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O FANTASMA DE MANHATTAN / Frederick Forsyth
O FANTASMA DE MANHATTAN / Frederick Forsyth

 

 

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O FANTASMA DE MANHATTAN

 

     O QUE AGORA SE TORNOU A LENDA DO FANTASMA DA ÓPERA surgiu no ano de 1910 na mente de um escritor francês, já quase completamente esquecido.

     Como aconteceu com Bram Stoker e Drácula, Mary Shelley e Frankenstein, Victor Hugo e o Quasímodo, o corcunda de Notre-Dame, Gaston Leroux encontrou por acaso um vago relato folclórico e viu nele o cerne de uma verdadeira história trágica. A partir disso teceu sua narrativa. Mas aqui devem terminar as semelhanças.

     As outras três obras tornaram-se sucesso popular imediato, e até hoje permanecem como lendas conhecidas por todos os leitores, cinéfilos, e milhões de outras pessoas. Em torno de Drácula e de Frankenstein foram construídas industrias inteiras, com dúzias, se é que não centenas, de reedições e recriações cinematográficas. Leroux, infelizmente, não era Victor Hugo. Quando seu livrinho surgiu em 1911, causou um breve interesse na França, e até mesmo se transformou em série publicada em jornal antes de cair praticamente no esquecimento. Apenas um acaso, onze anos depois, cinco antes da morte do autor, trouxe sua história de volta à proeminência e a colocou na rota da imortalidade.

     O acaso assumiu a forma de um judeu alemão baixinho e genial chamado Carl Laemmle, que emigrara para a América na infância e em 1922 se tornara presidente da Universal Motion Pictures de Hollywood. Naquele ano ele foi a Paris, de férias. Na época Leroux começara a atuar na indústria cinematográfica francesa, que era bem menor, e foi através dessa conexão que os dois se conheceram.

     Em conversa casual, o magnata do cinema americano mencionou a Leroux como ficara impressionado com a grandeza da Ópera de Paris, ainda hoje o maior teatro de ópera do mundo. Leroux respondeu dando a Laemmle um exemplar de seu livro de 1911, que na época era menosprezado. O presidente da Universal Pictures leu-o em uma noite.

     Por acaso, Carl Laemmle estava às voltas com um trunfo e um problema. O trunfo era a descoberta recente de um estranho ator chamado Lon Chaney, um homem de rosto tão maleável que podia assumir praticamente qualquer forma que seu dono desejasse. Como veículo para Chaney, a Universal se comprometera a fazer o primeiro filme baseado em O corcunda de Notre-Dame, de Victor Hugo, na época já um clássico. Chaney faria o papel do deformado e horrendo Quasímodo. O cenário já estava sendo montado em Hollywood, uma gigantesca réplica em madeira e gesso da Paris medieval, com a Notre-Dame no primeiro plano.

     O problema de Laemmle era: que veículo oferecer a Chaney em seguida, antes que o ator fosse roubado por um estúdio rival? Ao amanhecer ele achava já ter seu projeto. Depois do corcunda, Chaney estrelaria como o igualmente desfigurado e repulsivo, mas essencialmente trágico Fantasma da Ópera (de Paris). Como todos os bons empresários do setor de diversões, Laemmle sabia que um modo de lotar as salas de cinemas era matar as platéias de medo. O Fantasma, admitia Laemmle, poderia causar esse efeito, e ele estava certo.

     Comprou os direitos, voltou a Hollywood e ordenou a construção de outro cenário, desta vez da Ópera de Paris. Como teria de suportar o peso de um elenco de centenas de figurantes, a réplica da Ópera feita pela Universal tornou-se o primeiro cenário criado com vigas de aço engastadas em concreto. Por esse motivo jamais foi desmontado, continua até hoje no estúdio 28 da Universal, e foi reutilizado muitas vezes no correr dos anos.

     Lon Chaney realmente estrelou o Corcunda de Notre-Dame e depois O fantasma da ópera. Ambos foram grandes sucessos comerciais e consagraram Chaney como o melhor ator para esse tipo de papel. Mas foi o Fantasma que apavorou tanto as platéias a ponto de as mulheres gritarem e até mesmo desmaiarem, e, num golpe de mestre de relações-públicas, havia sais aromáticos disponíveis no saguão!

     Foi o primeiro filme, e não o livro negligenciado e quase que totalmente esquecido de Leroux, que captou a imaginação do grande público e fez nascer a lenda do Fantasma. Dois anos depois da estréia, a Warner Brothers lançou O cantor de jazz, o primeiro filme falado, e a era do cinema mudo estava terminada.

     Desde então a história do Fantasma da Ópera foi reapresentada várias vezes, mas na maior parte dos casos foi tão alterada a ponto de se tornar quase irreconhecível, e essas adaptações causaram pouco impacto. Em 1945 a Universal, que já detinha os direitos havia vinte anos, fez uma refilmagem da obra, estrelada por Claude Reins como o Fantasma, e em 1962 a Hammer Films, de Londres, especialista em filmes de horror, tentou de novo, com Herbert Lom no papel-título. Uma versão televisiva em 1983, com Maximilian Schell, sucedeu uma versão rock filmada por Brian de Palma em 1974. Então, em 1984 um jovem diretor inglês produziu uma versão forte mas muito exagerada da história num pequeno teatro no leste de Londres — mas como um musical para o palco. Entre os que leram as críticas e foram vê-lo estava Andrew Lloyd Weber. Involuntariamente, a antiga história de Monsieur Leroux tinha acabado de fazer outra virada em sua carreira.

     Na época Lloyd Weber estava trabalhando em outra coisa — a “outra coisa” acabaria sendo Aspects of Love. Mas a história do Fantasma ficou em sua mente, e nove anos depois, num sebo em Nova York, ele encontrou por acaso uma tradução inglesa da obra original de Leroux.

     Como a maioria das percepções extremamente agudas, o julgamento de Lloyd Weber parece bastante simples visto hoje em dia, mas estava destinado a mudar a reação mundial a essa lenda mal aproveitada. Ele viu que aquela não era basicamente uma história de terror, tampouco uma história baseada em ódio e crueldade, e sim uma verdadeira narrativa trágica de amor obsessivo não-correspondido entre um homem desesperadamente desfigurado que se auto-exilara da raça humana e uma jovem e linda cantora de ópera que prefere dedicar seu amor a um pretendente bonito e aristocrático.

     Assim Andrew Lloyd Weber voltou-se para a história original, podou ilogicidades e crueldades e extraiu a verdadeira essência da tragédia. Com esse alicerce ele construiu o que, em doze anos de apresentações, provou ser o musical mais popular e bem sucedido de todos os tempos. Hoje, mais de dez milhões de espectadores já viram O fantasma da Ópera, e é praticamente a versão de Lloyd Weber que domina a idéia básica que as pessoas têm da história.

     Mas, para entender o que realmente aconteceu (ou o que supostamente aconteceu!), vale gastar alguns momentos examinando os três elementos originais no nascedouro da obra. Um deles deve ser a própria sede da Ópera de Paris, um prédio tão impressionante até mesmo hoje em dia que o Fantasma não poderia ter existido em qualquer outro teatro do mundo. O segundo é o próprio Leroux, e o terceiro é o pequeno volume que ele produziu em 1911.

     A Ópera de Paris foi concebida, como tantos outros grandes empreendimentos da vida, por acaso. Numa noite de janeiro de 1858, Napoleão III, imperador da França, foi com sua imperatriz à ópera em Paris, na época situada num antigo prédio de uma rua estreita, a Rue Le Peletier. Apenas dez anos depois de uma onda de revolução ter varrido a Europa, aqueles ainda eram tempos confusos, e um antimonarquista italiano chamado Orsini escolheu aquela noite para lançar três bombas contra a comitiva real. Todas explodiram, fazendo com que mais de 150 pessoas morressem ou ficassem feridas. O imperador e a imperatriz, protegidos por sua forte carruagem, saíram abalados, mas incólumes, e até mesmo insistiram em comparecer à ópera. Mas Napoleão III não achou uma boa idéia, e decidiu que Paris precisava de um teatro de ópera que teria, entre outras novidades, uma entrada especial para pessoas como ele, que pudesse ser guardada e permanecesse razoavelmente à prova de bombas.

     O prefeito de Paris era o genial urbanista barão Haussmann, criador de boa parte da Paris moderna, e ele organizou um concurso entre os arquitetos mais importantes da França, em que nada menos que 170 apresentaram projetos, mas o contrato foi feito com um astro em ascensão, imaginativo e de vanguarda, chamado Charles Garnier. Seu projeto seria realmente enorme, e custaria uma imensa fortuna.

     O local foi escolhido (onde a Ópera está hoje) e os trabalhos começaram em 1861. Poucas semanas depois houve um grande problema. As primeiras escavações revelaram um rio subterrâneo que passava exatamente pela área. Por mais rápido que fossem cavados, os buracos se enchiam de água. Em épocas de maior contenção de gastos, o projeto poderia ser transferido para um terreno mais adequado, mas Haussmann queria seu teatro de ópera exatamente ali, e não em outro lugar. Garnier instalou oito gigantescas bombas a vapor, que ficaram ligadas dia e noite durante meses para secar o solo saturado. Depois construiu dois enormes caixotes ao redor de todo o terreno, preenchendo o espaço entre eles com betume, para impedir que a água escorresse de volta para a área de trabalho. Sobre esse alicerce maciço Garnier construiu seu portento.

     O arquiteto teve sucesso até um determinado ponto. A construção ficou isolada até que ele terminasse aquele nível, mas depois houve nova infiltração, com a formação de um lago subterrâneo abaixo da última camada de porões.

     Hoje um visitante pode descer até esses níveis (é necessária uma permissão especial) e espiar através das grades o lago subterrâneo. A cada dois anos o nível da água é baixado para que os engenheiros, em barcos de fundo chato, possam sondar e inspecionar os alicerces em busca de possíveis danos.

     De pavimento em pavimento, o gigante de Garnier subiu até o nível do solo, depois se expandiu para cima e para os lados. Em 1870 o trabalho foi interrompido quando outra revolução varreu a França, provocada pela curta mas brutal guerra franco-prussiana. Napoleão III foi deposto e morreu no exílio. Foi declarada uma nova república, mas o exército da Prússia estava nos portões de Paris. A capital francesa passava fome. Os ricos comiam elefantes e girafas do zoológico, enquanto os pobres faziam cães, gatos e ratos ao fricassê. Paris rendeu-se, e a classe trabalhadora ficou tão furiosa com os maus-tratos que se ergueu em revolta.

     Os revoltosos chamaram seu regime de Comuna, e a si próprios de communards, e espalharam cem mil homens e canhões pela cidade. O governo civil entrou em pânico abdicando, e a Guarda Civil tomou o poder como uma junta militar, finalmente esmagando os communards. Mas durante o tempo em que haviam ocupado o poder, os rebeldes usaram a concha do prédio de Garnier, com seu labirinto de porões e depósitos, como base para armas, pólvora... e prisioneiros. Terríveis torturas e execuções aconteceram naquelas salas muito abaixo do solo, e anos depois ainda eram encontrados esqueletos enterrados. Mesmo hoje sente-se um arrepio profundo lá embaixo, que jamais desaparece. Foi esse mundo subterrâneo e a idéia de um eremita solitário e desfigurado morando na escuridão que fascinaram Gaston Leroux, quarenta anos depois, e incendiaram sua imaginação.

     Em 1872 a normalidade fora restaurada, e Garnier prosseguiu com o trabalho. Em janeiro de 1875 o teatro de ópera, cuja concepção foi inspirada pelos atentados a bomba perpetrados por Orsini cerca de dezessete anos antes, teve a inauguração de gala.

     O edifício cobre quase 1,2 hectare, ou onze mil metros quadrados. Tem dezessete andares do último porão até o pináculo do telhado, mas com apenas dez acima do nível do solo, e um número espantoso de sete andares no subterrâneo. De modo surpreendente, seu auditório é bastante pequeno, com apenas 2.176 lugares, diante dos 3.500 do Scala de Milão e dos 3.700 do Metropolitan de Nova York. Mas os bastidores são gigantescos, com amplos camarins para centenas de artistas, oficinas, cantinas, departamentos de figurino e áreas de depósito para rotundas completas, de modo que cenários inteiros, com quinze metros de altura e pesando muitas toneladas, podem ser baixados e guardados sem que precisem ser desmontados, e depois levantados de novo para a instalação quando for necessário.

     O fato é que a Ópera de Paris não foi projetada apenas para apresentações de óperas. Daí o tamanho relativamente pequeno do auditório, já que boa parte do espaço é ocupado por salões de recepção, salas, escadarias enormes e áreas destinadas a oferecer brilho a grandes ocasiões de gala do governo. O prédio tem mais de 2.500 portas que fazem com que a turma da brigada de incêndio demore mais de duas horas para verificá-las antes de ir para casa. Na época de Garnier havia 1.500 empregados permanentes (hoje são por volta de 1.000) e o teatro era iluminado por novecentos globos de luz a gás alimentados por dezesseis quilômetros de tubos de cobre. Foi pouco a pouco convertido para eletricidade durante o século passado.

     Foi esse o edifício intensamente dramático que captou a imaginação vivida de Gaston Leroux quando ele o visitou em 1910 e ouviu pela primeira vez a história de que um dia, há anos, houvera um fantasma morando ali; que coisas simplesmente desapareciam, que aconteciam acidentes inesperados e que uma figura sombria fora vista ocasionalmente saindo de cantos escuros e sempre indo para as catacumbas, onde ninguém ousava segui-lo. Com base em velhos boatos de vinte anos é que Leroux criou sua história.

     O velho Gaston parece ter sido o tipo de homem com quem adoraríamos tomar algo em um café parisiense, se pudéssemos atravessar os noventa anos que nos separam. Era um homem grande, jovial, expansivo e alegre: um bon viveur e anfitrião generoso, loucamente excêntrico, com um pince-nez empoleirado no nariz para compensar a vista fraca.

     Nasceu em 1868 e, apesar de ser originário da Normandia, na verdade apanhou sua mãe de surpresa, chegando ao mundo durante uma baldeação de trens em Paris. Era inteligente na escola, e à maneira dos rapazes inteligentes da classe média na França, estava destinado a ser advogado. Foi mandado a Paris estudar Direito aos dezoito anos. Era um estudo pelo qual ele não tinha qualquer gosto. Estava com 21 anos quando se formou, no mesmo ano em que seu pai morreu deixando um milhão de francos, o que na época era uma fortuna considerável. Nem bem papai foi enterrado e o jovem Gaston partiu para se divertir em grande estilo. Em seis meses havia gasto tudo!

     Era o jornalismo, e não os tribunais, que o atraía, por isso conseguiu um trabalho como repórter no Echo de Paris, e mais tarde no Le Matin. Descobriu o amor pelo teatro e fez um pouco de crítica teatral, mas foi seu conhecimento do Direito que o transformou num importante repórter de tribunais e exigiu que ele testemunhasse várias execuções na guilhotina. Isso transformou-o num opositor da pena capital durante toda a vida, uma postura bastante incomum naquela época. Ele mostrou engenho e audácia ao conseguir furo após furo diante da concorrência, e em conseguir entrevistas difíceis com celebridades. O Le Matin recompensou-o com o cargo de correspondente estrangeiro em vários países.

     Aquela era uma época em que os leitores não tinham objeção a que um correspondente estrangeiro possuísse imaginação fértil, e não era incomum que um jornalista longe de casa, incapaz de conseguir os fatos verdadeiros de uma história, simplesmente inventasse. Há o exemplo clássico do repórter americano da Hearst Newspapers que chegou de trem em algum lugar dos Bálcãs para cobrir uma guerra civil. Infelizmente ele dormiu demais no trem e acordou na cidade seguinte, que por acaso estava bem tranqüila. Bastante perplexo, ele se lembrou de que fora mandado para cobrir uma guerra civil, e o melhor seria fazê-lo. Assim, redigiu um impressionante relatório de guerra. Na manhã seguinte seu texto foi lido pela embaixada daquele país em Washington, que devidamente mandou o relatório de volta para os seus superiores. Enquanto o empregado da Hearst dormia, o governo local mobilizou a milícia. Os camponeses, temendo um pogrom, revoltaram-se. Uma guerra civil realmente começou. O jornalista acordou e recebeu um telegrama de Nova York parabenizando-o por um furo mundial. Era a esse ambiente que Gaston Leroux se encaixava como um pato na água.

     Mas, na época, viajar era mais difícil e mais cansativo do que hoje. Depois de dez anos cobrindo histórias por toda a Europa, Rússia, Ásia e África ele se tornara uma celebridade, mas estava exausto. Em 1907, aos 39 anos, decidiu se acomodar e escrever romances. Nenhum deles, na verdade, era mais do que chamaríamos atualmente de romances caça-níqueis, motivo pelo qual praticamente nada do que ele escreveu é fácil de ser encontrado hoje em dia. A maior parte de suas histórias eram romances policiais, e ele inventou seu próprio detetive, mas este jamais se transformou num Sherlock Holmes, seu ícone pessoal. Mesmo assim, ele levava uma vida boa, desfrutava cada momento, gastava os adiantamentos quase tão rápido quanto os editores eram capazes de entregá-los, e produziu 63 livros nos vinte anos como escritor profissional. Morreu aos 59 em 1927, apenas dois anos depois de a versão de Carl Laemmle para O Fantasma da Ópera, estrelada por Lon Chaney, estrear e se tornar um clássico.

     Seu texto original, lido hoje, causa perplexidade. A idéia básica está lá, e é brilhante, mas o modo de narrá-la é bastante confuso. Gaston começa com uma introdução, acima de seu próprio nome, afirmando que cada linha e cada palavra são verdadeiras. Bom, isto é muito perigoso. Afirmar claramente que uma obra de ficção é absolutamente real, e portanto um registro histórico, é se oferecer como um refém da sorte e do leitor cético, porque, a partir desse momento, cada afirmação feita, e que possa ser checada, deve ser absolutamente verdadeira. Leroux quebra essa regra praticamente a cada página.

     Um autor pode começar uma história “a frio”, aparentemente narrando história verdadeira mas sem dizê-lo, deixando o leitor adivinhar se o que está lendo realmente aconteceu ou não. Assim cria-se aquela mistura de verdade e invenção que atualmente chamam em inglês ejàction. Um estratagema útil nesse método é entremear ficção com interlúdios genuinamente reais, que o leitor possa lembrar ou verificar. Então a perplexidade se aprofunda na mente do leitor, mas o autor é inocentado de uma mentira deslavada. Mas para tal há uma regra de ouro: tudo o que você diz deve ser comprovadamente verdadeiro ou totalmente impossível de ser provado. Por exemplo, um autor poderia escrever:

     “Na madrugada de 10 .de setembro de 1939, cinqüenta divisões do exército de Hitler invadiram a Polônia. Naquela mesma hora um homem de fala mansa, com documentos perfeitamente forjados, chegou da Suíça na estação principal de Berlim e desapareceu na cidade que amanhecia.”

     O primeiro fato é um acontecimento histórico, e o segundo não pode ser provado ou negado. Com um pouco de sorte o leitor acreditará que ambos são verdadeiros e continuará lendo. Mas Leroux começa dizendo que tudo que ele tem para revelar é verdade, e o sustenta dizendo que conversou com testemunhas, examinou registros e diários recém-descobertos (por ele) e jamais vistos antes.

     Mas então sua narrativa parte para diferentes direções, seguindo por becos sem saída e voltando, passando por uma quantidade de mistérios não explicados, afirmações sem base e disparates factuais até que somos tomados pela ânsia de fazer o que Andrew Lloyd Weber fez. Isto é, pegar uma grande caneta azul e cortar os desvios resfolegantes para trazer a história de volta ao que é, afinal de contas, uma narrativa espantosa mas crível.

     Tendo sido tão críticos com relação a Monsieur Leroux, seria adequado justificar nossa censura com alguns exemplos. Logo no início de sua narrativa ele se refere ao Fantasma como Erik, mas sem explicar como o soube. Dificilmente o Fantasma teria o hábito de jogar conversa fora, e não estava acostumado a se apresentar às pessoas. Por acaso Leroux estava certo, e a única conclusão a que podemos chegar é que ele teria consultado Madame Giry, de quem falaremos mais tarde.

     Muito mais espantoso, Leroux conta toda a sua história sem fornecer datas. Para um repórter investigativo, coisa que ele se propõe a ser, esta é uma omissão estranha. A pista mais próxima é uma única frase na apresentação do livro: “Os acontecimentos remontam a não mais do que trinta anos.”

     Isso levou alguns críticos a subtrair trinta anos desde a publicação, em 1911, chegando a 1881. Mas “não mais do que” também pode significar consideravelmente menos do que, e há várias pequenas pistas que sugerem uma época muito posterior a 1881, provavelmente por volta de 1893. Uma das principais é o caso da falha total de energia nas luzes do auditório e do palco, que durou apenas alguns segundos. Consiste no seguinte: Segundo Leroux, o Fantasma, ultrajado por ser rejeitado por Christine, a moça que ele amava com paixão obsessiva, decidiu raptá-la. Para um efeito máximo, escolheu o momento em que ela está no centro do palco, apresentando o Fausto. (No musical, Lloyd Weber trocou o Fausto pelo O triunfo de Don Juan, uma ópera composta pelo próprio Fantasma.) As luzes subitamente se apagaram, mergulhando o teatro numa escuridão de breu, e, quando se acenderam de novo, ela havia desaparecido. Bom, o mesmo acontecia com novecentos globos a gás.

     Certo, um sabotador misterioso que conhecesse o mecanismo poderia puxar a alavanca principal, cortando todo o suprimento de gás para aquela quantidade de globos. Mas eles iriam se apagar em seqüência, à medida que o suprimento de gás fosse diminuindo, e isso depois de muitos estalos e lampejos. Pior, como a reignição automática ainda não era conhecida, as luzes só poderiam ser acesas de novo por alguém usando uma vela. Era disso que se tratava a humilde profissão de acendedor de lampiões. Produzir escuridão absoluta com o movimento de uma alavanca, e a iluminação de novo em outro milissegundo, só é possível no sistema de iluminação totalmente elétrico, somente disponível bem depois de 1881.

     Ele também parece ter cometido um erro com relação à posição, à aparência e à inteligência de Madame Giry, erro corrigido no musical de Lloyd Weber. Essa dama aparece no livro original como uma faxineira imbecil. Na verdade ela era a diretora do coro e do corpo de baile, que escondia atrás do verniz de uma chefe severa (necessário para controlar um grupo de moças nervosas) uma natureza tremendamente corajosa e compassiva.

     Devemos perdoar Leroux por isso, já que ele estava contando com a memória humana, a de seus informantes, e sem dúvida eles descreviam outra mulher. Mas qualquer policial ou repórter jurídico confirmará que as testemunhas num tribunal, gente honesta e digna, têm alguma dificuldade para concordar umas com as outras e em lembrar com exatidão os acontecimentos que testemunharam no mês passado, quanto mais há dezoito anos.

     Num erro muito mais óbvio, o Sr. Leroux descreve um momento em que o Fantasma, em outro ataque de ressentimento, faz com que todo o lustre acima da platéia despenque sobre as pessoas, matando uma única mulher. O fato de esta dama ser a mulher contratada para substituir Madame Giry, a amiga do Fantasma que foi demitida, é um adorável toque de narrador. Mas então ele prossegue dizendo que aquele lustre pesava duzentos mil quilos. Duzentas toneladas, o suficiente para derrubar metade do teto a cada noite. O lustre pesa sete toneladas, pesava isso quando foi erguido, está lá, e ainda tem o mesmo peso!

     Mas, de longe, o distanciamento mais exótico de Leroux com relação às regras mais básicas da investigação e da reportagem é sua sedução, no final do livro, por um personagem misterioso conhecido apenas como “o persa”. Esse estranho charlatão é mencionado brevemente duas vezes nos dois primeiros terços da história, e muito de passagem. No entanto, depois do seqüestro da soprano no centro do palco, Leroux permite que esse homem assuma toda a narrativa e conte toda a história através de seus olhos no último terço do livro. Que história implausível!

     No entanto Leroux jamais tenta checar as informações. Ainda que o jovem visconde Raoul de Chagny supostamente estivesse presente em cada um dos estágios descritos pelo persa, Leroux afirma que mais tarde não pôde encontrar o visconde para verificar a história. Claro que deveria poder!

     Jamais saberemos por que o persa tinha tamanho desprezo pelo Fantasma, mas ele destruiu sua reputação de tal forma que o levou aos próprios portões do inferno. Antes da intervenção do persa, Leroux, o escritor, e muitos leitores, devem ter sentido alguma simpatia humana pelo Fantasma. Sem dúvida ele era monstruosamente desfigurado numa sociedade que com freqüência equiparava feiúra a doença, mas não era culpa sua. Sem dúvida ele era cheio de ódio pela sociedade mas, rejeitado e no exílio, devia levar uma vida realmente abominável. Até a chegada do persa, podemos ver Erik como a Fera da Bela cantora Christine, mas não como intrinsecamente maligno.

     Mas o persa retrata-o como um sádico furioso, um serial killer que estrangula por prazer; alguém que se delicia em projetar câmaras de tortura e em espiar através de um buraco os desgraçados que agonizam dentro delas; um homem que trabalhou durante anos a serviço da igualmente sádica imperatriz da Pérsia, projetando para ela tormentos cada vez mais revoltantes para infligir nos prisioneiros.

     Segundo o persa, ele e o jovem aristocrata, ao descer aos porões mais baixos para tentar recuperar Christine, também foram capturados, aprisionados numa sala de tortura, quase fritos, mas escaparam miraculosamente, desmaiaram e acordaram em segurança. O mesmo aconteceu com Christine. Na verdade essa história é uma farsa. Mas no fim do livro Leroux admite ter uma certa simpatia pelo Fantasma, um sentimento absolutamente impossível se acreditamos no persa Mas em todos os outros detalhes Leroux parece ter engolido a confusão de mentiras do persa, de cabo a rabo.

     Felizmente há um falha tão gritante na história do persa que nos permite descrer de tudo. Ele afirmou que Erik tivera uma vida longa e plenamente realizada antes de ir morar nos porões da Ópera. Segundo o persa, aquele homem grotescamente desfigurado viajara pela Europa ocidental, central e do leste, entrara na Rússia e descera até o Golfo Pérsico. Depois voltou a Paris e tornou-se um empreiteiro da construção da Ópera, sob as ordens de Garnier. Essa alegação tem de ser absurda.

     Se o sujeito desfrutou de tal vida durante tantos anos, certamente teria passado a aceitar sua desfiguração. Para ter sido empreiteiro na construção da Ópera, ele teria de realizar muitas reuniões de negócios, enfrentar arquitetos, negociar com sub-empreiteiros e trabalhadores. Por que, diabos, ele decidiria fugir para o exílio no subterrâneo não sendo capaz de encarar outros membros da raça humana? Tal homem, com sua astúcia e inteligência, teria ganhado um belo dinheiro com a empreitada e em seguida se aposentado confortavelmente numa residência murada no campo, para viver seus dias num isolamento voluntário, servido talvez por um empregado imune à sua feiúra.

     O único passo lógico a ser dado por um analista moderno, como Andrew Lioyd Weber já fez com o musical, é desconsiderar totalmente os relatos e as alegações do persa, e igualmente descrer tanto do persa quanto de Leroux quando dizem que o Fantasma morreu pouco depois dos acontecimentos narrados. O caminho sensato a seguir é voltar aos fundamentos e reconstruir o que for possível com base na lógica. Os fatos, portanto, são:

     Em algum momento da década de 1880 um infeliz, desesperadamente desfigurado, fugindo do contato com uma sociedade que, pelo que ele sentia, desprezava-o e o insultava, procurou abrigo e passou a morar no labirinto de porões e depósitos sob a Ópera de Paris. Esta não é uma idéia tão louca. Prisioneiros sobreviveram muitos anos em masmorras subterrâneas. Mas sete andares espalhados por 1,2 hectare não são exatamente um confinamento. As partes subterrâneas da Ópera (e quando o prédio estivesse totalmente vazio ele poderia caminhar pelos andares superiores sem ser perturbado) são como uma pequena cidade, com tudo o que é necessário para estabelecer um sistema de manutenção da vida.

     No correr dos anos começaram a surgir boatos em meio a empregados impressionáveis e crédulos, porque desapareciam objetos, e porque uma figura sombria ocasionalmente fora surpreendida antes de fugir para a escuridão. De novo, não é algo tão absurdo. Tais boatos costumam abundar em edifícios fantasmagóricos.

     No ano de 1893 algo estranho aconteceu e encerrou o reino do Fantasma na escuridão. Espiando de camarote fechado a ópera que acontecia no palco, algo bastante verossímil, o homem viu uma jovem cantora suplente e ficou avassaladoramente apaixonado por ela. Tendo aprendido sozinho depois de ouvir durante anos as melhores vozes da Europa, ele passou a ensinar à jovem até que uma noite, assumindo o papel da diva principal, ela pegou toda a Paris pelos ouvidos, através da clareza e da pureza de seu canto. De novo, nada impossível aqui, já que o estrelato da noite para o dia através da revelação de um talento estrondoso, mas até então insuspeito, é o material de que são feitas as lendas da indústria do entretenimento, e existem muitas.

     Os acontecimentos prosseguiram até a tragédia porque o Fantasma esperava que Christine correspondesse ao seu amor.

     Mas ela era cortejada por um visconde jovem e bonito, Raoul de Chagny, e se apaixonou por ele. Levado a extremos de fúria e ciúme, o Fantasma seqüestrou sua jovem soprano do próprio palco da ópera, no meio de uma apresentação, e levou-a ao seu refugio no sétimo nível, o mais profundo das catacumbas, à beira daquele lago subterrâneo.

     £ ali aconteceu algo entre eles, se bem que não saibamos o quê. Depois o jovem visconde, impulsionado para além do medo do escuro e das cavernas, apareceu para resgatá-la. Tendo uma opção, Christine escolheu seu Adônis. O Fantasma teve a chance de matar a ambos, mas, ao ver a multidão vingativa descendo com centenas de archotes acesos para iluminar a escuridão, ele poupou os amantes e desapareceu nas últimas sombras que restavam.

     Mas antes de fazer isso ela devolveu-lhe uma aliança de ouro que ele lhe dera antes, como prova de seu amor. E ele deixou para trás, para que seus perseguidores encontrassem, uma lembrança zombeteira: uma caixa de música na forma de um macaco, que tocava uma canção chamada “Mascarada”.

     Esta é a história do musical de Lloyd Weber, e é a única que faz sentido. O Fantasma, ferido e rejeitado mais uma vez, simplesmente desapareceu e jamais se ouviu falar dele.

     Ou será que...?

  

     A CONFISSÃO DE ANTOINETTE GIRY

     HOSPITAL DAS IRMÃS DE CARIDADE DA ORDEM DE SÃO VICENTE DE PAULA, PARIS, SETEMBRO DE 1906    

     EXISTE UMA RACHADURA NO GESSO DO TETO, MUITO ACIMA DA minha cabeça, e perto dela uma aranha está criando sua teia. É estranho pensar que essa aranha viverá mais do que eu, estará aqui quando eu me for, dentro de algumas horas. Boa sorte, aranhazinha, fazendo uma teia para pegar uma mosca e alimentar seus bebês.

     Como é que isso foi acontecer? Que eu, Antoinette Giry, aos 58 anos, esteja deitada de costas num hospital público de Paris, administrado pelas boas irmãs de caridade, esperando para encontrar-me com o Criador? Não creio que eu tenha sido uma pessoa muito boa, não como essas irmãs que limpam a sujeira interminável, unidas por seu juramento de pobreza, castidade, humildade e obediência. Eu jamais poderia ter conseguido isso. Elas têm fé, vejam só. Eu jamais pude ter essa fé. Será que está na hora de aprender? Provavelmente. Porque terei ido embora antes que o céu da noite preencha aquela pequena janela alta ali, que vejo com o canto do olho.

     Estou aqui, creio, simplesmente porque fiquei sem dinheiro. Bem, quase. Debaixo de meu travesseiro há uma pequena sacola de que ninguém faz idéia. Mas é para um objetivo especial. Há quarenta anos eu era uma bailarina, muito esguia, jovem e linda. Era o que me diziam os rapazes que vinham até a porta do teatro. E eles eram belos, aqueles corpos jovens e limpos, de cheiro doce, que podiam dar e obter tanto prazer.

     E o mais lindo era Lucien, todo o coro chamava-o de Lucien le Bel, com o rosto que fazia o coração das moças martelar como um tambor. Num domingo ensolarado ele me levou ao Bois de Boulogne e pediu minha mão, abaixado sobre um dos joelhos, como deve ser feito, e eu aceitei. Um ano depois ele foi morto pelos canhões prussianos em Sedan. Então eu não quis mais saber de casamento por longo tempo, quase cinco anos, enquanto dançava no bale.

     Estava com 28 anos quando encerrei a carreira na dança. Por um lado, eu conhecera Jules, nós nos casamos e eu fiquei pesada com a pequena Meg. Mais ainda, eu estava perdendo minha agilidade. Dançarina mais velha do corpo de baile, lutando a cada dia para permanecer magra e em forma. Mas o diretor era muito bom comigo, um homem gentil. A diretora do coro estava se aposentando, ele disse que eu tinha experiência, e não queria procurar a sucessora fora da ópera. Ele me indicou. Maitresse du Corps de Ballet. Assim que Meg nasceu e foi posta aos cuidados de uma ama-de-leite, eu assumi meus deveres. Era 1876, um ano após a inauguração do novo e magnífico Teatro de Ópera de Garnier. Finalmente estávamos fora daquelas caixas de sapato apinhadas na Rue le Peletier, a guerra já terminara, os danos à minha amada Paris tinham sido reparados e a vida era boa. Hoje chamam aquele tempo de Belle Époque, e realmente era belle.

     Nem me incomodei quando Jules conheceu sua gorda belga e fugiu para as Ardennes. Já foi tarde. Eu estava em situação melhor: pelo menos tinha um emprego, o bastante para manter meu pequeno apartamento, criar Meg e todas as noites ir ver minhas garotas deliciando cada cabeça coroada da Europa. O que terá acontecido com Jules? Tarde demais para perguntar agora. E Meg? Bailarina e corista como sua mãe — pelo menos isso pude fazer por ela — até o outono medonho, há dez anos, que deixou seu joelho direito rígido para sempre. Mesmo assim ela teve sorte, com um pouco de ajuda minha. É camareira e criada pessoal da maior diva da Europa, Christine de Chagny. Bom, se você relevar a grosseria daquela australiana Melba, que é o que eu faço. Onde Meg estará agora? Milão, Roma, talvez Madri. Onde a diva estiver cantando. E pensar que eu já gritei para a viscondessa de Chagny prestar atenção e ficar na linha!

     E o que estou fazendo aqui, esperando uma sepultura cedo demais? Bom, houve a aposentadoria há cinco anos, no meu qüinquagésimo aniversário. Eles foram muito gentis. Os lugares-comuns de sempre. E uma bonificação generosa pelos 22 anos como diretora. O bastante para tocar a vida. E mais algumas aulas particulares para as filhas dos ricos, incrivelmente desajeitadas. Não muito, mas o suficiente, e algumas economias. Até a primavera passada.

     Foi quando as dores começaram. Não muitas a princípio, mas agudas e súbitas, no fundo da barriga. Deram-me bismuto para indigestão e cobraram uma pequena fortuna. Na época eu não sabia que o caranguejo de aço estava dentro de mim, cravando suas grandes garras e sempre crescendo enquanto se alimentava.

     Até julho. Aí já era tarde demais. Por isso estou aqui deitada, tentando não gritar de dor, esperando a próxima colherada da deusa branca, o pó que vem das papoulas do leste.

     Não há muito o que esperar agora, até o sono final. Nem tenho mais medo. Será que Ele será misericordioso? Espero que sim, mas sem dúvida Ele vai tirar a dor. Tento me concentrar em outra coisa. Olho para trás e penso em todas as garotas que treinei, e em minha bela e jovem Meg com o joelho rígido esperando encontrar seu homem — espero que arranje um bom. E claro que penso nos meus rapazes, meus dois rapazes adoravelmente trágicos. Penso neles acima de tudo.

     — Madame, Monsieur L'Abbé está aqui.

     — Obrigada, irmã. Não consigo ver muito bem. Onde ele está?

     — Estou aqui, minha filha, sou o padre Sebastian. Ao seu lado. Está sentindo minha mão no seu braço?

     — Sim, padre.

     — Você deve fazer as pazes com Deus, ma filie. Estou pronto para tomar sua confissão.

     — Está na hora. Perdoe-me, padre, porque pequei.

     — Conte, criança. Não guarde coisa alguma.

     — Houve uma vez, há muito tempo, no ano de 1822, em que fiz algo que mudou muitas vidas. Na época eu não sabia. Agi por impulso e por motivos que eu pensava que fossem bons. Tinha 34 anos, era diretora do corpo de baile da Ópera de Paris. Estava casada, mas meu marido havia me abandonado e fugido com outra mulher.

     — Você deve perdoá-los, minha filha. O perdão faz parte da penitência.

     —Ah, eu perdôo, padre. Perdoei há muito tempo. Mas eu tinha uma filha, Meg, na época com seis anos. Havia uma feira em Neully, e eu a levei num domingo. Havia realejos e carrosséis, máquinas a vapor e macacos amestrados que recolhiam moedinhas para o homem do realejo. Meg jamais tinha visto um parque de diversões. Mas também havia um show de monstruosidades. Uma fileira de barracas com cartazes anunciando o homem mais forte, os anões acrobatas, um homem tão coberto de tatuagens que não era possível ver sua pele, um homem negro com um osso atravessando o nariz e dentes pontudos, uma senhora barbuda.

     “No final da fileira havia uma espécie da jaula sobre rodas, com as barras espaçadas a quase trinta centímetros uma das outras, e uma palha imunda e fétida no chão. Estava claro ao sol, mas escuro na jaula, por isso espiei para ver que animal havia lá dentro. Ouvi o ruído de correntes e vi algo enrolado na palha. Neste momento surgiu um homem.”

     “Ele era grande e corpulento, com o rosto vermelho e feições grosseiras. Carregava uma bandeja presa ao pescoço com um cordel. Continha esterco de cavalo colhido no lugar onde ficavam os pôneis, e pedaços de fruta apodrecida.”

     “— Experimente, minha senhora — disse ele. — Veja se consegue acertar o monstro. Um centavo por tentativa. — Em seguida ele se virou para a jaula e gritou. — Venha, venha aqui perto, senão você sabe o que vai acontecer. — As correntes ressoaram de novo, e uma coisa que era mais animal do que homem veio se arrastando até a luz, mais próximo das barras.”

     “Dava para ver que era de fato humano, mas por muito pouco. Uma figura do sexo masculino, envolta em trapos, com crostas de imundície, mordendo um pedaço de maçã velha. Aparentemente precisava viver do que as pessoas jogavam contra ele. Esterco e fezes grudavam-se em seu corpo magro. Havia algemas em seus pulsos e nos tornozelos, e o aço mordera a carne deixando feridas abertas, onde vermes se retorciam. Mas foram o rosto e a cabeça que fizeram com que Meg irrompesse em lágrimas.”

     “O crânio e o rosto eram horrendamente deformados, com apenas alguns tufos de cabelo imundo. O rosto era distorcido para baixo num dos lados, como se tivesse sido golpeado há muito por um martelo monstruoso, e a carne da face era escoriada e informe, como cera derretida. Os olhos eram fundos nas órbitas, franzidos e disformes. Apenas metade da boca e parte do maxilar de um dos lados escaparam à deformação e se assemelhavam às de um rosto humano.”

     “Meg estava segurando uma maçã caramelada. Não sei por quê, mas tirei a maçã dela, fui até as barras e a estendi. O homem gordo entrou em fúria, berrando e gritando que eu o estava privando de seu meio de vida. Ignorei-o e empurrei a maçã caramelada nas mãos imundas por trás das barras. E olhei nos olhos daquele monstro deformado.”

     “Padre, há trinta anos, quando o balé foi suspenso durante a guerra franco-prussiana, eu estava entre as pessoas que cuidavam dos jovens feridos de volta ao front. Vi homens em agonia, ouvi-os gritando. Mas jamais vi dor como naqueles olhos.”

     — A dor faz parte da condição humana, minha filha. Mas o que você fez naquele dia com a maçã caramelada não foi um pecado, e sim um ato de compaixão. Preciso ouvir seus pecados se devo lhe dar absolvição.

     — Mas eu voltei naquela noite e o roubei.

     — Você fez o quê?

     — Fui até o velho teatro da ópera, que estava trancado, peguei uma torquês na carpintaria e uma grande capa com capuz no guarda-roupa, aluguei um cabriolé e voltei a Neully. O campo do parque de diversões estava deserto ao luar. Os artistas estavam dormindo nas suas caravanas. Havia vira-latas que começaram a latir, mas joguei pedaços de carne para eles. Encontrei a jaula, puxei a barra de ferro que a mantinha fechada, abri a porta e chamei em voz baixa.

     “A criatura estava acorrentada a uma das paredes. Cortei as correntes dos pulsos e dos pés e insisti para que ele saísse. Ele parecia aterrorizado, mas, quando me viu à luz da lua, saiu arrastando-se e saltou para o chão. Eu o cobri com a capa, puxei o capuz sobre aquela cabeça medonha e guiei-o até o cabriolé. O motorista reclamou do cheiro pavoroso, mas eu lhe paguei um dinheiro extra e ele nos levou até meu apartamento atrás da Rue le Peletier. Tirá-lo de lá foi um pecado?”

     — Sem dúvida foi uma ofensa à lei, minha filha. Ele pertencia ao dono da feira, por mais brutal que o homem possa ter sido. Quanto a uma ofensa diante de Deus... não sei. Creio que não.

     — Há mais, padre. O senhor tem tempo?

     — Você está diante da eternidade. Acho que posso lhe dar alguns minutos, mas lembre-se de que pode haver outros morrendo aqui, e que também precisam de mim.

     — Eu o escondi no meu pequeno apartamento durante um mês, padre. Ele tomou um banho, o primeiro de sua vida, depois outro e muitos mais. Eu desinfetei as feridas abertas e as cobri com bandagens, de modo que se curaram lentamente. Dei-lhe roupas do baú do meu marido e comida para que ele recuperasse a saúde. Além disso, pela primeira vez na vida, ele dormiu numa cama de verdade com lençóis: fiz Meg passar a dormir comigo, o que foi bom, porque ela tinha pavor dele. Descobri que ele também ficava petrificado de medo se alguém aparecia à porta, e se arrastava para se esconder debaixo da escada. Também descobri que ele sabia falar, em francês, mas com sotaque da Alsácia, e aos poucos, naquele mês, ele me contou sua história.

     “Seu nome era Erik Mulheim. Nasceu há quarenta anos na Alsácia, que na época era francesa, mas logo seria anexada pela Alemanha. Era filho único de uma família de circo, vivendo numa caravana, mudando-se constantemente de cidade para cidade.

     “Ele disse que na infância, muito cedo, ficara sabendo das circunstâncias de seu nascimento. A parteira gritou ao ver a criança minúscula emergindo ao mundo, porque já então ele era terrivelmente desfigurado. Ela estendeu para a mãe o embrulhinho que berrava e fugiu, gritando (a idiota) que dera à luz o próprio demônio.”

     “Assim chegou o pobre Erik, destinado desde o nascimento a ser odiado e rejeitado pelas pessoas que acreditam que a feiúra é a expressão visível do pecado.”

     “Seu pai era o carpinteiro, mecânico e pau-para-toda-obra no circo. Foi vendo-o trabalhar que Erik começou a desenvolver seu talento para qualquer coisa que pudesse ser construída com mãos e ferramentas. Foi nos espetáculos que teve contato com truques ilusionistas, espelhos, alçapões e passagens secretas, que mais tarde teriam tanta importância na sua vida em Paris.”

     “Mas seu pai era um bêbado que chicoteava o menino constantemente pelas menores faltas, ou por coisa nenhuma; sua mãe parecia uma vassoura inútil que só ficava parada num canto, esperando. Passando a maior parte da juventude com dor e lágrimas, ele tentava evitar a caravana e dormia na palha junto aos animais do circo, especialmente os cavalos. Tinha sete anos e dormia nos estábulos, quando a tenda principal pegou fogo.”

     “O incêndio arruinou o circo, que foi à falência. Os empregados e os artistas se espalharam para buscar serviço em outros lugares. O pai de Erik, sem trabalho, bebia até cair. Sua mãe fugiu para trabalhar como empregada doméstica na cidade próxima de Estrasburgo. Ficando sem dinheiro, de tanto beber, seu pai vendeu-o ao chefe de um espetáculo de monstruosidades que estava de passagem. O menino passou nove anos na jaula com rodas, diariamente lhe atiravam imundícies e esterco para a diversão de multidões cruéis. Tinha dezesseis anos quando o encontrei.”

     — Uma narrativa piedosa, minha filha, mas o que tem isso a ver com os seus pecados mortais?

     — Paciência, padre. Ouça, o senhor entenderá, porque nenhuma criatura no planeta já ouviu a verdade. Mantive Erik no meu apartamento durante um mês, mas a coisa não poderia continuar assim. Havia vizinhos, pessoas que apareciam à porta. Uma noite levei-o ao meu local de trabalho, a Ópera, e ele encontrou seu novo lar.

     “Ali, finalmente, ele tinha um refugio, um lugar para se esconder, onde o mundo jamais o encontraria. Apesar do seu terror do fogo, ele pegou uma tocha e desceu aos porões mais baixos, onde a escuridão ocultaria seu rosto terrível. Com madeira e ferramentas da carpintaria construiu seu lar à beira do lago. Mobiliou-o com peças do departamento de cenografia, tecidos do figurino. Nas horas mortas, quando tudo estava abandonado, ele podia ir à cantina dos funcionários pegar comida, e até mesmo surrupiar iguarias na copa dos diretores. E lia.”

     “Fez uma chave para a biblioteca da Ópera e passou anos dando a si próprio a formação que jamais tivera; noite após noite, à luz de velas, devorou a biblioteca, que é enorme. Claro que a maior parte das obras era sobre música e ópera. Ele passou a conhecer cada ópera jamais escrita, e cada nota de cada ária. Com sua habilidade manual criou um labirinto de passagens secretas que apenas ele conhecia e, tendo treinado há muito tempo com os equilibristas, podia correr sem medo sobre os urdimentos mais altos e mais estreitos. Durante onze anos viveu ali, e tornou-se homem no subterrâneo.”

     “Mas é claro que em pouco tempo começaram boatos, que cresciam cada vez mais. Comida, roupas, velas, ferramentas desapareciam durante a noite. Os funcionários crédulos começaram a falar de um fantasma nos porões, até que por fim cada minúsculo acidente — e nos bastidores há muitas tarefas perigosas — passou a ser culpa do misterioso fantasma. Assim a lenda começou a crescer.”

     — Mon Dieu, mas eu ouvi falar disso. Há dez anos... não, deve ser mais... eu fui chamado para dar a extrema-unção a um pobre coitado que foi encontrado enforcado. Alguém me disse que o Fantasma tinha feito aquilo.

     — O nome do homem era Bouquet, padre. Mas não foi Erik. Joseph Bouquet tinha períodos de grande depressão, e certamente tirou a própria vida. A princípio eu gostei dos boatos, porque pensei que manteriam meu pobre garoto (na época era assim que eu pensava nele) seguro em seu pequeno reino na escuridão sob a Ópera, e talvez isso tivesse acontecido, até aquele outono pavoroso de 1893. Ele fez uma coisa muito tola, padre. Ele se apaixonou.

     “Na época ela se chamava Christine Dae. Provavelmente o senhor a conhece agora como Madame la Viscomtesse de Chagny.

     — Mas isso é impossível. Não...

     — Sim, essa mesma, na época uma corista sob os meus cuidados. Não dançava muito, mas tinha uma voz clara e pura. Mas inculta. Erik ouvira noite após noite as maiores vozes do mundo; estudara os textos, sabia como Christine poderia ser ensinada. Quando terminou, uma noite ela assumiu o papel principal e de manhã se tornara uma estrela.

     “Meu pobre, feio e proscrito Erik achou que seu amor poderia ser recíproco, mas claro que era impossível. Porque Christine tinha seu próprio jovem amor. Levado pelo desespero Erik seqüestrou-a uma noite, do centro do palco, no meio de sua própria ópera O triunfo de Don Juan.”

     — Mas toda a Paris ouviu falar desse escândalo, até mesmo um humilde sacerdote como eu. Um homem foi morto.

     — Sim, padre. O tenor Pianti. Erik não pretendia matá-lo, só fazer com que ele ficasse quieto. Mas o italiano se sufocou e morreu. Claro que isso foi o fim. Por acaso o comissário de polícia estava na platéia aquela noite. Convocou uma centena de gendarmer, eles levaram tochas acesas, e com uma multidão em busca de vingança desceram até os porões, até o próprio nível do lago.

     — Encontraram as escadas secretas, as passagens, a casa à beira do lago, e encontraram Christine desmaiada e em estado de choque. Ela estava com seu pretendente, o jovem visconde de Chagny, o doce e querido Raoul. Ele a levou e a consolou como apenas um homem pode fazer, com braços fortes e carícias gentis.

     “Dois meses depois ela descobriu que estava grávida. Por isso ele se casou com ela, deu-lhe seu nome, seu título, seu amor e a aliança necessária. O filho nasceu no verão de 1894, e os dois o criaram. E nesses últimos doze anos ela se tornou a maior diva de toda a Europa.”

     — Mas jamais encontraram Erik, não é, minha filha? Não houve qualquer pista do Fantasma, pelo que recordo.

     — Não, padre, jamais o encontraram. Mas eu sim. Voltei desolada à minha saleta atrás da sala do coro. Quando puxei as cortinas do nicho que servia de guarda-roupa, ali estava ele, tendo nas mãos a máscara que sempre usava, mesmo sozinho, encolhido no escuro como costumava ficar debaixo da escada de meu apartamento, onze anos antes.

     — E claro que você contou à polícia...

     — Não, padre, não contei. Ele ainda era o meu garoto, um dos meus dois garotos. Não poderia entregá-lo de novo à multidão. Por isso peguei um chapéu e um véu grosso de mulher, uma capa comprida... nós saímos lado a lado pela escada dos funcionários e fomos para a rua, apenas duas mulheres andando na noite. Havia centenas de outras. Ninguém percebeu.

     “Mantive-o durante três meses no meu apartamento a oitocentos metros de distância, mas os cartazes de 'procura-se' estavam em toda a parte. Com um prêmio por sua cabeça. Ele tinha de deixar Paris, deixar a França.”

     — Você o ajudou a escapar, minha filha. Isso foi um crime e um pecado.

     — Então pagarei por ele, padre. Em breve. Aquele inverno foi duro e frio. Pegar um trem estava fora de questão. Aluguei uma diligência fechada, com quatro cavalos. Para Le Havre. Ali deixei-o escondido num alojamento barato enquanto percorria as docas e os bares imundos. Finalmente encontrei um capitão do mar, mestre de um pequeno cargueiro que ia para Nova York, capaz de aceitar suborno e não fazer perguntas. Assim, numa noite de meados de janeiro de 1894 eu fiquei parada no cais olhando as luzes de proa do cargueiro a vapor desaparecendo na escuridão, indo para o Novo Mundo. Diga, padre, há mais alguém conosco? Não posso ver, mas sinto que há alguém aqui.

     — De fato, há um homem que acaba de entrar.

     — Sou Armand Dufour, madame. Uma noviça veio ao meu alojamento e disse que precisavam de mim aqui.

     — E o senhor é tabelião?

     — Sou sim, senhora.

     — Monsieur Dufour, quero que procure algo debaixo do meu travesseiro. Eu mesma faria isso, mas fiquei fraca demais. Obrigada. O que encontrou?

     — Bom, uma espécie de carta, num envelope de papel pardo, fino. E uma pequena sacola de camurça.

     — Exatamente. Gostaria que o senhor pegasse caneta e tinta e assinasse na aba lacrada dizendo que essa carta foi entregue aos seus cuidados hoje, e que não foi aberta pelo senhor ou por qualquer outra pessoa.

     — Minha filha, peço que se apresse, nós ainda não terminamos o que tínhamos de fazer.

     — Paciência, padre. Sei que meu tempo é curto, mas após tantos anos de silêncio agora preciso lutar para completar meu caminho. Terminou, senhor tabelião?

     — Foi escrito como a senhora requisitou, minha senhora.

     — E na frente do envelope?

     — Estou vendo, escrito no que certamente deve ser sua letra, as palavras M. Erik Mulheim, Nova York.

     — E a pequena bolsa de couro?

     — Estou com ela.

     — Abra, por favor.

     — Mon dieu. Napoleões de ouro. Não vejo isso desde...

     — Mas eles ainda valem?

     — Certamente, são muito valiosos.

     — Então quero que o senhor leve os napoleões e a carta para que sejam entregues na cidade de Nova York. Pessoalmente.

     — Pessoalmente? Em Nova York? Mas minha senhora, eu geralmente... eu não... nunca estive...

     — Por favor, senhor tabelião. Há ouro suficiente? Para ficar cinco semanas longe de seu escritório?

     — Mais do que suficiente, mas...

     — Minha filha, você não sabe se esse homem ainda está vivo.

     — Ah, sem dúvida ele sobreviveu, padre. Ele sempre sobreviverá.

     — Mas eu não tenho o endereço dele. Onde irei encontrá-lo?

     — Pergunte, Sr. Dufour. Procure os registros de imigração. O nome é bastante raro. Ele estará em algum lugar. Um homem que usa máscara para esconder o rosto.

     — Muito bem, minha senhora. Tentarei. Irei até lá e tentarei. Mas não posso garantir o sucesso.

     — Obrigada. Diga-me, padre, uma das irmãs me administrou uma colher de tintura de um pó branco?

     — Não durante a hora em que estive aqui, ma filie. Por quê?

     — É estranho, mas a dor se foi. Um alívio tão lindo, tão doce. Não consigo ver dos dois lados, mas vejo uma espécie de túnel e um arco. Meu corpo estava com uma dor terrível, mas agora não dói mais. Estava muito frio, mas agora há um calor em toda a parte.

     — Não se demore, Monsieur L'Abbé. Ela está nos deixando.

     — Obrigado, irmã. Acho que conheço o meu serviço.

     — Eu estou indo na direção do arco. Há luz no final. Uma luz muito suave. Ah, Lucien, você está aí? Eu estou indo, meu amor.

     — In Nomine Patris, et Filii et Spiritus Sancti.

     — Depressa, padre.

     — Ego te absolvo ab omnibus peccatis tuis.

     — Obrigada, padre.

    

     CÂNTICO DE ERIK MULHEIM

     SUÍTE DE COBERTURA, E. M. TOWER, PARK ROW, MANHATTAN, OUTUBRO DE 1906

     TODO DIA, VERÃO OU INVERNO, CHOVA OU FAÇA SOL, ACORDO cedo. Visto-me e saio de meus aposentos para este pequeno terraço no telhado, sobre o pináculo do mais alto arranha-céu de toda a Nova York. Daqui, dependendo do lado do quadrado em que me encontre, posso olhar para oeste, sobre o rio Hudson, em direção às terras verdes e abertas de Nova Jersey. Ou para o norte em direção aos trechos chamados de Midtown e Uptown nessa ilha espantosa tão cheia de riqueza e imundície, extravagância e pobreza, vício e crime. Ou para o sul em direção ao mar aberto que leva de volta à Europa e à estrada amarga pela qual viajei. Ou para o leste, sobre o rio, em direção ao Brooklyn e, perdido na névoa do mar, o enclave lunático chamado de Coney Island, fonte original de minha riqueza.

     E eu, que passei sete anos aterrorizado por um pai brutal, nove como um animal acorrentado numa jaula, onze como um pária nos porões sob a Ópera de Paris e dez lutando para abrir caminho dos galpões de limpeza de peixe em Gravesend Bay até esta fama, sei que agora tenho riqueza e poder além dos sonhos de Creso. Por isso olho para esta cidade enorme e penso: como odeio e desprezo você, raça humana.

     Foi uma viagem longa e difícil que me trouxe aqui nos primeiros dias de 1894. O Atlântico estava tempestuoso, louco. Eu ficava deitado no catre, morrendo de enjôo, a passagem paga antecipadamente pela única pessoa gentil que já conheci, tolerando as zombarias e os insultos da tripulação, sabendo que poderiam a qualquer hora me jogar por sobre a amurada, se eu tentasse reagir, sustentado apenas pela fúria e pelo ódio contra todos eles. Por quatro semanas rolamos e balançamos sobre o oceano até que numa noite fria no final de janeiro o mar se acalmou e baixamos âncora nas Roads, dez milhas ao sul da ponta da ilha de Manhattan.

     Disso eu não sabia coisa alguma, a não ser que tínhamos chegado. Em algum lugar. Mas ouvi a tripulação em seu áspero sotaque bretão dizendo uns aos outros que de madrugada entraríamos no rio East e atracaríamos para a inspeção da alfândega. Então eu soube que seria descoberto outra vez; exposto, humilhado, rejeitado como imigrante e mandado de volta acorrentado.

     De madrugada, quando todo mundo estava dormindo, inclusive o vigia noturno bêbado, peguei um salva-vidas mofado no convés e pulei no mar gélido. Eu vira luzes fracas piscando em meio à escuridão, não sabia a que distância. Mas comecei a impulsionar meu corpo congelado na direção delas, e uma hora depois parei numa praia coberta de cascalho, com uma crosta de gelo. Eu não sabia, mas meus primeiros passos no Novo Mundo foram na praia de Gravesend Bay, Coney Island.

     As luzes que eu vira vinham de lâmpadas a óleo na janela de algumas cabanas miseráveis no topo da praia, para além da linha da maré, e quando cambaleei na direção delas e olhei através das tábuas imundas vi fileiras de homens amontoados, limpando e tirando as entranhas de peixes recém-pescados. Mais adiante, na fileira de cabanas, havia um espaço vazio no meio do qual estava acesa uma grande fogueira, e ao redor dela estava agachada uma dúzia de miseráveis, sugando o calor para dentro do corpo. Semimorto de frio, eu soube que também deveria compartilhar aquele calor, ou então congelar até a morte. Entrei na luz da grande fogueira, senti a onda de calor e olhei para eles. Minha máscara estava enfiada dentro das roupas. Esta cabeça terrível e o rosto foram iluminados pelas chamas. Eles se viraram e me encararam.

     Praticamente jamais gargalhei na vida. Não havia motivo. Mas naquela noite, no frio abaixo de zero antes do amanhecer, eu gargalhei por dentro, de puro alívio. Eles me olharam... e não perceberam. Porque de um modo ou de outro cada um deles era deformado. Por puro acaso eu chegara ao acampamento noturno dos Párias de Gravesend Bay, os rejeitados que ganhavam a vida miserável limpando peixe enquanto os pescadores e a cidade dormiam.

     Por isso eles deixaram que eu me secasse e me aquecesse junto à fogueira, e perguntaram de onde eu viera, apesar de ser óbvio que eu tinha vindo do mar. Da leitura dos textos de todas as óperas inglesas eu aprendera algumas palavras dessa língua, e lhes disse que tinha fugido da França. Não fez diferença, todos eles haviam fugido de algum lugar, perseguidos pela sociedade até aquela última e desolada língua de areia. Chamaram-me de O Francês, e deixaram que eu me juntasse a eles, dormindo nos telheiros, sobre pilhas de redes fétidas, trabalhando durante as noites em troca de alguns centavos, vivendo de restos, freqüentemente com frio e fome, mas a salvo da lei, de suas correntes e cadeias.

     Chegou a primavera e comecei a aprender o que havia por trás dos tojos que separavam a aldeia de pescadores do resto de Coney Island. Fiquei sabendo que em toda a ilha não havia lei, ou que havia uma lei própria. Essa ilha não fazia parte da cidade do Brooklyn, do outro lado do estreito, e até recentemente era governada por um sujeito que era meio político, meio gângster chamado John McKane, que acabara de ser preso. Mas o legado de McKane sobrevivia nessa ilha lunática dedicada aos parques de diversões, aos bordéis, ao crime, ao vício e ao prazer. Coney Island recebia nova-iorquinos burgueses a cada fim de semana, que lá gastavam fortunas com diversões tolas produzidas por empreendedores de coragem.

     Ao contrário dos párias, que podiam limpar peixes a vida toda e jamais melhorar de vida devido à sua estupidez, eu sabia que, com coragem e engenhosidade, poderia sair daqueles barracos e fazer fortuna com os parques de diversões que na época estavam sendo planejados e construídos ao longo da ilha. Mas como? Primeiro, na escuridão, esgueirei-me para a cidade e roubei roupas, roupas adequadas, que estavam nos varais e nos chalés vazios da praia. Depois peguei madeira nas áreas de construção e fiz um barraco melhor. Mas com meu rosto eu ainda não podia andar à luz do dia naquela sociedade esganiçada e sem regras, onde os turistas felizes gastavam fortunas a cada fim de semana. Um recém-chegado juntou-se a nós, pouco mais do que um garoto de dezessete anos, dez a menos do que eu, mas mais velho do que realmente era. Diferente da maioria, não tinha marcas físicas, não era deformado, com o rosto pálido e olhos negros sem expressão. Vinha de Malta e tinha boa formação, pela convivência com os padres católicos de lá. Falava inglês fluente, sabia latim e grego e não tinha um pingo de escrúpulo. Estava ali porque, impulsionado pela fúria contra os castigos intermináveis infligidos pelos padres, pegara uma faca de cozinha e a enfiara em seu tutor, matando-o instantaneamente. Na fuga, fora de Malta para a Barbary Coast, trabalhara durante um tempo como garoto de programa numa casa de sodomia, depois embarcara como clandestino num navio para Nova York. Mas sua cabeça ainda estava a prêmio, por isso evitara o filtro da imigração em Ellis Island e seguira mais para baixo até Gravesend Bay.

     Eu precisava de um testa-de-ferro, um homem que pudesse agir por mim à luz do dia; ele precisava de minha engenhosidade e de minha habilidade para que saíssemos daquele lugar. Tornou-se meu subordinado e representante em tudo, e juntos saímos daqueles galpões de limpar peixe para a riqueza e o poder, ficando mais ricos que metade de Nova York, muito mais. Até hoje só o conheço como Darius.

     Mas se eu lhe ensinei, ele também me ensinou muito, convertendo-me de crenças antigas e idiotas para o culto do único deus verdadeiro, o Grande Mestre que jamais me abandonou.

     Para que eu pudesse andar tranqüilamente à luz do dia a solução foi simples. No verão de 1894, com economias guardadas do serviço na limpeza de peixes, consegui que um artesão me fizesse uma máscara de látex que cobria toda a cabeça, com apenas buracos para os olhos e a boca. Uma máscara de palhaço, com um enorme nariz vermelho e um sorriso largo e cheio de dentes. Com paletó e calças largas eu podia andar pelos parques de diversões sem que suspeitassem de mim. Famílias com crianças chegavam a acenar e sorrir. A roupa de palhaço foi meu passaporte para o mundo diurno. Em apenas dois anos ganhamos dinheiro. Esqueci o número das tramóias e fraudes que inventei.

     As mais simples costumavam ser as melhores. Descobri que a cada fim de semana os turistas despachavam duzentos mil cartões-postais de Coney Island. A maioria procurava um lugar para comprar selos. Por isso eu comprava cartões-postais por um centavo, carimbava as palavras PORTE PAGO e vendia por dois. Os turistas ficavam felizes. Não sabiam que o porte era grátis. Mas eu queria mais, muito mais. Podia sentir que logo as diversões populares teriam um boom, uma verdadeira fábrica de dinheiro.

     Naquele primeiro ano e meio sofri apenas um revés, mas foi ruim. Voltando uma noite para os galpões, com uma bolsa cheia de dólares, fui cercado por quatro salteadores armados com porretes e socos-ingleses. Se tivessem apenas roubado meu dinheiro já teria sido ruim, mas isso não ameaçaria minha vida. Porém, arrancaram a máscara de palhaço, viram meu rosto e me espancaram quase até a morte.

     Levei um mês deitado no catre até que pudesse andar de novo. Desde então carrego sempre um pequeno Colt Derringer, porque enquanto estava ali deitado eu jurei que ninguém mais sairia ileso se me atacasse de novo.

     No inverno eu ouvira falar de um homem chamado Paul Boyton. Ele estava tentando abrir o primeiro parque de diversões totalmente cercado na ilha. Instruí Darius para conseguir um encontro com ele e se apresentar como um grande engenheiro projetista recém-chegado da Europa. Deu certo. Boyton encomendou uma série de seis brinquedos para seu novo empreendimento. Eu os desenhei, claro, usando engodos, ilusão de ótica e habilidade mecânica para criar sensações de medo e espanto entre os turistas, coisa que eles adoravam. Boyton abriu o Psique Sea Lion em 1895, e as multidões vieram em torrentes.

     Boyton queria pagar a Darius por “suas” invenções, mas eu o impedi. Em vez disso exigi dez centavos por cada dólar gasto naqueles seis brinquedos, num período de dez anos. Boyton colocara tudo o que tinha naquele parque de diversões, e estava com dívidas enormes. Em um mês aqueles brinquedos, monitorados por Darius, traziam cem dólares por semana apenas para nós. Mas muito mais viria.

     O sucessor do chefe político McKane era um homem ruivo e enérgico chamado George Tilyou. Ele também queria abrir um parque de diversões e aproveitar o crescimento nas atividades. Independentemente da fúria de Boyton, que não pôde fazer coisa alguma a respeito, eu projetei diversões ainda mais engenhosas para o empreendimento de Tilyou, na mesma base: uma percentagem na bilheteria. O parque Steeplechase foi inaugurado em 1897, e começou a render mil dólares por dia. Nessa época eu já havia comprado um bangalô agradável perto da praia de Manhattan, e me mudara para lá. Os vizinhos eram poucos e apareciam quase que só nos finais de semana, quando eu, vestido de palhaço, estava circulando livremente entre os turistas dos dois parques de diversões.

     Havia freqüentes torneios de boxe em Coney Island, com apostas altas feitas pela pequena nobreza milionária que chegava pelos novos trens elevados que vinham da ponte do Brooklyn até o Manhattan Beach Hotel. Eu olhava mas não jogava, convencido de que a maior parte das lutas era armada. O jogo era ilegal em Nova York e no Brooklyn, na verdade em todo o estado de Nova York; mas em Coney Island, o último posto da fronteira do crime, enormes quantias mudavam de mãos enquanto os bookmakers pegavam o dinheiro dos apostadores. Em 1899 Jim Jeffries desafiou Bob Fitzsimmons pelo título mundial de pesos pesados — em Coney Island. Na época nossa fortuna conjunta era de duzentos e cinqüenta mil dólares, e eu pretendia apostar tudo em Jeffries, o que era uma chance remota. Darius quase ficou louco de fúria até que expliquei minha idéia.

     Eu percebera que entre os assaltos os lutadores quase sempre tomavam um bom gole d'água numa garrafa, às vezes cuspindo de novo, mas nem sempre. Seguindo minhas instruções, Darius, bancando um repórter esportivo, simplesmente trocou a garrafa de Fitzsimmons por uma onde havia sedativo. Jeffries nocauteou-o. Eu ganhei um milhão de dólares. Meses depois Jeffries defendeu seu título contra o marinheiro Tom Sharkey no Clube Atlético de Coney Island. Mesma tramóia, mesmo resultado. Pobre Sharkey. Nós lucramos dois milhões. Estava na hora de nos mudarmos mais para o norte na ilha e mais para dentro do mercado, porque eu vinha estudando um parque de diversões muito mais louco e fora-da-lei para ganhar dinheiro: a Bolsa de Valores de Nova York. Mas havia um último golpe a ser dado em Coney Island.

     Dois empresários chamados Frederick Thompson e Skip Dundy estavam desesperados para abrir um terceiro parque de diversões, ainda maior. O primeiro era um engenheiro alcoólatra, e o segundo um financista gago, e era tão urgente sua necessidade de dinheiro que já estavam devendo aos bancos mais do que valiam. Fiz Darius criar uma companhia “de fachada”, uma corporação que os deixou espantados oferecendo um empréstimo sem garantias e sem juros. Em vez disso a E.M. Corporation queria dez por cento dos lucros brutos do Luna Park durante uma década. Eles concordaram. Não tinham escolha; era isso ou a falência com um parque de diversões pela metade. O Luna Park foi inaugurado em 2 de maio de 1903. Às nove da manhã Thompson e Dundy estavam falidos. Ao pôr-do-sol haviam pago todas as dívidas, menos a minha. Nos quatro primeiros meses o Luna Park teve um bruto de cinco milhões de dólares. Nivelou-se em um milhão por mês, e continua assim. Nessa época havíamos nos mudado para Manhattan.

     Comecei numa modesta casa de tijolos, e ficava dentro dela na maior parte do tempo, porque aqui o disfarce de palhaço era inútil. Darius entrou para a bolsa de valores em meu nome, seguindo minhas instruções enquanto eu examinava relatórios das corporações e os detalhes de novas ações. Logo ficou claro que nesse país espantoso tudo estava crescendo. Novas idéias e projetos, se fossem bem promovidos, eram imediatamente apoiados. A economia se expandia a uma taxa absurda para oeste, cada vez mais para oeste. A cada nova indústria havia uma demanda por matérias-primas, junto com navios e ferrovias para entregá-las e para levar os produtos até os mercados que esperavam.

     Durante os anos em que estive em Coney Island os imigrantes vinham jorrando aos milhões de cada terra do leste e do oeste. O Lower East Side, quase debaixo do meu terraço enquanto olho agora, era e continua sendo um vasto caldeirão de todas as raças e credos vivendo apinhados na pobreza, na violência, no vício e no crime. A apenas um quilômetro e meio os super-ricos têm suas mansões, suas carruagens e sua amada ópera.

     Em 1903, depois de alguns percalços, eu dominara as complexidades do mercado de ações e descobrira como os gigantes como Pierpoint Morgan tinham feito suas fortunas. Como eles, passei para o carvão no oeste da Virgínia, o aço em Pittsburgh, ferrovias para o Texas, transportes para Savannah via Baltimore e Boston, prata no Novo México e pobreza em toda a ilha de Manhattan. Mas tornei-me melhor e mais duro do que eles, através do culto obstinado do único deus verdadeiro, a quem Darius me guiara. Pois este é Mamon, o deus do ouro que não permite misericórdia, nem caridade, nem compaixão ou escrúpulo. Não há viúva, criança, nenhum pobre coitado que não possa ser esmagado um pouco mais em troca de alguns grânulos extras do precioso metal que tanto agrada ao Mestre. Com o ouro vem o poder, e com o poder ainda mais ouro num glorioso ciclo de conquista do mundo.

     Em todas as coisas sou e continuo sendo o mestre e o superior de Darius. Em todas as coisas menos uma. Jamais foi criado neste planeta um homem mais frio ou mais cruel. Jamais caminhou uma criatura de alma mais sem vida. Nisto ele está além de mim. Entretanto tem seu ponto fraco. Apenas um. Numa certa noite, curioso com suas raras ausências, fiz com que fosse seguido. Ele foi até um antro na comunidade mourisca e ali fumou haxixe até entrar numa espécie de transe. Parece que este é seu único defeito. Numa época pensei que Darius poderia ser meu amigo, mas há muito descobri que ele tem apenas um amigo; seu culto ao ouro consome-o noite e dia, e ele permanece comigo e é leal somente porque posso tecer ouro em quantidades intermináveis.

     Em 1903 eu tinha o bastante para iniciar a construção do mais alto arranha-céu de Nova York, o E. M. Tower, num terreno vazio na Park Row. Foi terminado em 1904, quarenta andares de aço, concreto, granito e vidro. E a verdadeira beleza é que os 37 andares abaixo de mim pagaram por tudo, e o valor duplicou. Isso deixa uma suíte para os funcionários da corporação, ligados aos mercados através de telefone e fita de tele-impressor; metade do andar de cima é o apartamento de Darius, e a outra metade a sala da diretoria da corporação e acima deles minha cobertura, com seu terraço dominando tudo que posso ver, e ao mesmo tempo garantindo que eu não possa ser visto.

     Assim... minha jaula sobre rodas, meus porões sombrios transformaram-se em meu ninho de águia no céu, onde posso andar sem máscara e onde não há quem veja meu rosto infernal, a não ser as gaivotas que passam e o vento sul. E daqui posso ver até mesmo o teto finalmente terminado e brilhante de minha única indulgência, meu único projeto que não se destina à riqueza, e sim à vingança.

     Distante, na rua 34 oeste, está o recém-terminado Teatro de Ópera de Manhattan, o rival que puxará pelas orelhas o esnobe Metropolitan. Quando cheguei aqui eu queria assistir à ópera de novo, mas claro que no Met, precisaria de um camarote isolado e fechado por cortinas. O comitê do teatro, dominado pela Sra. Astor e por seus companheiros da alta sociedade, os desgraçados da elite, exigiram que eu aparecesse pessoalmente para uma entrevista. Impossível, claro. Mandei Darius, mas eles se recusaram a aceitá-lo, exigindo ver-me pessoalmente, cara a cara. Pagarão por esse insulto, porque encontrei outro amante da ópera que fora esnobado. Depois de já ter inaugurado um teatro de ópera e fracassado, Oscar Hammerstein estava financiando e projetando outro. Tornei-me seu sócio invisível. O teatro será inaugurado em dezembro, e limpará seu chão com o Met. Nenhum gasto será poupado. O grande Gonci será o astro, mas acima de tudo a própria Melba, sim, Melba, virá cantar. Neste momento Hammerstein está no Grand Hotel de Garnier, no Boulevard des Capucines, em Paris, gastando meu dinheiro para trazê-la a Nova York.

     Um feito sem precedentes. Farei com que aqueles esnobes, os Vanderbilt, Rockefeller, Whitney, Gould, Astor e Morgan, se arrastem antes de ouvirem a grande Melba.

     Quanto ao resto, olho para fora e para baixo. Sim, e para trás. Uma vida de dor e rejeição, de medo e ódio: vocês de mim e eu de vocês. Apenas uma pessoa mostrou gentileza, tirou-me de uma jaula para um porão, e depois para um navio, quando todos os outros me caçavam como a uma raposa sem fôlego; alguém que foi como a mãe que eu mal tive ou conheci.

     E uma outra, a quem amei mas que não pôde me amar. Você também me despreza por isso, Raça Humana? Porque não pude fazer com que uma mulher me amasse como homem? Mas houve um instante, um curto tempo, como o jumento de Chesterton; uma hora distante, feroz e doce em que pensei que poderia ser amado... cinzas, nada. Não era para ser. Nunca. De modo que só pode existir o outro amor, a dedicação ao mestre que jamais me abandonou. E o cultuarei por toda minha vida.

    

     O DESESPERO DE ARMAND DUFOUR

     BROADWAY, NOVA YORK, OUTUBRO DE 1906

     ODEIO ESTA CIDADE. JAMAIS DEVERIA TER VINDO. POR QUE, diabos, vim? Por causa da vontade de uma moribunda em Paris que, pelo que sei, podia muito bem estar fora de juízo. E pela bolsa com napoleões de ouro, claro. Mas até isso eu talvez jamais devesse ter aceitado.

     Onde está este homem a quem devo entregar uma carta que não faz sentido? Tudo que o padre Sebastian pôde me dizer foi que ele é terrivelmente desfigurado, e que portanto deve ser fácil de ser encontrado. Mas é o contrário; ele é invisível.

     A cada dia tenho mais certeza de que ele jamais chegou aqui. Sem dúvida as autoridades em Ellis Island recusaram sua entrada. Fui até lá — que caos! Todo o mundo dos pobres e dos despossuídos parece estar se multiplicando neste país, e a maioria permanece aqui mesmo, nesta cidade medonha. Jamais vi tantas pessoas em péssimas condições: colunas de refugiados maltrapilhos fétidos, cheios de piolhos das viagens em porões fedorentos, agarrando trouxas esfarrapadas com todas as suas posses mundanas, chegando em fileiras intermináveis através daqueles prédios sem graça naquela ilha sem esperança. Acima deles, na outra ilha, está a estátua que nós lhes demos. A dama com a tocha. Deveríamos ter dito a Bartholdi para manter essa porcaria de estátua na França e dar outra coisa aos ianques. Talvez uma boa quantidade de dicionários Larousse, para que eles pudessem aprender uma língua civilizada.

     Mas não, tínhamos de lhes dar algo simbólico. Agora eles a transformaram num ímã para cada desprezado da Europa e de mais além vir em bando para cá, procurando uma vida melhor. Quelle blague! São loucos, esses ianques. Como esperam criar uma nação deixando que essas pessoas entrem? O refugo de cada país entre a baía de Bantry e Brest-Litovsk, de Trondheim a Taormina. O que eles esperam? Fazer um dia uma nação rica e poderosa com esta ralé?

     Fui ver o chefe do Serviço de Imigração. Graças a Deus, ele tinha disponível alguém que falava francês. Mas disse que, apesar de poucos terem de voltar, os claramente doentes ou deformados eram rejeitados, de modo que meu homem quase certamente estaria entre esse grupo. Mesmo que ele tivesse entrado, já fazia doze anos. Ele poderia estar em qualquer parte deste país, e são 4.800 quilômetros de leste a oeste.

     Por isso voltei às autoridades municipais, mas elas alertaram que havia cinco bairros e praticamente nenhum registro de residência. O homem poderia estar no Brooklyn, Queens, Bronx, Staten Island. Por isso eu não tinha opção além de ficar aqui na ilha de Manhattan e procurar este fugitivo da justiça. Que tarefa para um bom francês!

     Eles têm registros na prefeitura onde aparecem uma dúzia de Mulheims, e tentei todos. Se seu nome fosse Smith eu iria para casa agora. Eles até mesmo têm muitos telefones aqui, e uma lista dos que os possuem, mas nenhum Erik Mulheim. Perguntei às autoridades de impostos, mas disseram que os registros são confidenciais.

     Os policiais foram mais úteis. Encontrei um sargento irlandês que disse que procuraria o homem em troca de um pagamento. Sei muito bem que o “pagamento” foi para o seu bolso. Mas ele saiu e voltou dizendo que nenhum Mulheim estivera encrencado com a polícia, mas que tinha uma dúzia de Mullers, se isso ajudava. Imbecil.

     Há um circo em Long Island, e fui até lá. Outro vazio. Tentei o grande hospital chamado Bellevue, mas não há registro de um homem tão deformado que algum dia houvesse se apresentado para tratamento. Não consigo pensar em outro lugar aonde ir.

     Estou hospedado num hotel modesto nas ruas secundárias atrás desse grande Boulevard. Como os guisados horríveis e bebo a cerveja medonha deles. Durmo numa cama estreita e desejo logo voltar para meu apartamento na ilha de St. Louis, para o aconchego das belas e gordas nádegas de Madame Dufour. Está ficando mais frio, e o dinheiro está escasseando. Quero voltar à minha amada Paris, a uma cidade civilizada onde pessoas andam em vez de correr para toda a parte, um lugar onde as carruagens seguem devagar, em vez de disparar como maníacos, e os bondes não representam perigo para as pessoas.

     Para piorar, eu pensava ser capaz de falar algumas palavras na pérfida língua de Shakespeare, porque estive com os lordes ingleses que trazem seus cavalos para correr em Auteuil e Chantilly, mas aqui eles falam pelo nariz, e muito, muito rápido.

     Ontem vi uma cafeteria italiana nesta mesma rua, servindo um moca de boa qualidade e até mesmo vinho Chianti. Não Bordeaux, claro, mas melhor do que essa cerveja ianque que só faz mijar. Ah, estou vendo-a agora, do outro lado dessa rua mortalmente perigosa. Tomarei um café bom e forte para os nervos, depois voltarei e marcarei a passagem para casa.

    

     A SORTE DE CHOLLY BLOOM

     BAR DO LOUIE, QUINTA AVENIDA COM RUA 28, NOVA YORK, OUTUBRO DE 1906

     VOU DIZER, RAPAZES, HÁ OCASIÕES EM QUE SER UM REPÓRTER na cidade mais rápida e mais agitada do mundo é o melhor emprego da terra. Certo, todos nós sabemos que há horas e dias arrastados, quando nada acontece; pistas que levam a lugar nenhum, entrevistas canceladas, nenhuma história. Certo? Barney, pode trazer outra rodada de cervejas?

     É, há ocasiões em que não acontecem escândalos na prefeitura (não muitos, claro), nenhum divórcio de celebridades, nenhum cadáver de madrugada no Central Park, e a vida perde o brilho. Aí você pensa: o que estou fazendo aqui, por que estou perdendo meu tempo?, talvez devesse ter assumido a loja do meu pai em Poughkeepsie. Todos nós conhecemos essa sensação.

     Mas aí é que está. É isso que torna o negócio melhor do que vender calças masculinas em Poughkeepsie. De repente acontece alguma coisa lá na extremidade esquerda e, se você for esperto, vê uma grande história ao alcance da mão. Aconteceu comigo ontem. Vou contar a vocês. Obrigado, Barney.

     Eu estava numa cafeteria. Conhecem a Fellinis? Na Broadway com 26. Um dia ruim. Passei a maior parte do tempo correndo atrás de uma pista nova para os assassinatos do Central Park, e nada. A prefeitura está brigando com o Bureau de Detetives, e eles não têm nada de novo, por isso estão de mau humor e não dizem coisa alguma que valha imprimir. Eu estava diante da perspectiva de voltar para a redação do jornal e dizer que não tinha sequer dois centímetros de coluna que valesse publicar. Por isso pensei em entrar e tomar um dos fudge sundaes do Papa Fellini. Com muita calda. Conhecem? É de levantar defunto.

     O lugar estava cheio. Peguei o último reservado. Dez minutos depois entrou um sujeito parecendo tão sofredor quanto o pecado. Olhou em volta, viu que eu estava sozinho no reservado e se aproximou. Muito educado. Cumprimentou com a cabeça. Eu cumprimentei. Ele disse uma coisa numa língua estrangeira. Apontei para a cadeira que sobrava. Ele se sentou e pediu um café. Só que não pronunciou café, e sim café. O garçom é italiano, de modo que para ele tudo bem. Só que eu percebi que o tal cara era provavelmente francês. Por quê? Ele simplesmente parecia francês. Assim, para ser educado, cumprimentei-o. Em francês.

     Se eu falo francês? O rabino é judeu? Certo, um pouquinho de francês. Por isso eu falei: “Bonju messiê” só para ser gentil, um bom nova-iorquino.

     Bom, o tal do francês ficou maluco. Soltou uma torrente de francês em cima da minha cabeça. E ele estava perturbado, à beira das lágrimas. Enfiou a mão no bolso e tirou uma carta, de aparência muito importante, com cera sobre a aba do envelope e uma espécie de sinete. Balançou a carta na minha cara.

     Bom, nesse ponto eu ainda estava tentando ser gentil com um visitante perturbado. A tentação era de terminar o sorvete, jogar umas moedas e sair dali. Mas em vez disso pensei: que diabo, vamos tentar ajudar esse sujeito porque ele parece estar num dia pior do que eu, e isso quer dizer alguma coisa. Por isso chamei o Papa Fellini e perguntei se ele falava francês. Sem chance. Só italiano ou inglês, e mesmo assim inglês com sotaque siciliano. Então pensei: quem fala francês por aqui?

     Bom, nesse ponto vocês teriam dado de ombros e ido embora, certo? E teriam perdido uma oportunidade. Mas eu sou Cholly Bloom, o homem do sexto sentido. E o que fica a um quarteirão de distância, na 26 com Quinta? O Delmonico's. E quem comanda o Delmonico's? Bom, Charlie Delmonico. E de onde vem a família Delmonico? Certo, da Suíça, mas lá eles falam todas as línguas, e, mesmo Charlie tendo nascido nos Estados Unidos, achei que ele provavelmente sabia um pouquinho de francês.

     Por isso tirei o francês de lá e dez minutos depois nós estávamos em frente ao restaurante mais famoso de todos os Estados Unidos. Vocês já estiveram lá dentro? Não? Bom, é outra coisa. Mogno envernizado, veludo macio, abajures de latão sobre as mesas, uma elegância nobre. E caro. Mais do que eu posso pagar. E aí vem o próprio Charlie D. e ele sabe disso. Mas esta é a marca de um grande dono de restaurante, certo? Modos perfeitos, até mesmo diante de um vagabundo da rua. Ele se inclinou e perguntou em que poderia ajudar. Eu expliquei que tinha encontrado aquele francês que tinha vindo de Paris, e que ele estava com um grande problema com uma carta, mas que eu não entendia que problema era.

     Bom, o Sr. D. fez perguntas educadas ao francês, em francês, e o sujeito se animou de novo, disparou que nem uma metralhadora, mostrando a carta. Não consegui acompanhar uma palavra, por isso olhei em volta. A cinco mesas de distância estava o milionário Gates percorrendo o menu inteiro, da data ao palito. Logo depois dele estava Jim Brady, o dos diamantes, jantando com Lilian Russel com um decote onde daria para afundar o S.S. Majestic. A propósito, sabem como o Jim dos diamantes come? Tinham me dito, mas eu não acreditava; ontem à noite vi. Ele se planta na cadeira, mede doze centímetros e meio exatos, nem um a mais ou a menos, entre sua barriga e a mesa. Depois não se mexe mais, mas come até que a barriga encoste na mesa.

     Nesse ponto o Charlie D. havia terminado. Ele me explicou que o francês é um tal Messiê Armand Dufour, advogado de Paris, que veio a Nova York numa missão de importância crucial. Ele precisava entregar uma carta de uma mulher agonizante para um tal senhor Erik Mulheim, que pode ou não morar em Nova York. Ele tentou todas as opções, e não conseguiu nada. Naquele ponto, nem eu. Nunca tinha ouvido falar de alguém com esse nome. Mas Charlie estava coçando a barba como se pensasse muito, depois me disse:

     — Sr. Bloom — bem formal —, o senhor já ouviu falar da E.M. Corporation?

     Bom, e aí eu pergunto a vocês, o papa é católico? Claro que eu tinha ouvido falar. Incrivelmente rica, espantosamente poderosa, e totalmente cheia de segredos. Com mais ações em empresas citadas na bolsa de valores do que qualquer um, a não ser J. Pierpoint Morgan, e ninguém é mais rico do que J.P. Assim, para não ficar por baixo, eu disse:

     — Claro, fica no edifício E.M. Tower na Park Row.

     — Certo — disse o Sr. D. — Bom, talvez aquele personagem extremamente recluso que controla a E.M. Corporation possa ser chamado de Sr. Mulheim. — Bom, quando um cara como Charlie Delmonico diz “pode ser” significa que ele ouviu alguma coisa, mas você jamais vai arrancá-la dele. Dois minutos depois nós estávamos de volta à rua, chamei um cabriolé que passava e fomos trotando para o sul, em direção à Park Row.

     Agora vocês vêem por que o emprego de repórter pode ser o melhor da cidade? Eu comecei tentando ajudar um francês com problemas, e estava diante da chance de ver o eremita mais recluso de Nova York, o próprio homem invisível. Estão me acompanhando? Peçam outra jarra desse negócio dourado, e eu conto.

     Chegamos a Park Row e fomos para a torre. E, rapaz, ela é alta? É enorme, e a ponta fica lá perto das nuvens. E os escritórios estavam fechados, já estava escuro do lado de fora, mas havia um saguão iluminado, com uma mesa e um porteiro. Por isso toquei a campainha. Ele veio perguntar o que era. Eu expliquei. Ele deixou que nós entrássemos no saguão e ligou para alguém, num telefone particular. Deve ser uma linha interna, porque ele não perguntou pela telefonista. Depois falou com alguém e escutou. Depois disse que nós deveríamos deixar a carta com ele, que ela seria entregue.

     Claro que eu não ia aceitar isso. Diga ao cavalheiro lá em cima, falei, que o Messiê Dufour veio lá de Paris e está encarregado de entregar a carta pessoalmente. O porteiro disse algo assim ao telefone, depois me entregou o aparelho. Uma voz disse: quem está falando? Eu falei: Charles Bloom, advogado. E a voz disse: Qual é sua missão aqui?

     Bom, eu não ia dizer à voz que sou da Hearst Press. Eu já tinha a impressão de que isto é uma receita para sair direto pela porta. Por isso falei que sou sócio em Nova York da Dufour e Associados, tabeliães de Paris, França.

     — E qual é sua missão aqui, Sr. Bloom? — perguntou a voz, parecendo ter vindo direto das costas de Terra Nova. Por isso eu falei de novo que nós tínhamos de entregar uma carta de importância capital pessoalmente nas mãos do Sr. Erik Mulheim. — Não há pessoa alguma com este nome neste endereço — disse a voz — mas, se o senhor deixar a carta com o porteiro, eu me certificarei de que ela chegue ao destino.

     Bom, eu não iria aceitar aquilo. Era uma mentira. Eu até mesmo poderia estar falando com o próprio senhor invisível. Por isso tentei um blefe.

     — Somente diga ao Sr. Mulheim — falei — que a carta vem de...

     — Madame Giry — disse o advogado.

     — Madame Giry — repeti ao telefone.

     — Espere — disse a voz. Nós esperamos de novo. Depois ele voltou à linha. — Pegue o elevador até o trigésimo nono andar.

     Fizemos isso. Algum de vocês já subiu 39 andares? Não? Bom, é uma tremenda experiência. Trancado numa gaiola, o maquinário chacoalhando ao redor, e você subindo para o céu. E o negócio balança. Até que a gaiola parou, eu puxei a grade para um lado e nós saímos. Havia um sujeito ali, a voz.

     — Eu sou o Sr. Darius — disse ele. — Sigam-me.

     Ele nos levou para uma sala comprida, forrada de lambri, com uma mesa de diretoria arrumada com baixelas de prata. Sem dúvida era ali que os acordos eram feitos, onde os rivais se engalfinhavam, os fracos eram comprados, os milhões ganhos. É elegante, estilo Velho Mundo. Há pinturas a óleo nas paredes e eu percebi uma na extremidade mais distante, mais alta do que o resto. Um sujeito num chapéu de aba larga, bigode, gola de renda, sorrindo.

     — Posso ver a carta? — perguntou Darius, fixando-me com um olhar que parecia uma naja avaliando um rato almiscarado para o almoço. Está bem, eu nunca vi uma naja nem um rato almiscarado, mas posso imaginar. Assenti para Dufour e ele colocou a carta sobre a mesa envernizada, entre ele e Darius. Havia uma coisa estranha naquele homem que fez os pêlos da minha nuca se eriçarem. O sujeito estava vestido de preto: terno preto, camisa branca, gravata preta. O rosto branco como a camisa, fino, estreito. Cabelo preto e olhos negríssimos que brilham mas não piscam. Falei naja? Naja serve bem.

     Agora escutem, rapazes, porque isso é importante. Eu senti necessidade de um cigarro, por isso acendi. Erro, um mau passo. Quando o fósforo estalou Darius girou para cima de mim como uma faca saindo de uma bainha.

     — Nada de fogo, por favor — disse ele rispidamente. — Apague o cigarro.

     Bom, eu ainda estava de pé na extremidade da mesa, perto da porta do canto. Atrás de mim havia uma mesa em formato de meia-lua encostada na parede, com uma tigela de prata em cima. Fui até lá para apagar a guimba. Atrás da tigela de prata havia uma grande bandeja de prata, com uma das bordas sobre a mesa e a outra encostada na parede, de modo que ficava inclinada. Assim que apaguei o cigarro olhei para a bandeja, que era como um espelho. Na extremidade mais distante da sala, no alto da parede, a pintura a óleo do sujeito sorridente havia mudado. Havia um rosto ali, com chapéu de aba larga, sim, mas atrás daquele chapéu uma imagem capaz de fazer toda a cavalaria americana saltar das selas.

     Debaixo do chapéu havia uma espécie de máscara cobrindo três quartos de onde deveria estar o rosto. Aparecendo de leve, metade de uma boca torta. E, atrás da máscara, dois olhos que me atravessavam como brocas. Soltei um grito e girei, apontando para o quadro na parede.

     — Quem, diabos, é aquele? — gritei.

     — O cavaleiro sorridente, de Frans Hals — disse Darius. — Não o original, sinto muito, que está em Londres, mas uma cópia muito boa.

     E sem dúvida o sujeito sorridente estava de volta, com bigode, renda e tudo. Mas eu não estou maluco, eu sei o que vi. De qualquer modo, Darius estendeu a mão e pegou a carta.

     — Os senhores têm a minha garantia — disse ele — de que dentro de uma hora o Sr. Mulheim estará com esta carta. — Em seguida falou a mesma coisa em francês para Dufour. O advogado assentiu. Se ele estava satisfeito, não havia mais o que eu poderia fazer. Viramos em direção à porta. Antes que eu pudesse chegar lá, Darius falou: — A propósito, Sr. Bloom, de que jornal o senhor vem? — Voz como navalhas.

     — New York American — murmurei. Em seguida saímos. De volta à rua, para uma carruagem de aluguel, de volta à Broadway. Deixei o francês onde ele queria ficar e fui para a redação. Eu tinha uma história, certo?

     Errado. O editor da noite ergueu os olhos e disse:

     — Cholly, você está bêbado.

     — Eu estou o quê? Não toquei numa gota — falei. Contei minha aventura da tarde. Do começo ao fim. Que história, hein? Ele não engoliu.

     — Certo, você encontrou um advogado francês com uma carta para entregar e o ajudou a entregar. Grande coisa. Mas nada de fantasmas. Acabei de receber um telefonema do presidente da E.M. Corporation, um certo Sr. Darius. Ele diz que você apareceu lá esta tarde, entregou-lhe uma carta pessoalmente, perdeu a cabeça e começou a gritar sobre aparições nas paredes. Ele agradeceu pela carta e ameaçou abrir um processo se você começar a lançar calúnias contra a corporação dele. A propósito, os policiais acabaram de pegar o assassino do Central Park. Com a boca na botija. Vá até lá e ajude.

     De modo que nenhuma palavra foi publicada. Mas eu digo a vocês: não sou maluco e não estava bêbado. Realmente vi aquela cara na parede. Ei, vocês estão bebendo com o único cara de Nova York que viu o Fantasma de Manhattan.

    

     O TRANSE DE DARIUS

     A CASA DO HAXIXE, LOWER EAST SIDE, MANHATTAN, NOVA YORK, NOVEMBRO DE 1906

     POSSO SENTIR A FUMAÇA ENTRANDO EM MIM, FUMAÇA SUAVE, sedutora por trás dos olhos fechados, posso abandonar este pardieiro vergonhoso e andar sozinho através das portas da percepção para o domínio d'Aquele a quem sirvo.

     A fumaça se dissipa... Há uma longa passagem com piso e paredes de ouro sólido. Ah, o prazer do ouro. Tocar, acariciar, sentir, possuir. E levá-lo para Ele, o deus do ouro, a única divindade verdadeira.

     Desde a Barbary Coast onde primeiro O encontrei, eu, um imundo catamita elevado a um chamado maior, procurando sempre mais ouro para trazer a Ele e a fumaça para me levar à Sua presença...

     Entro na grande câmara dourada onde as fundições rugem e as torrentes de ouro correm frescas e intermináveis de suas torneiras... mais fumaça, a fumaça das fundições misturando-se à da minha boca, minha garganta, meu sangue, meu cérebro. E dessa fumaça Ele falará comigo como sempre...

     Ele me ouvirá, me aconselhará, e como sempre estará certo... cá está Ele agora, posso sentir Sua presença...

     — Mestre, grande deus Mamon, estou ajoelhado diante de Vós. Eu Vos servi do melhor modo que pude nesses muitos anos, e trouxe para o Seu trono meu patrão terreno e toda a sua riqueza estupenda. Imploro que me ouçais, porque preciso de Vosso conselho e Vossa ajuda.

     — Estou ouvindo, servo. Qual é o seu problema?

     —Aquele homem a quem sirvo cá embaixo. Algo parece ter entrado nele, algo que não compreendo.

     — Explique.

     — Desde quando o conheço, desde que lancei pela primeira vez meus olhos sobre aquele rosto horrendo, ele tem apenas uma obsessão. Que eu encorajei e alimentei a cada passo. Num mundo que ele percebe como uniformemente hostil, ele apenas quis obter o sucesso. Fui eu quem canalizou essa obsessão para fazer dinheiro, e cada vez mais dinheiro, e assim trazê-lo ao Vosso serviço. Não é?

     —Você fez isso de modo brilhante, servo. A cada dia a riqueza dele aumenta, e você garante que ela seja dedicada ao meu serviço.

     — Mas recentemente, Mestre, ele tem se preocupado cada vez mais com outra coisa. É um desperdício de tempo, mas pior, muito pior, um desperdício de dinheiro. Ele só pensa em ópera, Não há lucro na ópera.

     — Sei disso. Uma irrelevância infrutífera. Quanto da fortuna dele é dedicada a esse fetiche?

     — Até agora apenas uma fração minúscula. Meu medo é de que isso o distraia da dedicação ao aumento de Vosso império do ouro.

     — Ele parou de ganhar dinheiro?

     — Pelo contrário. Nessa área as coisas seguem como sempre. As idéias originais, as grandes estratégias, a engenhosidade extraordinária que algumas vezes me parece uma segunda visão, isso ele ainda tem. Eu ainda presido as reuniões da diretoria. Sou eu que, para o mundo, conduzo as grandes tomadas de controle, que construo um império ainda maior de fusões e investimentos. Sou eu que destruo os fracos e os desamparados, regozijando-me com o sofrimento. Sou eu que aumento o aluguel nos cortiços, que ordeno a derrubada de casas e escolas para a construção de fábricas e depósitos. Sou eu que suborno as autoridades municipais para garantir complacência. Sou eu que assino as ordens de compra de grandes quantidades de ações das indústrias que crescem por todo o país. Mas as instruções são sempre dele, a campanha é planejada por ele, as coisas que devo fazer e dizer são programadas por ele.

     — E suas decisões continuam corretas?

     — Sim, Mestre. Impecáveis como sempre. A bolsa de valores está boquiaberta com sua audácia e sua previsão, mesmo que eles pensem que vêm de mim.

     — Então qual é o problema, servo?

     — Estou me perguntando, Mestre, se chegou o momento de ele partir e de eu herdar.

     — Servo, você agiu de modo brilhante, mas porque também seguiu minhas ordens. Você é talentoso, é verdade, e sempre soube disso, e é leal apenas a mim. Mas Erik Mulheim é mais. Raramente encontramos um verdadeiro gênio na questão do ouro. Ele é alguém assim, e ainda mais. Inspirado apenas pelo ódio contra os homens, guiado por você em meu serviço, ele não é apenas um gênio criador de riqueza, mas imune a escrúpulo, princípio, misericórdia, piedade, compaixão e, mais importante, como você ele é imune ao amor. Uma ferramenta humana digna de sonho. Um dia seu momento realmente chegará, e talvez eu ordene que você encerre a vida dele. Para que você possa herdar, claro. “Todos os reinos do mundo”, foi a expressão que usei uma vez, para Outro. Para você, todo o império financeiro da América. Até agora eu o enganei?

     — Jamais, Mestre.

     — E você me traiu?

     — Jamais, Mestre.

     — Então assim seja. Que continue por um tempo. Conte-me mais sobre essa nova obsessão, e sobre o motivo.

     — As estantes da biblioteca dele sempre estiveram repletas de libretos de ópera e livros a respeito. Mas quando arranjei para que ele tivesse um camarote particular no Metropolitan, fechado por cortinas para esconder seu rosto, ele pareceu perder o interesse. Agora investiu milhões num teatro de ópera rival.

     — Até agora ele sempre recuperou seus investimentos com lucro.

     — É verdade, mas essa aventura certamente dará prejuízos, ainda que esses prejuízos possam estar abaixo de um por cento de sua riqueza total. E há mais. O humor dele mudou.

     — Por quê?

     — Não sei, Mestre. Só que isso começou depois da chegada de uma misteriosa carta de Paris, onde ele viveu um dia.

     — Conte-me.

     — Dois homens vieram. Um era um reporterzinho maltrapilho de um jornal de Nova York, mas ele era apenas o guia. O outro era um advogado da França. Ele tinha uma carta. Eu tê-la-ia aberto, mas ele estava me vigiando. Quando os dois saíram ele desceu e pegou a carta. Sentou-se e leu-a à mesa da diretoria. Eu fingi que havia saído, mas observei através de uma fresta da porta. Quando ele se levantou, parecia mudado.

     — E desde então?

     — Antes disso ele era simplesmente o sócio pouco ativo por trás de um homem chamado Hammerstein, o construtor e o espírito motor do novo teatro de ópera. Hammerstein é rico, mas sem comparação. Foi Mulheim que investiu o suficiente para terminar a Ópera.

     “Mas desde a carta ele se envolveu num grau maior. Já havia despachado Hammerstein a Paris com muito dinheiro para persuadir uma cantora chamada Dame Nellie Melba a vir a Nova York estrelar uma ópera no Ano Novo. Agora mandou uma mensagem maluca a Paris, ordenando que Hammerstein garantisse outra prima-dona, a grande rival de Melba, uma cantora francesa chamada Christine de Chagny.

     “Ele se envolveu nas escolhas artísticas, trocando a ópera inaugural, de Bellini, por outra, insistindo num elenco diferente. Mas acima de tudo ele passa cada noite escrevendo furiosamente...”

     — Escrevendo o quê?

     — Música, Mestre. Eu o ouço na cobertura. A cada manhã há novas folhas de música. De madrugada ouço os sons daquele órgão que ele instalou em sua sala. Eu sou surdo à música; nada significa para mim, é ruído sem significado. Mas ele está compondo alguma coisa lá em cima, e acredito que seja sua própria ópera. Ontem ele chegou a contratar o paquete mais rápido da Costa Leste para levar às pressas até Paris a parte da música que já está pronta. O que devo fazer?

     — Tudo isso é loucura, meu servo, mas relativamente inofensiva. Ele investiu mais dinheiro nesta porcaria de teatro de ópera?

     — Não, Mestre, mas estou preocupado com minha herança. Há muito tempo ele me disse que, se qualquer coisa lhe acontecesse, eu herdaria todo seu império, suas centenas de milhões de dólares, e assim continuaria a dedicá-los ao Vosso serviço. Agora temo que ele esteja mudando de idéia. Ele poderia deixar tudo o que tem para algum tipo de fundação dedicada a essa obsessão desgraçada com a ópera.

     — Servo idiota. Você é o filho adotivo dele, o herdeiro, o sucessor, destinado a assumir seu império de ouro e poder. Ele não prometeu? Ainda mais, eu não prometi? E eu posso ser derrotado?

     — Não, Mestre, Vós sois deus supremo, o único.

     — Então acalme-se. Mas deixe-me dizer-lhe o seguinte. Não é um conselho, mas simplesmente uma ordem. Se alguma vez você perceber uma real ameaça à herança de tudo que ele possui, seu dinheiro, seu ouro, seu poder, seu reino, você destruirá essa ameaça sem piedade ou demora. Estou sendo claro?

     — Perfeitamente, meu Mestre, e obrigado. Seguirei Suas ordens.

    

     COLUNA DE GAYLORD SPRIGGS

     CRÍTICO DE ÓPERA, NEW YORK TIMES, NOVEMBRO DE 1906

     AOS AMANTES DA ÓPERA DA CIDADE DE NOVA YORK E ATÉ MESMO ÀQUELES que se encontram no alcance de nossa grande metrópole, trago boas notícias: a guerra foi declarada.

     Não, não é uma retomada daquela guerra hispano-americana em que o nosso presidente Teddy Roosevelt tanto se distinguiu há alguns anos na colina de San Juan, e sim uma guerra no mundo da ópera em nossa cidade. E por que tal guerra seria boa notícia? Porque as tropas serão as melhores vozes do planeta hoje, a munição será uma fantástica soma de dinheiro e os beneficiários serão os amantes da boa ópera.

     Mas deixem-me, nas palavras da Rainha de Copas em Alice no pais das maravilhas — a ópera de Nova York está começando a parecer a fantasia recente de Lewis Carroll — começar pelo começo. Os aficcionados saberão que em outubro de 1883 o Metropolitan Ópera abriu suas portas para uma recita inaugural do Fausto de Gounod, e assim plantou Nova York firmemente no cenário mundial, junto do Convent Garden e do La Scala.

     Mas por que foi inaugurado tal teatro tão magnífico, com nada menos do que 3.700 lugares no maior auditório do mundo, para ópera? Bom, ressentimento e dinheiro, uma combinação poderosa. Os maiorais da nova aristocracia desta cidade ficaram profundamente ofendidos por não poderem ter camarotes privativos e garantidos na antiga Academia de Música na rua 14, agora falecida.

     Por isso se juntaram, enfiaram as mãos nos bolsos, e agora desfrutam regularmente de sua ópera no estilo e no conforto ao qual os membros da lista da Sra. Astor estão bem acostumados. E que glórias o Met nos trouxe no decorrer dos anos e continua a trazer até hoje, sob a liderança inspirada do Sr. Heinrich Conreid! Mas eu disse “guerra”? Disse. Porque agora um novo Lochinvar cavalga sobre o horizonte para desafiar o Met com uma galáxia de nomes de tirar o fôlego.

     Depois de uma tentativa abortada de inaugurar um teatro de ópera, o milionário do tabaco e projetista construtor de teatro Oscar Hammerstein acaba de completar a ricamente ornamentada Manhattan Opera House na rua 34 Oeste. Menor, verdade, mas com equipamentos suntuosos, poltronas luxuosas e acústica soberba ele se propõe a rivalizar com o Met colocando qualidade contra quantidade. Mas de onde vem essa qualidade? Bom, nada menos do que da própria Dame Nellie Melba.

     Sim, esta é a primeira boa notícia da guerra da ópera. Dame Nellie, que sempre se recusou firmemente a atravessar o Atlântico, concordou em vir — e por um cachê de tirar o fôlego. Minha fonte altamente confiável em Paris disse-me que esta é a história por trás da história.

     Já há um mês o Sr. Hammerstein vem cortejando a diva australiana em sua residência no Grand Hotel Garnier, construído por aquele mesmo gênio que erigiu o Teatro da Ópera de Paris, onde Dame Nellie tem se apresentado com tamanha freqüência. A princípio ela recusou. Ele ofereceu 1.500 dólares por noite — imagine só! Mesmo assim ela recusou. Ele gritou pela fechadura do banheiro dela, aumentando ainda mais o cachê. Para 2.500 por noite. Inacreditável. Depois três mil por noite, numa casa onde o coro recebe quinze dólares por semana ou três dólares por apresentação.

     Finalmente ele invadiu sua sala particular no Grand, e começou a jogar notas de mil francos por todo o chão. Apesar dos protestos dela, o Sr. Hammerstein continuou, antes de sair furioso. Quando Dame Nellie finalmente contou o dinheiro, ele deixara cem mil francos franceses, ou vinte mil dólares espalhados no tapete persa. Fui informado de que, neste momento, esta quantia está investida com os Rotschild, na Rue Lafitte, mas as defesas da dama caíram. Ela concordou em vir. Afinal de contas, ela já foi esposa de um fazendeiro na Austrália, e sem dúvida sabe reconhecer uma ovelha tosquiada.

     Se fosse apenas isso, bastaria para causar ataques cardíacos na esquina da Broadway com 39 onde o Sr. Conreid domina. Mas há mais. Porque o Sr. Hammerstein contratou nada menos do que Alessandro Gonci, o único possível rival em qualidade e fama ao já imortal Enrico Caruso para o papel principal de tenor em três de dezembro, no recital inaugural. Para atuar ao lado do Signor Gonci, outros nomes como Amadeo Bassi e Charles Dalmores estão no menu, além dos barítonos Mario Ancona e Maurice Renard, e outra soprano, Emma Calve.

     Só isso bastaria para pegar Nova York pelos ouvidos. Mas ainda há mais. Orelhas compridas e línguas afiadas afirmaram durante algum tempo que nem mesmo a riqueza do Sr. Hammerstein poderia permitir tal extravagância espantosa. Deve haver um Creso secreto por trás dele, bancando as apostas, mexendo os pauzinhos e forçosamente pagando as contas. Mas quem é esse pagador invisível, este fantasma de Manhattan? Quem quer que seja ele, sem dúvida agora se excedeu em suas tentativas de nos mimar. Porque se há um nome que atue sobre Nellie Melba como um pano vermelho para um touro, sem dúvida é o de sua única rival, a jovem e espantosamente linda aristocrata francesa Christine de Chagny, conhecida em toda a Itália como La Divine.

     O quê?, ouço vocês gritarem. Será que ela também vem? Mas vem. E aí está o mistério, e mistério duplo.

     O primeiro é que, como Dame Nellie Melba, La Divine sempre se recusou a atravessar o Atlântico, calculando que tal expedição ocuparia tempo e problemas demais. Por esse motivo o Met jamais foi honrado por qualquer das duas. Entretanto, enquanto Dame Nellie foi claramente seduzida pela quantia astronômica derramada à sua frente pelo Sr. Hammerstein, a viscondessa de Chagny é conhecida pela completa imunidade ao fascínio da nota de dólar, independentemente da quantidade.

     Se uma torrente de dólares foi o argumento que prevaleceu sobre a dama australiana, qual seria o argumento que convenceu a aristocrata francesa? Isto simplesmente não sabemos — ainda.

     Nosso segundo mistério tem a ver com uma súbita mudança no calendário artístico do novo teatro de ópera de Manhattan. Antes de partir para Paris na busca das divas mais famosas do mundo, o Sr. Hammerstein anunciara que a ópera inaugural, em três de dezembro, seria Puritani, de Bellini.

     A construção dos cenários já começara, o programa fora mandado para as gráficas. Agora ouço dizer que o invisível pagador insistiu numa mudança. Foi-se Puritani. No lugar, o Manhattan será inaugurado com uma ópera totalmente nova de um compositor desconhecido e até mesmo anônimo. É um risco absurdo, de que jamais se ouviu falar. Tudo é espantoso demais.

     Das duas prima-donas, quem estrelará essa obra desconhecida? As duas não podem fazê-lo. Quem chegará primeiro? Qual cantará com Gonci sob a batuta de outra estrela, o maestro Cleofonte Campanini? Não podem ser as duas. Como o Metropolitan contra-atacará com sua escolha altamente arriscada de Salomé para o início da temporada? Qual é o nome desta obra nova, inédita, que o Manhattan insiste em apresentar na inauguração? Acabará sendo um fiasco total?

     Há hotéis suficientes em Nova York, da melhor qualidade, para permitir que as duas prima-donas não dividam o mesmo teto. Mas e quanto aos navios? A França tem duas estrelas, La Savoie e La Lorraine. Cada uma simplesmente terá de vir num deles. Ah, amantes da ópera, que inverno para se estar vivo!

    

     A LIÇÃO DE P1ERRE DE CHAGNY

     SS LORRAINE, ESTREITO DE LONG ISLAND, 28 DE NOVEMBRO DE 1906

     — BOM, O QUE SERÁ HOJE, JOVEM PIERRE? LATIM, ACHO.

     — Ah, é preciso, padre Joe? Nós estaremos chegando logo ao porto de Nova York. O capitão disse a mamãe, no café da manhã.

     — Mas neste momento ainda estamos passando por Long Island. E é uma costa vazia. Nada para ver além de névoa e rochas. Um belo momento para matar algum tempo com as Guerras Gálicas de César. Abra o seu livro onde paramos.

     — Isso é importante, padre Joe?

     — Claro que sim.

     — Mas por que César invadindo a Europa seria importante?

     — Bom, se você fosse um legionário romano indo para uma terra desconhecida com selvagens, teria pensado que sim. E se fosse um antigo bretão com as águias de Roma marchando pela praia, também teria achado.

     — Mas eu não sou um soldado romano, e certamente não sou um bretão da antigüidade. Sou um francês moderno.

     — A quem estou encarregado, que o céu nos ajude, de tentar dar uma educação acadêmica e moral. Assim, vamos à primeira invasão de César à ilha que ele apenas conhecia como Britânia. Comece no topo da página.

     — Accidt ut eadem nocte luna esset plena.

     — Bom. Traduza.

     — Caiu... nocte significa noite... caiu a noite?

     — Não, a noite não caiu. Já havia caído. Ele estava olhando para o céu. E accidt significa “ocorreu” ou “aconteceu”. Comece de novo.

     — Aconteceu que na mesma noite... é... a lua estava cheia?

     — Exato. Agora construa uma frase melhor.

     — Aconteceu que na mesma noite havia lua cheia.

     — Havia mesmo. Você tem sorte com César. Ele era um soldado e escrevia numa linguagem clara, de soldado. Quando passarmos para Ovídio, Horácio, Juvenal e Virgílio haverá algumas coisas para realmente provocar o cérebro. Por que ele disse esset e não erati?

     — Tempo subjuntivo?

     — Muito bem. Um elemento de dúvida. Poderia não ter sido uma lua cheia, mas por acaso era. Por isso o subjuntivo. Ele teve sorte com a lua.

     — Por quê, padre Joe?

     — Porque, garoto, ele estava invadindo uma terra estrangeira no escuro. Não havia luzes poderosas naquela época. Nem faróis para afastar você das pedras. Ele precisava encontrar uma praia lisa, de cascalho, entre os penhascos. Por isso a lua era uma ajuda.

     — Ele invadiu a Irlanda também?

     — Não. A velha Hibérnia permaneceu inviolada por mais 1.200 anos, muito depois de São Patrício nos trazer o cristianismo. E mesmo então não foram os romanos, mas os britânicos, e você é um espertinho, tentando me afastar da Guerra Gálica de César.

     — Mas não podemos falar da Irlanda, padre Joe? Eu já vi a maior parte da Europa, mas nunca estive na Irlanda.

     — Bom, por que não? César pode fazer seu desembarque na baía de Pevensey amanhã. O que você quer saber?

     — O senhor vem de uma família rica? Os seus pais tinham uma casa bonita e propriedades grandes como os meus?

     — Não tinham, de fato. A maioria das grandes propriedades são dos ingleses ou dos anglo-irlandeses. Mas os Kilfoyle existem desde muito antes da conquista. E a minha família não passava de uma pobre família de agricultores.

     — A maior parte dos irlandeses é pobre?

     — Bom, certamente as pessoas do campo não têm colheres de prata. A maioria é de pequenos agricultores, arrancando a vida da terra. Minha família é assim. Vim de uma pequena fazenda perto da cidade de Mullingar. Meu pai trabalhava a terra do amanhecer ao escurecer. Éramos nove irmãos; eu fui o segundo a nascer, e comíamos principalmente batatas misturadas com leite de nossas duas vacas, e beterrabas dos campos.

     — Mas o senhor teve uma boa educação, padre Joe?

     — Claro que sim. A Irlanda pode ser pobre, mas é impregnada de santos, eruditos, poetas e soldados, e agora alguns sacerdotes. Mas os irlandeses se preocupam com o amor por Deus e pela educação, nesta ordem. Por isso todos íamos à escola do povoado, que era administrada pelos padres. A cinco quilômetros de distância, e andando descalços. Na ida e na volta. Nas tardes de verão até depois do escurecer, e em todos os feriados, nós ajudávamos nosso pai na fazenda. Depois era o dever de casa à luz de uma única vela, até cairmos no sono, cinco de nós num catre e os quatro pequenos enfiados juntos com nossos pais.

     — Mon dieu, vocês não tinham dez quartos?

     — Ouça, meu garoto, o seu quarto no Chateau é maior do que toda a nossa casa de fazenda. Você tem mais sorte do que imagina.

     — O senhor viajou muito desde então, padre Joe.

     — Ah, viajei, e me pergunto dia a dia por que o Senhor me favoreceu tanto.

     — Mas mesmo assim o senhor teve uma educação.

     — Sim, e uma boa educação. Posta dentro de nós por uma combinação de paciência, amor e correia. Ler e escrever, soma e latim, história mas não muita geografia, porque os padres jamais tinham ido a qualquer lugar, e presumia-se que nós também jamais iríamos.

     — Por que decidiu se tornar sacerdote, padre Joe? ;

     — Bom, nós tínhamos missa todas as manhãs antes das aulas e, claro, nos domingos, com a família. Eu passei a ser sacristão, e alguma coisa da missa penetrou em mim. Costumava olhar para a grande figura de madeira sobre o altar, pensando que se Ele fizera aquilo por mim, talvez eu devesse servi-Lo do melhor modo possível. Eu era bom na escola, e quando estava para sair perguntei se havia alguma possibilidade de ser mandado a estudar para ser padre.

     “Bom, eu sabia que um dia meu irmão mais velho assumiria a fazenda, e certamente eu seria uma boca a menos para ser alimentada. E tive sorte. Fui mandado para uma entrevista em Mullingar, levando um bilhete do frade Gabriel, da escola, e eles me aceitaram para o seminário em Kildare. A quilômetros de distância. Uma grande aventura.”

     — Mas agora o senhor está conosco em Paris, Londres, São Petersburgo e Berlim.

     — Sim, mas isso é agora. Quando eu tinha quinze anos a carruagem até Kildare foi uma grande aventura. Assim eu fui testado de novo e aceito, e estudei durante anos até que chegou a época da ordenação. Havia um grande grupo na minha turma, e o próprio cardeal arcebispo veio de Dublin ordenar a todos nós. Quando terminou eu pensei em passar a vida como um humilde paroquiano em algum lugar do oeste, talvez uma paróquia esquecida em Connaught. E teria aceitado isso com o coração feliz.

     “Mas fui chamado de novo pelo reitor. Ele estava com outro homem que eu não conhecia. Por acaso era o bispo Delaney, de Clontarf, e ele precisava de um secretário particular. Disseram que eu tinha uma letra boa e clara, e perguntaram se eu gostaria do cargo. Bem, era quase bom demais para ser verdade. Eu tinha 21 anos e eles estavam me convidando para viver num palácio episcopal e para ser secretário de um homem responsável por toda uma sé.

     “Por isso fui com o bispo Delaney, um homem bom e santo, e passei cinco anos em Clontarf, e aprendi muitas coisas.”

     — Por que não ficou lá, padre Joe?

     — Eu pensei que ficaria, pelo menos até que a Igreja encontrasse outro trabalho para mim. Talvez uma paróquia em Dublin, Cork ou Waterford. Mas então a sorte veio de novo. Há dez anos o núncio papal, embaixador do papa em toda a Grã-Bretanha, veio de Londres para percorrer suas províncias irlandesas e passou três dias em Clontarf. O cardeal Massini tinha uma comitiva, e uma das pessoas da comitiva era o monsenhor Eamonn Byrne, do Colégio Irlandês de Roma. Nós ficamos juntos um tempo e nos demos bem. Descobrimos que havíamos nascido a apenas dezesseis quilômetros de distância um do outro, apesar de ele ser vários anos mais velho.

     “O cardeal seguiu seu caminho e eu não pensei mais nisso. Quatro semanas depois chegou uma carta do reitor do Colégio Irlandês, oferecendo-me um cargo. O bispo Delaney disse que lamentava me ver indo embora, mas me abençoou e insistiu para que eu aproveitasse a oportunidade. Por isso arrumei minha única mala e peguei o trem para Dublin. Achei que o lugar era grande, até que a balsa e outro trem me levaram a Londres. Sem dúvida eu jamais vira um lugar assim, nem pensara que qualquer cidade pudesse ser tão grande e grandiosa.

     “Depois houve uma balsa para a França, e outro trem, dessa vez até Paris. Outra visão espantosa; eu mal podia acreditar no que via. O último trem me levou através dos Alpes, até Roma.

     — O senhor ficou surpreso com Roma?

     — Espantado e extremamente perplexo. Ali estava a própria cidade do Vaticano, a Capela Sistina, a Basílica de São Pedro... fiquei em meio à multidão e olhei para o balcão, e recebi a benção Urbi et Orbi, de Sua Santidade. E tentei imaginar como um menino que saíra de uma plantação de batatas perto de Mullingar poderia ter chegado tão longe e ser tão privilegiado. Assim, escrevi para meus pais em casa, contando tudo, e eles levaram a carta para todo o povoado e mostraram a todo mundo, e também se tornaram celebridades.

     — Mas por que o senhor vive agora conosco, padre Joe?

     — Outra coincidência, Pierre. Há seis anos a sua mãe foi cantar em Roma. Eu não conhecia coisa alguma de ópera, mas por acaso um membro do elenco, um irlandês, teve um ataque cardíaco nos bastidores. Alguém foi mandado às pressas à procura de um padre, e eu estava de serviço naquela noite. Não havia coisa alguma que eu pudesse fazer pelo pobre coitado, além de lhe dar a extrema-unção. Mas ele fora levado ao camarim de sua mãe, por insistência dela. Foi ali que a conheci. Ela estava muito perturbada. Tentei consolá-la explicando que Deus jamais é mau, nem mesmo quando leva um de Seus filhos. Meu trabalho era dar aulas de italiano e francês, por isso falamos em francês. Ela pareceu surpresa por alguém falar ambas as línguas, além de inglês e gaélico.

     “Ela estava com problemas por outros motivos. Sua carreira estava levando-a por toda a Europa, da Rússia à Espanha, de Londres a Viena. Seu pai precisava passar mais tempo em suas propriedades na Normandia. Você já estava com seis anos e virando um selvagem, sua educação constantemente interrompida pelas viagens, mas era novo demais para um colégio interno, e de qualquer modo ela não queria se separar de você. Sugeri que ela contratasse um tutor que viajasse com vocês para toda a parte. Ela estava pensando nisso quando saí para voltar ao colégio e retomar meus estudos.

     “A temporada era de uma semana, e na véspera da partida eu fui chamado ao escritório do reitor, e lá estava ela. Sem dúvida ela causara grande impressão. Queria que eu me tornasse seu tutor, tanto para a educação formal quanto para orientação moral e um pouco de controle masculino. Eu fiquei perplexo e tentei recusar.”

     “Mas o reitor não aceitou, e deu uma ordem cabal. Como a obediência é um dos votos, a coisa estava feita. E, como você sabe, estou com você desde então, tentando enfiar algum conhecimento nessa sua cabeça e impedir que você se transforme num bárbaro completo.”

     — O senhor se arrepende, padre Joe?

     — Não, não lamento. Porque o seu pai é um excelente homem, melhor do que você imagina, e sua mãe é uma grande dama com um extraordinário talento dado por Deus. Eu vivo e como muito bem, claro, e devo fazer penitências constantes por esta vida de luxo, mas tenho visto coisas espantosas... cidades de tirar o fôlego, pinturas e galerias de arte que são pura lenda, óperas de fazer chorar, e eu, um garoto de uma plantação de batatas!

     — Estou feliz por mamãe ter escolhido o senhor, padre Joe.

     — Bom, obrigado, mas você não ficará feliz quando recomeçarmos agora com a Guerra Gálica de César. Mas aí vem sua mãe. Levante-se, garoto!

     — O que vocês dois estão fazendo aqui? Nós entramos nas Roads, o sol saiu e afastou a névoa, e da proa vocês podem ver toda a Nova York vindo em nossa direção. Agasalhem-se e venham olhar. Porque esta é uma das maiores visões do mundo, e se partirmos na escuridão vocês jamais irão vê-la de novo.

     — Muito bem, minha senhora, estamos indo. Parece que você tem sorte de novo, Pierre. Chega de César por hoje.

     — Padre Joe?

     — Sim?

     — Haverá grandes aventuras em Nova York?

     — Mais do que o suficiente, pois o capitão me disse que há uma grande recepção cívica esperando no cais. Nós vamos nos hospedar no Waldorf-Astoria, um dos hotéis maiores e mais famosos do mundo. Dentro de cinco dias sua mãe inaugurará um teatro de ópera novo em folha e será a estrela todas as noites durante uma semana. Nesse meio tempo creio que nós poderemos explorar um pouquinho por lá, ver as paisagens, andar no novo trem elevado... li tudo sobre isso num livro que comprei em Le Havre...

     “Bom, agora olhe só, Pierre. Não é uma visão fantástica? Navios de passageiros e pequenas embarcações, cargueiros e traineiras, escunas e barcos a remo; como é que eles não batem uns nos outros? E lá está ela, olhe, à direita. A própria Dama com a Tocha, a Estátua da Liberdade. Ah, Pierre, se você soubesse quantas pessoas desventuradas, fugindo do Velho Mundo, viram-na sair da névoa e souberam que estavam começando uma vida nova! Milhões, inclusive patrícios meus. Porque desde a Grande Fome, há cinqüenta anos, metade da Irlanda se mudou para Nova York, apinhados como gado nos porões, saindo ao convés no frio congelante da manhã para olhar a cidade movendo-se sobre a água e rezar para que pudessem entrar.

     “Desde então muitos deles se mudaram para o interior, chegando até mesmo à costa da Califórnia, para ajudar a criar uma nova nação. Mas muitos continuam aqui em Nova York, os irlandeses americanos, somente nesta cidade há mais do que em Dublin, Cork e Belfast juntas. De modo que vou me sentir bastante em casa aqui, meu garoto. Até mesmo poderei tomar um copo de boa cerveja irlandesa, que não encontro há muitos anos.”

     “Sim, de fato Nova York será uma grande aventura para alguns de nós, e quem sabe o que nos acontecerá aqui? Só Deus sabe, mas Ele não dirá. De modo que devemos descobrir sozinhos. Agora está na hora de ir trocar de roupa para a recepção cívica. A jovem Meg ficará com a sua mãe; fique colado comigo por todo o caminho até o hotel.”

     — OK, padre Joe. É assim que os americanos dizem. OK. Eu li num livro. E o senhor vai cuidar de mim em Nova York?

     — É claro, garoto. Eu não faço isso sempre, quando seu pai não está perto? Agora corra. A melhor roupa e os melhores modos.

    

     O DESPACHO DE BERNARD SMITH

     CORRESPONDENTE DE NAVEGAÇÃO, NEW YORK AMERICAH 29 DE NOVEMBRO DE 1906

     MAIS UMA PROVA FOI DADA, SE É QUE ERA NECESSÁRIA MAIS UMA PROVA, DE QUE O grande porto de Nova York tornou-se o maior ímã do mundo para a recepção dos navios mais finos e mais luxuosos que a terra já viu.

     Há apenas dez anos pouco mais de três navios de passageiros de luxo faziam a rota pelo Atlântico norte da Europa até o Novo Mundo. A viagem era difícil, e a maioria dos viajantes preferia os meses de verão. Hoje nossos rebocadores e faroleiros são mimados.

     A inglesa Inman Line tem agora uma programação regular com seu City of Paris. A Cunards iguala-se às suas rivais com os novos Campania e Lucania, enquanto a White Star Line contra-ataca com o Majestic e o Teutonic. Todos esses ingleses estão lutando pelo privilégio de transportar os ricos e famosos da Europa para experimentar a hospitalidade de nossa grande cidade.

     Ontem foi a vez da Companhie Génerale Transatlantique de Le Havre, França, mandar a jóia de sua Coroa, o La Lorraine, navio irmão do igualmente suntuoso La Savoie, para ocupar seu atracadouro reservado no rio Hudson. Tampouco seus passageiros se resumiam à nata da alta sociedade da França; o Lorraine nos trouxe um prêmio extra e muito especial.

     Não é de espantar que, desde a hora do café da manhã, antes mesmo de o navio passar pelas Roads e contornar a extremidade de Battery Point, uma quantidade de coches e carruagens particulares começassem a engarrafar a North Canal Street e a Morton Street enquanto excursionistas das mansões mais ao norte da cidade buscavam um lugar de onde aplaudir nossa hóspede, ao estilo nova-iorquino.

     E quem era ela? Bom, ninguém menos do que Christine, viscondessa de Chagny, considerada por muitos a maior soprano do mundo — mas não contem isso a Dame Nellie Melba, que deverá chegar dentro de dez dias!

     O píer 42, da Companhia Francesa, estava enfeitado com faixas e bandeiras tricolores enquanto o sol nascia e a névoa se erguia para revelar o Lorraine, com os rebocadores agitando-se ao redor, entrando de popa em seu atracadouro no Hudson.

     O espaço era exíguo para a multidão enquanto o Lorraine nos cumprimentava com três grandes silvos de sua sirene de nevoeiro, e embarcações menores, acima e abaixo do rio, respondiam. Na extremidade do cais estava o pódio, cheio de bandeiras francesas e dos Estados Unidos, onde o prefeito George B. McClelan ofereceria a Madame de Chagny as boas-vindas formais a Nova York, apenas cinco dias antes de ela estrelar a ópera inaugural no novo Teatro de Ópera de Manhattan.

     Agrupados à base do pódio havia um mar de cartolas brilhantes e chapéus acenando enquanto metade da sociedade de Nova York esperava um vislumbre da estrela que chegava. Nos cais vizinhos, carregadores e estivadores que certamente jamais tinham ouvido falar de ópera ou de soprano subiam em guindastes e guinchos para satisfazer a curiosidade. Antes que o Lorraine tivesse lançado sua primeira amarra ao píer, cada estrutura ao longo do cais estava negra de seres humanos. Funcionários da French Line desenrolaram um comprido tapete vermelho, da plataforma até a base da ponte de embarque, assim que esta foi colocada no lugar.

     Homens da alfândega subiram correndo pela ponte de embarque para terminar as formalidades necessárias para a diva e sua entourage na privacidade de seu salão nobre ao mesmo tempo que, com a devida pompa e circunstância, o prefeito chegava ao cais acompanhado por um esquadrão de elite fardado de azul. Ele e os figurões da prefeitura e do Tammany Hall, que tinham vindo juntos, foram escoltados através da multidão para subir no pódio enquanto uma banda da polícia atacava o hino americano. Todos os chapéus foram retirados enquanto o prefeito e os dignitários da cidade assumiam seus lugares na plataforma, virados para o píer, em direção à extremidade inferior da ponte de desembarque.

     Quanto a mim, eu evitara a área reservada para a imprensa ao nível do chão para ocupar uma janela no segundo andar de um armazém na ponta do cais, e dali podia olhar toda a cena, a melhor maneira de descrever aos leitores do American exatamente o que aconteceu.

     A bordo do Lorraine, os passageiros de primeira classe olhavam dos conveses superiores, tendo uma vista privilegiada, mas impedidos de desembarcar até que terminasse a recepção cívica.

     Nas vigias inferiores dava para ver os rostos dos passageiros de terceira, as cabeças torcidas para cima na tentativa de ver o que estava acontecendo.

     Minutos antes das dez horas houve uma agitação no Lorraine quando um capitão e um grupo de oficiais escoltaram uma única figura em direção ao topo da ponte de desembarque. Depois de despedidas cordiais aos compatriotas franceses, Madame de Chagny começou sua jornada descendo pela ponte em seu primeiro contato com o solo americano. Esperando para recebê-la estava o Sr. Oscar Hammerstein, o empresário dono e administrador do Manhattan Opera, e cuja tenacidade teve sucesso em atrair tanto a viscondessa quanto a Dame por sobre o Atlântico no inverno, para cantarem para nós.

     Com um gesto do Velho Mundo visto com raridade cada vez maior em nossa sociedade, ele se inclinou e beijou a mão que ela estendeu. Houve um alto “Ohhhh” e alguns assobios dos trabalhadores agarrados aos guindastes ao redor, mas o clima era mais de alegria que de zombaria, e uma salva de palmas recebeu o gesto — vinda das fileiras de cartolas de seda agrupadas ao redor do pódio.

     Chegando ao tapete vermelho Madame de Chagny virou-se e, pegando o braço do Sr. Hammerstein, caminhou pelo trecho de cais em direção à plataforma. Enquanto andava, com uma perspicácia que certamente poderia colocá-la na disputa pelo cargo do prefeito McClelan, ela acenou e mostrou um sorriso enorme para os estivadores no topo dos caixotes e pendurados nos guindastes. Eles responderam com mais assobios ainda, dessa vez de grande apreciação. Como nenhum deles jamais irá ouvi-la cantar, esse gesto caiu extremamente bem.

     Através de uma poderosa luneta eu pude colocar a dama em foco, a partir de minha janela alta. Aos 32 anos ela é muito bonita, esguia e pequena. É sabido que os amantes de ópera se espantam ao ver como uma voz tão magnífica poderia habitar uma estrutura tão flexível. Dos ombros até os tornozelos — porque, apesar do sol, a temperatura estava bem abaixo de zero — ela usava uma capa justa na cintura, em veludo cor de vinho, com acabamento de vison no pescoço, nos punhos e na bainha, e um chapéu circular, estilo cossaco, da mesma pele. O cabelo estava preso num coque bem-feito atrás da cabeça. As senhoras elegantes de Nova York não poderão dormir sobre seus louros quando essa dama caminhar pela Peacock Alley.

     Atrás dela pude ver sua entourage notavelmente pequena e sem estardalhaço descendo pela ponte: sua criada pessoal e ex-colega Mademoiselle Giry, dois secretários para cuidar da correspondência e dos arranjos de viagem, o filho Pierre, um belo garoto de doze anos e o tutor do garoto, um padre irlandês de batina preta e chapéu de aba larga, também jovem, com sorriso largo e aberto. Enquanto a dama era ajudada a subir ao pódio, o prefeito McClelan apertou sua mão, ao estilo americano, e partiu para suas boas-vindas formais, algo que ele terá de repetir dentro de dez dias para a australiana Dame Nellie Melba. Mas se havia algum medo de que Madame de Chagny não entendesse o que estava sendo dito, esses foram rapidamente afastados. Ela não precisou de tradução e, quando o prefeito terminou, foi até a frente do pódio e nos agradeceu de modo extremamente belo, num inglês fluente com delicioso sotaque francês.

     O que ela tinha a dizer era ao mesmo tempo surpreendente e elogioso. Depois de agradecer ao prefeito e à cidade por uma recepção extremamente tocante, confirmou que viera cantar durante uma semana apenas, na inauguração do Teatro de Ópera de Manhattan, e que a obra em questão seria uma ópera totalmente nova, jamais ouvida antes, de um compositor americano desconhecido.

     Depois revelou novos detalhes. A história se passava na guerra civil americana, e se intitulava O anjo de Shiloh, e era sobre a luta entre o amor e o dever de uma beldade do Sul apaixonada por um oficial da União. Ela cantaria o papel de Eugenie Delarue. Acrescentou que vira a partitura e o libreto em Paris, em manuscrito, e que a simples beleza a fizera mudar o itinerário e atravessar o Atlântico. Sem dúvida ela queria dizer que o dinheiro não tivera importância em sua decisão, uma cutucada no olho de Dame Nellie Melba. De novo os trabalhadores nos guindastes ao redor do píer, silenciosos enquanto ela falava, soltaram vivas prolongados e muitos assobios que poderiam significar maus modos caso não fossem tão obviamente de admiração. De novo ela acenou para eles e virou-se para descer os degraus do outro lado, para entrar na carruagem que esperava.

     Nesse ponto, numa cerimônia até então cuidadosamente programada e impecável, houve dois fatos que enfaticamente não faziam parte do programa. O primeiro foi perturbador e percebido por poucos; o segundo causou murmúrios de prazer.

     Por algum motivo deixei meu olhar se desviar da plataforma enquanto ela estava falando e vi, de pé no telhado de um grande armazém diretamente em frente do meu, uma figura estranha. Era um homem imóvel, olhando para baixo. Usava chapéu de aba larga e uma capa que esvoaçava ao redor. Havia algo de estranho e vagamente sinistro na figura solitária, parada acima de nós, ouvindo a dama francesa. Como chegou lá sem ser visto? O que estava fazendo? Por que não estava com o resto da multidão?

     Ajustei a luneta para um novo foco; ele deve ter visto o sol brilhar nas lentes, porque de súbito olhou para cima e me encarou diretamente. Então vi que usava uma máscara sobre o rosto, e através dos buracos dos olhos pareceu olhar ferozmente para mim durante alguns segundos. Ouvi alguns gritos dos estivadores ainda agarrados ao aço frio dos guindastes, e vi dedos apontando. Mas assim que os que estavam abaixo começaram a olhar para cima, ele desapareceu, numa velocidade que desafia explicações. Num segundo se encontrava lá, no outro o telhado estava vazio. Desaparecera como se jamais tivesse existido.

     Segundos depois o pequeno arrepio que essa aparição possa ter causado foi afastado por um enorme soar de aplausos e gargalhadas vindo de baixo. Madame de Chagny emergira da parte de trás do tablado e estava se aproximando da carruagem enfeitada que lhe fora preparada pelo Sr. Hammerstein. O prefeito e as autoridades municipais estavam alguns passos atrás dela. Todos viram que entre a convidada e a carruagem, fora do alcance do tapete vermelho, havia uma grande poça de neve meio derretida misturada com lama, que evidentemente ficara ali desde a nevasca de ontem.

     As botas grossas de um homem não se abalariam com isso, mas e os sapatos elegantes da aristocrata francesa? O governo da cidade de Nova York parou e olhou perplexo, mas impotente. Então vi um jovem pular sobre a barreira que rodeava o lugar reservado para a imprensa. Sem dúvida ele estava usando uma sobrecasaca, mas segurava no braço algo que logo se revelou uma grande capa de noite. Ele girou a capa num arco, de modo que pousasse sobre a poça de lama entre a estrela da ópera e a porta aberta da carruagem. A dama abriu um sorriso brilhante, pisou na capa e dois segundos depois estava na carruagem, com o cocheiro fechando a porta. O rapaz pegou a capa encharcada e enlameada e trocou algumas palavras com o rosto emoldurado na janela antes que a carruagem saísse. O prefeito McClelan deu um tapinha agradecido nas costas do rapaz e, enquanto este se virava, percebi que era ninguém mais ninguém menos do que um jovem colega meu deste jornal.

     “Tudo vai bem quando acaba bem”, diz o ditado, e a recepção feita por Nova York para a dama de Paris terminou de modo excelente. Agora ela está abrigada na melhor suíte do Waldorf-Astoria, com cinco dias de ensaio e cuidados com a voz antes do début triunfante no Teatro de Ópera de Manhattan em 3 de dezembro.

     Enquanto isso suspeito de que um certo jovem colega meu, da seção de cidade, estará explicando a todo mundo que o espírito de Raleigh ainda está vivo!

    

     A OFERTA DE CHOLLY BLOOM

     BAR DO LOUIE, QUINTA AVENIDA COM RUA 28, NOVA YORK, 27 DE NOVEMBRO DE 1906

     EU JÁ DISSE A VOCÊS QUE SER UM REPÓRTER EM NOVA YORK É O MELHOR EMPREGO do mundo? Já disse? Bom, perdoem-me mas vou dizer de novo. De qualquer modo, vocês têm de perdoar, porque eu estou pagando. Barney, pode trazer uma rodada de cerveja?

     Vejam só, você precisa demonstrar talento, energia e espírito de estrategista dignos de um gênio, e é por isso que estou dizendo que esse emprego tem tudo isso. Quero dizer, vejam só ontem. Algum de vocês esteve no píer 42 ontem de manhã? Deviam ter ido. Que espetáculo, que acontecimento. Leram a cobertura hoje de manhã no American? Bom para você, Harry, pelo menos alguém aqui lê um jornal decente, mesmo que trabalhe para o Post.

     Bom, devo dizer que na verdade o serviço não era meu. O nosso correspondente estava lá para fazer a cobertura completa. Mas eu não tinha o que fazer de manhã e por isso decidi ir, e, rapaz, não é que me dei bem? Bom, o resto de vocês teria passado a manhã na cama. É isso que eu quero dizer com “energia”: você precisa ficar andando por aí para receber os golpes de sorte da vida. Onde eu estava? Ah, sim.

     Alguém me disse que o navio francês Lorraine ia atracando no píer 42 trazendo uma cantora francesa de quem eu nunca tinha ouvido falar, mas que é uma figurona no mundo da ópera. Madame Christine de Chagny. Bom, eu nunca estive numa ópera na vida, mas pensei: que diabo? Ela é uma grande estrela, ninguém pode chegar perto dela para uma entrevista, então vou assim mesmo dar uma olhada. Além disso, a última vez em que tentei ajudar um francês a sair de uma encrenca, quase consegui um furo enorme, e teria conseguido se o editor não fosse um idiota completo. Já contei a vocês sobre isso? O acidente estranho no edifício E.M. Tower? Bom, escutem, este fica mais esquisito. Eu iria mentir? O mufti é muçulmano?

     Cheguei ao píer logo depois das nove. O Lorraine estava entrando de popa já havia bastante tempo, esses atracamentos sempre duram uma eternidade. Por isso acenei o meu passe para os gorilas e fui até a área reservada para a imprensa. Sem dúvida foi bom eu ter ido. Obviamente ia ser uma grande recepção cívica — o prefeito McClelan, autoridades municipais, o Tammany Hall, todo mundo. Eu sabia que toda a algazarra seria coberta pelo correspondente das docas, a quem vi depois de um tempo numa janela lá em cima, com visão melhor.

     Bom, eles tocaram os hinos e a tal dama francesa desceu até o cais, acenou para a multidão, e a multidão adorando tudo. Depois vieram os discursos, primeiro o prefeito, depois a dama, e finalmente ela desceu do pódio e foi em direção à carruagem. Problema: por acaso havia uma grande poça de neve e lama entre ela e o coche, e o tapete vermelho não chegava até lá.

     Vocês deviam ter visto. O cocheiro estava com a porta tão escancarada quanto a boca do prefeito. McClelan e o homem da ópera, Oscar Hammerstein, estavam de cada lado da cantora francesa, e não sabiam o que fazer.

     Nesse ponto aconteceu uma coisa estranha. Senti uma cutucada e um empurrão por trás, e alguém colocou uma coisa no meu braço que estava apoiado na barreira. Quem quer que tenha sido, desapareceu num segundo. Não vi. Mas o que estava pendurado no meu braço era uma antiga capa de ópera, mofada e puída, não era o tipo de coisa que alguém estaria carregando ou usando naquela hora da manhã, se é que carregaria em qualquer hora. Então lembrei que, quando era garoto, eu ganhei um livro colorido chamado Os heróis de todos os tempos — com figuras. E ali havia a figura de um sujeito chamado Raleigh — acho que deram esse nome a ele por causa da capital da Carolina do Norte. De qualquer modo, uma vez ele tirou a capa e a jogou sobre uma poça na frente da rainha Elisabeth da Inglaterra, e depois disso sua vida não parou de progredir.

     Aí eu pensei: “Se está bem para Raleigh, está bem para o filhinho da Sra. Bloom”, por isso saltei por cima da barreira que separava a área de imprensa e coloquei a capa sobre a lama, na frente da tal viscondessa. Bom, ela adorou. Passou por cima da capa e entrou na carruagem. Eu peguei a capa molhada e vi a dona sorrindo para mim pela janela aberta. Aí pensei: “Não custa tentar...” e fui até a janela.

     — Digníssima senhora — falei. É assim que a gente precisa falar com essas pessoas. — Todo mundo me diz que é quase impossível ter uma entrevista pessoal com a senhora. É verdade?

     É disso que vocês precisam nesse jogo, rapazes: ousadia, encanto... ah, e boa aparência, claro. O que vocês acham, eu tenho uma boa figura, num estilo meio judeu? Sou irresistível. De qualquer modo, aquela era uma dona muito bonita, e ela me olhou meio sorrindo, e eu sabia que Hammerstein estava rosnando atrás. Mas aí ela sussurrou:

     — Esta noite na minha suíte, às sete horas. — E levantou a janela. De modo que cá estávamos, eu tinha a primeira entrevista exclusiva marcada em Nova York.

     Se eu fui? Claro que fui. Mas esperem, tem mais. O prefeito mandou que eu colocasse a limpeza da capa na conta pessoal dele, na lavanderia que faz todo o serviço para a Gracie Mansion, e eu voltei para o American me sentindo muito satisfeito. Ali encontrei Bernie Smith, nosso homem encarregado dos navios, e adivinhem o que ele me contou? Quando a dama francesa estava agradecendo ao McClelan pelas boas-vindas, Bernie olhou para o armazém do outro lado, e o que ele viu? Um homem de pé olhando para baixo, sozinho, como uma espécie de anjo vingador. Antes que ele pudesse continuar, falei com Bernie:

     — Pare aí mesmo. Ele usava uma capa escura até o queixo, chapéu de aba larga e uma espécie de máscara cobrindo a maior parte do rosto.

     Aí o queixo de Bernie caiu e ele disse:

     — Como, diabos, você sabia disso?

     Então eu soube com certeza que não tinha alucinado na Torre. Realmente há uma espécie de Fantasma nesta cidade, que não deixa ninguém ver seu rosto. Eu quero saber quem ele é, o que faz, e por que está tão interessado numa cantora de ópera francesa. Um dia vou descobrir toda essa história. Ah, obrigado, Harry, veio na hora, saúde! Bom, onde eu estava? Ah, sim, minha entrevista com a diva da Ópera de Paris.

     Às dez para as sete lá estava eu, no meu melhor terno, entrando no Waldorf-Astoria como se fosse o dono do lugar. Direto da Peacock Alley para a recepção principal do hotel enquanto as damas da sociedade local andavam de um lado para o outro para verem e serem vistas. Muito chique. O homem da recepção me olhou de cima a baixo como se eu tivesse entrado pela porta de serviço.

     — Sim? — perguntou ele.

     — A suíte da viscondessa de Chagny, por favor — falei.

     — Sua senhoria não está recebendo — disse o sujeito uniformizado.

     — Diga-lhe que o Sr. Charles Bloom, com outra capa, está aqui — falei. Dez segundos ao telefone e ele começou a fazer reverências, a se arrastar e insistir em me acompanhar pessoalmente até lá em cima. Por acaso havia um mensageiro no saguão com um grande pacote amarrado com fita, para o mesmo destino. De modo que subimos todos juntos até o décimo andar.

     Já estiveram no Waldorf-Astoria, rapazes? Bom, é um negócio diferente. A porta foi aberta por outra dama francesa, criada pessoal; gentil, bonita, puxando de uma perna. Ela me deixou entrar, pegou o pacote e me guiou até o salão principal. Vou dizer, dava para jogar beisebol nele. Enorme. Cheio de ouros, estofados, tapeçarias, cortinas, como se fosse quarto de palácio. A criada falou:

     — Madame está se vestindo para o jantar. Logo virá vê-lo. Por favor, espere aqui. — E eu me sentei numa poltrona perto da parede.

     Não havia mais ninguém no salão, a não ser um garoto que balançou a cabeça, riu e disse:

     — Bonsoir.

     Por isso eu sorri de volta e falei:

     — Oi.

     Ele continuou com sua leitura enquanto a criada, cujo nome parece ser Meg, lia o cartão no presente embrulhado. Depois disse:

     — Ah, é para você, Pierre — e foi então que eu reconheci o garoto. É o filho da madame, eu tinha visto antes no píer, vindo atrás com um padre. Ele pegou o presente, começou a desembrulhar e Meg saiu pela porta aberta em direção ao quarto. Deu para ouvir as duas gargalhando, dando risinhos e falando francês lá dentro, por isso olhei o salão em volta.

     Flores em toda a parte; buquês do prefeito, de Hammerstein, da diretoria da Ópera e de um punhado de gente desejando boas-vindas. O garoto tirou a fita e o papel, revelando uma caixa. Ele a abriu e tirou um brinquedo. Eu não tinha outra coisa que fazer, por isso olhei. Era um brinquedo estranho para um garoto de doze para treze anos. Uma luva de beisebol eu poderia entender, mas um macaco de brinquedo?

     E um macaco muito estranho. Sentado numa cadeira com os braços na frente do corpo, as mãos segurando dois pratos de orquestra. Então entendi: o negócio é mecânico, com uma chave de dar corda nas costas. Além disso, era uma espécie de caixa de música, porque o garoto girou a corda e o macaco começou a tocar. Os braços se moviam para trás e para a frente como se estivessem batendo os pratos, enquanto de dentro vinha uma musiquinha. Não havia problema para reconhecer: “Yankee Doodle Dandy”.

     Aí o garoto começou a se interessar, segurando-o no alto e olhando de todos os ângulos para ver como funcionava. Quando a corda acabou, ele girou a chave de novo e a música recomeçou. Depois de um tempo ele começou a explorar as costas do animal, levantando um pedaço de pano para revelar uma espécie de painel. Depois veio até mim, muito educado, falando em meu idioma:

     — O senhor tem um canivete, messiê?

     Claro que eu tinha. Na nossa profissão os lápis precisam estar sempre apontados. Por isso emprestei o canivete. Mas em vez de cortar o animal para abri-lo ele o usou como uma chave de fenda para remover quatro pequenos parafusos nas costas. Aí ele estava olhando direto para o mecanismo lá dentro. Parece ser um bom modo de quebrar um brinquedo. Mas o garoto é muito inteligente, e só queria descobrir como aquilo funcionava. Eu tenho dificuldade para entender um abridor de latas.

     — Muito interessante — disse ele, mostrando o que havia dentro, que parecia um emaranhado de rodas, eixos, sinetas, molas e mostradores. — Veja só, o giro da chave aperta uma mola como de um relógio, mas muito maior e mais forte.

     — É mesmo? — falei, só querendo que ele fechasse aquilo e tocasse “Yankee Doodle” até mamãe estar pronta. Mas não.

     — A força da mola tensionada é transmitida por um sistema de engrenagens até um prato giratório aqui na base. Sobre o prato há um disco com vários pinos na superfície superior.

     — Bom, isso é fantástico — falei. — Agora por que você não monta tudo de novo?

     Mas ele continuou, a testa franzida em pensamento enquanto deduzia tudo. Aquele garoto provavelmente entende de motores de carro.

     — Quando o disco cheio de pinos gira, cada pino cutuca uma haste vertical, que depois é liberada e volta para o lugar, batendo num daqueles sininhos. Cada sino tem um tom diferente, de modo que eles fazem música na seqüência certa. O senhor já viu sinos musicais, M'sieur?

     Sim. Eu já vi sinos musicais. Dois ou três caras ficam enfileirados atrás de uma barra comprida cheia de sinos. Eles pegam um sino, a seqüência certa, podem tocar música.

     — É a mesma teoria — disse Pierre.

     — Bom, isso é maravilhoso. Agora por que não monta tudo de novo?

     Mas não, ele queria explorar mais um pouco. Em alguns segundos havia tirado o disco que toca e ficou segurando. Mais ou menos do tamanho de um dólar de prata, com pininhos sobre a superfície. Virou do outro lado. Mais pinos.

     — Está vendo, deve tocar duas músicas, uma para cada lado do disco principal.

     Nesse ponto eu estava convencido de que aquele macaco nunca mais iria tocar de novo.

     Mas ele colocou o disco de volta, com o outro lado para cima, cutucou com a lâmina do canivete para se certificar de que tudo que devesse estar tocando estivesse tocando, e fechou de novo. Depois girou a corda outra vez, colocou o brinquedo sobre a mesa e deu um passo atrás. O macaco começou a bater os braços e a tocar mais música. Dessa vez uma que eu não conhecia. Mas alguém conhecia.

     Veio uma espécie de grito do quarto, e de repente a cantora estava na porta, com um vestido de renda, o cabelo caído nas costas, parecendo valer um milhão de dólares, a não ser pela expressão do rosto, como o de alguém que acabou de ver um fantasma enorme e medonho. Ela olhou para o macaco que ainda tocava, atravessou o salão correndo, abraçou o menino e agarrou-o contra o corpo como se ele estivesse para ser seqüestrado.

     — O que é isso? — perguntou ela num sussurro, evidentemente apavorada.

     — É um macaco de brinquedo, minha senhora — falei, tentando ser útil.

     — “Mascarada” — sussurrou ela. — Há doze anos. Ele deve estar aqui.

     — Não há ninguém aqui além de mim, minha senhora. E não fui eu quem trouxe. O brinquedo veio numa caixa, embrulhada para presente. Foi o mensageiro quem trouxe.

     Meg, a criada, confirmava furiosamente com a cabeça o que eu dizia.

     — De onde veio? — perguntou a dama. Por isso peguei o macaco, que tinha ficado quieto de novo, e fiquei olhando. Nada. Depois tentei o papel de embrulho. Nada outra vez. Então olhei a caixa de papelão, e na parte de baixo havia um pedaço de papel colado. Dizia: S. C. Brinquedos, CI. Depois a velha memória funcionou. Há cerca de um ano, no verão passado, eu estava saindo com uma garota muito bonita que era garçonete no Lombardi's, na Spring Street. Um dia eu a levei a Coney Island. Ficamos juntos o dia todo. Dos vários parques de diversões nós escolhemos o Steeplechase. E me lembro de uma loja de brinquedos lá, cheia de brinquedos mecânicos dos mais estranhos, de todos os tipos. Havia soldados que marchavam, outros que batiam tambor, bailarinas sobre tambores giratórios que levantavam as pernas — é só pedir, o que pode ser feito com mecanismo de relojoeiro e molas, tem lá.

     Por isso expliquei à dama que achava que S.C. queria dizer Steeplechase, e CI certamente significava Coney Island. Depois tive que explicar o que era Coney Island. Ela ficou muito pensativa.

     — Esses... parques de diversões... é assim que vocês chamam, não é? Eles lidam com ilusões de ótica, truques, alçapões, passagens secretas, objetos mecânicos que parecem funcionar sozinhos?

     Assenti.

     — É exatamente o tipo de coisa que existe em Coney Island, madame.

     Então ela ficou muito agitada.

     — M'sieur Bloom, preciso ir lá. Preciso ver essa loja de brinquedos, esse Steeplechase Park.

     Expliquei que seria um problema muito grande. Coney Island é um local somente de veraneio, e nós estamos no começo de dezembro. O parque fica fechado, trancado; o único tipo de trabalho que está acontecendo é de manutenção, reparos, limpeza, pintura, envernizamento. Não está aberto ao público. Mas nesse ponto ela estava quase chorando, e eu odeio ver uma dama perturbada.

     Por isso liguei para um colega na editoria comercial do American e peguei-o logo antes de ele sair para casa. Quem é dono do Steeplechase Park? Um cara chamado George Tilyou, junto com um sócio muito secreto. Sim, ele está ficando bem velho, e não mora mais na ilha, e sim numa casa grande na cidade do Brooklyn. Mas ainda é dono do Steeplechase desde que o parque foi inaugurado há nove anos. Será que ele tem telefone, por acaso? Por acaso tinha. Então anotei o número e telefonei. Demorou um tempo, mas logo depois eu estava falando com o próprio Sr. Tilyou. Expliquei-lhe tudo, dando a entender a importância para o prefeito McClelan de que Nova York estendesse toda a hospitalidade a madame de Chagny... Bom, vocês sabem, a velha conversa de mercador. De qualquer modo, ele disse que telefonaria de volta.

     Nós esperamos. Uma hora. Ele telefonou. Num clima todo diferente, como se tivesse consultado alguém. Sim, ele daria um jeito para que os portões fossem abertos para um grupo particular. A loja de brinquedos terá funcionários e o Mestre de Diversões estará disponível pessoalmente o tempo todo. Não seria possível para a próxima manhã, mas para a outra.

     Bom, isto significa amanhã, certo? De modo que este seu criado vai escoltar pessoalmente madame de Chagny a Coney Island. Na verdade eu diria que agora sou seu guia particular em Nova York. E não, rapazes, não há sentido em vocês todos aparecerem porque ninguém vai entrar além dela, de mim, e de seu grupo pessoal. De modo que em troca de uma capa suja eu consegui furo após furo. Não disse que este era o melhor emprego do mundo?

     Havia apenas um problema — minha entrevista, pela qual eu fora ao hotel. Se consegui? Não consegui. A dama cantora estava tão perturbada que voltou correndo para o quarto e não quis sair de novo. A criada Meg agradeceu em nome dela por eu arranjar a ida a Coney Island, mas disse que agora a prima-dona estava cansada demais para continuar. Por isso tive de sair. Desapontado, mas não importa. Terei minha exclusiva amanhã. E sim, vocês podem me pagar outra garrafa da loura.

    

     A EXULTAÇÃO DE ERIK MULHEIM

     TERRAÇO, E.M. TOWER, MANHATTAN, 29 DE NOVEMBRO DE 1906

     EU A VI. DEPOIS DE TODOS ESSES ANOS VI-A DE NOVO E MEU coração parecia explodir por dentro. Estava no terraço do armazém perto do cais, olhando para onde ela se encontrava, no píer. Até que captei o brilho de luz na lente de uma luneta e tive de sair.

     Por isso desci até a multidão, e felizmente havia tanta agitação no ar que ninguém pensou coisa alguma de um homem com a cabeça enrolada num capuz de lã. Por isso consegui me aproximar do coche, para ver seu rosto adorável a poucos metros de distância, e coloquei minha velha capa nas mãos de um repórter idiota que só pensava numa entrevista.

     Ela estava linda como sempre: a cintura minúscula, os cabelos cascateantes presos sob o chapéu de cossaco, o rosto e o sorriso capazes de partir ao meio um bloco de granito.

     Será que eu estava certo? Será que estava certo em abrir todas as velhas feridas de novo, forçar-me a sangrar de novo como naquele porão há doze longos anos? Será que fui um idiota em trazê-la aqui quando 160 meses tinham quase curado a dor?

     Eu a amei naquela época, naqueles anos temerosos e assombrados em Paris, mais do que a própria vida. O primeiro, o último e o único amor que jamais terei ou conhecerei. Quando ela me rejeitou naquele porão em troca de seu jovem visconde quase matei os dois. A grande fúria me veio de novo, aquela raiva que foi sempre minha única companheira, minha verdadeira amiga que jamais me abandonou, aquela raiva contra Deus e seus anjos por Ele nem mesmo ter me dado um rosto humano como os outros, como Raoul de Chagny. Um rosto para sorrir e agradar. Em vez disso me deu esta máscara derretida do horror, uma sentença de morte, de isolamento e rejeição.

     E no entanto eu pensava, pobre de mim, que ela poderia me amar, ao menos um pouquinhos depois do que acontecera entre nós naquela hora de loucura em que a multidão vingativa desceu para me linchar. Quando conheci meu destino, deixei que eles vivessem, e fiquei satisfeito por ter deixado. Mas por que fiz isto agora? Sem dúvida só pode me trazer mais dor e rejeição, nojo, desprezo e repugnância outra vez. É a carta, claro.

     Ah, Madame Giry, o que devo pensar da senhora neste momento? A senhora foi a única pessoa que me tratou com gentileza, a única que não cuspiu em mim nem fugiu correndo de meu rosto. Por que esperou tanto? Será que devo lhe agradecer por nas últimas horas ter me mandado notícias que mudaram minha vida outra vez, ou será que devo culpá-la por escondê-las de mim nesses últimos doze anos? Eu poderia estar morto e desaparecido, e jamais saberia. Mas não estou, e agora sei. Por isso corro este risco louco.

     Trazê-la aqui, vê-la de novo, sofrer de novo, pedir de novo, implorar mais uma vez... e ser rejeitado de novo? É o mais provável. No entanto, no entanto...

     Tenho-a aqui, memorizada quase que palavra por palavra; lida e relida numa descrença atordoada até as páginas serem manchadas pelo suor dos dedos e amarrotadas por mãos trêmulas. Datada de Paris, final de setembro, logo antes de a senhora morrer...

    

     Meu caro Erik,

     Quando você receber esta carta, se receber, terei partido da terra para outro lugar. Lutei muito e com dificuldade antes de decidir escrever estas linhas, e só o fiz porque sentia que você, que conheceu tanto sofrimento, deveria conhecer a verdade enfim; e que eu não poderia encontrar facilmente meu Criador sabendo que eu o enganara até o final.

     Não posso dizer se a notícia contida aqui irá lhe trazer alegria ou apenas angústia de novo. Mas eis a verdade dos acontecimentos que um dia foram muito próximos de você, e dos quais você não poderia saber coisa alguma. Apenas eu, Christine de Chagny e seu marido Raoul sabemos dessa verdade, e devo implorar que você aborde essa verdade com gentileza e cuidado...

     Três anos depois de eu encontrar um pobre coitado de dezesseis anos acorrentado numa jaula em Neully, conheci o segundo dos rapazes que mais tarde passei a chamar de meus garotos. Foi por acidente, e um acidente pavorosamente trágico.

     Era tarde da noite no inverno de 1885. A ópera finalmente terminara, as meninas tinham ido para seus aposentos, o grande prédio havia fechado suas portas e eu ia para casa sozinha pelas ruas escuras, em direção ao meu apartamento.

     Era um beco pequeno, estreito e escuro, calçado de pedras irregulares. Sem que eu soubesse havia outras pessoas ali. Uma empregada, que saíra tarde de uma casa ali perto, andava a passos rápidos pela escuridão em direção ao bulevar mais claro, adiante. Numa porta um rapaz, que mais tarde fiquei sabendo que não teria mais de dezesseis anos, dizia adeus aos amigos com quem passara parte da noite.

     Das sombras saiu um rufião, um bandoleiro como os que assombram as ruas escuras, procurando um pedestre para roubar a carteira. Jamais saberei por que roubou a pequena criada. Ela não poderia ter mais de cinco sous. Mas vi o bandido sair correndo das sombras e quase sufocá-la com os braços ao redor da garganta para que ela não gritasse enquanto ele pegava a bolsa. Gritei: “Deixe-a em paz, bandido.”

     O som de botas masculinas passou por mim; captei o vislumbre de um uniforme, e um rapaz havia se lançado contra o bandido, jogando-o ao chão. A mocinha gritou e correu em direção às luzes do bulevar. Jamais a vi de novo. O bandido libertou-se do jovem oficial, levantou-se e começou a correr. O oficial foi atrás dele. Então vi o bandido se virar, tirar algo do bolso e apontar para o perseguidor. Houve um estouro e um clarão enquanto ele disparava. Depois ele correu passando por um arco e desapareceu no pátio que havia atrás.

     Corri até o homem caído e vi que não passava de um garoto, uma criança corajosa e galante, com uniforme de cadete oficial da École Militaire. Seu rosto bonito estava branco como mármore e ele sangrava profusamente de um ferimento a bala, na barriga. Rasguei tiras de minha anágua para estancar o sangramento e gritei até que alguém olhou de uma janela acima e perguntou qual era o problema. Insisti para que ele corresse até o bulevar e parasse uma carruagem com urgência, coisa que ele fez vestido de camisolão.

     Estávamos muito longe do Hôtel Dieu, bem mais perto do Hôpital St. Lazare, de modo que fomos para lá. Havia um jovem médico de serviço, mas quando ele viu a natureza do ferimento e ficou sabendo da identidade do cadete, herdeiro de uma família nobre da Normandia, mandou um mensageiro procurar um cirurgião mais velho que morava ali perto. Não havia mais o que eu pudesse fazer pelo rapaz, por isso fui para casa.

     Mas rezei para que ele vivesse, e de manhã, como era domingo e não havia trabalho para mim na Ópera, voltei ao hospital. As autoridades já haviam mandado chamar a família na Normandia e, ao me ver chegando, o cirurgião de serviço deve ter me tomado pela mãe do cadete, quando perguntei pelo nome dele. Seu rosto transformou-se numa máscara de gravidade e ele pediu que eu fosse ao seu escritório particular. Ali deu-me as notícias pavorosas.

     Disse que o paciente sobreviveria, mas o dano causado pela bala e sua remoção fora terrível. Grandes vasos sangüíneos entre a virilha e a barriga tinham sido rasgados e não poderiam ser reparados. Ele não tivera opção a não ser suturá-los. Mesmo assim eu não entendia. Depois percebi o que ele queria dizer, e perguntei em linguagem clara. Ele assentiu solenemente. “Estou desolado”, falou, “uma vida tão jovem, um rapaz tão bonito, e agora, infelizmente, é apenas meio homem. Temo que ele jamais possa ter filhos.”

     “Quer dizer”, perguntei, “que a bala o emasculou?” O cirurgião balançou a cabeça. “Até isso pode ter sido uma misericórdia, porque então ele poderia não sentir desejo por uma mulher. Não, ele sentirá toda a paixão, o amor, o desejo que qualquer rapaz pode sentir. Mas a destruição desses vasos sangüíneos vitais significa que...”

     “Eu não sou criança, M'sieur le Docteur”, falei, querendo poupar seu embaraço, mesmo sabendo, com pavor medonho, o que viria.

     “Então, madame, devo lhe dizer que ele jamais será capaz de consumar qualquer união com uma mulher, e assim criar um filho com ela.”

     “Então ele jamais poderá se casar?”, perguntei.

     O cirurgião deu de ombros.

     “Seria necessário uma mulher estranha e santa, com outro motivo poderoso, para aceitar tal união sem dimensão física”, disse ele. “Sinto realmente. Fiz o que fiz para salvar sua vida da hemorragia.”

     Eu mal podia me controlar para não chorar pela tragédia. Parecia impossível que um bandido imundo pudesse infligir um ferimento tão pavoroso num garoto no limiar da vida. Mesmo assim fui vê-lo. Ele estava pálido e fraco, mas acordado. Não tinham lhe dito. Agradeceu-me gentilmente por tê-lo ajudado no beco, insistindo em que eu salvara sua vida. Quando ouvi sua família chegando às pressas do trem de Rouen, parti.

     Jamais pensei em ver de novo meu jovem aristocrata, mas estava errada. Oito anos depois, belo como um deus grego, ele começou a freqüentar a ópera noite após noite, esperando uma palavra e um sorriso de uma certa cantora suplente. Mais tarde, descobrindo que ela estava grávida, sendo um homem bom, gentil e honrado, confessou tudo a ela, e, com plena concordância da moça, casou-se com ela, dando-lhe seu nome, seu título e uma aliança. E por doze anos tem dado ao filho todo o amor que um verdadeiro pai poderia dar.

     De modo que aí está a verdade, meu pobre Erik. Tente ser bom e gentil.

     De alguém que tentou ajudá-lo em sua dor,

     Um beijo agonizante, Antoinette Giry.

    

     Irei vê-la amanhã. Agora ela já deve saber. A mensagem para o hotel foi bastante clara. Ela reconheceria aquele macaco musical em qualquer lugar. O local é o de minha escolha, claro; a hora a minha opção. Será que ainda estará apavorada comigo? Creio que sim. Entretanto ela não saberá como eu também a temerei, temerei de seu poder em me negar de novo uma quantidade minúscula da felicidade que a maioria dos homens tem como ponto pacífico.

     Mas ainda que eu seja rejeitado outra vez, tudo mudou. Posso olhar deste ninho de águia sobre as cabeças da raça humana que tanto desprezo, mas agora posso dizer: você pode cuspir em mim, me desprezar; zombar de mim, escarnecer de mim; mas nada que possa fazer irá me ferir agora. Através da imundície e da chuva, através das lágrimas e através da dor, minha vida não foi em vão; EU TENHO UM FILHO.

    

     DIÁRIO PARTICULAR DE MEG GIRY

     HOTEL WALDORF-ASTORIA, MANHATTAN, 29 DE NOVEMBRO DE 1906

     QUERIDO DIÁRIO, FINALMENTE POSSO ME SENTAR EM PAZ E LHE contar meus pensamentos e minhas preocupações, porque é madrugada e todos estão na cama.

     Pierre dorme a sono solto, quieto como um cordeiro, eu espiei há dez minutos. Posso ouvir o padre Joe roncando em sua cama perto de onde estou sentada, e nem mesmo as paredes grossas deste hotel retêm seus roncos de caipira. E Madame finalmente dormiu também, depois de tomar um remédio para ajudá-la a encontrar o descanso. Pois em doze anos jamais a vi tão perturbada.

     Tudo teve a ver com um macaco de brinquedo que algum anônimo mandou para Pierre, aqui na suíte. Também havia um repórter, muito gentil e solícito (e que flertou comigo, com os olhos), mas não foi isso que perturbou tanto Madame. Foi o macaco de brinquedo. Quando ela o ouviu tocar a segunda musica — cujos sons entraram direto pela porta aberta do boudoir onde eu estava escovando seus cabelos — pareceu ficar possessa. Insistiu em descobrir de onde ele vinha. E quando o repórter, M. Bloom, descobriu e conseguiu uma visita, ela insistiu em ser deixada a sós. Tive de pedir ao jovem que se retirasse, e levar Pierre para a cama, sob protestos.

     Depois disso encontrei-a diante da penteadeira, olhando para o espelho mas sem fazer qualquer menção de completar a toilette. Por isso cancelei também o jantar no restaurante com o Sr. Hammerstein.

     Somente quando estávamos a sós pude lhe perguntar o que acontecia. Porque esta jornada a Nova York, que começara tão bem e tivera uma recepção tão fina no cais mais cedo, havia se transformado em algo sombrio e sinistro.

     Claro que eu também reconheci o estranho boneco macaco e a musica assombrosa que ele tocava, e aquilo trouxe de volta um maremoto de memórias apavorantes. Treze anos... era o que ela ficava repetindo enquanto conversávamos, e realmente fazia treze anos desde aqueles acontecimentos estranhos que culminaram na descida terrível ao porão mais baixo e mais escuro sob a Ópera de Paris. Mas apesar de eu estar lá naquela noite, e de ter tentado perguntar a Madame desde então, ela sempre manteve silêncio e eu jamais fiquei sabendo dos detalhes do relacionamento entre ela e a figura apavorante que nós, as garotas do coro, costumávamos chamar simplesmente de o Fantasma.

     Até esta noite, quando finalmente ela contou mais. Há treze anos ela esteve envolvida num escândalo realmente notável na Ópera de Paris, quando foi seqüestrada do centro do palco durante a apresentação de uma nova ópera, O triunfo de Don Juan, que desde então jamais foi reapresentada.

     Eu fazia parte do corpo de baile naquela noite, mas não estava no palco no momento em que as luzes se apagaram e ela desapareceu. Seu seqüestrador levou-a do palco até os porões mais profundos da Ópera, de onde mais tarde ela foi resgatada pelos gendarmes e pelo resto do elenco, comandados pelo Comissaire de Police que por acaso estava na platéia. Eu também estava lá, tremendo de medo enquanto descíamos com tochas acesas, passando por porão após porão até chegarmos à catacumba mais baixa junto ao lago subterrâneo. Esperávamos encontrar por fim aquele Fantasma apavorante, mas tudo que nós e os gendarmes encontramos foi madame, sozinha e tremendo feito vara verde, e mais tarde Raoul de Chagny, que descera antes de nós e que vira o Fantasma cara a cara.

     Havia uma cadeira, com uma capa jogada por cima, e nós pensamos que o monstro poderia estar escondido embaixo. Mas não, era apenas um macaco de brinquedo, com pratos de orquestra e uma caixa de música dentro. A polícia levou-o como prova, e jamais vi um igual, até esta noite.

     Naquela época ela estava sendo cortejada diariamente pelo jovem visconde Raoul de Chagny, e todas as garotas tinham inveja dela. Não fosse por sua beleza ela poderia ter atraído hostilidade também, devido à sua aparência, ao súbito salto para o estrelato e ao amor do solteiro mais cobiçado de Paris. Mas ninguém a odiava; todas nós a amávamos e estávamos deliciadas em tê-la de volta. Mas apesar de termos nos tornado íntimas com o passar dos anos, ela jamais mencionou o que lhe acontecera nas horas em que esteve desaparecida, e sua única explicação foi: “Raoul me resgatou.” De modo que qual era o significado do macaco de brinquedo?

     Esta noite eu sabia que não deveria lhe perguntar diretamente, por isso fiquei andando por ali e lhe trouxe um pouco de comida, que ela recusou. Quando a persuadi a tomar um remédio para dormir, ela ficou tonta e pela primeira vez soltou alguns detalhes daqueles acontecimentos estranhos.

     Contou que houvera outro homem, uma criatura estranha e evasiva que a assustava, fascinava, deixava-a espantada e a ajudava, mas que tinha um amor obsessivo por ela, que não poderia ser correspondido. Desde que fazia parte do corpo de baile eu ouvira histórias de um estranho fantasma que assombrava os porões da ópera e que tinha poderes espantosos, sendo capaz de andar sem ser visto e infligir sua vontade sobre os administradores caso não o obedecessem. O homem e sua lenda apavoravam a todas nós, mas eu jamais soube que ele amava tanto minha atual patroa. Perguntei sobre o macaco que tocava uma canção assombrosa.

     Ela disse que apenas uma vez vira tal criatura antes, e tenho certeza de que deve ter sido durante aquelas horas nos porões com o monstro, a mesma que eu própria encontrei sobre a cadeira vazia.

     Enquanto o sono a dominava, ela continuou repetindo que ele deve voltar, vivo e bem próximo, andando nos bastidores como sempre, um homem de gênio aterrorizante, tão apavorantemente feio quanto seu Raoul era belo. Aquele que ela rejeitara e que agora a atraíra a Nova York para enfrentá-la de novo.

     Farei tudo que puder para protegê-la, porque ela é minha amiga, além de minha patroa, e é boa e gentil. Mas agora estou amedrontada, porque há alguém nos espreitando, e temo por todos nós: por mim, pelo padre Joe, por Pierre e acima de tudo por ela, Madame.

     A última coisa que me disse antes de adormecer foi que, em nome de Pierre e Raoul, ela deve arranjar forças para recusá-lo de novo, porque está convencida de que em breve ele aparecerá e irá exigi-la novamente. Rezo para que ela tenha esta força, e rezo para que esses próximos dez dias passem depressa para que possamos voltar à segurança de Paris, longe desse lugar de macacos que tocam canções antigas e da presença invisível do Fantasma.

    

     DIÁRIO DE TAFFY JONES

     PARQUE STEEPLECHASE, CONEY ISLAND, Io DE DEZEMBRO DE 1906

     O MEU TRABALHO É ESTRANHO, E ALGUMAS PESSOAS DIRIAM QUE não é digno de um homem de alguma inteligência e uma boa dose de ambição. Por este motivo freqüentemente senti-me tentado a abrir mão dele e partir para outra coisa. Entretanto jamais fiz isso nos nove anos desde que fui empregado aqui no Steeplechase Park.

     Em parte porque o emprego oferece segurança para mim, minha mulher e meus filhos, com salário excelente e condições de vida confortáveis. E também porque simplesmente passei a gostar. Gosto do riso das crianças e do prazer de seus pais. Sinto satisfação na felicidade simples deles, no verão, e na paz e no silêncio contrastantes no inverno.

     Quanto às minhas condições devida, dificilmente poderiam ser mais confortáveis para um homem de minha classe. Minha moradia principal é um agradável chalé na comunidade respeitável de classe média de Brighton Beach, mais ou menos a um quilômetro e meio do local de trabalho. Além disso tenho um pequeno alojamento aqui, no coração do parque de diversões, onde posso ir descansar de vez em quando, mesmo no auge da temporada. Quanto ao salário, é generoso. Desde que, há três anos, negociei uma recompensa baseada numa minúscula fração no dinheiro da bilheteria, tenho podido levar para casa mais de cem dólares por semana.

     Sendo um homem de gostos modestos e não bebendo muito, consigo guardar boa parte, de modo que algum dia, daqui a não muitos anos, poderei me aposentar de tudo isso, com os cinco filhos fora de minhas mãos, e abrir caminho pelo mundo. Então pegarei minha Blodwyn e encontraremos uma pequena fazenda, talvez perto de um rio, de um lago ou mesmo do mar, onde eu possa plantar e pescar de acordo com meu humor, ir à capela aos domingos e ser um pilar da sociedade local. Por isso fico e faço meu serviço, que, segundo a maioria das pessoas, faço muito bem.

     Pois eu sou o Mestre de Diversões oficial do parque Steeplechase. O que significa que com meus sapatos extraordinariamente longos, as calças largas de um xadrez violento, o paletó com estrelas e listas e a cartola alta eu fico no portão de entrada do parque recebendo todos os visitantes. Mais: com minhas grandes suíças, o bigode retorcido para cima e o sorriso de boas-vindas alegre no rosto, faço com que entrem muitos que, de outro modo, teriam passado adiante.

     Usando meu megafone, grito o tempo todo: “Venham, venham, toda a diversão do parque, emoções e giros, coisas estranhas e maravilhosas para ver. Entrem, meus amigos, e divirtam-se como nunca...” E assim por diante. Ando de um lado para o outro em frente ao portão, cumprimentando e dando as boas-vindas às garotas bonitas com seus melhores vestidos de verão e aos rapazes que tentam com todo o empenho impressioná-las com paletós listados e chapéus de palhinha; e às famílias com as crianças gritando pelas muitas diversões especiais que eu lhes digo estarem esperando, assim que elas persuadirem seus pais a entrarem. E entram, pagando seus centavos e dólares na bilheteria, e de cada cinqüenta centavos um é para mim.

     Claro, é um serviço de verão, que dura de abril a setembro, quando os primeiros ventos frios chegam do Atlântico e nós fechamos para o inverno.

     Então posso pendurar no armário a roupa de Mestre de Diversões e abandonar o sotaque galés que os visitantes acham tão encantador, porque nasci na cidade do Brooklyn e jamais vi a terra de meu pai e dos pais dele. Então posso ir trabalhar com um terno normal e supervisionar o programa de inverno quando todos os espetáculos e os brinquedos são desmontados e guardados, quando o maquinário passa pela manutenção e é lubrificado, as partes gastas são substituídas, a madeira é lixada e repintada ou envernizada, os cavalos dos carrosséis recebem nova camada de dourado e as telas rasgadas são costuradas. Quando abril chega de novo, tudo está de volta ao seu lugar, e os portões são abertos nos primeiros dias quentes e ensolarados.

     De modo que foi com certo espanto que há dois dias recebi uma carta pessoal do Sr. George Tilyou, o cavalheiro dono do parque. Foi ele quem sonhou com a idéia, com um parceiro que só existe em boatos, e que o mundo jamais viu, pelo menos aqui embaixo. Foi a energia e a visão do Sr. T. que trouxe tudo isso à vida há nove anos, e desde então o parque o transformou num homem muito rico.

     Sua carta foi entregue em mãos, e claramente era de grande urgência. Explicava que no dia seguinte — que agora, claro, refere-se a ontem — um grupo particular visitaria o parque, que deveria ser aberto para essas pessoas. Disse que sabia que os brinquedos e os carrosséis não poderiam funcionar a tempo, mas enfatizou que a loja de brinquedos deveria estar aberta e funcionando, bem como o salão dos espelhos. E essa carta levou ao dia mais estranho que já vi no parque Steeplechase.

     As instruções do Sr. Tilyou para que a loja de brinquedos e o salão de espelhos devessem estar funcionando me colocaram numa tremenda enrascada. Porque os meus funcionários principais dessas áreas estão longe e de férias.

     E eles não são substituíveis facilmente. Os brinquedos mecânicos da loja, a especialidade daquele empório, não são apenas os mais sofisticados de toda a América, mas também muito complicados. É necessário um verdadeiro especialista para entendê-los e explicar seu funcionamento aos jovens que vêm, maravilhados, explorar e comprar. Certamente não sou esse especialista. Eu só poderia esperar o melhor — ou era o que pensava.

     Claro que o lugar é tremendamente frio no inverno, mas levei aquecedores a querosene para esquentar a loja na noite anterior à visita, de modo que ao amanhecer estivesse quente como num dia de verão. Depois tirei todos os panos que protegiam os brinquedos da poeira para revelar as fileiras de soldados com mecanismo de relógio, tamborileiros, bailarinas, acrobatas e animais que cantam, dançam e tocam. Mas era só a esse ponto que poderia chegar. Fizera todo o possível na loja de brinquedos às oito da manhã, antes da hora prevista para a chegada do grupo particular. Então aconteceu algo muito estranho.

     Virei-me e encontrei um rapaz me olhando. Não sei como ele havia entrado, e ia lhe dizer que o local estava fechado quando ele se ofereceu para operar a loja de brinquedos para mim. Como ele sabia que eu tinha visitantes para breve? Não falou. Só explicou que trabalhara ali uma vez e entendia a mecânica de todos os brinquedos. Bem, com a falta do encarregado normal, não tive escolha senão aceitar. Ele não se parecia com o Homem dos Brinquedos, todo jovial e receptivo, um dos prediletos das crianças.Tinha um rosto branco como osso, cabelos e olhos pretos e um chapéu preto e formal. Perguntei seu nome. Ele parou um segundo e disse: “Malta.” De modo que foi assim que eu o chamei até ele partir, ou melhor, desaparecer. Em breve direi mais.

     O Salão dos Espelhos era outra coisa. É um lugar tremendamente espantoso, e apesar de eu já ter estado lá dentro, fora do horário de funcionamento, nunca pude entender como funciona. A pessoa que o projetou deve ter sido uma espécie de gênio. Todos os visitantes saem, depois de um passeio virtual através das muitas salas de espelhos que mudam constantemente, convencidos de que viram coisas que não poderiam ter visto, e que não viram coisas que deveriam estar lá. Não é apenas uma casa de espelhos, mas de ilusão. Para o caso de, daqui a muitos anos, alguma alma ler este diário e sentir algum interesse em Coney Island como foi um dia, deixe-me explicar o Salão dos Espelhos.

     Do lado de fora parece uma construção simples, quadrada e baixa, com uma porta para entrar e sair. Uma vez lá dentro, o visitante vê dois corredores, um para a esquerda e outra para a direita. Não importa para que lado ele se vire. Ambas as paredes do corredor são cobertas de espelhos, e a passagem tem exatamente um metro e vinte de largura. Isso é importante, porque a parede interna não é contínua, mas feita de folhas verticais de espelhos com exatamente 2,40 metros de largura e 2,15 de altura. Cada placa está sobre um eixo vertical, de modo que, quando uma é virada por controle remoto, metade dela bloqueará completamente a passagem, mas revelará uma nova passagem que vai para o coração do prédio.

     Ele não tem opção a não ser seguir por essa nova passagem que, quando a placa se vira, a partir de um comando secreto, se transforma em mais e mais passagens, pequenas salas de espelho que aparecem e desaparecem. Mas a coisa fica pior. Porque, mais próximo do centro, muitas das folhas de 2,40 metros de largura têm não somente o eixo vertical, mas se apóiam em discos de 2,40 metros de diâmetro, que giram. Um visitante, parado sobre um disco semicircular, mas invisível, e de costas para um espelho, pode se ver virado em noventa, 180 ou 300 graus. Ele pensa que está parado, e que apenas os espelhos estão girando, mas para ele as outras pessoas subitamente aparecem e desaparecem; pequenas salas são criadas e depois se dissolvem; ele se dirige a um estranho que aparece à sua frente e percebe que está falando para a imagem de alguém atrás dele, ou ao seu lado.

     Maridos e esposas, amantes e namorados são separados em segundos, tropeçam para frente e são reunidos — mas com alguém muito diferente. Gritos de medo e risos ecoam no salão quando uma dúzia de jovens casais se juntam.

     Bom, tudo isso é controlado pelo homem dos espelhos, que sozinho entende como tudo aquilo funciona. Ele fica sentado numa cabine elevada, sobre a porta, e ao olhar para cima pode ver um espelho no teto, num ângulo que permite apenas a ele a visão de todo o chão. De modo que, com uma série de alavancas sob sua mão, ele pode criar e dissolver as passagens, os quartos e as ilusões. Meu problema é que o Sr. Tilyou insistira em que a visitante devesse, sob todas as circunstâncias, ser levada a visitar o Salão dos Espelhos, mas o Homem dos Espelhos estava de férias e não podia ser contatado.

     Eu precisava tentar entender os controles para conseguir operá-los para a diversão da dama, e por isso passei metade da noite dentro do prédio, com uma lanterna de parafina, testando e experimentando as alavancas até ter certeza de que podia guiar a dama por um rápido passeio lá dentro, e ao mesmo tempo mostrar-lhe a saída quando ela gritasse para ser liberada. Como todas as salas de espelhos são abertas no topo, o som das vozes é bastante claro.

     Às nove da manhã de ontem eu fizera o máximo possível e estava esperando os convidados pessoais do Sr. Tilyou. Eles chegaram logo antes das dez horas. Praticamente não havia trânsito na Surf Avenue, e quando vi a carruagem passando pelos escritórios da Brooklyn Eagle, pelas entradas do Luna Park e do Dreamland, vindo na minha direção pela avenida, presumi que fossem eles, já que era a carruagem elegantemente pintada que fica do lado de fora do Manhattan Beach Hotel para os que descem do trem elevado que vem da ponte de Brooklyn, ainda que haja poucos em dezembro.

     Enquanto ela se aproximava e o cocheiro puxava as rédeas, eu me adiantei segurando o megafone.

     — Bem-vindos, bem-vindos, senhoras e senhores, ao parque Steeplechase, o primeiro e melhor parque de diversões de Coney Island — gritei, mas até os cavalos me dirigiram um olhar como se espiassem um louco vestido com todos os seus atavios no final de novembro.

     O primeiro a sair da carruagem foi um rapaz que, por acaso, era repórter do New York American, um dos jornais sensacionalistas de Hearst. Muito cheio de si, ele aparentemente era o guia dos visitantes em Nova York. Em seguida saiu uma dama muito bonita, uma verdadeira aristocrata — ah, sim, sempre dá para saber — a quem o repórter apresentou como a viscondessa de Chagny, e uma das maiores cantoras de ópera do mundo. Claro que não precisava me dizer isso, porque eu lia o New York Times, sendo um homem de alguma educação, ainda que adquirida por mim mesmo. Só então entendi por que o Sr. Tilyou desejava ceder aos desejos daquela dama. Ela desceu ao deque, escorregadio por causa da chuva, apoiada no braço do repórter; baixei o megafone — não fazia mais sentido —, fiz-lhe uma reverência exagerada e dei-lhe de novo as boas-vindas ao meu domínio. Ela respondeu com um sorriso capaz de derreter o coração de pedra de Cader Idris e disse com um delicioso sotaque francês que lamentava perturbar minha hibernação de inverno.

     — Sou seu servo dedicado, madame — respondi, para mostrar que por trás de minhas roupas de Mestre de Diversões eu sabia os modos adequados de me dirigir às pessoas.

     Em seguida veio um menino de cerca de doze ou treze anos, um garoto de boa aparência que também era francês como a mãe, mas falava um inglês excelente. Estava segurando um macaco de brinquedo com caixa de música, do tipo que eu imediatamente percebi que devia ter vindo de nossa loja de brinquedos, o único lugar em toda a Nova York onde aquilo poderia ser encontrado. Por um instante fiquei preocupado: será que estaria quebrado? Será que tinham vindo para reclamar?

     O motivo do bom inglês do garoto surgiu por fim, um padre irlandês atarracado e aparentando estar em boa forma, com batina preta e chapéu largo.

     — Bom dia, senhor Mestre de Diversões — disse ele. — É um dia frio para fazermos o senhor se apresentar ao serviço.

     — Mas não suficientemente frio para gelar um caloroso coração irlandês — falei, para não ficar por baixo, porque, como um homem que freqüenta a chapei, normalmente não tenho muito a ver com padres papistas. Mas ele jogou a cabeça para trás e deu uma gargalhada, de modo que eu percebi que talvez aquele padre fosse um bom sujeito, afinal de contas. Assim, foi num clima alegre que guiei o grupo de quatro pessoas pelo deque, passando pelos portões, pela roleta aberta e indo em direção à loja de brinquedos, já que estava claro que era o que eles desejavam ver.

     Graças aos aquecedores fazia um calor agradável lá dentro, e o Sr. Malta esperava para recebê-los. De imediato o garoto, cujo nome por acaso era Pierre, ficou fascinado pelas inúmeras prateleiras de dançarinas, soldados, músicos, palhaços e bichos mecânicos que são a glória da loja de brinquedos Steeplechase, e que não eram encontrados em qualquer outra parte da cidade, talvez de todo o país. Ele corria de um lado para o outro pelos corredores, pedindo para ver todos. Mas sua mãe só estava interessada num tipo — a prateleira de macacos que tocavam música.

     Nós os encontramos numa prateleira dos fundos, bem atrás e de imediato ela pediu ao Sr. Malta para fazer com que eles tocassem.

     — Todos eles? — perguntou ele.

     — Um após o outro — disse ela com firmeza. E assim foi feito. Um após o outro as chaves das costas foram giradas e os macacos começaram a bater seus pratos e tocar sua música. “Yankee Doodle Dandy”, sempre a mesma. Fiquei perplexo. Será que ela queria um substituto? E todos não soavam do mesmo jeito? Então ela assentiu para o filho e ele pegou um canivete com uma chave de fenda. Malta e eu olhamos espantados enquanto o menino levantava um pedaço de pano nas costas do primeiro macaco, depois abria um pequeno painel e enfiava a mão dentro. Ele tirou um disco do tamanho de um dólar, virou-o e recolocou-o. Ergui as sobrancelhas para Malta e ele fez o mesmo. O macaco começou a tocar de novo. “Song of Dixie”.

     Claro, uma canção para o Norte e outra para o Sul.

     Logo ele recolocou o disco do jeito que estava, e partiu para o segundo. Mesmo resultado. Depois de dez tentativas sua mãe fez um sinal para que ele parasse. Malta começou a recolocar os brinquedos onde eles haviam estado antes. Sem dúvida nem mesmo ele sabia que havia duas músicas dentro do macaco. A viscondessa ficou muito pálida.

     — Ele esteve aqui — disse ela, a ninguém em particular. Depois para mim: — Quem projetou e confeccionou esses macacos?

     Dei de ombros, mostrando minha ignorância. Depois Malta disse:

     — Eles são feitos por uma pequena fábrica em Nova Jersey, todos. Mas sob licenciamento, e com projetos patenteados. Quanto à pessoa que os projetou, não sei.

     Então a dama perguntou:

     — Algum de vocês já viu um homem estranho aqui? Um homem de chapéu largo, com a maior parte do rosto coberta por uma máscara?

     Diante dessa última pergunta senti que o Sr. Malta, que estava ao meu lado, se enrijeceu como um aríete. Olhei para ele mas seu rosto estava imóvel como pedra. Por isso balancei a cabeça e expliquei que num parque de diversões há muitas máscaras: máscaras de palhaço, de monstros, do dia das bruxas. Mas um homem que usasse uma máscara o tempo todo, só para cobrir o rosto? Não, nunca. Nesse ponto ela suspirou e deu de ombros, depois seguiu pelos corredores entre as prateleiras, para olhar os outros brinquedos.

     Malta fez um sinal para o menino e o levou na outra direção, aparentemente para mostrar vários soldados que marchavam com mecanismo de relojoaria. Mas eu estava começando a ter dúvidas com relação àquele rapaz gélido, por isso fui atrás deles, mas mantendo uma estante de brinquedos entre nós. Para minha surpresa e irritação, o auxiliar inesperado e misterioso começou a interrogar o menino em voz baixa, e este respondia com bastante inocência.

     — Por que sua mãe veio a Nova York?

     — Bom, para cantar na ópera, senhor.

     — Sim. E não havia outro motivo? Não era para encontrar alguém em especial?

     — Não, senhor.

     — E por que ela está interessada em macacos que tocam música?

     — Só num macaco, monsieur, e numa canção antiga. Mas é aquele que ela está segurando agora. Nenhum outro macaco toca a música que ela está procurando.

     — Que triste. E seu papai, não está aqui?

     — Não senhor. Papai teve de ficar na França. Ele chega amanhã, de navio.

     — Excelente. E ele é realmente o seu papai?

     — Claro. Ele é casado com mamãe e eu sou o filho dele.

     Nesse ponto senti que o desaforo tinha ido longe demais e estava para intervir quando aconteceu algo estranho. A porta se abriu, deixando entrar um sopro de ar frio vindo do mar, e ali estava a figura atarracada do padre, que, pelo que eu ficara sabendo, chamava-se padre Kilfoyle. Sentindo o ar frio, o menino Pierre e o Sr. Malta apareceram por trás do canto de uma das estantes. O padre e o sujeito de rosto branco estavam separados por uns dez metros, e um olhou para o outro. De imediato o padre levantou a mão e fez o sinal-da-cruz sobre a testa e o peito. Como bom cristão, não sou dessas coisas, mas sei que para os católicos é um sinal de busca da proteção do Senhor. Então o padre disse:

     — Venha, Pierre — e estendeu a mão. Mas ele ainda estava olhando para o Sr. Malta.

     O claro confronto entre os dois homens, que seria o primeiro de dois que aconteceram naquele dia, lançara um frio tão grande quanto o vento do mar, de modo que, numa tentativa de restaurar o clima de alegria de uma hora anterior, falei:

     — Minha senhora, o orgulho e alegria de nosso parque é o Salão dos Espelhos, uma verdadeira maravilha do mundo. Por favor permita que eu lhe mostre, isso restaurará sua alegria. E o mestre Pierre pode se divertir com os outros brinquedos da loja, pois, como a senhora vê, ele está bastante encantado, como todos os jovens que vêm aqui.

     Ela pareceu indecisa, e eu me lembrei, com algum tremor, de como o Sr. Tilyou insistira na carta em que ela deveria ver os espelhos, ainda que eu não entendesse o motivo. Ela olhou para o irlandês, que assentiu e disse:

     — Claro, vá ver a maravilha do mundo. Eu cuido de Pierre, e nós temos tempo. Os ensaios só começam depois do almoço. — Assim, ela assentiu e saiu comigo. Se o episódio na loja de brinquedos foi estranho, o menino e sua mãe procurando uma canção que nenhum dos macacos podia tocar, o que veio em seguida foi realmente bizarro, e explica por que tenho dificuldade para descrever exatamente o que vi e ouvi naquele dia.

     Entramos juntos no salão, pela única porta, e a dama viu os corredores para a esquerda e para a direita. Fiz um gesto indicando que ela deveria escolher. Ela deu de ombros, deu um belo sorriso e virou para a direita. Subi para a caixa de controle e olhei para o espelho superior. Pude ver que ela chegara a um ponto na metade de uma das paredes laterais. Movi uma alavanca para virar um espelho e direcioná-la para o centro. Nada aconteceu. Tentei de novo. Ainda nada. Os controles não funcionavam. Pude ver que ela continuava movendo-se entre as paredes de espelho da passagem externa. Em seguida um espelho girou por vontade própria, bloqueando seu caminho e forçando-a para o centro. Mas eu não movera coisa alguma. Sem dúvida os controles estavam defeituosos, e em nome da segurança estava na hora de levá-la para fora antes que ela ficasse presa. Movi as alavancas para criar uma passagem reta de volta à porta. Nada aconteceu, mas lá dentro os labirintos de espelho estavam se movendo, como se por vontade própria ou de outra pessoa. Pude ver vinte imagens da moça enquanto mais e mais espelhos giravam, mas agora não podia saber quem era a pessoa de verdade e qual era a imagem.

     De repente ela parou, presa numa pequena sala no centro. Houve outro movimento numa parede daquela sala e eu captei o giro de uma capa, reproduzida vinte vezes, logo antes de desaparecer outra vez. Mas não era a capa da viscondessa, era preta, enquanto a dela era de veludo roxo. Vi seus olhos se arregalarem e sua mão ir até a boca. Ela estava olhando para alguma coisa ou alguém que estava de costas para o espelho, mas num ponto cego, que o meu espelho de observação não cobria. Então ela falou:

     — Ah, é você.

     Percebi que, de algum modo, outra pessoa não somente entrara no salão mas encontrara um caminho até o centro do labirinto sem ser observada por mim. Isso era impossível, até eu perceber que o ângulo do espelho inclinado acima e à minha frente fora alterado durante a noite, de modo a cobrir apenas metade do salão. A outra metade estava fora do campo de visão. Eu podia vê-la, mas não ao fantasma com quem ela falava. E podia ouvir a ambos, por isso tentei lembrar e anotar exatamente o que foi dito.

     Havia outra coisa. Essa mulher da França, rica, famosa, talentosa e imponente, estava tremendo. Senti o medo dela, mas era medo misturado a um fascínio pavoroso. Como demonstrou a conversa entreouvida depois, ela encontrara alguém do seu passado, alguém de quem pensava estar livre, alguém que um dia a mantivera numa teia... de quê? Medo, sim, isso eu podia sentir no ar. Amor? Talvez, um dia, há muito tempo. E espanto. Quem quer que ele fosse, quem quer que tivesse sido, ela continuava espantada com seu poder e sua personalidade. Por várias vezes pude vê-la estremecer, no entanto ele não fez qualquer ameaça que eu pudesse ouvir. Mas foi isso que disseram:

     ELE: Claro. Você suspeitava de outra pessoa?

     ELA: Depois do macaco, não. Ouvir de novo “Mascarada”... faz tanto tempo.

     ELE: Treze longos anos. Você pensou em mim?

     ELA: Claro, meu Mestre da Música. Mas eu pensava...

     ELE: Que eu estivesse morto? Não, Christine, meu amor, não eu.

     ELA: Meu amor? Você ainda...?

     ELE: Sempre e para sempre, até morrer. No espírito você ainda é minha, Christine. Eu criei a estrela da música, mas não pude mantê-la.

     ELA: Quando você desapareceu, pensei que tinha sumido para sempre. Eu me casei com Raoul...

     ELE: Eu sei. Segui cada passo, cada movimento, cada triunfo.

     ELA: Foi difícil para você, Erik?

     ELE: Bastante. Minha estrada sempre foi mais dura do que você jamais saberá.

     ELA: Você me trouxe aqui? A Ópera... é sua?

     ELE: Sim. Toda minha, e mais, muito mais. Uma riqueza capaz de comprar metade da França.

     ELA: Por que, Erik, por que você faz isso? Não poderia me deixar em paz? O que quer de mim?

     ELE: Fique comigo.

     ELA: Não posso.

     ELE: Fique comigo, Christine. Os tempos mudaram. Eu posso lhe oferecer cada teatro de ópera do mundo. Tudo que você possa pedir.

     ELA: Não posso. Eu amo Raoul. Tente aceitar isso. Tudo que você fez por mim eu lembro, e com gratidão. Mas meu coração está em outro lugar, sempre estará. Você não pode entender isso, não pode aceitar?

     Nesse ponto houve uma longa pausa como se o pretendente que fora recusado tentasse se recuperar do sofrimento. Quando ele voltou a falar havia um tremor na voz.

     ELE: Muito bem. Devo aceitar. Por que não? Meu coração foi partido tantas vezes. Mas há outra coisa. Deixe-me o meu menino.

     ELA: Seu... menino...?

     ELE: Meu filho, nosso filho, Pierre.

     A mulher, que eu ainda podia ver — na verdade refletida uma dúzia de vezes — ficou branca como um lençol e cobriu o rosto com as duas mãos. Balançou durante vários segundos, e eu temi que ela fosse desmaiar. Eu estava para gritar, mas o grito morreu na garganta. Eu era uma testemunha muda e impotente de algo que não podia entender. Por fim ela retirou as mãos e falou num sussurro:

     ELA: Quem lhe contou?

     ELE: Madame Giry.

     ELA: Por que, por que ela fez isso?

     ELE: Ela estava morrendo. Queria compartilhar o segredo de tantos anos.

     ELA: Ela mentiu.

     ELE: Não. Ela cuidou de Raoul depois do tiro que ele recebeu no beco.

     ELA: Ele é um homem bom, gentil. Ele me amou e criou Pierre como seu filho. Pierre não sabe.

     ELE: Raoul sabe. Você sabe. Eu sei. Deixe-me o meu filho.

     ELA: Não posso, Erik. Logo ele fará treze anos. Dentro de mais cinco anos será um homem. Então eu contarei. Você tem minha palavra, Erik. Quando ele fizer dezoito anos. Por enquanto não, ele não está preparado. Ainda precisa de mim. Quando ele souber, escolherá.

     ELE: Eu tenho sua palavra, Christine? Se eu esperar cinco anos...

     ELA: Você terá o seu filho. Dentro de cinco anos. Se você puder ganhá-lo.

     ELE: Então esperarei. Esperei tanto por um minúsculo fragmento da felicidade que a maioria dos homens pode conhecer cedo, no colo do pai. Mais cinco anos... eu espero.

     ELA: Obrigada, Erik. Dentro de três dias cantarei para você de novo. Você estará lá?

     ELE: Claro. Mais perto do que você imagina.

     ELA: Então cantarei para você como jamais cantei antes.

     Bom, nesse ponto vi algo que quase me fez cair da cabine de controle. De algum modo, um segundo homem conseguira se esgueirar para dentro do salão. Como fez isso, jamais saberei, mas não foi através da única porta que eu conheço, porque esta ficava logo abaixo de mim e não fora usada. Ele deve ter entrado pela passagem secreta que apenas o projetista do lugar poderia conhecer, e que jamais fora revelada a qualquer outra pessoa. A princípio pensei que poderia estar vendo um reflexo do homem que falava, mas lembrei-me do giro da capa, e essa figura, também de preto, não usava capa, e sim uma sobrecasaca preta e justa. Ele se encontrava numa das passagens internas e eu vi que estava agachado com o ouvido na fenda que separava dois espelhos ao lado. Do outro lado ficava a sala interna onde a dama e seu estranho ex-amante tinham conversado.

     Ele pareceu sentir meus olhos, porque se virou de súbito, olhou ao redor e depois para cima. O espelho de observação inclinado revelou-o para mim e me revelou para ele. O cabelo era tão preto quanto o paletó, e o rosto tão branco quanto a camisa. Era o desgraçado que se chamava de Malta. Dois olhos chamejantes me fixaram durante um segundo, depois ele saiu, correndo pelos corredores que outras pessoas achavam tão assustadores. Desci da cabine de imediato na tentativa de pará-lo, saí e rodeei o prédio. Ele estava bem adiante de mim, tendo escapado através da saída secreta, e ia para o portão. Com os meus sapatos enormes e desajeitados de Mestre de Diversões, correr estava fora de questão.

     Havia uma segunda carruagem estacionada perto do portão, uma caleça fechada, e foi para lá que a figura correu, saltando para dentro e depois batendo a porta enquanto a carruagem partia. Sem dúvida era um veículo particular, já que não existem daqueles para serem alugados em Coney Island.

     Mas, antes de alcançá-la, ele teve de passar por duas pessoas. A mais próxima do Salão dos Espelhos era o jovem repórter, e, enquanto passava, a figura de sobrecasaca soltou uma espécie de grito que eu não captei, o som foi levado para longe pelo vento do mar. O repórter ergueu os olhos em surpresa mas não fez qualquer gesto para impedir o sujeito.

     Logo antes do portão estava a figura do padre, que levara o menino Pierre de volta à carruagem, fechara-o lá dentro e estava voltando para encontrar sua patroa. Vi o fugitivo parar durante um segundo e olhar o padre, que o encarou de volta, depois correu para o seu veículo.

     Agora meus nervos estavam totalmente esfrangalhados. A busca estranha entre os macacos por uma música que nenhum deles podia tocar, depois o comportamento ainda mais estranho de um homem que se chamava de Malta interrogando aquela criança inofensiva, o confronto cheio de ódio entre Malta e o padre católico, e depois a catástrofe no salão dos espelhos, com todas as alavancas fora do meu controle, as confissões terríveis que eu ouvira da prima-dona e de um homem que sem dúvida fora seu amante e era pai de seu filho, e finalmente a visão de Malta bisbilhotando os dois... Era demais. Na minha perplexidade esqueci completamente que a pobre madame de Chagny ainda estava presa dentro do labirinto de paredes espelhadas.

     Quando me lembrei disso, corri de volta para libertá-la. Todos os controles estavam miraculosamente funcionando de novo, e logo ela saiu, numa palidez mortal e em silêncio, e não era para menos. Mas me agradeceu educadamente pelo trabalho, deixou uma gorjeta generosa e entrou na carruagem com o repórter, o padre e o filho. Acompanhei-a até o portão.

     Quando voltei pela última vez ao Salão dos Espelhos recebi o choque da minha vida. Parado junto ao prédio, olhando para a carruagem que levava seu filho, estava o homem. Rodeei o canto da construção e ali estava ele. Sem dúvida; a capa preta o revelava. O outro protagonista dos acontecimentos estranhos que tinham ocorrido dentro do labirinto. Mas foi seu rosto que fez meu sangue gelar. Um rosto deformado, três quartos coberto por uma máscara clara, e atrás da máscara olhos incendiados que chamejavam de fúria. Aquele era um homem que fora contrariado, um homem que não estava acostumado a que atravessassem seu caminho, e que se tornara perigoso. Ele pareceu não me ouvir, porque murmurou algo num rosnado baixo:

     — Cinco anos. Cinco anos. Nunca. Ele é meu e eu o terei comigo.

     Ele se virou e sumiu, passando por entre duas barracas e uma lona. Mais tarde encontrei um ponto na cerca da Surf Avenue onde três tapumes tinham sido retirados. Não o vi depois disso, e nunca mais vi de novo o bisbilhoteiro.

     Mais tarde deliberei se haveria algo que eu devesse fazer. Deveria alertar a viscondessa de que o homem estranho parecia não ter a intenção de esperar cinco anos pelo filho? Ou será que ele se acalmaria quando a raiva esfriasse? O que eu ouvira era uma questão familiar, e sem dúvida seria resolvida. Foi o que falei a mim mesmo. Mas não era à toa que havia sangue celta nas minhas veias, e enquanto escrevo todas essas coisas que vi e ouvi aqui ontem paira sobre mim uma terrível apreensão quanto ao futuro.

 

     A ORAÇÃO E O TRANSE DE JOSEPH KILFOYLE

     CATEDRAL DE ST PATRICK, NOVA YORK, 2 DE DEZEMBRO DE 1906

     SENHOR, TENDE PIEDADE, CRISTO, TENDE PIEDADE. MUITAS VEZES clamei por Vós. Mais do que posso lembrar. Ao calor do sol e na escuridão da noite. Na missa em Vossa casa e na privacidade de meu quarto. Algumas vezes cheguei a pensar que Vós iríeis responder. Parecia ouvir Vossa voz, parecia sentir Vossa orientação. Seria tolice, ilusão? Será que de rato, na oração, nós comungamos convosco? Ou será que estamos ouvindo a nós mesmos?

     Perdoai minha dúvida, Senhor. Busco com todo o esforço a fé verdadeira. Ouvi-me agora, imploro. Porque estou perplexo e apavorado. Não é o erudito, e sim o menino de uma fazenda irlandesa onde eu nasci. Por favor, ouvi e ajudai.

     — Estou aqui, Joseph. O que perturba sua paz interior?

     — Senhor, pela primeira vez na vida acho que estou realmente apavorado. Tenho medo mas não sei por quê.

     — Medo? Isto é algo que eu conheço pessoalmente.

     — Vós, senhor? Certamente que não.

     — Pelo contrário. O que você acha que senti quando amarraram meus pulsos acima de mim ao anel de flagelação no muro do templo?

     — Eu simplesmente não imaginava que Vós pudésseis sentir medo.

     — Então eu era um homem, Joseph. Com todas as fraquezas e falhas de um homem. Era assim. E um homem pode sentir grande medo. De modo que quando me mostraram o flagelo, com as fitas de couro cheias de nós e fragmentos de ferro e chumbo, e me disseram para que serviria, gritei de medo.

     — Nunca pensei nisso assim, Senhor. Isso nunca foi relatado.

     — Uma pequena misericórdia. Por que você tem medo?

     — Sinto que ao meu redor, nesta cidade temível, acontece algo que não posso entender.

     — Então simpatizo com você. O medo do que você pode entender já é ruim, mas tem seus limites. O outro medo é pior. O que quer de mim?

     — Preciso de Vossa fortaleza, de Vossa força.

     — Você já as tem, Joseph. Você as herdou quando tomou meus votos e usou minha vestimenta.

     — Então, sem dúvida não sou digno deles, Senhor, porque me escapam agora. Temo que Vós tenhais escolhido um pobre vaso quando escolhestes o menino de Mullingar.

     — Na verdade você me escolheu. Mas não importa. Meu vaso se rachou e me deixou escapar até agora?

     — Eu pequei, claro.

     — Claro. Quem não peca? Você sente luxúria por Christine de Chagny.

     — Ela é uma mulher linda, Senhor, e eu sou um homem, também.

     — Eu sei. Eu já fui, uma vez. Isso pode ser muito difícil. Você confessou e foi perdoado?

     — Sim.

     — Bom, pensamentos são pensamentos. Você não fez nada além?

     — Não, Senhor. Apenas pensamentos.

     — Bem, talvez eu possa manter a confiança em meu menino fazendeiro um pouco mais. E quanto a seus medos sem explicação?

     — Há um homem nesta cidade, um homem estranho. No dia em que chegamos eu olhei do cais e vi uma figura no teto de um armazém, olhando para baixo. Ele usava uma máscara. Ontem nós fomos a Coney Island; Christine, o jovem Pierre, um repórter local e eu. Christine foi a uma brincadeira do parque de diversões conhecida como Salão dos Espelhos. Ontem à noite ela pediu a confissão e me contou...

     — Creio que você tem permissão de me contar, já que estou dentro de sua cabeça. Prossiga.

     — Que ela o havia encontrado lá dentro. Descreveu-o. Devia ser o mesmo homem, o mesmo que ela conheceu há anos em Paris. Um homem muito desfigurado, que agora ficou rico e poderoso aqui em Nova York.

     — Eu o conheço. Seu nome é Erik. Ele não teve uma vida fácil. Agora cultua outro deus.

     — Não existem outros deuses, Senhor.

     — Bela idéia, mas existem muitos. Deuses feitos pelo homem.

     — Ah, e o dele?

     — Ele é servo de Mamon, o deus da cobiça e do ouro.

     — Eu gostaria muito de trazê-lo de volta para Vós.

     — Muito louvável. E por quê?

     — Ele parece ter uma riqueza enorme, acima dos sonhos normais.

     — Joseph, você deveria estar no negócio das almas, e não do ouro. Você sente luxúria pela fortuna dele?

     — Não para mim, senhor. Para outra coisa.

     — E o que será?

     — Enquanto estive aqui, andei durante a noite pelo distrito do Lower East Side, a pouco mais de um quilômetro desta catedral. É um lugar de causar pasmo, um inferno na terra. Há uma pobreza sem fim, doença, imundície, fedor e desespero. Dessas coisas surgem cada vício e cada crime. Crianças são usadas como prostitutas, meninos e meninas...

     — Estou ouvindo uma sugestão de repúdio, Joseph, por eu permitir essas coisas?

     — Eu não poderia Vos repudiar, Senhor.

     — Ah, não seja modesto demais. Isso acontece todos os dias.

     — Mas eu não posso entender.

     — Deixe-me tentar explicar. Jamais dei ao homem uma garantia de perfeição, apenas a chance disso. Este era o significado. O homem tem a opção e a chance, mas jamais a coerção. Deixei inviolada sua liberdade de escolha. Alguns optam por tentar o caminho que eu apontei; a maioria prefere os prazeres agora, aqui. Para muitos isso significa infligir dor em outros para diversão ou enriquecimento. Isso é observado, claro, mas não deve ser mudado.

     — Mas por que, Senhor, o homem não pode ser uma criatura melhor?

     — Olhe, Joseph, se eu estendesse a mão e tocasse o homem na testa, e o tornasse perfeito, como seria a vida na terra? Sem tristeza, e portanto sem alegria. Sem lágrimas nem sorrisos. Sem dor nem alívio. Sem prisão nem liberdade. Sem fracasso nem triunfo. Sem grosseria e sem cortesia. Sem intolerância ou tolerância. Sem desespero ou exultação. Sem pecado e certamente sem redenção. Eu simplesmente criaria aqui na terra um paraíso de bênção desinteressante, o que tornaria um tanto redundante meu reino do céu. E este não é o sentido da coisa. De modo que o homem deve ter sua escolha, até que eu o chame para casa.

     — Suponho que sim, Senhor. Mas gostaria tremendamente de trazer esse Erik e toda a sua riqueza para serem postos a um serviço melhor.

     — Talvez você faça isso.

     — Mas precisa haver um meio.

     — Claro, sempre há um meio.

     — Mas não consigo vê-lo, Senhor.

     — Você leu minhas palavras. Não apreendeu coisa alguma?

     — Muito pouco, Senhor. Ajudai-me. Por favor.

     — O meio é o amor, Joseph. O meio é sempre o amor.

     — Mas ele ama Christine de Chagny.

     — E então?

     — Devo encorajá-la a romper seus votos de matrimônio?

     — Eu não disse isso.

     — Então não entendo.

     — Entenderá, Joseph, entenderá. Algumas vezes é preciso um pouco de paciência. Então, esse Erik o amedronta?

     — Não, senhor, ele não. Quando eu o vi no telhado, e mais tarde vi sua figura fugindo do salão dos espelhos, senti que havia algo nele: um sentimento de raiva, desespero, de dor. Mas não de mal. Era o outro.

     — Conte-me do outro.

     — Quando chegamos ao parque de diversões de Coney Island, Christine e Pierre foram à loja de brinquedos com o Mestre de Diversões. Eu fiquei do lado de fora para andar um pouco junto ao mar. Quando me juntei a eles na loja, Pierre estava com um rapaz que lhe mostrava os brinquedos e sussurrava em seu ouvido. Um rosto branco como ossos, olhos e cabelos negros, uma sobrecasaca preta. Eu achei que ele fosse o gerente da loja, mas o Mestre de Diversões me disse mais tarde que nunca o vira antes daquela manhã.

     — E você não gostou dele, Joseph?

     — Gostar não era bem o caso, Senhor. Havia algo nele, um frio maior que o do mar. Seria apenas minha imaginação da Hibérnia? Havia nele uma aura de malignidade que me fez fazer o Vosso sinal, instintivamente. Afastei o menino dele e ele me olhou com um desprezo sombrio. Foi a primeira vez em que o vi naquele dia.

     — E a segunda?

     — Eu ia voltando para a carruagem onde havia colocado o menino. Cerca de uma hora depois. Sabia que Christine tinha ido com o Mestre de Diversões visitar o local chamado de Salão dos Espelhos. Uma pequena porta na lateral do prédio se abriu, e ele saiu correndo. Passou por um jornalista que estava à minha frente e, enquanto vinha em minha direção para se lançar numa pequena carruagem e desaparecer, ele parou e me olhou de novo. Foi como na primeira vez; senti que o dia, já frio, baixara mais dez graus. Estremeci. Quem era ele? O que ele quer?

     — Creio que você está falando de Darius. Também quer redimi-lo?

     — Não creio que possa.

     — Você está certo. Ele vendeu a alma a Mamon, é servo eterno do deus do ouro, até vir a mim. Foi ele quem levou Erik ao seu deus. Mas Darius não tem amor. Esta é a diferença.

     — Mas ele ama o ouro, Senhor.

     — Não, ele cultua o ouro. Há uma diferença. Erik também cultua o ouro, mas em algum lugar, bem no fundo de sua alma torturada, ele já conheceu o amor, e poderia conhecer de novo.

     — Então eu ainda poderia ganhá-lo?

     — Joseph, nenhum homem que possa conhecer o amor verdadeiro, a não ser o amor apenas por si próprio, está além da redenção.

     — Mas, como Darius, esse Erik ama apenas o ouro, a si próprio e a mulher de outro homem. Senhor, eu não entendo.

     — Você está errado, Joseph. Ele gosta do ouro, odeia a si próprio e ama uma mulher que sabe que não pode ter. Preciso ir.

     — Ficai comigo, Senhor. Um pouco mais.

     — Não posso. Há uma guerra terrível nos Balcãs. Haverá mais almas para receber esta noite.

     — Então onde encontrarei essa chave? A chave além do ouro, do eu, e de uma mulher que ele não pode ter?

     — Eu lhe disse, Joseph. Procure outro amor, maior.

    

     A CRÍTICA DE GAYLORD SPRIGGS

     NEW YORK TIMES, 4 DE DEZEMBRO DE 1906

     BOM, O ALARDEADO NOVO TEATRO DE ÓPERA DE MANHATTAN, do Sr. Oscar Hammerstein, foi inaugurado ontem à noite no que só pode ser descrito como um triunfo sem mácula. Se uma outra guerra civil fosse começar em nosso querido país, ela deveria ter resultado da luta pelos lugares na platéia, enquanto toda a Nova York era sacudida pelo espetáculo que víamos.

     Exatamente a quantia que algumas das nossas grandes dinastias financeiras e culturais pagaram pelos seus camarotes e pelos lugares comuns nos balcões só pode ser conjecturada, mas certamente os preços devem ter sido astronômicos.

     O Manhattan, como agora devemos chamá-lo para diferenciar do Metropolitan, do outro lado da cidade, é realmente um edifício suntuoso, ricamente adornado, com uma área de recepção digna de envergonhar o foyer exíguo do Met. E ali, na meia hora antes que a cortina subisse, vi nomes conhecidos como lendas por toda a América, juntando-se como colegiais enquanto os poucos sortudos eram acompanhados aos seus camarotes particulares.

     Lá estavam os Mellon, os Vanderbilt, os Rockefeller, os Gould, os Whitney e os próprios Pierpoint Morgan. Presente entre eles, anfitrião afável de todos nós, estava o homem que empregou uma gigantesca fortuna, ímpeto e energia sem limites na criação do Manhattan contra todas as dificuldades: o czar dos charutos Oscar Hammerstein. Ainda persiste o boato de que por trás do Sr. H. há um magnata ainda mais rico, o financista fantasmagórico que ninguém jamais viu. Mas, se tal pessoa existe, não estava em qualquer lugar para ser vista.

     A opulência do enorme pórtico e o luxo da área de recepção eram impressionantes, como também eram os ornatos em ouro, carmim e roxo do auditório surpreendentemente pequeno e íntimo. Mas e quanto à qualidade da nova ópera e da cantora que todos viemos ouvir? Ambas eram de um nível artístico e emocional que não consigo recordar em trinta anos.

     Os leitores desta humilde coluna saberão que há apenas sete semanas o Sr. Hammerstein tomou a decisão extraordinária de deixar de lado a obra-prima de Bellini, Puritani, para sua recita inaugural e, em vez disso, assumir o risco assustador de apresentar uma ópera totalmente nova, no estilo moderno, de um compositor americano desconhecido (e espantosamente ainda anônimo). Que aposta extraordinária! Terá sido recompensado? Cem por cento.

     Em primeiro lugar, O anjo de Shiloh garantiu a presença da viscondessa Christine de Chagny, de Paris, uma beldade com uma voz que ontem à noite eclipsou qualquer outra em minha lembrança, e creio que ouvi as melhores do mundo nos últimos trinta anos. Em segundo lugar, a peça em si é uma obra prima de simplicidade e emoção que não deixou um olho seco em toda a casa.

     A história se passa em nossa guerra civil, há apenas quarenta anos, e portanto é de transparência imediata para qualquer americano do Norte ou do Sul. No primeiro ato encontramos o vistoso jovem advogado de Connecticut, Miles Regan, perdidamente apaixonado por Eugenie Delarue, a bela filha de um rico fazendeiro da Virgínia. O papel masculino foi do tenor americano em ascensão David Melrose, até que aconteceu algo tremendamente estranho — mas falarei disso mais tarde. O casal ficou noivo e trocou alianças de ouro. Madame de Chagny esteve magnífica como a beldade sulista, e seu simples prazer de menina diante da proposta do homem que ela ama, expresso na ária “Com esta aliança para sempre”, contagiou toda a platéia.

     O dono da fazenda vizinha, Joshua Howard, magnificamente cantado por Alessandra Gonci, também fora um pretendente à mão dela, mas aceita a rejeição e o sofrimento como cavalheiro que é. Mas as nuvens da guerra estão pairando, e no final do ato os primeiros canhões disparam em Fort Sumter, e a União está em guerra com a Confederação. Os jovens amantes precisam se separar. Regan explica que não tem escolha a não ser voltar a Connecticut e lutar pelo Norte. A senhorita Delarue sabe que deve ficar com a família, todos dedicados ao Sul. O ato termina com um dueto de partir o coração enquanto os amantes se separam, sem saber se algum dia irão se encontrar de novo.

     No segundo ato dois anos se passaram, e Eugenie Delarue trabalha como enfermeira voluntária num hospital logo depois da sangrenta Batalha de Shiloh. Vemos sua dedicação altruísta aos rapazes terrivelmente feridos de ambos os lados, uma ex-beldade protegida, que agora é exposta a toda imundície e à dor de um hospital na frente de batalha. Numa ária simples e absolutamente comovente ela pergunta: “Por que esses jovens precisam morrer?”

     Seu ex-vizinho e pretendente é agora o coronel Howard, comandante do regimento que ocupa o local onde está o hospital. Ele retoma a corte, procurando persuadi-la a esquecer o noivo perdido no Exército da União e a aceitá-lo. Ela está meio decidida a fazê-lo quando chega um novo soldado necessitando de cuidados médicos. É um oficial da União, terrivelmente ferido quando um cartucho de pólvora explodiu em seu rosto. O rosto está coberto por gaze, sem dúvida arruinado e sem conserto. Enquanto ele permanece inconsciente, a Srta. Delarue reconhece a aliança de ouro no dedo, a mesma que ela ofereceu há dois anos. O trágico oficial é realmente o capitão Regan, ainda cantado por David Melrose. Quando ele acorda, rapidamente reconhece a noiva, mas não percebe que foi reconhecido enquanto dormia. Há uma cena soberbamente irônica em que, na cama e desamparado, ele testemunha o coronel Howard entrar na enfermaria e mais uma vez pressionar a Srta. Delarue, tentando convencê-la de que seu amante já deve estar morto, quando ela e nós sabemos que ele está a pouco mais de um metro de distância. Esse ato termina quando o capitão Regan percebe que ela sabe quem ele é por trás das bandagens e, vendo-se pela primeira vez no espelho, percebe que o rosto que já fora bonito está agora arruinado. Tenta arrancar um revólver de um guarda e acabar com a própria vida, mas o soldado confederado e dois prisioneiros da União, também pacientes, seguram-no.

     O terceiro ato é o clímax, e acaba sendo tremendamente comovente. O coronel Howard anuncia que ficou sabendo que o ex-noivo de Eugenie é ninguém menos do que o líder dos temidos Regans Raiders, que fizeram emboscadas devastadoras por trás das linhas. Como tal, depois de ser capturado, ele será submetido a uma corte marcial e fuzilado.

     Agora Eugenie Delarue está num dilema terrível. Será que deve trair a Confederação escondendo o que sabe, ou deve denunciar o homem que ainda ama? Nesse ponto é anunciado um breve armistício para permitir uma troca de prisioneiros que sejam considerados permanentemente fora de combate. O homem de rosto destruído se qualifica para ser incluído na troca; do Norte chegam carroças cobertas, cheias de soldados confederados, e para pegar seus próprios soldados mutilados que estão nas mãos do Sul.

     Neste ponto devo descrever os acontecimentos espantosos que ocorreram nos bastidores durante o entreato. Parece (e minha fonte tem bastante certeza disso) que o Sr. Melrose borrifou um remédio na garganta para aliviar a laringe. A substância devia estar contaminada de algum modo, porque dentro de segundos ele estava crocitando como um sapo. Desastre! A cortina já ia ser levantada. Então apareceu um substituto, miraculosamente maquiado para o papel. O rosto envolto em bandagens, a tempo de cobrir a falha.

     Normalmente isso teria sido um desapontamento terrível para a platéia. Mas nesse caso todos os deuses da ópera deviam estar sorrindo para o Sr. Hammerstein. O substituto, não citado no programa e ainda desconhecido para mim, cantou numa voz de tenor comparável à do próprio grande Signor Gonci.

     A Srta. Delarue decidiu que, como o capitão Regan jamais lutaria de novo, ela não tinha necessidade de revelar o que sabia sobre o homem de rosto coberto. Enquanto as carroças se preparavam para ir para o Norte, o coronel Howard ficou sabendo que o procurado líder dos Regans Raiders fora ferido, e presumivelmente estava por trás das linhas confederadas. Foi divulgada uma recompensa por sua captura. Cada soldado da União que partisse para o Norte era comparado com o desenho do rosto de Regan. O que deu em nada, já que agora o capitão Regan não tinha rosto.

     Enquanto os soldados destinados a serem repatriados para o Norte esperam durante a noite pela partida ao amanhecer, assistimos a um interlúdio encantador. O coronel Howard, o próprio grande Gonci, fora auxiliado durante toda a ação por um jovem ajudante de campo, um garoto com no máximo treze anos. Até esse ponto ele não emitiu qualquer som. Mas enquanto um dos soldados da União tenta tocar uma canção com sua rabeca, o menino pega o instrumento em silêncio e toca uma linda melodia, como se estivesse segurando um Stradivarius. Um dos feridos pergunta se ele pode cantar a canção; respondendo a isso o garoto deixa a rabeca de lado e nos dá uma ária, num agudo de tamanha clareza que, eu sei, provocou um nó na garganta de quase todos os presentes. E quando estudei o programa procurando o seu nome, vejam! Por acaso era ninguém menos do que o Mestre Pierre de Chagny, filho da diva. Ou seja, filho de peixe...

     Na cena de separação, com uma emoção bastante requintada, a Srta. Delarue e o seu noivo da União se despedem. Madame de Chagny já cantara com uma pureza de voz normalmente reservada aos anjos. Mas agora ela ascendeu a alturas novas e aparentemente inalcançáveis de beleza vocal, de um tipo que eu nunca ouvira. Enquanto começava a ária “Será que jamais nos encontraremos de novo?” ela parecia estar cantando com o próprio coração, e enquanto o substituto desconhecido lhe devolvia o anel que ela dera, com as palavras: “Tome de volta esta aliança”, vi mil quadrados de cambraia voarem até o rosto das damas de Nova York.

     Foi uma noite que permanecerá no coração e nas mentes de todos os que estiveram lá. Juro que vi o maestro Campagnini, normalmente de uma disciplina feroz, banhado em lágrimas enquanto Madame de Chagny, sozinha no palco e iluminada apenas por luzes de vela na escura enfermaria do hospital, terminava a ópera com “Oh, guerra cruel”.

     Houve 37 ovações de pé com chamadas ao palco, e isso antes de eu ter de sair para descobrir o que acontecera com o Mestre Melrose e seu remédio para a garganta. Infelizmente ele partira em lágrimas.

     Ainda que o resto da companhia estivesse soberba, e a orquestra, sob o comando do Sr. Campagnini, fosse nada menos do que era de esperar, a noite deve pertencer à jovem dama de Paris. Sua beleza e seu encanto já deixaram todos os funcionários do Waldorf-Astoria literalmente a seus pés, e agora a mágica impoluta daquela voz conquistou cada amante de ópera que teve a sorte de estar no Manhattan ontem à noite.

     Que tragédia ela precisar partir tão rápido! Ela cantará para nós mais cinco noites, e em seguida deve partir para a Europa para cumprir compromissos no Covent Garden antes do Natal. Seu lugar será ocupado no início do mês que vem por Dame Nellie Melba, o segundo triunfo de Oscar Hammerstein sobre seus rivais do outro lado da cidade. Ela também é uma lenda viva, e também estará cantando pela primeira vez em Nova York, mas precisará procurar seus louros, porque ninguém que estivesse presente ontem à noite jamais esquecerá La Divina.

     E quanto ao Metropolitan? Dentre os grandes dinastas cuja riqueza apóia o Met e que eu creio ter percebido, houve, misturado ao deleite diante da nova obra-prima, alguns olhares afiados de uns para os outros, como se perguntassem: e agora? Sem dúvida, apesar do auditório menor, o Manhattan tem melhores instalações de recepção, um palco gigantesco, a última tecnologia e cenários bastante impressionantes. Se o Sr. Hammerstein puder continuar nos oferecendo a qualidade que vimos ontem à noite, o Met terá de enfiar a mão mais fundo no bolso para igualá-lo.

    

     O RELATÓRIO DE AMY FONTAINE

     COLUNA SOCIAL, NEW YORK WORLD, 4 DE DEZEMBRO DE 1906

     BOM, EXISTEM FESTAS E FESTAS, MAS SEM DÚVIDA A DE ONTEM À noite no novo Teatro de Ópera de Manhattan, depois da apresentação triunfal de O anjo de Shiloh, deve ser considerada a festa da década.

     Freqüentando, como faço, quase mil acontecimentos sociais por ano em nome dos leitores do World, ainda posso dizer com sinceridade que jamais vi tantos americanos célebres sob um mesmo teto.

     Quando a cortina se fechou pela última vez depois de ovações e chamadas ao palco sem conta, a platéia elegante começou a ir em direção ao pórtico da rua 34 Oeste, onde se depararia com um engarrafamento de carruagens. Eram os infelizes que não estariam na festa. Os espectadores com convites esperaram até que a cortina subisse de novo, depois subiram ao palco pela rampa colocada às pressas sobre o fosso da orquestra. Outros que não tinham podido comparecer à apresentação chegaram à porta dos fundos. Nosso anfitrião da noite era o magnata do tabaco, o Sr. Oscar Hammerstein, que projetou, construiu e é dono do Teatro de Ópera de Manhattan. Ele ocupou o centro do palco e recebeu pessoalmente cada convidado que vinha da platéia. Dentre eles sem dúvida estava cada nome remotamente associado a Nova York, e um dos mais importantes era o Sr. Joseph Pulitzer, proprietário do World.

     O cenário em si formava um pano de fundo magnífico para a festa, uma vez que o Sr. Hammerstein mantivera a mansão sulista que aparece na ópera, de modo que estávamos nos reunindo sob suas paredes. Ao redor, contra-regras colocaram rapidamente várias mesas genuinamente antigas repletas de comida e bebida, além de um bar e seis garçons para garantir que ninguém ficasse com sede.

     O prefeito George McClelan chegou logo, misturando-se a Rockefellers e Vanderbilts enquanto a multidão crescia cada vez mais. Toda a festa era em homenagem à jovem prima-dona, a viscondessa Christine de Chagny, que acabara de estabelecer um triunfo tão magnífico naquele mesmo palco, e as pessoas mais notáveis de Nova York mal podiam esperar para vê-la. A princípio ela estava descansando em seu camarim, bombardeada por mensagens de congratulações, buquês de flores tão numerosos que tiveram de ser mandados ao Hospital Bellevue, a pedido dela, e convites para as maiores casas da cidade.

     Em meio à multidão vi pessoas que sei que fascinarão os leitores do New York World. Encontrei dois jovens atores, D.W. Griffith e Douglas Fairbanks numa animada conversa. Eu acabara de perguntar a Griffith qual seria seu próximo projeto, algo chamado O nascimento de uma nação, e do qual talvez ouçamos falar mais tarde, quando um alto fuzileiro emergiu do pórtico da mansão e anunciou: “Senhoras e senhores, o presidente dos Estados Unidos.”

     Mal pude acreditar em meus ouvidos, mas era verdade, e dentro de segundos ali estava ele, o presidente Teddy Roosevelt, óculos empoleirados no nariz, mostrando seu sorriso alegre, movendo-se pela multidão e apertando as mãos de todo mundo. E ele não viera só, já que tem a reputação merecida de se rodear dos personagens mais exóticos de nossa sociedade. Minutos depois percebi minha mão sendo apertada pelo punho gigantesco do ex-campeão de pesos pesados Bob Fitzsimmons, enquanto a poucos metros de distância havia outro ex-campeão, o marinheiro Tom Sharkey, e o atual campeão, o canadense Tommy Burns. Senti-me uma anã no meio daqueles homens enormes.

     Naquele momento apareceu na porta da mansão a própria estrela. Desceu sob uma enorme salva de palmas comandada pelo presidente, que se adiantou para ser apresentado pelo Sr. Hammerstein. Com uma galanteria do Velho Mundo, o Sr. Roosevelt pegou a mão da cantora e beijou-a, sob os aplausos da multidão. Em seguida ele cumprimentou o principal tenor, o Signor Gonci, e o resto do elenco, enquanto o Sr. Hammerstein os apresentava.

     Assim que terminaram as formalidades o nosso travesso chefe do executivo pegou a adorável aristocrata francesa pelo braço e acompanhou-a pela sala, para apresentá-la aos que ele conhecia. Ela ficou especialmente deliciada em conhecer o coronel Bill Cody, o próprio Búfalo Bill, cujo show do Velho Oeste deixa multidões em transe do outro lado do rio, no Brooklyn. Com ele estava ninguém menos do que Touro Sentado, que eu jamais vira antes. Como muitos de nós, ainda me lembro de quando era menina e ouvia com horror o que os Sioux tinham feito aos nossos pobres rapazes em Little Big Horn, e no entanto ali estava aquele velho gentil, parecendo tão antigo quanto as próprias Black Hills, fazendo o sinal da paz com a mão aberta para nosso presidente e sua convidada francesa.

     Aproximando-me da comitiva presidencial ouvi Teddy Roosevelt apresentar Madame de Chagny ao novo marido de sua sobrinha, e de novo consegui uma chance de trocar algumas palavras com aquele rapaz espantosamente bonito. Ele acaba de sair de Harvard, e está estudando na Faculdade de Direito de Columbia, em Nova York. Claro que perguntei se ele contemplava uma carreira na política como seu famoso tio, e o jovem admitiu que poderia fazer isso um dia. De modo que talvez ouçamos falar de novo em Franklin Delano Roosevelt.

     Com a festa ficando mais animada, a comida e a bebida circulando alegres, notei que fora colocado um piano num dos cantos, com um rapaz ao teclado produzindo música ligeira de nossa era, em contraste com as árias clássicas mais sérias da ópera. Por acaso era um jovem imigrante russo, ainda com forte sotaque, que me disse ter composto algumas das canções que estava tocando, e queria tornar-se um compositor estabelecido. Bem, boa sorte, Irving Berlin.

     Na primeira parte das festividades parecia faltar uma pessoa que muitos gostariam de conhecer e parabenizar — o desconhecido substituto que assumira o papel do hospitalizado David Melrose como o trágico capitão Regan. A princípio pensamos que sua ausência poderia ser explicada pela dificuldade de retirar a maquiagem considerável que cobria boa parte de seu rosto. O resto do elenco circulava livremente, uma quantidade de uniformes azuis e dourados da União junto aos casacos cinzentos dos soldados confederados. Mas até os que haviam feito o papel de soldados “feridos” nas cenas do hospital haviam retirado às pressas suas bandagens e jogado para longe as muletas grosseiras. Mesmo assim o misterioso tenor não estava presente.

     Seu surgimento foi à porta principal da casa de fazenda, no topo da escadaria dupla que levava ao palco onde todos nós estávamos festejando. E que aparecimento breve! Será que aquele cantor extraordinariamente talentoso realmente é tímido assim? Muitos dos que estavam abaixo do pórtico deixaram de vê-lo por completo. Mas houve alguém que não.

     Enquanto ele atravessava a porta vi que ainda mantinha a maquiagem pesada, a bandagem que cobria a maior parte de seu rosto na ópera, permitindo que aparecessem apenas os olhos e uma linha do maxilar. Estava com a mão sobre o ombro do jovem soprano que nos deixara em transe ao cantar, Pierre, o filho de Madame de Chagny. Parecia estar sussurrando ao ouvido do menino, e o garoto assentia.

     Madame de Chagny viu-os de imediato e pareceu-me que uma sombra de medo passou sobre seu rosto. Seus olhos se fixaram nos que estavam atrás da máscara. Ela ficou pálida quando percebeu o filho ao lado do tenor vestido com o uniforme da União e sua mão foi até a boca. Em seguida subiu correndo a escada, na direção da aparição estranha, enquanto a música continuava tocando e a multidão prosseguia barulhenta com as conversas e risos.

     Vi os dois se falarem seriamente durante vários instantes. Madame de Chagny tirou a mão do tenor dos ombros de seu filho e fez um gesto para que o menino descesse as escadas rapidamente, coisa que ele fez, sem dúvida procurando um merecido refresco para tomar. Só então a diva riu subitamente e depois sorriu, como se aliviada. Será que ele a estava cumprimentando pelo maior desempenho de sua vida ou será que ela parecia temer pelo menino?

     Finalmente percebi que ele lhe entregou uma mensagem, um pedaço de papel que ela segurou e colocou dentro do corpete. Em seguida desapareceu, de novo pela porta da mansão, e a prima-dona desceu a escada sozinha para juntar-se à festa. Não creio que mais alguém tenha percebido esse incidente estranho.

     Era muito depois da meia-noite quando os participantes da festa, cansados mas extremamente felizes, partiram para suas carruagens, seus hotéis e seus lares. Eu, claro, corri de volta à redação do New York World para garantir que vocês, caros leitores, fossem os primeiros a saber o que aconteceu ontem à noite no Teatro de Ópera de Manhattan.

    

     A AULA INAUGURAL DO PROFESSOR CHARLES BLOOM

     FACULDADE DE JORNALISMO, UNIVERSIDADE DE COLUMBIA, NOVA YORK, MARÇO DE 1947

     SENHORAS E SENHORES, JOVENS AMERICANOS QUE LUTAM PARA ser grandes jornalistas um dia. Como jamais nos encontramos antes, deixem que eu me apresente. Meu nome é Charles Bloom. Tenho sido jornalista atuante, principalmente nesta cidade, há quase cinqüenta anos.

     Comecei na virada do século como mensageiro na redação do antigo New York American, e em 1903 persuadi o jornal a me colocar no elevado status, pois era o que me parecia, de repórter geral da seção de cidade, cobrindo diariamente todos os acontecimentos dignos de notícia nesta metrópole.

     Com o passar dos anos testemunhei e cobri muitas, muitas histórias; algumas heróicas, algumas solenes, algumas que mudaram nossa história e a história do mundo, algumas simplesmente trágicas. Eu estava lá para cobrir a partida solitária de Charles Lindberg de um campo coberto de névoa quando ele voou sobre o Atlântico, e estava lá para receber na volta um herói mundial. Cobri a posse de Franklin D. Roosevelt e a noticia de sua morte há dois anos. Não fui à Europa durante a Primeira Guerra Mundial, mas acompanhava nossos rapazes quando eles deixavam este porto para os campos de Flandres.

     Passei do American, onde conhecera intimamente um colega chamado Damon Runyon, para o Herald Tribune, e finalmente o Times.

     Cobri assassinatos e suicídios, disputas de quadrilhas da Máfia e eleições para prefeito, guerras e os tratados que as terminaram, celebridades visitantes e os moradores da sarjeta. Vivi com os nobre e poderosos, os pobres e destituídos, cobri os feitos dos grandes e dos bons, e dos maus e dos perversos. Tudo isso nesta cidade que jamais morre e jamais dorme.

     Durante a última guerra, apesar de já meio velho, consegui ser mandado para a Europa, voei com nossos B-17 sobre a Alemanha — coisa que, devo lhes dizer, me matou de medo —, testemunhei a Alemanha se render há quase dois anos, e como última tarefa cobri a Conferência de Potsdam no verão de 45. Ali conheci o líder britânico Winston Churchill, que seria retirado do cargo no meio da conferência e substituído pelo novo primeiro-ministro, Clement Adee e o nosso próprio presidente Truman, claro, e até o marechal Stalin, um homem que, pelo que temo, logo deixará de ser nosso amigo e se tornará um grande inimigo.

     Na volta eu deveria me aposentar, optando por sair antes que fosse forçado a isto, e recebi uma oferta gentil do reitor desta faculdade para atuar como professor visitante e tentar dividir com vocês algumas das coisas que aprendi do modo mais difícil.

     Se alguém fosse me perguntar que qualidades fazem um bom jornalista, eu diria que são quatro. Primeiro: vocês devem sempre tentar não simplesmente ver, testemunhar e relatar, mas entender. Tentar entender as pessoas que estão encontrando, os acontecimentos que estão presenciando. Há um velho ditado: entender tudo é perdoar tudo. O homem não pode entender tudo porque tem falhas, mas pode tentar. Por isso buscamos relatar o que realmente aconteceu para aqueles que não estavam lá, mas que gostariam de saber. Já que no futuro a história registrará que nós éramos as testemunhas; que vimos mais do que os políticos, os funcionários públicos, os banqueiros, financistas, magnatas e generais. Porque eles estavam trancados em seus mundos separados, mas nós estávamos em toda a parte. E se testemunharmos mal, sem entender o que vemos e ouvimos, apenas anotaremos uma série de fatos e números, dando às mentiras que sempre nos contam o mesmo crédito que merecem as verdades, e assim criando uma imagem falsa dos fatos.

     Segundo: jamais deixem de aprender. Não há fim para o processo. Sejam como um esquilo. Guardem as informações e idéias que apareçam no seu caminho; vocês jamais saberão quando um pedaço minúsculo de informação será a explicação de um quebra-cabeça que, de outra forma, não poderia ser solucionado.

     Terceiro: vocês precisam desenvolver um “faro” pela história. Ou seja, uma espécie de sexto sentido, uma consciência de que algo não está totalmente certo, de que há algo estranho acontecendo e que ninguém mais pode estar percebendo. Se nunca desenvolverem esse faro, talvez vocês sejam competentes e conscienciosos, um crédito para a profissão. Mas as histórias passarão por vocês sem serem vistas; vocês comparecerão aos informes oficiais e ficarão sabendo o que os poderes estabelecidos querem que vocês saibam. Relatarão fielmente o que eles disseram, seja isso falso ou verdadeiro. Receberão seu pagamento e irão para casa, tendo feito um bom serviço. Mas sem o faro jamais entrarão no bar, com um jorro de adrenalina, sabendo que acabaram de resolver o maior escândalo do ano porque perceberam algo estranho numa observação casual, uma coluna de números manipulados, uma liberação não justificada, uma acusação subitamente abandonada, que todos os seus colegas deixaram de ver. No nosso trabalho não existe nada como esse jorro de adrenalina; é como ganhar um grande prêmio de automobilismo, saber que você acabou de conseguir uma importante notícia exclusiva e mandou para o inferno os concorrentes.

     Nós, jornalistas, não devemos esperar ser amados. Como policiais, isso é algo que temos de aceitar se quisermos assumir nossa estranha carreira. Mas, mesmo que não gostem de nós, os grandes e poderosos precisam de nós.

     A estrela de cinema pode nos empurrar para o lado enquanto anda em direção à limusine, mas se a imprensa deixar de mencioná-la ou aos seus filmes, se não publicar sua foto ou monitorar suas idas e vindas durante uns dois meses, logo seu agente estará esperando para chamar atenção.

     O político pode nos denunciar quando está no poder, mas tentem ignorá-lo quando ele estiver se candidatando à eleição ou quando tem algum triunfo para anunciar, e ele implorará por cobertura.

     Os grandes e poderosos gostam de olhar para a imprensa de cima para baixo mas, rapazes, como eles precisam de nós! Porque vivem da publicidade que só nós podemos lhes dar. Os astros dos esportes querem que seus desempenhos sejam relatados, assim como os fãs dos esportes querem saber. As anfitriãs da sociedade fazem com que entremos pela porta de serviço, mas, se ignoramos seus bailes de caridade e suas conquistas sociais, elas ficam perturbadas.

     O jornalismo é uma forma de poder. Mal usado, o poder é uma tirania; bem e cuidadosamente usado, é uma exigência sem a qual a sociedade não pode sobreviver e prosperar. Mas isso nos leva à regra número quatro: nossa tarefa é jamais nos juntarmos ao establishment, fingindo que, pela proximidade, passamos a fazer parte dos grandes e poderosos. Nosso trabalho numa democracia é sondar, descobrir, verificar, expor, revelar, questionar, interrogar. Nossa tarefa é descrer, até que o que nos dizem possa ser provado. Como temos poder, somos sitiados pelos charlatões, os falsos, os vendedores de maravilhas — nas finanças, no comércio, na indústria, nos entretenimentos e acima de tudo na política.

     Os mestres de vocês devem ser a Verdade e o leitor, ninguém mais. Jamais hesitar, jamais se encolher, jamais se submeter e jamais esquecer que o leitor, com seus centavos, tem tanto direito de merecer seu esforço e seu respeito, tanto direito de ouvir a verdade, quanto o senado. Portanto permaneçam céticos diante do poder e do privilégio, e vocês estarão honrando a todos nós.

     E agora, como a hora é tardia e sem dúvida vocês estão cansados de estudar, preencherei o que resta deste período contando uma história. Uma história sobre uma história. E não, não é uma história em que eu fui o herói triunfante, mas o oposto. Foi uma história para a qual fechei os olhos porque era jovem, estouvado e não pude entender o que estava realmente testemunhando.

     Também foi uma história, a única da minha vida, que eu jamais escrevi. Jamais a redigi, ainda que os arquivos mantenham os contornos básicos do que mais tarde foi liberado para a imprensa pelo departamento de polícia. Mas eu estava lá, vi tudo, deveria saber o que estava acontecendo, mas não identifiquei nada. Em parte foi por isso que jamais escrevi a história. Mas também foi porque há algumas coisas que acontecem com pessoas e que, se forem expostas ao mundo, irão destruí-las. Algumas merecem isso, e eu as conheci: generais nazistas, chefes da Máfia, sindicalistas corruptos e políticos venais. Mas a maioria das pessoas não merece ser destruída, e a vida de algumas já é tão trágica que a exposição de seus sofrimentos apenas duplicaria a dor. Tudo isso em troca de alguns centímetros de coluna para enrolar o peixe de amanhã? Talvez, mas ainda que na época eu trabalhasse para a imprensa marrom de Randolph Hearst, e teria sido demitido caso o editor descobrisse, o que vi foi triste demais para escrever e passar adiante. Agora, depois de quarenta anos, não importa muito.

     Foi no inverno de 1906. Eu tinha 24 anos, era um moleque de Nova York, orgulhoso de ser repórter ao American, e adorava isso. Quando penso no passado e vejo o que era, fico espantado com minha própria ousadia. Eu era estouvado, cheio de mim, mas entendia muito pouco.

     Naquele mês de dezembro a cidade estava recepcionando uma das cantoras de ópera mais famosas do mundo, uma tal de Christine de Chagny. Ela viera estrelar na semana de inauguração de um novo teatro de ópera, o Manhattan Opera, que foi fechado três anos depois. Tinha 32 anos, era linda e muito encantadora. Trouxera seu filho de doze anos, Pierre, junto com uma criada e o tutor do menino, um padre irlandês chamado Joseph Kilfoyle, além de dois secretários. Chegou sem o marido, seis dias antes da estréia no teatro no dia 3 de dezembro, e o marido juntou-se a ela no dia 2, vindo em outro navio, já que tivera de se demorar devido aos negócios de suas propriedades na Normandia. Mesmo não conhecendo coisa alguma de ópera, eu sabia que o aparecimento dela causava uma grande agitação, porque nenhuma cantora de sua estatura ainda atravessara o Atlântico para estrelar em Nova York. Ela era a queridinha da cidade. Através de uma combinação de sorte e ousadia num gesto antiquado, eu conseguira persuadi-la a me deixar ser seu guia em Nova York, para ver as paisagens e os espetáculos da cidade. Era uma tarefa de sonho. Ela era tão perseguida pela imprensa que seu anfitrião, o empresário de ópera Oscar Hammerstein, proibira todo o acesso a ela antes da estréia de gala. No entanto lá estava eu, com acesso à sua suíte no Waldorf-Astoria, capaz de fazer boletins diários sobre seu itinerário e suas tarefas. Graças a isso minha carreira na seção de cidade do American estava indo de vento em popa.

     Entretanto havia algo de misterioso e estranho acontecendo ao nosso redor, e eu não consegui identificar. O “algo” envolvia uma figura exótica e evasiva que conseguia aparecer e desaparecer à vontade, e que no entanto estava claramente assumindo algum tipo de papel nos bastidores.

     Primeiro houvera uma carta, trazida pessoalmente pelas mãos de um advogado de Paris. Por uma total coincidência eu ajudara a entregar essa carta na sede de uma das corporações mais ricas e poderosas de Nova York. Ali, na sala da diretoria, vislumbrei rapidamente o homem que estava por trás da corporação, aquele a quem a carta era endereçada. Ele estava olhando de um buraco na parede, um rosto aterrorizante coberto por uma mascara. Não pensei muito a respeito, e de qualquer modo ninguém acreditou em mim.

     Em quatro semanas foi cancelada a apresentação da prima-dona que estava programada para a inauguração da Ópera de Manhattan, e a diva francesa foi convidada por um pagamento astronômico. De Paris, França. Também começaram a correr boatos de que Oscar Hammerstein tinha um sócio secreto e ainda mais rico do que ele, um financista invisível que lhe ordenara fazer a troca. Eu deveria ter suspeitado da conexão, mas não suspeitei.

     No dia em que a dama chegou ao cais no Hudson, o estranho fantasma apareceu de novo. Dessa vez eu não o vi, mas um colega sim. A descrição era idêntica, uma figura solitária usando máscara, no topo de um armazém, olhando a chegada da prima-dona de Paris. De novo não consegui ver a conexão. Mais tarde ficou óbvio que ele mandara buscá-la, sobrepondo-se à decisão de Hammerstein. Mas por quê? Acabei descobrindo, mas aí já era tarde demais.

     Como disse, eu conheci a dama, ela pareceu gostar de mim e permitiu que eu fosse à sua suíte para uma entrevista exclusiva. Lá, o filho dela desembrulhou um presente anônimo, uma caixa de música na forma de um macaco. Quando Madame de Chagny ouviu a canção que ela tocava, pareceu ser golpeada por um raio. Sussurrou:

     — “Mascarada”. Há doze anos. Ele deve estar aqui.

     E mesmo assim, a luz se recusava a se acender para mim.

     Ela estava desesperada para descobrir a origem do macaco, e eu achei que ele provavelmente viera de uma loja de brinquedos em Coney Island. Dois dias depois fomos todos para lá, eu atuando como guia do grupo. De novo aconteceu algo muito estranho, e de novo nenhum sino de alarme tocou.

     O grupo era formado por mim, pela prima-dona, seu filho Pierre e o tutor do menino, o padre Joe Kilfoyle.

     Como eu não tinha interesse nos brinquedos, entreguei Madame de Chagny e seu filho aos cuidados do Mestre de Diversões, que estava encarregado do parque. Não me incomodei em entrar na loja de brinquedos. Deveria ter entrado, já que mais tarde fiquei sabendo que o homem que estava mostrando as coisas à criança e à mãe era ninguém menos do que uma figura sinistra que se chamava Darius, e que eu vira semanas antes ao entregar a carta de Paris. Mais tarde fiquei sabendo com o Mestre de Diversões, que estivera presente o tempo todo, que aquele homem oferecera seus serviços como especialista em brinquedos, mas na verdade ficou interrogando em voz baixa o menino sobre seus pais.

     De qualquer modo, eu caminhei pela beira do mar com o padre católico enquanto o menino e a mãe examinavam os brinquedos na loja. Parece que havia fileiras daqueles macacos de brinquedo, mas nenhum tocava a canção estranha que eu ouvira na suíte do Waldorf-Astoria.

     Em seguida ela foi com o Mestre das Diversões examinar um local chamado Salão dos Espelhos. De novo não entrei. De qualquer modo, não tinha sido convidado. Por fim voltei ao parque de diversões para ver se o grupo estava pronto para voltar a Manhattan.

     Vi o padre irlandês escoltar o menino à carruagem que havíamos alugado na estação de trem, e percebi, mas apenas vagamente, que havia outra carruagem quase ao lado. Isso era estranho, porque o local estava deserto.

     Eu estava na metade do caminho entre o portão e o Salão dos Espelhos quando apareceu uma figura, correndo em minha direção, aparentemente em pânico. Era Darius. Ele era o presidente da corporação cujo verdadeiro chefe parecia ser o homem misterioso da máscara. Achei que ele estava correndo para mim, mas passou como se eu não existisse. Vinha do Salão dos Espelhos. Enquanto passava ele gritou algo, não para mim, mas como se fosse para o vento do mar. Não pude entender. Não foi em inglês, mas, como tenho bom ouvido para os sons, ainda que nem sempre para o significado, peguei o lápis e rabisquei o que pensei ter ouvido.

     Mais tarde, muito mais tarde e tarde demais, voltei a Coney Island e falei de novo com o Mestre de Diversões, que me mostrou um diário que ele mantinha, e onde anotara tudo que havia acontecido dentro do Salão dos Espelhos enquanto eu caminhava na praia. Se eu tivesse lido antes aquela passagem, teria feito algo para impedir o desfecho dos acontecimentos. Mas na época não vi o que havia no diário do Mestre de Diversões, e não entendi as três palavras em latim.

     Bom, pode parecer estranho para vocês, jovens, mas naquela época a vestimenta era muito formal. Os rapazes deviam usar ternos escuros o tempo todo, freqüentemente com colete, além de colarinhos e punhos brancos e engomados. O problema era a conta da lavanderia, que os rapazes com baixos salários não podiam pagar. Assim, muitos de nós usávamos colarinhos e punhos destacáveis, de celulóide, que poderiam ser retirados à noite e limpos com um pano úmido. Isso permitia que uma camisa fosse usada durante vários dias, sempre expondo colarinho e punhos limpos. Como o bloco de anotações estava no bolso do paletó, anotei no punho esquerdo as palavras gritadas pelo homem que eu conhecia somente como Darius.

     Ele parecia meio enlouquecido quando passou correndo por mim, bem diferente do executivo gélido que eu conhecera na sala da diretoria. Seus olhos pretos estavam arregalados, o rosto ainda branco como um crânio, o cabelo pretíssimo voando ao vento. Virei-me para acompanhar seu progresso e o vi chegar ao portão do parque. Ali ele encontrou o padre irlandês, que trancara o menino Pierre na carruagem e estava voltando para procurar a patroa.

     Darius parou ao ver o padre, e os dois se encararam durante vários segundos. Mesmo afastado por uns trinta metros, no vento de novembro, pude sentir a tensão. Eram como dois pitbulls encontrando-se na véspera da luta. Então Darius partiu, correu para sua carruagem e foi embora.

     O padre Kilfoyle veio pelo caminho parecendo carrancudo e pensativo. Madame de Chagny saiu do salão dos espelhos pálida e abalada. Eu estava no meio de um tremendo drama e não podia entender o que me escapava. Fomos para a estação do trem elevado e voltamos num vagão para Manhattan em silêncio, menos o menino, que conversava feliz comigo sobre a loja de brinquedos.

     Minha última pista chegou três dias depois. A estréia foi um triunfo, era uma nova ópera cujo nome me escapa, porque, afinal de contas, eu nunca fui ligado em ópera. Disseram que Madame de Chagny cantou como um anjo do céu, e deixou metade da platéia em lágrimas. Mais tarde houve uma tremenda festa ali mesmo no palco. O presidente Teddy Roosevelt estava lá com todos os figurões da sociedade de Nova York; havia boxeadores, Búfalo Bill, Touro Sentado — sim, senhorita, eu realmente o conheci — e todos prestando homenagem à jovem estrela da ópera.

     A ópera se passara na guerra civil americana, e o cenário principal era a fachada de uma magnífica sede de fazenda na Virgínia, com a porta da frente no alto, e escadas que desciam de cada lado até o nível do palco. No meio da festa um homem apareceu na porta.

     Reconheci-o de imediato, ou pensei ter reconhecido. Ele ainda estava com o uniforme de seu personagem, um capitão das forças da União, que fora tão machucado na cabeça que a maior parte do rosto era coberta por uma máscara. Fora ele quem havia cantado um dueto passional com Madame de Chagny no último ato, quando devolveu a ela a aliança de noivado. Estranhamente, considerando que a ópera terminara, ele ainda usava a máscara. Então finalmente percebi por quê. A figura evasiva era o Fantasma, o personagem que parecia ser dono de boa parte de Nova York, que ajudara a criar o Teatro de ópera de Manhattan com seu dinheiro e que trouxera a aristocrata francesa do outro lado do Atlântico para cantar. Mas por quê? Isso só fiquei sabendo mais tarde, e tarde demais.

     No momento eu estava conversando com o visconde de Chagny, um homem encantador, incrivelmente orgulhoso do sucesso da esposa e deliciado por ter acabado de conhecer nosso presidente. Por sobre seu ombro vi a prima-dona subir a escada até a varanda, para falar com a figura em quem, então, eu começara a pensar como o Fantasma. Sabia que era ele de novo. Não podia ser outra pessoa, e ele parecia ter uma espécie de domínio sobre ela. Eu ainda não descobrira que os dois haviam se conhecido doze anos antes, em Paris, e muitas coisas além disso.

     Antes que os dois se separassem, ele entregou um pequeno bilhete num papel dobrado, que ela colocou dentro do corpete. Em seguida desapareceu de novo, como sempre; estava ali num segundo, e desaparecia no outro.

     Havia uma colunista social de um jornal rival, o New York World, publicação do Pulitzer, e no dia seguinte ela escreveu que vira o incidente mas pensou que ninguém mais tinha visto. Estava errada. Eu vi. Mas não só isso. Fiquei de olho na dama durante o resto da noite, e com certeza, depois de algum tempo, ela se afastou das pessoas, abriu o bilhete e leu. Quando terminou, olhou ao redor, embolou o papel e jogou-o numa das latas de lixo com garrafas vazias e guardanapos sujos. Instantes depois eu o peguei. E, para o caso de vocês estarem interessados, eu o tenho aqui hoje.

     Naquela noite simplesmente coloquei o papel no bolso. Ele ficou durante uma semana na mesa do meu pequeno apartamento, e depois guardei-o como a única lembrança que terei daquilo que aconteceu diante de meus olhos. Diz o seguinte:

     Deixe-me ver o menino só uma vez. Deixe-me dizer um último adeus. Por favor. No dia em que você for embora. Ao amanhecer. No Battery Park.

     Erik.

    

     Então, e só então, juntei parte do quebra-cabeça. O admirador secreto antes de seu casamento, há doze anos em Paris. O amor não correspondido que emigrara para a América e ficara rico e poderoso a ponto de conseguir que ela viesse estrelar em seu próprio teatro de ópera. Tocante, mas mais para uma romancista do que para um repórter calejado das ruas de Nova York, já que era assim que eu me via. Mas por que ele andava mascarado? Por que não viera se encontrar com ela, como todo mundo? Para isso eu ainda não tinha resposta. E também não procurei saber, e esse foi meu erro.

     De qualquer modo, a dama cantou durante seis noites. A cada vez punha a casa abaixo. Dia oito de dezembro foi sua última apresentação. Outra prima-dona, Dame Nellie Melba, a única rival no mundo para a aristocrata francesa, chegaria de navio no dia 12. Madame de Chagny, seu marido, o filho e os acompanhantes embarcariam no RMS City of Paris, em direção a Southampton, Inglaterra, para se apresentar no Covent Garden. A partida estava marcada para o dia 10 de dezembro, e devido a toda amizade que ela demonstrara para comigo eu decidira estar lá, à margem do Hudson, para vê-la partir. Mas dessa vez eu era virtualmente aceito por todo o seu séquito como alguém da família. No bota-fora particular na sala de sua suíte eu teria a ultima entrevista exclusiva para o New York American. Então voltaria a cobrir os assassinatos, os fatos policiais e os figurões do Tammany Hall.

     Na noite do dia 9 dormi mal. Não sei por quê. Todos vocês entendem que existem noites assim, e depois de um certo tempo a gente sabe que não há sentido em tentar dormir de novo. Melhor levantar e pronto. Fiz isso às cinco da manhã. Tomei banho e me barbeei, depois vesti meu melhor terno escuro. Ajeitei o colarinho duro com o fecho de trás e da frente e amarrei a gravata. Sem pensar, peguei dois punhos de plástico branco e rígido entre a meia dúzia que estava sobre a mesa, e os coloquei. Como estava acordado tão cedo, pensei que poderia ir até o Waldorf-Astoria e me juntar ao grupo dos Chagny para o café da manhã. Para economizar o preço de uma carruagem de aluguel, andei, chegando às dez para as sete. Ainda estava escuro, mas na sala do café da manhã o padre Kilfoyle estava sentado sozinho tomando café. Ele me cumprimentou alegre e me chamou.

     — Ah, Sr. Bloom — disse ele —, então, nós deixaremos sua bela cidade. Veio nos ver, não é? Bem, é bom para o senhor. Mas um mingau quente e uma torrada irão deixá-lo preparado para o dia. Garçom...

     Logo o próprio visconde juntou-se a nós, e ele e o padre trocaram algumas palavras em francês. Eu não podia entender, mas perguntei se a viscondessa e Pierre viriam se juntar a nós. O padre Kilfoyle apontou para o visconde e me disse que Madame fora ao quarto de Pierre aprontá-lo, coisa que aparentemente ele acabara de ficar sabendo, mas em francês. Eu pensei que sabia da verdade, mas fiquei quieto. Era uma questão particular, e não era da minha conta se a dama desejara sair para dizer adeus ao seu estranho patrocinador. Eu esperava que por volta das oito horas ela chegasse numa carruagem de aluguel e nos cumprimentasse com seu sorriso vitorioso de sempre e seus modos encantadores.

     Por isso ficamos sentados, os três, e para puxar assunto perguntei se o padre havia gostado de Nova York. Ele disse que muito, que era uma bela cidade com muitos de seus compatriotas. “E de Coney Island?”, perguntei. Nesse ponto ele ficou sério. Disse finalmente que era um lugar estranho, com algumas pessoas estranhas. O Mestre de Diversões? Perguntei. Ele... e outros, disse ele.

     Ainda inocente do que estava acontecendo, meti os pés pelas mãos. “Ah, está falando de Darius”, falei. De imediato ele voltou-se para mim, os olhos azuis penetrando como punhais. “Como você o conhece?”, perguntou. “Eu me encontrei com ele uma vez antes”, respondi. “Diga onde e quando”, e aquilo soou mais como uma ordem do que um pedido. Mas o caso da carta parecia bastante inofensivo, por isso expliquei o que acontecera entre mim e o advogado parisiense Dufour, e contei nossa visita à suíte de cobertura no topo da torre mais alta da cidade. Simplesmente jamais me ocorreu que o padre Kilfoyle, além de ser tutor do menino, também fosse o confessor do visconde e da viscondessa.

     Em algum momento durante essa conversa, o visconde de Chagny, evidentemente entediado por não compreender inglês, havia se desculpado e subido para o quarto. Continuei com minha narrativa, explicando que ficara surpreso quando Darius passou correndo por mim no parque de diversões, parecendo perturbado, e gritou três palavras incompreensíveis, tivera seu breve confronto de olhares com o padre Kilfoyle e em seguida fora embora. O padre ouviu num silêncio carrancudo, depois perguntou: “Você se lembra do que ele disse?” Eu expliquei que foi numa língua estrangeira, mas que anotara o que pensei ter ouvido — veja só em que lugar! — no punho esquerdo de plástico.

     Nesse ponto o Sr. de Chagny voltou. Parecia preocupado, e falou rapidamente em francês com o padre Kilfoyle, que traduziu para mim.

     — Eles não estão aqui. Mãe e filho não estão em lugar algum. — Claro que eu sabia por quê, e tentei tranqüilizá-los dizendo:

     — Não se preocupem, eles foram para um encontro.

     O padre me encarou intensamente, esquecendo-se de perguntar como eu sabia, mas simplesmente repetiu a palavra: encontro?

     — Só para dizer adeus a um velho amigo, um tal de Sr. Erik — acrescentei, ainda tentando ser útil. O irlandês continuou me encarando, e depois pareceu lembrar o que tínhamos falado antes da volta do visconde. Estendeu a mão, agarrou meu pulso esquerdo, puxou na sua direção e virou-o.

     E ali estavam, as três palavras escritas a lápis. Durante dez dias aquele punho tinha ficado entre outros sobre a minha mesa, e de manhã, por acaso, eu o havia apanhado e colocado no pulso. O padre Kilfoyle olhou para o punho e soltou uma única palavra que eu jamais soube que os padres católicos conhecessem, quanto mais usassem. Mas ele usou. Em seguida se levantou, arrancando-me da cadeira pela garganta, gritando no meu rosto:

     — Para onde ela foi, em nome de Deus?

     — Para o Battery Park — grasnei.

     Ele partiu, correndo para o saguão, comigo e com o visconde atarantado correndo atrás. Passou pela porta-principal e encontrou sob a marquise uma carruagem com um cavalheiro de cartola em vias de embarcar. O pobre homem foi agarrado pelo paletó e empurrado para o lado enquanto o padre saltava dentro, gritando para o cocheiro:

     — Battery Park. Corra como o próprio diabo.

     Eu cheguei na hora exata para saltar para dentro, e puxei o pobre francês atrás de mim enquanto a carruagem partia.

     Durante toda a viagem o padre Kilfoyle estava curvado no canto, as mãos agarrando a cruz pendurada no pescoço. Murmurava furiosamente:

     — Santa Maria, mãe de Deus, permiti que cheguemos a tempo.

     Num determinado momento ele parou e eu me inclinei, apontando para as marcas de lápis no punho.

     — O que isso significa?

     Ele pareceu demorar um tempo para se concentrar no meu rosto.

     — DELENDA EST FILIUS — respondeu ele, repetindo as palavras que eu anotara. — Significam: O FILHO DEVE SER DESTRUÍDO. — Eu me recostei, sentindo-me tonto.

     Não era a prima-dona que corria perigo com o homem louco que passara correndo por mim em Coney Island, mas seu filho. Mas continuava havendo um mistério. Por que Darius, por mais obcecado que estivesse com a idéia de herdar a fortuna de seu patrão, quereria matar o filho inofensivo do casal francês? A carruagem continuou correndo por uma Broadway quase vazia. No leste, além do Brooklyn, a manhã começava a tingir o céu de rosa. Chegamos ao portão principal na State Street, e o padre saiu correndo para o parque.

     Na época o Battery Park não era como agora. Hoje em dia vagabundos e mendigos adornam os gramados. Na época era um lugar silencioso e plácido com vários caminhos que se espalhavam do castelo Clinton, e entre eles havia recantos e bosques com bancos de pedra, e em qualquer um deles poderíamos encontrar as pessoas que estávamos procurando.

     Do lado de fora do portão do parque percebi três carruagens. Uma era um coche com a libré do Waldorf-Astoria, sem dúvida a que trouxera a viscondessa e o filho. O cocheiro estava sentado na boléia, encolhido por causa do frio. A segunda era de tamanho igual, mas sem qualquer marca; mesmo assim de um estilo e numa condição geral que indicava pertencer a um homem rico ou a uma corporação.

     Estacionada a alguma distância estava um pequeno veículo, a caleça que eu vira há dez dias fora do parque de diversões Sem dúvida Darius também chegara, e não havia tempo a perder. Corremos a toda pelo portão do parque.

     Lá dentro nos separamos, partindo em direções diferentes para cobrir melhor o terreno. Ainda estava meio escuro entre as árvores e as cercas vivas, e era difícil identificar formas humanas em meio a tantos arbustos. Mas depois de vários minutos correndo de um lado para o outro ouvi vozes, uma masculina, profunda e musical, e outra, a da linda cantora de ópera. Pensei se deveria me virar para procurar os outros ou se deveria me aproximar. Na verdade me esgueirei para perto em silêncio, até estar atrás de uma cerca viva junto a uma clareira entre as árvores. Deveria ter me adiantado imediatamente, revelado minha presença e gritado um alerta. Mas o menino não estava lá. Num momento de otimismo pensei que a viscondessa poderia tê-lo deixado no hotel, afinal de contas. Por isso parei para ouvir. Os dois estavam em lados opostos da clareira, mas as vozes baixas chegavam facilmente onde eu estava agachado atrás da cerca.

     O homem usava máscara como sempre, mas assim que o vi eu soube que ele era quem estivera com o uniforme de oficial da União, e que cantara aquele dueto espantoso com a prima-dona no teatro de ópera, levando a platéia às lágrimas. A voz era a mesma, mas essa era a primeira vez em que o ouvia falando.

     — Onde está Pierre? — perguntou ele.

     — Ainda está na carruagem. Eu pedi que ele nos desse alguns instantes. Ele virá em breve.

     Meu coração saltou. Se o menino estava na carruagem havia uma boa chance de que Darius, escondido em algum lugar do parque, não o encontrasse.

     — O que você quer de mim? — perguntou ela ao fantasma.

     — Durante toda a vida eu fui rejeitado e desprezado, tratado com crueldade e zombaria. Bom, você sabe muito bem. Só uma vez, anos atrás, pensei durante um momento passageiro que poderia ter encontrado o amor. Algo maior e mais reconfortante do que a interminável amargura da vida...

     — Pare, Erik. Não podia ser, não pode ser. Um dia eu pensei que você fosse um fantasma de verdade, meu invisível Anjo da Música. Depois fiquei sabendo da verdade, que você era um homem em todos os sentidos. Então passei a temê-lo, o seu poder, a sua raiva algumas vezes selvagem, o seu gênio. Mas mesmo junto com o medo havia um fascínio compulsivo, como o de um coelho diante de uma cobra.

     “Naquela última noite, na escuridão junto ao lago debaixo da Opera, tive tanto medo que pensei que morreria. Estava meio desmaiada quando o que aconteceu... aconteceu. Quando você poupou Raoul e a mim, e desapareceu de novo nas sombras, achei que nunca mais iria vê-lo. Então entendi melhor tudo por que você passara e senti apenas compaixão e ternura por meu temível pária.”

     “Mas amor, amor verdadeiro, algo parecido com a paixão que você sentia por mim... isso eu não podia sentir. Seria melhor que você tivesse me odiado.”

     — Ódio jamais, Christine. Apenas amor. Amei você, amo e sempre amarei. Mas agora aceito. A ferida finalmente cicatrizou. Há outro amor. Meu filho. Nosso filho. O que você contou a ele sobre mim?

     — Que ele tem um amigo, um amigo verdadeiro e muito querido, aqui na América. Dentro de cinco anos contarei a verdade. Que você é o pai verdadeiro. E ele escolherá. Se ele puder aceitar isso, que Raoul foi para ele tudo o que um pai pode ser, que fez por ele tudo o que um pai pode fazer, e que mesmo assim não é seu pai de verdade, ele virá para você, e com a minha benção.

     Fiquei enraizado atrás da cerca viva, perplexo com o que tinha acabado de ouvir. De repente tudo o que passara por mim sem ser observado e sem ser entendido ficou claro demais. A carta de Paris que contara a esse estranho ermitão que ele tinha um filho vivo, o plano secreto de trazer mãe e filho a Nova York, o encontro secreto para ver os dois e, o mais terrível de tudo, o ódio louco de Darius contra o menino que agora iria tirar seu lugar como herdeiro do multimilionário.

     Darius... de repente lembrei que ele também estava em algum lugar entre as sombras, e ia me lançar para a frente com o alerta que já demorara muito. Então ouvi os passos dos outros que se aproximavam à direita. Nesse momento o sol se levantou, enchendo o parque com uma luz rósea, tornando rosada a neve que caíra durante a noite. E três figuras apareceram.

     De caminhos separados, à minha direita, surgiram o visconde e o padre. Ambos pararam ao ver o homem de capa, chapéu de aba larga e a máscara que sempre cobria o rosto, falando com Madame de Chagny. Ouvi o visconde sussurrar: “Le Fantôme.” À minha esquerda o menino Pierre veio correndo. Enquanto ele fazia isso, houve um estalo baixo perto de mim. Virei-me.

     Entre dois arbustos grandes, a menos de dez metros de distância, quase invisível entre as sombras que restavam, havia um homem agachado. Estava todo de preto, mas captei o vislumbre de um rosto branco como osso e de algo na mão direita, com um cano comprido. Suguei o ar e abri a boca para gritar um alerta, mas era tarde demais. O que aconteceu em seguida foi tão rápido que preciso retardar a ação para descrevê-la.

     O menino Pierre gritou para a mãe:

     — Mamãe, podemos ir embora agora? — ela se virou para ele com seu sorriso brilhante, abriu os braços e disse:

     — Oui, chéri.

     Ele começou a correr. A figura nos arbustos se levantou, estendeu a mão e acompanhou o menino com um revólver. Foi então que gritei, mas meu grito foi abafado por um ruído muito mais alto.

     O menino alcançou a mãe e entrou em seu abraço. Mas, para não ser derrubada pelo peso, ela o levantou e girou, como os pais costumam fazer. Meu grito de alerta e o barulho do Colt soaram ao mesmo tempo. Vi a jovem adorável estremecer como se tivesse sido golpeada nas costas, coisa que de fato acontecera porque, ao girar, ela recebera a bala destinada ao filho.

     O mascarado girou na direção do tiro, viu a figura entre os arbustos, tirou algo de dentro da capa, estendeu o braço e disparou. Ouvi o som da minúscula Derringer com sua bala única, mas uma bastou.

     A dez metros de mim o assassino levou as duas mãos ao rosto. Quando caiu, afastou-se dos arbustos e despencou sobre a neve, ficando de rosto para cima no amanhecer gélido, um único buraco aparecendo no centro de sua testa.

     Fiquei firme atrás da cerca. Agradeço à Providência por não ter havido coisa alguma que eu pudesse fazer. Era tarde demais para fazer o que eu poderia ter feito antes, porque eu vira e ouvira tanto e entendera tão pouco.

     No segundo tiro o menino, ainda sem entender, soltou a mãe que caiu de joelhos. Havia uma mancha vermelha já se espalhando em suas costas. A bala de chumbo macio não a atravessara a ponto de acertar o filho nos braços, ficara dentro dela. O visconde soltou um grito:

     — Christine — e correu para pegá-la nos braços. Ela se apoiou em seu abraço, ergueu os olhos e sorriu.

     O padre Kilfoyle estava de joelhos na neve, ao lado. Ele tirou a faixa larga ao redor da cintura, beijou as duas pontas e colocou-a ao redor do pescoço. Estava rezando rapidamente e com urgência, lágrimas escorrendo pelo rude rosto irlandês. O homem mascarado largou a pequena pistola na neve e ficou imóvel como uma estátua, de cabeça baixa. Seus ombros sacudiam-se em silêncio enquanto ele chorava.

     Apenas o menino Pierre parecia a princípio incapaz de entender o que acontecera. Num segundo sua mãe estava abraçando-o, no outro estava morrendo diante de seus olhos. A primeira vez em que chamou “mamãe” foi como uma pergunta. A segunda e a terceira vez, como um choro digno de pena. Depois, como se buscasse explicação, virou-se para o visconde.

     — Papai? — perguntou ele.

     Christine de Chagny abriu os olhos e seu olhar encontrou Pierre. Ela falou pela última vez, claramente, antes que aquela voz divina silenciasse para sempre. Falou:

     — Pierre, este não é o papai de verdade. Ele o criou como filho, mas seu pai de verdade está lá. — Ela assentiu para a figura encurvada, de máscara. — Sinto muito, meu querido.

     Depois morreu. Não vou transformar isto numa grande produção. Ela apenas morreu. Seus olhos se fecharam, a última respiração saiu áspera e sua cabeça se inclinou para o lado, no peito do marido. Durante vários segundos houve um silêncio completo, que pareceu durar uma eternidade. O menino olhou de um homem para o outro. Depois perguntou ao visconde mais uma vez:

     — Papai?

     Bom, nos últimos dias eu passara a pensar no aristocrata francês como um homem gentil e decente, mas um tanto ineficaz, comparado, digamos, ao dinâmico padre. Mas naquele momento algo pareceu penetrar nele.

     O corpo da mulher morta estava aninhado no seu braço esquerdo. Com a mão direita ele buscou a mão dela e lentamente retirou um anel de ouro. Lembrei-me da última cena da ópera, quando o soldado de rosto despedaçado lhe dera de volta aquele mesmo anel, como um sinal de que aceitava que o amor de ambos jamais poderia se concretizar. O visconde francês tirou o anel do dedo dela e apertou-o na palma do enteado que estava numa situação digna de pena.

     A um metro de distância o padre Kilfoyle continuou de joelhos. Dera a absolvição final à diva antes da morte e, tendo cumprido o dever, rezou por sua alma imortal.

     O visconde de Chagny pegou a mulher morta nos braços e se levantou. Então o homem que criara como seu o filho de outro falou em seu inglês hesitante:

     — É verdade, Pierre. Mamãe estava certa. Fiz por você tudo que pude, mas nunca fui seu pai natural. O anel pertence a ele que é seu pai aos olhos de Deus. Devolva-o. Ele também a amou, e de um modo que eu nunca pude.

     “Vou levar de volta a Paris a única mulher que já amei, para ficar no solo da França. Hoje, aqui, nesta hora, você deixou de ser um menino e se tornou um homem. Agora deve fazer sua escolha.”

     E ficou ali, com a mulher nos braços, esperando uma resposta. Pierre se virou e olhou durante longo tempo para a figura do homem identificado como seu pai de sangue.

     O homem que eu passara simplesmente a chamar de Fantasma ficou parado sozinho, de cabeça baixa, e a simples distância que o separava dos outros parecia representar a distância para onde a raça humana o empurrara. O ermitão, o eterno pária que um dia pensara ter alguma chance de ser aceito nas alegrias humanas e que fora renegado. Agora cada linha de seu corpo me dizia que um dia ele perdera tudo que lhe importava, e que ia perder tudo de novo.

     Houve silêncio durante vários segundos enquanto o menino olhava do outro lado da clareira. Na minha frente estava o que os franceses chamam de tableau vivant. Seis figuras, duas mortas e quatro sofrendo.

     O visconde francês continuava aninhando o peito de sua esposa morta. Ele encostara o rosto na cabeça dela, que estava apoiada em seu peito, acariciando o cabelo escuro como se quisesse consolá-la.

     O Fantasma estava imóvel, de cabeça ainda baixa, totalmente derrotado. Darius se encontrava caído a pouco mais de um metro de mim, de olhos arregalados, olhando para um céu de inverno que ele não podia mais ver. O menino continuava perto do padrasto, e tudo em que ele acreditara e em que confiara como uma ordem imutável estava despedaçado em violência e perplexidade.

     O padre continuava de joelhos, o rosto virado para cima, olhos fechados, mas percebi as mãos grandes agarrando a cruz de metal e os lábios movendo-se em oração silenciosa. Muito mais tarde, ainda consumido por minha incapacidade de explicar o que aconteceu em seguida, eu o visitei em sua casa nos pardieiros do Lower East Side. O que ele me contou eu ainda não entendo de verdade, mas é o que relato a vocês.

     Ele disse que, naquela clareira sem ruídos, podia ouvir gritos silenciosos. Podia ouvir a tristeza aguda do silencioso francês a alguns passos de distância. Podia ouvir a dor perplexa do menino a quem ele ensinara durante sete anos. Mas acima de tudo isso, segundo ele, podia ouvir outra coisa. Havia naquela clareira uma alma perdida, gritando em agonia como o albatroz errante de Coleridge, planando sozinho num céu de dor sobre um oceano de desespero. Ele estava rezando para que essa alma perdida pudesse encontrar um porto seguro no amor de Deus. Estava rezando por um milagre que não poderia acontecer.

     Vejam, eu era um judeu estouvado do Bronx. O que eu sabia de almas perdidas, de redenção e milagres?

     Só posso lhes dizer o que vi. Pierre caminhou lentamente pela clareira na direção dele. Ergueu uma das mãos e retirou o chapéu de aba larga. Pensei que o homem da máscara havia emitido um gemido baixo. Porque o crânio era careca, a não ser por alguns tufos de cabelo esparso, e a pele era manchada com cicatrizes lívidas e ondulada como cera derretida. Sem dizer palavra o menino tirou-lhe a máscara do rosto.

     Bom, eu já vi os cadáveres no necrotério do Bellevue, alguns que tinham passado muitos dias no rio Hudson; vi homens mortos nos campos da Europa, mas nunca vi um rosto como o que se expôs por trás da máscara. Apenas uma parte do maxilar de um dos lados, e os olhos de onde lágrimas corriam pelas bochechas deformadas pareciam humanos em feições que, afora isso, eram tão desfiguradas a ponto de dificilmente pertencerem à espécie humana. Finalmente eu podia entender por que ele usava máscara e se escondia das outras pessoas e de toda a nossa sociedade. Entretanto ali estava ele, exposto e humilhado diante de nós, e nas mãos de um menino que era seu filho.

     Durante longo tempo Pierre olhou para o rosto abominável sem qualquer choque ou repulsa perceptível. Em seguida largou a máscara da mão direita. Pegou a mão esquerda do pai e colocou o anel de ouro no terceiro dedo. Em seguida estendeu as duas mãos, abraçou o homem que chorava e disse com clareza:

     — Quero ficar aqui com você, papai.

     É isso, meus jovens. Em poucas horas a história do assassinato da diva tomou conta de Nova York. A culpa recaiu sobre um fanático louco, que foi morto na cena de sua infâmia. Era uma versão que servia ao prefeito e às autoridades municipais. Quanto a mim, bem, foi a única história em toda a minha carreira que eu jamais escrevi, ainda que eu fosse despedido se soubessem disso. Agora é tarde demais para escrevê-la.

    

     O CORPO DE CHRISTINE DE CHAGNY FOI REPOUSAR JUNTO DE seu pai, no pátio da igreja de um pequeno povoado na Bretanha, onde ambos haviam nascido.

     O visconde, aquele homem bom e gentil, retirou-se para suas propriedades na Normandia. Nunca mais se casou de novo, e manteve junto de si durante todo o tempo um retrato de sua esposa amada. Morreu de causas naturais na primavera de 1940 e não viveu para ver a invasão de sua terra natal.

     O padre Joe Kilfoyle ficou em Nova York, onde fundou um abrigo e uma escola para crianças destituídas, molestadas e indesejadas no Lower East Side. Recusou todas as chances de subir na hierarquia da Igreja, continuou sendo simplesmente o padre Joe para gerações de crianças desprivilegiadas. Suas casas e suas escolas foram sempre muito bem mantidas e de uma qualidade impressionante, mas ele jamais revelou de onde vinham as verbas. Morreu, já idoso, em meados dos anos 50. Nos últimos três anos ficou confinado num lar de padres idosos numa pequena cidade no litoral de Long Island, onde as freiras que cuidavam dele disseram que ele ficava sentado no deque, enrolado num cobertor, olhando para o leste, para o outro lado do oceano, e sonhando com uma fazenda perto de Mullingar.

     Mais tarde Oscar Hammerstein perdeu o controle do Teatro de Ópera de Manhattan para o Met, que o fechou. Seu neto, Oscar II, colaborou com Richard Rodgers escrevendo musicais nas décadas de 1940 e 1950.

     Pierre de Chagny foi educado em Nova York, formou-se numa importante universidade e juntou-se ao pai à frente da enorme corporação familiar. Durante a Primeira Guerra Mundial os dois trocaram o sobrenome de Mulheim para outro, muito conhecido e respeitado na América até hoje.

     A corporação tornou-se famosa por sua filantropia, fundou uma importante instituição para corrigir pessoas desfiguradas e criou muitas fundações de caridade.

     O pai se retirou no início dos anos 20 para uma propriedade reclusa em Connecticut, onde viveu até o fim em meio a livros, pinturas e sua amada música. Era cuidado por dois veteranos, cada um deles cruelmente desfigurado enquanto lutava nas trincheiras, e depois daquele dia em Battery Park nunca mais usou sua máscara.

     O filho, Pierre, casou-se uma vez e morreu velho no ano em que o primeiro americano pousou na Lua. Seus quatro filhos ainda estão vivos.

 

                                                                                            Frederick Forsyth

 

 

                      

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