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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


Base em Vênus / Kurt Mahr
Base em Vênus / Kurt Mahr

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Base em Vênus

 

Terceira Potência de Perry Rhodan foi reconhecida como Estado legítimo pelas potências da Terra, e com isso as lutas em torno da cúpula energética montada no deserto de Gobi cessaram como por encanto.

Mas nem por isso termina a luta secreta, pois os potentados da Terra ainda alimentam uma desconfiança extrema face à Terceira Potência. Não querem conformar-se com o fato de que depois de ter realizado sua missão na Lua, a bordo da Stardust, onde descobriu o cruzador espacial dos arcônidas, Perry Rhodan manipula os acontecimentos deste mundo.

Mas Perry segue seu caminho, imperturbável. E o próximo passo dessa caminhada, que conduzirá à transformação da Terra numa potência interestelar, é a instalação da Base em Vênus... 

 

                   

 

Aquele deserto nunca vira tamanha atividade, desde que as hordas de Gengis Khan passaram por ali.

Por entre os grupos de especialistas que haviam chegado ao interior da cúpula energética e começavam a executar as ordens de Rhodan, mal se notavam os robôs dos arcônidas.

Embora há bastante tempo se encontrassem em minoria, ainda executavam o maior volume de trabalho. Mas os especialistas e as máquinas terrenas continuavam a chegar ininterruptamente. Dentro de alguns dias os pratos da balança se inclinariam para o outro lado.

Nesses dias de nervosismo causado pelo inimigo extraterreno, a visão do trabalho que se desenvolvia naquele lugar proporcionava certa satisfação a Perry Rhodan. Tudo corria de acordo com seus desejos. A indústria de acabamento ali instalada que, no entendimento dele, era o único fator que poderia conferir à humanidade a preponderância que teria de exercer nessa área da galáxia, crescia com o máximo de rapidez. O complexo de edifícios estava quase concluído. Dentro de uns quinze a vinte dias se defrontariam com o problema de saber se Homer G. Adams conseguiria realizar em tempo a planejada fusão das indústrias terrenas de acessórios, a fim de que o fornecimento de máquinas-ferramentas não sofresse interrupções.

Rhodan procurou convencer-se de que o tempo trabalhava a seu favor. Chegara o momento em que potências estranhas começavam a se interessar pela Terra. Conseguiram repelir o ataque da nave-fuso de Fantan, e também conseguiriam defender-se dos Deformadores Individuais, sem que a Terra corresse um risco excessivo. Mas tudo isso representava apenas o princípio de uma série de confrontos; e, ao que tudo indicava, muitos deles teriam um caráter hostil.

A Terra precisava de tempo. Não era possível eliminar da noite para o dia a vantagem que as raças estranhas haviam alcançado.

Talvez fosse possível fazê-lo dentro de duzentos ou trezentos anos.

“Se nos deixarem esse tempo”, pensou Rhodan, “não teremos nada a temer.”

Nos últimos dias seus pensamentos muitas vezes se moviam num verdadeiro torvelinho, pois não sabia de que problema devia ocupar-se em primeiro lugar. Compreendia o espanto que a atividade febril realizada nas margens do lago salgado produzia em Crest.

Quem se desse ao trabalho de pensar nisso veria que era incrível que coisas tão fabulosas tivessem sido realizadas por tão poucos homens num espaço de tempo tão reduzido.

Mas esse punhado de homens o havia feito. Impusera sua vontade aos homens, deixara a economia terrena de pernas para o ar. Fizeram com que as grandes potências os reconhecessem e se convencessem de que sem eles, isto é, sem a Terceira Potência, nada poderia ser feito na Terra e nos seus arredores.

 

— Não devemos esperar muito, Rhodan! — insistiu Bell, enrijecendo o corpo musculoso e arrepiando os cabelos ruivos numa atitude de desafio. — Precisamos antes de mais nada de um posto de reserva. Temos de...

Rhodan fez um gesto tranqüilizador.

— Não vamos precipitar nada, Bell. Decolaremos daqui a duas horas.

— Está bem — respondeu Bell. — Quais são os planos?

— Pousaremos na Lua. Não quero que o velho cruzador espacial espere por mais tempo. Precisamos de muita coisa que anda jogada por lá. Da Lua iremos diretamente a Vênus.

Interrompeu-se. Parecia pensativo.

— Você tem razão — disse depois de algum tempo. — Antes de mais nada precisamos de um posto de reserva.

A idéia era clara e simples. Fossem quais fossem as condições na Terra e nas suas proximidades, não havia nada que pudesse garanti-los contra um ataque maciço de uma raça estranha, lançado de surpresa. Rhodan achava que seria uma leviandade correr o risco de um extermínio total por um tempo maior que o estritamente necessário. Se instalasse uma base da Terceira Potência em Vênus não estaria eliminando o perigo, mas evitaria que a catástrofe fosse total.

Crest e Thora, antigos comandantes do cruzador espacial dos arcônidas, destruído na Lua pelos foguetes dos terráqueos, concordavam com o plano de Rhodan, embora não se interessassem muito por ele. Só desejavam que a tecnologia terrena, que passava por um desenvolvimento vertiginoso, logo atingisse uma fase que lhe permitisse construir uma nave semelhante àquela com que haviam pousado na Lua. Crest costumava dizer com certa ironia:

— Tivemos de parar no canto mais afastado da galáxia para compreender que a situação do Império não é nada boa. Ninguém poderá levar a mal que queiramos voltar para casa quanto antes. É bem verdade — costumava acrescentar em tom sério — que devemos agradecer ao destino. O Império precisa de um aliado, para enfrentar as situações que surgirão no futuro. E não poderíamos encontrar aliado melhor que a humanidade terrena.

Thora hesitaria em fazer coro com estas palavras. A luta que sua razão travava, com intensidade variável, contra o desprezo intuitivo e emocional que nutria pela humanidade, ainda não estava finda. Thora ainda não se conformara com a idéia de lidar com os homens de igual para igual. Não se sabia se no seu pensamento Perry Rhodan constituía uma exceção.

 

A nave auxiliar Good Hope decolou ao escurecer. As calculadoras automáticas não levaram mais que alguns minutos para determinar a rota da Lua e regular o dispositivo direcional automático. O único trabalho da tripulação consistia em comprimir um botão que dava início à operação de decolagem.

A Good Hope decolou com empuxo máximo. O impulso produzido pelos feixes corpusculares que saíam dos reatores à velocidade da luz conferiu-lhe uma aceleração inicial de quase 500 g.

A pressão formidável gerada por essa aceleração foi neutralizada no interior da nave. A força de aceleração reinante a bordo da Good Hope nunca era superior a l g. Uma circunstância que favorecia a tripulação era a de que os valores da aceleração da queda nos mundos Árcon e Terra só divergiam de poucos por cento. Nessas condições uma viagem à Lua só durava alguns minutos.

Rhodan deixara a Terra tranqüilo, quase alegre. Tako Kakuta, teleportador e subchefe do Exército dos Mutantes, trouxera boas notícias. O comando do exército fora transferido a Ras Tshubai, pois Tako participaria da expedição. Ras Tshubai dispunha como que de um de cão de fila na pessoa da pequena Betty Toufry, uma menina dotada de capacidades espantosas. Rhodan estava convencido de que Ras com sua atividade incansável, mas prudente, seria o homem indicado para dirigir a ação contra os Deformadores Individuais. Além disso, não haveria a menor dificuldade em interromper a expedição e voltar à Terra pelo caminho mais breve, se surgissem notícias alarmantes.

Rhodan pensou em Ernst Ellert. Sentiu-se possuído pela contrariedade que costumava apossar-se dele sempre que se lembrava da perda desse elemento tão valioso. Ellert era um mutante que possuía um dom singular. Teletemporação era o nome que Rhodan dera à capacidade de que o mesmo se achava investido. Reginald Bell usava uma expressão mais prosaica. Costumava dizer que Ellert era um homem que sabia passear, em espírito, no futuro.

Ellert parecia morto, e as esperanças haviam morrido com ele. Às vezes Rhodan chegava a pensar que, seguindo uma lei metafísica ainda desconhecida, a natureza havia corrigido a si mesma, eliminando Ellert. Ellert era um monstro na verdadeira acepção da palavra; chegava a ser mais monstruoso que os Dl.

Quando Rhodan espantou esses pensamentos com um movimento cansado da mão, a Good Hope já se preparava para as manobras de alunissagem. Depois de realizar um movimento de translação correspondente a um quarto da circunferência da Lua, a nave se dirigiu para o montão de destroços formado pelos restos do antigo cruzador espacial dos arcônidas. Os instrumentos de medição revelaram que a radiatividade dos destroços já se reduzira a um grau que não oferecia o menor perigo.

O som estridente do aparelho localizador constituiu um acontecimento um tanto sensacional. Bell, que manejava o localizador, relatou:

— Objeto desconhecido em Pi zero-cinco, Teta três-três-seis. Não se percebe qualquer movimento na superfície lunar.

Rhodan procurou na tela as coordenadas indicadas por Bell. O objeto parecia miseravelmente pequeno. Não passava de um pontinho reluzente em meio à solidão da Lua.

Rhodan desligou o dispositivo direcional automático e passou a pilotar a nave. Sem olhar, comprimiu a chave do telecomunicador. A voz do Dr. Manoli fez-se ouvir.

— O que houve, Rhodan?

— Localizamos alguma coisa, Manoli — explicou Rhodan. — Procure comunicar-se com o objeto e verifique se há alguma resposta. Bell lhe dará as coordenadas.

— Entendido.

Enquanto a Good Hope sobrevoava os destroços do cruzador espacial e o pequeno ponto reluzente situado à sua margem, Bell murmurava as coordenadas que sempre mudavam no aparelho de telecomunicação.

O Dr. Manoli trabalhava com o raio direcional, usando um ângulo bem aberto. Depois de algum tempo informou:

— Nenhuma resposta, Rhodan!

Rhodan gritou em direção ao aparelho de telecomunicação de Bell:

— Mantenha o contato. Descerei mais. Descrevendo uma curva bem ampla e aproximando-se dos destroços em outra direção, a Good Hope perdia altitude.

A distância da superfície lunar ainda era de oitenta quilômetros. Apesar disso os telescópios de bordo deviam ser capazes de identificar o objeto reluzente.

Rhodan duvidava de que se tratasse de um sinal da existência dos Deformadores Individuais. Não havia nenhum motivo especial para esse tipo de dúvida, a não ser a esperteza super-humana dos Dl, que não lhes permitiria deixar um objeto tão visível numa área em que mais cedo ou mais tarde surgiria um veículo humano. Seria uma armadilha?

Rhodan virou-se. Crest estava deitado num dos leitos que se encontravam junto à parede da sala de comando; Thora encontrava-se a seu lado.

— Thora, quer fazer o favor de assumir o posto de combate?

Uma expressão de tédio surgiu no rosto da arcônida. Levantou-se com um breve aceno de cabeça e dirigiu-se a um painel de menos de um metro quadrado, que incluía as chaves de comando de todas as armas que a Good Hope trazia a bordo.

Rhodan manteve a nave na vertical do ponto cintilante.

— Bell, já descobriu o que é?

Bell ajustou o telescópio e projetou a imagem sobre uma das telas.

— Santo Deus! — gemeu. — É uma nave terrena igual à Stardust!

Rhodan, num movimento rápido, girou a poltrona.

— Pousar! — ordenou.

O grito de Bell fez com que a mão que se preparava para acionar a chave de comando parasse a meio caminho:

— Espere...!

Todos os olhares concentraram-se sobre a tela localizadora de microondas, onde a nave estranha aparecia sob a forma de uma mancha luminosa. Dois pontos brancos destacaram-se dessa mancha e, deslocando-se numa velocidade formidável, dirigiam-se para o centro da tela.

Bell virou a cabeça. Seus olhos estavam arregalados de espanto.

— Não é possível! — disse com a voz baixa, em tom quase solene. — Estão atirando contra nós!

 

A nave Greyhound, da mesma classe da Stardust, que representava a última tentativa das potências ocidentais de romper o monopólio energético-científico da Terceira Potência, conseguira deslocar-se até a Lua sem ser detectada e, segundo as instruções ministradas à tripulação, manobrara para além da área em que se encontravam os destroços do cruzador espacial dos arcônidas. Ali a tripulação esperava encontrar os remanescentes da maravilhosa tecnologia arconídica.

Uma vez atingido o ponto escolhido, a nave iniciou as operações de alunissagem.

Para a Greyhound o pouso representava a manobra mais difícil. O dispositivo direcional automático, alimentado ininterrupta e cuidadosamente pelos sinais emitidos da Terra, encarregara-se do vôo, que decorreu sem o menor problema. Mas o ponto de alunissagem ficava fora do alcance dos sinais de rádio. Por isso a manobra exigia toda a habilidade de dois pilotos submetidos a um treinamento de vários meses.

Esses pilotos eram os tenentes Michael Freyt e Conrad Deringhouse. Foram eles que comandaram toda a atividade que o foguete desenvolveu durante a alunissagem. O capitão Rod Nyssen, oficial de armas, e o major William Sheldon, especialistas incumbidos do recolhimento do material que esperavam encontrar entre os destroços do cruzador espacial, não teriam nenhuma tarefa a executar e continuavam deitados nos acolchoados antipressionais.

Deringhouse relatou com a voz embaraçada:

— Todas as velocidades ao nível zero, com exceção do deslocamento vertical.

O tenente Freyt respondeu:

— Deslocamento vertical de dez metros por segundo, velocidade constante. Pode-se dizer que descemos como uma folha.

Freyt saíra da mesma escola que o major Perry Rhodan deixara um ano antes. Parecia ser do mesmo tipo que este: grande e sério, mas com pequenas rugas nos cantos dos olhos, que vez por outra tiravam toda a seriedade daquele rosto que ostentava uma severidade militar.

Os dois pilotos envergavam os trajes espaciais. Mantinham os capacetes ligeiramente abertos; o que lhes permitia comunicarem-se sem o auxílio do microfone.

— Distância quatro mil — anunciou Deringhouse.

Pela primeira vez lançou um olhar em direção a Freyt e permitiu-se um sorriso jovial. O capacete jogado na nuca dava-lhe o aspecto de um escolar que pretendia andar de ônibus sem pagar passagem.

— Dê outra freada! — disse Freyt.

O solavanco produzido pela desaceleração percorreu a nave. Dali a alguns segundos o reduzido campo gravitacional da Lua voltou a fazer-se sentir.

— Deslocamento vertical de seis por segundo. Qual é a distância?

— Distância de três mil e trezentos.

Freyt acenou com a cabeça; parecia satisfeito. A manobra de alunissagem estava decorrendo segundo as previsões.

A Greyhound levaria perto de dez minutos para percorrer a distância que ainda a separava da superfície da Lua. Para a tripulação parecia um tempo imenso. De qualquer maneira, até aqui não tinha havido qualquer falha e, na opinião de Freyt, seria coisa do diabo se o pouso não fosse bem sucedido.

Freyt estava atento à sua tarefa, embora não aprovasse os motivos que ditaram sua missão. Estivera presente quando, nos primeiros tempos de existência da Terceira Potência, todos os canhões e bombardeiros da Terra dispararam suas cargas contra a cúpula energética. Mas neste meio tempo convencera-se de que nenhum poder terreno alheio a Rhodan teria possibilidade de assumir parte da herança dos arcônidas.

Aceitara a incumbência por ser oficial, e principalmente porque não se exigia dele que praticasse qualquer ato de hostilidade caso tivesse que defrontar-se com Rhodan ou algum dos seus auxiliares.

Sheldon rolou seu corpo desajeitado para o lado o tanto que os cintos de segurança o permitiam e reclamou:

— Ainda vai demorar muito? Estou morrendo de ansiedade!

Freyt limitou-se a esboçar um gesto. Um sorriso de escárnio aflorou no seu rosto.

— Alguns minutos. Qual é a distância?

— Mil e oitocentos.

— Ótimo!

A superfície da Lua desenhava-se como uma bacia rasa, na qual a Greyhound ia afundando aos poucos. Freyt e seus homens haviam sido informados sobre o “efeito de panela” que invariavelmente atinge os astronautas que pousam em astros de pequeno diâmetro. No lugar em que a Greyhound iria pousar o solo parecia ser liso e firme.

Freyt, porém, não se limitou a uma avaliação superficial. Além de controlar a distância que os separava da superfície lunar, Deringhouse ficava de olho num instrumento capaz de, a uma distância de cem metros, registrar acidentes do solo de um centímetro e até menos.

Tal qual a Stardust, a Greyhound dispunha de suportes hidromecãnicos para o pouso. Esse aparelho compensava facilmente desníveis de até três metros, e com menor facilidade os que alcançavam até sete metros.

— Que tal lhe parece o solo? — perguntou Freyt.

— Por enquanto parece ser bom. Não existem desníveis de mais de quatro metros.

— Qual é a altitude?

— Novecentos.

— Avise quando atingirmos a marca dos quatrocentos metros. Realizaremos mais uma frenagem.

Deringhouse confirmou com um aceno de cabeça. Freyt dirigiu o olhar para os instrumentos.

Indicador de combustível: o tanque estava com sessenta por cento da capacidade, até um pouco mais.

Isso representava um fator favorável. No seu pouso final sobre a Terra, a Greyhound recorreria à frenagem aerodinâmica, com uma utilização mínima dos foguetes. Na decolagem da Lua, Freyt poderia consumir quase todo o hidrogênio que ainda se encontrava nos tanques.

“Pois bem”, pensou, “quando tivermos chegado lá embaixo o ponteiro indicará uns cinqüenta e cinco por cento, mas isso ainda é muito bom.”

— Quatrocentos metros! — anunciou Deringhouse.

— Cuidado, frear! — soou a voz de Freyt como um eco.

Mais um solavanco atravessou a nave. Deringhouse ajustou o capacete. Freyt olhou-o.

— Fechar os capacetes! — disse.

Dali em diante a comunicação teve de ser mantida por meio dos microfones embutidos nos capacetes.

— Duzentos!

A mão esquerda de Freyt descansava sobre a perna inflada de seu traje espacial. Só a direita ainda tinha algumas tarefas a executar. Segurava a chave-mestra do acelerador de emergência, que controlava a temperatura do reator e o suprimento de hidrogênio.

— Nenhum desnível superior a um metro! — disse Deringhouse.

Os segundos arrastavam-se. Deringhouse iniciou a contagem:

— Oitenta metros... setenta... sessenta...

— Controle de desnível — pediu Freyt.

— Não há nenhum superior a oitenta centímetros — respondeu Deringhouse e prosseguiu: — quarenta... trinta...

Seguiu-se uma pausa. Um minuto depois a voz de Deringhouse voltou a soar:

— Suportes apoiados no solo. Completamos o pouso.

— Silêncio! — pediu Freyt.

Os suportes agüentaram parte do peso da nave. Os dispositivos hidráulicos deslizaram pelos braços cintilantes de aço.

Deringhouse, cujo triunfo fora interrompido de modo tão brusco, anunciou:

— Suportes B e C estão no mesmo nível. Suporte A a menos oitenta centímetros.

Freyt repeliu-o com um gesto.

— Com menos de um metro não compensa.

Foi então que aconteceu.

Ouviram o terrível solavanco e o toque estridente dos alarmas, que fez a nave estremecer.

— A está abaixando! — gritou Deringhouse. — Ligue a compensação.

Freyt levantou a mão esquerda num gesto instantâneo e empurrou o regulador hidráulico. Sentiu-se outro solavanco, quando os suportes B e C procuraram compensar a diferença com A, e depois mais outro.

— A continua a descer! — gritou o tenente. — Estamos... o chão está rompendo.

Freyt notara-o no mesmo instante. O chão quebradiço por baixo da Greyhound estava riscado por fendas negras, que se ampliavam sob o peso da nave.

— Cuidado! — gritou Freyt. — Darei a aceleração máxima.

Deringhouse reclinou-se na poltrona. Freyt apertou a chave que já vinha segurando na mão direita, e puxou-a para trás.

A Greyhound inclinou-se com tamanha rapidez que não houve tempo de reagir ao empuxo dos reatores. Deringhouse mantinha os olhos arregalados presos à tela.

— Não! — berrou com a voz rouca.

Freyt empurrou a chave para trás.

— Cuidado! Estamos tombando!

Não adiantava mais. A aceleração de emergência teria provocado o deslocamento horizontal da nave sobre a planície pedregosa, fazendo-a espatifar-se contra a cratera mais próxima.

O suporte A, que afundara no solo, rompeu-se com um ruído semelhante a um tiro de canhão. Na parte posterior do corpo da nave um dos agregados desprendeu-se e caiu ao chão. O envoltório da nave deformou-se, provocando um inferno de ruídos uivantes. Seguiu-se o verdadeiro impacto.

Alguém gritou. Na parede da cabina surgiu uma fenda, por onde o ar escapou com um silvo agudo.

O subconsciente de Freyt aguardava o golpe final, que representaria o verdadeiro fim, mas este não veio.

Passou-se um minuto. Freyt abriu os olhos, fechados na expectativa da morte. Incrédulo, levantou-se.

Na cabina reinava uma confusão terrível de instrumentos destroçados e turbilhões de poeira lunar que penetrara pela fenda.

— Deringhouse! — chamou Freyt com a voz assustada. — Sheldon. Nyssen. Onde estão?

Ouviu-se um gemido.

— Se estiver falando comigo, ainda estou por aqui.

Era a voz rouca de Nyssen.

— Onde você se meteu, Nyssen? Saia daí. Onde estão os outros?

— Não faço a menor idéia — resmungou Nyssen. — Irei até aí assim que conseguir tirar estes cintos. Parece que foram eles que me seguraram. Pronto!

Parte dos destroços começou a movimentar-se. A cabeça de Nyssen, envolta no capacete disforme, foi surgindo por entre um equipamento amassado de alta tensão e uma caixa deformada a ponto de tornar-se irreconhecível.

— Tudo em ordem? — perguntou Freyt.

— Por enquanto sim.

Nyssen levantou-se.

— Nosso quarto está mudado — observou. — Há pouco havia uma parede por aqui.

Freyt desatara os cintos e levantara-se. Seu assento de piloto acompanhara a vira-volta da cabina.

— Venha ajudar-me.

Afastaram os destroços, abrindo caminho para a parte dos fundos. Nyssen pôs a mão na perna de um traje espacial.

— Só pode ser o tenente.

Arrastaram-no para fora daquela confusão. O impacto arrancara-o do assento e atirara-o para trás. Provavelmente ficara inconsciente. Ainda respirava.

— Vamos continuar.

Depois de atirarem para o lado os últimos destroços, encontraram Sheldon.

De início pensaram que apenas estivesse inconsciente. Mas ao virá-lo encontraram o rasgo comprido no seu traje, que ia do ombro até a altura dos quadris.

Freyt ergueu-se. Cambaleava naquele chão desigual. A voz rouca de Nyssen disse:

— Sinto muito, Sheldon. Continuaram a afastar os destroços, até chegar à entrada da comporta. A escada soltara-se e suas peças estavam contorcidas, mas não precisariam mais dela. A comporta estava em posição horizontal.

— Cuide do tenente — ordenou Freyt enquanto engatinhava pelo túnel de saída.

Parecia ter chegado a um mundo diferente. Fora da escada, nenhuma parte da comporta fora danificada. Freyt começou a nutrir alguma esperança. Na popa o impacto por certo fora menos violento.

Chegou à comporta e abriu o compartimento interior. Realizou um controle. Não havia mais ar. Ligou o acionador de emergência. Uma lâmpada iluminou-se segundo as previsões. A comporta estava em ordem.

Freyt preferiu não realizar outros exames. Retornou à cabina. Deringhouse estava acordando.

— Como está? — perguntou Freyt.

— Bem, obrigado — gemeu o tenente. Levantou-se com auxílio de Nyssen.

Apalpou o traje espacial, procurando descobrir em que ponto do corpo se localizavam as dores.

— Parece que tudo está em ordem — murmurou.

Freyt parecia satisfeito.

— Vamos ao trabalho.

Iniciaram uma atividade febril. Era o melhor meio de apagar o primeiro impacto da catástrofe.

As informações surgiram numa rápida sucessão:

— Equipamento de radiocomunicação totalmente destruído.

— Eletrônica dos reatores não funciona.

— Conduto de emergência em ordem. Finalmente ouviu-se o grito de triunfo de Nyssen:

— O armamento está intacto!

Freyt constatou que o depósito de mantimentos estava praticamente intacto. Encontrou um reservatório de oxigênio que não fora danificado. Poderia encher de ar um dos compartimentos da nave, se é que havia algum que não apresentasse nenhuma rachadura.

As avarias dos dispositivos eletrônicos dos reatores poderiam ser reparadas. Mas seria inútil realizar esses reparos, porque não havia possibilidade de colocar a Greyhound na vertical.

Saíram. O envoltório externo apresentava-se ondulado e abaulado. No lugar em que o suporte A deveria apoiar-se havia um buraco profundo. O solo lunar na beira desse buraco só tinha alguns centímetros de espessura.

Freyt tomou a palavra:

— Estamos preparados para uma permanência de quinze dias na Lua. Só depois de vinte dias o pessoal em Terra começará a preocupar-se conosco. Não agüentaremos até lá. Não nos resta outra alternativa senão pôr-nos a caminho.

Sentiu-se irritado pela direção em que Deringhouse fitou os olhos.

— Olhe ali!

O tenente atirou o braço para o alto. Freyt virou-se abruptamente. Estreitou os olhos. No firmamento negro havia um ponto cintilante, que se deslocava numa velocidade vertiginosa.

— É aquela raça maldita! — chiou Nyssen.

— Que raça?

— Os Dl, aqueles insetos.

Freyt hesitou.

— Nyssen! Assuma seu posto junto aos canhões. Só atire quando eu der ordem.

— Certo.

Nyssen saiu correndo.

— Tenente, nós dois ficaremos aqui mesmo. Não temos nada a fazer lá dentro.

Deringhouse confirmou com um aceno de cabeça, sem tirar os olhos daquele ponto cintilante.

— Desceu mais — disse o tenente.

— A que altitude se encontra agora?

Nyssen respondeu prontamente.

— Se os instrumentos ainda estão em ordem, deve estar a oitenta quilômetros.

— Quantos projéteis pode disparar ao mesmo tempo com a corrente de emergência?

— Dois.

— Pois atire.

Os canos de disparo dos foguetes estavam em posição horizontal, tal qual o resto da nave. Quando Nyssen atirou o solo estremeceu e a nave inclinou-se ligeiramente. Mas, apesar do ângulo de disparo desfavorável, os projéteis descreveram uma curva e subiram na vertical.

 

— Não há dúvida — disse Rhodan com a voz áspera. — Devem ter enlouquecido ou então...

Virou-se. Viu que Thora manipulava o comando do armamento, com uma rapidez algo suspeita.

— Thora!

A palma da mão de Thora bateu numa chave. Rhodan deu um salto, mas chegou tarde. Agarrou-a nos ombros e atirou-a para o lado. Thora deu um grito furioso e caiu ao solo.

Rhodan colocou a chave na posição inicial.

— Bell!

— Sim, Rhodan. Ela atirou com um dos desintegradores. O ponto desapareceu.

A voz de Manoli fez-se ouvir:

— Cuidado. Acionar o dispositivo de defesa.

Os dois foguetes disparados pela Greyhound aproximaram-se, mas tiveram a trajetória modificada pela tela protetora. Passaram ao lado da nave e desapareceram no espaço.

Thora levantou-se.

— É bom que nunca mais se esqueça de que mesmo você deve aguardar ordens antes de atirar — disse Rhodan com a voz tranqüila, mas ameaçadora. — Você terá de haver-se comigo se qualquer coisa tiver acontecido a essa gente.

Thora encarava-o de frente.

— Terei de haver-me coisa alguma! — chiou entre os dentes. — Fomos atacados, e costumo defender-me contra qualquer agressão.

— Acha que isso foi um ataque? Desde que a conheço vive debochando da tecnologia subdesenvolvida dos terráqueos, e agora vem me dizer que essa tecnologia representa uma ameaça?

— Acontece que essa gente destruiu meu cruzador.

— Isso só aconteceu porque você não foi capaz de defendê-lo — vociferou Rhodan. — Você sabe perfeitamente que esta nave dispõe de proteção eficaz contra qualquer arma terrena.

Thora ficou calada. O vermelho de seus olhos flamejava por entre as pálpebras entreabertas.

— Está bem — disse Rhodan com a voz cansada. — Vamos pousar.

 

O grito de Nyssen despertou os outros.

— Meu Deus, o que é isso? Estavam acompanhando a trajetória dos foguetes, para observar a explosão. Viraram a cabeça e viram a modificação que se processava em silêncio nos destroços de sua nave.

Deringhouse soltou um gemido, o que fez com que Freyt recuperasse o autocontrole.

— Não se mova!

— Está bem; esperarei — respondeu Nyssen.

“Meu Deus”, pensou Freyt apavorado, “atacamos as pessoas erradas.”

A Terra já estava bem informada sobre as armas dos arcônidas, motivo por que Freyt pôde identificar o tipo de destruição que estava sendo levada a efeito em sua nave. Sob a influência de um campo elétrico cuja microestrutura correspondia àquela que mantém as moléculas unidas sob a forma de cristais, esses cristais se desintegravam, liberando as moléculas. O que sobrava era um gás rarefeito, cujas componentes eram as mesmas da matéria sólida de que se originara.

Esticando a cabeça para a frente, Deringhouse contemplou a obra de destruição. As paredes da Greyhound entraram em decomposição; dali a pouco não sobrava nada. Todo o processo não durara mais que quatro ou cinco segundos. O reator, os mecanismos propulsores e os tanques de combustível, privados de apoio, começaram a escorregar e caíram ao chão.

Retendo a respiração, Freyt percebeu que nenhuma dessas peças foi atacada. Quando o pesado reator, depois de alguns sacolejos, atingiu a posição de repouso, começou a acreditar em milagres. Não estavam atirando mais.

— Nyssen — disse com a voz tão débil que o capitão mal podia ouvi-lo. — Venha cá!

Nesse instante uma enorme sombra negra projetou-se sobre a planície ensolarada. Soltando um grito de pavor, o tenente virou-se e tropeçou.

Mas era apenas a nave esférica dos arcônidas que se preparava para pousar.

Nyssen teve tempo de admirá-la à vontade. Já a vira antes. Foi há cerca de nove meses, quando acompanhara Freyt no ataque ao cruzador cujos destroços se encontravam diante deles. Acontece que naquela oportunidade a distância fora muito maior.

— Meu Deus, que coisa monstruosa! — disse com a voz espantada.

Freyt olhou-o. Ao que parecia, já recuperara a calma.

— Muito bem. Vamos até lá para pedir desculpas.

 

Rhodan viu os três vultos que caminhavam por entre os destroços. A distância era tão reduzida que se podia estabelecer contato pelo rádio de capacete.

— Deixem de tolices! — ordenou Rhodan com a voz áspera.

— Está bem, Rhodan — soou a voz de Freyt depois de algum tempo. — Três náufragos como nós só podem ser razoáveis.

Rhodan espantou-se ao ouvir aquela voz.

— Quem está falando? Será que é Freyt?

— Sim, sou eu.

— Quem são os outros?

— O capitão Nyssen e o tenente Deringhouse.

— Muito bem. Entrem.

Rhodan virou-se. Ouvira um ruído às suas costas. Era Thora. Ao ouvir o nome Freyt exaltara-se, jogando para trás o leito em que estivera sentada.

— Então é Freyt! — chiou, quando Rhodan lançou os olhos sobre ela. — O homem que destruiu meu cruzador.

Rhodan não permitiu que prosseguisse.

— Não foi só Freyt. Não é o único culpado, ainda mais se considerarmos que apenas estava cumprindo ordens.

Os olhos de Thora chisparam um fogo avermelhado.

— O que pretende fazer com essa gente?

— Recebê-los a bordo. Tem alguma outra idéia?

— Isso está fora de cogitação. Não o permitirei! Quem comanda o cruzador sou eu.

— O cruzador não existe mais.

— Esta nave auxiliar pertence ao cruzador. Essa gente não será recebida a bordo.

De tão furiosa que se achava, parecia não ter dúvida de ter dito a última palavra.

Mas houve um epílogo, e um epílogo que se revestia de uma importância decisiva. Os presentes tiveram a impressão de que testemunhavam uma luta singular e extraordinária.

Rhodan virou-se para Bell.

— Bell, abra a comporta A.

— Pois não.

Thora, que lhe dera as costas, virou-se abruptamente.

— Acabo de dizer...

— O que você diz não me interessa — respondeu Rhodan.

Crest, tomado de uma dor súbita, gemeu. Ninguém lhe deu atenção.

— Esses homens não subirão a bordo da minha nave — disse Thora, atropelando as palavras. — Acho que fui bastante explícita. Proíbo...

— Você não pode proibir coisa alguma — advertiu-a Rhodan em tom enérgico.

As palavras que Thora ainda quis proferir transformaram-se num murmúrio ininteligível.

Deixou cair os ombros. Crest levantou-se, pegou-a pelo braço e levou-a para fora.

Rhodan passou a mão pela testa. Bell deu um suspiro.

No corredor ouviram-se passos. A figura esbelta de Freyt surgiu junto à escotilha.

Fez continência.

— Você tem diante de si um homem contrito — disse, dirigindo-se a Rhodan. — Peço desculpas pelo engano.

Sorriu ligeiramente. As feições de Rhodan permaneceram sérias.

— Que engano?

— Pensamos que sua nave fosse dos Dl e procuramos destruí-la.

— Por que não responderam às nossas mensagens?

— Nem sabíamos que haviam enviado mensagens. Nossa nave sofreu avarias durante o pouso; o aparelho de radiocomunicação ficou inutilizado.

— O que veio fazer na Lua?

Freyt baixou os olhos.

— Não é necessário responder — prosseguiu Rhodan com a voz zangada. — Pretendiam remexer os destroços do cruzador para ver se não poderiam conseguir algumas armas aproveitáveis para o Estado-Maior da OTAN. Não é isso?

Freyt não respondeu. Empurrando-o para o lado, o capitão Nyssen postou-se diante de Rhodan.

— Major Rhodan, você já foi um dos nossos. Quando saiu da escola de cadetes, eu já era capitão. Infelizmente sou...

— Não se desvie do assunto!

Nyssen sorriu.

— Você terá que ouvir-me até o fim, tal qual fazia quando ainda não passava de um simples cadete. Sabe perfeitamente como trabalha a Força Espacial. Recebemos ordem de voar até a Lua e remexer estes destroços. Não venha me dizer que não sabe o que teriam feito de nós se não tivéssemos embarcado imediatamente.

— Poderiam ter-me avisado — respondeu Rhodan.

Subitamente o rosto de Nyssen assumiu uma expressão séria. Falando um pouco mais baixo, disse:

— Acontece que não é qualquer um que pode dar as costas à pátria e fundar um clube só para ele.

As pessoas que se encontravam na sala de comando retiveram a respiração. Todos entenderam o sentido das palavras de Nyssen; esperavam a reação de Rhodan.

Este ficou imóvel como uma estátua. Não se saberia dizer se a censura lhe causara qualquer impressão.

Depois de algum tempo deu de ombros e estendeu a mão para Nyssen.

— Está bem, capitão — disse com um sorriso. — Você ganhou.

 

— Como vai ela?

— Tudo em ordem — respondeu Crest. — Se eu fosse você, não faria uma coisa dessas pela segunda vez.

Rhodan deu de ombros.

— Não tive outra alternativa.

Crest confirmou com um vigoroso aceno de cabeça.

— Você não imagina que energia terrível há no olhar dessa mulher. Acho que fui a única pessoa que sentiu todo o impacto desse olhar. Até parecia que alguém queria varrer meu cérebro com uma vassoura de aço.

Sorriu para Rhodan.

— Você devia estar com muita raiva. Não se esqueça de que os cérebros dos arcônidas são mais treinados e melhor utilizados que os dos homens mas, em virtude da degenerescência da raça, são menos resistentes. Os seus ataques brutais podem levar Thora à loucura. Estou falando sério.

Rhodan confirmou com um aceno de cabeça. Estava muito contrariado.

— Sei disso. Talvez minha intenção fosse essa mesma naquele momento.

Crest olhou-o. Parecia assustado.

— Mas isso...

Rhodan interrompeu-o com um gesto.

— Isso não se repetirá — disse para tranqüilizá-lo. — Tenho outros meios para obrigar Thora a agir razoavelmente.

Crest seguiu-o com os olhos enquanto atravessava o corredor, em direção à sala de comando. Num gesto inconsciente procurou dar aos seus ombros caídos uma expressão tão orgulhosa como a de Rhodan. Quando se deu conta disso, sorriu.

 

Rhodan despendeu algum tempo em subir com a Good Hope até colocá-la numa posição que lhe permitisse estabelecer contato radiofônico com Washington. Manteve uma conversa demorada com os homens que, segundo supunha, tinham ordenado a Freyt que voasse à Lua. Ninguém assumiu a responsabilidade, mas todos exprimiram seu pesar pelo incidente. Rhodan não se deu por satisfeito; fez seu preço. Do outro lado houve algum espanto, mas logo se chegou à conclusão de que não havia nada a objetar às exigências de Rhodan.

Este logo fez a Good Hope pousar novamente no solo lunar e pediu que comparecessem à sala de comando os três sobreviventes da Greyhound, aos quais haviam sido destinados camarotes individuais.

— Tive uma conversa com o pessoal de Washington — principiou. — Pediram desculpas, mas isso não me serve de nada. Manifestei um desejo e, face à situação atual, resolveram me atender.

Lançou um olhar significativo para Freyt e Nyssen, e finalmente para o tenente.

— Gostaria que vocês ficassem comigo — disse.

Freyt estreitou os olhos. Deringhouse ergueu-se de um salto. O único que não reagiu foi Nyssen. Em compensação foi quem falou primeiro.

— Já lhe dei minha opinião, major.

Rhodan sacudiu a cabeça.

— Não se trata de mudar de campo por puro amor. Preciso de três bons pilotos espaciais, e os mesmos acabam de cair nas minhas mãos. Se resolverem aceitar a oferta que lhes faço, a Força Espacial lhes concederá exoneração com todas as honras. Tudo que têm que fazer é dizer sim ou não. Dou-lhes vinte e quatro horas para refletir. Muito obrigado, companheiros.

Levantou-se e saiu.

Duas horas depois obteve a resposta. Era sim.

Rhodan apertou a mão dos três homens. Estava sorridente.

— Temos muita coisa importante a dizer — começou. — E estamos com pressa. O exame dos destroços do cruzador espacial demorará alguns dias.

Gastaram quatro dias nesse exame. Foi um tempo bem empregado.

Os robôs da Good Hope — Rhodan trouxera alguns deles da Terra — tiraram do núcleo quase intacto do cruzador tudo que parecia útil e podia ser carregado na nave. Muitos objetos tiveram que ser empilhados. Os robôs usaram as chapas do cruzador que ainda se encontravam em bom estado para construir um tipo de barraca, na qual abrigaram o restante da carga.

Rhodan fez uma relação das máquinas e aparelhos que haviam retirado do cruzador. Grande parte eram bens de consumo destinados às trocas intergalácticas, nos quais Rhodan viu a solução definitiva dos problemas financeiros da Terceira Potência. Assim que tivesse em mãos o produto da venda desses artigos, Homer G. Adams poderia dedicar sua capacidade genial à solução de problemas mais importantes.

Rhodan reservou, para uso próprio, uma série de canhões de radiação de auto-propulsão, armas energéticas portáteis e uma instalação completa para a produção de robôs especiais.

O exame da nave revelou outra coisa, que o próprio Rhodan nem chegou a perceber. Foi Thora que o avisou.

Rhodan dispunha de um camarote especial a bordo da Good Hope, o que também acontecia com os outros tripulantes daquela nave de grandes dimensões, calculada para uma tripulação muito maior. Por duas vezes Thora já julgara necessário procurá-lo ali; mas alguns meses já se tinham passado desde a última visita.

Por isso Rhodan ficou surpreso ao encontrá-la em seu camarote naquela noite. Confortavelmente instalada numa poltrona, balançava os pés.

Era noite, de acordo com a escala de tempo terrena. Mas lá fora, na planície pedregosa, o sol continuava a brilhar quase com a mesma intensidade de quatro dias antes, quando a Good Hope pousou junto aos destroços da Greyhound.

Ao que parecia, Thora não tinha a intenção de voltar a falar no incidente havido com os tripulantes da nave americana. Com um olhar amistoso disse:

— Acho que já é tempo de estabelecermos um bom relacionamento.

Rhodan não dissimulou o espanto.

— É o que vivo dizendo há muito tempo — respondeu. — Fico satisfeito em saber que resolveu converter-se à minha opinião. Qual foi a causa da mudança?

— A reflexão.

Rhodan procurou descobrir o que ela queria dizer. Não acreditava que de um dia para outro compreendera as idéias que não conseguira assimilar em um ano.

— Está bem. O que vamos fazer?

— Da minha parte prometo que não contestarei mais sua posição de comandante desta nave e de outras que ainda vamos construir — respondeu Thora.

Rhodan confirmou com um aceno de cabeça.

— Fico-lhe muito grato.

Rhodan falou devagar e procurou dar um tom simpático à voz. Mas não o conseguiu, porque o espanto era maior que a simpatia.

— De outro lado — prosseguiu — dependerei de suas luzes em muitos pontos.

Thora sorriu.

— Não diga isso. Você sabe tanto quanto qualquer comandante de cruzador arconídico, inclusive eu.

“Onde será que essa mulher quer chegar com estes elogios?”, pensou Rhodan.

— Iremos a um planeta que vocês chamam de Vênus, não é?

— Sim, naturalmente — respondeu Rhodan em tom distraído.

Todas as pessoas que se encontravam a bordo da Good Hope já sabiam disso antes de deixar a Terra.

— Será possível levarmos de uma vez tudo que retiramos do cruzador?

— Não. Teremos de fazer três viagens.

— Isso levará bastante tempo. Acha que o pessoal que ficou na Terra pode ser deixado só por tanto tempo?

— Por que não? Ras Tshubai é um elemento digno de toda confiança. Além disso serei avisado se houver algo de anormal.

Thora continuava a balançar os pés. Tinha o aspecto de quem procura lembrar-se de alguma coisa que ainda possa dizer. Não se recordou de nada e levantou-se.

Seguindo os costumes humanos, estendeu a mão em direção a Rhodan.

— Faço votos de que tenhamos uma boa colaboração — disse.

Uma porção de idéias se cruzaram na cabeça de Rhodan. Não sabia o que significava toda essa conversa. Era a primeira vez em todo aquele tempo que se sentia inseguro.

— Seria formidável se pudéssemos conversar mais vezes.

— No que depender de mim, isso será feito — respondeu Thora com um aceno de cabeça.

 

Pouco antes da decolagem Rhodan teve uma palestra com Crest. Provocara-a na esperança de descobrir alguma coisa sobre os motivos do comportamento de Thora. Mas quando se viu diante de Crest, não soube como traduzir suas preocupações em palavras.

Mas deixou as idéias à vista, de modo que Crest pôde lê-las no seu rosto.

— Que tal está o cruzador? — perguntou Crest por achar que o problema era tão melindroso que seria preferível não abordá-lo diretamente. — Será que existe alguma possibilidade de colocar em funcionamento ao menos o núcleo central?

— Está se referindo à nave espacial?

Crest confirmou com um aceno de cabeça. Rhodan respondeu prontamente com algumas sacudidelas.

— É impossível. Não sobrou nenhuma peça do mecanismo propulsor. Conseguimos resgatar as instalações destinadas à fabricação de robôs. Acho que elas nos serão muito úteis.

— Contando com os robôs especiais, quanto tempo levaremos para construir na Terra uma nave que realmente esteja em condições de enfrentar o espaço?

Rhodan deu de ombros.

— Alguns anos.

— Está vendo? — disse Crest.

— Não vejo nada. Crest sorriu.

— Conheço alguém — disse em tom matreiro — que apoiou seu orgulho desarrazoado numa última esperança de encontrar o caminho de volta sem o auxílio de uma desprezível raça subdesenvolvida. Quando percebeu que essa esperança não se realizaria... bem, você viu.

Rhodan compreendeu.

— Quer dizer que durante todo esse tempo ela acreditou que seria possível colocar o cruzador espacial em condições de navegabilidade?

Crest confirmou com um aceno de cabeça.

— Ela se agarrou a essa esperança, mas agora tem de largá-la. Não foi fácil. Acho que está precisando de algum apoio.

— O caminho está aberto — respondeu Rhodan laconicamente.

 

Rhodan e Bell completaram o cálculo da trajetória em quinze minutos. Na sua configuração atual, o triângulo Terra-Sol-Vênus assumia uma posição quase vertical em relação ao Sol. Com isso os cálculos tornavam-se mais fáceis.

Rhodan e Bell utilizaram uma das calculadoras eletrônicas existentes a bordo da Good Hope. Ao contrário das calculadoras terrenas, que no caso exigiriam uma programação complexa e uma série de operações matemáticas, o aparelho arconídico trabalhava de forma bastante simples, reduzindo as funções a um mínimo.

O vôo decorreu sem incidentes. A distância de 180 milhões de quilômetros foi percorrida em três horas.

Para os três astronautas americanos tratava-se de um acontecimento que os levou ao limite da sua capacidade de compreensão. Até Nyssen perdeu o autocontrole; o espanto deixou-o mudo.

Freyt deu-se conta de como a técnica dos arcônidas devia ser superior à dos terráqueos para permitir que suas naves realizassem vôos desse tipo. Subitamente sentiu-se pequenino e miserável. Indagou de si para si como Rhodan teria vencido esse choque, que sem dúvida sentira da mesma forma que ele.

Ao iniciar-se a operação de frenagem, Vênus surgiu sob a forma de uma bola amarela bem na linha de sua trajetória. De início surgiu apenas um vago tremeluzir na tela, mas dentro de alguns segundos percebia-se nitidamente o planeta coberto por uma camada de nuvens.

A esfera amarela cresceu para além das bordas da tela e seu brilho foi diminuindo. A turbulência da atmosfera de Vênus tornou-se perceptível.

Vênus efetuava um movimento de rotação a cada 240 horas. O dia desse planeta tinha a duração de dez dias terrenos. Além disso, ficava trinta por cento mais próximo do centro de nosso sistema solar que a Terra. Esses dois fatos faziam com que, apesar da atmosfera protetora, houvesse uma diferença considerável entre a temperatura diurna e noturna. Essa diferença ocasionava tempestades tão intensas que um furacão dos Caribes seria como uma pá de brinquedo comparada com um trator.

Mas essas tempestades não atingiam a Good Hope. Era bem verdade que ela oferecia um bom alvo aos temporais que, ao penetrarem na atmosfera, atingiam velocidades de até quinhentos quilômetros por hora; todavia, a energia de que era dotado seu dispositivo estabilizador bastava para mantê-la na rota.

Bell encarregou-se do localizador. Por ocasião de sua primeira visita a Vênus, realizada há poucos meses, Rhodan efetuara um mapeamento rudimentar de toda a superfície do planeta, fixando as coordenadas a partir de um ponto arbitrariamente escolhido. O continente equatorial, onde Rhodan pretendia instalar a base, estendia-se dos dezesseis graus de latitude sul aos vinte e dois graus de latitude norte, e de zero a cinqüenta e quatro graus de longitude oeste. Sua superfície correspondia à da América do Sul. A extremidade leste fora batizada de cabo Cabeça de Cão, por causa de seu formato. A linha de longitude zero passava pela ponta desse cabo.

O continente ainda não tinha nome, tal qual os mares que o banhavam. Mas Rhodan fizera um estudo detalhado de sua subdivisão e decidira instalar a base na costa norte, junto à foz de um rio de mais de dez quilômetros de largura. O terreno estava coberto por um matagal impenetrável. Ninguém desejaria montar o acampamento num ponto afastado da costa.

Os graves acontecimentos que se desenrolaram na Terra não permitiram que a primeira expedição fizesse um estudo mais minucioso das formas biológicas existentes no planeta Vênus. Rhodan e os outros membros do grupo só sabiam que o continente equatorial abrigava várias espécies gigantescas e primitivas.

Sobre a flora não sabiam praticamente nada. As folhas eram verdes como as da Terra, e não havia a menor dúvida de que o ciclo da vida se desenvolvia no mesmo sentido que o do planeta Terra.

O fator decisivo da escolha de Vênus como sede da base foi a composição surpreendentemente favorável de sua atmosfera. Era bastante densa para mitigar os efeitos do Sol, que ficava bastante próximo, tornando suportável a permanência humana. Durante as duzentas e quarenta horas do dia reinavam temperaturas que em média atingiam cinqüenta e cinco graus centígrados. Durante a noite, que tinha a mesma duração, o termômetro indicava treze graus. A camada de nuvens que sempre cobria o planeta fazia com que houvesse uma luz crepuscular e um clima de estufa que se mantinha constante por várias horas.

 

— Olhe o cabo Cabeça de Cão! — anunciou Bell.

A estranha ponta de terra apresentou-se sob a forma de uma mancha branca sobre o fundo verde reluzente da tela.

Rhodan estava realizando a direção manual da Good Hope. Face à reduzida exatidão dos dados consignados no mapa, o pouso constituía um problema que não poderia ser deixado a cargo da direção automática.

O cabo Cabeça de Cão deslizou pela tela do localizador, arrastando atrás de si o continente com o litoral que se desenvolvia nas direções noroeste e sudoeste. Depois de algum tempo, o cabo desapareceu por uma das bordas da tela, e os primeiros rios tornaram-se visíveis no trecho de terra que ficava abaixo da Good Hope.

Rhodan verificou a altitude. Noventa e um mil metros.

Comparou o quadro que se desenhava na tela com as linhas de seu mapa. A distância entre o ponto em que se encontrava a nave e a foz do rio onde seria instalada a base ainda era de quatro mil quilômetros.

— É o rio das Mil Voltas! — exclamou Bell.

Escolheram esse nome porque nos seus meandros intermináveis, o curso d'água descrevia inúmeras curvas e volteios.

Bell registrava suas observações a intervalos regulares, pois sua memória era excelente em relação a mapas e configurações de terrenos.

Freyt, Nyssen e Deringhouse mantinham um silêncio compenetrado. Crest e Thora, sentados num dos leitos, observavam as telas. Tako Kakuta entrara em companhia de Anne Sloane; também pareciam admirados. Rhodan cumprimentou Anne com um gesto amável. Ela quase não saíra da cabina desde que decolaram da Terra.

Manoli, bastante contrariado e olhando de vez em quando para a tela do rastreador, ocupava-se com o equipamento de rádio, que se mantinha em silêncio. Se é que em Vênus existia alguma forma de vida dotada de inteligência, a mesma ainda não atingira um estágio que lhe permitisse utilizar a transmissão de mensagens sem fio.

— Aqui — exclamou Bell com a voz alta e alegre — fica o...

Não pôde prosseguir. Um tremendo solavanco sacudiu a nave, e o quadro na tela deu um salto para o sul.

As sereias de alarma uivaram.

“É um ataque!”, pensou Rhodan. “Alguém nos ataca.”

Reagiu instantaneamente.

— Thora. Assuma seu posto de armas.

— Posto de armas ocupado.

— Conseguiu localizar alguma coisa?

— A localização não reage.

— Bell!

— Pronto!

— Coloque em posição os instrumentos externos. Procure descobrir o que é.

— Está bem.

— Thora — gastou o tempo necessário para voltar e encará-la — desta vez você vai aguardar minhas ordens antes de atirar.

Thora limitou-se a confirmar com um aceno de cabeça.

Rhodan pôs toda a potência nos reatores. Orientou o acelerador de partículas, que produzia as ondas de matéria. Uma simples manipulação da respectiva chave bastou para regular o suprimento da massa de apoio.

A Good Hope opunha-se com o empuxo máximo dos seus reatores à força estranha que a impelia para o norte. Rhodan olhou fixamente para a tela do rastreador.

Bell anunciou:

— Campo gravitacional orientado procedente de zero hora três minutos.

— Quero uma localização mais precisa — disse Rhodan.

Com uma satisfação feroz, constatou que conseguia manter a nave no mesmo lugar.

Bell calculou com uma pressa febril. Em palavras apressadas deu a posição:

— Ponto de origem do campo em 29 graus 18 minutos norte, 15 graus 48 minutos leste.

— Thora!

— Tudo preparado.

— Fogo!

Comprimindo um botão, Thora disparou uma série de foguetes gravitacionais, que no mesmo instante fizeram sua aparição na tela de orientação de tiro.

No momento da explosão um foguete gravitacional desencadeava um choque de gravidade que, conforme o grau de estabilidade do alvo, causava graves danos ou a desagregação total do mesmo. Uma vez que a energia gravitacional se desenvolvia num espaço de cinco dimensões, os anteparos capazes de oferecer proteção contra os efeitos dessas bombas eram extremamente complicados. Thora fazia votos de que o inimigo, fosse ele quem fosse, não dispusesse desses anteparos.

Na tela de orientação viam-se os minúsculos pontos deslocarem-se para o norte. No local calculado por Bell, um pequeno ponto reluzente surgiu na margem da tela rastreadora.

— É um objeto metálico — constatou Bell.

Os foguetes de Thora prosseguiam na sua trajetória. Aproximavam-se inexoravelmente do alvo. Na atmosfera desenvolviam uma velocidade de Mach 10. Dentro de um ou dois minutos o inimigo deixaria de existir.

Rhodan reduziu a energia do mecanismo de propulsão da nave; a velocidade aumentou. Ao mesmo tempo dirigiu-a para baixo. Uma explosão pesada como a que seria desencadeada por aquela série de foguetes era uma coisa linda e muito breve. Cinco minutos após a explosão pousariam junto à base inimiga para verificar o que sobrara.

Bell concentrou a atenção sobre a tela do rastreador, enquanto Rhodan controlava os instrumentos de controle de viagem várias vezes por minuto. Thora foi a primeira que, através da imagem da tela de orientação de tiro, tomou conhecimento dos acontecimentos espantosos que se verificaram com os foguetes por ela disparados.

Toda a formação, constituída de seis projéteis, que até então desenvolviam trajetórias paralelas e bastante próximas, orientadas para o norte, descreveu subitamente uma curva para o leste, aumentou de velocidade e dali a poucos segundos, sob a influência do inimigo, deslocou-se para fora do campo de alcance da tela de orientação de tiro.

O susto deixou Thora paralisada. Demorou tanto em virar-se e soltar um grito abafado que Rhodan chegou tarde para ver o que havia acontecido com os foguetes.

Thora fez seu relato em palavras confusas. Rhodan correu de volta para o assento do piloto, pôs toda a força no mecanismo propulsor e voltou a imobilizar a nave, submetida à ação de dois campos energéticos opostos.

As idéias cruzavam-se vertiginosamente em seu cérebro, originando um quadro bastante vago: os Dl!

Era apenas uma suposição, mas entre todas as hipóteses possíveis era a mais provável e racional. Os Dl possuíam uma base ainda desconhecida na Lua. Era perfeitamente possível que também tivessem concebido a idéia de instalar uma base alternativa em Vênus.

Havia uma única contradição que não sabia explicar. Por que não realizaram um ataque direto contra a Good Hope? O raio direcional, consistente de um campo gravitacional orientado, era uma força relativamente suave face aos recursos de que certamente dispunha um inimigo que sem mais aquela desviava seis foguetes gravitacionais.

Rhodan não se deixou perturbar pela confusão causada pelas sucessivas hipóteses levantadas por Thora. Fez o que lhe parecia mais acertado: aos poucos foi conduzindo para baixo a Good Hope, que com toda a força dos seus mecanismos lutava contra o raio direcional. De um momento para outro aguardava um ataque mais eficaz da parte do inimigo desconhecido, mas nada aconteceu. Rhodan procurou compreender a mentalidade daqueles seres que, ao que tudo indicava, desejavam apoderar-se da nave inimiga, mas nada faziam para impedir que a mesma se libertasse de sua influência.

A força tremenda arrastara a Good Hope além do paralelo quarenta de latitude norte. Já haviam passado pelo litoral do continente ártico, que se localizava quase exatamente no paralelo trinta e oito.

Rhodan pôs fim à discussão que se desenvolvia atrás de suas costas.

— Vamos pousar — anunciou. — Espero que com isso consigamos nos subtrair à influência estranha. Provavelmente será mais fácil nos aproximarmos do inimigo pela superfície do planeta. Não temos outra alternativa. O inimigo é superior a nós, ao menos na quantidade de energia de que pode dispor; tomara que não o seja também nos aperfeiçoamentos técnicos. Se estiver no mesmo nível que nós, não terá possibilidade de localizar-nos depois que tivermos pousado. Naturalmente o continente ártico deve oferecer muitas possibilidades de ocultar uma nave como a nossa. Enquanto estivermos dentro do matagal, ou pouco acima dele, seremos invisíveis. Por outro lado, não podemos nos dar ao luxo de deixar completamente fora das nossas vistas um inimigo que se encontra em nossa área de atuação. Assim nada nos resta senão nos arrastarmos pelo matagal.

Bell estava a ponto de responder. Mas nesse exato instante os acontecimentos tomaram um rumo completamente novo: o receptor a cargo do Dr. Manoli começou a dar sinal de vida.

O equipamento funcionava com base em hiperondas. Isso significava que o inimigo possuía um emissor capaz de operar nessa faixa. Dali se concluía que sua técnica era bastante desenvolvida.

Do receptor saíram palavras acusticamente perfeitas, distinguíveis uma das outras. Acontece que ninguém as entendia, nem mesmo Crest.

— Responda — disse Rhodan, dirigindo-se a Manoli. — Nossas intenções são pacíficas. Não admitimos qualquer intromissão em nossa rota.

Manoli fez o que lhe fora ordenado. Mal terminara, quando a resposta começou a sair do receptor. Rhodan esperara que conseguisse analisar aquela língua. Mas as palavras continuavam ininteligíveis.

Afastando Manoli, Rhodan repetiu a mensagem na língua dos arcônidas. Mais uma vez a resposta veio sob a forma de uma série de sons incompreensíveis. Teve a impressão de que o interlocutor desconhecido repetia constantemente as mesmas palavras. O fato de ser ele mesmo o destinatário da mensagem não o impressionava.

— Crest! — gritou. — Vou retirar a fita. Coloque-a no tradutor e procure descobrir que língua é essa.

Abriu o registrador de fita acoplado com o emissor-receptor e cortou a parte da fita que registrara a mensagem do desconhecido. Crest inseriu-a na tradutora automática.

O estranho desistiu de transmitir suas mensagens. Com uma certa inquietação Rhodan deu-se conta de que esse gesto poderia ser o prenúncio de um ataque. Talvez o raio direcional não passasse de uma forma de orientação da nave inimiga. Talvez só agora, quando não obtinha resposta satisfatória às suas mensagens, compreendesse que uma nave estranha se aproximava.

Rhodan fez a Good Hope baixar o mais rápido possível. A altitude ia diminuindo, e a dez mil metros do solo também diminuiu subitamente a intensidade do campo gravitacional do inimigo. A mil metros desapareceu praticamente, e a Good Hope recuperou sua capacidade de manobrar.

Bell, que reassumira seu posto, observava o trecho de terreno projetado sobre a tela do rastreador. A essa altitude também as telas óticas começaram a funcionar. A camada compacta de nuvens ficara para trás a uma altitude de cerca de cinco quilômetros, e o terreno acidentado, talvez montanhoso, do continente polar ofereceu-se, nas telas, à visão dos observadores.

— Montanhas até seiscentos metros de altura — anunciou Bell.

Rhodan respondeu com um aceno de cabeça; parecia satisfeito.

— Isso basta para esconder uma nave de sessenta metros.

Crest, que concluíra o exame da fita, aproximou-se do assento do piloto. Rhodan afastou-o com um gesto, antes que começasse a falar.

— Um instante, por favor. Dentro de cinco minutos minhas mãos estarão livres.

Bell começou a comparar as imagens projetadas na tela do rastreador e do visor ótico. A nave continuava a descer.

— Olhe! — exclamou. — Nosso lugar é ali.

Rhodan levantou os olhos. Na direção nordeste, ligeiramente fora da trajetória da Good Hope, uma série de colinas estendia-se pelo terreno, subindo suavemente até o cume da primeira montanha. A uns dois terços da distância que separava a planície do cume abria-se uma cratera. Era redonda e seu diâmetro media uns duzentos metros. Suas bordas desciam para as profundidades das colinas. No lugar em que se encontravam não era possível determinar a profundidade.

Rhodan respondeu com um aceno de cabeça e modificou o curso da nave. Passou junto à montanha, seguiu a linha da cumeeira e parou acima do centro da cratera.

A visibilidade era boa. A Good Hope estava estacionada a menos de cem metros acima da borda da cratera. A profundidade da mesma era de cerca de oitenta metros. Rhodan sentiu-se tranqüilizado ao perceber que as paredes não eram muito íngremes, como as crateras vulcânicas.

— Está bem — disse. — Vamos pousar.

O fundo da cratera estava coberto de um emaranhado de vegetação e de algumas árvores.

As telas escureceram quando a Good Hope mergulhou. Rhodan desceu devagar, com muita cautela. Quando as bordas da cratera se erguiam acima do ponto mais alto da nave, o sinal azul de parada iluminou-se no painel.

A Good Hope concluíra o pouso.

 

Rhodan voltou-se. Crest estava de pé atrás dele, com a fita do tradutor na mão.

— Diz que se trata de uma forma antiga do intercosmo — informou. — Aqui está a tradução.

Entregou o cartão a Rhodan. Na linguagem silábica dos arcônidas lia-se a seguinte mensagem:

Queiram dar o sinal convencional em código.

Bell olhou por cima de seus ombros. Dominava a língua arconídica, escrita ou falada, tão bem quanto Rhodan, Crest e Thora.

— Sinal convencional! — murmurou. — Com quem será que essa gente convencionou alguma coisa?

Rhodan sacudiu a cabeça.

— Isso não é tão importante. O que interessa é saber o que vem a ser o intercosmo antigo.

Procurou recorrer à memória do que lhe fora transmitido pelo treinamento hipnótico. Intercosmo? Intercosmo antigo?

Ao que parecia Crest também não dispunha de uma resposta. Rhodan sabia da existência de uma língua denominada de intercosmo. Servia de instrumento de comunicação em todo o Império. O intercosmo desenvolvera-se nos últimos mil anos da escala de tempo terrestre. O adjetivo antigo parecia indicar que havia uma forma ainda mais velha dessa língua. Mas nem Rhodan nem Crest sabiam dizer quando a mesma se desenvolvera, e por quem era usada.

De qualquer maneira era tão antiga que não guardava a menor semelhança com o intercosmo falado nos dias atuais.

Rhodan levantou-se.

— Assim não chegaremos a nada. Temos que pôr-nos a caminho.

Abandonou a suposição de que dera com uma base desconhecida dos Dl. Pela estrutura do seu cérebro, esses seres não utilizavam nenhuma língua para comunicar-se. Se dispusessem de uma base neste planeta, teriam usado a via telepática para solicitar a senha codificada.

Isso tranqüilizou Rhodan, embora ele não dispusesse de qualquer informação que lhe permitisse concluir que o inimigo com que se defrontava não era ainda mais perigoso que os Dl.

Olhou os presentes um por um e disse em tom compenetrado:

— Não vamos perder tempo. Antes que termine o dia, nossa patrulha deve avançar um bom pedaço.

 

— O que lhe parece?

Rhodan estava no seu camarote, em companhia dos dois arcônidas. Há meia hora Bell, Tako Kakuta e os três astronautas americanos haviam saído da nave para explorar os arredores e realizar o levantamento cartográfico do terreno.

Thora parecia abatida. Rhodan indagou de si para si se isso ainda seria efeito da impressão causada pelo cruzador espacial destroçado sobre a Lua, ou se o seu estado fora causado pelo surgimento de um inimigo desconhecido, capaz de enfrentá-la de igual para igual.

Crest inclinou-se.

— Não podemos formular nenhuma conjetura — respondeu. — Não temos qualquer indicação sobre os seres que se põem no nosso caminho.

— Indagou aos registros?

— Indaguei; não sabem de nada. Vênus não consta entre os mundos habitados onde nossas naves já aportaram.

Rhodan confirmou com um aceno de cabeça.

— Era o que eu esperava. Se os registros soubessem quem vive em Vênus, minha memória recém-implantada devia ser capaz de informar o que vem a ser o Intercosmo antigo. Acontece que não sei; pior que isso, não tenho a menor idéia do que vem a ser isso.

Crest ficou calado por um instante. Depois conjeturou:

— Não é de todo impossível que no início da expansão galáctica alguma expedição arconídica tenha avançado até aqui e perdido a comunicação com o planeta natal em virtude de uma catástrofe. Assim se explicaria por que nossos registros nada sabem sobre esta colônia.

Rhodan refletiu sobre as palavras de Crest.

— Daí se concluiria que segundo os padrões terrenos esta colônia teria pelo menos dez mil anos.

Crest fez que sim.

— Isso mesmo. Foi nessa época que teve início a expansão. Alguns séculos depois as comunicações já tinham sido aperfeiçoadas tanto que uma colônia recém-instalada nunca poderia cair no esquecimento.

— Muito bem. Suponhamos que se trate de arcônidas, como vocês. Ou melhor, de arcônidas que se desligaram da terra natal há dez milênios e certamente desenvolveram seu próprio estilo de vida. Isso adiantaria alguma coisa, se não entendem nossa língua, nem nós a deles?

Crest lançou-lhe um olhar de surpresa.

— Quer dizer...

— O que quero dizer é que temos um inimigo diante de nós, quer se trate de arcônidas, quer não. E continuará sendo nosso inimigo enquanto não pudermos informá-lo sobre nossas reais intenções. Quando pudermos fazer isso, decidirá se vai ficar conosco ou contra nós.

— Ou se vai ficar neutro — ponderou Crest.

Rhodan estacou. Depois de algum tempo sorriu.

— Acredita mesmo que neste setor da galáxia exista alguém que possa ficar neutro nos próximos milênios? Quero dizer mais uma coisa — prosseguiu. — Teremos de aproximar-nos sorrateiramente da base deles, como se tivéssemos um inimigo diante de nós. Se não o fizermos, acabaremos sendo localizados e provavelmente destruídos. Assim que conseguirmos chegar à base, teremos de atacar. Faremos o menor estrago possível, mas não podemos deixar de atacar, nem que seja para entrar e falar com essa gente. Não nos abrirão as portas espontaneamente. Não adianta perdermos tempo quebrando a cabeça a este respeito.

Crest acenou, numa atitude pensativa.

— Meu jovem amigo, sua lógica é de uma energia assustadora — disse com a voz baixa. — Embora meu treinamento cerebral tenha sido mais prolongado que o seu, teria levado algumas horas para chegar a essa decisão. De qualquer maneira existe a possibilidade de nos vermos obrigados a atirar contra seres da nossa espécie.

Rhodan levantou-se. Ia dizer alguma coisa, mas Thora cortou-lhe a palavra.

— Já pensou? — perguntou. — Como é possível que há dez mil anos, segundo sua escala de tempo, um grupo se tenha fixado aqui, e em todo esse tempo não tenha conseguido realizar uma colonização visível do planeta?

Rhodan fez um gesto de assentimento.

— Já pensei nisso. Seria de esperar que num espaço de dez mil anos um grupo de colonizadores, por menor que fosse, conseguisse pôr sua marca ao mundo que habita. E o que encontramos aqui? O matagal, a água, os vulcões. Não há o menor vestígio de uma civilização.

— Será que um campo gravitacional orientado e o desvio de seis foguetes não constituem um sinal? — perguntou Crest numa ironia bonachona.

— Está certo. Mas fora da base não existe nada.

Crest fitou o vazio.

— Que conclusão você tira disso? — perguntou depois de algum tempo.

— Nenhuma — respondeu Rhodan laconicamente. — Resolvi quebrar a cabeça com coisas mais importantes. Assim que conseguirmos penetrar na base deles, lá no norte, veremos o que encontramos.

 

Às cento e oitenta horas, tempo local, Bell retornou com seu grupo. Apresentou-se imediatamente a Rhodan. Entregou-lhe um mapa desenhado numa folha de plástico, que tinham levantado com o cartógrafo automático.

— Realizamos o levantamento completo de uma área com o raio de cem quilômetros em torno da nave. Não foi fácil, nem mesmo com os trajes transportadores arconídicos. Não nos arriscamos a subir mais que cinqüenta metros acima das copas das árvores.

— Tomara que não tenha sido demais — disse Rhodan em tom preocupado.

— Cinqüenta metros? É impossível. A base deles fica a uns quinhentos quilômetros. A uma distância dessas...

— O traje transportador funciona com base na gravitação artificial. E uma fonte de gravitação pode ser detectada a milhares de quilômetros de distância.

Bell empalideceu.

— É verdade. Mas ouça. Talvez o que descobrimos baste para eliminar suas dúvidas — apontou para o mapa. — Esta área tem acesso direto ao mar. Um fiorde ou coisa parecida avança até aqui. Fica a menos de dez quilômetros do ponto em que nos encontramos. Nessa altura ainda tem duzentos metros de largura.

— Um fiorde?

— Isso mesmo. A água é salgada e imóvel. Se não for um fiorde, só pode ser um lago salgado.

Rhodan acenou com a cabeça.

— Está bem; prossiga.

— A água está repleta de animais de toda espécie. Encontramos peixes completamente normais e um tipo de foca. De resto, só há bichos horríveis; nunca vi nada parecido. Você vai ficar todo arrepiado. Há polvos tão grandes que um batalhão inteiro pode esconder-se atrás deles; alguma coisa parecida com uma cobra, só que tem seis pés; e outros bichos que ficam parados em cima da água que nem um tapete fino. Só se mexem quando se toca neles. Não lhe dão a menor chance. Ao menos não deram nenhuma chance à pedra que atirei neles; de repente o lindo tapete transformou-se numa bola gosmenta que agarrou a pedra e arrastou-a para o fundo.

Rhodan interrompeu-o rindo.

— Está bem. Mais alguma coisa importante?

Bell lançou-lhe um olhar de censura.

— Pois bem — disse com um suspiro. — O terreno apresenta um declive para o norte. Localizamos uma cadeia de montanhas a grande distância. Não acreditei nos instrumentos, mas os picos mais altos chegam a mais de dez mil metros!

Rhodan deu de ombros.

— Todo o interior do continente parece ser um emaranhado de montanhas. Os picos mais elevados ficam na região em que o inimigo tem sua base. Entre eles há alguns vulcões bem feitos. Nos demais lugares, o terreno não oferece nada de interessante. Para o leste e o oeste a altitude mantém-se constante, embora haja algumas colinas. Para o sul vai descendo em direção ao mar.

O ar fede a fogo e enxofre, mas pode-se respirá-lo sem sentir náuseas. Existem animais que são do tamanho do Empire State Building.

— Vamos devagar, Bell.

— Está bem; são de um tamanho apavorante. Mas não parecem muito inteligentes. Nyssen testou sua capacidade de reação. Não teve a menor dificuldade em flutuar no ar bem à frente da boca deles e escapar em tempo. Ainda há dois rios pequenos, que correm na direção geral do sul. Não encontramos mais nada. O mapa registra tudo o que achamos interessante.

Rhodan assentiu com um movimento de cabeça.

— Você ficou de me explicar por que aqueles seres estranhos não poderiam localizá-los, mesmo que voassem a cinqüenta metros acima das copas das árvores.

— Estão encurralados no meio das montanhas do norte, e é muito provável que na nossa direção tenham pelo menos um cume diante do nariz, que lhes roube a visão e a possibilidade de localização.

Rhodan virou-se de lado e examinou Bell dos pés à cabeça.

— E você acha que é impossível que tenham montado suas instalações de localização em cima do cume mais alto, para dar-lhe maior eficiência, não é?

— Não, isso não; mas...

Parou em meio à frase.

— Bem, saberemos — disse Rhodan. — Que Deus tenha compaixão de você se tiver revelado nossa localização.

Por alguns minutos Bell parecia muito abatido. Depois disse:

— Acho que, se soubessem onde estamos, já nos teriam bombardeado.

Rhodan sacudiu os ombros.

— Talvez.

 

Pouco depois das cento e noventa horas chegou o crepúsculo, e com ele um verdadeiro exército de tormentas. Rhodan mandara equipar os principais cronômetros da nave com mostradores adaptados à rotação de Vênus. O dia tinha duzentas e quarenta horas de Vênus, e uma hora de Vênus só apresentava uma diferença de cerca de quinze segundos em relação à hora terrena.

Rhodan decidira manter a patrulha a bordo por mais algum tempo. Achara conveniente explorar em primeiro lugar os arredores da nave, a fim de que os homens pudessem levar o equipamento necessário para a marcha pela selva. Antes de mais nada quis ter certeza de que a leviandade de Bell não despertara a atenção do inimigo. Se este fosse o caso, não poderiam utilizar os trajes transportadores dos arcônidas, ao menos em vôos por cima das copas das árvores. E abaixo delas eram inúteis. Na selva do continente polar ninguém conseguiria voar.

Além disso, Rhodan postara sentinelas. Ao menos um homem que sabia lidar com os instrumentos de busca e vigilância da Good Hope tinha de permanecer na cabina de comando. Em caso de emergência talvez não bastasse que acudissem aos sinais de sirena para defender-se de um atacante. Quem estivesse de sentinela devia gravar numa fita as observações mais importantes, quer se relacionassem com a tarefa da expedição, quer não. Qualquer indicação, inclusive sobre animais ou ocorrências da natureza, assumia certa importância na medida em que contribuía para fornecer um quadro de informações sobre os arredores.

Rhodan assumiu o primeiro turno, das cento e noventa as cento e noventa e três horas. Apagou a luz da cabina de comando, onde não havia mais ninguém e, para observar os arredores, colocou uma sonda ótica em nível superior ao da borda da cratera.

A tempestade desenvolvia uma fúria inconcebível em meio ao crepúsculo.

A tormenta vinha do leste, do meio da noite. Utilizando uma sonda aerodinâmica, Rhodan mediu a velocidade do vento.

Constatou valores de trezentos e cinqüenta quilômetros por hora, menores portanto que os observados em grandes altitudes.

Pelas cento e noventa e duas horas escureceu por completo, o que obrigou Rhodan a conectar a sonda ótica com o dispositivo infravermelho. Com isso perdeu o colorido das imagens que surgiam na tela. Os raios infravermelhos projetavam desenhos brancos em fundo negros.

Meia hora depois a tempestade começou a amainar.

Bem perto, uma cabeça com formato de cobra surgiu por cima da folhagem; pertencia a um animal da classe dos sáurios. O pescoço encimado por uma cabeça minúscula executava movimentos pendulares. Provavelmente o animal tentava orientar-se pela tempestade. Rhodan observou atentamente, para descobrir quanto tempo gastaria nisso. Ao que parecia a informação de Bell era correta: os animais não eram nada inteligentes.

Rhodan ligou o gravador e falou:

— Avistei um animal da classe dos sáurios. Com o pescoço esticado a cabeça fica a uns cinco ou seis metros acima da folhagem. Leva dez minutos para orientar-se num terreno que oferece ampla visibilidade.

Era bom saber disso. Com isso a patrulha não precisaria dar uma volta enorme em torno de cada sáurio com que se deparasse. Provavelmente poderia passar por entre as suas pernas, sem que ele percebesse nada.

Subitamente ouviu um ruído atrás de si. Virou-se abruptamente e viu o vulto esbelto de Thora à luz mortiça das telas.

— Não meta um susto destes nos outros — disse em tom de gracejo. — Existe gente mais nervosa que eu.

Thora deu uma risadinha.

— Vim revezá-lo. Seu turno está quase no fim.

Rhodan olhou para o relógio. Faltavam mais de vinte minutos.

Ambos contemplaram a tela em silêncio.

— Você devia ter visto isso quando a tempestade ainda uivava — disse Rhodan depois de algum tempo. — Era um quadro bem romântico.

Thora não respondeu. Levou alguns minutos para formular uma pergunta estranha:

— Está gostando?

— De quê?

— Deste mundo.

Rhodan confirmou com uma expressão séria.

— Gosto de qualquer mundo em que ponho os olhos. Conheço muitos deles, alguns bem, outros menos bem. Só ficarei satisfeito quando tiver visto todos eles.

Prosseguiu depois de uma pausa:

— Por quê? Você não gosta?

Thora hesitou antes de responder.

— Não sei se compreenderá. Quem pertence a uma raça como a minha sabe que não encontrará nada de novo no universo. Tudo que descobrimos já foi visto por nós em outro lugar, igual, ou sob uma forma semelhante. Com o tempo a gente se cansa de ver coisas, sabe? Às vezes chego a perguntar quando algum filósofo terá a idéia de pedir a abolição das viagens espaciais, já que elas não contribuem para o desenvolvimento espiritual dos seres inteligentes.

Rhodan deixou que a idéia lançasse raízes em sua mente. “Não é tão absurda assim”, pensou. “Quem tem uma história de dezenas de milhares de anos não encontra mais nada que seja novo.”

— Suas naves nunca atingiram as outras galáxias, ou melhor, nenhuma das raras tentativas nesse sentido foi coroada de êxito. Isso não seria uma possibilidade?

— Você fala como um homem — respondeu Thora com uma ponta de ironia. — É jovem, curioso e um tanto impetuoso.

— Sou um homem — disse Rhodan.

— Pense no custo de uma expedição intergaláctica, e na utilidade que pode proporcionar em comparação ao mesmo.

— Custo? — interrompeu Rhodan em tom exaltado. — Quem quer saber de custos quando se trata de um empreendimento novo, que revolucionará o mundo? O desenvolvimento do programa de viagens espaciais dos terráqueos, até a construção da primeira nave lunar, consumiu tanto dinheiro que toda a humanidade poderia viver despreocupadamente na maior abundância. Alguém se preocupou com isso? Não. Na Ásia, na África e nos países latino-americanos milhões de pessoas continuaram a morrer de fome, ou de doenças que poderiam ter sido curadas se houvesse o dinheiro necessário para a compra de remédios. Em vez disso preferiu-se construir uma nave lunar. Não sei até que ponto esse tipo de desenvolvimento pode ser compatibilizado com a moral. De qualquer maneira a humanidade é um bando de teimosos que não está empenhado em voltar ao paraíso, mas em satisfazer sua curiosidade e enfiar o nariz cada vez mais pelo mundo adentro. Quem sabe se a humanidade já não existiria se não fosse assim. Não faltaram catástrofes que fizeram tudo para extinguir a chama de sua vida.

Falara com certa violência. Mas Thora compreendeu que essa violência não se dirigia a ela. Foi o orgulho da raça que o arrebatou.

Subitamente Thora invejou-o por esse tipo de orgulho.

— Não sei se, mesmo nos seus melhores anos, nossa raça já esteve tão repleta de energia como a sua — disse depois de alguns minutos.

Rhodan voltou-se e procurou enxergar seu rosto na escuridão. Seus olhos vermelhos emitiam um reflexo débil sob a luz das telas. Não parecia que estivesse fazendo pouco dele.

A resignação daquela mulher inquietava-o e deixava-o acanhado. Olhou para o relógio. Seu tempo terminara.

— Foi um prazer conversar com você. Espero que ainda tenhamos muitas oportunidades para isso.

Thora cumprimentou-o com um aceno da cabeça.

Quando fechou a escotilha atrás de si, lamentou não ter ficado com ela. Thora chegara mais cedo. Por que. ele não poderia ficar até mais tarde? Talvez estivesse decepcionada. Voltou-se e esteve a ponto de abrir a escotilha. Mas acabou desistindo. Talvez ela lhe lançasse um olhar irônico quando o visse entrar de novo, e isso lhe estragaria a disposição.

Devagar e pensativo foi voltando ao seu camarote. Sentou na poltrona e fumou um cigarro. Ligou a tela, mas os aparelhos do camarote não dispunham de sonda, e por isso só viu as paredes escuras da cratera em que a nave estava escondida.

 

Rhodan não sabia quanto tempo tinha dormido quando foi acordado pela campainha do interfone. Sentiu-se cansado.

O rosto redondo de Bell surgiu na tela:

— Acorde! — gritou este. — Que diabo, acorde!

Ainda meio sonolento, Rhodan pôs o dedo no botão do interfone e comprimiu-o.

— O que houve? — resmungou.

Bell respirou aliviado.

— Já pensava que você nunca mais...

— Deixe de preâmbulos! Quero dormir.

— Acabo de fazer uma observação, Rhodan.

— E daí? Registre-a no gravador e deixe-me em paz.

— Nada disso! — gritou Bell. — As focas saíram da água e estão realizando uma conferência no cume da montanha. Você não pode deixar de ver isso.

Espantado, Rhodan sacudiu a cabeça.

— As focas? Que focas são essas?

Mas logo lembrou-se do relatório que Bell lhe apresentara no dia anterior. Saiu da cama gemendo.

— Está bem. Já vou até aí.

Não se lavou. Apenas acendeu um cigarro.

Bell estava boquiaberto diante da tela. Fez um gesto para que Rhodan se aproximasse; não emitiu um som, como se tivesse receio de assustar as focas.

Rhodan viu que ele acoplara um ampliador setorial na sonda ótica. Dessa forma conseguira aproximar o platô da montanha, situado a oito quilômetros de distância, de tal forma que se distinguiam todos os detalhes.

Tanto a longa encosta daquela montanha de cerca de quinhentos metros de altura, nem seu cume pareciam ser diferentes da borda da cratera no que dizia respeito à composição do solo. A vegetação subia pelas paredes da cratera, prosseguia pela encosta, tornando-se cada vez mais rala e deixava o cume completamente à vista.

Rhodan olhou para o relógio. Era pouco antes das cento e noventa e seis. Bell fora escalado para servir de sentinela depois de Thora.

Passou a observar a tela. Bell quis dizer alguma coisa, mas Rhodan interrompeu-o com um gesto.

No cume uma porção de animais estranhos se moviam. Tinham uma vaga semelhança com focas; mas, pela descrição de Bell deviam ser animais da classe dos peixes, que respiravam através de guelras.

Seus movimentos eram fascinantes. Parecia que alguma coisa fazia com que sempre dessem o mesmo tipo de salto ao mesmo tempo.

— Que acha disso? — perguntou Bell.

— Você não disse que são peixes?

— Sim; têm guelras e enquanto os observamos não puseram a cabeça para fora da água.

Rhodan confirmou com um aceno de cabeça.

— Quem sabe se estes peixes não têm pulmão? — disse em tom pensativo.

— Santo Deus, você acha que a respiração deles é tão interessante? Gostaria muito mais de saber que tipo de procissão é esta que estão realizando.

— Não é nada de especial. Na Terra temos coisa semelhante, como por exemplo a brama do galo silvestre.

Bell sacudiu a cabeça.

— Nunca vi um galo silvestre bramar, mas tenho certeza de que não ficam pulando em ritmo como esses animais.

Rhodan passou a mão pela cabeça.

— Você não deixa de ter razão.

Subitamente o cansaço abandonou-o.

— Rápido, arranje dois trajes transportadores.

Bell levantou-se com um sorriso.

— Finalmente!

Rhodan tomou lugar junto ao interfone e chamou Crest, que devia ficar de sentinela depois de Bell. Informou-o sobre o que este havia observado e disse que pretendiam aproximar-se do bando de focas para observá-las de perto e capturar uma delas.

Crest concordou e no momento em que Bell e Rhodan terminaram de colocar os trajes transportadores, entrou na sala de comando.

— Parece que sua preocupação com o localizador do inimigo desapareceu como por encanto, não é? — perguntou Bell quando abriram a comporta externa.

Rhodan sacudiu a cabeça.

— Não pretendo deslocar-me a cinqüenta metros acima das copas das árvores, e além disso, no nosso caso, os cumes das montanhas realmente oferecem uma proteção excelente.

Bell não o contradisse.

Foram voando lentamente bem junto às colinas. Rhodan se armara com uma pistola de radiação, enquanto Bell carregava um desintegrador um tanto pesado.

A noite estava escura. De início a diferença entre a nitidez do quadro que se desenhava na tela e o negrume do nada para o qual olhavam deixou-os irritados. Mas mesmo por entre à camada compacta de Vênus penetravam alguns raios de luz, e com o tempo seus olhos acostumaram-se a essa iluminação escassa.

Levaram quinze minutos para percorrer os oito quilômetros. Não se deslocaram com muita rapidez, para não assustar as focas.

Ficaram observando por alguns minutos. As focas tinham cerca de um metro.

Geralmente moviam-se como as focas da Terra, apoiando-se na cauda e nas barbatanas. Mas durante a dança conseguiam às vezes desprender as barbatanas do chão, equilibrando-se por meio minuto apenas sobre a cauda. Pareciam engraçadas e dificilmente alguém imaginaria que esses animais, mesmo atacados, pudessem representar um perigo para quem quer que fosse.

Subitamente aquilo que Bell chamara de procissão terminou. No silêncio que passou a envolver o platô, Rhodan lembrou-se de que os próprios animais não haviam emitido qualquer ruído além do arranhar das barbatanas. Parecia ser um grupo silencioso.

Tudo indicava que se preparavam para deixar o local. Rhodan deu um empurrão em Bell. Ergueram-se de trás da moita que os ocultava e com dois ou três saltos alcançaram o grupo de focas. A reação dos animais foi instantânea. A maior parte deles desceu em largos saltos a encosta do outro lado, muito mais íngreme. Outros procuraram escapar em meio à escuridão. Apenas um deles não foi bastante rápido para escapar às mãos de Bell e Rhodan.

Por estranho que parecesse, não se defendeu quando notou que estava preso. Ficou deitado de costas, imóvel, fitando os dois homens com seus olhos grandes.

— Cuidado! — disse Rhodan. — Pode ser um truque. De repente pode dar um salto e desaparecer.

Mas o bichinho não parecia pensar nisso. Permitiu que Bell e Rhodan o levantassem. Puseram a funcionar os propulsores de seus trajes e num rápido vôo rasante levaram-no até a nave.

Crest já avisara o resto da tripulação de que algo de interessante se passava. Quando Rhodan e Bell entraram na cabina com o prisioneiro, todo mundo já estava reunido.

— O que pretende fazer com ele? — perguntou Manoli.

— É o que quero perguntar a você — respondeu Rhodan. — Chegou a observar esses animais?

Manoli fez que sim.

— Acho que dispõem de um nível de inteligência relativamente elevado — disse Rhodan. — Como poderíamos descobrir se é assim?

— Quem sabe se uma análise cerebral não resolveria? — interveio Bell.

Rhodan pôs-se a refletir.

— Isso só seria viável se o bichinho fosse capaz de conceber idéias lógicas. Não custa tentar.

A foca estava estendida sobre uma das mesas do laboratório. Manoli apalpou-a cautelosamente.

— É estranho — disse. — Sou capaz de apostar que este animal é capaz de emitir sons. Por que não fala?

Bem junto à cabeça da foca, em cima da mesa de laboratório trazida para a cabina de comando, havia um pequeno recipiente de vidro, de paredes bem finas. Subitamente o animal começou a emitir sons estridentes, deu um salto e quebrou o vidro. Perplexo, Manoli fitou os cacos.

— Ora essa! — disse Rhodan. — Devíamos ter pensado nisso.

No laboratório, repleto de instrumentos destinados a estabelecer contato com seres de língua e técnica de comunicação diferente, havia um receptor de ultra-som, que tinha por fim transformar as freqüências supersônicas, imperceptíveis aos ouvidos humanos e arconídicos, colocando-as numa faixa audível.

Colocaram o aparelho perto da foca; ouviu-se uma série de zumbidos, chiados e chilreios. Tais sons foram gravados em fita, a fim de que o analisador cerebral os conjugasse com os impulsos cerebrais do animal e procurasse realizar a reconstituição lógica da linguagem das focas. Isso, porém, só seria possível se o animal tivesse emitido uma verdadeira linguagem, e não apenas uma série de sons inarticulados ditados pelo medo, pela excitação ou pela raiva.

O analisador era um aparelho pequeno, se o comparássemos com seu desempenho.

Reforçava as microondas emitidas pelo cérebro e, com base nos modelos ideológicos armazenados em sua memória, atribuía-lhes determinado sentido. Partia do pressuposto de que cada idéia, mesmo vinda de cérebros diferentes, originava impulsos idênticos, desde que o cérebro fosse do modelo C-O-H, isto é, pertencesse a um ser nascido num planeta dotado de uma atmosfera oxigenada.

O analisador registrava o resultado sob a forma de impulsos gravados em fitas, que eram interpretadas pelo cérebro eletrônico.

Rhodan pegou a fita e introduziu-a no computador. A decifração durou dez segundos. No cartão de plástico expelido pela máquina lia-se em linguagem arconídica:

 

Eu, ... (palavra indecifrável, provavelmente o nome), peço aos sublimes ... (palavra equivalente a deuses ou divindades) que me permitam voltar ao meu elemento (o mar?), pois em caso contrário morrerei sufocado.

 

Rhodan ficou perplexo. Imóvel, fitou a tira de plástico.

— Tako! — gritou.

— Pois não!

— O bichinho está morrendo sufocado. Temos de levá-lo imediatamente até a água. Está disposto?

Tako fez que sim. Segurou a foca nos braços.

— Não haverá nenhum problema — disse com um sorriso.

No mesmo instante desapareceu, para reaparecer logo após. Rhodan dispôs-se a responder às perguntas que começaram a chover sobre ele.

— Não há dúvida de que se trata de seres inteligentes — declarou. — O fato de que o analisador foi capaz de decifrar seus pensamentos já prova isso. Também não há dúvida de que se trata de um tipo de peixe dotado de pulmão. Esse peixe respira de duas maneiras: pelas guelras e pelo pulmão. Evidentemente a última modalidade ainda não está suficientemente desenvolvida. As focas só conseguem sobreviver fora da água por um tempo limitado.

Depois de uma pausa acrescentou:

— É claro que tentaremos novamente estabelecer contato com elas. Procuraremos aprender sua língua para conversar com esses seres. Mais uma coisa: é claro que não foram as focas que instalaram uma base no norte, com uma técnica superdesenvolvida. Acho que podemos excluir esta possibilidade.

 

Rhodan marcara a partida para depois do nascer do sol. Mas a noite era tão longa que a impaciência dos membros da tripulação terrena não lhe permitiria passá-la na inatividade.

Mandou entregar trajes transportadores aos participantes da patrulha, e também algumas armas. Além disso, forneceu-lhes instruções detalhadas.

Os membros da patrulha foram ele mesmo, Reginald Bell, o Dr. Manoli, os três astronautas americanos, Tako Kakuta e ainda, por insistência sua, Anne Sloane.

Estavam a ponto de sair pela comporta da nave quando o grito de advertência de Crest soou nos interfones:

— Aguardem! Localizei alguma coisa.

Rhodan mandou que todos permanecessem no interior da comporta. Ele mesmo dirigiu-se apressadamente à sala de comando. Crest estava sentado diante da tela do rastreador, onde se via um enxame de manchas luminosas brancas, que se deslocavam nervosamente de um lado para outro, aparentemente sem destino.

— O que é isso? — perguntou Rhodan.

— Diria que são espiões robotizados — respondeu Crest. — Não sei se ainda está lembrado: nos primórdios de nossa história havia instrumentos desse tipo. São apenas sondas radiogoniométricas, óticas ou de microondas de grande alcance. O tamanho destas aqui não é maior que três ou quatro vezes a palma de minha mão.

Modificou a regulagem para ampliar um trecho do campo de observação. Por alguns segundos viu-se um pequeno objeto em forma de disco, que se manteve imóvel. Quando Crest voltou à regulagem normal, o objeto desapareceu.

— Ainda não nos encontraram — constatou Rhodan.

Crest deu de ombros.

— Quem sabe se não é um truque?

“É isso mesmo”, Rhodan refletiu.

— Seja como for, partiremos — disse depois de algum tempo. — Mas iremos a pé; não voaremos. Levaremos um robô-planador, que nos garantirá um caminho livre.

Olhou para Thora, para ver se ela estava com medo. Sorria para ele.

— Manterei contato ininterrupto com você — prosseguiu Rhodan. — Não exponha a nave a qualquer perigo. Quando tiver a impressão de que não podemos nos defender mais sob as nossas cúpulas protetoras, suba, mas não muito alto, e dê o fora. Seja como for, tentaremos bater o inimigo. Estamos equipados para alguns meses. Se a missão falhar, entraremos em contato para estabelecer o lugar em que possam buscar-nos, ou então — hesitou por um instante — ou então não haverá mais nada para comunicar. Naturalmente isso é outra possibilidade.

Crest confirmou com um aceno de cabeça. Sua atitude quase chegava a ser devota diante de tamanha audácia. Deu ordem a Bell para que retirasse o pesado robô-planador dos compartimentos de carga e o instruísse sobre o que tinha a fazer. Teria que trabalhar em base semi-automática, isto é, alguém teria que dirigi-lo, pois não havia tempo para elaborar um programa e introduzi-lo em seu centro de memória.

— Ficaremos com os trajes transportadores — explicou Rhodan. — Mas torcerei o pescoço de qualquer um que se atreva a voar por cima das copas das árvores sem minha licença.

Bell arrastou o robô pela comporta. Os outros seguiram-no. Quando chegaram à borda da cratera eram duzentas e trinta horas e trinta, meia hora antes da meia-noite de Vênus.

Rhodan fez o grupo descer pela outra encosta da montanha, em direção ao fiorde.

A descida foi muito penosa. Felizmente o caminho íngreme estava livre de qualquer vegetação que lhes impedisse a marcha. Certamente a violência das tempestades fazia com que nada crescesse naquele declive. O robô-planador, que nada tinha a fazer, avançava ruidosamente à frente do grupo, esforçando-se para não perder o equilíbrio. Atrás dele vinha Rhodan, seguido dos outros. Tako Kakuta formava a retaguarda.

A descida para o mar durou mais de uma hora. Do cume da montanha até o mar o grupo havia percorrido dois quilômetros, medidos na horizontal. Impaciente, Rhodan calculou que nessa marcha consumiriam duzentas e cinqüenta horas de percurso para chegar à base inimiga. Era bem verdade que a descida fora realizada num terreno difícil, mas do outro lado do fiorde as coisas não seriam mais fáceis, pois o terreno, que subia lentamente, estava coberto de um denso matagal.

Rhodan decidira que o grupo atravessaria o fiorde com o auxilio dos trajes transportadores. Ao nível da água não havia perigo de serem localizados, já que o terreno ligeiramente elevado formava um abrigo.

O robô-planador atravessou o fiorde à sua maneira. Entrou na água, deixou que a espuma lhe cobrisse as costas e desapareceu. Seu mecanismo era tão robusto que poderia enfrentar sem maiores problemas os perigos com que se defrontasse no fundo do mar.

Acontece que seu avanço impetuoso alarmara os habitantes do mar. Sombras esguias dispararam pelo ar; provavelmente tratava-se de um tipo de peixe-voador. Mais de longe o grito soturno de um animal que homem algum jamais vira cortou a noite, e em vários pontos luzes coloridas iluminaram a superfície da água.

— São os tapetes — disse Bell. — Por certo o robô lhes deu apetite, e agora procuram atrair suas vítimas.

Continuaram parados. De qualquer maneira chegariam à margem oposta antes do robô, que tinha de percorrer um caminho mais longo, pelo fundo do mar.

Anne Sloane achegou-se a Rhodan.

— Isto aqui me dá arrepios — disse em tom brejeiro.

Rhodan examinou o grupo.

— Vamos! — ordenou. — Não adianta esperar mais.

Tako Kakuta foi o primeiro que desapareceu.

— Quem dera que eu fosse uma teleportadora — disse Anne.

O vôo foi muito silencioso. Em compensação os seres aquáticos fizeram um barulho tremendo. Rhodan passou bem acima de um dos tapetes luminosos. Este pareceu levantar-se em sua direção, contraiu-se e emitiu uma luminosidade mais intensa: depois de ter errado o alvo transformou-se numa bola fosca e desapareceu sob a água.

A travessia durou menos de dois minutos. Tako gritava ininterruptamente para orientar o grupo que devia deslocar-se em direção ao lugar em que se encontrava, onde uma área livre de vegetação formava uma ótima cabeça-de-ponte para o avanço na selva. O lugar ficava fora da trajetória inicial, motivo por que Rhodan acionou o dispositivo direcional, que faria o robô sair da água no ponto indicado.

Quinze minutos depois apareceu. Estava irreconhecível.

— Façam luz! — ordenou Rhodan. — Limpem-no.

Estava envolto num emaranhado de trepadeiras. Bell o fez parar e pediu a Anne que dirigisse a luz de um refletor sobre ele.

Enfiou as mãos naquela confusão branco-esverdeada.

Subitamente deu um grito. Retirou a mão de dentro do montão de plantas e sacudiu-a. Lançou um olhar perplexo sobre o ser estranho que mantinha os dentes fincados em sua luva. Tinha certa semelhança com um macaco Rhesus, mas seus olhos estavam cobertos por cápsulas ósseas que os protegiam da água. Pareciam bolas de vidro brancas e sem vida. Em vez do pêlo, havia uma cobertura de pequenas escamas flexíveis. Na ponta do rabo havia ferrões pequenos, mas pontudos, e como o animal o agitasse ininterruptamente, Bell poderia sair ferido, por mais resistente que fosse seu traje.

— Jogue fora esse bicho — gritou Rhodan.

— Terei muito prazer — resmungou Bell. — Mas primeiro tenho que me livrar dele.

Pensou que o mais seguro seria puxar o bicho pelo rabo. Mas o macaquinho intensificou a pressão das mandíbulas. Assim que Bell soltou o rabo, este voltou a agitar-se e arranhou o seu traje.

Bell tentou uma série de outros truques, mas sem êxito. Finalmente teve a idéia de bater com o punho cerrado na cabeça do macaco, até que o mesmo desmaiasse.

O animal caiu ao chão, imóvel. Anne aproximou-se.

— Não está morto — tranqüilizou-a Bell. — Viu? Já está despertando.

Com um chiado o animal procurou novamente alcançar sua mão com os dentes. Mas Bell reagiu prontamente, atirando-o à água.

Depois disso teve mais cautela ao desvencilhar o robô.

Terminada a limpeza, dirigiu a luz do refletor para as frestas do aparelho. Deu uma palmadinha naquele artefato que imitava uma torre e disse em tom zangado:

— Da próxima vez prefiro carregá-lo nas costas.

Depois de uma ligeira comunicação com Crest, Rhodan deu o sinal de partida. A luta contra a selva iria começar.

 

O robô, que o grupo apelidara de Tom, excedeu a todas as expectativas.

Afastava a vegetação como se estivesse lidando com folhas de grama. Ao mesmo tempo fazia um barulho tremendo, fazendo com que os seres de aspecto estranho que pudessem assustar o grupo fugissem espavoridos mato a dentro.

Era bastante inteligente para contornar as árvores maiores. Tinha não apenas força, mas também a capacidade de distinguir claramente entre os obstáculos que poderia ou não vencer.

Dali a meia hora tiveram de fazer uma pausa, porque a mão de Bell começou a doer. Anne examinou-a e constatou que a dentada do macaco subaquático passara pela luva, atingindo a mão.

O ferimento foi tratado com um medicamento da farmacopéia arconídica. Dentro de poucos minutos as dores cessaram.

— Espero que todo mundo tire uma lição disso — disse Rhodan. — Devemos observar uma regra: não tocar em nada. Enquanto não conhecermos as coisas que existem neste mundo, elas são extremamente nocivas a nós.

Depois prosseguiram na marcha, sempre atrás das costas largas de Tom. A passagem aberta por este tinha dois metros e meio de altura, e largura suficiente para que duas pessoas andassem facilmente uma ao lado da outra. Vez por outra Rhodan olhava para cima e dirigia a luz do refletor para a folhagem. Nunca se sabia que espécies de animais viviam nas copas das árvores. Mas não via nada.

Depois de três horas pararam e levantaram um acampamento provisório. Cada uma das barracas infladas dos arcônidas era ocupada por dois homens. Mas, uma vez dobradas, cabiam perfeitamente no bolso de uma calça.

Anne foi a única que ficou só, numa barraca.

A escuridão prolongada deixou os membros do grupo um tanto perturbados. Deitaram para dormir um pouco, mas dali a duas horas já estavam de pé.

Rhodan ficou de sentinela. Não se sentia cansado. Aproveitou a oportunidade para conversar com Thora. Soube que os pequenos espiões robotizados voltaram a aparecer, mas mais uma vez foram embora sem que tivessem conseguido nada. Não havia sinais de outra atividade do inimigo.

Durante essas duas horas não aconteceu nada de extraordinário. “Ainda bem”, pensou Rhodan, “não precisamos de problemas.” Mas no íntimo sentiu-se um pouco decepcionado por não encontrar nada que saciasse sua sede de aventuras. O ribombar compassado que poucos minutos antes do fim de seu turno passou ao longe, e provavelmente era causado pelas patas de um sáurio em movimento, constituía um péssimo substituto para um verdadeiro acontecimento.

 

Dividiram a marcha em etapas de trinta horas. Nas primeiras duas etapas percorreram cerca de oitenta quilômetros. Isso representava um bom desempenho, já que se deslocavam em meio à selva impenetrável.

Ao fim do segundo período de trinta horas, levantaram suas barracas numa clareira que Tom abrira às pressas. Um novo dia parecia raiar por cima da folhagem. Rhodan pediu a Tako que subisse às copas das árvores para verificar se já conseguia distinguir o objetivo.

Tako voltou dali a alguns minutos.

— A cerca de cento e cinqüenta quilômetros ao norte começa a cadeia de montanhas. Até mesmo em meio ao crepúsculo vêem-se os enormes paredões. Não será fácil subir por ali.

Neste meio tempo Bell e Deringhouse haviam preparado uma refeição. Comeram um tanto cansados e recolheram-se às barracas.

No primeiro turno o capitão Nyssen ficou de sentinela; não houve nada de anormal. Ao que tudo indicava, os animais que compunham a fauna de Vênus tinham medo dos homens.

Poucas horas depois a catástrofe desabou sobre o grupo.

O Dr. Manoli estava de sentinela. Sentado diante da barraca que partilhava com Tako, apagara a lanterna, embora Rhodan o tivesse proibido. Sentiu um certo prazer em ver como a folhagem opunha uma resistência cada vez mais débil à luz do novo dia, que começou a espantar a escuridão até mesmo no chão sombrio da mata.

Era o segundo dia que passavam em Vênus, segundo a escala de tempo daquele planeta.

A selva estava repleta de sons. Mas subitamente Manoli ouviu um ruído que parecia vir de perto. Imediatamente acendeu a lanterna e aguçou o ouvido.

Ouviu um rastejar. Levantou-se e procurou descobrir de que direção vinha o ruído.

Subitamente ouviu um grito estridente; era tão pavoroso que o deixou todo arrepiado. Reconheceu a voz de Anne. Com alguns saltos colocou-se à frente de sua barraca, abriu o cortinado e dirigiu a luz para o interior da mesma.

Anne não estava mais ali. Aquilo que se movia no interior da barraca era tão pavoroso e repugnante que Manoli não se atreveu a fazer qualquer movimento.

Não enxergou o começo nem o fim daquela coisa. Um pedaço de carne branca e gosmenta, com um diâmetro de aproximadamente trinta centímetros, parecia sair da terra, executando uma série de contrações espasmódicas. Não se via nenhuma articulação, apenas uma série irregular de anéis ligeiramente afundados. Manoli tinha certeza de que esse ser havia aberto o buraco de onde saía. A outra extremidade daquela coisa já havia saído da barraca. Novas massas de carne repugnante saíam do solo, para desaparecer do lado oposto da barraca. Era este o ruído rastejante que ouvira.

Subitamente Rhodan estava a seu lado.

— O que houve?

Manoli não teve necessidade de explicar nada. Com a mão trêmula apontou para a coisa rastejante.

Rhodan voltou a cabeça para o lugar indicado. Logo compreendeu a situação.

— Bell! — gritou. — Traga o desintegrador.

Ouviu-se uma resposta. Rhodan pegou a pistola de radiação, apontou-a para a carne gosmenta e apertou o gatilho. Só baixou a arma quando tinha feito um corte fumegante e malcheiroso no corpo do animal.

O resultado foi espantoso. A parte da frente parecia não se preocupar com o que estava acontecendo à parte de trás. Continuou a rastejar e dentro de poucos segundos tinha saído completamente da barraca.

A parte traseira, com a extremidade chamuscada, ficou balançando por alguns instantes sobre o buraco. Subitamente começou a adquirir novas formas. Com um ligeiro estalido as crostas causadas pela queimadura desprenderam-se do corpo. A ponta achatada esticou-se até formar uma cabeça pontuda. Logo esse resto de animal pôs-se em movimento: saiu do buraco e atravessou a barraca. Uma das partes do animal seguiu a outra.

O espetáculo só durara alguns segundos. Rhodan logo compreendeu que por essa forma não poderia socorrer Arme. Saiu correndo e chamou Bell aos berros.

— Estou aqui! — respondeu Bell.

— Um tipo de verme carregou Anne — explicou Rhodan apressadamente. — Parece que é tão difícil de matar como uma minhoca terrena. Temos de ir atrás dele.

Contornaram a barraca e descobriram a segunda metade do animal, que seguia pelo rastro gosmento deixado pela primeira. Bell, muito assustado, ofegava.

Pegou o desintegrador e abriu uma brecha na selva, na direção que o animal tinha tomado. Compreendeu que tudo dependia de ultrapassarem o animal e alcançarem a cabeça da primeira parte. Dessa forma encontrariam Anne.

Por um instante Rhodan pensou em mandar Tako à frente. Mas o objetivo era incerto, o risco grande demais.

Numa atividade furiosa penetraram na brecha, acionaram o desintegrador para abrir outra, tropeçaram nas trepadeiras. Vez por outra caíam sobre o corpo flácido do animal. Contorciam-se de repugnância, mas logo se levantavam para prosseguir em sua carreira desabalada.

Rhodan notou que avançavam muito devagar. Em cada minuto avançavam um metro mais que o verme e, pelo que já tinham visto, o seu comprimento devia ultrapassar tudo que já tinham imaginado.

Gastaram dez minutos para atingir o início da segunda parte do animal. Bell virou-se e dirigiu o raio mortífero sobre o corpo gosmento, até que este se dissolvesse.

— Tenha mais cautela com a outra parte — advertiu Rhodan. — Não sei se este verme é capaz de perceber o perigo. Se for, pode desaparecer com Anne embaixo da terra.

Bell fez um gesto de assentimento. Acionou o desintegrador para estender o caminho pelo qual avançavam na selva. Rhodan dirigiu a luz do refletor para a frente. A extremidade posterior do verme desapareceu no fim do caminho.

Precipitaram-se atrás dele. Enquanto passavam pelo rabo do verme e se esgueiravam por entre os galhos que não puderam ser afastados com os tiros ligeiros do desintegrador, não perceberam, de tão excitados que estavam, que o terreno subia ligeiramente.

A primeira parte do verme era bem mais comprida que a segunda, que já tinham deixado para trás. Levaram quase meia hora para avistar a cabeça pontuda do animal, e também Anne.

O verme carregava-a de forma estranha. Formou um tipo do laço em torno de sua vítima e segurava-a na parte da frente de seu corpo, levantada em posição oblíqua. Anne estava inconsciente. Seu corpo flácido pendia do laço; tudo indicava que até então não sofrerá nenhum mal mais sério.

Enquanto se conservavam lado a lado com o verme, procurando um meio de libertar Anne da situação terrível em que se encontrava, não perceberam que o matagal se abria em torno deles, formando uma clareira coberta com uma vegetação rala.

— Fico abaixo dela — disse Rhodan. — Quando você atirar, poderei pegá-la.

Bell confirmou com um gesto. Esperou até que Rhodan atingisse uma posição favorável junto ao animal, que continuava a rastejar apressadamente, e começou a cobrir o corpo gosmento com o raio constante do desintegrador.

O verme dissolveu-se. Ao que parecia percebeu o perigo que o ameaçava, pois desviou-se para o lado. Bell teve de dar um pulo para não ser atingido por uma pancada daquele corpo. O animal continuou a mover-se até que Bell havia dissolvido uns sete oitavos do volume visível do corpo, do ponto em que Bell se encontrava. Subitamente as contorções cessaram.

Mas Anne continuava presa no laço. Bell preferira não atirar sobre essa parte do corpo do animal, pois receava atingir Anne.

Rhodan pegou a pistola de radiação e separou em três partes do que restava do animal. Depois retirou Anne da massa grudenta que a enlaçava. Deitou-a no chão num ponto que lhe parecia seguro e procurou fazer com que recuperasse os sentidos.

Ninguém percebeu que a poucos metros dali abria-se um buraco redondo de paredes quase verticais, cujo diâmetro e profundidade eram consideráveis. Ninguém viu o ser bizarro e multiarticulado, parecido com um galho fino e reluzente com numerosos ramos laterais, que foi surgindo por cima da borda do buraco e se aproximava do grupo em movimentos espasmódicos.

Numa atitude pensativa Rhodan contemplou o rastro gosmento que o verme deixara no solo. Haviam percorrido quarenta metros do corpo daquele animal. Qual seria o seu comprimento total? Quando ele e Bell se puseram a persegui-lo, parte dele ainda se encontrava sob a terra.

Ao que parecia, em Vênus tudo saíra grande demais: os vermes, os répteis, os peixes-voadores. A monstruosidade só cessava no ponto em que a evolução atingia a escala dos seres mais inteligentes. As focas eram uma prova disso, e talvez também o macaquinho subaquático que mordera a mão de Bell.

Como este verme gigantesco era indefeso! Sua única arma era a repugnância. Conseguira enlaçar e carregar Anne, mas nem tentara defender-se dos homens que o atacaram.

Anne abriu os olhos. De início parecia confusa, mas subitamente sentiu-se tomada de pavor. Lançou os olhos em torno e, com um grito, ergueu-se e segurou o braço de Rhodan.

— Onde estamos? — perguntou. — O que aconteceu?

Com um gesto suave Rhodan obrigou-a a ficar deitada.

— Não se assuste, já passou tudo.

— O que foi...?

Cobriu o rosto com as mãos quando a recordação voltou à sua mente.

— Alguma coisa me agarrou e carregou. Era tão gosmento e nojento. O que foi?

— Foi uma simples minhoca — respondeu Bell. — É bem verdade que foi a versão venusiana de uma minhoca.

Anne levou algum tempo para acalmar-se. Tirou as mãos do rosto e olhou para Rhodan.

— Onde está? Conseguiram...

Rhodan fez que sim.

— Bell acaba de liquidá-lo. Como se sente?

— Obrigada. Fora o susto, estou bem. O acampamento fica longe daqui?

— A cerca de uma hora. Se estiver melhor, vamos andando.

Anne estava de acordo. Levantou-se. Seu olhar passou junto a Bell, que estava agachado e foi então que viu.

— Oh, não! — gritou, caindo nos braços de Rhodan.

— O que foi?

— Olhe!

Bell continuava agachado. Quando Anne apontou para junto dele, quis virar-se.

— Fique aí! — berrou Rhodan. — Não se mova!

Bell obedeceu.

Rhodan viu o que Anne lhe estava mostrando. Parecia que um galho fino e comprido com uma porção de ramos ainda mais finos tinha caído ao solo. No entanto, não seria de esperar que um galho caído se erguesse lentamente e que seus ramos começassem a mexer nas roupas de Bell.

Aquele ser devia ter uns dois metros de comprimento e, erguido nos ramos que lhe serviam de pernas, sua altura atingia três palmos.

Rhodan apontou a arma e, atirando cautelosamente, dividiu o animal em duas partes. As pernas em forma de ramo dobraram-se. Com um estranho crepitar o animal caiu ao solo.

Rhodan guardou a pistola de radiação.

— Pronto, já pode levantar! — disse, dirigindo-se a Bell.

Bell levantou-se de um salto e virou a cabeça.

— O que foi?

— Ali, aquele galho.

Bell abaixou-se para levantá-lo.

— Não ponha a mão nisso! — berrou Rhodan. — Será que você nunca aprende?

Enquanto os dois homens concentravam a atenção no animal morto, procurando descobrir de que tipo era, Anne lançou os olhos em torno. Descobriu o segundo pé-de-galho e soltou um grito.

Rhodan viu que o animal parecia sair diretamente do chão. Logo atirou. Evidentemente os pés-de-galho eram animais muito mais articulados que os vermes. Um tiro com a pistola de radiação matava-os instantaneamente.

Bell tivera a atenção despertada. Ergueu o cano do desintegrador e, avançando com o corpo ligeiramente inclinado para a frente, dirigiu-se ao lugar em que o animal parecia ter saído.

— Cuidado! — gritou Rhodan.

Depois de destruir um resto de vegetação, Bell viu-se à beira do buraco que até então não haviam notado. Rhodan ouviu-o dar um grito de surpresa e correu para junto dele. Mudo de nojo e espanto Bell apontou para o fundo do buraco, debilmente iluminado pela luz do crepúsculo.

Rhodan dirigiu a luz da lanterna para o buraco. Seu diâmetro era de cerca de três metros. Seria difícil calcular a profundidade, pois estava cheio de uma massa confusa e crepitante de pés-de-galho. Deviam ser centenas deles, e pareciam estar à espera de alguma coisa.

Bell ergueu o desintegrador, mas Rhodan segurou sua mão.

— Olhe!

Parecia que havia mais alguma coisa além da confusão reinante entre eles que movia os pés-de-galho. A massa subia e descia em movimentos alternados. Alguma coisa branca surgiu em meio a eles e finalmente apareceu. Era a cabeça pontuda de um verme igual ao que haviam liquidado meia hora atrás.

Seguiu seu caminho sem deixar perturbar-se pela confusão que reinava em torno dele. Esticando a cabeça pontuda, foi subindo aos solavancos por entre a massa de pés-de-galho. Atingiu a borda do buraco no lugar exato em que Bell e Rhodan se encontravam.

— Atire! — ordenou Rhodan, quando a cabeça do verme se sacudia a menos de um palmo da ponta do seu sapato.

Bell cobriu com o raio do desintegrador primeiro o verme e depois o resto do buraco. Levou um minuto, talvez mais, até que o buraco ficasse completamente vazio.

Agora via-se que tinha uns cinco metros de profundidade. No fundo viam-se duas aberturas escuras, de aproximadamente trinta centímetros de diâmetro. Eram os pontos de saída dos vermes, que deviam viver numa simbiose estranha com os pés-de-galho.

Anne agarrou-se a Rhodan; tremia por todo o corpo.

— Voltemos! — disse Rhodan. — Já sabemos que no futuro devemos ter muito cuidado.

Rhodan levou um pedaço do primeiro pé-de-galho, pendurado no cano da pistola. Embora o animal estivesse morto, não se arriscava a tocá-lo com as mãos.

No acampamento, Manoli e os outros membros do grupo já haviam dado cabo do resto do verme que saíra do buraco.

Rhodan entregou os restos do pé-de-galho a Manoli.

— Examine-o como puder, mas não o toque com as mãos.

Fez um breve relato das ocorrências que cercaram o resgate de Anne.

Depois de concluir o exame, o Dr. Manoli disse:

— Todo o animal é formado de uma substância córnea. Seus órgãos estão reduzidos a um mínimo, e também são formados de substância córnea, sempre que esta não prejudica as respectivas funções.

Fez uma pausa e remexeu o solo com um galho.

— Fiquei quebrando a cabeça. Analisei uma amostra da substância gosmenta encontrada no rastro do verme. Contém uma variedade tamanha de proteínas e outras substâncias, que não é possível que todas elas provenham do corpo desse animal. Minha teoria é a seguinte: ao contrário dos nossos vermes, este é um carnívoro típico, ou melhor, nutre-se da parte interna dos animais.

“Já os pés-de-galho alimentam-se com as substâncias córneas contidas nos corpos dos diversos animais. Mas não estão em condições de procurar seu alimento. Por outro lado, o verme não dispõe de qualquer instrumento cortante com que possa romper a pele de suas vítimas.

“Por isso, as duas espécies fizeram um tipo de contrato. O verme carrega a vítima até a toca, os pés-de-galho tiram-lhe a pele e devoram-na. A recompensa do verme consiste na parte interna do corpo.

“Nunca ouvi falar numa simbiose tão estranha.”

 

Durante o restante da marcha em direção à base inimiga só houve dois acontecimentos dignos de nota.

O primeiro foi um chamado da Good Hope. Crest e Thora informaram que o inimigo não dera mais sinal de vida. Em compensação as focas voltaram a aparecer. Executando uma verdadeira marcha forçada, certamente para voltar em tempo à água, subiram ao cume da montanha e desceram à cratera.

— Sabe o que fizeram? — perguntou Crest em tom jocoso. — Depositaram um montão de peixes diante de uma das comportas da nave. Deve ser um sacrifício em homenagem aos deuses. Felizmente Thora percebeu em tempo a marcha das focas e pôs o analisador cerebral a funcionar na comporta. O analisador registrou os pensamentos das focas. Juntamente com os dados colhidos pelo detector ultra-sônico, estava em condições de reconstituir a maior parte da linguagem das focas. Eu retirei os peixes, para que as focas não se sintam ofendidas quando voltarem. Da próxima vez espero poder falar com elas.

O segundo acontecimento foi o encontro com um sáurio venusiano, pelo qual esperavam há tanto tempo.

Acontece que o encontro foi muito menos dramático do que esperavam. É que o gigantesco animal nem notou a passagem da patrulha.

Apesar disso, o encontro representava um certo perigo.

Naquela altura tinham vencido cerca de quatrocentos do total de quinhentos quilômetros. Tinham escalado duas cadeias de montanhas, e atrás da segunda encontraram um vale comprido, coberto por um denso matagal.

Rhodan sentiu-se tentado a permitir o uso dos trajes transportadores, para que o grupo voasse por cima do vale bastante profundo. Mas chegou à conclusão de que a distância de cem quilômetros, que ainda os separava do inimigo, não oferecia bastante segurança. A gravitação era uma das formas de energia mais fáceis de localizar através de instrumentos apropriados. Até certa distância do instrumento localizador, nem mesmo os teoremas da ótica geométrica tinham validade. Isso significava que de perto um localizador poderia reconhecer uma fonte de gravitação até mesmo “atrás de um canto”.

Por isso desceram para o vale e dispuseram-se a atravessar a selva atrás das costas largas de Tom.

Anne Sloane foi a primeira a perceber que diante deles havia alguma coisa de anormal. Parou subitamente; Bell, que vinha logo atrás, esbarrou nela. Rhodan notou que havia alguma coisa atrás dele e também parou. Só Tom prosseguiu imperturbável por entre a vegetação, até que Bell o fez parar com um chamado.

— Não ouviu nada? — perguntou Anne perturbada.

Bell sacudiu a cabeça.

— Nada. Você ouviu alguma coisa?

Anne fez que sim. Estava a ponto de dizer alguma coisa, mas um ruído retumbante cortou-lhe a palavra. O chão estremeceu. Desta vez todos perceberam.

Rhodan lembrou-se do barulho retumbante que ouvira no primeiro acampamento.

— É um sáurio.

Bell não concordou.

— O que está fazendo? De onde vem o ruído?

— Está andando.

Bell aguçou o ouvido. Depois de algum tempo voltaram a ouvir o barulho retumbante.

— Está andando?! — disse rindo. — Leva trinta segundos para dar um passo.

Rhodan confirmou com um aceno de cabeça. Parecia sério.

— Acha que com essas pernas compridas devia levar menos?

Fez sinal para Tako.

— Tako, suba ali e veja se consegue localizá-lo.

Tako desapareceu. Voltou dentro de alguns segundos.

— Vem do leste — informou. — Se continuar na mesma direção, deverá passar a uns duzentos metros ao norte do lugar em que estamos.

— Pois suba novamente e veja se não modifica a direção.

Esperaram. Não adiantava prosseguir, pois iriam em direção ao norte, e dessa forma dariam com os costados bem em cima do sáurio.

O barulho retumbante foi crescendo de intensidade, até assumir a feição de pequenos terremotos. Rhodan olhou por entre a folhagem, procurando ver ao menos o pescoço do animal. Mas o matagal, que os protegia dos furores das tempestades crepusculares, também lhes impedia a visão.

O passo seguinte foi dado com tamanha fúria que até Rhodan estremeceu.

No mesmo instante Tako surgiu ao seu lado.

— Modificou a direção. Vem diretamente para onde estamos.

— Quanto falta para chegar aqui?

— Dois passos.

Rhodan olhou para os membros do grupo.

— A esta altura não adianta fugir — disse em tom tranqüilo. — Não há mais tempo para escaparmos. Mas podemos nos defender.

Bell compreendeu. Trouxe apressadamente os dois desintegradores. Entregou um deles a Rhodan e ficou com o outro.

— Aponte para cima, em direção oblíqua — ordenou Rhodan. — Assim que começar a cair, devemos providenciar para que o corpo se dissolva no ar.

Bell confirmou com um gesto. Rhodan virou a cabeça e falou por cima do ombro:

— Fiquem bem juntos!

Ao longe ouvia-se um forte ruído, igual ao de uma cachoeira. O corpo imenso do sáurio ia afastando o matagal à sua passagem.

Subitamente escureceu. Uma sombra enorme cobriu a mata. Alguns segundos depois uma coluna imensa irrompeu com um ruído ensurdecedor em meio à vegetação, a menos de cinco metros do lugar em que Rhodan se encontrava. Rhodan chegou a ver a pele suja e escamenta, mas logo dirigiu sua atenção à massa que se movia em cima deles. À primeira vista compreendeu a situação.

— Cuidado! — gritou. — Está passando por cima de nós.

E foi o que o animal fez. Com o intervalo usual a outra pata estalou em meio à vegetação, desta vez à esquerda de Bell, ao mesmo tempo que o ventre penso do gigantesco animal passou por cima daquele grupo de seres minúsculos e trêmulos.

Por alguns instantes a escuridão foi completa. A uns cinco metros de suas cabeças pendia o ventre malcheiroso do animal. Mas ninguém se incomodou com o cheiro. Todos se indagavam se as duas pernas traseiras também passariam por eles sem produzir nenhum dano.

Rhodan baixou o desintegrador.

— Cuidado com o rabo! — disse, dirigindo-se a Bell. — Pode varrer-nos com uma sacudidela.

A imensa massa de carne deslocou-se um bom pedaço para a frente. A claridade começou a surgir do norte.

— Graças a Deus! — gemeu Bell. Mas logo olhou bem para a frente, procurando ver o rabo.

Rhodan olhou para cima e procurou adivinhar o lugar em que o rabo do animal tocaria no solo.

Ainda estava calculando quando alguma coisa passou ruidosamente bem por cima de suas cabeças. O vento começou a uivar.

— Está jogando o rabo para a direita! — gritou Bell.

Rhodan viu o rabo, que media vários metros de espessura, voar para o leste. No mesmo instante o gigantesco animal deu outro passo.

Rhodan apontou o desintegrador para cima e esperou. Se o intervalo entre um e outro passo era de trinta segundos, qual seria o período de oscilação do rabo, que era muito mais comprido?

Nada aconteceu. As pernas do sáurio foram-se afastando, mantendo sempre o mesmo ritmo. Não houve o temido golpe de rabo. Rhodan teve a impressão de que mais uma vez o animal modificou seu curso, voltando a deslocar-se na direção anterior. Isso explicaria por que não chegaram mais a ver o rabo.

Mais alguns minutos se passaram numa situação tensa de alarma. Finalmente os membros do grupo descontraíram-se e começaram a acreditar que o perigo passara.

Bell largou o pesado desintegrador e enxugou o suor que lhe cobria a testa.

— A trilha tem sete metros de largura — disse. — Se fosse menos, o bicho nos teria pegado do lado direito ou do lado esquerdo.

Concluiu que o comprimento do sáurio, incluindo o rabo, devia atingir mais de duzentos metros. Com base nos dados fornecidos por Tako, Rhodan calculou a altura do animal, incluído o longo pescoço, nuns sessenta ou setenta metros.

Mesmo nas condições reinantes em Vênus, devia ser um monstro. De qualquer maneira, seu tamanho excedia o de qualquer sáurio que jamais viveu na Terra.

 

Pelo meio-dia do terceiro dia de Vênus, contado a partir de sua partida da Good Hope, atingiram a região em que supunham localizada a base do inimigo.

Era uma área completamente diversa da que haviam visto nos primeiros dois terços da marcha.

Encontravam-se a cerca de seis mil metros acima do nível do mar. A respiração tornou-se difícil, embora a atmosfera de Vênus fosse bem mais densa que a da Terra. O zumbido nos ouvidos gerado pelo excesso de pressão reinante das baixadas, cedera ao causado pela falta de pressão nas alturas.

O matagal não os acompanhara. A cerca de cinco mil e quinhentos metros de altura atingiram o limite da zona de crescimento das árvores. O planalto cercado de morros em que se encontravam só apresentava uma vegetação escassa, formada de gramíneas ressequidas, arbustos raquíticos e alguns troncos nodosos que não chegavam a erguer-se do solo.

O último trecho do caminho deixara-os exaustos.

Às vezes quase chegaram a desistir. Mas além da lembrança do inimigo, que devia ser localizado e subjugado, ainda havia Rhodan que persistia na missão que traçara a si mesmo e forçou os demais a submeterem-se à sua vontade.

Pelo alvorecer atingiram a extremidade sul do planalto. Seguindo pela extremidade oeste, sempre sob o abrigo de morros ou grutas, avançaram em direção ao norte, até chegarem à extremidade setentrional do complexo.

Diante deles erguiam-se montanhas altas como jamais haviam visto. Rhodan tinha certeza de que o inimigo montara os instrumentos de grande alcance no cume da montanha mais alta. Mas mesmo os telescópios mais potentes não permitiriam a ele reconhecer o que quer que fosse no ponto em que se encontravam. Se é que havia algum instrumento lá em cima, o mesmo devia estar encravado na rocha, ou oculto atrás de um excelente disfarce.

Rhodan mandou construir um acampamento na extremidade norte do planalto.

Na tarde daquele dia dividiram-se em dois grupos, que se puseram a explorar os arredores do acampamento. Tako Kakuta, o capitão Nyssen e o tenente Freyt chegaram a subir mais de mil metros pelas montanhas, mas a única coisa que encontraram foi um animal morto, parecido com uma raposa.

Anne Sloane e o tenente Deringhouse foram os únicos que ficaram no acampamento. Anne encarregou-se do pequeno instrumento rastreador, que apresentava uma desvantagem: a reduzida capacidade de reação, medida pelos padrões arconídicos. Em compensação, reagia a diversas formas de energia. Era capaz de localizar tanto um emissor eletromagnético como uma fonte de gravitação. Mas durante as primeiras horas em que foi posto a funcionar não acusou nada.

Rhodan não se sentia muito à vontade. Enquanto não sabia onde estava o inimigo tinha que contar com a possibilidade de que o acampamento se apresentava diante dele como se estivesse em uma bandeja. Era bem possível que, enquanto os membros do grupo cansavam os olhos de tanto procurar, os seres inimigos, fossem eles quem fossem, estivessem ocultos em meio às montanhas, rindo daquela patrulha desajeitada, até o momento em que se cansassem de rir, quando então passariam ao ataque.

O fato de que o local do acampamento fora escolhido com vistas a todos os perigos e possibilidades de ataque, era um consolo muito fraco. Não havia a menor garantia de que não existia nenhuma brecha por onde o inimigo pudesse olhar.

 

No segundo período de trinta horas, depois que tinham erguido o acampamento, voltaram a procurar.

Desta vez Tako e os dois americanos tomaram a direção em que Bell, Rhodan e Manoli haviam procurado a vez anterior, enquanto estes últimos subiram as montanhas pelas pegadas de Tako.

A primeira parte da subida pelas encostas ainda suaves daquele cume de treze mil metros foi fácil, mas também inútil.

Contornaram uma extensa área pedregosa e iniciaram a escalada da parte mais íngreme da montanha. Ainda se encontravam a duzentos metros abaixo do local de que Tako voltara no dia anterior.

Levaram uma hora para atingi-lo. O lugar em que Tako havia encontrado a raposa era desinteressante e não apresentava vestígios.

Estavam a ponto de retornar, mas antes que iniciassem a descida Rhodan lançou mais um olhar para o alto e estacou.

— Vejam!

Todos olharam para cima. Levaram algum tempo para compreender o sentido das palavras de Rhodan.

A parte superior da encosta parecia ficar mais para trás, isto é, mais ao norte que a parte inferior. Não viram nenhum entalhe, e o cinza homogêneo da rocha não permitia qualquer conclusão sobre a distância do desvio de uma das partes em relação à outra. De qualquer maneira, lá em cima devia haver um planalto que não podia ser visto de baixo.

Rhodan continuou a subida. A encosta tornava-se cada vez mais difícil. Avançaram uns cem metros por uma espécie de chaminé; mas os cinqüenta metros que ainda os separavam do planalto, que agora se desenhava bem nítido diante deles, pareciam intransponíveis.

Finalmente o acaso veio em seu auxílio. Esse acaso resultou de uma regulagem efetuada há bastante tempo em determinada máquina.

Rhodan, que ia à frente dos outros, foi o primeiro que sentiu a trepidação da rocha. Uma coisa ameaçadora parecia avançar em sua direção. Agarrando-se com uma das mãos, Rhodan tirou a pistola de radiação com a outra.

Subitamente ouviu um som borbulhante. Virou a cabeça e viu que atrás dele o ar tremeluzia e a poeira saía entre duas pedras.

Não havia nenhuma explicação para o fenômeno. A temperatura do ar parecia ser superior à do ambiente, e tudo indicava que saíra com enorme pressão entre as duas pedras. Rhodan ainda notou que vários blocos de pedra colocados sobre a extremidade da chaminé de que acabavam de sair devia servir para desviar o ar expelido pela mesma, fazendo-o retornar para o seu interior.

Pelas pedras que o ar arrastava consigo Rhodan concluiu que o ar quente desenvolvia uma pressão enorme ao ser desviado e retornar para o interior da chaminé. Se ainda estivessem lá dentro, não teriam resistido ao furacão.

O fenômeno durou cerca de dois minutos. Depois os sons foram-se tornando mais fracos, o tremeluzir foi cessando e tudo voltou ao silêncio. Como antes, a floresta jazia calmamente sob a luz difusa filtrada pelas nuvens.

Nesses dois minutos ninguém proferira uma palavra. Rhodan rompeu o silêncio. Apontando para as duas pedras, disse:

— Talvez consigamos passar por aí. Vamos! Se o vento voltar a soprar, segurem-se bem.

Procurando equilibrar-se, foram avançando. Desta vez Rhodan seguiu em último lugar. Bell foi o primeiro que atingiu a abertura entre as pedras. Lançou um olhar desconfiado para o interior da mesma. Depois deu um passo e desapareceu.

Manoli seguiu-o, e depois Rhodan. Descobriram que os dois blocos de pedra não eram outra coisa senão a boca de um canal de cerca de metro e meio de largura, aberto na parte superior, que subia suavemente. O chão e as paredes eram bastante lisas, o que dificultou a escalada, embora a subida fosse suave.

Rhodan insistiu para que se apressassem. Achou que a lisura da rocha podia ser explicada pelo polimento resultante de correntezas de ar como a que acabaram de observar. Provavelmente essas correntezas vinham a intervalos regulares, ou ao menos repetidamente em certo espaço de tempo. Só assim o fluxo de ar poderia ter deixado vestígios semelhantes aos da passagem da água.

Aos poucos a altura das paredes foi diminuindo. Tudo indicava que o canal desembocava no planalto.

Essa expectativa não se cumpriu inteiramente. A desembocadura ficava num paredão rompido por um buraco irregular, mas esse paredão não tinha mais de metro e meio de altura. Com um salto, Rhodan colocou-se na parte de cima.

Lá em cima havia uma plataforma com a área de cerca de dez mil metros quadrados, que na parte dos fundos terminava junto a uma parede de rocha em forma de ferradura. Ao primeiro lance de vistas, Rhodan sentiu-se irritado pela lisura extraordinária do chão de pedra. Ao segundo, descobriu uma série de aberturas rentes ao chão no paredão que subia íngreme do outro lado da plataforma.

Ajoelhou-se e examinou o chão. Não descobriu nada de extraordinário. Levantou-se e com um movimento de cabeça apontou para as aberturas existentes no paredão.

— Vamos dar uma olhada naquilo.

Sentiram-se tomados de uma certa desconfiança quando foram caminhando lentamente em direção ao paredão. As aberturas eram de formato irregular. Avançaram com as armas engatilhadas, pois não confiavam naquela calma aparente.

Vistas de perto, as aberturas, apesar do formato irregular, apresentavam um aspecto mais ou menos circular. O diâmetro era de cerca de um metro. A distância do centro dos mesmos ao nível da plataforma correspondia aproximadamente à altura de um homem. A distância entre as aberturas era de uns oito metros.

A alguns metros do paredão, Rhodan parou e levantou a mão. Bell estava à sua esquerda, Manoli à direita. Rhodan tentou romper a escuridão que reinava no interior da abertura, mas não o conseguiu.

— Vejo alguma coisa! — disse Bell com a voz baixa.

Estava diante de outra abertura. Rhodan foi para junto dele. Esforçando bastante a vista, viu no interior da abertura um objeto cinzento. Não conseguiu descobrir o que era.

Fez sinal para que Bell e Manoli parassem e continuou a avançar. Aproximou-se até chegar a apenas três metros da abertura e não tirou os olhos da forma sombria.

Distinguiu um objeto cilíndrico que saía da escuridão, terminando junto à abertura.

Quando descobriu o que se tratava, sentiu-se tomado de pânico por um instante. Nunca vira um desintegrador desse tamanho e, mais que isso, nunca se deparara com um que apontasse tão diretamente para sua barriga.

Deu um enorme salto para a frente, ao mesmo tempo que gritou para Bell e Manoli:

— Abriguem-se!

 

Antes disso, os seguintes acontecimentos se desenrolaram no interior da montanha:

O equipamento de localização automática observou alguma coisa e relatou ao comandante:

— Três seres penetram no platô de aterrissagem através do canal de arejamento. São...

Seguiu-se uma descrição detalhada daqueles seres, ou melhor, a trilha sonora de um filme que o equipamento de localização remetia à sala de comando a partir do momento em que Rhodan saltou por cima do paredão do canal.

Os ocupantes da sala de comando não se deram por satisfeitos com o relatório. Exigiram dados mais detalhados sobre os trajes daqueles seres estranhos.

O autômato realizou uma localização estrutural e transmitiu o resultado.

Logo após recebeu a seguinte ordem:

— Prossiga na localização e transmita relatórios padronizados.

Efetuou a regulagem correspondente.

Enquanto isso, o comandante pôs em funcionamento outra linha de comunicação direta, através da qual transmitiu instruções ao posto de combate do setor F:

— Alarma grau três. Regular as peças para fogo dirigido. Só atirem por ordem expressa do comandante.

Pelos dados resultantes da localização estrutural, o comandante concluíra que aqueles três seres não eram daqueles em que se devia atirar sem mais aquela. Além disso, sentia-se um tanto confuso. Teve de esforçar o cérebro para chegar à conclusão de que o simples surgimento desses seres estranhos e o aspecto de seus trajes não lhe permitiam formular qualquer juízo concludente. Depois de tantos anos que passara na paz tranqüila daquela fortaleza, o comandante sentiu-se tomado de uma certa impaciência ao dar-se conta de que teria de aguardar mais um pouco antes de satisfazer sua curiosidade.

Dessa forma, tudo continuou calmo. O comandante examinou o relatório ótico-eletrônico do localizador e esperou.

 

Depois que ficara deitado de bruços durante cinco minutos sem que acontecesse nada, Rhodan começou a achar graça do susto por que acabara de passar.

Quem quer que tivesse colocado o desintegrador naquele local, isso certamente fora feito na mesma época em que o chão do platô tinha sido polido. Rhodan não tinha a menor idéia quanto ao tempo durante o qual o granito polido tinha de ficar exposto às intempéries antes que só restassem algumas manchas do polimento, mas tinha certeza de que isso duraria mais de mil anos. Era pouco provável que o cano do desintegrador, exposto às intempéries tal qual o granito, tivesse resistido melhor que o polimento.

Levantou-se, mas teve uma certa cautela, porque lembrou-se de que o reator gravitacional devia funcionar perfeitamente quando desviou a Good Hope de sua rota.

Rolara para junto do paredão. Ao levantar colocou-se ao lado da abertura. Lentamente foi se aproximando dela.

Milímetro por milímetro foi avançando a cabeça pela borda e olhou para dentro. O cano do desintegrador estava tão perto dele que poderia tocá-lo com a mão. Seu diâmetro era de pouco mais de meio metro. Havia espaço suficiente para passar entre ele e a borda da abertura.

Sem refletir muito no risco que corria, Rhodan baixou a cabeça e saltou para dentro da abertura. Por um segundo angustiante, seu corpo ficou exposto à arma. Com movimentos apressados esgueirou-se junto ao cano, escorregou por cima do metal plastificado, muito liso, e foi parar um tanto desajeitadamente no chão acidentado da caverna, na qual a abertura parecia desempenhar a função de janela.

Aguardou a reação; não houve nenhuma. Aproximou-se da abertura e chamou Bell e Manoli, pedindo-lhes que se aproximassem. Por uma questão de cautela, fez-lhes sinal para que não se expusessem diretamente ao desintegrador.

 

O comandante não deixou de perceber o salto arriscado de Rhodan. Mais uma vez o relatório ininterrupto do localizador automático deixou-o confuso. Era difícil de imaginar que alguém com o aspecto e as vestimentas daquele estranho se arriscasse a passar bem à frente do cano do desintegrador.

O comandante teve de reconhecer que o comportamento daquele estranho não correspondia às suas previsões. Mas ainda não dispunha de certas informações importantes, sem as quais não estaria em condições de tomar uma decisão em relação a ele.

 

Não estavam prevenidos para dar busca numa caverna. Em outras palavras, não haviam trazido a lanterna. A luz crepuscular que filtrava pelas aberturas era bastante débil. A caverna devia ter uns cinqüenta metros de largura e igual altura.

Atrás da segunda e da quinta aberturas, contadas a partir do leste, havia um desintegrador. As quatro aberturas restantes não pareciam preencher outra finalidade senão a de deixar entrar um pouco de luz.

Rhodan examinou o desintegrador junto ao qual penetrara na caverna. Fora construído segundo os mesmos princípios dos aparelhos que, numa versão mais reduzida, se encontravam a bordo da Good Hope. Mas Rhodan sabia que esse detalhe não constituía qualquer indício válido da filiação racial de seus construtores.

Manoli e Bell puseram-se a examinar as paredes da caverna e deram uma olhada em outro desintegrador.

No primeiro desses aparelhos Rhodan já notara que não dispunha de qualquer dispositivo de comando. Outro fato que lhe pareceu estranho foi o de estar preso ao solo, pelo que só poderia atirar para a frente. Era bem verdade que essa desvantagem aparente poderia ser compensada pela possibilidade de dar qualquer abertura ao ângulo de emissão do campo cristálico-neutralizador. Dois desintegradores desses seriam mais que suficientes para eliminar qualquer adversário que se encontrasse em qualquer ponto do platô.

Mas a ausência de um mecanismo de comando deixou-o estupefato. Certificou-se de que a caixa existente na extremidade posterior da pesada arma só continha o gerador destinado à produção do campo cristálico.

— Que decepção, não é? — disse Bell.

— Por quê?

Bell sacudiu os braços.

— Esta caverna. Esperávamos encontrar uma fortaleza poderosa, e tudo que vemos é um buraco na montanha.

Rhodan sorriu.

— Encontrou algum gerador gravitacional?

— Que...

Subitamente uma luz acendeu-se em sua mente. Deu uma palmada na testa.

— Ah, sim. Onde está o gerador?

Rhodan ainda sorria.

— Provavelmente as pessoas que construíram esta caverna contavam com uma reação igual à sua — prosseguiu. — Qualquer um que não tenha passado pelas nossas experiências há de acreditar que nada mais existe por aqui. Se, além de tudo, não souber o que é um desintegrador, sairá decepcionado. Acontece que notei mais uma coisa.

Falou sobre a ausência do mecanismo de comando.

— Isso significa que se trata de um desintegrador teleguiado. A partir de onde é guiado? Não pode ser a partir de qualquer canto desta caverna. Há outra coisa.

Passou a mão pelo cano do desintegrador, liso como um espelho.

— O metal plastificado é um material muito resistente. Dura um século sem entrar em decomposição. Mas se este desintegrador existe desde o tempo em que aquele granito polido foi colocado lá fora, será fácil imaginar como devia estar este metal plastificado, a não ser que...

— A não ser quê...?

— A não ser que tenha uma conservação muito cuidadosa.

Bell compreendeu o raciocínio de Rhodan, mas Manoli ficou boquiaberto.

— Quer dizer que por aqui existe gente que vem regularmente limpar estes canhões?

— É mais ou menos isso — admitiu Rhodan.

— Mas onde está essa gente?

Rhodan deu de ombros.

— Não sou nenhum profeta. Aliás, temos uma pergunta muito mais interessante: este desintegrador, se for bem tratado, dá para atirar. Não fizeram nada disso. Se admitirmos que os seres que habitam esta fortaleza raciocinam em termos de lógica humana, então é de esperar que queiram entrar em contato conosco, já que se abstiveram de quaisquer hostilidades. Onde estarão?

 

O comandante estava esperando.

 

— Assim não conseguimos ir adiante — constatou Rhodan, depois de ter realizado um exame prolongado e improfícuo do chão e das paredes da caverna. — Vamos chamar Anne e Tako. Anne poderia tentar localizar e ativar qualquer mecanismo destinado a abrir uma passagem que se localizasse no alcance de sua atuação. Se esse mecanismo não existir, teremos de pedir a Tako que penetre na montanha.

O rosto de Manoli exprimia uma certa dúvida.

— É um comando suicida.

Rhodan sacudiu a cabeça.

— Nada disso! A capacidade de Tako está sujeita a leis físicas. Não pode materializar-se no interior de uma matéria estranha. Para isso dispõe de um freio de emergência. Se não houver nenhum espaço no interior da montanha, logo encontrará o caminho de volta para o ponto de partida.

— Não me refiro a isso; estou aludindo àqueles seres estranhos — objetou Manoli.

— Eles não nos fizeram nada. Por que fariam alguma coisa a ele?

Bell ofereceu outra sugestão.

— Por que não tentamos com os nossos desintegradores? Poderíamos remover a parede, até encontrarmos a abertura que nos levará adiante.

Rhodan confessou que já havia pensado nisso.

— É um risco muito grande. Esses seres poderiam pensar que queremos atacá-los, o que os levaria a revidar. Evidentemente dispõem de armas mais potentes que nosso equipamento de bolso.

— É de supor que tenham inteligência suficiente para saber que só queremos abrir caminho.

Rhodan concordou.

— Então?

Rhodan respondeu com um aceno de cabeça. Bell ergueu o pequeno desintegrador que trazia na mão, apontou-o para certa área da parede e comprimiu o gatilho.

Foi quando tiveram outra surpresa, que não era menor que aquela causada pela descoberta da caverna e do desintegrador gigante: a parede de rocha permaneceu inalterável.

Com um resmungo de raiva, Bell abaixou a arma, correu até a parede e examinou o trecho sobre o qual dirigira o desintegrador.

— Nada! — gritou com a voz furiosa.

Sua raiva era tão grotesca que Rhodan começou a rir.

Manoli estava tão perplexo quanto Bell. Para ele, que não havia sido submetido ao treinamento hipnótico, nada neste mundo poderia resistir a um desintegrador.

Uma vez dominada a raiva, Bell procurou recorrer às informações armazenadas em sua memória.

— Então é isso! — resmungou. — Recorreram à intensificação do campo cristálico. De onde virá a energia?

Rhodan limitou-se a dar de ombros. Era perfeitamente possível neutralizar os efeitos de um desintegrador de potência média, correspondente ao tipo portátil, através da intensificação da estrutura cristálica, que a torna mais forte que a energia destrutiva do desintegrador. Acontece que para uma parede dessa extensão era preciso um suprimento constante de energia da ordem de dez milhões de quilowats, desde que se quisesse protegê-la contra os efeitos de um desintegrador portátil até uma profundidade de cinqüenta centímetros. Era uma quantidade considerável, ainda mais se levarmos em conta que aquela parede só devia representar uma parte insignificante da fortaleza.

O inimigo — Rhodan começou a duvidar de que realmente se tratasse de um inimigo — devia dispor de reservas energéticas praticamente inesgotáveis.

 

O observador ótico registrou instantaneamente a tentativa de danificar a parede da caverna, realizada por Bell. Uma vez que se tratava de um ato hostil, ou ao menos inamistoso, fez uma advertência ao comandante através de uma ampliação dos impulsos.

Mas, tal qual Bell supusera, o comandante possuía bastante capacidade de discernimento para perceber que aqueles seres estranhos apenas procuravam um acesso para o interior da montanha. Não expediu nenhuma ordem de fogo, mas admirou-se de que os estranhos acreditassem que além da caverna existissem outros compartimentos. Depois de observá-los por algum tempo, quase chegara a concluir que eram tão subdesenvolvidos que logo abandonariam a caverna.

O fato de não terem procedido assim, e de terem recorrido a um desintegrador para vencer a parede de rocha, fê-lo concluir que esses seres não se enquadravam em nenhum dos esquemas tradicionais. Portanto, só lhe restava esperar.

 

As pessoas que se encontravam no acampamento foram avisadas. Assim que retornou com seu grupo, Tako assumiu o comando. Mandou levantar as barracas e distribuiu o equipamento, para ser transportado. Desta vez Tom teria uma tarefa difícil para vencer. Os paredões de rocha daquela montanha de treze mil metros não constituíam um terreno adequado para seu vulto avantajado. Houve necessidade de ativar um equipamento auxiliar destinado a gerar uma gravidade artificial, o que diminuiria sua capacidade de carga. Só assim conseguiria realizar a subida.

Na chaminé o transporte teve de ser realizado exclusivamente pelos meios humanos. Tom aguardou pacientemente na entrada até que os três americanos descessem cordas que o ajudaram a flutuar paredão acima.

De qualquer maneira, conseguiram realizar o transporte. Cinco horas depois de ter sido transmitida a ordem de Rhodan, que mandou levantar o acampamento, as barracas e o equipamento estavam depositados na plataforma. Tako e o resto do grupo esforçaram-se para levantar Tom por cima do paredão de metro e meio existente na boca do canal.

 

O surgimento de Tom representava outro enigma para o comandante. Era claro que já fora localizado quando se deslocava pelo planalto. Mas o exame detalhado só se tornou possível quando o aparelho foi colocado na plataforma.

Tom não combinava com as observações que o localizador realizara naqueles seres estranhos, exceto nas vestimentas.

Os estranhos pareciam ser seres primitivos muito audaciosos, às vezes temerários, que não sentiam o menor respeito pela técnica infinitamente superior corporificada nos desintegradores gigantes. Os trajes que envergavam e o robô removedor não poderiam ter sido produzidos por eles. Onde estariam os seres que fabricaram as vestimentas e os robôs, sobre os quais o povo dos seres marinhos já prestara algumas informações?

O comandante começou a compreender que essa pergunta só seria respondida depois que tivesse localizado a nave que há algum tempo ele tentara atrair para a plataforma por meio do raio de sucção, já que as instruções que lhe haviam sido ministradas não lhe permitiam abrir fogo contra um artefato desse tipo. Acontece que a nave conseguira subtrair-se à ação do raio e pousar, não em qualquer lugar, mas num excelente esconderijo. As indicações fornecidas pelos habitantes do mar correspondiam ao estado primitivo desses seres. Eram tão imprecisas que o comandante só pôde fornecer aos robôs uma indicação aproximativa da área em que devia ser realizada a busca. Face a isso, a nave não fora descoberta, e a curiosidade do comandante permanecia insatisfeita. Agora, porém, alguma coisa parecia acontecer.

 

Estavam parados lado a lado junto ao paredão quase vertical existente nos fundos da plataforma. A dois metros deles ficava a abertura onde se encontrava o desintegrador do lado ocidental.

Estava anoitecendo. Rhodan lançou um olhar perscrutador para o céu. As nuvens estavam muito baixas, a uns duzentos ou trezentos metros acima deles. Seria preferível que na hora em que as tormentas crepusculares começassem a soprar já dispusessem de um abrigo melhor que aquela caverna com as seis aberturas.

— Quer tentar? — perguntou, dirigindo-se a Anne.

Anne fez que sim. Rhodan afastou-se e sentou no chão para não perturbar o trabalho da moça.

Anne fechou os olhos e começou a procurar. Algum tempo se passou sem que tivesse qualquer impressão, mas enquanto ia se concentrando, o conteúdo daquela montanha desenhava-se com nitidez cada vez maior em seu espírito.

Evidentemente não se tratava de uma visão. Era antes um sentir e um tatear, uma capacidade perceptiva incompreensível ao homem comum, que se relacionava com a telecinese.

Anne apalpou o corredor que começava logo atrás da parede da caverna, conduzindo para o interior da montanha. Supôs que devia haver uma porta no lugar em que terminava numa parede. Procurou localizar o mecanismo que a abria. Não o encontrou e, esgotada, teve de interromper a experiência.

Descansou um pouco e começou de novo. Desta vez encontrou um corredor mais amplo, que atingia a parede a uns dez metros à direita do primeiro. Realizou nova tentativa, que também se revelou inútil.

Encontrou um terceiro corredor, e depois um quarto. Não havia nada na estrutura dos trechos de parede em que terminavam que revelasse tratar-se de portas e, mais que isso, não encontrou coisa alguma com que pudesse abri-las.

A mente de Anne penetrou nos corredores e seguiu-os até onde isso foi possível. Sua capacidade rastreadora tinha um alcance de cerca de trinta metros. Dali em diante tornava-se menos nítida, até cessar por completo.

A trinta metros de distância o feitio dos corredores era idêntico ao que se observava junto à parede. As paredes eram compactas. Anne não descobriu qualquer indicação da sua finalidade ou do lugar para onde conduziam.

A busca mental durara cerca de hora e meia. Anne estava tão exausta que teve que deitar imediatamente numa barraca montada no interior da caverna. Rhodan gostaria de ouvir mais alguma coisa, mas Anne limitou-se a murmurar “nada” e adormeceu.

 

O comandante não teve conhecimento das tentativas de Anne. Os localizadores mecânicos não seriam capazes de detectar a tentativa de um telecineta que, por meio de suas capacidades extraordinárias, procurasse penetrar na fortaleza.

O comandante surpreendeu-se com a inatividade aparente dos estranhos. Depois da atividade febril que desenvolveram no início, esperava coisa diferente.

 

Quando Anne despertou, as últimas horas do dia chegavam ao fim. De tão esgotada que ficara, havia dormido quase vinte horas.

Rhodan aproveitara o tempo, embora não pela forma prevista. Toda a bagagem foi introduzida na caverna, para que Tom pudesse entrar. Após isso, as aberturas foram fechadas com pedaços de lona. Não resistiriam à tempestade por mais de quinze minutos, mas quinze minutos de tempestade representavam um tempo considerável.

Quando Anne acordou, Rhodan informou-a sobre suas descobertas. Estava muito abatida.

— Você perdeu muito tempo, não é? — perguntou. — E foi por minha causa.

Rhodan sacudiu a cabeça.

— Anne, para nós você vale tanto que não hesitaríamos em deixá-la dormir um dia inteiro, um dia de Vênus.

— Obrigada. Quer pedir a Tako que venha até aqui?

Rhodan fez que sim.

— Está disposto a sair?

— Perfeitamente. Apenas espera que o informe sobre aquilo que você observou.

Rhodan saiu da barraca. Tako estava esperando junto à parede da caverna. Rhodan explicou-lhe o que Anne conseguira descobrir. Tako respondeu com um aceno de cabeça.

— Esteja de volta dentro de uma hora no máximo! — insistiu Rhodan. — Se demorar mais, suporemos que alguma coisa lhe aconteceu.

O rosto largo de Tako abriu-se num sorriso.

— O que pretende fazer se isso acontecer?

Rhodan não se perturbou.

— Encontraremos um meio — respondeu. — Pode confiar em nós.

— Está bem — respondeu Tako. — Até daqui a uma hora, o mais tardar.

No mesmo instante desapareceu.

O rosto de Rhodan tornou-se muito sério. Tinha certeza de que descobriria um meio de ajudar Tako, se algo lhe acontecesse.

 

Tako sentiu-se tomado de pavor; ficou arrepiado. Sentiu um golpe quando seu primeiro salto teleportado sofreu um desvio que evitou sua rematerialização no interior de uma matéria estranha.

Dali a um segundo voltou à imobilidade. Estendeu os braços e com a mão esquerda apalpou alguma coisa que parecia uma pedra lisa.

A escuridão era completa. Tako sabia que continuaria assim. Num ambiente em que não penetra o menor raio de luz o olho não pode acostumar-se à escuridão. Teria de encontrar seu caminho às apalpadelas, até vencer o receio de usar a lanterna.

Por um instante permaneceu imóvel e aguçou o ouvido. Mas a ausência de ruídos era tão completa como a de luz.

Sentiu um cheiro estranho que penetrava o interior daquela montanha. Procurou analisá-lo. A única conclusão a que chegou foi que nunca sentira um odor semelhante.

Tateando, deslocou-se para a direita, mas também encontrou um obstáculo. Atrás dele e à sua frente não havia nada. Isso significava que se encontrava num corredor.

Voltou a aguçar o ouvido. Como ainda desta vez não ouvisse nada, acendeu a lanterna. Regulou-a de forma a só emitir um feixe de luz fraco e bem aberto, que bastaria para orientá-lo, mas não era visível à distância.

Mesmo à luz da lanterna, não conseguiu ver o fim do corredor, nem descobriu nada de extraordinário. Continuou avançando. À medida que o tempo passava sem que fosse molestado, o medo ia diminuindo. Depois de ter caminhado durante dez minutos, repreendeu-se pelo medo que sentira no início.

 

A invasão de Tako foi detectada instantaneamente pelo localizador automático. A notícia foi transmitida ao comandante, numa faixa de amplitude que chegou a ser dolorosa.

O comandante não viu nenhum perigo no fato de um único homem ter penetrado na fortaleza, mas finalmente teria possibilidade de descobrir alguma coisa sobre as intenções daqueles seres estranhos, sobre sua origem e principalmente sobre as características dos seres que lhes haviam fornecido o equipamento.

Receava que essas informações não fossem muito agradáveis. Provavelmente se constataria que os estranhos haviam aprisionado os dois seres que constituíam o alvo principal do interesse do comandante, obrigando-os a entregar-lhes seu equipamento.

Face a essa suposição, que um ligeiro processamento dos dados disponíveis transformou numa probabilidade bastante elevada, Tako tornou-se alvo de medidas mais rigorosas que as que seriam adotadas se o comandante conhecesse a situação real.

Ordenou ao destacamento policial que capturasse o invasor. Os policiais obedeceram imediatamente.

 

Tako indagou de si para si de que serviria essa marcha pelo corredor escuro, onde já ia tateando há uns vinte minutos.

As paredes eram lisas, mas não eram de pedra natural, como acreditara no início. Estavam cobertas de uma camada de metal plastificado. Não descobriu outros detalhes. Não havia portas, nem instrumentos embutidos na parede. Absolutamente nada.

Até onde atingia a luz da lanterna, — Tako já se arriscara a regulá-la para um feixe de luz estreito, mas potente — o quadro era o mesmo. Chegou a acreditar que, se andasse mais um trecho, o corredor terminaria em outra parede, igual à que devia existir atrás dele e que, teleportando-se através dela, atingiria o ar livre do outro lado do morro.

“De que pode servir um corredor que simplesmente atravessa o morro?”, pensou.

Voltou a concentrar a atenção sobre as paredes do corredor. Pensou que nos outros pontos não as tivesse examinado com bastante atenção.

Mas as paredes continuavam lisas e compactas como antes.

 

Os policiais receberam instruções diretamente do comandante.

Sabiam que o invasor era um teleportador natural. Por isso não bastaria agarrá-lo; teriam que deixá-lo inconsciente, para que não pudesse utilizar seus dons.

Também sabiam que usava uma lanterna para iluminar o corredor. Dessa forma, não poderiam aguardá-lo em qualquer lugar. Teriam de postar-se num corredor lateral e golpeá-lo no instante exato.

Finalmente sabiam que o invasor estava armado. Pelas indicações que o localizador pôde colher, a arma que trazia devia ser de elevada potência. Os policiais estavam treinados para manter a ordem na fortaleza, se necessário com o sacrifício da própria vida. Mas um instante poderoso dizia-lhes que, sempre que possível, deviam manter-se afastados dos desintegradores.

Os dez policiais que o comandante destacara para a captura do invasor postaram-se, cinco a cinco, em dois corredores laterais opostos, que desembocavam no corredor pelo qual Tako se deslocava.

Calmamente aguardaram que o comandante lhes desse ordem para abrir a porta e agarrar o estranho.

 

Tako estava prestes a voltar. Achava inútil percorrer vários quilômetros num corredor completamente vazio.

Gostaria que Perry Rhodan estivesse ao seu lado. Talvez este tivesse alguma idéia de como lidar com aquelas paredes.

Parou e voltou-se. Atrás e diante dele, o corredor entediante estendia-se. Um quilômetro já ficara atrás, e para diante só o demônio saberia dizer quanto faltava.

Concentrou-se sobre a caverna de onde partira e esteve a ponto de teleportar-se para lá, quando ouviu um ruído ao seu lado.

Virou-se abruptamente e arregalou os olhos para a grande abertura que se formara na parede. Seres que nunca vira antes aproximaram-se à luz da lanterna.

Provavelmente poderia ter-se salvado, se dois impulsos não se tivessem sobreposto em sua mente. Ficou sem saber se devia sacar o desintegrador para livrar-se dos atacantes ou escapar por meio de um salto teleportado. Foi quando uma coisa dolorosa atingiu-o nas costas, imobilizou-o e o fez mergulhar em profunda inconsciência.

As instruções do comandante chegaram imediatamente.

— Transportar prisioneiro ao setor A, pavimento XIV, corredor 2, compartimento 331.

Dois dos policiais levantaram o homem inconsciente. O grupo entrou em formação e pôs-se em marcha. Desta vez os dez homens seguiram na mesma direção, dispondo-se a executar as ordens do comandante.

O grupo encontrava-se no setor F, perto do lugar em que todos os setores daquele complexo circular se encontravam no centro do círculo. E o pavimento era o de número XXI.

No corredor que os policiais haviam atravessado, a uns cinqüenta metros do lugar em que Tako fora agarrado de surpresa, havia um elevador que funcionava com base na eliminação da gravidade. A plataforma que se movia sob o influxo de um campo gravitacional artificial tinha uma área suficiente para abrigar os dez policiais e o prisioneiro.

A viagem ao pavimento XIV só durou alguns segundos. Os policiais dirigiram-se para a direita. No momento em que atingiram o compartimento 331 do corredor 2 e a porta abriu-se diante deles, receberam uma ordem:

— Preparar o prisioneiro para o interrogatório.

Verificou-se que a iluminação do complexo não fora colocada fora de funcionamento. Apenas era utilizada em ocasiões especiais, pois subitamente uma profusão de lâmpadas espalhou uma luz branco-leitosa na sala de interrogatórios.

Os policiais colocaram Tako sobre uma peça de móvel que se pareceria com uma cama, se não estivesse munida de uma série de instrumentos. Puseram-lhe um capacete e ligaram um dos fios vermelhos que o uniam a um dos instrumentos.

Logo reportaram ao comandante:

— Ordens cumpridas.

O comandante respondeu:

— Voltem aos seus postos.

 

Não foi pequena a surpresa do comandante ao tomar conhecimento da resposta de Tako à pergunta formulada por via hipnótica. Teve de rever sua opinião sobre a maneira pela qual os dois seres que haviam fornecido o equipamento técnico se tinham encontrado com os membros do grupo. Ele o fez com a maior rapidez.

Todavia, não se devia esquecer que os estranhos que se encontravam no interior da caverna nada sabiam dessa revisão. Por intermédio de Tako, o comandante soube que para os seres estranhos, as instalações encravadas na montanha eram uma base inimiga. Por isso seria um erro abrir-lhes as portas sem mais aquela.

Fez seus preparativos e dispôs-se a estabelecer contacto com os estranhos.

 

Uma hora se passou sem que Tako voltasse. Rhodan começou a inquietar-se.

Nesse meio tempo haviam recebido o sinal codificado da Good Hope e respondido ao mesmo. A bordo da nave tudo parecia estar na mais perfeita ordem. Antes que atingissem o planalto, Rhodan e Crest combinaram que as mensagens radiofônicas trocadas de hora em hora seriam substituídas por um simples sinal. Seria muito mais difícil captar e localizar um sinal breve que uma palestra prolongada.

Pelo mesmo motivo, Tako não levava nenhum equipamento de radiotransmissão.

Só Anne Sloane conseguira acompanhá-lo por algum tempo através do rastreamento telecinético. Mas já fazia mais de cinqüenta minutos que ele se encontrava fora do seu alcance.

Rhodan começou a compreender que não teria outra alternativa senão solicitar a presença da Good Hope, fosse qual fosse o risco. Só mesmo os instrumentos potentes que a nave trazia a bordo poderiam ser capazes de romper aquelas paredes e penetrar no interior da montanha.

Foi uma decisão difícil; Rhodan consumiu alguns minutos para justificá-la perante sua consciência.

Depois de algum tempo sentou diante do radiotransmissor e dispôs-se a transmitir a Crest e Thora um relato minucioso, acompanhado de um pedido de socorro.

Foi quando Bell irrompeu na barraca.

— A parede! — disse ofegando. — A parede está aberta.

Rhodan saiu de trás do transmissor e, passando junto a Bell, precipitou-se para fora da barraca. Alguém ligara um refletor portátil que iluminava um pedaço da parede. Bem no meio da área iluminada via-se uma abertura.

Rhodan não hesitou.

— Preparar para a partida! — gritou com a voz retumbante. — Peguem lanternas, armas e um radiotransmissor. Rápido!

Não tinha a menor idéia de como surgira a abertura na parede. Talvez Tako tivesse localizado o mecanismo que movimentava a porta. Mas se fosse assim seria difícil de compreender por que não retornara no tempo combinado.

Apesar disso, não refletiu. Mesmo que a abertura não passasse de uma armadilha, o grupo, equipado com aquele armamento, tinha boas chances diante do inimigo.

Dentro de poucos minutos estavam prontos para partir. As primeiras rajadas da tempestade varreram a plataforma quando o grupo, com Rhodan na ponta, penetrou na escuridão.

Anne Sloane vinha logo atrás de Rhodan. Este pedira-lhe que estendesse suas “antenas” para todos os lados, procurando localizar qualquer coisa que pudesse representar um perigo.

Anne não podia enxergar através de uma parede compacta, mas sua capacidade telecinética fazia com que identificasse qualquer área em que estivesse ausente a resistência ao tateamento.

A seguir vinha Manoli e os três americanos. Reginald Bell formava a retaguarda.

Avançaram cerca de trinta metros à luz do refletor, que Rhodan segurava com o braço estendido para o lado, a fim de não oferecer um alvo ao ataque. Subitamente e sem qualquer aviso, uma mortiça luz branco-leitosa parecia sair das paredes.

Rhodan estacou; mas, além da luz, não houve qualquer surpresa.

Provavelmente tinham passado por cima de um contato.

— Aqui há um corredor lateral — cochichou Anne — e do outro lado também.

— Está vazio? — perguntou Rhodan desconfiado.

Anne fez que sim.

Rhodan compreendeu que nenhum dos dois corredores lhe serviria de nada. Também aqui não se via qualquer mecanismo acionador das portas. Continuariam pelo mesmo corredor, até que chegassem a uma encruzilhada onde houvesse uma entrada mais convidativa que esta.

Dali em diante Anne passou a registrar a intervalos regulares corredores laterais fechados. Com base nos dados por ela fornecidos, Rhodan pôde traçar um quadro mental do complexo. De início Anne teve a impressão de que os corredores laterais prosseguiam em linha reta, mas, à medida que avançavam, tornava-se cada vez mais evidente que descreviam uma curva. Para Rhodan não havia mais dúvida de que a fortaleza cavada na montanha era de forma circular. Havia corredores radiais como o que estavam percorrendo, que se dirigiam ao centro do círculo, e corredores laterais, de formato circular, que ligavam os corredores radiais a intervalos regulares.

Atrás das paredes situadas entre os corredores radiais e laterais devia haver salas. Rhodan bem que gostaria de dar uma olhada numa delas. Mas nas paredes não havia o menor indício da existência de portas, e uma ligeira salva de desintegrador deixou claro que a estabilização do campo cristalino no interior da montanha era tão eficiente como na caverna.

Estavam andando há cerca de meia hora e deviam ter percorrido uns dois ou três quilômetros. Anne parou tão abruptamente que os que vinham atrás esbarraram nela.

— Parem!

Rhodan virou-se.

Anne apontou para a parede.

— Aquele corredor não está vazio. Há gente por ali.

— Gente?

Anne fechou os olhos e procurou concentrar-se. Tateou os corpos que se encontravam do outro lado da parede e procurou determinar sua forma. Era bastante estranha, mas não havia dúvida de que aqueles seres desconhecidos guardavam certa semelhança com os homens.

Mas não se moviam. Permaneciam rígidos como cadáveres. Um calafrio passou pela espinha de Anne, que relatou:

— São semelhantes aos homens. Mas não se movem.

Rhodan resolveu não se preocupar com aqueles vultos estranhos. Mandou que o grupo prosseguisse na sua marcha.

 

Com certa inquietação o comandante constatou que o grupo de estranhos parou justamente diante do corredor lateral em que postara o primeiro destacamento de policiais.

Seria uma coincidência? Os localizadores não puderam fornecer qualquer indicação sobre a maneira pela qual os estranhos poderiam ter notado a presença dos policiais. Só podia ser coincidência.

Abriu a porta de um elevador e esperou que o grupo de estranhos o atingisse. Enquanto iam descendo ordenou aos policiais que saíssem do corredor lateral e bloqueassem o corredor radial atrás do grupo.

 

A porta tinha mais de dois metros de altura e pelo menos três de largura. Atrás dela havia um compartimento sem teto, em forma de caixote. Rhodan enfiou a cabeça e sentiu a estranha sucção na nuca, provocada pela ausência de gravidade no interior do poço.

Era um poço de elevador.

Nas paredes não havia qualquer indicação sobre a maneira de comandar o elevador. Rhodan fez sinal para que os membros do grupo se aproximassem e ordenou-lhes que saltassem ao mesmo tempo sobre a prancha.

Por um instante parecia que o elevador não se movia. Mas de repente ele o fez com tamanha rapidez que todo mundo pensou que alguém lhes arrancara o apoio sob os pés.

A viagem só durou alguns segundos. Pela movimentação da parede Rhodan calculou que haviam vencido uma diferença de altitude de cerca de cem metros. No lugar em que o elevador parou, viram diante de si um corredor igual aos que já haviam percorrido. Era igual, exceto...

— Olhem ali atrás! — sussurrou Bell.

Desta vez não precisaram do poder sobrenatural de Anne. Os seres estranhos estavam bem à vista. Parados do lado esquerdo do corredor, a uns vinte metros do elevador, não faziam o menor movimento.

Tinham formato humano, mas os rostos eram escuros e bexiguentos. Ao que parecia, não usavam nenhuma roupa. A pele nua brilhava em toda a extensão, exceto nas manchas escuras que lhes cobriam o corpo.

Num movimento instantâneo Bell levantou a arma. Ainda assim os estranhos permaneceram imóveis.

Rhodan destacou-se do grupo e caminhou na direção deles. Deixaram que se aproximasse a dez metros, depois executaram o primeiro movimento. Levantaram os braços. Rhodan percebeu que estavam armados. Traziam as armas apontadas em sua direção.

Rhodan deu de ombros e voltou atrás.

Do outro lado, o corredor estava vazio.

— Quem sabe se não vamos cair numa armadilha? — disse Bell com a voz furiosa.

— O que podemos fazer? — perguntou Rhodan. — Trocar tiros com eles? Não temos um palmo de cobertura.

— Como não? O elevador...

Virou-se abruptamente. O elevador havia desaparecido. A porta fechara-se diante dele. A parede voltara a ser tão lisa como as outras paredes daquela fortaleza.

— Que porcaria!

Foram caminhando para a direita. Os seres estranhos também se moveram, seguindo-os com os passos hesitantes.

Rhodan começou a inquietar-se. O corredor prosseguia em linha reta até onde alcançava a vista. Não havia nenhum ponto em que pudessem abrigar-se.

Se a única intenção desses seres medonhos fosse atraí-los para uma armadilha, não teriam muita dificuldade em conseguir seu intento. Na situação atual, Rhodan preferia deixar que o aprisionassem sem resistência a arriscar a vida de seus homens numa luta em que não teriam a menor chance.

Provavelmente a fortaleza estava repleta daqueles seres estranhos. Se parassem em determinado ponto do corredor para defender-se, a parede poderia abrir-se naquele mesmo lugar e expelir um montão de inimigos.

As forças de Anne começaram a diminuir. A tensão ininterrupta deixara-a cansada. Rhodan preferiu poupá-la, para poder recorrer a ela quando tivesse muita necessidade.

 

Como Rhodan avançasse devagar, o comandante teve tempo de ampliar os conhecimentos extraídos do cérebro de Tako Kakuta.

Constatou que o cérebro de Tako registrava o conhecimento completo de duas línguas e noções fragmentárias de uma terceira. Procurou combinar as duas línguas que ali se achavam completas e ligá-las a uma raiz comum; não o conseguiu. Isso deixou-o surpreso.

Transmitiu os conhecimentos lingüísticos recém-adquiridos a dois oficiais e mandou que fossem ao encontro dos seres estranhos.

— Parem! — gritou Rhodan quando os dois vultos surgiram no corredor.

Os dois oficiais avançaram com as mãos levantadas. Rhodan aguardou-os à frente do grupo, de arma em punho.

Notou que tinham a pela clara e, ao contrário do destacamento que ficara para trás, usavam um certo tipo de roupa. Além disso, seus rostos não eram bexiguentos.

Procurou decifrar suas fisionomias, mas viu apenas um sorriso amável e inexpressivo, que não permitia qualquer conclusão sobre suas reais intenções.

Os dois homens não usavam barba nem bigode. Tinham a testa mais alta que a dos terráqueos, mas quanto ao mais poderiam ser confundidos perfeitamente com homens europeus, americanos ou australianos.

Pararam a alguns metros de Rhodan. Um deles disse algumas palavras numa língua clara e melodiosa. Calou-se e esperou pela resposta de Rhodan.

Este não entendera nada. Sob o aspecto fonético, a língua falada por aquele estranho se parecia com o japonês ou o coreano. Acontece que Rhodan não dominava nenhuma dessas línguas, e além disso achava pouco provável que naquela fortaleza houvesse alguém que falasse justamente o japonês ou o coreano.

Depois que Rhodan permaneceu calado por algum tempo, o outro estranho começou a falar:

— O comandante pede que tenham a bondade de ir ao lugar em que se encontra. Manda dar-lhes as boas-vindas como seus hóspedes. Não têm nada a temer.

Por uma fração de segundo Rhodan ficou perplexo. Enquanto atrás dele o espanto ainda se manifestava em sons ofegantes e assustados, já compreendera o que havia acontecido. Tinham aprisionado Tako, ou então conservavam-no consigo por sua livre vontade, e de seu cérebro extraíram as línguas que ele dominava: o japonês e o inglês.

Rhodan refletiu febrilmente. Não havia nenhum motivo para supor que o comandante da fortaleza não tinha qualquer intenção hostil. O convite de entrar na armadilha poderia ser adoçado por meio de palavras amáveis. Se fosse assim, poupariam muito trabalho ao inimigo caso aceitassem seu convite.

Apesar de tudo Rhodan respondeu:

— Ficamos muito gratos ao seu comandante. Querem fazer o favor de levar-nos para junto dele?

— Queiram acompanhar-nos — disse o estranho que falava o inglês.

Virou-se e seguiu juntamente com seu acompanhante pelo caminho por onde tinham vindo. Rhodan e os outros membros do grupo foram atrás deles.

Virando a cabeça ligeiramente para o lado, Rhodan disse com a voz baixa:

— Preparem-se. É bem possível que queiram tentar um truque.

Alguém resmungou algumas palavras de assentimento. Bell disse:

— Devíamos ter perguntado onde está Tako.

— No momento isso não adiantaria — disse Rhodan em tom apressado.

Na luz difusa do corredor tornava-se difícil calcular as distâncias. Por algum tempo parecia que o corredor continuava por alguns quilômetros numa reta contínua. Mas ainda não tinham caminhado dois minutos depois do encontro com os estranhos, quando alguns contornos começaram a desenhar-se diante deles. Poucos instantes depois o corredor desembocou numa praça cuja extensão era considerável.

À primeira vista parecia ter formato retangular, medindo uns quinhentos metros para a esquerda e para a direita, e duzentos metros de largura. Mas logo constataram que a praça não passava de um tipo de corredor circular, que contornava um edifício também circular que se encontrava no centro.

Os dois estranhos atravessaram a praça. A patrulha acompanhou-os. Rhodan lançou os olhos em torno. Ficou espantado ao constatar que a altura da praça, ou corredor circular, era de pelo menos cinqüenta metros, e que a intervalos de cerca de doze metros havia galerias cavadas nas paredes, onde desembocavam os corredores de outros pavimentes.

Tudo indicava que se aproximavam do centro da fortaleza. Rhodan ficou curioso para saber o que encontrariam no interior do edifício situado no centro da praça.

Tinha a altura da praça, e em certos pontos parecia mesmo que rompia o teto da mesma. Suas paredes não apresentavam emendas, tal qual acontecia com as demais paredes daquela fortaleza. Quando os dois estranhos atingiram o edifício, depois de terem cruzado a praça, uma das paredes abriu-se diante deles e deixou à vista um salão imenso, muito mais iluminado que os recintos que Rhodan e os membros de seu grupo tinham visto até então.

Apesar do tamanho descomunal, o salão só ocupava uma parte minúscula do edifício. Assim que penetrou pela grande abertura que se formara diante dos dois estranhos, percebeu a finalidade daquele edifício.

A parede dos fundos, que media cerca de trinta metros de largura e quinze de altura, era um único painel de instrumentos, semelhante ao que se encontrava, em versão muito mais reduzida, na sala de comando da Good Hope. Um tipo de quadro de comando avançava uns dois metros da parede para fora; à direita e à esquerda do mesmo viam-se pequenas plataformas, que devia servir para levar as pessoas que ali trabalhavam de um a outro ponto do gigantesco painel.

Rhodan percebeu imediatamente que a sala de comando em que se encontravam devia pertencer a um dos maiores cérebros positrônicos jamais construídos na galáxia.

Assim que chegaram ao centro da sala, os estranhos pararam. Esperaram que Rhodan e os membros de seu grupo se aproximassem. Depois um deles fez um gesto grandioso em direção ao painel e disse:

— Eis aí o comandante. Sente muito prazer em tê-lo diante de si.

 

O resto dos dias passados na fortaleza decorreu num assombro incessante causado pelas maravilhas técnicas que a montanha abrigava.

Rhodan e Bell, que haviam recebido instrução arconídica, espantaram-se menos com as maravilhas que com o fato de as encontrarem justamente em Vênus.

O comandante, que gostava tanto de receber informações como de dá-las, deu a entender que seus construtores foram arcônidas pertencentes à mesma raça de Crest e Thora. Estes haviam decolado com a Good Hope assim que Rhodan os avisou da descoberta, pousando sem incidentes na plataforma diante da caverna.

Para Rhodan o fato de pela primeira vez ver Crest espantado de verdade foi um grande acontecimento. Crest não compreendia que parte da história colonial dos arcônidas, por mais insignificante que fosse e por mais recuada que ficasse no passado, tivesse escapado aos registros históricos. A observação um tanto irônica de Rhodan, de que mesmo a máquina mais bem regulada pode cometer um engano, correspondia ao curso do pensamento humano-terreno, o que impediu Crest de aceitá-la.

Mergulhou afoitamente nas informações históricas que o comandante — para Crest era o maior cérebro positrônico que já vira, além do grande cérebro central localizado em Árcon — lhe ministrava com a maior boa vontade, em forma de relatórios falados numa língua que o tradutor robotizado da Good Hope identificara como o intercosmo antigo, e ainda sob a forma de filmes e fitas magnéticas, cujo conteúdo foi assimilado pelos estudiosos nos moldes da instrução hipnótica.

Sem que o soubesse, Crest realizou por essa forma uma divisão de trabalho que lhes poupou bastante tempo, pois permitiu que, além do levantamento dos dados históricos, também coletassem os dados puramente materiais.

Seguindo as informações transmitidas por Crest, revistaram pavimento por pavimento, setor por setor, corredor por corredor da enorme fortaleza e levantaram o inventário de tudo que encontravam. Só levaram algumas horas para constatar que por ali havia material suficiente para que a Terceira Potência superasse as dificuldades dos estágios iniciais.

Naturalmente Tako Kakuta foi libertado, depois de recuperar-se do esgotamento causado pelo interrogatório hipnótico. Tal qual os outros membros da patrulha, passou a ocupar um camarote residencial que o comandante lhe destinara no décimo pavimento.

Os outros membros do grupo foram passando o tempo, conforme lhes dava na cabeça, no interior dos enormes salões da fortaleza. Uma vez obtidas as indicações necessárias, as portas embutidas nas paredes inteiriças não representavam mais nenhum obstáculo. Sua atividade não passava dum tatear infantil em meio às maravilhas da técnica. No entanto, ao menos um fato deixou-os mais tranqüilos: o comandante ordenara que os policiais bexiguentos retornassem aos seus alojamentos, para que não os assustassem mais.

Os policiais não passavam de robôs que resistiram ao longo tempo decorrido desde a construção da fortaleza. No interior dela não havia um único ser vivo. O que existia era um gigantesco cérebro positrônico, o comandante, e um exército de robôs. Nada mais. Os setores de reparos providenciavam para que todo o equipamento atravessasse os milênios sem sofrer maiores danos. Apenas, o comandante não atribuía maior importância ao revestimento orgânico em forma de pele que cobria o corpo metálico dos robôs, e por isso não ordenara uma conservação mais cuidadosa do mesmo. Assim, o plástico orgânico escurecera e se abrira em furos, ou em bexigas, conforme diziam os terráqueos com base numa primeira impressão. Os oficiais robotizados, que desempenhavam funções muito mais complexas, constituíam a única exceção.

 

Certo dia Crest saiu das salas de instrução cansado, mas radiante. Declarou-se disposto a informar os membros da patrulha sobre todos os detalhes de que ficara sabendo através das anotações encontradas na fortaleza.

Essa forma de transmissão de conhecimentos tornava-se necessária porque além de Bell e Rhodan nenhum dos terráqueos estava em condições de submeter-se aos impulsos hipnóticos dos arcônidas.

Reuniram-se na sala que tinha uma das paredes coberta pelo painel do cérebro positrônico. Todos compareceram, exceto Thora.

Esta aparecera raras vezes, desde que a Good Hope pousara na plataforma. Rhodan pensava que sabia o que estava procurando. Uma vez que conhecia melhor os depósitos de equipamentos técnicos da fortaleza, teve compaixão dela por causa de suas esperanças vãs.

Crest fez seu relatório em inglês. Adquirira um domínio perfeito dessa língua; ninguém poderia apontar o menor erro em sua exposição.

— Esta base — principiou — tem uma idade de cerca de dez mil anos, segundo a escala de tempo dos senhores. Pelos dados da história do Império Galáctico, data do primeiro período de colonização. O destino da frota colonizadora que pousou neste planeta era outro. Interrompeu sua viagem por entender que o terceiro planeta deste sistema solar constituía um objetivo mais desejável que o mundo que lhes fora indicado com base nos mapas estelares dos arcônidas.

“No entanto, ao aproximarem-se do terceiro planeta, que é a Terra, constataram que o mesmo estava habitado. Por isso realizaram um pouso em Vênus, onde iniciaram os preparativos para a colonização deste mundo. Aqui instalaram uma base secundária, que é precisamente a fortaleza em cujo interior nos encontramos. Os arcônidas, em número de duzentos mil, segundo revelam as crônicas, colonizaram um dos continentes da Terra. Pelo que sei, o mesmo não existe mais. Naquela época recuada formava a ponte entre as terras afro-européias e as americanas.

“Mas essa colônia teve uma curta duração. Mais tarde poderão informar-se sobre os detalhes da catástrofe que a destruiu e afetou toda a Terra. Só cinco por cento dos arcônidas sobreviveram à catástrofe e retornaram a Vênus. Falaram num ataque de seres invisíveis. É claro que com isso apenas quiseram justificar seu fracasso.

“A base de Vênus ainda dispunha de metade da frota de naves em condições de navegabilidade espacial, ou seja, de naves capazes de percorrer qualquer distância, quase sem nenhuma perda de tempo. Os colonos... esperem.”

Neste ponto seria conveniente intercalar uma explicação.

— Uma expedição colonizadora nunca foi um empreendimento democrático, e nem poderia ser. Nos primeiros anos de sua instalação e desenvolvimento, uma colônia jovem precisa de um regime forte, e este era exercido através de uma espécie de aristocracia.

“O conselho aristocrático da colônia terrena decidiu que o remanescente dos colonos decolaria nos veículos espaciais de que ainda dispunham, e procuraria alcançar o ponto de destino inicialmente fixado, já que por vários séculos a Terra não ofereceria uma área adequada para a colonização. A decisão foi cumprida, o que era mais que natural, pois não se admitia qualquer oposição às resoluções do conselho de colonização. A maior parte dos colonos decolou de Vênus com as naves que ainda lhe sobravam. Uma minoria ficou para trás, por não encontrar lugar nos veículos espaciais. A maior parte da frota espacial fora destruída na Terra. Uns dois mil colonos tiveram de ficar em Vênus. Levaram vida solitária, mas não desconfortável. Ao que tudo indicava, o conselho aristocrático escolhera-os porque espiritualmente eram mais indolentes que os outros. Nem pensaram em lançar mão dos recursos de que dispunham para construir suas naves espaciais. Continuaram onde estavam.

“Faz cerca de oito mil anos que o último membro desse grupo morreu.

“Até parecia que uma estrela má pairava sobre os colonos deste setor da galáxia. Nunca mais se ouviu falar da frota espacial que decolou de Vênus depois da catástrofe terrestre. Temos certeza de que não chegou ao destino. Mas ninguém sabe o que lhe aconteceu. Nenhuma notícia chegou a Árcon, nem o comandante sabe dizer o que é feito dela. Ao que parece também em Vênus aconteceram coisas estranhas. Mas as informações a este respeito são tão escassas que de nada nos servem.

“A fortaleza continuou a viver. Formava um complexo autárquico. Os grupos de reparo estavam em condições de manter em funcionamento toda a aparelhagem existente nela. Atravessou os milênios e apenas revela sua presença de dez em dez horas, expelindo o ar quente gerado no seu interior através de um canal bem disfarçado.

“As ordens que o último comandante arconídico inseriu no cérebro positrônico continuaram a vigorar. Além disso, o cérebro fora instruído a obrigar qualquer nave estranha a pousar, ou destruí-la. As naves arconídicas eram a única exceção. Mas, como se presumia que estas mesmas só pousariam em Vênus se pertencessem a alguma empresa colonial do setor, exigia-se que transmitissem o respectivo sinal codificado. Fora essa a razão da mensagem que não entenderam. Embora não tivéssemos transmitido o sinal, o comandante, ou melhor, o cérebro positrônico, percebeu que a nave era do tipo daquelas que não deviam ser bombardeadas. Tentou arrastar-nos para a plataforma por meio do raio de sucção; mas — fez um cumprimento a Rhodan — nosso comandante conseguiu, numa reação instantânea, subtrair a nave à influência estranha e pousá-la num lugar em que o cérebro positrônico não a encontraria. Após isso o comandante entrou em contacto com os animais do tipo das focas, dotados de pouca inteligência, procurando localizar a nave por seu intermédio. Mas essa tentativa também falhou, pois a inteligência das focas não basta para fornecer indicações de local que possam ser aproveitadas pelo cérebro positrônico.

“Pois bem. O cérebro aguardou pacientemente. Poucos dias depois viu que os estranhos vinham espontaneamente para junto dele. Alguns detalhes espantosos foram constatados: os membros do grupo eram estranhos, mas seu equipamento era de origem arconídica.

“O cérebro concluiu que aqueles seres deviam ter dominado uma nave arconídica, aprisionado seus tripulantes e roubado o equipamento. Mas essa conclusão não se revestia de um grau de probabilidade aceitável, motivo por que o cérebro continuou a trabalhar.

“Poucas horas depois Tako deu o salto. O cérebro reconheceu sua chance. Tako foi aprisionado, e sobre o resto os senhores já estão informados.”

O relatório propriamente dito não causou muita impressão em Rhodan. O que lhe inspirou certa tranqüilidade e devoção foi o fato de que as tradições de uma inteligência extraterrena forneciam a primeira indicação da existência da Atlântida. No seu entender era essa a única interpretação possível do relato sobre o reino colonial situado entre o continente euro-africano e o americano.

Um sorriso passou pelo rosto de Rhodan. Lembrou-se de que os arcônidas, que o acaso fizera pousar na Lua há certo tempo, representavam um ganho inestimável não só para a tecnologia terrena, mas também para a historiografia do planeta, já que seus registros lançaram uma luz fulgurante sobre um dos setores mais obscuros da história humana: o que se relaciona com o reino da Atlântida e o dilúvio.

— Isso significa — prosseguiu — que o cérebro ficou na expectativa durante oito mil anos. Isto é fácil de dizer; acontece que este nosso cérebro — apontou com o dedo por cima do ombro — tinha um objetivo. Aguardava um novo comandante cuja constituição mental permitisse adaptá-lo de tal forma que só obedecesse a ele. Ao que parece, acaba de encontrar esse comandante.

Interrompeu-se para observar o efeito de suas palavras.

— Através dos dados fornecidos por Tako, e principalmente por mim, o dispositivo positrônico tomou conhecimento das características mentais de todos os membros desta expedição. A constituição mental do futuro comandante desta base não difere da dos arcônidas, muito embora seja um terráqueo: Perry Rhodan!

 

Rhodan levou algum tempo para recuperar-se do espanto. Não é que lhe faltasse a consciência das suas qualidades. O que o surpreendia eram as conseqüências que resultariam da decisão do cérebro. Gostaria de saber se Crest não pregara algumas mentiras ao dispositivo positrônico, ao responder às indagações formuladas a respeito dele, Rhodan.

Mas constatou que ninguém seria capaz de enganar um dispositivo positrônico. Aceitou o posto. Por algum tempo ficou receoso de que Crest pudesse ressentir-se com a decisão do cérebro. Mas Crest era um cientista cujo espírito se situava muito além da zona em que se sente inveja por razões de conteúdo político.

Dessa forma Rhodan tornou-se comandante, ou melhor, senhor absoluto de uma fortaleza cujo recinto abrigava, concentrada em espaços reduzidos, maior quantidade de energia que a de que dispunham todas as fábricas e centros de pesquisa da Terra reunidos. O equipamento da fortaleza bastaria para destroçar sistemas solares inteiros e rechaçar qualquer inimigo, desde que o mesmo não se lançasse ao ataque com uma frota inteira.

Mas havia uma coisa de que a fortaleza não dispunha...

 

Thora não quis acreditar. Menos de uma hora após sua chegada, solicitou ao cérebro um esquema sobre a situação dos compartimentos em que se dividia a fortaleza e lançou-se à procura.

Poucas horas depois de ter assumido o comando da fortaleza, Rhodan já havia ajustado a freqüência dos impulsos de comando que acionavam o dispositivo positrônico aos impulsos de seu próprio cérebro. Ao examinar juntamente com Bell um dos depósitos do último pavimento, encontrou-se com Thora.

— Você está procurando em vão — disse em tom sério.

Ao que parecia Thora sabia a que estava se referindo.

— Sei — respondeu cabisbaixa.

— Por que não procura ver as coisas como são? — perguntou Rhodan. — Após a catástrofe terrena, quando os colonos resolveram dirigir-se ao objetivo inicial, levaram consigo todas as naves de que dispunham. As coisas que se encontram nesta fortaleza são maravilhosas para os objetivos que eu tenho em vista. Mas não existe nada que possa ajudar você a vencer a distância enorme que nos separa de Árcon.

Calou-se. Esperou que Thora o olhasse.

— Você está presa à Terra — prosseguiu com um sorriso. — Esforço-me para que sua permanência em nosso planeta seja agradável. E estou disposto a fazer tudo para que você possa retornar quanto antes ao seu planeta. Mas até o meio mais rápido levará alguns anos para concretizar-se. Até lá terá de viver com uns semi-selvagens...

— Pare! — interrompeu-o Thora com uma veemência surpreendente. — Acha que é a única pessoa no mundo que nunca cometeu um engano?

 

                                                                                            Kurt Mahr

 

                      

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