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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


Os contos de Beedle, o Bardo / J. K. Rowling
Os contos de Beedle, o Bardo / J. K. Rowling

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Os contos de Beedle, o Bardo

                    

Os contos de Beedle, o Bardo é uma coletânea de histórias populares para jovens bruxos e bruxas, contadas há séculos à hora de dormir, daí serem o "Caldeirão Saltitante" e a "Fonte da Sorte" tão conhecidas de muitos alunos de Hogwarts quanto "A gata borralheira" e "A bela adormecida" das crianças trouxas (não-mágicas).

As histórias de Beedle se assemelham aos nossos contos de fadas sob muitos aspectos; por exemplo, a virtude é normalmente premiada e o vício castigado. Apresentam, porém, uma diferença evidente. Nos contos de fadas trouxas, é comum a magia estar na raiz dos problemas do herói ou da heroína — a bruxa malvada envenenou a maçã, ou fez a princesa mergulhar em um sono de cem anos, ou transformou o príncipe em uma fera horrenda. Nos Contos de Beedle, o Bardo, ao contrário, encontramos heróis e heroínas que, embora capazes de realizar mágicas, descobrem que lhes é quase tão difícil resolver seus problemas quanto o é para nós, trouxas. As histórias de Beedle ajudaram gerações de pais bruxos a explicar este doloroso fato da vida aos seus filhinhos: a magia tanto causa dificuldades quanto as resolve.

Outra notável diferença entre estas fábulas e suas correspondentes trouxas é que as bruxas de Beedle são muito mais ativas quando se trata de partir em busca da fortuna do que as heroínas dos nossos contos de fadas. Asha, Altheda, Amata e Babbitty, a Coelha, são mulheres que tomam o destino em suas próprias mãos, em vez de tirar um longo cochilo ou esperar que alguém lhes devolva o sapatinho perdido. A exceção à regra — a donzela sem nome de "O coração peludo do mago" — age de modo semelhante ao de uma princesa de conto de fadas, mas o conto não termina com o habitual "e viveram felizes para sempre".

Beedle, o Bardo viveu no século XV, e grande parte de sua vida permanece envolta em mistério. Sabemos que nasceu em Yorkshire, e a única xilo¬gravura que chegou até nós mostra que ele usava uma barba excepcionalmente luxuriante. Se suas histórias refletem com fidelidade suas opiniões, ele inclusive gostava de trouxas, e os considerava mais ignorantes do que malévolos; desconfiava da magia negra, e acreditava que os piores excessos da bruxidade decorriam de suas características demasiado humanas de crueldade, apatia ou arrogante desperdício dos próprios talentos. Os heróis e heroínas que saem vitoriosos em suas histórias não são os que têm a magia mais poderosa, mas os que demons¬tram maior bondade, bom-senso e inventividade. Um bruxo dos tempos modernos que defendeu idéias muito semelhantes foi, naturalmente, o pro¬fessor Alvo Percival Wulfrico Brian Dumbledore, Ordem de Merlim, Primeira Classe, Diretor da Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts, Chefe Supremo da Confederação Internacional de Bruxos e Bruxo-Presidente da Suprema Corte dos Bruxos. Apesar das coincidências nos pontos de vista, foi uma surpresa descobrir uma coleção de notas sobre Os contos de Beedle, o Bardo, entre os muitos do¬cumentos que Dumbledore legou em testamento aos Arquivos de Hogwarts. Se tais notas foram es¬critas para seu próprio prazer ou para futura publicação, jamais saberemos; recebemos, contudo, a gentil permissão da professora Minerva McGonagall, hoje diretora de Hogwarts, para incluí-las, com uma novíssima tradução dos contos feita por Hermione Granger. Esperamos que as impressões do professor Dumbledore, que incluem comentá¬rios sobre a história bruxa, reminiscências pessoais e informações reveladoras sobre elementos-chave de cada história, possam contribuir para que uma nova geração de leitores bruxos e trouxas aprecie Os contos de Beedle, o Bardo. Todos os que conhece¬ram o professor Dumbledore pessoalmente crêem que ele teria tido o máximo prazer em apoiar este projeto, uma vez que os royalties serão doados ao Children's High Level Group, uma organização cujo objetivo é beneficiar crianças que precisam desesperadamente ser ouvidas.

Parece-me justo acrescentar uma pequena ob¬servação aos comentários do professor Dumble¬dore. Até onde foi possível determinar, as notas foram escritas uns dezoito meses antes dos trágicos acontecimentos que se desenrolaram no alto da Torre da Astronomia de Hogwarts. Aqueles que estão familiarizados com a história da guerra bruxa mais recente (todos que leram os sete volumes da vida de Harry Potter, por exemplo) terão percebi¬do que o professor Dumbledore revela um pouco menos do que sabe — ou suspeita — sobre a última história deste livro. A razão de possíveis omissões talvez resida na afirmação que fez Dumbledore, há alguns anos, a respeito da verdade, para o seu aluno mais famoso:

"É uma coisa bela e terrível, e portanto deve ser tratada com grande cautela."

Concordemos ou não com ele, há que desculpá-lo por desejar proteger os futuros leitores das tenta¬ções em que ele mesmo caiu e pelas quais pagou um preço terrível.

J. K. Rowling

 

Observação sobre as notas de rodapé

Tudo indica que o professor Dumbledore escreveu para um público bruxo, por isso incluí aqui e ali a explicação de um termo ou fato sobre os quais os leitores trouxas talvez precisem de esclarecimento.

 

O BRUXO E O CALDEIRÃO SALTITANTE

Era uma vez um velho bruxo muito bondoso que usava a magia com generosidade e sabedoria para beneficiar seus vizinhos. Em vez de revelar a ver¬dadeira fonte do seu poder, ele fingia que suas po¬ções, amuletos e antídotos saíam prontos de um pequeno caldeirão a que ele chamava de sua panelinha da sorte. De muitos quilômetros ao redor, as pessoas vinham lhe trazer seus problemas, e o bruxo, prazerosamente, dava uma mexida na pa-nelinha e resolvia tudo.

Esse bruxo muito querido viveu até uma idade avançada e, ao morrer, deixou todos os seus bens para o único filho. O rapaz, porém, tinha uma natu¬reza bem diferente da do bom pai. Na sua opinião, quem não sabia fazer mágicas não valia nada, e ele muitas vezes discordara do hábito que o pai tinha de ajudar os vizinhos com sua magia.

Quando o velho morreu, o jovem encontrou escondido no fundo da velha panela um embrulhinho com o seu nome. Abriu-o na expectati¬va de ver ouro, mas, em lugar disso, encontrou uma pantufa grossa e macia, pequena demais para ele e sem par. Dentro dela, um pedaço de pergaminho trazia a seguinte frase: "Afetuosamente, meu filho, na esperança de que você jamais precise usá-la."

O filho amaldiçoou a caduquice do pai e atirou a pantufa no caldeirão, decidindo que passaria a usá-lo como lixeira.

Naquela mesma noite, uma camponesa bateu à porta da casa.

—        Minha neta apareceu com uma infestação de verrugas, meu senhor. O seu pai costumava preparar um cataplasma especial naquela panela velha...

—        Fora daqui! — exclamou o filho. — Que me importam as verrugas da sua pirralha?

E bateu a porta na cara da velha.

Na mesma hora, ele ouviu clangores e rumores que vinham da cozinha. O bruxo acendeu sua vari¬nha e abriu a porta, e ali, para seu espanto, viu que brotara um pé de latão na velha panela do pai, e o objeto pulava no meio da cozinha fazendo uma zoada assustadora no piso de pedra. O bruxo se aproximou admirado, mas recuou ligeiro quando viu que a superfície da panela estava inteiramente coberta de verrugas.

— Objeto nojento! — exclamou ele, e, com fei¬tiços, tentou primeiro fazer desaparecer o caldei¬rão, depois limpá-lo e, por fim, expulsá-lo de casa. Nenhum dos feitiços, porém, fez efeito, e ele não pôde impedir o caldeirão de segui-lo saltitante para fora da cozinha, e depois subir com ele para o quar¬to, alternando batidas surdas e estridentes a cada degrau da escada de madeira.

O bruxo não conseguiu dormir a noite toda por causa das batidas da velha panela verrugosa ao lado de sua cama, e, na manhã seguinte, a panela insistiu em acompanhá-lo, aos saltos, à mesa do café-da-manhã. Plem, plem, plem fazia o pé de latão, e o bruxo ainda nem começara o seu mingau de aveia quando ouviu outra batida na porta. Havia um velho parado na soleira.

—        É a minha velha jumenta, meu senhor — explicou ele. — Perdeu-se ou foi roubada, e sem ela não possuo levar os meus produtos ao mercado e minha família passará fome hoje à noite.

—        Com fome estou eu agora! — bradou o bruxo, e bateu a porta na cara do velho.

Plem, plem, plem fez o caldeirão no chão com aque¬le seu único pé de latão, mas agora o estrépito se misturava aos zurros de um jumento e aos gemidos humanos de fome que vinham de suas profundezas.

—        Pare! Silêncio! — guinchou o bruxo, mas todos os seus poderes mágicos não conseguiram calar a panela verrugosa, que o seguiu saltitando o dia todo, zurrando e gemendo e clangorando, aonde quer que ele fosse ou o que quer que fizesse.

Naquela noite ouviu-se uma terceira batida na porta, e ali, na soleira, estava parada uma jovem mulher soluçando como se o seu coração fosse par¬tir de dor.

— O meu filhinho está gravemente doente — dis¬se ela. — Por favor, pode nos ajudar? Seu pai me disse para vir se tivesse algum pro...

Mas o bruxo bateu a porta na cara da jovem.

E agora a panela atormentadora se encheu até a borda de água salgada e derramou lágrimas por todo o chão enquanto pulava, zurrava, gemia e fa¬zia brotar ainda mais lágrimas.

Embora, pelo resto da semana, nenhum outro aldeão tivesse vindo à cabana do bruxo buscar aju¬da, a panela o manteve informado dos seus muitos males. Em poucos dias ela não estava apenas zur¬rando, gemendo, transbordando, pulando e bro¬tando verrugas, mas também engasgando e tendo ânsias de vômito, chorando como um bebê, ga¬nindo feito um cão e cuspindo queijo estragado, leite azedo e uma praga de lesmas vorazes.

O bruxo não conseguia dormir nem comer com a panela ao seu lado, mas ela se recusava a sumir dali, e ele não podia silenciar nem forçar o caldei¬rão a parar.

Por fim, não aguentou mais.

— Tragam-me todos os seus problemas, todas as suas preocupações e todas as suas tristezas! — gri¬tou, fugindo noite adentro, com a panela perseguindo-o aos saltos pela estrada que levava à aldeia. — Venham! Deixem que eu cure vocês, re¬cupere vocês e console vocês! Tenho a panela do meu pai e vou remediar tudo!

E, com a detestável panela ainda a persegui-lo saltitante, ele correu pela rua principal lançando feitiços para todos os lados.

Dentro de uma casa, as verrugas da garotinha desapareceram enquanto ela dormia; a jumenta perdida foi trazida de um urzal distante e suave¬mente deixada em seu estábulo; o bebê doente foi umedecido com ditamno e acordou bom e rosado. Em todas as casas em que havia doença e tristeza, o bruxo fez o melhor que pôde, e gradualmente a panela ao seu lado parou de gemer e ter ânsias de vômito, e sossegou, reluzente e limpa.

- E então Panela? — perguntou o bruxo trêmu¬lo, quando o sol começou a despontar.

A panela arrotou o pé de pantufa que ele havia jogado em seu fundo, e permitiu que o bruxo o calçasse em seu pé de latão. Juntos, eles regressa¬ram à casa, os passos da panela finalmente abafa¬dos. Mas, daquele dia em diante, o bruxo passou a ajudar os aldeões exatamente como fazia seu pai, antes dele, para que a panela não descalçasse a pantufa e recomeçasse a saltitar.

 

Comentários de Alvo Dumbledore sobre "O bruxo e o caldeirão saltitante".

Um velho bruxo generoso resolve dar uma lição ao filho insensível, apresentando-lhe uma amostra do sofrimento dos trouxas locais. Desperta assim a cons¬ciência do jovem mago, que concorda em usar sua magia em benefício dos vizinhos não-mágicos. A pri¬meira vista, uma fábula simples e comovente, ao crer nisso, a pessoa se revelaria uma pobre inocente. Uma história pró-trouxas, retratando um pai que ama os trouxas e é superior em magia a um filho que os detes¬ta? É no mínimo surpreendente que qualquer cópia da versão original desse conto tenha sobrevivido às chamas a que frequentemente foi lançada.

Beedle estava fora de sintonia com seu tempo ao pregar uma mensagem de amor fraternal aos trouxas.

No início do século XV, a perseguição de bruxos se intensificava por toda a Europa. Muitos na comu¬nidade mágica achavam, com toda a razão, que se oferecer para lançar um feitiço no porco doente do vizinho trouxa equivalia a se oferecer para buscar lenha para sua pira (1). "Que os trouxas se arranjem sozinhos!”, bradavam os bruxos ao mesmo tempo em que se afastavam cada vez mais dos seus irmãos não-mágicos, um movimento que culminou no Código Internacional de Sigilo em Magia, em 1689, data em que eles entraram por livre e espontânea vontade na clandestinidade.

(1) É verdade que os bruxos e bruxas legítimos tinham razoável experiên¬cia em escapar da fogueira, do cepo e da forca (ver meus comentários sobre Lisette de Lapin nas notas sobre "Babbitry, a Coelha, e seu Toco Gargalhante"). Contudo, ocorreram de fato numerosas mortes: Sir Nicholas de Mimsy-Porpington (em vida, um bruxo na corte real e, na morte, o fantasma da Torre da Grifinória) revê sua varinha confiscada antes de ser trancado em uma masmorra, e assim ficou impedido de usar magia para fugir à sua execução; e as famílias bruxas eram parti¬cularmente sujeitas a perder membros mais jovens, cuja inabilidade para controlar seus poderes mágicos os tornava conspícuos e vulnerá¬veis aos caçadores de bruxos.

Contudo, sendo as crianças como são, o grotesco caldeirão saltitante cativou sua imaginação. A solu¬ção foi eliminar a moral pró-trouxa, mas preservar o caldeirão verruguento, e, já na metade do século XVI, uma nova versão do conto circulava amplamente entre as famílias bruxas. Na história revista, o caldeirão saltitante protege um inocente bruxo dos seus vizinhos armados de archotes, afugentando-os de sua cabana, capturando-os e engolindo-os inteiros. No final da história, quando a panela já consumiu a maioria dos vizinhos, o bruxo obtém, dos poucos aldeões que restaram, a promessa de que o deixarão praticar sua magia em paz. Em troca, ele instrui a panela a devolver as vítimas, que são devidamente arrotadas de suas profundezas, ligeiramente estropia¬das. Até hoje, algumas crianças bruxas ouvem ape¬nas esta versão revista contada por seus pais (em geral antitrouxas), e a original, se e quando a lêem, é uma grande surpresa.

Conforme sugeri anteriormente, no entanto, o sen¬timento pró-trouxa não foi a única razão pela qual "O bruxo e o caldeirão saltitante" atraiu indignação.

À medida que a caça aos bruxos se encarniçava, as famílias bruxas começaram a levar vidas duplas, usando Feitiços de Ocultação para proteger a si mes¬mas. Por volta do século XVII, qualquer bruxo, ho¬mem ou mulher, que confraternizasse com trouxas se tornava suspeito, e até marginalizado em sua pró¬pria comunidade. Entre os muitos insultos lançados contra os pró-trouxas (os sugestivos epítetos de "chafurdeiro", "lambe-bosta" e "baba-ralé" datam desse período), havia a acusação de praticarem uma magia ineficaz ou inferior.

Bruxos influentes da época, como Bruto Malfoy, editor de Feitiçaria Aguerrida, um periódico anti-trouxa, perpetuou o estereótipo de que um bruxo amante de trouxas era tão mágico quanto um bruxo abortado (2). Em 1675, Bruto escreveu:

(2) [O bruxo abortado ou aborto é o filho de pais bruxos que não possui poderes mágicos. Tal ocorrência é rara. Os bruxos e bruxas filhos de pais trouxas são muito mais comuns. JKR]

Isto podemos afirmar com segurança: qualquer bru¬xo que demonstre apreciar a sociedade dos trouxas tem uma fraca inteligência e uma mágica tão débil e digna de pena que ele só pode se sentir superior quando se cerca de porqueiros trouxas.

Nada é um sinal mais infalível de mágica ineficaz do que a fraqueza para conviver com não-mágicos.

Este preconceito foi gradualmente se extinguindo em face da avassaladora evidência de que alguns dos bruxos (3) mais brilhantes do mundo foram, para usar o termo comum, "amantes dos trouxas".

(3) Como eu próprio.

A objeção final a "O bruxo e o caldeirão saltitante" ainda hoje permanece viva em certos setores. Beatrix Bloxam (1794-1910), autora do abominável Os contos do chapéu-de-sapo, foi, talvez, quem melhor resumiu a questão. A sra. Bloxam acreditava que Os contos de Bee¬dle, o Bardo prejudicavam as crianças por sua "mórbida preocupação com assuntos horrendos como morte, doença, derramamento de sangue, magia perversa, personagens perniciosos, e efusões e erupções corpo¬rais dos tipos mais repugnantes".

A sra. Bloxam reuniu uma coleção de histórias antigas, inclusive várias de Beedle, e reescreveu-as de acordo com os seus ideais, que, em suas palavras, "incutiam nas mentes puras dos nossos anjinhos saudáveis pensamentos de felici¬dade, mantinham o seu doce repouso livre de sonhos maus e protegiam a preciosa flor de sua inocência". Lemos no parágrafo final da pura e valiosa reescritura de "O bruxo e o caldeirão saltitante":

Então a panelinha dourada dançou de prazer — tim tirim tim! — batendo seus pezinhos rosados! Willyzinho tinha curado as barriguinhas dodóis de todas as bonequinhas, e a panelinha ficou tão feliz que se en¬cheu de docinhos para Willyzinho e suas bonequinhas! "Mas não se esqueça de escovar os seus dentinhos!", gritou a panela.

E Willyzinho abraçou e beijou o caldeirão sal¬titante e prometeu sempre ajudar as bonequinhas e jamais voltar a ser ranzinza.

O conto da sra. Bloxam provocou a mesma reação em gerações de crianças bruxas: incontroláveis ân¬sias de vômito, seguidas por imediatos pedidos para que alguém levasse o livro e o transformasse em pasta.

 

 

A FONTE DA SORTE

No alto de um morro, em um jardim encantado envolto por muros altos e protegido por poderosa magia, jorrava a Fonte da Sorte.

Uma vez por ano, entre o nascer e o pôr-do-sol do dia mais longo do ano, um único infeliz re¬cebia a oportunidade de competir para chegar à fonte, banhar-se em suas águas e ter sorte a vida inteira.

No dia aprazado, centenas de pessoas viajavam de todo o reino para chegar ao jardim antes do alvorecer. Homens e mulheres, ricos e pobres, jo¬vens e velhos, dotados ou não de poderes mágicos reuniam-se no escuro, cada qual na esperança de ser o escolhido para entrar no jardim.

Três bruxas, com seus problemas e preocupações, encontraram-se nas cercanias da multidão, e con¬taram umas às outras suas tristezas enquanto espe¬ravam o sol nascer.

A primeira, cujo nome era Asha, sofria de uma doença que nenhum curandeiro conseguia elimi¬nar. Ela esperava que a fonte fizesse desaparecer os seus sintomas e lhe concedesse uma vida longa e feliz.

A segunda, cujo nome era Altheda, tivera sua casa, seu ouro e sua varinha roubados por um bru¬xo malvado. Ela esperava que a fonte a aliviasse de sua fraqueza e pobreza.

A terceira, cujo nome era Amata, fora abando¬nada por um homem a quem amava profunda¬mente, e acreditava que seu coração partido jamais se recuperaria. Esperava que a fonte aliviasse sua dor e saudade.

Apiedando-se umas das outras, as três mulheres concordaram que, se lhes coubesse a chance, elas se uniriam e tentariam chegar à fonte juntas.

O primeiro raio de sol rasgou o céu, e uma fres¬ta se abriu no muro. A multidão avançou, cada pessoa exigindo, aos gritos, a bênção da fonte. Plantas rastejantes do interior do jardim serpea-ram pela massa ansiosa e se enrolaram na primei¬ra bruxa, Asha. Ela agarrou o pulso da segunda bruxa, Altheda, que segurou com força as vestes da terceira bruxa, Amata.

E Amata se enredou na armadura de um cava¬leiro de triste figura que montava um cavalo es¬quelético.

As plantas rastejantes puxaram as três bruxas pela fresta do muro, e o cavaleiro foi derrubado do seu ginete atrás delas.

Os gritos furiosos da multidão desapontada se ergueram no ar matinal, e silenciaram quando os muros do jardim se fecharam mais uma vez.

Asha e Altheda se zangaram com Amata, que, acidentalmente, trouxera junto o cavaleiro.

— Apenas um pode se banhar na fonte! Já será bem difícil decidir qual de nós será, sem adicio¬nar mais um!

Ora, o Cavaleiro Azarado, como era conhecido nas terras além-muros, observou que as mulheres eram bruxas e, não sendo ele dotado de magia, nem de grande perícia em torneios e duelos com espadas, nem de nada que o distinguisse como homem não mágico, ficou convencido de que não havia esperan¬ça de chegar à fonte antes das três mulheres. Anun¬ciou, portanto, sua intenção de sair do jardim.

Ao ouvir isso, Amata se aborreceu também.

- Medroso! — ela o censurou. — Desembainhe sua espada, Cavaleiro, e nos ajude a atingir a nossa meta.

E, assim, as três bruxas e o infeliz cavaleiro se aventuraram pelo jardim encantado, onde ervas raras, frutos e flores cresciam em abundância à margem de caminhos ensolarados. Eles não encontraram obstáculo algum até alcançar o sopé do morro em que se erguia a fonte.

Ali, enrolado na base do morro, havia um mons¬truoso verme branco, inchado e cego. À aproximação do grupo, ele virou uma cara feia e malcheirosa e proferiu as seguintes palavras:

"Paguem-me a prova de suas dores."

O Cavaleiro Azarado sacou a espada e tentou ma¬tar o bicho, mas a espada se partiu. Então Altheda atirou pedras no verme, enquanto Asha e Amata experimentaram todos os feitiços que poderiam subjugá-lo ou hipnotizá-lo, mas o poder de suas varinhas não foi mais eficaz do que a pedra da amiga ou a espada do cavaleiro: o verme não quis deixá-los passar.

O sol foi subindo sempre mais alto no céu e Asha, desesperada, começou a chorar.

Então o enorme verme encostou o focinho no rosto dela e bebeu suas lágrimas. Saciada a sede, o verme deslizou para um lado e sumiu por um buraco no chão.

Exultantes com o sumiço do verme, as três bru¬xas e o cavaleiro começaram a subir o morro, cer¬tos de que chegariam à fonte antes do meio-dia.

A meio caminho da subida íngreme, porém, eles encontraram palavras gravadas no chão.

Paguem-me os frutos do seu árduo trabalho.

O Cavaleiro Azarado apanhou sua única moeda e colocou-a na encosta relvada, mas ela rolou para longe e se perdeu. As três bruxas e o cavaleiro continuaram a subir, e, embora tivessem andado durante horas, não avançaram um único passo; o topo continuava distante e a inscrição permanecia no chão diante deles.

Todos se sentiram desanimados quando viram o sol passar sobre suas cabeças e começar a decli¬nar em direção ao longínquo horizonte, mas Altheda andou mais rápido e, empenhando mais esforço do que os demais, estimulava-os a seguir seu exemplo, embora tampouco avançasse na subida do morro encantado.

— Coragem, amigos, não fraquejem! — gritava ela, enxugando o suor do rosto.

A medida que as gotas caíam, cintilantes, na terra, a inscrição que bloqueava o caminho desapa¬recia, e eles descobriram que podiam prosseguir.

Encantados com a remoção do segundo obstá¬culo, correram para o alto o mais rápido que pude¬ram, até que, por fim, avistaram a fonte, refulgindo cristalina em meio a árvores e flores.

Antes de alcançá-la, no entanto, encontraram barrando o seu caminho um riacho que circundava o topo do morro. No fundo da água trans¬parente havia uma pedra lisa com as seguintes palavras:

Paguem-me o tesouro do seu passado.

O Cavaleiro Azarado tentou atravessar o curso d'água flutuando sobre seu escudo, mas afundou. As três bruxas o tiraram de dentro do riacho e tentaram saltar por cima da água, mas o riacho não as deixou atravessar, e todo o tempo o sol ia baixando pelo céu.

Eles começaram, então, a refletir sobre o sig¬nificado da mensagem na pedra, e Amata foi a primeira a compreendê-la. Apanhando a varinha, apagou da mente todas as lembranças dos mo¬mentos felizes que passara com o seu amor desa¬parecido e deixou-as cair na correnteza. O riacho as levou para longe, deixando aparecer pedras planas e, finalmente, as três bruxas e o cavaleiro puderam atravessar em direção ao topo do morro.

A fonte refulgiu diante dos quatro, emoldura¬da pelas ervas e flores mais raras e mais belas que jamais tinham visto. O céu coloriu-se de verme¬lho, e chegou a hora de decidir qual deles iria se banhar.

Antes, porém, que chegassem a uma conclusão, a franzina Asha tombou no chão. Exausta com o esforço da subida, estava à beira da morte.

Seus três amigos a teriam carregado até a fonte, mas Asha, em agonia mortal, lhes pediu que não a tocassem.

Então Altheda se apressou a colher as ervas que julgou mais úteis, misturou-as na cabaça de água do Cavaleiro Azarado e levou a poção à boca de Asha.

Na mesma hora, Asha conseguiu se pôr de pé. Além disso, todos os sintomas de sua terrível en¬fermidade tinham desaparecido.

—        Estou curada! — exclamou ela. — Não preciso da fonte; deixem Altheda se banhar!

Altheda, porém, estava ocupada colhendo mais ervas em seu avental.

—        Se fui capaz de curar essa doença, posso ga¬nhar muito ouro! Deixem Amata se banhar!

O Cavaleiro Azarado se inclinou e, com um gesto, indicou a fonte a Amata, mas ela sacudiu a cabeça. O riacho tinha lavado todos os seus desa¬pontamentos de amor, e ela percebia agora que o antigo amado fora insensível e infiel, e que era uma grande felicidade ter se livrado dele.

—        Bom cavaleiro, o senhor deve se banhar, em recompensa por toda a sua nobreza! — disse ela ao Cavaleiro Azarado.

Então ele avançou a armadura tinindo aos úl¬timos raios do sol poente e se banhou na Fonte da Sorte, admirado por ter sido o escolhido entre centenas de outros e atordoado com a sua inacreditável fortuna.

Quando o sol se pôs no horizonte, o Cavaleiro Azarado se ergueu das águas sentindo-se glorioso com o seu triunfo, e se atirou, ainda vestindo a armadura enferrujada, aos pés de Amata, a mulher mais bondosa e bela que já contemplara. Alvoro¬çado com o sucesso, pediu sua mão e seu coração, e Amata, não menos feliz, percebeu que encon¬trara um homem que merecia os dois.

As três bruxas e o cavaleiro desceram o morro juntos, de braços dados, e os quatro levaram vidas longas e venturosas, sem jamais saber nem suspei¬tar que as águas da fonte não possuíam encanto algum.

 

Comentários de Alvo Dumbledore sobre "A Fonte da Sorte"

"A Fonte da Sorte" é um eterno favorito, tanto assim que foi tema da única tentativa de introduzir uma pantomima de Natal nos festejos de Hogwarts.

O nosso mestre de Herbologia à época, professor Herbert Beery,1 um entusiástico aficionado do tea¬tro amador, propôs uma adaptação dessa muito apre¬ciada história infantil como uma surpresa especial de Natal para colegas e alunos. Eu era então um jovem professor de Transfiguração, e Herbert me encarre¬gou dos "efeitos especiais", que incluíam providen¬ciar uma Fonte da Sorte que funcionasse plenamente e a miniatura de um morro coberto de vegetação, que as nossas três heroínas e o nosso herói pareceriam escalar, enquanto a fonte afundaria lentamente no palco e desapareceria de vista.

1 O professor Beery mais tarde deixou Hogwarts para ensinar na A.B.A.D. (Academia Bruxa de Arte Dramática), onde confessou-me, certa vez, ter forte aversão por encenar essa história por acreditá-la azarada.

Creio poder afirmar, sem vaidade, que tanto a mi¬nha fonte quanto o meu morro desempenharam satis¬fatoriamente os papéis que lhes cabiam. O mesmo não se pode dizer, no entanto, do restante do elenco. Esquecendo por instantes as acrobacias do gigantes¬co verme arranjado pelo nosso professor de Trato das Criaturas Mágicas, Silvano Kettleburn, o elemento humano se mostrou desastroso para o espetáculo. O professor Beery, em sua função de diretor, esteve perigosamente desatento à complexidade de emoções que fervilhavam sob o seu próprio nariz. Mal sabia ele que os alunos que protagonizavam Amata e o Cavaleiro Azarado tinham sido namorados até uma hora antes de subir a cortina do palco, momento em que o "Cavaleiro Azarado" transferiu suas afeições para "Asha".

Basta dizer que os nossos aspirantes à sorte nunca chegaram ao alto do morro. A cortina nem bem su¬bira quando o verme do professor Kettleburn - que hoje sabemos ter sido um cinzal2 ingurgitado por um feitiço - explodiu em uma chuva de faíscas e poeira, enchendo o Salão Principal de fumaça e frag¬mentos do cenário. Enquanto os enormes ovos in¬candescentes que o bicho pusera ao pé do meu morro incendiavam as tábuas do soalho, "Amata" e "Asha" se hostilizavam e duelavam com tanta ferocidade que o professor Beery foi apanhado no fogo cruzado, e o corpo docente precisou evacuar o Salão, pois as laba¬redas que então devastavam o palco ameaçavam en¬golfar o auditório. O espetáculo da noite terminou com uma ala hospitalar lotada; passaram-se muitos meses até o Salão Principal perder o cheiro acre de fumaça de madeira, e outros tantos para a cabeça do professor Beery reromar as proporções normais, e o professor Kettleburn deixar de lecionar sob obser¬vação (3). O diretor Armando Dippet impôs uma proi¬bição a futuras pantomimas, uma orgulhosa tradição antiteatral que Hogwarts mantém até hoje.

2 Veja Animais fantásticos & onde habitam para uma descrição conclusiva deste curioso bicho. Jamais devia ser intencionalmente introduzido em um salão com painéis de madeira, nem receber um Feitiço de In¬gurgitamento.

3 O professor Kettleburn sobreviveu a nada menos que sessenta e dois trimestres sob observação durante o tempo em que ocupou o cargo de professor de Trato das Criaturas Mágicas. Suas relações com o meu predecessor em Hogwarts, o professor Dippet, sempre foram tensas, pois este o considerava meio irresponsável. Na época em que me tornei diretor, no entanto, o professor Kettleburn já se acalmara consideravelmente, embora sempre houvesse alguém a comentar com cinismo que, restando-lhe apenas um e meio dos membros com que nascera, ele era forçado a levar a vida menos ativamente.

Apesar do nosso fiasco dramático, "A Fonte da Sorte" é provavelmente o conto de Beedle mais po¬pular, embora, tal como acontece com "O bruxo e o caldeirão saltitante", tenha seus detratores. Mais de um pai de aluno já exigiu a retirada desse conto da biblioteca de Hogwarts, inclusive, por coincidência, um descendente de Bruto Malfoy e antigo membro da diretoria de Hogwarts, o sr. Lúcio Malfoy. O conselheiro apresentou, por escrito, sua exigência de que a história fosse proibida:

Qualquer obra de ficção ou não-ficção que retrate a miscigenação de bruxos e trouxas deve ser banida das estantes de Hogwarts. Não quero que o meu filho seja influenciado a macular a pureza de sua linha¬gem lendo histórias que promovam casamentos entre bruxos e trouxas.

A minha recusa em retirar o livro da biblioteca foi apoiada pela maioria dos membros do Conselho Diretor de Hogwarts. Em resposta, escrevi ao sr. Malfoy explicando a minha decisão:

As famílias de sangue supostamente puro mantêm a sua alegada pureza excluindo os trouxas ou filhos de trouxas de suas árvores genealógicas, deserdan¬do-os ou mentindo sobre sua pureza. Tentam então impingir aos demais a sua hipocrisia, pedindo a exclusão de obras que abordem as verdades que eles negam. Não há um único bruxo ou bruxa no mundo cujo sangue não tenha se misturado ao de trouxas, e, assim sendo, devo considerar ilógica e imoral a remo¬ção de obras que tratem do assunto do acervo de conhe¬cimentos dos nossos alunos. (4)

4 Minha resposta motivou várias outras cartas do sr. Malfoy, mas, como continham principalmente comentários afrontosos sobre a minha sa¬nidade, meus pais e higiene, sua relevância para este comentário é remota.

Esta troca de correspondência marcou o início da longa campanha do sr. Malfoy para que me removes¬sem do cargo de diretor de Hogwarts, e da minha para que o removessem do cargo de Comensal da Morte Favorito de Lord Voldemort.

 

O CORAÇÃO PELUDO DO MAGO

Era uma vez um jovem mago rico, bonito e talen¬toso, que observou que seus amigos agiam como tolos quando se apaixonavam, se enfeitando, an¬dando aos saltos e corridinhas, perdendo o apetite e a dignidade. O jovem mago resolveu jamais se deixar dominar por tal fraqueza, e recorreu às artes das trevas para garantir sua imunidade.

Sem saber do seu segredo, a família do mago achava graça de vê-lo tão distante e frio.

"Tudo mudará", vaticinavam eles, "quando uma donzela atrair seu interesse!"

O jovem mago, porém, permanecia impassí¬vel. Embora muita donzela se sentisse intrigada por seu ar altivo e recorresse às artes mais sutis para agradá-lo, nenhuma conseguia tocar seu co-ração. Ele se vangloriava de sua indiferença e da sagacidade que a produzira.

O frescor da juventude foi dissipando-se e os jovens de mesma idade e posição que o mago co¬meçaram a casar e a ter filhos.

"O coração deles deve ser apenas uma casca", desdenhava ele mentalmente, observando o ridí¬culo comportamento dos jovens pais ao seu redor, "ressecada pelas exigências desses pirralhos chorões!"

E mais uma vez ele se felicitou pela sabedoria da opção que fizera no primeiro momento.

No devido tempo, os pais do mago, já idosos, faleceram. O filho não lamentou a morte deles; ao contrário, considerou-se abençoado por terem de¬saparecido. Agora ele reinava sozinho em seu cas¬telo. Depois de transferir o seu maior tesouro para a masmorra mais profunda, ele se entregou a uma vida desregrada e farta, na qual o seu conforto era o único objetivo dos inúmeros criados.

O mago estava convencido de que devia ser alvo da imensa inveja de todos que contemplavam sua solidão esplêndida e despreocupada. Feroz, portan¬to, foi sua raiva e desgosto, quando um dia ouviu dois dos lacaios discutindo a sua pessoa.

O primeiro criado manifestou pena do mago que, com tanto poder e riqueza, continuava sem alguém que o amasse.

Seu colega, entretanto, desdenhou, perguntan¬do por que um homem com tanto ouro e dono de tão esplêndido castelo não fora capaz de atrair uma esposa.

Tal conversa desferiu um terrível golpe no or¬gulho do mago que os ouvia.

Ele decidiu imediatamente escolher uma espo¬sa, e uma que fosse superior a todas as existentes. Possuiria uma beleza assombrosa e provocaria in¬veja e desejo em todo homem que a contemplasse; descenderia de uma linhagem mágica para que seus filhos herdassem excepcionais dons de magia; e seria dona de uma fortuna no mínimo igual à dele, para garantir sua confortável existência, apesar do acréscimo de pessoas e despesas.

Encontrar tal mulher talvez levasse cinquenta anos, mas aconteceu que, no dia seguinte à sua decisão, chegou à vizinhança, em visita a paren¬tes, uma donzela que correspondia a todos os seus desejos.

Era uma bruxa de prodigioso talento e dona de grande riqueza. Sua beleza era tanta que mexia com o coração de todos os homens que a contem¬plavam, isto é, todos, exceto um. O coração do mago não sentiu absolutamente nada. Contudo, a moça era o prêmio que ele buscava, e, assim sendo, começou a cortejá-la.

Todos que notaram a mudança no comporta¬mento do mago ficaram surpresos e disseram à donzela que ela tivera êxito, onde uma centena de outras havia fracassado.

A jovem, por sua vez, sentiu ao mesmo tem¬po fascínio e repulsa pelas atenções do mago. Ela pressentiu a frieza que havia sob o calor de suas lisonjas, pois jamais conhecera um homem tão estranho e distante. Seus parentes, contudo, conside¬raram essa união extremamente desejável e, muito interessados em promovê-la, aceitaram o convite do mago para um grande banquete em homena¬gem à donzela.

A mesa, carregada com peças de ouro e prata, continha os mais finos vinhos e as comidas mais suntuosas. Menestréis dedilhavam alaúdes de cor¬das sedosas e cantavam um amor que o seu senhor jamais sentira. A donzela sentou-se em um trono ao lado do mago, que lhe falava suavemente, em¬pregando palavras de carinho que roubara dos poe¬tas, sem a mínima idéia do seu real significado.

A donzela ouvia, intrigada, e por fim respon¬deu:

- Você fala bonito, mago, e eu ficaria encanta¬da com suas atenções, se ao menos acreditasse que você tem coração!

O mago sorriu e lhe respondeu que, quanto a isso, ela não precisava temer. Pediu-lhe que o acom¬panhasse e, conduzindo-a para fora do salão, des¬ceu à masmorra trancada à chave onde guardava o seu maior tesouro.

Ali, em uma caixa de cris¬tal encantada, encontrava-se o coração pulsante do mago.

Há muito tempo desligado dos olhos, ouvidos e dedos, o co¬ração jamais se deixara cativar pela beleza, ou por uma voz musical, ou pelo tato de uma pele sedosa. A donzela ficou aterrorizada ao vê-lo, pois o coração encolhera e se cobrira de lon¬gos pêlos negros.

—        Ah, o que você fez! — lamentou ela. — Repo¬nha o coração no lugar a que pertence, eu lhe im¬ploro!

Ao perceber que isto era necessário para agradá-la, o mago apanhou a varinha, destrancou a caixa de cristal, abriu o próprio peito e repôs o coração peludo na cavidade vazia que outrora ocupara.

-           Agora você está curado e conhecerá o verda¬deiro amor! — exclamou a donzela e abraçou-o.

O toque dos macios braços alvos da donzela, o som de sua respiração no ouvido dele, o aroma dos seus cabelos dourados; tudo isto penetrou como uma lança o seu coração recém-despertado. Mas o órgão se corrompera durante o longo exí¬lio, cego e selvagem na escuridão a que fora con¬denado, seus apetites tinham se tornado vorazes e perversos.

Os convidados ao banquete notaram a ausência do anfitrião e da donzela. A princípio despreocu¬pados, começaram, porém, a se sentir ansiosos à medida que as horas passavam e, por fim, decidiram revistar o castelo.

Acabaram encontrando a masmorra, onde uma cena aterrorizante os aguardava.

A donzela jazia morta no chão, de peito aberto, e ao seu lado ajoelhava-se o mago enlouquecido, segurando em uma das mãos ensanguentadas um grande e reluzente coração, que ele lambia e aca¬riciava, jurando trocá-lo pelo seu.

Na outra mão, ele empunhava a varinha, ten¬tando induzir o coração murcho e peludo a sair do próprio peito. O coração, porém, era mais for¬te do que ele e se recusou a renunciar ao controle dos seus sentidos ou a retornar à urna em que es¬tivera trancado por tanto tempo.

Diante do olhar aterrorizado dos convidados, o mago atirou para um lado a varinha e agarrou uma adaga de prata. Jurando jamais ser domina¬do pelo próprio coração, arrancou-o do peito.

Por um momento, o mago permaneceu de joe¬lhos, triunfante, segurando um coração em cada mão; em seguida caiu atravessado sobre o corpo da donzela e morreu.

 

Comentários de Alvo Dumbledore sobre "O coração peludo do mago"

Vimos anteriormente que os dois primeiros contos de Beedle atraíram críticas por seus temas de genero¬sidade, tolerância e amor. "O coração peludo do ma¬go", no entanto, não parece ter sofrido alterações nem muitas críticas nas centenas de anos que transcorre¬ram desde que foi escrito; a história, quando afinal a li nas runas originais, era quase exatamente igual à que minha mãe me contara. Dito isto, "O coração peludo do mago" é de longe a mais horripilante das dádivas de Beedle, e muitos pais não a comparti¬lham com os filhos até achar que eles têm idade su¬ficiente para não ter pesadelos.1

1 Segundo registrou em seu próprio diário, Beatrix Bloxam jamais se re¬cuperou do abalo de ter ouvido a tia contar essa história às suas primas mais velhas. "Por acaso, a minha orelhinha encostou no buraco da fecha¬dura. Só posso imaginar que devo ter ficado paralisada de horror, uma vez que ouvi involuntariamente a repulsiva história, sem falar nos de¬talhes chocantes do caso muitíssimo imoral do meu tio Nobby, a megera local e um saco de bulbos saltadores. O choque quase me matou; pas¬sei uma semana de cama e tão profundamente traumatizada que desenvolvi o hábito de andar durante o sono e toda noite espreitar à mesma fechadura, até que o meu querido pai, zelando pelo meu bem, pôs um Feitiço Adesivo na minha porta na hora de dormir." Aparente¬mente, Beatrix não conseguiu uma maneira de adequar "O coração peludo do mago" aos ouvidos sensíveis das crianças, pois jamais o reescreveu para Os contos do chapéu-de-sapo.

Como explicar, então, a sobrevivência desse conto macabro? Eu argumentaria que "O coração peludo do mago" sobreviveu intacto através dos séculos por¬que fala às profundezas sombrias do nosso ser. Aborda uma das tentações maiores e menos admissíveis em magia: a busca da invulnerabilidade.

Naturalmente, tal busca é nada mais nada menos que uma vã fantasia. Nenhum homem ou mulher vivos, mágicos ou não, jamais escapou de alguma for¬ma de lesão, seja física, seja mental ou emocional. Ferir-se é tão humano quanto respirar. Apesar disso, nós bruxos parecemos particularmente favoráveis à idéia de que podemos dobrar a natureza da existên¬cia à nossa vontade. O jovem mago2 dessa história, por exemplo, conclui que a paixão afeta, adversamen¬te, o seu conforto e segurança. Ele vê o amor como uma humilhação, uma fraqueza, um desperdício dos recursos materiais e emocionais de uma pessoa.

2 [O termo "mago" usado para se referir ao protagonista desse conto é muito antigo. Embora seja intercambiável com "bruxo", designou origi¬nalmente aquele que aprendeu as artes marciais e duelísticas próprias da magia. Era também um título concedido a bruxos que tivessem realizado feitos de bravura, tal como os trouxas são por vezes nomeados cavaleiros por atos de valor. Ao chamar o jovem bruxo dessa história de "mago", Beedle indica que ele já era reconhecido por sua especial perí¬cia em magia ofensiva. Em nossos dias, "mago" é usado de duas manei¬ras: na descrição de um bruxo de aparência excepcionalmente feroz, ou como um título indicativo de extraordinário talento ou realização. As¬sim, Dumbledore, um mago, é bruxo-presidente da Suprema Corte dos Bruxos. JKR]

Naturalmente, o comércio secular de poções de amor comprova que o nosso mago ficcional não está sozinho quando busca controlar o curso imprevisível do amor. A pesquisa para encontrar uma verdadeira poção do amor3 tem continuado até os nossos dias, mas tal elixir ainda não foi criado, e eminentes pre-paradores de poções duvidam que isto seja possível.

3 Hector Dagworth-Granger, fundador da Mui Extraordinária Socieda¬de dos Preparadores de Poções, explica: "Violentas paixonites podem ser induzidas por um competente preparador de poções, mas até hoje ninguém conseguiu criar o vínculo verdadeiramente incondicional, eter¬no, irrompível, o único que pode ser chamado de Amor."

O herói desse conto, no entanto, não está sequer interessado em um simulacro de amor que ele possa criar ou destruir a seu bel-prazer. Quer permanecer imune àquilo que ele considera uma espécie de fra¬queza e, portanto, executa um feitiço das trevas que não seria possível fora de um livro de histórias: guar¬da a sete chaves o seu coração.

Muitos autores observaram a semelhança deste ato com a criação de uma Horcrux. Embora o herói de Beedle não esteja procurando evitar a morte, como Tom Riddle, está separando o que evidentemente não deve ser separado — o corpo e o coração — e, ao fazê-lo, infringe a primeira das Leis Fundamentais da Magia de Adalberto Waffling:

Somente interfira com os mistérios mais profundos — a origem da vida, a essência do eu — se estiver prepa¬rado para enfrentar as consequências mais extremas e perigosas.

E, efetivamente, ao procurar se tornar sobre-humano, esse jovem imprudente se torna inumano. O cora¬ção que ele guardou, escondido, lentamente mur¬cha e cria pêlos, simbolizando sua própria descida à animalidade. Finalmente, o bruxo é reduzido a um violento animal que arrebata o que quer à força, e morre na inútil tentativa de recuperar aquilo que, então, estava para sempre fora do seu alcance - um coração humano.

Embora um tanto antiquada, a expressão inglesa "ter um coração peludo" foi incorporada à linguagem cotidiana para descrever um bruxo ou bruxa frio ou insensível. Honória, minha tia solteirona, sempre ale¬gou que desmanchara um noivado com um bruxo da Seção de Controle do Uso Indevido da Magia porque descobriu em tempo que "ele possuía um coração peludo". (Corria, porém, o boato de que, na realida¬de, ela o surpreendera acariciando libidinosamente uns toletes,4 o que julgou profundamente chocante.) Mais recentemente, o livro de auto-ajuda O coração peludo: um guia para bruxos que não querem se compro¬meter (5) encabeçou a lista dos mais vendidos.

4 Toletes são seres rosados, semelhantes a cogumelos cerdosos. É difícil entender por que alguém iria querer acariciá-los. Maiores informações em Animais fantásticos & onde habitam.

5 Não deve ser confundido com Focinho peludo, coração humano, um relato comovente da luta de um homem contra a licantropia.

 

BABBITTY, A COELHA, E SEU TOCO GARGALHANTE

Há muitos e muitos anos, em uma terra muito distante, vivia um rei apalermado que decidiu que somente ele devia ter poderes mágicos.

Assim, ordenou que o chefe do seu exército for¬masse uma Brigada de Caçadores de Bruxos, e equi¬pou-a com uma matilha de ferozes cães negros.

Ao mesmo tempo, determinou que em cada aldeia e cidade de suas terras fosse lida a seguinte pro¬clamação: "O rei procura um Instrutor de Magia."

Nenhum bruxo ou bruxa ousou se candidatar ao cargo, pois estavam todos escondidos da Bri¬gada de Caçadores de Bruxos.

Entretanto, um astucioso charlatão, sem qual¬quer poder mágico, viu nisso uma chance de enri¬quecer e apresentou-se ao palácio como um bruxo de enorme perícia. O charlatão executou alguns truques simples que convenceram o rei dos seus poderes mágicos, e foi imediatamente nomeado Grande Feiticeiro-Chefe, Mestre Régio de Magia.

O charlatão pediu ao rei que lhe desse um pol¬pudo saco de ouro para ele poder comprar varinhas e outros materiais mágicos necessários. Pediu, ain¬da, vários rubis graúdos para serem usados no lan¬çamento de feitiços curativos e uns dois cálices de prata para guardar e maturar poções. Tudo isso o apalermado rei lhe entregou.

O charlatão guardou o tesouro a salvo em sua própria casa e voltou aos jardins do palácio.

Ele não sabia, no entanto, que estava sendo ob¬servado por uma velha que vivia em um casebre na periferia dos jardins do palácio. Seu nome era Babbitty, e ela era uma lavadeira que mantinha as roupas de cama e mesa do palácio macias, chei-rosas e alvas. Espreitando por trás dos lençóis que secavam no varal, Babbitty viu o charlatão partir dois galhinhos de uma das árvores do rei e desaparecer no interior do palácio.

O charlatão entregou um dos gravetos ao rei e lhe garantiu que era uma varinha de formidável poder.

— Mas somente produzirá resultados — disse o charlatão — quando o senhor se mostrar merecedor.

Toda manhã o charlatão e o apalermado rei saíam aos jardins onde agitavam suas varinhas e bradavam disparates para o céu. O charlatão tinha o cuidado de executar mais truques, de modo a manter o rei convencido da perícia do seu grande feiticeiro e do poder das varinhas que tinham lhe custado tanto ouro.

Certa manhã, quando o charlatão e o rei apa¬lermado faziam floreios com suas varinhas, pula¬vam em círculos e entoavam rimas sem sentido, uma grande gargalhada chegou aos ouvidos do rei. Babbitty, a lavadeira, apreciava o rei e o char¬latão da janela de sua casinha, e gargalhava com tanto gosto que não tardou a desaparecer de vista, fraca demais para continuar de pé.

— Devo parecer muito indigno para fazer a ve¬lha lavadeira dar tantas risadas — disse o rei. Ele parou de pular e agitar a varinha e enrugou a testa.

- Estou cansado de praticar! Quando estarei pronto para realizar feitiços régios diante dos meus súditos, feiticeiro?

O charlatão tentou tranquilizar seu discípulo, assegurando-lhe que logo seria capaz de feitos má¬gicos surpreendentes. Porém, as gargalhadas de Babbitty incomodaram o rei mais do que o charlatão imaginava.

—        Amanhã — disse o rei —, convidaremos nossa corte para assistir ao seu rei realizar mágicas!

O charlatão viu que chegara a hora de apanhar seu tesouro e fugir.

—        Ai de mim, será impossível! Esqueci-me de informar Vossa Majestade que preciso sair amanhã em uma longa viagem...

—        Se você deixar este palácio sem a minha per¬missão, feiticeiro, minha Brigada de Caçadores de Bruxos o perseguirá com os seus cães! Amanhã de manhã você me ajudará a realizar mágicas dian¬te dos nossos lordes e damas, e se alguém rir de mim, mandarei decapitá-lo!

O rei entrou enfurecido no palácio, deixando o charlatão só e amedrontado. Agora nem toda a sua astúcia seria capaz de salvá-lo, pois não pode¬ria fugir nem tampouco ajudar o rei com a magia que nenhum dos dois conhecia.

Procurando uma válvula para aliviar seu medo e raiva, o charlatão se aproximou da janela de Babbitty, a lavadeira. Espiando para dentro da casa, viu a velhinha sentada à mesa, encerando uma varinha. Em um canto às suas costas, os lençóis do rei estavam se lavando sozinhos em uma tina de madeira.

O charlatão compreendeu imediatamente que Babbitty era uma bruxa genuína, e que, tendo lhe causado aquele terrível problema, poderia tam¬bém resolvê-lo.

—        Sua bruxa velha! — berrou o charlatão. — Sua gargalhada me custou caro! Se não me ajudar, vou denunciá-la, e você é que será despedaçada pelos cães do rei!

A velha Babbitty sorriu para o charlatão e tranquilizou-o, dizendo que faria tudo em seu poder para ajudá-lo.

O charlatão lhe deu instruções para se escon¬der em uma moita enquanto o rei apresentava o seu espetáculo de magia, e para executar os feitiços do rei sem que ele soubesse. Babbitty concordou com o plano, mas fez uma pergunta.

—        E, meu senhor, se o rei tentar um feitiço que Babbitty não seja capaz de realizar?

O charlatão zombou.

—        A sua mágica é superior à imaginação daque¬le tolo — garantiu-lhe o homem e se retirou para o castelo muito satisfeito com a própria esperteza.

Na manhã seguinte todos os lordes e damas do reino se reuniram nos jardins do palácio. O rei subiu a um palco à frente deles acompanhado pelo charlatão.

—        Primeiro, farei o chapéu dessa dama desapa¬recer! — anunciou o rei, apontando o seu galhinho para uma dama.

Do meio de uma moita próxima, Babbitty apon¬tou a varinha para o chapéu e o fez sumir. Gran¬de foi o espanto e a admiração da nobreza e forte o seu aplauso para o jubiloso rei.

—        A seguir, farei aquele cavalo voar! — anunciou o rei, apontando o galhinho para o próprio ginete.

Do meio da moita, Babbitty apontou a varinha para o cavalo e o animal se elevou no ar.

Os nobres ficaram ainda mais arrebatados e sur¬presos, e, aos gritos, manifestaram o seu apreço pelo rei mágico.

—        E, agora — disse o rei, correndo o olhar ao re¬dor em busca de uma idéia; e o capitão de sua Bri¬gada de Caçadores de Bruxos correu para o rei.

-           Majestade — disse o capitão — esta manhã, Sabre morreu depois de comer um cogumelo vene¬noso! Ressuscite-o , majestade, com a sua varinha!

E o capitão carregou até o palco o corpo sem vida do maior dos cães caçadores de bruxos.

O apalermado rei brandiu o seu galhinho e apon¬tou para o cão morto. Mas, no meio da moita, Babbitty sorriu, e não se deu sequer o trabalho de er¬guer a varinha, porque nenhuma mágica é capaz de ressuscitar os mortos.

Ao ver que o cão continuava imóvel, os nobres começaram primeiro a murmurar e depois a rir.

Desconfiaram que os primeiros dois feitos do rei, afinal, não tinham passado de simples truques.

Por que não está funcionando? — gritou o rei para o charlatão, que recorreu ao último ardil que lhe restava.

Ali, majestade, ali! — gritou ele, apontando para a moita onde Babbitty estava escondida. — Vejo-a claramente, a bruxa má que está bloquean¬do a nossa magia com os seus próprios feitiços malignos! Prenda-a, alguém, prenda-a!

Babbitty fugiu da moita, e a Brigada de Caça¬dores de Bruxos saiu em sua perseguição, soltan¬do os cães, que latiram longamente, sedentos pelo sangue da bruxa. Mas, ao alcançar uma sebe bai-xa, a bruxa desapareceu de vista, e quando o rei, o charlatão e todos os cortesãos chegaram ao ou¬tro lado, encontraram a matilha caçadora latindo e escarafunchando ao redor de uma árvore velha e curvada.

—        Ela se transformou em uma árvore! — berrou o charlatão e, temendo que Babbitty retomasse sua forma humana e o denunciasse, acrescentou:

— Derrube-a, Vossa Majestade, é assim que se lida com bruxas más!

Imediatamente trouxeram um machado, e a ve¬lha árvore foi abatida com sonoros vivas dos cor¬tesãos e do charlatão.

Entretanto, quando se preparavam para retor¬nar ao palácio, o som de uma gargalhada os fez parar de estalo.

—        Tolos! — exclamou a voz de Babbitty do toco que eles haviam deixado para trás.

—        Bruxos e bruxas não podem ser mortos ra¬chando-os ao meio! Se não acreditam em mim, peguem o machado e cortem o grande feiticeiro ao meio! 

O capitão da Brigada de Caçadores de Bruxos se apressou a fazer a experiência, mas, quando er¬gueu o machado, o charlatão caiu de joelhos pe¬dindo misericórdia e confessando toda a sua mal¬dade. Ao vê-lo sendo arrastado para a masmorra, o toco de árvore gargalhou mais alto que nunca.

—        Quando cortou uma bruxa ao meio, Vossa Majestade desencadeou uma terrível maldição so¬bre o seu reino! — disse o toco ao rei aterrorizado.

- De hoje em diante, cada maldade que o senhor infligir aos meus companheiros bruxos se refletirá como uma machadada do lado do seu corpo, até o senhor desejar morrer.

Ao ouvir isso, o rei também caiu de joelhos e disse ao toco que faria imediatamente uma pro¬clamação, protegendo todos os bruxos do seu rei¬no e deixando-os praticar sua magia em paz.

—        Muito bem — disse o toco —, mas o senhor ainda não compensou Babbitty!

—        Farei qualquer coisa, qualquer coisa que pe¬dir! — exclamou o apalermado rei, torcendo as mãos diante do toco.

- O senhor construirá uma estátua de Babbitty em cima de mim, em memória da sua pobre lavadeira, para lembrá-lo para sempre de sua própria tolice! — ordenou o toco.

O rei concordou imediatamente e prometeu contratar o maior escultor da terra para fazer uma estátua de ouro puro. Depois o envergonhado rei e toda a nobreza retornaram ao palácio, deixando o toco dando gargalhadas às suas costas.

Quando os jardins se esvaziaram novamente, esgueirou-se do buraco entre as raízes do toco uma velha coelha robusta e bigoduda com uma vari¬nha presa entre os dentes. Babbitty saiu saltando pelos jardins para muito longe, a estátua de ouro da lavadeira, que recobria o toco, durou para sem¬pre, e nunca mais os bruxos foram perseguidos na¬quele reino.

 

Comentários de Alvo Dumbledore sobre "Babbitty, a Coelha, e seu Toco Gargalhante"

A história de "Babbitty, a Coelha, e seu Toco Gar¬galhante" é, sob muitos aspectos, o conto de Beedle mais "real", na medida em que a magia descrita na história está quase totalmente de acordo com as co¬nhecidas leis da magia.

Foi graças a essa história que muitos de nós desco¬brimos que a magia não podia ressuscitar os mortos — o que foi um grande desapontamento e um cho¬que, convencidos que estávamos na infância de que nossos pais seriam capazes de acordar os nossos ratos e gatos com um aceno de varinha. E, embora tenham transcorrido uns seis séculos desde que Beedle escre¬veu esse conto, e desde então tenhamos concebido inúmeras maneiras de manter a ilusão da presença continuada dos entes que amamos,1 os bruxos ainda não descobriram como juntar corpo e alma uma vez que a morte ocorra. Diz o eminente filósofo bruxo Bertrand de Pensées-Profondes em sua famosa obra Um estudo da possibilidade de reverter os efeitos metafísicos e reais da morte natural, com especial atenção à reintegra¬ção da essência com a matéria: "Desistam. Isto jamais acontecerá."

1 [As fotos e os retratos de bruxos têm movimentos e (no caso destes últimos) falam como seus personagens. Outros objetos raros, como o Espelho de Ojesed, podem também refletir mais do que uma imagem estática de alguém querido que perdemos. Os fantasmas são versões transparentes, dinâmicas, falantes e pensantes dos bruxos e bruxas que desejaram, por alguma razão, permanecer na terra. JKR]

O conto de Babbitty, a Coelha, porém, nos ofere¬ce uma das primeiras menções literárias a um animago, pois Babbitty, a lavadeira, é dotada dessa rara habilidade mágica de se transformar em animal, quando quer.

Os animagos formam uma pequena fração da po¬pulação bruxa. Atingir a transformação perfeita e espontânea de humano para animal exige muito es¬tudo e prática, e muitos bruxos consideram que seu tempo pode ser melhor empregado em outras atividades. Certamente, a aplicação de tal talento é limitada a não ser que a pessoa tenha grande necessi¬dade de se disfarçar ou se ocultar. Por esta razão, o Ministério da Magia insiste em registrar os animagos, pois não resta dúvida de que tal tipo de feitiço tem maior utilidade para aqueles que se dedicam a atividades sub-reptícias, secretas ou até criminosas.2

2 [A professora McGonagall, diretora de Hogwarts, me pediu que escla¬recesse que ela se tornou um animago em decorrência de suas extensas pesquisas em todos os campos da Transfiguração, e que jamais usou sua habilidade de se transformar em gato com nenhum objetívo sub-reptício, à exceção das atividades legais em favor da Ordem da Fênix, nas quais o sigilo e o disfarce eram imperativos. JKR]

É duvidoso que algum dia tenha havido uma la¬vadeira capaz de se transformar em coelha; entretan¬to, alguns historiadores da magia têm sugerido que Beedle criou Babbitty à feição da famosa francesa Lisette de Lapin, que foi condenada por feitiçaria em Paris, em 1422. Para assombro dos seus carcereiros trouxas, que mais tarde foram julgados por ajudar a bruxa a escapar, Lisette sumiu de sua cela prisional na véspera de sua execução. Embora nunca tenha se provado que Lisette fosse um animago que conseguiu se espremer entre as grades da janela de sua cela, subsequentemente, um grande coelho branco foi avista¬do atravessando o Canal da Mancha em um caldeirão equipado com uma vela, e um coelho semelhante tor¬nou-se mais tarde conselheiro de confiança na corte do rei Henrique VI.3

O rei na história de Beedle é um trouxa imbecil que, ao mesmo tempo, cobiça e teme a magia. Ele acredita que pode se tornar bruxo simplesmente aprendendo encantamentos e agitando uma varinha.4

3          Isto pode ter contribuído para a reputação de instabilidade mental daquele rei trouxa.

4 Conforme demonstraram as intensas pesquisas do Departamento de Mistérios que remontam a 1672, bruxos nascem feitos. Ainda que a habilidade fortuita de realizar mágicas ocorra em pessoas que aparentemente descendem de não-bruxos (e embora vários estudos sugiram que terá sempre havido alguém bruxo em sua árvore genealógica), trouxas não podem realizar mágicas. O melhor — ou pior — a que pode¬riam aspirar são eleitos aleatórios e não controláveis gerados por uma varinha mágica genuína, que, sendo um instrumento supostamente canalizador de magia, retém, por vezes, um poder residual que pode descarregar em um dado momento — veja também as notas sobre a tradição das varinhas em "O conto dos três irmãos".

Ignora inteiramente a verdadeira natureza da magia e dos bruxos, e, portanto, engole as absurdas suges¬tões tanto do charlatão quanto de Babbitty. Tal ati¬tude é típica de um determinado tipo de mentes trouxas: em sua ignorância, estão prontas a aceitar toda sorte de impossibilidades a respeito da magia, inclusive as hipóteses de que Babbitty se transfor¬me em uma árvore que ainda pode pensar e falar. (Neste ponto, vale ainda notar que, embora Beedle use o artifício de fazer uma árvore falar para ressaltar como o rei trouxa é ignorante, ele nos pede também para acreditar que Babbitty é capaz de falar enquan¬to coelho. Isto poderia ser uma licença poética, mas acho mais provável que Beedle tenha ouvido falar de animagos sem jamais ter conhecido um, porque esta é a única liberdade que ele toma em relação às leis da magia em sua história. Os animagos não re¬têm o poder da fala humana enquanto sob a forma animal, embora conservem a capacidade humana de raciocinar. Isto, como qualquer escolar sabe, é a di¬ferença fundamental entre ser animago e se trans¬figurar em animal. Neste último caso, a pessoa se transforma inteiramente em um animal e, em con-sequência, desconhece a magia, perde a consciência de ter sido bruxo, e precisaria de alguém que o trans¬figurasse em sua forma original.)

Creio ser possível que, ao preferir que sua heroína finja se transformar em árvore e ameace o rei com a dor de uma machadada no próprio corpo, Beedle te¬nha se inspirado em tradições e práticas reais da ma¬gia. As árvores com madeira apropriada para varinhas sempre foram ferozmente protegidas por seus fabri¬cantes, que cuidam delas, e quando alguém as corta para roubá-las, se arrisca a expor-se não apenas à ma¬lícia dos tronquilhos5 que normalmente fazem seus ninhos ali, como também a efeitos adversos dos Fei¬tiços de Proteção com que seus donos as cercaram. Na época de Beedle, a Maldição Cruciatus ainda não tinha sido declarada ilegal pelo Ministério da Magia,6 e poderia ter produzido a exata sensação que Babbitty usa para ameaçar o rei.

5 Para a descrição completa desses pequenos e curiosos habirantes das árvores, veja Animais fantásticos & onde habitam.

6 As Maldições Cruciatus, Imperius e Avada Kedavra foram classifica¬das como Imperdoáveis em 1717, com as mais rigorosas penalidades associadas ao seu uso.

 

O CONTO DOS TRÊS IRMÃOS

Era uma vez três irmãos que estavam viajando por uma estrada deserta e tortuosa ao anoitecer... Depois de algum tempo, os irmãos chegaram a um rio fundo demais para vadear e perigoso de¬mais para atravessar a nado. Os irmãos, porém, eram versados em magia, então simplesmente agitaram as mãos e fizeram aparecer uma ponte sobre as águas traiçoeiras. Já estavam na metade da travessia quando viram o caminho bloqueado por um vulto encapuzado.

E a Morte falou. Estava zangada por terem lhe roubado três vítimas, porque o normal era os viajantes se afogarem no rio. Mas a Morte foi astuta. Fingiu cumprimentar os três irmãos por sua magia, e disse que cada um ganhara um prêmio por ter sido inteligente o bastante para lhe escapar.

Então, o irmão mais velho, que era um homem combativo, pediu a varinha mais poderosa que exis¬tisse: uma varinha que sempre vencesse os duelos para seu dono, uma varinha digna de um bruxo que derrotara a Morte! Ela atravessou a ponte e se dirigiu a um vetusto sabugueiro na margem do rio, fabricou uma varinha de um galho da árvore e entregou-a ao irmão mais velho.

Então, o segundo irmão, que era um homem arrogante, resolveu humilhar ainda mais a Morte e pediu o poder de restituir a vida aos que ela le¬vara. Então a Morte apanhou uma pedra da mar-gem do rio e entregou-a ao segundo irmão, dizen¬do-lhe que a pedra tinha o poder de ressuscitar os mortos.

Então, a Morte perguntou ao terceiro e mais moço dos irmãos o que queria. O mais moço era o mais humilde e também o mais sábio dos ir¬mãos, e não confiou na Morte. Pediu, então, algo que lhe permitisse sair daquele lugar sem ser se¬guido por ela. E a Morte, de má vontade, lhe en¬tregou a própria Capa da Invisibilidade.

Então, a Morte se afastou para um lado e deixou os três irmãos continuarem viagem e foi o que eles fizeram, comentando, assombrados, a aventura que tinham vivido e admirando os presentes da Morte.

No devido tempo, os irmãos se separaram, cada um tomou um destino diferente.

O primeiro irmão viajou uma semana ou mais e, ao chegar a uma aldeia distante, procurou um colega bruxo com quem tivera uma briga. Arma¬do com a varinha de sabugueiro, a Varinha das Varinhas, ele não poderia deixar de vencer o due¬lo que se seguiu. Deixando o inimigo morto no chão, o irmão mais velho dirigiu-se a uma estala¬gem, onde se gabou, em altas vozes, da poderosa varinha que arrebatara da própria Morte, e de que a arma o tornava invencível.

Na mesma noite, outro bruxo aproximou-se sor¬rateiramente do irmão mais velho enquanto dor¬mia em sua cama, embriagado pelo vinho. O ladrão levou a varinha e, para se garantir, cortou a garganta do irmão mais velho.

Assim, a Morte levou o primeiro irmão.

Entrementes, o segundo irmão viajou para a própria casa, onde vivia sozinho. Ali, tomou a pe¬dra que tinha o poder de ressuscitar os mortos e virou-a três vezes na mão. Para sua surpresa e ale-gria, a figura de uma moça que tivera esperança de desposar antes de sua morte precoce surgiu ins¬tantaneamente diante dele.

Contudo, ela estava triste e fria, como que sepa¬rada dele por um véu. Embora tivesse retornado ao mundo dos mortais, seu lugar não era ali, e ela sofria. Diante disso, o segundo irmão, enlouquecido pelo desesperado desejo, matou-se para poder verdadeiramente se unir a ela.

Assim, a Morte levou o segundo irmão.

Embora a Morte procurasse o terceiro irmão du¬rante muitos anos, jamais conseguiu encontrá-lo. Somente quando atingiu uma idade avançada foi que o irmão mais moço despiu a Capa da Invisibilidade e deu-a de presente ao filho. Acolheu, então, a Morte como uma velha amiga e acompanhou-a de bom grado, e, iguais, partiram desta vida.

 

Comentários de Alvo Dumbledore sobre "O conto dos três irmãos"

Quando eu era criança essa história me causou uma profunda impressão. Ouvi-a primeiramente conta¬da por minha mãe, e logo tornou-se o conto que eu pedia com mais frequência na hora de dormir. Isto sempre provocava discussões com o meu irmão mais novo, Aberforth, cuja história favorita era "Bodalhão, o Bode Resmungão".

A moral de "O conto dos três irmãos" não poderia ser mais clara: os esforços humanos para evadir ou superar a morte estão sempre fadados ao desaponta¬mento. O terceiro irmão da história ("o mais humilde e também o mais sábio") é o único que compreende isso, pois, tendo escapado uma vez da morte, por um triz, o melhor que poderia esperar era adiar o próximo encontro o máximo possível. O mais moço sabe que zombar da Morte - envolver-se em violência, como o primeiro irmão, ou ocupar-se da sombria arte da necromancia (1), como o segundo irmão — significa medir forças com um inimigo ardiloso que não pode perder.

A ironia é que se formou uma curiosa lenda em torno dessa história, que contradiz exatamente a mensagem original. A lenda argumenta que os prê¬mios que a Morte dá aos irmãos — uma varinha imbatível, uma pedra capaz de ressuscitar os mortos e uma Capa da Invisibilidade imperecível — são objetos verdadeiros que existem no mundo real. E vai além: se alguém vem a se tornar o legítimo possui¬dor dos três, torna-se então "senhor da Morte", o que tem sido comumente entendido que será invulnerável, e mesmo imortal.

1 [Necromancia é a magia negra que ressuscita os mortos. É um ramo da magia que nunca teve sucesso, como a nossa história deixa bem claro. JKR]

Podemos rir com uma certa tristeza do que isto nos diz da natureza humana. A interpretação mais caridosa seria: "A esperança brota eternamente.2 Ain¬da que, segundo Beedle, dois desses três objetos sejam extremamente perigosos, e sua clara mensa¬gem é que, no fim, a Morte virá nos buscar, uma mi¬noria na comunidade bruxa insiste em acreditar que Beedle estava lhes enviando uma mensagem cifra¬da, dizendo exatamente o inverso do que escreveu à tinta, mensagem esta que somente eles são suficien¬temente inteligentes para entender.

2 [A citação demonstra que Alvo Dumbledote era não só excepcional¬mente instruído em termos de bruxaria, como também familiarizado com os escritos do poeta trouxa Alexander Pope. JKR]

Tal teoria (ou talvez "desesperada esperança" seja o termo mais preciso) é respaldada por pouquíssi¬mas provas reais. É verdade que a Capa da Invisibilidade, embora rara, existe em nosso mundo; contudo, a história deixa claro que a Capa da Morte é de uma durabilidade ímpar.3 Durante os muitos séculos que medeiam a época de Beedle e a nossa, ninguém ja¬mais afirmou ter encontrado a Capa da Morte. A ex¬plicação dos verdadeiros crentes é a seguinte: ou os descendentes do terceiro irmão desconhecem a ori¬gem da capa, ou a conhecem e estão resolvidos a com¬provar a sabedoria do seu antepassado, não alardean¬do esse fato.

3 [As Capas da Invisibilidade não são, em geral, infalíveis. Podem ras¬gar ou se tornar opacas com a idade, ou os feitiços nela lançados po¬dem enfraquecer, ou ser anulados por Feitiços de Revelação. É por isso que os bruxos habitualmente recorrem, no primeiro caso, aos Feitiços da Desilusão para se camuflarem ou se ocultarem. Alvo Dumbledore era conhecido por sua capacidade de executar um Feitiço da Desilusão tão poderoso que se tornava invisível sem recorrer à capa. JKR]

Muito naturalmente, a pedra tampouco foi encon¬trada. Observei anteriormente, ao comentar "Babbitty, a Coelha, e seu Toco Gargalhante", que continua¬mos incapazes de ressuscitar os mortos, e temos todas as razões para supor que isto jamais acontecerá. Vis substituições foram naturalmente ensaiadas pelos bruxos das trevas criadores dos Inferi,4 que são apenas fantoches, e não seres humanos de fato ressuscitados. Acresce que a história de Beedle é muito explícita quanto ao fato de que o amor perdido do segundo ir¬mão nunca ressurgiu realmente dos mortos. Foi en¬viado pela Morte para atrair o segundo irmão às suas garras e, portanto, manteve-se fria, distante, tantalizantemente presente e ausente.5

4  [Inferi são cadáveres reanimados por magia negra. JKR]

5 Muitos críticos acreditam que Beedle se inspirou na Pedra Filosofal, elemento essencial do Elixir da Vida que induz a imortalidade, quando criou essa pedra capaz de ressuscitar os mortos.

Resta-nos, então, a varinha, e aqui os que se obs¬tinam em acreditar na mensagem secreta de Beedle têm pelo menos indícios históricos para fundamen¬tar suas delirantes suposições. Seja porque gostem de se vangloriar ou intimidar seus possíveis adversá¬rios, seja porque realmente acreditam no que dizem — o fato é que os bruxos há séculos afirmam possuir uma varinha mais poderosa do que qualquer outra, até mesmo uma varinha "invencível", a Varinha das Varinhas. Alguns chegaram ao exagero de alegar que sua varinha é feita de sabugueiro, como a que a Morte supostamente fabricou. Tais objetos receberam no¬mes, entre os quais "a Varinha do Destino" e "a Va¬rinha da Morte".

Não admira que velhas superstições tenham se desenvolvido em torno de nossas varinhas, que são, afinal, nossas ferramentas e armas mágicas mais im¬portantes. Algumas (e, portanto, seus donos) são su¬postamente incompatíveis:

Se a varinha dele é carvalho, e a dela, azevinho

Casarem-se os dois será um descaminho

ou indicam falhas no caráter:

Castanheiro preguiçoso, sorveira falastrona

freixo queixo-duro, aveleira resmungona

E, com efeito, nessa categoria de máximas sem com¬provação encontramos:

Varinha de sabugueiro, azar o ano inteiro.

Seja porque a Morte fabrica a varinha ficcional com sabugueiro na história de Beedle, seja porque os bru¬xos sedentos de poder ou violentos têm persisten¬temente afirmado que suas varinhas são feitas de sabugueiro, esta madeira não goza da preferência dos fabricantes de varinhas.

A primeira alusão bem documentada a uma va¬rinha de sabugueiro dotada de poderes particular¬mente fortes e perigosos foi àquela que pertenceu a Emerico, cognominado "o Mal", um bruxo de vida curta, mas excepcionalmente agressivo, que aterrorizou o sul da Inglaterra no início da Idade Média. Morreu como tinha vivido, em um encarniçado due¬lo com outro bruxo conhecido por Egberto. Ignora-se que fim levou Egberto, embora a expectativa de vida dos duelistas medievais fosse geralmente baixa. Nos tempos anteriores à criação de um Ministério da Magia para regular o uso da magia negra, os due¬los eram geralmente fatais.

Um século depois, outro personagem desagradá¬vel, de nome Godelot, expandiu o estudo da magia negra registrando uma coleção de feitiços perigosos, com o auxílio de uma varinha descrita como "mia amijga mas maluada e sottill, cum coorpo de sabu¬gueiro, que conhece camijnhos de magia mui malig¬na". (Magia mui maligna se tornou o título da obra-prima de Godelot.)

Como podemos observar, Godelot considera sua varinha uma colaboradora, quase uma instrutora. Aqueles que estão familiarizados com as tradições das varinhas6 concordarão que elas realmente absor¬vem o conhecimento de quem as usa, embora tal processo seja imprevisível e imperfeito; é preciso le-var em consideração todo tipo de fatores adicionais, tais como as relações entre a varinha e seu usuário, para compreender a eficiência do seu desempenho com determinado indivíduo.

6 Como eu.

Ainda assim, é prová¬vel que uma varinha hipotética que tenha passado pelas mãos de muitos bruxos das trevas teria, no mínimo, uma marcada afinidade pelos tipos de magia mais perigosos que há.

A maioria dos bruxos prefere uma varinha que os tenha "escolhido" a qualquer outra de segunda mão, precisamente porque esta última terá adquirido há¬bitos do seu dono anterior que podem não ser compa¬tíveis com o estilo de magia do novo dono. A prática comum de enterrar (ou queimar) a varinha com o seu dono, quando ele morre, também contribui para im¬pedir que uma varinha aprenda com numerosos mes¬tres. Os que acreditam na varinha de sabugueiro, no entanto, sustentam que, dada a maneira com que ela sempre transferiu sua lealdade entre donos — o próximo superando o anterior, em geral matan¬do-o —a varinha de sabugueiro nunca foi destruída nem enterrada, antes sobreviveu para acumular sabe¬doria, força e poder muito além do normal.

Sabe-se que Godelot pereceu em seu próprio po¬rão, onde foi trancafiado pelo filho demente, Hereward. É de se supor que o filho tenha se apossado da varinha do pai, ou este último teria conseguido fugir, mas que destino Hereward terá dado à varinha não sabemos ao certo. Sabemos, sim, que uma varinha chamada "Varinha de Eldrun" por seu dono, Barnabás Deverill, surgiu no início do século XVIII, e que este bruxo a usou para talhar sua reputação de guer¬reiro temível, até seu reino de terror ser encerrado pelo igualmente notório Loxias, que lhe tomou a varinha e a rebatizou de "a Varinha da Morte", usan¬do-a para destruir qualquer um que o desagradasse. É difícil acompanhar a trajetória subsequente da va¬rinha de Loxias, pois muitos alegam tê-lo matado, inclusive a própria mãe.

O que deve ocorrer a qualquer bruxo inteligente que estude a pretensa história da Varinha das Varinhas é que todo homem que afirme ter sido seu dono7 insistiu em sua "invencibilidade", quando os fatos que se conhecem sobre sua passagem pelas mãos de muitos donos demonstram não só que ela foi vencida centenas de vezes, como atraiu tanta confusão quanto Bodalhão, o Bode Resmungão, atraía moscas. Em últi¬ma análise, a busca pela Varinha das Varinhas corro¬bora uma observação que tive oportunidade de fazer muitas vezes no curso de minha longa vida: que os humanos têm um pendor para escolher precisamen-te as coisas que lhes fazem mal.

7 Nenhuma bruxa jamais afirmou ter sido dona da Varinha das Vari¬nhas. Extraiam disso a conclusão que quiserem.

Qual de nós, porém, teria revelado a sabedoria do terceiro irmão, se lhe fosse oferecido escolher o me¬lhor presente da Morte? Bruxos e trouxas são igual¬mente imbuídos de sede de poder; quantos teriam resistido à "Varinha do Destino"? Que ser humano, tendo perdido um ente amado, poderia resistir à tentação da Pedra da Ressurreição? Mesmo eu, Alvo Dumbledore, acharia mais fácil recusar a Capa da Invisibilidade; o que prova apenas que, esperto como sou, continuo sendo um bobalhão tão grande quan¬to os demais.

 

                                                                                            J. K. Rowling

 

 

                      

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