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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


Rebelde / Nora Roberts
Rebelde / Nora Roberts

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Rebelde

 

Uma mulher passional, capaz de amar e odiar com a mesma intensidade.

A pureza da menina havia sido definitivamente comprometida na noite em que a honra de sua família foi manchada pelos ingleses. A revolta começou a guiar os passos de Serena, cada passo de uma vida cheia de indignação.

Enquanto muitas jovens sonhavam com os salões iluminados onde a nobreza fluía dos prazeres da fortuna, a rebelde escocesa via nisso apenas o resultado das injustiças que condenava. De temperamento explosivo e natureza indócil, não se amoldava aos padrões exigidos para uma dama dos círculos da realeza.

Mas o amor pelo conde inglês surgiu sem que pudesse reprimi-lo, ela resolveu viver a felicidade de um romance, tão fugidia quanto o brilho das sedas e dos brocados.

A separação era inevitável! Como Serena conseguiria se submeter às regras de uma sociedade fútil? A um homem que, para ela, representava todos os seus inimigos?

 

Glenroe Forest, Escócia, 1735.

Os ingleses chegaram à tardinha, quando o céu se adensava de nu­vens pesadas e as velas e os candeeiros come­çavam a brilhar nos chalés da aldeia. Naquele silêncio, o estrépido das patas dos cavalos, trans­mitido pela vibração do solo gelado, ecoou pela floresta como o surdo ribombar de um trovão, fazendo com que os pequenos animais, assus­tados, corressem em busca de abrigo.

Serena MacGregor acomodou o irmãozinho de colo no quadril e foi até a janela.

"Papai e seus homens estão voltando da ca­çada mais cedo", pensou. E ficou conjeturando por que não irrompiam gritos de boas-vindas nem explosões de riso das casas situadas no sopé da colina.

Esperou, o nariz achatado contra a vidraça, pelos primeiros sinas da chegada, o soar da trompa, os latidos dos cães, embora estivesse ainda ressentida. Uma vez mais não lhe haviam dado permissão para acompanhar os caçadores.

Coll fora com eles, e tinha apenas catorze anos e não era tão destro no arco e flecha quanto ela. Sua boca cerrou-se de desdém, en­quanto continuava a perscrutar a paisagem deserta, iluminada pela luz que morria. Seu irmão iria vangloriar-se dessa preferência du­rante dias. E ela seria, no fim, à custa de importunação, levada a ouvir suas gabolices.

Mas quando o pequeno Malcolm começou a choramingar, sua irritação se dissipou. Embalou-o automaticamente, os olhos fixos na tri­lha íngreme que corria entre os cercados e os chalés, murmurando:

- Fique quieto. Papai não vai gostar de encontrar você chorando.

Súbito, uma angústia inexplicável a fez acon­chegá-lo contra o peito e olhar nervosamente por cima do ombro. As velas ardiam nos can­delabros de prata e um aroma bom de ensopado de carneiro evolava-se do caldeirão suspenso so­bre o fogo da cozinha. O assoalho e os móveis brilhavam, as arcas recendiam a lavanda dos pequenos sachês que sua mãe confeccionara.

Tudo parecia normal, porém um peso es­tranho oprimia-lhe o coração. Num impulso, enrolou Malcolm num xale e saiu para o jar­dim. As sombras alongavam-se, sinuosas, mas não se ouvia nenhum outro som, além do ruído seco das patas dos cavalos escalando a trilha da colina.

"Vão aparecer a qualquer momento", pen­sou e, sem saber por que, um calafrio per­correu-lhe a espinha. Quando ouviu o pri­meiro grito, vindo de um dos chalés, deu um passo para trás.

No mesmo instante, Fiona MacGregor, o lin­do rosto pálido e tenso, desceu correndo os degraus de pedra. Mas não ficou parada aos pés da escada, como era seu hábito, para dar boas-vindas ao marido.

- Entre, Serena. Depressa!

- Mas mamãe...

- Vamos menina. Pelo amor de Deus! - Ela agarrou a filha pelo braço e conduziu-a quase à força pela alameda de cascalho.

- E papai?

- Não é seu pai!

Antes de entrar, Serena viu os primeiros ca­valeiros assomarem ao alto da colina. Não vestiam o manto axadrezado dos MacGregor, mas os casacos vermelhos dos dragões ingleses. Tre­meu de medo. Embora tivesse apenas oito anos, já conhecia as terríveis histórias que circulavam na aldeia acerca desses soldados.

- O que eles querem, mamãe? Não fizemos nada!

- Não é necessário fazer, mas apenas existir!

Fiona fechou a porta, num gesto de desafio, mesmo consciente de que isso não iria deter os intrusos. Apesar de pequena e esguia, não costumava se desesperar nas situações difíceis. Sabia o que era preciso fazer, e fazia-o calma e competentemente.

- Serena.

- Sim, mamãe?

- Vá para o quarto das crianças e leve Mal­colm com você. Não saia de lá enquanto eu não mandar.

- Está bem, mamãe.

Nesse instante, o vale ressoou com outro grito, seguido de um choro selvagem. Pela janela, as duas viram a fumaça grossa despren­der-se do teto de colmo de um dos chalés e chamas saltarem pelas janelas e aberturas.

- Quero ficar aqui embaixo com você - disse Serena com voz trêmula.

- Não, querida.

- Papai não gostaria que eu a deixasse sozinha.

Lá fora, ordens de comando elevaram-se no ar, esporas e sabres entrechocaram-se. Os imensos olhos verdes de Fiona espelharam preocupação.

- Vá, agora! E faça o que eu lhe disse.

Serena voou escadas acima. Não havia ain­da vencido o primeiro lance, quando ouviu alguém bater com força na porta da ftente. Pa­rou e voltou-se. Um grupo de dragões estava parado no hall de entrada. Um deles avançou alguns passos e inclinou-se profundamente diante de sua mãe, que permanecia empertigada e altiva no meio da sala. Mesmo daquela distância, ela percebeu a ironia do gesto.

- Pegue Malcolm - disse baixinho a Gwen, sua irmazinhã de cinco anos que a aguardava no topo da escada. - Vá para o quarto das crianças e feche a porta.

- Mas Serena...

- Depressa! E não deixe o bebê chorar.

Depois disso, agachou-se junto ao corrimão e ficou à espreita.

- Fiona MacGregor? - ouviu o dragão per­guntar secamente.

- Sou lady MacGregor.

Fiona estava disposta a arriscar a vida para proteger seu lar, seus filhos. Mas recusava-se a adotar uma atitude hipócrita de submissão.

- Que direito tem o senhor de invadir mi­nha casa? - disse, um olhar de desdém brilhando nos olhos verdes e orgulhosos.

- Com o direito de um oficial do rei!

- Quem é o senhor?

- Capitão Standish, a seu serviço. - Ele tirou lentamente as luvas, esperando ver o medo estampar-se no rosto dela. - Onde está seu marido... lady MacGregor?

- O senhor destas terras está caçando em companhia" de seus homens.

Standish não proferiu palavra alguma. Olhou durante alguns segundos a orgulhosa criatura que tinha diante de si e depois fez sinal a três de seus homens para que inicias­sem a busca.

Fiona não nutria esperança de que qualquer sentimento de compaixão conseguisse abran­dar o coração daquele homem. Resolveu, por­tanto, conservar intactos seu orgulho e sua dig­nidade, revidando ironia com ironia.

- Como vê, chegou em má hora. Há apenas mulheres e crianças em Glenroe. Ou foi talvez por isso que tenha se atrevido a vir até aqui?

Sem pensar duas vezes, Standish levantou a mão e esbofeteou-a duramente, primeiro numa face depois na outra.

- Aprenda a respeitar um oficial de sua majestade, escocesa!

Serena desceu as escadas com a velocidade de uma bala e atirou-se sobre ele, martelando-lhe o peito com os punhos cerrados.

- Meu pai o matará por isto!

O homem empurrou-a para um lado com brutalidade.

- Pirralha do inferno!

Fiona colocou-se diante da filha, protegen­do-a com seu próprio corpo.

- Os homens do rei George costuma bater em crianças? São essas as leis inglesas?

A respiração de Standish acelerou-se. Não podia permitir que seus homens o vissem em desvantagem diante de uma mulher e uma criança, especialmente quando ambas pertenciam à ralé escocesa! Mas tinha ordens apenas para interrogar e dar buscas nas casas dos suspeitos. Embora descontente com seus sú­ditos escoceses, a rainha Carolina não gos­taria que acontecesse um incidente isolado na Alta Escócia.

- Leve essa pirralha para cima e tranque-a num dos quartos - ordenou em tom áspero a um de seus dragões.

Sem uma palavra, o soldado agarrou Serena pela cintura, tomando cuidado para evitar seus pontapés e seus punhos.

- A senhora cria gatos selvagens, milady - observou Standish, voltando-se para Fiona.

- Minha filha não está acostumada a ver um homem usar de violência com sua mãe ou outra mulher qualquer.

O capitão fitou aquela bela mulher, só e sem protetores, com ar pensativo. Não reconquis­taria a estima de seus homens punindo uma criança. Mas a mãe... Um sorriso cruel con­traiu-lhe os lábios, quando disse:

- Seu marido é acusado de estar envolvido na morte do capitão Portenous.

Fiona surpreendeu-se.

- O capitão não foi sentenciado à morte pela corte inglesa por ter atirado sobre uma multidão indefesa?

- O capitão atirou num grupo de desordei­ros, não em homens indefesos. De qualquer modo, a sentença que o condenava à morte foi suspensa.

Standish colocou a mão no punho da espada. Ele tinha fama de cruel mesmo entre seus pares. Achava que medo e intimidação ajuda­vam a conservar seus homens na linha. Por que isso não iria funcionar com uma vaga­bunda escocesa?

- Suspensa? Por quê?

- Portenous foi encontrado morto em sua cela. Queremos descobrir seus assassinos.

- Não sinto pena desse desaventurado - disse Fiona. - Mas posso lhe garantir que não temos nada a ver com sua morte.

- Pois temos prova mais do que evidente que seu marido assassinou, ou mandou assas­sinar o capitão.

- Isso é falso! - exclamou Fiona, revoltada.

- Milady, como sua esposa, não terá direito à proteção da rainha - continuou Standish, imperturbável -, a menos que coopere com a justiça.

- A rainha, melhor do que ninguém, deve saber de que lado se acha a justiça. Eu não tenho nada a declarar!

- É uma pena.

O capitão sorriu com fingida simpatia e deu um passo para a frente.

- Nesse caso, vou lhe mostrar o que acon­tece às mulheres desprotegidas.

No andar superior, Serena bateu na porta com os punhos até suas mãos sangrarem. De­pois, pôs-se a andar de um lado para outro do quarto, agitada. Do lusco-fusco que reinava fora, chegavam longos e lamentosos gritos fe­mininos. Mas ela pensava unicamente em sua mãe, sozinha e desprotegida no meio dos odia­dos soldados ingleses.

Quando, afinal, a chave voltou a girar na fechadura, saiu a correr do quarto, precipi­tou-se para as escadas e atravessou a sala. Sua mãe estava caída junto à lareira. Suas feições finas apresentavam uma palidez in­tensa, o vestido rasgado permitia distinguir as manchas arroxeadas que se espalhavam pelo corpo inteiro.

Caiu de joelhos a seus pés.

- Mamãe!

Ela chorava. Já a vira chorar antes, mas não assim, com lágrimas silenciosas e deses­perançadas. Tirou uma manta da arca e co­briu-a. Enquanto os dragões se afastavam a galope, sustentou-a com um braço, abrigando com o outro Gwen e o pequeno Malcolm. Tinha apenas uma vaga compreensão do que havia ocorrido, mas isso foi suficiente para fazê-la odiar os ingleses pelo resto da vida.

 

Londres, 1745

Brigham Langston, o quarto conde de Ashburn, sentou-se à mesa de café de sua elegante casa citadina e desdobrou a carta que estivera esperando tão ansiosa­mente. Leu-a com atenção, pesando cada palavra. Seus olhos brilharam e sua boca en­treabriu-se num leve sorriso. Era uma carta explícita, composta com cuidado. Não dizia nada de menos ou de mais, mas havia ali pa­lavras que tocavam seu coração de patriota.

- Com os diabos, Brig! Quanto tempo ainda vai me fazer esperar?

Coll MacGregor, o temperamental escocês de cabelos vermelhos que fora seu companhei­ro em viagens pela Itália e França, parecia a ponto de explodir.

Em resposta, Brigham apenas levantou a mão branca e esguia, enfeitada com renda no punho. Estava acostumado com aquelas ex­plosões e, em geral, isso o divertia. Mas, dessa vez, manteve a impaciência do escocês sob con­trole e tornou a ler a carta.

- É dele, não é? Do nosso príncipe!

Coll levantou-se da mesa e mediu o aposento com passadas largas, dando a impressão de que apenas as boas maneiras o impediam de arrancar a carta das mãos do amigo.

- Tenho tanto direito de lê-la quanto você.

Brigham ergueu os olhos e deixou-os desli­zar sobre o homem que andava nervosamente de um lado para outro da pequena sala. Não levou em conta sua revolta e disse apenas:

- A carta está endereçada a mim.

- Por um único motivo: é mais fácil enviar clandestinamente uma carta ao importante conde de Ashburn do que a um MacGregor. Os escoceses estão todos na mira do governo!

Brigham encolheu os ombros e virou a pá­gina, continuando a leitura. Coll lançou uma torrente de injúrias e depois desabou sobre a cadeira, resignado.

- Você tem o dom de esgotar a paciência de um santo!

- Obrigado.

Brigham ficou longo tempo a fitar o encor­pado papel timbrado e a escrita que se esten­dia através dele em linhas rápidas e discipli­nadas. Depois colocou-o ao lado do prato e ser­viu-se de mais café. Sua mão estava tão firme como quando empunhava uma espada ou uma pistola. E, na verdade, essa carta era uma arma de guerra.

- Você tem razão, meu caro. E uma men­sagem do príncipe Charles - disse, por fim entre um gole e outro de café.

- Bom. E o que ele diz?

- Leia você mesmo.

Coll apoderou-se do papel com impaciência. Enquanto ele se engolfava na leitura da carta, lorde Ashburn pôs-se a estudar pensativamen­te a sala. O papel azul de parede, os tapetes de ricos desenhos e os móveis elegantes, quase delicados com suas curvas e cercaduras dou­radas, haviam sido escolhidos por sua avó, de quem lembrava não só o leve sotaque escocês como a teimosia.

As graciosas figurinhas de porcelana Meis­sen, que ela tanto apreciava, estavam ainda sobre a pequena mesa redonda colocada perto da janela. Quando era menino, tinha a per­missão de olhar mas não de tocar, e seus dedos fremiam na ânsia de segurar a estatueta re­presentando a pastora de rosto delicado e lon­gos cabelos de porcelana.

O retrato em moldura dourada de Mary MacDonald, a mulher forte e decidida que se tornara lady Ashburn, estava sobre a lareira e mostrava-se investida da dignidade incons­ciente da riqueza. O porte ereto e a orgulhosa inclinação da cabeça diziam que ela podia ser persuadida mas não forçada, convocada mas não induzida.

Mary transmitira a seu neto os mesmos ca­belos pretos, os mesmos olhos cinzentos, as mesmas feições aristocráticas: testa alta, na­riz reto e boca bem delineada. Mas não apenas isso. Transmitira-lhe também uma natureza apaixonada e senso de justiça.

Naquele instante, ele pensou na carta e nas decisões a serem tomadas, e fez um brinde silencioso ao retrato.

"A senhora gostaria que eu fosse. Todas as histórias que me contou, essa fé inquebran­tável na causa dos Stuart que me pôs na ca­beça durante os anos que cuidou de mim... Tenho certeza de que se ainda estivesse viva iria pessoalmente à Escócia. Por que então não ir em seu lugar?"

- Chegou a hora! - disse Coll com voz exultante. Ele tinha vinte e quatro anos, seis meses menos do que seu amigo, e esperara tanto tempo, que bradava por ação e por uma mudança.

Brigham empurrou para trás sua alta ca­deira esculpida e levantou-se.

- Você tem que aprender a ler nas entre­linhas, Coll. Charles conta ainda com o apoio dos franceses, mas está começando a perceber que o rei Luís prefere falar a agir.

Pensativo, ele ergueu a ponta da cortina e olhou para os jardins adormecidos. Explodi­riam em cores e perfumes na primavera. Mas era improvável que estivesse ali para admirar esse espetáculo.

- Quando freqüentávamos a corte, Luís pa­recia muito interessado em nossa causa. Dava até a impressão de desprezar o títere dos Ha­nover que ocupa atualmente o trono inglês - objetou Coll.

- Sim, mas isso não quer dizer que ele irá afrouxar os cordões de sua bolsa para o Príncipe galante ou pela causa dos Stuart! A idéia de Charles, armar uma fragata e to­mar o rumo da Escócia, me parece mais con­dizente com a realidade. Mas essas coisas le­vam tempo.

- Não podemos começar a preparar o terreno?

Brigham deixou a cortina cair e virou-se.

- Você conhece sua gente melhor do que eu. Que apoio o príncipe conseguiria na Escócia?

- O suficiente para entusiasmá-lo!

Coll levantou-se e bradou de modo arrebatado!

- Os clãs se levantarão por seu verdadeiro rei e lutarão contra o usurpador!

Depois fitou seu companheiro com ar pensa­tivo. Sabia que ele arriscaria tudo com essa via­gem: título, dinheiro, reputação e até a vida.

- Brig, eu posso levar a carta a meu pai e, com o auxílio dele, convocar todos os clãs da Alta Escócia. Não é necessário que você vá também.

O rosto moreno de Brigham abriu-se num sorriso de quem verdadeiramente se divertia.

- Acha então que lá eu não teria nenhuma utilidade?

- Não quis dizer isso, Brigham, e você sabe! - Coll colocou-lhe afetuosamente a mão no ombro. - Quem não gostaria de contar com um homem como você, que sabe falar e lutar, um aristocrata inglês disposto a arriscar tudo pela causa?

- E se eu não for bem-sucedido?

- Absurdo! Conheço o seu valor, amigo. Afi­nal, quem foi que me salvou a vida, e mais de uma vez, durante nossa viagem pela Itália e pela França?

- Não exagere, Coll. - Brigham puxou a renda de seus punhos. - Não é de seu feitio.

O escocês deu um largo sorriso.

- Isso sem falar de sua habilidade de transformista. Num instante um exímio es­padachim, no outro o arrogante conde de Ashburn!

- Meu caro, eu sou o conde de Ashburn!

Coll olhou-o com admiração. Ninguém me­lhor do que ele conhecia a força que se escon­dia sob aquelas rendas e aquelas maneiras lânguidas, quase afetadas.

- Não era o conde de Ashburn que lutou ombro a ombro comigo, quando nossa car­ruagem foi atacada nos arredores de Calais. Não era o conde de Ashburn que quase em­briagou a mim, um MacGregor, naquela ta­verna de Roma!

- Pois eu digo que era. Lembro-me muito bem dos dois incidentes e asseguro-lhes que era o conde de Ashburn em carne e osso!

Coll não objetou.

- Estou falando sério, Brigham. Você devia ficar aqui e continuar a freqüentar festas e bailes, tomar parte nas caçadas. Poderia fazer mais pela causa permanecendo na Inglaterra, de sobreaviso.

- E se eu não concordar?

- Bom, se está decidido a ir, gostaria de tê-lo a meu lado, participando da luta.

Brigham voltou a olhar para o retrato de sua avó e então fez um sinal afirmativo com a cabeça.

- Naturalmente, meu amigo.

 

O tempo em Londres estava úmido e frio. Continuava imutável, três dias depois, quando os dois homens iniciaram sua jornada. Viaja­riam em direção ao norte no relativo conforto da carruagem de Brigham e então fariam o resto do percurso a cavalo.

Para todos os efeitos, lorde Ashburn ia à Escócia para uma visita de cortesia à família de seu amigo. Apenas a alguns, um punhado de tóries e jacobitas fiéis, ele confiara secre­tamente os seus planos e as suas esperanças, e também a guarda de seu solar no campo e de sua mansão em Londres.

Tinha plena consciência de que passaria muito tempo, meses, talvez anos, até que pu­desse voltar a instalar-se definitivamente na Inglaterra.

Levava consigo apenas o que podia carre­gar sem chamar atenção. Sua bagagem con­sistia de um baú com roupas, entre as quais acondicionara uma miniatura de sua avó e, por um capricho sentimental, a pastorinha de porcelana. Outro, menor, acomodava pe­ças de ouro em quantidade maior do que a necessária para uma simples visita de cor­tesia. E, por precaução, fora colocado sob o assoalho da carruagem.

Avançavam lentamente. As estradas esta­vam tão escorregadias, que a marcha era um penoso exercício de equilíbrio. A carruagem atolava, obrigando muitas vezes o cocheiro a descer da boléia e a conduzir a parelha a pé. Brigham teria preferido um passo mais rápi­do, mas um olhar à janela disse-lhe que o tempo na região norte só tendia a piorar. En­tão, com paciência que aprendera a cultivar através dos anos, recostou-se no espaldar, des­cansou os pés calçados de finas botas de couro no banco oposto, onde Coll cochilava, e deixou seus pensamentos voltarem para Paris.

No ano anterior, passara alguns meses di­vertidos naquele país. Era a França de Luís XV, que deslumbrava o mundo com a pompa e a magnificência de sua corte. Havia conhe­cido ali mulheres lindas, de cabelos empoados e trajes escandalosos, com quem mantivera delicadas ligações amorosas. Mas aquela in­dolente vida palaciana acabara por cansá-lo, fazendo-o ansiar por ação e propósitos.

A exemplo de outros Langston, ele havia sempre apreciado a intriga política, apoiando secretamente os Stuart, os legítimos herdeiros da coroa da Inglaterra, no seu entender. As­sim, quando o príncipe Charles Edward, um jovem carismático, corajoso e decidido, chega­ra à França, oferecera-lhe sua ajuda em qual­quer expedição que ele pudesse empreender para reconquistar seu direito ao trono.

Muitos o teriam considerado um traidor. E os Whigs, que apóiam o gordo usurpador alemão, gostariam de vê-lo enforcado se ti­vessem conhecimento daquela prova de leal­dade. Mas preferia correr o risco; não havia ainda esquecido as histórias de 1715 e dos banimentos e execuções acontecidos antes e depois dela.

Enquanto a paisagem tornava-se mais agreste e Londres desaparecia na bruma da distância, tornou a pensar que a casa dos Hanover havia feito muito pouco para se tornar benquista na Escócia. O país estava dividido, tornando mais alarmante a sombra de guerra que pairava ora ao norte ora do outro lado do Canal. Se a In­glaterra quisesse tornar-se uma nação poderosa, necessitaria de um rei legítimo.

Afinal não haviam sido os olhos azuis do príncipe nem suas belas feições que o convenceram a apoiá-lo. Foram seus projetos ambiciosos e talvez a confiança juvenil de que ele podia e iria reclamar o que era seu.

 

Ao anoitecer pararam numa pequena estalagem de paredes de pedra, teto baixo e chão de terra, situada no limite entre a Baixa e Alta Escócia. O ouro de Brigham e seu título granjearam lençóis limpos e uma saleta particular aos dois amigos.

Bem alimentados e aquecidos pelo fogo que crepitava na lareira, puseram-se a jogar dados e a tomar cerveja, enquanto o vento soprava das montanhas e batia nas janelas. E durante algumas horas, foram simplesmente dois jovens cavalheiros que compartilhavam de uma viagem aventurosa.

- Com os diabos, Brig! Você está com sorte esta noite.

O quarto conde de Ashburn recolheu os dados e as moedas de ouro com os olhos brilhantes de satisfação.

- E o que parece. Vamos tentar mais uma partida?

- Sua sorte pode mudar. - Coll sorriu e deixou os dados rolarem. - Vamos ver se desta vez você consegue me vencer.

Logo depois, entretanto, ele sacudia a cabeça.

- Parece que a sorte não vai abandoná-lo tão cedo. Como naquela noite em Paris, quando você jogava com o duque pelos favores de uma doce mademoiselle.

- Com ou sem os dados, eu já tinha con­quistado o coração da bela dama.

O escocês tornou a jogar mais um punhado de moedas sobre a mesa.

- Espero que a sorte continue a sorrir-lhe nos meses que estão por vir.

Brigham levantou a cabeça e assegurou-se de que a porta da saleta estivesse fechada.

- A sorte terá que sorrir não apenas para mim, mas também para o príncipe.

- Ele tem a ambição de que precisamos, ao contrário de seu pai. - Coll ergueu a caneca de cerveja. - Ao Príncipe Galante!

- Ele irá precisar muito mais do que sua bela aparência e sua conversa inteligente para convencer os escoceses - observou Brigham, retribuindo o brinde.

O amigo franziu a testa.

- Está duvidando da lealdade dos MacGregor?

- Você é o único MacGregor que eu conheço.

Antes que Coll começasse um discurso sobre seu clã, Brigham apressou-se a perguntar:

- Não está feliz de rever sua família?

- Ah, sim! Não que eu não tenha me di­vertido em Roma e Paris. Mas um homem que nasceu na Alta Escócia prefere morrer na sua terra e entre sua gente.

O escocês tomou um gole longo de cerveja, pensando nos pântanos cor de púrpura e nos lagos azuis e cristalinos.

- Segundo minha mãe, estão todos bem. Mas eu me sentiria mais tranqüilo vendo isso com meus próprios olhos.

Ele fez uma pausa demorada, antes de continuar:

- Malcolm deve estar com seus nove ou dez anos agora e parece que é um garoto endiabrado. - Sorriu, orgulhoso. - Como todos nós, aliás.

- Você me disse que sua irmã é um anjo.

- Gwen. - A voz de Coll encheu-se de ter­nura. - Sim, ela é meiga, paciente e linda como um anjo.

- Você não tem outra irmã?

- Sim, Serena. Mas só Deus sabe por que lhe deram esse nome. Ela é uma verdadeira gata selvagem!

- E bonita ao menos?

- Não é feia. Em sua última carta, mamãe contou-me que alguns rapazes tentaram fazer­-lhe a corte, mas que ela os mandou passear.

- Talvez eles não tenham sabido... sensi­bilizar seu coração.

- Sensibilizar Serena? Impossível! Tenho pena do homem que se atrever a pôr os olhos nela!

- Parece que sua irmã é uma amazona!

Brigham imaginou uma jovem robusta e sa­dia, com as feições de Coll e uma desordenada massa de cabelos vermelhos a emoldurar o rosto redondo. "Saudável como uma ordenha­dora", pensou "e igualmente simplória."

- Confesso que prefiro os tipos mais meigos e dóceis.

- Ela não é dócil, mas é sincera e inteira­mente devotada à família. Já lhe falei da noite em que os dragões chegaram a Glenroe?

O olhos de Coll tornaram-se sombrios.

- Serena era apenas uma menina naquela época e estava assustada. Mas cuidou de minha irmã e distraiu as outras crianças até nós voltarmos. Não chorou quando nos viu. E, de olhos enxutos, nos contou tudo.

Brigham pôs a mão sobre o braço do amigo.

- Não é hora de vingança, mas de justiça.

- Conseguirei ambas - murmurou Coll por entre os dentes e jogou novamente os dados.

 

Os dois viajantes partiram bem cedo na ma­nhã seguinte. Dessa vez foram a cavalo, se­guidos pela carruagem que os acompanhava em marcha moderada.

Encontravam-se agora nas terras de que Brigham ouvira falar quando criança. Era uma região rústica e solitária, entremeada de altos penhascos e charnecas desoladas. Picos proeminentes, algumas vezes cortados por ca­choeiras espumantes e rios piscosos, penetravam no cinzento opalescente do céu.

Em alguns sítios, pedras brutas, de grandes dimensões, distribuíam-se em círculos, como que semeados por mão cuidadosa. Pareceria um lugar antigo, reservado aos ritos da su­perstição druídica, se não fosse a visão de al­gum chalé, com a fumaça a elevar-se da abertura central no teto de colmo.

O solo estava congelado e o vento soprava em rajadas coléricas, carregando em seu ras­tro nuvens de neve desfeita em partículas, pe­netrando em seus grossos casacos de lã e en­regelando-os até os ossos. A luz do sol era pálida e coada e seus raios oblíquos pareciam tão frios quanto os da lua.

Cavalgavam a toda brida, quando a estrada permitia. Mas, em geral, eram obrigados a abrir caminho por trilhas cobertas com neve que chegava até a cintura. Cautelosos, passavam ao longo dos fortes que os ingleses ha­viam construído e evitavam até a hospitalidade que lhes seria oferecida prazerosamente em cada chalé.

A hospitalidade, como Coll avisara, en­volveria perguntas sobre o motivo da jorna­da, sobre suas famílias e seu destino. Fo­rasteiros eram raros na Alta Escócia e a no­tícia de sua presença naquelas paragens solitárias logo correria de aldeia em aldeia e voaria de boca em boca.

Seguiram, portanto, por estradas secun­dárias e pararam numa taverna para tomar uma refeição quente, enquanto os cavalos descansavam. Ali, o assoalho era sujo, a sala escura e enfumaçada, cheirando a peixe e aos odores de seus freqüentadores. Não era exatamente um lugar apropriado para receber o quarto conde de Ashburn. Mas o fogo era aco­lhedor e o taverneiro prometeu-lhes uma re­feição razoável.

Retiraram os grossos capotes, que puse­ram a secar diante do fogo da lareira. Brigham usava calção de montaria complemen­tado por um casaco sem enfeites. Mas, em­bora simples, o traje assentava sem uma ruga sobre seus ombros amplos. Os botões eram de prata, as botas de couro fino. Os abundantes cabelos negros estavam atados na nuca por uma fita e em seu dedo mínimo brilhavam o sinete de família e uma esme­ralda. Esses detalhes acentuavam o belo por­te que atraía os olhares dos presentes.

- Neste buraco não estão acostumados a ver tipos como você - observou Coll.

À vontade em seu saiote escocês, com o ra­minho de pinheiro de seu clã enfiado na faixa, ele devorava com apetite seu pastelão de carne.

Brigham correu os olhos pela sala, enquanto dizia:

- Tamanha admiração faria a alegria de meu alfaiate.

Coll ergueu a caneca de cerveja e pensou com agrado no uísque que iria tomar com seu pai, naquela noite.

- Não são apenas seus trajes. Você pare­ceria um conde mesmo nos andrajos de um mendigo.

Terminada a refeição, ele jogou algumas moedas na mesa e levantou-se.

- Os cavalos já descansaram, portanto não vamos perder tempo. Estamos nos limites do território dos Campbell, inimigos de sangue da minha família. Não quero correr o risco de levar um tiro pelas costas!

Enquanto vestiam seus capotes, três homens saíram furtivamente da taverna, deixando pe­netrar na sala uma fria rajada de ar.

 

Coll continha a custo a impaciência. De volta à Alta Escócia, ele não queria outra coisa se­não rever seu lar, sua família.

O caminho que agora seguiam conduzia a um pequeno vale, atravessado por um riacho de margens pantanosas, para logo depois pe­netrar na charneca, onde cresciam em apenas pequenos zimbros entre os matacões. Vez por outra, avistavam fileiras de chalés encravados no sopé das colinas mosqueadas de sol, e gado pastando no chão desigual. Embora tivessem ainda algumas horas de viagem pela frente, Coll podia quase sentir o aroma familiar de sua casa e da floresta que a rodeava.

- Brig, veja que paz!

Mas Brigham endireitara-se subitamente na sela.

- Guarde seu flanco esquerdo - gritou ele. - Notei qualquer coisa brilhar atrás daqueles matacões.

Nem bem acabara de falar, dois cavaleiros irromperam de trás de um grupo de rochas e galoparam contra eles. Ambos montavam ani­mais vigorosos, pôneis escoceses de crinas ao vento, e embora seus capotes estivessem puídos e sujos, o aço de suas lâminas brilhava perigosamente ao sol da tarde. Antes que as armas de chocassem, espelindo faíscas, Brigham teve tempo para lembrar se os vira na taverna.

Ao lado dele, Coll puxou a espada contra outros dois e as colinas ecoaram com o tinido das armas e com o estrépito das patas dos cavalos. Sobre suas cabeças, uma águia dou­rada voava em círculos e esperava.

Os bandidos que haviam atacado Brigham haviam subestimado seu valor. As mãos dele podiam ser delicadas, o corpo esguio como o de um dançarino, mas os punhos eram fortes e elásticos. Usando os joelhos para guiar sua montaria, ele lutava com uma espada numa das mãos e a adaga na outra. As duas armas eram guarnecidas com lavores de ouro, porém as lâminas eram feitas para matar.

Ouvia Coll gritar e praguejar, ante a arre­metida dos dois homens poderosamente armados, mas continuou a lutar em silêncio. Com perícia admirável, conservava os antagonistas a distância, ora voltando-se com a agilidade de um falcão, ora mantendo-se fora do alcance dos golpes dos inimigos, investindo às vezes contra um, às vezes contra outro e distribuindo-lhes golpes formidáveis sem lhes dar tempo de atacar.

Súbito, um deles lançou um grito medonho, que não durou mais do que um segundo. Ele vacilou e caiu por terra, o sangue manchando a neve alva. Seu animal, assustado com o chei­ro da morte, correu para as rochas arrastando as rédeas. Furioso, o outro assaltante contra­-atacou com redobrada ferocidade.

Seu ataque quase apanhou o conde fora de guarda. Ele sentiu o fio da lâmina rasgar-lhe a carne do ombro, mas conseguiu devolver os golpes do adversário com a mesma destreza, obrigando-o a recuar pouco a pouco para as rochas. Então os olhos fixos no rosto do homem, visou-lhe o coração com fria precisão e trespassou-o.

Tendo realizado essa dupla proeza, ele es­poreou seu cavalo na direção de Coll. O escocês lançava por terra um dos bandidos e agora ia-se aproximando do outro com a espada erguida. Mas antes que pudesse baixá-la, seu cavalo deslizou no solo escorregadio, e seu ad­versário aproveitou a oportunidade para vibrar-lhe um golpe no flanco esquerdo.

Brigham partiu como um raio em seu au­xílio. Ao ver-se em situação difícil, o bandido esporeou seu pônei, e galopou para a trilha que serpeava por entre as rochas, desaparecendo de vista.

- Coll! Você está ferido?

- Sim, por Deus! - O escocês fez força para manter-se na sela. - Está ardendo como fogo.

- Deixe-me ver isso.

- Não há tempo, aquele chacal pode voltar com reforço. Vamos sair daqui. Chegaremos em casa antes do anoitecer. - Dito isto, ele lançou seu cavalo num galope desenfreado.

Cavalgaram sem descanso. Brigham man­tinha um olho na estrada, para evitar uma nova emboscada, e o outro em Coll. O grande escocês estava pálido, mas dominava bem o ginete. Apenas uma vez, diante de sua insis­tência, ele concordou em fazer uma parada para que seu ferimento pudesse ser convenientemente avaliado.

Brigham não gostou do que viu. O corte era profundo e sangrava abundantemente. Obri­gou-o a tomar um longo trago de aguardente e, quando seu rosto pálido recobrou a cor, aju­dou-o a montar.

Penetraram no bosque quando nuvens de formas indistintas barravam o céu como espesso edredrom, escondendo o sol. O ar chei­rava a pinho, mesclado a um leve odor de fumaça que vinha de um chalé distante. Uma lebre cruzou a picada e desapareceu no meio das moitas. Atrás dela, como um clarão de luz, seguiu um esmerilhão. Framboesas de inverno, grossas como polegares, pendiam de ar­bustos espinhosos.

- Eu costumava me esconder nestes bos­ques, quando era criança. Foi aqui que roubei o primeiro beijo de minha namorada - disse Coll, reminiscente. - Não sei por que parti e deixei tudo isto.

- Para voltar como um herói - observou Brigham.

O escocês esboçou um leve sorriso.

- Desde que o mundo é mundo, sempre houve um MacGregor na Alta Escócia. - Ele virou-se para Brigham e disse com orgulho: - Saiba que minha linhagem é real, conde de Ashburn!

- Pois está deixando seu sangue real nestas trilhas. Para casa!

Cavalgaram lentamente. Quando passaram diante dos primeiros chalés, gritos alegres ele­varam-se no ar. Fora das casas, algumas feitas de pedra e madeira, outras de barro socado, havia gente esperando. Embora fraco, Coll pa­rou para cumprimentá-las.

Minutos depois, transpunham, lado a lado, a colina, avistando ao mesmo tempo o solar dos MacGregor. Da ampla chaminé, uma es­piral de fumaça subia para o céu escuro. Luzes brilhavam atrás das vidraças e a ardósia azul do telhado cintilava como prata aos últimos raios do sol poente.

- Meu lar! - exclamou Coll, um sorriso largo, infantil. iluminando-lhe o rosto.

Brigham olhou com agrado para a encanta­dora construção de quatro andares, enfeitada com torres e ameias. Embora o tamanho in­dicasse que o proprietário era pessoa rica, a simplicidade de suas linhas revelava que fora feito principalmente para proporcionar confor­to, sem a preocupação do luxo ou pompa.

- É um lugar encantador.

Súbito, uma jovem destacou-se do séqüito que se formava atrás deles. Brigham ouviu-a gritar e virou-se na sela para olhá-la. Ela ves­tia o manto axadrezado de seu clã. Trazia uma cesta numa das mãos e com a outra segurava a barra da saia, proporcionando uma deliciosa visão de saiotes e de pernas bem torneadas.

Viu-a avançar, rindo, e seus cabelos, da mes­ma cor dos raios do sol poente, esvoaçaram atrás dela. Sua pele, clara como alabastro, es­tava rosada pelo frio e pela alegria que lhe transbordava dos olhos. Suas feições eram de­licadamente esculpidas, mas a boca era cheia e sensual. Brigham contemplou-a, embevecido e pensou na pastora de porcelana que ele ad­mirara e amara quando era criança.

- Coll! - chamou ela com voz baixa mas ricamente modulada.

Depois, sem fazer caso dos cavalos que es­garatavam o chão, impacientes, agarrou as ré­deas do rapaz e levantou um rosto que fez Brigham suspirar.

- Não recebemos nenhuma carta anuncian­do a sua volta. Não sabe mais escrever ou estava com muita preguiça?

- É desse modo que recebe seu irmão e seu convidado? O mínimo que podia fazer era mostrar-se educada com meu amigo! - Ele virou-se para Brigham. - Lorde Ashburn, minha irmã Serena.

Brigham inclinou a cabeça.

- Srta. MacGregor...

Preocupada com a palidez do irmão, Serena mal dignou-se a olhá-lo.

- Que houve com você, Coll? Está ferido?

Em resposta ele escorregou da sela e caiu ao chão, inconsciente.

- Oh, Senhor... O que é isto? - perguntou ela, alarmada ao ver o sangue que manchava o casaco dele.

Brigham desmontou e ajoelhou-se ao lado do amigo.

- Foi ferido e o corte abriu-se novamente. Vamos levá-lo para dentro de casa.

Serena ergueu a cabeça, os olhos verdes cin­tilando de mal contida fúria.

- Afaste-se dele, inglês! Meu irmão chega em casa quase morto e o senhor sem um ar­ranhão! Não é estranho?

"Coll subestimou sua beleza mas não seu gênio!", pensou Brigham.

- Posso explicar isso depois que cuidarmos dele - disse, erguendo o amigo nos braços com facilidade.

- Leve sua explicação de volta para Londres!

Ele olhou-a com tal firmeza, que ela corou.

- Acredite, senhora, não é essa minha in­tenção. Queira, por favor, tomar conta dos ca­valos que eu levarei seu irmão para dentro.

Serena abriu a boca, mas um olhar ao rosto pálido de Coll foi suficiente para fazê-la engolir as palavras ferinas que se haviam formado em seus lábios. Porém, enquanto o inglês levava seu irmão para dentro de casa, lembrou-se do que acontecera na última vez em que outro in­glês havia transportado aquele umbral. Então, deixou cair as rédeas dos dois cavalos e correu atrás dele vociferando ameaças.

 

Uma criada aguardava Brigham à entrada da casa dos MacGregor. Ao vê-lo com seu fardo, ela levou a mão à boca e depois correu para a cozinha, gritando por lady MacGregor.

Fiona chegou apressadamente, as faces co­radas pelo calor do fogo. Mas, à vista de seu filho, inconsciente nos braços de um estranho, empalideceu.

- Coll. Ele...

- Não, milady. Mas está muito ferido.

Com mão delicada, ela tocou o rosto do filho.

- Vamos levá-lo para o quarto. Por aqui, por favor.

Atravessaram o hall de entrada e depois gal­garam uma reluzente escada de mogno, com Fiona à frente iluminando o caminho com uma vela. Uma vez no quarto, Brigham carregou seu amigo até a cama e o fez deitar. Enquanto lhe afrouxava a gola da camisa, uma jovem de compleição delicada chegou correndo.

- Mamãe...

- Gwen... Graças a Deus! - suspirou Fio­na. - Coll está muito ferido.

- Acenda as velas e os candeeiros, Molly - disse a jovem à criada que a seguira. - Vou precisar de muita luz.

Depois colocando a mão na testa do irmão, ela voltou-se para Brigham.

- Ele está febril. Quer me ajudar a tirar-lhe as roupas?

Brigham respondeu com um leve gesto de assentimento.

Enquanto as roupas de Coll caíam ao chão, Gwen deu breves instruções à criada para que providenciasse bacias de água, ataduras e ungüentos, e só então inclinou-se para examinar o ferimento. Quando Molly voltou com o necessário, não perdeu tempo: limpou delicadamente o corte e aplicou-lhe os medi­camentos que sua experiência prescrevera para tais casos.

Apesar de seus cuidados, Coll começou a queixar-se e a gemer. Ela despejou então um pouco de xarope de papoula numa taça de ma­deira, que introduziu por entre os lábios dele com a ajuda de Fiona. Quando o viu mergulhar em leve sonolência, sentou-se na beirada da cama e pôs-se a costurar a ferida.

- Temos que fazer baixar a febre, mamãe. É perigoso, no estado dele.

- Coll é forte como um touro - disse Fiona calmamente. - Vai resistir.

Enquanto banhava a testa do rapaz com água fria, ela voltou-se para Brigham e olhou-­o com gratidão.

- Obrigada por tê-lo trazido para casa. Pode nos contar o que aconteceu?

- Naturalmente. Sofremos uma emboscada a algumas milhas ao sul de Glenroe. Coll acre­dita que os atacantes pertençam ao clã dos Campbell.

- Então foi isso... - Fiona contraiu os lá­bios, mas prosseguiu, com voz tranqüila, educada: - Preciso me desculpar por não ter ain­da me apresentado. Sou Fiona MacGregor, a mãe de Coll.

- E eu Brigham Langston, grande amigo de seu filho.

Ela esboçou um leve sorriso.

- O conde de Ashburn, naturalmente. Coll escreveu-nos a seu respeito. Por favor, dê seu casaco a Molly e fique à vontade.

- Ele é inglês! - explodiu Serena do umbral.

Brigham virou-se para ela, surpreso. Havia desprezo em seus olhos verdes.

- Sei disso, Serena. - Fiona voltou a sorrir para seu hóspede. - Seu casaco, lorde Brigham. A jornada foi longa e acidentada. Tenho certeza de que gostaria de tomar uma refeição quente e de descansar um pouco.

Quando Brigham levantou-se e tirou o gros­so casacão de viagem, um grito abafado esca­pou dos lábios dela.

- Mas o senhor está ferido!

- Não é nada, senhora.

- Um simples arranhão - observou Serena com desdém e tentou aproximar-se da irmã. Um olhar de Fiona deteve-a.

- Leve nosso hóspede à cozinha e cuide de seu ferimento.

- Eu preferia cuidar de um rato! - excla­mou a jovem, os olhos cintilando de ódio.

Fiona ficou a olhá-la durante alguns se­gundos, o rosto como o de uma máscara de mármore.

- Você o fará. Está dito! Brigham interveio.

- Não é necessário, lady MacGregor.

- Desculpe, mas é necessário. O senhor está agora sob meu teto. - Ela virou-se para a filha. - Serena?

- Está bem, mamãe. Faço isso pela senho­ra. - A jovem curvou-se com um sorriso forçado. - Queira ter a bondade de me acom­panhar, lorde Brigham.

Interessado em observá-la, Brigham pare­ceu não notar a ironia e seguiu-a pelo corredor, e pelos dois lances de degraus estreitos da escada de serviço. A cozinha era aconchegante e recendia aos ricos aromas que evolavam de um caldeirão dependurado sobre o fogo e de uma assadeira cheia de tortas ainda quentes.

Serena indicou-lhe uma cadeira.

- Sente-se, my lord.

Ele a obedeceu.

- Espero que não desmaie à vista de san­gue, srta. MacGregor.

- E eu espero que o senhor não tenha um ataque de nervos, quando vir sua linda camisa arruinada!

Era mais do que um simples arranhão. Foi o que ela percebeu ao ver a mancha pegajosa a alargar-se sobre o ombro da camisa. E, em­bora o homem fosse inglês, sentiu-se um pouco envergonhada. Evidentemente, o corte abrira­-se quando carregara Coll para dentro de casa.

Cortou-lhe a camisa junto ao ombro e la­vou-lhe o ferimento. A carne dele era quente e macia sob seus dedos, e ele cheirava não a perfumes e a pó-de-arroz, como imaginava que todos os ingleses cheirassem, mas a cavalos, suor e sangue. Estranhamente, isso desper­tou-lhe uma certa piedade e tornou seus to­ques mais gentis do que ela pretendia.

"Ela tem o rosto de um anjo e a alma de um demônio. Uma combinação bastante interessante", pensou Brigham, reprimindo a cus­to a vontade de enterrar os dedos naquela pro­fusão de cabelos cor de fogo, encaracolados, que lhe desciam graciosamente pelo pescoço. "É um conjunto de encantos que nada fica a dever às mais formosas damas de Paris."

Sem perceber que estava sendo intensamen­te observada, Serena trabalhou com compe­tência e rapidez, limpando a ferida e aplican­do-lhe um dos ungüentos de ervas de Gwen. O odor era agradável e a fez pensar em bos­ques e flores. Mal notou que havia sangue inglês em seus dedos.

Ao alcançar as ataduras, ele ergueu a ca­beça. De repente, viu-se tão perto dele quanto um homem e uma mulher poderiam ficar sem estar abraçados. Notou que seus olhos eram cinzentos, mais escuros do que quando haviam pousado nela. Sua boca, de lábios bem deli­neados, curvara-se agora num princípio de sorriso, que transformava suas feições angulosas, emprestando-lhes uma inesperada lu­minosidade. Por um segundo, talvez dois, ficou imóvel, a olhá-lo.

- Vou viver? - murmurou ele.

Aí estava! A voz inglesa, zombeteira, pre­sunçosa! Não precisou de outra coisa para que desfizesse o clima de encantamento que co­meçava a instalar-se. Sorriu e apertou as ata­duras com tanta força que arrancou um ge­mido dos lábios dele.

- Oh! desculpe, my lord - disse então com fingida humildade. - Magoei-o?

Brigham cruzou calmamente as pernas, pensando que seria um prazer estrangulá-la.

- Não se importe com isso.

- Não me importarei. - Serena levantou­-se para remover a bacia. - É estranho, mas nunca imaginei que o sangue inglês fosse tão aguado.

- Não tão aguado quanto o sangue escocês que fiz correr hoje.

- Se era sangue dos Campbell, concordo. Mas não lhe fico grata por, isso.

- Mylady me ofende, se pensa que é gra­tidão que eu espero de você.

Sem mais uma palavra, ela virou-se e tirou do armário uma tigela de madeira, ao invés de um prato de louça fina, encheu-a de enso­pado e colocou-a com força sobre a mesa. A seguir, despejou um pouco de cerveja numa caneca de estanho, e jogou algumas bolachas de aveia num pratinho.

- Seu jantar, my lord. E tenha cuidado para não se engasgar!

Brigham levantou-se em toda a sua estatura e, pela primeira vez, ela notou que ele era quase tão alto quanto Coll, embora fosse mais esguio.

- Seu irmão me avisou que a senhorita era geniosa.

Serena pôs as mãos nos quadris e olhou-o através das pálpebras semicerradas.

- Sorte sua, my lord. Assim não fará a tolice de me contrariar.

Ele deu um passo na direção dela.

- Se pretende correr atrás de mim amea­çando-me com a espada de seu avô, como fez com seu irmão, pense duas vezes.

Ela apertou os lábios, como se estivesse su­focando o riso.

- Por quê? Tem pés ligeiros; Sassenach? - perguntou, usando o termo gaélico para de­signar o odiado invasor inglês.

Brigham sorriu e tomou-lhe a mão, levan­do-a aos lábios.

- Sou-lhe grato por seus cuidados e sua hospitalidade, srta. MacGregor.

Em resposta, Serena virou-lhe as costas e saiu da cozinha esfregando a mão na saia.

 

Naquela noite, depois de uma ceia leve mas satisfatória, Brigham retirou-se para os aposentos que lhe haviam sido destinados. Enquanto descansava, pensou que seu amigo descrevera os MacGregor com admirável exatidão.

Fiona era uma mulher encantadora, bem ­educada, mas de pulso firme. A jovem Gwen, tão doce, discreta e envergonhada, possuía, no entanto, uma extraordinária capacidade para atender um leito de enfermo e cuidar de ferimentos. Quanto a Serena... Coll nada dissera, mas sua irmã era uma loba com um rosto que rivalizaria com o de Helena de Tróia. Ela tinha bons motivos para não gos­tar dos ingleses. Achava, porém, que devia julgar os homens pelo que eles eram, não por suas nacionalidades.

"Devo também julgá-la pelo que ela é e não por sua beleza?", pensou. Quando ela come­çara a correr na direção do irmão, os cabelos esvoaçando ao vento e o rosto refletindo in­tensa emoção, ele tivera a impressão de ter sido atingido por um raio. Felizmente, não era homem de se deixar seduzir por um belo par de olhos e um lindo corpo. Viera à Escócia para lutar pela causa em que acreditava e não tinha que se preocupar se uma garota mal educada que o considerava como perten­cente a uma raça infame!

Levantou-se e, enquanto media o aposento com largas passadas, refletiu que, devido a seu alto nascimento, não tivera outro interesse na vida senão reverenciar o nome de sua família e cultuar a memória de seus antepassados.

Desde a mais tenra idade, aprendera que ser um Langston era não só um privilégio como uma responsabilidade. Não considerara nenhuma das duas coisas com leviandade. Se o tivesse feito, estaria agora em Paris, usu­fruindo dos prazeres e das extravagâncias de uma sociedade elegante, e não ali, nas montanhas da Escócia, arriscando tudo para apoiar um jovem príncipe em sua empresa.Debatia-se ainda com esse problema, quando uma batida na porta interrompeu sua reflexões.

- Sim? – perguntou, voltando-se.

A jovem criada que o recebera na chegada entrou e lançou-se em profunda reverência.

- Queira desculpar-me, Lorde Brigham.

Brigham suspirou, impaciente. - Posso saber do que está se desculpando?

- Lorde MacGregor chegou e deseja vê-lo. Se for de sua conveniência, senhor - disse a moça, ainda não se atrevendo a levantar a cabeça da humilde postura.

- Certamente. Descerei num minuto.

Quando ela saiu, Brigham escovou cuidado­samente o casaco de seu único traje formal. Trouxera consigo apenas uma muda de rou­pas, deixando na carruagem, que devia chegar a Glenroe no dia seguinte, o grosso de seus pertences.

Mas isso não o aborreceu. E assim, minutos depois, desceu as escadas, esbelto e elegante num traje negro com botões prateados. Uma camisa branca, enfeitada com um jabô de ren­das espumosas, complementava sua indumen­tária. Em Paris ou Londres, seguiria a moda empoando os cabelos. Mas ali, no campo, jul­gara de bom-tom dispensar tal cuidado e os penteara para trás simplesmente.

Lorde MacGregor esperava-o na sala de jan­tar, junto à lareira, cujas chamas crepitavam, altas, às suas costas. Os cabelos vermelhos, abundantes e longos, caíam-lhe até os ombros e uma barba da mesma cor cobria-lhe as faces. Em homenagem ao ilustre hóspede, ele en­contrara tempo para cuidar de sua pessoa. Es­tava irrepreensível no saiote pregueado que lhe assentava muito bem já que era tão alto e forte como seu filho. Como ele, usava um gibão de pele curtida, guarnecido com um bro­che de ouro representando uma cabeça de leão.

- Lorde Ashburn! O senhor é bem-vindo à Glenroe e à casa de Ian MacGregor!

O sorriso era cordial, os olhos desanuviados e a mão firme ao cumprimentar.

- Obrigado por acolher-me aqui! - Bri­gham aceitou a cadeira e o porto que lhe eram gentilmente oferecidos. - Posso saber como está Coll?

- Mais descansado, embora minha filha Gwen afirme que ele terá uma noite difícil.

Ian fez uma ligeira pausa.

- Coll escreveu-nos dizendo que o senhor é amigo dele. E mesmo que não tivesse dito, seria considerado como tal por trazê-lo de vol­ta para nós.

- Obrigado, senhor.

- A sua saúde, my lord. - Ele sorveu um longo gole de vinho e depois continuou: - Soube que sua avó era uma MacDonald.

- Efetivamente, senhor. Uma MacDonald da ilha de Skye.

O rosto de Ian, curtido pelo sol e pelo vento, abriu-se num largo sorriso.

- Nesse caso, é duplamente bem-vindo. – Ele ergueu novamente a taça e olhou para seu hospede com ar interrogativo. – Ao verdadeiro rei?

Brigham retribuiu o brinde.

- Ao rei que está além-mar - disse, sus­tentando com firmeza o olhar de Ian. - E à rebelião que virá.

- Sim, bebamos a isso - respondeu seu anfitrião, e virou a taça de um só trago. - Agora, diga o que aconteceu ao meu rapaz.

Brigham falou sobre a emboscada, descre­vendo com pormenores os homens que os ha­viam atacado. Enquanto ele falava, Ian incli­nou-se para a frente, não perdendo uma só palavra do que era dito.

- Morte infame aos Campbell! - vociferou ele, dando um soco na mesa e fazendo os copos tilintarem.

- Conheço um pouco da rivalidade que im­pera entre os clãs e os feudos, lorde MacGre­gor. E tudo leva a crer que a emboscada foi um simples caso de vingança pessoal. Mas não descarto a hipótese de que fomos o alvo de uma conspiração.

- Como assim?

- Os rumores sobre o apoio dos jacobitas ao legítimo rei podem ter chegado até aqui.

Ian afagou a barba, pensativo.

- Quatro contra dois, não foi? Não é tão es­tranho assim, quando se trata dos Campbell. Disseram-me que também o senhor foi ferido.

- Um arranhão. - Brigham encolheu os om­bros. - Quanto a Coll, foi uma infelicidade. Se o cavalo dele não tivesse escorregado, seu ad­versário não o teria colhido fora de guarda. Seu filho é um espadachim de primeira, my lord!

- Ele diz a mesma coisa do senhor. - Ian sorriu. Não havia nada que ele mais gostasse do que uma boa luta. - Não houve também uma escaramuça a caminho de Calais?

Brigham sorriu à lembrança.

- Uma simples diversão.

- Gostaria de ouvir toda a história. Mas, antes, conte-me tudo a respeito do Príncipe Galante e de seus planos.

Conversaram durante horas, enquanto as velas pingavam gotas de cera. Esvaziaram a garrafa de porto e esqueceram as formalida­des. Eram apenas dois homens unidos pelos mesmos ideais, ambos guerreiros por berço e temperamento. Poderiam lutar por razões diferentes, um numa desesperada tentativa de preservar seu modo de vida e suas terras, o outro por uma simples questão de justiça, mas lutariam sempre.

Quando se separaram, Ian para ver seu filho e Brigham para tomar um pouco de ar fresco e dar uma olhada em seus cavalos, sabiam tudo o que necessitavam saber um do outro.

Era tarde quando Brigham voltou da estre­baria. A casa estava silenciosa, o fogo abafado. Fora, o vento fazia estalar os galhos, lembran­do o quão distante se encontrava de Londres e de tudo que lhe era familiar.

Perto da porta, fora deixada uma vela acesa para guiá-lo na escada. Apanhou-a e começou a subir os degraus, embora não estivesse ain­da com sono. Os MacGregor haviam-no inte­ressado desde a primeira vez em que parti­lhara com Coll uma garrafa de vinho e a história de suas vidas. Sabiam que eram unidos, não apenas por obrigações familiares, mas por inquestionáveis laços afetivos e um amor co­mum à terra onde haviam nascido.

Naquela tarde, tivera ocasião de verificar isso. Não houvera choros e gritos, quando ele carregava Coll para casa, nem desmaios fe­mininos. Pelo contrário. Cada um fizera a sua parte. Era desse tipo de compromisso que o príncipe Charles necessitaria nos meses que viriam.

Ao chegar ao patamar, no topo da escada, não se dirigiu diretamente ao seu quarto, mas dobrou pelo corredor na direção do quarto de Coll. A porta estava aberta e as cortinas do leito corridas, deixando ver que seu amigo dormia sob o edredom de plumas. Sentada ao seu lado, Serena lia um livro à luz do castiçal.

Era a primeira vez que a via fazer jus a seu nome. A suave claridade, seu rosto calmo parecia extraordinariamente encantador. Ela trocara o vestido de casa por um chambre ver­de-escuro, fechado no pescoço, que acentuava a alvura de sua tez. Enquanto a observava de longe, com olhos especulativos, viu-a incli­nar-se para o irmão e tomar-lhe o pulso.

- Como está ele?

Ela sobressaltou-se e, quando ergueu os olhos, sua expressão transformou-se de súbito, dando lugar a uma atitude reservada e fria.

- A febre está ainda alta. Mas Gwen acha que baixará pela manhã.

Brigham deu alguns passos para a frente. O cheiro de remédios, misturado ao de papou­las, competia com o odor de resina das achas que ardiam na lareira.

- Coll me disse que ela sabe operar mila­gres com as ervas. Já vi médicos com mãos menos firmes do que as dela, no ato de coser uma ferida.

- Ela tem o dom de curar, além de um coração de ouro. Teria ficado a noite toda à cabeceira de Coll, se eu não a tivesse posto para fora do quarto.

- Então, a senhorita põe para fora todo mundo, não apenas os estranhos? - Ele a impediu de retrucar com um gesto de mão. - Acalme-se, minha querida, ou seus gritos irão acordar sua irmã e o resto da família.

- Não sou sua querida!

- Mera forma de expressão.

O enfermo mexeu-se no sono e Brigham perguntou:

- Ele já voltou a si?

- Uma ou duas vezes, mas não está ainda plenamente consciente.

Serena umedeceu uma toalha e banhou com ela a testa febril de seu irmão.

- É melhor o senhor se retirar. Poderá vê-lo amanhã de manhã.

- E a senhorita?

As mãos dela eram gentis ao cuidarem do irmão, e ele imaginou como seriam acarician­do-lhe o rosto.

- O que há comigo?

- Não tem ninguém que a leve para a cama?

Ela ergueu os olhos, plenamente consciente do significado daquelas palavras. Mas limi­tou-se a dizer:

- Sua vela está no fim, lorde Ashburn.

Brigham assoprou-a, mergulhando-os na doce intimidade da luz do único castiçal.

- Uma vela é suficiente.

- Espero que ache o caminho para seu quarto no escuro.

- Tenho uma vista excelente. - Com gestos lânguidos, ele apanhou o livro que ela estivera lendo. - Macbeth?

- Está admirado? As senhoras de suas re­lações não costumam ler?

- Algumas.

Brigham folheou rapidamente o livro, observando:

- É uma história de horror e de crime.

- E de poder. É a vida, my lord. Ela pode ser terrível, como os ingleses nos provam tão freqüentemente.

- Macbeth era escocês - lembrou-a ele. - E essa história degradante, de infortúnio e desespero, nada tem a ver com a realidade! É assim que vê a vida?

- Eu a vejo como ela pode ser.

Brigham encostou-se à mesa. O ponto de vista dela o interessava.

- Não vê Macbeth como um vilão?

- Por quê? Ele se apoderou do que, no seu entender, lhe pertencia.

- E seus métodos?

- Eram rudes, brutais. Talvez os reis devam ser rudes. O príncipe Charles não conquistará o trono pedindo por favor.

- Não. - Ele fechou o livro com um golpe seco. - Mas não se pode comparar traição com uma luta leal.

- Uma espada é uma espada, seja lançada pelas costas, seja no coração.

Brigham fitou-a. Os olhos verdes brilhavam como chamas à luz da vela, quando ela continuou:

- Se eu fosse homem, lutaria para vencer. E, para tal, usaria qualquer método.

- E a honra?

- Há mais honra na vitória!

- Acredita mesmo nisso?

- Houve uma época em que os MacGregor eram caçados como animais. E quando se é caçado como um animal, aprende-se a lutar como ele. Não esquecemos, lorde Ashburn. E não esqueceremos jamais!

- Estamos em outra época, Serena.

- E ainda assim o sangue de meu irmão foi derramado!

Num impulso, ele cobriu-lhe a mão com a dele.

- Dentro de alguns meses, muitos irão derramar seu sangue. Infelizmente, não por justiça, mas por vingança.

- Tanto melhor, se nos for dada uma oportunidade para a desforra! O senhor pode dar-se ao luxo da justiça, my lord. Nós, não!

Coll gemeu e começou a mexer-se e Serena voltou sua atenção para ele.

- A ferida irá abrir-se novamente. Segure- o, por favor, my lord.

Ela despejou um pouco de uma poção calmante e narcótica numa taça de madeira e levou-a aos lábios do irmão.

- Beba isso, querido.

Sua mão tremia e ela não se opôs, quando Brigham tirou o casaco e enrolou as mangas de punhos rendados, disposto a ajudá-la. Juntos, banharam o enfermo com água fria e o forçaram a tomar mais um pouco da poção de Gwen. Depois, permaneceram de vigília.

Brigham observava-a, enquanto ela se debruçava sobre a cama, ajeitando a cabeça ruiva de Coll nos travesseiros, ou falando-lhe em gaélico. Os sons, por mais ásperos que pudessem ser, tinham, vindos daquela bela jovem, um efeito romântico e agradável. Tocavam-lhe o coração pela doçura com que eram proferidos e pela expressão de bondade de quem os dizia.

Serena olhava-o de quando em quando, fur­tivamente. Ele estava obviamente preocupado com a saúde de seu irmão. Sem sua ajuda, ela seria forçada a acordar sua irmã ou a sua mãe. Assim, por algumas horas, procurou es­quecer que lorde Ashburn representava tudo o que desprezava no mundo e aceitou sua pre­sença no quarto.

De vez em quando, sobre a cama ou a mesa, suas mãos se roçavam. Porém, ambos procuravam ignorar essa pequena intimida­de. "Ele pode estar preocupado por Coll, mas, ainda assim, é um inglês", pensava Se­rena. "Ela tem mais inteligência e coragem do que qualquer mulher que já conheci, mas é o terror dos jovens escoceses", pensava Brigham.

Ao amanhecer, Coll havia superado a crise. Serena engoliu as lágrimas de alívio e ajei­tou-o bem na cama.

- A febre cedeu. Acho que o pior já passou, mas é melhor que Gwen verifique se as liga­duras estão no lugar e se os ferimentos apre­sentam melhoras.

- E quase dia. Agora, ele vai dormir um sono tranqüilo e reparador.

Brigham endireitou-se. O fogo, que havia alimentado durante a noite, ainda ardia na lareira. Ele desabotoara a camisa, para seu maior conforto, e Serena teve, nesse instante, a visão de um peito amplo e musculoso.

- Sim, já é dia - disse ela, caminhando para a janela a fim de esconder sua perturbação.

Brigham voltou-se para olhá-la: Os primei­ros clarões do amanhecer tingiam o horizonte, envolvendo-a em dourada opalescência. Os ca­belos vermelhos pareciam uma coroa real. O rosto, pálido de cansaço, era dominado pelos olhos, que pareciam maiores, mais escuros e mais misteriosos.

"Terá consciência da visão encantadora que proporciona?", perguntou-se.

Serena sentiu um calor estranho invadir-­lhe o corpo, enquanto ele a fitava. Queria que ele parasse com isso. Fazia-a sentir-se... fraca, vulnerável. Subitamente medrosa, desviou os olhos.

- Não há mais necessidade que o senhor permaneça aqui.

- Não, não há.

Ela deu-lhe as costas e Brigham tomou isso como uma ordem para que ele se retirasse. Fez uma curvatura irônica, e caminhou para a porta, mas parou no limiar, quando a ouviu soluçar.

- Não há necessidade de lágrimas. Coll está melhor.

Serena enxugou os olhos com a ponta dos dedos, envergonhada.

- Só percebi que estava com medo que ele fosse morrer agora que a crise passou.

Brigham ofereceu-lhe seu lenço.

- Enxugue as lágrimas.

- Obrigada.

- Melhor, agora?

- Sim. - Ela respirou fundo. - Mas gos­taria que o senhor se retirasse.

- Para onde quer que eu vá? Para o meu quarto ou para o diabo?

Os lábios dela curvaram-se num sorriso.

- Para onde quiser, my lord.

Ele sentiu a tentação de beijá-los e a cons­ciência disso espantou-o tanto quanto o sorriso dela. Queria sentir os lábios macios, entrea­bertos e cálidos sob os seus! Num impulso, alcançou-a e mergulhou os dedos naqueles ca­belos que pareciam feitos de luz, à claridade do sol nascente.

- Não - disse Serena, admirada de que sua negação soasse tão pouco convincente.

Ele tomou-lhe a mão e beijou-a.

- Você está tremendo.

- Não devia deixar que me tocasse.

Sem forças para evitar as sensações que a sufocavam, ela apoiou-se contra aquele peito forte e vigoroso, arquejando. Quando o viu abaixar a cabeça, fechou os olhos e entreabriu instintivamente os lábios.

- Serena?

Ela virou-se abruptamente e seu rosto ar­deu de vergonha ao ver-se diante de Gwen, que se debruçava sobre a figura adormecida de Coll.

- Pensei que estivesse ainda na cama - murmurou, aproximando-se. - Você dormiu apenas algumas horas.

- Foram suficientes? E Coll?

- A febre cedeu.

- Graças a Deus!

Envolta num chambre azul, com os cabelos dourados a lhe emoldurarem o rosto de feições delicadas, Gwen parecia realmente o anjo que Coll descrevera.

- Ele está dormindo e vai dormir por mais algumas horas - afirmou ela, quando se cer­tificou de que o irmão estava inteiramente li­vre dos sintomas febris.

Ao erguer os olhos, viu Brigham junto à ja­nela e surpreendeu-se.

- Lorde Ashburn! O senhor passou a noite em claro?

- Ele já ia se recolher - interveio Serena, nervosa.

- O senhor precisa descansar. Lembre-se de seu ferimento.

Brigham fez uma leve inclinação de cabeça. - Eu a agradeço por seu interesse. Mas não se preocupe. Vou direto para a cama. Os olhos dele deslizaram para Serena, irônicos.

- Seu criado, senhora.

Gwen sorriu, sonhadora, quando ele desa­pareceu nas sombras do corredor.

- Tão bonito...

A irmã encolheu expressivamente os ombros.

- Para um inglês...

- Foi muita gentileza da parte dele ficar à cabeceira de Coll, não acha?

- Não! E quero que ele apodreça numa fossa!

 

Brigham dormiu até as primeiras horas da tarde. Quando desper­tou, sentia-se bem-disposto. Seu ombro ferido estava rígido, mas não o incomodava. Anotaria isso como crédito a favor de Serena.

Jogou as cobertas para um lado, lançando um olhar distraído para seu casaco de mon­taria. Estava em péssimas condições, mas te­ria de vesti-lo assim mesmo, já que não podia usar um traje de noite àquela hora do dia! Até que seus baús chegassem, não havia outro jeito senão conformar-se com a situação.

Passou a mão pelo queixo barbudo, pensan­do o que diria seu criado de quarto se o visse naquele estado. O caro e fiel Parkins! Ficara aborrecido ao saber que iria permanecer em Londres enquanto seu patrão viajava para as bárbaras montanhas da Escócia. Embora conhecesse o verdadeiro propósito dessa viagem, ele não se mostrara menos ansioso em empreendê-la. Mas o que fazer com um criado de quarto em Glenroe?

Brigham olhou-se no espelho e, com um suspiro, pôs-se a escanhoar o queixo. Podia não ser capaz de dar um jeito no casaco amarrotado ou nas rendas de sua camisa, mas sabia barbear-se sozinho!

Meia hora depois, banhado e reanimado, desceu para o andar térreo. Encontrou Fiona MacGregor, usando um avental sobre o simples vestido caseiro, a esperá-lo no hall de entrada.

- Lorde Ashburn, espero que tenha descansado bem.

- Muito bem, lady MacGregor. Obrigado.

- Deve estar com fome, naturalmente.

Com um sorriso, ela colocou-lhe a mão no braço e conduziu-o à sala de jantar. Antes de entrar, fez um sinal à criada.

- Molly, diga à cozinheira que lorde Ashburn desceu e que gostaria de almoçar.

Na sala, já havia um lugar posto à longa mesa de carvalho.

- Prefere comer sozinho, ou gostaria que eu lhe fizesse companhia?

- Se quiser dar-me esse prazer, madame...

Com um sorriso Fiona aceitou a cadeira que ele lhe puxou.

- Ainda não o agradeci como devia. Quero me desculpar por isso e dizer quanto lhe somos gratos por ter trazido nosso filho para casa.

- Gostaria que ele tivesse chegado em melhores condições.

- O senhor o trouxe para nós e é isso que importa.

- Coll é meu amigo - disse Brigham com afeto.

Fiona tomou-lhe a mão e acariciou-a de leve. - Foi o que ele me disse. Mas isso não diminui a dívida que temos para com o senhor.

- Como está ele?

- Suficientemente bem para queixar-se. - O sorriso de Fiona era maternal. - Coll é como o pai, impaciente e impulsivo.

Falaram coisas banais, enquanto a refeição, preparada com esmero, era servida. Havia um caldo espesso de hortaliças enriquecido com grossas fatias de presunto, porções de peixe fresco com ovos, bolachas de aveia, café e uma grande variedade de geléias.

Brigham sentia-se confortável, à vonta­de. Achava o sotaque de lady Fiona encantador e sua conversa agradável. Esperava que ela lhe perguntasse o que havia discutido com seu marido na noite anterior, porém ela parecia contente com seu papel de dona de casa.

- Se quiser, my lord, remendarei seu casaco.

Ele olhou para a manga que a espada do bandido estraçalhara e fez um pequeno gesto de pesar.

- Acho que não tem mais conserto.

- Faremos o que for possível.

- Obrigado.

Continuaram nesse tom por mais cinco minutos, até que Fiona afastou a cadeira e levantou-se.

- Poderá desculpar-me, my lord? Tenho mui­to o que fazer até a chegada de meu marido.

- Lorde MacGregor partiu?

- Sim, mas voltará ao anoitecer. Também ele tem muito o que fazer, antes que o príncipe Charles comece a agir.

Brigham fitou-a com admiração. Jamais co­nhecera uma mulher que considerasse a ameaça de uma guerra com tanta calma! Fez­lhe uma reverência cortês e subiu ao andar superior. Do corredor, ouviu Coll resmungar:

- Não vou comer esse grude!

- Vai comer, sim! - Era a voz de Serena. - Gwen fez isso especialmente para você.

- Não adianta insistir. Não vou comer e ponto final!

Ficou a observá-los por um instante do li­miar, depois entrou no quarto. O amigo recebeu-o com um suspiro de alívio.

- Chegou em boa hora, Brig! Mande-a levar de volta essa papa horrível. Eu quero comer carne. Carne! - repetiu ele com mais vigor. - E tomar uísque!

Brigham aproximou-se da cama e deu uma espiada no mingau ralo que enchia a tigela.

- Não é nada apetitoso.

- Foi o que eu disse. - Coll apoiou a cabeça no espaldar da cama e tornou a suspirar. - Ninguém, a não ser uma mulher teimosa, es­peraria que eu comesse esta lavagem.

- Tivemos presunto no almoço.

Os olhos do escocês brilharam.

- Presunto?

- Cozido, no ponto certo. Cumprimente sua cozinheira por mim, srta. MacGregor.

- Meu irmão precisa comer mingau de aveia - disse ela entre dentes -, e é isso que ele vai comer!

Brigham deu de ombros e sentou-se na bei­rada da cama.

- Isso é com você, Coll.

- Mande-a embora daqui!

- Terei prazer, certamente, em fazer tudo o que estiver a meu alcance. Mas acho perigoso recorrer a mim. Sou inglês!

Coll virou-se para a irmã.

- Vá para o diabo, Serena! E leve este min­gau de aveia com você!

- Muito bonito! É assim que agradece o esforço de Gwen? Ela não só cuidou de você, mas teve até o trabalho de lhe preparar algo com suas próprias mãos. Levarei a bandeja para baixo, se é isso que você quer. E direi a Gwen que prefere jejuar a comer o mingau que ela fez!

Virou-se e caminhou para a porta. Mal havia dado dois passos, Coll a chamou:

- Com mil demônios, Serena! Volte e me dê essa bandeja!

Ela aproximou-se dele com um sorriso e en­fiou a colher no mingau.

- Abra a boca, querido.

- Não preciso de sua ajuda. Vou comer sozinho!

- E respingar mingau sobre os lençóis lim­pos? Nada disso, meu irmão!

Brigham levantou-se.

- Já vou indo, Coll. Bom apetite.

O rapaz agarrou-lhe o pulso.

- Não me deixe sozinho. Ela... - Ele fez uma pausa, quando sua irmã enfiou-lhe uma colherada de mingau na boca. Depois de engolir, continuou: - Ela é o diabo em pessoa, Brig!

Brigham voltou-se para Serena.

- Verdade?

Ela deu de ombros, com indiferença.

- É, acho que sou.

Coll conteve a custo o riso e perguntou em tom casual:

- Soube que recebeu uma estocada no om­bro, Brig.

- Coisa à toa. Sua irmã já cuidou disso.

- Gwen é um anjo!

- Ela estava muito ocupada - explicou Brigham. - Foi Serena quem tratou dos ferimentos.

- Tratando de um inglês, irmãzinha que­rida? - disse Coll e todo o seu rosto era um grande sorriso.

- Farei você engolir essa colher, Coll Mac­Gregor! - ameaçou ela.

- E preciso mais do que o arranhão de uma espada para me pôr fora de combate, mocinha. Tenho ainda forças para dar-lhe umas boas palmadas no traseiro!

Ela lhe enxugou delicadamente a boca com o guardanapo.

- Lembra-se da última vez que tentou fazer isso, querido?

Coll fez que sim com a cabeça e voltou-se para Brigham.

- A moça é valente, Brig! Ela me deu um pontapé... - Ao notar o olhar furioso que a irmã lhe lançava, ele concluiu, apressado: - Ela me feriu o orgulho.

- Vou me lembrar disso, se um dia chegar a discutir com a srta. MacGregor.

Coll recostou a cabeça no travesseiro e suspirou.

- A moça mais linda de Glenroe... Mas que gênio, Brig! Tão diferente daquelas lindas e doces francesinhas de cabelos dourados...

- Tive o trazer de descobrir isso por mim mesmo, meu amigo.

- Ela me forçou a tomar essa droga...

- Que tarefa ingrata cuidar de um irmão doente! - atalhou Serena com brandura.

- Amo você, Serena - murmurou ele, fe­chando os olhos.

- Sei disso. E agora durma.

Ela o aconchegou ternamente no edredrom de plumas, deixando-se ficar um momento a contemplá-lo. Depois, apanhou a bandeja e fez menção de sair do quarto.

- A senhorita dormiu bem? - perguntou Brigham, bloqueando a passagem.

- Bem, obrigada. - Serena tentou manter o sangue-frio. - Desculpe-me, lorde Ashburn, mas tenho muito o que fazer.

- Lorde Ashburn... Para que tanta forma­lidade? Afinal, passamos a noite juntos!

Ela lançou-lhe um olhar de puro ódio.

- Por quem me toma? Por uma daquelas francesinhas da corte do rei Luís? Guarde sua intimidade para elas!

Ele sorriu, divertido.

- Sabe que tem os olhos mais incríveis que já vi? Quando fica zangada, eles ardem como duas chamas verdes!

Serena corou profundamente. Sabia como li­dar com a lisonja, como aceitá-la, ou descar­tá-la. Mas era difícil manter a confiança em si mesma, quando sua vontade estava em luta com a daquele homem forte, altivo e resoluto.

- Deixe-me passar.

- Logo agora que a conversa está ficando interessante?

- Para o senhor!

Brigham agarrou-a pelo braço.

- Você teria me beijado, não teria, se sua irmã não tivesse aparecido?

- Saia da minha frente!

Nesse instante, um garoto de cerca de dez anos, cabelos ruivos e olhos verdes, chegou cor­rendo pelo corredor e estacou à porta do quarto.

- Malcolm! - disse Serena, levando o dedo indicador aos lábios. - Não faça barulho, Coll está dormindo.

- Que pena! Eu queria vê-lo.

- Você pode dar uma espiada nele, mas antes vai ter que se lavar. Está parecendo um garoto de estrebaria!

- Eu estava com a égua. Ela vai dar cria dentro de um ou dois dias.

- Isso não é desculpa.

- Está bem. Voltarei mais tarde. - Antes de virar-se, o menino apontou para Brigham. - É ele o maldito inglês?

- Malcolm! - disse Serena, escandalizada. Depois, corando, acrescentou: - Queira des­culpá-lo, my lord.

Brigham lançou-lhe um olhar zombeteiro. Sa­bia de quem o garoto ouvira a expressão ofensiva.

- Não quer nos apresentar?

- Meu irmão Malcolm, lorde Ashburn.

- Seu criado, sr. MacGregor - disse ele, com voz calma e impessoal.

O menino sorriu diante do tratamento formal. - Meu pai gosta do senhor – confidenciou ele. - E também minha mãe e Gwen.

Os lábios de Brigham curvaram-se num leve sorriso.

- Sinto-me honrado.

- Soube que tem os melhores cavalos de Londres. Nesse caso, eu também vou gostar do senhor!

Brigham desmanchou-lhe os cabelos e olhou para Serena.

- Viu só? Outra conquista.

Ela ergueu o queixo e ignorou-o.

- Vá se lavar, Malcolm.

- Elas estão sempre querendo que eu me lave - disse o menino com um suspiro. - E bom que haja mais homens na casa!

 

Cerca de duas horas depois, a carruagem de lorde Ashburn chegou a Glenroe causando sensação. O conde era um homem requintado e seu aparato de viagem não constituía exce­ção. A carruagem, negra com adornos de pra­ta, era conduzida por um cocheiro vestido de preto, com o auxílio de um jovem palafreneiro, instalado a seu lado, na boléia.

- Ei, garoto!

O cocheiro saltou ao chão e chamou um me­nino, que estava sentado à margem da estra­da, admirando a carruagem.

- Onde fica o solar MacGregor?

- Siga em frente. A casa fica no alto da colina. Esta é a carruagem do lorde inglês?

- Acertou, garoto.

Satisfeito, o menino apontou para o alto.

- Ele está morando lá em cima.

Brigham viu quando a carruagem parou no pátio do solar e começou a descer as escadas de pedra.

- Por que demoraram tanto?

- Peço desculpas, my lord. As estradas es­tavam ruins.

Ele apontou para os baús.

- Traga-os para dentro, Wiggins.

- Pois não, my lord.

- Os estábulos ficam atrás da casa, Jem. Leve os cavalos para lá. Vocês já comeram?

O jovem palafreneiro, cuja família servia os Langston durante três gerações, saltou ao chão, meio tonto.

- Apenas um bocado, milorde. Wiggins es­tava com pressa.

- Tenho certeza de que encontrarão uma refeição quente na cozinha. Se vocês...

Brigham interrompeu-se quando a porta da carruagem abriu-se, e um homem, mais altivo do que um duque, pôs o pé no estribo.

- Parkins!

Seu criado de quarto inclinou respeitosa­mente a cabeça.

- My lord.

Então ao notar o estado dos trajes do patrão, ele estremeceu e sua voz encheu-se de horror:

- Oh, my lord!

Brigham olhava para ele, a boca entreaber­ta, como se estivesse vendo um fantasma. De­pois de um longo silêncio, explodiu:

- Mas o que está fazendo aqui?

- O senhor precisa de meus cuidados. Eu sabia que tinha de vir e, agora, não tenho mais dúvidas a esse respeito. Vou dar ordens para que os baús sejam levados imediatamen­te para os aposentos de my lord.

- Não vai fazer coisa nenhuma! Não preciso de um criado de quarto aqui no campo!

Parkins não se deixou dispensar com tanta facilidade.

- Faz vinte anos que sirvo à família Ash­burn. E vou continuar a servi-la. Não voltarei para Londres.

Brigham suspirou fundo. Era difícil perma­necer insensível à lealdade e à nobre cortesia do homem.

- Pelo inferno, entre! Aqui fora está um gelo! - disse, tomado de ligeiro desespero.

Parkins subiu os degraus com toda a dig­nidade que lhe foi possível.

- Cuidarei imediatamente da bagagem de my lord. - Ele lançou um olhar aflito ao casaco do patrão. - Se pudesse persuadi-lo a me acompanhar, eu o deixaria apresentável num minuto.

Brigham cruzou os braços sobre o peito e estudou-lhe o rosto pálido e contraído. Por fim, disse, com um sorriso aberto:

- Bem-vindo à Escócia, Parkins!

Um ligeiro rubor animou as faces descoloridas de seu criado.

- Obrigado, my lord.

 

Jem conversava com Malcolm, completa­mente à vontade, quando Brigham empur­rou a pesada porta de carvalho o entrou na estrebaria.

- Ouviu certo, sr. MacGregor. Lord Ash­burn tem, efetivamente, os melhores cavalos de Londres. E sou eu que cuido deles!

- Gostaria que cuidasse também da minha égua, Jem. Ela vai dar cria em breve.

- Com muito prazer, sr. MacGregor.

- Jem!

O rapaz virou a cabeça. Quando viu seu patrão parado à porta da estrebaria, endireitou-se.

- Sim, senhor. Os cavalos estarão prontos num piscar de olhos.

Malcolm voltou-se também.

- O senhor tem belos cavalos, lorde Ash­burn. Gostaria de conduzi-los.

- Por que não? - Brigham tirou o capote de lã e preparou-se para trabalhar. - Talvez, num dia desses você queira me mostrar suas habilidades guiando minha carruagem.

Não havia meio mais rápido para conquistar o coração do menino.

- Verdade? - disse ele, entusiasmado. - Sua carruagem é muito pesada, senhor. Temos uma carruagem leve, de duas rodas, mas mi­nha mãe não permite que eu a guie sozinho.

- Irei com você, está bem?

Brigham afagou-lhe os cabelos e depois virou-se para examinar seus cavalos.

- Eles parecem em boa forma, Jem. Vá dar uma olhada na égua do sr. MacGregor.

- Não gostaria de vê-la também, senhor? - disse Malcolm. - Ela é uma beleza!

- Terei imenso prazer.

O menino tomou-o pela mão e guiou-o através da estrebaria até uma das baias.

- Aí está minha Betsy.

Ao ouvir seu nome, a pequena égua castanha enfiou o focinho por entre as ripas do portão e fungou.

- É uma lady encantadora.

Brigham esfregou-lhe o focinho aveludado e ela o fitou com olhos calmos e interrogadores.

- Betsy gostou do senhor! - disse Malcolm, exultante.

Na baia, Jem examinava a égua, que permanecia quieta, suspirando ocasionalmente, quando seu ventre estremecia, ou agitando o rabo.

- Ela irá dar cria logo - confirmou o cavalariço. - Dentro de um ou dois dias, segundo meus cálculos.

- Eu queria dormir aqui, mas Serena não vai permitir - queixou-se Malcolm.

- Não se preocupe. Betsy está em boas mãos agora.

- Jem me avisará quando chegar o momento, senhor?

- Claro! Não se preocupe. - Brigham colocou a mão no ombro do menino. - Não quer levá-lo até a cozinha? Ele ainda não almoçou.

- Oh, sim! A sra. Drummond terá imenso prazer em lhe preparar alguma coisa para comer.

- Boa tarde, lorde Ashburn

- Brig, por favor - sugeriu ele.

Malcolm sorriu e apertou a mão que lhe era oferecida. Então, dirigiu-se para a porta, convidando o cavalariço a segui-lo.

- Jem - disse Brigham, antes que seu empregado saísse. - Lembre-se de que ele é jovem e impressionável. Não solte pragas nem maldições na frente dele, ou a culpa recairá sobre mim.

- Sim, milorde. Prometo que saberei me comportar.

Brigham deixou-se ficar ali. Talvez porque o estábulo estivesse silencioso e os cavalos fossem boa companhia. Gostava deles e podia, se necessário, arrear uma parelha tão rapidamente quanto seu cavalariço, ou ajudar uma égua no trabalho de parto. Em outra época, acalentara o sonho de criar cavalos. Mas tivera de esquecê-lo, quando herdara não só o título como as responsabilidades que isso comportava.

Porém, não era em cavalos ou nos sonhos perdidos que pensava agora. Era em Serena. E talvez porque seus pensamentos estivessem tão concentrados nela, não ficou surpreso ao vê-la entrar na estrebaria envolta numa grossa capa de lã.

Também ela estava imersa em pensamentos. Não fizera outra coisa no decorrer da manhã, senão pensar no homem que se hospedava em sua casa e comia em sua mesa. Por que per­mitira que ele a tocasse e a olhasse daquele modo? Lembrou-o de pé junto à janela, a luz da manhã envolvendo-o em seu brilho. Seus olhos haviam-se tornado tão escuros...

Sabia quando um homem a olhava com inte­resse. Já havia sido cortejada por alguns, fora beijada e sentira-se até mesmo excitada. Porém nunca havia experimentado uma emoção tão po­derosa como a que ele lhe despertara.

No entanto, estava disposta a resistir, a fazer valer sua independência. Quando tivesse uma nova oportunidade de deparar-se com o arro­gante conde Ashburn, saberia como tratá-lo!

Suspirou e olhou em torno da estrebaria mergulhada em obscuridade.

- Malcolm, seu diabinho! Vou levá-lo para casa nem que seja à força. Você ainda não terminou suas tarefas!

- Sinto muito, mas a senhorita terá que pro­curá-lo na cozinha. - Brigham saiu das som­bras, satisfeito em surpreendê-la. - Acabei de mandá-lo para lá junto com meu cavalariço.

Ela fitou-o com altivez.

- Com que direito? Ele não é seu criado!

Brigham chegou mais perto e notou que as cores da capa, que lhe caía em amplas e gra­ciosas pregas em torno do corpo esbelto, com­binavam com o tom de seus cabelos.

- Malcolm tomou-se de simpatia por Jem. Também ele, como seu irmão, tem um grande amor pelos cavalos.

O coração de Serena enterneceu-se, como acontecia sempre que se tratava de Malcolm.

- Ele não sai daqui. Tenho sempre quer vir buscá-lo e levá-lo para casa à força. - Ela fez uma pausa. - Não permita que ele o perturbe.

- Malcolm e eu nos entendemos muito bem.

Brigham deu mais um passo a frente. Ela cheirava a lavanda, um aroma leve e casto que parecia fazer parte de sua personalidade.

- Precisa descansar, Serena. Você está dor­mindo em pé.

- Eu estou bem, obrigada. E estaria ainda melhor se o senhor não me tratasse com essa insolente familiaridade!

- Gosto do seu nome. Serena...

"Soa diferente nos lábios dele", pensou ela, perturbada.

- O senhor impressionou meu irmão com seus cavalos, não foi isso?

- Ele é um tipo mais acessível do que a irmã.

- O senhor não tem nada que possa im­pressionar-me, my lord.

- Não acha cansativo desprezar tudo o que é inglês?

- Não. Acho gratificante.

Brigham sorriu.

- Por que temos de discutir o tempo todo?

Por um breve instante, o coração de Serena amoleceu, mas ela reagiu depressa, fazendo reavivar o ódio que alimentava há tanto tem­po. Não podia perder a batalha!

- Porque, para mim, o senhor é apenas um nobre inglês que quer tudo à sua maneira! Como pode estar preocupado com as condi­ções de nosso povo se nada sabe a nosso res­peito? Se ignora os atos de falsidade, opressão e tirania?

- Sei muito mais do que pensa - disse ele, controlando-se.

- Enquanto o senhor ficava ao abrigo de sua linda casa em Londres, ou de seu solar no campo, sonhando com os novos valores e as grandes mudanças sociais, nós tínhamos de lutar apenas para conservar o que era nos­so! O que o senhor sabe sobre nossos anseios, ou sobre a frustração de não sermos capazes de fazer outra coisa senão esperar?

Brigham agarrou-a rudemente pelos ombros.

- Não me faça acreditar que compartilha da hostilidade que seu povo alimenta contra o meu! Você me despreza, Serena?

- Sim! - gritou ela com todas as suas forças.

- Porque sou inglês?

- Não é uma boa razão para desprezá-lo?

- Não! E vou dar-lhe outra melhor!

"Para minha satisfação e para acalmar essa ânsia que está me consumindo", pensou ele.

Ela girou o corpo e tentou escapar, mas Bri­gham estava preparado para isso e agiu com rapidez. No momento em que lhe tomou a boca, ela cessou de lutar. Os lábios dela eram macios, suaves. Com um gemido, envolveu-a pela cin­tura, pressionando-lhe os seios contra o peito.

Serena reconheceu a própria vulnerabilida­de. Dissera que o desprezava e o odiava, mas seus sentimentos, seu coração e seu corpo di­ziam coisas muito diferentes. Uma excitação febril a tomou de assalto, levando-a a aban­donar-se contra aquele peito forte, correspon­dendo ao beijo apaixonadamente.

Brigham sentiu-lhe a doçura da língua e a volúpia dominou-o por completo. Encostou-a num pilar de pedra e tornou a cobrir-lhe a boca com beijos profundos e possessivos.

- Bom Deus, onde você aprendeu a beijar assim?

"Aqui, nesse instante", quis dizer Serena. Mas a vergonha e a confusão fizeram-na calar-se. Ela permitira não só que ele a beijasse, mas correspondera aos seus beijos! Precisou de al­guns segundos para recuperar o auto-domínio.

- Deixe-me ir - murmurou então, com voz fraca.

- Não sei se posso.

Ele quis acariciar-lhe o rosto, mas, sabendo o que poderia ocorrer se fraquejasse de novo, Serena empurrou-o rudemente e cruzou os braços sobre o peito.

- Não!

Brigham permaneceu onde estava e tentou recuperar o fôlego. Um momento antes, ela correspondera aos seus beijos como o faria uma cortesã, versada na arte do amor. Mas, agora, a indignação estampada no rosto deli­cado o fez cair em si.

Tentara seduzir a irmã de seu amigo, a filha de seu anfitrião na estrebaria como se ela fosse uma mulher fácil!

- Queira aceitar minhas profundas descul­pas, srta. MacGregor. Meu comportamento foi imperdoável!

Ela ergueu as pálpebras, a revolta brilhando nos olhos.

- Se fosse homem, eu o mataria!

- Se a senhorita fosse homem, eu não teria do que me desculpar.

Ele curvou-se cortesmente e saiu da estre­baria, esperando que o ar fresco pudesse de­sanuviar sua cabeça.

 

“Eu o teria matado!", pensou Se­rena. Com uma espada! Não, a espada era muito limpa, muito civilizada para um verme inglês. A menos que a usasse para cortá-lo em pedacinhos, ao invés de ter­minar sua vida inútil com um único golpe no coração! Ela sorriu, satisfeita, imaginando a cena. E ninguém diria, ao vê-la sentada no alto do tamborete batendo manteiga, o retrato da doçura feminina, que pensamentos tão terríveis pudessem ocupar-lhe a mente.

"Ele não tinha o direito de me beijar, de se impor! E muito, menos de me fazer gostar dis­so!", tornou a refletir, apertando o pilão com mais força. Miserável cão inglês! E ela cuidara do atrevido com suas próprias mãos e depois o servira à mesa. Devia, isso sim, ter-lhe ar­rancado os olhos e colocado nas órbitas tições ardentes!

Parou um instante, sufocada. Se contasse a seu pai o que o conde Ashburn ousara fazer... Seu olhos cintilaram ao considerar essa pos­sibilidade. Seu pai mandaria chicotear o patife sem piedade!

A idéia de um conde inglês, arrastando na lama a sua nobreza e a sua arrogância, trouxe calma a seu coração e a fez sorrir novamente. Mas preferia manejar o chicote pessoalmente: faria o miserável ajoelhar-se a seus pés, im­plorando perdão!

Recomeçou a bater, pensando em como era triste que amasse a violência. Isso preocupava sua mãe. Pena que não tivesse herdado a do­çura dela, ao invés do gênio indomável do pai. Mas não podia mudar sua natureza. Não ha­via dia em que não perdesse a calma, sofrendo, depois, as agruras da culpa e do remorso.

Soltando um profundo suspiro, continuou sua monótona tarefa. Sua mãe saberia exata­mente como enfrentar lorde Ashburn e seus indesejáveis avanços. Ela o poria imediata­mente no seu lugar, tratando-o com distante altivez. E quando ele externasse suas inten­ções, o fitaria com tal indignação, que o ca­nalha não teria outro remédio senão abaixar humildemente a cabeça.

Quanto a si própria, confessava que não sa­bia lidar com os homens. Quando eles a abor­reciam, o que acontecia com freqüência, fa­zia-os saber disso em linguagem audaciosa. "E por que não"?, pensou. Não era pelo fato de ser mulher que devia comportar-se com brandura e pretender mostrar-se desvanecida, quando um homem tentava cortejá-la com afe­tada galanteria!

- Vai estragar a manteiga com esses olha­res assassinos, querida - observou de repente a cozinheira.

Serena encolheu os ombros.

- Estava pensando nos homens, sra. Drummond.

A cozinheira, uma mulher corpulenta, de ca­belos grisalhos e cintilantes olhos azuis, soltou uma gostosa gargalhada.

- A mulher deve ter um sorriso nos lábios, quando pensa nos homens. Um sorriso os atrai com mais facilidade.

- Não quero saber de homens à minha vol­ta. Eu os detesto!

A sra. Drummond terminou de abrir a mas­sa da torta de maçã e então perguntou:

- O jovem Rob MacGregor voltou a persegui-la?

- Ele não se atreveria!

- É um belo rapaz - ponderou a mulher.

- Mas não é suficientemente bom para ne­nhuma de minhas moças. Quero que você seja cortejada, desposada e levada para a cama por um homem de condição superior.

- Não quero ser cortejada e muito menos desposada ou levada para a cama!

- Agora não, querida. Quando chegar a hora. - A sra. Drummond abriu um largo sorriso. - É um prazer ter um homem nos braços.

- Não quero me prender a um homem ape­nas pelos prazeres do leito conjugal!

- Não há motivo melhor para justificar o casamento! Mas desde que seja com o homem certo. O meu Duncan sabia cumprir seus de­veres e houve noites em que eu adormecia grata por isso. - Ela suspirou fundo. - Que sua alma repouse em paz.

- Ele fazia você sentir-se... - Serena fez uma pausa à procura das palavras adequadas. - Como se estivesse galopando na direção de um abismo?

A sra. Drummond olhou-a com desconfiança.

- Rob não voltou mesmo a aborrecê-la?

- Com Rob, é como cavalgar colina acima num pônei cansado - disse Serena com malícia.

Foi com essa expressão que Brigham a viu, quando entrou na cozinha. Os dedos longos cer­rados em volta do pilão, as saias arregaçadas e o rosto iluminado por um sorriso. Diabo de mulher! Por que não podia deixar de olhá-la?

Sua entrada foi silenciosa, mas Serena pres­sentiu-o e virou a cabeça. Seus olhos encon­traram-se brevemente, quase em desafio.

Aquela troca de olhares durou apenas uma fração de segundo, mas não passou desperce­bida à sra. Drummond. E ela logo soube o que deixava Serena possessa de raiva. Ou me­lhor, "quem" era a causa de sua inquietação.

"Então é isso"?, pensou, divertida, e não pôde sufocar um sorriso. Um choque de vontades... Era um bom modo de começar um na­moro, e o conde Ashburn tinha qualidades, além de um rosto e um corpo que faziam até seu coração de viúva bater com mais força.

- Em que posso servi-lo, my lord?

Brigham virou-se para ela.

- Coll está com fome e a senhorita Gwen acha que um pouco de sopa lhe fará bem.

Ainda sorrindo, a sra. Drummond dirigiu-se para o caldeirão que estava sobre o fogo.

- Vou mandar servi-lo imediatamente. Im­porta-se se eu lhe perguntar, my lord, como está meu rapaz?

- Coll dormiu bem e está com uma apa­rência melhor. A senhorita Gwen considera seu estado satisfatório, embora acredite que ele deva guardar o leito por mais alguns dias.

- Ela pode conseguir isso. Deus sabe que só ela e mais ninguém consegue domar aquele rapaz!

A sra. Drummond virou-se e surpreendeu Serena olhando para o conde através das pál­pebras semicerradas. Ficou a observá-la de soslaio, com olhos investigadores, e depois tor­nou, em tom natural:

- Apreciaria um pouco de caldo, my lord? Ou um pedaço de torta de carne?

- Obrigado, mas estou de saída. Vou à estrebaria.

- Isso é que é homem! - disse ela, entu­siasmada, quando ele saiu.

- Ele é um inglês - observou Serena, como se isso explicasse tudo.

- É verdade. Mas um homem é um ho­mem. De saiote ou de calções. E os dele assentam-lhe bem!

Serena sufocou uma risadinha.

- Uma mulher direita não notaria isso.

- Só se fosse cega!

A sra. Drummond colocou a tigela de sopa numa bandeja, acrescentando, por conta pró­pria, um pratinho com um pedaço de torta de framboesa e depois observou:

- O criado de quarto que lorde Ashburn trouxe de Londres é um verdadeiro cavalheiro. Gostei do homem.

Serena sorriu com desdém.

- Imagine, trazer um criado só para cuidar das roupas dele!

- Os nobres costumam fazer as coisas a seu modo - disse a cozinheira, pensativa. - Parece que esse Parkins não é casado.

- Pobrezinho! Deve estar ocupado demais com as rendas de lorde Ashburn para ter sua própria vida.

"Pode ser que ele ainda não tenha encon­trado a mulher que lhe fizesse valer isso", pen­sou a sra. Drummond e um ar de satisfação estampou-se nos olhos dela.

- Acho que o sr. Parkins devia engordar um pouco.

 

Nobreza, pensou Serena, horas depois, tor­cendo o nariz. Sangue azul não significava ab­solutamente nobreza! E tampouco fazia de um homem um cavalheiro. Um aristocrata, talvez, que não sentia a necessidade de justificar escrupulosamente a sua conduta.

De qualquer modo, ela não ia desperdiçar seu tempo pensando no conde Ashburn. Fazia dois dias que não punha o nariz para fora da porta de casa, ocupada com tarefas domésticas que haviam aumentado com a doença de Coll. E agora que dispunha de algum tempo livre, iria aproveitar para dar um passeio a cavalo. Sua mãe, provavelmente, não aprovaria que saísse quase na hora do jantar. E também não aprovaria o velho calção de montaria que estava usando. Mas tomaria cuidado e, com um pouco de sorte, ninguém notaria sua saída furtiva.

Cautelosa, levou sua montaria para o portão dos fundos da estrebaria e depois guiou-a a passo moderado na direção das colinas cober­tas de liquens e urzes brancas. Mas no instante em que os bosques fecharam-se à sua volta, estimulou a égua, que passou do trote a um galope acelerado. Sua capa enfunava-se ao vento, o ar gelado chegava a doer-lhe nos pulmões, mas a sensação de liberdade supe­rava qualquer incômodo.

- Livre! Sou livre! - gritou, com o rosto a brilhar de contentamento, e sua voz ecoou no silêncio do bosque.

Por um instante ainda, permitiu-se saborear esse encantamento. Subitamente, outras lem­branças afloraram-lhe à mente. Seu sorriso desvaneceu-se, e ela suspirou, sentindo-se es­tranhamente envergonhada de seu bem-estar. Provavelmente, teria que falar com seu con­fessor, como havia feito quando deixara a es­cola do convento, em Inverness.

"Seis meses da minha vida jogados fora," lembrou. Seis meses longe da casa que amava para conviver com aquelas jovens afetadas que, estimuladas por suas famílias, haviam metido em suas cabeças ocas que iriam tor­nar-se damas!

Fora um sacrifício inútil, no seu entender. Sua mãe já a havia ensinado a dirigir uma casa. E quanto às boas maneiras, não havia dama mais fina nas redondezas do que Fiona MacGregor. Filha única de um grande pro­prietário de terras, ela tivera uma educação refinada, aprimorada por temporadas em Pa­ris e Londres.

Só era mesmo necessário que soubesse com­portar-se em sociedade, e só Deus sabia por quê, poderia aprender isso em sua própria casa, onde a conversa não girava apenas em torno de vestidos, penteados e da última moda em Paris!

Continuou a estimular a égua até aproxi­mar-se do rio. Aí, então, puxou suavemente as rédeas, para que a agitação do animal se abrandasse aos poucos, e respirou fundo o ar fresco e revigorante. Os raios do sol poente lançavam uma luz pálida, que permanecia suspensa sobre os ramos quebrados e os tron­cos nodosos dos pinheiros e dos carvalhos. Seria agradável sentar-se à beira da água por alguns minutos. Se tivesse tempo, teria cavalgado até a charneca. Era seu lugar prefe­rido, quando estava perturbada ou precisava coordenar as idéias.

"Hoje estou tranqüila", pensou, enquanto desmontava. Queria apenas gozar de um ins­tante de solidão. Prendeu as rédeas do animal num galho de árvore e então esticou sensual­mente os braços. Um pensamento repentino e excitante fez seus olhos brilharem e seus lábios entreabrirem-se.

- Lindos bailes em Londres... - murmu­rou, baixinho.

Sua mãe lhe descrevera esses bailes. Os es­pelhos, o chão encerado, o brilho dos imensos candelabros. Lindos vestidos e jóias cintilan­tes. E música! Fechou os olhos, tentando fan­tasiar a cena e, acima dos sons murmurantes do regato, julgou ouvir trechos de um minueto.

Os olhos ainda fechados, a mão estendida para um par invisível, começou a mover-se ao compasso da melodia imaginárias. Sorrindo, executou uma volta perfeita.

Estaria usando um vestido de cetim verde e usaria os cabelos penteados para o alto e empoados, para que os brilhantes nele semea­dos cintilassem como gelo sobre a neve. Todos os homens presentes ficariam encantados. Dançaria com todos, girando, parando e cur­vando-se em profundas e graciosas mesuras.

Ele estaria lá, vestido de negro e prata, como na noite em que permanecera à cabeceira de Coll, misterioso e sedutor como nunca, à luz da única vela e do clarão da lareira. No baile, as luzes seriam cegantes e incidiriam sobre os bo­tões de seu traje e as fivelas de seus sapatos.

Enquanto a música flutuava no ar, olhariam um para o outro. Ele sorriria, fazendo seu co­ração disparar, e lhe estenderia a mão, que se uniria à dela, palma contra palma. E então...

Sentiu que alguém lhe prendia a mão e abriu os olhos, ainda abismados no sonho. Ele estava de negro, como imaginara, mas era um simples traje de montaria, sem enfeites prateados ou o brilho das jóias.

- Senhora... - Sorrindo levou-lhe a mão aos lábios. - Parece que está sem par.

- Eu estava... - Serena puxou a mão e escondeu-a atrás das costas. - O que está fazendo aqui?

- Estava pescando com Malcolm até há poucos instantes. Ele quis voltar para dar uma espiada em Betsy.

O rosto dela ardeu de vergonha, ao lembrar-se que devia ter parecido tão ridícula como uma adolescente com a cabeça cheia de sonhos ro­mânticos, dançando um minueto sem par!

- Malcolm não devia ter vindo aqui. Ele tem muito o que fazer lá em casa.

- Ele me assegurou que fez tudo pela manhã. Brigham sentou-se numa rocha e estudou-a atentamente.

- Posso perguntar se costuma dançar so­zinha nos bosques... E de calção?

Os olhos de Serena chamejaram.

- O senhor não tinha o direito de ficar me espiando!

- Eu estava sentado à margem do riacho, pensando nas trutas que iria pescar, quando vi alguém chegar velozmente pelo bosque, as­sustando meus peixes. Fiquei curioso, como era natural.

- Se soubesse que o senhor estava aqui, teria tomado outro caminho!

- Seria uma pena. Não teria o privilégio de vê-la de calção.

Em resposta, Serena virou-lhe as costas e deu dois passos na direção do cavalo.

- Para que tanta pressa? Está com medo de mim?

Ela voltou-se, um lampejo súbito iluminan­do-lhe o rosto.

- Não tenho medo de ninguém!

Brigham olhou-a com admiração. Encanta­dora! Não havia outra palavra para descrevê­la. Seus olhos pareciam duas gemas e seus cabelos, que lhe caíam pelos ombros, uma cas­cata de fogo. Além do mais, conduzira o cavalo pela floresta intrincada com uma facilidade que revelava destreza no manejo do animal. Não podia negar sua coragem e seu estilo.

Nem negar que sua aparência o perturbava. O calção de montaria realçava com discreta sensualidade as linhas perfeitas do corpo e a blusa justa, enfiada no cós, quase revelava a curva dos seios ofegantes.

- Talvez você devesse ter medo - murmurou. - Neste momento, estou experimentando toda sorte de intenções desonestas.

Serena sentiu um arrepio súbito percorrer-lhe a espinha, mas simulou indiferença.

- O senhor não me assusta, lorde Ashburn. Já enfrentei situações piores!

- Posso imaginar!

Ele levantou-se e caminhou para ela, silencioso e ameaçador.

- Mas você ainda não teve que se haver comigo. Duvido que consiga me dominar a tapas, como fez com os outros.

- Farei pior do que isso, se o senhor tocar um só fio de meus cabelos!

- Qual é o motivo dessa aversão? Eu já me desculpei pelo que aconteceu na estrebaria.

- Oh! O que aconteceu na estrebaria? Não me lembro!

Brighan chegou mais perto.

- Nesse caso, deixe-me refrescar sua memória. Eu estava com uma mulher nos braços. Não uma jovem tímida e inexperiente, mas uma mulher reclamando seu natural direito ao prazer.

- Como se atreve? - explodiu ela. - Um cavalheiro não falaria comigo desse modo!

- Talvez não. Mas uma dama não usaria calção.        

Serena mordeu os lábios. A acusação se aproximava muito da verdade. Ela não era uma dama e jamais o seria, apesar de todos os seus esforços.

- Seja como for, não permito que me insulte!

- Não permite, mas não faz outra coisa senão cobrir-me de injúrias pelo fato de eu ser inglês e nobre!

Deixando de lado todas as precauções, ele a agarrou pelos ombros.

- A ironia de tudo isso é que você se veste como um homem, fala como um homem, mas quando lhe convém, alega sua condição de mulher para exigir respeito!

- Não estou exigindo nada!

Ela jogou a cabeça para trás, parecendo uma jovem leoa, no ardor da argumentação.

- Se eu o insultei foi porque o senhor mereceu. Vamos nos entender, lorde Ashburn. O senhor pode encantar minha família, mas a mim é que não engana!

- Essa é a menor de minhas preocupações! - murmurou Brigham por entre os dentes.

- Parece que suas preocupações dizem respeito apenas às rendas de seus trajes e ao brilho de suas botas! O senhor chegou em mi­nha casa dizendo-se preocupado com a sorte da Escócia, mas até agora não fez coisa algu­ma por nós.

- Esse é problema meu!

- E meu também. Há aí um engano, e é isso que quero que me explique!

- Nada tenho a discutir com você, Serena.

- Pelo visto, o senhor não pode mudar nada. Nada do que aconteceu antes, nada do que está ainda por vir!

Brigham apertou-lhe o braço com mais força.

- Não posso revelar nossos planos, mas vou lhe dizer uma coisa: quando chegar a hora, haverá uma grande mudança.

- E quem irá se beneficiar com isso?

Ele a puxou rudemente para si.

- O que está querendo insinuar?

- Não acredito que o senhor, ou outro nobre inglês, se interesse realmente pelo destino da Escócia. O que está fazendo aqui, lorde Ash­burn? Vendo de que lado sopra o vento?

Um lampejo de ira brilhou nos olhos dele.

- Desta vez, você foi longe demais!

Ela estremeceu, mas não resistiu ao desejo de desafiá-lo.

- Já que não quer me explicar por que mo­tivo abraçou nossa causa, eu estou livre para pensar o que quiser!

- Pode "pensar" o que quiser, mas deve ter mais cuidado com suas palavras.

Serena nunca o vira tão zangado. Não sabia que seus olhos podiam arder como duas brasas, ou que sua fisionomia pudesse endurecer-se tan­to, a ponto de parecer esculpida em granito!

- O que vai fazer? Atravessar-me o coração com uma espada?

- Não seria justo, você está desarmada. Mas não nego que sinto uma vontade irresistível de estrangulá-la.

Sem deixar de fitá-la, ele envolveu-lhe o pes­coço com as duas mãos.

- Você têm um pescoço macio, Serena. Fle­xível, fácil de ser partido.

Ela arregalou os olhos e prendeu a respiração. Depois, num gesto instintivo de defesa, pôs-se a esmurrá-lo no peito com os punhos cerrados.

- Solte-me!

- Solto quando bem entender. Na estreba­ria, você não protestou quando...

Inadvertidamente, as mãos de Brigham ro­çaram os seios dela, um contato que surpreen­deu a ambos e intensificou a luta.

- Víbora! - explodiu ele, quando recebeu um chute na canela que o fez perder o equilíbrio.

Abraçados como dois amantes, rolaram so­bre uma cama de agulhas de pinheiros e de folhas secas. Serena lutava como um gato sel­vagem e proferia impropérios em gaélico. Estava assustada com a estranha reação de seu corpo. Odiava-o, porém, se ele a tocasse novamente, iria perder o autocontrole.

O amargo reconhecimento de sua própria vulnerabilidade a estimulou a lutar com mais ardor. Mas quando seus corpos se colaram, uma onda de calor invadiu seu corpo. Os mús­culos de seus quadris relaxaram e, por um instante, sua visão enevoou-se.

Brigham não perdeu tempo. Agarrou-a pelos pulsos com uma única mão e ergueu-lhe os braços acima da cabeça. O rosto dela estava rosado pelo esforço e os cabelos, entremeados de folhas secas, caíam-lhe pelas costas como fios de ouro.

Quis falar com calma, mas ela tornou a es­forçar-se para escapar, e seus movimentos bruscos, sua respiração ofegante, ameaçaram descontrolá-lo uma vez mais.

- Serena, pelo amor de Deus... Tenho san­gue nas veias. Se continuar a debater-se, logo irá descobrir isso!

- Largue-me - murmurou ela, arquejante.

- Ainda não. Você acabaria comigo.

- Ah! Se eu tivesse um punhal...

Brigham recobrou o fôlego e pôs-se a olhá-la.

- Meu Deus, como você é linda! Isso me dá vontade de provocá-la sempre!

Com a mão livre, seguiu-lhe o contorno dos lábios.

- Simplesmente tentadores...

Serena fez um esforço supremo e conseguiu virar o rosto, evitando o beijo. Mas quando ele começou a acariciar-lhe o pescoço com os lábios, um gemido escapou de sua garganta. Num movimento instintivo, ela ergueu os qua­dris, ansiando por um contato mais íntimo.

O corpo retesado num momento, flexível e macio no outro, era uma tentação. Brigham cobriu-o com o dele e, suavemente, correu as mãos pelas curvas delicadas. Depois, pôs-se a passear a boca pelo rosto ardente. Mordiscou-­lhe a orelha, desceu os lábios ao longo do quei­xo, e então, lentamente, tomou-lhe os lábios entreabertos.

Sentiu-lhe o hálito fresco, enquanto sua lín­gua penetrava a boca quente e adocicada. Te­ria ainda de lhe ensinar muita coisa. Ela não devia saber que, do contato de mãos, bocas e corpos se desencadeava uma infinidade de sensações deliciosas.

Ansioso para que ela encontrasse o prazer, tocou-a em pontos sensíveis, despertando-lhe desejos e deleites que até então haviam sido ignorados.

Serena fechou os olhos e aspirou o aroma al­miscarado da pele de Brigham, flutuando num mundo sem idéias, insuportavelmente excitan­te. Sentiu o leve fluxo e refluxo da respiração dele contra seus cabelos, experimentou a doce sensação de dedos gentis acariciando-lhe as fa­ces, e depois a percepção desses mesmos dedos descobrindo a curva suave de seus seios.

- Brigham... - murmurou, com voz entre­cortada pela emoção.

Incapaz de resistir, ele massageou os seios até sentir os bicos rígidos sob seus dedos. Ansiava por tomá-los em sua boca para ex­perimentar-lhes o sabor. Em vez disso, porém, cobriu-lhe a boca quase brutalmente, deixando, apenas por um momento, prevale­cer seus impulsos.

Serena estremeceu quando a paixão substi­tuiu o langor, e uma sensação quase insupor­tável de prazer a dominou. Mas não se rendeu e, tremendo, começou a lutar contra ele, contra si mesma.

- Não. Não faça isso - murmurou, agi­tando-se entre os braços que a enlaçavam.

Diante de suas queixas abafadas, Brigham ergueu a cabeça. Nos olhos verdes havia medo e confusão, não só desejo. Endireitou-se e sol­tou-a bruscamente, e depois esperou até re­cuperar o próprio autocontrole.

- Não tenho desculpas - disse por fim. - Exceto que eu a desejo. E só Deus sabe por quê.

Serena tinha vontade de chorar. Queria que ele a tomasse nos braços e a beijasse. Mas gentilmente, como fizera a princípio.

- Só os animais deixam prevalecer seus instintos, my lord!

- Muito bem dito - murmurou ele, saben­do exatamente como ela se sentia. - Mas há alguma coisa em você, Serena, que excita mi­nhas emoções primitivas. Eu lhe asseguro, porém, que saberei controlá-las no futuro.

Ela inclinou levemente a cabeça.

- É o que eu espero.

Depois, levantou-se e alisou as roupas. En­quanto recolhia as rédeas de sua montaria, sen­tiu a mão dele em seus cabelos e retesou-se.

- Por favor, não!

- Há folhas em seus cabelos - murmurou Brigham, lutando contra o desejo de atraí-la para si.

- Não tem importância.

- Eu a magoei?

Ele disse isso com tanta suavidade, que a raiva de Serena quase desapareceu. E teve que lutar consigo mesma, para que sua res­posta fosse seca e sua voz impassível.

- Não me dobro facilmente, my lord.

Recusando a mão que lhe era oferecida, ela lançou-se sobre a sela, apertou os flancos do cavalo com os calcanhares e partiu a toda brida.

 

- O que espera que eu faça?

- Que fique preso a este lei­to, como um entrevado, enquanto você e meu pai saem em campanha pelo príncipe?

- Por que não? - disse Brigham.

- Esqueça-se disso!

Coll levantou-se cambaleante da cama e ficou longo tempo parado, como se não estivesse se­guro de habitar seu próprio corpo. Sua cabeça girava e ele teve que se apoiar a uma das co­lunas para arrancar a camisola de dormir.

- Onde estão as minhas roupas?

- Como posso saber?

- Não sabe onde foram guardadas?

- Sinto muito, mas não sei. - A voz de Brigham suavizou-se. - Vou levá-lo de volta para a cama, antes que desmaie.

- Ainda vai chegar o dia em que verá um MacGregor perder os sentidos!

- Já aconteceu uma vez, lembra-se?

Coll soltou uma torrente de pragas e, com esforço, caminhou até a arca das roupas.

- Sei como se sente, meu amigo. É difícil permanecer impassível, enquanto outros se movimentam ao nosso redor. Mas você não está ainda em condições de suportar a viagem.

- Pois eu lhe digo que estou.

- Gwen afirma que não.

- Que direito tem aquela garota de contro­lar minha vida?

- O direito de quem o salvou.

Coll passou a mão pela barba, que deixara crescer, e permaneceu mudo.

- Seria uma pena ver todo o trabalho dela perdido só porque você é orgulhoso demais para guardar o leito, até se restabelecer.

- Maldito seja o Campbell que me impos­sibilitou de sair com meu pai para convocar os chefes dos clãs! Estou ansioso para parti­cipar dos debates, Brig!

- Haverá tempo para isso, Coll. Estamos apenas no começo da campanha.

Brigham sorriu aliviado, ao perceber que a cólera de seu amigo estava esfriando, e já conseguia raciocinar com clareza. Quanto ao gênio, era muito parecido com a irmã. Pena que Serena não se acalmasse com a mesma rapidez!

- Quero lembrá-lo de que o objetivo de nos­sa saída é uma inocente caçada na floresta. É isso, pelo menos, que queremos que os ou­tros acreditem.

- Compreendo. Coll sabia que não estava suficientemente forte para viajar rumo ao oeste. E, se insistisse nesse propósito, iria retardar seus companheiros.

- Irão se encontrar com os MacDonald e os Cameron?

- Acredito que sim. Os Drummond e os Fergusson se farão representar por seus emissários.

- Não deixem de falar com o Camerom de Lochiel. Ele foi sempre fiel aos Stuart. E suas opiniões são ouvidas e respeitadas por toda a comunidade.

Coll correu os dedos pela farta cabeleira acobreada.

- Com todos os diabos! Eu devia estar lá, com meu pai, para mostrar a todos que estou do lado do príncipe!

- Ninguém irá duvidar disso - começou Brigham, mas interrompeu-se quando Gwen entrou com a bandeja da refeição matinal.

- Espero que não tenha feito arrebentar nenhum ponto - disse ela, inclinando-se para olhar o ferimento do irmão.

Coll panhou rapidamente o lençol e cobriu-se.

- Tenha um pouco mais de respeito, menina!

Com um sorriso gentil, ela colocou a bandeja na mesa e depois virou-se para Brigham.

- Bom dia, Brig.

- Brig, hein? - murmurou Coll, olhando um e outro com olhos indagadores. - Parece que vocês dois se tornaram bastante íntimos!

- Dispensamos todas as formalidades, en­quanto estávamos à sua cabeceira.

Brigham vestiu o capote e depois fez um gesto rápido na direção da cama.

- Parece que seu paciente vai lhe dar um pouco de trabalho, Gwen. Ele está fora de si.

- Coll não me dá trabalho algum - res­pondeu ela, suavemente, enquanto afofava os travesseiros. - Venha, querido. Você se sen­tirá melhor depois de ter tomado sua refeição. Mais tarde se quiser dar um passeio pelo jar­dim, eu o acompanharei.

Brigham sufocou uma risada. O pequeno anjo de Coll não tinha o domínio e altivez de sua irmã mais velha, mas sabia fazer-se obedecer.

- Você está em boas mãos. Agora posso ir embora.

- Brig...

Ele colocou as mãos nos ombros do amigo. - Estarei de volta dentro de uma semana. Muito fraco para discutir, Coll disse apenas:

- Que Deus o acompanhe.

Brigham abriu a porta e saiu para o corre­dor. Mas parou bruscamente ao ver Parkins à sua espera com um saco de viagem na mão.

- Resolveu voltar para a Inglaterra, Parkins?

- Pelo contrário, my lord. Pretendo acom­panhá-lo em sua caçada.

- Que eu seja danado se vou permitir isso! - exclamou Brigham, com súbita ira na voz.

Um pequeno tremor no canto da boca de Parkins foi a única indicação de seu nervosismo.

- Eu o acompanharei, senhor.

- Não seja teimoso, homem! Se precisasse levar alguém comigo, levaria Jem. Ele, ao menos, sabe cuidar dos cavalos.

Parkins manteve-se firme.

- Estou convencido de que lorde Ashbun irá precisar de meus serviços.

- E eu estou convencido do contrário! explodiu Brigham, passando por ele e dirigindo-se para a escada.

- Pode ir, agora.

Seu criado não deu sinal algum de retirar-se.

- Vou acompanhá-lo, my lord.

Lentamente, quase certo de não ter compreendido, Brigham voltou-se para ele. Sua atitude era respeitosa, mas despida de qualquer sombra de receio ou servilismo.

- Você está intimado a ficar aqui! - ordenou-lhe, com fria precisão.

- Lamento profundamente contrariá-lo, senhor - respondeu Parkins com voz grave. - Mas tenho consciência de que meus serviços serão necessários.

- Estou com uma vaga idéia de despedi-lo, sabia?

- Essa é uma prerrogativa de V. Excia. Mas eu irei assim mesmo.

- Pois então vá! - Brigham virou-se, exasperado, e pôs-se a descer a escada.

- Mas vá por sua própria conta. E não se preocupe com minhas botas ou minhas roupas!

Plenamente satisfeito, Parkins sorriu.

- Sim, my lord.

Brigham saiu resmungando para a estreba­ria. O dia começara mal. Já havia travado duas discussões! Enfiou o grosso casacão, pensando que seria um alívio montar seu cavalo preferido e cavalgar para longe dali. Enquanto caminha­va, lançou um olhar a uma das janelas do solar. "Longe dela", quase emendou com raiva.

Depois daquela tarde, Serena passara a evi­tá-lo, mal lhe dirigindo algumas palavras se­cas e pedantes à hora do jantar. Não esperava tamanha frieza. Afinal, ela era a única culpada! Atacara-o verbalmente e depois atraca­ra-se com ele num corpo a corpo tão ardente, que a situação escapara ao seu controle. A necessidade de quebrar-lhe a resistência con­vertera-se numa obsessão. E a custo contro­lara a ânsia de arrancar-lhe as roupas e apos­sar-se dela de corpo e alma.

Ela zombava dele, provocava-o, censurava­o... fascinava-o. Que fosse para o inferno!

Chutou uma pedra e desejou poder descar­tar-se de Serena com a mesma facilidade. Seria ótimo passar uma semana longe dela. Quando voltasse, aquela loucura teria passado. Então, ele a trataria com o respeito devido à irmã de seu melhor amigo, mas com total desinteresse.

Não pensaria, em hipótese alguma, no modo como aquele corpo encantador reagira às suas carícias, nem lembraria o gosto daqueles lá­bios sôfregos e macios ao calor de seus beijos. E preferia ser consumido lentamente nas cha­mas do inferno, a recordar com que doçura ela dissera seu nome no instante da paixão. Não, mil vezes não! Poderia até matá-la, se ela atravessasse novamente seu caminho.

Ainda zangado, chegou à estrebaria. Antes que pusesse a mão na aldrava, a porta abriu­-se e Serena emergiu do interior. Estava pá­lida, com os olhos pisados e o corpete do ves­tido manchado de sangue.

- Serena, meu amor, você está ferida... - Segurou-a pelos ombros e puxou-a contra si. - Quem lhe fez isto?

- O quê?

Cansada e tensa, ela se deixou abraçar e apoiou a cabeça no peito dele.

- Brig... Lorde Ashburn...

Era difícil até pensar, quando ele a manti­nha aninhada em seus braços.

- Onde está o infame que a magoou? - perguntou Brigham, desembainhando subitamente a espada.

Serena olhou-o com assombro.

- A quem quer matar? E por quê?

- Por quê? - Ele a fitou transtornado. - Você está coberta de sangue e ainda pergunta por quê?

Confusa, ela olhou para o próprio vestido. Depois explicou:

- Jem e eu estivemos trabalhando a noite toda no parto de Betsy. Ela teve gêmeos, e o segundo potrinho não vinha à luz tão facil­mente quanto o primeiro.

- Oh...

- O senhor não está se sentindo bem?

Brigham deu um passo para trás.

- Eu estou muito bem! E peço-lhe que me perdoe. Não sabia a razão desse sangue em seu vestido.

Por um instante Serena ficou sem saber o que dizer. Ele havia erguido a espada como se estivesse disposto a enfrentar um exército por ela. E a chamara de "meu amor"... Mas quando conseguiu abrir a boca, as palavras saíram formais, inadequadas:

- Preciso mudar de roupa.

Sentindo-se um perfeito tolo, Brigham pro­curou mascarar sua confusão.

- A égua e as crias estão passando bem?

- Sim, muito bem.

Serena tornou a olhar para o vestido e, de repente, sentiu vontade de rir. Não deixava de ser engraçado: Lorde Ashburn empunhan­do a espada, como um anjo vingador, para defendê-la de um inimigo imaginário!

- Chame a isso um acidente, se quiser - disse, sem conseguir conter um riso nervoso.

- Meu engano a diverte, senhora? - A voz dele soou fria e ríspida.

Ela suspirou.

- Desculpe se o ofendi. Mas estou muito cansada.

Ele fez menção de abrir a porta.

- Não quero prendê-la mais.

"Não pode deixá-lo ir embora zangado", de­safiou-a sua consciência. "Não é justo!"

- My lord.

Ele virou-se, o olhar gélido, a expressão indecifrável.

- Sim?

As palavras custavam a vir-lhe aos lábios. Não podia despedir-se dele com um simples voto de boa viagem. Outro qualquer teria se contentado com isso: mas não aquele inglês indomável e altivo!

- O senhor vai partir com meu pai e os homens da aldeia?

- Vou.

- Desejo-lhe boa sorte... na caçada.

Brigham ergueu as sobrancelhas. Ela tam­bém sabia. Mas não era tão surpreendente assim, tratando-se de uma MacGregor!

- Obrigada, senhora!

Ela o fitou com intensidade antes de acrescentar:

- Eu daria tudo para acompanhá-lo!

Antes que ele pudesse refazer-se da surpre­sa, Serena recolheu as saias e saiu correndo.

Ele ficou parado à porta, vendo-a descer apressadamente para a casa. Era a mais ter­rível das ironias: estava apaixonado por ela! Acompanhou-a com os olhos e suspirou fundo. Estava apaixonado por uma mulher que pre­feria lhe enfiar uma adaga no coração antes de entregar-lhe o seu!

 

A jornada constituiu-se numa longa e difícil cavalgada por campos desolados, convertidos em duro gelo. O vento varria a sua superfície, deixando expostas rochas nuas e arestas con­geladas que se assemelhavam às águas cres­pas de um lago branco. No horizonte, picos cinzentos e fragas escarpadas emergiam sob o peso da neve.

Cavalgaram durante horas sem ver uma única choupana. Por fim, após atravessarem uma ponte arruinada, avistaram uma aldeia construída na encosta de um monte. A che­gada de um grupo de cavaleiros era um acon­tecimento raro naquelas paragens, e todos saí­ram às portas de suas casas para cumprimen­tá-los e ouvir as últimas notícias.

Era uma Escócia agreste, freqüentemente estéril, mas onde a hospitalidade imperava em toda a sua amplitude. Ao meio-dia, fize­ram uma parada e foram convidados para almoçar na cabana de turfa de um pastor. Havia uma sopa grossa feita de cevada, ba­tatas e trigo, pão ázimo, morcela e cerveja. Todos fizeram honra à mesa, sabendo que a refeição simples constituía um festim naque­las colinas solitárias.

- Receio que privamos o pastor e sua fa­mília de seu estoque de alimentos – observou Brigham, quando de novo mergulharam na de­solação que reinava fora, rumando para o oeste.

- O proprietário das terras onde trabalham providenciará para que não lhes faltem nada. Essa é a lei dos clãs - tranqüilizou-o Ian MacGregor.

Ele cavalgava ereto na sela e parecia infatigável.

- Homens como esse proprietário acham que o príncipe Charles fará a Escócia prosperar.

- E os Cameron?

- São também valentes e devotados à cau­sa. Quando os encontrar em Glenfinnan, poderá julgá-los por si mesmo.

- Os jacobitas necessitarão de bons solda­dos e também de bons generais. A rebelião só será bem-sucedida se o príncipe cercar-se de conselheiros sábios.

Ian lançou-lhe um olhar penetrante.

- Você traduziu os verdadeiros motivos de meus receios.

Brigham olhou em torno. O solo rochoso era um campo de batalha perfeito. Os homens que integravam a comitiva, e os que ali viviam, deviam conhecer suas vantagens e seus pontos fracos.

- Se travarmos batalha aqui, venceremos. E a Bretanha será unificada.

- E o maior desejo ver um Stuart no trono da Inglaterra - afirmou Ian. - Mas já vi outras guerras acontecerem. Em 1715 e em 1719. E vi extinguirem-se todas as esperanças de liberdade. Não sou tão velho assim para que meu sangue não se aqueça à idéia de lutar, à esperança de consertar os velhos erros. Mas esta será minha última batalha.

- Você viverá para ver outras, Ian.

- Esta será a última - tornou ele a dizer. - Não para mim, mas para todos nós.

Enquanto se aproximavam de Glenfinnan, uma rude mas imponente fortaleza, a neve começou a descer em rajadas enceguecedoras dos altos dos picos situados a oeste, e o vento a soprar com fúria sobre as águas revoltas do lago. A música da gaita de fole, quebrando o silêncio do céu pesado, coberto de nuvens plúmbeas, anunciou a chegada da comitiva. E, enquanto flocos de neve molhada caíam a seu redor, Brigham compreendeu por que um homem podia chorar seus mortos ou lutar ao som daquelas notas.

Uma vez dentro do castelo, os criados se encarregaram da bagagem e cuidaram para que os fogos fossem alimentados. Quando o uísque começou a circular livremente, Donald MacDonald proferiu a saudação habitual, er­guendo a taça à altura da cabeça.

- Bem-vindo a Glenfinnan, senhores. A sua saúde, Ian MacGregor.

Ian bebeu, os olhos aprovando a excelência do uísque de seu anfitrião.

- E à sua, Donald.

Preenchida essa formalidade inicial, Mac­Donald voltou-se para Brigham.

- Lorde Ashburn, meu velho amigo deixou-­o à vontade?

- Inteiramente, obrigado.

- Então o senhor é filho de Mary MacDo­nald, de Sleatin Skye?

- Neto, my lord.

- Eu me lembro de sua avó, embora fosse apenas um menino naquela época. Era uma linda moça. Foi ela que o criou?

- Sim, depois que meus pais morreram. Eu tinha dez anos então.

- Parece que ela fez um bom trabalho. - MacDonald sorriu. - A ceia será servida logo.

- E os outros chefes? - perguntou Ian, olhando à sua volta.

- Chegarão amanhã?

Um leve ruído de passos no corredor fez MacDonald voltar a cabeça. Então abriu um sorriso.

- Ah! Aí está minha Margaret. Lembra-se dela, Ian?

Brigham virou-se para a porta e viu uma jovem de compleição miúda e cabelos escuros, vestindo um traje formal de veludo azul-es­curo, que combinava perfeitamente com a cor de seus olhos. Ela inclinou-se numa reverência e depois adiantou-se para Ian com as mãos estendidas e um sorriso que abriu covinhas em suas faces delicadas.

- Aqui está nossa moça!

Ele beijou-a em ambas as faces e depois re­cuou para admirá-la.

- Você cresceu, Maggie.

- Faz dois anos que não nos vemos - disse ela com voz suave.

- Sua filha é o retrato da mãe, Donald. Não puxou a você, graças ao Senhor!

Havia orgulho na voz de MacDonald, quan­do ele disse:

- Lorde Ashburn, permita que lhe apre­sente minha filha Margaret.

Maggie fez outra reverência e estendeu os dedos para Brigham.

- My lord.

- Srta. MacDonald... É um prazer ver um lírio-do-vale nestas rudes paragens.

Ela deu uma risadinha.

- Obrigada, my lord. O senhor é grande amigo de Coll, não?

- Sou, sim.

- Pensei... - Os olhos dela voltaram-se para Ian. Seu filho não o acompanhou, lorde MacGregor?

- Não por vontade dele, Maggie. - Ele sor­riu, paternal.

- Há alguns anos eu era o tio Ian, lembra-se?

Ela ergueu-se na ponta dos pés e beijou-lhe o rosto barbudo.

- Para mim, o senhor será sempre o tio Ian.

MacGregor afagou-lhe os cabelos e depois voltou-se para o seu anfitrião.

- Coll e Brigham tiveram alguns problemas durante a viagem de Londres para cá.

- Vai ter que contar isso, Ian.

Houve um tremor na voz de Maggie, que revelava mais do que ela teria desejado manifestar, quando perguntou:

- Ele foi ferido?

- Já está convalescendo, querida. Mas Gwen achou que ele não estava ainda suficientemente forte para viajar.

- Diga o que aconteceu, por favor! MacDonald sorriu para a filha.

- Mais tarde, querida. Agora, faça com que um criado acompanhe nossos hóspedes a seus quartos. Poderão lavar-se e descansar um pou­co antes do jantar.

- Oh! Desculpe-me. Eu mesma lhes mos­trarei o caminho.

Graciosamente, ela recolheu as saias e guiou os visitantes pela escada em caracol. No cor­redor, ela estacou.

- O jantar será servido dentro de uma hora, se lhes convém.

- Nada me conviria mais - disse Ian, afa­gando-lhe a mão. - Você se tornou uma linda moça, Maggie. Sua mãe sentiria orgulho de você. Ela o fitou com olhos angustiados.

- Tio Ian... Coll foi seriamente ferido? Ele sorriu.

- Coll está se restabelecendo bem. Não se preocupe.

Jantaram com elegância, sentados ao redor de uma grande mesa de carvalho, em cujo cen­tro havia ostras enormes, salmão preparado de diversos modos, como também pato assado, aves miúdas regadas com molho de groselha e quartos de carneiro, acompanhados de um clarete precioso. Para finalizar, foram servidos pastéis recheados com uvas passas, maçãs e amêndoas, tortas, pêras cozidas, confeitos.

Maggie executava seus deveres de dona de casa com graça e competência. Quando ela dei­xou a mesa, a fim de que os homens sabo­reassem sozinhos o porto, havia encantado a todos, de Ian a seu mais humilde dependente.

A conversa girou então sobre política. En­quanto os criados traziam velas e alimentavam o fogo, debateram e dissecaram as inten­ções do rei Luís, discutiram o apoio a ser dado aos jacobitas e ao príncipe Charles.

Ali, naquela imponente sala de jantar de um castelo da Alta Escócia, havia o consenso geral de sustentar incondicionalmente o belo príncipe, acreditando que à gloria que ele conquistaria com seus feitos de armas se somaria a glória de um governo bem conduzido.

Falou-se muito e era tarde quando Brigham recolheu-se a seu quarto. O fogo ardia na la­reira, as pesadas cortinas abafavam os ruídos exteriores. Deitado em sua cama, ouvindo o vento esquadrinhar os postigos das janelas, seus pensamentos, indisciplinados, voltaram­-se outra vez para Serena.

Estaria ela repousando tranqüilamente, ou acordada, como ele, a mente em turbilhão, o corpo tenso, a sexualidade alimentada pelas cha­mas do fogo noturno lutando para libertar-se?

Que estranho fascínio o atraía para aquela mulher que o detestava tanto, quando havia outras mais lindas, indiscutivelmente mais doces e submissas, que o divertiriam na cama ou fora dela, sem se importar se ele era um lorde inglês ou um campônio francês?

Mas por que nenhuma delas o fizera perder o sono, mergulhando-o em doces visões de mãos brancas e esguias, de cabelos cor de fogo, macios como seda? Por que nenhuma delas o fizera inflamar-se à lembrança de um nome, de um rosto, de um bater de pálpebras?

No entanto, não havia nada comum entre eles, a não ser lealdade a uma casa real deposta. E não havia certamente motivo ou ló­gica para que um homem de sua posição entregasse o coração a uma mulher que encon­trava prazer em humilhá-lo!

Mas ele a amava. E dava mais valor a esse sentimento do que à sua consciência ou à cau­sa jacobita!

 

Esse pensamento o perseguiu em seu sono leve e, quando despertou, nas horas frias da madrugada, ainda o assaltava.

Já estava de pé, quando os portões escan­cararam-se para dar passagem aos Cameron, seguidos dos MacDonald das ilhas do oeste, dos Mackintosh, dos Drummond e dos outros MacGregor de distritos remotos. Por volta do meio-dia, o hall transbordava de gente. A reu­nião tomou ares de celebração, quando as gai­tas de fole começaram a tocar, acompanhando as canções, as rodadas de uísque, as conversas e os risos.

Os convidados haviam trazido presentes: veados, lebres e gamos caçados durante a jor­nada, que foram servidos ao jantar. Dessa vez, a grande sala, iluminada por quatro candela­bros de prata, abrigava um grupo numeroso e variado: chefes de clãs de nobre estirpe ou seus representantes, ricos proprietários de terra acompanhados de seus filhos, rendeiros e agricultores.

A mesa rangia ao peso das iguarias. A ca­beceira, havia carne de porco, carne de veado, aves, cabritos e lebres, acompanhados de tor­tas, de pão, compotas de mel e frutas, e de um fino clarete. Na parte inferior, imensas terrinas de carne temperada, tigelas de pirão grosso enriquecido com folhas de couve e fatias de suculento toucinho, acompanhadas de cer­veja. A comida era abundante e ninguém pa­recia ofendido com a distinção.

Terminado o longo festim, ergueram-se brin­des. Bebeu-se à saúde do verdadeiro rei, do Príncipe Galante, de cada chefe de clã, suas esposas e filhos, dos proprietários de terras, até as garrafas ficarem vazias.

Quando, como um só homem, os convivas erguiam suas taças ao rei de além-mar, suas aclamações eram indubitavelmente sinceras. Mas, enquanto a conversa girava em torno dos Stuart e à possibilidade de guerra, Bri­gham descobriu que nem todos os presentes eram do mesmo parecer.

Havia alguns, de temperamento mais exal­tado, que desejavam marchar sobre Edimbur­go imediatamente, com as espadas erguidas e as gaitas tocando hinos guerreiros. Velhos ressentimentos vieram à tona, e o veneno des­tilou das chagas reabertas. Banimentos, exe­cuções, casas queimadas, propriedades confiscadas, famílias inteiras enviadas aos campos, em amarga servidão. Era algo que não podiam perdoar nem esquecer.

Em contrapartida, havia outros pouco incli­nados a colocar suas vidas e suas propriedades nas mãos de um príncipe inexperiente. Eles já tinham participado de uma guerra e, tendo visto cair por terra seus homens e seus sonhos, mostravam-se céticos.

Cameron de Lochiel, chefe efetivo de seu clã enquanto seu pai permanecesse no exílio, hipotecava seu coração ao príncipe, mas com reservas.

- Se lutarmos sem o apoio das tropas fran­cesas, os ingleses levarão a melhor. Seremos obrigados a recuar e a nos refugiar nas colinas e nas cavernas. Os Cameron são leais ao ver­dadeiro rei, mas os clãs não podem enfrentar sozinhos as bem treinadas e bem armadas for­ças do governo. E uma derrota agora quebra­ria a espinha dorsal da Escócia.

- Que sugere então? - James MacGregor bateu com o punho na mesa. - Que fiquemos sentados junto ao fogo com as nossas espadas embainhadas, envelhecendo enquanto esperamos por uma desforra?

- Espada embainhada não pode ser que­brada - retrucou Lochiel calmamente.

O chefe da tribo MacLeod assentiu, enquan­to tomava seu porto.

- Não é de meu gosto ficar inativo, sofrendo todos os males da conquista, mas seria loucura lutar sem a certeza da vitória. Perdemos antes e pagamos um preço alto demais pela derrota.

- Os MacGregor apóiam o príncipe até seu último homem - disse James, determinado. - E estaremos do lado dele, quando ele se sentar no trono.

- Sim, companheiro - disse Ian com voz controlada.

Ele sabia que James herdara de seu pai a lealdade à causa, mas não a sua prudência.

- Mas Lochiel tem razão. Desta vez, deve­mos ponderar muito, antes de cruzar espadas com o inimigo.

- Lutaremos como mulheres, nesse caso? - perguntou James com voz meio abafada pela ira. - Apenas com conversas!

O uísque que circulara com abundância, co­meçava a produzir seus efeitos, aquecendo o sangue dos mais exaltados. As palavras de James já haviam provocado murmúrios de reprovação. Antes que os ânimos se exaltassem mais, Ian falou novamente, atraindo a atenção de todos:

- Lutaremos como chefes de clãs, como o fizeram nossos pais e avós. Eu lutei ao lado de seu pai, James, e do seu, quando éramos ambos jovens - acrescentou, voltando-se para Lochiel. - Sentirei orgulho de desembainhar minha espada em favor dos Stuart. Mas quan­do lutarmos, deveremos lutar com as cabeças frias e a mesma habilidade com que maneja­mos a espada e o arco.

- Ainda não sabemos se o príncipe pretende lutar - observou um dos comensais. - No passado, demos apoio ao pai dele e isso resul­tou em nada.

Ian fez um sinal ao criado para que enchesse novamente seu copo. Depois voltou-se para Brigham.

- Você passou algum tempo com o príncipe, quando esteve na França. Diga-nos o que ele pensa fazer.

Fez-se silêncio total, quando Brigham co­meçou a falar:

- O príncipe pretende lutar por seus direi­tos e pelos direitos de sua casa. Disso não há a menor dúvida.

Ele fez uma pausa e lançou um olhar em torno. Todos estavam atentos a suas palavras, mas nem todos pareciam convencidos.

- O príncipe conta com o apoio dos jacobi­tas, tanto aqui como na Inglaterra, e espera convencer o rei Luís a sustentar sua causa. Tendo a França como aliada, grandes serão as chances de confundirmos os inimigos e de­pois abatê-los.

- Os habitantes da Baixa Escócia irão en­grossar as fileiras do exército do governo - disse Lochiel, pensando com tristeza nas mor­tes e na destruição que se seguiriam. - Como o príncipe Charles conta enfrentá-los, jovem e inexperiente como é?

Brigham assentiu, reconhecendo a justiça da observação.

- Ele irá precisar tanto de conselheiros pru­dentes quanto de bons soldados. Mas não du­vide de suas intenções. Ele virá à Escócia, erguerá seu estandarte e necessitará que os clãs lhe jurem lealdade, oferecendo-lhe suas mãos e suas espadas.

- Terá ambas as coisas de mim - afirmou James, enchendo sua taça até a borda e erguendo-a em desafio.

- Se é intenção do príncipe legitimar sua soberania, tão grata aos corações escoceses - disse Lochiel devagar -, os Cameron lutarão com ele e por ele.

A discussão continuou noite adentro e nos dias que se seguiram. Alguns dentre os con­vivas se convenceram de que deviam se colocar à disposição do príncipe. Outros estavam bem longe disso.

Quando os viajantes se despediram dos Mac­Donald, o céu estava tão sombrio quanto os pen­samentos de Brigham. Ele temia que muitos contestariam o direito do príncipe Charles ao trono inglês e, que, com isso, os caminhos diante e atrás dele se fechariam, extinguindo para sem­pre seus brilhantes projetos de unificação.

 

Fiona penteava os longos cabelos de sua filha mais velha, sentada diante do fogo crepitante da lareira, com a paciente habilidade de suas mãos delicadas. Era um instante precioso, que lhe trazia lem­branças doces e tristes a um tempo, da infân­cia de Serena, quando era fácil resolver-lhe os problemas. Mas a criança de outrora não existia mais; tornara-se uma mulher, pronta a lutar pelo que desejava e a fazer o que lhe parecia certo.

Inclinou-se para examinar-lhe o rosto corado pelo banho. Em geral, em momentos assim, de tranqüila intimidade, sua filha tagarelava satisfeita, fazendo perguntas e contando pe­quenas histórias. Agora, no entanto, ela esta­va absorta em pensamentos, os olhos fixos nas chamas, as mãos em repouso sobre o colo. Que estaria acontecendo?

Soltou um leve suspiro. De seus quatro fi­lhos, era Serena que mais a preocupava. Coll, teimoso mas auto-suficiente, não teria dificul­dades em achar seu próprio caminho. Gwen, uma criatura doce e afável, de coração generoso e aparência frágil, atrairia, sem dúvida, a afeição de um homem bom e honrado. Quanto a Malcolm... Fiona sorriu, enquanto manejava a escova. Seu filho caçula era tão cheio de encanto e malícia, que não haveria coração que pudesse resistir-lhe.

Serena, porém, herdara o temperamento impetuoso dos MacGregor, além de uma sensibilidade exagerada. Ela sabia odiar tão apaixonadamente quanto amar, fazia perguntas que não podiam ser respondidas e... lembrava-se do que devia ser esquecido.

Temia que aquele odioso incidente houvesse deixado marcas tão profundas no coração da filha como as que deixara em seu próprio coração. Devia ser principalmente ali que residia a raiz do rancor que ela alimentava contra os ingleses. Um rancor que transparecia freqüentemente em seus olhos, e que, às vezes, a fazia explodir em torrentes de injúrias.

Preocupada, ficou a olhá-la, procurando inutilmente decifrar-lhe os pensamentos. Ah! Como era difícil cuidar de uma filha crescida.

- Por que está tão quieta, meu amor? Está vendo algum duende nas chamas?

Serena sorriu levemente.

- Você sempre disse que poderíamos vê-los, se olhássemos bem.

- Sim, mas...

- Mas o quê, mamãe?

Os olhos claros de Fiona anuviaram-se, apreensivos.

- Você está bem?

- Estou ótima! - Serena riu expulsando to­dos os receios dela. - Quando papai vai voltar?

- Amanhã. Talvez depois. Está preocupada com ele?

- As vezes, eu me pergunto como tudo isso acabará. - Ela suspirou. - Gostaria de ser homem.

Fiona permitiu-se, no íntimo, um pequeno sorriso.

- Que loucura é essa?

- Veja bem: se fosse homem, eu não seria forçada a ficar aqui, de braços cruzados, sem fazer nada.

- Se você fosse homem, teria me roubado uma das maiores alegrias de minha vida.

Serena voltou-se rapidamente e fitou-a.

- Não gostaria que eu fosse como você, ou como Gwen?

- Que absurdo, querida? Você é como é, e nada me agrada mais do que isso.

- Às vezes, sinto que está desapontada comigo.

- Desapontada, não. Isso nunca!

Fiona inclinou-se e beijou-lhe o alto da cabeça.

- Agradeci a Deus quando você nasceu. Re­ceava não poder ter mais filhos.

- Mas teve outros. - Serena sorriu e pro­curou uma posição mais confortável na cadeira. - Lembro-me quando Malcolm nasceu. Papai foi à estrebaria e embriagou-se. Havia um motivo para isso?

- Ele preferia enfrentar uma centena de dragões ingleses a assistir a um parto!

- Como você o conheceu? - indagou ela com vivo interesse.

Um sorriso lento aflorou ao rosto calmo de sua mãe.

- Foi num baile que os MacDonald ofereceram por ocasião do aniversário de sua filha Alice. O irmão dela, como você sabe, é o melhor amigo de seu pai.

- E então?

Fiona parou de escovar os cabelos da filha e seu rosto iluminou-se de antigas recordações.

- Eu estava de branco e usava as pérolas de minha avó. Tinha os cabelos empoados e, segundo diziam, estava muito bonita. Seu pai pediu a Donald que o apresentasse e tirou-me para dançar.

- Oh! mamãe. Nunca imaginei que papai soubesse dançar!

- Pois sabia. E ninguém dançava com mais graça e leveza do que ele, apesar de ser um homem tão grande.

Serena sorriu à idéia de seus pais jovens e esperou, calmamente, que sua mãe continuasse.

- O engraçado é que Alice e eu tínhamos feito um pacto de escolher apenas os mais bonitos, os mais elegantes e os mais ricos para nossos pares.

- Você, mamãe? - indagou, fitando-a com ar escandalizado.

- Naquela época, eu era fútil e vaidosa. Fiona alisou os cabelos, ainda sem fios grisalhos, e prosseguiu:

- A partir do dia do baile, seu pai começou a fazer-me a corte. E, no final, foi ele, que não era o mais bonito, nem o mais elegante, nem o mais rico de meus cortejadores, que eu escolhi para marido.

- Mas como você teve certeza de que era ele o homem que amava? - perguntou Serena, impulsivamente.

Fiona lançou-lhe um olhar longo, penetran­te, e depois quase sorriu diante de um pensamento novo.

"Então é esse o problema. Minha filhinha está apaixonada! Como foi que não notei antes?"

Rapidamente, passou em revista os nomes e os rostos dos jovens que freqüentavam sua casa. Não se lembrava de ter visto sua filha lançar sequer um olhar interessado a um de­les. Pelo contrário, ela despachava a todos com desdenhosa altivez.

- Porque meu coração falou mais alto do que minha razão - respondeu, calma.

Serena rejeitou enfaticamente a explicação.

- Isso não basta! Tem que haver uma cer­teza, um sentido. Se papai fosse diferente, se não tivesse sua mesma formação nem seus ideais, seu coração nunca teria falado mais alto!

- O amor não leva em conta as eventuais diferenças que há entre um homem e uma mulher, Serena.

Foi então, de súbito, que Fiona compreendeu a verdade, como um jato de água fria que lhe batesse no rosto. Sua filha, sua orgulhosa e obstinada filha, estava apaixonada pelo lorde inglês!

- Minha querida - disse, então, com um sorriso e uma leve malícia no olhar. - O amor raramente faz sentido.

- Eu prefiro ficar solteira a me casar com um homem que certamente me fará infeliz!

- O amor só assusta quem tenta lutar con­tra ele.

Serena enterrou o rosto em seu peito.

- Oh! Mamãe, por que é tão difícil saber o que se quer?

Fiona afagou-lhe os cabelos.

- Quando chegar a hora, você saberá. E corajosa como é, aceitará o seu destino.

Um estrépito de patas de cavalos, seguidos do som de vozes e do latido dos cães, inter­rompeu a conversa.

- Deve ser seu papai - disse ela, encami­nhando-se para a porta. - Vou pedir à sra. Drummond que prepare uma refeição quente.

Mal Fiona saiu do quarto, as portas da fren­te escancararam-se e uma animação ruidosa substituiu o silêncio que imperava na casa. Serena afofou os cabelos, alisou o chambre verde e desceu para cumprimentar o pai. En­controu-o na sala, o rosto ainda corado pelo exercício, conversando animadamente com Gwen e Coll.

Brigham estava diante da lareira, uma das mãos segurando uma taça e a outra enfiada no bolso do calção. Quando a viu, não proferiu palavra, limitando-se a cumprimentá-la com uma leve inclinação de cabeça. Ela fitou-lhe o rosto moreno e bonito, iluminado pelo clarão das chamas e, pelo espaço de alguns segundos, não viu mais nada na sala.

Nesse instante, Ian avistou-a e abriu os bra­ços, chamando-a para si.

- Aí está você, meu pequeno gato selvagem da Alta Escócia! Veio dar um beijo em seu velho pai?

Quando ela correu ao seu encontro, ele a ergueu do chão e a fez rodopiar no ar.

- Aqui está uma moça de verdade. O ho­mem que souber aparar suas garras levará para casa um prêmio valioso!

- Não quero ser prêmio para ninguém, papai!

- Não disse a verdade, Brig? Serena não é autêntica?

Brigham moveu a cabeça afirmativamente, sem uma palavra.

- Estou com vontade de dá-la a Duncan Mac­Kinnon, como ele vem me pedindo há tempo.

- Pode fazer isso, papai. Mas correrá o risco de ver o filho de seu amigo aleijado para sempre.

Ian riu novamente. Embora nutrisse um amor profundo a todos os seus filhos, não escondia de ninguém que Serena era a sua predileta.

- Despeje mais um pouco de uísque na mi­nha taça, e na dos outros também, e não se preocupe. Sei que o jovem Duncan não é páreo para você.

Ela o obedeceu incontinenti. Mas, enquanto enchia a taça de Brigham, não resistiu à ten­tação de dizer como num desafio:

- Nem Duncan nem homem nenhum, papai.

A luva havia sido atirada e Brigham viu-se no direito de reagir à provocação.

- Talvez não tenha ainda encontrado o ho­mem que lhe ensinasse a recolher as garras, senhora.

- Muitos já tentaram, my lord. Mas, até agora, ninguém conseguiu.

- E porque a senhora tem encontrado ho­mens errados.

Serena levantou os olhos e fitou-o frente a frente.

- Está enganado, senhor. E volto a afirmar que não sou para homem nenhum.

Ele sorriu, um sorriso largo.

- Perdoe-me, madame, mas uma égua ner­vosa raramente compreende a necessidade da mão livre de um cavaleiro.

Coll soltou urna gargalhada.

- É inútil, Serena. O homem poderá con­tinuar nesse tom durante horas e você nunca o vencerá. Desista e venha servir-me. Minha taça está vazia.

- Como sua cabeça!

- Calma, moça, não me arranque a pele! Es­tou ainda convalescendo de uma doença séria.

- Está mesmo? - Ela tirou-lhe bruscamen­te a taça da mão. - Nesse caso, vai tomar o caldo de Gwen em vez de uísque!

Sorrindo, Coll agarrou-a pela cintura e a fez sentar em seu colo.

- Sirva-me mais bebida que eu guardarei seu segredo.

Serena pôs-se em guarda.

- Que segredo?

- Os calções de montaria - murmurou ele ao seu ouvido.

Ela o amaldiçoou baixinho e despejou em sua taça mais um pouco de uísque.

- Você não estava tão doente assim, se pôde chegar até a janela!

- Um homem acuado defende-se como pode!

- Silêncio, crianças!

Ian esperou que todos os olhos se fixassem nele e então anunciou:

- Encontramos os MacDonald bem de saúde. Daniel, o irmão de Donald, tornou-se avô pela terceira vez, o que me deixa envergonhado.

Ele abarcou com o olhar seus dois filhos mais velhos, que sorriam inocentemente.

- Vocês ficam sorrindo como dois bobos, sabendo muito bem que não estão cumprindo as obrigações determinadas pelo clã. Um pai mais severo já os teria casado, com ou sem os seus consentimentos.

- Não há pai melhor do que o nosso - murmurou Serena com suavidade.

O rosto de Ian distendeu-se, e ele quase sorriu.

- Bom, vamos mudar de assunto. Convidei Maggie McDonald para passar alguns dias conosco.

- Oh, senhor... - gemeu Coll. - Que amolação!

- Não diga isso! Maggie é a minha melhor amiga! - censurou-o Serena. - Quando ela vem, papai?

- Na próxima semana - disse Ian, lan­çando um olhar duro a Coll. - Espero, meu rapaz, que não se considere dispensado das cortesias devidas à filha de meu melhor amigo.

- Ela não vai me deixar em paz! - pro­testou o filho.

- Maggie não é mais uma criança. Certa­mente encontrará distração na companhia de Serena e Gwen.

 

Os dias que se seguiram foram passados em febril atividade. Poliram-se os móveis e as pratarias e prepararam-se iguarias finas. Serena, habituada ao trabalho, achava tudo muito divertido. Além disso, estava ansiosa para rever Maggie, sua confidente e companheira de infância.

Coll já se restabelecera e saía com freqüên­cia, às vezes em companhia de Ian e Brigham, outras sozinho. À noite, participava das dis­cussões em torno da causa jacobita e do pró­ximo passo de Charles, já que corriam os mais desencontrados rumores: o príncipe estava a caminho, o príncipe encontrava-se ainda em Paris, o príncipe nunca viria à Escócia.

Certo dia, chegou um mensageiro com um despacho para Brigham. O homem foi introduzido na sala de visitas, que permaneceu de portas fechadas durante horas. Quando ele partiu, as notícias não foram transmitidas às mulheres da casa, fato que indignou Serena.

Ela trabalhava na cozinha, onde o fogo es­tava aceso, preferindo lavar as roupas de cama na grande tina de madeira, a mergulhar as mãos na cera de polir. Com a saia erguida, vadeava na água que lhe chegava até os tor­nozelos, deliciando-se com seu trabalho tanto quanto com a paz quase domingueira da co­zinha. Enquanto colocava as roupas de molho, pensou se Brigham achara Maggie MacDonald bonita e se lhe beijara a mão do mesmo modo como, certa vez, beijara a sua.

"Por que estou pensando nisso?", disse de repente a si mesma, e começou a pisotear a roupa com vigor. O homem não lhe lançara um olhar desde que chegara!

Queria que ele fosse embora para Londres ou para o diabo, pouco lhe importava! Ou que caísse no rio e apanhasse uma pneumonia e então morresse lentamente. Melhor ainda, queria que ele tombasse de joelhos a seus pés e lhe implorasse um sorriso. Riria na sua cara e...

Brigham abriu a porta da cozinha e sua irritação cresceu. Fazia dois dias que evitava Serena, e agora encontrava-a ali, sozinha, o rosto corado pelo calor do fogo, os cabelos escapando dos grampos e a saia... Santo Deus!

Sem querer, viu-se com os olhos cravados naquelas pernas deliciosamente bem torneadas, e sua pulsação acelerou-se.

- É uma cena doméstica inesperada... e encantadora - disse com estudada calma.

Serena olhou-o com frieza.

- Que veio fazer na cozinha, lorde Ashburn? Aqui não é seu lugar!

- Seu pai quis que eu voltasse antes para comer alguma coisa. E assim, pensei em vir até aqui e pedir um prato de sopa à sra. Drummond.

- Há sopa no caldeirão. Sirva-se e vá comer em outro lugar. Estou muito ocupada.

- Estou vendo. - Ele chegou mais perto. - E lhe asseguro que não vou dormir em paz, sabendo de que modo foram lavados os lençóis de minha cama!

Serena sufocou uma risadinha.

- Pode acreditar, Sassenach. Esse método dá ótimos resultados.

Súbito, sob a inspiração do demônio, ela começou a patinhar, na água, espirrando água no calção dele. Depois, simulou um pesar que estava longe de sentir.

- Queira me desculpar, my lord.

Brigham olhou para o calção e perguntou, bem-humorado:

- Quer lavá-los também?

- Jogue-os na tina! - desafiou-o Serena.

- Está falando sério? - Ele abaixou os suspensórios e teve a satisfação de vê-la arregalar os olhos.

- Brigham... por favor - murmurou ela, recuando, e quase perdendo o equilíbrio.

Ele a amparou a tempo, passando-lhe o braço pela cintura.

- Eu sabia que você iria tornar a dizê-lo.

- Dizer o quê?

- Meu nome. Diga-o novamente.

Ela umedeceu com a língua os lábios subitamente secos.

- Não. E não precisa ficar me segurando.

- Preciso, sim.

Ele falava e ao mesmo tempo acariciava-lhe os cabelos, os ombros, as costas, num movimento incessante.

- Preciso e estou vendo essa mesma vontade em seus olhos.

Ela sentiu uma onda de desejo agitar-lhe o corpo, numa emoção nova e balbuciou, confusa:

- Pois eu lhe digo que não está vendo nada.

Sem tomar conhecimento de suas palavras, Brigham inclinou-se para aspirar-lhe o aroma dos cabelos.

- Tão cheiroso como uma manhã de chuva na primavera.

- Pare, por favor! Não quero ouvir mais nada.

- Porquê? Por que sou inglês?

- Não... não sei. Sei apenas que não quero me sentir do jeito que você me faz sentir.

Ele a puxou para si, apertando-a de encontro ao peito.

- Como eu a faço sentir-se, Serena?

Ela fechou os olhos, com vontade de fugir dele e ocultar-se em seu quarto. Mas respondeu:

- Fraca, trêmula, com raiva de mim mes­ma. Não, não faça isso - acrescentou num frágil murmúrio, quando ele fez menção de tomar-lhe os lábios. - Não me beije.

- Então beije-me você.

- Não quero.

Seguro de si, Brigham pôs-se a passear a boca sobre o rosto ardente, cobrindo-o com bei­jos leves.

- Sim, você quer.

Os joelhos de Serena fraquejaram e ela os­cilou, como um arbusto ao sabor de um vento forte. Então, deixando que seu coração falasse mais alto, jogou a cabeça para trás e entrea­briu os lábios trêmulos de emoção e desejo.

Com um murmúrio de júbilo, ele a ergueu da tina e a manteve abraçada por um mo­mento. Então, lentamente, deixou-a deslizar ao longo de seu corpo, até que os pés dela tocassem o chão.

Serena sentiu que não podia... não queria resistir ao anseio incontrolável de abandonar­-se àquelas carícias. Com um suspiro, colou-se a ele sem reservas, deixando-o sentir a maciez de seus seios, sob o casaco aberto.

Brigham percebeu-a despertar para a volú­pia e, embora excitado, soube que devia parar antes que a situação fugisse ao seu controle.

- Precisamos conversar, Serena - disse, tomando-lhe ambas as mãos e afastando-a de­licadamente de si.

- Para quê?

- Para que eu não abuse da confiança que seu pai e seu irmão depositaram em mim.

Súbito, Serena compreendeu o que acontecia sempre que ele a tomava nos braços e a bei­java: ela se rendia, em submissão ao próprio desejo. Ao se dar conta disso, o sangue gelou em suas veias.

- Não quero conversar. Quero que vá embora!

- Mas é necessário, não vê?

- Não.

Ele a fitou com desalento.

- Serena, não podemos continuar a fingir, nem pretender que nada aconteça entre nós quando estamos juntos.

Ela engoliu o nó que se formou em sua gar­ganta e disse lacônica:

- Os desejos morrem.

Uma sombra de tristeza velou os olhos cin­zentos de Brigham.

- Que palavras tão frias!

- Deixe-me em paz, está bem? Eu era feliz, antes que você chegasse. E voltarei a sê-lo, quando você for embora.

- Não acredito. Se eu fosse embora, você iria chorar.

- Eu nunca derramaria uma lágrima por você. Por que deveria? Você não é o primeiro homem que me beijou e não será o último!

Ele estreitou os olhos, irritado.

- Você diz coisas perigosas, Serena.

- Digo o que me agrada. Agora, deixe-me!

Envolvendo-a pela cintura, Brigham tomou­lhe os lábios e beijou-a até fazê-la render-se por completo.

- Os outros fizeram-na sentir-se assim, lân­guida, quase desfalecida? Você os olhou como está me olhando agora, com os olhos enevoa­dos de desejo?

Ela virou o rosto, fugindo dos penetrantes olhos cinzentos, mas ele pegou seu queixo e obrigou-a a encará-lo.

- Sim ou não?

- Não.

- Ah...

Nesse instante, Gwen abriu a porta e, ao ver sua irmã abraçada ao lorde inglês, ficou parada no limiar, sem saber o que fazer.

- Queiram me desculpar - disse por fim, sentindo uma súbita vergonha de estar ali.

Serena deu um passo para trás e alisou os cabelos, num gesto nervoso.

- Lorde Ashburn estava justamente...

- Beijando sua irmã - completou ele friamente.

Gwen baixou os olhos e sufocou uma risa­dinha maliciosa.

- Desculpem-me - tornou a dizer, pensan­do se não era melhor deixar os dois sozinhos.

- Não há necessidade de se desculpar - interveio Serena. - Lorde Ashburn veio pedir-me um prato de sopa.

Brigham lançou-lhe um olhar irônico.

- Era essa a minha intenção, mas perdi o apetite.

 

- O rei Luís não irá intervir na sucessão – disse Brigham.

Ele estava de pé diante da lareira, com as mãos cruzadas às costas. Embora sua voz es­tivesse calma e controlada, graves preocupa­ções pareciam agitar-lhe o espírito.

- A medida que o tempo passa, torna-se cada vez mais evidente que ele não porá seus homens nem seu ouro a serviço do príncipe.

Coll jogou sobre a mesa a carta trazida havia pouco por um mensageiro e começou a andar de um lado para o outro da sala.

- Há um ano, Luís parecia disposto a sus­tentar a causa dos Stuart. Mais do que isso. Estava ansioso!

- Há um ano - observou Brigham -, Luís acreditava que Charles pudesse lhe ser útil. Mas desde março, quando a idéia de invasão da Inglaterra foi abandonada, o príncipe pas­sou a ser ignorado pela corte francesa.

- Então, iremos à luta sem os franceses!

Coll fitou o pai, ansioso.

- Nosso povo dará a vida pelos Stuart.

- Pode ser - concordou Ian, a expressão carregada. - Precisamos de união. Para vencer, os clãs deverão lutar unidos sob uma só bandeira.

- Como lutamos antes! - disse seu filho exaltado. - Não pode haver dúvida alguma sob que partido os chefes se unirão.

- Gostaria que fosse verdade - tornou Ian, pensativo. - Não podemos pretender que cada chefe proteste lealdade e dedicação ao verda­deiro rei, ou leve seu clã a cerrar fileiras em torno do príncipe. Temo que muitos erguerão seus braços contra nós, unindo-se às forças do governo.

Brigham apanhou a carta e leu-a mais uma vez. Depois rasgou-a muito devagar e atirou-a ao fogo. Enquanto a via arder lentamente, disse:

- Espero a qualquer momento notícias de meu contato em Londres. Se forem as que ima­gino, a nossa empresa mudará completamente de aspecto.

Coll voltou-se para ele.

- Quanto tempo ainda teremos que espe­rar? Quantos meses, quantos anos teremos que ficar aqui, enquanto o usurpador perma­nece sentado no trono?

- Acho que a hora da rebelião chegará mais cedo do que imagina. O príncipe está impaciente.

- Os chefes da Alta Escócia vão se unir novamente - anunciou Ian. - Eles temem que uma ação prematura ou mal planejada possa causar grave dano e debilitar a fé dos escoceses numa causa que reivindica para si o direito ao trono inglês. Mas temos que tomar cuidado com essas reuniões para não despertar a suspeita dos "Black Watch".

- Malditos sejam - rosnou Coll entre dentes, à menção dos escoceses colaboracionistas.

- Outra caçada? - perguntou Brigham, imperturbável.

- Tenho em mente algo um pouco diferente.

Ao som de uma carruagem que se aproximava, Ian sorriu e guardou o cachimbo.

- Um baile, rapazes! É hora de oferecermos algum entretenimento aos nossos vizinhos. E a jovem que vem nos visitar é, a meu ver, um lindo pretexto.

Brigham aproximou-se da janela e levantou a ponta da cortina a tempo de ver Serena descer correndo a escadaria de pedra. Quase ao mesmo tempo, uma jovem de cabelos escuros saltou da carruagem e atirou-se em seus braços.

- Maggie MacDonald.

- Exatamente. Ela está em idade de se casar, assim como minha filha mais velha.

Brigham sorriu, pouco à vontade, e murmurou uma observação banal.

Ian pousou os olhos nele, pensativo.

"Eu teria que ser cego para não ver que há algo entre esse lorde inglês e Serena."

- Nada mais razoável do que oferecer um baile para apresentá-las aos jovens dândis das redondezas, não acha?

- Muito bem pensado.

- O diabo me carregue se eu permitir que essa moça me distraia, enquanto estivermos afiando nossas espadas - disse Coll com mau humor. - Não vou levá-la para cavalgar nem ficar ouvindo suas conversas fúteis!

Ian caminhou para a porta, dizendo por cima do ombro:

- Não se preocupe. Serena e Gwen irão cuidar bem de nossa hóspede.

No instante em que as portas do salão foram abertas, o som de vozes e de risos femininos invadiu a sala. Ian adiantou-se, a voz retum­bante ecoando no hall:

- Venha dar um beijo em seu velho tio, mocinha!

Ao voltar para o salão, acompanhado por Maggie, Coll levantou-se, mas foi incapaz de proferir uma palavra. Ela parecia uma boneca, ao lado de seu pai, uma visão de sonhos vestida de veludo azul. Os cabelos, escuros como a noite, caíam-lhe graciosamente até os om­bros, formando um belo contraste com a tez delicadamente alva. Os olhos, profundos, pareciam capazes de inflamar e enternecer, de ordenar e suplicar. Ficou a contemplá-la, boquiaberto, pensando que jamais vira beleza tão viva e dominadora.

Maggie sorriu-lhe e então voltou-se para cor­tejar Brigham.

- Lorde Ashburn...

- E um prazer tornar a vê-la, srta. Mac­Donald. - Ele tomou-lhe a mão e levou-a aos lábios. - Fez boa viagem?

- Muito boa, obrigada.

Serena adiantou-se e empurrou-a na direção do irmão.

- Você se lembra de Coll, não é, Maggie?

- Claro que me lembro!

Maggie ergueu os olhos e sentiu o coração bater descompassado. Ele era muito mais bo­nito do que ela se lembrava: mais alto, mais charmoso...

- E muito bom ver você, Coll. Espero que seu ferimento já tenha cicatrizado.

- Que ferimento?

- Seu pai nos contou que houve uma embos­cada, durante sua viagem de volta de Londres.

- Oh... não foi nada.

- Tenho certeza de que foi coisa séria, mas estou contente de vê-lo em boa forma.

- É maravilhoso estar em Glenroe nova­mente! Tio Ian... tia Fiona, agradeço a ambos pelo convite.

Nesse instante, a criada chegou com a ban­deja do chá e todos se acomodaram diante da lareira. Ao invés de se retirar, como havia anunciado, Coll viu-se disputando a cadeira mais próxima de Maggie. Brigham aproveitou o instante de confusão e inclinou-se para Serena com o pretexto de passar-lhe um prato de bolinhos.

- Você está me evitando, Serena.

- Absurdo!

- Estou plenamente de acordo. Seria um absurdo.

- O senhor se tem em altíssima conta, Sassenach!

- É gratificante ver como eu a deixo nervosa. Ele sorriu, satisfeito, e depois voltou-se para os outros.

- Gwen, você fica encantadora de rosa.

"Ele nunca me disse que sou encantadora", pensou Serena, olhando o fogo que agonizava. "Nunca me fez reverências nem disse frases galantes. Comigo são apenas farpas e ironias. E beijos", lembrou-se, com um estremecimento involuntário. "Beijos profundos, possessivos..."

Faria melhor não pensando nisso... ou nele. Fora criada na Alta Escócia, mas não era ne­nhuma tola. Estava ciente da liberdade de cos­tumes que imperava na aristocracia inglesa. E Brigham não podia ser diferente de seus pares.

Não capitularia diante das emoções poderosas e irresistíveis que ele lhe despertava, en­tregando-se levianamente. Não queria um mero prazer, passageiro e febril. Queria um senti­mento profundo o duradouro, e isso era algo que Brigham não seria capaz de lhe oferecer.

- Sonhando de olhos abertos, meu amor? - murmurou ele, de súbito, com voz sedutora.

- Espero que seja comigo.

Libertando-se a custo da melancólica magia das brasas e das cinzas, respondeu-lhe com sarcasmo:

- Estava pensando nas vacas que devem ser ordenhadas.

Brigham riu e depois observou com uma ponta de ironia:

- Pelo jeito, Coll não está se aborrecendo com a srta. MacDonald.

Serena olhou para o irmão. Ele estava co­rado e alegre.

- Coll dá a impressão de alguém que foi atingido por um raio!

- Ou no coração, por uma flecha de Cupido. Quem acreditaria numa coisa dessas? Acha que ele chegará ao ponto de dizer versos à sua amada?

Brigham suspirou fundo, com simulada resignação.

- Os homens fazem as coisas mais insen­satas, quando amam.

- Há alguns anos, ele não podia nem ouvir falar em Maggie.

- Agora ela não é mais uma criança. É mulher feita e muito bonita, por sinal. Serena sentiu um aperto no coração.

- Sim, muito bonita. Parece que ela fasci­nou a todos.

Ele ergueu um pouco as sobrancelhas escu­ras e depois sorriu.

- Quanto a mim, prefiro uma jovem de olhos verdes e língua afiada.

- Não estou habituada aos flertes de salão, my lord.

- Essa é outra coisa que eu preciso lhe ensinar.

Ela percebeu que estava em desvantagem e decidiu-se por uma retirada estratégica.

- Venha, Maggie - disse, levantando-se. - Vou lhe mostrar seus aposentos.

 

Serena não se surpreendia de que sua amiga estivesse ainda apaixonada por Coll. O que a deixava cada vez mais perplexa, à medida que os dias iam passando, era o fato de que seu irmão parecia retribuir esse sentimento com igual intensidade. Isso era algo quase inacre­ditável. Mas não podia negar o que estava acontecendo debaixo de seus próprios olhos. Ele que, dois anos antes arrumava sempre uma porção de pretextos para evitá-la, agora procurava outros tantos para ficar na compa­nhia dela!

Maggie, por sua vez, parecia aceitar a si­tuação com naturalidade, o que, no fundo, Serena admitia lhe causar um pouco de inveja. Por que o amor fazia sua amiga tão feliz, enquanto ela se sentia insatisfeita e até amedrontada?

 

O tempo continuava frio, as brumas elevavam-se das ásperas encostas para logo, envolvidas nos turbilhões do vento cortante de março, desfazer-se em flocos e desaparecer. Mas o inverno chegava ao fim. "Dentro de um mês, as árvores estarão cobertas de folhas novas e as primeiras flores silvestres se abrirão ao sol", pensou Serena. Já se ouviam pios de aves e houve um fugaz brilho de asas, quando os cavalos perturbaram a quietude do bosque.

Cavalgavam a passo moderado e isso a impacientava. Sabia que Maggie era uma exímia cavaleira, mas sua amiga preferia retardar-se na trilha, ao lado de Coll, do que lançar-se num galope estimulante.

- Quer apostar uma corrida? - perguntou-lhe Brigham, colocando-se ao lado dela.

- Bom... sim.

- O que estamos esperando, então? Vamos! Eles nos alcançarão mais tarde.

Serena hesitou. Sua mãe não aprovaria que cavalgassem aos pares, ao invés de num único grupo.

- Não ficaria bem.

- Está com medo de não poder me acompanhar?

Ela o fitou, com os olhos faiscantes.

- Inglês nenhum é páreo para uma MacGregor!

- Prove isso, Serena - disse ele branda­mente. - O lago fica a menos de uma milha daqui.

Um desafio era um desafio. Sem refletir, Serena inclinou-se sobre seu cavalo e pressio­nou-lhe os flancos com os calcanhares, esti­mulando-o a lançar-se para a frente. Com mão leve e evitando os ramos baixos, guiou-o atra­vés de curvas e desvios, fazendo-o saltar sobre eventuais troncos caídos.

A senda que seguiam era tão estreita que mal dava lugar para os dois animais, mas nenhum deles queria ceder seu espaço ao ou­tro, de modo que cavalgavam quase ombro a ombro. Ela olhou rapidamente para seu com­panheiro, o rosto moreno aberto num sorriso, e tornou a esporear sua montaria. A floresta ecoou com sua risada clara, quando tomou a dianteira.

Seus olhos brilhavam, seus lábios entrea­briam-se. Experimentava uma sensação de bem-estar, de leveza do coração, que vinha sobretudo da companhia de Brigham. Essa emoção persistia, fazendo-a desejar que o lago estivesse a dez milhas de distância, para que eles continuassem a cavalgar cada vez mais velozmente sob os raios do sol, que iluminavam, em remendos resplandecentes, a trilha pela qual abriam caminho.

Brigham olhou-a com admiração. Ela caval­gava como uma deusa. Elegantemente e com uma confiança inabalável. Se estivesse em companhia de outra mulher, teria contido o cavalo, receoso pela segurança dela. Mas, com Serena, sentia-se estimulado a prosseguir com mais ardor, pelo puro prazer de vê-la voar ao longo do rústico atalho, a capa enfunada sobre o traje cinzento de montaria.

"Você não vai ganhar", disse a si mesmo, ao ver a superfície azul do lago brilhar por entre os troncos nodosos dos carvalhos.

Impeliu o cavalo para a frente e logo esta­vam galopando lado a lado, colina abaixo. Al­cançaram a margem juntos, mas Serena es­perou até o último instante para refrear o cavalo, que estacou com um sonoro relincho de protesto. Ela ria, os olhos verdes espelhando triunfo. Se já não estivesse apaixonado, ficaria naquele instante, tão irremediavelmente quanto um homem fulminado por um raio.

- Venci, Sassenach!

- Engana-se. Fui eu que venci e por uma cabeça de vantagem.

- Dane-se a cabeça de vantagem! Eu venci, mas você não é homem para admitir isso!

Serena inspirou fundo e continuou, tomada por uma estranha sensação de desafio:

- Se estivesse usando calção, ao invés deste traje, eu o teria deixado para trás, a comer a poeira da estrada!

Brigham não esboçou reação alguma. Ficou mudo, enfeitiçado por aqueles olhos verdes, cujo brilho era atenuado pelos cílios longos e sedosos.

- Mas você não tem do que se envergonhar. É um bom cavaleiro. Quase tão bom quanto um escocês estropiado e cego de um olho - acrescentou ela com uma risada.

- Seus elogios me desvanecem, embora a senhora pareça não levar em conta que venci a corrida. My lady é muito presunçosa... ou muito obstinada para admiti-lo.

Serena lançou a cabeça para trás. O chapéu caiu-lhe e os cabelos se espalharam, numa massa de cachos acobreados.

- Fui eu que venci. E um cavalheiro teria a fineza de me conceder a vitória.

- Uma verdadeira dama nunca teria dis­putado uma corrida.

- Oh!

Ela não se importava de ser chamada de presunçosa ou obstinada, mas ressentia-se quando lhe diziam que não era uma dama.

- A idéia da corrida foi sua! Se eu tivesse recusado, você me chamaria de covarde. Mas eu aceitei e venci, e então você se vinga, di­zendo que não sou uma dama!

- Aceitou e perdeu - corrigiu-a Brigham, gostando do modo como suas faces ficavam coradas no calor da discussão. - Comigo, você não precisa portar-se como uma dama. Gosto de você assim como é.

- Ou seja...

- Uma deliciosa gata selvagem que usa cal­ções e sabe lutar como um homem.

Ela o encarou, possessa de raiva e, num im­pulso, deu uma palmada na anca da montaria dele, fazendo o animal pular para a frente. Se Brigham não reagisse prontamente, puxan­do as rédeas, teria sido lançado de ponta-ca­beça nas águas geladas do lago.

- Megera - murmurou ele, num misto de perplexidade e admiração. - Está querendo me afogar?

Ela deu de ombros, com indiferença, e pôs-se a contemplar o lago. Raios oblíquos de sol re­fletiam-se nas águas claras, brincavam no con­tínuo enovelar-se das ondas. Libélulas azuis pairavam sobre a superfície, lutando contra súbitas lufadas de ar ainda úmido e frio. Tudo era tão calmo e bonito, que ela sentiu seu abor­recimento esvaecer-se como por encanto.

- Proponho uma trégua.

- Posso saber por quê?

- Não teria ninguém com quem conversar, enquanto Maggie e Coll namoram.

Brigham saltou agilmente ao chão e colo­cou-se ao lado dela.

- A senhora aquece meu coração.

Serena sorriu e estendeu-lhe as mãos, para que ele a ajudasse a descer. Mas, antes que percebesse suas intenções, ele a agarrou pela cintura e a jogou rudemente sobre os ombros.

- Está ficando louco? Ponha-me já no chão! - gritou ela, esperneando.

Sem fazer-lhe caso, ele caminhou até a margem.

- Não quer experimentar as águas do lago?

- Você não se atreveria! - Havia uma nota de pânico na voz dela.

- Minha querida, já lhe disse que um Langston nunca se omite diante de um desa­fio. Sabe nadar?

- Melhor do que você, Sassenach! Mas se não me largar...

Ele ameaçou atirá-la na água e ela soltou um grito de terror.

- Não faça isso, as águas estão geladas! Depois, pôs-se a rir e a dar-lhe pontapés ao mesmo tempo.

- Juro que o matarei, quando recuperar a liberdade.

- Isso não me anima a soltá-la. Porém, se você admitir que eu venci a competição...

- Nunca!

- Nesse caso...

Ele deu mais um passo para a frente, mas Serena esmurrou-lhe as costas com tanta força que o fez cambalear e tropeçar numa raiz.

Quase em seguida, os dois foram ao chão, numa confusão de saiotes e maldições.

- Olhe só o estado de minha saia! - quei­xou-se ela.

- A culpa é toda sua! Você me fez perder o equilíbrio.

- Foi mesmo? Tomarei mais cuidado na próxima vez. - Serena sorriu, satisfeita, e examinou-lhe o calção sujo de terra.

- Parkins vai repreendê-lo, quando vir o estado desse lindo traje de montaria.

- Meu criado é uma pérola e não vai dizer palavra.

- Que juízo você faz do caráter desse Parkins?

- Ele é correto, leal, mas um tanto teimoso. Por quê?

- A sra. Drummond acha que ele daria um bom marido.

- A sra. Drummond? - Brigham fitou-a, in­crédulo. - A "sua" sra. Drummond e... Parkins?

- Por que não? A sra. Drummond é uma ótima pessoa.

- Não duvido disso. Mas... Parkins?

Brigham pôs-se a rir. Não podia imaginar seu criado fazendo par com a corpulenta co­zinheira dos MacGregor.

- Ele está ao par das intenções dela?

- Ainda não. A sra. Drummond pretende convencê-lo com suas tortas e seus molhos, exatamente como Maggie está encantando Coll com sua beleza e seu sorriso tímido.

Brigham lançou-lhe um olhar perscrutador.

- Isso a incomoda?

- Oh, não! Gostaria muito que eles se ca­sassem. Mas..

- Mas...

- Vendo-os juntos, não posso deixar de pen­sar que depois do degelo, quando romper a primavera, o país estará em guerra.

- Preferia que não houvesse guerra?

Ela suspirou e ficou olhando as nuvens, que corriam rápidas no céu azul.

- Sinto-me dividida. Gostaria de lutar, mas também de ficar esperando a renovação da primavera.

Ele tomou-lhe a mão. Era frágil demais para empunhar a espada.

- Haverá outras primaveras. E outras florações.

Ela o fitou, dominada pelo magnetismo dos olhos cinzentos. Sentia-se bem a seu lado, ou­vindo-o, enquanto pássaros invisíveis canta­vam em meio à espessura das árvores e o perfume da terra evolava-se ao calor do sol.

Seus dedos entrelaçaram-se aos dele, num gesto tão instintivo que não soube o que havia feito até não perceber a mudança que houve na expressão de Brigham: o súbito escureci­mento das pupilas, a intensidade do olhar. Era como se o mundo à sua volta houvesse desa­parecido, e só eles estivessem ali, as mãos uni­das, os olhos nos olhos.

Súbito, num instinto de defesa, retraiu-se.

- Não!

Brigham envolveu-a pela cintura, rápido.

- Eu poderia deixá-la ir embora, Serena. Mas isso não mudaria o que há entre nós.

- Não há nada entre nós.

- Obstinada... - Ele traçou-lhe o contorno dos lábios com a ponta do dedo. - Voluntariosa... linda!

- Não sou nada disso.

- Você é tudo isso! - Ele mordiscou-lhe de leve o queixo e depois o lóbulo da orelha, fazendo-a estremecer de prazer.

- Não faça isso!

- Esperei muito tempo para ficar a sós com você e fazer exatamente isso.

Ele a apertou nos braços e, rosto contra ros­to, murmurou:

- Diga que será minha. Diga!

Ela desprendeu-se sem violência e respon­deu numa voz fraca e lenta:

- Não posso. Não posso.

Brigham guardou silêncio por alguns mo­mentos. Quando falou de novo, sua voz era suave e terna:

- Às vezes acontece algo especial entre um homem e uma mulher. Algo que queima como uma chama eterna, embora ambos ten­tem ignorar o fato e lutem contra seus pró­prios sentimentos. Você quer me odiar, mas não pode.

- Não diga mais nada! Não consigo pensar direito.

- Não pense. - Ele a agarrou pelos ombros e pressionou o corpo contra o dela. - Sinta, apenas.

A pressão cálida daquela boca sensual, Se­rena sentiu-se dominada pela paixão e um frê­mito de desejo subiu por seu corpo, deixando-o indolente e submisso. Ele tinha razão! Havia entre eles uma atração que fazia o sangue de ambos fervilhar, seus sentidos despertarem com intensidade. Incapaz de resistir, corres­pondeu ao beijo com total abandono.

- Quero que seja minha - murmurou ele, aninhando-lhe a cabeça no peito vigoroso.

- Preciso de tempo para pensar - mur­murou ela, perturbada e fraca.

- Precisamos apenas conversar. Quero que você entenda o que eu sinto por você.

Serena compreendeu que ele queria torná-la sua amante e, como tal, lhe tornaria a vida amável, diferente, colorida, toda nova. Se ce­desse, porém, iria sentir-se a mais indigna das criaturas. Por outro lado, se encontrasse for­ças para recusá-lo, conservando intacto o seu orgulho, se sentiria completamente infeliz.

- Preciso pensar - tornou a dizer, confusa.

Curvado sobre ela, Brigham a fitava com ar interrogativo.

- Você me ama, Serena?

Ela olhou-o um momento, hesitou e disse muito baixo:

- Que importância pode ter isso?

Ele endireitou-se e suspirou resignado.

- Compreendo. Eu sou ainda o inglês que veio de Londres. E você jamais esquecerá isso, não importa o que sinta por mim, não importa o que possamos significar um para o outro!

- Não posso esquecer quem você é, nem quem eu sou. - Bruscamente ele se desvencilhou dela.

- Está bem. Você terá tempo para pensar. Mas lembre-se: não vou implorar por seu amor.

 

Maggie equilibrou-se no degrau da escada de mão e poliu o canto superior do espelho. Depois voltou-se para Se­rena, entusiasmada.

- Será um lindo baile, perfeito em seus mínimos detalhes! A música, as luzes...

- E Coll - acrescentou Serena.

Sua amiga não se deixou, de modo algum, perturbar e respondeu, com seu divino e suave sorriso:

- Sim, Coll. Ele me pediu que eu lhe re­servasse a primeira dança, sabia?

- Isso não é surpresa.

- Estava tão carinhoso quando me disse isso... Tive vontade de responder que lhe reservaria todas as danças se ele quisesse. Mas achei que iria deixá-lo sem jeito.

- Seria a primeira vez que alguém conse­gue tal proeza!

- Não é maravilhoso? - suspirou Maggie, deliciada.

- Ele está apaixonado por você e isso é a melhor coisa que poderia lhe acontecer.

- Está dizendo isso porque é minha amiga?

- Não só por isso. Coll irradia felicidade, quando você está presente.

Maggie sentiu as lágrimas aflorarem-lhe aos olhos.

- Lembra-se de que alguns anos atrás pro­metemos uma à outra que seríamos irmãs um dia?

- Você se casaria com meu irmão e eu com um de seus primos - confirmou Serena. - Coll já fez o pedido?

- Ainda não. Mas o fará. Eu o amo tanto...

- Tem certeza? Éramos crianças, quando fi­zemos essa promessa. Agora você é mulher feita.

- É um sentimento diferente, Serena. Quando éramos crianças, eu o julgava um príncipe!

- Coll?

- Ele era tão alto e bonito... Eu o imaginava batendo-se em duelo por mim e depois levan­do-me para bem longe num corcel ricamente enfeitado.

Maggie riu e desceu um degrau.

- Hoje eu sei que ele não é nenhum prín­cipe. A convivência me fez vê-lo sob um novo aspecto: o de um homem equilibrado e gentil, que, às vezes, pode perder a calma e tornar-se ousado e até imprudente. Mas eu o amo de todo o meu coração.

- Ele já beijou você? - perguntou Serena, o rosto revelando maior interesse.

- Não, mas gostaria que me beijasse.

Ela viu o maravilhoso sorriso e a expressão dos belos olhos azuis e comoveu-se.

- Nunca vi Coll com esse ar tão sonhador. Quando ele olha para você, fica pálido e depois enrubesce.

- Oh! Mas é tão tímido... Se ele não se declarar logo, tomarei a iniciativa! Serena olhou-a com curiosidade.

- Como?

- Bem, eu...

Maggie interrompeu-se, ao ouvir um ruído de passos que se aproximavam. Sua pulsação ace­lerou-se, dando-lhe a certeza de que era Coll, antes mesmo que ele entrasse na sala. Então, entregando-se sem constrangimento aos impul­sos de seu coração, deixou o pé resvalar pelo degrau da escada e caiu docemente ao chão.

Coll alcançou-a com duas passadas e pas­sou-lhe o braço pela cintura.

- Você se machucou?

- Sou mesmo desajeitada - murmurou ela, enquanto fitava o rosto querido a um palmo do seu.

- Uma jovem tão frágil como você não devia arriscar-se tanto.

Ele a ajudou a levantar-se, mas no instante em que a ouviu soltar um grito abafado de dor, tornou a sustentá-la pela cintura.

- Quer que eu chame Gwen? - perguntou, aflito.

- Ela pode dar um jeito nisso.

- Oh, não! Se eu pudesse sentar-me apenas um momento...

De pronto, Coll ergueu-a nos braços e a de­positou na cadeira mais próxima, como se ela fosse um objeto frágil e precioso.

- Você está pálida, Maggie. Vou buscar um copo de água.

Ele endireitou-se e saiu, antes que ela pudesse pensar numa desculpa qualquer para retê-lo.

- Está doendo muito? - perguntou Serena, ajoelhando-se aos pés dela. - Oh! Maggie... Seria uma pena se você não pudesse dançar amanhã.

- Mas eu vou dançar! E dançarei a noite toda com Coll.

- E o tornozelo?

- Não seja boba, não há nada em meu tor­nozelo! - Para provar o que dizia, Maggie levantou-se e ensaiou uma passo de dança.

- Você mentiu para Coll, Margaret Mac­Donald!

- Nada disso! - disse ela com audácia e tor­nou a sentar-se. - Ele supôs que eu tivesse tor­cido o pé, mas eu não disse absolutamente nada!

- Mas você caiu da escada de propósito!

- Sim, e não me arrependo.

Depois de um momento de silêncio, Serena respondeu, magoada:

- Foi um estratagema indigno de você.

- Não foi um estratagema e não há nada de indigno nisso.

Maggie sentiu as faces arderem e tornou logo, com calor:

- Foi a única maneira de fazê-lo perceber que eu preciso de seus cuidados. Os homens não se apaixonam por mulheres auto-suficien­tes, Serena. Se ele acha que eu sou frágil e indefesa, que, mal há nisso?

Serena lembrou-se do dia em que Brigham empunhara a espada por ela. Se tivesse se mostrado um pouco mais frágil... Não! Isso era para Maggie, não para ela.

- Nenhum, suponho.

- Um homem tímido precisa de um peque­no empurrão. - Maggie ergueu os olhos e fi­tou-a com ar suplicante. - Você nos deixaria a sós por um momento?

- Bem... sim.

Quando Coll entrou com o copo de água, Serena levantou-se.

- Vou ver se Gwen precisa de ajuda.

Assim que a irmã saiu, Coll tomou as mãos de Maggie entre as dele. Eram tão suaves, tão macias...

- Está doendo muito?

- Não - murmurou ela, saboreando, de pálpebras semicerradas, a doçura daquele mo­mento. - Não precisa se preocupar comigo.

Ele a devorou com os olhos. Ela lhe lem­brava uma linda boneca de porcelana que vira na Itália. Tinha vontade de tocá-la, acariciá­la, mas temia que suas mãos, grande e rudes, pudessem machucá-la.

- Se eu tivesse sido mais rápido...

Os dedos esguios de Maggie entrelaçaram-se ternamente aos dele.

- Eu era tão aborrecida e insípida anos atrás! Sou ainda?

- Não - murmurou Coll roucamente. - Você é a moça mais linda da Escócia e eu...

- E você?

Ele fitou-lhe os olhos azuis como a noite e, ardente, cingiu-a nos braços.

- Quer se casar comigo, Maggie?

- Querido... é o que eu mais quero! - Ela ergueu o rosto para que ele a beijasse. - Você é tudo para mim.

E foi assim que Fiona os encontrou, ao en­trar no salão, um nos braços do outro, num abandono completo.

- Coll! Como se atreve?

Ele voltou-se para ela, irradiando felicidade.

- Maggie concordou em ser minha esposa! Não é maravilhoso, mamãe?

Fiona fitou um e outro com os olhos cheios de espanto, e então suspirou.

- Não posso dizer que seja propriamente uma novidade, mas... acho que é melhor você não ficar a sós com ela até o dia do casamento.

- Mamãe...

- Largue essa moça, Coll.

Assim que ele a obedeceu, Fiona estendeu os braços para Maggie, que se encolhera toda diante de seu ar severo.

- Bem-vinda à família, minha querida. Fi­nalmente, meu filho mostrou ter um pouco de bom senso.

Enquanto terminava de ordenhar, Serena pensou na alegria de Maggie, ao anunciar que ela e Coll iam se casar.

- Que pensa disso? - perguntou à vaca que ruminava tranqüilamente na baia.

A notícia não era ainda oficial. Sua mãe in­sistira para que Coll fizesse antes o pedido a lorde MacDonald, como era de praxe. Mas nin­guém duvidava que o velho lorde, que ia chegar dentro de algumas horas, com outros con­vidados, concordasse com os esponsais. Mag­gie estava quase delirante à idéia de que o anúncio do noivado seria feito durante o baile daquela noite.

Serena sorriu, enquanto erguia os dois bal­des. Estava feliz pelos dois. Sua amiga seria uma boa esposa: saberia refrear os impulsos mais exaltados do marido e ficaria satisfeita de fiar e coser para um bando de pirralhos. Coll, por sua vez, seria como seu pai: um ho­mem devotado à família.

Quanto a ela própria, estava mais decidida do que nunca a não se casar. Seria uma pés­sima esposa. Não por ser seca de ternura, ou por não querer filhos. Mas porque não via com bons olhos a perspectiva de viver em perpétua submissão a um marido autoritário.

"E depois, como posso me casar com um ho­mem qualquer, quando estou apaixonada por Brigham?", perguntou-se, enquanto saía da baia. Mesmo sabendo que nunca poderia tornar-se parte da vida dele, ou ele parte da sua, isso não mudava o que estava nas profundezas de seu coração.

Equilibrou os dois baldes e começou a galgar a costa. O sol começava a brilhar, derretendo as últimas neves do inverno. A trilha estava escorregadia, mas transitável para quem, como ela, fazia esse caminho diariamente. Contudo, ia sem pressa. Não por precaução, mas porque sua mente estava longe dali.

Não invejava a felicidade de Coll e Maggie. Seria mesquinhez, sem contar que ela os ama­va demais. Porém, o modo pelo qual sua amiga conseguira realizar seus anseios afetivos, sim­plesmente fazendo-se de frágil, dava-lhe o que pensar.

Um ruído de botas pisando o solo rochoso interrompeu-lhe os pensamentos. Ergueu os olhos: era Brigham que se dirigia para a es­trebaria. Sem pensar, mudou de rumo, de modo que seus caminhos se cruzassem. De­pois, murmurando um perdão silencioso pelo leite que ia ser derramado, deixou-se escorre­gar pelo declive lamacento.

Brigham correu para ela com o rosto fechado.

- Machucou-se?

Era uma acusação, não uma pergunta que traduzisse cuidados. Serena ferveu de raiva por dentro, mas procurou representar bem seu papel.

- Não tenho certeza, mas acho que torci o tornozelo.

- Por que diabo você tem que andar por aí com esses baldes de leite? - Ainda nervoso, ele inclinou-se para examinar-lhe o tornozelo. - Onde está Malcolm, ou a desmiolada da Molly?

- Ordenhar não é tarefa de Malcolm. E Molly está ocupada com os preparativos do baile.

Súbito, Serena desistiu de parecer frágil ou feminina. O seu amor não deveria depender de tal estratagema.

- Não é nenhuma vergonha ordenhar, lorde Ashburn! Talvez as delicadas damas inglesas de seu círculo social não saibam distinguir o úbere de uma vaca de...

- Isso não tem nada a ver com minhas damas inglesas! As trilhas estão escorregadias e os bal­des são pesados demais. Você está fazendo um trabalho que está acima de sua forças.

Ela empurrou a mão dele com rudeza.

- Sou tão forte quanto o senhor e talvez mais! E é a primeira vez que escorrego nesta trilha!

Ele olhou-a fixamente e depois balançou a cabeça.

- Teimosa como uma mula!

Serena sentiu o sangue subir-lhe à cabeça.

Sem uma palavra, apanhou um balde de leite que estava pela metade e lançou-lhe o con­teúdo no rosto. Depois levantou-se, os olhos fuzilando.

- Não há nada melhor para uma delicada pele inglesa do que um pouco de leite morno, my lord!

Brigham enxugou o leite que lhe escorria do rosto moreno e vociferou:

- Eu deveria dar-lhe uma surra, sua pir­ralha malcriada!

- Não quer tentar, Sassenach ?- provocou ela, sem nenhuma ponta de remorso.

- Serena!

Seu ar desafiador transformou-se numa ex­pressão submissa, quando o chamado peremp­tório de seu pai cortou o ar ainda úmido da manhã. Não havia outra coisa a fazer senão abaixar a cabeça e esperar o pior.

- Você perdeu o juízo? - trovejou Ian, pos­sesso de raiva, quando os alcançou.

Ela suspirou, resignada.

- Sim, pai.

- Foi um acidente - começou Brigham, conciliador. - Serena escorregou como os dois baldes e...

- Não foi um acidente - retrucou ela, fria e composta. - Eu despejei o balde de leite em lorde Ashburn deliberadamente.

- Foi o que imaginei! - As feições de Ian pareciam esculpidas em pedras. - Vou me desculpar com lorde Ashburn por seu compor­tamento deplorável e prometer-lhe que será castigada. Já para casa, moça!

- Sim, pai.

Brigham colocou a mão no ombro dela.

- Não posso permitir que Serena leve toda a culpa. Eu a provoquei, também deliberada­mente. Chamei-a de mula. O insulto foi tão infeliz quanto o incidente e igualmente explo­rável. Você me faria um favor Ian, se deixasse o assunto morrer.

MacGregor permaneceu em silêncio por um segundo. Depois ordenou, brusco:

- Leve esse balde de leite para casa, Serena!

- Sim, papai.

Ela lançou um olhar rápido a Brigham, um misto de gratidão e frustração, e então pôs-se a subir a colina.

- Ela merecia ser castigada por isso - co­mentou Ian, embora soubesse que, mais tarde, iria rir à lembrança de sua garotinha despe­jando um balde de leite na cabeça do jovem inglês.

- Foi o que eu pensei a princípio. Infeliz­mente, tenho que admitir que a provoquei. - Brigham soltou um suspiro. - Parece que sua filha e eu somos incapazes de manter um convívio civilizado.

- Era o que eu imaginava.

- Ela é teimosa, tem um língua afiada e um temperamento explosivo.

Ian afagou a barba e sorriu.

- Serena é uma cruz em meus ombros, Brigham.

- Seria para qualquer homem, Ian. Às ve­zes, chego a pensar se ela não apareceu em meu caminho para complicar minha vida, ao invés de iluminá-la.

- Que está querendo dizer?

Foi somente então que Brigham percebeu que exprimira seus pensamentos em voz alta.

- Pretendo casar-me com ela. Com sua per­missão, naturalmente.

Ian sufocou um sorriso.

- E se eu não der permissão?

- Eu me casarei com Serena de qualquer modo.

Era a resposta que Ian esperava, mas, ainda assim, ele hesitou. Queria saber qual era a opi­nião de sua filha, antes de dar uma resposta.

- Vou pensar nisso, Brigham. Quando vai partir?

- Dentro de alguns dias.

Brigham pensou na carta que recebera de Londres.

- Lorde George Murray acredita que tenho elementos para convencer os jacobitas ingleses que ainda relutam em dar seu apoio ao príncipe.

- Pois terá minha resposta quando voltar. Não vou negar que ficaria muito feliz em dar-­lhe a mão de minha filha. Mas ela tem que estar de acordo. E isso, meu rapaz, eu não posso prometer.

Uma sombra velou os olhos cinzentos de Brigham.

- Por que sou inglês?

- Sim, certas feridas demoram muito para cicatrizar.

Ian sorriu e bateu-lhe amavelmente nas costas.

- Você a chamou de mula, não foi?

- Sim, mas devia ter-me afastado depois de provocá-la.

Ian soltou uma risada sonora e deu-lhe outro tapinha nas costas.

- Se quer mesmo casar-se com Serena, é melhor que aprenda a esquivar-se!

Serena estava sentada diante do toucador, onde se enfileiravam os produtos de toalete, ten­do atrás de si Maggie que lhe penteava os cabelos.

- Seus cabelos já são naturalmente enca­racolados - observou a amiga, enquanto ma­nejava os ferros de frisar. - Você nunca vai precisar dormir com papelotes.

- Eu nunca faria isso. Não vejo por que uma mulher deva enfeitar-se tanto para um homem.

Maggie esboçou o sorriso sábio de um mu­lher apaixonada.

- Que outros motivos poderia ter uma mu­lher para enfeitar-se?

Gwen chegou mais perto, para se mirar no espelho, e depois ensaiou alguns passos de dança, exultante. Seria seu primeiro vestido de gala.

- Acha que alguém vai me tirar para dan­çar, Maggie?

- Todos os rapazes irão disputar esse pri­vilégio, querida.

- Talvez alguém tente beijar-me...

- Terá que se haver comigo! - disse Serena com severidade.

- Você parece mamãe! - Gwen riu e afofou os saiotes. - Não vou permitir que ninguém me beije, é claro. Mas seria maravilhoso se alguém tentasse.

- Continue a dizer bobagens, mocinha, e papai a fará esperar mais um ano pelo baile!

- Gwen está entusiasmada e é natural, sen­do o seu primeiro baile - interveio Maggie enquanto, com mãos experientes, trançava uma fita verde por entre os cabelos da amiga.

- Eu também estou.

Ela deu um passo para trás e estudou seu trabalho.

- Você está linda, Serena. E ficará ainda mais, se sorrir.

Serena mostrou os dentes, numa careta.

- Desse modo, você vai espantar os rapazes!

- Tanto melhor. Prefiro vê-los pelas costas.      

- Brigham não teria medo - observou Gwen, com uma ponta de malícia.

Serena ergueu o vestido de baile, que estava estendido sobre a cama, e deu de ombros.

- Não me interessa o que lorde Ashburn possa pensar.

- Ele é bonito, para quem gosta de homens morenos. - Comentou Maggie. - Mas um tanto cheio de si, não acha?

- Brigham não é cheio de si - disse Serena com calor. - Ele é...

Ao ouvir a risadinha de Gwen ela se repri­miu e completou:

- Ele é grosseiro, aborrecido.. e inglês! Sua irmã, porém, não se conteve.

- Outro dia eu o surpreendi beijando Se­rena na cozinha.

Os olhos de Maggie arredondaram-se de espanto.

- O quê?

- Gwen! - explodiu Serena, escandalizada.

- Podemos confiar em Maggie, não pode­mos? - A voz de Gwen adquiriu um petulante tom infantil: - Mas como eu ia dizendo, ele estava beijando Serena. Foi tão romântico...

- Já chega! Não foi romântico, foi...

Ela quis dizer desagradável, mas como não sabia mentir, rompeu num lamento quase furioso:

- Oh! Quem me dera ele me deixasse em paz! Maggie ergueu uma sobrancelha.

- Se foi assim tão terrível, por que você guardou segredo?

Serena enrubesceu e gaguejou:

- Porque... não dei nenhuma importância ao fato.

Sua amiga reprimiu um sorriso.

- Não se aborreça, Serena. Meu primo Jamie vai estar presente ao baile. Talvez ele lhe agrade mais do que lorde Ashburn.

 

Quando Brigham conseguiu escapar dos cuidados perfeccionistas de Parkins, estava irritadiço, mal-humorado e pouco disposto ao convívio social. Os rumores que corriam não só na Inglaterra como na Escócia eram alarmantes, dando conta de que o apoio que o príncipe esperava de seus simpatizantes ingleses não fora irrestrito e total, como se esperava.

Havia ainda a esperança de que, usando de sua própria influência, pudesse convencer os indecisos a aderirem à facção dos Stuart. Seria, porém, um missão perigosa. Não podia prever se teria sucesso ou, caso fosse descoberto, o que seria feito de suas propriedades e de seu título.

Naquela noite, dezenas de chefes de clãs se reuniriam no solar dos MacGregor. As lealdades seriam testadas, os juramentos confirmados. O que veria e ouviria ali seria cuidadosamente exposto no clube dos jacobitas, em Londres, com o fato de estimular o espírito combativo dos ingleses leais ao príncipe. Era uma guerra que se baseava sobretudo em dis- cursos, em palavras. E, a exemplo de Coll, estava começando a ficar cansado disso.

Ao descer a escada, no entanto, era a imagem perfeita de um elegante aristocrata inglês. Nada em seu aspecto, ou em sua expres­são, traía as opressivas preocupações que lhe agitavam o espírito.

- Lorde Ashburn...

Fiona fez uma reverência, quando ele entrou no salão. Ela já tomara conhecimento dos sen­timentos que o conde nutria por sua filha mais velha. E, mais sensível do que o marido, en­tendia as desencontradas emoções que Serena devia estar experimentando.

- Lady MacGregor... A senhora está encantadora.

Ela sorriu, não deixando de observar que os olhos dele perscrutavam, ansiosos, o salão.

- Obrigada, my lord. Espero que se divirta esta noite.

- Posso pedir que me reserve uma dança?

- Será um prazer. Mas, antes, permita que eu o apresente aos nossos convidados.

Fiona pousou a mão no braço dele e deixou que ele a conduzisse pelo salão que, pouco a pouco, enchia-se de uma multidão elegante­mente trajada. Os homens, em sua maioria, usavam saiotes e mantos com as cores de seus clãs, formando um belo contraste com os ves­tidos mais alegres e luxuosos das damas. A doce claridade das velas brilhava em brocados de ouro e prata, em veludos preciosos de um azul desmaiado, cor-de-rosa, verde-mar, e in­cidia sobre os ombros nus, acariciados pela brisa dos leques de pluma. Jóias cintilavam.

Era evidente que, naquele canto remoto da Alta Escócia, observava-se a moda francesa tão estritamente quanto nos salões de Paris e Londres.

Brigham foi conduzido de grupo em grupo e apresentado a todos, indistintamente. Mas, enquanto ele sorria para as pessoas, murmu­rando algumas palavras de cumprimento, con­tinuava a esquadrinhar o salão à procura de Serena. Estava determinado a convidá-la para a primeira dança e para quantas mais pudesse conseguir.

- A pequena Mackintosh tem a graça de um elefante - confidenciou-lhe ao ouvido Coll, que chegava sem ser pressentido. - Fi­que longe dela.

Brigham arrastou-o para um lado e pergun­tou-lhe, sorridente:

- Você parece bastante satisfeito. Posso sa­ber se sua entrevista com o sr. MacDonald transcorreu como desejava?

- Pode dar como certo que Maggie e eu estamos casados em maio.

- Meus cumprimentos! Vou ter que encon­trar outro companheiro de noitada.

Coll apertou-lhe afetuosamente o braço.

- Gostaria de poder ir a Londres com você.

- Seu lugar é aqui. Além do mais, será um viagem breve. Voltarei dentro de algu­mas semanas.

- Com notícias boas, espero. Quanto a nós, continuaremos a trabalhar pelo príncipe. Mas não esta noite. Esta noite é para celebrar!

Ele bateu no ombro de Brigham, orgulhoso.

- Aí vem a minha Maggie. Se você quiser dançar com alguém leve como uma pluma, convide Serena. Ela tem um gênio terrível, mas sabe dançar como ninguém.

Brigham apenas assentiu, enquanto Coll ia ao encontro de sua prometida. Ao lado da frá­gil e doce Maggie MacDonald, Serena parecia dotada de uma beleza excitante. Os cabelos estavam penteados para cima, deixando-lhe a nuca a descoberto, e o vestido verde, de decote quadrado, expunha-lhe a curva delicada dos seios que um colar de pérolas, com um pen­dente de esmeraldas, tornava, por esse motivo, ainda mais visível.

Envolveu-a num olhar demorado e, quando os acordes de um minueto flutuaram no ar, moveu-se inconscientemente na direção dela.

- Srta. MacGregor... - murmurou, com uma elegante curvatura. - Pode me conceder a honra desta dança?

Ela, que tinha vontade de recusá-lo, viu-se, sem saber como, estendendo-lhe a mão e, numa espécie de torpor, deslizando para o meio do salão. Súbito, ficou com medo de ter esquecido até os passos mais simples. Porém, quando ele sorriu e inclinou-se novamente, pôs-se a executá-los com graça cativante, seus pés mal parecendo tocar o chão.

Sonhara com isso certa vez, na clareira do bosque. Agora, seu sonho se transformava em realidade. Efetuou todos os movimentos com tal leveza, que os lábios dele entreabriram-se num sorriso de aprovação, quando ela curvou-­se até o chão, na reverência final.

- Obrigado. - Ele não largou-lhe a mão, como ambos sabiam que era apropriado. - Estava querendo dançar com você desde o instante em que a vi à beira do rio. E quando penso nisso, não sei dizer se você estava mais encan­tadora de calção ou nesse lindo traje verde.

- O vestido é de mamãe - explicou ela e acrescentou: - Quero me desculpar pelo... incidente desta manhã.

Audaciosamente, ele beijou-lhe a mão.

- Não é preciso se desculpar. Você fez o que achou que devia fazer.

- Desculpar-me é o mínimo que posso fazer, depois que my lord me salvou da ameaça de um surra.

- Apenas ameaça?

- Sim, papai só faz ameaçar. Ele nunca ergueu a mão contra mim. Talvez por isso eu seja tão impossível.

- Esta noite, minha querida, você é apenas uma mulher bonita.

Serena corou e abaixou os olhos.

- Não sei o que dizer quando my lord fala desse modo.

- Oh! Serena...

- Srta. MacGregor?

Os dois voltaram-se ao mesmo tempo para o intruso, o jovem filho de um proprietário de terras das vizinhanças.

- Quer me dar a honra? - Ele curvou-se, elegante e polido.

Serena teria preferido esquivar-se, para evitar o tédio que previa, mas sabia quais eram seus deveres. Esboçando um sorriso formal, estendeu-­lhe graciosamente a mão, pensando, cheia de an­siedade, quando voltaria a dançar com Brigham.

Ele não podia manter os olhos longe dela. Sentia uma cólera fria, irracional, ao vê-la nos braços de outro. Por que sua mãe permitira que ela usasse um traje que a tornava tão... deleitável? E seu pai, como não via que aquele jovem devasso murmurava bobagens encan­tadoras ao ouvido da filha?

Imprecou por entre os dentes e recebeu um olhar espantado de Gwen, com quem acabara de dançar.

- Que disse, Brig?

- Oh... nada. - Ele sorriu e procurou falar com naturalidade. - Está se divertindo?

Gwen retribuiu o sorriso, desejando secreta­mente que ele a tirasse novamente para dançar.

- Muito. E você, Brig, aprecia os bailes e as festas?

- Em Londres, durante a temporada, não pas­sava dia sem que houvesse algum tipo de en­tretenimento a que eu era obrigado a comparecer.

- Eu adoraria conhecer Londres e Paris.

- Algum dia, alguém a levará para conhecê-las.

Ela riu, delicada.

- Acha mesmo?

- Sem dúvida nenhuma.

Oferecendo-lhe o braço, Brigham levou-a de novo para o centro do salão. Mas, mesmo então, seus olhos continuavam fixos em Serena e seu par. Quando a dança terminou, quis saber:

- Quem é esse rapaz que está falando com Serena?

- É Rob, um dos admiradores dela.

- Admirador...

Brigham sentiu como um choque no peito. Tentou falar, sorrir, mas a cena continuava diante de seus olhos. Então, sem refletir, atra­vessou o salão com largas passadas.

- Srta. MacGregor... posso falar com a senhora?

Serena voltou-se para ele, surpresa.

- Lorde Ashburn! Permita que lhe apre­sente Rob MacGregor.

- Seu criado - disse ele, formal. Depois, tomando Serena pelo braço, levou-a sem ce­rimônia para a alcova mais próxima.

Com medo de provocar um escândalo, ela não teve outra alternativa senão segui-lo.

- Por que me trouxe aqui? Não vê que está chamando a atenção de todos?

- Pouco importa! Por que permitiu que aquele janota segurasse sua mão?

- Rob Mac Gregor é um jovem de ótima família!

- Que o diabo o leve! - Brigham respirava com tanta dificuldade, que ela pôde ouvir um leve sibilar. - Por que ele estava segurando sua mão?

- Porque eu permiti.

- Ele não tem nenhum direito a isso, compreendeu?

- Entenda de uma vez por todas que sou livre de dar a minha mão a quem eu quiser!

Ele fuzilou-a com o olhar.

- Pois não torne a fazer isso, se quiser que esse jovem de boa família continue a viver!

Serena tremia da cabeça aos pés, mas fez esforço para falar com calma:

- Vamos acabar com essa conversa. Quero voltar para o meio dos convidados para não ser obrigada a essa troca inútil de palavras.

- Vai voltar para a companhia dele?

- Se eu quiser.

- Pois não vai, não - declarou ele, em tom frio e autoritário. - Esta dança é minha.

- Quero lembrá-lo, lorde Ashburn, que só meu pai pode me dar ordens.

- Isso vai mudar! - Os dedos dele cerra­ram-se em torno dos pulsos frágeis. - Quando eu voltar de Londres...

- Vai a Londres? - A raiva de Serena es­vaiu-se no mesmo instante, substituída pela aflição. - Quando?

- Dentro de dois dias. Tenho que resolver alguns negócios pendentes.

- E quando pretendia contar-me?

- Recebi uma mensagem poucos momentos antes do baile. - A voz dele suavizou-se. - Importa-se que eu vá?

- Por que deveria importar-me? - disse ela, num sussurro cansado.

Ele acariciou-lhe o rosto com ternura.

- Mas você está se importando. Leio isso em seus olhos.

- Engana-se. Para mim, tanto faz que vá ou fique!

- Vou para fortalecer uma aliança de in­teresses em favor do príncipe.

- Nesse caso, boa viagem.

- Eu voltarei, Serena.

- Voltará, my lord? - Havia um tremor involuntário na voz de Serena, quase um soluço. - Pois eu duvido!

Antes que ele pudesse impedi-la, ela afas­tou-se rapidamente, abrindo caminho por en­tre os grupos de convidados.

 

Serena nunca havia se sentido tão infeliz em toda a sua vida. "Nem tão impaciente e mal-humorada", reconheceu ela, enquanto levava sua égua a pleno galope. Como chegara a acreditar, ainda que por um momento mas contra a sua razão, que Brigham pudesse dedicar-lhe um sentimento profundo e duradouro, algo de que se sentisse enfim segura?

Ele estava voltando a Londres, onde residia, para reunir e articular os membros da cabala do príncipe. Não duvidava mais que o conde de Ashburn fosse sinceramente devotado à causa e que lutaria por isso. Mas lutaria na Inglaterra e pela Inglaterra. E uma vez em seu próprio mundo, não lhe dedicaria um único pensamento!

Essa manhã, ele fora com seu pai para encontrar-se com outros chefes, no intuito de reanimar os desalentados e encorajar os hesitantes, como também presidir os arranjos gerais tendentes a colocar a coroa na cabeça do pai do príncipe Charles.

No inverno passado, Luís XV planejara in­vadir a Inglaterra. Mas a esquadra fora colhida por uma tempestade e a idéia de invasão abandonada. De qualquer forma, tornara-se claro, desde então, que o rei apoiaria o prín­cipe porque desejava ver no trono inglês um monarca que dependesse da França. Como era claro que Charles se valeria de todo o apoio dele, ou de outro grupo qualquer, para con­quistar o lugar que era seu por direito.

Brigham ia voltar a Londres e mover céus e terra pelo jovem príncipe. Fazia-se necessá­rio, agora mais do que nunca, arregimentar os jacobitas ingleses para a campanha dos Stuart. Charles não era como James, seu pai. Não ficaria satisfeito em passar sua juventude nas cortes estrangeiras.

Quando chegasse o momento da rebelião, Brigham lutaria ao lado dele. Mas voltaria para a Alta Escócia? E, sobretudo, voltaria para ela? Não acreditava. Um homem não deixava seu lar, seu país, por sua amada. Ele a desejava, mas ela já sabia como eram instáveis os desejos de um homem.

Para ela, no entanto, não era apenas desejo, era amor. Seu primeiro, seu único amor. Não amava senão a ele. Nunca amaria senão a ele. Mas, agora, esse a quem daria toda a sua alma preparava-se para partir.

Se ficasse, no entanto, que diferença faria? Os livros haviam lhe ensinado que o amor não representava necessariamente tudo. Ro­meu e Julieta. Tristão e Isolda. Lancelote e Guinevra. Serena MacGregor não era fraca como a rainha da Távola Redonda nem doce e romântica como Julieta. Ela era uma esco­cesa de sangue quente e espírito indomável!

Além disso, havia um fato que não podia ignorar, agora ou jamais. Brigham estaria sempre ligado à Inglaterra e ela à Escócia. Assim, era melhor que ele fosse embora. Para nunca mais voltar!

- Serena!

Ela voltou a cabeça e o viu chegar a toda velocidade. Amaldiçoando o destino, esporeou os flancos de sua montaria e a impeliu para o lago, esperando deixá-lo para trás. Contava ladear a margem, tomar o caminho das coli­nas e penetrar no campo agreste, onde Bri­gham nunca seria capaz de alcançá-la. Mas ele conseguiu colocar-se a seu lado e agar­rar-lhe a égua pelas rédeas, obrigando-a di­minuir a velocidade.

- Calma, mulher! Que bicho a mordeu?

- Eu o odeio e quero que vá para o diabo!

- Não me importo com isso.

Enquanto governava o cavalo com a graça e a desenvoltura que lhe eram habituais, ele estudou-lhe o rosto.

- Você está chorando. Alguém a magoou?

- Vá embora! Eu vim aqui para ficar sozinha.

Ela estava chorando, embora negasse o fato. Brigham queria tomá-la nos braços e confortá-la, mas sabia qual seria sua reação.

- Vou partir amanhã ao amanhecer, Serena. E há coisas que quero contar a você em primeiro lugar.

- Diga, então. E depois vá para Londres ou para o inferno!

A fisionomia de Brigham não se alterou.

- Vamos desmontar?

- Faça o que quiser!

Ele saltou ao chão e, depois de amarrar os dois cavalos numa árvore, estendeu os braços para ajudá-la.

- Não quero sua ajuda!

- Pois eu lhe digo que vai querer.

- Será um ato de violência!

- Verdade?

Ato contínuo, ele arrancou-a da sela à força e a colocou no chão.

- Sente-se.

- Não!

- Sente-se! - repetiu ele, começando a perder a paciência.

- Está bem. Sobre o que quer conversar, my lord?

- Você torna tudo tão difícil... Tenho vontade de estrangulá-la!

Ela sorriu, irônica.

- Devo lhe dizer, lorde Ashburn, que depois que chegou a minha casa fiquei conhecendo melhor as maneiras inglesas.

- Não há limites para a sua insolência, não é? - Brigham fixou-a com uma frieza que a gelou. - Sou inglês e não me envergonho disso!

Ele fez um esforço sobre-humano para controlar-se.

- Agora ouça. Não há nada em minha li­nhagem que me faça corar. Pelo contrário, os Langston são uma antiga e respeitável família e eu me orgulho muito dela. Portanto, pare com seus insultos e ironias!

- Não era sua família que eu pretendia insultar, my lord.

- Era a mim, então? Ou talvez a toda a Inglaterra?

Ela fez menção de falar, mas Brigham agar­rou-a pelos ombros com ar tão ameaçador que a obrigou a manter silêncio.

- Sei o que seu clã sofreu. Sei que o nome MacGregor ainda está proscrito e que muitos de vocês são obrigados a adotar outros. É uma crueldade que perdurou tempo demais. Mas não fui eu que os persegui nem a maioria dos ingleses - concluiu ele, apertando-lhe ainda mais os ombros.

- Que pensa que eu sou? - queixou-se ela. - Está me machucando!

Ele a largou de repente e disse com voz fria: - Perdão, madame.

Serena, subitamente, caiu em si. Havia ape­nas uma coisa a fazer: apresentar desculpas pela sua grosseria.

- Sou eu que lhe devo desculpas. Você tem razão. Não é justo culpá-lo pelas coisas que aconteceram antes que tivéssemos nascido. Não é justo culpá-lo porque alguns dragões ingleses abusaram de minha mãe, ou porque jogaram meu pai numa prisão durante um ano, para que a desonra não fosse vingada.

Ela fez uma pausa e depois acrescentou, baixando os olhos.

- Sei que não tem culpa de nada, mas é que... estou com medo.

- Do quê? - perguntou Brigham em tom mais brando.

Ela retraiu-se, mas ele a obrigou a encará-lo.

- Fale!

- Deixe-me ficar sozinha, my lord.

- Quero uma resposta, Serena. Do que você tem medo?

Ela hesitou um instante, antes de responder:

- De esquecer quem você é.

- Isso importa?

Pela expressão de Brigham, ela percebeu que, fosse qual fosse a resposta, seu destino estava selado.

- Sim, importa.

- Pois eu acho que não.

Antes que Serena pudesse retrucar, ele a puxou para si, abraçando-a com força. Ela debateu-se furiosamente, até que os lábios dele encontraram os seus. A partir daí, uma grande sensação de abandono invadiu-a, anulando qualquer possibilidade de resistência. Com um ge­mido sufocado, moldou o corpo ao dele e corres­pondeu-lhe aos beijos com uma lentidão deliciosa.

- Oh, Brig, não quero que vá embora!

Ele se afastou um pouco para olhá-la.

- Eu voltarei. Três semanas, quatro no má­ximo, e estarei de volta.

- Voltará?

- Sim, voltarei. Não acredita em mim?

Serena acariciou-lhe ternamente o rosto. Se isso era amor, por que doía tanto? Por que não lhe trazia a felicidade e a alegria que vira nos olhos de Maggie?

- Não acredito que voltará para mim. Mas não quero falar sobre isso agora.

- Então vamos falar de outras coisas.

- Não, não falaremos nada. - Devagar, ela começou a desabotoar o casaco.

- Que está fazendo?

Em resposta, ela deixou o casaco escorregar pelos ombros, pondo à mostra o fino corpete róseo, sob o qual se desenhavam os seios pe­quenos e redondos.

- O que nós dois queremos.

Ele juntou-lhe as mãos e olhou-a com infi­nita tristeza.

- Não assim, Serena. Não é justo para você.

- Por que não? - ela perguntou ofegante.

- Há coisas que não precisam ser ditas.

- Quero que me tome nos braços e que me faça sonhar. Você não quer?

Ele a abraçou docemente e, procurando-lhe os lábios, deu-lhe um longo beijo na boca.

- Não há nada no mundo que eu queira mais.

- Então me faça sua. Dê-me algo de si mes­mo, antes de ir embora.

Ela lhe tomou a mão e pressionou os lábios quentes e macios na palma.

- Mostre-me o que é ser amada, Brigham.

- Serena... Não sei o que dizer.

Ela exasperou-se.

- Você vai embora amanhã!

- Eu não iria, se tivesse o poder da decisão.

- Mas irá! E eu quero ser sua antes disso.

Brigham ergueu-lhe o rosto e fitou-a nos olhos.

- Tem certeza?

Ela esboçou um sorriso e colocou-lhe a mão sobre seu coração.

- Sinta como ele bate depressa. É sempre assim, quando estou perto de você.

- Você está gelada - disse ele, aconche­gando-a nos braços.

- Pegue a manta de meu cavalo. Podemos estendê-la ao sol. Ficaremos bem aquecidos.

Ele a apertou nos braços e cobriu-lhe as pál­pebras de beijos.

- Não tenha receio. Não vou magoá-la.

Serena confiava nele. Tinha certeza de que seria gentil e cuidadoso. Estava escrito em seus olhos, enquanto a fitavam com ternura e em seus lábios, enquanto deslizavam sobre seus ombros nus. E em suas mãos, enquanto se punham a acariciá-la, transmitindo calor e um desvelo infinito.

Por um momento sem fim, abandonou-se, enlanguescida, às sensações provocadas por aquele contato mágico. Depois, adquirindo confiança, devolveu-lhe as carícias, correndo os dedos pelo contorno daquela boca sensual, que tinha tanto poder sobre os seus sentidos.

Quando se ajoelharam um diante do outro, com o sol a aquecê-los, soube que se entregava não cegamente, mas com a confiante certeza de que quando se separassem, teriam a alma cheia de recordações.

Brigham olhou-a, deslumbrado. Ela nunca lhe parecera tão linda, com os olhos brilhantes sob as pálpebras e as faces coradas pelo pra­zer. Sentiu um assomo de ternura. Seria de­licado com ela.

Embora dispusesse de pouco tempo, agiu como se aquele instante fosse durar para sem­pre. Acariciou-a lenta, suavemente, sentindo que aos poucos a paixão se apoderava do corpo delicado.

Quando Serena deslizou as palmas macias para dentro de seu colete, os dedos tímidos lutando com os botões da camisa, acompa­nhou-lhe os gestos, achando insuportavelmen­te excitante ser despido por mãos tão inexpe­rientes. Era quase uma tortura, mas tinha de se controlar. E não apenas por causa da ino­cência de Serena, mas por si próprio. Queria gravar na memória cada instante, cada carícia que compartilhavam. Para sempre.

Ainda ajoelhada, Serena tirou-lhe a camisa e depois seguiu o contorno da cintura quase medrosamente. O corpo dele era tão moreno quanto seu rosto, um corpo musculoso, forte e firme, em perfeita harmonia com sua per­sonalidade altiva e resoluta. Não teria imagi­nado que um homem pudesse ser tão bonito!

Quando ele lhe beijou os seios, ela fechou os olhos e caiu arquejante sobre a manta, perdida na tensão sensual que fazia todos os seus nervos vibrarem em sucessivas ondas de prazer.

Brigham enlaçou-a e deslizou a mão pelo ventre liso de Serena até alcançar os pêlos dourados entre as coxas. Então, com o cuidado de um homem experiente, curvou-se para bei­jar-lhe delicadamente o sexo.

Quando a sentiu despertar para a volúpia, teve que lutar consigo mesmo para não pos­suí-la nesse instante. Porém, era preciso ini­ciá-la para o amor de modo correto e satisfa­tório, continuando a excitá-la e fazendo-a che­gar à beira do êxtase, antes de torná-la sua.

- Sonhei tanto com esse instante, querida!

- Quero você, Brigham.

- Você me terá, amor. No seu devido momen­to. Antes disso, quero oferecer-lhe muito mais.

Ela quis dizer que era impossível. Seu corpo parecia saciado. Mas quando ele tornou a bei­já-la, sentiu-se arrebatada por uma onda de volúpia tão intensa, que pensou que iria desfalecer. Abandonando-se por completo àquele apelo ardente, mergulhou com ele num mundo de puro prazer.

Ao perceber que Serena estava à beira do êxtase, Brigham apartou-lhe as coxas e, com cuidado, penetrou-a. Ao ouvi-la soltar um grito abafado, selou-lhe a boca com um beijo pro­fundo e demorado. Quando a sentiu mais des­contraída, soergueu o corpo e começou a mo­vimentar-se lenta e compassadamente.

Serena tinha a impressão de que as emoções iriam levá-la ao desvario. Instintivamente, er­gueu-se um pouco para amoldar-se melhor a ele, e o acompanhou em seu ardor.

Não pensou mais em nada, abandonando-se completamente à torrente de paixão que a con­duziu a um mundo de indizível prazer.

Quando abriu os olhos, as sombras alonga­vam-se, a luz era menos intensa e o azul do céu mais profundo. Perdera toda a noção de tempo. Sabia apenas que o sol começava a declinar no horizonte e que os pássaros silen­ciavam, recolhidos a seus abrigos no bosque.

Porém, experimentava tal sensação de con­forto nos braços de Brigham, que preferiu pro­longar um pouco mais aquele instante de en­cantamento. Era quase impossível acreditar, se tornasse a fechar os olhos e não pensasse em nada, que a política ou a guerra não iria separá-los jamais.

- Eu te amo, Serena.

Ela o fitou e sorriu.

- Eu também te amo. E gostaria que pu­déssemos ficar juntos para sempre.

- Será assim. Em breve.

Ela ergueu-se para apanhar o corpete e nada disse.

- Duvida?

- Eu sei que você me ama e que gostaria que fosse assim. E sei também que o amor que me deu esta tarde nunca será comparti­lhado com mais ninguém.

- Mas não acredita que voltarei, é isso? - perguntou ele, amargo, enquanto começava a vestir-se.

Serena tomou-lhe a mão. Ela não estava ar­rependida de nada e queria que ele soubesse disso.

- Acho que se voltar, voltará pelo bem do príncipe. E é justo que seja assim.

Brigham olhou-a com uma profunda tristeza.

- Será que não me conhece? Acha que o que aconteceu entre nós já estará esquecido quando eu chegar a Londres?

- Não. Acredito que esses momentos serão lembrados para sempre. Quando formos velhos...

Essa resposta enfureceu-o.

- Não há meio de fazê-la compreender que disse a verdade?

Ela fez menção de falar, mas ele a impediu com um gesto.

- Voltarei a Escócia e por sua causa. Não se esqueça disso. E quando a guerra terminar, eu a levarei comigo para Londres.

- Seria impossível! Não pensa na vergonha que se abateria sobre minha família se...

Ele a interrompeu:

- Não entendo por que o fato de levar mi­nha esposa a Londres possa envergonhar sua família!

- Sua... esposa? - Ela o fitou, boquiaberta.

- Está falando em... casamento?

- Casamento, sim! Que estava pensando?

Então, ele compreendeu o motivo da inse­gurança dela e a cólera transformou-se em piedade.

- Foi por isso que pediu tempo para pensar, na última vez que estivemos juntos? - A ri­sada dele foi sem alegria. - Que belo julga­mento você faz de mim, Serena!

- Eu... - Ela deixou-se cair sentada numa rocha. - Eu pensei... Os homens preferem ter amantes a...

- Só uma pequena doida poderia supor que eu estava lhe oferecendo outra coisa, a não ser meu coração e meu nome!

- Como poderia saber que estava falando de casamento? Você nunca me disse nada!

- Já falei a esse respeito com seu pai.

- Falou com meu pai? - disse ela, medindo cada palavra. - Falou com meu pai sem ao menos me consultar?

- Nesses casos, a etiqueta exige que se peça a permissão dos pais.

- Para o inferno as formalidades! - Ela apanhou a manta e dobrou-a. - Você não ti­nha o direito de tomar a iniciativa sem antes falar comigo.

Ele o olhou com intensidade.

- Acho que lhe disse mais de uma vez que te amo, Serena.

Ela corou e foi jogar a manta sobre o dorso do cavalo.

- Não sou tão ingênua a ponto de não per­ceber que, depois do que aconteceu entre nós, dificilmente haverá casamento.

Ele a agarrou pelo braço e a fez voltar-se.

- Acha então que sou um vil sedutor, que adapta seus projetos às circunstâncias e trama de acordo com os acontecimentos? E minha pro­messa de casamento? Foi igualmente calculada?

- Não sei o que se passa em sua cabeça.

- Pois então saiba que eu quero que seja minha esposa!

- O senhor" quer. Mas quem lhe disse que eu quero? Não estamos na Inglaterra, my lord!

- Mentiu, quando disse que me ama?

- Não, mas...

Ele a trouxe para mais perto de si e cobriu­-lhe os lábios com um beijo que sufocou-lhe os protestos. Depois disse:

- Então você mente, quando afirma que não quer ser minha esposa!

- Como posso deixar a Escócia para acompanhá-lo à Inglaterra? - ela perguntou desesperada.

- Então é isso...

- Precisa compreender que eu não quero tornar-me a esposa de um conde!

- De um conde inglês - corrigiu ele. - Afinal, você é filha de um lorde.

- Isso não é suficiente. Você mesmo me disse, e mais de uma vez, que não sou uma dama.

- Quero que seja minha esposa, não uma dama!

- Não!

- Não terá outra escolha, quando eu disser a seu pai que a comprometi.

Serena ficou transtornada. - Você não se atreveria!

- Sim, eu me atreveria - disse ele tristemente.

- Eu o mataria!

- Acredito que seu pai não seja tão sedento de sangue quanto você.

Antes que ela pudesse retrucar, ele a ergueu do chão e colocou à força sobre à garupa do cavalo.

- Já que se recusa a casar comigo porque me ama, então irá casar-se comigo porque será obrigada a isso!

- Preferia casar-me com uma mula de duas cabeças!

Ele montou seu cavalo e fez meia volta.

- Mas se casará comigo, querida. De bom ou mau grado. Durante minha ausência, terá tempo para pensar sobre o assunto. Quando voltar, eu falarei com seu pai e tomarei as necessárias providências.

Serena lançou-lhe um olhar furioso e espo­reou o cavalo. Esperava que ele quebrasse o pescoço, durante essa viagem a Londres!

Mas no dia seguinte, à hora de sua partida, ela virou-se de bruços na cama e, abraçando o travesseiro, chorou até esgotar todas as lágrimas.

 

De pé junto à janela, Brigham olhava para a elegante multidão que transitava pela avenida. Fazia seis semanas que se encontrava em Londres. A pri­mavera estava agora no auge e seu jardim, um dos mais lindos da cidade, exibia impe­cáveis gramados e canteiros repletos de flo­res fragrantes.

A chuva amena, que caíra quase incessan­temente desde o princípio de abril, havia sido substituída pelos ventos vindos do sul. Os dias eram dourados, estimulando as mulheres bo­nitas a usarem leves vestidos de seda e cha­péus emplumados, e a passearem nos parques. Diariamente, havia bailes e reuniões, jogos de cartas e recepções matinais. Um homem, de boa condição social e que dispusesse de uma bolsa recheada de ouro, poderia desfrutar de uma vida confortável, com poucos inconve­nientes e muitas satisfações.

Gostava da atmosfera suave de Londres, ci­dade onde nascera e se criara, e onde tudo lhe era familiar. Apesar disso, sentia que seu coração não estava mais ali, mas na Escócia. E perguntava-se como seria a primavera em Glenroe e se Serena estaria sentindo sua falta.

Se dependesse dele, já teria voltado para lá. Mas seu trabalho em favor de Charles es­tava tomando mais tempo do que o previsto. As coisas não estavam marchando como imaginara. Os jacobitas ingleses eram numerosos, mas poucos dentre eles se animavam a erguer a espada por um príncipe inexperiente.

A conselho de lorde George, falara com vá­rios grupos influentes, não só para dar-lhes uma idéia da disposição de ânimo dos clãs da Alta Escócia, mas também para transmitir-lhe todas as informações que recebia do próprio príncipe.

Fora a Manchester e mantivera conluios secretos com membros de sua facção política. Mas era arriscado. O governo estava alerta agora que os rumores de uma guerra com a França corriam soltos pelo país. Os simpatizantes dos Stuart e seus partidários ativos seriam acusados de traição e encar­cerados, se descobertos. Isso na melhor das hipóteses. Lembranças de execuções públi­cas e deportações permaneciam frescas na memória de todos.

Após seis semanas, tinha a esperança, mas apenas isso, de que se o príncipe Charles pu­desse agir rapidamente e dar início à sua cam­panha, seus seguidores ingleses cerrariam fileiras em torno dele. Pedir que lutassem por algo tão vago quanto uma causa, quando isso significava arriscar nome, fortuna e também a vida, não os comoveria de modo algum.

Voltando-se da janela, ele estudou o retrato da avó. Sua decisão já estava tomada havia anos, quando era ainda um menino e ouvia histórias de reis exilados e de lutas por justiça. Não trocaria por outros os ideais que herdara de seus antepassados.

Mas não tinha remédio senão partir, e sem alcançar coisa alguma. O governo tinha meios de descobrir quem conspirava contra o rei da Inglaterra. Até aquele momento, seu nome o mantivera acima de qualquer suspeita. Po­rém, isso podia não durar para sempre. Prin­cipalmente agora que a guerra com a França parecia outra vez inevitável, assim como uma nova revolta jacobita.

"É mais prudente desaparecer de cena", pen­sou, enquanto revolvia os carvões do fogo que se extinguia. Partiria sozinho, encoberto pelas sombras da noite. Quando voltasse a Londres, traria Serena consigo. Juntos se estabelece­riam no solar de seus ancestrais, brindando ao legítimo rei e a seu regente.

Iria voltar à Escócia pelo príncipe, como ela dissera. Mas também para reivindicar o que era seu. Ali, teria que travar outra batalha, talvez mais importante do que aquela pela causa dos Stuart. E estava determinado a vencer.

 

Horas depois, naquela mesma tarde, en­quanto se preparava para outra noitada no clube, seu velho mordomo bateu-lhe à porta dos aposentos.

- Sim?

- Queira me desculpar, my lord. O conde de Whitesmouth quer falar com o senhor. Pa­rece que é um assunto, de certa urgência.

- Nesse caso, mande-o subir.

Segundos depois, o conde de Whitesmouth, um homem baixo, de rosto redondo e juvenil aparecia no limiar.

- Brig...

Brigham fez um sinal a Parkins.

- Pode ir, agora.

Depois que o criado se retirou, ele caminhou para uma mesa e encheu duas taças de vinho.

- Entre, Johnny, e diga-me o que aconteceu.

Seu amigo aceitou a taça que ele lhe oferecia e esvaziou o conteúdo de um trago.

- Temos problemas - disse então, deixan­do-se cair numa cadeira.

- De que natureza?

- Miltway, aquele cabeça oca, embriagou-se na casa de sua amante e falou demais.

- Ele citou nomes?

- Não temos certeza, mas parece que sim. E, nessas circunstâncias, o seu é o mais óbvio.

Nenhuma emoção se revelou nos olhos cal­mos de Brigham.

- A amante dele não é aquela dançarina ruiva?

- Ela sabe um bocado de coisas, Brig. Aquele jovem idiota tem mais dinheiro do que cérebro!

- Ela ficará de boca fechada se lhe dermos uma boa recompensa?

- Tarde demais. Foi por isso que vim até aqui. Ela já passou algumas informações a nossos inimigos. Suficientes para que Miltway fosse preso.

- Pobre imbecil!

- Nossos companheiros acham que você será interrogado, Brig. E se descobrirem algo que o incrimine...

- Não sou tão tolo quanto Miltway.

- Brig­ham fez uma pausa.

- E você, Johnny, tem a necessária cobertura?

- Negócios urgentes exigem minha presen­ça no campo.

- O conde de Whitesmouth sor­riu.

- Para todos os efeitos, já estou a cami­nho de minha propriedade.

- Ótimo.

O jovem conde serviu-se de mais vinho.

- O que pretende fazer?

- Vou partir para a Escócia esta noite.

- Essa partida súbita pode parecer suspei­ta. Está pronto para justificá-la?

- Estou cansado de simular.

- Nesse caso, desejo-lhe uma boa viagem.

Brigham sentiu-se tocado com a sua nobre cortesia.

- Você se arriscou muito, vindo avisar-me. Fico-lhe grato por isso.

- Obrigado, mas não perca tempo.

- Apenas o suficiente para me preparar. Você falou com mais alguém sobre a indiscrição de Miltway?

- Não. Achei que seria melhor vir direta­mente a sua casa.

Brigham assentiu.

- Fez bem. Passarei algumas horas no clu­be, como tinha planejado, para saber se os rumores já começaram a circular. Quanto a você, fará melhor saindo de Londres antes que alguém perceba que não está a caminho de sua propriedade.

Whitesmouth levantou-se e pegou o chapéu.

- Um conselho, Brig. Não subestime Cumberland, o filho do Príncipe-Eleitor. Ele é jovem, mas extremamente ambicioso.

 

No clube, Brigham foi calorosamente cum­primentado e convidado a reunir-se aos joga­dores de cartas ou dados. Com o pretexto de tomar uma taça de vinho em companhia do visconde Leighton, ele desculpou-se polida­mente e dirigiu-se para junto da lareira, onde seu amigo o aguardava.

- Não quer tentar a sorte, Ashburn?

- Não nas cartas, Leighton. E não esta noi­te, perfeita para uma viagem ao campo.

Leighton manteve os olhos estudadamente fixos no borgonha.

- Há notícias de tempestade ao norte.

- Tenho pressentimento de que, breve, ha­verá uma tempestade aqui.

Brigham aproveitou o instante em que as vozes dos jogadores tornaram-se mais altas e inclinou-se para frente.

- Miltway fez confidências comprometedo­ras à sua amante e foi preso.

Leighton imprecou algo entre os dentes e depois levantou os olhos.

- Ele falou muito?

- Ninguém tem certeza, mas precisamos avisar alguns companheiros.

O rosto astuto do visconde abriu-se num sor­riso irônico.

- Considere essa missão cumprida, meu caro. Deseja companhia, para a viagem?

Brigham ficou tentado a dizer sim. O vis­conde Leighton, com seus coletes de brocado cor-de-rosa e mãos perfumadas, dava a im­pressão de um perfeito dândi. Mas não ha­via outro companheiro de armas melhor do que ele.

- No momento, não. Obrigado.

- Nesse caso, vamos brindar a dias melhores. Enquanto erguia a taça, Leighton lançou um olhar aborrecido à mesa mais próxima.

- Temos que mudar de clube, meu caro Ashburn. Este estabelecimento está abrindo suas portas a pessoas de todas as categorias.

Brigham olhou para o grupo de jogadores, reconhecendo o homem que estava à banca e boa parte dos outros. Mas havia um homem magro debruçado sobre a mesa que parecia não estar aceitando sua má sorte de maneira polida, como convinha a um cavalheiro.

- Não o conheço - disse, tomando um gole de vinho.

- Eu já tive esse duvidoso prazer. O sujeito é um oficial que, em breve, irá terçar armas com os franceses. Parece, no entanto, que ele não é mais o favorito de nossas damas, apesar da imagem romântica que procura passar de si mesmo.

Brigham riu e preparou-se para partir.

- Devido, talvez, à sua falta de educação.

- Devido ao tratamento que ele dispensou a Alice Beesley, quando essa jovem teve a in­feliz idéia de tornar-se sua amante.

- A encantadora sra. Beesley não se dis­tingue pela inteligência mas, pelo que me disseram, é uma mulher bastante amável.

- Evidentemente, Standish não a achou tão amável, pois a fez experimentar a força de seu chicote.

Brigham não conseguiu evitar a expressão de profunda indignação.

- O homem deve ser um louco ou... - Ele interrompeu-se bruscamente.

- Você dis­se... Standish?

- Sim. Coronel, acredito. Ele granjeou uma péssima reputação durante o escândalo que envolveu Porteous, em 1735. Parece que ele sentia prazer em saquear e queimar aldeias e que isso valeu-lhe uma promoção.

- Ele devia ser capitão em 1735 - observou Brigham, pensativo.

- Possivelmente. - Um brilho de interesse iluminou os olhos de Leighton. - Você o conhece, afinal?

- De nome... e a fama - murmurou Brig­ham, lembrando-se de ter ouvido Coll dizer que o capitão Standish era responsável pela violação de sua mãe, pelas casas queimadas e pela morte dos seareiros indefesos.

- Acho que chegou a hora de nos conhecermos melhor. Sabe, Leighton, vou tentar a sorte, como você me sugeriu.

- Está ficando tarde, Ashburn. Brigham sorriu.

- Algumas horas a mais não farão diferença.

Não lhe foi difícil entrar no jogo. Menos de vinte minutos depois, ajudado por sua boa sorte, ele já comprara a banca, ao passo que o coronel amargava uma perda considerável. Por volta da meia-noite, quando havia apenas três jogadores à mesa, fez um sinal ao criado que servisse mais vinho e, delibe­radamente, acompanhou Standish na bebi­da. Pretendia matar o homem em igualdade de condições.

- Parece que os dados não o estão favore­cendo, coronel.

- Ou o estão favorecendo demais!

As palavras de Standish eram ditadas não só por influência da bebida, mas também da amargura. Tudo conspirava para excluí-lo das mais simples e das mais necessárias dentre todas as satisfações da existência. Es­tava a zero... falido mesmo de esperança. Contava obter os favores de uma jovem dama, coisa que lhe permitia alimentar seu gosto pelo jogo e conquistar um lugar na sociedade, mas essa confiança morrera na­quela tarde. Estava certo de que fora obra de Beesley, aquela vagabunda!

Sacudindo raivosamente a caixa de couro, Standish atirou os dados e tornou a perder.

- É uma pena. - Brigham sorriu e tomou mais um gole de vinho.

- Não me importo de perder - resmungou o oficial.

- Espero que não considere falta de patrio­tismo de minha parte vencer um dragão do rei. Mas, aqui, somos apenas homens comuns.

- E estamos aqui para jogar, não para falar! - completou Standish com rudeza.

- Num clube de "cavalheiros", fazemos am­bas as coisas. Mas, talvez, o coronel não tenha tempo para freqüentá-los.

O rosto de Standish ficou rubro. Ele não tinha certeza, mas achava que havia sido insultado.

- Passo a maior parte de meu tempo lu­tando pelo rei, não vadiando nos clubes!

- Naturalmente. - Brigham jogou e ven­ceu. - Isso explica por que o senhor não tem traquejo para os jogos de azar.

- O senhor parece ter traquejo demais, my lord. Os dados favoreceram-no desde o ins­tante em que sentou-se a esta mesa.

- Verdade? - Brigham lançou um olhar de cumplicidade a Leighton, postado a seu lado. - Não reparei.

- O senhor reparou, sim! E isso está me parecendo mais do que sorte!

Um silêncio tenso seguiu-se a essa observação.

- Talvez o senhor queira se explicar melhor - disse Brigham, depois de alguns segundos.

Standish perdera e bebera além da conta. Olhou para Brigham e odiou-o por ser o que ele não era: nobre e rico. Perdendo toda a pru­dência, disse em alto e bom som:

- Prove-me que esses dados não estão viciados!

O silêncio transformou-se em murmúrios. Alguém disse:

- Não lhe dê atenção, Ashburn. Ele está embriagado.

Brigham inclinou-se para a frente, sorrindo.

- Está embriagado, Standish?

O coronel lançou um olhar à sua volta. Todos estavam contra ele porque chicoteara uma va­gabunda. "Gostaria de chicotear a todos"!, pen­sou, esvaziando o copo.

- Estou suficientemente sóbrio para saber que os dados não podem cair sempre a favor de um único homem!

- Pois vamos quebrá-los! - Brigham fez um sinal ao proprietário do clube. - Traga um martelo, por favor.

Houve um coro de protestos. Brigham igno­rou-os e conservou os olhos cravados em Stan­dish. E gostou de ver que a testa do coronel estava perlada de suor.

O proprietário do clube voltou com o mar­telo, como lhe fora ordenado, desmanchando­se em mesuras:

- My lord, eu o imploro para não agir im­pulsivamente. Não é necessário.

- Pois eu lhe asseguro que é necessário. Quebre os dados.

Segundos depois, Standish olhava para os fragmentos que estavam sobre o pano verde. "Foi um estratagema", pensou, empalidecen­do. De algum modo, aqueles bastardos o ha­viam logrado. Queria vê-los todos mortos, es­ses aristocratas de maneiras delicadas e vozes suaves!

- O senhor está embriagado, coronel - dis­se Brigham, lançando-lhe ao rosto o conteúdo de seu copo.

Standish levantou-se da mesa, o vinho es­correndo-lhe do rosto magro. A bebida e a hu­milhação haviam feito seu trabalho. Ele teria arrancado a espada da bainha ali mesmo, se os outros não o tivessem segurado pelo braço.

- Eu o espero à entrada da cidade, entre quatro e cinco horas da manhã! Veremos, en­tão, se sabe manejar tão bem a espada quanto os dados!

- Como quiser, senhor. - Brigham virou-se para o visconde. - Meu caro Leighton, peço­lhe que seja meu padrinho.

 

Um pouco antes do amanhecer, um grupo de homens de negro encontrava-se no descam­pado que orlava a cidade. A névoa se despren­dia do chão, aumentando o ar de abandono do lugar ermo sob a luz fria e distante da estrela matutina.

Leighton deixou escapar um suspiro, en­quanto observava o amigo.

- Suponho que você tenha suas razões para essa loucura.

- Sim, tenho.

O visconde olhou para o céu, que o sol nas­cente tingia de rosa, e franziu os cenhos.

- Fortes suficientes para atrasar sua viagem?

Brigham pensou em Serena e na expressão de seu lindo rosto, enquanto falava do abuso que sua mãe sofrera. Pensou em Fiona, tão frágil e delicada, e confirmou:

- Sim, muito fortes.

- O homem é um canalha. Mas isso não me parece uma razão para estarmos aqui, a estas horas da manhã. Porém, se acha que é seu de­ver, estou do seu lado. Pretende matá-lo?

- Sim, pretendo.

- Seja rápido, então. Não quero me atrasar para o café da manhã.

Dito isto, Leighton foi conferenciar com o padrinho de Standish, um jovem oficial que estava pálido e excitado à idéia de assistir a um duelo.

Depois que as armas foram examinadas e julgadas aceitáveis, Brigham apanhou uma delas e sopesou-a cuidadosamente. Standish, de sua parte, estava pronto e quase ansioso. Não tinha dúvida de que acabaria com o jovem pedante, e que voltaria para a caserna em triunfo!

Cumprimentaram-se como era de praxe, to­cando as lâminas. Depois, tomaram posição, rompendo a quietude do campo com o retinido das armas. Brigham mediu cuidadosamente seu adversário e, afastando Serena da mente, enfrentou-o com habilidade e precisão de ges­tos. O homem tinha experiência e sabia guar­dar-se, mas seu estilo era agressivo demais.

- O senhor é hábil no manejo da espada, coronel. Meus cumprimentos.

- Hábil suficiente para espetar seu coração, Ashburn!

- Veremos - As lâminas tocaram-se uma, duas, três vezes. - Mas o senhor não precisou de uma espada para violentar lady MacGregor.

Estas palavras romperam a concentração de Standish. Mas anos de treinamento soma­dos a um forte instinto de conservação leva­ram a melhor, fazendo-o neutralizar o arre­messo de Brigham antes que sua espada en­contrasse o alvo.

- Não se viola uma prostituta - disse entre dentes, percebendo que fora levado ao duelo como um carneiro ao matadouro. - O que essa vagabunda escocesa representa para o senhor?

- Vai morrer pensando nisso, coronel.

Continuaram a esgrimar em silêncio; Bri­gham frio e impassível, enquanto o coronel ardia de raiva e humilhação. As espadas se chocavam agora com mais vigor, competindo com o som de suas respirações ofegantes e silenciando até os pássaros.

Súbito, num ousado ecart, Standish simulou um ataque pela direita, que confundiu seu ad­versário, obrigando-o a guardar-se. Depois re­tesou os músculos e vibrou-lhe um golpe, atin­gindo-o no ombro. Uma cabeça mais fria teria tirado vantagem disso. Mas o coronel via ape­nas o sangue e, com ele, sentiu o sabor da vitória. Julgando-se a um passo dela, atacou com redobrado furor.

Brigham aparava um golpe atrás do outro, tomando tempo, sem se importar com o sangue que lhe escorria ao longo do braço. Recuou, e, durante uma fração de segundo seu peito ficou a descoberto. A luz da vitória já ilumi­nava as feições de seu opositor, que se lançou para frente, visando-lhe o coração.

Furtou agilmente o corpo e desviou-lhe a arma um momento antes que ela o atingisse. Girando então com rapidez vertiginosa, fez sua espada descrever uma curva ampla e mergulhou-a no peito dele. Quando retraiu a lâmina manchada de sangue, o coronel já estava morto.

Leighton examinou o corpo junto com o ofi­cial de rosto pálido e anunciou:

- Você o matou, Ashburn. É melhor que tome seu caminho sem demora. Eu darei um jeito nessa confusão.

- Obrigado.

- Deixe-me cuidar de seu ferimento.

Brigham entregou-lhe a espada e mostrou, com um gesto cansado, o inestimável Parkins que o esperava a alguns metros de distância.

- Meu criado fará isso.

 

Serena despertou pouco antes do nascer do sol, banhada em suor. A lembrança do sonho permanecia, com menos nitidez, um tanto des­conexo, mas ainda oprimindo seu coração. Um sonho impregnado de horror, que aumentava o sofrimento em que vivia desde o dia em que Brigham partira.

"E loucura", pensou sentando-se na cama. "Ele está em Londres, a salvo."

Por um certo tempo, permitira-se acreditar que ele voltaria, como havia prometido. Mas, a véspera do casamento de Coll e Maggie, sen­tia-se insegura. Se Brigham não voltara para o casamento de seu melhor amigo, era porque não voltaria nunca mais.

Confusa e amargurada, concluíra que seu amor não havia sido mais do que um interlúdio em suas vidas tão diferentes. Um deli­cioso fogo de amor, mas fora da realidade. Ago­ra, restavam-lhe apenas as lembranças.

Viu no espelho o seu rosto alterar-se de sú­bito e as lágrimas subirem-lhe aos olhos, transbordando. Longos soluços abafados sacu­diram-na tão profundamente que, por um momento, julgou estar gritando. Afinal, esgotada a emoção, lamentou aquela fraqueza tão con­trária ao domínio que tinha de si mesma.

Retomando a posse da vontade, desceu para tomar café com sua família. Depois, mergu­lhou de corpo e alma no trabalho. E sempre que ameaçava cair em depressão, tentava con­vencer-se que os momentos de encantamento que tivera dariam para preencher uma vida.

O crepúsculo já esfumava as formas, quan­do saiu furtivamente da casa, vergando os calções de montaria. Sua mãe e Maggie es­colhiam os fios para tecer e Gwen estava visitando um dos doentes da aldeia. Ninguém notaria sua ausência.

Sombras espessas, no bosque de pinheiros que ela atravessava inclinavam-se e afasta­vam-se à sua passagem.

Quando alcançou a orla, puxou suavemente as rédeas do cavalo e desmontou.

A relva, junto à margem, era brilhante e fresca e entremeada de flores brancas e ama­relas. Colheu um punhado delas, enfiou-as nos cabelos, e depois deitou-se de costas, com às mãos cruzadas sob a nuca.

Fechou os olhos e não resistiu à recorda­ção de Brigham, deixando que as imagens que visualizava a acalmassem ao invés de atormentá-la.

Ao sentir um leve toque, como se um inseto tivesse pousado em sua face, ergueu a mão para afastá-lo, mas não abriu os olhos. Que­ria permanecer mais um pouco a sonhar com o que poderia ser seu futuro. "Brigham", pensou, "como eu queria que me beijasse." Sorriu levemente ao sentir um toque suave nos lábios.

- Olhe para mim, Serena.

Ela obedeceu automaticamente, ainda imer­sa em seu devaneio. Quando encontrou um par de olhos cinzentos fixos nela, experimen­tou uma felicidade tão grande, que permane­ceu muda, sem saber o que dizer.

Ele viu as feições delicadas resplandecerem de ternura, de agradável surpresa. Puxou-a para si, pressionando os lábios contra os dela.

- Como senti sua falta, querida!

Podia ser verdade? A mente de Serena gi­rava em turbilhão, enquanto ela o envolvia em seus braços.

- Brigham... é mesmo você? Parece uma coisa irreal vê-lo aqui agora - disse, temendo que ele desaparecesse de repente. - Beije-me outra vez!

Ele a beijou outra vez, querendo transmitir o que sentira ao vê-la adormecida no mesmo lugar em que haviam feito amor. Logo des­piam-se com urgência, na ânsia de saciar a paixão que a saudade fizera crescer.

Serena o abraçou com força, as mãos desli­zando pelo corpo forte de Brigham, acarician­do-o, tocando-o sem a timidez do primeiro en­contro, mas com a desenvoltura de uma mu­lher que reencontrara o homem amado.

A noite já cobria Glenroe. Entregues ao doce langor que se seguiu aos momentos de êxtase, eles continuaram abraçados, desfrutando a fe­licidade de estarem juntos.

- Mal consigo acreditar que você está aqui... - ela falou, olhando-o nos olhos.

- Ora, menina, eu não disse que voltaria? - Ele curvou-se para beijá-la. - Eu te amo, Serena. Nada poderia me impedir de voltar para você.

- Esteve fora durante tanto tempo e não me escreveu uma só vez.

- Seria arriscado. Daqui a pouco vai começar a batalha, Serena.

- Então... - Ela interrompeu-se, ao ver seus dedos manchados de sangue. - Brig, você está ferido!

Sobressaltada, examinou a faixa que lhe rodeava o ombro. Estava ensopada de sangue.

- Foi atacado novamente? Os Campbell!

- Não. Foi um pequeno ajuste de contas em Londres.

- Como assim?

- Não vamos falar sobre isso agora, querida. Já anoiteceu e devemos voltar para casa.

Ela rasgou a camisa dele para fazer uma nova faixa.

- Como foi que você me encontrou aqui?

- Eu poderia dizer que apenas segui os impulsos de meu coração. Mas a verdade é que recebi a informação de Malcolm. Ele a viu sair em disparada. - Fitou-a embevecido e então pediu: - Por favor, Serena, diga o que estou ansioso por ouvir.

- Eu te amo, querido. Mais do que jamais imaginei que seria capaz.

- E irá se casar comigo?

Quando ela baixou os olhos, contrafeita, ele explodiu:

- Você diz que me ama, mas quando eu falo em casamento, parece que estou lhe propondo ir à forca!

- Já lhe disse que não posso ser sua esposa.

- Pois eu lhe digo que pode. - Arrancou­-lhe a camisa das mãos e vestiu-a. - Vou falar com seu pai.

- Não, não faça isso!

- Você não me deixa outra alternativa. Eu te amo, Serena e não quero passar mais uma só noite na agonia da dúvida.

Ela suspirou.

- Quando a guerra começar, você partirá e eu ficarei à espera. Vamos nos dar tempo para enfrentar o que está para acontecer.

- Pois fique sabendo que, no final, eu não lhe darei outra escolha.

 

Dias após a chegada de Brigham a Glenroe, os franceses impuse­ram uma humilhante derrota aos ingleses em Fontenoy. Apesar disso, Luís XV ainda hesi­tava em conceder seu apoio aos rebeldes. E Charles, na expectativa de que a vitória da França desse o tão necessário impulso à sua causa, foi uma vez mais abandonado à sua própria sorte.

Mas, dessa vez, ele não permaneceu de bra­ços cruzados à espera do auxílio que não acha­va em parte alguma. Com o dinheiro que con­seguiu empenhando os famosos rubis de sua mãe, equipou e armou a fragata Doutelle e um navio de linha regular, o Elizabeth. Então, deixando a seus seguidores a tarefa de conti­nuar a pressão, visando uma nova aliança de interesses, o Príncipe Galante zarpou de Nan­tes, rumo à Escócia e ao seu destino.

Era pleno verão; quando a notícia chegou a Glenroe. Soube-se então que o Elizabeth, com seu precioso carregamento de homens e ar­mas, fora perseguido por seus inimigos britânicos e obrigado a voltar ao porto. Em com­pensação a Doutelle, com Charles a bordo, continuava a navegar na direção da costa escocesa, onde se formaria um exército leal aos Stuart.

- Meu pai acha que eu sou muito jovem para combater - disse Malcolm com tristeza. - Mas eu não concordo com isso.

Brigham olhou para o garoto que acabara de completar onze anos e reprimiu um sorriso.

- Coll e eu lutaremos em seu lugar - re­trucou, enquanto lhe desmanchava os cabelos com o jeito paternal com que o tratava.

Malcolm suspirou.

- Não me conformo de ser tratado como uma criança.

- Acha que seu pai confiaria seu lar e sua família a uma criança? Quando ele partir com seus homens, não haverá nenhum MacGregor no solar, além de você. Quem protegerá as mulheres, se vier conosco?

- Serena - disse o menino, sem hesitar.

- Deixaria à sua irmã o encargo de proteger o nome e a honra de sua família?

Malcolm refletiu um minuto.

- Ela sabe atirar melhor do que eu ou Coll, embora meu irmão não queira admitir. Mas eu sou melhor com o arco e a flecha.

- Se você estiver aqui, não precisaremos nos preocupar com a segurança das mulheres.

Brigham sentou-se a seu lado e pousou-lhe a mão no ombro.

- Vou lhe dizer uma coisa, Malcolm. Um homem não vai com prazer à guerra, mas irá com o coração mais leve, se souber que suas mulheres estão protegidas.

- Não vou permitir que nada lhes aconteça.

- Sei disso e seu pai também. E se acon­tecer que Glenroe não ofereça mais segurança, peço-lhe que as leve para as colinas.

- Vou procurar um bom abrigo para elas. Especialmente por causa de Maggie.

- Por que especialmente para ela?

- Por causa do bebê que vai nascer. Não sabia?

Brigham fitou-o, espantado. Depois soltou uma risada.

- Não. E você, como soube?

- Ouvi a sra. Drummond falar sobre isso. Ela disse que tem certeza de que haverá um bebê no solar na próxima primavera.

- Nesse caso deve ser verdade!

Malcolm sorriu com malícia.

- Estão dizendo também que você vai se casar com Serena. Vai mesmo, Brig?

- Vou, mas ela ainda não sabe.

- Então, você se tornará um MacGregor.

- Por extensão. Assim como Serena se tor­nará uma Langston.

- Uma Langston. Será que ela vai gostar disso?

O sorriso deixou os lábios de Brigham.

- Serena terá que se acostumar com a idéia. Bom, se ainda quer dar um passeio a cavalo é melhor irmos andando.

Malcolm levantou-se de um salto.

- Sabe que Parkins está cortejando a sra. Drummond?

Brigham estacou, boquiaberto.

- E verdade?

- Juro que é!

Da janela da sala de visitas, Serena viu-os partir para o campo aberto rindo alto. Brigham parecia tão alto, tão bonito! Ela debruçou-se à janela e seguiu-os com o olhar até vê-los desaparecer de vista. Ele não iria esperar muito... era o que havia dito da última vez que se encontraram, perto do lago. Queria torná-la lady Ashburn, do Solar Ashburn. Lady Ashburn, da alta sociedade de Londres. Essa idéia era simplesmente aterradora!

Olhou para seu vestido caseiro, de algodão azul, e para os seus pés nus, algo que sua mãe teria reprovado. Lady Ashburn nunca mais correria pelas charnecas ou pelos bosques de pés descalços. Examinou as mãos com ar crítico. Macias porque a mãe obrigava-a a esfregá-las com loção todas as noites. Mas não eram as mãos de uma lady.

Amava-o, porém, e entendia agora que o coração podia falar mais alto do que a razão.

Inglês ou não, seria dele! Preferia trocar sua amada Escócia pela Inglaterra a viver sem ele!

- Serena.

Ela virou-se rapidamente e viu sua mãe pa­rada no corredor.

- Já terminei minhas tarefas, mamãe.

Fiona entrou na sala e fechou a porta atrás de si.

- Sente-se, Serena. Preciso falar com você.

Fiona raramente usava esse tom grave. Em geral, isso significava que ela estava preocu­pada ou aborrecida.

- Fiz alguma coisa que a aborrecesse, mamãe?

- Você está perturbada - começou Fiona. - Pensei que estivesse sentindo falta de Bri­gham. Mas ele voltou há várias semanas e você continua perturbada.

- Não estou perturbada. Estava pensando no que acontecerá quando o príncipe chegar.

"Deve ser verdade", pensou Fiona. "Mas não inteiramente."

- Em outras épocas, você teria se aberto comigo, Serena.

- Não sei o que dizer.

Gentilmente, Fiona tomou-lhe a mão entre as suas.

- Diga o que está em seu coração.

- Eu o amo - confessou ela, por fim, dei­tando a cabeça no colo da mãe. - Eu o amo e isso dói terrivelmente.

- Sei disso, querida. O amor traz grandes alegrias mas também grandes sofrimentos.

- Não devia fazer sofrer!

- Quando abrimos nosso coração, ficamos muito sensíveis, querida.

- Eu não queria amá-lo. Agora, não posso fazer mais nada.

- Ele a ama?

- Sim, ama.

- Sabe que ele a pediu em casamento?

- Sei.

- E sabe que seu pai, depois de uma longa reflexão, deu seu consentimento?

Isso, Serena não sabia. Ela endireitou-se brus­camente e voltou o rosto pálido para a mãe.

- Mas eu não posso me casar com ele, ma­mãe. Não posso!

Fiona olhou-a com atenção.

- Seu pai nunca a obrigaria a casar-se con­tra a vontade. Mas você mesma acabou de dizer que o ama e que esse amor é retribuído!

- Eu o amo e gostaria muito de me casar com ele. Mas isso me assusta.

Fiona começou a compreendê-la melhor.

- Pobre menina! Você não é a primeira jo­vem a ter esses receios, nem será a última.

- Não quero me tornar lady Ashburn!

- Por quê? - perguntou Fiona, surpreen­dendo-se com a veemência da filha. - É uma família muito honrada.

- Não quero ser condessa, mamãe. Lady Ashburn teria que viver na Inglaterra, em grande estilo. Teria de se vestir com elegância, comportar-se como uma dama, oferecer jantares magníficos!

- Nunca pensei ver minha filha acuada num canto, como uma gata medrosa!

Serena enrubesceu.

- Não tenho medo apenas por mim. Eu estaria disposta a ser uma esposa perfeita, uma digna lady Ashburn. Mas...

Ela fez uma pausa, à procura de palavras que traduzissem sua apreensão.

- Brigham me ama pelo que eu sou. Mas amaria a mulher que eu teria de me tornar para ser sua esposa?

Fiona guardou silêncio por um momento.

- É isso que a atormenta?

- Sim. Não fiz outra coisa, nestas últimas semanas, senão pensar nisso.

- Se ele a ama de verdade, não irá pretender que você se torne o que não é.

- Prefiro perdê-lo a envergonhá-lo!

- Isso não irá acontecer. - Fiona tomou-lhe as mãos entre as suas. - Querida, há uma coisa que você precisa saber.

- O quê?

- Eu estava trabalhando na horta, quando ouvi Parkins e a sra. Drummond conversarem na cozinha. Brigham...

- Sim, mamãe?

- Parece que antes de deixar Londres, Brigham bateu-se em duelo com um oficial do exército do governo. O coronel Standish.

Toda a cor abandonou o rosto de Serena.

- Standish... - disse ela num sussurro, revendo-o como o vira dez anos antes, esbo­feteando sua mãe. - Como isso foi acontecer? Por quê?

- Não sei. Sei apenas que houve um duelo e que Standish morreu. - Fiona juntou fer­vorosamente as mãos. - Que Deus me per­doe, mas estou contente. O homem que você ama vingou minha honra e eu nunca vou esquecer isso!

 

Essa noite, Serena foi ter com ele. Era tarde e a casa estava havia muito em silêncio. Abriu a porta do quarto e o viu sentado à mesa, escrevendo. A luz do castiçal incidia sobre seu rosto, acentuando os contornos perfeitos.

Brigham ergueu a cabeça e fitou-a espan­tado. Não percebera nenhum ruído de passos nem da porta sendo aberta.

Depôs a pena sobre a mesa e levantou-se.

- Serena.

- Eu queria ficar a sós com você.

- Não devia ter vindo aqui e muito menos vestida desse jeito!

- Tentei dormir, mas foi impossível. - Ela umedeceu os lábios. - Amanhã, a esta hora, você já terá partido.

Ele a abraçou, beijando-lhe a testa.

- Meu amor, é necessário que lhe diga outra vez que voltarei?

Ela ergueu os olhos brilhantes de lágrimas.

- Eu queria lhe dizer que sentirá orgulho de sua futura esposa, quando voltar.

Por um momento, ele não disse nada, apenas a fitou.

- Esposa... Foi seu pai que lhe ordenou que se casasse comigo?

- Não. A decisão é minha.

Era a resposta que ele queria ouvir. Gentilmente, beijou-lhe a mão.

- Eu a farei feliz, Serena. Juro pela minha honra!

- E eu serei a mulher que você merece. Eu lhe prometo.

- Você é a mulher que eu preciso, meu amor.

Ele tirou o anel de esmeralda do dedo e colocou-o em Serena.

- Esse anel pertence aos Langston há mais de cem anos. Peço-lhe que o use até minha volta. Aí, se Deus permitir, eu lhe darei outro.

Serena atirou-se nos braços de Brigham chorosa.

- Se eu o perder, Brig, que será de mim?

- Não quero que se preocupe comigo, amor. - Ele ergueu-lhe o rosto e beijou-lhe os lábios. - Nunca.

- Se deixar que o matem, eu o odiarei pelo resto de minha vida.

- Nesse caso, vou tomar muito cuidado. Agora vá, antes que você me faça sentir vivo demais!

- Não. Só depois que me fizer sentir assim.

Uniram os lábios. Tinham pela frente a noi­te toda, antes que a manhã viesse a sussurrar de encontro às janelas.

Serena acordou e sorriu ao ver que Brigham a observava com imensa ternura.

- Eu estou tão feliz. Gostaria que fosse sem­pre assim - continuou a fitá-la, fascinado. Ela era linda até mesmo ao despertar, com os ca­belos revoltos e os olhos um pouco inchados.

- Será sempre assim conosco.

Ele puxou-a para si e aconchegou-a em seus braços.

- Um dia, eu a levarei para o Solar Ash­burn. É lindo, Serena, com seus telhados ver­melhos e seus imensos jardins.

- Então nosso filho nascerá lá. Oh, Brig, não vejo a hora de termos um filho!

- Para que tanta pressa? Mais tarde, se você quiser, teremos uma dúzia. Com a espe­rança de que não sejam geniosos como a mãe!

- Ou arrogantes como o pai?

Serena apoiou-se nele. O tempo estava pas­sando depressa. A luminosidade do amanhecer já se insinuava por entre a fenda das cortinas. Apesar disso hesitava, sem saber como formular uma pergunta que poderia aborrecê-lo. Começou:

- Brigham...

- Sim?

- Soube que lutou com um oficial chamado Standish. Por quê?

Ele a fitou intrigado, mas logo compreen­deu. Parkins devia ter batido com a língua nos dentes.

- Por uma questão de honra. Ele me acusou de estar trapaceando no jogo de dados.

Ela ficou em silêncio alguns instantes.

- Por que está mentindo?

- Não é mentira. O coronel perdeu muito dinheiro e achou que devia haver outro motivo para isso, que não sua falta de sorte.

- Está querendo dizer que não sabia quem era ele?

Brigham suspirou.

- Sabia, sim. E digamos que o encorajei a me desafiar para um duelo.

- Por quê?

- Por outra questão de honra.

Serena tomou-lhe a mão e beijou-a.

- Obrigada.

- Foi por isso que veio aqui esta noite e concordou em ser minha esposa?

- Sim.

Ele balançou a cabeça decepcionado antes de se afastar bruscamente. Mas Serena o re­teve, atraindo-o de volta a seus braços.

- Não foi por me sentir grata, embora seu gesto tenha pesado muito em minha decisão.

- Você não me deve nada - murmurou ele, ainda ressentido.

- Devo-lhe muito - ela retrucou com vee­mência. - Agora, quando me lembrar daquela noite terrível, saberei que o infeliz está morto e que morreu por suas mãos.

- Quero muito que seja minha esposa, Se­rena. Mas por amor, não por gratidão.

- E você tem alguma dúvida sobre o meu amor?

Ele hesitou apenas um instante.

- Não.

- Eu já o amava, Brigham. Já sabia que não amaria nenhum outro a não ser você. E foi isto que eu vim lhe dizer esta noite: se permitir, quero honrar o seu nome como você honrou o meu.

Ele a beijou, emocionado.

- Vou deixar meu coração com você, Serena. Quando voltar, eu lhe darei também o meu nome.

 

Quando o príncipe Charles desem­barcou na ilha de Eriskay, o sol se punha no horizonte emprestando um colo­rido espetacular à paisagem. Mas sua chegada não foi triunfal, como ele e os que lhe eram dedicados esperavam.

MacDonald de Boisdale, em dúvida quanto ao destino da Escócia, avisou-o:

- Alteza, esta é uma terra áspera, com uma história sangrenta e gente que já viu dema­siado libertadores. Sua lealdade é para com os fortes.

A resposta do príncipe foi elegante e concisa:

- Estou voltando para casa. Para mim, isso é suficiente.

De Eriskay, ele e sua comitiva de sete ho­mens, que agora lhe formavam a corte e a guarda, seguiram para o continente. Também lá os jacobitas mostraram-se mais preocupa­dos do que entusiasmados. Mas Charles não se desesperou. Enviou cartas aos chefes de clãs da Alta Escócia, conclamando-os. De Cameron de Lochiel, recebeu um apóio relutante mas precioso.

E assim, a 19 de agosto de 1745, diante de cerca de novecentos homens leais, o estandar­te dos Stuart tremulou na torre de Glenfin­nan, anunciando que Charles fora proclamado príncipe regente e que iria governar em lugar de seu pai, James VIII da Escócia e III da Inglaterra.

Esse pequeno exército marchou em seguida na direção do leste, recebendo adesões durante sua caminhada. Os clãs reagruparam-se, os homens deram adeus às suas mulheres e uni­ram-se às forças do novo rei. Formando uma coluna, avançaram por estradas acidentadas, transpuseram colinas íngremes e conseguiram evitar as guarnições do governo aquarteladas no Forte William e no Forte Augustus.

Os ânimos estavam fortalecidos. Como Bri­gham previra, haviam sido necessários apenas a energia e o carisma do príncipe para unir os escoceses sob uma única bandeira. Quando os homens pensavam nas batalhas que iriam travar, pensavam não na glória pessoal, mas na vitória da justiça que lhes fora negada por tanto tempo.

Alguns dentre eles eram jovens. Brigham podia ver a esperança espelhada em seus ros­tos redondos, pelo modo como riam e aplau­diam aquele príncipe que usava também o kilt, o saiote dos escoceses. Outros eram velhos e representavam o passado, as batalhas per­didas ou vencidas. Eles olhavam para o prín­cipe, em cujas veias corria o sangue dos Stuart, como quem olha para o homem que não só manteria os clãs em união absoluta, mas que os libertaria dos grilhões de um governo despótico.

Porém, velhos ou jovens, ansiosos ou de­sanimados, Charles mantinha-os unidos uni­camente com a força de sua personalidade, de sua alegria contagiante, de sua confiança sem temor.

O tempo continuava bom, parecia que o pró­prio Deus abençoava a rebelião. As brisas eram cálidas e frescas as águas que desciam da montanha. A noite, as turfeiras pontilha­vam-se de fogueiras. E, enquanto as chamas ardiam alto, soltando centelhas que subiam como vagalumes na escuridão, e os bardos ti­ravam de suas gaitas de fole melodias inspi­radas, os homens bebiam uísque, riam e gracejavam. Contudo, estavam prontos a trocar rapidamente o festim por uma batalha.

Foi Brigham o primeiro a saber que um exército do governo, liderado pelo general sir John Cope, havia sido despachado para o nor­te. Ele recebeu a notícia do próprio príncipe, no instante em que os homens levantavam acampamento e preparavam-se para reiniciar a jornada.

- Vamos lutar, meu amigo!

- Parece que sim, Alteza.

A manhã estava quente e a suave claridade do céu da Escócia derramava-se, sobre os cam­pos. No ar, pairava o odor acre das fumaradas, misturado ao cheiro dos cavalos e do suor dos soldados.

- Parece um bom dia para lutar - tornou Charles, estudando o rosto de seu súdito leal. - Ou acha que devemos esperar por lorde George?

- Lorde George é um excelente marechal-­de-campo, Alteza - disse Brigham, cauteloso.

- Tem razão. Mas podemos contar com O'Sullivan. - Charles apontou para o soldado irlandês que estava organizando os homens para a jornada.

Brigham tinha suas dúvidas. Ele não ques­tionava a lealdade do irlandês, mas sentia que havia nele mais entusiasmo do que a prudência permitia. Porém, sabendo muito bem que seria inútil opor-se ao príncipe, dis­se respeitosamente:

- Sabemos o que devemos ao nosso rei, como seus súditos. Lutaremos.

- Eu estou aqui para isso!

Charles acariciou o punho de sua espada, enquanto olhava em torno. Experimentava um amor sincero e profundo por essa terra. Quan­do fosse rei, faria de tudo para que a Escócia e seu povo fossem recompensados.

- Será uma longa jornada, Brigham, que nos distanciará cada vez mais do rei Luís e de sua corte.

- Sem dúvida, Alteza. Mas valerá a pena empreendê-la.

- Sabe que havia lágrimas nos olhos de algumas daquelas lindas damas, quando você partiu? Teve tempo de arrasar corações tam­bém na Escócia?

- Há apenas uma mulher para mim, sir. E um coração que tomarei cuidado de não partir.

Os olhos negros do príncipe cintilaram de prazer.

- Muito bem! Parece que o disputado lorde Ashburn caiu de amores por uma jovem es­cocesa. Diga, mon ami, ela é tão bonita quanto a sensual Anne-Marie?

Brigham esboçou um leve sorriso.

- Eu pediria a Vossa Alteza que não fizesse comparações, especialmente na presença da jo­vem em questão. Ela é muito temperamental!

- É mesmo? - Charles riu, deliciado. - Estou curioso. Quero conhecer a mulher que conquistou o coração do homem mais cobiçado pelas damas francesas!

 

As tropas de Cope não apareceram. A es­trada para Edimburgo estava aberta aos rebeldes. Com três mil homens a mais, eles cap­turaram Perth, depois de uma batalha breve mas fulminante. Vitorioso, continuaram sua marcha para o sul, enfrentando, com sucesso, dois regimentos de dragões.

A luta parecia aquecer seus ânimos. Ali ha­via ação, em vez de conversa, fatos em vez de planos quiméricos. Com a espada e as gai­tas de fole, escudos e achas de combate, eles eram invencíveis. Os que não caíam sob o jugo de suas armas, contariam depois histórias fan­tásticas sobre sua habilidade e seu destemor.

Sob a liderança de lorde George Murray, que os alcançou em Perth, assediaram Edim­burgo com o fito de ali se instalarem. Os habitantes entraram em pânico. Corriam ru­mores terríveis acerca de atos de barbárie, canibalismo e chacina praticados pelos in­vasores. A guarda fugiu, apavorada e, en­quanto Edimburgo dormia, a facção dos Ca­meron investiu contra as sentinelas e assumiu o controle da cidade.

Ninguém poderia imaginar que apenas um mês depois de sua chegada, o mais jovem des­cendente dos Stuart entraria como um cava­leiro eleito pela porta do castelo de seus an­cestrais e dele tomaria posse!

Coll estava ao lado de Brigham, quando o príncipe, conduzindo um ginete cinzento, de arreios ricamente adornados, rumou para Ho­lyrood Park. A multidão que se acotovelava nas ruas ergueu entusiásticos gritos de aclamação, ao vê-lo com a túnica de lã axadrezada da Alta Escócia e a boina azul com penacho branco. Talvez ele não fosse ainda o príncipe da Inglaterra, mas era certamente um deles!

- Ouça-os, é emocionante - disse Coll, sorrindo. - É a nossa primeira vitória real!

Brigham moderou a marcha de sua montaria, guiando-a com cuidado através das ruas estreitas.

- Eu juraria que, agora, ele pode guiá-los até Londres com uma única palavra. Só espero que os suprimentos e os homens que precisamos cheguem a tempo!

- Poderemos ser vitoriosos mesmo inferiores em número. Seria como foi em Perth e em Coltbridge. - Coll torceu o nariz. - Este lugar está cheio demais. Prefiro os campos abertos e as colinas da Alta Escócia. Como um homem pode respirar, se o ar não circula?

Edimburgo era um amontoado confuso de construções de fachadas sórdidas, em sua maioria de pau-a-pique. Os edifícios de pedra, freqüentemente com mais de nove ou dez andares, estavam espremidos de encontro a colinas perigosamente abruptas.

- Pior do que Paris - observou Brigham.

As ruelas e os becos exalavam um forte mau cheiro, e o lixo e os detritos obstruíam as alamedas. Mas o povo, na ânsia de aplaudir o príncipe, parecia não se importar com isso, e o seguia com entusiasmo.

Muito além dos cortiços e das vielas, sobre uma colina que ascendia do rio, erguia-se o Castelo Real de Edimburgo, majestosamente envolto na poeira luminosa de sua antiguidade e de sua história. Em outros tempos, fora o cenário de paixões inconfessáveis. Mary, rai­nha da Escócia, sua mais famosa e infeliz inquilina, ali casara-se e vivera, ali vira seu amante Rizzio ser assassinado.

E era ali, nesse lugar de pompa e intrigas, que o príncipe Charles, trineto de James I, iria instalar sua corte. Depois de desmontar, ele atravessou lentamente o pátio e as arca­das, reaparecendo momentos depois à janela de seus novos apartamentos, de onde acenou para a multidão. Edimburgo em peso aclama­va o príncipe e ele, por sua vez, reverenciava a cidade. Iria provar essa adoração poucos dias depois, quando Cope movimentou suas tropas, levando-as para o sul.

Os jacobitas defrontaram-se com o exército do governo a leste da cidade, em Prestopans. No primeiro instante, somente o som fantás­tico das gaitas de fole rompia o estranho si­lêncio do campo de batalha. Sua melodia pro­funda e sentida erguia-se sobre as charnecas, espalhando tristeza como névoa de inverno.

O primeiro ataque fez os pássaros deban­darem em revoada. Foi o sinal para que as duas primeiras filas de ambos os partidos, apoiadas pela retaguarda, se lançassem uma contra a outra num choque tão formidável que se ouviu a uma milha de distância.

Como acontecera antes, a infantaria ingle­sa não pôde suportar a violência da carga escocesa. Quando a linha vermelha ondulou e quebrou-se, os cavaleiros esporearam os cavalos, e as espadas de dois gumes brilha­ram ao sol. Os corvos crocitaram, em meio à fumaça de canhão e morteiro, e, atraídos pelo cheiro de sangue, puseram-se a voar cada vez mais baixo.

Brigham conduzia sua montaria através do que havia sobrado das linhas inglesas. Enquan­to o solo explodia com o impacto das balas, pôde vislumbrar os penachos brancos dos jacobitas e os mantos axadrezados dos MacGregor, dos MacDonald e dos Cameron. Alguns caídos, ví­timas das baionetas ou das espadas.

Após dez minutos, a batalha estava decidi­da: a cavalo ou a pé, os dragões retiravam-se precipitadamente para os abrigos das colinas. Esse dia, as gaitas comemoravam a vitória, e o pavilhão dos Stuart foi hasteado na torre de Holyrood House.

           

- Não compreendo por que estamos aquartelados em Edimburgo, quando podía­mos estar marchando para Londres! - disse Coll, enquanto caminhava pelo pátio de Ho­lyrood envolto num manto que o abrigava da neblina gelada.

Pela primeira vez, Brigham concordou com a impaciência do amigo. Fazia quase três se­manas que estavam na corte recém-estabele­cida de Charles. Verdade que o príncipe não esquecia seus homens, dividindo seu tempo entre Holyrood e o acampamento sediado em Duddingston. O moral era alto, mas havia ali mais de um homem que partilhava das opi­niões de Coll. Os bailes e as recepções podiam esperar.

- A vitória em Prestopans nos valeu mais apoio - observou Brigham. - Duvido que fi­caremos aqui por mais tempo.

- Se os problemas que há entre lorde Geor­ge e O'Sullivan se resolverem!

Essa era uma questão que inquietava Brigham.

- Confesso a você que O'Sullivan me preo­cupa. Preferia um comandante enérgico, que estivesse menos interessado em causar con­fusão ao inimigo, e mais interessado na vitória definitiva.

- Não teremos nem uma coisa nem outra, se demorarmos mais um pouco aqui.

Brigham sorriu compreensivo.

- Você está sentindo falta de sua casa e de sua mulher.

- Faz dois meses que deixamos Glenroe. E uma vez iniciada a marcha para o sul, po­derá passar um ano antes de revermos nossos lares e nossas famílias.

Coll bateu amigavelmente nas costas do companheiro.

- A corte é magnífica e as mulheres são bonitas. Posso jurar que você já partiu uma dezena de corações com a sua indiferença.

- Tenho outras coisas na mente. - Brigham sorriu. - Que me diz de um jogo de dados?

Coll assentiu e os dois voltaram a atravessar o pátio. Enquanto seguiam pelas arcadas imersas em sombras, uma mulher, ao passar, olhou para Brigham. Ele foi atraído por seu porte, gracioso e reto, mas não se preocupou com ela. Súbito, estacou, pensando por que aquela estranha lembrava-lhe tão intensa­mente sua pastora de porcelana.

Voltou-se. Ela estava ainda lá. O capuz en­cobria-lhe parte do rosto e, à luz que morria, conseguiu apenas ver que era muito alta- e esguia. Podia ser uma criada ou uma das da­mas da corte tomando ar.

- O que há com você? - Coll virou-se. Ao ver a figura de mulher oculta nas sombras, sorriu. - Oh, é isso! Presumo que, agora, não vai querer jogar dados.

Mas Brigham não o ouvia. A mulher abai­xara o capuz e os últimos raios do sol poente incidiam sobre seus cabelos, fazendo-os bri­lhar como ouro.

- Serena?!    

Começou a correr na direção dela, suas botas produzindo um ruído seco sobre o chão de pe­dra. Tomou-a nos braços antes que ela pudesse murmurar seu nome e a estreitou contra o peito.

- Querida...

Coll alcançou-os um segundo depois.

- E Maggie? - perguntou ele, ansioso, en­quanto beijava a testa da irmã.

- Estamos todos aqui - disse Serena, sem fôlego.

- O príncipe nos convidou. Chegamos há uma hora.

- Maggie está aqui? Onde?

Sem esperar resposta, Coll girou nos calca­nhares e saiu correndo através do pátio.

- Brigham... - murmurou ela.

- Não diga nada, meu amor. Não diga nada.

Ele a atraiu para si e beijou-lhe os lábios macios, sentindo o leve perfume e a curva de­licada daquele dorso sob as suas mãos.

- Não sabe que tortura é viver tanto tempo longe de você.

- Fiquei desesperada quando tivemos no­tícia da batalha!

Serena afastou-se um pouco e olhou-o. Era o mesmo homem que partira de Glenroe quase três semanas antes.

- E depois temia que você tivesse mudado. Tudo aqui é tão esplêndido!

- Nada poderá mudar o que existe entre nós, Serena.

Ela voltou a aninhar-se nos braços dele com um suspiro.

- Pedi tanto a Deus que você não encon­trasse conforto nos braços de outra mulher...

- Meu amor, não receie ninguém, porque não há ninguém que possa se comparar com você. Esta noite, vou provar isto.

- Nada me daria mais prazer. Mas seria imprudente. O que não diriam os criados, se o vissem entrar em meu quarto, ou se me vis­sem entrar no seu?

- Esta noite, você virá a meu quarto como minha esposa!

Serena olhou-o, sem poder acreditar.

- Impossível!

- E absolutamente possível! Venha, vamos falar com o príncipe.

Sem lhe dar tempo para objetar, ele a ar­rastou através das arcadas. O príncipe estava em seus aposentos, preparando-se para a re­cepção da noite, mas consentiu em recebê-los.

- Alteza. - Brigham inclinou-se profunda e respeitosamente, ao entrar na sala de estar.

- Boa noite, Brigham. Madame...

Quando Serena postou-se numa reverência, Charles ajudou-a a se erguer e depois beijou­-lhe a ponta dos dedos.

- Agora compreendo por que lorde Ashburn não lança sequer um olhar às nossas damas!

- Alteza, quero lhe agradecer o convite que fez a mim e a minha família. Foi muita bon­dade de sua parte.

- Devo muito aos MacGregor. Eles nos de­ram um apoio incondicional. Tamanha leal­dade não tem preço. Não quer se sentar?

Serena correu os olhos pela sala. Não havia ali senão coisas belas. No teto, cupidos espa­lhavam flores. E das paredes, decoradas no alto com ornatos em forma de folhagens, pen­diam tapeçarias que reproduziam as vitórias dos Stuart nos campos de batalha.

- Obrigada, Alteza.

- Sir, tenho um favor a lhe pedir - come­çou Brigham.

Charles sentou-se, convidando-o a fazer o mesmo.

- Peça o que quiser, meu amigo. Eu lhe devo muito.

- Lealdade não é dívida, Alteza.

Os olhos de Charles suavizaram-se e Serena compreendeu por que o chamavam de Príncipe Galante. Não era só por seu belo rosto ou sua figura altiva mas, principalmente, pela beleza de sua alma.

- Que deseja?

- Gostaria de me casar com a srta. MacGregor.

O sorriso de Charles alargou-se.

- Eu já imaginava. - Virou-se para Sere­na. - Em Paris, lorde Ashburn parecia de­leitar-se na companhia das damas da corte. Em Holyrood, ele passa por desdenhoso e de gosto difícil.

Serena retribuiu o sorriso.

- Lorde Ashburn é um homem prudente, sir. Ele conhece a impetuosidade e o tempe­ramento dos MacGregor.

Charles riu, divertido.

- Presumo que você queira casar-se aqui na corte, Brigham.

- Sim, Alteza. Esta noite.

O príncipe ergueu as sobrancelhas.

- Esta noite? Tal pressa é... - Ele olhou para o rosto radiante de Serena e concluiu: - ...perfeitamente compreensível. Tem a permissão de lorde MacGregor?

- Sim, Alteza.

- Há o problema dos banhos, mas eu acho que um aspirante ao trono tem a obrigação de resolver os problemas de seus futuros súditos. Charles levantou-se.

- Prometo que os casarei ainda esta noite.

 

Pálida, tendo a impressão de estar sonhan­do, Serena foi ao encontro de seus pais.

- Serena! - Fiona balançou a cabeça ao ver que sua filha usava ainda os trajes de viagem. - Você precisa mudar de roupa. Es­tamos na corte, não em Glenroe!

- Mamãe, eu vou me casar!

Ian beijou-a na testa. - Já sabemos, filha.

- Esta noite!

- O quê? - Fiona levantou-se impetuosa­mente. - Mas como?

- Brigham e eu fomos pedir permissão ao príncipe.

- Compreendo. Tem certeza de que é isso mesmo que você quer?

- Tudo aconteceu tão depressa... Sim, ma­mãe. Não há nada que eu queira mais do que ser a esposa de Brigham!

Fiona passou-lhe o braço pelos ombros.

- Nesse caso, temos que nos apressar. Por favor, Ian, deixe-nos a sós.

- Está me mandando embora de seus apo­sentos, my lady?

Fiona estendeu-lhe ambas as mãos.

- Você iria se aborrecer aqui.

Ian beijou-as e depois atraiu a filha para si.

- Esta noite, você passará a usar o nome de outro homem. Mas não se esqueça: será sempre uma MacGregor!

Não houve tempo nem para pensar. As cria­das prepararam rapidamente o banho e, en­quanto Serena mergulhava na imensa banhei­ra e um doce aroma de flores impregnava o ar, Gwen e Maggie puseram-se a ajustar o traje de cetim branco da noiva.

- É tão romântico... - murmurou Gwen, alisando o cetim.

- Maravilhoso - concordou Maggie. - A noiva será a mais linda!

Essas palavras transmitiram, a um só tem­po, alegria e medo a Serena, que saiu do banho tremendo.

- Venha depressa para perto do fogo, querida.

Fiona tomou a mão da filha e percebeu que seu tremor pouco tinha a ver com o frio. Pro­curou tranqüilizá-la:

- Este é o dia mais importante na vida de uma mulher. Daqui a alguns anos, quando olhar para trás, irá lembrar-se dele com saudade.

- Estou com tanto medo...

Fiona sorriu.

- Quanto mais se ama, maior é o medo.

- Então, amo Brigham mais do que imaginava.

- Eu não poderia desejar um marido me­lhor para você, querida. Quando a guerra ter­minar, vocês conhecerão as alegrias que dão valor à vida.

- Na Inglaterra - observou Serena.

- Quando eu me casei com seu pai, deixei minha família e meu lar - disse Fiona, enquanto a preparava com delicada atenção. - A floresta de Glenroe me assustava, e eu não suportava a idéia de ficar longe de tudo o que amava.

- Como conseguiu superar esse medo?

- Amando e dedicando-me ainda mais a seu pai.

Serena assentiu suavemente. Depois com agrado mirou no espelho a imagem da mulher ali refletida. Os cabelos derramavam-se sobre suas costas, brilhantes. O corpete do vestido de cetim modelava-lhe o busto, permitindo que os seios se elevassem suavemente. As mangas, muito amplas, ajustavam-se nos punhos bor­dados com pérolas. As pedras também salpi­cavam a saia, que se avolumava sobre a onda de rendas dos saiotes. A faixa que lhe cingia a cintura era larga e guarnecida com um pe­queno buquê de rosas cor-de-rosa.

Foi assim, parecendo uma visão de contos de fadas, que ela atravessou a nave ilumi­nada com os reflexos oblíquos dos vitrais, para se unir a Brigham pelos sagrados laços do matrimônio.

Ele a esperava aos pés do altar, cujos degraus estavam cobertos de rosas. Foi ao seu encontro, pensando que nunca o vira assim tão bonito. A peruca branca realçava o rosto moreno e o brilho dos olhos escuros. Quando ele tomou-lhe a mão, Serena parou de tremer e foi confiante que se ajoelhou diante do sacerdote.

Após a cerimônia, haveria, segundo o desejo do príncipe, uma grande recepção. E assim, minutos depois de se ter tornado lady Ash­burn, Serena viu-se conduzida para a Galeria dos Retratos, onde, após a tomada da cidade, Charles oferecera seu primeiro baile de gala. Ali, desejaram-lhe felicidade, beijaram-na e olharam-na com inveja ou admiração.

Ao convidá-la para dançar, o príncipe teceu-­lhe o louvor que se dá à mais bela:

- Está extraordinariamente bonita, lady Ashburn.

"Lady Ashburn!", pensou Serena.

- Obrigada, Alteza. Como posso agradecê-lo por tornar isso possível?

- Prezo muito seu marido, my lady.

"Seu marido!"

- Sua Alteza é extremamente gentil.

Quando a dança terminou, Brigham veio buscá-la.

- Está se divertindo, meu amor?

Ela corou profundamente. Ele estava dife­rente de peruca. Quase não podia acreditar que aquele era o mesmo homem que se deitara a seu lado e que a acariciara com ternura. Parecia tão encantador quanto o príncipe e quase tão estranho quanto ele.

- Sim, muito.

- Viu os retratos? São de monarcas esco­ceses. Disseram-me que foram encomendados por Charles II, embora ele nunca mais tenha voltado à Escócia, após a Restauração.

- Aquele é Robert the Bruce, um soldado destemido e um rei adorado.

- Devia saber que uma mulher instruída como você conhece perfeitamente a história de seu país. - Brigham inclinou-se e perguntou baixinho: - O que sabe sobre estratégia militar?

- Como?

- Ah! Então há ainda alguma coisa que eu posso lhe ensinar.

Antes que ela pudesse retrucar, ele a levou para o corredor deserto, e ergueu-a nos braços.

- Para onde me leva?

- Para o quarto - murmurou ele, dando­-lhe um grande beijo na boca.

- Que dirão os outros?

- Não se preocupe. Ninguém notará a nossa ausência.

Sem dar-lhe tempo para protestar, Brigham galgou os degraus de dois em dois. Uma vez dian­te de seu quarto, abriu a porta com um pontapé.

- Aqui estamos! - anunciou então, colo­cando sua esposa sobre a cama.

Ela fingiu-se indignada.

- É desse modo que trata sua esposa, my lord?

- Ainda não comecei!

- Eu estava com vontade de dançar.

- Pois sim, querida, dançaremos. Até o amanhecer!

- Minuetos? - provocou-o Serena.

- Não é bem isso que eu tenho em mente.

Ela alisou o vestido amarrotado.

- Gwen acha-o um personagem de roman­ce, mas duvido que ela continuará a pensar assim, quando eu lhe contar que você me jogou na cama como se eu fosse um fardo!

- Romance? - Ele acendeu as velas dos castiçais. - É isso o que você quer, Serena?

- É com isso que Gwen sonha.

- Você não?

- Toda mulher tem direito a romance no dia de seu casamento.

Ele tirou-lhe os escarpins e beijou-lhe os pés, reverente.

- Que fiz eu para merecer uma mulher as­sim? No instante em que a vi a meu lado, no altar, soube que todos os meus sonhos iriam se realizar.

- Você parecia um príncipe...

- Esta noite, sou apenas um homem apai­xonado. - Ele beijou-lhe o colo. - Enfeitiça­do... escravizado!

- Estava com tanto medo!

Ele desabotoou-lhe o corpete do vestido e deixou-o cair até a cintura.

- E agora?

- Deixei de sentir medo quando você me le­vou para o corredor e me ergueu nos braços. Foi aí que encontrei o meu Brigham novamente.

- Serei sempre seu, Serena. Sempre.

 

Holyrood House era a grande atra­ção da época. Por seus vastos sa­lões, outrora desertos, circulava tudo o que havia de mais nobre, mais belo e rico nas re­giões setentrionais da Escócia. Charles, esse príncipe corajoso e temerário, caráter brilhan­te e romanesco, ocupara seu castelo e estava deslumbrando seus pares com a sua hospita­lidade e magnificência.

Ainda um tanto entorpecida pela felicidade, Serena via Brigham incorporar-se com natu­ralidade àquele mundo que lhe pertencia por direito. Ao passo que ela precisava reprimir o seu temperamento impetuoso para moldar­se àquela vida de prazeres.

Naquela corte frívola e elegante, foi obriga­da a aprender novas regras de etiqueta, a usar brilhantes nos cabelos, a empoar-se e a per­fumar-se com as mais finas essências france­sas. E ali, junto com a descoberta do que sig­nificava realmente ser lady Ashburn, teve uma noção exata da fortuna de seu marido.

Uma semana após o casamento, Brigham, valendo-se de seus contatos, fez vir de Lon­dres as fabulosas esmeraldas de sua família e presentou-a com elas. Depois, não satis­feito, contratou uma modista para que a ves­tisse de seda e cetim, de cambraia fina e rendas delicadas.

Era impossível não apreciar aquele luxo. Mas, à medida que os dias passavam, não po­dia afastar a sensação de que os privilégios, as honras, a pompa, a convivência diária com o príncipe eram um sonho.

As noites, porém, lhe pareciam reais. En­tregava-se então a Brigham com todo o ardor de sua juventude. Amava e era amada e es­quecia tudo, a guerra e a inevitável separação, diante daquela felicidade tão fugidia quanto o brilho das sedas e dos brocados.

Durante o dia sentia-se uma impostora, uma criada disfarçada com os trajes de sua ama. Seu maior desejo era correr descalça por entre as árvores meio desfolhadas dos bosques, gal­gar as colinas abruptas que fechavam o par­que do castelo, ao sul.

Não ousava. Apenas uma vez, quando teve certeza de que ninguém a notaria, acompa­nhou Malcolm aos estábulos. Invejava seu ir­mão pela liberdade que lhe concediam de en­tregar-se a cavalgadas desenfreadas. Mas con­tinha-se, determinada a comportar-se como a esposa perfeita que Brigham merecia.

Três semanas passadas, Serena aprovava-se por sua conduta. Ao mesmo tempo, suspirava pela paz das charnecas da Alta Escócia. Que­ria vestir seus calções e...

Com um encolher de ombros mais ostensivo do que seria de esperar em uma dama deli­cada, deixou-se cair numa cadeira. E, com o rosto apoiado na mão diante do fogo apagado, censurou-se. Era uma ingrata. Que mulher em seu juízo perfeito dispensaria a vida deli­ciosa que Brigham lhe proporcionava?

Ouviu a porta do quarta abrir-se e levan­tou-se de um pulo, alisando a saia. "É ele", pensou. Virou-se e viu-o parado no meio do quarto, com um sorriso a iluminar-lhe o rosto. Viu o sorriso desvanecer-se e depois renascer, mais quente e mais cheio de admiração.

- Você está linda, Serena. Parece uma vio­leta dos campos.

Com uma risada que era quase um soluço, ela se lançou nos braços do marido.

- Oh! Brig... Eu te amo tanto!

- Que é isto? Você está chorando?

- Não. É que... estou feliz demais. Vai rir de mim?

Ele curvou-se e beijou-lhe os cabelos, segu­rando-lhe o rosto entre as mãos.

- Não, minha querida. Não vou rir de você.

Os olhos cinzentos ficaram de repente muito sérios e ela soube que o momento da partida havia chegado.

- Chegou a hora, não é?

Não fora dita uma palavra, mas Brigham compreendeu que ela sabia. Seus olhos mos­travam isso, além das lágrimas e da postura desalentada.

- Sim, chegou.

- Conte-me tudo.

- Iniciaremos a marcha dentro de alguns dias. E preciso que você parta amanhã para Glenroe.

Serena empalideceu, mas sua voz não se alterou.

- Preferia ficar aqui até o momento em que você fosse embora.

- Eu partiria mais tranqüilo, se soubesse que você e sua família estão em segurança.

- Marcharão para Londres?

- Se Deus quiser.

- Esta luta é também minha. Gostaria de ir com você.

- Você irá comigo. Aqui. - Ele apontou para o coração. - Não deve esquecer que sua família conta com você.

"Meus sentimentos não contam?" As pala­vras subiram aos lábios de Serena, mas ela as reprimiu.

- Está bem, Brigham - disse, obediente. - Ficarei esperando por você em Glenroe.

- Há uma coisa que eu quero que saiba, caso as coisas não correrem bem. Em meu quarto, você encontrará um cofre com ouro e jóias suficientes para comprar sua incolumi­dade e a de sua família, se for necessário. Há também uma arca com algo mais precioso, que eu espero que conserve para sempre.

- Posso saber o que é?

Ele acariciou-lhe o rosto com delicadeza.

- Você saberá, quando chegar o momento.

- Mas você vai voltar, não vai? Prometeu que me levaria ao Solar Ashburn.

- Não vou esquecer uma promessa.

Ela começou a desatar a faixa do vestido com os olhos ainda nele.

- Acha impróprio que eu queira fazer amor com meu marido tão cedo pela manhã?

Brigham tirou o casaco sorrindo.

- Nunca é cedo demais para fazer amor.

Amaram-se banhados pela luz do sol que entrava magnífica pelas janelas abertas. Re­cordaram sua bela e curta história, e outra manhã ensolarada, cheia de desejo e paixão, à beira do lago. Essa lembrança, somada às incertezas de um futuro velado, fez com que a entrega fosse total.

 

Era novembro quando as forças de Charles puseram-se finalmente em marcha. Muitos, e Brigham dentre eles, teriam preferido que o príncipe houvesse começado a campanha mais cedo, aproveitando a vantagem adquirida no início, ao tomarem Edimburgo. Mas ele pre­ferira esperar por um auxílio de maior peso da França.

O ouro francês havia na verdade chegado, e também suprimentos. Mas não homens. Em vista disso, Charles reunira seu pequeno exército e decidira-se por um ataque fulmi­nante, alcançando a vitória ou a derrota em curto espaço de tempo. Como na primeira vez, ele chegara à conclusão que a empresa só podia ser realizada por meio de um golpe de audácia.

Alguns meses antes, seu intento fora motivo de risos. Entretanto, após a queda de Edim­burgo, os ingleses tinham revisto suas opi­niões e mandado às pressas reforços de Flan­dres para o marechal de campo Wade, aquar­telado em New Castle.

Enquanto isso, o exército do príncipe, sob o comando de lorde George Murray, marchava para Lancaster, encontrando pouca resistên­cia no caminho. Tomaram a cidade com rela­tiva facilidade, mas a vitória foi ofuscada pela deserção de um grande número de jacobitas ingleses.

Certa noite fria, logo após o combate, Bri­gham encontrava-se sentado junto a uma das fogueiras do acampamento em companhia do conde Withesmouth, que acorrera de Man­chester para defender a causa.

- Devíamos ter atacado as forças de Wade - observou Whitesmouth, tomando um longo gole de uísque para aquecer-se do vento cor­tante. - Agora, ele convocou Cumberland, o filho do Príncipe Eleito, que já deve estar marchando através das Midlands. Quantos so­mos, Brig? Quatro, cinco mil?

- No máximo. - Brigham fitou as chamas.

- Enquanto isso, o príncipe hesita entre dois líderes de visões opostas, Murray e Sullivan. Qualquer decisão, por menor que seja, é to­mada após um penoso debate. Quer saber a verdade, Johnny? Perdemos nosso grande mo­mento em Edimburgo. E essa perda pode ter sido irremediável.

- Mas você continua com ele.

- Sim, vou empunhar a espada e o escudo e seguir em sua companhia, compartilhando com ele da sorte que Deus nos enviar.

Permaneceram um momento em silêncio, ouvindo o vento assobiar nas colinas.

- Sabe que também os escoceses estão de­sertando e voltando furtivamente para seus vales e colinas? - tornou Whitesmouth.

- Sim, eu sei.

Aquela mesma tarde, Ian e os outros chefes de clãs haviam discutido a situação. Mas te­riam compreendido que as brilhantes vitórias obtidas por seus homens devia-se ao fato de que eles haviam lutado com os seus cora­ções? Uma vez perdida a fé, a causa estaria comprometida.

Afastando esses pensamentos perturbado­res da mente, ele passou a considerações mais práticas:

- Chegaremos a Derby amanhã. Se atacar­mos Londres rapidamente e com entusiasmo, poderemos ainda ver o rei James no trono. Ainda não fomos derrotados. Pelas notícias que você nos trouxe, sabemos que há pânico na cidade.

- Se a sorte estiver de nosso lado, você voltará para sua esposa no Ano-Novo.

Brigham assentiu. Mas, no fundo de seu co­ração, sabia que era necessário um pouco mais do que sorte.

 

Em Derby, situada a cento e trinta milhas de Londres, Charles reuniu seu conselho de guerra. A neve caía sem cessar, quando os principais membros da aliança sentaram-se à grande mesa redonda. Havia um bom fogo, mas, acima de seu crepitar, ouvia-se o lúgubre uivar do vento do norte.

- Senhores. - O príncipe pousou as mãos brancas e esguias diante de si. - Não me atrevo a agir sem a colaboração dos homens que se empenharam por meu pai. Estou aqui para ouvir os seus conselhos.

Os olhos negros perscrutaram a sala, pou­sando brevemente em cada um dos homens.

- Sabemos que três tropas do governo con­vergem para nós de pontos diferentes. Acre­dito que a saída seja um ataque rápido e ful­minante à capital, enquanto estamos ainda comemorando a vitória.

- Alteza - disse Murray -, o único con­selho que eu posso lhe oferecer é cautela. Es­tamos mal equipados e em desvantagem nu­mérica. Se nos retirarmos para a Alta Escócia, aproveitando o inverno para planejar uma nova campanha que seria iniciada na prima­vera, poderíamos atrair novamente os homens que desertaram e conseguir suprimentos fres­cos da França.

- Essa é a tática do desespero - retrucou Charles. - Haverá ruína e destruição, se ba­termos em retirada.

- Seria uma retirada estratégica - expli­cou Murray e recebeu a aprovação dos outros membros do conselho. - Não podemos agir impulsivamente.

De olhos fechados, o príncipe ouviu seus con­selheiros darem, um a um, seu apoio a Mur­ray. Prudência, cautela, paciência. Apenas O'Sullivan pregava o ataque. E valia-se de li­sonjas e promessas temerárias na tentativa de convencê-lo.

Súbito, ele levantou-se da cadeira e varreu com a mão os mapas e os documentos abertos sobre a mesa. Depois olhou para Brigham.

- E o que diz lorde Ashburn?

Brigham tinha consciência de que a estra­tégia de lorde George era a mais aconselhável. Apesar disso, suas dúvidas persistiam: uma retirada significava partir a espinha dorsal da rebelião. Pela primeira vez, que seria talvez a única, concordava com O'Sullivan.

-Com o respeito que devo a Sua Alteza, afirmo que se eu tivesse o poder da decisão marcharia para Londres ao raiar do dia, apro­veitando o moral alto de nossas tropas.

- O coração me diz para lutar, Alteza - disse um dos conselheiros. - Mas, na guerra, deve-se seguir também a razão. Se avançar­mos sobre Londres agora, nossas perdas po­dem ser consideráveis.

- Ou grande o nosso triunfo! - objetou Charles com vigor. - Seremos como as mu­lheres, que cobrem as cabeças ao primeiro si­nal de neve, e que só pensam em aquecer os pés junto ao fogo? Retirada estratégica, re­cuo... é tudo a mesma coisa!

Ele voltou-se para Murray espumando indignação.

- Será que o senhor não pretende abando­nar-me, depois de todos os protestos de leal­dade e dedicação?

Murray empalideceu como um homem que recebesse uma flechada no peito, mas falou com calma:

- Jamais faria tal coisa. Meu único objetivo na vida é ver sua causa bem-sucedida.

A discussão continuou mas, antes que ter­minasse, Brigham soube como acabaria. O príncipe, sempre hesitante quando enfrentava uma dissidência entre os seus conselheiros, seria forçado a concordar com a estratégia cau­telosa de Murray.

No dia seis de dezembro, como previra, Charles decidiu-se pela retirada, mesmo consciente que o caminho de volta à Escócia seria longo. Os homens haviam perdido o estímulo. A interrupção do exuberante e agressivo avanço, que dera tanto poder aos clãs no verão anterior, sufocara o espírito da rebelião.

Durante a retirada, tomaram Glasgow, uma cidade que lhes era abertamente hostil. Os homens, frustrados e desiludidos, queriam destruí-la e saqueá-la. Apenas a cabeça fria e o espírito de compaixão de Cameron de Lo­chiel impediram um massacre total.

Continuaram sua marcha vitoriosa. Domi­nada a cidade de Stirling, homens, supri­mentos e munições chegaram da França. Pa­recia, afinal, que o príncipe havia tomado a decisão certa, ao optar pela estratégia de Murray.

As tropas voltaram a recompor-se com no­vas adesões. Houve outra batalha ao sul de Stirling, travada sob um purpúreo crepús­culo de inverno, e de novo sentiram o sabor da vitória. Mas experimentaram também o sofrimento, quando Ian MacGregor caiu sob uma espada inimiga.

Ele resistiu durante toda a noite, apesar do ferimento ser mortal, mergulhado numa so­nolência inquieta. De madrugada, despertou de um leve embalo no limiar da consciência e ergueu um pouco a mão hesitante até en­contrar a de seu filho.

- Sua mãe...

- Eu cuidarei dela.

- Sim - Ian balbuciou, respirando com di­ficuldade. - A criança... Meu único pesar é não poder ver seu filho.

- Ele terá seu nome - disse Coll.

Os lábios exangues do moribundo entrea­briram-se num leve sorriso.

- Brigham.

- Estou aqui, senhor.

- Não dome minha gata selvagem... Ela morreria no cativeiro. Ajude Coll a cuidar da pequena Gwen e de Malcolm.

- Eu prometo.

- Minha espada... Minha espada é para Malcolm. Você já tem a sua, Coll.

- Ele a terá, pai.

- Tínhamos o direito de combater. - Ian abriu os olhos pela última vez. - Nossa raça é real. Somos MacGregor, a despeito de tudo.

 

Aquele inverno, Charles, instalou seu quar­tel-general em Inverness. A inatividade nova­mente estimulou a debandada. Houve algu­mas escaramuças isoladas e, numa delas, os jacobitas conseguiram tomar o Forte Augusto, a odiada fortaleza inglesa cravada no coração da Alta Escócia. Mas os homens ansiavam por uma vitória decisiva e pela volta ao lar.

Enquanto isso, Cumberland reunia suas for­ças e esperava o degelo. Mas parecia que o inverno jamais acabaria.

 

Estava nevando, quando Serena ajoelhou-se diante do túmulo do pai. Fazia quase um mês que haviam trazido o corpo a Glenroe para que seus familiares e amigos pudessem chorar sua morte.

As lágrimas voltaram a cobrir suas faces quando recordou a voz sonora e os olhos sem­pre risonhos. Gostaria de poder gritar, extra­vasar sua fúria contra aqueles que o haviam matado. Mas estava esgotada. Em seu coração havia apenas angústia e uma dor profunda, insuportável. Parecia que aos homens cabia lutar e às mulheres apenas chorar.

Fechou os olhos e deixou que a neve mo­lhasse seu rosto. Já havia perdido um dos ho­mens que amava. Como poderia viver, se per­desse outro? A rebelião era justa. "O povo que acredita firmemente num ideal, está pronto a lutar e morrer por ele". Seu pai dissera isso.

- Papai... - murmurou. - Estou esperan­do um filho.

Passou a mão pelo ventre e seus pensamen­tos voltaram-se instintivamente para Bri­gham. Ele ainda não sabia que estava grávida.

- Serena!

Voltou-se e deparou com Malcolm parado a alguns passos de distância dela. A neve caía entre eles como uma cortina espessa, mas pôde ver que havia lágrimas nos olhos dele. Sem proferir palavra, abriu-lhe os braços.

Confortou-o enquanto ele chorava. Ele fora tão corajoso, permanecera tão firme segurando o braço da mãe quando o sacerdote murmurava a oração fúnebre! Comportara-se como um homem. Agora, era um menino.

- Odeio os ingleses! - ouviu-o dizer com voz abafada.

- Mamãe diria que odiar não é cristão. Mas às vezes, eu acho que há um momento para odiar, assim como há um momento para amar.

- Ele era um soldado corajoso.

- E você não acha que um soldado prefere morrer lutando por seu ideal?

- Sim, mas eles estavam em plena retirada objetou Malcolm com amargura.

A carta que haviam recebido de Brigham explicava a estratégia adotada, assim como a insatisfação e o crescente descontentamento das tropas.

- Não compreendo a estratégia do general Malcolm. Mas sei que, vencendo ou perdendo, nada mais será como era antes.

- Quero ir para Inverness e combater.

- Malcolm...

- Não sou mais uma criança. Tenho a es­pada de papai! Vou usá-la para vingá-lo!

Serena olhou para ele. O menino que cho­rara em seus braços era um homem novamen­te. Ele havia se endireitado e sua mão estava cerrada em volta do punho da adaga.

- Não, você não é mais criança. E acredito que poderá usar a espada de papai como um homem. Não vou impedi-lo, se seu coração diz que você deve ir. Mas gostaria que pensasse em Gwen e Maggie.

- Você pode cuidar delas.

- Vou tentar, mas eu tenho de pensar em meu bebê. - Ela tomou-lhe a mão entre as suas. - Quando eu estiver tão pesada quanto Maggie, como poderei defendê-las, se os in­gleses chegarem? Não lhe peço para não lutar, Malcolm. Mas gostaria que lutasse aqui. Como um homem.

Perturbado, ele voltou-se e fitou o túmulo do pai. A neve cobria a lápide como uma mor­talha branca.

- Acho que papai gostaria que eu ficasse.

- Não é vergonha ficar para trás. Não, quando é a única coisa certa a fazer.

- Mas é terrível!

- Eu sei. Acredite em mim, Malcolm. Eu sei! - Pensativa, Serena fez uma pausa antes de voltar a falar: - Se as tropas do príncipe estão tão perto de Inverness, os ingleses não devem estar lon­ge daqui. Poderão atacar Glenroe. Então, quem poderá nos defender? Há pouca gente na aldeia, e em sua maioria mulheres e crianças.

- Você acha que os ingleses chegarão até aqui?

- Pode acontecer, Malcolm. Já não ataca­ram Moy Hall?

- E foram derrotados.

- Mas estão perto demais. E como não po­demos nos defender, teremos ao menos que nos proteger. Vamos procurar um lugar se­creto nas colinas e construir um abrigo, se for preciso com as nossas próprias mãos.

- Conheço uma caverna. Pode ser um bom lugar.

- Não quer me levar até lá amanhã?

 

Era quase abril e o inverno ia se extinguin­do, alternando períodos de nevascas com ge­ladas calmarias. O frio continuava e os exér­citos em luta cavavam abrigos e aguardavam o degelo.

Brigham tinha partido com um punhado de homens famintos e cansados, um grupo mise­rável como tantos outros que vinham de In­verness, à procura de comida e suprimentos.

Durante a batida, tomara conhecimento de certas notícias alarmantes que começavam a circular: O duque de Cumberland, filho do Príncipe Eleitor, estava acampado em Aber­deen com um grande contingente de homens bem armados e bem alimentados, e parecia na iminência de avançar sobre Inverness.

"Preciso levar essas novas ao conhecimento do príncipe Charles imediatamente", pensou, olhando para trás com preocupação.

Seus homens cavalgavam em total silên­cio. Eram soldados corajosos. Mas agora, prostrados pela fome e pelo cansaço, pensa­vam apenas em encontrar alimento para en­cher seus estômagos vazios e dormir. Não podia censurá-los.

Voltou-se na sela com um suspiro e pers­crutou a estrada deserta. Tinham agora al­cançado um bosque de pinheiros. Estavam prestes a penetrar em seu recesso, quando um inesperado contingente de dragões vermelhos surgiu a oeste. Deteve os homens com um ges­to e ergueu-se nos estribos para estudar o ini­migo a distância. Os ingleses eram superiores em número e pareciam descansados. Precisava decidir: escapar ou lutar.

Fazendo seu cavalo dar meia-volta, olhou seus homens com determinação.

- Cabe a vocês decidir: podemos galgar as colinas e escapar, ou enfrentá-los aqui na es­trada. Os casacos vermelhos têm os rochedos atrás de si. Estão, portanto, sem via de escape.

- Para a frente! - gritou alguém.

Um homem desembainhou a espada. Depois outro e mais outro. Brigham sorriu. Era a rea­ção que esperava.

- Nesse caso, vamos mostrar-lhes quem são os homens do rei James! - Dizendo isso, par­tiu a galope.

Animados pelo desespero e pelo exemplo de seu chefe, os homens cavalgaram como demô­nios, soltando gritos de guerra em gaélico e brandindo suas armas. Após semanas de frus­tração e raiva, queriam saciar naquele ataque a sede de vingança que havia muito os ani­mava contra os soldados do usurpador.

Conseguiram levar os dragões para os ro­chedos e perseguiram-nos sem piedade. Quan­do terminaram, cerca de uma dezena de ca­sacos vermelhos jaziam, mortos ou agonizan­tes, sobre a neve manchada de sangue. O resto da tropa esgueirava-se rapidamente, por entre as rochas.

- Vamos atrás deles! - gritou um dos homens.

Brigham bloqueou a estrada com seu cavalo.

- Com que propósito? - Ele desmontou e limpou a lâmina de sua espada na neve. - Já fizemos o que devia ser feito. Agora, vamos cuidar dos mortos e dos feridos.

- Vamos deixar os ingleses para os abutres!

Brigham virou a cabeça. Seus olhos estavam frios como gelo quando se fixaram no rosto sujo de sangue do escocês que falara.

- Não somos animais. Vamos enterrar os mortos, sejam amigos ou inimigos!

Voltaram para Inverness lentamente, ainda mais famintos do que quando haviam partido. A cada milha que venciam, Brigham tomava consciência, cheio de apreensão, como os dra­gões haviam estado perto de Glenroe.

 

Os tambores rufavam, as gaitas to­cavam. Em Inverness, o exército aprontava-se para combater. As poderosas for­ças do duque Cumberland encontravam-se a apenas doze milhas de distância.

- Não aprovo o campo de batalha - disse Murray.

Ele era ainda o conselheiro do príncipe mas, a partir do episódio da retirada, o muro de frieza que se erguera entre eles crescia inexoravelmente.

- Por que não?

- Drumossie Moor é um campo mais apro­priado para as táticas do exército inglês, Al­teza. O combate será desigual.

Murray fez uma pausa e escolheu as pala­vras com cuidado.

- Essa charneca ampla e nua é ideal para as manobras da infantaria de Cumberland. Os escoceses do norte estão habituados a um solo mais ondulado.

- O senhor está se esquivando! – interveio O'Sullivan, irônico.

- Alteza, os escoceses do norte já provaram que são audaciosos e saga­zes em qualquer campo! O mesmo não se pode dizer do general.

- Aqui, não se trata simplesmente de uma questão numérica.

Murray deu as costas a O'Sullivan e sua argumentação se converteu num apelo à com­preensão do príncipe.

- Sir, esse campo é uma armadilha! Se nos retirarmos novamente para o norte, além do Nairn Water...

- Por que tanta obstinação, Murray? Por que foi, O'Sullivan quem escolheu o campo? - perguntou Charles. - Pois eu lhe digo que vamos permanecer e enfrentar Cumberland. Esperamos por esse momento todo o inverno. Não vamos esperar mais!

Murray e Brigham, que já haviam discu­tido a decisão do príncipe, entreolharam- se, desalentados.

- A decisão está tomada, Alteza. Mas eu quero lhe propor uma manobra que, se bem­sucedida, poderá nos levar à vitória.

- Ótimo... se não incluir uma retirada, my lord.

Murray sentiu a pungência da resposta e enrubesceu.

- Hoje é o aniversário do duque. Ele irá celebrar a data em companhia de seus ho­mens. Ficarão bêbados como esponjas. Um ataque de surpresa à noite poderá desmante­lar as tropas.

O príncipe considerou a estratégia.

- O plano parece interessante. Continue.

- Duas colunas de homens se aproximarão de ambos os lados do campo, num movimento em pinça, e surpreenderão os dragões de Cum­berland, enquanto eles dormem sob o efeito do álcool.

- Um bom plano - murmurou o príncipe, os olhos brilhando de excitação. - A festa do duque pode durar pouco.

O plano era de fato bom, mas os homens que deviam executá-lo estavam cansados e fa­mintos. Esgueiraram-se no meio da noite es­cura e fria, e perderam o rumo, uma, duas, três vezes seguidas. Não eram mais do que um bando desordenado de homens frustrados, trôpegos e esmagados pelo cansaço, quando, ao amanhecer, voltaram para o acampamento.

Montado em seus cavalos, Brigham e Coll observaram sua chegada.

- Meu Deus... - murmurou o escocês. - A que ponto chegamos!

Com o cansaço a pesar também sobre seus ombros, Brigham voltou-se na sela. Os ho­mens dormiam em pé. Muitos deixavam-se cair no relvado do parque de Culloden Houx, ou na estrada.

Brigham tornou a voltar-se e olhou para Drumossie Moor. A charneca, coberta agora de geada e de uma leve camada de neblina, era ampla e nua. Poderia converter-se num campo de parada para a infantaria de Cum­berland. Ao norte, além do rio Nairn, o solo era acidentado. Murray, com seu tato e expe­riência militar, o teria escolhido. Ali haveria ainda uma chance de vitória. Mas era O'Sul­livan quem dava as cartas agora.

- A campanha de Charles vai terminar aqui - disse Brigham com serenidade. - Para o melhor ou para o pior.

Ele olhou para o céu que começava a clarear. A leste, o sol emergia da camada espessa de nuvens. As fogueiras se apagavam à luz fraca da manhã. Esporeando seu cavalo, atravessou o acampamento, gritando:

- De pé, homens! Pretendem dormir até que o inimigo venha lhes cortar a garganta? Não estão ouvindo os tambores ingleses?

Os soldados, estonteados de sono, levanta­ram-se com esforço e começaram a reagrupar­se em destacamentos. Guarneceu-se a artilha­ria e distribuíram-se todas as rações disponí­veis às tropas. Mas serviram apenas para dar uma sensação de insatisfação aos estômagos vazios dos homens.

Munindo-se de lanças e achas de combate, rifles e foices, eles se reuniram sob o estan­darte dos MacGregor, MacDonald, Cameron, Chrisholm, Robertson e outros mais. Eram cinco mil homens em frangalhos, mal equipa­dos, unidos apenas. por uma causa que consi­deravam justa, que se enchiam de uma nova esperança.

Charles, parecendo um príncipe da cabeça aos pés com seu casaco escocês e boina em­plumada, passou as tropas em revista. Aque­les eram seus homens, e a tarefa que lhes destinara não era menor do que aquela que ele próprio havia assumido.

- Companheiros! - bradou. - Não há nin­guém a quem o interesse da Inglaterra e a vida de todos, ingleses e escoceses, sejam mais caros do que a mim. E eu lhes digo, nunca este país necessitou tanto como agora do apoio daqueles que o amam.

Através da charneca, observaram o inimi­go avançar. Vinham em três colunas que len­ta, disciplinadamente, converteu-se numa única linha. A exemplo do príncipe, o duque desempenhou seu papel de representante do poder e percorreu-a lentamente, encorajando os soldados.

Acima do uivar do vento que açoitava as faces pálidas dos jacobitas, ouviu-se novamen­te o rufar dos tambores e o som plangente das gaitas de fole. Depois, o silêncio. A direita, um tiro de canhão ecoou, surdo, solitário, e perdeu-se na distância. O primeiro estampido ainda ressoava, um segundo e um terceiro ri­bombaram. A batalha começava.

 

Quando o primeiro tiro de canhão explodiu perto de Culloden House, Maggie contorceu-se num espasmo e gemeu. Depois, esgotadas as forças, deixou escapar um fraco queixume.

- Pobre menina... - murmurou a sra. Drummond, que chegava com água fresca e lençóis limpos.

Fiona terminou de banhar o rosto suado de sua nora e voltou-se para ela.

- Alimente o fogo, por favor. Precisamos manter o quarto aquecido para o momento em que o bebê nascer.

- Quase não há mais lenha.

- Usaremos toda a que temos. Gwen?

- O bebê está sentado, mamãe. - A jovem endireitou-se e flexionou os músculos das cos­tas. - Maggie é tão pequena...

Serena agarrou-a pelo braço e perguntou baixinho:

- Pode salvar os dois?

As duas se olharam. Após uma pausa, Gwen acenou com a cabeça.

- Se Deus quiser... - E observou, caute­losa: - Pode haver complicações.

- Serena... - soluçou Maggie nesse ins­tante. - Você está aí?

- Sim, meu amor. Eu estou aqui. Nós três estamos aqui.

- Coll... eu quero Coll.

- Ele vai voltar. - Serena tomou-lhe a mão crispada e beijou-a. - Procure descansar en­tre as contrações para recobrar as forças.

- Tentarei. Vai demorar muito?

Maggie olhou para Gwen.

- Diga-me a verdade. Há algo errado com o meu bebê?

Gwen debruçou-se sobre a cama para apal­par e examinar-lhe o ventre rígido. Por uma fração de segundo, foi tentada a mentir. Mas, embora fosse ainda jovem, achava que as mulheres deviam enfrentar a verdade com coragem.

- Ele está de nádegas, Maggie. Eu sei o que tem de ser feito. Mas não será um parto fácil.

- Vou morrer?

Não havia desespero na pergunta de Mag­gie, apenas a necessidade de saber a verdade.

- Não.

Gwen já tomara a sua decisão. Se tivesse que optar, salvaria a vida da mãe. Porém, an­tes que pudesse proferir palavra, uma nova contração obrigou Maggie a arquear-se.

- Meu bebê... não deixe meu bebê morrer! Prometa!

- Ninguém vai morrer - disse Serena, alisando-lhe os cabelos úmidos de suor. - Mas você tem de lutar. Quando sentir dor, grite! Mas não desista. Os MacGregor nunca desistem.

 

O fogo concentrado da artilharia inimiga continuava a fazer estragos nas linhas jaco­bitas. Os homens caíam como moscas. O vento açoitava os rostos dos que recompunham as fileiras, a fumaça os cegavam, eles, porém, mantinham suas posições, agüentando o fogo inimigo e o massacre de seus companheiros.

- Senhor, por que não nos dão ordem de avançar? - Coll, o rosto sujo de fuligem, olha­va para aquela carnificina com ar desespera­do. - Quando chegar a hora já estaremos ani­quilados pela longa espera. E sem que tenha­mos erguido a espada!

Brigham fez meia-volta e galopou até alcan­çar o flanco direito.

- Em nome de Deus! - gritou ele, quando se defrontou com o príncipe. - Dê a ordem para avançar. Estamos morrendo como cães danados!

- Aguardamos que Cumberland faça o pri­meiro movimento.

- Esperaremos em vão! Seus canhões estão arrasando nossas linhas de vanguarda! - Lorde Ashburn...

- Cumberland não irá atacar enquanto puder nos matar a distância, Alteza! Se pu­déssemos ao menos responder ao fogo... Mas não contamos com uma artilharia de grande alcance!

Charles ia dispensá-lo. Sua posição era tal que não lhe consentia uma visão clara do po­der mortal da artilharia de Cumberland e do horror da situação. Mas, naquele instante, o próprio Murray chegou dizendo:

- Precisamos dar uma ordem imediata, Al­teza. Atacar ou recuar?

- Atacar - concedeu o príncipe.

O mensageiro preparava-se para executar fielmente a ordem, quando foi abatido sem que pudesse alcançar as vanguardas. Em vista disso, Brigham tornou a esporear o cavalo e saiu em disparada gritando "atacar"!

Os soldados que formavam o centro das tro­pas foram os primeiros a se moverem, corren­do como selvagens através da charneca, e de­ferindo golpes com suas espadas e foices. Pa­reciam lobos sedentos de sangue. Porém, eram apenas homens e seus esforços desesperados encontraram uma resistência igualmente vi­gorosa por parte dos inimigos, que os recebe­ram com uma descarga mortal de seus rifles.

O ataque escocês continuou, mas o terreno, como Murray havia previsto, favorecia os in­gleses. Ainda assim, por um instante, os es­coceses conseguiram fragmentar a vanguarda de Cumberland, forçando os dragões a recua­rem. Contudo, a segunda linha resistiu, des­pejando uma rajada de fogo devastador sobre os escoceses enfurecidos. Eles caíam aos mon­tes, de modo que os que ainda estavam de pé, eram forçados a passar por cima dos corpos de seus infortunados companheiros.

Sobre o campo havia a bruma, a umidade e o cheiro ácido, estranho, de salitre e de sangue. Enquanto Brigham abria caminho por entre as formações escocesas, a bruma desfez-se e a situação tornou-se mais clara: o flanco direito do exército do príncipe Char­les estava rompido.

Num manobra desesperada, ele obrigou seu cavalo a dar meia-volta, determinado a rea­grupar o maior número de homens que pu­desse. Então viu Coll. Cercado por um grupo de dragões, ele girava sua espada de dois gu­mes no ar, afrontando-os com toda a animo­sidade que um ódio mortal podia inspirar. Sem hesitar, desmontou e foi em seu auxílio.

Em torno deles, os jacobitas ainda lutavam com ardor mas, pouco a pouco, eram forçados a recuar para a charneca. A ala direita des­pedaçada permitia a passagem dos dragões que, agora, ameaçavam os soldados em reti­rada. Os escudos fendiam-se aos repetidos gol­pes das espadas. O chocar das armas e os gritos dos combatentes misturavam-se aos sons das gaitas de fole, e afogavam os gemidos dos que caíam e que ficavam rolando indefesos sob as patas dos cavalos.

Mas, naquele momento, a derrota pouco sig­nificava para Coll e Brigham, que continua­vam a lutar ombro a ombro. Tomados de com­preensível fúria, ambos investiram contra o grupo de dragões e, golpeando a torto e a di­reito, derrubaram um adversário a cada golpe.

Após essa pequena vitória pessoal, os dois puseram-se a correr pela charneca, es­corregadia pelo sangue dos mortos e dos feridos.

- Meu Deus... eles nos destruíram!

Já não era uma batalha, era uma carnificina contínua. Os canhões troavam por toda a ex­tensão da misteriosa fumaça que ora se dis­sipava, obuses e granadas voavam constante­mente, com um sibilo rápido. A cada novo tiro, os que ainda sobreviviam tinham menos pro­babilidades de escapar com vida.

Coll olhava para aquele espetáculo estarre­cido. Era algo que homem nenhum jamais es­queceria, um vislumbre do inferno.

- Deviam ser mais de dez mil ingleses... - começou ele a dizer, quando viu um dra­gão mutilar brutalmente um dos homens de seu clã. - Cão! - gritou, cerrando os den­tes, e desferiu-lhe uma violenta pancada na cabeça.

Depois de muito esforço, Brigham conseguiu arrastá-lo para longe.

- Basta! Não há mais nada que possamos fazer aqui, a não ser morrer. A causa está perdida. A rebelião terminou.

Mas Coll não o ouviu. Brandia a espada que tinha na mão, a sede de vingança brilhando em seus olhos alucinados.

- Reflita, amigo. Glenroe está perto demais daqui. Temos que voltar e tirar nossa gente de lá.

- Maggie! - Lágrimas começaram a correr dos olhos de Coll. - Sim, você tem razão.

Puseram-se a caminho com os sabres pron­tos. Aqui e ali ouviam-se gritos e tiros espo­rádicos. Estavam quase alcançando a borda da charneca, quando o dragão ferido ergueu seu mosquete e fez montaria. Brigham viu o orifício negro da arma de fogo crescer e deu cobertura a Coll. Não sentiu o tiro. Apenas viu, de repente, bem junto de seus olhos, a relva que cobria Drumossie Moor. Depois, suas pálpebras fecharam-se.

 

Flexionando os músculos tensos das costas, Serena saiu de casa para respirar um pouco de ar fresco. Havia batalha que só as mulheres conheciam e ela acabava de travar uma delas. Tinham passado quase duas noites na deses­perada tentativa de trazer a criança de Mag­gie ao mundo. Houvera muito sangue e sofri­mento, tanto como nunca imaginara ser pos­sível. O menino viera ao mundo, mas deixara sua mãe entre a vida e a morte.

Agora, era quase noite, e Gwen garantira que Maggie viveria. Ela ouvira os primeiros, débeis vagidos de seu filho e sorrira, antes de desmaiar de exaustão e de fraqueza.

Ali fora a brisa era fresca, com o aproxi­mar-se da noite. A leste, as primeiras estrelas tremulavam no céu escuro.

- Oh, Brigham... Preciso tanto de você!

- Serena?

Ela virou-se, sobressaltada, e estreitou os olhos para focalizar a figura que emergia das sombras.

- Rob... Rob MacGregor?

Então viu-o claramente, o gibão manchado de sangue, os cabelos emplastrados de suor e sujeira, os olhos selvagens.

- Meu Deus! Que aconteceu? - gritou, correndo para ampará-lo.

- A batalha... os ingleses... eles nos destruíram, nos massacraram!

Serena sacudiu-o pelos ombros.

- Onde está Brigham? Em nome de Deus, diga onde está Brigham!

- Não sei. Tantos. morreram, tantos... - Rob chorou no ombro dela. Meu pai, meus ir- mãos... Eu os vi cair diante de meus olhos.

- Viu Brigham? - perguntou ela, desesperada. - E Coll?

- Sim, eu os vi. Mas havia muita fumaça e os canhões não paravam de atirar. O campo estava coberto de mortos e feridos.

- Oh, Deus... - Serena fechou os olhos. Precisava acreditar que Brigham e Coll tinham sobrevivido!

- Havia centenas de corpos também ao longo da estrada, mas não pudemos enterrá-los.

- Quando foi isso?

- Ontem. Mas parece que foi há um século.

- Acha que eles virão aqui?

- Estão nos caçando como animais selva­gens! Não respeitam nem as mulheres, nem as crianças.

Serena o manteve em seus braços até que toda aquela tensão se dissipasse. Depois, afas­tou-se delicadamente.

- E sua mãe?

- Ainda não fui para casa. Não sei como dar-lhe a notícia.

- Diga-lhe que os homens morreram bra­vamente, a serviço do verdadeiro rei. Depois, leve-a para as colinas, junto com as outras mulheres.

Serena olhou para a trilha imersa em sombras.

- Desta vez, quando os ingleses chegarem para queimar as casas, não encontrarão ne­nhuma mulher para violentar.

Ao voltar para casa, ela foi procurar Gwen, que estava ainda à cabeceira de Maggie.

- Como está ela?

- Muito fraca. Gostaria de saber mais coi­sas. Há tanto para aprender...

- Você fez tudo o que podia ser feito. Salvou mãe e filho.

Gwen voltou-se para a grande cama de dos­sel, onde Maggie dormia.

- Tive muito medo.

- Todos nós tivemos.

- Até você? - Gwen sorriu. - Você parece tão confiante, tão segura de si... Bom, o pior já passou. A criança é saudável, graças a Deus.

Quanto a Maggie, algumas semanas de re­pouso e cuidados farão milagres.

- Quando acha que ela, poderá se levantar?

- Levantar-se? Para quê?

- Acabo de ver Rob MacGregor.

- Rob? Mas...

- Houve uma batalha, Gwen. E foi terrível!

- Coll... Brigham?

- Rob não sabe. Mas ele me disse que o campo estava coberto de mortos e feridos. Os ingleses estão perseguindo os sobreviventes.

- Podemos escondê-los! Se os ingleses che­garem aqui e encontrarem apenas mulheres, partirão novamente.

- Já esqueceu o que aconteceu antes?

- Aquele homem era um doido!

- Rob disse que estão todos loucos. Os dra­gões não estão respeitando nem as mulheres, nem as crianças. Se eles chegarem aqui antes que essa loucura passe, nos matarão a todos. Maggie e as crianças.

- Ela poderá morrer, se tentarmos removê-la!

- Antes isso, do que vê-la torturada pelos ingleses. Apronte tudo o que for necessário.

Deixaremos a casa ao amanhecer.

- O que vai ser de você e de seu bebê?

Os olhos de Serena brilharam intensamente.

- Vamos sobreviver!

Com suas próprias palavras a ecoar em seus ouvidos, ela desceu as escadas. Na cozinha, sua mãe preparava uma bandeja com o jantar de Gwen.

- Mamãe?

- Você deve descansar, Serena. Vá para a cama.

- Precisamos conversar.

Fiona empalideceu.

- Aconteceu alguma coisa a Maggie? Ou ao bebê?

- Os dois estão bem. E Malcolm?

- Está na estrebaria, cuidando dos cavalos.

Serena voltou-se para Parkins e a sra.Drummond.

- Ouçam todos.

Ela abarcou os três com um só olhar e es­perou um minuto, reunindo as forças e as pa­lavras. Depois, com voz firme, disse-lhes tudo.

 

Deixaram o solar à primeira luz do dia, levando consigo apenas o estritamente ne­cessário. Parkins deitou Maggie numa padio­la que ele improvisara e deu início à jornada para as colinas. O percurso foi feito lenta­mente e quase em silêncio. Ninguém tinha vontade de falar.     .

Fizeram a primeira parada ao atingirem o alto da colina, onde as primeiras flores silves­tres abriam-se ao sol, e voltaram-se para con­templar o cenário. Fiona lançou um olhar nos­tálgico para o vale. Os bosques que ela atra­vessara pela primeira vez quando recém-casada refulgiam sob a leve bruma matutina. Pouco além estava a casa onde vivera com Ian e seus filhos.

- Voltaremos, mamãe - disse Serena, pas­sando-lhe o braço pela cintura. - Eles não tomarão nossa casa.

Fiona ergueu altivamente a cabeça.

- Sim, os MacGregor voltarão a Glenroe.

Ficaram mais alguns minutos contemplando os telhados azuis, de ardósia, que brilhavam ao sol d a manhã e depois seguiram caminho. Alcançaram a caverna duas horas depois. Já havia ali uma provisão de lenha e de pedaços de turfa, cobertas, víveres, remédios e leite fresco. Oculta atrás das rochas que formavam o fundo, estava a arca que continha os bens de Brigham.

Serena apoiou a espada de seu pai na en­trada e verificou as pistolas e as munições.

- Sabe atirar, Parkins?

- Se for necessário, lady Ashburn.

A despeito de seu cansaço, ela sorriu de seu ar formal.

- Não quer ficar com esta?

- Pois não, my lady - disse ele, apanhando a arma com uma leve inclinação de cabeça.

- Você é uma preciosidade - disse Se­rena, lembrando com que destreza ele cons­truíra a padiola para Maggie e com que cui­dado levara a carga frágil através da ladei­ra íngreme.

- Obrigado, my lady.

- Começo a perceber por que lorde Ashburn não dispensa os seus serviços. Faz tempo que está com ele?

- Estou a serviço dos Langston há muitos anos, my lady. - A voz de Parkins tornou-se mais branda. - Ele voltará para nós.

As lágrimas ameaçaram transbordar dos olhos de Serena.

- Gostaria de lhe dar um filho homem. Qual era o nome do pai dele?

- Daniel, my lady.

- Daniel. - Ela sorriu. - Então nós o cha­maremos de Daniel!

- Não quer descansar agora, lady Ashburn? A jornada foi muito cansativa.

- Estive pensando; Parkins: quando Bri­gham e meu irmão voltarem, alguém terá de avisá-los que estamos aqui. Será necessário que um de nós desça de vez em quando até o vale. Creio que Malcolm, você e eu podere­mos nos revezar nessa tarefa.

- Não, my lady.

- Não?

- Não, senhora. Não posso permitir que faça esse esforço. Meu patrão não gostaria.

Serena olhava-o, atônita.

- Não compreende, homem? Precisamos avisá-los!

- O jovem Malcolm e eu nos encarregare­mos disso. A senhora ficará aqui, my lady.

Serena franziu a testa.

- Não, quando posso ser útil a meu marido!

Parkins estendeu calmamente uma manta perto do fogo.

- Insisto para que descanse, lady Ashburn. My lord faria questão disso.

- Se lorde Ashburn estivesse aqui, tenho certeza de que o despediria!

- Ele ameaçou despedir-me várias vezes. Mas nunca o fez - objetou Parkins com uma impassibilidade tipicamente britânica. - E agora, se me permite, vou lhe preparar um pouco de leite quente.

 

Serena dormiu com a pistola numa das mãos e a espada na outra. Mas seus sonhos foram deliciosos, povoados com a imagem de Brigham. Revia-o tão nitidamente, que pôde quase sentir o calor de seu corpo, quando ele segurou-lhe ambas as mãos e atraiu-a para si.

Dançaram à margem do rio, ao som do mur­múrio das águas e do canto dos pássaros. Ele usava um traje com debruns de prata, e ela um vestido de cetim semeado de pérolas. Quando ele inclinou-se para beijá-la, enlaçou­-o murmurando "não é o fim para nós, querido". Depois abriu os olhos e olhou-o. Ele era tão bonito! E sabia beijar com tanta doçura!

Súbito, viu o sangue que manchava o seu casaco. O sangue era tão real, que podia sentir seu contato pegajoso na palma da mão. As­sustada, quis sustentá-lo nos braços, mas a imagem desvaneceu-se e ela ficou sozinha à margem do rio.

Acordou murmurando "Brigham". Um pânico incontrolável dominou-a. Ergueu a mão e não encontrou sangue algum. Lentamente, lutando para separar o sonho da realidade, percebeu que não era o canto de um pássaro que ouvira, mas o grito de uma águia. Não escutara o mur­múrio do rio, mas o gemido do vento.

"Ele está vivo!", disse a si mesma, com fervor.

Quase no mesmo instante, ouviu o choro do recém-nascido. Levantou-se com esforço. Mag­gie, com a ajuda de Fiona, amamentava o pe­queno Ian.

- Serena. - As faces da cunhada estavam ainda pálidas, mas seu sorriso era doce. - Venha ver o meu bebê. Ele fica mais forte a cada dia que passa.

- Ele é lindo! - disse Serena sentando-se ao lado dela. - E parecido com você, graças a Deus!

Maggie riu.

- Eu não sabia que podia amar, outra pes­soa tanto quanto amo Coll. Mas agora eu sei.

- Como está se sentindo?

- Fraca, cansada... Não gosto de me sentir assim.

Fiona acariciou-lhe o rosto.

- Procure dormir um pouco. Eu cuidarei dele.

- Coll vai voltar logo?

- Sim, logo. E ficará orgulhoso de seu filho.

Serena pegou o bebê no colo.

- Parece um milagre!

- Todas as crianças são um milagre – disse Fiona.

- São a promessa de uma nova vida. Sem elas, não poderíamos suportar a morte e a dor da perda.

Serena olhou-a fixamente.

- Acha que eles morreram?

- Peço sempre a Deus que olhe por eles.

- Onde está Malcolm?

- Com Parkins. Os dois saíram assim que você pegou no sono. Foram buscar algumas coisas que estão faltando.

Serena assentiu e aceitou a tigela de leite que a sra. Drummond lhe ofereceu.

- Não se preocupe com aqueles dois, que­rida - disse ela. - Meu Parkins sabe o que faz.

- Ele é um bom homem, sra. Drummond. Um leve rubor subiu às faces redondas da cozinheira.

- Sabia que vamos nos casar?

- Fico muito feliz... - Serena interrompeu-se e fez uma pausa. - Ouviu isso, mamãe?

- Não ouvi nada - disse Fiona, mas seu coração bateu mais forte.

- Alguém está chegando. Vá para o fundo da caverna e não deixe Ian chorar.

Antes que a mãe pudesse impedi-la, Serena caminhou silenciosamente para a entrada da caverna e empunhou a pistola com mão firme. Seria capaz de matar o intruso, se Deus não lhe mostrasse outro caminho! O inglês que entrasse ali, encontraria algumas mulheres sozinhas mas não indefesas! Atrás dela, a sra. Drummond apanhou o facão de cozinha e ficou à espera.

Quando os passos se aproximaram, não hou­ve mais dúvidas, de que a caverna seria avis­tada. Erguendo a arma, saiu para fora da ca­verna, e preparou-se para lutar.

- E mesmo minha gata escocesa ou uma miragem?

Brigham, amparado por Coll e Parkins, ten­tou sorrir para ela. À luz do dia, as manchas pegajosas que se alargavam sobre seu casaco e seu calção eram claramente visíveis.

Serena deixou cair a arma e correu lan­çando um grito:

- Brigham!

Ele murmurou seu nome e depois tombou para frente.

 

- Ele não vai morrer, não é verdade? - perguntou Se­rena, desesperada. O medo revolvia-lhe as en­tranhas, causando-lhe ligeira vertigem.

Gwen permaneceu em silêncio, ocultando a dúvida que sentia, e continuou a apalpar de­licadamente o flanco direito do ferido, onde a bala se alojara.

- O tiro seria para mim, se Brigham não se colocasse na minha frente - disse Coll abruptamente.

- Foi assim? - indagou Fiona, cheia de compaixão.

Seu filho acenou vagamente com a cabeça.

- Estávamos derrotados, não havia mais nada que pudéssemos fazer. Ele queria sair daquele inferno a qualquer custo. - Coll fez uma pausa demorada. - A princípio, pensei... pensei que ele estivesse morto.

Serena acariciou-lhe a mão.

- Você o trouxe de volta para mim. Obrigada.

Coll fechou os olhos. Não conseguia esquecer o desespero que sentira, quando, com Bri­gham às costas, seguira a trilha acidentada que levava ao dorso da colina. Escondera-se numa cavidade de rocha e ministrara os pri­meiros cuidados ao amigo enquanto os in­gleses vasculhavam os urzais. Ao cair da noi­te, haviam iniciado a longa caminhada de volta ao lar.

- Estávamos com pressa por causa de vocês - tornou. - Temíamos que os in­gleses chegassem antes que pudéssemos tirá-los do solar.

Gwen endireitou-se e todos os olhares se vol­taram para ela.

- A bala tem de ser extraída. Só um médico pode fazer isso.

- Não há médicos em Glenroe! - gritou Serena, subitamente fora de si. - Se sairmos à procura de um, atrairemos a atenção dos ingleses.

-Sim, mas...

- Logo terão conhecimento da presença de um fugitivo aqui. Brigham é um homem mar­cado. Eles o farão prisioneiro... e o matarão!

Gwen fitou-a cheia de piedade.

- Que podemos fazer?

- Tente alguma coisa, pelo amor de Deus!

- O ferimento é profundo, não saberia o que fazer. Poderia matá-lo, ao invés de sal­var-lhe a vida.

- Pois bem. Eu mesma farei isso!

- My lady. - A voz de Parkins era calma e controlada. - Eu removerei a bala com a assistência da srta. MacGregor.

- Você está maluco! - disse Serena sem meias palavras. - Não estamos falando de rendas e babados, mas da vida de um homem!

- Já fiz isso uma vez, my lady - insistiu Parkins, imperturbável. - Vou acender o fogo e ferver uma chaleira de água. Depois, alguém terá de segurar lorde Ashburn para mim.

- Eu mesma farei isso - Serena falou com determinação. - E peça a Deus que sua mão não falhe!

Gwen esterilizou a faca e depois derramou uma infusão de papoula por entre os lábios semicerrados de Brigham.

- Vá descansar, Serena. Eu assistirei Parkins.

- Não, isso cabe a mim.

Enquanto Parkins tirava o casaco e arre­gaçava as mangas, preparando-se para agir, ela fechou os olhos por um momento. Estava tomando em suas próprias mãos o que res­tava do fio de vida de seu marido. Tornou a abri-los e fitou Parkins. Sua calma tranqüi­lizou-a. Hesitou apenas um segundo, antes de fazer-lhe um sinal para que desse início à cirurgia.

Embora sob o efeito da droga, Brigham gri­tou de encontro à mordaça que lhe enfiaram na boca, e Serena teve que lançar mão de toda a sua força para segurá-lo. Como em transe, ela observou o sangue do marido empapar o chão de terra, enquanto seu rosto tornava-se lívido e seus lábios exangues.

A bala havia se cravado profundamente na carne, e Parkins teve de gastar minutos pre­ciosos para localizá-la.

- Encontrei-a - disse ele por fim, o suor escorrendo-lhe do rosto. - Mantenha-o imó­vel, my lady.

Quando a operação terminou, Gwen substituiu-o.

- Temos que estancar o sangramento. Bri­gham já perdeu sangue demais. Sra. Drum­mond, passe os ungüentos.

Feitos os curativos, ela enrolou de novo os cobertores em torno do corpo ferido e depois voltou-se para sua irmã, que parecia a ponto de desmaiar.

- Vá tomar um pouco de ar, querida.

Serena levantou-se e caminhou lentamente para a entrada da caverna. Um ano antes, fora Brigham que havia chegado a Glenroe carregando Coll gravemente ferido. Agora, era seu marido que estava à beira da morte. O tempo entre esses dois acontecimentos passa­ra como num sonho, marcado por momentos de amor, paixão, lágrimas e risos.

Ergueu os olhos e observou a paisagem. Ao longe, em meio à tranqüilidade que reinava no vale, as colinas tomavam uma coloração purpúrea. "Nossa terra" pensou, "pela qual muitos lutaram." Seu pai dissera: "Não luta­mos em vão." No entanto, o homem que amava estava agonizando e a terra pela qual haviam lutado escapava-lhe das mãos. Esse era o mo­mento que ela, havia muito, receava: o mo­mento em que as duras conseqüências da luta se tornavam, afinal, claras.

- Lady Ashburn.

Ela era lady Ashburn, mas também uma MacGregor. Pousou a mão no ventre e sentiu o pulsar de uma nova vida, de uma nova es­perança. Não, a luta não fora em vão!

Voltou-se e quase sorriu. Parkins tinha en­vergado o casaco e assumido novamente o seu papel.

- Sim?

- Não gostaria de tomar um pouco de chá? - perguntou ele, passando-lhe às mãos uma tigela de madeira.

- Obrigada, Parkins. - Serena tomou, um gole da bebida fumegante e fitou-o. - Quero me desculpar pela minha rudeza. Espero que não tenha se ofendido.

- My lady estava muito preocupada - dis­se ele, a expressão cheia de bondade.

- Você tem mãos firmes, Parkins. E um coração de ouro.

- Obrigado, my lady.

- Salvou a vida de lorde Ashburn. Fico-lhe muito grata por isso. E gostaria de fazer al­guma coisa por você.

Parkins balançou a cabeça, num gesto de veemente recusa. Depois, muito solene, disse:

- Nada fiz para merecer sua benevolência.

- Você fez muito, não sabe quanto!

Dito isto, Serena voltou para junto do ma­rido. O vento levantara-se, violento. Penetra­va através da coberta que vedava a entrada da caverna e fazia as chamas do fogo se in­clinarem. Em seu encalço, ela ouvia algo que se assemelhava a um riso reprimido, a sus­piros, murmúrios e gemidos. Eram os espíritos das colinas, mas não a assustavam.

Velou Brigham a noite inteira. Ele delira­va no colchão de palha, murmurando pala­vras e frases entrecortadas. Por elas, teve uma noção mais clara de todo o horror da batalha, e do perigo que ele e Coll tinham enfrentado.

Pouco antes do raiar do dia, Fiona ofere­ceu-se para substituí-la.

- Você precisa descansar. Por si mesma e por seu filho.

- Não posso deixá-lo, mamãe. Às vezes, ele abre os olhos e me olha, dando a impressão de que sabe que estou ao seu lado.

- Então, deite a cabeça no meu colo e dur­ma um pouco.

- Ele é tão bonito, mamãe!

Fiona sorriu.

- Sim, Brigham é muito bonito.

- Meu bebê vai se parecer com ele. Vai ter esses mesmos olhos cinzentos e essa boca bem-feita.

Serena fechou os olhos e as recordações a invadiram.

- Eu o amei desde a primeira vez que o vi. Mas fiquei assustada. Não sabia que o coração tem razões mais profundas do que aquelas que eu tinha imaginado. Agora eu sei.

 

Os sonhos de Brigham eram impregnados de horror. Ele se via quase sempre em meio a um mundo destruído, gotejando sangue. Em torno dele, os homens agonizavam, os rostos cheios de dor. Podia até sentir o chei­ro da morte, predominando sobre o odor acre da pólvora. Podia ouvir o som das gai­tas, o rufar dos tambores e o incessante ribombar da artilharia ultrapassando todos os lamentos.

Punha-se a correr e de repente era atirado no ar por um estampido medonho e principia­va a cair, a cair, num longo redemoinho sem fim, até bater de encontro ao solo relvoso. A vida esvaía-se de seu corpo lentamente e pa­recia a ponto de interromper-se.

Às vezes, quando abria os olhos, via Serena tão nitidamente, que conseguia distinguir suas faces pálidas pelo cansaço. Ela se debru­çava sobre ele e o acariciava com mãos macias. Reagia, num esforço para vê-la melhor. Mas suas pálpebras pesavam como chumbo.

Durante três dias, debateu-se na inconsciên­cia. Não percebia nada do pequeno mundo que fervilhava à sua volta. Ouvia vozes, mas não conseguia entender o que diziam. Pensou ou­vir uma mulher chorar baixinho e depois uma criança choramingar.

Ao final de três dias, caiu num sono pro­fundo, sem sonhos. O despertar foi algo se­melhante a um parto: confuso, doloroso, desamparado. Ainda não tinha consciência plena de onde se encontrava, se na char­neca, em meio à batalha, ou em outro lugar qualquer.

O primeiro jato de luz feriu seus olhos. Fechou-os novamente e procurou se orientar por meio dos sons e dos odores. Havia o chei­ro enjoativo de papoulas, de terra, de lenha queimando, e, coisa estranha, o cheiro bom de batatas assando. Ouviu murmúrios. Pa­cientemente, pôs-se a decifrar as vozes. Coll. Gwen. Malcolm. Uma onda de calor percor­reu-lhe o corpo, tão reconfortante quanto o produzido por vinho fino, Serena devia estar ali também!

Aos poucos, seguro daquele calor que o aquecia, foi abrindo os olhos. Agora, a via a um palmo de seus olhos, mirando-o cui­dadosamente, uma expressão de alegria no rosto adorável. Abriu a boca, mas não emitiu nenhum som.

- Serena - conseguiu balbuciar por fim, ao estender o braço para tocá-la.

Serena se debruçou sobre ele, não sabendo se ria ou chorava.

- Você voltou para mim, amor!

 

A princípio, Brigham permaneceu num es­tado entre a vigília e o sono. Despertava, quando lhe passavam uma toalha úmida pelo corpo dolorido, ou quando o faziam tomar chá. Era bom sentir o líquido descer por sua gar­ganta ressequida.

A lembrança da batalha era clara, mas não se lembrava do que acontecera depois. Gra­dualmente, com a ajuda de Coll, foi coorde­nando os pensamentos e as recordações dolo­rosas. E não conseguiu dominar o pesar e a indignação..

- O'Sullivan estava enganado. E nós... nada pudemos fazer. Não podíamos dar ordens ao príncipe. E agora...

Sua revolta atenuava-se apenas quanto ti­nha Serena e seu filho ainda por nascer junto de si..

- Este lugar não nos oferecerá segurança por muito tempo - disse-lhe certa tarde.

- Você está ainda muito fraco para loco­mover-se - observou ela.

Ele beijou-lhe as mãos com ar pensativo.

Como poderia permitir que sua esposa desse à luz naquela caverna?

- Tenho parentes em Skye, eles poderão nos ajudar. Quando acha que Maggie e o bebê estarão suficientemente fortes para viajar?         

- Dentro de um ou dois dias. Mas você não poderá participar de uma viagem com os fe­rimentos ainda abertos!

- Estou curado. Ademais, meus ferimentos têm menos importância do que um arranhão de alfinete.

- Você estará curado quando nós lhe der­mos alta!

Um brilho da antiga arrogância surgiu nos olhos dele.

- A senhora é uma tirana, madame.

Ela sorriu.

- Fui sempre uma tirana, Sassenach.

- Adorável tirana... - murmurou ele, afun­dando a cabeça no travesseiro.

- Descanse agora. Quando recobrar as for­ças, iremos para onde você quiser.

Brigham olhou-a com intensidade.

- Vou tomar isso como uma promessa, Serena.

A voz dele estava tão fraca, que Serena sen­tiu seu coração oprimir-se. Quando ele partira, era um homem forte, invencível. Voltara para ela a beira da morte.

- Onde estão Coll e Malcolm?

- Saíram para caçar. Talvez tenhamos car­ne para o jantar.

Deitou-se ao lado dele e, enquanto continua­va a acariciá-lo, pensava por que seus irmãos estavam demorando tanto para voltar.

 

Os dois estavam deitados de bruços no alto do platô que se erguia atrás da encosta da colina, e olhavam para o vale. Havia no ar o cheiro do incêndio. Fios de fumaça e pequenas chamas subiam para o céu. O solar dos Mac­Gregor ardia e as pequenas herdades jaziam em ruínas, com os chalés arrasados até o solo. Os ingleses tinham voltado novamente tra­zendo o fogo, a morte, a destruição!

- Que o diabo os leve - murmurou Coll, batendo com o punho no solo rochoso. - Que o diabo os leve!

- Por que estão queimando nossas casas? - perguntou Malcolm, com os olhos cheios de lágrimas. - Que necessidade há de des­truir nossos lares?

Os estábulos, lembrou-se ele de repente e fez menção de levantar-se.

Coll segurou-o pelo braço.

- Eles já devem ter retirado os cavalos de lá, garoto.

Malcolm encostou o rosto na pedra bruta e chorou.

- Será que agora nos deixarão em paz?

O irmão lembrou-se da carnificina da bata­lha de Culloden e murmurou:

- Receio que não. Irão dar uma busca nas colinas e perseguir os fugitivos sem descanso. Temos que voltar depressa para a caverna.

 

Serena estava sentada a pequena distância do fogo, em repouso. Ouvia a lenha estalar, Maggie cantar uma canção de ninar ao pe­queno Ian, a sra. Drummond e Parkins fala­rem baixinho, enquanto preparavam a refei­ção. Tranqüilos ruídos familiares vinham re­forçar a sua própria calma.

Olhou para a mãe que tecia um xale para o neto, pensando que, afinal, estavam todos reunidos e em segurança. Um dia, quando a Inglaterra se cansasse de oprimir a Escócia e retornasse a suas fronteiras, poderiam ins­talar-se definitivamente no solar. Daria a Brigham uma vida cheia de felicidade, de modo a fazê-lo esquecer o mundo suntuoso de Londres. Poderiam até construir uma casa para eles próprios perto do lago.

Esse pensamento trouxe-lhe um sorriso aos lábios. Um ruído súbito de passos à entrada da caverna a fez voltar-se. Ficou à escuta. Houve um novo estalido. Deviam ser seus ir­mãos. Palavras de boas-vindas vieram-lhe aos lábios, quando se lembrou que eles não teriam a necessidade de chegar tão furtivamente. So­bressaltada, alcançou a pistola.

Uma sombra bloqueou a claridade que jor­rava pela abertura. Viu o dragão inglês en­trar com a espada erguida e um brilho de triunfo nos olhos. Ergueu a pistola. Quando ele deu o primeiro passo, atirou. O homem cambaleou, a surpresa estampando-se por um instante em seu rosto, antes que ele tombasse ao chão, morto.

Pensando apenas em defender os seus, ela agarrou a espada de seu pai e ergueu-a. Sen­tiu a presença de Brigham a seu lado no instante em que mais um soldado avançava para eles com a baioneta calada. Outro es­tampido ecoou no espaço confinado. Os dois voltaram-se ao mesmo tempo. Parkins esta­va no meio da caverna com a pistola ainda fumegante na mão.

- Volte a carregar as armas - ordenou-lhe Brigham, puxando Serena atrás de si.

Um terceiro dragão apareceu à entrada, mas não chegou a dar um passo. Permaneceu um instante parado, e depois caiu para a frente, fulminado por um tiro. Ofegante, Brigham saiu da caverna. Fora, havia mais dois solda­dos. Coll lutava com um deles com todo o de­sespero de um homem acuado, enquanto pro­tegia o irmão com seu própria corpo. Brigham quis enfrentar o outro, mas uma dor aguda explodiu em seu cérebro, cegando-o.

O dragão fez então meia-volta e já erguia a espada, mirando a cabeça de Malcom quando, da boca da caverna, Serena atirou com a pistola que acabava de carregar, atin­gindo-o no coração.

Toda a ação não havia durado mais do que cinco minutos. Agora, cinco dragões jaziam mortos. Mas a caverna deixara de constituir um refúgio.

 

Foram embora ao anoitecer, tomando a di­reção do oeste.

Valiam-se da hospitalidade do povo genero­so da Alta Escócia e, quando isso não era pos­sível, buscavam abrigo nas choças abandona­das. Durante a caminhada, tiveram notícias de Cumberland, que era agora conhecido como "O Carniceiro".

A perseguição aos fugitivos era implacá­vel. Para aquebrantar ainda mais o ânimo do povo derrotado, sem chefes, faminto, ha­viam confiscado ovelhas, cavalos, gado. Ain­da assim, terras, gentes, florestas se faziam cúmplices para guardar, com devotamento, o seu príncipe.

Avançavam lentamente. Cada dia encerrava um novo perigo. Era junho, quando consegui­ram finalmente zarpar do continente e desem­barcar na ilha de Skye, onde foram acolhidos pelos MacDonald de Sleat.

- É tão linda quanto minha avó dizia - murmurou Brigham enquanto, do topo da co­lina de Mugston House, inspirava profunda­mente o ar puro da ilha e abarcava com o olhar todo o panorama luminoso que se descortinava à sua frente.

- Realmente linda - confirmou Serena. - Tudo me parece lindo agora que estamos todos em segurança.

"Por quanto tempo ainda?", pensou Bri­gham. Corriam rumores de que o príncipe estava nas imediações, procurando escapar para a França ou para a Itália. E, onde ele estivesse, haveria sempre ingleses por perto. A orla marítima estava sendo rigorosamente patrulhada.

Refletira muito nos dias de sua convales­cença e durante a longa e perigosa jornada através das colinas da Escócia. Não podia vol­tar para a Inglaterra e dar à Serena a vida que ela tinha direito como lady Ashburn, e não podia voltar à Glenroe. Tinha que haver uma outra alternativa.

- Venha sentar-se aqui - disse, conduzin­do-a a um pequeno barco de pedra sombreado por uma árvore em flor. - Sabe que você está mais linda do que nunca?

- Você é um mentiroso?

Ela sorriu e apoiou a cabeça no ombro dele.

- Estou feliz que tenha a oportunidade de conhecer o lugar onde sua avó nasceu e cresceu. Os parentes dela foram tão gentis conosco!

- Serei sempre grato a eles e a todos os que nos deram abrigo.

Os olhos de Brigham enevoaram-se, enquan­to ele olhava para o mar.

- É difícil compreender por que deram abri­go a um inglês.

- Como pode dizer isso? - indignou-se Se­rena. - Não foi a "sua" Inglaterra que assas­sinou o espírito de liberdade da Escócia. Foi Cumberland, com sua sede de vingança, sua necessidade de destruição!

- Em Londres, ele é aclamado como herói.

Ela o fitou com intensidade.

- Houve tempo em que eu culpava todos os ingleses pelos erros de alguns. Não cometa o mesmo erro, Brigham!

Ele atraiu-a para si.

- Sabe o que aconteceria aos MacDonald, se soubessem que estou aqui?

- Não o encontrarão!

- Não podemos fugir para sempre, Serena. Estou cansado de me sentir cercado, perse­guido, caçado pelos carrascos de um regime sangrento!

- Não temos outra alternativa! Também o príncipe está sendo caçado!

- Sim, e eu me preocupo por ele. Mas me preocupo também com você e nosso filho. Não consigo esquecer o último dia que passamos na caverna, quando você foi forçada a matar para defender a mim e a sua família!

- Fiz o que devia ser feito, o que você teria feito. Pela primeira vez, depois de tantos me­ses, senti-me verdadeiramente útil.

- Nunca a amei tanto como naquela dia, quando a vi erguer a pistola e a espada, como uma deusa vingadora!

Ele curvou-se e beijou-lhe ambas as mãos.

- Eu queria lhe dar uma vida cheia de be­leza, queria lhe dar tudo o que era meu. Agora, não tenho mais nada.

- Brigham...

- Ouça. Há algo que eu preciso saber. Um dia, você me disse que iria comigo para onde eu quisesse. Sua promessa continua de pé?

Serena sentiu uma pontada no coração, mas sua voz era firme, quando disse:

- Sim.

- Deixaria a Escócia, Serena, e iria comigo para o Novo Mundo? Não posso dar-lhe tudo o que prometi, muita coisa terá que ser dei­xada para trás. Você será apenas a sra. Langston.

Ela o abraçou com força.

- Iria ao inferno com você, se me pedisse!

Ele sorriu.

- Não pediria tanto. - Depois, repentina­mente sério, acrescentou: - Estou quebrando todas as promessas que lhe fiz, Serena.

- Você me prometeu amor e essa promessa foi cumprida.

- E suficiente?

- Entenda, querido. As semanas que passei na corte foram maravilhosas, mas só porque você estava comigo. O luxo nada significa para mim. Nem os bailes e os vestidos de gala. Ape­nas você.

Ela o fitou nos olhos, longamente.

- Às vezes, em Holyrood, cheguei a pensar se você não havia cometido um erro, ao esco­lher-me para sua esposa!

- Que absurdo é esse?

- Eu nunca serei uma dama, Brigham. E meu maior medo era que você me pedisse para ir viver na corte do rei Luís.

Brigham olhou-a com surpresa.

- Lá, você teria uma vida tão agradável quanto a de Edimburgo!

- E teria que me comportar como uma dama, quando meu maior desejo seria usar calções e cavalgar livremente pelos bosques!

- Prefere então ir para a América contando apenas com um punhado de ouro para realizar esse novo sonho?

- Você perdeu a Inglaterra e eu a Escócia. Faremos da América a nossa nova pátria! - disse ela com ardente convicção.

Esta resposta tocou-o mais do que qualquer outra. Serena estava afastando-se do passado e voltando-se para o futuro com a firme von­tade de não se deixar abater pelos pesares. Essa coragem com que ela enfrentava o mundo seria, doravante, a força e a base do amor que lhe dedicava.

Sentiu a mão dela apertar a sua e murmurou:

- Te amo, Serena.

No cais, um barco preparava-se para singrar as águas azuis, o leme da proa brilhando na sombra crescente. Breve, muito breve, tam­bém eles estariam debruçados no convés de um navio; rumo a uma nova existência. A exis­tência que o destino lhes reservara.

 

Era junho, quando o príncipe Char­les Edward desembarcou na ilha de Skye, para se asilar em Mugston House. Che­gava disfarçado de criada de Flora MacDonald, uma jovem lady que arriscara a vida por ele, mas não havia perdido nem a infinita confiança em si próprio, nem seu intrépido orgulho.

Quando ele se foi, amado, admirado, com uma lenda de valentia e romance em torno de seu nome, deixou a Flora um anel de seus cabelos e a promessa de que voltariam a en­contrar-se na corte de St. James.

Pouco antes de sua partida, o príncipe encon­trou-se com Brigham num dos salões da nobre morada. Conversaram como sempre o haviam feito, com intimidade real e profunda mesclada a um mútuo respeito. Charles Edward não disse, mas esperava que seu fiel partidário o acom­panhasse em sua viagem à França.

Quando Brigham falou-lhe de seus novos projetos, ele não respondeu imediatamente. Afastou-se uns passos e ficou a olhar, em meio à tranqüilidade que reinava na ilha, o mar azul e profundo. Decorrido um momento, voltou para junto dele. Seu belo rosto aristocrático estava contraído por uma emoção contida.

- Então, nada mais há a dizer, não é certo?

- Nada mais, Alteza.

- Desejo felicidades a ambos.

- Obrigado.

Mais tarde, na intimidade de seus aposentos, Serena comentou:

- Vai sentir falta dele, amor.

- E do que ele representou para mim: a fé de minha infância.

Brigham puxou-a para si, abraçando-a com força.

- Não vencemos, Serena. Muitos morreram defendendo uma causa perdida. Mas quando olho para você e meu filho, vejo que não perdemos.

Afastou-se um pouco para olhar o pequeno Daniel que dormia no carrinho.

- Como seu pai disse, não lutamos em vão.

- Peço unicamente a paz, Brigham. Para você e para mim.

Ele beijou-lhe levemente os lábios.

- Está pronta?

- Estou. - Serena apanhou o manto de viagem e envolveu-se nele. - Pena que mamãe, Coll e Maggie não possam vir conosco. Irei sentir falta deles.

- Mas você terá Gwen e Malcolm.

- Eu só desejo...

- Haverá novamente um MacGregor em Glenroe - antecipou-se Brigham. - E nós voltaremos um dia.

Ela o fitou. Via diante de si aquele homem bonito, rico de promessas, que a atraíra desde o princípio: o seu homem de confiança.

- E haverá também um Langston no Solar Ashburn. Daniel voltará, ou o filho dele.

Brigham concordou com um sinal de cabeça e voltou-se para apanhar a arca que continha a pastorinha de Dresden, experimentando uma sensação de renovada juventude.

Uma batida na porta tirou-o de sua concen­tração. Era seu criado de quarto, que iria com eles para a América, fazendo-se acompanhar pela sra. Parkins.

- Temos que nos apressar para não per­dermos a maré alta, my lord.

Brigham ergueu as sobrancelhas.

- Já esqueceu que sou apenas o sr. Langston?

Parkins apanhou os sacos de viagem, dizen­do placidamente:

- Não, my lord.

Serena não pôde conter o riso.

- Para ele você será sempre lorde Ashburn, Sassenach!

 

                                                                                            Nora Roberts

 

 

                      

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