Conta-se aqui uma aventuraque começou na Calormânia e foi acabarem Nárnia, na Idade do Ouro, quando Pedro era o GrandeRei de Nárnia e seuirmãotambémerarei, e rainhassuas irmãs.
Vivia naqueles tempos, numa pequenaenseadabem ao sul da Calormânia, umpobrepescador chamado Arriche; comele morava ummeninoque o chamava de pai. O nome do meninoera Shasta. Quasetodos os dias, Arriche saía de manhãparapescar e, à tarde, atrelava o burro a uma carroça e ia vender os peixes no vilarejoque ficava cerca de umquilômetromaispara o sul. Quando a vendaera boa, ele voltava paracasacom o humorumpoucomelhor e nada dizia a Shasta. Masquando a vendaerafraca descobria defeitos no menino e às vezesaté o espancava. Sempre havia motivosparaacharmalfeitos, pois Shasta vivia cheio de coisasparafazer: remendaroucosturar as redes, fazer a comida, limpar a cabanaemque moravam...
Shasta nãotinha o mínimointeressepelavilaonde o pai vendia o pescado. Nas poucas vezesemquetinhaidolánãoviranada de interessante. Só encontrara gente parecida com o pai: homensbarbudos, usando mantossujos e compridos, turbantes na cabeça e tamancos de pau de bicoviradoparacima, e que resmungavam entresi uma conversamole e enjoada. Mastudo o que existia do ladooposto, no Norte, despertava uma enormecuriosidadeem Shasta, poisninguémjamais ia paralá, e elepróprionãotinhapermissãoparaisso. Quanto se sentava à soleira da porta, remendando as redes, costumava olharansiosamenteparaaqueleslados.
Às vezes perguntava:
- Pai, o que existe depois daquela serra?
Se o pescador estava mal-humorado, dava-lhe umsopapo no pé do ouvido e lhe mandava prestaratenção no trabalho. Se o diaera de boa paz, Arriche respondia:
- Meufilho, não deixe o seuespírito se perder em divãgações. E como diz um dos grandespoetas: “A atenção é o caminho da prosperidade, e os que metem o narizondenãosão chamados acabam quebrando a cara no pedregulho da miséria.”
Por essa razão, Shasta imaginava que no Norte, além da serra, só podia existirumfabulososegredo, do qual o pai queria afastá-lo. Mas o pescadornemsequer sabia onde ficava o Norte. E nem queria saber, poiseraumhomemprático.
Umdia chegou do Sulumhomemnada parecido com os outrosque Shasta conhecera. Montava umgrandecavalomalhado, de crinaesvoaçante, comestribos e freios de prata. A ponta do elmo saía do centro do seuturbante de seda, e ele usava uma cota de malha. Empunhava uma lança e trazia ao lado uma cimitarra e umescudo de bronze. Seurostoescuronão causou a menorsurpresa a Shasta, poistodos os calormanos tambémsãoescuros. Surpresa, sim, causou-lhe a ondulada barba do homem, pintada de vermelho-carmesim e besuntada de óleoperfumado. Pelapulseira de ouroque o estrangeiro usava, Arriche logo viu que se tratava de um tarcaã, isto é, umsenhor de altalinhagem. Ajoelhando-se diante do cavaleiro, o pescador acenou a Shasta paraque fizesse o mesmo.
O estrangeiro pediu pousadapara a noite, coisaque Arriche jamais teria a coragem de recusar. O que tinham de melhor foi preparadopara a ceia do tarcaã; coube a Shasta, comosempre acontecia quando o pescador recebia alguém, umnaco de pão. Nessas ocasiões costumava dormir ao lado do burro, numa cocheiracoberta de palha. Comoeracedodemaisparadormir, Shasta, quejamais aprendera quenão se deve ouviratrás da porta, foi sentar-se de orelha colada a uma fendaque havia na parede de madeira da cabana. Estava curiosoparasaber o que diziam os adultos. Eis o que ouviu:
- Agora, meuanfitrião - disse o tarcaã -, quero dizer-lhe que estou pensando em comprar-lhe essemenino.
- Meuamo e senhor - respondeu o pescador (e Shasta adivinhou que o pai fazia no momento uma caraambiciosa) -, quepreçopoderiaconvenceresteseuservo a vender-lhe o seuúnicofilho? Porquepreçotornarescravoquem é carne da minhaprópriacarne? É como diz um dos grandespoetas: “O sentimentovalemais do que a sopa, e umfilho é maispreciosoque o diamante.”
- É verdade - respondeu o hóspedecomsecura - masumoutropoetatambém disse: “Quemtentaenganar o sábio, já está tirando a camisaparareceberchicotadas.” Não encha essa bocamurcha de mentiras. É evidentequeessemeninonão é seufilho, pois o seurosto é escurocomo o meu, e o rapazinho é claro e bonitocomo os malditosmasbelosselvagensque habitam as distantesterras do Norte.
- Como é certo o ditado - respondeu o pescador - que diz que “espadanão entra emescudo, mascontra o olho da sabedorianão há defesa!” Saibaentão, meusublimesenhor, que devo à minhaextremapobrezanãoter tido nemmulhernemfilho. Contudo, no mesmoanoemque o Tisroc - queelevivaparasempre! - iniciou o seuaugusto e generosoreinado, numa noite de luacheia, os deuses fizeram a graça de roubar-me o sono. Levantei-me da enxerga e fui tomar o arfresco da praia e contemplar o luarsobre as águas. Foi quando percebi umruído de remos na minhadireção e ouvi umchoromiúdo. Poucodepois, a maré trazia à praia uma canoa, onde estavam apenasumhomem vergado de fome e sede e que parecia ter morrido havia poucosinstantes - poisainda estava quente -, umcantilvazio... e uma criança, queainda vivia. Semdúvida, pensei, essesdesgraçados conseguiram salvar-se dum naufrágio; porgraça dos deuses, o homem matou-se de fome e sedeparamanter a criançaviva, perecendo à vista da terra. Assim, certo de que os deusesnunca deixam de recompensaraquelesque socorrem os infelizes, tocado de piedade, poisesteseuservo é homem de coração...
- Pare comesseselogiosemcausaprópria - interrompeu o tarcaã. - Bastasaberquevocê pegou a criança, e já recebeu com o trabalho do meninodezvezesmais do que o pãoquelhe deu a cadadia. Isto é evidente. O que interessa é o seguinte: quantoquerpelomenino? Estou cheio do seupalavrório.
Arriche respondeu:
- Muitobem o disse, meusenhor: o trabalho do menino tem sido paramim de inestimávelvalor. É importantelevarissoemconta ao ajustarmos o preço. Pois, é claro, se vender o menino, serei obrigado a compraroualugarumoutro, capaz de fazer os mesmostrabalhos.
- Dou quinze crescentesporele - disse o tarcaã.
- Quinze! - bradou Arriche, com uma vozque ficava entre o ganido e o vagido. - Quinze crescentes!? Peloarrimo da minha velhice!? Pela consolação dos meusolhos!? Não zombe das minhasbarbas grisalhas, mesmo sendo o senhorum tarcaã! Meupreço é setenta.
Nessa altura Shasta saiu na ponta dos pés. Tinhaouvido o suficiente; de experiênciaprópria, na vila, sabia bem o que é uma conversa de barganha. Chegava a adivinharque, no fim das contas, Arriche o venderia pormuitomais do que quinze crescentes e muitomenos do que setenta. Mas levariam horasparachegar a essa conclusão.
Não vá pensarque Shasta sentiu o quevocê sentiria, caso ouvisse o seupai negociando a suavendacomoescravo. Primeiro: a vida dele jáerabem parecida com a de umescravo e provavelmente o tarcaã o trataria melhor do que Arriche. Depois, aquela história de ter sido encontrado numa canoa dava-lhe novoânimo e certoalívio. Freqüentementetinharemorsospornãosentirafetopelopescador, pois sabia queumfilho deve amar o pai. Não tendo parentescocom Arriche, tirava umpeso da consciência, chegando até a imaginar: “Quem sabe não serei filho de algum tarcaã... oufilhoaté do Tisroc - queelevivaparasempre! -, oufilho de umdeus?”
Devaneava assim, sentado na relva à beira da cabana. Duas estrelasjá tinham surgido no céu, emborarestos do pôr-do-sol ainda clareassem o ocidente. A uma certadistância pastava o cavalo do estrangeiro, amarrado ao anel de ferro da co-cheira do burro. Como se vagueasse, Shasta caminhou atéele e acariciou-lhe o pescoço. O animal continuou arrancando ervas, semtomarconhecimento.
Uma outraidéia passou pelacabeça do menino: “Seria formidável se esse tarcaã fosse umbomsujeito. Emcasa dos grandessenhores há certosescravosquequasenão fazem nada. Usam roupas bonitas e comem carnetodos os dias. Quem sabe eleme levasse para a guerra e eu tivesse de salvar a vida dele numa batalha; aíeleme daria a liberdade e me adotaria comofilho... Aíeu ia ganharumpalácio, uma carruagem e uma armadura... Mas, e se ele for umhomemterrível e cruel? Pode serqueme mande trabalhar no campo, acorrentado. Ah, se eu soubesse! Apostoque o cavalo sabe. Penaquenãosaibafalar.”
O cavalo levantou a cabeça. Shasta tocou-lhe o focinhoacetinado, dizendo:
- Seria tãobom se você falasse, companheiro! Poruminstante pensou que estava sonhando, pois, com a maiorclareza, emboraemvozbaixa, o cavalo disse:
- Eufalo.
Os olhos de Shasta ficaram quase do tamanho dos olhos do cavalo.
- Mascomo é quevocê aprendeu a falar?
- Psiu! Maisbaixo! Aprendi na minhaterra, ondequasetodos os cavalos sabem falar.
- Onde fica a suaterra?
- Minhaterra é Nárnia... Nárnia, a terrafeliz das montanhas, dos rios, dos vales floridos, das grutascheias de musgo, das florestasque vibram com as marteladas dos anões. Oh, como é leve o ar de Nárnia! Uma horalávalemais do quemilanos na Calormânia.
A descrição de Nárnia acabou num relinchoquemais parecia umsuspiro de pesar.
- Comovocêveioparacá?
- Seqüestro! - respondeu o cavalo. - Roubado, capturado, comovocêacharmelhor. Não passava de umpotro. Minhamãesempreme dizia paranuncair às encostas do Sul, à Arquelândia. Masnãolhe dei ouvidos. Pelajuba do Leão! Estou pagando pelaminhaloucura. Fiquei escravo dos homensessetempotodo, ocultando a minha verdadeira natureza, fingindo que sou mudo e estúpidocomo os cavalos deles.
- Porquenãolhes contou quemvocê é?
- Não faria essa loucura! Se descobrissem que sei falar, seria exibido nas feiras. Passaria a sermais vigiado do quenunca e perderia qualqueresperança de escapar.
- Mas...
- Escute: não vamos perdertempoemconversafiada. Vocêquersaber a respeito do meudono, que se chama Anradin. É umsujeitoruim. Nãoparamim, poisumbomcavalocustaumbomdinheiro. Mas, quanto a você, seria maisfelizmortohoje à noite do queescravo dele amanhã.
- Ah, então vou fugir! - exclamou Shasta, empalidecendo.
- É o que tem a fazer - replicou o cavalo. - Porquenão foge comigo?
- Vocêtambém está pensando emfugir?
- Se você vier comigo... É a nossaoportunidade, entende? Se fujo semumcavaleiro, vãopensarque sou umcavalo perdido e me pegam. Comalguémemcima, há uma chance. É aíquevocê entra. Quanto a você, com essas perninhas (sãoincríveis essas pernas humanas!) não iria longe. Comigo, porém, não há cavalo neste paísquenos apanhe. É aíqueeu entro. A propósito, acho quevocê deve sabermontar...
- Mas é claro - respondeu Shasta. - Pelomenosjá montei o burro.
- Montou o quê} - fungou o cavalocomenormedesprezo. (Nemmesmo chegou a falar, pois os cavalosfalantes ficam com o sotaqueaindamaiscavalarquando sentem raiva.) E continuou: - Em outras palavras, você sabe montarcoisa nenhuma. Isso é pontocontra. Tenho de ensinar-lhe pelocaminho. Jáquenão sabe montar, pelomenos sabe cair?
- Bem, todomundo sabe cair.
- Estou dizendo o seguinte: sabe cair e montar de novo, semchorar, e cair de novo e montar de novo, semficarcommedo de voltar a cair?
- Vou tentar, posso tentar - respondeu Shasta.
- Coitado do bichinho! - falou o cavalo num tommaisbondoso. - Esqueci quevocê é aindaumpotro. Vamos fazer de vocêumexcelentecavaleiro. Presteatenção: comosó partiremos depoisqueaquelesdois pegarem no sono, vamos aproveitar o tempoparatraçarnossosplanos. Meu tarcaã está de viagempara o Norte, para a própria Tashbaan, a grandecidadeonde fica a corte do Tisroc...
- Porfavor - interrompeu Shasta -, porquevocênão disse “queelevivapara sempre”?
- E porquê!? - replicou o cavalo. - Fique sabendo que sou um narniano livre! Porque iria usarlinguagem de escravo? Não quero queeleviva, e muitomenosparasempre. E está na caraquevocê é umhomemlivre do Norte. Vamos acabarcomessepalavreadosulista! Como ia dizendo, o meuhumano está de viagempara Tashbaan, no Norte.
- Isso significa que é melhor a genteirpara o Sul?
- Não acho - respondeu o cavalo. - Elepensaque sou mudo e burrocomo os outroscavalos. Se eu fosse mesmo, no momentoemque ficasse solto iria correndo para o meuestábulo, para o meupasto, lá no palácio dele, no Sul, a doisdias de viagem daqui. É ondeele irá meprocurar. Masnunca passará pelacabeça dele que fui sozinhopara o Norte. Ele pode imaginartambémquealguémnos seguiu atéaqui e me roubou.
- Fabuloso! - exclamou Shasta. - Vamos para o Norte. É para o Nortequeeusempre quis ir a vidainteira.
- Semdúvida - comentou o cavalo. - É a voz do sangue. Vocêparamimsó pode ser nortista. Fale baixo... Já devem estarquase dormindo.
- Acho que vou dar uma olhada - sugeriu Shasta.
- Boa idéia, mas tome muitocuidado.
Estava escuro e quieto; o barulho das ondas Shasta nem notava, depois de ouvi-lo a vidatoda, dia e noite. Não havia luzacesa na cabana. Nem ouviu ruído na frente. Na únicajanela escutou o ronco de sempre do velhopescador. “Engraçado”, pensou, “se tudocorrerbem, é a últimavezque escuto esse guincho”. Prendendo a respiração, sentindo umpouco de pena (uma penaquenãoeranada, perto da alegria), Shasta deslizou pelarelvaaté a cocheira do burro, foi tateando até o lugaronde estava escondida a chave, abriu a porta e achou o arreio e as rédeas do cavalo. Beijou o focinho do burro: “Desculpe pornãopoder levá-lo.”
- Atéqueenfim - disse o cavalo, quando Shasta voltou. - Já estava meiopreocupado.
- Fui buscarsuascoisas na cocheira. Como é que a gente coloca isto?
Poralgunsminutos Shasta agiu cautelosamente, evitando tinidos, enquanto o cavalo ia dizendo: “Aperte umpoucomais a barrigueira.” “Tem uma fivelaaímaisembaixo.” “Encurte umpoucomais os estribos.” Porfim disse:
- Você vai usarrédeas, massóparamanter as aparências. Enrole a ponta na sela, bemfrouxa, paraqueeu possa mexer à vontadecom a cabeça. Escute: nãotoquenunca nestas rédeas!
- Mas, então, paraque serve isso?
- Emgeral, paraqueme dirijam. Mas, comoquem vai dirigir esta viagem sou eu, porfavornão mexa nisso aí. Aliás, maisum aviso: não se agarre na minhacrina.
- Mas espere aí: se não posso segurarnem nas rédeasnem na crina, onde vou meagarrar?
- Emseusjoelhos: é o segredo de quem sabe montar. Pode apertar o meucorpocomo quiser; sente-se bemaprumado, cotovelosparadentro. Aliás, o quevocê fez com as esporas?
- Coloquei nospés, é claro. Issoeu sei.
- Poisentão tire essas esporas dos pés e guarde na sacola. Talvez possa vendê-las em Tashbaan. Pronto? Acho quejá pode subir.
- Puxa! Você é muitoalto - reclamou Shasta, depois da primeiratentativa de montar.
- Sou umcavalo, sóisso - foi a resposta. - Pelojeitoquevocêmonta, diriam que sou ummonte de capim. Isso, melhorou. Agüente firme e não se esqueça dos joelhos. Engraçado! Pensarqueeu, que conduzi cargas de cavalaria e venci tantas corridas, levo agora na sela uma espécie de saco de batatas! Deixe pralá e vamos emfrente.
Comgrandeprecaução, foram inicialmente na direçãooposta, portrás da cabana, onde passava umriacho a caminho do mar, tendo o cuidado de deixar na lamapegadasque apontavam para o Sul. Depois pegaram umtrecho da margemcoberto de seixos e seguiram para o lado do Norte. A passo, voltaram pelocaminho da cabana, passaram pelaárvore e peloestábulo do burro, deixaram o riacho e sumiram na noitequente.
Tomaram a direção das colinas e chegaram à cristaque marcava o fim do mundoconhecidopor Shasta; estenadavia à frente, a nãoser uma relvaque parecia nãoterfim, umcampoabertosemcasa alguma.
- Quebeleza de lugarparaumgalope! - sugeriu o cavalo.
- Não, porfavor, aindanão. Porfavor, cavalo. Ei, aindanão sei o seunome.
- Meunome é Brirri-rini-brini-ruri-rá.
- Não vou aprenderissonunca. Posso chamá-lo de Bri?
- Bem, se não consegue dizermais do queisso... E o seunome?
- Shasta.
- Opa! Nomezinho complicado! Mas vamos ao galope. É bemmaisfácil do que o trote, poisvocênão tem de subir e descer. Aperte os joelhos, olhofirmeentre as minhasorelhas. Não olhe para o chão. Se acharque vai cair, aperte mais os joelhos, empine-se mais. Pronto? Já! Para Nárnia e para o Norte!
UMA AVENTURA NA NOITE
Eraquasemeio-diaquando Shasta acordou, na manhãseguinte, com uma coisacálida e macia mexendo no seurosto. Ao abrir os olhos deu com a caracomprida de umcavalo. Lembrou-se dos acontecimentosemocionantes da véspera e sentou-se. Sentou-se e gemeu.
- Ai! Bri, estou tododolorido. Nem dá paramexer o corpo.
- Bomdia, baixinho. Achei mesmoquevocê podia estarmeio emperrado. Não pode ser dos tombos: caiu somente umas dezvezes, e muitobem, emcima de relvastão macias queaté dava gosto. Você está sentindo é a própriacavalgada. Quetal se comesse alguma coisa? Pormim, já estou satisfeito.
- Comercoisa nenhuma, deixe issopralá, deixe tudopralá. Mal posso memexer!
Mas o cavalo continuou a cutucá-lo bem de levecom o focinho e o casco; o jeito foi levantar-se. Shasta olhou emvolta: atrás deles havia umpequenobosque; à frente, a relvapintada de floresalvas descia até a beira de umpenhasco. Lá de baixo, bemlonge, chegava amortecido o barulho das ondas. Shasta nuncatinhavisto o mar de tãoalto e nem havia imaginado queele pudesse ter tantas cores. A costa estendia-se de cadalado, umcabodepois do outro, e nas pontas via-se a espumarada explodircontra os rochedos, sembarulho, porcausa da distância.
Gaivotas revoavam. O diaeraardente. Mas a maiordiferençapara Shasta estava no ar. Faltava qualquercoisa no ar. Acabou descobrindo o queera: faltava cheiro de peixe. Essearnovoeratãodelicioso, que fez de repentecomquetoda a suavidapassada ficasse distante. Chegou a esquecerporummomento os machucados e os músculosdoloridos.
- Bri, você falou algosobrecomida?
- Falei. Deve haver alguma coisa nas sacolasquevocê pendurou naquela árvore, quando chegamos.
Examinaram as sacolas e o resultado foi animador: umpastel de carne, sóqueum pouquinho rançoso, figossecos, umpedaço de queijo, umfrasco de vinho, e dinheiro - quarenta crescentes ao todo, mais do que Shasta já havia visto a vidainteira.
Enquanto o menino sentou-se comtodo o cuidado, recostando-se numa árvoreparacomer o pastel, Bri deu algumas bocanhadas na relva, sópara fazer-lhe companhia.
- Não será roubogastaressedinheiro? - perguntou Shasta.
- É verdade - respondeu o cavalo, com a bocacheia de capim. - Nem pensei nisso. Umcavalolivre, umcavalofalante, nãorouba... Masnão vejo malalgum, francamente. Éramos prisioneiros num paísinimigo. O dinheiro é a nossapresa de guerra. Além disso, de quejeito vamos arranjarcomidasemdinheiro? Você é humano e não vai querercomidanatural, comocapim e aveia, não é?
- Capim e aveianão dá pé, Bri.
- Já experimentou?
- Já. Não desce, de jeitonenhum.
- Sãotão esquisitões os humanos!
Quando Shasta terminou a refeição (a melhorquejá tivera), Bri disse que iria dar uma boa rolada na relva. E assim o fez, colocando-se de pernaspara o ar:
- E uma delícia, uma delícia! Devia fazer o mesmo, Shasta. Refrescaque é uma beleza.
Shasta caiu na risada, dizendo:
- Você fica tãoengraçado de pernaspara o ar!
- Engraçadocoisa nenhuma - protestou Bri. E levantou-se de repente, erguendo a cabeça e fungando umpouco. - E mesmoengraçado, Shasta?
- Muito. Isso tem alguma importância?
- Vocêachaqueumcavalofalante faz isso? Será que aprendi issocom os cavalosmudos? Vai sermuito desagradável se descobrirem em Nárnia que adquiri maushábitos. Queacha? Pode falarcomtoda a franqueza. Achaque os verdadeiros cavalos, os falantes, rolam na relva?
- Como é que posso saber? Eu é quenão ia ligarparaisso, se fosse você. Temos primeiro é de chegarlá. Sabe o caminho?
- Sei o caminhopara Tashbaan. Depois é o deserto. Masnão se assuste, a gente dá umjeito no deserto. Lá teremos a visão das montanhas do Norte. Ninguémnossegura. Imagine só! Para Nárnia e para o Norte! Masbemque gostaria de játerpassadopor Tashbaan. Nossoproblemasão as cidades.
- Podemos evitar Tashbaan?
- Só se percorrêssemos umlongocaminhopordentro, quepassaporterras cultivadas e boas estradas, masnão sei o caminho. Não, devemos ir ao longo da costa. Aquiemcimasó encontraremos carneiros, coelhos, gaivotas e algunspastores. Aliás, quetal se a gente fosse indo?
As pernas de Shasta doíam muito, mas colocou os arreios e montou. Bondosamente, Bri marchou comdelicadeza a tardeinteira. Quando baixou o crepúsculo, chegaram porveredasíngremes a umvaleonde havia umvilarejo. Shasta apeou e entrou na vilaparacomprarpão, cebola e rabanete. O cavalo deu a voltapelocampo, indo encontrar o menino do outrolado. Passaram a proceder desse modo, uma noitesim, outranão.
Eram grandesdiaspara Shasta, hojemelhor do queontem, à medidaqueseusmúsculos se enrijeciam e as quedas eram menosfreqüentes. Mesmoassim Bri costumava falarqueele parecia umsaco de farinhaemcima da sela. E ainda dizia:
- Mesmoquenão tivesse perigoalgum, confessoque teria vergonha de servistocomvocê.
Apesar das palavras duras, Bri erauminstrutorpaciente. Ninguémensinaequitaçãomelhor do queumcavalo. Shasta aprendeu a trotar, a galopar, a saltar e a manter-se na sela, mesmoquando Bri sofreava o passo subitamente ou negaceava para a esquerdaoupara a direita; coisas, dizia, quesão necessárias numa batalha.
Naturalmente, Shasta pedia-lhe que contasse as guerras de que havia participado com o tarcaã. Bri falava de marchas forçadas, de caudalososrios vadeados, de embates de cavalarias inimigas, quando os cavalos guerreiam tantoquanto os homens, sendo todoselesimpetuososgaranhões, treinados paramorder e escoicear. Masnemsempre queria falar de guerra.
- Nãotoque neste assunto, rapaz. Eram guerras do Tisroc e nelas entrei comoescravo, comoumcavalomudo. Espere paramever nas guerras de Nárnia, onde combaterei comoumcavalolivreentre o meuprópriopovo! Aí, sim, teremos guerrasque merecem ser contadas. Para Nárnia! Para o Norte! Brá-rá-rá! Bru-ru!
Shasta logo aprendeu a preparar-se paraumgalopequando ouvia Bri bradar desse jeito.
Depois de viajarsemanas e semanas, passando porbaías e enseadas, rios e vilas, numa noite de luar cruzaram uma planíciecom uma floresta à esquerda. O mar, ocultopordunas, ficava à direita, à mesmadistância. De repente Bri estacou.
- Algumproblema?
- Psiu! - respondeu Bri, esticando o pescoço e contraindo as orelhas. - Está ouvindo? Presteatenção.
- Parece barulho de outrocavalo, correndo entrenós e a mata.
- E outrocavalo. E issonãomeagrada.
- Quem sabe é umfazendeiro chegando maistarde?
- Qualnada! Não é umfazendeiro. Nem é cavalo de fazendeiro. Não percebe pelosom? Tem classe. E está sendo montadoporalguémque sabe mesmomontar. Vou lhedizer o que é, Shasta: há um tarcaã na orla da mata. Não está montadoemseucavalo de guerra... é muitoligeiroparaisso. É uma égua de raça, é o quelhe digo.
- Agora parou, seja lá o que for.
- Certo, Shasta. E porqueele pára quando paramos? Meuamigo, alguém está nos seguindo, tenho certeza.
- Que vamos fazer? - perguntou Shasta num sussurro. - Achaqueele está vendo e ouvindo a gente?
- Vamos ficarquietos. Há uma nuvemque se aproxima; vamos esperarque a lua fique encoberta. Depois ganharemos a praia no maiorsilêncio. Na pior das hipóteses, poderemos esconder-nos atrás das dunas.
Quando a nuvem ocultou a lua, saíram, primeiro a passo e depois num trotemanso.
A nuvemeramaior do que parecia, e a noite ficou bemescura. Quando Shasta julgou quejá estavam perto das dunas, umlongorugido se fez ouvir na escuridão à frente, umrugido melancólico e selvagem, quequase fez o coração do menino sair-lhe pelaboca. Na mesmahora Bri voltou a galoparpara o lado da terra.
- Que é isso?
- Leões! - respondeu Bri, semmudar a passadaouvirar a cabeça. Depois de umestirão, chapinharam dentro de umriachoraso e Bri deu uma parada. Suava e tremia.
- A água deve ter confundido o faro da fera suspirou Bri ao recuperarumpouco o fôlego. - Podemos ir andando. Shasta, estou comvergonha de mim. Estou tãoapavoradoquantoumcavalocomum dos calormanos. Verdademesmo. Nãome sinto umcavalofalante. Não dou a menorimportânciaparaflechas e lanças, masnão suporto... aquelas criaturas. Acho que vou darmaisumtrote.
Umminutomaistarde galopava novamente, pois o rugido reaparecera, desta vez à esquerda, vindo da mata.
- Sãodois! - gemeu Bri.
Depois de galoparem algunsminutossemque houvesse outrosrugidos, Shasta falou:
- Aqueleoutrocavalo está galopando perto de nós.
- M... melhor - arquejou Bri. - Tarcaã nele... espada... pro... protege a gente.
- Mas Bri! A gente vai morrertambém, se nos pegarem. Eu, pelomenos. Vãomeenforcarcomoladrão de cavalo.
Sentia menosmedo de leão do que Bri, poisnunca havia encontrado um.
Bri apenas fungou, encostando-se maispara a direita. Estranhamente, o outrocavalo pareceu encostarpara a esquerda; e assim, empoucossegundos, o espaçoentre os doistinha ficado bemmaior. Foi quando ouviram maisdoisrugidos de leão, um à direita, outro à esquerda. Os cavalos reaproximaram-se. Os rugidos eram terrivelmente próximos, e as feras pareciam acompanharperfeitamente o galope dos cavalos. A nuvem descobriu a lua e tudo se iluminou como se fosse diaclaro. Os doiscavalos e os doiscavaleiros corriam quase de cabeças coladas, como se estivessem disputando uma corrida. Aliás (como disse Bri maistarde), nunca se viu na Calormânia uma corridatãosensacional.
Shasta já se dava por perdido e começava a pensar se os leões matam de uma vezou se brincam com a vítimacomo faz o gatocom o rato. Dói muito? Ao mesmotempo (isso às vezes acontece nospioresmomentos) observava tudo. Notou que o outrocavaleiroera uma pessoapequena e delgada, vestindo uma cota de malha, na qual se refletia o luar. Montava maravilhosamentebem e nãotinhabarba.
Alguma coisalisa e brilhante estendia-se diante deles. Antesque Shasta tivesse tempo de pensar, suaboca estava cheia de águasalgada. A coisabrilhanteeraumcompridobraço de mar. Ambos os cavalos nadavam, e Shasta sentia a águanosjoelhos. Ao ouvirumrugido enraivecido, olhou paratrás, e percebeu uma enormefigurapeluda agachada à beira d’água - só uma. Achou que o outroleão desaparecera.
O leão parecia acharque as presasnão valiam umbanho: não fez a menortentativa de continuar a perseguição. Os doiscavalos, lado a lado, estavam agora no meio do braço de mar, e a praiaoposta podia servistacomnitidez. O tarcaã nada dissera ainda. Shasta imaginava o que iria falarquando chegassem do outrolado. Precisava inventar uma história. De repente, duas vozes falaram a seulado.
- Quecansaço! - disse uma voz.
- Bicocalado, Huin! - disse a outra.
“Estou sonhando”, pensou Shasta. “Sou capaz de jurarqueaquelecavalo falou.”
Daí a pouco os cavalosjá andavam emterrasobreseixos, a água escorrendo de seuscorpos. O tarcaã, paraespanto de Shasta, não mostrou o menor desejo de fazerperguntas. Nemmesmo olhou paraele; só manifestava a firmeintenção de manter o cavaloemfrente. Bri, no entanto, chegou paraperto do outroanimal, dizendo:
- Bru-ru-rá! Pare aí. Não adianta fingir, madame. Ouvi vocêfalar. E uma éguafalante, uma égua de Nárnia.
- Que tem vocêcomisso, se ela é de Nárnia? - disse o estranhocavaleirocomferocidade, agarrando-se ao punho da espada. Mas a voz revelou a Shasta uma novidade.
- Ora, vejam! É uma menina, só uma menina!
- E o que tem vocêcomisso, se sou só uma menina? Você é sóummenino: um meninozinho maleducado... Na certaumescravoque roubou o cavalo do dono.
- Tem certeza? - disse Shasta.
- Não se trata de umladrão, tarcaína - disse Bri. - Se houve roubo, quem roubou o menino fui eu. Quanto a nãoternadacomisso, não deveria esperarqueeu cruzasse por uma dama de minhaprópriapátria, empaísestrangeiro, semlhedirigir a palavra. Nadamaisnatural, creio.
- Também acho issomuitonatural - disse a égua.
- Acho quevocê deve é ficarcalada, Huin - disse a menina. - Veja sóquetrapalhadajá arranjou!
- Não sei de nenhuma trapalhada - disse Shasta. - Pode sumir a horaque quiser. Não vamos segurarninguém.
- Claroquenão.
- Como brigam esseshumanos! - falou Bri para Huin. - Sãoteimososcomo uns burros. Vamos ver se nósdois podemos conversardireito. Será a suahistóriaigual à minha? Apanhada na juventude... anos de escravidãoentre os calormanos?
- É verdade - respondeu a éguacomumrelincho.
- E talvezagora... a fuga?
- Diga a essesujeito, Huin, paranãometer o narizondenão é chamado - disse a menina.
- Eunão, Aravis - falou a égua, botando as orelhasparatrás. - Esta fuga é minhatambém, nãoapenassua. Além disso, tenho absolutacerteza de queumnobreguerreiro, comoestecavalo, será incapaz de trair-nos. Estamos tentando fugirpara Nárnia.
- Nóstambém - respondeu Bri. - Já devia ter imaginado isso. Ummeninoemfarrapos, montando - ou tentando montar - umcavalo de guerra na calada da noite, sópoderiaser uma fuga. E uma tarcaína de altalinhagem, metida na armadura do irmão e loucaparaqueninguém se metacomela, se issonão é meiosuspeito podem mechamar de cavalo de circo.
- Pois, então, muitobem! - disse Aravis. - Adivinhou! Estamos fugindo. Estamos tentando chegar a Nárnia. E daí?
- Bem, nesse caso, o quenos impede de irjuntos? - disse Bri. - Estou certo, madame Huin, de que aceita a proteçãoque poderei oferecer-lhe durante a jornada...
- Querparar de falarcom a minhamontaria e dirigir-se a mim? - protestou a menina.
- Queira desculpar, tarcaína - respondeu Bri, comum ligeiríssimo tremor de orelha -, masisso é conversa de calormanos. Somos narnianos livres, Huin e eu; e acho que, se você está fugindo para Nárnia, também desejará o mesmo. Neste caso, Huin não é mais a suamontaria. Podemos atédizerquevocê é a humana de Huin.
A menina abriu a bocapararespondermas desistiu. Evidentementeaindanãotinhavisto a coisasobesseaspecto.
- De qualquermodo - falou, depois de uma pausa -, não vejo muitavantagemem irmos juntos. Será queassimnão chamaremos mais a atenção?
- Menos - respondeu Bri.
- Ora, vamos juntos - disse a égua. - Vou-me sentirmuitomelhor. E, além disso, nemsequer estamos certas do caminho a seguir.
- Brí - interveio Shasta -, é melhor deixá-las. - Está se vendo quenão desejam a nossacompanhia.
- Pelocontrário - disse Huin.
- Escute aqui - disse a menina. - Nãome importo de ircomvocê, Sr. Cavalo de Guerra... Mas, e o menino? Como vou saber se ele é ounão é umespião?
- Porquenão diz logoquenão sou digno da suacompanhia? - perguntou Shasta.
- Calma, Shasta - disse Bri. - A dúvida da tarcaína é muitorazoável. Respondo pelomenino, tarcaína. Tem sido fiel e amigo. Só pode ser de Nárnia ou da Arquelândia.
- Bem, vamos juntos. - Mas Aravis nada disse para Shasta; eraóbvioque desejava somente a companhia de Bri.
- Magnífico! - exclamou Bri. - Agora, que a águanos defende daqueles pavorososbichos, quetal se os doishumanos tirassem as nossas selasparaumbomdescanso? Precisamos conversarsobre as nossas histórias.
Livres das selas, os cavalos comeram umpouco de capim, enquanto Aravis retirava do seu
alforje maravilhosas coisas de comer. Mas Shasta, amuado, recusou: “Não, obrigado, não estou comfome.” Tentou manter uma poseimportante e indiferente, maschoupana de pescadornão é lugarmuito adequado para uma criançaaprender a fazerpose: o resultado foi umfiasco.
Quando percebeu que a suaencenaçãonão estava fazendo o menorsucesso, ficou aindamaisamuado e semjeito. Os cavalos, pelocontrário, estavam se dando às milmaravilhas. Relembravam os mesmoslugares de Nárnia - “os relvados do Dique dos Castores”- e acabaram descobrindo que eram meioaparentados. Isso agravou aindamais a situação dos humanos, atéque Bri acabou dizendo:
- Agora, tarcaína, conte-nos a suahistória. E não tenha pressa... Estou me sentindo tãobem...
Aravis não fez cerimônia. Sentou-se quaseimóvel e começou a falar, num tom de voz e num linguajarbemdiferentes. Pois acontece o seguinte: na Calormânia, aprende-se a contar uma história (seja ela verdadeira ou inventada), assimcomovocê aprende na escola a fazerredações. A diferença é que as pessoas gostam de ouvirhistórias, masnunca soube de alguémque gostasse de redações.
ÀS PORTAS DE TASHBAAN
Disse a menina:
- Meunome é Aravis Tarcaína e sou a únicafilha de Kidrash Tarcaã, que é filho de Rishti Tarcaã, filho de Kidrash Tarcaã, filho de Ilsombreh Tisroc, filho de Ardeeb Tisroc, que descendia diretamente do deus Tash. Meupai é o senhor da Província de Calavar, e lhe é concedido o direito de permanecercalçadoquando está na presença do próprio Tisroc - queelevivaparasempre! Minhamãe - que chova sobreela a bênção dos deuses - é falecida, e meupai casou-se pelasegundavez. Um de meusirmãos pereceu num combatecontra os rebeldes, e o outro é ainda uma criança. Sucede que a esposa do meupai, minhamadrasta, me odiava, e escuroera o sol a seusolhosenquanto morei na casapaterna. Assimposto, ela persuadiu o meupai a prometer-me emcasamento a Achosta Tarcaã. Acontece queesse Achosta é de origem plebéia, apesar de ter obtido, nestes últimosanos, o favor do Tisroc - queelevivaparasempre! -, porartes de lisonja e mausconselhos; sóassim foi feito tarcaã e senhor de muitas cidades, e não é impossívelque seja escolhido grão-vizir, quandomorrer o atual. Além do mais, tem pelomenos uns sessenta anos de idade, é corcunda e parece umorangotango. Mesmoassim, meupai, porforça da fortuna e do poder desse Achosta, e persuadido pelamulher, enviou mensageirosqueme ofertaram emcasamento; a oferta foi aceita, e Achosta comprometeu-se a casarcomigoainda no verão deste ano.
“Quando as novas chegaram a meusouvidos, escuro se fez o sol a meusolhos; recolhi-me ao leito e chorei duranteumdia. No segundodia, no entanto, levantei-me e lavei o rosto; mandei selar a minhaégua Huin e saí sozinha a cavalgar, levando comigo a adagaafiadaquemeuirmão usara na guerra. Quando perdi de vista a mansão de meupai e cheguei a umbosquerelvado, semmoradia de homem, apeei e retirei a adaga. Abri as minhasvestesonde julgava ser o caminhomaiscerto ao coração e implorei a todos os deusesqueme conduzissem parajunto de meuirmão, tãologome fosse. Fechei os olhos, cerrei os dentes, preparando-me paraenterrar a adaga no peito. Antesque o fizesse, esta égua falou, com a mesmavoz das filhas dos homens. Falou e disse: “Minhaama, não se destrua, pois, se viver, ainda poderá alcançar o favor do destino; mas os mortossãoiguais a todos os mortos.”
- Não falei tãobonitoassim - murmurou a égua.
- Silêncio, madame, silêncio - interferiu Bri, que estava apreciando muito a história. - Ela está narrando no maispuroestilo calormano, e nenhumpoetaoficial da corte do Tisroc o faria melhor. Rogo-lhe que prossiga, tarcaína.
- Quando ouvi a linguagem dos homens utilizada pelaminhaégua - continuou Aravis -, disse de mimparamim: “O pavor da morte desmantelou a minharazão e me faz presa de ilusões.” E cobri-me de vergonha, poisninguém da minhalinhagem deve temer a mortemaisque à picada de ummosquito. Voltei-me, portanto, ao sacrifício; mas Huin aproximou-se, colocando a cabeçaentremim e a adaga, alentando-me com as razõesmaisexcelentes, ralhando comigocomo faz a mãecom o filho. Dessa feitameuespanto foi tãograndeque esqueci de matar-me, e esqueci-me de Achosta, dizendo: “Onde aprendeu, bicho, a usar a linguagem das filhas dos homens?” E Huin contou-me o que é do conhecimento de toda esta assembléia, queem Nárnia há bichosque falam. E narrou aindacomo foi roubada de lá, ainda no verdor dos anos. Falou-me também das águas de Nárnia, dos castelos, dos grandesnavios, atéqueeupróprialhe disse: “Emnome de Tash, de Azaroth e de Zardena, Senhor e Senhora da Noite, sinto emmimgrandeaspiração de conhecer Nárnia.” Ela respondeu: “Minhaama, em Nárnia seria feliz, pois, nessa terra, jovem alguma é obrigada a casar-se contra a vontade.” E, depois de termos conversado durantelogotempo, a esperança retornou-me ao coração e alegrei-me de estarviva. Planejamos a nossafuga, e assim o fizemos. Voltamos para a casapaterna e vesti as minhasroupasmaisalegres; dancei e cantei diante do meupai, fingindo-me encantada com o matrimônio. Disse-lhe ainda: “Pai-meu-e-deleite-dos-meus-olhos, conceda-me a permissão de ir aos bosquescom uma donzelaparaqueeu, durantetrêsdias, possa fazersecretossacrifícios a Zardena, como é o costume.” Ele respondeu: “Filha-mi-nha-e-deleite-dos-meus-olhos, queassim o faça.” Assimqueme retirei, procurei imediatamente o maisvelho dos escravos do meupai, escribaseu, queme pusera sobre os joelhos na tenrainfância e me amava maisque ao ar e à luz. Sobjuramento de segredo, pedi-lhe queme escrevesse uma carta. Ele chorou, implorando-me que mudasse de resolução, mas acabou dizendo: “Ouvir é obedecer.” E fez o queeu pedira. E selei a carta e escondi-a no seio.
- Quecartaera essa? - perguntou Shasta.
- Fique calado, jovem - disse Bri -, ouvocêestraga a história. Ela fará referência a essa carta no momento adequado. Prossiga, tarcaína.
- Chamei a servaque deveria acompanhar-me ao bosquepara o sacrifício e pedi-lhe queme despertasse bemcedo na manhãseguinte. Folgamos e dei-lhe vinhoparabeber, ao qual havia adicionado coisasque a fariam dormir uma noite e umdia. Assimque adormeceram todos os serviçais, levantei-me e vesti a armadura do meuirmão, conservada no meuquartoemsuamemória. Coloquei no cintotodo o dinheiro de que dispunha e algumas jóias, abastecendo-me igualmente de alimentos. Eumesma selei a égua e iniciei a cavalgada no segundoestágio da noite. Nãome dirigi para os bosques, aondemeupai acreditava quedecertoeu iria, mas tomei o caminho do norte e do oriente, queleva a Tashbaan. Portrêsdiaspelomenosmeupainãome buscaria, ludibriado pelas minhaspalavras. No quartodia chegamos à cidade de Azim Balda, que fica no cruzamento de muitas estradas. De lá o correio do Tisroc - queelevivaparasempre! - parteemvelozescavalosparatodos os recantos do império. É privilégio dos maisaltos tarcaãs utilizaressecorreio. Procurei então o mensageiro-chefe, no Correio Imperial de Azim Balda, e disse-lhe: “Despachante de mensagens, eisaqui uma carta do meutio Achosta Tarcaã para Kidrash Tarcaã, Senhor de Calavar. Tome cincocrescentes e que a mensagem chegue ao destinatário.” Respondeu o mensageiro: “Ouvir é obedecer.” Essa cartaforaescritacomo se fosse de Achosta, e o seuconteúdoera o seguinte: “De Achosta Tarcaã para Kidrash Tarcaã, comreverência e votos de paz. Emnome de Tash, o irresistível, o inexorável. Que seja do vossoconhecimentoque, ao empreenderminhajornadaaté a vossamansão, a fim de satisfazer o contrato de matrimônioentremim e a vossafilha, Aravis Tarcaína, foi da vontade do destino e dos deusesqueeu deparasse comela na floresta, já ao fim dos ritos e sacrifícios a Zardena, de acordocom o costume das donzelas. Ao saberquemera a jovem, transtornado porsuabeleza e compostura, incendiei-me nas labaredas do amor, e pareceu-me que o Sol ficaria escuro aos meusolhos, caso as nossas bodasnão se realizassem naquele mesmomomento. Assim sendo, dispus os sacrifícios exigidos e casei-me com a vossafilha na horamesmaemque a encontrei. Comela, pois, regressei ao meular. Ambos rogamos agorapelavossaurgentepresença, a fim de que possamos desfrutar da graça do vossorosto e da vossapalavra. E paraqueme oferteis igualmente o dote de vossafilha, o qual, emface de meuscompromissos e de minhasgrandesdespesas, solicito semdelongas. E como somos, vós e eu, comodoisirmãos, bemcerto estou de quenão provocará a vossaira o intempestivo das minhasnúpcias, atopeloqual se responsabiliza inteiramente o amorqueme moveu à vossafilha. Recomendo-vos à proteção de todos os deuses”. Feitotudoisso, saí a galope de Azim Balda, semtemerqualquer perseguição, certa de quemeupai, ao receber aquela carta, enviaria mensagem a Achosta, ou iria pessoalmente; assim, quando a verdade fosse descoberta, estaria eualém de Tashbaan. Esta é a minhahistóriaaté a noiteemque fui perseguida pelosleões e me encontrei comvocêsemumbraço de mar.
- E que aconteceu com a moça... a moça do vinhocomcoisas? - perguntou Shasta.
- Deve ter sido espancada porter dormido atétarde - disse Aravis, calmamente. - Tratava-se de uma espiã da minhamadrasta. Se bateram nela, ótimo.
- Muitobonito!
- Fique sabendo quenada do que fiz tinhaporobjetivoagradar a você - falou Aravis.
- Mas há uma outracoisaquenão entendo - replicou Shasta. - Você é muitonovaparacasar! Deve sermaisoumenos da minhaidade! Como é que é essa história de casar?
Aravis não deu atenção, mas Bri interveio:
- Shasta, não demonstre a suaignorância. É na idade de Aravis que as grandesfamílias tarcaãs casam as moças.
Shasta ficou vermelhinho (masninguém notou, poisjá estava bastanteescuro) e encabulou-se.
Aravis pediu a Bri que contasse a suahistória. Shasta achou que o cavalo exagerou umpouco no capítulo dos tombos e do cavaleiroaprendiz. Bri divertiu-se comisso, mas Aravis permaneceu séria. E foram todosdormir.
No diaseguinte prosseguiram a viagem. Shasta não estava satisfeito, poisagora Bri e Aravis é que trocavam idéias e recordações. Bri havia morado pormuitotempo na Calormânia e sempre vivera entre tarcaãs e cavalos de tarcaãs, conhecendo muitas pessoas e lugaresfamiliares a Aravis. Ela dizia o tempotodocoisas deste tipo: “Mas se você esteve na Batalha de Zalindreh deve tervisto o meuprimo Alimash.” E Bri respondia: “É claro, Alimash; mas Alimash eraapenascomandante das carruagens, entende, e eunãotinhamuitarelaçãocomcavalos de carruagem. Cavalaria é outracoisa! Maseraumnobrecavaleiro. Encheu a minhasacola de açúcardepois da tomada de Tisbé.” Ou Bri dizia: “Passei aqueleverão no lago de Bambulina.” E Aravis: “Ó, Bambulina! Tenho uma amigalá, Lasaralina Tarcaína. Quebeleza de lugar! Aquelesjardins! E o Vale dos MilPerfumes!”
Bri nãotinha o propósito de deixar Shasta de fora, maseste às vezes chegava a pensarisso. Pessoasque conhecem muito as mesmas coisassãoquaseincapazes de mudar de assunto, e quemnão está pordentro se sente deixado de lado.
Huin, meiotímida na presença de umgrandecavaloguerreiro, pouco falou. E Aravis não dirigiu a palavra a Shasta.
E jáerahora de pensaremcoisasmaisimportantes. Aproximaram-se de Tashbaan. Surgiam vilasmaiores e maispessoas nas estradas. Viajavam agoraquase a noitetoda e escondiam-se durante o dia. Sempreque paravam, falavam e discutiam sobre o que deveriam fazer ao chegar a Tashbaan. Tinham adiado o problema, masagoranãotinhamaisjeito. Durante as discussões, Aravis foi ficando um pouquinho, sóum pouquinho, maisamistosacom Shasta. Fazerplanosemconjuntoajuda a melhorar as nossas relaçõescom outras pessoas.
Para Bri, o principalagoraeramarcarumlugarpara se encontrarem, caso, porazar, tivessem que se separar ao atravessar a cidade. O melhorlugar, a seuver, era a orla do deserto, onde se erguiam as Tumbas dos AntigosReis. Explicou:
- As tumbassãopedrasenormes, parecendo colméias gigantescas; ninguém pode se enganar. E o melhor de tudo é que os calormanos não se aproximam do lugar, temendo os morcegosvampiros.
Aravis queria saber se de fato os vampiros existiam ounão. Bri respondeu que, sendo um narniano autêntico, não acreditava nessas baboseiras. Shasta afiançou quetambémelenãoeraum calormano e, porisso, não dava a mínimaparataislendas de vampiros. Nãoerabemverdade. Mas Aravis ficou bastante impressionada comisso (umpouco chateada também) e afirmou quepouco se importava com os morcegos, fossem quantos fossem.
Assim ficou decididoque as tumbas serviriam de lugar de encontro, do lado de lá de Tashbaan. Todosjá achavam que estava tudomuitobemquando Huin, humildemente, sugeriu que o problemaverdadeironãoerasaberaonde iriam depois de passarpor Tashbaan, mascomo passariam por Tashbaan.
- Vamos deixaristoparaamanhã, madame - falou Bri. - É hora de dormirumpouco.
Masnão foi fácildecidir. Aravis sugeriu inicialmenteque cruzassem o rio a nadodurante a noite, sementrar na cidade. Bri tinhadoisargumentoscontraisso. Primeiro: o rioeralargodemaispara Huin cruzá-lo a nado, especialmente carregando uma pessoa. (Achava queeralargodemaistambémparaele, massobreisto fez ligeiras referências.) Segundo: se houvesse umnavio passando e alguém os visse, estaria tudo perdido.
Shasta opinou que cruzassem o rioalém de Tashbaan, ondetalvez fosse maisestreito. Bri teve de explicarqueali existiam parques e casas de veraneio, onde moravam tarcaãs e tarcaínas. Nãopoderiahaverlugarmelhor se a intenção fosse entregar Aravis aos bandidos.
- Precisamos usarumdisfarce - disse Shasta. Huin disse que, no seu modesto entender, o melhor seria atravessar a cidade de porta a porta, pois é maisfácilpassarsemser notado na multidão. Mas aprovava também a idéia do disfarce.
- Os doishumanos devem vestir-se de trapos, como camponeses ouescravos. A armadura de Aravis e as selas devem ser metidas emtrouxas e colocadas emcima de nós; assimtodos pensarão que somos animais de carga.
- Minha boa Huin! - interveio Aravis, quasecomdesprezo. - Vocêachaquealguém tomaria Bri porumanimal de carga? Não há disfarcepossível, minhaquerida!
- Creio que sou da mesmaopinião - disse Bri, fungando e repuxando a orelhaum pouquinho paratrás.
- É, sei que o meuplanonão é tãobomassim - concordou Huin -, mas acredito que seja a nossachance. Quanto a nós, eqüinos, já faz tantotempoquenão recebemos cuidados, quenem parecemos ser de tãoaltalinhagem; eu, pelomenos, sei quenão. Se a gente se lambuzasse de lama e entrasse na cidade de cabeçabaixa, quasesemlevantar os cascos, talveznão fôssemos notados. Também nossas caudas têm de sercortadasmais curtas: não certinhas, entendem, mastudo esfiapado...
- Minha boa senhora - disse Bri -, já imaginou como seria desagradável chegar a Nárnia nessas condições?
- Bem - respondeu Huin comhumildade (era uma éguamuitosensata) -, o importantemesmo é chegar a Nárnia.
Apesar dos pesares, o plano de Huin acabou sendo adotado. Envolvia certosriscos. Uma fazenda ficou semalgunssacos de linhagem; outra, semumrolo de corda. Os andrajos masculinos de Aravis tiveram de ser comprados numa vila. Shasta os trouxe emtriunfo no fim da tarde, enquanto os outros o aguardavam na mata de uma serra - a última, pois na outravertente começava a descidapara Tashbaan.
À noite galgaram a serrapor uma trilhaaberta na mataporalgumlenhador. Do alto viram milhares de luzeslá no vale. Shasta assustou-se, poisnãotinha a menornoção do que fosse uma grandecidade. Comeram alguma coisa e depois dormiram. Na manhãseguinte, bem cedinho, foram acordados peloscavalos. Ainda luziam algumas estrelas, e o ar estava úmido e frio. Aravis deu umpuloaté a mata e voltou de lámuitoengraçadaemseus andrajos, trazendo as outras roupas numa trouxa. Esta, mais a armadura, o escudo, a cimitarra, as selas e outrosobjetos foram colocados dentro dos sacos. Bri e Huin já estavam tãosujos e desalinhados quantopossível; faltava apenasencurtar as caudas. A cimitarraera o únicoinstrumentodisponível. Não foi fácil e doeu umbocado.
- Palavra! - disse Bri. - Se não fosse umcavalofalante, daria umbomcoice na cara de quem fez isso! Parece quevocêsnão cortaram, mas arrancaram a minhacauda!
Amarrados os sacos às costas dos cavalos e atadas as cordas (no lugar das rédeas), a jornada começou. Disse Bri:
- Lembrem-se: vamos fazer o possívelparaficarjuntos. Casocontrárionos encontramos nas Tumbas dos AntigosReis; quemchegarprimeiro deve esperar os outros.
- Lembrem-se também, Huin e Bri, de quevocêssãocavalos e de que os cavalospor estas bandas não falam - foi a recomendação de Shasta.
SHASTA ENCONTRA OS NARNIANOS
A princípio Shasta só distinguiu no valeumvastomar de névoa, com algumas cúpulas e pináculos erguendo-se a partir dele; à medidaque clareava o dia e ia sumindo a névoa, pôde vermelhor. Umriolargo dividia-se emdoisbraços: na ilhaentreeles ficava a cidade de Tashbaan, uma das maravilhas do mundo. Ao redor da ilha, erguiam-se altasmuralhas, encimadas por tantas torresque Shasta logo desistiu de contá-las. Dentro das muralhas, a ilha erguia-se em uma colina, e portodaparte, desde o palácio do Tisroc até o grandetemplo de Tash, no alto, elevavam-se edifícios, terraços e maisterraços, ruas e ruas, estradasque ziguezagueavam, jardins suspensos, balcões, arcadas, ameias, minaretes, pináculos. Quandofinalmente o sol nasceu no mar e a cúpula de prata do templo refletiu a luminosidade, Shasta ficou meio ofuscado.
- Emfrente - repetia Bri.
As margens do rio eram a talpontocheias de jardinsquemais pareciam florestas, atéque, ao se aproximar, distinguiam-se entre as árvores as paredes de numerosas casas. Shasta sentiu umdeliciosoperfume de flores e frutos. Umquarto de horamaistarde, pisavam uma estrada margeada de muros e árvores.
- Estou achando estelugarmaravilhoso! - disse Shasta comassombro.
- Não se pode negar - disse Bri -, mas preferia que a gentejá estivesse do outrolado da cidade.
Neste momento ouviu-se umruídograve e late-jante, que aos poucos tornou-se mais e maisagudo, dando a impressão de quetodo o vale vibrava. Erabarulho de música, mastãoforte e soleneque chegava a darumpouco de medo.
- Sãotrombetas ordenando que se abram os portões da cidade - explicou Bri. - Maisuminstante e estaremos lá. Atenção, Aravis, curve umpouco os ombros e pise commaisforça; esconda o máximo a sua princesa. Procure imaginarque passou a vida recebendo chutes e feiosinsultos.
- Se é assim - respondeu Aravis -, quetal se também curvasse um pouquinho mais a cabeça e o pescoço? Esconda o seucavalo de guerra.
- Bicocalado - disse Bri. - É agora. Haviam chegado à beira do rio e o caminho à frente entrava por uma pontecheia de arcos. A água dançava, reluzindo ao sol. À direita vislumbraram mastros de navios. Váriosoutros viajores
caminhavam pelaponte, quasetodos camponeses, conduzindo burros e mulasou carregando cestos na cabeça. As crianças e os cavalos misturaram-se à multidão.
- Algumproblema? - murmurou Shasta para Aravis, quetinha uma expressãoestranha.
- Nenhumparavocê - resmungou Aravis. - O quevocê tem a vercom Tashbaan? Nada! Maseu devia estaremcima de uma liteira, comsoldados na frente e escravosatrás, talvez indo para uma grandefesta no palácio do Tisroc - queelevivaparasempre! -, e nãome escondendo comoumrato. Paravocê é diferente.
Shasta achou issotudo uma grandebobagem.
No extremo da ponte erguiam-se as muralhas da cidade, e os portões de bronze estavam abertos; as alamedas eram largas, mas pareciam estreitas lá no alto. Seissoldados, empunhando lanças, permaneciam de cadalado. Aravis não podia evitarumpensamento: “Se soubessem de quem sou filha, fariam continênciaparamim.” Os outros, porém, só pensavam emconseguirpassarsemchamar a atenção dos soldados. E, porsorte, estesnada perguntaram. Masum deles tirou uma cenoura do cesto de umcamponês e jogou-a em Shasta, com uma risada:
- Ei, garotão! Você vai ver se o seupatrão descobre que o cavalo de sela dele virou cavalo de carga!
Issonãoeranadabom: mostrava que Bri, aos olhos de qualquerentendido, só podia serumcavalo de guerra.
- Poissãoordens do patrão! - respondeu Shasta. Teria sido melhorficar de boca fechada, pois o soldado deu-lhe umtapaquequase o derrubou ao chão:
- Tome, seuporcaria, paraaprender a falarcomumhomemlivre.
Conseguiram entrar na cidadesemser impedidos. Shasta pouco choramingou, jábastante acostumado a pancadas.
Cruzados os portões, Tashbaan não pareceu a princípiotãodeslumbrante. A primeiraruaerabemestreita, com poucas janelas de umlado e do outro. Tinhamuitomaismovimento do que Shasta poderiaimaginar: camponeses que se dirigiam à feira, vendedores de água, vendedores de carne, carregadores, mendigos, soldados, crianças esfarrapadas, galinhas, cãesvadios e escravosdescalços. A primeiracoisaque se notava era o maucheiro, vindo de gentepoucolimpa, de cachorrossujos, de essências, alho, cebola, e de montes de lixo espalhados portodos os lados.
Shasta fingia que estava abrindo caminho, mas de fatoera Bri que dirigia os demaiscomligeirosacenos de focinho. Começaram a subir uma colina à esquerda; eramuitomaisfresco e agradável, com a rua arborizada e casassomente do ladodireito; do ladoesquerdo, distinguiam os telhados de outras casas e trechos do rio. Fizeram uma voltinha e continuaram subindo, porumcaminhosinuoso, emdireção ao centro de Tashbaan. Imensas estátuas dos deuses e heróis dos calormanos -mais imponentes do que simpáticas - erguiam-se nospedestaisreluzentes. Palmeiras e colunatas faziam sombra no calçamentoemfogo. Através das arcadas de muitospalácios, Shasta reparou nas ramagensverdes, nas fontesfrescas, nosrelvadosmacios. Devia ser uma delícialádentro.
Difícilera a caminhadaentre a multidão, e porvezes eram atéobrigados a parar. Isso acontecia quasesempreque surgia uma voz gritando: “Abram caminho! Caminhopara o tarcaã!”, ou “Caminhopara a tarcaína”, ou “Caminhopara o décimoquinto vizir”, ou “Caminhopara o embaixador”... A multidãotoda se espremia de encontro aos muros, enquanto o grandesenhorou a grandedama seguia numa liteira carregada porquatroouatéseisgigantescosescravos. Poisem Tashbaan só existe uma lei de trânsito: quem é menosimportante tem de abrircaminhoparaquem é maisimportante. A puniçãopara o infrator é uma boa chicotadaou uma cacetada de cabo de lança.
Foi em uma ruamagnífica, já pertinho do pontomaisalto da cidade (o palácio do Tisroc era a únicacoisamaisalta), que aconteceu a maisdesastrosa dessas paradas no tráfego.
- “Caminho! Caminho!”, gritava a voz. “Caminhopara o BárbaroReiBranco, convidado do Tisroc - queelevivaparasempre! Caminhopara os senhores de Nárnia!”
Shasta tentou sair do caminho e fazer Bri recuar. Masnenhumcavalo, nemmesmoumcavalo de Nárnia, andacomfacilidadeparatrás. Uma mulher empurrou uma cestacontras as costas de Shasta, dizendo:
- Pare de empurrar!
Outrapessoatambém o empurrou para o lado e, na confusão, ele perdeu poruminstante a companhia de Bri. Aí a multidão foi ficando tãocompactaqueelemal podia se mexer. Involuntariamente, viu-se na primeirafileira, com uma ótimavisão do que ia acontecendo na rua.
Umúnico calormano vinha à frente, gritando: “Caminho! Caminho!” Não havia liteira; vinham todos a pé, uma meiadúzia de homens. Shasta nuncaviraantesninguém parecido comele. Eram todos de pelebranca, e a maioria deles tinhacabeloslouros. E não se vestiam como os calormanos. Quasetodos estavam com as pernas nuas até os joelhos. Trajavam túnicas de tecidos de coresvivas e reluzentes: verde, amarelo, azul. Emlugar de turbantes usavam capacetes de açoou de prata, alguns adornados de jóias, e umcom asinhas de cadalado. Alguns vinham de cabeçadescoberta. As espadasque usavam eram retas, e não encurvadas como as cimitarras dos calormanos. Não eram graves e soturnoscomo a maioria dos calormanos: caminhavam descontraídos, conversando e rindo. Um deles assobiava. Via-se que eram homensdispostos a fazeramizadecompessoasamáveis e pouco se importavam com as quenão o eram. Shasta nuncaviraalgotãosimpáticoemtoda a suavida.
Masnão teve muitotempo de aproveitar o desfile, poislogo aconteceu uma coisarealmentehorrível. O chefe dos homenslouros apontou de repentepara Shasta, gritando:
- Aqui está ele, o fujão! - E foi logo agarrando Shasta peloombro. E deu um tapinha no menino, nãoparamachucar, masparamostrarqueele estava frito, acrescentando: - Quecoisafeia, meusenhor! Quevergonha! A rainha Susana está com os olhosvermelhos de tantochorar. Quecoisa! Passartoda uma noite fugido! Onde esteve?
Shasta teria se embarafustado debaixo da barriga de Bri e sumido na multidão... se pudesse... mas estava cercadopeloshomenslouros, e bemseguro.
Seuprimeiroimpulso foi dizerquenão passava do filho de umpobrepescador e que o ilustreestrangeiro cometera umengano. Mas, afinal, a últimacoisaque desejaria, no meio daquela multidão, erater de explicarquemera e o que estava fazendo. Iriam logoperguntaronde havia apanhadoaquelecavalo, e quemera Aravis... Seria daradeus à últimaoportunidade de passarpor Tashbaan. O segundoimpulso foi olharpara Bri, pedindo socorro. Mas Bri nãotinha a menorvontade de mostrarpara aquela multidãoque sabia falar e continuou olhando com a indiferença de umcavalo. Quanto a Aravis, Shasta nem chegou a tercoragem de olharparaela, receando chamar a atenção. Não houve maistempo de pensar, pois o líder dos narnianos foi logo dizendo:
- Pegue em uma das mãos do senhorzinho, Peridan, queeupego na outra. Vamos. Nossareal irmãzinha vai sentirumgrandealívio ao revernossofujão, são e salvo.
Assim, antes de terem passadopelametade de Tashbaan, Shasta se viu levadoporestranhos, sempoder se despedir dos outros, nemimaginar o que iria suceder daí emdiante. O rei de Nárnia - pelomodocomolhe falavam os outros, só podia ser o rei - continuou a fazer-lhe perguntas: Onde andara? Como havia saído? Que fizera de seustrajes? Não sabia quetinha procedido mal?
O meninonada respondeu, poiseraimpossívelimaginarrespostaquenão fosse perigosa.
- Não vai dizernada? - perguntou o rei. - Francamente, príncipe, estesilênciocasaaindapiorcom a sua nobreza do que a própriafuga. Vá láqueumgarototravesso fuja, mas o filho de umrei da Arquelândia deveria confessar a suaculpa, e nãoabaixar a cabeçacomoumescravo calormano.
Shasta sentia o tempotodo (o que tornava tudoaindamais desagradável) que o jovemreiera uma excelentepessoa, a quem gostaria de causar uma boa impressão.
Os estranhos o levaram, de mãosbemfirmes, por uma ruaestreita, desceram por uma escadaria e entraram porumportallargocomdoisciprestesescuros. Shasta se viu num pátioquetambémeraumjardim. Uma fonte jorrava num tanque. Laranjeiras erguiam-se da relva, e os quatromurosbrancosque cercavam o pátio estavam alastrados de rosastrepadeiras. O tumulto da rua subitamente tornara-se distante. Atravessaram rapidamente o pátio, cruzaram umportãoescuro, passando a umcorredorcalçado de pedras, quelhe refrescavam os pés, e subiram uma escadaria. Uminstantedepois, Shasta achava-se piscando os olhos numa grandesala de janelasabertas, todas dando para o norte. Nuncaviracoresmais maravilhosas que as do tapeteque se estendia sobseuspés; sentia como se afundasse emmusgoespesso. divãs com lindas almofadas alongavam-se pelas paredes: a sala parecia cheia de gente; “algumas muito esquisitas”, pensou Shasta. Mal teve tempo de pensar nelas, pois a maislindamoça do mundo levantou-se e correu a abraçá-lo e beijá-lo, exclamando:
- Mas Corin, Corin, como pôde fazer uma coisa dessas? Desdeque a suamãe morreu, somos tãoamigos, Corin! O que iria dizer ao seurealpai se voltasse semvocê? Poderiaatéhaver uma guerra, apesar da velhaamizadeentre Arquelândia e Nárnia. Admita, meuamigo, que foi muitolevado.
Shasta disse parasimesmo: “Pelojeito, estou sendo confundido comumpríncipe da Arquelândia. Estesaí devem ser os narnianos. Masonde andará o verdadeiro Corin?”
- Onde andou, Corin? - as mãos da moça continuavam nosseusombros.
- Eu... eunão sei...
- Está vendo, Susana? - disse o rei. - Não arranquei dele uma únicapalavra, de verdadeou de mentira.
Uma voz se fez ouvir:
- Rainha Susana! Rei Edmundo!
Shasta quase deu umpulo de espanto: quemtinhafaladoera uma daquelas criaturas esquisitas queele havia notado com o rabo do olho ao entrar na sala. Eramaisoumenos do tamanho do próprio Shasta. Da cinturaparacima parecia umhomem, mas as pernas eram cabeludas comopernas de bode, pareciam pernas de bode, comcascos de bode, e tinhacauda, pelequasevermelha, cabelos cacheados, uma barbichapontuda e dois chifrinhos. Era na verdadeumfauno, criatura da qualnunca ouvira falar. Quem leu o livro O leão, a feiticeira e o guarda-roupa deve estar informado de que se tratava do mesmofauno, de nome Tumnus, que Lúcia, irmã da rainha Susana, encontrara no seuprimeirodiaem Nárnia. Estava bemmaisvelhoagora.
- Majestades - prosseguiu o fauno -, o pequenopríncipe sofreu qualquercoisacom o sol. Vejam só: está ofuscado. Nem sabe onde se encontra.
Pararam de ralhar e de fazerperguntas. Shasta foi levadoparaumsofá, almofadas assentadas sob a suacabeça, e trouxeram-lhe umrefresco gelado num copo de ouro. Disseram-lhe docementeque ficasse quietinho.
Nunca uma coisaassimtinha acontecido emsuavida. Nem chegara a sonharcom um divã tãogostosooucom uma bebidatãodeliciosacomoaquelerefresco. Ficou então imaginando o que teria acontecido aos outros e comopoderiaescaparpara encontrá-los nas tumbas, e o que aconteceria quando o verdadeiro Corin reaparecesse. Estas aflições pareciam menores, agoraque se sentia tãobem. E talvezmaistardeainda surgissem coisas boas de comer!
Além do mais, o pessoal naquela salaerabem interessante. Além do fauno havia doisanões (criaturasqueelenuncatinhavisto) e umcorvoenorme. Os outrostodos eram humanos, já crescidos, masmuitojovens, todoseles, homens e mulheres, comvoz e feiçõesmais simpáticas que as dos calormanos. Poucodepoisjá se sentia atraído pelaconversa.
O rei falava para a rainha (a moçaque beijara Shasta):
- Queme diz, Susana? Já faz trêssemanasque estamos nesta cidade. Está decidida a casar-se com o príncipe Rabadash ounão?
A rainha sacudiu a cabeça:
- Não, meuirmão, nempor todas as jóias de Tashbaan.
- “Ué!” - pensou Shasta - “ele é rei, ela é rainha, massãoirmãos, nãomarido e mulher!”
- Sinceramente, minha irmã, perderia o meufraternalamorporvocê, caso fosse outra a suaresposta. Devo confessar-lhe: desdeque os embaixadores do Tisroc chegaram a Nárnia paratratar do casamento, e que o príncipe Rabadash foi nossohóspedeemCair Paravel, jamais consegui entendercomovocê pôde prestar-lhe tantas atenções.
- Insensatez da minhaparte - respondeu a rainha Susana -, pelaqual peço a suabenevolência. Contudo, lembro que o príncipe se conduziu antes de maneiramelhorqueaquiem Tashbaan. Peço o seutestemunhosobre os grandesfeitosqueele alcançou nostorneiosque o GrandeRei, nossoirmão, lhe preparou; comportou-se comgraça e cortesiadurante os setediasemque esteve conosco. Masaqui, na própriacidade, tem mostrado a suaoutraface.
- Pois é como diz o ditado - grasnou o corvo -: “E precisover o urso na tocaparasabercomoele é.”
- Puraverdade, Pisamanso - falou um dos anões. - E há tambémaqueleoutro: “Venha morarcomigoparasaberquemeu sou.”
- Sim - disse o rei -, já sabemos quem é ele: umtirano enfatuado, violento, ganancioso e desalmado.
- Assim sendo - replicou Susana -, vamos partir de Tashbaan hojemesmo.
- Aí está o problema, minha irmã - exclamou Edmundo -, poisagoraprecisodesabafar o que se passadentro de mim nestes últimosdias. Porobséquio, Peridan, veja se há alguémnos espionando. Tudocerto? Todacautela é pouca a partir de agora.
Ficaram todosmuitosérios. A rainha Susana correu para o lado do irmão:
- Edmundo! Há qualquercoisatenebrosa no seuolhar...
O PRÍNCIPE CORIN
Disse o rei Edmundo:
- Minhaquerida irmã e rainha: chegou o momento de mostrar a suabravura. Devo dizer-lhe semrodeiosque corremos sérioperigo.
- Diga, Edmundo.
- Simplesmenteisto: não creio que será fácilparanóssair de Tashbaan. Enquanto o príncipe mantiver a esperança de desposá-la, seremos hóspedes de honra. Mas, pelajuba do Leão, assimquereceber a sua recusa, não passaremos de prisioneiros.
Um dos anões desabafou num assobio. E disse o corvo:
- Bemque avisei a Vossas Majestades: “Entrar é fácil; sair é quesãoelas!”
- Estive com o príncipehoje de manhã - prosseguiu Edmundo. - Não tem o hábito de ser contrariado. Andamuito agastado com a suademoraemresponder e comsuaspalavras dúbias. Queria a todocustosaber a suadecisão. Disfarcei o que pude, ao mesmotempoque buscava esfriarumpouco as suasesperanças, fazendo brincadeirasvulgaressobre os caprichos das mulheres, insinuando que a corte dele nãoeramuitofirme. Ficou enraivecido e perigoso. Cadapalavraque pronunciava escondia ameaças, aindaque veladas emafetações corteses.
Disse Tumnus:
- É issomesmo. Quando ceei com o grão-vizir, na noitepassada, foi a mesmacoisa. Quis saber o queeu achava de Tashbaan. Comonão podia dizer-lhe que detesto até as pedras da cidade, falei queagora, quando o verãocomeça a pegarfogo, estava sentindo saudade dos bosquesfrescos de Nárnia. Foi sorrindo de carafeiaqueeleme disse: “Nada há que o impeça de dançaroutravez no seubosque, seu pezinho de bode, desdequevocêsnos deixem emtroca uma noivapara o príncipe.”
- Querdizerqueele pretende casar-se comigo à força?
- É o queeupenso, Susana - respondeu Edmundo.
- Mas terá coragemparaisso? Achará o Tisroc quenossoirmão, o GrandeRei, suportará essa infâmia?
- Majestade - falou Peridan para o rei -, nãoserãoloucos a esseponto. Ignoram poracasoque há espadas e lançasem Nárnia?
Respondeu Edmundo:
- Minhaimpressão é que o Tisroc não tem muitomedo de Nárnia. Somos umpaíspequeno, e os paísespequenosfronteiriços a umgrandeimpériosempre foram odiados pelograndeimpério, queanseiapor arrasá-los, por tragá-los. Ao permitirque o príncipe fosse a Cair Paravel comopretendente de minha irmã, talvezsó estivesse buscando uma ocasiãoparaabocanhar Nárnia e Arquelândia de uma sóvez.
- Que tente fazerisso - falou o segundoanão. - No mar somos tãofortesquantoele. E, se nosatacarporterra, terá de atravessar o deserto.
- É verdade, meusamigos - respondeu Edmundo. - Mas será mesmo o deserto uma proteçãosegura? Qual a opinião de Pisamanso?
- Conheço bem o deserto - disse o corvo. - Voei muitoporlá na mocidade. (Sbasta apurou os ouvidos, é claro.) Uma coisa é certa: se o Tisroc for pelograndeoásis, jamais poderá levarumexércitoaté Arquelândia. Pois, aindaque pudessem atingir o oásis num dia de marcha, a águanão daria paramatar a sede de todos os soldados e de todos os animais. Mas há umoutrocaminho. (Shasta prestou maisatenção.) Parachegar a ele é precisotomarcomoponto de partida as Tumbas dos AntigosReis e seguir no rumonoroeste, mantendo sempreemlinhareta o cumeduplo do Monte Piro. Sendo assim, num dia a cavaloouumpoucomais, pode-se atingir a garganta de umvale de pedra; ela é tãoestreitaque se pode passarláporpertomilvezessem se perceberque a garganta e o vale existem. Não se vêrelvaouáguaouqualquercoisa de bom. Mas se alguémentrarpelagarganta e caminharpelovale chegará a umrio e, através deste, poderá cavalgaraté Arquelândia.
- E os calormanos conhecem estecaminho? - perguntou a rainha.
O rei interveio:
- Meusamigos, porfavor, de que adianta tudoisso? Não estamos querendo saber se os calormanos ganhariam ounão uma guerraconosco. Nossoproblema é sabercomosalvar a honra da rainha e as nossas vidas, saindo desta diabólicacidade. Aindaquemeuirmão, o GrandeRei Pedro, derrotasse o Tisroc uma dúzia de vezes, muitoantes disso nossospescoçosjá teriam sido cortados... E a rainha seria a mulherou, mais acertadamente, a escrava de Rabadash.
- Temos as nossas armas - disse o primeiroanão.
- Semdúvida: eles teriam de passarsobre os nossoscadáveresparachegar à rainha.
Susana caiu emprantos:
- Comome arrependo de tersaído de Cair Paravel! Nossafelicidade acabou quandolá chegaram os embaixadores dos calormanos. As toupeiras estavam plantando umpomarparanós... ó... ó...
Tapando o rostocom as mãos, a rainha soluçava.
- Coragem, Su, coragem, irmãzinha... Masquediabo é isso, Mestre Tumnus?!
O fauno agarrava os doischifrescom as mãoscomo se quisesse manter a cabeça no lugar, retorcendo-se todocomo se sentisse dores.
- Não fale comigoagora, não fale comigoagora. Estou pensando. Estou pensando tantoquenem posso respirar. Espere, espere ummomento.
Depois de umembaraçososilêncio, o fauno deu uma boa respirada, esfregou a testa e disse:
- A únicadificuldade é chegar ao nossonavio... comumpouco de carregamento... sem sermos vistos.
- Exatamente - disse sarcásticoum dos anões. - A únicadificuldadeque impede ummendigo de andar a cavalo é nãoter o cavalo.
- Ummomento, ummomento - replicou o Sr. Tumnus, comimpaciência. - Só precisamos de uma coisinha: umpretextoparairaté o naviohoje e levar alguma cargaparalá.
- Sim - resmungou o reicomhesitação.
- Quetal - disse o fauno - se Vossas Majestades convidassem o príncipeparaumgrandebanquete a bordo do nossogaleão, o Esplendor Hialino, amanhã à noite? O convite deve serfeito de modoquedêesperanças ao príncipe, semferir o honor da rainha.
- Excelenteidéia, Majestade - crocitou Pisamanso.
Tumnus, animado, prosseguiu:
- Assimtodos acharão naturalque passemos o dia indo ao navio, organizando a festa. Alguns de nós podem ir às lojas de doces e frutas e de vinhos, como se fôssemos mesmodarumgrandebanquete. E diremos aos mágicos, aos saltimbancos, às dançarinas e aos músicosque estejam todos a bordoamanhã à noite.
- Já estou vendo, já estou vendo - exclamou o rei Edmundo esfregando as mãos. - Tumnus continuou:
- Estaremos portantotodos a bordohoje. Logoquecair a noite...
- A todo o pano! - bradou o rei.
- Narizpara o norte - gritou o primeiroanão.
- A caminho de Nárnia! - disse o outro.
- E imaginem só o príncipe ao acordar e verque os passarinhos fugiram! - exclamou Peridan, batendo palmas.
A rainha, emocionada, pegou as mãos do fauno, que começara a dançar:
- Ó Mestre Tumnus, meuquerido, você salvou a vida de todosnós!
- O príncipenos perseguirá - falou outrocavalheiro, cujonome Shasta não ouvira.
- Issopoucome assusta - replicou Edmundo. - Vi os naviosque possuem: nemgrandes, nemrápidos. Até gostaria quenos seguissem. O Esplendor Hialino pode pôr a piquetudo o que o príncipemandaremnossoencalço...
Se é que conseguiriam alcançar-nos. Disse o corvo:
- Majestade, seria impossívelouvirmelhorplano do queesse, mesmoque ficássemos reunidos durante uma semana. E agora, como dizemos nós, as aves, primeiro os ninhos, depois os ovos. Querdizer, vamos comer e depoistratar dos nossosinteresses.
As portas foram abertas e, com os nobres e as criaturas postados de cadalado, o rei e a rainha saíram. Shasta matutava no que faria, quando o Sr. Tumnus lhe disse:
- Fique aídeitado, Alteza, quelhe trarei um banquetezinho emalgunsinstantes. Nãoprecisa se incomodaraté a hora do embarque.
Jogando a cabeça de novocontra as almofadas, Shasta ficou pensando na encrencaemque se metera. Jamaislhe ocorria contarpara os narnianos a verdadetoda e pedirauxílio. Tendo sido criadoporumhomemduro, enraizara-se no hábito de nuncadizernada espontaneamente para as pessoas adultas: achava que estas sempre atrapalhavam o que estava desejando. E pensava quemesmoque o rei de Nárnia tratasse bem os cavalos, por serem cavalosfalantes de Nárnia, teria ódio de Aravis, queera uma calormana; poderia vendê-la comoescravaou enviá-la de volta aos pais. Quanto a ele, jamais teria agora a coragem de confessar-lhes a verdade: “Ouvi todos os planos. Se soubessem quenão sou um deles, nãome deixariam sairvivo desta casa. Teriam medo da minhatraição. É claroqueme matariam. E é o que vai acontecer se o verdadeiro Corin reaparecer.” Shasta ignorava como as pessoasnobres e livres procedem. “Que vou fazer?” E percebeu que o homenzinho-bode vinha de volta.
O fauno entrou, meio dançando, com uma bandejaquase do tamanho dele. Depositou-a numa mesinha ao lado do divã, sentando-se no chão atapetado com as pernas de bodecruzadas.
- Agora, coma direitinho. Será a suaúltimarefeiçãoem Tashbaan.
Era uma boa comida à maneira calormana. Não sei se você teria ounão gostado, mas Shasta gostou. Havia lagosta, salada, uma avechamada narceja toda recheada de amêndoas e trufas, e umpratomuito complicado feito de fígado de galinha, arroz, passas, nozes, além de melãocru, frutassilvestres e tudo de bomque se pode fazercom o gelo. E havia atéum pouquinho do vinhoque se chama “branco”, apesar de ser de fatoamarelado.
O faunogentil, pensando que Shasta ainda sentia os efeitos da insolação, passou a falarsobre as aventurasque os esperavam nas terras do Norte; sobre o seuvelhopai, o rei Luna de Arquelândia, que morava num pequenocastelosobre as colinas do Sul.
- Você sabe quelhe prometeram a primeiraarmadura e o primeirocavalo de guerrapara o seupróximoaniversário. Terá de aprender a lutaremtorneio e manejar a lança. Se sair-se bem, empoucotempo será feitoCavaleiro de Armas, emCair Paravel, conforme prometeu a seupai o própriorei Pedro. Antes disso é pensar nas idas e vindasentre Nárnia e Arquelândia, passando pelas grimpas das cordilheiras. Não vá esquecerque prometeu passarcomigotoda a semana do Festival de Verão... comfogueiras e faunos e dríades dançando aténascer o sol, lá no meio da floresta e... quem sabe?... Quem sabe a gente possa ver o próprio Aslam?!
Terminada a refeição, o fauno recomendou a Shasta que ficasse quietinho:
- Uma sonecalhe fará bem. Virei buscá-lo comtempo de sobraparaembarcar. E aí, Nárnia! Norte!
Shasta gostou tanto do jantar e das delícias contadas por Tumnus que, ao ficarsozinho, seuspensamentosjánão eram bem os mesmos. Suagrandeesperançaagoraeraque o príncipe Corin chegasse tardedemais, e queeleassim fosse de naviopara Nárnia. Sinto dizerqueelenão pensava no quepoderiaacontecer ao verdadeiro Corin, perdido em Tashbaan. Só estava um pouquinho preocupadocom Aravis e Bri esperando-o nas tumbas. “Masque posso fazer? Jáque Aravis pensaque está muitoacima de mim, pode muitobemirsozinha.” E achou que, afinal de contas, eramuitomelhoriraté Nárnia de navio do que capengando pelodeserto.
Então aconteceu o inevitável: qualquerum, depois de ter acordado muitocedo e enfrentado uma longacaminhada e muitas emoções, ao se deitar num divã, semcalor, sem o menorbarulho, a nãoser o de uma abelhinha que entra pelajanelaaberta, qualquerum nessas condiçõessó pode fazer uma coisa: dormir.
Shasta acordou comumgrande tinido. Saltou do divã de olhos arregalados. Viu logo, pelaluzdiferente da sala, que dormira durantemuitotempo. Viu também de onde viera o tinido: umricovaso de porcelana, queantes estava no peitoril da janela, jazia no chãopartidoem trinta pedaços. Masnão chegou a reparar nisso pormais de uminstante. Reparou mesmo foi nas mãosque se agarravam comforça à janela, pelolado de fora. Porfim a janela emoldurou uma cabeça. Ummomentodepoisummenino da idade de Shasta sentava-se no parapeito, jácom uma pernaparadentro do quarto.
Shasta jamaistinhavisto o própriorostoemumespelho. Mesmoque o tivesse visto, nãopoderiater imaginado que, emcondiçõesnormais, o outromeninoeraquase igualzinho a ele. Naquele instante, porém, o meninonão se parecia especialmentecomninguém, poistinha uma manchapreta de darmedoemtorno de umolho, faltava-lhe umdente, e suasroupas - que deviam ter sido uma belezaquando foram vestidas - estavam esfrangalhadas e imundas, semfalar no sangue e na lamasobre as faces do garoto, queapenas murmurou:
- Quem é você?
- Será você o príncipe Corin?
- É claro. Quero saberquem é você.
- Ninguémemespecial. O rei Edmundo me pegou na rua, pensando queeu fosse você. Devemos ser parecidos, acho. Dá parasairporondevocê entrou?
- Dá, se você for bom de muro. Porquetantapressa? Quem sabe a gente pode fazer uma boa brincadeiracom a confusão deles?
- Não, não dá. Melhor a gentetrocar de lugarimediatamente. Seria de doer se o Sr. Tumnus nos encontrasse aqui. Fingi queeravocê. Esta noite partirão daqui, emsegredo... Ondevocê andou duranteessetempotodo?
- Umgaroto da rua fez uma piada de maugostosobre a rainha Susana; meti-lhe o braço. Saiu berrando e o irmão dele veio. Meti o braço no irmão. Aí saiu umbando correndo atrás de mimatéque apareceram trêsguardas de lanças. Briguei com os guardas, e aíelesme meteram o braço. Já estava anoitecendo. Umguardame agarrou; ia meprender num lugarqualquer. Perguntei se elesnão queriam tomar uma jarra de vinho. Fomos para uma taverna. Sentaram e beberam atédormir. Saí de fininho e aí encontrei o primeirogaroto - o que começou toda a confusão - ainda querendo briga. Tive de meter-lhe o braço de novo. Subi a uma caixa-d’água no telhado duma casa e lá esperei deitadoatéhoje de manhã. O resto do tempo passei procurando o caminho de volta. Será quenão tem nadaparamatar a sede?
- Bebi o quetinha - disse Shasta. - Agora, mostre-me como faço parasair daqui. Melhorvocêdeitar no divã, fingindo... Orabolas! Não vai adiantarnadacomesseolhopreto e essesmachucados... O maisseguro é contar a verdadeparaeles... depoisqueeu estiver bemlonge.
- E o quevocêachaqueeu iria dizer a eles? - perguntou o príncipe, comumolhomeiozangado. - Quem é você?
- É, não dá... Acho que sou um narniano; devo sermaisoumenos nortista. Mas fui criadocomo calormano. Estava fugindo pelodeserto. Comumcavalofalante chamado Bri. E chega! Como é queeu dou o fora?
- Olhe aqui: escorregue da janelapara o telhado da varanda. Na ponta dos pés, siga pelaesquerda e suba para o alto daquele muro, se é quevocê é mesmobom de muro. Ande até o fim do muro. Puleentão no monte de lixo. É issoaí.
- Muitoobrigado - disse Shasta, já cavalgando a janela.
Os doisgarotos entreolharam-se e descobriram de repenteque eram amigos.
- Adeus. E boa sorte. Estou torcendo porvocê.
- Adeus. Você andou emgrandesaventuras...
- Nadaque se compare às suas... - respondeu Corin. - Devagar... - e ainda sussurrou, enquanto Shasta chegava à varanda: - Espero encontrá-lo em Arquelândia. Procure o rei Luna, meupai, e diga quevocê é meuamigo. Cuidado! Vem alguémaí...SHASTA NAS TUMBAS
Shasta correu ligeiropelotelhado, na ponta dos pés. Estava descalço e seuspés queimavam. Emalgunssegundos chegou ao muro, escalou-o e andou até o fim dele. Olhou parabaixo e viu
uma ruazinha estreita e malcheirosa. Lá havia, de fato, ummonte de lixo, exatamenteconforme Corin havia dito. Antes de pular no monte de lixo Shasta deu uma olhada ao redor. Pelaaparência, devia estar no alto da ilha-colina de Tashbaan. À suafrente, eraumdeclivedepois do outro, telhadosabaixo de telhados, descendo na direção das torres e construções do muronorte da cidade. Além, o rio, e além do rio uma encostacheia de jardins. Maisadiante estendia-se algodesconhecido: uma coisa cinza-amarela-da, planacomo o marcalmo, prolongando-se porquilômetros. Ao longo erguiam-se enormescoisas azuladas, maciças, mas de recortes denteados, algumas comtoposbrancos. “O deserto! As montanhas!” - disse Shasta consigomesmo.
Pulou no monte de lixo e começou a correrpelacolina, chegando a uma ruamaislarga. Ninguém se dava ao trabalho de olharparaummeninoesfarrapado e de pésdescalços. Mas continuou aflitoatédobrar uma esquina e darcom o portão da cidade. Empurrado pelamultidãoquetambém saía, chegou à ponte, onde o povo caminhava num silênciosurdo, como se estivesse emfila. Com a água correndo dos doislados, aquiloera uma delícia, depois do odor e do calor de Tashbaan.
Ao chegar ao fim da ponte, a multidão se desfazia, para a esquerda e para a direita das margens do rio. O menino seguiu emfrentepor uma estradapouco percorrida, ladeada de jardins. Maisalgunspassos e achou-se só, chegando daí a pouco no alto da elevação. Parou e olhou. Eracomo se tivesse chegado ao fim do mundo: ali começava o areai, uma grossacamada de areia, aindamaisáspera do que a da praia. As montanhas, parecendo maisdistantes do queantes, assomavam à frente. Paraseu alivio, depois de cincominutos de marcha, viu à esquerda as tumbas, como Bri as descrevera: grandesblocos de pedracom o formato de gigantescas colméias alongadas. O sol se punhaatrás delas.
De frentepara o sol, que o impedia de verqualquercoisa, Shasta mesmoassim seguia de olhosfixos, buscando umindício dos amigos. “Devem estaratrás do túmulomaisdistante, e não do lado de cá, paranão serem vistos da cidade.”
Eram cerca de doze túmulos, cadaumcom uma entrada arqueada dando para as trevas. Não havia nenhuma ordem na suadistribuição, e assim levava tempopara se dar a voltaemtodos. Foi o que Shasta teve de fazer. Não encontrou ninguém.
Havia umgrandesilêncioali, nas portas do deserto. E o sol desapareceu.
De repente, de trás do menino, chegou umruídoassustador. Shasta teve de morder a línguaparanãodarumberro. Percebeu do que se tratava: eram as trombetas de Tashbaan comandando o fechamento dos portões.
- “Não banque o covarde” - falou Shasta parasimesmo. - “É o mesmobarulhoque ouvi hoje de manhã.”
Masnãoera o mesmo: umbarulhoouvido de manhã, entreamigos, é uma coisa, e umbarulhoouvidosozinho, à noite, é outra. Agora, que os portões se fechavam, os amigosnão poderiam mais encontrar-se comele. “Ou ficaram presosem Tashbaan ou partiram semmim. Deve ter sido idéia de Aravis. Bri não faria issonunca. Será que faria?”
Mais uma vez, Shasta estava errado a respeito de Aravis. Esta podia serorgulhosa e bastanteáspera, masera de uma lealdade de ferro e jamais teria abandonado umcompanheiro, gostasse dele ounão.
Agoraquetinha de passar a noitesozinho, à medidaque ia escurecendo gostava aindamenos do lugar. Algomuito inquietante pairava sobre aquelas silenciosas formas de pedra. Já conseguira de simesmo o máximoparanãopensaremmorcegos, masnão agüentava mais.
- Ai! Ai! Socorro! - berrou de repente, ao sentir quealgo tocava na suaperna. (Não condeno ninguém porberrar nas mesmas circunstâncias.) Shasta estava tão amedrontado quenem podia correr. Qualquercoisa, aliás, seria melhor do que ser caçado pelocemitério dos Antigos Reis por algoqueelenemtinhacoragem de olhar. Fez então o que de maissensatopoderiafazer. Deu uma espiada e quase explodiu de tantoalívio.
Eraumgato.
A noitejá estava muitoescuraparater uma idéiacompleta daquele gato: viu sóqueeraum gatão muitosolene. Estava alicomo se tivesse passadoanosentre os túmulos, sozinho. Seusolhos pareciam encerrargrandessegredos.
- Bichano, bichano... Não vai medizerque vocêtambém é umgatofalante...
O gato olhou paraelecomdureza e começou a caminhar, seguido por Shasta, naturalmente. Andaram para os lados do deserto. Depois o gato sentou-se com o rabo enrolado, viradopara o deserto, para Nárnia, para o Norte, como se espreitasse uminimigo. Shasta estendeu-se ao lado, dando as costaspara o gato e de olhonostúmulos, pois, quando se está commedo, o melhor é olharpara o perigo e terportrásalgofirmeemque se possa confiar. Vocênão teria achado a areiaconfortável, mas Shasta estava mais do que acostumado a dormir no chão. Não custou a pegar no sono, emboraatéemsonhos continuasse querendo saber o que teria acontecido a Bri, Aravis e Huin.
Foi despertado porumruídodiferente de tudoquejá ouvira. “Deve ter sido um pesadelo”, pensou. Percebeu que o gatoinfelizmente desaparecera. Continuou, entretanto, quieto, semabrir os olhos, pois o medo seria aindamaior se avistasse e sentisse emtorno a solidão. O ruído chegou de novo, áspero e penetrante, vindo do deserto. Desta vez abriu os olhos e sentou-se.
A lua brilhava. Os túmulos, que pareciam maisvastos e maispróximos, avultavam cinzentos ao luar. Pareciam mesmohorrendos, comopessoasenormes vestidas de pardocom os rostosencobertos. Não eram companhiasnada simpáticas numa noite de solidão. Mesmonão gostando muito, Shasta virou as costasparaeles e olhou na direção do areai. Mais uma vez ouviu o ruído.
“Chega de leões!” - pensou. Masnão parecia com o rugido dos leõesque ouvira naquela outranoite. De fato, eraumchacal. É claroque Shasta não podia saberque se tratava de umchacal, e não ficaria contente se soubesse.
Os uivos aumentavam. “Deve serumbando, seja lá o que for. E está cadavezmaisperto.”
Se fosse umrapazbemajuizado, teria voltado paraperto do rio, onde estavam as casas, tornando maisimprovável a aproximação de feras. Mas teria de passarpelostúmulos, onde se encontravam (ele pensava) os morcegosvampiros. Pode pareceridiotice, mas preferiu correr o risco das feras. À medida, porém, que os uivos se aproximavam, mudou de idéia.
Estava parasairemdisparadaquandoumenormeanimal surgiu na suafrente. Com a luz da luanosolhos de Shasta, o bicho parecia muitoescuro, mostrando apenasterquatropernas e uma cabeçapeluda. Não parecia ter notado o menino; parou de repente, virou a cabeçapara o deserto e deu umrugidoque ecoou pelostúmulos e pareceu agitar as areias. Os uivos das outras criaturas pararam imediatamente, e Shasta pensou ouvirpés a fugir atropeladamente. Então a grandefera virou-se paraele.
“É umleão, sei que é um leão” - ele pensava.
- “Estou perdido! Deve doermuito. Antesjá tivesse acabado. Não sei se acontece alguma coisadepoisque a gente morre. Ó, ó, está chegando!”. Fechou os olhos e cerrou os dentes.
Não sentiu dentes, nemgarras, apenas uma coisacálidapousada a seuspés. Ao abrir os olhos, pensou: “Ora, não é tãograndeassim! É a metade. Menos da metade. Menos da metade da metade. Tenho de confessarque é umgato! Sonhei, só posso ter sonhado comumbicho do tamanho de umcavalo.”
Tendo sonhado ounão, o que estava a seuspés, fixando-o comgrandesolhosverdes, era o gato; talvez o maiorgato do mundo, masumgato.
- Bichano - disse Shasta, ofegante. - Quebom vê-lo de novo! Tive sonhoshorrorosos! - Deitou-se outravez, encostando as costas no gato. Sentiu umcalor percorrer-lhe o corpo e começou a falar:
- Nuncamais vou maltratarumgato. Já fiz, já atirei pedra num gatinho doentequase morrendo de fome. Ei! Pare comisso! - O gato dera-lhe uma unhada. - Parece que está entendendo o que digo. - E caiu no sono.
Ao acordar de manhã, o gato sumira; a areiajá estava quente. Com uma sedehorrível, Shasta sentou-se e esfregou os olhos. O deserto reluzia emsilêncio, embora se ouvisse o murmúrio de vozes da cidade. Olhando para as montanhasdistantes, recortadas comnitidez, notou uma elevaçãoque, no alto, dividia-se emdoiscumes; concluiu queera o Monte Piro. “É a nossadireção, a julgarpeloque disse o corvo. Vamos adiantar o trabalho.” Com o pé, fez umsulcoemlinhareta, apontando exatamentepara o Monte Piro.
Agoraeraarranjar alguma coisaparacomer e matar a sede. Andou ligeiroaté as tumbas (que pareciam agoratúmuloscomuns, incapazes de assustaralguém), indo até uma terra cultivada perto do rio. Algumas pessoas andavam porali, masnão muitas, pois as multidõesjá haviam passado. Não foi muitodifícilfazer o que Bri chamava de “incursão”. Pulou ummuro de pomar, e o resultado foram trêslaranjas, ummelão, doisfigos e uma romã. No rio, masnãomuitoperto da ponte, matou a sede. A água estava tãogostosaqueele tirou a roupa e deu um mergulho: aprendera a nadarlogodepois de aprender a andar. Estendeu-se na relva, olhando para o esplendor e a glória de Tashbaan. Achando que os outros poderiam terchegado aos túmulosenquanto nadava, vestiu-se às carreiras e tãodepressa percorreu a distância, que o bem-estar do banho passou e sentiu sedenovamente.
Quando se esperasozinho, o dia parece tercemhoras. Tinhamuitoemquepensar, é claro, maspensarsozinhonão faz o tempoandarmaisdepressa. Pensou principalmentenos narnianos e em Corin. Que teria acontecido ao descobrirem que o meninodeitado no divã, ouvindo todos os planos, nãoera Corin coisa nenhuma? E não gostava da idéia de que aquela boa gente pensasse queele fosse umtraidor.
Mas, à medidaque o sol foi subindo, subindo, e depois descendo, descendo para o poente, semqueninguém chegasse oualgo acontecesse, começou a ficarmaisaflito. Sóentão lembrou queninguém disse porquantotempoesperarquando combinaram o encontronosvelhostúmulos. Podia ficar esperando para o resto da vida! Embreve seria noite de novo, uma noite parecida com a anterior. Mais de dezplanos passaram porsuacabeça, todoseles desconjuntados. Acabou finalmente escolhendo o pior. Resolveu esperaratéescurecer, depoisretornar ao riopararoubartodos os melõesque conseguisse carregar e pôr-se emmarchapara o Monte Piro, sozinho, confiando na linhaque traçara na areia. Uma idéiamaluca. Masnunca lera umlivro a respeito de viagens no deserto. Nemqualqueroutrolivro.
Masalgo aconteceu antesque o sol sumisse. Estava sentado à sombra de umtúmuloquando viu doiscavalos vindo emsuadireção. Seucoração deu umpulo: eram Bri e Huin. Maslogoemseguida o coração foi parar-lhe nosjoelhos. Não havia sinal de Aravis. Os cavalos estavam sendo conduzidos porumestranho, umhomem armado, vestidocom a elegância de umescravo de estimação de famíliaimportante. Bri e Huin não vinham maiscomoanimais de carga, mas traziam rédeas e selas. “Uma armadilha! Alguém torturou Aravis e ela contou tudo. Estão esperando queeu vá correndo falarcom Bri parame pegarem. Mas se não for perco a últimachance de encontrar os outros. Ah, se pudesse saber o que aconteceu!”
Escondeu-se atrás do túmulo, espreitando e tentando imaginar se haveria algomenosperigoso a fazer.
ARAVIS EM TASHBANN
Acontecera o seguinte: depoisque Shasta foi levadopelos narnianos, Aravis se viu só, com os doiscavalosque, sabiamente, não disseram uma palavra. Mesmoassim, nemporumsegundo perdeu o sangue-frio, embora o seucoração batesse descompassadamente. Tentou irembora, masoutroarautovinha gritando: “Abram caminho! Caminhopara a tarcaína Lasaralina!” Seguiam o arautoquatroescravos armados e logoatrásquatrohomens, que carregavam uma liteira a esvoaçarcomsuascortinas de seda e a tilintarcomseus sininhos de prata, perfumando a ruacomessências e aromas de flores. Atrás da liteira, escravas comlindosvestidos, pajens, escudeiros e o resto do cortejo. Foi aíque Aravis cometeu o seuprimeiroerro.
Conhecia Lasaralina muitobem, quasecomo se tivessem sido colegas de escola, pois haviam freqüentado as mesmas casas e as mesmas festas. Aravis não resistiu à curiosidade de sabercomo estava a amiga, agoraque se casara e se tornara de fatomuitoimportante. Aproximou-se.
Fatal: os olhares das duas jovens se encontraram. Lasaralina ergueu-se de seuscoxins e gritou a plenospulmões:
Não havia ummomento a perder. Sempestanejar, Aravis largou os cavalos, subiu na liteira e sussurrou comfúria ao ouvido de Lasaralina:
- Bocacalada, suadoida! Caladinha! Ninguém pode saber... Diga a seupessoal...
- Mas, querida, que é isso... - ia falando Lasaralina, aindaemvozalta. (Poucolhe importava chamar a atenção, atépelocontrário.)
- Faça o queeulhe digo oununcamaisfalocomvocê. Depressa, porfavor, Las: diga a seupessoalparalevaraquelesdoiscavalos. Abaixe as cortinas e meleveparaumlugarondenãome achem. Depressa!
- Está bem, querida - disse Lasaralina comsuavozpreguiçosa. - Venham aquidoisescravos: levem os cavalos da tarcaína. E agora, paracasa! - ordenou a jovem. - Francamente, querida, achaque precisamos mesmoseguircom as cortinas abaixadas? Num diacomoeste?
Mas Aravis já fechara as cortinas, encerrando-se com a amiga numa espécie de tendaambulante e perfumada.
- Não posso servista. Meupainão sabe que estou aqui. Estou fugindo.
- Minhafilha, quecoisaemocionante! Estou loucaparasaber de tudo. Querida, você está emcima do meuvestido novinho emfolha. Gosta? Comprei...
- O, Las, fale sério! Ondeanda o meupai?
- Ora, vocênão sabe? Está aqui, naturalmente. Chegou ontem e andafeitoumdoidoatrás de você. Nós duas aquijuntas, e elesemsaber de coisa nenhuma! Nunca vi nadatãoengraçadoemminhavida!
E não parava de dar risadinhas esfuziantes. Forasempre a campeã dos risinhos esfuziantes, lembrou-se Aravis.
- Não tem nada de engraçado. É pateticamente sério. Ondevocê pode meesconder?
- Muitosimples, minhaquerida. Levo vocêparacasa, sóisso. Meumarido está fora e ninguém a verá. Puxa! Não é nadadivertidocom as cortinas fechadas. Quero vergente. Nãovale a penacomprarumvestidonovo e sair numa liteiracom as cortinas abaixadas.
- Só espero queninguém a tenha ouvidoberrar o meunome.
- Claroquenão, queridinha - replicou Lasaralina distraída. - Masvocêaindanão disse nadasobre o meuvestidonovo.
- Outracoisa: diga a seupessoalparatrataraquelescavaloscom o máximorespeito. Isso faz parte do segredo: são cavalos falantes de Nárnia.
- Queengraçado! Sensacional! Ah, querida, você viu a bárbara da rainha de Nárnia? Andaagoraporaquiem Tashbaan. Andam dizendo que o príncipe Rabadash está alucinado porela. Há duas semanasquesó temos festas maravilhosas. Pormim, minhafilha, não acho queela seja tãomaravilhosaassim. Masalguns dos homens de Nárnia sãosimplesmentelindos. Aindaanteontem fui a uma festa à beira-rio, usando umvestido...
- Como vamos impedir o seupessoal de espalharquevocê tem uma visita, vestidacomo uma mendigazinha... e na suacasa? Vai fatalmentecairnosouvidos do meupai.
- Pare com essas bobagens, querida. Chegamos. Daqui a pouquinho você estará uma jóia.
A liteira foi abaixada. Achavam-se num pátio ajardinado, muito parecido comaquelepara o qual Shasta acabara de serlevado. Lasaralina queria entrarimediatamente, mas Aravis pediu-lhe emsussurrosque recomendasse silêncio aos escravos.
- Ah, perdão, querida, já havia me esquecido. Todosaqui! O porteirotambém. Ninguémhoje tem licença de botar o péfora de casa. E, se ouviralguém falando qualquercoisa a respeito desta moça, será espancado atécairmorto, ou queimado vivo, ouentão ficará a pão e águaporseissemanas. É tudo.
Embora Lasaralina dissesse que estava loucaparaouvir a história de Aravis, não mostrou o menorsinal disso. Evidentemente, gostava muitomais de falarque de ouvir. Insistiu paraque Aravis tomasse umbanhosuntuoso (os banhos calormanos sãofamosos) e depois deu-lhe lindas roupasparavestir. O alvoroçoque fez na hora de escolher as roupasquase estourou a cabeça de Aravis. Lasaralina era a mesma, interessada apenasemroupas, festas e intriguinhas, enquantoela, Aravis, sempre preferia arcos e flechas, cães e cavalos, e natação. Cada uma devia achar a outra uma boba.
Depois de uma refeição, dessas de cremes, geléias e frutas, feita numa salacercada de colunas, e que Aravis teria apreciado melhorsem o macaquinho travesso da amiga, Lasaralina perguntou afinalpelahistória. E, depois de ouvi-la, falou:
- Mas, minhaquerida, porquevocênão se casacom Achosta Tarcaã? São todas doidas porele. Meumaridosempre diz que Achosta está ficando um dos grandeshomens deste país. Ainda há pouco foi feitogrão-vizir, depoisque morreu o velho Axarta. Vai dizerquenão sabia?
- Issonãome interessa. Não agüento nem a cara dele.
- Mas pense uma coisa, querida! Trêspalácios! Um deles é aquelemaravilhosoque dá para o lago de Ilkin. E uma fábulaempérolas, jáme contaram. Banhos de leite de jumenta. E a gente ia se ver tantas vezes!
- Ele pode fazer o que quiser com os palácios e as jumentas dele; poucome interessa.
- Vocêsempre foi muitoestranha, Aravis. Quemais pretende na vida?
Aravis acabou conseguindo que a amiga acreditasse queelanão estava brincando. E puderam entãodiscutirplanossérios. Não seria difícillevar os cavalospeloportão do norteaté os túmulos. Ninguém interromperia umescudeirobemvestido conduzindo umcavalo selado até o rio. O problemaerasaber o quefazercom a própria Aravis. Sugeriu ser conduzida de liteiracom as cortinas abaixadas. Impossível: as liteirassó eram usadas dentro da cidade; se uma transpusesse os portões, causaria suspeitas.
Conversaram porumtempointerminável, poiseradifícilsegurar Lasaralina dentro do assunto. Porfim a amiga bateu palmas de contentamento:
- Uma idéiagenial! Há umjeito de sair da cidadesemusarqualquerum dos portões. O jardim do Tisroc - queelevivaparasempre! - desce até a muralha do rio, e no lugar existe uma pequenaporta. Sóparauso da gente do palácio, naturalmente... Mas, sabe, querida (aqui Lasaralina teve de darum risinho), nósquase somos gente do palácio. Palavra, foi sortesuater se encontrado comigo. O caro Tisroc - queelevivaparasempre! - é tãobom! Somos convidados ao palácioquasetodos os dias... É como se fosse umsegundolar. Gostotanto dos príncipestodos, das princesas e, parafalarsinceramente, adoro o príncipe Rabadash. Posso procurar as damas de honra a qualquerhora do diaou da noite. Será fácil sairmos escondidas, depois de escurecer. Vocêescapa pela porta da muralha, pegando uma canoa. E se formos apanhadas...
- Tudo está perdido...
- Não fique nervosa, queridinha. Eu ia dizer o seguinte: mesmoque sejamos apanhadas, todomundo iria dizerque foi mais uma das minhasbrincadeiras. Já estou ficando famosaporcausa delas.
Aindaoutrodia... foi de morrer de rir...
- E eusó ia dizer o seguinte: tudo estará perdido paramim.
- Ah, já entendi o quevocêquerdizer... Sabe de outroplanomelhor, querida?
Aravis não sabia:
- Correremos o risco do jardim e da porta da muralha. Quando começamos?
- Ah, nãohoje à noite. Hoje à noite, não, francamente. Há uma grandefesta... Ih! Precisofazer o meucabelo daqui a pouquinho!... E vai ficartudoclarocomo se fosse dia. E assim de gente! Tem de seramanhã à noite.
Más notíciaspara Aravis; que se haveria de fazer? O resto da tarde foi de horas morosas, e Aravis sentiu grandealívioquando Lasaralina saiu para a festa. Já estava cansada de risadinhas esfuziantes e vestidos e festas maravilhosas e casamentos e noivados e escândalos. Foi dormircedo, e disso gostou muito: era uma delíciater de novo uma camacom lençóis e travesseiros.
Maislentoainda foi o diaseguinte. Lasaralina quis voltaratrásemtudoquefora assentado, insistindo emdizerque Nárnia era uma terra de neveeterna, habitada pordemônios e feiticeiras. Erasimplesmente uma loucurairparalá. - “Aindaporcima na companhia de umpescador; francamente! Pense melhor, querida. Não é nadaelegante.”
Aravis havia pensado muito nisso, masjá estava tão cansada das tolices de Lasaralina que, pelaprimeiravez, começou a acharque a companhia de Shasta erabemmais divertida do que a vidaeleganteem Tashbaan. Apenas respondeu:
- Você se esquece de uma coisa: eutambémnão serei ninguém, chegando a Nárnia. E, além do mais, prometi.
Lasaralina, quase chorando, replicou:
- E pensarque, se você tivesse juízo, seria a esposa de umgrão-vizir!
Aravis saiu para uma conversaparticularcom os cavalos.
- Podem ircom o escudeiroantes do pôr-do-sol. Não precisam mais daqueles sacos. Irão de sela e rédea. Mas levarão comida e águanosalforjes. O homem recebeu ordensparaquevocês matem a sede do outrolado da ponte.
- Para Nárnia! Para o Norte! - murmurou Bri. - Mas... e se Shasta não estiver lánostúmulos?
- Esperem porele, é claro. Passaram bem a noite?
- Nunca estive num estábulomelhor na minhavida - respondeu Bri. - Mas tem uma coisa: se o marido daquela suaamiga das risadinhas está pagando o primeiroescudeiroparacompraraveia de primeira, tenho a impressão de queeleanda enganando o patrão.
Aravis e Lasaralina cearam na Sala das Colunas. Duas horasmaistarde, estavam prontas parapartir. Aravis vestiu-se como uma escrava de estimação de uma casaimportante, cobrindo o rostocomumvéu. Se houvesse perguntas, Lasaralina responderia que estava levando uma escrava de presentepara uma das princesas.
Saíram comtodo o cuidado, e poucosminutosdepois estavam às portas do palácio. O oficial da guarda conhecia Lasaralina; os soldados, a seumando, prestaram-lhe continência. Passaram à Sala de MármoreNegro. Serviçais e escravos andavam de umladoparaoutro, e isso facilitava mais as coisas. Da Sala das Colunas passaram à Sala das Estátuas e, depois da colunata, cruzaram os grandesportões de cobre trabalhado das salas do trono. Era de umluxoindescritíveltudo o que se podia versob a luzmortiça do lampadário.
Chegaram porfim ao jardim, que descia até o rioemnumerososterraços. No fim erguia-se o VelhoPalácio, escurecido pelotempo. Jáeraquasenoite, e as duas passaram porumlabirinto de corredores iluminados apenasporalguns tocheiros fixados nas paredes. Lasaralina parou num lugaronde se podia irpara a esquerdaoupara a direita.
- Vamos, vamos - murmurou Aravis, com o coração batendo acelerado, aindacom a impressão de que o pai podia aparecer a qualquermomento.
- Só estou pensando umpouco... Não tenho muitacerteza se é paracáouparalá... Acho que é paralá. É, tenho quasecerteza. Queengraçadotudoissoaqui!
Pegaram à esquerda, atravessaram uma passagemquaseescura de todo, chegaram a uma descidafeitaemdegraus.
- Está certo - disse Lasaralina. - Lembro-me destes degraus.
Nesse momento uma luz oscilou lá na frente. Umsegundoapós, num cantodistante, surgiram os vultos de doishomensque caminhavam de costas empunhando grandesvelas. Sódiante de realezas é que aparecem pessoas andando de costas. Aravis sentiu Lasaralina agarrando-lhe o braçoquasecomo se fosse umbeliscão, aquelebeliscãoque significa o seguinte: estou morrendo de medo. Achou estranhoque Lasaralina sentisse tantopavor do Tisroc, tãoamigo, tãobom. Masnão havia muitotempoparapensar. Lasaralina já a empurrava paratrás, degrausacima, na ponta dos pés, roçando pelas paredes.
- Uma porta; entredepressa!
Fecharam de novo a portacomtodo o cuidado. Escurototal. Pelarespiração, podia-se perceberque Lasaralina estava aterrorizada.
- Que Tash nos proteja! Que vamos fazer, Aravis, se eleentraraqui?
Pisando umtapetefofo, saíram tateando e tropeçaram num sofá.
As duas moças agacharam-se no diminutoespaçoentre o sofá e a parede acortinada.
Lasaralina deu umjeito de arranjar a melhorposição, ficando completamente escondida. A partesuperior do rosto de Aravis aparecia do lado do sofá; seria vista se alguém projetasse uma luz naquela direção. Talvez, se isso acontecesse, o véu ajudasse a disfarçarque se tratava de umrostohumano. Tentou obteralgumespaço de Lasaralina, que, mais egoísta no seuterror, resistiu e beliscou-lhe os pés. Desistiram e ficaram quietas, arquejando umpouco. Faziam muitoruído ao respirar, masnão havia nenhumoutrobarulho.
- Estamos salvas? - perguntou Aravis, no maisbaixo dos maisbaixossuspiros.
O barulhoqueentão ouviram nãopoderiasermais aterrador: uma porta se abriu. Depois, a luz. Como Aravis não podia esconder a cabeçaatrás do sofá, viu tudo.
Primeiro entraram os doisescravos (surdos e mudos, como Aravis imaginou, usados nas reuniões secretas), andando de costas e empunhando as velas. Cadaum se colocou a umlado do sofá. Porsorteumescravo ficou na frente de Aravis, que passou a enxergar a cenaatravés dos calcanhares dele. Entrou emseguidaumvelho, gordíssimo, usando umengraçadogorropontudo, peloqual Aravis imediatamente reconheceu o Tisroc. A menorzinha das jóiasque usava valiamais do que todas as indumentárias e armas dos senhores de Nárnia. Mas Aravis passou a preferir a moda de Nárnia àquela massa enfeitada de babados, pregueados, laçarotes, botões, borlas e talismãs. Depois entrou umjovemaltocomturbantecheio de plumas e jóias e uma cimitarra embainhada emmarfim. Parecia emocionado. Seusolhos e dentes reluziam no brilho das velas. Porfim entrou umcorcunda mirrado, no qualela reconheceu comumcalafrio o grão-vizir, seu prometido esposo, o próprio Achosta Tarcaã.
O Tisroc estirou-se no divã comumsuspiro de satisfação; o jovem tomou o seulugar, de pédiante dele; o grão-vizir agachou-se sobre os joelhos e os cotovelos, achatando a cara no tapete.
NA CASA DO TISROC
O jovem tomou a palavra:
- Pai-meu-e-deleite-dos-meus-olhos! - falava depressa e num tom emburrado semconvencer a ninguémque o Tisroc fosse o deleite de seusolhos. - Louvado seja o seunomeparasempre! O senhorme destruiu completamente. Se tivesse medado a maisrápida de suasgaleras ao nascer do sol, quando percebi que o navio dos malditosbárbaros se afastava, talvezeu os tivesse alcançado. Persuadiu-me porém o senhor a verificar se acasonão estariam eles buscando melhorancoradouro. Perdemos todo o dia. E já se foram... já se puseram fora do meualcance! Aquela falsajóia, aquela...
E aqui o jovem começou a referir-se à rainha Susana compalavrasquenão fica bemregistrar no papel. Pois, semdúvida, tratava-se do príncipe Rabadash; a falsajóiasó podia ser Susana de Nárnia.
- Olha a compostura, filhomeu - disse o Tisroc. - A partida de umhóspede faz uma feridaque se curamaisdepressa no coração do sensato.
- Maseu quero a moça - bradou o príncipe. - Eupreciso da moça! Vou morrersem... sem aquela falsa, soberba, aquela traiçoeirafilha de umcãosarnento! Jánão posso maisdormir, o melhoralimentonãome apetece, os meusolhos estão ofuscados pelabeleza daquela bárbara. Preciso da rainhabárbara.
- Como disse tãobem o divinopoeta - observou o vizir, erguendo o rostoumtanto empoeirado -, “uns bonsgoles na fonte da razão ajudam a apagar o fogo do coração”.
Esseverso irritou aindamais o príncipe.
- Seucachorro! - gritou ele, aplicando chutescerteiros no traseiro do grão-vizir. - Não ouse levantar poetas contra mim. Estou cheio de versos e máximas!
É possívelque Aravis não tenha sentido a menorpena do vizir.
O Tisroc parecia mergulhado emdevaneios, mas, ao notar o que acontecia, falou tranqüilamente:
- Filhomeu, pare de darpontapés no venerável e esclarecidovizir: pois, assimcomo uma gemaconserva o seuvalormesmo num monte de estéreo, deve a velhice ser respeitada, mesmo na maisvil das pessoas. Pare, pois, e diga-nos o quedeseja e propõe.
- Desejo e proponho, paimeu, que o senhor convoque imediatamenteseuinvencívelexército a fim de invadir a trêsvezesmalditaterra de Nárnia, para arrasá-la com a espada e o fogo, anexando-a ao nosso ilimitado império, matando o GrandeRei e todos os de seusangue, comexceção da rainha Susana. Pois a esta eu quero pormulher, quandoela tiver aprendido sualição.
- Compreenda, filhomeu, que nenhuma das palavrasque proferisse poderá levar-me a uma guerraabertacom Nárnia.
- Não fosse o senhor o meupai, ó sempiterno Tisroc - disse o príncipe rangendo os dentes -, diria quesãopalavras de umcovarde.
- E não fosse vocêmeufilho, ó fogoso Rabadash, suavidaagora seria curta e demorado o seufim.
A vozplácida e friacomque disse essas palavras gelou o sangue de Aravis.
- Mas, paimeu - replicou o príncipe, num tombemmaisrespeitoso -, porquepensar duas vezesempunir Nárnia? É como se enforcássemos umescravopreguiçosoou déssemos umcavalovelhopara os cachorros comerem. Nárnia nãochega a ser a quartaparte da menor de suasprovíncias. Millanças podem subjugá-la emcincosemanas. Nãopassa de uma nódoa aos pés do seuimpério.
- Semdúvida - falou Tisroc. - Essespequenospaísesbárbarosque se proclamam livres (valedizer, indolentes, caóticos, inúteis) sãoodiosos aos deuses e a todas as pessoas de discernimento.
- Assim sendo, porque haveremos de sofrer a afronta de uma Nárnia insubmissa? - prosseguiu o príncipe.
- Saiba, ó sábiopríncipe - interveio o grão-vizir -, que, até o anoemque o seualtivopai começou o seusalutar e sempiternoreinado, a terra de Nárnia vivia coberta de neve e gelo e era governada por uma poderosafeiticeira.
- Sei de tudoissomuitobem, ó loquazvizir - replicou o príncipe. - Mastambém sei que a feiticeira morreu. E que o gelo e a neve derreteram. E que Nárnia agora é umpaísfrutífero.
- E essa mudança, cultíssimo príncipe, semsombra de dúvida, é devida aos encantamentos dessas criaturas perversas queagora se intitulam reis e rainhas de Nárnia.
- Sou de opinião - disse Rabadash - queisso aconteceu pelaforça das causasnaturais.
- Isto é assuntopara os sábios. - falou o Tisroc. - Jamais poderei acreditarque uma talmudança possa serfeitasem a intervenção de poderosamagia. Tantas coisasali sucedem, que a terra é principalmente habitada pordemônios na forma de bichosque falam comohomens e de monstrosquesãometadehomem e metadeanimal. É geralmente aceito que o GrandeRei de Nárnia -que os deuses o amaldiçoem! - é sustentado porumdemônio de aspectohediondo e de imbatívelpodermaléfico, que aparece sob a forma de umleão. Daí ser o ataque a Nárnia uma empresaduvidosa. Estou decidido a nãometer a mãoemsaco de ondenão possa retirá-la.
- Venturosos os calormanos - disse o vizir, revirando mais uma vez a cabeça -, emcujochefe os deuses houveram porbemderramar a prudência e a circunspecção! Como diz o sábio e irrefutável Tisroc, seria penosometer as mãosemumsacotãoopulentoquanto Nárnia. Divino foi o poetaque disse...
A esta altura Achosta percebeu ummovimentoimpaciente do pé do príncipe e calou-se.
- É muitopenoso - concordou o Tisroc na suavozprofunda e mansa. - O sol é escuro aos meusolhos, e à noitemeusono é menosreparador, por lembrar-me que Nárnia é ainda uma terralivre.
- Paimeu - disse Rabadash -, e se lhe mostrasse uma maneirapelaqualpoderiaestender a suamãoparaagarrar Nárnia, podendo retirá-la incólume, caso fracassasse a tentativa?
- Casome mostre isso, Rabadash, será o melhor dos filhos.
- Escute, pois, meupai. Nesta mesmanoite, conduzirei apenas duzentos cavalos e homenspelodeserto. Parecerá a todosque o senhornada sabe de minhaexpedição. Na segundamanhã estarei nosportões do castelo do rei Luna, na Arquelândia, em Anvar. Estão empazconosco e desprevenidos: tomarei Anvar antesque se mexam. Depois cavalgarei pelodesfiladeiro do alto de Anvar, seguindo por Nárnia atéCair Paravel. O GrandeReinão se encontralá; quando o deixei, prepara va uma expediçãocontra os gigantes da fronteira do norte. Entrarei facilmente emCair Paravel. Serei cauteloso, cortês e mesureirocomoum narniano. E depois, então? É esperar sentado até a chegada do Esplendor Hialino, com a rainha Susana a bordo, agarrar o meupassarinhofujãoassimqueelepousar, colocá-lo na sela e cavalgar, cavalgaraté Anvar.
- Masnão é provável, filhomeu, que, ao arrebatar a mulher, um dos dois, vocêou o rei Edmundo, perca a vida?
- Sãopoucos: dez dos meushomens podem desarmá-lo e amarrá-lo. Sofrearei minhaveementesede de sangueparaquenão prevaleça ummotivo de guerraentre o senhor e o GrandeRei.
- E se o Esplendor Hialino chegar a Cair Paravel antes de você?
- Nãocomestesventos, paimeu.
- Porfim, imaginosofilhomeu, está bemclaro de quemaneira obterá a mulherbárbara, mas de modoalgum está clarocomo poderei subjugar Nárnia.
- Paimeu, poracasolhe escapou que, enquantoeu e meuscavaleiros cruzamos Nárnia de lado a ladocomo uma flecha, Anvar já será nossaparasempre? De posse de Anvar, estamos sentados às portas de Nárnia, e suaguarniçãoaí pode ser acrescida pouco a pouco, até transformar-se emlegiãoimensa.
- Falou comdiscernimento e espírito de previsão. Mascomo vou retirar a minhamão se tudo for poráguaabaixo?
- É sódizerque fiz essegestosem o seuconhecimento, contra o seucoração, impelido pelaviolência do meuamor e peloardor da juventude.
- Certo. Mas se o reipedirquelhe mandemos de volta a mulherbárbara, irmã dele?
- Paimeu, pode estarcerto de queissonão acontecerá. Embora essa mulher, pormerocapricho, tenha recusado o casamento, o GrandeRei Pedro é homemprudente e judicioso. De modoalgum vai quererperder a altahonraria e grandevantagem de seraliado da nossacasa e de ver o seusobrinho e o seu sobrinho-neto no trono dos calormanos.
- Elenão verá isso se euviverparasempre, como é semdúvida o seudesejo, filhomeu - disse o Tisroc, com uma vozaindamaisseca do quehabitualmente.
Depois de uminstante de embaraçososilêncio, falou o príncipe:
- Além disso, pai-meu-e-deleite-dos-meus-olhos, forjaremos cartas da rainha, afirmando quemeama e quenão sente o menordesejo de regressar a Nárnia. Poistodomundo sabe que as mulheres mudam maisque catavento. E, mesmoquenão acreditem nas cartas, não ousarão entrarcomarmasem Tashbaan para buscá-la.
- Esclarecidovizir - disse o Tisroc -, queira esparzirsobrenós o seusábioconselho a propósito desta estranhaproposta.
- Sempiterno Tisroc: a força da afeiçãopaternalnãome é estranha e comfreqüência vejo que, aos olhos do pai, filhossãomaispreciososquediamantes. Assim, como poderei ousar desvendar-lhe todo o meupensamento, emmatériaque pode colocaremperigo a vida deste decantado príncipe?
- É claroquevocê vai ousar - respondeu o Tisroc. - Se nãoousar, correrá pelomenosumperigoigual.
- Ouvir é obedecer - gemeu o desgraçado. - Saibaentão, ó iluminado Tisroc, emprimeirolugar, que o príncipenão corre umperigotãograndequanto pode parecer. Pois os deuses negaram aos bárbaros a luz da discrição: assim a poesia deles não é, como a nossa, cheia de máximas e ditos úteis, mas é uma poesia de amor e de guerra. Portanto, nadalhes parecerá maisnobre e admirável do que a insensataempreitada a qualeste... ai!
Na palavra “insensata”, o príncipe dera-lhe umchute.
- Pare comisso, filhomeu. E você, estimável vizir, querele pare ounão, de maneira alguma permita que a torrente de seueloqüenteverbo seja interrompida. Poisnadaassentamelhor a pessoas de gravidade e compostura do quesuportar os malesmenorescom resignação.
- Ouvir é obedecer - falou o vizir, revirando-se umpoucopara o lado, a fim de colocar o traseirofora do alcance do pé de Rabadash: - Nadalhe parecerá mais desculpável, se não estimável, ao príncipe, do que esta... hum... arriscadatentativa, especialmenteporser inspirada peloamor da mulher. Portanto, se pordesgraça o príncipecair nas mãos deles, certamentenão irão matá-lo. Mais
ainda: pode sermesmoque, emboranão seqüestre a rainha, à vista de suagrandebravura e da suaextremapaixão, os corações deles acabem por favorecê-lo.
- Está aíumbomponto de vista, velhotagarela - falou Rabadash. - Muitobom, apesar de tersaído de seubestunto.
- O louvor do meuamo é a luz do meucoração - replicou Achosta. - Emsegundolugar, ó Tisroc, cujoreinado deve ser e será sempiterno, creio que, com o auxílio dos deuses, é muitoprovávelque Anvar caia nas mãos do príncipe. Se assim for, agarramos Nárnia pelopescoço.
Fez-se uma longapausa. A sala ficou tãosilenciosaque as duas moças mal tinham coragem de respirar. Falou o Tisroc, afinal:
- Vá, filhomeu. Faça como disse. Masnão espere de mimajudaouconivência. Não o vingarei se morrer, e não irei libertá-lo se o meterem numa prisão. E, caso fracasse ou triunfe, se verter uma gota a mais do nobresangue narniano, e disso advenha a guerra, meufavorlhe será negado parasempre, e o seuirmão ocupará o seulugarentre os calormanos. Agora vá. Seja rápido, discreto, e que a sorte o favoreça. Que o poderio de Tash, o inexorável, o irresistível, dirija a sualança e a suaespada.
- Ouvir é obedecer - bradou Rabadash, que, depois de ajoelhar-se umsegundoparabeijar as mãos do pai, deixou rapidamente a sala. Paragrandedesgosto de Aravis, que sentia câimbrashorríveis, o Tisroc e o vizir permaneceram.
- Vizir, será certoque nenhuma outraalma sabe da reuniãoque os trêsaqui mantivemos?
- Senhormeu, não é possívelquemaisalguém o saiba. Por esta mesmarazão propus, e a suainfalívelsabedoria concordou, queeraaqui, no VelhoPalácio, que deveríamos nosencontrar, ondereunião alguma jamais foi feita e nenhum dos familiares tem ocasião de entrar.
- Muitobem. Se alguém soubesse, estaria mortoemmenos de uma hora. E tambémvocê, meuprudentevizir, esqueça tudo o que se passou aqui. Limparei do meuprópriocoração e do seutambémtoda a lembrançaemrelação aos planos do príncipe. Ele partiu sem o meuconhecimento e sem o meuconsentimento, não sei paraonde, pormotivo de suaviolência, precipitação e rebeldia juvenis. Ninguém ficará maissurpreso do quenós, eu e você, ao saberque Anvar está nas mãos dele.
- Ouvir é obedecer.
- Poristomesmo, vocêjamais pensará, lá no fundo do seucoração, queeu sou o maisduro de todos os pais, capaz de enviar o primogênito numa missãoquelhe possa causar a morte. Pormaisqueistolhe agrade, a você, quenãoamamuito o príncipe, comobem vejo no fundo da suaalma.
- Impecável Tisroc, se o comparo com o amor ao meusenhor, eu de fatonãoamo o príncipe, nem a minhaprópriavida, nem a água, nem o pão, nem a luz do sol.
- Sãoelevados e certos os seussentimentos. Tambémnãoamonada dessas coisas, se as comparo com o poder e a glória do meutrono. Se o príncipetriunfar, teremos Arquelândia e talvez, depois, Nárnia. Se falhar... se falhar tenho mais dezoito filhos... e Rabadash, ao estilo dos filhosmaisvelhos dos reis, estava começando a ficarperigoso. Mais de cinco tisrocs em Tashbaan morreram antes da horaporqueseusfilhosmaisvelhos, esclarecidospríncipes, acabaram se cansando de esperarpelotrono. Melhorqueele esfrie o sangue no estrangeiro do que o afervente aqui na inação. E agora, meuexcelentevizir, o excesso de minhaafliçãopaterna está me levando para a cama. Mande os músicospara os meusaposentos. Mas, antes de deitar-se, revogue o perdãoque assinamos para o terceirocozinheiro. Estou sentindo dentro de mimprognósticosevidentes de indigestão.
- Ouvir é obedecer.
O grão-vizir engatinhou pelasala, levantou-se, abriu a porta, fez a reverência e saiu. O Tisroc permaneceu sentado e quieto no divã Aravis chegou a temerque tivesse caído no sono. Porfim, comgrandeschiados e suspiros, ele alçou o enorme corpanzil, fez sinalparaque os escravos o precedessem com as velas, e saiu. Fechou-se a porta. A sala estava novamenteimersaemescuridão. As duas moças podiam afinalrespirar de verdade.
ATRAVÉS DO DESERTO
- Quehorror! Quehorror! - gemeu Lasaralina. - Estou apavorada, querida. Estou tremendo da cabeça aos pés. Veja só.
- Vamos - disse Aravis, quetambém tremia. - Já foram para o palácionovo. Estaremos salvasláfora. Como demoraram! Leve-me logopara a porta da muralha, depressa.
- Masvocê tem coragem, querida? Olhe o meuestado de nervos! Não, porfavor: vamos descansarumpouco e voltarparacasa. No momento, nemconsigodarumpasso. Quenervosismo, querida! Quero voltarparacasa.
-Voltar?!
- Vocênão entende, não é? Você é tãopouco compreensiva! - falou a amiga, começando a chorar.
“Não é horapara compaixão”, pensou Aravis.
- Olhe uma coisa! - e deu umas boas sacudidelas em Lasaralina. - Se disser outravez a palavravoltar, e se nãomelevarimediatamentepara a porta do rio... sabe o que vou fazer? Vou láfora e dou umberro... e pegam a gente.
- E nós duas então iremos mo... morrer! Vocênão acabou de ouvir o que disse o Tisroc - queelevivaparasempre!
- Ouvi, mas prefiro morrer a mecasarcom Achosta. Logo, emfrente!
- Você está sendo má, Aravis. Veja só o meuestado de nervos.
Mas Lasaralina acabou entregando os pontos. Voltaram, seguiram porumcompridocorredor e chegaram porfim ao arlivre.
Estavam agora no jardim do paláciocomaquelesterraçosemtabuleiros, cercados pelas muralhas da cidade. A lua brilhava. Uma desvantagem das aventuras é esta: quando chegamos aos lugaresmaisbelos, estamos emgeraltãoaflitos e apressadosquenão somos capazes de apreciá-los. Porisso Aravis (apesar de lembrar-se anosdepois) teve apenas uma vagaimpressão de relvados cinzentos, fontes murmurantes, sombras esguias de ciprestes.
Quando chegaram ao fim da rampa, e a muralhalhes barrou o caminho, Lasaralina tremia tantoquenão foi capaz de abrir o portão. Aravis passou à frente e o fez. Lá estava o rio, espelhando o luar, comumpequenocais de amarração e simpáticas canoas.
- Adeus - disse Aravis - e muitoobrigada. Perdoe se fiz jogosujo, mas pense um pouquinho de quem estou escapando.
- Querida, nãoquerdesistir? Agorajá viu que Achosta é umgrandehomem!
- Grandehomem! Umescravorepugnante e rastejanteque a chutes no traseiro responde comlisonjas, mas vai guardando tudo, e acaba levando o Tisroc a aceitarumplanoque causará a morte do própriofilho!
- Aravis! Aravis! Comovocê pode dizer uma coisa destas? E sobre o Tisroc - queelevivaparasempre! - também! Se ele fez aquilo, é porque está certo!
- Adeus e... achei lindos os seusvestidos. E suacasatambém é linda. E você vai ter uma vidalinda... Sóquenão é a minhavida. Feche a portadevagar.
Escapou dos ternosbeijos da amiga, pulou paradentro de uma canoa e daí a pouco estava emplenorio, com duas luas, uma no céu, outra no fundo das águas. Comoera boa a brisa!
Quando se aproximava da outramargem ouviu o pio de uma coruja. “Muitomaisagradável!” Vivera sempre no campo e detestara todos os minutospassadosem Tashbaan.
Ao pisaremterra, viu-se cercadapelaescuridão, pois a elevação do terreno e as árvores impediam a passagem do luar. Mesmoassim conseguiu descobrir o caminho trilhado por Shasta, divisando porfim os túmulosescuros. E, pormaisvalenteque fosse nesse momento, o seucoração estremeceu. E se os outrosnão estivessem lá? E se, no lugar deles, estivessem os morcegos? Mas ergueu a cabeça e caminhou firmepara os túmulos.
Aindanão os alcançara quando deu com Bri, Huin e o escudeiro.
- Pode voltarpara a casa de suasenhora - disse Aravis, esquecendo-se de que o escudeirosópoderiavoltar no diaseguinte, quando os portões da cidade se abrissem. - Tome umdinheiropelotrabalho.
- Ouvir é obedecer - disse o escudeiro, partindo com uma pressainesperada na direção da cidade. Também a cabeça dele estava cheia de morcegos.
Aravis viu-se acariciando Huin e Bri como se fossem animaiscomuns.
- Aí vem Shasta! Graças ao Leão! - disse Bri. Shasta de fato apareceu, agoraque o escudeiro se fora.
- Não há ummomento a perder! - E em rápidas palavras Aravis falou sobre a expedição de Rabadash.
- Cãestraiçoeiros! - bradou Bri, sacudindo a crina e batendo com o casco. - Umataqueemtempo de paz, semdeclaração de guerra! Pois vamos lhescolocarsal na ração. Chegaremos antes deles.
- Chegaremos? - duvidou Aravis, pulando para a sela de Huin. - Shasta sentiu umpouco de inveja daquele puloperfeito.
- Bru-ru! - bufou Bri. - Firme, Shasta? Vamos dar uma boa largada!
- O príncipetambém vai largar imediatamente - falou Aravis.
- Conversa de gentehumana - respondeu Bri.
- Impossívelorganizarumesquadrão de duzentos cavalos e duzentos cavaleiros, comágua, comida e armamentos, e largarimediatamente. Bem, qual a nossadireção? Norte?
- Agora tem uma coisa - disse Bri. - Isso de galoparduranteumdia e uma noitesó existe nas histórias. Tem de ser no passo e no trote. Quando formos a passo, vocêsaí, humanos, podem descer e ir a passotambém. Pronta, Huin? Vamos! Para Nárnia! Para o Norte!
A princípio foi uma beleza. Com a noitealta, a areia perdera o calor acumulado durante o dia e a temperaturaeraagradável. Portodos os lados a areia resplandecia comoáguaoucomo uma grandebandeja de prata. Fora o barulho dos cascos, o silêncioeracompleto. Shasta seria capaz de dormir, casonão tivesse de desmontarparacaminhar de vezemquando.
Parecia uma cavalgadasemfim. Sumiu o luar e tiveram a impressão de avançar nas trevasporhoras e horas. Quando Shasta percebeu que distinguia o pescoço e a cabeça de Bri commaisnitidez, lenta, lentamente, a grandeplanura cinzenta começou a surgir. Parecia ummundomorto. Terrivelmente cansado, Shasta notou que fazia frio e que os seuslábios estavam secos. E o tempotodo o ranger do couro, o tinir dos cabrestos e o ruído dos cascos, não o proctiproc de umcaminhoduro, masum pructupruc sobre a areia ressequida.
Porfim, muitolonge, do ladodireito, surgiu no horizonteumlongoriscocinza, maispálido. Depoisumclarão avermelhado. Eraenfim o amanhecer, a manhãquenemumsópassarinho festejava. E, como estava ficando maisfrio, Shasta começou a gostar das caminhadas a pé.
Com o sol, tudo mudou num instante. A areia cinzenta ficou amarela e cintilava comoque salpicada de diamantes. As sombras de Shasta, Huin, Bri e Aravis alongavam-se à esquerda. Na lonjuraemfrente o topoduplo do Monte Piro refulgia, e Shasta achou que se haviam afastado umpouco da linhareta.
- Um pouquinho mais à esquerda, um pouquinho mais - comandou.
O melhor de tudoeraolharparatrás e ver Tashbaan diminuindo de tamanho na distância. Os túmulos ficaram quaseinvisíveis, engolidos pelavastacorcovamaciçaqueera a cidade do Tisroc. Todos se sentiram melhor.
Masnãopormuitotempo. Tashbaan, muitolongequando olharam pelaprimeiravez, parecia permanecer no mesmolugarenquanto avançavam.
Shasta parou de olharparatrás, paranãoter a impressão de estarsempre no mesmolugar. O sol passou a serumincômodo, pois o fulgor da areia doía-lhe nosolhos. O jeitoera esfregá-los e continuar fixando o Monte Piro e comandando a rota.
Notou que o calor havia chegadoquando, ao apear, sentiu umbafoquente na facecomo se tivesse abertoumforno. E, quando ia desmontarmais uma vez, deu umberro de dor, umpédescalço na areiaardente e outro no estribo.
- É claro! Eu devia ter-me lembrado disso. Fique na sela. Não há outrojeito.
- Vocênão tem problema - disse Shasta para Aravis, que caminhava ao lado de Huin. - Você tem sapato.
Aravis nada respondeu. Estava comumarsuperior. E infelizmenteessearsuperiorerapropositado.
A trote, a passo, rã-rã-rã dos couros, tlim-tlim-tlim dos cabrestos, cheiro de cavalo, cheiro de simesmo, calor, ofuscamento, dor de cabeça - eis o queera, e sempre a mesmacoisa, quilômetroapósquilômetro. E Tashbaan semprelá, no mesmo lugar, nuncamaislonge, e as montanhas à frentesempre no mesmolugar, nuncamaisperto. Não acabava mais, rã-rã-rã, tlim-tlim-tlim, cheiro de cavalo, cheiro de gente.
Experimentaram todos os passatempos, mas o temponão passava. E eraprecisofazer uma força monstruosa paranãoficar pensando emrefrescos gelados num palácio de Tashbaan, águaclara batendo na pedra, leitefresco e cremoso, masnão cremoso demais... E, pormaisque a gentenão queira pensar, mais a gentepensa.
Entretanto, acabou surgindo uma coisadiferente: umbloco de pedrafincado na areia, com uns dezmetros de altura. Com o soljámuitoalto, a sombra do bloco de pedraerapouca. Foi paraesse pouquinho de sombraque correram e aí se amontoaram. Comeram e beberam umgole de água. Não é fácildarágua a umcavalocomumcantil, mas Bri e Huin souberam usar os beiçoscomhabilidade.
Ninguém chegou a ficarsatisfeito. Ninguém falou nada. Os cavalos espumavam e respiravam ruidosamente. As crianças estavam pálidas.
Apósumligeirodescanso, partiram novamente. Os mesmosruídos, os mesmosodores, os mesmosfulgores, atéque as sombras dos quatro passaram para o ladodireito e foram ficando cadavezmais compridas, como se quisessem alcançar a extremidadeoriental do mundo. Com o solposto, felizmente teve fim a reverberação das areias; mas o bafoquente do chãoeracadavezpior. Quatropares de olhos procuravam excitadamente um dos sinais referidos pelocorvo. Massó havia areia. Já iam surgindo as estrelas, e as quatrocriaturas se sentiam infelizes, sedentas e exaustas. Mal se erguia a luaquando Shasta -com a vozestranha de quem está de bocaseca -gritou:
- Lá está!
Não havia erro. Lá estava uma inclinação do terreno, umdeclivecommassas de pedra dos lados. Os cavalos, cansados demaisparafalar, picaram o passo e, emdoisminutos, entraram na garganta. A princípio foi aindapiorque no areai aberto; respirava-se comdificuldadeentre as paredes de pedra, e o luarmal penetrava. A inclinação prosseguia, e as rochas de lado a lado pareciam altospenhascos. Encontraram vegetação, plantascomocactosespinhosos e umcapimque picava a pele. Os cascos dos cavalos pisoteavam seixos e pedrasgrandes. Por todas as curvas iam buscando ansiosamentequalquersinal de água. Os cavalosquasenão podiam mais, extenuados; Huin, aos tropeções, ia ficando paratrás. Jáquase desesperados, depararam comum fiozinho de água correndo porumcapinzalmenosáspero. O fiozinho virou umarroio, o arroio virou umriacho e o riacho acabou virando umrio de verdade. De repente, Shasta, meiozonzo, percebeu que Bri havia parado e queele caíra da sela. Diante deles estava uma cachoeira formando uma piscina de águafresca. Os cavalos começaram a beber, a beber, a beber. Shasta entrou com a águapelosjoelhos e foi meter a cabeçadebaixo da cachoeira. Talvez tenha sido o melhormomento da suavida.
Sódezminutosmaistarde os quatro começaram a observar os arredores. A luajá subira o bastanteparaespreitar o vale. Relvamacia alongava-se pelas margens do rio; além, moitas e árvores. Floresescondidas na sombra perfumavam o ar. Vindo do escuro da mata chegou umsomque Shasta jamais ouvira: umrouxinol.
Fatigados demaisparafalaroucomer, os cavalos deitaram-se como estavam. O mesmo fizeram Aravis e Shasta.
Cerca de dezminutosapós, a prudente Huin abriu a boca:
- Não devemos dormir; temos de chegar na frente daquele Rabadash.
- Ninguém vai dormir - disse Bri com vagareza. - Sódescansarum pouquinho...
Shasta percebeu que iriam todospegar no sono se elenão se levantasse e fizesse alguma coisa. Resolveu levantar-se para convencê-los a prosseguir. Masnãoagora... daqui a pouco...
E logo a lua brilhava e o rouxinol cantava acima de doiscavalos e duas crianças - todos os quatro a ressonar.
Aravis foi a primeira a acordar. O soljá ia alto, e as horasmatinaismaisfrescas estavam perdidas. “Minha culpa” - disse parasimesmacomraiva, dando umpulo e começando a despertar os outros. “Não se pode esperarquecavalos continuem acordados depois de uma canseiracomo essa, mesmoque falem. E o rapaztambém, poisnão tem o hábito. Maseu, sim, eu devia saber.”
Os outros estavam tontos de sono.
- Bru-ru! - disse Bri. - Dormindo de sela, eu! Nuncamais, quecoisa desagradável!
- Depressa, vamos, já perdemos metade da manhã.
- Antes temos de comerum capinzinho - disse Bri.
- Não podemos esperar.
- Porque essa pressa? - perguntou Bri. -Já atravessamos ounão o deserto?
- Masaindanão estamos em Arquelândia; temos de chegarláantes de Rabadash.
- Ó, mas devemos estarmuito à frente dele - respondeu Bri. - Essecorvo, amigo de Shasta, não disse queesteera o caminhomaiscurto?
- Elenão disse nadasobremaiscurto - respondeu Shasta. - Disse apenasmelhor, porcausa do rio. Pode ser o maiscomprido.
- Bem, não posso irsemcomerqualquer coisinha - disse Bri. - Tire minhasrédeas, Shasta.
- Porfavor - falou porsuavez Huin, muito encabulada. - Também sinto como Bri quenão posso mais. Masquandocavalos levam humanos nas costasnãosão muitas vezesobrigados a continuar, mesmonão agüentando mais? E não descobrem no fimqueainda eram capazes de suportarmaisumpouco? Poisentão, será quenão podemos fazer uma forcinha, agoraque estamos livres? Tudoemnome de Nárnia.
- Acho, madame - falou Bri esmagadoramente - que conheço um pouquinho mais do que a senhora a respeito de expedições e marchas forçadas ou da resistência de umcavalo!
Huin ficou quietinha; eratãosensível, tãogentil, tãocordata! Mas, na verdade, estava com a razão: se Bri estivesse carregando nas costasum tarcaã, este teria achadoqueelepoderiacontinuarpor muitas horas. Masjustamente uma das pioresconseqüências da escravidão é esta: quando uma criaturanão é maisforçada a fazer as coisas, quasejá perdeu de todo o poder de forçar a simesma.
Esperaram que Bri comesse umpouco e bebes-se água. Huin e as crianças, naturalmente, também comeram e beberam.
Deviam ser umas onze horasquando partiram. Mesmoassim Bri não se mostrava com a mesmadisposição da véspera. Foi Huin, embora a maisfraca e mais cansada dos dois, que abriu a cavalgada.
O valeeratãobonito, com as águasfrescas, relvados e floressilvestres, que dava a tentação de irvagarosamente.
UMEREMITA NO CAMINHO
Depois de várias horas de jornada, o vale se alargou; o rioque seguiam afluía a umriomaislargo e turbulento, que descia da esquerdapara a direita, na direção do poente. Belapaisagem desvendava-se, comcerrosbaixos, umapós o outro, no sentido das próprias montanhas do Norte. Alteavam-se à direitacumesrochosos, dois deles riscados de neve nas arestas. À esquerda, colinas de pinheiros, gargantas estreitas, picos azulados que se reproduziam atéonde a vista podia alcançar. A cordilheira na frente abaixava-se para o quedecerto deveria ser o desfiladeiroque levava de Arquelândia a Nárnia.
- Bru-ru-ru, o Norte, o verdeNorte! - relinchou Bri.
De fato, as colinasmaisbaixas pareciam a Shasta e Aravis muitomaisverdes e vivas do que o normal, jáque os seusolhos eram acostumados à paisagem do Sul. O entusiasmo cresceu quando chegaram emalgazarra ao ponto de encontro dos doisrios.
O rioque rolava das montanhasmaisaltaserapordemaisveloz e encachoeirado paraquelhes ocorresse a idéia de cruzá-lo a nado. Mas, depois de investigarrioacima e rioabaixo, acabaram achando umlugarquepoderiaser vadeado. O ronco das águas, o arfrio, as libélulas, tudo aumentava a estranhaemoção de Shasta.
- Meusamigos, estamos em Arquelândia! - disse Bri, comorgulho, a chapinhar na direção da margemnorte. Acho queeste é o rioque chamam de FlechaSinuosa.
- Só espero que cheguemos a tempo - murmurou Huin.
Depois começaram a subir, lentamente, ziguezagueando quasesempre. Nemestradas, nemcasas à vista. Ao invés de agrupadas no que se poderiachamar de uma floresta, as árvores se dispersavam portodos os lados. Shasta, que passara toda a vidaemcampos de poucas árvores, jamaisvira tantas e tãodiferentes. Coelhos debandavam à aproximação deles, e umbando de gazelas saiu de repente correndo pelamata.
- Não é mesmo uma maravilha?! - exclamou Aravis.
Shasta virou-se na sela e olhou paratrás: nem o menorsinal de Tashbaan; só o deserto, sempre o mesmo, exceto a gargantaverdepelaqual haviam passado, estendendo-se até o horizonte.
- Ei, o que é aquilo? - disse ele de repente.
- Aquilo o quê? - perguntou Bri, virando-se. Huin e Aravis fizeram o mesmo.
- Aquilo. Parece fumaça. Será umincêndio?
- Tempestade de areia, acho - replicou Bri.
- O ventonão está tãoforteassimparalevantartantaareia - disse Aravis.
- Vejam! - exclamou Huin. - Umas coisas brilhando. Sãoelmos... e armaduras. E estão andando... andando paracá.
- Por Tash! - exclamou Aravis. - É o exército. É Rabadas.
- Semdúvida - concordou Huin. - É o queeu temia. Depressa! Temos de chegar a Anvar antes deles - e, semoutrapalavra, pôs-se a galopar. Bri levantou a cabeça e fez o mesmo.
- Vamos, Bri, vamos! - incentivava Aravis. Foi uma árduacorridapara os cavalos. A cadacrista de serra sucedia umvale, depoisoutracrista, depoisoutrovale; embora soubessem que seguiam maisoumenos a direçãocerta, ninguémtinhaidéia da distânciaque os separava de Anvar. Do alto de uma serra, Shasta olhou novamenteparatrás: emvez de uma nuvem de pó, viu umbandoescuro movendo-se na margem do rio. Pareciam formigas procurando uma passagem.
- Rápido! - gritou Aravis. - Eramelhornãoter vindo, se fosse paranãochegar a Anvar antes deles. Galope, Bri, galope! Afinal, você é umguerreiro!
Shasta ficou calado, pensando: “O coitadojá está dando o máximo!” Bri alcançara Huin e ambos corriam lado a ladosobre a relva. Parecia impossívelque Huin pudesse resistirpormuitomaistempo.
De repente, umbarulhoatrás deles deixou-os completamenteatônitos. Nãoeracomo esperavam, o barulho de cascos e tinidos de armaduras, mesclados talvezcomgritos de guerra calormanos.
Shasta percebeu logo do que se tratava: era o mesmorugidoque ouvira na noite do encontrocom Aravis e Huin. Bri também percebeu. Seusolhos reluziram, vermelhos, e suasorelhas deitaram-se paratrás. Sóentão descobriu quenão ia tãovelozquanto podia. Shasta imediatamente notou a mudança de velocidade. Empoucossegundos ultrapassaram Huin. “Não é justo!”, pensou Shasta, “achei queaqui estaríamos a salvo de leões.”
Tornou a olharparatrás. Tudonítido: uma criaturaimensa e fulva estava atrás deles, com o corpo roçando no chão, comoumgatoque se preparaparasaltar a uma árvorequandoumcachorroestranho entra no quintal. E se aproximava cadavezmais.
Ao olhar de novopara a frente, outrasurpresa: o caminho estava impedido porummuroverde de uns trêsmetros de altura. No centro do muro havia umportãoaberto. Bem no meio da entrada do portão estava umhomemalto, vestidocomummantoalaranjado, apoiando-se numa bengala. A barbaquaselhe batia nosjoelhos.
Shasta viu tudo de relance e virou-se novamenteparatrás. O leãojá roçava com as garras as pernastraseiras de Huin, quenãotinhamaisesperançanosolhos esbugalhados.
- Vamos socorrer Huin - gritou Shasta na orelha de Bri.
Bri maistarde garantiu nãoterouvidonada, ounãoterentendido; como foi, emgeral, cavalo de palavra, devemos acatar o que disse.
Shasta puxou os pés dos estribos, virou as pernaspara o ladoesquerdo, hesitou duranteumpavorosocentésimo de segundo e pulou. Doeu horrivelmente mas, antes de terconsciência disso, já ia cambaleando paraajudar Aravis. Jamaistinhafeito uma coisa dessas emtoda a vida e mal sabia porque estava fazendo isso naquele instante.
Um dos maisterríveisruídos do mundo, umberro de cavalo, partiu dos beiços de Huin. Aravis debruçava-se sobre o pescoço dela, tentando puxar a espada. E já os três - Aravis, Huin e o leão - estavam quaseemcima de Shasta. O leão ergueu-se nas patastraseiras, imenso, e estendeu as terríveisgarras da patadireitapara Aravis, que deu umgrito e rodopiou sobre a sela. O leão atingiu os ombros dela. Transtornado peloterror, Shasta conseguiu aproximar-se da fera, semumporrete, sem uma pedra na mão. Gritou, bobamente, como se o leão fosse umcachorro: “Vai paracasa! Jáparacasa!” Por uma fração de segundo viu-se cara a caracom o leão, a umpalmo da bocarra escancarada. Aí, paraseuabsolutoespanto, o leão, aindasobre as patastraseiras, refreando-se de súbito, virou-se e saiu emdisparadaparatrás.
Shasta correu para o portão do muroverde. Huin, tropeçando e quase caindo, transpunha naquele instante o portão. Aravis ainda se mantinha na montaria, com as costas banhadas de sangue.
- Entre, minhafilha, entre - dizia o homem de longas barbas. - Entre, meufilho. - E Shasta entrou ofegante.
O portão fechou-se e o estranhobarbudojá ajudava Aravis a desmontar.
Estavam num largopátiocircular, cercadopor uma sebealta. Também via-se aliumtanquecheio de águaabsolutamentetranqüila. A árvoremaisbonitaque Shasta vira na vida sombreava o tanque e, além deste, ficava uma casinha de pedracoberta de folhas de palmeira. Ouviam-se balidos, e a umcanto vagavam umas cabras. O chãoera recamado de relva.
- O senhor... o senhor... é o rei Luna de Arquelândia? - disse Shasta, semfôlego.
O velho fez quenão:
- Sou o eremita. Nãopercatempocomperguntas, meufilho. Obedeça. Esta senhorita está ferida. Seuscavalos estão extenuados. Neste momento Rabadash está encontrando umvau no FlechaSinuosa. Se correragora, sempararparadescansar, chegará a tempo de advertir o rei Luna.
O coração de Shasta quase parou ao ouvir essas palavras, poisjánãolhe restavam reservas de força. Pordentro rebelava-se contra o quelhe parecia a crueldade da missão. Aindanão aprendera que a recompensa de uma boa ação é geralmenteter de fazer uma outra boa ação, maisdifícil e melhor. Masapenas perguntou:
- Onde está o rei?
O eremita apontou com o bastão:
- Olhe. Do outrolado do portãoporondevocê entrou, há umoutroportão. Abra-o e siga emfrente, sempreemfrente, porterrenoplanoouescarpado, macioouduro, secoouúmido. Eulhe garanto que encontrará o rei Luna, sempre à frente. Mas corra, corra, corra sempre!
Shasta assentiu com a cabeça e desapareceu no portão, correndo. O eremita ajudou Aravis a entrar na casa. Depois de bastantetempo regressou ao pátio, dizendo para os cavalos:
- E a vez de vocês, meusprimos.
Tirou as rédeas e as selas de ambos e os escovou melhor do que o faria o cocheiro de umrei.
- Não pensem maisemproblemas, meusprimos, e repousem. Aqui têm água e capim. Depoisqueeuordenharminhasprimas, as cabras, vocês poderão comer uma papa de farelo.
- Senhor - interveio Huin, sóagora recuperando a voz -, a tarcaína vai se salvar?
- Eu, que sei muitas coisas do presente - replicou o eremitacomumsorriso -, pouco sei das coisas futuras. Porissonão sei se qualquer homem oumulherouanimal, emtodo o mundo, estará aindavivoquandoanoitecerhoje. Mas incline-se à esperança. A moça provavelmente viverá.
Ao voltar a si, Aravis viu-se deitada de bruços numa camarente ao chão, masextremamentemacia, emumquarto de paredes de pedra. Sem se lembrar do que acontecera, tentou mudar de posição, mas sentiu terríveisdores nas costas. Então lembrou-se de tudo.
O eremita entrou, carregando uma vasilha de madeira.
- Como está, minhafilha?
- Minhascostas doem muito, mas estou bem. Ajoelhado, ele colocou a mão na testa de Aravis e tomou-lhe o pulso.
- Não tem febre. Ficará boa. Poderá levantar-se amanhã. Beba isto.
Levou a vasilha aos lábios da moça, que fez uma careta, pois o gosto do leite de cabra assusta umpoucoquem o tomapelaprimeiravez. Mas Aravis bebeu tudo e sentiu-se melhor.
- Pode dormirquanto quiser, filha. Seusferimentos estão bemtratados; ardem masnãosãograves. Deve serumleãoestranho: emvez de arrancá-la da sela e meter-lhe os dentes, apenas lanhou as suascostas. Dezlanhos: dolorosos, masnadaprofundosnem perigosos.
- Tive sorte.
- Minhafilha: já vivi cento e noveinvernos e jamais encontrei uma coisachamadasorte. Há algo de misterioso no que está acontecendo mas, esteja certa, se precisamos saber o que é, saberemos.
- E quanto a Rabadash e os seus duzentos cavalos?
- Acho quenão passarão poraqui. Devem ter encontrado umvau no rio e seguido paraleste. De lá tentarão cavalgaremlinharetapara Anvar.
- Coitado de Shasta! Tem de irmuitolonge? Chegará primeiro?
- Há muitaesperança. Aravis deitou-se de lado:
- Dormi durantemuitotempo? Parece que está ficando escuro.
O eremita olhou pelaúnicajanelaque dava para o norte.
- Esta escuridãonão é a da noite. As nuvens estão vindo do Pico da Tempestade. O mautempoaquisemprechega de lá. Haverá fortecerraçãohoje à noite.
No diaseguinte, tirando a dor nas costas, Aravis sentia-se tãobemque, depois de comermingau e tomarleite, levantou-se da cama, autorizada peloeremita. Foi imediatamenteconversarcom os cavalos. O tempo mudara, e o pátio, como uma grandetaçaverde, transbordava de luz.
Huin deu umtroteaté Aravis e deu-lhe umbeijoeqüino.
- Ondeanda Bri? - falou Aravis, depois das perguntas recíprocas de “como está se sentindo?”, “dormiu bem?”.
- Está ali - respondeu Huin, apontando com o focinhoparaumcanto do pátio. - Gostaria quevocê conversasse comele. Não consegui arrancar-lhe uma palavra.
Foram encontrar Bri viradopara a sebe; apesar de terouvido o ruído dos passos, não se voltou para recebê-las.
- Bomdia, Bri - cumprimentou Aravis. - Como está passando?
- O eremita diz que provavelmente Shasta chegará a tempo; acho queassim acabam os nossosproblemas. É Nárnia, enfim, Bri!
- Nuncamais verei Nárnia! - disse Bri, baixinho.
- Não está se sentindo bem, meucaro? - perguntou a moça.
Sóentão Bri virou-se paraela, com uma cara de tristezaquesó os cavalos têm.
- Vou voltarpara a Calormânia - disse.
- O quê!? Vai voltarpara a escravidão?!
- Vou. Só sirvo paraserescravo. Comquecara vou chegar a Nárnia? Deixei uma égua, uma moça e um rapazinho entregues aos leões e saí emdisparadaparasalvar a minhamíseracarcaça!
- Todosnós saímos emdisparada - disse Huin.
- Shasta, não! - fungou Bri. - Pelomenos correu na direçãocerta: paratrás. E é isto de queaindamaisme envergonho. Eu, queme proclamo umcavalo de guerra e me vanglorio de mais de cembatalhas, serbatidoporum rapazinho humano: uma criança, ummero potrinho quejamais empunhou uma espada, e quejamais teve bonsexemplosemsuavida!
- Entendo - disse Aravis. - Estou sentindo a mesmacoisa. Shasta foi maravilhoso. Tambémeu sou ruim, Bri. Desdequenos encontramos, trato Shasta comsuperioridade... E é ele, afinal, que está acima de todosnós. Mas creio que é melhorficar e pedir-lhe desculpas do quevoltarpara a Calormânia.
- No seucaso, estou de acordo - respondeu Bri. - Vocênão está desgraçada, maseu perdi tudo.
- Meubomcavalo - disse o eremita, que se aproximara semser notado, poisseuspésdescalçosnem chegavam a fazerbarulhosobre o relvado. - Meubomcavalo, vocênão perdeu nada, a nãoser a sua auto-estima. Que é isso, meuprimo? Não afaste de mim as orelhas. Se você de fato é tãohumildecomo falava há umminuto, tem de saberouvir. Vocênão é propriamente o grandecavaloque pensava ser, porestar vivendo entreinfelizescavalosmudos. E claroqueeramaisvalente e maisinteligente do que os outros. Masvocênão podia ser de outraforma. Issonão significa que será alguémespecialem Nárnia. Mas, enquanto souber quenão é ninguémemespecial, será umcavalomuito honrado. E agora, se você e minhaprimaquadrúpedeme acompanharem até a porta da cozinha, iremos providenciar-lhes maisumpouco de mingau de farelo.
UM VIAJOR SEM AS BOAS VINDAS
Quando Shasta transpôs o portão, viu à suafrenteumdeclivecoberto de grama e de pequenas urzes, que ia dar numas árvores. Naquele momentonão conseguia pensaremnada, não dava parafazerplanos: o importanteeracorrer. Às vezes tropeçava e porpouconão torceu o tornozelo nas pedrassoltas. As matas tornavam-se mais fechadas e o sol se fora, masnemporisso o calor diminuíra. Eraum desses diasemque os mosquitos parecem multiplicar-se. Cobriam a cara de Shasta, quenem se dava ao trabalho de espantá-los.
Tataratatá!
O menino ouviu de repenteumsomalegre de trompas. Daí a poucojá se achava numa grandeclareira, no meio de uma multidão. Paraele, pelomenos, pareceu uma multidão. Eram só quinze ou vinte cavalheirosemtrajes de caça, comsuasmontarias. No centro, alguém segurava o estriboparaqueoutro montasse. E esteoutroeraumrei, o reimaisjovial, mais gordinho, mais cara-de-maçã, maispisca-piscaque se pode imaginar.
O rei desistiu logo de montarquando Shasta apareceu. Estendeu os braçospara o menino e o seurosto se iluminou, ao gritar, com uma profundavoz de baixo:
- Corin! Meufilho! Descalço... e emfarrapos! O que...
- Príncipe Corin, não - disse Shasta ofegante. - Pareço... sei... comele... encontrei SuaAltezaem Tashbaan... mandalembranças...
O rei contemplava Shasta com uma expressão de extraordinárioespanto.
- É o rei Luna? - Não esperou resposta: - Senhorrei... vá voando para Anvar... feche as portas da cidade... inimigos... Rabadash com duzentos cavalos.
- Tem certeza disso, rapaz? - perguntou umoutrocavalheiro.
- Vi com os meusprópriosolhos. Vim correndo na frentedesde Tashbaan.
- A pé? - perguntou o cavalheiro, enrugando umpouco a testa.
- Cavalos... com o eremita - respondeu Shasta.
- Chega de perguntas, Darin - disse o rei Luna. - Vejo pelacarinha dele que está falando a verdade. Vamos montar. Arranjem umcavalopara o rapaz. Sabe galopar, meuamigo?
Emresposta, Shasta meteu o pé no estribo, logoquelhe trouxeram o cavalo, e pulou para a sela. Fizera issocom Bri umas cemvezes nas últimas semanas. Jánão parecia umsaco de feno.
Ficou contente ao ouvir o lorde Darin falarpara o rei:
- O rapaz tem a postura de umverdadeirocavaleiro, Majestade. Garanto que tem sanguenobre.
- O sangue dele, aí é que está a questão - respondeu o rei, fixando os olhosem Shasta, com aquela curiosa e ansiosaexpressão.
- Movimentaram-se todos. Se a postura de Shasta eracorreta, o freio o atrapalhava, poisjamais usara aquiloquando no dorso de Bri. Com o rabo do olho viu o que os outros faziam (como a gente faz num banquete, quandonão sabe qualfacaougarfo deve usar). Masnemmesmo ousava dirigir o cavalo; sabia queeste seguiria os outros. Emboranão fosse umcavalofalante, o animaltinhabastanteinteligênciaparaperceberque o garotonão usava chicotenemesporas e quenãoera de todosenhor da situação. Shasta acabou fechando a fila.
Respirando bem, semmosquitos, missão cumprida, pelaprimeiravez (desde a chegada a Tash-baan, há tantotempo!) começava a divertir-se.
Estranhou pornãover no alto os picos das montanhas, poisnunca estivera numa região montanhosa. “Sãonuvens, já sei. Aqui nas montanhas estamos no céu. Quero sabercomo é dentro de uma nuvem. Que gozado!” O sol estava quase sumindo à esquerda.
Seguiam por uma estradaáspera, em boa velocidade. A certaaltura, entraram no nevoeiro, ou o nevoeiroveioparacima deles. Ficou tudo cinzento. O cinzento foi virando pardocomalarmanterapidez.
À frente da coluna, de quandoemquando, soava a trompa, e a cadavez o som parecia vir de maislonge. Shasta poruminstantenão viu os outros, esperando que, ao fazer a curva, os descobrisse. Pois fez a curva e não viu nada. O cavalo ia a passo. “Vamos, cavalinho, vamos!” Ouviu então a trompa, muitofraca. Tinha a impressão de que alguma coisahorrorosa aconteceria se cutucasse umcavalocom os calcanhares. Mas parecia o momento de tentar.
- Escute uma coisa, cavalinho: se vocênãocorrer, meto meuscalcanhares na suabarriga!
O cavalonão tomou conhecimento da ameaça. Shasta firmou-se na sela, agarrou-se com os joelhos, cerrou os dentes e tacou os calcanhares no cavalocomtoda a força.
Resultado: o cavalo troteou, oucoisa parecida, cincoouseispassos, e voltou à boa vida. Já estava escuro. “Teriam esquecido de tocar a trompa?, pensou. “Bem, de qualquerforma, mesmo a passo devemos chegar a algumlugar. Só espero que nesse lugarnão esteja Rabadash com a suagente.”
Começou a sentirraiva daquele cavalo; e também começou a sentirfome. Estava chegando a umpontoemque a estrada fazia uma bifurcação. Qual seria o caminho de Anvar? Foi quando ouviu umbarulho pelas costas, umruído de cavalos a trote. “É Rabadash!”, pensou. “Queestrada devo pegar? Se eutomar uma, ele pode pegar a outra; mas, se fico aqui na encruzilhada, eu é que vou serpego.” Apeou e conduziu o cavalopelocaminho da direita.
Aproximava-se o som da cavalhada. Já deviam estar na encruzilhada. Com a respiraçãopresa, ficou aguardando. Quecaminho tomariam?
Ouviu umbrado: “Alto!” Depois, ruídoscavalares, ventas assoprando, cascos golpeando, tapinhas empescoços. E uma voz falou:
- Atenção! Já estamos perto do castelo. Lembrem-se das instruções. Devemos chegar a Nárnia ao nascer do sol; matem o menospossível. Nesta incursão, umlitro de sangue narniano é maispreciosoquetrêslitros do seuprópriosangue. Nesta incursão, eu disse! Os deuses hão de propiciar-nos uma horamaisfeliz, aívocêsnão deixarão nadavivoentreCair Paravel e o Deserto do Oeste. Masaindanão chegamos a Nárnia. É diferenteaquiem Arquelândia. Só a rapidez importa no assalto ao castelo do rei Luna. Será meu, dentro de uma hora. Mostrem o seuvalor. O castelo será de vocês. Nada quero da pilhagem. Executem todos os machosbárbarosdentro das muralhas, atémesmo os recém-nascidos, e o resto será de vocês: mulheres, ouro, jóias, armas e vinho. O homemquehesitar ao cruzar as portas do castelo será queimado vivo. Emnome de Tash, o irresistível, o inexorável -em frente!
Comgrandeestrépito, a coluna adiantou-se e Shasta pôde respirar: tinham tomado o outrocaminho. Levaram umtempoenormeparapassar, pelomenosera o que parecia, e sóentão Shasta realmente compreendeu o que significavam “duzentos cavalos”. Quando o estrépito desapareceu, só ficou o docebarulho das ramagens.
Sabia o caminhopara Anvar, masnão podia irparalá. Seria correrpara os braços armados dos homens de Rabadash. “Quediabo de coisa posso fazer?” Não tendo respostaparasimesmo, montou de novo e seguiu pelaestradaque havia escolhido, na vagaesperança de encontrar uma cabana na qual pudesse pedirabrigo e comida. Lembrou-se, é claro, de retornar à casa do eremita, masjánãotinha a menoridéia da direção. A estrada deveria irparaalgumlugar.
Sim, masisso depende do que chamamos de algumlugar. A estrada no caso seguia entre as matasmais espessas, sempremaisfrias. Ventos gelados continuavam a impelirblocos de névoasobre Shasta semparar. Não estando acostumado aos lugares montanhosos, ignorava que estava a uma grandealtitude, talvezjá no alto da picada.
“Devo ser o caramaisdesgraçado de todo o mundo”, pensou. “Tudo dá certocom os outros, comigonunca. Os nobres e as damas de Nárnia conseguiram fugir de Tashbaan; eu fiquei lá. Aravis, Bri e Huin estão no bem-bomcom o velhoeremita; fui o único a ter de sair. O rei Luna e suagente estão a salvo no castelo, com os portõesbem fechados, maseu fiquei de fora.”
Teve tantapena de simesmoque as lágrimas começaram a deslizarporseurosto.
Umsusto interrompeu os seustristespensamentos. Alguémou alguma coisa caminhava a seulado. Nas trevasnão podia vernada. E a coisa (oupessoa) ia tãosilenciosamentequeelemal podia ouvirsuaspisadas. Ouvia, sim, uma respiração: o invisívelcompanheiro de fato respirava comvontade; devia ser uma criaturaenorme. Foi umgrandechoque.
Relampejou na suacabeça uma lembrança: ouvira dizerque existiam gigantesnospaíses do Norte. Mordeu os lábios, apavorado. Mas, agoraquetinhaummotivorealparachorar, parou de chorar.
A coisa (se é quenãoera uma pessoa) ia tãosilenciosaquetalvez fosse meraimaginação. Já estava certo disso, quando ouviu ao seuladoumsuspirogrande e profundo. Nãoeraimaginação! O fato é que sentiu o hálitoquente desse longosuspiro na mãodireita.
Se o cavalo fosse mesmobom - ou se ele soubesse comofazer o cavalo tornar-se bom - teria arriscadotudo numa corridadesabalada. Comoissonãoerapossível, seguiu a passo, com o companheiroinvisível caminhando e respirando a seulado. Acabou não agüentando mais:
- Quem é você? - murmurou baixinho.
- Alguémque esperava porsuavoz - respondeu a coisa. O tomnãoeraalto, masamplo e profundo.
- Você é... umgigante?
- Pode mechamar de gigante - disse a grandevoz. - Masnãome pareço com as criaturasquevocêchama de gigantes.
- Nãoconsigo vê-lo - falou Shasta, depois de muitotentar. Uma coisaterrívellhe passou pelacabeça. Com a vozquasetrêmula de choro, perguntou:
- Vocênão é... não é uma coisamorta... é? Vá embora, porfavor. Nuncalhe fiz mal. Ó, sou o sujeitomaisdesgraçado do mundo!
Sentiu novamente o hálitoquente da coisa no rosto e na mão.
- Mortonãorespiraassim. Pode mecontar as suastristezas, rapaz.
O hálito deu a Shasta umpoucomais de confiança. Contou entãoquejamais conhecera pai e mãe, queforacriadoporumpescadormuitosevero. Contou sobrecomo fugira, sobre os leõesque os perseguiram, os perigosem Tashbaan, a noiteentre os túmulos, as ferasque uivavam no deserto, o calor e a sededurante a caminhada, e o outroleãoque surgiu quando estavam quase chegando, Aravis ferida... Contou, porfim, que estava comfome, poisnão comia nada havia muitotempo.
- Não acho que seja umdesgraçado - disse a grandevoz.
- Masnão foi falta de sorteter encontrado tantosleões?
- Só há umleão - respondeu a voz.
- Não estou entendendo nada. Havia pelomenosdois naquela noite...
- Só há umleão, mas tem o péligeiro.
- Como sabe disso?
- Eusou o leão.
Shasta escancarou a boca e não disse nada. A voz continuou:
- Fui eu o leãoque o forçou a encontrar-se com Aravis. Fui eu o gatoque o consolou na casa dos mortos. Fui eu o leãoque espantou os chacaisparaquevocê dormisse. Fui eu o leãoque assustou os cavalos a fim de que chegassem a tempo de avisar o rei Luna. E fui eu o leãoque empurrou para a praia a canoaemquevocê dormia, uma criançaquasemorta, paraqueumhomem, acordado à meia-noite, o acolhesse.
- Então foi vocêque machucou Aravis?
- Fui eu.
- Masporquê?!
- Filho! Estou contando a suahistória, não a dela. A cadaumsóconto a históriaquelhepertence.
- Quem é você?
- Eumesmo - respondeu a voz, com uma entonaçãotãoprofundaque a terra estremeceu. E de novo: - Eumesmo - comummurmúriotãosuavequemal se podia perceber, e parecia, no entanto, queessemurmúrio agitava toda a folhagem à volta.
Shasta jánão temia que a voz pertencesse a alguma coisaque o devorasse; nem temia que fosse a voz de umfantasma. Uma coisanova aconteceu, umtremorquelhe deu certaalegria.
A névoa passou do pardoparacinza e do cinzaparabranco. Devia ter começado poucoantes, enquantoele estava absorvido conversando com a coisa.
A brancura ao redorjá começava a fulgir. Passarinhos cantavam emalgumlugar. A noite estava porumfio. Já enxergava bastantebem a crina e as orelhas do cavalo. Uma luzdourada surgiu à esquerda, e Shasta pensou que fosse o sol.
Caminhando a seulado, maior do que o cavalo, estava umLeão. O cavalonão parecia termedo, outalveznão o visse. Era dele quevinha a luzdourada. Ninguémjamais viu algotãobelo e terrível.
Felizmente o menino vivera toda a suavida no Sul, e não havia escutado os casos, cochichados em Tashbaan, sobreumtétricodemônio de Nárnia que costumava aparecer na forma de leão. E, naturalmente, tambémtudo ignorava sobre as verdadeiras histórias de Aslam, o GrandeLeão, o filho do Imperador-dos-Mares, o Rei dos GrandesReis de Nárnia. Mas, depois de espiarmais uma vez o Leão, pulou do cavalo. Não conseguia dizernada, mastambémnão queria dizernada, e sabia quenada precisava dizer.
O GrandeRei encaminhou-se paraele. A juba e umperfumeestranho e solene, que nela pairava, cercaram o menino. O Leão tocou a fronte de Shasta com a língua. Os olhos de ambos encontraram-se. Depois, instantaneamente, a brancura da névoa misturou-se com o brilhoardente do Leão, num redemoinho de glória, e os dois sumiram. Shasta se viu só, com o cavalo, na relva de uma colina, sobumcéuazul. Todas as aves do mundo cantavam.
SHASTA EM NÁRNIA
“Foi tudoumsonho?”, indagava Shasta parasimesmo. Masnão podia ter sido umsonho, poisvia na relva a grande e penetrantemarca da patadireita do Leão. Quepeso devia ter! O maisespantoso, porém, veiodepois: a depressão começou a encher-se de água e transbordou, formando uma correntezaque começou a descerpelarelva.
Shasta matou a sedecomumbomgole, molhou o rosto e a cabeça. Era uma águafria e claracomo o cristal. Sacudindo a cabeçamolhada, começou a observar o que se passava emredor.
Parecia seraindamuitocedo. A paisagemeracompletamentenova a seusolhos, umvaleverde, respingado de árvores, através das quais pôde ver o reflexo de umrioque seguia para o noroeste. Serras rochosas alteavam-se na distância. Virando-se, viu que a elevação na qual se encontrava pertencia a umbloco montanhoso bemmaisalto.
- Estou entendendo: aquelas são as montanhasentre Arquelândia e Nárnia. Eu estava do lado de lá, ontem. Devo terpassadopelodesfiladeirodurante a noite. Quesorte! Sortecoisa nenhuma, foi Ele. E agora estou em Nárnia.
Tirou a sela e o freio do cavalo, dizendo: “Eta cavalinho ruim!” Semtomarconhecimento, o animal começou a pastar; eletambémnãotinha uma boa opiniãosobre Shasta.
- Ah, se eu gostasse de grama! Bem, não adianta nadavoltar a Anvar, toda sitiada. É melhorprocurar alguma coisaparacomerláembaixo no vale.
Sentindo o orvalho gelado nospésdescalços, chegou a uma mata. Passou a seguir uma espécie de trilhasob as árvores e logodepois ouviu uma vozinha:
- Bomdia, vizinho.
Tentou localizarquem falara e acabou descobrindo uma criaturatodaespinhentaque acabava de enfiar a carinhaescuraentre as árvores. Eraumporco-espinho. Shasta respondeu:
- Bomdia, masnão sou vizinho. Sou umforasteiropor estas bandas.
- Hum? - fez o porco-espinho, inquisidor.
- Vim pelas montanhas... lá de Arquelândia, sabe?
- Uma boa caminhada! Nunca fui lá.
- E acho quealguém deve saberqueumexército de ferozes calormanos está atacando Anvar neste instante.
- Não diga! Quecoisa! E contam que os calormanos habitam a centenasoumilhares de quilômetros daqui, lá no fim do mundo, depois de um marzão de areia!
- Não é tãolongequantovocêpensa. Alguma coisaprecisaserfeita. O seuGrandeReiprecisasaber...
- É claro, é precisofazer alguma coisa. Acontece que estou indo para a camatirar uma soneca. Alô, vizinho.
As últimas palavras foram endereçadas a umcoelho cor-de-sorvete-de-nata, cujacabeça acabara de apontar ao lado do caminho. Peloporco-espinho, o coelho ficou a par da situação. Concordou tambémque eram notíciasgraves e quealguémtinha de procuraralguémparaque alguma coisa fosse feita.
E assim foi. A cadainstantenovascriaturas surgiam, algumas dos galhos das árvores, outras de debaixo da terra, atéque a reunião ficou integrada porcincocoelhos, umesquilo, duas gralhas, umfauno e umcamundongo. Todos falavam ao mesmotempo e todos estavam de acordocom o porco-espinho.
A verdadeera esta: naquela era de ouro e paz, quando a feiticeira e o invernonão reinavam mais, e o GrandeRei Pedro governava emCair Paravel, os serezinhos dos bosques de Nárnia se sentiam tãofelizes e segurosque acabaram se tornando descuidados.
Mas naquele momento duas pessoasmaispráticas chegaram à mata. Uma eraumanãovermelhocujonome parecia ser Dufles. A outraeraumcervo, uma bela e senhorialcriatura de olhoslímpidos, comflancos e pernastãoesguiosque pareciam poder quebrar-se à força de doisdedos.
- Salve o Leão! - exclamou Dufles, ao inteirar-se das notícias. - O que estamos fazendo aqui parados, batendo boca? Inimigosem Anvar! A notícia tem de serenviadaimediatamente a Cair Paravel. O exército deve ser convocado. Nárnia deve levantar-se parasocorrer o rei Luna.
- Ah! - exclamou o porco-espinho. - Masvocênão vai achar o GrandeReiemCair. Foi para o Norte, dar uma tunda naqueles gigantes. Aliás, porfalaremgigantes...
- Quem levará a nossamensagem? - interrompeu o anão. - Existe alguémaquimaisveloz do queeu?
- Eu sou veloz - respondeu o cervo. - Qual é a mensagem? Quantos calormanos?
- Duzentos, chefiados por Rabadash. Além disso...
Mas o cervojá estava longe, batendo de uma sóvez no chãocom as quatropatas.
- Não sei paraondeele vai - disse o coelho -, poisnão encontrará o reiemCair Paravel.
- Encontrará a rainha Lúcia - disse Dufles. - E... o que está havendo com o humano? Está verdinho. Está desmaiando e deve ser de fome. Quandovocê comeu pelaúltimavez, jovem?
- Ontem de manhã - respondeu Shasta, fracamente.
- Venha comigo - falou o anão, passando o seu bracinho pelacintura de Shasta a fim de ampará-lo. - Vizinhos, quevergonha!
Murmurando acusações a simesmo, o anão conduziu Shasta paradentro da mata. As pernas do menino tremiam quando chegaram a uma casinha comchaminé e fumaça. Entraram pelaportaaberta e Dufles gritou:
- Alô, irmãos, temos uma visitapara o café. Umcheirosimplesmentedelicioso chegou até
Shasta. Era a primeiravezque sentia o aroma de ovoscomlombo defumado e cogumelos a estalar na frigideira.
- Cuidadocom a cabeça - disse Dufles. Masjáeratarde, pois Shasta acabava de meter a testa na verga da porta. - Sente-se agora, rapaz. A mesa é umpoucobaixaparavocê, mas o banquinho também é baixo. Perfeito. E aqui está o mingau... e aqui uma jarra de creme de leite... e aqui uma colher.
Shasta já havia terminado o mingauquando os doisirmãos do anão - Rogin e Deduro - serviram o prato de lombocomovos e cogumelos. E maisainda: café, leite e torradas.
Eraumpaladarnovo e deliciosopara Shasta. Era a primeiravezqueviatorradas. Tambémpelaprimeiravezvia aquela coisamacia e amarelaque passavam na torrada, pois os calormanos usam, quasesempre, óleoemvez de manteiga. E a própriacasaeramuitodiferente da choupana escura e cheirando a peixe de Arriche, comotambémeradiferente dos salões atapetados dos palácios de Tashbaan. O tetoera baixinho e tudoerafeito de madeira. Havia um relógio-cuco, uma toalha de mesacom quadradinhos vermelhos e brancos, uma jarra de floressilvestres e cortinasalvas nas janelas. O que atrapalhava umpoucoerater de usar os talheres e as xícaras dos anões. Mas o seu pratinho estava semprecheio, e a todoinstante os anões diziam “manteiga, por favor”, ou “uma outraxícara de café”, ou “umpoucomais de cogumelo”, ou “quetal se a gente fritasse mais uns ovinhos”...
Depois de comerem aténãopodermais, os anões tiraram a sorteparasaberquem lavaria os pratos. Rogin deu azar.
Dufles e Deduro levaram Shasta paraumbancorente à paredeexterna; espicharam todos as pernas, comgrandessuspiros de satisfação; os anões acenderam seuscachimbos. O sol estava quente e o orvalho desaparecera da relva: chegaria a serquentedemais se não soprasse uma leveviração.
- Agora, forasteiro - disse Dufles -, vou mostrar-lhe a terra. Daqui se pode ver praticamente todo o sul de Nárnia, e temos certoorgulho da nossapaisagem. Ali à esquerda, depois daquelas serras, você pode apreciar as montanhas do Oeste. Aquela colina arredondada à direita é a Colina da Mesa de Pedra. Logoali...
E aí foi interrompidoporumronco de Shasta, morto de sonopelaviagemnoturna e pelaexcelenterefeição. Os anões fizeram sinaisumpara o outroparanão despertá-lo. E cochicharam tanto, e tantosgestos fizeram enquanto se retiravam, que Shasta teria despertado, se não estivesse exausto.
O menino dormiu o diainteiro e só acordou paracear. As camas eram pequenasdemaisparaele, mas os anões arranjaram-lhe uma cama de urze no chão. Shasta nemsequer se virou no leito, nemtampouco sonhou durantetoda a noite. Na manhãseguinte, haviam acabado de tomarcaféquando ouviram umbarulhoempolgante:
- Trompas! - disseram os anões. Saíram todos correndo parafora.
As trompas soaram de novo: nãotãosolenescomo as de Tashbaan, nãotãoalegresquanto as do rei Luna - claras, agudas, empolgantes. O ruído, vindo das matas do oriente, logo se misturou ao barulho de cascos de cavalos. Logodepois surgiu à frente deles umbatalhão.
Vinhaemprimeirolugar o Senhor de Peridan, montando umcavalobaio, empunhando o grandepavilhão de Nárnia: umleãovermelhoemcampoverde. Shasta o reconheceu imediatamente. Depois, trêscavaleiros, doisemcavalos de batalha e umsobreumpônei. Os doisprimeiros eram o rei Edmundo e uma dama de cabeloslouros, comumrostomuitojovial, usando elmo e malha de ferro, levando além disso umarcocruzadonosombros e um carcás cheio de flechas. (“A rainha Lúcia”, murmurou Dufles.) O do pôneiera Corin. Seguia-se o principalcorpo do exército; homensemcavaloscomuns, homensemcavalosfalantes (quenão se incomodavam de ser montados emocasiõesespeciais), centauros, ursos, grandescãesfalantes e, porfim, seisgigantes. Pois há gigantesbonsem Nárnia. Apesar disso, Shasta mal teve coragem de olharparaeles; levamuitotempopara a gente se acostumarcomcertascoisas.
Assimque o rei e a rainha chegaram à cabana, os anões começaram a fazer profundas reverências, e Edmundo tomou a palavra:
Foi uma algazarra: gente descendo dos cavalos, conversas, mochilas sendo abertas... Corin veio correndo e agarrou Shasta pelas mãos.
- Não é possível! Vocêporaqui! Quealegria! Mas a coisa está feia. Mal tínhamos chegado a Cair Paravel, ontempelamanhã, quando encontramos o cervocom as novas de umataque a Anvar. Vocênão imagina...
- Quem é o amigo? - perguntou o rei Edmundo ao apear.
- Não está vendo, senhor? É o meusósia: o rapazque foi confundido comigoem Tashbaan.
- Majestade, porfavor - disse Shasta para o rei Edmundo. - Não fui umtraidor, nãomesmo. Tive queouvir os planos. Masjamais passou pelaminhacabeçacontarpara os inimigos o que ouvi...
- Estou vendo agoraquevocênão é umtraidor, rapaz - disse o rei Edmundo, colocando a mãosobre a cabeça de Shasta. - Mas, se não quiser passarportraidor, da próximaveznãoouça o quenão é para os seusouvidos. Mas está tudobem.
Eram tantas ordens e indas e vindasque, por uns minutos, Shasta perdeu Corin de vista. Depois ouviu o rei Edmundo dizerbemalto:
- Pelajuba do Leão, príncipe, já é demais! Será queVossaAltezajamais tomará jeito? Você dá maistrabalho do quetodoumexército!
Shasta embarafustou-se pelamultidão e viu que o rei Edmundo parecia de fatomuitozangado. Corin, porsuavez, mostrava-se umpouco envergonhado; e havia umestranhoanão sentado no chão, fazendo caretas, enquantodoisfaunos o ajudavam a livrar-se da armadura.
- Se tivesse trazido meutônico - disse a rainha Lúcia -, daria umjeito nisso. Mas o GrandeReinãoquerqueeu o leve às guerrascomuns; devo guardá-lo para os casos de extremanecessidade.
Acontecera o seguinte: depois de falarcom Shasta, Corin forapuxadopelocotoveloporum anão-soldado que se chamava Espinhei.
- Que há, Espinhei? - Corin perguntou. O anão respondeu:
- Alteza, nossamarcha de hojenos levará ao desfiladeiro à direita do castelo de seupai. Podemos estar lutando antes do anoitecer.
- Sei disso - respondeu Corin. - Sensacional!
- Sensacionalounão - retornou Espinhei -, tenho ordens estritas do rei Edmundo para impedi-lo de entrar na luta. Masvocê poderá assistir à batalha, e issojá é o suficientepara a suaidade.
- Que besteirada! - explodiu Corin. - É claroque vou entrar na luta. Até a rainha Lúcia vai formarcom os arqueiros.
- A rainha pode fazercomoela quiser - respondeu Espinhei. - VossaAlteza é que está sob a minhaguarda. E tem de jurarsolenementeque ficará ao meulado, atéquelhedê autorização parapartir. Do contrário - é a palavra de SuaMajestade - teremos de seguircom os punhos amarrados comodoisprisioneiros.
- Eulhe sento a mão na cara se tentarmeamarrar - disse Corin.
- Gostaria de verVossaAltezafazerisso.
Era o suficienteparaum rapazinho como Corin. Emumsegundoele e Espinhei estavam embolados no chão. Teria sido uma boa luta: Corin eramaisalto e de maisenvergadura, mas Espinhei eramaisvelho e maisforte. Masnão houve luta: porpurafalta de sorte, Espinhei pisou numa pedrasolta e tacou o nariz no chão. Quando tentou levantar-se, viu que havia torcido o tornozelo, uma torçãoque o impediria de andaroucavalgardurante umas duas semanas.
- Veja o que fez - disse o rei Edmundo. - Privou-nos de umguerreiro experimentado na hora da luta!
- Eutomo o lugar dele, Majestade - disse Corin.
- Escute! - falou Edmundo. - Ninguém duvida da suacoragem. Masum rapazinho numa batalhasó é umperigopara o seuprópriolado.
O rei foi chamado paradecidiroutracoisa, e Corin, após desculpar-se cavalheirescamente com o anão, correu até Shasta e murmurou:
- Depressa! Há umcavalo sobrando e a armadura do anão. Meta-se nela antesquealguém veja.
- Paraquê?
- Orabolas! Paraque possamos entrar na batalha! Não vai querer?
- Oh, ah... é... claro... quero - Shasta não contava com essa e começou a sentirumcalafrio na espinha.
- Ótimo - disse Corin. - Levante a cabeça. Agora, o cinto da espada. Devemos ir no fim da fila e maisquietos do quecamundongo. Depoisque a batalhacomeçar, não terão tempo de se lembrar de nós.
A BATALHAEM ANVAR
Lá pelas onze horastodo o exército estava empé de guerra, marchando paraoeste, com as montanhas à esquerda. Corin e Shasta iam na retaguarda, logodepois dos gigantes. Lúcia, Edmundo e Peridan estavam entretidos com os planos da batalha. Assim, quando Lúcia perguntou: “Masonde está aquele principezinho levado da breca?”, Edmundo simplesmente respondeu: “Na vanguarda é quenão está, e issojá é uma boa notícia. Deixe pra lá”.
Shasta contou a Corin suasaventuras, explicando que aprendera a montarcomumcavalo e quenão sabia usar o freio. Corin deu-lhe instruções, relatando aindatudosobre a viagempormar, quando fugiram de Tashbaan.
- Porondeanda a rainha Susana?
- EmCair Paravel. Elanão é como Lúcia, quebrigafeitoumhomem, oupelomenoscomoum rapazinho. A rainha Susana parece mais uma dama. Não freqüenta guerras, apesar de sermuito boa no arco e flecha.
Com o caminho ficando maisestreito e escarpado, passaram a desfilaremfilaindiana ao longo da borda do precipício. Shasta estremeceu ao pensarque passara pelomesmolugar na noiteanterior, e viu quenão correra perigoporque o Leão permanecera a seulado.
Duas águias giravam láemcima no azul.
- Sentem o cheiro da batalha - disse Corin. - Sabem que estamos preparando comidaparaelas.
Shasta não gostou.
Ao atingirem o fim do desfiladeiro, o panorama abriu-se umpoucomais e Shasta pôde descortinartoda a Arquelândia, nevoenta e azul.
O exército fez alto e abriu-se emlinha, executando novosarranjos de formação. Sóentão Shasta se deu conta do impressionantedestacamento de ferasfalantes (leopardos, panteras, etc.) que foram postar-se à esquerda. Os gigantes foram enviadospara a direitamas, antes de assumirem suasposições, sentaram-se paracalçar as enormesbotascomponteirasque vinham carregando nas costas e quelhes chegavam aos joelhos. Puseram entãoseus pesados cajadosnosombros e formaram para o combate. Os arqueiros, com a rainha Lúcia, caíram para a esquerda, e Shasta os viu -tiiim... tiiim... - experimentar as cordas dos arcos. Portoda a parteera a mesmacoisa: gente colocando elmos, puxando espadas, cingindo cintos, quasesemdizerpalavra. Eratudomuitosolene e dava medo.
De longe chegava o som de gritos e umsurdo tontom.
- Golpes de aríete - murmurou Corin. - Estão forçando as portas. - E acrescentou, com uma expressãoagoramuitoséria: - Porque o rei Edmundo nãoparteparacima deles? Não agüento essa demora. É de morte!
Shasta concordou com a cabeça, esperando nãoaparentartodo o medoque sentia.
Porfim, a trompa! O pavilhão desfraldou-se no vento, com o trote dos cavalos. Todo o cenário abriu-se de repente: umpequenocastelo de muitostorreões, com o portão à frente deles. Nãotinhafosso, infelizmente. Sobre as muralhas viam-se os defensores. Embaixo, cerca de cinqüenta calormanos, desmontados, forçavam os portõescomumvastotronco de árvore. Masbemdepressa a cena mudou. O grosso dos homens de Rabadash estava a pé, prontoparainvadir os portões. E tinham acabado de perceber os narnianos que desciam da serra.
Semdúvida alguma, os calormanos eram muitobem exercitados. Emumsegundo, toda uma linha do inimigo estava novamente a cavalo, rodopiando para enfrentá-los, saltando de encontro a eles.
E umgalopeagora. O espaçoentre os doisexércitos diminuía de momento a momento. Rápido, maisrápido. Espadas nuas, escudos à altura do nariz, oraçõesfeitas, dentescerrados.
Shasta estava morrendo de medo. Mas de repente pensou quetermedo naquele momentoerasentirmedoem todas as outras lutas de suavida. “Agoraoununca!”
Quando as duas formações se encontraram ele teve uma idéiamuitopálida do que estava acontecendo. Foi uma confusão assustadora, umestrépito de enlouquecer. A espadanão demorou a serderrubada de suasmãos. Embaraçaram-se suasrédeas, e viu-se escorregando do cavalo. Aí uma lançaveio na suadireção e, enquantoele se agachava para evitá-la...
Mas de nadavaledescrever o combate do ponto de vista de Shasta, quepouco entendia da lutaemgeral e mesmo da suapequenaguerraparticular. Paracontar o querealmente acontecia, levarei vocêparabemlonge dali, paraonde o eremita se postava a olharpara a água do tanque, sob a árvorefrondosa, com Bri, Huin e Aravis a seulado.
Poiseraparadentro desse tanqueque o eremita olhava quando queria saber o que se passava no mundo, além dos murosverdes do eremitério. Como num espelho, conseguia ver no tanquecidadesmais longínquas que Tashbaan, naviosque deixavam os portos e até assaltantes e ferasque perambulavam pelas grandesflorestasentre o Ermo do Lampião e Teimar. Naquele diapouco deixou o tanque, nemmesmoparacomeroumatar a sede, pois sabia quegrandeseventos estavam acontecendo em Arquelândia. Aravis e os cavalostambém olhavam para o interior do poço. Emvez do céu e dos ramos refletidos, viam confusas formas coloridas que se moviam. Masnão viam comnitidez. Era o eremitaquelhes dizia de vezemquando o que ia vendo claramente. Umpoucoantes de Shasta ter seguido para a suaprimeirabatalha, ele começou a falarassim:
- Estou vendo uma... duas... trêságuias girando acima do Pico da Tempestade. Uma é a maisvelha de todas as águias. Não estaria lá se uma batalhanão estivesse paraexplodir. Ah... Agora vejo o motivopeloqual Rabadash e seushomens andaram tãoocupados o diatodo. Derrubaram uma grandeárvore e fizeram do troncoumaríete. Aprenderam alguma coisacom o fracasso do assalto da noitepassada. Procederia elecommaisinteligência se mandasse os homens fazerem escadas. Mas levaria maistempo, e ele é impaciente. Tresloucado! Ele deveria ter retornado para Tashbaan logodepois de fracassado o primeiroataque, poistodo o seuplano dependia da surpresa e da rapidez. Estão colocando o aríeteemposição. Os homens do rei Luna atiram de cima das muralhas. Caíram cinco calormanos; masmuitos restarão, mantendo os escudosacima das cabeças. Rabadash agora está transmitindo novasordens. Estão comele os senhores de maisconfiança, os cruéis tarcaãs das províncias do Oriente. Vejo até os seusrostos. Ali vai Coradin do Castelo de Tormunt, e Chlamash, e Ilgamute, o do lábio torcido, e umalto tarcaã com uma barbaescarlate...
- Pelajuba! É o meuantigoamo Anradin! - exclamou Bri.
- Psiu! - disse Aravis.
- O aríeteagoracomeça a funcionar. Sãoterríveispancadas, masnão posso ouvi-las. Não há portaouportãoque agüente. Ummomento! Alguma coisa no Pico da Tempestade assustou as aves. Estão vindo emmassa. Ummomento! Aindanão posso ver... Ah! Já vejo. A encostaleste está negra de cavaleiros. Já vi o pavilhão. Nárnia! Nárnia! É o Leãovermelho! Desabalaram serraabaixo. Estou vendo o rei Edmundo. Há uma damaentre os arqueiros. Ó!
- Que foi? - perguntou Huin, ofegante.
- Todos os gatos se lançam pelaesquerda da linha.
- Gatos? - estranhou Aravis.
- Gatões, bichoscomoleopardos - explicou o eremita, comimpaciência. - Estou entendendo: os gatos estão cercando os cavalos dos homens desmontados. Os cavalos dos calormanos já estão loucos de pavor. Os gatosjá estão entreeles. Rabadash refez o seuexército e contacomcemhomens a cavalo. Vão bater-se com os narnianos. Cemmetros os separam. Cinqüenta. Estou vendo o rei Edmundo e lorde Peridan. Há duas crianças na linha de Nárnia. Como o rei foi deixarque entrassem na batalha? Sódezmetros... as duas frentes se encontraram. Os gigantes à direita de Nárnia estão operando prodígios... masum acabou de cair... ferido no olho, suponho. A confusão é geral. De novo os doismeninos. PeloLeão! Um deles é Corin! O outro é parecidíssimo comele. Ah, é o pequeno Shasta, Corin lutafeitoumhomem. Matou um calormano. Quaseque Rabadash e Edmundo se encontram...
- E Shasta? - perguntou Aravis.
- Ó! Quemaluco! - resmungou o eremita. - Que rapazinho maluco e valente! Não sabe nada de guerra. Nem sabe usar o escudo. Está completamenteexposto. Não tem a menoridéia do quefazercom a suaespada. Ah, agora se lembrou... começou a rodar a espada... quase cortou a cabeça do seucavalo, e acabará cortando se nãotomarmaiscuidado. Mas a espada caiu-lhe da mão. É umcrimemandar uma criançapara uma batalha; nãoduramais do quecincominutos. Que maluquinho... Ó, caiu!...
- Morto? - perguntaram os três.
- Como vou saber? Os gatos trabalharam bem. Todos os cavalossemcavaleiros estão mortosou fugiram. Não há muita possibilidade para os calormanos. Os gatosagora se dirigem para a zonamaisquente da batalha. Estão saltando sobre os homens do aríete. Um caiu no chão. Ó, bom, muitobom! Os portões se abriram pelolado de dentro; vão enfrentá-los peito a peito. O rei Luna está entre os primeirosque saem; os outrossão os irmãosDar e Darin. Chegam atrás Tran, Shar e Col com o seuirmão Colin. Sãodez.... vinte... quase trinta agora. Os calormanos estão imprensados. O rei Edmundo está fazendo lancesmagníficos. Acabou de deceparcomgrandeprecisão a cabeça de Coradin. Muitos calormanos jogam suasarmas no chão e correm para as matas. Os outrosnão correm porque estão encurralados. Os gigantes apertam peladireita... os gatospelaesquerda... o rei Luna pelaretaguarda. Os calormanos se agrupam, lutando. Seu tarcaã jáera, Bri. Luna e Ilgamute estão combatendo corpo a corpo. Parece que o rei vai ganhar... Ele está indo muitobem... O rei ganhou! Ilgamute no chão. O rei Edmundo caiu, não... não... levantou-se outravez. Está frente a frentecom Rabadash. Estão lutando bem na frente do portão do castelo. Vários calormanos se entregam. Não sei o que aconteceu a Rabadash. Acho que morreu, tombado sob o muro do castelo, masnão sei. Chlamash e o rei Edmundo continuam a lutar, mas a batalhajá terminou portodos os lados. Chlamash se entrega. Acabou-se a luta! Os calormanos foram inexoravelmente batidos.
Ao cair do cavalo, Shasta se deu por perdido. Mas os cavalos, mesmo numa batalha, pisoteiam os sereshumanosmuitomenos do que se pode supor. Depois de uns dezminutos, reparou quenão havia cavalos revolteando porperto e que os ruídosque ouvia não eram de combate. Olhou emtorno. Compreendeu que os arqueiros e os narnianos haviam vencido. Os únicos calormanos vivos ao alcance da vista estavam aprisionados, e os portões do castelo estavam abertos; o rei Luna e o rei Edmundo apertavam-se as mãossobre o aríete. Os lordes e guerreiros conversavam animadamente. E de repentetudo se uniu numa tremendagargalhada.
Shasta correu parasaberqualera o motivo de tantoriso. E deu com uma cenamuitoengraçada. O infeliz Rabadash estava suspenso no ar, emalgumponto da muralha do castelo. Seuspés, meiometroacima do solo, davam chutesviolentos. Suamalha de ferro estava presa a uma saliênciaqualquer, apertando-lhe as axilas e cobrindo metade do seurosto. Umhomem surpreendido no momento de vestir uma camisaapertadademais -era esta a imagem de Rabadash.
Acontecera maisoumenos o seguinte: logo no início da batalha, um dos gigantes procurou acertar Rabadash com a suabotapontuda; não conseguiu, mas o ferrão rasgou a malha. Ao encontrar-se com Edmundo às portas do castelo, Rabadash tinhaum rasgão nas costas de suamalha. Acuado por Edmundo de encontro à muralha, pulou paraumlugarmaiselevado, tentando defender-se de cima. Desconfiando que a suaposição, acima da cabeça de todos, o tornava umalvofácilpara as flechas narnianas, resolveu voltarpara o nível do chão. Grandioso e assustador, deu umpulo e umgrito: “O raio de Tash cai do alto!” Mas pulou umpoucopara o lado, pois na frente estava ummonte de guerreiros. Foi aí, com uma precisãoadmirável, que o rasgão emsuamalha foi pescadoporumganchopreso na pedra do muro. (Antigamenteessegancho prendia umaroque servia paraamarrar as rédeas dos cavalos.) E lá ficou ele, como uma peça de roupaposta a secar, e todo o mundo dando gargalhadas.
- Deixe-me descer daqui, Edmundo - rosnou Rabadash. - Desça-me e vamos lutarcomoreis e machos; mas, se for covardedemaisparaisso, mate-me de uma vez.
- Com o maiorprazer... - disse Edmundo, que foi interrompidopelorei Luna:
- Nada disso, Majestade. - E o rei Luna dirigiu-se a Rabadash:
- Se VossaAlteza tivesse feitoessedesafio há uma semana, não haveria ninguémnosdomínios do rei Edmundo, do GrandeRei ao menor dos camundongosfalantes, que o teria recusado. Mas, porteratacado o castelo de Anvar emtempo de paz e semdeclaração de guerra, mostrou quenão é umcavalheiro, e simumtraidor, maisdigno do relho do carrasco do que de uma lutasingularcom uma pessoa honrada. Tirem-no daí; levem-no amarrado para o castelo, atéque a nossasatisfação se torne conhecida de todos.
Mãosfortes arrancaram a espada de Rabadash, que foi arrastado para o casteloentregritos, ameaças e maldições, e atélágrimas. Pois, emboracapaz de enfrentar a tortura, não suportava passarporridículo. Sempreforalevado a sérioem Tashbaan.
Nesse instante Corin foi correndo até Shasta, pegou-lhe a mão e puxou o amigoparaperto do rei Luna.
- Aqui está ele, pai, aqui está ele - gritou Corin.
- E tambémaqui está você, finalmente - disse o reicom uma vozmuitoríspida. - Entrou na batalha contrariando ordens! Umfilhomataumpai! Na suaidade, uma varada no traseiro vai melhor do que uma espada na mão, hã!
Todos notaram, no entanto, que o rei se sentia orgulhoso do filho.
- Não se zangue maiscomele, Majestade, porfavor - disse Darin. - SuaAltezanão seria filho de quem é se não tivesse herdado a suabravura. Mais afligiria SuaMajestade se ele fosse digno de reprimendapelafaltacontrária.
- Bem, bem - resmungou o rei. - Desta vez, passaremos porcima, mas da próxima... E agora...
O que aconteceu emseguida foi a maiorsurpresaque Shasta já teve emtoda a suavida: de repente se viu apertadonosbraços de urso do rei Luna, que o beijava nas duas bochechas. E, quandoele se encontrou de novo no chão, o rei falou:
- Fiquem aquijuntos, rapazes, paraquetodos possam vê-los. Levantem a cabeça! Senhores, olhem paraambos. Alguém pode ter alguma dúvida?
Shasta aindanão podia entenderporquemotivotodos fixavam os olhos nele e em Corin, nemporquetantaalegria.
LIÇÃO DE SABEDORIAPARA BRI
Olhando para o tanque, o eremita pôde contarpara Aravis e os cavalosque Shasta nãoforamortonem ferido, e de quemaneiraafetuosafora recebido pelorei Luna. Mascomosó podia ver a distância, e o tanquenão reproduzia sons, ignorava as palavras pronunciadas. Jánãovalia a penaolharpara as imagens do tanque, agoraque a luta terminara.
Na manhãseguinte, enquanto o eremita permanecia dentro de casa, os três discutiam o que deveriam fazer.
- Paramimjáchega - disse Huin. - O eremita tem sido muitobomparanós, e sou-lhe muitograta, mas estou ficando gordacomo uma potranquinha de estimação, comendo o diainteirosemfazerexercícios. Devemos seguirpara Nárnia.
- Hojenão, madame - disse Bri. - Nãogosto de sair às pressas. Nãoachaque a gente devia ficarmaisumpouco?
- Antes de tudo precisamos encontrar Shasta paradizeradeus... e pedirdesculpas - disse Aravis.
- Issomesmo! - falou Bri, comgrandeentusiasmo. - Era o queeu ia dizer.
- É claro - concordou Huin. - Espero queele continue em Anvar. Damos uma passadalá e nos despedimos dele. Fica no caminho. Sónão entendo porquenão partimos imediatamente. Afinal, acho que a intenção de todosnós é chegar a Nárnia...
- Acho quesim - disse Aravis. Ao começar a imaginar o que faria exatamentequando chegasse a Nárnia, a menina sentiu-se umpoucosozinha.
- Naturalmente - foi logo dizendo Bri. - Masnão há necessidade de sair às carreiras, se é que estão me entendendo.
- Bru-ru - murmurou Bri. - Bem, não está vendo, madame... trata-se de uma ocasiãoimportante... é a nossavolta à pátria... a entrada na sociedade... a melhorsociedade... é imprescindívelque causemos uma boa impressão... o quetalvez seja difícilcom a nossaaparênciaatual...
Huin deu uma risadaeqüina.
- É a suacauda, Bri! Já vi tudo! Você está querendo esperarque a suacauda cresça novamente. E nem sabemos se em Nárnia estão usando caudas compridas. Francamente, Bri, você é tãovaidosoquanto aquela tarcaína de Tashbaan.
- Quebesteira, Bri - falou Aravis.
- Pelajuba do Leão, tarcaína, não sou desse tipo - respondeu Bri, indignado. - Apenas guardo respeitopormimmesmo e peloscavalos da minhaespécie, nadamais.
- Bri - retornou Aravis, quenão estava muito interessada no corte da cauda -, há muitotempoquedesejo fazer-lhe uma pergunta: porque vive jurando peloLeãooupelajuba do Leão? Pensava quetinhahorror de leão.
- E tenho. Masquandofalo do Leão estou me referindo a Aslam, granderedentor de Nárnia, quenos livrou do inverno e da feiticeira. Todos os narnianos juram porele!
- Masele é umleão?
- É claroquenão é umleão - respondeu Bri, bastante chocado.
- Pelas históriasque contam em Tashbaan, ele é umleão - replicou Aravis. - Se não é umleão, porque o chamam de leão?
- Não pode entenderisso na suaidade - respondeu Bri. - E mesmoeu, quenão passava de um potrinho quando saí de lá, tambémnão entendo muitobem.
(Bri estava virado de costaspara a sebe ao dizerisso, e as outras duas o encaravam. Falava com uma certasuperioridade, com os olhos semi-cerrados. Porissonão notou a mudança de expressão de Aravis e Huin. Estas tinham bonsmotivosparaabrir a boca e arregalar os olhos, poisumenormeleão havia pulado sobre o muroverde; umleãocom o amarelomaisbrilhante, umleãomaisbelo, maisassustador e maior do quetodos os outrosleões. Saltou paradentro do pátio e caminhou para Bri, semfazerruído. Huin e Aravis, como se estivessem congeladas, tambémnão faziam o menorruído.) Bri continuou:
- Semdúvida, quando falam dele como sendo umleão, estão querendo dizerque é fortecomoumleão. Mas é falta de respeito. Se ele fosse umleão, seria umanimalcomoqualquerum de nós. Ora essa! (E Bri começou a rir.) Se fosse umleão, teria de terquatropatas, uma cauda, e suíças!... Rá, ru, ru. Socorro!
Poisquando acabara de falarsuíçasfora tocado por uma delas na orelha. Bri disparou comoflechapara o ladooposto do pátio e então virou-se; o muroeraaltodemais, e elenãotinhaporondefugir. Aravis e Huin correram atrás. Houve umsegundo de intensosilêncio.
Huin, embora tremesse da cabeça aos pés, deu umrelinchoesquisito, e foi paraperto do leão:
- Porfavor, você é tãobonito. Pode mecomer, se quiser. Melhorser devorada porvocê do queporumoutroqualquer.
- Filhaquerida - respondeu Aslam, beijando-lhe o focinho aveludado -, sabia quevocêbemcedo chegaria atémim. Que a alegria a ilumine.
Ergueu a cabeça e falou maisalto:
- Bri, meupobre, meuorgulhoso e assustado cavalo, chegue perto de mim. Maisperto, filho. Não ouse nãoousar. Toque-me. Aqui estão as minhaspatas, aqui está a minhacauda, aqui estão as minhassuíças. Sou umverdadeiroanimal.
- Aslam - disse Bri, com a voz estremecida -, acho que sou umestúpido.
- Feliz o cavaloque sabe disso ainda na juventude. Ou o humano. Chegue maisperto, Aravis,
minhafilha. Veja! Minhaspatassão de veludo. Nãoprecisatemeragora.
- Agora, senhor? - disse Aravis.
- Agora! Sou o únicoLeãoquevocê encontrou emtodos os seuscaminhos. Sabe porque a feri?
- Não, senhor.
- As arranhaduras nas suascostas, uma por uma, dorpordor, sangueporsangue, sãoiguais aos lanhosfeitos nas costas da escrava de suamadrasta, emrazão da drogaque a fez dormir. Você precisava saber o que é isso.
- Senhor...
- Pode falar, minhafilha.
- Elaainda pode ser punida porminhacausa?
- Criança, estou lhe contando a suahistória, não a dela. A ninguém será contada a história do outro. - Sacudiu a cabeça e falou aindamaisalto:
Estranhamente, não sentiram a menorvontade de conversarsobreele; cadaum saiu porumlado, caminhando paracá e paralá na relvaquieta, falando consigomesmo.
Uma horadepois os cavalos estavam comendo alguma coisa boa que o eremitalhes preparara. Aravis, ainda caminhando, pensativa, foi surpreendida porumsomagudo de trompa do lado de fora.
- Quem é?
- SuaAlteza, o príncipeCor, da Arquelândia - respondeu uma voz.
Aravis abriu o portão, cedendo passagem aos estrangeiros. Doissoldados entraram emprimeirolugar, postando-se comalabardasnosdoiscantos. Entraram emseguidaumarauto e o trompetista.
- SuaAltezaReal, o príncipeCor da Arquelândia, solicita uma audiênciacom a dama Aravis - disse o arauto. E aí fizeram reverência ao príncipeque entrava. Toda a comitiva retirou-se, fechando o portão.
O príncipe fez uma reverência, bastantedesajeitadaparaumpríncipe. Aravis respondeu à maneira dos calormanos e o fez comcapricho, pois aprendera isso na escola. Sóentão reparou no príncipe.
Umsimples rapazinho. Semchapéu, tinha os cabeloslouros envolvidos num aro de ouro. Suaprimeiratúnicaera de finíssima cambraia, e a de baixoera de um vermelho-reluzente. Trazia a mãoesquerda enfaixada.
Aravis olhou duas vezesantes de falar, espantada:
- Não é possível! É Shasta!
Shasta ficou logomuitovermelho e começou a falar rapidamente:
- Olhe aqui, Aravis, espero quenão pense que essa coisatoda foi feitapara impressioná-la; ouque fiquei diferenteoubesta a esseponto. Queria vircomminhasroupas de sempre, mas botaram fogo nelas e meupaime disse...
- Seupai? - estranhou Aravis.
- Pelojeito, o rei Luna é meupai. Dava parapensar... Corin é a minhacara. Somos gêmeos, entende? E meunomenão é Shasta, é Cor.
- Cor é umnomemaisbonito do que Shasta - disse Aravis.
- Nomes de irmãossãosempreassim na Arquelândia. ComoDar e Darin.
- Shasta... quero dizerCor - falou Aravis. - Quero lhedizer uma coisa, e tem de seragora. Desculpe porter sido pedante. Mas pode acreditarque fiquei arrependida antes de saberquevocêeraumpríncipe. Honestamente! Foi quandovocê enfrentou o Leão.
- AqueleLeãonãotinha a intenção de matá-la - disse Cor.
- Já sei disso.
Porummomento os dois ficaram calados e sérios, certos de quejá sabiam tudosobre Aslam. Aravis lembrou-se da mão enfaixada do amigo:
- Você participou de uma batalha? Issoaí é umferimento de guerra?
- Sóumarranhão - respondeu Cor, usando pelaprimeiravezumcertotomsenhorial. Mas daí a pouco caiu na risada: - Se quermesmosaber a verdadenão é umferimento de guerracoisa nenhuma; tive umpouco de pele arrancada; isso acontece a qualquerum, mesmoquenão chegue perto de uma batalha.
- De qualquerformavocê entrou na batalha. Deve ter sido formidável.
- Não é o quevocêpensa - replicou Cor.
- Mas Sha... Cor, vocêaindanãome disse nadasobre o rei Luna, e comoele descobriu quemvocê é.
- Melhor a gente sentar-se - disse Cor. - É uma históriameiocomprida. Paracomeço de conversa: papai é umótimosujeito. Mesmoquenão fosse o rei. Mesmoqueeu tenha de passaragorapor essa coisahorrívelque se chamaeducação, foi muitobomter encontrado meupai. Vamos à história. Corin e eu somos gêmeos. Uma semanadepois de nascermos, nósdois fomos levados a umsábiocentauro de Nárnia, parareceber uma bênçãooucoisa parecida. O talcentauroeraumprofetamuitobom, comomuitosoutroscentauros. Vocêtalvezaindanão tenha vistoumcentauro. Havia alguns na batalha de ontem. Gentefabulosa, masaindanãome acostumei de todocomeles. Aravis, pode estarcerta de uma coisa: a genteainda vai terque se acostumarcom uma porção de coisas nestas terras do Norte.
- É, semdúvida. Mas conte a história.
- Bem, logoque chegamos, o talcentauro olhou paramim e disse: “Umdia chegará emqueestemenino salvará a Arquelândia do maiorperigoqueelajá enfrentou.” Minhamãe e meupai ficaram muitocontentes. Mas havia alguémpresentequenão gostou. Eraumsujeito chamado lordeBar, que foi chanceler do meupai. Ao que parece, eletinhafeito alguma coisa errada... peculatoou uma palavra parecida... Não entendi muito bem esta parte da história... Papai teve de demitir o tallorde. Masnão fez maisnadacontraele, e o sujeito continuou vivendo porlá. Maistarde ficaram sabendo queele recebia dinheiro do Tisroc e játinha fornecido uma porção de informações secretas para Tashbaan. Sabendo queeu ia salvar o país de umgrandeperigo, resolveu metirar do caminho. Fui seqüestrado, não sei bemcomo. Estava tudopreparado: umnavio, tripulado comgente dele, estava à nossaespera, prontoparazarpar. Papai, quando soube, jáum pouco tarde, começou a persegui-lo, masquando chegou à praialordeBarjá estava emalto-mar. Então, meupai embarcou num navio de guerra. Duranteseisdias perseguiu o galeão do bandido; no sétimo houve a batalha. Uma grandebatalha, desde as dezhoras da manhãaté o solsumir. Nossagente aprisionou o galeão. Eunão estava lá! O lordeBar morreu na batalha, masantes dera ordensparaqueumoficialme levasse numa das canoas do navio. E essa canoanuncamais foi vista. Massó pode ter sido a mesmaque Aslam (ele parece estarportrás de todas as histórias) empurrou para a praiaparaque Arriche me apanhasse. Gostaria de saber o nome desse oficial, pois deve ter morrido de fomeparaqueeu vivesse.
- Acho que Aslam aqui diria: “Isso é história do outro.” - Foi o primeirocomentário de Aravis.
- Nãome lembrava disso - falou Cor.
- Só estou imaginando como vai se realizar a profecia - disse Aravis - e de qualgrandeperigovocê irá livrar a Arquelândia.
- Bem - disse Cor, umtanto encabulado - eles acham, pelojeito, queeujá fiz isto.
Aravis bateu palmas:
- É claro! Como sou burra! Quecoisamaravilhosa: a Arquelândia jamais passará poroutroperigomaior do que Rabadash. Não está orgulhoso?
- Acho que estou meio assustado - respondeu Cor.
- E agoravocê vai viverem Anvar - disse Aravis, umtantoansiosa.
- Ó, atéme esqueci da minhamissão: papaiquerquevocê venha viverconosco. Disse quenão há mais uma sódama na corte (eles chamam de corte, sei láporquê!) desdequemamãe morreu. Venha, Aravis. Você vai gostar de papai e de Corin. Elenão se parece comigo: foi bem educado. Nãoprecisatermedo...
- Pare comissoou vamos mesmobrigar - replicou Aravis. - É claroque irei.
O encontro de Bri e Cor foi dos maisalegres. E Bri, queainda estava numa disposição de espíritobemsubmissa, concordou que partissem imediatamentepara Anvar: ele e Huin atravessariam a fronteira de Nárnia no diaseguinte. Despediram-se afetuosamente do eremita e partiram. Os cavalos esperavam que Aravis e Cor fossem montados, mas o príncipe explicou que, a nãoseremguerra, quandocadaum deve fazer o que souber de melhor, ninguémem Nárnia ou na Arquelândia teria a menoridéia de montar num cavalofalante.
A observação fez o coitado do Bri relembrarmais uma vez a suavastaignorânciasobre os costumes de Nárnia, e a suagrande possibilidade de futurosequívocos. Assim, enquanto Huin se deixava embalaremsonhos, Bri foi ficando maisnervoso e maisconsciente de todos os seuspassos.
- Coragem, Bri! - disse Cor. - É aindamuitopiorparamim do queparavocê; vocênão tem de ser educado. Tenho de aprender a ler e escrever, heráldica, dança, história, música... enquantovocê vai correr e rolar pelas colinas de Nárnia na maiorfelicidade.
- Masaí é que está - replicou Bri. - Cavalosfalantes rolam na relva? E se não rolarem? Nem posso pensar uma coisa dessas. Você, o queacha, Huin?
- Eu, pormim, vou rolar de qualquermaneira. E acho queninguém vai dar a mínimapraisso.
- Estamos perto do castelo? - perguntou Bri a Cor.
- Depois da primeiracurva.
- Bem, vou dar uma boa rolada agora. Pode ser a última. Um minutinho só.
Levou cincominutos. Ergueu-se bufando, coberto de talos de avenca.
- Estou pronto - disse com a vozsombria. -Vá emfrente, príncipeCor. Para Nárnia! Para o Norte!
Parecia maisumcavalo a seguirumenterro do queumcativo voltando à liberdadedepois de muitotempo.
RABADASH, O RIDÍCULO
Uma curva na estrada colocou-os emcampoaberto; lá, do outrolado de planurasverdes, abrigado dos ventos do nortepor uma altaserracoberta de matas, estava o castelo de Anvar. Muitoantigo, foraconstruído de pedras pardo-avermelhadas.
Antes de chegarem ao portão, viram o rei Luna, quelhesvinha ao encontro, nada parecido com o rei imaginado por Aravis: usava roupasmuito velhas, pois acabava de chegar de uma visita aos canis, na companhia de seus caçadores. Mas a reverênciacomque saudou Aravis ao segurar-lhe a mãoeradigna de umimperador.
- Minhagentilsenhorita, de todo o coraçãonóslhe damos as boas-vindas. Minhamulher, se estivesse viva, a receberia commaiscarinho, masnão o faria de maior boa vontade. Sinto quelhe hajam sobrevindo infortúniosque a levaram paralonge da casapaterna, o quelhe deve decertomagoar. MeufilhoCor contou-me sobre as aventurasporque passaram juntos e me falou de suabravura.
- Tudo se deve a ele, senhor - respondeu Aravis. - Pois foi elequem correu para o Leão e me salvou.
- Hem? Quehistória é esta? - perguntou o rei Luna com os olhosbrilhantes. - Não conheço esta parte da história.
Ficou sabendo porintermédio de Aravis. Cor, desejoso que a história fosse divulgada, mas sentindo quenão cabia a elemesmo contá-la, gostou dela muitomenos do que esperava, chegando a achá-la umpoucosemgraça. Mas o pai é que se deliciou, recontando-a várias vezesdurante algumas semanas; a talpontoqueCor desejou que o episódionunca tivesse acontecido.
O rei mostrou-se igualmentecortêscom Huin e Bri, fazendo-lhes uma porção de perguntassobresuasfamílias e onde viviam em Nárnia antes de serem capturados. Os cavalos conservaram-se umtantocalados, poisnão estavam habituados a ser
tratadoscomoiguaisporhumanosadultos. Com Aravis e Coreradiferente.
Naquele momento a rainha Lúcia saiu do castelo e aproximou-se do grupo. Disse o rei Luna a Aravis:
- Minhaquerida, apresento-lhe uma boa amiga de nossacasa, e elaprópria estava providenciando paraque os aposentos fossem condignamentepreparados.
- Quer vê-los? - perguntou Lúcia, dando umbeijoem Aravis. Foi amizade à primeiravista; e se foram, conversando sobrequartos e roupas, coisassobre as quais as moças trocam idéias nessas ocasiões.
Depois do almoço no terraço (avesfrias, pastelãofrio, vinho, pão e queijo), o rei Luna franziu a sobrancelha, suspirando:
- Chii! Ainda temos em nossas mãosaquelelamentável Rabadash; temos de decidir o quefazercomele.
Lúcia estava sentada à direita do rei e Aravis à esquerda. O rei Edmundo numa cabeceira e o lorde Darin na outra. Dar, Peridan, Cor e Corin estavam no mesmoladoque o rei.
- VossaMajestade tem todo o direito de decepar- lhe a cabeça - opinou Peridan. - Umassaltocomoeste colocou Rabadash no nível dos assassinos.
- Puraverdade - disse Edmundo. - Masatéumtraidor pode corrigir-se. Conheço um. - E assumiu umarpensativo.
- Mataresse Rabadash é quase o mesmoquefazerguerracom o Tisroc - falou Darin.
- Às favascom o Tisroc! - disse o rei Luna. - Suaforça está nosnúmeros, e númerosnão atravessam o deserto. O quenão tenho é estômagoparamatarhomens (mesmo traidores) a sangue- frio. Cortar o pescoço dele emcombate teria sido umprazer. Mas a coisaagora é diferente.
- A meuver - interveio Lúcia -, VossaMajestade deveria conceder a ele uma outrachance. Deixe-o partirlivremente, sob a promessarigorosa de agircomdecência no futuro. Pode serque cumpra a palavra.
- Talvez os macacos acabem honrados - disse Edmundo. - Mas, peloLeão, se elequebrar a promessa, quelhe cortemos logo a cabeçaemcombatelimpo.
- Vamos tentar - disse o rei, virando-se paraumserviçal: - Traga o prisioneiro.
Rabadash foi trazido preso a suascorrentes. Quem o visse eracapaz de imaginarque passara a noiteemhorrívelcalabouço, semáguanemcomida. Na verdade, ele estivera encerrado num quartobemconfortável, e fora servido com uma ceiaexcelente. Mas, muitoazedoparatocar na ceia, passara a noite sapateando, uivando e amaldiçoando, e não podia mesmoestar na suamelhoraparência.
- Nãoprecisoinformar a VossaAlteza - disse o rei - que, pelas leis das naçõescomotambémpor todas as razões de uma políticasensata, temos todo o direito à suacabeça. Apesar de tudo, levando emconsideração a suajuventude e a suamá-criação, à qual faltam aindagentileza e cortesia, estamos dispostos a enviá-lo emliberdade, desarmado, sob as seguintescondições: primeiro...
- Malditocãosarnento! - cuspiu Rabadash. - Achaque aos menos ouvirei as suascondições? Eu!? Fala de educação e não-sei-o-que-mais! Muitofácil, comumhomem acorrentado! Arranque de mim estas correntes vis, medê uma espada, e quemousarque venha bater-se comigo.
Quasetodos os senhores puseram-se de pé. Gritou Corin:
- Pai! Posso darumsoco na cara dele? Porfavor!
- Paz! Majestades! Senhores! - disse o rei Luna. - Será quenão temos a educaçãonecessáriaparaouvircomtranqüilidade os insultos de umtrapalhão? Sente-se, Corin, ousaia da mesa. Peço mais uma vez a VossaAltezaque escute as nossas condições.
- Não escuto condições de bárbaros e bruxos - respondeu Rabadash. - Ninguém ouse tocar num fio do meucabelo. Cadainsultoqueme lançam será vingado comoceanos de sangue. Terrível será a vingança do Tisroc; não perdem poresperar. Matem-me, no entanto, e as fogueiras e torturas das terras calormanas ainda farão o mundotremer daqui a milanos. Cautela! Cautela! O raio de Tash cai de cima!
- E às vezes fica preso no caminhoporumgancho! - disse Corin.
- Pare comisso, Corin - disse o rei. - Só insulte umhomemmaisforte do quevocê. Assim, Alteza, porfavor.
- Queidiotaeste Rabadash! - suspirou Lúcia.
E logoCor pôs-se a imaginarporquetodos tinham se levantado e ficado muitoquietos. Também fez o mesmo, massódepois entendeu o motivo: Aslam estava entreeles, emboraninguém tivesse percebido a suachegada. Rabadash estremeceu quando o vastovulto do Leão desfilou entreele e seusacusadores. E o Leão falou:
- Rabadash, cuidado! Seudestinoanda próximo, mastalvezainda possa evitá-lo. Esqueça o seu orgulho (do quevocê pode orgulhar-se?) e a suaira (quemlhe fez mal?) e aceite a compaixão destes bondososreis.
Rabadash então revirou os olhos e espichou a boca numa horrívelcareta, comoumtubarão, e abanou as orelhasparacima e parabaixo (não é difícilaprender a fazê-lo). Sempre achara isso muito eficienteentre os calormanos. Os maisbravos tremiam quandoele fazia essas caras; os maissimples caíam no chão; e os maissensíveis geralmente desmaiavam. Rabadash só esquecera uma coisa: muitofácil é apavorarquem se pode mandarcozinharvivocom uma palavra. Na Arquelândia, porém, as caretasnão produziam o menorefeito. Lúcia chegou até a pensarqueele estava passando mal e ia ficarpior.
- Diabo! Diabo! Diabo! - guinchava o príncipe. - Sei quemvocê é. Você é o espíritomau de Nárnia. O inimigo dos deuses. Sabe com quem está falando? Sabe, fantasma? Descendo de Tash, o inexorável, o irresistível. Caia sobrevocê a maldição de Tash! Raiosemforma de escorpião chovam sobrevocê. As montanhas de Nárnia serão reduzidas a cinzas. O...
- Calma, Rabadash - disse Aslam, com placidez. - O destino está próximo. Está à porta. Já levantou o trinco.
- Caiam os céus! - guinchou Rabadash. - Escancare-se a terra! Sangue e fogo entupam o mundo! Pois fiquem sabendo quenemassim descansarei, atéarrastarpara o meupalácio, pelos cabelos, essa rainhabárbara, filha de cachorros, a...
- Chegou a hora - disse Aslam.
Paraseuhorrorsupremo, Rabadash viu quetodos estavam às gargalhadas.
Nãoerapossívelfazeroutracoisa, a nãoserdarrisadas. Rabadash estivera abanando as orelhas o tempotodo, e, assimque Aslam disse “Chegou a hora!”, suasorelhas começaram a ficarmais compridas e mais pontudas e acabaram cobertas de pêlo cinzento. E, enquantotodos se indagavam ondejá tinham vistoorelhascomo aquelas, também a cara de Rabadash começou a mudar. Maiscomprida... maislarga... maisolhuda... Nariz afundado na cara (ouera uma cara se inchando toda e virando umnarigão?). Tudopeludo. Os braços foram ficando compridos, compridos, atéque as mãos tocaram no chão. Sóquenão eram mãos: eram cascos. Quatrocascos. Sumiram as roupas, debaixo de gargalhadas e de aplausos (quefazer?), poisagora Rabadash era simplesmente, inequivocamente, umburro. O terrível é que a suafalahumana durou ummomentoalém da figurahumana, e, assim, quando percebeu a transformação, berrou:
- Ó, burronão! Piedade! Burronão! Atécavalo serve... cavaloainda aceito... Burronão! rem... rê... rô... ri... rá... E assim as palavras se perderam num vastozurro de burro.
- Agorameouça, Rabadash - falou Aslam. - A justiça é mesclada de compaixão. Vocênão será umasnoparasempre.
O burro espichou naturalmente as orelhas... o quetambém foi tãoengraçadoquetodos caíram outravez na gargalhada. Tentavam ficarquietos, masnãoerapossível.
- Você pediu o auxílio de Tash - prosseguiu Aslam - e no templo de Tash será curado. Suba ao altar de Tash em Tashbaan, no Festival de Outono, esteano, e lá, à frente de todos, perderá sua forma de asno, e todos saberão que o asno é na verdade o príncipe Rabadash. Mas, enquanto viver, se uma sóvez afastar-se mais de dez quilômetros do templo de Tashbaan, voltará a sercomo é agora. E de uma recaídajamais ficará bom.
Fez-se umcurtosilêncio. Depoistodos se agitaram e olharam uns para os outros, como se estivessem acordando. Aslam havia partido. Só restava umlampejo no ar e na relva, e júbilonos corações, o quelhes dava a certeza de quenãoforaumsonho. Além do mais, o burro estava lá na frente deles.
O rei Luna, o maiorcoraçãoentretodos os homens, ao ver o inimigo nessas lamentáveis condições, esqueceu toda a suaira.
- Alteza - disse - estou sinceramente sentido que as coisas tenham chegado a esteextremo. Não dependeu de nós, e VossaAlteza sabe disso. Teremos o maiorprazeremprovidenciar o seu embarquepara Tashbaan para... paraaviar a receita prescrita por Aslam. Terá na viagemtodo o confortoquepermitir a suaatualsituação: o melhor barco de transporte de gado... as cenouras maisfrescas e...
Masumzurroensurdecedor e umcoice na perna de umguarda demonstraram claramenteque essas gentis ofertas foram recebidas com ingratidão.
E aqui, para tirá-lo do caminho, é melhor aca-
barcom a história de Rabadash. Enviado de volta, compareceu ao Festival de Outono, tornando-se novamentehomem. Umas quatrooucincomilpessoas viram a transformação, e o casonão pôde ser silenciado. Depois da morte do velho Tisroc, quando Rabadash se fez tisroc dos calormanos, tornou-se o maispacífico tisroc da história do país. Não ousando afastar-se mais de dezquilômetros, jamais podia ir à guerra, e não desejava queseus tarcaãs conquistassem fama guerreira às suascustas, pois é assimque os tisrocs são destronados. Apesar do egoísmo dos seus motivos, foi bemmaiscômodopara os pequenos países vizinhos.
Seuprópriopovojamais se esqueceu de queele havia sido umburro. Durante o seureinado foi cognominado Rabadash, o Pacificador, mas, depois da suamorte, passou a ser Rabadash, o Ridículo. Aindahoje, nas escolas calormanas, se alguém faz alguma coisabastanteidiota, é chamado de Rabadash.
Em Anvar todomundo estava contenteporocasião de umgrandeacontecimento: uma festa na esplanada do castelo, comdezenas de lanternas juntando-se à luz do luar. O vinho jorrava, contavam-se histórias, faziam-se gracejos; então fez-se silêncio, e o poeta do rei, acompanhadopordoistocadores de rabeca, foi para o centro do picadeiro. Aravis e Cor prepararam-se para uma chatice, poissó conheciam a poesia dos calorma-nos, e agoravocêjá sabe de quetipoela é. Mas, ao primeirotrinado das rabecas, foi como se umfoguetelhes passasse pelacabeça. O poeta cantou a grandebalada do Belo Olvin e como, vencendo o gigante Piro, conseguiu transformá-lo empedra (daí a origem do Monte Piro, pois se tratava de umgigante de duas cabeças), para casar-se com a dama Liln. Quando acabou, desejavam que a balada recomeçasse.
Não sabendo cantar, Bri contou a história da Batalha de Zalindreh. Lúcia contou mais uma vez (só Aravis e Cornão a conheciam) a história d’O leão, a feiticeira e o guarda-roupa, na qual se narra como Edmundo, Susana, Pedro e ela chegaram a Nárnia.
Depois chegou o momentoemque o rei Luna disse que as crianças deviam irpara a cama, devido ao adiantado da hora. E acrescentou ainda:
- Amanhã, Cor, você percorrerá comigotodo o palácio, examinando os seuspontosfortes e fracos, pois a você caberá guardá-lo quandoeume for.
- Mas Corin é que será o rei, pai - protestou Cor.
- Nada disso, rapaz - replicou o rei Luna. - Você será o meuherdeiro. Cabe a você a coroa.
- Masnão quero a coroa - disse Cor. - Prefiro muitomais...
- Não interessa, Cor, o quevocê prefere. É a lei.
- Mas, se somos gêmeos, somos da mesma idade!
- Nada disso - respondeu o rei, rindo-se. - Um tem de virprimeiro. Você é maisvelho do que Corin vinte minutos. E maisajuizadotambém, espero. - Olhou para Corin, piscando.
- Mas, pai, o senhornão pode escolher quem quiser pararei?
- Não. O rei obedece às leis, pois as leis o fizeram rei.
- Puxavida! - disse Cor. - Não quero a coroa de jeitonenhum. Olhe aqui, Corin... a culpa não é minha. Nunca pensei que acabaria passando a perna no seureinado.
- Viva! Salve! - gritou Corin. - Não tenho de serrei! Não tenho de serrei! Vou serpríncipe a vidatoda. Os príncipes é que se divertem!
- É aindamaisverdade do queelepensa, Cor - falou o rei Luna. - Poisserrei é isto: ser o primeiro emtodos os combates e o últimoem todas as retiradas. Quando houver fome no país (o que às vezes acontece nosanospiores), o rei deve alimentar-se frugalmente, e rirmaisalto do queninguém diante de uma refeiçãoparca.
Na escada, a caminho do quarto de dormir, Corainda perguntou a Corin se erapossívelfazer alguma coisa. E a resposta foi a seguinte:
- Se você disser mais uma palavrasobreisso, eulhe meto o braço.
Seria simpáticoterminar a história dizendo que, depois disso, os doisirmãosnunca discordaram a respeito de maisnada; mas sinto dizerquenão foi bemassim. Na verdade, eles discutiam e brigavam comotodos os outrosirmãos. As brigas sempre terminavam comCor derrubado no chão. Pois, emboramaistardeCor se revelasse maisperigoso na guerra, com a espada, ninguém nas terras do Nortejamais boxeou melhor do que Corin. Foi assimque ganhou o apelido de Mão de Ferro. Conta-se, aindahoje, a grande façanha que realizou contra o UrsoRelapso do Pico da Tempestade, queera na verdadeum animalfalanteque retornara à selvajaria. Num dia de inverno, Corin escalou a montanhapelolado de Nárnia e lutou aos socoscom o ursopor trinta e trêsassaltos. Porfim, esmurrado nosolhos, e jásempoderenxergarmaisnada, o urso acabou regenerando-se.
Aravis também teve muitas discussões (e, creio, atébrigas) comCor, mas os doissempre passavam porcima. Anosmaistarde, já estavam tão acostumados a brigar e fazer as pazes, que se casaram, salvando assim as aparências.
Depois da morte do rei Luna, tornaram-se rei e rainha de Arquelândia. Áries, o Grande, o maisfamoso de todos os reis do país, erafilho deles.
Bri e Huin viveram felizesaté uma idade avançada e também se casaram, masnãoumcom o outro. E não passavam muitos meses semque viessem a trote (juntosou separados) para uma visita aos amigos de Anvar.
C. S. Lewis
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