá?

            - Não se preocupe com isso. - Começou a afastar-se. - Antes que me esqueça: a oferta dos dólares mantém-se.

            Monk puxou as duas cartas e perguntou:

            - Que lhes faço?

            - Queime-as. Ao contrário do documento, são falsas.

            Sir Nigel encontrava-se a meio caminho do aparelho, com a hospedeira a seu lado, quando soou um grito atrás deles.

            - É um esperto filho da mãe!

            A jovem olhou-o, chocada, porém o inglês exibiu um sorriso malicioso.

            - Faz-se o que se pode.

            De volta a Londres, Sir Nigel Irvine embrenhou-se numa semana de intensa atividade.

           

            No caso de Jason Monk, o que vira agradara-lhe, e a descrição do seu antigo chefe, Carey Jordan, fora impressionante. Mas dez anos são um lapso de tempo muito longo para estar afastado do jogo.

            As coisas tinham mudado. A Rússia tornara-se quase irreconhecível em comparação com a antiga URSS que Monk visitara fugazmente. A tecnologia modificara-se e quase todas as localidades haviam abandonado as designações comunistas e readquirido as dos tempos pré-revolucionários. Se ficasse imerso na Moscou moderna sem instruções prévias intensivas, poderia desorientar-se com a transformação.

            Não haveria qualquer possibilidade de contactar com a embaixada britânica ou a americana para que lhe acudissem. Não obstante, precisaria de algum lugar para se ocultar ou de pessoas amigas que pudessem lhe ajudar.

            Outras coisas permaneciam, porém, inalteradas. O país ainda dispunha de um vasto serviço de segurança interna, o FSB, herdeiro do raio de ação do Segundo Diretorado Principal. Mesmo que tivesse abandonado o serviço, Anatoli Grishin decerto mantinha contatos com ele.

            Mas nem isso constituía o principal perigo, perante o nível pandêmico de corrupção. Graças a fundos virtualmente ilimitados, que Komarov e, portanto, Grishin pareciam possuir, enquanto a Mafia do Dolgoruki pavimentava o caminho de acesso ao poder, não existia qualquer nível de cooperação dos órgãos do Estado que não pudessem obter por meio do suborno.

            A realidade insofismável consistia em que a hiperinflação levara todos os empregados do governo central a satisfazer quem oferecia mais. A quantia apropriada podia comprar a colaboração total de qualquer organização de segurança do Estado ou um exército privado de soldados de forças especiais.

            Juntando a isto os guardas negros de Grishin e os milhares de jovens combatentes fanáticos, além do exército invisível da rua, do submundo do crime, se compreenderá que o sanguinário homem de mão de Komarov dispunha de efetivos mais do que suficientes para localizar e esmagar o estrangeiro que viera para desafiá-lo.

            De uma coisa o antigo mestre-espião tinha certeza: Anatoli Grishin não tardaria a inteirar-se do regresso de Monk ao seu terreno, o que de modo algum lhe agradaria.

           

            A primeira coisa que Irvine fez foi reunir um pequeno, porém merecedor de inteira confiança, grupo de profissionais das forças especiais britânicas.

            Após décadas de lutas contra o terrorismo do IRA no seio do Reino Unido, participar em guerras nas Malvinas e no Golfo e em outras não declaradas de Bornéu a Omana e de África à Colômbia, a Grã-Bretanha produzira uma fonte de mão-de-obra composta pelos homens mais experientes nos domínios das atividades secretas.

            Saul Nathanson, fiel ao prometido, tratara de estabelecer um depósito confidencial num banco de base britânica no estrangeiro. Recorrendo a um código de aspecto inocente, através do telefone, Irvine podia transferir as quantias que necessitasse para a delegação de Londres para utilização imediata.

            Em menos de quarenta e oito horas, tinha seis indivíduos jovens preparados para atender a qualquer momento, dois dos quais falavam fluentemente russo. Algo que Jordan dissera intrigara-o e, numa tentativa para aprofundar essa pista, um dos que falavam russo deslocou-se a Moscou, munido de uma quantia substancial. Permaneceu ausente duas semanas e regressou acompanhado de informações encorajadoras.

            Os outros cinco também não se conservaram inativos. Um seguiu para a América, com uma carta de apresentação para se encontrar com Ralph Brooke, presidente da InTelCor. Os restantes foram procurar vários peritos numa variedade de áreas especializadas que Irvine pensava que seriam necessários. Depois de distribuir todas as tarefas, concentrou-se no problema que desejava enfrentar pessoalmente.

            Cinquenta e cinco anos atrás, quando regressava à Europa após um período de convalescença, prestara serviço na seção dos serviços secretos do general Horrocks, comandante do Corpo XXX, que avançava na estrada de Nijmegen da Holanda, numa tentativa desesperada para render as tropas de pára-quedistas que aguentavam a cabeça-de-ponte de Arnhem.

            Um dos regimentos daquela unidade era o dos guardas granadeiros, entre cujos jovens oficiais figurava um certo major Peter Carrington. Outro, com o qual Irvine mantivera muitos contactos, era o major Nigel Forbes.

            Este último, por morte do pai, herdara o título de Lorde Forbes, o primeiro da Escócia. Depois de vários telefonemas para lá, Irvine conseguiu finalmente localizá-lo no clube do exército e da marinha, no Pall Mall de Londres.

            - Eu sei que é uma tentativa incerta, mas preciso contactar um pequeno  seminário - explicou, depois de se reapresentar. - Uma coisa privada. Muito privada, mesmo.

            - Ah, um seminário desses!

            - Exato. Dos que admitem cerca de uma dúzia de pessoas. Ocorre-lhe algum nessas condições?

            - Para quando?

            - Amanhã.

            - Hum... A minha casa não serve, porque é muito pequena. Leguei, há algum tempo, o castelo ao meu rapaz, mas creio que está fora. Vou certificar-me.

            O lorde escocês telefonou uma hora mais tarde. O seu “rapaz” e herdeiro, Malcolm, que completava cinquenta e três anos dentro de pouco mais de um mês, confirmara que partia no dia seguinte para as ilhas gregas, onde se manteria algumas semanas.

            - Acho que vocês podem reunir-se lá - acrescentou. - Mas nada de excessos, hem?

            - Com certeza - prometeu Irvine. - Apenas conferências, projeções de slides e coisas do gênero. Todas as despesas serão cobertas, e algo mais.

            - Então, fica combinado. Vou telefonar a Mrs. McGillivray, para preveni-la da sua ida. Ela cuidará de tudo.

            Na alvorada do sexto dia, o vôo nocturno da British Airways procedente de Miami pousava no terminal quatro de Heathrow e largava Jason Monk entre 400 passageiros no aeroporto mais movimentado do mundo. Mesmo àquela hora, milhares de viajantes chegavam de vários pontos do globo e seguiam para a inspeção dos passaportes. Monk, por viajar em primeira classe, foi dos primeiros a desembarcar.

            - Negócios ou prazer?  perguntou o funcionário.

            - Turismo.

            - Feliz estada entre nós.

            Monk guardou o passaporte e encaminhou-se para o carrossel da bagagem. Registrou-se um compasso de espera de dez minutos, até que as malas começaram a rolar. A dele encontrava-se entre as primeiras vinte. Quando entrou no átrio, passeou o olhar pelas pessoas que aguardavam, muitos dos quais motoristas que exibiam cartões com nomes de passageiros individuais ou companhias. Em nenhum se via a palavra “Monk”.

            Avançou ao longo das duas linhas de barreiras que formavam uma passagem em direção à sala principal e, no final, ouviu uma voz em surdina:

            - Mr. Monk?

            O homem aparentava cerca de trinta anos, com calça de ganga, blusão de couro castanho e cabelo cortado curto, de aspecto geral irrepreensível.

            - Sim, sou eu.

            - O passaporte, por favor.

            Monk apresentou-o e o outro verificou a identidade. Tinha “ex-militar” estampado em todo o corpo e, a avaliar pelas mãos possantes e nodosas, parecia pouco provável que prestasse serviço atrás de uma mesa.

            - Chamo-me Ciaran - informou, devolvendo o passaporte. - Acompanhe-me, por favor.

            Em vez de se dirigir para um carro estacionado, pegou na mala de Monk e encaminhou-se para o transporte do aeroporto, no qual se mantiveram sentados em silêncio, enquanto os conduzia ao terminal um.

            - Não vamos para Londres? - estranhou Monk.

            - Não, senhor. Para a Escócia.

            Ciaram dispunha de bilhetes para ambos. Uma hora mais tarde, o vôo Londres-Aberdeen decolou com destino às Highlands e o inglês mergulhou na leitura da Army Quarterly and Defence Review. Quaisquer que fossem as suas capacidades, a conversa fiada não figurava nelas. Monk aceitou o seu segundo café da manhã da manhã a bordo de um avião e recuperou algum sono perdido durante a travessia do Atlântico.

            - No aeroporto de Aberdeen, havia um transporte à espera um longo Landrover Discovery, com outro ex-militar taciturno ao volante, o qual trocou oito sílabas com Ciaran, que parecia constituírem uma conversa prolongada, segundo a sua bitola.

            Monk nunca vira os montes das Terras Altas escocesas, que começaram a atravessar depois de abandonar o aeroporto nos arrabaldes da cidade de Aberdeen. O condutor anônimo enveredou pela estrada A96 de Inverness e, alguns quilômetros adiante, cortou à esquerda. O poste de sinalização dizia apenas: Kemnay. Cruzaram a aldeia de Monymusk para atingir a rodovia Aberdeen-Aldorf. Cinco quilômetros mais tarde, o Landrover virou à direita, atravessou Whitehouse e rumou a Keig.

            Havia um rio à direita, e Monk perguntou-se se conteria salmões ou trutas. Pouco antes de Keig, o veículo abandonou a estrada, seguiu ao longo do curso de água e por um caminho estreito ascendente. Após duas curvas, tornou-se visível um castelo antigo pousado numa eminência sobranceira às colinas. Naquele momento, o condutor voltou-se e proferiu:

            - Bem-vindo ao castelo Forbes, Mr. Monk.

            - Fez boa viagem? - Sir Nigel Irvine acabava de emergir da entrada.

            - Excelente.

           - Cansativa, em todo o caso. Ciaran vai indicar-lhe o quarto. Tome um banho e durma uma soneca. Almoçamos dentro de duas horas. Temos muito que fazer.

            - Sabia que eu tinha chegado.

            - Exato.

            - Mas ele não fez qualquer telefonema.

            - Ah, compreendo ao que se refere. Aqui Mitch - apontou para o condutor, que retirava a mala do veículo - também estava em Heathrow. E no avião de Aberdeen. Nos últimos lugares. Chegou primeiro ao aeroporto, porque não teve de esperar pela bagagem. Alcançou o Landrover com cinco minutos de antecedência.

            Monk suspirou. Não descobrira o homem em Heathrow nem a bordo do avião. A má notícia consistia em que Irvine tinha razão  havia de fato muito que fazer. A boa dizia respeito ao fato de se encontrar entre profissionais competentes.

            - Eles vão comigo?

            - Receio que não. Quando chegar lá, você ficará entregue aos seus próprios meios. Nas próximas três semanas, vamos tentar ensinar-lhe a sobreviver.

            O almoço compunha-se de carne de cordeiro picada coberta por uma crosta de purê de batata. Os anfitriões chamavam-lhe empada de pastor e estava embebida num molho escuro assaz condimentado. Havia cinco pessoas à mesa: Sir Nigel Irvine, sempre bem disposto, o próprio Monk, Cirian e Mitch, que se dirigiam sempre ao americano e ao primeiro por “chefe”, além de um homem de expressão alerta e cabelo branco ralo que falava bem inglês, mas com um sotaque que Monk reconheceu como sendo russo.

            - Também teremos de nos exprimir em inglês, porque não dominamos   todos o russo - explicou Irvine. - No entanto, durante quatro horas por dia, pelo menos, você conversará nesse idioma com Oleg.

            Monk assentiu com uma inclinação de cabeça. Havia anos que não falava russo e preparava-se para averiguar até que ponto o esquecera.

            - Por conseguinte - continuou Sir Nigel, - Ciaran, Oleg e Mitch serão residentes permanentes. Haverá outros de passagem, em cujo número me  incluo. Dentro de dias, quando você estiver devidamente aclimatado, terei de voar para o sul, a fim de tratar de... outras coisas.

            Se Monk pensava que seria prestada alguma consideração à diferença de fusos horários, equivocava-se. Logo após o almoço, teve uma sessão de quatro horas com Oleg.

            Este último inventou uma sequência de cenários. Tão depressa era um agente da Polícia na rua, que interceptava Monk para lhe exigir os documentos e perguntar de onde vinha e para onde ia, como um empregado de mesa, em busca de pormenores complicados de uma encomenda de jantar ou um provinciano russo solicitando indicações a um moscovita.

            Quando se dedicava à atividade de guia de turistas pescadores nas Caraíbas, Monk julgara-se em forma física razoável, apesar do indiscutível aumento do perímetro abdominal. No entanto, enganava-se por completo. Pouco antes da alvorada do dia seguinte, efetuou a primeira corrida de corta-mato com Ciaran e Mitch.

            - Vamos começar com uma prova fácil - propôs este último.

            Assim, percorreram apenas oito quilômetros através de urze até à cintura. A princípio, Monk julgou que chegara a sua última hora. Depois, desejou que isso acontecesse.

            Havia apenas dois membros do pessoal doméstico: a governanta, a impressionante Mrs. McGillivray, viúva de um funcionário público, que cozinhava, procedia à limpeza dos aposentos e aceitava com um franzir de nariz de desaprovação a série de peritos que entravam e saíam, com os seus variados sotaques ingleses, e Hector, que cuidava do jardim e da horta e se deslocava a Whitehouse na sua motorizada para adquirir provisões. Nunca apareciam fornecedores de qualquer espécie. Mrs. McGee, como os homens lhe chamavam, e Hector viviam em dois pequenos anexos junto do castelo.

            Apareceu um fotógrafo, para obter várias fotos de Monk para os diferentes documentos de identidade em preparação em outro lugar. Um maquiador procedeu à alteração do seu visual e ensinou-o a fazê-lo, em caso de necessidade.

            Depois de operada a modificação, foram tiradas mais fotografias para novo passaporte. Monk passou horas diante de um largo mapa de Moscou e as suas centenas de novos nomes pelo menos, novos para ele. O Cais Maurice Thorez, batizado com o nome do falecido dirigente comunista francês, passara a chamar-se Sofiskaya, como antigamente. Todas as referências a Marx, Engels, Lenin, Dzerzhinsky e outras figuras notáveis do comunismo tinham igualmente desaparecido.

            Memorizou os cem edifícios mais proeminentes e sua localização e a maneira de utilizar o novo sistema telefônico e de chamar um “táxi” instantâneo, fazendo sinal a qualquer automobilista e oferecendo-lhe um dólar.

            Havia uma sala isolada, onde se sentou durante horas com um homem de Londres, mais um indivíduo que falava russo, mas inglês, a contemplar rostos, rostos e mais rostos. Havia também livros para ler, os discursos de Komarov e jornais e revistas russos. E pior que tudo, havia diversos números de telefone para memorizar, até que ficou com meia centena armazenada na cabeça.

            Sir Nigel Irvine reapareceu na segunda semana, mostrando-se cansado, mas satisfeito. Não disse onde tinha estado. Trazia algo que um dos membros da sua equipe comprara depois de vasculhar as lojas de antiguidades de Londres.

            - Como soube disto? - perguntou  Monk, voltando-o nas mãos.

            - Não interessa. Tenho o ouvido apurado. É o mesmo?

            - Idêntico. Pelo menos, tanto quanto recordo.

            - Então, deve dar certo.

            Acompanhavam igualmente uma mala de viagem, criada por um artesão especializado. Seria necessário um inspetor excepcionalmente esperto para discernir o compartimento interior onde Monk podia ocultar dois documentos: o Manifesto Negro, na sua versão original russa, e o relatório Verificação, que o autenticava, agora traduzido naquele idioma.

            Na segunda semana, ele começou a sentir-se fisicamente mais em forma que nunca. Tinha os músculos mais rijos e o vigor aumentara, embora soubesse que nunca poderia se equiparar a Ciaran ou Mitch nesse aspecto, pois podiam marchar horas consecutivas, através das barreiras da dor e exaustão até às portas da morte, onde somente a força de vontade mantém o corpo em movimento.

            No meio daquela semana, George Sims fez a sua aparição. Era de idade aproximada à de Monk e antigo oficial do regimento SAS. Na manhã seguinte, levou Monk para o relvado, ambos de roupa de treino. Afastou-se então cerca de quatro metros e, com notável sotaque escocês, disse:

            - Ficaria muito grato se tentasse me matar.

            Dominada a perplexidade inicial, o americano aproximou-se, efetuou duas ou três simulações e atacou. No instante imediato, encontrava-se de bruços no chão.

            - Tem de ser mais rápido aconselhou o homem.

            Hector raspava cenouras para o almoço na cozinha, quando Monk vôou diante da janela.

            - Que diabo eles estão fazendo? - grunhiu.

            - É apenas uma maneira diferente de matar o tempo - replicou Mrs. McGee, com um encolher de ombros de indiferença.

            No bosque, Sims apresentou a Monk a automática Sig Sauer de nove milímetros.

            - Achavaa que vocês utilizavam a Browning de treze tiros - disse Monk, esperando demonstrar erudição na matéria.

            - Isso foi há anos. Há mais de dez que optamos por esta. - O escocês estabeleceu um alvo de um homem agachado, caminhou quinze passos, voltou-se e produziu cinco furos no coração. Por seu turno, Monk arrancou-lhe a orelha esquerda e atingiu a coxa. Empregaram cem balas duas vezes por dia durante três, até que ele conseguiu acertar no rosto do homem agachado três vezes em cada cinco tentativas.

            - Isto costuma desencorajá-los - admitiu Sims, - no  tom de quem sabia que não conseguiria melhor.

            - Com um pouco de sorte, nunca terei de usar estes malfadados brinquedos - observou Monk.

            - É o que todos dizem. Um dia, a sorte está olhando para o outro lado. Convém evitar que o apanhem desprevenido.

            No início da terceira semana, Monk foi apresentado ao seu comunicador, um homem surpreendentemente jovem chamado Danny, proveniente de Londres.

            - É um computador portátil perfeitamente normal - explicou.

           Com as dimensões de um livro vulgar, a tampa levantava-se para revelar uma tela na parte inferior, e o teclado, em duas metades, convertia-se em algo de muito semelhante ao de uma máquina de escrever.

            Este disquete - acrescentou pegando numa espécie de cartão de crédito e introduzindo-o num dos lados, - contém a gama de informação normal necessária a um homem de negócios como o que você parecerá. Se alguém interferir nela, só obterá elementos comerciais de interesse nulo. Pegou outro cartão e perguntou: - Que parece isto?

            - Um Visacard?

            - Veja bem.

            Monk examinou a fina folha de plástico, com a usual faixa magnética.

            - Bem, parece um Visacard.

            - E até funcionará como tal - assegurou-lhe Danny, - mas nunca o utilize com essa intenção. Conserve-o em lugar seguro, e só o use em caso de absoluta necessidade.

            - Para que serve?

            - Para muitas coisas. Codifica tudo o que você quiser introduzir. - Memorizou uma centena de blocos, o que quer que isso seja. Extraiu o disquete original e  substituiu-o pelo Visacard. Ora bem. - A tampa contém uma pilha de lítio com potência suficiente para alcançar o satélite. Mesmo que disponha de energia elétrica da rede, sirva-se da pilha, para a eventualidade de se registrar uma quebra de tensão. Utilize a rede para a recarregar. Agora, ligue o aparelho.

            Indicou o respectivo interruptor e Monke accionou-o.

            - Bata a sua mensagem para Sir Nigel no tela, em linguagem clara.

            Monk constituiu uma mensagem de vinte palavras para confirmar que chegara bem e estabelecera o primeiro contato.

            - Agora,  aperte esta tecla. Indica algo de diferente, mas transmite a ordem para codificar.

            - Obedeceu e não aconteceu nada. As palavras continuaram no tela.

            - Aperte na que diz Power off. Ato contínuo, desapareceram.

            - Foram-se para sempre - informou Danny. - Totalmente apagadas da memória. No entanto, ficaram armazenadas no Wsa Virgil, prontas para serem transmitidas. Torne a ligar a tampa.

            Monk obedeceu e o tela iluminou-se, mas manteve-se em branco.

            - Aperte esta outra tecla. Diz algo de diferente, mas quando o Virgil é inserido, significa “transmitir/receber”. Deixe isso ligado. Duas vezes por dia, um satélite surgirá do horizonte. À medida que se aproximar do lugar em que você se encontrar, transmitirá uma mensagem aqui para baixo. A frequência é a mesma do Virgil, mas demora uma fração de segundo e está codificada. O que diz é:   “Está aí, querido?” Virgil “ouve” a chamada, identifica a Mãe e transmite a sua mensagem. Chamamos-lhe aperto de mão.

            - É só isto?

            - De modo algum. Se a Mãe tiver uma mensagem para Virgil, transmitirá e este a receberá, tudo no mesmo bloco de código. A seguir, a Mãe passa sobre o horizonte e desaparece. Entretanto, terá enviado a sua mensagem para a base de recepção, onde quer que ela se situe. Não sei, nem preciso saber.

            - Tenho de ficar junto da máquina, enquanto faz tudo isso?

            - É claro que não. Pode ocupar-se de outras coisas. Quando regressar, a  tela ainda estará aceso. Basta apertar este botão. Embora não diga “decodificar”, é o que faz, se Virgil estiver lá dentro. Este decodificará a mensagem proveniente da base. Não se esqueça disto: aperte a tecla power-off e apaga tudo. Para sempre.

            - Mais uma coisa. Se realmente quiser pulverizar o pequeno cérebro do Virgit, aperte sucessivamente nestes quatro números. - Danny indicou-os, inscritos numa pequena tira de cartolina. - Por conseguinte, não o faça a menos que queira convertê-lo num Visacard vulgar sem qualquer outra função”.

            Passaram dois dias recapitulando a maneira de proceder, até que Monk foi considerado apto. Em seguida, Danny regressou ao seu mundo de chips de silício.

            No final da terceira semana no Castelo Forbes, todos os instrutores se consideraram satisfeitos com o aluno.

            - Há algum telefone que possa usar? - perguntou Monk, naquela noite, quando se encontrava na sala com Ciaran e Mitch, após o jantar.

            Este último ergueu os olhos do tabuleiro de xadrez em que tinha Ciaran como adversário e indicou o aparelho a um canto.

            - Uma linha privada - esclareceu o americano.

            Os outros olharam-no com curiosidade, e Ciaran acabou por dizer:

            - Utilize o do escritório.

            Monk sentou-se entre os livros e os trofeus de caça de Lorde Forbes e marcou um número do outro lado do Atlântico. A campainha tocou numa pequena casa em Crozet, Virgínia do Sul, onde o Sol estava prestes a desaparecer atrás das montanhas. Alguém atendeu ao décimo toque e uma voz feminina proferiu:

            - Sim?...

            Ele imaginou a pequena sala de estar, cujo fogo ardia ao longo de todo o Inverno.

            - Olá, mãe. É o Jason.

            - Jason! - A voz débil deixava transparecer prazer. - Onde está, meu filho?

            - Tenho estado em viagem. E o pai?

            Desde a trombose, o progenitor passava a maior parte do tempo na cadeira de balanço no terraço, contemplando a vila e os montes arborizados, aonde, quarenta anos atrás, levara o seu primeiro filho à caça e à pesca.

            - Está bem. Neste momento, está cochilando no terraço. Faz calor. Tem sido um Verão quente e longo. Ficará contente por você ter telefonado. Vem nos visitar em breve? Há tanto tempo que não aparece...

            Havia dois irmãos e uma irmã, que há muito haviam partido da casa paterna, todos casados e radicados na Virgínia, e visitavam os pais com regularidade. Monk era o único ausente.

            - Assim que puder, mãe. Prometo.

            - Vai partir de novo, não é verdade?

            Ele sabia o que a mãe queria dizer com “partir”. Ela inteirara-se da missão no Vietnã antes da divulgação do fato, e costumava telefonar-lhe para Washington na iminência de digressões ao estrangeiro, como se suspeitasse de alguma coisa que não podia saber. O instinto das mães era surpreendente: uma distância de cinco mil quilômetros, e conseguia pressentir o perigo.

            - Mas voltarei e irei vê-los.

            - Tenha cuidado, Jason.

            Monk pousou o auscultador e olhou as estrelas sobre a Escócia, através da janela. Devia ter visitado os pais mais vezes. Eram ambos idosos mereciam  e necessitavam que fosse vê-los. Se voltasse da Rússia, arranjaria tempo para isso.

            Duas horas mais tarde, Sir Nigel Irvine lia a transcrição, na sua residência, em Dorset. Na manhã seguinte, Ciaran e Mitch conduziram Monk ao aeroporto de Aberdeen e escoltaram-no no vôo em direção ao sul.

            Passou cinco dias em Londres, juntamente com Sir Nigel, no Montcalm, um hotel sossegado e discreto nos fundos de Marble Arch. Durante essa estada, o antigo mestre-espião explicou-lhe pormenorizadamente o que devia fazer. Por fim, restaram apenas as despedidas e Irvine entregou-lhe um pedaço de papel.

            - Se porventura o maravilhoso sistema de comunicações de alta tecnologia falhar, há alguém que pode levar uma mensagem para fora da Rússia. Como último recurso, claro. Bem, adeus, Jason. Não irei a Heathrow. Detesto os aeroportos. Estou convencido que conseguirá o que se pretende.

            Ciaran e Mitch acompanharam-no até à barreira de embarque de Heathrow, onde lhe estenderam a mão e desejaram felicidades.

            Foi um vôo sem qualquer anormalidade. Ninguém sabia que não se parecia nada com o Jason Monk que chegara ao Terminal Quatro, trinta dias atrás, e não era o homem que figurava no seu passaporte.

            Cinco horas mais tarde, com o relógio adiantado duas, aproximava-se do controle de passaportes, no aeroporto Sheremetyevo de Moscou, e prosseguia em frente, após uma breve parada, durante a qual não despertou a menor suspeita.

            Na área da Alfândega, preencheu o longo impresso de declaração de moeda e pousou a sua única mala no balcão O funcionário olhou-a e em seguida gesticulou para a valise.

            - Abra-a - ordenou em inglês.

            Sorridente, o solícito homem de negócios americano obedeceu. O homem vasculhou entre a papelada e pegou no pequeno computador portátil.

            Jeitoso observou, e voltou a pousá-lo, antes de pegar o giz para marcar a valise e a mala e virar-se para o próximo passageiro.

            Monk pegou a bagagem, transpôs a porta de vidro e imergiu no país que jurara não voltar a visitar.

 

            O Hotel Metropol continuava onde ele o recordava  um cubo enorme de pedra cinzenta defronte do Teatro Bolshoi, do outro lado da praça.

            Monk aproximou-se da Recepção, identificou-se e apresentou o passaporte americano. O recepcionista consultou o tela de um computador e martelou os algarismos e letras necessários, até que surgiu a confirmação. A seguir, examinou o passaporte ergueu os olhos para o rosto de Monk e exibiu um sorriso profissional.

            O quarto era o que ele pedira, em obediência à recomendação do militar que falava russo enviado por Sir Nigel a Moscou, quatro semanas antes, em viagem de reconhecimento, situava-se ao fundo do corredor do oitavo andar, com vista para o Kremlin, e, pormenor mais importante, havia uma varanda ao longo de toda largura do edifício.

            Devido à diferença de horas com Londres, era quase escuro quando se instalou devidamente e já fazia frio considerável para os transeuntes sem posses para possuir um sobretudo. Naquela noite, jantou no hotel e deitou-se cedo.

            De manhã havia outro recepcionista atrás do balcão.

            - Tenho um problema - anunciou o americano. - Preciso ir à embaixada dos Estados Unidos para registrar o passaporte. Não passa de uma formalidade burocrática, mas...

            - Infelizmente, somos obrigados a conservar os passaportes dos clientes durante a sua permanência no hotel.

            Inclinou-se sobre o balcão, e a nota de cem dólares crepitou entre os seus dedos.

            - Compreendo - murmurou, com uma expressão grave, - mas o problema é precisamente esse. Depois de Moscou, tenho de viajar por quase toda a Europa e, com o passaporte prestes a caducar, a embaixada precisa preparar o substituto. Bastará um par de horas para...

            O recepcionista era jovem, casado recentemente e com um filho a caminho, o que contribuiu para que tentasse determinar mentalmente quantos rublos poderia adquirir no mercado negro com uma nota de cem dólares. Assim, olhou para a esquerda e para a direita, proferiu um breve “com licença” entre dentes e desapareceu atrás da divisória que separava o balcão do labirinto de gabinetes. Cinco minutos depois, reaparecia com o passaporte na mão.

            - Preciso dele antes de abandonar o hotel definitivamente - advertiu, a meia-voz.

            - Como referi, logo que a embaixada não o necessitar, tratarei de devolve-lo.  Quando sai de serviço?

            - Às duas da tarde.

            - Se não conseguir trazê-lo, o seu colega o receberá à hora do chá.

            E o passaporte e a nota de cem dólares mudaram de mão. Agora, ambos eram conspiradores. Em seguida, inclinaram levemente a cabeça, sorriram e separaram-se.

            Monk subiu ao quarto, no puxador exterior de cuja porta pendurou a placa “Não incomodar” e trancou-a. No banheiro, extraiu da bolsa de artigos de higiene pessoal o frasco de dissolvente em cujo rótulo figurava a indicação que se tratava de gotas para a vista e verteu água quente na bacia do lavatório.

           O cabelo grisalho anelado do Dr. Philip Peters desapareceu, substituído pelo louro de Jason Monk. O bigode não resistiu à ação da máquina de barbear e os óculos escuros que encobriam os olhos aguados do acadêmico terminaram os seus dias num receptáculo de lixo do corredor.

            O passaporte que retirou da valise estava em seu nome, com a respectiva fotografia, e exibia o carimbo de entrada aposto pelo funcionário da imigração do aeroporto, copiado do que o militar de Irvine trouxera na sua visita ao país, mas com a data apropriada. Entre as suas folhas, encontrava-se um duplicado da declaração de moeda corrente, também com o carimbo falso do respectivo setor.

            No meio da manhã, Monk cruzou o átrio e abandonou o hotel pela porta do lado oposto àquele em que a Recepção se encontrava. Encaminhou-se para a praça de táxis das proximidades, subiu para o primeiro da fila e, em russo fluente, mandou-o seguir para o Hotel Olympic Penta.

            O complexo do Olympic, construído para os Jogos Olímpicos de 1980, situa-se a norte do centro da cidade, nas imediações da Sadovo-Spasskoye, ou estrada marginal arborizada. O estádio ainda se salientava dos edifícios em volta e à sua sombra localizava-se o Penta, de construção alemã. Monk pagou ao motorista e entrou no átrio. Quando o táxi se afastou, ele abandonou o hotel e percorreu o resto do caminho a pé. Aliás, eram apenas cerca de quatrocentos metros.

            A área a sul do estádio degenerara na atmosfera de miséria que se estabelece quando a sua assistência deixa de ser considerada uma necessidade primordial. Os blocos da era comunista exibiam uma patina de poeira de Verão que se converteria numa crosta compacta no frio do próximo Inverno. Pedaços de madeira e esferovite voavam ao sabor do vento, nas ruas.

            Na extremidade da Rua Durova, havia um enclave vedado, cujos jardins e construções revelavam um espírito diferente de cuidado assíduo. Erguiam-se três edifícios principais, no interior da vedação  uma pensão destinada aos visitantes da Província, uma escola irrepreensível que datava de meados dos anos noventa e um lugar de culto.

            A principal mesquita de Moscou fora construída em 1905, uma dúzia de anos antes de Lenin promover o seu movimento revolucionário, e exibia todos os sinais da época. Ao longo de sete décadas sob o comunismo, definhara, à semelhança das igrejas cristãs perseguidas por ordem do Estado ateu. Após a queda do comunismo, uma oferta generosa da Arábia Saudita permitira a promoção e execução de um programa de restauração de cinco anos. A pensão e a escola datavam do programa de meados dos anos noventa.

            A mesquita não mudara de dimensões  era uma construção relativamente pequena azul-clara e branca, com janelas estreitas e duas portas de carvalho lavrado. Monk descalçou os sapatos, depositou-os num dos cacifos à esquerda e entrou. Como todos os templos similares, o interior era completamente aberto e desprovido de cadeiras ou bancos. Luxuosos carpetes, também oferecidos pela Arábia Saudita, cobriam o chão e colunas sustentavam uma galeria que se estendia em torno do edifício acima do espaço central.

            Em conformidade com a fé, não havia gravuras ou pinturas de imagens. Quadros nas paredes continham várias citações do Corão.

            A mesquita servia as necessidades espirituais da comunidade muçulmana de Moscou, com exclusão dos diplomatas, os quais, na sua maioria, prestavam culto na embaixada saudita. No entanto, a Rússia continha dezenas de milhões de muçulmanos, com duas mesquitas públicas na capital. Como não era sexta-feira, só se encontravam presentes algumas dezenas de fiéis.

            Monk procurou um lugar perto da entrada junto à parede, sentou-se de pernas cruzadas e observou o que o rodeava. Na sua maior parte, os homens eram idosos azeris, tártaros, inguish e osseianos. Todos usavam ternos, usados, mas limpos. Transcorridos cerca de trinta minutos, um ancião sentado um pouco adiante, levantou-se e voltou-se para a porta. Ao avistar Monk, cruzou-lhe o rosto uma expressão de curiosidade. As faces bronzeadas, o cabelo louro, a ausência de um rosário... Hesitou e voltou a sentar-se, de costas para a porta. Devia ter mais de setenta anos e pendiam-lhe da lapela três medalhas da Segunda Guerra Mundial.

            - A paz seja contigo - murmurou.

            - Contigo seja a paz - replicou Monk.

            - Pertence à fé?

            - Infelizmente, não. Vim à procura de um amigo.

            - Ah, um amigo especial?

            - Sim, de longa data. Perdemos o contato. Esperava encontrá-lo aqui. Ou alguém que o conhecesse.

            O velho inclinou a cabeça.

            - A nossa comunidade é pequena. Há muitas pequenas. A qual pertence?

            - É checheno - disse Monk.

            O outro tornou a mover a cabeça e levantou-se.

            - Aguarde.

            Reapareceu depois de dez minutos, acompanhado de alguém que encontrara no exterior do templo. Em seguida, gesticulou na direção de Monk, sorriu e afastou-se. O recém-chegado era mais jovem, embora não muito mais.

            - Disseram-me que procura um dos meus irmãos. Posso ser útil?

            - Talvez - assentiu Monk. - Ficaria muito grato. Conhecemo-nos há anos. Agora que estou visitando à sua cidade, gostaria de voltar a vê-lo.

            - Como se chama?

            - Umar Gunayed.

            Assomou um clarão fugaz aos olhos do homem.

            - Não conheço ninguém com esse nome.

            - Então, estou desapontado, porque lhe trouxe um presente.

            - Quanto tempo pensa ficar entre nós?

            - Gostaria de continuar aqui sentado mais um pouco, para admirar a sua linda mesquita.

            - Perguntarei se alguém ouviu falar dele - prometeu o checheno.

            - Obrigado. Sou uma pessoa muito paciente.

            - A paciência é uma virtude.

            Escoaram-se duas horas antes de eles aparecerem, e eram três, todos jovens. Moviam-se em silêncio, sem que os pés descalços produzissem o menor ruído nos espessos carpetes.

            Um postou-se junto da porta, ajoelhado, com o peso do corpo pousado nos calcanhares e mãos no topo das coxas. Poderia pensar-se que rezava, mas Monk sabia que ninguém poderia passar por ele despercebido.

            Os outros dois aproximaram-se e sentaram-se, um em cada lado do americano. O que quer que trouxessem debaixo do casaco, não se achava visível. Monk olhava fixamente na sua frente. Quando principiaram as perguntas eram murmúrios que não perturbavam os fiéis na sua frente.

            - Fala russo?

            - Falo.

            - E pergunta por um dos nossos irmãos?

            - Sim.

            - É um espião russo?

            - Sou americano. Tenho o passaporte no casaco.

            - Polegar e indicador - advertiu o homem.

            Monk extraiu o passaporte americano do bolso e largou-o no carpete. Foi o outro homem que se inclinou para frente e examinou as páginas. Em seguida, assentiu com um movimento de cabeça, devolveu-o e dirigiu-se a Monk em checheno. Este último suspeitou que o sentido geral do que dizia significava que qualquer pessoa pode obter um passaporte americano falso. O indivíduo à sua direita concordou com um gesto e perguntou:

            - Por que procura o nosso irmão?

            - Conhecemo-nos, há muito tempo. Num país distante. Ele se esqueceu de uma coisa e prometi devolve-la, se alguma vez voltasse a Moscou.

            - Tem-na consigo?

            - Na valise.

            - Abra-a.

            Monk soltou os fechos e levantou a tampa. Dentro, encontrava-se uma caixa de cartão oblonga.

            - Quer que a entreguemos?

            - Seria um favor que me faziam.

            O do lado esquerdo tornou a exprimir-se em checheno.

            - Não, não é uma bomba - asseverou Monk, em russo. - Se fosse e eu  abrisse  a  caixa  agora, também morreria. Podem, portanto, fazê-lo.

            Os dois homens entreolharam-se e um inclinou-se para diante e levantou a tampa da caixa de cartão. Em seguida, olharam o conteúdo com alguma perplexidade.

            - É isto?

            - É. Ele o esqueceu.

            O da esquerda fechou-a e retirou-a da valise.

            - Espere aqui - indicou.

            O homem postado à porta viu-o sair, mas conservou-se imóvel. Monk e os dois vigilantes aguardaram durante duas horas. Entretanto, o período do almoço chegou e ficou para trás. Ele ansiava por um suculento hamburger. O clarão que se filtrava pelas pequenas janelas começava a atenuar-se, quando o mensageiro regressou. Sem pronunciar uma única palavra, inclinou a cabeça para os dois companheiros e em seguida na direção da porta.

            - Vamos - proferiu o checheno agachado à direita de Monk.

            Os três levantaram-se. Uma vez no pequeno átrio, recuperaram os sapatos e calçaram-nos. Os dois primeiros ladearam de novo o americano e o terceiro fechava o pequeno cortejo. Monk foi conduzido à Rua Durova, onde um BMW aguardava encostado ao passeio. Antes de o deixarem entrar, revistaram-no meticulosamente.

            Monk sentou-se no meio do banco de trás, com os mesmos dois homens ao lado, enquanto o outro se instalava no da frente, junto do condutor. O veículo pôs-se em marcha e rolou na direção da estrada circular.

            Monk calculara que os três indivíduos não se atreveriam a profanar a mesquita recorrendo à violência, mas dentro do carro a situação mudava de aspecto, e sabia o suficiente de homens como aqueles para não duvidar da facilidade com que se tornavam extremamente perigosos.

            Cerca de dois quilômetros adiante, o da frente estendeu a mão para o porta-luvas, pegou num par de óculos escuros e gesticulou para que Monk os pusesse. Eram melhores que uma venda vulgar, porque as lentes tinham sido pintadas de preto e dispunham de uma espessa proteção lateral. Assim, o americano completou o percurso imerso em escuridão.

            No coração de Moscou, numa rua estreita que a prudência desaconselhava a frequentar, havia um pequeno café chamado KasMan, que significa castanha em russo. Qualquer turista que manifestasse a intenção de entrar era interceptado por um jovem de compleição possante, o qual lhe recomendava que fosse tomar o café da manhã em outro lugar. Nem os membros da Polícia se preocupavam em visitá-lo.           

            Monk foi ajudado a descer do BMW e retiraram-lhe os óculos, enquanto o impeliam através da porta. No momento em que a transpôs, o murmúrio de conversas no idioma checheno extinguiu-se. Vários olhos o observaram em silêncio até que desapareceu num cubículo ao fundo. Se não voltasse a sair, ninguém teria percebido nada.

            Havia uma mesa, quatro cadeiras e um espelho na parede. Da cozinha próxima, provinha o cheiro de alho, especiarias e café. O aparentemente mais graduado dos três chechenos, que permanecera à entrada da mesquita enquanto os subordinados procediam ao interrogatório, falou pela primeira vez.

            - Sente-se. Café?

            - Obrigado. Simples. Com açúcar.

            Serviram-no e era saboroso. Monk ingeriu a bebida fumegante e evitou olhar o espelho, convencido que se tratava de um dispositivo de observação e alguém o examinava do outro lado. No momento em que pousava a xícara vazia, abriu-se uma porta para dar passagem a Umar Gunayev.

            Tinha mudado. Já não usava o colarinho da camisa fora da gola do casaco e o terno não era de qualidade inferior. Devia ter etiqueta de um designer italiano, e a gravata de seda decerto procedia da Jeremy Street ou da Quinta Avenida.

            O checheno amadurecera ao longo dos doze anos, mas, aos quarenta, era bem-parecido, cortês e educado. Inclinou a cabeça para Monk várias vezes, com um leve sorriso, sentou-se e pousou a caixa oblonga de cartão na mesa.

            - Recebi o seu presente - informou. Levantou a tampa e pegou no conteúdo, conservando o gambiah iemenita a contraluz e fazendo deslizar o dedo ao longo do gume. - É  isto?

            - Um deles deixou-o no chão - explicou Monk. - Pensei que gostaria de utilizá-lo para abrir cartas.

            - Desta vez, - Gunayev sorriu divertido.

            - Como soube o meu nome?

            O americano aludiu às fotografias de indivíduos suspeitos que os ingleses em Omana coleccionavam, sobretudo os chegados da Rússia.

            - Que mais descobriu, desde então?

            - Muitas coisas.

            - Boas ou más?

            - Interessantes.

            - Conte-as.

            - Ouvi dizer que o capitão Gunayev, após dez anos no Primeiro Diretorado Principal, acabou por se cansar das brincadeiras raciais e esperanças de promoção nulas. Abandonou o KGB, para se dedicar a outro tipo de atividade. Também secreta, mas diferente.

            O outro soltou uma gargalhada, o que pareceu provocar uma sensação de alívio nos três companheiros. O chefe estabelecera o estado de espírito apropriado à situação.

            - Secreta, mas diferente. Sim, é verdade. Que mais?

            - Depois, descobri que Umar Gunayev progrediu na sua nova vida, até se tornar no chefe supremo indiscutível de todo o submundo checheno a oeste dos Urais.

            - Possivelmente. Alguma outra coisa?

            - Soube também que é um homem tradicional, embora não velho. Ainda se rege pelos antigos padrões do povo checheno.

            - Descobriu muita coisa, meu amigo americano. E quais são esses padrões do povo checheno?

            - Revelaram-me que, num mundo em degeneração, os chechenos ainda se norteiam pelo seu código de honra e pagam as suas dívidas. As boas e as más.

            Registrou-se um momento de tensão nos três homens atrás de Monk. Estaria, porventura, o americano a desfrutá-los? Observavam atentamente o chefe, que acabou por inclinar a cabeça.

            - É exato o que descobriu. Que quer de mim?

            - Abrigo. Um lugar para viver.

            - Há muitos hotéis em Moscou.

            - Mas poucos seguros.

            - Alguém procura matá-lo?

            - Ainda não, mas em breve.

            - Quem?

            - O coronel Anatoli Grishin.

            Gunayev encolheu os ombros, num gesto de indiferença.

            - Conhece-o? - perguntou Monk.

            - Ouvi falar dele.

            - E agrada-lhe o que ouviu?

            O checheno tornou a encolher os ombros.

            - Ele faz o que faz e eu faço o que faço.

            - Na América, se você quisesse desaparecer, eu poderia ajudá-lo a conseguir. Mas isto não é a minha cidade, o meu país. Pode fazer-me desaparecer, em Moscou?

            - Temporária ou permanentemente?

            Monk não pôde conter uma gargalhada.

            - Preferia temporariamente.

            - Nesse caso posso, sem dúvida. É o que deseja?

            - Se conseguir manter-me vivo, eu preferiria manter-me vivo.

            Gunayev levantou-se e dirigiu-se aos três gangsters.

            - Este homem me salvou a vida. Agora, é meu hóspede. Ninguém lhe tocará. Enquanto estiver aqui, será um dos nossos.

            O trio apressou-se a rodear Monk, para lhe apertar a mão, sorrir cordialmente e identificar-se: Asian, Magomed e Sharif.

            - A caçada para capturá-lo já começou? - perguntou Gunayev.

            - Creio que não.

            - Então, deve ter fome. A comida daqui é horrível. Iremos ao meu escritório.

            À semelhança de todos os chefes mafiosos, o dirigente do clã checheno tinha duas personalidades. A mais pública era de um biznizman que controlava várias empresas prósperas. No seu caso, a especialidade que escolhera era a compra e venda de propriedades.

            Nos primeiros anos, limitara-se a comprar terrenos em diversos pontos de Moscou, graças ao simples expediente de subornar ou eliminar os burocratas que, à medida que o comunismo desmoronava e a propriedade do Estado se tornava disponível para aquisição pública, tinham a faculdade de poder negociá-las.

            Com os locais de urbanização transferidos para o seu nome, ele podia tirar partido da vaga de negócios colaborativos estabelecidos entre os magnates russos e os seus homólogos ocidentais. Facultava os terrenos para construção e garantia a mão-de-obra liberta do perigo de greves, enquanto os americanos e europeus ocidentais erigiam os seus blocos de escritórios e arranha-céus. A propriedade tornou-se então uma especulação partilhada, assim como os lucros e rendas desses blocos de escritórios.

            Recorrendo a métodos similares, o checheno assumiu o controle de seis dos maiores hotéis da cidade, ao mesmo tempo que estendia os tentáculos aos setores do aço, cimento, madeira, tijolos e vidro. Se alguém queria restaurar, converter ou construir, tinha de negociar com uma firma subsidiária controlada e pertencente a Umar Gunayev.

            Esta era a face exposta da mafia chechena. A menos visível da operação, como acontecia em todo o mundo gangsteriano moscovita, permanecia nos domínios do mercado negro e desvio de fundos.

            Os bens de Estado russos, como o ouro, diamantes, gás e petróleo, eram simplesmente adquiridos localmente com rublos, às tarifas oficiais e mesmo assim a preços muito baixos. Os “vendedores”, por serem burocratas, podiam, de resto, ser subornados. Exportados para o estrangeiro, os bens eram vendidos por dólares, libras ou marcos aos preços do mercado mundial.

            Uma fração do preço de venda podia então ser reimportada, convertida numa chuva de rublos ao câmbio oficioso e utilizada para adquirir a encomenda seguinte e custear os subornos necessários. O saldo, da ordem de oitenta por cento da venda no estrangeiro, constituía o lucro.

            Nos primeiros tempos, antes de alguns funcionários superiores do Estado e banqueiros abarcarem a situação, verificavam-se numerosas recusas em colaborar. A primeira advertência era verbal, a segunda envolvia cirurgia ortopédica e a terceira revestia-se de características permanentes. O sucessor oficial de quem se revelava relutante em colaborar costumava abarcar as regras do jogo com prontidão.

            Em fins dos anos noventa, a violência contra as entidades oficiais ou as profissões legítimas raramente se tornava necessária, porém a proliferação de exércitos privados significava que todos os chefes do submundo tinham de estar em condições de enfrentar os rivais, numa eventual emergência. E, entre todos os praticantes da violência, ninguém se equiparava aos chechenos em rapidez de ação e crueldade, se descobriam que eram traídos.

            A partir do final do Inverno de 1994, passou a figurar um novo elemento na equação. Pouco antes do Natal daquele ano, Boris Ieltsín desencadeou a guerra incrivelmente insensata contra a Chechenia, ostensivamente para derrubar o presidente Dudayev, que pretendia a independência. Se o conflito tivesse constituído uma operação cirúrgica rápida, talvez resultasse. Na realidade, o supostamente poderoso exército russo sofreu uma autêntica sova dos guerrilheiros chechenos, que em seguida se refugiaram nas montanhas do Cáucaso, onde continuaram a lutar.

            Em Moscou, qualquer simulacro de hesitação que a Mafia chechena pudesse ter experimentado para com o Estado russo dissipou-se. De um modo geral, a vida tornou-se quase impossível para um checheno cumpridor da lei. Com a mão de todos os homens voltada contra eles, converteram-se num clã unido no seio da capital russa, muito mais impenetrável que os submundos georgiano, armênio ou nativo russo. Dentro dessa comunidade, o chefe do submundo transformava-se num herói e num dirigente da resistência. No Outono de 1999, essas funções achavam-se a cargo do antigo capitão do KGB, Umar Gunayev.

            Não obstante, como homem de negócios, ele podia continuar a circular livremente e viver como o multimilionário que era. Na realidade, o seu “escritório” ocupava todo o piso do topo de um dos seus hotéis, de colaboração com uma rede americana, situado perto da estação de Helsínquia.

            O percurso até ao hotel foi efetuado na limusine Mercedes de Umar Gunayev, à prova de bala e de bomba. Ele dispunha de motorista e guarda-costas particulares, e o trio do café seguiu-os no BMW. Os dois carros entraram na garagem subterrânea e, depois da garagem ter sido revistada pelos três homens, Gunayev e Monk meteram-se num elevador rápido que os conduziu ao último piso. A respectiva corrente elétrica foi então desligada.

            Havia mais guardas no átrio daquele andar, todavia eles obtiveram finalmente privacidade no apartamento do líder cecheno. Um empregado de casaco branco, em obediência a uma ordem deste último, serviu-lhes comida e bebida.

            - Tenho de lhe mostrar uma coisa - disse Monk. - Espero que a ache interessante e até instrutiva.

            Abriu a valise e ativou os dois botões de comando, para soltar a base falsa, enquanto o outro observava com interesse. A caixa e o seu potencial excitaram-lhe obviamente a admiração.

            O americano começou por mostrar a tradução russa do relatório da Verificação, que compreendia trinta e três páginas.

            - Acha que devo? - perguntou Gunayev, arqueando uma sobrancelha.

            - Verá a paciência recompensada. Por favor.

            Suspirou e começou a ler. À medida que se envolvia mais na narrativa, deixou o café intato e concentrou-se no texto. A leitura prolongou-se por vinte minutos. Por fim, pousou o relatório na mesa e observou:

            - Por conseguinte, o manifesto não é uma mistificação. E daí?

            - É o seu próximo presidente que fala. Descreve aí o que pretende fazer, quando dispuser de poder para tal. Já não falta muito.

            Com estas palavras, Monk colocou o manifesto em cima da mesa.

            - Mais trinta páginas?

            - Quarenta, mas ainda mais interessantes. Leia-as, por favor.

            Gunayev passou rapidamente os olhos pelas primeiras dez, enquanto absorvia os planos para um Estado de partido único, rearmamento do arsenal, nuclear, reconquista das repúblicas perdidas e novo arquipélago de Gulag de campos de escravos. A seguir, semicerrou os olhos e passou a ler mais lentamente.

            Monk sabia que passagem alcançara. Podia conceber as frases messiânicas como se lhe haviam deparado pela primeira vez perante as águas da baía Sapodilla, nas ilhas Turks e Caicos.

            O extermínio final e completo de todos os chechenos da face da Rússia... destruição do povo-rato, para que não possa voltar a erguer a cabeça... redução do território tribal a pasto de cabritos monteses...

            Gunayev acabou finalmente de ler e pousou o manifesto.

            - Já foi tentado em outras épocas - declarou. - Nas dos czares, Stalin e Ieltsin , por exemplo com  espadas,  metralhadoras  e  mísseis.

            - Que me diz dos raios gama, gases que atacam os nervos e outros requintes modernos? A arte do extermínio progrediu muito.

            Levantou-se, despiu o casaco, colocou-o no espaldar da sua cadeira e aproximou-se da janela panorâmica sobranceira aos telhados de Moscou.

            - Quer que seja eliminado? Derrubado?

            - Não.

            - Porquê? É possível.

            - Não resolveria.

            - Costuma resolver.

            Monk explicou a situação. Uma nação mergulhada no caos, afundando no abismo, provavelmente a caminho da guerra civil. Ou a aparição de outro Komarov, talvez o seu braço direito, Grishin, ascendendo ao poder numa vaga de cólera.

            - São duas caras de uma moeda - acrescentou. - O homem de raciocínio e palavras e o de ação. Se matar um, o outro aproxima-se a substituí-lo. A destruição do seu povo continuaria, meu amigo.

            Gunayev voltou-se da janela e moveu-se até junto do interlocutor, que olhou com uma expressão tensa.

           - Que quer realmente de mim, americano? Apresenta-se como um desconhecido que, no passado, me salvou a vida. Fico devendo-lhe esse favor. Depois, mostra-me esta imundície. Que tem isso que ver comigo?

            - Nada, a menos que você decida o contrário. Possui muitas coisas, Umar Gunayev. Muito dinheiro, um poder enorme e até o da vida e da morte sobre o seu semelhante. Além do de se afastar e deixar acontecer o pior.

            - E por que deveria proceder de outro modo?

            - Porque houve um rapaz, outrora. Um garoto andrajoso e faminto que cresceu numa aldeia pobre no norte do Cáucaso, entre a família, amigos e vizinhos, que mourejaram para o enviar à universidade e daí a Moscou, para se tornar um grande homem. A pergunta é: esse rapaz morreu em algum lugar no caminho, para se converter num autômato, estimulado apenas pela fortuna, ou ainda se recorda do seu povo?

            - Já agora, responda. Não, a escolha é sua.

            - E a sua, americano?

            - A minha é muito mais fácil. Posso sair daqui, meter-me num táxi para Sheremetyevo e regressar de avião ao meu país. Lá há mais calor, conforto e segurança. Posso dizer às autoridades competentes que não precisam se preocupar, porque ninguém quer saber de coisa alguma.  Todos estão comprados e pagos. Podemos deixar tombar a noite.

            O checheno sentou-se e pareceu contemplar algo situado num passado distante. Por fim, perguntou:

            - Vocês crêem que lhe podem travar o ímpeto?

            - Há uma possibilidade.

            - E depois, que acontece?

            Monk descreveu o que Sir Nigel Irvine e os seus associados tinham em mente.

            - Enlouqueceram - afirmou Gumayev, no final.

            - Talvez. Que alternativa espreita o povo russo? Komarov e o genocídio levado a cabo pelo seu carniceiro, o caos, a guerra civil...

            - Se eu decidisse ajudá-lo, que necessitaria?

            - De um esconderijo. Mas bem à vista. Para agir, sem ser reconhecido.  Para me encontrar com  as  pessoas  que vim procurar.

            - Acha que Komarov descobrirá a sua presença em Moscou?

            - Não vai demorar. Há  milhões de informantes, nesta cidade, como você sabe perfeitamente. Aliás, recorre a muitos, nas suas numerosas atividades. Todos podem ser roubados. O homem não é nenhum imbecil.

            - Pode comprar todos os órgãos do Estado. Nem eu próprio o consigo.

            - Como leu, prometeu aos seus acólitos e financiadores, a máfia de Dolgoruki, o mundo e tudo o que contém. Em breve, o Estado será essa escória. Que lhe acontecerá, então?

            - Está bem. Posso escondê-lo, embora nem eu próprio saiba durante  quanto tempo. Dentro da nossa comunidade, ninguém o descobrirá, sem a minha autorização. Mas não pode viver aqui. Daria muito nas vistas. Tenho várias casas seguras. Terá de se transferir de uma para outra.

            - As casas seguras são excelentes - assentiu  Monk. - Para dormir. Para me movimentar, preciso de documentos. Falsificados com perfeição.

            Gunayev abanou a cabeça.

            - Não falsificamos documentos. Compramos os autênticos.

            - Tinha me esquecido. Com dinheiro,  consegue-se  tudo.

            - De que necessita?

            - Para as primeiras impressões, disto.

            O americano escreveu várias linhas numa folha de papel, que entregou ao checheno. Este as leu e verificou que nada suscitaria problemas. Todavia, quando chegou ao último artigo, enrugou a fronte.

            - Para que diabo quer isto? - Quando Monk o elucidou, grunhiu: - Sabe que metade do Hotel Metropol me pertence.

            Emitiu um suspiro.

            - Tentarei utilizar também a outra metade.

            No entanto, a faceta humorística destas palavras escapou-lhe.

            - Quanto tempo Grishin demorará para descobrir que se encontra na cidade?

            - Depende. Cerca de dois dias ou mesmo três. Quando eu começar a atuar e ir de um lado para o outro, é natural que deixe alguns vestígios. Há sempre pessoas que falam.

            - Bem, vou conceder-lhe quatro homens, que o protegerão e ajudarão nos seus deslocamentos. Já conhece o chefe. Ia no banco da frente do BMW,  Magomed. Garanto-lhe que é bom. Forneça uma lista do que necessita, de vez em quando, que será satisfeita. Mas continuo convencido que enlouqueceu.

            A meia-noite, Monk regressara ao seu quarto no Metropol. Ao fundo do corredor, havia uma área coberta junto dos elevadores, com quatro cadeiras. Duas estavam ocupadas por homens silenciosos, que liam jornais e continuariam a fazê-lo ao longo da noite. Um pouco antes da alvorada, foram entregues duas malas de viagem nos aposentos do americano.

           

            A maior parte dos moscovitas e sem dúvida todos os estrangeiros supõem que o patriarca da Igreja Ortodoxa Russa vive numa suite suntuosa de apartamentos nas entranhas do mosteiro medieval Danilovsky, com os seus muros guarnecidos de ameias e o seu complexo de abadias e catedrais.

            É, decerto, esta a impressão predominante e, de resto, cultivada. Numa das grandes construções de escritórios dentro do mosteiro, guardado por soldados cossacos irredutivelmente leais, o patriarca possui de fato os seus gabinetes, que constituem o coração e centro do Patriarcado de Moscou e de Todas as Rússias. Mas não vive lá.

            A sua residência situa-se numa modesta casa no número cinco da Chisti Pereulok, que significa “Vereda Limpa”, uma espécie de travessa estreita perto do bairro central da cidade. Tem aí cuidando das suas necessidades um secretário, um mordomo/criado, dois empregados domésticos de nível inferior e três freiras que cozinham e procedem à limpeza das instalações. Há igualmente um motorista às ordens e dois guardas cossacos. O contraste com a magnificência do Vaticano ou o esplendor do palácio do Patriarcado da Igreja Ortodoxa Grega não podia ser mais pronunciado.

            No Inverno de 1999, o detentor do cargo era Sua Eminência Alexei II, eleito dez anos atrás, pouco antes da queda do comunismo. Ainda com alguns além dos cinquenta de idade, tornou-se herdeiro de uma Igreja desmoralizada, traída do interior e perseguida e corrompida do exterior.

            Lenin, que detestava o sacerdócio, compreendeu desde o princípio que o comunismo tinha apenas um rival nos corações e espíritos da abundante massa dos camponeses russos e dispôs-se a destruí-lo. E, através de brutalidade e corrupção sistemáticas, quase o conseguiu.

            Os próprios Lenin e Stalin vacilaram ante o extermínio completo do sacerdócio e da Igreja, receosos de inspirar repercussões que nem o NKVD pudesse dominar. Por conseguinte, após os primeiros programs, durante os quais foram incendiadas igrejas, roubados os seus tesouros e enforcados muitos sacerdotes, o Politburo resolveu destruir a Igreja desacreditando-a.

            As medidas foram numerosas. Aspirantes de elevada inteligência viram-se banidos dos seminários, controlados pela NKVD e mais tarde pelo seu sucessor, o KGB. Só eram aceitos candidatos da periferia da URSS, Moldavia, a oeste, e Sibéria, a leste. O nível de educação mantinha-se baixo e a qualidade do sacerdócio degradou-se.

            A maioria das igrejas era simplesmente fechada e deixada ao abandono. As poucas que permaneciam abertas ao culto, contavam com a frequência apenas dos pobres e pessoas idosas por outras palavras, os inofensivos. Os sacerdotes no ativo tinham de se apresentar regularmente ao KGB e exercer as funções de informantes forçados.

            Um jovem interessado em se batizar era denunciado pelo padre que abordava. Em resultado disso, perdia a possibilidade de frequentar o liceu e, portanto, a universidade, e os pais eram quase inevitavelmente expulsos do seu apartamento. Praticamente nada deixava de ser comunicado ao KGB. Assim, quase todo o clero, mesmo que não estivesse envolvido, tornava-se alvo da suspeita do povo.

            Os comunistas utilizavam a técnica do pau e da cenoura um cajado de coxo e uma cenoura envenenada.

            Os defensores da Igreja argumentam que a alternativa consistia na extirpação total, pelo que a continuação da sua atividade  qualquer que ela fosse  representava um fator que contrabalançava a humilhação.

            Portanto, o que o tímido, conciliador e a caminho da aposentadoria Alexei II herdou foi um colégio de bispos habituados a colaborar com o Estado ateu e um sacerdócio pastoral desacreditado entre o povo.

            Havia, porém, excepções os padres itinerantes sem paróquias, que pregavam e se esquivavam da prisão, ou não o conseguiam e eram internados em campos de trabalho. Alguns ascetas refugiavam-se em mosteiros para manter a fé viva através da abnegação e oração, contudo esses raramente contactavam com as massas dos fiéis.

            Na sequência do colapso do comunismo, ocorreu a oportunidade de um grande renascimento que voltaria a colocar a Igreja e a palavra do Evangelho no centro das vidas do povo russo tradicional e profundamente religioso.

            Ao invés, o regresso à religião foi provocado pelas igrejas mais recentes, vigorosas, vibrantes, dedicadas e preparadas para pregar às pessoas onde viviam e trabalhavam. Os pentecostes multiplicaram-se e afluíram os missionários americanos, com o seu batismo, mormonismo e adventismo do sétimo dia. A reação das altas esferas do ortodoxismo russo consistiu em suplicar a Moscou a interdição dos pregadores estrangeiros.

            Os defensores alegavam que a reforma do pau-cenoura da hierarquia ortodoxa era impossível, porque os níveis inferiores também estavam afetados. Os sacerdotes oriundos de seminários eram de fraco calibre, exprimiam-se na linguagem arcaica das escrituras, empregavam um tom pedante ou didáctico e careciam de treino da alocução pública não-acadêmica. Os seus sermões eram escutados por audiências cativas pouco numerosas e de idade avançada.

            A oportunidade perdida podia considerar-se vasta, porque, como o materialismo dialético se revelava um deus falso e a democracia e o capitalismo não satisfaziam o corpo, e ainda menos a alma, o apetite do conforto era pan-nacional e profundo. E continuou largamente por satisfazer.

            Segundo os críticos, em vez de incumbir os seus padres melhores e mais jovens da ação missionária, conquistar prosélitos da fé e difundir a Palavra, a Igreja Ortodoxa conservava-se em bispados, mosteiros e seminários à espera dos interessados. E apareciam muito poucos.

            Se havia necessidade desesperada de uma liderança apaixonada e inspiradora após a queda do comunismo, o sereno e pacífico Alexei II não era a pessoa apropriada para a exercer. A sua eleição constituiu uma solução de compromisso entre as várias fações existentes nos bispos. Tratava-se, segundo as esperanças dos hierarcas inadequados, de um homem que não faria ondas.

            No entanto, apesar do fardo que herdou e ausência de carisma pessoal, não era totalmente despido de instinto reformista, que exigia coragem. Em face disso, fez três coisas importantes:

            A sua primeira reforma consistiu em dividir o território russo em cem episcopados, todos menores do que até então. Isto permitiu-lhe criar novos bispos mais jovens escolhidos dentre os sacerdotes melhores e mais motivados. Depois, visitou cada sé, tornando-se mais visível ao povo do que qualquer outro patriarca da História.

            Em segundo lugar, silenciou as manifestações de anti-semitismo em São Petersburgo e deixou bem claro que todo o bispo que propagasse o ódio do homem acima do amor de Deus, teria a destituição garantida.

            Por último, concedeu a sua sanção pessoal, mau grado a considerável oposição, ao padre Gregor Rusakov, jovem sacerdote carismático que recusava aceitar uma paróquia própria ou a disciplina dos bispos nos territórios que percorria, na sua missão pastoral itinerante.

            Muitos patriarcas teriam condenado o arrojado monge e o impediriam do acesso ao púlpito, mas Alexei II negou-se a assumir essa atitude e preferiu aceitar o risco de patrocinar o procedimento algo revolucionário do padre nômade. Graças à sua viva e empolgante oratória, o reverendo Gregor chegava até os jovens e agnósticos, uma coisa fora do alcance dos bispos da época.

            Uma noite do princípio de Novembro de 1999, o pacífico patriarca foi interrompido nas orações antes da meia-noite, ao anunciarem-lhe que um emissário de Londres aguardava à entrada e solicitava uma audiência.

            Alexei II levantou-se, cruzou a pequena capela privada e aceitou a carta da mão do secretário.

            A carta exibia o timbre do episcopado de Londres, com sede em Kensington, e ele reconheceu a assinatura do seu amigo Anthony, da Igreja Metropolitana. Não obstante, enrugou a fronte de perplexidade pelo fato do colega estabelecer contato daquela forma incomum.

            O texto estava em russo, que o arcebispo falava e escrevia, e solicitava ao irmão na cristandade que recebesse com urgência um homem portador de notícias de interesse para a Igreja, inquietantes e de extrema confidencialidade. O patriarca dobrou a carta e ergueu os olhos para o secretário.

            - Onde está ele?

            - Lá fora, no passeio, Eminência. Veio de táxi.

            - É padre?

            - Sim, Eminência. - Emitiu um suspiro. - Bem, mande-o entrar. Depois, pode voltar para a cama. Eu o receberei no meu gabinete. Dentro de dez minutos.

            O guarda cossaco do turno da noite, voltou a abrir a porta da rua em obediência à indicação a meia-voz proferida pelo secretário, e dirigiu uma olhadela ao táxi e ao sacerdote trajado de preto a seu lado.

            - Sua Eminência vai recebê-lo, reverendo.

            Este último assentiu com um leve movimento de cabeça e pagou ao motorista. Depois de entrar, foi conduzido a uma pequena sala de espera. Decorridos dez minutos, um sacerdote algo rotundo assomou à porta e murmurou:

            - Queira acompanhar-me.

            O visitante foi introduzido em um aposento que era claramente o gabinete de um intelectual. À parte um ícone a um canto de uma das paredes brancas, apenas havia estantes repletas de livros encadernados e uma ampla mesa, com um candeeiro em cima do tampo de vidro. Na aparentemente confortável cadeira rotativa, sentava-se o patriarca Alexei. Este gesticulou ao recém-chegado que se sentasse e indicou ao padre:

            - Importa-se de trazer algo para beber, reverendo Maxim?... Café? Muito bem, café para dois e alguns biscoitos. Toma a comunhão de manhã,  reverendo? - perguntou ao visitante. - Nesse caso, não há tempo para ingerir mais nada, antes da meia-noite. - Fez uma pausa, enquanto o padre rotundo se retirava. - Então, meu filho, como está o meu amigo Anthony, de Londres?

            Não havia nada de falso na sotaina preta do forasteiro ou mesmo no chapéu que removera da cabeça, para expor o cabelo louro. O único óbice era que não usava barba, ao contrário da maioria dos clérigos ortodoxos, embora não todos os ingleses.

            - Não lhe sei dizer, Eminência, porque não o vi.

            O patriarca arregalou os olhos, sem compreender, e apontou para a carta na sua frente.

            - Então, e isto? Não estou entendendo.

            Monk encheu os pulmões de ar.

            - Em primeiro lugar, Eminência, devo confessar que não sou um padre da Igreja Ortodoxa. E a carta não provém do arcebispo Anthony, embora o papel seja autêntico e a assinatura habilmente falsificada. A intenção desta pouco respeitosa charada consiste  em  que  precisava lhe falar. Ao senhor pessoalmente, a sós e em condições de sigilo absoluto.

            Os olhos de Alexei II pestanejaram, alarmados. Trataria-se de um lunático? Um assassino? O cossaco armado que se encontrava à entrada conseguiria acudir a tempo? Esforçou-se por conservar o rosto impassível. O padre Maxim reapareceria dentro de poucos momentos. Talvez fosse então o momento apropriado para escapar.

            - Queira explicar-se - solicitou, secamente.

            - Antes de mais, sou americano e não russo. Em segundo lugar, venho enviado por um grupo de pessoas do Ocidente, discretas e poderosas, que  pretendem ajudar a Rússia e a Igreja e não prejudiicá-las. Em terceiro, sou apenas portador de notícias que decerto considerará importantes e preocupantes. Finalmente, venho pedir a sua ajuda. Pode utilizar o telefone que tem junto de si para chamar alguém. Não o impedirei. Mas, antes de me denunciar, rogo-lhe que leia o material que trago comigo.

            O patriarca tornou a enrugar a fronte. De fato, o homem não parecia um maníaco, e já dispusera de tempo para matá-lo. Onde estaria o malfadado Maxim, com o café?

            - Muito bem. Que material é esse?

            Monk introduziu a mão na sotaina e extraiu duas pastas de plástico pouco volumosas, que pousou na mesa. Alexei II lançou uma olhadela às capas uma era cinzenta! e a outra preta.

            - A que se referem?

            - Deve ler primeiro a cinzenta. Trata-se de um relatório que prova, para além de qualquer dúvida razoável, que o texto da outra não constitui uma falsificação ou brincadeira de mau gosto.

            - Que contém essa?

            - O manifesto particular e pessoal de um certo Igor Viktorovich  Komarov, o qual, segundo tudo parece indicar, será em breve o Presidente da Rússia.

            Soou uma discreta pancada na porta e o padre Maxim fez a sua aparição com um tabuleiro que continha café, xícaras e biscoitos, no momento exato em que o relógio da prateleira da chaminé badalava a meia-noite.

            - Muito tarde - suspirou o patriarca. - Privou-me do meu biscoito, Maxim.

            - Lamento profundamente, Eminência. Tive de moer o café e...

            - Estava brincando. - Alexei II voltou o olhar para Monk e reconheceu que o homem parecia musculoso e em boa forma física. Se tencionasse recorrer ao  homicídio, provavelmente mataria ambos. - Pode ir para a cama, Maxim. Que Deus lhe permita um bom repouso. - O sacerdote começou a mover-se na direção da porta. - Ora bem. Que nos revela o manifesto de Komarov?

            O padre Maxim fechou a porta atrás de si, esperançado em que ninguém tivesse reparado no sobressalto que experimentou à menção do nome de Komarov. Uma vez no corredor, olhou para ambos os lados. O secretário voltara para a cama, as religiosas ainda tardariam horas a aparecer e o cossaco encontrava-se lá embaixo. Por fim, ajoelhou-se junto da porta e aplicou o ouvido ao buraco da fechadura.

            Alexei II leu o relatório intitulação Verificação em primeiro lugar, como lhe fora recomendado, enquanto Monk ingeria o café. Quando concluiu a leitura, o patriarca declarou:

            - Uma história impressionante. Por que fez aquilo?

            - O velho?

            - Sim.

            - Nunca saberemos. Como vê, morreu. Assassinado, sem a menor dúvida. O relatório do professor Kuzim é categórico a esse respeito.

            - Pobre homem. Rezarei por ele.

            - Podemos inferir que viu qualquer coisa nessas páginas que o levou a arriscar e finalmente sacrificar a vida para denunciar as intenções íntimas de Igor Komarov. Quer agora vossa Eminência ler o Manifesto Negro?

            Uma hora mais tarde, Alexei II reclinava-se na cadeira e fixava o olhar num ponto sobre a cabeça do americano.

            - Não é possível que isto corresponda realmente ao que ele tenciona fazer  acabou por dizer. São coisas satânicas. Vivemos na Rússia à beira do terceiro milênio de Nosso Senhor. Estamos acima de tudo isso.

            - Como homem de Deus, decerto crê nas forças do mal.

            - Com certeza.

            - Forças essas que, por vezes, assumem a forma humana. Hitler, Stalin...

            - É cristão, Mr.?...

            - Monk. Suponho que sim.  Dos maus, em todo o caso.

            - Como todos nós. Conhece, portanto, o ponto de vista do mal dos cristãos.

            - A concretização dos planos aí descritos projetaria a Santa Igreja na idade das trevas do passado.

            - Se correspondem à verdade.

            - Não duvide, Eminência. Os homens não perseguem e matam os seus semelhantes por causa de um documento falso. A reação do coronel Grishin foi muito rápida para que não proviesse do gabinete do secretário Akopov. Eles não estariam a par de uma falsificação. Pelo contrário, inteiraram-se passadas poucas horas que algo de valor inapreciável tinha desaparecido.

            - Que quer de mim?

            - Uma resposta. A Igreja Ortodoxa de Todas as Rússias se oporá a esse homem?

            - Rezarei. Procurarei orientação...

            - E se a resposta for que... não como patriarca, mas como cristão, como homem e como russo... não tem qualquer alternativa?

            - Então, não terei mesmo alternativa. Mas haverá possibilidade de se opor? As eleições presidenciais de Janeiro são encaradas como decididas antecipadamente.

            Monk levantou-se, recolheu as duas pastas de plástico e guardou-as dentro da sotaina. Em seguida, pegou o chapéu.

            - Em breve virá um homem, também do Ocidente. O seu nome é este.  Estendeu um pequeno retângulo de cartolina. Receba-o, por favor. Ele sugerirá o que se deve fazer.

            - Precisa de transporte?

            - Não, obrigado. Irei a pé. Que Deus o acompanhe.

            Deixou o patriarca junto do seu ícone, profundamente preocupado. Quando cruzava o aposento, pareceu-lhe ouvir passos leves no corredor, que, no entanto, estava deserto, no momento em que abriu a porta. A intensidade do vento aumentara, como verificou ao imergir na rua e começar a caminhar para o Metropol.

            Pouco antes da alvorada, um vulto rotundo abandonou discretamente a residência do patriarcado e percorreu várias artérias, antes de entrar no átrio do Rossiya. Embora dispusesse de um telefone portátil no bolso do casaco, sabia que as linhas terrestres das cabinas públicas eram mais seguras.

            O homem com o qual falou na casa perto do Bulevar Kiselny era apenas um dos guardas do turno da noite, mas prontificou-se a receber a mensagem.

            - Diga ao coronel que sou o padre Maxim Klimovsky. Tomou nota? Sim, Klimovsky. Trabalho na residência do patriarca. Preciso falar com ele. É urgente. Voltarei  às dez da manhã.

            E o fez pontualmente. A voz do outro lado do fio era pausada, mas autoritária.

            - Sim, reverendo. Fala o coronel Grishin.

            Encerrado na cabina, o volumoso sacerdote segurava o auscultador na mão alagada em transpiração e deslizavam várias gotas na fronte.

            - Não me conhece, coronel, mas sou um admirador fervoroso de Igor Viktorovich Komarov. Ontem à noite, um homem procurou o patriarca. Fazia-se   acompanhar de determinados documentos. Ouvi-os referirem-se a um Manifesto   Negro... Alô.

            - Acho que devemos nos encontrar, meu caro reverendo Klimovsky - indicou a voz.

 

            Na extremidade sueste de Staraya Ploshchad, situa-se a Praça Slavyansky, onde se ergue uma das igrejas menores, antigas e belas de Moscou.

            Todos-os-Santos, em Kulishki, foi construída, no século XIII, de madeira, quando Moscou compreendia apenas o Kremlin e alguns hectares em volta. Após o incêndio, foi reerigida de pedra, no final do século XVI e princípios do XVII, e permaneceu em utilização constante até 1918.

            Moscou era então ainda conhecida como a cidade das vinte vezes vinte igrejas, pois eram mais de quatrocentas. Depois, os comunistas encerraram noventa por cento e destruíram três quartas partes. Entre as que ficaram abandonadas, mas intactas, figurava a de Todos-os-Santos, em Kulishki.

            Após a queda do comunismo, em 1991, o pequeno templo sofreu quatro anos de meticulosa restauração às mãos de equipes de especialistas, até que reabriu como local de culto. Foi aí que o padre Maxim Klimovsky acudiu no dia seguinte ao do seu telefonema. Não despertou a atenção, porque trajava a indumentária negra do sacerdote ortodoxo e havia vários dentro e em volta da igreja.

            Pegou uma vela votiva e postou-se a um lado que lhe permitia algum isolamento, consultando o relógio com nervosismo. Cinco minutos depois da hora combinada, continuava na expectativa. Não sabia que fora visto entrar de um carro estacionado na praça, nem se dera conta dos três homens que tinham descido, depois de ele entrar na igreja.

            De súbito, ouviu o leve arrastar de sapatos atrás de si e notou que um homem se colocava a seu lado.

            - Padre Klimovsky?

            - Sim...

            - Sou o coronel Grishin. Creio que tem uma coisa para me dizer.

            Maxim lançou uma olhadela fugaz para a origem da voz. O homem era mais alto do que ele, magro, de espesso sobretudo. Quando se voltou para fitá-lo, experimentou uma sensação de medo. Assentiu com um movimento de cabeça e engoliu com dificuldade. Oxalá estivesse procedendo corretamente e não viesse a arrepender-se.

            - Primeiro, explique-me o motivo do telefonema, reverendo.

            - Quero que compreenda que sou um admirador de Igor Komarov de longa data. A sua política, os seus planos para a Rússia... acho tudo admirável.

            - É gratificante ouvir isso. Que aconteceu, pois, na noite de anteontem?

            - Um homem procurou o patriarca. Vestia-se como um membro da Igreja, mas era louro e não usava barba. Embora se exprimisse em russo fluente, podia tratar-se de um estrangeiro.

            - Era esperado?

           - Não, e isso também me pareceu estranho. O seu aspecto ocidental, a  hora a que se apresentou...  O secretário devia ter-lhe indicado que marcasse uma entrevista formal. Ninguém costuma procurar o patriarca no meio da noite. Mas o forasteiro parecia portador de uma carta de apresentação.

            - Portanto, o reverendo serviu-lhe café...

            - Sim,  e  abandonava o gabinete,  quando ouvi Sua Eminência perguntar: “Que nos revela o manifesto de Komarov”?

            - E ficou intrigado?

            - Exato. Por conseguinte, depois de fechar a porta decidi escutar.

            - Uma decisão muito astuta. Que disseram?

            - Não foi muito. Houve longos períodos de silêncio. Espreitei pelo buraco  da fechadura e vi Sua Eminência ler qualquer coisa. Demorou quase uma hora.

            - E depois?

            - Pareceu muito preocupado. Disse não sei bem o quê e compreendi o termo “satânico”. E acrescentou: “Estamos acima de tudo isso”. O desconhecido falava muito baixo e custava-me ouvi-lo. Em todo o caso, distingui a expressão “Manifesto Negro”. Foi no momento antes de Sua Eminência passar uma hora lendo.

            - Mais alguma coisa?

            Entretanto, Grishin refletiu que o homem era um trapalhão estava nervoso e transpirava, mas não porque fizesse calor na igreja. No entanto, o que dizia revestia-se de importância e gravidade, embora não abarcasse o verdadeiro significado.

            - Ouvi a palavra “falsificação” e depois o seu nome, coronel.

            - O meu?

            - Sim, o desconhecido disse algo sobre a rapidez da sua reação. Depois, falaram de um velho, e o patriarca manifestou a intenção de rezar por ele. Aludiram a um “mal” qualquer várias vezes, até que o visitante se levantou para sair. Como tive de me afastar do corredor rapidamente, não o vi partir. Apenas ouvi a porta da rua se fechar.

            - Viu algum carro?

            - Não. Espreitei de uma janela do primeiro andar e o vi afastar-se a pé. Nunca tinha visto Sua Eminência tão perturbado como no dia seguinte. Com uma palidez impressionante e encerrado durante horas na sua capela. Foi por isso que pude me ausentar para lhe telefonar, coronel. Espero ter procedido da forma conveniente.

            - Sem margem para a mínima dúvida, meu amigo. Há forças antipatrióticas em ação que procuram difundiir mentiras sobre um grande estadista que em breve será Presidente da Rússia. Considera-se um russo patriota, reverendo Klimovsky?

            - Anseio pelo dia em que poderemos purificar a Rússia do lixo e escória que Komarov denuncia. Sobretudo, da porcaria estrangeira. É por isso que o apoio de todo coração.

            - Excelente. Creia que é um daqueles a quem a mãe-pátria deve recorrer. Penso que o aguarda o futuro grandioso. Só mais uma coisa. Faz alguma idéia da proveniência desse estrangeiro.

            A vela estava quase consumida. Os outros fiéis encontravam-se agora alguns metros à esquerda deles, embebidos em contemplação das imagens e rezando.

            - Não. Mas embora partisse a pé, o guarda cossaco disse-me mais tarde que veio de táxi. Era dos cinzentos, da praça da Cidade Central.

            - Um sacerdote, à meia-noite. Que seguia para Chisti Pereulok. O livro-diário o teria registrado. Grishin segurou o braço do sacerdote e o fez voltar-se para ele.

            - Preste bem atenção. Procedeu da melhor maneira e será oportunamente recompensado. Mas a sua ação não pode ficar por aqui, compreende? - Fez uma pausa e Klimovsky assentiu, com uma inclinação de cabeça. - Quero que tome nota de tudo o que acontecer naquela casa. Quem entra ou sai. Sobretudo, os  bispos  e desconhecidos. Quando tiver alguma coisa para comunicar, telefone-me e diga apenas “É o Maxim”, com a indicação de uma hora. Os nossos encontros serão aqui, na hora que mencionar. Se eu precisar de você, mandarei entregar-lhe uma carta. O envelope conterá somente um retângulo de cartolina com uma hora. Se não puder comparecer então sem despertar suspeitas, telefone e proponha uma alternativa. Entendeu?

            - Sim, coronel. Farei tudo ao meu alcance.

            - Não duvido. Palpita-me que ainda teremos um novo bispo, neste país. Agora, retire-se. Eu sairei depois.

            O coronel continuou a olhar as imagens que detestava, enquanto ponderava o que acabava de lhe ser revelado. Que o Manifesto Negro regressara à Rússia era indiscutível. O imbecil do padre não devia fazer a menor idéia daquilo a que se referia, porém as palavras eram muito exatas para permitirem outra conclusão.

            Assim, alguém regressara, após meses de silêncio, e circulava discretamente, para mostrar o documento, embora sem deixar qualquer cópia na sua esteira. Para criar inimigos, naturalmente. Tentar influenciar os eventos.

            Quem quer que fosse, batera à porta errada. A Igreja não dispunha de qualquer poder. Grishin recordou com aprovação o comentário sardônico de Stalin: “Quantas divisões tem o Papa”? Não obstante, essa pessoa, por enquanto anônima, podia provocar problemas.

            Por outro lado, o homem conservara a sua cópia do manifesto, o que sugeria que só tinha uma ou duas em seu poder. A questão consistia claramente em localizá-lo e eliminá-lo, e de um modo que não subsistisse o menor vestígio da sua existência.

            Afinal, o problema foi muito mais simples do que ele supusera.

            No tocante ao seu novo informante, não se levantavam dificuldades. Os anos de serviço na contra-espionagem tinham-no ensinado a reconhecê-los e avaliá-los. Sabia que o padre era um covarde, que venderia a própria mãe por benefícios pessoais. Dera-se conta do clarão no olhar, quando mencionara a promoção a bispo.

            E havia outra coisa, como ponderava enquanto suspendia a suposta contemplação das imagens e passava entre os dois homens que deixara de guarda à entrada. Tinha de procurar entre os Jovens Combatentes para encontrar um amigo seriamente simpático para o sacerdote traidor.

 

            A batida dos quatro homens mascarados foi rápida e eficiente. Quando terminou, o diretor da empresa de táxis Cidade Central reconheceu que não merecia a pena informar a Polícia. No meio do autêntico pandemônio que imperava em Moscou, o melhor detetive nada conseguiria fazer para encontrar os intrusos. Os homens limitaram-se a invadir o escritório, encerrá-lo, baixar os estores das janelas e insistir em falar com o gerente. Como estavam todos armados, ninguém ofereceu resistência, supondo que se tratava de um mero assalto para roubar dinheiro. Mas não, pretendiam apenas consultar as listas de serviços das três noites anteriores.

            O que parecia ser o chefe do grupo leu-as atentamente, até que chegou a uma entrada que pareceu interessar-lhe.

            - Quem é o condutor cinquenta e dois? - acabou por perguntar.

            - Não sei - gemeu o gerente, prontamente recompensado com uma coronhada na cabeça.  - Está no arquivo informou em seguida.

            Obrigaram-no a consultá-lo. O condutor 52 chamava-se Vasili, morava em algum lugar nos subúrbios.

            Depois de lhe assegurar que, se tentasse preveni-lo, a sua existência neste planeta seria drasticamente abreviada, o chefe copiou os dizeres num pedaço de papel e retirou-se com os seus homens.

            O gerente levou a mão à área atingida, tomou uma aspirina e pensou em Vasili. Se o imbecil fosse suficientemente imprudente para tentar ludibriar homens daqueles, merecia a visita.

            O motorista ingeria salsichas e pão escuro para o almoço, quando soou a campainha da porta. Segundos depois, a esposa, profundamente pálida, reaparecia, precedendo dois homens mascarados, que empunhavam pistolas automáticas.

            - Somos pobres - balbuciou Vasili, largando o garfo, que aproximava da boca com um pedaço de salsicha. - Não temos...

            - Silêncio! - vociferou um deles, enquanto o outro impelia a trêmula esposa para uma cadeira.

            O primeiro puxou de um pedaço de papel e colocou-o diante do nariz do condutor.

            - Você é o motorista da empresa de táxis Cidade Central?

            - Sou, mas palavra de honra que...

            - Há duas noites, levou um cliente à Chisti Pereulok, pouco antes da meia-noite. Quem era?

            - Sei lá!

            - Não banque o esperto, ou faço saltar seus colhões com uma bala. Pense bem.

            E Vasili pensou. Mas não lhe acudia qualquer elemento útil.

            - Um padre... - ajudou o homem.

            Ato contínuo, fez-se luz no espírito do condutor.

            - Já me lembro. Chisti Pereulok, uma pequena travessa. Tive de consultar o roteiro. Ele foi obrigado a esperar à porta, antes de o mandarem entrar. Depois, vim embora.

            - Descreva-o.

            - De estatura mediana, físico regular, uns quarenta e poucos anos. Enfim, um padre. Parecem todos iguais... E daí, não. Faltava a barba habitual.

            - Estrangeiro?

            - Duvido, porque falava russo sem sotaque.

            - Já o tinha visto?

            - Nunca.

            - E depois disso?

            - Tão pouco. Ofereci-me para esperar, mas disse que não sabia quanto tempo demoraria. Se lhe aconteceu alguma coisa, não foi por culpa minha. Limitei-me a transportá-lo num percurso de  dez minutos.

            - Só mais uma coisa. De onde?

            - Do Metropol, naturalmente. É o que faço. Trabalho no turno da noite da praça do hotel.

            - Apareceu no passeio ou saiu do hotel?

            - Saiu do hotel.

            - Como sabe?

            - A minha viatura era a primeira da fila. É preciso ter os olhos bem abertos, para que um colega espertalhão não se antecipe. Então, não perdia a porta do Metropol de vista. Quando o vi aparecer, perguntei-me: “Que fará um padre num lugar destes”?

            - Estava acompanhado?

            - Não, só.

            - Deu algum nome?

            - Não, apenas o endereço para onde queria ir. Pagou com rublos.

            - Disse alguma coisa mais? Entabulou conversa?

            - Nem uma palavra. Indicou para onde queria ir e ficou calado até ao final da corrida. Quando chegamos, mandou-me aguardar, bateu à porta e voltou para perguntar quanto me devia. E nada mais. Juro que não lhe toquei nem com...

            - Bom apetite - disse o interrogador, obrigando-o a pousar a cabeça no prato e encaminhando-se em seguida para a porta, acompanhado pelos sicários.

 

            O coronel escutou, impassível, a descrição das diligências. Aquilo podia não significar coisa alguma. O homem emergira da entrada do Metropol às onze e meia da noite. Podia estar lá hospedado, ter ido visitar alguém ou cruzado simplesmente o átrio, proveniente da outra porta. Mas merecia a pena aprofundar o assunto.

            Grishin dispunha de vários informantes na sede da Polícia de Moscou. O mais graduado era um major-general do presídio, mas o mais útil, o chefe do pessoal menor do arquivo. Todavia, para o caso, o primeiro ocupava uma posição elevada e o outro muito baixa. O mais indicado parecia ser o inspetor-detetive da Brigada de Homicídios, Dmitri Borodin. Este último entrou no hotel pouco antes do pôr-do-Sol, pediu para falar com o gerente, um austríaco que contava oito anos de serviço em Moscou e mostrou-lhe as insígnias da Polícia.

            - Brigada de Homicídios? - balbuciou o homem, apreensivo. - Espero que não tenha acontecido nada a algum dos nossos hóspedes.

            - Tanto quanto sei, não aconteceu. Trata-se de uma diligência de rotina. Preciso consultar a lista dos hóspedes de três noites atras.

            Entraram no gabinete, e o gerente apertou as teclas apropriadas do computador para obter a informação.

            - Quer que imprima a lista?

            - Sim.

            Pouco depois, Borodin começava a consultar as colunas de nomes. A avaliar por elas, havia apenas uma dúzia de russos entre os seiscentos hóspedes. Os outros eram de uma dezena de países da Europa Ocidental, além dos Estados Unidos e Canadá. O Metropol praticava tarifas elevadas e destinava-se em particular aos turistas e homens de negócios. O inspetor-detetive recebera instruções para procurar a designação “padre” antecedendo os nomes, mas não encontrou um único.

            - Têm algum sacerdote da igreja ortodoxa? - acabou por perguntar.

            - Que eu saiba, não - replicou o gerente, surpreendido. - Pelo menos, ninguém  inscreveu o nome no registro nessa qualidade.

            Borodine tornou a esquadrinhar todos os nomes, sem êxito.

            - Vou ter de ficar com a lista - declarou finalmente. E retirou-se, ante o alívio do outro.

            Grishin só teve oportunidade de se debruçar sobre os nomes na manhã seguinte. Pouco depois das dez, um funcionário entrou no seu gabinete com o café habitual e encontrou-o pálido e trêmulo.

            Perguntou-lhe timidamente se estava indisposto, mas obteve um gesto de irritação como recompensa pelo cuidado. Quando voltou a encontrar-se só, o coronel baixou os olhos para as suas mãos pousadas na mesa e tentou dominar o tremor. Não era raro encolerizar-se e, nessas ocasiões, quase perdia por completo o domínio dos seus atos.

            O nome figurava no meio da terceira página: Dr. Philip Peters, acadêmico americano.

            - Conservara-o num recanto da memória durante vários anos. Em duas vezes, uma década atrás, esquadrinhara os arquivos da divisão de imigração do antigo Segundo Diretorado Principal, à qual eram enviadas cópias pelo Ministério dos Assuntos Estrangeiros de todos os pedidos de “visto” para visitar a URSS. E o nome aparecera-lhe duas vezes. Recordava-se de examinar com atenção a fotografia que acompanhava cada um: o cabelo grisalho arvelado e os óculos escuros que encobriam o olhar voluntarioso.

            Nas celas de Lefortovo, sacudira essas fotos diante do rosto de Kruglov e do professor Blinov, os quais haviam confirmado que era o ocidental com o qual  tinham se encontrado discretamente nas instalações sanitárias do Museu de Arte Oriental e na catedral de Vladimir.

            Jurara diversas vezes que, se o homem possuidor daquele rosto e pseudônimo tornasse a pisar solo russo, ajustariam contas.

            E agora regressara. Dez anos atrás decerto supusera que se safaria com o insólito arrojo e arrogância insultuosa de visitar mais uma vez o território da jurisdição de Anatoli Grishin.

            O coronel levantou-se, aproximou-se de um armário e procurou um processo antigo. Quando o encontrou, extraiu nova fotografia uma ampliação de outra menor, fornecida por Aldrich Ames. Após o termo da comissão Monakh, um contacto do Primeiro Diretorado Principal dera-lha como recordação. Uma recordação irônica. Não obstante, ele conservara-a como se fosse um tesouro.

            Embora o rosto fosse mais jovem do que na atualidade, a expressão não diferia. O cabelo era louro e desgrenhado, não havia o bigode grisalho e faltavam os óculos escuros. No entanto, o semblante não diferia  pertencia ao jovem Jason Monk.

            Grishin fez dois telefonemas, e os homens do outro lado do fio ficaram perfeitamente inteirados que não toleraria demora. Do seu contato na Imigração do aeroporto, queria saber quando o homem chegara, de onde e se abandonara o país.

            Ordenou a Borodin que voltasse ao Metropol e apurasse a data de chegada do Dr. Peters, se já partira e, em caso negativo, o número do quarto.

            Recebeu as informações no meio da tarde. O suposto acadêmico americano chegara num vôo da Bristish Airways proveniente de Londres, sete dias atrás, e, se abandonara o país, não fora através do aeroporto de Sheremetyevo. Borodin revelou-lhe se apresentara no hotel, graças à reserva efetuada por uma agência de viagens londrina de reputação insuspeita, no dia em que desembarcara no aeroporto e encontrava-se no quarto 841.

            Havia apenas um detalhe estranho, segundo o inspetor-chefe acrescentou. O passaporte do Dr. Peters não aparecia. Devia ter ficado retido na recepção, mas alguém o levara. Contudo, todo o pessoal negava saber como tal fora possível.

            Grishin não estava, porém, surpreendido, pois conhecia o poder de uma nota de cem dólares em Moscou. O passaporte de entrada devia ter sido destruído. Monk decerto usava agora uma nova identidade, mas, entre os seiscentos estrangeiros hospedados no Metropol, ninguém se daria conta. Quando desejasse partir, se limitaria a sair sem pagar a conta, para se vaporizar virtualmente. A gerência do hotel registraria o fato e encolheria os ombros.

            Mais duas coisas indicou o coronel a Borodine, que ainda se encontrava no Metropol. Obtenha uma chave-mestra e explique ao gerente que, se transpirar uma única palavra disto, passará os próximos dez anos escavando sal.

            Pousou o telefone, ao mesmo tempo que refletia que a operação não podia ser confiada aos seus guardas negros. Eram reconhecíveis muito facilmente e o assunto poderia culminar com um vigoroso protesto da embaixada americana. Encarregaria criminosos comuns, que dispunham de costas suficientemente largas para arcar com as responsabilidades. No seio da Mafia do Dolgoruky, havia uma equipe  especializada em assaltos.

            Durante a noite, depois de repetidos telefonemas ao quarto 841, para garantia que se encontrava deserto, dois homens introduziram-se nele munidos de uma chave-mestra, enquanto um terceiro aguardava junto das cadeiras ao fundo do corredor, para a eventualidade do ocupante do quarto regressar.

            Os intrusos procederam a uma busca minuciosa, mas não descobriram nada de interesse, passaporte, valise ou documentos pessoais de qualquer natureza. Monk devia ter todo o material consigo. No final, o quarto foi deixado exatamente como o haviam encontrado.

            Do outro lado do corredor, o checheno que se instalara nos aposentos em frente entreabriu a porta escassos centímetros, viu os homens entrarem e sairem e transmitiu a informação através do telefone portátil.

            Às 22.00, Jason Monk entrou no átrio do hotel como qualquer pessoa que acabasse de jantar e desejasse se recolher ao quarto, mas não fez escala pela recepção, porque possuía a chave de plástico. Ambas as portas eram cobertas por observadores dois em cada uma e, no momento em que entrou num dos elevadores, eles precipitaram-se para o outro, enquanto mais dois subiam pela escada. O americano atravessou o corredor em direção ao seu quarto, bateu levemente à porta em frente, recebeu uma mala de viagem e entrou no 841. Os dois primeiros gangsters, que tinham utilizado o segundo elevador, surgiram no fundo do corredor a tempo de verem a porta se fechar. Pouco depois, os outros dois apareciam no topo da escada. Registrou-se então uma breve troca de impressões. Dois instalaram-se em cadeiras, de onde podiam vigiar o corredor, e os companheiros afastaram-se para comunicar o resultado das diligências.

            Às 22.30, viram um homem abandonar o quarto de frente ao que vigiavam e encaminhar-se para os elevadores. No entanto, não lhe prestaram atenção especial, porque não saíra do que lhes interessava.

            Às 22.45, o telefone de Monk tocou. Era do departamento de serviço, para perguntar se precisava de mais toalhas. Ele disse que não, agradeceu o cuidado e desligou. Recorrendo ao conteúdo da mala, tomou as últimas disposições e preparou-se para sair. Às 23.00, dirigiu-se à estreita varanda e fechou as portas de vidro atrás de si. Como não podia trancá-las de fora, fixou-as com um pedaço de fita adesiva.

            Servindo-se de um pedaço de corda grossa que enrolara à cintura, desceu à varanda do quarto 741, precisamente na vertical, de onde saltou por cima de quatro parapeitos intermediários até às janelas do 733.

            Às 23.15, um homem de negócios sueco, totalmente despido, deitava-se de costas na cama, com o membro na mão, enquanto assistia a um filme pornográfico na TV, quando ficou petrificado ao ouvir bater à porta de vidro.

            Hesitando, apavorado, entre enfiar o roupão de banho e desligar o aparelho, optou pela primeira alternativa e recorreu depois ao controle. Assim coberto decentemente, abandonou a cama e dirigiu-se à porta. Um homem gesticulava que o deixasse entrar. Totalmente bestificado, o sueco soltou o fecho. Ato contínuo, o outro entrou e dirigiu-se a ele no sotaque arrastado dos confins do sul dos Estados Unidos.

            - Muitíssimo obrigado, amigo. Decerto se pergunta o que eu fazia na sua varanda. - Tinha inteira razão, pois o outro não fazia a mínima idéia. - Vou explicar. Foi daquelas coisas incríveis. Ocupo o quarto ao lado deste e vim aqui fora fumar um charuto, pois não gosto de saturar a atmosfera de fumaça, mas devia haver corrente de ar, porque a porta se fechou de repente. Restou-me, pois, a solução de saltar por cima do parapeito e pedir-lhe o favor de me deixar entrar.

            Fazia frio, o fumador de charuto estava inteiramente vestido, com uma maleta na mão, não soprava a menor brisa e as portas envidraçadas das varandas não podiam se fechar espontaneamente, mas o homem de negócios não se achava com presença de espírito suficiente para ponderar todos esses pormenores.             O visitante inesperado ainda não parara de se desfazer em agradecimentos e pedidos de desculpa, quando abriu a porta do corredor e se despediu cordialmente do sueco.

            Este último foi fechar a porta da varanda, correu as cortinas, despiu-se, utilizou o controle e voltou a imergir na aventura pornográfica.

            Monk atravessou o corredor do sétimo piso sem despertar a atenção, desceu pela escada e foi acolhido na rua por Magomed, ao volante do BMW.

            À meia-noite, três homens entraram no quarto 741 com uma pequena mala, servindo-se mais uma vez da chave-mestra, e mantiveram-se em atividade durante vinte minutos, antes de sair.

            Às 4.00, um dispositivo que mais tarde se verificou conter cerca de mil e quinhentos gramas de explosivo plástico numa carga de dimensões reduzidas foi detonado junto do teto do quarto 741. Os peritos oficiais deduziriam que fora colocado no topo de uma pirâmide de mobiliário, em cima da cama, na réplica do quarto em cima.

            O 841 ficou totalmente destruído. Entre os inúmeros e variados resíduos, havia uma quantidade substancial de fragmentos de ossos humanos.

            Acudiram quatro serviços de emergência. As ambulâncias chegaram com prontidão e não tardaram a partir, pois não havia nada para salvar, além dos histéricos ocupantes de três quartos ao longo do corredor. No entanto, não dominavam o idioma russo e os homens das ambulâncias não falavam outro. Verificando que não havia danos físicos, deixaram-nos ao cuidado do pessoal noturno do hotel.

            Os bombeiros também compareceram, mas embora praticamente tudo o que se encontrava nos quartos afetados tivesse sido carbonizado pelo calor intenso da explosão, não havia nada queimando. Por seu turno, o pessoal do laboratório da Polícia não tinha mãos a medir e recolhia uma larga variedade de destroços para exame posterior.

            O Departamento de Homicídios estava representado, por ordem de um major-general, pelo inspetor-detetive Borodin, o qual observou imediatamente que não havia nada à sua volta maior do que a palma de uma mão e uma perigosa abertura de um metro e vinte no sobrado, embora se lhe deparasse outra coisa no banheiro.

            A porta decerto se achava fechada, porque fora virtualmente pulverizada, com pedaços dispersos no lavatório. Além disso, a parede divisória ruíra, projetada para dentro pelo sopro da deflagração.

            Todavia, debaixo dos destroços, havia uma valise chamuscada e riscada. O conteúdo, porém, sobrevivera. Aparentemente, no momento da explosão, devia encontrar-se no lugar menos exposto dos dois aposentos, junto da parede, entre o lavatório e o bidê. A água procedente de ambos encharcara-a, mas o que continha escapara à destruição. Borodin olhou em volta para se certificar que não o observavam e guardou os dois documentos no interior do casaco.

            O coronel Grishin recebeu-os a tempo de examiná-los, enquanto tomava café. Vinte e quatro horas podem influir muito no estado de espírito de uma pessoa. Contemplou-os com profunda satisfação. Um era um processo, em russo, no qual reconheceu o Manifesto Negro. O outro resumia-se a um passaporte americano. Em nome de Jason Monk.

            “ Um para entrar e outro para sair”, refletiu. “Só que desta vez, meu amigo, não vai sair”.

 

            Aconteceram mais duas coisas, naquele dia, nenhuma das quais despertou a menor atenção. Um visitante britânico, cujo passaporte indicava o nome de Brian Marks, desembarcou no aeroporto de Sheremetyevo do vôo da tarde de Londres e dois outros ingleses transpuseram a fronteira num Saloon Volvo proveniente da Finlândia.

            Tanto quanto os funcionários do aeroporto sabiam, o recém-chegado era mais um de entre centenas e parecia não falar uma única sílaba de russo. Não obstante, à semelhança dos outros, sujeitou-se às formalidades usuais e finalmente meteu-se num táxi, que mandou seguir para o centro de Moscou.

            Desceu numa esquina, certificou-se que não o seguiam e continuou a pé em direção ao hotel de segunda classe onde reservara um quarto individual.

            Segundo o impresso sobre o dinheiro que era portador, fazia-se acompanhar de uma quantidade modesta de libras inglesas, que necessitaria de voltar a declarar à partida ou apresentar recibos de câmbio de divisas em sua substituição, além de alguns cheques de viagem, aos quais se aplicava a mesma regra. Não havia qualquer alusão aos maços compactos de notas de cem dólares fixados com fita adesiva à parte posterior das coxas.

            O seu apelido não era Marks, porém a similaridade com Marx de Karl Marx  divertira o gravador que preparara o passaporte. Como lhe fora permitido, decidira conservar o nome de batismo de Brian. Na realidade, tratava-se do ex militar que falava russo, antigo membro das forças especiais, que Sir Nigel Irvine enviara em missão de reconhecimento, em Setembro.

            Depois de se instalar, dedicou-se a várias tarefas e compras. Alugou um pequeno carro de uma agência ocidental e explorou um dos subúrbios da cidade  o bairro Vorontsovo, a sul.

            Durante dois dias, a intervalos diferentes para não despertar a atenção, dedicou-se a observar determinado edifício na realidade, era mais um armazém de largas dimensões, visitado constantemente, ao longo do dia, por pesados caminhões.

            À noite, observou-o a pé, com numerosas passagens em frente, sempre com uma garrafa de vodka vazia entre os dedos. Nas raras ocasiões em que vinha um transeunte no sentido contrário, oscilava como um ébrio e era ignorado.

            O que viu agradou-lhe. A vedação de corrente de ferro não oferecia dificuldades. A área destinada a entregas e recolhas estava encerrada durante a noite, mas havia uma pequena porta com um cadeado, nos fundos, e um guarda efetuava rondas ocasionais, a pé, no decurso das horas de escuridão. Por outras palavras, tratava-se de um alvo fácil.

            No velho mercado de carros usados no Porto Sul, onde se podia adquirir um autêntico bate-latas como uma limusine quase nova, roubados no Ocidente, comprou um conjunto de chapas de matrícula de Moscou e uma variedade de ferramentas, entre as quais um pesado corta-arame.

            No centro da cidade, muniu-se de uma dúzia de relógios Swatch baratos, mas merecedores de confiança, e diversas pilhas e rolos de cabo elétrico e fita isoladora. Quando se convenceu finalmente que conseguiria encontrar o armazém com facilidade a qualquer hora do dia ou da noite e regressar ao centro da cidade através de numerosos percursos diferentes, voltou para o hotel, a fim de aguardar o Volvo procedente de São Petersburgo.

            O encontro com Ciaran e Mitch, efetuou-se na loja de hamburgers McDonald’s, na Rua Tverskaya.

           Os outros dois soldados das forças especiais tinham efetuado uma viagem lenta, embora tranquila.

            Numa garagem do sul de Londres, o Volvo recebera carga incomum. As duas rodas da frente foram retiradas e substituídas por pneus do tipo antigo que continham tubos. Antes disso, cada um destes últimos havia sido cortado e recebido centenas de grãos de explosivos de plástico Semtex do tamanho de um polegar. Em seguida, os tubos foram introduzidos nos pneus, depois de reparadas as ranhuras, e enchidos de ar.

            Durante a rotação das rodas, a massa explosiva, extraordinariamente estável, a menos que fosse submetida às atenções de um detonar de mercúrio, derretera-se numa pele que revestira o interior de cada tubo. Assim, depois de expedido para Estocolmo, o Volvo rolara calmamente ao longo de cerca de mil quilômetros até Moscou, via Helsínquia. Os detonadores encontravam-se na camada inferior de uma caixa de charutos havanos, aparentemente comprada a bordo do ferry-boat, mas na realidade preparada em Londres.

            Ciaran e Mitch instalaram-se em hotéis diferentes. Brian acompanhou-os no Volvo a uma área de terreno baldio perto do Porto Sul, onde o veículo foi elevado com o macaco e as duas rodas sobresselentes substituíram as da frente. Quem passasse, não se surpreenderia com a manobra, pois os ladrões de viaturas de Moscou escolhiam aqueles locais para as operações de “cosméticos”, antes de tentarem negociá-las. Mais alguns minutos de trabalho e os tubos interiores foram transferidos de dentro dos pneus para um saco de lona, e eles regressaram ao hotel.

            Brian fez desaparecer os tubos de borracha numa variedade de receptáculos de lixo, enquanto Ciaran e Mitch juntavam as outras peças.

            Os mil e quinhentos gramas de explosivos de plástico foram divididos por doze pequenas bolsas, cada uma das quais do tamanho aproximado de um maço de cigarros. A seguir, juntaram-lhes um detonador, uma pilha e um relógio, com os fios unindo os componentes nos lugares apropriados. Por último, as bombas foram reunidas com fita adesiva.

            - Graças a Deus que não temos de usar aquela mistura que fede a arenques podres - disse Mitch, enquanto trabalhavam.

            O Semtex-H, sem dúvida o mais popular de todos os derivados do explosivo de plástico RDX, foi sempre produzido pelos checos e, durante a égide dos comunistas, não exalava o mínimo odor, o que o tornava o produto preferido dos terroristas.

            Após a queda do regime, o novo presidente da Checoslováquia, Vaclav Havel, acedeu imediatamente ao pedido do Ocidente para alterar a fórmula e juntar um cheiro insuportável, para tornar o explosivo detectável em trânsito. Lembrava peixe podre, e daí a observação de Mitch.

            Em meados dos anos noventa, os dispositivos de deteção tinham-se tornado tão sofisticados, que até conseguiam localizar a variedade não odorífera. Mas a borracha quente tem um cheiro similar, pelo que havia conveniência em recorrer aos pneus para o transporte. Na verdade, o Volvo não tinha sido submetido àquela espécie de teste, porém Sir Nigel gostava de tomar precauções extremas, qualidade que Ciaran e Mitch aprovavam sem reservas.

            O assalto à fábrica foi efetuado seis dias depois do coronel Grishin receber o Manifesto Negro e o passaporte de Jason Monk.

            O Volvo, com as suas rodas da frente novas e chapas de matrícula de Moscou falsas, era conduzido por Brian. Se alguém os interceptasse, somente ele falava russo para responder às perguntas.

            Estacionaram a três ruas de distância do alvo e percorreram o resto do caminho a pé. A vedação metálica dos fundos não constituiu problema para o pesado corta-arame. Os três homens transpuseram correndo, agachados, os cerca de vinte metros descobertos e desapareceram na sombra projetada por uma pilha de tambores de tinta.

            Quinze minutos mais tarde, o guarda fez uma das rondas. Em dado instante, ouviu um arroto na área da sombra, voltou-se e apontou a lanterna. Avistou um ébrio, caído junto da parede, com uma garrafa de vodka na mão.

            Não dispôs de tempo para conjecturar como o homem se introduzira no recinto isolado, porque, de costas para os tambores, não percebeu o vulto de negro que emergiu deles e o atingiu na nuca com um pedaço de tubo de chumbo.

            Brian imobilizou-lhe os tornozelos e pulsos com fita adesiva espessa, que também utilizou para cobrir a boca, enquanto Ciaran e Mitch arrancavam o cadeado da porta. Depois de a abrirem, arrastaram o guarda inanimado para dentro, depositaram-no junto da parede e voltaram a fechá-la.

            No interior da cavernosa fábrica, uma fiada de lâmpadas ardia entre as vigas do teto e permitia observar as imediações. A maior parte do espaço do chão era ocupada por carretéis enormes de papel de jornal e tambores de tinta de impressão. No entanto, no centro estava aquilo que tinham vindo procurar: três impressoras rotativas do tipo offset.

            Eles sabiam que, em algum lugar perto da porta da frente, se encontrava o segundo guarda, protegido do frio numa espécie de guarita, vendo televisão ou lendo o jornal. Brian deslizou em silêncio entre as máquinas para se ocupar dele. Em seguida, saiu pelos fundos e ficou vigiando essa área.

            Às três impressoras não eram estranhas a Ciaran e Mitch. Tratava-se de rotativas Baker-Perkins, fabricadas nos Estados Unidos e impossíveis de substituir na Rússia. Haveria necessidade de uma longa viagem pelo mar, de Baltimore a São Petersburgo, pois nem um Boeing 747 disporia de espaço suficiente para acomodá-las.

            Intitulando-se executivos de jornais finlandeses interessados em reequipar o seu parque tipográfico com impressoras Baker-Perkins, os dois homens tinham visitado a fábrica, sob a orientação de uma companhia de Norwich, Inglaterra, que utilizava o mesmo tipo de máquinas. Depois disso, um tipógrafo aposentado, devidamente remunerado, completara a sua educação na matéria.

            Os seus alvos pertenciam a quatro tipos. Cada impressora era alimentada por carretéis gigantescos de papel de noventa gramas, e o sistema automático permitia a sua substituição imediata no momento em que ficava vazio. Ciaran começou a colocar as pequenas bombas nos lugares exatos em que assegurariam a destruição irremediável das bases dos carretéis.

            Por seu turno, Mitch ocupou-se do mecanismo abastecedor de tinta, após o que os dois sabotadores se concentraram nas máquinas propriamente ditas.

            As partes que escolheram para as bombas que restavam foram as estruturas principais e as chumaceiras dos cilindros de impressão, um por máquina.

            Permaneceram vinte minutos no local, até que Mitch indicou o relógio e inclinou a cabeça para Ciaran. Era uma hora da madrugada, e os detonadores estavam ajustados para trinta minutos mais tarde. Transcorridos cinco, encontravam-se nos fundos e arrastavam o guarda, que entretanto recobrara os sentidos, mas continuava incapacitado. Fazia frio lá fora, porém estariam protegidos dos estilhaços. O outro guarda, no lado oposto do edifício, encontrava-se muito longe para ser afetado.

            À 1:10, estavam instalados no Volvo, que acabava de se pôr em movimento. À 1:30, achavam-se muito longe para ouvir a série de explosões quase simultâneas que assinalavam a destruição das impressoras e respectivo material de abastecimento.

            Os guardas libertados verificaram que o telefone ainda funcionava e chamaram o capataz da fábrica, o qual compareceu às três e meia e observou a devastação horrorizado. Em seguida, ligou a Boris Kuznetsov.

            O chefe da propaganda da União das Forças Patrióticas chegou às cinco da manhã e escutou com pavor a descrição do capataz, após o que telefonou ao coronel Grishin.

            Antes de decorrida uma hora, o carro alugado e o Volvo Saloon tinham sido abandonados nas proximidades da Praça Manege, onde o primeiro seria encontrado e entregue à agência. Quanto ao outro veículo, cujas portas não estavam trancadas e apresentava as chaves na ignição, decerto seria roubado antes do nascer do Sol, como na realidade aconteceu.

            Os três antigos militares tomaram o café da manhã no insalubre café do aeroporto e embarcaram no primeiro vôo para Helsínque, uma hora mais tarde.

            Enquanto eles abandonavam a Rússia, o coronel Grishin contemplava os destroços com fúria crescente. Haveria um inquérito, porém a experiência profissional indicava-lhe que se tratava de obra de especialistas, e duvidava que jamais os descobrisse.

            Kuznetsov estava positivamente exasperado. Todas as semanas, nos últimos dois anos, o tabloid dos sábados, Probudis! (“Acorda!”, em russo) levara as palavras e projetos de Igor Komarov a cinco milhões de lares de todo o país. A idéia de estabelecer um jornal de larga circulação pertencente inteiramente à UFP fora sua, assim como a da revista mensal Rodina (Pátria).

            Esses dois veículos, uma mistura de concursos com prêmios valiosos, confissões sexuais e propaganda racial, levavam as palavras do líder a todos os cantos da nação e contribuíam enormemente para a sua popularidade eleitoral.

            - Quando poderemos reatar a produção? - perguntou ao chefe da oficina.

            Este encolheu os ombros.

            - Quando tivermos outras máquinas. Estas não podem ser reparadas. Talvez dentro de dois meses.

            Kuznetsov estava pálido de indignação, e tinha presente no espírito que ainda não informara Komarov. Tentava convencer a si próprio que a culpa pertencia a Grishin, pois o local devia ter sido bem guardado. No entanto, uma coisa era certa: o Probudis! não apareceria nas bancas, naquele sábado, nem a edição especial da fíodina, dentro de duas semanas. Nem nas dez mais próximas, pelo menos. E as eleições presidenciais realizavam-se dentro de oito.

            A manhã também não se podia considerar agradável para o inspetor-detetive Borodin, embora tivesse entrado no gabinete da Brigada de Homicídios da sede da Polícia, em Petrovska, bem humorado.

            A sua boa disposição na semana anterior fora notada pelos colegas, mas mantivera-se inexplicada. Na realidade, a explicação era simples a entrega de dois valiosos documentos ao coronel Anatoli Grishin, depois da misteriosa explosão no Hotel Metropol, valera-lhe uma generosa gratificação.

            Intimamente, sabia que não valia a pena continuar a investigar o insólito evento. As obras de restauração já tinham começado, a companhia seguradora, sem dúvida estrangeira, arcaria com as despesas, o hóspede americano morrera e o mistério era absoluto. Se suspeitava que as suas diligências relativas a este último, ordenadas pelo próprio coronel, se relacionavam de algum modo com a sua morte quase imediata, não tencionava deixá-lo transparecer.

            Igor Komarov seria certamente o novo presidente da Federação Russa dentro de menos de dois meses, Grishin o segundo homem mais poderoso e haveria recompensas para quem o servira durante os anos na oposição.

            O ambiente estava excitado com a notícia da destruição das impressoras do partido da UFP durante a noite. Borodin atribuiu a ocorrência aos comunistas de Zyuganov ou a terroristas a soldo de mafiosos, e ponderava as suas teorias, quando o telefone tocou.

            - Borodin? - proferiu uma voz grave.

            - Sim, fala o inspetor-detetive Borodin.

            - Daqui, Kuzmin.

            Esquadrinhou a memória, mas não se fez a mínima luz.

            - Quem?

            - O professor Kuzmin, do laboratório de patologia do necrotério do Segundo Instituto de Medicina. Foi você que me enviou os espécimes recuperados do  atentado à bomba no Metropol? O processo tinha o seu nome.

            - Ah, sim, sou o responsável pelas investigações.

            - Então, é um imbecil.

            - Não compreendo...

            - Terminei agora mesmo o exame aos restos do corpo recuperados no local da explosão - explicou o irado patologista. - Juntamente com numerosos  fragmentos de madeira e vidro, não têm nada a ver com a minha especialidade.

            - Então, qual  é o problema, professor? Ele está morto.

            A voz do outro lado do fio começava a tornar-se trêmula de revolta.

            - Com certeza que está morto, seu cabeça quadrada. Não se encontraria em pedaços no meu laboratório, se gozasse de perfeita saúde.

            - Nesse caso, não vislumbro o problema, repito. Trabalho há vários anos na Brigada de Homicídios e nunca vi ninguém mais morto.

            A inflexão do professor dominou a indignação, sem dúvida com grande dificuldade, e assumiu a de quem se dirige a uma criança de compreensão lenta.

            - A questão, meu caro Borodin, consiste em saber quem morreu.

            - O turista americano, claro. Tem aí os ossos dele.

            - Sim, tenho aqui ossos, detetive Borodin. - A voz incutiu particular ênfase   ao termo detetive, para sugerir que o interlocutor teria grande dificuldade em  localizar as instalações sanitárias sem o auxílio de um cão-guia. - E também esperaria contar com a presença de tecido, músculos, cartilagens, pele, cabelos, unhas, entranhas, etc. Em vez disso, que tenho? Ossos e nada senão ossos!

            - Não estou acompanhando o seu raciocínio. Que há de extraordinário nisso?

            O patologista não logrou continuar a conter-se e registrou-se a inevitável explosão, o que obrigou Borodin a afastar o auscultador do ouvido.

            - Nada! Por sinal, são ossos lindos. Têm sido há uns vinte anos, data aproximada da morte do dono. O que pretendo inculcar nos seus minúsculos  miolos é que alguém se deu ao trabalho de fragmentar um esqueleto de estudo, daqueles que todo o estudante de medicina tem em um canto do seu quarto.

            A boca do inspetor-detetive abriu-se e fechou-se como a de um peixe.

            - Está me dizendo que o americano não se encontrava naquele quarto?

            - Pelo menos, quando a bomba explodiu. A propósito, quem era? Ou, como decerto continua vivo, quem é?

            - Não sei. Um acadêmico ianque.

            - Ah, mais um intelectual! Como eu. Quando o vir, diga-lhe que apreciei o seu sentido do humor. Para onde quer que envie o meu relatório?

            O que Borodin menos desejava era vê-lo em cima da sua mesa. Por conseguinte, indicou o nome de determinado major-general do presídio da Polícia. Este último recebeu-o naquela tarde e telefonou ao coronel Grishin para lhe transmitir a informação. Não obteve qualquer gratificação como recompensa.

            Ao fim da tarde, Grishin mobilizara o seu exército privado de informantes, e tratava-se de uma força impressionante. Milhares de réplicas da fotografia de Jason Monk, extraída do seu passaporte, foram postas a circular pelos Guardas Negros e Jovens Combatentes nas artérias da capital, numa vasta tentativa para encontrar o homem pretendido. O esforço e o seu número eram superiores aos mobilizados para localizar o empregado da limpeza desaparecido, Leónidas Zaitsev.

            Outras cópias destinaram-se aos chefes de clãs do submundo dos Dolgoruki, com ordens para o encontrar e deter. Foram igualmente alertados informantes da Polícia e da imigração. Quem fornecesse alguma indicação susceptível de conduzir à captura do fugitivo seria premiado com cem mil milhões de rublos.

            Grishin assegurou a Igor Komarov que, com semelhantes providências, o americano não teria lugar algum onde se ocultar, pois a rede de informantes que participavam na operação podia penetrar em todos os recantos de Moscou.

            O coronel tinha quase toda a razão. Havia um lugar em que os seus russos não podiam se introduzir o mundo rigorosa e intransponivelmente hermético dos chechenos.

            Jason Monk encontrava-se no interior desse mundo, num apartamento seguro por cima de uma loja de especiarias, protegido por Magomed, Asian e Sharif, tendo além deles uma cortina de gente invisível da rua, capaz de avistar um russo a dois quilômetros de distância e comunicar numa linguagem que mais ninguém conseguia compreender.

            Em todo o caso, Monk já estabelecera o seu segundo contacto.

 

            De todos os antigos militares da Rússia, ativos ou aposentados, o único que, em termos de prestígio, valia dúzias de outros, era o general do Exército Nikolai Nikolayev.

            Prestes a completar setenta e quatro anos, ainda era uma figura impressionante. com um metro e oitenta e três de altura, conservava-se aprumado, e os cabelos brancos abundantes, faces rubicundas e bigode de guias pontiagudas distinguiam-no em qualquer reunião.

            Fora comandante de infantaria motorizada, prestara serviço em numerosas frentes de combate e tornara-se numa lenda para todos os que haviam contactado com ele. Era convicção generalizada que teria passado à reserva com a patente de marechal, se não fosse o hábito de exprimir o que pensava aos camaradas de armas e políticos.

            À semelhança de Leónidas Zaitsev, o Coelho, de quem não se recordava, mas ao qual dera uma palmada nas costas, uma ocasião, num campo nas imediações de Potsdam, nascera perto de Smolensk, a oeste de Moscou, no entanto, onze anos antes daquele, no Inverno de 1925, e filho de um engenheiro.

            Ainda se recordava do dia em que, com o pai, passava diante de uma igreja, e este último, distraído, se persignara. Quando lhe perguntara o que fizera, o progenitor, embaraçado e receoso, recomendara-lhe que nunca o divulgasse a quem quer que fosse.

            Eram os tempos em que outro jovem soviético fora declarado oficialmente herói por denunciar os pais ao NKVD por proferirem comentários hostis acerca do Partido. Ambos haviam morrido em campos de trabalho, mas o filho fora considerado um modelo da juventude soviética.

            Contudo, o jovem Kolya estimava o pai e nunca divulgara uma única palavra. Mais tarde, inteirou-se do significado do gesto, mas aceitou a explicação dos seus professores, que carecia de sentido.

            Tinha quinze anos, quando se registrou a invasão do Ocidente, a 22 de Junho de 1941. Em menos de um mês. Smolenks cedeu aos ataques avassaladores dos tanques alemães, e o rapaz pôs-se em fuga com milhares de outros da sua idade. Os pais não conseguiram escapar a tempo e ele não tornou a vê-los.

            Como era um jovem vigoroso, levou a irmã de dez anos nos braços durante centenas de quilômetros, até que, uma noite, subiram para um trem de carga que seguia para leste. Embora não soubessem, tratava-se de uma composição especial, que transportava uma fábrica de tanques desmontada para fora da zona de perigo, em direção à segurança dos Montes Urais.

            Tiritando de frio e famintos, os dois jovens resistiram até que o trem se deteve em Chelyabinsk, junto das montanhas, onde os engenheiros voltaram a montar a fábrica, denominada Tankograd.

            Não havia tempo para frequentar a escola. Calina ingressou num orfanato e Kolya foi colocado para trabalhar na fábrica, onde permaneceu cerca de dois anos. No Inverno de 1942, os soviéticos sofriam pesadas baixas em homens e tanques na área de Kharkov e Stalingrado. A tática era tradicional e letal. Não havia tempo nem talento para sutilezas os homens e tanques eram atirados para os canos da artilharia alemã, sem a mínima reflexão ou preocupação com as baixas. Na história militar russa, fora sempre assim.

            Em Tankograd, as exigências de produção eram cada vez mais prementes e os operários faziam turnos de dezesseis horas e dormiam debaixo dos tornos. Dedicavam-se à construção do KV1, batizado com as iniciais do marechal Klimenti Voroshilov, um indivíduo inútil do ponto de vista militar, mas um dos bajuladores prediletos de Stalin. O KV1 era um tanque pesado, o principal de batalha dos soviéticos na época.

            Por altura da Primavera de 1943, os soviéticos reforçavam os efetivos em torno da cidade de Kursk, enclave de uns trezentos quilômetros de norte para sul que penetrava cento e oitenta nas linhas germânicas. Em Junho, o jovem de dezessete anos foi escolhido para acompanhar um trem carregado com tanques KV1 para o ponto mais saliente a oeste, ajudar a descarregá-los, entregá-los e regressar a Chelyabinsk. Fez tudo menos a última alínea da missão.

            Os novos tanques estavam alinhados junto da via férrea, quando surgiu o comandante militar ao qual se destinavam. Era surpreendentemente jovem  ainda não completara vinte e cinco anos, com a patente de coronel, barbudo, macilento e exausto.

            - Não tenho motorista! - bradou ao oficial da fábrica de tanques responsável pela entrega. De súbito, virou-se para o rapaz espigado e de aspecto vigoroso e perguntou: - Sabe guiar esta porcaria?

            - Sim, senhor comandante, mas tenho de voltar para Tankograd.

            - Nem pense nisso. Se sabe dirigir, está mobilizado.

            Enquanto o trem partia, rumo a leste, o soldado raso Nikolai Nikolayev viu-se envergando um avental de algodão e encerrado num KV1, com destino à vila de Prokhorovka. A batalha de Kursk principiou dois dias mais tarde.

            Embora lhe chamassem “batalha”, constituiu na realidade uma série de recontros sangrentos que se propagaram por todo o enclave e duraram dois meses. No final, foram considerados a maior batalha de tanques a que o mundo jamais assistira e envolveu seis mil de cada lado, dois milhões de homens e quatro mil aviões. Foi a batalha que provou definitivamente que os Panzer alemães afinal não eram invencíveis. Mas foi por pouco.

            O exército alemão começava a utilizar a sua arma-maravilha, o Tigre, com um temível canhão de 88 milímetros na torre, o qual, com os projéteis perfuradores de blindagens, podia arrasar tudo à sua passagem. Por seu turno, o KV1, dispunha de uma peça muito menor de 76 milímetros, embora o novo modelo que Nikolai entregara contivesse a versão aperfeiçoada de longo alcance, ZIS-5.

            A 12 de Julho, os russos começaram a contra-atacar, tendo como alvo o setor Prokhorovka. O regimento em que ele ingressara estava reduzido a seis KV1 quando o comandante avistou o que julgou serem cinco blindados Panzer Mark IV e decidiu atacar. Os russos formaram uma frente no topo de uma crista e ao longo de um vale e os alemães encontravam-se na crista oposta.

            O jovem coronel enganara-se quanto aos Panzer IV, pois tratava-se de Tigres, que neutralizaram os seis KV1 com os seus projéteis especiais.

            O tanque de Nikolai foi atingido duas vezes. Na primeira, fez voar a cremalheira de um dos lados e rasgou a cobertura. Em baixo, sentado no banco do condutor, Nikolai sentiu o carro blindado estremecer e parar. O segundo projétil derrubou parte da torre e atingiu a encosta. Não obstante, o impacto foi suficiente para matar os tripulantes.

            Havia cinco homens no KV1 e quatro estavam mortos. Nikolai, abalado e trêmulo, tentou arrastar-se para fora do túmulo em movimento, saturado pelo cheiro do combustível diesel que escapava e escorria sobre o metal quase em brasa. Os corpos sem vida interpunham-se e ele afastava-os com dificuldade crescente. O artilheiro e o seu comandante jaziam um em cima do outro, com o sangue e mucosidades a brotarem da boca, narinas e ouvidos. Através do rasgão na blindagem, via os Tigres moverem-se rapidamente, por entre a fumaça de outros KV1 destroçados.

            Descobriu com admiração que a arma da torre ainda funcionava. Pegou um projétil, introduziu-o na culatra e fechou o mecanismo. Nunca o fizera, mas vira fazê-lo. Em geral, eram necessários dois homens. Esforçando-se por dominar o aturdimento, fez a torre descrever meia volta, aplicou a vista à mira do periscópio, avistou um Tigre a menos de trezentos metros e disparou.

            Aconteceu que o que escolheu era o último dos cinco. Os quatro que o precediam não se deram conta de nada. Nikolai tornou a carregar a peça, procurou novo alvo e fez fogo. O Tigre recebeu o projétil entre a torre e a blindagem inferior e explodiu. Em algum lugar sob os pés dele registrou-se um som abafado e as chamas começaram a propagar-se na vegetação, intensificando-se à medida que encontravam mais lagoas de combustível. Após o segundo disparo, os três Tigres sobreviventes descobriram que eram atacados pela retaguarda e voltaram-se. Nikolai atingiu o terceiro no meio da manobra. Entretanto, os outros dois completaram-na e avançaram. Ele reconheceu então que chegara a sua última hora.

            Lançou-se ao chão poucas frações de segundo antes da torre em que estivera voar em pedaços. As munições começaram a explodir e sentiu a camisa arder, o que o levou a rolar nos arbustos, ao mesmo tempo que se afastava do centro do pandemônio.

            Sucedeu então algo que não esperava, nem viu. Dez SU-152 surgiram no topo da elevação, os tripulantes dos Tigres decidiram que bastava de excitação para um dia. Dos cinco, restavam dois, que se distanciaram rapidamente na direção da elevação oposta. Um chegou lá e desapareceu com prontidão.

            Nikolai sentiu que alguém o levantava um coronel. O vale estava sulcado de tanques destruídos seis russos e quatro alemães. O dele estava rodeado por três dos Tigres neutralizados.

            - Foi você que fez isto? - perguntou o coronel, incrédulo.

            Nikolai quase não o conseguia ouvir. Sentia zumbidos na cabeça e estava enjoado, na iminência de vomitar. Por fim, assentiu com uma inclinação de cabeça.

            - Venha comigo - ordenou o coronel.

            Havia um pequeno caminhão GAZ do outro lado da elevação, que ele conduziu durante doze quilômetros, até que chegaram a um acampamento militar. Diante da tenda principal, encontrava-se uma longa mesa coberta de mapas, no momento examinados por uma dezena de oficiais superiores. O coronel imobilizou o veículo, desceu e fez a saudação da praxe. O general mais antigo ergueu a cabeça com curiosidade.

           Nikolai sentava-se no assento ao lado do volante do caminhão e viu o coronel falar com o superior, enquanto os outros oficiais o olhavam. Por último, o primeiro general levantou a mão e fez-lhe sinal para que se aproximasse. Apreensivo por ter deixado escapar os dois Tigres, Nikolai desceu do veículo e obedeceu sem pressa. Tinha a camisa de algodão chamuscada, o rosto enegrecido e tresandava a petróleo e pólvora.

            - Três Tigres? - exclamou o general Pavel Rotmistrov, comandante do  Primeiro Exército de Guardas de Tanques. - Por trás? Com um KV1 parcialmente destruído?

            Nikolai conservava-se calado, como um pateta. O general sorriu e voltou-se para um homem baixo e atarracado, que ostentava a insígnia de comissário político.

            - Acho que a proeza merece um pedaço de metal, hem?

            O outro assentiu com um gesto. O camarada Stalin aprovaria o ato heróico. Alguém foi buscar uma caixa na tenda e Rotmistrov impôs a ordem de Herói da União Soviética ao rapaz de dezessete anos. O comissário, que chamava-se Nikita Khrushchev, observava a cena com satisfação.

            Nikolai Nikolayev recebeu instruções para se apresentar num hospital de campanha, onde as mãos e rosto queimados foram devidamente tratados, depois do que seguiu para o quartel do general. Uma vez aí, confiaram-lhe uma comissão de campanha, a patente de tenente e um pelotão de três KV1. Finalmente, regressou ao campo de batalha.

            Naquele Inverno, com a saliência de Krusk, quilômetros atrás dele e os Panzer em retirada, foi promovido a capitão e recebeu uma companhia de tanques pesados acabados de chegar da fábrica. Eram os IS-II, batizados com as inciais de losef Stalin, os quais, com uma peça de 122 milímetros e blindagem mais espessa, se tornaram conhecidos como mata-Tigres.

            Na Operação Bragation, recebeu a sua segunda medalha de Herói da União Soviética por invulgar bravura em combate, e, nos arrabaldes de Berlim, lutando sob as ordens do marechal Chuikov, a terceira.

            Era esse homem que Jason Monk, cinquenta e cinco anos mais tarde, viera procurar.

            Se o velho general usasse um pouco mais de tato para com o Politburo, não só teria recebido o bastão de marechal, mas também uma confortável dacha para a aposentadoria na margem do Rio Moskva, em Peredelkino, com o resto dos peixes graúdos, como oferta gratuita especial do Estado. Mas sempre dissera o que pensava aos superiores hierárquicos e raramente do seu agrado.

            Por conseguinte, mandou construir um bangalô mais modesto para os seus anos de declínio, na estrada de Minsk, a caminho de Tuknovo, área sulcada de acampamentos do exército, onde ao menos podia estar perto daquilo que restava do estimado exército.

            Nunca casara, “Não é vida para uma moça”, costumava dizer em relação às suas colocações nos lugares mais remotos e inóspitos do império soviético e agora, aos setenta e três anos, vivia com um empregado doméstico fiel, antigo sargento-mor, sem um dos pés e um cão-pastor com quatro.

            Monk localizou o modesto domicílio de Nikolai, limitando-se a perguntar aos alemães das comunidades próximas onde vivia o tio Kolya. Anos atrás, quando entrara na meia-idade, o general recebera esse apelido dos oficiais mais jovens, e conservava-a desde então. Como o cabelo e o bigode haviam encanecido prematuramente, parecia ter idade suficiente para ser o tio de todos.

            Devido ao fato do americano conduzir um carro de comando do Ministério da Defesa, naquela tarde, e usar o uniforme de coronel do Estado-Maior, os aldeões não hesitaram em lhe indiicar onde o tio Kolya vivia.

            Anoitecera e fazia frio intenso, quando ele bateu à porta, depois das nove. O empregado coxo acudiu a abrir e, ao ver o uniforme, mandou-o entrar.

            O general Nikolayev não esperava visitas, mas a indumentária do desconhecido e a valise que se fazia acompanhar causaram-lhe apenas leve surpresa. Sentava-se na sua poltrona favorita junto do fogo, entretido em ler um estudo militar de um general mais jovem e fungar com desdém, ocasionalmente. Conhecia-os todos, sabia o que tinham feito e, mais embaraçoso, o que nunca tinham feito, apesar do que agora proclamavam, enquanto ganhavam dinheiro escrevendo histórias de ficção.

            Quando Volodya anunciou que chegara um visitante de Moscou, ergueu os olhos e observou este último.

            - Quem é? - grunhiu.

            - Alguém que precisa falar com o senhor, general.

            - De Moscou?

            - Por hora, sim.

            - Bem, já que veio, melhor que desembuche.  Indicou a valise com um movimento de cabeça.  Documentos do Ministério?

            - Não exatamente. Documentos, sim. Mas de outra proveniência.

            - Faz frio lá fora. É melhor sentar-se. Bem, despeje o saco. Que assunto o traz?

            - Vou ser completamente franco. O uniforme serviu para convencê-lo a me receber. Não pertenço ao exército russo, não sou coronel e não faço parte do estado-maior de ninguém. Na verdade, sou americano.

            O general olhou o interlocutor em silêncio por alguns segundos, como se lhe custasse a crer no que ouvia. Por fim, as pontas do bigode oscilaram de indignação.

            - Em outras palavras, é um impostor! - vociferou. - Não passa de um reles espião. Não admito impostores nem espiões em minha casa! Rua!

            No entanto, Monk conservou-se sentado.

            - Muito bem, sairei. Mas, como dez mil quilômetros são uma distância enorme para percorrer em troca de trinta segundos, responde a uma única pergunta?

            - Só uma. - O ancião assumiu uma expressão grave. - Fale.

            - Há cinco anos, quando Boris Ieltsin lhe pediu que abandonasse a atividade e comandasse o ataque à Chechenia e a destruição da capital, Grozny, constou que observou os planos e anunciou a Pavel Grachev, ministro da Defesa: “Comando soldados e não carniceiros. Isto é trabalho para o pessoal do matadouro”. É verdade?

            - E se fosse?

            - É verdade? Aceitou permitir-me uma pergunta.

            - Pois bem, é. E eu tinha razão.

            - Por que o disse?

            - Já são duas perguntas.

            - Ainda tenho de percorrer mais dez mil quilômetros para regressar para casa.

            - Seja. Porque não creio que o genocídio seja próprio dos soldados. E agora, saia.

            - Sabe que é uma porcaria o livro que está lendo?

            - Quem lhe disse?

            - Eu o li. É um estendal de disparates.

            - De acordo. E daí?

            - Monk introduziu a mão na valise, extraiu o Manifesto Negro e abriu-o numa página que marcara. Em seguida, mostrou-a ao interlocutor.

            - Já que tem tempo para ler baboseiras, por que não dá uma olhada a algo realmente desagradável?

            A cólera do general foi parcialmente atenuada pela curiosidade.

            - Propaganda ianque?

            - Não. O futuro da Rússia. Leia esta página e a seguinte.

            Emitiu um grunhido, pegou no documento e leu rapidamente as duas páginas assinaladas.

            - Besteiras! acabou por vociferar. - Quem escreveu este lixo?

            - Ouviu falar de Igor Komarov?

            - Que pergunta! Sem dúvida. Vai ser presidente, em Janeiro.

            - Bom ou mau?

            - Sei lá! Todos se torcem como saca-rolhas.

            - Portanto, não é melhor nem pior que o resto do bando?

            - Mais ou menos.

            Monk descreveu os eventos de 15 de Julho último, falando com a maior rapidez possível, com receio de perder a atenção do general ou, pior, que ele perdesse a paciência.

            - Não acredito - declarou este último, no final. - Vem-me contar histórias infantis...

            - Se são histórias  infantis, três  homens  não  morreram em tentativas para recuperar isto. Mas morreram. Tenciona ir a algum lugar, esta noite?

            - Eu, não. Porquê?

            - Então, por que não põe de lado as memórias de Pavel Grachev e lê as intenções de Ikor Komarov? Algumas passagens hão de agradar-lhe. A concessão de plenos poderes ao exército. Mas não para defender a pátria, pois não a ameaça qualquer perigo do exterior. Destina-se a criar uma força militar para promover o genocídio. O senhor pode não gostar dos judeus, chechenos, georgianos, ucranianos e armênios, mas lembre-se que também se encontravam naqueles tanques. Assim como em Kurks, Bragation, Berlim e Cabul. Combateram a seu lado. Por que não gasta alguns minutos para se inteirar do que Komarov lhes prepara?

            Nikolayev olhou Monk em silêncio por um momento e, por último, perguntou entre dentes:

            - Os americanos bebem vodka?

            - Bebem, nas noites glaciais no meio da Rússia.

            - Há uma garrafa ali. Sirva-se.

            Enquanto o ancião lia, Monk verteu uma dose generosa de Moskovskaya num copo e recordou as instruções que recebera no Castelo Forbes.

            “Talvez seja o último dos generais russos com uma noção de honra dos velhos tempos. Não é idiota, nem tem medo de coisa alguma. Há dez milhões de veteranos dispostos a escutar o tio Kolya”, dissera o tutor de russo, Oleg.

            Após a queda de Berlim e um ano de ocupação, o jovem major Nikolayev foi mandado regressar a Moscou, para frequentar a Escola de Blindados de Oficiais. No Verão de 1950, recebeu a incumbência de comandar um dos sete regimentos de tanques pesados no Rio Yalu, no Extremo Oriente.

            A guerra da Coréia achava-se no auge, com os americanos repelindo os norte-coreanos, e Stalin estava pensando seriamente em salvar o toucinho coreano enviando os seus novos tanques contra os ianques. No entanto, duas coisas o impediram de concretizar as intenções: conselhos sensatos e a sua própria paranóia. Os IS-4 eram tão ultra-secretos, que os seus detalhes nunca foram revelados, e ele temia perder um intato. Em 1951, Nikolayev foi colocado em Potsdam, com a patente de tenente-coronel, quando ainda contava apenas vinte e cinco anos.

            Aos trinta, comandou um regimento de tanques de operações especiais, durante a revolta na Hungria. Foi aí que irritou pela primeira vez o embaixador soviético, Yuri Andropov, que se tornaria diretor do KGB durante quinze anos e secretário-geral do Partido Comunista da URSS. O coronel Nikolayev negou-se a utilizar as metralhadoras dos seus tanques para varrer as multidões de civis húngaros que protestavam nas ruas de Budapeste.

            - Setenta por cento são mulheres e crianças - referiu ao embaixador e arquiteto do esmagamento da revolta. - Atiram pedras, que não danificam os tanques.

            - Temos de lhes dar uma lição! - rugiu Andropov. - Empregue as suas metralhadoras!

           Nikolayev vira o que metralhadoras pesadas podiam fazer a civis acumulados num espaço restrito. Em Smolensk, em 1941. Os seus pais encontravam-se entre eles.

            - Se é isso que pretende, faça-o o senhor - replicou.

            Um general mais antigo tentou deitar água na fervura, porém a carreira de Nikolayev esteve suspensa por um fio. Andropov não era um homem que costumasse perdoar.

            No princípio e meados dos anos sessenta, o recalcitrante oficial foi nomeado para lugares distantes e isolados, nas margens dos rios Amur e Ussuri, fronteiros à China, enquanto Krushchev ponderava se devia dar uma lição de guerra de tanques a Mao Tse-tung.

            Khrushchev perdeu o poder, substituído por Brazhnev, a crise acalmou e Nikolayev abandonou a vastidão gelada da fronteira da Manchuria, para regressar a Moscou.

            Em 1968, como major-general de quarenta e dois anos, comandou uma divisão na revolta de Praga, de longe a melhor das que participaram na operação.

            Passou quatro anos ensinando táticas da guerra de tanques na Academia Frunze, e, em 1973, foi conselheiro de combates com carros blindados junto dos sírios. A guerra de Yom Kippur travou-se nesse ano.

            Embora devesse permanecer em segundo plano, conhecia tão bem os tanques fornecidos pelos soviéticos, que planejou e montou um ataque contra a Sétima Brigada Blindada dos israelitas, nos Montes Golan.

            Os sírios não possuíam recursos nem capacidade suficientes para triunfar, porém o planejamento e a tática eram brilhantes. Os israelitas sobreviveram, mas o inimigo chegou a causar-lhes sérias preocupações.

            Em 1979, surgiu o Afeganistão. Contava então cinquenta e três anos e ofereceram-lhe o comando do 40.º Exército, o que implicava a promoção de tenente-general a coronel-general.

            Observou os planos, em seguida o terreno e depois o povo indígena e redigiu um relatório em que afirmava que a operação e ocupação seriam atrozes do ponto de vista de baixas, destituídas de objetivos concretos, e constituiriam o Vietnã soviético. Foi a segunda vez que enfureceu Andropov.

            Tornaram a mandá-lo para lugares ermos, para treinar recrutas. Os generais que seguiram para o Afeganistão cobriram-se de medalhas e glória... nos primeiros tempos. Mais tarde, milhares deles foram cobertos de terra, três metros abaixo da superfície.

            - Não acredito nestas imbecilidades!

            O velho general atirou a pasta de plástico preta, que pousou nos joelhos de Monk. - É preciso descaramento, ianque! - acrescentou. - Introduz-se no meu país, em minha casa... tenta encher-me a cabeça com essas mentiras perniciosas.

            - Diga-me uma coisa, general. Que pensa de nós?

            - Nós, quem?

            - Os americanos, o povo do Ocidente. Enviaram-me aqui. Não atuo  independentemente. Se Komarov fosse uma excelente pessoa, cheio de boas intenções, por que nos preocuparíamos?

            O ancião arregalou os olhos, menos abalado pelo tom em que se lhe dirigiam o que, aliás, acontecera muitas vezes no passado do que pela intensidade que as palavras se achavam impregnadas.

            - Passei a vida lutando contra vocês.

            - Não, general. Passou a vida opondo-se a nós. E o fez ao serviço de regimes que, como sabe, cometeram atos terríveis.

            - Esta é a minha pátria, americano. Insulte-a e sujeite-se às consequências.

            Monk inclinou-se para a frente e indicou o Manifesto Negro.

            - Nunca houve nada como isto. Khrushchev, Brezhnev e Andropov não lhe chegavam aos calcanhares.

            - Qualquer pessoa pode ter escrito esse texto.

            - Então, leia a outra parte. É a descrição de como veio nos parar às mãos.  Um velho, antigo soldado, sacrificou a vida para o tornar conhecido.

            Entregou ao general o relatório intitulado “Verificação” e serviu-lhe uma dose de vodka, que Nikolayev ingeriu de um trago, à maneira russa.

            Somente no Verão de 1987 alguém estendeu a mão para uma prateleira mais alta, pegou o relatório do velho Nikolayev elaborado em 1979, sacudiu o pó e entregou-o ao Ministério dos Assuntos Estrangeiros. Em Janeiro de 1988, o respectivo ministro, Eduard Shevardnaze, anunciou ao mundo: Vamos nos retirar.

            Nikolayev ascendeu finalmente a coronel-general e foi nomeado para orientar a retirada. O último comandante do 40.º Exército era o general Gromov, mas comunicaram-lhe que o plano geral seria de Nikolayev. Surpreendentemente, as baixas foram reduzidas, embora os mujahedin perseguissem as tropas ocupantes com fúria vingativa.

            A última coluna soviética atravessou a ponte de Amu Darya a 15 de Fevereiro de 1989, com Nikolai Nikolayev encerrando a retaguarda. Podia ter partido num jato do exército, mas preferira acompanhar os seus homens.

            Sentava-se no banco de trás de um jipe GAZ descoberto, com um soldado ao volante. Mais ninguém. Até então, nunca batera em retirada. Mantinha-se empertigado no seu uniforme de combate, sem quaisquer divisas que indicassem o posto. No entanto, os seus homens reconheciam os cabelos brancos abundantes e as guias do bigode.

            Estavam todos fartos do Afeganistão e alegravam-se por regressar a casa, apesar de derrotados. As aclamações principiaram a norte da ponte. Imobilizaram-se quando viram a cabeleira branca, desceram dos transportes e saudaram-no com entusiasmo.

           Tinha então sessenta e três anos e dirigia-se para a aposentadoria, para uma vida de conferências, memórias e reuniões. Mas continuava a ser o seu tio Kolya e conduzia-os a casa.

            Nos seus quarenta e cinco anos de serviço nos tanques, fizera três coisas que o haviam convertido numa figura lendária. Banira os trotes aos novos recrutas, que tinham levado muitos ao suicídio. Lutara contra o sistema político, para conseguir melhores condições e alimentação para os seus homens e insistira no orgulho da unidade e treino intensivo, até que as unidades que comandava se distinguiam pela quase-perfeição profissional. Gorbachev concedeu-lhe a patente de general do exército e pouco depois abandonava o poder.

            - Que espera, americano? - Nikolayev pousou a “Verificação” e fixou o olhar no fogo. - Se isto corresponde à verdade, o homem é um impostor. Que posso fazer a esse respeito? Estou velho e há muito que abandonei a atividade.

            - Eles ainda aí estão - observou Monk, levantando-se e guardando os   documentos na pasta. - São milhões. Veteranos. Alguns serviram sob as suas ordens, general, outros recordam-se do senhor e a maioria ouviu falar dos seus  feitos.

            - Escute, senhor americano. O meu país sofreu mais do que alguma vez conseguirá compreender. Está empapado no sangue dos seus filhos e filhas. Agora, vem me anunciar que vai correr mais. Deploro-o, se corresponde à verdade, mas não posso fazer nada.

            - E o exército? Que será obrigado a fazer essas coisas. Que me diz dele, do seu exército?

            - Já não é o meu.

            - É tanto seu como de qualquer outra pessoa.

            - Trata-se de um exército derrotado.

            - Derrotado, não. A derrota atingiu o regime comunista e não os  soldados, os seus soldados. Foram afastados. Agora, surge um homem que pretende reorganizá-los. Com um objetivo diferente. Agressão, invasão, escravidão, carnificina.

            - Por que haveria de intervir?

            - Tem carro, general?

            O ancião desviou os olhos do fogo, surpreendido.

            - Com certeza. Pequeno, mas leva-me onde quero.

            - Vá a Moscou. Aos Jardins Alexandrovsky. Ao edifício grande de granito vermelho reluzente. Junto da chama. Pergunte o que desejariam de si. Não a mim. A eles.

            Com estas palavras, Monk retirou-se. Ao alvorecer, encontrava-se em mais uma casa segura, com os seus guarda-costas chechenos. Foi nessa noite que as impressoras explodiram.

           

            Entre as muitas instituições antigas e históricas ainda existentes na Grã-Bretanha, poucas o são mais que a Escola de Armas, que remonta ao reinado de Ricardo III. Os oficiais superiores de lá são os Reis de Armas e os Heraldos.

            Nos tempos medievais, estes últimos começaram por ser utilizados para transmitir mensagens, como o nome implica, entre chefes militares através dos campos de batalha, protegidos por uma bandeira de tréguas. Nos intervalos entre as guerras, executavam uma tarefa diferente.

            Em tempo de paz, era costume os cavaleiros e os nobres reunirem-se para travar pelejas simuladas em torneios e justas. Como estavam resguardados por armaduras, frequentemente com a viseira baixada, o heraldo, cuja missão consistia em anunciar o torneio seguinte, experimentava dificuldade em identificar o homem dentro da armadura.

            Para resolver o problema, os nobres usavam um emblema ou insígnia em lugar bem visível. Assim, um heraldo que visse um emblema com o símbolo da barba e bordão nodoso, sabia que se tratava do conde de Warwick.

            Em virtude dessa função, os heraldos tornaram-se peritos e árbitros de quem era quem e, mais importante, de quem tinha o direito de se intitular quem. Determinavam e registravam a ascendência da aristocracia ao longo de gerações.

            Isto não constituía simplesmente uma questão de cabotinismo. Juntamente com o título, havia suntuosas propriedades, castelos, fazendas e solares. Em termos modernos, poderia ser o equivalente de provar a posse legal da maioria das ações da General Motors. Estavam envolvidas fortunas avultadas e grande poder.

            Como os nobres manifestavam a tendência de, à hora da partida deste mundo, deixar numerosos descendentes uns legítimos, outros não, registravam-se com frequência violentas disputas sobre as partilhas. Não era raro eclodirem autênticas guerras por motivos dessa natureza. Os heraldos, como guardas do arquivo, diziam a última palavra acerca de quem tinha o direito de usar o brasão.

            Ainda hoje, a Escola de Armas procede a investigações e decisões dessa espécie, em troca de uma remuneração.

            Muito naturalmente, os heraldos são acadêmicos, ornamentados na sua estranha ciência com a linguagem e emblemas de antanho franco-normandos, cujo domínio requer muitos anos de estudos.

            Alguns especializam-se na ascendência das casas nobres da Europa, ligadas à aristocracia britânica através de cruzamento de casamentos. Graças a um inquérito discreto, porém profundo, Sir Nigel Irvine descobriu que um em particular era o maior perito mundial sobre a dinastia dos Romanov da Rússia. Afirmava-se que o Dr. Lancelot Probyn esquecera mais a respeito dos Romanov do que eles jamais tinham sabido. Depois de se apresentar pelo telefone como sendo um diplomata aposentado que preparava um relatório para o Ministério dos Assuntos Estrangeiros sobre possíveis tendências monárquicas na URSS, Sir Nigel convidou-o para tomar chá no Ritz. O Dr. Probyn era um homem baixo, de aspecto despretensioso, que abordou o tópico com bom humor e sem pretensiosismo. Lembrava o velho mestre-espião de Charles Dickens, Mr. Pickwick.

            - Gostaria de saber se podemos encarar o tema da sucessão dos Romanov - aventurou Sir Nigel, depois do empregado servir os apetitosos sanduíches de pepino.

            O lugar de Rei de Armas de Clarenceux, para designar o Dr. Probyn pelo seu glorioso título, não é remunerado principescamente, pelo que ele não estava habituado a tomar chá no Ritr. Assim, atacou os sanduíches com entusiasmo moderado.

            - A descendência dos Romanov é um mero passatempo para mim. De modo algum a minha verdadeira especialidade.

            - Em todo o caso, creio que é autor de uma vasta obra sobre o assunto.

            - É uma apreciação generosa de sua parte. Em que lhe posso ser útil?

            - Falemos da sucessão, por exemplo. Está bem definida? - Fez desaparecer o último sanduíche e volveu a atenção para o prato dos bolos.

            - Longe disso. Pode dizer-se que impera certa confusão. Os sobreviventes da velha família não sabem para que lado hão de se voltar. Existem pretendentes de todas as origens. Porquê?

            - Suponhamos - propôs Sir Nigel, cautelosamente - que, por uma razão ou por outra, o povo russo decidia restaurar a monarquia constitucional sob a égide de um czar.

            - Não poderiam, porque nunca teve nenhum. O último imperador... a propósito, é este o título correto desde 1721, embora, por motivos que desconheço, as pessoas prefiram o de czar... foi Nicolau II, um monarca absoluto. Nunca houve um constitucional.

            - Façamos de conta, de qualquer modo.

            O Dr. Probyn introduziu o último fragmento de um éclair na boca e ingeriu um sorvo de café.

            - Estes bolos são excelentes.

            - Alegra-me que lhe agradem.

            - Bem, na extremamente improvável eventualidade de tal vir a acontecer, enfrentariam um problema. Como sabe, Nicolau, a czarina Alexandra e os seus cinco filhos foram chacinados em Ekaterinburg, em 1918, o que eliminou a linha direta. Todos os atuais pretendentes são de descendência indireta, e alguns remontam ao avô de Nicolau.

            - Por conseguinte, não pode haver qualquer pretendente indiscutível?

            - Não. No meu escritório, poderia fornecer-lhe uma explicação mais minuciosa, graças a material que resultaria pouco prático trazer aqui.

            - Mas, em teoria, os russos poderiam reinstaurar a monarquia?

            - Fala sério?

            - Limitamo-nos a considerar hipóteses.

            - Bem, hipoteticamente tudo é possível. Qualquer monarquia pode tornar-se numa república depondo o seu rei. Ou rainha. Foi o que aconteceu na Grécia. E qualquer república pode se converter numa monarquia constitucional. Como na Espanha. Ambos os casos nos últimos trinta anos. Portanto, sim, poderiam.

            - O problema consistiria então no candidato.

            - Absolutamente. O general Franco optou por criar a legislação para restaurar a monarquia depois da sua morte, e escolheu o neto de Afonso XIII, o príncipe Juan Carlos, que tem ocupado o trono. Mas aí não apareceu qualquer outro pretendente. A descendência era bem clara.

            - Há muitos pretendentos na descendência dos Romanov?

            - São aos montes, sem exagerar muito.

            - Com realce para alguém?

            - Nenhum em especial. Mas teria de me debruçar sobre o meu arquivo para fornecer uma resposta mais concreta!

            - Importa-se de o fazer? - solicitou Sir Nigel. - No momento, tenho de viajar, mas ficari grato se pudesse me fornecer elementos mais positivos no meu  regresso. Telefonarei para o seu escritório.

           

            Nos dias em que o KGB era uma vasta organização de espionagem, supressão e controle, com um único chefe, as suas tarefas variavam de tal modo que teve de ser dividido em diretorados principais, diretorados e departamentos.

            Entre eles, havia o Oitavo Diretorado Principal e o Décimo Sexto Diretorado, ambos munidos de material para vigilância eletrônica, intercepção radiofônica, escutas telefônicas e satélites espiões.

            Nesse aspecto, eram o equivalente soviético da Agência de Segurança Nacional Americana e da Organização de Reconhecimento Nacional ou da Sede de Comunicações do Governo britânico, a GCHQ*.

            Para os velhos membros do KGB, como o diretor Andropov, a prospeção eletrônica de informação, ou ELINT, constituía uma espécie de enigma indecifrável, embora reconhecessem a sua importância. Numa sociedade em que a tecnologia estava atrasada anos em relação ao Ocidente, exceto nos assuntos militares ou relacionados com a espionagem, o material mais moderno era, porém, procurado pelo Oitavo Diretorado Principal.

            Após a destruição do monolítico KGB, operada por Gorbachev, o Oitavo e o Décimo Sexto foram reunidos e batizados com a designação de Agência Federal da Comunicação e Informação do Governo, FAPSI**.

            Já se dispunha dos computadores mais avançados, os melhores matemáticos e decifradores de códigos do país e tudo o que o dinheiro pudesse adquirir em termos de intercepção tecnológica. Na sequência da queda do comunismo, esse excepcionalmente dispendioso departamento enfrentou um problema importante: o seu financiamento.

            Com a introdução das privatizações, a FPSI recorreu literalmente ao mercado aberto para obter fundos. Oferecia aos empresários russos em vias de expansão a possibilidade de interceptar, o que equivalia a dizer roubar, o tráfego comercial dos rivais, domésticos ou estrangeiros. Durante pelo menos quatro anos antes de 1999, fora perfeitamente possível uma operação comercial russa contratar os serviços desse departamento governamental para controlar os movimentos de um súdito estrangeiro na Rússia, sempre que fizesse um telefonema, enviasse um fax, telegrama ou telex ou efetuasse uma transmissão pela rádio.

            O coronel Anatoli Grishin estimava que, onde quer que Jason Monk se encontrasse, existiam fortes hipóteses de dispor de alguma forma de comunicação com quem o chamara. Não podia ser através da embaixada, que se achava sob vigilância, a menos que estabelecesse contatos pelo telefone, que seria escutado e localizado.

            Por conseguinte, segundo o seu raciocínio, fizera-se acompanhar de alguma forma de transmissor ou recebera-o em Moscou.

            - Se eu fosse a vocês - declarou um dos cientistas da FAPSI, que o coronel consultou por uma quantia substancial, - utilizaria um computador. Os homens de negócios fazem-no constantemente.

            - Um computador que transmite e recebe?

            - Claro. Contacta com satélites e daí com outros computadores. É nisso que se baseia a Internet. O movimento deve ser enorme.

            - Pois é. Mas nossos computadores são em largo número. É tudo uma questão de filtragem. Noventa por cento do tráfego de computadores não passa de conversa fiada, idiotas trocando banalidades. Nove por cento comercial: empresas discutindo produtos, preços, progressos, contratos, datas de entrega, etc. E um por cento, governamental. Este um por cento costumava corresponder a metade do tráfego em circulação.

            - Há muita coisa codificada?

            - Tudo o que é do governo e cerca de metade do tráfego comercial. No  entanto, podemos decodificar a  maioria  das comunicações comerciais.

            - No meio de tudo isso, onde lhe parece que o meu amigo americano pode estar transmitindo?

            O cientista da FAPSI, que passara toda a sua vida de trabalho no mundo codificado, era suficientemente prudente para se abster de solicitar mais detalhes.

            - Provavelmente, entre o tráfego comercial. Do proveniente do governo, conhecemos sempre a procedência. Talvez não consigamos decodificá-lo, mas sabemos que tem origem em determinada embaixada, legação ou consulado. O   seu homem pertence a algum desses?

            - Não.

            - Então, deve utilizar os satélites comerciais. As máquinas do governo  americano  servem  sobretudo  para  nos vigiar  e escutar. Também se ocupam de correio diplomático. Mas atualmente há dezenas de satélites comerciais à volta do Globo.

            - Creio que o meu homem transmite de Moscou. E provavelmente também recebe.

            - A recepção não nos adianta nada. Uma mensagem absorvida por um  satélite sobre nós pode ser recebida em qualquer parte, de Arcângel à Criméia. É ao transmitir que podemos localizá-lo.

            - Portanto, se uma companhia comercial russa o contratasse para descobrir o transmissor, acha que o conseguiria?

            - Talvez. A remuneração seria substancial, dependendo do número de homens envolvidos e tempo de utilização do computador, para não falar do número de horas diárias necessárias de manutenção da vigilância.

            - As vinte e quatro - disse Grishin. - E todo o pessoal que dispõe.

            O outro olhou-o com uma expressão de incredulidade. O homem estava  falando de milhões de dólares americanos.

*British Government Communications Headquarters   (N   do T)

**Federal Agency  for  Government  Communication  and  Information (N. do T.)

           

            - É uma tarefa de respeito.

            - Falo sério.

            - Quer as mensagens?

            - Não, apenas a localização do transmissor.

            - Isso é mais difícil. A mensagem, quando interceptada, podemos estudá-la calmamente até à sua decifração. Ao invés, o transmissor só estará no ar uma fração de segundo.

            No dia seguinte ao do encontro de Monk com o general Nikolayev, a FAPSI captou um blip, e o contacto de Grishin telefonou para sua casa, junto do Bulevar Kiselny.

            - Ele esteve no ar.

            - Tem a mensagem?

            - Tenho, e  não é comercial.  Utiliza o sistema de sinal único, impossível de decodificar.

            - Isso não basta. De onde vem a transmissão?

            - Da grande Moscou.

            - Logo de um lugar tão pequeno... Preciso conhecer a localização do edifício.

            - Seja paciente. Julgamos saber que satélite se serve. É provavelmente um dos dois da InTelCor que nos sobrevoam diariamente. Havia um acima do  horizonte, nessa hora. No futuro, podemos concentrar-nos neles.

            - Sim, façam-no - determinou o coronel.

            Durante seis dias, Monk esquivou-se ao exército de vigilantes que Grishin colocara ao seu serviço. O chefe da segurança da UFP estava intrigado. O homem tinha de comer. Ou estava alojado em algum lugar pequeno, receoso de se mover, em cuja eventualidade representava um perigo muito reduzido, ou percorria as ruas livremente, fingindo-se russo, a coberto de um disfarce que em breve seria penetrado, ou ainda partira após o contato infrutífero com o patriarca. A menos que gozasse de proteção, com alimentação, um local para dormir e segurança apertada, cada vez que saía. Mas quem o protegeria? Era esse o enigma que continuava a iludir Anatoli Grishin.

           

            Sir Nigel Irvine vôou para Moscou dois dias depois da conversa com o Dr. Probyn, no Ritz. Acompanhavam um intérprete, porque embora outrora tivesse conhecimentos sofríveis do idioma russo, não bastavam para discussões delicadas.

            O companheiro era o antigo militar Brian Marks, agora portador do seu verdadeiro passaporte, em nome de Brian Vincent. Na Imigração, o funcionário bateu as duas identidades no teclado do computador, mas não surgiu nenhum como sendo o de um visitante recente ou frequente.

            - Viajam juntos? - perguntou, quase com indiferença.

            - Sou o intérprete deste senhor - explicou Vincent.

            - O meu russo é ruim - admitiu Sir Nigel.

            Instalaram-se no Hotel Nacional, onde estivera o infortunado Jefferson. À espera de Sir Nigel, entregue vinte e quatro horas antes por um homem bronzeado que ninguém conseguia descrever pormenorizadamente, embora se tratasse de um checheno, havia um envelope, que ele recebeu juntamente com a chave do quarto. Continha uma tira de papel em branco. Se tivesse se extraviado ou alguém o interceptasse, não haveria qualquer inconveniente, pois a mensagem não se encontrava no papel, mas no interior do envelope, escrita com suco de limão. Depois de o abrir e espalmar, Brian Vincent aqueceu-o cautelosamente com um fósforo da caixa que se encontrava em cima da mesa-de-cabeceira. Após mencionar o texto, Sir Nigel indicou ao companheiro que queimasse o papel totalmente e lançasse as cinzas no vaso sanitário. A seguir, os dois homens jantaram tranquilamente no hotel e aguardaram que fossem dez horas.

            Quando o telefone tocou, foi atendido pelo próprio patriarca, Alexei II, pois tratava-se de um número privado cujo aparelho se situava na mesa do seu gabinete.

            - Alô? - proferiu cautelosamente.

            A voz que respondeu não lhe era familiar e, embora se exprimisse em russo fluente, tratava-se de um estrangeiro.

            - É o patriarca Alexei?

            - Sim. Quem fala?

            - Não nos conhecemos, Eminência. Sou meramente o intérprete do cavalheiro que me acompanha. Há dias, teve a gentileza de receber um padre de Londres.

            - Recordo-me dele.

            - Disse que viria outro homem, seu superior, para uma discussão extremamente importante com o senhor. Encontra-se aqui, a meu lado e pergunta se está disposto a recebê-lo.

            - Agora, esta noite?

            - O tempo urge, Eminência.

            - Porquê?

            - Há, em Moscou, forças que não tardarão a reconhecer o cavalheiro em causa. Podem submetê-lo a vigilância. Por conseguinte, a chave de tudo é a discrição absoluta.

            Tratava-se de um argumento que decerto recordou algo ao enervado prelado, o qual declarou:

            - Muito bem. Onde estão?

            - A poucos minutos daí, de carro. Preparados para partir imediatamente.

            Desta vez, prevenido com antecedência, o guarda cossaco abriu a porta da rua sem hesitar e um nervoso, porém intensamente curioso, padre Maxim, conduziu os dois visitantes ao gabinete pessoal do patriarca. Sir Nigel solicitara a cedência da limusine do hotel e indicou ao motorista que aguardasse.

            O patriarca usava uma indumentária simples, com sotaina cinzenta e um único crucifixo peitoral suspenso de um cordão no pescoço. Recebeu os dois homens com cordialidade e, depois de se sentarem, Sir Nigel principiou:

            - Permita-me que peça desculpas pelo fato do meu russo ser tão insatisfatório que exige o recurso de um intérprete.

            Vincent traduziu rapidamente as palavras em inglês e Alexei II inclinou a cabeça e exibiu um sorriso indulgente.

            - E eu, infelizmente, não falo inglês - replicou. - Ah, padre Maxim, pouse o café em cima da mesa, por favor. Nós próprios nos serviremos. Pode retirar-se.

            Sir Nigel começou por se apresentar, embora se abstivesse de referir que fora funcionário superior dos serviços secretos do país que se opunha à Rússia e a todos os seus atos. Limitou-se a dizer que pertencera ao “Serviço de Assuntos Estrangeiros” (quase exato) mas, apesar de aposentado, tinha sido convocado para a presente missão.

            Sem mencionar o Conselho de Lincoln, revelou que o Manifesto Negro fora mostrado confidencialmente a homens e mulheres de grande influência, os quais se haviam revelado profundamente chocados com o conteúdo.

            - Tanto como Vossa Eminência, sem dúvida - acrescentou. O patriarca  assentiu com um movimento de cabeça e expressão grave, à medida que Vincent procedia à tradução.

            - Vim, pois, para salientar que a presente situação nos envolve a todos, às pessoas de boa vontade dentro e fora da Rússia. Tivemos um poeta em   Inglaterra que afirmou que nenhum homem é uma ilha. Fazemos parte de um todo. Para a Rússia, um dos maiores países do mundo, a queda nas mãos de um ditador cruel  representaria uma tragédia para nós no Ocidente, para o povo russo e, sobretudo, para a Santa Igreja.

            - Não duvido das suas palavras, mas a Igreja não pode se envolver na política.

            - Abertamente, decerto que não. No entanto, tem de lutar contra o mal. Não é verdade que está sempre envolvida uma moralidade?

            - Com certeza.

            - E a Igreja tem o direito de tentar proteger-se da destruição e daqueles que pretendem destruí-la e à sua missão na Terra.

            - Sem a menor dúvida.

            - Portanto, pode falar para incitar os fiéis a erguerem-se contra um rumo de ação que favoreceria o mal e os afetaria perniciosamente.

            - Se pronunciar - contra Igor Komarov e, apesar disso, ele ganhar as eleições, terá ocasionado a sua própria destruição - asseverou Alexei II. - É assim que as centenas de bispos encararão a situação, e nenhum se oporá. Em resultado disso, serei destituído.

            - Mas existe porventura outra possibilidade - insistiu Sir Nigel. E, durante alguns minutos, descreveu uma reforma constitucional que deixou o interlocutor boquiaberto.

            - Não acredito que fale sério - acabou por balbuciar. - Restaurar a monarquia, fazer reaparecer o czar? O povo nunca o aceitaria.

            - Analisemos o cenário que nos depara. Sabemos que a escolha que se apresenta à Rússia é mais tenebrosa do que se possa imaginar. Por um lado, há o caos permanente, com a eventual desintegração e mesmo a guerra civil do estilo iugoslavo. Não existe prosperidade sem estabilidade. A Rússia oscila como um navio numa tempestade, privado de âncora e de leme. Não tardará a naufragar, com a sua destruição total e afogamento do povo. Por outro, há a ditadura, uma tirania terrível comparável a tudo o que de pior este país jamais   sofreu. O que escolheria para o seu povo?

            - Não sei. Ambas as coisas são horríveis.

            - Então, lembre-se que uma monarquia constitucional é sempre um baluarte contra o despotismo de um tirano. Não podemos existir ambos. Um tem   de desaparecer. Todas as nações precisam de um símbolo, humano ou não, a que se possam apegar quando os tempos são maus, capaz de as unir acima das barreiras da língua e clã. Komarov está reforçando-se nesse símbolo nacional,  nesse ícone. Ninguém votará contra ele e a favor de um vácuo. Tem de haver um ícone alternativo.

            - Mas orar pela restauração... - protestou.

            - Não equivaleria a fazê-lo contra Komarov, que é o que receia fazer, Eminência - argumentou o inglês. - Seria orar por uma nova estabilidade, um ícone acima da política. Ele não poderia acusá-lo de se imiscuir nela, de se erguer contra as suas pretensões, embora pudesse suspeitar do que se achava na forja. Mas há outros fatores...

            E desbobinou as tentações perante o patriarca. A união da Igreja e o Trono, a restauração total da Igreja Ortodoxa em toda a sua panóplia, o regresso do patriarca de Moscou e de Todas as Rússias ao seu palácio dentro das muralhas do Kremlin, o reatamento dos créditos do Ocidente, à medida que a estabilidade se restabelecesse.

            - O que diz reveste-se de muita lógica e faz-me vibrar o coração - admitiu Alexei II, depois de refletir por um momento. - Mas eu li o Manifesto Negro. Conheço o pior. Os meus irmãos em Cristo, a convocação dos bispos, não o viram e não acreditariam. Publique-o, e metade da Rússia talvez concorde com ele. Não, Sir Nigel, não exagere os méritos do meu rebanho.

            - Mas, e se outra voz falar? Não a sua, Eminência, nem oficialmente. Digamos uma voz persuasiva e forte, com o seu apoio silencioso.

            Irvine referia-se ao influente padre Gregor Rusalcov, ao qual o patriarca concedera, com notável coragem moral, a sua autorização para predicar.

            - Na verdade, na juventude, fora rejeitado por seminários consecutivos. Era muito inteligente para o gosto da KGB e excessivamente arrebatado. Por conseguinte, refugiara-se num pequeno mosteiro da Sibéria e fora ordenado, para se tornar num sacerdote itinerante, sem paróquia, pregando onde podia, antes de se transferir para a frente da Polícia Secreta.

            Acabou por ser capturado, naturalmente, e cumpriu pena de cinco anos num campo de trabalho por atividades contra o Estado. No tribunal, recusou o defensor oficial e pugnou pela sua causa com tanto brilho que obrigou os juizes a admitir que deturpavam o espírito da Constituição soviética

            Após a libertação, ao abrigo da anistia aos sacerdotes promulgada por Gorbachev, revelou que não perdera um átomo da fogosidade. Recomeçou a pregar, mas também verberava os bispos pela sua timidez e corrupção, ofendendo a tal ponto muitos deles, que procuraram Alexei II para suplicar que voltasse a reduzi-lo ao silêncio.

            Envergando a sotaina anônima de um padre paroquial, o patriarca assistiu a uma das suas reuniões. Enquanto o escutava, refletia: Se me fosse possível transformar todo este fogo, toda esta paixão, toda esta oratória numa corrente impetuosa ao serviço da Igreja!...

            A verdade era que o padre Gregor convencia a todose. Falava a linguagem do povo, com a sintaxe da classe trabalhadora. Sabia polvilhar os sermões com a terminologia de caserna, aprendida enquanto estivera encerrado no campo de trabalho, exprimia-se com a linguagem dos jovens, conhecia os seus ídolos de música pop, compreendia as dificuldades das donas de casa para conseguirem que os magros recursos durassem um mês, até à data do pagamento seguinte.

            Com trinta e cinco anos, era celibatário e asceta, mas sabia mais dos pecados da carne do que qualquer seminário podia ensinar. Duas revistas populares entre os adolescentes tinham-no mesmo proposto aos leitores como símbolo sexual.

            Devido a tudo isso, Alexei II não se dirigiu à Polícia para que o detivesse. Ao invés, convidou o recalcitrante para jantar, no Mosteiro Danilovsky, onde tragaram uma refeição frugal numa mesa de pau, servida pelo próprio patriarca. Conversaram ao longo da noite. Alexei explicou a tarefa que se lhe deparava, a reforma lenta de uma Igreja há muito sujeita às pressões ditatoriais, tentando regressar ao bom caminho em direção a um papel pastoral entre os cento e quarenta milhões de cristãos existentes na Rússia.

            Aproximava-se a alvorada, quando reconheceu que cumprira a missão. O padre Gregor assentiu em incitar os seus ouvintes a procurar Deus nos lares e no trabalho, mas também a regressar à Igreja. A mão silenciosa do patriarca contribuiu para pavimentar o percurso. Uma importante estação de TV dispunha de um espaço semanal para cobrir as concorridas sessões do dinâmico sacerdote, pelo que os seus sermões eram escutados por milhões de espectadores a quem ele nunca teria podido dirigir-se pessoalmente. No Inverno de 1999, era considerado o orador mais poderoso do país, mesmo contando com Igor Komarov.

            O patriarca conservou-se silencioso por uns instantes e decclarou:

            - Falarei com o padre Gregor sobre o assunto do regresso do czar.

 

            O vento trazia os primeiros flocos de neve à Praça Slavyansky, como sempre acontecia em fins de Novembro, precursores do frio intenso que não tardaria. O atarracado sacerdote inclinava a cabeça para o peito, a fim de proteger o rosto das rajadas agrestes, e acabou por transpor apressadamente o pequeno   pátio, para entrar no ambiente acolhedor da Igreja de Todos-os-Santos, em Kulishki, onde pairava o odor pungente de vestuário úmido e incenso. Era de novo observado pelos ocupantes de um carro estacionado, e quando  se  convenceram  de  que  ninguém  seguia o padre, o coronel  Grishin desceu  e encaminhou-se  igualmente para o templo.

            - Há  alguma  novidade? - perguntou  a  meia-voz, quando se encontraram a um canto, afastados de ouvidos indiscretos. - Telefonou...

            - A noite passada, houve um visitante. Da Inglaterra.

            - Não era da América? Tem certeza?

            - Absoluta. Pouco depois das dez horas, Sua  Eminência indicou-me que devia deixar entrar um cavalheiro procedente de Inglaterra. Acompanhava-o o  intérprete,  um homem  muito mais jovem. Escoltei-os ao gabinete e depois servi-lhes café.

            - Que disseram?

            - Enquanto estive presente, o inglês mais idoso pediu desculpas por não se exprimir em russo, que dominava muito mal. O companheiro traduzia todas as   palavras. Depois, o patriarca mandou-me retirar.

            - Tentei, mas o inglês mais jovem tinha colocado o cachecol no puxador.  Bloqueava-me a visibilidade e a maior parte do que podia ter ouvido. Pouco depois, aproximou-se o guarda cossaco numa das rondas habituais e fui obrigado a afastar-me.

            - O mais velho disse como se chamava?

            - Enquanto consegui escutar, não. Talvez quando fui fazer café. O que pude ouvir não fazia muito sentido, possivelmente por causa do cachecol.

            - Ouçamo-o, em todo o caso.

            - O patriarca só levantou a voz uma ocasião. Ouvi-o então dizer: “fazer reaparecer o czar”? Parecia surpreso. A seguir, passaram a falar mais baixo.

            Grishin olhava pensativamente as pinturas da Mãe de Deus com o bebê nos braços e afigurava-se que acabava de ser esbofeteado. A frase talvez precisasse de sentido para o obtuso sacerdote, mas era clara para ele.

            Com um monarca constitucional à testa do Estado, não haveria lugar para um presidente. O chefe do governo seria o primeiro-ministro, líder do partido no poder, mas sujeito ao Parlamento, à Duma. O que se situava a milhares de quilômetros do cenário de Igor Komarov, de uma ditadura de partido único.

            - Descreva-o.

            - Estatura mediana, magro e seco, cabelo grisalho e cerca de setenta anos.

            - Faz alguma idéia da sua proveniência?

            - Era diferente do jovem americano. Veio de carro, que ficou à espera. Não se tratava de um táxi, mas de uma limusine. Tomei nota do número, quando partiu.  E Maxim entregou uma tira de papel ao coronel.

            - Procedeu bem, reverendo. Isto não será esquecido.

            Os investigadores de Grishin não necessitaram de muito tempo. Um telefonema aos Serviços de Viação bastou para que a limusine fosse identificada em menos de uma hora. Pertencia ao Hotel Nacional.

            Kuznetsov foi escolhido para moço de recados. O seu inglês-americano quase perfeito podia convencer qualquer funcionário de hotel russo que era na verdade ianque. Apresentou-se no Nacional logo após o período do almoço e abordou o porteiro.

            - Desculpe, mas fala inglês?

            - Sim, senhor.

            - Ótimo. Jantei ontem num restaurante perto daqui e entabulei conversa com um cavalheiro inglês da mesa ao lado. Quando saiu, esqueceu-se disto. - E exibiu um isqueiro caro, de ouro, da marca Cartier.

            O outro olhou-o com perplexidade.

            - E depois?

            - Ainda fui atrás dele, mas tinha desaparecido. Ou antes, afastava-se ao volante de um Mercedes longo preto. O maitre supôs que fosse daqui. Entretanto, consegui tomar nota do número.

            O porteiro baixou os olhos para o pedaço de papel que Kuznetsov lhe mostrava e assentiu.

            - Sim, é nosso. Um momento, por favor.  Consultou o seu registro relativo à véspera.  Devia ser Mr. Trubshaw. Quer que lhe entregue o isqueiro?

            - Não é necessário. Deixo-o na Recepção e eles colocam-no no seu quarto.

            Com um aceno cordial, Kuznetsov cruzou o átrio, ao mesmo tempo que guardava o isqueiro dissimuladamente no bolso. Uma vez diante do balcão da Recepção, perguntou à sorridente funcionária, que tinha um fraco especial pelos americanos:

            - Diga-me o número do quarto de Mr. Trubshaw, por favor?

            Com certeza  foi a pronta resposta, com uma expressão de solicitude. Ela moveu os dedos no teclado do computador e olhou o tela. 

            - Lamento, mas ele e o seu companheiro partiram esta manhã.

            - Que maçada! Esperava chegar a tempo de encontrá-lo. Sabe se abandonaram Moscou?

            Apertou mais algumas teclas.

            - Sim, senhor. Confirmamos o seu vôo.  Regressaram a Londres no vôo do meio-dia.

            Embora não fizesse a menor idéia do motivo do interesse do coronel Grishin em localizar o misterioso Trubshaw, Kuznetsov foi comunicar-lhe o resultado das diligências. Quando se retirou, o oficial serviu-se do seu contato na seção de Concessão de Vistos da Divisão de Imigração do Ministério do Interior. Os pormenores foram-lhe enviados por fax, e a fotografia que acompanhara o pedido através da embaixada russa nos jardins de Kensington Palace, Londres, chegou por mensageiro especial.

            - Ampliem esta foto - ordenou ao seu pessoal, ao mesmo tempo que refletia que o rosto do inglês idoso não lhe dizia nada.

            Não obstante, julgava conhecer um homem para o qual talvez se revestisse de algum significado. A cinco quilômetros da Rua Tverskaya, num ponto em que a estrada para Minsk já mudara de nome duas vezes, situava-se o imponente Arco da Vitória e, a um lado, principiava a Rua Maroseyka.

            Aí, dois enormes blocos de apartamentos destinavam-se inteiramente a aposentados do KGB, pensionistas do Estado, que viviam em relativo conforto.

            Entre eles, no Inverno de 1999, havia um dos antigos mestres-espiões mais famosos da Rússia, o general Yuri Drozdov, o qual, no auge da Guerra Fria, dirigira todas as operações do KGB na costa oriental dos Estados Unidos, antes de ser chamado a Moscou para chefiar o ultra-secreto Diretorado de Ilegais.

            Ilegais são aqueles que se introduzem em território inimigo sem qualquer cobertura diplomática e mergulham na sociedade estrangeira como homens de negócios, acadêmicos, etc., para dirigir os “bens” indígenas que recrutaram. Se são desmascarados, expõem-se, não à expulsão, mas à prisão e julgamento. Drozdov treinara e enviara para outros países os ilegais do KGB por anos.

            Grishin contactara com ele esporadicamente pouco antes da aposentadoria, quando se achava no comando de um grupo pequeno e discreto em Yazenevo, para analisar a vaga gigantesca de produto fornecido por Aldrich Ames, e o coronel incumbira-se do interrogatório dos espiões denunciados.

            Não brotara a mínima simpatia de qualquer dos dois, Drozdov referia a habilidade e sutileza à força bruta, enquanto Grishin, que nunca se ausentara da URSS, à parte uma breve e inglória expedição a Berlim Oriental, detestava os membros do Primeiro Diretorado Principal que tinham passado anos no Ocidente e regressado “infectados” pelos maneirismos estrangeiros. Apesar disso, Drozdov concordou em recebê-lo no seu apartamento da Rua Maroseyka. O coronel pousou a fotografia ampliada na mesa à sua frente e perguntou:

            - Recorda-se de alguma vez ter visto este homem? Ante o seu assombro, o antigo mestre-espião inclinou a cabeça para trás e soltou uma ruidosa gargalhada.

            - Pessoalmente, não, mas esta cara ficou gravada na mente de todos os funcionários da minha idade que trabalharam em Yazenevo. Não sabe quem é?

            - Não, do contrário não estaria aqui.

            - Bem, chamávamos-lhe Raposa. Nigel Irvine. Dirigiu operações contra  nós  durante anos, nas décadas de 1960 e 1970, e depois tornou-se chefe dos serviços secretos britânicos.

            - Em outras palavras, um espião.

            - Um mestre de espiões, uma autoridade na matéria corrigiu. Não é a mesma coisa. Por que está interessado nele?

            - Veio a Moscou, ontem.

            - Santo Deus! Sabe para quê?

            - Não - mentiu Grishin.

            No entanto, o outro olhouo com incredulidade.

            - Que tem a ver consigo, de qualquer modo? Você já deixou essa  atividade. Não dirige agora aqueles rufiões de farda preta pertencentes a Komarov?

            - Sou o chefe da segurança da União das Forças Patrióticas - proclamou o coronel, rangendo os dentes.

            - Vem a dar no mesmo - grunhiu o idoso general, enquanto o  acompanhava à saída. - Se o vir, diga-lhe que passe por aqui para tomarmos um copo juntos.

            Grishin comunicou aos seus informantes da Divisão de Imigração que necessitava saber, se Sir Nigel Irvine, ou Trubshaw, tentasse entrar de novo em Moscou.

            No dia seguinte, o general do exército Nikolai Nikolayev concedeu uma entrevista ao Izvestia, jornal de maior circulação nacional, o qual encarou o fato como um autêntico “tiro”, pois o velho combatente nunca recebia jornalistas.

            Aparentemente, a entrevista destinava-se a assinalar o seu próximo septuagésimo quarto aniversário, e principiou com algumas perguntas sobre a sua saúde. Ele sentou-se empertigado numa poltrona de espaldar alto, numa sala privada do Clube dos Oficiais, na Academia Frunze, e respondeu que se sentia perfeitamente bem.

            - Os dentes ainda são todos meus, não preciso de óculos para ler e desfruto de lucidez absoluta - ilustrou.

            O repórter, que contava cerca de quarenta anos, não tentou duvidar do que ouvia, enquanto a fotógrafa que o acompanhava, de pouco mais de vinte anos, o olhava com admiração. Lembrava-se do avô se vangloriar de fazer parte das tropas blindadas com que o jovem comandante entrara em Berlim.

            As perguntas rumaram a seguir para o estado do país.

            - Deplorável! - bradou o tio Kolya. - Uma autêntica calamidade.

            - Suponho que votará na UFP e Igor Komarov, nas eleições de Janeiro?

            - Nem pensar. Não passam de um bando de fascistas. Não lhes tocava nem com uma vara de três metros esterilizada.

            - Não compreendo. Sempre pensei...

            - Escute, meu jovem amigo. Não creia nem por um minuto que me deixei iludir pelo arrazoado incoerente sobre o patriotismo que esse indivíduo não pára de tentar vender ao povo. Assisti a numerosas provas de patriotismo autêntico. Vi homens esvaírem-se em sangue e morrer por ele. Convém distinguir o trigo do joio. Esse tal Komarov é tão patriota como um monte de esterco.

            - Compreendo... - articulou o repórter, que na realidade não compreendia e estava totalmente abismado. - No entanto, há muitas pessoas convencidas que os seus planos para a Rússia...

            - Os seus planos para a Rússia são um banho de sangue - cortou   Nikolayev.  - Acha que não os houve em número suficiente, no nosso país? Tive de atravessar a vau autênticos rios dele, e não quero que isso volte a acontecer. O homem é um fascista, repito. Lutei contra essa horrível fauna durante toda a minha vida. Em Kursk, em Bragation, ao longo do Vistula... Alemães ou russos, os fascistas são sempre fascistas e não passam de...

            Podia ter empregado uma das quarenta palavras que, em russo, se referem a partes íntimas da anatomia humana, mas atendendo a que havia uma senhora presente, contentou-se com merzavtsi: canalhas.

            - Em todo o caso, a Rússia precisa ser limpa de toda a porcaria - alegou o entrevistador.

            - Decerto, mas uma grande parte dela não são as minorias étnicas. Que me diz dos políticos e burocratas corruptos que andam de mãos dadas com os gangsters?

            - Komarov tenciona eliminar os gangsters.

            - Diga antes que esse sanguinário indivíduo é financiado por eles. De onde julga que vêm as verbas astronômicas que despende na sua laboriosa campanha? Quando ele assumir o poder, o país passará a ser comprado e pago   por essa escória.

            - Então, que aconselha que se faça?

            O general pegou num exemplar de um jornal diário e indicou a última página.

            - Assistiu à alocução deste padre, ontem à noite?

            - Refere-se a Gregor, o pregador? Não, porquê?

            - Creio que pôs o dedo na ferida. E nós temos estado enganados, todos estes anos. Que voltem Deus e o czar.

            A entrevista causou sensação, mas não pelo que continha. Foi a proveniência que provocou furor. O velho militar mais famoso da Rússia pronunciara uma denúncia que seria lida por todos os oficiais e praças do território e uma grande parte dos vinte milhões de antigos combatentes.

            Figurou na íntegra no semanário O Nosso Exército, sucessor do Estrela Vermelha, que circulava em todos os aquartelamentos do país, e foram incluídas passagens nos telejornais, repetidas na rádio. Depois disso, o general recusou conceder mais entrevistas.

            Na casa do Bulevar Kiselny, Kuznetsov continha as lágrimas com dificuldade, enquanto enfrentava Igor Komarov, de semblante impenetrável.

            - Não compreendo, senhor presidente. Confesso que não entendo absolutamente nada. Se havia alguém em todo o país que eu considerava partidário inabalável da UFP, era o general Nikolayev.

            Komarov e Anatoli Grishin, de pé junto da janela, com o olhar perdido no pátio em baixo, escutavam-no imersos num silêncio ominoso. Por fim, o chefe da propaganda regressou ao seu gabinete para continuar a telefonar à mídia, para tentar limitar os estragos.

            A tarefa não era fácil. Não podia denunciar tio Kolya de ser um velho que perdera o uso da razão, pois não correspondia à verdade, e todos sabiam. Contentava-se, pois, com afirmar que o general abarcara mal a situação. Não obstante, as perguntas sobre a proveniência dos fundos da UFP tornavam-se cada vez mais complicadas de contornar.

            Se conseguiria uma restauração mais completa da posição do partido consagrando toda a próxima edição da revista Despertar! ao tópico assim como na mensal da Pátria. Infelizmente, haviam sido reduzidas ao silêncio, e as novas impressoras só agora tinham partido de Baltimore.

            O silêncio que pairava quando regressou ao gabinete do presidente da UFP foi finalmente quebrado por Komarov.

            - Ele leu o Manifesto Negro, hem?

            - Creio que sim - confirmou Grishin.

            - Primeiro as impressoras, depois os encontros secretos com o patriarca e agora isto. Que diabo está acontecendo?

            - Estamos sendo sabotados, senhor presidente.

            Quando este último voltou a falar, a voz reduzira-se a pouco mais que um murmúrio.

            - Você é o meu colaborador mais íntimo, pago para evitar atos de sabotagem. Um dia, será o homem mais poderoso, depois de mim. Quem está por trás de tudo isto?

            - Um inglês chamado Ervine e um americano chamado Monk.

            - Só dois?

            - Com o apoio habitual. Além disso, dispõem do Manifesto e têm andado a mostrá-lo.

            Komarov ergueu-se da mesa, pegou uma pesada régua cilíndrica de ébano e começou a bater levemente com ela na palma da outra mão. Em seguida, levantando gradualmente a voz, determinou:

            - Localize-os e suprima-os. Averigue em que consiste a próxima etapa e evitem. E agora preste muita atenção. A 16 de Janeiro,  precisamente  dentro de  seis  semanas,  cento e  dez milhões de russos exercerão o seu direito de voto para eleição do próximo presidente do país. Estou confiante em que me escolherão. Numa afluência de eleitores de setenta por cento, significa setenta e sete milhões. Quero quarenta milhões, e logo no primeiro turno. Há uma semana, podia contar com sessenta milhões. A entrevista daquele tresloucado general acaba de me custar dez!

            O termo dez brotou-lhe dos lábios quase como um grito de cólera. A régua continuava a subir e descer, mas o alvo era agora o tampo da mesa, atingindo o telefone, até que a baquelite estalou. Grishin conservava-se rígido, enquanto no corredor se estabelecia absoluto silêncio, pois o pessoal imobilizara-se na posição e lugar em que se encontrava.

            - Como se isso não bastasse, um padre demente iniciou um novo foco de agitação, invocando o regresso do czar. O único czar deste país serei eu e, quando governar, todos se inteirarão do significado da disciplina, que fará a instaurada por Ivan, o Terrível, parecer uma brincadeira de crianças.

            Entretanto, a régua continuava a destroçar o telefone, que ele olhava com animosidade, como se simbolizasse o desobediente povo russo.

            Por fim, largou a régua em cima da mesa, respirou fundo algumas vezes e tentou recompor-se. A voz readquiriu a inflexão normal, mas as mãos tremiam de paixão, pelo que pousou as dez pontas dos dedos no tampo para lhes incutir firmeza.

            - Esta noite, falarei num comício em Vladimir, o maior de toda a campanha, que será amanhã transmitido a todo o país. A partir daí, me dirigirei a toda a Rússia nas noites que faltam até às eleições. Foram reunidos os fundos. Esse é o meu departamento. A  publicidade  corre a cargo de  Kuznetsov. - Ergueu a mão e apontou o indicador ao rosto de Grishin. - A sua tarefa é uma única. Pôr fim à sabotagem!

            A última frase era um autêntico grito. Em seguida, reclinou-se na cadeira rotativa e fez sinal ao coronel para que se retirasse. Sem uma palavra, este último encaminhou-se para a porta e saiu.

 

            Nos tempos do comunismo, só havia um banco, o Narodny, ou Banco do Povo. Após a sua queda e com a aparição do capitalismo, os estabelecimentos do gênero irromperam como cogumelos até chegarem ao número incrível dos oito mil. Muitos não passavam de estabelecimentos de oportunistas, que iam prontamente à falência e os responsáveis desapareciam com o dinheiro dos depositantes. Outros vaporizavam-se durante a noite, com o mesmo efeito. Os sobreviventes aprendiiam o ofício gradualmente, pois a experiência num Estado comunista era escassa.

            E a atividade também não constituía uma ocupação segura. Em dez anos, mais de quatrocentos banqueiros tinham sido assassinados, em regra por não aceitarem os métodos dos gangsteres em questões de empréstimos sem garantias ou outras formas de cooperação ilegal.

            No final dos anos noventa, as operações haviam estabilizado em cerca de quatrocentos estabelecimentos razoavelmente honestos, com os mais salientes dos quais o Ocidente estava disposto a fazer negócio.

            Situavam-se em São Petersburgo e Moscou, sobretudo nesta última cidade. Num espelho irônico do crime organizado, a banca também se amalgamara, com os chamados Top Ten envolvidos em 80 por cento das operações. Em certos casos, o nível de investimento era tão elevado, que o empreendimento só podia ser levado a cabo pelo consórcio de dois ou três bancos, que atuavam juntos. Entre os mais importantes, no Inverno de 1990, figuravam o Most Bank, o Smolensky e, o maior de todos, o Moskovsky Federal.

            Foi à central deste último que Jason Monk se dirigiu, na primeira semana de Dezembro.

            Os sistemas de segurança não diferiam muito dos existentes em Fort Knox*. Em virtude do perigo de morte ou agressão contundente que corriam, os presidentes dos bancos mais importantes dispunham de brigadas de proteção que fariam a segurança pessoal de qualquer presidente americano parecer ridícula. Três, pelo menos, há muito que tinham transferido as famílias para Londres, Paris e Viena e deslocavam-se aos escritórios de Moscou em jatos privativos. Uma vez em território russo, quase desapareciam no meio de centenas de protetores, e havia necessidade de mais milhares para proteger as dependências.

            Conseguir uma entrevista com o presidente do Moskovsky Federal sem marcação efetuada vários dias antes era uma coisa inaudita. No entanto, Monk obteve-a. E se fez acompanhar de algo não menos inaudito. Após a inspeção minuciosa ao corpo e à sua pasta, no piso térreo do bloco em forma de torre, foi autorizado a subir escoltado à antecâmara de recepção dos executivos, três andares abaixo da suite do presidente.

 

            Chegando ali, a carta que apresentou foi examinada por um jovem russo de aparência e maneiras impecáveis, que falava inglês irrepreensível, o qual lhe solicitou que aguardasse e desapareceu através de uma pesada porta que só se abria após a marcação de um código num pequeno painel ao lado. Dois guardas armados ficaram vigiando Monk, enquanto os minutos se arrastavam. Ante a surpresa da recepcionista atrás da mesa da antecâmara, o jovem voltou a fazer a sua aparição e indicou ao americano que o acompanhasse. Do outro lado da porta, este último tornou a ser revistado, e um detector de metais eletrônico circulou ao longo do seu corpo, enquanto o jovem se desculpava.

            - Compreendo - assentiu Monk. - Os tempos são duros.

            Dois pisos acima, foi introduzido em outra antecâmara e depois conduzido ao gabinete privado de Leónidas Gngoryevich Bernstein.

            A carta que ele trouxera repousava em cima da mesa. O banqueiro, baixo, de ombros largos, com cabelo grisalho ralo, olhar penetrante e um terno cinzento-escuro de corte admirável, proveniente indubitavelmente de Savile Row, levantou-se e estendeu a mão. Em seguida, indicou uma cadeira na sua frente. Monk notou que o jovem de maneiras impecáveis se sentava ao fundo do aposento, com um pequeno bojo sob a axila esquerda.

            O banqueiro apontou para a carta e perguntou:

            - Como estão as coisas em Londres, Mr. Monk? Acaba de chegar?

            - Há alguns dias.

            A carta era de linho creme dispendioso, encimado pelo timbre em que predominavam as cinco setas que recordavam os cinco primeiros filhos de Mayer Amschel Rothshild, de Francoforte. O papel era perfeitamente autêntico. Somente a assinatura de Sir Evelyn de Rothschild no final do texto fora falsificada. Mas poucos banqueiros negariam a receber um emissário pessoal do presidente do N M. Rothschild & Sons, de St. Swithin’s Lane, da City de Londres

            - Sir Evelyn encontra-se bem? - perguntou Bernstein.

*Campo militar nos Estados Unidos, no estado do Kentucky, do qual uma das fortificações contém as reservas de ouro do país. (N. do T.)

            - Tanto quanto sei - replicou Monk, passando a exprimir-se em russo. - Mas não foi ele que assinou a carta. - Ouviu um leve movimento atrás de si. - E ficaria infinitamente grato se o seu jovem amigo não me metesse uma bala nas costas. Não uso colete a prova de balas e prefiro continuar vivo. De resto, não transporto nada de perigoso, nem tenho a intenção de molestá-lo.

            - Então, que o trouxe?

            Explicou os eventos desde 15 de Julho, após o que o banqueiro declarou:

            - Nunca ouvi tanto disparate junto. Conheço as atividades de Komarov. É muito radical para o meu gosto, mas se pensa que insultar os judeus é um esporte novo, não sabe absolutamente nada sobre a Rússia. Todos o fazem, e não podem prescindir dos nossos bancos.

            - Insultos são uma coisa, Mr. Bernstein. O que trago na pasta promete muito mais do que isso.

            - Refere-se ao Manifesto?

            - Exato.

            - Se Komarov e os seus sicários soubessem que se encontra aqui, que fariam?

            - Matariam-me. Neste momento, procuram-me por toda a cidade.

            - Devo reconhecer que é arrojado.

            - Prontifiquei-me a executar uma missão. Depois de ler o Manifesto, achei  que merecia a pena expor-me a certos riscos.

            Bernstein estendeu a mão.

            - Mostre-me.

            Monk entregou-lhe o relatório de “Verificação” em primeiro lugar. O banqueiro estava habituado a ler documentos complexos rapidamente, chegou ao fim em dez minutos.

            - Três homens, hem?

            - O empregado da limpeza, o secretário Akopov, que o deixou estupidamente à vista no seu gabinete, e Jefferson, o jornalista que Komarov supôs erradamente que o lera.

            Bernstein apertou uma tecla do intercomunicador.

            - Ludmila, consulte os recortes de jornais relativos a fins de Julho, princípio de Agosto e veja se há alguma coisa sobre Akopov, um russo, e um repórter inglês chamado Jefferson. Procure também na necrologia. - Fixou o olhar na  tela  no tampo da mesa, enquanto o material pedido era projetado. Por fim, emitiu um grunhido. - Estão mortos, realmente. Agora, será a sua vez, se o apanharem.

            - Espero que não consigam.

            - Bem, já que decidiu correr o risco, me debruçarei sobre as idéias que Komarov acalenta acerca de todos nós.

            Tornou a estender a mão. Monk levou a sua ao interior da pasta e passou-lhe o documento de capa preta. O banqueiro iniciou a leitura. Em dado momento, sem erguer os olhos, disse:

            - Pode retirar-se, llya. Não há novidade.

            O americano ouviu a porta fechar-se atrás do secretário e aguardou. Por fim, Bernstein levantou a cabeça, com uma expressão apreensiva.

            - Não acredito que ele tenha mesmo estas idéias em mente.

            - Refere-se ao extermínio total? Foi tentado, em outras ocasiões.

            - Mas há um milhão de judeus na Rússia.

            - Eu sei. Dez por cento podem ir para lugar seguro. - Pôs-se de pé e aproximou-se da janela  sobranceira  aos telhados de Moscou. A vidraça tinha uma tonalidade esverdeada, quinze centímetros de espessura e podia impedir a passagem de um míssil anti-tanques.

            - Não me convenço que ele tencione na verdade fazer isso.

            - Temos certeza do contrário.

            - Temos?

            - Refiro-me às pessoas que me enviaram: poderosas, influentes. Mas temerosas desse homem.

            - É judeu, Mr. Monk?

            - Não.

            - Tem sorte. Ele vai ganhar as eleições, não é verdade? Segundo as  sondagens,  ninguém  lhe chega aos calcanhares.

            - As coisas podem mudar. Foi denunciado pelo general Nikolayev, outro dia. Isso pode exercer algum efeito. Espero que a igreja ortodoxa desempenhe um papel de destaque. Talvez seja impedi-lo de concretizar os seus planos.

            - A Igreja... Hum, não é propriamente amiga dos judeus.

            - Claro, mas Komarov também tem planos para ela.

            - É, pois, uma aliança que procura?

            - Mais ou  menos. Da igreja, exército, bancos, minorias étnicas, etc. Tudo serve para robustecer a nossa posição. Tem lido os relatórios do padre  itinerante? Propugna o regresso do czar.

            - Tenho, mas trata-se de mera utopia, na minha opinião. No entanto, antes um czar que um nazi. Que pretende de mim, Mr. Monk?

            - Eu? Nada. A escolha é sua, Mr. Bernstein, como presidente do consórcio de quatro bancos que controla os dois canais da TV independentes. Tem o seu Grumman no aeroporto?

            - Sim.

            - São apenas duas horas de avião até Kiev.

            - Porquê Kiev?

            - Pode visitar Babi Yar.

            O banqueiro voltou-se da janela com um movimento brusco.

            - Pode retirar-se, Mr. Monk.

            Este pegou as duas pastas de plástico de cima da mesa e guardou-as.

            Sabia que fora muito longe. Babi Yar era uma ravina nos arredores de Kiev. Entre 1941 e 1943, cem mil civis foram abatidos com rajadas de metralhadora na beira dessa elevação, para que os corpos caíssem diretamente na cova. Alguns eram comissários e altos funcionários comunistas, mas os judeus da Ucrânia excediam noventa e cinco por cento do total. Monk estendia a mão para o puxador da porta, quando Leónidas Bernstein voltou a falar.

            - Alguma vez esteve lá?

            - Não.

            - E que sabe a respeito?

            - Que é um lugar sinistro.

            - Eu visitei Babi Yar, e é na verdade tenebroso. bom dia, Mr. Monk.

 

            O gabinete do Dr. Lancelot Probyn, na sede da escola de armas, na Queen Victoria Street, era pequeno e repleto de livros em verdadeira desarrumação. Quando Sir Nigel entrou, ele levantou-se quase de um salto, desocupou uma poltrona e indicou-lhe que se sentasse.

            - Como vai a  sucessão? - perguntou o recém-chegado.

            - Refere-se ao trono dos Romanov? Nada bem. Como eu, de resto, previa. Há um descendente que podia se candidatar, mas não quer, outro que não desejaria outra coisa e está excluído por dois motivos e um americano que não foi abordado e, de qualquer modo, não teria a mínima chance.

            - Sim, a situação está ruim.

            - Comecemos pelos impostores. Lembra-se de Anna Anderson? Passou a vida intitulando-se grã-duquesa Anastásia, sobrevivente da chacina de Ekaterinburg. Tudo mentira. Já morreu, mas os testes provaram finalmente que não passava de uma fraude. Há uns anos, outro pretendente faleceu em Madrid: o pomposo duque Alexei, que afinal não passava de um vigarista do Luxemburgo. Restam assim três, mencionados ocasionalmente na Imprensa, na maioria das vezes com pormenores sem bases. Ouviu falar do príncipe Georgi?

            - Não creio.

            - É um jovem cuja promoção tem sido efetuada pela ambiciosa mãe, a  grã-duquesa Maria, filha do falecido grão-duque Vladimir. Este talvez pudesse candidatar-se como bisneto de um imperador reinante, embora com escassas chances de levar água ao seu moinho, porque a mãe não fazia parte da igreja ortodoxa no momento do seu nascimento, o que representa uma das condições. De qualquer modo, a sua filha, Maria, não era elegível para sucessora, apesar de ele alegar o contrário. Por causa da Lei Pauline, sabe.

            - Que diz?...

            - Foi promulgada por Paul I. A sucessão, salvo circunstâncias excepcionais, só se aplica à linha masculina. As filhas não contam. Uma decisão muito sexista, mas não há nada a fazer. Por conseguinte, a duquesa Maria é realmente a princesa Maria e o seu filho Georgi não está incluído na linha da sucessão. A Lei Pauline também especificava que nem os filhos de filhas contavam.

            - Limitam-se, pois, a esperar que as coisas mudem.

            - Exato. Extremamente improvável, diga-se de passagem.

            - Mencionou um americano...

            - É uma história curiosa. Antes da Revolução, Nicolau II tinha um tio, o grão-duque Paulo, irmão mais novo do pai. Quando os bolcheviques tomaram o poder, assassinaram o czar, o irmão e o tio Paulo. Mas este tinha um filho, primo do czar, o grão-duque Dmitri, o qual, por estranha casualidade, estivera envolvido na morte de Rasputin. Encontrava-se no exílio, na Sibéria, em virtude disso, quando ocorreu o golpe bolchevique. O que lhe salvou a vida. Fugiu através de Xangai e terminou na América.

            - Nunca tinha ouvido falar disso - admitiu Irvine. - Continue.

            - Bem, Dmitri sobreviveu, casou e teve um filho, Paulo, que combateu como major do exército dos Estados Unidos, na Coréia. Também casou e teve dois filhos.

            - Parece-me uma linha masculina muito direta. Está me dizendo que o verdadeiro czar pode ser um americano?

           - Quem pensa assim acaba por se desiludir. É que Dmitri casou com uma plebéia, por assim dizer, e o filho também. Segundo o Preceito 188 da Casa Imperial, não se pode contrair matrimônio com alguém de linhagem diferente e esperar que um descendente triunfe. Esta obrigatoriedade foi tornada mais flexível posteriormente, mas não para os grãos-duques. Portanto, a união de Dimitri foi morganática. O filho que combateu na Coréia não pode se candidatar, tal como os dois netos através de um segundo casamento com uma plebéia.

            - Estão, pois, postos de parte.

            - Receio que sim. De resto, nunca se mostraram interessados. Creio que vivem na Florida.

            - Quem mais?

            - Aquele que tem a mais forte pretensão por descendência. O príncipe Semyon Romanov.

            - Tem laços de parentesco com o czar assassinado? Não há filhas, nem plebéias pelo meio?

            - Em todo o caso, a história vem de longe. Temos de imaginar quatro czares. Nicolau  II surgiu depois do pai, Alexandre III, precedido, por seu turno, do pai, Alexandre II, cujo progenitor era Nicolau I. Ora, este último tinha um filho mais jovem, o grão-duque Nicolau, o qual, naturalmente, nunca foi czar. O seu filho era Peter, o seu filho era Kyril e o seu filho é Semyon. Assim, a partir do czar assassinado, temos de recuar três gerações até ao trisavô, depois “fazer agulha” para um filho mais jovem e a seguir percorrer quatro gerações até chegar a Semyon.

            - Parece-me uma hipótese muito elástica.

            - Sim, trata-se de um caminho longo, mas as árvores genealógicas são assim. Tecnicamente. Sempre é o mais próximo a que podemos lançar mão para a descendência direta. É, todavia, uma hipótese acadêmica. Existem dificuldades práticas.

            - Por exemplo?...

            - Tem mais de setenta anos. Por conseguinte, se subisse ao trono, não duraria muito tempo. Depois, não tem filhos, a linha se extinguiria com ele, e a Rússia voltaria à estaca zero. Por outro lado, tem afirmado repetidamente que não está interessado e recusaria o cargo, mesmo que lhe oferecessem.

            - Não é uma perspectiva animadora - reconheceu Sir Nigel.

            - Mas há pior. Foi sempre um bon vivant, interessado em carros velozes, casinos na Riviera e aventuras com moças, em geral empregadas domésticas, hábito que conduziu à ruptura de três matrimônios. E, como se isso não bastasse, ouvi dizer que faz trapaceia no gamão.

            - Não me diga! - exclamou, sinceramente indignado. - As aventuras com  serviçais ainda se podiam encarar com tolerância, mas trapacear no gamão...Onde vive?

            - Numa fazenda produtora de maçãs da Normandia.

            Conservou-se   pensativo   por   um   momento,   enquanto   o Dr. Probyn o observava com simpatia.

            - Se Semyon afirmou publicamente que renunciava a participar em qualquer tipo de restauração, essas palavras podem considerar-se uma rejeição legal?

            O interpelado franziu os lábios, antes de responder.

            - Suponho que sim. A menos que se registre realmente uma restauração. Então, talvez mudasse de idéia. Com vista aos carros velozes e serviçais condescendentes.

            - Mas, sem ele, qual é a alternativa?

            - A alternativa, meu caro amigo, consiste em que, se o povo russo quiser, pode escolher quem lhe der na real gana para se tornar no seu monarca. É muito simples, como vê.

            - Há algum precedente da escolha de um estrangeiro?

            - Numerosos e frequentes. Nós próprios o fizemos três vezes. Quando Isabel I morreu solteira, se não virgem, convidamos Jaime VI da Escócia para se tornar Jaime I de Inglaterra. Três reis mais tarde, derrubamos Jaime II e convidamos o holandês Guilherme de Orange, para ocupar o trono. Após a morte da rainha Ana sem deixar descendentes, pedimos a Jorge de Hanôver que se tornasse Jorge I. E quase não falava uma palavra de inglês.

            - Os europeus têm feito o mesmo?

            - Com certeza. Os gregos duas vezes. Em 1833, depois de se libertarem dos turcos, convidaram Otto da Baviera para rei da Grécia. Como  não se  revelou  muito competente, depuseram-no em 1862 e ofereceram o lugar ao príncipe Guilherme da Dinamarca, o qual se tornou Jorge I. Mais tarde, proclamaram a república, em 1924. Restauraram a monarquia em 1935 e voltaram a aboli-la em 1973. Parecem indecisos na matéria. Há cerca de duzentos anos, os suecos estavam desnorteados, olharam em volta e convidaram o general napoleônico Bernadotte para rei. A decisão funcionou satisfatoriamente, e os seus descendentes ainda estão no poder. Finalmente, em 1905, o príncipe Carlos da Dinamarca foi convidado para tornar-se Haakon VI da Noruega, e os descendentes também ocupam ainda o trono. Se existe um lugar desses vazio e se pretende um monarca, nem sempre é má idéia procurar um estranho competente de preferência a um rapaz local inútil.

            Sir Nigel tornou a imergir em silêncio, a contas com reflexões. Entretanto, o Dr. Probyn chegara à conclusão que a curiosidade do outro não era meramente acadêmica e aventurou:

            - Posso fazer-lhe uma pergunta?

            - Claro.

            - Se a questão da restauração alguma vez surgisse na Rússia, qual seria a reação dos americanos? É que controlam os cordões da bolsa, único superpoder que resta.

            - Os americanos são tradicionalmente antianarquistas - admitiu Irvine, - mas de modo algum idiotas. Em 1918, a América foi instrumental no exílio do kaiser alemão, o que conduziu ao vácuo caótico da República de Weimar, que Adolfo Hitler aproveitou, com os resultados que todos conhecemos. Em 1945, o tio Sam não pôs termo específico à casa imperial japonesa. O resultado? Ao longo de cinquenta anos, o Japão tem sido a democracia mais estável da Ásia, anticomunista e amiga da América. Creio que Washington assumiria a posição de que, se os russos decidissem optar por essa via, a escolha só a eles diria respeito.

            - Mas teria de ser todo o povo, por plebiscito?

            Concordou, com uma inclinação de cabeça.

            - Julgo que sim. Apenas a Duma não bastaria. Surgiriam muitas alegações de corrupção. Teria de ser a decisão de toda a nação.

            - Então, quem tem em vista?

            - Aí é que está o problema. Ninguém. Segundo o que me revelou, um playboy ou um pretendente itinerante não serve Vejamos que qualidades necessitaria de ter um czar restaurado. Que acha?

            Os olhos do Dr. Probyn brilharam.

            - É muito mais divertido do que a minha ocupação habitual. Que idade?

            - Quarenta ou sessenta anos, não concorda? Não é coisa para um adolescente ou um velho caquético. Maduro, mas não ancião. Que mais?

            - Ter nascido príncipe de uma casa reinante e proceder como tal em público.

            - Uma casa Européia?

            - Sem dúvida. Não creio que os russos aceitassem um africano, árabe ou asiático.

            - Claro. Caucasiano, portanto.

            - Necessitaria de um filho legítimo vivo, ambos convertidos à Igreja Ortodoxa.

            - Não é uma condição intransponível.

            - Mas há um óbice traiçoeiro. A mãe teria de contar com um membro da Igreja Ortodoxa, à data do nascimento.

            - Muito bem. Que mais?

            - Sangue real em ambas as partes da ascendência, de preferência num dos lados, pelo menos.

            - Ah,  um  antigo  oficial  superior do  exército, ativo ou não! O apoio da classe dos oficiais seria vital. Não sei o que pensariam de um contabilista encartado.

            - Esquece uma coisa - lembrou o Dr. Probyn. - Teria de falar russo fluente. Jorge I surgiu exprimindo-se apenas em alemão e Bernadotte não ia além do francês. Nos tempos que correm, os monarcas têm de se dirigir ao seu povo. Os russos não delirariam de alegria perante um arrazoado em italiano.

            Sir Nigel Irvine levantou-se e extraiu um talão de papel do bolso do peito do casaco. Era um cheque e de uma quantia generosa.

            - Não encontro palavras para lhe agradecer - balbuciou o Dr. Probyn.

            - Estou certo que a Escola tem de enfrentar despesas elevadas. Importa-se de me fazer um favor?

            - Se estiver ao meu alcance.

            - Pesquise o seu material, com particular incidência nas casas reinantes da  Europa. Veja se há algum homem que satisfaça todas essas exigências.

 

            Oito quilômetros a norte do Kremlin, no subúrbio de Kashenkin Lug, ergue-se o complexo dos centros da televisão de onde são transmitidos os programas destinados a todo o território russo.

            De cada lado do Bulevar Akademika Koroleva, situam-se os centros Doméstico e Internacional. A trezentos metros, encontra-se a torre pontiaguda de Ostankino, o lugar mais elevado da capital.

            A rede Estado IV, controlada pelo governo, irradia os seus programas daí, assim como os dois canais independentes ou comerciais, que se sustentam dos lucros da publicidade. Os edifícios são partilhados, mas em níveis diferentes.

            Boris Kuznetsov foi largado de um dos Mercedes com motorista da UFP. Fazia-se acompanhar do vídeo do impressionantemente concorrido comício em Vladimir que Igor Komarov promovera no dia anterior.

            Montado e completado pelo jovem gênio do diretor, Litvmov, constituíam um triunfo. Perante uma multidão ululante, Komarov ridicularizara o padre itinerante que defendia o regresso a Deus e ao czar e aludira com mal dissimulado sarcasmo às declarações do velho general.

            - Homens de ontem com esperanças do passado! - rugiu. - Mas nós temos de pensar no amanhã, porque o amanhã pertence-nos!

            Tinham estado presentes cinco mil pessoas, que a perícia dos cameramen de Litvinov convertera no triplo. Transmitido a toda a nação, apesar do preço assombroso de uma hora de antena, chegaria ao conhecimento não de cinco mil, mas cinquenta milhões de russos, o equivalente a um terço da população do país.

            Kuznetsov foi introduzido diretamente no gabinete do Chefe da Programação da maior estação comercial, um indivíduo que considerava seu amigo pessoal e sabia ser um firme apoiante de Igor Komarov e da UFP.

            - Foi um comício deslumbrante - declarou, pousando o cassette na mesa. -   Eu estava lá. Vai adorar, garanto-lhe. - Fez uma breve pausa, enquanto o interlocutor aguardava, movendo os dedos em torno de uma esferográfica. - Mas tenho notícias ainda melhores. Um contrato importante, com dinheiro à vista. O  presidente Komarov quer dirigir-se ao país todas as noites até à data das eleições. Pense nisso, meu  amigo: o maior contrato que jamais propuseram a esta estação. Estupendo, hem?

            - Ainda bem que resolveu trazer o cassette pessoalmente, Boris. Receio que tenha surgido um problema.

            - Não venha com problemas técnicos. Não pode eliminá-los de uma vez?

            - Não se trata bem. Como sabe, apoio o presidente Komarov profunda e incondicionalmente.

            Como planejador de programas de televisão, Gurov conhecia exatamente o papel da cobertura televisiva dos eventos, o qual exerceria um peso decisivo no resultado das eleições. Somente a Grã-Bretanha, com a sua BBC, continuava a tentar a imparcialidade nos canais estatais. Em todos os outros países da Europa Ocidental e Oriental, os respectivos governos serviam-se das suas redes de TV para apoiar o regime do momento, prática que se mantinha desde longa data.

            Na Rússia, a Estado IV cobria a campanha do atual presidente, Ivan Markov, enquanto se limitava a aludir vagamente às outras candidaturas.

            Os dois outros candidatos, pois a arraia miúda abandonara a corrida pelo caminho, eram Gennady Zyuganov, da União Socialista, neocomunista, e Igor Komarov, da União das Forças Patrióticas.

            O primeiro lutava visivelmente com problemas de angariação de fundos, enquanto o segundo parecia nadar na abundância. Graças a isso, Komarov pudera literalmente comprar publicidade ao estilo americano, adquirindo tempo de antena pago nos dois canais comerciais.

            Assim, podia assegurar-se que não havia cortes no seu material. Gurov aceitara com satisfação a proposta, que mais tarde sem dúvida lhe mereceria um tratamento privilegiado, quando o cliente especial subisse ao poder.

            Agora, porém, Kuznetsov estremeceu, perplexo, pressentindo que algo correra, ou estava na iminência de correr, mal.

            - Na verdade, Boris - prosseguiu  Gurov, - houve uma espécie de desvio de política. Ao nível da administração. Não influí minimamente, como deve calcular.   Não passo de um moço de recados. Foi muito acima da minha cabeça. Na estratosfera, por assim dizer.

            - A que desvio de política se refere? Fale claro, homem.

            Moveu-se na cadeira com desconforto e amaldiçoou intimamente o diretor da programação que o incumbira da desagradável tarefa.

            - Como sabe, à semelhança de todas as empresas, dependemos pesadamente dos bancos. Quando resolvem nos pressionar, temos de nos  acomodar para evitar o esmagamento. No fundo, são eles que mandam. Em regra, deixam-nos sossegados, porque os juros são convidativos. Agora, resolveram nos encostar à parede.

            - Deve ser aborrecido para vocês.

            - Para nós, propriamente, não, Boris.

            - Mas se eles os encostam à parede, como diz, decerto que...

            - Bem, talvez não me exprimisse com clareza suficiente. A estação pode sobreviver, mas há um preço a pagar.

            - Um preço?

            - Não  tive  nada a ver com o assunto, garanto-lhe. Se dependesse de mim, a mensagem de Igor Komarov até podia aparecer o dia inteiro nos telas, mas...

            - Mas o quê?

            - Muito  bem. Foi determinado que não transmitiríamos mais discursos ou comícios de Komarov.

            Kuznetsov rangeu os dentes, ao mesmo tempo as faces mudavam de cor.

            - Enlouqueceram? Esquece-se de que compramos o tempo que utilizamos? Nós o pagamos até ao último segundo. Isto é uma estação comercial. Não podem recusar o nosso dinheiro.

            - Parece que podemos.

            - Mas foi pago antecipadamente.

            - Segundo entendi, vai ser devolvido.

            - Irei a um concorrente seu. Não são a única estação de TV comercial da cidade.

            - Dependem dos mesmos bancos.

            Hesitou, enquanto tentava dominar o tremor dos joelhos.

            - Que diabo está acontecendo?

            - Sei tanto como você. A administração tomou a decisão ontem à tarde. Se  não recusamos transmitir o material de Komarov nos próximos trinta dias, cortam-nos o crédito.

            - Que vão fazer com todo esse tempo que fica livre? Recitais de dança dos cossacos?

            - Aí é que está a parte mais curiosa - explicou Gurov, recuperando parte do sangue-frio. - Passaremos a emitir os comícios e discursos daquele padre.

            - Qual padre?

            - O sacerdote revivalista, que está sempre incitando as pessoas a voltarem-se para Deus.

            - Deus e o czar - murmurou Kuznetsov.

            - Esse mesmo.

            - O padre Gregor.

            - Exato.

            - Não acredito que vocês sejam tão estúpidos. O homem não tem dinheiro que chegue nem para mandar cantar um cego.

            - Acho que não é bem assim. Agora, vai aparecer no telejornal e no espaço sobre eventos especiais. Quer assistir?

            - Não, obrigado.

            Uma vez na rua, perguntou como revelaria a tenebrosa novidade ao seu ídolo. No entanto, uma suspeita que lhe pairara na cabeça durante três semanas concretizou-se numa convicção. Komarov e Grishin tinham trocado olhares de inteligência, quando lhes anunciara a destruição das impressoras. Sabiam alguma coisa que ele ignorava. Mas de um fato não tinha a menor dúvida: passava-se algo catastroficamente errado.

 

            Naquela noite, no outro extremo da Europa, Sir Nigel Irvine era interrompido no seu jantar. O empregado do clube estendia-lhe o telefone.

            - O Dr. Probyn, Sir Nigel.

            A voz melíflua do heraldo provinha do seu gabinete, onde ficara trabalhando até mais tarde.

            - Creio que descobri o seu homem.

            - Podemos nos encontrar aí,  amanhã,  às dez horas?... Ótimo.

            Sir Nigel devolveu o aparelho ao empregado, que ficara aguardando.

            - Acho que isto merece um cálice de Porto, Trubshaw.

 

            Na Rússia, a  Polícia, ou força policial, depende diretamente do Ministério do Interior, o MVD.

            À semelhança da maioria das forças policiais, tem dois ramos principais: a Polícia federal, por um lado, e a Polícia local ou regional, por outro.

            As regiões têm o nome de obtasts. A maior é a de Moscou, uma fatia de território que abarca toda a capital da República Federal e o campo circundante. É como o distrito da Columbia, mas com um terço da Virgínia e Maryland.

            Por conseguinte, Moscou exerce as funções de anfitriã, embora em diferentes edifícios, da Polícia Federal e da capital. Ao contrário dos estabelecimentos policiais ocidentais, o Ministério do Interior russo também tem à sua disposição um exército privativo: 130000 tropas do MVD fortemente armadas, quase tantas como o verdadeiro exército dependente do Ministério da Defesa.

            Pouco depois da queda do comunismo, o desenvolvimento acelerado do crime organizado tornou-se tão aberto, perverso e escandaloso, que Boris Ieltsin foi obrigado a ordenar a formação de divisões inteiras no seio da obtasts federal e moscovita para combater a expansão da Mafia.

            A função das forças federais consistia em lutar contra o crime em todo o país, porém encontrava-se tão concentrado em Moscou, na sua maioria de natureza econômica, que o Departamento de Controle do Crime Organizado de Moscou, ou GUVD, se tornou tão importante como o seu homólogo federal.

            O GUVD teve um êxito apenas moderado até meados dos anos noventa, quando passou a ser comandado pelo general da Miilícia Valentim Petrovsky, que se tornou no oficial superior mais antigo do Colegium.

            Provinha de fora da cidade, mais concretamente de Nizhny Novgorod, onde estabelecera a reputação de duro, inacessível ao suborno. Tal como Elliot Ness, herdou uma situação similar à de Chicago no tempo de Al Capone.

            Ao invés do chefe dos Intocáveis, tinha muito mais poder de fogo e menos direitos civis com que se preocupar. Iniciou o seu reinado despedindo uma dúzia de funcionários superiores, que considerou muito próximos no assunto em questão: o crime organizado.

            Dedicou-se a seguir a uma série de testes secretos para determinar o grau de “subornabilidade” de alguns chefes de divisão. Os que mandaram os potenciais subornadores dar uma volta foram promovidos e receberam um subsídio considerável. Quando decidiu que dispunha de uma força de ataque honesta, Petrovsky declarou guerra ao crime organizado. A sua Brigada Anti-Bandos tornou-se mais temida entre a fauna do submundo do que qualquer outra equipe  anterior, e passaram a chamar-lhe Molotok, que significa martelo.

            À semelhança de todos os polícias honestos, não foi tudo um estendal de vitórias. O cancro tinha ramificações muito profundas. O crime organizado dispunha de amigos em níveis elevados. Muitos gangsters compareceram a julgamento e recuperaram a liberdade com um sorriso nos lábios.

            A reação de Petrovsky a esse aspecto da situação consistiu em não usar de cuidado excessivo para fazer prisioneiros. Para apoiar os seus detetives, as divisões Federal e Anti-Bandos contavam com homens armados. Os da Polícia Federal denominavam-se OMON e a Força de Reação Rápida SOBR.

            Naqueles primeiros tempos, Petrovsky conduzia batidas pessoalmente, sem aviso prévio, para evitar fugas de informação. Se os gangsters capturados se abstinham de resistir, tinham direito a um julgamento imparcial. Mas se algum fazia sequer menção de levar a mão ao coldre, ele providenciava para que abandonassem o local dentro de um saco de plástico.

            Em 1998, chegou à conclusão que o maior grupo mafioso e, aparentemente mais impregnável, era, de longe o bando do Dolgoruki, com base em Moscou, que controlava a maior parte da Rússia a oeste dos Urais, imensamente rico e, portanto, com meios para comprar influências esmagadoras. Durante dois anos antes do Inverno de 1999, travara luta pessoal com o Dolgoruki, cujos membros o odiavam solenemente.

            Umar Gunayev revelara a Jason Monk, no seu primeiro encontro, que não havia necessidade de forjar documentos de identidade na Rússia, pois o dinheiro podia comprar o material genuíno e, em princípios de Dezembro, pôs essa afirmação à prova.

            O que tinha em mente seria a quarta vez que conseguia um encontro privado com uma figura notável russa, enquanto se deslocava sob uma identidade falsa. Mas a carta falsa do metropolitano Anthony da Igreja Ortodoxa Russa, em Londres, fora criada naquela cidade. Assim como a que pretendia provir da Casa de Rothschild. O general Nikolayev não pedira qualquer identificação, pois bastara o uniforme de um oficial do estado-maior. No entanto, o general Valentim Petrovsky, com a ameaça constante de assassínio, era guardado dia e noite.

            Monk nunca perguntou ao líder checheno onde os obteve. Não obstante, pareciam autênticos. Exibiam a sua fotografia, com o cabelo louro cortado curto, e identificavam-no como sendo um coronel da Polícia do corpo pessoal do Diretorado de Controle do Crime Organizado dependente do Ministério do Interior Federal. Nessa qualidade, não seria conhecido pessoalmente de Petrovsky, mas apenas um colega da Polícia Federal.

            Uma das coisas que não mudaram depois da queda do comunismo foi o hábito russo de estabelecer blocos inteiros de apartamentos para os oficiais superiores da mesma profissão. Enquanto no Ocidente os políticos, funcionários públicos e oficiais superiores costumam viver nas respectivas casas dispersas pelos subúrbios, em Moscou a tendência consiste em se instalarem em apartamentos de aluguel, nos blocos pertencentes ao Estado.

            Isto deve-se sobretudo ao fato do Estado pós-comunista ter obtido esses blocos de apartamentos do antigo Comitê Central e criado residências gratuitas. Muitas delas situavam-se e ainda se situam ao longo do lado norte do Prospekt Kutuzovsky, onde Brezhnev e a maioria dos membros do Politburo viviam. Petrovsky ocupava um no bloco que partilhava com uma dezena de outros oficiais superiores da Polícia.

            O carro que Monk conduzia naquela tarde, adquirido ou pedido emprestado miraculosamente por Gunayev, era um Chaika preto da Polícia MVD, o qual se imobilizou na barreira de acesso ao pátio interior do bloco. Um guarda OMON gesticulou para que baixasse o vidro da janela, enquanto outro apontava a metralhadora ligeira ao veículo.

            Monk mostrou o documento de identidade e indicou o seu destino, e conteve a respiração. O homem examinou-o, inclinou a cabeça e dirigiu-se à guarita para fazer um telefonema. Por fim, reapareceu e disse:

            - O general Petrovsky pergunta a natureza do assunto que o trouxe.

            - Sou portador de documentos do general Chebotaryov, considerados urgentes.

            O americano teve o cuidado de mencionar o oficial que seria o seu superior. Seguiu-se novo diálogo pelo telefone. Por último, o guarda da OMON fez sinal ao colega e a barreira foi levantada. Monk arrumou o Chaika num dos poucos espaços livres e entrou no edifício.

            Havia outro guarda na Recepção do átrio, o qual lhe indicou que seguisse em frente, e mais dois à saída do elevador, no oitavo andar, que o revistaram, inspecionaram a valise e consagraram alguns instantes aos documentos de identidade. Finalmente, um utilizou um telefone junto da porta, que se abriu dez segundos depois, e Monk compreendeu que estivera sendo observado através de um postigo.

            Havia um empregado doméstico de casaco branco, cuja constituição física e atitude revelavam que podia servir muito mais coisas do que aperitivos, se as circunstâncias o exigissem, e a atmosfera familiar tornou-se clara. Uma garota emergiu da sala, olhou o americano com curiosidade e perguntou:

            - Gosta da minha boneca?

            - É muito bonita - assentiu Monk, ao mesmo tempo que acariciava levemente a boneca de cabelo comprido e brilhante e de vestido de noite. - Como se chama?

            - Tatiana, como eu.

            Apareceu uma mulher que aparentava pouco mais de trinta anos, exibiu um leve sorriso de constrangimento e levou a criança. No instante imediato, surgiu um homem em mangas de camisa, que limpava a boca com um guardanapo, como faria qualquer cidadão a quem tivessem interrompido o jantar.

            - É o coronel Sorokin?

            - Sim, senhor.

            - Vem a uma hora pouco própria para fazer visitas.

            - Peço desculpas, mas os acontecimentos precipitaram-se. Em todo o caso, posso esperar que termine de comer.

            - Já terminei. De qualquer modo, é a hora dos desenhos animados na TV. Acompanhe-me.

            O dono da casa conduziu Monk a um escritório. A iluminação era melhor que a do vestíbulo, e pôde ver que o antigo inimigo dos criminosos não era mais velho do que ele e mantinha a desenvoltura física.

            Nas três ocasiões anteriores; com o patriarca, o general e o banqueiro, Monk começara por revelar que a sua identidade de acesso era falsa, e não enfrentara uma reação desfavorável. Agora, porém, calculou que podia perfeitamente deparar-se com uma situação difícil se adotasse a mesma tática. Assim, abriu a valise. Os guardas tinham-na revistado, mas só haviam visto dois documentos em russo, sem lerem uma única palavra. Puxou o relatório “Verificação” e estendeu-o ao interlocutor.

            - Trata-se disto, general. Consideramos que é altamente preocupante.

            - Posso lê-lo mais tarde?

            - Sugiro que o faça já.

            - Muito bem. Bebe?

            - Em serviço, não.

            - Então, os costumes melhoraram, no MVD. Café?

            - Gostaria, pois tive um dia muito cheio.

            - Todos são - comentou  Petrovsky, com  um sorriso. Chamou o empregado de casaco branco e pediu café para dois. Em seguida, iniciou a leitura. O homem reapareceu, pousou a bandeja na mesa e retirou-se. Monk serviu-se e aguardou. Finalmente, o general ergueu os olhos do documento.

            - De onde diabo veio isto?

            - Dos serviços secretos britânicos.

            - O quê?!

            - Mas não é uma provokatsia. Foi tudo confirmado. Pode certificar-se amanhã, se quiser. N. I. Akopov, o secretário que deixou o manifesto à vista de qualquer curioso, morreu. O empregado da limpeza idem. E o mesmo se aplica ao jornalista inglês, que na realidade não sabia nada.

            - Recordo-me dele - disse Petrovsky, pensativamente. - Parecia um ajuste de contas de gangsters, mas sem motivo. Sobretudo, tratando-se de um repórter  estrangeiro. Acha que foram os Guardas Negros de Komarov?

            - Ou os algozes do Dolgoruki, contratados para o serviço.

            - Onde está o famigerado Manifesto Negro?

            - Aqui, general. - Monk pousou a mão na valise.

            - Tem uma cópia? Trouxe-a consigo?

            - Sim, senhor.

            - Mas, segundo diz aqui, seguiu para a embaixada britânica. E depois para Londres. Como lhe foi parar nas suas mãos?

            - Deram-ma.

            Petrovsky fitava o visitante com desconfiança crescente.

            - E como se explica que o MVD conseguisse essa cópia?... Você não é do MVD. A que agência pertence? Ao SVR Ao FSB?

            As duas organizações mencionadas eram o Serviço de Espionagem no Estrangeiro e o Serviço de Segurança Federal, sucessores do Primeiro e Segundo Diretorados Principais do antigo KGB.

            - Sou da América.

            O general não deixou transparecer o mínimo receio. Limitava-se a continuar a fitá-lo com intensidade, em busca de um indício de ameaça, porque a sua família encontrava-se no aposento ao lado e o homem podia ser um assassino pago por algum inimigo. No entanto, estava convencido que não era portador de qualquer bomba ou arma de fogo.

            Monk começou a falar, explicando como o documento de capa de plástico preta chegara à embaixada, depois a Londres e finalmente a Washington. E fora lido por menos de uma centena de pessoas de ambos os governos. Absteve-se de aludir ao Conselho de Lincoln. Se o general Petrovsky resolvesse crer que ele representava o governo dos Estados Unidos, não adviria daí qualquer inconveniente.

            - Qual é o seu verdadeiro nome?

            - Jason Monk.

            - É realmente americano?

            - Sim, senhor.

            - Pois fala muito bem o russo. Que contém esse manifesto?

            - Entre outras coisas, a sua sentença de morte, general, e da maioria dos seus homens, promulgada por Igor Komarov.

            No silêncio que se seguiu, Monk ouviu as palavras “É o meu rapaz”, pronunciadas na sala ao lado. Eram os desenhos animados de Tom e Jerry na televisão, enquanto a garota soltava risadas agudas.

            Petrovsky estendeu a mão.

            - Mostre-o.

            Levou trinta minutos para ler as quarenta páginas, divididas em vinte capítulos. No final, devolveu-as com um gesto brusco.

            - Mentiras.

            - Porquê?

            - Ele nunca se safaria com um projeto desses.

            - Até agora, tem conseguido. Um exército particular de Guardas Negros, admiravelmente armados e bem remunerados. Um corpo mais numeroso, embora não tão bem treinado, de jovens combatentes. E dinheiro em abundância para investir no empreendimento. Os padrinhos do Dolgoruki fecharam o negócio com ele, há dois anos. Um cofre de guerra de duzentos e cinquenta mil milhões de dólares para comprar o poder supremo no país...

            - E as provas de tudo isso?

            - O manifesto, por exemplo. A referência a recompensar os fornecedores de fundos. O Dolgoruki quererá ver retribuídos monetariamente os esforços desenvolvidos. Após o extermínio dos chechenos e a eliminação dos armênios, georgianos e ucranianos, o resto decorrerá com facilidade. Por outro lado, desejará destruir as forças que o general comanda, da SOBR e da OMON. É claro que não sobreviverá para assistir a tudo isso.

            - Talvez não triunfe nos seus desígnios.

            - Sim,  a  possibilidade  existe. A sua  estrela  começa  a empalidecer. Há dias, o general Nikolayev denunciou-o.

            - Eu vi. Achei surpreendente. Você teve alguma influência nisso?

            - Talvez

            - Um movimento sagaz.

            - As estações da TV comercial pararam de patrociná-lo. A publicação das suas revistas foi interrompida. Segundo as últimas sondagens, tem sessenta por cento dos votos, enquanto no mês passado atingia setenta por cento.

            - Isso significa, que as suas chances estão diminuindo. Portanto, é natural que não ganhe as eleições.

            - Mas suponha que ganhe?

            - Não posso me opor ao resultado de um sufrágio perfeitamente legal. Serei um general, mas continuo a pertencer à Polícia. Dirija-se antes ao presidente interino.

            - Está paralisado pelo medo.

            - De qualquer modo, não posso lhe ser útil, Mr. Monk.

            - Se ele achar que não pode vencer, talvez ataque o Estado.

            - Se o Estado for atacado, saberá defender-se.

            - Alguma vez ouviu falar na Sippenharft, general?

            - Não falo inglês.

            - É um termo alemão. Dê-me o seu número de telefone particular?

            Petrovsky indicou o aparelho em cima de uma mesinha e Monk memorizou o número. Em seguida, pegou os documentos e guardou-os na valise.

            - Que significa essa palavra? - quis saber o general.

            - Quando determinados oficiais tentaram derrubar Hitler através de um atentado à bomba, foram enforcados com cordas de piano. Segundo a lei da Sippenhaft, as esposas e filhos ingressaram em campos de concentração.

            - Nem os comunistas cometeram atrocidades dessas! - bradou. - Houve   famílias que perderam os apartamentos e empregos, mas não foram internadas.

            - O homem é louco. Por trás da fachada de um indivíduo ponderado, oculta-se um alucinado. Grishin terá o maior prazer em executar as suas  sanguinárias ordens. Posso retirar-me?

            - Sim, desapareça daqui antes que mande prendê-lo. - Monk abriu a porta e voltou-se para trás.

            - No seu lugar, eu tomaria algumas disposições. Se ele vencer, ou parecer que vai perder, o senhor talvez tenha de lutar pela sua esposa e filha.

            E saiu.

 

            O Dr. Proby parecia um garoto excitado. Conduziu Sir Nigel Irvine até junto de uma espécie de gráfico, afixado na parede, obviamente de sua própria autoria, e perguntou:

            - Que acha?

            Sir Nigel olhou-o sem compreender. Nomes, dezenas deles, unidos por linhas horizontais e verticais.

            - O Submundo Mongólico sem tradução? - aventurou.

            Proby soltou uma risada divertida.

            - Não exatamente. Tem na sua frente as partes interligadas de quatro casas reais européias: dinamarquesa, grega, britânica e russa. Duas ainda existem: uma na inatividade e a outra extinta.

            - Explique-se, por favor.

            Pegou um marcador vermelho, outro azul e um terceiro preto.

            - Comecemos pelo topo. Os dinamarqueses, que são a chave de tudo.

            - Porquê os dinamarqueses?

            - Permita-me que lhe conte uma história verdadeira. Há cento e sessenta anos, havia um rei da Dinamarca que tivera vários filhos. Aqui estão. - Apontou para a parte superior do gráfico, onde o rei da Dinamarca se achava indicado com, abaixo do nome, numa linha horizontal, os dos filhos. - O mais velho tornou-se no príncipe da coroa e sucedeu ao pai.  Deixa,  pois, de ter interesse para nós.  Mas o mais novo...

            - O príncipe Guilherme foi convidado a tornar-se o rei Jorge I da Grécia. Você referiu o fato na minha visita anterior.

            - Que memória! Estupendo. Aqui o temos de novo, enviado para Atenas, para ser o rei da Grécia. E que faz ele? Desposa a grã-duquesa Olga da Rússia e dão origem ao príncipe Nicolau, príncipe da Grécia, mas etnicamente meio dinamarquês e meio russo, ou seja, Romanov. Mas deixemo-lo de lado por hora, ainda solteiro.

            Marcou Nicolau em azul, para a Grécia, e voltou a concentrar-se nos dinamarqueses, no topo.

            - O velho rei também teve filhas, duas das quais se governaram   satisfatoriamente. Dagmar seguiu para Moscou, tornou-se imperatriz da Rússia, mudou o nome para Maria, converteu-se à igreja ortodoxa e deu à luz Nicolau II de Todas as Rússias.

            - Assassinado, com toda a família, em Ekaterinburg.

            - Precisamente. Mas repare na outra. Alexandra da Dinamarca veio para cá e casou com o nosso príncipe, mais tarde Eduardo VII, os quais produziram Jorge V. Está acompanhando o meu raciocínio?

            - Portanto, o czar Nicolau e o rei Jorge eram primos.

            - Exato. E as respectivas mães irmãs. Assim, na Primeira Guerra Mundial, o czar da Rússia e o rei de Inglaterra eram primos. Quando Jorge V se referia ao czar por primo “Nicky” tinha inteira razão.

            - Só que isso terminou em  1918.

            - Sem dúvida. Mas analisemos agora a descendência britânica.

            Probyn ergueu o braço e marcou em vermelho o rei Eduardo e a rainha Alexandra. A seguir, o marcador da mesma cor avançou uma geração até descrever um círculo em volta de Jorge V.

            - Ora, ele teve cinco filhos. João morreu ainda criança e os outros sobreviveram até ao estado adulto. Ei-los: David, Alberto, Henrique e Jorge. É este último que nos interessa, o príncipe Jorge.

            O marcador vermelho transferiu-se do nome deste, para envolver o seu quarto filho: o príncipe Jorge de Windsor.

            - Morreu  num   desastre de  aviação  na Segunda  Guerra Mundial, mas teve dois filhos, ambos vivos ainda hoje. Temo-os aqui, mas é no mais jovem que nos devemos concentrar. O marcador moveu-se até o segundo príncipe inglês. Sigamos a linha retrospectivamente. O pai era o príncipe Jorge e o avô o rei Jorge, mas a bisavó era irmã da mãe do czar. Duas princesas dinamarquesas:   Dagmar e Alexandra. Este homem está ligado à Casa dos Romanov pelo casamento.

            - Hum... - murmurou Sir Nigel. - Muito tempo atrás.

            - Mas há mais. Veja isto. - O heraldo pousou duas fotografias em cima da mesa. Dois rostos barbudos, de expressões somarias, que olhavam diretamente a objetiva. - Que acha?

            - Podiam ser irmãos.

            - Mas não são. Há um hiato de oitenta anos entre eles. Este é Nicolao II e o outro o príncipe inglês, vivo. Observe os rostos. Não são tipicamente britânicos e, de resto, o czar era meio russo e meio dinamarquês. Também não se pode lhes chamar tipicamente de russos, mas dinamarqueses. O sangue dinamarquês que assume a supremacia, proveniente das duas irmãs daquela nacionalidade.

            - É isso? Ligação por casamento?

            - De modo algum. O melhor ainda está para vir. Recorda-se do príncipe Nicolau?

            - O que ficou de lado? Príncipe da Grécia, mas na realidade meio dinamarquês, meio russo?

            - Esse mesmo. Nicolau II tinha uma prima, a grã-duquesa Elena. Que fez ela? Partiu para Atenas e casou com Nicolau. Por conseguinte, este é meio Romanov e ela totalmente. Nessa conformidade, o seu filho é três quartos russo e Romanov. E era a princesa Marina.

            - Que veio para Inglaterra...

            - E casou com o príncipe Jorge de Windsor. Portanto, estes dois homens vivos, seus filhos, são três oitavos Romanov, e, nos nossos dias, é o mais próximo que se pode chegar. Isto não significa que existe uma pretensão linear. Há muitas mulheres no meio, o que a Lei Pauline não permite. No entanto, a ligação por matrimônio é através da ascendência paterna e sanguínea por intermédio da materna.

            - Isso aplica-se a ambos?

            - Sim, e há algo mais. A mãe, Marina, era membro da igreja ortodoxa, no momento dos dois nascimentos, o que constitui uma condição crucial para a aceitação da hierarquia ortodoxa.

            - Mas aplica-se a ambos?

            - Com certeza. E ambos prestaram serviço no exército britânico, indo até à patente de major.

            - Então e quanto ao irmão mais velho?

            - Acaba de mencionar a idade. O mais velho tem sessenta e quatro amos, fora das suas condições prévias, enquanto o mais jovem completou cinquenta e sete. Isto adapta-se a quase todas as que apresentou. Nasceu príncipe de uma casa reinante, primo da rainha, um único casamento, um filho de vinte anos, casado com uma condessa austríaca, habituado a todas essas cerimônias, ainda vigoroso e antigo militar. Mas o fator essencial é que pertenceu aos serviços secretos do exército, frequentou um curso de russo e quase pode se considerar bilíngue.

            Probyn retrocedeu um passo diante do gráfico, com um sorriso de triunfo, enquanto Sir Nigel fixava os olhos no rosto da fotografia.

            - Onde vive?

            - Nos dias úteis, aqui, em Londres. Nos fins-de-semana, na sua residência do campo.

            - Talvez convenha trocar umas palavras com ele. Uma última coisa. Há algum outro homem que satisfaça os requisitos tão completamente?

            - Neste planeta, nenhum.

 

            Naquele fim-de-semana, Sir Nigel Irvine, após marcação prévia de um encontro, seguiu para o oeste da Inglaterra, para se avistar com o mais jovem dos dois príncipes, na sua casa de campo. Foi recebido cortesmente e escutado com profunda atenção. No final, acompanhou-o ao carro.

            - Se metade do que diz é verdade, Sir Nigel, afigura-se absolutamente extraordinário. Com certeza que tenho seguido interessado os acontecimentos na Rússia, através da mídia, mas isto... Vou ter de pensar no assunto cuidadosamente, consultar a família e, claro, solicitar uma audiência a Sua Majestade.

            - Talvez a situação nunca venha a consumar-se. Pode não haver necessidade de um plebiscito. Ou a reação do povo ser o inverso do que supomos.

            - Nesse caso, teremos de aguardar até à data crucial. Desejo-lhe boa viagem de regresso, Sir Nigel.

 

            No terceiro piso do Hotel Metropol, situava-se um dos melhores restaurantes tradicionais russos de Moscou. O Boyarsky Zal, ou Sala dos Boiardos, adquiriu o nome devido ao corpo de aristocratas que outrora rodeavam o czar e, se ele dava indícios de fraqueza, o substituíam no governo da nação. A decoração luxuosa recordava uma época há muito extinta, e as iguarias ao dispor da clientela desafiavam, em qualidade, as dos estabelecimentos congêneres de categoria.

            Foi aí que, na noite de 12 de Dezembro, o general Nikolai Nikolayev acompanhou o seu único parente vivo para celebrar o septuagésimo quarto aniversário.

            Calina, a irmã que outrora levava às cavalitas através das ruas ardentes de Smolensk, tornara-se professora e, em 1956, com vinte e cinco anos, casara com um colega chamado Andreyev. O filho Mishai nasceu mais tarde, nesse mesmo ano.

            Em 1963, ela e o marido tinham morrido no mesmo acidente de trânsito, provocado por um insensato saturado de vodka, que trafegava na contra mão.

            O coronel Nikolayev deslocara-se para casa, procedente de avião do comando do Extremo-Oriente, para assistir ao funeral. Tivera então oportunidade de ler uma carta escrita pela irmã, dois anos atrás.

            Se lhe acontecesse alguma coisa e a Ivan, o marido, rogava-lhe que olhasse pelo pequeno Misha. E Nikolayev conservou-se à beira da sepultura ao lado de um solene garoto de sete anos, que se recusava a chorar.

            Como ambos os cônjuges eram servidores do Estado no regíime comunista, todos trabalhavam para o Estado, o apartamento foi atribuído a outros. O coronel de blindados, então com trinta e sete anos, não tinha residência em Moscou. Quando gozava férias, instalava-se num quarto de solteiro do clube de oficiais Frunze, já que o comandante da sua unidade admitiu que o rapaz poderia viver temporariamente com ele.

            Assim, depois do funeral, Nikolayev levou-o à messe para uma refeição ligeira, porém nenhum dos dois tinha apetite.

            - Que diabo vou fazer com você, Misha? - perguntou, embora a interrogação se destinasse mais a si próprio.

            Mais tarde, concedeu-lhe a sua própria cama e levou alguns cobertores para o sofá, onde se acomodou. Através da parede divisória dos aposentos, ouviu-o chorar finalmente. Para tentar desanuviar o espírito, ligou o rádio e inteirou-se que o presidente Kennedy acabava de ser assassinado em Dallas.

            Uma das vantagens de usar as medalhas de um triplo herói consistia em que conferiam ao utente uma certa projeção. Normalmente, os rapazes iam para a prestigiosa Academia Militar Nakhimov, aos dez anos, mas nesse caso as autoridades concordaram em abrir uma exceção. Sentindo-se muito pequeno e não menos atemorizado, o garoto de sete anos viu-se dentro de um uniforme de cadete e internado na Nakhimov. Em seguida, o tio regressou ao Extremo-Oriente para completar a missão.

            Ao longo dos anos, Nikolai Nikolayev fizera o que pudera, visitando-o nos períodos de licença e instalando-o mais tarde no apartamento em Moscou, atribuído quando foi transferido para o Estado-Maior.

            Aos dezoito anos, Misha Andreyev atingira a patente de tenente, e, muito naturalmente, optou pela especialidade dos blindados. Vinte e cinco anos mais tarde, com quarenta e três, era major-general, comandante de uma divisão de elite de blindados nos arredores de Moscou.

            Os dois homens entraram no restaurante pouco depois das oito, com a mesa reservada devidamente preparada. O chefe do pessoal, Viktor, era um antigo soldado dos blindados, e acudiu prontamente ao seu encontro, de mão estendida.

            - Tenho muito prazer em voltar a vê-lo, general. Decerto não se recorda de mim. Era artilheiro do 131º Maikop, de Praga, em  1968. A sua  mesa é aquela em frente, virada para a galeria.

            Voltaram-se várias cabeças para averiguar a causa da incomum solicitude. Os homens de negócios americanos, suíços e japoneses manifestaram igualmente curiosidade e, entre os poucos russos presentes, alguém murmurou:

            - É Kolya Nikolayev.

            Viktor preparara dois copos de Moskovskaya gelada, por conta da casa. Misha Andreyev ergueu o seu ao tio e único pai que realmente conhecera.

            - Za vashe zdorovye. Que cumpra mais setenta e quatro.

            - Besteira. Za zdorovye.

            E ingeriram a bebida de um longo e único trago.

            Acima do bar, na Boyarsky Zal, havia uma galeria de onde os clientes eram brindados com canções tradicionais russas. Naquela noite, os cantores eram uma loura escultural trajada como uma princesa Romanov e um homem de smoking possuidor de uma vibrante voz de barítono.

            Quando terminaram a balada que interpretavam em dueto, ele avançou alguns passos e, após um sinal à orquestra, iniciou a canção de amor do soldado à moça que deixara na terra-natal, Kalinka.

            Os russos pararam de conversar e os estrangeiros imitaram-nos, enquanto a voz de barítono ecoava na sala:

            - Kalinka, Kalinka moya...

            Quando os últimos acordes se extinguiram, os russos levantaram-se para brindar ao homem de bigode branco sentado com o sobrinho, enquanto o cantor se inclinava para agradecer os aplausos. Viktor sentava-se perto de um grupo de seis japoneses, um dos quais lhe perguntou:

            - Quem é o ancião?

            - Um herói da guerra, da Grande Guerra Patriótica. - Traduziu a informação aos companheiros, que se apressaram a erguer os copos, exclamando:

            - Kampei!

            O Tio Kolya agradeceu com um movimento de cabeça, sorriu, pegou por sua vez no copo, brindou ao cantor e à assistência e levou-o aos lábios.

            Foi uma refeição excelente  truta e depois pato, com vinho da Armênia e café no final. Em face dos preços praticados no Boyarsky, custava ao major-general um mês de vencimento, mas admitia para consigo que o tio o merecia.

            Só depois de completar trinta anos e ter visto alguns oficiais verdadeiramente maus em cargos elevados começou a compreender a razão pela qual Nikolai Nikolayev se tornara numa lenda entre os soldados e camaradas dos blindados. Possuía uma característica normalmente ausente nos outros: uma preocupação apaixonada pelos homens sob as suas ordens. Quando lhe confiaram a sua primeira divisão, o major-general Andreyev, olhando à sua volta para os escombros da Chechenia, reconheceu que a Rússia se poderia considerar afortunada se surgisse outro Tio Kolya.

            Nunca esquecera algo que acontecera, quando tinha dez anos. Entre 1945 e 1964, tanto Stalin como Khruschev não haviam considerado oportuno erigir um cenotáfio aos mortos da guerra, em Moscou. Os seus cultos da personalidade afiguravam-lhes mais importantes, apesar do fato de nenhum dos dois poder ter estado no topo do Mausoléu a Lenin para receber as saudações no Primeiro de Maio, se não fossem os milhões de homens tombados nos campos de batalha entre 1941 e 1945.

            Até que, em 1966, com Khruschev já fora do cenário, o Politburo decidira finalmente mandar construir um cenotáfio em homenagem ao Soldado Desconhecido.

            Mesmo assim, não se utilizou um espaço aberto. O monumento ergueu-se sob as árvores dos Jardins Alexandrovsky, perto da muralha do Kremlin, numa posição que nunca atrairia os olhares dos que formavam as longas filas de espera de interessados em contemplar os restos mortais de Lenin.

            Após a parada do Primeiro de Maio daquele ano, quando o cadete de dez anos assistira, de olhos arregalados, ao desfile de tanques, peças de artilharia e lança-mísseis, tropas em passo de ganso e ginastas, na Praça Vermelha, o tio levara-o pela mão pela Passagem Kremlev, entre os jardins e a Escola de Equitação.

            Debaixo das árvores, havia uma laje de granito vermelho polido, ao lado da qual ardia uma chama num receptáculo de bronze. Na primeira, estavam inscritas as palavras: “A tua sepultura é desconhecida, os teus feitos imortais”.

            - Quero que me prometa uma coisa rapaz - disse  o coronel.

            - Sim, tio.

            - Há um milhão deles entre aqui e Berlim. Não sabemos onde jazem e, em muitos casos, quem eram. Mas combateram comigo, todos excelentes soldados. Compreende?

            - Sim, tio.

            - Seja o que for que prometam... dinheiro, promoção ou honras especiais... nunca traia esses homens.

            - Prometo-o, tio.

            Em seguida, ergueu a mão lentamente à pala do boné do uniforme, e o cadete imitou-o. Um grupo da província, que chupava sorvetes, olhou-os com curiosidade. O guia, cuja missão consistia em enaltecer os feitos de Lenin, mostrava-se claramente embaraçado e tratou de impelir os turistas na direção do Mausoléu.

            - Li a sua entrevista no Izvestia do outro dia - informou Misha Andreyev.  - Produziu alguma agitação na base.

            O general Nikolayev olhou-o com intensidade.

            - Não gostaram?

            - Ficaram apenas surpresos.

            - Falei com sinceridade.

            - Não duvido. É o seu costume.

            - O homem é um limpa-traseiros.

            - Se o tio o diz... Em todo o caso, parece que vai ganhar as eleições. Talvez fosse preferível não ter dito nada.

            - Já estou velho para guardar silêncio. Falo sempre sem papas na língua.

           O ancião pareceu imerso em reflexões, durante uns momentos, olhando distraidamente a princesa, que cantava na galeria. Alguns clientes estrangeiros julgaram reconhecer a melodia de “Bons tempos aqueles, meu amigo”, que não era de forma alguma uma canção ocidental, mas uma balada russa. De súbito, o general estendeu a mão e pousou-a no braço do sobrinho.

            - Escute, rapaz. Se me acontecer alguma coisa...

            - Não diga besteiras. Você vai enterrar-nos a todos.

            - De  qualquer  maneira,  preste  atenção. Se me acontecer alguma coisa,   sepulte-me em Novodevichi, entendido? Não quero um miserável funeral civil, mas um bispo e todos os matadores apropriados. Combinado?

            - Um bispo, no seu funeral? Achava que não acreditava em tudo aquilo.

            - Não seja idiota. Ninguém que viu um obus cair a seis metros de distância sem explodir duvida que existe Alguém lá em cima. Tive de fingir, claro, como todos nós. As teorias que o Partido procura inculcar-nos no espírito não passam de mentiras. Portanto, já sabe o que quero. E agora, tomemos o café e saiamos daqui. Trouxe o carro?

            - Trouxe.

            - Ainda bem, porque creio que bebemos demais. Assim, leve-me para casa.

 

            O trem noturno de Kiev, capital da república independente da Ucrânia, rolava através da escuridão glacial em direção a Moscou.

            Na sexta carruagem, compartimento 2B, os dois ingleses jogavam cartas. Brian Vincent consultou o relógio e anunciou:

            - Falta meia hora para chegarmos à fronteira, Sir Nigel. É melhor preparar-se para dormir.

            - Também acho. - Totalmente vestido, Irvine subiu à cama superior e puxou o cobertor até ao queixo. - Estou bem assim?

            O ex-militar assentiu, com uma inclinação de cabeça.

            - Deixe o resto comigo.

            Na fronteira, houve uma curta parada. Os funcionários ucranianos já tinham inspecionado os dois passaportes e os russos subiram então. Dez minutos mais tarde, soou uma pancada na porta do compartimento-cama. Vincent abriu e perguntou:

            - Da?

            - Pas port, pozhaluysta?

            - Havia apenas uma tênue luz azulada no interior do compartimento e, embora a do corredor fosse mais clara e intensa, o inspetor russo teve de semicerrar as pálpebras para enxergar melhor.

            - Falta o visto - acabou por observar.

            - Com certeza, uma vez que são passaportes diplomáticos. Não necessitam dele.

            O ucraniano indicou o termo em inglês na capa do documento e referiu:

            - Diplomata.

            O russo aquiesceu com um movimento de cabeça, levemente embaraçado. Recebera instruções do FSB de Moscou para prestar atenção a determinado nome ou rosto, ou ambos.

            - O velho?... - insistiu, gesticulando para o segundo passaporte.

            - Está deitado, lá em cima - informou o jovem diplomata. - Não se sente bem. É indispensável acordá-lo?

            - Quem é?

            - O pai do nosso embaixador em Moscou. É para isso que o acompanho.  Para ver o filho. - Apontou  para a cama superior. - É pai do embaixador.

            - Obrigado, mas eu falo russo - salientou o outro.

            Ao mesmo tempo, estava perplexo. O homem calvo, de rosto redondo, da fotografia do passaporte não tinha a menor similaridade com a descrição que lhe fora fornecida. Assim como o nome. Não era Trubshaw, nem Irvine. Apenas Lorde Asquith.

            - Deve fazer frio, aí fora - disse Vincent. - De enregelar os ossos. Aceitem isto. Como prova de amizade. Da reserva especial da nossa embaixada em Kiev.

            O litro de vodka era de uma qualidade excepcional. O ucraniano agradeceu, sorriu e deu uma leve cotovelada no seu homólogo russo, o qual emitiu um grunhido, carimbou os dois passaportes e devolveu-os.

            - Não conseguia ouvir bem, debaixo do cobertor, mas creio que você foi  convincente - declarou Sir Nigel, quando a porta se fechou. E saltou para o chão.

            - Digamos apenas que quantos menos estes forem melhor. E Vincent começou a destruir os dois passaportes falsos.

            Os fragmentos sairiam pela abertura do vaso sanitário e se espalhariam na superfície gelada do sul da Rússia. Um para entrar e outro para sair. Os de saída, com os carimbos de ingresso admiravelmente falsificados, estavam guardados em lugar seguro.

            Vincent olhou o companheiro com curiosidade. com trinta e três anos de idade, estava perfeitamente ciente que podia ser não só o seu pai como, em termos biológicos, também o avô. Como antigo membro das Forças Especiais, estivera em alguns lugares perigosos, como, por exemplo, deitado no deserto do Iraque ocidental, à espera que passasse algum míssil Scud. Mas houvera sempre camaradas, armas, granadas, uma maneira de responder.

            O mundo em que Sir Nigel o introduzira, embora em troca de uma remuneração elevada, de embuste e desinformação, produzia-lhe a necessidade de um vodka duplo. Por sorte, havia uma segunda garrafa da mesma qualidade na sua bagagem e utilizou-a.

            - Quer, Sir Nigel?

            - Não, obrigado. Provoca ardor na garganta e uma pequena revolta no estômago. Mas faço-lhe companhia com outra coisa.

            Desrolhou o frasco metálico que extraiu da valise e verteu parte do conteúdo na rolha, que também servia de copo. Em seguida, ergueu-a na direção de Vincent e ingeriu um gole. Era o Porto especial do clube que frequentava.

            - Quase me convenço que goza com tudo isto, Sir Nigel.

            - Há muitos anos que não me divertia tanto.

            O trem deixou-os na estação terminal de Moscou pouco após a alvorada, quando os termômetros marcavam quinze graus abaixo de zero.

            Por muito desconfortável que uma estação de estrada de ferro possa parecer àqueles que se dirigem para um lar acolhedor, é menos inóspita que as ruas. Quando Sir Nigel e Vincent descera do expresso noturno procedente de Kiev, depararam-se com o vasto átrio repleto de indigentes transidos de frio.

            - Conserve-se junto de mim - advertiu Vincent, enquanto se encaminhavam para a barreira de saída.

            - Isto é horrível - murmurou Sir Nigel, vendo as mãos ávidas que se estendiam na esperança de um óbolo.

            - Não puxe de dinheiro, do contrário provoca um tumulto. - Por fim,   abandonaram a estação e aproximaram-se da praça de táxis. Quando repelia a mão de um pedinte mais ousado, Sir Nigel ouviu-o gritar-lhe:

            - Estrangeiro maldito!

            - Eles acham que somos ricos - revelou-lhe Vincent ao ouvido. - Consideram estrangeiro sinônimo de endinheirado.

            - Estrangeiro! - vociferou outro. - Espere até Komarov subir ao poder!

            Quando se encontravam no banco de trás de um táxi em movimento, Irvine reclinou-se e resmungou:

            - Não sabia que a situação tinha se agravado tanto. Na visita anterior, fui  apenas do aeroporto ao Hotel Nacional e regressei.

            - Estamos em pleno Inverno. É a pior época do ano.

            Um caminhão ultrapassou-os e conservou a curta distância durante algumas centenas de metros. No relativo conforto da cabina, viam-se dois membros da Polícia envoltos em pesados capotes e gorros de pele. Atrás, a lona afastou-se por um momento em virtude da deslocação de ar e tornaram-se visíveis numerosos corpos, amontoados como troncos de árvore a caminho da serração.

            - O transporte de carne - explicou Vincent, secamente. - O turno de   recolha da madrugada. Morrem quinhentas pessoas todas as noites nos passeios e nos cais.

            Apesar de terem reservado aposentos no Nacional, eles não queriam apresentar-se lá antes do final da tarde. Por conseguinte, passaram o dia sentados nas poltronas do salão dos residentes do Hotel Palace.

 

            Dois dias antes, Jason Monk efetuara uma breve transmissão codificada com o computador portátil adaptado. Na verdade, era curta e concisa. Avistara-se com o general Petrovsky e parecera correr tudo bem. Continuava a ser transferido de um lado para o outro da cidade pelos chechenos, com frequência disfarçado de padre, oficial do exército ou da Polícia ou vagabundo. O patriarca estava disposto a receber o hóspede inglês pela segunda vez.

            Tratava-se da mensagem que, enviada através do mundo à sede da InTelCor, fora retransmitida para Sir Nigel, em Londres, ainda codificada. Somente ele conhecia a chave para decifrá-la.

            Fora também essa mensagem que o levara do aeroporto de Heathrow de Londres a Kiev e daí, de trem, a Moscou.

            Mas também tinha sido captada pela FAPSI, agora quase inteiramente ao serviço do coronel Grishin. Naquele momento, o diretor daquela trocava impressões com o militar, enquanto o trem Kiev-Moscou rolava através da noite.

            - Quase o apanhamos. Encontrava-se no bairro de Arbat, enquanto na ocasião anterior transmitiu de perto de Sokolniki. Por conseguinte, muda constantemente de pouso.

            - No bairro de Arbat! - bradou Grishin, irritado, pois situava-se a menos de um quilômetro das muralhas do Kremlin.

            - Há outro perigo que o devo prevenir, coronel. Se ele utiliza o tipo de  computador que supomos, não precisa forçosamente estar presente quando a   transmissão se efetua ou é recebida. Pode programá-la e abandonar o local.

            - Contento-me com que o localizem. Terá de voltar ao local para programá-lo de novo, e estarei à sua espera.

            - Se efetuar mais duas ou apenas uma que dure meio segundo, descobriremos  a fonte. Com a aproximação de um quarteirão, ou talvez mesmo o edifício.

           No entanto, nenhum dos dois homens sabia que, em conformidade com o plano de Sir Nigel Irvine, Monk necessitaria de proceder a pelo menos mais três transmissões para o Ocidente.

            - Ele voltou, coronel Grishin!

            A voz do padre Maxim pelo telefone estava impregnada de tensão. Eram seis horas da tarde, já anoitecera e fazia frio intenso.

            Grishin ainda se encontrava sentado à mesa do seu gabinete, na casa do Bulevar Kiselny, mas preparava-se para sair quando surgira a chamada. Em obediência às instruções recebidas, o telefonista ligou imediatamente ao Chefe da Segurança, mal ouviu o nome “Maxim”.

            - Acalme-se, reverendo. Quem é que voltou?

            - O inglês de idade. Há uma hora que está com Sua Eminência.

            - Não é possível!

            O coronel distribuíra uma quantia considerável pela Divisão de Imigração do Ministério do Interior e o apparat da contra-espionagem do FSB para que o prevenissem, e ninguém lhe dissera nada.

            - Sabe onde se aloja?

            - Não, mas veio na mesma limusine.

            “O Hotel Nacional”, refletiu. O pateta instalara-se no mesmo local. Ainda estava amargamente revoltado por ter deixado escapar o velho mestre-espião na visita anterior, porque “Mr. Trubshaw” agira com muita rapidez. Desta vez, porém, as coisas se desenrolariam de maneira diferente.

            - De onde está falando?

            - Da rua. Utilizo o telefone portátil.

            - Não é seguro. Vá ao lugar habitual e espere por mim.

            - Tenho de voltar para o patriarcado. Senão, sentirão a minha falta.

            - Ligue para lá e diga que não se sente bem. Teve de ir à farmácia buscar um medicamento. Arranje-se como puder, mas vá ao local de encontro.

            Grishin pousou o auscultador bruscamente, voltou a levantá-lo e ordenou ao seu ajudante, um ex-major do Diretorado dos  Guardas  da  Fronteira  do  KGB,  que se apresentasse ao serviço imediatamente

            - Traga dez homens, os melhores, à paisana, e três carros.

            Quinze minutos mais tarde, pousava uma fotografia de Sir Nigel Irvine diante do homem.

            - É este. Provavelmente acompanha-o um indivíduo mais jovem, de cabelo preto e constituição atlética. Estão alojados no Nacional. Quero, portanto, dois homens no átrio, para cobrirem os elevadores, a Recepção, e as portas, dois no café do térreo, dois na rua, e quatro em duas viaturas Se ele chegar, previnam-me, depois de entrar. Se, pelo contrário, já estiver lá, não quero que saia sem o meu conhecimento.

            - E se sair de carro?

            - Sigam-no, a menos que se torne óbvio que vai para o aeroporto.  Nessa eventualidade, provoquem  uma colisão.  Não pode chegar lá.

            - Entendido, coronel.

            Quando o ajudante se retirou para transmitir ordens ao pessoal, Grishin telefonou a outro perito que figurava na sua folha de salários: um antigo rato de hotéis, que se vangloriava de poder forçar qualquer fechadura de Moscou.

            - Pegue as ferramentas, vá ao Hotel Intourist, sente-se no átrio e conserve o celular ligado. Quero que se ocupe de determinado quarto, esta noite, a uma hora ainda indeterminada. Telefonarei quando tiver de agir.

            O Hotel Intourist situava-se a duzentos metros do Nacional, a seguir à esquina da Rua Tverskaya.

            O coronel encontrava-se na igreja de Todos-os-Santos meia hora mais tarde. O apreensivo padre, cuja fronte estava coberta de gotas de transpiração, aguardava-o com ansiedade.

            - Quando chegou o homem?

            - Cerca das quatro, sem se fazer anunciar previamente. Servi-lhes chá,  mas mantiveram-se calados durante a minha presença. Sua Eminência devia esperá-lo, pois mandou-o entrar imediatamente com o intérprete.

            - Quanto tempo estiveram juntos?

            - Cerca de uma hora.

            - Escutou à porta?

            - Tentei,  mas  não foi  fácil. As  freiras  encarregadas da limpeza estavam perto. Assim como o arcediago, seu secretário particular.

            - Que conseguiu ouvir?

            - Referiam-se com frequência a um príncipe qualquer. O inglês propunha um príncipe estrangeiro ao patriarca, para fazer não sei bem o quê. Chegaram-me aos ouvidos as expressões “o sangue dos Romanov” e “extremamente conveniente”. O visitante falava muito baixo, mas, de qualquer modo, não sei inglês. Por sorte, o intérprete exprimia-se mais alto. Em dada altura, vi Sua Eminência examinar um plano qualquer. Depois, tive de me afastar. A seguir, bati à porta e perguntei se precisavam de mais chá. Reinava o silêncio, porque Sua Eminência estava escrevendo uma carta. Disse que não e fez-me sinal para que saísse.

            Grisbirt entregou-se a reflexões. O termo “príncipe” parecia-lhe apropriado à situação.

            - Mais alguma coisa? Acabou por perguntar.

            - Sim. Quando eles se preparavam para sair, a porta entreabriu-se numa simples nesga. Encontrava-me no corredor à espera com os seus agasalhos e ouvi o patriarca dizer: “Intercederei junto ao presidente interino na primeira oportunidade”.

            Olhou Maxim com um leve sorriso e anunciou:

            - Receio que Sua Eminência esteja conspirando, em favor de interesses estrangeiros, contra o nosso futuro presidente. É lamentável, muito mesmo, porque verá as intenções frustradas. Acredito que atue de boa fé, mas procede de uma forma insensata. Depois das eleições, tudo isso será esquecido. Mas o senhor não, reverendo. Durante o meu  período de serviço no KGB, aprendi a reconhecer a diferença entre um traidor e um patriota. Em certas circunstâncias, os traidores podem ser perdoados. É o caso de Sua Eminência, por exemplo. Mas os verdadeiros  patriotas obtêm  sempre a  recompensa.

            - Obrigado, coronel.

            - Tem algum tempo de folga?

            - Uma noite por semana.

            - Depois das eleições, irá jantar em um dos acampamentos dos Jovens   Combatentes. São rapazes duros, mas generosos. E, claro, extremamente saudáveis. De idades compreendidas entre os quinze e os dezenove anos. Os melhores ingressam nos Guardas Negros.

            - Será certamente...  muito... agradável.

            - E, evidentemente, sugerirei ao presidente Komarov que os Guardas e os   Combatentes necessitam de um capelão honorário. Para tal, será indispensável o grau de bispo.

            - É muito gentil, coronel.

            - Verificará que o posso ser, reverendo. E agora, volte para a residência e me mantenha informado do que houver. É melhor levar isto. Decerto descobrirá o destino a dar-lhe. - Quando o informante se afastou, Grishin ordenou ao motorista que o conduzisse ao Hotel Nacional. Era hora do abelhudo ocidental e o seu acólito americano tomarem conhecimento pessoal de alguns fatos da Moscou moderna.

 

            Grishim mandou o motorista estacionar a cem metros de Okhotny Ryad (Caminho do Caçador), que constituía o lado noroeste da Praça Manege, onde  se situava o Nacional.

            Do carro, podia ver as duas viaturas da sua equipe  de vigilância junto do centro comercial, diante da fachada do hotel.

            - Aguarde aqui - indicou ao motorista, e desceu.

            Apesar de serem apenas sete horas da tarde, a temperatura quase atingira os vinte graus abaixo de zero, e os escassos transeuntes apertavam o passo, encolhidos nos seus agasalhos.

            Cruzou a faixa de rodagem e bateu à janela do lado do condutor, cujo vidro emitiu um estalido seco antes de ser baixado pelo mecanismo elétrico.

            - Sim, coronel?

            - Onde está?

            - Lá dentro, com certeza, se chegou antes de nós. Não saiu ninguém que se pareça sequer com ele.

            - Chame o Kuznetsov e diga-lhe que preciso dele aqui.

            O chefe da propaganda apresentou-se vinte minutos mais tarde.

            - Tem de voltar a fazer-se passar por turista americano - explicou Grishin. E mostrou-lhe uma fotografia que extraiu do bolso. É o homem que procuro. Tente os nomes de Trubshaw e Irvine.

            Kuznetsov reapareceu passados dez minutos.

            - Deu o de Irvine e encontra-se no quarto.

            - Número?...

            - Duzentos e cinquenta e dois.

            - Obrigado. Era só isto.

            O coronel regressou ao carro e utilizou o celular para contactar com o arrombador profissional que colocara no átrio da Intourist.

            - Está preparado?

            - Sim, coronel.

            - Fique alerta. Quando eu te mandar avançar, reviste o quarto duzentos e  cinquenta e dois. Não quero que pegue nada. Reviste-o apenas. Tenho um homem no átrio do hotel e irá com você.

            - Entendido.

            Às oito horas, um dos dois vigilantes que Grishin postara no átrio assomou à entrada, acenou com a cabeça aos colegas no carro mais próximo e afastou-se.

            Minutos mais tarde, emergiram dois indivíduos de pesados sobretudos e gorros de pele, de um dos quais sobressaíam cabelos brancos. Em seguida, cortaram à esquerda e subiram a rua em direção ao Teatro Bolshoi.

            Grishin entrou em contato com o arrombador.

            - Ele acaba de abandonar o hotel. O quarto está deserto.

            Um dos carros começou a rolar lentamente no encalço dos dois homens. Dois outros vigilantes, que tinham estado no café do Nacional, transpuseram a saída e seguiram igualmente os ingleses. Havia agora quatro pessoas a pé na rua e outras tantas em dois veículos. De súbito, o motorista de Grishin perguntou:

            - Capturamo-os, coronel?

            - Não. Quero ver onde vão.

           Havia uma possibilidade de Irvine tencionar contactar com o americano, Monk. Se tal acontecesse, pegaria todos.

            Os dois ingleses detiveram-se junto dos semáforos onde a Rua Tverskaya abandonava a praça, aguardaram que surgisse a luz verde e atravessaram. Segundos depois, o arrombador surgia da esquina da mesma rua.

            Era um homem de larga experiência e apresentava-se sempre como um executivo estrangeiro, praticamente as únicas pessoas que podiam frequentar os hotéis dispendiosos de Moscou. O sobretudo e o terno eram de Londres, ambos roubados, e o seu ar de autoconfiança iludia quase todos os recepcionistas.

            Grishin viu-o impelir a porta rotativa do Nacional e desaparecer no átrio. Entretanto, observara com satisfação que Nigel Irvine não levara a pasta. Por conseguinte, devia encontrar-se no quarto.

            - Em frente - ordenou ao motorista, e o Mercedes afastou-se da beira do passeio e conservou-se a uma centena de metros dos dois homens.

            - Sabe que estamos sendo seguidos? - disse Vincent, com naturalidade.

            - Sim, por dois fulanos a pé em frente, dois atrás e um carro a passo de boi junto do pavimento oposto - assentiu Sir Nigel.

            - Confesso que estou impressionado.

            - Posso ser velho e ter cabelos brancos, meu rapaz, mas ainda consigo descobrir uma “cauda”, quando é desse tamanho e tão desajeitada.

            Em virtude do seu imenso poder, o pessoal do Segundo Diretorado Principal raramente se dava ao trabalho de dissimular a sua presença nas ruas de Moscou. Ao contrário do FBI em Washington ou do MI5 em Londres, o culto da “cauda’ indetectável nunca constituíra a sua especialidade.

            Depois de passarem diante do esplendor iluminado do Teatro Bolshoi e do menos vistoso Maly, os dois transeuntes aproximaram-se de uma artéria transversal estreita, a Travessa do Teatro.

            Havia um portal pouco antes da esquina e um monte de andrajos que tentava dormir ao relento, apesar do frio cortante.

            Quando Sir Nigel se deteve, os Guardas Negros à sua frente e atrás fingiram que admiravam o conteúdo de vitrines.

            No portal, debilmente iluminado pelo reflexo dos lampiões públicos, o monte de andrajos moveu-se e ergueu a cabeça. Não estava embriagado, mas era velho, com o rosto sulcado de rugas marcado pelas privações. Na banda do capote quase no fio, viam-se algumas medalhas, e um par de olhos encovados e exaustos fixou-se no estrangeiro.

            Quando prestara serviço em Moscou, Nigel Irvine tivera ensejo de estudar as condecorações russas, e agora reconheceu uma daquelas.

            - Stalingrado? - observou a meia-voz. - Esteve em Stalingrado?

            A cabeça do ancião inclinou-se lentamente.

            - Stalingrado, sim - confirmou, numa inflexão rouca. Devia ter menos de vinte  anos,  naquele  Inverno glacial de 1942, combatendo contra o exército de Von Paulus, para conservar cada tijolo e metro quadrado da cidade na margem do Volga.

            Sir Nigel introduziu a mão no bolso e puxou uma nota de banco. Cinquenta milhões de rublos, equivalentes a cerca de trinta dólares.

            - Sopa - indicou. - Sopa quente. E um trago de vodka. Por Stalingrado.

            Endireitou-se e recomeçou a andar, tenso e irritado, seguido de Vincent. Por seu turno, os vigilantes começaram a afastar-se das vitrines.

            - A que ficaram reduzidos, meu Deus? - murmurou Sir Nigel, a ninguém   em particular, enveredando pela travessa.

            O rádio do carro de Grishin emitiu um estalido, no momento em que um dos seus quatro homens utilizou o transmissor portátil.

            - Viraram para a travessa. Estão entrando num restaurante.

            O Idade da Prats era mais um restaurante russo totalmente tradicional, situado numa rua estreita nos fundos dos teatros. Outrora, fora a Casa de Banhos Central Russa, e as suas paredes de mosaicos exibiam cenas rústicas de tempos distantes. Em contraste com o frio intenso exterior, os dois visitantes sentiram-se invadidos por uma lufada de ar quente reconfortante.

            A sala estava repleta de clientes, com quase todas as mesas ocupadas. O chefe do pessoal apressou-se a abordá-los, para anunciar em russo:

            - Não há vagas. Trata-se de uma festa particular. Lamento.

            - Vejo que resta uma mesa livre - replicou Vincent, no mesmo idioma.  - Ali.

            Com efeito, havia uma para quatro pessoas junto da parede ao fundo. O homem mostrou-se apreensivo. Compreendeu que os dois turistas eram estrangeiros, o que representava o pagamento em dólares.

            - Vou ter de consultar o anfitrião do jantar - acabou por dizer, e afastou-se apressadamente.

            Dirigiu-se a um homem bronzeado, bem-parecido, sentado à cabeceira de uma das mesas maiores, o qual olhou os dois estrangeiros postados à entrada e assentiu, com uma inclinação de cabeça.

            O chefe do pessoal regressou com a mensagem.

            - Está autorizado. Queiram seguir-me.

            Sir Nigel Irvine e Vincent sentaram-se lado a lado no banco ao longo da parede. Em seguida, o primeiro voltou-se para o anfitrião e agradeceu-lhe com um gesto, a que o outro correspondeu com um movimento de cabeça.

            Pediram pato com molho de amoras silvestres e aceitaram a sugestão do garçon de consumir um vinho tinto especial da Criméia.

            Do lado de fora, na travessa, os quatro homens de Grishin trataram de bloqueá-la em ambas as extremidades. Pouco depois, o Mercedes do coronel imobilizou-se em uma das entradas, trocou breves palavras com eles e utilizou o celular.

            - Como vai isso?

            Do corredor do segundo piso do Nacional, uma voz rouca informou:

            - Ainda estou trabalhando na fechadura.

            Dos quatro homens postados no interior do hotel, restavam dois. Um encontrava-se agora ao fundo do corredor, junto dos elevadores, incumbido de ver se alguém saía no segundo piso e se encaminhava na direção do Quarto 252. Se tal acontecesse, assobiaria determinada composição para que os assaltantes se afastassem da porta.

            Quanto ao colega, achava-se com o arrombador, que continuava concentrado na fechadura, mais renitente em ceder do que previra.

            - Quando entrar, avise-me - indicou Grishin.

            Dez minutos mais tarde, a fechadura produziu um leve estalido e cessou finalmente a resistência, o coronel foi informado.

            - Examine todos os documentos e fotografias e deixe-os como estavam  advertiu.

            A inspeção ao quarto de Sir Nigel foi rápida e meticulosa. O arrombador permaneceu dez minutos no banheiro, reapareceu e abanou a cabeça. As gavetas da cômoda revelaram apenas o que seria de esperar: camisas, gravatas, roupa interior e lenços. As da mesa-de-cabeceira estavam vazias. O mesmo se aplicava à pequena mala de viagem colocada em cima do guarda-roupas e aos bolsos dos dois ternos dentro deste último.

            Por fim, o arrombador ajoelhou-se e soltou uma exclamação de triunfo abafada. A pasta achava-se debaixo da cama, impelida para o centro do espaço. No entanto, ele puxou-a para fora com um cabide. Os fechos numerados exigiram somente três minutos de atenção.

            Quando levantou a tampa, ficou desapontado. Continha uma pequena bolsa de plástico com cheques de viagem, que não se apossou em obediência às ordens rigorosas que recebera nesse sentido, uma carteira com vários cartões de crédito, uma conta de bar do White’s Club de Londres e um frasco metálico cujo conteúdo emitia um odor com o qual não estava familiarizado.

            As divisórias no interior da tampa revelaram o talão de regresso de um bilhete de avião Londres-Moscou-Londres e um mapa das ruas da capital russa. Esquadrinhou este para verificar se havia lugares assinalados, mas não descobriu nenhum.

            Puxou uma pequena máquina fotográfica para ficar com provas do que encontrara, e o Guarda Negro que o aconpanhava comunicou o resultado da busca ao coronel Grishin.

            - Devia haver uma carta - retorquiu a voz metálica na rua, a quinhentos metros de distância.

            Em face da advertência, o arrombador tornou a examinar a pasta e encontrou, dentro de um fundo falso, um longo envelope de papel creme, com uma folha de papel da mesma qualidade, que exibia o timbre do Patriarca de Moscou e de Todas as Rússias e fotografou três vezes, para maior segurança do resultado.

            A seguir, ele e o homem dos Guardas Negros arrumaram tudo como estava, com a carta de novo no esconderijo e a pasta debaixo da cama. Por último, quando se convenceram que não subsistia o menor vestígio da sua visita, retiraram-se.

            A porta do Idade da Prata abriu-se e fechou-se com um som abafado. Grishin e quatro homens cruzaram o pequeno vestíbulo e afastaram os pesados cortinados que antecediam a sala de jantar. O maitre acudiu imediatamente ao seu encontro.

            - Lamento, meus senhores, mas...

            - Saia da frente - ordenou o coronel, sem se dar sequer ao trabalho de o olhar.

            O outro tentou reagir, mas abarcou a envergadura dos quatro homens atrás do oficial e desviou-se. Era suficientemente lúcido para distinguir os problemas graves iminentes. Apesar de não estarem uniformizados, reconheceu neles membros dos Guardas Negros.

            O indivíduo que os precedia varreu a sala com o olhar e imobilizou-o nos dois estrangeiros que jantavam ao fundo, junto da parede. Fez sinal a um dos seus homens para que o acompanhasse e aos outros três para permanecerem alerta à entrada, embora soubesse que não necessitava de apoio. O mais jovem dos dois ingleses talvez tentasse resistir, mas cederia em poucos segundos.

            - São seus amigos? - perguntou Vincent, num murmúrio. Sentia-se desnudamente desarmado e perguntava-se até onde lhe permitiria ir a faca de serrilha ao lado do seu prato. Não muito longe, sem dúvida.

            - Creio que são os  cavalheiros cujas  impressoras você danificou, há umas semanas - informou Irvine, levando o guardanapo aos lábios, para limpar possíveis vestígios do pato com molho de amoras silvestres, que estava delicioso.

            O homem de sobretudo preto aproximou-se, estacou e olhou-os com intensidade, enquanto o “pesado” se conservava dois passos atrás.

            - Sir Irvine?

            Grishin só falava russo, pelo que Vincent procedeu à tradução.

            - Sim, é Sir Nigel. com quem tenho o prazer?...

            - Não percamos tempo com brincadeiras. Como se introduziu no país?

            - Pelo aeroporto.

            - É mentira.

            - Garanto-lhe, coronel... suponho que se trata do coronel Grishin... que os meus documentos estão em perfeita ordem. Se não tivessem ficado na  Recepção do  hotel, como a  lei impõe, os mostraria com todo o prazer.

            Grishin experimentou uma ponta de indecisão. Quando transmitia ordens à maioria dos órgãos do Estado, apoiadas no suborno apropriado, eram obedecidas cegamente. Mas podia ter havido um grão de areia na engrenagem. Nessa eventualidade, alguém sofreria as consequências.

            - Está interferindo nos assuntos internos da Rússia, anglichanin! E isso não me agrada. O seu cão amestrado, Monk, não tardará a ser apanhado e ajustarei  contas com ele pessoalmente.

            - Terminou, coronel? Nesse caso, e como estamos em maré de sinceridade, permita-me que use da mesma franqueza.

            Vincent traduziu estas palavras rapidamente e Grishin arregalou os olhos de incredulidade. Não admitia que lhe falassem assim, sobretudo um velho alquebrado. Este último ergueu os olhos do copo de vinho, de onde não os desviara desde o início do diálogo, como se fosse o alvo preferencial da sua atenção, e cravou-os no russo.

            - É um indivíduo profundamente detestável e o homem que serve ainda mais repugnante, se possível.

            Vincent abriu a boca para traduzir, voltou a fechá-la e, entre dentes, aventurou:

            - Será prudente dizer isso?

            - Traduza e não se preocupe com o resto.

            Obedeceu, e uma veia começou a latejar ritmicamente na fronte do coronel, enquanto o pescoço do sicário atrás dele parecia incapaz de continuar contido no colarinho da camisa.

            - O povo russo pode ter cometido muitos erros - acrescentou Sir Nigel, em tom de conversa, - mas não merece... nenhum povo do mundo merece... uma escória como vocês.

            Vincent hesitou ante o termo “escória”, engoliu em seco e empregou o vocábulo russo pizdyuk. O ritmo do latejar na veia intensificou-se.

            - De um modo geral, coronel Grishin, há muitas possibilidades de vocês nunca virem a governar esta enorme nação. O povo está percebendo  gradualmente a realidade por trás da fachada que lhe pintam e, ao longo dos próximos trinta dias, a tendência de voto talvez se altere de forma irreversível. Que pensam fazer então?

            - Creio que comçaremos por eliminá-lo, inglês. Não espere abandonar a Rússia vivo.

            Entretanto, estabelecera-se silêncio e os comensais das mesas mais próximas perceberam o diálogo entre Grishin e Irvine, por intermédio de Vincent. O coronel não estava preocupado. Um grupo de moscovitas que decidira jantar fora não interferiria, nem divulgaria o que se passara. O Departamento de Homicídios ainda procurava, infrutiferamente, os assassinos do jornalista de Londres.

            - Não se pode dizer que seja uma decisão - sensata redarguiu Irvine.

            - Quem você acha que os ajudará? - rosnou Grishin, com um sorriso sardônico. - Estes porcos?

            O termo “porcos” não constituiu uma escolha feliz. Registrou-se um som surdo na mesa à sua esquerda. Ele voltou-se parcialmente e avistou uma reluzente lâmina de ponta e mola cravada no tampo ainda oscilando. Do outro lado, um dos comensais afastou o guardanapo na sua frente. Debaixo, encontrava-se uma automática Steyr de nove milímetros.

            - Quem são? - perguntou o coronel ao sicário dos Guardas Negros.

            - Chechenos.

            - Todos?

            - Receio que sim - confirmou Irvine, depois de Vincent ter procedido à tradução. - E gostam pouco que lhes chamem de porcos. São muçulmanos, sabe. Possuidores de memória excelente. Recordam-se perfeitamente da batalha de Grozny.

            À alusão ao nome da capital destruída, verificou-se uma série de estalidos metálicos, enquanto se soltavam molas de segurança de armas de fogo entre os cinquenta comensais. Sete pistolas estavam apontadas aos três membros dos Guardas Negros. Por seu turno, o maitre agachava-se atrás da caixa registradora e rezava para que lhe fosse permitido tornar a ver os netos.

            Grishin baixou os olhos para Sir Nigel, que continuava sentado.

            - Subestimei-o, anglichanin. Mas não tornará a acontecer. Abandone a  Rússia e não volte a pôr os pés aqui. Resigne-se a não pôr mais a vista em cima do seu amigo americano.

            Deu meia volta e encaminhou-se para a saída, seguido pelos guardas.

            Vincent não pôde conter um suspiro de alívio.

            - Já sabia que esta gente estaria presente, hem?

            - Esperava que a minha mensagem chegasse a tempo. Bem, vamos? - Sir Nigel ergueu o copo e brindou: - À sua saúde, meus senhores, e mil agradecimentos.

            Vincent efetuou a tradução e retiraram-se. Todos. Os chechenos vigiaram o hotel durante o resto da noite e, na manhã seguinte, escoltaram os visitantes ao aeroporto, onde embarcaram no vôo de volta a Londres.

            - É-me indiferente o que oferecerem em troca - declarou Irvine, enquanto o  jato da British Airways se descolava na pista de Sheremetyevo. - A Moscou é que   não volto por preço algum.

            - Ainda bem, porque eu tão-pouco.

            - E o americano?

            - Receio que ainda se encontre lá, em algum lugar. Vivendo no fio da navalha. Mas é um indivíduo especial.

 

            Omar Gunayev entrou sem bater, quando Monk se sentava a uma mesa, imerso no estudo de um mapa de larga escala de Moscou. Ergueu os olhos e o recém-chegado disse:

            - Temos de conversar.

            - Vejo que não está satisfeito. Lamento.

            - Os seus amigos partiram. Vivos. Mas o que aconteceu no Idade da Prata, ontem à noite, foi uma loucura. Concordei porque estou em dívida com você. No entanto, começa a esgotar-se. E apenas a mim diz respeito. Os meus homens não precisam correr perigo, só porque os seus amigos querem dedicar-se a jogos alucinados.

            - Lamento - repetiu  o americano. - O velhote tinha de vir a Moscou para comparecer a um encontro importante. Ninguém podia fazê-lo senão ele. Mas Grishin soube da sua vinda...

            - Então, devia ter jantado no hotel, onde estaria em relativa segurança.

            - Aparentemente, tinha de falar com Grishin.

            - Daquela maneira? Encontrava-me a três mesas de distância e ouvi tudo. Pediu praticamente que o matassem.

            - Confesso que também não compreendo. Parece que eram essas as suas instruções.

            - Escute, Jason. Há duas mil e quinhentas companhias de seguros   privadas no país e pelo menos oitocentas em Moscou. Podia ter recorrido a cinquenta homens de qualquer delas.

            Com o incremento do banditismo urbano, outra indústria que proliferara fora a dos guardas particulares. Os números que Gunayev citava achavam-se muito perto da realidade. As companhias de seguros recrutavam os seus homens das mesmas unidades ex-militares, antigos fuzileiros, pára-quedistas, da Polícia, das forças especiais, do KGB, etc.

            Em 1999, havia 800000 indivíduos nessas ocupações e a terça parte em Moscou. Em teoria, a Polícia era a fonte fornecedora da autorização necessária para o recrutamento, com o registro do seu eventual cadastro, se existia, como acontecia na maioria dos casos, noção da responsabilidade, natureza das armas que possuíam, quantas e objetivo.

            Isto em teoria, porque, na prática, um envelope bem recheado podia proporcionar todas as facilidades pretendidas. A cobertura das companhias de seguros era tão útil, que os gangsters se limitavam a formar e registrar oficialmente as suas, pelo que qualquer rufião da cidade podia apresentar documentos de identidade para provar que era um guarda de segurança autorizado a possuir o tipo de armamento que usava no coldre sob a axila.

            - O inconveniente, Umar, é que esses são subornáveis. Sabendo que   havia Grishin envolvido, podiam aproveitar a oportunidade para duplicar os seus honorários.

            - Preferiu, pois, recorrer aos meus homens, porque não o trairiam?

            - Não tinha qualquer alternativa.

            - Agora, o nosso amigo Grishin ficou sabendo quem o protege. Se a situação o intrigava até aqui, fez-lhe luz no espírito. A vida vai tornar-se muito difícil. Já consta por aí que o pessoal do Dolgoruki foi aconselhado a armar-se para uma guerra de bandos generalizados. Ora, a última coisa que me convém é uma situação dessa natureza.

            - Se Komarov subir ao poder, o Dolgoruki será o menor dos seus problemas.

            - Que raio de imbróglio semearam vocês aqui?

            - Seja o que for, já não podemos parar.

            - Exprime-se no plural. Procurou-me porque precisava se esconderr e ofereci-lhe a minha hospitalidade. O meu povo é assim. Agora, sou ameaçado com a guerra aberta.

            - Eu podia tentar evitá-la.

            - Como?

            - Falando com o general Petrovsky.

            - Com esse chekista? Sabe os estragos que ele e a sua GUVD  produziram   nas minhas operações? Faz alguma idéia das batidas que promoveu aos meus clubes, armazéns e casinos?

           - Ele odeia mais o Dolgoruki do que os chechenos. Também preciso me encontrar com o patriarca. Pela última vez.

            - Para quê?

            - Tenho de conversar com ele. Há coisas que precisa saber. Mas desta vez terão de me ajudar a abandonar o país.

            - Ninguém suspeita dele. Disfarce-se de padre, quando o procurar.

            - Não é assim tão simples. Creio que o inglês se serviu de  uma  limusine do hotel. Se Grishin consultar os  registros do Nacional, como decerto não deixará de fazer, ficará sabendo que ele visitou  o patriarca. A casa na Chisti Pereulok pode estar sob vigilância.

            O checheno abanou a cabeça, com uma expressão de incredulidade.

            - Esse seu amigo inglês é um imprudente.

 

            O coronel Grishin sentava-se à sua mesa e contemplava a fotografia ampliada com nítida satisfação.

            - Finalmente, - apertou uma tecla do intercomunicador. - Preciso falar consigo, senhor presidente.

            - Pode vir agora.

            Igor Komarov observou a foto da carta encontrada na pasta de Sir Nigel Irvine. Estava escrita no papel oficial do patriarcado e começava: com as palavras: “Alteza Real”. A assinatura e sinete eram os de Sua Eminência Alexei II.

            - Que significa isto?

            - A conspiração estrangeira montada contra o senhor presidente é bem clara. Divide-se em duas partes. Internamente, aqui, na Rússia, visa a desestabilização da campanha eleitoral, difusão da sensação de alarme e desânimo, com base na divulgação seletiva do manifesto a determinadas  pessoas. Isso redundou na sabotagem da nossa tipografia, pressão dos bancos para suspender a nossa campanha publicitária a nível nacional e denúncia proferida por aquele general imbecil. Foram causados estragos, sem dúvida, mas não bastarão para impedir a vitória. A segunda parte da conspiração é, em si, mais perigosa, pois propõe a sua substituição, senhor presidente, e restauração do Trono de Todas as Rússias. O patriarca a aceita, no seu próprio interesse. O que tem em frente é a sua carta pessoal a determinado príncipe, residente no Ocidente, em que apoia o conceito da restauração e concorda que, se for adotado, a Igreja proporá que o convite seja dirigido a esse homem.

            - E a sua proposta, coronel?

            - É muito simples, senhor presidente. Sem candidato, a conspiração desmorona-se.

            - Conhece alguém capaz de... desencorajar esse nobre?

            - Permanentemente. É bom na matéria, acostumado a atuar no Ocidente. Fala vários idiomas. Trabalha para o Dolgoruki, mas pode ser contratado. A sua última missão envolveu dois renegados da Mafia incumbidos de depositar vinte milhões de dólares em Londres, que preferiram dividi-los entre si. Foram encontrados, há duas semanas, num apartamento de Wimbledom, um subúrbio de Londres.

            - Nesse caso, creio que necessitamos dos serviços desse homem.

            - Deixe isso comigo, senhor presidente. Dentro de dez dias, o candidato terá desistido.

            Enquanto regressava ao seu gabinete, Grishin refletia que, com o precioso príncipe de Sir Nigel depositado numa gaveta frigorífica do necrotério e Jason Monk suspenso pelos pés numa cela da FAPSI, seria possível enviar ao inglês um conjunto de fotografias que lhe abrilhantariam a árvore de Natal.

 

            O chefe da GUVD acabara de jantar e, com a neta sentada nos joelhos, via um programa de desenhos animados na televisão, quando o telefone tocou. A esposa foi atender e anunciou:

            - É para você.

            - Perguntou o nome?

            - Disse apenas que era o americano.

            O general da Polícia depositou a pequena Tatiana no chão e levantou-se.

            - Atendo do escritório.

            Depois de fechar a porta, pegou no auscultador e ouviu o estalido indicativo que a esposa pousara o da extensão.

            - Alô...

            - General Petrovski?

            - O próprio.

            - Conversamos outro dia.

            - Eu sei.

            - Tenho uma informação que talvez considere útil.

            - De onde está falando?

            - De uma cabina. Não tenho muito tempo. Muna-se de papel e uma caneta.

            - Pode dizer.

            - Komarov e Grishin convenceram os seus amigos do Dolgoruki a desencadear uma guerra contra a Mafia chechena.

            - Uma luta fratricida. Adoro ver isso!

            - Só que a delegação do Banco Mundial está em Moscou para negociar a rodada seguinte de créditos econômicos. Se as ruas estiverem sob uma chuva de balas, o presidente interino, empenhado em manter uma face favorável perante o mundo e as suas perspectivas eleitorais, não ficará contente. É capaz de se perguntar por que teve de ser neste momento.

            - Continue.

            - Vou ditar-lhe seis endereços.

            Monk indicou-os, enquanto Petrovsky escrevia rapidamente.

            - A que se referem?

            - Os dois primeiros são de arsenais, apinhados de armamento do Dolgoruki, e o terceiro de um casino, em cujo subterrâneo se encontra a maior parte dos seus registros financeiros. Os outros correspondem a armazéns, que  contêm artigos de contrabando no valor de vinte milhões de dólares.

            - Como soube tudo isso?

            - Tenho amigos em locais subterrâneos. Conhece estes dois oficiais?

            O americano mencionou os nomes.

            - Com certeza. Um pertence à minha unidade e o outro é comandante de pelotão da SOBR. Porquê?

            - Ambos estão na folha de pagamento do Dolgoruki.

            - Espero que a acusação tenha fundamento.

            - Tem, asseguro-lhe. Se tenciona promover alguma batida, aconselho-o a revelá-lo ao menor número possível de participantes e manter esses dois fora de cena.

            - Sei como devo cumprir a minha missão, obrigado.

            A ligação foi cortada, e o general pousou o auscultador pensativamente. Se aquele bizarro agente estrangeiro falava verdade, o valor da informação era inapreciável. Havia uma opção: deixar a guerra de gangues alastrar, ou montar uma série de golpes demolidores ao sindicato dos mafiosos num momento propício à recepção de calorosas felicitações da presidência.

            Tinha três mil homens da Força de Reação Rápida ao seu dispor, a SOBR, na sua maioria jovens e de sangue na guelra. Se o americano tivesse razão, ainda que apenas parcialmente, sobre Igor Komarov e os seus planos para tomar o poder, não haveria lugar para as tropas daquela natureza, na Nova Rússia

            Quando regressou à sala, os desenhos animados tinham terminado. Agora, nunca saberia se o coiote conseguira capturar a presa e a consumira no jantar.

            - Tenho de ir ao quartel - comunicou à esposa. - Estarei lá toda a noite e a maior parte da manhã.

 

            No Inverno, as autoridades camarárias estavam acostumadas a lavar os caminhos do Parque Gorky com água, que não tardava a congelar e criava o maior ringue de patinação do país. Prolongava-se por quilômetros e era popular dos moscovitas de todas as classes e idades, que se faziam acompanhar dos patins e quantidades consideráveis de vodka para esquecer temporariamente as preocupações e problemas.

            Alguns caminhos permaneciam livres de gelo e desembocavam em pequenos estacionamentos. Foi num deles que dois homens, devidamente protegidos do frio, se encontraram, dez dias antes do Natal. Cada um abandonou o transporte e encaminhou-se para a periferia do arvoredo que antecedia a superfície gelada, onde os patinadores deslizavam e rodopiavam.

            Um era o coronel Anatoli Grishin e o outro um indivíduo solitário conhecido no mundo do crime por Mekhanik, ou Mecânico.

            Enquanto os assassinos profissionais existiam às dúzias na Rússia, alguns bandos de mafiosos, mas sobretudo os membros do Dolgoruki, consideravam o Mecânico especial.

            Era um ucraniano, antigo major do exército, que ocupara uma posição de destaque nas forças especiais Spetsnaz e depois no braço dos serviços secretos militares, ou GRU. Após frequentar duas escolas de línguas, cumprira duas missões na Europa Ocidental. Ao abandonar o serviço militar, reconheceu que podia aproveitar a sua fluência em inglês e francês e a facilidade para frequentar sociedades que a maior parte dos russos considerava hostis e estranhas, além da ausência de inibições em matar outros seres humanos, para os converter numa atividade lucrativa.

            - Disseram-me que queria falar comigo - proferiu à guisa de intróito.

            Sabia quem era o interlocutor e que, no interior da Rússia, o Chefe da Segurança da União das Forças Patrióticas não necessitaria dele. No seio dos Guardas Negros, para não mencionar os aliados do Partido entre os mafiosos do Dolgoruki, havia pistoleiros em número suficiente dispostos a atuar à primeira solicitação. Mas o trabalho no estrangeiro era especial.

            Grishin mostrou-lhe uma fotografia que o Mecânico observou superficialmente e devolveu. No verso, achavam-se datilografados um nome e o endereço de uma casa senhorial no campo.

            - Um príncipe - murmurou. - Estou subindo no mundo.

            - Guarde os comentários jocosos para si - retorquiu  o coronel. - É um alvo  fácil. Não o rodeia segurança pessoal merecedora desse nome. Até 25 de Dezembro.

            O Mecânico refletiu. Muito rápido. Precisava se preparar. Continuava livre e em liberdade, porque tomava sempre precauções meticulosas, as quais exigiam tempo.

            - Dia do Ano Novo - contrapôs.

            - Está bem. Você tem um preço.

            Mencionou-o e Grishin assentiu.

            Pequenas colunas de condensação desprendiam-se da boca e narinas dos dois homens. O Mecânico recordava-se de ter visto na televisão a transmissão de um comício de revivalistas religiosos, em que um jovem padre carismático propugnava o regresso a Deus e ao czar. Era, pois, esse o jogo de Grishin. Quando chegou a essa conclusão, arrependeu-se de não ter duplicado o preço.

            - Nada mais? - terminou por perguntar.

            - A menos que precise conhecer outros detalhes.

            O assassino guardou a fotografia no interior do sobretudo.

            - Acho que já tenho todo o indispensável. É agradável negociar com você coronel.

            Este voltou-se e segurou o braço do outro com firmeza. O Mecânico baixou os olhos para a mão enluvada, até que o largou. Não gostava que lhe tocassem.

            - Não pode haver o menor erro no alvo ou na data.

            - Não costumo cometer erros, coronel. Do contrário, não teria me escolhido. Eu enviarei pelo correio o número da minha conta bancária no Liechtenstein. Passe muito bem.

            A altas horas da noite, depois do encontro no rinque de patinação do Parque Gorky, foram desencadeadas seis batidas simultâneas pelo general Petrovsky.

            Os dois informantes tinham sido convidados para um jantar discreto no clube dos oficiais no quartel da SOBR e abastecidos de vodka suficiente para os tornar gloriosamente ébrios. Haviam-lhes preparado aposentos para cozerem os efeitos do álcool, e como medida de segurança adicional, fora colocado um guarda em cada porta.

            Um exército tático, preparado durante o dia, convertera-se numa operação real pouco antes da meia-noite. Entretanto, as tropas, transportadas em caminhões, tinham sido distribuídas por uma série de garagens fechadas. Às duas da madrugada, os condutores e os comandantes de pelotão haviam tomado conhecimento das suas missões e endereços necessários. Pela primeira vez em vários meses, a surpresa podia considerar-se total.

            Os três armazéns tinham-se revelado pouco problemáticos. Quatro guardas que protegiam a área dos tesouros haviam tentado resistir e sido abatidos. Outros oito renderam-se no momento oportuno. Os armazéns continham dez mil caixas de vodka importado, sem o pagamento dos respectivos direitos alfandegários, procedentes da Finlândia e Polônia nos dois últimos meses.

            Além disso, havia máquinas de lavar louça e roupa, televisores, vídeos e computadores, tudo proveniente do Ocidente e entrado no país ilegalmente.

            Os dois arsenais continham armamento suficiente para abastecer um regimento de infantaria e dos tipos mais variados, em que não faltavam os lança-chamas e mísseis antitanques.

            O próprio Petrovsky dirigira a batida ao casino, ainda cheio de jogadores, que fugiram apavorados. O gerente protestava que se tratava de um negócio perfeitamente legítimo, permitido pelas autoridades camarárias, até que a mesa do seu gabinete foi retirada, o tapete levantado e o alçapão de acesso à garagem exposto.

            No meio da manhã, as tropas da SOBR ainda não tinham terminado de remover caixotes sucessivos com registros comprometedores, os quais eram levados para a sede da GUVD, no número 6 da Rua Shabolovka, para serem  analisados. Antes do meio-dia, dois generais do Presídio da MVD, Ministério do Interior, a quinhentos metros de distância da Praça Zhitny, tinham telefonado para felicitar Petrovsky pelo êxito da operação.

            Os noticiários da rádio a meio da manhã transmitiram os primeiros boletins sobre os acontecimentos, e os da TV, poucas horas mais tarde, concederam-lhes igualmente larga cobertura. Segundo eles, as baixas entre os gangsters elevavam-se a dezesseis, enquanto do lado da Força de Reação Rápida se limitavam a um ferido grave com uma bala no estômago e outro menos preocupante, atingido de raspão. Vinte e sete mafiosos achavam-se atrás das grades, sete dos quais em camas de hospital, e dois prestavam longas e detalhadas declarações.

            Esta última parte não correspondia inteiramente à verdade, mas fora comunicada à mídia por Petrovsky para acentuar o pânico entre os chefes do clã do Dolgoruki.

            Estes últimos haviam mergulhado num verdadeiro charco de trauma e estavam reunidos numa mansão extremamente bem guardada nos arrabaldes da cidade. A única emoção que superava o pânico era a cólera, e achavam-se convencidos que se dera uma grave inconfidência merecedora da mais implacável punição. Em dado momento, alguém lhes transmitiu a informação fidedigna que a fuga proviera de um oficial superior dos Guardas Negros que falava pelos cotovelos. E, considerando os milhões de dólares que o Dolgoruki investira na campanha eleitoral de Igor Komarov, a revelação não os divertiu.

            Nunca se descobriram que os rumores que circulavam nas ruas tinham na realidade sido propagados pelos chechenos, incitados por Jason Monk. No entanto, os chefes do clã resolveram que, antes da concessão de mais qualquer soma monetária à UFP, haveria necessidade de exigir explicações.

            Pouco depois das três da tarde, Umar Gunayev, com forte proteção pessoal, procurou Monk, o qual vivia então com uma família chechena num pequeno apartamento a norte do Centro da Exposição no Parque Sokolniki.

            - Não sei como conseguiu, meu amigo, mas explodiu uma bomba potentíssima, esta noite.

            - É uma questão de interesse pessoal - replicou o americano. - Petrovsky  estava empenhado em agradar aos seus superiores até o gabinete do presidente interino durante a semana da visita da equipe do Bamco Mundial. Foi apenas isso.

            - Bem, de qualquer modo o Dolgoruki não está em condições de iniciar uma guerra contra mim. Levará semanas tentando reparar os estragos.

            - E descobrir o autor da inconfidência no seio dos Guardas Negros.

            Gunayev pousou um exemplar do Segodnya diante do interlocutor.

            - Leia a página três.

            Tratava-se de um artigo de uma das maiores empresas organizadoras de sondagens, com a indicação que a posição dos apoiantes da UFP descera para cinquenta e cinco por cento, com tendência para se reduzir ainda mais.

            - Esses números referem-se apenas às cidades - observou Monk. - Aí, Komarov é mais forte. A chave de tudo reside nos campos.

            - Pensa na verdade que ele pode ser derrotado nas sondagens? Há seis semanas, nem em sonhos isso seria admissível.

            - Bem, não sei...

            Não era o momento apropriado para explicar ao checheno que a derrota nas sondagens não constituía o alvo que Sir Nigel Irvine tinha em mente. Recordou-se do velho mestre-espião, ainda considerado no mundo do Grande Jogo o praticante supremo do logro através da desinformação, sentado atrás da mesa da biblioteca no Castelo Forbes, com a Bíblia da família aberta na sua frente.

            - A chave é Gedeão, meu rapaz. Pense como ele.

            - Você está a quilômetros de distância - insistiu Gunayev. Monk estremeceu e emergiu das cogitações.

            - Talvez tenha razão. Esta noite, tenho de voltar a visitar o patriarca. Pela última vez. Vou precisar da sua ajuda, Umar.

            - Para entrar?

            - Creio que será para sair. Existem fortes possibilidades de Grishin ter o local vigiado, como disse.

            - Então, é melhor começarmos a planejar a operação.

 

            O coronel Anatoli Grishin encontrava-se no seu apartamento, prestes a ir para a cama, quando o telefone portátil tocou, e reconheceu a voz sem necessidade de identificação.

            - Ele voltou.

            - Quem?

            - O americano. Encontra-se com Sua Eminência neste momento.

            - Não suspeita de nada?

            - Creio que não. Veio só.

            - Disfarçado de padre?

            - Não. Todo de preto, mas trajado civilmente. O patriarca parecia esperá-lo.

            - De onde está falando?

            - Da cozinha, fazendo café. Não posso demorar mais.

            A ligação foi cortada, enquanto o coronel tentava dominar a excitação. O odioso agente americano achava-se praticamente nas suas mãos. Desta vez, não haveria nenhum Berlim Oriental. Telefonou ao chefe do grupo de ação imediata dos Guardas negros e informou:

            - Preciso de dez homens, três viaturas e Uziss, imediatamente. Veja o  trânsito uma rua chamada Chisti Persulok. Estarei lá dentro de trinta minutos.

            Eram naquele momento 0.30.

            À uma e dez, Monk levantou-se e despediu-se do patriarca.

            - Não creio que voltemos a nos encontrar, Eminência. Sei que fará o melhor ao seu alcance por este país e pelo povo que tanto estima.

            Alexei II pôs-se igualmente de pé e acompanhou-o à porta.

            - Tentarei, com a ajuda de Deus. Adeus, meu filho. Que os anjos o protejam.

            “Agora”, refletia o americano, enquanto descia a escada, “alguns guerreiros do norte do Cáucaso chegavam perfeitamente”.

            O padre atarracado aguardava-o para lhe entregar o sobretudo.

            - Acho que não levarei o agasalho, reverendo - disse Monk.

            Do que necessitava menos era de algo que lhe embaraçasse os movimentos. Puxou o celular e marcou um número. Atenderam ao primeiro toque.

            - Monakh - proferiu a meia-voz.

            - Quinze segundos - replicaram do outro lado.

            Ele reconheceu Magomed, o mais graduado dos protetores que Gunayev lhe atribuíra. Entreabriu a porta da rua alguns centímetros e espreitou. Um pouco adiante na artéria estreita, havia um Mercedes estacionado perto de um poste de iluminação. Continha quatro homens  um ao volante e três munidos de pistolas-metralhadoras Uzi. A tênue coluna de vapor que se desprendia da retaguarda indicava que o motor estava funcionando.

            No sentido contrário, a Chisti Pereulok desembocava num pequeno largo. Numa área mergulhada na sombra, havia dois outros carros. A pé ou em quatro rodas, quem pretendesse abandonar a rua teria de enfrentar a emboscada.

            Do lado em que se encontrava o Mercedes, aproximava-se um táxi. Os ocupantes do primeiro aguardaram que se achasse mais perto. Tudo indicava que vinha buscar o alvo a abater. Pouca sorte a do motorista, pois teria igualmente de morrer. No momento em que o táxi se situou diante do Mercedes, soaram dois ruídos metálicos, quando os objetos com o formato de pequenos ananases contactaram com o solo gelado e rolaram para debaixo do outro carro. O táxi acelerou repentinamente, e afastara-se poucas dezenas de metros quando as granadas explodiram.

            Simultaneamente, surgiu um caminhão de mudanças no largo e obstruiu a saída. O motorista saltou da cabina e começou a correr ao longo da rua.

           Monk inclinou a cabeça uma vez para o trêmulo sacerdote, abriu a porta e precipitou-se para o táxi, saltando para dentro.

            Entretanto, um dos ocupantes do Mercedes descera, aturdido com o impacto da explosão, e tentou apontar a arma, mas o paralamas do táxi atingiu-o de través e o fez tombar pesadamente. Naquele momento, o depósito do outro veículo explodiu e pôs termo a qualquer eventual tentativa de retaliação.

            Magomed voltou-se do banco da frente do táxi e Monk vislumbrou o brilho dos dentes abaixo do bigode preto.

            - Você torna a vida interessante, ameriksnets.

            No pequeno largo da extremidade da rua, o coronel Grishin contemplava o caminhão que bloqueava o acesso. Atrás dele, havia dois dos seus homens mortos, Vitimados por duas pequenas cargas lançadas para debaixo da carroçaria e ativadas do interior do táxi. Entretanto, o Mercedes continuava a rodar no lado oposto.

            Puxou o celular e marcou sete dígitos. Após dois toques, um murmúrio dominado pelo pânico articulou:

            - Da?

            - Ele fugiu. Tem o que pretendo?

            - Da.

            - No lugar habitual. Às dez da manhã.

            A pequena igreja de Todos-os-Santos estava quase deserta, àquela hora.

            O padre Maxim encontrava-se de pé junto da parede do lado esquerdo e segurava uma vela acesa gotejante, comprada à entrada, quando Grishin se materializou à sua direita.

            - O americano conseguiu fugir - proferiu este último, em tom acusador.

            - Lamento. Fiz o possível ao meu alcance...

            - Como adivinhou?

            - Parecia suspeitar que a residência era vigiada. - Como sempre, o padre transpirava copiosamente. - Puxou um celular e entrou em contato com alguém.

            - Comece pelo princípio.

            - Chegou por volta da meia-noite e dez, quando me preparava para ir para a cama. Sua Eminência ainda estava de pé, trabalhando no seu escritório. É o costume, a essa hora. A campainha da rua tocou, mas não ouvi, porque já me encontrava no quarto. Atendeu o guarda cossaco e dei-me então conta de vozes. Apressei-me em aparecer no corredor e vi o americano. Naquele momento, Sua Eminência indicou do primeiro andar que podia subir. A seguir,  reparou em  mim e pediu-me que lhes levasse café. Foi então que lhe telefonei, da cozinha, coronel.

            - Quanto tempo depois entrou no gabinete?

            - Pouco. Cinco minutos, no máximo. Tratei de terminar rapidamente, para perder o menor tempo possível do que se passava.

            - E o gravador que lhe forneci?

            - Liguei-o antes de entrar com o café. Pararam de falar, quando bati à porta. Ao pousar a bandeja, fiz cair no chão, propositadamente, alguns cubos de açúcar, e agachei-me para os recolher. Aproveitei  a oportunidade para introduzir o gravador debaixo da mesa. Depois, retirei-me.

            - E no final?

            - Ele desceu sozinho e eu aguardava-o com o sobretudo, mas não o quis. O cossaco encontrava-se no pequeno cubículo junto da porta. O americano, que parecia nervoso, puxou um celular e marcou um número. Quando atenderam, limitou-se a dizer “Monakh”.

            - Nada mais?

            - Não, só “Monakh”. Depois escutou. Não ouvi a resposta, porque ele conservava o aparelho colado à orelha. A seguir, aguardou. Entreabriu a porta da rua e espreitou, enquanto eu continuava com o sobretudo na mão.

            Grishin entregou-se a reflexões. O inglês podia ter comunicado a Monk que fora seguido na limusine do hotel, e isso bastaria para o advertir que a residência do patriarca podia encontrar-se sob vigilância.

            - Continue, reverendo.

            - Ouvi o ruído do motor de um carro e depois duas explosões. Ato contínuo, o americano abriu a porta e começou a correr. De repente, soaram tiros e afastei-me para dentro.

            Inclinou a cabeça em sinal de compreensão. O americano era esperto, mas isso já ele sabia. Chegara à conclusão certa por intermédio dos motivos errados. A residência do patriarca estava de fato sob vigilância, mas do interior, graças ao padre atarracado.

            - E quanto ao gravador?

            - Quando se registraram as explosões, o cossaco surgiu de arma em punho. Entretanto, o americano tinha saído precipitadamente e deixado a porta aberta. Ele assomou à rua, gritou “Gangsters!” e fechou-a. Eu corri para cima, no momento em que Sua Eminência saía da biblioteca e se debruçava sobre o corrimão da escada, para perguntar o que se passava. Aproveitei para recolher a bandeja e o gravador.

            Sem uma palavra, o coronel estendeu a mão. O padre Maxim introduziu a sua no bolso lateral da sotaina e exibiu um pequeno gravador.

            - Espero ter procedido da maneira apropriada - aventurou, em voz trêmula.

            - Não podia ter sido melhor - assegurou-lhe Grishin, ao mesmo tempo que pensava que não desprezaria a tarefa de estrangulá-lo. No entanto, era possível que, um dia, a ocasião se apresentasse. A sua colaboração reveste-se de um valor excepcional.

            No carro que o conduzia ao seu gabinete, olhava o gravador com uma expressão meditativa. Em poucas horas, perdera seis homens excelentes e o rastro da presa. Não obstante, dispunha da gravação do que o americano dissera ao patriarca e vice-versa, e acalentava a firme esperança de, um dia, ambos expiarem os seus crimes. No momento, pelo que lhe dizia respeito, o dia decerto terminaria muito melhor do que começara.

 

            O coronel Anatoli Grishin conservou-se encerrado no gabinete durante o resto da manhã, o período do almoço e grande parte da tarde escutando a gravação da reunião do patriarca Alexei II com Jason Monk.

            Aqui e ali, havia passagens quase inaudíveis, o som de colheres movendo o café, mas, de um modo geral, predominava a clareza.

            A gravação principiava com o som do abrir de uma porta o padre Maxim entrando com o café. Os ruídos que se seguiam referiam-se sem dúvida ao momento em que os cubos de açúcar tinham caído no chão e ele se agachava para os recolher.

            A qualidade do som melhorou a partir do instante em que o informante transferiu o gravador do bolso da sotaina para debaixo da mesa. Registrou-se silêncio quase absoluto, até que se ouviu fechar uma porta, a indicar que Maxim acabava de se retirar. Soou então a voz do patriarca:

            - E agora, agradeceria que me revelasse o que tem para dizer.

            Monk começou a falar e Grishin pegou a esferográfica para tomar apontamentos.

            Escutou a conversa de quarenta e cinco minutos três vezes, antes de começar a proceder à transcrição verbatim. Não era tarefa que pudesse ser efetuada por um estenógrafo, por muito qualificado que fosse, devido à delicadeza do assunto.

            Cobriu páginas sucessivas com a sua caligrafia cirílica. Por vezes, parava o gravador para voltar atrás, para obter confirmação de determinadas passagens, e recomeçava a escrever.

            Houve o som de uma cadeira sendo impelida para trás, e a voz de Monk disse:

            - Não creio que nos voltemos a nos encontrar, Eminência. Sei que fará o melhor ao seu alcance por este país e pelo povo que tanto estima.

            Moveram-se dois conjuntos de passos no tapete e surgiu a resposta, um pouco menos nítida:

            - Tentarei, com a ajuda de Deus...

            Segundos depois, a fita magnetofônica, chegava ao fim.

            O coronel reclinou-se na cadeira rotativa e ponderou o que acabava de escutar. As palavras eram tão graves como se podia admitir concebivelmente. Tornava-se difícil compreender como um único homem podia provocar tantos estragos. A explicação residia, naturalmente, no incrível ato de estupidez do falecido N.l. Akopov ao deixar o manifesto acessível a qualquer pessoa. Os efeitos resultantes dessa imprudência isolada eram incalculáveis.

            Fora quase somente Monk que falara. As intervenções iniciais de Alexei lI destinavam-se a indicar que compreendia e aprovava. Na verdade, o americano não estivera inativo. Revelara que, imediatamente após o Ano Novo, uma campanha concertada começaria a corroer as chances eleitorais de Igor Komarov em todo o país, graças a um processo de descrédito e publicidade maciça.

            Segundo parecia, o general Nikolai Nikolayev procederia a uma série de entrevistas na imprensa, rádio e televisão, em que denunciaria a UFP, incitando todos os militares, atuais e do passado, a repudiar o Partido e dirigir o voto em outro sentido. Havia vinte milhões de veteranos entre os cento e dez milhões de eleitores. Os estragos produzidos por Nikolayev seriam incalculáveis.

            O impedimento do acesso de Igor Komarov a todo o tipo de publicidade era obra dos banqueiros, na sua maioria judeus, tendo à testa o presidente do Moskovsky Federal, Leónidas Bernstein.

            A terceira contribuição de Monk para a derrocada iminente dizia respeito aos mafiosos do Dolgoruki. Embora Grishin sempre os tivesse considerado uma escória da pior espécie, com lugar garantido num campo de concentração num futuro não muito distante, no momento o seu apoio financeiro revestia-se de uma importância crucial.

            Nenhum político da Rússia podia esperar aspirar à presidência do país sem uma campanha em escala nacional que custava muitos milhares de milhões de trilhões de rublos. O acordo secreto com a organização da Mafia mais poderosa e rica a oeste dos Montes Urais proporcionara a arca do tesouro, o que excedia vastamente tudo o que se achava ao alcance dos outros candidatos.

            As seis batidas do dia anterior, desencadeadas a meio da noite, tinham sido desastrosas para o Dolgoruki, mas nenhuma tanto como a descoberta dos registros das finanças. Existiam poucas fontes das quais a GUVD podia ter obtido semelhantes detalhes. Um bando de mafiosos rival constituía a origem óbvia, porém no mundo hermético dos gangsters, ninguém, apesar da encarniçada rivalidade, informaria a odiada GUVD. Apesar disso, Monk revelara ao patriarca a proveniência da fuga um oficial superior dos Guardas Negros!

            Se o Dolgoruki conseguisse obter provas, a aliança terminaria definitivamente.

            Como se isso não bastasse, a gravação referia que uma equipe de contadores especializados já iniciara a inspeção dos documentos encontrados no subterrâneo do casino, e havia a convicção de que, até ao Ano Novo, conseguiria reunir provas da ligação financeira entre os mafiosos e a UFP. E o resultado da auditoria seguiria diretamente para as mãos do presidente interino. Durante o mesmo período, o general Petrovsky, da GUVD, continuaria a pressionar o Dolgoruki com batidas sucessivas.

            Grishin calculava que, se o fizesse, a organização de mafiosos deixaria de aceitar as palavras de Igor Komarov que o informante da GUVD não se ocultava nas fileiras dos Guardas Negros.

            A intervenção do patriarca, perto do final da gravação, era porventura a potencialmente mais destrutiva de entre todo o material registrado.

            O presidente interino, Ivan Markov, passaria as celebrações do Ano Novo com a família, fora de Moscou, e regressaria a 3 de Janeiro. Nesse dia, receberia o patriarca, que tencionava proceder a uma mediação, para urgir o atual chefe da nação a invalidar a candidatura dê Igor Komarov por “incapacidade para governar”, com base nas provas existentes.

            Com os elementos que comprovavam a participação de gangsters na campanha fornecidos por Petrovsky e a intervenção direta do patriarca de Moscou e de Todas as Rússias, Markov não poderia fazer outra coisa. Mesmo abstraindo de tudo o resto, também era candidato às eleições e não queria enfrentar Komarov nas urnas.

            Quatro traidores... Quatro traidores à Nova Rússia destinada a iniciar a existência a partir de 16 de Janeiro, com ele próprio à frente de um corpo de elite dos Guardas Negros dispostos a executarem as ordens do líder. Pois bem, Grishin, que passara a vida capturando e punindo traidores, sabia perfeitamente como devia lidar com eles.

            Bateu à máquina a transcrição da gravação e solicitou a Komarov duas horas ininterruptas do seu tempo para aquela tarde.

 

            Jason Monk mudara-se do apartamento junto do parque Sokoiniki e instalara-se em outro, de cujas janelas avistava o topo da mesquita onde se encontrara com Magomed pela primeira vez, o homem que jurara protegê-lo, mas, naquele dia, tinha vontade de matá-lo.

            Necessitava enviar uma mensagem a Sir Nigel Irvine, em Lenders, a antepenúltima, se tudo corresse em conformidade com o plano do ancião.

            Bateu-a cuidadosamente no teclado do seu computador portátil, como fizera nas anteriores ocasiões. Quando terminou, apertou a tecla “codificar” e o texto desapareceu do tela, devidamente armazenado na memória da disquete especial, de onde seguiria para a InTelCor, durante a passagem do satélite.

            A máquina não carecia de assistência. As pilhas estavam carregadas e tudo se achava a postos para a transmissão. Nunca ouvira falar de Ricky Taylor, de Columbus, Ohio, e provavelmente jamais o veria. Não obstante, o sardento adolescente salvou-lhe provavelmente a vida.

            Ricky tinha dezessete anos e a mania dos computadores. Era um desses jovens disfuncionais produzidos pela era computadorizada, que passava a maior parte da vida com o olhar fixo num tela fluorescente.

            Fora-lhe oferecido o seu primeiro PC aos sete anos e progredira através das várias fases do aperfeiçoamento, até que os desafios legítimos se esgotaram e somente os testes ilegais suscitavam a excitação do “drogado”.

            O ritmo suave da sucessão das estações do ano lá fará ou a camaradagem com rapazes da sua idade ou mesmo a companhia das moças careciam de todo e qualquer atrativo para ele.

            Em 1999, a InTelCor não só era uma interveniente importante nas comunicações globais de utilidade estratégica, diplomática e comercial, mas também uma entidade proeminente como designer e produtora dos mais complexos jogos de computador.

            Ricky entretivera-se com a Internet até que começara a aborrecer-se e se familiarizara com todas as sequências de jogos disponíveis gratuitamente. Ansiava por imergir nos programas Ultra da InTelCor. O problema consistia em que isso custava dinheiro e as suas economias não chegavam para tanto. Por conseguinte, tentou durante semanas entrar no sistema central da InTelCor utilizando um vírus de compuatdor. E, após esforços denodados, pareceu-lhe que estava prestes a lograr o seu objetivo.

            Oito fusos horários a oeste de Moscou, segundo a indicação no tela, alguém pedia: “Código de acesso, por favor”. Bateu as teclas que supunha apropriadas, mas surgiu a resposta firme: “Acesso negado”.

            Em algum lugar a sul das montanhas da Anatólia, o ComSat da InTelCor cruzava o espaço em direção ao norte de Moscou.

            Quando os técnicos da multinacional haviam concebido o emissor/receptor codificado de Monk, tinham incluído, em obediência às instruções, um código de limpeza total de quatro dígitos, destinado a protegê-lo na eventualidade de ser capturado, desde que o introduzisse antes da sua neutralização.

            Mas se a máquina fosse apreendida intacta, segundo o raciocínio do chefe dos codificadores, um antigo criptógrafo da CIA de Warrenton, chamado da aposentadoria para o efeito, os maus elementos poderiam utilizá-la para enviar mensagens falsas.

            Assim, para provar a sua autenticidade, Monk tinha de incluir algumas palavras inofensivas, em conformidade com uma sequência previamente estabelecida. Se houvesse uma transmissão sem elas, o ex-agente da CIA saberia que o seu autor era um estranho. Nessa eventualidade, poderia recorrer ao sistema central. CompuServe para atuar no PC de Monk via satélite e empregar os mesmos quatro dígitos para apagar a sua memória, deixando os “bandidos” com uma caixa metálica inútil nas mãos.

            Ricky Taylor já se introduzira no sistema central, quando marcou os quatro dígitos. O satélite sobrevôou Moscou e enviou a mensagem “Está aí, querido?” O PC respondeu “Estou, sim”, e o satélite, obediente às instruções, apagou-o.

            O americano descobriu a verdade pela primeira vez, quando inspecionou a máquina e encontrou a sua mensagem, em linguagem clara, de novo no tela. O que significava que fora rejeitada. Negou-a manualmente, ciente de que, por razões fora da sua compreensão, algo correra mal e perdera o contato.

            Havia um endereço que Sir Nigel lhe confiara, pouco antes de partir de Londres. Não sabia onde se situava, nem quem vivia lá, mas era a única coisa que dispunha.

            Com economia, podia comprimir as suas duas últimas mensagens numa única, algo que o mestre-espião teria de saber. O método funcionaria  talvez  se deixasse uma de fora. Receber mais estava absolutamente posto de parte. Encontrava-se, pela primeira vez, entregue aos seus próprios meios.

            Haviam-se acabado os relatórios dos progressos conseguidos, as confirmações da ação empreendida ou a transmissão de instruções. Com a tecnologia de um bilhão de dólares neutralizada, teria de confiar no aliado mais antigo no Grande Jogo a combinação do instinto, arrojo e sorte. E ele rezava intimamente para que não o desamparasse.

 

            Igor Komarov chegou ao fim da última página da transcrição e reclinou-se no espaldar da cadeira. As faces não costumavam apresentar cor especial, porém Grishin notou que agora pareciam folhas de papel.

            - Isto é mau  acabou o primeiro por admitir.

            - Muito, mesmo - concordou o coronel.

            - Você já o devia ter capturado.

            - Goza da proteção dos mafiosos chechenos. Descobrimos agora. Vivem como ratos, no seu mundo subterrâneo particular.

            - Os ratos podem ser exterminados.

            - Com certeza, senhor  presidente, e estes também serão. Quando se tornar chefe indiscutível do país.

            - Têm de expiar o que fizeram.

            - Sem dúvida. Até ao último homem.

            Komarov continuava a fitar Grishin, porém os olhos pareciam desfocados, como se contemplassem outra época e um lugar diferente no futuro, um cenário para ajuste de contas com os seus inimigos. Os dois pontos vermelhos pareciam mais intensos nos malares.

            - Retaliação. Quero retaliação. Atacaram-me e, em mim, a Rússia, a pátria. Não pode haver a mínima clemência para essa escória!

            A voz elevava-se gradualmente e as mãos começavam a tremer de cólera. O coronel sabia que, se apresentasse os seus argumentos com habilidade suficiente, venceria. Debruçou-se sobre a mesa, obrigou o interlocutor a olhá-lo diretamente, e quando viu a fúria demoníaca atenuar-se, compreendeu que conseguira monopolizar-lhe a atenção.

            - Escute-me, por favor,  senhor presidente. O que agora sabemos permite-nos inverter inteiramente os papéis. Obterá a sua vingança. Basta ordenar-me que atue.

            - Que quer dizer com isso?

            - A chave-mestra da contra-espionagem é o conhecimento das intenções do inimigo. Ora, nós as conhecemos. Daí, advém a prevenção. E já se está aplicando. Dentro de poucos dias, não haverá qualquer candidato legítimo ao Trono de Todas as Rússias. Obtivemos agora uma segunda revelação das suas intenções. Devo propor mais uma vez prevenção e retaliação juntas.

            - Para os quatro homens?

            - Não pode haver qualquer alternativa.

            - Nada deve ser investigado até à sua origem. Ainda é cedo para isso.

            - E não será. O banqueiro? Quantos foram assassinados, nos últimos dez  anos? Cinquenta, pelo menos.  Por homens armados e mascarados, em ajuste de contas. Acontece constantemente. O oficial da Polícia? O bando do Dolgoruki aceitará o contrato com satisfação. Quantos agentes da autoridade tombaram na  luta contra o crime? Também acontece com frequência. Quanto ao general, foi um assalto que saiu errado. Nada de mais comum. Finalmente, no caso do patriarca,   um empregado doméstico surpreendido durante a noite a devassar-lhe o  escritório empregou meios extremos.

            - Alguém engolirá isso?

            - Tenho uma fonte no interior da residência que o confirmará.

            Komarov baixou os olhos para as folhas que acabava de ler e a gravação ao lado e exibiu um leve sorriso.

            - Sim, vê-se pelo resultado. Não quero saber mais sobre o assunto. Na verdade, insisto em não saber mais nada.

            - Mas deseja que os quatro homens empenhados na sua destruição parem de funcionar?

            - Com certeza.

            - Obrigado, senhor presidente. Era só isso que me interessava saber.

 

            O quarto do Hotel Spartak fora reservado no nome de Kuzichkin e, com efeito, apresentara-se para ocupá-lo alguém que correspondia a essa identidade. Em seguida, voltou a sair e entregou a chave a Jason Monk. Os guardas chechenos espalharam-se pelo átrio, escada e acesso aos elevadores, enquanto ele subia. Era uma maneira segura de poder utilizar durante vinte minutos um telefone, cuja localização, se alguém se desse ao trabalho de averiguar, revelaria apenas um quarto num hotel que não pertencia a chechenos, longe do centro da cidade.

            - General Petrovsky?

            - Você, outra vez?

            - Parece que provocou grande agitação.

            - Não sei onde obtém suas informações, americano, mas são merecedoras de confiança.

            - Obrigado. Mas Komarov e Grishin não vão ficar mudos e quietos.

            - E o Dolgoruki?

            - Representa um papel secundário na operação. O foco do perigo reside em Grishin e os seus Guardas Negros.

            - Foi você que pôs a circular o rumor que a fonte de tudo era um oficial superior dessas forças?

            - Amigos meus.

            - Um movimento esperto. Mas perigoso.

            - O ponto fraco de Grishin consiste nos documentos apreendidos. Creio que provam que a Mafia financia a campanha de Komarov desde o princípio.

            - Estão sendo investigados.

            - Cuidado, general.

            - Que quer dizer com isso?

            - A  sua esposa e Tatiana continuam  na cidade?

            - Com certeza.

            - No seu lugar, eu as levaria para outro lugar. Já, esta noite. Em algum lugar longe daqui e que ofereça segurança.

            Seguiu-se um breve silêncio.

            - Sabe de alguma coisa, americano?

            - Leve-as daqui, por favor, general. Enquanto pode fazê-lo.

            Monk pousou o auscultador, aguardou um momento e discou outro número. A campainha do telefone em cima da secretária de Leónidas Bernstein, no Banco Federal Moskovsky, tocou quatro vezes, mas foi uma secretária eletrêonica que atendeu, devido ao adiantado da hora. Como não sabia o número de casa do banqueiro, o americano teve de se limitar a acalentar a esperança que tivesse acesso às mensagens nas próximas horas.

            - Sou o homem que lhe recordou Babi Yar. Não vá ao escritório, por muito urgentes que sejam os assuntos a tratar. Estou convencido que Komarov e Grishin já sabem quem contribuiu para a suspensão da campanha publicitária. Mantenha a família fora do país e reúna-se a eles até que o perigo passe definitivamente.

            Tornou a pousar o auscultador. Embora ele não soubesse, acendeu-se uma luz num painel, numa casa fortemente guardada a vários quilômetros dali, e Leónidas Bernstein escutou a mensagem em silêncio.

            O terceiro telefonema destinou-se à residência do patriarca.

            - Alô...

            - Eminência?

            - Sim.

            - Reconhece a minha voz?

            - Perfeitamente.

            - Deve transferir-se para o mosteiro em Zagors e conservar-se lá nos tempos mais próximos.

            - Porquê?

            - Temo pela sua segurança. Ontem à noite, ficou provado que a situação está tornando-se perigosa.

            - Tenho de celebrar missa no Danilovsky, amanhã.

            - O prelado metropolitano pode substituí-lo.

            - Ponderarei a advertência.

            A ligação foi cortada. Uma voz áspera atendeu o quarto telefonema ao décimo toque.

            - Sim?

            - General Nikolayev?

            - Quem?... Espere, estou reconhecendo-o. É o raio do ianque que...

            - Esse mesmo.

            - Acabaram-se as entrevistas. Você fez o que queria e eu disse o que me pareceu conveniente. Ponto final. Entendido?

            - Entremos diretamente no assunto premente. Deve sair daí e ir viver com o seu sobrinho na base.

            - Porquê?

            - Há pessoas que não gostaram das suas palavras e talvez se lembrem de lhe fazer uma visita de cortesia.

            - Bandidos, hem? Nunca fugi do perigo, meu rapaz, e já não tenho idade para mudar de temperamento.

            Soou um estalido seco e a ligação foi cortada. Monk suspirou e pousou o auscultador. Consultou o relógio e viu que tinham passado vinte e cinco minutos. Era hora de se retirar e regressar ao submundo dos chechenos.

            Havia quatro grupos de assassinos, que atuaram duas noites mais tarde, a 21 de Dezembro.

            O mais numeroso e bem armado ocupou-se da residência privada de Leónidas Bernstein. Havia uma dúzia de guardas e quatro morreram durante a troca de tiros. Dois membros dos Guardas Negros também perderam a vida. A porta principal foi derrubada com uma carga coletiva e os invasores, devidamente mascarados, entraram de rompante.

            Os guardas sobreviventes e o pessoal doméstico foram reunidos na cozinha. Apesar de espancado sem contemplações, o chefe dos primeiros não parava de repetir que o banqueiro partira para Paris, dois dias antes. Finalmente, os homens mascarados recolheram aos seus transportes, levando os dois mortos.

            O segundo assalto foi ao bloco de apartamentos no Kutuzovsky Prospekt. Um único Mercedes aproximou-se da barreira e um dos guardas emergiu da guarita para inspecionar os documentos. No instante imediato, jazia no chão, com duas balas na cabeça disparadas de automáticas providas de silenciador, e o colega teve a mesma sorte antes que percebesse o que acontecia. O agente da segurança que se sentava à mesa da recepção não foi mais feliz.

            A porta do apartamento, apesar de reforçada com chapa de aço, não resistiu à explosão da carga de plástico e os invasores transpuseram-na, embora estranhassem que o corredor estivesse deserto. Minutos depois, tinham de se render à evidência. Os aposentos achavam-se desertos. Na residência do patriarca, a abordagem foi mais sutil. Um único homem bateu à porta da rua, enquanto mais seis se agachavam a seu lado, fora do campo visual do postigo.

            O cossaco espreitou e serviu-se do intercomunicador para perguntar quem era. O interpelado mostrou o bilhete de identificação da Polícia e disse:

            - Polícia.

            O cossaco abriu e foi abatido imediatamente e arrastado para o piso superior. O plano consistia em eliminar o secretário particular do patriarca com a arma do guarda e Alexei II com a mesma que vitimara o cossaco. Em seguida, seria colocada na mão do primeiro, o qual ficaria caído atrás da mesa.

            O padre Maxim seria então obrigado a jurar que o patriarca e o guarda haviam surpreendido o secretário remexendo nas gavetas do gabinete e, na subsequente troca de tiros, tinham morrido os três.

            Ao invés, os intrusos encontraram um sacerdote de abdomen preeminente e roupão cheio de manchas no topo da escada, que vociferou:

            - Que querem?

            - Onde está o patriarca? - inquiriu um dos interpelados.

            - Partiu para o Mosteiro da Trindade-São Sérgio. - Revistaram os aposentos e tiveram de aceitar a frustradora realidade: Alexei II e as duas freiras não se achavam presentes.

            Foram enviados apenas quatro homens ao chalé solitário na auto-estrada de Minsk. Emergiram da longa viatura e, enquanto um se aproximava da porta, os outros três aguardavam na escuridão entre as árvores.

            Quando o velho Volodya acudiu a abrir, foi atingido no peito e os quatro assassinos entraram de rompante. O cão-pastor saltou do tapete da sala, visando o pescoço do intruso da vanguarda, que ergueu o braço no qual os dentes se cravaram profundamente. No entanto, um companheiro meteu uma bala na cabeça do animal.

            Junto do fogo da lareira, um homem de cabelo branco sentava-se numa poltrona e apertou duas vezes o gatilho da Makarov que empunhava. Um projétil alojou-se no batente da porta e o outro derrubou o homem que acabava de matar o cão. Em seguida, três balas em rápida sucessão cravaram-se no peito do velho general.

            Umar Gunayev telefonou pouco depois das dez horas da manhã.

            - Acabo de chegar ao escritório. O diabo está à solta.

            - Em que sentido?

            - Katuzovsky Prospekt foi isolado e há homens da Polícia por todos os lados.

            - Porquê?

            - Atacaram um bloco habitado por oficiais superiores, esta noite.

            - Agiram depressa. Preciso de um telefone seguro.

            - E esse?

            - Podem localizá-lo.

            - Dê-me meia hora. Vou mandar alguns homens buscá-lo.

            Às onze, Monk era instalado num pequeno escritório num armazém cheio de bebidas alcoólicas de contrabando, onde um técnico de telefones estava terminando o seu trabalho.

            - Está ligado a duas ramificações - explicou, apontando para o aparelho. -Se alguém tentar localizar uma chamada nele, irá parar em um café a três quilômetros daqui. Trata-se de um dos nossos estabelecimento. Se conseguirem ir além disso, desembocarão numa cabina pública. Entretanto, estaremos sabendo.

            Monk começou pelo número particular do general Nikolayev, e atendeu uma voz masculina que não reconheceu.

            - Queria falar com  o general.

            - Diga-me o nome, por favor?

            - Eu podia fazer-lhe a mesma pergunta.

            - O general não está disponível. Quem fala daí?

            - O general  Malenkov, do Ministério da Defesa. Que está acontecendo?

            - Lamento, mas o general Nikolayev morreu. Sou o inspetor Novikov, da   Brigada de Homicídios da Polícia de Moscou.

            - Hem? Que está para aí a dizer?

            - O apartamento foi assaltado durante a noite. Por ladrões, ao que parece. Mataram o general e o empregado. Além do cão. A mulher da limpeza encontrou-os pouco depois das oito da manhã.

            - Não sei o que dizer... Éramos amigos.

            - Sinto muito, general. Vivemos em tempos tão ruins...

            - Muito bem, inspetor. Informarei o senhor ministro. - Cortou a ligação,   pesaroso. Tudo indicava que Grishin acabara por perder a cabeça. No fundo, correspondia ao resultado para o qual ele contribuíra, mas amaldiçoava a obstinação do general. Por fim, ligou à sede da GUVD, na Rua Shabolovka.

            - Ligue-me com o general Petrovsky.

            - Está ocupado - informou o telefonista. - Quem fala?

            - Interrompa-o. Diga-lhe que é acerca de Tatiana.

            A voz de Petrovsky surgiu na linha poucos segundos mais tarde.

            - Sim?...

            - É o visitante noturno.

            - Diabos o carreguem! Achava que tinha acontecido alguma coisa à minha filha.

            - Estão ambas fora da cidade, ela e a sua esposa?

            - Sim, a muitos quilômetros de distância.

            - Creio que houve um ataque.

            - Eram dez homens, mascarados e armados até os dentes. Mataram quatro guardas e o meu serviçal.

            - Era o senhor que procuravam.

            - Sem dúvida. Segui o seu conselho. Instalei-me na sede da unidade. Quem raio eram?

            - Não se tratava de gangsters, mas de membros dos Guardas Negros.

            - Capangas de Grishin. Porquê?

            - Por causa dos documentos que lhes confiscaram. Receiam que provem a ligação entre os mafiosos do Dolgoruki e a UFP.

            - Mas não provam nada. São papéis inúteis, na sua maioria recibos do casino.

            - Grishin ignora esse detalhe. Receia o pior. Já sabe o que aconteceu ao tio Kolya?

            - O célebre general dos blindados? Não, o quê?

            - Foi morto por outra brigada dos Guardas Negros. A noite passada.

            - Caramba...

            - Denunciou Komarov. Recorda-se?

            - Com certeza, mas nunca pensei que eles fossem tão longe. Filhos da mãe... Ainda bem que os políticos não estão sob a minha alçada. Ocupo-me dos gangsters.

            - Isso acabou. Conhece alguém de confiança no Colégio da Polícia?

            - Naturalmente. Vários colegas.

            - Por que não os informa? Diga que se inteirou através de um contato no submundo do crime.

            Monk pousou o auscultador e ligou ao Banco Federal Moskovski.

            - llya, secretário pessoal de Mr. Bernstein, está?

            - Um momento, por favor.

            A voz de llya surgiu na linha pouco depois.

            - Quem fala?

            - Digamos que esteve prestes a meter-me uma bala nas costas, o outro dia  - disse Monk, em inglês.

            O outro soltou uma gargalhada.

            - De fato, faltou pouco.

            - Mr. Bernstein está em segurança?

            - A muitos quilômetros daqui.

            - Recomende-lhe que se mantenha lá.

            - Não terei de ser muito convincente. Atacaram-lhe a residência em Moscou, a noite passada.

            - Houve baixas?

            - Creio que morreram quatro dos nossos e dois deles. Revistaram tudo.

            - Sabem quem eram?

            - Achamos que sim.

            - Membros dos Guardas Negros de Grishin. E tratava-se claramente de retaliação por causa do encerramento da campanha publicitária de Komarov na televisão.

            - Talvez não fiquem rindo. Mr. Bernstein tem muita influência.

            - A chave de tudo reside nas companhias comerciais de TV. Os seus repórteres devem ter uma conversa com dois generais da Polícia. Pergunte-lhes se tencionam entrevistar o coronel Grishin sobre determinados rumores que circulam por aí, etc., etc...

            - Precisam se munir de provas.

            - Não. É para o que servem os perdigueiros das notícias. Farejam e escavam. Pode entrar em contato com Mr. Bernstein?

            - Se for necessário.

            - Por que não lhe põe a questão? Adeus.

            O telefonema seguinte destinou-se ao jornal de circulação nacional, Izvestia.

            - Redação.

            Monk assumiu uma inflexão dura.

            - Quero falar com o repórter Repin.

            - Da parte de quem?

            - Diga-lhe que o general do exército Nikolai Nikolayev precisa lhe falar com urgência. Ele recorda-se de mim.

            Fora Reipin que conduzira a entrevista no Clube de Oficiais Frunze e não tardou a atender a extensão.

            - Como está, general?

            - Não sou o general Nikolayev. Ele morreu. Foi assassinado, a noite passada.

            - O quê?! Quem fala?

            - Um antigo soldado dos blindados.

            - Como soube?

            - Não interessa. Sabe onde ele vivia?

            - Não.

            - Tinha uma pequena casa perto da auto-estrada de Minsk. A curta distância da aldeia de Kobyaikovo. Por que não pega num fotógrafo e vai até lá? Pergunte pelo inspetor Novikov.

            Monk cortou a ligação. O outro jornal de grande circulação era o Pravda, antigo órgão do Partido Comunista, que apoiava politicamente o renascente Partido da União Socialista Neocomunista. No entanto, para provar as suas novas credenciais não comunistas, a organização tentava conquistar as boas graças da Igreja Ortodoxa. O americano estudara suficientemente o jornal para ter memorizado o nome do principal repórter do crime.

            - Desejo falar com Pamfilov.

            - No momento, não se encontra no seu gabinete.

            Era natural. Decerto acudira ao Kutuzovsky Prospekt, para apurar detalhes sobre o assalto ao apartamento de Petrovsky.

            - Ele tem celular?

            - Sem dúvida, mas não posso lhe dar o número. Quer que lhe telefone?

            - Não. Contacte com ele e diga que uma das suas fontes na Polícia precisa lhe falar com urgência. Volto a ligar dentro de cinco minutos.

            No segundo telefonema, Monk obteve o número que pretendia e marcou-o, quando o jornalista se achava no seu carro, à entrada do bloco de apartamentos ocupados por oficiais da Polícia.

            - Pamfilov?

            - O próprio. Quem fala?

            - Tive de mentir para poder localizá-lo. Não nos conhecemos, mas talvez lhe possa fornecer elementos úteis. Houve mais um assalto, a noite passada. À residência do patriarca, com a intenção de assassiná-lo.

            - Enlouqueceu? Uma tentativa para matar Alexei II? Que absurdo! Por que motivo?

            - Não se trata de nada relacionado com a Mafia. Por que não vai até lá?

            - Ao mosteiro Danilovsky?

            - Não se encontra ali. Procure-o no número cinco da Chisti Pereulok.

            Pamfilov continuou com o aparelho colado ao ouvido, apesar do interlocutor ter desligado. Estava abismado. Nunca acontecera nada daquilo, ao longo da sua carreira. Mesmo que fosse apenas parcialmente verdade, tratava-se do assunto mais palpitante com que jamais se deparara.

            Quando chegou à rua estreita, encontrou o acesso bloqueado. Em circunstâncias normais, bastava mostrar o livre-trânsito da Imprensa para que o deixassem passar. Desta vez, porém, não. Por sorte, avistou um inspetor-detetive da Polícia seu conhecido e fez-lhe sinal.

            - Que foi? - perguntou, quando o homem se aproximou.

            - Ladrões.

            - Mas você é da Brigada de Homicídios.

            - Mataram o guarda-noturno.

            - O patriarca encontra-se bem?

            - Quem  lhe disse que vivia aqui?

            - Um passarinho. Está bem?

            - Está, mas partiu para Zagorsk. Garanto-lhe que foi um assalto comum que saiu errado.

            - Contaram-me que procuravam o patriarca.

            - Mentira. Eram apenas ladrões.

            - Que havia para roubar?

            O detetive assumiu uma expressão apreensiva.

            - Quem lhe deu a informação?

            - Não importa. Corresponde à verdade? Roubaram alguma coisa?

            - Não. Balearam o guarda-noturno, revistaram a casa e fugiram.

            - Então, procuravam alguém. E ele não estava aqui. Que reportagem, amigo!

            - Cuidado com o que vai escrever - preveniu. - Não há provas de nada.

            Apesar destas palavras, começava a ficar seriamente preocupado. E ainda mais, quando um homem da Polícia lhe fez sinal para que se aproximasse do seu carro. Encontrava-se ao telefone um general do Presídio, o qual, em frases secas, começou a exprimir-se do mesmo modo que o repórter.

            A 23 de Dezembro, a mídia conhecia grande agitação. Nas edições matutinas, todos os jornais se concentravam no assunto para o qual Monk os orientara. Por sua vez, os telejornais da manhã abordavam as quatro tentativas de assassinato, uma das quais coroada de êxito. E salientavam que, nos outros três casos, somente o fator sorte salvara as vítimas em vista.

            Não se concedia qualquer crédito à hipótese de assaltos para roubar que se haviam desviado do verdadeiro objetivo. Os analistas empenhavam-se em salientar que não faria sentido o assalto ao domicílio de um general aposentado ou ao apartamento de um oficial da Polícia, ignorando todos os outros do bloco, ou à residência do patriarca.

            Talvez se justificasse no caso do abastado banqueiro Leónidas Bernstein, porém os seus guardas sobreviventes afirmaram que a operação tinha todo o aspecto de um ataque militar. Além disso, os assaltantes procuravam-no especificamente. O rapto constituía uma possibilidade, ou mesmo o homicídio. Em dois casos, a primeira eventualidade não fazia sentido e no do general não fora sequer tentado.

            Dois comentaristas observavam que, embora o crime organizado pudesse ter motivos para odiar Petrovsky, da brigada de caça aos gangsters GUVD, e porventura o banqueiro Bernstein, quem se preocuparia em eliminar um velho general, ainda por cima triplo herói da guerra, ou o patriarca de Moscou e de Todas as Rússias?

            Os autores dos artigos de fundo deploravam pela milésima vez os níveis astronômicos que o crime atingira no país, e dois pediam ao Presidente Interino que promovesse uma campanha-relâmpago para destruir a tenebrosa fauna que conspurcava a nação, robustecendo assim as suas possibilidades de vencer as eleições.

            Monk iniciou o seu segundo dia de telefonemas anônimos perto do fim da manhã. Um pedaço de algodão no interior de cada bochecha disfarçava-lhe a voz suficientemente para que não fosse relacionada com a da véspera. E transmitiu a mesma mensagem aos articulistas de fundo mais importantes, principiando por Pamfilov, do Pravda, e Repin, do Izvestia.

            - Não me conhece e não posso me identificar. Contudo, de um russo para outro, rogo-lhe que confie em mim. Sou um oficial superior dos Guardas Negros, mas também um cristão praticante. Há meses que estou cada vez mais preocupado com o sentimento anticristão e anti-Igreja expresso no seio da UFP, em particular por Komarov e Grishin. Por trás do que proclamam em público, odeiam a Igreja e a democracia, tencionam instaurar um partido único e governar como os nazistas.

            “Confesso que estou farto, e tenho de falar. Foi o coronel Grishin que condenou o velho general à morte, porque o tio Kolya penetrou a fachada e denunciou Komarov. O banqueiro, porque não se deixou iludir e pressionou as estações da TV para suspender os programas de propaganda daquele partido. O patriarca, por temer a UFP e estar na disposição de o proclamar em público. E o general da GUVD porque invadiu as instalações dos mafiosos do Dolgoruki, financiadores da União das Forças Patrióticas. Se não acredita, investigue o que afirmo. Foram os Guardas Negros que montaram os quatro assaltos”.

            Logo após estas palavras, desligava e deixou assim sete jornalistas de Moscou traumatizados, e, quando se recompuseram do assombro, começaram mesmo a investigar.

            Leónidas Bernstein ausentara-se do país, mas os dois canais comerciais de televisão deixaram transparecer discretamente que a mudança de rumo dos programas proviera do consórcio bancário do qual dependiam em termos materiais.

            O general Nikolayev morrera, todavia o Izvestia publicava excertos da sua entrevista, sob o título: “Foi por isto que ele perdeu a vida”?

            As seis batidas no meio da noite promovidas pela GUVD aos armazéns, arsenais e casino do bando do Dolgoruki eram do conhecimento geral. Somente o patriarca permanecia encerrado no mosteiro da Trindade-São Sérgio, impossibilitado de confirmar que talvez também fosse considerado inimigo da UFP.

            No meio da tarde, o quartel-general de Igor Komarov, junto do Bulevar Kiselny, podia considerar-se sitiado e, no interior, pairava uma atmosfera muito próxima do pânico.

            No seu gabinete, o chefe da propaganda e Imprensa. Boris Kuznetsov, encontrava-se em mangas de camisa e fumava cigarros em série, apesar de ter abandonado o consumo de tabaco dois anos atrás, ao mesmo tempo que tentava ocupar-se de uma bateria de telefones que não paravam de tocar.

            - Não, não é verdade! - vociferava incansavelmente. - Trata-se de uma asquerosa mentira, uma calúnia grosseira, e recorreremos aos tribunais para responsabilizar os seus autores. Não, não existe qualquer ligação entre este partido e algum bando de mafiosos. Komarov tem afirmado repetidamente que limpará a Rússia dessa fauna... Quais documentos investigados pela GUVD? Não temos nada a temer... Sim, o general Nikolayev tinha manifestado reservas sobre a nossa política, mas não passava de um indivíduo idoso e, portanto, apegado a idéias e atitudes inconsistentes. Lamentamos a sua trágica morte, mas falava sem a menor base sólida... Qualquer comparação entre Komarov e Hitler será alvo de um processo imediato... Qual oficial superior dos Guardas Negros?...

            Em outro gabinete, o coronel Anatoli Grishin achava-se a contas com um problema diferente. Quando prestara serviço no Segundo Diretorado Principal do KGB, competira-lhe caçar espiões. Não tinha a menor dúvida que Monk suscitara dificuldades de peso. Contudo, as alegações de agora eram muito mais graves. Um oficial superior da sua elite ultraleal e fanática dos Guardas Negros transformado em renegado? Fora ele próprio que escolhera os seis mil que elas se compunham. Um deles convertido em cristão praticante, roído por problemas de consciência, quando o seu único objetivo devia ser a conquista do poder? Absolutamente impossível!

            No entanto, recordava-se de ter lido algo que os jesuítas costumavam dizer: Dê-me o rapaz até aos sete anos de idade e entregarei o homem. Teria dado o caso de um dos seus melhores homens haver retrocedido ao menino de coro do passado? Procuraria averiguá-lo. Haveria necessidade de passar a pente fino o processo de todos os oficiais superiores.

            E que significava “superior”? Superior até que ponto? Dois níveis dez homens. Três níveis  quarenta. Cinco quase cem. Seria uma tarefa consumidora de tempo, ingrediente que não tinha. Muito pelo contrário. Talvez, a curto prazo, tivesse de depurar todos os quadros mais elevados e, ignorando a sua anterior eficiência, substituí-los por pessoal menos couraçado contra as situações difíceis. Prometeu a si próprio que, um dia, os responsáveis da atual catástrofe expiariam o crime, e que maneira! A começar por Jason Monk. A simples evocação do nome do agente americano bastava para lhe provocar um estremecimento de repulsa.

            Kuznetsov conseguiu marcar audiência com Komarov pouco antes das cinco horas, depois de várias insistências goradas.

            Quando estudante na América, ficara profundamente impressionado com o poder das relações públicas para gerar o apoio maciço mesmo das causas mais inconcebíveis. Além do seu ídolo, Igor Komarov, venerava a influência das palavras e da imagem em movimento para persuadir, iludir, convencer e, finalmente, superar toda a oposição. O fato de a mensagem ser fácil carecia de relevância.

            À semelhança dos políticos e advogados, era um homem de palavras, convicto que não existia problema algum que elas não conseguissem resolver. A idéia de que, um dia, se esgotassem e deixassem de persuadir, em benefício de outras, melhores do que as suas, afigurava-se inconcebível.

            Na América, chamavam relações públicas à indústria de milhares de milhões de dólares que podia converter um imbecil sem talento numa celebridade, um oportunista num estadista. Na Rússia, denominavam a isso propaganda, porém a ferramenta era a mesma. Com essa ferramenta e as imagens brilhantes de Litvinov, ele contribuíra para transformar um antigo engenheiro com o dom da oratória num colosso, um homem no limiar do maior troféu da Rússia a presidência do país.

            A mídia russa, acostumada à propaganda rudimentar e simplista da sua juventude comunista, tinham aderido como crianças presenteadas com guloseimas ante as campanhas sutis e persuasivas que ele, Kuznetsov, montara para Igor Komarov. Agora, algo correra mal, horrivelmente mal.

            Havia outra voz, de um padre arrebatado, que ecoava por todo o país, através da rádio e da televisão, mídia que ele considerava subserviente, e incitava à fé num deus supremo e o regresso a outro ícone.

            Por trás do padre, encontrava-se o homem ao telefone Kuznetsov fora informado das chamadas anônimas, que sussurrava mentiras convincentes, infelizmente aos ouvidos de jornalistas e comentaristas importantes que ele julgava conhecer e dominar.

            Para Kuznetsov, a solução continuava a situar-se nas palavras de Igor Komarov, que nunca se haviam revelado erradas.

            Quando entrou no gabinete deste último, ficou chocado com a transformação com que se deparou. O líder, sentado atrás da mesa, parecia alheio ao que o rodeava. À sua volta, no chão, estavam dispersos os jornais diários, cujos cabeçalhos emitiam acusações pavorosas em direção ao teto. Kuznetsov já lera todas as alegações sobre a morte do general Nikolayev, assaltos e batidas e dinheiro de gangsters e mafiosos. Jamais alguém ousara falar assim de Igor Komarov.

            Felizmente, Kuznetsov sabia o que havia a fazer. O líder teria de se dirigir às massas, e a normalidade seria restabelecida.

            - Senhor presidente, vejo-me obrigado a insistir que convoque uma conferência de Imprensa, amanhã.

            Komarov olhou-o em silêncio durante alguns segundos, como se tentasse compreender o que acabava de ouvir. Em toda a sua carreira política, e com a aprovação do chefe da propaganda, evitara as conferências de Imprensa, por as considerar imprevisíveis. Preferia a entrevista preparada, com as perguntas apresentadas previamente, e o tom de voz apropriado às diferentes circunstâncias.

            - Não dou conferências de Imprensa - replicou, com brusquidão.

            - É a única maneira de pôr fim a estes falsos rumores. A especulação dos jornalistas começa a escapar-nos do controle. Alimenta-se a si própria, e torna-se impossível prever onde isto irá parar.

            - Sabe perfeitamente que as detesto.

            - Mas comporta-se brilhantemente nelas, senhor presidente. É ponderado, persuasivo, coerente. Os jornalistas escutam-no com atenção e respeito. Só o senhor pode denunciar as mentiras e especulação.

            - Que dizem as últimas sondagens em escala nacional?

            - Apenas quarenta e cinco por cento a seu favor, e com tendência para baixar. Eram setenta por cento, há poucas semanas. Zyuganov, da União Socialista, atingiu os vinte e oito, com tendência ascendente, enquanto a posição do presidente interino, Markov, melhora claramente. Isto não inclui os indecisos. Devo reconhecer que os últimos dois dias nos podem custar mais dez por cento, ou mesmo mais, quando o efeito se infiltrar nas sondagens.

            - Porque devo convocar uma conferência de Imprensa?

            - Tem cobertura em escala nacional. Todos os canais importantes da TV ficarão suspensos de cada uma das suas palavras. Como sabe, quando fala, ninguém lhe resiste.

            Finalmente, Igor Komarov concordou.

            - Prepare-a. Entretanto, redigirei a minha comunicação.

            A conferência de Imprensa realizou-se no vasto salão de banquetes do Hotel Metropol, às onze da manhã. Kuznetsov começou por saudar a Imprensa nacional e a estrangeira e apresentou-se proclamando que, nos dois últimos dias, tinham sido feitas certas alegações sem o mínimo fundamento relativas à orientação e atividades da União das Forças Patrióticas. Era seu privilégio, para oferecer uma refutação total e convincente das inclassificáveis acusações, anunciar a intervenção imediata do “próximo Presidente da Rússia, Igor Viktorovich Komarov”.

            O líder da UFP surgiu de entre as cortinas ao fundo do palco improvisado e avançou para o estrado. Começou, como sempre que se dirigia aos partidários presentes nos comícios, por falar da Rússia grandiosa que tencionava criar, depois do povo lhe conceder a honra de ascender à presidência. Transcorridos cinco minutos, começou a ficar desconcertado com o silêncio que imperava na sala. Onde estava a faísca da reação às suas palavras? E os aplausos? E, sobretudo, os chefes de claque?

            Ergueu os olhos para umas nuvens distantes e evocou a gloriosa História da nação, agora nas garras de banqueiros estrangeiros, oportunistas e criminosos. A peroração ecoava na sala, porém a assistência não se punha de pé, com as mãos estendidas segundo a saudação da UFP. Quando se calou, o silêncio persistiu.

            - Talvez queiram fazer perguntas? - sugeriu.

            O que constituiu um erro. Pelo menos a terça parte da audiência compreendia a Imprensa estrangeira. O enviado do New York Times exprimia-se em russo fluente, assim como os do Times de Londres, do Daily Telegraph, do Washington Post, da CNN e restantes.

            Mr. Komarov proferiu o correspondente do Los Angeles Times.

            - Calculo que despendeu cerca de duzentos milhões de dólares na sua campanha, até agora, o que decerto representa um recorde mundial. De onde vem o dinheiro?

            O interpelado dirigiu-lhe um olhar azedo e Kuznetsov murmurou-lhe algo ao ouvido.

            - De subscrições públicas do grande povo da Rússia - afirmou, após breve pausa.

            - Isso equivale a cerca do salário anual de todos os homens do país. De onde vem realmente?

            Outros intervieram no interrogatório.

            - É verdade que tenciona abolir todos os partidos de oposição e estabelecer uma ditadura de partido único?

            - Sabe por que razão o general Nicolayev foi assassinado apenas três semanas depois de denunciá-lo?

            A chuva de perguntas parecia infindável.

            - Nega que os Guardas Negros estiveram por trás das tentativas de assassinato de duas noites atras?

            As câmaras e microfones da TV estatal e das duas cadeias comerciais vagueavam pela sala e recolhiam as interrogações dos impertinentes estrangeiros e as respostas algo atabalhoadas.

            O enviado do Daily Telegraph, cujo colega, Mark Jefferson, fora abatido a tiro em Julho, também receberia um telefonema anônimo, e as objetivas concentraram-se nele, quando se levantou.

            - Mr Komarov, ouviu falar de um documento secreto chamado Manifesto Negro?

            O silêncio que se seguiu pareceu ainda mais pesado que os anteriores Tanto os jornalistas russos como os jornalistas estrangeiros não faziam a menor idéia do que estava falando. Na realidade, nem ele próprio.

            Igor Komarov, apoiando-se à mesa na sua frente e ao autodomínio que lhe restava, tornou-se lívido.

            - Não sei a que manifesto se refere. - Mais um erro.

            - Segundo a minha informação, contém os seus planos para a criação de um Estado de partido único, a reativação do Gulag para os seus oponentes políticos, o governo do país por duzentos mil Guardas Negros e a invasão das repúblicas vizinhas.

            Podia dizer-se que o silêncio se tornou ensurdecedor. Quarenta dos correspondentes presentes provinham da Ucrânia, Bielorussia, Letônia, Lituânia, Estônia, Georgia e Armênia. Metade da imprensa russa apoiava os partidos destinados à abolição, com os seus hierarcas a caminho dos campos, acompanhados pelos jornalistas. Se o inglês tinha razão. Todos os olhos se fixaram em Komarov. Foi então que o verdadeiro tumulto principiou.

            E ele cometeu o terceiro erro. Perdeu as estribeiras.

            - Não estou disposto a continuar ouvindo toda essa merda! - rugiu, e   abandonou o estrado, seguido do desnorteado Kuznetsov.

            Ao fundo da sala, o coronel Grishin conservava-se na sombra das cortinas e olhava os membros da Imprensa com animosidade assassina. “Isto não vai durar muito mais tempo”, prometia a si próprio.

 

            No canto a sudoeste da zona central de Moscou, num bojo de terra formado por uma curva apertada no rio Moskva, erguia-se o convento medieval de Novodevichi e, à sombra dos seus muros, situava-se o enorme cemitério.

            Uma área considerável, sulcada de pinheiros, faias, salgueiros e limoeiros continha as vinte e duas mil sepulturas em que repousavam os notáveis da Rússia de dois séculos. O cemitério dividia-se em onze grandes jardins. Os números um a quatro abarcavam o século XIX, limitados pelos muros do convento a um lado e a parede divisória central no outro.

            Os números cinco a oito localizavam-se entre esta última e o perímetro, para além do qual os caminhões rolavam no Khamovnichesky Vai. Jaziam aí os bons e os maus da era comunista. Marechais, políticos, cientistas, acadêmicos, escritores e astronautas podiam encontrar-se a flanquear os caminhos túmulos que variavam de profunda simplicidade à grandiosidade auto-adoradora.

            O astronauta Gagarin, morto quando tripulava um protótipo, depois de saturar o sistema circulatório de vodka, jazia a poucos metros da imponente efígie de Nikita Khrushchev. Modelos de aviões, mísseis e armas de fogo testemunhavam o que esses homens faziam em vida, enquanto outras figuras se haviam afundado gradualmente no charco do esquecimento.

            Ao longo da passagem central, existia mais um muro, penetrado por uma entrada estreita que conduzia a três jardins de menores dimensões: o nove, dez e onze. com o espaço disputado quase encarniçadamente, subsistiam poucos lotes disponíveis no Inverno de 1999, mas um tinha sido reservado para o general Nikolai Nikolayev, onde, a 26 de Dezembro, o sobrinho, Misha Andreyev, sepultou o Tio Kolya.

 

            Tentou fazê-lo da maneira que o ancião sugerira, no último jantar juntos. Havia presentes vinte generais, incluindo o ministro da Defesa, e um dos dois bispos metropolitanos de Moscou oficiou a cerimônia religiosa.

            A lápide tinha em forma de uma cruz, esculpida em granito, mas não havia qualquer efígie do extinto apenas o nome e, por baixo, as palavras: um soldado russo.

            O major-general Andreyev proferiu o elogio final, que foi breve. O Tio Kolya podia ter querido descer à sepultura como um cristão, mas detestava os arrazoados. Quando terminou e enquanto o bispo entoava as palavras de despedida, pousou as condecorações do herói na urna. Em seguida, retrocedeu dois passos e efetuou a saudação militar. Dois ministros e os outros dezoito generais imitaram-no.

            Já a caminho da saída do cemitério, onde se encontrava o cortejo de veículos vulgares e limusines, o subsecretário da Defesa, general Butov, colocou a mão no ombro de Andreyev e murmurou:

            - Uma maneira horrível de partir.

            - Hei de descobrir os autores um dia, e pagarão o preço merecido.

            Estava claramente embaraçado, pois tratava-se de um nomeado político para o cargo que nunca comandara tropas de combate.

            - Sim, estou convencido que o pessoal da Polícia desenvolve todos os esforços nesse sentido.

            A oito quilômetros dali, quando começava a escurecer, um padre baixo e atarracado abandonava o piso nevado e entrava na igreja de cúpula em forma de cebola na Praça Slavyansky. Cinco minutos mais tarde, reunia-se a ele o coronel Anatoli Grishin.

            - Parece perturbado - observou este último, a meia-voz.

            - Na verdade estou aterrorizado.

            - Não há motivo para tal, padre Maxim. Ocorreram, reveses, de fato, mas nada que eu não possa resolver. Diga-me uma coisa: por que o patriarca partiu tão repentinamente?

            - Não sei. Na manhã do dia vinte e um, recebeu um telefonema do mosteiro da Trimdade-São Sérgio, de cuja natureza não faço a menor idéia, pois quem atendeu foi o secretário pessoal dele. Logo a seguir, mandaram-me preparar uma mala de viagem.

            - Para quê?

           - Só descobri mais tarde. O  mosteiro tinha convidado o pregador Gregor para pronunciar o sermão, e o patriarca decidiu que gostaria de estar presente.

            - E poder assim conceder a sua autoridade pessoal a Gregor e respectiva mensagem hedionda - grunhiu Grishin. - Sem dizer uma única palavra, bastaria a sua presença.

            - Perguntei se também ia, mas o secretário disse que não. Sua Eminência levaria um dos cossacos para dirigir o carro, enquanto as duas enfermeiras tinham o dia livre, para visitar a família.

            - Não me informou disso, reverendo.

            - Como  podia  adivinhar que apareceria alguém, naquela noite?

            - Bem, continue.

            - Mais tarde, tive de chamar a Polícia. O corpo do guarda cossaco jazia no patamar do primeiro andar. De manhã, telefonei ao mosteiro e falei com o secretário. Disse-lhe que houvera assaltantes armados e tiros, mas nada mais. No entanto, a Polícia alterou a situação, mais tarde. Afirmou que o ataque visava Sua Eminência.

            - Que mais?

            - O secretário telefonou pouco depois. Disse que Sua Eminência se  impressionara profundamente com a morte do cossaco. Ficou no mosteiro e só regressou ontem. O principal motivo era oficiar no funeral do cossaco, antes do corpo ser enviado aos familiares no Don.

            - Por conseguinte, o patriarca voltou. Fez-me vir aqui só para comunicar isso?

            - É claro que não. Trata-se das eleições.

            - Não se preocupe com  elas, padre Maxim. Apesar da corrosão operada   nas nossas hostes, o presidente interino decerto ficará fora da corrida na primeira volta. Mau grado os contratempos, Igor Komarov derrotará o comunista Zyuganov.

            - Aí é que está o problema, coronel. Esta manhã, Sua Eminência dirigiu-se a Staraya Ploshad para se encontrar com o presidente interino, a seu pedido. Descobri que estavam presentes dois generais da Polícia e outras figuras importantes.

            - Como o soube?

            - Regressou pouco antes do almoço e mandou-me servi-lo no seu gabinete, onde se reuniu com o secretário. Apesar de não ter me mantido lá muito tempo, consegui descobrir que discutiam a decisão que Ivan Markov tomara finalmente.

            - Que era?...

            O padre Maxim Klimovsky tremia como um arbusto sacudido pelo vento. A chama da vela que tinha na mão oscilava de tal modo, que o clarão bailava no rosto da Mãe de Deus, com o Filho nos braços.

            - Acalme-se, reverendo.

            - Não posso. Tem de compreender a minha posição, coronel. Fiz tudo ao meu alcance para ajudá-lo, porque acredito na concepção de Komarov sobre a Nova Rússia. Mas não posso continuar. O assalto à residência, o encontro de hoje. A situação está se tornando extremamente perigosa.

            Estremeceu, no momento em que a mão do coronel lhe apertou o braço como um torno.

            - Já se envolveu demais, para voltar atrás. Não tem outro lugar para onde ir. Por outro lado, pode voltar a servir às mesas, apesar da sotaina e dos votos que fez. Por outro, se aguardar o triunfo de Igor Komarov e o meu, dentro de vinte e um dias, ascenderá a uma posição jamais sonhada. Ora bem: que foi dito na reunião com o presidente interino?

            - Não haverá eleições.

            - O QUÊ?!

            - Ou antes, haverá, mas não com Komarov.

            - Não acredito que ele se atreva - murmurou Grishin, rangendo os dentes  - Não ousaria declará-lo inapto para se candidatar. Somos apoiados por mais da metade do país.

            - Essa fase foi ultrapassada Parece que os generais insistiram com veemência. O assassinato de Nikolayev e as tentativas para matar o banqueiro, o general da Polícia e, sobretudo, Sua Eminência indignaram-nos além de qualquer contemplação

            - Até que ponto?

            - Pensam que, no dia 1 de Janeiro, celebrarão o Ano Novo com tanto entusiasmo que serão incapazes de uma ação concertada.

            - Celebrarão, quem? Qual ação? Explique-se, homem!

            - Vocês. Todos os homens que comanda, coronel. A ação de se defenderem. Eles estão reunindo uma força de quarenta mil militares. A Guarda Presidencial, as Forças de Reação Rápida da SOBR e a OMON, algumas unidades Spetsnaz, a nata das tropas do Ministério do Interior estacionadas na cidade.

            - Com que objetivo?

            - Prender todos vocês, acusados de conspiração contra o Estado. O esmagamento dos Guardas Negros, capturando-os ou destruindo-os nos quartéis.

            - Não podem fazer isso. Não possuem qualquer prova.

            - Segundo parece, há um oficial dos Guardas Negros disposto a prestar declarações. Ouvi o secretário levantar a mesma objeção, e foi essa a resposta do patriarca.

            Grishin estremeceu, como se acabasse de ser atingido por uma descarga elétrica. Uma parte do cérebro, assegurava-lhe que aquela escória não teria arrojo suficiente para um ato de semelhante envergadura, enquanto outra lhe garantia o contrário. Igor Komarov nunca se dignara descer ao antro da Duma. Continuara a ser dirigente de partido, mas não membro desta última, pelo que não gozava de imunidade parlamentar. E ele, Anatoli Grishin, tão pouco.

            Se havia realmente um oficial superior dos Guardas Negros disposto a fazer revelações, o Procurador-Geral de Moscou poderia emitir os mandatos necessários, pelo menos com validade suficientemente longa, para manter os visados detidos até à data das eleições.

            Na sua qualidade de interrogador, Grishin vira o que os homens estavam dispostos a fazer, quando dominados pelo pânico: precipitar-se do topo de edifícios, lançar-se à via -férrea, etc.

            Se o presidente interino e os que o rodeavam, a sua guarda pretoriana, generais da Polícia antibanditismo e comandantes da Polícia tivessem percebido o que os aguardaria, na eventualidade de Komarov ganhar as eleições, poderiam perfeitamente deixar-se dominar por esse estado de espírito.

           - Volte para a residência, reverendo, e lembre-se do que eu disse  - recomendou, por fim, o coronel. - Aventurou-se demasiado longe para procurar redenção debaixo da asa do atual regime. No seu próprio interesse, a UFP tem de ganhar as eleições. Quero saber tudo o que acontece e o que ouvir: novos desenvolvimentos, reuniões, etc. Deste momento até ao dia de Ano Novo.

            Foi com alívio que o aterrorizado padre se retirou. Menos de seis horas depois, a mãe sofria de uma pneumonia grave, pelo que solicitou e obteve do compreensivo patriarca autorização para visitá-la e permanecer junto dela até que melhorasse. Assim, ao anoitecer, embarcava no trem para Zhitomir. Entretanto, refletia que fizera o melhor que pudera  tudo o que lhe fora exigido, e até mais. Todavia, Miguel e todos os seus anjos não conseguiriam mantê-lo em Moscou nem mais uma hora.

 

            Naquela noite, Jason Monk redigiu a sua última mensagem destinada ao Ocidente. Privado do computador, o fez lenta e cuidadosamente em maiúsculas até cobrir duas folhas de papel. A seguir, servindo-se de um candeeiro de mesa e da minúscula máquina fotográfica fornecida por Umar Gunayev, obteve várias cópias, depois queimou as folhas e lançou as cinzas no vaso sanitário. Na escuridão, retirou a película exposta e introduziu-a na embalagem metálica em que lhe fora vendida, cujas dimensões não excediam as de uma articulação do dedo mindinho.

            Às nove e meia, Mogamed e os outros dois guarda-costas conduziram-no ao endereço que lhes indicou. Tratava-se de uma construção humilde, uma espécie de chalé isolado, nos subúrbios a sueste de Moscou, no distrito de Nagatimo.

            O velho que abriu a porta tinha a barba por fazer e uma espécie de longa camisola de lã em torno do corpo delgado. Não havia motivo para Monk saber que, outrora, fora um cotado professor na Universidade de Moscou, até que rompera com o Partido Comunista e publicara um ensaio destinado aos seus alunos, em que propugnava um governo democrático.

            Mas isso fora antes das reformas. A reabilitação surgira muito tarde para influir no seu estado de espírito, juntamente com uma pequena pensão. Na altura, tivera sorte em escapar aos campos. Fora afastado do ensino, naturalmente, e privado do apartamento, vendo-se reduzido a varrer as ruas.

            Era assim que se procedia, no período comunista. Se o pecador escapava dos campos por atividades anti-soviéticas, as autoridades tratavam de remover todos os sistemas de apoio de vida. O primeiro-ministro checo, Alexander Dubcek, por exemplo, vira-se na obrigação de rachar lenha. Se conseguiu sobreviver, deveu-o a um homem da sua idade que, um dia, estivera a seu lado, na rua, exprimindo-se em russo aceitável, embora com sotaque britânico. Nunca soubera o nome de Sir Nigel Irvine e limitava-se a chamar-lhe lisa, raposa. Nada de especial, dissera o espião da embaixada. Contentava-se com prestar-lhe ajuda, de vez em quando. Pequenas coisas com risco reduzido. Sugerira o passatempo a que o professor russo devia se dedicar, e as notas de cem dólares tinham-lhe permitido aguentar-se.

            Naquela noite de Inverno, vinte anos mais tarde, cravou o olhar no homem mais jovem que batera à porta e proferiu:

            - Da?

            - Tenho  uma  encomenda para a Raposa - informou o americano.

            O outro inclinou a cabeça e estendeu a mão, em cuja palma Monk depositou a embalagem que continha a película. Em seguida, o homem recuou um passo e fechou a porta.

            À meia-noite, o pequeno Martti, com a embalagem presa a uma das patas com fita adesiva, foi libertado. Fora trazido a Moscou algumas semanas atrás por Mitch e Ciaran, na longa viagem desde a Finlândia, e entregue por Brian Vincent, que sabia ler os mapas de ruas russos e localizou a obscura construção.

            Martti conservou-se no parapeito por um momento, estendeu as asas e ergueu-se em espirais na noite glacial, até que atingiu os trezentos metros de altura, onde o frio reduziria um ser humano a um bloco congelado.

            Por afortunada casualidade, um dos satélites da InTelCor começava a sobrevoar as estepes geladas da Rússia e, em obediência às suas instruções, iniciou a transmissão da mensagem “Está aí, querido?”, devidamente codificada, em direção à cidade, sem saber que destruíra anteriormente o seu filho eletrônico.

            Fora da capital, o pessoal incumbido de escutar a rede da FAPSI esquadrinhava os computadores em busca do blip que indicaria que o agente estrangeiro procurado pelo coronel Grishin transmitira, para que os trianguladores pudessem concentrar a sua fonte num único edifício.

            No entanto, o satélite seguiu a sua trajetória sem que surgisse qualquer blip.

            Em algum lugar na sua minúscula cabeça, um impulso magnético revelou a Martti que o seu lar, o lugar onde nascera, três anos atrás, se situava ao norte. Assim, rumou nessa direção, enfrentando o vento agreste, hora após hora através do frio e da escuridão, impelido apenas pelo desejo de regressar ao ambiente familiar. Ninguém o viu abandonar a cidade ou cruzar a costa, com as luzes de São Petersburgo à sua direita. Limitava-se a seguir infatigavelmente em frente, com a mensagem e a ansiedade em voltar a encontrar-se entre os seus. Dezesseis horas depois de partir de Moscou, enregelado e exausto, pousava numas águas-furtadas nos subúrbios de Helsínque. Mãos quentes retiraram-lhe a mensagem da pata e, transcorridas três horas, Sir Nigel Irvine lia-a, em Londres.

            Sorriu ao inteirar-se do texto. A operação fora até ao possível. Restava uma última tarefa para Jason Monk, após o que voltaria à inatividade, até que pudesse partir sem perigo. Mas nem o próprio super-espião de outrora podia prever o que o americano tinha em mente.

 

            Enquanto Martti voava sobre as suas cabeças, invisível, Igor Komarov e Anatoli Grishin trocavam impressões no gabinete do primeiro. O resto da pequena mansão que formava o quartel-general do partido estava deserto, à parte os guardas nas suas instalações, no piso térreo. Lá fora, na escuridão, os cães assassinos moviam-se em liberdade.

            Komarov sentava-se a mesa, invulgarmente pálido. Grishin terminara de falar, para lhe comunicar as informações provenientes do padre Maxim.

            À medida que o escutava, o líder da União das Forças Patrióticas parecia encolher-se. O antigo autodomínio frio e firme parecia extinguir-se inexoravelmente, e o coronel achava-se familiarizado com o fenômeno.

            Acontecia até aos ditadores mais temíveis, quando se viam privados subitamente do seu poder. Em 1944, Mussolini, o grotesco Duce, convertera-se, de um dia para o outro, num indivíduo alquebrado e frágil.

            Os magnatas dos negócios, quando os bancos lhes cortavam o crédito, o jato pessoal era confiscado, as limusines apreendidas, os cartões de crédito cancelados e o seu castelo de cartas desmoronava, diminuíam de tamanho e assumiam um aspecto insignificante.

            Grishin conhecia a metamorfose, porque vira generais e ministros encolhidos em celas, reduzidos a aguardar o destino tenebroso que o Partido lhes reservasse.

            Tudo começava a ruir e os tempos das palavras pertenciam ao passado. A sua própria hora chegara. Sempre desprezara Kuznetsov, com o seu mundo de palavras e imagens, convencido que o poder provinha de um comunicado oficial. Não, advinha do cano de uma espingarda, na Rússia sempre tinha sido, e continuaria a ser, assim. Ironicamente, fora o homem que mais odiava no mundo, o pimpinela escarlate* americano, que provocara a atual situação, com um presidente da UFP que parecia ter perdido a força de vontade, agora disposto a obedecer à recomendação de Grishin.

            Com efeito, o coronel não tinha a menor intenção de conceder a derrota à Polícia do presidente interino, Ivan Markov. Não podia passar sem Igor Komarov, mas trataria de aproveitar as suas últimas forças para se elevar ao poder.

            Dentro do seu próprio mundo, Komarov sentava-se como o Rei Ricardo II refletindo na catástrofe que lhe abatera em cima, em tão pouco tempo. Não podia literalmente compreender a transformação, embora vislumbrasse como se desenrolara, passo a passo.

            Em princípios de Novembro, parecia que nenhum poder na Terra o impediria de ganhar as eleições de Janeiro. A sua organização política tinha o dobro da eficiência de qualquer outra do país e a sua oratória subjugava as massas. As sondagens revelavam que receberia setenta por cento dos votos em escala nacional, suficientes para uma vitória clara na primeira volta.

            Os seus oponentes políticos achavam-se desorientados e com carência de fundos. Sim, em Moscou, o seu triunfo político parecia não sofrer contestação.

            O roubo do Manifesto Negro revelara-se profundamente preocupante, mas a confiança reaparecera, e consolidara-se, quando, em meados de Julho, ainda não se notava o menor efeito demolidor do fato. Os culpados haviam recebido as merecidas punições e o atilado jornalista britânico fora reduzido ao silêncio permanente. E, nos meses imediatos, imperara a tranquilidade.

            Komarov recusara-se a crer que um único agente estrangeiro, cujo rosto vira numa fotografia, pudesse provocar-lhe estragos graves. A destruição das impressoras e a redução ao silêncio da revista e jornal tinham-no enfurecido, mas não se revestiam de importância vital. A sabotagem e a violência eram partes integrantes da vida na Rússia, mas, até então, haviam sido sempre administradas pelo coronel Gnishin, em obediência às suas ordens. Fora a suspensão da campanha na televisão que se revelara o ponto de partida dos incríveis eventos posteriores.

            Como desprezava a Igreja e todos os sacerdotes, nunca encarara a seriamente a igreja com a alucinada idéia de restaurar a monarquia. E também não acreditara que Alexei II pudesse exercer influência notável junto do povo.

            Não era, porventura, o povo que recorria a ele? Não o procurava para alcançar a salvação, uma nova disciplina e a limpeza geral do território? Para que precisava de Deus, quando havia Igor Viktorovich Komarov para acudir às suas necessidades?

            Compreendia que o judeu, Bernstein, tivesse se voltado contra ele. Se o abelhudo do americano lhe mostrara o manifesto, era natural que reagisse assim. Mas porquê o general? Que razão levara Nikolai Nikolayev a denunciá-lo? Não teria abarcado o futuro glorioso em perspectiva para o Exército Russo? Seria possível que o herói de Kursk e Bagration se preocupasse com o destino de alguns judeus e chechenos?

            Foram o efeito duplo da entrevista no Izvestia e a suspensão da campanha na TV que o levaram finalmente perceber a extensão da aliança que alguém formara contra ele.

            Depois, a fúria dos mafiosos do Dolgoruki, na sequência das batidas às suas instalações, e a ação da Imprensa. De qualquer modo, estavam todos destinados à supressão. A Igreja, a Mafia, a Imprensa livre, os judeus, os chechenos, os estrangeiros todos expiariam gradualmente a ousadia.

            - Foi um erro levar a efeito as quatro tentativas de assassinato dos nossos inimigos - declarou, finalmente.

            - Salvo o devido respeito, senhor presidente, foram atos úteis, do ponto de vista tático. Só a mais arreliadora casualidade impediu que três não se encontrassem em casa.

            Emitiu um grunhido. Talvez fosse uma casualidade, mas a reação excedera tudo o que se poderia esperar. Onde obtivera a Imprensa a idéia que se encontrava por trás de tudo? Quem falara? Os jornalistas sempre haviam estado suspensos das suas palavras e agora increpavam-no. A conferência de Imprensa redundara num desastre. Os jornalistas estrangeiros crivando-o de perguntas impertinentes! Nunca se vira perante semelhante insolência. E o culpado fora Kuznetsov, no fundo um jovem imprudente.

            - Tem certeza da sua fonte, coronel?

            - Absoluta, senhor presidente.

            - Confia nele?

            - De modo algum. Mas confio nos seus apetites. É venal e corrupto, e adora a promoção e a vida de sibarita, que lhe foram prometidas. Revelou as duas visitas do espião inglês e do agente americano ao patriarcado. O senhor presidente leu a transcrição da gravação do segundo encontro com Monk e as ameaças em que baseei a decisão de silenciar a oposição permanentemente.

            - Mas desta vez...  terão realmente a ousadia de nos atacar?

            - É uma hipótese que não podemos pôr de lado. Em termos de pugilismo, foram descalçadas as luvas. O imbecil do nosso Presidente Interino sabe que  não pode ganhar as eleições em luta consigo, mas decerto alcançaria a vitória se a corrida fosse apenas com Zyuganov. Os generais que dirigem a Polícia compreenderam a tempo o tipo de depuração que lhes prepara. Recorrendo à alegação de uma ligação financeira entre a UFP e a Mafia, podem arquitetar acusações.

            - No lugar deles, como planejador, que faria, coronel?

            - Exatamente o mesmo. Quando ouvi o padre dizer o que o patriarca discutia, enquanto servia o café, cheguei a duvidar. No entanto, quanto mais penso nisso mais lógico me parece. A alvorada de um de Janeiro é o momento ideal. Quem não estará as voltas com uma ressaca das celebrações da Passagem do Ano? Que guardas estarão lúcidos? Quem poderá reagir com rapidez e firmeza? Sim, acho que é o momento mais propício.

            - Está me dizendo que as nossas chances se extinguiram? Que tudo o que fizemos foi em vão e o ambicionado êxito nunca acontecerá, devido à intervenção de um político ambicioso tomado pelo pânico, um padre fantasista e alguns oficiais da Polícia promovidos  irreflectidamente?

            Grishin levantou-se da cadeira e pousou as mãos no tampo da mesa.

            - Não, senhor presidente. A chave do êxito consiste em conhecer as intenções do inimigo. Ora, nós as conhecemos, e só nos concedem uma opção. Uma jogada de antecipação.

            - Contra quem?

            - Tome Moscou, senhor presidente. Tome a Rússia. Ambas seriam suas  em duas semanas. Na Véspera do Ano Novo, os nossos inimigos estarão festejando a data, com as tropas encerradas nos quartéis até à alvorada. Posso reunir uma força de oitenta mil homens e tomar Moscou durante a noite. E, à capital, segue-se a Rússia.

            - Está falando de um golpe de Estado?

            - Não seria o primeiro. Toda a História da Rússia e da Europa em geral está polvilhada de homens de visão e determinação que aproveitaram o  momento próprio para tomar o Estado. Mussolini assenhoreou-se de Roma e de toda a Itália. Os coronéis gregos fizeram o mesmo com Atenas e toda a Grécia.  Não houve guerra civil. Apenas uma luta breve. Os vencidos fugiram, os apoiantes perderam a coragem e procuraram uma aliança. No Dia do Ano Novo, a Rússia pode ser sua, senhor presidente.

            Komarov entregou-se a reflexões. Ocuparia os estúdios da televisão e falaria ao país. Alegaria que agira para evitar uma conspiração contra o povo cancelando as eleições. Todos acreditariam. Os generais seriam presos e os coronéis procurariam a promoção mudando de campo e colocando-se do seu lado.

            - Acha que é capaz disso?

            - Tudo  neste corrupto país está à venda, senhor presidente. É por isso que a pátria precisa de Igor Komarov, para varrer a escória. com dinheiro, posso comprar todas as tropas necessárias. A um sinal seu, os colocarei nos Apartamentos de Estado do Kremlin ao meio-dia de um de Janeiro.

            Pousou o queixo nos punhos sobrepostos em cima da mesa e fixou o olhar no tampo. Passados vários minutos, ergueu os olhos para o coronel Grishin.

            - Faça-o.

            - Se este último tivesse recebido ordens para organizar uma força armada, para capturar a cidade de Moscou, partindo do zero, apenas em quatro dias, nunca o conseguiria.

            Mas não partiria do zero. Havia meses que sabia que, após a vitória presidencial de Igor Komarov, principiaria o programa para a transferência de todos os poderes do Estado para a UFP.

            A faceta política, a abolição formal dos outros partidos, competiria a Komarov. A tarefa de Grishin consistiria na subjugação ou desmantelamento de todas as unidades armadas. Ao ocupar-se dos preparativos dessa missão, já decidira quais seriam os aliados naturais e os inimigos óbvios. À testa destes últimos, figurava a Guarda de Segurança Presidencial, que se compunha de trinta mil homens armados, com seis mil radicados em Moscou e mil no interior do Kremlin.

            Comandada pelo general Sergei Korin, sucessor do famigerado Alexander Korzhakov de Ieltsin, todos os seus oficiais superiores tinham sido nomeados pelo falecido presidente Cherkassov, e lutaria pela legitimidade do Estado e contra o putsch.

            Seguia-se o Ministério do Interior, com o seu próprio exército de cento e cinquenta mil homens. Felizmente para Grishin, a maior parte dos efetivos achava-se espalhada por toda a Rússia, com somente cinco mil na capital e arredores. Os generais do Presídio do MVD não tardariam muito a concluir que seriam os primeiros a seguir nos caminhões com destino ao Gulag, cientes que não haveria espaço para eles na Nova Rússia nem nos Guardas Negros de Grishin.

            Em terceiro lugar, exigência não negociável dos mafiosos do Dolgoruki, figuravam a detenção e internamento das duas divisões anti-gangsters, a unidade Federal, dirigida da sede nacional do MVD, na Praça Zhitny, e a unidade da cidade de Moscou, à GUVD, sob as ordens do general Petrovsky, na Rua Shabolovka. As duas divisões e as suas Forças de Reação Rápida, a OMON e a SOBR, não duvidariam que o único lugar para elas na Rússia de Grishin seria num campo de trabalho ou num pátio de fuzilamento. 

            Contudo, no caldeirão dos exércitos departamentais ou privados que abundavam na periclitante Rússia de 1999, o coronel sabia que também contava com aliados naturais ou subornáveis. A chave da vitória consistia em manter o exército alheio à realidade, confuso, sem saber para que lado se voltar e finalmente impotente.

            As suas forças imediatas eram os seis mil Guardas Negros e os vinte mil adolescentes dos Jovens Combatentes.

            Os primeiros constituíam uma força de elite que ele criara ao longo dos anos. O corpo de oficiais compreendia antigas forças especiais inteiramente treinadas para a batalha, pára-quedistas, fuzileiros e homens do MVD, obrigados a provar em cerimônias de iniciação selvagens a crueldade e dedicação à ultradireita.

            Não obstante, em algum lugar entre os quarenta mais seletos, devia haver um traidor. Tudo indicava que alguém estivera em contato com as autoridades e os jornalistas para denunciar as quatro tentativas de assassínio da noite de 21 de Dezembro como obra dos Guardas Negros.

            Grishin não tinha outra alternativa senão deter e isolar essas quatro dezenas de homens, o que aconteceu a 28 daquele mês. O interrogatório intensivo e a descoberta do traidor ficariam para mais tarde. Para preservar o moral, os oficiais menos graduados foram simplesmente promovidos para preencher as vagas e informados que os outros frequentavam um curso de aperfeiçoamento.

            Debruçado sobre um largo mapa do Oblast de Moscou, o coronel preparou o plano de batalha para a Passagem do Ano. A sua maior vantagem residia em que as ruas estariam quase desertas.

            Na Rússia, as festividades do Ano Novo revestem-se da maior importância. Virtualmente, não é possível qualquer espécie de trabalho na tarde da véspera, porque os moscovitas se dirigem para os locais onde tencionam comemorar a data. Anoitece pouco depois das três e meia e a partir de então só os retardatários cruzam as ruas já envoltas em frio glacial.

            Grishin calculava que, por volta das seis, teria o terreno por sua conta. A essa hora, todos os edifícios oficiais estariam desocupados, restando apenas o pessoal noturno habitual.

            A primeira prioridade, a partir do momento em que as suas forças se encontrassem dentro da cidade, consistiria em selar Moscou do exterior, tarefa que competiria aos Jovens Combatentes. Havia cinquenta e duas vias de acesso e, para bloqueá-las, tornavam-se indispensáveis 104 viaturas pesadas, carregadas com balastro de betão.

            Dividiu, pois, os Jovens Combatentes nos 104 grupos necessários, cada um comandado por um militar experiente dos Guardas Negros.

            Em cada uma dessas vias, a fronteira entre a Oblast de Moscou e a província vizinha achava-se assinalada por um posto do MVD uma pequena guarita com vários homens enfastiados e um telefone, e um carro blindado estacionado nas proximidades. Na Passagem do Ano, estariam concentrados nas celebrações. No caso da única passagem que Grishin necessitava para entrar na cidade, o posto seria tomado, enquanto em todos os outros os Jovens Combatentes colocariam os seus caminhões nas posições apropriadas para a eficiência total do bloqueio. Em seguida, montariam as emboscadas e impediriam a entrada em Moscou de qualquer coluna de reforço.

            No interior da cidade, ele precisava neutralizar sete alvos, cinco secundários e dois primários. Como os Guardas Negros estavam aquartelados em cinco bases nos arrabaldes, com apenas uma pequena unidade no interior, para fornecer homens para a proteção da casa de Komarov, a maneira mais fácil consistiria em penetrar em cinco eixos. No entanto, no interesse de uma coordenação eficaz, seria conveniente provocar uma autêntica tempestade de tráfego pela rádio. Preferia que todos os efetivos avançassem em silêncio completo daquele meio de comunicação. Por conseguinte, optaria por um único comboio de caminhões.

            Como a base principal e o quartel-general se situavam a nordeste, decidiu conduzir toda a força de seis mil homens, totalmente armados e nos seus veículos para lá, a 30 de Dezembro, e invadir a cidade pelo acesso principal, que principiava com a designação de Yarolslavskoye Chaussee e se convertia em Prospekt Mira (Avenida da Paz), à medida que se aproximava da estrada circular interior.

            Um dos dois principais alvos, o enorme complexo da televisão, em Ostankino, situava-se apenas a quinhentos metros dessa estrada, para o que ele tencionava destacar dois mil dos seus seis mil homens. Com os quatro mil restantes, comandados pelo próprio Grishin, prosseguiria para sul, ao longo do Estádio Olímpico, e entraria no coração de Moscou para a conquista mais valiosa: o Kremlin.

            Embora “Kremlin” signifique apenas fortaleza e todas as cidades antigas da Rússia tenham uma no centro do que outrora foi um reduto murado, o Kremlin de Moscou é, desde longa data, símbolo do poder supremo e a sua posse visível. Nessa conformidade, o Kremlin tinha de estar nas mãos de Grishin na alvorada, com a sua guarnição dominada e a rádio silenciada.

            Quanto aos cinco alvos secundários, pretendia confiá-los às quatro forças armadas que supunha conseguir juntar numa aliança, apesar do pouco tempo que dispunha.

            Esses alvos eram o gabinete do presidente da Câmara, na Rua Tverskaya, o qual dispunha de uma sala de comunicações de onde podiam ser transmitidos pedidos de socorro, o Ministério do Interior, na Praça Zhitny, com a sua rede de comunicações para o exército privado do MVD espalhado por todo o país e o aquartelamento contíguo do OMON, o cornplexo dos edifícios presidenciais e ministeriais em torno da Staraya Ploshchad, o aeródromo de Khodinka, com o quartel do GRU; e o Parlamento, ou Duma.

            Em 1993, quando Boris Ieltsin apontou as peças dos seus tanques à Duma para obrigar os congressistas rebeldes a sair de mãos no ar, o edifício sofrera estragos consideráveis. Durante quatro anos, os trabalhos foram transferidos para as salas do velho Gosplan, na Praça Manege, mas depois de concluídas as restaurações voltaram a desenrolar-se no antigo local.

            As instalações do presidente da Câmara, a Duma e os ministérios na Staraya Ploschad estariam desertos na Passagem do Ano e, com as portas destruídas por cargas explosivas, a ocupação não ofereceria dificuldades.

            Um alvo óbvio em qualquer putsch consistiria no Ministério da Defesa, que continha a central das comunicações capaz de contactar instantaneamente com qualquer exército da Rússia. Grishin incumbiu uma força especial de tomar o local, pois concebera planos especiais para aquele edifício público.

            Os aliados naturais num golpe da extrema direita na Rússia não eram difíceis de encontrar. À cabeça, figurava o Serviço de Segurança Federal, ou FSB, herdeiro do outrora poderoso Segundo Diretorado Principal, KGB, vasta organização que mantinha a repressão no país aos níveis exigidos pelo Politburo. Desde a chegada da odiada teoria chamada democracia, os seus poderes haviam-se reduzido substancialmente.

            O FSB, com o quartel-general no famoso Centro KGB, na Praça Dzerzhinsky, agora denominada Praça Lubyanka, e com a igualmente famosa e temida cadeia Lubyanka nas suas entranhas, ainda dependia da contra-espionagem e também continha uma divisão dedicada a combater o crime organizado. Todavia, esta última não era tão eficiente, nem nada que se parecesse, como a GUVD do general Petrovsky, pelo que não originara os insistentes pedidos de vingança dos mafiosos do Dolgoruki.

            Para o coadjuvar nos seus esforços, o FSB contava com duas forças de reação rápida  o Grupo Alfa e o Vympel, que em russo significa “bandeira”.

            Estas últimas tinham sido outrora as mais temidas das unidades especiais na Rússia, por vezes comparadas otimisticamente com as SAS britânicas. O que correra mal fora uma questão de lealdade.

            Em 1991, o ministro da Defesa, Yazov e o presidente do KGB, Kryuchkov, montaram um golpe contra Gorbachev, que abortou, embora derrubasse este último do poder, substituído por Ieltsin. Inicialmente, o Grupo Alfa participara no coup, mas, no meio da operação, mudou de idéia, o que permitiu que Boris Ieltsin emergisse da Duma, subisse para um tanque e se tornasse um herói perante o mundo. Quando o traumatizado Gorbachev foi libertado da prisão domiciliar na Criméia e regressou a Moscou, para se deparar com o seu velho inimigo no poder, pairavam no ar fortes dúvidas quanto à lealdade do Grupo Alfa. E o mesmo se aplicava ao Vympel.

            Em 1999, os dois grupos, fortemente armados, continuavam desacreditados. Contudo, para Grishin, tinham duas vantagens. À semelhança de muitas forças especiais, dispunham de uma preponderância de oficiais. Os veteranos tendiam, politicamente, para a extrema direita anti-semitas, antiminorias étnicas e antidemocráticas. Em segundo lugar, havia meses que não recebiam o salário.

            O namoro do coronel foi como uma canção de sereia: a restauração dos antigos poderes do KGB, o tratamento preferencial devido a uma verdadeira elite e elevação do salário para o dobro, com efeitos imediatos.

            Na noite de Fim do Ano, as tropas do Vympel receberam ordem para se armar, abandonar o aquartelamento, seguir para o aeródromo e base do exército de Khodinka e dominar a guarnição. O Grupo Alfa ficou a seu cargo com o Ministério do Interior e o contíguo quartel da OMON, com uma companhia suplementar encarregada de tomar as instalações da SOBR, junto da Rua Shabolovka.

            A 29 de Dezembro, Grishin participou numa reunião na suntuosa casa de campo nos subúrbios de Moscou pertencente aos mafiosos do Dolgoruki, onde conversou com o Skhod, conselho supremo que governa o bando. Para ele, foi uma sessão de importância crucial.

            No que se referia à Mafia, tinha muitas explicações a dar, pois as batidas promovidas pelo general Petrovski ainda se achavam bem frescas na memória. Como financiadores da campanha, exigiram esclarecimentos minuciosos.

            No entanto, à medida que o coronel falava, o estado de espírito geral modificava-se. E, quando revelou que houvera um plano para declarar Igor Komarov inapto para se candidatar à suprema magistratura da nação, o alarme sobrepôs-se à atitude agressiva, pois todos lucrariam com a sua vitória eleitoral.

            O impacto global foi a revelação de Grishin que essa idéia tinha sido alargada. O Estado tencionava deter Komarov e esmagar os Guardas Negros, e em breve eram os mafiosos que solicitavam a indicação da maneira de proceder mais conveniente. No momento em que o coronel anunciou a solução concebida, ficaram abismados. O crime de todas as naturezas, atividades de Mercado Negro, narcóticos e prostituição constituíam a sua especialidade. Mas um golpe de Estado?...

            - Trata-se apenas do maior de todos os roubos: o da República - esclareceu ele. - Recusem-no, e voltarão a ser perseguidos pelo MVD, FSB e todos os outros. Se, pelo contrário, o aceitarem, o país será nosso.

            Empregou o termo zemlya, que significa o território, o país, a terra e tudo o que contém.

            O mais graduado dos membros da organização mafiosa, sentado à cabeceira da mesa, um velho vorv zakone, “chefe por estatuto”, que nascera no submundo, à semelhança do pai e de todo o seu clã e, entre o Dolgoruki, se aproximava mais do padrinho dos padrinhos sicilianos, olhou Grishin em silêncio durante vários segundos, enquanto os outros aguardavam. Por fim, começou a acenar com a cabeça e estabeleceu-se o acordo geral.

            Que implicava também a cedência da terceira força armada que o coronel necessitava. Duzentas das oitocentas empresas de “segurança” particulares de Moscou constituíam fachadas do Dolgoruki, e contribuiriam com dois mil homens, todos antigos soldados ou torcionários do KGB fortemente armados, que ocupariam a Casa Branca, sede da Duma, e o gabinete presidencial, com as dependências ministeriais.

 

            No mesmo dia, Jason Monk telefonou ao general Petrovsky, que continuava a viver no quartel da SOBR.

            - Sim?...

            - Sou eu, outra vez. Em que se ocupa?

            - Que tem com isso?

            - Fazendo as malas?

            - Como adivinhou?

            - Todos os russos querem passar o Ano Novo com as famílias.

            - Ouça, o meu avião parte dentro de uma hora.

            - Acho que devia cancelar a viagem. Haverá outras datas como esta.

            - A que se refere?

            - Leu os jornais desta manhã?

            - Alguns. Porquê?

            - Refiro-me às últimas sondagens. As que entram em conta com as revelações dos jornalistas sobre a UFP e a última conferência de Imprensa de  Komarov. Atribuem-lhe quarenta por cento, com tendência para baixar.

            - Nesse caso, perde as eleições e as ganha Zyuganov, o neocomunista. Que quer que eu faça a esse respeito?

            - Pensa que Komarov aceitará isso de braços cruzados? Garanto-lhe que o homem é louco.

            - Que remédio vai ter senão aceitar? Se a sua posição nas sondagens continuar com essa tendência, está perdido

            - Outro dia fez determinado comentário, general.

            - Fiz? Qual?

            - Disse que, se a Rússia fosse atacada, o próprio Estado se defenderia.

            - Que diabo sabe que eu desconheço?

            - Não sei nada. Suspeito. Ignora que a suspeita é a especialidade da Rússia?

            Petrovsky cravou o olhar arregalado no bocal e depois na mala aberta em cima da estreita cama do quartel.

            - Não acredito que ele se atreva - acabou por dizer. - Ninguém se atreveria.

            - Yazov e Kryuchkov atreveram-se.

            - Isso foi em 1991. A situação agora é diferente.

            - Só porque eles complicaram tudo. Por que não fica na cidade durante as festividades? Pelo sim, pelo não.

            Pousou o auscultador e começou a desfazer a mala.

 

            Grishin consumou a sua última aliança num encontro em um bar, a 30 de Dezembro. O interlocutor era um cretino de abdomen avolumado pelo consumo prolongado de cerveja, mas o elemento mais próximo do comandante dos bandos de rua do Movimento da Nova Rússia

            Apesar da pretensiosa designação, o MNR pouco mais era do que um grupo desorganizado de rufiões tatuados e cabeças rapadas da ultradireita, que obtinham o seu rendimento e prazer assaltando e roubando judeus.

            O maço de dólares que o coronel exibira achava-se pousado na mesa entre ambos e o homem do MNR olhava-o com avidez.

            - Posso reunir quinhentos rapazes bons em qualquer momento que desejar  - anunciou. - Qual é o trabalho?

            - Eu contribuo com cinco membros dos Guardas Negros. Vocês aceitam as suas ordens de combate, ou o acordo fica sem efeito.

            A expressão “ordens de combate” tinha um som agradável. De cariz militar. O Movimento orgulhava-se de se compor de soldados da Nova Rússia, embora nunca se tivesse amalgamado com a UFP, pois a disciplina não figurava entre os seus requisitos preferidos.

            - Qual é o alvo?

            - Na véspera do Ano Novo, entre as dez e a meia-noite. Assaltar, tomar e   ocupar as instalações do presidente da Câmara! E há uma regra obrigatória.  Nada de bebida até  à alvorada.

            O representante do MNR refletiu por um longo momento. Finalmente, debruçou-se sobre a mesa e exigiu:

            - Depois, queremos os judeus.

            Grishin exibiu um sorriso malicioso.

            - Serão a minha oferta pessoal.

            - Negócio fechado.

            Ficou estabelecido que os homens do MNR se reuniriam nos jardins da Praça Pushkin, a trezentos metros da mansão em que se alojava o governo da cidade de Moscou. Ninguém suspeitaria da presença daquela fauna no local, pois havia um estabelecimento da rede McDonald’s em frente.

            Enquanto se afastava, Grishin refletia que alguém acabaria por se ocupar radicalmente dos judeus da capital, mas o mesmo aconteceria à escória do MNR. Seria divertido embarcá-los nos mesmos trens, com destino a Vorkhuta.

 

            Na manhã de 31 de Dezembro, Jason Monk voltou a telefonar ao general Petrovsky, que se encontrava no seu gabinete do quartel-general da GUVD, na Rua Shabolovka.

            - Continua no seu  posto?

            - Continuo, diabos o carreguem.

            - A GUVD dispõe de um helicóptero?

            - Com certeza.

            - Pode voar, com este tempo?

            Antes de responder, Petrovsky olhou as nuvens baixas através da janela gradeada.

            - Desde que não mergulhe na nebulosidade.

            - Conhece a localização dos campos dos Guardas Negros de Grishin espalhados pela cidade?

            - Não, mas posso descobrir. Porquê?

            - Por que não os sobrevoa?

            - Para quê?

            - Se os rapazes são pacíficos cidadãos, devem ter todas as luzes acesas e estar entretidos com os preparativos das celebrações desta noite. Vá olhar. Volto a ligar dentro de duas horas.

            Quando o telefonema surgiu, a voz do general deixava transparecer apreensão.

            - Quatro parecem fechados. Em contrapartida, no campo de Grishin, a nordeste daqui, revela agitação como um formigueiro. Estão sendo carregados   numerosos caminhões. Dá a impressão que ele concentrou todos os efetivos aí.

            - Por que faria uma coisa dessas?

            - Aguardo que você me explique.

            - Não sei,  mas não me agrada. Cheira-me a exercícios noturnos.

            - Na véspera do Ano Novo? Não diga besterias. É uma data em que todo o russo que se preza se embebeda.

           - Precisamente. Todos os militares de Moscou deveriam estar bêbedos como porcos, à meia-noite. A menos que recebessem ordem para se manterem sóbrios. Não é uma medida popular, mas, como disse antes, haverá outras passagens de ano. Conhece o comandante do regimento da OMON?

            - Sem dúvida. É o general Kozlovsky.

            - E o da Guarda de Segurança Presidencial?

            - Também. O general Korin.

            - Neste momento, estão com as famílias, suponho.

            - É natural.

            - Aqui para nós: se Komarov ganhar as eleições, que lhe acontecerá, general, a sua esposa e a Tatiana? Acha que isso merece uma noite de vigília? E alguns telefonemas?

 

            Depois de desligar, Monk pegou um mapa de Moscou e imediações e percorreu com o indicador a área a nordeste da capital, onde Petrovsky indicara que se situavam as bases principais da UFP e dos Guardas Negros.

            Proveniente de nordeste, a principal estrada era a Yaroslavskoye Chaussee, que, um pouco adiante, se tornava na Prospekt Mira. Tratava-se da artéria mais concorrida e estendia-se para além do complexo da televisão Ostankino. Em seguida, voltou a utilizar o telefone.

            - Preciso de um último favor, amigo Umar...  Sim, juro que é mesmo o último. Um carro com telefone e o seu número para toda a noite... Não, dispenso Magomed e os outros. Estragaria-lhes a festa. Só o carro e o telefone. Ah, e uma arma de fogo manual! Se não for grande incômodo...

            Soou uma gargalhada divertida no outro lado do fio.

            - De algum modelo especial?...

            - Bem. - Recordou-se dos dias que passara no Castelo Forbes. - Por acaso, pode me arranjar uma Sig Sauer suíça?

 

            Dois fusos horários a oeste de Moscou, as condições meteorológicas eram muito diferentes céu limpo e temperatura rondando os zero graus, enquanto o Mecânico rolava suavemente através do arvoredo em direção à casa senhorial.

            Os preparativos para a viagem ao longo da Europa tinham sido meticulosos, como sempre, e ele não experimentara qualquer problema. Preferira utilizar o automóvel. As armas de fogo e os aviões comerciais raramente se davam, enquanto um carro dispunha de muitos esconderijos.

            Através de Belarus e a Polónia, o Volvo registrado em Moscou não despertara a menor atenção e os seus documentos revelavam que era apenas um homem de negócios que ia participar num congresso na Alemanha. A inspeção à viatura não proporcionaria qualquer elemento que contradissesse essa informação.

            Na Alemanha, onde a Mafia russa se achava bem estabelecida, trocou o carro por um Mercedes com matrícula alemã e comprou facilmente a espingarda de caça com mira telescópica, antes de prosseguir viagem mais para ocidente.

            Em obediência às novas disposições da União Européia, as fronteiras quase não existiam em termos alfandegários, e ele incorporou-se na fila de outros veículos que desfilavam diante de um funcionário de expressão enfastiada.

            Adquirira um mapa de estradas da área que lhe interessava, identificou a aldeia mais próxima do seu alvo e depois a mansão. Ao atravessar a povoação, limitou-se a seguir os sinais até à entrada do curto caminho de acesso, confirmou numa tabuleta que se tratava do endereço que procurava e continuou em frente.

            Depois de passar a maior parte da noite num motel a oitenta quilômetros de distância, voltou lá antes da alvorada, mas estacionou o carro a três quilômetros da mansão e percorreu o resto do caminho a pé, através do arvoredo, para emergir atrás da casa. Quando nasceu o tímido Sol de Inverno, procurou uma posição junto de uma faia e preparou-se para esperar. Do ponto em que se encontrava, avistava perfeitamente a mansão e respectivo pátio a trezentos metros, sem o perigo de ser visto.

            Quando se começou a registrar o primeiro movimento do dia, um faisão pousou a curta distância dele, olhou-o com animosidade e voltou a levantar vôo, enquanto dois esquilos trepavam em uma árvore das cercanias.

            Às nove, um homem apareceu no pátio. O mecâniico pegou o binóculo e corrigiu levemente o foco até que o vulto pareceu encontrar-se apenas a quinze metros. Não se tratava do seu alvo, mas de um empregado doméstico, que foi buscar alguns toros em um alpendre e voltou para dentro.

            A um lado do pátio, havia uma fiada de estábulos. Duas das caixas móveis estavam ocupadas e as cabeças de dois cavalos apareciam no topo das meias portas. Às dez horas, foram recompensados com a visita de uma jovem que lhes levou palha fresca e tornou a entrar em casa.

            Pouco antes do meio-dia, surgiu um homem mais idoso, que cruzou o pátio e afagou os focinhos dos cavalos. O mecânico estudou-lhe o rosto com o binóculo e em seguida baixou os olhos para a fotografia que extraiu do bolso. Não havia engano possível.

            Empunhou a espingarda e olhou pela mira telescópica. O homem voltava-se para os cavalos, de costas para ele. Agora, bastava soltar a mola de segurança, conter a respiração e apertar o gatilho devagar.

            O estampido ecoou no vale. No pátio, o homem pareceu impelido contra a meia porta. O orifício nas costas, no nível do coração, perdia-se no desenho do tweed do casaco, e a saída da bala estava comprimida de encontro à porta. Os joelhos dobraram-se e o corpo deslizou para o chão. O segundo tiro destruiu metade da cabeça.

            O Mecânico endireitou-se, guardou a espingarda na manga de pele de cordeiro, que pendurou a tiracolo, e começou a correr. Deslocava-se rapidamente, pois memorizara o caminho pelo qual viera seis horas antes, de volta ao carro.

            Dois tiros numa manhã de Inverno, em pleno campo, não podiam se considerar uma raridade. Um agricultor que caçava coelhos ou abatia corvos, por exemplo. Até que alguém espreitasse à janela e cruzasse o pátio apressadamente. Haveria gritos, exclamações de incredulidade, tentativas de reanimação, mas tudo em vão. Por fim, o regresso precipitado a casa, para telefonar à Polícia, a explicação atabalhoada e as longas e fastidiosas investigações policiais.

            Tudo muito tarde. Em quinze minutos, ele encontrava-se ao volante do Mercedes. Meia hora após os disparos, rolava na auto-estrada próxima, mais um carro entre centenas. Entretanto, o policial local registrara as primeiras declarações e entrava em contacto pelo rádio com a vila para que enviassem detetives.

            Sessenta minutos depois dos dois tiros, o Mecânico atirara a espingarda com a manga de pele de cordeiro do parapeito que escolhera previamente e acompanhou-as com a vista até que desapareceram nas águas escuras. Por fim, iniciou a longa viagem de volta para casa.

 

            Os primeiros faróis surgiram pouco depois das sete, movendo-se lentamente na direção dos edifícios bem iluminados que constituíam o centro Ostankino da TV. Jason Monk sentava-se ao volante do seu carro, cujo motor permanecia em movimento para carregar o aquecimento, para atenuar o frio.

            Encontrava-se estacionado à entrada do Bulevar Akademika Koroleva, na esquina de uma travessa, com o bloco principal à frente do pára-brisas e a torre de transmissão atrás dele. Quando se certificou de que, desta vez, os faróis não eram de uma única viatura, mas de uma coluna de caminhões, desligou o motor, e a tênue coluna de fumaça proveniente do tubo de escape extinguiu-se.

            Eram cerca de trinta, mas apenas três avançaram diretamente para o parque de estacionamento do edifício principal uma vasta estrutura de cinco pisos de altura e trezentos metros de largura, com duas entradas, ao lado de uma superestrutura de cem metros de largura e dezoito andares. Normalmente, trabalhavam ali oito mil pessoas, mas na véspera do Ano Novo não chegavam a quinhentas, para garantirem que o serviço prosseguisse toda a noite.

            Homens armados trajados de preto saltaram dos três caminhões estacionados e correram para as duas áreas de recepção. Em poucos segundos, o pessoal que trabalhava ali achava-se alinhado de costas para a parede, mantido em respeito por meio de armas de fogo. A seguir, Monk viu que o removiam para fora do seu campo visual.

            No interior do edifício principal, precedidos de um porteiro aterrorizado, outros homens armados encaminharam-se para a área das comunicações, surpreendendo as funcionárias, enquanto um membro dos intrusos, antigo técnico da Telekon, desligava todas as linhas.

            Um dos Guardas Negros emergiu da entrada e, recorrendo ao clarão de uma lanterna, fez sinal ao resto do comboio, o qual avançou em direção ao estacionamento e rodeou o bloco dos escritórios, num anel defensivo. Centenas de outros guardas desceram e entraram rapidamente.

            Embora Monk só conseguisse enxergar formas vagas atrás das janelas dos andares superiores, os guardas, em conformidade com o plano, dispersavam-se por pisos sucessivos, ao mesmo tempo que retiravam os celulares do pessoal apavorado e os lançavam para sacos que se faziam acompanhar.

            À esquerda do americano, havia um edifício secundário, menor, também pertencente ao complexo da TV, reservado ao pessoal administrativo, executivos e preparadores de programas, agora nos respectivos domicílios festejando a passagem de ano.

            Imerso na escuridão Monk estendeu a mão para o telefone do carro e marcou um número que sabia de cor.

            - Petrovsky.

            - Sou eu.

            - Onde está?

            - Em Ostenkino, num carro muito frio.

            - Pois eu estou num quartel incrivelmente quente, com um milhar de jovens à beira de um motim.

            - Tranquilize-os. Estou assistindo à tomada de todo o complexo da TV pelos Guardas Negros.

            Seguiu-se um silêncio.

            - Não diga tolices. Deve estar enganado.

            - Muito bem. Imagine mil homens armados, vindos em trinta caminhões,   invadindo Ostankino  e mantemdp o pessoal quieto empunhando armas de fogo. É o que estou presenciando neste momento, a duzentos metros de distância, através do pára-brisas.

            - Santo Deus! Ele está mesmo levando a sua avante.

            - Eu lhe disse que era louco. Em todo o caso, existe o perigo de vencer. Haverá alguém suficientemente sóbrio em Moscou, esta noite, para defender o Estado?

            - Dê-me o seu número e saia da linha.

            Monk deu-o, refletindo que as forças da lei e ordem estavam muito  ocupadas para se dedicarem a localizar carros em movimento

            - Uma última coisa, general. Eles não interromperão os programas previstos. Por enquanto. Deixarão o material gravado ir ao ar normalmente...  até  estarem prontos para desencadear o ataque final.

            - Sim, estou assistindo à emissão do Canal 1. Neste momento, transmite a atuação da Troupe de Dança dos Cossacos.

            - Sim, é uma gravação. Assim como tudo o que transmitirem até à hora do  noticiário. E agora, acho que deve começar a utilizar o telefone, general.

            No entanto, este já cortara a ligação. Embora não o soubesse, o seu aquartelamento seria atacado dentro de sessenta minutos.

            Pairava um silêncio estranho. Quem planejara a tomada de Ostankino previra todas as eventualidades. Em ambos os lados do bulevar, havia blocos de apartamentos, na sua maioria com luz nas janelas, com os ocupantes em mangas de camisa e copo na mão, vendo o programa da TV que era tomada sem problemas a poucos metros de distância.

            Monk passara o tempo estudando o mapa das ruas da área de Ostankino, pelo que sabia que, se surgisse no bulevar principal naquele momento, se exporia a graves problemas. No entanto, atrás dele, havia uma rede de travessas entre projetos de urbanização que conduziam ao centro da cidade.

            A maneira lógica de proceder consistia em atravessar o Prospekt Mira, principal via de acesso ao centro, mas suspeitava que esse percurso também não era saudável, naquela noite.

            Sem acender os faróis, descreveu uma rotação de cento e oitenta graus, desceu, agachou-se e esvaziou um carregador da sua automática sobre os caminhões e edifício da TV.

            A duzentos metros, uma arma manual soa como um foguete, porém as balas atingem o alvo com eficiência. Três janelas voaram em estilhaços, o pára-brisas de um caminhão fragmentou-se e um disparo afortunado acertou na orelha de um Guarda Negro Um dos seus companheiros enervou-se e alterou o silêncio da noite com a espingarda de assalto Kalashnikov.

            Devido ao frio intenso que os obrigava a manter as janelas fechadas e calafetadas e o som dos televisores no máximo do volume, a maioria dos residentes continuou a não perceber nada. Todavia, a Kalashnikov destruiu três janelas de apartamentos e começaram a surgir cabeças com expressões alarmadas, algumas das quais desapareceram com prontidão para telefonar à Polícia.

            Os Guardas Negros principiaram a juntar-se e avançar para o americano, que retrocedeu para o carro e o pôs em marcha. Embora os faróis continuassem apagados, os outros ouviram o ruído do motor e dispararam nessa direção.

 

            No quartel-general do MVD, na Praça Zhitny, o oficial de serviço era o comandante do regimento da OMON, general Ivan Koslovsky, que se encontrava no seu gabinete. O homem que o convencera a cancelar as licenças dos seus três mil homens e falara de quatrocentos metros de distância na Rua Shabolovka, encontrava-se de novo ao telefone, e o general dirigia-se a ele em voz alterada.

            - Não diga baboseiras!  Estou vendo o programa da TV e não noto nada de anormal. Foi informado por quem?...  Um momento, um momento. - O outro telefone começara a tocar e ele levantou o auscultador e vociferou: - Sim?

            Respondeu a voz de um telefonista nervoso.

            - Desculpe incomodá-lo, general, mas é o oficial mais antigo de momento no quartel. Tenho um homem na linha que diz que mora em Ostankino e andam por lá aos tiros nas ruas. Uma bala estilhaçou-lhe a janela.

            O tom de Kozlovsky alterou-se, e foi com calma e clareza que ordenou:

            - Peça-lhe que dê todos os pormenores e depois volte a ligar para cá.  Tornou a utilizar o outro telefone. - Talvez tenha razão, Valentim. Acaba de telefonar um cidadão dizendo que há tiroteio no local. Vou passar a alerta vermelho .

            - Eu também. A propósito, ligou para cá um certo general Korin. Concordou em manter alguns Presidenciais de prevenção.

            - Bem pensado. Vou ligar para lá.

            Chegaram mais oito telefonemas da área de Ostankino relativos a tiroteio nas ruas e em seguida um mais lúcido de um engenheiro que vivia num apartamento alto do outro lado do. centro da TV. O telefonista transferiu prontamente a chamada para o general Kozlovsky.

            - Estou vendo tudo daqui - informou o homem, que, à semelhança de todos os russos do sexo masculino, cumprira o serviço militar. - São uns mil homens, todos armados, com um comboio de mais de duas dezenas de caminhões. - E descreveu minuciosamente a natureza do armamento.

            “Graças a Deus que existe o serviço militar obrigatório”, refletiu o oficial. O BTR 80A que o homem acabava de citar era o transporte blindado de oito rodas, com um canhão de trinta milímetros incorporado, em que viajavam o comandante, o condutor, um artilheiro e seis soldados da brigada de desmantelamento de material pesado.

            No entanto, se os atacantes trajavam negro, não pertenciam ao Exército. As suas próprias equipes da OMON usavam uniforme dessa cor, mas encontravam-se no quartel. Ligou aos comandantes de unidade e ordenou:

            - Reunam os seus homens e ponham-se a andar. Quero duzentos nas ruas e mil defendendo isto.

            Estava se desenrolando um golpe de Estado, os atacantes teriam de neutralizar o Ministério do Interior e os seus aquartelamentos Por sorte, estes últimos tinham sido construídos como uma fortaleza

            Lá fora, havia já outras tropas em movimento, embora não fossem comandadas por Kozlovsky. A força de ação rápida Alfa aproximava-se do Ministério.

            O problema de Grishin consistira na sincronização. Necessitava coordenar os ataques, sem quebrar o silêncio da rádio até o último minuto. Se atacasse prematuramente, os defensores poderiam não se achar ainda imersos por completo nas celebrações Se o fizesse muito tarde, se arriscaria a perder algumas horas de escuridão. Assim, ordenara ao Grupo Alfa que avançasse às nove.

            Às oito e meia, dois comandos da OMON abandonaram o aquartelamento em caminhões. Assim que partiram, os homens restantes selaram a sua fortaleza e ocuparam posições defensivas As nove, começaram a achar-se debaixo de fogo, mas, para os atacantes, o elemento surpresa desaparecera.

            O tiroteio ecoou nas ruas em torno do ministério e na Praça Zhitny. Os soldados do Grupo Alfa tiveram de se abrigar e lamentar que não dispusessem de artilharia.

            - Americano?

            - Sim?

            - Onde está, agora?

            - Tento ficar vivo. Sigo para sul do centro da TV e evito a Prospekt Mira.

            - Vão tropas a caminho. Dois mil homens meus e dois mil da OMON.

            - Posso fazer uma sugestão…

            - Se acha necessário.

            - Ostankim é apenas uma parte da operação global. No lugar de Grishin, que alvo escolheria, general?

            - O MVD, Lubyanka.

            - O  MVD, sim. Lubyanka, não. Duvido que ele encontre problemas entre os velhos camaradas do Segundo Diretorado Principal.

            - Talvez tenha razão. Que mais?

            - A sede do governo, em Staraya Ploshchad, e a Duma. Por causa do aspecto de legitimidade. E os lugares onde podem surgir focos de resistência.  Aí   a GUVD e as tropas pára-quedistas do aeródromo de Khodinka. Além do Ministério da Defesa. Mas, sobretudo, o Kremlin. Sem o Kremlin é que não pode passar.

            - Está defendido. O general Korin foi informado e entrou em estado de  alerta vermelho. Não sabemos o número dos efetivos de Grishin.

            - Uns trinta, ou mesmo quarenta mil homens.

            - Caramba! Nós temos menos de metade.

            - Mas de melhor qualidade. E ele perdeu cinquenta por cento.

            - Quais cinquenta por cento?

            - O fator surpresa. Que há sobre reforços?

            - O general Korin já deve ter contactado com o pessoal de Defesa.

 

            O coronel-general Sergei Korin, comandante da Guarda de Segurança Presidencial, alcançara o aquartelamento no interior das muralhas do Kremlin e bloqueara o Portão Kutaya de defesas múltiplas atrás dele, antes da coluna principal de Grishin poder penetrar na Praça Manege. Logo após esse portão, havia a imponente Torre da Trindade, na qual, à direita, se situava o aquartelamento da Guarda Presidencial. O general Korin encontrava-se no seu gabinete e falando ao telefone com o Ministério da Defesa.

            - Ligue-me com o oficial de serviço mais antigo! - rugiu. Registrou-se uma pausa, e uma voz sua conhecida surgiu na linha.

            - Fala o subsecretário da Defesa, Butov.

            - Graças a  Deus que está aí. Temos uma crise. Parece que  eclodiu  uma  espécie de golpe de Estado. Ostankino foi tomada. A MVD encontra-se debaixo de fogo. Há uma coluna de carros e caminhões blindados às portas do Kremlin.  Precisamos de ajuda.

            - Vão tê-la. De que necessitam, concretamente?

            - De tudo. E a Dzerzhinsky?

            Korin referia-se a uma Divisão de Infantaria Especial de Operações Mecanizadas, criada especificamente como unidade de defesa antigolpes de Estado, depois do putsch de 1991.

            - Está em Ryazan, mas posso dar-lhe ordem de marcha numa hora, para chegar aí dentro de três.

            - O mais depressa possível. E as VDV?

            Ele sabia que havia uma brigada de pára-quedistas de elite a menos de uma hora de distância por avião, a qual poderia descer no aeródromo de Khodinka, se a área de aterragem fosse assinalada.

            - Obterá tudo o que eu conseguir reunir, general.

 

            Uma equipe de Guardas Negros avançou sob fogo de proteção das suas metralhadoras pesadas e alcançou o abrigo do Portão Borovitsky, onde colocou uma carga de plástico junto de cada um dos quatro gonzos. Quando se retirava, dois homens foram abatidos por fogo proveniente do topo das muralhas. Segundos depois, as cargas explodiam. As portas, que deviam pesar umas vinte toneladas, sofreram um profundo abalo, pareceram oscilar por um momento e tombaram pesadamente.

            Indiferente ao fogo das armas de pequeno calibre, um blindado avançou no caminho de acesso e atingiu o abrigo protetor da arcada. A seguir ao portão derrubado, havia uma grossa grade de aço Do outro lado, no parque de estacionamento que os turistas costumavam atravessar, surgiu uma Presidencial, que tentou disparar um míssil antitanque por entre a grade. No entanto, o canhão do blindado antecipou-se e despedaçou-a.

            Guardas Negros irromperam das entranhas do veículo vencedor do recontro e colocaram cargas em vários pontos da grade de aço. Em seguida, recolheram-se ao blindado, que se afastou até que se registraram diversas explosões, e o obstáculo sofreu sorte idêntica à do portão.

            Apesar do fogo cruzado, os Guardas Negros começaram a entrar na fortaleza, pois superavam os Presidenciais em número. Os defensores recuaram para os vários redutos existentes no interior das muralhas do Kremlin, enquanto alguns dispersavam pelos diversos edifícios circundantes, apesar do que se registrou também luta corpo a corpo. Pouco a pouco, os Guardas Negros foram ganhando terreno.

            - Que diabo está acontecendo, Jason? - A voz no telefone do carro era a de Omar Gunayev.

            - Grishin tenta tomar Moscou e a Rússia, meu amigo.

            - E você está bem?

            - Estou, até este momento.

            - Onde se encontra?

            - Sigo para sul de Ostankino, numa tentativa para evitar a Praça Lubyanka. Porquê?

            Um dos meus homens acaba de passar por Tverskaya. Há uma enorme multidão desses rufiões do Movimento da Nova Rússia abrindo caminho violentamente em direção à residência do presidente da Câmara.

            - Sabe o que o MNR pensa de você e o seu grupo?

            - Com certeza.

            - Por que não deixa algums dos seus rapazes ajustar contas. Desta vez, ninguém interferirá.

            Uma hora mais tarde, trezentos homens armados chegavam à Rua Tverskaya, onde os bandos do MNR invadiam a sede do governo na cidade de Moscou. Do outro lado da rua, a estátua de pedra de Yuri Dolgoruki, fundador da capital, escarranchado no cavalo, contemplava a cena com desdém. A porta principal do edifício do Município fora derrubada e a entrada escancarava-se como as goelas de um animal gigantesco.

            Os chechenos puxaram as navalhas caucasianas, pistolas e Uzis e entraram. Todos tinham bem presente na memória a destruição da sua capital, Grozny, em 1995, e de toda a Chechenia, nos dois anos subsequentes. Passados os primeiros dez minutos, deixou de haver luta.

            O edifício da Duma, a Casa Branca, caíra em poder dos mercenários da empresa de “segurança” quase sem oferecer resistência, pois ocupavam-no apenas empregados da limpeza e guardas noturnos. Mas, em Staraya Ploschad, os mais de mil homens da SOBR travavam combate renhido com os que restavam dos das duzentas companhias de “segurança” do bando de Dolgoruki, e as armas mais pesadas da Força de Reação Rápida e da Polícia Antibanditismo da cidade de Moscou mantinham-se firmes perante o número muito mais elevado dos oponentes.

            No aeródromo de Khodinka, as forças especiais da Vympel encontravam resistência inesperada nos poucos membros dos pára-quedistas e da contra-espionagem do GRU, os quais, prevenidos a tempo, tinham se barricado dentro.

            Monk entrou na Praça Arbat e parou, surpreso. No lado nascente do triângulo, o bloco de granito do Ministério da Defesa parecia abandonado e silencioso. Não havia Guardas Negros, tiros ou vestígios de uma entrada forçada. De todas as instalações que o organizador de um golpe de Estado em Moscou, ou qualquer capital, desejaria tomar, e com rapidez, aquele edifício figuraria nos primeiros lugares da lista. A quinhentos metros dali, ao longo da Rua Znamenka e toda a Praça Borovitsky, ouviam-se disparos, enquanto a luta pela posse do Kremlin recrudescia.

            Como se explicava que o Ministério da Defesa não tivesse sido tomado ou estivesse ao menos cercado? Através da floresta de antenas do telhado, as mensagens decerto cruzavam o éter da Rússia para pedir auxílio ao Exército. Por fim, consultou a agenda de endereços e marcou um número no telefone do carro.

            Nos seus aposentos, duzentos metros no interior do portão principal da base de Kobyakova, o major-general Misha Andreyev ajeitou o nó da gravata e preparou-se para sair. Perguntava-se com frequência por que vestia o uniforme para presidir às festividades da Passagem do Ano, no Clube dos Oficiais. Na manhã seguinte, estaria tão manchado que teria de seguir para a lavanderia Quando se tratava de semelhantes celebrações, os homens dos blindados  vangloriavam-se de não receber lições de ninguém.

            O telefone tocou. Devia ser o seu oficial executivo recomendando que se apressasse.

            - Vou já, vou já - disse para o silêncio que reinava à sua volta, e levantou o auscultador.

            - General Andreyev? - A voz não era conhecida.

            - O próprio.

            - Não nos conhecemos. Fui amigo, por assim dizer, do seu falecido tio.

            - Sim?

            - Era um bom homem.

            - Concordo inteiramente.

            - Fez o que pôde, ao denunciar Komarov, naquela entrevista.

            - Onde pretende chegar?

            - Igor Komarov montou um golpe em Moscou. Esta noite. Comandado pelo seu cão, o coronel Grishin. Os Guardas Negros estão tomando a capital e, com ela, a Rússia.

            - Está bem, chega de brincadeira. Volte para a sua vodka e largue o telefone.

            - Se não acredita, por que não liga a algum conhecido no centro de Moscou?

            - Para quê?

            - Há tiroteio. Pode ser ouvido por metade da cidade  Mais uma coisa. Foram os Guardas Negros que mataram Tio Kolya. Por ordem do coronel Grishin.

            Misha Andreyev viu-se perante o telefone que emitia o som característico de desligado. Estava irritado com a intrusão na sua privacidade, sobretudo através da linha confidencial, e com o insulto ao tio. Se estivesse acontecendo algo de grave em Moscou, o Ministério da Defesa se apressaria em alertar as unidades do Exército num raio de cem quilômetros da capital.

            A base de Kobyakovo situava-se apenas a quarenta e seis quilômetros do Kremlin. Ele sabia, porque confirmara no seu carro. Era igualmente a sede da unidade que se orgulhava de comandar a Divisão Tamanskaya, elite de blindados, cujos homens eram conhecidos por Guardas Tamanes.

            Pousou o auscultador e a campainha tocou imediatamente.

            - Então, Misha? Estamos todos à sua espera para começar isto.

            Era o seu oficial executivo, no clube.

            - Já vou, Konni. É só o tempo de fazer dois telefonemas.

            - Está bem, mas seja rápido, ou começaremos sem a sua presença.

            Andreyev marcou um número e, ao segundo toque, uma voz informou:

            - Ministério da Defesa.

            - Ligue-me com o oficial de serviço.

            A voz seguinte surgiu na linha quase imediatamente.

            - Quem fala?

            - O major-general Andreyev, comandante Tamanskaya.

            - Sou o subsecretário da defesa, Butov.

            - Ah, desculpe incomodá-lo. Diga-me, por favor: está tudo normal?

            - Sem dúvida. Por que não haveria de estar?

            - Por nada em especial, senhor subsecretário. Só que me aconteceu uma coisa... estranha. Posso mobilizar os meus homens em...

            - Fique na sua base, general. É uma ordem, ouviu? Todas as unidades devem permanecer nos quartéis. Volte para o Clube dos Oficiais.

            - Sim, senhor.

            Andreyev pousou o auscultador, mais uma vez. O subsecretário da Defesa na sala de comunicações às dez horas da manhã, na véspera do Ano Novo? Por que diabo não estava em casa com a família ou fornicando com a amante, em algum lugar no campo? Esquadrinhou o espírito à procura de um nome, um colega do Colégio do Estado-Maior que tivesse ingressado nos serviços secretos, entre os papões do GRU. Finalmente, consultou a lista telefônica militar confidencial e marcou um número.

            Ouviu a campainha tocar repetidamente no outro extremo do fio e consultou o relógio. Onze menos dez. Deviam estar todos bêbados, claro. Por último, alguém atendeu no aeródromo de Khodinka.

            - Alô? Quem é? - articulou uma voz aguda, com intenso ruído de fundo.

            - Quem fala? O coronel Denridov encontra-se aí?

            - Como quer que o saiba? Estou deitado no chão, para escapar às balas. É do Ministério da Defesa?

            - Não.

            - Então, veja se consegue ligar para lá e peça que não tardem a enviar reforços. Não podemos resistir por muito mais tempo.

            - Reforços?

            - O Ministério prometeu mandar tropas de fora da cidade. Anda o diabo à solta, aqui! 

            E a voz aguda desapareceu da linha, seguida imediatamente de um estalido. O general Andreyev conservou-se imóvel um momento, com o auscultador na mão. “Não vão lhes mandar quaisquer tropas”, refletiu.

            As ordens que recebera tinham sido formais e bem claras. Provinham de um general de quatro estrelas que exercia o cargo de ministro. Devia conservar-se na base. Podia cumpri-las, e a sua carreira permaneceria limpa.

            Voltou o olhar para o espaço nevado que o separava do Clube dos Oficiais, onde havia grande animação.

            Viu. todavia, na neve, um homem empertigado, com um jovem cadete ao lado. Dizia-lhe solenemente que, independentemente do dinheiro, promoções ou honrarias que lhe oferecessem, não devia trair os heróis do passado.

            Estendeu a mão para o descanso do telefone, cortou a ligação e em seguida marcou dois dígitos. O seu oficial executivo apareceu na linha, tendo gargalhadas e exclamações como pano de fundo.

            - Preste atenção, Konni. Quero tudo o que existe nesta base capaz de se mover em ordem de marcha, dentro do máximo de uma hora.

            Um minuto após a meia-noite do ano 2000, o primeiro blindado dos Guardas Tamanes abandonava a base de Kobyakova e rolava na direção da auto-estrada de Minsk e portões do Kremlin.

            A estrada estreita de acesso tinha apenas três quilômetros, na qual o pesado material precisava se deslocar em fila indiana e a uma velocidade reduzida.

            Uma vez na auto-estrada, o general Andreyev transmitiu ordem para ocupar as duas faixas de rodagem e aumentar a velocidade na medida do possível. O céu encoberto do dia anterior apresentava agora boas abertas, que permitiam descortinar as pálidas estrelas.

            Eram quarenta e três quilômetros até aos portões do Kremlin, e eles cobriam-nos à média de sessenta horários. Um motorista solitário que se aproximava no sentido oposto viu o impressionante aparato militar e desviou o carro para o arvoredo que ladeava a estrada.

            A dez quilômetros de Moscou, a coluna chegou ao posto da Polícia que assinalava o limite. Dentro de uma espécie de guarita de aço, quatro homens da Polícia espreitaram pela janela, viram a força militar e agacharam-se, contendo a respiração, enquanto as paredes em volta vibravam.

            Andreyev, que se encontrava no tanque da vanguarda, foi o primeiro a avistar os caminhões que bloqueavam a estrada. Vários veículos particulares tinham-se aproximado durante a noite e, após longos minutos de espera, acabaram por retroceder. Não havia tempo para a coluna se deter, e o general ordenou:

            - Fogo à vontade.

            O artilheiro fez pontaria e disparou uma única vez o canhão de 125 milímetros da torre. À distância de quatrocentos metros, a bala ainda se deslocava à velocidade de cano, quando atingiu o caminhão e o desintegrou. Junto do tanque de Andreyev, o seu oficial executivo seguiu-lhe o exemplo e destruiu o segundo. Do outro lado do bloqueio, eclodiu fuzilaria de armas ligeiras de posições variadas na emboscada.

            Dentro da cúpula de aço no tejadilho da torre, o metralhador varreu o seu lado da estrada com a metralhadora pesada de 12,7 milímetros, e os tiros dos oponentes cessaram. Enquanto a coluna prosseguia o seu ruidoso caminho, os Jovens Combatentes olhavam com incredulidade as ruínas do bloqueio da estrada e respectiva emboscada, até que começaram a afastar-se acobertados pela noite.

            Seis quilômetros adiante, Andreyev mandou reduzir a velocidade para trinta e ordenou duas diversões. Enviou cinco tanques para a direita, a fim de render a guarnição cercada no aquartelamento do aeródromo de Khodinka, e, obedecendo a um palpite, outros tantos e dez transportes para a esquerda, com ordens para rumarem a nordeste e protegerem o complexo da televisão de Ostankino.

            Na estrada circular do Jardim, enviou outros para a direita até à Praça Kudrinsky e depois para a esquerda até ao Ministério da Defesa.

            Os tanques voltavam a ficar em fila indiana e com a velocidade reduzida a vinte quilômetros horários, rumo ao Kremlin. Na sala de comunicações da garagem do Ministério do Interior, o subsecretário Butov ouviu o ruído surdo sobre a cabeça e compreendeu que só havia um tipo de criatura numa cidade em guerra capaz de produzir semelhante som.

            A coluna cruzou a Praça Arbat e passou diante do ministério, em direção à Praça Borovitsky e, do outro lado, as muralhas do Kremlin. Nenhum dos homens dos blindados se deu conta de um carro, estacionado entre outros, ao fundo do largo, nem do vulto de blusão preto e botas, que desceu e começou a correr atrás deles.

 

            No bar Rosy O’Grady, o contingente irlandês da capital festejava a data, quando o primeiro veículo pesado rolou diante da janela. O adido cultural ergueu a cabeça do copo de Guinness na sua frente, voltou-se para lá e perguntou ao barman:

            - Aquilo era um tanque, Pat?

            Diante da Ponte Borovitsky, encontrava-se um transporte de pessoal da brigada de blindados dos Guardas Negros, cujo canhão disparava para as muralhas em cujo topo os últimos homens da Presidencial se haviam refugiado. Durante quatro horas, tinham aberto caminho através da área do Kremlin, à espera de reforços, sem saberem que as tropas do general Korin que restavam estavam emboscadas nos subúrbios da cidade.

            À uma hora da madrugada, os Guardas Negros ocupavam tudo, à exceção do topo das muralhas numa extensão de 2235 metros, com largura suficiente para poder marchar uma formação militar com uma frente de cinco homens. Os sobreviventes da Guarda Presidencial reuniam-se ali, cobrindo os estreitos degraus que partiam do pátio, com o que recusavam a conquista final às forças de Grishin.

            O tanque de Andreyev emergiu do lado ocidental da Praça Borovitsky e ele avistou o blindado das tropas do coronel. À queima-roupa e àquela distância, bastou um projétil para destrui-lo.

            À uma e quatro minutos, os tanques de Andreyev rolaram no acesso à Torre e Portão ladeado de árvores, transpuseram a arcada, com o portão e grade derrubados, e penetraram no Kremlin.

            À semelhança do tio no passado, ele recusou permanecer agachado numa torre fechada, olhando pelo periscópio. A cobertura foi aberta e a cabeça e tronco imergiram no frio, com o capacete e óculos protetores encobrindo-lhe o rosto.

            Um a um, os pesados blindados desfilaram diante do Grande Palácio, catedrais da Anunciação e do Arcanjo, para desembocar na Praça Ivanovsky, após o Sino do Czar, onde outrora o pregoeiro da cidade anunciava os decretos deste último.

            Dois tanques dos Guardas Negros tentaram enfrentá-los, mas não tardaram a ficar reduzidos a fragmentos de metal ao rubro. Ao lado do general, as metralhadoras ligeiras emitiam rajadas contínuas, enquanto o projetor do tanque localizava os revoltosos em fuga.

            Ainda havia mais de três mil Guardas Negros em condições de combater dispersos pelo recinto do Kremlin, e seria insensato às brigadas de Andreyev abandonarem os seus veículos. Apenas duzentos, não fariam grande diferença, em igualdade de condições. No entanto, dentro dos blindados, essa igualdade não se verificava.

            Grishin não contara com blindados, pelo que não trouxera armamento antitanque. Mais leves e rápidos, os carros da Tamanskaya podiam penetrar nas ruas mais estreitas que se achavam vedadas aos tanques. Na área descoberta, estes últimos aguardavam com as suas metralhadoras, alheios ao contra-fogo.

            Mas o efeito real era psicológico. Para o soldado a pé, o tanque é um verdadeiro monstro, com os tripulantes invisíveis e os canos das metralhadoras em movimento constante, à procura de alvos indefesos.

            Os Guardas Negros cederam em cinquenta minutos e procuraram refúgio nas igrejas, palácios e catedrais à sua volta. Uns conseguiram-no, enquanto outros eram atingidos pelos canhões ou metralhadoras inimigos. Nos outros pontos da cidade, as várias batalhas achavam-se em diferentes fases. O Grupo Alfa estava prestes a invadir o quartel da OMON, no Ministério do Interior Federal, quando um dos seus homens captou uma mensagem pela rádio proveniente do Kremlin. Era de um Guarda Negro dominado pelo pânico que pedia ajuda. Mas cometeu o erro de mencionar a intervenção dos tanques, o que levou os membros do Grupo Alfa a decidir que já tinham a sua conta. De qualquer modo, a operação não se desenrolara como Grishin previra. Vangloriara-se da vantagem da surpresa total, superioridade do armamento e um inimigo indefeso. Ora, nenhum desses fatores se confirmara. Agora, optavam por bater em retirada e tratar de salvar a pele.

            No Município, os bandos de rua do Movimento da Nova Rússia já tinham sido aniquilados pelos chechenos.

            Em Staraya Ploshchad, as tropas da OMON, apoiadas pelos homens da SOBR do general Petrovsky, começavam a limpar a sede do Governo dos mercenários das companhias de segurança dos mafiosos.

            No aeródromo de Khodinka, o rumo dos acontecimentos invertera-se. Cinco tanques e dez blindados ligeiros haviam enfrentado as tropas das forças especiais da Vympel, e os comandos, com armamento mais leve, eram perseguidos através do labirinto de hangares e armazéns que compunham a base.

            A Duma continuava ocupada pelos sobreviventes das firmas de segurança, mas não tinham para onde ir e nada que fazer, além de escutar as comunicações da rádio dos outros. Também ouviram o pedido de socorro procedente do Kremlin, reconheceram o poder dos tanques e começaram a se retirar, ao mesmo tempo que tentavam convencer-se de que, com uma réstia de sorte, não seriam identificados.

            Ostankino ainda pertencia a Grishin, porém a comunicação triunfal prevista para o telejornal da manhã mantinha-se em suspenso, enquanto os dois mil Guardas Negros viam das janelas os tanques avançar lentamente no bulevar e os seus próprios caminhões voar em chamas, um após outro.

            O Kremlin foi construído numa falésia às margens do rio, com as encostas sulcadas de árvores e arbustos, muitos deles sempre verdejantes. Abaixo da muralha ocidental, estendem-se os Jardins Alexandrovsky e passagens entre o arvoredo conduzem ao Portão Borovitsky. Nenhum dos combatentes dentro das muralhas viu o vulto isolado que se aproximava através da vegetação em direção ao portão aberto e acabou por saltar para a rampa e entrar discretamente.

            Quando emergia da arcada, o clarão do projetor de um dos tanques de Andreyev incidiu nele, mas os tripulantes confundiram-no com um dos seus homens, sobretudo porque a indumentária se assemelhava.

            Ao achar-se de novo na sombra, Jason Monk correu para a direita do portão, onde havia um grupo de pinheiros, e aguardou.

            O Kremlin dispõe de dezenove torres ao longo do seu perímetro, mas somente três têm portões utilizáveis. Os turistas entram e saem pelos de Borovitsky ou da Trindade, e as tropas pelo de Spassky. Dos três, apenas um se achava escancarado, e o americano encontrava-se junto dele.

            Um homem decidido a salvar-se teria de abandonar o recinto murado. Com efeito, ao amanhecer, as forças do Estado arrancariam os vencidos dos seus esconderijos, e quem preferisse continuar vivo e fora da prisão deduziria que devia fugir pelo único portão aberto.

            Do ponto em que se encontrava, Monk avistava a entrada da Sala de Armas, onde se alojavam autênticos tesouros de um milhar de anos da História russa, cuja porta fora destruída por um tanque que efetuara uma manobra mal calculada. As chamas de uma viatura de transporte de pessoal dos Guardas Negros produziam um clarão trêmulo na fachada.

            O fulcro da batalha afastava-se do portão em direção ao Senado e ao Arsenal, no setor nordeste da fortaleza. Pouco depois das duas horas, Monk detectou um movimento junto da parede do Grande Palácio, após o que surgiu um homem correndo, dobrado pela cintura, ao longo da fachada da Sala de Armas. Próximo da viatura em chamas, deteve-se, para olhar para trás e verificar se o seguiam. Um pneu incendiou-se com um som surdo que o obrigou a voltar-se com brusquidão. O americano pôde então ver-lhe o rosto. Só o observara uma vez, no passado. Numa fotografia, numa praia da Baía Sapodilla, nas Ilhas Turks e Cacos. Ato contínuo, abandonou a proteção das árvores e chamou:

            - Grishin!

            O homem ergueu os olhos e semicerrou as pálpebras, para enxergar melhor. Por fim, percebeu quem falara. Empunhava uma pouco tranquilizadora Kalashnikov AK-74. Monk viu o cano mirá-lo e colocou-se atrás de um pinheiro de tronco largo. Seguiu-se uma rajada, que fez saltar fragmentos de madeira da árvore, e de novo silêncio.

            Monk aventurou-se a espreitar e viu que Grishin desaparecera. Havia cinquenta metros entre ele e o portão, mas apenas dez para o americano. Por conseguinte, não passara por ali.

            De súbito, divisou o cano da AK-74 emergir da porta destruída e retrocedeu com prontidão, enquanto as balas produziam novos estragos na árvore. Os disparos votaram a interromper-se. Calculou que tinham sido esvaziadas duas metades de um carregador e abandonou o esconderijo para cruzar o caminho e colar-se à parede do museu.

            O cano da espingarda de assalto apareceu de novo à porta, enquanto quem a empunhava procurava o alvo. Incapaz de ver coisa alguma, o coronel avançou mais um passo.

            A bala da Sig Saucer de Monk atingiu a coronha da AK-74 com violência suficiente para a fazer saltar das mãos do outro e cair no chão fora do seu alcance. Soaram passos apressados no solo pavimentado do interior e, segundos depois, Monk precipitou-se para a densa escuridão do átrio da Sala de Armas.

            O museu ocupava dois pisos, com nove salas grandes que continham cinquenta e cinco expositores, em que havia artefatos históricos no valor de bilhões de dólares.

            À medida que a vista se habituava às trevas, viu à sua frente os vagos contornos da escada de acesso ao andar superior. À sua esquerda, encontrava-se a arcada que conduzia às quatro salas do piso térreo. Em dado instante, ouviu um leve baque, como se alguém tivesse colidido com um dos expositores.

            Encheu os pulmões de ar e lançou-se através da arcada num mergulho de pára-quedista, continuando a rolar sobre si próprio, até que contactou com uma parede. Ao mesmo tempo, divisou o clarão azulado da chama de um disparo e ficou coberto de fragmentos de vidro no momento em que um expositor foi atingido pela bala.

            A sala era longa e estreita, embora ele não pudesse ter certeza, com os expositores alinhados ao longo de ambos os lados e uma área, também rodeada de vidro, no centro. Aí, encontravam-se os trajes da coroação, de valor inapreciável, russos, turcos e persas de todos os príncipes Rurik e czares Romanov. Uns escassos centímetros quadrados de qualquer deles, com as jóias que exibiam, sustentariam uma pessoa durante anos.

            Quando o último pedaço de vidro pousou no chão e o silêncio se estabeleceu mais uma vez, Monk apurou os ouvidos e acabou por distinguir uma exclamação abafada, como se alguém que se esforçava por não arquejar tivesse expelido o ar dos pulmões. Pegou um fragmento e atirou-o naquela direção.

            Atingiu o vidro de um expositor, registrou-se mais um disparo desesperado e o som de passos rápidos entre os ecos da detonação. Pôs-se igualmente a correr, protegendo-se atrás do expositor central, até compreender que Grishin se transferira para a sala contígua, onde o aguardava.

            Avançou até à arcada de comunicação, com um segundo pedaço de vidro na mão. Quando achou que o momento era conveniente, lançou-o para dentro, ao mesmo tempo que transpunha a passagem e se refugiava atrás de um expositor. Desta vez, não houve qualquer disparo.

            Olhando em volta, verificou que se encontrava numa sala menor que a anterior, que continha tronos de marfim cravejados de jóias. Embora não soubesse, o da coroação de Ivan o Terrível achava-se a curta distância à sua esquerda e o de Boris Godunov um pouco adiante.

            O homem que o precedia decerto correra durante vários minutos, pois enquanto a respiração de Monk era compassada, após o breve período de imobilidade entre as árvores, ouvia o ar penetrar ruidosamente nos seus pulmões.

            Ergueu a mão e bateu com o cano da automática num ponto elevado do vidro do expositor. Avistou o clarão do cano de uma arma e disparou igualmente. A bala de Grishin fez saltar uma chuva de diamantes do trono do czar Alexei.

            O projétil de Monk decerto passou perto do alvo, pois o coronel correu para a sala seguinte, a qual era a última e constituía, portanto, um beco sem saída, onde se encontravam carruagens de outrora. Ao ouvir os passos rápidos à sua frente, Monk tratou de segui-los com prontidão, antes que Grishin pudesse encontrar nova posição vantajosa para disparar.

            Agachou-se atrás de um coche ornamentado do século XVII e olhou em volta. Cada um dos coches estava em cima de um estrado, separado do público por meio de uma corda fixada a pequenos postes verticais.

            Espreitou por trás do coche oferecido, em 1600, por Isabel I de Inglaterra a Boris Godunov, e tentou localizar o inimigo na escuridão, porém a visibilidade era quase nula.

            De súbito, as nuvens apresentaram algumas aberturas e o luar filtrou-se por instantes através das estreitas janelas gradeadas. Algo brilhou na penumbra. Um ponto minúsculo em algum lugar atrás da roda ornamentada e dourada do coche da czarina Isabel.

            Monk tentou recordar-se das indicações fornecidas por George Sims, no Castelo Forbes. Convinha segurar a arma com ambas as mãos e firmeza absoluta. Nada de tiradas estilo faroeste. Isso era bom para as histórias de ficção.

            Por conseguinte ergueu a Sig Sauer com as duas mãos e fez meticulosa pontaria para dez centímetros acima do ponto luminoso. Contenha a respiração, segure bem a arma e dispare.

            A bala penetrou por entre os raios da roda e atingiu o alvo no outro lado. Enquanto os ecos se atenuavam e os seus ouvidos paravam de vibrar, detetou o baque de um objeto pesado pousando no chão.

            Podia tratar-se de uma artimanha. Monk deixou transcorrer cinco minutos e acabou por perceber que o tênue vulto no chão junto do coche não se movia. Foi se aproximando com prudência, até que avistou com clareza um tronco e uma cabeça, com o rosto voltado para baixo. Só então abandonou a cautela, embora continuasse a empunhar a automática, e virou o corpo para cima.

            O coronel Anatoli Grishin recebera a bala um pouco acima do olho esquerdo, e ele contemplou o homem que odiava sem experimentar a menor emoção. Fizera aquilo que se impunha.

            Por fim, guardou a arma, agachou-se, pegou a mão esquerda do homem e arrancou um pequeno objeto.

            Pousou na sua palma a prata americana que brilhava ao luar, a turquesa luminosa extraída das entranhas das colinas por algum índio Navajo. Um anel proveniente das regiões áridas do seu próprio país, oferecido, no banco de um parque de Ialta a um homem corajoso e retirado do dedo de um cadáver, na prisão de Lefortovo.

            Guardou-o no bolso do blusão e encaminhou-se para o seu carro. A batalha de Moscou terminara.

 

            Na manhã de 1º de Janeiro, Moscou e toda a Rússia acordaram para o amargo conhecimento do que acontecera na sua cidade-capital. As câmaras da televisão levaram as imagens a todos os cantos do vasto território. A nação estava abismada com o que se lhe deparava.

            No interior das muralhas do Kremlin, havia um cenário de devastação. As fachadas das catedrais da Assunção, Anunciação e Arcanjo estavam sulcadas de orifícios de balas. Os fragmentos de vidro abundavam entre a neve e o gelo.

            Manchas negras produzidas por veículos em chamas desfiguravam os exteriores dos palácios Terem e Facets, e os do Senado e do grandioso Palácio do Kremlin tinham sido destruídos parcialmente por rajadas de metralhadora.

            Dois corpo encolhidos jaziam junto do Canhão do Czar, e as brigadas de limpeza retiravam outros do Arsenal e do Palácio dos Congressos, onde se tinham refugiado nos seus últimos minutos de vida.

            Em quase toda a parte, os transportes de pessoal blindados e caminhões dos Guardas Negros ainda ardiam à claridade matinal. As chamas tinham derretido áreas de asfalto, que depois solidificara ao frio como ondas do mar.

            O presidente interino, Ivan Markov, regressou imediatamente da residência de férias, pouco depois do meio-dia, e ao fim da tarde, recebia o patriarca de Moscou e de todas as Rússias em audiência privada.

            Alexei II efetuou a sua primeira e última intervenção na arena política de Moscou, para alegar que seria impossível prosseguir os preparativos para as eleições presidenciais a 16 de Janeiro e a data devia ser consagrada a um referendo nacional sobre a restauração da monarquia.

            Ironicamente, Markov mostrou-se muito receptivo à idéia. Antes de tudo, fora nomeado, quatro anos atrás para o cargo de premier pelo falecido presidente Cherkassov, como um excelente administrador e conhecedor a fundo da indústria do petróleo. No entanto, com a passagem do tempo, acabara por se habituar ao poder das funções executivas, mesmo num sistema em que a maior parte competia ao presidente e uma parcela muito menos significativa ao premier.

            Durante os seis meses, desde o ataque cardíaco fatal de Cherkassov, ainda viera a apreciar mais a panóplia das elevadas funções que exercia. Com a União das Forças Patrióticas em ruínas, do ponto de vista eleitoral, sabia que a luta se limitaria à dele próprio e dos neocomunistas da União Socialista. E também não ignorava que figuraria muito provavelmente em segundo lugar.

            Mas um monarca constitucional necessitaria, quase como um elemento essencial, de recorrer a um político e administrador experiente para formar um governo de unidade nacional. E quem mais indicado do que ele próprio?

            Naquela noite, Ivan Markov convocou, por despacho ministerial, os deputados da Duma para regressarem a Moscou para uma sessão de emergência da Casa.

            Durante o dia 3 de Janeiro, eles atravessaram a Rússia desde os recantos mais remotos da Sibéria e do nordeste de Archangel.

            A sessão de emergência de 4 de Janeiro da Duma realizou-se na Casa Branca, pouco danificada pelos últimos acontecimentos. O estado de espírito geral era sombrio, sobretudo entre os representantes da União das Forças Patrióticas, os quais se esforçavam por assegurar a quem queria ouvi-los que não tinham nada que ver pessoalmente com o ato tresloucado de Igor Komarov na véspera do Ano Novo.

            A sessão foi presidida pelo presidente interino, Markov, o qual propôs que a nação devia continuar a ser consultada a16 de Janeiro, mas agora sobre a restauração da monarquia. No entanto, como não era membro da Duma, não podia apresentar a proposta formalmente, o que foi feito pelo porta-voz, membro do Partido da Aliança Democrática de Markov.

            Ao verem o poder presidencial escapar-se por entre os dedos, os neocomunistas opuseram-se em bloco. Todavia, o presidente interino preparara bem a sua intervenção. Os membros da UFP, receosos da sua própria segurança, tinham sido interrogados particularmente, um a um, naquela manhã. Foi-lhes incutida a impressão de que, se apoiassem Markov, a questão de ser levantada a imunidade diplomática para se exporem à prisão não se verificaria. E semelhante medida implicaria que poderiam conservar os lugares na Duma.

            Os votos da Aliança Democrática, juntamente com os da União das Forças Patrióticas, superavam os dos neocomunistas, sendo assim a moção foi aprovada.

            Tecnicamente, a mudança não era muito difícil de administrar. Os locais de voto já estavam preparados. O único trabalho consistia em imprimir e distribuir mais cento e cinco milhões de boletins com a simples pergunta e dois pequenos quadrados, um para “Sim” e o outro para “Não”.

            A 5 de Janeiro, no pequeno porto de Wyborg, no norte da Rússia, um funcionário da segurança chamado Pyotr Gromov acrescentou uma nota de rodapé a História. Pouco após a alvorada, observava o cargueiro sueco Ingrid 8, que efetuava os preparativos para zarpar com destino a Goteburgo.

            Ia dar meia volta, regressar à guarita para tomar o café da manhã, quando dois vultos que vestiam parkas azuis emergiram de trás de uma pilha de caixotes e avançaram para o portaló, segundos antes de ser retirado. Obedecendo a um palpite, ordenou-lhes que se detivessem.

            Os dois homens trocaram algumas palavras rápidas e começaram a correr para o portaló. Gromov puxou da pistola e disparou um tiro de advertência para o ar. Era a primeira vez que a utilizava nos três anos que prestava serviço nas docas, e a experiência agradou-lhe profundamente. Os indivíduos de parka azul obedeceram.

            Os documentos revelaram que eram suecos e o mais jovem falava inglês, que Gromov tinha alguns conhecimentos. No entanto, dominava melhor o idioma sueco, pelo que perguntou ao mais velho:

            - Para quê tanta pressa?

            O interpelado não respondeu. Nenhum dos dois compreendera a pergunta. Gromov estendeu a mão e arrancou-lhe o gorro de pele da cabeça. O rosto tinha algo de familiar. Quase juraria que o vira em qualquer parte. Talvez num pódio... dirigindo-se a uma multidão que o aclamava...

            - Eu o conheço acabou por dizer.  É Igor Komarov!

            Komarov e Kuznetsov foram detidos e reconduzidos a Moscou. O antigo líder da UFP foi acusado imediatamente de alta traição e conservado preso até à data do julgamento. Ironicamente, ingressou na prisão de Lefortovo.

            Durante dez dias, o debate nacional ocupou lugar de relevo nos jornais, revistas, estações de rádio e canais da TV, enquanto os articulistas e comentaristas exprimiam as suas opiniões.

            Na tarde de sexta-feira, 14 de Janeiro, o padre Gregor Rusakov celebrou um comício revivalista no Estádio Olímpico de Moscou. À semelhança de Komarov, quando falara aí, as suas palavras foram transmitidas a toda a nação, atingindo oitenta milhões de russos, segundo as sondagens revelaram mais tarde.

            O seu tema era simples e claro. Ao longo de setenta anos, o povo russo venerara os deuses geminados do materialismo dialético e do comunismo e fora traído por ambos. Durante quinze, comparecera no templo do capitalismo republicano e assistira ao desmoronar das suas esperanças. Por conseguinte, urgia os seus ouvintes a regressarem ao Deus dos antepassados, frequentar a Igreja e rezar para que se lhes iluminasse o espírito.

            Os observadores estrangeiros há muito que acalentam a impressão de que, após setenta anos de industrialização comunista, os russos são um povo que se concentra principalmente nas cidades. Ora, trata-se de uma idéia errada. Mesmo no Inverno de 1999, mais de cinquenta por cento ainda vivia largamente em pequenas localidades de província, essa vasta extensão que vai de Belarus a Vladivostoque, ocupando dez mil quilômetros e nove fusos horários.

            Nessa área ignorada, situam-se cem mil freguesias que compreendem os cem bispados da Igreja Ortodoxa Russa, cada uma com uma grande ou pequena igreja de cúpula em forma de cebola. Foi a esses templos que cinquenta por cento dos russos se dirigiu, através do frio cortante, na manhã de domingo, 16 de Janeiro, e em cada púlpito o sacerdote paroquial leu a Carta Patriarcal.

            Conhecida mais tarde por Grande Encíclica, era provavelmente a missiva mais poderosa e emocionante que Alexei II jamais escreveu. Fora adotada na semana anterior num conclave secreto dos Metropolitanos, os bispos, em que a votação, se não unânime, foi convincente.

            Após o serviço religioso matinal, os russos seguiram da igreja para os locais de votação. Devido às dimensões do território e falta de tecnologia eletrônica nos distritos rurais, foram necessários dois dias para contar os votos. De entre os válidos apurados, o resultado consistiu em 65 por cento para 35 por cento. A favor.

            A 20 de Janeiro, a Duma aceitou e aprovou o resultado e promulgou mais duas moções. Uma destinava-se a prolongar o interregno de Ivan Markov por mais um período, até 31 de Março, e a segunda a instituir uma comissão constitucional para converter o veredito do referendo em lei.

            A 20 de Fevereiro, o presidente interino e a Duma de Todas as Rússias enviaram um convite a um príncipe residente fora do país para aceitar o título e funções, no seio de uma monarquia constitucional, de Czar de Todas as Rússias.

            O Inverno começava a afastar-se. A temperatura subira a a alguns graus acima de zero e brilhava o Sol. Do arvoredo por detrás do pequeno aeródromo reservado a vôos especiais, desprendia-se um odor pungente a terra húmida e um novo começo.

            Diante do terminal, Ivan Markov chefiava uma numerosa delegação que incluía o porta-voz da Duma, os líderes dos principais partidos, os vários chefes de estado-maior e o patriarca Alexei.

            Do avião, desceu o homem que a Duma convidara, o príncipe de cinquenta e sete anos da Casa Britânica de Windsor.

            Longe dali, no Ocidente, numa casa isolada cerca da aldeia de Langton Matravers, Sir Nigel Irvine acompanhava a cerimônia através da televisão. Na cozinha, Lady Irvine lavava a louça do café da manhã, tarefa que sempre executava antes da chegada de Mrs. Moir para proceder à limpeza.

            - Que está vendo,  Nigel? - perguntou, enquanto aguardava que a pia se esvaziasse. - Não costuma ligar a televisão tão cedo.

            - Uma coisa que se passa na Rússia, querida. - Entretanto, ele refletia que fora uma operação arriscada.

            Obedecera aos seus próprios princípios para a destruição de um adversário mais rico, forte e numeroso com o recurso a um mínimo de forças, o que só se podia conseguir graças à astúcia e embuste.

            A primeira fase consistia em pedir a Jason Monk que criasse uma aliança com aqueles que temeriam ou desprezariam Igor Komarov, depois de lerem o Manifesto Negro. Na primeira categoria, figuravam os destinados à destruição pelo nazista russo: os chechenos, judeus e a Polícia que perseguiam a aliada do alucinado, a Mafia. Na segunda, havia a Igreja e o exército, representados, respectivamente, pelo patriarca e pelo general vivo mais prestigioso, Nikolai Nikolayev.

            A fase seguinte incluíra a infiltração no campo inimigo, para inculcar a desinformação.

            Enquanto Monk ainda treinava no Castelo Forbes, Sir Nigel efetuara a sua primeira visita discreta a Moscou para reativar dois agentes adormecidos que recrutara anos atrás. Um era o antigo professor da Universidade de Moscou, cuja utilização dos pombos-correios se revelara vantajosa no passado.

            Mas quando ele perdera o emprego por propor reformas democráticas em pleno comunismo, o filho também ficara sem o lugar no liceu e qualquer possibilidade de acesso a um curso superior. Assim, o jovem enveredara para a Igreja e, depois de permanência anônima em várias paróquias, acabara por entrar para o serviço doméstico do patriarca Alexei.

            O padre Maxim Klimovsky fora autorizado a levar a cabo quatro traições diferentes a Irvine e Monk “em favor” do coronel Grishin, simplesmente para estabelecer o seu grau de confiança como informante do comandante dos Guardas Negros no fulcro do campo inimigo.

            Em duas ocasiões, Irvine e Monk haviam tido oportunidade de escapar antes da chegada de Grishin, mas nas duas últimas ocasiões não fora possível, o que os obrigara a desenvolver esforços diferentes para se livrarem de apuros.

            O terceiro preceito de Sir Nigel consistira em não tentar convencer o inimigo da ausência de qualquer campanha contra ele, o que seria impossível, mas, ao invés, persuadi-lo que o perigo se localizava em outro lugar e, depois de enfrentado, deixara de existir.

            Na sequência da sua segunda visita à residência do patriarca, vira-se obrigado a prolongar a estada, a fim de dar tempo a Grishin e respectivos asseclas de lhe revistarem o quarto do hotel, descobrir a pasta e fotografar a carta, comprometedora.

            Esta última fora forjada, criada em Londres com papel timbrado do patriarcado e perante amostras da caligrafia do patriarca, obtidas pelo padre Maxim e entregues a Irvine na visita anterior.

            Na carta, o patriarca revelava aparentemente ao seu correspondente que apoiava a idéia da restauração da monarquia na Rússia (o que não era verdade, porque se limitava a considerá-la), e providenciava para que o destinatário da carta fosse o homem escolhido para o lugar.

            Infelizmente, fora endereçada ao príncipe errado. Exibia o nome do príncipe Semyon, que vivia numa fazenda com os seus cavalos e a amante, na Normandia. A necessidade premente da situação, levara a que fosse considerado sacrificável.

            Foi na sua segunda visita ao patriarca que Jason Monk desencadeou a quarta fase  o encorajamento do inimigo a reagir com violência contra um inimigo imaginado, mas inexistente, o que foi conseguido graças à gravação da sua suposta conversa com Alexei II.

            A voz autêntica deste último fora obtida no decurso da primeira visita de Irvine por meio de um gravador oculto no corpo de Brian Vincent. Por seu turno, Monk gravara horas da sua, durante a estada no Castelo Forbes.

            Em Londres, um mímico e ator russo fornecera as palavras que o patriarca supostamente pronunciara na gravação. Com a tecnologia do som computadorizado, fora criada a situação, pormenorizada até à minúcia do mover das colheres nas xícaras de café. O padre Maxim, ao qual Sir Nigel a passou discretamente, quando se cruzaram no corredor, limitara-se a transferi-la de um gravador que possuía para o que Grishin lhe fornecera.

            Tudo o que figurava nela era falso. O general Petrovsky não teria podido continuar as suas batidas às instalações do bando do Dolgoruki, porque toda a informação que Monk obtivera dos chechenos sobre os mafiosos rivais já lhe tinha sido transmitido. Além disso, os documentos do casino não continham qualquer indício que o bando do Dolgoruki financiava a campanha eleitoral da UFP.

            O general Nikolayev não tinha a menor intenção de continuar a denunciar Komarov numa série de entrevistas depois do Ano Novo. Dissera o que queria dizer e, pela parte que lhe tocava, o assunto estava encerrado.

            E, sobretudo, o patriarca não fazia a mínima tenção de intervir junto do presidente interino, para o incitar a declarar Komarov inapto para qualquer atividade pública. Deixara bem claro que não interviria na política.

            Mas Grishin e Komarov ignoravam tudo isso. Convencidos que tinham as intenções dos oponentes na mão e perante um perigo temível, exageraram gravemente a sua atuação e promoveram quatro tentativas de assassinato. E Monk, pressentindo-as, tratou de prevenir os respectivos alvos. No entanto, houve um que não prestou atenção à advertência Até à noite de 21 de Dezembro, e possivelmente mais tarde, Komarov ainda podia ganhar as eleições com uma maioria confortável.

            Após essa data, desenrolou-se a quinta fase. A reação espectacular foi explorada pelo americano para alargar as hostilidades contra Komarov por parte do número reduzido de pessoas que tinham lido o Manifesto Negro, o que se traduziu numa torrente de críticas dos jornalistas. Monk infiltrou nessa exploração alguma desinformação no sentido que a fonte de todo o descrédito crescente de Komarov se situasse num oficial superior dos Guardas Negros.

            Em política, como em muitos assuntos humanos, o êxito atrai o êxito, porém o erro também origina uma série de outros. À medida que as críticas a Komarov aumentavam, o mesmo acontecia à paranóia dormente em todos os tiranos. A cartada final de Nigel Irvine consistiu em explorar essa paranóia e esperança, confiado em que a contribuição do padre Maxim não o decepcionasse.

            Quando o patriarca regressou do mosteiro da Trindade-São Sérgio, nunca procurou o presidente interino. Quatro dias antes do Ano Novo, os órgãos do Estado Russo não tinham a mínima intenção de se lançar sobre os Guardas Negros na Passagem do Ano e prender Komarov.

            Através do padre Maxim, Irvine recorreu ao velho preceito de convencer o inimigo que os oponentes eram muito mais numerosos, poderosos e determinados do que na realidade acontecia. Persuadido por essa segunda ferroada, Komarov decidiu tomar a iniciativa do ataque e, prevenido por Monk, o Estado russo defendeu-se.

            Embora não fosse frequentador assíduo da igreja, Sir Nigel debruçava-se sobre a Bíblia desde longa data, e, entre todas as personagens, a sua favorita era o guerreiro hebreu Gedeão.

            Conforme explicou a Jason Monk, na Escócia, Gedeão fora o primeiro comandante de forças especiais e proponente do ataque de surpresa noturno. Dispondo de dez mil voluntários, escolheu apenas trezentos, os melhores e mais duros. No ataque noturno aos madianitas acampados no Vale de Jezreel, empregou a tática tripla para desorientar e incutir o pânico na força armada mais numerosa.

            - O que ele na realidade fez, meu amigo, foi convencer os semiadormecidos madianitas que tinham pela frente um inimigo de efetivos   muito  superiores  e  extremamente  perigoso.  Por  conseguinte,  alarmaram-se  e  puseram-se  em  fuga. Não só fugiram, como, na escuridão, começaram a atacar-se mutuamente. Graças a outro tipo de desinformação, Grishin foi persuadido a encerrar na prisão todos os seus funcionários superiores.

            Lady Irvine entrou na sala e desligou o televisor.

            - Deixe isso, Nigel. Está um dia estupendo e temos de plantar as primeiras batatas.

            O mestre-espião levantou-se lentamente da poltrona.

            - Tem razão. As primeiras da Primavera. É só o tempo de calçar as botas.

            Detestava cavar a terra, mas tinha profunda estima pela esposa.

           

            Passavam poucos minutos do meio-dia, quando o Foxy Lady emergiu da Baía da Tartaruga e rumou ao canal. A meio caminho do recife, Arthur Dean colocou-se ao lado, a bordo do Silver Deep, com dois mergulhadores turistas a bordo.

            - Olá, Jason! Esteve fora?

            - Estive. Fui dar uma volta pela Europa.

            - Como lhe correu?

            Monk refletiu por um momento.

            - Foi interessante.

            - Tenho muito prazer em vê-lo de volta. - Dean lançou uma olhadela ao convés da ré. - Não leva clientes, hoje?

            - Não. Ouvi dizer que há peixe graúdo, ao largo do cabo. Vou pescar algum só para mim.

            Sorriu, compreendendo o entusiasmo do amigo.

            - A linha bem esticada, não se esqueça.

            O Silver Deep acelerou e não tardou a distanciar-se. Por seu turno, o Foxy Lady deixou o recife para trás e Monk sentiu a ondulação do mar aberto, ao mesmo tempo que o vento impregnado em maresia lhe acariciava as faces.

            Aumentou a velocidade e apontou a embarcação no sentido oposto às ilhas, em direção ao mar e céu solitários.

 

                                                                                            Frederick Forsyth

 

 

                      

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