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Planeta Criança



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A Revolta dos Robôs / Hans Kneifel
A Revolta dos Robôs / Hans Kneifel

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A Revolta dos Robôs

 

       

 

ABRIGADA no fundo do Golfo de Carpentaria, em forma de U e situada no extremo norte do continente australiano, encontrava-se uma das maiores bases espaciais da Terra: a Base 104. O vasto complexo compreendia o campo de pouso submerso, as salas das possantes máquinas energéticas e dos reatores atômicos, bem como os incontáveis escritórios das diversas repartições e a central de comunicações. Uma extensa rede de corredores, aberta nas rochas, interligava os diversos setores, enquanto numerosos elevadores facultavam o acesso aos vários níveis da instalação, conduzindo até a superfície.

Port Musgrave ficava na orla ocidental do golfo, quase na ponta extrema da península do Cabo York. Eram dezessete horas, e o sol poente, uma enorme bola alaranjada, já começava a desaparecer por trás de Wessel Island. À distância, ouvia-se o silvo dos propulsores de algum cargueiro espacial; afora isso, reinava o silêncio.

A sala de aulas encontrava-se no alto de um dos sistemas de túneis submersos, meio embutida no declive suave da margem do golfo.

— Minhas senhoras e meus senhores — disse o oficial-instrutor Typhoon C. Rott — peço-lhes a fineza de prestarem um pouquinho mais de atenção.

— Com muito prazer! — gritou alguém, do meio do auditório. Umas vinte pessoas acomodavam-se em confortáveis poltronas dispostas em torno de um estrado, sobre o qual havia uma série de peças de equipamento com um desenho inteiramente novo. Ao lado desse material, estavam dois robôs; eram modelos atarracados, providos de articulações cambiáveis e destinados a serviços pesados.

Rott ignorou o comentário insolente e prosseguiu, impassível:

— Como já estou exercendo a minha profissão há algum tempo, permito-me fazer uma observação: Tenho certeza de que vão achar as exposições que pretendo fazer enfadonhas ao extremo. Por outro lado, contem com a possibilidade de recorrer, a qualquer instante, a um psicólogo de robôs que lhes enumere as leis da cibernética, que, evidentemente, já esqueceram há muito tempo.

Rott, um homem magro, com um riso sardônico nos lábios estreitos, já vinha desempenhando as funções docentes há muito tempo. Estava mais do que escaldado. Por essa razão, aquele sorriso nunca abandonava seu rosto e, a cada curso que ministrava, sua maneira de falar tornava-se mais irônica. Somente poucas pessoas possuem o dom de encarar, com calma estóica, os constantes fracassos dos seus esforços.

— Mas o que fazem — continuou Rott, analisando Tamara Jagellovsk com interesse profissional — quando o sempre menosprezado psicólogo não se encontra à disposição? Não fazem nada! Ficam entregues ao robô, completamente indefesos, desamparados, meus caros ouvintes. Suponho que todos estão a par do que aconteceu, recentemente, na colônia Alpha Vinte e Um?

— Não soube de nada — disse Mario de Monti — o que se passou?

— Um destacamento de robôs tinha sido programado para a tarefa de represar água — disse Rott, sem dar uma resposta direta. — Pois bem; represaram tanta água que quase afogaram a colônia inteira... e por quê? Só porque o psicólogo não estava presente e ninguém tinha a menor noção de como se muda a programação de um robô.

Tamara, em pé ao lado de McLane, apoiava-se no espaldar de uma cadeira desocupada. Aliás, parecia que nenhum dos presentes prestava a devida atenção às palavras do instrutor.

— É só trocar as fitas eletrônicas, ora bolas! — murmurou Tamara. McLane levantou os olhos para ela e sacudiu a cabeça.

— É uma pena — disse, em tom mordaz — que a senhora não estivesse lá quando a água subiu. Eu teria dado pulos de contentamento se tivesse sido transferida após o episódio em Alpha Vinte e Um.

Tamara sorriu e encolheu os ombros, num gesto de indiferença.

Estava voando com McLane há um mês e, desde o primeiro dia, uma inimizade declarada reinava entre o comandante e a agente do SSG. Vez por outra, havia um lampejo de compreensão ou lucidez, mas o fim dessa hostilidade não parecia estar perto. E ainda faltavam trinta e cinco meses... Tamara arrepiou-se, ao se lembrar disso.

— Portanto, senhoras e senhores, é do seu próprio interesse prestarem a máxima atenção. Deixem de lado a má vontade; preleções fazem parte da cultura geral e, pelo comportamento dos senhores quer me parecer que a cultura deixa muito a desejar. Repito mais uma vez: Os robôs da série WK são máquinas destinadas a trabalhar ou a combater, em seus cérebros foram firmemente implantadas as três leis fundamentais dos robôs, e essas leis não são afetadas pela respectiva programação.

O auditório estava agora um pouco mais calmo e atento, observando os detalhes dos robôs. Os dois modelos, de aspecto idêntico, pertenciam à série WK, mais conhecida pela designação Worker, deduzida das letras da sigla. O corpo, em forma de um disco inflado, possuía seis braços e era encimado por um "cabeça"; para a locomoção, existiam um pé curvo e um apêndice antigravitacional.

— Como sabem, existem três Leis do Robô. Foram concebidas, em priscas eras, por um cientista-escritor e mostraram-se inteiramente satisfatórias e suficientes até o dia de hoje. A primeira Lei do Robô é a seguinte: Um robô não deve ferir qualquer ser humano, e não se deve manter inoperante quando algum ser humano corre o perigo de ser agredido por terceiros.

Atan e alguns dos ouvintes riram, e Rott olhou para o astronavegador com aquele vivo interesse com que os cientistas costumam examinar um inseto raro.

— A segunda Lei, indelevelmente gravada no cérebro de todo e qualquer robô em operação, diz o seguinte: Um robô tem que obedecer às ordens dadas por um ser humano, salvo o caso em que essas ordens venham a conflitar com o estabelecido na primeira Lei.

Rott apontou para um dos dois robôs.

— Acontece que, com esse equipamento, os nossos robôs conseguem pensar de maneira lógica mas nem sempre racional. Isto significa que não podem se adaptar a uma situação modificada. Recolhem impressões, mas processam estas impressões de modo incompleto, originando assim incertezas e dúvidas. Isto, por sua vez, pode levar a perturbações na programação e a interpretações voluntariosas das ordens recebidas. No caso dos modelos mais simples, a terceira Lei do Robô contribui para criar tais incertezas. Diz o seguinte: Um robô deve proteger a própria existência, desde que essa proteção não contrarie o que rezam as duas primeiras Leis.

Um dos robôs flutuava, imóvel, acima de uma placa brilhante de uns três metros de diâmetro e com espessura de, no máximo, dois centímetros.

Um cabo grosso ligava a placa a um objeto semi-esférico, cuja seção plana se apoiava diretamente no chão; era o transformador da corrente da placa de impulsos.

— Este aqui é um robô do tipo WK, Worker, uma máquina para trabalhos meio-pesados. Para efeitos de demonstração, causamos uma ligeira perturbação no centro de correlação. As fitas de comando eletrônicas estão perfeitas. Por assim dizer, este robô está sofrendo de uma neurose cibernética.

Algumas pessoas no auditório deram uma leve risada; obviamente, entendiam alguma coisa de robôs e fitas automáticas. Rott caminhou até uma das grandes placas de comando, passando pelo robô, que estava preso por uma rede de raios gravitacionais.

— O outro robô é perfeitamente normal; não tem perturbação alguma.

Com uma voz de comando incisiva, Rott deu uma ordem.

— Worker 3184!

O robô reagiu, acendendo e apagando, em rápida sucessão, uma série de luzes num dos lados da sua cabeça.

— Quadro de controles! — disse Rott, com voz dura.

Lenta e silenciosamente, o robô pôs-se em movimento. Deslizava por cima de um campo de raios antigravitacionais, seguindo o caminho que o dispositivo de busca no seu pé lhe indicava por meio de células fotoelétricas e de selênio.

— Pare!

O robô estacou quando a ordem ainda pairava na sala.

— Quadro de controles!

Mais uma vez a máquina avançou sem o menor ruído. Os circuitos eletrônicos reagiam praticamente em nanossegundos. O robô deslizou até o quadro, no qual se destacavam alguns botões reluzentes, especialmente instalados para os braços mecânicos do autômato.

— Liberte o Worker 2714!

Um dos braços telescópicos do robô ergueu-se ligeiramente, estendendo o fole de proteção prateado. O braço encompridou-se e o pulso girou, assumindo a posição "Abrir". Pouco a pouco, a mão artificial aproximou-se do botão, agarrando-o, por fim, com um movimento incrivelmente delicado. Com esta ferramenta de aço-cromo um robô era capaz de arrancar pedaços de uma parede rochosa e de dobrar barras de ferro.

O robô empurrou o botão deslizante para a direita, desligando a corrente que alimentava a placa de impulsos. O robô "neurótico" estava livre. Um motor começou a funcionar no seu interior; por um instante, ouviu-se o débil uivo do arranque; depois o ruído desapareceu. De repente, os assistentes pararam de cochichar e fitaram a máquina com olhos curiosos. Pressentiam que algo de surpreendente ia acontecer agora, já no final da monótona demonstração. Rott sabia perfeitamente o que o robô libertado iria fazer, e pôs-se a observar o auditório com um olhar de maliciosa expectativa; aquele sorriso tornou-se ainda mais sarcástico. O robô avançou, em câmara lenta. A força que o impelia era suficiente para arrastar toneladas de minério ou levantar fardos pesadíssimos a metros de altura. Um dos braços da máquina baixou violentamente sobre a balaustrada que separava o auditório da plataforma de demonstrações, reduzindo-a a cacos de madeira e Plexol, em meio a um tremendo fragor.

— Rott quer mostrar o que seus bichinhos de estimação podem fazer! — comentou McLane e tirou a mão do encosto da cadeira.

— Não vai me dizer que tem medo de um robô? — observou Tamara, exatamente naquele tom irônico que mais irritava McLane.

— Nem dele, nem da senhora, tenente! — disse McLane e sacou a arma. Não estava disposto a correr riscos. Enquanto as outras pessoas se levantaram, sobressaltadas, das cadeiras, a equipe da Orion permaneceu sentada, mas atenta. Na última fila, o capitão de um cargueiro começou a rir desbragadamente; à sua risada, misturavam-se os rangidos e estalos da balaustrada demolida, por cima da qual o robô continuava o seu avanço. Os raios lançados pelo seu aparelho de locomoção reduziam a frangalhos o que tinha sobrado das peças de madeira e das barras de aço. Calmamente, McLane destravou o projetor. O robô estava a três metros de distância. Nem mesmo Atan fez um dos seus gestos estabanados; lívido, manteve-se agarrado aos braços da poltrona.

— Alto! — berrou Rott em meio àquela balbúrdia, lançando um olhar de advertência para McLane. Agiu com surpreendente rapidez. Em três tempos, passou pelo robô, que ainda estava diante do quadro de controle, e lançou-se sobre o "perturbado"; com a mão esquerda abriu uma pequena janela na cabeça de 2714 e enfiou a mão no interior do centro de comando da máquina. O robô estacou na hora, a dois metros de McLane. Cliff travou a arma e os assistentes voltaram aos seus lugares, em silenciosa expectativa.

— Como tiveram ensejo de notar — disse Rott, com sua indefectível ironia — os acontecimentos fizeram-se acompanhar de uma certa dramaticidade, não há como negá-lo. Nosso valente comandante McLane estava até mesmo em vias de destruir um robô do mais alto valor, por se sentir ameaçado na sua integridade física. Todavia, os controles embutidos permitiram-nos corrigir os reflexos básicos orientados. Só precisamos extinguir os potenciais criados pelo  robô. Eu os extingui, recorrendo ao simples expediente de apertar o botão neutraliza-dor, o botão "Zero".

Rott virou-se para o robô paralisado e recebeu um olhar maléfico daquele olho enorme.

— Worker 2714, posição a!

O robô girou lentamente e voltou à sua posição inicial, no centro da placa de impulsos. Rott encaminhou-se para o quadro de controle e disse:

— Por favor, prestem bem atenção, agora. Vou lhes mostrar como proceder para trocar ou corrigir os relês eletrônicos.

Apontou para um desenho afixado no quadro. Alguém entrou na sala. McLane virou-se e viu uma ordenança que vinha caminhando lentamente pela passagem entre as filas de cadeiras; assim que descobriu o comandante, apressou os passos e apresentou-se, com um olhar de indisfarçada admiração. Tamara ergueu as sobrancelhas, num gesto desdenhoso.

— Sim, o que é? — perguntou McLane, sem se levantar.

A moça limpou a garganta e ruboresceu ao reparar o sorriso malicioso de Atan.

— Comandante, deve se comunicar imediatamente com o quartel-general das Formações de Reconhecimento Espacial. É urgente!

McLane lançou um olhar irritado para a ordenança, mas logo se desculpou com um sorriso. Olhou para Tamara e Mario com uma expressão de surpresa e indagação e encolheu os ombros. Rott elevou a voz:

— Todo relê eletromagnético possui apenas duas posições: Ligado e Desligado...

Apontou primeiro para o crânio aberto do robô, e depois para o esquema do circuito no quadro.

— É urgente, Major! — insistiu o oficial feminino.

Irado, McLane disse a Tamara:

— Fico extasiado com a riqueza do vocabulário dos meus superiores. E igualzinho ao dos robôs. "Urgente!", "Ultra-secreto!", etc. e tal. E tudo seguido de um ponto de exclamação desse tamanho! Vamos embora, meninada! — Tamara não sabia ao certo se a expressão de McLane a incluía, mas levantou-se por via das dúvidas. Atan, Helga, Mario e McLane dirigiram-se à saída, seguidos de Tamara.

— ...e uma insignificante variação da intensidade dos impulsos destas fitas eletromagnéticas de comando já é o suficiente. Porém é preciso, senhores e senhoras, que esta modificação seja feita corretamente. Para isto, alternamos as conexões. Transferimos a ligação de ípsilon 18 para ípsilon...

Foram as últimas palavras que McLane conseguiu ouvir, antes que a porta automática da sala de conferências se fechasse atrás dele. Seguindo a ordenança, caminharam pela noite amena. Nem McLane nem seu vigilante feminino suspeitavam que esta última frase em breve iria assumir uma importância inesperada.

 

O comandante Cliff Allistair McLane ocupava uma posição à parte na sociedade. Por um lado, já tinha se tornado indispensável a presença desse homem alto, de cabelos castanhos curtos, nas reuniões e festas que se sucediam. Por outro, havia os que o marginalizavam, chocados com a sua maneira de comandar uma nave espacial e a interpretação pessoal que dispensava ordens e regulamentos. E por isso tinha sido removido para o Serviço de Patrulhamento.

Logo no início das novas funções, McLane viu-se envolvido em aventuras até mais complicadas e perigosas que aquelas que haviam servido de justa causa para a sua transferência; mas isto não chegou a comover seus superiores. A descoberta de invasores estranhos, que haviam capturado um satélite retransmissor, contava tão pouco quanto a destruição do planeta que tinha ameaçado a Terra de extinção total — Cliff permanecia no Serviço de Patrulhamento, e as tarefas que lhe incumbiram eram de natureza tão elementar que podiam ser realizadas por um cadete "qualquer. E o tempo todo McLane sentia na nuca o olhar vigilante de Tamara Jagellovsk que, com o irritante pedantismo de todos os oficiais do SSG, mantinha-se atenta para impedir que Cliff ou algum membro da sua equipe se desviasse um milímetro sequer dos caminhos prescritos pelos rígidos regulamentos de serviço.

A ordenança bateu continência, lançou um olhar ansioso para Cliff e retirou-se, caminhando para a direita. Mario seguiu-a com os olhos, até que uma escotilha hexagonal se fechou por trás dela.

— Tome cuidado com seus olhos, Mario! — alertou Cliff — assim, podem saltar das órbitas!

Mario engoliu em seco e deu um aceno meio desalentado. Cliff perguntou a Tamara:

— O SSG ainda não inventou uns antolhos para oficiais que correm sério perigo de ficar sem os olhos por qualquer rabo-de-saia?

Com toda calma, enveredaram por um longo corredor; alguém havia dito que o assunto era urgente. Tamara respondeu, sem sorrir:

— Ainda não. Mas eu soube, por vias extra-oficiais, que todo o contingente feminino vai ser substituído por robôs do tipo Worker.

Mario não se deu por vencido e retrucou, com malícia:

— A senhora também, tenente?

O rosto de Tamara derreteu-se num sorriso doce; Mario viu logo que a doçura era falsa como quê.

— Eu? substituída? — disse Tamara, baixinho. — Então não sabia que eu também sou apenas um robô, se bem que dos mais sofisticados?

McLane começou a rir; tinha que admitir que Tamara às vezes sabia dar ótimas respostas.

— Nesse caso, tome bastante cuidado, Tamara! — advertiu Mario, ignorando a risada do seu chefe.

— Cuidado com quê? — indagou o tenente Jagellovsk.

— Vai chegar o dia — profetizou Mario, imitando os movimentos de uma chave de parafusos — em que vou desmontá-la todinha, só para ver se descubro o que a torna tão desagradável!

Entraram na cabine espaçosa de um elevador de alta velocidade. Atan registrou o andar e o corredor no quadro seletor e apertou o botão de partida. Minutos mais tarde, estavam na ante-sala do gabinete de Wamsler. Um aspirante feminino levantou-se e fez a saudação regulamentar.

— Comandante McLane! Tenho que transmitir-lhe uma ordem urgente do marechal!

A equipe de McLane enfileirou-se diante da escrivaninha do aspirante.

— Que novidade é essa? Agora já vamos ser despachados na ante-sala de Wamsler, é? — quis saber o comandante do cruzador espacial Orion VIII, em tom altivo. A esta altura, a Orion VII já era parte integrante do resto de uma névoa luminosa, que pairava, a minutos-luz do sol terrano, entre as estrelas da constelação dos Cães de Caça, dificultando a observação.

— O marechal envia-lhe cordiais saudações — disse a ordenança — mas está participando de uma sessão do estado-maior interestelar. Se preferir, major, pode ser atendido pelo tenente Spring-Brauner...

McLane espalmou as mãos na altura dos ombros e lançou um olhar furioso para o aspirante.

— Mantenha esse sujeito longe de nós! A senhora ao menos tem a vantagem de ser bonita. Portanto, dê-me logo a pílula amarga!

Mario fez um gesto efusivo e declarou:

— Por você, garota, sou capaz de me lançar na mais obscura nebulosa!

— Não é preciso — disse a moça, alegre. — Não precisa ir tão longe.

— Para onde vamos? — perguntou McLane e pegou a pasta das mãos da ordenança, sem olhar para ela.

— Só até o cubo espacial Quatro/Oeste 034.

— Ah, é? Fazer o quê, lá? No momento, estamos nos esforçando para aturar aquele curso de aperfeiçoamento.

O aspirante feminino contemplou McLane com um sorriso radiante.

— Vai ter que coletar os registros automáticos das ondas espaciais que foram dispostas em torno do planeta de Larsen. Os dados astrofísicos colhidos por esses instrumentos são indispensáveis para o relatório mensal.

McLane sentiu uma necessidade premente de se sentar.

— Isso para cima de nós? — perguntou, incrédulo. — Mas não é possível!

— E não se esqueça de avisar o nosso escritório assim que chegar ao cubo Quatro/Oeste 034! — disse a ordenança, lembrando-se das palavras de advertência do seu chefe.

Coisas desagradáveis sempre aconteciam com uma repentinidade inesperada.

— Vou lhe avisar — disse De Monti, rindo — quando estivermos de volta, aspirante; em pessoa!

Neste instante, a porta de um dos escritórios anexos se abriu, e Spring-Brauner entrou em cena.

— Será um prazer, De Monti — estava respondendo a moça. — E desejo-lhe um vôo tranqüilo!

— Tirou as palavras da minha boca! — disse Spring-Brauner.

O comandante McLane virou-se, lentamente.

 

Os dois homens estudaram-se, em silêncio. Um detestava o outro, mas, no momento, Spring-Brauner levava uma nítida vantagem. Finalmente, McLane respondeu, com voz dura:

— Logo o senhor devia pensar três vezes, antes de soltar uma observação supostamente espirituosa!

Spring-Brauner franziu as sobrancelhas, num gesto presunçoso.

— Creio que não entendi bem, comandante — disse, fingindo.

— Então pensa que eu não sei quem inventa essas missões idiotas para mim e minha equipe? Coletar dados de sondas espaciais! Isso é tarefa para monitores de turma de uma academia de navegação espacial! Esgotou seu estoque de cadetes?

— Major McLane! Não se esqueça que foi removido para o Serviço de Patrulha-mento Espacial! No seu lugar, não faria tantas exigências no que se refere à natureza das tarefas! Lembre-se de que foi punido!

— Isso não é nada — disse McLane, quase sem entonação na voz — castigo muito maior estou sofrendo agora, tendo que discutir com o senhor!

Virou-se e abriu a pasta que continha as instruções da missão.

— Tenho um assunto importante a tratar, comandante; com sua licença, vou me retirar — disse Spring-Brauner com o sarcasmo habitual, e retirou-se.

— Quatro/Oeste 034 — disse McLane, pausadamente, e pôs-se a examinar as posições das sondas marcadas no mapa astronômico. Alguns meses atrás os pioneiros haviam descoberto um planeta de características nitidamente terranas. Colocaram uma série de sondas em órbitas estáveis ao redor do surpreendente achado e, desde então, esses instrumentos ultra-sensíveis vinham registrando quantidades de radiação, campos magnéticos e intensidade solar. A Terra tinha intenções de colonizar o planeta de Larsen.

— Quando partimos? — perguntou Mario de Monti, que continuava a derramar seu charme sobre a ordenança.

— Amanhã — respondeu o comandante. — Às doze e trinta. A Orion VIII já está sendo abastecida. Até lá, estamos de folga. E eu bem que preciso de algumas horas de repouso, para me recuperar do impacto dessa missão e da personalidade única de Spring-Brauner.

— Sendo assim — disse Helga — vamos tirar o máximo proveito dessas horas de folga. Porque depois o comandante McLane e sua valorosa tripulação vão iniciar a sua terceira missão, enfrentando corajosamente as inenarráveis ameaças das sondas espaciais.

Acompanhados por Tamara, retiraram-se da ante-sala e, poucos minutos depois, estavam de novo na superfície do continente, respirando o ar puro da noite estrelada. Despediram-se. Pensativo, McLane caminhou em direção ao bangalô em que morava na companhia de uma dúzia de robôs caríssimos: era um solteirão inveterado — e podia dar-se a esse luxo.

Duas horas após a despedida, McLane ainda estava acordado. Refestelado numa enorme poltrona, lia um livro de bolso e escutava música que emanava dos alto-falantes. Aos compassos de "Sons de Uma Estrela Distante" misturou-se, subitamente, o assobio estridente do videofone. McLane baixou o volume da sinfonia de Thomas Peter e apertou um botão. O rosto de Hasso apareceu na tela aclarada.

— Cliff falando, Hasso. O que há?

— Acabei de falar com Helga. Ela disse que seria bom que eu desse uma ligada para você — disse Hasso e olhou preocupado para a verdadeira natureza-morta que Cliff havia espalhado ao seu redor. Na mesa baixa e no chão ao lado dela, havia copos, garrafas, cassetes e livros.

— Foi, sim. Partimos amanhã às doze e trinta.

— Entendi direito? Vamos para o planeta de Larsen?! — perguntou o engenheiro de bordo da Orion, que não participava do curso, nem tinha estado na ante-sala de Wamsler. Soube de tudo por Helga e agora estava obtendo pormenores do seu comandante.

— Entendeu perfeitamente — disse Cliff McLane. — Mas o pior não é isso. Sabe o que querem que a gente faça lá? Registrar os dados colhidos pelas sondas e depois rebobinar as fitas! Não é uma beleza?

Hasso soltou uma risada curta e seca.

— Receio que esse tipo de trabalho vai esgotar as nossas capacidades mentais — respondeu. — A propósito, quem é que assina como responsável por essas ordens de serviço?

— Um amigo muito caro a todos nós, Spring-Brauner! — disse Cliff.

— Algum dia nós pegamos esse sujeito — prometeu Hasso. — E a nossa vingança vai ser terrível. Mudando de assunto... acabo de examinar a Orion VIII.

— Ah, é? — perguntou Cliff, interessado. — Que tal?

Hasso esticou o polegar para cima, num gesto de total aprovação.

— Está perfeita. Estive a bordo com a turma da revisão, e controlamos todos os aparelhos e seu funcionamento. A nave é superior à Orion VII: Introduziram uma série de melhoramentos; pequenos, mas decisivos. Podemos partir sem a menor preocupação.

— Ótimo, Hasso — respondeu o comandante McLane. — Então nos encontramos amanhã, devidamente equipados, no lugar de sempre. Recomendações a Ingrid!

— Obrigado. Até mais tarde.

Cliff apagou a tela e aumentou novamente o volume do aparelho de som. Os compassos marcantes da sinfonia de Thomas Peter voltaram a ribombar pela sala. Em seguida, absorveu-se na leitura interrompida. Era a resenha pormenorizada de uma peça levada ao ar pela televisão terrana.

 

Doze horas e dezessete minutos: A tripulação trajava os macacões de bordo, os projetores energéticos pendiam dos cintos. Tamara destacava-se dos demais pelo cinza do uniforme do SSG. Em fila indiana, dirigiram-se à Orion VIII, que pairava no centro do poço de partida. A discrepância era flagrante: no meio de um cilindro de aço de mil metros de diâmetro, jazia um objeto com apenas cinqüenta metros de extensão. O piso do elevador telescópico pousava no chão do poço.

Tamara caminhava atrás da equipe de McLane, ostentando a costumeira expressão reservada. Mas nem agora, a minutos da terceira missão, sentia-se inteiramente à vontade: ainda não tinha encontrado a maneira certa de lidar com este problema.

E este problema chamava-se McLane.

Mario de Monti e McLane foram os últimos a sair do pequeno elevador. Cliff disse, baixinho:

— Desconfio que esse vôo vai ser chateação que não tem tamanho, Mario. Programe um curso através do hiperespaço que nos leve até uma distância de duas horas-luz do planeta de Larsen. Aqui estão as coordenadas.

Entregou a pasta ao subcomandante, e observou:

— Faltam doze minutos.

— Entendido, Cliff. Não acha que devíamos fazer uma pequena excursão complementar até Zeta Aurigae? — perguntou Mario, rindo maliciosamente, e apontando o indicador para as costas de Tamara, que, neste momento, tomava o elevador para a cabine de comando. A porta fechou-se.

— Por que logo Zeta Aurigae? — perguntou McLane, inquieto.

— Gostaria de observar essa estrela variável das imediações, e tirar algumas fotos.

— O SSG vai nos acorrentar! — objetou McLane. — Não, Mario; nos próximos trinta e cinco meses só vamos realizar vôos normais e idiotas, como se fôssemos cadetes. Se você está à procura de aventuras, desligue-se do serviço!

— Muito obrigado, Cliff! — disse Mario, abatido — não há nada como um bom conselho!

Entraram na cabine de comando. Seguiram-se as operações de rotina, apreendidas e aperfeiçoadas em algumas centenas de missões. Programaram o curso e Hasso ativou, uma por uma, as diversas máquinas. Os instrumentos acordaram da sua letargia, repentinamente cheios de luz, cores e sinais fugazes; colunas de algarismos passaram em rápida sucessão pelas telas de minúsculos monitores. E, finalmente, a voz arrastada do computador central da base, que registrava e catalogava todos os pousos e partidas, iniciou a contagem regressiva:

— Dez... nove... oito...

Os ruídos na cabine de comando aumentaram. Helga calcava as teclas do aparelho radiofônico; era como se tocasse uma melodia composta pelos sinais eletrônicos, do mais grave ao mais agudo; o livro de bordo estava sincronizado.

— ... três... dois... um... Partida!

A Orion desprendeu-se e o remoinho apareceu na baía. A nave elevou-se no poço, em posição horizontal, rompeu a superfície da água e lançou-se para o alto.

A radiosa luminosidade do dia transformou-se num crepúsculo difuso; depois, as sombras da noite cósmica envolveram o casco metálico. As estrelas apareceram e a Orion projetou-se pelo espaço, seguindo um curso que a afastava do plano da eclíptica num ângulo de 75 graus.

 

Uma sala: esférica e escura. Iluminada apenas por minúsculas luzes, de uma intensidade dura, penetrante. Da cúpula pendia uma bola feita de uma substância cor de fumaça. Era um modelo perfeito do sistema solar terrano. Um sol. Nove planetas.

Um anel radiante de pequenas luzes que deslizavam com velocidade constante entre as órbitas de Marte e Júpiter: o cinturão dos asteróides. Trinta e duas luas planetárias. Entre elas, a décima lua de Saturno, descoberta pelo Dr. Baudoin Dolfus, em 15 de dezembro de 1966. Pouco depois, a descoberta seria confirmada pelo observatório astrofísico do Instituto Smithsoniano, em Cambridge, USA.

E ainda as órbitas e as posições dos planetóides, que não podiam ser enquadradas num esquema anular fixo: Hidalgo, Apollo, Ícaro, Amor... bem como os elementos das trajetórias dos cometas de Halley, Morehouse e Biela. E no meio desse quadro moviam-se incontáveis pontinhos vermelhos: naves espaciais! Era uma das salas da Estação Avançada IV. Uma mesa de controle circular, que só servia para os comandos de registro, cercava uma pesada poltrona giratória, ocupada por um homem solitário que segurava a haste flexível de um pequeno microfone.

— Estação Avançada IV chamando Centro de Computação na Terra: o cruzador espacial rápido Orion VIII vai atravessar a fronteira do sistema solar dentro de dezenove minutos.

Os olhos do homem seguiram a trajetória do pontinho luminoso.

Dirigia-se do plano da eclíptica para cima, em direção à estrela Polar; a uma distância de alguns segundos-luz da Terra, mudou de direção, formando um ângulo, para depois se manter constante. O prolongamento dessa linha penetrava nas angulosas dimensões do contínuo riemanniano e lá terminava em algum ponto, nas imediações do planeta de Larsen.

O pontinho luminoso afastou-se continuamente e apagou-se exatamente na linha limítrofe daquela esfera. A seção vertical, que passava pelo centro dessa esfera, representava o apogeu da órbita de Plutão; 39,5 unidades astronômicas.

A Orion ultrapassou a fronteira desse espaço esférico de quarenta unidades astronômicas de diâmetro e desapareceu no hiperespaço.

 

A tripulação estava reunida na cabine de controle, com exceção de Hasso, que permanecia na sala de máquinas cuidando dos seus comandos e se mantinha em constante comunicação através do videofone do sistema de bordo. McLane recostou-se na poltrona e soltou o cinto de segurança. Os instrumentos mostravam que a nave tinha retornado ao espaço normal no ponto exato fixado pelas coordenadas programadas.

— Do comandante para máquinas — disse McLane. — Aguardar final da última manobra de aproximação.

— De máquinas para comandante — respondeu Hasso. — Entendido.

McLane registrou os dados referentes à posição da primeira sonda no pequeno calculador de curso. Não queria efetuar a delicada manobra de aproximação por meio dos controles manuais: as sondas espaciais eram instrumentos frágeis. Decidiu levar a nave a uma posição mais ou menos eqüidistante de todas as dezesseis sondas.

Normalmente, a conversa a bordo não era tão formal e tão fiel às instruções contidas no manual, mas McLane havia aprendido que podia evitar uma série de aborrecimentos se falasse, e obrigasse a falar, o texto oficial enquanto o registro eletrônico de bordo estivesse ligado. McLane reduziu a velocidade; à frente, ainda longe, estava o planeta: uma bola dourada, com um ligeiro tom castanho; uma das telas fornecia uma excelente imagem desse corpo. Fracamente iluminado pela luz do sol daquele planeta, a Orion VIII se aproximava. O vulto do planeta cresceu; seu contorno já não cabia na tela, e Helga reduziu a ampliação da imagem. Finalmente atingiram um ponto no espaço situado mais ou menos no meio das sondas.

— Do comandante para máquinas: gerar campo gravitacional.

Várias máquinas foram desligadas. A velocidade reduziu-se abruptamente; a nave deslocava-se apenas alguns quilômetros por segundo. Depois, os raios frenadores entraram em ação e a Orion parou.

— De máquinas para comandante: campo gravitacional gerado.

— Obrigado. Estabilizar! — respondeu McLane.

Mais uma série de mostradores e faixas luminosas se apagaram. McLane agarrou o microfone e disse:

— Do comandante para livro de bordo: Orion VIII no campo de operações. Máquinas e geradores desligados. Posição estabilizada por campo gravitacional. Fim do registro.

Helga girou a poltrona e desligou um último relê. Os tripulantes reuniram-se em torno do comandante; Hasso veio da sala de máquinas e postou-se ao lado de McLane.

— Bem — disse McLane e levantou o olhar. Reparou que Tamara estava abatida. — Parece que está pressentindo coisas horríveis, tenente Jagellovsk. Há uma acentuada palidez em torno do seu narizinho encantador!

Impassível, Tamara retrucou:

— Desde quando se interessa pelo meu estado de saúde, comandante McLane?

De Monti deu uma risada seca.

— Não seja tão sensível, tenente. Um bom comandante tem que saber de tudo que se passa a bordo, e fora dele, também.

— Obrigada pela explicação.

Helga tinha efetuado uma série de leituras e projetou as posições das dezesseis sondas na grande tela circular em frente à mesa do comandante. Ao lado de cada pontinho, encontravam-se as respectivas coordenadas. Em duas outras telas apareciam, nitidamente, as sondas mais próximas. Pareciam espécimens de algum tipo de aranha extraterrana.

— Quer dizer que nesses traços estão os dados que devemos coletar — disse McLane. — Então, mãos à obra, para acabar logo com essa brincadeira. Depois, vamos ter tempo de sobra para pensar se vale a pena ou não fazer uma pequena excursão até Zeta Aurigae.

— Ouvi direito: "excursão"? — perguntou Tamara, desconfiada.

— Uma piadinha! — disse De Monti e fez um gesto negativo com o indicador.

— Da próxima vez vão nos mandar recolher latas de lixo! — observou Hasso, mal-humorado

— Aqui temos dezesseis sondas espaciais — disse McLane, recapitulando os pontos principais da tarefa. — Estão espalhadas em posições diversas e a distâncias variáveis do planeta. Temos que transferir os dados registrados naquelas fitas para outras, e depois rebobinar as primitivas. Atan e Helga, vocês serão os primeiros a sair. Peguem a Lancet I, mas antes chequem a nave auxiliar mais uma vez; é novinha em folha! Vão ficar lá fora dezenove horas e se encarregar das sondas de números um a oito.

Helga voltou à mesa do transmissor e retirou um minigravador de uma gaveta. Enquanto McLane apontava para oito dos pequenos pontos na tela, Helga anotou os diversos dados.

— Hasso! Por favor, ajude-os. Controle o lançamento da Lancet e certifique-se de que está tudo em ordem!

— Entendido, Cliff!

De Monti dirigiu-se à mesa do aparelho radiofônico, a fim de estabelecer uma ligação entre a cabine de comando e a câmara de ejeção da Lancet; ajustou também as freqüências para a comunicação, o que, a rigor, era tarefa de Helga.

— Bem — disse McLane — era isso; obrigado a todos.

Helga e Atan dirigiram-se ao pequeno elevador, seguidos de Hasso. A porta circular fechou-se atrás deles. Segundos depois, a setinha luminosa indicou que tinham chegado à parte inferior da nave.

Tamara virou-se para McLane e disse:

— Não faça cerimônia comigo, comandante McLane; também quero fazer parte de um grupo de trabalho.

Mario levantou os olhos das chaves e teclas, surpreso.

— Alguma vez já trabalhou com um propulsor preso às costas? — perguntou McLane, espantado. — Sabe como se mexer, flutuando livremente no espaço?

— Não sei, não — respondeu o tenente do SSG — mas...

— Que ótimo! — respondeu o comandante, irado. — E se alguma coisa lhe acontece, é claro que o culpado sou eu. E na maioria das vezes, algo costuma acontecer mesmo. É melhor que se recolha ao seu leito de espuma de borracha e se dedique ao livro de Hammersmith. E mais: Isto é uma ordem!

Contemplou-a com um sorriso formal. Tamara estava furiosa. Encolheu os ombros e retirou-se da cabine de comando.

A voz de Hasso veio dos alto-falantes:

— Mario... dê uma espiada na mesa do transmissor, sim? — pediu.

Mario levantou-se do seu lugar junto ao computador e dirigiu-se ao aparelho radiofônico, seguido do olhar de McLane. Ambos notaram o pisca-pisca de uma lâmpada de controle.

— Alguém está procurando estabelecer contato — disse Mario após três segundos. — No canal 18, junto ao ponto 106.

McLane respondeu, meio desinteressado:

— Ligue o aparelho automático de busca e regule o amplificador!

— Estou captando um impulso de identificação. Se me lembro direito, deve ser um daqueles cargueiros de minério bem velhos.

Cliff riu.

— Seja gentil e emita nosso sinal de identificação. E também o código de "boa viagem".

— Está bem.

Cada nave dispunha de um impulso característico, invariavelmente emitido toda vez que o eco de uma outra nave aparecia no radar. Desta maneira, todos os encontros podiam ser registrados e controlados.

O espaço era incomensurável e, por isso mesmo, esses encontros não eram freqüentes.

McLane ligou o sistema de comunicação de bordo e disse:

— Do comandante para a tripulação. Por favor, vão dormir. Helga e Atan constituem o primeiro turno; vão ser substituídos daqui a dezenove horas.

Ouviu-se um zumbido e uma outra tela aclarou-se.

— Lancet I pronta para lançamento — avisou a voz de Hasso; Atan acenava no videofone.

— Então chute logo esse negócio para fora! — gritou McLane.

Na parte superior da Orion VIII os segmentos do diafragma de vedação se recolheram. Vestidos nos trajes espaciais, mas sem os capacetes, Atan e Helga estavam sentados diante dos controles da nave auxiliar, um disco composto de duas cascas de acentuada curvatura. Atan fez o sinal de "tudo pronto" para Hasso. A catapulta magnética arrastou a Lancet pelos trilhos e a lançou para fora da Orion. Os ímãs desprenderam-se do casco da nave e, segundos depois, as vinte pequenas cúpulas apareceram, luminosas, na tela de imagem. Lentamente, e sem emissão de energia perceptível, a Lancet afastou-se na nave-mãe, dirigindo-se para a posição da sonda número um, que registrava os fenômenos magnéticos na região limítrofe entre a atmosfera do planeta de Larsen e o universo. A imagem da Lancet diminuía constantemente. Alguns minutos depois, Atan reduziu a velocidade.

Aparentemente imóvel, a primeira das dezesseis sondas pairava na escuridão do cosmos, a menos de vinte metros da Lancet. Um objeto constituído por uma fita espelhenta, dividida em setores. Minúsculos sensores cobriam esses trechos e, no centro da sonda, encontrava-se a microcentral de energia do estabilizador. Na extremidade de um braço rígido, havia uma esfera altamente polida. E nesta esfera estavam alojados os carretéis da fita magnética. O primeiro objetivo...

 

TAMARA, Hasso e Mario estavam nas suas cabines, provavelmente dormindo. McLane, sozinho na cabine de comando, tinha desligado toda a iluminação. Uma fraca luminosidade era irradiada pela imagem do planeta na tela em frente a ele. Cliff cochilava, acomodado na poltrona e com os pés em cima da mesa de controle. Uma hora tinha se passado desde o lançamento da Lancet.

O receptor emitiu um zumbido duro. McLane mexeu-se. Novamente... Cliff tirou os pés da mesa e assumiu uma posição mais rígida; ouviu o terceiro sinal. Bocejando, levantou-se e foi até o receptor Apertou um botão vermelho e imediatamente uma voz disse, rente ao seu ouvido.

— Alô, Orion!... estou chamando o cruzador espacial Orion... por favor, responda!

McLane acenou e aproximou o queixo do microfone de Helga.

— Aqui fala a Orion VIII — disse, com voz meio baixa. — Comandante McLane. Estou lhe ouvindo bem.

A resposta veio imediatamente.

— Aqui fala o telegrafista de plantão do cargueiro espacial Sikh XII. Meu comandante gostaria de bater um papo com o senhor. Pode fornecer uma imagem?

Cliff esboçou um sorriso e procurou a chave do transmissor de imagens. Perguntou:

— Posso saber quem é o seu chefe?

— O comandante Ruyther! — foi a resposta.

— Ruyther! — exclamou McLane e ligou a tela do receptor. — O quê...?

Anos atrás, ainda aspirante, McLane havia servido sob as ordens de Ruyther, e conhecera nele um superior compreensivo, porém, com uma indefectível mania de espalhar lorotas cosmonáuticas. A tela do videofone aclarou-se e mostrou a imagem de um homem mais velho que McLane, trajando um uniforme semelhante. Ruyther mostrou os dentes num riso aberto.

— Faz um bocado de tempo, McLane! Suponho que ficou grã-fino demais para manter contatos radiofônicos com um cargueiro de minério, hein?

— Nada disso! — disse McLane, extremamente cordial. — Mas que surpresa, comandante Ruyther! Que está fazendo a bordo de um cargueiro? Foi removido?

Ruyther riu.

— De forma alguma! Esta nave faz parte da frota; o minério é tão valioso que o transporte tem que ser cercado de toda a segurança.

— Compreendo — respondeu McLane. — E como vai indo com esse negócio?

De repente, a expressão do rosto de Ruyther tornou-se mais séria que a ocasião ensejava.

— McLane, seu malandro — disse, com voz meio baixa. — Tive uma sorte danada de encontrar logo você! Tenho que lhe contar uma coisa!

— Sou todo ouvidos — disse Cliff e acomodou-se na poltrona de Helga.

— Você ainda está cumprindo aquela punição? — perguntou Ruyther.

Cliff acenou, resignadamente. Parecia que não havia ninguém na frota que não soubesse do triste destino de McLane e sua tripulação.

— Estou transportando minério de Pallas beta para a Terra — disse Ruyther. — É por isso que a minha velocidade é relativamente baixa. Daqui, Pallas beta dista apenas um e meio ano-luz. Não temos pressa. Quatro vezes por ano arrasto uma tremenda carga de germanicum para a Terra. Claro que tudo isso é altamente sigiloso.

— Deve ser um trabalho excitante? — perguntou McLane, com total hipocrisia.

— Nem imagina quanto! — respondeu Ruyther. — Há anos, Pallas beta abriga setenta colonos e vinte e um robôs do tipo WK. Minha nave é grande demais para poder pousar lá; por isso, simplesmente disparam foguetes cheios de minério e colocam-nos em órbita. Depois, eu os recolho, mas...

— Isto é alguma fábula interestelar, capitão? — interrompeu McLane, incrédulo.

— Não é, não, Cliff! — respondeu Ruyther. — É a mais pura verdade. Agora, escute só essa. O que é que você acha que estava nos foguetes-containers quando pousei na Terra da última vez?

— Poeira de estrelas? — perguntou Cliff, com a expressão de uma criança ouvindo um conto de fadas.

— Nada disso! Só pedras. Entulho. Nenhuma grama de minério! Pode imaginar o que os cavalheiros da Comissão Espacial me disseram! Acusaram-me praticamente de todos os delitos cabíveis, desde simples sabotagem até alta traição. E não tive mais contato com os colonos, Cliff!

— Desde quando, Ruyther? — perguntou McLane.

— Ontem, foi a segunda vez. Nas vezes anteriores, um deles subia num dos foguetes, e depois nós o levávamos de volta numa das Lancet; mas parece que resolveram nos boicotar. Ou então estão todos mortos e só os robôs ainda trabalham...

— Estou escutando, comandante! — disse McLane. — Você comunicou isso?

— Claro que sim! Mas tudo indica que minha comunicação extraviou-se nas tramitações burocráticas.

— E uma coisa dessas acontece mesmo? — disse McLane, falando com seus botões. — Mas um aviso sobre um dos meus pequenos deslizes não se extravia nunca! É gozado!

— É realmente curioso — disse Ruyther, sem sorrir. — Você está prestando bem atenção, Cliff McLane?

— Estou sim! E como continua a história?

— Desta vez, foi a mesma coisa; nenhum colono nos procurou; e ninguém respondeu aos nossos chamados radiofônicos. Mas os foguetes estavam em órbita, na hora prevista.

— Mas... — disse Cliff. Ruyther levantou a mão.

— Como disse, não recebemos nenhuma resposta. As órbitas circulares dos foguetes eram as mesmas de sempre, exatas até o último centímetro. Mas nada de nos avisar se tinham recebido direitinho os containers de abastecimento que lançamos. Nem mesmo um aviso luminoso, nenhum sinal... nada. Como se Pallas beta estivesse morto ou desabitado.

— Isso me cheira um bocado mal! — disse Cliff, pensativo.

— O termo não é bem este, garotão! — respondeu Ruyther. — Comuniquei o fato imediatamente, mas parece que os burocratas cometeram algum engano. Só estão interessados no suprimento de minério. Tenho a ligeira desconfiança que, desta vez, também só estou transportando entulho.

Cliff passou a mão pela nuca, pensando qual seria o tipo de cargueiro, a que a Sikh pertencia.

— Não pode fazer uma checagem? — sugeriu.

Ruyther sacudiu a cabeça.

— Não, não podemos. Os foguetes-transportadores estão presos ao casco da nave por meio de ímãs. E não dispomos de equipamento adequado para abrir os containers e verificar o que contêm. Afinal, estamos voando com a Sikh e não com a Orion.

McLane logo compreendeu a que tipo o cargueiro pertencia. Ruyther tinha razão. Correria sério perigo de vida se tentasse sair da nave em pleno espaço. Uma suspeita nítida formou-se nos seus pensamentos.

— E o que tem essa história a haver comigo, comandante?

Com uma expressão resignada o ex-superior de McLane respondeu:

— Anos atrás, McLane... ainda há um ano, você já estaria a caminho de Pallas beta.

— Por que logo eu?

— Por quê? Porque a Orion está suficientemente perto daquela lua gigante. Porque o comandante e sua equipe figuram entre os homens mais audaciosos da frota! Porque o destino de uma colônia da Terra não pode nos deixar indiferentes. Eis porque essa história tem muito que haver com você, McLane!

— As coordenadas estão no manual — murmurou McLane, mas Ruyther ouviu a frase.

— Estão lá, sim senhor!

McLane continuou a refletir. Observou os instrumentos no painel e depois olhou novamente para o rosto descrente de Ruyther, que estava adquirindo uma expressão de esperança. Cliff começou a retorcer a boca. Quem o conhecia sabia o que isto significava. Apertou uma pequena chave no painel. Os despertadores tocaram estridentemente nos alojamentos da tripulação.

— Está bem, comandante — disse Cliff.

— Quer dizer que vai tentar pousar em Pallas beta? — perguntou o capitão do cargueiro.

— Acertou! — respondeu McLane.

— Olhe! Eu não disse absolutamente nada; só trocamos algumas gentilezas. Está claro, Cliff?

— Claríssimo, chefe! — respondeu McLane exibindo o seu sorriso temido. — E dê lembranças aos seus garotos. Já estou a caminho!

— Boa sorte!

— Obrigado! Desligo.

A tela apagou-se; o contato foi interrompido. Daqui a pouco, o cargueiro mergulharia no hiperespaço.

 

Mario e Hasso chegaram à cabine quase ao mesmo tempo.

— Sentem-se — disse Cliff e apontou para a pequena cafeteira ao lado da mesa de Mario. — Ligue esse negócio aí, e depois escutem o que eu tenho para lhes contar.

Resumiu em poucas palavras o que Ruyther havia relatado.

— O que você acha, Hasso? — perguntou, ao finalizar.

Hasso baixou a cabeça; em seguida esticou o lábio inferior e disse.

— O que estamos esperando?

— Apenas o resultado do plebiscito — disse McLane. — É uma fraqueza minha; adoro plebiscitos. Mario.

Mario já tinha agarrado o manual e estava lendo as coordenadas de Pallas beta, a lua de Greenwood. O sol estava catalogado sob o número p-900229.

— Ligo o computador? — perguntou Mario, com displicência exagerada.

— Três votos a favor, e uma abstenção, já que Tamara está dormindo e não pôde comparecer às urnas — disse Cliff.

— O que se deve principalmente ao fato de que ela não foi acordada — constatou Hasso, secamente, e caiu na risada. — E o que acontece com a Lancet?

— Vou chamar Atan e Helga e coloco-os a par. Ainda dispõem de reservas para dezoito horas.

— OK. Vou tratar das máquinas. Hasso retirou-se e um minuto depois

apareceu na tela, avisando que estava tudo pronto no seu setor.

— Assim que estivermos a caminho, vou avisar o nosso tenente do SSG — disse McLane.

Ajustou a freqüência e chamou Helga e Atan. Explicou-lhes o que tinha em mente, prometendo voltar antes de decorridas as dezoito horas do seu turno. Atan desejou boa sorte e informou que já estavam tratando da sonda número dois.

— Tem mais uma coisa, Atan — disse Cliff, num tom sério.

— Sim. O que é?

— Pode acontecer de nos procurarem com o que têm e o que não têm; você conhece as autoridades e o nosso amigo Spring-Brauner tão bem quanto eu. A senha é Laurin.

Atan entendeu na hora.

— Laurin? Está falando sério, mesmo? McLane acenou com a cabeça, vigorosamente.

— Assim que você perceber o mais leve impulso de um raio de busca, já sabe: Laurin para eles! Entendido?

— De acordo; mas consome um mundo de energia.

— Olhe, Atan, consegui chegar a treze horas numa Lancet velha antes que as baterias virassem sucata. Vocês vão conseguir oito a dez horas fácil.

— Vamos, sim. E bom sucesso!

— Obrigado. Não demora e estamos de volta para apanhar vocês! Desligo.

McLane acelerou a Orion com valores na faixa vermelha, imprimindo-lhe quase instantaneamente uma velocidade alucinante. O planeta de Larsen afastava-se na tela como um projétil.

Tamara apareceu na cabine alguns segundos após o leve choque que a Orion sofreu quando mergulhou no hiperespaço.

Perguntou o que tinha acontecido e ouviu o curto relato de McLane, em silêncio e aparentemente calma. Depois, explodiu:

— Nunca deixa de fazer exatamente aquilo que lhe dá na veneta, não é, major? — sua voz tremia de raiva.

— Escute, minha filha... — começou McLane mas Tamara lhe cortou a palavra. Mario assistia à discussão sentado no lugar de Atan; Hasso acompanhava os acontecimentos na tela do videofone.

— Não vou escutar coisa alguma! A minha função a bordo desta nave é zelar pelo cumprimento rigoroso das ordens. Agora, para mim chegou. Eu tenho que comunicar imediatamente que o senhor, major McLane, abandonou a posição predeterminada. Vou ter que denunciá-lo, entendeu?

A seriedade com que McLane encarava Tamara parecia irritá-la ainda mais.

— É quase certo que vidas humanas estão correndo sério perigo em Pallas beta — disse Cliff. — Pode assumir essa responsabilidade?

Fora de si, Tamara gritou:

— Isto é da alçada da Comissão Espacial, e não de um comandante indisciplinado que está entediado!

— Eu acabei de lhe expor, claramente, que as autoridades espaciais não estão se incomodando com os acontecimentos em Pallas beta.

McLane espalmou as mãos, como que se inocentando, e depois apontou para os instrumentos. Tamara reparou que só faltavam quarenta segundos para voltar ao espaço normal.

— Major! — disse, em tom exortativo — sou capaz de entender tudo isso e mais alguma coisa; mas vão lhe mover um processo disciplinar quando uma estação qualquer, ou um raio de busca, descobrir que se afastou do campo de operações!

— Para impedir isto, alguns cosmonautas inteligentes inventaram uma pequena brincadeira — disse Cliff. — Uma gracinha inofensiva.

— Uma gracinha, para não ser descoberto? — perguntou Tamara, estupefata.

— Uma artimanha para fingir uma posição que não existe.

— E como conseguem fazer isso?

— Laurin! — foi só o que Cliff disse.

— Quem ou o que é Laurin? — perguntou Tamara, curiosa. Parecia um pouco mais calma.

— Laurin, o Rei dos Anões, era o personagem principal de uma antiqüíssima lenda da Terra. Possuía um manto mágico que o tornava invisível. E é isso o que Atan vai fazer. Com uma parte de energia dos acumuladores da Lancet, ele vai gerar um campo em forma de disco, que qualquer raio de busca vai tranqüilamente identificar como sendo a Orion VIII.

Mario completou a explicação:

— Portanto, nós não nos desviamos um centímetro sequer da nossa posição, entende? Nós simplesmente não estamos aqui!

A nave retornou do hiperespaço; diante dela estava a luz do sol p-900229. Com velocidade alucinante, consumiu uma e um quarto unidades astronômicas até o planeta Greenwood; depois, McLane reduziu a potência das máquinas; o tempo todo, estava discutindo o caso Laurin.

— Em resumo, pretende engabelar as autoridades — constatou Tamara.

— Perfeitamente! — respondeu McLane, num tom de indisfarçado contentamento.

— Só temos que tomar cuidado para que não descubram a tapeação — disse Mario e estalou os dedos. — De resto, este é apenas um dos muitos truques de que dispõe uma tripulação bem entrosada.

Tamara estava vivendo um conflito íntimo; finalmente, tomou uma decisão verdadeiramente heróica, consideradas as suas atribuições.

— Escute, McLane... eu não vejo nada, não ouço nada e não digo nada. Pode garantir que não vão dar pela fraude?

— Tenho noventa e nove por cento de certeza que não — respondeu McLane, inabalável.

— E o que acontece com Helga e Atan?

— Vamos apanhá-los em seguida à nossa inspeção. E isso não vai demorar nada, pois só pretendo examinar esse lugar, e não me estabelecer lá.

— Muito bem; a partir desse momento, faço parte da conjuração.

Tamara reforçou a afirmação com um aceno da cabeça e ignorou o riso aliviado dos três homens.

Mario apontou para o cronômetro de bordo e disse:

— Cliff! Temos que voltar no máximo dentro de dezessete horas, senão a Lancet fica sem um pingo de energia!

— Não vamos ficar um minuto além do necessário.

A nave descreveu uma elegante curva na direção da lua Pallas beta, que, neste instante, estava emergindo da sombra do planeta Greenwood.

 

Em uma das numerosas estações retransmissoras o texto era repetido sem parar. A esfera metálica flutuava na fronteira de Leste/Três 702 e dispunha de instalações internas semelhantes às da pequena lua MZ-4.

Baterias de amplificadores tornaram os impulsos audíveis.

— Aqui fala a Hyperion 099 — disse a voz. — As estações retransmissoras até o cubo Quatro/Oeste 034, o objetivo da nave Orion, comunicam: a nave está na posição predeterminada, porém não responde aos chamados.

Parecia que alguém precisava falar urgentemente com McLane. Incessantemente o chamado ziguezagueava pelo espaço cósmico. Mas a Orion silenciava.

Spring-Brauner estava furioso.

— Mas, tenente, os aparelhos de busca mostram claramente que a nave está nas proximidades do planeta de Larsen! — objetou o aspirante.

— Então por que este sujeito não responde? — gritou Spring-Brauner.

— Isso eu também não sei — disse o aspirante. — Será que alguma coisa aconteceu a ele?

— Nada acontece a esse sujeito, jamais! — finalizou o tenente.

 

PALLAS beta era um asteróide de arestas vivas que, à distância, assemelhava-se a uma esfera de superfície revolvida. Agora, que se encontrava a menos de quinhentos metros da reluzente nave espacial, os três homens e a mulher viram seu verdadeiro aspecto. Em meio a rochas negras-azuladas, cheias de fendas e gretas, erguiam-se agulhas pontiagudas que lançavam longas e duras sombras sobre o terreno escarpado, aumentando a sensação de perigo que pairava sobre este lugar. O resto da superfície visível era fracamente iluminada pela luz irradiada pelo planeta Greenwood.

— Não é de uma beleza estranha? — perguntou McLane e apontou para a imagem colorida, tridimensional, na tela circular.

— Distância: quatrocentos metros — disse Mario, a meia voz.

— É belo, sim. E dentro desse fragmento de rochas existe uma colônia de mineiros? — perguntou Tamara.

— Setenta colonos e vinte e um robôs trabalhadores. Além disso, máquinas e instalações de transporte, um poço de partida para foguetes primitivos, e as pilhas atômicas que produzem a energia. A cada seis meses vem um navio de abastecimento fora disso, eles só dispõem dos containers lançados pelos cargueiros de minério.

Tamara acenou com a cabeça.

— E o senhor quer pousar lá?

Pallas beta era um pedaço de rocha com uns novecentos metros de diâmetro no seu trecho mais largo. Supunha-se que essa lua era um resto do planeta de Amoníaco. Mas a extração do minério era rendosa e absolutamente indispensável para uma determinada indústria na Terra; o germanicum era um minério muito raro.

— Não, não vou pousar, apenas acostar. Para isso, ancoramos o nosso campo gravitacional na superfície lunar. Oficialmente este corpo é chamado de lua, porque descreve uma órbita em torno de um planeta; pelo seu tamanho deveria ser designado por asteróide.

Recorrendo ao controle manual, McLane começou a manobra de aproximação.

— Distância: trezentos metros — avisou Mario de Monti.

Um anel de luzes piscantes de um amarelo intenso, que se acendiam e apagavam em intervalos de quinhentos microssegundos, contornava um trecho plano nas proximidades do poço de lançamento dos foguetes de minério. O ruído das máquinas tornou-se quase inaudível.

— Altura? — perguntou Cliff.

— Duzentos metros.

A massa negra enchia completamente as telas. Exatamente abaixo do disco luminesciam aquelas lâmpadas amarelas. McLane ligou o dispositivo de pouso automático que, comandado eletronicamente, se encarregaria dos últimos cinqüenta metros.

— Vou ver Hasso na sala de máquinas — disse e calcou o botão do piloto automático.

— Está bem — disse Mario. Evidentemente o livro de bordo estava desligado.

— Cinqüenta metros.

Com um forte clique, o autopiloto se ligou. A nave rastejava em direção àquelas paredes rochosas, dilaceradas e escarpadas. Hasso estava diante dos altos e estreitos armários de comando das suas máquinas e observava atentamente os instrumentos. Todos os ponteiros apontavam para valores normais. McLane entrou na casa de máquinas, deu um breve aceno e começou a farejar, desconfiado, o cheiro que emanava das máquinas novas, dos esmaltes recém-aplicados e dos pontos de soldas. Afora um ligeiro zumbido, o silêncio era total. Cliff deu uma leve pancada no ombro de Hasso.

— Agora preste bem atenção, engenheiro!

Hasso lançou um olhar duvidoso para McLane.

— Eu sempre presto atenção quando você planeja surpresas como essa, Cliff o que há? Algum perigo?

Cliff encolheu os ombros.

— É possível. Eu não sei o que nos espera em Pallas. Por isso, gostaria que a Orion estivesse pronta para uma partida de emergência, enquanto nós procuramos pelos colonos.

— Entendo! — disse Hasso e acompanhou com os olhos o desenvolvimento de uma curva luminosa, projetada por um aparelho. A nave pairava agora, imóvel, cinco metros acima daquela superfície plana, cercada pelas luzes piscantes.

— Quanto tempo temos se deixarmos as máquinas funcionar em ponto morto, quer dizer, quando mantemos a força total na reserva?

— Oito horas — respondeu Hasso. — Mas, depois disso, você pode fritar ovos nas baterias de energia.

— Não mais do que isso, Hasso? — perguntou McLane e olhou, pensativo, para o relógio.

— Se eu permanecer só cinco minutos mais de prontidão, todos os blocos de fusíveis vão se derreter.

— Mas essas oito horas você garante? — insistiu Cliff.

— Não! Apenas seis horas, de acordo com o regulamento.

— Então as máquinas vão ficar de prontidão durante oito horas, entendido?

— O chefe é você — disse Hasso, calmamente.

A voz de Mario veio do sistema de comunicação de bordo.

— Comandante! — disse, em voz alta.

— Estamos pairando sobre Pallas.

— Ótimo. Transfira o comando para a casa de máquinas. Hasso vai tomar as providências necessárias.

— Está bem.

— Já vou, Mario! — prometeu McLane e acenou para Hasso. — Está tudo bem claro, Hasso?

— Tudo claro! — disse o homem alto, de cabelos brancos e olhos azuis penetrantes. O elegante corpo da Orion pairava, imóvel, exatamente por cima daquela área limitada pelas luzes piscantes. Nenhum sinal de vida indicava de que ali se encontravam setenta mineiros altamente qualificados. E vinte e um robôs, da força de um urso!

 

McLane dirigiu-se a Mario e Tamara.

— Vamos vestir os trajes leves e levar as armas; saímos juntos e não nos separamos.

— Não vai ter vigilância à bordo? — perguntou Mario.

— Não, não vai. Vamos fechar a comporta do elevador telescópico.

Tamara e Mario acenaram.

— Dentro de cinco minutos todo mundo na cabine do elevador — advertiu , McLane. — E não se esqueçam: temos muito pouco tempo. Atan e Helga nos aguardam.

Foram rapidamente às suas cabines e vestiram os trajes espaciais leves por cima dos macacões de bordo. Reencontraram-se na cabine de comando, com os capacetes sob os braços.

Ajudaram-se mutuamente a atarraxar os capacetes e ligaram os aparelhos radiofônicos de pulso, certificando-se que as minúsculas lâmpadas de controle estavam acesas. Cliff deu um rápido aceno com a cabeça, ajeitou o seu projetor e apertou o botão do dispositivo hidráulico. Lentamente os elementos telescópicos do elevador se estenderam. Parecia a tromba de algum inseto gigante. O piso do elevador encostou na superfície lunar e um relê estalou. Uma lâmpada acendeu-se acima da porta circular do elevador. Tinham chegado em Pallas beta.

— Será que a nave não se afasta? — perguntou Tamara, preocupada.

— Está presa à lua por três possantes raios magnéticos — explicou Hasso.

— Entendo — disse Tamara. Mario abriu a porta do elevador, que era ao mesmo tempo a comporta da eclusa.

Cautelosamente, com a arma destravada na mão, o subcomandante saiu do elevador. Os ímãs nas suas botas aderiram ao reluzente revestimento metálico estendido entre as luzes de posição que continuavam a piscar ininterruptamente. Subitamente, os quatro tripulantes começaram a sentir uma sensação de perigo. Hasso seguiu-se a Mario, depois veio Tamara, e finalmente Cliff McLane. Olharam ao redor. Nada reconheciam naquela escuridão, a não ser os contornos das rochas, algumas sombras e linhas difusas, que formavam a transição entre a rocha escura e o universo com suas estrelas. O ritmo das lâmpadas manteve-se inalterado. Cuidadosamente, Cliff fechou a eclusa e registrou o segredo necessário para abrir a porta.

— Acho que estão se divertindo às nossas custas, Cliff — disse Mario e continuou a caminhar.

— Talvez estão brincando de esconder — disse Hasso, e ninguém sabia se ele estava falando sério ou não. Avançaram, numa fila indiana, em direção à luz vermelha que brilhava por cima de uma eclusa retangular. Dentro dela estava a última parada do elevador na superfície dessa minúscula lua.

— Hasso — disse Cliff — até parece que aqui não tem mais ninguém.

Estavam a vinte metros do elevador.

— Então você pode me explicar de onde vêm aqueles foguetes de minério?

Os nervos da tripulação estavam tensos. Se esta estação estivesse ocupada, os trabalhadores teriam reparado a aproximação da Orion e a manobra de acostamento. E poderiam ter visto os visitantes, porque dispõem de uma profusão de aparelhos, capazes de registrar o contato das botas magnéticas com a chapa metálica da plataforma de pouso. Mas ninguém veio para cumprimentar McLane e sua equipe.

— Talvez os robôs ainda estejam trabalhando — observou McLane, falando para si mesmo.

— Vamos verificar isso logo, logo — disse Mario de Monti. — Ao menos as pilhas atômicas estão trabalhando, senão as luzes de posição não estariam ligadas.

Estavam diante da entrada do elevador, de forma cúbica. McLane tinha encostado a mão enluvada sobre a placa de contatos. Tamara virou-se para ele e perguntou:

— E quem é que vai ficar aqui, comandante?

— Ninguém — respondeu McLane. — Vamos descer todos juntos.

Tamara sacudiu a cabeça.

— O parágrafo vinte e oito, inciso dois, do regulamento de serviço reza: durante um pouso, ou por ocasião do acostamento em bases avançadas ou outros pontos de apoio, a casa de máquinas e a cabine de controle de uma nave espacial não devem ficar desguarnecidas para impedir a perda total de uma nave. Tinha se esquecido disso, comandante?

— De forma alguma, tenente! Mas não posso assumir a responsabilidade de deixá-la procurar sozinha pelos colonos. O que é que eu vou contar a Villa, se eu volto sem a sua companhia?

Ainda nada se mexia. Nem abaixo deles, na extensa rede de galerias da mina, nem na grande eclusa diante deles. A situação tornava-se cada vez mais enigmática e perigosa.

— Não há necessidade de vigilância, tenente Jagellovsk — disse Hasso. — As máquinas estão de prontidão..Mas se insistir, é claro que eu fico aqui.

Mario de Monti aliviou a tensão com um gracejo.

— Vamos trocar, Hasso... se a senhorita Tamara quiser se arriscar a ficar sozinha comigo, eu me apresento voluntariamente!

— Não! — disse McLane, com voz incisiva. — Se aqui tiver alguma coisa de podre, vou precisar de todo mundo!

— Então vamos logo — disse Mario. — Estou com frio.

Riram, e Cliff calcou a placa de impulso, que cedeu sob a pressão de sua mão. Lentamente a eclusa se abriu. Ao mesmo tempo a iluminação do elevador se acendeu. Os quatro membros da tripulação entraram na eclusa e esperaram que a porta externa se fechasse novamente. Depois abriram a placa transparente que dava acesso ao elevador. Pararam.

— O elevador está funcionando! — disse Cliff e apontou para o seletor iluminado junto às teclas retangulares, nos quais estavam indicadas as diversas paradas. Os botões podiam ser manejados pelos braços hidráulicos ou pelas garras de um robô do tipo Worker.

— E o abastecimento de ar também está trabalhando normalmente — disse Mario apontando, por seu lado, para uma larga fita luminosa que, em diversas cores, apresentava o teor dos gases na composição do ar atmosférico.

— Vamos economizar a energia dos trajes — disse Hasso e fechou seu suprimento. — Podemos tirar os capacetes.

Poucos segundos depois estavam todos com os capacetes debaixo dos braços. Cliff deu um aceno afirmativo para Mario, que tinha colocado o indicador sob o botão ao lado da inscrição "entrada". Mario calcou o botão e imediatamente a cabine começou o seu movimento descendente. O elevador parou... Com um chiado agudo, as duas folhas da porta, à prova de pressão, recolheram-se para o lado e finalmente a entrada da galeria se estendeu diante dos quatro tripulantes.

— O ar é perfeitamente respirável — disse Hasso — devíamos tirar os trajes.

— Estou de acordo — disse Cliff. — Se bem que eu não veja por que ainda não estamos rodeados por trabalhadores jubilosos.

Avançaram mais alguns metros para o interior da galeria, encontraram uma porta e a abriram: era um almoxarifado. A equipe tirou os trajes, recolocou os projetores no cinto e afixou novamente os rádios de pulso. Cliff testou seu aparelho: estava funcionando.

— Então vamos indo.

Com um tiro rápido, Hasso inutilizou a fechadura da porta. A qualquer momento poderiam reaver seus trajes espaciais. Mario ajustou o seu rádio de pulso para a freqüência normalmente utilizada para contatos radiofônicos a curtas distâncias.

— Aqui fala a Orion! — disse ele no pequeno microfone. — Tem alguém aí?

Nenhuma resposta.

— Vamos mais adiante e olhamos atrás de cada porta — disse Cliff.

Destravou o seu projetor e colocou-se à testa do pequeno grupo. Atravessaram rapidamente o largo corredor. As três primeiras portas que abriram davam acesso a recintos secundários, cheios de peças de equipamentos e material de mineração. Não havia sinais de vivos ou mortos; nem mesmo cinzeiros usados encontraram. Chegaram a um cruzamento.

— Estou descobrindo certas analogias com a nossa aventura em MZ-4 — disse Hasso. — A instalação interna é inteiramente semelhante...

Seis galerias desembocavam neste cruzamento. Era uma sala com base hexagonal. As paredes, com as aberturas circulares das galerias, eram constituídas de um plástico reforçado com aço e apresentava aquela estruturação alveolar, característica das paredes destinadas a suportar elevadas pressões. Os homens sabiam que atrás delas havia espessas camadas isolantes e telas de uma matéria sintética altamente elástica, que impedia a infiltração de água bem como o escapamento de ar atmosférico do corredor.

— Para a direita! — disse McLane e enveredou pelo corredor seguinte. Era curto e desembocava na ante-sala de um bangalô. As máquinas tinham escavado um recinto na rocha, encimado por uma cúpula. Por toda parte havia luminárias acesas e o sistema de ventilação soprava uma torrente de ar quente contra o revestimento do piso.

— Nada! Está tudo vazio!

Hasso examinou um pequeno quarto ao lado da entrada. Também aqui viu confirmada a sua observação. Lentamente dirigiram-se mais para o interior da grande sala de estar.

Cada um deles examinou um dos quartos adjacentes. Estavam arrumados; não havia nada fora do lugar. Quando a porta automática diante de um quarto circular deslizou para o alto, ouviram uma voz. Cliff girou nos calcanhares e apontou para o interior do recinto.

— Beta — disse a voz. — ípsilon menos setecentos; gama: AZ menos seis mil. Campos magnetos inalterados. Delta: mais quatrocentos e noventa e oito; lábil.

A voz emanava de um alto-falante acima de uma escala iluminada; o ponteiro estava parado diante da marcação que dizia "produção".

— Isto nada mais é do que o relatório de produção — explicou Hasso, sombriamente, e desligou o alto-falante.

— Portanto, a mineração está funcionando — disse Mario, pensativo — mas afinal onde estão os nossos amigos? Diabos! Estou começando a achar que aqui tem assombração.

Avançou cautelosamente, com passos curtos.

— Alguém deve ter ligado esse aparelho! — raciocinou Cliff em voz alta. — Mas quem?

Tamara parou diante dele e respondeu:

— Vai ver que esse aparelho já está funcionando há meses, sem que ninguém esteja escutando!

Hasso observou calmamente:

— Se vocês me perguntam... aqui houve uma catástrofe!

— Não vejo nenhum indício, Hasso! — disse Cliff. — Nem escombros, nem cadáveres, nem tampouco qualquer sinal que tivesse sido empregado violência.

— Talvez — disse Mario de Monti, de um outro recanto da sala — os trabalhadores estejam fazendo um piquenique com os robôs?

— Nós vamos encontrá-los! — disse Cliff, com voz dura. — Vamos adiante!

Hasso e Mario abriram uma outra porta e penetraram num corredor que, como supunham, levaria à terceira galeria que desembocava naquele ponto do cruzamento. Tamara agarrou McLane pelo braço e o reteve. Com um tom exortativo na voz perguntou:

— Não acha que está na hora de soltar um comunicado para a Comissão Espacial, comandante?

Cliff deu uma risada.

— Por quê? Por acaso está com medo?

— Não, não estou — disse ela — mas tenho a impressão que aqui houve alguma coisa que nós não podemos resolver sozinhos!

— Tamara — disse Cliff, pesando as palavras — se nós emitirmos um comunicado agora, vamos denunciar a nossa nova posição. E, com isso, eu a denuncio também, porque nós viemos para cá com seu consentimento. Ainda temos muito tempo para enviar um informe. Mas, por enquanto, vamos apenas continuar a procurar; está bem?

Tamara acenou com a cabeça; no mesmo momento Hasso e Mario voltaram.

— Precisamos atravessar este corredor — disse Hasso. — A julgar pelos barulhos, é lá que se encontra a central dessa mina.

Quando saíram da galeria, era como se estivessem penetrando na nave de uma catedral: uma imensa sala, com um diâmetro não inferior a cem metros, encimada por uma cúpula. Uma audaciosa obra de engenharia nesse pedaço de rocha chamado Pallas beta. As paredes alisadas e as superfícies do teto estavam revestidas com massa isolante e refletiam a luz de projetores judiciosamente distribuídos. O martelar de possantes máquinas inundava o gigantesco recinto rochoso. A conversa tinha que ser feita em voz muito alta.

— É a central! — gritou Hasso.

— Claro que é! — berrou Cliff. — E aqui está a pilha atômica!

No meio da sala encontrava-se o enorme bloco de uma pilha do tipo Nishwitz-Achmann. Ao lado dele, erguia-se o eixo do gerador. Uma extensa fila de grandes telas de imagem apresentava aspectos do trabalho de extração. A balança contínua, com registrador automático, estava agarrada em torno de uma esteira rolante, que se deslocava com velocidade acentuada.

— Se não me engano — berrou Hasso — isto aqui é a central da lua!

— Que boa vida eles têm! — gritou Mario. — Tudo aqui é inteiramente automatizado!

— Sim, mas eu não vejo nenhum serviço de controle! — respondeu Hasso, berrando. Lentamente o engenheiro dirigiu-se ao centro da mesa de comando e observou atentamente alguns mostradores e ponteiros. Voltou e disse: — Está tudo em funcionamento; a extração está correndo a pleno vapor; o abastecimento de oxigênio e a instalação de renovação de ar, aliás muito possante, estão funcionando normalmente; todo sistema de corredores está perfeitamente abastecido com ar respirável.

McLane observava o seu rádio de pulso; embora pudesse captar ondas radiofônicas, o aparelho não dava qualquer sinal de que uma conversa radiofônica estivesse sendo mantida. De repente... Viraram-se rapidamente; um apito agudo sobrepujou o barulho e cessou abruptamente; à direita deles repararam um movimento. Mario virou-se e dirigiu o projetor sobre as duas placas que, nas paredes, retrocediam para a direita e para a esquerda. Reluzente e clara, a cabine do elevador apareceu por trás delas. Estava vazia. Mais um apito agudo, as portas fecharam-se novamente e a sinaleira luminosa ao lado da moldura mostrou que o elevador descia.

— Esse lugar está cheio de assombrações cósmicas! — constatou Mario com voz alta, aproximando-se um pouco mais da moldura.

— Algum de vocês viu algum trabalhador sair? Eu não! — observou Hasso. — A coisa está ficando cada vez mais enigmática!

— Talvez os mineiros tenham sido soterrados — disse Tamara e postou-se ao lado de McLane. — Ou então alguma galeria explodiu ou desabou. Talvez...

— Fique quieta! — disse Cliff, apressadamente, e olhou para a cara lívida da agente do SSG. — Se esse elevador parar mais uma vez aqui, nós vamos pegá-lo e descer.

— Eu acho melhor esperar mais um pouco, comandante — objetou Tamara Jagellovsk.

Cliff sacudiu a cabeça; no meio do seu movimento ouviu novamente aquele assovio estridente; o sinalizador luminoso manteve-se inalterado. As portas se abriram... o elevador estava parado.

— Vamos! — disse McLane e estalou os dedos. — Entrem!

Entraram no elevador e viraram-se lentamente.

— Olhem! — gritou Hasso, assustado. Surgindo do nada, dois robôs do tipo Worker barravam a entrada do elevador com seus corpos elipsóides. Estavam em plena função. Flutuavam, imóveis, sobre os campos magnéticos e estendiam os braços telescópicos aos quatro tripulantes. Nas extremidades dos braços havia mãos de quatro dedos, feitos de aço e aparafusados a articulações de bronze. E estes quatro dedos estavam firmemente agarrados ao cabo de uma HM-4. A ponta dos projetores apontava para McLane e sua equipe.

— Robôs trabalhadores armados! — exclamou Tamara.

Agora os quatro intrusos vislumbraram a razão pela qual o sistema de galeria estava tão abandonado. Os vinte e um robôs haviam se revoltado.

 

COM um chiado ominoso as duas folhas da porta deslocaram-se uma em direção a outra, tocaram-se e fecharam a cabine.

— Robôs armados! — disse McLane e tentou ocultar a sua apreensão. O elevador não possuía uma velocidade de descida muito grande.

— E armados com os projetores dos trabalhadores, Cliff! — disse Hasso, espantado.

— Mas o que essas máquinas estão fazendo aqui em cima, na central? — perguntou Mario, falando consigo mesmo. — Pelo que eu sei, a sua função é impelir as máquinas para a frente e tratar que o minério seja extraído nas galerias.

— E onde é que estão os colonos?

Os ruídos de pesadas máquinas de mineração tornavam-se cada vez mais altos. As vibrações transmitiam-se às guias da cabine do elevador.

Havia uma porção de perguntas... Mas nenhuma resposta.

— Robôs rebelados! Workers amotinados! Isso é inédito! — disse Hasso. — Digam-me uma coisa: vocês não estavam freqüentando aquele curso de aperfeiçoamento...?

Tamara deu uma risada curta e sarcástica.

— Freqüentamos o curso, mas o abandonamos prematuramente.

Silenciou de repente, ao sentir que o barulho aumentava e a velocidade da cabine tinha se reduzido consideravelmente. Com voz dura, Cliff deu algumas ordens decididas.

— Tamara fica atrás de nós! Hasso e Mario, assim que estivermos lá embaixo e as portas se abrirem, atirem imediatamente!

— Mas apontem para a cabeça — disse Tamara — senão, não adianta nada!

— Que coisa mais agradável — comentou Mario e apontou seu projetor sobre a parede à sua frente, que parecia deslizar para cima.

— Aconteça o que acontecer — disse McLane rapidamente — lembrem-se que eles não passam de meras máquinas!

— Mas — disse Hasso quando o elevador parou — é óbvio que estão reagindo da maneira errada. E isto eu não entendo!

— Os robôs entendem alguns milhares de impulsos de comando e são capazes de realizar incontáveis operações. Mas é claro que eles "pensam" de uma maneira diferente de um cérebro humano. A sua lógica não é a da razão, a do raciocínio prático, e sim a da matemática.

As portas automáticas se abriram; diante da tripulação da Orion estava um dos colonos de Pallas beta. Junto a ele flutuavam dois Worker, que o ameaçavam com a arma. As pontas dos projetores estavam firmemente encostadas no tecido brilhante do seu macacão. A velocidade de reação de um robô era cem vezes maior do que a de um ser humano — era inútil um ataque!

— Não atirem! — disse o trabalhador, resignadamente.

Houve uma pausa. Nada e ninguém se mexia; apenas os olhos dos três homens examinavam a cena. Talvez houvesse alguma chance de iludir as máquinas. Uma galeria retangular levava ao interior da lua; a intervalos regulares, vários corredores secundários ramificavam desta galeria. Um pouco à distância, viam-se discos luminosos que iluminavam as paredes negras e nervuradas. Mais a frente, havia uma máquina que penetrava, centímetro por centímetro, na rocha viva e lançava uma torrente de rocha britada sobre uma esteira rolante.

— Guardem os projetores — disse o colono. — Não há a menor chance.

Travaram os quatro projetores e os recolocaram nos cintos.

— Meu nome é Hall — disse o colono. — Nigel Hall.

Um dos robôs deslizou para a frente, ergueu-se na entrada do elevador e estendeu as mãos em direção às armas. Retirou uma após a outra e virou-se, expulsando os intrusos da cabine com seu corpo maçudo. O outro robô entrou no elevador, as portas se fecharam e o elevador voltou a subir. Tudo isso aconteceu no mais total silêncio, o que aumentou a impressão de um perigo mortal; os homens nem ousaram se mexer. Finalmente McLane rompeu o silêncio e virou-se para Nigel Hall.

— O que está acontecendo aqui? — perguntou, com voz dura.

Aos poucos a sala em frente ao elevador começou a se povoar de mineiros em macacões claros e com os característicos protetores nos joelhos e cotovelos. Um deles adiantou-se e agarrou Hall pelo braço.

— Vocês — gaguejou, aturdido e exaltado — conseguiram paralisá-los? Os robôs estão liquidados?

McLane aproximou-se; sua cara era dura e fechada. Perguntou:

— Afinal o que está acontecendo aqui, Hall? Meu nome é McLane... — Hall ergueu a cabeça, surpreso, e um traço de esperança voltou a seu rosto.

— O quê? O senhor é o comandante McLane?

Cerca de cinqüenta colonos já rodeavam o pequeno grupo.

— Controle-se, homem! — exortou-o Cliff. — O que está acontecendo aqui?

— Eu sou Nigel Hall. O chefe desses homens aqui. Estamos há uns dois anos em Pallas beta. No início, tudo corria bem, e os robôs aceitaram as nossas ordens e fizeram o que pedíamos. Nos instalamos, perfuramos as galerias e enviamos os primeiros containers de minério para o alto. Para a pista de estacionamento dos cargueiros, bem entendido.

— Eu sei — disse McLane, com pressa. — Continue!

— Aí houve um tiroteio...

— Entre vocês e os robôs? Mas eles de jeito algum estavam armados!

McLane cerrou os olhos, meio incrédulo.

— Nada disso! Não foram os robôs, esses trabalharam a contento. O tiroteio foi entre nós; houve dois mortos.

— E por que atiraram?

— Um homem de nome Foerster tinha contrabandeado euforita para dentro da colônia... Essa maldita droga que transforma homens em sonhadores. A briga foi por causa da euforita.

Tamara, Mario e Hasso escutavam quase de respiração presa.

— Um mês depois — continuou Hall, um pouco mais calmo — já eram oito homens. Foerster e sete dos seu asseclas. Não queriam fazer mais nada; muito menos trabalhar.

— Ele tem razão! — gritou alguém lá dos fundos.

— Tomaram euforita sem parar. E o responsável aqui sou eu. Sou responsável pelas quantidades de minério extraído, pelas máquinas, e pela quota de produção.

— Entendo — disse McLane. Tamara, agitada, agarrou-se ao braço de Cliff, como se ele fosse a escora de bordo da Orion.

— Houve uma violenta discussão entre mim e os homens de Foerster; a conseqüência foi uma verdadeira revolta. Lançaram-se contra mim com as armas na mão e tive que matar Foerster e um de seus seguidores. Não é o que eu queria, mas agi em legítima defesa. E aí, de repente, os robôs se revoltaram.

— Onde foi que houve o tiroteio? — perguntou McLane.

— Aqui embaixo, na mina — disse Hall preocupado.

— Os robôs testemunharam isso? — perguntou Tamara, agitada, e soltou o braço de McLane.

— Sim, assistiram a tudo.

— Então é isso! — constatou o tenente Jagellovsk.

Todos viraram a cabeça em sua direção.

— A primeira Lei do robô diz o seguinte: Um robô não deve ferir qualquer ser humano e não deve se manter inoperante quando algum ser humano corre o perigo de ser agredido por terceiros — disse o oficial do SSG — e estas regras estão gravadas no cérebro eletrônico do robô.

— Certo, garota! — prosseguiu Hasso — é isso mesmo! E esta primeira regra é a mais importante. A fim de proteger a colônia de novos danos, e isso, na opinião deles, significa mais mortos e uma redução na produção, não menos perigosa, desarmaram os homens e assumiram o controle de toda a mina!

— Sim, e desde então trabalhamos que nem uns loucos sob a supervisão dos robôs!

— Nunca tentou estabelecer contato com alguém? — perguntou Mario de Monti.

— De que jeito! Bem que quisemos emitir um chamado de emergência. Mas os robôs ocuparam a central, não tivemos mais acesso ao aparelho radiofônico.

Um outro colono cortou a palavra de Hall.

— Enfiamos notícias em cilindros metálicos e os ocultamos no meio do minério; mas não houve resultado algum.

McLane riu, desalentado.

— Pudera! — disse, quase sem entonação na voz. — É que o minério nunca chegou. Já é a segunda vez que os cargueiros só transportaram entulho, ou seja, pedra sem valor algum, para a Terra. Por seu lado, parece que os robôs estão querendo limpar sua consciência suja, jogando entulho dentro dos containers.

Quase que Hall teve um acesso de histeria. Deu uma risada curta, fraca, e perguntou:

— Ouvi direito? Consciência suja? Esses robôs?

— É isso mesmo! — respondeu Tamara, tranqüilamente. — Empregando o termo com a devida reserva, os robôs podem ser considerados neuróticos. Eles sabem que o seu comportamento não é lógico, se bem que corresponde basicamente ao que estabelece a primeira Lei. E é por essa razão que eles precisam fazer alguma coisa, a fim de chamar a atenção de uma instância superior para si e os seus problemas. E então enviam detritos para a Terra, na esperança de alertar alguém que venha a acabar com esse estado anormal; mas até lá, eles não vão modificar o seu comportamento.

— Nesse caso, estamos perdidos! — disse um dos mineiros. — E isso inclui o senhor, comandante; o senhor e sua tripulação. Nós não vamos conseguir sair daqui antes que estejamos todos mortos ou alguém na Terra repare o que se passa aqui!

Hall virou-se lentamente e estendeu os braços num gesto desolado.

— Voltem ao seu trabalho! — disse em voz alta. — Senão eles vem imediatamente aqui pra baixo.

— Eles obrigam vocês a trabalhar? — perguntou McLane, espantado.

— Claro! — respondeu Hall.

— E parece que isso está funcionando às mil maravilhas! — observou McLane.

Os mineiros se dispersaram. Cinco pessoas permaneceram junto ao elevador e entreolharam-se em silêncio. Todas as mentes estavam funcionando. Devia haver uma possibilidade de desarmar essas máquinas ou, ao menos, de reprogramá-las. Lentamente Hasso empurrou o seu rádio de pulso para cima. Desde o momento que a nave tinha deixado Helga e Atan no planeta de Larsen tinham-se passado duas horas.

— Só faltam seis horas, Cliff — disse Hasso com uma certa insistência. Cliff acenou com a cabeça e cerrou os dentes.

Os segundos se passaram. As máquinas continuavam a trabalhar e os robôs dominavam Pallas. Enquanto isso, o Laurin criava uma posição que não existia na realidade. E Helga e Atan esperavam pela volta da Orion. Vinte e um robôs malucos... E equipados com pesadas armas energéticas...

— Eu acho — disse McLane e sorriu para Tamara — que alguma coisa devia nos ocorrer para que pudéssemos libertar essa estação e a nós também. Não tem alguma idéia?

— Ainda estou ocupada em fazer uma análise comparativa das leis dos robôs. Deve haver alguma coisa que os obrigue a agir. Mas a agir da maneira que nós desejamos. Para isso preciso de um pouco de calma e de um bloco de apontamentos.

— Sei onde a senhora pode encontrar as duas coisas! — disse Hall. — Venha comigo, por favor.

Cliff, Hasso e Mario permaneceram na sala.

 

Como uma enorme casca, a superfície cobria todo o hemisfério: o disco castanho-dourado do planeta encobria a metade de todas as estrelas visíveis. O planeta de Larsen jazia plenamente iluminado pela luz do seu sol. Era dia nesta metade do planeta. Nuvens cobriam uma parte dos continentes. Em algum lugar, um tufão estava se formando. Os homens podiam reconhecer os cursos d'água, os desertos e as florestas, bem como as superfícies prateadas e brilhantes dos lagos e dos mares; praias em forma de foice estendiam-se ao longo do litoral. O planeta Larsen não possuía lua, apenas dezesseis satélites artificiais, as sondas espaciais.

Pairavam sobre o planeta e observavam com os olhos das câmaras, com todos os instrumentos e antenas, aquele mundo rico em cores.

Mediam a camada magnética, os campos de energia solar em constante movimento, as temperaturas, e as variações e mudanças das estações do ano. Os satélites mediam... comparavam, observavam e anotavam... registravam e tiravam conclusões; armazenavam tudo isso nos pequenos trechos magnetizados de uma larga fita, que rodava em solavancos curtos, nervosos e rápidos. Eram dezesseis sondas, colocadas ali por uma das naves cartográficas da Terra. De mês em mês, os milhões de dados e informações registrados por essas sondas tinham que ser recolhidos. Depois, as fitas originais eram apagadas e rebobinadas. Os minúsculos elementos de armazenamento tinham capacidade para registrar até 65.536 valores alfanuméricos. Bilhões de tais impulsos seriam um dia reunidos e entregues à Central de Computação da Comissão Espacial. Após o devido processamento desses dados, o gigantesco computador tiraria as conclusões finais e um aparelho periférico as imprimiria em páginas plásticas. Coletar os dados das fitas daquelas sondas era tarefa de cadetes do segundo semestre da academia espacial; Helga e Atan não eram cadetes, mas sim experimentados cosmonautas.

Já estavam trabalhando no nono satélite. Ao lado de um deles, pairava, imóvel, a Lancet. A eclusa estava aberta; dela saía um cabo em confusas laçadas para dentro do espaço. Na extremidade encontrava-se Atan; tinha ligado os seus dois aparelhos nas chaves das conexões do elemento externo. Abaixou-se cuidadosamente... um movimento curioso na imponderabilidade do espaço. Depois conseguiu ligar o cabo, e o gravador magnético começou a girar. Atan esperou pacientemente até que os quase sessenta e seis mil sinais tivessem sido regravados. Através dos fones de capacete, Helga ouvia a respiração regular do seu companheiro. Estava sentada à mesa de comando da Lancet e tinha ligado seu fone de capacete na instalação radiofônica da nave auxiliar. A moça de cabelos negros acionou a chave.

— Lancet I chamando Orion VIII... por favor responda... Lancet chamando Orion... por favor responda! — nenhuma resposta. Helga já um pouco nervosa, apertou novamente o botão e mais uma vez chamou a nave-mãe.

Atan tinha transferido os impulsos colhidos pela sonda para a bobina do seu gravador. Acompanhava a transmissão de Helga e esperou até que ela transferisse o aparelho novamente para a recepção.

— Por que você está chamando McLane? — perguntou Atan. — Ainda não voltaram e nós ainda dispomos de uma porção de tempo.

Helga esperava por uma resposta no aparelho. Mas só ouvia os estalidos da estática. No meio do campo dos satélites estava o Laurin. Helga podia vê-lo, se mexesse a cabeça um pouco e olhasse para fora de uma das cúpulas redondas. As vinte cascas semi-esféricas ofereciam uma excelente visão direta para o universo. Uma elipse luminosa, um disco semi-inclinado, feito de energia pura, pairava imóvel diante da superfície cintilante do planeta. Iludiria qualquer aparelho de busca, qualquer radar. Exibiria uma imagem fantasma da Orion VIII. Atan continuou a trabalhar, rebobinando a fita.

— Atan? — perguntou Helga, com os primeiros sintomas de pânico na sua voz. — A Orion não dá sinal de vida. Há quatro horas não temos contato com eles!

Comedidamente Atan respondeu:

— Não fique nervosa, garota! Não há motivos para isso.

— E se estiverem em dificuldades?

— Pare de imaginar coisas, Helga! — respondeu Atan. — Daqui a pouco nós vamos adiante e coletamos os dados do décimo satélite, a coisa vai muito mais depressa e dá muito menos trabalho que Cliff imaginou.

— Mas se tivesse alguém a bordo da Orion, teria respondido ao meu chamado!

— Então a conclusão é simples — disse Atan, com a maior tranqüilidade e fechou a tampa de um mecanismo" da sonda. — É que não tem ninguém a bordo da Orion!

O pequeno punho enluvado de Helga martelava com raiva na mesa de comando.

— Duvido que McLane abandone sua preciosa nave durante duas horas sem deixar ninguém a bordo, e faz quatro horas que eles já foram embora!

— E por que não? — perguntou Atan, olhando cautelosamente ao seu redor. Desenrolou dois laços do seu cabo de segurança e, depois que se virou numa posição mais favorável, acionou o minúsculo propulsor preso às suas costas. Flutuou lentamente de volta à eclusa da Lancet.

— Sem guarda durante algumas horas? Numa lua desconhecida? — Helga estava duvidando das informações tranqüilizadoras de Atan.

— E daí? — perguntou Atan e fechou a comporta externa da eclusa. — Eles pousaram e agora estão quebrando um pouco a monotonia da vida daqueles mineiros.

Abriu a porta interna da eclusa.

Helga girou o regulador da instalação de aquecimento e virou a tampa. Dentro de segundos, o café congelado — já misturado com leite e açúcar — seria aquecido por ultra-som e raios infravermelhos; podia ser sorvido por largos canudos plásticos. Atan jogou-se pesadamente na outra poltrona.

— Quando Cliff voltar, já teremos colhidos os dados de todas as dezesseis sondas. Vai ficar um bocado contente. Quanto tempo decorreu desde que ele partiu?

Helga olhou para os algarismos que se sucediam incessantemente nos minúsculos mostradores da mesa.

— Mais de quatro horas! — disse.

— Então temos, no mínimo, mais duas horas — disse Atan. — Só depois disso, nossas reservas estarão esgotadas.

Helga acenou e levantou a tampa.

— Tome seu café! — disse ela.

Atan estendeu a mão e agarrou a caneca. Ao mesmo tempo, viu o longo olhar que a moça lhe lançava com os olhos escuros, e perguntou, surpreso:

— O que é isso, Helga?

— Estou com medo, Atan! — disse ela, quase sussurrando...

 

MAIS um vez o objeto quase esférico moveu-se através do universo. Comparado à gigantesca superfície negra do fundo e ao disco do planeta, não passava de um grãozinho de poeira na luz do sol. Enquanto Atan dirigia a Lancet, Helga mantinha o Laurin incessantemente na mira da instalação de projeção. Lentamente, a não mais de cinqüenta quilômetros por segundo, a nave auxiliar se aproximava da posição do próximo satélite. Helga calculou a distância e reforçou o campo do Laurin analogamente à velocidade, com a qual estavam se afastando daquele reluzente disco de mentira, feito de energia pura, de um azul-claro e penetrante.

— O número dez — disse Atan e freou a Lancet.

— Eu suponho que você sabe — disse Helga e apontou para o mostrador do controle de carga — que aquele nosso navio fantasma lá fora consome um bocado das nossas reservas de energia, e que essa diminui, não aumenta!

— Claro que sei. Em compensação não gastamos quase nada.

A Lancet flutuava ao lado de uma das sondas.

Era uma construção que se assemelhava ao broto de uma flor rara: de um núcleo esférico erguiam-se tubos esguios com cápsulas nas extremidades, nas quais se alojavam os diversos instrumentos. Os tubos eram dourados e possuíam comprimentos diferentes. Helga colocou o capacete e Atan ajudou a atarraxá-lo. Controlou a posição correta do propulsor nas costas do traje e depois pousou a mão no ombro da moça.

— Dentro de, no máximo, vinte e cinco minutos você pode estar de volta na Lancet — disse ele — você sabe o que tem a fazer, não?

Ela acenou em silêncio; os alto-falantes ampliaram a sua respiração rápida e ofegante.

— Tome cuidado para que o seu cabo de segurança não se enrole na sonda. Conheço uma história, em que um negócio desses foi arrastado por uma nave espacial e confundiu a estação receptora, porque estava emitindo dados diferentes.

— Apesar da sua história gozada, Atan, estou com medo — disse Helga e abriu a porta interna da eclusa; estava pronta para sua tarefa, com as ferramentas presas ao cinto e o gravador na mão...

 

O ambiente era dominado pelo martelar da gigantesca máquina que abria furos retangulares na lua. Dentes feitos de aço especial cravavam-se na rocha e a trituravam. Dentro de alguns anos a lua estaria totalmente oca e apenas uma crosta ainda ostentaria o nome de Pallas beta. Depois de fundidos, os detritos eram utilizados para formar uma malha de proteção, que evitava o esfarelamento da lua, e também para encher as galerias abandonadas, já exploradas. Os trabalhadores controlavam as máquinas e as esteiras rolantes, os fornos e a remoção da escória. Acompanhados de Hall, os quatro tripulantes estavam em volta de uma mesa, examinando algumas folhas de plástico cobertas de desenhos e anotações. Acima das suas cabeças brilhava uma luminária redonda.

— Você vê alguma chance para nós e para Pallas, Cliff? — perguntou Mario.

— Eu não sou psicólogo especializado em robôs; só me lembro do que aprendi no meu tempo de academia.

Mario olhou para seu relógio.

— Depende — continuou McLane — de quanto tempo dispomos.

Hasso agarrou uma das folhas e seguiu as linhas atentamente com os olhos.

— Tempo para quê? — perguntou Hasso.

— Para pensar, Hasso — respondeu McLane. — Estamos procurando um meio de obrigar os robôs a nos obedecer.

Hasso acompanhava com interesse o desenho que Tamara estava fazendo.

— Você acha que vamos conseguir dominar essas máquinas enlouquecidas com pensamentos? — McLane acenou enfaticamente.

— É isso mesmo — confirmou. — Não vejo outro jeito de dominá-las, a não ser pelo raciocínio. Tamara?

— Sim?

— A senhora é que mais entende de cibernética. O que pode ter acontecido a esses malditos cérebros? Será que pode descrever, em linguagem técnica, o que se processou naquelas caixolas eletrônicas?

— Nada que se relacione com o programa de trabalho propriamente dito, pois a motricidade dos Worker não foi perturbada. Dentro das suas faculdades técnicas, mexem-se e reagem de maneira inteiramente normal.

— Portanto, a perturbação reside na programação básica, isto é, no relê de correlação entre as três leis do robô? — perguntou McLane.

— Na minha opinião, sim! — disse Tamara.

— Se é assim — murmurou Cliff — há um fator conflitante nas relações entre as três leis, ou nas ligações de transmissão entre elas e a motricidade.

— É mais ou menos isso — concordou Hasso, que cocava a nuca perdido nos seus pensamentos.

— Deve haver uma irregularidade na ligação do relê de transmissão — disse Tamara e acrescentou alguns algarismos e símbolos ao desenho que estava fazendo.

— E isso, por sua vez, quer dizer o quê? — perguntou Mario.

— Obviamente as funções estão trocadas. Por exemplo: "ligado" foi trocado por "desligado" e assim por diante.

Tamara acenou com a cabeça.

— É, podia ser isso!

— Essas três leis podem ser influenciadas pelos próprios robôs? — perguntou McLane. Tamara disse que não.

— Conforme o tipo de ordens recebidas, eles criam potenciais de intensidade variável para poder ponderá-las. Os dois mortos na mina reforçaram o potencial de execução da segunda lei. E esta pressão predomina.

— Um robô — recitou McLane, em voz alta — tem que obedecer às ordens dadas por um ser humano, salvo o caso em que estas ordens venham a conflitar com o estabelecimento na primeira lei.

— Na sua interpretação, os robôs acharam que as ordens dos homens eram incapazes de defender os próprios homens contra a morte; e aí agarraram a iniciativa. Mas tudo isso não basta para explicar o comportamento maluco.

— Eles não reagem às nossas ordens — disse Hall, de repente — e quando eles obedecem, fazem exatamente o contrário.

Tamara levantou-se de um salto.

— O que o senhor quer dizer com isso, fazem o contrário? — perguntou, agitada.

Hall estava profundamente abatido.

— Eu não sei — disse ele — é que me lembrei disso agora.

— Não pode descrever isso com um pouco mais de detalhes? — perguntou Tamara, sacudindo o chefe pelo braço.

— Eles sempre realizam outras tarefas programadas. Mas nunca aquelas que nós ordenamos a eles.

Na curta pausa, durante a qual idéias notáveis pareciam estar ocorrendo simultaneamente a duas pessoas, ouvia-se novamente o martelar daquela máquina. Pequenos carros atravessaram as galerias, levando grandes blocos de detritos fundidos, já sem qualquer minério, e que eram descarregados automaticamente.

— Fazem sempre o contrário... — raciocinava Tamara, em voz alta.

— Certo. Por exemplo, em vez de minério, eles mandam detritos à Terra.

Hall passou a mão pela testa e disse, quase aliviado:

— E eles não devem, em hipótese alguma, agarrar alguma coisa que pudesse ser considerado uma arma. E agora eles praticamente estão de posse de todas as nossas armas!

McLane riu; mas era uma risada dura.

— E em vez de trabalhar, eles obrigam os próprios homens a realizar esses trabalhos!

— A rigor — intrometeu-se Hasso e olhou novamente para o desenho de Tamara — nós, homens, é que devíamos comandar e os robôs obedecer; acontece que tudo se passa exatamente ao contrário!

— E o que significa isso? — perguntou Mario.

Tamara explicou.

— Eu desconfio que o impulso de energia emitido pelo cérebro tenha alterado parcialmente a ligação; os relês estão dispostos no lado errado. Em vez de "sim", as posições significam "não" e vice-versa. Entendeu?

— Perfeitamente! — exclamou McLane. Hasso levantou a mão.

— Eu suponho que também o bloco de relês no crânio de um robô primitivo deve obedecer às mesmas leis da fabricação em série, como muitas outras coisas; sabe alguma coisa a esse respeito, Tamara?

— Acho que sim. Na realidade não sei muita coisa. Mas eu já vi uma vez um desses blocos com microrrelés; não se diferencia em nada de um relê do aparelho hiper-radiofônico.

— Sim. E pode-se obrigá-los a voltar à posição normal — disse Hasso. — Só é preciso transferir o trajeto da corrente de alimentação. É claro que não conhecemos as posições; sabemos apenas que a atual ligação não presta e que temos que substituí-la por um outro caminho.

— E como podemos fazer isso? — perguntou McLane, sombriamente.

— Me dê um bloco de relês desses, e eu vou lhe mostrar como — disse Hasso.

— Tragam-me um robô imóvel e eu vou lhe dar o bloco de relês! — respondeu McLane, com sarcasmo.

— Repito — disse Tamara Jagellovsk — para que saibamos ao menos o caminho, precisamos obrigar um ou mais robôs a se aproximar e aí temos que imobilizá-los; uma rajada de raios gama pode paralisar temporariamente um robô. Infelizmente não dispomos desses raios; podemos, porém, consegui-lo por meio de um jato de luz forte, dirigido às células visuais. Isso nós aprendemos no nosso curso. Se temos o robô, precisamos abrir a parte correspondente à sua cabeça. Então retiramos a ponte entre o cérebro e a motricidade e a alternamos com o truque simples de Hasso. A propósito, Hall, vocês dispõem de um cibernético aqui em Pallas?

— Tivemos um, sim — disse Hall entristecido — chamava-se Foerster.

— Droga! — disse McLane.

— Então o seu trabalho preparatório foi uma verdadeira obra-prima! — constatou Mario de Monti. Nigel Hall parecia se encolher cada vez mais sob o olhar recriminador do subcomandante.

— Mesmo que Foerster ainda estivesse vivo, não teria adiantado nada. Os robôs não deixam ninguém se aproximar deles.

— Claro — disse Tamara, compreensiva — isso se deve à inversão das suas reações.

— Afinal, quando é que esses robôs costumam descer para cá, Hall? — perguntou McLane.

— Em intervalos irregulares; às vezes, vêm de hora em hora, e outras vezes, eles não aparecem durante dias.

— Podíamos nos valer dessa inversão.

— Como? — perguntou Hall, com a esperança renascendo.

— Se nós desligarmos as máquinas, os robôs vão descer para ver o que houve. Segundo tudo que eles fizeram até agora, não há dúvida quanto a isso.

— Isso nós podemos fazer; simplesmente desligamos a energia.

— Nesse caso nós aumentamos a ameaça para essa lua ainda mais.

O plano de McLane começou a tomar formato.

— E como vai querer fazer isso? — perguntou o chefe dos trabalhadores.

— Aqui, nas proximidades, existe alguma galeria bem estreita, na qual duas das máquinas podiam ficar entravadas?

Hall apontou para a esquerda.

— Lá, aquela galeria com as pedras empilhadas.

— Ótimo! — disse McLane. — Nós nos ocultamos num ponto bem distante dessa galeria. Depois iluminamos a galeria, colocamos uma barreira diante do corredor principal e obrigamos os robôs a passar pelo corredor transversal. E aí...

— O que é que o senhor quer com os robôs no corredor transversal? — perguntou Hall, que ainda não tinha entendido.

— Explodimos a galeria. Os robôs vão ser soterrados e nós podemos nos aproximar deles!

Hall virou-se e gritou:

— Hei, Joyce!

Um homem destacou-se do grupo dos trabalhadores e veio correndo em direção a Hall.

— Esse é nosso técnico em explosivos — disse Hall e apontou para Joyce — Fale com ele!

McLane perguntou ao perito:

— Pode dosar a explosão de tal maneira que o teto da galeria desmorone e soterre os robôs? Nós precisamos deles intactos mas imobilizados; além disso, a detonação tem que abalar a lua, quero que os robôs fiquem com medo.

Joyce olhou para o teto da galeria circular e respondeu:

— Creio que posso realizar essa explosão mais ou menos como o senhor quer.

— Os robôs precisam acreditar que a lua está em vias de se quebrar em mil pedaços, ou que vai apresentar fendas através das quais o ar pode escapar. Isso vai apressar o nosso plano.

— Entendo.

— Então nós abrimos as suas cabeças e alternamos a ligação do bloco de relês. Assim os dois robôs devem voltar a obedecer corretamente às nossas ordens.

— Pode me dar uma meia hora? — perguntou o técnico.

— Posso. Mas não mais do que isso.

Hall dirigiu-se ao seu colaborador:

— Joyce — disse ele — os mineiros não devem ser feridos pelas explosões. Quando eu der o sinal, nós paramos as máquinas. E... não estique os cabos de maneira que os Worker possam tropeçar neles e destruí-los!

— Entendi tudo, chefe! — assegurou o técnico.

Os homens começaram a trabalhar enquanto McLane e sua equipe passaram em revista mais uma vez as diversas fases do seu plano. Hasso consultou novamente o relógio e constatou que desde a partida da Orion tinham decorrido quase seis horas.

— Cliff? — perguntou ele, baixinho.

— O que é, Hasso?

— Só temos mais onze horas... e, caramba!

Hasso empalideceu e colocou a mão na testa.

— Esquecemos uma coisa! — disse ele, lentamente.

O comandante compreendeu imediatamente, e disse:

— As reservas de energia da Lancet!

— É isso mesmo! Eles sabem que nós queríamos apanhá-los no máximo dentro de seis horas. Até lá, nós ainda teríamos umas duas horas. Mas a projeção do Laurin consome um bocado de energia. Eu não sei quando as baterias estarão vazias. Alimentos e oxigênio há da sobra a bordo da Lancet, mas Helga e Atan podem ser congelados; devíamos nos apressar!

— Isso acontece justamente a nós! — disse McLane. — Espero, porém, que eles fiquem de olhos abertos assim que o nível de energia tenha baixado para um valor perigoso.

— Pode ser — disse Hasso e observou os homens que estavam erigindo a barreira. Utilizando as pedras destinadas a encher as galerias exploradas, construíram uma parede que se estendia do elevador até a entrada daquele corredor que ia ser explodido. Ligaram placas luminosas. O martelo pneumático furou os orifícios para o explosivo e alguns homens estenderam cabos, da cor da rocha, desses orifícios até os dispositivos de detonação, que Hall vigiava atentamente. Alguns grupos de trabalhadores retiraram-se para trechos mais fundos do sistema de galerias e lá se ocultaram. Joyce aproximou-se de McLane; trazia o disparador nas mãos.

— Está quase pronto, comandante — disse ele.

Tamara estava ao lado de McLane; trocaram um longo olhar.

— De qualquer maneira, só detonem a carga quando eu der o sinal; está claro?

— Perfeitamente! — confirmou o técnico.

— E nós vamos nos esconder aqui perto e esperar. Assim que os robôs estiverem soterrados, saímos correndo. Ainda se lembra como se abre a cabeça de um robô?

— Claro que sim!

— Ótimo!

— Estamos bem perto do local da detonação — disse McLane — não acha que podemos correr algum perigo? — o técnico sacudiu a cabeça.

— Não; a obstrução foi feita de tal maneira que a onda de choque não vai poder atravessar a galeria principal.

A cabeça de Mario surgiu de trás da barreira. Gritou alto para McLane:

— Se vocês realmente conseguem transpor os relês, que tipo de ordens os robôs vão então executar?

McLane virou-se.

— Vão impedir você para o resto da sua vida de fazer perguntas como essa!

— Estamos prontos! — avisaram os homens das máquinas.

— Desligar as máquinas! — gritou McLane.

Em quatro pontos de controle, homens viraram pesadas alavancas isoladas.

Todas as luzes se apagaram. Os barulhos das máquinas tornaram-se cada vez mais baixos. O violento martelar da gigantesca instalação, que escavava galerias retangulares, cessou. Só algumas grandes luminárias ainda estavam acesas. Iluminavam a porta diante do elevador e a barreira negra, constituída de blocos de pedra quadrangulares. E iluminavam o pequeno corredor transversal.

— A energia foi cortada! — avisou uma voz calma no interior de uma das galerias.

Satisfeito, McLane deu um aceno na escuridão. Ele e Tamara haviam se escondido atrás de uma pilha de chapas de aço e de um carro transportador freado.

— Olhe! — sussurrou o agente do SSG. McLane olhou na direção do indicador esticado. Os campos luminosos do sinaliza-dor ao lado da moldura das portas do elevador acendiam-se em rápida sucessão, de cima para baixo.

— Aí vêm eles — disse McLane. — Está com medo?

— No momento, não — respondeu Tamara.

— Atenção! — disse McLane, em voz alta.

A quatro metros de distância, Joyce estava acocorado atrás de uma pilha de caixotes, cheios de peças de máquinas. O elevador parou e, com um chiado, as duas folhas da porta se abriram. A cabine do elevador estava iluminada.

Dois robôs estavam na cabine; ficaram parados. As células ópticas debaixo da cúpula protetora de Plexol brilhavam. Depois, os dois pesados corpos deslizaram para a frente, saíram do elevador e pararam novamente. As cabeças se mexiam lentamente. As células vasculharam as imediações, descobriram a barreira e transmitiram os sinais aos cérebros. Em seguida, os robôs se viraram e deslizaram em direção à galeria. O primeiro desapareceu, seguido do outro a um metro de distância. Os braços, que podiam carregar os mais pesados fardos, pendiam soltos e sem impulso de comando nos lados dos esferóides. McLane estalou os dedos.

— Agora, Joyce! — disse, quase num sussurro.

O técnico ativou o mecanismo de ignição; imediatamente seguiu-se uma violenta pancada. Parecia que a cúpula rochosa da grande sala ia despencar a qualquer momento. Ofuscantes línguas de fogo irromperam do teto e do chão da galeria circular. O trovão rolava pelos corredores e galerias do sistema e o chão tremia. A galeria... todo o seu teto desabou. Detritos de pequenas rochas caíram de todos os lados sobre os robôs e os soterraram.

— Vamos, Tamara! — disse McLane e saltou sobre a barreira. Entrou correndo na galeria no meio do pó de pedra, atravessado pelos raios de uma luminária semidestruída. Hasso e Mario estavam ao lado do seu chefe. Removeram febrilmente os fragmentos de rocha e em pouco tempo descobriram a cabeça de um dos robôs.

— O que foi que ele fez? — perguntou McLane, ofegante, e sufocou um acesso de tosse.

— Quem fez o quê? — perguntou Tamara.

— Esse tal de Rott abriu a cabeça daquele robô maluco no nosso curso e disse alguma coisa. Lembra-se do que ele disse?

McLane virou um grampo magnético e abriu a janelinha na cabeça do robô.

— ...uma insignificante variação de intensidade dos impulsos das fitas eletromagnéticas de comando já é o suficiente... foi isso que Rott disse — respondeu Tamara, que se lembrava perfeitamente das palavras do instrutor.

— Aqui está o segundo! — gritou Mario apontando para trás. Os colonos estavam chegando e iluminavam a escura galeria. Uma turbina começou a aspirar o pó; aos poucos a visibilidade melhorou.

— Foi isso mesmo! — disse McLane a Tamara — mas Rott ainda falou numa ligação; que ligação era essa?

Tossindo, Tamara respondeu:

— Era uma ligação ípsilon.

— Se fizermos algo de errado — disse Hasso e segurou cuidadosamente o bloco de relês entre os dedos — então teremos dois robôs não apenas desobedientes, mas totalmente loucos, e isso não serve para ninguém!

— Ele disse... transferimos a ligação de ípsilon dezoito para... e mais do que isso nós não ouvimos! — disse Tamara, quase desesperada.

No ínterim, McLane também havia retirado o bloco de relês dos contatos e o examinava. Os dois robôs eram incapazes de exercer qualquer função — estavam paralisados.

— Nada de afobação! — disse Hasso, na sua voz grave e tranqüilizante. A luz dos refletores portáteis chegou mais perto.

— Ípsilon dezoito é a posição normal — afirmou Cliff; disse isso, porque tinha visto a seqüência das ligações.

— Os números vizinhos são dezessete e dezenove — observou Hasso — provavelmente, uma correção está relacionada a uma numeração mais alta.

Hasso e McLane trocaram um olhar por cima das cabeças dos dois robôs. Hasso encolheu os ombros largos.

— Assumo a responsabilidade — disse Cliff. — Hasso, por favor, ligue o dezenove, vamos ver o que o robô vai fazer.

Os dedos habilidosos de Hasso modificaram a ligação naquele bloco branco, de forma cúbica, dos relês, viraram-no e o inseriram cuidadosamente na cabeça do robô. Depois manteve a sua mão em cima daquele grampo magnético.

— Worker! — disse, com voz incisiva.

Uma série de lâmpadas, protegidas pela placa de Plexol, acendeu-se.

— Escave-se cuidadosamente e retire-se até o elevador; vamos!

Os braços do robô começaram a se mexer. Afastaram rochas e lançaram bateladas de brita para os lados; pouco a pouco as duas cascas côncavas, que constituíam o seu corpo, apareceram.

— Alto! — disse Hasso.

Os homens prenderam a respiração. Imediatamente o robô estacou no meio do seu movimento.

— Prossiga!

Finalmente a máquina liberou-se do resto dos detritos, ergueu-se e ativou os raios.

— Em direção ao elevador! — disse Hasso.

O robô deslizou por ele e saiu da galeria, esquivando-se habilidosamente dos escombros e dos homens que estavam obstruindo a entrada. Parou a um metro da porta do elevador.

— Não é que funciona! — sussurrou Hall, e recostou-se, aliviado, na parede da galeria. Agora tinha chegado a vez de McLane. Ajustou o bloco e recolocou-o. Uma série de comandos e também esse se libertou sozinho e deslizou até o elevador. Lá estavam agora as duas máquinas e pareciam esperar por novas instruções. Das outras partes do sistema, os homens estavam voltando e reuniram-se em torno de McLane e seu grupo.

— Pode ligar as máquinas de novo — disse Hasso — lá em cima ainda estão esperando dezenove robôs parcialmente armados. Por enquanto, só conseguimos normalizar dois.

— E agora vamos fazer o quê? — perguntou Hall.

Algumas das máquinas voltaram a funcionar e luzes começaram a se acender. Os dois Worker ainda estavam imóveis diante do elevador.

— Vamos fazer uma experiência — disse McLane.

— E os outros robôs?

— Desses nós nos encarregamos! — declarou Mario — para isso só precisamos das nossas armas.

— Worker! — disse McLane, em voz alta.

Sinais luminosos foram a resposta.

— Está me entendendo claramente? Novamente sinais afirmativos.

— Vocês dois vão para cima e voltam com nossas armas; entendido?

Os sinais disseram: "entendido".

— E isso com a máxima velocidade! — disse Tamara.

As folhas das portas do elevador recolheram-se e os dois Worker flutuaram para dentro da cabine. O sinalizador luminoso mostrou que o elevador subia; finalmente parou.

— Dentro de alguns segundos vamos ver se tivemos êxito — disse Cliff. — Se alguns voltarem armados, é sinal que tivemos azar.

Hasso apontou para o relógio.

— E não apenas nós, Cliff! — disse em tom de advertência.

Hall, o técnico em explosivos, e os tripulantes da Orion ficaram esperando em silêncio. Estavam de mãos vazias diante do elevador, e não sabiam se teriam êxito. A sorte de Pallas beta estava em jogo... e também a da Lancet.

 

OUVIA-SE o zumbido leve e ininterrupto de uma microturbina, que aspirava o ar e o forçava através dos jogos de filtros. Ouvia-se ainda o clique de teclas e os ruídos que emanavam dos alto-falantes. Helga calcou novamente o botão do emissor e disse em voz alta!

— Lancet chamando Orion VIII... por favor respondam... por favor respondam...

Largou o botão e ligou o receptor.

— Pare com isso — disse Atan, baixinho — você bem que está vendo que ninguém responde!

Tinham terminado o seu trabalho.

Dezesseis cassetes de fitas magnéticas tinham sido empilhados ao lado dos gravadores. Os capacetes dos trajes espaciais estavam colocados sobre o piso macio ao lado das poltronas.

— E como é que você acha que isso vai continuar? — perguntou Helga, cansada. Atan deu de ombros e tomou mais um gole de café.

— Eu também não sei — disse ele. — Só vejo duas alternativas.

— O fato é que estamos fornecendo energia a esse Laurin além do que devíamos, e isso já há mais de cinco horas.

Atan olhou para Helga, a jovem oficial da Vigilância Espacial.

Helga era jovem e bonita. O fato de não ceder aos cortejos de diversos cosmonautas, fazia com que se tornasse ainda mais interessante... para cosmonautas. Era capaz e ambiciosa, uma excelente telegrafista, e faria uma brilhante carreira se permanecesse sob o comando de McLane. O seu grande defeito era o seu eterno ceticismo que, nesse momento, se manifestava de maneira acentuada.

— É que nós estamos quase sem reservas — disse ela.

— Temos comida. Bebidas também. Quanto ao oxigênio, a nossa reserva é suficiente. Portanto, não vamos nem morrer de fome nem de sede, nem tampouco de asfixia — disse Atan. — Nunca McLane deixou de fazer o que era possível. Eu lá sei, o que está se passando em Pallas beta?

— As nossas baterias estão ficando cada vez mais vazias — objetou Helga. — Parece que isso não está lhe impressionando muito, não é, amigo Shubashi?

Atan ergueu-se e observou as escalas. A marcação ainda estava longe do ponto vermelho. Helga levantou-se e postou-se ao lado de Atan.

— Só nos restam vinte por cento! E está se reduzindo cada vez mais! — disse ela e bateu com o dedo no vidro da escala.

Inabalável, Atan respondeu:

— Eu confio em Cliff; no máximo dentro de uma hora ele está aqui e vai colocar a Lancet no seu poço.

Para economizar energia, tinham levado a nave auxiliar bem para perto daquela reluzente configuração energética em frente ao planeta. A menos de dois quilômetros diante deles, pairava, imóvel, o Laurin. Algumas das sondas eram visíveis; as outras encontravam-se longe demais.

Atan olhou através de uma das pequenas cúpulas e acompanhou uma formação de nuvens do planeta de Larsen.

— Se não tomarmos uma resolução, ficamos sem energia alguma. E aí, todo mundo entra em colapso; não apenas o Laurin, mas nós também. Além disso, não podemos mais alimentar as máquinas e o planeta vai nos atrair.

O planeta de Larsen flutuava diante deles, exibindo sua magnífica coloração castanho-dourada...

— Vamos ser consumidos na atmosfera desse gigante lá fora — disse Helga, e apontou para o planeta. — E se Cliff realmente passar mais uma vez por aqui, não vai nos encontrar; seria gozado, não é?

— Qual é o nível das nossas reservas? — olharam simultaneamente para o mostrador.

— Só dezenove por cento! — sussurrou Helga.

Atan lançou um rápido olhar para a tela do relógio digital de bordo.

— Você está querendo matar-nos, Atan? — cochichou Helga. Atan sacudiu lentamente a cabeça.

— Vamos esperar mais uma hora. Aí então desligamos os projetores, deixamos o Laurin entrar em colapso e nos afastamos do planeta para não sermos atraídos por ele. Depois Cliff nos apanha.

Atan também já não tinha mais tanta certeza...

 

A grande sala estava meio às escuras, e em dois pontos do gigantesco mapa tridimensional cintilavam minúsculas luzes. Este mapa era a reprodução daquela esfera espacial de novecentos parsec de diâmetro, considerada o domínio terrano. Uma das lâmpadas piscantes encontrava-se no cubo espacial Quatro/Oeste 034. Quatro pessoas estavam postadas diante do mapa e fixavam o olhar naquelas luzes.

— E o marechal Wamsler? Quando virá? — perguntou um chefe de seção, em voz baixa.

Spring-Brauner virou-se lentamente. Seu rosto bonito, queimado de sol, ostentava uma expressão aborrecida, desalentada.

— Lá pela meia-noite — respondeu.

— Ele já está a par da situação? — perguntou o outro homem, naquele uniforme inconspícuo.

— Não. Não está não. Se Wamsler souber dessa história, eu estou liquidado!

A minúscula lâmpada ainda cintilava.

— Durante o seu encontro, a Sikh XII e a Orion VIII trocaram mensagens radiofônicas; o próprio comandante Ruyther confirmou isso. Ele disse que as duas naves emitiram o código de identificação e ainda desejaram boa viagem uma para outra.

Spring-Brauner deu um gemido e cobriu os olhos com a mão.

— Se McLane manteve contato com a Sikh, ele poderia ter mantido contato conosco também. Ou o raio do transmissor funciona ou não funciona!

O aspirante aguardou uma pausa na conversa e comentou:

— E que tal uma ação de busca em grande escala?

— O quê?! — exclamou Spring-Brauner, virando-se rapidamente.

— Nesse momento a décima oitava frota está realizando manobras no quarto setor de distância. Se estou corretamente informado, ela se encontra também no lado oeste. E nesse caso ela poderia participar da ação.

— Por todas as luas! — gemeu o oficial — tudo, menos isso! Essa frota compreende vinte e duas naves de combate de grande porte, quarenta cruzadores e cem naves lança-satélites. Wamsler vai mandar me fuzilar!

— Seria a sua última chance de descobrir o paradeiro de McLane, antes que alguém coloque Wamsler a par deste equívoco portentoso!

O aspirante olhou para Spring-Brauner com o rabo dos olhos e constatou que, nesse estado de desespero, o ajudante perdia muito da sua boa aparência.

— Está bem — disse Spring-Brauner, finalmente. — Obviamente não tenho outra escolha. Meu pai sempre queria que um dia eu me tornasse marechal... Agora a vaca foi ao brejo; emita uma ordem de ação, a frota deve aguardar as minhas disposições.

O aspirante bateu continência e retirou-se da sala.

— Passe bem — disse o outro — e... mantenha a cabeça erguida!

Nesse estado de ânimo, não conseguiram aborrecer nem mesmo Spring-Brauner; esperaram até que a barreira se extinguisse e saíram em silêncio do gabinete do marechal. Spring-Brauner estava se apoiando na mesa e xingava veementemente McLane, seus antepassados, e eventuais descendentes.

 

Um clima de tensão reinava no recinto diante do elevador. A barreira já tinha sido removida e os trabalhos de limpeza estavam em pleno andamento no que se referia aos danos imediatos; as luzes do sinalizador ao lado da porta do elevador alternavam-se, de cima para baixo... o elevador estava descendo.

— Vão aparecer a qualquer momento! — disse Tamara e postou-se entre Hasso e Cliff. Nem reparou que estava tremendo. Era duro ser condenada à passividade total.

— Acha que deu certo? — perguntou Mario, baixinho.

— Espero que sim — respondeu Cliff. — Consertamos dois Worker, como eles vão reagir, nem Rott sabe.

O ruído do elevador, que estava parando, submergiu sob o martelar das máquinas.

— Estão chegando! — sussurrou Hall, quase sem fôlego; ele sabia o que o sucesso de McLane significava para ele e sua mina lunar.

McLane virou-se rapidamente e lançou um olhar aos poucos trabalhadores que se encontravam atrás dele.

— Escute, Hall — perguntou, agitado — tem certeza que pode confiar nos seus homens?

— Tenho sim, major McLane.

As duas folhas da porta se recolheram. Na cabine iluminada flutuavam dois Worker. Nos braços estendidos, carregavam os projetores. Lentamente, as máquinas se aproximaram. Pararam diante de Hasso e de McLane. As pontas dos projetores estavam dirigidas para os corpos dos dois homens; depois baixaram-se com infinita lentidão e, num movimento dramático daqueles dedos de aço, as articulações dos pulsos viraram-se nos mancais de bronze e de berílio. Oito projetores foram entregues a Hasso e McLane. Liberta da tensão, Tamara tonteou, mas foi imediatamente amparada pelos braços de Mario.

— Obrigada — disse ela, pegando o projetor que McLane estava lhe entregando. Gritando desordenadamente, os mineiros saíram correndo dos seus esconderijos e se aproximaram da equipe da Orion para cumprimentá-la. McLane destravou seu projetor.

— Não há motivo algum para festejos! — gritou Cliff, com voz incisiva. — Precisamos subir e tentar eliminar as outras máquinas, ainda preciso de quatro bons atiradores!

Hall, Joyce e dois outros homens se adiantaram. Cliff levantou sua arma.

— Esta aqui é uma HM-4 — disse ele. — Uma arma para várias finalidades. Giramos esse botão totalmente para a direita. Com isso, a torrente de partículas aniquiladoras transforma-se num raio laser de cor branca. E com este raio podemos paralisar as células visuais das máquinas.

— Portanto devemos apontar para os olhos deles? — perguntou Hall.

— É isso mesmo, Nigel — respondeu McLane. — Vamos entrar no elevador. No momento que ele parar lá em cima, cada um de nós atira. Suponho que não se encontram todos no mesmo recinto e que nem todos estejam armados. Apontem exatamente para os dispositivos ópticos das máquinas. Entendido?

O grupo entrou apressadamente na cabine do elevador.

— Prestem atenção! — disse McLane. — Cada um escolhe um alvo. Os robôs reagem muito mais rapidamente do que os homens. Hasso! Coloque-se na extrema direita, o seu alvo vai ser o robô que estiver mais afastado do seu lado... e assim por diante. Entendido?

— Entendido! — disseram várias vozes ao mesmo tempo.

Com as armas destravadas nas mãos, os homens esperavam o segundo em que a placa de aço se afastaria da sua frente. O elevador parou suavemente. A placa recolheu-se e ao mesmo tempo o disco transparente afastou-se na outra direção. Havia oito robôs na antecâmara, dois deles diante de um quadro de comando. Com um chiado agudo, as armas de Hasso e Atan emitiram um raio ofuscante que quase cegava os homens. Os dois astronautas tinham acertado em cheio o sistema óptico debaixo da capa protetora de Plexol e os robôs estacaram em meio ao movimento. No mesmo segundo, McLane dirigiu sua arma para um robô que deslizava em direção ao elevador; acertou em cheio. O robô parou como se tivesse esbarrado numa muralha de aço. A coordenação dos movimentos falhou e o campo magnético, sobre o qual deslizava, entrou em colapso. Três máquinas jaziam no chão entortadas e desamparadas. Os braços tremiam e as garras abriam-se e fechavam-se com movimentos bruscos; Hall, Tamara e Joyce começaram a atirar. Hall errou o primeiro tiro e tomou mais cuidado com a pontaria. De um canto da sala um robô deslizou rapidamente em direção ao elevador. De repente desabou, liquidado por um dos colonos. Dois segundos depois oito máquinas estavam paralisadas no solo.

— Hall! — gritou McLane. — Nós não conhecemos a sua instalação. Portanto, pegue seus homens e vasculhe os outros recintos. Nós vamos normalizar esses oito robôs; depois nos encarregamos do corredor principal até a central.

McLane enfiou a arma travada no bolso do macacão de bordo e abriu a cabeça do primeiro robô. Hasso, Mario, Tamara e Cliff não levaram mais que meio minuto para completar aquelas religações tão simples e fecharem novamente as pequenas janelas. Assim que os twistores e bobinas superaquecidas estivessem em condições de funcionar, os robôs poderiam ser novamente dirigidos.

— Agora só faltam onze máquinas — disse Tamara; pegou a arma e saiu correndo, seguida por Cliff.

A mina havia sido equipada com vinte e uma dessas máquinas. Dois Worker tinham sidos normalizados após a detonação da galeria. Outros oito jaziam paralisados no piso daquela sala. Encontraram duas máquinas nos recintos do bangalô e atiraram antes que elas pudessem se aproximar.

— Faltam apenas nove — constatou Hasso e continuou a correr.

Atravessaram um longo corredor e encontraram uma máquina no primeiro cruzamento. Tamara ficou para trás e encarregou-se da religação. Minutos após, mais um robô tombou sob os tiros dos homens. Estava deslizando num recanto da central.

— Quantos? — perguntou Cliff, respirando pesadamente.

— Seis nós pegamos.

— Então são sete, com esse aqui? — perguntou McLane a Hall, que tinha entrado na central juntamente com ele.

Hall acenou afirmativamente. Cliff olhou ao redor e viu, além de Mario e Hasso, também Tamara, que tinha chegado a central ligeiramente esgotada. Carregava a arma com uma displicência que denunciava uma longa prática.

— Apanhou mais algum? — perguntou Hall apressadamente.

— Não — disse Tamara — não peguei mais nenhum. — Mas eu religuei nove, sem falar daqueles que estão tão decorativamente dispostos em frente ao elevador.

— Portanto, ainda precisamos achar o último — disse Hasso.

— Certo. Onde será que ele está?

A pergunta era dirigida a Hall. O chefe da mina encolheu os ombros e virou-se para seus homens.

— Abrimos todas as portas que encontramos no nosso trajeto do elevador até aqui, e verificamos o que havia atrás delas — disse McLane, com raiva. — Hall, encarregue-se das galerias. Existe mais algum recinto onde uma máquina pudesse se ocultar?

Os homens puseram-se a pensar febrilmente.

— Ninguém esteve no almoxarifado, Nigel! — disse Joyce finalmente.

Nigel deu uma curta risada e saiu correndo, enquanto Tamara cuidava da religação daquele robô que jazia ao lado da pilha atômica.

— Cliff! — disse Hasso — está na hora de partir!

— Só mais alguns minutos, Hasso — respondeu McLane, e seguiu Nigel Hall. E, no entanto, estava mais que preocupado com Helga e Atan.

 

— NOSSA reserva de energia está reduzida a oito por cento! — disse Helga, com voz assustada. A Lancet ainda pairava no espaço diante do planeta de Larsen. E os dígitos continuavam a correr implacavelmente pelos minúsculos monitores. Seis horas e um minuto!

— Vamos ter que suspender o fornecimento de energia para o Laurin! — disse Atan, abatido.

Exatamente na linha de cintura da Lancet, onde a casca inferior cônica e a casca superior hemisférica se juntavam com as pequenas cúpulas, corria, no interior da nave, um ressalto que terminava num recesso, no qual se encontravam todas as instalações de comando e as poltronas. Estavam colocadas, uma ao lado da outra, diante do painel de controle semicircular. E nestas poltronas estavam acomodados Atan e Helga.

— Olhe aqui! — disse ela, apontando para uma estreita fita luminosa à sua direita.

— O que é? — perguntou Atan, cansado.

— A temperatura está baixando! Estavam bem abastecidos de oxigênio e

alimento, mas o problema era a energia, indispensável para a locomoção da Lancet. Estava sendo consumida, lá fora, por aquele vulto energético, em forma de disco, destinado a fornecer uma falsa imagem a qualquer raio de busca. A Lancet estava perdendo calor e a sua capacidade de locomoção. As máquinas auxiliares também dependiam das reservas das baterias.

Uma hora atrás, a voz de Atan ainda era firme e convincente; agora, tinha se tornado insegura e bem mais baixa. Parecia que ele mesmo não mais acreditava que Cliff pudesse retornar a tempo.

— Temperatura ambiental: vinte e três graus centígrados — disse Helga, preocupada. — Por que Cliff não chega logo?

Atan olhou para a moça e encolheu os ombros.

Estavam encolhidos nas poltronas e sentiam arrepios de frio. Isto refletia seu estado psicológico, porque a temperatura ainda não havia baixado sensivelmente.

— Vinte e três graus... desligue a metade das placas de calefação, Helga — disse Atan.

— Em vez disso, por que não desligamos logo o Laurin?

— Porque seria a maior besteira! — disse Atan e estendeu a mão em direção ao painel, para poder girar o botão. — Cliff correu em socorro da pequena lua de mineração Pallas beta. Sabia do risco que esta decisão representava para a nave e a tripulação. E ele não pode se expor agora, nem a Tamara, admitindo que abandonou o seu posto. E é exatamente isso que vai acontecer se nós desligarmos essa projeção, entendeu?

Helga acenou com a cabeça.

— Está tudo muito bonitinho e muito certinho — respondeu ela. — Mas, para mim, isto não é motivo suficiente para morrer de frio ou me espatifando contra o planeta.

— Nada disso vai acontecer — finalizou Atan.

O isolamento das pequenas naves não era dos mais fortes. Mesmo assim, fornecia proteção adequada contra as radiações cósmicas.

O perigo não estava apenas no interior da Lancet mas também lá fora, no universo: era representado pelo planeta — pelo planeta de Larsen.

Era uma gigantesca esfera, de densidade igual à da Terra. Porém a sua força de atração e sua massa excediam as terranas em vinte por cento. O fato de possuir uma atmosfera rica em oxigênio, por si só, já era um convite à colonização que, no entanto, não podia ser iniciada de imediato. Havia um impedimento. O teor de oxigênio no ar atmosférico era alto demais, e isto implicava em condições modificadas para a vida humana. Somente os resultados de longos e intensivos estudos revelariam se o homem podia ou não se estabelecer neste planeta.

— Só mais dez minutos, Atan! — advertiu Helga.

O tempo passava com uma lentidão torturante. Tudo parecia demorar uma eternidade. Mesmo a chegada da morte. Mas os dois tinham plena consciência de que era preferível morrer congelados do que queimados no choque contra a atmosfera.

— Vou me lembrar disso! — disse Atan. O planeta de Larsen estava agora mergulhado na escuridão da noite.

Essa massa colorida e movimentada, constituída de magma, terra, rochas e água, atraía a nave auxiliar com uma força suave mas insistente. Se não dispusessem mais de energia, não poderiam afastar a nave; e neste caso cairiam fatalmente sobre a superfície do planeta.

— Faz alguma idéia do que possa ter acontecido a Cliff e a Orion?

— Claro que não! — disse Atan, e olhou para Helga. — Se eu soubesse, já teria feito alguma coisa. A nave estava perfeita; não pode ter falhado. O mesmo vale para a tripulação, estava em plena forma. Portanto, algo deve ter acontecido em Pallas beta, e isso os reteve. Estou certo que, dentro de mais alguns segundos, a Orion aparece e nos recolhe. Nisto eu acredito piamente.

— Esse comandante vai ouvir algumas coisas de mim! — afirmou Helga.

Apesar de seu mal-estar, Atan teve que rir desbragadamente.

— Não vai me dizer que você vai brigar com seu ídolo? — perguntou, e entendeu no mesmo instante que tinha abordado um tema que podia manter Helga ocupada durante os próximos minutos ou mais tempo ainda. Isso era importante, porque ele mesmo já estava acreditando numa desgraça.

— Eu? McLane meu ídolo?

Helga fuzilou Atan com os olhos. Ele deu um sorriso malicioso.

— Por favor, não queira mentir para seu velho amigo, colega e companheiro Atan Shubashi. É claro que você está enrabichada pelo comandante Cliff Allistair McLane! Só existe uma pessoa que não sabe disso!

— Quem? — perguntou Helga, com raiva.

— O próprio Cliff! — respondeu Atan secamente. — A propósito... 264 sarou!

— Não mude de assunto! — disse ela. — Isso que você afirma é uma besteira; eu admito que Cliff é homem de boa aparência e tem um certo charme. Não é mesquinho, é muito corajoso e é solteiro.

— Qualquer dessas qualidades — assegurou Atan, rindo — é mais que suficiente para torná-lo cobiçável para telegrafistas miúdas e de cabelos escuros. Alguma vez já esteve na toca dele?

Helga enrubesceu e sacudiu a cabeça.

— Você se refere ao bangalô dele, em Groote Eylandt? — perguntou ela depois. — Nem de longe isso me passa pela cabeça, o meu lema é que não deve existir nada entre os membros de uma tripulação além de uma boa amizade; aprendi a ser cautelosa, meu caro!

Atan sacudiu a cabeça.

— Tão jovem e já tão escaldada! — disse ele. — Parece que você também está lendo a Psicologia dos Astronautas do nosso mui digno senhor Hammersmith. Ou estou me enganando?

— Não, não está, não. Tamara me recomendou esse livro — disse Helga, com um sorriso meio encabulado. — E é uma leitura que vale a pena. Esse sujeito revela umas tantas verdades fundamentais...

Atan consultou o relógio.

— Nada mais vai poder nos salvar — disse Helga de repente — se você não desligar essa energia agora mesmo!

Atan olhou para o ponteiro dos segundos, que avançava implacavelmente sobre a marcação do mostrador. Inclinou-se abruptamente para a frente e fechou a mão sobre a bola brilhante na extremidade daquela alavanca. Virou-a de um golpe só. De uma hora para outra a projeção de desfez.

— Muito bem — disse ele, calmamente. — O campo energético entrou em colapso. Pode ligar a calefação de novo.

— Estava ficando frio — disse Helga — muito frio!

Atan acenou e acelerou a nave com quantidade exata de propulsão que, para o máximo de reação, requeria um mínimo de energia. Finalmente a nave se afastou do campo de atração do planeta e manteve o impulso cinético próprio.

— É verdade — disse Atan. — Agora faça-me o favor e fique quieta, senão eu também acabo ficando nervoso.

— Por quanto tempo você acha que o material isolante ainda pode nos proteger?

— No mínimo, o tempo de que Cliff precisa para nos apanhar — disse Atan, e desligou a máquina. — Aumente a calefação! — ordenou, e Helga obedeceu sem dizer uma palavra.

— Você está mentindo para nós dois, Atan! — disse ela, em seguida.

— Vá lá que seja!

Olharam ao mesmo tempo para a marcação do indicador de energia. O triângulo estava parado em cima do algarismo sete.

— Está na marca sete — disse Atan, calmamente — então podemos deixar a calefação acesa bem umas duas horas.

— Você está mentindo de novo, Atan! — disse Helga, apaticamente.

— Cale a boca e tente dormir! — berrou Atan, de repente. Helga olhou para ele com o rabo dos olhos e constatou que também Atan estava em vias de perder o controle. A temperatura no interior da nave parou de baixar e manteve-se constante em torno de vinte e três graus. Nesta marca permaneceria durante cerca de cento e vinte minutos e depois cairia, sem que alguém pudesse impedir esta queda. Neste caso era necessário fechar os trajes e ligar os fios de aquecimento embutidos. As baterias dos trajes durariam apenas uma hora. Cento e oitenta minutos separavam Helga Legrelle e Atan Shubashi da morte.

 

O grupo, que compreendia sete homens e uma mulher, tinha se dispersado. Tamara avançou lentamente pelo corredor onde Cliff havia desaparecido há alguns segundos. Conduzia para o interior de uma das primeiras cavernas escavadas, depois dobrava abruptamente para a direita e, um pouco mais adiante, Tamara encontrou uma parede de aço.

Vagarosamente Tamara se aproximou. Na mão direita trazia aquela versátil arma energética, agora ajustada para emitir apenas fortes raios luminosos que paralisariam os robôs. Tamara ligou o rádio de pulso e perguntou no minúsculo microfone:

— Cliff McLane?

— Aqui McLane; é a senhora, Tamara?

— Sim, sou eu. Viu o robô que nos falta? — perguntou ela.

— Não, ainda não vi.

— Já vou aí! — avisou Tamara. Cliff não respondeu mais.

McLane tinha entrado num grande magazine. Acendeu a iluminação e deparou-se com um verdadeiro labirinto, constituído por umas quarenta pilhas de grandes caixotes com embalagens de várias cores. Cautelosamente, contornou a primeira dessas pilhas.

No mesmo instante, o tenente Jagellovsk entrou no recinto e deixou a porta aberta. Tamara não viu Cliff, e ele também não a reparou. Cliff avançava cuidadosamente com a arma engatilhada. É claro que ele não sabia se aqui estava o vigésimo primeiro robô e também não sabia se os Worker faziam parte de um tipo de máquinas que se comunicavam entre si por radiofonia, trocando as informações colhidas. Cliff virou-se lentamente e não reparou nada. Continuou a percorrer os corredores estreitos entre as pilhas, olhando para a esquerda e para a direita, para a frente e para trás. Mas não viu nada. Parou e recostou-se numa das pilhas nos fundos do magazine. Quando ouviu aquele silvo finíssimo, quase na gama do ultra-som, já era tarde demais. Cliff levou uma violentíssima pancada no pulso. Rodopiou e acabou agarrado por dois braços de aço impiedosos. O golpe tinha lhe arrancado o projetor da mão. A arma chocou-se ao solo com forte estalo metálico. Um robô prendia-lhe os braços como um par de tenazes, imprensando-os contra o corpo, porém sem quebrá-los.

— Droga maldita! — rosnou Cliff e fez uma tentativa para se libertar.

O robô recuou uns trinta centímetros, depois avançou novamente e finalmente deslizou com velocidade moderada por entre as paredes das pilhas de caixotes. Cliff não conseguiu encostar as solas das botas no piso. Sem reduzir a velocidade, o robô contornou uma pilha e dirigiu-se para a saída. Cliff reparou um brilho metálico à distância. Muito longe e indistinto.

— Tamara! — berrou ele — um robô me desarmou e está me levando em direção à saída!

Nada se mexeu. Com uma velocidade que para Cliff significava a morte certa se houvesse um choque contra uma das pilhas, a máquina se lançava em direção a abertura da escotilha. Talvez conhecesse o destino que tinha alcançado os seus vinte companheiros e estava querendo extorquir os mineiros com Cliff. Ainda faltavam dez metros até a saída... Cliff sentiu um impacto atrás de si, seguido de um grito sufocado; depois... conseguiu virar a cabeça. Tamara havia se lançado de lado sobre o corpo do robô e estava arrancando aquele grampo magnético. O robô balançou ligeiramente e continuou no seu caminho. Agora a sua trajetória era sinuosa; Cliff conseguiu tirar o pé no último segundo. O braço da máquina chocou-se contra a pilha e arrancou uma lasca de madeira com restos de uma fita de aço. De repente a máquina estacou. A desaceleração fez Cliff ver círculos vermelhos diante dos olhos. Inteiramente desprovidos de força, os braços telescópicos da máquina se abriram, e Cliff desabou. Ergueu-se com dificuldade e, através da sua vista turvada, viu a esbelta figura do tenente. Tamara estava neste momento religando o relê; inseriu cuidadosamente o bloco na cabeça da máquina. A construção de aço do robô voltou a se mexer.

— Worker! — disse Tamara, com voz dura.

Uma seqüência de sinais luminosos afirmativos se acendeu.

— Você sabe onde o comandante McLane, este homem aqui a meu lado, perdeu a sua arma; vá e apanhe-a. E rápido.

Imediatamente o robô girou, desviou-se elegantemente de Tamara e deslizou rapidamente de volta por entre as paredes das pilhas. Depois de percorridos alguns metros dirigiu-se para a esquerda e desapareceu.

— Este era o número vinte e um, comandante — disse Tamara — podemos partir!

Cliff contemplou-a com um curto sorriso.

— Muito obrigado! — disse ele. — A senhora devia ter seguido a carreira de navegador espacial e não oficial da segurança. Às vezes me surpreende com reações verdadeiramente humanas e com um comportamento exemplar. Mas agora vamos embora!

Ligou seu rádio de pulso e disse em voz alta:

— McLane para todos. Parem imediatamente. Tamara Jagellovsk conseguiu normalizar o vigésimo primeiro Worker.

Vamos nos reunir em frente ao depósito onde guardamos os nossos trajes. Desligo.

O robô voltou, deslizando na maior pressa, e parou rente às duas pessoas. Na sua mão, presa àquela possante articulação de bronze, estava a HM-4 do comandante. Mecanicamente, o robô esticou, levantou e abriu a mão, e McLane recolheu o seu projetor.

— Worker! — disse ele. — Você desce imediatamente na mina e ajuda os seus colegas no trabalho. Entendeu?

— Afirmativo! — o robô deslizou por McLane e dirigiu-se à saída.

Tamara caminhou ao lado de McLane e ambos saíram rapidamente; agora já conheciam o caminho; dois minutos depois estavam no depósito diante do elevador. Em silêncio, Cliff e Tamara vestiram os trajes brilhantes.

— Estamos com muita pressa, Hall — declarou Cliff.

Hall disse em voz baixa:

— McLane... quero lhe agradecer em meu nome e no dos meus mineiros.

A resposta de McLane era lacônica mas acompanhada de um sorriso:

— Não foi nada. Provavelmente isto foi uma experiência bastante útil para você e seus homens.

Hall acenou e Joyce, a seu lado, enxugou o suor da testa larga. Esses homens davam a impressão de terem acordado de um pesadelo.

— Foi mesmo uma experiência e tanto! — respondeu Hall, em tom sério.

— Então tome cuidado para que os robôs não tenham nova oportunidade de presumir que sejam eles os responsáveis pela manutenção da ordem e o respeito à lei. E outra coisa, Hall, devia requerer o envio imediato de um cibernético. Não podemos garantir que a nossa rápida ajuda vá durar uma eternidade. Um exame mais minucioso não faria mal algum a esses robôs.

Hall deu um profundo suspiro.

— Tudo isso vai ser da alçada do meu substituto — disse ele. — Mas, enquanto isso, qual vai ser o nosso comportamento? Porque oficialmente, como seu oficial do SSG mencionou, o senhor não estava aqui, não é mesmo?

— Não estava, não! Nem oficial, nem extra-oficialmente! O senhor me conhece apenas dos noticiários cinematográficos e de histórias que andam contando a meu respeito. Está claro?

Hall acenou, e o rosto magro do dinamitador embelezou-se com um sorriso da mais profunda compreensão.

— Não vamos contar coisa alguma quando estivermos na Terra! — disse Joyce.

— Ah, então é isso! Os senhores acham que depois desta aventura mereciam umas feriazinhas?

— Certo! — confirmou Hall, olhando a equipe da Orion entrar na cabine do elevador e se agrupar em volta do seu chefe. — E eu estava pensando em férias pra todo mundo! — acrescentou.

— Isso eu posso compreender. Viver em Pallas beta não deve ser muito divertido, não é?

— Pode não ser divertido, mas é melhor do que viver a bordo de uma nave espacial — respondeu Hall, novamente orgulhoso do desempenho dos seus homens e... máquinas. — Todos os vinte e um robôs voltaram a funcionar, e Pallas está salvo. Sem a sua ajuda, major McLane, eu não sei o que teria acontecido!

Cliff estava ouvindo pelos fones externos e fez um gesto displicente com a mão. Colocou seu dedo sobre o botão ao lado da inscrição: "Superfície".

— E mais uma vez muito obrigado por tudo! — gritou Joyce.

McLane cumprimentou-o com um sorriso e disse:

— Boa sorte!

Em seguida as folhas da porta se juntaram e o elevador arrancou. Parou na superfície da lua e os homens abriram a comporta interna. Entraram e fecharam-na novamente. Depois atravessaram a comporta externa e, com as placas magnéticas nas solas das botas aderindo firmemente à plataforma metálica, caminharam a passos pesados até a entrada do elevador da nave. Cliff manipulou o segredo e a porta circular do elevador abriu-se silenciosamente.

O elevador desapareceu no interior da nave e Hasso foi o primeiro a se lançar para fora da câmara cilíndrica. Cliff arrancou o capacete do encaixe e correu para a mesa de comando. Com umas poucas ordens, precisas e rápidas, orientou os preparativos para a partida. Três segundos depois a Orion estava pronta para decolar.

Cliff desprendeu os raios magnéticos do campo da lua e acelerou a nave com valores que, a rigor, só deveriam ser utilizados por ocasião de uma partida de emergência. Em menos de trezentos segundos a Orion mergulhou no hiperespaço.

 

INCESSANTEMENTE o frio continuou a se alastrar. Provinha do vácuo do universo, onde não havia mais qualquer molécula em movimento. Incidiu sobre o casco reluzente da Lancet, foi fracamente retido pelas camadas de isolamento e continuou a sua penetração. Encontrou-se com o ar quente, aspirado da cabine cada vez mais fria e recirculado entre os elementos de calefação. Não havia mais luz na cabine. O planeta encobria a luz do sol como um disco negro. Era noite nessa parte do planeta de Larsen. Helga estava dormindo.

Atan ligou o livro de bordo, mas os carretéis giravam com uma velocidade lenta demais. Conectou então o aparelho radiofônico do capacete ao circuito da rede de bordo e apertou um botão. Uma lâmpada de controle incandesceu-se.

— Atan Shubashi a bordo da Lancet I para livro de bordo — disse ele com voz fraca. — Último relatório. As reservas de energia da Lancet I estão totalmente esgotadas. O frio avança pela nave e já está atravessando os trajes. Não conseguimos mais nos afastar com força própria, senão teríamos saído da sombra do planeta de Larsen.

Fez uma pausa para tomar fôlego e ordenar os pensamentos. Depois prosseguiu:

— O tenente Legrelle está dormindo; provavelmente não vai mais acordar. Nenhum contato radiofônico com a nave espacial Orion. Após este comunicado vou fazer uma última tentativa. O comandante McLane não responde. Desligo.

Desligou o livro de bordo e acionou a chave do transmissor.

— Alô... Orion VIII...

Seus dedos enrijecidos largaram o botão, que voltou à sua posição primitiva, impelido pela pequena mola.

 

A tela de radar da Orion girava sem parar. A onze mil quilômetros de distância do planeta de Larsen, a nave tinha retornado do hiperespaço e se lançava, com velocidade um pouco inferior à da luz, para dentro da sombra do planeta.

— Só quero ver os olhos esbugalhados deles — disse Mario de Monti e ampliou a imagem de uma das sondas, que tinha aparecido na sua tela — quando nós lhes contarmos o que nos aconteceu nestas poucas horas!

— Se você contar — disse a imagem de Hasso da tela — vão pensar que tudo não passa de uma história da carochinha.

— Eu também aposto que eles não vão nos acreditar — disse McLane, à procura de um impulso da Lancet. Tamara estava sentada no aparelho transmissor e falava em voz baixa e com os lábios bem perto da malha metálica do microfone.

— Atenção! Estamos chamando a Lancet... aqui fala a Orion!

Mas a nave auxiliar não respondeu.

— Peguei eles — disse McLane, calmamente; ampliou o impulso das telas de radar e transferiu a grande imagem para a tela circular à sua frente. Lentamente Mario atravessou a cabine e postou-se ao lado do comandante. Apontou para a tela.

— Não acenderam nenhuma luz! — constatou.

— A energia deles deve estar no fim — respondeu McLane. — O Laurin já não existe mais.

Tamara virou-se e disse:

— Se o juízo que faço do tenente Legrelle está certo, ela vai achar tudo isso uma mentira deslavada só porque eu tomei parte na excursão!

Deu uma risada meio insegura. Mario cutucou Cliff e observou:

— As nossas damas são simplesmente encantadoras, uma com a outra, não acha?

— Ainda bem que em condições normais temos apenas uma dama na equipe! — resmungou Cliff, e dirigiu a Orion manualmente, em linha reta, para a nave auxiliar. Tamara encolheu os ombros, girou a poltrona e repetiu o seu chamado.

— Se elas continuarem a demonstrar a mesma capacidade como agora, por mim podem brigar à vontade — disse Cliff e freou a nave. — A propósito: eu nem sei como é que eu teria saído daquele magazine sem a sua ajuda, Tamara!

Tamara enrubesceu e perguntou, baixinho e meio tímida:

— Comandante... posso considerar isso como um elogio?

McLane reduziu a velocidade ainda mais e posicionou a grande nave por baixo da Lancet, que pairava muda e completamente às escuras no espaço.

— Atan deve estar esperando — disse ele. — Mario, por favor vá para a câmara de ejeção!

Mario saiu da cabine de comando e desceu. Vedou a câmara e abriu a eclusa do poço de lançamento. Lentamente Cliff fez a nave subir, metro após metro, até que seus instrumentos lhe indicaram que os grampos magnéticos já tinham aderido ao casco da Lancet.

— Está presa, Cliff! — anunciou Mario.

— OK. Feche a eclusa.

A hidráulica freou a queda da nave auxiliar através do poço de pouso. O diafragma da câmara de pressurização vedou a abertura e as possantes bombas injetaram ar no recinto. Mario viu de relance o que tinha acontecido a bordo da nave auxiliar.

— Cliff!

— Sim? — perguntou o comandante.

— Todos imediatamente para o poço de lançamento! Helga e Atan parecem ter desmaiado; talvez até não estejam mais com vida!

— Pelo amor de Deus! — disse Cliff, num tom desesperado acenando para Tamara. Com dois saltos alcançaram o elevador. Tamara fechou a porta rapidamente atrás de si e acompanhou-o para baixo. Atravessaram aos pulos os quatro metros de corredor, cheio de tubulações e luminárias, e em três tempos estavam na pequena antecâmara, de onde se alcançava facilmente a eclusa da Lancet. Hasso já estava na escada, abrindo o fecho manual da comporta. Com poucos passos, Mario, Hasso, e Cliff estavam no interior da Lancet.

— Rápido! Desatarraxem os capacetes! Apenas alguns segundos e as mãos treinadas dos homens tinham arrancado os capacetes. As partes metálicas, sensivelmente frias, não deviam estar a mais que dois ou três graus acima do zero da escala centígrada. Os rostos de Helga e Atan estavam gelados e lívidos. Pareciam mortos.

— Para a enfermaria! Depressa! Ducha de oxigênio e injeções revitalizantes! — gritou Cliff, pegando Helga nos braços. Pulou da escada, atravessou correndo uma passagem e abriu a porta da enfermaria com um empurrão. Deitaram Helga num leito e colocaram a máscara de oxigênio sobre o seu rosto. Cliff abriu o regulador até o batente e esperou que Hasso e Mario chegassem com Atan. Tamara encheu uma seringa de alta pressão com um remédio que ativava a circulação e colocou o injetor primeiro na carótida de Helga, depois na de Shubashi. Por duas vezes ouviu-se o chiado do ar comprimido. Lentamente, a coloração voltou aos dois rostos. Cliff desligou o oxigênio. Atan foi o primeiro a abrir os olhos e piscar aturdido.

— Eu nunca imaginei — arquejou — que eu fosse encontrar você, Cliff, logo aqui, no céu dos astronautas!

Cliff estava rindo.

— Escapamos por muito pouco mesmo! — disse Atan. — Será que ninguém aqui se lembra que o álcool realiza verdadeiros milagres em casos como esse?

Tamara saiu da enfermaria, voltando após um minuto com copos e uma caixinha verde-cinza. Encheu os copos com água até a metade; depois esvaziou em cada copo uma das ampolas que tinha trazido. O cheiro de uísque sintético invadiu a enfermaria. Helga acordou.

— Quer dizer que vocês ainda chegaram a tempo — constatou.

— Sim; depois nós contamos a vocês o que nos reteve.

Tamara apoiou o corpo da moça e estendeu-lhe o copo.

— Como é que está se sentindo? — perguntou, enquanto Helga ingeria o uísque artificial.

— Mais ou menos — disse a telegrafista.

— Foi um bocado ruim, não foi? — perguntou Tamara.

Helga lembrou-se agora quão perto havia estado dos umbrais da eternidade.

— Não senti mais nada — disse ela baixinho e olhou ao redor. — Ruim mesmo foi a obstinação de Atan, que não queria desligar aquele maldito Laurin.

Atan esboçou um sorriso e ergueu-se.

— Foi uma sorte — disse ele, em voz alta, pigarreando várias vezes — que eu não tenha dado ouvidos a você. Senão a nave teria sido descoberta pelos raios de busca. Ou melhor, a sua ausência!

McLane não tirava os olhos de Atan e Helga; pegou mais dois copos com uísque sintético. Entregou um a Helga e outro a Shubashi.

— Vocês não vão querer continuar a brigar? — disse ele e sacudiu a cabeça num gesto de recriminação. — Admito que a coisa estava ficando um pouco apertada.

— Um pouco, uma ova, Cliff — disse Atan.

— É, mas que chegamos ainda a tempo, chegamos!

— De modo que, finalmente, temos tempo para fazer aquela pequena excursão para Zeta Aurigae — disse Mario. — Estou louco para tirar uns retratos de Zeta Aurigae!

— Não comece a inventar coisas originais, De Monti! — disse Tamara. — Sabe muito bem que isso é impossível. Aliás... O que tem uma estrela variável de tão interessante?

— Isto — disse Mario e estendeu os braços num gesto de resignação — é uma coisa que a senhora jamais vai entender. É o aspecto das estrelas; é o elixir de vida de todos os astronautas. Não é mesmo, Atan?

— Certíssimo! — disse Atan. — E, além disso, ainda posso assegurar ao meu mui prezado comandante que as fitas de todas as dezesseis sondas estão a bordo da Lancei

— Concedido! — disse McLane. — Daqui a sessenta minutos nos reunimos todos na cabine de comando. Tomaremos café e mais um pouco de álcool dos nossos inesgotáveis estoques de bordo. De acordo, tenente Jagellovsk?

Tamara acenou, hesitante.

— Considerando a situação fora do comum em que se encontra a tripulação, julgo essa exceção como justificada e conciliável com as minhas atribuições.

Atan recostou-se novamente.

Hasso, Tamara e Cliff, seguidos de Mario, deixaram a pequena enfermaria e fecharam silenciosamente a escotilha de pressão atrás de si. McLane virou-se aos seus homens.

— Hasso — disse ele. — Você vai me fazer o favor de transferir todas as ligações da sua sacrossanta casa de máquinas para a cabine de comando.

— Está bem — respondeu o engenheiro espacial e dirigiu-se à "sacrossanta" casa de máquinas.

— Quanto a você, Tamara Jagellovsk... Tamara deu um sorriso doce; todos viram que o sorriso era falso como quê.

— Pode me chamar apenas de Tamara, Cliff — disse ela com a voz mais doce que o seu sorriso.

Mario teve um acesso de riso.

— Quanto à senhora, tenente de primeira classe Tamara Jagellovsk — continuou McLane, impassível e com uma expressão formal, no rosto — gostaria que providenciasse uma pequena refeição acompanhada das respectivas bebidas, e um pouco de aconchego.

Nesse momento, a sua gentileza formal era tão inautêntica quanto o sorriso e a voz de Tamara ainda há pouco.

— Mas com muito prazer! — disse ela. — Talheres para seis?

— Evidentemente! — respondeu Cliff — digamos, dentro de uma hora.

— Vai estar tudo prontinho — disse ela e afastou-se na direção oposta. Lá se encontravam os depósitos e a cozinha totalmente automatizada, que também abastecia as cabines com as refeições prontas.

— E eu vou fazer o quê? — perguntou Mario, rindo.

— Você vai me fazer o favor de apanhar aquelas fitas na Lancet. Depois vai tratar de eliminar os trechos perigosos do livro de bordo; sabe muito bem como fazer isso, não é? Finalmente vai ligar as baterias da nave auxiliar na rede de bordo. Ninguém precisa saber quanta energia um Laurin consome.

— E você vai fazer o quê? — perguntou Mario, agressivo. — Vai programar um curso para Zeta' Aurigae?

— Eu — disse Cliff já a caminho da cabine de comando — vou assumir a responsabilidade por tudo isso.

— Ótimo! — disse Mario e voltou ao poço de pouso da Lancet.

Há exatamente vinte e sete horas a Orion tinha decolado da Base 104. A aventura em Pallas beta tinha durado pouco menos de seis horas. Cliff sentiu que ainda havia algo no ar. Anotou cuidadosamente as diversas horas no seu pequeno bloco e olhou para o relógio de ponto do livro de bordo. Constatou que esse registro eletrônico tinha sido desligado exatamente no momento em que haviam partido em direção a Pallas beta. O comunicado que, em seguida, registrou no livro de bordo, era uma mentira deslavada, mas elevaria a tripulação da nave acima de qualquer suspeita, caso alguém tivesse a brilhante idéia de querer saber o que tinha acontecido com aquelas seis horas "sumidas". Depois Cliff pegou uma ferramenta especial e afrouxou alguns parafusos nos cantos de uma grande placa. O lacre do selo de segurança apresentou-se ligeiramente lascado.

O álibi agora estava perfeito.

Cliff reajustou o relógio de ponto e ligou novamente o livro de bordo. Depois relaxou e dormiu durante uma hora. Recuperou-se esplendidamente com esse curto sono e acordou perfeitamente restabelecido, quando Helga e Tamara apareceram na cabine de comando.

— Do comandante para todos — disse McLane, depois de inclinar-se para a frente e ter ligado o microfone do intercomunicador de bordo. — Solicito a presença da tripulação e da nossa hóspede na cabine de comando. A conclusão dos trabalhos bem sucedidos nas sondas espaciais merece um pequeno repasto. Desligo.

— Meus senhores — disse Helga e apontou para a bandejinha com os recessos para louça e talheres — o jantar vai ser servido.

Viraram as seis poltronas de maneira que pudessem olhar um para os outros. A tripulação avançou na refeição, bebeu o café quente e o álcool servido com parcimônia.

— Uma pergunta, Mario — disse Tamara e ergueu a xícara cônica. — Afinal, o que há em Zeta Aurigae?

— Zeta Aurigae é um sistema curioso de estrelas variáveis — declarou Mario em tom docente. — Imagine duas estrelas; uma, clara e quente, do tipo B8, e a outra, uma estrela gigante vermelha, do tipo especial K5. A estrela menor tem um diâmetro sete vezes maior que o do sol terrano, enquanto o diâmetro da grande estrela vermelha é superior a duzentos diâmetros solares. Caso isso possa interessar a alguém... não quero ser importuno... mas o seu aparelho radiofônico parece querer se desfazer, Helga!

Helga virou-se e olhou para as lampadazinhas acesas.

— Parece — disse ela — que no mínimo vinte estações diferentes estão emitindo na nossa freqüência. Estão querendo alguma coisa de nós. Vamos entrar em contato com eles.

— Após a refeição — prometeu Cliff. — O nosso aparelho não está pronto para funcionar.

— Não está mesmo? — perguntou Tamara.

— É verdade! — asseverou Hasso — não está vendo?

A tripulação estourou na gargalhada; exatamente aquela, que mais aborrecia Tamara. Ela sabia que o entendimento secreto entre esses cinco era o resultado de uma longa convivência. Raras vezes entendia, de que a equipe estava rindo. Como agora.

— E essas diferenças gigantescas significam o quê? — perguntou Tamara.

— O sol vermelho circula em torno do sol branco e o oculta de tempos em tempos. Durante trinta e sete dias há um eclipse solar total e durante outras trinta e duas horas o eclipse é parcial...

Tamara ouvia as explicações de Mario com a máxima atenção.

 

CLIFF riu e olhou para o cronômetro de bordo.

— Bem, está na hora — disse ele, finalmente. — Pode ligar o receptor.

A confusão de ruídos das numerosas vozes emitidas por microfones normais e por fitas automáticas inundaram a cabine de comando. Com muita dificuldade e cautela, Helga conseguiu filtrar uma única voz. Aquela que gritava mais alto.

— Estou chamando a Orion VIII... eu estou chamando a Orion VIII... Comandante McLane... responda por favor...

Com um movimento de cabeça, Cliff pediu a Helga para ligar o microfone da sua mesa ao transmissor da nave.

— Pois não? Aqui é a Orion, comandante McLane falando.

A voz do aspirante feminino na ante-sala de Wamsler revestiu-se de um tom da mais completa surpresa.

— Comandante, há dez horas estamos tentando entrar em contato com o senhor! Já estávamos convictos que alguma coisa tinha lhe acontecido!

— E alguma coisa realmente me aconteceu! — respondeu McLane, em tom severo.

Durante um instante a moça silenciou, perplexa.

— O que foi que lhe aconteceu? — perguntou ela, depois.

— Fui removido para a Patrulha Espacial. E isso em caráter punitivo!

Uma ligeira risada veio dos alto-falantes.

— Não estava me referindo a isso. Já não acreditávamos mais que o senhor estivesse vivo; por que não se manifestou?

McLane deu uma perfeita imitação de um bocejo e respondeu:

— Enquanto dois homens da tripulação estavam tratando das sondas, aproveitamos o ensejo para substituir alguns twistores da nossa instalação radiofônica. Tinham sido acoplados de maneira errada. Portanto, fizemos algo de útil no intervalo dessa missão tremendamente excitante. O que tem de errado nisso?

Tamara levantou-se, agarrou a sua bandeja com uma das mãos e fez um gesto negativo com a outra.

— Eu não estou aí! — disse ela. — Eu estou dormindo!

Cliff acenou e olhou para as pernas dela quando se dirigiu ao elevador

— Já estávamos imaginando que a nave tivesse sido atacada. O estado-maior e a Suprema Comissão Espacial estavam vivamente preocupados com o senhor, comandante! — disse a aspirante, agitada.

Com indisfarçável ceticismo, McLane quis saber:

— Preocupados? A senhora disse preocupados?

A voz soava mais agitada do que o necessário.

— Ouviu direito, comandante, eu disse preocupados. Toda a frota em manobras está a caminho do seu cubo espacial, a fim de procurar a Orion.

— Essa não! — disse Mario de Monti, quase sufocando.

— E pra que essa exaltação toda? — perguntou Cliff, calmamente, se bem que pressentia o que viria em seguida.

— Eu mal ouso dizer, McLane! — disse a aspirante, com hesitação.

— Confie-me todos seus problemas! — respondeu McLane.

— O quartel-general emitiu uma ordem errada para o senhor.

— Ordem errada? — perguntou McLane e franziu a testa.

— É isso mesmo. A missão no cubo espacial Quatro/Oeste 034 devia ser realizada pela Arion, uma nave-escola de cadetes, e não pela Orion.

Hasso, Mario, Atan e Cliff entreolharam-se em silêncio e depois dirigiram seus olhares para Helga. Um silêncio glacial reinava na cabine de comando.

— Aspirante! — disse McLane.

— Sim, comandante?

— Quem que é o responsável por esse negócio?

Havia um tom de lamentação naquela voz, que vinha de uma distância de cento e oitenta parsec:

— Infelizmente, não estou autorizada a lhe prestar informações a este respeito, quer oficial, quer extra-oficialmente.

— É uma pena! — disse McLane. — Mas, de qualquer maneira, nós vamos descobrir quem cometeu essa asneira. Aborrecer uma equipe qualificada com uma missão que pode ser realizada por cadetes! Quais são as outras ordens para a Orion VIII?

— Retorno imediato para a Terra.

— Entendido. Obrigado, aspirante — finalizou McLane.

— Não há de quê.

McLane olhou para os rostos da sua tripulação.

— Nós agora vamos voar para casa com toda calma. Vocês todos sabem o que aconteceu: enquanto a tripulação da Lancet tratava de recolher os dados daquelas sondas espaciais, nós desmontávamos o aparelho radiofônico; está claro?

* * *

A Terra controlava uma gigantesca região, cujas fronteiras eram inteiramente arbitrárias. Consistia de dez cascas esféricas com uma espessura de quarenta e cinco parsec cada uma. O conjunto era uma esfera espacial com um diâmetro de novecentos parsec, na qual pairavam as naves e os satélites, os planetas e as luas, as incontáveis estações retransmissoras, e os corpos cúbicos dos robôs de busca.

A primeira missão de McLane no Serviço de Patrulha, para o qual ele tinha sido removido em caráter punitivo, o levou para o cubo espacial Dez/Norte 219. Era uma estação retransmissora na região limítrofe do domínio terrano, longe, incrivelmente longe, da Terra. A segunda missão foi realizada nas proximidades da Terra, e a terceira tinha sido terminada nesse instante no cubo Quatro/Oeste 034.

As máquinas estavam sendo aceleradas. A Orion moveu-se lentamente, emergindo das sombras do planeta de Larsen. Descreveu uma enorme curva e depois seguiu uma trajetória retilínea, que apontava para o sol terrano. A velocidade aumentava continuamente e os ruídos se tornavam cada vez mais altos e intensos.

Durante duas horas, a Orion acelerou com valores médios e depois a nave desapareceu na escuridão do hiperespaço. Cliff ligou o piloto automático. A tripulação da Orion dirigiu-se às suas cabines e dentro de minutos todos estavam dormindo. As horas se passaram... muitas horas.

A nave retornou ao espaço normal, a cinco minutos-luz da Terra, e apareceu nas telas da vigilância espacial.

Os avisos sonoros reverberaram através dela.

As instalações de supervisão entraram em ação. A Estação Avançada IV entrou em contato e exigiu o código de identificação. Depois instruiu McLane a esperar durante três minutos. Em seguida autorizou o pouso na Base 104. A nave aproximou-se da Terra, voou com velocidade cada vez menor através da atmosfera e parou acima da costa norte do continente australiano. Quando o gigantesco remoinho apareceu, a Orion desceu verticalmente e pousou no gigantesco cilindro de aço abaixo do mar, que martelava incessantemente contra os anteparos energéticos.

Cliff desligou todos os instrumentos, reduziu o suprimento de energia e fez o gigantesco disco pousar sobre os raios antigravitacionais. A distância que o elevador telescópico teria que vencer com as seis pessoas a bordo era de uns dez metros. Além da leve bagagem de bordo, Atan e Helga ainda carregaram os dezesseis cassetes das fitas magnéticas.

— Muito bem, amigos — disse McLane — nos encontramos amanhã no cassino. Como de hábito, a nossa mesa já está reservada.

 

Cliff estava esticado na cama, absorto em pensamentos. Pensava em sua nave, no incidente em Pallas beta e em tudo aquilo que tinha ocorrido nestes últimos dois dias. Nesta época do ano, fazia bastante calor e um dos robôs de Cliff tinha removido o domo no teto do dormitório. Exatamente acima dele, um recorte circular mostrava um trecho do céu com as estrelas brilhantes.

O bangalô de Cliff consistia de algumas edificações retangulares rasas, com elementos cupulares semi-esféricos. Tinha sido construído na encosta rochosa da margem do golfo e se apoiava parcialmente em estacas metálicas. Cliff não era pobre, pois o soldo na frota era excelente. Ele olhava através daquela abertura, agora sem o domo protetor, que era uma reprodução plástica da obra de Warhols = Hydra 3000.

Nesta terceira missão, Tamara já tinha se mostrado mais compreensiva.

Mas McLane sabia que esta transigência tinha que ser avaliada. Era devida a um sentido seguro para necessidades — em outras circunstâncias não deveria esperar um tratamento tão tolerante por parte de Tamara. Mesmo assim... essa moça estava seguindo uma carreira errada; se ela tivesse tido uma formação diferente e pudesse viajar durante um ano com McLane, daria uma excelente subcomandante.

Infelizmente!

Mas por que estava pensando tanto em Tamara Jagellovsk? Afinal ela não passava de um mal desnecessário. Uma mera imposição. Uma carga adicional. Um verdadeiro freio para as suas idéias!

Quando se tornou necessário dominai os robôs, Tamara tinha reagido com uma rapidez fantástica. E atirava excelente' mente. Cliff constatou toda uma série de pontos positivos nestes minutos calmos.

Descobriu que se aborrecia porque Tamara não estava propensa a aceitar a sua superioridade masculina sem provas que a justificassem. As suas conquistas até agora tinham se intimidado com a sua capacidade — e a isso ele estava acostumado. Tamara porém era uma criatura diferente.

Isto mudou o rumo dos seus pensamentos. Desconfiava vagamente que o responsável pela troca do nome da sua nave era Spring-Brauner. Na verdade, não se tinha entediado durante esta missão; mas dois seres humanos, dois membros da sua tripulação, tinham ficado expostos a perigos mortais por causa dessa troca. Se não o tivessem enviado com a Orion na direção Quatro/Oeste 034, Atan e Helga não precisariam ter ficado tão preocupados. Imaginou como enfrentaria amanhã Spring-Brauner e, pensando nisso, adormeceu.

 

A ENORME extensão abaixo do Golfo de Carpentaria evidenciava a escala e a multiplicidade das atividades realizadas na Base 104. Além da sua importância como estaleiro de naves espaciais, e como ponto de apoio, a instalação contava com centenas de escritórios das diversas repartições, uma parte das moradias dos que aqui exerciam sua atividade, e uma rede labiríntica de cavernas, corredores, galerias e rampas. Na manhã seguinte, McLane tinha descido à base e seguiu o seu caminho a pé, pois estava bem descansado e tinha tempo.

Além disso, conhecia suficientemente este labirinto de pedra. Estava à procura do culpado por esta troca quase trágica das missões. Mas primeiro... McLane pulou sobre um dos passeios rolantes e três minutos depois tinha chegado a sede das Formações de Reconhecimento Espacial da Terra. Havia uma profusão de arranjos de flores e árvores minúsculas, impedidos no seu crescimento, que exalavam um aroma inebriante. McLane perambulou através da larga praça, cumprimentou alguns colegas e depois dirigiu-se para um dos corredores, que daqui se irradiavam para todos os lados. Ali reinava a atividade pulsante da repartição que exercia a sua autoridade sobre grande parte dessas instalações.

Minutos depois, estava diante da porta da ante-sala de Wamsler. Acionou o sinal.

— Comandante McLane!

Cliff deu um sorriso para a imagem e perguntou calmamente:

— Posso entrar?

A porta abriu-se. McLane entrou numa sala quadrada, de teto alto, atravessado por algumas passarelas de comunicações internas. Ao lado de uma parede, repleta de telas de imagem, estavam vários conjuntos de escrivaninhas brancas e poltronas modernas. Nos fundos da sala, luminescia e cintilava a barreira eletrônica, que protegia Wamsler.

— Deseja alguma coisa em especial, comandante? — perguntou a aspirante, depois que Cliff se sentou. Cliff deu um aceno vago com a cabeça.

— Um nome — afirmou. — Como é que trocaram os nomes das naves?

— Isso nós não sabemos, comandante — respondeu a aspirante. — Foi tão ruim assim?

— Não se trata de saber se foi ruim, mas sim que eu fui enviado pra lá à toa. Acresça a isso que realmente foi humilhante para toda tripulação ter que realizar essa tarefa. Qualquer robô teria feito isso.

A aspirante teve a atenção desviada por um chamado do videofone e transferiu a ligação. Imediatamente voltou-se para McLane.

— Isso não duvido — disse — mas eu não posso lhe dizer quem trocou as ordens de operação; não estou autorizada a dizê-lo, entende?

Cliff reparou nas mãos cuidadosamente manicuradas e no anel de sinalização, largo e retangular, que trazia o código do segredo do cofre. A jovem aspirante parecia gozar de prerrogativas especiais e de uma confiança elevada na ante-sala do marechal Wamsler.

— Quando notaram que a nave errada tinha sido enviada para realizar essa missão?

A aspirante refletiu durante alguns segundos, depois respondeu:

— Vinte e uma horas após a sua decolagem.

Cliff recostou-se confortavelmente, observou os dedos ágeis da moça, e teceu uma série de considerações mentais. Depois dirigiu-se ao quadro que mostrava a distribuição das missões e os detalhes das diversas tarefas. Os pequenos algarismos e letras brancas tremiam e cintilavam sobre o fundo negro das telas.

— Ah! — disse McLane, plenamente satisfeito.

— Descobriu alguma coisa? — perguntou a aspirante, curiosa.

— Descobri mesmo! — disse McLane com voz dura. — Descobri os nomes dos oficiais que estavam de plantão naquela hora. Fiz um cálculo retroativo.

— Posso lhe pedir, major, para enfatizar bem que não conseguiu saber de mim? Posso contar com isso?

Cliff riu para a moça e disse:

— É claro que pode contar com isso; longe de mim espalhar notícias falsas! Apoio está aí? — perguntou McLane. — Quero dizer, no momento ele se encontra na sua sala?

McLane reforçou o sorriso, mas a moça apenas sacudiu a cabeça.

Apoio era o apelido do belo Spring-Brauner e ele tinha acessos cada vez que o ouvia. Sem dúvida, Spring-Brauner era um oficial capaz e inteligente, mas distinguia-se por uma qualidade negativa: o seu senso de humor era igual ao de um videofone.

— Não está, não. Ele está em conferência com seu chefe.

— Quer dizer que Wamsler também já chegou?

— Chegou sim — respondeu a moça. — Mas ele também não atende ninguém, nem mesmo o senhor, major McLane.

Cliff levantou-se e cumprimentou a moça com polidez.

— Nesse caso vou andando para voltar numa oportunidade mais propícia. Vou tentar obter informações em outro lugar. Quer apostar que antes do meio-dia eu conheço o nome do tal sujeito?

A aspirante levantou-se para acompanhá-lo até a porta.

— Longe de mim querer apostar com o senhor! — disse a moça. — Já que é tão conhecido por só apostar quando tem certeza que vai ganhar!

— É isso mesmo! — disse Cliff e saiu da ante-sala.

 

A divisão de comunicações estava instalada numa sala que se assemelhava a um cubo gigantesco. Todas as paredes, o teto — cheio de instrumentos e refletores com centenas de lentes pequenas — e o revestimento do piso eram negros como piche. No meio da sala pairava uma daquelas projeções tridimensionais do domínio terrano, dividido nas dez zonas de distância, seccionadas, por sua vez, segundo as direções cardeais.

Milhares de estrelas, planetas, luas, corpos errantes, estações retransmissoras e cubos de busca estavam caracterizados por lâmpadas de cores diversas. No meio delas havia alguns pontos cor de laranja. Eram as naves espaciais. Aqui podia se saber que nave tinha estado naquele cubo àquela hora. E essas informações podiam ser complementadas com o objetivo e a duração da missão, com o nome do comandante, com as horas da decolagem e de pouso, e com mais uma série de detalhes de interesse no caso em questão.

— Sim, major? — perguntou um cadete, ao lado da entrada.

— Preciso de alguns dados — disse McLane.

— Dispõe de tempo, major?

— Claro que sim! A senha é Arion.

— Arion, a nave-escola?

— Certo! — respondeu McLane. — Onde se encontrava essa nave setenta e cinco horas atrás?

Em uma das mesas, o cadete apertou as teclas correspondentes às letras A-R-I-O-N e esperou durante alguns segundos. O símbolo para "linha desocupada" apareceu e o cadete acrescentou a data. Uma série de linhas alfanuméricas apareceu sobre a tela; o computador havia vasculhado a memória e agora estava projetando as informações sobre a tela:

Arion, nave-escola. Na referida data a nave estava em repouso na Base 104. Não houve ordens de operação. Tripulação recebeu licença especial. No momento Arion está na Base 104, hangar três, vaga trinta. Requerer mais dados com ordem adicional.

— Isso basta? — perguntou o cadete. Cliff sacudiu a cabeça.

— Não, não basta, não. Ainda preciso de mais algumas coisas. Vai ser um pouco difícil; não acha melhor falar com o seu chefe?

McLane lembrava-se nitidamente como, há alguns anos, ficava satisfeito quando capitães, comandantes ou pilotos de cargueiros dirigiam-lhe a palavra — sentia-se orgulhoso de poder fornecer-lhes as informações pedidas.

— Não é necessário, major! Posso arranjar-lhe todos os dados. Tudo a respeito da Orion VIII, não é?

— Exatamente! — disse McLane. — Eu quero saber o nome daquele que assinou a ordem de partida, a letra do escritório do qual esta ordem veio e, de uma maneira geral, todo o caminho burocrático que essa ordem de partida percorreu. Pode me arranjar isso?

— Não tem problema, major! Pode voltar dentro de vinte minutos?

— Com muito prazer! — disse Cliff. — Vou aproveitar o intervalo para tomar café.

— Vou-lhe dar tudo por escrito, comandante — asseverou o cadete, solícito.

Cliff saiu da sala e montou num dos passeios rolantes. Desceu de um pulo quando viu Helga Legrelle sentada num dos pequenos cafés. Comandada pelas células fotoelétricas, a porta recuou diante de Cliff e ele sentou-se ao lado de Helga.

— Bom dia, miss Legrelle — disse ele e levantou um dedo quando o garçom olhou indagativamente para ele; depois apontou para a xícara de Helga. — Estou gostando de ver, garota — disse McLane. — Você se recuperou rapidamente daquele susto. Eu estou na pista de uma comunicação falsa.

— Ah! — disse Helga. — Trata-se da Arion, não é?

— Dela mesma! — respondeu Cliff. — No momento estou esperando um cadete acabar de coletar todos os dados dessa misteriosa ordem de partida. É sempre de grande proveito quando a gente enfrenta os superiores com bons argumentos, não acha?

— Está querendo fazer chantagem com alguém? — perguntou Helga, tão baixinho que nenhum dos presentes conseguiu ouvi-la. Cliff mexeu na sua xícara, recolocou a colherinha no pires, e disse:

— Nada disso! Só quero ver a cara de Spring-Brauner se petrificar quando ele começar a falar bonitinho e eu julgar necessário responder.

— Já é alguma coisa — respondeu Helga. — Eu vim aqui só para comprar algumas miudezas. Nos encontramos hoje de noite?

— Hoje de noite, no cassino.

Helga despediu-se de Cliff, que ainda esperou um pouco e depois voltou para a central de comunicações. Poucos minutos depois saiu; na fina folha de plástico que levava no bolso estava a prova que procurava.

 

Era meio-dia; os raios inclementes do sol chocavam-se contra o anteparo energético cinzento que pairava por cima daquele bloco retangular de concreto. O arranha-céu, uma das numerosas construções na praia de Groote Eylandt, erguia-se como uma rocha calcária acima do verde-escuro da floresta. Era uma caixa com cento e cinqüenta andares e quatrocentos e dez metros de altura. E em cada andar abrigavam-se quarenta e oito residências de vários tamanhos. O apartamento de Tamara Jagellovsk ficava no centésimo décimo primeiro andar. E no momento se sentia muito bem, refestelada na espreguiçadeira futurística — lendo, ouvindo música, e se recuperando.

O pequeno balcão dava para o lado sul e lá fazia muito calor. Tamara trajava apenas um biquíni, banhava-se ao sol e acompanhava os compassos do último sucesso de Thomas Peter "A Segunda Lua de Marte".

Após algum tempo, sentiu calor demais; saiu do balcão e apanhou um drinque na geladeira. Estava descalça no meio da sala quando o sinal do videofone zumbiu.

Refletiu durante dois segundos. Seria o coronel Villa? Se fosse, não teria importância; ele poderia reparar que ela era uma mulher. Acionou a tecla de resposta e viu a imagem se estabilizar; quase deixou cair o copo de estupefação.

— Tenho o prazer de falar com Tamara Jagellovsk? — perguntou uma voz bem conhecida.

O esboço de um sorriso estava nos lábios de Cliff McLane, que olhava para Tamara da tela.

— Provavelmente é ela — disse Tamara e ficou séria. — E a que devo a honra do seu chamado, comandante?

— Deixe o "comandante" pra lá; no momento estou em missão particular. Estou me chateando.

Tamara tomou um longo gole e nem sentiu o sabor que o álcool dava ao suco de frutas.

— Está se chateando, Cliff? — perguntou, estendendo as palavras.

— Sim e eu pensei...

Os conhecimentos psicológicos de Tamara não vinham apenas do livro de Hammersmith, mas também das experiências da vida diária. E como ela não tinha mais dezessete anos, reconheceu imediatamente a transparência do chamado de McLane. Resolveu manter-se firme, mesmo correndo o perigo de ser taxada de estraga-prazeres.

— Então o senhor pensou que uma conversa com miss Jagellovsk seria o melhor remédio para o seu tédio, não é, camarada major?

— Bem — disse ele. — Não é bem assim. Inicialmente, eu pretendia lhe fazer uma proposta.

— Talvez uma excursão para Zeta Aurigae? — perguntou Tamara, com malícia.

— Talvez não; poderia ter escolhido entre natação, vela, remo ou esqui aquático, só para citar algumas coisas do meu catálogo.

— Muito embaraçoso! — disse Tamara e exibiu novamente aquele seu sorriso falso.

— O que é tão embaraçoso?

— No momento eu estava doida para participar de um jogo de pólo. O senhor não teria por acaso alguns cavalos sobrando?

Cliff deu uma risadinha oca.

— Cavalos? — perguntou. — Entendi direito: a senhora disse cavalos?

— Foram mais ou menos esses os termos que eu empreguei. É que eu não sei nadar — disse Tamara, com mais malícia ainda. — E o senhor parece ser um timoneiro bastante razoável, mas não posso imaginar que seja um bom professor de natação.

Cliff estava apreciando o apartamento e sua instalação.

— Bonitinho, esse seu lugar — disse ele. — E o que é que eu estou descobrindo lá naquele leito? Não é um livro que faz parte da leitura obrigatória de todos os cadetes espaciais? Posso me recordar de tê-lo lido uns cem anos atrás.

— Está exagerando, comandante — disse Tamara. — Também não parece ser tão velho assim.

— Obrigado! — rosnou McLane, sombriamente.

— Uma pergunta objetiva — disse Tamara, de repente muito séria. — O que é que o senhor estava querendo na realidade"; Eu não posso imaginar que o senhor faça questão da minha companhia fora do serviço.

Atrás de Cliff McLane, Tamara vislumbrou uma parte da decoração de bom gosto de um dos pequenos quartos do grande bangalô na outra extremidade de Groote Eylandt. Cliff engoliu alguma coisa que ia dizer e depois disse, lentamente e acentuando bem as palavras, como se tivesse que pensar várias vezes antes de falar:

— Eu estava pensando que, nas nossas próximas missões, a senhora talvez pudesse ser um pouco menos formal, um pouco mais humana que de hábito. Bastaria que houvesse uma aproximação maior com a vida dos astronautas.

— Obviamente, major McLane — disse Tamara, em tom severo — o senhor desconhece a verdadeira situação.

— Como assim? — perguntou Cliff, espantado.

— Eu fui enviada pra cá pelo Serviço de Segurança Galático para vigiar cinco pessoas, cujo líder, o senhor, costuma enfeitar as suas obrigações de serviço com um bocado de fantasia e imaginação, e com isso põe em perigo a nave, a tripulação, a disciplina, a ordem, os prazos, e o material. Não tenho outra coisa a fazer e não há outra coisa que eu vá fazer. Se acha que pode conseguir com seu charme já bastante esfarrapado que eu feche tudo quanto é olho, está se enganando redondamente!

Cliff tinha ouvido a preleção em silêncio. Deu um profundo suspiro e olhou para Tamara com uma seriedade incomum no seu rosto.

— É uma pena — disse ele, com tristeza. — Realmente, trajando um biquíni, não dá a impressão de ser um robô do tipo Supervisor. Durante um momento eu tive a impressão que a senhora fosse um ser humano. Mas me enganei.

— Não contribuí em nada para fomentar esse engano — disse Tamara.

— Realmente nada fez. Vejo-a hoje de noite no cassino?

— Claro que sim!

— Neste caso vai me permitir oferecer-lhe um copo de uísque com as minhas escusas pela importunação. Bom dia.

A tela apagou-se. Cliff tinha interrompido a ligação. Tamara permaneceu em pé, olhando interessada para a tela cinza do videofone; depois esvaziou o copo de um só gole e começou a rir desbragadamente. À sua risada misturaram-se os últimos compassos da música.

 

O MARECHAL Wamsler, que nutria sentimentos bastante contraditórios em relação a McLane, podia tornar-se extremamente sarcástico; bastava esforçar-se um pouco. Por um lado, condenava a indisciplina de McLane. Por outro, tinha que admitir, mesmo com relutância, que com a sua falta de disciplina McLane salvava situações que outros comandantes de naves teriam considerado perdidas; tinham escrúpulos demais. Oficialmente, porém, Wamsler só podia ter uma única opinião e esta ele expôs nua e cruamente a McLane.

— Qual é o motivo dessa comemoração, Cliff McLane? — perguntou e recostou o pesado corpo contra o bar do cassino Starlight. O vasto terraço jazia sob a luz azulada do entardecer. O ruído da ressaca misturava-se à música que emanava dos alto-falantes, formando uma curiosa cortina de sons.

— Não temos qualquer razão especial, marechal — respondeu Cliff, também recostado no bar e olhando para a pista de danças.

— Porque se o senhor tivesse uma razão especial, estaria imensamente interessado em conhecê-la — disse Wamsler e soltou uma risada trovejante.

— Somos apenas astronautas jovens, quase garotos, alegres por estarmos vivos.

O marechal Wamsler arreganhou os dentes e balançou seu corpo.

— Eu ouvi falar que o senhor exerceu uma considerável atividade nas minhas ante-salas — observou. — E pelo que me consta, nunca se distinguiu por trabalhos excessivos...

Cliff encolheu os ombros sob o tecido sedoso do custoso uniforme de saída. Sua plaqueta de identificação, aquela fita comprida e estreita, era de ouro, incrustada com minúsculas pedras preciosas — uma extravagância que se permitia, mesmo sabendo que muitos o hostilizavam por causa dela.

— É que eu estava interessado em alguma coisa — disse num tom corriqueiro. — Processamentos internos na sua esfera de mando, marechal.

Os enormes alto-falantes lançavam cascatas de sons sobre o terraço. Cliff viu uma porção de rostos conhecidos e os respectivos corpos: Helga, Tamara e as moças que normalmente povoavam, em turnos alternados, as ante-salas de Wamsler.

— É mesmo?

— É sim. Saúde!

— Saúde, McLane... e meus parabéns pelo seu feliz achado!

— Então já sabe de tudo, marechal? — perguntou Cliff e olhou para Tamara que estava dançando com Mario bem perto deles. Às vezes os modistas inventam umas maluquices, achou McLane. Assim, por exemplo, quando eles criavam vestidos abotoados na frente até o pescoço, em compensação desnudavam ombros e costas.

— Eu quase sempre sei de tudo, McLane! — disse Wamsler.

— Difícil conceber isso — observou Cliff, secamente — mas obviamente deve corresponder a verdade.

Wamsler não respondeu.

Observava a mesa que a equipe da Orion havia mandado reservar. Mario de Monti, também trajando o seu melhor uniforme, estava recostado na poltrona e balançava um copo meio cheio na mão. Sua disposição parecia a melhor possível. Ouvia-se a sua retumbante risada até aqui, apesar da música.

Tamara estava agora sentada ao lado dele e bebia um suco de frutas com poucas gotas de álcool; obviamente estava com receio de se comportar mal, ou de não mais poder exercer sua função de vigilante, se bebesse demais.

— Bem, eu não sei — disse Wamsler de repente. — Para uma conversa de rotina, o senhor está exagerando um bocado. E esses uniformes caros, essas bebidas não menos caras, essa animação... eu estou tendo uma certa suspeita, McLane!

Cliff manteve-se impassível; a expressão do seu rosto não traiu um único dos seus pensamentos.

— Não posso lhe impedir de ter suspeitas, marechal — disse. — Pode provar alguma coisa?

— E o que eu deveria poder provar? — perguntou Wamsler desconfiado.

Cliff deu uma risada curta e cordial.

— Provar sua própria suspeita, marechal! — disse ele, secamente.

— Não seja impertinente, McLane! — respondeu Wamsler. — Não devia dar importância excessiva ao fato de saber quem é que trocou uma ordem!

— Marechal — disse McLane, pronunciando as palavras claramente. — Não dou muita importância a esta simples troca de ordens. O importante para mim é que existe alguém que não me tolera e apregoa isso em qualquer oportunidade, seja apropriada ou não, e que este alguém comete erros. Erros pelos quais eu fui removido. E este homem por acaso foi removido em caráter punitivo, marechal Wamsler?

— Não — disse Wamsler — não foi. Encomendou mais um copo de uísque e continuou:

— Não, ainda permanece no seu lugar costumeiro; e é lá que ele vai ficar.

— E com que justificativa, posso saber? Os dedos de Wamsler cutucaram o peito de McLane.

— Quer saber por que não foi punido? Pois vou lhe dizer. Porque eu não puno um homem com uma remoção porque ele falhou uma vez. E não fui eu que mandei lhe remover; o senhor sabe disso!

— Correto. Mas não vai poder me condenar se saio atirando ao ser atingido por uma observação idiota.

Wamsler fez um gesto desdenhoso com a mão.

— Por mim, pode duelar até com laranjas — disse ele — ou então com ovos podres.

Juntos, caminharam lentamente em direção à mesa. Mario os reparou e disse algo baixinho a Helga e Hasso, e os rostos viraram-se atentamente para os dois homens.

— Tenente Jagellovsk! — disse Wamsler, formalmente.

— Sim, marechal? — perguntou Tamara.

— Não tem nada a comunicar? — perguntou Wamsler com voz calma.

— Nenhum acontecimento especial — disse Tamara com brevidade militar. — Realmente não tenho nada a comunicar.

Hasso e Helga trocaram um rápido olhar e voltaram a prestar atenção na conversa.

— Não tem nada a comunicar que eu precisasse saber? Ou algo que o coronel Villa consideraria da mais alta importância? — Wamsler era obstinado e continuou a insistir no ponto.

Seguiu-se uma curta pausa, cheia de tensão.

Por um momento, Tamara mostrou-se insegura e essa insegurança não escapou a Wamsler. Olhou ao redor de si; de alguma maneira havia um entendimento nessa mesa e estavam escondendo algo dele. Wamsler sorriu novamente.

— Eu não me lembro de nada que o senhor precisaria saber, marechal Wamsler! — disse Tamara. — Nada mesmo!

Wamsler disse, com ironia:

— Excelente!

— Excelente, por quê? — perguntou Hasso com sua voz grave. Seus olhos azuis contemplavam Wamsler com uma expressão da mais completa inocência.

— Porque com uma resposta dessas, tenente — respondeu o marechal — ninguém vai poder lhe incriminar de coisa alguma. Lembre-se dessa formulação para o futuro. Provavelmente vai ter que usá-la muitas vezes se continuar a voar com Cliff McLane! A propósito: que tal a vida a bordo da Orion? Um sonho de um emprego, não é?

A tripulação, inclusive McLane, estourou na gargalhada. Tamara respondeu, com calma e comedimento exemplares:

— Vida mansa, marechal. O major McLane é um cavalheiro como poucos; um autêntico "gentleman", um apoio moral e técnico da Patrulha Espacial. É um verdadeiro prazer voar com ele. E quanto à sua equipe — seu olhar deu a volta pela roda — não fica nada a dever. Helga é simplesmente encantadora e com respeito aos três outros senhores... me faltam as palavras!

— Isto — murmurou Cliff, sombriamente, e só Tamara conseguiu ouvi-lo. — Isto a senhora vai me pagar; é só esperar!

— A senhora tem uma verbosidade espantosa! — constatou Wamsler. Era óbvio que estava se divertindo. — Não embaralha as palavras uma vez sequer. Realmente o colega Villa capricha na formação dos seus auxiliares.

— Não é mesmo? — perguntou Tamara e acenou enfaticamente com a cabeça.

Cliff McLane mudou de assunto.

— A propósito — disse ele, estendendo as palavras — preciso lhes comunicar que Spring-Brauner, mais conhecido pela alcunha de Apoio, é o responsável por aquela falsa ordem de partida. Que me dizem disso?

Atan Shubashi pensou mais uma vez naquele momento em que a energia da Lancet tinha se esgotado e um medo mortal havia se apossado dele e de Helga. A estarrecedora revelação de McLane arrancou-o das suas divagações e mal conseguiu sufocar um palavrão.

— A rigor — disse Hasso e riu para o seu chefe — não vejo por que não convidamos Apoio. Tenho certeza que ficaria encantado com nossa bem-humorada companhia!

— Uma excelente idéia! — constatou McLane — mas eu não lhe pago nem um suco de fruta!

— Isso me dá uma outra idéia, comandante — disse Tamara, em voz tão alta que todos tinham que ouvi-la. — O senhor está me devendo no mínimo um Steinhäger duplo!

— Pelas areias de Marte! — gritou Atan Shubashi. — Isto vai entrar na história dos astronautas! Imaginem só! Cliff convida Tamara para um copo de álcool! É fabuloso!

Cliff, Wamsler e Tamara estavam ao lado da mesa. A aspirante da ante-sala aproximou-se lentamente e parou junto a seu chefe.

— Não tenho nada contra o Steinhäger — disse Wamsler — mas seria preferível que fossem descansar. Infelizmente Spring-Brauner hoje está de serviço e não pode atender ao seu gentil convite.

— Que pena! — respondeu um coro de quatro vozes.

— Descansar, por quê? — perguntou Hasso.

— Aproveitem bem os dias que antecedem a próxima tarefa para fortalecer os nervos. Ainda não conhece a sua nova missão, comandante McLane? — perguntou Wamsler, com cara de santo.

— Não; ainda não conheço. Será que vai querer acabar com a nossa alegria e estragar essa noitada tão agradável, marechal?

— Sempre adivinha as coisas, não é, Cliff? — disse Wamsler e chamou a aspirante com um gesto do indicador.

— Pode dizer a ele! — ordenou Wamsler.

— Aqui mesmo e agora, sem piedade! — Wamsler arreganhou os dentes num riso malicioso, depois pigarreou.

— Daqui a três dias, a Orion VIII vai partir com destino a Pallas beta com um carregamento de 80 robôs.

— Não! — gritou Tamara.

— Robôs Worker! — gemeu Cliff e procurou o encosto da cadeira de Wamsler. — Só faltava essa!

— Pallas beta? Qual é a graça? — gritou Atan, agitado.

Hasso ficou calado e somente dois leves sulcos nos cantos da boca evidenciaram que ele estava se divertindo à grande com a visualização desta tarefa. Levar robôs logo para onde...

— O que vem a ser Pallas beta e para que os robôs? — perguntou Cliff à aspirante, com uma calma ominosa.

— É uma mina de germanicum. Eles estão com robôs defeituosos lá, e essas máquinas devem ser substituídas. Além disso, precisamos de mais minério. A pequena lua Pallas beta, lua do planeta Greenwood, deve ser escavada com mais rapidez. Isso é tudo.

— Entendo — respondeu McLane e silenciou, amargurado.

— Major? — perguntou Tamara e tocou o braço de Cliff.

Virou a sua cara amarrada para ela e perguntou:

— Sim?

— Nós podemos protestar contra isso! — disse Tamara agitada. — E com veemência!

— Ah, é? Podem? Com que justificativa a senhora pretende protestar, tenente Jagellovsk? — perguntou Wamsler, nem um pouco abalado ou aborrecido.

— Cruzadores da Patrulha Espacial não podem ser empregados para transportes dessa natureza! — respondeu Tamara com raiva. — E através da minha repartição posso requerer a suspensão dessa ordem!

Espantados, os membros da tripulação seguiram a resistência daquela mulher, que, a rigor, só tinha a função de vigiá-los. Seria isso um sinal de uma mudança de mentalidade?

— Bravo, Tamara! — gritou Atan, em I tom triunfante. — É verdadeiramente fantástico! Nem eu teria me lembrado disso!

Calmamente Wamsler observou:

— É claro que pode protestar, tenente! A observação de Wamsler tinha sido calma demais para ser verdadeira.

— Mas... — queria saber Tamara. Wamsler virou-se, sorrindo, primeiro para Cliff depois para tamara.

Olhou nos olhos de ambos e seu sorriso tornou-se mais malicioso. Da mesa ouviu-se a respiração agitada de Atan.

— Só que no seu lugar eu não o faria.

Tamara arregalou as sobrancelhas e fuzilou Wamsler com os olhos.

— E por que não?

— Alguma vez já ouviu falar num conceito designado por Laurin?

Tamara sacudiu a cabeça, num perfeito gesto de total ignorância do assunto.

— Não ouvi, não. E o que é isso? Uma figura de algum conto de fadas?

Wamsler riu novamente. Todos sentiam que ele estava se divertindo com essa conversa, conduzida com as armas da ironia e da dialética.

— Sou de opinião que boas relações com os superiores deviam ser aproveitadas, marechal Wamsler — disse Hasso. — Principalmente, se forem tão boas como as que a nossa jovem amiga aqui possui.

O marechal encarou o engenheiro de bordo da Orion com uma expressão de puro espanto.

— Laurin é uma invenção curiosa — disse Wamsler depois, como se estivesse lendo uma estatística. — Com o auxílio de certos projetores, que se encontram a bordo de qualquer nave espacial, pode-se criar certas configurações no espaço livre, que se apresentam ou se comportam perante raios de busca como certas naves.

— Isso é verdade? — perguntou Mario de Monti em voz alta. — Preciso me lembrar disso! Com que tipo de projetor pode-se estabilizar esse negócio?

— É muito simples — disse Wamsler. — Esse processo já foi usado no meu tempo de cadete, quando se pretendia usar a nave para voar a algum jantar longe da academia. É suficiente reduzir o ângulo do projetor Cunsdorff-Santner em três graus. Até um objeto em forma de lente pode ser projetado dessa maneira. É claro que o Laurin consome horrores de energia. Mas certos comandantes de nave conseguem se ausentar durante umas seis horas.

— Incrível! — respondeu McLane. — E coisas desse gênero acontecem no seu gabinete?

— Piores ainda! — retrucou o marechal Wamsler. — Até meus melhores comandantes utilizam-se de meios tão grosseiros!

— É irresponsabilidade total! — rosnou McLane. — Isso nunca me teria ocorrido!

— Ninguém está duvidando disso, major! — disse a aspirante, com voz clara. — O marechal Wamsler só quis externar uma vaga suposição!

— Correto! — finalizou Wamsler.

Fez uma pausa longa, de muito efeito.

— Major McLane? — perguntou em seguida, calmamente e sem rir.

— Sim, marechal?

— Eu lhe pergunto aqui, diante de testemunhas: Vai assumir o transporte de oitenta robôs, do tipo Worker, números de série 3912 a 3991, daqui para Pallas beta, lua de Greenwood, sol p-900229?

— Realmente não sei para que essa cerimônia toda, marechal — disse McLane. — É evidente que me encarrego desse transporte. Se for preciso, levamos os robôs nas próprias mãos a bordo da Orion e os deitamos nas nossas camas.

— Isto não será necessário, comandante — disse a aspirante. — Essas máquinas têm uma resistência incrível. E são empregadas em trabalhos de mineração.

Cliff dirigiu-se a Tamara.

— Fico-lhe muito grato pelo seu oferecimento, miss Jagellovsk! — e riu como se Wamsler tivesse contado uma excelente piada. — Mas pessoalmente eu não tenho nada contra os Worker. Eu simplesmente os adoro; é um pessoal muito útil.

E depois dirigiu-se à sua tripulação:

— Vocês têm alguma coisa contra os robôs, garotões? Desculpe, Helga?

Um coro de quatro vozes fez-se ouvir. Os copos tremiam sobre a mesa quando a resposta veio:

— Não!

Com um movimento de mão, que somente o comandante Cliff Allistair McLane podia executar com tamanha arrogância e displicência, consultou o relógio e disse:

— Minhas senhoras e meus senhores. Vou agora cumprir a minha promessa e convidar a camarada Jagellovsk. Em breve estaremos de volta, continuem festejando bonitinho e com bastante barulho. E deixem que o marechal Wamsler participe de sua alegria; está quase sendo soterrado por oficiais estúpidos, aspirantes de ante-sala arrogantes, capitães espaciais esquisitos, e uma porção de problemas da pior espécie. Sejam bonzinhos com ele... Ele bem que precisa. Saúde a todos.

Agarrou Tamara galantemente no cotovelo e a conduziu a um ponto no extremo balcão do bar, longe de todas as mesas e dos tronejantes alto-falantes.

— Quer um simples ou um duplo? — perguntou e levantou a mão. Tamara olhou para ele atentamente.

— Um triplo, por favor!

 

— Nada mais me causa espanto, porque eu sou um homem escaldado que cresceu em meio a surpresas, foi amamentado com problemas e educado por privações e necessidades — começou Cliff e imprensou a sua plaqueta de identificação de ouro sobre a conta, avalizando-a. Depois continuou: — Mas nos últimos minutos eu comecei novamente a me admirar, a me espantar. Por sua causa, Tamara!

Ela estava sentada ao lado dele na banqueta do bar, muito calma, muito esbelta, e muito empertigada; olhava para a rebentação que se espraiava abaixo deles.

— Por quê? — perguntou.

— Estou espantado com seu comportamento — respondeu Cliff.

— E o que tem o meu comportamento de tão notável? — perguntou ela rapidamente.

— Alguma coisa. Basta que a bordo da Orion eu gire um botão no sentido errado, e a senhora começa a citar regulamentos. E hoje de noite discordou até de Wamsler. Se isto foi sincero, o que significa?

— Hoje de manhã eu tive ensejo de lhe expor exatamente quais eram as minhas atribuições e a minha tarefa, Cliff — respondeu Tamara e aspirou o cheiro do álcool que estava se esquentando entre as suas mãos.

— Ocasião, em que trajava um dos biquínis mais encantadores que eu já vi! — disse Cliff, rindo.

— Não tente fugir do assunto. Eu me esforço para conseguir diferenciar o que ainda pode ser admitido do que não pode mais ser tolerado. Pallas beta e a incerteza do que tinha acontecido com o minério e os trabalhadores pertencem a última categoria. Devia procurar me entender. Eu não levo uma vida fácil a bordo da Orion.

— Eu acredito — disse Cliff — que a nossa cooperação no decorrer dos próximos anos poderia até se tornar agradável. Enquanto isso, continue lendo aquele livro que eu encontrei sobre a espreguiçadeira.

Que tal sobre Steinhäger?

Os olhos verdes de Tamara entre as ondas do cabelo louro miravam Cliff com um brilho estranho. Espantado, Cliff McLane ouviu Tamara dizer:

— Esta noite, nessa praia e nesta companhia, meu caro comandante McLane, uma moça como eu apreciaria até água salgada com groselha!

— Caramba! — disse Cliff. — Eu não acredito numa só palavra do que diz!

Tamara soltou um riso insolente.

— É gozado. E sempre que o senhor banca o capitão atencioso, eu não acredito numa só sílaba do que diz. A primeira impressão é sempre a duradoura.

Cliff reparou que ela possuía dedos muito bem feitos.

— E qual foi a primeira impressão, Tamara?

Friamente ela deu como resposta:

— Que o senhor era um moleque como poucos, Cliff!

 

                                                                                            Hans Kneifel

 

                      

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